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STADUAL DO
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LUMINENSE
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IBEIRO
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ENF
Campos dos Goytacazes RJ
Fevereiro de 2006
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ACHECO DA
S
ILVA
H
UGUENIN
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Políticas Sociais da
Universidade Estadual do Norte
Fluminense Darcy Ribeiro como parte dos
requisitos exigidos para obtenção do grau
de Mestre em Políticas Sociais.
Orientador: Prof. Dr. Arno Vogel.
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Campos dos Goytacazes RJ
Fevereiro de 2006
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UGUENIN
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Políticas Sociais da
Universidade Estadual do Norte
Fluminense Darcy Ribeiro como parte dos
requisitos exigidos para obtenção do grau
de Mestre em Políticas Sociais.
Orientador: Prof. Dr. Arno Vogel.
B
ANCA
E
XAMINADORA
:
_______________________________________________________________
Prof. Dr. Arno Vogel (Orientador) U
ENF
Doutor em Ciências Humanas
_______________________________________________________________
Prof. Dr. Javier Alejandro Lifschitz U
ENF
Doutor em Sociologia
_______________________________________________________________
Prof. Dr. Carlos Henrique Aguiar Serra – U
ENF
Doutor em História
Prof. Dr. Márcio D’Olne Campos U
NICAMP
Doutor em Física
Aos pescadores
dessas planícies fluminenses.
Agradecimentos
Agradeço
à Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro,
por estes anos de [trans]formação;
aos professores do Centro de Ciências do Homem, pelas
lentes corretivas neste mundo de miopia;
ao meu orientador Arno Vogel, por indicar a direção, quando
não tinha sequer o caminho, o que só um amigo pode fazer;
ao professor Márcio D’Olne Campos, por ter me iniciado na
tradiçãoquando quase todos pretendem o (s) moderno;
à C
APES
, por tornar este empreendimento materialmente
viável;
aos meus interlocutores de Garg, co-autores deste
trabalho, pelas conversas e pescarias;
aos meus amigos das horas de incertezas, Júlio Esteves,
Renata Reis e Hélia Gaspar, pelos ombros, pelas mãos e
pelos sorrisos sempre abertos;
à Lúcia Goulart, pela solicitude e carinho;
à Beatriz Goulart, pela amizade incondicional no doce e no
amargo da vida, sendo sempre o mais amável.
Agradecer significa, segundo o Aurélio, mostrar-se grato por;
demonstrar, manifestar gratidão. Significa, tamm, retribuir.
Tomara que este trabalho seja recebido como dádiva.
I mention this story also as the best method I can advise any person to take in
such a case, especially if he be one that makes conscience of his duty, and
would be directed what to do in it, namely, that he should keep his eye upon the
particular providences which occur at the time, and look upon them complexly,
as they regard one another, and as all together regard the question before him:
and, them, I think, he may safely take them for intimations from Heaven of what
is his unquestioned duty to do in such a case; I mean as to going away from or
staying in the place where we dwell, when visited with an infectious distemper.
Daniel Defoe (1660–1731)
em
A Journal of the Plague Year,
1722
.
R
ESUMO
A bacia do rio Paraíba do Sul, localizada na região Sudeste brasileira, é
historicamente marcada por desastres decorrentes de despejos de efluentes
industriais em seus rios. Interrupção do abastecimento de água e mortandades
de peixe são fenômenos recorrentes desde a década de 1960, quando o
processo de industrialização e urbanização se intensificou na região. Dois
desastres destacam-se como os mais graves já ocorridos na bacia: o da
Paraibuna de Metais, ocorrido em 1982 e o da Cataguazes de Papel, ocorrido
em 2003. O presente trabalho analisa, a partir de fontes jornalísticas, as
conseqüências de ambos na sociedade do Norte-Fluminense, à luz do conceito
de drama social consagrado por Victor Turner. O estudo avalia os desastres
como palcos de dramas sociais, quando rupturas, crises, reformas,
reconciliações e rompimentos tornaram a poluição dos rios da bacia um
problema público. A partir do registro etnográfico, confere ao desastre da
Cataguazes de Papel um ponto de vista nativo, situando os pescadores de
Garg, assentamento pesqueiro localizado na foz do rio Paraíba do Sul,
nesse contexto dramático, recorrendo às narrativas de suas experiências em
relação à tragédia. O trabalho discute, dentro do campo de uma Antropologia
Política, a vulnerabilidade ao riscoe a desigualdade social e ambiental de
uma população tradicional do litoral fluminense.
Palavras-chave
:
1. Desastres ambientais 2. rio Paraíba do Sul 3. Pescadores
artesanais 4. Gargaú 5. Drama social.
ABSTRACT
The river basin of the Paraíba do Sul, positioned in the southeast of Brazil, is
historically scourged by disasters generated from waste materials carried off by
industrial sewers. The discontinuity of water supply to the population and the
killing of fish are recurring events, since the late 60s, due to the intensification
of urban and industrial development. Two specific calamities stand out among
the most serious tragedies in this basin: the Paraibuna Metal Factory, in 1982,
and the Cataguazes Paper Industry, in 2003. This essay analyzes the
consequences both to the population and the society of that region. Through
publishing periodicals and ethnographical research, in the steps of Victor
Turners social drama concepts. The study focuses on the disasters as stages
for social dramas, when disrupts, crises, reforms, reconcilements and breaches
have polluted the rivers of the basin and it has become a public problem. The
Cataguazes calamity is considered both from an ethnographical and an
indigenous point of view, based on oral accounts of fishermen from Garg, a
small village located in the mouth of the river Paraíba do Sul. The work argues,
within the field of political anthropology, the liability to risk as well as the social
and environmental inequality of the traditional northern coastline population of
the State of Rio de Janeiro.
Key words: 1. Environmental disasters 2. South Paraíba river 3. Skilled
fishermen 4. Gargaú 5. Social drama.
S
UMÁRIO
Introdução
..................................................................................................... 11.
i. Entre o campo e o campus: a experiência etnográfica ................................. 15.
ii. Ilhas de edição: fontes jornalísticas como sinais indiciários do drama ........ 22.
iii. Itinerário e paradeiro ................................................................................... 24.
I. Sede sediciosa: notas para uma Antropologia da Experiência
............. 28.
II. O rio, os muxuangose as mortandades de peixe
............................... 40.
II.1. As margens do rio Paraíba do Sul ........................................................... 41.
II.2. Os muxuangosde Gargaú ...................................................................... 45.
II.3. Breve histórico de mortandades de peixe............................................... ..54.
III. Desastres ambientais no rio Paraíba do Sul como dramas sociais: os
casos Paraibuna de Metais e Cataguazes de Papel
.................................. 61.
III.1. As rupturas .............................................................................................. 64.
III.2. As crises .................................................................................................. 65.
III.3. As reformas ............................................................................................. 77.
III.4. De volta às crises .................................................................................... 80.
III.5. Reconciliações ou rompimentos?............................................................ 82.
III.6. Os pescadores nos dramas..................................................................... 92.
IV. Etnografia de ofensas: o desastre da Cataguazes de Papel do ponto
de vista dos pescadores de Gargaú
......................................................... 101.
IV.1. A ofensada mancha............................................................................ 110.
IV.2. A confiança ofendida ........................................................................... 114.
IV.3. A mitigação das ofensas......................................................................122.
V. Dramas, ‘ofensase venenos: notas finais para uma Antropologia
Potica
.......................................................................................................... 130.
Referências Bibliográficas
.........................................................................
137.
Anexo 1: Portaria nº16 do I
BAMA
................................................................. 143.
Anexo
2: Fotos dos desastres ambientais
................................................145.
Í
NDICE DE
F
OTOS
Figura 1...........................................................................................................145.
Figura 2 ..........................................................................................................145.
Figura 3 ......................................................................................................... 145.
Figura 4 ......................................................................................................... 145.
Figura 5 ......................................................................................................... 146.
Figura 6 ......................................................................................................... 146.
Figura 7 ......................................................................................................... 146.
Figura 8 ......................................................................................................... 147.
Figura 9 ......................................................................................................... 147.
Figura 10 ....................................................................................................... 147.
Figura 11 ....................................................................................................... 148.
Figura 12 ....................................................................................................... 148.
Figura 13 ....................................................................................................... 148.
Figura 14 ....................................................................................................... 149.
Figura 15 ....................................................................................................... 149.
Figura 16 ....................................................................................................... 149.
I
NTRODUÇÃO
Talvez pelo imperativo da dádiva, quase ningm é capaz de negar um
copo dágua a quem quer que lhe peça. Ao gesto realizado, cumpre-se a
retribuição com um ‘Deus lhe pague. Por ser tão imprescindível à vida, a água
é mais que um recurso natural. É matéria polissêmica: elemento simbológico
em rituais, como para o batismo cristão; expediente de trabalho, como para os
pescadores; e de lazer, como para os banhistas; produto no mercado, como
para os consumidores de água mineral; arqtipo nos sonhos, como para as
imagens naturais que prescindem ou precedem as iias e os conceitos, na
perspectiva de Gaston Bachelard
1
; veículo da saúde pública, como para o
saneamento etc. Atualmente, a água tem-se tornado alvo de intensos debates,
pois, de sua utilização irresponsável e imoderada, -se início a um processo
de escassez gradativa em algumas partes do mundo. Este fenômeno alardeia
perigos: [...] o aumento das tensões entre Estados em função da necessidade
crescente e inquietante do recurso mais essencial à vida” (V
ILLIERS
, 2002:33).
A disponibilidade hídrica total do planeta distribui-se em 97,3% nos
oceanos; 2,07% em geleiras e calotas polares; e apenas 0,63% em água doce
no estado líquido
2
. Segundo relatório do Banco Mundial
3
, em 22 países, os
recursos hídricos não chegam a 1000 m
3
per capita, nível denunciador da
condição de grave escassez, atingindo mais de 250 milhões de pessoas.
Outros 18 países têm, em média, menos que 2000 m
3
, quantidade considerada
de risco nos períodos de pouca precipitação pluvial. Da soleira do século XXI,
disputas por rios, lagos e mananciais parecem impossíveis de serem evitadas.
Segundo o economista francês Jacques Attali, os recursos hídricos têm-
se tornado tão raros a ponto de, no futuro, provocarem guerras. Enquanto a
demanda por água doce dobra a cada 20 anos, a oferta, ao contrário,
permanece a mesma. Malgrado os esforços para aumentar os recursos
disponíveis (barragens, extração dos lençóis frticos, transposição de rios
etc.), a quantidade de água renovável do planeta não passa de 40.000 km² por
ano. A defasagem entre o contingente disponível e a demanda foi quintuplicada
1
A propósito ver: B
ACHELARD
, G. A água e os sonhos. São Paulo: Martins Fontes, 1989.
2
Cf. S
ILVA
, 1998.
3
Cf. B
ANCO
M
UNDIAL
, 1992 apud S
ILVA
, 1998.
em um século. Cerca de 10 países repartem 60% do recurso do mundo, entre
eles, por ordem decrescente: Brasil, Rússia, China, Canadá, Indonésia e
Estados Unidos. Um terço da humanidade, cerca de 80 países, conhece a
penúria por falta dágua: 1,2 milhão de pessoas não dispõe do mínimo
necessário à sobrevivência. Seis milhões de crianças morrem anualmente pela
ingestão de água contaminada
4
.
O Brasil possui um quinto de toda a reserva global de água, a maior
quantidade do planeta, portanto, contida dentro de uma única fronteira
nacional
5
. Segundo a organização não-governamental WWF Brasil
6
, em estudo
elaborado para a campanha Água para a vida, água para todos de 2003, os
recursos hídricos brasileiros estão distribuídos de modo heterogêneo entre as
regiões: 68% se encontram na região Norte; 16% na região Centro-Oeste; 7%
na região Sul; 6% na região Sudeste; e 3% na região Nordeste. Mas apesar de
abundante, cerca de 40 milhões de brasileiros não têm acesso à água potável,
seja pela distribuição geográfica desigual do recurso, seja pelos problemas de
saneamento dos grandes cleos urbanos.
Um dos maiores problemas do país com relação à água doce
corresponde à poluição constante e excessiva de rios e lagos. Segundo o
estudo supracitado, o despejo de dejetos domésticos, agrícolas e industriais
nos rios, a contaminação de lençóis frticos por lixões e aterros e a
construção de barragens e hidrovias que não atendem aos critérios ambientais
são os principais fatores que ocasionam a degradação dos recursos hídricos
nacionais. O Brasil é um dos maiores poluidores de água do mundo, sendo
superado apenas pelos países do Leste europeu e regiões da China
7
.
A região sudeste brasileira, além de ser a mais urbanizada, concentra a
maior parte das indústrias do país, sendo, portanto, importante produtora de
poluição industrial despejada em águas doces. Problemas com rejeitos
domésticos e agrícolas somam-se ao derrame de efluentes industriais no
processo de degradação dos rios da região, vide o Tietê, Cubatão, Paraibuna,
Pinheiros e, locus deste estudo, o Paraíba do Sul.
4
Cf. A
TTALI
, 1998.
5
Cf. V
ILLIERS
, 2002.
6
Cf. Site da O
NG
: www.wwfbrasil.org.br
7
Cf. V
ILLIERS
, 2000.
No último quartel do século XX, o intenso processo de industrialização e
urbanização ocorrido ao longo da bacia do rio Paraíba do Sul culminou com um
vasto cenário de degradação ambiental expresso na falta de qualidade de suas
águas, no seu gradativo assoreamento e na deterioração de suas fauna e flora
ciliar. Neste processo, contribuíram a construção de barragens e o lançamento
nos rios de esgoto e produtos tóxicos provenientes do campo e da indústria.
Destarte, vários episódios de derramamento de efluentes industriais, que
tornam a poluição um problema flagrante, têm ocorrido na bacia do Paraíba do
Sul nas duas últimas cadas do século XX. Segundo a Agência Nacional de
Águas (A
NA
)
8
, destacam-se dois derramamentos que, pelos graves prejuízos
causados ao ambiente e à sociedade, são considerados os mais graves
desastres em águas doces do Brasil: o rompimento da barragem de lama
tóxica da Cia. Paraibuna de Metais no rio Paraibuna, em 1982, que lançou
metais pesados nos rios Paraibuna e, a jusante, no Paraíba do Sul; e o recente
rompimento da barragem da indústria Cataguazes de Papel, que despejou nos
rios Pomba e, em seguida, no Paraíba do Sul, cerca de 1,2 bilhão de litros de
rejeitos químicos, subprodutos da fabricação de papel.
Milhares de pessoas dos cleos urbanos e rurais por onde passam os
rios atingidos nos respectivos desastres ficaram sem abastecimento público de
água por cerca de duas semanas em 1982 e em 2003. Como fatos sociais
totais, estas tragédias ambientais cancelaram, em toda a sociedade do Norte-
Fluminense, a normalidade, o fluxo ordirio da vida, cedendo lugar às
experiências de dramas sociais que, no limiar de seu acontecimento,
revelaram, na encenação de rupturas, crises, reformas, reconciliações e
rompimentos, os grupos sociais e políticos locais, em processos de alocação
de responsabilidade pela poluição dos rios.
Se os dramas são situações da experiência humana capazes de revelar
muitos aspectos da vida social
9
, são eles tamm unidades processuais em
que se nos apresentam, em síntese, os dilemas contemporâneos da
modernidade. Pois, enquanto a sociedade do Norte-Fluminense teve que lidar,
temporariamente, com a falta de água e com os transtornos decorrentes
8
Conforme o relatório: Sistema de alerta de qualidade da água para a bacia do rio Paraíba do
Sul, divulgado em 2003.
9
Cf. Turner, 1980.
daquelas interdições, pescadores de diversos assentamentos pesqueiros das
regiões atingidas tiveram que enfrentar o ócio forçado, privados que ficaram de
seu meio de vida – os rios. Assim, estes pescadores e suas famílias que, por
exercerem uma atividade onde os ritmos naturais e sociais estão associados,
vivem, desde sempre, segundo um modo de vida tradicional, lidaram com os
riscos modernos nas duas situações de desastres, onde, nos limites dos
dramas estabelecidos, sua posição de desigualdade social e ambiental na
sociedade foi exposta.
A partir de fontes jornalísticas, reconstruo os referidos desastres,
interpretando-os como dramas sociais, com seus conflitos, clivagens e
alianças, privilegiando a situação dos pescadores face à poluição dos rios da
bacia. No caso Paraibuna de Metais, recorro apenas àquelas fontes para
remontar o quadro dramático e extraordirio que se delineou no Norte-
Fluminense e, no caso Cataguazes de Papel, utilizo o mesmo material,
acrescentando-lhe uma etnografia que visou apresentar o ponto de vista
nativo sobre o desastre, tomando como nativos, os pescadores de Garg,
assentamento pesqueiro localizado na margem esquerda da foz do Paraíba do
Sul, no município de São Francisco do Itabapoana.
Este trabalho pretende, pois, analisar problemas ambientais como
dramas sociais, privilegiando a perspectiva dos pescadores de Gargsobre o
desastre provocado pela Cataguazes de Papel em 2003. A partir das ofensas
que representaram as situações decorrentes daquela tragédia para os
pescadores, discuto a posição de vulnerabilidade em que se encontram, com
freqüência, populações tradicionais diante desses riscos, tal como se formulam
nos laudos produzidos pela expertise científica da modernidade.
Os recursos naturais, neste caso, a água, que, em princípio, deveria ser
um bem de acesso universal, um gift (presente, dádiva), torna-se um gift
(veneno)
10
nas relações sociais contemporâneas, seja entre Estados-Nação,
seja entre diferentes grupos de uma mesma sociedade. No limiar do século
XXI, portanto, o acesso à água, elemento imprescindível à vida, começa, cada
vez mais, a ser negado a alguns. A emergência de dramas não apenas é
inevitável, mas já se apresenta à realidade.
10
Cf. G
ODBOUT
, 1999.
i. Entre o campo e o campus: a experiência etnográfica
Há muito, as etnografias deixaram de ser registros exclusivos do
etgrafo sobre o nativo e sua realidade. Aliás, a escrita produzida no gabinete,
o escrever aqui’ sobre o estar lá, na expressão de Clifford Geertz (1989a),
tem-se mesclado com as expressões do outro – suas opiniões, impressões e
narrativas compartilhadas com o antropólogo durante o trabalho de campo.
Se a negociação das alteridades do pesquisador e do informante – é
administrada numa perspectiva dialógica, a etnografia não tem outra saída a
não ser a polifonia, isto é, a multivocalidade e a interlocução como vias de
acesso ao universo dos indivíduos em interação. Assim interpretações
arbitrárias e hiteses pré-fabricadas se desfazem à medida que [...] o silêncio
da oficina etnográfica é quebrado por insistentes vozes heteroglotas e pelo
ruído da escrita de outras penas” (C
LIFFORD
, 1998:22). O trabalho
antropológico, conduzido, em geral, através da observação participante, tornou-
se, sobretudo, espaço de experiências de apreensão do outro e de
possibilidades de tradução cultural.
A observação participante obriga seus praticantes a experimentar, tanto
em termos físicos quanto intelectuais, as vicissitudes da tradução. Ela
requer um árduo aprendizado lingüístico, algum grau de envolvimento
direto e conversação, e freqüentemente um desarranjo das expectativas
pessoais e culturais (C
LIFFORD
, 1998:20).
Se, no entanto, as etnografias dialógicas são polifônicas, escritas por
muitas mãos pergunta Clifford – que direitos autorais tem o antropólogo sobre
o trabalho etnográfico e como essas presenças autorais devem ser
manifestas? Responderia que o antropólogo goza de autoria na medida em que
seleciona, observa e interpreta os fenômenos da vida social que deseja tornar
compreensível. Sua descrição da realidade se legitima a partir da experiência
no campo, seja arrolando dados quantitativos, seja partilhando de uma
amizade verdadeira. O direito autoral de sua escrita reside na construção
ficcional, como diria Geertz, do contexto nativo:
Trata-se, portanto, de fiões, fiões no sentido de que são algo
construído, algo modelado – o sentido original de fictio não que sejam
falsas, não-factuais ou apenas experimentos de pensamento (G
EERTZ
,
1989b:25-26).
Se a realidade que consta no texto etnográfico, no entanto, está filtrada,
isto é, não foi obtida em primeira mão do nativo, que mecanismos textuais o
antropólogo poderia utilizar para diluir sua presença e deixar que outras
autorias se revelem, tornando o campo visível ao leitor? Inspirada na
sinceridade metodológicapreconizada por Malinowski
11
, argumentaria que a
reprodução literal de falas e narrativas dos interlocutores, ainda que
embaraçadas e destoantes de uma desejada (na Academia) norma culta da
língua, deve figurar no texto etnográfico tanto como evidências diretas das
especulações do etgrafo, quanto como registros de uma interpretação
própria do nativo – por excelência autoral.
Assim, a polifonia etnográfica não equivale ao silêncio do antropólogo,
reduzido a mero organizador de narrativas, mas antes, desemboca num
espaço mesclado, onde a realidade é interpretada à luz das alteridades do
pesquisador e seus interlocutores através da experiência de ambos no campo.
A pesquisa etnográfica e os dados que dela derivam são a única herança que
pode sobreviver às refutações tricas, pois, diante das notas de um diário de
campo ou de uma fita com a fala nativa, não se pode duvidar da empiria do
trabalho antropológico.
Dito de outra maneira, o lugar da pesquisa de campo no fazer da
Antropologia não se limita a uma técnica de coleta de dados, mas é um
procedimento com implicações tricas específicas. Se é verdade que
técnica e teoria não podem ser desvinculadas, no caso da Antropologia
a pesquisa etnográfica é o meio pelo qual a teoria antropológica se
desenvolve e se sofistica, quando desafia os conceitos estabelecidos
pelo confronto que se dá entre a teoria e o senso comum que o
pesquisador leva para o campo e a observação entre os nativos que
estuda (P
EIRANO
, 1992:8).
11
Conforme a passagem encontrada na introdução aos
Argonautas do Pacífico Ocidental
(1922): Considero que só terão inquestionável valor cienfico as obras etnográficas em que
possamos separar claramente, de um lado, os resultados da observação direta das afirmações
e interpretações dos nativos e, de outro, as inferências do autor, baseadas em seu bom senso
e em seu discernimento psicológico. Para ter sinceridade metodológica, portanto, os
etnógrafos devem distinguir suas próprias observações diretas das indiretas.
A experiência no campo, portanto, é formativa e impossível de
obscurecer-se por esta ou aquela teoria. Por outro lado, as monografias são
produzidas no campus, isto é, são formuladas a partir dos cânones tricos
que legitimam o trabalho antropológico. Neste sentido, o problema do registro
etnográfico, segundo Geertz (1989a), concentra-se na questão de como
representar o que se passou lá (no campo) dito daqui (na Academia). Este não
é um dilema meramente psicológico e tampouco trico, mas um problema
literário, qual seja, de como o etgrafo deve narrar a sua experiência e a dos
outros os nativos. Insisto no argumento de que não se deve cair no estilo
confessional, nem no estilo organizador da fala alheia, mas, dentro da
perspectiva dialógica, deve-se buscar o truncamento entre a elaboração
modelar e interpretativa do antropólogo e as falas nativas, numa narrativa
híbrida e, portanto, polifônica, que encontre a tradução do real em consonância
com o projeto da Antropologia: a formulação de uma iia de humanidade
construída pelas diferenças.
Assim, o fio narrativo que conduz esta dissertação amarra minha
experiência no campo (e conseqüente interpretação do universo alheio) às
falas de meus interlocutores em Garg, de modo a revelar a realidade a partir
de um ponto de vista nativo. Narrar significa acolher o que se vai contar no
processo narrativo através da seleção de fenômenos de um evento. Significa,
portanto, mobiliar o mundo, transformando experiências em conhecimento.
Neste sentido, transcrever alguns relatos das pessoas com quem dialoguei no
campo sugere a partilha da autoria deste trabalho.
Na teoria, o registro antropológico se edifica, mas jamais se torna viável
sem dados, que, afinal, são o produto da relação entre o pesquisador e o
informante. Entre o campo e o campus, a experiência etnográfica consiste no
reconhecimento de alteridades e no esforço de traduzi-las de modo a praticar o
exercício de ouro da Antropologia: transformar o exótico em familiar e o familiar
em exótico. Ao longo desta monografia, levo Gargaú e alguns de seus
habitantes ao conhecimento do leitor, invocando as possíveis diferenças que se
lhes apresentam. Mas, é preciso antes, especular sobre o sentido de minha
presença no assentamento na perspectiva dos nativos, como o estranho a
quem se pretende ou não conhecer.
Em 2001 visitei Gargaú pela primeira vez para dar início à pesquisa
desenvolvida com catadoras de caranguejo – caranguejeiras, trabalho que
buscava compreender a relação entre ritmos naturais e ritmos sociais no
modus vivendi daquele grupo. A pesquisa de campo se estendeu por cerca de
10 meses e resultou na monografia Caranguejeiras de Gargaú:
sustentabilidade do ponto de vista nativo, apresentada ao Programa de
Graduação em Ciências Sociais da Universidade Estadual do Norte
Fluminense Darcy Ribeiro (U
ENF
) em meados de 2002.
No princípio, minha relação com as caranguejeiras e com os
gargauenses em geral foi marcada por melindres. Identificada, na perspectiva
nativa, como a moça da lei’ ou a moça do IBAMA
12
, imputavam-me certa
autoridade que cancelava previamente o acontecimento de qualquer conversa
de tom banal ou confidencial. A formalidade se impunha, embora houvesse um
clima cordial. Sem vida, a atribuição da ‘lei’ à minha identidade se configurou
num dado que, adiante, tornou-se o mote da pesquisa: a portaria nº 70 do
IBAMA, de regulamentação da cata do caranguejo, que vigorava na época, e
contradizia o saber local sobre os ritmos naturais do recurso. Sendo eu uma
possível representante do Estado (e do seu aparelho jurídico e coercitivo), só
poderia estar em Gargaú ou bem para vigiá-las (o mais provável na perspectiva
nativa) ou bem para ajudá-las no que tangia ao cumprimento da portaria.
Se há uma característica que pesa, nas relações pessoais, esta é
certamente a confiança. Impossível não estabelecê-la ao ganhar um amigo, um
companheiro ou um informante/interlocutor. A credibilidade é o que garante o
acesso aos diversos umbrais do universo alheio. Para o antropólogo, a
confiança é a medida de sua relação com os nativos. A revelação do íntimo ou
do banal e, fundamentalmente, dos dramas sociais, ocorre na proporção em
que se estabelecem garantias de que o produto final (toda a gama de
possibilidades afetivas, morais, institucionais etc de uma relação) será
partilhado de modo a suprir as expectativas geradas no processo de
conhecimento dos pares.
A confiança pode ser definida como crença na credibilidade de uma
pessoa ou sistema, tendo em vista um dado conjunto de resultados ou
12
Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis.
eventos, em que essa crença expressa uma fé na probidade ou amor de
um outro, ou na correção de princípios abstratos (conhecimento técnico)
(G
IDDENS
, 1991:41).
A realidade constante de minha presença no assentamento foi, aos
poucos, diluindo a imagem da ‘lei’, tanto mais, por evitar encontros no campo
com representantes do IBAMA. A desconfiança, o pé atrásfoi se dissolvendo
na proporção da regularidade de minhas visitas e do conteúdo de minhas
conversas com as caranguejeiras. Não obstante, o fato de eu entrar no
mangue, muitas vezes tomou o ar de inspeção e, muito provavelmente, para
alguns, o estigma da ‘lei’ ainda acompanhe minha identidade
13
.
Entretanto, quando não estamos preocupados em sugarapenas as
informações pertinentes à pesquisa e damos vazão aos anseios, às vidas e
às confissões particulares do outro, um elo de reciprocidade vai se construindo
em torno das relações e, ao fim de um dia de trabalho no campo, podemos ser
convidados para um café ou para ouvir um o que você acha que eu devo
fazer?Descobrir a minha imagem em Gargfoi o primeiro artifício para
direcionar a pesquisa. Pude, então, convencer as caranguejeiras de minhas
propostas, dispensando a autoridade que me era imputada. Ao final de mais ou
menos dois meses de trabalho comecei a escutar afirmações do tipo: agora eu
vou dizer a verdade sobre isso.
A Antropologia é a ciência da reflexividade
14
. Ser uma moça da lei’ foi
um grande desafio naquilo em que o trabalho antropológico se destaca:
deslocar a nossa própria subjetividade. Não considero esta imagem totalmente
dissolvida, afinal, somos sempre membros de uma classe, de um grupo ou de
uma instituição que nos diferencia, mas, por outro lado, é esta alteridade que
nos permite ser exóticos uns para com os outros. O diálogo foi estabelecido e a
confiança conquistada. Através da empatia se materializou a ponte, [...] pois
só existe antropólogo quando há um nativo transformado em informante. E só
há dados quando há um processo de empatia correndo lado a lado” (D
A
M
ATTA
,
1978:34). Enfim, quando somos convidados a refletir, junto com os nativos,
13
De fato, o exótico nunca pode passar a ser familiar; e o familiar nunca deixa de ser exótico
(D
A
M
ATTA
, 1978:29).
14
[...] é a admissão de que o homem não se enxerga sozinho. E que ele precisa do outro
como seu espelho e seu guia” (D
A
M
ATTA
, 1978:35).
sobre as questões locais, percebemos o quão próximo estamos de uma
cultura.
Assim, quando reiniciei o trabalho de campo em 2004, minha identidade
entre os gargauenses estava mais vinculada à iia de moça da pesquisapela
familiaridade que tinham adquirido com minha presença em Garg. Alguns
dos pescadores, com que mantive contato, foram sempre solícitos,
incorporando-me à sua memória de minhas passagens pelo assentamento.
Pude usufruir pescarias no rio, conversas regadas por café-com-leite e, por
vezes, a expectativa explícita de meu retorno.
Não apenas o elo amigável contribuiu para que o clima no campo fosse
tão amistoso. Sem vida, o tema sugerido nas conversas as conseqüências
do desastre ambiental no Paraíba do Sul para os pescadores impulsionou o
diálogo, fortemente motivado pela necessidade do desabafo. Não foram raras
as lágrimas, os lamentos, as revoltas e a desolação. Como expressão de suas
experiências, estas situações vividas durante o trabalho de campo guiaram e
se deixaram guiar pelo percurso metodológico empregado na pesquisa: a
análise situacional.
Este referencial metodológico, preconizado pela Escola de Manchester e
consagrado, particularmente, por Turner, em seu estudo sobre os Ndembu
15
, é
capaz de compreender certos fatos para além de seu significado na estrutura
social, remetendo ao modo como foram sentidos e interpretados por indivíduos
e por grupos.
O etgrafo deve procurar saber, em cada ocasião, as opiniões e
interpretações dos atores e tamm as das outras pessoas, não com a
finalidade de saber qual é a visão certada situação, mas para
descobrir alguma correlação entre as várias atitudes e, digamos, o
status e papel daqueles que tomam aquelas atitudes (V
AN
V
ELSEN
,
1987:367).
Assim, pude conversar com pescadores do rio, do mar, ou com ambos, e
tamm com suas famílias. Entrevistei pescadores que tamm eram
vendedores de peixe. E peixeiros. E ainda as catadoras de caranguejo. Os
15
Ver a propósito: T
URNER
, Victor. Schism and continuity in an African society: a study of
Ndembu village life. Manchester:Manchester University Press, 1957.
diálogos pautavam-se pela busca de expressões nativas que traduzissem a
experiência de todos com a chegada da manchana região.
Expressões são as enunciações das pessoas, as formulações e
representações de sua própria experiência [...]. Expressões não são
apenas unidades de significado que ocorrem naturalmente, mas tamm
períodos de atividade intensificada, quando os pressupostos da
sociedade estão mais aparentes. Mesmo quando os eventos em uma
expressão não são contíguos no tempo e no espaço, eles apresentam
uma coerência baseada no significado comum. O processo
interpretativo, contudo, sempre opera em dois níveis distintos: as
pessoas que nós estudamos interpretam suas próprias experiências em
formas expressivas, e nós, por outro lado, por meio de nosso trabalho de
campo, interpretamos aquelas expressões para uma audiência
doméstica de outros antropólogos. Nossas produções antropológicas
são as nossas histórias sobre as histórias deles; s estamos
interpretando as pessoas assim como elas se interpretam a si mesmas
(B
RUNER
, 1986:10)
16
.
O resultado da minha experiência etnográfica foi a descoberta das
expressões que tornaram o desastre ambiental provocado pela Cataguazes de
Papel um evento mobilizador de diferenças, no próprio grupo, e deste em
relação à sociedade de modo geral. Neste sentido, podem ser consideradas
uma prova de que as alteridades psíquicas e sociais promovem uma
pluralidade de interpretações acerca de um mesmo fenômeno.
De volta ao campus, tentei acoplar estas expressões nativas aos
conceitos da ciência e construir uma iia do que foi o desastre da Cataguazes
de Papel entre os pescadores, sem deixar de espel-la entre os que, longe do
campo de investigação específico, viveram os fatos extraordirios daqueles
dias dramáticos. Por conjugar diferentes expressões neste trabalho – minhas,
dos nativos, das vozes que se manifestaram através da imprensa, da
16
Expressions are the peoples articulations, formulations, and representations of their own
experience [...]. Expresions are not only naturally occurring units of meaning but are also
periods of heightened activity when a societys presuppositions are most apparent. Even if the
events in an expression are not contiguous in time and space, they do have a coherence based
on a common meaning. The interpretative process, however, always opeats on two distinct
levels: the people we study interpret their own experiences in expressive forms, and we, in turn,
through our fieldwork, interpret these expressions for a home audience of other anthropologists.
Our anthropological productions are our stories about their stories; we are interpreting the
people as they are interpreting themselves[Tradução minha].
Antropologia – o meu trabalho é, sem vida, polifônico. Entre o campo e o
campus, partilho sua autoria.
ii. Ilhas de edição: fontes jornasticas como sinais indiciários do drama.
Nas ilhas de edição, os jornalistas definem as notícias que deverão ser
veiculadas e lhes conferem um formato. Mas, para além do ideal de
neutralidade e objetividade perseguido por alguns veículos de comunicação,
[...] a notícia não é o que aconteceu no passado imediato, e sim o relato de
algm sobre o que aconteceu” (D
ARNTON
, 1990:18). Neste sentido, o jornalista
vive o mesmo dilema do antropólogo: escrever aqui’ o que se passou ‘lá.
Neste trabalho, utilizo fontes jornalísticas como sinais indiciários dos
dramas sociais que decorreram dos desastres da Paraibuna de Metais, em
1982, e da Cataguazes de Papel, em 2003. Através das reportagens e dos
editoriais dos jornais, perscruto os grupos sociais, as dramatis personae suas
ações e opiniões envolvidos tanto nos problemas extraordirios derivados
da falta de abastecimento público de água, quanto no processo de alocação de
responsabilidade pela poluição que se instaurou como mote dos conflitos nos
referidos episódios. Mas, o que são sinais indiciários?
Em Mitos, emblemas e sinais (1999), Carlo Ginzburg apresenta a iia
de um paradigma indiciário postulado no século XIX por um médico italiano
chamado Giovanni Morelli. Na verdade, o paradigma era um método de
avaliação da autoria de obras de arte – quadros que, não assinadas,
repintadas ou em mau estado de conservação, tornavam-se facilmente objetos
de dúvida quanto à sua origem. Assim, Morelli defendia que era preciso
perscrutar os pormenores das pinturas formatos das unhas ou do lóbulo da
orelha – e não os aspectos mais evidentes olhos ou sorrisos para identificar
o artista.
Os museus, dizia Morelli, estão cheios de quadros atribuídos de maneira
incorreta. Mas devolver cada quadro a seu verdadeiro autor é difícil:
muitíssimas vezes encontramo-nos frente a obras não-assinadas, talvez
repintadas ou num mau estado de conservação. Nessas condições, é
indispensável poder distinguir os originais das cópias. Para tanto, porém
(dizia Morelli), é preciso não se basear, como normalmente se faz, em
características mais vistosas, portanto mais facilmente imitáveis, dos
quadros: os olhos erguidos para o céu dos personagens de Perugino, o
sorriso dos de Leonardo, e assim por diante. Pelo contrário, é
necessário examinar os pormenores mais negligenciáveis, e menos
influenciados pelas características da escola a que o pintor pertencia: os
lóbulos das orelhas, as unhas, as formas dos dedos das mãos e dos s
(G
INZBURG
, 1999:144).
Apropriando-me do método de Morelli, perscrutei as reportagens dos
seguintes jornais: O Globo e Monitor Campista dos meses de maio e junho de
1982 e O Globo e Folha da Manhã dos meses de abril e maio de 2003
17
,
procurando indícios de situações de conflito onde se revelavam as estruturas
de um drama social em textos que visavam a informar o leitor sobre as
situações decorrentes dos desastres. As reportagens, como pude averiguar,
acabavam denunciando rupturas, crises, reformas, reconciliações e
rompimentos na sociedade do Norte-Fluminense, incluindo, por vezes,
contendas que se expressavam, através de atores da política, em nível
nacional, a respeito dos casos Paraibuna de Metais e Cataguazes de Papel.
Neste trabalho, a análise de fontes jornalísticas, portanto, é parte do
material empírico que evidencia os dramas decorrentes dos desastres
ambientais de 1982 e de 2003, mas apenas como sinais indiciários de acordos
e desacordos, conflitos e alianças que revelaram os grupos sociais e seu
posicionamento no processo de alocação de responsabilidade pelas situações
extraordirias daqueles episódios através da imprensa escrita.
Não pretendi, nesta empresa, traçar qualquer análise dos discursos
contidos nos jornais ou empreender qualquer interpretação política de suas
linhas editoriais, mas compreender, à luz dos indícios encontrados nas
reportagens, o que acontecia na sociedade do Norte-Fluminense para melhor
dimensionar o que se passava entre os pescadores da região, em particular,
entre os gargauenses. A maneira como este grupo surgia nos textos,
evidentemente, tamm se configura como sinais de sua participação, como
dramatis personae, no drama. No entanto, o que se privilegia como foco de um
ponto de vista nativosão as narrativas registradas no trabalho etnográfico.
17
Foram utilizados outros veículos, de maneira aleatória, quando estes contribuíam com
informações indiciárias das situações de conflito ou dos transtornos conseqüentes da interdição
do abastecimento público de água.
