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UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PERNAMBUCO
PRÓ-REITORIA ACADÊMICA
PROGRAMA DE MESTRADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
LIDERANÇAS AFRO-RELIGIOSAS:
Estudo sobre a Liderança em Terreiros do Recife
MARIA DA PENHA DE CARVALHO VAZ
RECIFE/2009
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MARIA DA PENHA DE CARVALHO VAZ
LIDERANÇAS AFRO-RELIGIOSAS:
Estudo sobre a Liderança em Terreiros do Recife
Dissertação apresentada como requisito parcial
para a obtenção do título de Mestre em Ciências
da Religião, pela Universidade Católica de
Pernambuco.
Aérea do Conhecimento: Ciências Humanas
Orientadora: Profa. Dra. Zuleica Dantas Pereira
Campos.
RECIFE / 2009
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MARIA DA PENHA DE CARVALHO VAZ
LIDERANÇAS AFRO-RELIGIOSAS:
Estudo sobre a Liderança em Terreiros do Recife
Dissertação aprovada como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre
em Ciências da Religião, pela Universidade Católica de Pernambuco, pela seguinte Banca
Examinadora:
__________________________________________________________
Profa. Dra. Maria do Carmo Tinoco Brandão de Aguiar Machado (UFPE e UPE)
__________________________________________________________
Prof. Dr. Sérgio Sezino Douets Vasconcelos (UNICAP)
_________________________________________________________
Profa. Dra. Zuleica Dantas Pereira Campos (UNICAP)
RECIFE/2009
DEDICATÓRIA
Dedico este trabalho ao meu pai, Cleto Freire de
Carvalho (in memoriam), que, através de suas inúmeras
habilidades, soube proporcionar condições favoráveis
para minha formação acadêmica.
AGRADECIMENTOS
Agradeço a Deus, primeiramente, por ter-me concedido “o dom” da perseverança,
nesses dois anos de pesquisa; e por ter traçado em meu caminho um curso como este.
Aos Orixás, pela permissão em estudá-los; mas, em especial, à Iemanjá, Iançã e
Oxum.
A minha mãe, Anete Reis de Carvalho, que custeou meus estudos.
Aos meus filhos, Ygor Paulus’ e João Guilherme, pela paciência em aturar minha
ausência como mãe e por suportarem tão bem o meu mau humor e minha falta de paciência,
nesses dois anos.
Ao meu irmão, Augusto José, pela minha ausência nas tarefas de cunho comercial,
presentes em nosso dia-a-dia.
A minha orientadora e amiga, Zuleica Dantas Pereira Campos, por tudo que me
proporcionou em termos de conhecimento e também por ter sofrido com meu estresse durante
os dois anos de Mestrado, especialmente nos últimos meses.
Ao professor Sérgio Sezino Douets Vasconcelos, por toda a paciência, além de sua
amizade e companhia durante a pesquisa de campo.
A Maria do Carmo Brandão, por apontar, com tanta delicadeza, os principais
pontos positivos e negativos deste trabalho.
Aos professores Drance Elias, Marcos Roberto Nunes Costa e Gilbraz Aragão pela
disponibilidade, em todos os momentos que necessitei, durante o curso.
Ao Prof. Jorge Cândido, pela ajuda na construção do resumo em língua
estrangeira e pela recepção e consideração que sempre me acolheu.
Ao Prof. Castim pela correção da língua portuguesa.
À grande amiga Silvania Maria Maciel, por ser a responsável intelectual de minha
inserção no curso e por toda a paciência disponibilizada para me ouvir, além de injetar doses
de ânimo para a continuação da pesquisa.
A minha amiga Ana Lisboa, por toda a força, motivação e encorajamento
dispensados, nas horas de pressão.
A Demétrio, pela ajuda alegre e vibrante que me dispensou, em certo momento do
curso.
Ao colega Marconi, pelo empréstimo de livros e pela sua alegria contagiante.
Ao colega Avellar, que sempre disponibilizou seus conhecimentos em informática
e informações de caráter acadêmico.
Ao Babalorixá Carlito e a Yalorixá Mércia, pela amizade e pela confiança que me
dispensaram durante a pesquisa, abrindo as portas de seus terreiros.
Também agradeço, com muito carinho, aos seguintes líderes: Pai Lelé, Pai Irandi,
Mãe Lia, Pai Marcos, Pai Gilmar, Pai Ivon, Pai Raminho, Pai Ivo (Xambá), Manuel do
Nascimento, Mãe Gilva (Jaboatão), Mãe Jane (Tabajara), Maria Helena, Pai Bério, Mãe
Fernanda, Mãe Mana e tantos outros que sempre me acolheram tão bem, quando precisei.
Ao colega João Monteiro, pelos encaminhamentos e apresentações aos adeptos
das religiões de matriz africana.
Ao “povo-do-santo,” por todas as conversas formais e informais a que tive acesso
e participação.
A todas as pessoas e instituições que não foram citadas, mas que ajudaram de uma
forma ou de outra na conclusão deste trabalho.
RESUMO
As lideranças em terreiros de candomblé, tradicionais e centralizadoras,
sobrevivem ao mundo globalizado e tecnológico atual. Através de suas táticas de ação, que
também são refletidas externamente, esses líderes, pais e mães-de-santo, exercem suas
lideranças, buscando a continuidade de seus terreiros e de sua tradição religiosa. Dentro desse
contexto, este trabalho é um estudo comparativo, dentro de uma perspectiva
socioantropológica, tendo como objetivo estudar as lideranças atuais, exercidas por duas
pessoas (um pai-de-santo e uma mãe-de-santo), chefes de terreiros da religião candomblé,
localizados na cidade do Recife, enfatizando as suas habilidades. É uma análise de suas
singularidades e de suas relações, distinguindo e identificando os fatores que possuem, e
entendendo suas práticas e ferramentas utilizadas nas diferentes situações que surgem em suas
casas, diariamente. O conceito trabalhado para essa análise é baseado na teoria de Marcel
Mauss (“dádivas”, “trocas” e “obrigações”). Assim, esses líderes de organizações afro-
brasileiras são considerados agentes eficazes de mudança e distribuidores de axé, além de
formadores de novas lideranças religiosas. Através do “dom” recebido pelas divindades do
mundo sobrenatural e, também, do desenvolvimento de suas habilidades, os líderes das casas-
de-santo traçam suas histórias de lideranças, passando a ser reconhecidos pelas suas
comunidades.
Palavras- chave: religiões afro-brasileiras; cultura; lideranças; habilidades
ABSTRACT
Leaderships in “Candomblé” barnyards as traditional and consequenly centralizing
ones, survive actual globalized and technological world. Through its action tactics that are
also externally reflected, these leaders, father - of - saint (Babalorixás) and mothers - of - saint
(Yalorixás), carry out, perform their leaderships, searching, seeking their barnyards and
religions tradition continuity. Inside this context, this work is a comparative study, within a
socio antropological perspective, aiming at studying the actual leaderships, exerced,
accomplished by two persons (a father – of – saint and a mother – of – saint), Candomblé
religion barnyards chiefs, localized in Recife city, emphasizing their abilities, clevernesses.
This is an analysis regarding to their singularities and their rapports, trying to distinguish and
to identify the factor at their disposal and to understand their practices and their instruments,
used, employed in the different situations that arise in their houses – barnyards – daily. The
concept worked for this analysis is founded, based in Marcel Mauss’ theory (“gifts” – “dons”,
“exchanges” and “obligations” – “donner”, “recevoir” – “retribuer”). Thus, in this manner,
these Afro-brazilian organizations leaders are considered as change efficacions agents and
“axé” distributors, as well as new religions leaderships formers. Through their “don” – “gift”
– received from the supernatural world deities as well as through their abilities development,
the houses – of – saint leaders sketch, delineate their leadership histories, becoming
themselves recognized well known by their communities.
Key words: afro-Brazilian religions; culture; leaderships; abilities.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ................................................................................................................. 9
1 PAPEL E SIGNIFICADO DAS LIDERANÇAS, A PARTIR DA COSMOVISÃO ........... 13
1.1 O mundo do terreiro como organização sagrada ............................................................... 18
1.2 A iniciação formando os futuros líderes ............................................................................ 29
1.3 O sacrifício ................................................................................................................ 38
2 REALIDADES SINGULARES DOS TERREIROS E DE SUAS LIDERANÇAS ............ 45
2.1 Ilê Axé Oxum Opará .........................................................................................................45
2.2 Ilê Asé Osun Kemi ............................................................................................................ 49
2.3 Festas anuais ................................................................................................................ 53
2.4 Iníciação dos Líderes Mércia e Carlito............................................................................... 65
3 HABILIDADES COMO ESTRATÉGIAS DE AÇÃO........................................................ 69
3.1 Habilidades agregando valor às lideranças ........................................................................ 72
3.1.1 Habilidades pessoais de Pai Carlito e Mãe Mércia..........................................................75
3.1.2 Habilidades nas trocas financeiras................................................................................... 78
3.1.3 Habilidade da liderança na satisfação das necessidades e nas relações
com os liderados ............................................................................................................. 84
3.2 Habilidades dos clientes sagrados internos ........................................................................ 88
3.2.1 Habilidades no interior dos terreiros ............................................................................... 89
3.3 Habilidades de líderes e liderados, além dos muros dos terreiros...................................... 92
CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................... 97
REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 103
GLOSSÁRIO.......................................................................................................................... 105
APÊNDICE ........................................................................................................................... 110
ANEXOS................................................................................................................................116
9
INTRODUÇÃO
As religiões afro-brasileiras permeiam nossa história de vida, desde a década de
80. Fomos testemunhas, na época em que frequentávamos a casa de Badia
1
, de como as ações
das pessoas que comandavam casas religiosas de matriz africana iam de encontro ao
aprendido e concebido por nós no curso de Administração.
Sem compreendermos o porquê do poder e da autoridade nas ações dos líderes de
terreiros sobre seus liderados, percebíamos as lideranças dos terreiros como centralizadoras.
Segundo Chiavenato (1999, p. 384), centralização “significa que a autoridade para decidir está
localizada no topo da organização”, ou seja, todas as decisões são tomadas pela cúpula de
uma escala hierárquica contida nos trabalhos exercidos por pessoas.
Nos primórdios da Administração, a centralização nas empresas era tida como
absoluta, isto é, a liderança tinha uma íntima relação com o comando. Mas, com o passar do
tempo as classificações de líderes foram sofrendo muitas revisões, passando pelas lideranças
liberal e democrática (CHIAVENATO, 1977, p. 169-178).
Frente ao raciocínio anterior, começamos a compreender que as casas de matriz
africana possuem lideranças assemelhadas a qualquer instituição, já que funcionam sob regras
preestabelecidas por uma tradição, apresentam cultura organizacional, com objetivos, metas a
serem alcançadas, enfim, tudo funciona e caminha em função de uma missão, que, no caso
dos terreiros afro-brasileiros, é religiosa, sob o comando e a dominação de uma liderança
reconhecida, ou seja, legítima.
A legitimidade de uma ordem pode estar garantida: I. unicamente pela
atitude interna, e neste caso: 1. de modo afetivo: por entrega sentimental; 2.
de modo racional referente a valores: pela crença em sua vigência absoluta,
sendo ela a expressão de valores supremos e obrigatórios (morais, estéticos
ou outros quaisquer); 3. de modo religioso: pela crença de que de sua
observância depende a obtenção de bens de salvação; II. também (ou
somente) pelas expectativas de determinadas conseqüências externas,
portanto: pela situação de interesses, mas: por expectativas de determinado
gênero (WEBER, 1998, p.20-21).
Assim, começamos a entender as casas religiosas de matriz africana como
organização
2
, uma unidade em que as decisões de uma pessoa assumiam um caráter
centralizador. Nasceu em nós o desejo de desvendar as lideranças de terreiros no Recife, já
1
O nome Badia, líder (falecida no início da década de 90) sucessora da Casa das Tias, localizada no Pátio do
Terço no bairro de São José, Recife, continua sendo uma referência da tradição para as pessoas que fazem parte
das religiões de matriz africana em Recife.
2
Chiavenato define “organização” como “uma entidade social composta de pessoas que trabalham juntas e
deliberadamente estruturada em uma divisão de trabalho para atingir um objetivo comum” (1999, p.8).
10
que, na nova concepção, a liderança pode ser aprendida, levando-se em conta o líder como
pessoa e os fatores externos da situação socioeconômica.
Nesse sentido, surgiram em nós várias perguntas que estavam sem resposta, tais
como: se, no mundo globalizado atual, os líderes são pessoas que, acima de tudo, são agentes
de mudança, como se explica o fato de líderes religiosos atuais ainda exercerem suas
administrações tradicionais, centralizadoras e baseadas numa estrutura familiar descendente
de africanos? De que modo é feita a relação dessas pessoas com seus fiéis, ao exercerem suas
lideranças, visto que fazem parte do mundo globalizado e tecnológico atual? Que significado
tem a liderança dos pais / mães-de-santo, para seus seguidores e para eles mesmos, levando-se
em conta a inexistência de uma formação adequada sobre como liderar, tão exigida pelo
sistema econômico de hoje, que os guiem à continuidade de suas administrações? Será que
possuem algum tipo de habilidade para o sucesso de suas lideranças?
Procurando respostas para essas perguntas, nosso tema surgiu, tendo, como
proposta maior, estudar as lideranças exercidas por um pai-de-santo, chamado Carlito, e por
uma mãe-de-santo conhecida como Mãe Mércia, chefes de terreiros de candomblé,
localizados na cidade do Recife, em suas práticas e ações tradicionais de comando.
Determinando metas a serem alcançadas, buscamos compreender o papel e o
significado da liderança religiosa nesses terreiros, a partir da sua cosmovisão; analisar as
trajetórias desses líderes, bem como suas relações com seus subordinados; e distinguir os
fatores que os mesmos possuem, identificando seus hábitos, suas necessidades e suas
habilidades pessoais, obedecendo a uma perspectiva socioantropológica, utilizando, para
tanto, comparações, análises etnográficas e etnológicas.
No primeiro capítulo deste trabalho, explicamos o papel e o significado das
lideranças de matriz africana, baseados na lógica da rede simbólica, ou melhor, na visão de
mundo sob a lógica da tradição africana.
Fundamentadas na cosmovisão abordada pelos autores Bastide, Verger, Santos
Ribeiro e outros, mostramos como os terreiros são organizados sob essa lógica que dita a
formação “ideal”
3
para que uma pessoa possa tornar-se líder. Estudamos também, nesse
capítulo, as cerimônias que fazem parte da iniciação de pessoas que aspiram a uma liderança.
No Capítulo 2, abordamos as singularidades do Ilé Axé Oxum Opará e do Ilê Asé
Osun Kemi, terreiros escolhidos para a pesquisa de campo, descrevendo as características
3
Mostraremos, adiante, que nem sempre esse modelo tradicional, para se tornar um líder de terreiro, é seguido.
11
estruturais observadas em suas edificações, suas festas anuais e também apontamos como
aconteceram as iniciações dos líderes, Pai Carlito e Mãe Mércia.
Os depoimentos orais (gravados, transcritos e editados) do sacerdote e da
sacerdotisa escolhidos foram colhidos em encontros acontecidos com hora marcada em seus
templos religiosos, segundo a vontade dos entrevistados.
Em outros momentos, através de encontros informais em uma loja que
comercializa artigos religiosos no centro do Recife, conversamos com Pai Marcos de
Oxumaré, Pai Gilmar de Ogun, e com Hamilton, filho-de-santo da Yalorixá Mércia. Todas as
falas e fotos que aparecem no corpo do trabalho foram colhidas mediante consentimentos e
disponibilidades dos religiosos.
Utilizando conceitos da Ciência da administração, procuramos, no Capítulo 3,
trabalhar o conceito de habilidade como axé no sentido de “dom” divino ou dádiva, isto é,
como o que Mauss definiu como mana, mas, principalmente, como estratégia de ação.
Apontamos as habilidades pessoais da Yalorixá Mércia, do Babalorixá Carlito,
bem como suas habilidades nas trocas financeiras e como satisfazem suas necessidades, as
dos clientes religiosos internos e as dos clientes religiosos externos. Assim, mostramos nesse
momento que as habilidades agregam valor às lideranças de terreiros e, por isso mesmo, é
fundamental, que sejam percebidas, desenvolvidas e utilizadas como estratégias de ação.
Demonstramos, também, nesse capítulo, as habilidades dos clientes religiosos
internos, desenvolvidas em função das casas que frequentam e, evidentemente, das lideranças
exercidas nelas.
Por fim, ratificamos nosso raciocínio sobre as habilidades, agregando valor às
lideranças, quando indicamos que certos pais / mães-de-santo já conseguem perceber suas
aptidões, desenvolvendo-as e levando-as além dos limites de seus terreiros.
Estudar as habilidades dos líderes de terreiros bem como as dos adeptos em geral,
remete-nos aos sentidos social e religioso de suas ações. Por esse motivo, acreditamos que
este estudo será útil para o reconhecimento dos pais-de-santo ou mães-de-santo, como líderes
religiosos na sociedade atual, observando os resultados da pesquisa, levando em conta a
situação em que exercem suas lideranças.
Também nos remete a um redimensionamento e a uma consideração futura por
parte dos estudantes, dos professores e de todos que se encontram ligados direta ou
indiretamente às Ciências da Religião, das lideranças tradicionais, desempenhadas pelos pais
e mães-de-santo nas casas de matriz africana.
12
Assim, esperamos que esse estudo sirva de base para novas fundamentações
teóricas nos trabalhos acadêmicos, colaborando nas pesquisas de pessoas interessadas e
também nos estudos aprofundados a respeito do tema.
A partir da consideração dos que fazem parte do mundo acadêmico, a sociedade
poderá dar maior importância aos líderes religiosos afro-descendentes e à continuidade de
seus terreiros, gerando um maior respeito e reduzindo o preconceito (ainda existente) frente a
essas religiões.
Também acreditamos que o estudo será útil para uma melhor interpretação das
situações pluralistas, esclarecendo como os terreiros situados no Recife sobrevivem ao
mercado religioso atual.
13
1 PAPEL E SIGNIFICADO DAS LIDERANÇAS, A PARTIR DA COSMOVISÃO
A base deste estudo sobre as lideranças afro-religiosas partindo da perspectiva de
que terreiros de Candomblé
4
são instituições, e como tais, suas lideranças tornam-se
assemelhadas às exercidas em organizações empresariais, não afasta uma análise sob uma
ótica diferente: a da cosmovisão
5
. Dentro da lógica da rede simbólica, ou seja, da cosmovisão
das religiões afro-brasileiras, o papel da liderança exercido por um Babalorixá e/ou Yalorixá
deve ser compreendido, antes de tudo, de forma diferenciada do papel dos líderes nas
organizações empresariais, visto que, nessas últimas, o que é considerado sagrado é o lucro. É
importante essa visão sob a ótica do papel sagrado das lideranças afro-brasileiras, pois é
através dela que daremos o suporte esclarecedor sobre as sacerdotisas e “os sacerdotes da
mais alta hierarquia que possuem o tesouro completo das narrativas divinas” (BASTIDE,
1971, p. 333). Afinal, são as Yalorixás e os Babalorixás, detentores de força e poder
sobrenaturais, advindos de seus orixás, os principais protagonistas dessas religiões.
Os líderes redistribuem e alocam o fortalecimento da força vital dos orixás, o axé
dos terreiros
6
, além de ensinar a sabedoria ancestral que anteriormente lhe foi delegada,
quando da sua “feitura do santo” ou ao processo de iniciação
7
.
Axé é a força vital e dinâmica, recebida dos orixás, que se individualiza em
objetos, animais, pessoas, plantas, etc. Muitos autores já dissertaram acerca do significado do
termo. Santos (2007, p.39), por exemplo, afirma que o axé é a “força que assegura a
existência dinâmica, que permite o acontecer e o devir”.
Bastide (1978, p.69) sugeriu em sua obra, através da fala de B. Maupoil, que o axé
é o “correspondente ioruba da baraka árabe nos países magrebinos, do mana polinésio e
melanésio, da orenda dos iroqueses, do manitu dos algonquinos” e, contextualizou a palavra
axé como: “as fôrças místicas que podem se individualizar em certos objetos, razão por que o
têrmo também serve para designar as preparações místicas colocadas nos fundamentos da
4
Candomblé é uma religião afro-brasileira que compreende várias nações e rituais. É, antes de tudo, uma
religião que cultua a natureza e tudo o que pertence a ela, através de divindades chamadas Orixás. A palavra
Candomblé, segundo Verger, é de origem Bantu (1981, p.31).
5
A cosmovisão, neste contexto, é um termo que denomina a visão de mundo, sob a lógica da tradição africana.
6
Terreiro é o espaço em que se encontram os orixás assentados, ou seja, é a organização institucional religiosa.
É neste local que acontecem os rituais religiosos bem como a iniciação dos novos adeptos. Alguns estudiosos das
religiões afro-brasileiras chamam o terreiro, em suas obras, de ilê Orixá, que quer dizer casa dos orixás. Pode ser
também denominado de roça ou barracão.
7
É o primeiro passo para o aprendizado dos segredos das religiões afro-descendentes. É na iniciação que o abiã
(o futuro sacerdote ou sacerdotisa do Candomblé) aprende os segredos dos rituais e as doutrinas. Compreende
várias etapas, que serão comentadas mais adiante.
14
casa do candomblé, bem como as plantas possuidoras de virtudes terapêuticas, etc.”
(BASTIDE, 1971, p. 556).
Verger explicou que axé é “o poder do ancestral-orixá” (1981, p. 18).
No dicionário da autora Cacciatore, a palavra axé é definida como a
força dinâmica das divindades, poder de realização, vitalidade que se
individualiza em determinados objetos, como plantas, símbolos metálicos,
pedras e outros que constituem segredo e são enterrados sob o poste central do
terreiro, tornando-se a segurança espiritual do mesmo, pois representam todos
os orixás (1988, p.56).
Essa força proveniente dos orixás, manipulada, transmitida e alocada através dos
líderes, é a razão de considerarmos a origem dos papéis de todos os que participam da
realidade de um terreiro de Candomblé, resultando num processo em que hábitos e condutas
são objetivados como instituição.
Berger e Luckman (1985, p. 104) afirmam: “Toda conduta institucionalizada
envolve um certo número de papéis. Assim, os papéis participam do caráter controlador da
institucionalização”. O papel de um líder de terreiro é importante e sobrevive pelo próprio
caráter institucional que controla toda a rede simbólica religiosa (objetivado, interiorizado e
externado por todos os componentes que dela participam).
O papel de líder de terreiro não se resume ao papel de conhecedor e detentor das
estruturas religiosas, visto que alguns sacerdotes e sacerdotisas demonstram uma percepção
maior em relação a seu papel de líder e de gestor institucional. Com aptidão e perspicácia,
constroem marcas em suas lideranças, traçando e ficando reconhecidos por suas trajetórias de
vida: tornam-se, assim, líderes de sucesso, líderes com visibilidade.
É válido observar que há pessoas que, embora não se tenham submetido ao
processo de iniciação, por uma questão de parentesco consanguíneo, por exemplo, conseguem
estabelecer-se como líderes de terreiros, com as mesmas responsabilidades e tendo o
reconhecimento de suas comunidades. São casos de lideranças herdadas pelo grau de
parentesco sagrado e profano
8
.
Lembramos, também, que existem os casos de líderes iniciados somente na
Jurema, religião de origem indígena que agregou elementos afro-religiosos e católicos
9
, e que
são aceitos pela comunidade. A Jurema apresenta rituais, nos quais podem ser
vistos e empregados o Crucifixo, Cristo na posição da crucificação, mas sem
a cruz, Santo Antônio, Santa Bárbara, incenso, velas acesas, persignações,
orações populares como a Magnífica (Magnificat), Ofício-de-Nossa-
8
Esse tema foi trabalhado por Pereira em 1994.
9
Cascudo explicou que: “Negros , indígenas, europeus fundiram-se no Catimbó” (1951, p. 27).
15
Senhora, Fôrças-do-Credo, Santo Amâncio, Santo Sepulcro, Pedra
Cristalina, as invocações rituais a São José para abrir e fechar a ‘mesa’,
iniciando e encerrando a sessão. A chave de aço, virgem de uso em
fechadura, é empregadíssima (CASCUDO, 1951, p.31).
Brandão e Rios explicaram em O Catimbó-jurema do Recife, que:
A jurema é uma árvore que floresce no agreste e na caatinga nordestina. Da
casca de seu tronco e de suas raízes faz-se uma bebida mágico-sagrada que
alimenta e dá força aos ‘encantados do outro mundo’. Acredita-se também
que é a bebida que permite aos homens entrar em contato com o mundo
espiritual e os seres que lá residem. Tal árvore é símbolo e núcleo de várias
práticas mágico-religiosas de origem ameríndia (In: PRANDI (Org.), 2001,
p. 160).
Os casos de líderes de terreiros “feitos na Jurema” acontecem, geralmente, quando
certas pessoas que frequentam terreiros e que têm a propriedade divina da mediunidade, isto
é, por possuírem o “dom” da incorporação, são encaminhadas pelos líderes dessas casas ou
pelas próprias entidades, a dar consultas nos terreiros que frequentam ou em suas casas.
Quando o número de clientes aumenta, abrem suas próprias casas para atender-lhes. Aqui,
“feitos na Jurema” quer dizer: iniciado na Jurema; processo de feitura na Jurema.
Existem, ainda, os líderes que estão estabelecidos, mas que ninguém que faz parte
das religiões de matriz africana sabe informar sobre a origem de suas histórias como líder, ou
seja, ninguém ouviu falar sobre quem os fez “no santo”, ou o motivo pelo qual foram eles
iniciados. Além desses, há aqueles que dizem ser iniciados por um líder, quando na verdade,
se sabe que foram iniciados por outro.
Através de sonhos, ou através do jogo colocado por algum sacerdote ou
sacerdotisa, que por terem recebido “o recado”, algumas pessoas conseguem se estabelecer
como líderes.
Compreendemos, assim, que, para que haja lideranças, é necessário um grupo de
pessoas, isto é, há líderes “porque há em todo grupo humano, homens que, à diferença de seus
companheiros, gostam do prestígio em si, sentem-se atraídos pelas responsabilidades, e para
quem a carga dos negócios públicos traz consigo sua recompensa” (LÉVI-SATRAUSS, 1996,
p. 298). Ou seja, não é só o dom, a habilidade que certas pessoas recebem de Olorun que
consegue estabelecer uma liderança, mas também, o desenvolvimento desta, motivados por
uma atração que poderá lhes remeter ao prestígio, e a satisfação de necessidades subjetivas.
Chamamos a atenção para esses detalhes, comentados por pessoas iniciadas nas
religiões de matriz africana, que conhecemos, porque eles poderão motivar ou inspirar novas
pesquisas, já que o universo dessas religiões é bastante maleável.
16
O zelo, a energia, a autoridade, o poder etc. que as lideranças exercem sobre seus
fiéis, participando ativamente da vida religiosa, revelam que: “A ‘participação’ então não
implica apenas uma confusão de categorias, mas ela é, desde a origem, como entre nós, um
esforço para nos identificar às coisas e identificar as coisas entre elas” (MAUSS, 1979, p.
163). Assim, é necessária a compreensão dos líderes de terreiros como detentores de um
poder e de uma autoridade sagrada.
Imposta em princípio pela própria participação na instituição, os líderes afro-
brasileiros são conhecedores de fundamentos religiosos tradicionais (sagrados), repassados
oralmente pelos líderes antecessores, ao longo dos anos, inseridos em uma dinâmica
hierárquica.
É importante destacar, neste momento, que o repasse oral foi ganhando aliados
com a contemporaneidade, como cadernos, livros, Internet etc. Alguns líderes também
utilizam o benchmarking
10
.
Esse papel de conhecedor dos fundamentos tradicionais e de detentor de poder e
autoridade é aceito por todos os integrantes do candomblé, dentro da dinâmica hierárquica das
religiões afro-descendentes. Segundo a tradição, o líder carrega e acumula, desde a iniciação,
a responsabilidade pelas obrigações e sacrifícios que são doados aos orixás, donos de sua
cabeça, recebendo, em troca, a força e a energia vital, distribuindo, assim, axé para tudo e
para todos os adeptos, levando a continuidade religiosa adiante.
Num terreiro de Xangô
11
, a liderança é baseada fundamentalmente na relação
pai - mãe / filhos de santo (PEREIRA, 1994, p. 72). Explicando melhor, cada elemento do
grupo deve cumprir suas obrigações proporcionais a cada posição, comandados pelos pais /
mães-de-santo. Caso contrário, receberão um castigo do orixá, sendo o mediador do
castigo o pai ou a mãe de santo, criando, assim, uma rede de poder e subordinação dentro
desse terreiro. Existe uma liderança com autoridade única acompanhada pela
responsabilidade, em que todos os que se encontram subordinados e ligados a ela têm que
obedecer e são igualmente responsáveis pelo desempenho de seus papéis. É útil
apreciarmos o que Pereira descreveu sobre como acontece essa rede de comando e
subordinação:
10
“Benchmarking” é um processo utilizado pelas organizações empresariais para comparar continuamente seus
processos, produtos e serviços com outras organizações consideradas mais eficientes, que trabalham as mesmas
funções ou funções similares. Assim, adaptam em suas próprias organizações novos métodos organizacionais,
buscando a eficiência. Para melhor aprofundamento, ver Balm (1995).
11
Xangô quer dizer, neste contexto, o termo usado para denominar as religiões afro-brasileiras, de origem
iorubana em Pernambuco, Alagoas, Sergipe e Paraíba.
17
A organização hierárquica do Sítio do Pai Adão existe a figura do pai-de-
santo (babalorixá) e, numa posição ligeiramente inferior à sua, a mãe de
santo (yalorixá). O pai-de-santo encarrega-se de marcar os dias das
cerimônias públicas ou privadas, do jogo divinatório, da direção geral dos
grandes rituais e cultos, e de realizar a maior parte das oferendas aos deuses,
entre elas, o sacrifício. A mãe-de-santo se ocupa da angariação dos recursos
para os rituais, da preservação do espaço físico do terreiro, de certas partes
da cerimônia de iniciação e da disciplina dos filhos e filhas de santo do
terreiro, que lhe são inferiores em categoria hierárquica. O jogo divinatório,
por sua vez, pode ser executado pela mãe-de-santo na ausência do
sacerdote. No Sítio do Pai Adão não há a posição de mãe pequena, mas
existe uma outra, a de madrinha do terreiro. Constitui a posição mais
elevada depois da yalorixá. Sua principal obrigação é guardar as chaves do
quarto do santo e do salão de toques. Ela ajuda também na preparação da
comida do santo. Abaixo dessa posição, estão as filhas de santo. Elas
trabalham na limpeza do quarto do santo, na arrumação do terreiro e sua
ornamentação nos dias de toque e do preparo das comidas. Além das tarefas
acima citadas; cuidam das filhas e filhos de santo em possessão. Lá, as
filhas de santo podem cuidar dos filhos do sexo masculino em possessão. A
posição dos tiradores de toadas também não é fixa. O pai-de-santo abre as
toadas, revezando-se posteriormente com os assistentes. Inclusive, uma das
filhas-de-santo também se encarrega dessa função. Os tocadores de Ilús têm
ainda posição equivalente à dos assistentes do sacerdote. Chegam muitas
vezes a desempenhar as duas funções de tocadores de Ilús e de assistentes.
Os fiéis comuns são classificados em diversas categorias, de acordo com a
base da sua filiação sagrada e / ou profana com os iniciados do terreiro
(PEREIRA, 1994, p. 73 - 74).
Os líderes de casas de Candomblé são muito respeitados e, muitas vezes, temidos
por seus fiéis. Esse poder e autoridade, obtidos a partir da iniciação desses sacerdotes e
ratificados ao longo dos anos de “feitura no santo
12
”, não são exercidos apenas entre as
paredes dos terreiros, mas também fora deles
13
, fazendo parte da vida cotidiana de seus
fiéis.
Como se vê, para compreendermos a tradição das religiões afro-brasileiras, é
preciso, primeiramente, entendermos a lógica da cosmovisão, que resulta no poder e
autoridade de seus líderes em seus terreiros, já que os elementos constitutivos trazidos,
recriados e adaptados para o Novo Mundo refletem o cenário africano.
De fato, tudo no candomblé é símbolo ou imagem. A adaptação às
novidades ocidentais [...] não impedem o respeito pelas normas
12
Segundo nossos informantes, “feitura no santo” é o mesmo que “fazer o santo”, “fazer a cabeça”, “deitar para
o santo”, “feitura do santo”, “Aba Baxé de Ori”, Orô ou, como é mais conhecido, iniciação. Em outras palavras,
é o primeiro passo para o aprendizado dos segredos e das doutrinas das religiões afro-descendentes.
13
Com relação a essa questão, tivemos oportunidade de presenciar cenas de encontros entre líderes de
Candomblé e seus fiéis, em uma loja no centro do Recife, onde o poder e a autoridade exercidos pelos
Babalorixás ou Yalorixás extrapolam os limites dos terreiros. Os filhos-de-santo e/ou adeptos dessa religião, ao
se depararem com pais / mães-de-santo, explicitam respeito, temor e obediência aos detentores de autoridade
sagrada. Pedem a bênção e fazem grandes esforços para agradar seus líderes. A relação entre líderes e liderados
obedece a uma escala de valores hierárquicos religiosos, conforme o tempo e as pessoas, pela própria
cosmovisão das religiões afro-brasileiras.
18
míticas que asseguram o valor religioso dos objetos utilizados. E este
reflexo do divino, em funcionamento aqui, tornamos a encontrá-lo nos
menores e nos maiores detalhes, nos utensílios do culto, nos
instrumentos de música, na construção da ilé-orixá’ (BASTIDE, 1978,
p. 81).
