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DANIEL DOBRIGKEIT CHINELLATO
POR UMA RAZÃO ESTÉTICA:
UM ELO ENTRE O INTELIGÍVEL E O SENSÍVEL
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Artes da Universidade Estadual
de Campinas, como exigência parcial para
obtenção do Título de Mestre em Artes.
Área de concentração: Arte, Cultura e
Sociedade
Orientador: Prof. Dr. João Francisco Duarte Jr.
CAMPINAS
2007
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II
FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA
BIBLIOTECA DO INSTITUTO DE ARTES DA UNICAMP
Título em inglês: “The Course of Aesthetic Reason: Bonding
the Intelligible and the Sensitive”
Palavras-chave em inglês (Keywords): 1. Aesthetics. 2. Reason
3. Aesthetic Experience 4. Modernity 5. Sensitive.
Titulação: Mestre em Artes
Banca examinadora:
Prof. Dr. João Francisco Duarte Júnior
Prof. Dr. José Roberto Zan
Prof. Dr. João Francisco Regis de Morais
Profa. Dra. Maria de Fátima Morethy Couto (suplente)
Prof. Dr. Valério José Arantes (suplente)
Data da Defesa: 10-08-2007
Programa de Pós-Graduação: Artes
Chinellato, Daniel Dobrigkeit.
C441p Por uma razão estética: um elo entre o inteligível e o
sensível /
Daniel Dobrigkeit Chinellato. – Campinas, SP: [s.n.], 2007.
Orientador: João Francisco Duarte Júnior.
Tese (mestrado) - Universidade Estadual de Campinas,
Instituto de Artes.
1. Estética 2. Razão 3. Experiência Estética 4. Modernidade
5. Sensibilidade. I. Duarte Júnior, João Francisco. II.
Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Artes. III.
Título.
(em/ia)
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V
Dedico este trabalho aos meus pais, José
Augusto e Carola. Reconheço e agradeço a chance
que vocês me deram para seguir meus sonhos; sem
vocês nada disso teria sido possível.
VII
AGRADECIMENTOS
Em primeiro lugar, gostaria de agradecer aos professores, funcionários e
colegas do Instituto de Artes da Unicamp.
Saliento um especial agradecimento ao Professor Dr. José Roberto Zan e ao
Professor Dr. Regis de Morais pelas importantes contribuições nas ocasiões da qualificação
e da defesa. Embora o tempo escasso não tenha possibilitado o aprofundamento e a leitura
atenta da, por eles sugerida, bibliografia (e conseqüentemente seu uso neste trabalho)
prometo, numa futura pesquisa, levar todos seus apontamentos em cuidadosa consideração.
Deixo aqui registrada a minha mais profunda gratidão ao Professor Dr. João
Francisco Duarte Jr.; se hoje consigo vislumbrar, transcrito em papel, uma parte das minhas
questões pessoais, o mérito é dele. Freqüentemente sobrecarregado e cansado pelo
atribulado ritmo da diretoria do Instituto de Artes, o professor João sempre se prontificou a
corrigir e discutir meus textos (quase sempre abrindo mão das suas preciosas horas de
descanso). Hoje, mais do que um orientador e mestre, considero o João um grande amigo.
E tenho a certeza de que esta amizade há de perdurar por um longo tempo. Obrigado, João!
Deixo também anotado meu agradecimento ao meu amigo e parceiro musical
Andreas (sucesso ao Symbolic Life!). Agora é hora de tentarmos transpor parte das idéias
discutidas aqui em música.
Importantíssima foi ainda a contribuição do meu irmão e amigo David; perdi a
conta das inúmeras vezes em que pedi socorro para lidar com este caprichoso artefato, o
computador.
Agradeço à Janaína pelo apoio, pelo carinho e pelo exemplo de
companheirismo e amor.
IX
Não sou um admirador da preguiça e nem do
acaso. As reflexões que aqui aparecem... não são produto
da vaga contemplação do mundo: referem-se a entes que
encontrei no caminho rumo a mim mesmo. (Embarcamos
rumo a terras distantes, ou buscamos o conhecimento de
homens, ou questionamos a natureza, ou buscamos a Deus;
depois notamos que o fantasma perseguido éramos Nós
mesmos.) Fora de minha rota devem existir outros entes,
outras teorias e hipóteses. O Universo de que se fala aqui é
meu Universo particular e, portanto, incompleto,
contraditório e perfectível.
Ernesto Sabato
Assim, parece que tão-só encerrar-se-á o presente
ciclo da história humana na medida em que maneiras
novas de se construir o conhecimento possam gerar
atitudes diferentes do homem em relação a si mesmo e a
este planeta no qual habitamos, acarretando outras
organizações sociais, outras formas de produção e de
distribuição de bens e saberes. Neste sentido, talvez a
valorização do sensível e a busca de sua integração com o
inteligível possa consistir num pequeno e primordial passo
rumo a tempos menos brutais e permeados de maior
equilíbrio entre as muitas formas de vida conhecidas.
João-Francisco Duarte Jr.
XI
RESUMO
Por Uma Razão Estética: Um Elo Entre o Inteligível e o Sensível
Este trabalho tem como objetivo defender a experiência estética entendida
como uma forma específica de intencionalidade na qual o inteligível e o sensível se
coadunam para compor o fenômeno estético como fundamento de uma racionalidade
estética e, conseqüentemente, principal fator constituinte de uma razão que pode, por
analogia, ser nomeada razão estética.
É sobre a complexa trama entre refletido e irrefletido que repousa a contribuição
da experiência estética na constituição dessa razão; através de tal experiência aquela parcela
da dimensão irrefletida que é irredutível à conceitualização tradicional encontra a
possibilidade de ser conscientizada. Desta forma, busca-se vincular à experiência estética a
própria possibilidade de consciência dos dilemas existenciais aos quais o homem é
constantemente exposto em sua vida.
Também considera-se o sujeito desta racionalidade; neste sentido, procuramos
apontar, em primeiro lugar, que o princípio racionalista sobre o qual se pensou estar
edificando a cultura moderna por vezes produziu o efeito contrário do esperado:
irracionalidade. Esta irracionalidade, por sua vez, teria lançado o homem contemporâneo
num estado de incerteza e ansiedade. Assim, a intenção é a de apontar o que se nomeia
“razão estéticacomo um possível caminho para a superação de uma certa irracionalidade
resultante do processo moderno de racionalização.
PALAVRAS-CHAVES: estética, razão, experiência estética, modernidade, sensibilidade.
XIII
ABSTRACT
The Course of Aesthetic Reason: Bonding the Intelligible and the Sensitive
This work’s central purpose is to defend the aesthetic experience understood
here as a specific kind of intentionality in which intelligible and sensible combine to
compose the aesthetic phenomenon as a ground to an aesthetic rationality and, therefore,
as a major requirement for the establishment of a reason that can, by analogy, be called
aesthetic reason.
It is in the complex relation between reflected and unreflected that lies the
possible contribution from the aesthetic experience to the constitution of the aesthetic
reason; the unreflected portion, mostly irreducible to words, can, through the aesthetic
experience, be brought to consciousness. The aesthetic experience is then associated to the
very possibility of consciousness of the existential dilemmas that an individual is
continually exposed to in his life.
This study discusses the effects of aesthetic rationality on the individual; the
starting point here will be, hence, an analysis of the most dominant characteristics of our
society and its influence on the contemporary man. Therein, we first expect to demonstrate
that the rational principle upon which modern civilization was thought to be founded on
produced the contrary effect: irrationality. Subsequently, we will suggest an anxiety derived
from currently existing social-cultural factors. The main intention of this investigation is,
thus, to demonstrate that aesthetic reason is one possibility for overcoming the irrationality
that results from the modern rationalization process.
KEYWORDS: aesthetics, reason, aesthetic experience, modernity, sensitive.
XV
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO...................................................................................................................... 1
I – O ABALO DA FÉ NA MODERNIDADE .....................................................................15
II – O HOMEM DESNORTEADO...................................................................................... 41
III – UMA FENOMENOLOGIA DA EXPERIÊNCIA ESTÉTICA: O FENÔMENO
ESTÉTICO....................................................................................................................... 69
IV – A RAZÃO (DA) ESTÉTICA.......................................................................................99
CONCLUSÃO.................................................................................................................... 127
BIBLIOGRAFIA................................................................................................................137
1
INTRODUÇÃO
As propostas a serem defendidas neste trabalho podem ser sintetizadas em
poucas palavras: tentar-se-á demonstrar que a experiência estética constitui uma forma
específica de intencionalidade, na qual inteligível e sensível se coadunam para compor o
fenômeno estético. Ademais, a experiência estética será defendida como fundamento de
uma racionalidade estética e, conseqüentemente, principal fator constituinte de uma razão
que deve, por analogia, ser nomeada razão estética
1
.
As questões aqui debatidas não são novas: tentativas de se pensar a importância
da experiência estética na formação do homem estão, certamente, entre as mais freqüentes
do pensamento filosófico ao longo dos últimos séculos e ressurgem sob diversos rótulos e
nas mais diversas áreas de conhecimento. Há, porém, alguns pontos peculiares na reflexão
que se seguirá. Em primeiro lugar, embora este estudo pretenda discutir uma interpretação
de razão baseada na experiência estética, o leitor não encontrará nas ginas subseqüentes
nenhuma tentativa de descrição das características de um objeto estético. Tampouco
encontrará uma reflexão baseada puramente nos aspectos subjetivos da experiência estética.
Focaremos, sim, o fenômeno estético, entendido aqui como um fenômeno de natureza
relacional no qual um determinado sujeito apreende um objeto através de uma
intencionalidade estética. Além disso, também é peculiar a este estudo a tentativa de
fundamentar nossas discussões no próprio sujeito desta experiência; para que a discussão
seja erigida sobre fundamentos sólidos, partiremos de uma análise das características mais
marcantes da atual sociedade e de seus influxos no homem. Assim, o que se pretende aqui é
apontar o que será nomeado “racionalidade estética” como imprescindível para a formação
do homem contemporâneo. Percebe-se que reside na defesa destas propostas o verdadeiro
trabalho que pode corroborá-las ou abrir espaços para uma contestação tão precisa e justa
que nos impossibilite de considerá-las como possuidoras de qualquer tipo de validade.
1
A expressão “razão estética” foi sugerida por Marc Jimenez em seu livro “O que é estética” (“Em suma, o
ponto de concordância estaria em uma outra razão, diferente da razão matemática e lógica, uma razão
adaptada ao seu novo objeto. Seria chamada razão estética ou razão poética. Ela poderia ser um intermediário
entre a razão e a imaginação, entre o entendimento e a sensibilidade”, p.73).
2
O humano, antes de toda concepção de mundo baseada na intelecção, é
possuidor de uma percepção primordial (os sentidos físicos), a qual alicerça toda posterior
linguagem e reflexão, ou seja, encerra em si uma dimensão sensível que fundamenta
qualquer entendimento inteligível. No entanto, jamais se pode falar de um contato físico
direto do homem com o mundo, na medida em que nossa percepção é sempre histórica e
culturalmente educada. E justamente a partir deste convívio entre refletido e irrefletido, e
não exclusivamente através de sua dimensão intelectiva, é que o homem estabelece o
sentido dos fenômenos que vivencia. Não podemos, assim, pretender esgotar a
compreensão de um fenômeno exclusivamente a partir da consciência reflexiva humana.
Segue, também, a impossibilidade de se afirmar o mundo como algo autônomo, existente
independentemente de certa intencionalidade. Isto não quer dizer que o mundo deixa de
existir quando não é objeto de certa mirada, mas somente que, no momento em que o
afirmamos, ele é fruto de uma determinada intencionalidade. Em outras palavras: o
mundo, e os objetos que nele existem, somente podem ser afirmados enquanto fenômenos.
Conseqüentemente, o homem está em constante diálogo com seu mundo: cria o mundo ao
mesmo tempo em que é por ele criado. Essa relação homem-mundo ocorre mediatizada de
diversas maneiras e uma dessas é a experiência estética. Desta forma, a experiência estética
não é um acontecimento desenraizado, atemporal e abstrato, pairando acima de um
determinado homem e de um determinado mundo. Cabe ainda dizer que, freqüentemente,
um certo tipo de intencionalidade é compartilhado por indivíduos de uma mesma cultura,
tornando-se um traço social marcante, o que impele-nos também em direção a um olhar
sócio-cultural da atual situação histórica.
Decorre da própria característica deste estudo a necessidade de atentar para o
que, tradicionalmente, são entendidas como áreas distintas do conhecimento. Basta um
rápido olhar pela bibliografia para atestar a presença, por exemplo, de autores sociólogos,
filósofos, críticos de arte, psicanalistas, entre outros. Tal escolha, no entanto, não vem
isenta de ônus, pois uma reflexão que se debruce sobre diversas áreas do conhecimento
deve aceitar de antemão algumas limitações. O primeiro ponto crítico que esta apresenta é
que certamente resultará numa visão incompleta das análises feitas. Sobra assumir que
essa saída encerra, em sua pretensão, o inevitável fardo de estar pecando por aquilo que não
3
diz. Esta é, porém, uma crítica que pode ser contestada se lançarmos um olhar na própria
história das reflexões filosóficas. Sabemos que há aproximadamente vinte e cinco séculos o
homem vem se colocando perguntas de cunho filosófico, o que nos leva a crer que,
aparentemente, não pode deixar de fazê-lo. Como diz-nos W. Luijpen
2
, “é a vida que
suscita o perguntar filosófico”. No entanto, como resposta a esse “perguntar” vemos
inúmeros sistemas contraditórios e que se contestam mutuamente. Isso porque “sendo o
filosofar um assunto pessoal, não pode encontrar... seu ponto de partida senão na presença
pessoal do filósofo... à realidade que está. Essa presença se chama ‘experiência’.”
3
Se
existem diferentes modos de experimentar, podemos argumentar que em cada filosofia
existe a presença de determinado aspecto do real, relativo à forma pela qual o filósofo
percebe a realidade. Um filósofo nunca vai conseguir abarcar toda a realidade uma vez que
é impossível que ele viva completamente uma outra experiência de vida que não seja a dele.
O legítimo filosofar pode ser entendido, portanto, como basicamente uma tentativa de
responder a um questionar pessoal. Abrindo mão de se estabelecer as próprias perguntas,
deixaremos também de obter nossas próprias respostas. “Isso se reduz ao que Heidegger
chama falatório (Gerede). O filosofar passa a ser simplesmente ‘falado’.”
4
Sob essa ótica
toda e qualquer filosofia fracassa não tanto pelo que afirma, mas pelo que silencia, pelas
perguntas e respostas alheias e, em última instância, pelos mundos alheios que deixa de fora
de seu entendimento. Logo, se a reflexão aqui presente peca por aquilo que não diz, ela
provavelmente compartilha dessa falha com praticamente toda filosofia que vem se fazendo
nesses últimos vinte e cinco séculos.
Surge também, da tentativa de se coadunar áreas distintas, uma outra
importante questão: a adoção de uma metodologia. Soma-se ainda a dificuldade gerada pelo
fato de que, mesmo em cada uma das respectivas áreas que embasam este trabalho, não
existe um princípio metodológico de aceitação geral. Em nossa defesa podemos tão-só
levantar a hipótese de o método estar indissociavelmente imbricado à própria exposição das
idéias que serão aqui defendidas. Desta forma, método e conteúdo se completariam criando
uma unidade própria e pessoal. Não seria, portanto, possível questionar a “cientificidade”
2
Introdução à fenomenologia existencial, p.17.
3
Ibidem, p.19.
4
Ibidem, p.18.
4
deste presente estudo? Certamente a questão sobre a cientificidade de qualquer escrito
filosófico é um ponto delicado; vivemos, atualmente, num período de instabilidade e de
coexistência de diversas “visões epistemológicas”, resultando um solo instável e
pluralizado sobre o qual as pesquisas vêm tentando se edificar. Vemos, conseqüentemente,
estudos que parecem buscar seu “atestado de validade” na escolha de sua bibliografia ou de
certa visão epistemológica. Existe, porém, o risco de fragmentar-se, desta maneira, o campo
do saber e, conseqüentemente, segmentar as diferentes gamas de estudos em nichos não-
comunicantes, uma vez que, freqüentemente, a própria “direção epistemológica” adotada
pelo trabalho passa a ser, por assim dizer, seu atestado de validade.
Mas qual seria propriamente o sentido da idéia de cientificidade? No
pensamento de Umberto Eco
5
,
para alguns, a ciência se identifica com as ciências naturais ou com a
pesquisa em bases quantitativas: uma pesquisa não é científica se não for
conduzida mediante fórmulas e diagramas. Sob este ponto de vista,
portanto, não seria científica uma pesquisa a respeito da moral em
Aristóteles; mas também não o seria um estudo sobre a consciência de
classe e levantes camponeses por ocasião da reforma protestante.
Evidentemente, não é esse o sentido que se ao termo “científico” nas
universidades.
Eco enumera, pois, alguns pontos necessários para que um estudo seja
considerado como científico. Em primeiro lugar o estudo deve debruçar-se sobre um objeto
reconhecível, para logo em seguida acrescentar que “o termo objeto não tem
necessariamente um significado físico. A raiz quadrada também é um objeto, embora
ninguém jamais a tenha visto”.
6
No nosso caso, certamente não podemos afirmar somente
um único objeto de estudo; cada um dos capítulos aqui expostos apresenta, por assim dizer,
seu próprio objeto. Deve-se, entretanto, salientar o fato de que a própria natureza das
reflexões que se seguirão parece garantir que cada objeto esteja ligado a certas hipóteses. A
primeira delas, apresentada no primeiro capítulo, repousa numa análise da intencionalidade
característica compartilhada pelo homem contemporâneo, fruto de uma mentalidade que
5
Como se faz uma tese, p.20.
6
Ibidem. p.21.
5
vem sendo construída, principalmente, a partir da Idade Moderna. Num segundo capítulo,
será apresentado o que se considerou ser o resultado desta mentalidade para o homem
contemporâneo. o terceiro capítulo abre-se como um grande parêntese na nossa
discussão, uma vez que pretende apresentar um entendimento da experiência estética a
partir da fenomenologia existencial. Fazendo uso dos temas abordados nestes três primeiros
momentos, a proposta passará a ser a valorização de uma intencionalidade freqüentemente
obscurecida pelo que aqui se defendeu ser a mentalidade dominante na modernidade
enquanto período histórico. Esta intencionalidade, entendida como estética, é, enfim,
apresentada como sendo fundamento de uma ampliação da concepção de razão.
Percebe-se, pela leitura do parágrafo precedente, que este estudo é amplamente
baseado em propostas ou hipóteses. A possibilidade de verificação e contestação destas
hipóteses é, sem dúvida, um ponto delicado e aqui reside, provavelmente, uma das grandes
diferenças da filosofia para com as ciências exatas. Como exigir de uma pesquisa de cunho
filosófico que ela seja “verificável”? Ou melhor, o que caracterizaria essa verificação para
pesquisas desta natureza? Chegou-se, inclusive, em certos momentos da história da ciência,
a acreditar que a possibilidade de verificação de um estudo poderia somente ser logrado se
a pesquisa fosse conduzida em bases quantitativas. Percebeu-se, entretanto, que esse
princípio não poderia ser aplicado indistintamente a todas as áreas do conhecimento e até
hoje, provavelmente, não podemos apontar um princípio de verificação próprio da filosofia.
Na verdade, atualmente parece estabelecido que o conhecimento científico e o filosófico
são de ordens epistemologicamente distintas, não podendo ser equiparados.
A dificuldade de comprovação e verificação de um estudo filosófico não
significa a ausência de verdade na filosofia, mas apenas “que suas verdades não estão
sujeitas à verificação de fato e aos controles precisos.”
7
Que fique claro, no entanto, que
não é o intuito fazer a defesa da cientificidade ou da não-cientificidade das reflexões aqui
contidas, mas simplesmente apontar que não há um princípio metodológico universalmente
aceito que possa ser exigido como condição para que este estudo seja considerado válido.
Um dos pontos mais particulares deste trabalho é sua abrangência. Por que
partir de um terreno o vasto e amplo e correr o risco de afundar-se em um mar de
7
Luijpen, Op. cit., p.25.
6
reflexões e conceitos tão variados e muitas vezes contraditórios? Certamente isso torna toda
nossa discussão logo de antemão suscetível de um grande número de críticas. Pode-se
facilmente censurar sua pretensão de abarcar conteúdos diversificados, nos quais
dificilmente se acha algum princípio norteador, e de tentar criar, a partir dessa pluralidade
de reflexões, um quadro dotado de sentido. Mas tal tarefa não soa assustadoramente
próxima da necessidade do homem contemporâneo, vivendo num mundo no qual coexistem
diferentes ordens de valores e comunidades de sentido em grande escala dissonantes?
Certamente é necessária a apresentação de uma justificativa que demonstre se tratar de uma
escolha consciente e não de um “acaso”, no qual o estudante escolhe um tema por demais
amplo sem se dar conta das dificuldades que ele apresenta. Deve-se, portanto, reconhecer
que o presente estudo possui certas limitações intrínsecas, mas também que, se assim
ocorre, é em função de uma visão de mundo que o fundamenta. Estudar a experiência
estética desvinculada de determinado homem, neste caso, do homem contemporâneo é, na
melhor das hipóteses, uma abstração didática e não se assemelha em nada com o que ocorre
no campo dessa experiência que é, obviamente, humana
8
. Todas as experiências humanas
são baseadas no pressuposto de que o homem existe, tomado literalmente: “o homem como
sujeito ex-sistit, colocando-se fora de si mesmo”.
9
A idéia da existência porém, quer precisamente exprimir que a
subjetividade humana não é real sem o mundo. Quer significar que o
mundo pertence à essência do homem, de modo que, deixando-se de lado
o pensamento do mundo, também o sujeito não pode mais ser afirmado.
10
Vemos surgir a necessidade de se atentar para a dimensão relacional entre
objetivo e subjetivo, focando, assim, o próprio local no qual o “pacto” entre corpo
11
e
mundo é estabelecido. E ainda que esta questão não faça parte de nossas preocupações aqui,
8
Ainda que esta figura, “homem contemporâneo”, seja também uma abstração generalizante, uma
categorização alargada. Contudo, se pode fazer ciências ou reflexões filosóficas tomando-se categorias
gerais (às quais pertencem os seres humanos). É impossível fazer ciência do indivíduo. (cf. Rubem Alves,
Filosofia da ciência: introdução ao jogo e suas regras)
9
Luijpen, Op. cit., p.52.
10
Ibidem, p.53.
11
“Meu corpo é também o que me abre para o mundo, onde me põe em situação.” (Merleau-Ponty apud
Luijpen, op. cit., p.56).
7
é interessante assinalar (e apenas assinalar) ser nessa interseção entre subjetivo e objetivo o
local em que encontramos a origem da maior parte das assim chamadas perturbações
psíquicas.
Estas não são causadas por processos unilaterais e determinantes
oriundos de estímulos do “mundo exterior”, nem tampouco podem ser
entendidas como exteriorizações de uma desorganização no “mundo
interior”. São antes uma ruptura entre o corpo e o mundo, quase sempre
de caráter afetivo, ruptura que não pode ser restaurada por um esforço
pessoal de ordem intelectual ou por uma decisão da vontade, mas de
sê-lo por uma nova abertura do corpo para o mundo e para os outros.
12
A passagem acima pode servir de ponto de partida para a elucidação do que se
seguirá no presente estudo. Entendemos aqui que a crise por nós enfrentada atualmente
colabora para o surgimento de um certo distanciamento entre o homem e mundo,
característica do modo de ser contemporâneo. A forma com que essa crise se manifesta,
pelo menos no âmbito da reflexão filosófica, é a de uma crítica da modernidade que,
freqüentemente, acaba por apontar um certo mal-estar cultural contemporâneo.
Ao fazer uma análise dos principais diagnósticos desse mal-estar encontramos
três principais leituras, cada qual com uma solução peculiar. A primeira delas entende a
crise contemporânea como sendo causada por um enfraquecimento “das inibições morais,
ao clima de permissividade e à decadência da autoridade”
13
, ou seja, uma crise do superego,
e no restabelecimento de um superego social o caminho para a reestruturação social.
Vale ressaltar que a maioria de seus partidários
não defendem um aparelho repressivo de leis e dogmas morais destinado
a impor o conformismo moral. Depositam pouca confiança em controles
externos.... Posicionam-se a favor do superego: vale dizer, por uma moral
de tal forma interiorizada, baseada no respeito pela imperiosa presença
moral dos pais, professores, pregadores e magistrados, que não mais
dependeria do medo de punições ou da esperança de recompensas.
14
12
Luijpen, Op. cit., p.59.
13
Christopher Lasch, O mínimo eu , p.182.
14
Ibidem, p.184.
8
A segunda dessas leituras entende que a crise à qual estamos atualmente
expostos pode ser superada através de um fortalecimento do ego, ou seja, da faculdade
racional do ser humano. Para os defensores dessa solução, é através desse fortalecimento
que um indivíduo se torna capaz de lidar de forma satisfatória com a pluralidade de opções
disponíveis, sendo capaz de fazer uso da sua razão para estabelecer juízos morais próprios.
Uma terceira via de entendimento do nosso mal-estar contemporâneo edifica
seus argumentos a partir de uma crítica da razão, ou pelo menos do entendimento de razão
característico da nossa modernidade. Se a segunda leitura propõe um fortalecimento da
faculdade racional do ser humano como alternativa à crise atual, a terceira defende que o
próprio conceito de razão seja revisto. Freqüentemente ambas caminham juntas, propondo,
por assim dizer, o fortalecimento de uma razão re-interpretada. É justamente nesta terceira
corrente que se fundamenta a proposta deste estudo; o sujeito desta “nova razão” deve ser
aquele capaz de dialogar com sua dimensão sensível, da qual o homem moderno foi
apartado (como se tentará demonstrar mais a fundo nos dois primeiros capítulos). Assim,
parece ser necessário o fortalecimento de uma razão que se fundamente numa
intencionalidade que seja capaz de coadunar inteligível e sensível. Esta razão deve valorizar
uma intencionalidade distinta da intencionalidade prática e analítica, orientada
primordialmente pela intelecção. A tentativa será, enfim, demonstrar que a intencionalidade
estética parece satisfazer as exigências que esta re-interpretação de razão impõe. Resulta,
assim, a proposta que um certo equilíbrio entre o sensível e o inteligível que, talvez pelo
viés da psicanálise pudesse também se dizer entre ego e superego tenha como um de seus
elementos propiciadores a experiência estética.
Se a proposta parte de uma re-interpretação da razão, faz-se necessário partir de
uma “velha razão”, no caso, o entendimento de razão que veio sendo estabelecido no
desenrolar dos últimos séculos pela nossa modernidade. Entendeu-se amiúde a razão como
sinônimo de entendimento e estando baseada exclusivamente no funcionamento da
intelecção. Mas, como Karl Jaspers
15
afirma, “de fato, ela [a razão] não nenhum passo
sem o entendimento, mas o supera”. A mentalidade moderna não foi somente responsável
por este “estreitamento” na concepção de razão, mas também pela adoção de um modelo
15
Razão e anti-razão em nosso tempo, p.49.
9
epistemológico racionalista. Assim, junto com a passagem do mundo medieval no qual o
sagrado e o mágico desempenhavam um papel proeminente para o mundo moderno,
surgiu a crença de que exclusivamente através desta razão, identificada com o
entendimento, poder-se-ia atingir uma concepção de mundo da qual não fariam parte
sombras e mistérios. Além dessa ruptura com os sistemas de explicações mitológicos e
religiosos, ocorreu também, principalmente em decorrência do estabelecimento e
desenvolvimento da ciência ocidental nos séculos XVI e XVII, uma ruptura com a tradição
aristotélica-escolástica que acreditava serem a lógica e a coerência meios validos para
obtenção de conhecimento, afirmando-se a primazia da experiência, da dimensão empírica,
tanto sobre a coerência quanto sobre a lógica. No entanto, a dimensão física (ou seja, os
sentidos, notadamente o meio pelo qual a razão podia se relacionar com o real) era, para o
pensamento do início da modernidade, responsáveis por falsear nossa percepção do mundo
real. Sendo assim, Descartes, em suas Meditações Metafísicas, prega os equívocos
advindos dos sentidos e defende a inteligência como única fonte confiável de
conhecimento
16
. Como exemplo, o autor francês afirma que um pedaço de cera não é
nenhuma de suas qualidades físicas sua cor, seu cheiro, sua consistência –, pois estas
podem mudar sem que a cera deixe de ser cera (a cera pode, por exemplo, através de um
aquecimento, tornar-se líquida). Conseqüentemente, Descartes conclui, nas palavras de
Merleau-Ponty
17
, que
a verdadeira cera, portanto, não é vista com os olhos. Só podemos
concebê-la pela inteligência. Quando acredito ver a cera com meus olhos,
estou pensando através das qualidades que os sentidos captam na cera
nua e sem qualidades que é sua fonte comum.
Foram-se, portanto, as tradições metafísicas medievais e ficou a esperança de
que a ciência e a razão pura pudessem apresentar “uma explicação coerente do mundo e do
lugar que nele ocupa o homem”
18
, e, dessa forma, garantir ao homem a emancipação de
todo e qualquer sofrimento. A primazia e crença nessa razão restrita como único caminho
16
A limitação decorrente da própria natureza dos sentidos humanos também foi tratada por Galileo e
posteriormente por Kant. A visão kantiana será apresentada no terceiro capítulo.
17
Conversas 1948, p.4-5.
18
Christopher Lasch, op. cit., p.24.
10
capaz de emancipar o homem de seus sofrimentos perdurou por um longo tempo até serem
questionadas, de forma mais enfática, por Freud e Nietzsche. Cabe aqui salientar que,
embora tenha ganhado corpo com estes dois pensadores, a crítica ao conceito iluminista de
razão é certamente anterior a ambos e remete ao pensamento conservador pós-revolução
francesa.
19
A partir daí, a fé na modernidade, arraigada na na razão (ou num certo modo
de a razão se exercer) começa cada vez mais a ser questionada, até que, após o desenrolar
de duas guerras mundiais e da ameaça de uma guerra nuclear que colocaria toda a vida na
terra em ameaça, a crítica da razão passasse a ser um dos temas principais da reflexão
crítica da segunda metade do século XX.
Depois de Freud a razão, separada da emoção por três séculos de método
científico, passou a ser vista como não mais diretamente relacionada com a vontade
consciente. Conteúdos inconscientes também reclamavam sua porção quando se tratava de
nortear os atos e vontades do homem. Se até aquele momento, pelo menos numa
interpretação mais difundida, a razão podia responder a qualquer problema e a vontade era
o caminho para superá-lo, a partir desse ponto o homem vê-se órfão de um princípio de
significação pessoal do qual pudesse resultar a construção de uma personalidade integrada.
Percebe-se que a razão transformada em racionalização intelectualista não podia mais do
que resultar na “compartimentalização da personalidade, com as resultantes depressões e
conflitos entre instinto, ego e superego, que Freud tão bem descreveu”
20
. O homem
mergulha num período no qual a ansiedade é o sentimento mais característico, sentindo-se
desnorteado frente a uma pluralidade de sentidos, os quais não consegue articular de modo
coerente. O uso exclusivo da razão intelectualista havia, enfim, se mostrado inadequado
para esgotar o sentido do mundo ou da existência humana. Nas palavras de Gilberto de
Mello Kujawski
21
, “o colapso da razão pura, seu esgotamento, na medida em que não serve
para viver, em que falhou para enfrentar e interpretar os problemas humanos, marca o fim
do utopismo e o crepúsculo da modernidade.”
Retomando nesse ponto as leituras do mal-estar contemporâneo percebemos
que tanto a proposta de fortalecimento do superego quanto a proposta de fortalecimento do
19
Ver, por exemplo, Louis de Bonald (1754-1850) e Joseph de Maistre (1754-1821).
20
Rollo May, O homem à procura de si mesmo, p.42.
21
A crise do século XX, p.174.
11
ego fazem eco ao que Rollo May chama de “compartimentalização de personalidade”,
decorrente de uma razão tornada instrumental. Dificilmente se podem evitar as depressões e
os conflitos originários dos embates entre instinto, ego e superego se a própria concepção
de razão não for repensada, que é, exatamente, o que pretendeu fazer uma parte da crítica
da razão há mais de dois séculos. Como resume Sérgio Paulo Rouanet
22
,
depois de Marx e Freud, não podemos mais aceitar a idéia de uma razão
soberana, livre de condicionamentos materiais e psíquicos. Depois de
Weber, não como ignorar a diferença entre uma razão substantiva,
capaz de pensar fins e valores, e uma razão instrumental, cuja
competência se esgota no ajustamento de meios a fins. Depois de Adorno,
não é possível escamotear o lado repressivo da razão [deve-se salientar,
no entanto, que o lado repressivo da razão já estava apontado na obra de
Weber], a serviço de uma astúcia imemorial, de um projeto imemorial de
dominação da natureza sobre os homens. Depois de Foucault, não é lícito
fechar os olhos ao entrelaçamento do saber e do poder. Precisamos de
um racionalismo novo, fundado numa nova razão.
Essa nova razão seria uma razão que não prega sua emancipação de todo e
qualquer conteúdo que esteja vinculado à sensibilidade. Entende que sua racionalidade
pode ser construída considerando o diálogo entre razão e sensibilidade, entre o inteligível e
o sensível, harmonizando essas duas faculdades. Trata-se de uma razão que não opõe o
sujeito ao objeto e que considera o corpo como aliado e não mais como adversário. Essa
“nova razão” considera o inconsciente, não somente no sentido mais comum do termo, o de
conteúdos psíquicos reprimidos, mas no sentido de uma dimensão psíquica anterior à
consciência
23
, e que serve de suporte para qualquer saber, ou seja, para a intelecção, para a
intuição, para a memória, e para a criatividade. Esse entendimento de inconsciente resgata,
também, o corpo como elemento a ser considerado na formação do homem. Isso porque
entende que o mundo não se apresenta ao homem como um desfilar de parâmetros
potencialmente matemáticos, exclusivamente legíveis através da intelecção. Anteriormente
22
As razões do Iluminismo, p.12 [comentário nosso].
23
Aliás, como afirmou Rubem Alves, a palavra inconsciente é apenas o nome para os pensamentos que
moram no corpo, sem que a cabeça tenha deles notícia”. (apud João Francisco Duarte Jr., O sentido dos
sentidos, p.138).
12
à ordenação inteligível, é o corpo que busca lançar suas redes sobre o mundo, procurando
estabelecer significações numa tentativa de interpretar o meio em que se encontra.
O corpo não é, portanto, uma matéria passiva, submetida ao controle da
vontade, obstáculo à comunicação, mas, por seus mecanismos próprios, é
de imediato uma inteligência do mundo. Esse conhecimento sensível
inscreve o corpo na continuidade das intenções do indivíduo confrontado
a seu ambiente; ele orienta em princípio seus movimentos ou suas ações
sem impor a necessidade preliminar de uma longa reflexão.
24
Desta forma, essa “nova razão” a se buscar pode ser batizada de diversas
maneiras. Nietzsche nos fala de uma grande razão” em oposição à uma “pequena razão”,
enquanto o filósofo Ortega y Gasset defende uma “razão vital”, mais efetivamente ligada à
vida da forma que ela é, de fato, vivida. O sociólogo Edgar Morin aponta para uma “razão
aberta”, ao lado de Michel Maffesoli que a nomeia como “razão sensível”. Claro que não
pretendemos afirmar aqui que todos esses conceitos de razão coincidem uns com os outros,
mas, sim, apontar que diversas propostas se preocuparam com o fortalecimento de uma
razão fechada em si mesma e alienada de suas limitações. A busca portanto, é de uma razão
mais ampla, que congregue em si as muitas maneiras de ela se exercer.
Embora pareça ser necessário evitar, nesta tentativa de ampliação da idéia de
razão, o domínio incondicional do inteligível sobre o sensível, também deve se atentar para
que o sensível não sucumba ao irracional. Para tal
há uma solução possível, mas ela exige duas condições: de um lado, que a
razão, tão eficaz nas ciências, renuncie à sua ambição totalizadora e
universalizante; que ela, de qualquer forma, abrande-se; de outro lado,
que seja possível responder, racional e conceptualmente, pela
imaginação e pela sensibilidade, e admitir que elas também constituem
faculdades cognitivas e são assim geradoras de conhecimento.
25
Eis a vantagem de se nomear esta “nova razão” uma razão estética: esta opção a
relaciona com a experiência estética que conclama, no momento de sua consolidação,
muitas das principais propostas desta ampliação da razão. É imprescindível, portanto,
24
David Le Breton, Adeus ao corpo, p.190.
25
Marc Jimenez, O que é estética?, p.73.
13
deixar claro quais os pressupostos que fundamentam nossa concepção de experiência
estética. Uma completa exposição do assunto ocuparia um espaço demasiado extenso para
uma introdução e merecerá um foco maior num capítulo próprio. No entanto, pode-se
adiantar que esse trabalho faz eco a freqüentes tentativas que, durante o século XX,
tentaram relacionar a estética com a fenomenologia. Um dos mais notáveis trabalhos nesse
sentido foi realizado pelo filósofo Mikel Dufrenne. Influenciado por Husserl, Sartre e
Merleau-Ponty, Dufrenne, como nos diz Roberto Figurelli na introdução à edição brasileira
de Estética e Filosofia, “preenche uma lacuna da fenomenologia e afirma a possibilidade de
uma estética fenomenológica”
26
.
A experiência estética, que aqui, grosso modo, consideraremos como a
experiência do belo, abrange em si um tipo de relação em que a dicotomia sujeito-objeto é
momentaneamente suspensa
27
. A forma ordinária de relacionamento que o homem
experimenta na vida cotidiana, marcadamente baseada na classificação e distinções de
objetos isolados, é posta de lado em benefício de um êxtase provisório. Nesse êxtase se
realiza um acordo entre sensibilidade e intelecção, fazendo com que o homem se sinta “no
mundo”. Isso porque o objeto estético, fruto de um determinado modo de intencionalidade
dirigido ao mundo, “não... propõe uma verdade a respeito do mundo; ele... descortina o
mundo como fonte de verdade”
28
. Na experiência estética a percepção não tem a pretensão
de ser nada mais do que percepção, sem se render, pelo menos num primeiro momento, ao
intelecto que, no intuito de dominar o objeto percebido, tenta encerrá-lo em abstrações
conceituais. Desta forma, o objeto estético apresenta uma dimensão inefável do mundo,
uma dimensão mais efetivamente conectada ao que de fato vivemos enquanto seres
enraizados num corpo. O mundo que a experiência estética coloca diante do homem é um
mundo diferente daquele que nos fala nossa intelecção, orientada à uma compreensão
lógica e racional do que apreende. No entanto, se o mundo surge distinto, não é porque se
transfigura em algo novo, mas porque o homem para quem esse mundo surge, dirige-lhe
26
Roberto Figurelli, Introdução à edição brasileira de “Estética e Filosofia” de Mikel Dufrenne, p. 19.
