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Fábio Abreu dos Passos
A IMPLICAÇÃO POLÍTICA DA FACULDADE DE PENSAMENTO NA
FILOSOFIA DE HANNAH ARENDT
UFMG/2008
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A IMPLICAÇÃO POLÍTICA DA FACULDADE DE PENSAMENTO NA
FILOSOFIA DE HANNAH ARENDT
Aluno: Fábio Abreu dos Passos
Orientador: Newton Bignotto de Souza
Dissertação apresentada ao Departamento de Filosofia da FAFICH/UFMG,
como requisito parcial para obtenção do Título de Mestre em Filosofia.
Área de Concentração: Filosofia
Linha de Pesquisa: Filosofia Social e Política
Universidade Federal de Minas Gerais
2008
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Dissertação defendida e _________________, com a nota ___________________________
pela Banca constituída pelos professores:
Prof. Dr. Newton Bignotto de Souza (Orientador) UFMG
Prof. Dr. Helton Adverse – UFMG
Profa. Dra. Nádia Souki – FAJE
Pós-graduação em Filosofia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas
Universidade Federal de Minas Gerais
Belo Horizonte, ____ de _________ de 2008.
4
“Solidão não é a falta de gente para conversar, na-
morar, passear ou fazer sexo... Isto é carência! Soli-
dão não é o sentimento que experimentamos pela
ausência de entes queridos que não podem mais vol-
tar... Isto é saudade! Solidão não é o retiro voluntá-
rio que a gente se impõe, às vezes para realinhar os
pensamentos... Isto é equilíbrio! Solidão não é o
claustro involuntário que o destino nos impõe com-
pulsoriamente... Isto é um princípio da natureza! So-
lidão não é o vazio de gente ao nosso lado... Isto é
circunstância! Solidão é muito mais do que isto...
Solidão é quando nos perdemos de nós mesmos
e procuramos em vão pela nossa alma”.
Fátima Irene Pinto
5
DEDICATÓRIA
Este trabalho é dedicado a todos aqueles que fizeram e fazem parte de minha vida: meus ami-
gos do passado e do presente. Mas, dentre todas as presenças dedico especialmente este traba-
lho:
- Aos meus pais José Murilo e Ezilma, aos meus irmãos Marcelo e Simone, a minha
cunhada Karina, aos meus sobrinhos Marcelo e Marina. A eles todo o meu amor;
- A Hannah Arendt, em quem minha paixão pela Filosofia transborda nutrindo-me de
Esperança e Fé em um mundo em que o Pensamento é ativado constantemente.
6
AGRADECIMENTOS
A Deus que me deu o dom da vida.
A minha família, sustento de minha existência.
Ao Prof. Dr. Newton Bignotto, meu orientador, que demonstrou companheirismo e entusias-
mo, além de apresentar extraordinária capacidade de atenção. Os encontros com o Prof. New-
ton revelaram a sua dedicação e disponibilidade na orientação deste trabalho, desde o momen-
to da elaboração do projeto inicial.
Ao Prof. Dr. Helton Adverse, pela amizade e pelas valiosas críticas e sugestões a este meu
trabalho.
À Profa. Dra. Nádia Souki, pelo interesse ao tema deste trabalho e por aceitar participar da
banca de defesa da Dissertação.
Aos professores das disciplinas do Mestrado Francisco Javier Herrero Botin, Helton Machado
Adverse e Leonardo Alves Vieira.
Ao meu amigo e irmão Prof. Dr. José Luiz de Oliveira, por caminhar comigo nas trilhas das
abordagens arendtianas sempre com alegria e muita vontade.
Às Professoras Stela Vale Lara e Ms. Michelli Cristina de Sousa, pela amizade e pelo trabalho
de revisão da Dissertação.
A todas as amigas, amigos e parentes que depositaram confiança em mim.
A Universidade Federal de Minas Gerais, e a esta Faculdade (FAFICH) em particular, pela
confiança em mim depositada e por todo apoio que me tem sido dado ao longo desta convi-
vência. Estendo esta minha gratidão aos colegas de curso e funcionários desta instituição.
7
RESUMO
O tema central desta pesquisa é enfatizar a implicação política da faculdade de pensamento na
filosofia de Hannah Arendt. Assim, nossa intenção é demonstrar que em “situações limites”,
nas quais o espaço público inexiste, a “resistência”, fenômeno produzido pelo pensar, consti-
tui-se como uma espécie de “ação política”, pois ela impulsiona a motivação plural, a partir da
sua exemplaridade. A “resistência”, analisada nessa perspectiva, ou seja, no papel fomentador
da exemplaridade, culminará na realização da motivação plural, fazendo com que o pensar
possa atingir o “nós”, ou seja, a esfera pública, constituída pela pluralidade humana. Em ou-
tras palavras, o que pretendemos demonstrar é que em “situações limite” nas quais “o passado
cessa de lançar luz sobre o futuro, a mente do homem vaga na obscuridade” (TOCQUEVIL-
LE, 1969: 361), a “resistência” aponta, a partir de seu “exemplo”, para o fato de que não po-
demos esquecer nossa responsabilidade para conosco e para com o mundo.
PALAVRAS-CHAVES: Pensamento, Situações Limites, Resistência, Exemplo.
8
ABSTRACT
The central theme of this research is emphasizing the political implication of the faculty of
thought in Hannah Arendt’s philosophy. Thus, our intention is to show that in “boundary
situations”, in which the public space does not exist, the “resistance”, phenomenon produced
by thinking, consists as a kind of “political action”, as it boost the plural motivation, from its
exemplarity. The “resistance”, analysed in this perspective, that is, on the way of giving ex-
amples, will arrive at the realization of plural motivation, making that the thinking may come
of the “we”, that is, the public sphere, constituted by human plurality. In other words, what we
intend to prove by reasoning is that in “boundary situations”, which “the past stops to throw
light on future, the intellect walks in obscurity” (TOCQUEVILLE, 1969: 361), the “resis-
tance” points, from then its “example”, to the fact that we can not forget our responsibility
with by ourselves and by world itself.
KEW-WORDS: Thought, Boundary Situations, Resistance, Example.
9
SUMÁRIO
Introdução ................................................................................................................................................. 10
Capítulo I
Pensamento e Aparência .......................................................................................................................... 18
1.1. “A Desmontagem das Falácias Metafísicas” ................................................................................. 23
1.1.1. Pensar (Vernunft) e Conhecer (Verstand) ................................................................................ 30
1.1.2. O Valor da Superfície .............................................................................................................. 36
1.1.3. “Ser e Aparecer Coincidem” .................................................................................................... 42
1.1.4. Linguagem Metafórica ............................................................................................................. 47
Capítulo II
Consumo e Ausência de Pensamento ...................................................................................................... 56
2.1 A Ruptura com a Realidade. ............................................................................................................ 60
2.2. A Vitória do Animal Laborans ........................................................................................................ 71
2.3. A Sociedade de Massa .................................................................................................................... 83
2.4. Totalitarismo e Ideologia................................................................................................................ 90
Capítulo III
Pensamento e Política ............................................................................................................................. 106
3.1. O Espaço Público e a Ação Política ............................................................................................. 109
3.2.Filosofia e Cidade .......................................................................................................................... 119
3.2.1. “O Dois-em-Um” ....................................................................................................................... 129
3.3. A Dissolução do Espaço Público e a Impossibilidade de se Julgar ............................................. 142
3.4. As “Situações Limites” e “A Resistência” ................................................................................... 156
3.4.1. A Motivação Plural: “Os Exemplos” ......................................................................................... 164
Conclusão ................................................................................................................................................ 175
Referências Bibliográficas ..................................................................................................................... 181
10
INTRODUÇÃO
Nas leituras que realizamos no transcorrer de nossa pesquisa, entorno do pensamento
político de Hannah Arendt, fundamentalmente ao debruçamos sobre sua obra inacabada A
vida do espírito, um fato sempre nos inquietou. Tal obra analisa as três faculdades espirituais
pensar, querer e julgar –, assim como Entre o passado e o futuro, Eichmann em Jerusalém,
Responsabilidade e Julgamento, que abordam os mesmo pontos. A maioria destas obras apon-
tava, a princípio, para uma direção comum, ou seja, de que a implicação política da faculdade
de pensamento estava contida no efeito liberador que esta faculdade desempenhava sobre ou-
tra faculdade espiritual: o julgar, que segundo Arendt deve ser compreendida como a mais
política dentre as demais faculdades, pois é dela que provem, além da capacidade de distin-
guir o belo do feio, o certo do errado, também a capacidade de poder compartilhar, numa esfe-
ra comum, desses juízos com os demais seres judicantes: os indivíduos em uma esfera públi-
ca.
A inquietação tornou-se mais contundente quando deparamos com uma assertiva de
Arendt, contida em sua obra Entre o passado e o futuro, que apontava para o fato de que “o
pensamento pode se tornar prático e inspirar ações quando consegue manifestar-se sob o
disfarce de um exemplo”
1
e, em nossos termos, esse disfarce de um exemplo é precedido pela
recusa de alguns em aderir ao que a moda do dia prescreve para uma dada sociedade. Esta
assertiva nos proporcionou vislumbrar uma via alternativa para que pudéssemos refletir acerca
da implicação política do pensamento.
Nessa perspectiva, deveremos lançar luz sobre um pressuposto básico acerca da ativi-
dade de pensar, o qual está contido na obra arendtiana, para que possamos compreender como
1
ARENDT. A vida do espírito, p. 306 e 307.
11
a assertiva acima mencionada torna-se verdadeira e imprescindível. Assim como, compreen-
der como se efetua a implicação política da faculdade de pensamento em “situações limites”,
tais como as perpetradas pelos regimes totalitários.
Este pressuposto pode ser descrito da seguinte maneira: apesar das três faculdades es-
pirituais relacionarem-se umas com as outras, são, todavia, autônomas. Essa pertença mútua,
bem como sua autonomia, é comprovada em dois momentos da obra arendtiana A vida do
espírito. Assim, na introdução a esta obra Arendt diz que “Foi essa ausência de pensamento
uma experiência comum em nossa vida cotidiana, em que dificilmente temos tempo e muito
menos desejo de parar e pensar – que despertou meu interesse [estudar as faculdades espiritu-
ais]”,
2
demonstrando que na ativação do pensar entra em questão a relação com outras facul-
dades que, no caso específico da citação, configura-se como o querer. Em outro momento,
Arendt nos revela que cada uma das atividades espirituais é autônoma, “cada uma delas obe-
dece às leis inerentes à própria atividade (...)”.
3
De certa forma, o entendimento de como se daria a relação entre as três faculdades es-
pirituais ficou comprometido, na medida em que nossa autora faleceu antes de completar a
tríade da vida espiritual. Porém, a compreensão da autonomia das faculdades espirituais torna-
se menos deficitária, dado o fato de que os dois primeiros volumes foram finalizados por A-
rendt e, assim, a vida de cada uma das duas primeiras faculdades pode ser analisada com mais
precisão.
Essa autonomia das faculdades espirituais constitui-se como um pressuposto argumen-
tativo fundamental para o alcance de nosso propósito nessa pesquisa, pois significa que, caso
um indivíduo se proponha a viver sua vida do espírito, ele não precisa, necessariamente, para
pensar, que o querer deseje e o juízo julgue; ele pode tão somente pensar.
2
ARENDT. A vida do espírito, p. 06.
3
Idem, p. 55.
12
Afirmar a autonomia das faculdades espirituais será de grande importância para o per-
curso que iremos desenvolver nessa pesquisa. Porém, lançar luz sobre a existência de tal au-
tonomia nos servirá somente para que possamos pensar o papel desempenhado pelo pensa-
mento nas “situações limites” para investigar, por meio dessa escolha, a função política do
mesmo. Dizendo de outra maneira: desejamos investigar o significado político do pensamento
nas “situações limites”, procurando analisar a implicação política da faculdade de pensamento
utilizando os regimes totalitários como uma estratégia argumentativa. Assim, apesar da cons-
tatação de haver no cerne da vida do espírito uma autonomia das faculdades espirituais, de-
vemos deixar claro que para o nosso propósito nos serviremos das obras de Hannah Arendt A
vida do espírito e A condição humana, bem como das análises do juízo, para reforçar nosso
argumento sobre o tema da política e do pensamento.
É nessa perspectiva que surge em nosso horizonte de reflexão a seguinte questão ali-
cerçadora do objeto de nosso estudo. Não vemos A vida do espírito como uma espécie de a-
pêndice à obra arendtiana, mas, ao contrário, um escrito que está em estreita conexão com as
demais obras de Hannah Arendt, que basicamente têm em seu cerne questões relacionadas à
tentativa de pensar a política em sua dignidade própria. Pensando dessa forma, várias foram
as interrogações nascidas em nossos estudos: qual seria o papel político da faculdade de pen-
samento? Somente o efeito liberador produzido sobre o juízo, como apontamos acima? Mas
como essa implicação política da faculdade de pensamento se concretizaria diante de “situa-
ções limites”, nas quais o espaço para que haja a manifestação do juízo não mais existe, quan-
do a esfera pública, locus do encontro dos homens em sua condição plural, foi suprimida, co-
mo nos aponta o exemplo do Terceiro Reich?
A partir do que acima mencionamos, torna-se claro que nosso intuito será o de analisar
a faculdade de pensamento e sua implicação política, não a restringindo ao efeito liberador
produzido pela mesma sobre outra faculdade espiritual: o julgar. Em outras palavras, preten-
13
demos analisar o pensamento dentro de sua própria esfera de atuação, demonstrando assim,
que sua implicação política se encontra no fenômeno da “resistência”, que ganha publicidade
em “situações limites” como um “exemplo”. Assim, quando a recusa de alguns em compactu-
ar com ações nas quais os conteúdos normativos não se apresentam revestidos de uma signifi-
cação plausível, esta recusa aparece como uma espécie de ação política. Desse modo, esta
“paralisia” ganha uma roupagem de ação nos “raros momentos em que as cartas estão lança-
das à mesa”.
4
Nesse sentido, a linha argumentativa que iremos percorrer no transcorrer da pesquisa
nos levará a desenvolver uma reflexão acerca de algumas características da faculdade de pen-
samento, bem como a recusa dos indivíduos da Era Moderna em ativar o pensamento para
que, por fim, possamos alcançar nosso objetivo principal deste estudo, ou seja, de compreen-
der a implicação política da faculdade de pensamento que passa, fundamentalmente, na análi-
se da relação entre pensamento e política. Nessa perspectiva, devemos entender que a relação
entre pensamento e política está na razão de que a atividade de pensar, na medida em que lan-
ça luz sobre as ações humanas, no intuito de significá-las, ensina-nos a lidar com nossa reali-
dade. Assim, segundo Arendt, “o resultado da compreensão [pensamento] é o significado à
medida que tentamos nos reconciliar com o que fazemos e com o que sofremos”.
5
É como se
pela atividade de pensar passássemos a compreender que aquilo que vivemos pertence a um
ambiente comum aos homens, o qual chamamos de político, e o que sofremos é fruto de nos-
sas ações e palavras e não algo dado de uma esfera alheia e distante dos homens.
É no limiar de nossas reflexões que demonstraremos como foi desenvolvida nossa
pesquisa. Nesse passo, explicitaremos de que maneira iremos abordar cada um dos momentos
do estudo que ora iniciamos, bem como de que forma se estruturará nossa estratégia metodo-
lógica.
4
ARENDT. A vida do espírito, p. 145.
5
ARENDT. A dignidade da política, p. 40.
14
No encaminhamento da dissertação, nosso procedimento será no sentido de mostrar os
caminhos trilhados por Arendt ao tratar da faculdade de pensamento e de sua implicação polí-
tica, que se faz presente no fenômeno denominado por Hannah Arendt de “resistência”.
Nesse intuito, será de extrema importância esclarecer os elementos do contexto que
inspiraram as reflexões arendtianas, como eles irão nos servir em nossa pesquisa e de que
forma iremos nos apropriar dos mesmos. A alusão a tais elementos contextuais nos auxiliará
em nossa pesquisa. Contudo, nossa base argumentativa irá se apoiar nas leituras das obras de
Arendt e em suas análises acerca do tema que seestudado. Assim, nossa estratégia metodo-
lógica será basicamente a leitura interpretativa das obras arendtianas que tratam do tema pro-
posto, sem perder de vista a importância de se fazer referência ao contexto histórico em ques-
tão.
Para alcançarmos os objetivos aqui traçados, dividiremos nossa dissertação em três
capítulos, constituídos de seus respectivos sub-capítulos.
No início de nosso estudo, no capítulo primeiro, denominado “Pensamento e Aparên-
cia”, analisaremos as principais características da primordial atividade espiritual faculdade
de pensamento –, que Hannah Arendt define como “a quintessência desmaterializada do estar
vivo”.
6
Para tanto, lançaremos luz sobre a fenomenologização realizada por nossa autora a-
cerca do pensar. A preocupação principal deste capítulo será a de analisar a tentativa de A-
rendt em realizar uma desmontagem das falácias metafísicas: compreensões que a tradição
filosófico-metafísica sedimentou no pensamento Ocidental. Para nossa autora, as falácias me-
tafísicas pretendem afirmar que o pensar busca a verdade escondida por detrás dos fenômenos
e que, conseqüentemente, existe uma dicotomia entre ser e aparência, na qual o primeiro pos-
sui um estatuto ontológico privilegiado. A partir destas análises poderemos compreender a
importância de se trazer o pensar para o terreno da fenomenologia, cujo ângulo privilegiado é
6
ARENDT. A dignidade da política, p. 143.
15
a superfície, o domínio da visibilidade, fomentado sob a valorização do mundo das aparên-
cias, deslocamento de fundamental importância para a filosofia política.
No segundo momento de nossos estudos, as reflexões girarão em torno de compreen-
der como a Era Moderna caracteriza-se num momento na história da humanidade no qual o
desinteresse em parar-para-pensar alcançou seus limites extremos. É nessa perspectiva que
denominaremos o segundo capítulo de “Consumo e Ausência de Pensamento”. Neste, procu-
raremos compreender o pano de fundo que trouxe à tona o desinteresse pelo pensar, fazendo
com que os homens se recusassem a questionar e significar sua realidade.
O segundo capítulo visará compreender como que o século XX mostrou ser o melhor
dos ambientes para a vitória do animal laborans, no qual a principal atividade realizada pelo
homem na Era Moderna foi a que proporciona a manutenção da vida em seu sentido biológi-
co. Fenômeno que proporcionou o advento das sociedades de massa, na qual os indivíduos
são indiferentes às causas de cunho comum, estando voltados exclusivamente para a preserva-
ção de suas vidas na perspectiva individualista. Assim, dada à perspectiva da Era Moderna, o
que se vislumbra é a existência, a partir de um cenário propício, de uma multidão de opiniões
prontas, que levam os indivíduos a abdicarem da necessidade política da formação de opini-
ões próprias e, conseqüentemente, ao apoio de teorias filosóficas, morais e políticas, sem um
exame mais apurado. Nesse sentido, pretendemos realizar uma análise que aponte, a partir dos
acontecimentos ocorridos no período compreendido entre as duas Guerras Mundiais, como
estes podem ter influenciado no aparecimento dos regimes totalitários. Neste tomo, demons-
traremos que as perguntas: “O que havia acontecido?”, “Por que havia acontecido?”, “Como
havia acontecido?”, tiveram respostas condizentes com a perplexidade daqueles, a exemplo de
Hannah Arendt, que não aceitaram passivamente o “modo” como a história estava sendo con-
tada, mas perguntaram sobre o seu significado mais profundo.
16
No terceiro e último momento de nossa pesquisa, procuraremos fazer com que todas as
análises realizadas nos passos anteriores se convertam para este tomo, com o propósito de dar
plausibilidade à nossa hipótese de trabalho, ou seja, de que há implicação política da faculda-
de de pensamento, diferentemente da que é comumente proposta.
Neste último capítulo, denominado de “Pensamento e Política” procuraremos demons-
trar que há, de fato, uma fronteira entre o pensar e o agir. Em outras palavras, mostraremos
que essas atividades não se confundem nem se identificam, pois todo pensar supõe uma reti-
rada do mundo parar-para-pensar , um distanciamento necessário para submeter à dúvida
tudo o que se apossa o pensamento. No entanto, não pode haver uma ruptura entre estas ativi-
dades, pois segundo nossa autora, se houver essa divisão, o agir humano cairá inevitavelmente
na armadilha totalitária.
A relação entre pensamento e política, em nosso entendimento, se fará através da mo-
tivação plural fomentada pelos “exemplos” de “resistência”. Assim, neste último passo da
pesquisa, procuraremos comprovar que plausibilidade em nossa hipótese, ou seja, que a
recusa em aderir ao que os homens fazem impensadamente configura-se como um “exemplo”
que pode e deve ser seguido, como atesta o posicionamento do povo dinamarquês na Segunda
Guerra Mundial. Nesta perspectiva, se é fato que a atividade de pensar atinge o “outro” do
diálogo, o “nós” é alcançado a partir da motivação plural fomentada pelos “exemplos de resis-
tência” oriundos do pensar.
Nosso estudo, portanto, se encontra circunscrito por uma única temática: compreender
como se realiza a implicação política da faculdade de pensamento em “situações limites”, ou
seja, analisar como a atividade de pensar pode nos dotar, de alguma forma, com o poder de
agir, diante daqueles momentos em que a esperança desapareceu da vida humana.
Nessas circunstâncias, o que se pode esperar do indivíduo que não abdicou de interagir
consigo mesmo e, assim, de questionar o que quer que venha ocorrer em sua vida a partir da
17
faculdade de pensamento, é que o “bom homem” surja como um farol a iluminar, com seu
exemplo de recusa em aderir a ações destituídas de significado, “os tempos sombrios”.
Assim, nosso olhar argumentativo estará voltado fundamentalmente para o advento
das “situações limites”, como nessas situações, a faculdade de pensamento possui implicação
política de forma direta, ao impedir que homens ajam de maneira impensada e, da mesma
forma que esta não adesão funciona como uma espécie de “exemplo” que merece ser seguido
por todos os “bons homens”.
18
CAPÍTULO I
Pensamento e Aparência
“Não tem começo nem fim, fora do tempo é o pensamento. In-
corpóreo, abstrato, fora do espaço é o pensamento/Negando es-
paço e tempo, surge o pensamento/O pensamento não se limita
ao tempo. É hoje, ontem, amanhã, aqui e ali, é movimento cir-
cular, vai e volta, gira em torno de si/O espaço não cabe no
pensamento. É vultuoso, ocupa todos os lugares. Está sempre
procurando um cantinho, mas, cabe em todos os mares/Pena,
que o pensamento acabe... Mesmo sendo fora do espaço e do
tempo e tendo seu próprio momento, não sabe, que seu dono é
o homem, impossuidor do seu próprio movimento”.
Marta Claus. Verso num mundo reverso
O que é o pensamento? Poderíamos responder a este questionamento, de acordo com
as reflexões de Hannah Arendt sobre esse tema, da seguinte forma: atividade espiritual, neces-
sária ao homem, que se aplica cuidadosamente a compreender todos os acontecimentos da
vida humana. Porém, longe de ser uma assertiva, esta “definição” somente funciona como
uma indicação do “quê” poderia ser o pensar.
Na tentativa de compreender o “quê” de nossa pesquisa, podemos dizer que a ativida-
de pensar, a qual dirige sua atenção a tudo que existe a fim de compreendê-los, não possui
meta ou fim determinado. Isto nos leva a crer que a melhor descrição desta faculdade espiritu-
al é a de uma caminhada constante, sem objetivo determinado a ser alcançado ao fim de seu
processo, pois aqueles que se enveredam pela busca pelo significado devem estar cônscios de
que a atividade de pensar somente irá se findar com o desaparecimento do homem da face da
Terra, demonstrando que o pensar é uma atividade com fim em si mesma (energeiai).
Todavia, essa atividade espiritual não nos dota com padrões ou regras que ditem as
ações que são realizadas entre homens, muito menos, faz alguém melhor pelo simples fato de
19
pensar. Então, o que faz com que esta faculdade espiritual saia de seu refúgio? Em outras pa-
lavras, para que pensar? O que nos faz pensar?
Ao longo da história, muitos filósofos responderam a este questionamento, dizendo,
por exemplo, que a tarefa do pensamento é investigar a realidade em busca de sua verdade
mais essencial, que se encontra por trás das aparências,
1
fomentando e solidificando, conse-
qüentemente, uma identidade, uma equação entre significado “tarefa do pensar” – e verdade
“pseudo-tarefa do pensar”. Esta resposta levou a uma hierarquização do supra-sensível em
detrimento ao sensível.
Diante desta perspectiva, podemos dizer que o contexto da quebra com a tradição, que
aponta para o esfacelamento do quadro de referências que norteava idéias e ações, no qual se
encontram inúmeros pensadores, tais como Hannah Arendt, o que se revelou foi o fim da dis-
tinção básica entre o supra-sensível e o sensível, para a qual o primeiro possuía um estatuto
ontológico privilegiado. Porém, mesmo com o esfacelamento das concepções tradicionais, o
qual liberou o olhar do homem em face da história, foram legados, mesmo de forma fragmen-
tária, elementos que podem contribuir para a análise de importantes temas sociais, políticos e
filosóficos, como a faculdade de pensamento. É nesse âmbito que se encontram as concepções
metafísicas, que nossa autora denomina de falácias metafísicas, as quais se constituem como
1
Apesar de não estar situada no âmbito metafísico, como exemplo do erro em se atribuir à razão tarefas que não
são de sua alçada, Arendt, na introdução da Vida do espírito, cita a concepção de Hobbes. Esta concepção com-
preende que a razão seria, enquanto uma faculdade do espírito humano, lculo (adição e subtração) das conse-
qüências de nomes gerais, estabelecidos como marcas quando calculamos para nós mesmos, sendo algo que
utilizamos para lembrarmos de alguma coisa, verbal ou não-verbal, demonstrando ser ela algo particular, pois é
compreendida somente por uma pessoa ou signos quando demonstramos ou aprovamos nossos lculos para
outros homens, demonstrando que sua finalidade é expressiva, ou seja, é uma marca reconhecida por mais de
uma pessoa. Dessa maneira, a finalidade da razão seria, a partir das primeiras definições, chegar às conseqüên-
cias e conclusões, acrescentando à capacidade humana o poder de inquirir as conseqüências seja do que for.
Nesse sentido, Hobbes apresenta a razão humana como uma faculdade espiritual que pode vir a descobrir regras
gerais da redução das conseqüências, até alcançar os teoremas ou aforismos, o que levará o homem a adquirir a
reta razão. Assim, para que o homem adquira as luzes da reta razão ele deve realizar o seguinte processo: passar
dos elementos nomes a asserções feitas pela conexão de tais elementos uns com os outros, daí aos silogis-
mos, que Hobbes define como conexões de uma asserção com a outra, até que se chegue ao conhecimento de
todas as possíveis conseqüências de nomes referentes a determinado assunto. Todo esse processo leva o homem
a obter aquilo que Hobbes denomina de ciência, seja ela natural referente aos corpos naturais seja ela civil
referente ao estudo dos corpos artificiais, políticos ou morais. A esse respeito, ver HOBBES. Leviatã ou Matéria,
Forma e Poder de um Estado Eclesiástico e Civil, p. 39ss.
20
fios condutores para se implementar uma análise acerca da prioritária atividade espiritual
pensar –, pois estas, embora apontem na direção de errôneas concepções acerca da faculdade
de pensamento, nascem, contudo, de autênticas experiências do ego pensante.
Nessa perspectiva, Arendt procura, a partir da frase que Cícero, em De República (1,
17) atribui a Catão: “nunca o homem está mais ativo do que quando nada faz, nunca está me-
nos sozinho do que quando está consigo mesmo” (Numquam se plus agere quam nihil cum
ageret, numquam minus solum esse quam cum solus esset),
2
a qual descreve a sensação do
homem, enquanto está mergulhado em pensamentos, compreender quais são as características
do pensar pela via negativa, como nos adverte Young-Bruehl.
3
Esta via negativa procura
desfazer as falácias metafísicas, a fim de compreender o que seja o pensamento. Este desman-
telamento metafísico iniciou a partir do movimento de purificação conceitual, desvinculando
o pensar de algumas conotações a ele dadas. Assim, o pensamento não se identifica com o
“ego pensante”, nem com a “alma”, nem com o “eu”, nem com o “senso comum” e tão pouco
com a “razão científica”.
Percebemos, portanto, que as falácias metafísicas constituem-se como a pedra de to-
que do primeiro volume de A vida do espírito. O fato de nossa autora ter se juntado à fileira
daqueles que procuram realizar uma desmontagem das falácias metafísicas tem como propó-
sito primeiro a tentativa de desfazer a união tão nefasta para a história da filosofia política
entre verdade e significado. Esse propósito será levado a cabo a partir da fenomenologização
da vida do espírito, a qual pretende trazer as análises do pensar para o terreno da superfície.
4
2
ARENDT. A vida do espírito, p. 08.
3
Sobre esse assunto, ver YOUNG-BRUEHL. Reflections on Hannah Arendt’s. The Life of the Mind, p. 338.
4
A respeito do propósito de Hannah Arendt em levar a cabo à desmontagem das falácias metafísicas, diz Tami-
niaux: “Toute fallacy, à ses yeux, consistaint à brouiller des différences. La fallacy métaphysique consiste à
brouiller les différences entre penser et agir, à masquer leur opposition, leur guerre intestine inévitable, et même
à résorber l’agir dans le penser. Et comme celui qui pense appartient aussi au monde des apparences dans lequel
s’inscrit l’action, cette résorption consiste pour lui à porter au crédit de l’activité de penser cela même que lui
oppose le sensus communis, à commencer, bien sûr, par son propre sensus communis" (TAMINIAUX. La fille de
Thrace et le penseur professionnel, p. 168).
21
Assim, como afirma Arendt, desde a condenação de Sócrates, o que houve foi o sur-
gimento de um desprezo e descrédito dos filósofos acerca daquela atividade que era realizada
na praça pública grega: a política. Esta atitude abriu uma fenda, um hiato entre o pensar e o
agir, fazendo com que ora os filósofos fossem vistos com maus olhos, quando procuravam
modificar as estruturas sociais vigentes a partir de seus questionamentos, ora a tentativa destes
de adentrar o cenário político era vista como uma forma de tiranizar a política a partir de seus
padrões de verdade.
5
No intuito de realizar uma desmontagem das falácias metafísicas, Arendt, no transcor-
rer de suas reflexões, constantemente dialogou com aqueles pensadores que lhes eram caros:
Agostinho, Immanuel Kant, Nietzsche, Karl Jaspers, Merleau-Ponty, Martin Heidegger...
Com estes, Arendt pôde traçar uma linha divisória bem nítida entre o que é a busca pela signi-
ficação do real e o que é a busca pela verdade do real. A primeira, bem como para a maioria
de seus interlocutores, é tarefa contida na atividade de pensar; a segunda, é tarefa destinada ao
conhecimento dito cientifico.
6
Entretanto, o diálogo entre Arendt e seus interlocutores não foi sempre na direção de
uma completa concordância de idéias. A discordância analítica tornar-se-á mais nítida, quan-
do iniciarmos o estudo acerca do pensar e como este, de alguma forma, pertence ao mundo
das aparências. Assim, esse embate de idéias se fará na medida em que o pensamento, ao lon-
go da história da filosofia, contrariamente à concepção arendtiana, foi compreendido como
uma faculdade invisível e, desta forma, avessa a qualquer tipo de manifestação fenomênica.
Para compreender a faculdade de pensamento no âmbito das análises arendtianas, re-
veste-se de crucial importância apontar para o fato de que as atividades espirituais somente
obedecem às leis inerentes às suas respectivas atividades. Assim, nosso intuito será o de anali-
5
Sobre isso, ver ARENDT. A dignidade da política, p. 94.
6
Sobre isso, diz Heidegger: “El pensar no conduce a un saber como las ciências. El pensar no aporta ninguna
sabiduría aprovechable de la vida. El pensar no descifra enigmas del mundo. El pensar no infunde inmediata-
22
sar a faculdade de pensamento e suas implicações políticas, partindo do pressuposto de que as
faculdades espirituais são autônomas. Dessa forma, procuraremos compreender a faculdade
de pensamento e suas implicações políticas, não as restringindo ao efeito liberador produzido
pela mesma sobre outra faculdade espiritual: o julgar segundo Arendt, a mais política das
faculdades –, mas visando-a dentro de seu campo de atuação. Esta auto-legislação revela a
existência da autonomia das três faculdades espirituais pensar, querer e julgar que confi-
gura-se como fato significativo na reflexão realizada por Hannah Arendt em A vida do espíri-
to, obra esta que foi interrompida devido à morte da autora. A auto-legislação e a autonomia
das faculdades espirituais trarão conseqüências de suma importância para a pesquisa ora im-
plementada, pois permitirão que realizemos uma análise acerca do pensamento, tão somente
dentro dos domínios circunscritos desta faculdade espiritual, o que proporcionará desvincular
o pensar de tudo o que não pertence a sua atuação.
Diante do que expusemos, torna-se importante delimitar nosso objeto de pesquisa o
pensar na tentativa de compreender alguns de seus traços principais. Lançar luz sobre o que
seja esta atividade espiritual prioritária, denominada por Arendt como a “quintessência des-
materializada do estar vivo” é o objetivo desse primeiro capítulo. Nesse sentido, analisaremos
as principais características do pensamento. Para tanto, lançaremos luz, fundamentalmente,
sobre a fenomenologização do pensar, ou seja, traremos o pensar para o domínio da superfí-
cie: palco da ação política.
mente fuerzas para la acción” (HEIDEGGER. ¿Que Significa Pensar?, p. 153 e 154). Sobre esse assunto, ver
também JASPERS. Filosofía de la Existencia, p. 36.
23
1.1. “A Desmontagem das Falácias Metafísicas”
Como lançar luz sobre uma atividade espiritual a qual, com o passar do tempo e com o
desenrolar da história, caiu em descrédito?
7
Qual o fio condutor que proporcionará compre-
ender o que seja, de fato, o pensar?
No intuito de alcançar o objetivo de fenomenologizar as faculdades espirituais, traçado
na primeira parte da trilogia A vida do espírito, Arendt parte daquilo que ela chama de falá-
cias metafísicas: o discurso falacioso da metafísica, que fomentou compreensões enganosas
acerca de alguns tópicos da filosofia, levando, conseqüentemente, a sedimentação de tais falá-
cias no pensamento ocidental. Estas partem, principalmente, da dicotomia entre ser e aparên-
cia, na qual o primeiro possui um estatuto ontológico privilegiado.
A dicotomia acima mencionada caracteriza-se como um legado metafísico, no qual
uma tendência em privilegiar o supra-sensível: uma das mais antigas e obstinadas falácias
metafísicas. Esta falácia crê que a causa ocupa um lugar mais elevado do que o efeito, dando,
assim, um estatuto elevado ao primeiro, em detrimento do segundo. Dizer que a causa é mais
nobre que seu efeito significou, no âmbito da história do pensamento político ocidental, fo-
mentar um hiato entre filosofia, que segundo Platão é a guardiã dos padrões de medida, e polí-
tica, o âmbito da opinião.
8
A oposição entre verdade e opinião tem seu nascedouro nos escritos de Platão, como
nos adverte Hannah Arendt em seu texto Filosofia e política, coletado em A dignidade da
política.
9
Segundo Arendt, a tensão entre o espanto admirativo (thaumadzein), ponto inicial
de todo ato de filosofar e opinião (doxa), transformou-se, no interior dos diálogos platônicos,
em uma oposição entre verdade, que é dita pelo filósofo, e opinião, que se configura como um
discurso que é próprio da esfera pública, a qual é regida pela pluralidade de pontos de vistas.
7
Sobre esse assunto, ver o Capítulo II de nossa dissertação.
8
A esse respeito, ver ARENDT. A dignidade da política, p. 97.
24
Platão, assim, propôs prolongar indefinidamente o thaumadzein, iniciador de todo ato de filo-
sofar, transformando-o em modo de vida (bios theôrétikos), a vida dos melhores que contem-
plam as medidas não aparentes, que devem organizar o mundo aparente.
10
Para Platão o cho-
que admirativo em face de tudo o que é como é não pode ser relatado em palavras, pois é ele
que direciona a verdade última e geral, portanto, está além das palavras e assim não pode ser
contido em frases ou sentenças. Essa característica do espanto admirativo o distingue da opi-
nião que se forma a respeito do que aparece, pois a opinião, de maneira alguma, pretende a-
barcar o “todo”, mas somente emitir uma sentença acerca do que está a mão. Nesse âmbito,
percebemos que a diferença entre os filósofos e a grande multidão é que os últimos recusam-
se a experimentar e sofrer do pathos admirativo e, assim, prendem-se a opiniões infundadas
acerca das questões que são levantadas após o espanto admirativo ter acometido o espírito do
filósofo. Após tal acometimento, o filósofo é levado a fomentar perguntas generalizantes que
procuram compreender o que “há” no mundo e fora do mundo, na tentativa de organizar o
caos da vida.
O que essa oposição procura demonstrar é que o filósofo, a partir de seu exercício de
contemplação, principiado pela sua admiração quanto ao conjunto do real, as medidas não
aparentes, tendo como finalidade mensurar a realidade, a fim de eliminar as opiniões confli-
tantes.
11
Essa oposição tornou-se a herança mais proeminente que o platonismo legou ao pen-
samento ocidental.
9
ARENDT. Filosofia e Política, p. 91 ss.
10
Idem, p. 113.
11
A respeito do fato de que todo ato de filosofar inicia-se com o espanto (thaumadzein) admirativo em face de
algo familiar, Arendt adverte que constitui um erro de compreensão, a exemplo do que foi feito por Aristóteles
nos parágrafos iniciais de sua Metafísica, pensar que o espantar-se deve ser entendido como um mero começo do
ato de filosofar e que, assim, deve terminar com o seu oposto, que é melhor do que espantar-se, como é o caso
quando se aprende alguma coisa. Para Arendt, assim, como o fora para Platão, o que permite ao filósofo dar
início à busca dos significados das coisas que se lhe apresentam é o espanto. Sobre esta questão salienta nossa
autora, interpretando Platão: A filosofia, a filosofia política, bem como os demais ramos, nunca poderá negar
ter-se originado do thaumadzein, do espanto diante daquilo que é como é” (ARENDT. A dignidade da política,
p. 115).
25
Podemos dizer que a “alegoria da caverna”, contida na obra de Platão A República, em
seu Livro VII, exemplifica de maneira contundente a perspectiva acima exposta. Nesta, o filó-
sofo que deixa a caverna representação do mundo das aparências, da ilusão, da opinião e,
concomitantemente, da política –, contempla o mundo das idéias arquétipas. Ao retornar ao
seu interior sombrio, ele procura direcionar os afazeres dos homens, a partir dos padrões con-
templados no mundo das idéias. Embora tal objetivo não tenha sido alcançado, pois os prisio-
neiros remanescentes na caverna matam o filósofo, este objetivo torna-se um legado à filoso-
fia política. Assim, esse arcabouço teórico deu início ao que pensadores políticos chamam de
a tirania da razão implementada pelo rei-filósofo, algo de conotações extremamente prejudici-
ais para o âmbito da filosofia política. Platão concebeu a tirania da verdade ao compreender
que o que deve governar a cidade não é o temporariamente bom, mas sim a eterna verdade. O
filósofo submete a polis a sua verdade, que pretende ser o reflexo da eternidade, a qual so-
mente é acessível no estado de pura contemplação. Essa análise nos permite compreender
como houve a formação do abismo entre filosofia e política e como a ação no âmbito público
passou a ser encarada a partir desse momento pelo pensamento especulativo.
12
A dicotomia teórica que separou o mundo em aparente e real, fora inspirada pelo con-
texto no qual a cidade de Atenas condenou à morte seu cidadão mais ilustre: Sócrates. Em
nossa interpretação, provavelmente a idéia de tal separação surgiu a Platão a partir de questio-
namentos tais como: “Como confiar em um cenário político que leva em consideração as von-
tades daqueles que querem conservar seu poder?” “Como garantir que tal evento não venha a
se repetir?” Nessa perspectiva, foi necessário buscar medidas que ditassem a vida na polis, e
que estivessem acima da contingência, a qual dita o agir humano, ou seja, era preciso que tais
padrões situassem-se em um mundo de verdades imutáveis, além e acima do âmbito político.
Adentrando a história do pensamento político-filosófico, encontramos Kant, que ao
que parece, não pode ser considerado um metafísico, declarar, em uma de suas críticas, que
12
A esse respeito, ver ARENDT. A vida do espírito, p. 42ss.
26
tudo o que aparece deve possuir uma causa que seja invisível, ou seja, a coisa-em-si, a qual
sustenta e realidade a coisa percebida.
13
Se o filósofo de Königsberg, que teve como um
de seus objetivos criticar a razão humana no intuito de encontrar o âmbito mais apropriado
para a realização das atividades racionais, declara dever existir algo não aparente que sustente
o que aparece, preconizando, assim, à volta ao âmbito metafísico, tal como aquele que retorna
à mulher amada depois de uma briga, como tapar os olhos diante da influência que a metafísi-
ca exerceu sobre o pensamento humano? Desta forma, o que Arendt percebeu
14
foi que nem
mesmo o criticismo de Kant conseguiu desvencilhar-se totalmente do peso da tradição metafí-
sica, como fica atestado em sua declaração de que ao demarcar o terreno no qual deve atuar o
conhecimento humano, ele liberou o pensamento para tratar de seus postulados metafísicos:
Deus, a imortalidade da alma e a liberdade.
15
Nessa perspectiva, percebemos que é de suma importância analisar com cuidado as fa-
lácias oriundas da metafísica, pois estas se constituem como o ponto de partida para uma aná-
lise da faculdade de pensamento, devido a sua importância teórica.
O que Arendt compreendeu, como nos adverte Peeters, foi que se de fato, quisesse le-
var a cabo à consecução de uma análise acerca do pensar, de um ponto de vista diferente da-
quele que até então era realizado, seria necessário trilhar as veredas das falácias metafísicas
no intuito de desmantelá-las, ao invés de simplesmente rejeitá-las.
16
Nessa perspectiva, sendo
o discurso falacioso da metafísica uma pretensão em fazer crer que algo “seja”, sem contudo
possuir bases comprobatórias para tal intuito, isto é, diante de um discurso que fundamenta-se
em afirmações que vão de encontro a pressupostos que se colocam como incontestáveis ao
senso comum, qual deve ser a postura diante de tal discurso? Nas pretensões de Arendt é ne-
13
Sobre esse respeito, ver KANT. Crítica da Razão Pura, p. B565.
14
ARENDT. A vida do espírito, p. 49.
15
Crítica da Razão Pura, p. B868.
16
Sobre o que significa a desmontagem das falácias metafísicas realizada por Arendt, diz Peeters: “Démanteler
signifie: donner à voir leur paradoxe existentiel sous-jacent, et montrer dans quel sens elles déforment, recou-
vrent ou méconnaissent ce paradoxe en même temps" (PEETERS. La Vie de l’Esprit n’est pas Contemplative.
Hannah Arendt et le Démantèlement de la ‘Vita Contemplativa’. Hannah Arendt et la Modernite, p. 22).
27
cessário desmantelá-las. Em outros termos, é preciso desmontar o discurso metafísico em suas
categorias, as quais apontam a existência de falácias nascidas do âmago das autênticas experi-
ências espirituais, como a teoria dos dois mundos. Assim, para nossa autora, a teoria que pre-
coniza que o que não aparece possui mais importância do que o que aparece, nasce da própria
atividade de pensar, pois para que esta se inicie, há uma necessidade de um parar-para-pensar,
ou seja, uma retirada do mundo das aparências afim de significá-lo. O necessário distancia-
mento do ego pensante das preocupações diárias, com o intuito de compreendê-las (enquanto
se está diante dos visíveis, não como significá-los, pois todo pensar é, de fato, um re-
pensar), leva a fomentação de um equívoco quanto à existência de uma primazia do que não
aparece em relação ao que aparece, como se o primeiro devesse medir e organizar a “desor-
dem” do mundo fenomênico.
Para Arendt, desmontar as falácias metafísicas coloca-se como uma tarefa imprescin-
dível àqueles que desejam olhar algumas categorias a partir de um ponto diverso daquele que
antes era compreendido o pensar, ou seja, como uma atividade que busca apreender a verdade.
Juntar-se à fileira dos que se aventuraram a realizar uma desmontagem das falácias metafísi-
cas foi à postura tomada por Arendt, com a intenção de iluminar as experiências do ego pen-
sante a partir da irresistível luz da fenomenologia trazendo, desta forma, a atividade de pensar
para o plano da superfície, local no qual ser e aparecer coincidem. Retirar as experiências do
ego pensante do locus da invisibilidade, a qual a tradição metafísica lhe dera como seu lar
mais autêntico, significa fenomenologizar tais experiências.
Contudo, se tais perspectivas, como as que apontam que ser e aparência coincidem,
nascem a partir do processo de desmantelamento dos critérios metafísicos, é necessário, como
nos adverte Arendt no final do primeiro capítulo de A vida do espírito, que tal processo seja
realizado com prudência e cautela para não se perder a riqueza esquecida do passado. Isso se
deve ao fato de que na execução de tal processo, busca-se compreender um passado, mas não
28
um passado sólido e inteiro, mas um passado fragmentado, que perdeu seu apelo e sua certeza
de julgamento e que, se não for manuseado com perícia, pode-se perder.
17
A importância de manusear com cautela o rico e fragmentado tesouro do passado se
justifica, na medida em que é a partir dele que Arendt procurará trazer para o plano fenome-
nológico a faculdade de pensamento. O porquê de se trazer o pensar para o terreno da superfí-
cie deve-se ao fato de que, diante da tentativa dos regimes totalitários de controlar o invisível,
ou seja, o pensamento, no intuito de fomentar um indivíduo de reações previsíveis, é necessá-
rio salvaguardar a atividade espiritual, invisível por excelência, mas não em sua totalidade,
pois ele se manifesta no mundo das aparências. É justamente essa manifestação do pensamen-
to no mundo fenomênico que os regimes totalitários tentaram impedir. Assim, é necessário
compreender que o pensamento, de alguma forma, também é uma aparência, o que procura-
remos demonstrar no transcorrer da pesquisa.
Dito de outra maneira, na perspectiva arendtiana, quando o homem se retira do mundo
fenomênico a fim de buscar o seu significado a partir do pensar, ele adentra uma nova dimen-
são, que também é uma espécie de aparência. Esta irá se manifestar no mundo plural de enti-
dades visíveis, como atesta a linguagem metafórica e os exemplos de resistência, os quais
analisaremos no momento oportuno.
O fato de que somente posso escapar da aparência para outra aparência demonstra que
não uma essência escondida nos recônditos da realidade. A teoria dos dois mundos fundou
seus alicerces sobre a constatação de que o que quer que exista, enquanto desvela uma face,
vela a outra, levando a suposição de que o que não aparece possui estatuto ontológico privile-
giado. Contudo, o desvelar-velando é a característica mais notória do que quer que apareça:
enquanto desvela-se uma face, vela-se outra e, desta forma, fica demonstrado que ambas são
17
Sobre isso, ver ARENDT. A vida do espírito, p. 160.
29
aparências.
18
Assim, se somente posso escapar da aparência para outra aparência, estamos
diante do fato de que se faz necessário analisar o pensar a partir do terreno da aparência, âm-
bito próprio dos afazeres humanos, o que leva Hannah Arendt a realizar uma fenomenologi-
zação da atividade de pensar, no intuito de vislumbrar seu locus mais autêntico.
Com o processo de desmontagem das falácias metafísicas, o que Arendt pretende, ao
contrário do que o platonismo preconiza, é apontar para o fato de que a maior virtude do ho-
mem político não é a fundação de uma verdade, que ialicerçar sua vida, mas consiste em
compreender o maior número possível de mundos diferentes, levando a conhecer o caráter da
pluralidade humana contida em um mundo comum.
19
Todavia, essa tendência em relação ao
mundo político somente poderá ser readquirida pelos homens que se encontram em uma posi-
ção privilegiada, ou seja, alocados na lacuna “entre o passado e o futuro”, aliviados do peso
da tríade romana que por séculos fomentou o pensamento ocidental: religião, autoridade e
tradição. Esta situação demonstra que não tendo o passado mais a força de determinar os a-
contecimentos presentes, os olhos daqueles que procuram compreender seu tempo estão alivi-
ados e aptos para compreender a política a partir de seu terreno mais adequado: o da aparên-
cia.
20
A perspectiva fenomenológica do pensar auxiliará a compreender onde se situa a ati-
vidade de pensar no contexto das demais obras arendtianas, ajudando assim, a desfazer o e-
quívoco de alguns intérpretes da obra de Hannah Arendt, que colocam A vida do espírito co-
18
A esse respeito, o filósofo francês Merleau-Ponty diz, acerca das manifestações das aparências, o seguinte: “Se
uma [aparência] toma tão bem o lugar da outra a ponto de não mais lhe encontrarmos vestígios logo depois da
ilusão é que precisamente o são hipóteses sucessíveis concernentes a um Ser não-conhecível, mas perspecti-
vas sobre o mesmo Ser familiar o qual sabemos não pode excluir uma sem incluir a outra e, em qualquer situação
de causa, está fora de contestação” (MERLAU-PONTY. O visível e o invisível, p. 49).
19
Sobre a fenomenologização da política realizada por Arendt, em contraposição à perspectiva contemplativa e
universalista, diz Odílio Aguiar: “A importância da reflexão de Hannah Arendt se dá justamente porque ela con-
juga a preocupação com a singularidade dos homens com a política. O si próprio de cada ser humano acontece e
implica um movimento de aparição que sem uma esfera pública fica reduzido a algo fictício, virtual” (ODÍLIO.
Política e finitude em Hannah Arendt. In: ___. Filosofia Política Contemporânea, p. 104).
20
Sobre isso, ver ARENDT. A vida do espírito, p. 12.
30
mo uma espécie de apêndice (alguma coisa que é contínua as análises arendtianas, mas distin-
ta das mesmas pela forma e posição).
1.1.1. Pensar (Vernunft) e Conhecer (Verstand)
Tendo aludido ao significado, no cerne das análises arendtianas sobre a faculdade de
pensamento, da desmontagem das falácias metafísicas, procuraremos, com mais detalhe, lan-
çar luz sobre os conceitos metafísicos mais importantes, a partir dos quais, pela via negativa,
Arendt obteve uma compreensão do que seja o pensar.
O desmantelamento da metafísica, realizado por Arendt, foi levado a cabo a partir do
diálogo que ela implementou com “grandes” da história da filosofia política, dentre os quais
se destaca, para os nossos propósitos, Immanuel Kant. A influência exercida pelo pensamento
kantiano sobre a jovem estudante Arendt, que no limiar de seus estudos apreciou as Críticas
do filósofo de Königsberg, provavelmente estimulado por seu mestre Karl Jaspers, pode ser
vislumbrada, de maneira mais precisa, quando Arendt procura delimitar qual seja o propósito
da faculdade de pensamento.
A conseqüência mais proeminente da união de Hannah Arendt com aqueles que procu-
ravam desmontar as falácias metafísicas foi à constatação de haver uma inevitável distinção
entre a faculdade de pensamento, de um lado, e a faculdade do conhecimento, de outro. Dian-
te de tal conseqüência, a partir das leituras feitas por ela da Critica da Razão Pura, Arendt
pôde compreender que o intelecto (Verstand), que Kant identificou com a faculdade do co-
nhecimento, tem como propósito de sua atividade conhecer, ou seja, apreender o que é dado
aos sentidos, no intuito de saciar sua curiosidade de desvendar os mistérios do mundo e, as-
sim, dotar o homem com o poder de dominá-lo.
31
Perseguindo de perto as trilhas das análises kantianas, Arendt percebeu
21
que o crité-
rio último do intelecto é a verdade, a qual é conquistada a partir das evidências dos sentidos,
que possuem uma coerção irresistível sobre a faculdade do conhecimento. Essa assertiva con-
duz à constatação de que todas as verdades racionais ou baseadas em fatos são, por natu-
reza, factuais, pois todas possuem sua verificação dentro do padrão adotado pelas ciências; o
que as diferencia é o grau de coerção que elas exercem sobre a razão. Portanto, o que nossa
autora procurou destacar é que mesmo a evidência racional, extremamente coercitiva, de que
dois mais dois são quatro, precisa ser comprovada pela exposição da operação executada, a
exemplo da verdade contida em um flagrante de assalto, o qual foi testemunhado pelos olhos
de um espectador.
O oposto da verdade foi legado de geração para geração com o nome de mentira. Po-
rém, como nos adverte Arendt, o contrário da verdade que é conquistada pela apreensão dos
sentidos não é a mentira, mas o erro ou a ilusão. A mentira não se constitui naturalmente co-
mo se ela fosse o termo contrário da verdade, pois ela é fomentada por uma decisão de modi-
ficar a realidade. Nessa perspectiva, a mentira constitui-se como uma possibilidade sempre
presente, em face de uma verdade pontual, que devido ao número restrito de pessoas que pos-
sam testemunhá-la, pode ser deliberadamente modificada, dependendo das intenções de quem
a manipula. Portanto, a mentira não se constitui como a outra face da verdade, como se esti-
vesse previamente contida na própria razão de ser do que está em conformidade com o real,
como é o caso do erro e da ilusão.
22
Dizer que o propósito da faculdade do conhecimento é a busca pela verdade, a qual
pretende despir toda a realidade no intuito de apreender, pelos sentidos, os princípios que re-
gem o mundo natural, significa compreender que esta faculdade é a responsável pela constru-
21
A esse respeito, ver ARENDT. A vida do espírito, p. 42ss.