Então, entendemos, que os símbolos e as representações do Candomblé
14
são o que
Mauss (1974, p. 52 e 53) chamou de “coisas” que têm “força mágica, religiosa e espiritual”,
ou seja, são detentoras de mana. Assim, compreendemos que todas as “coisas” do Candomblé
contêm mana, são possuidoras de axé, inclusive suas lideranças, refletindo o poder ilimitado
das entidades sobrenaturais.
Essas forças espirituais foram legitimadas, ao longo dos séculos de escravidão até
os nossos dias, pelo próprio inconsciente coletivo, tendo origem na visão social diferenciada
de mundo, dos africanos legítimos e de seus afro-descendentes.
As “coisas” possuidoras de “mana” e que dignificam o candomblé nada mais são
que “um verdadeiro pedaço da África transplantado” (BASTIDE, 1971, p. 312) para uma
nova realidade. Unidas, tornam-se um organismo, que tem como base a fé nos orixás e no
poder da tradição ancestral. É válido observarmos o que escreveu esse autor sobre o
significado dessa fé para os adeptos do candomblé:
Uma fé na onipotência dos Orixás, nas sanções sobrenaturais que punem os
que violam os tabus, uma fé que se apoia em milhares de casos, de histórias
infantis de deuses punidos por sua desobediência, de profanos curados por
sacrifícios, ou depois de terem dado de ‘comer suas cabeças’, uma fé prévia,
herdada dos antepassados e transmitida de geração a geração (BASTIDE,
1971, p. 311).
Assim, a sutileza sagrada compartilhada no candomblé e transmitida ao longo dos
séculos abre espaço para o importante papel exercido pelos líderes de terreiros o qual
corrobora a visão diferenciada de mundo em que “as coisas” estão contidas.
1.1 O mundo do terreiro como organização sagrada
A estrutura, os valores e o sistema religioso afro-brasileiro perduram até hoje,
principalmente no que tange ao Candomblé
15
, formados a partir da união das várias nações e
14
Nesta análise, embora nossa pesquisa de campo esteja ligada diretamente ao Xangô Pernambucano
(religiosidade e cultos africanos praticados em Pernambuco), estamos considerando todas as formas do
Candomblé desenvolvidas e ramificadas pelo Brasil. Por esse motivo, em muitos momentos deste trabalho,
referimo-nos assim: religiões de matriz africana, religiões afro-brasileiras ou religiões afro-descendentes.
15
Vários autores afirmam que o candomblé é uma religião brasileira.
19
da miscigenação das raças africanas, trazidas durante os quatro séculos de escravidão no
Brasil. Santos afirma que:
Como é do conhecimento geral, as culturas africanas foram transportadas
para o Brasil pelos escravos negros que os colonizadores portugueses
trouxeram desde sua chegada, como parte de seus bens e que, mais tarde,
importaram diretamente da África, particularmente da chamada Costa dos
Escravos. Instrumento indispensável do desenvolvimento da economia
agrícola e minéria, o negro constituiu durante mais de três séculos a base de
câmbio de um próspero comércio entre colonos europeus e algumas casas
reais africanas. Durante três séculos, os diversos grupos étnicos ou ‘nações’
de diferentes partes da África Ocidental, Equatorial e Oriental foram
imprimindo no Brasil suas profundas marcas. A história desse tráfico, suas
motivações históricas, econômicas e políticas constituem apaixonante pano
de fundo da presença africana no Brasil (SANTOS, 2007, p. 27).
Essa herança sociocultural, recriada no Brasil, explicita a visão de mundo africano,
atraindo e retendo adeptos até os dias atuais. Nesse sentido, “A busca da construção da
identidade no sistema religioso do Candomblé é a busca da construção da vida como um
processo integral constituído por diversos níveis, tanto material como espiritual”
(VASCONCELOS, 2006, p.25).
Será nessa concepção de mundo tradicional yorubana
16
que encontraremos o
suporte objetivo sobre os mundos social e religioso dos terreiros de Candomblé no Recife, já
que os últimos escravos “foram concentrados nas zonas urbanas em pleno apogeu, nas regiões
suburbanas ricas e desenvolvidas dos estados do Norte e do Nordeste, Bahia e Pernambuco,
particularmente nas capitais desses estados, Salvador e Recife” (SANTOS, 2007, p.31).
Para os yorubanos, o universo e tudo o que nele existe pode ser entendido em dois
níveis paralelos: o Àiyé (mundo dos vivos) e o Òrun (mundo dos mortos e de tudo que é
considerado de outro mundo). Tudo que existe pode pertencer a apenas um desses mundos ou
pertencer a ambos ao mesmo tempo, ou seja, fora do Àiyé e / ou do Òrun nada existe, pois
existe coexistência entre eles
17
.
16
A tradição yorubana ou iorubana (encontramos a grafia dessa palavra tanto de uma forma, quanto de outra) é
aquela que foi trazida pelos escravos chegados nos fins do século XVIII e início do século XIX, ou seja, os
últimos escravos que desembarcaram no Brasil. Esse povo sudanês que na África habitava a região de Yorubá
(Nigéria, África Ocidental) dominou religiosamente e socialmente os outros povos escravizados no Brasil e são
comumente conhecidos por nagô (nome chamado pelos fons de anagô, devido à aparência sofrida e maltratada
que tinham quando aportaram no Brasil). Indicamos os autores Roger Bastide, Pierre Verger, e Juana Elbein dos
Santos que, em nossa opinião, tratam a tradição yorubana de maneira clara e pontual.
17
Foi escolhida, para esta explicação de mundo no Candomblé, a grafia das palavras Àiyé e Òrun utilizada pela
autora Juana Elbein dos Santos.
20
No Àiyé, considerado o nosso mundo humano, encontramos tudo o que é formado
de matéria e que o ser humano pode pegar concretamente. Segundo Santos (2007, p.53) os
habitantes desse mundo são chamados ará-àiyé ou “aráyé
18
”.
No Òrun, onde habitam todos os seres e as entidades sobrenaturais (os orixás,
comandados pelo ser maior, chamado Olorun e também, os eguns), tudo é “imenso, infinito e
distante” (Ibid.), além de abstrato e ilimitado. Seus habitantes são chamados de ara-òrun.
Entretanto, o Òrun não é apenas um mundo paralelo, ele contém tudo e todos, ou seja, ele
engloba e envolve tudo o que existe no universo.
Sobre os habitantes do Òrun, cabe uma explicação: os eguns são “os ancestrais, os
espíritos de seres humanos”, enquanto os orixás são “entidades divinas” (Ibid, p. 103).
A cultura religiosa herdada dos africanos, desde o período do tráfico de escravos e
impregnada em todos os que vivenciam as religiões afro-brasileiras, sofreu modificações em
seus elementos, enquanto outros elementos dessa cultura foram desaparecendo ao longo dos
séculos. Bastide (1978, p. 137) escreveu que: “Durante muito tempo acreditou-se que o culto
dos antepassados tinha desaparecido no Brasil, uma vez que a escravatura destruíra as
estruturas familiares tradicionais”.
Felizmente, as perdas e transformações desses elementos não conseguiram apagar
da história, as religiões de matriz africana. Houve uma recriação dentro da cultura trazida
pelos africanos ao Brasil, conservando a lógica da sua cosmovisão. Uma dessas recriações
observadas durante a pesquisa é a acumulação dos tipos de cargos dos sacerdotes afro-
religiosos no Recife. Bastide distinguiu quatro espécies de sacerdócios, durante sua pesquisa
na Bahia: os Babalorixás
19
ou as Yalorixás
20
, os Babalaôs, os Babalosaim e os Babaogê, que,
consecutivamente, são os responsáveis pelos cultos: dos orixás
21
, de Ifá
22
, de Ossaim
23
e dos
Eguns
24
.
18
Da mesma forma, foram escolhidas as grafias ará-àiyé e ara-òrun, que denominam os habitantes do Àiyé e do
Òrun, utilizadas pela autora Juana Elbein dos Santos.
19
Babalorixás são os sacerdotes, ou seja, os líderes de terreiros, os zeladores dos orixás, as pessoas do sexo
masculino que têm a responsabilidade de administrar o terreiro, mas também, a de transmitir conhecimentos
religiosos e formar novos líderes.
20
Yalorixás são as sacerdotisas que ocupam o mesmo lugar e funções na escala hierárquica das religiões afro-
brasileiras que os Babalorixás.
21
São as divindades das religiões afro-brasileiras.
22
Ifá é orixá da adivinhação, do destino. Não é mais cultuado, mas é muito respeitado entre os adeptos do
Candomblé. Faz parte da divindade Orumilá, que é a entidade suprema, o criador e dono do destino do mundo.
23
Pode também ser escrito: Ossâim, Ossânin, Òsonyìn, Ossonhe, Ossãe, Ossanha. É o orixá das folhas.
24
Eguns significa espíritos dos mortos.
21
Continuando a explicação sobre a divisão do universo em dois níveis paralelos,
podemos concordar que, na visão dos adeptos do Candomblé, o mundo dos orixás é rico de
entidades que dominam o destino terrestre (incluindo todos os seres humanos).
Se a existência humana depende do que é permitido por esses seres do Òrun, o ser
humano só poderá suportar e traçar seu destino, se souber o que eles querem ou permitem.
Decorre disso a necessidade de uma pessoa capacitada, que tenha o “dom” de ligação com
essas entidades. Essa pessoa é o líder de terreiro, pois tudo nas religiões de matriz africana é
decidido a partir do jogo de búzios, que é a fonte dessa ligação.
Quando os líderes (Babalorixás ou Yalorixás) jogam os búzios, traduzem os
desejos dos orixás, conhecem o que deve ser feito para amenizar os infortúnios terrestres,
além de tomar conhecimento do destino e do orixá, “dono da cabeça” daqueles que os
procuram.
Pensando dessa forma, os fiéis dessas religiões buscam harmonia espiritual e
mostram-se submissos às regras existentes e formuladas pelos habitantes do Òrun, através de
seus pais ou mães-de-santo, ou seja, de acordo com o que seus orixás indicam no jogo de
búzios
25
.
Até um grito, uma reclamação ou um gesto desses sacerdotes é respeitado, não
como uma afetação, mas como o grito, uma reclamação ou um gesto de um representante dos
orixás, aqui na terra. Essa força adquirida dos orixás (o axé) pelos sacerdotes e sacerdotisas
envolve todos os componentes do terreiro. Participar dessa força religiosa amplia a força
grupal, como também a da própria religião, influenciando o comportamento das pessoas que
fazem parte do quadro religioso.
Ser líder de terreiro, então, é assumir um compromisso muito sério, já que sua
força é capaz de manipular seus seguidores. Esses últimos, por sua vez, têm orgulho e
comprometimento por compartilharem dessa força tão conhecida por eles.
Tudo nas religiões de descendência africana é permeado por uma força. Essa é
proveniente do ser maior que habita o Òrun, ou seja, de Olorùn, que controla e manipula a
existência dos seres do Àiyè. Assim, advém dessa visão diferenciada do universo, a
importância, o respeito, o poder, a autoridade, o valor dos líderes de terreiros. Bastide admitiu
sobre essa questão, que
25
O jogo de búzios também é chamado de delogun, dilogun ou jogo de Ifá. É um jogo de adivinhação, através de
conchas provenientes de moluscos, conhecidos como búzios. É através desse jogo que os sacerdotes e
sacerdotisas se comunicam com os orixás.
22
há um primeiro domínio do cosmos, que é composto de homens, é o domínio
da competência do babalaô – cada homem se diferencia dos demais pelo
conjunto de acontecimentos que para ele surgem, pelo seu ‘destino’; o
princípio da individuação é a história que não passa de uma combinação de
‘palavras’ significativas, pronunciadas pelos deuses; por isso mesmo não é
irracional, pode sempre se definir através dos búzios. Os deuses se tornam
assim o princípio de classificação dos acontecimentos: cada um governa um
‘acontecimento-tipo’ (1978, p.154 - 155).
A fala do Babalorixá Carlito de Oxum, líder de um dos terreiros escolhidos para
esta pesquisa
26
, reflete o que deve ser compreendido sobre essa herança yorubana, que,
mesmo tendo sido modificada em certos elementos, resultado da influência sofrida com o
advento da modernidade, continuou com a concepção de mundo diferenciada da nossa,
ocidental: “A gente nunca pode perder a essência de dizer que o Candomblé é espiritual,
mesmo com toda modernidade, toda materialidade que existe no mundo atual” (Cf. Entrevista
2a, em Apêndice B). Essa “essência” a que ele se refere, resistiu ao longo dos séculos e ainda
hoje resiste, e é a ligação entre o espiritual e o material dentro da cosmovisão africana.
Foto n. 1 - Babalorixá Carlito de Oxum (06/07/08).
26
Os depoimentos colhidos e transcritos das pessoas que pertencem aos dois terreiros escolhidos para a pesquisa
são partes das entrevistas feitas ao longo desses dois anos de pesquisa, e foram codificadas (com números e
letras), através de uma síntese apresentada no Apêndice B. Assim, é preciso deixar claro que se trata apenas das
partes que foram utilizadas neste trabalho e não as entrevistas completas. Informamos que a classificação das
entrevistas obedeceu ao critério de data. Incluímos, na síntese das entrevistas, as falas dos Babalorixás Gilmar de
Ogun e Marcos de Oxumaré, por acreditarmos que são úteis para as explicações em certos momentos.
Esclarecemos também que esses sacerdotes não fazem parte do quadro de pessoas que compõem os terreiros
escolhidos para a pesquisa. Observamos, também, que suas falas foram colhidas manualmente por nós, durante
conversas informais que aconteceram em uma loja no centro do Recife. A fala da Yalorixá Mércia, que aparece
na entrevista 1a, também foi colhida manualmente e aconteceu no mesmo local que a dos Babalorixás citados
anteriormente.
23
Interpretamos o vocábulo “essência”, empregado por esse líder de terreiro, como
sendo a força dinâmica, ou seja, o axé. Essa força religiosa foi o sustentáculo que fortaleceu a
cultura yorubana no Brasil, desde a época da escravidão, sendo transferida e sentida na vida
cotidiana do “povo do santo
27
”.
Seguindo essa lógica, entendemos que nosso mundo, por mais moderno e
tecnológico que seja e por mais competitividade que exista, não se encontra solitário no
universo, segundo a concepção yorubana. Nele, há seres que comandam tudo e todos. Em
certas ocasiões, esses seres aparecem quando invocados e, em outras, eles já fazem parte dos
elementos da natureza desse mundo.
A Yalorixá Mércia também explicita essa idéia dizendo: “a gente sente quando o
fundamento é forte” (Conf. Entrevista 3a, em Apêndice B). Compreendemos as palavras dessa
sacerdotisa como a interpretação da força sobrenatural do nível Òrun, ou seja, o axé
28
, sentida
por ela no mundo Àiyé (mundo dos vivos). Ela ratifica as palavras ditas por Pai Carlito,
fazendo-nos pensar no sentido desses laços que ligam o Òrun e o Àiyè, através do axé, tão
fortemente percebido nos ará-àiyé adeptos das religiões afro-descendentes. Ora, esse sentido
nada mais é do que a crença no axé, baseados na visão do mundo constituído por dois níveis.
Foto n. 2 - Yalorixá Mércia de Oxum (20/05/2007).
Neste rumo e construindo um raciocínio influenciado pelo pensamento
desenvolvido por Mauss, entendemos, simultaneamente, que há entre o Àiyè e o Òrun uma
27
“Povo do santo” são as pessoas que foram iniciadas nas religiões afro-descendentes, também conhecidas como
aquelas que “fizeram o santo”.
28
“Axé” significa força dinâmica, o que Mauss chamou de mana, força vital individualizada em seres animados
e inanimados, provenientes de seres que habitam o Òrun.
24
constante troca, efetuada entre seus habitantes, visto que as “obrigações
29
” e os presentes
doados pelos ará-àiyé, iniciados em religiões de matriz africana, são recebidos pelos ara-òrun
(seus orixás). Esses últimos retribuem (como contraprestação) sob a forma de axé (força
mágica, força espiritual). Disso tudo resulta a criação de uma obrigação, um vínculo entre os
seres.
Segundo Mauss (1974, p. 54), “O que, no presente recebido e trocado, cria uma
obrigação, é o fato de que a coisa recebida não é inerte. Mesmo abandonada pelo doador, ela
ainda é algo dele”. Entendemos, assim, que a troca é a base da visão diferenciada de mundo,
pois ela está presente em tudo. Assim, é compartilhada e respeitada em todos os terreiros de
religiões afro-descendentes, uma vez que é através dela que os habitantes do Àiyè obtêm o
axé como pagamento de suas “dádivas”.
Porém, para que ocorram trocas entre os ara-òrun e os ará-àiyé, é imprescindível o
papel de um Babalorixá ou de uma Yalorixá. Em primeiro lugar, o que procede delas (das
trocas) é a força, isto é, o axé implantado no terreiro. Mas, por outro lado, também é
alimentado o poder e a autoridade dos líderes sobre as pessoas pertencentes às camadas
inferiores na hierarquia sagrada dessas religiões.
Esse poder e autoridade dos sacerdotes e sacerdotisas são legitimados pela própria
tradição religiosa, uma vez que possuem o conhecimento de como são feitas as ligações entre
homens e orixás. Afinal, eles são os ará-àiyé que já cumpriram todas as etapas dentro de uma
escala hierárquica.
Numa casa de santo, o axé irá circular por seres e coisas, cingindo
todos com sua força. O pai ou mãe de santo, auxiliado por outros
sacerdotes, em geral seus filhos, vão manipulá-lo de forma que a
comunidade e seus integrantes prosperem. Os iniciados vão assumir
diferentes funções que se distribuem na hierarquia do terreiro com
base em quatro prerrogativas que se intercruzam: ser ou não ser capaz
de entrar em transe, idade iniciática, sexo biológico e os oiês (cargos e
títulos) (RIOS, 2004, p. 166).
A hierarquia de um terreiro é composta de vários níveis, em que são obedecidas as
regras internas da dinâmica religiosa. Muitos autores descreveram a hierarquia das casas-de-
santo
30
, mas seguiremos o que nos foi explicado por nossos informantes (adeptos iniciados),
durante conversas informais, acontecidas nesses dois anos de estudo.
29
A palavra “obrigações” significa as oferendas pedidas ou não pelas entidades do panteão das religiões afro-
brasileiras. Elas são apresentadas sob a forma alimentar ou em forma de sacrifício de animais. Geralmente são
exigidas pelas entidades, através do jogo de búzios, chamado ifá.
30
Casas-de-santo é o mesmo que terreiro, roça, barracão,etc.
25
Um aprendiz, comumente conhecido por abiã
31
, está posicionado no nível mais
baixo da escala hierárquica. Quando iniciado, torna-se yaô
32
. No terceiro degrau da escala está
a Ebomi
33
que é a iniciada que cumpriu obrigações de sete anos, ou seja, são as mais velhas
no santo. A Iabassê
34
cuida das comidas dos santos, ou seja, uma espécie de “chefe de
cozinha” dos orixás e não entra em transe. A mãe criadeira, chamada Agibonam
35
ou
madrinha, é responsável e cuida dos yaôs, quando estão recolhidos. Ialaxé
36
é um cargo
feminino que não recebe santo, mas zela pelos objetos do terreiro e cuida das oferendas. O
Babakekerê e a Iakekerê
37
são também chamados de Pai pequeno ou Mãe pequena, pois são
eles que auxiliam na liderança (no controle e no comando) do terreiro. O Babalorixá
(popularmente chamado de Babá) e a Yalorixá
38
(comumente conhecida por Yá) estão no topo
da pirâmide hierárquica.
Os ogãs ou ogans são cargos exclusivamente masculinos. Eles não entram em
transe. Cacciatore explica que o título ogã é cedido pelo líder da casa a um homem capaz de
proteger e ajudar financeira e socialmente o terreiro (1988, p.187). A iniciação de um ogã é
mais rápida, pois não existe raspagem nem outros rituais executados nas iniciações. Existem
ogãs com várias funções, por exemplo: axogun (responsável pelas imolações e conhecido
como mão-de-faca), alabê (chefe dos atabaques, tambores, ilus), pejigan
39
(zela pelo peji).
Ekédi é um cargo feminino paralelo ao de ogan. Como não incorpora, é a pessoa
responsável pelos objetos e pelas pessoas que entram em transe. Rios (2004, p. 167) afirmou
que “Ogãs e equédes, quando iniciados (confirmados), passam imediatamente à categoria de
ebômis e são tratados pelo título de meu pai ogã ou minha mãe equéde, e merecendo todas as
deferências devidas aos mais velhos”.
Pai Carlito explicou que, muitas vezes, nessa hierarquia sagrada, há acumulação de
cargos. Observem suas palavras sobre essa questão:
Em relação à hierarquia bem... definida dentro do Candomblé, com pai, com
mãe, com auxiliares... Geralmente a hierarquia é pra funcionar, dentro da
medida do possível bem... que os rituais saiam de forma correta, né... cada...
cada... cada... cada pessoa que faz parte de um ... de um cargo, da hierarquia,
ele tem que ter determinados conhecimentos pra poder fazer, pra que o ritual
saia sempre o máximo correto ou da maneira melhor possível. Então, cada
31
A grafia desta palavra foi encontrada por nós de duas formas: abian ou abiã.
32
Iaô ou yaô é como são chamadas as pessoas que já foram “batizadas” nas religiões afro-brasileiras.
33
Ou ebâmi.
34
Encontramos esta palavra escrita também assim: Iyábassé.
35
Também chamada de ajibonã ou jibonã.
36
Ialaxé ou Iyalaxé.
37
O mesmo que Iyakekerê ou Yakekerê.
38
Poderá ser encontrada escrita assim: Iyalorixá ou Ialorixá.
39
Cacciatore adota a seguinte grafia para esta palavra: peji-gã (1988. p. 209).
26
pessoa, ela tem uma importância. Não existe uns mais, outros menos, mas
cada pessoa tem uma importância. Então, um Babalorixá, ele precisa de
várias pessoas, pra poder o ritual, tudo é em função do Orô”. Às vezes, a
quantidade de pessoas na hierarquia menor..., mas a casa funciona muito
bem e às vezes a hierarquia é maior e a casa não funciona. Então, isso
também é uma coisa que independe, né? (Cf. Entrevista 2b, em Apêndice B).
Percebemos, em nossa pesquisa de campo, que i
sso geralmente acontece em terreiros
de pequeno porte ou naqueles em que não há pessoas suficientes para as funções necessárias.
Quando a situação exige, caberá ao líder decidir como será a organização tanto dos cargos,
quanto das suas atribuições.
O poder e a autoridade dos líderes de terreiros sobre as pessoas que se encontram
numa escala inferior na escala hierárquica decorrem de uma legitimação, devido ao
cumprimento das obrigações de sete anos, o deká. Sem ela (legitimação tradicional), um
iniciado não poderá tornar-se sacerdote ou sacerdotisa, já que,
O adepto pode ter, por exemplo, mais de sete anos de feitura, mas sem as
obrigações, sua passagem à categoria dos ebomis não pode se legitimar. É
que, além da já citada dimensão do tempo, a ação ritual deve ser realizada
por indivíduos reconhecidos em termos de papéis religiosos dados por
cargos e funções que compõem a estrutura hierárquica dos terreiros (SILVA,
1995, p. 152).
A força do axé de um sacerdote ou sacerdotisa manipula as pessoas envolvidas nas
religiões afro-descendentes e também as forças da natureza, criando uma dinâmica e um
compromisso muito sério. As palavras de um Babalorixá e de uma Yalorixá são muito
importantes para todos que participam da ligação dos dois mundos.
Mesmo existindo fuxicos, desavenças e intrigas entre “o povo-do-santo”, mesmo
que ainda existam preconceitos com relação às crenças, o Candomblé resiste pela força do
axé. Isso é muito interessante, pois ratifica a existência dos dois níveis. Tudo no candomblé é
permeado por essa força vital e, por isso, participar dessa força é muito importante para os
adeptos das religiões de matriz africana.
A ligação entre os dois níveis é simbolizada pela demarcação central
40
nos salões,
no piso e no teto dos Candomblés. É nesse ponto central dos terreiros, mais precisamente no
espaço em que acontecem as festas, “onde se planta o axé do orixá fundador da casa” e que
também é denominado por ariaxé (SILVA, 1995, p. 154). Segundo Pai Carlito, a demarcação
40
Chamado por Bastide de “mastro litúrgico” e que, na época de sua pesquisa, era simbolizado por um poste
central. Abaixo desse poste, ou seja, no chão, eram enterrados os elementos constitutivos de axé. Segundo um de
nossos informantes, que, por sinal, é irmão-de-santo de Pai Carlito, isto é, ambos foram iniciados pelo mesmo
pai-de-santo, a demarcação fixada no chão é chamada de “mina” ou “salé”. A que fica no teto, exatamente acima
da “mina”, é conhecida por “cumeeira”. É na “mina” que são plantados os fundamentos, o axé do terreiro.
27
central do piso do salão, na nação keto, é comumente conhecida por intoto
41
e, quando essa
demarcação é feita por uma coluna ou por um poste chama-se opó ofanjá. Nesse local, estão
enterrados os fundamentos do orixá da casa, o axé. A localização correspondente no teto, por
sua vez, é denominada de edun ará.
É no entorno do intoto e abaixo do edun ará que acontecem os xirês
42
. Verger
definiu a palavra xirê, em sua obra, como: “[...] cerimônia pública, chamada ‘xirê dos orixás’
– a festa, a distração dos orixás [...] (VERGER, 1981, p. 71). Esse autor afirmou, ainda, que a
responsabilidade sobre essa cerimônia “repousa sobre o pai ou mãe-de-santo, correspondentes
aos nomes, de origem ioruba, babalorixá ou ialorixá. São chamados também de ‘zelador’ ou
‘zeladora’, termos equivalentes aos de ‘babalaxé’ ou ‘ialaxé’, pai ou mãe encarregados de
cuidar do ‘axé’, do poder do orixá” (Ibid.).
Através dos xirês, os orixás são invocados e vão descendo para o mundo Àiyè,
deixando seus contra-presentes, ou seja, as forças vitais, conhecidas por todos como axé
43
.
Assim, o espaço demarcado do salão da casa bem como as relações religiosas são apreciadas
nos terreiros do Recife, na tradição yorubana. É nesse cenário que os habitantes do Òrun
descem para o Àiyè, incorporados nos ará-àiyé, ou seja, é no espaço do terreiro que a unidade
dos níveis do universo acontece. Dessa forma, a existência como um todo, a partir das trocas
das “dádivas,” presentes doados pelos ara-òrun aos ará-àiyé, pelas “obrigações” feitas pelos
ará-àiyé para agradar os ara-òrun, torna-se harmônica.
Tudo o que foi descrito, anteriormente, remete-nos ao sistema de prestações totais
de Mauss. Esse autor afirma: “essas prestações e contra-prestações são feitas de uma forma
sobretudo voluntária, por presentes, regalos, embora sejam, no fundo, rigorosamente
obrigatórias[...] (MAUSS, 1974, p. 45). Dessa maneira, compreendemos que a troca existente
entre os níveis do universo é feita de maneira recíproca. Todas as ações ritualísticas do
Candomblé, todas as representações e símbolos são resultados dessa troca entre os mundos,
desembocando na satisfação dos habitantes dos dois níveis de existência.
Podemos verificar, que há de fato a satisfação dos desejos e das vontades dos ará-
àiyé, revelada na resolução de problemas existentes no mundo Àiyè, pelos habitantes do
41
Mas é comumente conhecido por mina.
42
Xirê quer dizer os rituais festivos em que são cultuados os deuses (orixás) africanos, obedecendo a uma ordem
de invocação. O primeiro orixá invocado é Exu e o último é Oxalá. Toda a dança acontece no entorno da
demarcação simbólica e representativa dos mundos Àiyé e Òrun, que se encontra no centro do salão de danças.
43
Encontramos a palavra axé também grafada assim: àse e asé. Seu significado é basicamente a força dinâmica
de seres sobrenaturais, a força que dá vida, ou seja, a força vital. Essa força é unificada nas “coisas” de um
terreiro e nas pessoas participantes (iniciadas) do Candomblé. O leitor poderá aprofundar seus conhecimentos
sobre esse tema, consultando estudiosos como Bastide (1978), Verger (1981), Santos (2007), Cacciatore (1988),
dentre muitos outros.
28
Òrun. Esses últimos, gratos pelos regalos recebidos, derramam axé no mundo dos homens.
Por sua vez, satisfeitos e atendidos pelos habitantes do Òrun, os habitantes do Àiyè tornam a
fazer obrigações de agradecimento por estarem satisfeitos os seus desejos e as suas vontades
ou por estarem necessitando de serem, novamente, atendidos. Assim, nasce a obrigação, por
ambas as partes, de dar, receber e retribuir. “O mais importante, entre esses mecanismos
espirituais, é evidentemente o que obriga a retribuir o presente recebido” (MAUSS, 1974,
p.48).
É importante pensarmos que o Òrun é um mundo que engloba o Àiyè e que “não é
concebido como localizado em nenhuma das partes do mundo real. O òrun é um mundo
paralelo ao mundo real que coexiste com todos os conteúdos deste” (SANTOS, 2007, p.54).
Então, compreendemos que só acontecerão permissões e satisfações no Àiyé, se Olórun
44
permitir. Pois Olórun vai traçando o odu
45
de todos os ará-àiyé, ligando-o ao orixá
encarregado e dono da cabeça de cada um desses habitantes. É dessa maneira que a lógica da
cosmovisão é seguida.
No espaço estrutural religioso das casas de matriz africana, há elementos que
fazem parte do Àyié e outros que, consagrados, representam simbolicamente o mundo
sobrenatural. Bastide afirmou, em sua obra, que “A ligação entre o eixo do mundo e os
quatros pontos cardeais não aparece somente na construção do candomblé, mas ainda em
certo número de objetos litúrgicos” (BASTIDE, 1978, p.83).
Com base nessa compreensão, verificamos que não é qualquer adepto que tem o
conhecimento sobre a ligação entre o Àiyè e o Òrun. Somente um líder de terreiro tem esse
“dom” espiritual, esse poder, pois, para que os ará-àiyé sejam contemplados por Olórun,
através dos orixás, é necessário que passem por um processo de iniciação, aprendendo os
segredos das doutrinas e rituais religiosos.
Seguindo o “modelo ideal” estabelecido pela tradição africana, o sacerdote ou a
sacerdotisa terá que ser uma pessoa iniciada, embora existam os casos, já comentados
anteriormente, de líderes de terreiros predestinados pela família biológica
46
. Caso contrário,
não terá o axé, não poderá tornar-se líder de terreiro.
44
Olórun é a “entidade suprema” do Òrun e fazendo uma analogia ao Deus católico, criou o Àiyè e o Òrun.
Somente com sua permissão, as divindades chamadas Orixás podem vir ao Àiyè. Ou seja, os Orixás são a sua
extensão.
45
Odu é o caminho da vida dos ará-àiyé, é o destino de cada habitante da terra (Àiyè), traçado por Olorun
(entidade maior do mundo sobrenatural).
46
Neste caso, o axé já existe em seu ori (em sua cabeça) herdado pelo parentesco e, por isso, não há necessidade
de passar por todas as etapas da iniciação, pois “já nasceram feitos”. Geralmente cumprem o bori e os banhos de
ervas. Apesar de existir essa possibilidade de serem considerados líderes sem o processo completo da iniciação,
muitos adeptos não concordam. Para um melhor entendimento, ver a dissertação de mestrado de Pereira (1994).
29
1.2 A iniciação formando os futuros líderes
Foto n. 3 - Yaô com curas, banhado de axé proveniente de sacrifício animal (17/01/2008).
A iniciação é um processo em que as pessoas aprendem os segredos e a doutrina
religiosa dos rituais nas religiões afro-brasileiras, carregando uma série de etapas a serem
cumpridas, tais como: “sessão divinatória especial para o conhecimento da divindade
principal e de outras acessórias ou de ‘acompanhamento’ a que deve o fiel se dedicar,
reverenciar e propiciar assiduamente” (RIBEIRO, 1978, p. 70); lavagem das contas;
assentamento do orixá; reclusão na camarinha; dar de comer à cabeça, ou seja, feitura do bori;
banhos de ervas; defumações; sacrifícios; possessões, quando o iniciando é rodante; abertura
das curas; cerimônia para dizer o nome do orixá; reaprendizado da vida no Àyié e, finalmente,
a saída para o reconhecimento e acolhida do público.
Através da iniciação, são ressuscitados no iniciando aspectos de sua personalidade
“que correspondem à personalidade do ancestral divinizado, presente nele em estado latente
(mesmo sendo só em razão dos genes herdados), inibidos e alienados pelas circunstâncias da
existência levada por ele até essa data” (VERGER, 1981, p. 44). Em outras palavras, o
indivíduo adquire uma nova vida, ganhando um novo nome; um novo comportamento; um
reconhecimento de um grupo religioso preso à hierarquia sagrada; muitas obrigações e muito
axé.
30
Cumprindo as obrigações ritualísticas e sacrificiais, o abiã
47
nascerá pela segunda
vez e estará apto à caminhada no mundo Àiyè, nos níveis religioso e social, além de ficar
protegido por seu orixá. O iniciando passará a ser conhecido e chamado pelo nome de yaô
48
,
participando de rituais sigilosos e públicos, ou seja, da união dos mundos: Àiyè / Òrun.
Deverá, então, cumprir todos os rituais para agradar a seu orixá de cabeça, seu juntó
49
e seu
disjuntó
50
, bem como respeitar e cultuar os orixás (divindades que habitam o Òrun).