Mas, se os textos jornalísticos puderam contribuir para a revelação dos
dramas, tamm o fizeram em relação às condições de degradação do Paraíba
do Sul. Em reportagens de variados jornais, onde, desde a década de 1960, a
poluição do rio era denunciada pelo processo de urbanização e
industrialização, recém iniciado em sua bacia, encontrei registros de diversos
episódios de mortandades de peixe, o que, em certa medida, historiciza as
condições de privação do meio de trabalho que têm sofrido os pescadores da
região.
Assim, o estar lánas ilhas de edição dos jornalistas foi transportado
para o meu escrever aqui’ na academia, transformando o texto impresso se
não em um interlocutor nativo, pelo menos, por alegoria, naqueles informantes
eventuais motoristas, barqueiros, donos de bares etc que sempre, em tom
de mexerico, nos fornecem indícios do que vamos encontrar adiante, no
campo. E como todo informante, parcial. Mas é exatamente nos escritos
jornalísticos que estes indícios da realidade podem residir: nas palavras do
jornalista que cobriuo fato assim como nas mãos do artista que, de fato,
pintou a tela.
iii. Itinerário e paradeiro
Recebia, em minha residência, um caminhão-pipa que encomendara
para abastecer a caixa dágua quando o telefone tocou. Era o professor e
orientador Arno Vogel:
Você está acompanhando o desastre no Paraíba do Sul? Pois preste
atenção. Esse é o seu caminho!
Pensava, originalmente, numa dissertação sobre a invasão do mar na
localidade de Atafona, no município de São João da Barra – RJ, onde as casas
de pescadores e veranistas começaram a desaparecer pela submersão do
continente desde a segunda metade do século XX. Abandonei a empreitada
com algum pesar, embora tenha assimilado imediatamente as palavras de meu
orientador: pensar a situação do desastre de um ponto de vista antropológico
seria, de fato, contribuir, com algum ineditismo na região Norte-Fluminense,
para o entendimento da relação ser humano/natureza, ou melhor,
pescadores/rio Paraíba do Sul no momento em que esta relação sofria uma
fratura tão expostaque acabou gerando um drama social naquela sociedade.
Vivia, como toda a população, as agruras daqueles dias em que, sem
abastecimento público de água, ficamos atordoados, atônitos, confusos diante
das situações extraordirias que advieram. Era necessário, no entanto, vestir
a indumentária do cientista e, dentro de minha própria experiência do drama
social que se anunciava, investigar a tragédia como um fato capaz de revelar
estruturas, conflitos e diferentes pontos de vista.
A característica mais marcante do trabalho de campo antropológico
como forma de conduta é que ele não permite qualquer separação
significativa das esferas ocupacional e extra-ocupacional da vida. Ao
contrário, ele obriga a essa fusão. Devemos encontrar amigos entre os
informantes e informantes entre os amigos; devemos encarar as iias,
atitudes e valores como outros tantos fatos culturais e continuar a agir
de acordo com aqueles que definem os nossos compromissos pessoais;
devemos ver a sociedade como objeto e experimentá-la como sujeito.
Tudo o que dizemos, tudo o que fazemos e até o simples cenário físico
tem ao mesmo tempo que formar a substância de nossa vida pessoal e
servir de grão para nosso moinho analítico. No seu ambiente, o
antropólogo vai comodamente ao escritório para exercer um ofício, como
todo mundo. Em campo, ele tem que aprender a viver e pensar ao
mesmo tempo (G
EERTZ
, 2001:45).
Assim, decidi retornar a Garg, locus de minha pesquisa anterior, por
certa familiaridade que já adquirira com o lugar e com alguns de seus
habitantes e, sem vida, por serem os pescadores as dramatis personae mais
prejudicadas naquele episódio de 2003. Este trabalho, portanto, investe no
entendimento do desastre da Cataguazes de Papel de um ponto de vista
nativo, sem, contudo, desprezar a sua compreensão entre a população do
Norte-Fluminense.
O primeiro capítulo dimensiona o desastre como um fato total que, ao
envolver toda a sociedade, fez com que ela experimentasse um drama social.
E, a partir das considerações da Antropologia da Experiência, formulada por
Bruner e Turner (1986), narro a ocasião de uma caranguejadaocorrida em
2004, quando a atitude dos participantes frente ao prato principal denunciava
as conseqüências da poluição do Paraíba do Sul na experiência do
extraordirio dramático, que inaugurou sedições na sociedade do Norte-
Fluminense.
O segundo capítulo apresenta alguns dados morfológicos do rio Paraíba
do Sul, bem como descreve o processo de industrialização e urbanização pelo
qual passou sua bacia desde a segunda metade do século XX, transformando-
a num paraíso de poluição. Apresenta, ainda, o muxuango, tipo social criado
por Alberto Ribeiro Lamego, como um referencial metafórico para pensar os
gargauenses. E, por fim, demonstra alguns episódios de mortandades de peixe
que vêm ocorrendo desde a cada de 1960 no rio como evidências de sua
degradação e sinais de que o modo de vida dos pescadores de Gargvem
sofrendo iminentes ameaças.
O terceiro capítulo analisa, dentro do campo de uma Antropologia
Política, o desastre da Cataguazes de Papel, ocorrido em 2003 e o desastre da
Paraibuna de Metais, ocorrido em 1982, como dramas que mobilizaram toda a
sociedade do Norte-Fluminense, revelando, a partir das fases de ruptura, crise,
reforma, reconciliação e rompimento, os grupos sociais que se apresentaram
no processo de alocação de responsabilidade pelos episódios. Além disso,
situa os pescadores, em especial, os de Garg, como dramatis personae no
drama, ressaltando sua posição de desigualdade ambiental frente à sociedade
de modo geral.
O quarto capítulo é uma etnografia em busca de um ponto de vista
nativosobre a experiência dos pescadores de Gargaú em relação ao desastre
da Cataguazes de Papel. As expressões de ofensaspela poluição do
ambiente e pela desconfiança dos consumidores na salubridade dos peixes
são interpretadas como interfaces de um modo de vida tradicional com uma
ordem moderna que produz tanto riscos quanto sistemas abstratos, como
laudos e portarias, capazes aprofundar desigualdades ambientais em situações
de tragédias. Além disso, discute as ações do Estado quanto às políticas
sociais implementadas de modo a mitigar os prejuízos causados pelo desastre
aos pescadores.
O capítulo final discute o problema da poluição ambiental à luz das
relações modernas em que a confiança é uma condição para o consumo. Se a
modernidade é capaz de gerar imeros bens (ou dádivas), é ela tamm a
criadora de paraísos de poluição(ou venenos). Uma vez que uma destas
dádivas é convertida em veneno, por contaminação ou catástrofe, a
reciprocidade das relações sociais é rompida pela ausência de confiança e o
cenário para o drama se arma. No entanto, tanto os venenos quanto seus
efeitos são partilhados de maneira diferente entre os desiguais social e
ambientalmente. Este capítulo aponta a situação dos pescadores de Garg
diante dos riscos de envenenamento do rio Paraíba do Sul.
O trabalho antropológico, como se sabe, não se esgota numa
monografia, pois a vida – seus fluxos ordirios e seus momentos
extraordirios, suas rotinas e seus dramas continua apresentando o novo e
liquidando antigos conceitos. Esta dissertação tem, certamente, um itinerário,
tal como disposto, mas seu tema jamais terá um paradeiro para além destas
ginas.
I. S
EDE SEDICIOSA
:
NOTAS PARA UMA
A
NTROPOLOGIA DA
E
XPERIÊNCIA
Reality only exists for us in the facts of
consciouness given by inner experience.
Wilhelm Dilthey
No verão de 2004 acontecia mais uma caranguejadana praia de Atafona,
localizada no município de São João da Barra – RJ. O evento tornara-se um
marco de inauguração da temporada, quando amigos distanciados ao longo do
ano, enfim, tornavam a se reunir na comensalidade. Sobre as mesas, os
caranguejos cozidos tornam-se objetos de disputa entre os gulosos e motivo de
jocosidade entre os que se atrapalham na etiqueta própria de sua degustação.
Todos, no entanto, os experimentavam como iguaria, reconhecendo-os como um
prato extraordinário em relação aos hábitos alimentares das demais estações
solares anuais. Entre músicas e conversas, bebidas e acompanhamentos, as
caranguejadassão festas tradicionais do litoral Norte-Fluminense durante o
veraneio: ocasiões em que se atualizam laços de amizade e parentesco através
de um código culinário
18
.
18
Em geral, as caranguejadasque ocorrem no litoral Norte-Fluminense durante a temporada de
verão têm como convidados pessoas do círculo doméstico e afins. Nelas, laços de parentesco e
amizade são atualizados, reformados ou inaugurados sob um clima informal e jocoso. Apesar da
motivação das festas se engajar na excepcionalidade do prato com relação às demais estações do
ano, são servidos como segundas opções churrasco e acompanhamentos. A partir de O triângulo
culirioproposto por Lévi-Strauss, pode-se pensar, a propósito das caranguejadas, na distinção
entre uma endo-cozinha e uma exo-cozinha: O fervido é cozido no interior (de um recipiente),
enquanto que o assado o é externamente: um lembra, portanto, o côncavo e o outro, o convexo.
Tamm o fervido pressue na maioria das vezes aquilo que se poderia chamar de uma endo-
cozinha: feita para o uso íntimo e destinada a um pequeno grupo fechado, enquanto que o assado
pressupõe a exo-cozinha: a que é oferecida a convidados” (L
ÉVI
-S
TRAUSS
, 1968:28). Por não poder
ser assado, o caranguejo ensopado (fervido) pode ser pensado como um código culinário que, no
plano social, expressa o desejo de familiaridade do grupo. Por outro lado, o oferecimento do
churrasco não obedece apenas ao desgosto de algum convidado pelo prato principal, mas
expressa a vontade de novas alianças para além do círculo já consolidado, pois, os cumprimentos
e apresentações dos participantes desconhecidos do grupo são realizados, em geral, ao redor da
churrasqueira. Portanto, as caranguejadasoperam na constituição de laços sociais através da
comensalidade, em concordância com a assertiva de que a escolha de um prato revela intenções
acerca do tipo de relacionamento que um determinado grupo pretende estabelecer. Sendo o
Naquele sábado de janeiro, a anfitriã ansiava pelo início da festa com
grande entusiasmo pela expectativa do reencontro com o grupo de sempre,
consolidado nos festejos anteriores. No amplo tacho sobre o fogão, cinco ou seis
dúzias de caranguejos ferviam, perfumando a casa. Mas no lugar da euforia
despreocupada de um anfitrião que prevê o sucesso de seu
potlatch
19
, a dona da
festa temia que alguns de seus convidados se recusassem a comer o prato
principal e, incisiva, esboçou sua defesa:
[...] Infelizmente eu digo isso: o caranguejo que a gente está comendo hoje
não é aquele caranguejo que eu comi verão passado. Logicamente, isso
está altamente contaminado. Infelizmente, a água que nós tomamos está
altamente contaminada também. Não adianta dizer que não está, porque
está. Então, contaminado por contaminado, eu estou tomando tudo. Isso é
consciência política? Não é. Consciência política, nem ambiental. Mas já
caranguejo ensopado (fervido) o prato principal, sue-se o desejo de familiaridade, intimidade e
reciprocidade entre os participantes de tais eventos.
19
De origem índia, a palavra "potlatch" significa dom na linguagem
nootka
. Os etlogos
americanos descobriram-na e descreveram-na largamente nos fins do século XIX, mas foi Mauss
que a revelou mais completamente em
Essai sur le don: Forme et raison de l'échange dans les
sociétés archaïques
. Identificada na vida social das tribos índias do Nordeste americano, que
forneceram o seu modelo mais notável, a prática do "potlatch" foi encontrada em quase todas as
tribos primitivas, sob formas variadas. O "potlatch" é uma cerimônia com caráter de festa, no
decurso da qual um chefe oferece ostensivamente uma quantidade enorme de riquezas a um rival
para humilhá-lo ou desafiá-lo. Este último, para apagar a humilhação e contrariar o desafio, tem de
retribuir o dom. Assim, deve, mais tarde, organizar um novo "potlatch", mais importante que o
primeiro, onde se mostrará mais generoso que o chefe anterior. Praticado no decurso de uma
iniciação, de um casamento, de funerais ou de ascensão ao poder, o "potlatch" muda de forma
segundo as tribos e segundo a importância de quem o organiza. Os etlogos que observaram o
"potlatch" entre os
Tlinguit,
os
Haida
, os
Tsimshian
e os
Kwakiutl
puderam verificar que o dom o
constituía a sua forma exclusiva. O "potlatch" consiste muitas vezes numa destruição espetacular
de enormes riquezas. Os índios da costa Nordeste chegam a incendiar as suas aldeias, destruir as
canoas ou lançar para o mar lingotes de cobre de grande valor. Excluindo qualquer regateio, o
"potlatch" é, ao mesmo tempo, paradoxalmente, perda e aquisição. O dom das riquezas equivale à
aquisição de prestígio, de poder. Destruir e dar resulta, afinal, numa afirmação do poder de destruir
e de dar. Mas estas duas operações só têm sentido se forem praticadas diante do outro. "O ideal",
escreve Mauss, "seria oferecer um potlatchque o fosse pago na mesma moeda". É tamm
uma forma primitiva de troca e de concorrência. Um meio de circulação de riquezas que se
manifesta sob a forma ritual de uma demonstração de generosidade em que há um vencedor e um
vencido. Refiro-me às caranguejadascomo potlatchapenas por alegoria as situações de
competição entre donos de caranguejadaspara ver quem oferece mais caranguejos aos
convidados e a disputa entre os participantes para saber quem consegue comer mais. Não é raro,
nestas ocasiões, a ocorrência de grande desperdício de bebida e comida que, serve, adiante,
como parâmetro de avaliação da fartura oferecida. A propósito do potlatch, ver também: H
ARRIS
,
Marvin.
Vacas, porcos, guerras e bruxas: os enigmas da cultura
. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1978.
que eu não abri mão de tomar a água que eu bebo, não vou abrir mão de
comer o caranguejo que eu como todo ano. E se todo mundo está
comendo, por que eu não vou comer? Entendeu? Não vou morrer por
causa disso, embora eu ache, sinceramente, que isso aí é um alerta pra
nós, porque daí a pouco, não vai ter caranguejo, não vai ter peixe, não vai
ter nada que a gente possa comer [...].
Ao invés do
gift
(dádiva), havia a suspeita do oferecimento do
gift
(veneno)
20
. De fato, a anfitriã antevia que aquela 5ª edição de sua caranguejada
não se assemelharia às anteriores. Pairavam fortes suspeitas com relação ao
prato: estariam aquelas delícias contaminadas? Nós, convidados, corríamos
algum risco de nos envenenar? Passaríamos mal após o deleite? Ninguém
arriscava certezas, embora esboçássemos teorias as mais contrastantes sobre o
devir de nossa gula. Enfim, presentes todos os convidados, o banquete foi servido.
Alguns devoravam os caranguejos, outros preferiam apenas as entradas e, outros
ainda, indecisos, ou comiam poucas unidades ou se abstinham. Silenciosamente,
todos supúnhamos que, por um tempo indeterminado, a tradicional ‘caranguejada,
nosso
potlatch
de verão, estaria fadada ao insucesso.
Este episódio jamais teria acontecido se na madrugada do dia 29 de março
de 2003 a barragem da Cataguazes Indústria de Papel, localizada no município de
mesmo nome, em Minas Gerais (MG), não se tivesse rompido, despejando no
Córrego do Cágado e, a jusante, nos rios Pomba e Paraíba do Sul, cerca de 1,2
bilhão de litros de resíduos tóxicos, subprodutos da fabricação de papel
21
. Estes
rios, tingidos por uma mancha negra, sofreram de uma morbidez inigualável:
águas contaminadas, flora deteriorada e fauna morta ou desvanecida.
O desastre, o maior em águas doces já ocorrido no país, segundo a
imprensa nacional, deixou cerca de setecentas mil pessoas sem água, durante
quinze dias, em quatorze municípios
22
atravessados pelo Pomba e Paraíba do Sul.
20
Por pressupor uma relação, a modernidade entende a dádiva como um perigo ou algo
indesejado, recuperando o sentido de
gift
nas línguas germânicas, que pode ser tanto presente ou
dádiva, quanto veneno (Cf. G
ODBOUT
, 1999).
21
Os efluentes continham sulfeto de sódio (soda cáustica), hipoclorito de cálcio (cloro ativo) e
lignina (componente da madeira).
22
No estado de Minas Gerais foram afetados os municípios de Cataguases, Leopoldina, Laranjal,
Recreio e Palma. No Rio de Janeiro foram atingidos Miracema, Santo Antônio de Pádua, Aperibé,
A sociedade local sofreu toda sorte de adversidades. Muitas instituições tiveram
seu funcionamento habitual modificado: escolas, universidades, locais de
comércio e repartições públicas reduziram ou cortaram o expediente; hospitais,
postos de saúde, consultórios médicos e dentários, restaurantes, bares, indústrias,
setor agrícola e pecuário conduziram suas atividades com restrições ou buscaram
fontes alternativas de abastecimento a custos elevados. Nas resincias das
classes média e alta, poços artesianos foram abertos ou as famílias se refugiaram
em suas casas de praia ou de campo. Nos bairros populares, donas-de-casa
munidas de baldes e latões esperavam carros-pipa enviados pelo poder público.
No rio e no mar, a pesca artesanal ficou interditada, deixando os pescadores de
toda a região atingida privados de seu meio de trabalho. Nas associações e
templos religiosos, as águas do rio foram acrescentadas à lista de solicitações ao
divino; nas ruas, pipocavam protestos; e nos óros públicos, medidas executivas
e jurídicas eram tomadas em caráter emergencial. Enfim, o desastre ocorrido no
rio Paraíba do Sul mobilizou a sociedade Norte-Fluminense em torno do
inesperado: a súbita escassez de água. Por toda parte, o ordinário foi cancelado,
as rotinas alteradas e o domínio da normalidade cedeu sua parcela às
excepcionalidades impostas pelo evento.
A dimensão social desse desastre encontra sua tradução sociológica no
que Mauss chamava de
fato social total
, referindo-se a eventos que se alastram
por todos os domínios da vida em sociedade:
Nesses fenômenos sociais totais, como nos propomos chamá-los,
exprimem-se, ao mesmo tempo e de uma só vez, toda espécie de
instituições: religiosas, jurídicas e morais estas políticas e familiais ao
mesmo tempo; econômicas supondo formas particulares de produção e
de consumo, ou antes, de prestação e de distribuição, sem contar os
femenos estéticos nos quais desembocam tais fatos e os fenômenos
morfológicos que manifestam essas instituições (M
AUSS
, 1974: 41).
Ninguém, indivíduo ou instituição, nas regiões atingidas pelo desastre, teve
a possibilidade de se resguardar da escassez de água potável. Todos,
Itaocara, Cambuci, São Filis, Campos dos Goytacazes, São Jo da Barra e São Francisco do
Itabapoana.
invariavelmente, tiveram de algum modo seus fluxos cotidianos interrompidos pela
necessidade de garantir o recurso ao invés de recebê-lo, como de bito, pelas
torneiras ou diretamente do rio. O evento suscitou, portanto, uma universalidade
de experiência, na medida que toda a sociedade do Norte-Fluminense esteve
envolvida numa mesma trama.
Para além da ilusão moderna de domesticação da natureza – ou
previsibilidade de seus eventos o desastre no Paraíba do Sul revelou o quão
emaranhado está o ser humano com o seu ambiente, ainda que esta relação seja
estabelecida ou percebida de diferentes maneiras por indivíduos e grupos, à
medida de suas alteridades psíquicas e sociais. De fato, uns compraram água
mineral e furaram poços artesianos em seus quintais, outros esperaram pelos
caminhões-pipa do poder público e, outros ainda, se refugiaram em suas casas de
praia ou campo, no sentido mais estrito das desigualdades sociais brasileiras, aqui
refletidas numa desigualdade ambiental, isto é, na partilha dos benefícios e
prejuízos relacionados ao ambiente, as proporções tendem a corresponder às
mesmas distinções econômicas e políticas encontradas na sociedade.
Neste sentido, é possível pensar o referido desastre à luz de um ponto de
vista nativo
23
, já que sua vivência e percepção não podem ser coadunadas em
uma única expressão de experiência. Assim, a proposta aqui é a de tomar como
nativosos pescadores de Gargaú como representantes desta categoria que, de
modo geral, teve o meio no qual produz interditado e, por conseqüência, sofreu a
maior parcela dos prejuízos ocasionados pelo desastre. A experiência dos
pescadores de Gargaú, neste sentido, pode refletir, em parte, a dimensão social
daquele episódio entre os que, privados de seu universo de trabalho, foram
submetidos a toda sorte de escassez no seu meio e nas suas mesas. É esta uma
das substâncias empíricas deste estudo: as narrativas daqueles pescadores sobre
o desastre da Cataguazes de Papel ocorrido em março de 2003 na bacia do Rio
Paraíba do Sul. Para interpretá-las, recorro às incursões teóricas da Antropologia
da Experiência.
23
Cf. G
EERTZ
, 2000.
Em
The Antropology of Experience
(1986), Turner, a partir da concepção de
experiência (
Erlebnis
) do pensador alemão Wilhelm Dilthey (1833-1911), propõe a
distinção entre
a mera
experiência e
uma
experiência:
A mera experiência é, simplesmente, a resistência passiva e a aceitação
dos eventos. Uma experiência, como uma pedra em um jardim de areia
Zen, se destaca da mesmice do passar das horas e dos anos e forma
aquilo que Dilthey chamou de uma estrutura da experiência. Em outras
palavras, não possui um início e fim arbitrários, recortado temporariamente
do fluxo de temporalidade cronológica, mas possui o que Dilthey chamou de
uma ‘iniciação e uma conclusão
24
(T
URNER
, 1986:35).
Experimentar (da raiz grega
peirá
: prova, experiência), portanto, supõe a
travessia de situações em que um indivíduo ou um grupo atualiza sua percepção
acerca da realidade. Alguém que experimenta atravessa (ou, como expressou
Dilthey, lived through”) por interpretações da sua própria cultura. Por isso, as
experiências são ao mesmo tempo formadoras e transformadoras. Todos
bebemos água todos os dias e esse fato compõe o quadro de nossas
experiências
diárias. A suspensão desta rotina, no entanto, pode transformá-la em
uma
experiência
cuja vivência jamais se despregará de nossa memória.
Estas experiências que irrompem da conduta rotineira e repetitiva, ou que a
subvertem, começam com choques de dor ou prazer. Tais choques são
evocativos: evocam precedentes e semelhanças com o passado consciente
ou inconsciente – pois, assim como o comum, o incomum também tem suas
tradições. Neste momento, as emoções das experiências passadas colorem
as imagens e desenhos revividos pelo choque atual. O que se segue é uma
ansiosa necessidade de se encontrar significado naquilo que nos
desconcertou, pelo prazer ou pela dor, e converteu a mera experiência em
uma experiência
25
(T
URNER
, 1986:35-36).
24
Mere experience is simply the passive endurance and acceptance of events. An experience, like
a rock in a Zen sand garden, stands out from the evenness of passing hours and years and forms
what Dilthey called a structure of experience. In other words, it does not have an arbitrary
beginning and ending, cut out of the stream of chronological temporality, but has what Dewey called
an initiation and a consummation[Tradução de Arno Vogel].
25
These experiences that erupt from or disrupt routinized, repetitive behavior begin with shocks of
pain or pleasure. Such shocks are evocative: they summon up precedents and likenesses from the
conscious or unconscious past for the unusual has its traditions as well as the usual. Then the
emotions of past experiences color the images and outlines revived by present shock. What
A ocasião de
meras
experiências ou de
uma
experiência desemboca,
necessariamente em narrativas, pois, como afirma Turner (1986), somos seres
sociais e queremos contar aquilo que aprendemos com a experiência. Portanto,
as experiências estruturam expressões na proporção em que, para narrar, criamos
unidades ordenadoras do discurso. Por outro lado, as expressões também
estruturam experiências: caso da leitura dos chamados “romances de formação
(
Bildungsroman
), por exemplo. De fato, como sugere Certeau, na narrativa
podemos existir socialmente no tempo e no espaço.
Essas aventuras narradas, que ao mesmo tempo produzem geografias de
ações e derivam para os lugares comuns de uma ordem, não constituem
somente um suplementoaos enunciados pedestres e às retóricas
caminhatórias. Não se contentam em deslocá-los e transpô-los para o
campo da linguagem. De fato, organizam as caminhadas. Fazem as
viagens, antes ou enquanto os pés a executam (C
ERTEAU
, 1994:200).
Quem narra deseja contar uma história. Embora a palavra narrar (
narrare
)
guarde polissemias quanto ao seu significado, aqui ela nos interessa no sentido de
relato (
referre
), que significa levar consigo, referir, transcrever. Assim, o relato é
diégese, como diz o grego para designar a narração: instaura uma caminhada
(guia) e passa através (transgride)” (C
ERTEAU
, 1994:215). Se experiências
produzem narrativas (ou relatos), podemos compreender uma história (ou
histórias) cuja matéria-prima não é outra senão a própria experiência. A
constituição de uma História, nesse sentido, exige o artesanato de histórias a
propósito do qual afirma Wilhelm Schapp:
Nós não queremos pretender que a história universal, supondo que
semelhante coisa exista, ou a história de uma nação qualquer ou de uma
época se componha somente de histórias ou que elas o sejam senão
uma rapsódia de histórias. Mas em todo caso, as histórias individuais têm
um liame o mais estreito possível com a história universal. Uma história
happens next is na anxious need to find meaning in what has disconcerted us, whether by pain or
pleasure, and converted mere experience into an experience[Traduçaõ de Arno Vogel].
universal que não tenha por ponto de partida essencial histórias, é
dificilmente imaginável (S
CHAPP
, 1992:13)
26
.
Deste modo, a história de um determinado evento deve abrigar em seu
edifício as diversas narrativas que procedem da experiência individual e/ou
coletiva, pois, Nós sabemos que os participantes em uma performance não
compartilham necessariamente uma experiência ou significado comum; o que
compartilham é apenas sua participação comum” (B
RUNER
, 1986:11)
27
, ou seja, as
experiências se internalizam e se refletem de modo desigual, seja nos indivíduos,
seja nos diferentes grupos sociais, embora todos partilhem da mesma realidade.
Ora, o desastre a que me refiro envolveu toda a sociedade do Norte-
Fluminense à maneira de um fato social total, mas, se parece sensato notar que
as desigualdades ambientais tendem a se conjuminar com as desigualdades
sociais, a partilha daquele em suas conseqüentes agruras operou em diferentes
níveis nesta mesma sociedade. Em outras palavras, para construir uma História
desse desastre deve-se percorrer histórias a seu respeito. Estas histórias podem
girar em torno de diferentes eixos na proporção em que se considere a
diversidade de nativos a quem o etnógrafo pode mobilizar.
Assim, o empenho neste trabalho é o de compreender o desastre na vida
dos pescadores de Gargaú, recorrendo às narrativas que deles advém sobre o
tema. Estes relatos distinguem e ordenam o evento, conferindo-lhe uma
interpretação própria (nativa) daquilo que se impôs como
uma
experiência para a
sociedade do Norte-Fluminense. Se a cultura é o invólucro dentro do qual podem
ser descritos os fenômenos sociais
28
(G
EERTZ
, 1989b), o modo de vida tradicional
dos pescadores impõe às suas narrativas sobre o desastre no Paraíba do Sul um
percurso cuja direção é orientada pelo universo de significados que sustenta a
cultura da pesca no rio e no mar em Gargaú. A experiência, portanto, pode ser
26
Nous ne voulons pas prétendre que lhistoire universelle, à supposer que pareille chose existe,
ou l´histoire dune quelconque nation ou d´une époque se composent seulement d´histoire ou
qu´elles ne soient qu´une rhapsodie d´histoires, mais en tout cas les histoires individuelles ont le
lien le plus étroit avec l´histoire universelle. Une histoire universelle qui n´aurait pas pour point de
départ essentiel des histoires, est à peine imaginable[Tradução minha].
27
We Know that participants in a performance do not necessarily share a common experience or
meaning; what they share is only their common participation[Tradução minha].
28
Cf. G
EERTZ
, 1989b.
compartilhada por toda uma sociedade, mas adquire variados matizes
interpretativos segundo diferenças sociais e individuais: Toda narração é uma
imposição arbitrária de significado ao fluxo da memória, na qual realçamos
algumas causas e descontamos outras, isto é, toda narração é interpretativa
(B
RUNER
, 1986:7)
29
.
A interpretação de uma experiência, portanto, evoca as diferenças
plasmadas no universo dos que a viveram. Mas, por outro lado, esta mesma
diversidade é a fagulha dos conflitos que, por toda parte, perpassam as relações
humanas. Por isso, a experiência é a matéria-prima dos dramas sociais (T
URNER
,
1986).
Drama social é o conflito que, com extensão e intensidade variáveis, opõe
pessoas ou grupos, no seio de uma totalidade. É um conflito em que as
partes invocam, seja a lealdade a princípios diferentes, seja uma regra
comum, de cuja violação uma delas é acusada pela outra, seja, ainda, o
direito a posições de autoridade ou privilégio, estabelecidos na lei ou no
costume. (M
ELLO
& V
OGEL
, 2004:166).
Ora, o desastre no rio Paraíba do Sul inaugurou
uma
experiência de sede
entre os habitantes residentes à jusante da desembocadura do rio Pomba. A
sede, de fato, não é mais que uma metáfora para ilustrar a interdição do
abastecimento público de água e a conseqüente precariedade do funcionamento
de quase todas as instituições sociais; a fuga dos que puderam suspender suas
atividades; a permanência sofrida dos que esperaram pelos carros-pipa; a
proibição da pesca; enfim, o extra-ordinário vivido naqueles dias pela população
das regiões atingidas pela mancha negra. Mas a metáfora também evoca o
sentido literal, pois, a escassez de água nos dias subseqüentes ao desastre
inaugurou sedições em torno dos seguintes problemas: a quem caberia a
responsabilidade pelo derrame de efluentes na bacia? Responsabilidade exclusiva
da instria? Ou dos órgãos de fiscalização do Estado? De ambos? A iminência
de uma sede real estabeleceu, em definitivo, a questão da degradação do Paraíba
29
Every telling is an arbitrary imposition of meaning on the flow of memory, in that we highlight
some causes and discount others; that is, every telling is interpretative[Tradução minha].
do Sul como um problema público diante do qual a sociedade se manifestava
tomando diferentes partes na contenda.
Assim, a alocação de responsabilidade pelo desastre foi a substância do
drama social vivido no Norte-Fluminense, pois, convocados os diversos conceitos
e opiniões de setores da sociedade organizada e do Estado sobre a questão,
geraram-se verdadeiras clivagens sociais. Este fato confirma a acepção de que a
ocorrência de desastres tende a gerar debates relativos tanto à legislação quanto
às políticas públicas ambientais
30
, o que, em larga medida, contribui para a
consolidação do problema do meio ambiente na esfera blica. Mas o debate é o
umbral do conflito. Refletido na experiência, o conflito é o próprio drama.
Dramas sociais são, em larga medida, processos políticos, isto é, envolvem
a competição em torno de fins escassos poder, dignidade, prestígio,
honra, pureza – através de meios particulares e da utilização de recursos
que são também escassos bens, território, dinheiro, homens e mulheres.
Fins, meios e recursos estão presos a um processo de feedback
interdependente (T
URNER
, 1980: 148)
31
.
Se é possível pensar o drama como uma forma processual universal e
representada por um desafio pertuo a todas as aspirações à perfeição na
organização social e política” (T
URNER
, 1980:148)
32
, podemos fazê-lo em grande
ou pequena escala social, assim como Turner o pensou para o teatro e para a
vida. Assim, se nos impõe atravessar a perspectiva e localizar o mesmo drama
como experiência entre os gargauenses.
Ora, entre os pescadores, o drama fundamentou-se para além da
interdição da água, mas na ruptura entre aqueles e seu universo produtivo – o rio
e o mar. Os conflitos, então, se acirraram à medida que, privados de seu meio, os
gargauenses ficaram sujeitos às políticas públicas distributivas do município, do
governo estadual e do federal, o que, mais uma vez, instigou clivagens entre
30
Cf. F
UKS
, 1999.
31
Social dramas are in large measure political processes, that is, they involve competition for
scarce ends power, dignity, prestige, honor, purity by particular means and by the utilization of
resources that are also scarce goods, territory, money, men and women. Ends, means, and
resources are caught up in an interdependent feedback process[Traduçaõ de Arno Vogel].
32
[...] social drama is a well-night universal processual form and represents a perpetual challenge
to all aspirations to perfection in social and political organization[Traduçaõ de Arno Vogel].
grupos locais quanto à alocação de responsabilidade pelo desastre e quanto às
políticas empregadas durante o episódio.
A partir das narrativas dos pescadores de Gargaú, este trabalho exprime
um ponto de vista nativosobre o desastre no Paraíba do Sul no que concerne a
sua experiência como um drama social. O triângulo proposto – experiência, drama
e narrativa é um esquema universal, pois, toda sociedade conta sua História por
meio de narrativas de experiências, por vezes, dramáticas. Internacional, trans-
histórica, transcultural, a narrativa aí está, como a vida” (B
ARTHES
apud
S
EIXO
, s/d:
14). Aí estão, tamm, a experiência e o drama.
Na atualidade, a cada dia nos parece menos provável que haja questões de
larga escala, isto é, que existam problemas cujo rastro envolva a todos. Mas, se a
pauta se define pela questão do meio ambiente, temos, então, um problema
universalizado, principalmente em situações de catástrofes, quando a evocação às
atitudes dos seres humanos em relação à natureza, tais como a exploração
massiva de seus recursos e o consumo desenfreado, são convocadas para
explicá-las. Apesar das alteridades sociais, ninguém pode eximir-se das
conseqüências da poluição do ar, do solo e da água, e esta é toda a tragédia dos
comuns
33
.
Na caranguejada, a anfitriã manifestou sua preocupação com o prato
principal em dada possibilidade de contaminação, seu desencargo de consciência
ambiental e política por se recusar a deixar de comer caranguejos e sua aflição
com um futuro próximo vislumbrado sem peixes. Numa de minhas incursões a
Gargaú, um pescador, ao narrar o drama da experiência do desastre, parafraseou
o discurso da dona da festa:
Nós comemos. Logo assim, uma semana depois que passou a limpeza nas
águas, aí s passamos a comer peixe. Agora se for dar problema na gente
só, pelo amor de Deus! Porque eles [a opinião de especialistas na imprensa
nacional] falaram que ia dar. A gente vai ficar sem comer o peixe? Nós que
sobrevivemos da pesca? Vivemos da pescaria? Vivemos desde cedo
comendo peixe?
33
Cf. P
INKERTON
, s/d.
Eis um exemplo da abrangência da questão do meio ambiente, pois, os
envolvidos a anfitriã e o pescador nada têm em comum nos outros domínios
da vida, embora, com a tragédia do rio, tenham se sentido lesados por não
poderem consumir, sem algum receio, peixes, camarões e caranguejos. Portanto,
se quisermos discutir a questão ambiental na esfera blica devemos considerar
os diversos pontos de vista que compõem o quadro de uma sociedade. A
Antropologia, neste caso, é um instrumento bastante eficaz:
[...] parece provável que seja qual for o uso que os textos etnográficos terão
no futuro, eles permitirão o diálogo entre linhas societais de etnicidade,
religião, classe, sexo, linguagem, raça – que se desenvolveram com
detalhes cada vez mais sutis, mais imediatos, mais irregulares [...]. O que
se faz necessário é ampliar a possibilidade de um diálogo inteligente entre
pessoas que diferem consideravelmente ente si em interesses, perspectivas
e poder, e, no entanto, estão limitadas em um mundo onde, envolvidas em
interminável conexão, fica cada vez mais difícil sair uma do caminho da
outra (G
EERTZ
, 1989a:33).
Ao colocar o outro em perspectiva, o registro antropológico abre o caminho
para que questões universais sejam tratadas de modo dialógico. Assim, a
experiência – matriz da condição humana – pode ser traduzida em suas
dimensões nativas.
II. O
RIO
,
OS
MUXUANGOS
E AS
M
ORTANDADES DE
P
EIXE
O rio Paraíba é a espinha dorsal do Rio
de Janeiro.
Roberto Saturnino Braga
E o lindo Rio-Saudade dos fluminenses
é assim tamm para a nossa gente,
o grande Rio da Esperança que é a
saudade do futuro.
Alberto Ribeiro Lamego
A bacia hidrográfica do rio Paraíba do Sul é responsável pelo
abastecimento de água de grande parte do Sudeste brasileiro. Seus afluentes
garantem o recurso para os setores doméstico, industrial e agropecrio. O
resultado da maciça urbanização e industrialização que vêm ocorrendo na região
desde a segunda metade do século XX, aliada à modernização do campo com
novos mecanismos de adubação química e irrigação, é a crescente degradação
da bacia, particularmente, do próprio Paraíba do Sul, seja em virtude do
recebimento de efluentes industriais e de esgoto
in natura
, seja pelo
assoreamento resultante da construção de barragens e da extração de areia.
O Paraíba do Sul, no entanto, resiste ainda, revelando sua vitalidade na
diversidade das espécies capturadas pelos pescadores dos diversos
assentamentos pesqueiros ao longo do seu percurso. O piraquara, habitante das
margens do rio, é o representante desse nero de vida em que a pesca e a
pequena lavoura são as principais atividades econômicas. Figuram entre os
piraquaras personagens-tipo criados pelo pensamento social brasileiro como o
Jeca Tatude Monteiro Lobato. Em sua foz, ao Norte do estado do Rio de Janeiro,
na localidade de Gargaú, reside uma população que vive quase exclusivamente
da pesca muitas gerações, a que Alberto Lamego denominou muxuangos.
São os gargauenses os nativosaos quais se refere esta monografia.
O rio e as comunidades pesqueiras que o margeiam convivem, há cinco
décadas, com reiterados episódios de mortandade de peixe, provocados pelos
altos índices de poluição de suas águas. O histórico desses epeisódios culminou
nos graves desastres ambientais ocorridos em 1982 – o derrame de metais
pesados pela indústria mineira Paraibuna de Metais, e, mais recentemente, em
2003 o rompimento da barragem da instria, tamm mineira, Cataguazes de
Papel, que despejou no rio cerca de 1,2 bilhão de litros de soda cáustica.
Agonizam, pois, o rio, os peixes e o homem.