22
Sobre a questão da distinção entre erro, ilusão e mentira, ver ARENDT. A vida do espírito, p. 46.
32
ção de um mundo artificial. Assim, o conhecer constitui-se como uma atividade de construção
do mundo, como o é a atividade de construir casas.
23
Se por um lado a sede de conhecimento nunca poderá ser saciada, devido à imensidão
do desconhecido que circunscreve nossas vidas, em âmbitos dos mais variados, tais como a
biologia, a medicina, a agricultura, a física, a química; tal curiosidade pelo desconhecido dei-
xa atrás de si um rastro que, acumulado e legado às gerações futuras, atende pelo nome de
mundo artificial, criado pelas mãos humanas.
Circunscrever o intelecto dentro de limites bem definidos foi à tarefa implementada
por Kant que, diante desta, pôde abrir espaço para faculdade de pensamento, razão (Vernunft).
Diferentemente da faculdade do conhecimento, o pensamento procura compreender o signifi-
cado do mundo. O pensar não pergunta se algo existe; seu “há” é, de antemão, dado. A ati-
vidade de pensar pergunta o que significa, para este algo ser.
24
A partir dessa circunscrição fomentada por Kant e validada por Arendt, depreende-se
que o pensar, diferentemente do conhecer, não deixa nada de tangível após sua atividade: o
pensar não dita regras de conduta moral; não capacita o homem com inovações tecnológicas e
cientificas e, desta feita, não edifica monumentos os quais a prosperidade poderá contemplar e
usufruir. Ao contrário do conhecimento, o pensamento pode gerar absurdos e ausência de sig-
nificação, mas nunca erros, os quais pertencem ao âmbito do intelecto.
25
Nesse sentido, o pensar possui em seu cerne a necessidade urgente de ir além do mun-
do das aparências sem abandoná-lo ou transcendê-lo, pois é nas experiências cotidianas que se
23
A esse respeito, ver ARENDT. A vida do espírito, p. 44.
24
ARENDT. A vida do espírito, p. 45.
25
Para compreendermos a influência que a distinção kantiana entre pensar (Vernunft) e conhecer (Verstand) tem
sobre as reflexões arendtianas entorno do pensar e as conseqüências que tal distinção acarreta – a diferença entre
erro e ausência de significado é importante nos atermos as seguintes palavras de Arendt: “Kant diz que ‘é im-
possível que a [razão], o mais elevado tribunal de todos os direitos e de todas as pretensões de especulação, ti-
vesse de ser ela mesma a fonte de erros e ilusões.’ (KANT. Critica da Razão Pura, B697). Ele está certo, mas
apenas porque a razão, como faculdade de pensamento especulativo, não se move no mundo das aparências;
dessa maneira, ela pode gerar absurdos e ausências de significado, mas não erros ou ilusões, que pertencem pro-
priamente ao âmbito da percepção sensorial e do raciocínio do senso comum” (ARENDT. A vida do espírito, p.
50).
33
fomenta a “matéria-prima”, a partir da qual, o pensar realiza sua atividade crítica de busca por
significados. Essa necessidade impulsiona o homem a aventurar-se por caminhos que sua li-
mitada capacidade cognitiva não suporta, mas que, mesmo assim, insiste em percorrer, como
as questões relacionadas a Deus, à liberdade e à imortalidade da alma.
Assim, a distinção kantiana ora mencionada entre a faculdade de cognição, intelecto
(Verstand) que apreende o que é dado aos sentidos e a faculdade de pensamento, razão (Ver-
nunft) que busca compreender o seu significado é, para nós, crucial, assim como o foi para
Arendt. Esta distinção é fundamental e decisiva para as análises da faculdade de pensamento,
pois ela emerge da descoberta de Kant do “escândalo da razão”, ou seja, o fato de que nossa
razão não é capaz de nenhum tipo de conhecimento, seja ele certo ou verificável, em relação a
certos assuntos dos quais ela é impelida a pensar. Portanto, diz Arendt: “essa distinção entre
verdade e significado parece-me não decisiva para qualquer investigação sobre a natureza
do pensamento humano, mas parece ser também a conseqüência necessária da distinção cruci-
al que Kant faz entre razão e intelecto”.
26
Contudo, Arendt, em relação a Kant, amplia o âmbito da atividade de pensar, pois, se-
gundo ela, não há nada na vida do homem que não possa tornar-se alimento para o pensamen-
to. Nessa perspectiva, o pensar não busca apenas o significado das coisas que não se pode
conhecer – os postulados metafísicos kantianos: Deus, a imortalidade da alma e a liberdade –,
mas também das que conhece. Podemos inferir que a ampliação dada por Arendt acerca do
leque de possibilidades as quais o pensar pode debruçar-se com o propósito de buscar seu
significado mais autêntico, deve-se, sobretudo, ao fato de Arendt ter percebido que Kant ainda
estava preso, de alguma forma, as velhas amarras com que a metafísica toldou o pensamento
ocidental.
Kant compreendia que a faculdade de pensamento ocupava-se exclusivamente com
seus postulados: teológico (Deus), cosmológico (que parte do pressuposto de que o mundo
34
constitui-se em um todo ordenado, o qual possui seu princípio incondicionado, livre) e psico-
lógico (alma). Isso se deve ao fato de que para esse filósofo o fim da razão humana seria o de
provar a existência de uma causa primeira e inteligente, que ordenou todo o mundo de forma
que este pudesse encontrar uma harmonia, mesmo que esta causa pudesse ser considerada
somente uma idéia, um esquema do princípio regulativo às ações humanas. Assim, Immanuel
Kant acreditava que o fato da razão estender seu uso para além do dado sensível levava-a a
um uso prático moral, o que possibilitou ao filósofo de Königsberg declarar que ele havia
negado o conhecimento para liberar a , esta entendida como racional e, conseqüentemen-
te, moral.
27
A pretensão de Kant de realizar uma unificação entre intelecto e razão, dizendo que
“todo conhecimento humano inicia com intuições, parte delas para conceitos e termina com
idéias”
28
, fez Arendt declarar que nem mesmo Kant foi capaz de compreender o quanto fora
decisiva sua distinção entre pensar e conhecer. Com sua preocupação em não permitir que as
idéias perdessem seu conteúdo de validade e, conseqüentemente, fizessem com que o homem
perdesse o interessem em pensar, Kant confundiu, segundo Arendt, os resultados obtidos pelo
conhecimento com a atividade de pensar, confusão esta que desembocou no velho amálgama
entre verdade e significado, corroborando para uma primazia do pensamento sobre outras ati-
vidades e na continuidade da tirania da razão.
29
Diante das linhas traçadas por Kant na distinção entre intelecto e razão, Arendt pôde
perceber que a busca por significados levada a cabo pelo pensar configura-se como uma ativi-
26
ARENDT. A vida do espírito, p. 13.
27
KANT. Critica da Razão Pura, B868.
28
Idem, B726.
29
Nesse sentido, diz Arendt: “Embora tenha insistido na incapacidade da razão para atingir conhecimento, parti-
cularmente em relação a Deus, à liberdade e à imortalidade – para ele os mais elevados objetos do pensamento –,
não pôde romper completamente com a convicção de que o propósito final do pensamento, assim, como do co-
nhecimento, é a verdade e a cognição; é assim que ele utiliza ao longo de suas Críticas o termo Vernunfterkennt-
nis, ‘conhecimento derivado da razão pura’ (KANT. Critica da Razão Pura, B868) uma noção que, para ele,
dever ter sido uma contração em termos. Kant nunca teve completa consciência de haver liberado a razão e o
pensamento, de haver justificado essa faculdade e sua atividade, mesmo quando elas o podem gabar de ter
produzido quaisquer ‘resultados’ positivos” (ARENDT. A vida do espírito, p. 49).
35
dade incessante, pois o pensamento, que busca reconciliar o homem com a realidade, a partir
da significação do que quer que venha a ocorrer na vida humana, nunca poderá ser saciada,
pois a “matéria-prima” que alimenta tal faculdade está em processo de eterna ebulição. Assim,
a única maneira de poder amenizar tal insaciabilidade é poder trazer à presença do pensar o
que foi pensado anteriormente, em um processo sem fim.
O fato do pensar, atividade espiritual prioritária “o pensamento acompanha a vida e
é ele mesmo a quintessência desmaterializada do estar vivo”
30
–, configurar-se como um pro-
cesso sem fim, indica que uma de suas principais características é o fato de desfazer continu-
amente, sempre que for ativada, todas as regras e doutrinas convencionais, isto é, os axiomas
sólidos.
31
Essa característica do pensar joga o indivíduo no centro das questões relacionadas à
sua existência, fazendo com que ele perca a todo instante as referências que antes se configu-
ravam como irrefutáveis. Nesse sentido, essa faculdade é desprezada por não produzir os re-
sultados imediatos que a “multidão” deseja ver, ou seja, medidas que possam regular sua exis-
tência, pois a utilidade do pensamento encontra-se em si mesmo, demonstrando ser uma fa-
culdade “negativa”. Portanto, o único movimento que pode, de maneira correta, descrever a
atividade de pensar é o circular: um movimento incessante do qual jamais resulta um produto
final.
32
Gostaríamos, nesse momento, de abrir um parênteses nas análises realizadas nesse ca-
pítulo. Essa digressão tem por finalidade apontar para o fato de que, segundo Arendt, pensar e
conhecer não podem ser vistos sob a perspectiva de duas atividades excludentes.
33
Ao contrá-
rio, indubitavelmente uma conexão entre conhecer e pensar, o que parece contradizer toda
30
ARENDT. A vida do espírito, p. 143.
31
“Thinking was, for Arendt, ‘dialectical.’ This ‘frozen concept’ she resolved into its original meaning: ‘the
soundless dialogue [dialegisthai as ‘talking through words’] between me and myself’ (I, 185). The actualization
of our internal plurality has the effect of liberating us not only from conventional ‘truth’ but form conventional
rules of conduct” (YOUNG-BRUEHEL, Reflections on Hannah Arendt’s. The Life of the Mind. Reprinted from
Political Theory, p. 337 e 338).
32
No intuito de compreender o pensar como uma atividade incessante, que não possui meta a ser alcançada,
Arendt diz que “(...) a atividade de pensar é como o véu de Penélope: desfaz toda manhã o que tinha acabado na
noite anterior” (ARENDT. Responsabilidade e Julgamento, p. 234).
36
a distinção acima exposta. Contudo, essa conexão é de um meio em relação a um fim. Esse
papel desempenhado pelo pensar emerge quando a atividade espiritual prioritária exerce a
função de determinar quais serão as metas que o conhecimento deverá alcançar. Nesse mo-
mento essa atividade espiritual o é, em sua natureza, ela mesma. A conexão entre pensar e
conhecer caracteriza-se pelo fato de que o pensar impulsiona a sede de conhecimento a partir
do incognoscível. Assim, para Arendt, se os homens perdessem o estímulo em formular per-
guntas às quais nunca obterão respostas conclusivas, provavelmente perderiam também a cu-
riosidade em conhecer o mundo, o que nos leva a crer que há, de fato, uma conexão entre co-
nhecer e pensar. Contudo, não devemos perder de vista que seus respectivos resultados, de
maneira algumas, podem ser subsumidos a um denominador comum, pois, assim, haveria,
como acima expomos, uma tiranização da razão.
Tendo como fio condutor a imprescindível distinção entre pensar e conhecer, podemos
adentrar na trilha que Hannah Arendt percorreu na primeira parte de A vida do espírito, reve-
lando, assim, algumas das características da faculdade de pensamento e a insistência arendtia-
na de colocá-las sob o domínio da visibilidade, o que traz conseqüências políticas de suma
importância.
1.1.2. Valor da Superfície
A partir da distinção entre o propósito do pensamento (diferente do propósito do co-
nhecimento), Hannah Arendt pôde lançar luz sobre o diálogo silencioso do eu consigo mesmo
(pensar), a partir de uma esfera diversa de outrora, abrindo, assim, a possibilidade de trazer as
análises, no que tange ao pensar, para o terreno da superfície. Nesses termos, o pensar não é
mais compreendido como uma atividade que busca apreender as leis e os fundamentos que
33
ARENDT. A vida do espírito, p. 43.
37
regem o funcionamento do mundo fenomênico, como apregoava uma parte importante da
tradição metafísica, mas configura-se como uma atividade incessante que busca a significação
de tudo o que toca a vida humana.
A epígrafe com a qual Hannah Arendt abre o primeiro capítulo de A vida do espírito, o
qual se intitula Aparência um trecho de um poema de W. H. Auden –, serve de fio condutor
para que possamos compreender o objetivo que nossa autora traça para suas reflexões, não
somente no que diz respeito ao capítulo ora mencionado, mas, de maneira geral, a todo o con-
junto de sua última obra, a qual é dedicada a analisar as três atividades espirituais, a saber: o
pensar, o querer e o julgar.
Não é ocasional que Arendt venha a citar Auden no início de sua obra dedicada a
“pensar o pensamento”. Quando o poeta, estimado por nossa autora, questiona e assevera que
“Deus sempre nos julga pelas aparências? Suspeito que sim”,
34
ele deixa transparecer a influ-
ência que as aparências exerceram sobre os intelectuais do século XX, que de uma forma ex-
plicita ou velada juntaram-se à fileira daqueles que procuravam desmantelar as tradicionais
concepções metafísicas.
A inversão da hierarquia do ser sobre a aparência, que influenciou de maneira decisi-
va o pensamento ocidental, fora principiada pelas análises fenomenológicas de Edmund Hus-
serl, que a partir de sua epoché procurou retornar ao “mundo-da-vida” (Lebenswelt),
35
ou
seja, ao mundo das aparências, no qual o relevante e o significativo situam-se na superfície.
Não essência oculta que fundamente o que quer que apareça; o “é” somente tem sentido
quando este se adapta ao mundo plural das aparências. A existência, a partir desse momento,
precede a essência, o que aponta para o fato de que algo poderá ser compreendido ou julgado
quando este se posicionar sob a forte luz do mundo fenomênico.
34
AUDEN apud ARENDT. A vida do espírito, p. 15.
35
Sobre isso, diz Legros: “Revenir au monde de la vie, c’est revenir à une naïveté qui est en-deçà d’une certaine
naïveté philosophique, celle de la philosophie «objective». LEGROS. Le Retour au Monde de la Vie, p. 129.
38
Fenomenologizar a atividade espiritual prioritária, a qual Arendt denomina pensar, re-
quer uma análise indispensável, a partir do ângulo privilegiado das aparências. Nesse domí-
nio, o relevante é a visibilidade,
36
publicidade e, como nos diz Bethânia Assy, a comunali-
dade”: capacidade que os homens possuem de colocar em marcha ações comuns e de se faze-
rem entender pela fala.
37
Essa fenomenologia da vida do espírito, que em nossos termos leva
à visibilidade do pensar, aponta a existência de uma imbricação da vida contemplativa sobre a
vida activa, ou seja, uma disposição que o pensar tem em sobrepor-se, em momentos específi-
cos, sobre o agir. A análise do pensar a partir do terreno da superfície e a concomitante imbri-
cação das duas esferas da vida humana a contemplativa e a activa –, terá conseqüências de
suma importância para o propósito de nossa pesquisa, como veremos oportunamente.
Quando estamos absorvidos na atividade de pensar, a qual busca compreender o signi-
ficado de tudo o que se passa na vida humana, não nos dirigimos para um local escondido,
localizado no interior do coração humano: sua psique.
38
O que há, na execução dessa ativida-
36
A “morfologia” do biólogo e zoólogo suíço Adolf Portmann lançou luz e ajudou a Arendt a sustentar a rever-
são hierárquica do ser sobre a aparência. Quando Portmann diz que o importante em uma pesquisa é aquilo que
aparece, ele está indo de encontro a teorias que preconizavam que o exterior tem como única função a preserva-
ção do interior, o qual, supostamente, possui uma importância muito mais elevada na vida animal e humana, em
comparação a “supérflua” superfície. Essa “morfologia” aponta para o fato de que não o interior, mas o exterior
é que tem a capacidade de distinguir os seres vivos. Sobre isso, ver ARENDT. A vida do espírito, p. 23 ss.
37
Ver, a esse respeito, ASSY. Hannah Arendt e a dignidade da aparência. In: ___. DUARTE, LOPREATO &
BREPOHL (Org). A banalização da violência: a atualidade do pensamento de Hannah Arendt, p. 161.
38
O impulso de auto-exposição, o qual leva a uma conseqüente individuação, não é característico nem de nossos
órgãos internos os quais, quando forçados a aparecer, nos dão a desagradável sensação de terem sido construí-
dos em partes, sem nenhum critério de simetria –, muito menos de nossa vida psíquica, mas de nossa vida do
espírito. Ao se referir a inalterabilidade da vida psíquica, Arendt realiza uma importante distinção entre alma e
espírito, dizendo que do coração humano não brota nada de diferenciado, pois da psique humana (alma), somente
há um turbilhão de sentimentos uniformemente cambiantes, que se manifestam corporalmente e que a psicologia
procura desvendar. Nossas emoções, como já havia salientado Aristóteles, em sua obra De Anima, são constantes
experiências somáticas. Nesse sentido, Aristóteles compreendia que a alma nada sofria ou fazia sem estar em
ligação com o corpo. Já no que diz respeito ao intelecto e a capacidade de inquirir, tudo levava a crer que este era
de uma natureza distinta da alma, ou seja, separado desta, “como o eterno é separado do corruptível” (De Anima,
413b24). Comentando a passagem do De Amina 403a3, salienta Maria Cecília: “O termo afecções traduz ta
pathê e tem três acepções: (1) o sentido geral de atributos ou predicados, como nesta passagem e também em
403b10 e 15; (2) o sentido de formas de passividade em oposição às atividades e, ainda, (3) o sentido de emo-
ções, como em 403a16. cf. CHa, p. 79. A maior dificuldade do estudo da alma reside em saber se ela tem real-
mente um atributo próprio [idion] e exclusivo. O capítulo deixa a impressão de que Aristóteles simplesmente
expõe o que lhe parece razoável sobre o assunto. Os fatos sugerem que não existe tal atributo e que tudo o que é
atribuído à alma seria uma propriedade do composto, isto é, do corpo animado. Ele ressalta, contudo, que é pre-
ciso considerar seriamente a possibilidade de o pensamento ser um atributo exclusivo da alma e independente de
qualquer órgão corporal. Neste caso, seria forçoso admitir que ao menos tal ‘parte’ da alma é separável do corpo,
que ela pode existir sem ele” (CECÍLIA. In: ___. ARISTÓTELES. De Anima, p. 150).
39
de, é uma fuga de uma aparência para outra aparência: o pensar se retira parcialmente do
mundo da visibilidade, para retornar ao mesmo no momento oportuno.
39
Nesse quadro de análises, é importante salientar a influência heideggeriana sobre as
reflexões de Hannah Arendt que, nesse particular, faz-se presente a partir da concepção do
valor da superfície.
No âmbito das análises realizadas na Introdução à Metafísica,
40
Heidegger diz que a
primeira vista parece haver uma distinção nítida entre Ser e aparência, pois o primeiro aponta
para algo de real e autêntico, em oposição ao aparente e inautêntico ao qual o segundo está
circunscrito. Com o propósito de desfazer o hiato entre o Ser e a aparência e, conseqüente-
mente, compreender a conexão existente entre esses dois aspectos da existência, Heidegger se
direciona aos gregos. Na Antigüidade grega, o Ser revela e essencializa-se como physis, o que
aparece. Do contrário, não-ser significa afastar-se da aparição. Contudo, posto que o Ser, phy-
sis, consiste no aparecer, no oferecer aspectos, encontra-se constantemente, em seu cerne, a
possibilidade de apresentar um aspecto, enquanto encobre o outro e, desta forma, velar o que
o ente é na verdade, ou seja, sua constante e total essência. Nessa perspectiva, como o Ser
caracteriza-se como um aparecer, ele torna-se uma aparência, (doxa), em meio a outras apa-
rências. Assim, aparência tanto significa o visto, o aspecto oferecido por alguma coisa, como
a opinião formada por aquilo que aparece aos homens. Contudo, o predomínio da doxa, en-
quanto opinião perverte e distorce o ente, pois não revela o que de fato o Ser é, uma vez que o
homem, nesse contexto, prende-se ao que é dado de imediato, o qual não desvela o Ser por
39
Sobre o retorno ao “mundo-da-vida”, preconizado por Husserl e como este influenciou as análises arendtianas
acerca do pensar, salienta Legros: “Cette critique de Husserl, Heidegger l’exprime quando il dénonce l’illuision
d’un sujet qui pusse être «pur», qui ne soit pas déjà originairement au sein même d’um monde, qui soit capable
de se tenir dans la position de «spectateur impartial». Hannah Arendt la reprend quand elle défend l’idée que la
prise de distance que l’espirit prend à l’égard des phénomènes grâce à son pouvoir de penser ne le mène jamais
en-dehors du monde, ne lui permet jamais de le trasncedender, et ne lui permet pas non plus d’accéder à une
intuition ou une évidence. Visant nommément Bergson, mais plus généralmement les philosoplhes qui croient en
l’intuition, Arendt fait observer que jamais la pensée ne pourrait s’extraire du monde des apparences, et dés lors
«ne saurait déboucher sur une intuition; pas plus qu’elle ne peut être confirmée par une quelconque évidence
qu’elle consedérerait en silence». LEGROS. Le Retour au Monde le la Vie, p. 134.
40
HEIDEGGER. Introdução à Metafísica. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1987.
40
inteiro, mas somente de forma fragmentada.
41
O homem, com o intuito de desvelar o Ser em
sua essência, deve livrar-se dos aspectos aparentes do Ser e compreender a sua idéia, o “Ser
do Ser”, o que o levará a reconciliar-se com o Ser a partir do pensamento. Pensar, ou seja,
significar algo é chamar, convocar, um solicitar a aparecer a fim de fomentar uma reconcilia-
ção com a totalidade do Ser do ente, atribuindo ao Ser o que lhe é próprio: o verdadeiro “há”
da vida, a realidade em sua totalidade. Para Heidegger, existe uma necessidade de se realizar
uma reconciliação entre pensamento e realidade, na tentativa de se afirmar o Ser. Nesses ter-
mos, reconciliar significa construir uma identidade entre o Ser e o pensar.
42
Contudo, se por um lado podemos perceber claramente uma interpenetração das linhas
argumentativas de Heidegger e Arendt, por outro não podemos deixar de mencionar que, no
que tange ao Ser que se revela no espaço de aparências, nossa autora não comunga, de manei-
ra integral, com a concepção heideggeriana.
Nesse sentido, se Arendt, no que se poderia denominar de ontologia política da apa-
rência, procura identificar o Ser com a aparência, a compreensão total do Ser não se por
uma tentativa de ir além do imediatamente dado no aparecer, como ocorre em Heidegger.
Aliás, podemos dizer que não em Arendt a preocupação com a compreensão total do Ser,
se é que existe tal compreensão ou mesmo um Ser total nas especulações arendtianas. Assim,
de modo diverso, em Arendt, o que percebemos é o fato de que o ato de pensar funda-se na
pluralidade dos eventos concretos. A atividade de pensar se debruça sobre os eventos oriun-
dos da capacidade do homem de iniciar novos começos, que não são necessariamente “bons”
começos, no intuito de generalizá-los, ou seja, ela busca um significado total pois o arca-
bouço do pensar é em si geral, isto é, o conceito –, sem, contudo, consegui-lo de forma defini-
tiva, uma vez que o pensar deve sempre retomar o pensado anteriormente, se quiser, momen-
taneamente, saciar sua sede de significado que, como dissemos acima, nunca alcançará um
41
Sobre isso, ver HEIDEGGER. Introdução à Metafísica, p. 211.
42
Idem, p. 126 ss.
41
término definitivo. É nesse sentido que o pensar configura-se como uma atividade incessante,
pois circunscrever a vida em sua totalidade é tarefa somente realizável por alguém que esti-
vesse situado fora do mundo: uma espécie de deus ou de super-homem. É nessa perspectiva
que percebemos o quanto é necessário ao pensamento juntar ser e não-ser.
43
Não se pode
pensar o significado sem ao mesmo tempo pensar na sua ausência, o que, portanto, aponta
para o fato de nas análises arendtianas do pensar, não haver espaço para que esta atividade
realize, mesmo de forma especulativa, um amálgama entre Ser e pensamento: não como
harmonizar, de forma total, a realidade humana. O pensamento não somente é despertado pelo
Ser, mas também pelo não-Ser. Não há, no âmbito dos negócios humanos, uma natureza no-
bre que evocaria o ato de pensar. A faculdade de pensamento aplica cuidadosamente sua aten-
ção a tudo o que toca a existência humana, até mesmo o que é vil e desprezível que, a partir
da reflexão do pensar, revela sua ausência de significado. O Ser total nunca poderá ser alcan-
çado pelo pensamento, pois se é fato que a atividade prioritária da vida do espírito alimenta-se
do que é dado no mundo concreto, esse, nunca é portador de nada que possa ser denominado
de total.
44
Portanto, a partir das reflexões feitas acima, podemos dizer que, para Heidegger o es-
paço de aparência é o locus tanto da epifania quanto do esquecimento do Ser, pois a inautenti-
cidade do Ser pode se dar a partir da vida cotidiana do homem, na qual o eu individual seria
sacrificado pela impessoalidade do eles, imersos no “falatório”, na multiplicidade de opiniões
que não alcançam à verdade consistente da existência.
45
43
A esse respeito ver ARENDT. A vida do espírito, p. 113.
44
“Arendt did not share Heidegger’s concern with the relation of Being and Thought and the identity of the two
as proposed by Parmenides. She spoke, rather, of thinking Meaning. But she was aware that the problem that has
beset those concerned with Being also besets the search for Meaning: “nobody can think Being without at the
same time thinking nothingness, or think Meaning without thinking futility, vanity, meaninglessness (I, 149).
The need to reconcile thought with reality, to affirm Being, has traditionally entailed denial of evil; this is so,
also, for Heidegger’s identification of ‘to think’ and ‘to thank’ (YOUNG-BRUEHL. Reflections on Hannah
Arendt’s. The Life of the Mind. Reprinted from Political Theory: 362 e 363).
45
A esse respeito, ver HEIDEGGER. Ser e Tempo. § 35, p. 227.
42
A concepção acima refletida se configura como outro traço, presente nas análises es-
peculativas de Heidegger, que dista daquelas realizadas por Arendt. Segundo a mesma, a au-
tenticidade do Ser somente se fará no âmbito público e plural.
46
Essa concepção aponta para
o fato de haver em Arendt um estatuto privilegiado da pluralidade, pois o homem fundamen-
talmente é um ser do mundo. Esse pertencimento ao mundo, o qual é comum aos homens,
garante a não alienação do ego pensamente, pois o movimento de imersão ao próprio eu que
pensa se faz a partir das experiências concretas, oriundas do espaço de aparências e diversida-
des, que provêem à “matéria-prima” com a qual o eu inicia sua atividade de pensar.
1.1.3. “Ser e Aparecer Coincidem”
Principiar as análises acerca da faculdade de pensamento pelo desmantelamento das fa-
lácias metafísicas permitiu à Hannah Arendt emergir uma das atividades espirituais – o pensar
da escura e total invisibilidade, a qual a recobria, para a luminosidade da superfície, o locus
do homem, enquanto este estiver vivo.
A tarefa implementada por Arendt, na primeira parte de sua obra A vida do espírito, a
qual procuramos decompor em suas partes mais elementares, não é fácil de ser justificada.
Uma vez que, não basta apenas compreender o pensamento como uma faculdade contemplati-
va, que outrora fora condenada, pela metafísica, a viver eternamente no limbo, no esqueci-
mento da invisibilidade, mas, ao contrário, visá-la como uma atividade que, embora invisível,
46
Sobre isso diz Taminiaux: “Je crois cependant que l’insistence qu’elle met à souligner que nous sommes du
monde et non pas simplement au monde, que nous appartenons à um monde commun et que c’est en son sein que
notre identité personnelle, notre individuation, se constitue, va à l’encontre des vues de Sein und Zeit et du par-
tage que Heidegger y établit entre un monde comun quotidien dans lequel l’individuation n’est pas possible
parce qu’il est le règne du On et um monde au sens authentique où l’individuation échappe aux apparences pour
la bonne raison qu’elle consiste por le Dasein à faire face à l’indéterminée certitude de sa disparition. Au demeu-
rant, ce partage du monde quotidien et du monde propre, c’est dans le vieux langage de l’Être et de l’apparence
que Heidegger l’exprime, reprenant ainsi à son compte ce que Arendt appelle le «vieux préjugé de la suprématie
de l’Être sur l’apparence»" (TAMINIAUX. La fille de Thrace et le penseur professionnel, p. 162.
43
é parte integrante do mundo das aparências, constitui-se em umas das inovações conceituais
trazidas por Arendt para o terreno da filosofia política.
47
Dizer que o relevante e o expressivo localizam-se no plano da superfície e que, conse-
qüentemente, podemos escapar da aparência para outra aparência, significa minar, em seus
conceitos elementares, a antiga dicotomia entre os dois mundos o inteligível e o sensível
como acima foi dito. Em outros termos, o que Arendt fez foi trazer as análises da faculdade de
pensamento para a esfera dos fenômenos, rompendo com as antigas amarras metafísicas, as
quais limitavam o homem a compreender o mundo como uma esfera bipolar, na qual de um
lado o sujeito cognoscente e de outro o objeto cognoscível. Quando o mundo não é mais
visto como a arena em que o sujeito, senhor do céu e da Terra, tenciona conhecer o objeto, seu
humilde servo, no intuito de desfazer qualquer tipo de enigma acerca do funcionamento do
universo, o que há, nesse momento em diante, é um amálgama entre sujeito e objeto. Não foi
desejo de Arendt, com isso, realizar uma subsunção do sujeito com o objeto, mas tão somente
dizer que os papéis ora desempenhados, não são estanques.
48
Um “homem” não é menos “ob-
jetivado” do que uma pedra. Todo ente que, em um determinado momento, visa algo como
objeto de seu raio de percepção, no mesmo instante pode e, provavelmente, está sendo objeti-
vado por um outro ente e assim sucessivamente.
Em um mundo no qual a pluralidade é a lei da Terra, tudo o que aparece é visto, ouvido,
tocado, cheirado e degustado não por um espectador, mas por espectadores, os quais, não me-
47
A esse respeito, diz Taminiaux: “En première approximation, on pourrait dire que ce que ces arguments spé-
cieux masquent, c’est l’appartenance du penseur au monde des apparences. Ce qu’ils révèlent, c’est la dérobade
essentielle de cette activité à ce même monde des apparences" (TAMINIAUX. La fille de thrace et le penseur
profissionnel, p. 159).
48
Sobre isso diz Merleau-Ponty, que tanta influência exerceu sobre as reflexões arendtianas acerca do pensar:
“Colocando diante do espírito, foco de toda clareza, o mundo reduzido a seu esquema inteligível, uma reflexão
conseqüente faz desaparecer toda questão concernente ao relacionamento entre este e aquele, que doravante é
pura correlação: o espírito é o que pensa, o mundo é o que é pensado, não se poderia conceber nem a imbricação
de um no outro, nem a confusão de um com o outro (...) ambos são demasiada e perfeitamente coextensivos para
que um possa alguma vez ser precedido pelo outro, por demais irremediavelmente distintos para que esse possa
envolver o outro” (MERLEAU-PONTY. O visível e o invisível, p. 54).
44
nos aparentes do que quaisquer outras coisas, também pedem para serem vistos, ouvidos, to-
cados, cheirados e degustados.
Segundo Arendt, a existência de espectadores constitui-se como prova irremediável de
que uma variedade de pontos de vista, os quais não permitem que algo seja visado em sua
totalidade, mas parcialmente: apenas por um ângulo. A perspectiva a qual estamos apreen-
dendo o objeto pode variar, conforme modifiquemos nossa posição na Terra. Contudo, a per-
da de uma evidência significa somente a aquisição de outra evidência. Nesse sentido, em um
mundo de aparências e de espectadores, a totalidade do Ser nunca poderá ser abarcada, pois é
característica do que quer que apareça deixar a nu um aspecto, enquanto encobre o outro, em
um processo incessante que desvela-velando.
49
O Ser e o não-Ser pertencem reciprocamente.
Em meio às características de um mundo fonomenicamente plural, no qual quando uma
face de algo aparece concomitantemente ocultando à outra, o risco de haver distorções da rea-
lidade é inevitavelmente natural, o que leva a fomentação daquilo que Hannah Arendt chama
de “ilusões”:
50
uma das faces escondidas da aparência. As “ilusões”, que têm a função de
ocultar ou desfigurar uma aparência, a exemplo do que acontece como a camuflagem de um
soldado, surgem em função da posição do homem na Terra, o que o leva a visar de maneira
singular o objeto que aparece para ele (dokei moi). As aparências “ilusórias” pressupõem as
aparências autênticas, assim como os erros pressupõem as verdades. São recorrentes em um
mundo em que, de fato, o que são perspectivas particulares, e o ato de tentar desmascará-
las não nos presenteiam com uma verdade mais verdadeira, um “eu interno”, mas somente nos
remetem à outra aparência.
A constatação de que o homem nunca poderá conquistar uma “certeza” definitiva acerca
de nada (pois ele nunca conseguirá visar um objeto em sua completude) é fundamental, se-
gundo as concepções de Arendt, para que haja uma significação da política, ou seja, para que
49
Sobre isso, ver ARENDT. A vida do espírito, p. 31.
50
Idem, p. 30.
45
o pensamento possa adentrar a cena pública. A permissão concedida à atividade de pensar de
adentrar a arena do agir humano se deve ao motivo do pensar não nos beneficiar de conheci-
mentos exatos a respeito de nada, mas somente nos dotar de perplexidades e incertezas, as
quais, como veremos, são imprescindíveis no âmbito político, em “situações limite”, nas quais
o atordoamento provocado pela atividade de pensar nos paralisa e nos impede de seguir àque-
les que agem impensadamente.
51
Podemos dizer que todo o caminho argumentativo que estamos percorrendo, ao analisar
a filosofia-política de Arendt, aponta para o fato de que ser e aparecer coincidem. Caso fôs-
semos espectadores da multiplicidade de formas de vida, a exemplo dos deuses gregos, que do
alto do Monte Olimpo satisfaziam seus impulsos observantes, seríamos apenas seres no mun-
do. Contudo, não somos meras testemunhas do mundo, mas, também, somos testemunhados.
Assim, somos no mundo e do mundo. Esta constatação leva-nos a repetir: ser (sujeito) e apa-
recer (objeto) coincidem, ou seja, sujeito e objeto são feitos da mesma matéria fenomênica,
que os permitem tanto tencionar quanto serem tencionados.
52
Segundo Arendt, para que sejamos não somente do, mas também no mundo, necessita-
mos que este, o mundo um ambiente artificialmente criado por mãos humanas e legado às
gerações futuras –, sirva de locação para que possamos desempenhar nosso papel enquanto
durar nosso ato: o intervalo de tempo entre nosso nascimento e nossa morte. O cenário (mun-
do artificial) e a platéia (pluralidade humana) precedem a nossa aparição em cena e continua-
rão a existir após o desfecho de nossa encenação.
53
O fato de que o cenário poderá modificar-
se, com o advento de novas descobertas científicas, bem como a certeza de que platéias irão
se suceder, não nos impossibilita de crer que novas gerações terão as condições necessárias
para ratificarem o seu ser no mundo. Diante desta constatação, e no escopo de contracenar no
palco do teatro da vida, chegamos bem equipados a este mundo, tanto para representar nosso
51
A esse respeito, ver ARENDT. A vida do espírito, p. 144.
52
Idem, p. 20.
46
papel de sujeito, quanto o de objeto, seja possuindo os sentidos necessários para apreender a
multiplicidade de formas de vida, seja possuindo uma aparência simétrica a qual nos indivi-
dualiza. Na verdade, o somos menos espectadores do que atores. Trocamos de posição
constantemente em um mundo em que ser e aparecer coincidem.
54
Diante da franja conceitual exposta nesse passo e para o propósito de nossa pesquisa,
não podemos perder de vista que a atividade de pensar, por sua natureza, e segundo Arendt, é
invisível. O pensar retira-se do mundo das aparências, em um movimento para trás, em dire-
ção ao ego pensante. Porém, quem é o sujeito que implementa a atividade de pensar? Quem é
o sujeito que realiza um mergulho no próprio eu, retirando-se, assim, temporariamente, do
mundo visível? Insistimos: ser e aparecer coincidem. Nesse sentido, as características de
sermos membros de um mundo fenomênico não desaparecem quando, a sós, estamos em ati-
vidade reflexiva, buscando o significado de tudo o que toca a existência humana. No transcur-
so ativo pelo qual estamos engajados quando pensamos, continuamos sendo aparências em
meio a outras aparências.
55
Assim, já que em todos os momentos, podemos escapar da aparência para outra apa-
rência, como asseverar que o pensamento possui aptidão para aparecer? Como encontra
uma morada autêntica, no mundo fenomênico, para o ego pensante? O locus do pensar é apa-
rente ou não? Talvez o dom de Homero, que ilumina as experiências invisíveis, possa nos
ajudar nesta empreitada, pois como atestam os escritos de Parmênides, que foram redigidos
sob a forma influente das parábolas, a poesia e a filosofia nascerão de uma raiz comum: a
linguagem metafórica.
53
Sobre isso, ver ARENDT. A vida do espírito, p. 17.
54
ARENDT. A vida do espírito, p. 17.
47
1.1.4. Linguagem Metafórica
Perguntamos, anteriormente, se era, de fato, uma possibilidade da faculdade de pen-
samento ter o plano da superfície como um de seus locus pois sua morada primeira e mais
autêntica é o interior do ego pensante e, assim, revelar-se no mundo das aparências. Este
questionamento deve ser respondido de forma afirmativa, devido a todo processo argumenta-
tivo o qual foi utilizado nesse primeiro capítulo de nossa pesquisa.
Desta forma, no escopo de justificar a afirmativa feita acima, devemos prosseguir pelo
caminho que outrora fora aberto, quando demonstramos como nas reflexões de Arendt sobre o
tema do pensar ser e aparência coincidem. Este posicionamento nos obriga a analisar a possi-
bilidade de a faculdade de pensamento constituir-se como parte integrante do mundo fenomê-
nico, o que nos leva, conseqüentemente, a lançar luz sobre a capacidade do pensar de mani-
festar-se no mundo das aparências e como isto vem a se realizar.
Nessa perspectiva, podemos dizer que a linguagem constitui-se como fator preponde-
rante para a construção do arcabouço teórico proposto por Hannah Arendt no conjunto de sua
obra e, em nossos termos, em A vida do espírito.
56
Assim, quando Arendt lança mão da lin-
guagem, no âmbito das análises acerca das faculdades espirituais, o que ela pretende é de-
monstrar que o pensamento não pode ser compreendido como um dom misterioso e recolhido
no interior da mente humana. Ao contrário, a atividade de pensar utiliza-se da linguagem de
maneira imprescindível às suas pretensões: ativar-se e manifestar-se para os homens, o que
faz com que vislumbremos o pensamento como uma aparência em meio a outras aparências.
Esta constatação, a princípio, salva a faculdade de pensamento de ser um objeto estra-
nho no que diz respeito ao conjunto da produção arendtiana, pois traz esta faculdade espiritual
para o terreno da superfície, ou seja, o espaço da ação política, tema principal das análises de
55
E esse respeito, ver ARENDT. A vida do espírito, p. 19.
48
nossa autora. Contudo, a constatação feita acima não deixa de ter seus problemas que, em
parte, impedem de haver uma compreensão clara e precisa acerca dessa novidade trazida por
Arendt para o campo da filosofia política, a saber: a fenomenologização das faculdades espiri-
tuais que, para nosso propósito, circunscreve-se ao pensamento. Os problemas giram, basica-
mente, em torno do “como” fazer do pensamento uma atividade espiritual que se manifeste no
plano no qual se realiza a política.
A fim de facilitar a compreensão da fenomenologização do pensamento, e seguindo os
passos dados por Arendt na primeira parte de A vida do espírito, afirmamos que seres que
pensam possuem o ímpeto de falar; seres que falam possuem o ímpeto de pensar. Não uma
hierarquia entre pensamento e fala: suas prioridades equivalem-se. Tal experiência fundante
da condição humana leva-nos a crer, diante de tal perspectiva, que uma homogeneização
entre pensamento e fala. A atividade de pensar sedenominada por Arendt, em uma reinter-
pretação do conceito platônico, de o diálogo silencioso do eu consigo mesmo.
57
Como elos que vão se unindo para formar uma corrente, os elementos expostos acima,
levam-nos a perceber que a linguagem constitui-se como elemento chave para uma compreen-
são clara e precisa da posição de Arendt acerca do pensar, quando ela traz essa faculdade para
o terreno da superfície. Diante de tal assertiva, podemos compreender que pensamento e lin-
guagem possuem uma raiz comum. Para corroborar tal assertiva, voltemo-nos para Aristóteles
que, segundo Arendt,
58
compreendia que a linguagem em si constitui-se como uma sentença
que tem como objetivo dar conta de qualquer coisa que exista na vida humana, ou seja, entrar
em acordo com a realidade dada ao homem. As palavras, em si, não são nem verdadeiras nem
falsas, mas sim significativas, a não ser que acrescentemos a elas o “é” ou “não é”.
59
Implíci-
56
Sobre isso, Celso Lafer diz que em Arendt todos os problemas são, de certo modo, problemas de linguagem
(LAFER. Hannah Arendt: pensamento, persuasão e poder, p. 31).
57
Sobre isso, ver ARENDT. A vida do espírito, p. 135 e A dignidade da política, p. 161.
58
A esse respeito, ver ARENDT. A vida do espírito, p. 76.
59
Sobre isso, ver ARISTÓTELES. De Interpretatione, 16a4-17a9. Nessa passagem, diz Aristóteles: “Assim
como na alma se ora uma representação, que não desvela a verdade nem falseia nada, ora uma representação,
em que uma destas alternativas deve forçosamente estruturar-se, assim também na fala. Pois tanto o falso, como
49
to no ímpeto da fala está a busca do significado que, ao denotar o “há” do mundo, leva à aqui-
sição da compreensão, a qual faz o homem sentir-se em casa, reconciliando-o com a realidade
e, de certa forma, tornando-o senhor da Terra. Isto pode ser atestado nas palavras do Gênese:
(...) Iahweha Deus modelou então, do solo, todas as feras selvagens, e todas as aves
dos céus e as conduziu ao homem para ver como ele as chamaria: cada qual devia
levar o nome que o homem lhe desse. O homem deu nomes a todos os animais, às
aves dos céus e a todas as feras selvagens (...)
60
Desta forma, percebemos que o pensamento não ocorre, em hipótese alguma, sem o
dom da fala. O diálogo que o homem empreende consigo mesmo, de maneira silenciosa, faz-
se por seqüências de sentenças e palavras articuladas, em um processo que se caracteriza pela
desordem. O porquê de tal desordem evidencia-se pelo fato de que a atividade de pensar eli-
mina espaço e tempo o ontem, o hoje e o amanhã, bem como o perto e o longe demons-
trando que essas são categorias que inexistem à faculdade de pensamento, pois tudo é trans-
formado em um “eterno aqui e agora”, presente aos olhos do espírito.
Tal desordem, inerente à atividade de pensar, faz-nos crer que não como falar de
um produto final, o qual seria fomentado pela faculdade de pensamento ao termino de sua
atividade. Este, o produto final, somente existiria se o objetivo do pensar fosse pela intuição.
Nessa perspectiva, se a atividade de pensar, na concepção arendtiana, constitui-se como um
processo incessante, o qual gira em torno de si mesmo, a lei inerente a tal atividade espiritual
é o movimento circular (noesis noeseos), contrariamente ao linear que promove a aquisição de
uma intuição. Tal lei, inerente à atividade espiritual prioritária o pensamento vislumbra o
fato de que o pensar não necessita de ser ouvido: o espírito exige discurso, mas não de ouvin-
tes. Somente o processo que tem por meta intuir, de alcançar uma percepção clara e imediata
o verdadeiro pertencem ao âmbito da conjunção e disjunção. Em si mesmos, os nomes e os verbos se asseme-
lham à representação que não tem nem conjunção nem disjunção, tais que "homem" ou "branco" quando não se
lhes acrescenta mais nada. Um exemplo é o "bode-veado", que, decerto, significa alguma coisa mas nem desvela
a verdade nem falseia nada, se não se ajuntar que é ou que não é, seja simplesmente ou seja em algum tempo”.
60
GÊNESE, 2, 19-20.
50
do quer que os sentidos venham a apossar-se, carece de ser ouvido, pois a intuição, como um
produto final do processo cognitivo, permanecerá às gerações futuras. Para ganhar o status de
permanência, a intuição tem que ser intuída, ouvida, comunicada para tornar-se um tesouro
que garantirá a estabilidade de um mundo: o lar do homem em meio a outros homens.
Contudo, devemos ter bem claro em nossas análises que até mesmo a atividade de
pensar reclama ser ouvida. Caso isso não ocorresse, perder-se-ia em um palavrório estéril, a
exemplo do discurso do filósofo que se refugiou em sua torre de marfim, o que o levou a per-
der o contato com a vida vivida, ou seja, com a “matéria-prima” da faculdade de pensamento,
que busca significar tudo o que toca a existência humana. Esta fuga dos assuntos humanos,
desde a condenação de Sócrates,
61
constitui-se como a pedra angular que apartou filosofia e
política, trazendo conseqüências graves à ação que é realizada entre homens, como veremos
mais adiante.
É importante nesse momento abrirmos um parêntese com o intuito de salientar que pa-
ra Arendt o fato de o pensamento constituir-se de seqüência de sentenças e palavras somente
tem validade para o pensamento discursivo. Em outras palavras, essa assertiva tem plausibili-
dade quando a palavra é falada, e não para o signo, como é o caso do dialeto chinês, que opera
a partir da representação de símbolos, que remetem a toda a uma gama de significações. As-
sim, o mbolo de uma casa remete a um conjunto de concepções a ele associado, tais como:
moradia, estar abrigado, ter privacidade. O pensamento simbólico constitui-se em uma ocupa-
ção mental com imagens visíveis ao espírito e não com sentenças e palavras, como ocorre no
pensamento discursivo, ou seja, no diálogo silencioso do eu consigo mesmo.
62
No que diz respeito ao diálogo realizado pelo ego pensante, é a partir de uma modali-
dade específica da linguagem que o pensamento não somente é ativado, mas também se reves-
te da capacidade de manifestar-se como uma aparência em meio a um mundo de aparências,
61
ARENDT. Filosofia e Política, p. 91ss.
62
Sobre isso, ver ARENDT. A vida do espírito, p. 78ss.
51
como inicialmente apontamos. A filosofia foi a escola de Homero para imbuir-se de seu dom:
a metáfora. Todo o pensamento filosófico é uma metáfora congelada, que o primeiro filósofo
tinha clara percepção de seu significado original, a qual devemos descongelar a fim de com-
preendê-lo em seu sentido mais autêntico: as Idéias de Platão; o cogito ergo sum de Descar-
tes, o Dasein de Heidegger, o Espírito Absoluto de Hegel...
63
Para haver a fomentação do arcabouço conceitual – metáfora – utilizado pela atividade
de pensar, é necessário que os objetos dos sentidos passem por um processo de dessensoriali-
zação, ou seja, é preciso que a imaginação, a experiência mais elementar do pensamento, in-
verta as relações habituais, transformando os objetos sensíveis em imagens, capazes de serem
manipulados pela atividade de pensar. Essas imagens, os invisíveis, aquilo que Arendt deno-
mina de “matéria-prima” da atividade de pensar, a saber, as coisas-pensamento,
64
reunidos e
feitos presentes ao espírito, são retidos na memória que é guardada pela deusa Mnemosyne
(Memória), mãe das “Musas” que cuida da lembrança – sempre prontos a serem rememorados
em uma atividade crítica-reflexiva.
A metáfora, que em seu nascedouro possuía uma função estritamente poética, tem a
capacidade de iluminar uma experiência não aparente as experiências do ato de pensar a
partir de uma transferência (metapherein), ou seja, a partir de uma relação perfeita entre duas
coisas inteiramente diferentes.
65
A transferência se dá, pelo fato de que todas as metáforas
utilizadas pelo pensamento são tomadas de empréstimo das palavras que são empregadas para
darem conta das experiências somáticas do cotidiano, como nos diz Arendt:
63
ARENDT. A vida do espírito, p. 83.
64
Sobre isto, diz Celso Lafer: “Com Heidegger, Hannah Arendt aprendeu a distinguir entre um objeto de erudi-
ção e uma coisa pensada’. Em outras palavras, pensar não é pensar sobre alguma coisa, mas pensar alguma coi-
sa.” (LAFER. Hannah Arendt: pensamento, persuasão e poder, p. 21).
52
A metáfora fornece ao pensamento “abstrato” e sem imagens uma intuição colhida
do mundo das aparências, cuja função é “estabelecer a realidade de nossos concei-
tos”, como que desfazendo a retirada do mundo, pré-condição para as atividades do
espírito.
66
O que há, na utilização das metáforas, é uma similaridade em dessemelhantes: mesma forma
que. Relações que apontam para a primazia do mundo das aparências, pois a intuição colhida
do mundo fenomênico ilumina experiências que, do contrário, nunca apareceriam.
Desta forma, o pensar pode ser considerado, sem danos conceituais, um “re-pensar”: o
trazer à presença do espírito o ausente, transformado pela imaginação reprodutiva em metáfo-
ra.
67
Ao contrário, a imaginação produtiva maneja ao seu bel prazer às imagens fomentadas
pela imaginação reprodutiva, transformando-as em alguma coisa que nunca existira, (como
centauros, minotauros, unicórnios, duendes, fadas, bruxas) e até mesmo experiências de vida
que nunca aconteceram: posso me tornar um campeão do mundo ou um astronauta que des-
vendou um planeta longínquo.
Portanto, sendo a metáfora a linguagem do pensamento, podemos vislumbrar que o
mundo das aparências insere-se no pensamento independentemente das necessidades de nosso
corpo ou das reivindicações de nossos semelhantes, mas única e exclusivamente por nossa
necessidade de reconciliar-nos com a realidade. Ou seja, por mais distanciados que estejamos
do objeto real, a memória, prestando-se a imprescindível ajuda à faculdade de pensamento,
torna presente estes objetos para que esta faculdade, que vai à profundidade dos acontecimen-
tos, possa compreender o seu significado.
Compreender que a metáfora desfaz com a possível existência de dois mundos sen-
sível e inteligível e que, desta forma o pensar é parte integrante do mundo das experiências
65
Sobre isso, ver ARENDT. A vida do espírito, p. 80.
66
Idem, idem.
67
Nesse sentido, diz Agostinho, que tanta influencia exerceu sobre as análises arendtianas: “Chego aos campos e
vastos palácios da memória onde estão tesouros de inumeráveis imagens trazidas por percepções de toda espécie
(...) Quando entro mando comparecer diante de mim todas as imagens que quero (...) O grande receptáculo da
memória sinuosidades secretas e inefáveis, onde tudo entra pelas portas respectivas e se aloja sem confusão
recebe todas estas impressões, para as recordar e revistar quando for necessário. Todavia, não são os próprios
53
somáticas, pois a faculdade de pensamento se manifesta no mundo fenomênico através da
linguagem metafórica, é satisfatório para os nossos propósitos, ou seja, compreender a impli-
cação política da faculdade de pensamento. Contudo, não podemos deixar de mencionar que,
de forma circunscrita ao ego pensante, este possui sua localização naquilo que Arendt irá de-
nominar de nunc stans (o agora permanente), pois o homem não somente localiza-se espaci-
almente, mas também temporalmente.
68
Nessa perspectiva, nossa autora realiza uma reinter-
pretação de uma perspectiva do tempo em Agostinho,
69
recorrendo a Kafka
70
e a Nietzsche
71
para dar sustentação a seus argumentos.
objetos que entram, mas as suas imagens: imagens das coisas sensíveis, sempre prestes a oferecer-se ao pensa-
mento que as recorda” (AGOSTINHO. Confissões Livro X, p. 266 e 267).
68
Para Kant, o tempo não deve ser compreendido como um conceito extraído do mundo sensível, tal como ocor-
re com os “esquemas”, mas sim como uma forma subjacente, a priori, a todas as intuições. O tempo é uma for-
ma pura de intuição dos objetos internos, que se caracteriza por ter uma única dimensão: diversos tempos não
são simultâneos, mas sucessivos, ou seja, quando se acredita que existem tempos no plural, o que há, de fato, é a
certeza de que diferentes tempos são partes de um mesmo tempo ilimitado. Nesse sentido, o tempo, o qual não
possui nem figura ou posição, deve determinar o arranjo no qual cada representação irá se apresentar ao pensa-
mento discursivo: anterior, posterior... Portanto, o tempo é a forma que o homem possui para intuir a si mesmo e
ao seu estado interno, ou seja, de representar as coisas e a si mesmo como objeto. Sobre isso, ver KANT. Crítica
da Razão Pura, B41.