Ressaltamos entretanto, que esse “modelo ideal” de iniciação, muitas vezes não é
seguido à risca, pois existem outras explicações da própria religião para dizer que algumas
pessoas pularam etapas ou não precisou passar por todas elas. O modelo tradicional, muitas
vezes, é rompido pelo parentesco de sangue ou pelo dom divino, pelas trocas de pai e / ou
mãe-de-santo ou, ainda, feituras e /ou desfeituras ocorridas em terreiros diversos. Lembramos
que o universo das religiões de matriz africana é muito flexível.
A partir da iniciação, o yaô tem como dever principal zelar pelo “santo”
51
, que é
dono de sua cabeça, cuidando do assentamento,
52
cumprindo todas as obrigações, inclusive as
de sacrifício animal e, ainda, deverá obediência ao sacerdote ou à sacerdotisa iniciadora, uma
vez que entregou seu ori
53
para a feitura, obedecendo aos trâmites tradicionais religiosos.
Bastide explicou que “a personalidade nova pertence àquele que a fabricou,
babalorixá ou ialorixá,” (1978, p.46). É criada, através da “feitura do santo”, uma ligação
forte entre os líderes e seus filhos-de-santo, pois sem eles não haverá transmissão de axé, nem
de conhecimentos religiosos, ou seja, não haverá contato com o mundo sobrenatural, não
haverá a harmonia do universo. Assim, o sacerdote ou sacerdotisa de um terreiro é a peça
fundamental no processo de iniciação.
O primeiro estágio da iniciação é ouvir o orixá, através dos búzios. Sem que essa
etapa aconteça, nada poderá ser decidido pelo líder. Só o jogo poderá responder sobre a
quantidade e a qualidade de ebós
54
, sobre quais os orixás serão assentados, quais as folhas que
serão utilizadas para banhos, qual o nome do Orixá, do juntó e do disjuntó, quanto tempo o
iniciando ficará recolhido etc. “As cerimônias do ciclo de iniciação começam geralmente por
47
Abiã ou abian é o aspirante à yaô. Nível mais baixo na hierarquia das religiões afro-brasileiras. Poderá, um
dia, ser líder, após passar por todos os níveis hierárquicos.
48
Encontramos em nossa pesquisa, a palavra yaô também grafada assim: iaô, “ìy-àwó (iauô).
49
Orixá que auxilia, que está imediatamente após o Orixá “dono da cabeça” do iniciado.
50
É o segundo Orixá auxiliar do “dono da cabeça”.
51
É o mesmo que o Orixá “dono da cabeça”.
52
Assentamento são todos os elementos simbólicos que compõem a representação do Orixá com todo o seu axé.
Fica sempre localizado no quarto dos Orixás do terreiro. É composto por objetos consagrados, como por
exemplo: pedras, louças, ferragens etc.
53
A palavra ori quer dizer cabeça.
54
Os ebós básicos podem ser: de rio, de mata, de encruzilhada, de caminhos (estrada).
31
uma sessão divinatória especial para conhecimento da divindade principal e de outras
acessórias ou ‘de acompanhamento’ a que deve o fiel se dedicar, reverenciar e propiciar
assiduamente” (RIBEIRO, 1978, p. 167).
O jogo de búzios, também chamado jogo de ifá, é um jogo de adivinhação por
meio das combinações formadas pelas caídas dos búzios. Antes de tudo, o sacerdote ou
sacerdotisa faz uma invocação aos orixás e, depois, vai formulando perguntas, enquanto
sacode os búzios “entre as duas mãos reunidas em concha e lança-os” (BASTIDE, 1978,
p.118). À medida que os búzios caem (lado aberto ou fechado), na urupema
55
formando
combinações
56
, o Babalorixá ou a Yalorixá vai interpretando as combinações, ou seja, vai
dizendo os desejos dos orixás. Assim, as respostas às suas perguntas vão surgindo.
É notável o papel relevante que o líder exerce, no momento em que joga búzios
57
,
visto que precisará de conhecimentos básicos matemáticos, da lembrança dos significados das
combinações, além da intuição recebida pelo orixá.
Conhecendo os desejos e as revelações do orixá, tais como: quais os ebós
58
serão
necessários, quais os orixás serão assentados, quais as folhas, etc. Através do jogo de búzios,
é marcada pelo líder de terreiro a data do encaminhamento do abiã para o quarto de feitura.
Muitas vezes, esse aposento fica localizado ao lado do quarto do peji.
Ribeiro (1978, p. 40) chamou esse tipo de aposento de “quartos para recolhimento
dos iniciandos” e afirmou que esses “são também utilizados pelos componentes das famílias
dos sacerdotes ou dos fiéis comuns, frequentemente numerosos”. Confirmamos durante nossa
pesquisa de campo, as palavras desse autor. Por sua vez, a autora Cacciatore (1988, p. 76)
denomina esse aposento de “camarinha”.
Geralmente, a data do recolhimento para o quarto é marcada após algum tempo de
observações, do líder da casa e de seus filhos-de-santo mais experientes, quanto ao
comportamento, hábitos e costumes do abiã.
55
Espécie de peneira enfeitada por colares, búzios, pedras africanas, etc. Alguns líderes de terreiros usam apenas
um local demarcado por guias, forrado e muito enfeitado para o jogo.
56
Essas combinações podem ser apreciadas nas obras de Bastide (1978) e Verger (1981), citados em nossas
referências.
57
Durante a pesquisa de campo, um de nossos líderes escolhidos jogou búzios para nós, ou seja, fizemos uma
consulta espiritual. Foi uma experiência interessante, visto que muitas respostas às perguntas elaboradas foram
acordantes com as de outros líderes anteriormente consultados por nós.
58
Ebós são as oferendas e sacrifícios doados pelos ará-àiyé iniciandos ou já iniciados. Eles podem ser: de rio, de
mata, de encruzilhada, de caminhos, de mar, de pedras, de linha de trem etc. Dependem do orixá que o receberá.
32
Foto n.4 - Quarto do Yaô (17/01/2008).
Nossos informantes afirmaram que é durante esse tempo de observações que o
iniciando compra todo seu enxoval (xocotó
59
, atakan
60
, ojá-ori
61
, axó-ierê
62
, entre outros
elementos pertinentes ao axó
63
) e, também, o material que será sacralizado, necessário na
feitura do santo, tais como: esteira, louças, artigos de barro, fios de conta ou as contas
64
,
sementes (obi, orobô), velas, azeite, mel, osedudu
65
africano etc.
Pai Carlito nos disse que o recolhimento na “camarinha” dura em torno de 21 dias
em sua casa, mas esse tempo difere de terreiro para terreiro e o custo de uma iniciação no
santo fica em torno de três mil e quinhentos reais, pois, segundo ele, só faz trabalhos com
coisas selecionadas
66
, tais como: galinha de capoeira, mel de abelha, obi e orobô africanos
etc.
O Babalorixá Carlito explicou que, quando o iniciando é confinado, esquece todos
os processos terrenos e, por esse motivo, é necessário que aprenda as tarefas simples do dia-a-
dia como: varrer, lavar louça, brincar, passar roupa etc. Essa etapa de aprendizado é uma das
59
Xocotó é a calça que os yaôs vestem nos rituais dos orixás..
60
Atakan é um pano utilizado nas vestimentas dos rituais do Candomblé. Com ele se cobre parte do corpo,
fazendo um laço nas costas. Quando a pessoa entra no transe, desfaz-se o laço e amarra-se ao peito do
incorporado.
61
Ojá-ori é a denominação que se dá à faixa de pano da cabeça dos adeptos do Candomblé (turbante).
62
Axó-ierê quer dizer a saia utilizada nos rituais africanos.
63
Axó são todas as roupas ritualísticas.
64
Quando compram as contas, deverão confeccionar os colares enquanto estão recolhidos.
65
Osedudu quer dizer, segundo o Babalorixá Carlito, uma espécie de sabão utilizado nos banhos dos yaôs.
Comumente, o povo-de-santo chama de sabão nagô.
66
É válido explicarmos aqui que existem à venda no mercado do Recife, em lojas de artigos religiosos,
elementos considerados de boa qualidade, como por exemplo, os obis africanos, o mel de abelha legítimo etc. e,
por isso, chamamos de “coisas selecionadas” os que são desse tipo.
33
últimas do confinamento e está relacionada à nova personalidade que a iniciação produz.
Segundo esse sacerdote, “na realidade, há uma simulação do aprendizado dessas tarefas
cotidianas. O yaô volta a aprender o que já sabia” (Cf. Entrevista 2c, em Apêndice B).
Verger afirmou sobre essa questão que
“A volta à consciência e à vida normal só se torna completa depois de uma
cerimônia chamada panam, durante a qual os novos iniciados devem
reaprender, como na África, as atividades da vida cotidiana. Os homens
imitam os trabalhos do campo e várias outras atividades; as mulheres
simulam as atividades domésticas, a ida ao mercado e outras ocupações
femininas. Os iniciados estão em estado de ‘erê’ e a festa transcorre numa
atmosfera alegre e jovial, que dá lugar a uma diversão relaxante, após os
dezessete dias de reclusão e rígida disciplina” (1981, p. 47).
Utilizando mais uma vez as palavras de Verger, “a iniciação não se faz no plano de
conhecimento intelectual, consciente e aprendido, mas em nível mais escondido, que vem da
hereditariedade adormecida, do inconsciente, do informulado” (Ibid, p. 44).
Através de Pai Carlito, compreendemos que a reclusão na camarinha de, pelo
menos, 21 dias tem grande importância, pois, “quanto mais dias de recolhimento, mais
conhecimento dos preceitos do santo e mais aprendizado do que foi esquecido” (Conf.
Entrevista 2d, em Apêndice B).
Participamos como observadores
67
durante a pesquisa, da lavagem das pedras de
otá
68
e dos fios de contas, da abertura de curas (pequenos cortes feitos em locais pré-
determinados do corpo, tais como: alto da cabeça, acima dos peitos, nos braços, nas pernas, na
língua) e de uma matança para o orixá Obaluaiê
69
.
67
Por motivos éticos, de respeito à religião e às pessoas amigas, não divulgaremos o nome do terreiro, nem do
pai-de-santo que permitiu nossa presença nestas cerimônias privadas, embora o líder tenha afirmado que não
haveria problema algum na exposição desse material. Então, frente a essa permissão dos interessados, editamos
algumas fotos tiradas e editadas por nós, ocultando rostos.
68
Pedra otá ou pedra de otá é uma pedra seixo que representa a força do axé do orixá. Cada orixá tem seu otá
específico. Ficam colocadas no assentamento do yaô.
69
Obaluaiê, Abaluaiê ou Obaluaê é o orixá da varíola. Também conhecido por Omulu. É o orixá que protege as
pessoas das doenças, principalmente as doenças na pele.
34
Foto n. 5 - Momento da abertura das curas.
A lavagem das pedras do otá, dos pratos e das contas (fios de contas) aconteceu
em um dos muitos intervalos entre os sacrifícios de animais. Foi executada por um iniciado.
Todos esses elementos foram lavados cuidadosamente, um a um, em uma bacia de alumínio
que continha uma mistura de ervas e água, formando um sumo esverdeado. Todas as etapas
desse ritual de lavagem, ou seja, de limpeza de energias para o recebimento do axé,
aconteceram num cenário de obrigações sacrificiais (no salão em que acontecem os xirês),
como pode ser visto na foto n.6, em que também estavam inseridas as penas das aves
sacrificadas. Tudo foi acompanhado de perto pelo líder e por todos os que ali estavam. No
momento da lavagem, o yaô não estava no salão, mas na camarinha, local em que dorme o
iniciando.
O conjunto de louça composto por pratos, bacias e tigela com tampa, quartinhas
com tampas e em formato de jarros
70
, elementos que fazem parte do assentamento de seu
orixá, dono de sua cabeça, foi arrumado lado a lado, em frente ao local escolhido para os
sacrifícios de animais de quatro patas e das aves, quase no meio do salão.
Enquanto aconteciam esses rituais, ouvíamos os ilus, tocados por crianças, que,
quando cansavam, eram substituídos por adultos do sexo masculino. Ao ouvir os
instrumentos, e motivados pelos gritos do pai-de-santo, os adeptos cantavam euforicamente.
Era perceptível a alegria dos fiéis em compartilhar daquele momento sagrado.
70
Esse conjunto de louça é conhecido por ibá pelo povo-de-santo e por vendedores de lojas de artigos religiosos
afro-brasileiros. Cacciatore (1988, p. 140 - 141) define ibá de duas maneiras diferentes: como uma gamela de
madeira (espécie de travessa) e como colar de balagandãs.
35
Foto n. 6 - Lavagem das pedras de otá (17/01/2008).
Outro momento importante na iniciação é o momento em que o iniciando,
incorporado, confirma e grita o nome de seu orixá (dono de sua cabeça), revelado
anteriormente pelo jogo de búzios. Também presenciamos esse momento de alegria,
compartilhado por todos os integrantes da cerimônia iniciática.
Estando revelado e reconhecido pelo orixá e pelos integrantes da comunidade do
terreiro, no momento em que é sabido seu nome no santo, o iniciando será distinguido dentre
os integrantes da casa em que está sendo iniciado e na sociedade da qual faz parte. Terá que
obedecer à hierarquia sagrada (rigorosa), agradar aos orixás, ao seu iniciador (seu líder), a
quem estiver hierarquicamente em uma posição acima da sua, a seus irmãos-de-santo e à
própria sociedade religiosa em que está inserido e à sociedade como um todo, cumprindo tudo
o que a tradição, repassada oralmente, exige.
Ou seja, no momento em que cumpriu as etapas iniciais de feitura no santo, o ará-
àiyé passa a ser reconhecido total e socialmente como integrante da religião Candomblé.
Assim, entendemos o que Mauss (2001, p. 383) queria explicar quando afirmou: “A
personalidade, a alma vêm, com o nome, da sociedade”.
No decorrer do processo de iniciação, existe um ritual bastante conhecido pelos
adeptos e fiéis das religiões afro-descendentes como bori.
36
Foto n. 7 - Preparação para a cerimônia ritual bori (27/06/2008).
O bori, também chamado de obori ou ebori, é uma cerimônia ritual muito bonita
realizada em terreiros. Ribeiro (1978, p. 70) define o bori como “um rito de fortificação do
ori”. Ori, segundo esse autor, quer dizer “um dos componentes da personalidade individual do
fiel” (Ibid.).
Verger (1981, p. 45) redigiu que bori é uma “oferenda à cabeça do abian”.
Bastide (1978, p. 30) explicou que “o nome popular que designa esta cerimônia
mostra bem tanto a função quanto o que tem de essencial: ‘dar de comer à cabeça’.
O bori é uma cerimônia que tem como finalidade fortificar a cabeça do abian, para
que receba o orixá dono de sua cabeça, para melhorar resistência de pessoas que estejam
doentes ou como “penitência pela quebra de algum preceito” (CACCIATORE, 1988, p.68).
Participamos, durante a pesquisa, dessa cerimônia no Terreiro Senhora de Santana,
ou seja, no Ilé Iemanjá Ogunté, cujo celebrante foi Paulo Braz
71
, a qual descrevemos abaixo:
Quando chegamos ao barracão, os integrantes da casa estavam terminando
de arrumar o salão com frutas (romãs, laranjas, cravos, melão, pinhas,
bananas, peras, uvas, mamão, mangas), arranjos de flores, dois bolos,
biscoitos, um inhame, uma tigela com sal, bombons, carne de boi e de porco
cruas, dois peixes crus de mais ou menos 50 centímetros, pão, refrigerantes,
pipocas, aguardente, várias outras bebidas alcoólicas, um prato, uma bacia
de ágata, uma tigela branca, uma caneca de louça, um copo de vidro e dois
castiçais com velas do tipo barandão. Conseguimos identificar, durante a
cerimônia, os seguintes materiais, comumente utilizados em rituais sagrados
do Candomblé, tais como: búzios, obi, orobô, efun e anil.
71
Paulo Braz é o filho de Malaquias, ou seja, neto de Pai Adão.
37
Parte do piso estava forrada com um tecido branco que continuava cobrindo
a parede. O teto do salão estava enfeitado com bandeirolas de papel. Havia
também nele uma gaiola com um passarinho.
O ritual, propriamente dito, começou com o Babalorixá (em silêncio),
sentado em um banquinho, jogando búzios (em um prato branco),
diferentemente da maneira usual que geralmente é executada em uma
peneira ou em parte de uma mesa forrada e preparada com elementos
apropriados. O líder mastigou sementes e arrumou, numa espécie de ritual,
todo o material disposto em seu entorno.
O rapaz que estava “dando comida à cabeça” vestia roupas brancas,
trazendo em seus ombros uma espécie de toalha de tecido rendado.
Pai Paulo experimentou tudo o que estava ali disposto aos pés do rapaz,
com sua boca, levando depois ao rapaz. Após esse ritual, ele ia arrumando
em duas tigelas (fomos informados que uma delas seria ofertada aos eguns).
Muitas invocações e cânticos foram repetidos.
Outros banquinhos estavam dispostos, um pouco afastado e logo atrás
daquele em que o líder cerimonial se encontrava.
Muitas crianças brincavam, enquanto a cerimônia acontecia, ora sentadas
em esteiras colocadas no lado oposto em que acontecia o ritual, ora
correndo e mexendo nos objetos sagrados, testemunhando livremente tudo o
que acontecia.
O rapaz, posicionado em frente ao Babalorixá, ficou sentado com as pernas
esticadas durante todo o ritual. Em certos momentos, aparentava sentir
câimbras nas pernas, devido àquela posição, mas, ao mesmo tempo,
externava uma felicidade inigualável de “dever cumprido” por estar
fortalecendo sua cabeça.
O pai-de-santo repetia e pedia em vários momentos para que todos os
presentes mentalizassem coisas boas para aquele rapaz, como também para
todos os que estavam presentes.
As pessoas integrantes daquela casa (todos vestidos de branco) respondiam
a todas as chamadas do líder tanto cantando, quanto com palavras africanas.
Dentre os alimentos crus dispostos em pratos brancos, os peixes foram os
primeiros ofertados.
Fomos convidados pelo irmão do Babalorixá para fazermos parte de uma
grande fila, formada para levar esse peixe até a cabeça do rapaz.
Os alimentos que estavam crus, após o oferecimento, um a um, eram
levados à cozinha para o cozimento.
As garrafas de bebidas foram abertas e dispostas em um copo, uma após a
outra, pelo líder e experimentadas tanto por Pai Paulo, quanto pelo rapaz.
Em seguida, eram encaminhadas à família do rapaz (esposa e filhos), para,
igualmente, serem ingeridas (Noite de quarta-feira, 27. 06.2008).
Diante do que presenciamos no Ilé Iemanjá Ogunté, notamos a importância do
papel exercido pela pessoa do líder, neste ritual. Somente um grande conhecedor poderia
executar tal papel. Bastide (1978, p. 248) afirmou que “A hierarquia do Candomblé é mais
uma hierarquia de obrigações do que uma hierarquia de direitos”. Assim, o compromisso de
um líder de terreiro com os antepassados e com a própria tradição religiosa, firmado em sua
38
iniciação, é publicamente demonstrado nos rituais privados e públicos com um prazer e
fidelidade invejável.
Segundo Verger (1981, p. 33), “caberá igualmente ao pai ou mãe-de-santo a tarefa
de levar a bom termo a sua iniciação, e preparar o ‘assento’ de seu orixá individual (o vaso
que contém os seus otás, as pedras sagradas, receptáculos da força do orixá). Existem, assim,
em cada terreiro de candomblé, múltiplos orixás pessoais, reunidos em torno do orixá do
terreiro, símbolo do reagrupamento, do que foi dispersão pelo tráfico”.
Ribeiro (1978, p.76) afirmou sobre as cerimônias privadas que “O maior cuidado é
tomado por sacerdotes e fiéis para que todas elas transcorram rigorosamente de acordo com o
ritual e sem perturbação alguma, temerosos das sanções sobrenaturais que nesse caso
incidiriam sobre eles”. Toda a responsabilidade espiritual pertence ao líder de terreiro. Sem
sua presença, agradar aos habitantes do Òrun é tarefa quase impossível dentro de um terreiro.
Essa responsabilidade na prática da liderança em terreiros, é igualmente
importante nos momentos dos sacrifícios animais, visto que o ritual exige o compromisso
tradicional de fidelidade aos orixás, como troca de todo axé doado.
1.3 O sacrifício
O sacrifício no candomblé tem como finalidade obtenção e distribuição de axé,
consagrando as “coisas” e as pessoas a partir do banho de sangue dos animais. Esse ritual é
uma das etapas exigidas na iniciação.
A palavra sacrifício sugere a matança dos animais, porém ela pode ter outros
significados. Mauss (1981, p.149 - 150) afirmou que: “deve-se chamar sacrifício toda a
oblação, mesmo vegetal, todas as vezes em que a oferenda ou que uma parte da oferenda, é
destruída, embora o uso pareça reservar o termo sacrifício somente à designação dos
sacrifícios sangrentos”.
Esse teórico, também, afirmou que o sacrifício serve para consagrar seres humanos
ou “coisas”.
Com efeito, é bem certo que o sacrifício implica sempre uma consagração;
em todo sacrifício, um objeto passa do domínio comum ao do domínio
religioso; é consagrado. Mas nem todas as consagrações são da mesma
natureza. Existem aquelas que esgotam seus efeitos no objeto consagrado,
qualquer que ele seja, homem ou coisa (MAUSS, 1981, p.147).
O sacrifício de animais de quatro pernas (bois, porcos, bodes, carneiros, cabras) e
de animais de penas (galinhas, galos, pintos, pombos, patos, guinés), “[...] representa a
39
transposição para o mundo sobrenatural [...]” (MOTTA, 1991, p.2). Representa, também, “[...]
o sentimento da dependência, desvalimento, dívida e culpa, que penetra a vivência religiosa”
(Ibid).
Apontada por Bastide (1978, p. 19), a função do sacrifício animal também é a de
alimentar, em primeiro lugar, os orixás, consagrados em seus elementos simbólicos, e os fiéis.
A invocação do orixá é a primeira etapa da cerimônia do sacrifício. Ela é feita
através de “[...] sopros de aguardente ou vinho sobre o assentamento do orixá, que fica
localizado no interior do quarto dos santos (também conhecido como peji)” (LINS, 2004, p.
53).
Os fiéis que participam dessa cerimônia, antes da imolação dos animais, são
“limpos”, através da passagem das aves sobre os corpos. A função desta “limpeza” é transferir
para os bichos todas as energias negativas que, porventura, carreguem.
Foto n. 8 - Sacrifício de aves sobre assentamento (17/01/2008).
O sacrifício é o grande emissor de axé, já que o sangue animal está impregnado de
uma força, proveniente de Olorun, que move a vida. Motta (1991, p. 25) afirmou que “Não há
Xangô
72
sem sacrifício”.
Quando o orixá não está satisfeito com alguma situação causada pelos ará-àiyé e
dá seu recado, através dos búzios, quando há iniciação, quando os fiéis ou os clientes de
terreiros precisam do fortalecimento da força que os move e que é proveniente das entidades,
72
Xangô é o termo de origem iorubana utilizado em: Pernambuco, Alagoas, Sergipe e Paraíba para designar as
religiões afro-descendentes. Também significa o nome do orixá da justiça, entidade dos raios e trovões.
40
serão feitas as obrigações sacrifíciais. Uma vez agradados, os orixás ou outras entidades
voltam a fortalecer seus filhos
73
.
A irradiação do axé é repassada pelo líder para todas as coisas e pessoas que
integram a comunidade do terreiro, já que ele é o maior conhecedor dos desejos dos orixás,
através da comunicação estabelecida com eles no jogo de búzios. Ou seja, o axé que impregna
em tudo e em todos do terreiro, é captado, a partir da consagração feita pelo derramamento do
sangue dos animais sacrificados, sob o comando do líder da casa.
Tentando uma interpretação maior sobre o papel exercido pelo líder no momento
do sacrifício, salientamos mais uma vez o que afirma Mauss e Hubert: “O sacrifício é um ato
religioso que, pela consagração de uma vítima, modifica o estado moral da pessoa que o
realiza ou de certos objetos pelos quais ela se interessa” (MAUSS; HUBERT, 1981, p. 151).
Ou seja, quando das obrigações de sacrifício a cada iniciação, o axé do líder da casa também é
modificado, recebendo mais força das divindades, mais axé e, assim, seu poder perante a
comunidade do terreiro é reforçado.
Lembramos que quem está oferecendo o sacrifício também recebe axé na mesma
proporção, mas o líder torna-se mais forte por já carregar um acúmulo de várias obrigações
cumpridas ao longo dos “anos no santo” e, assim, ocupa uma posição no topo da pirâmide
hierárquica do terreiro. Lins (2004, p.52) ressalta que os filhos-de-santo têm a obrigação de
agradar ao seu orixá, “dono” de seu ori, periodicamente, fazendo oferendas e sacrifícios.
Participamos, durante o período da pesquisa, de um sacrifício oferecido para o
orixá Omulu. Nossa participação como observadora foi proporcionada a partir de um convite
enviado pelo Babalorixá celebrante.
73
Quando nos referimos às outras entidades, estamos considerando, também, os que pertencem aos cultos
religiosos do candomblé-jurema.
41
Foto n. 9 - Separação da cabeça de um boi sacrificado para Omulu (17/01/2008).
Relembramos que os axoguns são os responsáveis pela imolação dos animais.
Depois de mortos, os animais sacrificados passam para as mãos das iabassês, que preparam,
tanto as oferendas dos orixás, quanto a comida que será servida para os fiéis.
Os animais são escolhidos para a matança, obedecendo a uma ordem, de acordo
com o que cada orixá deseja, como é exigida pela tradição desse ritual.
Afinal, o orixá já externou, no jogo de búzios, as exigências do ritual, que poderá
ter como finalidade: selar o comprometimento do fiel com o sobrenatural (oferendas de
iniciação ou periódicas) e, em outros casos, resolver uma situação de emergência, exigindo
uma solução imediata de troca entre ele (o orixá) e a pessoa possuidora do infortúnio.
Em todos os sacrifícios de que participamos como observadores durante a
pesquisa, os animais de quatro pernas ficavam à espera da morte, na parte externa do terreiro,
sendo trazidos para o sacrifício, um a um de cada vez, de acordo com a ordem instituída pelo
líder da casa, conforme a ordem repassada pelo orixá, através dos búzios.
Na matança para o orixá Omulu, de que participamos como expectadores, as aves
ficavam em uma espécie de tanque, na entrada do salão e, só eram trazidas para o salão, no
momento certo de cada imolação. Foi, neste mesmo dia, a primeira vez que vimos a matança
de um boi em um terreiro. Aos poucos, fomos adentrando na ótica diferenciada de mundo do
Candomblé e entendendo a sutileza da cerimônia.
42
Foto n. 10 - Oferenda para o orixá Omulu (17/01/2008).
Quando o boi foi imolado, partes de seu corpo, como por exemplo, as patas e a
cabeça, foram arrumadas em um aguidal
74
. Não conseguimos identificar se o sexo do animal
foi igualmente colocado neste prato. Não podemos esquecer que:
O sexo do animal sacrificado deve ser o mesmo da divindade que recebe o
sangue derramado; e o modo de matar varia igualmente segundo os casos:
corta-se a cabeça, esquartejam-se os membros, sangra-se a carótida, dá-se
um golpe na nuca. Varia também o instrumento de execução, que algumas
vezes deve ser uma ‘faca virgem’ (BASTIDE, 1978, p.18).
Cortada a cabeça do boi, o pai-de-santo levantou-a e todos os que estavam no local
ficaram eufóricos, gritando e batendo palmas. Nunca tínhamos visto tamanha “efervescência”.
Era contagiante a alegria que externavam.
Outra observação sobre o ritual de sacrifício e que tivemos oportunidade de
participar, aconteceu no mês de agosto, na casa do Babalorixá Raminho de Oxossi, no bairro
de Jardim Brasil. Foi uma oferenda anual (dois bois) para o Exu Vira Mundo.
No momento que chegamos à casa de Raminho, a cerimônia já estava
acontecendo. Diferentemente do outro terreiro que visitamos em dia de matança, havia uma
lavagem da cabeça de todas as pessoas envolvidas naquele momento. Fomos, assim,
convidados a participar, mais uma vez, de um ritual do Candomblé.
Duas grandes bacias de alumínio, anteriormente preparadas com chá de jurema em
uma mesa posicionada no centro do grande salão, acolhia os banhos que eram articulados pelo
Babalorixá. Ajudado pelos filhos-de-santo, Pai Raminho derramava aquele líquido na cabeça
de todas as pessoas que obedeciam à ordem de uma fila constituída por homens, mulheres e
crianças. Era notável o respeito dos filhos-de-santo para com o líder da casa.
74
Espécie de prato fundo de barro.
43
Após esse ritual, fomos todos para o lado externo da casa, pois os ogans
começavam a amarrar as patas do primeiro boi que seria sacrificado e que tinha o pelo preto.
Aglomeradas, as pessoas esperavam o grande momento, ansiosas.
O Babalorixá Raminho fez a imolação com um facão, incorporado pelo Senhor
Vira Mundo
75
. O sangue espirrou dentro de bacias de alumínio que continham vinho tinto.
Várias pessoas começaram a aproximar-se do animal em agonia para beber seu sangue.
Muitas delas entravam em transe, enquanto os tambores tocavam e a multidão cantava. Todos
externavam uma satisfação, naquele instante.
Depois que as partes do boi foram separadas para a oferenda no peji, os ogans
retiraram o couro de seu corpo. Toda a carne que restou foi tratada e levada para a cozinha do
terreiro.
Através de conversas informais, durante a cerimônia, ficamos sabendo que o
terreiro possui freezer para o acondicionamento das carnes provenientes de sacrifícios. Ao que
parece e segundo nossos informantes, a existência desse eletrodoméstico no terreiro é devido
ao grande número de pessoas nas festas e, por esse motivo, é necessário que se guarde carne
para eventuais necessidades na cozinha da casa. Lembramos que “O resto do alimento será
comido no fim da cerimônia pelos fiéis” (BASTIDE, 1978, p. 19). Também nos contaram que
o Babalorixá costuma distribuir a carne dos bois de sua casa com os filhos-de-santo, após as
cerimônias em que acontecem sacrifícios. Ou seja, o papel do sacerdote ganha caráter social.
Foto n. 11 - Mesa no centro do salão, local da lavagem de cabeça na casa do Babalorixá Raminho
de Oxossi (24/08/2008).
75
É costume dos adeptos, chamar a entidade Exu Vira Mundo de Senhor Vira Mundo ou Senhor Vira.
44
Lembramos que todas as observações das etapas de iniciação não aconteceram nos
terreiros escolhidos para a pesquisa, pois a elas não tivemos acesso nem fomos avisados. O
líder Carlito foi enfático e nos alertou, desde o início da pesquisa, que não permitiria a
presença de estudiosos nesses rituais. Por outro lado, foi ele quem mais colaborou com as
explicações de tudo que íamos testemunhando, ao longo da pesquisa
76
.
Um líder, conhecedor da tradição religiosa assume e comporta-se de acordo com o
que pede a tradição, pois “Quando se trata de tradições, a autoridade é feita, não somente do a
priori social, mas ainda do a posteriori social; não somente da obscuridade de pensamentos,
mas da antiguidade e da veracidade dos acordos humanos” (MAUSS, 1979, p. 198). Isto é,
todo sistema de troca (dar, receber e retribuir) que o líder coordena, distribui e é por ele
responsável, através do dom que recebeu de Olorun, é fundamentado em uma história e
experimentado em seu dia-a-dia, provocando efeitos nas “coisas” que compõem o terreiro,
incluindo, aqui, as pessoas.
76
Mas isso não quer dizer que não recebemos explicações da Yalorixá Mércia. Pelo contrário. Como a
conhecemos há muito tempo, sabemos de sua labuta diária e não queríamos, assim, incomodá-la. Entretanto, em
várias ocasiões, telefonamos para ela, para solucionar nossas dúvidas sobre o significado de vários símbolos e
representações do Candomblé. Todas as vezes que isso aconteceu, fomos atendidas imediatamente com muita
simpatia por Mãe Mércia
.
45
2 REALIDADES SINGULARES DOS TERREIROS E DE SUAS LIDERANÇAS
Neste capítulo, trataremos das singularidades que identificamos nos terreiros
formalmente escolhidos para nossa pesquisa, apresentando como foram fundados, como
organizam suas festas e como aconteceram as iniciações de seus líderes.
Nosso objetivo é demonstrar que as lideranças desses terreiros apresentam
particularidades resultantes das habilidades que seus líderes possuem, inatas ou desenvolvidas
pelas situações que enfrentaram desde o início de suas caminhadas até os dias atuais.
2.1 Ilê Axê Oxum Opará
Foto n. 12 - Ilé Axé Oxum Opará (2007).
Situado na Rua Jandiroba, 72, no bairro de Campo Grande, o terreiro Ilé Asé
Oxum Opará apresenta uma construção simples, porém agradável. É liderado pela Yalorixá
Mércia de Oxum. Sua fundação foi em meados da década de setenta
77
.
Dentre as casas circunvizinhas, a de Mãe Mércia é a mais frequentada. Em todas
as ocasiões em que lá estivemos para visitá-la e para entrevistá-la, pessoas amigas, clientes e
parentes chegavam à procura da Yalorixá, demonstrando que ela é uma pessoa muito querida
entre eles.
77
A Yalorixá Mércia esqueceu a data exata da fundação, quando fomos entrevistá-la. Ela confidenciou-nos que,
por tratar-se de documentos importantes, estavam guardados em sua residência no bairro da Madalena e, por
isso, não poderia informar com precisão.