II.1. As margens do rio Paraíba do Sul
O Paraíba do Sul nasce na Serra da Bocaina
34
, no estado de São Paulo, da
confluência dos rios Paraitinga e Paraibuna, que têm seus cursos direcionados
para o Sudoeste ao longo dos contrafortes interiores da Serra do Mar. Já formado,
prossegue na direção Oeste, quando, barrado pela Serra da Mantiqueira, inverte
seu rumo para o Nordeste e, mais adiante, para Leste, até a sua foz, no oceano
Atlântico, entre a praia de Atafona, em São João da Barra, e os manguezais de
Gargaú, em São Francisco do Itabapoana, ambos municípios da região Norte-
Fluminense.
Compõem a bacia do Paraíba do Sul os rios Jaguari, Paraibuna,
Pirapetinga, Pomba e Muriaé pela margem esquerda, e os rios Una, Bananal,
Piraí, Piabanha e Dois Rios pela margem direita, abrangendo uma área de
drenagem de aproximadamente 55.500 Km
2
. Em uma extensão total de 1.100 Km,
a uma altitude média de 370 m, o rio atravessa três estados brasileiros Rio de
Janeiro, São Paulo e Minas Gerais. A área coberta pela bacia em cada estado é
nas proporções de 20.900 km², 13.900 km² e 20.700 km², respectivamente. Pela
abrangência territorial no condomínio destes três estados, o Paraíba do Sul é um
34
Os dados estatísticos que constam neste subitem do capítulo II foram obtidos pelo cruzamento
das informações encontradas nos
sites
da Ancia Nacional de Águas (www.ana.gov.br
), da O
NG
Vale Verde (www.valeverde.org.br
) e da série de reportagens sobre o rio Paraíba do Sul veiculada
pelo jornal
O Globo
em março de 2004.
rio federal. Sua diversidade geográfica permite classificá-lo ao longo de seu
percurso em 4 categorias:
i. Curso Superior: a uma altitude de 572 m, declividade média de 4,9 m/Km e
extensão de 317 Km, este trecho está situado entre a nascente e a cidade
de Guararema (SP).
ii. Curso Médio Superior: compreende uma extensão de 208 Km entre
Guararema (SP) e Cachoeira Paulista (SP), a uma altitude de 515 m e
declividade média de 0,19 m/Km.
iii. Curso Médio Inferior: a uma altitude de 20 m e declividade média de 1,0
m/Km, este trecho compreende uma extensão de 480 Km entre as cidades
de Cachoeira Paulista (SP) e São Fidélis (RJ).
iv. Curso Inferior: numa declividade média de 0,22 m/Km, este trecho está
situado entre São Fidélis (RJ) e São João da Barra (RJ), com extensão de
95 Km.
Ao longo desse percurso, abastece cerca de 14,3 milhões de pessoas
35
,
incluindo 8,7 milhões da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, já que
aproximadamente 2/3 de suas águas são desviadas para a bacia hidrográfica do
rio Guandu através da represa Santa Cecília, localizada em Barra do Piraí (RJ).
Apenas para o abastecimento doméstico, o rio fornece um volume de água de 64
mil l/s, contra 14 mil l/s destinados para o uso industrial e 50 mil l/s para o uso
agrícola
36
. O Paraíba do Sul gera, ainda, 1.412 megawatts em 119 usinas
hidrelétricas e possui 4 reservatórios: Paraibuna, Jaguari e Santa Branca,
localizados no estado de São Paulo e a Represa do Funil, situada entre os
municípios de Itatiaia (RJ), São José do Barreiro (SP) e Areias (SP).
As margens do Paraíba do Sul têm sofrido um intenso desmatamento para
a formação de pastos ou campos agrícolas, o que vem ocasionando erosão e, por
35
A população total da bacia é estimada em 5.246.066 milhões, distribuídos em 180 municípios,
segundo os dados divulgados pelo IBGE em 1996.
36
Na bacia do Paraíba do Sul há 6.100 instrias e cerca de 60 mil propriedades rurais com um
rebanho estimado em três milhões de cabeças e mil hectares de área irrigável (O Globo, 11/04/04).
conseguinte, o assoreamento do rio. Somam-se a este fato, a elevada extração de
areia e a ocupação desordenada das populações ribeirinhas nos núcleos urbanos.
Estes fatores explicam a diminuta taxa de 11% de cobertura vegetal de florestas
nativas da Mata Atlântica que ainda resistem em suas bordas.
Estima-se que o Paraíba do Sul tenha uma fauna cuja biodiversidade
compreende 169 escies, sendo 115 nativas de água doce, 38 nativas de águas
marinhas e 16 espécies introduzidas. Segundo um estudo desenvolvido no Museu
Nacional (U
FRJ
) em 2004
37
, por causa das altas taxas de poluição em parcelas do
rio, alguns tipos de peixe que vivem próximo aos sedimentos, como o cascudo
(
Hypostomus affinis
), têm apresentado alterações em seu fenótipo provocadas
pela contaminação das águas com hidrocarbonetos aromáticos polinucleares, em
especial, o benzopireno, gerado nos processos metalúrgicos da Companhia
Siderúrgica Nacional (C
SN
) em Volta Redonda (RJ). Estas anomalias são, em
geral, inexistência ou deformação de nadadeiras, barbilhões nos olhos,
neoplasmas e lesões cutâneas. A fauna do Paraíba do Sul sofre, ainda, com a
pesca predatória que tem ameaçado espécies como o camarão pitu
(
Metanephrops rubellus
), o robalo (
Centropomus paralelus
) e a lagosta (
Panulirus
sp
).
Em alguns trechos, a qualidade das águas do rio supera, em muito, os
índices aceitáveisde poluição. Por dia, o Paraíba do Sul recebe um bilhão de
litros de esgoto doméstico, sendo 90%
in natura
; 7 toneladas de resíduos
industriais, além de 53% do lixo produzido nos núcleos urbanos localizados ao
longo da bacia e despejado em 20 lixões instalados em suas margens:
O rio Paraíba do Sul recebe resíduos industriais e domésticos, a maioria
sem nenhum tratamento. De acordo com estudos anteriores realizados na
porção média do rio, assim como em alguns de seus afluentes (rios
Paraibuna, Pomba e Muriaé), a contaminação com metais pesados tem
sido relatada. A principal origem desses poluentes são efluentes industriais,
37
Cf. Jornal
O Globo
, na série de reportagens sobre o rio Paraíba do Sul veiculada entre 11 e 18
de março de 2004.
resíduos urbanos e atividades de mineração de ouro em alguns afluentes
(rios Pomba e Muriaé) (R
ESENDE
, 1999:682)
38
.
Assim, do ponto de vista ambiental, o rio Paraíba do Sul tem se
transformado, desde a segunda metade do século XX, em um paraíso de
poluição(
pollution heaven
), principalmente, para o setor industrial. Atualmente, no
estado de São Paulo consta um total de 21 indústrias poluidoras em potencial, a
saber, na área química: Basf, Rhodia, Monsanto, Rohm e Haas, Ici e Henkel; na
área metalúrgica e siderúrgica: Alcan, Villares, Confab, Engesa, Mafersa, General
Motors e Volkswagen; na área de elétricos e eletrônicos: Panasonic, Philips,
Ericsson e Hitachi; na área petroquímica: Petrobrás; na área de papel e celulose:
Dezorzi, Simão e Nossa Senhora de Aparecida. No estado de Minas Gerais, as
indústrias potencialmente poluidoras são: Cia. Paraibuna de Papel, Siderúrgica
Belgo-Mineira, Cia. Paraibuna de Metais e Cia. Têxtil Ferreira Guimarães. Já no
estado do Rio de Janeiro, as indústrias C
SN
, Cia. Metalúrgica Saint-Gobain,
Thyssen Fundições Ltda, Sola S.A. Indústria Alimentícia, Du Pont do Brasil S.A. e
Peugeot são as mais propensas a poluir as águas do rio
39
.
Por sua acelerada degradação, o Paraíba do Sul foi o
locus
de um projeto
pioneiro de taxação pelo uso das águas, previsto na lei n° 9.433 de 1997.
Segundo o C
EIVAP
(Comitê para Integração da Bacia Hidrográfica do Rio Paraíba
do Sul)
40
, há cerca de 200 usuários, entre instrias e propriedades agrícolas,
pagando pelo recurso desde 2003. A arrecadação estimada é da ordem de R$ 12
milhões, que estão sendo investidos em obras e ações de planejamento e gestão,
como a instalação de Estações de Tratamento de Esgotos (E
TES
) e obras de
controle de erosão, visando à recuperação ambiental.
38
The Paraíba do Sul River receives both industrial and domestic wastes, mostly without any
treatment. According to previous studies performed in the mid-point portion of the river, as well as,
in some of its tributaries (Paraibuna, Pomba and Muriaé Rivers), contamination by heavy metals
has been reported. The main source of these pollutants are industrial effluents and urban wastes
and gold mining activities in some tributaries (Pomba e Muriaé Rivers)” [Tradução minha].
39
Dados obtidos no relatório
Sistema de alerta de qualidade da água para a bacia do Rio Paraíba
do Sul
, da Agência Nacional de Águas (ANA) de junho de 2003.
40
Criado em 22 de março de 1996 pelo Decreto Federal nº 1842, o C
EIVAP
é constituído por
representantes dos poderes públicos, dos usuários e de organizações sociais.
Paraíba, na etimologia tupi,
pará
(rio, caudal) e
ahyba
(ruim), significa rio
imprestável(S
OUZA
, 1927)
41
. A designação indígena do Paraíba do Sul parece ter
antevisto sua condição atual. O rio transformou-se num enorme depósito de toda
sorte de resíduos e num reservatório de águas cada vez menos potáveis. Sua
sustentabilidade está em xeque, não apenas pelo estrago já feito, mas pela
desafeição das gerações atuais.
Não havendo possibilidade de experimentar suas águas, o rio perdeu o elo
afetivo com os piraquaras mais jovens que poderiam conservá-lo ou
transformá-lo em cerio constante de prazer e de qualidade de vida.
Tornou-se o rio de minha infância um rio do descaso, do desprezo. Passou
a ser despercebido por gerações que não desfrutam das sensações
prazerosas que os banhos de rio, os jogos de vôlei, as peladas nas areias
de suas margens, por ocasião das secas nos meses de julho a setembro,
ofereciam-me e a todos os adolescentes e adultos, indiscriminada e
democraticamente, como condiz a uma bela paisagem natural,
diferentemente das belezas construídas pelos homens, quase sempre
excludentes e seletivas (M
AIA
, 2003:10).
O Paraíba do Sul agoniza. Dele dependem não apenas os habitantes do
Sudeste para o abastecimento público de água, nem somente o setor industrial e
agrícola para a produção, mas vários assentamentos pesqueiros onde residem,
ligados de modo inextrincável com o rio, pescadores e suas famílias. Agonizam,
pois, os piraquaras.
II.2. Os muxuangosde Gargaú
Piraquara, do tupi
pirakwar
42
, significa pescaria e designa os habitantes
das margens do rio Paraíba do Sul. Em sua
Onomástica Geral da Geographia
41
A prosito do rio Paraíba do Sul, escreveu Luís de Castro Faria na comunicação apresentada
ao Club de Sociologiaem 1941: Também o rio mesmo nunca prestou – correndo numa direção
quase paralela à costa, circunscrevia uma região muito pequena para a ambição dos
descobridores; um naco que começava ali na Bocaina e vinha acabar aqui acima do Cabo de S.
Tomé. Ainda por cima, não se deixava navegar e nem dava quase peixe. Esse rio, que só foi
fecundo quando transbordou, empapando a terra, convertendo-a em humo, não tem história, ou
por outra, tem a soma das histórias de todos os pequenos rios que fertilizam as encostas das
serras, serpeiam nas planícies, para depois desaguar no seu bojo.
42
Cf. M
AIA
, 2003.
brasileira
, Bernardino J. Souza define o termo da seguinte maneira:
Alcunha com que se designam os moradores das margens do rio Parahyba
do Sul, cuja occupação predilecta é a pesca. Depois da vulgarização
retumbante dos Urupêsde Monteiro Lobato, passou a ser applicado aos
habitantes do interior do Brasil, como equivalente a capiau, tabaréu, caipira.
Amadeu Amaral, que registra piracuara, define: o habitante das margens
do Parahyba. Segundo Theodoro Sampaio, piraquara – de
pirá
e
quara
é
o buraco do peixe, a loca, confundindo-se muitas vezes com piraguara – o
comedor de peixe, o pescador. Beaurepaire-Rohan aventa a hypothese de
vir do guarany
piraquá
pelle dura e, figuradamente, se applica ao homem
porfiado, tenaz, teimoso, qualidades estas que cabem perfeitamente aos
que se entregam à pesca (S
OUZA
, 1927:218).
Da relação do ser humano com o meio que o circunda e no qual transforma
a natureza e a si próprio surgem, no âmbito do pensamento social brasileiro, tipos
que representam não apenas um gênero de vida, mas a constituição do humano
frente às disponibilidades da paisagem.
O gênero de vida é o modo de relação entre o homem e a paisagem, tal
como se constituiu ao longo da luta. Podemos dizer até que é a própria luta;
ou, na série histórica, um estágio desta. Desse ponto de vista, revela-se
como esta associação íntima [que] assegura a exploração do soloé um
modelo de apropriação, graças ao qual os grupos humanos arrancam à
terra sua sobrevivência(M
ELLO
& V
OGEL
, 2004: 114).
O piraquara, pois, é o homem que margeia o Paraíba do Sul, debruçando
em suas águas canoas, remos e redes na luta por uma colheitaimprevisível e
incerta: o pescado. Este pescador do rio encontrou maneira própria de estar na
paisagem, criando um gênero de vida diferente e diversificado, muitas vezes, à
margem da sociedade moderna. Entre os piraquarasfiguram personagens-tipo
como o Jeca Tatude Monteiro Lobato e o muxuangode Alberto Lamego, todos
constitutivos do pensamento social brasileiro acerca do assentamento humano no
Sudeste. Interessa-nos, pois, este último tipo, o muxuango, caracterizado em
A
planície do solar e da senzala
, publicado em 1934.
Lamego narra o processo de ocupação da região litorânea fluminense
desde a Guanabara até o Norte, entre Campos dos Goytacazes e São João da
Barra:
O certo é que temos a verificar aqui um antecedente histórico o de todo
despresível. Fracassada a primeira tentativa de colonização da terra
campista por Pero de Góis, em 1545, na foz do Itabapoana , perto de
cem anos esteve a donatária entregue à fúria dos corsários.
Diz Augusto de Carvalho na sua História da Captania de São Tomé, que as
costas da região, ficaram neste período impunemente entregues à sanha da
pirataria anglo-saxônica. Nos sertões ao norte e ao sul, as flechas goitacás
tapavam a comunicação entre as capitanias limítrofes do Espírito Santo e
de São Vicente. E menos heroicamente rude que o português, porém mais
diplomata, venceu o pirata pela astúcia a animosidade do tapuia, captando-
lhe a amizade.
Bandos de aventureiros ingleses vieram fixar-se nela. Ali se ligaram com as
mulheres do país diz Southey e com mais uma geração poderiam os
anglo-tupis vir a ser perigosos vizinhos, se o governador de São Sebastião,
seguindo o aferrado sistema de sua Corte, os não tivesse no quinto ano de
sua residência atacado e exterminado.
Os que escaparam à desapiedada guerra que os portugueses faziam a todo
o entrepolo fugiram para o sertão e, ou foram comidos pelos selvagens,
como se crê, ou viveram e morreram com eles, asselvajando-se também.
[...]
Escudando-nos nas leis hereditárias de Mendel, inquirimos por nossa vez:
serão os dolico-louros sanjuanenses descendentes dos anglo-tupis ou, mais
corretamente, anglo-tapuias de Southey? Os etnogenistas que respondam
(L
AMEGO
, 1996:93-94).
Ainda hoje circulam nos municípios de São João da Barra, particularmente
em Atafona e nas ilhas do Pessanha e da Convivência, e de São Francisco do
Itabapoana, especificamente em Gargaú, muitas narrativas sobre naufrágios de
grandes embarcações em tempos remotos. Esta epopéia, fixou o europeu à costa,
seduzido pela vida farta do ambiente cercado por águas doces, salobras e
salgadas. Na gênese desta gente dispersa nos areais costeiros por uma e outra
banda da foz do Paraíba, Lamego criou um tipo social, o muxuango, marcado
pelo confronto da colonização, tangido pela resistência às debilidades suas e da
terra.
O muxuango, pois, seria o europeu convertido em piraquarada foz do
Paraíba do Sul, habitante da restinga, pescador por ofício e, também, sabedor do
cultivo de raízes e da feitura de artigos de cerâmica.
O trabalho do muxuango é quase idêntico ao do índio: a pesca e a caça nas
lagoas, a cultura da mandibae das abóboras, a indústria da farinha, a
cerâmica e a cestaria primitivas, a criação em pequena escala (L
AMEGO
,
1996:95).
A fartura e, mesmo, a diversidade de produtos arrancados ou
confeccionados como resultado do labor do muxuangocom a paisagem, afirma
Lamego, deu origem a um dos mais notáveis eventos do interior da região Norte-
Fluminense: a feira de Gargaú
43
.
43
A propósito da feira, escreveu Castro Faria na Comunicação de 1941: Gargaú, com sua feira
secular, é o ponto de encontro entre o sertão e o litoral. [...] Gargaú é uma enseada que fica a 9
quilômetros da cidade de São João da Barra. A pequena povoação foi outrora lugar de veraneio,
praia preferida dos fazendeiros e comerciantes de Campos, que ali faziam construir pequenas
casas para a estação de banhos. Mas todo o nosso interesse convergirá agora na observação de
uma iniciativa extremamente curiosa – a feira semanal de Garg.
Realiza-se aos sábados; o movimento, porém, começa sexta-feira à tarde, e os negócios desde
então vão sendo feitos apenas verbalmente, pois antes das seis horas da manhã de sábado,
ninguém pode pesar ou passar. Chamam passar mudar o produto comprado de acondicionamento
do ofertante para o do comprador, quando não acertam fazer troca dos mesmos.
Para os produtores em pequena escala, o comércio, na realidade, é simplesmente de troca. Os
pescadores trazem peixe salgado principalmente cação e traíra mais raramente pescada e
corvina, e com o dinheiro obtido levam farinha, tapioca, abora. Inversamente, o pequeno
lavrador traz alguns sacos de farinha, e mais alguns produtos de sua roça, para levar alguns quilos
de peixe. A venda da farinha também se faz, é verdade, em proporções maiores enormes carros
de boi, de 4, 6 e 8 juntas, rolam pesadamente na areia fofa da restinga, carregados de sacos.
Vêem do extremo sertão chamado Cacimbas, região mais rica do município. Terra de agricultura
que abrange os distritos de São Francisco de Paula, de Barra da Itabapoana e de S. Luiz de
Gonzaga, e desde os tempos remotos da Província constitui-se numa zona essencialmente
agrícola.
É o ponto de encontro de várias especializações.
Pescador branco, afeito ao mar, usando apetrechos e empregando redes cuja origem constitui uma
tradição, tão forte como a que o levava a dividir quinhões, e a manter tão serena constância à
profissão que herdara.
Negros que sempre amanharam a terra e ainda hoje fazem roças, plantam mandioca, usam tipiti; e
preparam uma tapioca alva como neve.
Carreiros e tropeiros brancos e mulatos; prancheiros brancos, queimados de sol. Gente que
navega, gente que conduz tropas. Gente que um dia por semana confraterniza ali na feira, e faz
reviver um porto que vai secando dia a dia.
Talvez com ele morra uma tradição.
A feira de Gargaú é um mostruário semanalmente aberto, uma completa
exibição de seu labor. A afamada farinha é o principal produto. Mas tamm
compra-se, vende-se e breganha-sedo robalo fresco à tainha seca,
animais de sela e corte, gamelas e gaiolas, sabiás da praia e papagaios,
redes, juquiás, puçás, cestas, tipitis, jacás, arupemas e panelas de barro,
esteiras e samburás, cordas e artefatos de couro (L
AMEGO
, 1996: 93-95).
A aparente prodigalidade da produção e do comércio, no entanto, escondia
a frugalidade, a carência e o desabono desta gente. O muxuango, na tipificação
de Lamego, é o europeu deprimido pela hostilidade do meio o deserto da
restinga – condenado a definhar, a tornar-se um resíduo étnico, a vencer-se pela
verminose, pelo paludismoe pela anquilostomíase. É um derrotado de face
pálida e inexpressiva
44
.
Lamego, como um dos fundadores do pensamento social brasileiro na
vertente fluminense
45
, não escapa à idealização do mestiço postulada à época,
entre outros, por Gilberto Freyre em
Casa grande e senzala
(1933). Ao contrário
do ideal de branqueamento da população que fervilhou nos fins do XIX, a
mestiçagem é tomada como elemento positivo da constituição do brasileiro. Nesta
antropogênese, o mestiço, depositário da interseção das três raças, é um forte,
tal como o sertanejo de Euclides da Cunha em
Os sertões
(1902). Por isso, o
muxuangode Lamego tem seu contraparte: o mocorongo.
O mocorongoé o mestiço
46
assentado no interior fluminense, nas matas e
nas montanhas, advindo na esteira dos engenhos e cafezais dos séculos XVIII e
44
Conforme a passagem encontrada em Muxuango e Mocorongode
A planície do solar e da
senzala
: O homem da costa largado a si numa terra improdutiva, a braços com o brejo, com a
areia e com a vegetação raquítica, maranhosa e espinescente, esmorece numa luta estéril. Dia a
dia, ano a ano, século a século, involui. O espírito empaula-se numa letargia de aborígene. A
ambição desaparece. Os ideais diluem-se. Decresce a iniciativa. Cessa a combatividade. O ariano
civilizado volta à selvageria, acaipirando-se. É um vencido. A terra subjugou o homem. A
impassibilidade topográfica como que reproduz a impassibilidade humana(L
AMEGO
, 1996:94-95).
45
A respeito de Alberto Ribeiro Lamego, escreveu Oliveira Viana no prefácio da primeira edição
de
A planície do solar e da senzala
: Lamego Filho trai nele o poeta que se fez homem de ciência, o
autor de versos e o engenheiro de minas. Evocando o passado ou descrevendo o presente, revela-
se, evidentemente, um escritor de estirpe, um colorista, cheio de largas provisões de tintas. Há
talvez, em alguns trechos, algo denunciando inegáveis influências da técnica euclideana; mas é,
sem dúvida alguma, um escritor de raça, dos verdadeiros, dos autênticos, com o senso do traço
dominante, do relevo, do movimento, da notação pictória do ambiente.
46
Assim Lamego descreve o mocorongo:
O mestiço é pois comum, e entre estes, quando a
quando surge um cafuzo. Denunciam-no a tez terrosa, os olhos oblongos, os cabelos negros e
corredios , os zigomas em relevo, a barbicha de piaçava gasta, a boca sempre extensa num sorriso
XIX e, adiante, das senzalas desmoronadas. Enquanto o ariano se deteriorava
nas restingas, o mocorongo, na perspectiva de Lamego, naturalizava-se no meio e
se tornava uma promessa, um embrião que germina, “resistindo ico à absorção
do meio.
A terra sendo rica e pródiga estimula o mocorongo. Mas requer energia. Só
o forte derruba. Só o decidido enfrenta o isolamento da floresta e da
montanha. O café animador compensava-lhe os esforços. Sustentam-no o
milho, o arroz, o feijão e a caça. Os sobejos da colheita vendem-nos na
próxima estação, na venda ou pilação afreguesadas (L
AMEGO
, 1996:96).
Os personagens-tipo de Lamego – muxuangoe mocorongo remontam a
saga da conquista dos territórios brasileiros por indivíduos que, sem o impulso
dos governos indiferentes, e sem o amparo das leis imigratórias, puderam salvar-
se antes pela teimosia. O muxuango, no entanto, ficou estagnado no meio
adverso. O mocorongoresistiu não apenas ao ambiente, mas como projeto,
desejado por Lamego e por seus contemporâneos, da gente brasileira: mestiça,
antes de tudo.
O registro destes tipos sociais interessa-nos aqui apenas como referência à
gênese, ao modo de vida e a personalidade dos gargauenses, segundo a visão de
Lamego. Não pode ser tomado por retrato fiel da realidade de Gargaú no início do
século XX exatamente porque à tipificação opõe-se a fidedignidade, cercando-se
de generalidades e exageros. Tanto mais, porque pairavam no pensamento social
da época as assertivas de uma Antropologia e de uma Geografia Física, ainda
permeada pelas premissas evolucionistas de Darwin e Mendel. Some-se a esse
aspecto, o compromisso ideológico de reconstrução do Brasil através da
valorização do mestiço, tal como no pensamento de Gilberto Freyre. Como
tipologia das gentes, os personagens de Lamego representam modelos datados
de certas características da população fluminense que, doravante, podem servir-
nos de inspiração para o entendimento dos dias atuais. Neste sentido, apresento
dúbio. Manso e laborioso, mido e paciente, atarracado e musculoso, o passo miúdo, o gesto
mole, o porte indolente, é o puri, o direto descendente da grande nação indígena, extinta ao
fechar-se o século passado” (L
AMEGO
, 1996:94).
Gargaú e seus piraquarasa partir de minhas observações de campo, referindo-
me aos gargauenses como muxuangosapenas pelo direcionamento histórico,
sem, contudo, desprezar o que há de metafórico no personagem-tipo de Lamego.
Gargaú está localizada na margem esquerda da foz do rio Paraíba do Sul.
Entre os braços do rio que formam o maior manguezal do estado do Rio de
Janeiro, as lagoas e o mar Atlântico, a pesca e a cata tornaram-se a principal
atividade da população local, sendo a base da economia do assentamento,
somada ao turismo nas temporadas de verão. Segundo estimativa da Colônia de
Pesca Z1, existem em Gargaú cerca de 80 pescadores de água doce (rio), 300 de
água salgada (mar), 67 marisqueiras e 59 catadores de caranguejos (
Ucides
cordatus
) e guaiamuns (
Cardisoma guanhumi
)
47
.
O
modus vivendi
dos gargauenses remonta às características das
chamadas populações tradicionais, o que significa que suas interações com o
tempo e com o espaço diferem, em parte, dos cânones modernos. O veio
tradicional da vida em Gargaú perpassa, fundamentalmente, a relação dos
pescadores e dos catadores com o espaço – a natureza como fonte de sua
produção direta e com o tempo a associação entre ritmos naturais e ritmos
sociais.
[...] as sociedades tradicionais, através de suas instituições sociais (família,
relações de parentesco etc) exercitam uma forte interação, que chega em
muitos casos a ser simbiótica com a natureza e seus recursos naturais
renováveis, a partir do qual constroem seu próprio modo de vida
(M
ANSANO
, 1998).
Assim, as atividades dos gargauenses e os meios materiais e simbólicos
que delas advêm compõe o que Pierre George definiu como
genre de vie
:
Designa na obra dos geógrafos franceses do início do século XX o conjunto
de formas materiais de existência de grupos humanos vivendo em
economia fechada ou semi-fechada, caracterizada por um tema
47
Entre os catadores, as mulheres, chamadas caranguejeiras, destacam-se majoritariamente. A
propósito, ver minha monografia de graduação intitulada
Caranguejeiras de Gargaú:
sustentabilidade do ponto de vista nativo
, defendida em 2002 na Universidade Estadual do Norte
Fluminense Darcy Ribeiro.
fundamental de atividade vital: gêneros de vida pastorais, gêneros de vida
de pesca e de caça ou de coleta, ou pela associação estreita desta
economia com um meio geográfico de produção: gênero de vida dos
rizicultores extremo-orientais, gênero de vida montanheses, etc (G
EORGE
,
1970:201)
48
.
A dependência do meio e do ciclo natural para a realização das atividades
de trabalho dos pescadores define este
genre de vie,
em parte
,
dissonante da
modernidade. Ao não se adequar ao tempo do relógioe, ao contrário, formular
seu percurso temporal em associação com a natureza, os pescadores, por vezes,
são vistos pela sociedade moderna como preguiçosos, indolentes e mentirosos,
quando em plena segunda-feira, em razão de um vento desfavorável à pesca,
podem ser vistos desfrutando da rede indígena, de um jogo de cartas ou de um
bate-papo no bar. Ou, para manter o segredo de um ponto pesqueiro, contam
histórias um tanto fantásticas, a respeito de uma incursão no mar. Mas, na
intimidade com o ambiente, essencialmente, estão os pressupostos de um gênero
de vida tradicional.
A vida social do pescador é um movimento cíclico tal como representado
pelos biólogos com relação aos seres vivos. Quanto mais puro e recorrente
for esse ciclo, isto é, quanto mais tradicional, mais semelhança guardará com
os ciclos naturais, como as fases lunares, as estações do ano, as épocas da
postura de peixes e tartarugas, o movimento das marés etc., mais legítimo
será o seu modo de vida (S
ILVA
, 1989:47).
No entanto, o tradicional não configura o isolamento. No mundo globalizado,
as relações entre diferentes grupos e diferentes sociedades tendem a se
estabelecer principalmente através do mercado. Assim, embora os assentamentos
pesqueiros, de modo geral, não reflitam os gêneros de vida da modernidade, sua
relação com a sociedade moderna é estreita, na medida em que o produto de
48
Designe dans l´oeuvre des ographes français du début du XX siècle lensemle des formes
matérielles dexistence de groupes humains vivant en économie fermée ou semi-fermée,
caractérisée par un thème fondamental dactivité vitale: genres de vie pastoraux, genres de vie de
pêche et de chasse ou de cueillette, ou par lassociation étroite de cette économie avec um milieu
géographique de production: genre de vie des riziculteurs extreme-orienaux, genres de vie
montagnards, etc[Tradução de Arno Vogel].
suas atividades o pescado – não é produzido numa economia exclusivamente
doméstica, mas em larga escala, sendo escoado em nível regional, nacional ou
internacional. O
genre de vie
tradicional, portanto, é sempre relativo às possíveis
interfaces com o mercado ou com atividades de outra natureza que os indivíduos
possam estabelecer.
Em Gargaú, há cerca de 10 frigoríficos responsáveis pelo escoamento da
produção do pescado. Há também a figura do atravessador, que revende,
principalmente, caranguejos e guaiamuns, para a região Nordeste do Brasil. Além
desses meios de comércio, a produção dos pescadores gargauenses é
comercializada no Mercado Municipal de Campos dos Goytacazes, com
população estimada em quase meio milhão de habitantes.
A comercialização do pescado, aliás, indica-nos, desde as observações de
Lamego, o ponto de uma certa interseção entre o isolamento e o a abertura, o
tradicional e o moderno em Gargaú. Na antiga feira do assentamento, vagava o
muxuango endomingado, num ambiente todo seu, ao trote duro das pulitanas
ou na mesa dos carros de bois, arrastados horas a fio pelos areais. O gargauense
de hoje endominga-se para ir às cidades e seus mercados ou para cultos
semanais de um protestantismo em ascensão no local
49
.
Não é exclusivamente branco mais. Miscigenou-se, embora alguns traços do
tipo louro, dolicocéfalo, de olhos verdes ou azulados, lábios finos, nariz reto, talhe
adelgaçadopossam ainda ser observados. Apatia não se vê, caso contrário as
horas e os dias passados nos remos de bateras ou nas popas dos barcos nada
resgatariam do rio e do mar. Talvez as considerações de Lamego tenham se
embaçado pela ideologia de uma época e pela adversidade dos ventos, do sol, da
lua, das marés e das correntes que exigiam do muxuangonão apenas um
profundo conhecimento do universo natural, mas, sobretudo, imensa disposição
para vencer os óbices que lhe apresentava o meio. Antes que apatia existia e
49
Há 8 instituições religiosas conspícuas no assentamento: 2 católicas, 1 Universal do Reino de
Deus, 3 Assembléias de Deus, 1 Batista e 1 Restauração. No entanto, sessões protestantes
que se realizam constantemente nas residências dos fiéis.
ainda existe o cansaço. Mas, o próprio Lamego, anos depois, em
O homem e a
restinga
(1946), parece ter reconhecido a luta do muxuangocom o seu meio:
A terra absorveu o homem, adaptando-o às possibilidades naturais. Os
impulsos inatos e oriundos da ascendência européia foram secularmente
amortecidos no cansaço físico das caminhadas sobre os areais (L
AMEGO
,
1946:158).
O muxuangoera, segundo a tipificação de Lamego, um referente de
alteridade dentre a concepção da gente brasileira de sua época, querida mestiça
por tantos pensadores sociais. Os pescadores de Gargaú, na atualidade, mantêm-
se como o nosso outro, pelo seu
genre de vie
diferenciado das convenções
modernas. Mas tanto nós quanto eles (os gargauenses) dependemos do rio
Paraíba do Sul, mesmo que por razões e vias diversas.
II.3. Breve histórico de mortandades de peixe
Desde a segunda metade do século XX, veículos de comunicação
brasileiros, amparados em dados oficiais ou em depoimentos de moradores
ribeirinhos e pescadores, denunciavam a crescente degradação do Paraíba do Sul
em virtude do processo de industrialização e urbanização que se iniciava em sua
bacia. Figuravam manchetes bombásticas em que o rio aparecia como um grande
esgoto, o rio condenado, o rio ameaçado, o rio agonizante, o rio de águas
mortasetc. Previsões de sua morte eram estimadas para daqui a cinco anos,
em diferentes jornais, sempre que ocorriam mortandades de peixe. Eis um breve
histórico, montado a partir de fontes da imprensa nacional, do processo anunciado
de degradação do Paraíba do Sul.
Em 21 de junho de 1967, o
Jornal do Comércio
denunciava o estado de
poluição causada por despejos industriais em que se encontrava o rio, na altura do
Vale do Paraíba:
Há, presentemente, na região, diversas indústrias de grande porte que
lançam às ruas os mais variados tipos de resíduos industriais, tanto
ornicos como minerais. Têm sido, por vezes atribuída aos despejos
industriais, as ocasionais mortandades de peixe do Paraíba do Sul.
A reportagem fazia menções, ainda, à poluição proveniente das atividades
agrícolas e, além disso, àquela referente às atividades domésticas:
É de se supor que exista a poluição por pesticidas e fertilizantes ornicos
e minerais [...] Todas as outras aglomerações (exceto a Academia Militar de
Agulhas Negras) humanas ou lançam seu esgoto diretamente num afluente
ou no próprio rio Paraíba do Sul, ou fazem uso de fossas sépticas, as quais,
no final, tamm contribuem para a poluição bacteriana das coleções
líquidas.
Do ponto de vista histórico, a reportagem informava sobre as
conseqüências ambientais da industrialização e urbanização maciças que
ocorriam na bacia do rio Paraíba do Sul desde a década de 1940 com a abertura
da rodovia Presidente Dutra e a construção da Companhia Siderúrgica Nacional
(CSN). De fato, o Vale do Paraíba no estado de São Paulo, parte do estado de
Minas Gerais e do Rio de Janeiro tiveram, na bacia, seu provedor ambiental,
utilizando os recursos hídricos tanto como fonte de abastecimento como depósito
de efluentes das indústrias instaladas na região
50
.
Este acelerado processo em um período histórico em que as questões
referentes ao meio ambiente ainda não estavam consolidadas nas agendas
políticas permitiu que o rio fosse utilizado como depósito de diferentes fontes de
poluição (industrial, doméstica e agrícola) sem qualquer controle efetivo do poder
público. Ao contrário, o modelo de desenvolvimento desempenhado contou com
incentivos
51
de várias prefeituras dos estados de São Paulo e do Rio de Janeiro,
50
Como indica a reportagem de 28 de junho de 1972 da
Revista Veja
: Em quase todas as pacatas
cidades das margens do Paraíba no trecho Rio-São Paulo, dezenas de indústrias rondam os
corretores e os prefeitos em busca de terrenos e facilidades para acompanhar os movimentos
desses gigantes [...] No momento, às virtudes naturais do Vale do Paraíba estão sendo
acrescentados robustos dons artificiais: infra-estrutura ecomica.
51
Conforme a matéria de 04 de maio de 1975 do
Jornal do Brasil
: Como a maioria dos municípios
fluminenses, Volta Redonda, Barra Mansa, Barra do Piraí, Resende, Piraí e Três Rios dão
incentivos à implantação de novas instrias ou expansão das já existentes, isentando-as dos
impostos municipais (predial, territorial, ISS) e de licença para localização pelo prazo de 10 anos
como a isenção de alguns impostos e a permissão para captar águas diretamente
do rio:
Interessados em mais incentivar as indústrias para aumentar a arrecadação
de impostos, os prefeitos da maioria das cidades o se preocupam com a
poluição das águas, talvez por desconhecerem que só as seis fábricas de
papel da parte paulista do Vale produzem uma carga poluidora equivalente
à dos esgotos de uma cidade de um milhão de habitantes, e um grupo de
16 usinas de açúcar do Norte Fluminense produz o equivalente aos esgotos
de uma população de um milhão e 320 mil pessoas, segundo dados oficiais
[...] A presença de grandes quantidades de urubus em vários locais do rio é
um dos mais seguros indícios da poluição de suas águas (O Globo,
16/11/75).
Sem uma legislação consistente a respeito dos recursos hídricos
52
, e
tampouco sobre crimes ambientais
53
, o Paraíba do Sul ficou à deriva, no último
quartel do século XX, sem proteção contra o uso indiscriminado de suas águas,
bem como de sua utilização como escoadouro dos mais diversos resíduos do
meio urbano e rural. Por conseqüência, diversos episódios de derramamento de
efluentes industriais ocorreram ao longo da bacia do rio, desde o início do
processo de industrialização e urbanização da região. Segundo a Agência
Nacional de Águas (A
NA
), a partir da década de 1980, houve quatro desastres
ambientais de maior escala: o rompimento da barragem de lama tóxica da Cia.
Paraibuna de Metais, no rio Paraibuna, em 1982; o acidente rodoviário, ocorrido
em 1984, em que um camino despejou 30 mil litros de ácido sulfúrico no rio
Piabanha; o vazamento de 150 litros de ascarel, contidos em 3.000 litros de água
utilizada para apagar o incêndio de transformadores na Thyssen Fundições, em
1988; e o recente rompimento da barragem da indústria Cataguazes de Papel, que
despejou no rio Pomba cerca de 1,2 bilhão de litros de rejeitos químicos,
subprodutos da fabricação de papel
54
.
[...] A própria indústria pode se encarregar de fazer a captação, com as prefeituras ajudando no
que for possível, dizem os prefeitos.
52
Vigorava então apenas o Código de Águas, decreto 24.643, de 10 de julho de 1934.