69
Arendt descreve “onde estamos quando pensamos”, reinterpretando a compreensão agostiniana do nunc stans,
que para nossa autora determina-se como a lacuna que se constitui a partir da batalha travada pelo homem-
pensamento contra seus antagonistas: passado e futuro. Passado e futuro, nessa perspectiva, são considerados
antagonistas do ego pensante, na medida em que o primeiro empurra-o para frente a partir do peso morto de sua
existência, enquanto o segundo, veda o caminho à frente, a partir da incerteza do que de vir. O ego pensante,
nessas circunstâncias, necessita defender sua posição, no intuito de não ser esmagado por essas forças antagôni-
cas e de igual potência, para poder não ser dominado por elas, mas, sim, significá-las. Essa batalha formará um
ângulo denominado pelos físicos de paralelogramo de forças, configurando-se como “a região do espírito”. Essa
lacuna, o lar do ego pensante, pode ser descrita como um eterno presente”, que surge do choque entre o não-
mais e o ainda-não, ou seja, o “lugar” onde se realiza a atividade de pensar. Esse hiato torna-se possível apenas
ao ego pensante, na medida em que ele, pelo fato de ter-se retirado das atividades ordinárias, pode manejar de
todas as formas o conjunto das experiências sensoriais, que para ele encontram-se despidas de suas vestes habi-
tuais e revestidas de uma outra roupagem: uma indumentária dessensorializada e desespacializada. Esse remane-
jamento do que é dado imediatamente permite ao homem, mergulhado em pensamentos, denotar o que foi de
não-mais e o que virá de ainda-não. A lacuna entre o passado e o futuro se abre para a ação refletida, cuja
temática é aquilo que se encontra ausente e que, contudo, existe como coisa-pensamento. A esse respeito, ver
ARENDT. A vida do espírito, p. 152.
70
Com o intento de ilustrar a experiência da atividade de pensar, de estar situado em “lugar nenhum”, Hannah
Arendt recorre à parábola de Kafka, que faz parte de uma coleção de aforismos intitulada “ELE”. Assim, o afo-
rismo se desenvolve da seguinte maneira: “Ele tem dois antagonistas: o primeiro empurra-o para trás a partir da
origem. O segundo veda o caminho à frente. Ele luta com ambos. Na verdade, o primeiro lhe apoio na luta
contra o segundo, pois ele quer empurrá-lo para frente; e, da mesma forma, o segundo apóia-o na luta contra o
primeiro, pois ele empurra-o para trás. Mas isso é assim apenas teoricamente. Pois não são somente os dois anta-
gonistas que estão lá, mas também ele; e quem conhece realmente suas intenções? (KAFKA apud ARENDT. A
vida do espírito, p. 153). Para Hannah Arendt, esta parábola de Kafka demonstra, de maneira correta, a sensação
do ego pensante, quando este está situado na lacuna possibilitadora da atividade de pensar, no qual a realiza-
ção total do seu ser, de sua quintessência.
71
Sobre isso, ver NIETZSCHE. Assim Falou Zaratustra. Nesse escrito, principalmente em sua Terceira Parte,
podemos vislumbrar uma experiência do ego pensante, semelhante àquela que Arendt aponta no aforismo de
54
A importância de termos mencionado a análise arendtiana acerca do nunc stans está no
fato de que Arendt procura, em A vida do espírito, demonstrar que a autêntica experiência de
retirada do mundo fenomênico, preconizada pelo pensar, sempre suscitou inúmeros equívocos
quanto à “localização” do ego pensante. Contrário ao que propagava as falácias metafísicas,
segundo Arendt,
72
quando se pensa, não um encaminhamento para um mundo diverso
daquele no qual os homens, habitualmente, se localizam para efetuarem suas ações. Não é um
outro mundo que se abre ao homem quando este, em raros momentos, ativa sua faculdade de
pensamento; mas, o fenômeno que se inicia, concomitantemente ao se principiar o diálogo de
eu consigo mesmo, é a suspensão das estruturas convencionais do espaço e do tempo, as quais
nos permitem intuir um objeto. Essa suspensão é fundamental, pois o pensar procura encami-
nhar para o âmbito da generalização tudo o que se passa diante de seus sentidos.
73
O processo
do pensar, portanto, parte do que está ao alcance da mão, a fim de obter aquilo que somente é
possível pelo espírito: as generalizações. Não perguntaríamos o que é a justiça, se nunca ti-
véssemos visto ações justas; não questionaríamos o que é o amor, se gestos amorosos nunca
nos fossem dados; não tentaríamos compreender o que é a política, se não tivéssemos, diante
Kafka. Nesse texto, Nietzsche descreve essa experiência da seguinte forma: “(...)‘Vê este portal, anão!’, continu-
ei a falar: ‘ele tem duas faces. Dois caminhos se juntam, aqui: ninguém os seguiu até o fim. Este longo corredor
para trás: ele dura uma eternidade. E aquele longo corredor para diante é uma outra eternidade. Eles se contra-
dizem, esses caminhos; eles se chocam frontalmente: e aqui neste portal é onde eles se juntam. O nome do portal
está escrito ali em cima: “Agora”. Mas se alguém seguisse adiante por um deles – e cada vez mais adiante e cada
vez mais longe: acreditas, anão, que esses caminhos se contradizem eternamente? (...)” “(...)‘Vê, continuei a
falar, vê este agora! Deste portal Agora corre um longo, eterno corredor para trás: atrás de nós uma eternida-
de. Não é preciso que, de todas as coisas, aquilo que pode correr já tenha percorrido uma vez esse corredor? Não
é preciso que, de todas as coisas, aquilo que pode acontecer já tenha uma vez acontecido, já esteja feito, transcor-
rido? E, se tudo já esteve aí: o que achas tu, anão, deste Agora? Não é preciso que também este portal – tenha
estado aí? E não estão tão bem amarradas todas as coisas, que este Agora puxa atrás de si todas as coisas vindou-
ras? E assim a si próprio também? Pois, de todas as coisas, aquilo que pode correr: também por este longo
corredor para adiante é preciso que corra uma vez ainda!’(...)” (NIETZSCHE. Assim Falou Zaratustra, p. 227
e 228)
72
ARENDT. A vida do espírito, p. 149ss.
73
Mais uma vez percebemos a aproximação de Arendt com os escritos de Immanuel Kant, pois a utilização da
metáfora pela faculdade de pensamento aproxima-se muito do que Kant apresenta em seu “esquematismo” da
Crítica da Razão Pura, isto é, uma representação mediadora. Para o filósofo de Königsberg, o “esquema” é um
produto da imaginação, que procura abarcar o todo de forma universal, o qual é distinto da uma imagem singu-
lar, que é dada ao homem em suas experiências. Em outras palavras, o “esquema” kantiano é o conceito que tem
um procedimento universal, somente existente no pensamento, pois no mundo das aparências não nenhuma
possibilidade de se abarcar o todo. Para haver o “esquema”, enquanto um produto da imaginação, é imprescindí-
55
de nossos olhos, ações na esfera pública. Tal generalização seria impedida de ser alcançada,
caso os homens somente lidassem com os objetos, tal como eles aparecem nas experiências do
dia-a-dia, a exemplo do que sucede na arena do agir humano. No campo dos afazeres políti-
cos, não espaço para as generalizações: quando se tenta aplicar uma idéia geral ao domínio
público, cai-se em abstrações sem sentido, pois a política é caracterizada pela singularidade
do momento presente: não a justiça ou a moral no âmbito da política, mas somente ações
justas ou morais, o que não nos impede de tentar compreender tais fenômenos à luz das gene-
ralizações, sem as quais um dado momento histórico nunca poderia ser abrangido em seu sen-
tido mais profundo.
74
Portanto, essas análises demonstram, conseqüentemente, que o ego pensante jamais
abandona de todo o mundo das aparências, pois este é novamente presentificado através de
metáforas: emblemas que são fios com os quais o espírito se prende ao mundo. Dito de outra
forma, as metáforas são analogias com que o ego pensamente, mesmo após haver se retirado
do mundo das aparências a fim de significá-lo o necessário e imprescindível distanciamento
dos afazeres humanos, o parar-para-pensar mantém um vínculo indissolúvel com o âmbito
fenomênico. Podemos dizer que a metáfora constitui-se como o pão nosso de cada dia do pen-
samento conceitual, o que aponta para o fato de não haver dois mundos – o sensível e o inteli-
gível uma vez que, a metáfora os une, serve de modelo de unidade, permitindo ao homem
transitar livremente pelas duas esferas.
vel haver uma experiência, a qual, abstraída de seus elementos particulares, pode transformar-se em uma repre-
sentação de um todo. Sobre isso, ver KANT. Crítica da Razão Pura, B174ss.
74
Sobre isso, ver ARENDT. A vida do espírito, p. 151.
56
CAPÍTULO II
Consumo e Ausência de Pensamento
“Amanhã comportar-me-ei direito, amarrarei uma gravata ao
pescoço, percorrerei as ruas como um bicho doméstico, um ci-
dadão comum, arrastado para aqui, para acolá, dizendo frases
convincentes. Feliz, completamente feliz”.
Graciliano Ramos. Insônia
A transformação do sujeito político em um ser isolado do diálogo com os seus pares
na esfera pública e, concomitantemente, consigo mesmo, ocasionou o surgimento do desinte-
resse em parar-para-pensar acerca do significado da vida vivida. Assim, o fenômeno que tor-
nou o homem indiferente aos assuntos de cunho comum pode ser detectado como uma conse-
qüência inevitável da vitória da necessidade sobre a política, ou seja, do animal laborans so-
bre o homem de ação.
Dessa forma, dado o objetivo ao qual essa dissertação propõe-se alcançar, ou seja, o de
compreender a implicação política da faculdade de pensamento, faz-se necessário refletir so-
bre o espaço do político na modernidade. Assim, compreender o “que” e “como” os homens
estão fazendo o que fazem condenando a ruína tudo o que tocam, destruindo tudo o que
possui algum tipo de durabilidade em um mundo comum com o intuito de analisar o “por-
que” do desinteresse em significar tudo aquilo que diz respeito à existência humana em pro-
veito da vida em seu sentido restritivamente biológico manter-se vivo é de suma impor-
tância para o nosso propósito.
É nesse ambiente de valorização da vida, caracterizado pela condição humana do tra-
balho, como um processo metabólico do homem com a natureza, que a razão passa a ser
compreendida como uma faculdade de cunho normativo. Assim, com a vitória do animal la-
57
borans e sua incapacidade de cuidar de um mundo comum,
75
o homem viu-se diante da nuli-
dade de agir em conformidade com qualquer tipo de atividade que tivesse como meta preser-
var o mundo ou pensar acerca de tal preservação.
Assim, segundo Arendt, a cultura da modernidade, alicerçada sob a perda de estabili-
dade e durabilidade de um mundo comum,
76
levou o homem, a partir de uma ruptura com a
realidade, ocasionada pela reclusão do homem na atividade do trabalho, a recusar-se a credi-
tar como valor de verdade tanto nas apreensões dos sentidos quanto nos modelos imutáveis de
uma razão contemplativa. Isto fez com que o homem passasse a crer que o único critério de
verdade estivesse alojado nos processos mentais.
Diante dessa perspectiva, percebemos que a modernidade produz um novo ser, que
possui uma das faces voltada à saciedade dos desejos humanos, cuja única forma de amenizá-
los é criar uma cultura do consumismo desenfreado, que desembocará no surgimento de um
tipo de sociedade específica da Era Moderna, ou seja, a sociedade de massa. Esta pode ser
definida, segundo Arendt,
77
como um tipo de vida organizada que automaticamente se esta-
belece entre os homens que, apesar de manterem algum tipo de contato mútuo, perderam o
interesse em assuntos de cunho comum. Sua única preocupação é trabalhar (laborar) e con-
sumir, longe das preocupações de ordem pública: daquilo que se pode chamar pertencente a
todos.
A outra face revelada pela cultura moderna, e associada à primeira, é a crença inques-
tionável na razão instrumental, fomentadora de sistemas técnico-burocráticos que têm como
75
Sobre isso, diz Adriano Correia na introdução à sua tradução do texto de Hannah Arendt Labor, work, action,
de 1964: “O animal laborans, pela sua atividade, não sabe como construir um mundo nem cuidar bem do mundo
criado pelo homo faber. Os produtos do trabalho, do metabolismo do homem com a natureza, não demoram no
mundo o tempo suficiente para se tornarem parte dele; do mesmo modo, a atividade do trabalho, atenta somente
ao ritmo das necessidades biológicas, é indiferente ao mundo ou sem mundo, compreendido como artifício hu-
mano (...) A vitória do animal laborans, do trabalho, é o triunfo do consumo sobre o uso, do metabolismo sobre
o mundo, da vida sobre a imortalidade (...) A vitória do animal laborans traduz o apequenamento da estatura e
dos horizontes do homem moderno, para quem a felicidade se mostra como saciedade e não como grandeza”
(CORREIA. Hannah Arendt e A condição humana, p. 337 e 338).
58
finalidade permitir que as forças necessárias de um processo natural ou histórico sigam seu
rumo sem nenhum tipo de impedimento. O que todo esse lineamento histórico vem nos mos-
trar é que o ambiente da modernidade é tecido pela idéia de que as ações dos homens são gui-
adas por uma força não aparente e, de certa forma, inconsciente a eles. Contudo, pela ativida-
de processual de uma razão instrumental, pode-se planejar toda a ordem do universo, levando
a cabo um destino do qual nenhum indivíduo pode se ver livre, a exemplo do ocorrido no seio
dos regimes totalitários, nos quais houve a tentativa de se forjar a vitória da raça pura sobre as
raças indignas de viver, ou do proletariado sobre a burguesia.
A partir de tal ambiente, procuraremos compreender, seguindo os passos de Hannah
Arendt, como a balança tripartida da vida activa que determina a condição humana: trabalho
(labor) metabolismo do homem com a natureza, no intuito de garantir sua existência –, fa-
bricação (work) construção de uma mundanidade artificial e durável e ação (action)
ação conjunta, realizada por palavras e ações, que ratifica a certeza de que a pluralidade é a lei
da Terra
78
–, pôde, na Era Moderna, desequilibrar-se e, assim, pender para a atividade humana
do trabalho, a qual é destinada a garantir a manutenção da vida biológica da espécie humana.
Essa hierarquização do trabalho sobre as outras atividades da vida activa levou à vitória do
animal laborans o agente dessa forma de atividade humana e, concomitantemente ao tri-
unfo do consumo sobre a durabilidade, das necessidades da vida sobre a ação em conjunto e
da não intencional atividade cíclica sobre o intencional parar-para-pensar.
Antes do desencantamento de Platão em relação à vida na polis, o qual ocorreu por o-
casião do julgamento e condenação de Sócrates, a atividade que ocupava o topo da pirâmide
da vida activa era a ação. O giro de cento e oitenta graus que alterou a hierarquia da vida acti-
va, fez com que Arendt procurasse empreender uma radical distinção entre as esferas privadas
76
Segundo Arendt, a perda de estabilidade e durabilidade de um mundo comum é devido à ruptura com fio da
tradição, ou seja, perda do peso da tríade romana: tradição, autoridade e religião. Para um estudo mais aprofun-
dado sobre esse tema, ver ARENDT. Entre o passado e o futuro, p. 43ss.
77
Sobre isso, ver ARENDT. Origens do totalitarismo, p. 361.
59
e públicas. A primeira constitui-se como o locus no qual os homens têm suas relações íntimas,
sentem dor, amor e todo o tipo e variedade de sentimentos restritos ao âmbito do indivíduo
com seus pares familiares. É também nesse espaço que os homens procuram satisfazer suas
necessidades e garantir sua sobrevivência. No que diz respeito à esfera da vida activa a pú-
blica esta se configura como o locus no qual os homens lançam-se ao mundo com o escopo
de fomentar um mundo artificial de bens duráveis, bem como agem em concerto com os de-
mais, na expectativa de gerar poder político pela ação espontânea oriunda de sua liberdade.
Tal análise distintiva reveste-se de suma importância, pois, segundo Arendt,
79
é forçosa a
preservação dos claros limites das duas esferas, que possibilitam as diversas atividades da
vida activa, pois do contrário, cair-se-á na armadilha totalitária, que procura subsumir uma
esfera a outra, com a intenção de controlar a vida dos homens em todos os níveis.
A partir das indicações contidas na obra A condição humana, procuraremos acompa-
nhar os passos dados por Arendt na análise do caráter ativo da condição humana, ou seja, pen-
sar a vida dos homens tendo como fio condutor o produto final, a coisa produzida por uma
determinada atividade humana, levando em conta sua função e sua durabilidade no mundo
partilhado pela pluralidade humana.
Procurar compreender quais são as características do pano de fundo (Background) da
modernidade, bem como a epifania das dominações totalitárias do século XX, principalmente
em seu aspecto ideológico, é a tarefa circunscrita nesse segundo capítulo de nossa pesquisa.
Portanto, o objetivo desse passo é explicitar as questões da massificação e a superfluidade
humana que provocaram a crise do século XX, as quais se constituem como fenômenos que
são temas corriqueiros no âmbito das análises realizadas pelos pensadores desse momento
histórico. Tais fenômenos, no nosso entendimento, constituem-se como fundamentos a partir
dos quais houve o fomento do totalitarismo. Assim, procuraremos explicitar o ambiente a par-
78
Sobre isso, ver ARENDT. A condição humana, p.15.
79
A esse respeito, ver ARENDT. A condição humana, capítulo II.
60
tir do qual houve o florescimento das reflexões de Hannah Arendt, que possui como objetivo
principal compreender os problemas concretos da vigésima centúria, pois para essa filósofa a
“compreensão é criadora de sentido, de um sentido que se enraíza no próprio processo da vida
na medida em que tentamos, através da compreensão, conciliar-nos com nossas ações e nossas
paixões”.
80
Portanto, o movimento analítico que iremos realizar nesse segundo capítulo será o de
refletir acerca da vitória do animal laborans, bem como analisar o porquê de sua exclusiva
preocupação com a manutenção de sua vida ter expelido o homem da esfera pública para den-
tro de seu próprio eu. Com base nas reflexões de Hannah Arendt procuraremos entender como
o apogeu da atividade que visa o consumo para a preservação da espécie pode ser compreen-
dido como o princípio e fim dos regimes totalitários, pois é da competência de tais regimes
aperfeiçoar a apatia nascida nas sociedades modernas em relação aos assuntos de interesse
comum, apatia essa decorrente da preocupação em se manter vivo. Reduzir os homens ao seu
denominador comum e natural, retirando deles qualquer possibilidade de livre iniciativa,
constitui o objetivo principal dos regimes totalitários.
81
2.1. A Ruptura com a Realidade
Segundo Hannah Arendt, são três os eventos primordiais que fundamentam a Era Mo-
derna e que tiveram como conseqüência mais proeminente desse novo momento histórico, a
alienação do homem em relação ao mundo e a concomitante ruptura com a realidade.
82
No limiar de sua obra intitulada A condição humana, em seu prólogo, Arendt chama a
atenção para um evento que se caracterizou como o primeiro de uma série que assinalaram o
80
ARENDT apud LAFER. ARENDT. A condição humana, p. VII.
81
Sobre isso, ver DUARTE. Pensamento à Sombra da Ruptura, p. 47.
61
nascimento da Era Moderna.
83
Assim, segundo nossa autora, quando o homem, no ano de
1957, lançou ao espaço o primeiro satélite artificial, uma obra feita por mãos humanas, este
pode ser considerado como o primeiro passo que a humanidade deu rumo à efetivação da
marca indistinta da Era Moderna: expulsar o homem do mundo e, assim, arruinar, em suas
bases, a condição humana, ou seja, transformar o homem em um ser do universo, fazendo
com que ele se alienasse da vida na Terra.
O que Arendt procura enfatizar em suas análises impressas em sua obra de 1958 é que
a condição humana se fundamenta em três pressupostos básicos – vida biológica, pertencer ao
mundo e pluralidade – sem as quais a vida do homem perderia toda a significação e não pode-
ria mais ser chamada de “vida humana”. Ou seja, segundo nossa autora, para que se possa
compreender a condição humana é preciso distinguir as três atividades que compõem a vida
ativa: o trabalho (labor: atividade que visa à manutenção da espécie humana, realizada na
vida privada, na relação metabólica do homem com o seu corpo); a fabricação (work: ativida-
de que visa à fomentação de um mundo artificial, constituído pelos objetos fabricados pelas
mãos humanas) e a ação (action: somente essa atividade é realizada entre homens, pela ação e
pela palavra conjunta, no espaço público). A circunscrição da condição humana, que limita e
restringe a existência do homem na Terra em linhas bem definidas, é constantemente atacada
na Era Moderna, na tentativa de dar ao homem uma outra natureza, isto é, uma natureza que
permitisse ao mesmo fugir das amarras que o prende à sua condição.
Essa marca indistinta da Era Moderna ganha contornos mais nítidos com os três even-
tos que se caracterizam como os fios condutores à epifania deste novo momento: a descoberta
da América e a concomitante expansão marítima, a expropriação de terras eclesiásticas e a
invenção do telescópio.
84
Estes três eventos, segundo Arendt, dão o tom daquilo que pode ser
82
ARENDT. A condição humana, p. 260ss.
83
Idem, p. 09.
84
Em Arendt uma distinção entre o começo da Era Moderna e o começo do mundo moderno. Sobre isso, diz
Weyembergh: “Si l’âge moderne commence avec trois événements event au sens arendtien de fait historique
62
chamado de o pano de fundo (Background) que proporcionou a crise nos valores éticos-
políticos e, desta forma, favoreceu o advento dos regimes totalitários no século XX.
Não se constitui como tarefa dessa pesquisa analisar o percurso analítico que Hannah
Arendt realizou no interior de sua obra A condição humana e, nesse sentido, lançar luz, passo
a passo, sobre os eventos que marcaram o nascimento da Era Moderna. Assim como, não nos
interessa compreender o papel que a descoberta da América e a concomitante expansão marí-
tima tiveram no apequenamento das distâncias que outrora separavam os homens e que agora
os fazem ser cidadãos do mundo,
85
tão pouco analisar o evento histórico da Reforma Protes-
tante e sua conseqüente expropriação de terras eclesiásticas.
86
O que nos interessa, de fato, é
compreender como a perda de referência, que orienta o homem a viver entre seus pares, passa
pelo fato deste ter perdido seu laço primordial com o mundo fenomênico, ou seja, “seu” peda-
ço de terra denominado propriedade privada. Assim, a supressão da propriedade privada pode
ser entendida como o início do processo de alienação do mundo, o qual teve na invenção do
telescópio um importante aliado para a solidificação de tal fenômeno: a ruptura do homem em
face da realidade.
No desenvolvimento de nossa pesquisa, apropriar-se do fenômeno da perda do homem
de seus elementos referenciais, que tiveram seu desfecho com a invenção do telescópio por
parte de Galileu, como fios condutores, significa uma tomada de posição no intuito de com-
preender como estes momentos fomentam um cenário capaz de destituir o homem de sua
condição terrena e, assim, abstrai-lo de sua relação com seus pares. A importância dessa to-
mada de posição, por parte de nossas análises, repousa na tentativa de entender como tal cená-
rio descrito acima pôde afastar o homem de sua qualidade de membro de um mundo artifici-
imprévu et commençant une nouvelle période ou une nouvelle série de phénomènes la découverte de
l’Amérique et l’exploration du monde, l’expropriation des possessions monastiques et l’accumulation de la ri-
chesse sociale, et enfin l’invention du lescope, le monde moderne commencerait, pour les sciences naturelles,
au début de ce siècle et, pour la politique, à l’extrême fin de la seconde guerre mondiale" (WEYEMBERGH.
L’âge moderne et le monde moderne, p. 157 e 158).
85
A esse respeito, ver ARENDT. A condição humana, p. 262.
86
Idem, p. 265.
63
almente criado por mãos humanas, colocando em risco a conservação do espaço público, ao
qual, nesse momento em diante, é visto como algo estranho e, portanto, alheio aos interesses
comuns. O que queremos salientar é que, com a perda da referência de se pertencer a um
mundo, cuja pluralidade é a sua lei, o homem moderno viu-se diante de uma situação de re-
clusão em si mesmo, a qual significa um risco a qualquer tipo de significação da vida, pois
como vimos no capítulo anterior, sem as experiências concretas, não há com o que abastecer a
faculdade de pensamento e, assim, suprime-se em quase todas as suas possibilidades a ativa-
ção do pensar. Dito em outras palavras, a falta de relações normais, fenômeno implementado
pela Era Moderna sob o homem, inviabiliza qualquer tipo de implicação política da faculdade
de pensamento, uma vez que o espaço plural é atacado em sua condição primordial em função
de uma equalização do homem unicamente com o seu ser vital.
Nessa perspectiva, o deslocamento do homem de seus laços, ou seja, sua privação de
referência, que se completa com a invenção do telescópio, tem um efeito direto para o surgi-
mento da Era Moderna. É nessa perspectiva que Arendt, no capítulo VI de A condição huma-
na, se refere à perda da propriedade privada como um evento que ajudou no aceleramento do
fenômeno de desencadeamento do homem face à sua vida terrena, a partir do duplo processo
de expropriação individual e acúmulo de riqueza social.
87
Com a aceleração da industrializa-
ção e o advento do fenômeno de acúmulo de riquezas, houve a necessidade de tirar toda a
importância que outrora a propriedade privada possuía, ou seja, ser compreendida como um
marco referencial da existência humana em sociedade, com o propósito de fazer com que o
“ter” e consumir” passassem a ser os novos laços que unem os homens na vida em comum.
A partir desse evento o homem viu-se alijado, juntamente de sua propriedade privada, de uma
parte do mundo que lhe pertencia e lhe possibilitava ter parte nos assuntos púbicos, de cunho
comum.
87
Sobre isso, ver ARENDT. A condição humana, p. 260ss.
64
O que essa análise arendtiana procura demonstrar, à luz da concepção antiga da distin-
ção da esfera privada e pública, é que sem um pedaço de mundo não como haver ações
políticas. A propriedade privada é o espaço no qual o homem pode refugiar-se para, distante
da luz da publicidade, realizar a atividade do trabalho que lhe proporciona manter seu ciclo
biológico intacto e, assim, garantir a sua sobrevivência e a de sua espécie, no intuito de, es-
tando liberado dessas necessidades vitais, poder ingressar na esfera pública. Sem a esfera pri-
vada que constitui o espaço onde o esforço destinado à preservação da vida humana possa ser
desempenhado, tal como o era no mundo grego, a liberação da mesma e sua conseqüente rela-
ção com a esfera pública perde todo caráter de plausibilidade e urgência. Na Antigüidade gre-
ga, somente era acessível à esfera pública àqueles que eram detentores de uma propriedade
privada terras e escravos
88
bens que possibilitassem ao homem vencer a luta contra a ne-
cessidade da manutenção do ciclo biológico e, assim, lhe proporcionasse abstrair-se (skhole)
de qualquer atividade que não fosse política. É nesse sentido que o escravo não tinha condi-
ções de se aventurar na esfera pública, pois ele não possuía uma parte do mundo.
89
Diante do que foi dito, a expropriação de terras significou deste momento em diante
não somente uma eliminação da esfera privada, mas, o que é mais significativo, atividades
privadas realizadas em público, ou seja, todas as atividades que eram realizadas longe da luz
da publicidade foram levadas para fora dos muros da privacidade. Este fato levou a uma soci-
alização da esfera pública pela vitória do animal laborans, como veremos no item seguinte.
88
É nesse sentido, que na Antigüidade, a escravidão era vista como algo “natural” das exigências do mundo
público e o escravo visto como uma espécie de propriedade privada. Sobre isso, diz Arendt: “Trabalhar significa
ser escravizado pela necessidade, escravidão esta inerente às condições da vida humana. Pelo fato de serem su-
jeitos às necessidades da vida, os homens podiam conquistar a liberdade subjugando outros que eles, à força,
submetiam à necessidade (...) Ao contrário do que ocorreu nos tempos modernos, a instituição da escravidão na
antiguidade não foi uma forma de obter mão-de-obra barata nem instrumento de exploração para fins de lucro,
mas sim a tentativa de excluir o trabalho das condições da vida humana” (ARENDT. A condição humana, p. 95).
89
Sobre isso diz Adriano Correia: “Ela [Arendt] indica, com efeito, que o surgimento da polis representou algum
sacrifício da esfera privada da família e do lar; não obstante, assinala ainda que, se a polis não violou as vidas
privadas de seus cidadãos, não foi por respeito à propriedade privada, como agora a concebemos, mas pela com-
preensão de que ter um lugar no mundo, ao qual representar e do qual retirar o necessário à liberação das neces-
sidades, era indispensável à participação do cidadão nos assuntos públicos” (CORREIA. Hannah Arendt, p. 44).
65
Segundo as análises arendtianas, a perda da propriedade privada significou o primeiro
passo rumo à socialização da vida humana, que possui como uma de suas características o
incessante acúmulo de riquezas. Ora, nada é tão contrário ao acúmulo de riqueza do que a
propriedade privada, pois esta possui como traço predominante a permanência e estabilidade
que fixa o homem em seu domínio. O papel que a propriedade privada desempenha ao fixar o
homem no mundo é o de proporcionar ao indivíduo a possibilidade de ter um contato direto
com o mundo, no intuito de preservá-lo, uma vez que sem essa atitude de resguardar o mundo
como lar do homem, não a mínima condição de se ter propriedade e, portanto, um lar para
o repouso das fadigas e a manutenção da vida.
O que procuramos enfatizar, a partir das reflexões de Arendt, é que o processo de a-
cúmulo de riqueza, que distingue a Era Moderna de todas as eras anteriores, que estimula e é
estimulado pela manutenção da vida biológica, o seria possível sem que, previamente, hou-
vesse a eliminação da propriedade particular, com o propósito de fazer com que tudo o que
existe no mundo passasse a ser parte do processo de acúmulo de riqueza. Assim, o processo
de acúmulo de riqueza somente pode continuar se o mesmo não estagnar, que é o risco ineren-
te que a propriedade privada traz em seu cerne.
(...) o processo [acúmulo de riqueza] pode continuar se a durabilidade mundana e
a estabilidade não interferirem, e se todas as coisas mundanas, todos os produtos fi-
nais do processo de produção o realimentem a uma velocidade cada vez maior. Em
outras palavras, o processo de acúmulo de riqueza, tal como o conhecemos, estimu-
lado pelo processo vital e, por sua vez, estimulando a vida humana, é possível so-
mente se o mundo e a própria humanidade do homem forem sacrificados.
90
Para que o processo de acúmulo de riqueza possa desenvolver-se livremente, é preciso
fazer com que o homem não seja somente dono de uma parte do mundo, mas de todo o mun-
do, ideal que somente poderá ser concretizado com a socialização da propriedade privada, na
90
ARENDT. A condição humana, p. 268.
66
qual os homens passam a ser donos coletivos de um mundo em que todas as suas partes per-
tencem à coletividade.
91
Devemos ressaltar que, quando nos referimos ao termo “propriedade privada”, nossa
intenção é tão somente, seguindo os passos analíticos realizados por Hannah Arendt, compre-
ender um espaço que, ao pertencer a alguém, faz com que este possuidor passe a ter o mundo
como um referencial de sua existência, pois dessa forma, o mundo, ou melhor, parte desse
mundo lhe pertence e assim, essa “parte” (propriedade privada) do “todo” (mundo) precisa ser
preservada.
92
A propriedade privada, assim entendida, é condição fundamental à vida pública e, o
seu contrário, a expropriação de terras, é o primeiro passo rumo à alienação humana em rela-
ção ao seu habitat e o concomitante afastamento do homem da preocupação com o mundo.
Sem esse pedaço de terra, o que é uma forte alienação do mundo, pois sem um espaço co-
mum do qual o homem possa chamar de seu, o homem é expelido para fora daquilo que ou-
trora ele chamou de sua morada.
Expelido do mundo, o homem volta-se para sua vocação aparentemente mais nobre,
que desde os tempos mais longínquos era profetizado como o destino da raça humana: ser um
cidadão não do mundo, mas do universo. Assim, a descoberta de Galileu, o telescópio, que
permite ao homem desvelar os mistérios da vida, pode ser considerada um evento que colabo-
rou para que houvesse a concretização do sonho de Arquimedes: sair radicalmente de sua
condição humana, dispersando-se da Terra, rumo ao infinito do universo.
93
É nessa perspec-
91
Nesse sentido, diz Arendt: “Mas, o que quer que o futuro nos reserve, o processo de alienação do mundo,
desencadeado pela expropriação e caracterizado por um crescimento cada vez maior da riqueza, pode assumir
proporções ainda mais radicais somente se lhe for permitido seguir a lei que lhe é inerente. Pois os homens não
podem ser cidadãos do mundo como são cidadãos de seus países, e homens sociais não podem ser donos coleti-
vos como os homens que têm um lar e uma família são donos de sua propriedade privada. A ascensão da socie-
dade trouxe consigo o declínio simultâneo das esferas pública e privada; mas o eclipse de um mundo público
comum, fator tão crucial para a formação da massa solitária e tão perigoso na formação da mentalidade, alienada
do mundo, dos modernos movimentos ideológicos de massas, começou com a perda, muito mais tangível, da
propriedade privada de um pedaço de Terra neste mundo” (ARENDT. A condição humana, p. 269).
92
Sobre isso, ver ARENDT. A condição humana, p. 255 ss.
93
ROVIELLO. L’homme moderne entre le solipsisme et le point D’Archimède, p. 146.
67
tiva que o ponto arquimediano traz consigo todo o anseio de uma humanidade que muito
perdeu sua vocação de ser humana.
Seguindo os passos implementados por Hannah Arendt no capítulo VI de A condição
humana, podemos dizer que o ponto de vista arquimediano, descoberto por Galileu,
94
lançou
o homem para dentro de si mesmo ao demonstrar que tudo o que até então ele confiara, tudo
aquilo que ele havia experienciado e tinha na estima de “verdade”, era agora depreciado por
um instrumento criado pelo homo faber. Este achado levou ao entendimento de que a única
coisa que o homem poderia dar credibilidade era naquilo que ele próprio criasse. Nesse senti-
do, a invenção do telescópio retirou o véu que encobria as limitações da cognoscibilidade hu-
mana, a qual pretendia encontrar certezas a partir da experimentação ou da contemplação da
realidade e, portanto, certificar-se do completo domínio do mundo circundante.
O ponto de vista arquimediano fomentado pela invenção do telescópio deslocou a
perspectiva humana para fora dos limites terrenos. O homem agora visa a sua existência de
um locus fora da condição humana. Desse momento em diante, a vida, tal como ela foi com-
preendida durante séculos, passa a ser encarada sob novos parâmetros. A vida, segundo A-
rendt,
95
vista sob a ótica do telescópio, é entendida pelo prisma da universalidade: as mesmas
leis que regem o funcionamento de uma galáxia ditam o funcionamento da vida humana. O
que foi desencadeado, de fato, com o processo que visa encarar tudo o que no céu e na
Terra – sob o prisma da universalidade, foi a tentativa de subsumir todas as coisas às leis uni-
versais que assinalam o fim da distinção entre as esferas do céu e da Terra, pois são as leis
universais que regem o funcionamento destas duas esferas.
96
Dito de outra maneira, o ponto
94
“O que Galileu fez e que ninguém havia feito antes foi usar o telescópio de tal modo que os segredos do uni-
verso foram revelados à cognição humana ‘com a certeza da percepção sensorial’; isto é, colocou diante da cria-
tura presa à Terra e dos sentidos presos ao corpo aquilo que parecia destinado a ficar para sempre fora do seu
alcance e, na melhor das hipóteses, aberto às incertezas da especulação e da imaginação” (ARENDT. A condição
humana, p. 272).
95
Sobre isso, ver ARENDT. A condição humana, p. 263.
96
Segundo Roviello, "L’homme moderne a transgressé la scission tradicionnelle entre ciel, transcendance énig-
matique, et terre, Terrain de reconnaissance, puisqu’il devient capable non seulement de découvrir mais de ma-
nipuler les lois de l’univers, et par la même ocasion de les introduire dans la nature terrestre, mais en réalité il ne
68
de vista arquimediano com o qual o homem fora presenteado, permitiu-lhe compreender que a
vida, tal como ele a compreendia, distava enormemente daquela que agora esse instrumento
feito pelo homo faber lhe revelara. Na concepção arendtiana,
97
a verdade não pode mais ser
vista como algo que podemos captar ou pelos órgãos dos sentidos ou pela estrutura racional.
Para que o homem tenha acesso à verdade, faz-se necessário capturá-la, pois ela esconde-se
por detrás das aparências: embustes que falseiam a realidade.
Nessa perspectiva, com o advento do telescópio e do ponto de vista arquimediano i-
maginava-se que do momento em diante em que a criatura presa à Terra fosse presenteada
com um meio de atuar sobre a mesma, o homem lançar-se-ia rumo ao universo infinito, para
contemplar a realidade a partir de um ponto distante; mas, ao contrário, o homem voltou-se
para dentro de si mesmo, para o locus da certeza inquestionável, demonstrando que o século
XX se caracterizou pela supervalorização do ego humano. O homem não se tornou cidadão do
universo, mas cidadão do pequeno e restrito mundo chamado “eu interior”. O motivo que pos-
sibilitou tal recuo humano para dentro de si mesmo é que não havia outro ponto, outra pers-
pectiva que pudesse mitigar a angústia humana em não ter acesso à verdade do que seu interi-
or: onde o homem se relaciona somente com o processo de seu corpo
98
e o produto de sua
razão.
Nesse mergulho ao interior do ego humano, percebeu-se que somente seriam válidos
os processos que independem do mundo circundante, como o trabalho, ou a ideologia na qual
a mente se relaciona com o seu próprio conteúdo, havendo um desencadeamento gico, a
partir de premissas inquestionáveis, que culminam em conclusões irrefutáveis. Com isso, iso-
lou-se o “homem-no-homem”. Nada que se passa no mundo circundante pode afetar a certeza
fait que déplacer cette scission en la reproduisant entre lu-même, ou le point de vue de la terre, et l’univers, le
point d’Archimède, puisqu’à proprement parler il ne comprend pas les lois qu’il met en équations et qu’il mani-
pule" (ROVIELLO. Entre le solipsisme e le point d’Arquimède, p. 149).
97
ARENDT. A condição humana, p. 287.
98
“The basic contradiction of our life is that we look upon the earth with the eyes of the Universe as though we
live on some other star, transforming and acting into and making nature with universal means without being
69
em tais operações, pois o que é o mundo circundante para abalar tal certeza? Um mar de in-
certezas, até mesmo de sua própria existência.
99
A rebelião do homem moderno contra sua condição e, conseqüentemente, contra os
limites que determinam sua existência, rebelião essa ocorrida a partir da perspectiva universa-
lista inaugurada com a descoberta do ponto de vista arquimediano, fez com que a hipótese,
que na Era Moderna tornou-se um axioma, de que “tudo é possível”, se transformasse em
fundamento da realidade. Assim, essa expressão “tudo é possível” pode ser identificada
como o slogan que caracterizou os regimes totalitários que, ao nascerem de um ambiente que
expulsou o homem de seu lar, puderam levar a cabo aquilo que a princípio somente era um
risco: impossibilitar a significação da vida. Nessa perspectiva, podemos dizer que os campos
de concentração deram realidade à afirmação de que “tudo é possível”.
100
Isso se deve ao fato
de que ao visar à humanidade a partir do prisma da universalidade, perde-se o referencial da
vida individual e começa-se a ver o homem somente como membro de uma espécie, o que
inviabiliza toda atividade que procura significar a vida de cada homem, a partir de suas histó-
rias particulares.
101
É nesse sentido que, na perspectiva arendtiana, o ponto de vista de Arquimedes signi-
ficou tanto o triunfo quando o desespero humano. Triunfo no sentido de finalmente concreti-
zar o sonho do homem de visar o mundo a partir de uma perspectiva distante do mesmo; de-
sespero, pelo fato de que tal descoberta somente colocar a nu uma hipótese que há muito tem-
po atormenta o imaginário humano: o fato de que o homem não possui estrutura cognitiva
able to live anywhere but on the earth. And while we are doing this, it is only natural that we become more and
more concerned with life (or labor) per se” (ARENDT. Journal de pensée, p. 728).
99
A esse respeito, ver ARENDT. A condição humana, p. 334.
100
ARENDT apud ROUSSET. ARENDT. Origens do totalitarismo, p. 337.
101
Nesse sentido, diz Roviello: “Le grand danger que représente cette pensée des processus, ou plus générale-
ment des lois universelles dont l’intelligibilité est en rupture avec le pouvoir humain de comprendre le sens de ce
que nous faisons, c’est qu’elle finit précisément par ruiner radicalement ce pouvoir de juger comme pouvor de
distinguer entre sens et non-sens; «la distinction même entre questions significatives et questions dépourvues de
sens disparaître en même temps que la vérité absolute, et la cohérence à laquelle nous serions abandonnés pour-
rait aussi bien être la cohérence d’un asile de paranoïques»" (ROVIELLO. Entre le solipsisme e le point
d’Arquimède, p. 154).
70
adequada para apreender a verdade, tão pouco compreender a vida a partir de uma ótica uni-
versal. Como resultado, o homem, desse momento em diante, passa a dar crédito de verdade
somente àquilo que ele próprio produzisse, como acima apontamos, demonstrado que a ver-
dade não pode ser apreendida, mas deve ser desvelada por instrumentos criados pelas mãos do
homem, ou seja, pela atividade do homo faber.
102
Para Hannah Arendt, a marca indelével do desespero no qual o homem viu-se submer-
so a partir da descoberta do ponto de vista arquimediano foi respondida com a filosofia solip-
sista, emblematicamente forjada pelo pensamento de René Descartes. O penso, logo existo
(cogito, ergo sum) aponta para o fato de que a realidade mundana não pode ser atestada pelos
sentidos, muito menos pela razão especulativa, que procura adequar os dados sensíveis às
estruturas mentais, pois um deus maligno pode querer enganar o homem ao dotá-lo com ins-
trumentos cognoscíveis que não lhe dão a certeza de nada, mas somente dúvidas e perplexida-
des. Assim, diante de tal desespero, o porto seguro no qual o homem moderno encontrou um
ponto fixo que ele pudesse descansar das tribulações das dúvidas que o atormentavam, foi à
certeza de que se duvido, penso, se penso, logo existo.
103
Assim, dentro dessa perspectiva, o que se perdeu com os eventos que proporcionaram
o advento da Era Moderna a descoberta da América e a concomitante expansão marítima, a
expropriação de terras eclesiásticas e a invenção do telescópio –, juntamente com o desloca-
mento do homem de seus laços, que ocorreu com a eliminação da propriedade privada e a
invenção do telescópio, foi o sentido do senso comum. Não pretendemos aqui detalhar a con-
cepção arendtiana desse conceito – senso comum
104
– mas tão somente apontar para o fato de
que a tentativa recorrente na Era Moderna de arruinar a condição humana de pertencimento a
102
Sobre isso, ver ARENDT. A condição humana, p. 287.
103
Segundo Arendt, a dúvida cartesiana pode ser compreendida da seguinte forma: “É uma dúvida que duvida
que existe uma coisa chamada verdade, e com isto descobre que o tradicional conceito de verdade, fosse ele
baseado na percepção dos sentidos, na razão ou na crença em alguma revelação divina, valera-se do duplo pres-
suposto de que o que realmente existe se revelará por si mesmo e que as faculdades humanas são adequadas para
recebê-lo” (ARENDT. A condição humana, p. 288).
104
A esse respeito, ver ARENDT. A vida do espírito, p. 42ss.
71
uma esfera mundana fez com que o homem perdesse o senso de viver em comum, junto a
outros homens. Nessa perspectiva, não tendo mais a confiança de habitar um mundo que é
partilhado por muitos, cuja certeza de sua existência é ratificada pelos diversos pontos de vista
que, apesar de visar à vida de ângulos diferentes, é a mesma vida que é visada, o homem viu-
se expulso não para fora da Terra, mas para dentro do próprio eu. Isso se deve ao fato de que
apesar do homem querer ser um cidadão do universo, ele, devido a sua condição humana,
continua sendo um ser preso a Terra. Diante de tal constatação, segundo Arendt no capítulo
VI de A condição humana, o homem refugiou-se no locus que, diante de tantas incertezas
constituía-se como o único refúgio, cujos processos eram dignos de crédito. Esse locus é o
interior do homem.
105
Esse refugiar-se em seu interior levou a uma perda da preocupação do homem com o
mundo. Isso se deve ao fato de que do processo de introspecção somente há a possibilidade de
se produzir à certeza da existência do homem, e não do mundo. Assim, como a única certeza
tangível é a existencia do ser que pensa, a exclusiva preocupação do homem passou a ser a
manutenção de sua vida biológica, bem como a de sua espécie. Em outras palavras, dos pro-
cessos do pensamento em si, somente a certeza da existência do ego pensante que pensa o
seu ser e nada mais. Nessa perspectiva de divórcio com a realidade, a possibilidade de haver
uma significação da ação política fica comprometida, uma vez que não o que pensar, ou
seja, não há ações conjuntas a serem significadas.
2.2. A Vitória do animal laborans
O resultado mais proeminente da alienação do homem em face do mundo e a concomi-
tante ruptura com a realidade, que significou o recuo do homem para dentro de seu próprio eu,
105
A esse respeito, ver ARENDT. A vida do espírito, p. 293.
72
foi a vitória do animal laborans. O que essa vitória significou para a história da humanidade,
quais são as características das atividades que compõe a vida activa as quais estão imbrica-
das umas nas outras –, bem como sua hierarquização, são analisadas por Hannah Arendt em
sua obra A condição humana. Nessa obra, nossa autora procura compreender as três ativida-
des humanas: trabalho (labor),
106
fabricação (work) e ação (action) e como estas correspon-
dem à condição humana. Em nossos termos, o que nos interessa é explicitar as características
da atividade do trabalho e sua ascensão na hierarquia das atividades humanas.
Poderíamos, nessa parte de nossa dissertação, realizar tão somente um estudo analítico
acerca do capítulo III de A condição humana, no qual Hannah Arendt leva a cabo uma com-
preensão do trabalho (labor).
107
Porém, o que propomos nessa segunda parte do capítulo é
delinear, em seus elementos primordiais, as características de um dos efeitos oriundos do pano
106
Em nossos estudos optamos por traduzir labor por trabalho e não simplesmente manter o termo, opção esta
que não se configura como uma inovação nossa, mas segue de perto as recomendações de grandes estudiosos
desse tema em Hannah Arendt. A esse respeito, ver DUARTE. O pensamento à sombra da ruptura, p. 81ss. e
Hannah Arendt e a biopolítica: a fixação do homem como “animal laborans” e o problema da violência. In: ___
Hannah Arendt e a condição humana, bem como a introdução de CORREIA à tradução do texto de Hannah
Arendt Labor, work and action. Fundamentalmente, todos esses estudos baseiam-se em uma nota de A condição
humana, a qual iremos reproduzir: “Assim, a língua grega diferencia entre ponein e ergazesthai, o latim entre
laborare e facere ou fabricari, que têm a mesma raiz etimológica; o francês, entre travailler e œuvrer, o alemão
entre arbeiten e werken. Em todos estes casos, só os equivalentes de “labor” têm conotação de dor e atribulação.
O alemão Arbeit aplicava-se originariamente ao trabalho agrícola executado por servos, e não ao trabalho do
artífice, que era chamado Werk. O francês travailler substituiu a outra palavra mais antiga, labourer, e vem de
tripalium, que era uma espécie de tortura” (ARENDT. A condição humana, p. 90). O que surpreende os estudio-
sos desse tema em Arendt, também a nós, é o fato de o tradutor brasileiro dessa obra, Roberto Raposo, bem co-
mo Celso Lafer, que fez o prefácio, não terem dado a devida importância a essa nota e, assim, terem mantido a
palavra labor e terem traduzido work por trabalho, o que traz profundas confusões ao leitor dessa obra de A-
rendt. Contudo, é importante salientar que, apesar do erro ou descuido tanto do tradutor quanto do prefaciador
brasileiro de A condição humana, é importante salientar que Celso Lafer, em sua obra Hannah Arendt: pensa-
mento, persuasão e poder, diz o seguinte sobre o conceito de labor na obra arendtiana: “De acordo com H. A-
rendt, existem três experiências humanas básicas. A primeira é a do animal laborans, assinalada pela necessida-
de e concomitante futilidade do processo biológico, do qual deriva, uma vez que é algo que se consome no pró-
prio metabolismo, individual e coletivo. No sentido etimológico, labor indica a idéia de tarefas penosas, que
cansam e, por essa razão, a primeira palavra, em português, que ocorre, é labuta, cuja origem provável é labor.
Entretanto, julgo que a palavra etimologicamente indicada para traduzir, em português, labor, que é o termo que
Hannah Arendt emprega no seu livro, seria trabalho. (...) Seja como for, trata-se de viga que todos s carrega-
mos na penosa e sisífica labuta de lidar com a necessidade.” (pp. 29-30).
107
Estamos cientes da existência do diálogo que Arendt realiza com Karl Marx no âmbito do tema do trabalho.
Contudo, compreendemos que um estudo aprofundado do mesmo estaria além da capacidade dessa pesquisa.
Porém, devemos ressaltar ao leitor interessado nessa matéria que, no início do capítulo III, o qual é intitulado
trabalho, Arendt diz que irá realizar, mesmo a contragosto, uma crítica à Marx, pois este, segunda ela, é um dos
maiores teóricos do trabalho na modernidade e assim, as análises marxistas servem de ponto de partida para o
estudo que Arendt pretendia realizar. Sobre isso, ver ARENDT. A condição humana, p. 89ss.
73
de fundo (Background) causador do desinteresse em parar-para-pensar, proposta esta, iniciada
no item anterior.
No nosso entendimento, estudar cada um dos sub-capítulos que compõem o capítulo
III da obra de Arendt de 1958, nos quais ela se propõe a pensar a atividade do trabalho seria,
sem sombra de dúvida, uma tarefa árdua. Contudo, além de nos depararmos com um objetivo
que dificilmente nos conduziria a um fim satisfatório, para nosso intuito, desviaria nossa pes-
quisa do rumo que outrora implementamos, ou seja, compreender a implicação política da
faculdade de pensamento.
O foco principal, nesse passo de nossa pesquisa, terá como fio condutor a compreen-
são fomentada por Hannah Arendt em A condição humana de que “o pensar requer, para a sua
ativação, condições de liberdade política” e, assim, “numa tirania é mais fácil agir do que
pensar”.
108
Partiremos dessa assertiva com o intuito de compreender como a vitória do ani-
mal laborans
109
constitui uma das conseqüências de um ambiente de alienação do mundo e
como este fenômeno contribui para que haja uma ausência de liberdade política e, conseqüen-
temente, a impossibilidade de se parar-para-pensar.
Principiando as análises acerca dos fenômenos do século XX, o que fica evidente para
Hannah Arendt, é a certeza de que com a vitória do animal laborans houve a transformação
da esfera pública em sociedade. Em outras palavras, a esfera pública foi transformada naquela
esfera na qual o homem está em relação mais intensa com o seu próprio corpo para a manu-
tenção de si e da sua espécie. Em outras palavras, com a vitória da necessidade sobre a políti-
ca houve um remanejamento das famílias, que passaram a organizarem-se para formar “uma
108
ARENDT. A condição humana, p. 338.
109
Segundo Levin, as análises arendtianas da vitória do animal laborans não podem ser compreendidas como
algo de cunho elitista, tal como foi apontado por George Kateb e Margaret Canovan no volume 7, número 4 da
revista Political Theory. Levin apóia sua teoria da seguinte forma: “how the victory of animal laborans (the
chapter with which Arendt concludes The Human Condition) is not the victory of a particular class but the con-
sequence of a world “where all human activities have been transformed into labouring”” (LEVIN: On Animal
Laborans and Homo Politicus in Hannah Arendt, p. 524).
74
nação” na qual é subsumido o interesse particular, como nos diz Newton Bignotto.
110
Nes-
se sentido, podemos dizer que a passagem da sociedade do recluso interior do lar para a forte
luz da publicidade, ou seja, a ascensão da administração caseira da esfera privada à esfera
pública, tornou-se um fato concreto a partir do momento em que se diluiu a antiga distinção
entre o público e o privado na Era Moderna. Para que o fim da distinção entre o público e o
privado possa ser compreendido de forma mais clara, é necessário, compreendê-lo juntamente
com a revalorização da atividade que visa o sustento humano, ou seja, o trabalho, em contra-
partida àquela que dava realidade a mais alta capacidade humana, como a que diz respeito à
res publica, ou seja, a ação política.
Portanto, houve uma perda do interesse com a coisa pública, em seu sentido autêntico,
e da ação espontânea, uma vez que na esfera social espera-se de cada um de seus membros
certo tipo de comportamento previsível, que vise exclusivamente à manutenção da vida. Nes-
se ambiente, exige-se que cada indivíduo preocupe-se com a sua existência (ou melhor, so-
brevivência) e a de sua espécie, e veja com apatia tudo àquilo que diz respeito à sua vivência
entre homens. A socialização da esfera pública coincide com a mudança de foco do homem
com relação ao seu objeto de cuidado: na Era Moderna, o cuidado com o mundo cede lugar ao
cuidado com a vida e, assim, a política passa a ter como um dos seus aspectos principais o
cuidado com os interesses particulares dos indivíduos e, concomitantemente, em garantir que
esses sejam supridos.
Vislumbra-se, portanto, que o século XX mostrou-se como “o melhor dos palcos” para
o advento da vitória do animal laborans. Para Arendt, isso significa que a atividade que dita a
vida humana, a partir desse momento, é aquela que outrora fora relegada à esfera da privaci-
dade, local onde o homem se refugiava para, a sós, poder trabalhar, ou seja, realizar aquela
110
Palestra proferida no I Colóquio Arendtiano, em novembro de 2003, na cidade de São João del-Rei, intitulada
Hannah Arendt e a Condição do Homem Contemporâneo.