27
Não esquecendo que, para Kant, a experiência estética abrange, ainda que em menor grau, além da
experiência do belo, também a experiência do sublime e do gracioso.
28
Mikel Dufrenne, Estética e filosofia, p.53.
14
uma nova forma de intencionalidade na qual sentimento e pensamento igualam-se em
importância, articulando-se e completando-se.
O que caracteriza um objeto estético não é, portanto, nenhuma de suas
características físicas, mas sim a relação que se estabelece entre o sujeito-de-uma-
intencionalidade e o objeto-de-sua-intencionalidade. É na “esfera do entre”, ou na palavra
de Heidegger, no dazwischen, que se consolida a natureza do objeto estético.
Não será justamente a valorização de uma intencionalidade que coadune, em
de igualdade, o inteligível e o sensível e que possibilite, desta forma, que o homem retorne
ao mundo da vida e re-signifique os laços que o prende ao mundo essencial para que se
consolide uma nova abertura do homem para o mundo e para os outros?
15
I – O ABALO DA FÉ NA MODERNIDADE
Acreditou-se que o progresso estava
automaticamente garantido pela evolução histórica.
Acreditou-se que a ciência seria sempre progressiva, que a
indústria sempre traria benefícios, que a técnica traria
melhorias. Acreditou-se que as leis históricas garantiriam
o desenvolvimento da humanidade e, tomando por base
esse argumento, acreditou-se ser possível atingir a
salvação na terra, ou seja, o reino da felicidade que as
religiões prometiam no céu. O que se constata hoje é o
abandono da idéia de uma salvação na terra.
Edgar Morin
Assim, não há hoje quem não fale em crise, por este
ou aquele motivo, neste ou naquele contexto. E tal crise
vincula-se diretamente a um certo estilo de vida que a
humanidade veio adotando ao longo dos últimos séculos,
notadamente no outrora chamado “mundo ocidental”. O
que se es assistindo, portanto, consiste talvez no mais
radical questionamento sofrido por essa forma de viver
adotada pelos seres humanos, cujos parâmetros e
princípios definem o conceito de modernidade.
João Francisco Duarte Jr.
Em todo caso, trata-se menos de rejeitar a
modernidade do que de discuti-la.
Alain Touraine
16
Que a cultura mundial passa atualmente por uma crise é ponto comum entre
grande parte daqueles que se ocupam em pensar o atual momento histórico. Muitos chegam
inclusive a defender, na ânsia de vislumbrar um futuro diferente do passado, o fim da
modernidade e o surgimento de uma pós-modernidade. Para o presente trabalho, mais
importante do que discutir o possível nascimento de uma pós-modernidade ou uma
sobrevida da modernidade é saber que, se há uma crise, ela traz consigo um questionamento
do projeto moderno. A fé num progresso baseado na razão, que traria nada além de
abundância, liberdade e felicidade, sucumbe frente aos sentimentos de ansiedade e de medo
por um possível destino funesto para toda a humanidade. Guerras, violência, fome,
desestabilidade social, desequilíbrio ambiental e o surgimento de novas doenças
consolidam-se como características marcantes de um século XX que encontra, na crítica da
razão identificada com uma dada racionalidade cientificista e tecnicista, o tom de boa parte
das reflexões na área das humanidades. Evidentemente tais características não são
peculiares somente ao nosso atual momento histórico, mas surgem como evidências de uma
promessa não cumprida. Suas simples existências nos lembram que, se o estágio atual da
cultura mundial é fruto de um projeto racionalista que previa a emancipação de todos os
males, esse projeto fracassou. Vemos, portanto, que a manifestação desse abalo da na
modernidade que, primeiramente se baseava numa crítica de uma certa concepção de razão,
freqüentemente deságua, por um certo exagero, numa rebelião contra a própria idéia de
razão, que ronda, perigosamente, os limites do irracionalismo. Destarte, se num primeiro
momento o questionamento à razão tomou ares de contracultura e fundamentou-se numa
atitude crítica, atualmente este corre o risco de se perder num certo irracionalismo que a
razão como algo hostil à vida. Não é raro também que, nesta leitura um tanto quanto
estreita, a reflexão passe a ser identificada com a própria razão fracassada e,
conseqüentemente, contraposta e subvalorizada por exaltação da prática e da técnica em si.
Vemos muitas vezes, inclusive no âmbito acadêmico, esta preocupante contraposição entre
o fazer e o pensar. No entanto, poucos se dão conta de que essa razão que vem sendo
contraposta à prática é tão-somente uma razão tecnocrática, uma razão fechada em si e com
impulsos totalizantes. Segundo Sérgio Paulo Rouanet
1
,
1
Op. cit., p.20.
17
a alternativa legítima não é entre a prática e a razão tecnocrática, mas
entre a razão tecnocrática e a outra razão, capaz de transformar a
prática. Temos que reformular a frase de Goethe: “Cinzenta é toda
teoria, e verde apenas a árvore esplêndida da vida”. Verde é toda teoria
que liberta a vida, e cinzenta toda vida que se fecha à razão.
Muito se discutirá, nos próximos capítulos, a proposta de uma nova concepção
de razão, acima de tudo capaz de dialogar livremente com toda a dimensão prática, uma vez
que está enraizada no próprio universo do qual a razão tecnocrática veio tentando se
emancipar. No entanto, por ora, devemos concentrar-nos na difícil tarefa de apontar as
características marcantes de uma modernidade que atualmente aparece rodeada de críticas
das mais disparatadas, para assim resultar uma possível leitura do cenário sócio-cultural no
qual o homem contemporâneo está inserido.
Uma questão que certamente pode ser levantada diz respeito ao próprio início
do período histórico que estamos chamando de modernidade. Este, certamente não é um
ponto de fácil esclarecimento uma vez que toda periodização, em se tratando de história, é
problemática. No entanto, podemos compreender a idéia de uma Idade Moderna a partir de
uma concepção que no desenrolar da história uma sucessão de três momentos distintos:
Idade Antiga, Idade Média e, por fim, a Idade Moderna. Enquanto alguns pensadores
preferem fazer coincidir o início da Idade Moderna com a queda de Constantinopla em
1453, existem outros como, por exemplo Michel Foucault, que defendem que a
modernidade foi propriamente inaugurada em 1784 com o ensaio de Kant intitulado “O
que é Iluminismo?”.
2
Muito mais válido, portanto, do que datar seu início, é a tentativa de
abarcar as características dos processos desse período que levaram a uma civilização
baseada na razão e na tecnologia. Em suma, o que se tentará demonstrar neste capítulo é
que, no decorrer daquilo que se convencionou chamar modernidade ocorreu uma
desvalorização do sensível através de dois principais movimentos: a edificação de uma
mentalidade quantificadora e calculista e a consolidação de um entendimento restrito de
razão.
2
Cf. Sérgio Paulo Rouanet, Op. cit., p.239.Este ensaio (cujo título original é “Was ist Aufklärung?”) é
freqüentemente traduzido como “O que é esclarecimento?” ou ainda como “O que é ilustração?”.
18
A análise da valorização de uma mentalidade quantificadora e calculista leva
nosso olhar de volta à Idade Média, mas especificamente aos séculos XII e XIII, época de
um trânsito crescente com o oriente em decorrência das cruzadas. São estabelecidas, então,
as primeiras rotas comerciais entre a Europa medieval e o oriente, juntamente com a idéia
de lucro e de riqueza a partir desse comércio. Se até aquele momento era comum entre o
povo a prática do escambo, ou seja, a troca de mercadorias sem o uso da moeda
3
, a partir
dele foi necessário estabelecer diretrizes gerais que pudessem incluir na transação
comercial uma nova classe burguesa emergente. Para tal, foi necessário que o dinheiro
fosse popularizado e elevado à condição de essencial. Paralelamente, a nova prática
comercial exigia que as distâncias fossem corretamente mensuradas, uma vez que os gastos
com o transporte deveriam ser computados no preço final da mercadoria. “Estavam, desta
forma, sendo concretizados os alicerces da modernidade, no estabelecimento de uma
mentalidade quantificadora e calculista, a qual foi se espalhando ao longo dos séculos
seguintes e penetrando os mais diversos ramos da atividade humana.
4
Decisivos na consolidação dessa mentalidade moderna foram também a
invenção do relógio no século XIV, que contribuía quantificando o tempo, distanciando o
ser humano de uma apreensão mais direta dos ciclos da natureza
5
e o desenvolvimento de
uma teoria da perspectiva no âmbito do desenho, principalmente através dos estudos de
Alberti, Piero de la Francesca e Leonardo da Vinci, que resultaram na geometrização do
espaço. Por fim, podemos ainda citar Brunelleschi, pai da arquitetura moderna, que projeta
pela primeira vez uma catedral na superfície de um papel.
Brunelleschi contribui, assim, para transformar definitivamente o espaço,
de um meio onde o corpo vive e se movimenta, numa abstração
matematizada e geometrizada sobre uma superfície plana. Dos sentidos
para o cérebro, de acordo com as exigências modernas.
6
3
Embora a moeda tenha existido desde a antiguidade remota seu uso não era popularizado. Segundo Fritjof
Capra: “Muitas sociedades arcaicas usaram o dinheiro, incluindo moedas metálicas, mas estas eram usadas
para o pagamento de impostos e salários, não para a circulação geral.” (op.cit.,p.186).
4
João Francisco Duarte Jr., Itinerário de uma crise: a modernidade, p.16.
5
Cf. Ibidem, pp.16-17.
6
Ibidem, p.19.
19
Certamente não se aqui de criticar as brilhantes mentes acima citadas. Suas
realizações entraram na história como impressionantes exemplos da genialidade humana.
No entanto, suas obras dialogam diretamente com a cultura em que estavam inseridas e,
desta forma, eles se tornam ícones das suas respectivas épocas, ao mesmo tempo em que
influenciaram o estabelecimento da mentalidade subseqüente.
Vemos, portanto, na passagem da Idade Média para Idade Moderna uma lenta
migração de uma apreensão do mundo qualitativa para uma apreensão quantitativa,
resultando, por assim dizer, dois modus operandi diversos. Segundo Ernesto Sabato
7
,
a característica da nova sociedade é a quantidade, o número. O mundo
feudal era um mundo qualitativo: o tempo não se media, vivia-se em
termos de eternidade e o tempo era o natural para os pastores, do
despertar e do descanso, da fome e do comer, do amor e do crescimento
dos filhos, o pulsar da eternidade; era um tempo qualitativo, o que
corresponde a uma comunidade que não conhece o dinheiro.
Tampouco se media o espaço, e as dimensões das figuras em uma
ilustração não correspondiam às distâncias nem à perspectiva: eram
expressão da hierarquia.
Mas quando irrompe a mentalidade utilitária, tudo se quantifica.
Em uma sociedade na qual o simples transcurso do tempo multiplica os
ducados, em que o “tempo é ouro”, é natural que se meça
minuciosamente.
de se salientar que a expansão da mentalidade calculista às mais diversas
áreas gerou um formidável desenvolvimento humano nos primeiros séculos da
modernidade. Não menos importante foi a contribuição desta mentalidade na
fundamentação da ciência experimental moderna que teve, no século XVII, suas bases
estabelecidas por meio, principalmente, de duas pessoas: René Descartes, considerado um
dos precursores filosofia moderna, e o do filósofo, astrônomo e matemático italiano Galileu
Galilei. O primeiro,
com seu método da dúvida sistemática, coloca sob suspeita as verdades
até ali estabelecidas e separa a relação homem/mundo em dois pólos
distintos, o do sujeito que investiga e o do objeto que se deixa investigar,
bem como restringe o saber confiável àquele passível de ser expresso em
7
Homens e engrenagens, p.30.
20
números, reduzindo a natureza e as coisas do mundo à extensão, isto é, à
sua dimensão mensurável.
8
Descartes questiona ainda a veracidade de qualquer evento ou objeto que não
possa ser expressa de forma numérica. Em suas próprias palavras,
não admito como verdadeiro o que não possa ser deduzido, com a clareza
de uma demonstração matemática, de noções comuns de cuja verdade
não podemos duvidar. Como todos os fenômenos da natureza podem ser
explicados desse modo, penso que não necessidades de admitir outros
princípios da física, nem que sejam desejáveis.
9
Galileu Galilei, promove um afastamento da tradição aristotélica, deixando
de lado o interesse pelos “princípios” dos movimentos na natureza, que, na sua opinião,
estava escrita numa linguagem matemática, sendo o objetivo do cientista formular as
equações que regiam as leis dos movimentos naturais. Como o próprio Galileu
10
nos
explica,
a filosofia encontra-se escrita neste grande livro que continuamente se
abre perante nossos olhos (isto é, o universo), que não se pode
compreender antes de entender a língua e conhecer os caracteres com os
quais está escrito. Ele está escrito em língua matemática, os caracteres
são triângulos, circunferências e outras figuras geométricas, sem cujos
meios é impossível entender humanamente as palavras; sem eles nós
vagamos perdidos dentro de um obscuro labirinto.
A questão passa então a ser como se medir os movimentos, tarefa para qual a
lógica aristotélica não poderia contribuir. Podemos citar como ilustração da divergência
entre essas duas escolas a discussão sobre a queda livre de dois corpos de pesos diferentes.
Aristóteles afirma, quase vinte séculos antes de Galileu, que o corpo com o maior peso
cairia mais rápido. Galileu, no entanto, afirma a possibilidade de erro contida na lógica
8
João Francisco Duarte Jr., O sentido dos sentidos, p.43.
9
Apud Fritjof Capra , O ponto de mutação, p.53.
10
O Ensaiador, em Bruno, Galileu, Campanella, p. 119.
21
aristotélica
11
e propõe um experimento que comprova que os dois corpos caem em igual
velocidade. Estava, por assim dizer, inaugurada a ciência experimental moderna. Os
sentidos retornam à cena, mas somente como uma etapa intermediária na busca do
conhecimento verdadeiro, expresso numa linguagem matemática.
Responsável por dar formas finais à Revolução Científica, Isaac Newton deu
realidade ao pensamento de Descartes desenvolvendo uma completa formulação
matemática da concepção mecanicista da natureza. Em sua obra Princípios matemáticos de
filosofia natural, Newton apresenta ainda um procedimento sistemático, no qual a descrição
matemática deveria se basear, para chegar à avaliação crítica da evidência experimental.
12
Os séculos XVIII e XIX confirmam a teoria newtoniana, uma vez que todos os
experimentos apontavam para a possibilidade de que tudo podia ser entendido sob um
ponto de vista puramente mecanicista e matemático: comportamento de sólidos, líqüidos e
gases (incluindo o calor e o som). O aparente sucesso da ciência quantificada leva,
inclusive, à exigência de que os estudos a respeito do ser humano se submetessem às
mesmas avaliações matemáticas características das ciências exatas. No entanto, como nos
diz Ernesto Sabato
13
,
frente à infinita riqueza do mundo material, os fundadores da ciência
positiva selecionaram os atributos quantificáveis: a massa, o peso, a
forma geométrica, a posição, a velocidade. E chegaram à convicção de
que “a natureza está escrita em caracteres matemáticos”, quando o que
estava escrito em caracteres matemáticos não era a natureza, mas... a
estrutura matemática da natureza. Truísmo tão evidente como o de
afirmar que o esqueleto dos animais tem sempre caracteres esqueléticos.
Indo ao encontro de Sabato, Max Horkheimer
14
defende que “os chamados
fatos determinados por métodos quantitativos, que os positivistas se inclinam a ver como os
únicos científicos, são muitas vezes fenômenos de superfície que obscurecem mais do que
clarificam a realidade subjacente.
11
“Ocorre que Galileu, na força de sua personalidade contestadora e sobretudo amante da comprovação dos
fatos, raciocinava que um pensamento pode ser perfeitamente gico e enquadrado no bom senso, sem que
necessariamente seja verdadeiro.” (Regis de Morais, Filosofia da ciência e da tecnologia, p.38).
12
Cf. Fritjof Capra, Op. cit., p.59.
13
Homens e engrenagens, p.47.
14
Eclipse da Razão, p.88.
22
Devemos, no entanto, salientar que não se pretende, aqui, fazer uma
condenação ao método matemático, mas sim à crença de que nosso conhecimento sobre o
mundo pode ser esgotado matematicamente. Uma senóide ou uma geodésica “podem e
devem ser definidos com rigor absoluto. Pertencentes ao universo matemático, não somente
são puros como não podem deixar de sê-lo.”
15
No entanto, uma boa parte das situações que
vivemos no nosso dia a dia nada têm a ver com uma lógica rígida ou com uma análise
matemática. Podemos, inclusive, nos questionar se não são justamente as regiões rebeldes
aos métodos quantitativos as mais valiosas para o homem e seu destino. Desta forma,
Sabato
16
conclui que
a ciência exata – isto é, a ciência matematizável – é alheia a tudo o que é
mais valioso para um ser humano; suas emoções, seus sentimentos de
arte ou justiça, sua angústia frente à morte. Se o mundo matematizável
fosse o único mundo verdadeiro, não seria ilusório um palácio
sonhado, com suas damas, bobos da corte e palafreneiros; também o
seriam as paisagens da vigília ou a beleza de uma fuga de Bach. Ou pelo
menos seria ilusório o que neles nos emociona.
O estabelecimento de uma mentalidade quantificadora e calculista é um aspecto
constitutivo de um processo de racionalização das instituições e da vida em geral. Desta
forma, o estudo da modernidade enquanto consolidação de uma certa visão de mundo que
acabaria por nortear a vida dos seres humanos obriga-nos a apontar uma crescente
racionalização como outra de suas principais características. Dito isto, devemos começar
por propor uma definição para o conceito de racionalização. Para Edgar Morin
17
,
racionalização
é a construção de uma visão coerente, totalizante do universo, a partir de
dados parciais, de uma visão parcial, ou de um princípio único. Assim, a
visão de um só aspecto das coisas (rendimento, eficácia), a explicação em
função de um fator único (o econômico ou o político), a crença que os
males da humanidade são devidos a uma causa e a um tipo de
agentes constituem outras tantas racionalizações.
15
Ernesto Sabato, O Escritor e seus Fantasmas, p.14.
16
Nós e o Universo, p.23.
17
Ciência com consciência, p.157-148.
23
Morin completa apontando que a racionalização claudica por “querer fechar o
universo numa coerência lógica pobre ou artificial e, em todo caso, insuficiente”
18
.
Podemos também citar Subirats
19
, para quem o termo racionalização
possui no pensamento de nosso século uma sólida tradição que começa
com a sociologia de Weber e a psicanálise de Freud, e acaba na crítica
social de Adorno e Horkheimer. Neste contexto dilatado, a crítica da
racionalização remete a um nexo comum: a substituição da realidade
vital do ser humano por um paradigma tecnológico. Trata-se,
formulando-o ao contrário, da extensão da racionalidade técnico-
científica ao conjunto de processos vitais, individuais ou coletivos, sem
reconhecimento de sua autonomia real. Semelhante expansão de um
modelo de atuação tecnológica aos processos vitais foi discutido tanto no
plano sociológico, como epistemológico.
Sendo assim, a tendência moderna à racionalização procura estabelecer uma
visão que compreenda a totalidade do universo simplesmente eliminando da sua teoria os
aspectos que são incompatíveis a uma redução racional, ou ainda tentando moldar a
realidade para que esta se adapte à sua gica. Vale salientar que o termo racionalização é
usado freqüentemente na psicanálise para caracterizar um mecanismo de defesa que pode
ser definido como o “processo defensivo no qual o indivíduo procura justificar suas ações
de forma coerente desconhecendo entretanto suas motivações inconscientes”.
20
Na
definição de Laplanche e Pontalis
21
, a racionalização é o
processo pelo qual o indivíduo procura apresentar uma explicação
coerente do ponto de vista lógico, ou aceitável do ponto de vista moral,
para uma atitude, uma ação, uma idéia, um sentimento, etc., de cujos
motivos verdadeiros não se apercebe; fala-se mais especialmente da
racionalização de um sintoma, de uma compulsão defensiva, de uma
formação reativa. A racionalização intervém também no delírio,
resultando numa sistematização mais ou menos acentuada.
Percebe-se que a racionalização não é aqui considerada sinônimo de
racionalidade (ou do uso da razão). Um indivíduo que se utiliza deste mecanismo pode agir
18
Ibidem, p.170.
19
Da vanguarda ao pós-moderno, p.36.
20
Ruth M. Cerqueira Leite, “Glossário com Termos Psicanalíticos”, em Folha de S. Paulo, 23/9/1973.
21
Vocabulário da psicanálise, p. 543.
24
de uma forma aparentemente consciente e racional, quando está, na verdade, sendo
impulsionado por motivações de ordem não-racional. Toda a discussão que se seguirá tem
como objetivo demonstrar que a racionalização num âmbito sócio-cultural pode ser um
processo irracional.
Não podemos deixar de apontar, mesmo que rapidamente, o racionalismo como
variação mais radical da racionalização. Enquanto o último exclui os aspectos
incompatíveis de seu sistema, propondo uma explicação teórica e racional a partir de um
ponto de vista generalizado, o primeiro afirma total concordância entre o racional e a
realidade do universo. Ou seja, os aspectos não-racionais não estão somente excluídos de
seu sistema teórico, mas sim de tudo aquilo que é, por ele, considerado real. Nas palavras
de Edgar Morin
22
, o racionalismo
é: 1º. uma visão do mundo afirmando a concordância perfeita entre o
racional (lógica) e a realidade do universo; exclui portanto, do real o
irracional e o arracional; 2º. uma ética afirmando que as ações e as
sociedades humanas podem e devem ser racionais em seu princípio, sua
conduta, sua finalidade
De forma quase análoga à primeira parte da definição de Morin, para
Kujawski
23
, “chama-se racionalismo a crença segundo a qual entre a realidade e a razão
existe plena e absoluta transparência; a realidade se comportaria em identidade com as
idéias da razão.”
Após esta rápida apresentação dos termos racionalização e racionalismo,
podemos afirmar que, ligada à crescente racionalização moderna, encontra-se uma
concepção de razão identificada puramente com a intelecção
24
. Vemos surgir uma oposição
entre a intelecção, identificada com a razão, e o sensível, considerado um obstáculo para o
perfeito funcionamento da razão. Um dos maiores perigos desta separação reside no próprio
funcionamento desta suposta razão que, para manter intacta a cisão, desconfia de tudo que
22
Idem, p.157.
23
Op. cit., p. 119.
24
Segundo Horkheimer: “tanto em discussões laicas quanto no debate científico, a razão vem sendo
comumente considerada uma faculdade intelectual de coordenação, cuja eficiência pode ser aumentada pelo
uso metódico e pela remoção de quaisquer fatores não-intelectuais, tais como as emoções conscientes ou
inconscientes.” (O eclipse da razão, p.18).
25
não é razão (no sentido que ela própria deu ao termo). Este entendimento de razão, em
muitos momentos obcecada com a sua eficácia, balizou boa parte de edificação da nossa
cultura moderna e conduziu à generalização da racionalização.
Pode-se dizer que a industrialização, a urbanização, a burocratização, a
tecnologização se efetuaram segundo as regras e os princípios da
racionalização, ou seja, a manipulação social, a manipulação dos
indivíduos tratados como coisas em proveito dos princípios de ordem, de
economia, de eficácia.
25
Podemos, como ilustração, rapidamente apontar o influxo da racionalização na
implantação do modelo industrial moderno. Intimamente correlacionada a uma mitificação
do conceito de eficácia
26
, a característica principal da racionalização industrial foi
“considerar o trabalhador não como pessoa, mas como força física de trabalho”
27
. A
eficácia passa a ser o princípio legitimador de uma gica de produção racionalizada: se
algo é eficaz para a produção e pode aumentar os ganhos, deve ser adotado. Atentando para
a expansão do mito da eficácia, Gilberto de Mello Kujawski
28
defende que este gera ainda o
seguinte raciocínio: “o que é eficaz, em princípio é bom, seja para o bem-estar material ou a
salvação da alma, para o enriquecimento ou o reforço do Estado, para a educação dos
jovens ou para a conduta moral.” Frente ao conceito mitificado de eficácia, “o bom e o
mau, o certo e o errado, o verdadeiro e o falso, o justo e o injusto, o belo e o feio, o
agradável e o desagradável, o ético e o não-ético, todos os esquemas valorativos baseados
numa razão mais ampla sucumbem”.
29
Esta lógica de produção obcecada com sua eficácia econômica colaborou para o
afastamento entre o homem e seu corpo; este último deveria ser controlado para que não
atrapalhasse a eficácia da produção. Para ilustrar os efeitos decorrentes da implantação
25
Edgar Morin, Ciência com consciência, p.162.
26
“A modernidade é o lugar da luta encarniçada entre eficácia e legitimidade. Esta emana da concórdia social
e histórica sobre crenças tradicionais, e atua como princípio sacralizador do mundo. A legitimidade moderna
típica foi a legitimidade pela eficácia, que a princípio não era eficácia técnica, mas também política,
racional, jurídica etc.” (Gilberto de Mello Kujawski, A crise do século XX, p.149).
27
Edgar Morin, op. cit., p.162.
28
Op. cit, p.136.
29
João Francisco Duarte Jr, O sentido dos sentidos, p. 56.
26
dessa lógica de produção, Herbert Marcuse concebe o termo “mais-repressão”, cunhado
sobre o termo freudiano de “repressão”.
De acordo com o pensamento freudiano, para o surgimento da civilização
o ser humano houve que reprimir seus instintos fundamentais, tornando
possível o aparecimento de leis e normas que regravam a sua correta
satisfação naqueles momentos e locais determinados. Para Marcuse,
porém, foi necessária uma mais-repressão por ocasião da Revolução
Industrial, de maneira que uma quantidade adicional de energia fosse
canalizada para a estafante atividade junto às máquinas de então, em
jornadas que chegavam a dezesseis horas por dia. O que implicou no
estabelecimento de regras morais e de conduta ainda mais severas, na
direção de uma condenação aos prazeres do corpo e daquelas atividades
não rentáveis no que tange à produção de bens de consumo.
30
É importante chamar a atenção para o fato de que, na citação acima, o
estabelecimento de certas regras morais é apontado com um subproduto de um processo de
racionalização. Podemos, portanto, inferir que, da racionalização podem resultar novos
valores éticos, valores morais ou até mesmo valores estéticos mesmo que nenhum destes
valores tenha sido contemplado de forma consciente no estabelecimento do processo. Isto
porque, a racionalização possui, acobertada de suas camadas mais superficiais, uma
dimensão irracional oculta. Em outras palavras: o resultado de um processo de
racionalização nem sempre é racional, como a própria psicanálise o afirmou. No
entendimento psicanalítico, uma pessoa que desconhece suas reais motivações
inconscientes, age freqüentemente motivada por estas mesmas motivações, mesmo quando
acredita estar agindo de forma consciente e racional. André Dartigues
31
aponta-nos a
origem deste paradoxo: “a vida psíquica antecede e excede a reflexão consciente, ela
comporta formações antigas que lhe escapam e determinam sua visada antes que ela tenha
podido esclarecê-las refletindo-as”. A razão demonstra, desta forma, que pode ser plena
caso atente para a totalidade da vida psíquica, ou seja, também para o não-racional
32
. A
30
Ibidem, p.48.
31
O que é fenomenologia?, p.53.
32
Preferimos usar o termo o-racional (ou a-racional) ao termo irracional, pois este último carrega uma
conotação negativa que não caberia neste caso.
27
opção moderna de não atentar ou até mesmo reprimir o a-racional e os instintos parece
apresentar aqui seus primeiros sinais de fracasso. Como explica Subirats
33
,
o princípio racional no qual se funda o maquinismo como projeto de
dominação não foi elevado a axioma geral da civilização moderna sem
produzir simultaneamente seu contrário: a irracionalidade da destruição.
O mito da máquina, tanto nas formulações positivas dos apologistas,
quanto nas visões sinistras dos detratores, oferece, no fim da era
moderna, o panorama cultural de uma radical ambigüidade de
significados.
Além do domínio sobre a força de trabalho, este modelo de produção baseou-se
também na exploração da natureza por busca de matérias primas e na desconsideração das
questões ambientais. Vê-se o triunfo de uma razão tornada instrumental
34
; “seu valor
operacional, seu papel no domínio dos homens e da natureza tornou-se o único critério para
avaliá-la.”
35
A natureza passa a ser vista como um utensílio, ou seja, passa a ser
considerada somente a partir do uso que dela se faz.
Outra questão problemática da racionalização é que esta, freqüentemente,
considera a razão, identificada exclusivamente com a intelecção, como um ponto de partida
para a edificação da sociedade de uma forma geral ou como um guia para se viver a vida.
Essa é, inclusive, uma das críticas que se faz ao ideal iluminista, o qual propunha a razão
como ponto de partida para a maioridade do homem. Como nos explica Sério Paulo
Rouanet
36
, a proposta iluminista
se limitava a dizer que o homem era, de saída, racional e, por
desconhecer os limites da razão, deixava o homem indefeso diante da
desrazão. Freud descobriu esses limites e com isso armou o homem para
a conquista da razão: ela não é um ponto de partida, mas um ponto de
chegada.
33
Da vanguarda ao pós-moderno, p.44.
34
Originalmente proposto por Weber, o tema da instrumentalização da razão foi fundamental nas reflexões
desenvolvidas pelos integrantes da chamada Escola de Frankfurt.
35
Horkheimer, op. cit., p.29.
36
Sérgio Paulo Rouanet, op. cit., p.143.
28
Para uma melhor compreensão do projeto iluminista deve-se levar em conta
uma das diferenças mais fundamentais entre a Idade Média e a Idade Moderna: o modelo
epistemológico que embasaria a edificação do conhecimento. Na Idade Média acreditava-se
que a chave para a compreensão do presente e do homem se encontrava nas sagradas
escrituras e na leitura dos antigos sábios. Sendo assim, o conhecimento da verdade não
dependia da adoção de um método correto, mas sim do acesso às fontes corretas, restrito a
determinados grupos. Com o início da modernidade percebe-se a limitação desse
pensamento e o homem assume sua parcela de responsabilidade perante a construção do
conhecimento. Para tal, um novo método de busca do conhecimento, baseado, entre outras
coisas, na ampliação da acessibilidade às fontes e às informações, foi necessário. A
invenção da imprensa de tipos móveis por Gutemberg ou a tradução da bíblia cristã por
Lutero, são marcos ilustrativos desta mentalidade. Dentro deste projeto e a partir do
Renascimento, ocorre uma valorização do estudo direto dos homens e de seus atos,
inclusive passados, como forma de elaboração do conhecimento no presente. No entanto, o
homem que olhava para seu próprio passado confrontava-se, por assim dizer, com
características profundamente conflitantes com os novos ideais humanistas. Ficava claro
que seria necessário um projeto para o futuro que pudesse corrigir os erros do passado.
Marcado por inúmeros entrepassos, esse processo resulta, no século XVIII, justamente no
ideal iluminista que, nas palavras de Kant,
consiste na superação da minoridade, pela qual o próprio homem é
culpado. A minoridade é a incapacidade de servir-se do seu próprio
entendimento, sem direção alheia. O Homem é culpado por essa
minoridade quando sua causa não reside numa deficiência intelectual,
mas na falta de decisão e de coragem de usar a razão sem a tutela de
outrem. Sapere aude! Ousa servir-te de tua razão!
37
Embora este texto de Kant tenha o objetivo de, primordialmente, questionar a
minoridade religiosa que, segundo o filósofo, “não é somente a mais danosa, mas também a
37
Immanuel Kant apud Sérgio Paulo Rouanet, As razões do Iluminismo, p.30-31.
29
mais desonrosa”
38
, o projeto iluminista pretendia que o homem encontrasse em si próprio as
armas contra todos os “poderes externos” que a então ditavam o desenrolar das suas
vidas. Tratava-se de devolver ao homem a capacidade de ser senhor de seus atos, e de sua
vida, ou seja, de permitir ao homem o uso de seu próprio entendimento sem a direção de
outrem. Este é, para o Iluminismo, “o entendimento dirigido pela razão”
39
.
Devemos também salientar que o sucesso da ciência experimental moderna
parecia garantir que, enfim, havia-se desvendado definitivamente o mecanismo de
funcionamento da natureza e que o caminho para a obtenção de toda verdade havia sido
descoberto. A ciência, juntamente com a razão, seria uma cartada certa contra os erros do
passado e, juntas, seriam responsáveis pela redenção do gênero humano. A harmonização
do homem com o mundo objetivo, através do desvelamento de todos os segredos da
realidade seria, enfim, papel da ciência e de suas descobertas. No entanto, a razão,
considerada pelos iluministas uma possível arma contra “poderes externos” acaba por
tornar-se um poder por si só. Para Alain Touraine
40
,
a particularidade do pensamento ocidental, no momento da sua mais forte
identificação com a modernidade, é que ele quis passar do papel
essencial reconhecido à racionalização para a idéia mais ampla de uma
sociedade racional, na qual a razão não comanda apenas a atividade
científica e técnica, mas o governo dos homens tanto quanto a
administração das coisas.
Tal fato tem uma profunda influência no projeto de formação/educação do ser
humano. Ainda citando o pensamento de Touraine
41
, “a formação do homem como sujeito
foi identificada, como se melhor nos programas de educação, com a aprendizagem do
pensamento racional e a capacidade de resistir às pressões do hábito e do desejo, para
submeter-se somente ao governo da razão”. A lógica da razão foi contraposta ao corpo e
38
Immanuel Kant, What is Enlightenment”, in Contemporary Civilization Staff Columbia College (org.)
Contemporary civilization reader, p.342. (minha tradução). Texto original: [“I have emphasized the main
point of the enlightenment man´s emergence from his self-imposed nonage primarily in religious matters,
because our rulers have no interest in playing the guardian to their subjects in the arts and sciences. Above all,
nonage in religion] is not only the most harmful but the most dishonrable.”
39
Theodor Adorno e Max Horkheimer. Op. cit., p.81.
40
Crítica da Modernidade, p.20.
41
Idem, p.218.
30
suas paixões, suas sensações e sentimentos. O sujeito moderno, a partir desta cisão, corre o
risco de tornar-se esquizóide.
No entanto,
esta tentativa de para conceber uma sociedade racionalizada não vingou.
Antes de mais nada porque a idéia de uma administração racional das
coisas que substituiria o governo dos homens é dramaticamente falsa e
porque a vida social que se imaginava transparente e governada por
escolhas racionais revelou-se repleta de poderes e de conflitos.
42
Horkheimer
43
vai ainda mais além e afirma que
a razão jamais dirigiu verdadeiramente a realidade social, mas hoje está
tão completamente expurgada de quaisquer tendências ou preferências
específicas que renunciou, por fim, até mesmo à tarefa de julgar as ações
e o modo de vida do homem. Entregou-os à sanção suprema dos
interesses em conflito aos quais nosso mundo parece estar realmente
abandonado.
A tentativa de se discutir a modernidade enquanto projeto não pode deixar de
lado o atual abalo da crença no progresso, garantido que estava pela tríade ciência, técnica
44
e indústria, resultando em felicidade, abundância e liberdade. Vemos, inclusive, diversos
efeitos colaterais do desenvolvimento industrial e econômico dos últimos séculos,
resultando, por assim dizer, num grande número de novos problemas, cuja maior parte é de
difícil solução. Assim, o que hoje é chamado de crise da modernidade está, em larga escala,
ligado ao questionamento do projeto moderno de uma sociedade dita racional. Aparece aqui
justamente a capacidade de auto-reflexão da razão; o questionamento do projeto moderno é
fruto da própria atuação da razão, que começa a ter consciência de sua crise. Não se trata,
42
Ibidem, p.39.
43
Op. cit., p.18.
44
cnica e tecnologia são distinguíveis historicamente. Como Regis de Morais nos explica: “teoricamente a
técnica tem como objetivo humanizar a natureza, ou, como entendia Karl Marx, transformar a natureza no
corpo inorgânico do homem. E enquanto a atividade técnica manteve esta finalidade, maravilhosas coisas
aconteceram em benefício do ser humano. Contudo, os caminhos pelos quais enveredaram a técnica e a
ciência em épocas mais próximas são completamente diferentes. Razão pela qual... diremos técnica para
mencionar o comportamento criativo do homem paleolítico, neolítico, medieval ou mesmo moderno, que
manteve fidelidade à função humanizante da tecnificação; e designamos por tecnologia a prática mais recente
da objetiva criatividade humana.” (Filosofia da ciência e da tecnologia, p.102).
31
entretanto, de uma aporia, e sim da identificação de que o que se acreditou ser a razão plena
não passa de uma parcela de suas reais dimensões.
O questionamento do progresso vem sendo impulsionado pela trágica realidade
à qual estamos atualmente expostos, evidenciada na violência social, nas guerras, na
miséria, no desemprego, na fome, na deterioração do meio ambiente, entre outros. Diante
deste suposto fracasso do projeto moderno o ser humano se percebe carente de perspectivas
concretas para o futuro. A busca por novos caminhos surge como uma opção necessária e
hoje, talvez mais do que nunca, faz-se indispensável debater e buscar alternativas que
minimizem a sensação de um futuro funesto e ameaçador. Provavelmente o ponto crucial
para qualquer proposta neste sentido é a de modificar a maneira com que o homem se
relaciona consigo mesmo e com o mundo. Neste sentido, podemos entender as palavras de
Duarte Jr.
45
:
parece que tão-só encerrar-se-á o presente ciclo da história humana na
medida em que maneiras novas de se construir o conhecimento possam
gerar atitudes diferentes do homem em relação a si mesmo e a este
planeta no qual habitamos, acarretando outras organizações sociais,
outras formas de produção e de distribuição de bens e saberes.
Atualmente vemos, portanto, um tumultuado cenário marcado pela crise da
idéia de modernidade e pelo questionamento da própria base sobre a qual toda a construção
do conhecimento moderno vinha sendo edificada. Dentro da pluralidade de propostas
atuais poderíamos apontar duas principais correntes. A primeira, denominada pós-
modernismo, defende o total esgotamento do projeto moderno, afirmando existir uma total
ruptura com os antigos ideais e projetos fracassados
46
. Na ânsia de vislumbrar um futuro
diferente do passado, o pós-modernismo, em sua versão mais radical, corre o risco de ter
seus postulados estabelecidos até mesmo pela contraposição ao que é considerado moderno.