53
A lei 9.605 de crimes ambientais data de 12 de fevereiro de 1998.
54
Segundo a Agência Nacional de Águas (2003) “O desenvolvimento industrial [...] tem contribuído
significativamente para a degradação das águas, em razão dos lançamentos de efluentes com as
Diante deste quadro, a pesca no Paraíba do Sul, viés deste estudo, tem um
largo histórico de interdições, seja por mortandades de peixe, seja por
contaminação dos mesmos. Em 19 de junho de 1974, a
Revista Veja
publicava
uma reportagem sobre o rio, cujo título era Um grande esgoto, informando sobre
um desastre ambiental no Vale do Paraíba:
Exames em alguns exemplares dos peixes que há cerca de vinte dias
apareceram mortos nas proximidades de São José dos Campos, num total
estimado em 1 tonelada, encontraram em suas vísceras quantidades
excessivas de mercúrio, zinco, cobre e outros metais.
O
Jornal da Tarde
de 19 de julho de 1974 trazia uma matéria sobre o rio
intitulada Águas Mortas, em que a contaminação dos peixes na região Norte
Fluminense era denunciada por pescadores:
Os cardumes que haviam começado a subir o rio Paraíba poucas horas
antes já estavam voltando. Eram muitos, e vinham todos à flor d´água,
saltando, perdidos, boiando indecisamente. Até cair no oceano e ali tornar
prateadas e mal-cheirosas as ondas e a areia da aldeia de Atafona.
Dario Rodrigues Bastos já era homem maduro quando viu a cena pela
primeira vez, vinte anos atrás. Soltou as velas do Esperança e subiu o
Paraíba. Daí a vinte quilômetros, antes de chegar à maior cidade do Norte
Fluminense, Campos, ele achou que, se contasse o que estava vendo,
ninguém acreditaria.
- Voltei então para Atafona, dei o alarme e subimos, nuns oito barcos, até
as proximidades de uma usina de açúcar, para ver um grande porre
aquático. Os peixes haviam bebido o melaço, os restos de álcool lançados
pelos engenhos, e estavam completamente bêbados.
De lá pra cá, Dario Rodrigues Bastos perdeu a conta das vezes em que viu
os peixes voltando, tontos, para coalhar a barra e depois serem devorados
pelos peixes maiores no mar.
Em 16 de novembro de 1975, o jornal
O Globo
apresentava uma
reportagem afirmando, a partir de laudos técnicos, que a pesca no Paraíba do Sul
estava agonizando:
mais diversas constituições, representando, em muitos casos, as piores fontes de contaminação
das águas e da biota aquática da bacia.
A pesca profissional, de grande intensidade em outras épocas, é
praticamente nula hoje em dia. No lugar onde ela se faz mais intensa, em
São Fidélis, só produz o suficiente para o consumo local. A próspera
colônia de pesca de Atafona – três mil quilos diários só de camarão vive
apenas da pesca no mar, porque o rio já não produz peixes e crustáceos
em quantidade e qualidade rentáveis. Mesmo se quisessem pescar no rio
não poderiam, porque as redes ficam impregnadas de vinhoto, (resíduo
resultante da produção de álcool), tornando o seu reaproveitamento quase
impossível, devido às dificuldades para limpeza.
A partir do depoimento de um pescador de Caçapava, o
Jornal do Brasil
de
03 de outubro de 1977 trazia uma matéria que se reportava a uma mortandade de
peixes ocorrida no rio 2 anos antes:
- Há dois anos Diamantino Pedro começa a contar à pequena platéia no
mercado de Caçapava – uma fábrica de papelão fez por aqui uma descarga
que acabou com os peixes. Aquilo dava até dó, os peixes, sem ar, iam
virando de barriga pra cima e morrendo. Multaram a fábrica mas multa não
adianta nada, a fábrica paga, prá ela é pouco dinheiro, é até vantagem, fica
tudo por isso mesmo. Pra nós é que a multa não adianta nada, não paga o
nosso prejuízo, a multa não é dividida entre nós. Eles têm é de fechar essas
empresas. Senão, como é que a gente vai ficar? A gente se aposenta, tira
Cr$ 500,00 por mês. O que é que um homem vai fazer com Cr$ 500,00 pra
sustentar família?
Este pequeno elenco de mortandades de peixe no Paraíba do Sul, que foi
veiculado na imprensa nacional, atesta não apenas as condições de degradação
do rio no que se refere a potabilidade da água que serve grande parte do Sudeste,
tampouco a qualidade do pescado em nossas mesas, mas a privação do meio
natural e laboral que têm sofrido os pescadores. Por isso, em qualquer conversa
com estes, surgem narrativas de insucesso, fracasso e escassez quando de suas
incursões pelo rio, sempre contrapondo o antigamentee o atualmente, como
nas palavras de um interlocutor de Gargaú: Antigamente nós pegava[mos]
tonelada em uma pescaria, uma semana. Agora nós apanha[mos] tonelada em um
ano.
A década de 80 seria inaugurada com o desastre provocado pelo derrame
de metais pesados pela indústria mineira Paraibuna de Metais nos rios Paraibuna
e Paraíba do Sul. Os jornais da época relatam tanto a enorme mortandade de
peixes quanto a sua contaminação, conforme a notícia veiculada pelo
Monitor
Campista
de 19 de maio de 1982:
[...] piaus, cumatãs, sairus, robalos, dourados e lagostas, são algumas das
qualidades de peixes que estão sendo apanhados com as mãos, às
centenas, milhares, nas margens do Paraíba. São toneladas de peixe que
boiam nágua, constituindo-se num grande perigo para as diversas
comunidades, notadamente as mais pobres, que residem às margens do rio
e que, por falta mesmo de informações, podem se alimentar do pescado
contaminado.
Vinte e um anos depois, o episódio repetir-se-ia com o rompimento da
barragem da instria Cataguazes de Papel que derramou nos rios Pomba e
Paraíba do Sul cerca de 1,2 bilhão de litros de efluentes, entre os quais, soda
cáustica. O desastre foi considerado por especialistas
55
(e pela imprensa nacional)
um dos maiores já ocorridos em águas doces no mundo
56
. A poluição das águas,
a mortandade e contaminação de peixes foram incomensuráveis, o que levou
diversos peritos a afirmar que o rio levaria, mais uma vez, cinco anos, no mínimo,
para se recuperar
57
.
A morte do rio Paraíba do Sul vem sendo anunciada desde o desenrolar do
processo de industrialização e urbanização que ocorreu nas últimas décadas do
século XX em sua bacia. As mortandades de peixe não se configuram num
problema isolado, mas são os sintomas mais flagrantes de outros: a insalubridade
das águas, a erosão das margens, o assoreamento de determinados trechos etc.
O extermínio do rio o é apenas um problema ambiental, no sentido mais estrito
55
Conforme a análise de um especialista divulgada na reportagem do jornal
O Globo
:
Ambientalistas alertam que o ecossistema foi seriamente afetado. Segundo o professor Francisco
Esteves, PhD em Ecologia e professor titular da U
FRJ
, quando chega a ocorrer a morte de peixes,
todas as cadeias alimentares foram irremediavelmente alteradas.
- Esse tipo de desastre é um dos acidentes em ambientes aquáticos mais graves que se tem
conhecimento na literatura ambiental porque suas conseências podem perdurar por anos
explicou, acrescentando que não se conhece técnica para reduzir o tempo de recuperação de meio
ambiente(01/04/03).
56
Esta consideração também foi amplamente veiculada por especialistas e pela imprensa em
relação ao desastre de 1982.
57
Conforme a opinião de um especialista divulgada em
O Globo
: Eu desconheço a recuperação
natural de uma bacia em menos de cinco anos. Em situações excepcionais, como a grande
enchente que desassoreia o rio e leva embora os sedimentos, isso acontece. Mas é improvável.
Normalmente, bacias recuperam-se em 20 anos” (03/04/03).
do termo, mas uma questão social, pois, de sua integridade depende a vida desta
e das futuras gerações do Sudeste brasileiro.
O “rio imprestável, no entanto, que um dia foi considerado [...] o paraíso
dos robalos, delícia da tradicional culinária campista” (P
INTO
, 1987:40) insiste no
seu percurso, delineado por sinuosidades geográficas, mas também por aquelas
desenhadas pelas relações do ser humano com a natureza.
O ambiente é assunto do homem, pois os perigos ambientais que ameaçam
os ecossistemas ameaçam também os antropossistemas. A espécie
humana está em perigo de extinção total ou parcial se não abrandar o
crescimento exponencial da contaminação, da degradação e do
envenenamento do ar, da água, do solo e dos alimentos, o que redunda em
uma perda da qualidade de vida e amenidade das paisagens (V
IDART
,
1986:17)
58
.
Problemas ambientais podem recrudescer problemas sociais, como a
desigualdade, e encetar experiências ou
uma
experiência extraordiria na
sociedade. Na verdade, problemas ambientais podem ser a pólvora de dramas
sociais esta unidade processual que, como disse Turner (1986), continua sendo
uma realidade penosa, uma praga eterna e o calcanhar de Aquilesdos seres
humanos.
58
El ambiente es asunto del hombre pues los peligros ambientales que amenazan a los
ecosistemas amenazan también a los antroposistemas. La especie humana está en peligro de
extinción total o parcial si no amainan el crescimiento exponencial de la contaminación, de la
degradación y del envilecimiento del aire, el agua, el suelo y los alimentos, lo que redunda en una
pérdida de la calidad de la vida y amenidad de los paisajes[Tradução minha].
III. D
ESASTRES AMBIENTAIS NO RIO
P
ARAÍBA DO
S
UL COMO DRAMAS SOCIAIS
:
OS CASOS
P
ARAIBUNA DE
M
ETAIS E
C
ATAGUAZES DE
P
APEL
I did not think it to be a universal type, but
subsequent reserch has convinced me
that social dramas, with much the same
temporal or processual structure as I
detected in the Ndembu case, can be
isolated for study in societies at all levels
of scale and complexity.
Victor Turner
El tiempo me ha ensado algunas
astúcias: eludir los sinimos, que tienen
la desventaja de sugerir diferencias
imaginarias; eludir hispanismos,
argentinismos, arcaísmos y neologismos;
preferir las palabras habituales a las
palabras asombrosas; intercalar en un
relato resgos circunstanciales, exigidos
ahora por el lector; simular pequenas
incertidumbres, ya que si realidad es
precisa la memoria no lo es; narrar los
hechos como si no los entendiera del
todo; recordar que las normas anteriores
no son obligaciones y que el tiempo se
encargará de abolirlas.
Jorge Luis Borges
Na tarde do dia 22 de maio de 1982, o então governador do estado do Rio
de Janeiro, Chagas Freitas, saiu de um reservado próximo da ponte Saturnino de
Brito, na cidade de Campos dos Goytacazes, trajando um calção azul e caqui.
Transpôs o aglomerado de jornalistas, fotógrafos, correligionários, assessores,
eleitores, transeuntes e curiosos e atirou-se nas águas do rio Paraíba do Sul
proferindo:
Se essa água fizer mal ao povo ao bebê-la, fará mal a mim também que a
bebi, e se fizer mal aos pescadores que nela mergulham todos os dias, fará
mal também ao governador, que mergulhou nas águas do Paraíba (O
Globo, 23/05/82).
Horas antes, junto com representantes da imprensa e algumas autoridades
regionais, Chagas Freitas havia visitado a C
EDAE
59
, onde bebera água proveniente
de uma das torneiras de suas instalações. Não fora convincente para as câmeras
fotográficas e, tampouco, para os seus opositores políticos, o gesto que intentou
atestar a salubridade do conteúdo do copo. Dirigiu-se, então, para o rio. Imerso
até a altura do tórax, o governador, à maneira do batismo de Cristo, banhou com
as mãos em concha o rosto e a cabeça, desempenhando um rito reformador
diante de um drama social
60
.
A reforma, ritualizada pelo banho, pretendia restabelecer o fluxo ordinário
da vida social no Norte-Fluminense, pois, havia dez dias, cerca de 250 mil
pessoas estavam sem abastecimento de água. O motivo: o rompimento do lago de
resíduos da Companhia Paraibuna de Metais, localizada em Juiz de Fora MG,
que despejou no córrego Três Pontas e, a jusante, nos rios Paraibuna e Paraíba
do Sul, 20 milhões de litros de jarosita, substância utilizada no tratamento de
minério de zinco, em cuja composição estão presentes chumbo e cádmio, ambos
metais pesados
61
.
O desastre, que ocorrera no dia 12 de maio, atingiu os municípios de Três
Rios, Levy Gasparian, Sapucaia, Além Paraíba, Carmo, Itaocara, Cambuci, São
Filis, Campos dos Goytacazes e São João da Barra. À medida que avançavam
os efluentes, que, incolores, eram detectados apenas pelo teste das águas feito
ora pela F
EEMA
62
, ora pela C
EDAE
, o abastecimento ia sendo interditado.
Mobilizados todos os domínios da sociedade pela escassez de água, o caos se
embrenhava no cotidiano das gentes
63
, como um fato social total.
59
Companhia Estadual de Águas e Esgotos.
60
Ver figura 1.
61
Cf.
O Globo
, 23/05/82.
62
Fundação Estadual de Engenharia do Meio Ambiente, óro do estado do Rio de Janeiro.
63
Conforme nota do
Monitor Campista
: É, a barra está ficando mais preta do que se imaginava,
podendo ser considerado o caos(21/05/82).
Raro o acontecimento de situações sociais cuja verossimilhança impele à
análise com o mesmo viés interpretativo. Ora, os desastres da Companhia
Paraibuna de Metais e da Indústria Cataguazes de Papel guardam as mesmas
proporções no terreno social, pois, como fatos totais, suscitaram dramas. Poder-
se-ia, mesmo, afirmar que o segundo tenha sido uma espécie de
dèjá vu
do
primeiro e, este, a sua confirmação plena. Para as Ciências Sociais, portanto,
situações reveladoras do universo social fluminense compondo uma díade
separada apenas no tempo.
As situações sociais constituem uma grande parte da matéria-prima do
antrologo, pois, são os eventos que observa. A partir das situações
sociais e de suas inter-relações numa sociedade particular, podem-se
abstrair a estrutura social, as relações sociais, as instituições, etc. daquela
sociedade (G
LUCKMAN
, 1987:228).
Assim, as situações dos desastres entre os fluminenses suscitaram a
encenação do drama social do modo como o explicita Victor Turner:
Na sua simplicidade, o drama consiste em um modelo de quatro estágios,
procedendo da ruptura de alguma relação vista como crucial no grupo em
questão, relação que lhe fornece não só o seu contexto [setting], mas
também muito de seus objetivos, através de uma fase de rápida ampliação
da crise na direção da mais importante linha dicotômica de clivagem do
grupo, para a aplicação de meios legais ou rituais de reparação ou
reconciliação das partes em conflito, no campo da ação. O estágio final é a
expressão blica e simlica da reconciliação ou do rompimento
irremediável
64
(T
URNER
, 1974:78-79).
Neste capítulo, sugiro, pois, a interpretação de problemas ambientais a
partir de seus impactos na sociedade e, para tanto, percorro, como itinerário
64
At its simplest, the drama consists of a four stage model, proceeding from breach of some
relationship regarded as crucial in the relevant social group, which provides not only its setting but
many of its goals, through a phase of rapidly mounting crisis in the direction of the groups major
dichotomous cleavage, to the application of legal or ritual means of redrees or reconciliation
between the conflicting parties which compose the action set. The final stage is either the public
and symbolic expression of reconciliation or else of irremediable schism[Tradução de Arno Vogel].
teórico, as veredas da Antropologia da Experiência, através de sua unidade
ordenadora ou
processually structured
, como definiu Turner, o drama social.
III.1. As rupturas
As rupturas, no caso dos desastres, ocorreram no momento em que os rios
Paraibuna e Paraíba do Sul em 1982 e Pomba e Paraíba do Sul em 2003 foram
poluídos por efluentes industriais, privando a população dos recursos naturais do
ambiente. O que era a regra, a norma, o esperado ou o ordinário – o
abastecimento regular de água
65
e o peixe como elemento dos hábitos
alimentares
66
foi subitamente interrompido.
Segundo Turner, [...] um drama social se manifesta inicialmente como a
ruptura de uma norma, a infração de uma regra moral, legal, consuetudinária ou
de etiqueta, em alguma arena blica” (T
URNER
, 1980:146)
67
. Nos desastres, as
rupturas foram traçadas em dois planos: as interdições do universo natural que
culminaram com toda sorte de privações entre os norte-fluminenses; e os
estranhamentos nas relações entre grupos sociais que se envolveram nos
conflitos gerados pelas sedições inauguradas com os rompimentos do fluxo
cotidiano.
Diante do universo natural fraturado, revelaram-se as
dramatis personae
e
as estruturas relacionais da sociedade Norte-Fluminense nos dois casos de
tragédia. Problemas ambientais roteirizam tamm problemas na vida social.
Rupturas drásticas entre a sociedade e a natureza, como a poluição de um rio,
culminam em crises generalizadas, onde se manifestam as mais variadas
clivagens, bem como as mais exóticas alianças. Ou, nas palavras de Turner:
65
Ver as figuras 2 e 3. Note-se a similitude das imagens em 1982 e 2003.
66
Conforme a recomendação: Ninguém deve comer peixes do rio Paraíba do Sul nem usar suas
águas sequer para lavar roupa: o risco maior é o de contrair câncer, porque o metal cádmio é
altamente cancerígeno” (O Globo, 18/05/82).
67
[...] a social drama first manifests itself as the breach of a norm, the infraction of a rule of
morality, law, custom, or etiquette, in some public arena[Traduação de Arno Vogel].
Ruptura das relações sociais normais, tornada publicamente visível pela
infração de uma regra, comumente considerada obrigatória, e que é, ela
mesma, símbolo da manutenção de algum vínculo maior, entre pessoas,
estatutos ou subgrupos, considerado como sendo um nexo crucial no
âmbito da totalidade mais abrangente, reconhecido como um invólucro
cultural de sentimentos compartilhados;...(T
URNER
, 1987:34)
68
.
Embora Turner tenha pensado a ruptura como um acontecimento advindo e
lançado, essencialmente, no contexto da vida social, a exemplo dos divórcios
entre os Ndembu
69
, aqui ela se configura, primeiramente, na relação do ser
humano com a natureza, isto é, nas separações bruscas provocadas pelos
desastres. A partir destas roturas, as relações sociais se esgarçaram rapidamente,
configurando crises, fase subseqüente da estrutura do drama.
III.2. As crises
A crise é, sem dúvida, algo contagiante. Difunde-se por toda parte uma vez
que a ruptura tenha se tornado socialmente visível. O extraordinário se instaura
pelo espraiamento de conflitos. A normalidade fica abolida. A falta de
abastecimento de água nos anos dos desastres alarmou a população fluminense,
culminando em atitudes extremadas, emergenciais. Nas residências, poços
artesianos foram abertos como fontes alternativas
70
. O estoque de água mineral
das mercearias e supermercados se esgotou em poucas horas, contribuindo para
a especulação no mercado
71
. As pessoas que possuíam imóveis ou parentes em
68
Breach of regular norm-governed social relations made publicly visible by the infraction of a rule
ordinarily held to be binding, and which is itself a symbol of the maintenance of some major
relationship between persons, statuses, or subgroups held to be a key link in the integrality of the
widest community recognized to be a cultural envelope of solidary sentiments, this course of events
moves on to the second phase[Tradução minha].
69
Ver a prosito: Turner, V.
Schism and Continuity in an African Society: A Study of Ndembu
Village Life
. Manchester: Manchester University Press, 1957.
70
Cf.
Monitor Campista
, 21/05/82. Em 2003, publicou
O Globo
: Cresce também em Campos o
número de pessoas que decidiu abrir poços artesianos. O estoque de material hidráulico do
comércio local já acabou. Em média, são gastos de R$ 400 na perfuração de um poço, sendo R$
150 pela mão-de-obra e R$ 250 pela bomba de suão. Bombeiros hidráulicos que prestam esse
tipo de serviço estão com a agenda lotada para os próximos 30 dias(07/04/03).
71
Em 1982, noticiou o
Monitor Campista
: Nos supermercados Corcovado, Floresta e Nunes os
estoques dágua mineral esgotaram-se. Alguns clientes são de opinião de que os proprietários
outras regiões promoveram um verdadeiro êxodo
72
. As praias locais foram
interditadas
73
. As localidades ribeirinhas, cujo abastecimento dágua era e ainda é
feito diretamente do rio, aguardavam carros-pipas
74
, enviados pelo poder público,
porém insuficientes para a demanda, e, portanto, alvos de uma corrida
desenfreada e tumultuada da população, que, em vários episódios, teve que ser
contida com ajuda policial
75
. As escolas, as faculdades, as universidades e
algumas repartições públicas suspenderam suas atividades. Os consultórios
médicos e dentários, as clínicas e hospitais reduziram a jornada habitual. O
comércio funcionou com restrições
76
. Algumas indústrias cortaram o expediente
77
.
As atividades de agricultura e pecuária sofreram prejuízos, seja pela recusa da
desses estabelecimentos esconderam o produto para comercializarem depois cobrando os olhos
da cara, mas o fato é que os clientes dessas e outras casas correram e liquidaram os estoques.
Nas Casas Nunes, uma caixa de 12 garrafas plásticas dágua mineral custava Cr$ 590, mas com a
corrida à água, foi aumentada a caixa para Cr$ 912(19/05/82). Em 2003, publicou
O Globo
: O
preço dos galões de água potável de 20 litros vendidos no comércio local teve aumentos abusivos
por causa do desastre, passando de R$ 3 para R$ 12” (03/04/03).
72
Como veiculou o
Monitor Campista
: [...] muitas pessoas deixaram Campos ontem e hoje este
número deverá triplicar. O movimento na rodoviária Roberto Silveira desde a última terça-feira,
quando as aulas em vários estabelecimentos foram interrompidas é crescente e culminará hoje
(21/05/82).
73
As praias interditadas em 1982 foram Atafona e Grussaí, localizadas no município de São Jo
da Barra, e Farol de São Thomé, situada em Campos dos Goytacazes (Cf.
Monitor Campista
,
21/05/82). Em 2003, as praias localizadas nas adjacências da foz do Paraíba do Sul ficaram
impróprias para o banho, como informou a
Folha de São Paulo
: A F
EEMA
determinou a interdição
das praias Atafona, localizada no município de São João da Barra, e Gargaú, em São Francisco do
Itabapoana, por causa da aproximação da mancha de substâncias tóxicas da foz do Paraíba. Até o
fim da tarde, os resíduos tóxicos estavam a cerca de 3 Km da foz do rio. [...] Além das duas praias,
a prefeitura de São João da Barra decidiu interditar, preventivamente, 21 de suas praias
(04/04/03).
74
Ver as figuras 4 e 5. Note-se a verossimilhança das imagens nos dois episódios de desastres
ambientais.
75
Em 1982, [...] a Polícia Militar chegou a usar megafone para advertir favelados da zona
ribeirinha do Paraíba, para que não utilizem água retirada diretamente do rio” (Monitor Campista,
18/05/82). Em 2003, [...] o governo do Rio de Janeiro pediu socorro às Forças Armadas para o
transporte de policiais da capital para o interior do Estado. Eles foram deslocados para ajudar no
controle de tumultos que estavam começando a surgir em Campos, que está sem água desde que
o abastecimento da cidade foi interrompido por causa do grave acidente ecológico que atingiu o rio
Paraíba do Sul” (Estadão, 10/04/2003).
76
Em 1982, a venda de cafés e refrescos foi proibida nos bares e restaurantes (Cf. Monitor
Campista, 21/05/82). Em 2003, não houve interdições, mas os estabelecimentos advertiam os
clientes que seus alimentos eram confeccionados com água mineral.
77
Em 1982, as indústrias produtoras da Coca-cola e do Conhaque de Alcatrão São João da Barra
paralisaram suas atividades (Cf. Monitor Campista, 21/05/82). Em 2003, noticiou
O Globo
: A
F
IRJAN
, que realizou pesquisa em 112 das 730 indústrias dos oito municípios afetados pelo
desastre ambiental, calcula que chega a R$ 298 mil por dia o prejuízo causado às instrias da
região. A pesquisa mostrou que 21% das indústrias paralisaram total ou parcialmente suas
atividades. Em um mês, os prejuízos poderão chegar a R$ 6 miles” (05/04/03).
população de consumir determinados produtos, seja por problemas com irrigação
das lavouras
78
. Missas e cultos foram celebrados pela sanidade do rio Paraíba do
Sul
79
. Nos centros das cidades, manifestações pipocavam nas ruas, provocando
diversos transtornoscom interrupções do trânsito e direcionamento das atenções
da polícia militar
80
. Enfim, a crise se incrustou no cotidiano fluminense anulando o
ordinário, o que mobilizou a população em 1982 e em 2003 para uma consciência
aguda dos dramas sociais no qual todos estavam, de alguma forma, envolvidos.
Um drama social leva à descoberta de muitas coisas. Muitas mais, no
entanto, podem ser reveladas quando se tem, ao invés de um só, toda uma
série de episódios dramáticos. Através deles, a vida da sociedade estudada
adquire um perfil processual, onde se delineiam não só os valores
axiomáticos da cultura de um grupo, mas, também, os seus modos de
atualização e hierarquização (M
ELLO
& V
OGEL
, 2004:169).
A sociedade – em seus grupos e valores desvela-se, portanto, nos
momentos dramáticos da crise, quando se tomam partidos e se revelam clivagens.
No séqüito da crise desemboca o conflito. No painel de experiências de um drama
78
Em 1982, a população das regiões atingidas se recusou a comer hortaliças e carne e a tomar
leite, conforme a publicação: [...] entre tantas outras coisas, a carne, as verduras, legumes e o
leite não estão podendo constar de nossa alimentação por esses dias (Monitor Campista,
21/05/82). Em 2003, veiculou
O Globo
: Os prejuízos para a agropecuária ainda não foram
calculados. Nessa época do ano, os produtores se preparam para o plantio e a ordem é não usar a
água do rio Pomba, principal fonte de irrigação das lavouras(03/04/03).
79
Em 1982, as sessões religiosas eram utilizadas para informar a população a respeito do
desastre e suas conseqüências, bem como orientá-la sobre os procedimentos adequados em
relação ao uso da água. (Cf. Monitor Campista, 21/05/82). Em 2003, noticiou a
Folha da Manhã
: O
Bispo de Campos, Dom Roberto Guimarães, que já havia liberado os católicos para consumirem
carne vermelha durante a Semana Santa, disse ontem que dependendo da avaliação de
segurança por parte da Defesa Civil está disposto a celebrar missa no cais do bairro da Lapa, no
centro de Campos, o só com o objetivo de chamar a atenção para o problema mas tamm
pedir pero a Deus pelo desrespeito a obra da criação” (05/04/03).
80
Em Campos, sem abastecimento de água há 4 dias, vítimas da poluição provocada pela
Cataguazes Pais abraçaram ontem, simbolicamente, o rio Paraíba do Sul, em um protesto
organizado por O
NGS
e universitários. A manifestação foi no final da manhã e reuniu milhares de
pessoas, entre elas o deputado federal Fernando Gabeira, representando a Comissão de Meio
Ambiente da Câmara. Simultaneamente, outro protesto acontecia no mercado de peixes de
Campos, onde pescadores interromperam o trânsito na rua Tenente Coronel Cardoso, uma das
principais do centro da cidade. Os pescadores que estão sem poder trabalhar querem uma
definição quanto ao salário compensatório, prometido pela ministra de Meio Ambiente, Marina
Silva” (O Globo, 06/04/03).
social esta é a ocasião em que as relações ficam tensas, constritas ou suspensas,
à maneira liminar sugerida por Turner
81
.
Seja como for, a crise vai num crescendo e configura um momento de
tensão ou de decisão nas relações entre os componentes do campo social
no qual a paz aparente se transforma em evidentes conflitos, tornando
visíveis os antagonismos latentes. Tomam-se partidos, formam-se facções
e, a menos que o conflito possa ser rapidamente circunscrito a uma área
limitada da interação social, a ruptura tende a se ampliar e espalhar até
coincidir com alguma linha de clivagem no conjunto mais amplo das
relações sociais relevantes, ao qual as partes em confronto pertencem. [...]
Durante a fase de crise, o padrão de luta entre as facções dentro do grupo
social relevante – seja ele a aldeia ou a comunidade mundial é exposto; e
por baixo dele torna-se lentamente visível a menos plástica, mais durável,
mas apesar disso gradualmente mutante estrutura social sica, feita de
relações que são relativamente constantes e consistentes (T
URNER
, 1980:
146-147)
82
.
Em meio à crise de 1982, e passados alguns dias, após o desastre, os
níveis de metais pesados (cádmio, zinco e chumbo) nas águas do Paraibuna e do
Paraíba do Sul tinham diminuído, segundo os testes realizados pela C
EDAE
e pela
F
EEMA
83
. O então prefeito de Campos dos Goytacazes, o médico Wilson Paes,
que antes decretara estado de emerncia
84
, à maneira dos demais prefeitos das
regiões atingidas, decidiu liberar a captação e distribuição de água. O instrumento
que tinha legitimado a crise – o decreto da situação emergencial tornava-se sem
81
A partir da concepção de ritual encontrada na obra
O processo ritual
(1909) de Van Gennep,
Turner definiu a noção de liminaridade como a fronteira entre uma ordem social que não existe
mais e um novo estado que não existe ainda. Esta fronteira de transformação em pura
potencialidade opõe à estrutura a
communitas
. Para maior detalamento ver: Turner, V.
The Ritual
Process: Structure and Anti-Structure
. Chicago: Aldine, 1969.
82
Whatever may be the case, a mounting crisis follows, a momentous juncture or turning point in
the relations between components of a social field – at which seeming peace becomes overt
conflict and covert antagonisms become visible. Sides are taken, factions are formed, and unless
the conflict can be sealed off quickly within a limited area of social interaction, there is a tendency
for the breach to widen and spread until it coincides with some dominant cleavage in the widest set
of relevant social relations to which the parties in conflict belong. [...] During the phase of crisis, the
pattern of current factional struggle within the relevant social group – be it village or world
community is exposed; and beneath it there becomes slowly visible the less plastic, more durable,
but nevertheless gradually changing basic social structure, made up of relations which are relatively
constant and consistent[Tradução de Arno Vogel].
83
Cf.
Monitor Campista
, 23/05/82.
84
Cf.
Monitor Campista
, 20/05/82.
efeito diante daquela medida. O conflito, no entanto, não se cessaria por esta via.
Ora, de alguma forma, diversos atores tinham tomado posição face ao drama
estabelecido, o que, nos termos de Gluckman, significou alocar responsabilidades
pelo desastre.
A população, em geral, responsabilizou a Paraibuna de Metais pelos danos
ambientais que sofrera. Os prefeitos do Norte-Fluminense também o fizeram,
encaminhando ações judiciais contra a Companhia
85
. O próprio Estado de Minas
Gerais, na gestão do então governador Francelino Pereira, a interditou por 15 dias
até que se providenciassem medidas de segurança contra novos vazamentos
86
. A
empresa, em contrapartida, tentou amenizar as conseqüências do desastre com
laudos produzidos pelos seus próprios técnicos e acusou a F
EEMA
de não fiscalizar
devidamente as indústrias situadas em toda a extensão da bacia do rio Paraíba do
Sul. Aliás, o diretor da Paraibuna de Metais, invocando sua boa-fé, declarou a
imprensa que sem o alerta da própria indústria ninguém saberia do acidente
87
.
Em meio a estas atribuições de responsáveis, profundamente conflituosas,
a liberação do abastecimento de água, que não se restringiu apenas a Campos
dos Goytacazes, mas foi efetivada em todos os demais municípios atingidos,
significou a saída do estado de emergência, mas, em contrapartida, não anulou a
crise pela qual passava o Norte-Fluminense. Ao contrário, o ato mudou seu foco,
inaugurando novas clivagens. Se os conflitos tinham se firmado em torno da
responsabilização pelo desastre, seu direcionamento, a partir de então, foi o
retorno do abastecimento. Ao autorizarem a captação e distribuição da água,
louvando-se nos laudos da F
EEMA
, as autoridades executivas suscitaram uma
85
Cf.
Monitor Campista
, 19/05/82.
86
Cf.
O Globo
, 18/05/82.
87
O então presidente do Conselho Administrativo da Companhia Paraibuna de Metais, Raimundo
José Pessoa, contestando a afirmação da F
EEMA
de que as empresas situadas na bacia do
Paraíba do Sul possuíam estações de tratamento e equipamento de segurança para evitar
acidentes, declarou em entrevista ao jornal
O Globo
: - Ela (a F
EEMA
) diz isso e diz que não tem
meios de fiscalizar empresas poluidoras. Não existe medição efetiva no rio que prove isso. Existe
fiscalização dia a dia? Quem alertou sobre o acidente? Não fomos s? Onde há posto de
medição aqui para avisar o acidente a F
EEMA
? Se nós o tivéssemos avisado, ninguém saberia
de nada” (22/05/82).
nova contenda: a contestação da competência legitimada dos peritos técnicos
88
por setores da sociedade organizada.
No município de Campos dos Goytacazes, a decisão do prefeito repercutiu
como um ato irresponsável. A querela central do drama mudara. Não mais se
tratava de responsabilizar a Paraibuna de Metais pelo desastre, mas contestar os
laudos de salubridade dos rios e a liberação do abastecimento de água pelas
autoridades governamentais
89
. Deste conflito, participaram amplamente os
médicos, direcionando a questão como um problema de saúde pública. Sob a
forma de um manifesto coorporativo, encaminharam o seguinte documento ao
poder público municipal:
Nós, como médicos e cidadãos, integrantes desta comunidade e co-
responsáveis que somos pela saúde da população que nela vive, vimos,
por meio deste, manifestar nossa discordância acerca do uso, a curto
prazo, da água consumida por esta população, servida através do rio
Paraíba, recentemente contaminado por metais pesados, pela Companhia
Paraibuna de Metais.
Na nossa opinião, os dados e informes de que dispomos até o momento,
não são suficientes em termos de saúde individual e pública, acerca do
consumo imediato desta água. Outrossim, informamos que providências já
foram por s tomadas, no sentido de que análises químicas mais
apuradas nos permitam uma apreciação real da situação, embora tal
resultado não nos dê garantias acerca dos prejuízos, em termos sanitários
até a longo prazo como uso da água.
Em face disso, consideramos ser imprescindíveis que, além das análises
laboratoriais realizadas até o presente momento, sejam realizados estudos
88
A noção de sistemas peritosproposta por Giddens (1991) é bastante proveitosa na
interpretação deste episódio, pois, ao especialista se empresta autoridade dentro de um universo
abstrato que o diferencia do leigo. Os sistemas peritos, portanto, são [...] sistemas de excelência
técnica ou competência profissional que organizam grandes áreas dos ambientes material e social
em que vivemos hoje” (G
IDDENS
, 1991:35).
89
Conforme relatou o
Monitor Campista
: Autoridades municipais, estaduais e médicos do
Conselho Comunitário de Defesa Civil, além do CNFCN e diversas entidades, entre as quais os
Partidos Políticos oposicionistas, se desentenderam na tarde noite de ontem, quando um diretor da
C
EDAE
veio a Campos, percorreu parte do município, analisou os índices de poluição do Paraíba e
decidiu pela abertura da captação dágua a partir das 24h de ontem. O prefeito foi pego de
surpresa, concordou, mas a representação comunitária, o. Houve discussões acaloradas, no
escritório da C
EDAE
e depois, na Associação de Imprensa Campista. Foram aprovadas várias
propostas, inclusive a de envio de um documento à OMS [Organização Mundial de Saúde],
denunciando o estado em que se encontra o rio Paraíba e a tomada de decisão errôneadas
autoridades” (22/05/82).
bioquímicos, biológicos e de saúde pública seriados, que nos permitam
uma apreciação confiável da situação.
Em vista disso, solicitamos ao Sr. Prefeito e à Coordenadoria Regional de
Defesa Civil que impeçam a captação de água para o consumo do rio
Paraíba e exijam o estabelecimento de captação de água de fontes
alternativas
90
(Monitor Campista, 23/05/82).
De fato, alguns casos de intoxicação tinham sido relatados em crianças e
pescadores, seja pelo consumo da água e do peixe, seja pelo simples banho no
rio
91
. A experiência do desastre foi, deveras, perturbadora para a população do
Norte-Fluminense, pois, houve também registro de traumas psíquicos pela
poluição do Paraíba do Sul, isto é, a ocorrência de uma espécie de histeria
coletivapela desconfiança gerada por opiniões desencontradas a respeito dos
níveis de toxidade presentes na água, conforme noticiou
O Globo
:
O secretário estadual de obras informou que em sua viagem de ontem
pelos municípios cortados pelo Paraíba do Sul, encontrou muitas pessoas
com sintomas de intoxicação puramente psicológicos. Explicou que essas
pessoas sem que o organismo tivesse afetado por intoxicação,
apresentavam sintomas de doença, como vômitos, por exemplo, e até
mesmo febre (20/05/82).
Enfim, a liberação da água efetivada em conjunto pela prefeitura, o governo
estadual, a F
EEMA
e a C
EDAE
, sem o devido consenso com outros setores da
sociedade organizada, inaugurou uma nova crise. A responsabilização da
Companhia Paraibuna de Metais pelo desastre foi englobada pela decisão política
de pôr fim à interdição do abastecimento. O cisma se firmara em torno da saúde
pública: de um lado, governantes
92
confiados em laudos técnicos que atestavam a
qualidade das águas do rio decidiram autorizá-las ao consumo, mantendo,
90
Foram signatários desse documento a Associação Médica Brasileira, o Sindicato dos Médicos de
Campos, a Sociedade de Medicina e Cirurgia, a Faculdade de Medicina de Campos, o
Departamento de Estudos Médicos e Sociais da Coordenadoria de Saúde e o Diretório Acamico
Luiz Sobral.
91
Cf.
O Globo
, 21/05/1982.
92
Note-se que o então prefeito de Campos dos Goytacazes, Wilson Paz, é médico, o que tornava
conflituosa sua posição de governante diante de seus colegas de classe, mas, em contrapartida,
legitimava sua decisão frente à população.
embora, a proibição dos peixes
93
; do outro, setores da sociedade, a exemplo das
organizações dos médicos, questionavam a credibilidade dos resultados e
organizavam manifestos e manifestações; e, na soleira do drama, isto é, como
vítima e expectadora, a população atordoada por informações desencontradas
temia que se manifestasse o câncer anunciado
94
.