75
atividade que lhe proporcionasse a manutenção de sua vida biológica, bem como a da sua
espécie.
111
Arendt, ao analisar a inversão na pirâmide hierárquica da vida activa, lança luz sobre o
“porquê” desse fenômeno. Nessa perspectiva, nossa autora, em A condição humana, ao refle-
tir sobre a distinção entre as três atividades humanas que compõem a vida activa (trabalho,
fabricação e ação) e as três condições humanas que as correspondem (a vida, o pertencer ao
mundo mundanidade e a pluralidade), compreende que a hierarquia da vida activa foi in-
vertida em relação à Antigüidade. Isto porque, na polis grega, a atividade do trabalho, anti-
política por natureza e que ocupava a base da pirâmide, era confinada à esfera privada, onde o
homem, na solidão da relação restrita com o seu corpo, estava em contínuo processo para a
manutenção de si mesmo bem como da sua espécie. No que diz respeito à fabricação, esta
deve ser vista como atividade apolítica – pois embora o artesão necessite do isolamento para a
realização de seu ofício, ele ainda mantém um contato com o “mundo dos homens” através
dos seus artifícios destinada a fabricar um mundo artificial, enquanto a ação prefigura-se no
topo da pirâmide hierárquica, representando aquela atividade que, por ser política, é a mais
digna do homem livre, atividade essa que era realizada “entre” homens, na ágora, a esfera
pública grega.
112
Assim, a modificação da hierarquia da vida activa, ocorrida na modernida-
de, levou à vitória do trabalho: mal que, na concepção mitológica, provém da caixa de Pando-
ra – um castigo que Zeus mandou sobre os homens devido à sua desobediência –, que traz em
seu cerne o risco de submeter toda a raça humana à necessidade da subsistência. Diante desta
análise conceitual, percebemos que o modo como Arendt compreende as atividades humanas
fundamentais demonstra que nossa autora segue de perto o modo como estas eram entendidas
na Antigüidade.
111
A esse respeito, ver ARENDT. A condição humana, p. 128.
112
Nessa perspectiva, para Arendt, essa hierarquia das atividades humanas foi primeiramente invertida a partir
da condenação de Sócrates, pois “A teoria política dos Filósofos, que surge a partir da condenação de Sócrates e
76
Para dar sustentação à análise acerca do “porquê” do fenômeno da vitória da vida so-
bre a ação, Arendt procura compreendê-lo, a partir de alguns eventos da Era Moderna, que
foram preparados desde a Revolução Industrial, nos quais ela destaca, como vimos acima, a
invenção do telescópio no século XVII, realizada por Galileu, e que, para a mesma, influen-
ciou diretamente a vida humana na Terra, pois, como diz Arendt: “não são as idéias, mas e-
ventos que mudam o mundo”.
113
Outro ponto que nossa autora destaca como fundamental
para a vitória completa do animal laborans sobre o homem de ação foi a secularização que, ao
contrário do que se imaginava, não lançou o homem em direção ao mundo, como o termo
indica.
114
O que houve com essa secularização foi uma perda da e, conseqüentemente, um
despojamento da vida individual da certeza, outrora inquestionável, da imortalidade. Isso fez
com que a vida individual voltasse a ser mortal e, diante de um mundo cuja estabilidade e
permanência confiáveis eram postas em xeque, devido as constantes mudanças advindas das
infindáveis descobertas da ciência, o homem moderno viu-se lançado à interioridade fechada
da introspecção. Nesta, a única coisa que ele podia confiar plenamente era nos processos va-
zios do cálculo mental: um processo que se assemelha ao metabolismo do homem com a natu-
reza implementado pelo trabalho.
115
Nesse sentido, para Hannah Arendt, a característica da independência com o mundo da
pluralidade é fundamentalmente notória na atividade do trabalho,
116
cuja atividade resume-se
a concomitante ruptura entre filosofia e política, coloca a contemplação no topo da hierarquia das atividades
humanas, rebaixando a ocupação política à posição de necessidade” (ARENDT. A condição humana, p. 96).
113
ARENDT. A condição humana, p. 285.
114
“Fenômeno histórico dos últimos séculos, pelo qual as crenças e instituições religiosas se converteram em
doutrinas filosóficas e instituições leigas” (DICIONÁRIO AURÉLIO SÉCULO XXI). Segundo Roviello, as
análises arendtianas sobre esse tema caminham em outra vertente. Assim, Contre la conception classique qui
voit dans la sécularisation, dans la perte, propre à la modernité, du rapport à la transcendance, un gain en monde,
un réinvestissement positif du monde immanent, trop longtemps méprisé, et cela est bien connu, que celle-ci se
caractérise, au contraire, par une perte en monde radicale, par une radicale Weltentfremdung, aliénation-au-
monde" (ROVIELLO. L’homme moderne entre le solipsisme et le point D’Arquimède, p. 143).
115
ARENDT. A condição humana, p. 353 e 354.
116
Para Arendt, “Nada, de fato, é menos comum e menos comunicável e, portanto, mais fortemente protegido
contra a visibilidade e a audibilidade da esfera pública que o que se passa dentro de nosso corpo, seus prazeres
e dores. Por isso mesmo, nada expele o indivíduo mais radicalmente para fora do mundo que a concentração
exclusiva na vida corporal, concentração esta forçada ao homem na escravidão ou na condição extrema de dor
insuportável” (ARENDT. A condição humana, p. 124).
77
ao metabolismo do corpo humano consigo mesmo, em que o ciclo repetitivo tem como tarefa
a manutenção da vida na Terra. Dessa maneira, abriu-se a cortina para o surgimento de um
espetáculo nunca antes visto, no qual a vida humana é reduzida à atividade que garanta a so-
brevivência da espécie. Essa atividade seria realizada por “exércitos de operários” que mar-
cham entorno de si próprios, em “operações de guerrilha” que nunca resultam em um produto
final, “uma vez que é algo que se consome no próprio processo biológico, individual ou cole-
tivo”.
117
Assim, essas “operações de guerrilha” unem-se dentro dos murros das fábricas, o
novo lar do animal laborans aos movimentos repetitivos, característicos da atividade do
trabalho, mas, que agora, ganham maior “produtividade” imposta pelas máquinas, fazendo
com que haja um amálgama do homem com a máquina.
Nesse ponto de nossa pesquisa, gostaríamos de analisar dois riscos que Arendt com-
preende como inerentes à vitória do animal laborans, os quais estão imbricados entre si e,
para o nosso propósito, torna-se imprescindível a sua compreensão. Trata-se da perda da li-
berdade e, concomitantemente, da possibilidade de cuidar do mundo. A importância de se
refletir acerca desses dois riscos inerentes à vitória da atividade do trabalho sobre as demais
está no fato de que a perda da liberdade significa a perda da possibilidade de se iniciar algo de
novo, até mesmo a ativação do pensar, pois como nos diz Arendt, para que o pensamento pos-
sa manifestar-se, é necessário um ambiente de liberdade política.
118
Paralelo a este risco está
o da perda da possibilidade de ação conjunta que brota da capacidade humana de iniciar novos
eventos. O risco dessa perda é extremamente pernicioso à vida humana na Terra, pois este
significa, entre outros males, a impossibilidade de cuidar do mundo e preservá-lo. Dito em
outras palavras, sem a possibilidade de haver ações espontâneas, também não o porquê da
existência de um “pedaço”, de mundo, no qual a tradição do pensamento político identificou
como “espaço público”. Se não liberdade que é a base do surgimento de novas ões, qual
117
ARENDT apud LAFER. ARENDT. A condição humana, p. V.
118
ARENDT. A condição humana, p. 338.
78
o sentido de se preservar um especo destinado ao surgimento de algo que é abortado em seu
nascedouro?
Esses riscos tiveram como marco inicial de seu aparecimento o fato de que na Era
Moderna houve uma busca desenfreada pelo acúmulo de riquezas para ser devorado pelo
animal laborans o qual não seria possível caso estas riquezas estivessem concentradas em
bens que não pudessem ser transformados em produtos de consumo.
119
Nesta perspectiva, em
ressonância com as análises arendtianas, podemos indagar qual é o bem humano que, por ex-
celência, é considerado como particular? Diante das análises feitas nessa parte de nossa pes-
quisa, podemos responder com segurança que tal bem humano configura-se como sendo o
trabalho. Nesse panorama, era necessário que as concepções de riqueza fundassem-se, priori-
tariamente, naquilo que o homem possui de mais privado: seu trabalho. Porém, essa atividade
não deixa nada atrás de si após sua atividade, ou seja, ela produz e reproduz somente vida
pelo trabalho de nosso corpo. É por isso que, segundo Arendt, no entendimento dos econo-
mistas modernos a propriedade não se configurava como sendo o trabalho, mas este era visto
como a base geradora de riqueza na modernidade. É o trabalho, ou melhor, trabalho produti-
vo que agrega ao produto produzido um valor e, até mesmo, um valor superior ao esforço que
foi gasto para produzi-lo. Assim, inaugura-se a batalha em nome da vida que transforma toda
atividade em processo: processo de manutenção do ciclo vital.
120
Nessa perspectiva, diante da finitude do indivíduo humano, isto é, o término da vida
de um indivíduo coincide com o fim de seu processo de acúmulo de riqueza e, conseqüente-
mente, com o fim de seu consumo, a solução encontrada pela modernidade para tal impasse
foi de subsumir o indivíduo no processo vital da espécie humana com o intuito de manter de
119
A razão da Era Moderna não estar tão preocupada com a propriedade privada, mas com o acúmulo de riqueza,
se deve ao fato de que para existir propriedade é necessário um mundo estável e permanente, algo que dista do
ideal do animal laboras. Sobre isso, diz Arendt: O que a Era Moderna defendeu tão acirradamente jamais foi a
propriedade como tal, mas a busca desenfreada de mais propriedade, ou seja, a apropriação; em contraposição a
todos os órgãos que defendiam a permanência ‘mortade um mundo comum, a Era Moderna travou suas bata-
lhas em nome da vida, da vida da sociedade” (ARENDT. A condição humana, p. 136).
120
ARENDT. A condição humana, p. 97ss.
79
forma ininterrupta o processo de acumulação de riqueza. Segundo Arendt, esta concepção
expressa de maneira lapidar as teorias evolucionistas do século XX dentro do panorama soci-
al, no qual o todo é supervalorizado em detrimento do indivíduo. Isso se faz a partir de um
arcabouço conceitual que prega que o desenvolvimento natural e histórico faz-se por um pro-
cesso vital da humanidade como um todo. Nesse ambiente, o que é a fomentação de uma
sociedade de operários na qual não há, e não pode haver nenhuma forma de ação espontânea,
mas um funcionamento de seus membros de forma puramente automática. O indivíduo passa
a ser um estorvo do processo vital da espécie que deve deixar-se levar pelo processo.
121
Dentro desta perspectiva de glorificação do trabalho, surgiram teorias condizentes
com a mesma.
122
É por essa feita, segundo Arendt, que Locke chama a atenção para o “traba-
lho de nosso corpo e a obra de nossas mãos”, iniciando uma análise acerca da distinção entre
trabalho produtivo e improdutivo, dentro da perspectiva da idéia de que coisas de curta
duração e outras de longa duração sem, conduto, se dar conta da diferença entre duas ativida-
des humanas: trabalhar e fabricar. É a partir desse fio argumentativo que Marx pôde definir o
homem, primeiramente, como animal laborans, por compreender que o homem autocriou-se
por meio da própria atividade do trabalho.
123
Para Hannah Arendt, a vitória do animal laborans pode significar, pela primeira vez
na história, que toda a humanidade deva ser submetida à necessidade do processo biológico.
Esta “primeira vez” se fará a partir da fomentação de uma sociedade de consumidores, que
transformam tudo o que há no mundo em bens de consumo. Nessa sociedade, o equilíbrio que
121
ARENDT. A condição humana, p. 128.
122
Idem, p. 113.
123
Alguns estudiosos tanto de Marx quanto de Arendt argumentam que as análises arendtianas estariam equivo-
cas, pois elas esqueceriam que o processo de trabalho tal como foi concebido por Marx caracteriza-se como uma
atividade que une o trabalho intelectual e corporal, unidade esta que o trabalho assalariado e alienante desfaz.
Segundo André Duarte não é bem isso que Arendt aponta em seus estudos sobre o trabalho na perspectiva mar-
xista. Nesse sentido diz Duarte: Ora, o argumento arendtiano não é o de que, para Marx, o trabalho seja mera-
mente natural, desprovido de razão e consciência, mas o de que, em Marx, contrariamente à tradição, a razão
deixa de ser a condição primeira e específica por meio da qual os homens diferenciam-se dos animais, visto que
a própria razão se tornaria manifesta na atividade do trabalho, concebida como a atividade vital que define o
ser da espécie humana” (DUARTE. O Pensamento à Sombra da Ruptura, p. 83).
80
deve haver entre o processo de produção e o concomitante consumo desfaz-se. Todos estão
em busca de uma felicidade que se caracteriza por consumir mais e mais, a partir do tempo
“extra”, ganho com a atenuação das fadigas da atividade do trabalho pela robotização da pro-
dução capitalista. Contudo, essa felicidade somente poderá ser alcançada se houver o restabe-
lecimento do equilíbrio entre trabalhar e consumir as boas coisas da vida, no intuito de manter
seu ciclo biológico, e não fazer dessa atividade o supremo objetivo da vida. Quer dizer, se a
balança pender para o lado do consumo, inevitavelmente o homem se frustrará, pois não pos-
sui os meios nem o tempo suficiente para trabalhar, para manter-se feliz
124
segundo a ótica da
modernidade, ou seja, não como satisfazer seu “instinto” consumista, que a cada momento
cresce com o surgimento de novos bens de consumo. Assim, o homem, no afã de saciar-se no
que tange a seus prazeres de consumidor, precisa transformar todas as coisas em objetos de
consumo, o que leva, conseqüentemente, a ameaça de destruição do lar do homem sobre a
Terra.
125
O que Hannah Arendt percebe, nessa concepção conceitual da felicidade atrelada ao
consumo, é que o alívio que as máquinas deram ao trabalhador, ao diminuir o esforço inerente
à sua atividade, para que ele tenha mais tempo para consumir, somente fazem com que o ho-
mem esqueça da importância de se livrar da necessidade de manter o ciclo vital intacto, com o
escopo de adentrar a arena pública, uma vez que a ação política começa quando o necessá-
rio à manutenção da vida está garantido.
126
O que Marx pregava como uma sociedade ideal,
na qual os trabalhadores estariam insetos de trabalhar é, em termos arendtianos, uma utopia,
124
Sobre isso, ver ARENDT. A condição humana, p.143ss.
125
Idem, p. 138.
126
“O que distingue o convívio dos homens na polis de todas as outras formas de convívio humano que eram
bem conhecidas dos gregos, era a liberdade. Mas isso não significa entender-se aqui a coisa política ou a política
justamente como um meio para possibilitar aos homens a liberdade, uma vida livre. Ser-livre e viver-numa-polis
eram, num certo sentido, a mesma e única coisa. A propósito, apenas num certo sentido; posto que para poder
viver numa polis, o homem devia ser livre em outro sentido ele não devia estar subordinado como escravo à
coação de um outro nem como trabalhador á necessidade do ganha-pão diário. Primeiro, o homem precisa ser
livre ou se libertar para a liberdade, e esse ser livre do ser forçado pela necessidade da vida era o sentido original
do grego schole ou do romano otium, o ócio, como dizemos hoje” (ARENDT. O que é política, p. 47).
81
pois nunca o homem será capaz de se livrar totalmente da condição humana da vida, a qual
ele responde com sua atividade de trabalhar.
127
Em uma sociedade aliviada do peso do processo do trabalho, o homem estaria “livre”
para consumir tudo o que lhe apraz. Assim, segundo Arendt, o ideal do homo faber que é a
construção de um mundo artificial que, por sua estabilidade, dê aos recém-chegados a garantia
de uma realidade tangível e permanente, é sacrificada pela vitória do animal laborans. Isso se
deve ao fato de que o animal laborans não sabe como criar um mundo e, principalmente, cui-
dar dele, pois isto transcende a pura vida em seu sentido biológico (zoe).
128
Diante do que expusemos, deparamo-nos com a presentificação de uma situação limi-
te, pois o que de fato é um abalo profundo do caráter de permanência e estabilidade do
mundo, ou seja, dos elementos fomentadores da esfera pública, como os objetos e instituições
políticas que constituem o espaço que separa e unifica os homens.
129
Diante de tal abalo, per-
de-se concomitantemente a memória histórica que é preservada pelo espaço público comum.
Sem a memória, que é fundamental para que haja a reificação tanto de objetos oriundos da
atividade de fabricação quanto daqueles provenientes da atividade de pensar, estamos diante
de um mundo sem perspectivas de futuro, pois tanto os objetos que constituem o artifício hu-
mano chamado mundo são devorados como se fossem bens de consumo quanto o pensar, que
procura significar a existência humana, perde sua razão de ser. Nesse panorama, não se vis-
127
Não queremos e não temos competência para realizar nesse ponto de nossa pesquisa uma análise acerca da
distinção que há entre as concepções marxistas e arendtianas sobre o trabalho. Muitos estudiosos do pensamento
de Marx vêem na interpretação de Arendt acerca do conceito de trabalho no pensamento do filósofo alemão uma
visão distorcida e errônea sobre a mesma, quando nossa autora afirma que para Marx “o trabalho é uma condição
do metabolismo do homem com a natureza” e que, segundo a mesma, desse metabolismo nada pode ser produzi-
do, como apregoava Marx. Se esta é uma interpretação correta ou não, tal questionamento extrapolaria o âmbito
deste estudo. Porém, uma questão salta aos olhos: não foi do interesse de Marx realizar uma distinção entre tra-
balho e fabricação, ou ele não se deu conta de haver, de fato, essa distinção? Não podemos negar que para Marx
o trabalho constitui-se em uma atividade humana cujo resultado é sempre um produto final, seja ele um valor de
uso ou um valor de troca. Isto pode ser comprovado nas próprias palavras de Marx, quando ele diz que: “Como
atividade que visa, de uma forma ou de outra, a apropriação do que é natural, o trabalho é condição natural da
existência humana, uma condição do metabolismo entre homem e natureza, independentemente de qualquer
forma social. Ao contrário, trabalho que põe valor de troca é uma forma especificamente social do trabalho”
(MARX. O Capital, p. 65).
128
Sobre isso, ver LEVIN: On animal laborans and homo politicus in Hannah Arendt. A note, p. 524.
129
Sobre isso, ver DUARTE. Pensamento à Sombra da Ruptura, p. 101.
82
lumbra nenhum vestígio de possibilidade de poder existir um mundo artificial que una e sepa-
re os homens e, assim, possibilite suas ações na esfera pública, tão pouco da ativação do pen-
samento que aponte o significado do “há” do mundo.
O ponto fundamental que nos permitiu traçar a linha argumentativa desse tomo de
nossa pesquisa é a distinção entre necessidade e liberdade, distinção essa tão cara no pensa-
mento filosófico-político de Hannah Arendt. Para compreendermos o pensamento de Arendt é
necessário lançar luz sobre essa distinção.
130
Nesse sentido, da mesma forma que ninguém
pediu para vir ao mundo, ninguém escolhe ter que trabalhar: essas se configuram como duas
necessidades sem as quais um ser humano não poderia ser chamado desta maneira. O trabalho
é um fardo que pesa sobre os ombros da condição humana, ou seja, ele se impõe a cada ho-
mem como algo inevitável à sua existência e, por essa feita, é a menos livre de todas as ativi-
dades que são realizadas pelos homens enquanto durar sua estadia na Terra.
131
É por essa
característica do trabalho que ele deve ser compreendido como uma atividade que não pode
fundar nenhum tipo de esfera pública, o locus da ação política. É nessa perspectiva que salien-
ta Arendt:
A verdade bastante incômoda de tudo isso é que o triunfo do mundo moderno sobre
a necessidade se deve à emancipação do trabalho, isto é, ao fato de que o animal la-
borans pôde ocupar a esfera pública; e, no entanto, enquanto o animal laborans con-
tinuar de posse dela, não poderá existir uma esfera verdadeiramente pública, mas
apenas atividades privadas exibidas em público.
132
A vitória do animal laborans, segundo o que aqui foi descrito, não pode ser compre-
endida como o apogeu, no cenário público, de uma das espécies do animal humano. O triunfo
do trabalho sobre a ação significa a perda de um mundo estável, que permita que os homens
estejam juntos, olhando o mesmo objeto por ângulos diferentes. Fundamentalmente, a vitória
do animal que trabalha significa a perda da pluralidade, pois os homens, empenhados em pre-
130
Sobre isso, ver LEVIN: On animal laborans and homo politicus in Hannah Arendt. A note, p. 523.
131
A esse respeito, ver DUARTE. O Pensamento à Sombra da Ruptura, p. 93.
83
servar a vida, não estão preocupados em cuidar do mundo. O não cuidar do mundo significa o
não cuidar em manter um espaço no qual os homens aparecem para os seus semelhantes. O
não aparecer aos iguais leva a supressão das experiências que são o sustento e o remédio para
a faculdade de pensamento. Sustento, pois sem a vida vivida, não há o que a atividade de pen-
sar possa significar. Remédio, uma vez que sem as experiências concretas, o pensamento cai
em um vazio, cuja característica é um completo rompimento com a realidade, o qual abre a
possibilidades que este vazio seja preenchido pelas ideologias totalitárias.
2.3. A Sociedade de Massa
Na feitura de uma “massa”, quando essa está pronta, não se distingui mais os ingre-
dientes que a possibilitaram vir-a-ser: ovos, leite, farinha, fermento transubstanciam-se e per-
dem sua identidade, sua individualidade, passando agora a chamar-se “massa”. Essa poderia
muito bem ser somente a definição de uma das atividades corriqueiras de um chefe de cozinha
ou de uma dona-de-casa, mas esta, infelizmente, extrapola o âmbito da culinária e demonstra
a perversão que a Era Moderna impões à condição humana.
Podemos dizer que no decorrer da história da humanidade, sempre existiu, em qual-
quer sociedade organizada, um número considerável de pessoas apáticas, sem interesse comun
no que tange a coisa pública. Mas o que se deve destacar é que nunca houve uma transubstan-
cialização da raça humana em massa, tal como o que houve na modernidade.
133
Segundo
Hannah Arendt, esse fenômeno fomentou um tipo de ser degenerado que vaga pelas ruas das
grandes metrópoles como sonâmbulo, que não pode mais ser chamado de humano. Este
132
ARENDT. A condição humana, p. 146.
133
Segundo Nádia Souki, “… um traço que distingue as sociedades de massas das multidões dos séculos
precedentes: é o fato de que, pela primeira vez, elas não têm qualquer interesse em comum que possa ligá-las
84
quadro demonstra que essa, a raça humana, se caracteriza por sua mutabilidade, podendo al-
cançar o ápice de “mutação pervertida”, quando ganha as feições do “cão de Pavlov”,
134
que
somente obedece a estímulos. Dessa forma, podemos dizer que o surgimento da sociedade de
massa pode ser compreendido como um dos principais momentos de uma história que alcan-
çaria seu apogeu quando o homem viesse a ser reduzido a uma única identidade de reações
previsíveis, moldado pelas ideologias totalitárias.
Esse conjunto de referências sociais, que nos uma perspectiva da sociedade da Era
Moderna, mais pelo grau estatístico do que pelo social, foi construído gradativamente, por
processos históricos, que culminaram no advento das massas modernas, uma vez que as mas-
sas são reconhecidas pelo grande número de seres supérfluos e, desta forma, descartáveis.
Nessa perspectiva, a unidade estrutural, ou seja, a célula responsável pela formação
das massas modernas, identifica-se pela desarticulação da sociedade de classes. Segundo A-
rendt, com o esfacelamento dos Estados-nações houve o desaparecimento da estratificação da
sociedade, sem a qual um indivíduo não pode ser reconhecido pela camada na qual ele se en-
contra. Não mais, a partir desse momento, a luta pelo interesse de uma classe especifica. A
pirâmide social foi destruída, pela base, em detrimento de uma sociedade de consumo, a qual
gerou um profundo desinteresse pela coisa pública. A preocupação pelo interesse de um grupo
ou de uma classe foi substituída pela preocupação da sobrevivência de “cada um”. A apatia e
a hostilidade pelos assuntos de cunho coletivo estavam inauguradas. Estas fomentaram uma
reunião de seres homogêneos e destituídos de representação política, dada à falta de organiza-
ção da sociedade em classes distintas, na qual cada uma possuía seu interesse específico e
todos que formavam essa classe possuíam um interesse comum. Ao contrário, o que se perce-
ou qualquer forma de vínculo ou consentimento comum” (SOUKI. Multidão e Massa reflexões sobre o “ho-
mem comum” em Hannah Arendt e Thomas Hobbes. In: ___ Hannah Arendt e a condição humana, p. 142).
134
A perversão da raça humana alcançou seu ápice nos campos de concentração. Sobre isso, diz Arendt: "We
know that the object of the concentration camps was to serve as laboratories in training people to become bun-
dles of reactions, in making them behave like Pavlov’s dog, in eliminating from the human psychology every
trace of spontaneity” (ARENDT. Essays in Understanding, p. 242).
85
be, a partir desse momento, é a existência tão somente de uma busca desenfreada pelo “possu-
ir e consumir” o maior número possível de bens.
135
Não mais havendo o princípio de indivi-
duação social, originada pela estratificação social, os homens passaram a formar uma unidade
homogênea, na qual não se pode distinguir um indivíduo de outro. Não mais indivíduos,
mas somente seres da mesma espécie.
É desse quadro de desintegração da estrutura social que foi ser recrutada a força motriz
que direcionará as massas humanas.
136
Um exemplo dessa força motriz é aquilo que Arendt
chama de filisteu: o burguês isolado de sua classe social, que se preocupa fundamentalmente
com seu bem estar e de sua família e que, nessa perspectiva, faz qualquer coisa para manter
sua segurança e tranqüilidade.
137
O exemplo mais notório do filisteu é destacado por Hannah
Arendt em sua obra Eichmann em Jerusalém,
138
na qual nossa autora traça as características
135
Sobre isso, ver ARENDT. Origens do totalitarismo, p. 363.
136
Sobre isso, ver o capítulo de Origens do totalitarismo, no qual Arendt traça uma analise conceitual acerca do
porque ter havido uma aliança temporária entre a ralé e a elite e como esta aliança funcionou para que as massas
fossem conduzidas a tornarem-se o esteio dos regimes totalitários. Assim, segundo nossa autora: “A perturbado-
ra aliança entre a ralé e a elite e a curiosa coincidência das suas aspirações originam-se do fato de que essas duas
camadas haviam sido as primeiras a serem eliminadas da estrutura do Estado-nação e da estrutura da sociedade
de classes. Se uma encontrou a outra com tanta facilidade, embora temporariamente, é porque ambas percebiam
que representavam o destino da época, que seriam seguidas por massas sem fim, que mais cedo ou mais tarde a
maioria dos povos europeus estaria com elas prontos a fazerem a sua revolução, segundo pensavam” (A-
RENDT. Origens do totalitarismo, p. 387).
137
ARENDT. Origens do totalitarismo, p. 388.
138
Eichmann pode ser considerado como o protótipo, a personificação do homem de massa, sem grandes motiva-
ções um sujeito fracassado aos olhos de sua classe social , que ao filiar-se, sem saber muito o “porquê”, ao
Partido Nacional Socialista, teve a oportunidade de “entrar para história”, ao participar de uma “grande tarefa
que acontece uma vez a cada dois mil anos”. Esse indivíduo, cuja maior patente alcançada dentro dos quadros da
SS Polícia Secreta Nazista foi a de tenente-coronel, declarara que somente teria ficado com a consciência
pesada, se não tivesse obedecido às ordens do Führer Adolf Hitler –, e que, para isso, teria matado o próprio
pai caso fosse preciso. Para Eichmann, a “Solução Final”, perpetrada contra os judeus, era simplesmente um
trabalho. Eichmann pode ser considerado como um dos principais elos da operação denominada de “Solução
Final”, pois sempre dependia dele e de seus homens a decisão sobre a quantidade de judeus que seriam embarca-
dos para os campos de extermínio, apesar de não depender do mesmo a decisão sobre para onde e o que iria
acontecer com os “apátridas”. Essa completa indiferença quanto ao destino de milhões de pessoas, aliado ao
rigor burocrático dos trabalhos corretamente realizados, atesta e traz à luz o “teatro macabro” proporcionado
pelos atos desse homem. Essa figura pateticamente “comum” fez-se presente aos olhos e a compreensão de Han-
nah Arendt, por ocasião do julgamento, ocorrido na cada de 60, quando o oficial nazista Adolf Eichmann
acusado de participação nas mortes de milhares de judeus em campos de concentração – foi levado ao tribunal de
Jerusalém para responder às acusações, entre outras, de “crime contra o povo judeu” e “crime contra a humani-
dade”. Podemos dizer que o julgamento de Eichmann tornou manifesto sua responsabilidade pela violação da
pluralidade humana, um crime contra a humanidade, que causou em Arendt um horror inexprimível, para o qual
as únicas palavras apropriadas foram: “isto nunca deveria ter acontecido”. O que chamou mais a atenção de
Hannah Arendt durante o julgamento de Eichmann foi sua completa incapacidade de se posicionar no lugar do
outro, bem como sua adesão irrestrita a clichês e frases prontas, que têm como tarefa principal blindar o indiví-
duo da forte e irresistível luz da realidade. Assim, a habilidade de se proteger contra a realidade os auto-
86
de um funcionário banal, extremamente comum, que cumpria ordens como qualquer outro
burocrata que estava somente preocupado com suas atividades correspondentes à sua profis-
são.
139
A partir do que dissemos em nossa pesquisa, evidencia-se que a sociedade de massa,
na perspectiva arendtiana, em função de se caracterizar por abranger um grande número de
indivíduos que não possuem nenhum tipo de interesse comum, caracteriza-se por ser uma
reunião de pessoas que nunca se filiarão a um partido político ou a um conselho de bairro,
pois lhes falta o ingrediente que possa agregá-los em uma ação conjunta. Ou melhor, falta-
lhes a certeza de pertencerem a um mundo comum, impregnado de interesses comuns que,
para sua manutenção, depende, prioritariamente, do poder que emana da ação conjunta.
140
enganos, mentiras e estupidez , que a população alemã, de aproximadamente 80 milhões de pessoas na época
do Terceiro Reich, utilizou para proteger-se contra a realidade das atitudes que estavam atentando contra a dig-
nidade humana, era agora emblematicamente vislumbrada na figura de Adolf Eichmann. Portanto, Eichmann
dava vida àquele tipo de ser humano perpetrado pelo Background do Século XX, pois ele era incapaz de tomar
qualquer tipo de iniciativa, de ter qualquer tipo de ação espontânea, como ficou comprovado quando este relatou
que a partir do dia 08 de maio de 1945, data da derrota alemã na Segunda Guerra Mundial, se vira diante de uma
realidade totalmente nova uma vida individual difícil e sem liderança , ou seja, o fato de não ter mais de “a-
gir” por determinação de ordens e regulamentos pertinentes. Sobre isso, ver ARENDT. Eichmann em Jerusalém:
um relato da banalidade do mal, p. 43ss.
139
Segundo André Duarte, Arendt distingue entre o ‘burguês’ propriamente dito, pertencente à classe industrial
alemã, e o ‘filisteu’, definido como o ‘último edegenerado produto da crença do burguês na suma importância
do interesse privado’. O filisteu é o ‘burguês isolado da sua própria classe, o indivíduo atomizado produzido pelo
colapso da própria classe burguesa (...), o burguês que, no meio das ruínas do seu mundo, cuidava mais da pró-
pria segurança e estava pronto a sacrificar tudo a qualquer momento crença, honra, dignidade à menor pro-
vocação (...) Arendt recorrerá justamente ao modelo conceitual do filisteu em sua análise do caso Eichmann, o
funcionário responsável pela organização burocrática da deportação em massa para os campos de morte. Um dos
aspectos centrais ressaltados por Arendt será justamente o de que Eichmann era exatamente aquele tipo de ho-
mem que, ‘quando sua ocupação o força a assassinar pessoas, ele não se vê como um assassino porque não o fez
por suas inclinações, mas por suas capacidades profissionais’” (DUARTE. O Pensamento à Sombra da Ruptura,
p. 50 e 51).
140
Sobre esse tema, um interessante estudo que procura aproximar as concepções de Hobbes e Arendt acerca
da distinção entre multidão desorganizada e destituída de interesse comum e o povo, que se constitui a partir de
um interesse que abrange a todos. Nessa perspectiva, segundo Souki, para Arendt, Hobbes é um autor político de
extrema importância, o qual deve ser visitado para que se possa lançar luz sobre os problemas contemporâneos
da esfera pública. Nesse sentido, e fundamentalmente no que tange à questão das massas em oposição ao povo,
diz Nádia: “No amplo quadro descritivo do homem da massa, um forte ponto em comum dessa nova modalidade
humana converge para as características descritas por Hobbes nas multidões: o desenraizamento, o isolamento, a
falta de comunicação e a falta de representação política”, que não possuem um senso de coisa pública, pois não
conseguem ver o mundo pela multiplicidade de perspectivas, mas somente pela uniformidade da visão do ho-
mem massa, preso a seus interesses, o que não acontece com o povo, propriamente dito (SOUKI. Multidão e
Massa reflexões sobre o “homem comum” em Hannah Arendt e Thomas Hobbes. In: ___ Hannah Arendt e a
condição humana, p. 141). A análise que aponta para o fato de que somente o povo reunido possui a capacidade
de perceber a natureza plural da esfera pública é corroborada por Canovan, quando esta diz que “... since the
plural People look at their common world from different angles, they have access to a variety of perspectives that
enable them to see things in the round (CANOVAN. The People, the Masses, and the Mobilization of Power:
87
Esta assertiva demonstra que o mundo não mais os agrega, ou seja, o mundo não mais é visto
como o lar pertencente “aos homens” e que, para continuar a sê-lo às gerações futuras, é ne-
cessário preservá-lo: em suas instituições, leis, prescrições morais, tudo o que junto forma o
artifício humano chamado mundo.
Nesse sentido, a partir das análises arendtianas, podemos dizer que as pessoas, nas so-
ciedades de massas, mantêm algum tipo de relação que não pode ser chamada de ação conjun-
ta. Falta-lhes um sentimento que as agregue em um interesse comum, que as faça abdicar de
seus desejos particulares em prol de algo de cunho coletivo. Essa falta de referência comum
faz com que haja uma desarticulação e desinteresse pelo mundo comum, levando os homens a
se sentirem desenraizados e supérfluos, pois não possuem a consciência de pertencerem a um
mundo habitado pela pluralidade e sua presença na vida é simplesmente notada como mais
um número de uma espécie que não pára de crescer e multiplicar. Mais do que isto, não pos-
suem nenhum tipo de consciência da importância de se realizar ações que visem a preservação
da vida na Terra.
Essa ausência de consciência no que diz respeito ao fato de se habitar um mundo go-
vernado pela pluralidade traz em seu cerce o risco do aniquilamento da relação do homem
consigo mesmo a partir da perda do referencial da pluralidade, a qual é característica principal
e fundante de um mundo de aparências. Não mais havendo a certeza de pertencer ao mundo
fomentado pelo “nós”, a relação do homem consigo mesmo, que transforma toda unidade em
dualidade a partir da atividade de pensar o diálogo do eu consigo mesmo é posta em peri-
go. Isto se deve ao fato de que o sentimento de desenraizamento configura-se como conse-
The Paradox of Hannah Arendt’s “Populism”. In: ___. Social Research, p. 415). Ver também HOBBES. Levia-
, capítulos XVI e XVII, principalmente quando este autor diz que “Mesmo que haja uma grande multidão, se
as ações de cada um dos que compõem forem determinadas segundo o juízo individual e os apetites individuais
de cada um, não poderá esperar-se que ela seja capaz de dar defesa e proteção a ninguém, seja contra o inimigo
comum, seja contra as injúrias feitas uns aos outros (...) A única maneira de instituir um tal poder comum, capaz
de defendê-los das invasões dos estrangeiros e das injúrias uns dos outros, garantindo-lhes assim, uma segurança
suficiente para que, mediante seu próprio labor e graça aos frutos da Terra, possam alimentar-se e viver satisfei-
tos, é conferir toda sua força e poder a um homem, ou a uma assembléia de homens, que possa reduzir suas di-
versas vontades, por pluralidade de votos, a uma só vontade” (HOBBES. Leviatã, p. 142 a 144).
88
qüência inevitável da ruptura com a realidade e, concomitantemente, a perda da capacidade de
poder ativar a faculdade de pensamento que busca a significação da vida vivida. A pluralidade
que segundo Hannah Arendt é “a lei da Terra”,
141
diante do quadro constituído pelas socieda-
des de massa, é constantemente ameaçada pela emersão do homem de massa que, dada a sua
homogeneidade de ações e palavras, as quais se fundam no fato de que a vida é vista por uma
única perspectiva, faz com que a relação do homem consigo seja posta em xeque, acarretando,
conseqüentemente, a ameaça de se perder o significado do que seja a vida na Terra, em seu
sentido stricto.
142
O que queremos dizer com essa análise conceitual da compreensão arendtiana da Era
Moderna é que o pano de fundo que caracterizou o século XX inaugurou um tipo de homem
nunca antes conhecido, que atende pelo nome unívoco de “massa”: homens massificados e
moldados ideologicamente para “agirem” dentro do plano traçado para eles. Assim, segundo
Arendt, as massas são:
(...) pessoas que, simplesmente devido ao seu número, ou à sua indiferença, ou a
uma mistura de ambos, não se podem integrar numa organização baseada no interes-
se comum, seja partido político, organização profissional ou sindicato de trabalhado-
res.
143
Essa indiferença e apatia política pode ser vista como uma depravação da condição
humana, pois faz com que o homem abdique de suas capacidades mais sublimes, tais como a
livre iniciativa e a ação conjunta. Uma vez que devido a sua recusa em participar da esfera
pública, esse homem massificadamente preso a clichês e frases prontas que têm como obje-
tivo funcionar como uma espécie de cinturão que impede a realidade de ser “real” –, não toma
141
ARENDT. A vida do espírito, p. 17.
142
A esse respeito, diz Nádia Souki: “... há uma situação extrema a que se chega pelo desenraizamento, é quando
este atinge a relação do homem consigo mesmo, configurando uma perda do interesse por si próprio, uma espé-
cie de ‘frieza em relação a si próprio’. Essa é a nova qualidade da frieza social que Arendt relaciona a uma cultu-
ra da ‘perda de si mesmo’ dos indivíduos desarraigados e egocêntricos. Essa chocante realidade em que se ob-
serva um ‘enfraquecimento do instinto de autoconservaçãodecorre da consciência que os indivíduos têm da
89
em suas mãos a iniciativa de criar o novo, deixando que sua vida siga as linhas de um deter-
minismo inexorável, seja da natureza ou da história.
É esse indivíduo massificado que será o “princípio e o fim” do totalitarismo, pois é a
partir dele que se abrem as possibilidades de um regime de governo nunca antes experiencia-
do. É para garantir o domínio total que se deve procurar “aperfeiçoar” o homem da massa,
fazendo com que ele, cada vez mais, se transforme em um ser coeso e de atitudes previsíveis.
Assim, as massas sea força que irá alimentar a máquina totalitária para alcançar seu objeti-
vo de dominação e transformação total da raça humana.
Portanto, a ruptura com a realidade pode ser compreendida como o primeiro elo na ca-
deia de fenômenos, tais como a vitória do animal laborans, a massificação humana e o adven-
to da uniformidade de pensamento
144
, que culminaram com a crise do século XX e o desinte-
resse em parar-para-pensar.
própria superfluidade e dispensabilidade” (SOUKI. Multidão e Massa reflexões sobre o “homem comum” em
Hannah Arendt e Thomas Hobbes. In: ___ Hannah Arendt e a condição humana, p. 143).
143
ARENDT. Origens do totalitarismo, p. 361.
144
O surgimento das sociedades de massa, fomentada a partir da ruptura com a realidade e a concomitante vitó-
ria do animal laborans, constitui-se em um fenômeno que foi antevisto por pensadores que se empenharam em
compreender a sociedade em seu aspecto político-social, após as revoluções ocorridas na França e na América.
Alex de Tocqueville pode ser identificado como um desses pensadores e sua influência sob as reflexões arendti-
anas é notório. Portanto, o que Tocqueville preconiza, em seus estudos, é aquilo que será a característica das
sociedades de massa: todos os eventos são vistos por uma única perspectiva, a qual é determinada pela uniformi-
dade de pensamentos e opiniões fomentada pela equalização de todos os indivíduos em membros de uma socie-
dade. Este fenômeno leva a perda da realidade, pois esta, para ser real necessita ser atestada pela multiplicidade
de pontos de vista, pois a pluralidade é a “lei da Terra”. Quando o esfacelamento do ambiente plural mante-
nedor da realidade, esta se pulveriza, dando lugar a ilusões e contradições elaboradas por um único ponto de
vista o qual é fabricado por um amálgama de indivíduos iguais, que possuem a mesma opinião. A antecipação
analítica que faz Tocqueville acerca do surgimento das sociedades de massa pode ser atestada pelas suas próprias
palavras: “Passeio meu olhar sobre essa multidão inumerável, composta de seres parecidos, onde nada se eleva
nem se abaixa” (TOCQUEVILLE. Democracia na América, p. 362). Nessa ótica, a situação na qual se encontra
as sociedades, no seio das modernas democracias, leva-as a uma profunda apatia com relação ao interesse com a
coisa pública. Este retrato, que fora esboçado por Tocqueville, e ganhou ares de “arte final” na contemporanei-
dade, é visto pelo pensador francês como algo singular na história da humanidade, idéia esta que será seguida de
perto por Arendt acerca dos eventos do século XX, principalmente o advento dos regimes totalitários. É nesse
sentido que diz Tocqueville: “Volto atrás de século em século até a Antigüidade mais remota e nada encontro
90
2.4. Totalitarismo e Ideologia
Todos os “mananciais” que compõem o cenário do século XX a ruptura com a reali-
dade, a vitória do animal laborans e o surgimento das sociedades de massa deságuam em
um “rio” comum: os regimes totalitários em suas versões nazista e stalinista.
A lógica dos regimes totalitários estruturava-se da seguinte forma: se, pelo simples fa-
to de poder pensar, os homens podem mudar de opinião, então todos os homens são, potenci-
almente suspeitos e inimigos do regime. Para evitar tal perigo, era necessário criar um ser de
reações previsíveis, reduzindo-o a seu denominador comum, isto é, um ser cuja única “ação
livre” consiste em preservar a vida.
145
Assim, o totalitarismo, que se fundamenta no terror e tem como princípio de ação a i-
deologia, inaugura um novo momento no que diz respeito a político. Este novo momento i-
naugurado pelos regimes totalitários é embasado no aniquilamento da pessoa jurídica, moral e
individual,
146
alcançando esse intuito, respectivamente, através da supressão dos direitos le-
gais, da eliminação da memória de seus mártires e das atrocidades cometidas nos campos de
concentração,
147
nos quais a distinção entre carrasco e vítima inexiste.
que se assemelhe ao que tenho diante dos olhos. O passado não mais ilumina o futuro, faz com que o espírito
marche nas trevas” (TOCQUEVILLE. Democracia na América, p. 361).
145
ARENDT. Origens do totalitarismo, p. 488.
146
Idem, p. 498ss.
147
Podemos dizer que os campos de concentração constituem a marca indistinta dos regimes totalitários. É na
circunscrição de suas cercas que os regimes totalitários, fundamentalmente em sua versão nazista, puderam al-
cançar seu principal objetivo, ou seja, eliminar qualquer tipo de espontaneidade humana, destruindo a sua indivi-
dualidade. É nesse sentido que salienta Arendt: A experiência dos campos de concentração demonstra realmen-
te que os seres humanos podem transformar-se em espécimes do animal humano, e que a “natureza” do homem
é “humana” na medida em que dá ao homem a possibilidade de tornar-se algo eminentemente não-natural,
isto é, um homem” (ARENDT. Origens do totalitarismo, p. 506). Pelo fato de os campos de concentração procu-
rarem fabricar o modelo ideal dos regimes totalitários, ou seja, um ser supérfluo, sem espontaneidade, rebaixan-
do-o a algo determinado unicamente pelo seu aspecto orgânico, eles podem ser descritos como uma verdadeira
imagem do inferno, como salienta nossa autora: “Last came the death factories and they all died together, the
young and the old, the weak and the strong, the sick and the healthy; not as people, not as men and women,
children and adults, boys and girls, not as good and bad, beautiful and ugly but brought down to the lowest
common denominator of organic life itself, plunged into the darkest and deepest abyss of primal equality, like
cattle, like matter, like things that had neither body nor soul, nor even a physiognomy upon which death could
stamp its seal. It is this monstrous equality without fraternity or humanity an equality in which cats and dogs
could have shared that we see, as though mirrored, the image of hell” (ARENDT. Essays in understanding, p.
198).
91
Diante deste quadro argumentativo, podemos dizer que os regimes totalitários se fun-
damentam em dois pontos: o terror e a ideologia. O segundo ponto estrutural do regime totali-
tário a ideologia requer uma análise mais detalhada no que diz respeito aos nossos propó-
sitos.
Analisar o importante papel desempenhado pela ideologia nos regimes totalitários, em
nosso entender é de suma importância, pois esta fomenta uma visão de mundo, cuja caracte-
rística principal é procurar compreender a vida a partir de uma perspectiva global.
Em suas análises, quando Hannah Arendt define a ideologia como a “lógica de uma
idéia”,
148
a autora procura caracterizar a ideologia como uma visão única e abrangente acerca
do sentido da realidade, e não simplesmente como uma “idéia” que pode tornar-se o objeto de
estudo de uma ciência. O que Arendt pretende demonstrar é que a ideologia, vista como a
lógica de uma idéia, terá como objetivo levar ao rompimento das relações intersubjetivas, a
partir da visão de mundo fornecida pela mesma. Esta visão de mundo deve ser entendida à
maneira de um silogismo que, pela aplicação de uma idéia na história, revela um processo
coeso, o qual não necessita da realidade factual para confirmá-lo.
Portanto, o que pretendemos demonstrar, à luz das reflexões de Hannah Arendt, é que
a ideologia, no âmbito dos regimes totalitários, procura realizar uma demonstração a qual tem
como objetivo arrumar os fatos, a partir da dedução das premissas de um silogismo infalível.
Este faz com que a realidade ganhe uma coerência que não existe, de fato, na esfera dos as-
suntos humanos. Esta coerência torna-se possível de ser alcançada, na medida em que o mo-
vimento do pensar lógico não emana da experiência, mas gera a si mesmo, fazendo com que a
premissa seja o único ponto aceito da realidade.
Contudo, no cerne dos movimentos totalitários, como salienta Hannah Arendt em Ori-
gens do totalitarismo,
149
enquanto o terror não alcançou seu objetivo, que é o de proporcionar
148
ARENDT. Origens do totalitarismo, p. 521.
149
Idem, p. 519.
92
às forças da natureza e da história se propagarem livremente, ele necessita da ideologia para
doutrinar os indivíduos para que cada um desempenhe, de maneira eficaz, seu respectivo pa-
pel: ou de carrasco ou de vítima.
Nesse sentido, mais do que analisar as características constitutivas da ideologia nos
regimes totalitários, o objetivo deste passo de nossa pesquisa é demonstrar o papel desempe-
nhado pela mesma na colaboração para o domínio total, que significa a tentativa de extirpar
da face da Terra a pluralidade de perspectivas e ações humanas.
“O que havia acontecido?”; “Por que havia acontecido?”; “Como havia acontecido?”.
São essas as perguntas, como salienta Hannah Arendt em Origens do totalitarismo, que ator-
mentaram a geração daqueles que não se entregaram à deflagração dos acontecimentos perpe-
trados no século XX. Estes pensadores enxergaram no advento do totalitarismo um fenômeno
novo e sem precedentes,
150
algo que se constitui como sintoma mais claro e proeminente da
crise do século das Duas Guerras Mundiais.
No totalitarismo, diferentemente das tiranias convencionais, não a possibilidade de
coexistir. O domínio totalitário pode ser entendido como uma novidade no cenário político,
devido ao fato de que ele visa à abolição da liberdade e, até mesmo, a eliminação de toda es-
pontaneidade humana, ou seja, sua capacidade de iniciar algo novo, e não simplesmente a
restrição da liberdade, como havia ocorrido em domínios tirânicos ou despóticos.
151
Nesse
sentido, o regime político, que possui como seu fundamento o terror, procura eliminar a plura-
lidade humana, a qual se caracteriza como o substrato garantidor da realidade, uma vez que
nada do que existe no mundo das aparências e, portanto, “aparece”, encontra-se em uma con-
dição singular. Tudo que existe é para ser percebido por uma pluralidade de espectadores e
pontos de vistas diversos, o que faz com que algo não adquira um aspecto de ilusão, mas, pelo
150
“A ausência de estrutura no Estado totalitário, o seu desprezo pelos interesses materiais, a sua independência
de motivação do lucro e as suas atividades não-utilitárias em geral contribuíram, mas do que qualquer outro
elemento, para tornar quase imprevisível a política contemporânea” (ARENDT. Origens do totalitarismo, p.
469).
93
seu compartilhamento, possa ter sua realidade atestada. Sem a garantia de pertencimento a um
mundo comum, não há, como evidencia os campos de concentração, a possibilidade de intera-
ção e, conseqüentemente, a possibilidade de ação, nem mesmo a ação de fuga, pois qualquer
ação necessita, para sua consecução, a confiança nos “outros”. Logo, transformar a humani-
dade em algo coeso e uniforme, com movimentos previsíveis é o telos do terror, o qual so-
mente poderá ser concretizado ao se esvaziar a possibilidade do refúgio na vida privada, locus
indispensável, nos momentos em que a esfera pública não mais existe.
Nessa linha interpretativa, percebemos claramente a influência das reflexões de Mon-
tesquieu
152
sobre a obra arendtiana: primeiramente na definição do terror como natureza do
regime totalitário, e conseqüentemente, na idéia de que esta nova forma de regime político,
para alcançar seus propósitos, necessita possuir em seu cerne um princípio de ação. Contudo,
melhor do que apontar a existência de um princípio de ação nos regimes totalitários, para tor-
nar mais clara esta assertiva, faz-se necessário dizer que o totalitarismo possui não um princi-
pio de ação, mas um princípio de “movimento”. Este princípio de movimento configura-se
como a ideologia, a qual inaugura um novo momento no que diz respeito à política e que ain-
da possui repercussão em nossa teia de relações ou na ausência de tais relações.
O segundo ponto estrutural do regime totalitário a ideologia o qual se configura
como o cerne das reflexões dessa parte de nossa pesquisa devido ao objetivo de nossos estu-
dos, ou seja, compreender a implicação política da faculdade de pensamento requer uma aná-
lise mais detalhada. Porém, antes de iniciarmos nosso percurso no que tange à problemática
da presença da ideologia no âmbito dos regimes totalitários, necessário se faz compreender a
natureza da “natureza” desse regime, ou seja, faz-se necessário lançar luz sobre o terror.
A história da humanidade tem inscrito, ao longo do tempo, páginas que demonstram a
procura constante em congregar legalidade e justiça e, assim, diminuir a discrepância existen-
151
Sobre isso, ver ARENDT. Origens do totalitarismo, p. 455.
152
A esse respeito, ver ARENDT. Essays in understanding, p. 329.
94
te entre elas. Esse hiato entre legalidade e justiça nasce do fato de que a legalidade baseia-se
em generalizações para encontrar os critérios de certo e errado e, desta forma, não alcança a
justiça, pois os casos nos quais se aplica uma lei são sempre individuais. A grande questão
que envolve esta temática é a impossibilidade de subsumir um caso particular a regras gerais.
Estamos sempre diante de um abismo “quase” intransponível que separa em dois pólos distin-
tos: a idealidade e a realidade.
Todavia, os regimes totalitários emergem em um cenário propício para a realização da
transposição desse abismo, substituindo as leis positivas, que servem para garantir a possibili-
dade da estabilização da ação humana. Nos regimes totalitaristas o terror ocupa o lugar de tais
leis.
153
Em nosso entendimento, o terror deve ser compreendido como a fronteira última da
política, pois se assim não o fosse, estaríamos diante de um estado de natureza, onde não há
nenhuma forma de legalidade e, portanto, não poderíamos realizar uma análise filosófico-
político. Este fenômeno, como adverte Newton Bignotto,
154
não pode de forma alguma, ser
concebido como um fenômeno exclusivamente contemporâneo. Esta idéia emerge das refle-
xões acerca da utilização do terror na Revolução Francesa. Assim, no bojo dos eventos oriun-
dos de tal Revolução, percebemos que uma de suas características é a nomeação, a partir de
um tribunal superior, dos oponentes daqueles que naquele momento ocupavam o lugar do
poder, cuja figura central era personificada por Robespierre, fato esse que aponta para a pre-
sença do terror na esfera dos fenômenos revolucionários franceses. Para corroborar com nossa
reflexão, podemos dizer que o terror, contido no âmago da Revolução Francesa, nesse sentido,
dividiu a sociedade em duas classes distintas: os que têm medo e os que não o têm, ou seja,
153
Sobre isso, ver ARENDT. Origens do totalitarismo, p. 514.