46
Mãe Mércia, no decorrer da entrevista, informou-nos, que ganhou de uma cliente o
terreno em que construiu sua casa. Um pedido feito por essa cliente à cabocla
78
e que foi
prontamente atendido
79
.
Para a construção da estrutura física do terreiro, a líder contou com a ajuda da
própria clientela, que, ao longo dos anos, foi crescendo, devido aos comentários positivos
sobre as “graças” alcançadas e os desejos realizados. Mãe Mércia conseguiu recursos para a
construção de sua roça, através de sua habilidade eficaz como líder, atraindo cada vez mais
clientes.
Através de trabalhos efetuados e/ou oferecidos às entidades
80
com que trabalha
espiritualmente na parte de Jurema
81
, a líder Mércia conseguiu satisfazer os desejos e anseios
de sua clientela, nascendo, daí, atos de retribuição pelos resultados conseguidos. Compras de
materiais de construção e ajuda em dinheiro foram ofertadas à Yalorixá, reforçando a
sobrevivência do terreiro.
Entendemos, aqui, o sentido da afirmação de Mauss, quando concluiu que “Se se
dão e se retribuem as coisas, é porque se dão e se retribuem ‘respeitos’ – dizemos ainda
‘gentilezas’. Mas é também porque o doador se dá ao dar, e, ele se dá, é porque ele se ‘deve’ –
ele e seu bem – aos outros” (MAUSS, 1974, p. 129). Compreendemos, assim, que houve uma
reciprocidade entre o poder da Yalorixá, como intercessora dos orixás, e o poder econômico e
financeiro dos clientes, ou seja, uma “troca” em que os clientes, como contraprestação aos
serviços espirituais da líder, retribuíram com bens materiais e financeiros.
Dessa forma, a edificação do terreiro Ilé Axé Oxum Opará foi acontecendo por
etapas, à medida que as condições para a compra dos materiais de construção e para o
pagamento da mão-de-obra iam surgindo, por meio da clientela satisfeita.
Em cima do muro do terreiro de Mãe Mércia estão dispostas, lado a lado, duas
quartinhas de barro. Uma pintada de branco e a outra sem pintura demonstram a todos os
transeuntes que aquela casa é uma casa de Candomblé, embora a função desses elementos de
barro não seja só o de apontar que se trata de uma casa sagrada, pois, geralmente, esses
elementos simbólicos têm como conteúdo axés plantados (búzios, pedras, ervas, etc.) ou
mesmo água, funcionando como medida de segurança, de “firmeza” do terreiro.
78
Essa cabocla é uma entidade que Mércia incorpora, quando trabalha no culto de Jurema.
79
A cura de sua filha, que na época tinha uma ano de idade, foi o motivo deste presente.
80
As entidades, segundo a Yalorixá, são: Pomba Gira Cruzeiro, Exu Tiriri, Pomba Gira Cigana, Pomba Gira
Padilha das Almas, Mestra Luziara, Mestra Paulina, Mestra Laurinda (que baixa apenas na festa do Coco)
Mestre Zé Pretinho, Mestre Pilão Deitado, Cabocla Jupitiara e Caboclo Oxossi.
81
Muitos terreiros da cidade do Recife cultuam os orixás da casa, mas também cultuam a Jurema. O terreiro de
Mãe Mércia de Oxum faz parte desse grupo. No terreiro de Pai Carlito só existe o culto aos orixás.
47
Verificamos que os terreiros do Recife, nos dias atuais, diferentemente da época
em que aconteceu a pesquisa de Ribeiro em que as casas de culto não eram fáceis de ser
identificadas, são percebidos por qualquer pessoa que esteja passando na rua onde estão
localizados. Apreciarmos o comentário escrito por esse autor, sobre esta questão, é uma
curiosidade:
Essas casas não são fáceis de identificar, o observador casual apenas se
apercebendo da sua existência pelo som dos tambores nas noites de alguma
festividade ou pela convergência dos fiéis quando dos dias de cerimônia.
Razões econômicas e o propósito de não atrair a atenção, especialmente da
polícia, parecem-nos as principais razões de tal anonimato – as garantias
constitucionais para livre funcionamento desses cultos não tendo sido ainda
capazes de tornar dispensáveis as cautelas que os vários períodos de
perseguição policial ostensiva ou velada ditaram aos seus responsáveis
(1978, p. 40).
Após o portão de entrada do terreiro Ilé Axé Oxum Opará, do lado esquerdo de
quem entra, existe uma pequena área, espécie de quartinho que está sempre de porta fechada.
Nesse local, encontramos a casa do Exu “guardião da casa”, cujo nome, segundo a Yalorixá, é
Exu Tirilonã, Exu do orixá Oxum.
Do lado direito de quem entra, fica a porta que dá acesso ao peji
82
de Jurema, local
em que estão assentadas as entidades de Jurema neste terreiro. Nele, a imagem que mais se
destaca, dentre todas as que lá estão, é a de Pomba Gira Cruzeiro
83
.
De costas para o portão de entrada, mas ainda na pequena área, fica também a
porta de comunicação para o salão principal. No salão, a parede principal é decorada com
fotos (anexo A) da Yalorixá (incorporada) em várias festas; um certificado (anexo B)
conferido pela Associação Pernambucana de Apoio aos Cultos Afro-brasileiros do Estado de
Pernambuco
84
; uma placa (anexo C) com o nome do terreiro e, também, uma espécie de figa
esculpida em um chifre de boi, com galhos de arruda.
Do lado direito, no salão principal, fica a porta de entrada do quarto dos orixás, o
peji dos orixás. Nesse pequeno cômodo, estão os assentamentos dos orixás, donos da casa,
82
Alguns autores adotam a grafia desta palavra, que significa o local em que estão assentados os orixás ou quarto
em que estão as imagens e os elementos que pertencem aos orixás, da seguinte forma: “pegi”. René Ribeiro
(1978) é um destes. Porém adotamos a grafia peji com a letra “j”, igualmente à utilizada por Bastide (1978),
Pereira (1994) e Brandão (1986) em suas descrições.
83
Durante nossa pesquisa, tivemos a oportunidade de conversar com essa entidade, incorporada em Mãe Mércia.
84
Este documento, com data 3 de agosto de 2004, habilita Mércia Maria Rosa dos Santos (Mãe Mércia) a
promover manifestações de cultos afro-brasileiros, na qualidade de associada.
48
igualmente aos que são donos da cabeça da líder
85
, além dos assentamentos de seus filhos-de-
santo
86
.
Ao lado da porta de entrada para o peji dos orixás, existe um grande batente, onde
ficam os ilus. Ainda no salão principal, no lado oposto à porta que dá acesso ao quarto dos
orixás, existe outro batente que dá acesso à cozinha, a outro quarto, que, em dias de festas,
abriga os filhos-de-santo, em suas trocas de vestuário, e ao banheiro. Toda a área do terreno
está construída, não apresentando espaços livres para novas ampliações.
Mãe Mércia não mora mais nesse endereço
87
, mas nele passa os dias úteis da
semana, atendendo à sua clientela e fazendo suas obrigações religiosas. Para conciliar todo
esse trabalho com a criação de seus filhos e neta, resolveu conciliar sua vida de mãe com a de
líder religiosa, pelo menos durante a semana. Por esse motivo, em muitas ocasiões, os espaços
sagrados são invadidos por objetos de um lar.
Observamos, durante as festas do Ilé Axé Oxum Opará, que, na cozinha, são
preparados alimentos infantis, ao mesmo tempo que são preparadas as comidas dos orixás.
Assim, apontamos a garra, a coragem e a dedicação de uma mulher que consegue contornar as
situações difíceis e variadas que aparecem em sua trajetória de vida.
Compreendemos que esta Yalorixá, em seu dia-a-dia, exerce uma dupla jornada de
liderança, atendendo e norteando a todos de seu convívio, ao mesmo tempo, buscando
recursos: espirituais, cumprindo suas obrigações para com seus orixás e materiais, através de
sua clientela.
Em todas as ocasiões em que estivemos na casa de Mãe Mércia, seja em dias
festivos ou não, houve uma atenção especial por parte dessa Yalorixá para conosco, sempre
oferecendo lanches, agrados e gentilezas como também permissão para as observações e para
as fotografias de certos locais e de certos momentos rituais.
Atualmente, Mãe Mércia transferiu os assentamentos dos orixás para uma casa de
sua propriedade, localizada no bairro do Janga. Segundo ela, a edificação localizada no bairro
de Campo Grande está necessitando de reparos, visto que apresenta rachaduras em certas
paredes. Ela nos confidenciou que jogou os búzios, quando soube que a estrutura apresentava
perigo, e Pomba Gira afirmou, através do jogo, que ela deveria recolocar todos os
assentamentos na casa do Janga, ficando apenas seu próprio assentamento.
85
São eles: Oxum, Oxum (como juntó) e Oxalá (disjuntó).
86
Mãe Mércia permitiu que entrássemos e fotografássemos o santuário e também o quarto de Jurema.
87
Em outras décadas, o terreiro de mãe Mércia era também sua residência. Foi ali que criou três de seus filhos.
49
Mércia explicou-nos que essa decisão da Pomba Gira Cruzeiro foi assim tomada,
pois muitos de seus clientes, do bairro de Campo Grande e adjacências, não se
disponibilizariam a fazer o deslocamento para o bairro do Janga, pois alegariam distância.
2.2 Ilê Asé Osun Kemi
Foto n. 13 - Ilê Asé Osun Kemi (2008).
Descrever o terreiro Ilê Asé Osun Kemi, conhecido como a casa de Pai Carlito de
Oxum não é uma tarefa difícil, visto que tudo nele se encontra em perfeita ordem. A casa
desse Babalorixá pertence à nação
88
ketu e fica na Rua Felipe de Oliveira, nº 24, Vila da
Sudene – Ipsep.
A rua é asfaltada e aparentemente calma, com uma vizinhança compreensiva,
resultado, segundo o Babalorixá, de conversas informais e de um acordo firmado entre o líder
religioso e seus vizinhos mais próximos,
89
que, em tempos anteriores, tentavam atrapalhar os
toques.
88
A palavra nação significa, neste contexto, grupos de pessoas que chegaram ao Brasil, provenientes do
continente africano, como escravos e que cultuavam entidades sobrenaturais de uma mesma etnia africana. Nos
rituais de cada terreiro de candomblé, o conjunto de símbolos e representações de cada nação, pode ser
identificado, como por exemplo, ketu, jeje, angola, etc.
89
O acordo estabeleceu os horários dos toques, convenientes aos domingos, na parte da tarde, com horário
determinado para finalizá-lo (21:30 h).
50
Nossa primeira visita ao “barracão”
90
de Pai Carlito aconteceu no ano de 2007.
Naquele dia, acontecia um toque para as Iabás (orixás femininos: Iemanjá, Oxum e Iançã).
Fomos recepcionados por três filhos-de-santo, entre eles, a ekédi da casa, trajados com roupas
belíssimas e de um bom gosto invejável.
A casa de cor branca se destaca dentre as demais que se situam na mesma rua,
pela presença de três jarras de barro, cuidadosamente colocadas em cima do muro da frente.
Em dias de toque, essas jarras estão sempre enfeitadas com laços de tecidos, que combinam
com a decoração, idealizada pelo próprio líder religioso e, também, com as roupas dos filhos-
de-santo. Atualmente, por precaução, frente à violência em que vivemos na cidade do Recife,
foram colocadas grades na cor branca, no alinhamento superior do muro.
Ao passarmos pelo portão principal, adentrando em uma espécie de jardim, existe
a casa do Exu “guardião”, situada no lado direito de quem entra, conjugada ao muro que
delimita o imóvel. Junto à casa do Exu, existe uma árvore que pode ser vista da rua, na qual
identificamos uma bandeira confeccionada em tecido branco, símbolo do orixá Oxalá, na
nação ketu.
91
Em um espaço de alvenaria, por trás da árvore que abriga a bandeira branca,
localiza-se o peji. Nele, imagens africanas estão dispostas uma ao lado da outra, com seus
devidos assentamentos.
Através de um bequinho que começa em frente ao peji e separa a área da
residência do Babalorixá e o muro da casa vizinha, chegamos ao salão. Nas paredes deste,
vislumbramos quadros com pinturas dos orixás, fotos do líder, um relógio de parede,
ventiladores, máscaras africanas, chifres de boi enfeitados com galhos de arruda, um espelho
e alguns objetos decorativos. Outros elementos ajudam na composição do cenário sagrado,
tais como: jarras grandes com flores, algumas cadeiras e o “trono” de Pai Carlito, que, em
dias de festa, está sempre decorado.
No centro do piso do salão, identificamos o lugar onde foi plantado o axé do
terreiro, denominado intoto ou mina, demarcado por uma jarra de barro, coberta e decorada
com tecidos. Acima do intoto, pendurado ao teto, há outro elemento de barro, também coberto
por tecidos decorativos e que é comumente conhecido como cumeeira ou edun ará.
90
Barracão é uma das muitas denominações que os terreiros de Candomblé têm. Muitos autores fazem, também,
uso das palavras: roça e templo quando se referem ao terreiro.
91
Durante a pesquisa, fomos informados por Pai Carlito que essa bandeira é colocada em terreiros de nação:
Angola e ketu. Na nação Angola, simboliza o orixá Tempo. Já na nação Ketu é uma homenagem e, ao mesmo
tempo, um pedido a Oxalá, para que traga paz e coisas boas para o terreiro.
51
Foto n. 14 - Intoto (mina); Foto n.15 - Edun ará (cumeeira).
Delimitado no solo e no teto dos terreiros, o local central do salão representa o
lugar em que acontece a intersecção dos mundos àiyé e òrum, “[...] que une o axé da terra ao
céu dos Orixá [...]” (BASTIDE, 1978, p. 82). Explicando melhor, é a ligação do mundo dos
homens com o mundo sobrenatural, na perspectiva da cosmovisão africana, onde os mundos
se tocam.
Estas demarcações simbólicas, encontradas no centro do salão da casa de Pai
Carlito, são objetos, igualmente ao poste apontado por Bastide, que significam a
representação do laço entre o mundo dos homens e o mundo dos seres sobrenaturais, orixás e
eguns.
No entorno deste local, acontece a “gira”
92
, e são invocados os orixás, “[...] numa
certa ordem que varia de candomblé para candomblé, mas que, por ocasião das festas
públicas, é muitas vezes a mesma em santuários determinados” (Ibid, p. 22).
Notamos, durante e em todos os momentos de nossa pesquisa de campo no terreiro
de Pai Carlito, que ele é, antes de tudo, uma pessoa dona de um carisma, frente a seus filhos-
de-santo. Organizado e disciplinado e, ao mesmo tempo, enérgico com seus fiéis, constrói sua
história de liderança religiosa de maneira simples. Porém, quando está em pleno exercício de
suas práticas de liderança no interior de seu terreiro, apresenta-se sério, tomando a postura
exigida a quem exerce o cargo no topo de uma pirâmide hierárquica no Candomblé
93
.
92
Gira é a denominação da dança ritualística nas religiões afro-brasileiras, ou seja, o mesmo que xirê.
93
O poder e a autoridade, concedidos aos babalorixás e Yalorixás dos terreiros, pelos orixás, e pela própria
tradição, remete a uma postura sacerdotal que, em certos momentos, pode parecer afetada. Diferenciado e
estendido além dos muros dos terreiros, é entendido como um comportamento advindo do próprio cargo ocupado
na hierarquia terreiro do qual fazem parte. Compreendemos, então, que o comportamento de um líder de casas de
matriz africana é uma atribuição (responsabilidade) exigida pelo próprio topo da pirâmide hierárquica. Se o
52
O que nos chamou atenção, também, foi a administração praticada por esse líder,
com sua jornada de vida dupla, distinguindo claramente a esfera privada, da religiosa. Nos
momentos extrarreligiosos, em que estivemos com o Babalorixá Carlito, ele mostrou-se uma
pessoa alegre, extrovertida, engraçada e gentil, além de esclarecida sobre o que acontece no
mundo atual. Quando conversávamos sobre sua religião, Pai Carlito nos ministrou verdadeiras
“aulas” sobre o Candomblé ketu
94
.
Uma curiosidade que nos fez refletir sobre os “barracões” de Pai Carlito e de Mãe
Mércia foi a de que, em dias de festa todos os participantes, incluindo, aqui, as pessoas
convidadas, têm acesso a todos os locais da casa, inclusive a área construída que dá passagens
para quartos, sala, banheiro e cozinha.
Os elementos simbólicos e representativos da religião Candomblé nesses terreiros,
como também os objetos e cômodos que compreendem uma residência comum, foram
adaptados por falta de espaço. Daí, a inevitável função dupla dos cômodos, principalmente a
cozinha, como já explicamos anteriormente.
Por isso, acreditamos que os contextos singulares dos terreiros pesquisados, bem
como suas lideranças pessoais, são externadas dentro de processos culturais que se adaptaram
ao longo dos anos. Buscando a continuidade religiosa, as lideranças de Mãe Mércia e Pai
Carlito seguem o conhecimento tradicional que lhes foi repassado, enfrentando e atravessando
novas situações, construindo cenários próprios, embora sofrendo influências do mundo em
que estão inseridos.
Reforçando o argumento anterior, essas casas
95
escolhidas para a pesquisa refletem
a imagem das lideranças exercidas pelas pessoas proprietárias, até nas suas estruturas
edificadas. Refletem principalmente, a força do axé que lhes foi doada por Òlorun. O papel de
líder religioso, considerado por nós como “dom”, agrega valor às “coisas”, agrega a alma de
seus líderes às coisas. Sem essa força, os símbolos e representações não seriam suficientes
para que as lideranças acontecessem.
Quando das explicações sobre o direito maori, Mauss (1974, p. 56) constatou que
“[...] o vínculo pelas coisas, é um vínculo de almas, pois a própria coisa tem uma alma, é
mundo hoje é marcado pela imagem, esse comportamento reflete uma espécie de modelo a seguir pelos futuros
líderes de terreiros. Ao mesmo tempo, para a sociedade que percebe e interpreta tudo o que lhe concerne , o
comportamento do líder de terreiro, quando está fora deste, demonstra a imagem de líder religioso que é.
Expondo como é, o líder de terreiro mostra também como é exercida e praticada sua liderança.
94
Suas explicações foram de grande valia para nós, pois aprendemos a discernir algumas diferenças entre as
nações jeje e ketu, como por exemplo: no jeje, yaô é chamado de vodunsi. Outra característica própria da nação
jeje é que alguns rituais não são realizados, como por exemplo, o denominado “águas de Oxalá”.
95
Escrevemos a palavra casa ao invés de terreiro em muitos momentos desse trabalho por uma questão de
articulação descritiva. Assim, ela (a palavra casa) refere-se ao local edificado do culto aos orixás.
53
alma”. Ou seja, as roças lideradas por Pai Carlito e Mãe Mércia são vinculadas aos seres do
Orun e qualquer pessoa poderá perceber a imagem transmitida e revelada de suas lideranças,
da mesma maneira que as instituições de qualquer natureza refletem a imagem dos seus
líderes administradores.
2.3 Festas anuais
As festas anuais em terreiros brasileiros são denominadas de diferentes maneiras,
dependendo da região em que estão inseridas. Em Pernambuco, o Candomblé é conhecido por
Xangô
96
, para denominar as casas que cultuam deuses de origem yorubá. Segundo Brandão,
há, na cidade do Recife, xangôs tradicionais e xangôs umbandizados
97
. “Têm em comum, e
este é o ponto mais importante, o uso do sacrifício ritual e a operacionalização dos ritos,
começando ou terminando com a oferta de diferentes alimentos às diversas entidades de seu
panteão religioso” (BRANDÃO, 1986, p.12).
Em vários momentos de nossa pesquisa, testemunhamos a importância das festas
para “o povo do santo”, já que é delas que os fiéis de uma casa-de-santo demonstram sua fé;
suas condições econômicas; suas relações com a comunidade do santo; suas habilidades na
cozinha, através dos pratos, demonstrando os dotes culinários das iabassês
98
; no canto, quando
estão cantando as toadas no xirê; na costura, através dos axós, que são as roupas utilizadas nos
rituais do Candomblé; na organização da festa, incluindo aqui a decoração etc.
é uma das mais expressivas instituições dessa religião e sua visão de mundo,
pois é nela que se realiza, de modo paroxístico, toda a diversidade dos
papéis, dos graus de poder e conhecimento a eles relacionados, as
individualidades como identidades de orixás e de ‘nação’, o gosto, as
funções e alternativas que o grupo é capaz de reunir. Nela não encontramos
apenas fiéis envolvidos na louvação aos deuses; muitas outras coisas
acontecem na festa. Nela andam juntos a religião, a economia, a política, o
prazer, o lazer, a estética, a sociabilidade, etc. (AMARAL, 2005, p.30).
Conhecidas como xirê ou gira, as festas para os Orixás “consomem boa parte do
tempo e do dinheiro do povo-de-santo, mantendo o grupo coeso em função de sua produção e
realização. Ocupam uma posição especial em suas vidas, marcadas pela cotidiana ocupação e
preocupação com elas” (Ibid, p. 29).
96
Lembramos que esta palavra, em princípio, é o nome de um Orixá.
97
Sugerimos a leitura da tese de doutoramento, em Ciências Sociais, desta estudiosa.
98
Iabassês são as mulheres encarregadas do preparo dos pratos para os orixás, ou seja, encarregadas das cozinhas
dos terreiros.
54
Todas as comemorações festivas privadas ou públicas começam pelo padê
99
, que
tem o intuito de pedir proteção ao orixá Exu, para que tudo corra bem durante a cerimônia que
está começando.
Bastide esclareceu que “Embora o padê se dirija antes de tudo a Exu, comporta
também obrigatoriamente uma oração para os mortos ou para os antepassados do candomblé,
alguns dentre eles sendo mesmo designados por seus títulos sacerdotais” (1978, p.20).
Foto n. 16 – Festa de Oxum
Mãe Mércia pertence à nação jeje
100
e Pai Carlito à nação ketu
101
, embora a
Yalorixá seja madrinha de santo de Pai Carlito. Entretanto, não se deve a esse fato a
programação de seus calendários de festas anuais serem diferentes.
É útil explicarmos que, embora, na nação jeje, as entidades cultuadas sejam
chamadas voduns, enquanto que na nação ketu, orixás, Mãe Mércia, quando se refere às
“entidades de santo,” chama-os de orixás. Essa curiosidade pode ser apreciada nas próprias
palavras da Yalorixá, quando, por exemplo, disse: “Orixá é terra, né?” (Cf. Entrevista 3b, em
Apêndice B).
99
Padê ou despacho para Exu é um ritual que acontece antes de iniciar qualquer festa nos terreiros. Trata-se de
um pedido com oferenda ao Orixá Exu.
100
A nação jeje, que também é grafada por muitos autores como gege ou gêge, diz respeito ao culto, a crença,
aos costumes e ritual religioso, originários da união dos povos africanos vindos do Daomei, que chegaram ao
Brasil como escravos e que falavam a língua ewe. Cacciatore afirma que os iorubanos (nagô) foram os que mais
absorveram a cultura daomeana (1988, p. 153 - 154).
101
A nação Keto ou Ketu descende de uma tribo Yoruba. A cultura desse povo é conservada pela tradição
repassada oralmente até os nossos dias. Os três terreiros mais tradicionais de Candomblé do Brasil pertencem a
esta nação: Ilê Iyanassô, Ilê Iyá Omi Axé Iyamassê e Ilê Axé Opô Afonjá.
55
Não podemos esquecer que as realidades dos terreiros são diferentes e que cada
líder é uma pessoa singular e, por isso, não pensam de forma igual. Cada terreiro tem seus
orixás e cada líder tem como “dono de sua cabeça” um orixá, que nem sempre coincide com
os dos seus iniciadores, padrinhos no santo e madrinhas no santo. Assim sendo, os calendários
festivos dos terreiros também diferem, podendo as festas e outros atos religiosos, em raras
ocasiões, coincidirem.
A Yalorixá Mércia e o Babalorixá Carlito têm como “donos de suas cabeças” o
orixá Oxum
102
, porém as datas festivas em suas casas, para esse orixá, não são coincidentes.
Ao perguntarmos à mãe Mércia quantas festas são organizadas por ano, ela nos
respondeu:
Ao todo eu dou umas dez festas, fora a reunião. A primeira eu dou
com festa de preto-velho. Mês de maio, dia treze, dia dos escravos. A
segunda também é no mês de maio, que é um dos últimos domingos,
que é a panela de Iemanjá. Eu tiro no mês de maio. Mês de julho eu
tenho filho-de-santo, a festa de Xangô. É São João. No mês de junho
eu dou obrigação pra filho-de-santo que eu tenho no nagô, presente
pra Oxum. E o presente da casa é no mês de setembro. De Oxum. E as
festa das criança. E as festa dos Irê. No dia doze, das crianças. Dia 27
eu dou... o Cosme Damião, porque cliente vem, traz pra mim dar prás
criança... Agora, da casa, eu faço uma festa pras criança (Cf.
Entrevista 3c, em Apêndice B).
Ao ouvirmos essa explicação, sentimos falta da festa do orixá Iansã. Então,
perguntamos se faltava a citação de alguma outra festa, no que a Yalorixá respondeu: “Tem.
Que é a festa de Iansã. Dia treze de dezembro” (Cf. Entrevista 3d, em Apêndice B). A
Yalorixá continuou a nos esclarecer: “E o encerramento, no dia 29, com Luziara, a mestra da
casa. Até o ano... só é aberto dia de Reis, dia 6. Dia 6 de janeiro. Com a abertura. Com a
reunião” (Cf. Entrevista 3e, em Apêndice B).
Pai Carlito, deu essa informação sobre o calendário anual de suas festas:
Cada casa tem os seus Orixás que cultuam, que fazem festa. Na minha
casa, começa com as “Águas de Oxalá”, na outra semana é “O pilão
de Oxalá”. São duas festas conjugadas uma com a outra. Depois vem a
festa de Ogum; depois tem a festa de Xangô; tem a festa..., tem o
Olubajé, que é a festa da família Jeje, que inclui Omulu, Nanã e
Oxumaré, Becem, e tem... a festa da Iabás, quando todos os orixás
femininos são cultuados”. “A última do ano seria a das Iabás” (Cf.
Entrevista 2e, em Apêndice B).
Ao terminar de ouvi-lo falar sobre as comemorações que acontecem anualmente
em seu terreiro, perguntamos se havia fechamento em sua casa. Ele foi rápido em sua
102
Oxum é o orixá das águas doces (rios) ou a deusa das águas dos rios, lagos e cachoeiras. É também a deusa da
beleza e da riqueza.
56
resposta: “eu não tenho fechamento de terreiro, mas tem casas que fecham de acordo com a
quaresma, vem abrir emCorpus Christi”. Tudo depende da casa. Não, não vejo necessidade,
mas têm casas que fecham” (Cf. Entrevista 2f. em Apêndice B).
De tudo que vimos e presenciamos nas festas em que participamos, o que mais
chamou nossa atenção foi a comida, sempre saborosa e farta. Tudo que foi servido externava
o cuidado do preparo e a simbologia sagrada
103
.
Foto n. 17 - Mamãe Oxum dançando em sua festa;
Para um líder de terreiro, uma festa pública é de grande importância, já que, nela,
será externado e presenciado por todos a sua liderança, que será entendida e interpretada
positiva ou negativamente por todos os participantes e convidados, criando opiniões diversas
no que tange à credibilidade da casa e do líder.
Segundo Amaral (2005, p.31), “A festa é o momento em que a identidade dos
grupos se expressa plenamente”. Essa autora também afirma que “A festa mostra o que o
grupo é e como pensa” (Ibid, p.32). Ou seja, um grupo de pessoas adeptas de um xirê é, antes
de tudo, o reflexo de uma liderança, já que o conhecimento de tudo o que existe nos terreiros,
inclusive de tudo o que se refere às festas, é repassado pelos líderes. São elas que influenciam
seus fiéis, levando-os ao alcance dos objetivos de agradar aos orixás, desaguando na missão
religiosa, transmitida publicamente nos dias de festa.
103
Dos pratos experimentados por nós, o mais saboroso, em nossa opinião, é o ipeté
103
. Dentre as bebidas, o
xequeté
103
nos revelou um sabor especial.
57
Identificamos que “Os orixás festejados atualmente com maior frequência nos
terreiros de Pernambuco são Exu, Iemanjá, Xangô, Oxum, Ogum e Iansã” (LINS, 2004, p.85).
Nos dois terreiros pesquisados, a entidade comumente festejada é Oxum, pois,
como já explicamos, ambos os líderes têm esse orixá como dono de suas cabeças. Tivemos
oportunidade de participar das festas para esse orixá em ambos os terreiros, porém
descreveremos, aqui, o que foi visto na casa de Pai Carlito
104
.
Chamou-nos a atenção também, na festa de Oxum, no terreiro Ilê Asé Osun Kemi,
a decoração do salão, especialmente o “trono” do Babalorixá Carlito. Esse local estava
enfeitado com grandes flores de girassóis, arrumadas em jarras cuidadosamente cobertas por
um tecido na cor amarelo-ouro, e com laços brilhantes da mesma cor.
O brilhantismo dos tecidos também podia ser visto em outros elementos
decorativos do salão. O intoto e o edun ará acompanhavam a mesma ornamentação do trono e
dos enfeites nas paredes do salão, ou seja, estavam enfeitados com tecidos na cor amarela e
laços dourados. Outros elementos preparados anteriormente representavam detalhes
específicos do orixá Oxum.
Pai Carlito, no dia da festa do orixá dono de sua cabeça usou três roupas diferentes
durante a festa. No início, ele vestiu pantalona e bata na cor branca e usava um colar, próprio
dos Babalorixás filhos de Oxum, de cor amarela e laranja. Sua cabeça estava coberta por uma
espécie de boina, também branca.
Depois de algumas toadas, o pai-de-santo entrou em transe, dançou por alguns
minutos e retirou-se. Voltou ao salão, trajando outro conjunto, pantalona, bata e boina, bege
com detalhes dourados. Em seu pescoço, além do primeiro colar já descrito anteriormente,
outros foram acrescentados, eram compostos de pedras murano na cor marrom.
Quando Pai Carlito, incorporado pelo orixá Oxum, apareceu pela terceira vez, já
havia trocado de bata. Dessa vez, muito mais rica em detalhes dourados. Sua cabeça estava
coberta por um tecido branco que terminava na parte da nuca com um enorme laço. Em seu
peito, estava enrolado um tecido branco, com um grande laço frontal.
Todos os filhos-de-santo de Carlito, diante da incorporação, adquiriram um
comportamento reverencial para com o orixá. Cantaram com euforia, bateram palmas,
aparentando respeito e devoção ao mesmo tempo.
104
Passamos mais tempo pesquisando no terreiro de Pai Carlito, devido à facilidade, no que diz respeito à
distância de nossa residência para esse terreiro.
58
Pudemos observar o que muitos estudiosos apontaram em seus escritos: a
fisionomia de Pai Carlito mudada aparentava uma mistura de ternura e raiva
concomitantemente. Seus gestos eram ora delicados ora mais agressivos, mas sem perder “um
quê” de feminilidade própria do orixá que ora estava em nosso mundo terreno. Enfim, gestos
de uma sutileza própria do orixá Oxum, percebidos por qualquer um que estivesse presente na
festa. Para melhor expressarmos o que queremos descrever sobre a possessão presenciada
naquele momento, usaremos as palavras de Bastide (1978, p. 201 - 202): “O que designamos
como fenômeno de possessão seria, pois, melhor definido como um fenômeno de
metamorfose da personalidade: o rosto se transforma, o corpo inteiro se torna um simulacro
da divindade”.
Após muitas danças e toadas, Oxum, incorporada em Pai Carlito, sai do salão,
ajudada pelas mulheres do terreiro, voltando com uma cesta na cabeça. Enfeitada com flores
amarelas e brancas, adornada por um laço, a cesta continha o ipeté
105
, uma iguaria de Oxum.
Foto n. 18 - Mamãe Oxum distribuindo ipeté em sua festa;
O orixá Oxum sentou-se no trono do Babalorixá e com uma colher ia tirando um
pouco do ipeté, amassando em suas mãos e presenteando as pessoas que, em fila, iam
comprimindo-se para reverenciar ou abraçar o orixá. Nesse momento, fomos convidados
pelos filhos-de-santo de Pai Carlito a participarmos da fila. Assim, conhecemos o sabor do
105
O ipeté é feito com inhame amassado, azeite de dendê, cebola, pimenta e camarão. Ou seja, é uma espécie de
massa. É esse prato que denomina a festa específica de Oxum como ritual.
59
ipeté, através das próprias mãos de Oxum. Após esse momento ritual de comunhão do ipeté,
Oxum se retirou do salão, mas as toadas e a gira continuaram.
Minutos depois, Pai Carlito voltou ao salão, ainda incorporado por Oxum, com
uma roupa mais cheia de detalhes. Em sua cabeça, além do torço branco e que fazia parte do
outro vestuário, foi colocada uma coroa com um “chorão
106
” e, complementando o adereço,
um grande laço amarelo que se destacava. Uma saia rodada confeccionada por um tecido
transparente que brilhava e continha vários detalhes em dourado, além de muitos colares e três
idés
107
, compunham a roupa, chamando a atenção de todos pelo luxo.
Foto n. 19 – Oxum dançando em sua festa, trazendo nas mãos seus símbolos
característicos;
Outra particularidade do vestuário, nesse momento, eram os símbolos de Oxum:
fertilidade (uma boneca), vaidade (abebé com espelho) e sedução (ramalhete).
Acompanhada por todos os presentes, com palmas e cantos, o orixá dançou ora de
forma sedutora, ora de forma enérgica. Em alguns instantes, parecia bailar e mostrar toda a
sua beleza em reconhecimento aos seus devotos.