Neste aspecto, podemos inclusive temer que o culto à razão, tipicamente moderno, acabe
45
João-Francisco Duarte Jr. O sentido dos sentidos, p. 219.
46
“Adorno escreveu em Mínima Moralia que a modernidade tinha ficado fora de moda. Hoje, estamos
confrontados, ao que parece, com algo de mais definitivo: não a obsolescência, mas a morte da modernidade.
Seu atestado de óbito foi assinado por um mundo que se intitula pós-moderno e que diagnosticou a rigidez
cadavérica em cada uma das articulações que compunham a modernidade”. (Sérgio Paulo Rouanet, As razões
do Iluminismo, p. 20).
32
por se tornar um culto à irracionalidade. Devemos, no entanto, considerar este um caso à
parte e atentar para o fato de que o pós-modernismo reúne, atualmente, em sua defesa um
certo número de críticos, filósofos, sociólogos e artistas convencidos de que houve uma
ruptura com a modernidade. Não é raro encontrarmos, entre estes, os que buscam na ciência
argumentos para corroborar suas opiniões, fazendo com que a pós-modernidade seja
freqüentemente relacionada com o nascimento de um novo paradigma
47
baseado nos
descobrimentos da física no início do século XX. Grosso modo, “a ciência moderna seria
determinista e a pós-moderna seria probabilística, indeterminista, baseada no princípio da
incerteza”
48
, características que acabariam por influenciar, na visão do pós-modernismo,
toda a formação de um paradigma não só científico, mas também sócio-cultural e humano.
Uma segunda linha de pensamento afirma que o projeto moderno nunca se
realizou plenamente e que a modernidade ainda pode e deve ser defendida, sem excluir, no
entanto, a necessidade de se rediscutir seus postulados. Podemos citar o brasileiro Sérgio
Paulo Rouanet como um entusiasta defensor desta vertente. Nas suas palavras,
não é possível lutar contra a modernidade repressiva senão usando os
instrumentos de emancipação que nos foram oferecidos pela própria
modernidade: uma razão autônoma, capaz de desmascarar as
pseudolegitimações do mundo sistêmico, uma ação moral
autodeterminada, que não depende de autoridades externas, e uma ação
política consciente, baseada em estruturas democráticas que pressupõem
uma razão crítica e uma vontade livre. Deixar de ver essa dialética da
modernidade, reduzindo-a, em bloco, à sua vertente perversa, é privar-se
dos meios de resistir à perversão. Demitir-se da modernidade é a melhor
forma de deixar intacta a modernidade repressiva.
49
Para Rouanet, a vontade de um mundo pós-moderno reflete, no entanto, uma
sensação de fracasso do projeto moderno e um desejo do novo, mas ainda faz parte da
própria modernidade. Sendo assim,
o prefixo pós tem muito mais o sentido de exorcizar o velho (a
modernidade) que de articular o novo (o pós-moderno). O pós-moderno é
47
O termo paradigma foi utilizado e popularizado pelo físico e epistemólogo Thomas Kuhn e pode ser
entendido como um modelo e uma mentalidade que formam uma base para se compreender o mundo.
48
Sérgio Paulo Rouanet, op. cit., p.261.
49
Idem, p.25-26.
33
muito mais a fadiga crepuscular de uma época que parece extinguir-se
ingloriosamente que o hino de júbilo de amanhãs que despontam. À
consciência pós-moderna não corresponde uma realidade pós-moderna.
Nesse sentido, ela é um simples mal-estar da modernidade, um sonho da
modernidade.
50
Como vimos, a “consciência pós-moderna”, fruto da auto-reflexão da razão,
aponta para os possíveis desvios do projeto moderno e deve, portanto, ser considerada
como uma importante literatura para o debate dos postulados modernos. A crença no
nascimento de uma pós-modernidade aponta, ainda nas palavras de Rouanet
51
, uma vontade
de
despedir-se de uma modernidade doente marcada pelas esperanças
traídas, pelas utopias que se realizaram sob a forma de pesadelos, pelos
neofundamentalismos mais obscenos, pela razão transformada em poder,
pela domesticação das consciências no mundo industrializado e pela
tirania política e pela pobreza absoluta nos 3/4 restantes do gênero
humano.
Deve-se salientar, porém, que o que está em pauta neste estudo é muito mais
uma discussão do percurso moderno do que propriamente sua rejeição e o nascimento de
uma pós-modernidade. Resumidamente, o que se pretende mostrar é que este percurso foi
marcado, durante sua maior parte, pela fé no progresso sustentado pela tríade ciência,
técnica e indústria até a instauração da desconfiança nesta mesma que, de forma
definitiva, se estabelece no século XX.
Devemos, entretanto, atentar para o fato de que a fronteira entre os diferentes
aspectos desta tríade não é nada clara. Assim,
embora se possam distinguir atividades mais científicas do que técnicas
e outras mais técnicas do que científicas, a distinção ciência-técnica, tal
como é usualmente utilizada pelos cientistas é uma distinção idealista.
Funda-se numa abstração: desenraiza o discurso científico
relativamente à sua verificação prática que implica a técnica; considera
50
Ibidem, p. 269.
51
Idem, p.269.
34
a ciência como uma espécie de em si, fazendo abstração do seu
exercício concreto nos laboratórios e nas fábricas.
52
Mesmo correndo o risco de fechar cada um dos aspectos da tríade ciência,
técnica e indústria num nicho estanque e fictício, tentaremos analisar cada um
separadamente através da proposta de uma distinção meramente teórica.
Um dos aspectos desta tríade, o primeiro que iremos debater aqui, a ciência
53
moderna teve suas bases amplamente discutidas e estabelecidas a partir do século XVI.
Emergida de um ambiente humanista, acreditou-se que a ciência poderia, enfim, desvendar
não a coerência da natureza, uma vez que era o meio por excelência para a revelação da
verdade, mas também apontar o lugar do homem nesta totalidade. No entanto, hoje vemos
que “a ciência não correspondeu às esperanças de que pudesse substituir as tradições
metafísicas desacreditadas por uma explicação coerente do mundo e do lugar que nele
ocupa o homem”.
54
Isto porque a ciência, pelo menos nos seus primeiros séculos, se
destacou do mundo da vida. Neste sentido explica André Dartigues
55
que “a crise se
manifesta de fato como a ruptura de um mundo: o mundo da ciência, tal como a ciência o
constitui e o vê, se destacou do mundo da vida (Lebenswelt)”. Conseqüentemente, o
próprio sujeito foi apartado do mundo, do objeto, contribuindo no estabelecimento de uma
polarização sujeito-objeto, tipicamente moderna. Assim, a ciência acabou por apresentar
um mundo fictício, chamado por Rubem Alves de “mundo objetivo da abstração
científica”
56
, cuja maior abstração é o próprio homem.
57
Conseqüentemente, mesmo uma
visão coerente deste mundo fictício não foi capaz de apaziguar os anseios do ser humano
concreto. Isto porque, em última instância, o sentido para qualquer vivência e inclusive do
fenômeno maior que se chama mundo, pode ser entendido como vivência intencional do
52
Roqueplo apud Regis de Morais, op. cit., p.49.
53
“A palavra latina scientia provém de scire, ou seja, aprender ou alcançar conhecimento. É claro que a
origem é muito genérica e que o vocábulo ‘ciência’ tal como o usamos hoje aponta para um tipo de
conhecimento mais especial e apurado.” (Regis de Morais, op. cit., p.50).
54
Cristopher Lasch, O mínimo eu, p.24.
55
Op. cit., p.74.
56
O enigma da religião, p.25.
57
Ernesto Sabato afirma: “o crescente processo de racionalização que examinei... foi, ao mesmo tempo, o
processo de abstração e da desagregação do homem. Até chegar a esta sociedade tecnólatra em que
catastroficamente não sobra nada da unidade originária.” (O escritor e seus fantasmas, p.188).
35
sujeito. E para este sujeito, as coisas que constituem o mundo, como observou Dewey,
“empiricamente são emocionantes, trágicas, lindas, cômicas, estabelecidas, perturbadoras,
confortáveis, irritantes, áridas, rudes, consoladoras, esplêndidas, terríveis.”
58
O mundo de
que nos fala a ciência não é o mesmo mundo em que o sujeito vive antes de toda elaboração
conceitual e racional.
Além da dicotomia sujeito-objeto, o desenvolvimento da ciência moderna leva,
em decorrência do aparente sucesso das ciências exatas nos séculos XVII e XVIII, à
identificação do método científico com a apresentação da natureza e de qualquer
“realidade” em linguagem matemática. Este movimento vai se intensificando até que, no
século XIX, sob o título de positivista, acaba definitivamente por pretender “confinar a
verdade no domínio das ciências exatas”.
59
A ciência acaba por ser considerada um
processo, em última instância, de caráter matemático. Nesta visão,
a realidade do que no mundo não pode ser calculado e medido, do que
não pode tornar-se problema científico
60
, vê-se simplesmente negada. O
que não se pode tornar um problema das ciências, não tem sentido para o
cientista. O que não pode ser calculado e medido, para ele não existe,
simplesmente.
61
Cabia à ciência abrir o caminho para “um mundo moderno governado pela
razão e pelo interesse, que seria acima de tudo um único mundo, sem sombras e sem
mistérios”.
62
As luzes iriam acabar, enfim, com as trevas e tornar o homem senhor de si. No
entanto, a edificação do conhecimento, despreocupada com os reais atributos do homem,
tem um profundo impacto no sujeito moderno que, obcecado por descobrir as verdades do
mundo e dominar a natureza, acaba vendo este plano iluminista de emancipação fracassar.
Nas palavras de Horkheimer
63
,
58
Dewey apud Rubem Alves, O enigma da religião, p.25.
59
André Dartigues, op. cit, p.81.
60
Luijpen está fazendo referência a uma idéia de Gabriel Marcel (Positions et approches du mystère
ontologique, pp. 258-272).
61
W. Luijpen, op. cit., p. 253.
62
Alain Touraine, op. cit., p.46.
63
O eclipse da razão, p.186-187.
36
agora que a ciência nos ajudou a superar o medo do desconhecido na
natureza, somos escravos das pressões sociais em relação à própria
construção de nós mesmos. Quando somos instados a agir
independentemente, clamamos por modelos, sistemas e autoridades.
Esperava-se que a razão fosse capaz de garantir a autonomia do homem. No
entanto, dificilmente podemos entender que o projeto kantiano no qual o homem seria
capaz de fazer uso do seu próprio entendimento através do uso da razão foi alcançado. Tal
resultado, decorrente de uma certa concepção que entende a razão como um ponto de
partida e um conseqüente governante da sociedade e do próprio homem, leva Horkheimer
64
afirmar que
se por evolução científica e progresso intelectual queremos significar a
libertação do homem da crença supersticiosa em forças do mal, demônios
e fadas, e no destino cego em suma, a emancipação do medo então a
denúncia daquilo que atualmente se chama de razão é o maior serviço
que a razão pode prestar.
O segundo e o terceiro aspectos da tríade ciência, técnica e indústria, também
estão profundamente emaranhados, sendo quase impossível separá-los de forma definitiva e
clara, mesmo se tratando de uma separação meramente didática. No entanto, devemos
entender que a crítica de qualquer uma delas deve ser feita com cuidado e que não se
pretende, aqui, proscrever a técnica ou a indústria de qualquer sociedade futura. A acusação
leviana de qualquer uma delas chega a se tornar ridícula e seria, no mínimo, uma falta de
bom senso defender o fechamento de fábricas ou laboratórios.
65
Neste sentido, chega-se
facilmente na mesma conclusão que Luijpen
66
quando este afirma que “proscrever a
técnica equivaleria à anarquia, à barbárie, à fome, à sede, à morte ou, em suma, ao
abandono de tudo o que de humano fora conquistado numa acerba luta.” No entanto,
podemos também afirmar que uma sociedade tecnólatra é igualmente rbara. A idolatria
da técnica freqüentemente esquece que a técnica sozinha é isenta de valores mais amplos.
Assim, o próprio Luijpen conclui que “as ciências naturais são boas e a técnica é benéfica,
64
Op. cit., p.187.
65
Cf. Luijpen, op. cit., p.251.
66
Idem, p.251.
37
mas a absolutização da técnica fez originar-se o que hoje se costuma chamar tecnocracia”
67
.
Ainda vemos, no processo atual de tecnificação, uma tendência tecnocrata que vê, como
possíveis resultados da aplicação moderna da técnica, somente potenciais positivos. No
entanto, vemos, freqüentemente, pensadores receosos quanto aos rumos desta aplicação
moderna da técnica. Provavelmente a mais importante crítica que se pode fazer neste
sentido, diz respeito à sua própria motivação. A técnica nasceu da tentativa de adquirir um
poder pelo qual o homem pudesse dominar as forças naturais ameaçadoras
68
, ou seja, nasce
como uma subsidiária da sobrevivência. No entanto, a técnica moderna possui uma
particularidade: ela não é fruto das necessidades reais do ser humano. A modernidade
promove as necessidades funcionais do sistema a fim-em-si. Conseqüentemente, as
necessidades do sistema acabam por estabelecer as próprias necessidades humanas.
Deixemos que Marcuse nos explique que “o complexo produtivo tende a se tornar
totalitário, pois que ele determina não apenas os empregos, técnicas e atitudes necessárias,
como também as necessidades e aspirações individuais”.
69
Assim, nas palavras de Rubem
Alves
70
,
ao invés de as necessidades humanas definirem as necessidades de
produção o que seria a norma para uma sociedade verdadeiramente
humana são as necessidades do funcionamento do sistema que irão
criar as “falsas necessidades” de consumo... E o sistema criou o homem
à sua imagem e semelhança e lhe disse: Não terás outros deuses diante de
mim!
O complexo produtivo, no entanto, também precisa garantir uma produção que
supra a vontade de consumo pela qual ela própria é responsável. Para lograr com êxito esta
produção foi necessário estabelecer uma indústria que estivesse, em primeiro lugar,
comprometida com sua produtividade. A produtividade, medida somente pelo seu aspecto
quantitativo, passa a ser um ideal a ser perseguido a qualquer custo; qualquer falha em
67
Ibidem, p.252.
68
Cf. ibidem, p.48-49. (“Ao longo do tempo, rituais gicos e religiosos, usados na tentativa de acalmar e
controlar a natureza, foram sendo substituídos por habilidades e conhecimentos. Deve ser este o princípio da
história da ciência e da técnica.”).
69
Marcuse apud Rubem Alves, O enigma da religião, p.112.
70
Idem, p.112.
38
suprir as necessidades de consumo poderia levar a um descontentamento social e colocar
em risco o próprio sistema produtivo.
A indústria, tratada aqui como possuidora de uma lógica em si mesma, sempre
teve sua autonomia garantida pela crença no progresso responsável por um futuro melhor.
No entanto, com a consolidação de uma consciência crítica ainda no século XIX, começa-
se, cada vez mais, a perceber que a indústria também gerava subprodutos que punham em
perigo o próprio futuro humano na Terra. Atualmente percebe-se que as sobras de nosso
mundo industrial e a aplicação de métodos industriais à agricultura, à pesca e à criação se
tornam uma séria ameaça à toda a natureza e à vida na terra. Para Eduardo Subirats
71
, a
“consciência de conflitos catastróficos para a sobrevivência da natureza grava hoje a
consciência moderna com uma nova angústia histórica”. E nas palavras de Christopher
Lasch
72
,
a acusação máxima contra a civilização industrial não está apenas em
que ela tenha devastado a natureza, mas que tenha minado a nossa
confiança na continuidade e permanência do mundo feito pelo homem ao
cercar-nos com bens disponíveis e fantásticas imagens de mercadorias.
De forma similar a um gigantesco mecanismo de defesa, o sistema de produção
acaba, por fim, enclausurado entre sua renovação e a manutenção de seus postulados. Sua
reformulação se torna indispensável para o futuro da humanidade, mas a necessidade de
manter uma produção suficientemente grande para suprir a demanda é uma exigência do
seu velho compromisso com a produtividade. Eis aqui o mais atual dilema do complexo de
produção moderno.
Apontamos brevemente como o núcleo da no progresso, representado pela
tríade ciência, técnica e indústria, perde, principalmente a partir do século XX, seu caráter
providencial e a decorrente instalação de um certo mal-estar na civilização, que começa a
se conscientizar de que toda a crença no progresso não passava de uma ilusão. Hoje se
percebe que “a afirmação de que o progresso é o caminho para a abundância, a liberdade e
a felicidade e que estes três objetivos estão fortemente ligados entre si, nada mais é que
71
A cultura como espetáculo, p.27.
72
Op. cit., p.237.
39
uma ideologia constantemente desmentida pela história”.
73
A crença no progresso lugar,
enfim, a uma angústia decorrente de uma perspectiva do ocaso da própria civilização.
A crítica à modernidade que se inicia no século XIX e se intensifica no século
XX vê, finalmente, no uso do mecanismo garantido pela tríade ciência, tecnologia e
indústria a serviço da barbárie na Segunda Guerra Mundial, um marco definitivo para a
instalação da desilusão no projeto moderno. Nas palavras de Jean-François Mattei
74
:
o mundo novo acreditava ter ocultado a ignorância, a guerra e a
violência à proporção das luzes da ciência e do triunfo da democracia;
mas este descobriu em seu seio as guerras mundiais, as deportações, os
extermínios, os genocídios a um grau jamais igualável na História. Do
buraco negro de Auschwitz ao ofuscante sol de Hiroshima.
Hoje percebemos que a palavra progresso não é tão evidente quanto críamos.
Pensávamos, por exemplo, que ao crescimento econômico seguia um desenvolvimento
social e humano e colocávamos tudo sob o emblema do progresso. No entanto, percebemos
que tanto o crescimento econômico, quanto o técnico e o industrial, quando pautados na
racionalização, podem gerar subprodutos nocivos para o homem. Desta forma, vemos
atualmente um questionar dos próprios desígnios do progresso, seguido por uma sensação
generalizada de ansiedade que, em última instância, é fruto de um receio individual e
coletivo quanto ao futuro que a modernidade vinha prometendo.
73
Alain Touraine, op. cit., p.10.
74
Jean-François Mattei, “Civilização e barbárie”. In Denis Rosenfield (org.) Ética e estética, p. 74.
41
II – O HOMEM DESNORTEADO
O homem contemporâneo paga o preço de uma
incrível falta de introspecção. Não consegue perceber que,
apesar de toda a sua racionalização e toda a sua eficiência,
continua possuído por “forças” fora do seu controle. Seus
deuses e demônios absolutamente não desapareceram; têm,
apenas, novos nomes. E o conservam em contato íntimo
com a inquietude, com apreensões vagas, com
complicações psicológicas, com uma insaciável
necessidade de pílulas, álcool, fumo, alimento e, acima de
tudo, com uma enorme coleção de neuroses.
Carl G. Jung
O homem moderno vive perdido num mundo de
símbolos e normas que, embora mostrem inequívoca
funcionalidade objetiva, estão tão privados de dimensão
interior que não lhe deixam espaço para reconhecer-se. E
assim se sente como náufrago extraviado num mar de
signos que compreende e manipula, mas que de maneira
alguma pode sentir como parte sua. As formas e normas da
cultura revelam-se como um universo frio de substâncias
mortas, e nessa nulidade ele se experimenta a si mesmo
como uma identidade subjetiva carente de valor próprio.
Eduardo Subirats
Diz Martin Buber que a problemática do homem é
posta de novo em questão a cada vez que parece rescindir-
se o pacto primeiro entre o mundo e o ser humano, em
tempos em que o ser humano parece encontrar-se no
mundo como um estrangeiro solitário e desamparado. São
tempos em que foi apagada uma imagem do Universo,
desaparecendo com ela a sensação de segurança que se
tem ante o que é familiar: o homem se sente na intempérie,
sem lar. Interroga-se então novamente sobre a si mesmo.
Ernesto Sabato
42
A crise da modernidade se manifesta, em uma forma mais específica, numa
crise do próprio homem. Esta crise se faz perceptível, numa primeira instância, na
dificuldade experimentada pelo ser humano atual em manter uma relação significativa com
suas próprias vivências. O homem, carente de uma vida que tenha um sentido pessoal,
acaba, como aponta Ernesto Sabato (citando Martin Buber) na epígrafe deste capítulo, por
ter a sensação de que seu “pacto” com mundo foi, por assim dizer, rescindido. Vários
fatores podem ser elencados como determinantes para a instalação do que pode ser
entendido como o lado humano da atual crise da cultura moderna. Podemos começar
lembrando que, na concepção moderna, a razão foi entendida exclusivamente como um
instrumento do sujeito e considerada ponto de partida tanto para a leitura quanto para a
edificação do mundo objetivo, através de um processo que descrevemos como
racionalização. O homem pensava ter, portanto, a capacidade de, a partir de um instrumento
do eu
1
(a razão), buscar coesão no mundo e imprimir sua vontade à realidade à sua volta.
No entanto, para Horkheimer
2
, o homem atualmente “experimenta o reverso dessa
autodeificação. A máquina expeliu o maquinista; está correndo cegamente no espaço.A
máquina é o próprio mundo que, novamente, é sentido como um ambiente hostil à vida. O
homem, que acreditava ter adquirido, finalmente, o derradeiro poder sobre a natureza,
hoje que este suposto controle não pode ser aplicado à cultura humana de uma forma geral;
nesta, freqüentemente, irrompem eventos, em maior ou menor grau, irracionais. Os
assassinatos banais, a violência urbana, os desastres ambientais ou a eclosão de guerras
acabam fazendo com que o mundo seja novamente sentido como uma ameaça à própria
sobrevivência. Num primeiro nível, este medo da morte é sentido individualmente para
assumir, numa visão mais pessimista, o receio de que estejamos todos rumando em direção
ao fim da própria espécie humana. Assim, se nos primórdios dos tempos o homem via na
natureza a possibilidade de morte ou de vida, hoje na própria cultura a possibilidade do
ocaso ou da sobrevivência da civilização. O maior predador do homem, atualmente, é o
próprio homem.
1
“O indivíduo antigamente concebia a razão como um instrumento do eu, exclusivamente” (Max
Horkheimer, op. cit., p.131).
2
Idem, p.131.
43
Podemos inclusive afirmar que decorre, desta incerteza quanto ao futuro e das
freqüentes ameaças às quais estamos sujeitos no presente, uma sensação de ansiedade
3
peculiar ao momento histórico em que nos encontramos. Na tentativa de minimizar esta
ansiedade vemos hoje uma enorme quantidade de debates e buscas por alternativas aos
valores do próprio projeto moderno. Este questionamento é sem dúvida necessário e acaba
por multiplicar as opções de visões de mundo e de possíveis padrões de vida.
Curiosamente, Hermann Hesse apontava, no começo do século XX, para uma existência
em potencial de diferentes modalidades de vida. Para Hesse, aquela geração ficou presa
“entre dois períodos, duas modalidades de vida e, por conseguinte, perdeu toda capacidade
de autocompreensão, pois não tem padrões, segurança, ou simples aquiescência.”
4
Este
texto, de 1927, ainda resume bem o espírito do que pode ser considerado o atual cenário de
vida do homem, quase um século depois. A única ressalva é que, se na década de vinte
Hesse via apenas duas modalidades de vida, hoje podemos facilmente apontar a
coexistência de inúmeras modalidades de vida, em larga escala diferentes umas das outras.
Vivemos numa sociedade pluralista, na qual freqüentemente nos confrontamos com uma
multiplicidade de sistemas de valores sobre os quais um indivíduo pode pautar sua visão de
mundo e, conseqüentemente, seus atos. Como explicam-nos Peter Berger e Thomas
Luckmann
5
, o pluralismo moderno pode ser caracterizado pela “coexistência de diferentes
ordens de valores e fragmentos de ordem de valores na mesma sociedade e, com isto, a
existência paralela de comunidades de sentidos bem diferentes”.
Faz-se necessário tentar compreender o que são as comunidades de sentido e
analisar o que implica, para o ser humano atual, a grande quantidade destas comunidades.
Nosso primeiro passo aqui é focar a própria palavra sentido quando entendida como uma
busca por uma vida que tenha um significado pessoal. Como explica-nos Duarte Jr.
6
,
para o animal, a relação de seu corpo com o meio ambiente se estrutura
de forma mecânica: ele se adapta às condições físicas através dos
3
“O século XX vive mais mergulhado em ansiedade que qualquer outro período desde a Idade Média” (Rollo
May, op.cit., p.30).
4
Apud Rollo May, op.cit., p.32-33.
5
Modernidade, pluralismo e crise de sentido, p.36.
6
Fundamentos estéticos da educação, p.28.
44
mecanismos reguladores da dor e do prazer, da ameaça e da promessa de
vida. Para o homem, que busca mais do que a manutenção da vida
busca um sentido para ela –, este motivo vital adquire contornos mais
específicos. (...) Frente ao mundo o homem se pergunta acerca do valor
que as coisas têm em relação à sua vida, isto é, a respeito de sua
significação. Assim, os mecanismos interpretativos da dor e do prazer se
transformam num esquema de interpretação de valores, no contexto
humano. Um valor positivo é aquele que auxilia o homem na manutenção
da vida e de seu significado (a existência); um negativo, ao contrário, diz
respeito à destruição da vida e de sua coerência.
Apesar do sentido da existência se constituir na consciência humana não se
deve entendê-lo como uma construção puramente subjetiva; não se pode entender o sentido
como apartado de um mundo
7
. O sentido nasce do encontro entre consciência e o mundo e
é dado pela natureza da relação entre o primeiro e o segundo. Desta forma, é necessário
atentar também para o meio social no qual o indivíduo está inserido, “mesmo porque não
existem seres humanos isolados. O que existem são comunidades humanas.”
8
Devemos, entretanto, ter em conta que a simples sucessão de experiências
pessoais não é significativa em si. Ainda nas palavras de Duarte Jr.
9
,
as experiências se tornam significativas após terem sido vividas,
quando o pensamento pode tomá-las como objeto e transformá-las em
símbolos. (...) A razão humana, a reflexão, portanto, só se a partir de
um fundo indiferenciado de sensações e emoções; o pensamento
“significador” procura, desta forma, tornar inteligível ao homem este
alicerce dinâmico, nascido de seu encontro com o mundo.
Vimos que a busca por sentido é exercida, mesmo que de forma não refletida,
por todos os homens e que esta não pode ser analisada independentemente de um agir
social. Conseqüentemente, podemos supor que cada indivíduo busque socialmente, na
experiência de outrem, ajuda para criar suas próprias significações. Freqüentemente esta
transmissão de sentido se diretamente entre indivíduos; neste caso a significação é
manifestada nas próprias relações sociais que um indivíduo mantém. Num segundo nível
7
“A consciência tomada em si não é nada; deve haver sempre consciência de algo. Existe somente enquanto
dirige sua atenção para um objeto, para um objetivo.” (Berger e Luckmann, op. cit., p.14).
8
João Francisco Duarte Jr., op.cit., p.36.
9
Fundamentos estéticos da educação, p.29-30.
45
encontramos as instituições sociais que administram
10
o que Berger e Luckmann chamam
de reservatórios históricos de sentido. Deixemos que estes autores expliquem-nos que
a formação de reservatórios históricos de sentido e instituições alivia o
indivíduo da aflição de ter de solucionar sempre de novo problemas de
experiência e de ação que surgem em situações determinadas. Se a
situação concreta for idêntica nos traços essenciais com outras
constelações conhecidas, então o indivíduo pode recorrer a
patrimônios de experiência e modos de agir já familiares e ensaiados.
11
Para Berger e Luckmann, no entanto, o pluralismo moderno propicia uma
difusão de crises de sentido, tanto num nível individual quanto num vel intersubjetivo.
Isto porque vivemos em uma “sociedade onde os valores comuns e obrigatórios não são
(mais) dados a todos e assegurados estruturalmente e onde esses valores não atingem mais
igualmente todas as esferas da vida, nem conseguem torná-las concordes.”
12
Este colapso
de uma ordem generalizada de sentido não é, como havíamos apontado citando Hesse, um
tema novo; suas origens remontam, inclusive, ao próprio início da modernidade. “O
Iluminismo e seus seguidores saudaram este processo como prelúdio da criação de uma
nova ordem, baseada na liberdade e na razão. Os tradicionalistas franceses pós-
revolucionários e outros pensadores conservadores lamentaram o mesmo processo como
sendo decadência e declínio.
13
Eis aqui uma questão interessante: devemos reconstruir
uma ordem de sentido compartilhada por todos os indivíduos de uma sociedade para que,
desta forma, se tente minimizar esta difusão de crises de sentido apontada por Berger e
Luckmann? Podemos apontar, na própria história do homem, evidências suficientes de que
tal regresso é, mesmo que desejado, inviável. Isto porque
a história das ideologias totalitárias dos últimos cem anos mostrou que
nada, nem mesmo tentativas radicais de regressão podem restaurar
10
“As reservas de sentido objetivadas e processadas pela sociedade são ‘conservadas’ em reservatórios
históricos de sentido e ‘administradas’ por instituições. O agir do indivíduo é moldado pelo sentido objetivo,
colocado à disposição pelos acervos sociais do conhecimento e comunicado por instituições através da
pressão que exercem para seu acatamento.” (Peter Berger e Thomas Luckmann, op. cit., p.25).
11
Idem, p.19.
12
Ibidem, p.33.
13
Ibidem, p.46.
46
duradouramente tais sistemas uniformes de interpretação e fazer deles a
característica estrutural das sociedades modernas.
14
Além disso, uma proposta de homogeneização das comunidades de sentido,
além de dogmática, exigiria que o indivíduo obedecesse impecavelmente a uma ordem
social. No entanto,
os homens de uma cultura, pelo seu modo de conhecimento, produzem a
cultura que produz o seu modo de conhecimento. A cultura gera os
conhecimentos que regeneram a cultura. O conhecimento depende de
múltiplas condições socioculturais, as quais, em retorno, condiciona.
15
Acreditar na possibilidade de restringir as comunidades de sentido significa
acreditar que esta dinamicidade da relação homem-cultura pode ser suspensa. Para tal, seria
necessário ignorar as potencialidades de autonomia de criação e de auto-renovação
individual.
Berger e Luckmann ainda apontam a existência de um outro grupo, ligado ao
Iluminismo, cujo seguidores acreditavam que o processo de pluralização das ordens de
sentido marca o início de uma “nova ordem, baseada na liberdade e na razão”. A liberdade
é aqui cuidadosamente colocada ao lado da razão; esta última é entendida como
fundamental para que o indivíduo faça uso do seu próprio entendimento e para que seja
possível, desta forma, falar-se em liberdade. Os defensores desta idéia afirmam que a
“liberdade é o outro aspecto da autoconsciência: se não tivermos consciência de nós
mesmos seremos impelidos pelo instinto, ou pela marcha automática da história, como as
abelhas ou mastodontes.”
16
Como a percepção autoconsciente se sobre uma base
dinâmica irrefletida, a própria abertura para a liberdade também deve ser reconquistada dia
a dia. Neste sentido podemos entender as palavras de Goethe
17
, quando Fausto reflete sobre
a lição aprendida:
14
Peter Berger e Thomas Luckmann, idem, p.39.
15
Edgar Morin. O método 4: as idéias, p.30.
16
Rollo May, O homem à procura de si mesmo, p.134.
17
Apud Rollo May, op. cit., p.140.
47
Sim! a esta idéia atenho-me com firme persistência:
A sabedoria impõe-lhe o selo da verdade;
Conquista a existência e a liberdade
somente quem todo dia a reconquista.
Para os iluministas, a autoconsciência e, conseqüentemente, a liberdade
derivam do uso da razão. Este é, para Kant, o caminho pelo qual o homem pode superar a
sua minoridade, pela qual ele próprio é culpado. Assumindo a validade da proposta
kantiana e o acerto dos pensadores que afirmam a sociedade moderna vir sendo edificada
sobre valores racionais, seria esperado que o homem tivesse, enfim, logrado sua
maioridade. No entanto, dificilmente poderíamos defender o total esgotamento das antigas
tutelas, que dividem, atualmente, espaço com novas formas de autoridade
18
, como, por
exemplo, a opinião pública, ou os diktats de uma indústria cultural obcecada pelos
resultados econômicos. A falha da razão – tornada racionalização intelectual –, como
instrumento emancipador talvez permita que a crise atual seja entendida como o não-
cumprimento da promessa iluminista. A racionalização nos a ilusão de que a
modernidade foi, como pretendia Kant e seus seguidores, sendo balizada pela razão
quando, na verdade, vinha sendo pautada num modo estreito de esta operar.
Num processo de constante diálogo, a racionalização humana age sobre a
própria construção da cultura que, por sua vez, motiva o homem que novamente age sob a
cultura, e assim por diante. Assim, a tentativa que empenhamos aqui de separar a dimensão
cultural da crise moderna (primeiro capítulo) de uma dimensão humana da mesma crise
(segundo capítulo) é, na melhor das hipóteses, uma abstração didática e não deve ser
encarada como sendo fiel à realidade do mundo. Podemos tentar discutir, entretanto, como
as formas sociais de atuação humana, grosso modo, mantêm o indivíduo refém de agentes
externos, alimentando, assim, uma crise do próprio homem. Este não consegue significar
suas vivências usando seu entendimento pessoal, e busca irrefletidamente, nas objetivações
sociais de sentido, um significado para sua existência. Aparentemente, a pluralidade
cultural é sinônimo de liberdade; a grande quantidade de comunidades de sentido parece
18
“Erich Fromm observou que hoje em dia as pessoas deixaram de viver sob a autoridade da igreja ou das leis
morais, mas submetem-se a ‘autoridades anônimas’, como a opinião pública. A autoridade é o próprio
público, mas esse público é uma simples reunião de indivíduos, cada qual com seu radar ligado para descobrir
o que os outros dele esperam.” (Rollo May, op. cit., p.22).
48
garantir que o ser humano possa, a todo momento, facilmente optar por migrar de uma para
outra, aumentando a sensação de liberdade. No entanto, Hermann Hesse já nos alertava
para o fato de que um indivíduo que estivesse preso entre modalidades de vida distintas
perderia, em última instância, sua capacidade de autocompreensão. Sem esta, vimos que
não se pode falar de liberdade e, conseqüentemente, de emancipação. O homem acaba,
então, por se submeter às “autoridades” externas.
Provavelmente o principal agente de controle externo atual encontra-se na
própria cultura de massa, amplamente relacionada com a própria mentalidade de uma
civilização industrial. Com a consolidação de uma produção em larga escala, que podemos
chamar de produção em massa, foi também necessário estabelecer um mercado de massa.
Para Cristopher Lasch
19
,
a mobilização da demanda por consumo, ao lado do recrutamento de uma
força de trabalho, requeria uma série de transformações culturais de
longo alcance. Era necessário desencorajar as pessoas de promover as
suas próprias necessidades e ressocializar estas pessoas enquanto
consumidores.
Conseqüentemente, a mentalidade de massa acaba praticamente por corroer
a autoconfiança e a autonomia tanto dos trabalhadores como dos
consumidores. Ela expande o controle coletivo do homem sobre o meio
ambiente às custas de seu controle pelos indivíduos; e mesmo tal controle
coletivo, como já apontaram inúmeras vezes os ecologistas, começa a se
revelar ilusório, na medida em que a intervenção humana ameaça
provocar respostas inesperadas da natureza, incluindo alterações
climáticas, o esgotamento da camada de ozônio e a exaustão de recursos
naturais.
20
A cultura de massa não raramente promove, num nível pessoal, ainda segundo
Lasch
21
, “a dependência, a passividade e o estado de espírito de espectador, tanto no
trabalho, quanto no lazer.” Desta forma, não é difícil compreender porque uma grande
19
Op. cit., p.20.
20
Ibidem, p.34.
21
Idem, p.19.
49
quantidade de pensadores, entre estes os da escola de Frankfurt, vêem na massificação da
cultura um perigoso instrumento de repressão social.
Podemos apontar ainda que, num nível individual, a personalidade veio sendo,
por assim dizer, “programada” pelos meios de comunicação modernos. Segundo Duarte
Jr.
22
, “o que consumir, como nos vestimos, em que acreditar, como nos comportamos em
tais e tais ambientes, etc., tudo é devidamente ‘ensinado’ pelos meios de comunicação,
aliados a poderosas corporações industriais.” Tal fato leva Lasch
23
a afirmar que
uma vez que o indivíduo parece programado por agências externas, não
se pode considerá-lo como responsável por seus atos. Num sentido
rigoroso, ele não pode agir, de modo algum; a sua única esperança de
sobrevivência encontra-se na fuga, no descompromisso emocional, numa
recusa em tomar parte em qualquer tipo de viga coletiva ou mesmo nas
complicações normais do relacionamento humano do cotidiano.
O que foi minado, portanto, nessa cultura organizada em torno da produção e
do consumo em massa foi a própria capacidade do homem de promover as suas próprias
necessidades e fazer uso, em última instância, de seu próprio entendimento. Desta forma, se
fôssemos definir este processo poderíamos, provavelmente, apontá-lo como sendo um
projeto de caráter anti-iluminista.
Alain Touraine nos aponta que o homem é, neste cenário tipicamente moderno,
inclusive incapacitado de ser sujeito.
24
O ser humano acaba, assim, coisificado e passa a
viver sua vida num estado de passividade e embotamento. Juntamente com o entendimento
individual, vão-se também as vontades e desejos individuais. Nas palavras de Ernesto
Sabato
25
,
a massificação suprime os desejos individuais, porque o Superestado
necessita de homens-coisas intercambiáveis, como peças de reposição de
uma máquina. E, no melhor dos casos, permitirá os desejos coletivizados,
a massificação dos instintos: construirá gigantescos estádios e, ao mesmo
22
O sentido dos sentidos, p.20.
23
Op. cit., p.145.
24
Segundo Alain Touraine, “intelectual ou não, nenhum ser humano vivendo no Ocidente do final do século
XX escapa desta angústia da perda de todo sentido, da invasão da vida privada, da capacidade de ser Sujeito,
pela propaganda e pela publicidade, pela degradação da sociedade em multidão e do amor em prazer. (Op.
cit., p.173).
25
Homens e engrenagens, p. 65.
50
tempo que criará dessa forma vastas empresas capitalistas, fará voltar
semanalmente os instintos da massa em uma direção, com sincrônica
regularidade. Mediante o jornalismo, o rádio, o cinema e os esportes
coletivos, o povo embotado pela rotina poderá dar vazão a uma espécie
de panonirismo, à realização coletiva de um Grande Sonho. De modo
que, ao fugir das fábricas em que são escravos da máquina, entrarão no
reino ilusório criado por outras máquinas: rotativas, rádios e projetores.