As partes e suas posições estavam frente a frente no conflito e, através do
embate, revelavam-se as estruturas políticas referentes às questões ambientais e
de saúde na sociedade do Norte-Fluminense. Enquanto o poder blico lutava
pelo retorno à ordem social, esquecendo-se de que o Paraíba do Sul continuava
exposto à poluição, a classe médica organizada, em franca oposição, manifestava
seu desassossego com a saúde pública, questionando a medida das autoridades
de liberarem o abastecimento sem estudos mais apurados.
Os conflitos parecem conferir a aspectos fundamentais da sociedade,
normalmente, encobertos por costumes e bitos do intercurso cotidiano,
uma alarmante proeminência. Pessoas têm que tomar partidos em termos
dos mais profundamente entranhados imperativos e restritivos morais,
inclusive contra suas próprias preferências. O dever precede a escolha
(T
URNER
, 1974:35)
95
.
Não foi muito diferente, neste sentido, a crise instaurada pelo desastre nos
rios Pomba e Paraíba do Sul em virtude do derrame de efluentes, subprodutos da
fabricação de papel, provenientes da barragem da instria Cataguazes de Papel
em 2003. Aliás, poder-se-ia concluir pela semelhança dos dois casos quanto ao
encadeamento do drama, seja pelo processo de alocação de responsabilidade,
seja pelo conflito político que emergiu dos desacordos quanto à liberação das
águas.
93
Cf.
O Globo
, 22/05/82.
94
O câncer foi a principal patologia apontada pela imprensa como resultado da contaminação das
águas por metais pesados.
95
Conflict seems to bring fundamental aspects of society, normally overlaid by the customs and
habits of daily intercourse, into frightening prominence. People have to take sides in terms of deeply
entrenched moral imperatives and constraints, often against their own personal preferences.
Choice is overborne by duty. [Tradução minha].
Os municípios do Norte-Fluminense tinham decretado estado de alerta, de
emergência ou de calamidade pública
96
quando os diretores da Cataguazes de
Papel tiveram sua prisão preventiva decretada pelo juiz da 1ª Vara Federal de
Campos dos Goytacazes, alegando ter tomado a decisão com base em três
argumentos: o fato de a indústria estar operando normalmente apesar do risco de
uma outra barragem romper; a possibilidade de fuga dos acusados; e o clamor
popular
97
. O decreto judicial ratificava a responsabilização da indústria cunhada
pelas autoridades executivas dos municípios fluminenses atingidos, pois, diante da
situação emergente, proporiam os prefeitos uma ação conjunta contra a empresa
para o recebimento de indenização pelos danos advindos do desastre
98
.
De fato, a lei 9.605 de 12 de fevereiro de 1998, que dispõe sobre crimes
ambientais, encaminhou o processo de alocação de responsabilidade no caso
Cataguazes. Prevê o artigo 54 daquela lei que aquele que causar poluição de
qualquer natureza em níveis tais que resultem ou possam resultar em danos à
sde humana, ou que provoquem a mortandade de animais ou a destruição
significativa da floradeverá ser penalizado com reclusão de um a quatro anos,
somada à multa. E o inciso 2º do mesmo artigo aumenta de quatro para cinco
anos de reclusão a pena para aquele que causar poluição hídrica que torne
necessária a interrupção do abastecimento público de água de uma comunidade.
Aplicada a lei, a Indústria Cataguazes foi multada em 50 milhões de reais pela
Polícia Militar Florestal do Rio de Janeiro, foi interditada pela Secretaria de Meio
Ambiente de Minas Gerais e seus diretores tiveram seus bens declarados
indisponíveis, além da prisão decretada.
96
Decretaram estado de alerta os municípios de Miracema, Aperibé, Cambuci, São Fidélis e
Campos dos Goytacazes. De emergência, São Jo da Barra. De calamidade pública, Santo
Antônio de Pádua.
97
Cf.
Estado de São Paulo
, 04/04/03.
98
Conforme veiculou a
Folha da Man
: O prefeito de Campos, Arnaldo Viana, determinou ontem
ao procurador geral do município, Alex Pereira Campos, que estude meios jurídicos para que o
município venha receber indenização por parte da empresa de Cataguazes, que poluiu os rios
Pomba e Paraíba. Disse que vai propor um encontro com os prefeitos dos demais municípios
atingidos Santo Antônio de Pádua, Miracema, Aperibé, Itaocara, Portela, São Filis e São João
da Barra – para uma ação conjunta” (02/04/03).
Na arena
99
do drama, responsabilizar a Indústria Cataguazes significou
emprestar à crise o contorno imediato dos grupos em conflito. De um lado, os
municípios fluminenses, o governo do estado do Rio de Janeiro e o Ministério
Público imputavam à empresa a culpa pelo passivo ambiental. Do outro lado, a
Cataguazes de Papel se empenhava em dividir a responsabilidade com o governo
mineiro, a F
EAM
e o I
BAMA
, alegando ter comprado a indústria do grupo Matarazzo
sem receber informações acerca do reservatório de efluentes. Ora, visto o
desastre pelo ângulo da licença e da fiscalização ambiental que deve ser realizada
pelas instituições públicas, a contenda do drama se redimensionaria. A partir de
então, o processo de alocação de responsabilidade ganharia novas proporções.
[...] dramas sociais são casos, isto é, envolvem, necessariamente, a
disputa, o conflito entre partes antagônicas, a alocação de
responsabilidades, bem como o conjunto de processos políticos, jurídico-
legais e/ou rituais, que servem para encaminhá-los e ajuizá-los (M
ELLO
&
V
OGEL
, 2004: 168).
De fato, a Indústria Cataguazes
de Papel, além de ter um histórico de
irregularidades e passivos ambientais
100
, estava operando sem concessão de
licença há oito anos, o que levou à partilha de responsabilidade da empresa com o
governo do estado de Minas Gerais, a F
EAM
e o I
BAMA
. A partir de então, as
acusações que imputavam responsáveis pelo desastre modelaram-se de maneira
a revelar, o mais antagônico, os atores no momento de crise do drama.
O governo do estado do Rio de Janeiro, na figura da governadora
Rosângela Matheus, responsabilizou diretamente o governo de Minas Gerais pela
demora em eliminar a contaminação da bacia hidrográfica da região
101
. O
governador de Minas Gerais, Aécio Neves, em contraparte, acusou a governadora
99
Arena e campo são categorias utilizadas pela Antropologia Política para se referir,
respectivamente, ao âmbito imediato no qual se desenrola o embate (arena) e ao âmbito mediato
onde se encontram os atores, ou recursos potenciais passíveis de serem mobilizados para os
propósitos dos contendores. Nas arenas se encontram os conflitos na sua atualidade; nos campos,
em suas latências... (Ver, a prosito: T
URNER
, 1974: 132 a 135).
100
Em 1986, a Cataguazes foi acusada pela Comissão de Defesa do rio Pomba de despejar
diretamente no rio resíduos químicos.
101
Cf.
O Globo
, 04/04/03).
de fazer do desastre um palanque político
102
. O Ministério Público abriu inquérito
para apurar possíveis neglincias dos órgãos de fiscalização ambiental
103
.
Alguns deputados estaduais
104
e federais
105
acusaram tanto a indústria quanto o
governo de Minas Gerais pelo desastre. Os prefeitos dos municípios afetados,
atribuindo responsabilidade a Cataguazes de Papel, intentaram reconstruir a
barragem estourada com recursos de suas próprias prefeituras
106
. Nos editoriais
dos jornais, cobravam-se punições para a empresa e para os fiscais ambientais
107
.
102
Cf.
O Globo
, 04/04/03). O conflito entre Aécio Neves e Rosângela Matheus não se restringiu a
acusações mútuas. Alguns deputados tomaram parte, a exemplo do deputado federal Paulo Feijó,
que, segundo reportagem da
Folha da Manhã
lamentou a falta de comunicação com o governador
de Minas, Aécio Neves, que não compareceu a reunião em Cataguases, enviando apenas o
secretário estadual de Meio Ambiente. As autoridades mineiras ainda não se sensibilizaram com o
crime que cometeram, disse(04/04/03).
103
Segundo veiculou
O Globo
: O MP também instaurou inquérito civil público para apurar os
danos causados ao meio ambiente e a responsabilidade dos óros ambientais que deveriam
fazer a fiscalização dos reservatórios de rejeitos químicos das instrias localizadas em
Cataguases (MG)(09/04/03).
104
Conforme nota divulgada pelo deputado Carlos Minc e publicada em
O Globo
: Pedimos ao
Ministério Público Federal e à Justiça Federal o enquadramento da empresa Cataguazes e da
Fundação do Meio Ambiente – MG (F
EAM
) em oito artigos da lei 9.605/98, de crimes ambientais. A
empresa provocou o perecimento de fauna aquática por emissão de efluentes em rios; causou
poluição hídrica e interrupção do abastecimento público de água; funcionou com atividades
poluidoras sem licença; causou dano à agricultura, pecuária e ecossistemas. A F
EAM
se omitiu e
sonegou informações; concedeu autorização ou permissão em desacordo com as normas
ambientais; permitiu que a Cataguazes deixasse de cumprir obrigações ambientais; falhou na ação
fiscalizadora, expondo os ecossistemas” (04/04/03).
105
Deputados federais da bancada do Rio partiram ontem para o ataque, culpando o governo de
Minas pelo desastre ambiental que afetou o abastecimento de oito municípios fluminenses.
Durante audiência pública na Câmara, os parlamentares chegaram a cobrar do governo mineiro
ressarcimento para cobrir os prejuízos causados às cidades atingidas pela poluição dos rios
Pomba e Paraíba do Sul(O Globo, 10/04/03).
106
Desesperados com a tragédia ecológica, os prefeitos de seis dos oito municípios fluminenses
afetados por pouco não invadiram Minas ontem com caminhões e tratores. Eles pretendiam
construir, eles mesmos, a barragem do córrego do Cágado” (O Globo, 04/04/03).
107
Vários editoriais de jornais locais e regionais assumiram esta perspectiva. Transcrevo aqui um
excerto do editorial de
O Globo
publicado em 06/04/03: Não se poderia querer mais rigor no
cumprimento da legislação. Até um helicóptero foi usado na perseguição aos diretores da indústria
de papel de Minas que provocou o desastre ecológico de Cataguazes, e que tiveram prisão
preventiva decretada. [...] Sem que isso implique relaxamento nas punições, é evidente que o
essencial é passar a concentrar os esforços num trabalho preventivo que evite a repetição quase
rotineira de tradias ecológicas como esta. Hoje, os órgãos ambientais simplesmente não estão
cumprindo a contento sua função fiscalizadora – e não apenas em Minas Gerais, pois desastres
ambientais no Brasil não são privilégio de estado algum. A verdade é que os empresários
realmente preocupados em cumprir suas obrigações defrontam-se com um sem-número de
exigências burocráticas rigorosas, enquanto os transgressores costumam operar impunemente.
Tanto que a indústria de Cataguazes tinha a licença ambiental vencida havia oito anos e
continuava funcionando sem impedimento. Sempre será necessário multar e prender, pois o
O Greenpeace tomou partido contra a indústria, mas co-responsabilizou o poder
público de Minas
108
. O I
BAMA
instaurou sindicância contra sua unidade mineira e
contra a F
EAM
109
. Enfim, diluída a responsabilidade pelo desastre entre a
Cataguazes de Papel, o governo de Minas Gerais, a F
EAM
e o I
BAMA
mineiro,
acirrava-se, em conseqüência, a própria crise, pois, quando muitos são
responsáveis, ninguém é responsável
110
, o que emoldura na arena de conflito as
mais variadas clivagens, protagonizadas, como diria Turner (1980), pelos grupos-
astro.
Eles [os grupos-astro] são os protagonistas principais, os líderes de
facções, os defensores da fé, a vanguarda revolucionária, os arqui-
reformadores. São eles que transformam em arte a retórica da persuasão e
da influência, que sabem quando e como aplicar pressão e força, e que são
mais sensíveis aos fatores de legitimidade. Na fase três, regenerescência,
são os membros do grupo-astro que manipulam a maquinaria de
regeneração, os tribunais, os procedimentos da divinação e do ritual, e
impõem sanções àqueles acusados de terem precipitado crises, assim
como podem ser membros do grupo-astro descontentes ou dissidentes que
lideram rebeliões e provocam a ruptura inicial”(T
URNER
, 1980:148)
111
.
Nos casos Paraibuna e Cataguazes foram grupos-astro as instituições que,
na esfera blica, tomaram parte na alocação de responsabilidade pelos
trabalho de prevenção de crimes ambientais jamais será cem por cento eficaz; mas hoje sua
eficácia está mais próxima de zero.
108
O Greenpeace é uma ONG internacional que advoga a causa ambiental. A expressão pública
desta instituição ilustra a dimensão que ganhou o desastre. A
Folha da Manhã
veiculou como a
ONG atribuiu responsáveis: O Greenpeace acusa a empresa Cataguazes como a principal
responsável pelos danos atuais e futuros causados ao meio ambiente e à sde humana [...] O
Greenpeace também co-responsabiliza o governo de Minas Gerais e seus órgãos públicos pelo
desastre, já que ambos falharam em implementar as medidas de fiscalização adequadas
(05/04/03).
109
Cf.
O Globo
, 14/04/03. A sigla F
EAM
designa a Fundação Estadual do Meio Ambiente do estado
de Minas Gerais.
110
Este foi o veredicto do diretor-presidente da Agência Nacional de Águas, Jerson Kelman, em
artigo intitulado Os responsáveis e os irresponsáveis, publicado em
O Globo
, 11/04/03.
111
[...] they are the main protagonists, the leaders of factions, the defenders of the faith, the
revolutionary vanguard, the arch;reformers. They are the ones who develop to an art the rhetoric of
persuasion and influence, who know how and when to apply pressure and force, and who are most
sensitive to the factors of legitimacy. In phase three, redress, it is the star groupers who manipulate
the machinery of redress, the law courts, the procedures of divination and ritual, and impose
sanctions on those adjudged to have precipitated crisis, just as it may well be disgruntled or
dissident star groupers who lead rebellions and provoke the initial breach[Tradução de Arno
Vogel].
desastres, isto é, as diversas
dramatis personae
que representavam a sociedade
organizada, conduzindo debates e ações em ambas situações. O processo político
de um drama social, enfim, é sempre conduzido por membros de grupos-astro e
toda possibilidade de reforma depende da condução e encaminhamento dos fatos
por eles guiados na arena da crise.
III.3. As reformas
Todo conflito, entretanto, tende a se arrefecer quando algum mecanismo
adaptativo ou reformador é desempenhado, mesmo que a experiência da crise
esteja embrenhada nos ânimos dos indivíduos ou na vida social. A reforma
corresponde à terceira fase do drama.
Para limitar a contagiosa difusão da ruptura certos mecanismos adaptativos
e reformadores, informais e formais, são postos em funcionamento pelos
líderes do grupo atingido. A natureza desses mecanismos varia segundo
fatores tais como a profundidade e o significado da ruptura, a abrangência
social da crise, a natureza do grupo social no qual ocorreu a ruptura e o
grau de autonomia do grupo diante dos sistemas de relações sociais mais
amplos. Os mecanismos podem variar de conselhos pessoais e arbitragens
informais a mecanismos formais e legais e, até mesmo, para resolver certos
tipos de crise, chegar ao desempenho de rituais blicos. Tais rituais
envolvem um sacrifícioliteral ou moral, isto é, uma vítima é oferecida como
bode expiatório para redimir o grupo da ofensa representada pela violência
reformadora (T
URNER
, 1980:147)
112
.
No país das impunidades
113
, principalmente às referentes a crimes
ambientais, a punição dos diretores da Cataguazes de Papel representou, de
112
In order to limit the contagious spread of breach, certain adjustive and redressive mechanisms,
informal and formal, are brought into operation by leading members of the disturbed group. These
mechanisms vary in character with such factors as the depth and the significance of the breach, the
social inclusiveness of the crisis, the nature of the social group within which the breach took place,
and the groups degree of autonomy in regard to wider systems of social relations. The mechanisms
may range from personal advice and informal arbitration to formal jurical and legal machinery and,
to resolve certain kinds of crises, to the performance of public ritual. Such ritual involves a literal or
moral sacrifice, that is, a victim as scapegoat is offered for the groups sinof redressive violence
[Tradução de Arno Vogel].
113
A propósito ver, por exemplo, S
ANTOS
, Wanderley Guilherme dos.
Razões da desordem
. Rio de
Janeiro: Rocco, 1994. Ratifica a afirmação a seguinte justificativa: O juiz da 1ª Vara Federal de
modo crasso, a performance de um mecanismo reformador, tanto mais se
atentarmos para sua encenação, roteirizada com lances cinematográficos.
Decretada a prisão preventiva dos acusados, um grupo de policiais federais e um
promotor público seguiram para o município de Cataguases num helicóptero
cedido pelo então secretário de segurança do estado do Rio de Janeiro, Josias
Quintal. No hotel onde se hospedara um dos diretores, Felix Santana, o grupo
encontrou diversos pertences deixados para trás quando de sua fuga
114
. Nenhuma
pista que indicasse o paradeiro dos acusados foi encontrada.
Três dias depois, sob o olhar de câmeras fotográficas e audiovisuais, Felix
Santana chegava ao aeroporto Bartolomeu Lisandro, em Campos dos
Goytacazes, algemado e cercado por policiais. A prisão, amplamente divulgada
pela mídia local, regional e nacional, foi considerada um marco no combate aos
crimes ambientais, conforme a afirmação do promotor público: Sou um entusiasta
desta prisão. Este empresário precisa ser algemado para aprender a respeitar o
ser humano e o meio ambiente. Vou ter o prazer de ver um criminoso sendo
tratado como criminoso
115
. O bode expiatório tinha sido ofertado à sociedade
como pagamento pela crise desencadeada. Operava-se a reforma.
Mais tarde, sob a alegação proposta pelos advogados da Cataguazes de
que seus diretores seriam mais úteis no processo de contenção dos danos
ambientais se em liberdade e de que a prisão tinha sido arbitrária, humilhante, um
espetáculo de televisão
116
, foi concedido pelo desembargador do Tribunal
Regional Federal um
habeas corpus
a Felix Santana, que se encontrava preso há
oito dias, e ao outro diretor, João Gregório do Bem, que, até então, permanecia
foragido
117
. Isto significa que, encenada a responsabilização dos representantes
Campos, que determinou a prisão de Jo Grerio do Bem e Felix Santana, afirmou no seu
despacho ter se baseado na comoção que o delito causou na sociedade, por ser, sem sombra de
dúvida, o maior dano ambiental já acontecido no Brasil, somado à expectativa de impunidade
sentida pela população(Folha da Manhã, 04/04/03).
114
A polícia obteve a informação de que um avião teria deixado o aeroporto de Leopoldina, cidade
vizinha de Cataguases, mais ou menos na hora em que a força tarefa teria chegado no município
(Folha da Manhã, 05/04/03).
115
Cf.
Folha da Manhã
, 08/04/03.
116
Segundo palavras do advogado da empresa veiculadas pela
Folha da Manhã
em 11/04/03.
117
Cf.
Folha da Manhã
, 16/04/03.
da indústria, a reforma ganhara sentido no drama, criando e legitimando seus
tipos simbólicos
118
: de um lado, os vilões tinham sido punidos pelo sacrifício,
ainda que temporário, da liberdade; do outro, os heróis, guardiões da justiça
ambiental, tinham consumado, em parte, a vindicação da pena. Por toda parte, a
população, sofrendo ainda as conseqüências do desastre, via purgada a crise
através do ritual jurídico. A reconciliação social começava a ser negociada.
Com o encargo de limitar a difusão da crise, certos mecanismos adaptativos
e reparadores, informais e formais, institucionalizados e
ad hoc
, são
rapidamente postos em operação por líderes ou membros estruturalmente
representativos do sistema social perturbado. Esses mecanismos variam
em tipo e complexidade com alguns fatores como a profundidade e a
significância da divisão social da ruptura, a profusão social da crise, a
natureza social do grupo com o qual a crise tomou lugar, e o grau de sua
autonomia com referência ao largo ou externo sistema de relações sociais.
Eles podem alcançar conselho pessoal e mediação informal ou arbítrio pela
forma jurídica ou mecanismo legal, e, para resolver certos tipos de crise ou
legitimar outros modos de resolução, a performance de ritual público
(T
URNER
, 1974:39)
119
.
Quando, em 1982, Chagas Freitas mergulhou nas águas do Paraíba do Sul
para demonstrar sua salubridade, o rito reformador foi operado. Como governador,
seu ato imprimia no drama a promessa de reintegração do ordinário na vida social
através da autoridade que se emprestava sua pessoa. Foi ele, ao mesmo tempo, o
protagonista do rito, ao banhar-se, e seu bode expiatório, ao expor-se aos
possíveis riscos de contaminação. Quando, em 2003, o diretor da Cataguazes de
118
Segundo Turner, o drama social permite o surgimento de tipos simbólicos” (traidores,
renegados, vilões, heróis, fiéis, infiéis, impostores, bodes expiatórios etc.), que, por estarem no
elenco do que é narrado, legitimam os posicionamentos das partes envolvidas (Cf. T
URNER
, 1980).
119
In order to limit the spread of crisis, certain adjustive and redressive mechanisms, [...] informal
or formal, institutionalized or
ad hoc
, are swiftly brought into operation by leading or structurally
representative members of the disturbed social system. These mechanisms vary in type and
complexity with such factors as the depth and shared social significance of the breach, the social
inclusiveness of the crisis, the nature of the social group within which the breach took place, and
the degree of its autonomy with reference to wider or external systems of social relations. They may
range from personal advice and informal mediation or arbitration to formal juridical and legal
machinery, and, to resolve certain kinds of crisis or legitimate other modes of resolution, to the
performance of public ritual[Tradução minha].
Papel foi preso, a reforma começou a ganhar sentido na realidade, à medida que
se inculcava um responsável pela crise desencadeada.
III.4. De volta às crises
As fases de um drama social, todavia, podem não ocorrer linearmente, isto
é, o padrão - ruptura, crise, reforma e reconciliação – não se apresenta, na vida
social, com a mesma projeção contínua que se poderia alcançar num drama de
palco. Ao contrário, a estrutura do drama é flexível, pois que suas fases podem
imbricar-se.
Um drama social nem sempre corre frouxo, como o amor verdadeiro.
Procedimentos regeneradores podem fracassar, com reversão para a crise.
A maquinária tradicional de reconciliação e coerção pode mostrar-se
inadequada para lidar com novos tipos de assuntos e problemas e com
novos papéis e estatutos (T
URNER
, 1980:148)
120
.
Em 1982, apesar da realização do rito reformador de Chagas Freitas
121
, a
população de Campos dos Goytacazes voltou às ruas para uma manifestação em
repúdio à liberação da água. Diante da Catedral Diocesana da cidade
122
, um ato
público intitulado Água limpa para o povo, comandado pelo Conselho
Comunitário, foi desempenhado de modo a reafirmar o conflito projetado desde a
poluição dos rios Paraibuna e Paraíba do Sul. Anunciava o panfleto do manifesto:
120
Nor does the course of a social drama, like true love, always run smooth. Redressive
procedures may break down, with reversion to crisis. Tradicional machinery of reconciliation or
coercion may prove inadequate to cope with new types of issues and problems and new roles and
statuses[Tradução de Arno Vogel].
121
Sobre o episódio manifestou-se o corpo editorial do jornal
Monitor Campista
: Reverteu-se muito
rapidamente a expectativa sobre a poluição no rio Paraíba. A controvérsia ainda permanece
quanto aos seus reais efeitos mas um razvel acordo permitiu o restabelecimento da captação e
fornecimento dágua à cidade no último fim-de-semana. Sob qualquer dos aspectos que se analise,
a atitude do governador Chagas Freitas contribuiu para isso. Ao invés de lavar as mãos, ele veio
beber a água e lavar-se de corpo inteiro no rio” (25/05/82).
122
Ver figura 6.
O Paraíba está morto. O atual estado de poluição de nosso rio, afetado
pelas recentes descargas de cádmio, chumbo, zinco etc., provocadas pela
Cia. Paraibuna de metais, pode provocar o maior prejuízo à saúde de nossa
população. São eminentes os riscos a que estamos submetidos, de que se
repitam esses graves acidentes. São culpados diretos por esta situação os
governos estadual e federal, além do municipal, que permitem o uso das
águas infectas do Paraíba por uma população de mais de 700 mil
habitantes, além da própria Paraibuna de Metais, companhia que despreza
a nossa saúde a favor do lucro
123
.
Desse modo, o drama parecia se atualizar pelo recrudescimento da crise.
Conjugavam-se reforma e conflito a um só tempo.
A similitude dos dois casos Paraibuna de Metais e Cataguazes de Papel
não se esgota nos eventos subseqüentes à ruptura, na crise por ela inaugurada,
tampouco nos mecanismos de reforma lançados. Depois do episódio de prisão de
Felix Santana, uma nova contenta fendeu a possibilidade de reconciliação.
Após a temporada de quase duas semanas de interrupção da captação e
abastecimento de água no Norte-Fluminense, a governadora do estado,
Rosângela Matheus, decidiu liberar o recurso, pautada em laudos da F
EEMA
, da
C
EDAE
e dos laboratórios Bio-Rio e Analition Solution
124
. Apesar de ratificada pelos
prefeitos dos municípios afetados, a decisão da governadora não obteve o
respaldo de alguns setores da sociedade e, dessa forma, a liberação da água foi
contestada judicialmente. Mais uma vez, a
expertise
foi o calcanhar de Aquilesda
reforma
125
.
A preocupação do poder público com o retorno do ordirio da vida social,
mais uma vez, se sobres ao fato do Paraíba do Sul continuar a ser um paraíso
de poluição. A liberação das águas do rio para captação e abastecimento nos
anos de 1982 e 2003 foi o mote da volta à segunda fase do drama social.
Contestadas pela sociedade em razão da falta de transparência e confiança nos
123
Cf.
Monitor Campista
, 25/05/82.
124
Cf.
Folha da Manhã
, 22/04/03.
125
Conforme noticiou
O Globo
: A O
NG
CFCN (Centro Norte-Fluminense para Conservação da
Natureza), sediada em Campos há 25 anos, entrou com ação na 1ª Vara Federal contra a
governadora Rosinha Matheus e sua equipe ambiental, pedindo a proibição da captação de água
dos rios Pomba e Paraíba do Sul em todos os municípios banhados pelos dois (08/04/03).
laudos oficiais, as decisões das autoridades executivas em ambos casos geraram
novas crises, fundamentadas na preocupação com a saúde pública.
Assim, projetos alternativos de captação dágua para a região foram
sugeridos. Em 1982, o prefeito de Campos dos Goytacazes prometeu contratar
técnicos para estudarem a possibilidade de abastecer a cidade com os recursos
de Lagoa de Cima, rio Muriaé ou rio Preto
126
. Já em 2003, via proposta de
pesquisadores da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro, o
projeto mais acalentado foi o de captar água de reservatórios subterrâneos
127
. No
entanto, ainda na atualidade, o Paraíba do Sul é o responsável pelo
abastecimento de água no Norte-Fluminense.
Enfim, passadas as fases críticas de poluição do rio nos casos Paraibuna
de Metais e Cataguazes de Papel, isto é, facultada a potabilidade de suas águas
mediante o atestado de laudos oficiais, o abastecimento público foi normalizado,
amparado menos pela confiança da população que pelas decisões políticas. O
fluxo ordinário da vida social fluminense nos anos de 1982 e 2003 dava indícios de
que voltaria à tona. Aos grupos em conflito caberia decidir entre a reconciliação e
o rompimento.
III.5. Reconciliações ou rompimentos?
Romper uma relação significa posicionar-se em outro lugar, físico ou
ideológico, e reconhecer que a ruptura foi de tal monta que tornou qualquer
possibilidade de convívio inegociável. Reconciliar-se, por outro lado, significa
suspender contragostos e reivindicações em benefício do retorno à ordem anterior
ou do surgimento de uma nova. A reconciliação negociada ou o rompimento
definitivo são a última cenados dramas sociais e consistem na reintegração das
relações do grupo social perturbado ou no reconhecimento e legitimação do cisma
entre as partes em contenda.
126
Cf.
Monitor Campista
, 21/05/82.
127
Cf.
Folha da Manhã
, 09/04/03.
A fase final consiste ou na reintegração do grupo social perturbado apesar
do fato de a extensão e âmbito de seu campo relacional terem mudado, o
número de suas partes ser diferente e seu tamanho e influência ter sofrido
alteração – ou o reconhecimento social da irreparável ruptura entre as
partes em confronto, às vezes levando à sua separação espacial (T
URNER
,
1980:147)
128
.
No campo das relações sociais, qualquer rompimento definitivo pode
perdurar por anos a fio, mesmo que nas linhas de fronteira se delimitem
verdadeiras ditaduras. Os grupos em confronto podem distanciar-se fisicamente e,
no terreno das idéias, qualquer separação pode ser consolidada. Mas, como
indivíduos que, conjuntamente, dependem de um mesmo universo natural
poderiam delinear rupturas espaciais? Poderiam prosseguir na crise, mesmo no
plano ideológico? Não estariam os grupos em conflito fadados à negociação, já
que utilizam recursos comuns?
O desastre causado pela Paraibuna de Metais em 1982 impulsionou a
sociedade à organização e à participação nos debates, nos manifestos e
manifestações em favor do restabelecimento do Paraíba do Sul, da punição da
indústria, da transparência dos laudos que mediam a qualidade da água a ser
fornecida e do estudo para novas fontes de captação em outros mananciais
hídricos. Disputaram opiniões divergentes quanto aos temas supracitados e, na
arena pública, diversos conflitos foram travados. Mas, uma vez dramatizado o rito
reformador por Chagas Freitas, não se arrefeceram os ânimos e não se conjugou
a reconciliação? O ambientalista Arthur Soffiati, protagonista e espectador daquele
momento, respondeu a questão em abril de 2003, quando, em artigo publicado na
Folha da Man
, fez uma análise comparativa entre os dois desastres ambientais:
Em 1982, um jornalista entrou em minha casa com um sorriso triunfal.
Agora, quero ver quem vai dizer que você é maluco, ironizou. Ele se
referia ao desastre provocado pela Companhia Paraibuna de Metais, por ter
deixado que um tanque com rejeitos de cádmio, chumbo e zinco vazasse
128
The final phase consists either in the reintegration of the disturbed social group – though the
scope and range of its relational field will have altered, the number of its parts will be different, and
their size and influence will have changed – or the social recognition of irreparable breach between
the contesting parties, sometimes leading to their spatial separation[Tradução de Arno Vogel].
para a sub-bacia do Paraibuna de Minas e daí para o rio Paraíba do Sul.
[...].
Por conta da calamidade, houve uma mobilização inédita da população de
Campos por uma causa ambiental. No princípio cada grupo agia de forma
espontaneísta, promovendo atos blicos e passeatas. Logo em seguida,
os movimentos foram convergindo para uma assembléia permanente que
se manteve reunida por cerca de 15 dias. O Conselho Comunitário de
Campos, nome que se deu ao movimento, tinha composição bastante
heterogênea: médicos, advogados, professores, donas de casa, sindicatos
de trabalhadores, partidos políticos de todas as colorações e igrejas.
Como presidente do Conselho, passei uma semana dormindo três horas
por noite em média. Para manter coeso aquele grupo com tantas
tendências, minha indepenncia em relação a partidos políticos pesou na
escolha. Promovemos um enorme ato público na praça central da cidade. O
governo estadual criou uma comissão com o fim de escolher outro
manancial para captação que não o rio Paraíba do Sul. O então governador
do estado, Antônio de Pádua Chagas Freitas, passado o momento agudo,
veio a Campos e bebeu um copo dágua na estação de tratamento para
mostrar que o perigo havia passado. Depois, tomou banho no rio, num
espetáculo deprimente que ganhou mundo. Ele confundia água bruta com
água tratada.
Conto esta história porque a maioria das pessoas com quem converso
sobre ela já a esqueceu. Não eram nascidas, eram muito pequenas, eram
jovens, lembram-se vagamente. E as lideranças do movimento achavam
que o acidente levaria a sociedade, os governos federal e dos estados de
São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais a tomarem providências
enérgicas para restaurar a bacia do Paraíba. Nem eles permaneceram
mobilizados (04/04/03).
O rio, oficialmente, estava livre de metais pesados
129
. O abastecimento
público foi liberado mediante a articulação dos governos estaduais e municipais,
somados a instituições como C
EDAE
e F
EEMA
. A reforma tinha sido
desempenhada. O que, de fato, impediria a retomada do fluxo ordinário da vida? É
possível que os indivíduos não tenham abandonado suas convicções quanto aos
problemas enfrentados em decorrência do desastre e que a experiência daqueles
dias extraordinários tenha sido, nos termos de Turner, a matéria-prima das
129
O editorial do
Monitor Campista
aponta a aceitação do restabelecimento da distribuição de água
por parte da população, conforme o trecho: Oficialmente, o Paraíba volta a ser a fonte de
abastecimento da Cidade, sob a fiança das análises da F
EEMA
. À falta de contradita equivalente e,
principalmente, de outra solução imediata, o restabelecimento do serviço foi aceito” (25/05/82).
expressões narrativas e performáticas dos grupos envolvidos no drama. Mas a
reconciliação foi operada mediante as ações dos agentes políticos, o que,
sorrateiramente, articulou o esfriamento de uma ação coletiva duradoura,
conforme o alerta de Olson:
Na verdade, a menos que o número de indivíduos do grupo seja realmente
pequeno, ou a menos que haja coerção ou algum outro dispositivo especial
que faça os indivíduos agirem em interesse próprio, os indivíduos racionais
e centrados nos próprios interesses não agirão para promover seus
interesses comuns ou grupais (Olson, 1999:14).
De fato, a água voltara a fluir normalmente das torneiras. As instituições
públicas, as de saúde, as de educação, os bares e restaurantes, as indústrias, o
comércio, a agricultura e pecuária, enfim, a sociedade retomara o compasso
habitual da normalidade. O medo do câncer foi, aos poucos, se banalizando. A
população norte-fluminense reaprendeu a viver com o rio que, há muito,
agonizava, quase morto. Lutas ambientais, afinal, são coisas de bicho-grilo. A
reconciliação, de modo geral, foi articulada.
A quarta fase do drama seguiu um roteiro diferente no caso da Cataguazes
de Papel em 2003. Imageticamente, o Paraíba do Sul destingia-se do negro
proveniente dos efluentes industriais e retomava sua cor habitual, variante de
terracota e prata. Ao menos visualmente, o rio tinha se restabelecido. O diretor da
indústria tinha sido preso numa situação de espetáculo cinematográfico, o que, de
certa forma, trouxe para a população a sensação de justiça, mediante sua
expiação, ainda que temporária. O abastecimento de água havia sido retomado a
partir da articulação dos agentes públicos, apesar da contestação de alguns
setores da sociedade organizada. Poder-se-ia afirmar que o ordinário foi se
adensando paulatinamente na vida social do Norte-Fluminense e que a
experiência do desastre foi sendo arrefecida pela retomada da ordem anterior,
exceto pelo fato de a população ter entrado com ações coletivas contra a
Cataguazes de Papel, requerendo indenizações por danos materiais (gastos com
a abertura de poços artesianos, compra de água mineral etc.) e morais (o
desgaste com situações extraordinárias)
130
. A normalidade recompunha-se na
face aparente da vida social, mas, dentro deste que é o fenômeno específico de
uma sociedade o direito
131
a responsabilidade pelo desastre continuava sendo
imputada a Cataguazes de Papel, o que determinou, de certa maneira, um
rompimento.
As diferenças na fase final do drama entre o caso Paraibuna de Metais e o
caso Cataguazes de Papel revelam um avanço nas questões referentes ao
ambiente, guiado pela implementação da lei de crimes ambientais em 1998. O
rompimento articulado em 2003, que significou apenas a responsabilização da
indústria no âmbito jurídico
132
, sinaliza a compreensão de problemas ambientais
como problemas públicos.
Todo esse processo está ancorado numa compreensão pública do conceito
de meio ambiente, cuja expressão mais bem elaborada encontra-se no
âmbito da legislação ambiental. Tanto o caráter comunal deste bem de uso
comumcomo a difusibilidade social dos novos direitos/ interesses
associados à sua proteção derivam de um princípio comum: a
universalidade do meio ambiente (F
UKS
, 1999:12).
O Paraíba do Sul, no entanto, além de continuar a fornecer água para os
municípios atingidos, recebe, diariamente, enorme carga de efluentes industriais e
esgoto doméstico. Assim, o fato de a população ter, ideologicamente, rompido
com a Cataguazes de Papel nada mais significa que a plena confirmação de uma
teoria amplamente pronunciada no senso comum: é preciso mudar para que tudo
permaneça o mesmo. Isto significa que, responsabilizada a indústria, o Estado
130
Em março de 2005, 469 moradores de Campos obtiveram ganho de causa no pedido de
indenização por danos materiais e morais pelos prejuízos causados pelo acidente. A empresa foi
condenada a pagar, a título de danos morais, a quantia de R$ 1,3 mil a cada uma das pessoas que
entraram com a ação. Os advogados da Cataguazes entraram com recurso e a causa ainda está
em andamento.
131
Segundo Mauss, [...] le pnomène du droit est le phénomène scifique dune société (M
AUSS
,
1957:136). (O femeno do direito é um fenômeno específico de uma sociedade) [Tradução
minha].
132
O andamento dos processos nas várias instâncias jurídicas brasileiras tende a gerar,
naturalmente, outros sucessivos dramas que, infelizmente, não ocorrerão a tempo de serem aqui
analisados.
pode, efetivamente, praticar a mesma política ambiental que tem desempenhado
desde o início do processo de industrialização e urbanização da bacia do Paraíba
do Sul, conferindo incentivos fiscais e facilidades em licenças para empresas
potencialmente poluidoras em troca de geração de empregos e arrecadações
tributárias.
Neste sentido, a punição dos diretores da Cataguazes de Papel, operada
como um rito de reforma, encobriu a responsabilidade do Estado – suas
instituições de competência ambiental na esfera pública. A incompetência no
exercício de atribuições como licença, monitoramento e fiscalização não foi
amplamente questionada como propulsora do desastre e, por conseqüência, os
agentes públicos foram eximidos de qualquer culpa. E esta falta de auto-avaliação
também é válida para o caso da Paraibuna de Metais.