106
Chorão é o nome dado, pelas pessoas que vendem artigos para religiões afro-brasileiras no Recife, às franjas,
confeccionadas com miçangas, que cobrem o rosto das pessoas incorporadas pelos orixás.
107
Embora muitos autores se refiram aos idés como sendo apenas braceletes de latão ou de aço inoxidável, as
lojas que vendem artigos afro-religiosos chamam igualmente os colares em formas circulares, constituídos
igualmente aos braceletes, do mesmo nome. Por esse motivo, referimo-nos aos colares usados pelo sacerdote
incorporado pelo orixá Oxum como idés.
60
Naqueles instantes, entendemos que, para os fiéis das religiões de matriz africana,
toda aquela representação simbólica é o que “perpetua a lembrança de seus estados coletivos
originais, como ainda permite a reprodução destes em uma forma atenuada” (MAUSS, 1974,
p.167). Complementamos nosso raciocínio, refletindo e acreditando que “tudo que é mágico é
eficaz, porque a expectativa suscita, como às que persegue, uma realidade alucinante” (Idem).
A transmissão de energia, naqueles momentos mágicos, levou-nos às sensações únicas
compartilhadas por todos os que estavam presentes.
Durante a pesquisa, participamos de muitas festas e rituais, tanto nos terreiros
pesquisados, como em outros terreiros da cidade do Recife e Olinda. Mas, não poderíamos
deixar de comunicar nossa participação em uma festa de Pomba Gira Cruzeiro, no terreiro de
Mãe Mércia.
A festa da “mulher
108
” aconteceu no dia vinte e quatro de agosto de 2007 e, como
sempre, muitos convidados e adeptos participaram dessa festa
109
. Obviamente, tratava-se de
uma festa do culto à Jurema e, como tal, não poderiam deixar de acontecer incorporações de
outras entidades pertencentes a esse panteão.
Mãe Mércia, muito feliz por conseguir recursos para a festa, confidenciou-nos,
durante a festa e em momentos informais, que “a mulher traz sempre seu povo para ajudar”
(Cf. Entrevista 1a, 2007).
O Babalorixá da casa, antes de começar o toque, fez o sinal da cruz e falou:
“Ninguém pode mais que Deus”. O toque começou logo em seguida, comandado pelo pai-de-
santo da casa. Os instrumentos daquele toque de Jurema eram ilus apenas dois, e estavam
sendo tocados pelas mãos dos ogãs.
108
Mãe Mércia, ao se referir à Pomba Gira Cruzeiro, chama-a de “a mulher”.
109
Como conhecemos a Yalorixá da casa há décadas, participamos de outras festas para a entidade Pomba Gira,
em anos anteriores aos da pesquisa.
61
Foto n. 20 – Assentamento de Pomba Gira Cruzeiro em dia de festa;
Depois de algumas toadas, Pai Iraquitã (pai-de-santo da casa e de Mãe Mércia)
incorporou o mestre boiadeiro. Dançou freneticamente no centro do salão, de frente para os
ilus. Poucos minutos depois, muitos mestres foram incorporando em pessoas presentes no
salão.
A cada entidade chegada, as pessoas serviam bebidas, cigarros e charutos. Alguns
conversavam com as entidades, outros aparentavam medo delas, mas a maioria cantava e
dançava com os mestres. Após as toadas, os mestres incorporados subiram para o òrun, o Exu
Tiriri baixou em Pai Iraquitã.
Depois, Mãe Mércia incorporou Pomba Gira Cruzeiro e foi levada imediatamente
no peji para colocar os acessórios de sua roupa.
Enquanto a Pomba Gira Cruzeiro se aprontava, Exu Tiriri dançou bastante no
salão. Após esse momento, retirou-se para o peji e só voltou ao salão acompanhado de Pomba
Gira Cruzeiro, já incorporada em Mãe Mércia. Ambos dançavam em harmonia, ele com uma
capa preta, e de cartola, também preta e ela estava com um vestido belíssimo nas cores preta e
vermelha, um colar presenteado por nós, antes do início da festa e, em suas mãos, trazia dois
ramalhetes de rosas vermelhas.
Uma moça, componente da casa, trouxe uma taça com champanhe para Pomba
Gira. Interagindo com todas as pessoas presentes, ela bebia, fumava e rodopiava no salão
procurando falar e abraçar as pessoas mais chegadas, aquelas que já conhecia, de consultas
feitas em outras ocasiões que desceu ao Àiyé.
62
Curioso para nós é que ambos traziam em suas faces uma fisionomia aborrecida,
além de permanecerem sempre com os olhos fechados.
Em dado momento, a filha biológica de Mércia e também filha-de-santo
incorporou Pomba Gira das Almas. O encontro das duas no salão foi um momento de êxtase:
as pessoas batiam palmas de uma forma agitada e contagiante.
Era perceptível a energia que aquele momento transmitia. Assim, várias pessoas
começaram a incorporar outras entidades femininas da linha de Pomba Gira.
Uma outra característica, observada por nós nas festas de entidades no culto à
Jurema, sobretudo nas de Pomba Gira, foi que existem mesas cuidadosamente arrumadas
contendo bolo, champanhes e lembrancinhas, nas cores da entidade homenageada.
Em nossa pesquisa de campo, identificamos comidas comuns às comemorações
não religiosas (bolo, refrigerantes, salgadinhos, etc.), em alguns terreiros “traçados
110
” e em
“festas de
Foto n. 21 – Entrada triunfal de Pomba Gira Cruzeiro e Exu Tiriri no salão
110
Pai Bério de Oxalá, do terreiro Reino das Águas Claras, no bairro dos Bultrins em Olinda, nos explicou, em
conversas informais, que um terreiro é considerado “traçado”, quando existem elementos ou rituais que
pertencem a outro tipo de religião de matriz africana, ou seja, como ele mesmo definiu: “não é puro.” Ele nos
confidenciou que, quando isso acontece, o povo-do-santo acrescenta a palavra savalú para designar a nação do
terreiro “traçado” ou “cruzado”. Por exemplo: ketu savalú, jeje savalú, nagô savalú, etc. Isto quer dizer que o
terreiro tem origem ketu, mas agrega, em seus rituais e elementos litúrgicos, outros que não fazem parte do culto
ketu.
63
Jurema”
111
. Nas festas de aniversários ou em cultos anuais das entidades de Jurema,
comumente, encontramos esse tipo de comida, além de pratos como: churrasco, coxinha,
salpicão, etc.
Como, segundo os adeptos, as entidades são espíritos de pessoas mortas e, como
tais, conhecem prazeres culinários até industrializados da vida terrena, como marcas de
bebidas e cigarros, por exemplo, pedem para que, em suas festas, certos elementos que
possam ser compartilhados estejam à disposição delas e de todos os que as prestigiam.
Assim, compreendemos, através da festa de Pomba Gira na casa de Mãe Mércia de
Oxum, que o universo da Jurema é um universo complexo em que são confirmadas trocas de
presentes entre entidades e seres humanos de maneira rápida e satisfatória.
Foto n. 22 – Mesa do bolo de Pomba Gira Cruzeiro
É necessária a compreensão de que cada terreiro tem sua cultura própria que é
transmitida pela pessoa que o líder é, de como ele aprendeu e apreendeu seus conhecimentos
religiosos tradicionais, repassados por seu iniciador e também da origem do axé de seu orixá,
no decorrer de sua iniciação, de sua trajetória de vida, de suas relações pessoais e coletivas e
de sua visão de mundo, trazendo à tona sua habilidade em ser líder. Ou seja, o odú que o
terreiro e seu líder carregam.
111
“Festas de Jurema” é como o povo-do-santo, comumente, chama as festas das entidades pertencentes ao
panteão da Jurema.
64
Para pautarmos as entidades mais festejadas nos terreiros do Recife e que, em
muitas casas, seguem o calendário festivo dos santos católicos, procuramos conversar com
alguns Babalorixás e Yalorixás do Recife. As palavras de Marcos de Oxumaré expressam, em
síntese, as afirmações desses sacerdotes e sacerdotisas: “o santo é quem determina o dia dos
toques do ano” (Cf. Entrevista 6a, em Apêndice B). Esse Babalorixá também explicou que o
certo é jogar búzios para confirmar se o orixá aceita a data escolhida pelo líder do terreiro.
Segundo Mãe Lia de Xangô
112
, também em conversas informais
113
, as entidades
comemoradas nas roças de candomblé na cidade do Recife, anualmente, são: Exu e Pomba
Gira, Cosme e Damião, Iançã, Iemanjá, Xangô, Ogum, Pretos-Velhos, Odé , Oxum, Oxum-
maré, Obaluaê, Nanã, Oxossi, Oxalá, Ossãe, Oxaguiã.
Com o intuito de facilitar nossa compreensão, construímos um quadro.
Enfatizamos que as datas e meses bem como as entidades apresentadas foram fornecidos pela
Yalorixá Lia de Xangô.
Janeiro
Oxalá (dia 1) Obaluaê (dia 20)
Fevereiro
Oxumarê (dia 2) Ossãe (dia 2)
Março
Oxóssi (dia 23) -
Abril
Ogum (dia 23) -
Maio
Pretos-velhos (dia13)
No final do mês, algumas casas de culto nagô colocam
panelas de Iemanjá
Junho
Xangô (dia 24) -
Julho
Oxum (dia 16) Nanã (dia 29)
Agosto
Exu (dia 24) -
Setembro
Ibeji (dia 27) Xangô velho, que no sincretismo é São Jerônimo (dia 30)
Outubro
Águas de Oxalá (em
qualquer dia ) -
Novembro
Festa do Inhame –
Oxaguiã
(comemorado em
qualquer dia) -
Dezembro
Iançã (dia 4) Iemanjá (dia 8)
Quadro n. 1 - Calendário anual das festas nos xangôs do Recife, segundo Mãe Lia de Xangô.
112
Encontramos Mãe Lia em uma loja de artigos religiosos, no momento em que ela fazia compras de elementos
para seu terreiro. O próprio “povo-do-santo” diz que ela é uma Yalorixá “das antigas”, ou seja, foi iniciada há
bastante tempo e, por isso, é muito respeitada.
113
Todas as nossa conversas com essa Yalorixá aconteceram em uma loja de artigos religiosos afro-
descendentes, localizadas no centro do Recife.
65
Que fique bem claro que esse calendário poderá ser diferente em outros terreiros,
visto que cada terreiro tem seu próprio calendário, pois a decisão final é sempre dos orixás,
através do jogo de búzios, ou do próprio líder de terreiro, que, diante da disponibilidade de
recursos financeiros, faz a marcação das festas. Porém terão que ser comemoradas, se assim o
orixá quiser, mesmo com atraso. Quando isso acontece, o intervalo entre as festas é
diminuído, perturbando um pouco a ordem das datas posteriores. Também, em certas
ocasiões, as festas poderão ser juntas, mas tudo dependerá do consentimento do orixá. Se ele
permitir, tudo poderá acontecer.
Pai Carlito nos confidenciou que é ele mesmo quem decide as datas
comemorativas em seu terreiro. Mãe Mércia falou que, se por acaso, não houver recursos para
tanto, ela joga búzios e pergunta à entidade se ela aceitará somente a obrigação não pública.
Segundo ela, geralmente, as entidades concordam, pois são essas obrigações privadas as mais
importantes para o orixá.
A Yalorixá, durante a entrevista, disse que, em sua casa, acontecem dez festas
anuais. “A primeira eu dou com festa de preto-velho. Fora a reunião [...] O encerramento é
que eu encerro com Maria Luziara, que é no dia 29. Até o ano... só é aberto dia de Reis, dia 6.
Dia 6 de janeiro. Com a abertura. Com a reunião” (Cf. Entrevista 3f, em Apêndice B).
Ficamos convencidas de que “o Candomblé é uma religião que nunca é aquilo que
ela mostra. É o que está em segredo, é aquilo que está oculto, é onde tem a maior... onde tem
maior significado” (Cf. Entrevista 2h, em Apêndice B). Com realidades singulares, os líderes
levam suas lideranças, suas casas e seus adeptos, buscando a missão única: agradar aos
habitantes do mundo sobrenatural para que harmonizem suas vidas no mundo dos humanos.
2.4 Iníciação dos Líderes Mércia e Carlito
A iniciação de uma pessoa na religião Candomblé, como já foi explicado no
capítulo anterior desse trabalho, é cercada de cerimônias privadas, em que, normalmente, só é
permitida a presença de pessoas iniciadas.
114
114
Usamos a palavra “normalmente”, porque nos foi permitido presenciar uma dessas cerimônias, durante a
pesquisa. Isso é um fato raro, pois, entre vários pedidos feitos por nós aos líderes de vários terreiros, em apenas
um, nossa presença foi liberada (a minha e a de uma amiga nossa, pesquisadora de religiões afro-brasileiras no
Japão, que estava coincidentemente em nossa cidade colhendo dados para seu doutoramento). Por uma questão
ética, não daremos o nome, nem a casa em que aconteceu o fato, mas, para nós, foi uma experiência maravilhosa
e inédita.
66
Essas cerimônias “começam geralmente por uma sessão divinatória especial para o
conhecimento da divindade principal e outras acessórias ou ‘de acompanhamento’ a que deve
o fiel se dedicar, reverenciar e propiciar assiduamente”. (RIBEIRO, 1978, p.70).
Curiosamente, muitos dos líderes com quem conversamos durante a pesquisa
foram iniciados por doenças na infância. Acreditamos que, para tratarmos dessa questão, além
dos líderes Mércia e Carlito, escolhemos o que nos disse Hamilton, filho-de-santo da Yalorixá
Mércia, mas, também, líder de seu próprio terreiro na parte de Jurema
115
. Eis sua fala sobre
sua experiência iniciática:
A minha iniciação foi aos quatro anos de idade. Aos cinco anos, eu
tive um problema de amídala e adenóide e... houve uma extração.
Nessa extração, a adenóide ficou presa entre minha garganta, e... teria
que ir pra UTI... que vai, que num vai, que vai, que num vai... eu sei
que daí, o que é que aconteceu... enfim, é... simplesmente aí, uma das
mãe-de-santo de lá disse que eu viveria um bom tempo. Só poderia
continuar a viver se eu entregasse minha cabeça a, aquele santo que no
momento que era Xangô. Que aquilo ali era umbanda, eu acho que
com nagô, naquele tempo. Eu não me lembro. Certo? Aos cinco anos
eu tive o primeiro contato espiritual, foi com meu mestre, que vem
comigo até hoje, e daí então, foi fazendo, foi fazendo, foi fazendo as
coisas, outras... aí, minha mãe se abusou dali, foi pra outra casa, eu fui
com ela... e nessa outra casa, foi que tudo realmente deu início... e me
colocaram pra fora, porque espírito feminino em corpo masculino,
não se criava (Cf. Entrevista 5a, em Apêndice B).
Interessante é que sua mãe-de-santo Mércia também foi iniciada na infância por
doença. Vejam o que ela nos confessou:
A minha feitura... foi por doença. Não é... foi... que eu tive um tumor
na cabeça, e os médicos desingnaram.... então o Orixá Oxum falou
que... eu tinha cura. Então minha mãe fez o voto a Oxum e tudo desse
tudo certo, eu como média desde nascença, eu ia fazer a feitoria pra
Oxum. Então, hoje eu sou pronta. Fiz o Orixá, nagôebá, eu tinha...
doze anos, e hoje eu tenho quarenta e cinco anos (Cf. Entrevista 3g,
em Apêndice B).
A trajetória de Pai Carlito em terreiros aconteceu, em meados de 1985 a 1986.
Segundo ele, participando das festas, incorporava entidades, levando-o, posteriormente, a
fazer consultas particulares. Sublinhamos, aqui, as palavras desse sacerdote sobre essa
questão: “[...] não tenho processo de iniciação de tombo da jurema, dentro da jurema, mas a
115
Jurema é uma religião de origem ameríndia. Geralmente, a jurema também é cultuada em terreiros de
Candomblé, pois seus líderes, na maioria das vezes, começam suas vidas religiosas a partir da juremação
(iniciação). Nela o neófito toma uma espécie de chá da casca, da raiz ou do fruto da planta Pithecolobium tortum
Mart (popularmente conhecida peloa denominação jurema). Durante a juremação, é implantada uma semente de
jurema no corpo da pessoa. Todos que passaram por esse processo de iniciação têm em seu corpo a marca do
implante.
67
gente era levado aos terreiros, daí a mediunidade aflorava e a gente incorporava, dava
consulta [...] só passei por um processo de incorporação, dentro da jurema” (Cf. Entrevista
4a, 2009).
As consultas que, na época, fez para os clientes das religiões de matriz africana
que o procuravam, eram realizadas no terraço de sua casa. Ele afirmou que o salão de seu
terreiro nunca foi aberto para a jurema mas, sim, para o culto ao orixá.
Outra revelação feita por Carlito foi a de que, quando foi iniciado no culto ao
orixá, em 1989,
[...] na casa de meu pai-de-santo, Iraquitan [...] eu logo cedo, as pessoas
notaram que eu tinha o dom para ser um Babalorixá. Eu estava de obrigação,
de kelê, de obrigação de santo, yaô, e meu avô-de-santo, chamado Fausto de
Azeri
116
, olhou pra mim e disse assim: - esse menino vai ser um Babalorixá.
Ele viu esse caminho (Cf. Entrevista 4 b, 2009).
Observando os depoimentos dessas pessoas, líderes de terreiros, entendemos que
o “dom” da liderança dos terreiros poderá ser adquirido tanto num momento em que ocorra
uma eventualidade, como no caso da queda sofrida por mãe Mércia, ou como em casos de
doença grave, como o que aconteceu com Hamilton ou, ainda, percebido por outro líder,
como o ocorrido com Pai Carlito. Mas devemos lembrar que também existem casos de
iniciados por opção, quando a pessoa faz o santo porque quer. Geralmente, esses não
conseguem estabelecer-se como líderes, pois, depois de iniciados, descobrem que não são
portadores desse dom ou que sua trajetória no Candomblé não os levará a uma futura
liderança.
Continuando nossa conversa com Pai Carlito, perguntamos porque ele viajou para
o Rio de Janeiro para dar obrigação a seu orixá com a Yalorixá Márcia da Oxum
117
. Ele nos
respondeu que:
[...] dentro do Candomblé, às vezes, a gente procura se aperfeiçoar mais,
procura ter mais conhecimentos. E às vezes, a gente procura outros Babás ou
outras Yás com mais experiência dentro do orixá. Às vezes, não é nenhuma
briga, nenhuma confusão, é questão mesmo de aprendizado. Então eu
procurei uma pessoa dentro da nação keto, que tinha um conhecimento mais
aprimorado que era da raiz [...] de Mãe Menininha, onde eu comecei a fazer
minhas obrigações. Então, onde eu me identifiquei mais com os rituais
(Cf.
Entrevista 4c, 2009).
Como já explicamos no capítulo 1, a partir da iniciação, a pessoa vai alcançando
os cargos na hierarquia de uma casa-de-santo, até chegar a ser ou nunca ser, pois dependerá
116
Segundo Carlito, Fausto veio de uma linhagem de Zezinho da Boa Viagem, que é jeje.
117
Segundo Pai Carlito, essa Yalorixá foi feita no santo por Mãe Menininha, aos nove anos de idade.
68
do seu odu – destino – informado pelo orixá, um novo líder. Para que os terreiros continuem
existindo ao longo da história das religiões afro-brasileiras, é necessário que exista a
preparação de novos líderes, como em qualquer empresa que aspire à sobrevivência através
dos tempos, pois a formação de novos líderes faz parte da realidade de qualquer organização
empresarial que deseja uma continuidade. Logo, não poderia ser diferente nos terreiros, pois
também são organizações institucionais.
Pai Carlito nos explicou: “Então o iniciado já tem aquele caminho pra ser um
zelador de orixá. Com o passar do tempo, ele tem mais facilidade de determinadas coisas e o
próprio “odu” dá caminho para isso, quando ele tem de ser”(Conf. Entrevista 2h, em
Apêndice B).
Assim, líderes atuais estão sempre investindo na formação e no aperfeiçoamento
de seus sucessores. Esses aprendizes se tornarão líderes de sucesso, ou não, dependendo das
situações que irão encontrar no percurso de suas vidas. É dessa forma também que acontece
com os yaôs
118
.
Como demonstramos neste capítulo, os líderes estudados possuem qualidades e
habilidades singulares. Nesse sentido, apesar de serem reconhecidos em suas lideranças, o
sucesso, as habilidades e a forma de administrar de cada terreiro são diferentes.
118
Yaô é a denominação para o neófito das religiões afro-brasileiras. Para um melhor esclarecimento sobre a
palavra, sugerimos uma consulta ao Dicionário de Cultos Afro-Brasileiros ou bibliografia específica.
69
3 HABILIDADES COMO ESTRATÉGIAS DE AÇÃO
Neste capítulo, utilizamos alguns conceitos da Ciência da Administração, para
demonstrar que as habilidades dos líderes, utilizadas como estratégias
119
de ação, são
fundamentais para o sucesso
120
dos terreiros.
Pensando na questão do poder e da autoridade dos líderes afro-religiosos,
buscamos também, nos escritos do sociólogo Weber, explicações para entendermos as
características, as ações e as relações sociais que levam certas pessoas a se estabelecerem
como líderes, isto é, o que diferencia essas pessoas, levando-as a uma liderança religiosa em
que o poder e a autoridade são demonstrados, através de suas ações sociais.
Toda ação, especialmente a ação social e, por sua vez, particularmente a
relação social podem ser orientadas, pelo lado dos participantes, pela
representação da existência de uma ordem legítima. A probabilidade de que
isto ocorra de fato chamamos ‘vigência’ da ordem em questão (WEBER,
1998, p. 19).
De acordo com Chiavenatto (1999, p.18), que define a palavra habilidade como “a
capacidade de transformar o conhecimento em ação, o que resulta em um desempenho
desejado”, entendemos que as habilidades dos sacerdotes e sacerdotisas de casa de matriz
africana transformam em situações de resultados, na busca da missão religiosa, os
conhecimentos tradicionais e as experiências adquiridas. Ou seja, as habilidades agregam
valor às lideranças de terreiros, levando-as ao sucesso, diante do cenário competitivo, que é a
marca do campo religioso atual.
Ser um líder de terreiro não é fácil, da mesma forma que também não é fácil ser
líder em empresas de qualquer porte. Nas atividades atribuídas ao cargo de um líder afro-
religioso, constam os princípios religiosos, a orientação das atividades dos clientes religiosos
internos e externos, o planejamento de festas, a escolha dos rituais diários, a escolha e o
controle das músicas, danças, toadas, comidas etc., dentre outras responsabilidades que fazem
parte de uma liderança.
Assim, compreendemos que as ações dos líderes afro-brasileiros recifenses, sejam
elas sociais ou não, recebem orientação da tradição que lhes confere um poder legítimo, isto é,
119
Segundo Chiavenato, “estratégia é a resposta organizacional às condições ambientais que envolvem toda a
organização” (1999, p.355).
120
Sucesso significando um resultado feliz, um êxito, um bom resultado do esforço que se desprende objetivando
algo.
70
uma autoridade, mas também são orientadas pelas relações sociais
121
e pelos seus “tipos ideais
de dominação legítima”, que ora correspondem ao tipo racional, ora ao tradicional e ora
assumem caráter carismático. Segundo Weber,
há três tipos puros de dominação legítima. A vigência de sua legitimidade
pode ser, primordialmente: 1. de caráter racional: baseada na crença na
legitimidade das ordens estatuídas e do direito de mando daqueles que, em
virtude dessas ordens, estão nomeados para exercer a dominação
(dominação legal), ou 2. de caráter tradicional: baseada na crença cotidiana
na santidade das tradições vigentes desde sempre e na legitimidade daqueles
que, em virtude dessas tradições, representam a autoridade (dominação
tradicional), ou, por fim, 3. de caráter carismático: baseada na veneração
extracotidiana da santidade, do poder heróico ou do caráter exemplar de
uma pessoa e das ordens por esta reveladas ou criadas (dominação
carismática) (1998, p. 141).
O fato de uma pessoa de terreiro ter um conhecimento religioso, ter cumprido
todas as etapas do processo para ser pai ou mãe-de-santo não implica que será transformada
em um líder de sucesso, embora essa questão contribua para que isso aconteça.
Um líder de terreiro, detentor de carisma, poderá, em determinado cenário, ou seja,
em certas situações da vida, ser reconhecido como um líder de sucesso, frente a outro, que em
suas relações sociais, possui características mais acentuadas do tipo tradicional ou racional.
Contudo, ao identificarmos os tipos de dominação do Babalorixá Carlito e Mãe
Mércia como carismáticos em seus ambientes singulares, tivemos o intuito de mostrar que
ambos, apesar das diferenças, aproximam-se mais do tipo carismático, embora Pai Carlito
demonstre que há, em sua forma de dominação, particularidades do tipo burocrático e do tipo
racional. Mais que fique bem claro que, durante a pesquisa, essas características desses líderes
do Recife foram analisadas baseadas na tipologia Weberiana, levando em conta o que seus
filhos-de-santo demonstraram e no que percebemos, através de seus comportamentos durante
a pesquisa.
Conversamos, em muitos momentos informais sobre essa questão, com diversos
Babalorixás e Yalorixás. Muitos deles nos confessaram que o cargo de líder de terreiro,
comumente, carrega a abdicação de necessidades e desejos pessoais na busca da missão
religiosa, pois está no destino ter ou não essa responsabilidade. Sobre esse assunto, Pai Carlito
afirmou:
121
Weber define uma relação social como a “[...] probabilidade de que se aja socialmente numa forma indicável
(pelo sentido), não importando, por enquanto, em que se baseia essa probabilidade” (Weber, 1998, p.16).
71
Babalorixá tem que ficar... esquecer todas as suas vaidades... e, num
jogo, quando ele for jogar, ele tem que perguntar e vê se aquela pessoa
tem o Odu, né? Se tá no destino dela que ela vai receber aquele cargo,
porque o cargo não é uma coisa imposta. É uma conquista espiritual (Cf.
Entrevista 2i, em Apêndice B).
Acreditamos que, mesmo sendo “uma conquista espiritual”, como afirmou Pai
Carlito, muito líderes de terreiros atingem o sucesso devido às suas habilidades estratégicas,
exercendo, ao mesmo tempo, liderança e administração,
122
pois, como afirma Chiavenato
(1999, p.28), “as habilidades do administrador devem ser aprimoradas para que ele possa
desempenhar todos os papéis dentro da sua organização”.
Compreendemos, assim, que um líder de terreiro de sucesso é aquele que
desenvolve suas habilidades, aliando-as: ao comprometimento com a tradição afro-
descendente, à eficácia de suas ações e à satisfação das necessidades e desejos de seus
liderados, sendo reconhecido pela sua comunidade e pela sociedade, extinguindo o
preconceito insistente ainda demonstrado por essa última. É válido destacar, que “alguns
especialistas afirmam que existem indivíduos que nascem prontos para liderar e que outros,
em contrapartida, podem desenvolver essa característica” (PERUZZO, 2007, p. 32).
Perguntamos ao Babalorixá Gilmar de Ogun
123
, do terreiro Egbe Orixá Nagô
Vodum, como ele define um líder de sucesso. Sua resposta foi: “um líder de sucesso é aquele
que consegue manter a sua comunidade, o povo-do-santo e a tradição viva” (Conf. Entrevista
7a, em Apêndice B). Compreendemos, diante das palavras desse sacerdote, que um líder
precisa demonstrar suas habilidades, que serão notadas e percebidas pelos seus filhos-de-
santo, pelos seus clientes e por todos os que o rodeiam, à medida que a prática da liderança
vai sendo exercida dentro e fora do terreiro. Dessa forma, seus seguidores divulgarão e
repetirão sua maneira de liderar, mantendo a tradição religiosa e construindo história de
origem.
No sentido abordado acima, liderar é o mesmo que administrar com estratégia.
Dessa maneira, pensamos nos líderes de terreiros como administradores estratégicos, já que:
122
Alguns autores da Ciência da Administração diferenciam as palavras: liderança e administração. O autor
Chiavenato (1999, p. 554) afirma que “liderança não é sinônimo de administração. O administrador é
responsável pelos recursos organizacionais e por funções como planejar, organizar, dirigir e controlar a ação
organizacional para alcançar objetivos.” Um líder, segundo ele, “pode atuar em grupos formais e informais e
nem sempre é um administrador”(idem). Porém, aqui nesta análise, é conveniente explicarmos que consideramos
os conceitos liderança e administração como palavras sinônimas, pois percebemos que as lideranças de terreiros
pesquisados no Recife são igualmente responsáveis pela administração. Por esse motivo, e no contexto deste
capítulo, o leitor poderá perceber como é abrangente o conceito de liderança em terreiros.
123
Conhecemos esse sacerdote durante a pesquisa, em uma loja, localizada no centro do Recife.
72
o administrador estrategista é aquele cuja atividade está orientada para a
organização inteira a fim de moldar o seu futuro e preparar o seu destino.
Globalidade, longo prazo e destino são os aspectos principais dessa visão
estratégica. Além disso, a administração estratégica representa a articulação do
todo organizacional. A estratégia é o elemento unificador de todos os
componentes da organização (CHIAVENATO, 1999, p. 324)
Entendemos, então, que as habilidades inerentes ou adquiridas ao longo da vida
dos líderes dos terreiros escolhidos, e de outros encontrados durante nossa pesquisa, como
parte importante das práticas dos sacerdotes e sacerdotisas no exercício de suas lideranças,
levando a continuidade da tradição religiosa e formando novos líderes, resistindo atualmente
ao mundo globalizado e tecnológico e remetendo-os ao sucesso.
3.1 Habilidades agregando valor às lideranças
Procuramos pensar nas estratégias que os líderes de terreiros utilizam em suas
práticas de liderança, levando em consideração que elas vão surgindo ao longo de um
processo, acompanhando as várias situações do dia-a-dia. Por isso, nem todas as estratégias
utilizadas pelos líderes pesquisados foram analisadas por nós, mas, sim, apenas as que foram
percebidas no decorrer de nossa pesquisa de campo.
No sentido discutido acima e buscando salientar e reafirmar o que entendemos por
estratégia, adotamos a definição de Chiavenato (1999, p. 288): “Estratégia é o curso de ação
que o tomador de decisão escolhe para melhor atingir os objetivos. Depende dos recursos que
ele pode utilizar ou dispor”.
As habilidades dizem respeito a comportamentos de seres humanos que respondem
aos contextos e às situações em que estão inseridos ou vivenciando em dado momento. Seria
impossível analisarmos todas as habilidades, visto que, como já explicamos anteriormente,
trata-se de um processo.
Entendendo dessa forma, o fato de um líder de terreiro possuir habilidade inerente
não quer dizer que alcançará sucesso em sua liderança, pois, se não desenvolvê-la como
estratégia de ação, passará despercebido perante sua comunidade. Em outras palavras, os
líderes de terreiros deverão procurar externar suas habilidades, desenvolvendo-as
oportunamente, à medida que as situações acontecem.
As habilidades estratégicas diferem de liderança para liderança e, desse modo, não
podemos interpretá-las como um bloco monolítico, cujo modelo pode ser aplicado a todos os
terreiros da cidade do Recife, pois as escolhas variam de líder para líder, dependendo do que
73
cada um aprendeu e / ou assimilou em sua trajetória de vida, da área de sua competência e de
seu poder de decisão.
Em nossas observações de campo, entendemos que os líderes de terreiros, possuem
um “dom” indispensável para a sobrevivência de suas casas e de suas lideranças. Esse bem
espiritual (doação de Olorun) é, antes de tudo, uma habilidade inerente, uma dádiva, um
“dom”, no sentido que Mauss definiu como mana:
[...] essa palavra subentende uma massa de idéias que designaríamos pelas
expressões: poder de feiticeiro, qualidade mágica de uma coisa, coisa mágica,
ser mágico, posse do poder mágico, ser encantado, agir magicamente; ela
apresenta, reunidas em um único vocábulo, uma série de noções...(1974,
p.138).
Compreendemos, então, o mana como um “dom”, uma aptidão, uma habilidade,
pois, se pensarmos a habilidade como uma “capacidade”, como define Chiavenato, ela passará
a ser compreendida como uma propriedade individual, ou seja, um “dom”. Dessa maneira, a
habilidade “exprime-se e é concebida como um vínculo espiritual” (Ibid., p.58).
Mas esse autor também afirmou que “o mana não é simplesmente uma força, um
ser; é também uma ação, uma qualidade e um estado” (Ibid., p. 138). Sob esse ângulo,
entendemos que muitos líderes religiosos afro-brasileiros resistiram e ainda resistem às
dificuldades enfrentadas historicamente como: miséria, ignorância, preconceitos sociais,
exploração em todos os sentidos, por serem possuidores de habilidades
124
que remetem a ações
e que, nesse momento e fazendo analogia, consideramos como mana.
Enxergando pelo ângulo da ação, as habilidades dos líderes afro-brasileiros antigos
e atuais foram e são responsáveis pela criação de uma história que não cedeu às perseguições
sofridas por uma etnia que chegou ao Brasil no século XVI, na condição de escravos,
resultando, enfim, embora fragmentados, em nossos terreiros atuais. Explicando com outras
palavras, as ações dos líderes das casas de matriz africana tomam um sentido social, “uma vez
que é apenas sob a forma de fato social que esses elementos de natureza tão dispersa podem
adquirir uma significação global e tornar-se uma totalidade” (LÉVI-STRAUSS, In: MAUSS,
1974, p.15).