No entanto, a cultura de massa, não permite a escolha, mas obriga o homem
a tomar decisões. Cria-se, por assim dizer, uma compulsão de escolha na qual o indivíduo
se vê diante de um grande número de opções de produtos ou marcas.
26
A economia de
mercado é, portanto, uma das principais instituições da sociedade moderna que “promovem
a passagem do destino para as possibilidades de escolha e para a compulsão de escolher”.
27
Ainda para Berger e Luckmann
28
,
essa compulsão de escolha vai desde os bens triviais de consumo (qual a
marca da pasta de dente?) até as alternativas tecnológicas básicas (qual
a matéria-prima para a indústria de automóveis?). A ampliação das
opções também se estende para o campo social e intelectual. Aqui,
modernização significa a troca de uma existência determinada pelo
destino por uma longa série de possibilidades de decisão.
Numa utópica sociedade humanista, as alternativas colocadas diante dos olhos
do indivíduo, tanto pela economia de mercado como pelo pluralismo de comunidades de
sentido, chamam pela reflexão e pela escolha pessoal. No entanto, numa sociedade de
consumo massificado, a reflexão raramente acontece num nível individual. A questão não é
usar a própria razão, como queria o Iluminismo, mas simplesmente optar por determinada
comunidade de sentido. Esta opção não é, geralmente, fundada num processo de reflexão e
do uso da razão individual, mas sim baseada em processos alheios ao indivíduo; a
sociedade de consumo chama a obedecê-la.
26
Segundo Peter Berger e Thomas Luckmann: “O pluralismo não permite que escolhamos (profissão,
esposo ou esposa, religião, partido), mas obriga a isto, assim como a oferta moderna de consumo obriga a
decisões (sabão Minerva ou sabão Omo, carro Volkswagen ou Renault). Já não é possível não escolher, pois é
impossível fechar os olhos diante do fato de que uma decisão tomada poderia ter sido diferente” (Op.cit.,
p.59).
27
Peter Berger e Thomas Luckmann, op.cit., p.59.
28
Idem, p.58.
51
A morte da idéia de um senhor soberano de si não está completa, porém, se não
apontarmos também o processo observado nos últimos séculos que acaba por tornar a
máquina um outro importante fator de repressão ao sujeito moderno. Na consideração de
Subirats
29
,
desde Descartes, a máquina foi concebida na história da cultura
ocidental como a máxima expressão e o mais decisivo meio do poder
humano sobre a natureza e, conseqüentemente, como instrumento
emancipador. O caráter cultural libertador da máquina provém, na
sociedade moderna, tanto de seu potencial técnico como meio de ampliar
o domínio humano, quanto da racionalidade que lhe é intrínseca. Esta
racionalidade, um princípio econômico e funcional ligado ao
conhecimento científico, teve uma dimensão técnica especificamente
ligada à produção, mas transcendeu rapidamente o modelo organizativo
para a sociedade em seu conjunto. Desde Descartes até as técnicas de
organização social do século XIX, o modelo da máquina estende-se da
concepção do corpo humano à organização inteira do processo vital,
individual e socialmente considerado.
Esta máquina repressora pode ser entendida como uma objetivação prática de
uma visão de mundo da qual o homem concreto, em última instância, não faz parte.
Inicialmente idealizada no intuito de dominar a natureza, e assim torná-la menos
ameaçadora, a grande máquina volta-se, em última instância, contra o próprio sujeito;
triângulos e aço, logaritmos e eletricidade, senóides e energia atômica,
estranhamente unidas às formas mais misteriosas e demoníacas do
dinheiro, constituíram finalmente a Grande Engrenagem, da qual os seres
humanos acabaram sendo obscuras e importantes peças.
30
Sabato contrapõe, no texto acima, um mundo matemático (triângulos,
logaritmos e senóides) à sua objetivação cultural (aço, eletricidade e energia atômica).
Certamente é o segundo grupo que age mais diretamente sobre o homem comum, uma vez
que acaba alterando significativamente o próprio mundo com o qual o homem se relaciona.
Esta objetivação, pautada num processo de racionalização, acaba fazendo com que cada vez
mais o ritmo da máquina determine o ritmo da vida. Nesta projeção, o mundo acaba carente
29
Da vanguarda ao pós-moderno, p.23.
30
Ernesto Sabato, Homens e engrenagens, p. 66.
52
de valores mais humanos, e o homem passa, cada vez mais, a ser considerado meramente a
partir da função que exerce, ou seja, passa a ser uma peça substituível do que Sabato chama
de “grande engrenagem”. Este homem tornado peça, obedece implacavelmente à máquina,
mesmo sem saber o que suas engrenagens podem, enfim, apresentar como produtos. Ainda
segundo Sabato,
este é o destino contraditório daquele semi-deus renascentista que
reivindicou sua individualidade, que orgulhosamente se levantou contra
Deus, proclamando sua vontade de poder e transformação das coisas.
Ignorava que ele chegaria a transformar-se em coisa.
Homens como Pascal, William Blake, Dostoievski, Baudelaire,
Lautréamont, Kierkegaard e Nietzsche intuíram que algo trágico estava
sendo gestado em meio ao otimismo. Mas a grande Maquinaria seguiu em
frente. Desolado, o homem se sentiu por fim em um universo
incompreensível, cujos objetivos desconhecia e cujos Amos, invisíveis e
cruéis, o enchiam de pavor.
Por fim vale lembrar que a razão é hoje freqüentemente acusada de possuir
estreitos vínculos com o projeto moderno em crise. Mas e se, num curioso paradoxo, a
crítica à razão, que pretende ser também uma crítica à modernidade, estiver, em parte,
pautando-se na própria mentalidade da qual pretende tornar-se independente? O não-uso da
razão individual é essencial para que os gostos e os desejos de consumo sejam
compartilhados pelo maior número de pessoas e para que, dessa maneira, surja uma cultura
consumista de massa.
31
O que deve ficar claro, portanto, é que a crítica da razão não pode
ser partidária da abdicação do uso da razão. Enquanto o homem contemporâneo tiver
condições de refletir criticamente sobre a crise da modernidade, o projeto moderno não
estará falido. É neste sentido que podemos entender a já citada passagem de Rouanet
quando este afirma que “não é possível lutar contra a modernidade repressiva senão usando
os instrumentos de emancipação que nos foram oferecidos pela própria modernidade”
Não se pode, portanto, desprezar a razão. Resta-nos, portanto, rediscuti-la.
Neste sentido,
31
Segundo Octavio Paz: “O princípio que rege a propaganda – e que seus beneficiários tiraram dos métodos
comerciais da burguesia – omite a razão e a liberdade: o homem é um complexo de reações que é preciso
estimular ou neutralizar conforma as circunstâncias.” (O arco e a lira, p.256).
53
talvez não fosse demais recordar Nietzsche, que, já no século XIX e
contra o cientificismo então predominante, pregava uma volta à “grande
razão”, formada pelo corpo todo do ser humano, e que havia de deixado
submeter pela “pequena razão”, seu intelecto, tomado do modo mais
restrito e restritivo. Para esse filósofo, o homem do Ocidente (não se
falava então em sociedade industrial) acabaria por sucumbir exatamente
devido à elevação da pequena razão à categoria de faculdade quase
exclusiva do saber humano, com desconsideração e mesmo a repressão
aos apelos da grande razão.
32
Podemos ainda lembrar Horkheimer
33
, que formula uma das idéias mais
profundas do século XX: “a razão não basta para defender a razão.” Para Touraine
34
, "esta
frase (...) rompe com o racionalismo da ideologia iluminista muito seguro de si. É uma
chamada ao sujeito, a recusa de dar uma importância central à oposição entre o tradicional e
o moderno.” No entanto, romper com o “racionalismo da ideologia iluminista” não
significa romper completamente com o projeto iluminista; precisamos identificar os limites
da razão e, principalmente, discutir o colapso do que Nietzsche chamou grande razão” no
racionalismo moderno. O levante contra o racionalismo é, como nos disse Touraine, um
chamado do sujeito soterrado pela grande engrenagem (Sabato). Ao homem
contemporâneo, vivendo numa cultura que acaba determinando o próprio desenrolar e ritmo
da sua vida, mas que ouve, das profundezas do seu ser os gritos de um sujeito soterrado,
resta, aparentemente, somente entregar-se à ansiedade peculiar de nossos tempos.
Rollo May
35
, numa tentativa de descrever esta ansiedade, comenta que “o
homem moderno, apavorado com as bombas que ele mesmo fabricou, precisa fugir ao céu e
esconder-se nas cavernas.” Após um período em que o homem aparentemente havia
dominado a natureza e minimizado, através dos avanços tecno-científicos-industriais, a
sensação de uma natureza ameaçadora, o mundo volta a ser sentido como ameaçador. Esta
sensação de ameaça, peculiar ao nosso atual momento histórico, imprime no devir do
progresso um traço de desconfiança que acaba sepultando as antigas crenças de que a
32
João Francisco Duarte Jr., A modernidade: o itinerário de uma crise, p.96.
33
Apud Alain Touraine, op.cit., p.223.
34
Op.cit., p.223.
35
O homem à procura de si mesmo, p.57.
54
humanidade havia descoberto, na tríade ciência, técnica e indústria, o caminho para a
prosperidade e para a felicidade. Conseqüentemente, à crença num futuro garantido pelo
progresso começou a se opor um questionamento dos moldes escolhidos durante a
modernidade para balizar a tentativa de edificação de uma sociedade racional. O homem
acabou por questionar a utilidade do gigantesco dispositivo de domínio da natureza que
havia sido por ele construído e que tinha, em uma primeira instância, falhado em mitigar a
ansiedade causada por seus antigos dilemas e que havia, ainda por cima, lançado-o em um
novo estado histórico de ansiedade decorrente da própria perspectiva do ocaso da
civilização ameaçada pelos produtos de uma sociedade que se mostrou, e ainda se mostra,
pouco ou nada racional. Como assinala Eduardo Subirats
36
,
a consciência de conflitos catastróficos para a sobrevivência da natureza
grava hoje a consciência moderna com uma nova angústia histórica. E
aquela visão emancipadora da civilização com que o humanismo
científico havia sonhado, desde a revolução copernicana dos céus até a
concepção moderna do progresso, foi trocada pela perspectiva do ocaso
da história e do homem.
A idéia de angústia, utilizada por Subirats, certamente é algo distinto da
ansiedade. No entanto, podemos também cuidadosamente aproximar estes dois conceitos.
A angústia freqüentemente é definida como o sentimento decorrente da consciência da
morte. Heidegger
37
, por exemplo, pondera que “na angústia abre-se a extrema possibilidade
do homem como projeto, a saber, a morte. Toda angústia, portanto, é angústia da morte.”
Subirats também afirma, no texto acima, mesmo que indiretamente, que a angústia tem uma
intima relação com a perspectiva da morte (ocaso). Aproximando sua concepção de
ansiedade desta interpretação de angústia, May defende que “a ameaça de morte é o
símbolo mais comum da ansiedade.”
38
Ainda para este último autor, “a ansiedade pode
assumir todas as formas e intensidades, pois é a reação básica do ser humano a um perigo
que ameaça sua existência, ou um valor que ele identifica com sua existência.”
39
A
36
A cultura como espetáculo, p.37-38.
37
Apud Luijpen, op. cit., p.387-388.
38
Op. cit., p.35.
39
idem, p.34.
55
afirmação de que estes dois conceitos coincidem é, certamente, leviana e não atenta para as
particularidades de cada uma das situações psicológicas. Podemos, entretanto, pelo menos
no que tange à sensação atravessada pelo homem atual, apontar uma certa semelhança entre
o que Subirats afirma ser uma nova angústia histórica e a ansiedade afirmada por May
como uma das principais características da sociedade atual.
Deve ficar claro que pretendemos tratar aqui de uma ansiedade básica (e de
suas objetivações no século XX) que pouco ou nada tem a ver com a ansiedade neurótica.
Esta última provém de conflitos psicológicos inconscientes e geralmente está relacionada a
algum trauma pessoal. A maneira de trabalhar a ansiedade neurótica é trazer, de preferência
através de um processo de psicoterapia, a situação traumática à tona para que seja possível
ressignificá-la de forma adequada. A ansiedade a que nos referimos neste estudo encontra,
diferentemente da ansiedade neurótica, suas principais origens num nível cultural e é
compartilhada por um certo número de indivíduos. Como Subirats
40
explica, este estado de
ansiedade foi forjado principalmente no século XX em decorrência
das experiências traumáticas das guerras, dos totalitarismos políticos e
do empobrecimento que, tanto num sentido estético quanto cognitivo e
ético, acompanhou a progressiva colonização tecnológica das formas da
cultura humana. Uma nova condição espiritual do homem moderno surge
necessariamente da nova consciência das suas limitações cognitivas ou
perceptivas diante do universo desumanizado das novas tecnologias da
inteligência, mas também do sentimento individual e coletivo de
impotência do devenir dos acontecimentos políticos, sociais e também
naturais do mundo contemporâneo.
O que Subirats chama de empobrecimento estético, cognitivo e ético, mina a
capacidade do indivíduo para significar sua própria vida frente a um mar de estímulos
plurais e aparentemente caóticos. Desta forma, podemos entender que a ansiedade atual
também é fruto de uma falta de recursos que o ser humano experimenta para lidar com o
mundo em que vive. Este homem acaba carente de significações pessoais satisfatórias,
sentindo-se, assim, desnorteado e impotente não só em relação ao rumo do mundo
contemporâneo, mas também frente ao devir da sua própria existência. Em uma primeira
instância, como Horkheimer apontou, a sensação é de que a máquina havia expelido o
40
A cultura como espetáculo, p. 38-39.
56
maquinista e que estava correndo cegamente. No entanto, podemos também transpor esta
afirmação ao próprio indivíduo: este é o triste fim do sujeito soberano que nascia, pelo
menos enquanto projeto, com a aurora da modernidade. Como explica-nos Lasch
41
,
uma das razões pelas quais as pessoas não mais se vêem como sujeitos de
uma narrativa é que elas não mais se vêem como sujeitos, de modo
algum, mas como vítimas das circunstâncias; e essa sensação de deixar-
se guiar por forças externas incontroláveis inspira um outro modo de
armamento moral, uma retirada do eu sitiado rumo à personalidade de
um observador irônico, separado e confuso.
A passividade frente aos desígnios sócio-culturais, aliada ao desnorteamento em
relação à vida, garante que o homem contemporâneo continue imerso num estado de
ansiedade. Além disso, a própria natureza da ansiedade garante, por assim dizer, sua
existência. Isto porque, “quando estamos ansiosos ... sentimo-nos ameaçados sem saber o
que fazer para enfrentar o perigo. A ansiedade é a sensação de estar ‘agarrado’, ‘oprimido’;
e em vez de tornar mais aguda a percepção, em geral torna-a embotada.”
42
Estes não são, entretanto, os únicos fatores de incitação da ansiedade com os
quais atualmente se defronta o indivíduo. A crescente ansiedade, aliada à necessidade de
escoamento dos produtos industriais, foi o cenário perfeito para o surgimento de uma
cultura de consumo que veio se estabelecendo ao longo do último século e que atinge,
atualmente, níveis sem precedentes na história. Na reflexão de Lasch
43
,
o estado de espírito promovido pelo consumismo é melhor descrito como
um estado de desconforto e de ansiedade crônica. O lançamento das
mercadorias depende, como a moderna produção em massa, de
desestimular o indivíduo quanto à confiança em seus próprios recursos e
julgamentos: neste caso, o discernimento do que ele necessita para ser
saudável e feliz. O indivíduo vê-se sempre sob observação, quando não de
chefes e superintendentes, de pesquisadores de mercado e de opinião
pública, que lhe contam o que os outros preferem e o que ele também
deve preferir, ou de médicos e psiquiatras, que o examinam em busca de
sintomas de doenças não identificáveis por olhos destreinados.
41
Op. cit., p.85-86.
42
Rollo may, op. cit., p.33-34.
43
Op. cit., p. 19 (nota de rodapé).
57
Para Lasch, portanto, a própria lógica do mercado de massa privilegia a
manutenção do estado de um certo estado de ansiedade. O homem moderno que, como
aponta Lasch, desacredita nos próprios recursos e julgamentos, vê-se, inevitável e
constantemente premido pela obrigação de escolher: a sociedade atual, marcada pelo
pluralismo e pelo consumismo, não apenas permite que o indivíduo faça as suas próprias
escolhas, mas o obriga a isto. O escolher, porém, no caso da sociedade de consumo, não
exclui o que não foi escolhido, e acaba por fazer com que o indivíduo entenda por liberdade
a possibilidade de escolher todas as coisas simultaneamente, inclusive quando se trata de
seu próprio projeto de vida.
A idéia de que “você pode ser tudo o que quiser”... passou a significar a
possibilidade de as identidades serem adotadas ou descartadas como se
troca de roupa. Do ponto de vista ideal, as escolhas de amigos, amantes e
carreiras deviam estar todas sujeitas ao cancelamento: tal é a concepção
experimental e ilimitada da boa vida que sustenta a propaganda de
mercadorias, ao cercar o consumidor com imagens de possibilidade
ilimitada: mas se a escolha não mais implica compromissos e
conseqüências... a liberdade de escolha resulta, na prática, numa
abstenção de escolha. A menos que a idéia de escolha traga com ela a
possibilidade de fazer diferença, de mudar o curso dos acontecimentos,
de desencadear uma cadeia de eventos que pode provar-se irreversível,
ela nega a liberdade que pretende sustentar.
44
Certamente a idéia de que a identidade pessoal pode ser facilmente adotada ou
descartada a qualquer momento é central para a instalação da ansiedade peculiar aos dias de
hoje. O funcionamento da sociedade atual, baseada no consumo de massa, não permite
que a identidade seja mudada a qualquer hora, mas faz com que o indivíduo tenha a
sensação de que sua identidade necessita ser sempre renovada através das escolhas
pessoais. Vemos, portanto, uma obsessão pela constante construção e renovação da
identidade, projetada, primeiramente, na própria escolha de mercadorias, mas que está,
atualmente, estendida para todos os campos onde é possível se falar de uma escolha
pessoal. Na vida real, no entanto, este processo não ocorre ausente de severos conflitos
44
Christopher Lasch. Op. Cit. p.29.
58
psíquicos. Freud havia apontado, na sua segunda teoria do aparelho psíquico, um lo
pulsional da personalidade, o id, cujos conteúdos são, em larga escala, inconscientes. Como
as escolhas, num nível individual, estão relacionadas com esta dimensão pulsional da
personalidade humana, a sociedade de consumo e da propaganda em massa acaba, por
assim dizer, estimulando e explorando as vontades do id. Além disso, para explorar mais
facilmente os impulsos do id, esta lógica social se aproveitou do enfraquecimento do
superego (dimensão psíquica na qual estão interiorizadas as exigências sócio-culturais e
parentais), resultado da própria mentalidade moderna. O próprio Freud já havia apontado
que o id está freqüentemente em conflito com o ego, que tente a representar um pólo
defensivo da personalidade. Os processos defensivos promovidos pelo ego também
decorrem, em grande parte, de processos inconscientes. Desta forma, nossa sociedade atual
promove um aumento significativo de conflitos entre o id e o ego que resulta num foco de
aumento da ansiedade sentida pelo homem contemporâneo.
Por fim, devemos abrir espaço para a reflexão sobre as implicações da própria
visão de mundo atual no aumento da ansiedade contemporânea. A modernidade viu, no seu
desenrolar inicial, uma rebelião contra um mundo fechado e baseado em leis rígidas,
resultado, principalmente, da confiança no homem e na sua razão individual. Cada vez
mais,
a partir do renascimento, o mundo é requestionado; depois que Cristóvão
Colombo aumentou a Terra e Copérnico e Galileu diminuíram-na no céu,
Deus é requestionado, assim como o homem; a interdependência dessas
reflexões determina uma problematização generalizada. A perda dos
antigos fundamentos de inteligibilidade e de crença suscita a procura
incessante de novos fundamentos e a formação ininterrupta de novos
sistemas filosóficos, os quais levantam mais questões do que fornecem
respostas, o que relança em permanência a busca.
45
Este mundo que nascia com a própria modernidade era, portanto, um mundo no
qual as fronteiras não estavam definidas e cujos princípios de funcionamento ainda
deveriam ser descobertos através da capacidade do próprio homem. Vemos, portanto,
45
O método 4: as idéias, p.175.
59
durante a modernidade, movimentos que questionavam os rumos sociais, mas que estavam
amparados por uma crença no indivíduo e na razão. No dizer de Subirats
46
,
movimentos do pensamento como o Humanismo, a Reforma, o Iluminismo
e as vanguardas têm em comum uma característica: o questionamento de
si mesmos e de sua época, a idéia de renovação, de reformulação sempre
iniciada a partir do zero de valores individuais e coletivos, de objetivos
comuns a uma civilização.
No entanto, a partir do questionamento da razão, que se dá, principalmente, a
partir do fim do século XIX e começo do século XX, começa-se a ter a impressão que a
incompletude do mundo não é uma questão puramente relacionada com o estágio dos
avanços e descobrimentos científicos, mas sim uma questão inerente ao próprio mundo.
Para agravar a situação, as novas descobertas da física no começo do século XX também
promovem a sensação de uma ambigüidade inerente ao mundo. Comparado com a
segurança do positivismo que afirmava estarmos diante de um mundo ordenado e que
obedecia a uma lógica racional, e de um pensamento que acreditava estar destinado ao
conhecimento total da natureza, esta nova visão de mundo, na qual aparecem a
ambigüidade e incompletude, pode ser vista como um sinal de crise ou de declínio. No
entanto, na ponderação de Merleau-Ponty
47
,
temos razões para perguntar a nós mesmos se a imagem que muitas vezes
o mundo clássico nos passa é algo mais do que uma lenda, se ele também
não conheceu a incompletude e a ambigüidade em que vivemos, se não se
contentou com recusar-lhes a existência oficial e se, conseqüentemente,
longe de ser um caso de decadência, a incerteza de nossa cultura não é,
antes, a consciência mais aguda e mais franca do que sempre foi verdade,
portanto, é aquisição e não declínio.
Merleau-Ponty
48
conclui que
se isso é verdade, a consciência “moderna” não teria descoberto uma
verdade moderna, mas uma verdade de todos os tempos, apenas mais
46
Da vanguarda ao pós-moderno, p.47.
47
Conversas 1948, p.74-75.
48
Idem, p.76.
60
visível hoje e levada à sua mais alta gravidade. E essa clarividência
maior, essa experiência mais integral da contestação não é o
comportamento de uma humanidade que se degrada: é o comportamento
de uma humanidade que não vive mais por alguns arquipélagos ou
promontórios, como viveu por muito tempo, mas confronta a si mesma de
um extremo a outro do mundo
Certamente este confronto aludido por Merleau-Ponty, seja num vel social ou
num nível individual está relacionado com o aumento da ansiedade. Mas este é o preço a se
pagar, caso estejamos dispostos a tentar construir uma representação sem lacunas do
mundo.
Também é central para a instauração da sensação de desamparo e afastamento
do mundo o distanciamento entre o corpo e os processos inteligíveis da mente humana.
Embora a promoção de uma dicotomia entre o corpo e a mente seja freqüentemente
creditada a René Descartes, a instauração de uma tradição de suspeita do corpo existia
muito antes de Descartes e percorre o mundo ocidental desde a Grécia antiga. Ainda no
século VI a.C o filósofo grego Pitágoras formulou, com grandes influências do orfismo
49
,
uma doutrina baseada na idéia da transmigração da alma de corpo em corpo, resultando na
crença de que a alma seria imortal e, portanto, divina, enquanto o corpo seria mortal e
corruptível. Pitágoras o é, porém, o único arrimo da instauração da suspeita do corpo;
segundo David Le Breton
50
, “Platão... considera o corpo humano como túmulo da alma,
imperfeição radical de uma humanidade cujas raízes não estão mais no Céu, mas na Terra.
A alma caiu dentro de um corpo que a aprisiona.” Embora os gregos não tenham se privado
do prazer corporal e do cuidado com o próprio corpo, podemos apontar na sua filosofia, ou
pelo menos no entendimento que dela se fez durante parte dos tempos modernos, a origem
da tradição de suspeita do corpo.
No entanto, nos últimos séculos, foram acrescentadas novas dimensões à
tradição de suspeita ao corpo. A contraposição grega entre a alma e o corpo era, em última
49
Segundo Nicola Abbagnano, o orfismo é uma “seita filosófico-religiosa bastante defendida na Grécia desde
o século VI a.C e que se julgava fundada por Orfeo. A crença fundamental da seita era que a vida terrena
fosse uma simples preparação para uma vida mais elevada, que podia ser merecida por meio de cerimônias e
de ritos purificadores” (Dicionário de filosofia, p.702).
50
Adeus ao corpo, p.13.
61
instância, um dilema que contrapunha o bem e o mal, o divino e os estorvos da carne. A
modernidade, entretanto, simplesmente desprezou este dilema ao tentar suprimir um desses
termos de seu discurso. Assim, o corpo também foi abstraído na elaboração da
epistemologia moderna e, conseqüentemente, as expressões sensíveis da existência humana,
que estão enraizadas na experiência corporal, foram desconsideradas e enterradas sob os
desígnios de uma cultura que se mostrava cada vez mais obcecada pela racionalização.
Desta forma, o corpo passou a ser entendido como uma matéria indiferente na elaboração
da visão que o homem tinha do mundo; era somente a razão que, ao se relacionar com o
mundo poderia, enfim, compreendê-lo e dominá-lo. E o método criado pela modernidade
para a compreensão da natureza foi a ciência moderna. Tal fato faz com que Sabato
51
afirme que “o poder da ciência se adquire graças a uma espécie de pacto com o diabo: à
custa de uma progressiva evanescência do mundo cotidiano. Chega a ser monarca, mas,
quando o consegue, seu reino é apenas um reino de fantasmas.” Deixemos que Sabato
52
novamente nos explique que
os tempos modernos edificaram-se sobre a ciência, e não ciências
senão a do geral. Mas como a prescindência do particular é a
aniquilação do concreto, os tempos modernos edificaram-se aniquilando
filosoficamente o corpo. E se os platônicos o excluíram por motivos
religiosos e metafísicos, a ciência o fez por motivos friamente
gnosiológicos.
A fundamentação filosófica da ciência baseou-se, portanto, numa visão de
mundo que tirava a aptidão cognoscitiva do corpo colaborando para o surgimento da
crença de que o mundo puramente objetivo poderia ser totalmente representado pela ciência
e através da razão. Mas como alerta André Dartigues
53
,
no universo “galileano”, o da física matemática, ninguém pode dizer que
o tempo está bom, que o mar está calmo, as flores perfumadas e os frutos
apetitosos. Não tem mais nenhum sentido falar de campinas, florestas,
casas, instrumentos, pois, ao observar o mundo sob aquele ângulo, é
preciso “fazer abstração dos sujeitos enquanto pessoas que têm uma vida
51
Nós e o universo, p.20.
52
O escritor e seus fantasmas, p.139.
53
O que é fenomenologia, p.77.
62
pessoal, de tudo o que é espiritual não importa em que sentido, de todas
as propriedades culturais ligadas aos objetos na ação humana”
54
O
mundo da objetividade pura “sistema material, real e fechado”
55
, é um
mundo inabitado e inabitável.
A busca pelo conhecimento e pela própria representação cognoscitiva do
mundo acabou por perseguir, durante boa parte da modernidade, um mundo abstrato, um
mundo irreal, uma vez que dele não fazia parte o corpo e, conseqüentemente, toda a
dimensão subjetiva da existência humana. Além disso, ao excluir o corpo do seu discurso, a
modernidade excluiu o próprio sujeito real em benefício de um sujeito abstrato, uma
espécie de super-homem sem emoções, sentimentos ou sensações. A concepção do homem
como existência mostra, enfim, que o dualismo moderno não somente contrapõe o corpo à
alma, mas sim, em última instância, o homem ao seu próprio corpo. Nas palavras de
Luijpen
56
,
refletindo sobre o corpo humano... encontramos o sujeito, que está
mergulhado no corpo e por ele está envolvido no mundo. Achamos o
mundo que, como um todo significativo, se prende ao corpo, o qual,
enquanto humano, indica o sujeito. Eis o homem como existência.
Se a recusa ao corpo era, para os gregos, baseada em questões metafísicas e
espirituais ela acaba sendo, por assim dizer, condição epistemológica de uma modernidade
que na racionalização o caminho para a organização social e individual da vida. No
entanto, podemos ainda apontar a própria funcionalidade do sistema que fundamenta nossa
civilização como instauradora da abstração do corpo. Na ponderação de Rubem Alves
57
,
a racionalização e a eficiência, fundamentos de nossa civilização, não
podem existir sem a repressão ao corpo. Para que um homem se torne
uma função do sistema ele tem de reprimir todos os ritmos naturais de seu
corpo e começar a operar no ritmo estabelecido pelo próprio sistema. O
jogo e a eficiência não caminham juntos. Enquanto você olha o relógio,
enquanto corre para tomar um ônibus ou o metrô, entra na fábrica ou no
54
E. Husserl, Die Krisis der Europäischen Wissenschaften und die Transzendentale Phänomenologie, Haia,
M. Nijhoff, 1962, p.60.
55
Ibidem, p.61.
56
Introdução à fenomenologia existencial, p.57.
57
A gestação do futuro, p.157.
63
asséptico mundo da burocracia, todas as coisas repetem o mesmo refrão:
“o corpo deve ser vencido”.
Ou seja, para que a eficácia seja alcançada em termos principalmente de lucro,
o corpo deve ser submetido a um funcionamento equivalente ao de uma máquina ou operar
como extensão destas.
Apontamos, portanto, uma tríplice origem para essa abstração do corpo: uma
tradição metafísica e espiritual que encontra suas origens na filosofia grega, a própria
epistemologia moderna e, por fim, a funcionalidade de um sistema sócio-econômico
racionalista. Desta forma, ainda hoje “nossa civilização se baseia no pressuposto de que a
verdadeira humanidade começa onde o corpo termina. (...) Aprendemos que a mente, o
intelecto, o espírito e a alma constituem a essência do homem.”
58
À primeira vista, porém, a afirmação de que o corpo é atualmente reprimido
pode enfrentar questionamentos. Os críticos mais severos poderiam até mesmo argumentar
que vivemos, nos dias atuais, exatamente o oposto. Estes iriam certamente apontar o corpo
no mundo da publicidade ou o aumento de transtornos alimentares resultantes da obsessão
pelo corpo perfeito como prova da apologia ao corpo. No entanto, como explica-nos Daniel
Lins
59
vivemos atualmente o
paradoxo de uma modernidade cujo discurso aparente faz a apologia do
corpo para melhor esvaziá-lo, transformando-o em mercadoria e
impondo um fora do corpo como exterioridade redundante que dita o
simulacro do próprio corpo. Nunca o corpo-simulacro, o corpo-
descartável foi tão exaltado como na contemporaneidade.
Le Breton conclui que “o corpo exaltado não é o corpo com o qual vivemos,
mas um corpo retificado, redefinido.”
60
Embora a exaltação do corpo-simulacro pareça
reverter o dualismo original, no qual o corpo era visto como a parte inferior da condição
58
Idem, p.156.
59
Prefácio do livro Adeus ao corpo de David Le Breton, p.10.
60
Entrevista com David Le Breton publicada em tradução para o português na revista IHU on-line Ano 4
N
o
110 – 9 de agosto de 2004, p.37. [original revista Construire, N
o
19, 9 de Maio de 2000].
64
humana, ela acaba por acentuar o confronto entre o homem e o seu corpo. O corpo exaltado
se torna
uma forma possível de transcendência pessoal e de contato. O corpo
deixa de ser uma máquina inerte e torna-se um alter ego de onde emanam
sensação e sedução. Torna-se o local geométrico da reconquista de si,
território a ser explorado à espera de sensações inéditas a
experimentar.
61
Desta forma, o corpo acaba por se tornar um alter ego a ser perseguido pelo
sujeito e a transmutação neste alter ego, condicionada, principalmente pelo mundo da
publicidade, ao consumo. Em outras palavras, o corpo real passa a ser considerado um
rascunho, um objeto imperfeito que deve, através do consumo, ser corrigido. Toda esta
concepção faz “do corpo um sócio que se mina ou um adversário que se combate para lhe
dar a forma desejada.”
62
Resulta daí que “essa preocupação com a aparência, essa
ostentação, essa vontade de bem-estar que faz correr ou se consumir não modificam... em
nada a eliminação do corpo que reina na sociedade.”
63
Além disso, se para a concepção de origem da suspeita do corpo, marcadamente
metafísica e espiritual, o corpo era o instrumento da alma, o corpo também é visto,
atualmente, como um instrumento da busca do prazer, e, portanto, valorizado como tal.
Nas palavras de Rollo May
64
, “o corpo é tratado como um veículo de sensações, do qual se
pode obter com habilidade e exatamente como quem liga um televisor certos prazeres
gastronômicos e sexuais”. Mudam-se as finalidades, mas permanece o corpo-instrumento.
Podemos, inclusive, questionar-nos se os vícios, que são tradicionalmente creditados a uma
fraqueza e imperfeição do corpo, têm sua origem somente no corpo. Como afirma Michel
Serres
65
,
dissertamos mais facilmente sobre os vícios porque podemos
compreender melhor sua verdadeira natureza, totalmente intelectual. A
61
David Le Breton, Adeus ao corpo, p.53.
62
entrevista com David Le Breton publicada em tradução para o português na revista IHU on-line Ano 4
N
o
110 – 9 de agosto de 2004, p.38. [original revista Construire, N
o
19, 9 de Maio de 2000].
63
David le Breton, Adeus ao corpo, p.54.
64
Op.cit., p.89.
65
Variações sobre o corpo, p.49.
65
cabeça nunca cessa de contabilizar: uma aritmética triste e simplista dos
prazeres, das ações, das mulheres conquistadas, dos tesouros
acumulados, da intensidade dos aplausos, dos golpes que infligimos ao
adversário em comparação com os que dele recebemos, das horas
passadas na ociosidade. Nada disto concerne ao corpo, mas em
compensação chama atenção para seus indicadores: os vícios intelectuais
se prestam ao discurso.
Embora o corpo enquanto tema tenha sido amplamente debatido desde dos
gregos até os dias atuais, certamente este se tornou, no último século, um tema central e de
grande importância. Esta valorização do corpo enquanto tema filosófico ocorreu, em grande
parte, pela própria recusa do corpo em obedecer totalmente a uma lógica racional, tornando
o corpo um fecundo território para aqueles que pretendem fazer a crítica da modernidade. É
na relação corpo-mundo que percebemos, mais claramente, o fracasso da racionalização:
nesta relação estão expostas as irregularidades do homem que resiste a se tornar uma
máquina racional, uma vez que o corpo é a morada de tudo aquilo que não pode ser
reduzido à razão. Devemos salientar, entretanto, que a recusa filosófica ao dualismo não é
recente. Espinosa
66
, por exemplo, havia afirmado, no século XVII, que “Alma e o Corpo
estão... simultaneamente presentes, e – é necessário supor – simultaneamente ausentes. Se a
Alma é a idéia do Corpo, não mais idéia quando não mais corpo”. O que garantiu,
portanto, que este dualismo e uma conseqüente recusa do corpo perdurasse por tanto tempo,
mesmo sob constantes críticas e questionamentos? Como nos explica Le Breton
67
“a luta
contra o corpo revela sempre mais o móvel que a sustenta: o medo da morte. Corrigir o
corpo, torná-lo uma mecânica, associá-lo à idéia da máquina ou acoplá-lo a ela é tentar
escapar desse prazo, apagar ‘a insustentável leveza do ser’ (Kundera).” Ainda segundo
Breton
68
, a carne do homem é a parte maldita sujeita ao envelhecimento, à morte, à
doença. É o cadáver em decomposição’, a ‘carne’. O mal é biológico.” O que está por trás
da luta contra o corpo é, portanto, uma luta contra a própria condição humana, mais
especificamente, o que Heidegger já havia apontado como origem última da angústia: a
morte. O drama do homem moderno não é, portanto, somente ter sido separado do seu
66
Apud Daniel Lins, op.cit., p.12.
67
Op. cit., p.17.
68
Ibidem, p.14.
66
corpo, mas também o fato de que, nesta divisão, está implícito um confronto entre estas
duas partes do qual o homem não pode, de forma alguma, sair vitorioso.
Esta luta contra si próprio também se desdobra no âmbito social. Segundo a
reflexão de Alain Touraine
69
,
o drama da nossa modernidade é que ela se desenvolveu lutando contra a
metade dela mesma, fazendo a caça ao sujeito em nome da ciência,
rejeitando toda a bagagem do cristianismo que vive ainda em Descartes e
no século seguinte, destruindo em nome da razão e da nação a herança
do dualismo cristão e das teorias do direito natural que haviam
provocado o nascimento das Declarações dos direitos do homem e do
cidadão nos dois lados do Atlântico. De forma que continuamos a chamar
de modernidade o que é a destruição de uma parte essencial dela mesma.
Não existe modernidade a não ser pela interação crescente entre o sujeito
e a razão, entre a consciência e a ciência, por isso quiseram nos impor a
idéia de que era preciso renunciar à idéia de sujeito para que a ciência
triunfasse, que era preciso sufocar o sentimento e a imaginação para
libertar a razão, e que era necessário esmagar as categorias sociais
identificadas com as paixões, mulheres, crianças, trabalhadores e
colonizados, sob o jugo da elite capitalista identificada com a
racionalidade.
A tentativa de eliminar o sofrimento imposto pelo corpo se mostra, portanto,
uma nova fonte de angústia e, ao eliminar o corpo, a modernidade acaba gerando resultados
dramáticos, que resultam, paradoxalmente, numa fonte de ansiedade e de angústia. Como
nos aponta Rubem Alves
70
uma civilização que seja construída com base na repressão ao corpo e na
transformação deste num meio para os seus próprios fins um processo
que abarca desde o sutil condicionamento científico do comportamento
até as mais brutais formas de tortura e violência consiste na
encarnação da morte e da loucura, estando condenada a se extinguir pela
abolição da própria vida.
Podemos completar este pensamento com as palavras de Ernesto Sabato
71
, ao
defender que
69
Op. cit., p.219.
70
A gestação do futuro, p.158.
71
O escritor e seus fantasmas, p.139.
67
entre outras catástrofes para o homem, essa proscrição acentuou sua
solidão. Pois a proscrição gnosiológica das emoções e das paixões, a
aceitação exclusiva da razão universal e objetiva converteu o homem em
coisa, e as coisas não se comunicam: o país onde é maior a comunicação
eletrônica é também o país onde maior é a solidão dos seres humanos.