As situações dramáticas vividas pela população do Norte-Fluminense nos
anos de 1982, com a poluição do Paraíba do Sul provocada pela Paraibuna de
Metais, e de 2003, com o desastre ocasionado pela Cataguazes de Papel foram,
neste sentido, situações em que, diante da suspensão do abastecimento público
de água e mediante a crise inaugurada por esta ruptura, a responsabilidadefoi
invocada em todos os discursos e guiou todo o movimento de alianças e clivagens
motivado pelos conflitos travados. Alocar responsabilidade significou, naqueles
episódios, afirmar e discernir posições diante das tragédias.
A responsabilidade, diz Fauconnet (1920), pertence à ordem dos
femenos jurídicos e morais e deve, como tal, ser observada como um fato social
no foro das representações coletivas que, seja na opinião pessoal de um
indivíduo, seja nos veículos de opinião pública ou nos tribunais, definem os
julgamentos, baseados ou não no direito, e suas respectivas sanções. O conceito,
formal ou informal, de responsabilidade aponta em direção às idéias que a
sociedade tem de suas próprias instituições.
Se o substantivo responsabilidade corresponde a um puro conceito e não,
como parece, a elementos observáveis, ao contrário, o adjetivo responsável
intervém como atributo em julgamentos que são objetos de experiência. [...]
As regras e os julgamentos de responsabilidades são evidentemente fatos:
eles são passíveis de observação e podem ser descritos, narrados,
situados, datados. E estes são seguramente fatos sociais. [...] Os
julgamentos de responsabilidade enunciados por um tribunal, pela opinião
pública ou por um indivíduo, o são outra coisa senão regras de
responsabilidade que se aplicam a espécies; são as instituições da
responsabilidade vivas e funcionando [...] (F
AUCONNET
, 1920: 2-3)
133
.
É, fundamentalmente, neste sentido de alocação ou atribuição de
responsabilidade que os julgamentos dos indivíduos, ou melhor, de membros dos
grupos-astro, sejam eles especialistas, políticos profissionais, jornalistas, juristas
ou quaisquer outros, instruíram as partes e suas posições nos conflitos derivados
dos desastres ambientais no rio Paraíba do Sul, o que, sem dúvida, tornou o
problema da poluição uma questão de dimensão pública. A idéia de
responsabilidade, atribuída ora moral, ora juridicamente no concurso dos dramas
sociais de 1982 e de 2003 foi, ela mesma, a mola propulsora e o moto-contínuo
das sedições experimentadas pela sociedade do Norte-Fluminense.
As já referidas instrias que lançaram os efluentes na bacia do Paraíba do
Sul, transformando as águas dos rios em, como diriam os sanitaristas do início do
século XX, águas servidas, foram, como mostrei anteriormente, amplamente
responsabilizadas pela poluição
134
por todos os segmentos da sociedade, com
acusações tanto morais, quanto jurídicas. Mas, em ambos casos, a poluição foi
compreendida e tratada como acidentepor todos aqueles que tomaram parte,
sobretudo, pelos agentes públicos.
Ora, um acidente pertence à ordem das contingências, é algo fortuito,
casual e, nestes casos, infeliz. Um acidente é algo imprevisto e, quiçá,
imprevisível. Este tipo de formulação tende, pois, a excluir a idéia de
133
Si le substantif responsabilité correspond à un pur concept et non, semble-t-il, à des éléments
observables, au contraire ladjectif responsable intervient comme attribut dans des jugements qui
sont des objets dexrience. [...] Les règles et les jugements de responsabilité sont évidemment
des faits: ils tombent sous lobservation, on peut les décrire, les raconter, les situer, les dater. Et ce
sont assurément des faits sociaux. [...] Les jugements de responsabilité, énoncés par um tribunal,
par lopinion publique ou par um individu, ne sont pas autre chose que les règles de responsabilité
sappliquant à des espèces; ce sont les institutions de la responsibilité vivant et fonctionnant [...]
(Tradução de Arno Vogel).
134
A Paraibuna de Metais, como visto anteriormente, teve suas atividades paralisadas por
determinação do governo de Minas Gerais, por cerca de duas semanas. A Cataguazes de Papel
também ficou paralisada por período equivalente, além de ter sofrido intervenção e ter sido
obrigada a cumprir um Termo de Ajustamento de Conduta determinado pela Justiça.
responsabilidade. Assim, dizer que os desastres causados pela Paraibuna de
Metais e a Cataguazes de Papel foram acidentessignifica mascarar sua culpa,
como se elas, as instrias, não soubessem que suas atividades fossem
potencialmente passíveis de poluir. Por outro lado, a falta de regulamentação das
mesmas e sua fiscalização por parte dos aparelhos blicos são incompaveis
com a noção de imprevisibilidade e apontam para a evidente e crassa
responsabilização do poder público.
De fato, enquanto o Estado não atentar para o problema da poluição na
bacia do rio Paraíba do Sul, seja fiscalizando e exigindo das instrias poluidoras
a supressão das descargas de efluentes no ambiente, seja tratando do esgoto
doméstico e do lixo produzido nas cidades, seja monitorando os pontos
identificados de risco, os habitantes do condomínio da bacia permanecerão
sujeitos ao desabastecimento dágua e os pescadores da região à proibição da
pesca. Mas, durante os dramas subseqüentes às tragédias, a responsabilidade
dos aparelhos do Estado, isto é, de agências blicas como o I
BAMA
, a F
EEMA
, a
F
EAM
etc ficou diluída entre as promessas feitas pelos governadores do Rio de
Janeiro e de Minas Gerais de apuração e punição dos fiscais ambientais daquelas
agências e a notória acusação das indústrias pelos próprios governantes e pelos
mesmos fiscais.
Neste sentido, à atribuição de responsabilidade cabe o cumprimento de
sanções que, uma vez operadas, revelam as leis, as regras e os julgamentos que
estão em jogo no sistema institucional de uma sociedade. Se a alocação de
responsabilidade revela o que a sociedade pensa de si mesma e de suas
instituições, nos casos da Paraibuna de Metais e da Cataguazes de Papel, o
julgamento exclusivo das indústrias demonstra o descomprometimento do Estado
com um bem público, isto é, com os recursos hídricos da bacia do Paraíba do Sul.
Na ordem dos fenômenos jurídicos morais, os fatos de responsabilidade
ocupam um lugar preciso. As regras de responsabilidade são parte
integrante do sistema destes fatos denominados sanções. É quando se
trata de fazer funcionar este sistema, de aplicar sanções, e, notadamente,
sanções penais ou morais, que a responsabilidade intervem: sem ela o
mecanismo das sanções não poderia funcionar. Com efeito, as regras e
julgamentos que temos dado como exemplos, afirmam que uma
condenação penal, civil ou puramente moral, deve atingir tal categoria de
pessoas e o tal outra (quando se trata de regras), tal pessoa e não tal
outra (quando se trata de julgamentos). É dita responsável a pessoa que a
condenação deve atingir, irresponsável aquela que ela não deve atingir
(F
AUCONNET
, 1920:5-6)
135
.
Assim, se por um lado couberam às indústrias envolvidas nos desastres as
mais pronunciadas sanções em função da responsabilidade a elas atribuída, seja
na mídia, no júri, na política partidária, no meio acamico e nas conversas
populares sobre aquelas experiências, não se tornaram os aparelhos do Estado
de regulamentação e fiscalização ambiental, pelo menos com tanta ênfase, atores
passíveis de responsabilidade. Ora, se ao Estado foi legitimada a função de
interditar o consumo da água e do pescado sob a alegação de garantir o bem
estar e a sde pública, é porque, notadamente, é ele também o responsável, isto
é, aquele que responde pelo ambiente e seus recursos. Por isso, as agências
públicas puderam eximir-se da responsabilidade pelos desastres, mas não se
salvaguardaram de responder pela qualidade dos recursos em questão, assim que
estes foram liberados para o consumo.
De fato, a poluição do rio e a conseqüente mortandade de peixe justificaram
os alertas e as interdições de seu consumo, em ambos desastres, sob a égide da
prevenção de uma epidemia de câncer. Pois, foi exatamente assim, como surto
de algo contagiante, que o câncer figurava nas manchetes dos jornais de cada
época, endossado pela opinião de especialistas sobre os perigos da ingestão de
metais pesados. O pavor de contraira doença criou uma espécie de histeria
coletiva, a partir do risco anunciado.
Assim que, embora o Estado, sob a égide das suas agências e seus
respectivos representantes, não tenham sido responsabilizados pelos desastres, o
135
Dans lordre des pnomènes jurídico-moraux, les faits de responsabilité occupent une place
precise. Les règles de responsabilité font partie integrante du système de ces faits quon appelle
des sanctions. Cest quand il sagit de faire fonctionner ce système, dappliquer des sanctions, et
notamment des sanctions pénales ou morales, que la responsabilité intervient: sans elle le
mécanisme des sanctions ne pourrait pas jouer. Em effet, les règles et jugements, que nous avons
donnés em exemples, prononcent quune condamnation, pènale, civile ou purement morale, doit
frapper telle catégorie de personnes et non pas telle autre (sil sagit de règles), telle personne et
non telle autre (sil sagit de jugements). Est dite responsable la personne que la condamnation doit
frapper, irresponsable celle quelle ne doit pas atteindre(Tradução de Arno Vogel).
recrudescimento das crises no concurso dos dramas foi possível pelo
questionamento de alguns setores da sociedade
136
a respeito da potabilidade das
águas e salubridade do pescado, o que, sem dúvida, aponta para um julgamento
de responsabilidade.
A atribuição de responsabilidade significa, segundo Chateauraynaud &
Torny (1999), não apenas a falta de cumprimento de uma obrigação no concurso
jurídico das coisas, mas a neglincia entendida como uma insuficiência moral.
Neste sentido, o ato de responsabilizar atualiza a noção de risco na medida em
que a expertise(e aqui me refiro aos especialistas das agências públicas e aos
governantes) se torna protagonista nos processos de anúncio e justificativa de
alertas e intervenções, assumindo, assim, um tipo de responsabilidade
profissional. Nas palavras dos autores:
É sobre a responsabilidade como obrigação contratual que o formalismo
jurídico é o mais performático. O contrato é a lei das partes na condição de
não ser ilegal. A responsabilidade do contrato se distingue claramente da
que provém do
statut
, entendido como um entrelaçamento de obrigações
ligando um conjunto de pessoas e coisas. Este regime remete também à
noção de responsabilidade profissional, que supõe a organização de
normas e de obrigações colocadas como condizentes para o exercício de
uma profissão. Dizer que se é responsável’ e que se tem obrigaçõesé
aqui sinônimo. Mas este uso de responsabilidade repousa implicitamente
sobre uma teoria da representação ou, se quisermos, da delegação, que
permite pôr à parte atores como representantes, de quem se dirá
corretamente que eles são responsáveis, portanto a responsabilidade é
uma entidade, um grupo, uma organização. É sobre este regime que joga a
responsabilidade de pessoas morais que não podem existir sem
representantes de carne e osso. Evidentemente, no processo, esta figura
da responsabilidade pode se tornar a figura de bode expiatório
(C
HATEAURAYNAUD
& T
ORNY
, 1999: 60)
137
.
136
Como na manifestação promovida pela população de Campos em 1982 e as ações judiciais
impetradas pelas O
NG
s, tal como a C
FCN
, contra a retomada do abastecimento em 2003.
137
Cest sur la responsabilité comme
obligation contractuelle
que la formalisme juridique est le
plus performant. Le contrat est la loi des parties à condition de ne pas éter illégal. La responsabilité
du contrat se distingue clairement de celle qui provient du statut, entendu comme un réseau
dobligations liant un ensemble de persones et de coses. Ce régime renvoie aussi à la notion de
responsabilité professionnele, qui suppose lorganisation de normes et dobligations posées
comme allant de soi pour lexercise dune profession. Dire que lon a des obligationsest ici
synonyme. Mais cet usage de la responsabilité repose implicitement sur une théorie de la
De fato, poder-se-ia especular se a reconciliação de 1982 e o rompimento
apenas jurídico de 2003 não são senão situações flagrantes dos efeitos de um
capitalismo à brasileira que, nitidamente, pauta seu desenvolvimento econômico
às custas da destruição ambiental e da desigualdade social, amparado por um
Estado que não é capaz de atuar, de modo eficaz, na regulamentação e no
controle da utilização dos recursos naturais.
Se o desenvolvimento econômico no Brasil está atrelado à poluição
ambiental e à desigualdade social, estas variáveis, sem dúvida, estão intimamente
associadas. Por isso, é preciso apresentar os pescadores, especialmente os de
Gargaú, como
dramatis personae
nos dramas sociais de 1982 e de 2003.
III. 6. Os pescadores nos dramas
O grande problema da sociedade Norte-Fluminense, nesses
acontecimentos, foi a falta de abastecimento dágua. Para os pescadores da foz
do Paraíba do Sul, no entanto, esta não era a questão fundamental, pois sua água
era, desde sempre, proveniente dos poços abertos na restinga. Seu problema
crucial foi o da privação do meio de trabalho e, portanto, da continuidade do seu
modo tradicional de sustento e de vida.
Durante o desastre provocado pela Paraibuna de Metais, em 1982, uma
grande mortandade de peixe pode ser observada pela população. Quem quer que
chegasse às margens do rio assistiria ao cortejo de diferentes espécies que
desciam mortas, tontas ou agonizantes entre os efluentes:
Na margem direita do Paraibuna, uma grande quantidade de bagres, papa-
terras, piaus e cascudos boiava de barriga para cima. E numa ilha, três
dourados de cerca de dez quilos cada um estavam mortos, pendurados
numa árvore (O Globo, 18/05/82).
représentation ou, si lon veut, de la délégation, qui permet disoler des acteurs comme autant de
répresentants, de porte-parole dont on dira couramment quils sont responsables, portant la
responsabilité dune entité, dune groupe, dune organization. Cest sur ce régime que joue la
responsabilité des personnes morales qui ne sauraient exister sans représentants en chair et en
os. Évidemment, dans le process, cette figure de la responsabilité peut se retourner en figure du
bonc émissaire[Tradução minha].
A pesca, imediatamente, foi proibida nos rios Paraibuna e Paraíba do Sul
pelos governos de Minas Gerais e do Rio de Janeiro como uma medida de
resguardo da saúde pública
138
. O consumo de peixes poderia, segundo os
médicos, provocar uma epidemia coletiva. Privados do rio e sem poderem
trabalhar
139
, os pescadores da foz do Paraíba do Sul sofreram uma temporada de
escassez, em que a fome foi, para muitas famílias, uma situação possível:
O principal problema é dos pescadores, que não podem exercer seu ofício
na água doce e, em alto mar, mesmo pescando sem risco de
contaminação, de nada adianta porque não há fregueses para o produto.
Na Ilha da Convivência, onde vivem 60 famílias exclusivamente da pesca, a
partir de hoje pode haver fome. Técnicos da S
UDEPE
tentam apoio da L
BA
para alimentação dessas famílias. [...] A situação dos pescadores é a mais
difícil. Sem poder pescar ou vender seus produtos, eles correm risco de
passar fome. A socióloga da S
UDEPE
, Maria de Lourdes Coelho de Almeida,
disse que na Ilha da Convivência, onde vivem 200 pessoas exclusivamente
da pesca, a fome já se faz presente. [...] Sem ter como alimentar sua
família, pois não pode pescar para vender, a única saída para Magnum de
Souza, 32 anos, casado, 4 filhos, foi pescar no rio Paraíba para dar de
comer a sua família. Desconhecendo os riscos da contaminação por
cádmio, chumbo e zinco, ele convidou seu vizinho, João Cardoso, 38 anos,
casado, 1 filho, para pescar. Ontem à tarde ambos pescavam
tranqüilamente no rio Paraíba, na zona frontal à praça principal de São
Jo da Barra, próximo à sede da prefeitura (Folha da Manhã, 22/05/82).
Mesmo pescando, apesar da proibição, os pescadores da foz, tanto do rio
quanto do mar, passaram por privações, pois, o havendo quem comprasse o
pescado, não havia, por conseguinte, circulação de moeda. O peixe à mesa
mataria a fome, mas os demais bens materiais não poderiam ser adquiridos. De
fato, a ampla divulgação nos veículos de comunicação regionais da opinião de
médicos e outros especialistas a respeito da contaminação da água e dos peixes
promoveu uma verdadeira mudança nos hábitos alimentares da população do
138
Conforme veiculado pelo jornal
O Globo
: O consumo de peixe na bacia do rio Paraíba do Sul
continua proibido por tempo indeterminado. [...] Até que as pesquisas fiquem prontas, o que não
tem prazo ainda definido, fica proibido na região o consumo de peixes, que ou podem estar
contaminados ou virem se alimentar dos metais armazenados no leito do rio(20/05/82).
139
Ver figura 7.
Norte-Fluminense. Não havia quem quisesse consumir, como de hábito, o
pescado, seja do rio, seja do mar, mesmo proveniente de regiões não atingidas
pela contaminação com metais pesados. No Mercado Municipal de Campos dos
Goytacazes, os peixeiros viam suas bancas às moscas
140
:
Mesmo tendo baixado o preço em quase 100%, de todo o pescado, os
peixeiros do Mercado Municipal não conseguem convencer a clientela a
levar, sequer, uma unidade. Os peixeiros mostravam-se nervosos, com os
prejuízos tomados e revoltados com a imprensa, principalmente a televisão
que, segundo eles, está fazendo um cavalo de batalha com uma poluição
qualquer, querendo culpar a gente. Mas nós capturamos o peixe na Lagoa
Feia e não no Paraíba. Entretanto, alguns peixeiros pescam no rio Paraíba
e um deles que normalmente vende 50 quilos de peixe, sendo que ontem,
esse mesmo pescador, que não foi identificado, chegou no Mercado
Municipal com aproximadamente 500 quilos de peixe, segundo a
informação dos feirantes, e revelou em tom galhofeiro que, peguei os
bichinhos boiando nágua, tontinhos. O fato é que nenhum cliente adquiriu
o pescado e se hoje acontecer o mesmo, nos próximos dias os peixeiros
não trabalharão (Monitor Campista, 20/05/82).
No drama, as clivagens podem ser traçadas dentro de um mesmo grupo.
Ora, diante do quadro de contaminação e do alerta divulgados pelos especialistas
na mídia, os peixeiros tentavam minimizar seus prejuízos comprando peixes de
outras regiões. Por isso, a contenda foi algo recorrente entre os que asseguravam
a procedência do peixe de regiões como Lagoa Feia ou Lagoa de Cima e aqueles
que, aproveitando-se do desastre, tentaram vender os peixes tontos. No entanto,
o medo da população de se contaminarcom o câncer anunciado pelos médicos
se sobrepôs à confiança na palavra dos peixeiros. As bancas abarrotadas do
Mercado permaneceram desertas.
Mesmo depois da liberação da água para o abastecimento, a interdição da
pesca perdurou, sendo tratada como um assunto menos urgente pelos agentes
públicos
141
. Os pescadores foram, no drama social provocado pelo desastre da
140
Ver figura 8.
141
Conforme veiculou
O Globo
: O secretário de obras não soube informar quando será liberada a
pesca nos rios atingidos pela poluição da Paraibuna de Metais: Estamos primeiro tratando das
coisas
mais urgentes
(grifo meu), como o consumo da água do rio pela população. Quanto à
Paraibuna de Metais, as
dramatis personae
mais afetadas pela crise, que antes de
ser resolvida pela reforma operada por Chagas Freitas, se prolongou, seja pela
interdição connua da pesca, seja pela recusa da população de consumir o peixe,
apesar de sua liberação
a posteriori
.
Nos relatos dos jornais pesquisados que privilegiam a situação dos
assentamentos pesqueiros nos acontecimentos de 1982, a responsabilização
exclusiva da Paraibuna de Metais é evocada pelos pescadores:
Francisco Corsnino, um dos mais antigos pescadores da região, queixou-se
que diariamente são aplicadas as mais variadas sanções contra quem
lança redes ou molinetes em ares de pesca proibida. Ele só espera que
agora seja também punida severamente a indústria que está destruindo,
com seus despejos, a fauna dos rios Paraibuna e Paraíba (O Globo,
17/05/82).
Ao Estado seus agentes e instituições não foi atribuída responsabilidade
pela omissão quanto às atividades de fiscalização. O posicionamento dos
pescadores
142
no drama de 1982 quanto à indústria parece ter seguido a mesma
direção que guiou o debate na esfera pública: a Paraibuna de Metais era,
definitivamente, a responsável pela poluição do Paraíba do Sul.
Na crise instalada no Norte-Fluminense em 2003, os pescadores da região,
em absoluto, os mais prejudicados, ratificaram a responsabilidade alocada pela
população no caso Cataguazes de Papel. A instria foi, imediatamente,
processada pelas organizações da classe – as colônias de pesca e a Federação
dos Pescadores do Estado do Rio de Janeiro que requereram indenizações por
danos materiais e morais
143
. Os diretores da Cataguazes tornaram-se os principais
vilões daquele episódio, a quem, alguns dirigem sua revolta pelo ócio forçado e
pelas privações passadas. Edimar, conhecido como Chamego, pescador do rio e
liberação de peixe ainda dependemos dos resultados dos exames que estão sendo feitos para só
então decidir quando se poderá voltar a consumir peixe desses rios” (22/05/82).
142
Não encontrei, nos jornais pesquisados, nenhuma referência aos pescadores de Garg,
embora a região tenha sido atingida pelos efluentes. Nenhum de meus interlocutores no
assentamento tem lembranças daquele desastre.
143
Os processos estão ainda em andamento.
do mar há cerca de 47 anos e meu companheiro em algumas pescarias realizadas
entre os manguezais, responsabiliza a instria da seguinte maneira:
Será que ele [o diretor] não [es]tá vendo não? Se ele tem um tanque ali
[apontando para frente]; eu faço uma fossa grande aqui [apontando para os
pés]; será que todo dia, eu [es]tou trabalhando aqui, eu não es[tou] vendo
que daqui pra lá não vai encher não? [...] Se ele jogou um lodo tóxico que
vai atingir, de vez em quando ele tem a obrigação de ficar olhando,
reforçando, vendo o que ele vai fazer para que não venha atingir a
humanidade. Ele não teve essa obrigação. Ele não pensou no povo. Ele
pensou nele. Ele pensou em ficar rico e esqueceu da maioria do povo
sacrificado.
A fala de Chamegocorresponde, fidedignamente, a situação de
desigualdade e injustiça ambiental que sofrem algumas das minorias brasileiras,
seja no âmbito rural, seja em áreas urbanas. Atraídos pelo desenvolvimento
econômico, estados e municípios brasileiros concedem licenças a instrias
descompromissadas com a manutenção e preservação do ambiente e endossam
suas atividades criminosas deixando de fiscalizá-las. Trabalhadores, minorias
étnicas e populações tradicionais, por exemplo, ficam expostos a situações de
risco, tais como, moradia em margens de cursos dágua que recebem efluentes ou
próxima de lixões e aterros de produtos tóxicos. Estas condições dinamizadas
numa economia capitalista de países em desenvolvimento fazem com que o risco
não possa ser calculado de maneira horizontal para diferentes indivíduos ou
grupos
144
. Determinados segmentos da sociedade são, portanto, mais vulneráveis
a impactos ambientais.
As populações tradicionais de extrativistas e pequenos produtores que
vivem nas regiões de fronteira de expansão das atividades capitalistas
sofrem, por sua vez, as pressões do deslocamento compulsório de suas
áreas de moradia e trabalho, perdendo o acesso à terra, às matas e aos
rios, sendo expulsas por grandes projetos hidrelétricos, viários ou de
exploração mineral, madeireira e agropecuária. Ou então têm as suas
144
Cf. D
OUGLAS
& W
ILDAVSKY
, 1982.
atividades de sobrevivência ameaçadas pela definição pouco democrática e
pouco participativa dos limites e das condições de uso de unidades de
conservação.
Todas estas situações refletem um mesmo processo: a enorme
concentração de poder na apropriação dos recursos ambientais que
caracteriza a história do nosso país. Uma concentração de poder que tem
se revelado a principal responsável pelo que vem sendo chamado de
injustiça ambiental. Esta injustiça ambiental é o mecanismo pelo qual as
sociedades desiguais, do ponto de vista econômico e social, concentram os
recursos ambientais sob o poder dos grandes interesses econômicos e
destinam a maior carga de danos ambientais do desenvolvimento às
populações de baixa renda, aos grupos raciais discriminados, aos povos
étnicos tradicionais, aos bairros operários, às populações marginalizadas e
vulneráveis (A
CSELRAD
, 2002:6).
Os pescadores de Gargaú e suas famílias, portanto, figuram como um dos
grupos mais vulneráveis, ao lado de pescadores de outros assentamentos, a
desastres ambientais no rio Paraíba do Sul, não apenas por sofrerem, como toda
a população, a interdição do peixe em seus hábitos alimentares, mas,
fundamentalmente, por ser o pescado seu provedor de sustento.
Temendo a eclosão de uma epidemia, o Estado, tal como em 1982, através
da portaria nº 16 de 03 de abril de 2003 de I
BAMA
, decidiu proibir “[...] o exercício
da pesca no rio Pomba, a partir dos municípios de Cataguases e Leopoldina/MG,
e no rio Paraíba do Sul/RJ, a partir da confluência com o rio Pomba, até sua foz,
por um período de noventa dias
145
. A infração da portaria incorreria na aplicação
da lei 9.605 de 1998 de crimes ambientais. Além de privados de seu meio de
trabalho, os pescadores ficaram sujeitos às penalidades previstas no capítulo v
daquela lei, que prevê pena de um a três anos para quem pescar em período no
qual a pesca seja proibida ou em lugares interditados por órgão competente. Por
um lado,
o Estado puniu a indústria com a multa, a prisão de seu diretor e a sua
intervenção temporária. De outro, legitimou-se um instrumento punitivo para os
pescadores caso eles exercessem a pesca. Um caso clássico do dito popular: os
inocentes pagam pelos pecadores.
145
Ver a portaria em anexo.
Talvez por terem sua atividade regulada pelo I
BAMA
, no caso do
estabelecimento de períodos de defeso de várias espécies da fauna fluvial e
marinha, alguns pescadores tenham responsabilizado o Estado, em parte, pelo
desastre. Se a eles cabe fiscalização, por que não caberia à indústria? Por isso,
na perspectiva do presidente da Colônia de Pesca Z1, algumas instituições foram
negligentes:
No meu ponto de vista todos os órgãos fiscalizadores, como o I
BAMA
, a
Secretaria de Meio Ambiente do Estado de Minas, o governo de Minas, o
governo federal, todos os governos. O Estado do Rio também tem a sua
responsabilidade, porque sabendo; se esse desastre acontecesse; o
Paraíba do Sul pertence ao Estado do Rio de Janeiro, seria afetado. Eu
acho também que o Estado do Rio tinha obrigação de cobrar alguma
providência e, no entanto, não fez. E nós não tivemos apoio nenhum do
Estado.
Dramas sociais, de fato, podem revelar muitas coisas e, no caso dos
desastres de 1982 e 2003, expuseram, além das sedições provocadas pela crise
em decorrência da falta de abastecimento, das clivagens entre diferentes grupos
sociais plasmadas pelas contendas em torno da alocação de responsabilidade
pela poluição do rio e da liberação da água pelas autoridades públicas, a
vulnerabilidade dos pescadores que, forçosamente, enfrentaram o ócio. Por isso,
há interpretações nativas para o drama, como a de Vanderlei, pescador de
Gargaú, de águas doces e salgadas, há cerca de 25 anos:
Porque, como foi lançado isso aí [a mancha] pra nós; s ficamos até; nós
ficamos de acordo; por dentro da gente; com aquela coisa, aquele
psicológico dentro da gente. Da gente vê como é que tava a natureza do
modo que tava, tão bela, tão bonita [...]. A gente olhava aqueles peixe tudo
morto, os animais morrendo [bois], porque comendo aquele peixe. Aqueles
peixinho morria devido aquela água tão forte que veio. [...] Por que drama ?
Porque pelos dias anteriores; que como nós via[mos] a nossa natureza e o
nosso meio de sobrevivência; ficou mais difícil. Por isso que eu boto essa
palavra drama. Porque nós convivemos com essa coisa até hoje. Nós
convivemos, é tipo um pesadelo pra nós, porque como nós via[mos] a
nossa natureza antes e nós agora estamos vendo [...]. Ficou mais difícil da
gente trabalhar, de todas as maneiras. De tanto como para trabalhar
apanhando o pescado, como também passar o pescado a frente pra
vender. Tem que dizer uma coisa; eles falaram assim: a água [es]tá
poluída. Mas o vieram avisar a gente [sobre a situação da pesca depois
do período de interdição determinado pela portaria do I
BAMA
]. Muita gente
compra, mas tem muita gente que tem medo de comprar [os peixes,
camarões e caranguejos de Gargaú].
Quando problemas ambientais geram dramas sociais, tanto a vivência
quanto a interpretação das rupturas, das crises, das reformas e das possibilidades
de reconciliação ou de rompimento são experimentadas de maneiras
diferenciadas pelos diversos grupos de uma sociedade, à luz das alteridades
depositadas não apenas no plano psíquico, mas, fundamentalmente, nas
desigualdades sociais que, no Brasil, consubstanciam verdadeiros hiatos entre
classes.
Considero, então, o drama social, como a matriz experiencial da qual os
vários gêneros de desempenho cultural, a começar pelos procedimentos
rituais e jurídicos de regeneração e, incluindo, eventualmente, a narrativa
oral e literária, têm sido gerados. Rupturas, crises, reintegrações e
sucessões fornecem o contdo de tais gêneros posteriores, os
procedimentos que eles formam. Quando a sociedade se torna mais
complexa, quando a divisão do trabalho produz modalidades de ação
sociocultural mais especializadas e profissionalizadas, os modos de
atribuição de significado aos dramas sociais tendem a multiplicar-se, mas o
drama permanece até o fim, simples e inextinguível, como um fato da
experiência social de todos e um dulo significativo no ciclo do
desenvolvimento de todos e quaisquer grupos que aspiram à continuidade
(T
URNER
, 1980:154)
146
.
Na multiplicidade semântica de um drama, diferentes perspectivas podem
ser dimensionadas se, como propõe Geertz (2000), esboçarmosduas perguntas
146
The social drama, then, I regard as the experiential matrix from which the many genres of
cultural performance, beginning with redressive ritual and juridical procedures and eventually
including oral and literary narrativa, have been generated. Breach, crisis, and reintegrative or
divisive outcomes provide the content of such later genres, redressive procedures their form. As
society complexifies, as the division of labor produces more specialized and professionalized
modalities of sociocultural action, so do the modes of assigning meaning to social dramas multiply
but the drama remains to the last simple and ineradicable, a fact of everyones social experience
and significant node in the developmental cycle of all groups that aspire to continuance[Tradução
de Arno Vogel].
fundamentais: 1) como é a maneira de viver, de modo geral, do grupo a ser
estudado? b) quais são os veículos através dos quais esta maneira de viver se
manifesta? O modo de vida tradicional dos pescadores de Gargaú revela sua
posição no drama, mas, apenas a expressão de suas experiências pode nos guiar
a um ponto de vista nativosobre o desastre e, conseqüentemente, sobre o
próprio drama.
IV. E
TNOGRAFIA DE
OFENSAS
:
O DESASTRE DA
C
ATAGUAZES DE
P
APEL
DO PONTO DE VISTA DOS PESCADORES DE
G
ARGAÚ
O pior de tudo é que nada eles podiam
botar no lugar mais. Depois que houve
isso aí, nada eles podiam botar no lugar.
Nem eles pagando a indenização pro
pescador, o colocaria no lugar a
liberdade do ecossistema nosso; aqui na
nossa região. Não tem como ficar como
era antes. Tá ficando dicil.
Vanderlei, pescador de Gargaú.
Perto do fim da quaresma do ano de 2003, os pescadores da Colônia Z1
147
se preparavam para as vendas da Páscoa. Nas águas doces e salgadas
intensificavam a pesca na espera do lucro farto – habitual neste período.
Acondicionados em isopores com gelo ou em câmaras frigoríficas, uma grande
quantidade e variedade de peixes era estocada e se somaria a outro montante
ainda por ser capturado até as proximidades da Sexta-feira Santa.
Naquele ano, porém, o então bispo de Campos dos Goytacazes, dom
Roberto Guimarães, com a devida autorização papal, permitiu que os fiéis
católicos consumissem carne vermelha durante os festejos pascais
148
. Subvertida
a regra ritual, o corpo de Cristo, simbolicamente, tornava-se vulnerável à violação
147
A Colônia de Pesca Z1 tem cadastrados um total de 873 pescadores de Gargaú, Santa Clara,
Cacimbas, Sossego, Sonho, Guaxindiba, Buena, Amontado, Guriri, Lagoa Feia, Lagoa Doce e
Barra de Itabapoana, todos assentamentos pesqueiros localizados no Norte-Fluminense.
148
Conforme a notícia veiculada em
O Globo
: O desastre ecológico causado pela Indústria de
papel e celulose Cataguazes, nas águas dos rios Pomba e Paraíba do Sul, vai mudar uma tradição
religiosa dos católicos . aqueles que vivem em alguns municípios do Noroeste Fluminense, a duas
semanas da Sexta-feira da Paixão, vão ter que trocar o peixe, que costuma substituir a carne neste
dia, por outro tipo de alimento. O bispo da Diocese de Campos, dom Roberto Gomes Guimarães,
disse ontem que, com a contaminação dos peixes da região, os fiéis estão liberados da abstinência
da carne. [...] A contaminação do rio que banha a região e o conseqüente risco ao se ingerir peixe
local, foram considerados por dom Roberto circunstâncias excepcionais. Por isso , na opinião do
bispo, consumir carne, para quem vive na área afetada, não será uma transgressão aos preceitos
divinos. Fomos surpreendidos por esse desastre e, não havendo outro alimento, as pessoas
podem comer carne. Numa circunstância excepcional como essa, o há a obrigação de se fazer a
abstinência afirma o bispo, que usa uma passagem bíblica para confirmar a orientação que
passou aos rocos da região (04/04/03).
através da comensalidade, em pleno período da Paixão. Não se tratava, no caso,
de insubordinação aos preceitos evangélicos, desobediência à tradição religiosa
ou simples condescenncia pecaminosa. Mas, antes, de a medida extraordinária
diante do extraordirio: a contaminação das águas e a mortandade dos peixes do
Paraíba do Sul a jusante de seu encontro com o rio Pomba e dos peixes de águas
salgadas numa extensão de cerca de 200 Km, nas proximidades da foz.
No Mercado Municipal de Campos dos Goytacazes
149
, pescadores e
revendedores de peixes contabilizavam prejuízos diante de suas bancas entre
galerias desertas. Os consumidores, assustados com a imagem negra das águas
do rio, temerosos dos efeitos nocivos à sde provenientes do consumo de
pescado poluído e exonerados do pecado com endosso da autoridade religiosa,
fugiram do Mercado para os açougues, aviários ou supermercados. Os cerca de
37 peixeiros, em plena Semana Santa, eram rondados pela falência.
Desesperados e aflitos, organizaram um protesto sem precedentes.
Fecharam a rua Tenente Coronel Cardoso, antiga rua Formosa, principal via de
acesso à banca de peixe do mercado, e ofereceram à população de Campos dos
Goytacazes uma grande moqueca pública
150
em sinal de que seus produtos
estavam aptos para o consumo. O peixe disponível para venda naquele período
estava estocado e, portanto, fora pescado antes do desastre no Paraíba do Sul,
de acordo com alguns vendedores
151
. Outros afirmavam que os peixes eram
149
O Mercado Municipal de Campos dos Goytacazes atende fregueses desta cidade, de seus
distritos e de municípios vizinhos como São Francisco do Itabapoana e São Jo da Barra, sendo
impossível estimar o número de pessoas que por lá passam diariamente, assim como o volume de
necios realizados. As bancas de peixe localizam-se na parte externa do Mercado, junto à rua
Tenente Coronel Cardoso, antiga rua Formosa. São cerca de 37 boxes separados por corredores
estreitos onde cada peixeiro expõe o pescado, pesando-o e limpando-o na presença dos
consumidores. Os peixes, em geral, vêm de regiões como Gargaú, Atafona, Farol de São Tomé,
Guaxindiba, e Barra do Itabapoana. As espécies mais vendidas são: pescada, tainha, namorado,
badejo, robalo, tilápia, traíra, cação, pescadinha, xaréu, olhete, bagre e corvina. A oferta depende
de vários fatores como época do ano, condições do mar, quantidade de barcos envolvidos,
transporte etc. Os preços também oscilam de acordo com as mesmas condições. Desde o
desastre provocado pela Cataguazes de Papel, os peixeiros reclamam da pouca procura dos
fregueses por caranguejos, camarões e peixes de rio.
150
Ver figura 9.
151
Conforme noticiou a
Folha da Man
: Como a maioria dos pescadores, Herivelton Gonçalves
informou que da pesca que armazenou antes do Rio Paraíba ser contaminado, o total de peixe
chega a ser mais de cem quilos, o que perfaz um prejuízo de R$ 300 por dia. A maior perda,
segundo os pescadores, é o da Semana Santa, quando a base de rendimento é de cerca de R$ 15
mil” (10/04/03).
provenientes de regiões não atingidas pela mancha, como a Lagoa de Cima e
Ponta Grossa dos Fidalgos. Para os consumidores, no entanto, a credibilidade do
produto não se restabeleceria apenas pela palavrados mercadores moeda das
relações em meios mais tradicionais, substituída, na modernidade, pelos laudos
da Ciência. Tal como em 1982, as bancas do mercado permaneceram vazias.
Longe das cidades e dos mercados, os pescadores de diversos
assentamentos enfrentavam o ócio forçado. Os peixes agonizavam nas margens
do rio e nas areias das praias. Não havia o que pescar. Em Gargaú, os
pescadores assombravam-se pela mudança que estava por acontecer em suas
vidas. Para eles, a Semana Santa seria de escassez. O ano de 2003 também.
IV.1. A ofensa das águas
Pela televisão, os pescadores que estavam no continente e os gargauenses
em geral souberam que, em pouco tempo, o Paraíba do Sul tornar-se-ia negro.
Pelo rádio, os pescadores embarcados receberam o aviso e começaram a
retornar. À medida que a mancha
152
seguia em direção a Gargaú
153
, todos
acompanhavam, atentos, as nocias de seu deslocamento, levantando suspeitas
e suposições acerca do que aconteceria com o rio e o mar na região.