Dessa maneira, entendemos o mana dos líderes de terreiros atuais, a partir de seus
atos, como habilidade, pois, segundo Mauss (1979, p. 163), ao referir-se ao fato social total,
“o homem se identifica com as coisas e identifica as coisas consigo mesmo mantendo ao
mesmo tempo o sentido tanto das diferenças quanto das semelhanças que estabelece”.
124
Nesse momento, habilidade significa força interior de luta.
74
As habilidades dos Babalorixás e das Yalorixás, interpretadas como “dom” ou
mana transformam-nos, acima de tudo, em intermediários das pessoas morais. Consideramos,
nesse momento, as pessoas morais como clientes religiosos internos e externos
125
e, como
tais, representam os desejos, as necessidades e os interesses de uma coletividade.
Acrescentamos que os pais e mães-de-santo são dotados de coragem, pois, caso
contrário, suas casas de xangô não mais resistiriam ao longo dos anos, nem suas religiões, ao
longo dos séculos, mediante todas as transformações sofridas.
Considerando a coragem dos negros e seus descendentes, sobreviventes ao regime
de escravidão, entendemos que “A principal característica de um líder é a coragem
(PERUZZO, 2007, p. 31). Sem dúvida, tornaram-se destaque as lideranças exercidas pelos
negros, dotados do “dom”, isto é, da habilidade da liderança, quando recepcionavam
solidariamente os grupos africanos, mesmo que apresentada de forma disfarçada sob os olhos
dos dominadores. As condições de escravos:
tornavam impossível aos africanos aqui introduzidos perpetuarem certos
traços de sua cultura material como os instrumentos de trabalho; ou suas
formas de organização econômica; ou os tipos de organização social e de
família – como até muitas das formas de expressão artística (RIBEIRO,
1978, p. 26).
Entendemos que os líderes negros se destacaram, à medida que as situações foram
surgindo num cenário de privações em que os embates criaram oportunidades, capazes de
inseri-los nas mais diversas atividades sociais, econômicas, políticas e religiosas. Dessa
maneira, mostraram-se corajosos e habilidosos.
Os ensinamentos dos escravos, já adaptados à nova vida de infortúnios no Novo
Mundo, somados aos casos históricos de negros bem sucedidos, através das práticas de
negociações, foram de grande valia para o surgimento de novos líderes entre os grupos
escravizados. Como assinalam Reis e Silva (1989, p. 11) “[...] a vida concreta do escravo era
algo como um jogo de capoeira – luta, música e dança a um só tempo. Quilombolas que
reivindicam liberdade para ‘brincar, folgar e cantar’; religiões de santos guerreiros e santos de
paz”.
O raciocínio, desenvolvido anteriormente, remete-nos à teoria do psicólogo
Maslow, citado por Churchill e Peter (2003). Segundo esse autor, o que motiva as pessoas a
agirem são suas necessidades não atendidas. E que as pessoas necessitam satisfazê-las antes
125
Consideramos, neste trabalho, clientes religiosos internos, os fiéis iniciados que compõem os terreiros, ou
seja, os filhos-de-santo e, clientes religiosos externos, aquelas pessoas que buscam consultas em terreiros.
Acrescentamos, propositalmente, a palavra “sagrado” para distinguir os clientes de terreiros dos clientes internos
e externos de instituições não religiosas.
75
de se sentirem motivadas a satisfazer outras necessidades. As necessidades, segundo Maslow,
são classificadas em uma hierarquia de cinco níveis dispostos numa pirâmide. São eles: 1)
necessidades fisiológicas (comida, água, descanso, sexo, ar); 2) no nível seguinte, estão as
necessidades de segurança (física e financeira); 3) as necessidades sociais (amizade, amor,
filiação, associação); 4) as necessidades de estima (ego - status, respeito, autoestima); e, por
último, no topo da pirâmide, as necessidades de autorrealização – autosatisfação.
Compreendemos, então, que a oralidade
126
, que, pouco a pouco, foi instituída pelos
líderes dos grupos religiosos vindos da África para o Novo Mundo, para a existência e
perpetuação de suas religiões e dos seus direitos roubados desumanamente pelos
colonizadores, caracterizou-se como uma forma estratégica e habilidosa para driblar seus
senhores e, depois, a polícia, isto é, a situação infeliz vivida na época. É relevante lembrarmos
que os escravos, apesar de todas as necessidades básicas insatisfeitas, conseguiram ultrapassar
não só o primeiro degrau (nível) da pirâmide das necessidades, o das necessidades fisiológicas
mas também o segundo, o das necessidades de segurança, para um nível mais elevado (o das
necessidades sociais e de estima), sendo motivados por líderes diversos de escravos libertos
que viviam nas grandes cidades, na época
127
.
3.1.1 Habilidades pessoais de Pai Carlito e Mãe Mércia
Mostraremos, neste momento, as habilidades dos líderes de terreiros pesquisados,
identificadas através das entrevistas e das observações de convívio.
Ao longo de vinte anos, travamos amizade com ambos os líderes, antes mesmo de
decidirmos estudar sobre lideranças em terreiros. Salientamos, portanto, que a disposição da
ordem dada à descrição sobre suas habilidades pessoais não obedeceu a nenhum critério de
preferência entre os líderes pesquisados. Ela foi construída à medida que a pesquisa avançava
e que os fatos observados e vividos foram acontecendo.
O sacerdote do Terreiro Ilê Asé Osun Kemi, ou seja, o Babalorixá Carlito de
Oxum, possui voz afinada, habilidade que o transforma em um líder conhecido no meio
artístico do Recife.
126
Em geral, essa é a forma do repasse da tradição em terreiros, embora, na contemporaneidade, existam outras
formas de repasse dos fundamentos religiosos nas religiões de matriz africana, como a utilização de livros,
cadernos preenchidos no momento de feitura, “pen-drivers”, disquetes, cds, dvds, gravações, fotos, e Internet.
127
É importante frisar que esta análise foi feita por nós do ponto de vista da Ciência da Administração em que a
palavra sobrevivência é comumente utilizada como termo econômico e/ou financeiro.
76
A primeira vez que ouvimos o canto desse sacerdote, além dos muros do terreiro,
foi em uma caminhada contra todas as formas de preconceito e a intolerância religiosa, em
que Yalorixás, Babalorixás, Ogãs, Ekedis e adeptos das religiões de Matriz Africana
participavam. Através das toadas da nação keto, sua habilidade era demonstrada de forma
positiva. Acompanhamos o carro em que estava posicionado até quase o final do percurso.
Ouvimos comentários, de pessoas que assistiam, sobre como Pai Carlito cantava bem, apesar
da pouca idade.
A segunda vez que presenciamos sua habilidade foi quando fomos contemplados
com o convite, feito pelo próprio Pai Carlito, para assistirmos a uma de suas apresentações
como cantor, em espetáculos culturais de matriz africana, acontecido no Teatro do Armazém
14, no bairro do Recife Antigo. Passaremos aqui a transcrever nosso diário de campo escrito
na ocasião:
Fomos, como sempre, muito bem recebidos na porta do teatro por Pai
Carlito. Ele nos confessou que ansiava por nossa presença, pois estava um
pouco inseguro em relação à platéia desconhecida. Carlito estava vestido
com uma pantalona branca e uma bata (estilo africano) da mesma cor. Usava
também uma guia grossa branca (colar), chapéu branco (também estilo
africano), uma pulseira grossa da mesma cor e chinelos de estilo franciscano
marrom. Neste espetáculo, podemos presenciar a aceitação dos artistas e da
platéia à habilidade artística do pai-de-santo citado. Ele deu um “show”,
cantando toadas em yorubá. Notamos uma relação sadia, longe de
discriminação e de preconceito, entre todos que estavam no teatro e o pai-de-
santo artista. A platéia, visivelmente, apreciava as religiões de matriz
africana, demonstrando satisfação no que assistia. Notamos, que os
principais componentes e organizadores desse espetáculo eram conhecidos
nossos de várias festas, na casa de Pai Carlito. Alguns são pesquisadores, de
outras universidades do Recife, das religiões afro-descendentes. Pai Carlito
demonstrou um pouco de timidez ao cantar, mas nada que ele não
conseguisse administrar de maneira sutil e convincente. Toda a platéia o
aplaudiu de pé e, assim, podemos perceber sua satisfação em ser detentor
desse “dom”, ou seja, saber cantar. (Espetáculo Brasil Africano: Dança,
Música e Expressão, domingo 8 - 06 - 2008).
Durante as visitas que fizemos ao terreiro da Yalorixá Mércia de Oxum,
identificamos sua habilidade culinária. Seus dotes na cozinha são muito apreciáveis. Em
várias ocasiões, experimentamos seus quitutes.
A habilidade de cozinhar dessa Yalorixá consegue suprir as necessidades do
terreiro e da sua vida comum, além das fronteiras do terreiro, sem perder as características
originárias da religião. A fala da sacerdotisa explica o desenvolvimento dessa habilidade:
Orixá Iançã mandou que eu tinha... “tenha um trabalho”, eu só vivo somente,
eu... só depende, só do Candomblé.... eu tenho que ter meu trabalho, porque
eu toda vez que eu trabalhando, eles me puxavam. Se manifestavam no
trabalho, ficava passando mal... então, foi que Iançã fez: quando eu joguei, ela
77
disse que eu tinha sim um trabalho. Deus me deu um dom. então qual era o
dom? Se eu sabia fazer comida pros Orixás, eu sabia também fazer uma
comida pra ser vendida, que é o meu acarajé. Eu vendo meu acarajé em
Gaibú, e... sou muito procurada com os clientes, pelo acarajé... (Cf. Entrevista
3h, em Apêndice B).
Cozinhar para ela é um “dom” de Deus e essa habilidade é utilizada
estrategicamente para a sobrevivência de seu terreiro, ao mesmo tempo em que divulga,
embora indiretamente, sua religião e sua pessoa como líder. Através de seu depoimento,
notamos sua satisfação pessoal, por ser detentora dessa habilidade.
O alerta do orixá levou essa líder a uma busca de recursos para sua sobrevivência e
a de seu terreiro. A partir da venda do acarajé, alimento que, no terreiro, é sagrado: vai
elevando as condições de sobrevivência de sua vida pessoal e consequentemente, as condições
de seu terreiro.
O objetivo primeiro de uma forma de remuneração a partir do “dom” da culinária
torna-se um esforço estratégico e uma maneira, vista por ela, de enfrentar o mundo atual, a
sua liderança e a sobrevivência de seu terreiro. A habilidade adquirida com os ensinamentos
do Candomblé, e “recomendada por Iançã”, permitiu o nascimento de mais uma
particularidade de sua liderança: uma estratégia de ação em busca da sobrevivência, através
da venda. De maneira simples, conduzindo a perpetuação da tradição de sua religião,
popularizando essa comida de santo (o acarajé), essa líder vai agregando valor singular a sua
liderança.
Entendemos que liderar um terreiro sem recursos é quase impossível, pois, muitas
vezes, o próprio líder tem que proporcionar ajuda aos filhos-de-santo para que consigam
cumprir suas obrigações religiosas. Como afirmou Lévi-Strauss (1996, p.294), “um bom chefe
demonstra habilidade e iniciativa”.
Assim, a forma encontrada por essa líder foi a venda do acarajé. Captando
recursos, através da venda deste alimento de Iançã, a habilidade culinária levou a Yalorixá
Mércia a uma satisfação pessoal, transformando-a em uma pessoa conhecida em outras
comunidades como Yalorixá ou, simplesmente, como “do santo”, além dos muros do terreiro.
A razão de nossa interpretação aqui pode ser demonstrada e ratificada, mais uma vez, pelas
próprias palavras da Yalorixá: “Lá, sou. Sou conhecida como Mãe Mércia, baiana [...]” (Cf.
Entrevista 3i, em Apêndice B).
O fato de ser conhecida carinhosamente como baiana, no ambiente além das
fronteiras do terreiro, ou seja, fora da sua comunidade religiosa, demonstra que é mulher
78
corajosa e guerreira. Sabemos que, no mundo competitivo de que fazemos parte, essas
características são muito valorizadas.
Demonstrando ser possuidora de habilidades humanas
128
, além da habilidade
culinária, como uma marca, um papel que assumiu, seguindo o alerta do orixá, Mãe Mércia
constrói seu próprio modelo ideal de liderança. Esse modelo vai moldando uma imagem,
reflete o papel de uma líder religiosa que luta para a sobrevivência de seu terreiro.
Sua habilidade no preparo e na venda do acarajé voltou-se para uma habilidade de
ação, ou seja, o “dom” culinário possui “vínculo espiritual”, que remeteu a uma força como
curso de ação pessoal (estratégia), denunciando, assim, a força e “a quantidade de ser que o
orixá possui no indivíduo” (BASTIDE, 1978, p.246). Dessa forma, Mércia mostra como deve
ser travada a luta diária em sua casa de santo.
Enfim, suas habilidades explicitadas descrevem a obediência e o compromisso
assumido com o orixá, mas, também, cria seguidores de um modelo de liderança que está
dando certo, na busca da sobrevivência de seu terreiro.
3.1.2 Habilidades nas trocas financeiras
Consideramos as trocas financeiras como habilidades dos Babalorixás e das
Yalorixás, pois, se a alocação dos recursos financeiros fica sempre sob suas
responsabilidades, a sobrevivência de suas casas dependerá de como as trocas serão efetuadas
e de como o dinheiro recebido pelo pagamento pelos serviços mágico-religiosos será
empregado.
Dessa forma, se o líder de terreiro não possuir também habilidade junto às finanças
de seu terreiro, tenderá ao fracasso de sua liderança, visto que “o mercado mágico-religioso
da cidade é competitivo” (BRANDÃO, 1986, p.92). Lembramos que os recursos que
sustentam seus terreiros também os sustentam. Assim, as habilidades financeiras de um líder
deverão ser desenvolvidas, visando ao equilíbrio e ao reconhecimento de uma liderança de
sucesso.
Para analisarmos as trocas financeiras que ocorrem no Ilé axé Oxum Opará e no
Ilê Asé Osun Kemi, limitamo-nos às observações de campo e de algumas entrelinhas que, vez
por outra, teimavam em ser explicitadas durante as entrevistas com os líderes escolhidos.
128
Chiavenato afirma que as habilidades humanas, “envolvem a capacidade de comunicar, motivar, coordenar,
liderar e resolver conflitos individuais ou coletivos” (1999, p. 18).
79
Compreendemos a importância da habilidade nas trocas financeiras de certos
líderes de terreiros do Recife, resultando no sucesso de suas lideranças, quando entendemos
como acontecem as trocas entre líderes e clientes sagrados, internos e externos. Os líderes
satisfazem os desejos e as necessidades espirituais, materiais e sentimentais desses clientes,
prestando serviços espirituais. Em troca, recebem presentes, muitas vezes bens numerários,
que são transformados em sustento pessoal e em recursos para suas casas.
A fala de Pai Carlito aponta que essas trocas fazem parte de qualquer religião :
Uma coisa muito impressionante, que eu sempre questiono, é que... todo ser
humano de todas as religiões, eles procuram espiritualidade para ter
materialidade. Eu acho impressionante! Isso eu não consigo entender, até
hoje, sendo um mesmo... um sacerdote de Orixá. Mas a gente... é patético.
Então, se existe isso, então, existe troca. Então qualquer religião que venha
pregar que não existe a troca, eu lhe dou isso pra tu me dar aquilo, ela está
sendo mentirosa. Todas elas, se não for pregado isso, mas dentro do íntimo
tem isso. Eu te sirvo para receber isso, eu te dou para ganhar isso. Isso é bem
claro! Bem claro! Se não há uma forma materializada de oferenda, mas é
uma forma... eu sou seu servo, eu lhe sirvo, então eu quero receber. Isso é
bem claro! Não adianta mascarar, maquiar, que isso é bem claro. Então,
geralmente, as pessoas que vêm aqui, elas vem a procura de uma
espiritualidade pra ter materialidade. Isso em tudo! É bem claro!” (Cf.
Entrevista 2j, em Apêndice B).
Em outro momento da entrevista, Pai Carlito nos revelou a relação de
reciprocidade construída com os seus filhos-de-santo e com sua clientela.
Os filhos da casa contribuem.... Os clientes contribuem... Candomblé é feito
de doações. E, que tem casas que exigem mais e outras menos. Eu não exijo
nada. Eu faço... eu deixo aberto. Acho que cada pessoa sabe que, quando vai
ter festa, que o Orixá gosta, que o Orixá precisa, que o Orixá necessita...
Então, eu não determino, eu deixo em aberto, porque acho que... uma
maneira melhor dos filhos-de-santo interagirem, compartilharem. Tem uns
que não interagem de forma nenhuma. Já outros ajudam, outros não podem
ajudar financeiramente, mas ajudam trabalhando, e tudo.... Tem uns que só
vêm pra festa. Esses não ajudam em nada... Acredito que não têm o
Candomblé como uma religião, têm como uma diversão. Porque a gente
também tem que saber administrar essas pessoas, porque, isso não seria um
motivo pra botar ele pra fora, né? Mas, infelizmente, elas nunca vão se
enquadrar como sendo da religião. Elas são meras pessoas que vão e, que
frequenta só por moda ou ... (Cf. Entrevista 2k, em Apêndice B).
Carlito foi enfático, afirmando: “o terreiro como lhe falei, ele é mantido com
doações. Então, a medida que vai chegando as pessoas, aquilo ali vai realizando os rituais
também. Na medida que tem mais pessoas, os rituais vão ficando maiores” (Conf. Entrevista
2l, em Apêndice B).
Analisando sua fala, entendemos que a quantidade de pessoas participantes
aumenta o número de doações, aí estão incluídas as que são feitas em dinheiro. As “dádivas”
80
recebidas pelo pai-de-santo de seus filhos-de-santo e de sua clientela são, ao mesmo tempo,
trocas produzidas pela habilidade que o sacerdote possui, travando uma relação em que todos
ficam satisfeitos. São trocas, pois seu axé, advindo igualmente de uma troca entre as
divindades e esse sacerdote, é percebido como sendo uma coisa que satisfaz seus fiéis e seus
clientes, os quais agradecidos, doam presentes ao líder, que os utiliza para agregar valor a sua
pessoa, a seu terreiro, ou na produção de mais axé.
No âmbito da Ciência da Administração, tudo o que tem um valor, mesmo que
afetivo, vira patrimônio (bens, direitos e obrigações). É o valor atribuído a tudo que compõe
o patrimônio (incluído também o axé do Babalorixá ou da Yalorixá) que está vinculado a uma
pessoa ou a uma entidade.
Considerando a prática da liderança, os próprios líderes de terreiros, os clientes
religiosos internos e externos como elementos constitutivos do patrimônio, compreendemos
que as relações de trocas financeiras que acontecem nos terreiros demonstram as habilidades
de seus líderes em colaborar com o “sistema de prestações totais”. Nesse sistema, o ato de
doar algo ou alguma coisa cria uma obrigação que remete a uma nova doação por parte de
quem recebeu primeiro, criando, assim, um sistema sem fim. São prestações e
contraprestações feitas voluntariamente, por pessoas morais, “[...] coletividades que se
obrigam mutuamente, trocam e contratam [...]” (MAUSS, 1974, p 44).
Em nossa opinião, “as dádivas trocadas” e “a obrigação de retribuí-las”, que
ocorrem nos terreiros, reforçam, positiva ou negativamente, a imagem da liderança exercida
em casas de matriz africana no Recife. Tudo dependerá da habilidade financeira de seus
líderes. Segundo Mauss, “há uma virtude que força as dádivas a circularem, a serem dadas e a
serem retribuídas” (Ibid, p. 114). Assim, Compreendemos que essa virtude é também a
habilidade do líder.
Entendemos que a manutenção das casas religiosas não só as de matriz africana
como qualquer casa, igreja, templo etc. pertencentes à outra religião são igualmente
sustentadas por doações. Toda estrutura institucional (pequena, média ou grande) necessita de
dinheiro para se manter. Logo, não poderia ser diferente com as religiões de matriz africana.
O curioso nessas religiões é sua origem legitimada por escravos, que, apesar do contexto em
que viviam, conseguiram institucionalizá-las oralmente, obedecendo a uma hierarquia sagrada
cujos líderes funcionavam como agentes intercessores entre dois mundos: o sobrenatural e o
humano.
Se as casas de matriz africana sobrevivem com doações, como disse Pai Carlito, os
bens do terreiro, os bens pessoais dos líderes (doados pelos filhos-de-santo ou por clientes), os
81
bens dos filhos-de-santo (como louças, guias, roupas etc), os direitos adquiridos sobre os
filhos-de-santo (pelos pais e mães-de-santo) na iniciação, os direitos adquiridos dos filhos-de-
santo de receberem axé de seu orixá, por intermédio do seu iniciador e das obrigações feitas,
etc, possuem um valor e estão igualmente vinculados ao patrimônio religioso do terreiro. Esse
valor pode ser interpretado como uma reciprocidade: de axé pelos filhos-de-santo, de
satisfação de desejos e vontades por parte dos clientes (revertidos em presentes e dinheiro)
etc. Observando com olhar de administrador, esses bens e direitos também carregam uma
liquidez
129
para o terreiro, para os filhos-de-santo e para as pessoas que os lideram.
Se olharmos os terreiros de xangôs com um olhar de administrador de empresas,
entenderemos que a totalidade de símbolos e representações existentes nas casas de matriz
africana transforma elementos em axé, para os dirigentes e para os participantes e
colaboradores (clientes), retornando para suas mãos, muitas vezes, como numerário
(dinheiro). Ou seja, junto ao sentido religioso, encontra-se uma dinâmica que forma um
processo em que quanto mais dinheiro, mais fácil será a captação de recursos para se ter mais
axé.
Assim, entendemos perfeitamente o que diz Brandão:
A chefia religiosa no entanto não é apenas fonte de deveres e obrigações mas
a oportunidade de alcançar prestígio, honra e poder além de ser ocupação
valorizada pela comunidade afro-brasileira. Muitas vezes o exercício dessa
função melhora o padrão de vida sócio-econômico da chefia religiosa. Não
podemos negar o abuso do poder já registrado na literatura existente
(‘Exploração da fé popular’), ‘Exploração de trabalho gratuito’, etc.) mas não
é regra geral. Mesmo porque uma das mais importantes atribuições do pai de
santo é ser generoso e sensível as necessidades dos filhos de santos do seu
terreiro, para isso ele não pode proceder com usura, no sentido não só de
mesquinharia e avareza como também de lucro pessoal (1986, p.154).
Lembramos que essa interpretação dos terreiros e de suas lideranças não tem o
intuito de ser provocativa, nem tampouco macular a imagem das religiões de matriz africana,
mas sim de contribuir com os líderes e seus fiéis para o uso desse olhar na administração de
suas casas no mundo globalizado.
Sondando alguns terreiros que conhecemos durante a pesquisa de campo, sentimos
certa ingenuidade por parte de algumas pessoas adeptas, no que diz respeito à manutenção de
seus terreiros. Também entendemos que é difícil para os adeptos das religiões de matriz
africana olhar suas casas sob essa ótica, pois terão que pensar seus terreiros como empresas, já
que seus concorrentes assimilaram a luta por um espaço efetivo, através da visão empresarial.
129
O termo liquidez, comumente utilizado na Ciência da Administração, quer dizer a possibilidade de
transformar bens e direitos em numerários (dinheiro).
82
Analisando, mais uma vez, os depoimentos colhidos nas entrevistas com Mãe
Mércia e Pai Carlito, e recorrendo a eles, conferimos que não existe ajuda financeira por parte
dos filhos-de-santo dessa Yalorixá. Como ela mesma afirma: “os meus filhos, não... assim,
não me ajudam. Eu não vou dizer que meus filhos vivem aqui me ajudando...” (Cf. Entrevista
3j, em Apêncide B). Ou seja, diferentemente do que ocorre com Pai Carlito, não existe doação
em dinheiro por parte dos filhos-de-santo de Mércia, e isso é sentido e externado por ela.
Quando tocamos mais uma vez nessa questão, ela esclareceu:
Meus clientes... eu tenho assim... meus clientes pra mim é tudo porque
confiam. Isso é muito importante pra mim. Se não fosse os clientes, eu não
tenho o que hoje eu tenho, aqui. Pela confiança que eles têm, não só em
mim, como na minha entidade, a Pomba Gira e nos meus ‘dologum’ que é
meu jogo (Cf. Entrevista 3k, em Apêndice B).
E, continuando a explicar, lembrou mais uma vez: “É. Não ajudam. O que eu
posso fazer por eles, eu faço. Já sou eu, quem faço por eles” (Cf. Entrevista 3l, em Apêndice
B). Há evidência na fala dessa Yalorixá que o sucesso obtido nas trocas financeiras com seus
clientes religiosos externos é bem mais satisfatório para ela do que o conseguido com seus
clientes religiosos internos. Mas, mesmo diante dessa queixa, notamos que os esforços
desprendidos para ajudar seus seguidores não são desistentes. A confiança em sua pessoa, em
seu jogo e nas entidades que incorpora, desprendida pelos clientes religiosos externos,
continuam a sustentar financeiramente o terreiro.
As lideranças dos terreiros Ilé Axé Oxum Opará e Ilê Asé Osun Kemi gozam de
reconhecimento entre as pessoas da cidade do Recife, no campo religioso. Isso demonstra que
suas trocas financeiras podem ser interpretadas como satisfatórias, já que os recursos para a
sobrevivência de ambos os terreiros continuam sendo captados positivamente.
Testemunhamos, em muitas ocasiões, que esses líderes são muito procurados por
pessoas pertencentes a todas as classes sociais. O fato de normalmente estarem ocupados,
atendendo aos trabalhos de clientes com a prestação de serviços espirituais, tanto para feitura
de novos integrantes, quanto para atendimento de antigos clientes, levou-nos a crer que suas
lideranças são fortemente aceitas por pessoas da comunidade em que estão inseridos. E é
dessa forma que as trocas financeiras ocorridas atendem perfeitamente a quem os procura e à
sobrevivência de seus terreiros. Trata-se de uma relação diretamente proporcional: quanto
mais pessoas procurando por seus serviços religiosos, mais recursos financeiros disponíveis.
É preciso, porém, dizer que:
o próprio pagamento é peculiar, não é apenas dinheiro envolvido na
transação, mas principalmente alimentos e presentes. Neste agenciamento
83
também está contida a idéia que há uma certa estratificação entre os próprios
pais e mães de santos onde os que se situam no ápice dessa estratificação são
aqueles de maior prestígio na comunidade religiosa da cidade, este prestígio
não medido nem por idade nem por sexo, nem nenhuma forma específica de
aferição de conhecimento mágico-religiosos e sim pelo sucesso de um Pai ou
Mãe de Santo na gerência de um terreiro: Ter muitos filhos de santos,
clientes, conhecimento de determinados rituais, participação ativa dos filhos
de santos na comunidade religiosa enfim aqueles que conseguem que seus
terreiros sejam bem sucedidos em termos financeiros (possíveis) e religiosos
(BRANDÃO, 1986, p.97 e 98).
Diante das diferenças apontadas anteriormente, nas trocas financeiras praticadas
pelos líderes dos terreiros pesquisados, é preciso lembrar que essas trocas também fazem
parte de uma totalidade de habilidades inerentes aos líderes de casas religiosas de matriz
africana.
Existem várias formas utilizadas para a manutenção econômica dos terreiros, como
por exemplo, a disposição dos líderes em viajar, atendendo aos chamados dos filhos-de-santo
que moram longe, obrigações relacionadas à saúde de pessoas que residem fora da cidade, às
vezes até em outros países. Outra forma é atender e satisfazer aos clientes, através dos orixás
ou de outras entidades. Estipular quantias em dinheiro aos filhos-de-santo para que doem,
mensalmente, é outra maneira. A socialização das carnes, provenientes de sacrifícios de
animais, entre os membros da comunidade religiosa, motivando-os a participar de eventos nos
terreiros, o pagamento aos ogãns tocadores, a aceitação de novos filhos-de-santo vindos de
outros terreiros por algum conflito, etc... também são formas de manter economicamente as
casas de matriz africana. Assim, consideramos essas práticas, que dependem do poder de
decisão dos líderes, como estratégicas, pois, a partir delas, a sobrevivência do terreiro e dos
próprios líderes será garantida pelo aumento dos recursos financeiros. E isso é, também, uma
forma de habilidade.
As estratégias utilizadas para atrair recursos financeiros dependerão, em primeiro
lugar, das habilidades que esses líderes de terreiros possuem para se comunicar com seu
público-alvo, unidas às habilidades para honrar seus compromissos e obrigações para com os
seus orixás de cabeça.
Em face das informações conseguidas sobre como Pai Carlito e Mãe Mércia
captam os recursos financeiros para o sustento de suas casas, ficou claro para nós que ambos
são dotados de habilidades em comunicação, pois estas, evidenciadas na rede de relações
construída por eles, atendem às expectativas sociais para a sobrevivência de suas casas e de
suas lideranças. Em contextos sociais singulares, sabem como travar um círculo de amizade e
84
de adeptos, distinguindo-os como participantes ou não da religião de que fazem parte e
respeitando as pessoas.
3.1.3 Habilidade da liderança na satisfação das necessidades e nas relações com os liderados
As pessoas em um terreiro exercem influência umas sobre as outras, seja pela
hierarquia ou pelo surgimento das lideranças informais, aquelas não legítimas, mas capazes de
influenciar fortemente as pessoas que estão em um nível hierárquico mais baixo. Essas
pessoas, geralmente, conseguem, com um “jeitinho” próprio, que seus colaboradores as
sigam, mesmo que eles não exerçam cargos abaixo dos seus.
Chegamos a conhecer, durante a pesquisa de campo, alguns sacerdotes e
sacerdotisas das religiões de matriz africana que se encontravam influenciados pelos seus
próprios filhos-de-santo, por admirá-los como pessoas. Alguns não se davam conta de
tamanha influência. A maneira de falar, de vestir, de dançar, de pedir e de dar opinião sobre
qualquer assunto, modo de andar, de sentar etc, externavam o grau de envolvimento.
Demonstravam, assim, que a influência sofrida não revelava problema algum, mas sim uma
grande satisfação entre ambos.
É importante salientar que os líderes de terreiros, sofrendo influências de seus
clientes religiosos internos, poderão formar atitudes
130
de predileções ou rejeição por alguns
destes. Muitas vezes, por esse motivo, certos líderes influenciados por seus filhos e filhas-de-
santo, tomam atitudes que vão de encontro à hierarquia religiosa, tentando adaptar as
necessidades e desejos próprios e de sua comunidade, causando conflitos. Essas desavenças
provocam rompimentos, desobediência, e criação de atitudes negativas do grupo religioso,
mudando toda a harmonia hierárquica de um terreiro. Pai Carlito nos explicou que as
necessidades financeiras em terreiros levam certos líderes às ações dessa natureza. Tentando
suprir as necessidades e os desejos de seus adeptos e de suas casas, fazem escolhas dos
cargos, por exemplo, que dizimam a tradição religiosa. Observem suas palavras sobre essa
questão:
Tem pessoas que vão ser adaptadas e outras não conseguem cumprir ordens
ou obedecer ordens... Mas a hierarquia seria isso. Tanto para a parte religiosa,
como a parte mesmo de manter o Candomblé... È porque muita gente quer
cargo, muita gente quer fazer parte da hierarquia, porque é um destaque, é
130
Queremos explicar que a palavra atitude, aqui, tem o sentido diferente de comportamento. O sentido utilizado
por nós é o de formar uma opinião positiva ou negativa sobre algum filho-de-santo.
85
uma coisa de destaque dentro do Candomblé, mas que não tem nenhum
conhecimento para exercer tal cargo. Nem nunca vai ter. Então, isso é uma
coisa que acontece naturalmente, a escolha do cargo, não pode escolher uma
pessoa porque ela é pobre ou porque ela é rica, ou porque ela tem dinheiro ou
porque não tem (Cf. Entrevista 2m, em Apêndice B).
As predileções por parte das lideranças de terreiros, poderão causar o
desaparecimento de muitas casas, gerando desordem no grupo e perda de autoridade por parte
dos líderes. “Ordem e paz. Estas duas coisas são efeito da autoridade” (MAUSS, 2001, p.
111). O clima de insatisfação daqueles não escolhidos (os não prediletos) poderá ser
percebido por qualquer pessoa, pois os conflitos surgem. Nesses momentos, a força da
liderança dos sacerdotes ou sacerdotisas é perturbada, a ordem e a paz entre líderes e
liderados poderão ser rompidas, demonstrando a fraqueza da liderança nas relações humanas.
Quando alguém que faz parte de um grupo percebe que não é querido ou
reconhecido, ou seja, está insatisfeito, poderá desistir de fazer parte do grupo a que pertence.
Muitas vezes, as consequências são desastrosas, como por exemplo, mudanças de terreiros,
mudanças de pais e / ou mães-de-santo. Segundo o Babalorixá Marcos de Oxumaré, existe um
ditado que diz: “pais e / ou mães-de-santo não se troca, a não ser quando eles morrem” (Cf.
Entrevista 6b, em Apêndice B). Mas a realidade conhecida por nós, durante a convivência
com o “povo-de-santo”, mostrou-se outra. Em certas ocasiões, por motivos como esse,
segundo Pai Carlito, muitos adeptos trocam de terreiros e consequentemente de pais e / ou
mães-de-santo.
O líder que consegue satisfazer seus fiéis, que saiba driblar conflitos, é sempre
bem visto pela sua comunidade. A capacidade de perceber o grau de influência que sofre e
exerce junto aos fiéis remete à importância do desenvolvimento da habilidade em satisfazer
seus colaboradores de maneira que não distorça o que foi repassado e que faz parte da
tradição religiosa.