Parece então que não resta alternativa senão “retornar ao corpo. Não outra
maneira de se abranger o significado da vida e de se descobrir em que consiste ser e agir
como um ser humano.”
72
Nesta ótica, a experiência estética surge como um dos caminhos
para promover uma intencionalidade que una, em de igualdade, o sensível e o inteligível
e que seja, desta forma, capaz de gerar novas experiências de corporeidade que possam
permitir ao homem uma nova consciência de si mesmo e do mundo. Como afirma João
Francisco Duarte Jr.
73
, numa passagem que serviu de epígrafe para o presente trabalho,
“talvez a valorização do sensível e a busca de sua integração com o inteligível possa
consistir num pequeno e primordial passo rumo a tempos menos brutais e permeados de
maior equilíbrio entre as muitas formas de vida conhecidas.”
72
Rubem Alves, op. cit., p.158.
73
O sentido dos sentidos, p. 219.
69
III – UMA FENOMENOLOGIA DA EXPERIÊNCIA ESTÉTICA: O
FENÔMENO ESTÉTICO
Aproximo-me cada vez mais do alvo a que vos
conduzo por trilhas pouco animadoras. Permiti que eu siga
por mais alguns passos, a fim de que a vista de um
horizonte mais livre possa, talvez, compensar as penas da
caminhada.
Schiller
Se não formos destruídos pelas forças atômicas,
será necessário empreender uma vasta síntese de elementos
contrários. a filosofia existencial-fenomenológica tenta
uma conciliação entre o objetivo e o subjetivo, entre a
essência e a existência, entre o absoluto e o relativo, entre
o intemporal e o histórico.
Ernesto Sabato
O belo não é um objeto, mas uma relação
harmônica entre o sujeito e a obra de arte. Martin Buber
afirmava que o mundo humano não se constitui nem dos
objetos que estão ao nosso redor e nem da consciência
pura, fechada em si. É a maneira de ser em relação ao
mundo, o hífen que liga o Eu ao seu mundo, que é a
essência de nossa realidade. É isto que encontramos na
experiência estética.
Rubem Alves
O objeto belo é aquele que realiza, no apogeu do
sensível, a adequação total do sensível e do sentido e que,
assim, suscita o livre acordo da sensibilidade e do
intelecto.
Mikel Dufrenne
70
Havíamos afirmado, na introdução do presente trabalho e tomando como ponto
de partida uma idéia do esteta francês Marc Jimenez, a intenção de se pensar uma
concepção de razão a partir da experiência estética. Paralelamente, afirmamos a
possibilidade de se compreender a experiência estética a partir da fenomenologia. Como
numa seqüência lógica de passos, dificilmente poderíamos deixar de entender que nossa
segunda tarefa aqui mencionada deve ser apresentada primeiramente à discussão sobre a
possibilidade de uma razão estética. Tentar expor a natureza da experiência estética; eis o
difícil propósito deste terceiro capítulo.
Apesar de ser uma idéia freqüentemente usada pela Estética, a definição da
experiência estética pode se mostrar, em alguns momentos, uma tarefa desconcertante e
intrincada. Como nos aponta Monroe C. Beardsley
1
,
existe, primeiramente, a dificuldade de se falar claramente sobre
experiências em si. (...) Uma experiência pode ter uma certa duração,
isso é certo. Mas o que mais pode ser dito corretamente a respeito? Este
é, certamente, o nosso primeiro desafio. Mesmo que seja permitido
aplicar certos predicados para experiências, podemos nos questionar se
estes serão suficientemente ricos e exatos para fornecer uma distinção
clara entre a experiência estética e outros tipos de experiência. Este é o
segundo desafio.
Portanto, além da própria dificuldade de se discorrer sobre a experiência
estética em si, devemos considerar o que Beardsley aponta como um segundo desafio:
como proceder para diferenciar a experiência estética de outros tipos de experiência. Isto
porque, certamente, ao assumirmos a possibilidade de se falar de uma experiência estética,
assumimos a existência de experiências não-estéticas. Na concepção adotada neste trabalho
e que será discutida no desenrolar das páginas seguintes, experiências de naturezas distintas
decorrem de diferentes formas de orientações da consciência humana, o que acaba por
1
Aesthetic Experience Regained, in The Journal of Aesthetics and Art Criticism, p. 5.
Original: “there is first the difficulty in talking intelligibly about experiences as such. (...) An experience can
have a certain duration; so much is clear. But what else can correctly be said about it? This is one puzzle. But
even if we are allowed to aply some predicates to experiences, it may also be questioned whether they will be
rich enough and exact enough to afford a reasonbly clear distinction between aesthetic experiences and other
kinds. That is the second puzzle.”
71
resultar em diferentes modos de percepção e, conseqüentemente, diferentes formas de
aparição do mundo. É foco maior deste capítulo, entretanto, apontar a diferença específica
entre a experiência estética e o que será descrito como experiência prática. Feito isso, um
terceiro e último tópico pretende reabilitar a experiência estética como um importante fator
de conhecimento. Diferentemente da crença amplamente aceita na modernidade, a
experiência estética não promove um tipo de conhecimento inferior ou que esteja em
desacordo com o conhecimento gerado por outras intencionalidades humanas. O que se
tentará demonstrar é que a experiência estética, mais precisamente aquela proporcionada
pela obra de arte, apresenta uma tentativa de interpretação e conhecimento do mundo e do
homem de ordem diferente daquela apresentada por outros sistemas simbólicos.
2
As
diferentes formas de orientação da percepção humana simplesmente geram conhecimentos
complementares e igualmente importantes. Antecipando a discussão a respeito da
experiência estética como forma de conhecimento podemos, mesmo que rapidamente,
apontar algumas de suas peculiaridades. Como nos explica Duarte Jr.
3
, a palavra estética
deriva da palavra grega aisthesis, “indicativa da primordial capacidade do ser humano de
sentir a si próprio e ao mundo num contexto integrado.” O mesmo autor acrescenta, em
uma outra obra sua, que a experiência estética pode ser entendida como “uma suspensão
provisória da causalidade do mundo, das relações conceituais que nossa linguagem forja.
Ela se com a percepção global de um universo do qual fazemos parte e com o qual
estamos em relação.”
4
Falar da relação que mantemos com os estímulos do mundo exige um ponto de
partida focado no questionamento da influência da orientação da consciência na percepção
e sua influência na experiência humana. Esta é, portanto, uma tarefa que envolve um
mergulho no pensamento que pretende a compreensão da forma como o homem significa
suas vivências e o mundo em que vive. Exige, também, que se considere a questão da
própria capacidade que o homem tem para conhecer o mundo. Em outras palavras: não
2
Ernst Cassirer ilustra esta diferença usando, como exemplo, a ciência. Em suas palavras: “como a arte e a
ciência se movem em planos totalmente diferentes, não podem contrariar-se ou contradizer-se. A
interpretação conceitual da ciência não exclui a interpretação intuitiva da arte.” (op. cit., p.277).
3
O sentido dos sentidos, p.13.
4
Fundamentos estéticos da educação, p.91.
72
existe interpretação da experiência estética que não esteja baseada numa certa
Weltanschauung.
A pluralidade de visões epistemológicas que podem embasar a questão parece
ter garantido, na história da Estética, um certo embate a respeito do caráter da experiência
estética. Freqüentemente a experiência estética é pensada por um viés objetivista, que
pretende ver no objeto estético o que poderíamos entender como o belo-em-si. A beleza
seria, na interpretação mais extrema deste viés, somente uma característica de determinado
objeto. Também é comum encontrarmos uma interpretação subjetivista, na qual o principal
componente da experiência estética estaria ligado a um processo psicológico subjetivo.
Vemos que o termo experiência estética está marcado, no desenrolar da sua trajetória, pelos
paradoxos mais dispares. No entanto, o que se tentará afirmar aqui é que, pautando-nos sob
os pressupostos da fenomenologia existencial, podemos descrever a experiência estética de
uma forma a minimizar mas certamente não evitar por completo a possibilidade de
embates acerca de seu caráter. Destarte, curiosamente, nossa apresentação da experiência
estética começa com uma breve descrição da fenomenologia existencial.
Dificilmente poderíamos apresentar uma interpretação do significado de
fenomenologia que fosse capaz de abarcar todos os significados que o termo veio
adquirindo desde sua primeira aparição no texto de J.H. Lambert Novo Organon, no qual é
interpretado como sendo “a teoria da ilusão sob suas diferentes formas.”
5
Indo ao encontro
de Dartigues, Abbagnano
6
nos confirma que “Lambert o usa como título da 4ª. Parte do seu
Novo Organon (1764) e entende por ele o estudo das fontes de erro. Aqui, a aparência de
que a Fenomenologia é descrição é entendida como aparência ilusória.” Lambert pretendia
que a fenomenologia se mostrasse uma “teoria das aparências” e que pudesse ajudar a
distinguir entre a aparências das coisas do que elas, de fato, são em si.
É talvez sob a influência de Lambert que Kant retoma por sua vez o
termo; ele o utiliza, em todo caso, em 1770 numa carta a Lambert onde o
que chama phaenomenologia generalis” designa a disciplina
propedêutica que deve, segundo ele, preceder a metafísica. Utiliza-o de
5
André Dartigues, op. cit., p.11.
6
Op. cit., p.416.
73
novo na célebre Carta a Marcus Herz de 21 de setembro de 1772, onde
esboça o plano da obra que, após uma longa gestação aparecerá em 1781
sob o título de Crítica da razão pura. Ora, a primeira secção da primeira
parte dessa obra deveria, segunda a carta de Herz, intitular-se: A
fenomenologia em geral. O fato de que Kant não tenha posteriormente
retido esse título e tenha preferido o de Estética transcendental retardou
sem dúvida alguma a carreira do termo. Mas nem por isso uma
fenomenologia está ausente da Crítica kantiana pois esta, ao se entregar
a uma investigação da estrutura do sujeito e das “funções” do espírito, se
por tarefa circunscrever o domínio do aparecer ou “fenômeno”. A
meta de tal investigação é, no entanto, menos a elucidação desse
aparecer do que a limitação das pretensões do conhecimento que, por
atingir apenas o fenômeno, não pode jamais se prevalecer de ser
conhecimento do ser ou do absoluto.
7
Sabemos que Kant defende, na sua Crítica da razão pura, que o conhecimento
humano é um conhecimento apenas dos fenômenos e não das coisas-em-si. Para ilustrar
esta discussão, o filósofo alemão introduz, nesta mesma obra, o termo noumenon (nômeno)
para designar a coisa-em-si ou, em outras palavras, a própria realidade e o termo
phenomenon (também phainómenon), que seria a única esfera do real à qual o homem teria
acesso. Nas próprias palavras de Kant, o phenomenon, ou fenômeno, é “o que não pertence
ao objeto em si mesmo, mas se encontra sempre na relação entre ele e o sujeito, e é
inseparável da representação que este tem daquele.”
8
Inspirado na visão kantiana Regis de Morais
9
nos explica que
o mundo visita os nossos sentidos e, através destes, faz-se numa oferenda
à nossa inteligência e à nossa sensibilidade, estimulando-as. Mas os
nossos sentidos, todos eles, têm limitações de alcance; além do que, entre
os sinais do entorno e os sentidos que temos, vibrações do ar,
entrecruzamentos de efeitos, distâncias enfim, um complexo de
interferências e dificultações. Assim, olhamos e vemos, mas vemos aquilo
a que nossa inteligência e nossa sensibilidade podem ter acesso.
Por esta razão lembrava o filósofo Immanuel Kant que temos
acesso ao fenômeno (phainómenon), no sentido daquilo que aparece no
âmbito das nossas humanas possibilidades. As “coisas em si” (o
nômeno), que com sua incidência sobre nossa sensação e nossa
percepção estimulam-nos a atingirmos os fenômenos, a estas realidades
em si mesmas o homem não tem acesso. Isto é desanimador e diz-nos que
7
André Dartigues, op. cit., p.11-12.
8
Apud N. Abbagnano, op. cit., p.415.
9
Arte: a educação do sentimento, p.37.
74
vivemos nutridos de irrealidade? Não. Isto esclarece que a verdade
humana, a sua realidade, é fenomênica.
Se a realidade é, de fato, fenomênica, ela não pode ser afirmada independente
de um certo sujeito e de um certo modo de intencionalidade
10
. Concedamos novamente a
palavra a Kant
11
: “se atribuo à rosa em si a cor vermelha, a Saturno os anéis ou a todos os
objetos externos em si a extensão, sem levar em conta a relação desses objetos com o
sujeito e sem limitar meu juízo a esta relação, então nasce a ilusão.” Certamente contraria-
se, com esta afirmação, a freqüente crença de que podemos espelhar uma realidade externa,
através dos nossos sentidos, em nossa consciência. Portanto, isto vai contra a idéia de que a
beleza nasce do espelhamento do belo-em-si, característica de determinado objeto, na
consciência do espectador.
Ao invés de nos aprofundarmos na questão do fenômeno descrita por Kant,
procuraremos, no entanto, apresentar, nas próximas linhas, uma pequena descrição do que
se entende hoje por fenomenologia. Vale salientar que não é intenção desde trabalho
apresentar as diversas acepções que o termo assumiu desde do século XVIII, mas sim
anotar alguns dos momentos mais marcantes do termo até a inauguração de uma forma de
entendimento da fenomenologia inaugurada com o filósofo alemão Edmund Husserl, a
quem é atribuída a elaboração da interpretação atualmente mais freqüente da
fenomenologia. Husserl anuncia sua noção de fenomenologia na obra Pesquisas Lógicas,
cuja primeira parte foi publicada em 1900 e sua continuação no ano seguinte, com o
propósito de apresentar uma filosofia cujo objeto de estudo fosse, por excelência, as
essências dos fenômenos como estes se apresentam para a consciência. Segundo o próprio
Husserl
12
a fenomenologia “não estuda os objetos que o especialista das outras ciências
considera, mas o sistema total dos atos possíveis da consciência, das aparições possíveis,
das significações que se relacionam precisamente com esses objetos.” Daí pode-se levantar
10
Conceito a ser melhor discutido à frente.
11
Apud N. Abbagnano, op. cit., p.415.
12
Apud André Dartigues, op.cit., p.71.
75
a hipótese de um parentesco da fenomenologia com um certo psicologismo
13
, para o qual
todas as significações da realidade estariam embutidas dentro da consciência. Mas, como
considera Luijpen
14
,
a resposta a essa objeção é simples, porque parte de dois postulados
insustentáveis. O primeiro consiste em que a psique, a consciência, é uma
intimidade fechada em si mesma, onde moram conteúdos que projetamos
injustamente sobre as “coisas”. O segundo supõe que “as coisas
mesmas” são realidades brutas... . Não existe, entretanto, uma
consciência fechada em si mesma, com significados que lhe pertencem;
ser-consciente constitui uma maneira de existir, de ser-no-mundo.
Notamos que o homem não é descrito, por Luijpen, somente como um ser-no-
mundo; esta é uma afirmação que a teoria materialista poderia fazer. O ser-no-mundo do
homem pode ser mais corretamente entendido como sendo um ser-consciente-no-mundo.
Esbarramos, ainda na citação acima, numa segunda idéia central: a de uma existência
humana. É na noção de existência que a fenomenologia busca um meio de pensar a
condição humana. Segundo Merleau-Ponty, “a existência no sentido moderno é o
movimento pelo qual o homem está no mundo, comprometendo-se numa situação física e
social que se torna sua visão do mundo.”
15
Vimos, portanto, que a consciência não se
encontra fechada sobre si mesma; ela está sempre direcionada para o mundo e pode ser
afirmada nesta relação, relação esta que é, por assim dizer, guiada pela intenção com que a
consciência aborda o mundo. Conseqüentemente, a própria apreensão da realidade estaria,
para a fenomenologia, vinculada à noção de intencionalidade
16
. Assim, a consciência
sempre aparece direcionada a um determinado objeto e o objeto se torna objeto em
decorrência da ação da consciência. Como resultado direto desta noção de intencionalidade
13
Segundo Luijpen, citando uma idéia do filósofo francês André Lalande: “falando em geral, designa-se pela
palavra ‘psicologismo’ a tendência a reduzir todos os problemas filosóficos, ou seja, todas as questões
lógicas, morais, estéticas e metafísicas a problemas psicológicos.”
14
Op. cit. p.79.
15
Apud Luijpen, op. cit., p. 52 (nota).
16
Segundo André Dartigues: “a expressão ‘na consciênciaé equívoca, que a consciência não tem interior,
já que ela própria está, em virtude de sua intencionalidade, junto às coisas e no mundo.” (op.cit., p.100).
76
temos um rompimento com a idéia de um sujeito fechado em si e, desta forma, isolado do
mundo. Deixemos que André Dartigues
17
nos explique que
o principio da intencionalidade é que a consciência é sempre
‘consciência de alguma coisa’, que ela só é consciência estando dirigida-
para um objeto (sentido de intendio). Por sua vez, o objeto pode ser
definido em sua relação com a consciência, ela é sempre objeto-para-um-
sujeito. Poderemos, pois, falar, seguindo Brentano, de uma existência
intencional do objeto na consciência. Isto não quer dizer que o objeto está
contido na consciência como que dentro de uma caixa, mas que tem
seu sentido de objeto para uma consciência, que sua essência é sempre o
termo de uma visada de significação e que sem essa visada não se
poderia falar de objeto, nem portanto de uma essência de objeto. Dito de
outra maneira, a questão ‘O que é o que é?’, que visa o sentido objetivo
ou essência, remete por sua vez à questão: ‘O que se quer dizer?’,
dirigida à consciência. Isso significa que as essências não têm existência
alguma fora do ato da consciência que as visa e do modo sob o qual ela
os apreende na intuição. Eis por que a fenomenologia, em vez de ser
contemplação de um universo estático de essências eternas, vai se tornar
a análise do dinamismo do espírito que aos objetos do mundo seu
sentido.
O caráter da consciência acaba se desdobrando, em última instância, como
sendo o do próprio conhecimento humano. Desta forma, a fenomenologia compreende o
próprio conhecimento humano relacionando-o com uma determinada forma de
intencionalidade. Todo conhecimento é, portanto, o conhecimento permitido pela
consciência. Sendo assim, Husserl, ao analisar o caráter da consciência, cuidadosamente
distingue o aspecto objetivo da experiência vivida, chamado por ele de noema, da visada da
consciência descrita como noese.
18
Para este filósofo, os dois termos são inseparáveis; não
existe o noema sem estar relacionado com a noese. Estamos entrelaçados com o mundo.
Enraizada na noção de intencionalidade aparece a forma como o mundo integra a
consciência. Em última análise, podemos inferir que ligado à intencionalidade aparece o
próprio ato humano de atribuir um sentido às suas vivências. Percebemos, pois, que o
17
Op. cit., p.24-25.
18
Como nos explica André Dartigues: “Husserl batizará com o nome de nóese a atividade da consciência e
com o nome de nóema o objeto constituído por essa atividade, entendendo-se que se trata do mesmo campo
de análise no qual a consciência aparece como se projetando para fora de si própria em direção a seu objeto e
o objeto como se referindo sempre aos atos da consciência” (Op. cit., p.26)
77
entendimento fenomenológico de sentido está intimamente correlacionado com as
experiências concretas do sujeito. Desta forma, entende-se que o sentido de um fenômeno
“se constitui... como aquilo que faz a unidade das experiências reais em sua diversidade
infinita, como o horizonte de universalidade do qual o sujeito se aproxima através de todas
as suas experiências.”
19
É nesta zona intermediária formada entre o sujeito e o objeto-de-sua-visada que
aparecem unificados a consciência e o mundo; ambos se constituem na medida em que se
relacionam. O mundo, conseqüentemente, pode ser afirmado como um mundo-para-
uma-consciência
20
. Neste sentido, Dufrenne
21
afirma que “mundo é o real ordenado à vida
singular de uma consciência perceptiva: real indeterminado, mas significante, porque
centrado na experiência de um ser singular”. Deve ficar claro, entretanto, que a
fenomenologia não pretende afirmar a não-existência de um mundo-em-si, independente do
homem, mas quer apenas suspender qualquer afirmação neste sentido para que se possa
melhor realizar uma investigação sobre o próprio funcionamento da consciência. Ademais,
podemos entender que “o mundo é a possibilidade de todos os mundos singulares.”
22
Segue, portanto, que a existência de um mundo autônomo, existente independentemente de
certa visada, é posto entre parênteses. Este processo é definido, por Husserl, como a
redução fenomenológica¸ entendida também por epoché fenomenológica. Segundo o
próprio Husserl
23
,
nós colocamos fora de ação a tese geral própria da atitude natural e
colocamos entre parênteses tudo quanto ela compreende; por isso, o
mundo natural inteiro que está constantemente ‘aqui para s’, ao
alcance da mão’ e que continuará a permanecer como ‘realidade’ para a
consciência ainda que nos agrade colocá-lo entre parênteses. Fazendo
19
André Dartigues, op. cit., p.68.
20
Como anota Luijpen: “ora, um mundo-sem-sujeito é um mundo de que nenhum sujeito tem consciência, do
qual nenhum sujeito fala realmente, com o qual nenhum sujeito trata realmente, em que nenhum sujeito vive
realmente e que não é afirmado realmente por nenhum sujeito. Um mundo assim evidentemente jamais pode
ser afirmado. Daí conclui Hume que nunca afirmamos outra coisa senão nossas impressões.” (op. cit.,p.133)
Ainda segundo Luijpen, o homem, “não pode, entretanto afirmar nenhum ‘ser’ fora de sua própria presença
como sujeito existente; com outras palavras, o homem jamais afirma alguma coisa que o seja o ser-para-o-
homem.” (op. cit., p.66)
21
O poético, p.182.
22
Ibidem, p.183.
23
Apud N. Abbagnano, op. cit., p.320.
78
isso, como está em minha plena liberdade fazê-lo, eu não nego o mundo,
como se fosse um sofista, o ponho em dúvida o seu ser-aqui, como se
fosse um cético; mas exerço a epoché fenomenológica, que me veta
absolutamente todo juízo sobre o espaço temporal existente.
Vemos que a redução fenomenológica visa superar a crença de que os objetos
com os quais determinado sujeito se relaciona existem tais como ele os vê. Deve-se,
afirmar, sob a ótica fenomenológica, que tanto mundo, na sua dimensão de realidade, de
exterioridade ou do próprio caráter do objeto percebido são constituídos através da
consciência intencional. Mesmo correndo o risco de se alongar tanto em quantidade quanto
em extensão das citações, devemos deixar que Dartigues
24
conclua que
se o objeto é sempre objeto-para-uma consciência, ele não será jamais
objeto em si, mas objeto-percebido ou objeto-pensado, rememorado,
imaginado etc. A análise intencional vai nos obrigar assim a conceber a
relação entre a consciência e o objeto sob uma forma que poderá parecer
estranha ao senso comum. Consciência e objeto não são, com efeito, duas
entidades separadas na natureza que se trataria, em seguida, de r em
relação, mas consciência e objeto se definem respectivamente a partir
desta correlação que lhe é, de alguma maneira, co-original. Se a
consciência é sempre “consciência de alguma coisa” e se o objeto é
sempre “objeto para a consciência”, é inconcebível que possamos sair
dessa correlação que, fora dela, não haveria nem consciência nem
objeto. Assim se encontra delimitado o campo de análise da
fenomenologia: ela deve elucidar a essência dessa correlação na qual
não somente aparece tal ou qual objeto, mas se estende o mundo inteiro.
Embora os primeiros escritos de Husserl – até a publicação de Meditações
Cartesianas, em 1929 se aproximem de um certo idealismo uma vez que a análise da
consciência é primordialmente colocada sobre o sujeito
25
,
em seus últimos escritos e... sob a influência de Heidegger, Husserl
acentua ao contrário a própria correlação consciência-mundo, que será
bastante fácil de traduzir por ser-no-mundo. Se o verdadeiro resíduo da
redução fenomenológica é essa correlação, e não o Sujeito transcendental
ou ‘sujeito puro’ que aproximava Husserl dos neokantianos, a
fenomenologia poderá então se tornar o estímulo das novas filosofias da
24
Op. cit., p.26.
25
Cf. André Dartigues, op. cit., p.31.
79
existência. A evidência primeira, o terreno absoluto para o qual cumpre
voltar não será mais o sujeito, mas o próprio mundo tal como a consciência
o vive antes de toda elaboração conceptual.
26
Ao acentuar a correlação entre consciência e mundo, a fenomenologia mostra o
intuito de superar uma estanque oposição entre objetivismo e idealismo (ou subjetivismo).
Sob a ótica fenomenológica, não cabe mais buscar o conhecimento na realidade exterior
sem levar em consideração eventuais distorções que nossa consciência pode imprimir nesta
realidade, como propõem os objetivistas, que supõem a consciência como um reflexo puro
dos dados do mundo. Tampouco se deve entender os objetos materiais como meras
representações do nosso espírito, ou seja, como uma idéia. A fenomenologia existencial
acaba por propor um posicionamento conciliador no embate entre objetivistas e idealistas
ou, nas palavras usadas por Luijpen, entre materialistas e espiritualistas. Para este filósofo,
estes dois sistemas “testemunham claramente as dificuldades perante as quais se encontra o
pensamento ao pretender exprimir o que é o homem”
27
. Já a fenomenologia existencial
procura justamente “valorizar a realidade que materialistas e espiritualistas viram, sem
contudo cair na unilateralidade desses dois sistemas.”
28
Esta é uma afirmação de natureza delicada e merecedora de nossa atenção. Por
uma questão expositiva iremos, primeiramente, apontar as linhas gerais do materialismo
para que, num segundo momento, possamos discutir a questão do idealismo até, por fim,
chegar-se à proposta de reconciliação entre ambos defendida no texto de Luijpen e, de
forma geral, pela própria fenomenologia.
Uma vez que existe um grande número de acepções possíveis do termo matéria,
a tarefa de descrição do materialismo é, sem dúvida, muito problemática. No entanto,
grosso modo, o materialismo entende a matéria como um imperativo responsável por
constituir os processos pessoais e culturais. O materialismo defende, assim, que o homem é
resultado de influências físicas, fisiológicas e culturais, atribuindo, em sua versão mais
26
Ibidem. p.32.
27
Op. cit. p.32.
28
Ibidem, p.32-33.
80
radical, a causalidade exclusivamente à matéria. Embora a afirmação materialista contenha
uma noção valiosa que deve ser preservada, Merleau-Ponty
29
pondera que
não sou o resultado ou cruzamento das múltiplas causalidades que
determinam meu corpo ou meu “psiquismo”; não posso pensar-me como
um aparte do mundo, como o simples objeto da biologia, da psicologia e
da sociologia, nem fechar-me sob o universo da ciência. Tudo o que sei
do mundo, ainda que pela ciência, eu o sei a partir de uma visão minha
ou de uma experiência do mundo sem a qual os símbolos da ciência não
significariam nada.
O materialismo não inclui, nos seus postulados, uma dimensão essencial do
homem: a dimensão do ser-consciente do sujeito. Isso não significa, entretanto, que o
problema da consciência esteja excluído completamente do pensamento materialista; o
materialismo, ao reduzir a consciência a um resultado das causalidades materiais, apenas
promove um certo estreitamento da acepção da consciência. Como nos explica o filósofo
Albert Dondeyne
30
,
o materialismo, que quer reduzir todo o ser a um jogo de partículas em
movimento, explicáveis apenas causalmente, não pode ser refutado por
conceitos a priori. Não contém uma contradictio in terminis, mas sim uma
contradictio in actu exercito, i.e.. encontramos no materialismo, ao lado
do sistema do mundo material, com suas leis causais, a afirmação do
mundo e a prática consciente da explicação causal, e isto é um ato de
consciência, que, visto em sua estrutura essencial, está acima do
determinismo causal.
Ocupando uma posição distinta da do materialismo, devemos lançar nossa
atenção para o subjetivismo (na palavra usada por Luijpen: espiritualismo). Se “para o
materialista, o sujeito consciente não é uma realidade digna de menção; para o
espiritualista, o pensamento sobre a realidade começa com a afirmação do sujeito.”
31
Assim, no seu discurso mais radical, o espiritualismo acaba por defender que a realidade é
29
Apud Luijpen, op. cit., p. 35 (nota).
30
Apud Luijpen, op. cit., p.36-37 (nota).
31
Luijpen, op. cit., p.40.
81
fruto apenas dos processos da consciência humana. No entanto, na consideração de
Luijpen
32
,
esse modo de tornar absoluta a importância do sujeito equivale, no
monismo espiritualista, à redução do ser das coisas materiais ao ser do
sujeito. Portanto, nessa corrente, a “destotalização da realidade” se faz
na direção completamente oposta à que é seguida pelo materialismo.
Enquanto neste o significado da subjetividade é simplesmente omitido ou,
no máximo, visto como indigno de ser mencionado, no monismo
espiritualista desaparece a densidade das coisas materiais nos fantasmas
dos conteúdos de consciência.
Se o materialismo acaba “reduzindo o mundo” ao não levar em consideração a
capacidade de reinvenção da consciência humana, o idealismo “reduz” o mundo porque “se
o torna certo, é a título de pensamento ou consciência do mundo e como simplesmente
correlativo à nossa consciência, de modo a tornar-se imanente a ela, suprindo-se assim a
asseidade das coisas.”
33
Desta forma, como pondera Luijpen
34
,
o monismo espiritualista vê-se obrigado a sacrificar a identidade do
“pequeno” sujeito ao Sujeito Absoluto. No lugar do “pequeno” sujeito,
que é todo sujeito real, aparece o sujeito “grande” e impessoal, de que os
muitos e distintos sujeitos não passam, quando muito, de
particularizações, momentos dialéticos ou funções.
Pelo ângulo puramente espiritualista “evidencia-se logo serem as qualificações
do Sujeito Absoluto tão fantásticas que acabam coincidindo com o que tradicionalmente se
designa com o ‘nome’ Deus”.
35
Ou seja, no conceito de Sujeito Absoluto aparece também
subentendido uma certa divinização do sujeito.
A conseqüência disso é que o homem julga poder falar com autoridade
“divina” e pensa agir com uma garantia “divina” de valor. tanta
importância a suas convicções e asserções que se incapacitado, em
princípio, de escutar outrem e toma como crime de lesa-majestade
qualquer contestação de sua “verdade”
36
.
32
Op. cit., p.40.
33
Merleau-Ponty apud Luijpen, op. cit., p.40 (nota).
34
Idem, p.41.
35
Ibidem, p.41.
36
Idem, p.42.
82
Ao serem tomados de forma isolada, tanto o materialismo quanto o
espiritualismo podem ser acusados de apresentar uma visão parcial do mundo. Porém, não
se pode negar o fato de que ambos possuem noções valiosas. O que se busca, portanto, é
um caminho médio capaz de valorizar as interpretações justas de ambos sem cair num
extremismo qualquer
37
. Este consistiu, como já dito, o intuito da fenomenologia existencial.
O que esta nos diz, em última análise, é que se mostra inútil assentar a busca do
conhecimento exclusivamente no espírito ou no mundo material. Edgar Morin
38
, comenta,
provavelmente sob influência da fenomenologia, que
o conhecimento não tem fundamento, no sentido literal do termo, mas
possui várias fontes e nasce da confluência destas, no dinamismo
reflexivo de um circuito de onde emergem juntos sujeito e objeto; esse
circuito põe em comunicação o espírito e o mundo, inscritos um no outro,
numa co-produção dialógica da qual participam cada um dos termos e
dos momentos do ciclo.
Chegamos, enfim, à principal contribuição que a fenomenologia pode dar à
discussão sobre a experiência estética. Buscar a justificativa para a constituição de uma
experiência estética somente no objeto estético seria desconsiderar o sujeito real, que
constitui, através da sua existência, o próprio mundo e os objetos com os quais se relaciona.
Reduzir a explicação da experiência estética à sua dimensão subjetiva acaba, por sua vez,
destituindo objeto estético de sua própria materialidade. Da mesma forma como se tentou
demonstrar que o uso da expressão “na consciência” é equivocado, uma vez que a
consciência se encontra imbricada nas coisas e, assim, no mundo, por meio da
intencionalidade, não cabe procurar um estado puramente subjetivo que poderia ser
caracterizado como estético, como se a beleza se constituísse por si mesma. Em outras
palavras, a gênese da beleza não está nem exclusivamente fora do homem, nem
exclusivamente dentro dele. Podemos, desta forma, embasados na fenomenologia
37
Segundo Luijpen: “concebido em sentido subjetivista, o mundo seria entregue à arbitrariedade do sujeito,
cessando, portanto, de ser realidade objetiva. Se a realidade do mundo fosse pensada em sentido objetivista, o
sujeito seria destruído como ‘afirmação’ existente do mundo, deixando, pois, de ser um sujeito real.” (op. cit.,
p.65).
38
O método 3: O conhecimento do conhecimento, p.256-257.
83
existencial, entender como fenômeno estético o fruto conjunto de determinada
intencionalidade que um sujeito dirige a um objeto e de uma certa resposta deste objeto à
intencionalidade que lhe foi lançada. O belo é, neste entendimento, constituído na unidade
sujeito-objeto que, diga-se de passagem, pode ser quebrada com a intenção de se
cometer erros ou com fins didáticos. Sendo assim, a experiência estética será entendida,
doravante neste trabalho, como um fenômeno de natureza relacional e como uma forma de
apreensão do mundo norteada por uma intencionalidade estética.
Corriqueiramente, no entanto, a beleza é acreditada como uma qualidade
objetiva que determinados objetos ou pessoas podem, ou não, possuir. Mas se isso fosse
verdade, deveria ser possível apontar as características que tornam determinado objeto belo.
Apesar de inúmeras tentativas, provavelmente podemos falar com segurança que tal tarefa
nunca será lograda de forma unânime. Como nos explica Duarte Jr.
39
, “se o belo fosse uma
propriedade que alguns objetos possuem, então todos, contemplando-os, deveriam
igualmente considerá-los belos. Mas isso não ocorre: aquilo que para mim é belo, para
outro pode não ter beleza alguma.” O que faz com que o próprio autor conclua, afastando-
se do senso comum, que “o belo não é uma propriedade dos objetos.”
40
Uma outra
costumeira saída reside em se argumentar que o belo reside inteiramente na subjetividade
do indivíduo. Como ilustração desse entendimento podemos lembrar a freqüente afirmação
de que “a beleza está nos olhos de quem vê”. No entanto, se tal fosse o caso, não
precisaríamos ir a teatros, exposições ou concertos para termos uma experiência estética;
bastaria evocar uma beleza que fosse produzida “na nossa cabeça”. Como vimos,
diferentemente do que quer fazer crer o senso comum, a beleza é fruto, sim, de uma certa
intencionalidade, ou seja, de uma maneira com qual o sujeito experimenta sua relação com
determinado objeto. Podemos entender, desta forma, que “a beleza se encontra... ‘entre’ o
homem e o mundo, entre a consciência e o objeto (estético). A beleza habita a relação.”
41
Se o belo nasce do encontro entre um objeto que pode ser estendido à idéia
de um mundo-enquanto-objeto-relacional – e a consciência humana, isto significa que todas
as coisas e, em última instância, o próprio mundo, são potencialmente estéticos, mesmo que
39
Fundamentos filosóficos da educação, p.92.
40
Idem, p.92.
41
Ibidem, p.93.
84
certas características das coisas as tornem mais ou menos propícias à experiência estética.
Vale salientar, inclusive, ser muito mais freqüente que determinado objeto não se preste a
uma percepção estética
42
. Percebe-se, portanto, que a afirmação do belo a partir do encontro
entre consciência e objeto não significa a adoção de uma visão idealista. Dizer que o
mundo é potencialmente estético tampouco equivale à afirmação de que as coisas com que
nos relacionamos possuem, por si só, uma dimensão transcendental responsável pelo
estabelecimento de uma experiência estética.
Neste sentido, podemos compreender que a própria natureza pode ser
apreendida esteticamente. Comenta Dufrenne
43
:
ora, se diante da natureza a experiência estética não tem o caráter de
pureza e rigor que pode ter diante da obra de arte, se a contemplação não
é mais distraída, ao menos é mais embaraçada por elementos estranhos,
menos bem fixada do que por um objeto preciso, isso também depende do
objeto que a ela se propõe. Esse objeto não é delimitado exatamente como
o quadro é delimitado pela sua moldura, a sinfonia pelo silêncio que a
prepara, o poema pela página na qual eu leio e pelo tempo de minha
leitura. Sua forma não é plena e isso não porque o seu contorno não é
nítido mas porque, em si mesmo, ele não está fixado e imutável: a luz
muda, as nuvens passam, cobre-se o horizonte, sem tomar em
consideração, à diferença das artes de movimento, o efeito estético...
O mesmo autor alerta ainda para o perigo de se considerar a experiência estética
natural um “parente pobre” da experiência estética proporcionada pela arte. Isto porque,
mesmo não sendo humanamente produzido para ser belo, o belo natural nos permite sermos
“envolvidos e integrados no devir natural do mundo”
44
, uma vez que “exalta os aspectos
sensíveis do mundo, cuja imprevisibilidade e prodigalidade são então as virtudes
dominantes, sem que se seja tentado a procurar nele o rigor de uma organização
premeditada.”
45
42
Segundo Dufrenne: “é... necessário que o objeto se preste a essa estetização pois, embora seja verdade que
o objeto é objeto estético para e por uma consciência, nós nos recusamos a reduzir essa dualidade a um
monismo que aqui seria inevitavelmente idealista.” (Estética e filosofia, p.61).
43
Op.cit., p.61-62.
44
Estética e filosofia, p.63.
45
Ibidem, p.62.
85
Embora o potencial estético não seja, portanto, exclusividade da obra de arte, é
comum que a reflexão sobre o objeto estético a privilegie
46
, o que será o que o leitor
perceberá nas próximas páginas. Seria o caso, portanto, de se tentar propor uma definição
de arte? Não dúvida que esta é uma tarefa de elevada dificuldade que nos faz, inclusive,
levantar a hipótese de ser este um empreendimento fadado ao insucesso. No entanto,
segundo Frayze-Pereira
47
,
de qualquer maneira nossas incertezas acabam se acalmando quando,
após ter buscado saber o que é arte na Teoria da Arte, percebemos que o
campo semântico do termo é, ele próprio, incerto. E que os teóricos
apontam como um dos aspectos da própria Arte as dificuldades que
apresenta ao enquadramento numa definição fixa, positiva. Isto é, os
teóricos encontram dificuldades para delimitar as fronteiras da própria
Arte, pois, de um lado, a Arte não teve sempre, nem em toda a parte, o
mesmo estatuto, o mesmo conteúdo e a mesma função. O que se verifica
ainda hoje... De outro lado, independentemente de qualquer pressuposto
sociocultural, desconfia-se hoje muito da palavra arte. O campo
recoberto pelo conceito é extenso: entre a obra-prima e o esboço, o
desenho do mestre e a garatuja infantil, o som e o ruído, o canto e o grito,
o objeto e o acontecimento, é difícil traçar uma fronteira e até
poderíamos nos perguntar se vale a pena traçar essa fronteira.