O inevitável acontecera cerca de cinco dias depois que a barragem da
Cataguazes de Papel estourou. No rio, nos seus braços e no mar, os efluentes
industriais, principalmente a soda cáustica, tingiam de negro a paisagem, assim
como uma nuvemque encobre o sol, como uma cobraque rasteja atrás da
vítima, ou como um veneno, uma quima, um “remédioque não cura, mas
intoxica
154
. Toneladas de peixes tontos, agonizantes ou mortos desciam com a
correnteza
155
e se depositavam nas margens do Paraíba do Sul ou se misturavam
na foz, junto da barra, com as ondas do mar. Ao negro das águas, somava-se o
cheiro pútrido do morticínio.
152
Ver figura 10.
153
Ver figura 13.
154
Estas expressões foram cunhadas por Jociléia, pescadora do rio, ao narrar a chegada da
mancha na região.
155
Ver figuras 11 e 12.
Os danos sofridos pelo ambiente estavam, sobremaneira, visíveis, embora
ainda não contabilizados. Não apenas as águas e os peixes padeciam. O ar
tornara-se pesado, os olhos dos gargauenses ardiam e a pele coçava ou
empolava ao simples toque das areias e das espumas de poluição.
[...] a gente não podia botar nem a mão na água. A água tava contaminada
mesmo [...]. Chegou a atingir essas águas. Levou mais ou menos vinte e
oito dias essa água preta, fedorenta, que as crianças o podia[m] botar
nem o pé; botava, dava coceira; fora o mau cheiro de peixe depois morto
disse Amarildo, pescador de água doce há cerca de 37 anos.
Como uma atenuação da cena, Deusdirecionou os ventos para o mar,
mandando um Sudoeste, fenômeno não muito habitual em Gargaú, onde a
corrente predominante é Nordeste, de modo a resguardar o continente da poeira
de poluição, garantiu Chamego:
[...] deu um lodo aqui na praia; fomos andar na beirada da praia eu e ela
[referindo-se a Zenaide, sua esposa]. Eu mostrei pra ela aquela espuma. A
nossa sorte que Deus mandou um Sudoeste, muito vento, aquela espuma
ia fazer tipo uma poeira; jogar pra nós; era capaz de atingir a vista de muita
gente [...]. Aquilo ali com o Sudoeste, ela [a espuma] batia e saía aquela
poeira pra água. Se ela bate, se vem o vento do mar pra terra, vinha pra
nós, prejudicava nossas vista[s]
156
.
E Zenaide, caranguejeira, pescadora de rio há 33 anos e companheira de
Chamegona pesca, ratificou a opinião do marido, atenta, como mãe, às crianças
gargauenses:
Têm muitas criança[s] que estava[m] na beira da maré; no rio, onde atingiu,
ficou cheia de mancha no corpo. As mães teve [tiveram] que correr, porque
quando foi avisar [os veículos de comunicação], as criança [es]tava[m] na
água. Eu mesmo não botei o pé na água. Fiquei com medo.
156
A prosito, ratificou o biólogo da Universidade Estadual do Norte Fluminense, Carlos Eduardo
Rezende, ao afirmar que a chegada de uma frente fria fez com que os ventos passassem a vir do
Sul, o que empurrou a mancha mais para o Norte (Cf. O Globo, 10/04/03).
A cena da mortandade dos peixes foi, deveras, uma experiência
inesquecível no assentamento. Não há quem não tenha histórias para contar
sobre aqueles dias. Antes da chegada da mancha, alguns pescadores tentaram
fechar os canais de acesso aos mangues
157
. Frustrada a tentativa, depararam-se
com a lavagem das águasque limpouo rio de seus peixes, conforme o relato
de Vanderlei:
O peixe – o desastre foi muito grande! [...] Matou bastante peixe, bastante
mesmo! Nós não podía[mos] andar no mar, no rio, nos riacho que os
peixe[s] [es]tava[vam] tudo tonto e a perda também foi bastante; escasseou
bastante peixe pra nós [...]. Devido o tanto que tinha de peixe no Paraíba.
Acabou bastante e a gente tinha mais facilidade de apanhar o peixe e agora
tá mais difícil, tanto no mar, quanto no rio, por conta desse desastre
ecológico que deu; e pela fauna, também, que houve o desastre pela fauna.
Pela fauna que foi nos nossos mangues, nos nossos pastos, pela forma que
aonde ela [a mancha] invadiu, ela destruiu bastante, tamm a terra. Tem
lugares que não produz mais. Produz o! Você vê que foi tão difícil, foi tão
grave a coisa, que até os gados, morreu [morreram]. Bastante gado! Foi o
bagre, robalo, tainha, tainhota, que morreu [morreram] mais. Também foi o
piau. O piau era um peixe de muita facilidade a gente pescar ele. Hoje em
dia, você não acha piau fácil mais. Esses peixes são os peixes mais que
respiram. De vez em quando eles estão em cima dágua [...]. O bagre foi de
um; foi o que mais morreu. A gente olhava ele por esse Paraíba nosso,
pelas beirada: era de bater no barco, nas bateras, nas embarcações, de
tanto que tinha. A gente olhava; dava uma tristeza tão grande no coração
da gente, que a gente não conseguia nem olhar mais. Tinha um carro cheio
de peixe morto. A área aqui nossa, todinha, tanto como aqui, pra lá, as
carroça[s] da prefeitura mandava[m] apanhar; as carroça[s] cheia[s].
Caminhões e tratores da prefeitura de São Francisco do Itabapoana
trabalharam diariamente na retirada dos peixes mortos. Toneladas foram
157
Conforme relato de Tico, presidente da Colônia Z1, e a notícia veiculada em
O Globo
: Ao
atingir o mar, a água contaminada entrou nos córregos dos manguezais de São Francisco do
Itabapoana, na divisa com o Espírito Santo. Desesperados, os pescadores fizeram pequenas
barragens para evitar que a mancha venenosa invadisse o manguezal, local de desova de toda a
fauna marinha. Mas o esforço foi em vão e os estragos provocados pelo rompimento do
reservatório da Cataguazes ameaçam agora o projeto Tamar, que protege as tartarugas marinhas
ao longo de 150 quilômetros do litoral fluminense. Um dos principais pontos de desova das
tartarugas é a faixa de 30 quilômetros de orla nos dois lados da foz do Paraíba, onde estão se
concentrando os produtos químicos que desceram rio abaixo” (05/04/03).
enterradas
158
. Os gargauenses acompanharam a operação com muito pesar. Todo
aquele pescado perdido poderia estar [e]malhadoem suas redes. A respeito,
comentou uma senhora que acompanhava minha conversa com Vanderlei:
Isso aí, quem trabalha na prefeitura, eles trabalharam dois dias seguido[s]
tirando peixe na beira do mar; de fazer pena, a água pretinha [...]. Bagre,
xingó, [...] até robalo! Tinha robalo deste tamanho assim [abrindo os
braços]; tava aquela pilha.
A mortandade de peixes poderia ter sido menor segundo as afirmações
de todos os meus interlocutores. Disseram que uns por ganância, outros por
descuido vários pescadores, embora avisados do desastre, deixaram suas redes
na boca da barra. Os peixes, principalmente os robalos, em fuga, se
antecipavam à manchaem direção ao mar, onde, provavelmente sobreviveriam.
Ao chegarem à foz, no entanto, encontraram as malhas de náilon trançadas e
atravessadas de um espinhela outro. Foram apanhados. Morreram.
Quando eles [o rádio e a televisão] avisaram que as águas iam atingir, um
dia antes, pediram que as pessoas, que tivessem com suas redes na boca
da barra, pediram que tirasse[m] as redes. E o rapaz que tava com a rede
lá, até pescador, [cita o nome], ele na hora não conseguiu tirar as
carreira[s]. Não preocuparam. Quando chegou, no outro dia de manhã, só
robalo... Tudo morto! Agarrado na rede! Puxou o barco, quase que encheu
o barco; quase foi ao fundo de tanto... Porque eles tentaram sair pro mar
pra poder... Porque prensou. As águas prensando, todo peixe vai procurar
água limpa. Quando chegou, deu de cara com uma rede cercando a
rompida deles. O que aconteceu? [E]malharam, [e]malharam e quando o
rapaz foi tirar a rede: aquele sofrimento! Aquela tristeza! Ele olhou. Quando
puxou aquele monte de robalo, disse que nunca pegou tanto robalo na vida
dele. Robalo de todo tipo; peixe de todo tipo [e]malhado. Não vendeu. Aí
puxou pra beira da praia. Foi uma choradeira. Quando ele olhou assim,
falou assim: - rapaz como é que faz agora?Até o I
BAMA
teve com ele; falou
com ele; talvez até prender; aí ele pediu pelo amor de Deus que não. Foi
uma neglincia dele. A gente é pescador; a gente sabe muito bem disso.
Não vamos botar culpa em ninguém, porque foi exato. Se eu tenho uma
rede lá, fui avisado que vai atingir, vou tirar minha rede. O que eu apanhei
eu poderia comercializar antes da água chegar, mas a água chegou.
Atingiu, quem vai comprar? – relatou Amarildo.
158
Ver figuras 14 e 15. O serviço público de limpeza não conseguiu retirar todos os animais mortos
pelo desastre. Muitos cadáveres serviram de banquetepara os urubus.
Com um olhar mais crítico sobre a atitude dos pescadores envolvidos neste
episódio, Chamego o narrou assim:
O peixe – ele se refugiou pelo mar. Uma parte que morreu pelo mar foi que
uns homens errado[s] aí, sabendo; que o rádio batendo, televisão batendo,
tudo batendo que o lodo vem; o peixe vem na frente do lodo. Ele [o
pescador] tinha que tirar a rede. Ele não tirou a rede. O peixe bateu,
encontrou a rede.
Não se sabe se esses peixes, de fato, teriam sobrevivido no mar. Talvez a
ganância tenha motivado aqueles pescadores a proceder desta forma. Mas,
ninguém compraria os robalos oferecidos, nem os caranguejos, nem qualquer
outro produto do Paraíba do Sul e dos mares adjacentes à sua foz, avisada que
estava a população do Norte-Fluminense dos possíveis males de seu consumo.
Um pescador, no entanto, segredou-me, longe deste instrumento indiscreto e
pouco confiável que é o gravador, que peixes haviam sido vendidos a
atravessadores e distribuídos nas grandes cidades do estado do Rio de Janeiro,
sem que sua procencia fosse revelada. Longe dos mercados modernos, sem
registro ou inspeção de instituições como a Vigilância Sanitária, esta assertiva é
bastante plausível, embora não verificável
159
. No mais, a safra dos peixes mortos
foi um fracasso nos mercados e nas feiras-de-bairro da região.
Para alguns gargauenses, no entanto, o fato de os peixes estarem
contaminados não se opunha ao seu consumo
160
. Diante das peças lindas, do
159
O jornal
O Globo
alertou a população carioca para que não comprasse peixes em pequenos
pontos de comércio: Os peixes consumidos no Rio, em suas maioria, são pescados na área entre
Niterói e o Rio, Região dos Lagos e Sul do país, de onde vem cerca de 90% do pescado. Para o
carioca, entretanto, um conselho: comprar o pescado em entrepostos de grande distribuição é uma
maneira de assegurar a origem do peixe” (12/04/03).
160
Aliás, moradores de várias localidades situadas ao longo do Paraíba do Sul comeram peixes
contaminados, como indica a reportagem do jornal
O Globo
intitulada
A fome vence o medo
:
Indiferentes à contaminação, moradores do distrito de Portela, em Itaocara, estão levando para
casa sacos cheios de peixes capturados no rio Paraíba do Sul. O biólogo Guilherme Souza,
coordenador do projeto Piabanha, chegou a alertar os moradores sobre o risco de consumir os
peixes contaminados, mas eles não lhe deram ouvidos. As pessoas pegaram os peixes que
estavam se debatendo nas margens do Paraíba. Quando os adverti, eles alegaram que uma boa
lavada com limão tira qualquer contaminação. Eles não sabem que o material pesado se fixa no
tecido do peixe e de quem o consome contou o biólogo. Um dourado de 15 quilos, pescado nas
águas do Paraíba na manhã de anteontem, foi consumido por um grupo de moradores da Praça
Onze, uma localidade pobre do distrito de Portela, que entrou em decadência econômica depois
que as duas fábricas de móveis do local fecharam as portas” (03/04/03).
medo de adquirir o câncer tão amplamente anunciado nos veículos de
comunicação e da falta de recursos para compra de outros produtos, venceram a
necessidade e o hábito de alimentar-se das moquecas e das peixadas, como
relatou Vanderlei:
Aqui houve esse detalhe, aqui. Logo assim... no dia até no outro, o peixe
começou a aparecer tonto, lerdo na água. Aí eles [os gargauenses]
apanhava[m], apanhava[m] e tinha gente que até apanhava e dizia assim:
vou tentar vender esse peixe. Chegava lá não conseguia vender. Voltava.
Aí levava pra casa pra comer. Uns dizia[m]: vai dar câncer em você, e
tal’; Olha você não come esse peixe. Mas quem queria saber de nada?
Tinha gente que o queria saber disso. Num dia, após o outro, comeram o
peixe.
Chamego, por exemplo, embora repreendido por Zenaide, o resistiu a um
piau que pegara entre os muitos que desciam o rio, arfantes:
Eu apanhei, na época da água rompendo aí, deu um peixe. Um piau
grande. Ninguém quis comer. Eu apanhei, botei ele na geladeira e comi. Eu
comi, meu cunhado comeu [...]. O povo que estuda a medicina diz que mais
tarde vai dar câncer. O câncer tá largado aí, o câncer tá dando, o povo
morrendo tudo...
De fato, há muito não se via tanta fartura de peixes que, em fuga,
procuravam a foz do Paraíba do Sul. A pescaria, mesmo antes do desastre, dava
fracassoe prejuízo. Os pescadores apontam duas razões principais para o
declínio que a produção do pescado vinha sofrendo, mesmo antes da passagem
das águas, da mancha, do lodoque atingiuo rio: a pesca predatória e a ação
do chupa-cabras
161
.
161
Embarcações que analisam possíveis reservas de petróleo no mar através de prospeão
sísmica, isto é, através da emissão de sons. Na cada de 90, os veículos de comunicação
brasileiros divulgaram uma série de mortandade de animais no estado de São Paulo. Cabras, aves
e bois foram encontrados sem sangue e mutilados em diversas propriedades. Os ataques foram
atribuídos pela população a um ser extraterrestre, denominado chupa-cabras. Por analogia, os
gargauenses utilizaram a metáfora para designar as embarcações de pesquisa petrolífera que
atuam na costa da região Norte-Fluminense as quais, segundo a interpretação local, espantam os
peixes.
É consenso entre os pescadores que o volume do pescado, principalmente
o peruá, o robalo e o camarão pitu, sofreu um decréscimo nos últimos anos. A
pesca com instrumentos como o puçá (rede cônica com círculo de arame na
boca), de grande dimensão acabou por capturar cardumes inteiros, sem que a
população de peixes tivesse tempo de se restabelecer. Das toneladas
anteriormente capturadas, restam apenas algumas unidades, que costumam ser
devolvidas ao mar, menos por zelo do que por frustração do pescador. A respeito
da pesca predatória em Gargaú, comentou Rosalvo, pescador do rio e do mar há
cerca de 10 anos:
Aqui [o mangue] é o berçário da natureza. Eles [os peixes] vão desovar
aqui, vão crescer o tamanho mais ou menos aqui e vão embora de novo. O
peixe tem que desovar onde bate a água do rio e do mar. O robalo vem
descendo o rio até desovar aqui. Mas chega aqui, se sair 100%, quase
chega aqui 10% pra desovar; que 90% nós apanhamos. O pescador vai
apanhar. O robalo vai descendo, a gente vai apanhando. Tem que apanhar,
que a sobrevivência nossa é apanhar o peixe pra vender. Não sabemos
fazer outra coisa [...]. É muito bonito você ver o peixe, como a gente vê
apanhar em São João da Barra, desse tamanhinho, o robalo, [e] saber que
você vai ver ele com seis quilos, cinco quilos, [entretanto] apanhar ele com
cem gramas. Eu tenho a rede; não vou dizer a você que eu não tenho; eu
tenho a rede, com a linha de quatro dedos, cinco dedos. Apanha só de meio
quilo em diante. Eu sei que meio quilo é pequeno, ainda assim é pequeno,
mas se só eu parar o vai adiantar. Quem destrói a natureza somos s
próprios. Na época que esse chupa-cabratava aí, ele prejudicou, não vou
dizer que não prejudicou, mas quem destruiu mesmo foi o pescador.
A afirmação de que as embarcações de pesquisa de poços de petróleo, os
chupa-cabras, na costa de Gargaú têm contribuído para tornar os peixes arredios
está ancorada na assertiva dos pescadores de que as prospecções sísmicas
emitem descargas elétricas de alta voltagem (que na verdade são sons), conforme
o relato de Chamego:
Apareceu um tal de chupa-cabra, um navio rebocador. Acabou de
arrebentar tudo, a peixada que tinha. Ele passou pra procurar petróleo. A
peruazada; dando choque na água toda; e vinha de longe gritando pra s
sair[mos] da frente. Nós tinha[mos] que sair da frente.
Se o ambiente em Gargaú já sofria danos em virtude dos problemas
anteriormente mencionados, a chegada dos efluentes lançados pela Cataguazes
de Papel acabou com os restos que a gente tinha, que isso hoje é os restinho,
segundo Aprígio, pescador do mar há 15 anos. Para alguns pescadores, o
desastre promoveu, deveras, uma queda na produção do pescado pela
mortandade da fauna. Não restando muito o que pescar, os peixes capturados vão
antes para as mesas das famílias gargauenses que para as feiras e mercados,
como disse Vanderlei a propósito de uma de suas últimas saídas para o rio:
Pra nós aqui, ela [a mancha] nos prejudicou muito, de uma maneira que, de
onde viesse lançando essa água que saiu, ela veio acabando com tudo,
entre pastos, entre os mangues nossos aqui. Até sobre o caranguejo
acabou com muito caranguejo. Prejudicou bastante. E até sobre a nossa
pesca, ela foi prejudicada até no vender do peixe. Ficou mais difícil vender,
porque ninguém queria dar crédito a nós, que dizia que essa água vinha
com problema. Até chegaram dizer que essa água dava até câncer nas
pessoas. Nesse ponto, então, no mar também, nós que somos pescadores
de rio e do mar da localidade aqui de Gargaú, nós vivemos sobre o mangue
também, participamos disso tudo. Então, prejudicou isso tudo. Nós
pescava[mos], deu um pouco de escassez dele e as vendas do camarão
também prejudicou bastante. [...] A gente ainda tinha uma base, a gente
chegava no rio trazia 20 quilos de peixe, 25, 30 quilos. Tinha até gente que
pegava mais um pouco. O bagre, principalmente, tinha dia que a gente
pegava até 50, 60 quilos de bagre. Hoje em dia quando a gente vai pegar 5
quilos dá trabalho, dá trabalho. Eu sou pescador de rio e mar. Nossa função
aqui é essa: é rio, mar e caranguejo. Não podemos parar. Ontem peguei
pouquinho; negócio de 2 quilos só. Só pro consumo mesmo.
A percepção dos prejuízos varia quando o assunto é o tipo de espécie que
mais sofreu com os efluentes. Em geral, os peixes considerados fracos, isto é,
aqueles que são exclusivamente do rio
162
, foram também, segundo os
pescadores, os que mais morreram e são os mais difíceis de encontrar
atualmente. Já os peixes que transitam entre o rio e o mar conseguiram escapar
da mortandade ostensiva, refugiando-se nas águas salgadas
163
. Em conversa com
Aprígio e Chamego, esta diferenciação das espécies mais vulneráveis apareceu
de maneira bastante didática, conforme os excertos transcritos abaixo:
O peixe que sumiu menos foi o que aceita as duas águas: o robalo, a
tainha, a tainhota. Esses peixe[s], ele[s] aceita[m] as duas águas. Aceita[m]
a água salgada e a água do rio. Já o xingó, o sairu, a traíra, o piau, esses
não aceita[m] as duas águas. São da água doce. Esses sumiu[sumiram]
mais. Tem, não é de dizer que não tem disse Chamego.
O bagre é o peixe mais fraco, mas teve (morreu) muito xingó. O robalo
também morreu. Achou carapeba morta. Morreu muito peixe, muita raça de
peixe. A água [a mancha] veio; aí na água o peixe veio correndo. [...]
Quando chegou atingir aqui e a poluir tudo, não tinha pra onde o peixe,
principalmente o piau; o piau de quantidade; que há muitos anos que
ninguém via piaus; piau tinha muito; entrou pra dentro dos mangues aqui;
entrou pra cá; o povo apanhou. Muita gente comeu o peixe. Se tiver que dar
câncer vai dar em todo mundo, que muita gente comeu piau. Então, piau
grande assim partiu pra lá. Só que no lugar, quando a água veio e bateu, a
maré veio e prendeu. O peixe morreu não foi a água, porque faltou
oxinio. Então, no faltar oxinio da água, a gente pegava peixe na mão;
ficava com as boquinha[s] aberta[s]. Então, alguns que vai[vão] pro mar: o
robalo, a tainha, a tainhota, a carapeba; tudo o mar aceita, ela desova no
162
A distinção entre peixes fortese fracosparece atender a mesma distinção encontrada na
divisão do trabalho por gênero entre as populações tradicionais. Ao homem destinam-se as águas
bravias e imprevisíveis do mar. Às mulheres destinam-se as águas imóveis e previsíveis de lagoas
ou de canais dos rios. Como afirma Silva: Fica o homem associado ao mundo do mar, natureza
dimica e imprevisível, à dimensão pública e à reprodução social; enquanto a mulher se destina
ao privado e à reprodução biológica. É possível pensar-se que sobre essa diferenciação repousam
também a origem da interdição da pesca marinha às mulheres, ao mesmo tempo que a elas é
permitido acesso à lagoa” (S
ILVA
, 2000:35). Os peixes naturais do rio, portanto, são fracoscomo
se pensa a respeito do sexo feminino, enquanto os peixes do mar são fortes como na concepção
do nero masculino. A distinção entre os peixes ocorre também em função de seu valor no
mercado: os peixes fracos(xin, sairu, bagre, cumatã e piau, entre outros) são mais baratos. Os
peixes fortes(parati, tainha, cação, robalo, arraia e carapeba, entre outros) são de maior valor.
163
Este femeno pode ter ocorrido com escies de peixes sujeitas a diadromia, isto é, espécies
que empreendem migrações entre o mar e as águas continentais, seja para a reprodução, seja
pela oferta de alimento ou pela busca por locais de nidificação menos propensos à predação.
mar, na boca da barra, elas aceita[m] a água. Agora: xingó, cumatã, piau,
essas coisa[s], no mar [es]tã[o] morrendo muito. Não agüenta água
salgada. O peixe que foi pro mar, alguns recuperou [recuperaram] e voltou
[voltaram] pro rio. Agora os que morreu [morreram] a gente não se sabe na
beirada das praia – afirmou Aprígio.
Portanto, segundo os pescadores, há uma variação na mortandade de
peixes no desastre da Cataguazes de Papel. Enquanto escies do rio foram as
mais atingidas, aquelas que vivem no mar ou que transitam entre um e outro
puderam, em parte, se safar. Em tese, esta assertiva indicaria que os pescadores
do mar não foram amplamente privados de seu meio de sustento e que os
pescadores do rio, estes sim, tiveram seu ambiente laboral totalmente interditado
e, por isso, sofreram prejuízos maiores que os demais. Esta indicação, como vou
mostrar adiante, o se sustenta, no que tange à relação de ambos com o
mercado. Mas, do ponto de vista natural, segundo os gargauenses, o ambiente
marinho foi menos afetado que o fluvial, pelo fato de a manchater-se diluído,
numa extensão de cerca de 200 Km a partir da foz. A respeito deste episódio,
disse Rosalvo:
O mar atingiu por cima só. Na beirada, eu até acredito que na barra, saiu
tudo por baixo. Mas meia hora pra fora, não levou ao profundo do mar o.
Porque a gente tira pelo mar mesmo: a água amarela que sai do rio quando
o rio tá cheio, ela não mistura com a prata (do mar). Embaixo ela fica
clarinha e em cima amarela. Tanto que a gente andando, a hélice do barco
joga a água clara pra cima, dá pra ver. Pensando certinho, vê que não
atingiu. A água passou por cima, por baixo não foi a mancha. [...] A
densidade é diferente, a água do mar é mais fina, a água do rio sempre foi
mais grossa e vai ser, não mistura. [...] A mancha saiu por cima. O vento
tava sul. A água saiu por cima, passou por Barra [do Itabapoana], passou
por fora, chegou até Guarapari. [...] Chegou até lá e misturou. Desmanchou
a mancha.
Apesar de conseguirem capturar alguns peixes no pós-desastre,
principalmente do mar, pois, segundo Chamego, na época, depois que a água
passou deu muito peixe, os pescadores de Gargaú viram a chegada da fome ao
povoado. Impedidos, ao menos oficialmente, de pescar e comercializar o
pescado
164
, sobravam contas de luz, água, telefone e mercado para pagar. Mas as
inadimplências seriam ainda maiores. Despesas com óleo diesel, com gelo e com
o “rancho” (alimentação) tinham sido feitas, em virtude da proximidade da Semana
Santa, período em que se espera uma grande venda de peixes e, portanto, um
salto quantitativo nos ganhos. Nada foi vendido, entretanto. Sobrou o sobressalto
da dívida, num momento em que se contava com a prosperidade, como lamentou
Amarildo:
Pegou s de surpresa. Pegou os pescador[es] tudo endividado. Na hora
de apanhar caranguejo, na hora de trabalhar mesmo, não podemos
trabalhar. Pessoas aí que foram atingidas da água com dívida. Veja bem,
nós aqui trabalhamos na água doce e nós contamos sempre com o verão,
aonde os turistas desce[m] pras praia[s]. Nós podemos comercializar nossa
mercadoria mais cara. Podemos vender mais cara. Depois que acaba o
verão, nós aí temos que vender a mercadoria nossa barato. E o que
aconteceu? Pegou numa fase difícil. Atingiu essa família toda. O povo
chorava. Inclusive nós fomos pra beirada da praia. Vimos a maioria dos
robalo[s] boiando, sem ter refúgio, sem poder sobreviver e não tinha jeito.
Entraram alguns para o riacho pra tentar[em] sobreviver; que esse riacho dá
lá nos manguezais; e não teve jeito. Piau, muito piau. Peixe mesmo caro. A
maioria dos peixe[s] caro[s] foi atingida. Robalo, carapeba, o camarão pitu.
Diante do desastre, os gargauenses recorreram às orações. Pediram a
Deus que não mais permitisse tamanha ofensaem suas vidas. Na igreja católica
e nas numerosas seitas protestantes (de ramificações diversas) que há no
assentamento, as pessoas invocavam a ajuda divina para que as águas se
limpasseme o ambiente se recuperasse, enfim, para que a vida social em
Gargaú se restabelecesse, dando ao pescador “o direito ao dia-dia, como afirmou
Vanderlei. E Zenaide, recordando aqueles dias extraordinários, reafirmou sua fé,
pedindo a Deus que a aquela situação não se perpetuasse:
Nós que somos cristãos ficamos em oração, pedindo a Deus que limpasse
a água o mais rápido possível, porque se continuasse aquilo que estava ali,
muitas pessoas já estavam passando fome. Não podia pegar o produto pra
vender. E quando pegava não encontra[va], o vendia o caranguejo.
Ninguém queria comprar mais.
164
Conforme a determinação da portaria nº 16 de 03 de abril de 2003 do I
BAMA
.
Ofender, segundo Houaiss (2001), significa cometer um agravo, um ultraje,
uma afrontacontra alguém. Mas significa, também, causar “dano físicoou
lesãopela violação de um preceitoou uma regra. Por isso, uma ofensa
produz sensação desagradávelou desgosto. Na região fluminense, quando se
tropeça ou esbarra em algum obstáculo, é comum perguntar: ofendeu? Ofender é,
portanto, machucar. O derrame de efluentes no Paraíba do Sul significou todas
estas agruras para os pescadores de Gargaú, ao seccionar suas relações com o
ambiente. E, no drama, não foi outra coisa senão a própria ruptura. Assim, é
comum ouvir afirmações como esta: o pescador foi ofendido pelas águas
165
para
designar o sentimento provocado pelo desastre. Ofendidos na sua interação com
o meio, porque dele foram privados; ofendidos, também, nas suas relações
sociais, porque a confiança dos consumidores no pescado foi seriamente abalada,
como veremos a seguir.
IV. 2. A confiança ofendida
Há determinadas inclinações do pensamento moderno que identificam as
populações ditas tradicionais como comunidades fechadas ou isoladas. O
fechamento e o isolamento, no entanto, são invenções da própria modernidade
que, para delimitar seus contornos, criou a tradição
166
.
Pelo Terceiro e Quarto Mundos afora, as pessoas andam a proclamar o
valor de seus costumes tradicionais (tal como elas os concebem).
Infelizmente, uma certa atmosfera livresca de inautenticidade paira sobre
esse moderno movimento pró-cultural. O rótulo acadêmico invençãojá
sugere artifício, e a literatura antropológica transmite, com demasiada
freqüência, a impressão de um passado meio falsificado, improvisado para
fins políticos, que provavelmente deve mais a forças imperialistas que a
fontes indígenas (S
AHLINS
, 2004:5).
Assim, a definição de uma sociedade tradicional deve atentar menos para a
idéia de impermeabilidade do que para a noção de mudança constante através de
165
Ver figura 16.
166
Cf. G
IDDENS
, 2000.
relacionamentos com instituições modernas. A tradição é sempre relativa às
possibilidades de incorporação e difusão de produtoseconômicos, simbólicos,
políticos etc., que têm tornado, para alguns pensadores contemporâneos, as
culturas cada vez mais híbridas
167
no mundo globalizado.
No Brasil, o referente de alteridade, o nosso outro, sempre foi o indígena –
contraparte desde a colonização. O reconhecimento principalmente através do
registro antropológico e da auto-identificação de populações como, por exemplo,
os
caiçaras
paulistas
, os
jangadeiros
nordestinos
, os
quilombolas
e os
pescadores
artesanais
da costa litorânea ou as assim chamadas
populações tradicionais
de
outras alteridades tem demarcado novos campos tanto de intersecção quanto de
conflito. É necessário, pois, conceituar as marcas de distinção destes vários
genres de vie
tradicionais em relação à sociedade moderna.
As
populações tradicionais
diferenciam-se, entre outros aspectos, pela forte
interação com o ambiente – o território e os ciclos temporais , a interpretação
simlica, mítica e ritual da natureza, o peso das relações de parentesco e
compadrio, o extrativismo como atividade ecomica e o manejo dos recursos
naturais com a utilização de técnicas
simples
.
Numa perspectiva marxista, as culturas tradicionais estão associadas a
modos de produção pré-capitalistas, próprios de sociedades em que o
trabalho ainda não se tornou mercadoria; em que a dependência do
mercado já existe, mas não é total. Essas sociedades desenvolveram
formas particulares de manejo dos recursos naturais, que não visam
diretamente ao lucro, mas à reprodução cultural e social, além de
percepções e representações em relação ao mundo natural, marcadas pela
idéia de associação com a natureza e a dependência de seus ciclos.
Culturas tradicionais, nessa perspectiva, são aquelas associadas à
pequena produção mercantil (D
IEGUES
, 2001:24).
Em Gargaú, a perspectiva de população tradicional apontada acima traduz
menos os aspectos econômicos que as características socioculturais supracitadas.
De fato, a associação a e a dependência dos pescadores em relação ao universo
natural se baseiam em saberes e técnicas locais de manejo do ambiente. Se a
167
Cf. C
ANCLINI
, 2001.
pescaria tem um mistério, como me afirmou um pescador, ele reside exatamente
neste conhecimento acerca da natureza que determina, por exemplo, que as
saídas para a pesca devam ocorrer de acordo com o vento Sudoeste porque este
aproxima o pescado da costa, ou que as noites escurasdão mais peixe porque
as redes ficam menos visíveis nágua, ou que a maré cheiacondiciona o retorno
do mar porque o barco não pode encalhar na boca da barra. Também o trabalho
não é mercadoria, no sentido capitalista do termo, já que o patrão do pescador é
o mar, o rio, embora alguns trabalhadores da pescavendam sua força de
trabalhoaos donos de embarcações, que lhes pagam de acordo com a produção.
Mas a ligação dos gargauenses com o mercado é mais estreita, no sentido
moderno, do que pré-capitalista.
Embora os pescadores de Gargaú reconheçam que, em função do desastre
provocado pela Cataguazes de Papel, o ambiente tenha sofrido prejuízos, para
eles, o dano maior foi o abalo da confiança dos consumidores no seu produto os
peixes.
Não tinha saída de peixe, de caranguejo, de nada. Até que o caranguejo,
ele não morreu. Mas o peixe morreu. Foi pouco os que não morreu
[morreram]. Mas o problema que ficou mais
foi na venda. Depois que
rompeu a água [a mancha] o pessoal não comprou. Ficaram com medo de
comer. Aí, nós passamos imprensados. E até hoje a venda de peixe ainda
está fraca – afirma Chamego.
Nilson, pescador de rio e mar há cerca de 15 anos, declarou em uma de
nossas conversas sobre as conseqüências do desastre para a comercialização do
pescado:
[O] Sujeito vendia [vende] peixe aqora. Tinha dia que o vendia há uns
tempos atrás lá em Campos. Ninguém acreditava na gente não
. Ficava
perguntando se tá limpo o bicho. Ficou ruim de tudo [a comercialização].
Vendia [no mercado] há uns tempos atrás. Agora parei, [por]que tava ruim.
Tive que parar. O negócio da água, aí. Tive que parar. Tem gente que não
acredita não: que siri, esses troços, não [es]tã[o] poluído[s]. A gente diz que
não. A gente come, todo mundo viu. Mas a gente pergunta ao pessoal da
cidade: podia vim [vir] a conseqüência [o câncer]; o logo no começo, mas
sim pra frente; uns 4, 6 anos de doença sobre a água; que a química dela é
muito forte. Foi difícil. Pra nós passar[mos] aqui esse período, vendo aquela
água nossa como estava e como ela passou a ficar. Ficou muito feio, muito
feio[a] mesmo a água. Ela ficou pretinha, igualzinho café. Foi um drama, um
drama ecológico mesmo.
E Vanderlei, ratificou a mesma idéia, lamentando a falta de moral(no
sentido de crédito), que os pescadores sofreram em relação à confiança dos
consumidores na salubridade dos peixes, após a tragédia:
Nós fomos prejudicados, porque o peixe nosso saía daqui de s
mesmo[s], do nosso Paraíba, do nosso mar. Mas já pra fora, de Campos
pra fora, o peixe não foi bem-vindo. [...] Aqui, pra nós, já abrangeu, aqui. E
aqui nosso moral de vender o pescado, nós passamos a não ter mais
.
Impedidos de pescar. E quando pescava não vendia. E nossa conta era
pequena. Sempre quando pescava era pouca coisa.
Amarildo, assustado com as previsões dos especialistas sobre a
recuperação do ambiente, narrou as dificuldades enfrentadas pelos pescadores do
rio, mencionando diferenças quanto aos prejuízos naturais com relação aos
pescadores do mar:
Nossa mercadoria, ninguém quis comprar, mesmo que a gente fosse
apanhar. Passou [passaram] as água[s]. Depois que passou [a mancha], as
águas começou [começaram] a clarear. Mas, mesmo assim, o povo ficou
com medo de comer [...]. Quando eles falaram [biólogos, ecologistas etc.] lá
[na televisão e no rádio], os cientista[s] grandões lá falaram que ia levar
quase 10 anos; segundo eles falaram; mas esses homens são loucos; diz a
Bíblia, não conhece[m] nada; então, eles disseram que levava de 7 a 10
anos pra essas águas ser[em] renovadas; para não ter mais nenhum
perigo; e assustou os pescador[es]. Os pescadores se assustaram! Nós
vivemos disso. A família, principalmente pessoas que trabalha[m] com
pescaria, são famílias grandes, não são famílias pequena[s]. É classe
mesmo sofrida. Só vive disso, só vive de pescaria mesmo; de pescaria do
rio. De mar o! O barco sai, vai pro alto mar. A mancha rompeu por aqui;
foi embora; eles [os pescadores de mar] passa[m] pro lado Sul. Tudo bem.
As águas são clara[s], porque a mancha não atingiu todo o mar. Ela foi
embora por uma determinada reta; e ali ela foi embora; desapareceu. Então
eles têm como ir lá. Agora, e os pescadores de rio, vêm pra onde?
Se, por um lado, os pescadores de águas salgadas podiam escapar da
mancha, percorrendo milhas para dentrodo mar, e capturando, portanto, o
pescado
168
, por outro, os consumidores, pouco habituados às classificações dos
peixes de acordo com as águas, informados da contaminação e temerosos dos
males do consumo, alardeados na imprensa pelos especialistas, preferiram,
durante quase todo o ano de 2003, as carnes bovinas, ovinas, suínas e de frango.
A mudança nos hábitos alimentares da população fluminense, imposta pelo
desastre, promoveu um período de escassez no que tange à renda dos
gargauenses e uma conseqüente instabilidade econômica para as pessoas
ligadas às atividades de pesca, como, os atravessadores, produtores de gelo e
peixeiros.
O ponto de intersecção entre o
genre de vie
tradicional dos pescadores de
Gargaú e os elementos característicos do modo de vida moderno revelou-se,
exatamente, no momento de ruptura da confiança dos consumidores nos
pescadores e peixeiros, quando então preferiram acreditar nos sistemas
abstratoscriados por
especialistas
169
(biólogos, ecologistas, ambientalistas,
químicos etc) que, no episódio do desastre, (in)formaram a opinião pública acerca
das conseqüências do consumo de peixe.
Ora, o monitoramento da qualidade da água e dos peixes coube a esses
especialistas, que, munidos da autoridade que lhes é atribuída, estabeleciam os
riscos. E, com o respaldo de testes e laudos periciais, produzidos em laboratório,
as autoridades executivas e jurídicas tomavam suas decisões, e os veículos de
comunicação lhes davam ampla divulgação. Assim, parâmetros aceitáveisde
potabilidade da água e descontaminação dos peixes foram incorporados pelo
senso comum como verdades indiscutíveis. O sistema abstratodos especialistas
e de suas instituições (universidades, Ministério da Saúde, F
EEMA
, C
EDAE
, I
BAMA
etc.) determinou os limitesda confiança da população, no caso Cataguazes.