Partindo desse raciocínio, podemos interpretar que a dinâmica ideal de
convivência das pessoas em casas de matriz africana (em todos os níveis da hierarquia
religiosa) deverá ser alimentada por trocas constantes de admiração, envolvimento e respeito
mútuos. Sem competição entre líderes e liderados. Assim, as lideranças poderão preparar seus
seguidores, para que, no futuro, não sofram consequências de influências que abalem suas
lideranças e nem sua tradição religiosa. Segundo Pai Carlito, é preciso que as lideranças
estejam atentas a certos caprichos, originados pelas trocas de influências e pelos interesses
individuais, pois nada deverá fugir da missão religiosa. Esse sacerdote analisou essa questão,
afirmando:
86
Infelizmente é muito comum, digo, infelizmente. Já existiu pessoas aqui,
iniciadas na minha casa, que queria dar determinadas oferendas, que o Orixá
não estava pedindo. Seria por uma vaidade, e não se dá aquilo que o Orixá
não quer. Não se pode forçar ninguém a receber um presente. Você não pode
forçar ninguém a comer alguma coisa, então, isso não é bom. Aquilo....
você pode até receber por educação, aquilo espontâneo, aquilo livre. Então
isso tem que ser cortado. Agora, abre aspas, tem muitos Babalorixás que,
devido a questão financeira e toda a obrigação que tem dinheiro ou algo
assim, eles corrompem e deixa os filhos dar determinadas oferendas que o
santo não está pedindo, só pra ter, entrar dinheiro, entrar carne, entrar certos
elementos, mas infelizmente aquilo ali depois não vai muito adiante, porque
a energia não pode receber aquilo que ela não quer. Mas acontece... (Cf.
Entrevista 2n, em Apêndice B).
Então, compreendemos que as influências dentro de um terreiro são saudáveis,
caso as pessoas não percam de vista a missão institucional. Lembramos que a missão “É a
finalidade ou o motivo pelo qual a organização foi criada e para o que ela deve servir”
(CHIAVENATO, 1999, p.247). Salientamos, mais uma vez, que essa é uma análise no
sentido da Ciência da Administração.
A força coletiva de uma organização depende diretamente das pessoas que a
compõem. Dessa forma, certas influências poderão levar tanto ao sucesso quanto ao insucesso
de uma liderança. As lideranças de terreiros que detectam, com mais facilidade, os
sentimentos de afeição ou rejeição na rede de relações e interações desenvolvidas
informalmente pelos colaboradores, são percebidas como satisfatórias.
As lideranças hábeis em atender às necessidades e aos desejos coletivos,
adequando o perfil tradicional à organização informal e, também, buscando a sinergia, através
de uma visão diferenciada, afastam qualquer desarmonia que porventura aconteça em seus
terreiros. A questão dos cargos, abordada pelo Babalorixá, revela-nos a importância do
desenvolvimento dessas habilidades em uma liderança de terreiro, pois nem as necessidades e
desejos individuais dos clientes religiosos internos, nem as do líder como pessoa poderão
sobrepor-se à hierarquia sagrada.
Destacamos que a sintonia de uma liderança está ligada ao tipo de relação que o
líder pratica com seus liderados, à reciprocidade, pois, “[...] essas trocas e esses dons de coisas
que ligam as pessoas se efetuam a partir de um fundo comum de idéias: a coisa recebida como
dom, a coisa recebida em geral compromete, liga mágica, religiosa, moral e juridicamente o
doador e o donatário” (MAUSS, 2001, p. 365). O conhecimento religioso é muito importante
para as lideranças de uma casa de matriz africana, mas uma boa relação, sem conflitos nem
desavenças, unida ao conhecimento tradicional religioso e ao desenvolvimento das
87
habilidades são muito importantes para o sucesso das lideranças em terreiros. É útil lembrar
que:
Cada pessoa tem suas características de personalidade próprias que
funcionam como padrão pessoal de referência para tudo aquilo que ocorre no
ambiente e dentro de si mesma. Por força disso, o processo de comunicação
depende, em grande parte, do grau de homogeneidade de significados entre a
fonte e o destinatário, o que nem sempre ocorre (CHIAVENATO, 1999,
p.526).
Assim, desenvolvendo as habilidades de comunicação, enxergando a singularidade
de cada componente de seu terreiro e respeitando-as, os sacerdotes e sacerdotisas das religiões
de matriz africana buscarão, com mais facilidade, o sucesso de suas lideranças.
O tipo de relação que o líder tem com seus liderados ilustra a eficácia
131
de sua
liderança. Chiavenato (1999, p. 517) afirma que “a comunicação permeia cada uma das
funções administrativas”. E conclui seu raciocínio dizendo que “as habilidades de
comunicação constituem uma parte fundamental em cada atividade administrativa” (Ibid.).
Nessa perspectiva de raciocínio, entendemos que, através de uma relação satisfatória munida
de uma boa comunicação, os ensinamentos religiosos serão facilmente compreendidos e
apreendidos pelos adeptos, que poderão ou não se tornar líderes no futuro.
Pai Carlito nos informou que suas relações com seus clientes religiosos internos
apresentam parâmetros diferentes. Ele afirmou que nem todos os filhos-de-santo são
confiáveis em certos assuntos da esfera particular. No que diz respeito à esfera religiosa, ele
cultiva o que manda a tradição. Na esfera particular, esse sacerdote alimenta uma relação de
amizade com suas ekédis.
Curioso é que o tipo de confidência que trava com cada uma delas é diferente.
Segundo ele, assuntos sentimentais são compartilhados com uma, com a outra conversa
problemas corriqueiros, ligados ao dia-a-dia do terreiro, e com a outra, assuntos relacionados
a questões bancárias, vícios de linguagem, comportamento em público, como deve expressar-
se, etc.
132
Ele explicou, que a ekédi de sua preferência para assuntos sentimentais é uma
espécie de conselheira para todas as questões particulares, embora costume procurá-la, mais
vezes, para os de esfera sentimental.
Relevamos as habilidades dessas mulheres que, além de cultivarem a relação que a
hierarquia religiosa traça, também atuam como conselheiras nas tomadas de decisões do líder
131
Eficácia no sentido de ser proveitosa, e que atinge seus objetivos, em busca da missão.
132
Para não criarmos conflitos e ciúmes entre o sacerdote e suas filhas, não divulgamos os nomes das pessoas
envolvidas.
88
como pessoa e como administrador de terreiro. Certamente baseiam seus conselhos em
experiências passadas.
O grau de instrução, além da profissão bancária, demonstra a habilidade de uma
delas para assuntos relacionados. Esclarecendo de outra forma, a habilidade dessa filha-de-
santo não passou despercebida a Pai Carlito, uma vez que ele enxergou uma oportunidade de
melhorar a sua maneira de liderar, agregando valor ao seu terreiro e a sua pessoa.
Os filhos-de-santo de Mãe Mércia são unânimes em reconhecer que ela é uma líder
com muito axé, muito poderosa em conhecimentos tradicionais religiosos e força espiritual.
Também admitem que ela é prestativa, tem bom coração e é uma mulher guerreira.
Em uma de nossas visitas ao terreiro dessa Yalorixá, conversamos com uma de
suas filhas biológicas. A relação travada entre ambas demonstrava ser uma relação comum
entre mãe e filha; embora sutilmente, o respeito e o medo por parte da filha estavam
presentes. Em contrapartida, a satisfação de ambas por fazerem parte de uma mesma família
de sangue e de uma religião de matriz africana era nítida, principalmente nas festas. Notamos,
durante nossas visitas ao Ilé Axé Oxum Opará, que Mãe Mércia procura preparar sua filha
para que siga seus passos, no processo de perpetuação da sua casa de santo.
Enfim, as lideranças exercidas por Mércia e Carlito, embora singulares em suas
relações, são consideradas eficazes em suas comunidades, já que o reconhecimento desses
líderes é demonstrado em ocasiões diversas, dentro e fora dos terreiros.
3.2 Habilidades dos clientes religiosos internos
Quando estudamos lideranças, em qualquer que seja o grupo de pessoas, é
necessário considerar os seguidores, já que não existe líder solitário. Se há liderança, existem
também colaboradores. São essas pessoas, seguidoras do pensamento e das ações de seus
líderes, mesmo que por influência, que serão os futuros líderes.
Como já explicamos, o sucesso de uma liderança também está ligado às ações, às
necessidades, aos desejos, às influências e aos objetivos comuns dos seguidores. Da mesma
forma que os liderados externam, através de seus comportamentos, o estilo de suas lideranças,
estas também apresentarão características da natureza de seus liderados.
Entender as habilidades das pessoas que fazem parte dos terreiros de Mãe Mércia e
Pai Carlito, pensando em suas habilidades pessoais e também, nas que são demonstradas
como reflexos de uma liderança, nos remete a uma compreensão de uma totalidade. Como já
afirmava Durkheim (1989, p. 286), “[...] na perspectiva do pensamento religioso, a parte vale
89
o todo; tem os mesmos poderes, a mesma eficácia”. Por esse motivo, resolvemos inserir as
habilidades dos clientes religiosos internos dos terreiros escolhidos para a pesquisa, que em
nossa compreensão, refletem também, mesmo que sutilmente, características da pessoa do
líder e de seu exercício de liderança.
3.2.1 Habilidades no interior dos terreiros
Tivemos oportunidade de presenciar, em algumas festas, o trabalho religioso no
terreiro Ilê Axé Oxum Opará. Em certos momentos, Hamilton, filho-de-santo da Yalorixá
Mércia, exercia uma liderança
133
com características da personalidade de sua mãe-de-santo.
Notamos que outros filhos-de-santo eram influenciados, aos poucos, pelas ações
de seu colega, líder informal. Mãe Mércia nos confidenciou, em conversas informais, que esse
filho-de-santo se destaca dentre todos os outros, com sua ajuda durante as festas públicas.
Como o Ilé Axé Oxum Opará é um terreiro de pequeno porte, existe acúmulo de
funções
134
. O que é bastante comum. Há evidência desse fato nas palavras de Hamilton
135
.
[...] me preocupo em receber o convidado, em tratar bem... me preocupo na
hora de... de... o pai-de-santo vai chegar pra fazer a obrigação, me preocupo
depois de ele ter a comida, me preocupo, me envolvo muito com o negócio
de santo com isso. E aí é... isso aí é eu... eu com ela e todos os outros. Lá,
realmente, a gente tem uma comunidade que, aqueles que gostam tão ali
direto com ela (Cf. Entrevista 5b, em Apêndice B).
Para que alguém acumule funções, é preciso ter habilidades, além daquelas que
seu cargo legítimo impõe. Então,é importante pensarmos em destacar não somente a
habilidade desse filho-de-santo quando exerce o que já lhe foi atribuído pela tradição
religiosa. Merece relevância, também, o comprometimento demonstrado em ações que não
caberiam somente a ele, mas, sim, a todos os que ocupam o mesmo nível hierárquico no
terreiro. Nessa perspectiva, associamos a forma das ações de Hamilton às de sua mãe-de-
santo, que, como já foi comentado anteriormente, agrega valor ao que lhe é atribuído, com
responsabilidade e comprometimento institucional.
133
Exercer a liderança, no momento da festa, é coisa corriqueira para os cargos que estão logo abaixo do topo da
pirâmide hierárquica da religião candomblé, já que são delegadas, pelos líderes de terreiros, algumas funções
pela própria tradição religiosa.
134
O acúmulo de cargos é frequente nos terreiros em que o número de filhos-de-santo é pequeno ou naqueles
com pouco tempo de existência.
135
Como já explicamos no Capítulo 2, Hamilton é um dos filhos-de-santo de mãe Mércia que também é líder de
seu próprio terreiro.
90
É possível identificar na hierarquia das casas de matriz africana cargos de níveis
semelhantes. No entanto, algumas pessoas se destacam, exercendo lideranças informais (não
legítimas). Nessas ações informais as habilidades dos colaboradores são demonstradas com
singularidades, salientando certos líderes entre os componentes. Embora a preocupação, o
envolvimento, enfim, o comprometimento institucional sejam corriqueiros durante a correria
das festas e das obrigações nos terreiros, certos filhos-de-santo indicam particularidades em
suas ações, ou seja, possuem a habilidade de ação.
Lembramos, mais uma vez, as palavras de Pai Carlito, quando nos revelou que o
cargo não é imposto, mas, sim, uma conquista espiritual. Assim, recordamos que as
habilidades dependem também do odu
136
de cada pessoa, já que o axé, ou seja, a força doada
pelo orixá influencia no tipo de habilidade que cada pessoa possui.
Assim, compreendemos como acontece a delegação de poder de líder para
liderados. Certos cargos são escolhidos a partir das habilidades inerentes de cada pessoa. Nos
momentos em que se encontra em transe, por exemplo, pela própria hierarquia, o líder recebe
a ajuda de suas colaboradoras diretas.
Salientamos também que, em muitos terreiros, a harmonia entre lideranças e
liderados é proveniente da ajuda singular das mulheres que fazem parte dessas religiões. Em
alguns momentos elas incorporam atitudes e comportamentos influenciados pelos líderes, com
o intuito de assistir e reconfortar a liderança das casas, nas quais são elementos. Esse fato
ocorre devido a certos fatores: “de um lado os talentos e a autoridade do chefe, e de outro, o
volume, a coerência e a boa vontade do grupo; todos esses fatores exercem uns sobre os
outros uma influência recíproca” (LÉVI-STRAUSS, 1996, p.297). É evidente que, dentre os
clientes religiosos internos, as ekédis, ialaxés ou iakikerès externam, de maneira significativa,
as habilidades necessárias para exercer a liderança do terreiro nesses momentos.
Delegando atribuições próprias de seu cargo, os pais e / ou mães-de-santo,
alimentam a formação dos futuros líderes, reconhecendo as aptidões desenvolvidas de cada
um. Os líderes demonstram suas escolhas, baseadas em observações das habilidades de seus
clientes religiosos internos. Lembramos que, se as escolhas forem baseadas em vantagem
concedida a alguém, poderá comprometer a missão institucional. Nesse sentido, Pai Carlito
destacou que a habilidade faz muita diferença em um terreiro, quando afirmou:
Geralmente são os cargos ou o filho que tenha mais competência para tomar
conta; pra cantar, pra orientar, Mas geralmente são os cargos que toma conta,
quando o pai-de-santo tá incorporado, com transe, com seu Orixá.
136
Relembramos que odu significa caminho, destino.
91
Geralmente é uma pessoa com capacidade para levar o Xirê, levar as
cantigas, prá que os rituais continuem corretamente”. “As Ekedis, junto as
Iakikerè, as Ialaxé, determinam as pessoas que vão trabalhar, e essa parte
determina as pessoas que vai limpar, que vai ajeitar, geralmente são eles que
determinam isso (Cf. Entrevista 2o, em Apêndice B).
Mas devemos lembrar que nada acontece sem o consentimento do grupo, mesmo
que o líder imponha sua vontade. A observação de Lévi-Strauss sobre essa questão é muito
interessante para esta reflexão, principalmente quando afirma que “o consentimento é o
fundamento psicológico do poder, mas na vida cotidiana ele se exprime por um jogo de
préstimos e contrapréstimos que se dá entre o chefe e seus companheiros, e que faz da noção
de reciprocidade outro atributo fundamental do poder” (LÉVI-STRAUSS, 1996, p.297 – 298).
Identificamos, também, no terreiro Ilê Asé Osun Kemi, outra forma de habilidade
em uma de suas colaboradoras: a habilidade manual, ou melhor, da costura. A aptidão dessa
senhora transformou-a na pessoa responsável pela confecção das roupas usadas nas festas
pelos filhos-de-santo, pelo sacerdote e pela sacerdotisa. A propósito, essa cliente sagrada
interna de Pai Carlito é uma de suas mais antigas filhas-de-santo.
O cuidado dessa colaboradora com as roupas de todos os adeptos, inclusive com as
do Babalorixá Carlito pôde ser apreciado por nós em todas as festas públicas de que
participamos. Quando alguém elogiava a confecção dos ojás
137
, era perceptível a satisfação e
o orgulho dessa filha-de-santo, habilidosa na costura.
Apontamos, mais uma vez, a importância da habilidade de cozinhar e a habilidade
de cantar para um terreiro. Essas habilidades, como já foi dito anteriormente, colaboram
diretamente para o sucesso dos terreiros do Recife e fazem parte das habilidades que
encontramos nos clientes religiosos internos dos terreiros do Recife.
Muitos tocadores de ilus, de tambores e atabaques bem como muitos tiradores de
toadas, ou seja, cantores, são convidados e contratados para tocarem esses instrumentos em
festas públicas. Muitas vezes são remunerados pelas suas habilidades musicais. Pai Carlito
nos confidenciou que seus tocadores recebem um valor simbólico pela participação nas festas
em sua casa.
Outra habilidade comentada por Pai Carlito em conversas informais é a da limpeza
dos assentamentos. Vejamos com detalhes o que esse pai-de-santo explicou: “Algumas coisas
são delegadas e tudo, e outras eu tenho que estar presente. Como fazer o Ossé, como a gente
chama, de limpar o orixá, meu Orixá, o Orixá da minha mãe, isso com pessoas de muita
137
Ojás são as faixas de tecidos que complementam o vestuário do povo-do-santo, ora rodeando o peito, ora na
cabeça como turbante, ora enfeitando atabaques, etc.
92
confiança, mas eu prefiro tá presente” (Cf. Entrevista 2p, em Apêndice B). Ou seja, esse
sacerdote enxerga essa habilidade que certos filhos-de-santo demonstram ter mais que outros.
O cuidado com a limpeza dos elementos que compõem o assentamento de seu orixá, segundo
o sacerdote, não é aptidão de todos, por isso, gosta de acompanhar o Ossé
138
.
Conhecemos, também, muitos adeptos das religiões de matriz africana que possui
a habilidade de ornamentar e decorar terreiros. Porém como identificamos essa habilidade na
pessoa de Pai Carlito, resolvemos mencioná-lo como detentor dessa aptidão, já que um líder
também faz parte dos clientes religiosos internos
139
.
Esse sacerdote concorda que essa habilidade faz a diferença numa festa, por esse
motivo, planeja, com muita antecedência, a decoração de sua casa, além dos detalhes que
compõem todos os rituais. Ajudado pelos seus filhos-de-santo, o sacerdote demonstra sua
habilidade, que também sofre influência dos desejos e estilos de seus fiéis.
3.3 Habilidades de líderes e liderados, além dos muros dos terreiros
Compreendemos que as trocas simbólicas e as representações em instituições
religiosas afro-brasileiras, igualmente às instituições não religiosas, acontecem entre as várias
áreas da sociedade. Acreditamos que a missão religiosa, quando é divulgada, demonstrada e
compartilhada pelas lideranças e / ou pelos clientes sagrados para além dos muros dos
terreiros, observando valores tradicionais e éticos, resultam na continuidade da missão
religiosa.
As habilidades das lideranças e de seus liderados
140
, quando desenvolvidas
estrategicamente e demonstradas além dos muros das casas de matriz africana, promovem um
novo olhar social, derrubando de vez a intolerância religiosa.
Entendemos, assim, por acreditarmos que os resultados religiosos e sociais serão
alcançados com mais facilidade quando há a implementação de uma estratégia na liderança. É
evidente que “o papel da liderança é importante e talvez decisivo no cumprimento da
estratégia” (CHIAVENATO, 1999, p. 350). Esse autor nos ensina ainda que as habilidades
fundamentais de interação, alocação, monitoração e organização são exigidas na
implementação da estratégia de pessoas que administram organizações (Ibid, p. 350). Então,
138
Ossé quer dizer a limpeza do assentamento do Orixá.
139
Neste momento, estamos considerando que os clientes religiosos internos são todas as pessoas que fazem
parte do quadro de colaboradores de um terreiro como instituição, inclusive o líder.
140
Incluímos, nesse contexto, os liderados, pois entendemos que eles, quando exibem suas ações fora dos
terreiros, também praticam ações de líderes, mesmo que informais.
93
compreendemos que estabelecendo a união do ensinamento tradicional e dos conceitos da
Ciência da Administração, as lideranças de terreiros tenderão ao sucesso.
Destacamos alguns exemplos de pessoas que conseguiram estabelecer vínculos
sociais, políticos e econômicos, a partir do desenvolvimento de habilidades, mesmo sem
considerá-las como uma estratégia.
Esclarecemos que evidenciamos as habilidades de líderes e adeptos, pessoas que
não pertencem aos terreiros escolhidos para a pesquisa. Nosso propósito, em relação à
inclusão dessas pessoas, é demonstrar que, na cidade do Recife, as habilidades utilizadas
como estratégias já fazem parte do universo religioso de matriz africana.
As inúmeras transformações do mundo globalizado e tecnológico estão mudando
as formas de ação das organizações, sejam elas de cunho empresarial, cultural, religioso ou
social. Assim, é importante pensarmos que as mudanças ocorridas no interior dos terreiros
bem como as do ambiente em que eles estão inseridos,
141
são visivelmente uma constante
ameaça para os líderes dessas instituições, remetendo-os à busca de novas maneiras de
compreender a dinâmica do mundo, além de novas formas de ação, para que as trocas de
qualquer natureza aconteçam.
Nessa perspectiva, discutiremos que já existem líderes de terreiros que possuem
uma visão adequada de suas casas, conseguindo percebê-las no contexto de mundo
competitivo atual.
Por ocasião de nossa visita ao terreiro Ilé Axé Oba Xangô, localizado no Alto
Santa Isabel no bairro de Casa Amarela
142
, conhecemos o trabalho social dessa casa, cujo
líder é Pai Luizinho de Oiá. Quando chegávamos ao local, palco de mais uma reunião da
“Rede de Mulheres de Terreiro”, observamos que, simultaneamente, acontecia uma campanha
de vacinação em crianças contra a poliomielite
143
. Naquele instante, percebemos a habilidade
social de uma liderança, que não só trabalha em função de um grupo religioso mas também de
um contexto mais amplo, o social.
141
Utilizamos a palavra ambiente no sentido das dimensões do ambiente de marketing, que engloba o social,
econômico, político e legal, natural, tecnológico e competitivo. Diz respeito, então, ao ambiente externo em que
os terreiros estão implantados.
142
Esse terreiro foi fundado em 16 de julho de 1979, por Beatriz Gonçalves da Silva, conhecida por Mãe Bia de
Xangô. Pai Luizinho, filho legítimo dessa Yalorixá, é o novo líder do terreiro, devido ao falecimento dela.
143
Esse Babalorixá é o representante da saúde dos terreiros de Matriz Africana no Recife. Seu trabalho
ultrapassa os limites de seu terreiro, tendo como parceiro a rede de saúde da Prefeitura da cidade do Recife.
Assim, em campanhas de vacinações, contra rubéola, vacinação de idosos etc. sua casa funciona como um posto
de vacinação. Seu terreiro também participou ativamente, no ano de 2008, das palestras educativas e
informativas sobre a anemia falciforme, que é uma doença que altera os glóbulos vermelhos e que passa de pais
para filhos.
94
A ação de Pai Lula (como gosta de ser chamado) em disponibilizar a estrutura
física do terreiro para uma ação social ligada à Prefeitura da cidade do Recife demonstra sua
visibilidade, através de ações, agregando valor ao terreiro, a sua pessoa como líder e a seus
clientes internos e externos. Tentando ajudar as pessoas de sua comunidade, ele implantou
uma estratégia diferenciada em sua liderança. Segundo Lévi-Strauss (1996, p. 293), “o
primeiro e o principal instrumento do poder consiste na sua generosidade”. Mesmo sem
pretensões de destaque, esse sacerdote conseguiu estabelecer-se como um líder que presta
serviços sociais perante a comunidade de Casa Amarela, demonstrando, dessa forma, a
generosidade em seu poder de líder. Fica evidente que o desenvolvimento da visão habilidosa
de Pai Luizinho, baseada no espírito humanitário e generoso, contribui para que sua liderança
continue conquistando o sucesso.
Foto n. 23 - Momento da reunião da Rede de Mulheres de Terreiro no terreiro Ilé
Axé Oba Xangô (14 de junho de 2008);
Nesse sentido, também merece destaque o trabalho da Rede de Mulheres de
Terreiro, lutando pelo reconhecimento religioso em Pernambuco, interagindo e aproximando
os terreiros do Estado, a partir de diálogos sobre questões ligadas à sociedade religiosa de
matriz africana. Trazendo a proposta de fortalecer e valorizar a identidade das Mulheres de
Terreiros, de todos os níveis da hierarquia religiosa, a rede tem como organizadora a iakikerè
do terreiro Ilê Oba Aganjú Okoloyá (conhecido como Terreiro de Mãe Amara).
95
Foto n. 24 – II Encontro da Rede de Mulheres de Terreiro (2008);
Relembramos que uma visão diferenciada dos líderes de terreiros e / ou dos
clientes religiosos internos, quando buscam novos horizontes a partir de suas práticas
habilidosas, fortalecem a missão institucional. As ações sociais dessas pessoas indicam
representações coletivas que
são o produto de uma imensa cooperação que se estende não apenas no
espaço, mas no tempo; para criá-las, uma multidão de espíritos diversos
associou, misturou, combinou suas idéias e seus sentimentos; longas séries
de gerações nelas acumularam sua experiência e seu saber (DURKHEIM,
2003, p.XXIII).
Mas essas representações também poderão ser entendidas como habilidades
desenvolvidas respondendo às situações enfrentadas no dia-a-dia de suas lideranças.
Outro tipo de habilidade dentre os adeptos das religiões afro-descendentes é a
habilidade da política, pois não é qualquer um que consegue adquirir esse dom. É necessária a
participação das pessoas de terreiros na política, pois, assim, a intolerância e o preconceito
que ainda existe na sociedade acabará, havendo conscientização social. Com a implementação
da lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que estabelece diretrizes e bases da educação
nacional, as lideranças ganharam apoio para que suas ações de cunho social alcancem o
ambiente externo de suas casas.
As ações socioculturais, como: reuniões, palestras, caminhadas, oficinas, “shows”
em que são apresentados grupos de maracatus, afoxés, etc. fortalecem a desenvoltura das
lideranças. Enfatizo que as habilidades, quando expostas em conjunto, edificam o exercício da
liderança.
96
Diante de tudo o que foi exposto anteriormente, é indiscutível que as habilidades,
quando externadas para a sociedade através de ações, fundamentam também o sucesso das
lideranças de terreiros. Em nossa opinião, é impossível existir liderança de sucesso, se as
ações não são compartilhadas e reconhecidas socialmente.
Finalizando a abordagem desse subitem, é válido informar sobre as habilidades no
campo das ações sociais da Yalorixá Mércia e do Babalorixá Carlito. Como característica de
uma liderança participativa em sua comunidade, a sacerdotisa Mércia se empenha em retirar
das ruas crianças carentes, reintegrando-as em suas famílias e na sociedade, apoiada por
órgãos públicos responsáveis.
Por outro lado, Pai Carlito ajuda uma creche em sua comunidade. Em conversa
informal, comunicou-nos que, como não gosta de divulgação, não se aprofundaria nos
detalhes sobre essa questão.
97
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Para estudar as lideranças afro-brasileiras, é preciso entender o olhar religioso que
as fundamenta, isto é, a visão de mundo sob a lógica de uma tradição africana. Assim,
baseados na cosmovisão, o papel que o líder exerce é fundamental para manipular, alocar e
distribuir a força recebida dos orixás, conhecida como axé. Essa força dinâmica origina a
participação de todas as pessoas e coisas que, consagrados por ela, fazem parte do mundo
religioso dos terreiros.
O papel do líder e, também, os papéis exercidos pelos liderados, em uma casa de
matriz africana, convergem para ações institucionalizadas, que são vistas como um todo, ou
seja, passam a fazer parte do que Mauss definiu como “fato social total”.
Para o sucesso de suas lideranças, os pais e mães-de-santo controlam as estruturas
religiosas em seus terreiros, assumindo o papel de gestores institucionais, mas, antes de tudo,
de conhecedores das formas para que humanos e divindades do mundo Òrun estejam sempre
em conexão, isto é, o papel de líder espiritual. Como conhecedor, detentor, manipulador e
controlador das tradições religiosas, ensinando o caminho e encaminhando seus fiéis à missão
que lhes foi incumbida, os líderes são responsáveis e reconhecidos em suas comunidades.
Se, em certos terreiros, existem líderes que assumiram lideranças sem se
submeterem ao “formato ideal” de iniciação, por várias razões, isso não os deixará
desconhecidos perante suas comunidades. Por laços de parentesco, sagrado e profano, ou
“feitos na Jurema”, serão reconhecidos, em suas práticas, como líderes de terreiros, mesmo
que se manifestem apenas como consultores espirituais de clientes religiosos externos.
Lembramos que o “modelo ideal” de feitura de um líder no universo das religiões
de matriz africana nem sempre é seguido, parecendo bastante flexível, já que existem
lideranças estabelecidas que pularam etapas do processo de suas feituras no santo.
Precisamos lembrar, ainda, aqueles líderes de terreiros que se estabeleceram em
suas comunidades, a partir de “feitura na jurema”, “feitura no santo” por parentesco herdado
(sagrado e profano), como também aqueles que ninguém “do santo” sabe informar sobre seu
processo de iniciação e / ou dizer, por quem foram iniciados.
Observamos neste trabalho, também, que o repasse de conhecimentos por via oral,
que outrora era o único aplicado, ganhou uma série de aliados como livros, Internet, cadernos,
além dos aprendizados a partir das críticas comparativas, quando visitam outras casas de
santo, ouvidas e ditas sobre as formas corretas de se fazer os rituais religiosos. Todas essas
98
formas de adquirir conhecimentos religiosos contribuem para o enriquecimento da formação
dos futuros líderes e suas lideranças.
Lembramos que a dinâmica hierárquica imposta pela tradição é demonstrada,
vivida e reconhecida a partir das acumulações das obrigações doadas aos orixás, desde a
“feitura no santo”. São esses odus cumpridos que tornam uma pessoa líder de casas de matriz
africana, isto é, mediadores entre homens e orixás e, também, uma pessoa com poder e
autoridade para distribuir e reter axé para si e para sua comunidade.
O “dom” advindo de Olorun, através dos orixás, nem sempre percorre o mesmo
caminho, uma vez que poderá ser desenvolvido, embora origine as mesmas responsabilidades
e obrigações, de aceitá-lo e de retribuí-lo.
As lideranças afro-brasileiras, como responsáveis pelas trocas que acontecem entre
o Àyié e o Òrun, criam uma rede de poder / autoridade e subordinação dentro de suas casas, a
partir de um conhecimento de “como, para que, porque e quando fazer” as obrigações, que
remetem à harmonia religiosa.
Não acontecendo essa dinâmica das dádivas, dos recebimentos e das obrigações de
retribuições, que Mauss chamou de sistema de prestações de trocas, os líderes, os liderados e
/ ou seus terreiros receberão castigos dos orixás. Esse é o principal motivo que leva os líderes
a serem respeitados e temidos, dentro e fora de suas roças, já que dominam a forma correta do
“como fazer” para retribuir as dádivas dos orixás.
Se os símbolos e as representações das casas de matriz africana são “coisas”, como
Mauss definiu, pois são utilizadas como o veículo que possui forças mágica, religiosa e
espiritual, compreendemos, também, que elas têm axé, têm mana, que é uma força vital e
dinâmica.
Ao entendermos o axé como uma força advinda dos habitantes do Òrun, ou seja,
uma “dádiva”, um “dom” recebido de Olorun, passamos a considerá-lo como mana, que
conforme Mauss, é a força que faz acontecer as trocas entre as “coisas”. Acreditamos então,
que se “as coisas” que fazem parte das casas de matriz africana estão ligadas às pessoas, às
suas lideranças, às famílias-de-santo e à comunidade, elas tornam-se os meios consagrados e
que contêm a força vital e dinâmica chamada axé, ou seja, mana.
Os habitantes do Àyié quando recebem a dádiva, o axé dos ará- òrun, ou seja, a
força que está contida nas “coisas” que fazem parte da natureza, têm como obrigação recebê-
la e retribuí-la. Decorre dessa idéia que a força do axé está em tudo e em toda parte dos
terreiros e também fora deles, estrutura a identidade das casas religiosas de matriz africana e,
consequentemente, das suas lideranças.
99
Seguindo o que manda a tradição religiosa de origem africana, para que ocorra a
ligação de forma correta com o mundo sobrenatural e para que uma pessoa, em especial, a que
pretende ser líder religioso no futuro, comece a conhecer os segredos de como “zelar pelo seu
santo”, será necessário o cumprimento de etapas que fazem parte do processo chamado
iniciação. Reforçando as idéias dos autores Ribeiro (1978), Verger (1981) e Bastide (1978),
sobre esse processo, apontadas no Capítulo 1, entendemos que a iniciação
“é um processo simbólico de morte frente à alteridade absoluta, o dono da
cabeça do iniciado, no caso o Orixá ao qual o destino do fiel está
relacionado, é experienciado ao mesmo tempo como alteridade e identidade,
sendo o drama litúrgico o lugar propiciador da síntese entre estes dois
aspectos” (VASCONCELOS, 2006, p. 25).
A partir da iniciação, as pessoas vão alcançando os cargos da escala hierárquica
tradicional. Ouvir o orixá é o primeiro estágio da iniciação e isso acontece a partir do jogo de
búzios, local em que os orixás expressam suas vontades e desejos.
As combinações que surgem, quando os búzios são jogados, fornecem todos os
trâmites seguintes do processo de iniciação, como também todos os elementos que serão
utilizados, através da interpretação dos líderes jogadores, tais como: lavagem das pedras e dos
fios de contas, bori, assentamento do orixá no peji, todos os ebós que acompanham as etapas,
quais os bichos que serão sacrificados, quais as folhas que serão utilizadas, quando o abian
entrará e sairá da camarinha, etc.
Destacamos que o ritual de bori é muito importante, pois é quando a pessoa
prepara a cabeça para o recebimento do orixá.