O mesmo autor prossegue citando Dufrenne, quando este último defende que
“não são apenas as teorias da arte que hesitam em atribuir-lhe uma essência, mas a própria
prática dos artistas é que desmente a todo momento qualquer definição.”
48
Não é raro que a
tentativa de definição da arte acabe gerando erros e más-interpretações da atividade
artística. Deixemos que novamente Frayze-Pereira
49
nos explique ser
um erro muito freqüente... considerar a Arte ou admitir como conceito
geral e definidor da Arte um programa particular de arte, uma poética.
Segundo o grande esteta italiano Luigi Pareyson, esse engano é freqüente
e consiste em tomar a parte pelo todo, por exemplo, quando se diz que a
Arte é expressão do eu profundo do artista, sem se dar conta que essa é
46
Segundo Dufrenne: “A reflexão sobre o objeto estético sempre privilegia a arte. É sobre a arte que ela
melhor se pode exercer porque é a arte que melhor exercita o gosto e provoca a percepção estética mais pura.”
(op. cit.p.60)
47
Arte, dor: inquietudes entre estética e psicanálise, p.38.
48
Dufrenne apud Frayze-Pereira, op. cit., p.39.
49
Op. cit., p.39.
86
uma idéia que surge com o Romantismo no começo do século XIX, e não
antes.
Sendo assim, a natureza do objeto estético dificilmente pode ser compreendida
a partir do que é costumeiramente entendido como sendo uma obra de arte. Como afirma
Jimenez
50
, citando uma idéia de Nelson Goodman,
o importante não é que uma obra seja julgada bela, agradável ou bem-
executada conforme a idéia que tradicionalmente temos de arte; o
essencial é que ela funcione esteticamente. (...)
A questão primordial não é mais “O que é a arte?” mas sim:
“Quando arte?” E a resposta do filósofo renova ao mesmo tempo o
programa da estética analítica: arte quando uma coisa funciona
simbolicamente como obra de arte.
Isso significa que um objeto de arte não é em si mesmo uma obra
de arte; torna-se arte se assim decido vê-lo ou se o contexto me leva a
isso. Um quadro de Rembrandt usado para tapar um vidro quebrado
cessa de funcionar como uma obra de arte.
Será que isso quer
dizer que não há ser do fenômeno e que o quadro cessa de existir quando
a porta do museu se fecha após o último visitante? De forma alguma: o
seu esse não é um percipi, não mais que para um objeto qualquer; é
necessário dizer apenas que ele então cessa de existir como objeto
estético e só existe como coisa, como obra se quisermos, isto é, como
objeto estético simplesmente possível.
51
Desta forma, Dufrenne
52
conclui que
esta identificação do fenômeno com o objeto estético talvez permita
aclarar o liame que a intencionalidade forja entre o objeto e o sujeito.
Realmente, é preciso se interrogar sobre o estatuto do objeto estético.
Defini-lo como algo do sensível, será dizer que ele é produzido pela
consciência que o apreende? Sim e não: o sensível é o ato comum daquele
que sente e do que é sentido. Isto significa, em primeiro lugar, que o
objeto estético só se realiza na percepção, uma percepção que esteja
atenta a lhe fazer justiça: diante do beócio que lhe concede um olhar
indiferente, a obra de arte ainda não existe como objeto estético. O
50
Op. cit., p.369.
51
Mikel Dufrenne, op. cit., p.82.
52
Idem, p.82.
87
espectador não é somente a testemunha que consagra a obra, ele é, à sua
maneira, o executante que a realiza; o objeto estético tem necessidade do
espectador para aparecer.
A obra só se constitui inteiramente no que tange ao seu sentido, portanto,
através do espectador. Daí concluir-se que a qualidade do sentimento que um espectador
experimenta frente a uma obra de arte é pessoal e única.
Existe, no entanto, a possibilidade de o espectador não se permitir vivenciar
uma experiência estética. Um motivo muito comum é o não-aprendizado, por parte do
espectador, do código expressivo da obra; a falta de familiaridade com o objeto artístico
garantiria, neste caso, o malogro no estabelecimento de uma relação estética. Existe
também, os “casos de neurose profunda, de pré-psicose ou mesmo de psicose, em que os
planos de realidade se confundem, e o indivíduo acaba por mergulhar inteiramente no
universo da obra.”
53
Isto porque, a experiência pode, potencialmente, trazer à tona
conteúdos inconscientes que exigem, por sua vez, um “eu” estruturado para mediar este
encontro. Como nos explica Duarte Jr.
54
, “naqueles casos patológicos, porém, isto não
acontece, e o dique do ‘eu’ se rompe, fazendo confundir a turbulência do inconsciente com
a realidade da obra.” No entanto, mais ligado aos interesses do presente trabalho é a
reflexão sobre um diferente empecilho para o estabelecimento de uma relação estética: a
incapacidade, por parte do espectador, de substituir a percepção prática pela estética.
Anteriormente, definimos a experiência estética por si mesma, a partir dos pressupostos da
fenomenologia existencial. Faz-se agora necessário discutir a experiência estética em
oposição à experiência prática.
O que seria, enfim, a experiência prática? Como aponta Duarte Jr.
55
, “na vida
diária interroga-se o aparecer dos objetos segundo propósitos práticos. A intelecção orienta
nossa percepção em torno das funções dos objetos e de suas relações.” A percepção prática
busca sempre desvelar a verdade sobre determinado objeto ou determinada situação,
resultando num predomínio quase que total do funcionamento da intelecção sobre o
sentimento e a imaginação. Já na percepção estética, observamos a suspensão dos
53
João Francisco Duarte Jr., O que é beleza, p.88.
54
Idem, p.88.
55
Fundamentos estéticos da educação, p.91.
88
propósitos práticos e a percepção cessa de ser predominantemente utilitária. Resulta, pois,
um maior equilíbrio entre o pensar e o sentir, entre o impulso inteligível e o impulso
sensível. Enquanto a percepção prática busca a verdade sobre o objeto, a percepção estética
busca a verdade do objeto, que reside nele mesmo e não pode ser desvinculada deste
objeto
56
.
Não é raro encontrarmos, a partir de Kant, autores que definem a experiência
estética como sendo uma experiência desinteressada, já que ela não é orientada por
interesses práticos. Defensor desta idéia, Dufrenne
57
afirma que “toda percepção estética,
na medida em que é desinteressada, realiza a apoteose do sensível que é a própria
substância do objeto estético.” Mais adiante na mesma obra, este autor aponta ainda para o
fato de que
o primeiro sentido do objeto estético, e que é comum ao objeto musical e
ao objeto literário ou pictórico, não é um sentido que apela para o
discurso e que exercita a inteligência como o objeto ideal que é o sentido
de um algoritmo lógico. É um sentido totalmente imanente ao sensível
que, portanto, deve ser experimentado no nível da sensibilidade e que,
contudo, cumpre bem a função do sentido, a saber: unificar e
esclarecer.
58
Freqüentemente é traçado entre as idéias de percepção prática e de percepção
estética do mundo um paralelo com a descrição que o filósofo Martin Buber faz das duas
atitudes que um homem pode manter perante o mundo: a atitude EU-ISSO e a atitude EU-
TU. Aproximando-se da fenomenologia, “Buber afirmava que o mundo humano não se
constitui nem dos objetos que estão ao nosso redor e nem da consciência pura, fechada em
si. É a maneira de ser em relação ao mundo, o hífen que liga o Eu ao seu mundo, que é a
essência de nossa realidade.”
59
Deve-se, entretanto, salientar que, para Buber, os termos
ISSO e TU não são necessariamente indicativos de objetos ou pessoas, mas são, sim,
56
Segundo Dufrenne: “enquanto a percepção ordinária – sempre tentada pela intelecção desde que tem acesso
à representação procura uma verdade sobre o objeto, que eventualmente um arritmo à praxis, e a procura
em torno do objeto, nas relações que o unem aos outros objetos; a percepção estética procura a verdade do
objeto, assim como ela é dada imediatamente no sensível.” (op. cit., p.80).
57
Op. cit., p.62.
58
Idem, p.92.
59
Rubem Alves, op. cit., p.38.
89
definidos a partir da atitude que determinado homem estabelece para com um determinado
objeto relacional.
O relacionamento EU-ISSO subentende nossa atitude cotidiana (prática)
perante o mundo. Aqui a consciência toma-o como objeto de seu saber e
de sua ação, interrogando-o a respeito de causas e efeitos, utilidades e
usos, subordinações e leis. Em EU-ISSO a consciência sabe-se distinta,
separada das coisas: o sujeito conhece seus “limites” e subordina os
objetos a si. Nesta esfera o homem age, construindo e alterando o mundo;
nesta esfera se dão a ciência, a filosofia e todo o saber e agir humanos.
na relação EU-TU as coisas não se subordinam à consciência, mas
mantêm com ela uma relação “de igual”, constituindo, homem e mundo,
os dois pólos de uma totalidade. Aqui não se pode falar de um sujeito que
investiga e de um objeto que é conhecido, pois entre ambos (EU e TU)
não relações de subordinação. Em EU-TU a presença total do EU
frente ao mundo e vice-versa: todas as formas possíveis de a consciência
apreender o mundo estão presentes no momento dessa relação. Nesta
esfera ocorre, então, a experiência estética.
60
A experiência estética parece permitir uma percepção do mundo peculiar,
revelando ser, assim, uma forma específica de abertura para o mundo. Numa feliz
comparação, Frayze-Pereira
61
aproxima a experiência estética da experiência psicanalítica
ao afirmar que ambas são “uma silenciosa abertura ao que não é nós e que em nós se faz
dizer.” Neste sentido, podemos entender a experiência estética como um êxtase no qual são
suspensas as vivências corriqueiras e no qual o homem encontra a possibilidade de
vivenciar os impulsos eróticos reprimidos no dia-a-dia.
62
Este êxtase estético,
preferivelmente de caráter provisório, é uma suspensão da vida cotidiana e,
conseqüentemente, da experiência ordinária, na qual, segundo Ernst Cassirer
63
,
associamos os fenômenos segundo a categoria de causalidade ou
finalidade. Conforme estivermos interessados nas razões teóricas ou nos
efeitos práticos das coisas, pensamos nelas como causas ou meios. Desse
60
João Francisco Duarte Jr. Fundamentos estéticos da educação, p.90.
61
João Augusto Frayze-Pereira, Arte e dor, p.24.
62
Seria esperado, portanto, numa situação sadia, uma alternância entre intencionalidade estética e
intencionalidade prática, resultando um princípio de complementaridade e equilíbrio. No entanto, a atual
sociedade, amplamente moldada por fundamentos práticos, parece ter garantido a manutenção de um grande
número de indivíduos numa intencionalidade prática.
63
Op. cit., p.277-278.
90
modo, normalmente perdemos de vista a sua aparência imediata, até não
podermos mais vê-las face a face. A arte, por outro lado, ensina-nos a
visualizar as coisas, e não apenas conceitualizá-las ou utilizá-las.
Sobre as particularidades das duas formas de intencionalidade aqui em
discussão, Duarte Jr.
64
defende que “em cada uma delas a consciência, colocando-se de
maneira peculiar, capta os objetos de maneira também peculiar. Em cada uma delas
diferentes aspectos do mundo são relevados e revelados.” E, em última análise, o que uma
experiência estética
provoca em nós é uma formulação de nossas concepções de sentimento e
nossas concepções da realidade visual, factual e audível, em conjunto.
Ela nos formas de imaginação e formas de sentimento,
inseparavelmente; quer dizer, clarifica e organiza a própria intuição. É
por isso que ela tem a força de uma revelação e inspira um sentimento de
profunda satisfação intelectual, embora não suscite qualquer trabalho
intelectual consciente (raciocínio). A intuição estética apreende a forma
maior e, portanto, a significação principal, imediatamente; não
necessidade de trabalhar através de idéias menores e implicações
cerradas em primeiro lugar sem uma visão do todo, como no raciocínio
discursivo, onde a intuição total de relacionamento vem na conclusão,
como um prêmio. Na arte, é o impacto do todo, a revelação imediata da
significação vital, que age como chamariz psicológico de uma longa
contemplação.
65
Vimos, portanto, que, na experiência estética, diferentes aspectos da realidade
são revelados e apresentam-se para o nosso conhecer. No entanto, nossa visão tipicamente
moderna promoveu um entendimento que considerava este tipo peculiar de conhecimento
“um tipo de conhecimento sensível, confuso e inferior ao racional, claro e distinto, isto é,
ao conhecimento voltado para a verdade.”
66
Assim, desde o surgimento da Estética como
disciplina no século XVIII com Alexander Gottlieb Baumgarten, o conhecimento que é
fruto da experiência estética é, de praxe, colocado num plano inferior ao conhecimento
lógico. Como nos explica Marc Jimenez
67
, “o que é que, desde Baumgarten, impede a
estética de ser posta rigorosamente no mesmo plano do conhecimento lógico? A
64
Fundamentos estéticos da educação, p.90.
65
Susanne Langer, Sentimento e forma, p.412-413.
66
Frayze-Pereira, Op. cit., p.31
67
Op. cit., p.368.
91
sensibilidade e as emoções.” No entanto, se considerarmos tanto a sensibilidade quanto as
emoções como uma forma de conhecimento ou uma forma específica de significar a
existência, distinta daquela inerente à percepção prática, a arte surge, ao lado do mito e da
ciência, como um importante sistema simbólico que visa, ao mesmo tempo, interpretar e
construir o mundo. Para que seja possível uma melhor compreensão da arte como uma
forma de conhecimento faz-se necessário, portanto, discutir a própria questão mais ampla
do símbolo como mediador entre o homem e o mundo. Como vimos anteriormente, um
ponto fundamental tanto para a própria fenomenologia quanto para o presente trabalho, é a
rejeição da idéia de que o mundo nos é dado de forma inalterada pela percepção sensorial.
O tema que deve ser discutido não é mais o espelhamento da coisa-em-si na consciência,
mas sim a formação do sentido da coisa-em-si. E este sentido é fruto de um encontro entre
o sujeito e o objeto e não pode abordado sem a consideração dos sistemas simbólicos, uma
vez que o homem não recebe dados brutos do meio ambiente, mas marca, através de
processos mentais pessoais, o caráter da sua relação com o mundo; a experiência humana é
sempre marcada pela atividade simbólica.
68
Não se pode falar, portanto, em uma percepção
puramente sensorial do mundo, mas sim de uma percepção que depende, além da estrutura
física, em larga escala da estrutura simbólica que um determinado homem tem à sua
disposição.
Em seu livro A estrutura do comportamento, publicado em 1942, Merleau-
Ponty aponta a existência de três ordens: a ordem humana, a ordem física e a ordem vital. A
ordem humana é definida, pelo filósofo, justamente como sendo uma estrutura simbólica. O
equilíbrio entre estas ordens
não se verifica como conservação de uma ordem dada (ordem física),
nem como adaptação através das virtualidades do organismo às
condições atuais (ordem vital), mas em virtude da possibilidade de
ultrapassar a imediatez das situações e criar uma situação nova tendo em
vista algo que está ausente. O mbolo justamente é o que exprime esse
tipo de estruturação onde a ação se orienta para o virtual, orientação que
se presentifica na percepção, na linguagem e no trabalho. A “estrutura
68
Segundo Susanne Langer, “foi Cassirer quem, sobretudo, reconheceu o papel que representa a
simbolização, ou a expressão simbólica, na formulação de coisas e eventos e na ordenação natural de nosso
ambiente como um ‘mundo’.” (Ensaios filosóficos, p. 63-64).
92
simbólica” define-se, então, por um movimento de transcendência que
confere à existência humana o poder de ultrapassar o dado, encontrando
para ele um sentido novo através de uma ação orientada em função do
possível.
69
Vale ainda salientar que a definição precisa de símbolo é, sem dúvida, um
empreendimento de grande dificuldade, uma vez que o símbolo é, em maior ou menor grau,
um processo de abstração e que existem diferentes maneiras de se fazer abstrações.
Conseqüentemente, a palavra “símbolo” possui acepções bem distintas entre si.
Algumas [pessoas] reservam-na para signos místicos, como os símbolos
rosa-cruzes; outras designam por meio dela imagens significantes, como
os ‘vastos símbolos nebulosos de sublime romance’, de Keats; alguns a
usam de maneira totalmente oposta e falam de ‘meros símbolos’,
significando gestos vazios, signos que perderam seus significados; e
outros, sobretudo os lógicos, usam o termo para denotar signos
matemáticos, marcas que constituem um código, uma linguagem breve e
concisa.
70
O sentido de símbolo adotado por este trabalho está, em larga escala, embasado
na definição que Langer apressa-se em dar logo após a passagem acima. Em suas próprias
palavras,
quando digo que a função distintiva do cérebro humano é o uso de
símbolos, refiro-me a qualquer e a todos dessas espécies. Eles são
completamente diferentes dos signos que os animais usam. Os animais
também interpretam signos, mas apenas como indicadores de coisas e de
eventos reais, sugestões de ação ou expectativa, ameaças e promessas,
pontos de referência e sinais de identificação no mundo. Os seres
humanos também usam tais signos, mas usam sobretudo mbolos
especialmente palavras para pensar e falar acerca de coisas que não
estão presentes nem são esperadas. As palavras transmitem idéias, que
podem ou não ter correlativos na realidade. Esse poder de pensar acerca
de coisas expressa-se através da linguagem, da imaginação e da
especulação principais produtos da mentalidade humana que os
animais não partilham.
71
69
João Augusto Frayze-Pereira, op. cit., p.46-47.
70
Susanne Langer, Ensaios filosóficos, p.104.
71
Ibidem, p.104-105.
93
Na definição de Duarte Jr.
72
, “um símbolo constitui um determinado objeto ou
sinal que representa algo; que permite o conhecimento de coisas e eventos não presentes
ou, mesmo, inexistentes concretamente.” Desta forma, neste grande campo que surge ao
considerarmos as relações entre os humanos e o mundo, a atividade simbólica se mostra um
tema de fundamental importância, uma vez que, caracterizando a capacidade inerente ao ser
humano de transcender a experiência dada e imediata, acaba por possibilitar a busca, por
parte do homem, por um sentido para sua existência. Vemos, portanto, que, através dos
símbolos, o homem supera sua esfera puramente animal. Sendo assim, podemos também
facilmente entender que a estrutura simbólica transforma radicalmente a forma como o ser
humano se relaciona com “sua realidade”:
comparado aos outros animais, o homem não vive apenas em uma
realidade mais ampla; vive, pode-se dizer, em uma nova dimensão de
realidade. Existe uma diferença inconfundível entre as reações orgânicas
e as respostas humanas. No primeiro caso, uma resposta direta e
imediata é dada a um estímulo externo; no segundo, a resposta é diferida.
É interrompida por um lento e complicado processo de pensamento.
73
Desta forma, na conclusão de Cassirer
74
,
o homem não pode mais confrontar-se com a realidade imediatamente;
não pode vê-la, por assim dizer, frente a frente. A realidade física parece
recuar em proporção ao avanço da atividade simbólica do homem. Em
vez de lidar com as próprias coisas o homem está, de certo modo,
conversando constantemente consigo mesmo. Envolveu-se de tal modo em
formas lingüísticas, imagens artísticas, símbolos míticos ou ritos
religiosos que não consegue ver ou conhecer coisa alguma a não ser pela
interposição desse meio artificial. Sua situação não é a mesma tanta na
esfera teórica como na prática. Mesmo nesta, o homem não vive em um
mundo de fatos nus e crus, ou segundo suas necessidades e desejos
imediatos. Vive antes em meio a emoções imaginárias, em esperanças e
temores, ilusões e desilusões, em suas fantasias e sonhos. ‘O que perturba
e assusta o homem’, disse Epíteto, ‘não são as coisas, mas suas opiniões e
fantasias sobre as coisas.’
72
Fundamentos estéticos da educação, p.25-26.
73
Ernst Cassirer, op. cit., p.48.
74
Idem, p.49.
94
O mundo não surge, portanto, de forma neutra, mas sim, carregado de
significações; atribuímos, ao mundo, sentidos e valores pessoais. Como nos explica Le
Breton
75
,
a percepção é uma apropriação simbólica do mundo, uma decifração que
situa o homem numa posição de compreensão a seu respeito. O sentido
instaura-se na relação do homem com as coisas e no debate travado com
os outros para sua definição, na complacência ou não do mundo em se
perfilar nessas categorias. O mundo sensível é a tradução em termos
sociais, culturais e pessoais de uma realidade que é acessível por esse
desvio de uma percepção sensorial e afetiva de homem inscrito em uma
trama social. Ele se oferece como inesgotável virtualidade de
significações. Habitam o olhar do homem intenções, expectativas,
emoções, sensibilidade. A inteligência humana está em situação, não está
separada de uma existência singular e necessariamente carnal.
Cassirer propõe então que se defina o homem não como animal racional mas
sim como um animal simbólico. Conseqüentemente o símbolo seria o caminho para a
compreensão da cultura humana. Nas palavras de Cassirer
76
,
os grandes pensadores que definiram o homem como animal rationale não
eram empiristas, nem pretenderam jamais dar uma explicação empírica
da natureza humana. Com essa definição, estavam antes expressando um
imperativo moral fundamental. A razão é um termo muito inadequado
com o qual compreender as formas da vida cultural do homem em toda a
sua riqueza e variedade. Mas todas essas formas são formas simbólicas.
Logo, em vez de definir o homem como animal rationale, deveríamos
defini-lo como animal symbolicum. Ao fazê-lo, podemos designar sua
diferença específica, e entender o novo caminho aberto para o homem – o
caminho para a civilização.
Como vimos, o ato de conhecer está, necessariamente, relacionado com o
processo simbólico, uma vez que o conhecimento é, em uma primeira instância, uma
tradução da experiência em símbolos e signos. Freqüentemente vemos implícito no ato de
conhecer o processo de construção de sistemas cognitivos decorrentes da articulação de
informações que também aparecem na forma de símbolos ou de signos. Vemos, desta
75
Op. cit., p.191.
76
Idem, p.49-50.
95
forma, que “o conhecimento não saberia refletir diretamente o real,podendo traduzi-lo e
reconstruí-lo em outra realidade.”
77
A arte, para muitos pensadores como, por exemplo, Susanne Langer e Ernst
Cassirer é considerada como uma forma simbólica não-discursiva. Curiosamente, com a
utilização da idéia de mbolo podemos, inclusive, apresentar conceituações até mesmo
satisfatórias de arte; a dinamicidade contida no termo “símbolo”, decorrente de sua relação
com a dimensão sócio-cultural que, por sua vez, se encontra sempre em movimento,
permite que a definição baseada na idéia de símbolo seja ampla o suficiente para tentar
lidar com a prática dos artistas, que, como apontou Dufrenne, parece desmentir a todo
momento qualquer definição de arte. Uma das conceituações de arte a partir da idéia de
símbolo nos é dada por Langer
78
: a “arte é a criação de formas simbólicas do sentimento
humano.” Indo também ao encontro da pensadora americana podemos citar Duarte Jr.
79
,
para quem a obra de arte constitui uma objetivação dos sentimentos, isto é, a sua
concretização em um símbolo.” Esta concretização dos sentimentos acaba por permitir que
possamos, frente a uma obra de arte, “contemplar os sentimentos engastados em suas
formas, apreendendo-os enquanto expressividade”
80
No entanto, como nos aponta Langer
81
,
embora seja também uma simbolização,
uma obra de arte difere de um símbolo genuíno – isto é, de um símbolo no
sentido pleno e usual – pelo fato de não indicar nenhuma coisa além de si
própria.(...) na verdade, o sentimento que ela expressa parece ser dado
diretamente com ela como o sentido de uma metáfora verdadeira ou
como o valor de um mito religioso e não é separável de sua expressão.
Falamos de sentimento de ou do sentimento em uma obra de arte, e não
do sentimento que ela significa. E o dizemos bem; uma obra de arte
apresenta algo assim como uma visão direta da vitalidade, emoção,
realidade subjetiva.
77
Edgar Morin, O método3: o conhecimento do conhecimento, p.65.
78
Sentimento e forma, p.42.
79
Fundamentos estéticos da educação, p.89.
80
Ibidem, p.89-90.
81
Ensaios filosóficos, p.87.
96
A arte difere, portanto, da linguagem, o sistema simbólico mais amplamente
usado por nós; a linguagem é “fundamentalmente conceitual, linear e discursiva. Conceitual
porque organiza nossa percepção do mundo fragmentando-o e classificando as coisas em
classes gerais: os conceitos.”
82
Os símbolos lingüísticos são, de certa maneira, uma
compartimentalização da própria existência humana. A este respeito, vale também citar
Sabato, que nos explica que “o homem interrompe o fluxo fenomênico e quebra esse
estranho mundo cotidiano em pedaços, que depois classifica, rotula e coloca em estantes;
de modo que esse Universo fluente é curiosamente convertido em uma espécie de Grande
Despensa.”
83
.
Embora a linguagem conceitual classifique o fluxo contínuo da vida, inclusive
os sentimentos
84
que dele se originam, ela é extremamente impotente para descrevê-los.
Isto porque, na linguagem conceitual, esta classificação se realiza de forma geral e
inespecífica. Como nos explica Duarte Jr.
85
, “se na palavra ‘mesa’ estão contidas todas as
mesas porventura existentes, sob o conceito ‘amor’ estão abrigados todos os tipos
infindáveis e particulares deste sentimento.” No entanto, o sentimento-em-si, que tem sua
gênese no próprio fluxo existencial do indivíduo, é rebelde a classificações gerais e, por
isso, não pode ser transposto em palavras. Neste sentido, podemos também entender o
filósofo Alfred Schutz
86
quando este afirma que “aquilo que é irrecuperável em princípio
sempre inefável pode ser vivido, nunca ‘pensado’: é, em princípio, impossível de ser
verbalizado.” Situando-se num território anterior à simbolização conceitual, a arte procura,
por assim dizer, estabelecer uma relação mais direta entre espectador e obra. Uma vez que a
apreensão da obra de arte é primordialmente estabelecida através do sensível, a arte permite
que o espectador seja estimulado com a possibilidade de sentimentos diferentes daqueles
usualmente vividos por ele. Embora esta possibilidade seja compartilhada por todos que,
82
João Francisco Duarte Jr., O que é beleza, p.26.
83
Nós e o Universo, p.134.
84
“Sentimento é sempre a primeira impressão que temos das coisas, é uma apreensão direta do mundo e de
nós mesmos ainda não mediatizada pelos símbolos, pela linguagem. Sentimentos são evidências estruturadas
da realidade, isto é, conscientizações da interação entre organismo e ambiente. São apreensões diretas da
situação na qual nos encontramos, anteriores às significações lingüísticas e simbólicas, que fracionam tal
situação em conceitos e os relacionam entre si.” (João Francisco Duarte Jr., O que é beleza, p.22).
85
O que é beleza, p.27.
86
Apud João Francisco Duarte Jr, O que é beleza, p.29.
97
eventualmente, venham a se relacionar com uma determinada obra, a qualidade deste
sentimento será sempre único, pois nasce da própria existência do indivíduo. Desta forma,
Podemos entender que a arte “não remete a um absoluto, mas aos devires humanos.”
87
Nisso se distingue a arte das outras formas simbólicas: ela não tenta
simplesmente a reprodução de uma suposta realidade pronta. A arte, portanto,
não é uma imitação, mas uma descoberta da realidade. Contudo, não
descobrimos a natureza através da arte no mesmo sentido que o cientista
usa o termo “natureza”. A linguagem e a ciência são os dois processos
principais pelos quais avaliamos e determinamos nossos conceitos do
mundo exterior. Precisamos classificar nossas percepções sensoriais e
agrupá-las em noções e regras gerais para poder-mos dar-lhes um
sentido objetivo. Tal classificação resulta de um esforço persistente no
sentido da simplificação. A obra de arte, de um modo parecido, implica
esse ato de condensação e concentração. (...)
A linguagem e a ciência são uma abreviação da realidade; a arte é
uma intensificação dessa realidade. A linguagem e a ciência dependem de
um único e mesmo processo de abstração; a arte pode ser descrita como
um processo contínuo de concreção.
88
Como vimos, é possível defender que a experiência estética permite um
conhecimento do mundo. No entanto, não é aqui que ela realiza o que há de mais peculiar e
específico nas suas possibilidades. A arte atua “levando-nos não apenas a descobrir formas
até então inusitadas de sentir e perceber o mundo, como também desenvolvendo e acurando
os nossos sentimentos e percepções acerca da realidade vivida.”
89
Vivemos nossas vidas norteados não apenas pela nossa dimensão física, mas
também pela nossa dimensão simbólica, resultando num inevitável e indissolúvel diálogo
entre sensível e inteligível. É sobre o solo desta complexa trama que a arte parece permitir
uma melhor compreensão e, conseqüentemente, uma maior organização de nossas ações,
uma vez que pode, com mais propriedade do que qualquer outro discurso humano, colocar-
nos em contato com nossos próprios sentimentos. Se, de fato, é na experiência estética que
surge a possibilidade maior para que o homem tente a consciência e o controle da
87
Francastel apud Frayze-Pereira, op. cit., p.52.
88
Ernst Cassirer, op. cit., p.235.
89
João Francisco Duarte Jr., O sentido dos sentidos, p.23.
98
intrincada trama existencial a que ele é constantemente exposto pelo seu devir, parece ser
também na experiência estética que nasce a razão como possibilidade.
99
IV – A RAZÃO (DA) ESTÉTICA
A constituição da alma moderna... caracteriza-se
por essa estrutura antinômica e, portanto, dilacerada, entre
uma identidade lógica o Eu racional , que é elevada a
princípio de dominação, e a realidade empírica do sujeito,
que se comporta frente à sua identidade intelectual como
realidade submissa ou como escravo. Mas tal dualidade, ou
mesmo tal dilaceramento interno da alma moderna... é
questionada precisamente no marco da experiência
estética, onde nenhuma ordem social objetiva oferece um
apoio para esta estrutura antinômica.
Eduardo Subirats
Como se vê, trata-se em boa medida, de retomar a
idéia dos alemães, que viam na arte a suprema síntese do
espírito mas agora apoiada numa concepção mais
complexa, que, se não fosse pela grandiloqüência da
expressão, teria de denominar-se neo-romantismo
fenomenológico’.
Ernesto Sabato
Em suma, o ponto de concordância estaria em uma
outra razão, diferente da razão matemática e lógica, uma
razão adaptada ao seu novo objeto. Seria chamada razão
estética ou razão poética. Ela poderia ser um intermediário
entre a razão e a imaginação, entre o entendimento e a
sensibilidade.
Marc Jimenez
Mas a razão, que é capaz de despertar todas as
origens adormecidas, não produz nada de si mesma.
Penetrando no coração de tudo o que existe, pode fazê-lo
pulsar, fazer que se mova e se revele. Mas é preciso que
atinja o coração das coisas, para ser eficaz.
Karl Jaspers
É melhor o falar de irracionalidade, mas do
conhecimento racional da “razão alargada”.
Luijpen
100
A tarefa de conciliação entre os capítulos precedentes é o maior desafio deste
quarto e último capítulo que acaba, desta forma, praticamente por se tornar um prelúdio à
conclusão que se seguirá. Trata-se, no entanto, de retomar rapidamente o que foi discutido
anteriormente para então apresentar as principais teses deste estudo. É quase desnecessário
apontar que retorna à cena a questão da acepção moderna do termo razão, discutida, com
maior atenção, no primeiro capítulo. Diferentemente do que se acreditou nos últimos
séculos, não podemos opor a razão ao sensível e também ao inconsciente. Se assim fosse
não estaríamos falando de razão no seu sentido pleno, mas numa forma específica e parcial
de seu funcionamento, norteada exclusivamente pela intelecção e da qual resulta nada mais
do que o entendimento. Para ser capaz de lidar com a própria existência do homem
precisamos de uma concepção de razão que procure capturar, embora seja incapaz de
esgotar, todos os aspectos da existência humana. Assim, a razão se fortalece na pluralidade
de modos em que a intencionalidade humana pode ser exercida. Neste sentido, a
experiência estética, que parece possibilitar um livre acordo entre o inteligível e o sensível,
constitui-se num importante passo para a constituição da razão. Salientamos, aqui, a
palavra constituição; a razão não é um ponto de saída, mas um ponto de chegada. Eis o que
foi freqüentemente ignorado nos últimos séculos, quando acreditou-se que a razão
intelectiva poderia ser tanto o fundamento sobre o qual poderia ser assentada a constituição
da cultura quanto o caminho para a compreensão do homem. Ignorou-se, desta forma, que a
razão pode ser fruto, e nunca a semente, da existência concreta do homem. Tal fato
garante que a razão não exista senão como uma meta a ser perseguida e nunca
definitivamente alcançada, uma vez que tem sua origem no próprio tecido entremeado entre
o refletido (pensado) e o irrefletido (vivido) que constitui a existência do homem. Neste
sentido, Karl Jaspers
1
pontua que “o homem não se encontra a si mesmo como um ser
racional, mas, por assim dizer, se converte em racional, a partir da existência concreta que
lhe é dada. Atinge o caminho da razão pela sua própria liberdade, e não automaticamente.”
Podemos acrescentar que, assim como a liberdade, a razão não é um dado a priori do
homem e deve não ser conquistada, mas reconquistada constantemente. Uma das
premissas básicas deste capítulo é, portanto, a crença de que o diálogo entre o pensado e o
1
Razão e anti-razão em nosso tempo, p.58.
101
vivido é a própria condição da racionalidade. Resulta daí a necessidade de se defender um
novo conhecimento, mais profundo e mais complexo que o simples entendimento das
causalidades e finalidades possibilitado pela intelecção. É necessário defender um
conhecimento que aceite sua origem sensível e reconheça, desta forma, seu fundamento na
dimensão irrefletida da existência
2
. Igualmente necessária é a defesa de um conhecimento
sensível em-si, resgatando o próprio corpo como portador de um conhecimento pré-
intelectivo e digno de ser valorizado.
Ao pequeno sobrevôo que fizemos, no parágrafo precedente, dos principais
tópicos a serem discutidos neste quarto capítulo, falta ainda acrescentar o fio condutor de
todo o presente estudo: a tese de que a arte pode ter um papel fundamental na superação do
que freqüentemente é entendido como uma crise histórica da modernidade e o decorrente
desnorteamento do homem moderno, uma vez que parece promover um livre acordo da
sensibilidade e do intelecto, essencial para que o homem adquira uma maior consciência
sobre sua própria vida. Em outras palavras: a tese de que a arte parece ser fundamental
para a própria constituição da razão, ou, mais especificamente, dessa razão mais ampla
que se está aqui defendendo.
Uma vez expostos os principais temas deste quarto capítulo resta-nos ainda
afirmar que o caminho expositivo aqui é um entre muitos: partiremos da própria tentativa
que o homem faz para significar e compreender o mundo em que vive. Vimos, durante o
desenrolar da história do homem, que qualquer que seja a cultura, ela tende a produzir duas
esferas de significação e a compreensão do mundo;
a primeira tende a precisar, denotar, definir, apóia-se sobre a lógica e
ensaia objetivar o que ela mesma expressa. A segunda utiliza mais a
conotação, a analogia, a metáfora, ou seja, esse halo de significações que
circunda cada palavra, cada enunciado e que ensaia traduzir a verdade
da subjetividade. Essas duas linguagens podem ser justapostas ou
misturadas, podem ser separadas, opostas, e a cada uma delas
correspondem dois estados. O primeiro, também chamado de prosaico,
no qual nos esforçamos por perceber, raciocinar, e que é o estado que
2
Como nos aponta Duarte Jr. , “o conhecimento do mundo advém... de um processo onde o sentir e o
simbolizar se articulam e completam.” (Fundamentos estéticos da educação, p.16).
102
cobre uma grande parte de nossa vida cotidiana. O segundo estado, que
se pode justamente chamar de ‘estado segundo’, é o estado poético.
3
Fica claro que Morin descreve, nesta passagem, duas linguagens
4
distintas: a
linguagem prosaica e a linguagem poética. Cabe chamar a atenção para o termo “metáfora”,
usado para apontar um dos processos básicos do estado poético. Segundo o mesmo autor,
numa outra obra sua, “a metáfora não poderia ser condenada como metáfora, pois a idéia de
metáfora comporta muito claramente valor de evocação, de sugestão, de ilustração, não de
explicação.”
5
Mas o que pode a metáfora ? O que pode a linguagem poética? Morin
6
ensaia
uma resposta quando afirma que
a metáfora é com freqüência um modo afetivo e concreto de expressão e
de compreensão. Poetiza o cotidiano transportando para a trivialidade
das coisas as imagem que surpreende, faz sorrir, comove ou mesmo
maravilha. Faz navegar o espírito através das substâncias, atravessando
as barreiras que encerram cada setor da realidade; ultrapassa as
fronteiras entre o real e o imaginário. De qualquer maneira, sobretudo
hoje, a higiene dos nossos espíritos e sociedades requer não somente o
direito de cidadania à metáfora na linguagem cotidiana, mas também o
pleno reconhecimento da esfera poética, onde as analogias vivem em
liberdade.
Guardadas as devidas diferenças entre Morin e Mikel Dufrenne, podemos
encontrar, no segundo, um complemento para as palavras do primeiro. Diz Dufrenne
7
: “a
poesia diz a vida porque a vida é poética: ela é o espaço no qual a consciência descobre e
frui o mundo sem se colocar ainda como consciência, no qual se consome um monismo
impensável que a irrecusável prosa do dualismo virá logo destruir.”
Entre outras coisas, este estudo demonstrou que, no curso da modernidade, a
esfera poética foi, cada vez mais, relegada a uma posição marginalizada, resultando uma
crescente “prosaicização” do mundo moderno. Conseqüentemente, embora a vida seja,
3
Amor poesia sabedoria, p.35-36.
4
Segundo Octavio Paz: “As diferenças entre o idioma falado ou escrito e os outros – plásticos ou musicais –
são muito profundas; não tanto, porém, que nos façam esquecer que todos são, essencialmente, linguagem:
sistemas expressivos dotados de poder significativo e comunicativo.” (O arco e a lira, p.23).
5
O método 3: o conhecimento do conhecimento, p.174.
6
Idem, p.174.
7
Op. cit., p.210.
103
necessariamente, vivida de forma poética e de forma prosaica – “poesia-prosa constituem...
o tecido de nossa vida.”