168
Na verdade, a portaria do I
BAMA
, que proibia a pesca nos rios Pomba e Paraíba do Sul, foi
estendida aos pescadores de água salgada entre Farol de São Tomé, em Campos dos
Goytacazes, e Marataízes, no Espírito Santo. A medida foi tomada em caráter preventivo, segundo
o presidente do I
BAMA
, pela falta de informações acerca da contaminação dos peixes no mar (Cf. O
Globo, 09/04/03).
169
Cf. G
IDDENS
, 1997.
Um especialista é qualquer indivíduo que pode utilizar com sucesso
habilidades específicas ou tipos de conhecimento que o leigo não possui.
Especialista e leigo têm de ser entendido como termos contextualmente
relativos. Há muitos tipos de especializações, e o que conta em qualquer
situação em que o especialista e o leigo se confrontam é um desequilíbrio
nas habilidades ou na informação que para um determinado campo de
ação torna alguém uma autoridade em relação ao outro (G
IDDENS
,
1997:105).
A confiança nos pescadores e nos peixeiros estava, pois, definitivamente,
abalada diante desta instituição tão moderna quanto sagradaque é a Ciência. É
claro que ninguém compra peixes sem analisar a cor de suas guelras, que, de
acordo com o senso comum, sendo vermelho-escuras indicam que o produto está
fresco, caso contrário, revelam que está passado. Este cuidado indica que o
consumidor não tem fé (no sentido de uma confiança antecipada) no pescador ou
no vendedor de peixe. Quem compra tem, antes, seus métodos próprios de
perícia. Mas, em contrapartida, poder-se-ia dizer que, na modernidade, as
relações (inclusive as de mercado) admitem a confiança como crédito, isto é, a
confiança que assume o risco avaliado em relação ao futuro. Portanto, diante da
afirmação – Pode levar freguesa! O peixe tá fresquinho; foi pescado hoje cedo!
não deixamos de perscrutar o produto, embora acreditemos na procedência
garantida pelo vendedor.
Frente a determinados documentos científicos, no entanto, diante dos quais
nos convertemos em leigos, preferimos tomá-los como verdade formular
170
. Por
isso, mesmo os pescadores ficaram temerosos quanto ao consumo do peixe,
embora alguns tenham se alimentado dele. A menção ao câncer (em diversos
enunciados) revela o grau de incorporação do discurso dos
experts
.
De uma maneira típica ideal, poderia ser dito que todas as formas de
conhecimento local, sob a regra da especialização tornam-se
recombinações locais de conhecimento derivado de outros lugares.
Obviamente, na prática as coisas são mais complicadas, em razão da
170
Cf. G
IDDENS
, 1997.
importância continuada dos hábitos, costumes ou tradições locais (G
IDDENS
,
1997:105).
O abalo sofrido pela credibilidade do produto foi, portanto, segundo os
pescadores de Gargaú, o prejuízo de maior monta causado pelo desastre da
Cataguazes. A recusa do consumo de peixe pela população do Norte-fluminense
fez com que os gargauenses passassem por momentos de grande dificuldade
econômica, principalmente, ao longo do ano de 2003. Assim, seu
genre de vie
tradicional relaciona-se mais com os saberes, técnicas e práticas relativas ao
universo natural e à articulação com seus ritmos, do que com alguma
impermeabilidade ou isolamento em relação às instituições modernas,
amplamente permeadas por sistemas abstratosque, ao mesmo tempo em que
tentam controlar o risco, contribuem para produzi-lo.
De fato, a falta de confiança dos consumidores que, guiados pelos laudos
da
expertise
, preferiram mudar seus hábitos alimentares, revelou o quanto a
mercadoria o pescado produzida por aquela população dita tradicional insere-
se no contexto das relações modernas, pois, se a moral de vender o peixefoi
abalada, como afirmou Vanderlei, a relação ou depennciado mercado entre os
gargauenses o é parcial, do modo como acredita Diegues, mas, sem dúvida, o
ponto exato em que os pescadores se sentiram ofendidos.
A ofensa, portanto, não resultou apenas da passagem das águas, isto é,
da manchalançada no rio em decorrência do desastre, mas foi, sobretudo,
proveniente dos consumidores, que recusaram o peixe pelo descrédito no produto.
Por isso, ofender significa, também, ferir a suscetibilidade ou os sentimentosde
alguém. Neste caso, foi a falta de confiança na salubridade do pescado que tornou
os pescadores suscetíveis às necessidadespassadas durante e muito tempo
após o desastre.
Os peritos, embora tenham advertido a população para que não
consumisse o pescado, realizaram mais testes na água que nos peixes
171
e, nos
171
Pelo menos na imprensa, laudos sobre a qualidade das águas aparecem com maior destaque.
Em relação ao pescado aparecem recomendações para que a população o o consuma como
medida preventiva, embora nenhum resultado de testes laboratoriais seja encontrado nos jornais
pesquisados.
veículos de comunicação, a interdição alimentar figurava como a prevenção de
uma epidemia. Mas, depois que os 90 dias de proibição da pesca foram
cumpridos e que a normalidade retomou a vida social do Norte-Fluminense, os
mesmos peritos e veículos de comunicação não vieram a público notificar à
população sobre as condições do pescado da região, como afirma Nilson: Até
hoje a gente o sabe se liberou. Engraçado é isso!. Por isso, a confiança nos
pescadores e peixeiros ficou amplamente abalada ou, na expressão dos
fluminenses, ofendida.
Assim, estratégias de convencimento dos consumidores, tal como
acionadas pelos peixeiros e pescadores, não obtiveram sucesso. Como
acontecera em 1982, as bancas de peixe do Mercado Municipal de Campos dos
Goytacazes permaneceram às moscas, apesar da realização da moqueca
públicae da divulgação de que o peixe era proveniente de outras regiões não
poluídas. Os gargauenses, que fizeram questão de exibir suas peixadas e
caranguejadas aos turistas após o período de interdição da pesca, inclusive
consumindo-as na presença destes, também não conseguiram vender seu
produto. A Semana Santa, considerada o nataldos pescadores e peixeiros, foi,
em 2003, um grande fiasco em matéria de vendas
172
. Aquele ano foi, neste
sentido, marcado por prejuízose fracassos. As conseqüências do desastre
perduram ainda na atualidade, seja pela diminuição do peixe, nos rios e no mar,
seja pela desconfiança persistente dos consumidores.
Em todas as minhas conversas com os pescadores de Gargaú, não
encontrei definição mais apurada da tragédia da Cataguazes de Papel do que
aquela formulada por Vanderlei, quando afirma que o desastre:
[...] tirou a liberdade do pescador de ter sua liberdade de pesca, sua
liberdade de convivência melhor, no dia-a-dia; a sua liberdade de vender o
peixe; de comercializar o peixe. A liberdade de viver melhor. Que tudo isso
[o desastre] prejudica direto e tira a liberdade da pessoa. Não ter como
você exercer sua função como você exercia antes. Tira a liberdade. E a
gente olha aquelas coisa[s] tão bela[s] que antes [es]tava[m]; e você olhar
172
Alguns peixeiros do Mercado Municipal têm dívidas da ordem de R$ 10 mil até os dias atuais
em função do desastre.
do jeito que você pegou no dia-dia; você não ter liberdade de pegar um
peixe pra você chegar, logo vender; você não ter liberdade de comer aquele
peixe; comer com medo. Você não ter a liberdade de às vezes ouvir uma
pessoa dizer assim: pôxa! Eu comia peixe tão bem! Agora eu não posso
comer mais. E, com tudo isso, prejudica.
Essa liberdadede que fala Vanderlei, refere-se ao direito inextricável de
todo cidadão de desfrutar do ambiente que o circunda. Refere-se, também, ao
direito de viver plenamente um
genre de vie
que, mesmo em descompasso com o
(os)
genre
(s)
de vie
moderno(s), por excelência, canônicos, não pode ser
considerado menos conspícuo quando da encenação de um drama social.
Se um dos objetivos deste trabalho é contribuir para a familiarização de
perspectivas locais (nativas) quanto à tragédia da Cataguazes de Papel na arena
pública, entendendo-se arena pública como [...] arena argumentativa, onde os
partidos políticos, as mídias, os grupos organizados e o poder executivo
participam de um permanente processo de debate” (F
UKS
, 1999:29), o ponto de
vista dos pescadores de Gargaú – a expressão de suas ofensascomo
uma
experiência – permite-nos alcançar um dos objetivos da Antropologia: a
construção da idéia de humanidade plasmada pelas diferenças que nos tornam
ora exóticos ora familiares uns em relação aos outros.
Mas, é exatamente esta alteridade dos pescadores de Gargaú, modelada
pelo
genre de vie
tradicional, que está sendo ameaçada pela sua posição de
desigualdade ambiental frente a desastres ambientais da magnitude do ocorrido
em 2003. Privados de seu meio de trabalho, ficaram sujeitos a políticas públicas
distributivas que, ao invés de aplacarem o drama, geraram outros conflitos. Este é
o tema a seguir.
IV.3. A mitigação das ofensas
A pergunta dar o peixe ou ensinar a pescar?, popularizada pelo senso
comum, quando se discutem políticas públicas, isto é, políticas implementadas
pelo Estado, costuma alimentar debates acirrados em diversas situações sociais.
Provavelmente, porque o peixe e a vara de pesca são alegorias bastante
ilustrativas das possibilidades de ação do poder público no contexto social, seja
pelas vias do assistencialismo, seja pela implementação de projetos de
crescimento de potencial econômico, educacional, político, cultural, ambiental etc.
Independente dos mecanismos escolhidos pelo Estado, toda política social tem
por finalidade intervir no hiato derivado das desigualdades, alocando e distribuindo
valores em duas situações principais: quando os indivíduos perdem a capacidade
de obter renda suficiente para a manutenção de suas necessidades ou quando os
indivíduos perdem a capacidade de obter renda suficiente em situações
transitórias
173
.
Assim, coube ao Estado (leia-se às esferas municipal, estadual e federal)
empregar políticas que compensassem os prejuízos sofridos pelos pescadores na
situação do desastre ambiental provocado pela Cataguazes de Papel. Durante o
período em que os pescadores ficaram proibidos de pescar, tanto pelas condições
de poluição do rio e do mar, quanto pela portaria nº 16 do I
BAMA
, foi implementada
pelo poder público uma política de caráter distributivo: a entrega de sacolõesde
alimentos. Como na maioria das políticas assistenciais desenvolvidas no Brasil, a
ação derivou no desempenho de uma das gramáticas sociais brasileiras
174
: o
clientelismo.
Assim que a pesca foi interditada nas regiões atingidas pela mancha,
iniciou-se uma operação de cadastramento dos pescadores visando o
recenseamento dos mesmos, para posterior pagamento do seguro-
desemprego
175
. O cadastro, no entanto, foi utilizado antes para a distribuição de
sacolõesdo que para o pagamento do benefício, pois, seu recebimento ficou
173
Cf. A
BRANCHES
, 1987.
174
Cf. N
UNES
, 1997.
175
Como veiculou
O Globo
: O governo federal calcula que cerca de dois mil pescadores de Minas
e do Rio foram afetados pelo desastre ambiental nos rios Pomba e Paraíba do Sul, atingidos por
substâncias tóxicas lançadas nas águas pela indústria de papel Cataguazes. O levantamento no
estado do Rio já foi concluído. São 950 pescadores atingidos e que vão receber um salário-mínimo
por mês, a título do seguro-desemprego, pelo prazo de 90 dias. Esse benefício foi criado ontem por
uma portaria do I
BAMA
como compensação emergencial para os pescadores artesanais que
sobrevivem dessa atividade na região atingida” (05/04/03).
restrito aos que, há três ou mais anos, tinham se incorporado ao órgão
representativo da classe as colônias de pesca sob a alegação do Estado de
que estes eram, de fato, os verdadeirospescadores artesanais. Aqueles que não
estavam, devidamente, institucionalizados, não foram, conseqüentemente,
reconhecidos pelo ofício que exerciam, sendo, pois, privados do ressarcimento
que lhes cabia. A estes e às suas famílias foram destinadas cestas básicas que,
de acordo com o imperativo da dádiva (o estabelecimento de uma relação),
tornaram-se os objetos da gramática relacional do clientelismo.
O clientelismo, por sua vez, compreende, por evocação a origem da prática
na República romana, um mecanismo de tutelagem e dependência política
que envolve a distribuição adscritiva, fragmentária e individualizada, pelos
políticos, entre a massa de seus eleitores e aderentes, e em troca do voto
ou do apoio político, de favores e benefícios extraídos do poder público
(T
AVARES
, 1998:167).
A partir de recursos concedidos pela União e pelo governo estadual, a
prefeitura de São Francisco do Itabapoana distribuiu aos pescadores os sacolões
miudinhos, que não deram pra nada, num episódio que transformou o desastre
ambiental num palco da política local. Se, no paradigma da dádiva, dar implica em
retribuir, a entrega das cestas básicas, automaticamente, revelou-se como um
instrumento de alianças e clivagens políticas, através da transformação dos
gargauenses em possíveis clientes
176
. Assim, os pescadores tiraram fotos com o
prefeito, ouviram seu discurso e receberam santinhosno momento de entrega
dos sacolões.
De fato, a política de caráter assistencial operada durante o desastre abriu
fendas na formação dos grupos, as quais, no palco político local, acirraram a crise.
Enquanto alguns receberam as cestas, outros ficaram de fora da ajuda. Segundo
Nilson:
176
De fato, como mostra Mary Douglas, a diva gratuita o existe realmente – ou então de
maneira assintótica à associalidade. Pois a diva serve, antes de mais nada, para estabelecer
relações” (G
ODBOUT
, 1999:16). Por isso, ela pode ser, tamm, um veneno (
gift
).
E botaram [pra] reunir os pescador[es] todinho. Ficou a gente no barracão.
De manhã cedo até a noite. Dizendo que ia arrumar negócio de sacolão,
de cheque. Não arrumou nada. Chegou nada.
Sem dúvida, um drama social pode revelar muitas coisas à medida que
envolve diferentes grupos e indivíduos. Dar o peixee rece-lo significou o
desencadeamento de conflitos generalizados a partir de contendas individuais.
Uns se tornaram clientes da política local, outros a criticaram e, outros ainda, a
exemplo do depoimento abaixo, feito por um pescador, responsabilizaram a
colônia pela atitude do Estado ao não contemplar a todos com o benefício do
seguro-desemprego:
Foi difícil. Foi muito difícil. Porque, como eu disse a você, nós não tivemos
crédito. Não tivemos ajuda praticamente de ninguém. Nós não
conseguimos obter ajuda. Porque, deu um período até de dar um salário.
Mas o é todo pescador que apanhou. Então aqueles que não puderam
[receber o benefício] passaram aperto. 10% só que veio [receberam]. Só
quem tava certinho [com a documentação da colônia]. Até pra mim mesmo;
que eu tenho vinte e poucos anos de caderneta; trabalho de mar; eu não
recebi. Porque selecionaram pessoas. A própria colônia. A colônia
selecionou.
A atuação do Estado, no desastre da Cataguazes de Papel, em relação aos
pescadores revelou, neste sentido, a falta de eficácia do poder público
177
, quando
optou, exclusivamente, por uma política distributiva, a qual contribuiu para a
eclosão de novos conflitos. Não que ações assistenciais não sejam válidas e
importantes, em situações emergenciais, mas, quando abrem caminhos para
relações clientelistas e não vêm combinadas com outras políticas, tendem a não
alcançar as metas esperadas.
177
Entendendo-se por eficácia a [...] relação entre os objetivos e instrumentos explícitos de um
dado programa e seus resultados efetivos” (A
RRETCHE
, 1998:34).
Poder-se-ia, também, estender esta crítica ao poder blico, quanto à sua
ineficiência
178
na liberação da água, as o desastre, pois, o havendo um
sistema alternativo de abastecimento, os representantes das diversas agências
estatais, baseados em laudos produzidos, em sua maioria, por laboratórios dos
seus próprios órgãos blicos, afiançaram a potabilidade das águas, para acelerar
o retorno à normalidade. Como essas análise fossem questionadas por setores da
sociedade organizada, tal atitude dos governantes acabou por inaugurar uma nova
crise.
Esta breve análise da atuação do Estado, tanto em relação às políticas
empregadas em favor dos pescadores, quanto às ações desempenhadas em favor
da liberação da água, vale para os dois desastres ocorridos, respectivamente, em
1982 e em 2003. Mas, diante de uma experiência prévia e da inserção das
questões ambientais nas agendas públicas, principalmente com a lei de crimes
ambientais, o desastre da Cataguazes de Papel revelou, ainda, outras deficiências
do poder público. Entre elas:
i. a inexistência de um sistema nacional de emergências ambientais, com
equipes preparadas e disponíveis para imediata atuação em situações de
tragédia;
ii. a falta de um sistema de informação interestadual sobre potenciais riscos
ambientais (o estado do Rio de Janeiro sequer tinha conhecimento da
ameaça potencial que representava a barragem da Cataguazes de Papel);
iii. a ausência de mecanismos de auditoria ambiental obrigatória, financiados
pelas próprias indústrias potencialmente poluidoras e realizadas por
178
Para compreender o conceito de ineficiência aqui empregado é necessário defini-lo pelo seu
antônimo: a eficiência consiste no entendimento da relação entre o esforço empregado na
implementação de uma dada política e os resultados obtidos, ou seja, visa a analisar a
racionalização dos recursos empregados na mesma, suas interfaces com outras e, de fato, o
alcance dos resultados que promoveu. a análise da eficiência é fundamental no processo
democrático, pois, qualifica ou não o Estado e suas instituições no que tange ao desperdício de
recursos, corrupção ou incapacidade governamental (Cf. A
RRETCHE
, 1999:35).
instituições independentes do Estado (se uma auditoria tivesse sido
realizada, descobrir-se-ia a licença vencida da Cataguazes e o risco
potencial do estouro da barragem).
Estas deficiências do poder público permitem que indústrias nacionais e
estrangeiras continuem a utilizar os meios e recursos naturais brasileiros como
depósitos dos resíduos resultantes do processo de produção e ratificam uma
política ambiental (ou a ausência dela) que permite aos estados e municípios
concederem licenças e incentivos fiscais, em favor de um desenvolvimentoque, a
médio e longo prazo, promove a desregulamentação social e ambiental,
colocando, tanto as populações das periferias urbanas, quanto as populações
tradicionais, em evidente desigualdade na partilha dos riscos.
Assim, se para a população do Norte-Fluminense a poluição das águas do
Paraíba do Sul, e sua conseqüente interdição, foi o mote das dificuldades
daqueles dias, dos conflitos, dos temores, enfim, do próprio drama, para os
pescadores, o problema fundamental derivado do desastre foi o fato de se verem
privados do seu meio de trabalho, fato que os tornou, sem dúvida, o grupo social
mais vulnerável e mais prejudicado nesta experiência negativa do extraordinário.
Por se encontrar a pesca artesanal em Gargaú em plena decadência,
dados os problemas ambientais e o próprio exercício predatório, muitos
pescadores afirmam preferir trabalhar em indústrias a persistir numa atividade
que, a cada dia, traz menos retorno material. Seu modo de vida tradicional, neste
sentido, começa a receber os respingos de uma modernidade que o consegue
garantir um horizonte mínimo de sustentabilidade, ou seja, do uso dos recursos
naturais no presente sem o comprometimento de seu uso pelas gerações
futuras
179
, de uma maneira universalizada.
Em toda cultura tradicional, poderíamos dizer, e na sociedade industrial até
o início da presente época, os seres humanos se inquietaram com os riscos
provenientes da natureza externa de más colheitas, enchentes, pragas ou
179
Cf. R
EDCLIFT
, 1999.
fome. A certa altura, porém muito recentemente em termos históricos
passamos a nos inquietar menos com que a natureza pode fazer conosco,
e mais com o que s fizemos com a natureza. Isso assinala a transição do
predomínio do risco externo para o do risco fabricado (G
IDDENS
,2000:37)
Mas esta mesma sociedade que parece não temer a natureza, exatamente
por pretender controlá-la, permite que determinadas populações se inquietem com
o risco imprevisível de ter seu ambiente natural poluído e tornado inacessível.
Certa vez Chamegodesabafou: Nós aqui; porque o Paraíba termina aqui, o
Paraíba termina aqui, sabe? Nós aqui, tudo que vier de ruim termina aqui pra nós.
Nós que recebemos o de ruim. A inquietação das populações tradicionais,
portanto, refere-se menos ao temor dos ritmos naturais que, aliás, são por elas
conhecidos, mas, sobretudo, ao assombro de tragédias capazes de consolidar e
aprofundar desigualdades ambientais e sociais.
A experiência dramática do desastre, além de abalar os pescadores,
reduzidos ao ócio forçado, passando necessidade, sofrendo a fome, a falta de
confiança dos consumidores e as políticas assistenciais clientelistas, revelou, ao
longo do desenrolar histórico dos acontecimentos, não apenas os conflitos, as
clivagens e os mecanismos de reforma intentados, mas, sobretudo, a flagrante
inabilidade do poder blico para lidar com tragédias ambientais.
Mitigar os prejuízos sofridos pelos pescadores de Gargaú significou
distribuir sacolões: medida necessária de um ponto de vista emergencial,
doravante, pífia em longo prazo. Pois, a pesca não mais anima. Os peixes
sumiram, escassearam. E, mais importante que isso, o descrédito dos
consumidores no pescado da região ainda é um estorvo nas negociações. A
entrega dos sacolões, portanto, serviu apenas como mitigação das ofensas
quando, tendo em vista a vulnerabilidade social e ambiental daquela população e
de tantas outras, sejam tradicionais, sejam ribeirinhas, o poder público deveria
desempenhar políticas ambientais que regulassem as atividades industriais e
suprimissem a poluição. Pois se estas indústrias produzem bens (dádivas), são
elas também responsáveis pela produção de venenos, verdadeiros presentes de
grego, principalmente, quando são dadosa populações em condições de
desigualdade social.
V. Dramas, ofensase venenos: notas finais para uma Antropologia Potica
Pollution, then, is identified with death just
as purity is identified with life.
A. M. Hocart
A esta altura, uma pergunta deve ser feita: afinal, o que aconteceu com a
barragem rompida da Cataguazes de Papel? A resposta é simples: foi recuperada
pela própria indústria como um dos requisitos impostos pelo
Termo de
Ajustamento de Conduta
a que teve de se submeter depois do desastre. Mas,
evidentemente, há outras questões aí implícitas. Pois, se a barragem ainda existe,
isto significa que a sociedade está exposta ao perigo de sua ruptura, portanto, à
eclosão do drama. E, se outras barragens existem com igual potencial de ameaça
ao meio, isto indica que a poluição ambiental, se não é necessária no processo
produtivo, pelo menos, é algo contingente na relação do ser humano com a
natureza em plena modernidade.
Não cabe aqui uma concepção purista e, mesmo, ingênua, de que na
interação de sociedades, localizadas temporalmente fora da modernidade, com o
ambiente não havia poluição. Mas, isto sim, a idéia de que a modernidade gera
tanto
gifts
(dádivas), isto é, os bens de consumo, por exemplo, quanto
gifts
(venenos) de uma maneira infinitamente superior a que podiam produzir as
sociedades de outros tempos
180
. É esta, exatamente, a idéia de Giddens (2000)
sobre o risco fabricado.
Tampouco cabe aqui discutir se há alternativas de produção limpa,
assunto de que boa parte dos cientistas ligados à tecnologia têm se ocupado. Mas
atentar para a situação atual tal como ela se apresenta à realidade: praticamente
não há geração de bens ou de energia que não provoque danos ao ambiente.
180
O conceito de sociedade de risco aponta nesta direção em que [...] o relacionamento da
sociedade industrial moderna com os recursos da natureza e da cultura, sobre cuja existência ela é
construída, mas que estão sendo dissipados no surgimento de uma modernização amplamente
estabelecida(B
ECK
: 1997:17).
Se não há produção sem poluição, no entanto, alguns mecanismos são
criados de modo a indicar que, pelo menos quanto ao consumo, o produto não
será transmutado de dádivaem veneno. As normas de produção, as licenças e
os selos de qualidade fazem parte deste artifício chamado confiançaque, no
mais, tenta garantir a reciprocidade positiva das relações. Pois, apenas quando
acreditamos na garantia e na segurança de um determinado bem é que o
consumimos. Confiamos, portanto, que alguém vigia por nós. Este é o caso, por
exemplo, das latinhas de bebida. Confiamos que elas estão salvaguardadas (nos
depósitos) da contaminação. Mas, uma vez que alguém é vítima da leptospirose, a
reciprocidade é rompida e passamos a desconfiar. O exemplo parece simples,
mas se retomarmos os casos de poluição do rio Paraíba do Sul, veremos o quanto
ele se encaixa, menos como metonímia do que como paralelo.
De fato, confiamos que a água das nossas torneiras é potável, pois
acreditamos que foi analisada, e atendeu aos parâmetros exigidos, no caso, às
normas estabelecidas por agências públicas qualificadas. Quando o Paraíba do
Sul foi poluído, ocorreu, então, uma ruptura dos laços de confiança, isto é, a
potabilidade do recurso caiu em descrédito. Daí os dramas sociais de 1982 e
2003. Como, no entanto, uma regeneração da normalidade cotidiana foi surgindo
a partir dos ritos reformadores do banho, no primeiro, e da prisão, no segundo
daqueles episódios, a confiança na qualidade da água foi, aos poucos, se
restabelecendo até que todos passassem a consumi-la novamente.
É claro que este restabelecimento do crédito não foi algo automático. A
manifestação popular, na Praça São Salvador, em 1982, e a ação judicial
impetrada pela O
NG
C
FCN
, em 2003, contra a retomada do abastecimento, foram
momentos do drama em que o conflito tendeu a recrudescer. Do mesmo modo, o
enorme consumo de água mineral, verificado a partir de 2003, tenderia a sugerir
que a desconfiança com relação à água das torneiras permanece. Mas, por que,
então, tomamos banho, escovamos dentes, em casa, e bebemos refrescos, na
rua? Por que acreditamos que aquela água não nos fará mal? Talvez porque, de
algum modo, se tenha restabelecido a crença no padrão técnico utilizado para a
análise do recurso, e, por implicação, com quem o estabelece e atesta: a
expertise
.
Assim, confiamos que os venenosproduzidos pelas indústrias o nos
serão servidos como bensporque são a todo instante monitorados por quem de
direito e competência – os técnicos especialistas e/ou a agência pública. Sobre
esta base assenta a reciprocidade das relações modernas ou, como afirma
Giddens, em uma multiplicidade de sistemas abstratos, a confiança é uma parte
necessária da vida cotidiana da atualidade, quer isto seja ou não conscientemente
reconhecido pelos indivíduos em questão” (1997:111).
Mas, se repentinamente os bens oferecidos ao consumo deixam de
corresponder aos padrões esperados, ademais explicitamente prometidos, os
laços de confiança sofrem uma ruptura, igualmente súbita e radical. Quando isto
sucede o cerio para o drama está pronto.
É neste cenário em que a experiência do extraordinário surge e, junto dela,
os conflitos tomam seu lugar em sucessivas crises, que podemos nos remeter a
diferentes atores, ou, grupos-astro, envolvidos nas teias do drama. E neste ponto
é que se pode falar de uma desigualdade ambiental ou maior vulnerabilidade ao
risco com bastante propriedade. Pois, enquanto o desabastecimento de água
pode ser remediado durante os episódios de desastre através da perfuração de
poços e uso de carros-pipa com água captada em outras fontes, a pesca foi
absolutamente interrompida. Os peixes escassearame, pior ainda, o moral’ dos
pescadores e seu crédito’ junto aos consumidores cessaram. Como um grupo-
astro no drama, os pescadores sofreram duplamente as ofensasda manchaque
os privou do trabalho e as ofensasdo mercado que os privou da confiança.
De fato, enquanto a água foi incessantemente testada, analisada e
monitorada, sobre o pescado caiu simplesmente um interdito alimentar,
estabelecido pelos agentes blicos, e a pesca, ela mesma, foi também
interditada. Não na imprensa qualquer registro relativo a análises do pescado
local, nem durante, nem após o desastre da Cataguazes de Papel. Assim, mesmo
depois da retomada do abastecimento, a desconfiança no pescado perdurou,
baseada na simples autoridade desses especialistas.
Não afirmo, com isto, que o pescado da região não tenha sido efetivamente
contaminado, mesmo porque a grande mortandade de peixe torna óbvios os
efeitos da poluição no Paraíba do Sul sobre ele. O que, no entanto, chama a
atenção foi a maneira de atuar do poder público em relação a este fato,
especificamente, nos seguintes pontos:
i. não ter realizado testes no pescado da região ou, caso tenham sido
realizados, não ter divulgado publicamente esses testes, e ter se
restringido apenas a interditar o consumo e a pesca;
ii. ter operado uma política assistencialista de distribuição de sacolõesaos
pescadores que, no mais, apenas serviu para mitigar precariamente os
prejuízos sofridos com o acidente;
iii. não ter vindo a público depois do desastre da Cataguazes de Papel para
esclarecer as condições do pescado local, de tal modo que a interdição
alimentar tenha perdurado, nos bitos da população, muito depois da
liberação da água potável.
Neste sentido, a desconfiança dos consumidores em relação ao pescado
rompeu com o ciclo de reciprocidade vigente, até então, nos mercados locais.
Nem mesmo a moqueca públicafeita pelos peixeiros do Mercado Municipal de
Campos na tentativa de resgatar a credibilidade do seu produto e, com isso, a
confiança neles próprios e nos pescadores, obteve sucesso. Tudo isto revela, sem
dúvida, a vulnerabilidade dos pescadores quando da partilha dos riscos.
As ofensasque o desastre da Cataguazes de Papel fez aos pescadores de
Gargaú ilustram bem o que uma tragédia ambiental pode causar a uma população
cujo
genre de vie
é reconhecidamente tradicional. O meio no qual trabalham lhes
foi temporariamente interditado pela rompida das águase, depois, pela portaria
do I
BAMA
; a confiança dos consumidores no seu pescado, mesmo aquele
procedente de léguas mar adentro, lhes foi cancelada por especialistas, em nome
de uma possível epidemiae, por fim, as políticas assistenciais implementadas
pelo poder público, para compensar seus prejuízos, foram constrangedoras
porque se configuraram, ao fim e ao cabo, como estratégias clientelistas a serviço
das disputas políticas locais.
E aqui parece oportuno evocar a figura do muxuangoconstruída por
Alberto Ribeiro Lamego. Estas ofensasnão soam como a sanha do meio hostil
contra o colonizador ariano, descrita na gênese do povoamento das restingas
fluminenses? Pois, se a paisagem entorpecia o muxuango, convertendo-o num
vencido, retardatárioe envergonhadopela verminose, o paludismoe a
anquilostomíase, agora não se assiste a uma nova desventura do piraquara
ofendidopor seu próprio meio transformado em um paraíso de poluição?
Na formulação de Lamego, a paisagem restringia a agência humana, não
deixando ao muxuangooutra opção seo aquela de definhar, impassível’, sobre
os areais. É esta concepção, certamente, um discurso sobre a relação entre ser
humano e natureza premido por exageros próprios da perspectiva do darwinismo
social, exótica e suspeita como história das gentes do litoral fluminense. Não se
trata, efetivamente, de retomar as considerações desse autor, tampouco de
concordar ou de dar a elas uma nova roupagem científica. Não se trata, sequer,
de tipificar novamente os gargauenses como muxuangose de os dizer
derrotados pela inadequação do meio. Mas, notadamente, de dizer que se antes a
paisagem parecia adversa (mesmo que esta assertiva esteja marcada pela
ideologia de uma época), agora é a água que se torna um elemento hostil,
transformada em veneno, exatamente como no desabafo já citado de Chamego:
Nós aqui, porque o Paraíba termina aqui [...] tudo que vier de ruim termina aqui
pra nós. Nós que recebemos o de ruim.
Pois, a saga dos gargauenses e, sem dúvida quanto à indução, dos
pescadores de outros assentamentos da bacia do Paraíba do Sul é a de viver
nestes restinhos, como afirmou o pescador Aprígio. De viver sem [...] a liberdade
do pescador de ter sua liberdade de pesca, sua liberdade de convivência melhor,
no dia-a-dia; a sua liberdade de vender o peixe; de comercializar o peixe, como
expressou Vanderlei, pescador de Gargaú. De viver, sobretudo, com o risco cada
vez mais iminente de ter seu meio de trabalho interditado em virtude da poluição
ou modificado por ela. De viver, enfim, não a libertação de um meio opressivo e
insalubre, graças às intervenções da tecnologia moderna, mas a ironia de um
novo tipo de inadequação do meio de que depende sua reprodução social, agora,
não mais expostos às febres palustres, mas às águas envenenadas pelas
atividades industriais.
A intenção deste estudo foi a de compreender problemas ambientais à luz
do conceito de drama social, esta unidade processual que, além de ser o
calcanhar de Aquilesda humanidade, nas palavras de Turner, pode nos revelar
experiências extraordirias, contendas decorrentes delas e personagens que,
dentro dos grupos-astro envolvidos na trama, conduzem as ações de rupturas,
crises, reformas, reconciliações ou rompimentos. É todo este cenário montado na
própria sociedade com suas
dramatis personae
, atores da vida social, que
mobíliam e mobilizam as cenas do que é objeto próprio de uma Antropologia
Política: o processo que envolve o conflito, na arena pública, motivado pela luta
por bens ou metas a serem compartilhados ou implementados.
Segundo Turner (1966), no seu livro dedicado à formulação de uma
Antropologia Política, este processo, sempre dramático, ora se expande, ora se
contrai, de acordo com as condições e interesses que compõem o campo do
conflito. Em suas próprias palavras:
Um campo político não funciona como um mecanismo de relógio, com
todas peças encaixadas umas com as outras num ajuste fino. É antes um
campo de tensão, cheio de antagonistas inteligentes e determinados,
individuais e corporativos, motivados pela ambição, altruísmo, interesse
próprio, e pelo desejo do bem público, e que em situações sucessivas são
vinculados uns aos outros pelo interesse próprio, ou pelo idealismo – e
separados ou opostos pelos mesmos motivos (S
WARTZ
, T
URNER
& T
UDEN
,
1966:8)
181
.
181
A political field does not operate like clockwork, with all the pieces meshed together with finely
tooled precision. It is, rather, a field of tension, full of intelligent and determined antagonists, sole
and corporate, who are motivated by ambition, altruism, self-interest, and by desire for the public
good, and who in successive situations are bound to one another through self-interest, or idealism
and separated or opposed through the same motives[Tradução de Arno Vogel].
É o desajuste de interesses acerca do Paraíba do Sul que o torna, sem
dúvida, um recurso capaz de suscitar os mais diversos conflitos em torno de sua
utilização. Indústrias do Sudeste, agências públicas, organizações não-
governamentais, pescadores, enfim, todos têm suas pretensões, ou melhor, suas
metas em relação ao rio, algumas delas necessariamente inconciliáveis. Nesta
arena, o poder de negociação a respeito do uso das águas, sua regulamentação e
fiscalização, certamente não está homogeneamente distribuído. Da mesma forma,
a responsabilidade, em momentos de catástrofe, é alocada de maneira desigual,
dependendo do discurso ideológico em voga e de quem a aloca. Revelar um ponto
de vista nativo, isto é, a perspectiva dos pescadores nas situações dos desastres,
principalmente, o ponto de vista dos gargauenses, quanto à tragédia provocada
pela Cataguazes de Papel, foi, certamente, uma maneira de apresentar esta
desigualdade, não por acaso ao mesmo tempo social e ambiental, que é o fado e
o fardo de tantas populações brasileiras, sejam elas tradicionais, ribeirinhas ou
litorâneas, habitantes deste país tão dadivoso em recursos naturais, sobretudo,
recursos hídricos, quanto envenenador de seus mares, lagos e, recorrentemente,
de seus rios.
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Anexo I
182
S
ERVIÇO
P
ÚBLICO
F
EDERAL
M
INISTÉRIO DO
M
EIO
A
MBIENTE
Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis
IBAMA
Portaria nº16 de 03 de abril de 2003
O P
RESIDENTE DO
I
NSTITUTO
B
RASILEIRO DO
M
EIO
A
MBIENTE E DOS
R
ECURSOS
N
ATURAIS
R
ENOVEIS
IBAMA, nomeado por Decreto de 3 de janeiro de 2003,
publicado no Diário Oficial da União de 06/01/2003, no uso das atribuições que lhe
conferem o art. 24 do Anexo I do Decreto nº4.348, de 27 de dezembro de 2002,
que aprovou a Estrutura Regimental do IBAMA, publicado no D.O.U. da mesma
data; o item VI do art. 95 do Regimento Interno aprovado pela portaria GM/MMA
nº230, de 14 de maio de 2002, republicada no D.O.U. de 21 de junho de 2002 e,
Considerando as disposições do Decreto-lei nº221, de fevereiro de 1967;
Considerando o acidente que causou o vazamento de substâncias
altamente tóxicas nos rios Pomba, a partir dos municípios de Cataguases e
Leopoldina, no Estado de Minas Gerais, e Paraíba do Sul no Estado do Rio de
Janeiro, a partir da confluência com o rio Pomba, até sua foz;
Considerando, ainda, a contaminação e morte da fauna aquática naquela
área, e a necessidade de proteção integral desse ambiente, visando a
recuperação dos estoques da fauna e flora aquáticas;
182
A portaria foi aqui compilada em razão da falta de qualidade de sua impressão. Este documento
foi adquirido via fax enviado pela secretaria do I
BAMA
da cidade de Campos dos Goytacazes em
2003.
Considerando, por fim, que esses recursos contaminados são impróprios
para consumo, podendo comprometer a saúde das populações ribeirinhas;
R
ESOLVE
:
Art. 1º Proibir o exercício da pesca no rio Pomba, a partir dos municípios de
Cataguases e Leopoldina/MG, e no rio Paraíba do Sul/RJ, a partir da confluência
com o rio Pomba, até sua foz, por um período de noventa dias.
Parágrafo único – Durante o período estabelecido neste artigo, serão
realizadas ações de monitoramento das condições ambientais e da situação dos
recursos pesqueiros e, constatada a necessidade, o período de proibição da
pesca poderá ser prorrogado.
Art. 2º Aos infratores da presente Portaria, serão aplicadas as penalidades
previstas na Lei nº9.605, de 12 de fevereiro de 1998 e no Decreto nº3.179, de 21
de setembro de 1999.
Art.3º Esta Portaria entra em vigor na data de sua publicação.
Marcus Luiz Barroso Barros
Presidente
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