154
Na consecução deste sub-capítulo, além de utilizarmos as referências bibliográficas pertinentes a este tema,
nos servimos também das anotações feitas acerca das aulas ministradas pelo Professor Doutor Newton Bignotto
de Souza, na disciplina “Política e Terror”, do curso da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universi-
dade Federal de Minas Gerais – UFMG, do programa de Pós-Graduação em Filosofia (Mestrado e Doutorado), a
qual se realizou entre os meses de julho a dezembro de 2006.
95
entre traidores e patriotas. Este cenário da Revolução Francesa lança luz sobre o fato de que
nesse momento a sociedade está dividida de maneira bipolar, cuja fomentação é realizada a
partir da fala do ator político, ou seja, alguém (Robespierre) que fala a partir do fundamento
da experiência política, que encarna em seu ser os papéis de legislador e tirano.
Nessa perspectiva, em nosso entender, tanto em sua versão francesa quanto na totalitá-
ria, o terror serviu como um mecanismo de posse do poder, a partir da eliminação da diferen-
ça.
A partir da análise preliminar acerca do terror, o que pretendemos salientar é que, es-
pecificamente no que tange aos regimes totalitários, este permite às forças da natureza e da
história propagarem-se, sem o perigo da ação autônoma de indivíduos livres. Contudo, este
propósito somente poderá ser alcançado, caso o terror consiga estabilizar os homens, em um
processo que pretende homogeneizá-los.
155
É nessa perspectiva que se encontram as análises de Hannah Arendt, pois para ela os
regimes totalitários têm como objetivo movimentar um processo irresistível, que culminaria
na vitória da raça pura nazismo ou da classe mais forte bolchevismo. Desta forma, per-
cebemos que o arcabouço conceitual dos regimes totalitários, o qual está embasado na teoria
da evolução das espécies e nos fundamentos das teorias históricas do século XX, demonstra
que as duas teorias (da natureza e da história) se baseiam em uma só, pois os processos da
natureza se concretizam na história.
156
Assim, vislumbra-se que cada etapa da história ou da
natureza configura-se como algo de cunho necessário para que elas história e natureza
possam alcançar seus “objetivos”.
157
155
Sobre isso, ver ARENDT. Origens do totalitarismo, p. 517.
156
“O principal objetivo do terror é tornar possível à força da natureza ou da história propagar-se livremente por
toda a humanidade sem o estorvo de qualquer ação humana espontânea”, pois “O extermínio vira processo histó-
rico no qual o homem apenas faz ou sofre aquilo que, de acordo com leis imutáveis, sucederia de qualquer mo-
do”. (ARENDT. Origens do totalitarismo, p. 399e 498).
157
“In the totalitarian interpretation, all laws become, instead, laws of movement. Nature ad History are no long-
er stabilizing sources of authority for laws governing the actions of mortal men, but are themselves movements.
Their laws, therefore, though one might need intelligence to perceive or understand them, have nothing to do
with reason or permanence. At the base of the Nazis’ belief in race laws lies Darwin’s idea of man as a more or
96
Esse processo natural e histórico somente será possível de ser concretizado, caso o
mundo seja limpo daqueles que são indignos de viver. Nessa perspectiva é que ganha plausi-
bilidade a idéia da divisão da sociedade em dois extremos distintos: de um lado, os virtuosos,
de outro, os viciosos, pois esta é a clara expressão da “seleção natural” dos inimigos objeti-
vos, que é levada a cabo pelo terror, no âmbito dos regimes totalitários.
158
Portanto, segundo Newton Bignotto, esta forma de nomeação do “inimigo objetivo”
possui como fundamento um mecanismo abstrato, de valores que transcendem a esfera políti-
ca, e que são proclamados através da fala do chefe, que encena os papéis do legislador e do
tirano. Nessa perspectiva, o ponto de apoio dos governos totalitários seria a história e a natu-
reza, na medida em que estas representariam, nesse contexto, a própria esfera do sagrado, de
onde emanam os decretos de vida e morte. Nessa esfera, não nenhum tipo de ética ou de
verdade, uma vez que o conteúdo normativo da eleição dos inimigos é dado de fora, além das
leis inerentes à condição humana, fazendo com que haja um esvaziamento dos conteúdos dos
enunciados, pois estes estão além de toda compreensão humana. Portanto, o terror cria o pró-
prio inimigo (oposto), através de uma idéia abstrata, ou melhor, de idéias abstratas. Enfatiza-
mos, nesse momento, que existe não apenas uma idéia abstrata, mas idéias abstratas, pois a
nomeação do inimigo, que é feita por aquele que ocupa o lugar da fala do poder, não pode ter
fim. Este fato lança luz, conseqüentemente, na demonstração de que este processo é circular,
tautológico, que o movimento, essência do governo totalitário, não pode ter fim, pois, caso
contrário, este fim decretaria o próprio esfacelamento do regime totalitário.
159
Portanto, o que
pretendemos apontar com essas reflexões é que a sentença de morte, em um regime político
baseado no terror, é determinada por um tribunal superior, que procura identificar a lei com a
less accidental product of natural development – a development which does not necessarily stop with the species
of human beings such as we know it” (ARENDT. The Promise of Politics, p. 340 e 341).
158
Ver, a esse respeito, ARENDT. Origens do totalitarismo, p. 405ss.
159
"Não se deve esquecer que somente uma construção pode ter estrutura, e que um movimento – se tomarmos o
termo tão sério e literal como o queriam os nazistas – pode ter apenas direção, e que qualquer forma de estrutura,
legal ou governamental, pode estorvar um movimento que se dirige com velocidade crescente numa certa
direção” (ARENDT. origens do totalitarismo, p. 448).
97
própria seleção natural ou histórica, desfazendo com o hiato existente entre legalidade e justi-
ça, como apontamos acima. Esta sentença de morte tem como meta derradeira fabricar uma
humanidade homogênea, eliminando, assim, os inimigos dos regimes: a pluralidade humana.
Nessa linha interpretativa, segundo Alexandre Koyré, em seu texto intitulado Réflexi-
ons sur le mensonge, a mentira, elemento constitutivo de regimes baseados no terror, pode ser
considerada tolerável em casos específicos e excepcionais, como o da guerra.
160
Isto se deve
ao fato de que nessa circunstância, o grupo que está no poder pensa que está rodeado por um
perigo eminente e constante, ou seja, em um perpétuo caso de guerra, no qual o grupo que não
está ocupando o poder pretende destituí-lo das mãos daqueles que o possui. Neste caso, o gru-
po detentor do poder não protela em mentir para continuar em tal posto. Isso se faz com a
utilização da idéia da divisão da sociedade entre “nós” e “eles”. Nesse sentido, os governos
totalitários, que são fundados sobre a prioridade da mentira, utilizam e continuam a utilizá-la,
como o faziam as sociedades secretas,
161
em função de não ter, ainda, alcançado seu objetivo
de domínio total. Logo, a mentira é destinada aos colaboradores do movimento totalitário;
enquanto que a “verdade” é destina à elite do partido, que os membros do partido sabem
que o chefe mente. Melhor dizendo, os membros do partido sabem que esta “pseudo” mentira,
somente possui esta característica até que o movimento da natureza ou da história venha a dar
sentido a ela, pois se o chefe diz que não existe um metrô em Paris e há um metrô em Paris, a
dedução gica é que este deve ser destruído, para que as forças irresistíveis da natureza e da
história possam propagar-se e alcançar seus objetivos.
162
O terror, nesse cenário, procura sacrificar as partes em benefício do todo: ou da natu-
reza ou da história. Dessa forma, o terror não procura destruir as fronteiras e os canais de co-
municação dos indivíduos, os quais são erigidos pelas leis. Este tipo de ação é perpetrado pe-
160
A esse respeito, ver KOYRÉ. Reflexiones sur le mensonge, p. 22
161
Segundo Koyré, “Les gouvernements totalitaires ne sont, hélas, rien moins que des sociétes secrètes, entou-
rées d’ennemis menaçants et puissants, et obligés, de ce fait, de chercher la protecion du mensonge, de se cacer,
de se dissimuler” (KOYRÉ. Reflexiones sur le mensonge, p. 34).
98
las tiranias convencionais, nas quais o governo não tem leis, o poder é exercido por um único
homem, segundo seus interesses, e o medo, como salientou Montesquieu,
163
é o princípio de
ação desta forma de regime político. Ao contrário, o totalitarismo opera segundo a orientação
de leis, que se configuram como fonte de autoridade sobre-humana, cujo objetivo é engendrar
a humanidade como produto final. Para isso, o terror constrói um cinturão de ferro que une os
homens de tal maneira que eles passam a formar um aglomerado uniforme, identificado com a
palavra “Um”: “Um Único Homem”, de dimensões gigantescas.
164
O que fica evidente, a
partir desta perspectiva, quando indicamos que o totalitarismo, ao fomentar um cinturão de
ferro, procura forjar “um único homem”, é que os regimes totalitários buscam eliminar os
espaços que unem e separam os homens e lhes permitem agir. Não basta erigir desertos inap-
tos à vivência pública; é necessário eliminar qualquer possibilidade de ação autônoma, o que
somente poderá ser alcançado pela eliminação da vida pública e privada. Este objetivo somen-
te poderá ser alcançado dentro de um movimento total.
Nesse sentido, enquanto o governo totalitário não alcança a conquista mundial, ou se-
ja, enquanto a dominação total não atingiu seu objetivo de banir da face da Terra a diversida-
de humana, faz-se necessário à utilização da ideologia para inspirar e guiar o comportamento
humano, pois esta fornece à sociedade uma “visão de mundo” global. Assim, a ideologia faz
com que a sociedade sinta-se inserida no domínio total e fora do terror, que é o locus do ini-
migo, encarcerado nos campos de concentração, local onde tudo é possível. O que pretende-
mos enfatizar nesse momento é que a ideologia, definida como a lógica de uma idéia, configu-
ra-se como fator indispensável no preparo de cada um para desempenhar bem o seu papel do
movimento totalitário, papel este que se divide entre o ser carrasco ou o ser vítima.
Nesse sentido, o totalitarismo necessita, para guiar seus súditos na ação planejada, da
ideologia que, segundo a definição de Arendt, configura-se como uma “doutrina mais ou me-
162
KOYRÉ. Reflexiones sur le mensonge, p. 34.
163
MONTESQUIEU. Do Espírito das Leis, p. 65.
99
nos destituída de validade objetiva, porém mantida pelos interesses claros ou ocultos daqueles
que a utiliza; que pode explicar toda e qualquer ocorrência a partir de uma única premissa”.
165
A ideologia, no cerne dos regimes totalitários, caracteriza-se como a gica de uma i-
déia, que adquire plausibilidade a partir de uma dada premissa, que possui a força de uma
verdade inquestionável, desencadeando um silogismo que culminará em uma conclusão, em
uma “verdade mais verdadeira”, como a “idéia” de que uma raça impura deve ser dizimada.
Contudo, para que esse processo lógico alcance seu objetivo, faz-se necessário impedir qual-
quer abertura ao ser, ou seja, o instrumento de explicação utilizado pelo totalitarismo – a ideo-
logia deve impedir qualquer tipo de contradição nascida nas experiências, eliminado o con-
tato do homem com a realidade, tornando “quase” impossível apreender o que seja a “realida-
de”. O que queremos dizer é que uma ideologia confere significado à vida, pelo fato de ela
primeiramente explicar a origem da calamidade (os judeus são culpados pela miséria na Euro-
pa ou os capitalistas são a fonte da miséria mundial) e, posteriormente, inflamar o desejo de
mudar a realidade. Portanto, compreende-se que o objetivo primordial da ideologia é a recons-
trução da realidade, a partir da dedução lógica das premissas de um silogismo infalível.
É na aplicação direta da ideologia na vida dos indivíduos que a distinção entre as tira-
nias convencionais e os regimes totalitários ganha contornos mais tidos. Assim, o totalita-
rismo, diferentemente das formas convencionais de tiranias, não se restringe a eliminar os
espaços de ação entre os homens: não basta destruir a capacidade política dos homens, uma
vez que nesse tipo de governo, é necessário suprimir qualquer possibilidade de mudança de
opinião. Para isso, é preciso fazer com que os homens percam a confiança em um mundo
compartilhado pelos outros, o que levaa perda do próprio eu, que é garantido pela presença
da pluralidade em um mundo de aparências, como acima mencionamos.
164
Sobre isso ver ARENDT. Origens do totalitarismo, p. 519.
165
ARENDT. Origens do totalitarismo, p. 520.
100
Segundo Arendt, em On the Nature of Totalitarianism, o governo totalitário proclama
ter solucionado o problema da distinção entre a esfera pública e a privada, a partir da lei glo-
bal ou da natureza ou da história,
166
pois todos os aspectos da vida, sejam eles privados ou
públicos, serão explicados pela visão de mundo oferecida pela ideologia. Todo esse ambiente
fomentado pelo movimento totalitário leva à insuportável sensação de desolação,
167
que se
configura como sendo o momento no qual os homens sentem-se abandonados pelo próprio eu,
que a pluralidade humana não mais se faz representar no diálogo do dois-em-um do pensa-
mento, em função do esfacelamento do mundo plural, fundamento para a atividade de pensar.
Não há mais como pensar a vida e lhe conceder significado.
Definir a ideologia como a lógica de uma idéia é apontar para o fato de que uma sim-
ples idéia pode explicar todo movimento da história como algo coerente. Nesse sentido, apon-
ta Arendt que o racismo e o anti-semitismo tornaram-se ideologias apenas quando pretende-
ram explicar a totalidade do curso da história como sendo algo de secreto.
168
Com isso, o
governo totalitário procura fomentar um substrato invisível, que explica a realidade como um
todo. Nesta linha argumentativa, salienta Kateb, em Ideology and Storytelling, que a mente
humana acredita que uma conseqüência estrutural e superior à mera ocorrência fática deve
existir de maneira necessária, o que aponta para o fato de que a consistência está mais próxi-
ma da ausência de significado, uma vez que ela elimina o caos e o acidental, os quais são ine-
rentes à vida e a busca em significá-la.
169
Assim, percebemos que o movimento da lógica
dispensa qualquer fator externo, pois aquilo que a princípio constituía-se como a lei do pen-
samento correto transforma-se em algo produtivo, que, a partir de uma dada premissa, alcança
166
ARENDT. The Promise of Politics, p. 333.
167
“O que torna a desolação tão insuportável é a perda do próprio eu, que pode realizar-se quando está a sós, mas
cuja identidade só é confirmada pela companhia confiante e fidedigna dos meus iguais. Nessa situação, o homem
perde a confiança em si mesmo como parceiro dos próprios pensamentos, e perde aquela confiança elementar no
mundo que é necessária para que se possa ter qualquer experiência. O eu e o mundo, a capacidade de pensar e de
sentir, perdem-se ao mesmo tempo” (ARENDT. Origens do totalitarismo, p. 529).
168
ARENDT. The Promise of Politics, p. 349.
169
KATEB. Ideology and Storytelling, p. 322.
101
uma dedução na qual a contradição é tragada pelo movimento irresistível da lógica de uma
idéia.
Nessa perspectiva, podemos salientar que a atividade do pensamento, a mais livre das
atividades espirituais, constitui-se como um “problema” a ser superado, caso a dominação
total queira, de fato, alcançar seus objetivos, o que poderá ser feito com a colaboração da ide-
ologia.
Neste ponto, gostaríamos de lançar luz sobre uma franja conceitual de extrema rele-
vância para nosso intuito nessa pesquisa, a qual foi mencionada no início desse passo. Per-
cebemos, principalmente, em seu texto intitulado On the Nature of Totalitarianism: An Essay
in Understanding, coletado na obra Essay in Understanding,
170
que Hannah Arendt enfatiza e
deixa clara sua aproximação com as análises de Montesquieu, sobretudo no que tange à ques-
tão da descrição das várias formas de governo, que são compreendidas a partir da análise da
natureza (estrutura particular) e do princípio de ação (mola propulsora). Assim, para Hannah
Arendt:
Montesquieu foi o último a inquirir sobre a natureza do governo; que é perguntar o
que o constitui e o que ele é (“sua natureza é o que o faz ser como é”, O Espírito das
Leis, Livro III, capítulo I). Mas Montesquieu adiciona a isto uma segunda e inteira-
mente original questão: o que faz um governo agir como age? Ele assim descobriu
que cada governo tem não apenas sua “estrutura particular”, mas também um “prin-
cípio” particular que o coloca em movimento.
171
O que desejamos salientar com essa exposição é que, seguindo as trilhas abertas por
Montesquieu e endossadas por Arendt, se a causa principal da degeneração de um corpo polí-
tico é a corrupção de seu princípio e, como salienta nossa autora, o totalitarismo configura-se
como um governo político, cujo princípio, não de ação, mas de movimento é a ideologia, seria
correto afirmar que o que sustenta tal forma de governo seria a lógica de uma idéia? Com esta
questão, estamos nos coadunando, de perto, com as análises de George Kateb, que diz em seu
170
ARENDT. Essays in Understanding: 1930-1954. New York: Schocken Books, 2005.
102
artigo intitulado Ideology and Storytelling, que “nós não podemos compreender o fenômeno
do totalitarismo se não enfatizarmos a força, o poder das idéias”.
172
Questões como: “O que havia acontecido?”; “Por que havia acontecido?”; “Como ha-
via acontecido?”, não teriam o sentido de serem formuladas, se não levássemos em conta a
força e o poder das idéias no âmago da novidade totalitária. Nessa perspectiva, qual elemento
possibilitaria ao totalitarismo conseguir, pelo menos em parte, substituir a necessária insegu-
rança da atividade de pensar pela segurança do raciocínio lógico? Isto é, se o regime totalitá-
rio esteve próximo em fazer com que os homens trocassem a liberdade inerente da faculdade
de pensamento pela camisa-de-força da lógica, que segundo Arendt em Origens do totalita-
rismo,
173
pode subjugar com maior violência do que atos externos, o que poderia ter contribu-
ído para tal êxito? Haveria história para se contar acerca dos horrores perpetrados nos campos
de concentração, caso o houvesse a ideologia capaz de estabilizar os indivíduos? Haveria o
risco proeminente do ressurgimento dos regimes totalitários, caso não houvesse uma ideologia
que doutrinasse uma massa humana incapaz de ter interesses em comum?
174
Portanto, a mobilização das pessoas, empregada pelos governos totalitários, é realiza-
da pela lógica de uma idéia. Esta começa com a submissão da mente à lógica como um pro-
cesso sem fim, no qual o homem baseia-se para elaborar a sua cadeia de pensamento, que leva
à renúncia de sua liberdade interior, ou seja, a sua capacidade de começar a busca por novos
significados,
175
pois, como nos adverte Arendt, o pensar é a mais livre e a mais pura das ati-
171
ARENDT. The Promise of Politics, p. 329. (Tradução nossa).
172
KATEB. Ideology and Storytelling, p. 321. (Tradução nossa)
173
Sobre isso,ver ARENDT. Origens do totalitarismo, p. 522.
174
Segundo Koyré, “La notion de masse acquiert et fonctionnel: la ‘masse’ se définit par l’icapacité de penser, et
celle-ci se révèle et se démontre dans et par le fait de croire aux doctrines, aux enseignements, aux promesses des
Fürher, des Duce et autre chefs des régimes totalitaires. Il est clair que pris dans ce sens, le terme ‘masse’, dé-
signe non plus une catégorie sociale, mais une catégorie intellectuelle et que les membres de la ‘messe’ se recru-
tent bien sovent parmi ceux des ‘élites sociles’” (KOYRÉ. Reflexiones sur le mensonge, p. 49).
175
Kateb diz o seguinte sobre o que Arendt compreende por “significado”: “I will try to fill out her understan-
ding of meaning. What she calls ‘the quest for meaning’ or ‘the appetite for meaning’ occupies her in many of
her texts. She often defines thinking as the quest for meaning; the quest for meaning is ‘reason’s need(1978:
78) (KATEB. Ideology and Storytelling, p. 326).
103
vidades humanas.
176
Esta mobilização tem como objetivo destruir a vida pública, a partir da
experiência de não pertencimento ao mundo, quando o homem não possui mais a garantia de
um mundo comum, sem o qual a “matéria-prima” da atividade de pensar não poderia ser fo-
mentada. Esta experiência radical transforma o mero isolamento em desolação, como acima
apontamos. Isso se faz, devido ao fato de que, embora a situação de isolamento seja um mo-
mento em que a capacidade de ação no cenário público é suprimida da vida humana, este se
configura como indispensável ao ofício do artesão, que tem como meta fabricar um mundo
artificial, demonstrando que esta situação ainda guarda a possibilidade de haver contato com o
“mundo dos homens”.
177
Contudo, este mínimo contato com o “mundo dos homens” não
ocorre na situação denominada por Arendt de desolação: quando o eu não mais se desdobra
em seu outro. Segundo Hannah Arendt em On the Nature of Totalitarianism, a desolação de-
senvolve-se quando os homens não encontraram a companhia para salvá-los da dualidade
natural da atividade do pensamento, ou seja, quando o “eles” do mundo da pluralidade não
possuía mais a capacidade de nos chamar para, novamente, conceder-nos uma identidade,
fazendo-nos ser um ser unívoco.
178
Podemos dizer que a experiência de não pertencimento ao mundo, configura-se como
algo que é vivenciado de maneira singularmente drástica nos campos de concentração.
179
Nestes, procura-se aniquilar a capacidade que o senso comum possui de ser o componente de
mediação entre o eu e o outro, pois a informação não partilhada perde o sentido de realidade,
transubstanciando-se em uma espécie de pesadelo. Esta tentativa de transformar os indivíduos
em supérfluos e desaraizá-los de sua condição humana tem como objetivo arrancar dos cora-
ções humanos o amor pela atividade de pensar, que se configura em um problema para os
regimes totalitários, que o não poder controlar as mentes dos indivíduos configura-se como
176
ARENDT. Origens do totalitarismo, p. 525.
177
Idem, p. 526ss.
178
ARENDT. A vida do espírito, p. 367.
179
Sobre isso, ver ARENDT. Origens do totalitarismo, p. 493.
104
um perigo às pretensões totalitárias, pois significa que se está sempre aberto à possibilidade
de se mudar de opinião, através da busca incessante por novos significados.
O movimento de análise que procuramos implementar nas reflexões acerca da ideolo-
gia, definida por Hannah Arendt como a “lógica de uma idéia”, pretende, nesse momento,
completar-se, não de forma conclusiva em relação ao tema, mas pelo menos no que tange ao
nosso propósito.
Seguindo os passos argumentativos realizados por Montesquieu em suas análises acer-
ca das diversas formas de regimes políticos e dos respectivos perigos que levam a degenera-
ção dos mesmos, – passos estes também trilhados por Arendt – compreendemos que estes são
imprescindíveis à compreensão da política.
Nesse sentido, nossa análise acerca da ideologia procurou demonstrar que esta se con-
figura como a mola sem a qual o fenômeno do totalitarismo tornar-se-ia impensável e, portan-
to, de difícil compreensão. Como pessoas aparentemente normais, sem nenhuma inclinação
para o ser vilão participaram e contribuíram de alguma forma, com o movimento totalitário?
Seria estupidez coletiva? Torpor generalizado?
Mas como pôde os regimes totalitários ter se degenerado? Foram exclusivamente fato-
res externos? Não estaria o totalitarismo trazendo em seu seio o germe de sua própria destrui-
ção, a exemplo dos governos despóticos, segundo as análises de Montesquieu?
O que queremos dizer quando apontamos para uma possibilidade de os regimes totali-
tários trazerem em seu âmbito o germe de sua própria destruição é o seguinte: se, por um lado,
nos tornamos perplexos diante de questões tais: Como atomizar, de maneira generalizada,
todo um povo? Como extirpar do coração humano o amor pela atividade de pensar? Como
fazer com que todos os homens abdiquem de se perguntarem: por que isto está acontecendo?
Porque, de uma dada premissa tal como, uma raça inferior deve sucumbir, deduzimos que os
judeus devem ser exterminados da face da Terra? Por outra perspectiva, percebemos, de ma-
105
neira inequívoca que a ideologia não consegue, de maneira definitiva, determinar os pensa-
mentos e as ações humanas. Nesse sentido, em um dia, quando menos se espera, o amor pela
liberdade interior, que nenhuma gica de uma idéia pode dizimar, clama por ser novamente
ativada. É quando o parar-para-pensar interrompe o fluxo constante do movimento totalitário
e, como um milagre, a possibilidade da significação novamente floresce e as trevas do terror
são dizimadas, pois se no mundo a possibilidade de ação conjunta foi dilacerada a partir da
supressão da pluralidade humana, ao menos a recusa em aderir ao que outros fazem de manei-
ra impensada pode ser vista como um tipo de “ação política”, um exemplo a ser seguido.
Se o objetivo dos regimes totalitários não foi alcançado, é porque, mesmo com a força
irresistível da lógica de uma idéia, essa não conseguiu eliminar do coração humano o amor
pela liberdade interior,
180
que se manifesta na atividade de pensar, cuja característica primor-
dial é a busca pelo significado de tudo o que ocorre na existência humana, cujo nascedouro é
a vida vivida, a realidade concreta.
180
Sobre isso, ver ARENDT. Origens do totalitarismo, p. 525.
106
CAPÍTULO III
Pensamento e Política
“Nem sempre o silêncio é dor. Pode ser o tocar de uma música
no coração, que ao ouvir a canção toada, do silêncio faz a sua
razão/Nem sempre o silêncio é dor. Pode ser o tocar de uma
música no ouvido surdo, que ouvindo a melodia doce e suave,
do silêncio faz o seu mundo/Nem sempre o silêncio é dor. Pode
ser o tocar de uma música no olho cego, que ouvindo a beleza
vista, sai de si, de seu ego”.
Marta Claus. Verso num mundo reverso
Recusar, negar, opor, resistir ao que os outros fazem e dizem impensadamente pode
parecer, à primeira vista, uma pseudo-ação, ou melhor, uma atitude silenciosamente covarde
diante do horror de acontecimentos que passam ante os olhos de indivíduos que nada fizeram
ou fazem, a exemplo dos que “cruzaram os braços” em face dos eventos perpetrados pelos
regimes totalitários.
Contudo, para que possamos compreender de maneira mais clara e correta o fenômeno
denominado por Hannah Arendt de “resistência” é necessário não ficarmos na superficialida-
de de uma definição preliminar. Para tanto, devemos investigar qual a franja conceitual que se
abre a partir dessa ação humana “resistência” impulsionada pela faculdade de pensamento
e, assim, lançar luz sobre o propósito dessa pesquisa, isto é, compreender a implicação políti-
ca do pensar na filosofia de Hannah Arendt.
Nesse sentido, devemos dizer que para podermos realizar de maneira adequada uma
análise da implicação política da faculdade de pensamento faz-se necessário circunscrever,
dentro dos propósitos dessa pesquisa e dos parâmetros arendtianos, o conceito de “política”,
bem como compreender como este conceito perpassa toda a obra de Hannah Arendt, mesmo
107
quando não uma referência direta a ele. Para tanto, entender como nossa autora constrói a
amálgama da liberdade com a política é de suma importância.
Assim, a preocupação de Hannah Arendt com o tema da liberdade está na razão de
que, como uma filósofa contemporânea, ela, como tantos outros, vivenciou os horrores dos
regimes totalitários, cujo principal objetivo era transformar o homem em um ser de reações
previsíveis, acabando, assim, com a principal característica da espécie humana: sua iniciativa,
sua capacidade de começar ações espontâneas em uma esfera pública. Os laboratórios para tal
experimento foram os campos de concentração, nos quais a relação entre os prisioneiros, que
podiam fomentar ações espontâneas, era evitada para que, desta forma, o houvesse nenhu-
ma possibilidade de rebelião que, para existir, necessita da liberdade de iniciar uma cadeia de
eventos inesperados. O que os regimes totalitários procuraram dizimar da face da terra foi
com a possibilidade de “resistência”, que somente pertence aos homens. Com o objetivo de
impedir que os homens resistam a uma dada conjuntura, o que os regimes totalitários preten-
deram foi eliminar do homem sua capacidade de mudar um evento qualquer. Mudar um even-
to significa que uma história somente aparece em sua inteireza quando esta alcança seu fim,
que conseqüentemente é o início de novas histórias. Esta possibilidade de mudança, de reco-
meço, aparece como uma ameaça aos regimes de cunho total, que deve e precisar ser dizima-
do.
Assim, no intuito de suprimir a possibilidade de “resistência” o totalitarismo necessi-
tou implementar a destruição da raça humana, em suas potencialidades criativas, pois segundo
Arendt, citando Agostinho, “o homem foi criado para que houvesse um começo” e, assim,
“cada novo nascimento garante esse começo; ele é, na verdade, cada um de nós”.
181
Com o esfacelamento do espaço público na era moderna e, conseqüentemente, com a
supressão da possibilidade dos homens iniciarem uma série de eventos oriundos do fato de
serem livres e habitarem o mesmo planeta, a faculdade de pensamento é convocada a manifes-
108
tar-se como uma espécie de cura humana. Isso se em momentos de emergência, quando
nem mesmo a luz dos juízos reflexivos consegue manter sua luminosidade, dada à perda da
garantia de pertencer a um mundo comum, fato imprescindível para a ativação da faculdade
de julgar, que leva em consideração os pontos de vista de todos os homens: indivíduos que
são, potencialmente, seres judicantes.
O que queremos salientar nesse passo de nossa pesquisa é que, tendo em vista a auto-
nomia das atividades espirituais,
182
a relação entre o pensamento e a política não se restringe
ao efeito liberador produzido pelo diálogo silencioso do dois-em-um sobre a faculdade do
juízo: a mais política das faculdades espirituais.
Nossa hipótese está apoiada por um questionamento, o qual tem o intuito de apontar as
possibilidades de haver implicação política da faculdade de pensamento. O que queremos
salientar é que se é da alçada do juízo lidar com particulares, procurando integrá-los a precei-
tos gerais, levando em conta as perspectivas dos demais indivíduos judicantes, como esta fa-
culdade pode ser ativada em meio a um ambiente de esfacelamento do espaço público e plu-
ral?
A resposta está contida na assertiva de Hannah Arendt de que as três faculdades espiri-
tuais, a saber, (o pensar, o querer e o julgar) são autônomas, ou seja, possuem cada qual o seu
181
AGOSTINHO, apud ARENDT. ARENDT. Origens do Totalitarismo, p. 512.
182
Quando dissemos que existe uma autonomia das faculdades espirituais, não estamos com isso querendo dizer
que estas não se relacionam umas com as outras, o que estaria em contradição com o que Arendt nos diz em A
vida do espírito. Somente queremos dizer que as três faculdades espirituais não dependem, para a sua ativação,
de uma operação prévia das demais. É nesse sentido que salienta Young-Bruehl: “Nenhuma faculdade deve
dominar as outras duas, cada uma deve viver e ter o seu ser em liberdade. A pré-condição para tal harmonia
espiritual é a liberdade interna de cada uma das três faculdades. Cada uma tem uma auto-relação, uma dualidade
interna que não deve tornar-se uma relação de domínio” (YOUNG-BRUEHL. Por amor ao mundo, p. 398 e
399). Segundo Honig, a concepção arendtiana da existência de uma autonomia natural das faculdades espirituais
é devedora a Nietzsche. Assim, segundo Honig, “Arendt, therefore, is critical of philosophers who, confronted
with the ‘autonomous nature’ of thinking, willing, and judging, attempt to unity the self’s multiplicity. ‘What is
so remarkable in all these theories and doctrines is their implicit monism, the claim that… behind the obvious
plurality of man’s faculties and abilities, there must exist an oneness’. On this point, Arendt’s debt to Nietzsche
is unmistakable. In The Will To Power, Nietzsche suggests that ‘the assumption of one single subject is perhaps
unnecessary; perhaps it is just as permissible to assume a multiplicity of subjects, whose interaction and struggle
is the basis of our though and our consciousness in general? My hypothesis: the subject as multiplicity’”
(HONIG. Identity and Difference, p. 86).
109
próprio modus operandi, não necessitando da existência e tão pouco da atividade das demais
para se fazer presente no espírito humano.
Desse modo, devido à autonomia das faculdades espirituais, demonstraremos que a re-
lação entre a faculdade de pensamento e as ações políticas encontra-se no fato de que a pri-
meira, dada a sua característica de destruição das opiniões não examinadas, faz com que o
indivíduo resista face ao que à moda do dia prescreve para uma dada sociedade.
Nossa intenção nesse momento é lançar luz sobre o fato de que, em circunstâncias nas
quais a esperança aparece como um sentimento que há muito se apartou dos corações dos ho-
mens, os princípios pelos quais agimos, ou pelos quais nos abstemos de agir, são fomentados
pelas faculdades espirituais. Essas circunstâncias se caracterizam como sendo as “situações
limites”, momentos em que a capacidade de agir em conjunto se torna quase nula. Nessas “si-
tuações limites”, aqueles que se propõem a indagar sobre tudo que se passa na vida deles pró-
prios e daqueles que estão em seu redor, não aceitam aderir a regras de conduta não examina-
das, fazendo com que esta postura seja um dizer “não”, uma “resistência” diante do absurdo
implementado de forma irrefletida. Embora o fenômeno denominado “resistência” constitua-
se como um evento raro, extraordinário, ele se manifesta em momentos singulares, como ates-
ta a postura do povo dinamarquês durante o domínio do Terceiro Reich, pois este, ao contestar
a política nazista e ao programa de extermínio dos judeus, fez com que sua história pudesse
ser vista como algo sui generis.
3.1. O Espaço Público e a Ação Política
As sociedades de massa, com sua amálgama de indivíduos com comportamentos pre-
visíveis, têm aniquilado a possibilidade de diferenciação na esfera pública pela palavra e pela
110
ação espontânea. Há, portanto, nas sociedades modernas uma perversão da política, em sua
dignidade própria, em proveito de tão somente se preservar a vida em seu sentido biológico.
Contudo, segundo Hannah Arendt, A raison d’être da política é a liberdade e seu domínio de
experiência é a ação”.
183
É a partir dessa assertiva que procuraremos compreender como se
dá, na visão de Arendt, a junção da liberdade com a ação política e como essa junção se efeti-
va no discurso e na ação, os quais se realizam na esfera pública. Analisaremos também como
essa filósofa identifica a liberdade como fundamento que possibilita a revelação do agente
pela ação de eventos inesperados, ocorrendo, após este fenômeno, o fomento de histórias que,
aglutinadas em um consenso, formam a história humana a partir da teia de relações.
Para que possamos compreender a questão da liberdade como alicerce do discurso e da
ação na esfera pública, na perspectiva do pensamento arendtiano, faz-se necessário, fomen-
tarmos uma pergunta que na era moderna perdeu toda a sua plausibilidade de existência e de
possível resposta. Assim, a questão que norteará esse passo de nossa pesquisa pode ser formu-
lada da seguinte maneira: “Quem és?”.
Para podermos realizar de maneira satisfatória o objetivo ora traçado, devemos nos re-
portar as análises feitas por Hannah Arendt acerca da política na Antiguidade, principalmente
no que diz respeito às experiências vivenciadas na polis grega,
184
que constitui o ponto de
partida para as reflexões arendtianas acerca do tema da política.
A diferenciação que existe na esfera pública, proporcionada pela palavra e pela ação
espontânea, ratifica o fato de que “os homens, e não o Homem, vivem na Terra e habitam o
183
ARENDT. Entre o passado e o futuro, p. 192.
184
É importante salientar que o fato de Arendt referir-se, em suas análises, à Antigüidade não a torna uma pen-
sadora nostálgica. É nesse sentido que, para Claude Lefort, o fato de Hannah Arendt elogiar a polis não significa
que ela se reporte a polis de maneira nostálgica, lamentando o fim de um modelo de vida em sociedade que o
mundo moderno eliminou. O que Hannah Arendt pretendia, de fato, era estabelecer uma referência a partir da
qual pudesse determinar a sua concepção de política, sobretudo como um esforço para se contrapor ao totalita-
rismo. (LEFORT apud TELLES. TELLES. Espaço público e espaço privado na constituição do social: notas
sobre o pensamento de Hannah Arendt, p. 61-62). É nessa perspectiva que diz Arendt: “A polis grega continuará
a existir no mais fundo de nossa existência política – como uma pérola no fundo do mar – enquanto utilizarmos a
palavra política” (ARENDT. Homens em tempos sombrios, p. 236).
111
mundo”
185
, ou seja, que a “pluralidade é a Lei da terra”
186
e, assim, o mundo deve ser com-
preendido de diversas maneiras.
A pluralidade humana configura-se como um tema central na obra de Hannah Arendt.
O fato de que o mesmo objeto seja percebido por perspectivas diferentes faz com que haja o
fomento de um aparente paradoxo, ou seja, a pluralidade de perspectivas ratifica a existência
de uma individualização dos seres que habitam uma dada comunidade, pois cada aspecto da
vida é experienciado por um indivíduo singular, que possui perspectivas singulares. Cada uma
dessas perspectivas, esses diversos pontos de vista, ganham visibilidade na esfera pública,
onde cada indivíduo pode manifestar “como” um fato qualquer, bem como saber como o
mesmo fato é visto pelos demais,
187
demonstrando que, para nossa autora, a política é o do-
mínio da aparência,
188
o locus no qual os homens podem revelar o “que” e “como” vêem a
vida ao derredor, tendo como alicerce para esse aparecimento uma esfera comum denominada
de mundo.
189
Assim, segundo Arendt, o espaço público, no qual os homens podem igualar-se e dife-
renciar-se uns dos outros por aquilo que falam e fazem, é constituído pela pluralidade de seres
singulares que, dessa maneira, procuram manifestar uns aos outros o seu “quem”: o eu que
aparece no espaço público através de palavras e ações. Dizer que os homens igualam-se e
diferenciam-se na esfera pública significa que todos, dentro deste espaço plural, têm, enquan-
185
ARENDT. A condição humana, p. 15.
186
ARENDT. A vida do espírito, p. 17.
187
“Através de um percuciente e inexaurível fluxo de argumentos, (...) o grego aprendeu a intercambiar seu pró-
prio ponto de vista, sua própria opinião (...) o modo como o mundo lhe parecia e se lhe abria com as de seus
concidadãos. Os gregos aprenderam a compreender não a compreender um ao outro como pessoas individuais,
mas a olhar para o mesmo mundo do ponto de vista do outro, a ver o mundo em aspectos bem diferentes e fre-
qüentemente opostos (...) é somente a partir de uma tal totalidade de pontos de vista que uma e mesma coisa
pode aparecer sob tantos aspectos e perspectivas quantos são os participantes; e a condição do aparecer desta
multiplicidade de perspectivas é a existência de um espaço comum, publicamente organizado, no seio do qual
essas perspectivas podem aparecer umas às outras” (ARENDT. Entre o Passado e o Futuro, p. 82).
188
Segundo André Duarte, “A experiência antiga da liberdade é essencialmente espacial e ‘relacional’, vinculan-
do-se imediatamente ao mundo das aparências que se estabelece entre os homens, e que inexiste onde quer que o
indivíduo se encontre isolado de seus companheiros” (DUARTE. O pensamento à sombra da ruptura: política e
filosofia em Hannah Arendt, p. 213).
189
A esse respeito, ver FLYNN. The concept of the political and its relationship to plurality in the thought of
Arendt, p. 112.
112
to homens livres, não sujeitos à necessidade e ao domínio de outrem,
190
igual direito à pala-
vra para que, a partir de seu pronunciamento, possam diferenciar-se uns dos outros ao mani-
festar seus pontos de vista.
191
Nessa perspectiva, a distinção e a singularização, como apontamos acima, tornam-se
mais evidentes pela manifestação do “quem”: um sujeito singular, que age e fala “com” e “pa-
ra” seus iguais, na esfera pública. Segundo Arendt,
192
não vida, propriamente humana,
sem discurso e sem ação, pois, caso isso venha a ocorrer, o que é uma renúncia em viver
entre homens, vivência essa determinada pela igualdade (todos são homens e compartilham de
direitos iguais) e pela diferença (cada um desses homens são seres singulares, que jamais exis-
tirão novamente).
Diante da abordagem preliminar que ora realizamos, precisamos analisar de maneira
conceitual a questão da liberdade, com o objetivo principal de demonstrar o porquê de Arendt
compreender a liberdade
193
a partir do viés por ela escolhido, ou seja, em sentido político, em
detrimento ao sentido filosófico (livre arbítrio). O que queremos dizer é que para nossa auto-
ra, a liberdade, tal como foi experienciada em seus primórdios na Grécia antiga, esvaiu-se na
modernidade, sufocada pelas preocupações com a manutenção da vida.
190
Segundo Hannah Arendt: “Ser livre significava ao mesmo tempo não estar sujeito às necessidades da vida
nem ao comando de outro e também não comandar. Não significava domínio, como também não significava
submissão. Assim, dentro da esfera da família, a liberdade não existia, pois o chefe da família, seu dominante, só
era considerado livre na medida em que tinha a faculdade de deixar o lar e ingressar na esfera política, onde
todos eram iguais. É verdade que esta igualdade na esfera política muito pouco tem em comum com o nosso
conceito de igualdade; significava viver entre pares e lidar somente com eles, e pressupunha a existência de
‘desiguais’; e estes, de fato, eram sempre a maioria da população na cidade-estado. A igualdade, portanto, longe
de ser relacionada com a justiça, como nos tempos modernos, era a própria essência da liberdade; ser livre signi-
ficava ser isento da desigualdade presente no ato de comandar, e mover-se numa esfera onde não existiam go-
verno nem governados” (ARENDT. A condição humana, p. 41 e 42).
191
Lucca Savarino, refletindo sobre o espaço público como espaço da distinção e da igualdade na perspectiva
arendtiana, afirma que, “ainda que a política seja voltada à manutenção e à expressão das diferenças, ela não
comporta somente a necessidade de favorecer a distinção, mas implica a igualdade dos sujeitos que têm acesso
ao espaço público, o qual se qualifica como plural e igualitário ao mesmo tempo.” (SAVARINO. Politica ed
estetica: Saggio su Hannah Arendt, p.39).
192
Sobre isso, ver ARENDT. A condição humana, p. 188 ss.
193
Como não constitui tema central de nossa pesquisa as análises entorno do conceito da liberdade no pensamen-
to de Hannah Arendt, nos limitaremos, além de traçar brevemente alguns pontos que o constituem, a realizar
uma compreensão da liberdade como fundamento da ação espontânea, que para o nosso propósito será de suma
importância. Sobre o tema da liberdade no pensamento de Hannah Arendt, ver NASCIMENTO. A questão da
liberdade no pensamento político de Hannah Arendt.
113
Nesse sentido, antes de explicitarmos, em seus elementos mínimos, o que “é” a liber-
dade na perspectiva arendtiana, necessitamos identificar o que ela “não é”.
Assim, como a única preocupação do homem moderno é com o seu eu, introspecto e
isolado, a liberdade, nesse momento, ratificou o modo como ela passou a ser identificada a
partir, principalmente, dos escritos de Agostinho, ou seja, com o livre arbítrio. Segundo A-
rendt,
194
com a desintegração da esfera pública, fato que ocorreu fundamentalmente com o
fim dos impérios grego e romano, a confiança em um mundo artificialmente estável perdeu
seu crédito. Dito em outras palavras, quando os muros das cidades gregas e romanas foram
postos abaixo, quando essas foram conquistadas, a liberdade retirou-se do mundo e alojou-se
na interioridade humana, onde ela, em seu sentido autêntico, foi negada, passando a ser com-
preendida como um fenômeno da faculdade da vontade.
195
Contudo, a leitura que Hannah Arendt faz dos escritos de Agostinho permite a mesma
não apenas compreender a degeneração da liberdade, mas também o seu sentido mais preciso.
É a partir das análises do filósofo de Hipona que a nossa autora encontrará o fio condutor para
suas reflexões acerca da questão da liberdade. Nessa perspectiva, quando Agostinho, em sua
obra A Cidade de Deus, diferencia pricipium e initium, identificando o primeiro com a criação
do mundo e o segundo com o aparecimento do homem na terra, o que ele está sugerindo é que
“Deus criou o homem para introduzir no mundo a faculdade de começar, ou seja, a liberda-
de”.
196
Assim, Deus dotou sua criatura com um poder que somente a ele, homem, pertence: o
poder de operar milagres, de criar algo novo e sem precedente. Para Arendt, o milagre deve
ser compreendido como um evento inesperado, que rompe com a cadeia de acontecimentos
causais, tais como aqueles com os quais nos deparamos cotidianamente. Segundo nossa auto-
194
ARENDT. Entre o Passado e o Futuro, p. 192ss.
195
Sobre esse assunto, ver ARENDT. A vida do espírito, vol. II – O Querer.
196
ARENDT. Entre o Passado e o Futuro, p. 216.
114
ra, toda ação traz em seu seio o germe do inesperado, do imprevisível, transpondo todos os
limites e superando todas as fronteiras que circunscrevem os eventos predeterminados.
197
Assim, no âmago do ato de agir, proporcionado pela vivência em um espaço plural, es-
uma das marcas indistintas da ação: sua imprevisibilidade. A imprevisibilidade, contida na
ação, não se constitui como um “perigo” que pode vitimar somente um pequeno grupo de
indivíduos, os quais, por assim dizer, estão na “alça de mira” do agente da ação. A ação im-
prime seu efeito sobre um número imaginável de seres que também atuam, bem como sobre o
próprio ator iniciador da ação, o que demonstra o grau de imprevisibilidade e de ilimite da
ação executada.
A liberdade, assim entendida, somente ganhará existência na ação conjunta. O que fal-
tou a Agostinho, segundo Arendt, foi compreender que esse initium, que é o próprio homem,
somente ganha existência na ação conjunta, e não na contemplação passiva de um coração
arrependido. Agostinho, ao que parece, esboçou refletir de forma política o tema da liberdade
humana, mas, por motivos historicamente óbvios a desintegração dos Estados na Antiguida-
de –, não levou a cabo esses argumentos.
O que desejamos salientar com essas reflexões é que, para Hannah Arendt, não existi-
ria ação política se não houvesse liberdade.
198
Essa assertiva somente ganha realidade quando
nos relacionamos com os outros, e não no relacionamento com nós mesmos. Para que a liber-
dade fosse experienciada de maneira própria, o homem grego procurava livrar-se da necessi-
dade do ciclo vital, com o escopo de adentrar a arena pública, pois a ão política só começa
quando o imprescindível à manutenção da vida está garantido, como acima apontamos.
199
A
197
Segundo Collin: “Agir introduit l’imprévisible dans la nécessité, transcende l’ordre des possibles. Pourtant
l’agir humain est un agir d’acteur, et non pas d’auteur. Il fait événement das un donné qu’il n’a pas créé et dont il
n’est pas le maître" (COLLIN. Agir et donné, p. 30).
198
ARENDT. Entre o Passado e o Futuro, p. 192.
199
“A liberdade era precedida da liberação: para ser livre o homem deve ter se liberado das necessidades da vida.
O estado de liberdade, porém, não se seguia automaticamente ao ato de liberação. A liberdade necessitava, além
da mera liberação, da companhia de outros homens que estivessem na mesma condição e também de um espaço
público para encontrá-los um mundo politicamente organizado, em outras palavras, um mundo no qual cada
homem livre poderia inserir-se por palavras e feitos” (ARENDT. Entre o Passado e o Futuro, p. 194).
115
esfera privada, onde o homem procura manter o seu ciclo biológico intacto, é o espaço da
desigualdade, onde o chefe da família obriga os escravos a trabalharem para garantir sua so-
brevivência, bem como de seus pares.
200
Nessa esfera, o homem, segundo Arendt, está lite-
ralmente privado de qualquer contato com seus iguais: aqueles que possuem o mesmo direito
de fala e ação.
201
É somente ao adentrar a cena blica que o homem passa a ser um igual
entre iguais, ou seja, quando sua preocupação é com o interesse público e plural: o cuidar do
mundo.
Este homem, que necessita da esfera pública para viver a experiência da liberdade na
ação, junto a seus pares, é visto por Arendt como um verdadeiro “herói”. O sentido dado por
Hannah Arendt à expressão “herói”
202
está enraizado na premissa de que o homem, quando
adentra a esfera púbica, passa a deixar o convívio e o cuidado com a sua família, os quais se
realizam na esfera privada, para emergir em um ambiente no qual o que dita as ações humanas
é a imprevisibilidade, pois o que está em jogo na política não é a vida, mas o cuidado em se
preservar o mundo. Nesse sentido, para que haja a “fabricação de um herói” é preciso que a
coragem impulsione os homens a tornarem-se seres cuja preocupação com sua existência o
200
“O ser político, o viver numa polis, significa que tudo era decidido mediante palavras e persuasão, e não atra-
vés de força ou violência. Para os gregos, forçar alguém mediante violência, ordenar ao invés de persuadir, eram
modos pré-políticos de lidar com as pessoas, típicos da vida fora da polis, característicos do lar e da vida em
família, na qual o chefe da casa imperava com poderes incontestes e despóticos, ou da vida nos impérios bárba-
ros da Ásia, cujo despotismo era freqüentemente comparado pelos gregos à organização doméstica” (ARENDT.
A Condição Humana, p. 35-36).
201
Sobre isso, diz Dulci: “Hannah Arendt entende assim, que o âmbito da família era a esfera da vida privada,
enquanto que aparecer em público era para os gregos a mais elevada possibilidade. Ao serem privados de apare-
cer e ficarem restritos à esfera do lar e da família ‘os homens se privavam das mais altas e humanas capacidades’
(CH: 48).
Em contrapartida, o espaço público é o espaço da liberdade, onde os homens dialogam, aparecem uns
aos outros num espaço articulado por eles. Assim nasce um mundo comum, um mundo caracterizado por visões
e perspectivas singulares. Ao refletir sobre o significado da palavra ‘privado’ para os gregos, Hannah Arendt nos
diz que ‘o caráter privativo da privatividade estava implícito na própria palavra e era para eles sumamente im-
portante: significava literalmente um estado no qual o indivíduo se privava de alguma coisa. Quem quer que
vivesse unicamente uma vida privada – o homem que, como o escravo, não podia participar da esfera pública ou
que, como os bárbaros não se desse ao trabalho de estabelecer tal esfera não era inteiramente humano’”
(DULCI. A dissolução do espaço público no pensamento político de Hannah Arendt, p. 08).
202
ARENDT. Entre o Passado e o Futuro, p. 203.
116
seja algo primordial, mas o que está na pauta em suas vidas é a ação de cuidar e preservar o
mundo.
203
Quando os homens lançam-se na esfera pública, o que eles revelam, a partir de sua a-
ção que constitui a manifestação da liberdade, é o seu “quem”. Esse tema foi referido acima,
de maneira sucinta, mas nesse ponto, procuraremos explicitá-lo e, assim, começaremos a a-
dentrar mais propriamente no cerne do presente sub-capítulo.
Assim, a relação entre ão e discurso está no fato de que a ação responde a pergunta
“Quem és?”. Quando os homens iniciam uma ação, efetivando sua capacidade de colocarem
em marcha algo novo, ou seja, quando eles expõem a condição humana da natalidade, o que
implícito nela é a revelação de suas individualidades que são apreendidas pelo discurso,
demonstrando a estreita relação entre agir e falar.
204
Em outras palavras, se pela ação o ho-
mem atualiza sua faculdade de iniciar algo novo, pelo discurso ele manifesta suas opiniões,
faz-se entender pelos demais, apontando o porquê de ele ter agido de tal maneira e, assim,
singulariza-se, pois demonstra que o mundo se revela a ele por perspectivas diferentes daque-
las de seus companheiros.
205
Se a ação e o discurso não revelassem seu agente perderia sua
“razão” de existência.
206
A perda da capacidade da ação e do discurso de revelar o “quem”
203
“É preciso coragem até mesmo para deixar a segurança protetora de nossas quatro paredes e adentrar o âmbito
político, não devido aos perigos específicos que possam estar à nossa espreita, mas por termos chegado a um
domínio onde a preocupação para com a vida perdeu sua validade. A coragem libera os homens de sua preocu-
pação com a vida para a liberdade do mundo. A coragem é indispensável porque, em política, não a vida, mas
sim o mundo está em jogo” (ARENDT. Entre o passado e o futuro, p. 203).
204
A esse respeito, diz Hannah Arendt: “Se a ação, como início, corresponde ao fato do nascimento, se é a efeti-
vação da condição humana da natalidade, o discurso corresponde ao fato da distinção e é a efetivação da condi-
ção humana da pluralidade, isto é, do viver como ser distinto e singular entre iguais” (ARENDT. A condição
humana, p. 191).
205
“On oublie la plupart du temps qu’Aristote n’avait pas l’intention de fournir deux définitions différentes de
l’homme lorsqu’il l’a caractérisé comme λόγoν έχων et comme ζωoν πλιτιxόν. La πoλιτεύειν, l’élément pro-
premetn humain, parce qu’il est libre, c’est-à-dire le fait que les hommes vivent-ensemble volontairement, con-
siste essentiellement selon lui à λέγειν, à parles les uns avec les autres et la parole réellle qui consiste à se
comprendre et à communiquer de façon «rationnelle» et non pas seulement barbare ne pouvait avoir lieu que
dans les conditions de la πόλιç" (ARENDT. Jounal de pensée, p. 426).
206
“Desse modo, para além da crítica ontológica à modernidade, há, em Arendt, uma dimensão ético-política que
é fundamental, isto é, o respeito à natureza, à vida e à cultura tem sentido se propiciarem um espaço de apari-
ção no qual o agente possa mostrar ‘quem’ é e, assim, tenha preservadas sua capacidade de agir e falar livremen-
te” (ODILIO. A categoria de condição humana em Hannah Arendt. In. ____ CORREIA (org). Hannah Arendt e
a condição humana, p. 88).