8
há, ainda nos dias atuais, um desequilíbrio entre a dimensão
prosaica e a dimensão poética, com a primeira se sobrepondo à segunda. Ao comentar este
ponto, Morin
9
defende, inclusive, que estamos atualmente expostos
a uma grande expansão da hiperprosa, que se articula à expansão de um
modo de vida monetarizado, cronometrado, parcelarizado,
compartimentado, atomizado e de um modo de pensamento no qual os
especialistas consideraram-se competentes para todos os problemas,
igualmente ligados à expansão econômica-tecnoburocrática.
Não vimos ocorrer durante a modernidade uma priorização do estado
prosaico, mas também sua identificação com a própria racionalidade. Como resultado
vimos nascer a crença numa razão fria, que prega o ceticismo diante de toda a dimensão
poética do homem. Este entendimento de razão tende não somente a contrapor intelecção e
sensibilidade, mas também a considerar a segunda como ilusão, erro de interpretação ou até
loucura, transformando, desta forma, a complementaridade entre prosa e poesia em
oposição. Ao homem moderno não restou alternativa se não ficar preso ao seguinte
questionamento: “devo seguir a razão, ceder às paixões e impulsos sensuais, ou ser fiel ao
meu padrão ético?”.
10
Como desenvolve May
11
, o homem acaba por ficar preso num
emaranhado de soluções contraditórias:
a ‘razão’ funciona quando se estuda, a ‘emoção’ quando se visita uma
pessoa amiga, a ‘força de vontade’ quando se prepara um exame, os
deveres religiosos nos enterros e no domingo de páscoa. Essa
compartimentalização de valores e metas conduz rapidamente à
desintegração da personalidade, e a pessoa, dividida interior e
exteriormente, não sabe para que lado voltar-se.
Embora a prosa tenha assumido uma posição de destaque nos últimos séculos,
vimos eclodir, principalmente nos dois últimos séculos, movimentos que pregavam a
valorização e, por vezes, até superioridade da linguagem poética sobre a linguagem
8
Edgar Morin, op.cit., p.36.
9
Idem, p.40.
10
Rollo May, op. cit., p.42.
11
Idem, p.44.
104
prosaica. Tradicionalmente podemos apontar duas principais “revoltas histórias” da poesia.
A primeira delas, e talvez a que assumiu dimensões maiores foi o romantismo que, nas
palavras de Morin
12
, foi uma “revolta contra a invasão da prosaidade do mundo utilitário,
do mundo burguês, que se desenvolveu no início do século XIX.” Numa análise que se
aproxima, em alguns pontos à de Morin, Sabato
13
observa que “o romantismo não foi um
mero movimento na arte, mas uma vasta e profundíssima rebelião de todo o espírito que
não podia deixar de atacar as bases mesmas da filosofia racionalista.” A segunda delas,
embora não tão costumeiramente lembrada quanto o romantismo, foi, na opinião de Morin,
o surrealismo, no inicio do século XX. Como ele mesmo nos explica
14
,
a idéia surrealista é a de que a poesia extrai sua fonte da vida, com seus
sonhos e acasos. Todos sabemos a importância que os surrealistas
atribuíam ao acaso. O que ocorreu, então, foi uma desprosaização da
vida cotidiana, que começou com Arthur Rimbaud, quando este se
maravilhou com as tendas militares estrangeiras e com o latim das
igrejas. Os surrealistas dignificaram o cinema e foram os primeiros a
admirar Charlie Chaplin. Em resumo, a primeira mensagem surrealista
foi desprosaizar a vida quotidiana, reintroduzir a poesia na vida.
Octavio Paz
15
também aproxima o romantismo ao surrealismo na seguinte
passagem:
o programa surrealista transformar a vida em poesia e operar assim
uma revolução decisiva nos espíritos, nos costumes e na vida social – não
é diferente do projeto de Friedrich Schlegel e seus amigos: tornar
poéticas a vida e a sociedade. Para consegui-lo ambos apelam para a
subjetividade: a desagregação da realidade objetiva, primeiro passo para
sua poetização, será obra da inserção do sujeito no objeto. A “ironia”
romântica e o “humor” surrealista se dão as mãos.
Não é intuito aqui, no entanto, sugerir uma nova “rebelião” através da poesia.
Não podemos negar a importância das atividades que se originam prosaicamente; entre elas
encontramos as atividades práticas, técnicas e materiais, extremamente necessárias e
12
Op. cit., p.38.
13
O escritor e seus fantasmas, p.122.
14
Idem, p.38-39.
15
O arco e a lira, p.298-299.
105
intrincadas no estilo de vida do homem moderno. A poesia, entretanto, coloca-nos em
contato com nossa dimensão sensível, morada das nossas impressões primeiras do mundo.
Desta forma, a permanente cristalização no estado prosaico resultaria, para o homem, na
impossibilidade de constituição de sua completa racionalidade, uma vez que a verdadeira
inteira razão pode nascer da alternância entre os estados prosaico e poético, a qual
permite, por sua vez, o próprio diálogo entre o inteligível e o sensível.
É no seu próprio desenvolvimento que esta racionalidade reconhece a
incapacidade de se tornar razão plena. Sempre existirá um irracionalizável, rebelde aos
caminhos da razão. Mas, como afirmamos anteriormente, a razão, embora incapaz de
racionalizar totalmente o irracionalizável, não procura ignorá-los, mas sim estabelecer um
diálogo, ainda que este nunca se realize plenamente. Como assinala Morin
16
,
ser racional não seria, então, compreender os limites da racionalidade e
da parte de mistério do mundo? A racionalidade é uma ferramenta
maravilhosa, mas coisas que excedem o espírito humano. A vida é um
misto de irracionalizável e racionalidade. Seria necessário aprender, de
qualquer modo, a brincar com esta parte irracional de nossas vidas e
saber aceitá-las. Confesso que, quando estou na floresta durante a
noite, eu tenho medo. Não de bandidos, mas de fantasmas! Sei que se
trata de um medo irracional, mas, ao mesmo tempo, sei que não posso
recalcá-lo.
Mesmo se tratando de uma citação um tanto extensa, pedimos aqui a licença
para inserirmos, no presente texto, a descrição de razão feita por Jaspers
17
que servirá de
fundamento para boa parte dos pensamentos que se seguirão.
Que é a razão? Este grande tema de filosofia não está esgotado por
milênios de pensamento, não chega a completar-se mediante o
conhecimento sistemático. Vou tentar caracterizar a razão.
A razão está em movimento sem estabilidade assegurada. Impele à
crítica de toda posição adquirida, e por isso está em oposição à tendência
de nos dispensarmos, graças a idéias definitivamente fixadas, de
continuar a pensar.
Deseja a reflexão; - opõe-se à arbitrariedade
Realiza o autoconhecimento de cada um e, ao conhecer as
limitações, a humildade pessoal; - opõe-se à arrogância.
16
Idem, p.57-58.
17
Op.cit., p.49-50.
106
Deseja sempre ouvir e sabe esperar; - opõe-se à estreitante
embriaguez da paixão.
Nesses movimentos a razão desvencilha-se das cadeias do
dogmatismo, da arbitrariedade, da arrogância, da embriaguez, - mas,
para ir onde?
A razão é a vontade de unidade. A força propulsora da razão e o
cuidado da sua clarificação nascem da pergunta sobre o que é esta
unidade.
A razão não quer apreender uma unidade qualquer, mas procurar
a verdadeira e única unidade. Se esta unidade deve ser a última e
absoluta, então a razão sabe que está perdida em toda apreensão
prematura e parcial da unidade. Pois ela quer o Um, que é tudo.
Por isso, não lhe é permitido deixar de fora nada que existe, nada
omitir, nada excluir. É em si uma abertura ilimitada.
O próprio Jaspers
18
conclui, na seqüência, que
a razão é atraída pelo que lhe é mais estranho. Mesmo aquilo que,
transgredindo a lei do dia, se torna realidade destruidora, como paixão
pela noite, mesmo isso, a razão desejaria, iluminando-o, conduzir ao Ser,
emprestar-lhe uma linguagem e não deixá-lo desaparecer no nada. A
razão não quer ser culpada de esquecimento, não quer perder o Um em
uma harmonia ilusória, nem se enganar, por encobrimento. Acorre
sempre ao lugar onde se rompe uma unidade, para, na ruptura, aprender
ainda uma verdade dessa ruptura. Quebrando toda unidade bela na
aparência, - que pela própria quebra revela sua insuficiência a razão
quer impedir a ruptura metafísica, o despedaçamento do Ser mesmo, da
autêntica unidade. Por isso, a razão, origem mesma da ordem,
acompanha também o que destrói a ordem.
Para lograr seus objetivos, a racionalidade de que se fala aqui estabelece, por
assim dizer, uma adequação entre uma coerência lógica, descritiva e explicativa, calcada no
universo prosaico, e o vivido. Esta racionalidade tenta, desta forma, superar, mas não negar,
o que Morin chama de lógica dedutivo-identitária. Deixemos que o próprio Morin
19
nos
explique que
a lógica dedutiva-identitária, abre-se, não à compreensão do complexo e
da existência, mas à inteligibilidade utilitária. Corresponde às nossas
necessidades práticas de superação do incerto e do ambíguo para
produzir um diagnóstico claro, preciso, sem equívoco. Corresponde,
mesmo sob o risco de desnaturar os problemas, às nossas necessidades
18
Idem, p.50.
19
O método 4: as idéias, p.239.
107
fundamentais de separar o verdadeiro do falso, de opor a afirmação à
negação. A sua inteligibilidade repele a confusão e o caos. Por isso, essa
lógica é intelectualmente necessária. (...) Como disse Suzuki, ‘a lógica é o
instrumento mais útil à vida prática... o supremo instrumento utilitário
através do qual tratamos as coisas pertencentes à superficialidade da
vida’.
Este tipo de lógica é extremamente importante para o homem e muito útil para a
vida cotidiana, mas enfrenta dificuldade em lidar com a existência humana. Isto porque a
lógica dedutivo-identitária expurga do discurso a existência, tempo, o não racionalizável, a
contradição; a partir daí, o sistema cognitivo que lhe obedece cegamente se coloca em
contradição ao mesmo tempo com o real e com a sua pretensão cognitiva.”
20
Aqui
encontramos a distinção entre racionalização e a racionalidade; embora ambas possuam
uma origem comum, a racionalização está inteiramente submetida à lógica dedutiva-
identitária e expurga, portanto, do seu discurso o irracionalizável e a contradição. Já a
a verdadeira racionalidade engloba, utiliza e supera a lógica dedutivo-
identitária no seu intercâmbio com o real. A racionalidade assim
entendida se identifica a uma dialógica entre o teórico e o empírico que
necessita uma lógica suavizada/enfraquecida, onde a lógica nunca triunfa
mas também nunca é arrasada.
21
Para a racionalidade “aquilo que constitui a nossa realidade inteligível não é
mais do que uma faixa, um fragmento de uma realidade cuja natureza é indemonstrável e
irrefutável.”
22
Desta forma, qualquer tentativa de significação e compreensão da realidade,
objetivo por excelência do conhecimento, deve, necessariamente, ser abordada tanto a partir
da lógica quanto de uma forma supra-lógica. Uma lógica maleável é fundamental, portanto,
para a gênese de uma razão mais ampla e para a própria idéia de racionalidade.
O caminho da inteira razão se afasta, portanto, da simples racionalização e,
desta forma, de uma gica rígida e com tendências totalitárias. Tal afastamento não
significa uma afirmação contra a lógica dedutiva-identitária; as ciências exatas que fazem
uso desta lógica, extraem dela não seu ponto fraco, mas sim um fator do qual tomam
20
Ibidem, p.257.
21
Ibidem, p.262-263.
22
Ibidem, p.261.
108
proveito para atingir suas potencialidades ximas. No entanto, intrínseca a esta
metodologia, nascem as próprias limitações da ciência que resultam do destacamento do
mundo científico do mundo da vida (Lebenswelt). Mesmo portadora de limitações, a ciência
moderna foi e continua sendo um importante e indispensável caminho para a verdade
23
e
não deve ser ignorada ou desprezada. Segundo Jaspers
24
,
o abalo radical do espírito moderno tantas vezes descrito e discutido
não é precisamente um abalo da ciência moderna. Na medida em que esta
é pura nos seus métodos e limpa na sua crítica, não é de modo algum
abalada, antes, ao contrário, progride em segurança, clareza e certeza, -
dentro dos seus limites.
O que, porém, está abalado em muitos homens é a significação
desta ciência, é a evidência de que a ciência é necessária. Para
recuperar-se esta significação, requerem-se outras fontes, diferentes das
que a própria ciência pode proporcionar.
Faz-se necessário dissipar a ilusão cientificista de que a totalidade do mundo é
redutível à lógica fechada e compreender os limites intrínsecos à ciência. Isto significa que
as críticas que são dirigidas atualmente à ciência são muito mais uma crítica à sua ambição
do que, de fato, uma crítica à sua metodologia ou ao seu funcionamento. Claro que,
freqüentemente, críticas mais ingênuas acabam transgredindo este delicado limiar fazendo,
desta forma, do seu afã pela verdade o motivo de uma cruzada contra a ciência. Deve-se,
portanto, resgatar o mundo da vida (Lebenswelt), isto é, o mundo em que o sensível
desempenha um papel essencial e que permanece, pela sua própria característica, rebelde à
metodologia científica. Vemos, assim, que embora a ciência seja, como afirmamos,
indispensável para apreender a verdade, ela não é suficiente. A própria insatisfação com a
ciência que vemos crescer nas últimas décadas
é a expressão da vontade de verdade, e é maior e atinge mais longe do
que aquilo que pode ser satisfeito dentro das ciências. Marxismo,
psicanálise e todos os outros muitos movimentos dessa espécie não
seriam tão eficientes, se não se dirigissem a uma outra ânsia de verdade,
que reclama os seus direitos. Quais são os limites da ciência em que essas
23
Nas palavras de Karl Jaspers: “a ciência torna-se para nós condição de toda verdade da filosofia mesma.
Sem ciência não é mais possível hoje veracidade no filosofar. Confessamo-nos irrestritamente favorável à
ciência moderna como caminho para a verdade.” (Op.cit., p.40).
24
Op. Cit., p.40.
109
teorias se oferecem a nós? Estes: a ciência, quando é pura, não atinge o
Ser mesmo, não atinge a verdade inteira, mas apenas objetos no mundo,
num progredir sem fim. Originalmente, queremos mais do que ciência.
25
É necessário, portanto, buscar algo além do que a ciência pode nos apresentar
sobre o mundo. Mas onde poderíamos encontrar este “algo mais”? Eis aqui o dilema de boa
parte do pensamento crítico da segunda metade do século XX. Este “algo mais” não se
encontra na negação da ciência, tampouco no obscuro, no irracional ou no misticismo. O
“algo mais” é a própria racionalidade.
Esta razão que aqui descrevemos através, principalmente, do pensamento de
Jaspers e de Morin, é uma razão que reconhece, acima de tudo, sua vulnerabilidade ao não-
racional, mas que, por ter esta consciência, luta exatamente contra a tentação de se deixar
arrastar pelo irracional. Imbricada à sua vulnerabilidade ao não-racional aparece, por assim
dizer, a própria instabilidade da razão; ambas decorrem da inconstância inerente ao tecido
entremeado entre o refletido e o irrefletido que constitui o alicerce dinâmico da própria
racionalidade. Uma vez que o refletido se a partir da vida vivida que, por sua vez, se
renova a todo o momento, decorre a impossibilidade da reflexão intelectiva esclarecer e,
desta forma, conquistar definitivamente o irrefletido.
26
Não existe, portanto, nada no nosso
“mundo interior” que não tenha nascido na fecunda zona de comunhão entre corpo e
mundo. Como afirma Regis de Morais
27
,
não em nosso chamado mundo interior qualquer conteúdo, nem
conhecimentos, nem emoções, nem intuições, nem certezas, nada ali
que não tenha nascido da comunhão entre corpo e mundo. Daí
percebemos que a artificial divisão: mundo interior e mundo exterior, não
é mais do que algo criado para fins explicativos ou didáticos – uma
25
Ibidem, p.42.
26
Segundo André Dartigues: “é das profundezas da vida que o precede e o envolve que vem o pensamento,
estando entendido que suas construções não conseguirão jamais conquistar e esclarecer perfeitamente aquilo
que constitui sua própria fonte.” (Op.cit., p.65)
Ainda sobre o mesmo assunto Rubem Alves afirma que “nas linhas da psicanálise podemos dizer que na razão
encontramos as emoções em busca de um fundamento lógico. Se é verdade, como Pascal afirmava, que ‘o
coração tem razões que a própria razão desconhece’, verdade é também que o coração cria a razão como sua
aliada. Razão, pequena razão, brinquedo e instrumento da Grande Razão, o corpo (Nietzsche). Se isto é
verdade, torna-se necessário concluir que a racionalidade se assenta sobre fundamentos que não podem ser
esclarecidos por esta mesma racionalidade.” (O enigma da religião, p.164).
27
Arte: a educação do sentimento, p.13.
110
facilitação de linguagem, digamos, mas que, pelas armadilhas da própria
linguagem, acabou cindindo de fato nossa visão de mundo
O sentir é, portanto, parte necessária e integrante do processo de
intelectualização, ou seja, de toda experiência mental do homem. O sentir é nossa primeira
relação com o mundo; antes de ser “pensado” o mundo nos chega como um objeto sensível,
mesmo que nossas formulações simbólicas procurem quase que imediatamente dar uma
tradução inteligível para a experiência vivida. Sendo assim é que podemos afirmar que não
existe nada na nossa mente que não tenha estado, em primeiro lugar, nos nossos sentidos.
Uma vez que os significados sentidos são fruto do padrão dinâmico do próprio sentir e
estão, por isso mesmo, sujeitos a constantes mudanças, a própria significação inteligível
adquire um caráter instável do qual resulta também a própria instabilidade da razão.
Vemos que dificilmente poderíamos conciliar a teoria exposta acima com a
tradicional crença de oposição entre o raciocínio e as emoções. Susanne Langer
28
é quem
nos explica que costumeiramente se supõe que
a fria razão e o cálido sentimento (no sentido de emoção)... sejam
tendências antagônicas da mente humana, e as pessoas geralmente
admiram uma, confiando em suas sugestões, ao passo que desacreditam e
depreciam a outra. Místicos religiosos, muitos artistas e alguns filósofos
em nosso próprio século, notadamente Bergson e seus discípulos,
consideram toda concepção abstrata como uma falsificação essencial da
realidade, e contam com algum sentimento inarticulado, um produto do
instinto ou da intuição, para guiar-lhes não apenas o comportamento
prático, mas também o conhecimento da natureza das coisas. Cientistas,
educadores e filósofos analíticos, talvez também muitos homens de
negócio, assumem justamente a posição oposta, e consideram o
pensamento abstrato e a razão fria – na verdade, quanto mais fria melhor
– como o mais seguro guia de ação e o árbitro da verdade num mundo de
fatos indisputáveis. Eles usualmente admitem que suas ações e mesmo
suas crenças se inclinam a seguir os engodos do sentimento inspirado
pela ‘situação concreta’ mais que o ditames da razão baseada na ‘lógica
abstrata’; mas isto é porque certa parte de emoção interfere
inevitavelmente com o pensamento lógico da pessoa.
Vê-se, portanto que se trata, aqui, não somente de reivindicar o não-racional.
Deve-se, sim, repensar a própria condição da razão. Entendemos, pois, o vivido (irrefletido)
28
Idem, p.67.
111
no sentido de uma dimensão anterior à consciência reflexiva, e que serviria, desta forma, de
suporte para qualquer conhecimento. Não haveria, assim, uma fronteira bem demarcada
entre o vivido e o refletido; ambos estariam indissociavelmente emaranhados e
constituindo, por vezes, etapas de um mesmo processo. Certamente esta é uma afirmação
extremamente delicada e recai, facilmente, num problema semântico. No entanto, mesmo
se compreendermos esta fronteira de forma dinâmica e complexa, os atritos entre vivido e
refletido permanecem. Isto porque nossa dimensão simbólica lingüística não é capaz de
lidar satisfatoriamente com nossa dimensão sensível.
Desta forma, ao priorizar a dimensão prosaica da existência em detrimento da
poética, o homem moderno também abdicou, por assim dizer, da capacidade de estabelecer
um diálogo mais direto com a dimensão sensível da sua personalidade. Nos dois primeiros
capítulos deste presente trabalho tentou-se demonstrar que esta desvalorização do saber
sensível caminhou pari passu com as necessidades e crenças da sociedade moderna. O que
se defenderá aqui, a partir de agora, é que se faz necessário reabilitar o sensível como
importante fator da existência humana e que, para tal necessitamos do poético e da sua
expressão por excelência, a arte.
A linguagem prosaica é extremamente impotente – e, diga-se de passagem, nem
é sua intenção – para descrever e detalhar os sentimentos. Já a arte, que “é primordialmente,
a concretização dos sentimentos (não-acessíveis à linguagem [prosaica]) em formas
expressivas”
29
parece permitir que o homem explore “aquela região anterior ao
pensamento, onde se dá seu encontro primeiro com o mundo.”
30
A arte tenta, desta maneira,
justamente construir formas que possam mais diretamente representar nossos sentimentos.
“Através da arte temos como que uma visão do mundo de nossos sentimentos, temos
formas que nos permitem ‘ver de fora’ a inefável dimensão do nosso sentir.”
31
Dufrenne, ao pensar sobre a experiência estética afirma que o estético
singulariza-se como poética. Segundo suas próprias palavras, “habitar poeticamente o
mundo (como queria Hölderlin com a poesia, e como pretendeu Merleau-Ponty com a
29
João Francisco Duarte Jr., Fundamentos estéticos da educação, p.103. A palavra entre colchetes é nossa;
apesar de não figurar no original, acredita-se que esteja de acordo com as considerações do autor.
30
Ibidem, p.103.
31
João Francisco Duarte jr, O que é beleza, p.47.
112
filosofia) é experimentar uma situação originária que não se resolve num ato como os que a
necessidade ou o hábito suscitam, mas que se quer dizer.”
32
Para concluir, portanto, que
“nenhuma disposição conceitual poderá traduzir esse sentimento fundamental do mundo,
porque todo conceito está voltado à inteligência dos objetos. Somente a linguagem poética
pode exprimi-lo.”
33
Afirmamos anteriormente, mais especificamente no terceiro capítulo, que a
obra de arte é caracterizada por ser fruto de uma intencionalidade estética direcionada a um
certo objeto que se tornará, uma vez estabelecida a experiência estética, um objeto estético.
Defendemos também que a arte pode ser afirmada, portanto, enquanto fenômeno
estético-artístico. E podemos adicionar agora que a experiência estética nos lança num
estado que nos transporta para além das fronteiras entre inteligível e sensível, promovendo,
assim, o desenvolvimento na capacidade significadora do homem uma vez que amplia o
conhecimento humano para dimensões além daquelas possibilitadas pela prosa e pela nossa
percepção prática. Um dos grandes méritos da arte é, portanto, o de ampliar a percepção
que temos do mundo e de nós mesmos, fazendo-nos, assim, “redescobrir esse mundo em
que vivemos mas que somos sempre tentados a esquecer.”
34
Numa época na qual o mundo é novamente sentido como ameaçador, no qual
eclodem conflitos, ao menos de significação, entre progresso técnico-científico e identidade
histórica e entre tecnologia e natureza, parece ser necessário repensar a própria questão da
linguagem poética como importante e indispensável dimensão não do ser humano
individual mas de toda a sua cultura. Nessa direção aponta Alain Touraine
35
quando
observa que
a partir de Nietzsche e de Freud, o indivíduo deixa de ser concebido
apenas como um trabalhador, um consumidor ou mesmo um cidadão,
deixa de ser unicamente um ser social; ele se torna um ser de desejo,
habitado por forças impessoais e linguagens, mas também um ser
individual, privado. Isso obriga a redefinir o Sujeito. Ele era o elo que
ligava o indivíduo a um universal. Deus, a razão, a história; ora, deus
32
Mikel Dufrenne apud Frayze-Pereira, op. cit., p.333.
33
Mikel Dufrenne apud Frayze-Pereira, op. cit., p.333.
34
Merleau-Ponty, Conversas 1948, p.2.
35
Alain Touraine, op. cit., p.139.
113
está morto, a razão se tornou instrumental e a História está dominada
pelos Estados absolutos.
Como, nessa situação, pode o indivíduo escapar às leis de seu
interesse que são também as de utilidade social? A maioria dos
pensadores recorreu à idéia de que o ser humano deve reencontrar sua
natureza profunda, reprimida ou pervertida pelo reforço dos controles
sociais, graças sobretudo à arte: é preciso fazer da vida uma obra de
arte, reencontrar pela beleza as correspondências que unem o homem ao
mundo.
Também refletindo sobre a idéia de um ideal poético para o homem Subirats
36
comenta que
quando o reino temporal da razão histórica se confunde com a não-
liberdade, com o fim do homem e a destruição da vida, quando a
secularização não significa mais que a realização do inferno no reino da
terra, a transcendência de um ideal poético de plenitude humana se
converte no último bastião de resistência contra esse reino. Todavia, esse
postulado transcendente não é o de uma realização moral do sujeito na
esfera ideal de uma transcendência espiritual. Seu critério definitivo de
verdade da última esperança de emancipação humana é a ruptura com a
continuidade histórica de um progresso que hoje exibe abertamente suas
conseqüências devastadoras para a humanidade, é a ruptura com a
continuidade histórica da dialética da dominação e da morte. Eis uma
tarefa complexa que define o âmbito de uma teoria crítica da cultura
moderna, numa base ao mesmo tempo epistemológica, ética e estética.
Mesmo que o atual momento histórico não seja, a rigor e unanimemente,
entendido como um momento de crise, muitos pensadores se ocuparam, nas últimas
décadas, com o questionamento do projeto moderno, freqüentemente, apontando a
sensação de falta de sentido e um certo desnorteamento do homem contemporâneo como
evidências dessa suposta crise. Conseqüentemente, parece estar ocorrendo uma
intensificação no processo de reavaliação dos próprios rumos da humanidade, a qual tem
apontado a valorização da linguagem poética como uma alternativa frente à crise do projeto
moderno. Mas o que de particular no estado poético que faz com que o estético seja
entendido, nas palavras de Subirats, como sendo parte de um “último bastião de
resistência”?
36
A cultura como espetáculo, p.138.
114
O estado poético, fruto da experiência estético-artística, evoca dimensões
desconhecidas ao pensamento prosaico do dia-a-dia, focalizando, desta forma, a esfera na
qual é possível restabelecer a união do homem com o mundo. Isto porque, no estado
poético, nossas vivências são significadas a partir do solo irrefletido da existência humana.
No dizer de Frayze-Pereira
37
,
são imagens que formam a primeira repercussão do mundo no homem. E
é do artista criador libertar essas imagens fixando-as nas formas que
solicitam, abrir por essa via um mundo no qual o espectador, o leitor, isto
é, seu outro, possa, por sua vez, penetrar, elaborar percepções e
pensamentos, refletir e interrogar.
A arte, portanto, é um fenômeno no qual se conjugam as faculdades humanas,
podendo ser entendida como um elo entre sonho e realidade, entre o inconsciente e o
consciente e, por fim, entre o sensível e o inteligível. Havíamos afirmado anteriormente que
coadunar, de forma mais harmônica, essas esferas do humano é o requisito maior da própria
racionalidade que necessita, portanto, da valorização de uma razão conciliadora, capaz de
ultrapassar os limites impostos pela crença numa suposta compartimentalização do homem
em forças opostas. Se este for, de fato, um objetivo passível de ser logrado, não podemos
deixar de considerar o fenômeno estético um importante auxílio para a constituição dessa
razão. Isto porque, como nos explica Dufrenne
38
, “o objeto belo é aquele que realiza, no
apogeu do sensível, a adequação total do sensível e do sentido e que, assim, suscita o livre
acordo da sensibilidade e do intelecto.” Sendo assim, e aqui está o núcleo do presente
estudo, a experiência estética, entendida como uma experiência fundamental da existência
humana, pode ser um importante fator constituinte de uma razão que deve, por analogia, ser
nomeada razão estética.
A razão estética pode ser compreendida como fruto possível do fenômeno
estético. Em outras palavras: é através da intencionalidade poética que a razão estética tem
a possibilidade de se exercer. Valorizar a consciência estética pode significar, desta forma,
para o homem que vive no nosso atual momento histórico, uma maior possibilidade de
37
Frayze-Pererira, op. cit., p.334.
38
Op. cit., p.51.
115
estabelecer um significado para sua própria existência, permitindo-lhe buscar o sentido da
sua existência não na compreensão lógica proporcionada pelos nossos processos
inteligíveis, mas também nos sentimentos, ou seja, na dimensão irrefletida da sua
existência. Ao simbolizarmos através da arte o irrefletido, ele torna-se consciente e,
portanto, refletido ainda que esta reflexão não se no modo lógico-conceitual, mas no
estético-analógico (ou, segundo Morin, no modo da linguagem poética).
Devemos, então, trazer de volta à discussão a questão do desprezo ao corpo
enquanto fonte de significação promovido pela mentalidade moderna
39
. Atualmente é
praticamente unânime a idéia de que a arte não é puramente fruto do intelecto, o que
equivale dizer que o objeto estético tampouco é apreendido de forma puramente inteligível,
pois é condição da experiência estética o próprio envolvimento do corpo. Neste sentido,
Sabato
40
defende que “não se faz a arte, nem a sentimos, com a cabeça, mas com o corpo
inteiro; com os sentimentos, os pavores, as angústias e até os suores.” No entanto, a razão
submetida a uma lógica rígida e entendida como sinônimo de intelecção, garantiu, por
assim dizer, que o corpo fosse contraposto à própria razão. Como desse desprezo ao corpo
resulta, em última instância, um desprezo ao próprio sujeito
41
, vimos nascer, na
modernidade, a crença numa razão desenraizada e abstrata, por assim dizer, uma razão-
sem-sujeito. Não sem motivos, pois, veio à luz uma série de sistemas filosóficos que
propugnavam explicitamente a morte do sujeito.
a razão que aqui propomos não redime o corpo como fonte de
conhecimento mas o assume como um de seus mais importantes constituintes e vai, desta
forma, ao encontro do apelo que nos faz Rubem Alves
42
; “devemos retornar ao corpo. Não
outra maneira de se abranger o significado da vida e de se descobrir em que consiste ser
39
Segundo Duarte Jr. nossa modernidade preteriu “quase todo saber corporal em função do conhecimento
simbólico, racional e abstrato produzido pela nossa intelecção, num modo inteiramente apartado daquilo
revelado pelos sentidos humanos em sua plena acepção.” (O sentido dos sentidos, p.126).
40
O escritor e seus fantasmas, p.154.
41
Segundo Luijpen: “Sem corpo nem mundo o sujeito não é aquilo que ele mesmo é, ou seja, sujeito humano,
precisando, pois, do que ele não é – corpo e mundo – a fim de poder ser sujeito.” (op. cit., p.52).
42
A gestação do futuro, p.158.
116
e agir como um ser humano.” Esta razão assume, portanto, todo um mundo que nos é
revelado pelo corpo e ainda não significado pelo intelecto. Como explica Le Breton
43
,
como a língua, o corpo é uma medida do mundo, uma rede jogada sobre
a multidão de estímulos que assaltam o indivíduo ao longo de sua vida
cotidiana e que só retém em suas malhas os que lhe parecem mais
significativos. A cada instante, o indivíduo interpreta seu meio por
intermédio de seu corpo e age sobre ele de acordo com as orientações
provenientes de sua educação ou de seus hábitos. (...) O corpo não é,
portanto, uma matéria passiva, submetida ao controle da vontade,
obstáculo à comunicação, mas, por seus mecanismos próprios, é de
imediato uma inteligência do mundo. Esse conhecimento sensível
inscreve o corpo na continuidade das intenções do indivíduo confrontado
a seu ambiente; ele orienta em princípio seus movimentos ou suas ações
sem impor a necessidade preliminar de uma longa reflexão. De fato, na
vida cotidiana, os mil movimentos e ações que enriquecem a duração do
dia são feitos sem a mediação aprofundada do cogito encadeiam-se
naturalmente na evidência da relação com o mundo.
A reabilitação do modo de existir do corpo e, conseqüentemente, a valorização
do sensível
44
, permite uma relação mais fluida entre as significações sensíveis da
experiência vivida e os conteúdos inteligíveis. A parcela do conhecer pré-reflexiva e pré-
conceptual que encontra sua gênese no mesmo solo irrefletido que serve de morada para as
emoções e os sentimentos o corpo é, desta forma, articulada com o conhecimento
inteligível, permitindo que o corpo retome sua parcela na constituição da razão. A
racionalidade, portanto, não promove a contraposição entre intelecto e corpo, mas os
aproxima; a inteira razão sabe que necessita atentar para o corpo para ser razão.
A experiência estética proporcionada pela arte, que promove uma articulação
entre o sensível, originário da presença do corpo no mundo, com o inteligível, fruto dos
processos intelectuais de significação desta presença, parece ser fundamentalmente
necessária para lograr esta valorização do conhecimento sensível, uma vez que o universo
43
Op. cit., p.190 [grifo nosso].
44
Segundo Frayze-Pereira, “voltado para uma ‘reabilitação ontológica do sensível’, o projeto de Merleau-
Ponty mostra-nos que o Sensível não é nem um mundo confuso que precisa ser posto em dúvida, nem
organização dos objetos dos sentidos pelo entendimento, nem conjunto atomizado de partes extra-partes. O
sensível é o modo de existir do corpo e das coisas. Para usar uma expressão de Paul Ricoeur, a propósito do
Sensível em geral: ‘é a ambigüidade de seu modo de ser que é exemplar’. Isto é, sua existência paradoxal,
condenada ao modo de presença-ausente visível-invisível, intersensorial e intersubjetivo, união do
múltiplo.” (Op. cit., p.187).
117
sensível se constitui, primordialmente, de imagens e memórias que dificilmente podem ser
“traduzidos” para símbolos lingüísticos-conceituais. A arte, que busca concretizar os
sentimentos numa forma, permite que nossa consciência inteligível se relacione com estas
memórias sensíveis de forma mais global e abrangente do que nos permite nosso
pensamento rotineiro baseado nos conceitos e em processos gicos. Devemos, aqui,
lembrar novamente a fundamental diferença entre a linguagem prosaica e a linguagem
poética: a arte, expressão por excelência da segunda, não tem o intuito de precisar ou
definir, como a prosa. A arte não diz, mas mostra. “E o que ela mostra, o que ela nos
permite, é uma visão direta dos sentimentos; nunca um significado conceitual.”
45
O que
leva Langer
46
a comentar que
a função primordial da Arte é objetivar o sentimento de modo que
possamos contemplá-lo e entendê-lo. É a formulação da chamada
‘experiência interior’, da ‘vida interior’, que é impossível atingir pelo
pensamento discursivo, dado que suas formas são incomensuráveis com
as formas da linguagem e de todos os seus derivativos (por exemplo, a
Matemática, a Lógica Simbólica). A Arte objetiva a senciência e o desejo,
a consciência do mundo, as emoções e os humores, que geralmente são
tidos por irracionais, visto que as palavras não nos podem dar clara idéia
deles. Mas a premissa tacitamente pressuposta em tal juízo qual seja:
que tudo aquilo que a linguagem não pode expressar é amorfo e
irracional parece-me errônea. Creio que a vida do sentimento não é
irracional; apenas, as suas formas lógicas diferem muito das estruturas
do discurso. Elas são, contudo, tão semelhantes às formas dinâmicas da
Arte que esta constitui-se no seu símbolo natural. Através das artes
plásticas, da música, da ficção, da dança ou das formas dramáticas,
podemos conceber o que sejam a vitalidade e a emoção.
Por fim, se a questão é estabelecer um elo entre o inteligível e o sensível, não
podemos deixar de dirigir nossa atenção para as Cartas sobre a educação estética do
homem (1795) de Friedrich Schiller. Antes de propriamente nos debruçarmos sobre o
conteúdo das cartas, escritas numa linguagem arguciosa e num exemplo de rara intimidade
entre conteúdo e estilo, deve-se salientar que a própria característica do texto exige um
45
João Francisco Duarte Jr, Fundamentos estéticos da educação, p.83.
46
Ensaios Filosóficos, p.87.
118
elevado número de citações no intuito de minimizar as possibilidades de se cometer uma
injustiça para com o texto original.
Embora escritas num espírito kantiano, as cartas anunciam um certo relutar
quanto ao moto iluminista da razão soberana
47
. Mostrando ainda uma desconfiança com os
rumos que estava tomando a Revolução Francesa, Schiller parece sintetizar a questão
principal desta sua obra na seguinte passagem:
de onde vêm, pois, este domínio ainda tão geral dos preconceitos e esta
turbação das mentalidades, à revelia de toda a luz que filosofia e
experiência acendem? Nosso tempo é ilustrado; vale dizer que foram
encontrados e tornados públicos os conhecimentos que seriam suficientes,
ao menos para a correção de nossos princípios práticos; o espírito da
livre investigação destruiu os conceitos fantasiosos que por muito tempo
vedaram o acesso à verdade e minou o solo sobre o qual erguiam seu
trono a mentira e o fanatismo; a razão purificou-se das ilusões dos
sentidos e dos sofismas enganosos, e a própria filosofia, que a princípio
nos rebelara contra a natureza, chama-nos de volta para seu seio com voz
forte e urgente – onde a causa de, ainda assim, continuarmos bárbaros?
48
A resposta para esta questão Schiller acredita ter encontrado na repressão dos
sentimentos típica de sua época. O filósofo havia, desta forma, pressentido, ainda no século
das Luzes, o que o presente estudo vem tentando demonstrar como uma característica do
próprio período moderno. No entanto, Schiller também aponta o oposto, a domínio do
sentimento sobre a reflexão como uma outra forma de dissociação do homem. Em ambas, o
homem estaria, segundo o filósofo, vivendo em “oposição a si mesmo”. Deixemos,
entretanto, que o próprio Schiller
49
nos explique com suas palavras que “o homem... pode,
por duas maneiras, viver em oposição a si mesmo: como selvagem, quando seus
sentimentos imperam sobre seus princípios, ou como bárbaro, quando seus princípios
destroem seus sentimentos.” Podemos, neste sentido, compreender a seguinte observação
de Mattei
50
:
47
Segundo Marc Jimenez: “Friedrich von Schiller redige suas Cartas sobre a educação estética do homem
num espírito kantiano. Mas já se anuncia a crítica das teses kantianas e das Luzes em geral” (Op. cit., p.145).