Fundamental, também, é o sacrifício dos animais, que tem como finalidade a
obtenção, a distribuição e a consagração das “coisas” com o axé, advindo do sangue, que
contém a força doada por Olorun e que move a vida.
Através do sacrifício animal, as “coisas” que farão parte dos pertences do abian e o
próprio iniciando e seu iniciador (o líder) recebem o axé proveniente dos orixás. É dessa
forma que o neófito recebe axé na mesma proporção de seu líder.
A partir de uma iniciação, o neófito passará a ser reconhecido por todos da
comunidade como yaô, ao mesmo tempo em que aquele que exerce a liderança, agregará e
reforçará seu poder de líder pelo acúmulo de obrigações.
Frente à compreensão do papel e do significado de uma liderança religiosa,
baseada na cosmovisão, é relevante chamarmos a atenção para o compromisso assumido pelos
líderes de terreiros.
100
As singularidades que existem nas casas do Babalorixá Carlito e da Yalorixá
Mércia demonstram que, mesmo fazendo parte de uma mesma religião, suas casas apresentam
elementos, símbolos e representações distintas, pois o “dom” recebido dos orixás, traçou
diferentes caminhos iniciáticos para ambos, visto que a sacerdotisa “fez o santo” por motivo
de doença, enquanto o sacerdote começou sua “caminhada para o santo”, incorporando
entidades, embora não tenha sido iniciado na Jurema.
As estruturas edificadas dos terreiros desses líderes refletem a imagem das
lideranças praticadas por eles. Os cômodos de ambos os terreiros são adaptados pela falta de
espaço e assumem dupla função, a de lugar sagrado e de residência.
Os calendários e as organizações das festas nos terreiros de Pai Carlito e Mãe
Mércia são diferentes, embora seus conhecimentos religiosos tenham sido adquiridos, através
dos ensinamentos de um mesmo líder, isto é, foram “feitos no santo”, pelo mesmo pai-de-
santo.
Salientamos a compreensão de que, nas festas, os fiéis demonstram sua fé, suas
lideranças, suas condições econômicas, suas relações com a comunidade e suas habilidades.
Compreendendo as habilidades dos líderes e liderados dos terreiros escolhidos,
como estratégias que desencadeiam o sucesso dessas lideranças, construímos um olhar
diferente baseado em conceitos da Ciência da Administração.
Como peças fundamentais para o crescimento e o sucesso dos terreiros no
competitivo mercado religioso atual, as habilidades dos líderes afloram e ratificam nosso
raciocínio. Quando compatibilizam suas ações e práticas, interpretadas por nós como
estratégias de ação, estudadas no Capítulo 3, as lideranças dão continuidade às suas casas, que
se encontram inseridas no mundo atual, globalizado e tecnológico.
Se, em certas ocasiões, as ações dos líderes afro-brasileiros seguem o estilo
tradicional, deve-se à rigidez religiosa, repassada pelos seus líderes antecessores, à própria
hierarquia institucional e à percepção de mundo em que estão inseridos. Então, é conveniente
entendermos que a ausência do desenvolvimento das habilidades poderá acarretar uma
vulnerabilidade, em termos de futuro, já que são elas que fundamentam e reforçam as práticas
de liderança.
A disposição dos líderes em captar recursos para suas casas e para eles próprios,
suas relações carismáticas com seus liderados, a capacidade em satisfazer os fiéis e a
comunidade, a força competitiva desenvolvida frente ao mercado religioso, a preocupação
com a saúde das pessoas e do ambiente, etc. quando desenvolvidas, ou seja, quando
101
aperfeiçoam suas habilidades, demonstram uma visibilidade que é percebida pela sua
comunidade e também pela sociedade.
Certos líderes de casas de matriz africana já apresentam essas características que
fortalecem a missão religiosa contribuindo, assim, para diminuir as provocações e os conflitos
de caráter religioso, que são frutos de uma formação teológica da sociedade, levando suas
lideranças ao sucesso. Quando as lideranças das religiões de matriz africana unem a tradição
às habilidades desenvolvidas com criatividade e estratégia, trabalhadas e articuladas para o
bem da coletividade, resultam no bem-estar do líder, dos clientes religiosos internos e dos
clientes religiosos externos. Por outro lado, as lideranças que teimam ou não querem aceitar
que o sistema que hoje vivenciamos, apresenta-se competitivo, sofrem consequências por falta
de uma administração que articule suas habilidades.
Os “dons” singulares, ou seja, as habilidades dos líderes Carlito e Mércia são
exemplos do que contextualizamos quando nos referimos à sacerdotisa, que desenvolveu a
habilidade da culinária para além das fronteiras de seu terreiro enquanto que o sacerdote
desenvolveu sua habilidade no canto. As habilidades de ambos foram desenvolvidas em
função da continuidade de suas lideranças. É interessante observarmos que as habilidades
destes líderes foram percebidas pela comunidade e também por nós, durante a pesquisa.
Mãe Mércia utilizou sua habilidade como forma de captar recursos para seu
terreiro e para seu sustento. Pai Carlito, utilizou sua habilidade como forma de divulgar seu
dom de cantar em yorubá, rompendo preconceitos além dos muros dos terreiros. Assim, fica
evidente que nossos líderes escolhidos demonstram socialmente com suas práticas, que as
habilidades são fundamentais para o sucesso das lideranças afro-brasileiras. Como afirma
Lévi Strauss (1996, p. 294), “Um bom chefe demonstra habilidade e iniciativa”.
Compreendemos também que Mércia e Carlito captam seus recursos financeiros,
articulando suas trocas com seus clientes religiosos internos e externos, utilizando em suas
ações, as habilidades em comunicação, levando em conta o conceito Weberiano de carisma.
Observamos que prestando serviços espirituais em troca de bens materiais e numerários, os
líderes satisfazem não só os desejos e as necessidades de seus clientes, mas também
satisfazem os seus desejos e suas necessidades.
Nesse sentido, quando líderes e liderados utilizam suas habilidades como
estratégias de ação, suas lideranças, dentro e fora das fronteiras de seus terreiros, criam uma
nova visão, que pode estabelecer o sucesso de suas histórias de vida e de suas casas, mediante
o enfrentamento religioso atual.
102
Desenvolvendo suas habilidades, as lideranças mudam a percepção da sociedade
que ainda teima em absorver o olhar que denigre, é preconceituoso e discriminador, imposto
pelos europeus, contra as religiões de matriz africana e que ainda, infelizmente, encontra-se
em nosso país.
Por fim, gostaríamos de acrescentar que a experiência obtida com a realização
deste trabalho foi válida e nos permitiu um conhecimento mais amplo e interdisciplinar,
acerca do mundo afro-brasileiro.
103
REFERÊNCIAS
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Universidade de Brasília, 1998. 464 p.
105
GLOSSÁRIO
Aba Baxé de Ori - o mesmo que iniciação, primeira etapa para o aprendizado dos segredos
das religiões afro-descendentes; o mesmo que “fazer o santo”, “fazer a cabeça”, “deitar para o
santo”, “feitura do santo”.
Abiã - ou abian, é como o “povo-do-santo” chama a pessoa que frequenta com assiduidade
um terreiro e que está sendo encaminhada para uma futura iniciação, futuro sacerdote ou
sacerdotisa do Candomblé; aspirante a yaô; nível mais baixo na hierarquia das religiões afro-
brasileiras.
Agibonam – mulher que cria, conhecida por mãe criadeira; madrinha; pessoa do sexo
feminino que é responsável e cuida dos iniciandos das religiões afro-descendentes.
Àiyé - o mundo dos vivos, o mundo humano,mundo que é formado de matéria e que o ser
humano pode pegar concretamente.
Alabê - chefe dos instrumentos do terreiro; pessoa do sexo masculino que comanda os
tocadores de atabaques, ilus e tambores nos xirês; ogã responsável pelos tocadores do terreiro.
Apetebi - filha de um dos tipos de Oxum mais velha, que acompanha os babalaôs; sacerdotisa
que auxilia obabalaô.
Ara-òrun - os seres e as entidades sobrenaturais; habitantes do Òrun.
Aráyé - (Ará-àiyé) - habitantes do mundo, no qual vivemos; habitantes do Àiyé.
Ariaxé - ponto central nos salões dos terreiros de Candomblé, onde está enterrado o axé do
orixá fundador da casa; o mesmo que intoto; mina; salé.
Asé - força vital e dinâmica, presenteada pelos Orixás (divindades que pertencem ao panteão
afro-descendente), que se individualiza em objetos, animais, pessoas, plantas, etc.; força que é
unificada em tudo que compõe as casas de matriz africana, inclusive as pessoas.
Atakan - pano utilizado nas vestimentas dos rituais do Candomblé. Com ele se cobre parte do
corpo, fazendo um laço nas costas. Quando a pessoa entra no transe, desfaz-se o laço e
amarra-se ao peito do incorporado.
Axé - o mesmo que Asé.
Axó - as roupas ritualísticas usadas pelos adeptos das religiões de matriz africana.
Axogun - ogã responsável pelas imolações; mão-de-faca; pessoa do sexo masculino que mata
os animais nas obrigações.
Axó-ierê - saia utilizada nos rituais africanos e de matriz africana.
Babá - modo popular de dizer Babalorixá; maneira carinhosa de chamar o líder do sexo
masculino de um terreiro; o mesmo que Babalorixá.
106
Babakekerê - auxiliam os Babalorixás em suas lideranças, controlando e comandando o
barracão; o mesmo que Pai pequenos.
Babalaôs - sacerdotes responsáveis pelo culto aos Orixás e pelo jogo de ifá; líderes de
terreiros que utilizam o jogo de ifá, através dos búzios, do opelé e dos cocos; sacerdote que
revela o futuro, os desejos e as vontades dos orixás, através do jogo de advinhação. Segundo
Bastide, os babalaôs não entram em transe, são chamados de videntes, no Brasil e estão
sempre acompanhados de uma filha do Orixá Oxum (Iabá Omi, a mais velha das Oxum), pois
só essa espécie de Oxum pode ser a apetebi do babalaô (BASTIDE, 1978, p. 116-117).
Babalosaim - sacerdote responsável pelo culto a Ossaim, Orixá das folhas.
Babaogê - sacerdote responsável pelo culto aos eguns (mortos).
Barracão - é a organização institucional religiosa, em que se encontram os Orixás assentados.
Local onde acontecem os rituais religiosos. O mesmo que terreiro, roça, Ilê Orix, Casa-de-
santo.
Bori - conhecido também como obori ou ebori, é o ritual que prepara o ori (a cabeça) de uma
pessoa para o recebimento do Orixá.
Camarinha - aposento em que os iniciandos ficam recolhidos durante a iniciação.
Candomblé - religião afro-brasileira que compreende várias nações e rituais. Religião que
cultua a natureza e tudo o que pertence a ela, através de divindades chamadas Orixás.
Cosmovisão - termo que denomina a visão de mundo, sob a lógica da tradição africana.
Cumeeira - demarcação central localizada no teto do barracão que significa o nível Òrun; o
mesmo que edun ará. Os xirês acontecem abaixo dela.
Delogun - jogo de Ifá; jogo de adivinhação, através de conchas provenientes de moluscos
(búzios), no qual os sacerdotes e sacerdotisas se comunicam com os Orixás.
Disjuntó - segundo Orixá que auxilia o orixá “dono da cabeça”.
Ebó - oferendas e sacrifícios doados pelos ará-àiyé iniciandos ou já iniciados; obrigação;
trabalhos que são ofertados aos Orixás; oferendas pedidas ou não pelas entidades do panteão
das religiões afro-brasileiras. Os ebós básicos podem ser entregues nos rios, nas matas, nas
encruzilhadas, nas estradas e nos caminhos que as pessoas costumam passar.
Ebomi - iniciada que cumpriu obrigações de sete anos.
Edun ará - o mesmo que cumeeira
Efun - espécie de giz utilizado em rituais afro-descendentes.
Eguns - espíritos dos mortos; ancestrais dos terreiros.
107
Ekédi - também grafado ekede, é o cargo feminino que ajuda o líder de terreiro e os clientes
religiosos internos; é uma auxiliar que não entra em transe e que ampara os incorporados,
enxugando-lhes o suor, encaminha as pessoas incorporadas para a camarinha etc.
Filho (a)- de - santo - iniciado(a).
Gira - ritual, em forma de roda, com que os iniciados cultuam os orixás: com danças e cantos
no entorno da mina; o mesmo que xirê.
Iabá - o mesmo que ekédi; pessoa do sexo feminino que auxilia os líderes em terreiros,
principalmente nos momentos em que os adeptos estão incorporados.
Iabás - plural de iabá; orixás femininos.
Iabassê - cozinheira do barracão; pessoa do sexo feminino que toma conta das comidas que
são ofertadas aos Orixás.
Iakekerê - nome do cargo de pessoa do sexo feminino que auxilia os líderes nos terreiros ou
que os substituem.
Ialaxé - nome do cargo de pessoa do sexo feminino que limpa e deita as oferendas para os
Orixás; auxiliar feminina dos líderes dos terreiros.
Ibá -conjunto de louça ou de barro (pintado ou natural) composto por pratos, bacias e tigela
com tampa, quartinhas com tampas e em formato de jarros.
Ifá - orixá da adivinhação, do destino do mundo; Orixá que não é incorporado por ninguém.
Ilê Orixá - o mesmo que barracão.
Iniciação - o mesmo que Aba Baxé de Ori; orô; deitar para o santo; fazer o santo.
Intoto - o mesmo que mina; salé; local central no salão do terreiro onde se encontra enterrado
o axé; lugar onde estão plantados os fundamentos religiosos.
Ipeté - comida própria do Orixá Oxum, constituído de inhame amassado, camarão, azeite de
dendê, cebola e pimenta; prato que especifica a festa de Oxum como ritual.
Juntó - Orixá que auxilia e que está imediatamente após o Orixá “dono da cabeça” do
iniciado.
Jurema (a) - religião de origem ameríndia; forma de contato com as entidades que bebem e
fumam e que já fizeram parte do Àiyè (mundo dos vivos).
Jurema (b) - planta utilizada em cultos afro-ameríndios; bebida feita da casca, raízes ou fruto
da planta que tem a mesma denominação.
Mãe pequena - o mesmo que Iakekeré.
Mãe-de-santo - o mesmo que Yalorixá.
108
Mina - o mesmo que intoto, salé, mina.
Obaluaiê - também grafado Abaluaiê ou Obaluaê. É o orixá da varíola, conhecido por
Omulu; Orixá que protege as pessoas das doenças, principalmente as doenças na pele.
Obi - fruto comestível de palmeira africana, utilizado em vários rituais das religiões afro-
brasileiras.
Obrigações - conjunto de rituais e oferendas para os orixás.
Odú - caminho da vida dos ará-àiyé; destino de cada habitante da terra, traçado por Olorun
que é o ser mais poderoso do Òrun.
Ogãs - homem capaz de proteger e ajudar financeira e socialmente o terreiro; pessoa do sexo
masculino que é iniciada conforme a tradição, para ajudar os líderes de terreiros em diversas
funções, como imoladores, tocadores, zeladores de peji, etc.
Ojá-ori - faixa de pano usada na cabeça dos adeptos das religiões afro-descendentes;
turbante.
Olorun - o ser maior que comanda o Òrun e seus habitantes.
Opó ofanjá – Poste que demarca o centro do salão nos terreiros; demarcação feita por uma
coluna ou por um poste que simboliza a ligação do Òrun ao Àiyé.
Ori - cabeça; local do corpo em que o orixá torna-se dono.
Orixá - divindade que rege os caminhos das pessoas de acordo com o que Olorun permite;
entidade dono de nossas cabeças.
Orixás - divindades que habitam o Òrun e que, quando invocados, incorporam as pessoas
iniciadas.
Orô - o mesmo que Aba Baxé de Ori; iniciação; deitar para o santo; fazer o santo.
Orobô - fruto comestível de uma espécie de planta africana, utilizado em rituais afro-
descendentes.
Òrun - mundo dos mortos e de tudo o que é considerado de outro mundo.
Osedudu - espécie de sabão utilizado nos banhos dos yaôs; sabão utilizado em rituais
religiosos pelo povo-de-santo (também conhecido por sabão nagô).
Ossaim - orixá das folhas.
Padê - ritual que é feito no início de toda festa pública para o Orixá Exu.
Pai pequeno - auxiliar substituto do Babalorixá.
Pai-de-santo - sacerdote das religiões afro-brasileiras; o mesmo que Babalorixá e Babá.
109
Pedra de Otá - espécie de pedra seixo que representa a força do axé de cada Orixá. É posta,
após os devidos trâmites rituais religiosos, no assentamento da divindade (Orixá).
Peji - cômodo do terreiro onde estão assentados os Orixás.
Pejigan - ogã zelador do peji.
Pomba-gira - Exu feminino.
Povo do santo - adeptos ou fiéis iniciados nas religiões afro-descendentes.
Roça - o mesmo que terreiro, barracão, Ilê Orixá.
Salé - o mesmo que intoto.
Xangô - Orixá da justiça; entidade dos raios e trovões; termo chamado para denominar cultos
afro-brasileiros, de origem iorubana em Pernambuco, Alagoas, Sergipe e Paraíba.
Xequeté - bebida servida em certas festas públicas de terreiros; bebida constituída por
gengibre, vinho branco e nós moscada.
Xirê - ritual festivo em torno do intoto; dança e cânticos que fazem parte do ritual religioso do
culto aos Orixás e que obedece a uma ordem de invocação.
Xocotó - espécie de calça comprida que os yaôs vestem nos rituais dos orixás.
Yá - vide Yalorixá.
Yalorixá - sacerdotisa que ocupa o mesmo lugar e função na escala hierárquica das religiões
afro-brasileiras que os Babalorixás.
Yaô - grafado como iaô ou ìy-àwó (iauô), é o neófito das religiões afro-descendentes; pessoa
que passou pelos ritos de iniciação nas religiões de matriz africana, mas que não cumpriu
todos os rituais que um dia o transformará em líder de terreiro.
Zelador (a) de orixá - também chamado (a) de zelador (a) de santo. Ver Babalorixá e
Yalorixá.
110
APÊNDICE A
ROTEIRO DAS ENTREVISTAS
1) Construção, aluguel ou compra da estrutura física do terreiro
2) Fundação do Terreiro
3) Linhagem do líder
4) Hierarquia do terreiro
5) Divisão de tarefas
6) Aceitação das tarefas atribuídas
7) Festas que acontecem durante o ano
8) Enfrentamento com vizinhos
9) Primeiras doações do terreiro para a comunidade
10) Primeiros presentes recebidos
11) Maior necessidade do terreiro atualmente
12) Objetos doados por clientes ou por filhos-de-santo e que foram incorporados como
sendo patrimônio do terreiro
13) Rituais mais frequentes no terreiro.
14) Esforços que são utilizados para captar recursos financeiros
15) O bem mais valioso para um terreiro
16) O mundo tecnológico dentro da religião candomblé.
111
APÊNDICE B
SÍNTESE DAS ENTREVISTAS
ENTREVISTA 1: YALORIXÁ MÉRCIA DE OXUM (7 de julho de 2007):
a. “a mulher traz sempre seu povo para ajudar”
ENTREVISTA 2
: BABALORIXÁ CARLITO DE OXUM (5 de março de 2008):
a. “A gente nunca pode perder a essência de dizer que o Candomblé é espiritual, mesmo com
toda modernidade, toda materialidade que existe no mundo atual.”
b. “Em relação à hierarquia bem... definida dentro do Candomblé, com pai, com mãe, com
auxiliares... Geralmente a hierarquia é pra funcionar, dentro da medida do possível bem...
que os rituais saiam de forma correta, né... cada... cada... cada... cada pessoa que faz parte
de um ... de um cargo, da hierarquia, ele tem que ter determinados conhecimentos pra
poder fazer, pra que o ritual saia sempre o máximo correto ou da maneira melhor possível.
Então, cada pessoa, ela tem uma importância. Não existe uns mais, outros menos, mas cada
pessoa tem uma importância. Então, um Babalorixá, ele precisa de várias pessoas, pra
poder o ritual, tudo é em função do Orô”. Às vezes, a quantidade de pessoas na hierarquia
menor..., mas a casa funciona muito bem e às vezes a hierarquia é maior e a casa não
funciona. Então, isso também é uma coisa que independe, né?
c. “na realidade, há uma simulação do aprendizado dessas tarefas cotidianas. O yaô volta a
aprender o que já sabia”
d. “quanto mais dias de recolhimento, mais conhecimento dos preceitos do santo e mais
aprendizado do que foi esquecido”.
e. “Cada casa tem os seus Orixás que cultuam, que fazem festa. Na minha casa, começa com
as “Águas de Oxalá”, na outra semana é “O pilão de Oxalá”. São duas festas conjugadas
uma com a outra. Depois vem a festa de Ogum; depois tem a festa de Xangô; tem a festa...,
tem o Olubajé, que é a festa da família Jeje, que inclui Omulu, Nanã e Oxumaré, Becem, e
tem... a festa da Iabás, quando todos os orixás femininos são cultuados”. “A última do ano
seria a das Iabás”.
f. “eu não tenho fechamento de terreiro, mas tem casas que fecham de acordo com a
quaresma, vem abrir em “Corpus Christi”. Tudo depende da casa. Não, não vejo
necessidade, mas tem casas que fecham”.
g. “o Candomblé é uma religião que nunca é aquilo que ela mostra. É o que está em segredo,
é aquilo que está oculto, é onde tem a maior... onde tem maior significado”.
h. “Então o iniciado já tem aquele caminho pra ser um zelador de orixá. Com o passar do
tempo ele tem mais facilidade de determinadas coisas e o próprio “odu” dá caminho para
isso, quando ele tem de ser”.
112
i. “Babalorixá tem que ficar... esquecer todas as suas vaidades... e, num jogo, quando ele for
jogar, ele tem que perguntar e vê se aquela pessoa tem o Odu, né? Se tá no destino dela que
ela vai receber aquele cargo, porque o cargo não é uma coisa imposta. É uma conquista
espiritual.
j. “Uma coisa muito impressionante, que eu sempre questiono, é que... todo ser humano de
todas as religiões, eles procuram espiritualidade para ter materialidade. Eu acho
impressionante! Isso eu não consigo entender, até hoje, sendo um mesmo... um sacerdote
de Orixá. Mas a gente... é patético. Então, se existe isso, então, existe troca. Então qualquer
religião que venha pregar que não existe a troca, eu lhe dou isso pra tu me dar aquilo, ela
está sendo mentirosa. Todas elas, se não for pregado isso, mas dentro do íntimo tem isso.
Eu te sirvo para receber isso, eu te dou para ganhar isso. Isso é bem claro! Bem claro! Se
não há uma forma materializada de oferenda, mas é uma forma... eu sou seu servo, eu lhe
sirvo, então eu quero receber. Isso é bem claro! Não adianta mascarar, maquiar, que isso é
bem claro. Então, geralmente, as pessoas que vêm aqui, elas vem a procura de uma
espiritualidade pra ter materialidade. Isso em tudo! É bem claro!”.
k. “Os filhos da casa contribuem.... Os clientes contribuem... Candomblé é feito de doações.
E, que tem casas que exigem mais e outras menos. Eu não exijo nada. Eu faço... eu deixo
aberto. Acho que cada pessoa sabe que, quando vai ter festa, que o Orixá gosta, que o
Orixá precisa, que o Orixá necessita... Então, eu não determino, eu deixo em aberto,
porque acho que... uma maneira melhor dos filhos-de-santo interagirem, compartilharem.
Tem uns que não interagem de forma nenhuma. Já outros ajudam, outros não podem ajudar
financeiramente, mas ajudam trabalhando, e tudo.... Tem uns que só vêm pra festa. Esses
não ajudam em nada... Acredito que não têm o Candomblé como uma religião, têm como
uma diversão. Porque a gente também tem que saber administrar essas pessoas, porque,
isso não seria um motivo pra botar ele pra fora, né? Mas, infelizmente, elas nunca vão se
enquadrar como sendo da religião. Elas são meras pessoas que vão e, que frequenta só por
moda ou ...”
l. “o terreiro como lhe falei, ele é mantido com doações. Então, na medida que vai chegando
as pessoas, aquilo ali vai realizando os rituais também. Na medida que tem mais pessoas,
os rituais vão ficando maiores”.
m. “Tem pessoas que vão ser adaptadas e outras não conseguem cumprir ordens ou obedecer
ordens... Mas a hierarquia seria isso. Tanto para a parte religiosa, como a parte mesmo de
manter o Candomblé... É porque muita gente quer cargo, muita gente quer fazer parte da
hierarquia, porque é um destaque, é uma coisa de destaque dentro do Candomblé, mas que
não tem nenhum conhecimento para exercer tal cargo. Nem nunca vai ter. Então, isso é
uma coisa que acontece naturalmente, a escolha do cargo, não pode escolher uma pessoa
porque ela é pobre ou porque ela é rica, ou porque ela tem dinheiro ou porque não tem”.
n. “Infelizmente é muito comum, digo, infelizmente. Já existiu pessoas aqui, iniciadas na
minha casa, que queria dar determinadas oferendas, que o Orixá não estava pedindo. Seria
por uma vaidade, e não se dá aquilo que o Orixá não quer. Não se pode forçar ninguém a
receber um presente. Você não pode forçar ninguém a comer alguma coisa, então, isso não
é bom. Aquilo.... você pode até receber por educação, aquilo espontâneo, aquilo livre.
Então isso tem que ser cortado. Agora, abre aspas, tem muitos Babalorixás que, devido a
questão financeira e toda a obrigação que tem dinheiro ou algo assim, eles corrompem e
deixa os filhos dar determinadas oferendas que o santo não está pedindo, só pra ter, entrar
113
dinheiro, entrar carne, entrar certos elementos, mas infelizmente aquilo ali depois não vai
muito adiante, porque a energia não pode receber aquilo que ela não quer. Mas acontece...”
o. “Geralmente são os cargos ou o filho que tenha mais competência para tomar conta; pra
cantar, pra orientar, Mas geralmente são os cargos que toma conta, quando o pai-de-santo
tá incorporado, com transe, com seu Orixá. Geralmente é uma pessoa com capacidade para
levar o Xirê, levar as cantigas, prá que os rituais continuem corretamente”. “As Ekedis,
junto as Iakikerè, as Ialaxé, determinam as pessoas que vão trabalhar, e essa parte
determina as pessoas que vai limpar, que vai ajeitar, geralmente são eles que determinam
isso”.
p. “Algumas coisas são delegadas e tudo, e outras eu tenho que estar presente. Como fazer o
Ossé, como a gente chama, de limpar o orixá, meu Orixá, o Orixá da minha mãe, isso com
pessoas de muita confiança, mas eu prefiro tá presente”
ENTREVISTA 3: YALORIXÁ MÉRCIA DE OXUM (6 de março de 2008):
a. “a gente sente quando o fundamento é forte.”
b. “Orixá é terra, né?
c. “Ao todo eu dou umas dez festas, fora a reunião. A primeira eu dou com festa de preto-
velho. Mês de maio, dia treze, dia dos escravos. A segunda também é no mês de maio, que
é um dos últimos domingos, que é a panela de Iemanjá. Eu tiro no mês de maio. Mês de
julho eu tenho filho-de-santo, a festa de Xangô. É São João. No mês de junho eu dou
obrigação pra filho-de-santo que eu tenho no nagô, presente pra Oxum. E o presente da
casa é no mês de setembro. De Oxum. E as festa das crianças. E as festa dos Irê. No dia
doze, das crianças. Dia 27 eu dou... o Cosme Damião, porque cliente vem, traz pra mim
dar pras criança... Agora, da casa, eu faço uma festa pras criança”.
d. “Tem. Que é a festa de Iansã. Dia treze de dezembro.”
e. “E o encerramento, no dia 29, com Luziara, a mestra da casa. Até o ano... só é aberto dia
de Reis, dia 6. Dia 6 de janeiro. Com a abertura. Com a reunião”.
f. “A primeira eu dou com festa de preto-velho. Fora a reunião [...] O encerramento é que eu
encerro com Maria Luziara, que é no dia 29. Até o ano... só é aberto dia de Reis, dia 6. Dia
6 de janeiro. Com a abertura. Com a reunião”.
g. “A minha feitura... foi por doença. Não é... foi... que eu tive um tumor na cabeça, e os
médicos designaram.... então o Orixá Oxum falou que... eu tinha cura. Então minha mãe
fez o voto a Oxum e tudo desse tudo certo, eu como média desde nascença, eu ia fazer a
feitoria pra Oxum. Então, hoje eu sou pronta. Fiz o Orixá, nagôebá, eu tinha... doze anos, e
hoje eu tenho quarenta e cinco anos”.
h. “Orixá Iançã mandou que eu tinha... “tenha um trabalho”, eu só vivo somente, eu... só
depende, só do Candomblé.... eu tenho que ter meu trabalho, porque eu toda vez que eu
trabalhando, eles me puxavam. Se manifestavam no trabalho, ficava passando mal... então,
foi que Iançã fez: quando eu joguei, ela disse que eu tinha sim um trabalho. Deus me deu
um dom. então qual era o dom? Se eu sabia fazer comida pros Orixás, eu sabia também
fazer uma comida pra ser vendida, que é o meu acarajé. Eu vendo meu acarajé em Gaibu,
e... sou muito procurada com os clientes, pelo acarajé...”
114
i. “Lá, sou. Sou conhecida como Mãe Mércia, baiana...”.
j. “os meus filhos, não... assim, não me ajudam. Eu não vou dizer que meus filhos vivem
aqui me ajudando...”
k. “Meus clientes... eu tenho assim... meus clientes pra mim é tudo porque confiam. Isso é
muito importante pra mim. Se não fosse os clientes, eu não tenho o que hoje eu tenho,
aqui. Pela confiança que eles têm, não só em mim, como na minha entidade, a Pomba Gira
e nos meus ‘dologum’ que é meu jogo”.
l. “É. Não ajudam. O que eu posso fazer por eles, eu faço. Já sou eu, quem faço por eles”.
ENTREVISTA 4: BABALORIXÀ CARLITO (14 de fevereiro de 2009):
a. “[...] não tenho processo de iniciação de tombo da jurema, dentro da jurema, mas, a gente
era levado aos terreiros, daí a mediunidade aflorava e a gente incorporava, dava consulta
[...] só passei por um processo de incorporação, dentro da jurema”.
b. “[...] na casa de meu pai-de-santo, Iraquitan [...] eu logo cedo, as pessoas notaram que eu
tinha o dom para ser um Babalorixá. Eu estava de obrigação, de kelê, de obrigação de
santo, yaô, e meu avô-de-santo, chamado Fausto de Azeri, olhou pra mim e disse assim: -
esse menino vai ser um Babalorixá. Ele viu esse caminho”.
c. “[...] dentro do Candomblé, às vezes, a gente procura se aperfeiçoar mais, procura ter mais
conhecimentos. E às vezes, a gente procura outros Babás ou outras Yás com mais
experiência dentro do orixá. Às vezes, não é nenhuma briga, nenhuma confusão, é questão
mesmo de aprendizado. Então eu procurei uma pessoa dentro da nação keto, que tinha um
conhecimento mais aprimorado que era da raiz [...] de Mãe Menininha, onde eu comecei a
fazer minhas obrigações. Então, onde eu me identifiquei mais com os rituais”.
ENTREVISTA 5: HAMILTON (18 de maio de 2008):
a. “A minha iniciação foi aos quatro anos de idade. Aos cinco anos, eu tive um problema de
amídala e adenóide e... houve uma extração. Nessa extração, a adenóide ficou presa entre
minha garganta, e... teria que ir pra UTI... que vai, que num vai, que vai, que num vai... eu
sei que daí, o que é que aconteceu... enfim, é... simplesmente aí, uma das mãe-de-santo de
lá disse que eu viveria um bom tempo. Só poderia continuar a viver se eu entregasse minha
cabeça a, aquele santo que no momento que era Xangô. Que aquilo ali era umbanda, eu
acho que com nagô, naquele tempo. Eu não me lembro. Certo? Aos cinco anos eu tive o
primeiro contato espiritual, foi com meu mestre, que vem comigo até hoje, e daí então, foi
fazendo, foi fazendo, foi fazendo as coisas, outras... aí, minha mãe se abusou dali, foi pra
outra casa, eu fui com ela... e nessa outra casa, foi que tudo realmente deu início... e me
colocaram pra fora, porque espírito feminino em corpo masculino, lá não se criava”.
b. “[...] me preocupo em receber o convidado, em tratar bem... me preocupo na hora de... de...
o pai-de-santo vai chegar pra fazer a obrigação, me preocupo depois de ele ter a comida,
me preocupo, me envolvo muito com o negócio de santo com isso. E aí é... isso aí é eu... eu
com ela e todos os outros. Lá, realmente, a gente tem uma comunidade que, aqueles que
gostam tão ali direto com ela”
ENTREVISTA 6: BABALORIXÀ MARCOS DE OXUMARÉ (s.d. 2008)
115
a. “o santo é quem determina o dia dos toques do ano”.
b. “pais e / ou mães-de-santo não se troca, a não ser quando eles morrem”
ENTREVISTA 7: BABALORIXÀ GILMAR DE OGUN (s.d. 2009)
a. “um líder de sucesso é aquele que consegue manter a sua comunidade, o povo-do-santo e a
tradição viva”.
116
ANEXO A
Fotos e quadros na parede principal do terreiro de Mãe Mércia de Oxum
117
ANEXO B
Certificado de Mãe Mércia, conferido pela Associação Pernambucana de Apoio aos Cultos
Afro-brasileiros do Estado de Pernambuco
118
ANEXO C
Placa com o nome do terreiro de Mãe Mércia
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