117
acontece quando o agir e o dizer são realizados “pró” ou “contra” alguém,
207
ou seja, quando
a ação e a fala visam um fim, fazendo com que elas sejam um tipo de procedimento instru-
mental, arruinando sua característica essencial que é o fato de ser um agir em conjunto em
prol de se preservar o mundo.
A ação, um dos membros da dupla que manifesta os homens uns aos outros, assim, en-
tendida, como um ato que deve revelar o “quem”, imprime um novo começo que precisar ser
acolhido por outros, para que seja levada a término a empresa iniciada. O que estamos dizen-
do, seguindo, como Arendt, a compreensão grega, é que a ação, como um começar (archein)
espontâneo e livre do “herói”, que ao agir revela, aos espectadores, sua identidade pessoal, ou
seja, “quem ele é”, em oposição ao o “que ele é” os aspectos físicos, os dons, as qualidades,
talentos e defeitos que alguém pode possuir necessita, para conduzir (prattein), levar a cabo
a ação iniciada, do consenso de muitos,
208
pois os homens são livres enquanto agem, nem
antes nem depois.
209
É preciso um consentimento, nascido do diálogo entre muitos, para que
a ação seja levada a uma boa conclusão, ou seja, é preciso que todos que estão envolvidos na
ação compreendam que é necessário colocar a preocupação com o mundo acima da preocupa-
ção com a manutenção de suas vidas.
210
Contudo, para que haja uma postura “heróica”, na qual a preservação do mundo esteja
na pauta do dia através de palavras e ões, é preciso que o espaço público, que existe e per-
207
Segundo Taminiaux, a ação em Arendt possui um cunho performativo, ou seja, revela e distingue o agente e
seus atos (TAMINIAUX. Performativité et grécomanie?, p. 192).
208
Sobre isso, diz Arendt: “As duas palavras gregas são árkhein ‘começar’, ‘ser o primeiro’, ‘governare
práttein ‘atravessar’, ‘realizar’, ‘levar a cabo alguma coisa’. A ação ocorre, então, em duas etapas diferentes. A
primeira etapa é um começo mediante o qual algo de novo vem ao mundo. A palavra árkhein, que abarca o co-
meçar, o conduzir, o governar, ou seja, as qualidades proeminentes do homem livre, são testemunho de uma
experiência na qual ser livre e a capacidade de começar algo de novo coincidiam. A segundo etapa é a da reali-
zação, à qual muitos aderem para ‘conduzir’, ‘acabar’, ‘levar a cabo o empreendimento’” (ARENDT. A Condi-
ção Humana, p. 202).
209
“Os homens são livres diferentemente de possuírem o dom da liberdade enquanto agem, nem antes nem
depois; pois ser livre e agir são uma mesma coisa” (ARENDT. Entre o passado e o futuro, p. 199).
210
“O discurso convincente ou persuasivo era tido pelos gregos como a forma tipicamente política das pessoas
falarem umas às outras. A persuasão regulava as relações entre os cidadãos da polis porque excluía a violência
física; (...) o que estava em jogo para os gregos era, sim, o julgamento e a decisão, a judiciosa troca de opiniões
sobre a esfera da vida pública e do mundo em comum e a decisão quanto ao modo de ação a adotar nele, além do
118
manece existindo enquanto os homens estejam reunidos e agindo em conjunto, se faça presen-
te.
211
A ação “heróica” será medida e julgada por padrões que levem em conta a grandeza do
ato implementado, ou seja, a capacidade de interromper o fluxo inexorável da cotidianidade e
instaurar o novo e inesperado: o milagre. É nesse sentido que salienta Arendt:
A ação só pode ser julgada pelo critério de grandeza (megethos), porque é de sua na-
tureza violar os padrões consagrados e galgar o plano do extraordinário, onde as
verdades da vida cotidiana perdem sua validade, uma vez que tudo o que existe é ú-
nico e sui generis.
212
Porém, como pode haver juízo sem que haja um espaço de aparências, no qual o
“quem” dos atores é revelado em palavras e ações? Em outros termos, que critério de grande-
za (megethos) será utilizado pelos indivíduos potencialmente judicantes se não há o que possa
ser julgado? Como transformar uma ação iniciada pelo agente instaurador do novo e seguida
por aqueles que são inspirados e convencidos a levar a cabo tal empreitada e transformá-la em
uma história, que será relembrada e substanciada em exemplo,
213
se o palco para tanto não
mais existe? Como agir em prol do mundo diante do esfacelamento do espaço público,
214
modo como deveria parecer doravante e que espécie de coisas nele haveriam de surgir” (ARENDT. Entre o
Passado e o Futuro, p. 277).
211
(...) privados do espaço em que aparecem, privados do espaço em que se revelam uns aos outros como huma-
nos. Nestas circunstâncias os homens são privados do seu pertencimento à humanidade, e a privação do seu
pertencimento à humanidade consiste no desaparecimento do mundo de relações que faz nascer a política. A
política, no sentido estrito do termo, não tem a ver tanto com os homens quanto com o mundo que está entre eles
e que lhes sobreviverá. Na medida em que a política vem a ser destrutiva e provoca a ruína do mundo, ela se
destrói e se arruína a si mesma” (REVAULT d’ALLONNES. Hannah Arendt, la “banalité du mal” comme mal
politique, p. 23).
212
ARENDT. A condição humana, p. 217.
213
Segundo Dulci, “para Hannah Arendt, a busca da imortalidade estava no cerne da vida política na Atenas
democrática. Uma vez que os gregos entendiam a ação humana como algo frágil, suscetível de desaparecer da
memória dos homens devido à sua intangibilidade, era preciso que a polis remediasse essa fragilidade inerente à
ação e ao discurso – ‘os mais efêmeros produtos humanos’ (CH: 209). Somente a polis, este espaço de aparência,
poderia desempenhar esta função, qual seja, a de possibilitar a imortalização, a lembrança dos grandes e dignos
feitos dos homens. Esta capacidade de produzir o extraordinário através da ação dizia respeito para os gregos,
antes de mais nada, à ação política, a mais alta forma de vida, a única capaz de dar um sentido à vida individual
e, de certo modo, imortalizá-la” (DULCI. A dissolução do espaço público no pensamento político de Hannah
Arendt, p. 17).
214
Segundo Newton Bignotto, “Para ela [Arendt] os homens não precisar apenas da companhia dos outros para
exercer sua liberdade, eles precisam de um espaço comum, politicamente organizado, para manifestarem suas
capacidades. Isso implica em dizer que o mundo da política, solo da liberdade, não pode ser confundido com um
terreno intersubjetivo, no qual os homens estabelecem relações entre si, mas não necessariamente ações políticas.
A equação arendtiana não é, portando, entre liberdade e intersubjetividade, mas entre liberdade e política”
119
iniciado na era moderna pela busca da manutenção da vida, e que os regimes totalitários pro-
curaram afiná-la ao suprimir do homem qualquer possibilidade de agir por iniciativa própria,
transformando-o em um ser cuja única “atividade” é aquela que garanta sua sobrevivência? O
que fazer diante de tal “situação limite”?
3.2. Filosofia e Cidade
Para podermos responder com alguma plausibilidade às questões acima levantadas,
faz-se necessário, primeiramente, compreender como se dá a relação entre pensamento e polí-
tica, pois segundo Arendt, esta relação é de suma importância para que possamos diminuir as
espessas trevas dos “tempos sombrios” que encobriram a existência humana na contempora-
neidade.
O que intentamos fazer nesse passo é apontar para o fato de que, se é uma necessidade
de nosso estudo compreender a relação entre pensamento e política, é preciso ter em mente
que esta relação, segundo Arendt,
215
foi perdida desde que Atenas condenou à morte seu filho
mais ilustre. Nessa perspectiva, encontra-se a desilusão de Platão com a polis, desilusão que
possui seu nascedouro no julgamento e condenação de Sócrates e, fundamentalmente, na ten-
tativa de Platão em vislumbrar regras e modelos que pudessem governar a cidade, isto é, pa-
drões imutáveis, medidas de confiabilidade, que eram atingidas e contempladas pelo filósofo,
capazes de julgar os atos humanos.
216
(BIGNOTTO. Totalitarismo e liberdade no pensamento de Hannah Arendt. In. ___ BIGNOTTO & MORAES.
Hannah Arendt: Diálogos, Reflexões e Memórias, p. 116).
215
A esse respeito, ver ARENDT. A dignidade da política, p. 91 ss.
216
Com o intuito de compreender como a tentativa de Platão de julgar e circunscrever as ações humanas a partir
de modelos ideais e como esta postura dista da filosofia política de Aristóteles, devemos nos voltar para as pala-
vras de Francis Wolf, em sua obra Aristóteles e a Política, que diz que os homens, “enquanto não pensaram
aquilo que viviam como algo que pertencia a um domínio que chamamos de político, isto é, como algo que de-
pendiam deles, eles não poderiam, especificamente falando, fazer política” (WOLF. Aristóteles e a Política, p.
08). Esta sentença demonstra haver uma aproximação daquilo que Hannah Arendt compreende pelo termo “polí-
120
Analisar a faculdade de pensamento e sua relação com as ações políticas não significa,
em nosso intuito, “transpor” o abismo que por séculos divorciou essas duas atividades huma-
nas, mas, fundamentalmente, refletir, junto com Hannah Arendt, acerca de uma possível vin-
culação harmoniosa entre essas duas atividades humanas e, assim, desfazer a perspectiva de
mútua subordinação entre elas.
217
O que pretendemos é compreender como a filosofia e a
cidade podem coexistir em acordo, sem que haja uma subsunção de uma esfera da vida huma-
na pela outra.
Principiando, portando, as reflexões acerca do tema ora proposto, podemos dizer que o
fim da relação harmônica que existia entre filosofia e política iniciou-se, mas do que com a
condenação de Sócrates pela democracia ateniense, como acima expomos, principalmente
com a intenção de Platão de substituir a opinião (doxa) pelo conhecimento da verdade, e a
ação espontânea (práxis) pelos modelos de fabricação (poiésis), trazendo, assim, a teoria das
idéias para o terreno da política, procurando regular o que os homens fazem a partir dos pa-
tica” com o conteúdo da obra filosófica-política de Aristóteles, ou seja, sua apreensão acerca dos afazeres huma-
nos. O contrário dessa compreensão, segundo Hannah Arendt, revela-se na constatação de que existe um abismo
entre filosofia e política e, em nossos termos, entre pensamento e política, o qual foi fomentado pelo platonismo
e solidificou a filosofia política no Ocidente, o qual continua intransponível. As críticas, reiteradas por Arendt
em vários de seus escritos (Que é autoridade?, Pensamento e Considerações morais, Compreensão e Política, A
vida do espírito) acerca do pensamento de Platão e de sua influência à tradição filosófica-política estão embasa-
das em sua leitura acerca da “alegoria da caverna”. Esta leitura arendtiana toma por referência a reflexão de
Heidegger em A Doutrina de Platão sobre a Verdade sobre essa alegoria platônica. Porém, é importante notar
que estas críticas, segundo alguns intérpretes da obra arendtiana, estariam não somente endereçadas a Platão,
mas também ao próprio Heidegger, cuja obra serve de apoio às análises de Arendt. Nesse sentido, nos adverte
Vallée: “Este carácter algo forçado da crítica de Platão compreende-se melhor se se entender, com que alguns
comentadores, que não é nem sobretudo nem somente Platão que é visado. De facto, é legítima a hipótese de que
“Filosofia e política”, como aliás toda a obra ulterior, contém um debate escondido com Heidegger; o que é dito
de Platão tanto diria respeito a Heidegger como a Platão, de tal modo que ‘a crítica de Platão acaba por revelar-
se um questionamento de Heidegger’” (VALLÉE. Hannah Arendt: Socrates e a questão do totalitarismo, p. 63).
A esse respeito, ver também TAMINIAUX. La Fille de Thrace et le Penseur Professionnel, p. 227. A compreen-
são de que existe um distanciamento entre a filosofia política de Aristóteles e a de Platão e como este distancia-
mento é refletido por Hannah Arendt é salientado por Canovan nas seguintes palavras: “Some of Arendt’s obser-
vations on Aristotle seem at first sight to point in the same direction, for she frequently states that his political
philosophy was explicitly anti-Platonist and that he articulated some of the fundamental experiences of the Greek
polis. Unlike Plato, for example, Aristotle did appreciate the dignity of the active life, the link between freedom
and political speech, and the difference between the wisdom of the philosopher and the specifically political
understanding of the statesman” (CANOVAN. Hannah Arendt: A Reinterpretation of her Political Thought, p.
259).
217
Sobre essa questão, salienta André Duarte: “A intenção arendtiana não é a de ultrapassar o fosso aberto entre
pensamento e ação, mas a de reconhecer a sua origem traumática e evitar incorrer na decorrente subordinação
metafísica da ão ao pensamento, visando, assim recuperar a dignidade própria ao âmbito da política e de suas
categorias” (DUARTE. O Pensamento à Sombra da Ruptura, p. 163).
121
drões imutáveis.
218
Assim, no âmago do pensamento filosófico-político de Platão uma
preocupação de eliminar da esfera humana qualquer possibilidade do imprevisível se manifes-
tar. Esta preocupação platônica torna-se visível quando o filósofo grego adota uma posição
contrária à emissão de opiniões (doxai), as quais se caracterizam por sua mutabilidade, pois as
opiniões são frutos advindos de pontos de vista diversos, os quais se modificam a partir do
momento em que o espectador muda sua posição.
219
O imprevisível também é atacado pelo
platonismo, quando este procura minar, em seus elementos constitutivos, a ação humana, que
traz em si o germe do inesperado,
220
que a necessidade, nessa esfera humana, a princípio,
constitui-se em uma palavra vazia de significação. Esta imprevisibilidade se torna compreen-
siva, na medida em que atentamos para o fato de que os atos humanos, quando ganham reali-
dade, trazem consigo a certeza da incerteza, ou seja, o fato de que se as coisas aconteceram
desta forma, é bem possível que pudessem ter acontecido de outra, pois a contingencialidade é
a marca indistinta do agir humano.
218
Segundo André Duarte, interpretando o pensamento arendtiano, “(...) a filosofia ocidental se origina de duas
concepções fundamentais do pensamento de Platão, as quais teriam implicações duradouras no contexto da tradi-
ção: a substituição da opinião (doxa) pelo conhecimento da verdade como atributo para melhor forma de gover-
no político; e a concepção da ação (práxis) política a partir do modelo da fabricação (poiésis) por meio da apli-
cação da doutrina das idéias ao âmbito da política, transformando-as em parâmetro de medida tendo em vista
garantir maior previsibilidade aos assuntos humanos” (DUARTE. O Pensamento à Sombra da Ruptura, p. 168).
219
Segundo Vallée, “A partir do momento em que a verdade é concebida como uma verdade universal e absolu-
ta, a doxa torna-se um ponto de vista subjetivo e arbitrário, uma forma de ilusão. Em conclusão: de facto, é a
pluralidade que é negada por esta nova concepção da verdade e por esta desvalorização da doxa. O verdadeiro e
o bem, na esfera dos assuntos humanos são, para Arendt, sempre relativos e por isso abertos ao debate e à persu-
asão. A verdade filosófica à maneira de Platão, com a sua preocupação de um bem absoluto, dirige-se a um ho-
mem solitário e abstrato afastado de contexto histórico e das suas relações com os outros” (VALLÉE. Hannah
Arendt: Socrates e a questão do totalitarismo, p. 57).
220
É interessante notar que a preocupação em se controlar o advento do novo na esfera política constitui-se em
uma prerrogativa que não pertence somente ao platonismo, mas perpassa a obra política-filosófica de inúmeros
teóricos. Isto se deve ao fato de que o imprevisível, inerente à ação humana, traz em seu âmago a possibilidade
de mudança, de novidade, algo que sempre apareceu aos olhos dos políticos e teóricos como uma ameaça a so-
brevivência do corpo política. É nesse sentido que Newton Bignotto, refletindo acerca do pensamento republica-
no de Francesco Guicciardini, o qual, “(...) nascido em 1483, no seio de uma das famílias mais importantes de
Florença, ele fez de sua confessa ambição e do orgulho de pertencer à aristocracia a mola de uma ação contínua
na cena política italiana (...)”, salienta que “Desde o início, ele [Francesco Guicciardini] alerta os Medici que o
grande perigo virá sempre dos que ‘estão aptos para criar novidades’. Em outras palavras, ele aconselha aos
novos senhores da cidade a prestar atenção aos jovens, pois os velhos não mudam de opinião, ‘mas os velhos são
sábios e não se deve temer os sábios, pois não inovam jamais’” (BIGNOTTO. Republicanismo e Realismo: um
perfil de Francesco Guicciardini, p, 09 e 121). Esta reflexão encontra-se alicerçada pela franja conceitual forma-
da pelas análises entorno da possibilidade, sempre constante, de haver mudança de opinião nascida da capaci-
dade do homem de iniciar novos eventos que se caracterizara por ser sempre um risco à preservação do corpo
política.
122
O que Arendt salienta
221
é que a incapacidade de Sócrates de persuadir seus juízes,
bem como seus amigos, através da opinião por ele emitida, de que sua missão e, conseqüen-
temente, aquilo que dava significação à sua vida, era tão somente interrogar os indivíduos em
praça pública, fez com que Platão percebesse que na esfera da ação humana não se pode con-
fiar nas opiniões (doxai), que podem, de fato, ter algum tipo de validade, até que outras ve-
nham a sobrepor-se as anteriores pela força do convencimento. Nessa perspectiva, faz-se ne-
cessário trazer para a esfera dos assuntos humanos um instrumento não de persuasão, mas de
coação.
222
Este instrumento é a verdade,
223
a qual possui um poder de coagir todos aqueles
que entram em contato com suas premissas inquestionáveis. O que se torna manifesto a partir
destas reflexões é que estamos diante da inauguração da tirania da verdade
224
por parte do rei
filósofo,
225
tirania esta que nasce da tentativa de substituir a possibilidade do confronto das
opiniões divergentes, que é a marca indistinta da política, pela força coercitiva da verdade,
221
Sobre isso, ver ARENDT. A dignidade da política, p. 91.
222
A esse respeito, salienta Abreu: “Arendt faz distinções explícitas entre a opinião e a verdade. E, quanto a esta,
é preciso separar a verdade filosófica da verdade fatual. A verdade, seja ela filosófica ou fatual, é portadora de
uma dimensão coercitiva, na medida em que, uma vez obtida ou afirmada, não mais possibilita o diálogo entre os
agentes. A verdade filosófica, quando obtida através de um diálogo socrático, cessa o debate. A opinião, ao con-
trário, permite sempre que o agente se manifeste, aque haja a persuasão, que, por sua vez, resulta do debate
entre agentes iguais, sem qualquer relação hierárquica entre eles” (ABREU. Hannah Arendt e os Limites do
Novo, p. 89).
223
“Platonic truth, even when doxa is not mentioned, is always understood as the very opposite of opinion. The
spectacle of Socrates submitting his own doxa to the irresponsible opinions of the Athenians, and being outvoted
by a majority, made Plato despise opinions and yearn for absolute standards. Such standards, by which human
deeds could be judged and human thought could achieve some measure of reliability, form then on became the
primary impulse of his political philosophy, and influenced decisively even the purely philosophical doctrine of
ideas” (ARENDT. Socrates. In: ____. The promise of politics, p. 08).
224
“All our current saying that only those who know how to obey are entitled to command, or that only those
who know to rule themselves can legitimately rule over others, have their roots in this relationship between poli-
tics and philosophy” (ARENDT. Socrates. In: ____. The promise of politics, p. 28).
225
Para Hannah Arendt, Os modos de pensamento e de comunicação que tratam com a verdade, quando vistos
da perspectiva política, são necessariamente tiranizantes; eles não levam em conta as opiniões das demais pesso-
as, e tomá-las em consideração é característico de todo pensamento estritamente político” (ARENDT. Entre o
Passado e o Futuro, p. 299). Nessa perspectiva, segundo Eduardo Jardim de Moraes, “Hannah Arendt acredita
que a teoria das idéias, o núcleo da Metafísica de Platão, constitui-se neste momento em que o filósofo não é
mais apenas filósofo, mas pretende também ser rei, isto é, governar. Isto explica a razão da aplicabilidade das
idéias que se introduz na teoria platônica das idéias. O fato de as idéias serem metros a partir dos quais as coisas
são julgadas não teria relação com qualquer exigência do pensamento, mas com a urgência política de fundar a
autoridade para organizar a vida no interior da caverna (...) A redefinição do conceito de verdade no mito da
caverna determina a composição de um cenário com os seguintes elementos: uma definição do pensamento está
presente, obtida a partir do ponto de vista da Metafísica. O pensamento é encarregado de fornecer os parâmetros
para o juízo e para a ação. Nesta perspectiva, ele é considerado através de uma perspectiva instrumental ele
deve servir a fins prático-políticos” (MORAES. Hannah Arendt: Filosofia e Política. In: ___. Hannah Arendt:
Diálogos, reflexões e memórias. BIGNOTTO & MORAES (Org), p. 38 e 39).
123
que emudece a pluralidade humana
226
ao impossibilitar a existência de qualquer divergência
nascida autenticamente no campo político.
227
Da mesma forma, permitir que a contingencialidade seja o fio condutor das ações hu-
manas é creditar um grau incalculável de incerteza e imprevisibilidade ao que os homens fa-
zem e dizem, as quais, por essas características, não podem, a princípio, serem controladas.
Para evitar tal inconveniente é preciso regular e governar os afazeres humanos de um ponto
situado fora dos mesmos, ou seja, de cima. É nessa perspectiva que Platão adapta, segundo
Arendt, a partir do Livro VII da República, fundamentalmente na alegoria da caverna,
228
sua
teoria das idéias para que elas passem a desempenhar, no plano da política, o papel de norma-
tizadoras. Assim, de acordo com a nova função que Platão outorga às idéias, mesmo que as
ações humanas distem enormemente da perfeição existente em cada idéia, pois cada idéia
deve funcionar como exemplo normativo tal como acontece com a idéia de “Bem”,
229
a
226
Segundo Canovan, “The notion of a single ruler rather than a plurality of actors was naturally congenial to
philosophers who were looking for a single truth to override plural opinions. Politically, the great disadvantage
of this point of view was that it implied a loss of understanding of human plurality and of man’s capacity to
initiate action” (CANOVAN. Hannah Arendt: A Reinterpretation of her Political Thought, p. 256).
227
A respeito do fato de que a tradição do pensamento filosófico-político, inaugurada por Platão, constitui-se em
um esforço consciente de colocar no lugar das opiniões os fundamentos políticos, percebemos que há uma diver-
gência de pontos de vista entre Leo Strauss e Hannah Arendt, na medida em que Strauss se posiciona como um
autêntico representante desta tradição. Assim, para Strauss diferentemente de Arendt, a vida política deriva sua
dignidade de algo que a transcende. A esse respeito, ver VILLA. The philosopher versus the citzen, p. 158 ss. É
nessa perspectiva interpretativa que Beiner procura conduzir suas reflexões acerca desse tema, ao dizer que A-
rendt rejeita a filosofia política clássica, na medida em que esta procura a compreensão da totalidade, a qual o
homem não é capaz de alcançar, numa tentativa de escapar do convencionalismo a partir de uma idéia regulativa.
Nesse sentido, diz Beiner: “Arendt rejects classical political philosophy that the life of political has to be judged
ultimately by the standards of the contemplative life” (BEINER. Hannah Arendt and Leo Strauss: The Uncom-
menced Dialogue, p. 239). Contudo, Arendt afirma que existiram pensadores políticos como Maquiavel e Hob-
bes, que procuraram analisar a política a partir do campo próprio a essa atividade, ou seja, da contingencialidade,
distanciando-se da perspectiva clássica. É nesse sentido que nossa autora diz que “It is usefulness for understand-
ing that was exhausted with the approach of the modern age. Machiavelli’s writings are the first sign of this
exhaustion, and in Hobbes we find, for the first time, a philosophy which has no use for philosophy but pretends
to proceed from what common sense takes for granted” (ARENDT. Socrates. In: ____. The promise of politics,
p. 38).
228
Hannah Arendt diz que na alegoria da caverna Platão descreve a relação entre a filosofia e a política em ter-
mos da atitude do filósofo para com a polis. Nessa perspectiva, segundo Arendt,A alegoria da caverna destina-
se (...) a mostrar não tanto o modo como a filosofia vê do ponto de vista da política, mas como a política, o do-
mínio dos assuntos humanos, é visto do ponto de vista da filosofia. E o propósito é descobrir, no domínio da
filosofia, os padrões adequados não só, certamente, a uma cidade povoada por habitantes de cavernas, mas tam-
bém aos habitantes que, embora de maneira obscura e ignorante, formaram suas opiniões com respeito às mes-
mas questões dos filósofos” (ARENDT. A dignidade da política, p. 109 e 110).
229
“Plato’s elevation of the idea of the good to the highest place in the realm of ideas, the idea of ideas, occurs in
the cave allegory and must be understood in this political context. It is much less a matter of course than we, who
have grown up in the consequences of the Platonic tradition, are likely to think. Plato, obviously, was guided by
124
qual está acima de todas as idéias, pois é ela que determina “o que é bom para” –
230
é preciso
que as ações humanas procurem imitar, o mais que puderem a perfeição inerente a cada idéia.
Isto se deve ao fato de que, imitando a perfeição contida em cada idéia, o imperfeito será ba-
nido dos muros da polis e, consequentemente, ter-se-á o melhor dos governos que os homens
são capazes de desenvolver.
231
O pano de fundo que cerceia a questão que hora estamos levantando, de que com o
advento do platonismo abriu-se um abismo entre a filosofia e a política, ou seja, entre o bios
theôrétikos e o bios politikos, é que o homem, visto da perspectiva da filosofia, é sempre
compreendido em sua singularidade, enquanto a política visa os afazeres humanos pelo pris-
ma da pluralidade.
232
Na base que sustenta essa verificação vislumbramos que a atividade do
filósofo sempre se faz na reclusão, na sua consciente retirada do mundo da pluralidade, com o
intuito de abarcar o que é eterno e, portanto, imperecível e imutável, demonstrando que a ver-
dade filosófica concerne ao homem em particular. É por esse prisma interpretativo que Arendt
salienta
233
que, pelo fato da atividade do filósofo ser executada na solidão, no afastamento do
the Greek proverbial ideal, the kalon k’agathon (the beautiful and the good), and it is therefore significant that he
made up his mind for the good instead of the beautiful. Seen form the point of view of the ideas themselves,
which are defined as that whose appearance illuminates, the beautiful, which cannot be used of ideas. The differ-
ence between the good and the beautiful, not only to us but even more so to the Greeks, is that the good can be
applied and has an element of use in itself. Only if the realm of ideas is illuminated by the idea of the good could
Plato use the ideas for political purposes and, in the Laws, erect his ideology, in which eternal ideas were trans-
lated into human laws” (ARENDT. Socrates. In: ____. The promise of politics, p. 10 e 11).
230
Como referência às análises arendtianas entorno da “alegoria da caverna” de Platão e do porquê de haver em
seu cerne a substituição da Idéia do “Belo” pela Idéia de “Bem”, salienta Abensour: “C’est très exactement ce
déplacement, cette assignation du bien au rang d’Idée suprême, qu’observe Arendt aussi bien dans The Human
Condition que dans l’essai Qu’est-ce que l’autorité? ‘Quand Platon, écrit-elle, ne se préocuupe pas de philoso-
phie politique (dans Le Banquet par exemple), il décrit les Idées comme ‘ce qui est très brillant’ (ekphanestaton)
et en fait ainsi des variantes du beau. C’est seulement dans La République que les Idées se changent en normes,
en étalons de mesure, en règles de conduite, autant de variantes ou de dérivées de l’Idée du ‘Bien’, au sens grec,
c’est-à-dire de ce qui este ‘bon pour’, de la convenance’». (ABENSOUR. Hannah Arendt contre la philosophie
politique?, p. 96).
231
“(...) the best form of government would be a state of affairs in which philosophers have a maximum oppor-
tunity to philosophize, and that means one in which everybody conforms to standards which are likely to provide
the best conditions for it” (ARENDT. Socrates. In: ____. The promise of politics, p. 27).
232
Refletindo sobre o hiato que separa a filosofia da política, Arendt nos diz que é como se existisse um abismo
entre os que estão em solidão e os que estão vivendo junto a outros (ARENDT. The End of Tradition. In: ___.
The Promise of Politics, p. 85. Tradução nossa). É nessa perspectiva que Arendt afirma que “Visto que a verdade
filosófica concerne ao homem em sua singularidade, é, por natureza, não-política (...)” pois, “Considerar a políti-
ca da perspectiva da verdade significa situar-se em uma posição exterior ao âmbito político(ARENDT. Entre o
Passado e o Futuro, p. 304 e 320).
233
Sobre isso, ver ARENDT. Entre o Passado e o Futuro, p. 304.
125
convívio com seus pares, este não sabe o que é bom para a cidade,
234
pois ele está fundamen-
talmente preocupado com o bem-estar de sua alma imortal, cuja saúde deverá ser cultivada na
media em que o mesmo conseguir desprender-se das preocupações com o mundo e voltar-se
para a contemplação das “naturezas nobres” e eternas: “a justiça”, “o amor”, “a verdade”, “a
coragem”...
Por essa franja conceitual, a partir da qual neste momento estamos visando a questão
por nós proposta, percebemos que nunca houve, pelo que saibamos, uma obra filosófica que
se preocupasse em refletir acerca da estrutura invisível de uma bolha de sabão ou de um fio de
cabelo. Isto se deve ao fato de que ninguém, até hoje, pensou que analisar, do ponto de vista
filosófico, tais objetos fosse do interesse de alguém. Em outras palavras, segundo a filosofia
clássica, o espanto admirativo (thaumadzein) em face de tudo o que é como é somente se ma-
nifesta diante de “naturezas nobres”, objetos merecedores da atenção do filósofo. Durante
séculos, estas as “naturezas nobres” foram compreendidas como o que de mais impor-
tante para os homens: “Deus”, “a alma”, “a eternidade”, “a justiça”, “o belo”... Tudo aquilo
que não sofresse nenhum tipo de corrosão e permanecesse o mesmo por tempo indeterminado.
Sendo assim, os assuntos humanos, aqueles que dizem respeito à condição do homem na terra,
tal como as preocupações de cunho político, foram vistos pelos filósofos como objetos des-
prazíveis, não merecedores da atenção filosófica.
234
Hannah Arendt menciona que todo início do ato de filosofar está no thaumadzein, o espanto admirativo diante
de tudo o que é como é. Porém, como salienta nossa autora, o que Platão e Aristóteles propuseram foi o prolon-
gamento deste início, fazendo com que ele seja também o objetivo final do filósofo. É no prolongamento desse
espanto inicial que estaria situada a vida dos melhores, que contemplam as verdades eternas, situação a qual os
levariam a perda do sentido de realidade. Isto se deve ao fato de que, com essa atitude, os filósofos estariam se
refugiando, em sua “torre de marfim”, dos problemas e afazeres humanos, e, assim, o distanciamento, que a
princípio tinha como objetivo significar a existência, não seria momentâneo, mas permanente, levando os filóso-
fos a uma alienação da vida humana na terra. Nesse sentido, diz Vallée: “Existe portanto um risco ‘profissional’
ligado ao exercício da filosofia: se ao retiro do mundo das idéias não suceder um retorno, se aquilo que não pode
ser mais do que um momento [o prolongamento do thaumadzein] devora a existência inteira, então o filósofo
corre o risco de perder o sentido da realidade e não se pode continuar a submeter ‘os assuntos do mundo’ ao seu
juízo: A desolação, perigo consubstancial à solidão, revelou-se como a doença profissional do filósofos; é essa,
aliás, uma das razões que fazem com que não nos possamos fiar neles em matéria de filosofia política’” (VAL-
LÉE. Hannah Arendt: Socrates e a questão do totalitarismo, p. 60).
126
Na perspectiva acima mencionada, os afazeres realizados no âmbito da política são
vistos como questões inferiores em relação às “naturezas nobres”. As ações humanas, imple-
mentadas na esfera pública, são compreendidas como inevitáveis e, até certo ponto, “dignas”
de serem pensadas, na medida em que elas constituem-se como um mal necessário à sobrevi-
vência humana; um meio em relação a um fim mais nobre e importante. Assim, a política é
vista como o meio que permite ao homem fomentar as condições necessárias à sua existência,
para que ele, livre das preocupações com o que é necessário à manutenção de seu corpo, possa
se voltar para aquilo que é mais importante, a atividade intelectual, aquela na qual a alma des-
prende-se de seu cárcere terreno seu corpo no afã de poder contemplar o que de mais
nobre no universo: as medidas não aparentes.
235
Essa postura de Platão em relação à política desencadeou efeitos diretos naquilo que
chamamos de tradição do pensamento filosófico-político. Quando o filósofo evade da esfera
dos assuntos políticos, com o intuito de normatizá-los, a partir de um ponto distante da mes-
ma, ele, necessariamente, esteriliza a atividade de pensar.
236
Quando o filósofo edifica entre
si e a polis um abismo quase” intransponível, ele, com essa postura, está condenando o pen-
samento a tornar-se uma faculdade reclusa em si mesma, fazendo com que o pensar tenha tão
somente como matéria prima a ser manipulada seus próprios processos mentais, ou seja, uma
lógica estéril de significação concreta, pois a vida vivida não tem importância para sua ativi-
dade.
235
“At the beginning, therefore, not of our political or philosophical history but of our tradition of political phi-
losophy stands Plato’s contempt for politics, his conviction that ‘the affairs and actions of men (ta tδn anthrδpδn
pragmata) are not worthy of great seriousness’ and that the only reason why the philosopher needs to concern
himself with them is the unfortunate fact that philosophy or, as Aristotle somewhat later would say, a life de-
voted to it, the bios theôrétikos – is materially impossible without a halfway reasonable arrangement of all affairs
that concern men insofar as they live together” (ARENDT. The End of Tradition. In: ___. The Promise of Poli-
tics, p. 81).
236
Segundo Cantista, O filósofo, ao desenraizar o pensamento do político, isto é, da experiência do quotidiano,
do mundo da vida, numa palavra, ao evadir-se da polis, faz traição ao próprio pensamento” (CANTISTA. O
Político e o Filósofo, p. 44 e 45). Ao contrário desse aviltamento em relação ao mundo por parte da filosofia
clássica, Arendt procura desenvolver um outro tipo de postura. Nesse sentido, diz Cantista: “Numa clara contra-
posição de pensamento e filosofia, de significado e de verdade, Arendt propõe-se ‘pensar o acontecimento’,
porque o pensamento não é senão a compreensão da experiência do que temos em mãos” (CANTISTA. O Políti-
co e o Filósofo, p. 53).
127
Porém, o advento dos regimes totalitários retirou o véu que separava os “pensadores
profissionais”
237
dos meros mortais. Em outras palavras, dado a novidade de um regime polí-
tico que não possui nenhum paralelo na história da humanidade, esta novidade trouxe à tona
uma verdade que muito o homem se esquecera: não nenhum padrão imutável que nos
permita avaliar e medir todos os acontecimentos humanos em todas as épocas. O advento do
novo exige que estabeleçamos novos padrões que possam alicerçar e conduzir a compreensão
humana e, assim, reconciliar o homem com uma realidade em constante mudança.
238
Assim, a “quebra com a tradição”, que vislumbra ser um período singular na história
da humanidade, que nasce com o advento dos regimes totalitários, demonstra que não tendo
mais o passado o poder de lançar luz sobre o futuro e, consequentemente, quando não há valo-
res absolutos em ética e moral que possam orientar nossas condutas, faz-se necessário buscar
a significação das ações políticas a partir do “novo”. Segundo Arendt, nessa perspectiva, tor-
na-se evidente o fato de que, ao contrário do que a evolução do pensamento político procurou
demonstrar, o bios theôrétikos não é capaz de prescrever leis e ser, desta forma, o fundamento
final do bios politikos.
239
Nessa perspectiva, os padrões que conduzirão o pensamento no percurso de significa-
ção do novo serão fomentados pela prática da atividade de pensar através do diálogo constan-
te que, embora primeiramente seja implementado pela cisão do próprio ego pensante, nos pre-
parará para, posteriormente, podermos desenvolver um diálogo com os demais na praça pú-
blica. Isto se faz pela razão de que ao dialogarmos com nosso próprio eu, na atividade do
dois-em-um, essa cisão demonstra que os homens, e não o homem, é que habitam a terra.
237
Sobre a utilização, por parte de Hannah Arendt, desse termo cunhado da filosofia de Kant, e como o mesmo
possui toda uma conotação pejorativa, ver, entre outras obras, ARENDT. A vida do espírito, p. 42.
238
Segundo Arendt, “Se a essência de toda ação, em particular a da ação política, é fazer um novo começo então
a compreensão torna-se o outro lado da ação, a saber, aquela forma de cognição, diferente das muitas outras, que
permite aos homens de ação (e não aos que se engajam na contemplação de um curso progressivo ou amaldiçoa-
do da história), no final das contas, aprender a lidar com o que irrevogavelmente passou e reconciliar-se com o
que inevitavelmente existe” (ARENDT. A dignidade da política, p. 52).
239
A esse respeito, ver AREDNT. The End of Tradition. In: ___. The Promise of Politics, p. 85.
128
Assim, para repensar a relação entre o visível e o invisível sem o peso conceitual do
abismo que por séculos divorciou a filosofia da política é preciso lançar mão de um exemplo
de pensador que não possuía nenhuma dificuldade que o impedisse de tramitar livremente
entre as duas esferas humanas: a vida activa e a vida contemplativa. Que não desejava “pre-
sentear” a cidade com normas ou regras de conduta, mas que, tão somente, queria dialogar
com seus pares sobre assuntos que o deixavam perplexo e, assim, poder compartilhar de sua
perplexidade com seus iguais,
fazendo com que eles também se sentissem perplexos. Que
levasse em consideração a opinião de cada um dos parceiros do diálogo.
240
Esse exemplo é
Sócrates, que nutria em sua vida o prazer de se fazer companhia, seja pelo diálogo sem som
do eu consigo mesmo, seja pela companhia de seus pares na praça pública sem,
241
com isso,
deixar entrever que haja qualquer tipo de paradoxo nessas duas formas de se estar junto a al-
guém:
242
seja do próprio eu cindido ou da multidão que compõem o mundo plural.
243
É exatamente a figura de Sócrates, que segundo Hannah Arendt, deve ser compreendi-
do como um modelo de pensador, que funcionacomo fio condutor para que possamos en-
tender como se a relação do pensamento com a política, a qual procurará redefinir a cone-
xão entre a filosofia e os afazeres que os homens realizam na praça pública, a partir de um
ponto distante do abismo que por séculos divorciou essas duas esferas da vida humana. Refle-
240
Segundo Bickford, “Differing opinions or judgments about the world are always characteristic of ‘men in the
plural’, as unanimity of opinions is characteristic of mass society and tyranny (…) opinions are formed and
tested in a process of exchange of opinions against opinions” (BICKFORD. In the Presence of Others: Arendt
and Anzaldúa on the Paradox of Public Appearance, p. 321).
241
Na compreensão arendtiana, nada é mais contrário àquilo que Sócrates acreditava, ou seja, de que a política
constitui-se em um diálogo incessante realizado entre iguais, do que a tirania que Platão procurou fomentar: a
tirania da verdade, que seria levada a cabo pelo rei filósofo. É nessa perspectiva que Abensour nos diz que “Si en
effet Platon atteint son but en concebant une nouvelle forme d’autorité inconnue du monde grec, il impose avec
i’instituition de la philosophie politique un nouveau nexus, un ensemble d’autorités philosophico-politiques de
nature à ruiner la logique isonomique et égalitaire de la polis, à faire violence à la ratonalité immanente à la cité"
(ABENSOUR. Hannah Arendt contre le philosophie politique?, p. 105).
242
Segundo Canovan, “Far from aiming to discover an authoritative truth that would bring discussion to a con-
clusion, Socrates evidently regarded talking among friends about the world they had in common as an activity
that was worthwhile in itself: ‘Socrates seems to have believed that kind of common world, built on the under-
standing of friendship, where no rulership is needed’. It seems, then, that there was a time when thought and
action, philosophy end politics were not separated or opposed” (CANOVAN. Hannah Arendt: A Reinterpreta-
tion of her Political Thought, p. 258 e 259).
129
tir acerca do locus que Sócrates ocupa na obra arendtiana e de que maneira ele deve ser visto
como um exemplo imprescindível para que haja algum tipo de implicação política da faculda-
de de pensamento será o próximo passo que daremos em nossa pesquisa.
3.2.1. “O Dois-em-Um”
Nesse momento passamos a analisar, diretamente como se realiza a implicação política
da faculdade de pensamento em “situações limites”. Esta implicação passa necessariamente
pela preliminar compreensão da relação entre o pensamento e a política, sem a qual nossa
hipótese de trabalho não teria nenhuma plausibilidade de, nem ao menos, ser proposta.
Nesse prisma argumentativo, como fizemos anteriormente, precisamos inicialmente,
pensar a relação conflituosa entre filosofia e política, a qual se instaurou a partir da condena-
ção de Sócrates pala democracia ateniense e que gerou uma profunda desilusão em Platão
com relação ao espaço plural dos afazeres humanos, demonstrando que essa relação entre os
que pensam e os que agem ocupou as reflexões arendtianas de forma sistemática.
244
Não acreditamos que tenha sido, em algum momento de sua vida intelectual, uma in-
tenção de Arendt procurar solucionar o impasse entre filosofia e política, ou melhor, não a-
creditamos que fosse um objetivo arendtiano transpor o abismo que divorciou o bios theôréti-
kos do bios politikos, como acima apontamos. Contudo, não resta a menor dúvida de que foi
do interesse de nossa autora pensar a relação entre filosofia e política a partir de um prisma
diferente daquele oferecido pela tradição do pensamento filosófico-político, ou seja, um pris-
ma que levasse em consideração, acima de tudo, o fato de que não o homem, mas os homens
243
“We mimic, through the activity of thinking as a dialogue, the conditions of communications among plural
beings, which is to say that we think as individuals is something like a public space” (BICKFORD. In the Pres-
ence of Others: Arendt and Anzaldúa on the Paradox of Public Appearance, p. 322).
130
que habitam a terra,
245
e esse prisma, em nosso entendimento, tem como fio condutor a ativi-
dade de pensar, vista pela ótica da fenomenologização das atividades espirituais.
246
Nessa perspectiva, Sócrates pode ser compreendido como o modelo de pensador, que
possibilitou a Arendt visar a relação entre filosofia e política sob um novo prisma. Isso se faz
na medida em que ele, segundo as perspectivas arendtianas, representa, como acima apresen-
tamos, o modelo de pensador que unificava em si duas paixões aparentemente contraditórias:
o prazer de estar na praça pública discutindo com os cidadão atenienses acerca das questões
da vida cotidiana e o prazer de estar a sós, na companhia do ego pensante cindido no diálogo
sem som do eu consigo mesmo.
247
Em outras palavras, situado antes que houvesse a cisão
entre o modo de vida do filósofo e o modo de vida do político, Sócrates representa o paradig-
ma de cidadão-filósofo,
248
alguém que tramitava livremente entre as duas esferas da vida hu-
mana: aquela devotada à teoria e aquela devotada à prática, ou seja, entre o pensamento e os
afazeres humanos.
A chave argumentativa que nesse momento iremos utilizar perpassará a dupla ativida-
de desempenhada por Sócrates: junto aos atenienses e junto a si mesmo. crates acreditava
piamente que não possuía nenhum tipo de conhecimento e, assim, não tinha nada a ensinar
244
Sobre isso, ver ARENDT. A vida do espírito, p. 125; A dignidade da política, p. 91; Entre o passado e o
futuro, p. 27.
245
“Biblically speaking, they would have to accept as they accept in speechless wonder the miracle of the
universe, of man, and of being the miracle that God did not create Man, but ‘male and female created He
them’. They would have to accept in something more than the resignation of human weakness the fact that ‘it is
not good for man to be alone’” (ARENDT. Socrates. In: ___. The promise of politics, p. 39).
246
A fenomenologização das faculdades espirituais permitiu a Arendt dizer que “O fato de que o estar-só, en-
quanto dura a atividade de pensar, transforma a mera consciência de si que provavelmente compartilhamos
com os animais superiores em uma dualidade é talvez a indicação mais convincente de que os homens existem
essencialmente no plural. E é essa dualidade do eu comigo mesmo que faz do pensamento uma verdadeira ativi-
dade na qual sou ao mesmo tempo quem pergunto e quem responde” (ARENDT. A vida do espírito, p. 139).
247
Sobre isso, ver ARENDT. A vida do espírito, p. 126. Segundo Adriano Correia, Arendt retorna “a Sócrates
como modelo, na sua busca de ‘exemplo de pensador não profissional, que unifique em sua pessoa suas paixões
aparentemente contraditórias, a de pensar e a de agir’, não com o intuito clássico dos que habitaram a morada do
pensamento, de impor seus padrões teóricos à ação, mas o de contaminar aqueles que habitaram a praça pública
com a perplexidade do próprio pensamento um pensamento que quer transpor o abismo e que busca reconcili-
ar-se com o mundo das aparências” (CORREIA. O pensar e a moralidade. In: ___. CORREIA (org). Transpon-
do o abismo – Hannah Arendt entre a filosofia e a política, p. 147).
248
Segundo Duarte, “Sócrates configura um modelo paradigmático de pensador na medida em que teria sabido
responder aos apelos da cidadania e da ação política, não evitando a praça pública ao mesmo tempo em que se
131
aos seus concidadãos gregos.
249
Compreendia também que o seu posicionamento inoportuno
diante daqueles que se achavam sábios, embora para muitos pudesse parecer simples; entre-
tanto, na perspectiva socrática, era o melhor bem que um homem poderia proporcionar à ci-
dade. Em outros termos, quando Sócrates se colocava contrário às opiniões não examinadas
dos indivíduos e, desta forma, procurava purgá-los de seus preconceitos
250
(literalmente, um
conceito prévio que influencia o conceito que está para ser construído), ele estava dando àque-
les que entravam em contato com sua pessoa e participavam de seus diálogos, o melhor bem
que alguém poderia possuir, pois “uma vida sem pensamento seria sem sentido”.
251
É nesse âmbito reflexivo que Sócrates aceitava possuir três faces que lhe davam uma
identidade singular: o de filósofo-cidadão. Essas três faces são: o moscardo; a arraia-elétrica e
a parteira.
252
Essas três formas de se comparar Sócrates estão intimamente ligas entre si. Am-
bas apontam para o fato de que o convite que Sócrates fazia aos seus interlocutores tinha uma
raiz comum: fazer com que eles se tornassem perplexos com seu não saber, bem como Sócra-
tes sempre esteve perplexo com sua ignorância: “só sei que nada sei”.
Sócrates, o moscardo, era comparado com um inseto perturbador que ferroava o trasei-
ro vagaroso daqueles que subsumiam um caso particular a uma regra geral, sem se importa-
rem com a significação de seu conteúdo. Mas qual a intenção deste inseto com este ataque aos
dedicava integralmente à atividade questionadora” (DUARTE. O Pensamento à Sombra da Ruptura, p. 352). A
esse respeito, ver também VALLÉE. Hannah Arendt: Sócrates e a questão do totalitarismo, p. 24.
249
Ver ARENDT. A vida do espírito, p. 126.
250
“Portanto, o que está em jogo na atividade do pensamento tal como foi experimentada por Sócrates (...) tem
mais a ver com uma experiência de purificação. O pensamento não envolve a aquisição de algo que possa ser
identificado como a verdade em Filosofia” (MORAES. Hannah Arendt: Filosofia e Política. In: ___. BIGNOT-
TO & MORAES (Org). Hannah arendt: Diálogos, reflexões e memórias,p. 44).
251
ARENDT. A vida do espírito, p. 134.
252
As três faces de Sócrates serão analisadas, por nós, tendo como texto base a obra de Arendt, A dignidade da
política, da página 156 em diante. Sobre esse tema, salienta Villa nesses termos: “In her various textual encoun-
ters with the figure of Socrates, Arendt emphasizes the three similes for his philosophical activity found in the
Platonic dialogues. The first, familiar to all readers of the Apology, is Socrates as gadfly, a persistent irritant
whose questioning and reproaches aim at preventing the citizens of Athens form sleeping till the end of their
days, form living and acting without genuine moral reflection or self-examination (30d). The second, from the
Theaetetus, is Socrates as mid-wife, whose dissolution of the prejudices and prejudgments of his interlocutors
helps them towards the revelation of their own thoughts. The third simile, from the Meno, is Socrates as ‘electric
ray’, a stinging fish who paralyzes and numbs all who it comes in contact with. Through his questioning, So-
crates infects his listeners with his own perplexities, interrupting their everyday activities and paralyzing them
with thought” (VILLA. Arendt and Socrates, p. 243).
132
cidadãos atenienses? Sócrates desejava despertar os indivíduos para a necessidade de se man-
ter uma interação amigável consigo mesmo, isto é, ele queria que todos procurassem, a partir
do diálogo silencioso do eu consigo mesmo, ver a vida sem a viseira limitadora dos precon-
ceitos. Para Sócrates, mesmo que os indivíduos não pudessem alcançar “a” verdade, a impor-
tância da atividade do pensar residia no fato de que, dada à limitação do conhecimento huma-
na, que somente é capaz de alcançar “uma” verdade parcial, isto é, um ponto de vista,
253
ou
uma opinião (doxa),
254
esta se abriria ao homem com mais nitidez, quando o pensar purgasse-
o de seus preconceitos.
Sócrates em sua segunda face, a arraia-elétrica, era comparado a um peixe, capaz de
imobilizar suas presas. No entanto, Sócrates apenas aceitava esta comparação se, por ela, se
compreendesse que ele imobilizava, paralisava aqueles que o escutavam, tão somente pelo
fato de que ele também, previamente, se encontrava em estado de paralisia.
Visto de fora, ou seja, de um lugar distante da atividade de pensar nela mesma, estas
duas primeiras comparações parecem ser contrárias. Porém, ambas estão em perfeita sintonia,
pois aquilo que do lado de fora aparenta ser uma imobilidade, é a maior atividade de que ho-
mem tem conhecimento, como nos diz Catão: nunquam se plus agere quam nihil cum age-
ret...” (“nunca se está mais ativo do que quando nada se faz”).
255
O que há, de fato, é uma
dupla paralisia provocada para e pela atividade de pensar. Em outras palavras, todo pensa-
mento requer, para sua ativação, um parar-para-pensar, um abandono dos afazeres corriquei-
ros com o intuito de trazer diante do ego pensante aquilo que está ausente, mesmo assim pre-
sente enquanto coisa-pensamento: os objetos retidos na memória para a manipulação do pen-
253
“In cultivating the partial truth given through individual perspectives on the shared world, the Socrates of
“Philosophy and Politics” reveals a human world characterized by the absence of any absolute truth, yet one
which is made beautiful by the availability of innumerable openings upon it. Truth for mortal, in other worlds,
inheres in the plurality of perspectives which endow the shared world with a fullness of presence found nowhere
else, a fullness which always exceed the powers of any (singular) representation” (VILLA. Arendt and Socrates,
p. 251).
254
“To Socrates, as to his fellow citizens, doxa was the formulation in speech of what dokei moi, that is, ‘of what
appears to me’” (ARENDT. Socrates. In: ___. The promise of politics, p. 14).
255
CATÃO apud ARENDT. ARENDT. A condição humana, p. 338.
133
samento que procura significá-los, dando-lhes um porquê e, assim, fazer com que o homem
possa reconciliar-se com sua realidade. Contudo, ao fim desta atividade, o que é tão so-
mente perplexidades e paralisia diante da certeza de não haver certeza, pois o pensamento não
dota o homem com nenhuma regra de conduta ou serve para erguer qualquer tipo de credo ou
doutrina, mas ao contrário, as desfaz, à medida que deixa a nu a ausência de significado de
seu conteúdo doutrinal.
256
Assim, as duas primeiras faces de Sócrates apontam para o fato de
que o pensar deve ser compreendido como uma atividade incessante que, para ser realizada, o
indivíduo deve parar de fazer o que estava fazendo e, ao fim desta atividade, ele continuará
parado, diante da atordoante sensação de “saber que nada sabe”.
Sócrates, a parteira. Nessa comparação, Sócrates é visto a semelhança daquelas mulhe-
res que, na Grécia, pelo fato de serem estéreas, auxiliavam as outras na difícil arte de dar a luz
a novos chegados. Esta é a comparação que melhor agradava a Sócrates, pois compreendia
que, como as parteiras, ele era impossibilitado de dar a luz ao que quer que fosse, principal-
mente, a algum tipo de conhecimento, verdade ou credo, mas tão somente ajudava aos seus
concidadãos a trazerem para a luz do dia suas opiniões (doxai), a partir do confronto de idéias
realizado pelo embate oriundo dos diálogos implementados nas praças públicas.
Apesar de que em nenhum dos diálogos socrático-platônicos ter ocorrido, por parte
dos seus interlocutores, nenhum trabalho de parto que levasse ao nascimento de um único
filho vivo, mas somente a “filhos do vento”, o objetivo de Sócrates, ao que parece, sempre
alcançava bom êxito. Segundo Arendt, esse posicionamento, denominado por Platão de mai-
êutica um jogo de perguntas e respostas que tinha como objetivo destituir os indivíduos da
posse de suas pseudos verdades – tinha, como propósito primeiro revelar a verdade inerente a
256
A esse respeito, ver ARENDT. A vida do espírito, p. 131. Sobre o efeito atordoante produzido pelo pensar
sobre aqueles que se enveredam no diálogo sem som do eu consigo mesmo, salienta Dana Villa: “The activity of
thinking interrupts all other activities, and its primary effect is to create perplexity where there had once been
(apparently) firm ground thus rendering the resumption of action uncertain. Thus, Socrates dialogical partners
may find them selves not only purged of worthless opinions, but unable to act at all” (VILLA. Arendt and So-
crates, p. 249).