48
Friedrich Schiller, Cartas sobre a educação estética da humanidade, p.61.
49
Idem, p.46.
50
Idem, p.73-74.
119
na linha de Vico, que havia pressentido, no mesmo século, a escalada de
uma segunda barbárie’ a ‘barbárie da reflexão’, muita mais perigosa
que a ‘barbárie dos sentidos –, Schiller opusera essas duas formas
contrárias da depravação humana: a da selvageria, que desencadeia a
violência anárquica dos sentimentos, e a da barbárie, que desfaz todas as
energias criadoras fechando-se sobre o Eu.
Para compreendermos melhor o pensamento de Schiller devemos,
primeiramente, compreender as duas diferentes forças que impulsionam o homem para a
realização de seus objetivos e que, desta maneira, devem ser chamados de impulsos. Nas
palavras do próprio Schiller
51
,
o primeiro destes impulsos, que chamarei sensível, parte da existência
física do homem ou de sua natureza sensível, e está empenhando em
submetê-lo às limitações do tempo, em torná-lo matéria: não quer dar-lhe
matéria, pois para isto seria necessária uma livre atividade da pessoa
que a recebe e distingue da própria identidade. Matéria não significa,
aqui, mais que modificação ou realidade, que preencha o tempo; este
impulso exige, portanto, que haja modificação, que o tempo tenha um
conteúdo. Este estado de tempo meramente preenchido chama-se
sensação, e é somente através dele que se manifesta a existência física.
Embora seja este primeiro impulso o que “desperta e desdobra as disposições da
humanidade, é também ele que torna impossível sua perfeição”.
52
Desta forma,
quando... este instinto age exclusivo, existe necessariamente a máxima
limitação; o homem neste estado nada mais é que uma unidade
quantitativa, um momento de tempo preenchido ou melhor, ele não é,
pois sua personalidade fica negada enquanto é dominado pela
sensibilidade e arrastado pelo tempo.
53
Quando dominado somente pelo impulso sensível o homem se opõe à sua
própria personalidade, Vive, portanto, exclusivamente no presente e limita, desta maneira,
toda a gama de determinações possíveis a um único momento: o presente.
51
Idem, p.76.
52
Ibidem, p.77.
53
Ibidem, p.77.
120
“o segundo impulso poderíamos chamar de formal; tem ponto de partida no
ser absoluto do homem ou na sua natureza racional e visa libertá-lo, harmonizar a
diversidade de suas aparências e afirmar sua pessoa contra toda variação em seu estado.”
54
Embora Schiller tenha usado aqui a expressão vernünftigen Natur ou, na tradução acima,
natureza racional, o presente estudo entende que o autor se refere, aqui, à natureza
intelectiva do homem que, sem dúvida é um importante constituinte da razão, mas que não
deve ser plenamente identificada com a razão. Uma possível evidência que Schiller poderia
ter pensado desta forma é a afirmação, na XIV carta, de que a relação de reciprocidade
entre os dois impulsos é uma tarefa da razão, que o homem pode realizar plenamente na
perfeição da sua existência.”
55
A razão, no original Vernunft, não aparece identificada
assim, com nenhum dos dois impulsos, mas sim como uma instância, por assim dizer,
superior, uma vez que trata de estabelecer uma relação de reciprocidade entre ambas.
Como vimos, é no impulso formal que ocorre a afirmação da personalidade e no
qual encontramos uma tendência a negar o tempo e a modificação. Desta forma, se o
“sentimento pode apenas dizer: isto é verdade para este sujeito e neste momento
56
, uma
vez que bastaria um outro momento e um outro sujeito para que fosse afirmada uma
sensação diferente, Schiller defende que “o pensamento... afirma, isto é, ele decidiu para
sempre e eternamente, e a validez de seu juízo é penhorada pela própria personalidade que
resiste a toda transformação.
57
Schiller aponta que “à primeira vista, nada nos parecerá mais contraditório que
as tendências destes dois impulsos, na medida em que um visa a modificação, enquanto o
outro quer a imobilidade”.
58
Eis aqui uma questão que merece nossa atenção: trata-se de um
antagonismo originário e necessário? Caso a resposta seja afirmativa
é óbvio que para assegurar a unidade do homem não resta outro meio
senão o de subordinar incondicionalmente o impulso sensível ao racional.
Daí, contudo, poderá nascer apenas a uniformidade, nunca a harmonia, e
o ho4mem ficará eternamente partido. Embora a subordinação seja
54
Ibidem, p.78.
55
Ibidem, p.85.
56
Ibidem, p.78.
57
Ibidem, p.78-79.
58
Ibidem, p.79.
121
necessária, deverá ser recíproca: pois conquanto os limites não possam
fundar o absoluto e a liberdade não possa depender do tempo, é também
verdade que o absoluto não poderá, por si só, fundar os limites, que o
estado no tempo não poderá depender da liberdade. Ambos os princípios
são mútua e simultaneamente coordenados e subordinados, isto é, estão
em relação de reciprocidade: sem forma não há matéria, sem matéria não
há forma.
59
Na opinião de Schiller é justamente uma tarefa da cultura garantir e assegurar
os limites entre os impulsos, tratando ambos com igual justiça. A cultura, assim,
não busca afirmar apenas o impulso racional contra o sensível, mas
também este contra aquele. Sua tarefa, portanto, é dupla: primeiramente,
resguardar a sensibilidade das intervenções da liberdade; segunda,
defender a personalidade contra as forças da sensação. Uma tarefa ela
realiza pela educação da faculdade sensível, a outra, pela educação da
faculdade racional.
60
Schiller havia, ainda no século XVIII, alertado que “os dois impulsos
necessitam... de limitação e, quando pensados como energias, de um ponto de repouso;
aquele [o impulso sensível], a fim de não burlar o domínio da legislação; este [o impulso
formal], para não penetrar o campo da sensibilidade.”
61
No decorrer deste trabalho,
demonstrou-se que nossa cultura moderna, ao invés de tentar garantir o diálogo e a
equanimidade destas duas faculdades, promoveu uma excessiva valorização da nossa
faculdade inteligível, identificando, desta forma, o repouso do impulso sensível com o que
Schiller chamou de um “embotamento da sensação”. No entanto, o próprio Schiller havia
defendido que
o repouso do impulso sensível não deve... ser o efeito de uma
incapacidade física e de um embotamento da sensação, pois mereceria
então desprezo; deve ser um passo da liberdade, uma atividade da pessoa
que modera, por seu vigor moral, a intensidade dos sentidos e toma às
impressões, pelo domínio, a profundidade, para dar-lhes superfície.
62
59
Ibidem, p.80 (nota de rodapé).
60
Ibidem, p.80-81.
61
Ibidem, p.84.
62
Ibidem, p.84.
122
Como vimos, enquanto o impulso sensível deseja a modificação e tente a
afirmar o tempo presente como realidade última, o impulso formal tende a negar a
passagem do tempo, pretendendo, desta forma, a manutenção da personalidade em
detrimento da variação do estado pessoal.
63
Qual o caminho, portanto, para o equilíbrio
entre estes dois impulsos tão antagônicos? Na opinião de Schiller existiria um terceiro
impulso, nomeado impulso lúdico
64
, no qual os dois primeiros se conjugam e que “aspira a
superar o tempo e combinar ao ser absoluto o devir, a modificação à identidade.”
65
Cada
um destes impulsos tem seus próprios objetos, como Schiller nos explica na passagem
transcrita abaixo:
o objeto do impulso sensível, expresso num conceito geral, chama-se vida
em seu significado mais amplo; um conceito que significa todo o ser
material e toda a presença imediata nos sentidos. O objeto do impulso
formal, expresso por um conceito geral, é a forma (figura), tanto em seu
significado próprio como metafórico; um conceito que compreende todas
as disposições formais dos objetos e todas as suas relações com as forças
do pensamento. O objeto do impulso lúdico, representado num esquema
geral, é a forma (figura) viva; um conceito que denomina todas as
disposições dos fenômenos, tudo que entendemos no mais amplo sentido
por beleza.
66
Desta forma, a beleza da forma como é entendida por Schiller e também por
este estudo, não é fruto exclusivamente do impulso sensível, ou seja, da vida vivida;
tampouco é mera figura impulsionada pelo impulso formal. A beleza é, sim, “objeto
comum de ambos os impulsos, e, portanto, do impulso lúdico.”
67
Esta característica de mediadora entre o impulso formal e o impulso sensível
que a beleza exerce, garante que, através da experiência do belo, tanto o homem sensível
seja conduzido à forma e ao pensamento quanto o homem intelectivo recupere o mundo
63
Segundo Schiller: “o impulso sensível quer que haja modificação, que o tempo tenha conteúdo; o impulso
formal quer o tempo negado, para que não haja modificação.” (Idem, p.86).
64
Segundo Schiller: “este nome é plenamente justificado pela linguagem corrente, que costuma chamar de
jogo tudo aquilo que, não sendo subjetiva nem objetivamente contingente, ainda assim não tem necessidade
interior nem exterior.” (Idem, p.90).
65
Ibidem, p.86.
66
Ibidem, p.88.
67
Ibidem, p.90.
123
sensível. Desta forma, “a beleza... liga estados que são opostos e nunca podem unir-se”
68
,
ou seja, a experiência estética não une o sensível e o inteligível no sentido de fundi-los, mas
estabelece, sim, um elo entre eles. Existe, portanto, uma zona intermediária entre o impulso
sensível e o impulso formal na qual o sensível e o inteligível coexistem de forma ativa e
que só pode ser adentrado pela experiência do belo. Esta zona intermediária é o estado
estético, estado no qual, nas palavras do próprio Schiller
69
não há força... que lute contra forças, nem carência em que pudesse
irromper o tempo. Irresistivelmente seduzidos por um, mantidos à
distância por outro, encontramo-nos em estado simultâneo de repouso e
movimento máximos, surgindo aquela maravilhosa comoção para a qual
o entendimento não tem conceito e a linguagem não tem nome.
70
Como vimos, Schiller afirma a necessidade de um desenvolvimento harmônico
entre o inteligível e o sensível e reconhece, na potencialidade da arte em conduzir-nos a um
estado estético, a possibilidade se criar um elo entre estas duas forças opostas.
Podemos ainda anotar que, para Schiller, a repressão ou a supressão da natureza
sensível significaria, para o homem, a perda da liberdade. Conseqüentemente, se a vida
moral fosse conquistada pelo mero desprezo ou pela mera supressão dos impulsos sensíveis
apareceria desprezada também a liberdade do homem. Podemos então nos perguntar: qual o
caminho para a verdadeira moral, baseada não na necessidade, mas na liberdade? Na quarta
carta Schiller aponta a totalidade de caráter como o meio de se evitar a confusão moral e
coloca em cena a educação estética como o caminho para uma moral baseada na liberdade.
É somente a partir da totalidade de caráter, proporcionado pelo estado estético, que o
homem pode atingir o estado da liberdade. Em pelo menos duas passagens encontramos a
corroboração desta idéia. Na primeira delas, ainda na segunda carta, Schiller
71
promete que
mostrará “que para resolver na prática o problema político é necessário caminhar através do
68
Ibidem, p.100.
69
Op. cit., p.93-94.
70
“N.T. Schiller revela aqui uma profunda intuição da essência do estado estético: a intensa empatia com o
objeto estético e, ao mesmo tempo, a manutenção da distância em face dele. Esta atitude ao mesmo tempo
emotiva e contemplativa, de entrega e de retrocesso, na apreciação da obra de arte, é confirmada pela atual
pesquisa fenomenológica. (p.94)”
71
Op. cit., p.39.
124
estético, pois é pela beleza que se vai à liberdade”. Numa segunda passagem o autor afirma
que “é preciso encontrar totalidade de caráter, portanto, no povo que deva ser capaz e digno
de trocar o Estado da necessidade pelo Estado da liberdade.”
72
Schiller aponta, desta forma, o desenvolvimento dos dois impulsos
fundamentais o sensível e o formal como o fundamento da liberdade. Como ele mesmo
nos explica, a liberdade
principia somente quando o homem escompleto e tem desenvolvidos
seus dois impulsos fundamentais; ela estará ausente, pois, enquanto ele
for incompleto e tiver excluso um dos dois impulsos, podendo ela ser
reconstituída por tudo aquilo capaz de torná-lo de novo completo.
73
Por fim, vale salientar que Schiller afirma, na sua XXIII carta, que “a passagem
do estado passivo da sensibilidade para o ativo do pensamento e do querer dá-se... somente
pelo estado intermediário de liberdade estética”
74
, para afirmar, logo após, que não existe,
portanto, “maneira de fazer racional o homem sem torná-lo, antes, estético”.
75
Ou em outras
palavras: não existe maneira de lograr o estabelecimento da razão sem que o homem atinja,
primeiramente, o estado estético. Percebe-se, portanto, que a tese defendida neste presente
trabalho muito se assemelha com as idéias apresentadas por Schiller nas suas cartas.
Certamente vimos, nos parágrafos acima, assim como em todo este capítulo, e
talvez na contramão do que freqüentemente vem sendo pensado sobre a razão, uma
profunda defesa da razão como força de libertação e de emancipação do homem. Esta não é
uma tese nova, isto é certo; os iluministas a defendiam ainda no século XVIII. No entanto,
toda a defesa da razão aqui proposta é amparada no que Sérgio Paulo Rouanet chama de
“consciência neomoderna” a qual, em suas palavras,
é a consciência de uma modernidade que refletiu sobre si mesma, sobre
suas origens e seus desvios. Ela [a consciência neomoderna] dispõe de
toda uma experiência acumulada ao longo de dois séculos. Sabe que o
72
Ibidem, p.47.
73
Ibidem, p.108.
74
Ibidem, p.119.
75
Ibidem, p.119.
125
progresso material não foi necessariamente acompanhado de maior
liberdade, mas não se demitiu da ciência e da técnica. Sabe que a razão
não é um cogito totalmente transparente a si mesmo e funciona muitas
vezes como a máscara do irracional, mas não renunciou à razão: ao
contrário, a partir de Marx e Freud pode fundar um racionalismo
infinitamente mais rico que o Iluminismo clássico.
76
Este autor afirma, ainda na mesma obra, a possibilidade de se compreender esse
movimento nascido com a consciência neomoderna, como sendo um novo Iluminismo.
Deixemos que novamente ele nos explique que
a razão do novo Iluminismo não pode ser a do século XVIII, que
desconhecia os limites internos e externos da racionalidade e não sabia
distinguir entre razão e ideologia. A nova razão deveria ter as
características que atribuí à razão sábia: capaz de crítica e autocrítica,
apta a devassar em suas verdadeiras estruturas das leis e instituições,
armada para desmascarar os discursos pretensamente racionais e
consciente de sua vulnerabilidade ao irracional.
77
A razão, como vimos, encontra, no caminho até sua consolidação, um feroz
adversário e só pode se consolidar se atentar para este adversário. Como Jaspers
78
o afirma,
“esse adversário, nós o defrontamos no mundo, porém, mais perigoso ainda, se aloja em
cada um de nós, Se pensamos tê-lo vencido, já sucumbimos a ele.” A não-razão nasce
quando a razão deixa de ser sustentada pela própria existência concreta do homem. Neste
sentido podemos entender que uma civilização baseada no princípio de racionalização e
não na verdadeira racionalidade – não poderia se mostrar uma civilização que não fosse, em
última instância, irracional. Mas de onde o adversário da razão tira suas forças? Numa
citação um tanto extensa, mas de extrema importância, é novamente Jaspers
79
quem
responde a esta questão:
Há em nós alguma coisa que deseja:
não a razão, mas o mistério;
76
Sérgio Paulo Rouanet, op. cit., p.273.
77
Sérgio Paulo Rouanet, Op. cit., p.31.
78
Op. cit., p.71.
79
Idem, p.72.
126
não um pensamento penetrante, claro, mas o sussurro;
não a reflexão que e escuta, aberta a tudo, mas o caprichoso
abandono a uma obscura multiplicidade;
não a compreensão humana, que modera as suas exigências, mas
uma onisciência gnóstica no absurdo;
não a ciência, mas a feitiçaria com máscara científica; não a
eficácia racionalmente fundada, mas a magia; não a fidelidade digna de
confiança, mas a aventura; não a liberdade, que é uma só coisa com a
razão, a lei e a escolha da própria historicidade, mas um cego excesso de
liberdade, ao mesmo tempo que uma obediência cega, sob uma opressão
que não tolera questão alguma.
Qual a razão desse desejo de mistério, sussurro, absurdidade,
feitiço, magia, aventura e, por fim, de cego excesso de liberdade ao
mesmo tempo que de cega obediência?
Sempre que a razão não é mais sustentada e preenchida pelo ser
autêntico de um homem, resvalando para o mero entendimento, nasce do
mundo desse entendimento a insuportável insatisfação. A razão, não mais
compreendida, aparece agora como vazia, como um nada, um mundo de
abstrações, de formas pálidas, indiferentes, que se acumulam ao infinito.
O fundamento do nosso ser anseia por plenitude, presença e
corporeidade. Mas o acesso a essas coisas é dúplice. Ou se tornam
verdadeiras como plenitude genuína, sob a direção da razão e como
construção na continuidade histórica, por obra da razão; ou se
transformam em ilusão, na dispersão e desorientação da multiplicidade e
da eventual variação, sem a razão e contra a razão.
Eis aqui a encruzilhada entre razão e não-razão. Sabemos, entretanto, que a
razão encontra sua força, e não sua fraqueza, na existência concreta do homem e na
presença que o mundo estabelece para a própria corporeidade humana. A racionalidade,
portanto, não é sinônimo de intelecção e só pode nascer do diálogo entre inteligível e
sensível do qual resulta a possibilidade de se englobar a significação que o homem faz de
suas experiências vividas. Mas, acima de tudo, devemos estar sempre cientes de que “a
todo momento estamos interiormente diante desta encruzilhada: a possibilidade de sermos
nós mesmos mediante a razão.”
80
80
Idem, p.73.
127
CONCLUSÃO
Assim, a multiplicidade de sentidos que a obra de
arte descortina faz-nos continuamente um convite: para
que nos deixemos conduzir pelos intrincados caminhos dos
sentimentos, onde habitam novas e vibrantes possibilidades
de nos sentirmos e de nos conhecermos como humanos.
João Francisco Duarte Jr.
Uma sociedade que negligencia a iluminação e a
identificação dos sentimentos mediante a arte, entrega-se
aos descaminhos das emoções amorfas, que assustam como
vultos no escuro. Tais sociedades celebram um pacto
problemático com certo irracionalismo que irrompe do
desconhecimento de si.
Regis de Morais
128
Não é intuito desta conclusão simplesmente resumir tudo o que foi discutido
anteriormente; a tentativa de sintetizar todos os tópicos discutidos no decorrer dos capítulos
precedentes dificilmente poderia ser realizada de forma satisfatória, uma vez que os temas
apresentados se somam na tentativa de construir uma linha de pensamento na qual forma
expositiva e conteúdo aparecem intrinsecamente emaranhados. Os principais tópicos
apresentados serão, entretanto, retomados na medida que colaborarem para que sejam
tecidas nossas considerações finais. Deve-se ainda salientar que a própria natureza do
presente estudo garante a impossibilidade de este apresentar uma conclusão clara e
objetiva. Ao invés disto, terminamos justamente propondo uma hipótese: a de que a
experiência estética é fundamental para o desenvolvimento equilibrado entre as duas
faculdades básicas do homem – a intelecção e a sensibilidade – e, conseqüentemente,
fundamental para o estabelecimento de uma razão que se exerça de forma plena.
Retornamos, pois, à proposta apresentada no parágrafo de abertura da introdução. Essa
coincidência, entretanto, não significa que os objetivos deste trabalho não foram atingidos.
Como afirmado, reside em seu desenvolvimento a sua finalidade maior: a apresentação
de uma defesa das suas propostas. Podemos entender, portanto, que pouco resta a esta
conclusão a não ser esclarecer qualquer posicionamento que tenha ficado pendente ou tecer
considerações a respeito do que fazer, daqui para frente, a respeito do que foi discutido.
Pode-se julgar que o tratamento dispendido às questões abordadas é demasiado
heterogêneo para que este trabalho seja considerado coeso no que tange à sua exposição.
No entanto, é necessário dizer que, de forma alguma, foram esgotadas as possibilidades e
visões sobre os temas aqui abordados. Freqüentemente preferimos mencionar rapidamente
trabalhos que, na realidade, são muito mais profundos e complexos e outras tantas vezes
preferimos deixar abordagens extremamente interessantes de lado pela exigüidade de
espaço. Em parte, esta falta pode ser explicada pelo grande número de pensadores que se
ocuparam com as questões debatidas.
Podemos entender que a razão foi, aqui, pensada e discutida a partir do uso da
própria razão. Com o objetivo de minimizar esta aparente aporia, pensadores que se
ocuparam com uma crítica da razão freqüentemente criaram um termo alternativo para
descrever um entendimento diferenciado de razão. Este foi o caso de Nietzsche com sua
129
“grande razão”, de Ortega y Gasset com sua “razão vital” ou de Maffesoli com sua “razão
sensível”, entre outros. Contrapondo conceitos diferentes de razão, esperavam diminuir as
chances de adentrarem num beco sem saída, situação na qual suas teorias apresentariam
uma contradição intrínseca. É quase desnecessário dizer que esta também foi, pelo menos
parcialmente, a justificativa para se nomear uma “nova razão” – no caso, a razão estética.
Eis a condição mesma da razão estética aqui delineada: o estabelecimento de
um diálogo entre refletido e irrefletido, entre inteligível e sensível. Embora seja factível a
razão se ocupar de seu fundamento irrefletido, uma grande parcela do que a constitui
sempre permanecerá rebelde aos processos racionais. Assim, da natureza mesma da razão
decorre a impossibilidade de defini-la; a razão não basta para esgotar a razão. No entanto, a
abdicação da tentativa de se compreender esta dimensão rebelde é, ao mesmo tempo, a
abdicação da possibilidade de conquista da razão. Neste sentido apontamos a atribuição da
experiência estética na constituição da razão estética; é na experiência estética que a parcela
da dimensão irrefletida irredutível à conceitualização tradicional, encontra a possibilidade
de ser conscientizada. Sendo assim, a tentativa foi apontar, na experiência estética, a
possibilidade de a razão estética se exercer.
Qual a relação do que foi dito com a arte? Para responder a esta questão pode-
se pedir auxílio a Michel Foucault
1
que, durante sua última entrevista, no ano de 1984,
demonstrou espanto pelo fato de que
em nossa sociedade a arte tenha relação com os objetos e não com os
indivíduos ou com a vida; e também que a arte seja um domínio
especializado, o domínio dos especialistas que são os artistas. Mas a vida
de todo indivíduo não poderia ser uma obra de arte? Por que um quadro
ou uma casa são objetos artísticos, mas não a nossa vida?
Acredita-se que os objetivos deste trabalho estejam, de certa forma,
conectados com o ideal de se “fazer da vida uma obra de arte” presente na fala de Foucault.
Isto porque, como aponta Frayze-Pereira
2
, obviamente a proposta de Foucault
1
Apud Frayze-Pereira, op. cit.,p.156-157.
2
Op.cit., p.157.
130
não significa apelar a qualquer forma frívola ou ornamental de
esteticismo. Ao contrário, ‘fazer da vida uma obra de arte’ é um trabalho
que exige deixar surgir a multiplicidade do ser que nos constitui desde o
nosso corpo e reconhecer nela uma forma capaz de dar fundamento e
coesão às suas múltiplas expressões.
Tentamos ainda demonstrar que, se a tentativa de deixar “surgir a
multiplicidade do ser” não pode ser fruto de uma rejeição do sensível tampouco pode
significar o rompimento com a dimensão racional e lógica do conhecimento. Busca-se
assim, a articulação e o equilíbrio entre ambas. Neste sentido, a valorização das disciplinas
das áreas de humanidades e de artes provavelmente constitua um contrapeso essencial à
cultura tecnocrática. Que fique claro, portanto, que não defendemos, em nenhum momento,
um rompimento ou uma objeção à ciência ou mesmo à técnica. Fazemos eco às
considerações de Rouanet
3
quando este afirma que não defende
qualquer hostilidade às disciplinas científicas [mas]... sim, uma oposição
de princípio ao transbordamento da ciência e da técnica além de sua
esfera específica de validade. Em seu sentido integral, a razão é a
unidade da razão científica, prática e estética. Não podemos aceitar
monopólio de nenhuma das partes, como ocorreria se a razão científica
quisesse impor-se como único padrão de racionalidade, submetendo a
totalidade da vida a seus imperativos funcionais.
Como vimos, durante o desenrolar da modernidade “o inteligível e o sensível
vieram, pois, sendo progressivamente apartados entre si e mesmo considerados setores
incomunicáveis da vida, com toda a ênfase recaindo sobre os modos lógicos-conceituais de
se conceber as significações.”
4
A razão foi, inclusive, por vezes identificada com a própria
dimensão inteligível, que por sua vez foi, em outros momentos, identificada com o modo de
a ciência e a técnica operarem. Esta redução parece ter garantido o que Rouanet chamou de
“transbordamento da ciência e da técnica além de sua esfera específica de validade”. O
perigo deste transbordamento é a própria irracionalidade. Assim, atualmente vem se
percebendo que o princípio racionalista sobre o qual se pensou estar edificando a
civilização moderna freqüentemente produziu o efeito contrário do esperado:
3
Sérgio Paulo Rouanet, op. cit., p.322.
4
João Francisco Duarte Jr., O sentido dos sentidos, p.163.
131
irracionalidade. Subirats
5
apontou este fenômeno como o surgimento de um “conflito entre
racionalização integral da cultura e a irracionalidade de seus fenômenos objetivos”.
A tentativa de se superar a natureza através da tecnologia também acabou por
revelar perigosos efeitos colaterais como, por exemplo, a ameaça de colapso ambiental, ora
tão evidente.
Mesmo se a natureza exterior e humana pudesse ser totalmente
substituída por uma natureza artificial insólito projeto formulado pelas
vanguardas o resultado seria ambíguo e paradoxal. Uma cultura
completamente racionalizada conforme critérios tecnológicos poderia,
certamente, celebrar sua independência com respeito à natureza, porém
não se livraria do sentimento de temor, da angústia produzida por sua
força incontrolável ou superioridade face às capacidades limitadas do ser
humano. De fato, o que realmente sucedeu no seio das sociedades
desenvolvidas é que a angústia frente ao poder incontrolável da natureza,
ou às forças irracionais no indivíduo transferiu-se à própria máquina
como sua expressão simbólica.
6
O que Subirats chamou angústia e que tentamos caracterizar como ansiedade
no segundo capítulo marca a nica de uma humanidade que começa a questionar o
próprio rumo que a cultura vem tomando. Esta ansiedade, em larga escala, está ligada à
fragilização do indivíduo, decorrente da contraposição entre razão e sensibilidade.
Podemos, inclusive, entender como fruto deste conflito, a dificuldade que temos atualmente
para compreender o que está acontecendo no mundo. Este, bem como a própria existência,
tornam-se incertos. Esta incerteza realimenta, por sua vez, a ansiedade que o homem
experimenta. Deste modo, a fuga deste ciclo bem poderia se efetuar mediante o diálogo
entre inteligível e sensível, com a conseqüente ampliação da razão. Neste sentido, o homem
que reprime sua dimensão sensível na pretensão de seguir, invariavelmente, os apelos que
lhe faz seu intelecto, deixa de considerar um importante aspecto de sua vida, estando
fadado, em nossos dias, à ansiedade. Buscando resolver tal ansiedade, o homem
contemporâneo, incerto de seus valores e inseguro quanto à sua capacidade, acaba por
buscar em agentes externos os guias ideais para seu caminho. Em larga escala isto
5
Da Vanguarda ao Pós-moderno, p.43.
6
Eduardo Subirats, Da vanguarda ao pós-moderno, p.43-44.
132
explicaria o atual refortalecimento de igrejas salvacionistas que propõem, ao mesmo tempo,
valores morais e uma ordem transcendente, e ainda a sujeição aos ditames da publicidade
que procura vender produtos que confeririam ao seu portador uma identidade, um status ou
uma qualificação. Ronda o perigo de uma nova Idade Média. O homem contemporâneo
lenta e perigosamente vai, cada vez mais, abrindo mão das valiosas propostas iluministas de
emancipação. A cristalização na intelecção gera um afastamento da liberdade que pode
resultar do uso da razão plena. É este entendimento de razão que leva Rouanet
7
a defender
o Iluminismo como
a proposta mais generosa de emancipação jamais oferecida ao gênero
humano. Ela acenou ao homem com a possibilidade de construir
racionalmente o seu destino, livre da tirania e da superstição. Propôs
ideais de paz e tolerância, que até hoje não se realizaram. Mostrou o
caminho para que nos libertássemos do reino da necessidade, através do
desenvolvimento das forças produtivas. Seu ideal de ciência era de um
saber posto a serviço do homem, e não o de um saber cego, seguindo uma
lógica desvinculada de fins humanos. Sua moral era livre e visava uma
liberdade concreta, valorizando como nenhum outro período a vida das
paixões e pregando uma ordem em que o cidadão não fosse oprimido pelo
estado, o fiel não fosse oprimido pela religião, e a mulher não fosse
oprimida pelo homem.
Entenda-se: a proposta fundamental do Iluminismo, a do uso da razão como
condição de uma vida autônoma, deve ser mantida. Todavia, baseada numa ampliação do
conceito mesmo de razão.
Devemos atentar, ainda, para o outro lado da questão: aquele indivíduo que
abdica dos processos inteligíveis e torna-se, desta forma, refém de sua dimensão sensível.
Esvai-se, neste caso, a própria possibilidade de a razão se exercer. Perde-se, pois, uma
condição básica para a liberdade. E abandonar a liberdade possibilitada pelo uso da razão
plena é preparar o homem para a submissão a qualquer tipo de autoridade externa. Como
explica Jaspers
8
,
7
Op. cit., p.27.
8
Op. cit., p.77.
133
com o abandono da liberdade da razão, a antifilosofia prepara o homem
para a escravidão política. No declive mítico, faz naufragar o
conhecimento da liberdade. Ensina o homem a retirar-se para o terreno
da indiscutibilidade de uma irracional. Depois, quando não se vive
mais da liberdade, em breve não se sabe mais o que ela é. E porque nos
sentimos vazios, porque perdemos a nós mesmos e à verdade, queremos,
em nosso temor, ser subjugados. Sem percebê-lo, ao renunciar à razão,
renuncia-se também à liberdade. Estamos prontos para qualquer
totalitarismo, e seguimos, em comum com o rebanho, o carneiro-guia,
para a desgraça, o crime e a morte vergonhosa.
Certamente de se concluir que inteligível e sensível são dois importantes
aspectos da vida e que precisamos aprender a deixá-los em bons termos. A questão,
portanto, não é a identificação da razão com a experiência inteligível, mas a identificação
da razão com o diálogo entre inteligível e sensível. Não seesta a razão a qual Kant se
referia? Como Rouanet nos explica, “o lema sapere aude refere-se à razão em seu sentido
amplo, e não exclusivamente à razão científica
9
. O mesmo autor completa, logo em
seguida que
sem razão não emancipação, e sem emancipação não razão. Nesse
sentido, não por que opor Kant a Kant. Mas razão não é sinônimo de
razão tecno-científica. Um logos mutilado não oferece nenhuma garantia
de emancipação. Não pior irracionalismo que o conduzido em nome
de uma razão científica que usurpa as prerrogativas da razão integral.
10
Igualmente grave é o fato de que, levado a cabo o projeto de uma sociedade
racional a partir de um entendimento restrito de razão, negou-se também uma saída
construtiva para os instintos reprimidos sobre os quais repousam nossa civilização. Esta não
é uma situação que pode ser mantida sem graves conseqüências individuais e coletivas.
Como permitir que estes impulsos se manifestem sem ruir as próprias bases da nossa
civilização? aqui de se apontar a própria arte como um meio de acessar simbolicamente
dimensões que nossa capacidade inteligível não é capaz de atingir. A arte surge então como
uma tentativa de examinar e compreender a condição humana. Cabe, portanto, a seguinte
reflexão:
9
Op. cit, p.209.
10
Ibidem, p.210.
134
terá a arte um papel a desempenhar na evolução do homem e da
humanidade? Deverá a estética assumir uma função política? Kant
respondia negativamente a estas duas perguntas, de acordo com os
próprios princípios de sua filosofia. Schiller responde resolutamente de
forma positiva. Considera ele, de maneira muito moderna, que a criação
artística autônoma é também um fator de transformação da sociedade.
11
Para que não reste nenhuma sombra de dúvida: não se pretendeu, aqui, afirmar
que sobre a experiência estética deve recair a responsabilidade de garantir, no futuro, a
solução dos problemas da nossa cultura. Deve-se, entretanto, resgatar o potencial de
contestação da arte como aliado na construção de um novo entendimento de existência e,
em última instância, de razão. Se a questão passa a ser a contestação do instituído,
aparentemente não existe nada mais subversivo do que falar em experiência estética ou, em
outras palavras, em beleza como uma forma de conhecimento e de formação do homem
contemporâneo. A valorização da experiência do belo na arte não é um afastamento do
senso crítico; a experiência estética, encarada como possibilitadora da razão é também uma
condição da gênese da razão ampla e, conseqüentemente, do senso crítico. Pois anterior a
esta razão maior é a necessidade de a intelecção estabelecer um diálogo com o sentimento.
E a experiência estética, que permite o acesso a dimensões não redutíveis à linguagem
conceitual e à lógica, parece ser a condição desse diálogo.
Enfim: como colocar em prática as propostas que se enfileiraram nas páginas
precedentes? Esta não é uma pergunta de fácil resposta. Podemos, entretanto, entender que
este projeto pode ser fruto da valorização de uma nova mentalidade que aspire à razão
plena enquanto possibilidade e se lance à busca dos meios para sua conquista. Esta
valorização deve partir do nosso mundo da vida, das nossas relações sociais para atingir
dimensões mais amplas, proporcionadas por um projeto político que saiba dar valor a um
projeto educacional baseado nesta mesma mentalidade.
Tentamos apresentar aqui uma hipótese na qual estivesse contemplado o
aumento da consciência de nossas responsabilidades perante os outros e, em última
11
Marc Jimenez, op. cit., p.161.
135
instância, da responsabilidade em relação ao nosso próprio planeta. Sem dúvida, trata-se de
uma proposta utópica. No entanto, como Regis de Morais
12
confessa, “sinto que, nos dias
atuais, estamos colocados frente a um trágico dilema: a utopia ou nada. Não vislumbro
como discutirmos nossas possibilidades futuras, nem vejo como debatermos as questões
ecológicas sem a recorrência ao pensamento utópico.” Há, porém, que se distinguir entre a
utopia e a fantasia alienante.
13
“Consideramos utópicas todas as idéias situacionalmente
transcendentes (não apenas projeções de desejos) que, de alguma forma, possuam um efeito
de transformação sobre a ordem histórico-social existente”
14
É na simples possibilidade de
efetuar, de fato, uma transformação que reside a diferença entre a utopia e uma fantasia
alienante. A utopia nos transporta em direção a possibilidades distintas, apontando para
uma negação daquilo que já é instituído ou está prestes a se instituir. Por isso, conclui Regis
de Morais
15
que
acusar o pensamento utópico de falta de realismo é não haver
compreendido suas colocações. Não podemos julgar uma utopia pelo seu
grau de realismo. Devemos julgá-la, isto sim, pelo seu grau de negação da
realidade e pela sua capacidade de motivar mudanças.
Ligada à própria crítica da modernidade aparece, portanto, uma vontade de
mudança, fruto da insatisfação gerada por uma cultura desenvolvida de forma
desequilibrada.
16
Por fim, vale apontar que existe, no nosso atual momento histórico, no mínimo
dois grupos de distintas previsões; ainda estamos expostos ao otimismo de pensadores que
vêem, no devir da cultura, um futuro no qual os valores até aqui construídos pela nossa
sociedade moderna podem nos livrar da aparente irracionalidade de seus fenômenos
objetivos, ao mesmo tempo em que aumenta, cada vez mais, o número dos defensores de
12
Ecologia da mente, p.73.
13
“De minha parte, estou muito de acordo com... o sociólogo Karl Mannheim, quando este garante existir
radical diferença entre fantasia alienante e utopia.” (Regis de Morais, op.cit., p.75.)
14
Karl Mannheim apud Regis de Morais, op.cit., p.75.
15
Regis de Morais, Filosofia da ciência e da tecnologia, p.125-126.
16
Afirma ainda Regis de Morais: “há um desejo, uma vontade real e perceptível de mudança, talvez
decorrente do imenso cansaço com um mundo desequilibradamente desenvolvido: com ciência e tecnologia
avançadíssimas nas mãos de pigmeus.” (Ecologia da mente, p.78-79).
136
uma visão apocalíptica baseada, principalmente, na gravidade das questões sociais,
ecológicas ou individuais, que refutam completamente a possibilidade de a ordem instituída
mitigar os conflitos da nossa civilização. Mesmo esta visão apocalíptica não está isenta de
ser utópica; ela encerra um chamado por novos valores que sejam capazes de reverter o
processo que nos levou à eclosão da presente crise mundial. Freqüentemente se aponta a
arte como fundamental para esta renovação de valores. Nesta direção, argumenta Herbert
Read
17
, para quem o
processo de renovação numa civilização já estabelecida é realizado pelos
artistas, e é por isso que a vitalidade de uma civilização depende sempre
do funcionamento livre do processo estético. É por esse motivo que uma
civilização sem arte perece e uma civilização tecnológica perecerá a
menos que possa arranjar uma saída, ou melhor uma entrada, para o
espírito formador da imaginação.
A faculdade estética deve, portanto, ser estimulada e educada; não que se
deixá-la atrofiar. Através das portas da percepção esta faculdade é possibilitada; através do
diálogo com a intelecção ela ajuda a gestar a razão estética.
A vontade de um futuro diferente está vinculada à ação no presente. No entanto,
o homem, ao olhar para o presente, vê-se impelido à ansiedade pelo confronto com suas
responsabilidades. Imaginávamos que o poder sobre a vida e o rumo da sociedade estava
colocado na mão da razão e bastava, ao homem, o desejo de usá-la. Percebemos, junto com
Freud, que não basta desejar, deve-se conquistar o controle sobre a própria vida através da
conquista da razão. É hora de percebermos que nossas responsabilidades não terminam no
que tange os rumos da nossa própria vida. Devemos, sim, entendê-las como cruciais para a
sobrevivência da própria civilização. E em direção a este alvo convém disparar-se as setas
de uma razão estética.
17
A redenção do robô, p.100.
137
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