134
cada opinião, ou seja, demonstrar que cada um é detentor de uma verdade particular, a qual
comumente chamamos de opinião.
257
O que desejamos salientar com essas reflexões é que, como nos diz Jerome Kohn, o
fato de Sócrates nunca ter descoberto
(...) nenhuma criança... que fosse um filho do vento(...) significava que, quando
terminava essa atividade de pensar, não os seus interlocutores, mas também Só-
crates, estavam ‘vazios’. ‘Uma vez vazios’, dizia ela [Arendt], ‘estamos preparados
para julgar’ sem subordinar casos particulares a regras e padrões que desapareceram
no vento forte do pensamento.
258
Assim, o que Sócrates pretendia era, ao contrário de Platão, demonstrar que diante da
certeza de que a pluralidade é a lei da terra e, assim, um mesmo objeto é visto por perspecti-
vas diferentes e divergentes, não como alcançar uma verdade inquestionável, capaz de re-
gular às ações humanas. O máximo que se pode é colocar cada uma das opiniões emitidas, os
pontos de vista enunciados com o propósito de compreender um dado problema, para serem
analisadas e, desta maneira, serem aceitas ou negadas por uma comunidade competente, reu-
nida na esfera pública, que julga a plausibilidade das opiniões.
259
Nessa perspectiva, o diálogo do eu consigo mesmo, demonstra que a diversidade é a
característica principal do mundo fenomênico, pois não somos somente um, quando ativamos
o nosso pensar, mas somos dois em um, o qual antecipa as perspectivas dos demais pontos de
257
“The method of doing this is dialegesthai, talking something through, but this dialectic brings forth truth not
by destroying doxa in its own truthfulness (…) The difference with Plato is decisive: Socrates did not want to
educate the citizens so much as he wanted to improve their doxai, which constituted the political life in which he
too took part” (ARENDT. Socrates. In: ___. The promise of politics, p. 15).
258
KOHN. Introdução à edição americana. In: ___. ARENDT. Responsabilidade e julgamento, p. 26.
259
Segundo Vallée, “Sócrates pratica a única política autêntica porque está disponível para cada um, e conduz
cada um, interrogando-o, não a renunciar à sua opinião, (para Arendt este último ponto será verdadeiro em
Platão) mas a assumi-la diante de todos. Sócrates é o modelo do cidadão, não por causa do que ele ensina, teori-
za, afirma ou aconselha; mas devido ao que ele faz; e o que ele faz é praticar a maiêutica no coração da cidade”
(VALLÉE. Hannah Arendt: Sócrates e a questão do totalitarismo, p. 25).
135
vista, preparando-nos para a interação com os demais na praça pública, demonstrando haver
uma relação entre pensamento e política.
260
Dando prosseguimento a nossa reflexão, podemos dizer que para o pensamento ser a-
tivado é necessário que os parceiros do diálogo estejam em acordo, ou seja, é preciso haver
uma harmonia na relação que mantemos conosco mesmos e, assim, é necessário que não nos
contradizemos, pois caso isso não venha a ocorrer, não conseguiremos manter um diálogo
conosco, pois quem consegue dialogar com um adversário?
261
A amizade (philia) necessária à ativação do pensamento é a mesma que o mundo pú-
blico exige para que exista, de fato, um diálogo na praça pública. Para tanto, devemos apare-
cer a s mesmos como aparecemos aos demais, tendo uma imagem constante e fidedigna
com nossos pensamentos, para que não sejamos hipócritas conosco mesmo.
É importante lembrar que podemos deixa de interagir conosco mesmos, mas não po-
demos deixar de aparecer no espaço de aparências.
262
A primeira hipótese, a de não se fazer
companhia no pensamento, é atestada por Hipias, quando Sócrates nos diz quão sortudo era
Hipias, pois no momento em que este voltava para casa, não havia ninguém a esperá-lo para
importuná-lo, porque este não se dividia em dois no diálogo do eu consigo mesmo do pensar;
mas quanto a ele (Sócrates), sempre havia um sujeito chato, que o esperava para interrogá-lo
sobre as mais diversas coisas, e este sujeito é seu próprio eu cindido.
263
A segunda hipótese é
260
“O que Sócrates descobriu é que podemos ter interação conosco mesmos, bem como com os outros, e os dois
tipos de interação estão de alguma maneira relacionados” (ARENDT. A vida do espírito, p. 141). A esse respei-
to, diz Adriano Correia: “Segundo Hannah Arendt, Sócrates teria descoberto a possibilidade de estabelecer uma
interação com nós mesmos, do mesmo modo como interagimos com os outros, e que estes dois modos de intera-
gir estão de alguma maneira relacionados” (CORREIA. O pensar e a moralidade. In: ___. CORREIA (Org).
Transpondo o abismo – Hannah Arendt entre a filosofia e a política, p. 152).
261
Segundo Arendt, “O diálogo do pensamento pode ser levado adiante entre amigos, e seu critério básico,
sua lei suprema, diz: não se contradiga”. Assim, “Para Sócrates, a dualidade do dois-em-um significa apenas que
quem quer pensar precisa tomar cuidado para que os parceiros do diálogo estejam em bons termos, para que eles
sejam amigos. O parceiro que desperta novamente quando estamos alertas e sós é o único do qual nunca pode-
mos nos livrar – exceto parando de pensar” (ARENDT. A vida do espírito, p. 142 e 141).
262
Sobre isso, ver CORREIA. O pensar e a moralidade. In: ___. CORREIA (Org). Transpondo o abismo
Hannah Arendt entre a filosofia e a política, p. 149.
263
A esse respeito, ver ARENDT. A vida do espírito, p. 141.
136
impossível de ser confirmada, pois sempre temos que manter algum tipo de relação na esfera
dos afazeres humanos.
Contudo, diante das hipóteses acima levantadas, fica o questionamento: como deseja-
mos aparecer aos nossos pares?
264
A resposta a este questionamento deve levar em conside-
ração o fato de que esta aparência depende do tipo de companheiro que vive conosco, e do
qual nunca poderemos nos divorciar: o ego pensante, pois, como dissemos no capítulo primei-
ro do presente trabalho, “ser e aparecer coincidem”.
Ao retornar à questão da harmonia do ego pensante, que se configura como um con-
ceito extremamente necessário para que compreendamos como se realiza a ativação do pen-
sar, e que está em íntima conexão com a formação do tipo de indivíduo que iremos conviver,
devemos salientar alguns pontos. Podemos dizer que esta harmonia torna-se explícita se nos
detivermos, como o fez Arendt, nas seguintes palavras de Sócrates, as quais nossa autora
chama a atenção para as palavras-chave “sendo um”, a qual, segundo ela, é de suma impor-
tância para que haja uma correta interpretação desta passagem, mas que, contudo, é negligen-
ciada pelos intérpretes de Platão. O trecho está contido no diálogo platônico intitulado Gor-
gias” (482c):
Eu preferiria que minha lira ou um coro por mim dirigido desafinasse e produzisse
ruído desarmônico, e [preferiria] que multidões de homens descordassem de mim do
que eu, sendo um, viesse a entrar em desacordo comigo mesmo e a contradizer-me.
265
Arendt compreende que nesta fala Sócrates demonstra, aparentemente, não estar fa-
lando na pessoa de um cidadão que esteja preocupado com o mundo mais do que consigo
mesmo, o que evidencia que ele está apaixonado pala sabedoria e pelo filosofar e que deseja
264
“Even if I were to live entirely by myself I would, as long as I am alive, live in the condition of plurality (…)
Only he who shows how to live with himself is fit to live with others” (ARENDT. Socrates. In: ___. The promise
of politics, p.21 e 28). Sobre essa temática, salienta Vallée: “Deve estar-se diante de si como diante dos outros. A
testemunha interior é pois o representante da pluralidade; e o diálogo na solidão interioriza o ponto de vista dos
outros” (VALLÉEE. Hannah Arendt: Sócrates e a questão do totalitarismo, p. 32).
265
PLATÃO apud ARENDT. ARENDT. A vida do espírito, p. 136.
137
não entrar em desacordo com um sujeito que o aguarda em casa quando ele retornar: ele
mesmo.
Sócrates afirma “ser um”, bem como expressa o desejo de não entrar em desacordo
consigo mesmo. Mas como é possível que algo que “seja um” entre em desacordo consigo?
Nada do que é idêntico a si mesmo (assim como A é A) pode entrar em harmonia ou desar-
monia consigo mesmo, como atesta o princípio lógico. São necessários pelo menos dois tons
para que haja, ou não, uma harmonia. Arendt analisando esta questão, diz que o que está em
jogo é a harmonia ou desarmonia do ego pensante,
266
o fato curioso de que também o eu apa-
rece para si mesmo, assim como para os demais. Quando este eu aparece a si mesmo não é
apenas um, mas um cindido em dois: a unicidade se divide em dois.
267
Nessa perspectiva, podemos dizer, seguindo os passos argumentativos de Arendt,
268
que a identidade, da qual necessitamos enquanto indivíduos de ação em um mundo fenomêni-
co, possui uma fundamental importância na medida em que faz com que o “eu” de cada ser
humano seja reconhecido pelos outros “eus”, isto é, seja identificado em um determinado es-
paço e tempo. Caso não possuíssemos esta identidade, seríamos visto como algo fantasmagó-
rico, que perde toda a sua realidade, pois ao deixar de ser “um”, deixa-se, concomitantemente,
de relacionar-se com algo que “não é”, sendo excluído do âmbito da diversidade que ratifica
nossa unicidade. Contudo, como diz Arendt, “uma diferença se instala na minha Unicidade”, e
essa diferença se revela de maneira evidente pelo fato de que somente o ego pensante tem a
capacidade de ser um (possuir uma identidade) e ser outro ao mesmo tempo, sem, necessari-
amente, referir-se a outros entes para manifestar sua dualidade. Esta dualidade é inerente à
266
Segundo Celso Lafer, “O critério do pensamento colocado pelo diálogo socrático não é o despotismo da ver-
dade, imposta pelo intelecto, mas sim a concordância, cuja base é dada pela consistência do eu consigo mesmo.
De fato, neste diálogo somos o nosso próprio parceiro, e por força do princípio de não-contradição, não podemos
ser nossos próprios adversários” (LAFER. Pensamento, persuasão e poder, p. 83).
267
“Chamamos consciência (literalmente, “conhecer comigo mesmo”, como vimos) o fato curioso de que, em
certo sentido, eu também sou para mim mesmo, embora quase não apareça para mim – o que indica que o “sendo
um” socrático não é tão pouco problemático como parece; eu não sou apenas para os outros, mas também para
mim mesmo; e nesse último caso, claramente eu não sou apenas um. Uma diferença se instala na minha Unici-
dade” (ARENDT. A vida do espírito, p. 137).
138
atividade de pensar, que traz em seu âmago a possibilidade de cindir-se e, assim, ser para-si
(unidade da consciência) e, concomitantemente, ser em-si (um objeto diferente de outros). Tal
constatação se inscreve na base do reconhecimento do dois-em-um socrático o diálogo si-
lencioso do eu consigo mesmo –, que se configura como a estrutura indispensável da ativida-
de do pensar; estrutura essa que ratifica a certeza de que a pluralidade é a marca indistinta da
condição humana,
269
pois o outro eu que surge quando o ego pensante se divide em dois é a
antecipação do outro que me espera para dialogar em praça pública: “A diferença e a alterida-
de são condições do pensamento”.
270
Pelo que foi dito acima, parece haver uma contradição entre o papel que Arendt deseja
que Sócrates desempenhe o de filósofo-cidadão e a preocupação de Sócrates com sua al-
ma, em detrimento a seu eu cidadão. Porém, se nos atermos ao que foi dito até o presente
momento, a preocupação de Sócrates em não entrar em desacordo consigo mesmo não está
em rota de colisão com a preocupação com o mundo. O que queremos dizer é que se deseja-
mos cuidar do mundo e assim, preservá-lo a partir de nossas palavras e ações manifestadas na
esfera pública, primeiro, precisamos saber como queremos aparecer, e esse querer primeiro
depende dos parceiros estarem em acordo, pois quem conseguirá manter um diálogo com um
ladrão ou um assassino? Segundo Arendt, quem abre uma exceção para si mesmo, abre uma
exceção para o mundo público. Em outras palavras, quando se abre uma exceção coloca-se
268
A esse respeito, ver ARENDT. A vida do espírito, p. 138 ss.
269
“O fato de que o estar-só, enquanto dura a atividade de pensar, transforma a mera consciência de si em uma
dualidade é talvez a indicação mais convincente de que os homens existem essencialmente no plural. E é essa
dualidade do eu comigo mesmo que faz do pensamento uma verdadeira atividade na qual sou ao mesmo tempo
quem pergunta e quem responde” (ARENDT. A vida do espírito, p. 139). Nessa perspectiva, salienta Adriano
Correia: “O ego pensante, que na atividade do pensar faz a experiência da dualidade em que o pensamento con-
verte a consciência de si, exibe talvez a indicação mais convincente de que ‘os homens existem essencialmente
no plural’. O dois-em-um socrático o fato de que não o aparecer aos outros atesta a pluralidade no mundo,
mas que carrego a pluralidade em mim mesmo ‘cura o estar do pensamento’, converte o estar em um
estar junto a si mesmo. É, assim, sempre possível ao homem solitário encontrar a si mesmo e estabelecer o diá-
logo do pensamento. Isto é o que Hannah Arendt julga ocorrer a Nietzsche quando concebeu o Zaratustra em
‘Sils Maria’, a partir do que relata em seus dois poemas ‘Sils Maria’ e ‘Aus Hohen Bergen’: ‘Aconteceu no mei-
o-dia, quando um se tornou dois.../A festa das festas:/ O amigo Zaratustra chegou, o spede dos hóspedes!’”
(CORREIA. O pensar e a moralidade. In: ___. CORREIA (Org). Transpondo o abismo Hannah Arendt entre
a filosofia e a política, p. 151).
270
ARENDT. A vida do espírito, p. 139.
139
em xeque a capacidade de interagir consigo mesmo,
271
pois como dialogar com alguém que é
ladrão e, por esta feita, abrir um pressuposto para que o mundo seja habitado por ladrões e,
assim, ter sua propriedade privada ameaçada? Estas são perplexidades inevitáveis àqueles que
entram no processo incessante de perguntas e respostas denominado pensamento.
Para esquivar-se das perplexidades as quais se encontra o indivíduo que dialoga consi-
go mesmo, basta que este se abstenha da interação silenciosa do eu-consigo mesmo e, assim,
não realize a diferença dada na consciência: “Todo homem que almeja viver bem se esforça
por... viver sem ela”.
272
Em nossos termos, aquele que se contradiz necessita viver sem ativar o pensamento,
pois não conseguirá levar adiante a atividade interrogativa de seus atos e palavras, na medida
em que não há como mantê-la, porque o pressuposto da amizade inexiste e, assim, ele aparece
aos outros como não aparece a si mesmo, pois faz questão de não se ver, de não se colocar
diante de si.
273
O vilão, o malfeitor, ou seja, aquele que se contradiz, prefere permanecer em
271
Sobre isso, salienta André Duarte: “Se prezo o ‘amigo’ que me acompanha e que se faz audível e presente
quando, a sós, paro para pensar, cumpre que eu respeite certos limites, que não abra exceções em proveito pró-
prio, que não me imponha uma contradição ao valer-me de máximas que eu não poderia tornar públicas” (DU-
ARTE. O Pensamento à Sombra da Ruptura, p. 353).
272
Podemos vislumbrar que as palavras de Ricardo III de Shakespeare, quando este teme sua consciência moral
a consciência moral aparece como um re-pensar [after-though] o tipo de pensamento que é despertado por um
crime, pois, como diz Lebrum, “o gente, na medida em que é capaz de pensamento, traz consigo um espectador
que funciona como uma espécie de ‘testemunha’ de seus feitos e ditos, de sorte que a raiz da ‘consciência moral
(conscience) estava no próprio pensamento” (LEBRUM. Um testemunho socrático, p. 62) –, poderia servir de
roteiro para àqueles que se abstêm de interagir consigo mesmos na atividade de pensar, pois não conseguem
manter uma relação harmônica com o eu. As palavras de Ricardo III são as seguintes: “What do I fear? Myself?
There’s none else by: Richard loves Richard: that is, I am I. Is there a murder here? No, yes, I am: Then fly:
what! From myself? Great reason why: Lest I revenge. What! myself? Alack! I love myself. Wherefore? For any
good. That I myself have done unto myself? Oh! No: alas! I rather hate myself. For rateful deeds committed by
myself. I am a villain. Yet I lie, I am not. Fool, of thyself speak well: fool, do not flatter”. No entanto, as coisas
mudam depois de meia-noite e Ricardo escapa da própria companhia para juntar-se a seus pares. Então: “Con-
science is but a word that cowards use, Devised first to keep the strong in awe…” (SHAKESPEARE apud A-
RENDT. ARENDT. A vida do espírito, p. 142). Estas considerações, pautadas em citações, apontam na direção
de que há, também, implicação moral da faculdade de pensamento. Contudo, analisar tal implicação iria além do
objetivo traçado nessa pesquisa, ou seja, de analisar a possível implicação política da faculdade de pensamento.
O que desejamos, nesse ponto, é tão somente lançar luz sobre o fato de que, tendo em vista que todo pensamento
é um repensar – trazer à presença do espírito o já ocorrido e, por vezes, o pensado, uma vez que a atividade de
pensar é incessante este repensar traz em seu seio a testemunha que nos indaga sobre o que quer que venha
ocorrer em nossas vidas, até mesmo um crime. Se o ocorrido estiver inserido na categoria de crime, a testemunha
despertará em nós a consciência moral.
273
O aspecto da amizade dentro da perspectiva do mundo plural e sua respectiva importância pode ser atestada
em obras como as de Francisco Ortega. Nestas o autor ressalta que a amizade é uma relação de conflito e de
harmonia, elementos que, segundo ele, não podem desaparecer do âmbito da amizade. Nesse sentido, segundo
140
sua posição unívoca, na qual não pode haver dúvidas ou embaraços, não se diferenciando no
dois-em-um.
274
Devemos ressaltar, nesse momento, que dizer que os parceiros do diálogo do eu consi-
go mesmo devem estar em harmonia não significa que não há conflito de idéias e perspectivas
no ato de pensar, pois o consenso definitivo não existe nesta atividade. Desejamos tão somen-
te enfatizar que devemos estar em acordo conosco mesmos se quisermos manter um diálogo,
que tem como característica principal a busca incessante por significados.
275
Ao nos atermos às reflexões ora implementadas, perceberemos que o vaivém entre o
mundo das aparências e a “terra do puro intelecto” necessária retirada do mundo das apa-
rências para que o ego pensante possa refletir sobre ele se constitui como a pedra de toque
para se compreender a relação entre o pensar e o agir. Esta relação se faz, na medida em que o
pensamento, ao expurgar os indivíduos de seus preconceitos, libera a faculdade do juízo para
julgar particulares sem subsumi-los a regras gerais, demonstrando toda a primordial impor-
tância do pensar na vida do espírito.
Ortega, “devemos viver uma amizade cheia de contradições e tensões (...) que não pretendesse anular as diferen-
ças (...) Ressaltando os momentos de assimetria e irreciprocidade está se afirmando a heterogeneidade, a alteri-
dade na relação com o outro, que não deve ser suprimida na busca do consenso” (ORTEGA. Para uma política
da amizade: Arendt, Derrida e Foucault, p. 80 e 81). Contudo, se por um lado a reflexão ora explanada está em
íntima consonância com o pensamento arendtiano (vide nota de rodapé número 267), na obra Mulheres de Pala-
vra, de autoria de Eliana Yunes e Maria Clara Lucchetti, na gina 29, percebemos um erro interpretativo de
Francisco Ortega no que se refere ao pensamento de Hannah Arendt, pois Ortega, ao discutir a importância da
reabilitação da amizade, compreendida como “espaço vazioque proporciona o surgimento de relações de alteri-
dade e diferenciação, menciona que na vida interior, não como cultivar a amizade, uma vez que na interiori-
dade o que é um espécie de “egologia”. Nessa perspectiva, esse autor, ao que parece se esquece que Arendt,
na página 141 de A vida do espírito, diz que, acompanhando os passos argumentativos de Aristóteles em Ética
Anicômaco (1166a30), “o amigo é um outro eu”. Isto demonstra que a experiência condutora da atividade de
pensar é a amizade e não a individualidade, fato este que se revela na maneira como Arendt define o pensar,
seguindo a esteira argumentativa de Platão, como o diálogo sem som do eu consigo mesmo.
274
“Quem não conhece a interação entre mim e mim mesmo (na qual se examina o que se diz e o que se fala)
não se incomodará em contradizer-se, e isso significa que jamais será capaz de explicar o que diz ou fala, ou
mesmo desejará fazê-lo, tampouco se importará em cometer qualquer crime, uma vez que está certo de que ele
será esquecido no minuto seguinte” (ARENDT. A Dignidade da Política, p. 166).
275
Segundo Arendt: “Pensar significa que temos que tomar novas decisões cada vez que somos confrontados
com alguma dificuldade, pois o pensamento não origem a nenhum credo” (ARENDT. A vida do espírito, p.
133).
141
Para tanto, é necessário que conservemos um bom relacionamento conosco mesmos
para que, em consonância com o eu,
276
possamos manifestar no mundo das aparências o pen-
samento por intermédio do juízo, pois, segundo Eduardo Jardim de Moraes, o juízo funciona
“como ligação entre pensamento e ação, entre vida contemplativa e vida ativa, entre o bios
theôrétikos e bios politikos, entre espectador e ator”.
277
Nessa perspectiva, a franja conceitual exposta nesse passo de nossa pesquisa serviu
para demonstrar que, no momento em que Sócrates purgava os indivíduos de seus conceitos
não examinados, o que este estava fazendo era relacionar a atividade do pensar com a ativida-
de de julgar. Esta relação era realizada, na medida em que era Socrates, pelo fato de manter-se
incessantemente em consonância consigo na atividade de pensar, quem se livrava a todo o
momento, de seus preconceitos, quem julgava se as opiniões emitidas por seus locutores eram
dignas de serem levadas em consideração e, assim, encaminhava seus interlocutores a julgar e
avaliar seus próprios preconceitos. É nessa perspectiva que podemos compreender o porquê
de, ao final dos diálogos socrático-platônicos, os participantes dos mesmos alcançarem uma
única certeza: a de não possuírem nenhum conhecimento sobre aquilo que outrora eles acha-
vam-se sabedores.
Contudo, a partir do que foi dito nesse momento de nossas reflexões, uma questão se
abre, diante do conjunto desta pesquisa: como fazer com que a relação que mantenho comigo
mesmo venha a influenciar aquelas que mantenho com os homens na esfera pública em “situ-
ações limites”? Em outras palavras, como fazer com que o pensamento se manifeste no mun-
do plural a partir do juízo se a esfera pública é suprimida nos regimes totalitários?
276
Segundo Andréa Nya: “O objeto do pensamento é o ser amigo de você mesmo. Nós pensamos para sermos
consistentes conosco mesmo; para sermos capazes de manter promessas a nós mesmos e também cumprir pro-
messas a outros que estão, ambas, explicitas e implícitas em nossas ações e palavras” (NYA. Philosophy: the
thought of Rosa Luxemburgo, Simone Weil and Hannah Arendt, p. 212 (Tradução nossa)).
277
(MORAES. Arendt e Heidegger: pensamento e juízo. In: ___. BIGNOTTO & MORAES. Hannah Arendt:
Diálogos reflexões e memórias, p. 99).
142
3.3. A Dissolução do Espaço Público e a Impossibilidade de se Julgar
Com o intuito de alcançar o objetivo traçado nessa pesquisa, ou melhor, compreender
a implicação política da faculdade de pensamento na filosofia política de Hannah Arendt, lan-
çaremos luz sobre a possibilidade de tal implicação ocorrer, bem como seu modus operandi.
Nossa intenção nesse passo em diante é analisar como se realiza a implicação política
do pensar em casos extremos, ou seja, em situações nas quais há o desaparecimento do espaço
público, e não de maneira geral, em situações em que a relação humana no espaço público é
garantida por leis e instituições.
Tendo, nos itens anteriores, analisado a compreensão arendtiana da ação política, em
seus traços constitutivos que mais nos interessavam, e de sua relação com o pensamento, res-
ta-nos adentrar no cerne do nosso estudo: refletir acerca da influência que a vida contemplati-
va pode exercer sobre a vida activa. Em nossos termos, isto significa debruçar-se sobre a im-
plicação política da faculdade de pensamento, que supostamente encontra-se restrita a relação
do pensamento com o juízo.
Para tanto, utilizaremos como fontes primárias uma passagem de A vida do espírito e
outra de Lições sobre a filosofia política de Kant, nas quais Hannah Arendt nos dota com
chaves teóricas para o entendimento de uma nova abordagem entorno da implicação política
da faculdade de pensamento.
Assim, iniciando pela passagem de A vida do espírito, salienta Arendt:
Quando todos estão deixando-se levar, impensadamente, pelo que os outros fazem e
por aquilo em que crêem, aqueles que pensam são forçados a mostrar-se, pois a sua
recusa em aderir torna-se patente, e torna-se, portanto, um tipo de ação. Em tais e-
mergências, resulta que o componente depurador do pensamento (a maiêutica de So-
crates, que traz à tona as implicações das opiniões não-examinadas e portando as
destrói valores, doutrinas, teorias, e ate mesmo convicções) é necessariamente po-
lítico. Pois essa destruição tem um efeito liberados sobre outra faculdade, a faculda-
de do juízo, que podemos chamar com alguma propriedade de a mais política das
capacidades espirituais humanas. É a faculdades que julga particulares sem subsu-
143
mi-los a regras gerais que podem ser ensinadas e aprendidas até que se tornem hábi-
tos capazes de serem substituídos por outros hábitos e regras.
278
Um dos fatores motivacionais da pesquisa ora em decurso foi, fundamentalmente, a
passagem acima citada. Contudo, essa motivação não se fez pura e simplesmente pela asserti-
va contida nessa passagem. De fato, o que mais nos motivou foi o questionamento se, de fato,
a “única” implicação política da faculdade de pensamento estava contida em seu efeito libera-
dor produzido sobre outra faculdade: a faculdade de julgar. Esse efeito liberador do pensar
sobre o julgar realiza-se da seguinte forma. Diante da necessidade momentânea que o pensar
tem de retirar-se do mundo das aparências, com o intuito de, ao manipular o dado sensível,
que para o ego pensante faz-se presente através da memória, buscar generalizar o particular,
esta faculdade necessita, quando retorna ao mundo fenomênico, do auxílio de outra faculdade:
o juízo. É nesse sentido que Arendt salienta que “quando essa faculdade [pensar] emerge da
sua retirada e volta ao mundo das aparências particulares, o espírito necessita de um novo
‘dom’ para lidar com elas”.
279
Assim, a relação do pensamento com o juízo encontra-se no fato do pensar, ao remo-
ver e expurgar do espírito humano os resíduos de preconceitos e opiniões não examinados,
retira qualquer tipo de empecilho que possa obstaculizar as atividades de julgar os particulares
sem subsumi-los a qualquer tipo de regra geral previamente estabelecida.
280
Isso se deve ao
278
ARENDT. A vida do espírito, p. 144.
279
Idem, p. 162. De fato, quando Hannah Arendt se refere à necessidade que o pensar possui de um novo "dom"
para se mover no mundo no qual a “pluralidade é a Lei da terra”, e como o juízo contribui para a aquisição desse
novo “dom”, Arendt está se referindo a capacidade que a faculdade do juízo tem de distinguir o bem do mal.
Nesse sentido, diz Ciaramelli: “L’évocation arendtianne du jugement dans le cadre de ses analyses de l’activité
de l’esprit s’axe autour de la corrélation etre l’activité de penser et la capacité de distinguer le bien du mal"
(CIARAMELLI. La responsabilité de juger, p. 65). É nessa mesma perspectiva que salienta Taminiaux: “... tout
cela montre assez que l’activité de penser ainsi entendue est propicie à l’activité de juger, et que le retrait néces-
saire à la première n’este que l’attente du retour de la seconde au monde apparent et commum qu’habite la plura-
lité" (TAMINIAUX. La fille de Thrance et le penseur profissionnel, p. 243).
280
Sobre essa relação do pensar com o julgar, diz Wellmer: “She [Arendt] managed to do that by relating think-
ing and judging in a highly peculiar way: thinking for Arendt is primarily a destructive rather than a constructive
activity that clears the ground and removes the obstacles for the exercise of the faculty of judgment. Those ob-
stacles are the false generalities like rules, concepts, or values that tend to determine our judgments as the decep-
tive safeguards of unreflective social life, the ‘wind of thought’ liberates the faculty of judgment as the faculty to
ascend, without the guidance of rules, from the particular to the universal; and most particularly as the faculty ‘to
tell right from wrong, beautiful form ugly’” (WEILLMER. Hannah Arendt on Judgment, p. 34).
144
fato de que no mundo das aparências, não regra ou norma absoluta que seja capaz de regu-
lar e determinar as ações humanas como um todo. É tornando os homens vazios de preconcei-
tos e opiniões não examinadas que o pensar libera, de qualquer tipo de amarra, a faculdade de
julgar para realizar sua atividade de julgar o particular.
Contudo, como pode haver a concretização da relação do pensamento com o juízo em
situações nas quais o espaço para a efetivação do juízo inexiste? Em outras palavras, o que
queremos dizer é que, em “situações limite” o advento dos regimes totalitários pode e deve
ser descrito como uma dessas “situações” – nas quais o espaço de convivência plural não mais
existe, quando a comunicação é emudecida e, assim, não como compartilhar os juízos e,
portanto, o poder de persuadir uma dada comunidade acerca do que é certo e o que é errado
torna-se nulo, não como atualizar a faculdade de julgamento. Nessa perspectiva, resta-nos
indagar: como efetivar a faculdade de julgar, descrita por Hannah Arendt como a mais política
das faculdades espirituais, se não há uma esfera que torne possível o juízo vir-a-ser?
As Lições sobre a filosofia política de Kant constitui-se em uma obra que nos uma
pista de como poderiam se encaminhar
281
às reflexões arendtianas acerca da faculdade de
julgar, caso nossa autora não fosse vitimada por um ataque cardíaco e, por esse motivo, viesse
a falecer e deixar inacabada sua última obra que trata fundamentalmente das três faculdades
espirituais: pensar, querer e julgar. Todavia, apesar dessa obra conter algumas indicações das
características elementares da faculdade de julgar, como veremos adiante, o que mais nos in-
teressa, para alcançarmos o objetivo dessa pesquisa, são as análises arendtianas acerca da su-
pressão, impostas pelos regimes totalitários, das possibilidades de ativação do juízo.
Nesse momento, gostaríamos de nos deter, mais umas vez, às palavras de Arendt, com
o propósito de deixarmos explícito o paradoxo que nesse momento estamos procurando enfa-
tizar. Assim, em uma passagem de Lições sobre a filosofia política de Kant, ela nos adverte
que:
145
O juízo, diz Kant, é válido “para toda pessoa individual que julga” (KANT, Crítica
do Juízo, Introdução, VII), mas a ênfase na sentença recai sobre “que julga”; ela não
é válida para aqueles que não julgam ou para os que não são membros do domínio
público onde aparecem os objetos do juízo.
282
Será a partir das duas referências às análises arendtianas, que procuraremos direcionar
as reflexões de nossa pesquisa.
O que pretendemos, ao fazer menção às duas passagens que acima transcrevemos, é
apontar para uma possível existência de uma outra via do que tange à implicação política do
pensar, via esta que terá como argumento fundante o fato de que as três faculdades espirituais,
a saber, o pensar o querer e o julgar, são autônomas, ou seja, independem uma das outras para
serem ativadas. Além de fundamentarmos nosso argumento sobre o fato de que as faculdades
espirituais são autônomas, nos deteremos nas palavras que Arendt enfatiza no trecho que aci-
ma citamos, ou seja, de que apesar da faculdade de pensamento possuir sua implicação políti-
ca ao liberar o indivíduo para que possa julgar o particular, a atividade de julgar “não é válida
para aqueles que não julgam ou para os que não são membros do domínio público”.
Gostaríamos de salientar, nesse ponto, que a faculdade de pensamento e a faculdade
do juízo, embora se relacionem, não podem ser confundidas nem tampouco subsumidas uma
na outra. Para que tal confusão teórica não venha a nos influenciar é importante que não es-
queçamos que as três faculdades espirituais além de serem autônomas, possuem suas próprias
características que as distinguem umas das outras. Apesar do fato de que, para compreender-
mos como o pensar pode possuir implicação prática, devemos nos reportar ao efeito liberador
produzido por esta faculdade sobre o juízo, o que desejamos, nessa pesquisa, é justamente
traçar uma linha distintiva entre essas duas faculdades espirituais, com o intuito de analisar a
implicação política do pensamento a partir tão somente desta primordial faculdade humana, o
que ocorre somente em “situações limites”.
281
A esse respeito, ver ARENDT. Lições sobre a filosofia política de Kant, p. 46 ss.
282
ARENDT. Entre o Passado e o Futuro, p. 275.
146
No intuito de tornar plausível a hipótese de nossa pesquisa, necessitamos descrever,
em seus elementos essenciais, a argumentação entorno da implicação prática do pensamento
que aponta para o fato de que esta implicação está restrita ao efeito liberador provocado pelo
pensar sobre o juízo, para que, posteriormente, possamos compreender como se realiza a im-
plicação política da faculdade de pensamento a partir do âmbito de atuação desta faculdade,
sem a necessidade de se reportar a outra faculdade. Para tanto, iremos, inicialmente, analisar
as principais características da faculdade do juízo, mesmo com as limitações metodológicas
próprias desse estudo, limitações estas que são oriundas do fato de a terceira parte de A vida
do espírito, a qual iria tratar dessa temática, não ter sido finalizada por Hannah Arendt. Feita
essa descrição da faculdade do juízo poderemos, munidos do entendimento de como se efetiva
essa atividade espiritual, analisar como pode haver implicação política da faculdade de pen-
samento, quando esta não pode contar com o auxílio do juízo a fim de manifestar-se no mun-
do das aparências.
Hannah Arendt, em um determinado momento de sua vida, mostrou-se entusiasmada
pela leitura da Terceira Crítica kantiana, a saber, Crítica da Faculdade de Julgar, pois via
nela a mais política das obras kantianas, a qual, como nos adverte Arendt, iria se chamar, ini-
cialmente, Crítica da Faculdade do Gosto.
283
É na perspectiva dessa primeira formulação da
Crítica kantiana e suas respectivas conseqüências que se encontram todas as análises arendti-
anas entorno dessa obra.
Para compreendermos o porquê de Arendt ter se interessado fundamentalmente pela
Terceira Crítica Kantiana, e como esta obra possui os elementos políticos que auxiliaram
283
Sobre o fascínio que a Terceira Crítica de Kant despertou em Hannah Arendt, escreve Cantista: “Não é tanto
na Crítica da Razão Prática, mas na Crítica da Faculdade de Julgar, primeiramente denominada por Kant como
Crítica da Faculdade do Gosto, que Hannah Arendt pensa encontrar o fio condutor para a reconciliação do filó-
sofo e do político. Quando, em 1957, relê esta obra, escreve a Jaspers: ‘É com um fascínio crescente que releio a
Crítica do Juízo de Kant. É lá, e não na Crítica da Razão Prática, que está escondida a filosofia política de Kant.
O elogio que faz do senso-comum; o fenômeno do gosto compreendido como fenômeno fundamental do juízo, o
‘modo do pensamento alargado’ que faz parte integrante do juízo, de maneira que possamos pensar a partir do
ponto de vista do outro; a exigência de comunicabilidade... sempre preferi este livro às outras Críticas de Kant,
147
nossa autora a analisar a ação político pelo viés de um agir impulsionado pela vida do espírito,
devemos lançar luz sobre o modus operandi do juízo, a saber: “imparcialidade”; “mentalidade
alargada”; “comunicabilidade” e “sensus communis”.
284
Na franja conceitual entorno das análises arendtianas do juízo, percebemos que, para
nossa autora, a faculdade do gosto possui todo um peso teórico no que diz respeito à política,
pelo fato de que o gosto, ao contrário dos outros quatro sentidos (tato, audição, visão e olfato),
ser discriminatório e referir-se ao particular, ao que é dado ao homem de forma imediata.
285
O sentido do gosto nos dá uma sensação de prazer desinteressado de qualquer outra finalidade
que não seja o puro cometimento desse prazer sentido, concepção essa que começa a traçar as
linhas que irão convergir para um entendimento do porquê de Hannah Arendt ter escolhido
esta obra de Kant para suas reflexões políticas. Assim, as análises com respeito ao gosto e a
política já começam, nesse passo, a convergirem. Isso porque, como vimos no capítulo anteri-
or, aão política não pode ter outra finalidade do que o próprio cometimento da ação execu-
tada, ou seja, seu fim é em si mesmo.
286
Arendt diz que as questões e matérias relacionadas à faculdade do gosto dizem res-
peito ao ambiente plural e, nesse sentido, ganham plausibilidade de existência em socieda-
mas nunca me tinha tocado antes, desta maneira” (CANTISTA. O político e o filósofo no pensamento político de
Hannah Arendt, p. 46-47).
284
Segundo André Duarte, “Os critérios críticos de discriminação e verificação da ‘validade específica’ a que
almejam os juízos políticos se encontram nos conceitos de ‘mentalidade alargada’, ‘imparcialidade’, comunica-
bilidade’ e ‘sensus communispor meio dos quais a autora [Hannah Arendt] buscou esclarecer o modus operandi
do juízo” (DUARTE. O Pensamento à Sombra da Ruptura, p. 360).
285
A esse respeito, salienta José Luiz de Oliveira: “O sentido do gosto difere dos demais, porque nele ‘a questão
é: ‘eu sou diretamente afetado’” (ARENDT. Lições sobre a filosofia política de Kant, p. 85). Assim, “o juízo do
gosto, como sentido, acontece sem imposições, e isso faz dele um sentido não autoritário. Daí a relação existente
entre juízo do gosto e juízo político” (OLIVEIRA. A Faculdade do Juízo no Pensamento Político de Hannah
Arendt, p. 118 e 119).
286
Segundo André Duarte, “Para Arendt, as categorias de meios e fins mostram-se inadequadas para julgar os
eventos históricos, pois jamais o espectador ajuizante poderá estar certo de que realmente conhece o fim intenta-
do da ação, tal com definido pelo agente, tanto quanto este, por sua vez, jamais poderá estar certo de poder real-
mente atingi-lo, visto que toda ação política incide sobre uma teia de relações humanas’ que lhe antecede, tor-
nando-a imprevisível. O que não significa que as palavras e atos dos atores políticos sejam destituídos de senti-
do, pois, por si mesmos, revelam-nos o ‘quem’ do agente e a própria ‘grandeza’ de seus atos e palavras como
‘aparecem’ aos olhos dos espectadores; e ‘a grandeza ... ou o significado específico de cada ato pode residir
no próprio cometimento, e não nos motivos que o provocaram ou no resultado que produz’” (DUARTE. In. ____
ARENDT. Lições sobre a filosofai política de Kant, p. 121).
148
de, pois segundo a mesma, se não vivêssemos em sociedade,
287
juízos tais como: “isso é be-
lo”, “isso é feio”, “isso me agrada” e “isso me desagrada”, não teriam nenhum sentido. Essa
característica do juízo está atrelada a outras que dão sustentabilidade a essa faculdade espiri-
tual para que ela seja considerada a mais política de todas as outras duas – pensar e querer.
Embasada em precisos fundamentos teóricos, Hannah Arendt pôde reivindicar ao juízo
do gosto ser denominado de juízo reflexionante em face à sociabilidade inerente à nossa capa-
cidade de degustar as coisas do mundo e trazer à nossa presença os possíveis gostos alheios,
no intuito de operar uma aceitação por parte da comunidade circundante. Assim, outro desses
traços característicos do juízo, atrelado ao seu pertencimento ao mundo das aparências, é a
“mentalidade alargada”, a qual está intimamente ligada à “imparcialidade” do observador que
julga o espetáculo da vida.
Podemos dizer que na compreensão arendtiana da faculdade do juízo o principal per-
sonagem é o espectador, sem o qual não haveria nenhuma possibilidade do mundo dos ho-
mens ser julgado. Aliás, não devemos e não podemos nos referir ao papel do espectador na
obra de Arendt, como se este existisse no singular. É pelo fato de um mesmo objeto ou evento
aparecer a diversos homens e, nesse sentido, proporcionar o advento de inúmeros e diversos
pontos de vista, que devemos, com maior plausibilidade, falar da importância dos espectado-
res na obra de nossa autora.
288
É no distanciamento dos espectadores em relação à ão reali-
zada e na “imparcialidade” e desinteresse no juízo que eles formam, acerca do evento, que se
encontra a chave da análise arendtiana acerca do julgar.
Nesse sentido, quando os espectadores, mergulhados no cometimento prazeroso da
contemplação das ações humanas, devem, para dar sustentação ao juízo por eles emitidos,
fazer com que seus espíritos alarguem-se o máximo possível. Dito em outras palavras, os es-
287
Sobre isso, ver ARENDT. A vida do espírito, p. 377.
288
A esse respeito, diz Abensour: “(...) l’acte de juger n’est pas indépendant des perspectives des autres hommes.
Aussi, les spectateurs ne sont-ils pas solitaires, ni ils ne recherchent la solitude" (ABENSOUR. Hannah Arendt
contre la philosophie politique?, p. 205).
149
pectadores devem trazer à sua presença, a partir de sua capacidade imaginativa, uma comuni-
dade de seres judicantes e, assim, comparar seus juízos com os possíveis juízos alheios e, des-
sa maneira, colocar-se no lugar do outro.
289
Devemos dizer que a operação realizada pela imaginação prepara o objeto, que nesse
momento faz-se ausente, para o processo reflexionante estético. Ou melhor, o que em princí-
pio constitui-se em uma atividade do sentido do gosto, no qual o que há é a prerrogativa do
“agrada” ou do “desagrada”, manifestados pela distinção do dado particular,
290
no qual nos
expressamos dizendo: “isso é belo” ou “isso é feio”, passa, a partir da atividade reflexiva, a
constituir um juízo de valor, no qual o que é a escolha do que “aprovo” ou “desaprovo”.
Essa passagem do mero deleite prazeroso para uma atividade de cunho reflexionante somente
foi possível pelo fato dos espectadores terem levado em consideração os pontos de vistas dos
outros.
291
O alargamento do espírito acontecerá, caso a perspectiva dos espectadores possua
uma conotação desinteressada e imparcial, como acima apontamos,
292
pois somente absten-
do-se de qualquer tipo de interesse ou finalidade, mas simplesmente tendo como premissa a
preocupação de fazer com que os demais espectadores concordem com a emissão do meu
juízo, posso fazer com que um número cada vez maior de judicantes esteja ao meu lado. É por
isso que o juízo, no entendimento arendtiano, pode ser compreendido como uma faculdade
persuasiva, uma vez que esta faculdade espiritual não está embasada por uma verdade que
coage, pela força de sua evidência, a concordância dos membros de uma determinada comu-
nidade. Ao contrário, o juízo se pauta pela emissão de opiniões que procuraram à adesão de
todos, ou do maior número possível de indivíduos, acerca do julgamento emitido.
293
289
A esse respeito, ver ARENDT. A vida do espírito, p. 370.
290
Segundo André Duarte: “Para Arendt, o juízo reflexionante estético, por sua vez, lida com que é ‘contingente’
e ‘particular’, incide sobre os fenômenos do mundo e os julga belos ou não, corretos ou não, sem dispor de
quaisquer conceitos a priori, tendo em vista apenas um ‘prazer’ meramente contemplativo ou satisfação inativa
(untatiges wohlgefallen)” (DUARTE. A dimensão política da filosofia kantiana, p. 79).
291
Sobre isso, ver DUARTE. O Pensamento à sombra da Ruptura, p. 364 ss.
292
ARENDT. Lições sobre a filosofia política de Kant, p. 56.
293
A esse respeito, ver DUARTE. In. ____ ARENDT. Lições sobre a filosofai política de Kant, p. 123.
150
É interessante notar, nesse ponto, como Arendt, ao reivindicar que o juízo está pautado
no nosso sentido de gosto, procura revitalizar a opinião em detrimento da tirania da verdade.
Para nossa autora, em questões de política o que está em pauta são as opiniões formuladas
acerca das ações humanas que trazem como marca indistinta a contingencialidade e não uma
suposta necessidade que nos compele a acreditar que as coisas são assim porque deveriam ser:
uma verdade sem nenhum tipo de embasamento na realidade humana.
294
Depreende-se daí a necessidade que os homens têm de comunicar
295
seus juízos a uma
comunidade de seres judicantes, que estão ouvindo e podem ser ouvidos, os quais, ao aderi-
rem, em um consenso, a um dado juízo, fazem com que essa postura credibilidade ao juízo
compartilhado e atestado por todos.
296
É importante, nesse sentido, notar que os homens so-
mente poderão emitir seus juízos se forem membros de uma comunidade. Assim, não co-
mo haver juízo fora do espaço público, pois, pelo fato dos objetos do juízo nascerem das a-
ções humanas e, assim estarem necessariamente relacionados a elas, tais objetos somente po-
dem aparecer em um espaço público e plural da aparência.
297
É nessa perspectiva que pode-
mos dizer que o juízo dos espectadores cria um espaço público a partir da ação desinteressada
294
Ao contrário das análises heideggerianas, as quais, segundo Arendt, viam a opinião como uma forma de ocul-
tar a verdade, nossa autora procura, a partir da fenomenologização da vida do espírito, valorizar a opinião, como
salientamos no primeiro capítulo de nossa pesquisa. É nesse sentido que diz Assy: “Heidegger, on the contrary,
mainly attributes perversion and distortion to opinion. As well formulated by Villa, he ‘creates a clear raking of
authentic, wresting, 'bringing-into-the-light,' on the one hand, and the inauthentic, obscuring character of every-
day opinion and discourse, on the other.’ It is worth mentioning how Arendt, differing from Heidegger's concep-
tion, appropriates the pathos of doxa in the sense of appearance — as the triumph of opinion —, in order to posi-
tively enhance appearance” (ASSY. Prolegomenon for an ethics of visibility in Hannah Arendt, p. 08). É nessa
mesma franja conceitual que Abensour se expressa da seguinte maneira sobre a ligação entre opinião e juízo: “Le
lien indissoluble entre opinion et jugement: c’est de la confrontation des opinions que naît l’aptitude à juger;
inversement l’exercice du jugement sauve l’opinion. Em effect, rouvrir la question de la valeur de l’opinion dans
la perspective du jegement entraîne à réhaniliter l’opinion, en rupture avec Platon et la tradition platonicienne si
dépréciative" (ABENSOUR. Hannah Arendt contre la philosophie politique?, p. 174).
295
Arendt diz que a comunicabilidade estabelece-se como algo de suma importância na constituição da condição
humana, "Pois é uma vocação natural da humanidade comunicar e exprimir o que se pensa, especialmente em
assuntos que dizem respeito ao homem enquanto tal” (ARENDT. A dignidade da política, p. 53).
296
Sobre isso diz Taminiaux: «De même que l’originalite du créateur ne pourrait être perçue s’il était incapable
de se faire comprendre grâce au jugement, de me la nouveauté de l’acteur’ politique dépend de l’aptitude
qu’il a, ‘grâce à son jugement’, ‘de se faire compredre de ceux qui ne sont pas acteurs’» (TAMINIAUX. La fille
de Thrance et le penseur professionnel, p. 239).
297
Nesse sentido, salienta José Luiz de Oliveira: Os objetos do juízo estão relacionados à ação humana. Daí ser
o domínio público o espaço da realização do juízo enquanto faculdade humana, porque é no ‘domínio público
151
daqueles espectadores que estão distantes o suficiente dos afazeres humanos e, assim, po-
dem emitir um juízo imparcial acerca do particular.
298
Todas essas características fomentadoras da faculdade do juízo “imparcialidade”;
“mentalidade alargada” e “comunicabilidade” –, as quais poderíamos, com plausibilidade,
chamá-las de categorias mantenedoras do espaço público,
299
convergem para formar o cerne
do juízo na perspectiva arendtiana, ou seja, osensus communis”. Este deve ser compreendido
como o sentido comunitário que capacita os homens a julgarem, ao ajustá-los a uma comuni-
dade a partir do sentido de realidade.
Para Arendt, seguindo de perto as análises kantianas, o sensus communisé o oposto
do sensus privatus”, o qual isolaria os homens do contato com os demais, na medida em que
os privaria de antecipar os pontos de vista dos demais judicantes, eliminando qualquer possi-
bilidade de haver comunicação acerca da realidade humana.
300
Hannah Arendt compreende, na sua linha interpretativa dos conceitos kantianos conti-
dos na Crítica da Faculdade de Julgar, que o “sensus communis
301
constitui-se em um sexto
que aparecem os objetos do juízo’” (OLIVEIRA. A Faculdade do Juízo no Pensamento Político de Hannah
Arendt, p. 124).
298
Segundo Arendt, “A condição sine qua non para a existência do objeto belo é sua comunicabilidade; o juízo
do espectador cria o espaço sem o qual não seria absolutamente possível a aparição de tais objetos. O domínio
público é constituído pelos críticos e pelos espectadores, e não pelos atores ou artesão” (ARENDT. A vida do
espírito, p. 374).
299
A esse respeito, ver OLIVEIRA. A Faculdade do Juízo no Pensamento Político de Hannah Arendt, p. 21.
300
A esse respeito, ver ARENDT. A vida do espírito, p. 375. Nesse sentido, salienta Souki: “(...) o senso comum
é uma categoria capital para a reflexão sobre o fato político, porque ele é, precisamente, o contrário do isolamen-
to que age sobre a vida na aniquilação da esfera política. Aqui o senso comum se caracteriza como o sentido do
real, condicionando o indivíduo a se relacionar com a realidade do mundo em que vive, a dominá-la, julgá-la, a
se adaptar, a modificá-la, enfim, de ser ele” (SOUKI. Hannah Arendt e a banalidade do mal, p. 127).
301
Não é da competência desse estudo detalhar alguns conceitos acerca da faculdade do juízo, entre eles aquele
referente ao sensus communis”. Contudo, gostaríamos de apontar para a existência de análises acerca desse
conceito no pensamento de Hannah Arendt que se referem a uma dupla concepção do mesmo, os quais essa
pensadora procura unificá-los em seu modo próprio de analisá-los, ou seja, o que ela pretende é realizar um a-
málgama entre o sensus communis de Tomás de Aquino e o de Kant. O primeiro seria um sexto sentido, cuja
incumbência seria a de reunir os cinco sentidos em uma representação comum e o segundo seria um princípio a
priori que possibilita a comunicação universal dos juízos. É sobre essa dupra concepção do sensus commnus e a
tetiva arendtiana de unificá-los que se referte Abensour ao dizer que: “À confronter La Vie de l’espirit et lês
conférences sur la philosophie politique de Kant, il semblerait que coexistent dans la pensée d’Arendt deux ac-
ceptions du sensus communis: l’une venue plutôt de Thomas d’Aquin qui ferait du sensus communis un sens du
réel, l’autre reprise de Kant que verrait das le sensus communis le principe a priori, la condition de possibilité de
la communicabilité universelle des jugements esthétiques portant sur le beau. Peut-être Arendt, dans l’œuvre
inachevée sur le jugement se serait-elle donnée por tâche sinon d’unifer les deux acceptions tout au moins de les
articuler" (ABENSOUR. Hannah Arendt contre la philosophie politique?, p. 191).
152
sentido misterioso, que ajusta os homens a vislumbrar seus juízos como pertencentes a uma
comunidade universal, na qual todos poderão compreender o juízo dos demais ao se coloca-
rem imaginativamente no lugar do outro, fazendo com que possam comunicar as experiências
e juízos com os outros homens.
Quando Arendt define o sensus communis como “o efeito de uma reflexão sobre o
espírito”
302
, o que ela pretende é dizer que a partir do momento em que, pela operação da
imaginação que traz de volta à nossa presença um objeto que outrora foi degustado por nós,
refletimos sobre o mesmo e exigimos que essa reflexão imprima no espírito a consideração
dos possíveis juízos dos outros indivíduos acerca desse objeto. Esta operação da reflexão faz
com que os homens percebam que são parte integrante de uma comunidade. Dito em outras
palavras, o juízo, na medida em que é uma faculdade cuja atividade necessita da presença dos
outros, apela para que o “sensus communis habite e faça presença em cada um dos homens.
Assim, o sensus communis”, na perspectiva de Hannah Arendt, é a forma de repre-
sentar a todos os possíveis indivíduos judicantes, eliminado qualquer forma que pudesse limi-
tar o juízo pronunciado pelos espectadores.
303
Essa capacidade humana faz brotar nos ho-
mens sentimentos públicos, ou seja, uma capacidade de haver nos homens um amor pelo
mundo (Amor Mundi), pela preservação de um lugar comum que leva em consideração o exis-
tir e o opinar de cada membro de um espaço público.
304
Para que o “sensus communis alcance sua atualização, ou seja, seja capaz de levar em
consideração o sentimento de se pertencer a uma comunidade de seres racionais que julgam,
302
ARENDT. Lições sobre a filosofia política de Kant, p. 92.
303
Acerca do sensus communis diz Wellmer: “However, by the name sensus communis is to be understood the
idea of a public sense, i.e., a critical faculty which in its reflective act takes account (a priori) of the mode of
representation of everyone else, in order, as it were, to weigh its judgment with the collective reason of mankind,
and thereby avoid the illusion arising from subjective and personal conditions which would readily by taken for
objective, an illusion that would exert a prejudicial influence upon its judgment. This is accomplished by weigh-
ing the judgment, not so much with actual, as rather with the merely possible, judgments of others, and by
putting ourselves in the position of everyone else, as the result of a mere abstraction from the limitations which
contingently affect our own estimate” (WELLMER. Hannah Arendt on Judgment, p. 40).
304
Sobre isso, ver ASSY. Sensus communis: exercício da condição humana para uma concepção de sensibili-
dade civilizadora. In. ____ CORREIA (org). Hannah Arendt e a condição humana, p. 316ss.
153
levando em consideração os demais pontos de vista, é necessário dar validade universal ao
juízo formulado, pois, do contrário, não haveria condições dos juízos serem compreendidos
por um número ilimitado de indivíduos, que a vida em comum necessita de generalizações
para que a realidade seja compreendida. Dito em outras palavras, se é fato, como observa A-
rendt, que o juízo lida com particulares sem subsumi-los a regras gerais,
305
contudo é neces-
sário que este juízo pretenda ver o todo a partir do particular, com o intuito de fomentar e-
xemplaridades que nasçam do evento observado. É nessa perspectiva que Arendt absorve a
concepção kantiana de esquema,
306
compreendendo que quando o juízo aponta para uma par-
ticularidade, o que ele pretende é revelar o todo como um exemplo a ser seguido. É como se o
indivíduo judicante estivesse dizendo: “todas as ações deveriam ser como esta ação particular
que tenho diante de meus olhos”. O que queremos dizer, na esteira do pensamento arendtiano,
é que os exemplos, fomentados a partir de ações particulares, constituem o veículo de persua-
são da faculdade do juízo. Deste modo, como nos diz Arendt: “os exemplos nos guiam e con-
duzem, e assim o juízo ‘adquire validade exemplar’”.
307
Depois de termos feito uma análise entorno de como a faculdade do juízo é liberada
pela atividade de pensar de qualquer entrave que pudesse comprometer sua ativação, bem
como de alguns conceitos que definem a atividade de julgar, resta-nos formular algumas ques-
tões embasadas na seguinte assertiva. É da alçada do totalitarismo impedir qualquer tipo de
confrontação de opiniões dos homens e, assim, destruir toda possibilidade de que os homens
possam vislumbrar os demais pontos de vista, fazendo com que a vida pareça ser regida por
uma única e grade verdade que a todos coage de maneira irresistível. Assim, quando a esfera
pública é dizimada da existência humana, como julgar um evento inédito, como o foi o adven-
to dos regimes totalitários? Como comunicar aos demais nossos juízos sobre os horrores do
305
ARENDT. A vida do espírito, p. 370 ss.
306
“(...) o que torna comunicáveis os particulares é que ao percebermos um particular nós temos no fundo de
nosso espírito um esquema cuja forma seja característica de muitos desses particulares” (ARENDT. Lições sobre
a filosofia política de Kant, p. 105).
154
Terceiro Reich, juízos que devem condenar esse fenômeno do século XX e, assim, procurar
superar os tempos sombrios? Se, de fato, para se julgar é necessário ser membro de uma co-
munidade e, assim, estar no convívio dos pares em um espaço público, como essa afirmativa
mantém seu grau de plausibilidade diante do fato de que os regimes totalitários dilaceraram o
espaço público e as possibilidades de ação e comunicação entre os homens?
308
O que queremos dizer é que o totalitarismo surge no cenário político como uma novi-
dade, pelo fato de, como vimos anteriormente, não se contentar em destruir a liberdade huma-
na de viver e agir junto aos seus pares e, assim, condenar o homem ao isolamento; mas, acima
de tudo, fazer com que esse isolamento alcance seus limites extremos, tornando-se solidão:
aquela experiência de não estar somente abandonado pelos seus pares, mas, acima de tudo, de
não ter o próprio eu para lhe fazer companhia.
309
O que todo esse ambiente tornou possível
foi a redução do homem a um ser de reações previsíveis, cuja única preocupação é a manuten-
ção de sua vida em estado biológico.
310
Nessa perspectiva, é inevitável formular as seguintes perguntas. Que tipo de superação
pode o juízo provocar em relação aos “tempos sombrios” se, para tanto, é necessário que a
faculdade de julgamento instaure um espaço público para que os juízos possam se manifestar
e reivindicar a adesão dos demais indivíduos se, o mesmo (espaço plural), foi minado pelas
bases com o advento do totalitarismo? Segundo Albrecht Wellmer o que é necessário “são
condições institucionalizas sobre as quais todos têm uma chance para desenvolver seu juízo
político, moral ou estético”.
311
Assim, como haver condições institucionalizadas que garan-
tam a ativação do juízo, se a livre propagação das leis da natureza e da história constituem-se
como fundamento dos regimes totalitários e essas (as leis da natureza e da história) têm como
307
ARENDT. Lições sobre a filosofia política de Kant, p. 107.
308
A esse respeito, diz Duarte: “As sociedade totalitárias elevam ao paroxismo as dificuldades que se impõem ao
exercício do pensamento e do juízo, na medida em que dilaceram o espaço público e minam pela base a possibi-
lidade da interação comunicativa” (DUARTE. O Pensamento à Sombra da Ruptura, p. 348).
309
A esse respeito, ver ARENDT. Origens do totalitarismo, p, 527 ss.
310
Sobre isso, ver o Capítulo II de nossa dissertação.
311
WELLMER. Hannah Arendt on Judgment, p. 48 (Tradução nossa).
155
objetivo eliminar da face da Terra a pluralidade humana? Essa eliminação significa a conco-
mitante supressão da possibilidade de haver juízos, os quais sem a perspectiva de pontos de
vistas diversos, perdem sua característica principal.
Que os regimes totalitários não alcançaram seu objetivo principal é claro e notório, ou
seja, não conseguiram extinguir da face da terra a pluralidade humana e, assim, mantiveram
intactas as possibilidades para que o juízo possa ser ativado. Contudo, da mesma forma, é
claro e notório que o espaço para que os homens pudessem aparecer aos demais com palavras
e ações e, assim, colocassem à disposição, para serem avaliados, seus juízos acerca dos even-
tos da Segunda Guerra Mundial, foi destruído pela base nos “tempos sombrios”.
Nesse âmbito, em nosso entendimento, é preciso “descobrir” uma outra maneira de pa-
ra superar o advento do totalitarismo, pois a manifestação do “vento do pensamento”, dado o
esfacelamento do espaço público, não pode ser percebida, ou seja, o efeito liberador do pensar
sobre o juízo não pode ser concretizado diante da impotência do espaço plural em agregar os
diversos pontos de vista. É preciso vislumbrar algo que tenha a capacidade de “resistir” aos
regimes totalitários, mas que esteja contido na própria atividade de pensar, pois em “situações
limites”, julgar o novo tornou-se uma tarefa quase impossível diante da nulidade da certeza de
se pertencer a um mundo plural e poder ver o mundo como habitado pelo “nós”.
312
312
Nossa aposta é que, com o esfacelamento da esfera pública, fica obstruída qualquer possibilidade de se julgar
por conta própria, como reivindica Arendt, pois, no nosso entendimento, em situações nas quais um completo
esfacelamento da esfera pública, esta situação mina pela base as categorias principais da atividade de julgar.
Assim, mesmo que atentemos às seguintes palavras de Hannah Arendt: “o que exigimos... é que os seres huma-
nos sejam capazes de distinguir o certo do errado mesmo quando todos eles têm a guiá-los seu próprio julgamen-
to, o qual... pode estar em completa discordância com aquilo que eles devem encarar como opinião unânime de
todos aqueles à sua volta (ARENDT. Eichmann em Jerusalém, p. 302), percebemos que nossa autora possuía a
certeza de que em “situações limites”, aqueles que pensam são forçados à mostra que sua recusa em aderir ao
156
3.4. As “Situações Limites” e “A Resistência”
Hannah Arendt, repetidamente, diz que o objetivo fundamental de toda ação política é
revelar o ser do ator, ou seja, o “quem”, o agente da ação implementada, como vimos na pri-
meira parte desse capítulo. Caso isso não ocorra, a ação passa a ser vista sob a perspectiva
instrumentalista de meios e fins, o que faz com que ela perca sua razão primeira de existir.
Para que a revelação do agente da ação ocorra é necessário existir um espaço que lhe propor-
cione tal epifania.
Este “quem” da ação é o indivíduo, capaz de discernir entre o certo e o errado, entre o
bem e o mal, pela faculdade do juízo, que se constitui como um efeito liberado pela faculdade
de pensamento, que ao expurgar o indivíduo de suas opiniões não examinadas, faz com que
ele possa ajuizar, de maneira imparcial, um dado problema e, assim, possa agir de maneira a
não visar nenhuma ação normativa ou instrumental.
Para alcançar tal êxito na ação realizada é preciso, fundamentalmente, que haja espa-
ços públicos que iluminem a aparição do “quem” da ação. Porém, diante do colapso da esfera
pública na contemporaneidade, levado a seus limites extremos pelos regimes totalitários, sur-
gem os seguintes questionamentos, os quais estão pautando as análises de nossa pesquisa:
Como levar a cabo tal empreitada? Como tornar manifesto a ligação entre pensamento e juízo
se não há um locus competente para tanto?
Como dissemos anteriormente, nossa aposta argumentativa de que implicação polí-
tica na faculdade de pensamento, não de maneira indireta, mas de maneira direta, apóia-se no
fato de que, tendo em vista a autonomia das atividades espirituais, a relação entre o pensa-
mento e a política não se restringe ao efeito liberador produzido pelo diálogo silencioso do
dois-em-um sobre a faculdade do juízo.
que a moda do dia prescreve para uma dada sociedade aparece como um tipo de ação política (ARENDT. A vida
do espírito, p. 144).
157
Desse modo, em nosso entendimento, devido a esta autonomia das faculdades espiri-
tuais, acima exposta, e diante do esfacelamento da esfera pública, que se constitui naquilo que
Arendt, a exemplo de Jaspers, denomina de “situação limite”,
313
a relação entre a faculdade
de pensamento e as ações políticas se realiza de maneira específica. Assim, na perspectiva da
“situação limite”, a relação entre pensamento e política encontra-se no fato de que a primeira,
dada a sua característica de destruição das opiniões não examinadas, faz com que o indivíduo,
atônito diante da ausência de significado das regras e preceitos ora em vigor, “resista” em face
ao que a moda do dia prescreve para uma dada sociedade.
O que pretendemos demonstrar é que, como adverte Hannah Arendt “os princípios pe-
las quais agimos dependem, em ‘última instância’, da vida do espírito”
314
e, nesse sentido, da
atividade de pensar. Essa “última instância” se caracteriza como sendo as “situações limites”,
nas quais estão inseridas as sociedades contemporâneas, com o total esfacelamento da esfera
pública, ou seja, de um local propício para que haja a ação conjunto de homens entorno de um
objetivo comum. Nessas “situações limites”, aqueles que se engajam no diálogo sem som do
dois-em-um pensar ao se recusarem a aderir a regras de conduta não examinadas, fazem
com que esta postura seja um tipo de ação, uma “resistência” diante de situações destituídas
de significação. Este tipo de ação torna-se mais explícita quando nos voltamos para a postura
do povo dinamarquês durante o Terceiro Reich, que se configura como uma história que, se-
gundo Hannah Arendt, “deve ser recomendada a todos os estudantes em ciências políticas que
queiram avaliar a força da ação não violenta e da resistência passiva quando o adversário dis-
põe de meios violentos e muito mais poderosos”.
315
Arendt elogia de maneira enfática a postura do povo dinamarquês durante a Segunda
Guerra Mundial, demonstrando que esta (a postura dinamarquesa) deve ser compreendida
como uma não ação que, diante do advento do regime totalitário uma “situação limite”
313
A esse respeito ver ARENDT. A vida do espírito, p. 144.
314
Idem, p. 56.
158
torna-se um tipo de ação política. De que maneira esta não ação do povo dinamarquês influ-
enciou, como um “exemplo”, a outros para que desenvolvessem a mesma postura, será anali-
sado com mais detalhe no próximo passo de nossa pesquisa. Por hora, gostaríamos de salien-
tar o seguinte ponto: diante da impossibilidade de se agir de maneira conjunta, pelo fato de
não haver uma esfera propícia a tal empreitada e, assim, não podendo o pensar manifestar-se
no mundo das aparências por intermédio do juízo, que descrimina o certo do errado, direcio-
nando as ações humanos no espaço plural, é preciso pensar uma outra forma de se contrapor
aos horrores cometidos pelo Terceiro Reich. Essa outra forma de se contrapor aos horrores
totalitários também deve servir como uma bússola a direcionar os homens das sociedades con-
temporâneas, as quais Arendt, de maneira correta, denomina de “prototalitárias”,
316
para que
encontrem uma via alternativa que lhes proporcionem sair do transe de nosso tempo, que se
tornou mais agudo com o fim dos regimes totalitários. Fim que trouxe consigo a certeza de
que os elementos constituidores dos “tempos sombrios” continuam a ser uma ameaça enraiza-
da no âmago de nossa existência.
Em outras palavras, o que acontece quando não se pode agir numa esfera pública é a
supressão da manifestação da condição humana da vivência plural em ações e palavras; é a
supressão de se poder cuidar do mundo visando o bem comum; é a supressão da espontanei-
dade e autonomia humana em detrimento de se ter a vida humana guiada pela “mão invisível
do destino”, que direciona e governa o agir humano de uma esfera distante do mesmo, como
se os homens tivessem nascidos com um destino previamente traçado, que não pode ser mu-
dado por nenhuma ação. Diante deste quadro, é preciso haver uma possibilidade de se contra-
315
ARENDT. Eichmann em Jerusalém, p. 199.
316
A esse respeito, evidencia Odílio Aguiar nesses termos: “Partimos da convicção de que Arendt estava correta
quando afirmou que as sociedades contemporâneas possuem uma tendência prototalitária. Disse ela no final de
Origens do totalitarismo: ‘Pode ser que os verdadeiros transes do nosso tempo somente venham a assumir a sua
forma autêntica embora não necessariamente a mais cruel quando o totalitarismo pertencer ao passado’”
(ODÍLIO, A resistência em Hannah Arendt: da política à ética, da ética à política. In: ___. DUARTE (Org). A
banalização da violência: a atualização do pensamento de Hannah Arendt, p. 247).
159
por a este legado político que os regimes totalitários deixaram para as gerações vindouras,
mesmo que esta contraposição, a princípio e em “situações limites”, seja uma não ação.
Antes de prosseguirmos com a análise que estamos realizando, entendemos que é im-
portante salientar que a resistência” sob a qual estamos lançando luz, com o intuito de com-
preender como se a implicação política da faculdade de pensamento, dista enormemente
daquilo que Arendt denomina de “desobediência civil”.
317
Assim, o que Hannah Arendt cha-
ma de “desobediência civil” é uma espécie de resistência levada a cabo por um grupo de pes-
soas entorno de um objetivo comum, mas nunca por indivíduos isolados.
318
Essa desobediên-
cia ocorre perante situações nas quais as leis em vigor levam à prática de injustiça e de opres-
são. Diante de tal quadro, segundo a perspectiva arendtiana, deveria tornar-se legítimo poder
desobedecer a tais leis com o propósito ou de aboli-las ou de aperfeiçoá-las. Essa “desobedi-
ência civil” é levada a cabo por uma minoria com identidade de interesses, cuja consciência
individual pode, no máximo, fazer com que cada indivíduo em particular venha a aderir a tal
manifestação, mas nunca sua consciência isolada fará com que as coisas mudem, caso ele não
venha a aderir a essa identidade de interesses.
319
Nessa perspectiva argumentativa, torna-se manifesto o fato de que na “desobediência
civil” o que está em jogo é a epifania da figura do “bom cidadão”, para o qual a preocupação
317
Sobre isso, ver ARENDT. Crises da República, p. 49 ss.
318
Segundo Arendt, deve-se diferenciar a consciência individual ou atos individuais que se manifestam por pre-
ceitos ou imperativos morais, da ação coletiva realizada por uma minoria contrária a política de um governo.
Assim, “Argumentos levantados em prol da consciência individual ou de atos individuais, ou seja, os imperati-
vos morais e os apelos à ‘mais alta lei’, seja ela secular ou transcendente, são inadequados quando aplicados à
desobediência civil; neste nível será não somente difícil’, mas impossível ‘impedir a desobediência civil de ser
uma filosofia subjetiva... intensa e exclusivamente pessoal, de modo que qualquer indivíduo, por qualquer razão,
possa contestar’ (...) A desobediência civil aparece quando um número significativo de cidadãos se convence de
que, ou os canais normais para mudança não funcionam, e que as queixas não serão ouvidas nem terão qual-
quer efeito, ou então, pelo contrário, o governo está em vias de efetuar mudanças e se envolve e persiste em
modos de agir cuja legalidade e constitucionalidade estão expostas a graves dúvidas” (ARENDT. Crises da Re-
pública, p. 55, 56 e 68).
319
Para Júlia Kristeva “A dimensão pública da desobediência civil demonstra que ela nunca é um ato isolado de
um indivíduo, mas sempre uma ação de grupo. Assim, a consciência subjetiva pode levar um indivíduo a unir-se
a um grupo, mas é na ação conjunta, e não na consciência individual, que reside o poder da desobediência civil”
(KRISTEVA. O gênio feminino, p. 232). Nessa mesma perspectiva, segundo Sylvie, “Na desobediência civil o
que se tem, de fato, é um grupo reunido em torno de um interesse comum ou de uma decisão comum, cuja eficá-
cia para as modificações desejadas depende do número e da força de convicção das opiniões dessa minoria, a
160
com o mundo é mais urgente e importante do que a preocupação com sua alma, ou seja, seu
eu individual.
Como dissemos acima, a partir do exemplo de Sócrates, “que preferia estar em desa-
cordo com o mundo inteiro do que consigo mesmo”, o cuidado com a alma parece estar situa-
do em uma posição de descaso em relação ao cuidado com o mundo. Contudo, esta assertiva
não é verdadeira, pois esta preocupação não está em rota de colisão com a preocupação com a
política. momentos em que a manifestação do “bom cidadão” torna-se inviável e, assim, a
manifestação do “bom homem” é a única imagem capaz de iluminar e dissipar as trevas que
encobrem uma dada sociedade em “situações limites”.
320
Queremos, mais uma vez, enfatizar aquilo que para nós constituem-se como palavras-
chaves para a compreensão de nossa hipótese de pesquisa, ou seja, as “situações limites”. É
tão somente diante delas que a implicação política da faculdade de pensamento ganha uma
nova roupagem, que dista daquela que comumente os intérpretes, acertadamente, dão à ativi-
dade de pensar. Em outras palavras, somente diante de “situações limites”, nas quais o “bom
cidadão” está privado de um lugar especifico que possa iluminar sua existência e, consequen-
temente, suas palavras e ações que, para serem políticas devem estar destituídas de qualquer
tipo de interesse particular, mas que somente visem o cuidar do mundo, é que a implicação
política do pensamento funda-se a partir da paralisia inerente ao parar-para-pensar que, em
nossos termos, constitui-se como sendo a “resistência”. Assim, a implicação política do pen-
samento caminha em outra direção tão somente em “situações limites”, pois fora delas, sua
implicação política encontra-se no fato de que ao purgar o indivíduo de suas opiniões não
examinadas, a atividade de pensar liberando-o para que, desinteressadamente, distingue o que
é “bom” e o que é “ruim” para uma dada comunidade e, assim, possa agir visando somente à
preservação e o cuidado com o mundo.
partir de um acordo comum” (SYLVIE. O cuidado com o mundo: Diálogo entre Hannah Arendt e alguns de seus
contemporâneos, p. 77).
161
É somente em “situações limites” que a harmonia dos parceiros do diálogo silencioso
do eu consigo mesmo tem, diretamente, algum tipo de implicação política. Como nos adverte
Hannah Arendt,
321
é somente em situações nas quais, devido à apatia e torpor que paira sobre
os membros de uma dada sociedade, os indivíduos que a compõem deixam-se levar por aquilo
que os outros dizem e fazem impensadamente, aqueles que pensam são forçados a aparecer e,
assim, tornar manifesto o porquê de sua recusa em participar de tais ações. E essa recusa, esse
porquê de se abster em participar de ações destituídas de significação, segundo Arendt, nessas
“situações limites”, aparece como a única forma de agir diante da completa impossibilidade
de haver ações verdadeiramente políticas. Essa não adesão brota da vontade comum dos ho-
mens pela conservação do mundo.
322
Dissemos que nessas situações uma completa impossibilidade de existirem ações
políticas, pelo fato de que estas, necessariamente, precisam, para florescerem, de um espaço
público, o qual os regimes totalitários cuidaram, meticulosamente, para que fossem extintos,
na medida em que procuraram tirar dos homens qualquer tipo de iniciativa política ou liber-
dade de pensamento através do terror e da ideologia.
323
É somente diante de tal perspectiva
que o efeito atordoante provocado pelo pensamento pode fazer com que os indivíduos que
ousaram pensar por contra própria,
324
recusem-se a aderir ao que a moda do dia prescreve.
320
A esse respeito, ver ARENDT. Crises da República, p. 61.
321
Sobre isso, ver ARENDT. A vida do espírito, p. 144.
322
Segundo Villa, Bearing this in mind, it must be said that the conclusion o f ‘Thinking and Moral Considera-
tions” restores the familiar balance of Arendt’s thought by limiting the political importance of thinking’s nega-
tivity to those ‘rare moments when the chips are down’, when acting in public with others has become either
impossible or suicidal. Thinking’s ability to slow people down, to withdraw them form the world of action, is
politically significant only when ‘everybody is swept away unthinkingly by what everybody else believes in’”
(VILLA. Arendt and Socrates, p. 250).
323
A esse respeito, ver o capítulo II na presente dissertação, em seu quarto item. Também, nessa mesma perspec-
tiva, salienta Odílio Aguiar: “O sucesso do totalitarismo tinha como condição a eliminação dos homens como
seres políticos e espirituais, como capazes de agir espontaneamente e de pensar autonomamente” (ODÍLIO, A
resistência em Hannah Arendt: da política à ética, da ética à política. In: ___. DUARTE (Org). A banalização da
violência: a atualização do pensamento de Hannah Arendt, p. 252).
324
Segundo Vallée, “Existe uma única defesa contra o totalitarismo: saber desobedecer, ousar pensar pela pró-
pria cabeça, nunca desistir de si” (VALLÉEE. Hannah Arendt: Sócrates e a questão do totalitarismo, p. 14).
162
É nessa franja conceitual ora inaugurada que esta frase de Hannah Arendt ganha senti-
do: “Não há pensamentos perigosos; o próprio pensamento é perigoso”.
325
O pensar é sempre
uma atividade que afronta o mundo,
326
ou seja, que questiona as regras vigentes. Nesse senti-
do, diante da ausência de porquês de uma dada situação, o máximo que uma pessoa que se
mantém em constante interação consigo mesmo, no diálogo do dois-em-um, pode esperar de
si é que o “bom homem”, aquele com quem escolhi viver em harmoniosa companhia, surja.
Esse aparecimento do “bom homem” estará em flagrante embate em face de um mundo dila-
cerado e impossibilitado de que em seu seio venha a surgir qualquer tipo de ação conjunta que
vise salvar e preservar o mundo.
Nessa perspectiva, o “bom homem” é aquele que, em presença das “situações limites”,
recusa-se a aderir a regras e padrões que para ele são destituídas de significação e, por isso,
ele aparece a si mesmo com um bom companheiro, um amigo, alguém que não se contradizeu
e manteve sua consciência intacta. Assim, a incapacidade de se manter um diálogo consigo
mesmo aparece como um risco sempre presente a liquidar qualquer tipo de esperança em sal-
var a si mesmo, bem como ao mundo. É nesse sentido que salienta Vallée: “a falsa relação
consigo mesmo elimina a esperança de uma conversão e, portanto, a possibilidade de uma
salvação”
327
para si e para o mundo.
Para Hannah Arendt, como acima apontamos, a “resistência” é uma forma não violen-
ta de se colocar em uma posição contrária a situação em que, para alguns, não nenhum
porquê em aderir a mesma. Para nossa autora, são resistentes aqueles que conseguem manter
sua consciência intacta e, assim, opor-se a regimes políticos ou nada fazer, em uma espécie de
ação silenciosa,
328
na qual a principal preocupação é em não se contradizer, manter-se coe-
325
ARENDT. A vida do espírito, p. 132.
326
Segundo Laure Adler: “Pensar é viver. Viver é pensar. Não há pensamento sem risco. Não há pensamento que
não seja um afrontamento com o mundo” (ADLER. Nos passos de Hannah Arendt, p. 50).
327
VALLÉE. Hannah Arendt: Sócrates e a questão do totalitarismo, p. 33.
328
Segundo Laure Adler, “Para Arendt, foram resistentes os que mantiveram (...) e conservaram a sua consciên-
cia. Eles puderam se opor ao regime ou nada fazer, como os da chamada resistência interna, que ‘nem santos
nem heróis, [...] mantiveram total silêncio’” (ADLER. Nos passos de Hannah Arendt, p. 447).
163
rente com aquilo que se acredita que é o melhor para si e para os outros. Essa recusa em com-
pactuar com regras de conduta ou com um regime político não se preocupa com o número de
pessoas que concordarão com esta atitude, pois o mais importante, em “situações limites”, é
manter-se em paz consigo mesmo e com o mundo.
O que estamos procurando enfatizar é que a diferença substancial entre a “desobediên-
cia civil” e a “resistênciaestá no fato de que a primeira se torna real quando um grupo de
pessoas, mesmo que seja uma minoria, se engaja em torno de um interesse comum e luta em
prol do mesmo. Nesse sentido, a “desobediência civil” caracteriza-se em estabelecer um espa-
ço que possibilite aos seus componentes, em conjunto, resistirem a uma legislação injusta ou a
um governo opressor.
329
Para tanto, é necessário que exista a possibilidade de se instaurar,
mesmo que de forma nima, os espaços públicos de convivência, para que os homens pos-
sam aparecer uns aos outros pela palavra e pela ação e, assim, colocar seus pontos de vistas
para serem apreciados e, através de um consenso, poder “desobedecer”, fazer resistência ao
que está acontecendo ao derredor. Contudo, a possibilidade de se criar um espaço público e
plural, no qual a epifania do falar e do agir possa ser uma realidade tangível, torna-se quase
nula em “situações limites”.
Pelo que dissemos ao longo dessa pesquisa, ao descrevermos as características princi-
pais da faculdade de pensamento e, assim, demonstrar que esta se no estar do ego pen-
sante que, ao cindir-se em dois, traz à sua presença o que quer que seja a fim de significá-los,
apontamos que esta faculdade não possui alcance político, pois, como ressaltamos o pensar
não nos dota com nenhuma regra para que possamos agir na esfera pública.
329
A cerca do papel da “desobediência civil” no pensamento arendtiano salienta Odílio Aguiar nesses termos:
“Em Arendt, a política é a forma e o locus apropriado da resistência. Resistir, mais do que reagir, assumir um
lugar passivo diante das forças da destruição, é fundar. A reação é o lugar da impotência e da violência, a funda-
ção é o lugar da potência, da criatividade e liberdade humana” (ODILIO. A resistência em Hannah Arendt: da
política à ética, da ética à política. In: ___. DUARTE (Org). A banalização da violência: a atualização do pen-
samento de Hannah Arendt, p. 252).
164
Nesse sentido, fica evidenciada a existência de um paradoxo em nosso estudo, o qual
se constitui da seguinte maneira. Sendo nossa intenção comprovar que a faculdade de pensa-
mento possui implicação política, não em forma de um efeito colateral ao liberar a faculda-
de do juízo e assim, manifestar-se no mundo plural –, mas diretamente, ao fazer com que os
indivíduos “resistam” ao que a moda do dia prescreve para uma dada sociedade, como dizer
que esta é uma implicação política, já que a política se realiza não por um homem que resiste,
mas por homens que agem em conjunto?
Para sair de tal impasse, podemos dizer que nossa aposta se encontra alicerçada no fa-
to de que, dada à imprevisibilidade do grau de alcance e de influência de uma ação realizada,
seja por um homem ou por um grupo, a “resistência”, uma não ação realizada, a princípio, por
um único indivíduo, inspiraria os demais a o aderirem a um regime político, através da for-
ça do “exemplo”, que motiva e infunde os homens a estarem em conformidade consigo mes-
mos.
É justamente em torno da questão da motivação plural através dos “exemplos” de “re-
sistência” que irão girar as reflexões do próximo passo de nossa pesquisa, o qual possui um
papel decisivo para que possamos comprovar que nossa hipótese de trabalho possui alguma
plausibilidade, ou seja, de que implicação política da faculdade de pensamento, não em
forma de um efeito colateral, mas de forma direta, através dos “exemplos” de “resistência”.
3.4.1. A Motivação Plural: “Os Exemplos”
No limiar de nossas análises acerca da implicação política da faculdade de pensamen-
to, realizamos uma descrição dos elementos constitutivos do dois-em-um pensamento –, os
quais, em nosso entendimento, possibilitariam uma melhor compreensão da hipótese por nós
165
formulada. Assim, uma das questões-chaves é aquela que diz respeito ao modo como a facul-
dade de pensamento se manifesta no mundo das aparências. A importância do modus operan-
di, a partir do qual o pensar pode manifestar-se no mundo plural, caracteriza-se da seguinte
maneira. Tendo em vista a invisibilidade de tal faculdade, esta necessita de um “veículo” que
proporcione a transposição do abismo entre o mundo do puro intelecto, o qual se localiza o
ego pensamente com o propósito de examinar e questionar tudo o que se passa na vida huma-
na,
330
e o mundo da pluralidade, no qual se realizam as ações humanas. Este veículo, como
vimos,
331
é a linguagem metafórica, que realiza uma transferência daquilo que se passa na
vida do espírito para o plano da visibilidade.
Nessa perspectiva, para podermos alcançar o objetivo por nós traçado nessa pesquisa,
ou seja, de lançar luz na possibilidade de existir implicação política da faculdade de pensa-
mento, de forma direta, devemos dizer que a linguagem metafórica, que manifesta o pensa-
mento na esfera pública,
332
em “situações limites” reveste-se da roupagem adverbial que ex-
prime negação: o “não”. Assim, o “não” exprimiria uma recusa em aderir ao que os outros
estão fazendo sem se importar se há algum tipo de significado no conteúdo do princípio de
ação que os impulsiona a tal empreitada.
Nesse passo de nossa pesquisa, devemos procurar compreender como essa negação em
agir, como esse dizer “não” diante de “situações limites”, constitui-se no último elemento
teórico que resta para que possamos alcançar nosso objetivo, ou seja, entender como se realiza
a implicação política da faculdade de pensamento.
Diante desta conceituação, nos deparamos, como apontamos no final do momento an-
terior de nossa pesquisa, com o seguinte impasse: mesmo em “situações limites”, nas quais o
330
Sobre isso, ver ARENDT. Responsabilidade e Julgamento, p. 168.
331
A esse respeito, ver o Capítulo I, da presente dissertação, mas precisamente o sub-capítulo 1.1.4, intitulado
Linguagem Metafórica.
332
A esse respeito, salienta Young-Bruehl: “Uma das questões-chave sobre esse processo do pensamento auto-
referente era como ele se relacionava com o seu modo próprio de manifestação no mundo, a linguagem”
(YOUNG-BRUEHL. Por Amor ao mundo, p. 392).
166
sujeito imerso em pensamento diz “não” e manifesta sua recusa em aderir ao que os outros
estão fazendo impensadamente, torna-se inconteste o fato de que esta recusa diz respeito ao eu
individual, e nunca à pluralidade humana, que segundo Arendt, “é a lei da Terra”. Isto se tor-
na evidente à medida que passamos a entender a seguinte assertiva: mesmo tendo em vista o
fato de que o pensar antecipa, em sua atividade, a presença da pluralidade de homens,
333
a
faculdade de pensamento, vista exclusivamente por este prisma, não possui capacidade algu-
ma de alcançar e motivar o “três”, mas fica restrita ao dois-em-um, não conseguindo ir além
de sua atividade dialógica na qual estão envolvidos apenas “eue “eu mesmo”. Em outras
palavras, a faculdade de pensamento opera na estreita relação do eu consigo mesmo, na qual,
apesar de embrionariamente estar presente, em sua atividade, a pluralidade humana, pois no
jogo de perguntas e respostas antecipam-se as possíveis perspectivas alheias, o ego pensante
está apenas na companhia do seu próprio eu cindindo em dois.
334
Dessa forma, faz-se necessário, para que nossa hipótese seja admissível, encontrar,
dentro da argumentação formulada por Hannah Arendt acerca da faculdade de pensamento,
uma forma para que o pensar possa alcançar o nós, mesmo que esse alcance se faça sentir
em “situações limites”.
Para tanto, gostaríamos de transcrever um trecho de Entre o passado e o futuro, no
qual Arendt nos fornece uma chave-conceitual que nos proporciona compreender como se dá
a implicação política da faculdade de pensamento, em “situações limites”. Assim, no diz
Hannah Arendt:
333
"Le fait de parler-avec-soi-même n’est pas encore penser, mais c’est l’aspect politque de toute pensée le fait
que la pluralité se manifeste dans la pensée" (ARENDT. Journal de pensée, p. 675).
334
Sobre o limite do alcance da atividade de pensar, nos diz Hannah Arendt: Notre pluralité em tant que créa-
tures se manifeste lorsque nous sommes seuls sous la forme nécessairement dialogique de toute pensée, donc du
fait que nous ne sommes effectivement seuls et seulement Un que dans l’angoisse confinée de l’abandon,
nous sommes dans la solitude mais avec nous-mêmes dans la scission et l’équivocité. Il est clair que du sein de
cette pensée, de l’être-uniquement-avec-nous-mêmes n’adviendra jamais la trois. Nous ne pouvons jamais enge-
drer la trois à paritr de nous-mêmes, mais seulement le deux. La sérei des nombres, dans la mesure elle se
poursuit vers une infinité réelle et véritable, commence par conséquent aussi avec le trois” (Arendt. Journal de
pensée, p.243). Em outro texto, salienta Arendt sobre o mesmo tema: “A principal distinção, em termos políti-
cos, entre Pensamento e Ação reside no fato de que, quando estou pensando, estou apenas com o meu próprio eu
167
(...) Sócrates decidiu empenhar sua vida por sua verdade dar um exemplo, não
quando compareceu ao tribunal de Atenas, mas ao recusar-se a fugir à sentença de
morte. Esse ensinamento pelo exemplo é, com efeito, a única forma de “persuasão”
de que a verdade filosófica é capaz sem perversão ou distorção; ao mesmo tempo, a
verdade filosófica pode se tornar “prática” e inspirar a ação sem violar as regras
do âmbito político quando consegue manifestar-se sob o disfarce de um exemplo.
335
A única forma de “persuasão” de que a verdade filosófica [os produtos da faculdade de
pensamento] é capaz, constitui-se em um fruto oriundo da necessária harmonia do ego pen-
sante consigo mesmo para a ativação do pensar. Este fruto pode vir a se estragar, antes mesmo
de ser colhido, caso não haja uma harmonia interna. Assim, ao contradizer a mim mesmo,
apareço aos demais como um ser cambaleante, que não possui “verdade” alguma, pois não
consigo alcançar, ao término da atividade de pensar, nenhum posicionamento acerca de um
problema questionado pela faculdade de pensamento e, assim, não consigo decidir sobre nada,
porque as perguntas que faço a mim mesmo não encontram nenhuma resposta, pois tento
manter um diálogo com alguém que aparece a mim mesmo como um adversário, levando ao
fato de não haver possibilidade de emissão de alguma “opinião do espírito”.
336
No sentido acima exposto, gostaríamos de salientar que, ao se tornar “prática”, a ativi-
dade de pensar não possui somente implicação política, mas também implicação moral, de
acordo com as análises arendtianas expostas em diversos textos.
337
Esta implicação moral do
pensamento foi por nós salientada, brevemente, na nota 278 deste estudo. Esta nota, bem co-
mo o argumento que se segue adiante, tem o propósito de salientar que nossa intenção na pre-
sente pesquisa é tão somente analisar a implicação política da faculdade de pensamento, e não
ou com o eu de outra pessoa, ao passo que estou na companhia de muitos assim que começo a agir” (ARENDT.
Responsabilidade e Julgamento, p. 171).
335
ARENDT. Entre o passado e o futuro, p. 306 e 307.
336
Acerca do discurso que o espírito trava consigo mesmo, diz Arendt: “Parece-me que isto não passa de diale-
gesthai, falar de alguma coisa até esclarecê-la, com a ressalva de que o espírito faz as perguntas a si mesmo e as
responde, dizendo-se sim ou não. Assim ele chega ao limite em que as coisas devem ser decididas, quando os
dois falam igual e já não estão mais incertos, o que, então, estabelecemos como a opinião do espírito” (A-
RENDT. Responsabilidade e Julgamento, p. 156).
337
A respeito da moral em Arendt e como esta não se confunde com o tema da política no pensamento de nossa
autora, ver ARENDT. Pensamento e considerações morais. In: ___. A dignidade da política, p. 154; Algumas
questões de filosofia moral. In: ___. Responsabilidade e Julgamento, p. 226 e Verdade e Política. In: ___. Entre
o passado e o futuro, p. 282.
168
a implicação moral da faculdade de pensamento, o que extrapolaria o âmbito de reflexão deste
estudo, haja vista que os temas da moral e da política, apesar de serem recorrentes no pensa-
mento filosófico-político de Hannah Arendt, não se confundem, tão pouco se subsumem um
no outro, como ocorro em muitos autores clássicos, como Platão, Aristóteles, Kant...
Retomando o fio condutor que direciona nossa pesquisa, podemos dizer, como vimos
anteriormente, que o fato de poder me contradizer pode levar a um desprezo de si mesmo,
pois quem gostaria de viver com um assassino ou um ladrão?
338
Passar a vida com um assas-
sino ou um ladrão significa ter que silenciar-se diante das experiências vividas, uma vez que
não com quem partilhar um fato ocorrido, na medida em que não se possui um parceiro
para que se possa pensar o ocorrido.
339
Porém, a mentira pode salvar o indivíduo da intera-
ção silenciosa do eu consigo mesmo, pois, com essa postura, não compareço diante de mim
mesmo para por em xeque meus atos, o que faz com que minha ação seja esquecida logo após
tê-la cometido.
340
Mas, quando dirigimos a esse indivíduo, que se abdica de viver consigo
mesmo, a mesma frase impositiva da esfinge: “Conhece a ti mesmo”, esta se encontra destitu-
ída de qualquer tipo de significação.
Nessa perspectiva, este indivíduo que, ao manter-se longe de qualquer tipo de intera-
ção consigo mesmo impede que haja a cisão do ego pensante e, assim, elimina as possibilida-
des de ativação da faculdade de pensamento e o conseqüente mergulho em um processo de
perguntas e respostas que, ao final, produz uma espécie de opinião acerca do que quer que
seja, não perguntaria, como Dmítri K. a Starov em Os irmãos Karamazov de Dostoievski, “O
338
Segundo Hannah Arendt, a pergunta “Com quem desejamos passar a vida?é respondida da seguinte manei-
ra: “(...) essa companhia é escolhida ao pensarmos em exemplos de pessoas mortas ou vivas, reais ou fictícias, e
em exemplos de incidentes passados ou presentes” (ARENDT. Responsabilidade e Julgamento, p. 212).
339
“O medo de perder a si mesmo é legítimo, pois é o medo de não ser capaz de falar consigo mesmo. E não
apenas a dor e a tristeza, mas também a alegria e a felicidade, e todas as outras emoções, seriam inteiramente
insuportáveis se tivessem de permanecer mudas, inarticuladas” (ARENDT. Responsabilidade e Julgamento, p.
161).
340
Contra essa possibilidade de perda de memória das ações realizadas e, assim, retirar do pensamento seu ali-
mento, pois o pensamento traz à sua presença o que estava armazenado na memória com o propósito de signifi-
cá-lo, nos diz Arendt, “Pensar e lembrar, dissemos, é o modo humano de deitar raízes, de cada um tomar seu
lugar no mundo a que todos chagamos como estranhos” (ARENDT. Responsabilidade e Julgamento, p. 166).
169
que devo fazer para ganhar a salvação?”, ao que Starov reponde: “Acima de tudo, nunca min-
ta para si mesmo”.
341
O que estamos dizendo é que, mesmo que haja uma harmonia dos parceiros do diálo-
go, a qual leva à ativação do pensar, a faculdade de pensamento não possui capacidade de
alcançar a pluralidade humana e, visto por esse ângulo, o pensamento não nos dota com prin-
cípios para a ação. É nessa linha argumentativa que Eugênia Sales saliente que “Arendt con-
clui ‘O Pensar’ reafirmando a idéia de que esta atividade ‘não nos leva a agir’, conforme está
na epígrafe”.
342
Porém, se nos voltarmos diretamente para essa mesma epígrafe, veremos que
existe uma frase que merece destaque, e que nos ajudará no alcance de nossos objetivos na
presente pesquisa. A epígrafe é de Heidegger, na qual o autor diz que:
O pensamento não traz conhecimento como as ciências.
O pensamento não produz sabedoria prática utilizável.
O pensamento não resolve os enigmas do universo.
O pensamento não nos dota diretamente com o poder de agir.
343
É a última sentença da epígrafe acima mencionada que gostaríamos de enfatizar. Aliás,
nossa intenção é pincelar a palavra destacada nesta última sentença, ou seja, diretamente. De
fato, o pensamento não dota o homem, diretamente, com o poder de agir, pois como vimos, a
atividade de pensar destrói, em sua busca por significado, todo tipo de regra de conduta ou
preceito de ação, fazendo com que o homem fique destituído de qualquer direcionamento que
possa encaminhá-lo em seu agir com outros homens. Mas, indiretamente, o pensar nos dota
com o poder de agir, pois, em última instância, ou seja, em “situações limites”, é das faculda-
des espirituais que nascem os princípios das ações humanas, fomentando a conduta que man-
terei com meus pares, como veremos com mais detalhes logo adiante.
344
341
DOSTOIEVSKI, apud ARENDT. ARENDT. Responsabilidade e Julgamento, p. 127.
342
WAGNER. Hannah Arendt: Ética & Política, p. 220.
343
HEIDEGGER apud ARENDT. ARENDT. A vida do espírito, p. 03 (grifos nosso).
344
A esse respeito, diz Arendt: “Start with: Thinking as understood by the philosophers Jaspers as well Hei-
degger as a mode of action. Thinking understood by everybody else: as a means to acquire cognition and them
170
O dotamento que o pensamento realiza de maneira indireta ao homem, fazendo com
que ele “haja”, é a possibilidade de dizer não”, de se abster a agir em momentos em que to-
dos estão deixando-se levar pelo o que a moda do dia prescreve para uma dada sociedade,
criando uma espécie de conceito de virtude, que não poderia ser forjado caso vivêssemos com
um patife e, assim, contradisséssemos, pois quem gostaria de compartilhar o mundo com um
patife?
345
Recusar-se a compactuar com ações que para o indivíduo não possui o mínimo de
significação e, assim, não carrega em si o porquê que fará com que ele venha a aderir a tal
empreitada, funciona, em “situações limites” nas quais a possibilidade de agir em conjunta
foi minada em sua base pela supressão do espaço público como um “exemplo” que merece
ser seguido, mesmo que não seja essa a intenção prioritária daquele que se recusou a agir.
346
in the modern age, to acquire mastery not over things but processes. Against these positions: 1) Thinking is not
acting; to say, thinking too is a way to act is either to speak metaphorically or to say thought, the result of think-
ing, can be used in action, or action is determined by thought the idea seizes the masses, etc. But this does not
mean they are the same. 2) Thinking = flute playing. Even if we knew we would like to think. Quote Galilei,
Lessing –. Porém, para Arendt, apesar do fato do pensar ser diferente do agir, nossa autora salienta que “Le
penser sur [Denken-über] est toujours déjà pratique, il n’est que l’autre côté de l’action” (ARENDT. Journal de
pensée, p. 935 e 305). Em outro momento, nossa autora diz que “(...) é realmente verdade que a minha conduta
com os outros vai depender da minha conduta comigo mesma. que não está envolvido nenhum conteúdo
específico, nenhum dever e obrigação especial, nada senão a pura capacidade de pensamento e lembrança, ou a
sua perda” (ARENDT. Responsabilidade e Julgamento, p. 161).
345
“Kant mencionou certa vez que poderia haver uma dificuldade. ‘Depois de ter passado a vida entre patifes
sem conhecer outra pessoa’, disse, ‘ninguém poderia ter um conceito de virtude’. Mas com isso ele não queria
dizer mais do que o fato de a mente humana se guiar por exemplos nessas questões” (ARENDT. Responsabili-
dade e Julgamento, p. 125).
346
Parece haver uma aproximação entre os "exemplos" do juízo e os do pensamento, como fica evidenciado nas
palavras de Arendt: “La pensée politique et le jugement sont exemplaires (Kant) parce que l’action est exemplai-
re. La responsabilité consiste pour l’essentiel à savoir qu’on donne un exemple, que d’autres vous ‘suivront’,
c’est ainsi qu’on change le monde" (ARENDT. Journal de pensée, p. 839). Apesar de não se constituir como
objetivo deste estudo diferenciar os conceitos que são utilizados ora para descrevem o modus operandis do juízo
ora para descrever modus operandis do pensamento, gostaríamos de salientar que, em nosso entendimento, o que
distancia o “exemplo”, tal como empregado para explicar a faculdade de julgar, do “exemplo” utilizado para
descrever uma característica do pensamento, se encontra na seguinte questão: o “exemplo” constitui-se como um
veículo indispensável à faculdade de julgar, pois sem eles tal faculdade não alcançaria o entendimento dos de-
mais indivíduos judicantes; contudo, o mesmo não pode ser dito em relação à faculdade de pensamento. Os e-
xemplos” adquirem importância efetiva para o pensar em “situações limites” e, se estes “exemplos” se tornarão
práticos, ou seja, se conseguirão atingir o “nós”, é uma questão que não possui resposta, devido à imprevisibili-
dade de uma ação, o que demonstra que a implicação política da faculdade de pensamento, vista por esse ângulo,
não possui nenhuma necessidade de se efetivar. Assim, os “exemplos”, vistos da perspectiva do juízo, necessi-
tam ser efetivados, pois, do contrário, a faculdade de julgamento não alcançará seu objetivo; porém, o mesmo
não se pode dizer em relação aos “exemplos” quando utilizados no campo de atuação do pensamento.
171
É nessa perspectiva que o fato ocorrido na Dinamarca na Segunda Guerra Mundial
347
pode ser compreendido, segundo Arendt, como uma história sui generis.
348
Para nossa autora,
é notório o fato de que não havia na Dinamarca um movimento fascista ou nazista e, portanto,
não existiam nesse país colaboradores com a causa totalitária. Contudo, a Dinamarca e sua
“resistência” tornaram-se um “exemplo” de ação não violenta à medida que os dinamarqueses
contestaram, sem nenhum tipo de ação previamente articulada entre os homens, a política
nazista. Para Arendt, e esse é o ponto em que gostaríamos de frisar, “a resistência dinamar-
quesa é baseada em princípios”,
349
e, como vimos acima, “os princípios pelos quais agimos e
os critérios pelos quais julgamos e conduzimos nossas vidas dependem, em última instância,
da vida do espírito”.
350
Assim, em “última instância”, ou seja, em uma “situação limite”, es-
ses princípios são oriundos da vida do espírito e, portanto, também da faculdade de pensa-
mento. Nesse sentido, à medida que não há mais em que pautar as ações humanas, tal como
ocorrido no período do Terceiro Reich, pelo simples fato de eles mesmos constituírem-se co-
mo uma novidade sem precedentes na história da humanidade, fazendo com que os homens
passassem a pensar “sem corrimão” e, portanto, buscassem novos padrões para suas ações e
compreensões, o pensamento aparece como uma faculdade que dota o homem com o poder de
agir. Mas é importante salientar que esse poder de agir deve ser revisto e restabelecido cons-
tantemente, pelo fato de que temos que nos posicionar diferentemente cada vez que somos
confrontados com o mesmo problema ou com problemas diversos, pois o pensar é como a teia
de Penélope: desfaz toda manhã o que tinha acabado de tecer na noite anterior, ou seja, provê
sempre com novos significados aquilo que está diante de nosso espírito.
347
Segundo Vallée: “Que a consciência no sentido socrático do termo pode ter uma eficácia política, é o que
mostra esse acontecimento exemplar, esse ‘milagre’ que foi a história da Dinamarca durante o Terceiro Reich
(...)” (VALLÉE. Hannah Arendt: Sócrates e a questão do totalitarismo, p. 119).
348
Sobre isso, ver ARENDT. Eichmann em Jerusalém, p. 189 ss.
349
ARENDT. A vida do espírito, p. 194.
350
Idem, p. 56.
172
O que procuramos demonstrar com nossas análises nesta pesquisa é que Arendt, em
seus escritos, mostrou-se preocupada em refletir acerca de “como” o pensamento pode e ne-
cessita se recolher do mundo sem ignorá-lo e, assim, manter uma postura “ativa” diante do
mesmo.
351
E este “como” aparece na forma da “resistência”, pois, segundo Young-Bruehl, “o
mundo pode ir em frente por meio daqueles que se opõem a ele”, daqueles que ao dizer
“não” para uma dada situação, estão dando um “sim” para o cuidado com o mundo.
352
É nes-
sa perspectiva argumentativa que Sócrates, o “exemplo” de pensador, compreendia que o me-
lhor que poderia acontecer aos cidadãos atenienses era dar-lhes a possibilidade de poderem
deixar de ser um e se dividirem em dois,
353
no diálogo silencioso do eu consigo mesmo. Para
Sócrates, com essa postura os indivíduos poderiam questionar o porquê de um dado aconte-
cimento e, talvez, recusar em aderir ao mesmo, tornando sua recusa uma espécie de “exem-
plo” a ser seguido por aqueles que pretendem, de alguma forma, preservar um espaço que
seja, de fato, habitado pela pluralidade humana.
Devemos ressaltar, seguindo de perto as reflexões de Eugênia Sales, que a própria bi-
ografia de Hannah Arendt deve ser compreendida como um “exemplo de resistência”. Hannah
Arendt, apensar de nunca ter se filiado a um partido político e raramente ter se engajado em
algum tipo de movimento contrário a algum regime político, pelo simples fato dela ter se re-
cusado a agir, pura e simplesmente por não concordar com o que a moda do dia prescrevia
para a sua geração, fez de si um modelo de pensadora não-profissional. E esse modelo foi
construído por Arendt pela interação que ela mantinha constantemente consigo mesma ati-
vidade de pensar –, mas que procurava, constantemente, não aviltar o mundo dos afazeres
humanos.
354
351
Sobre isso, ver Eugênia Sales. Hannah Arendt: Ética e Política, p. 384.
352
Young-Bruehl. Por amor ao mundo, p. 411.
353
Sobre isso, ver, ARENDT. Responsabilidade e Julgamento, p. 169.
354
Segundo Eugênia Sales, “É necessário levar em conta que Arendt era pensadora de seu próprio tempo. Os
problemas que colocava sob reflexão eram aqueles que estavam em debate e/ou surgiam no horizonte político.
Ela mesma era um exemplo de pensadora não-profissional por não fazer da atividade de pensar ocupação única.
173
O que procuramos demonstrar com as reflexões desta pesquisa é que em “situações
limites”, quando a possibilidade de julgar, de agir e de falar em conjunto perderam suas pos-
sibilidades de existência, dado o aniquilamento da esfera pública; quando a preocupação mai-
or de uma época é com a sobrevivência da espécie humana, ou seja, em manter a vida em seu
sentido biológico intacta, aqueles que se recusam a “agir”, levando somente em consideração,
aparentemente, o cuidado com seu eu individual e, consequentemente com a harmonia interna
do ego pensante, aparecem como um “exemplo” a ser seguido, na medida em que esse “e-
xemplo” funciona como um motivador plural.
Em outras palavras, como acima expusemos pelas análises realizadas entorno da fa-
culdade de pensamento, evidencia-se que esta faculdade não possui a capacidade de alcançar
o “nós”. Todavia, dada à imprevisibilidade de uma ação, ou em nossos termos, de uma “não
ação”, e da teia de relações que perpassa a existência humana, qual será o impacto que uma
não adesão, por parte de um único indivíduo, pode ter na vida de uma sociedade, é algo que a
capacidade humana de antever o futuro, não pode antecipar. Talvez essa recusa impeça mortes
em escala maior, como ocorrido na Dinamarca, ou talvez sirva como “exemplo” de amor à
livre discussão, como a recusa de Sócrates em fugir, preferindo ser morto por cicuta, ou talvez
não tenha nenhuma implicação na esfera das ações humanas.
Mas, da mesma forma como a faculdade de pensamento é sempre uma potência que
pode ser atualizada e não um processo que deve necessariamente ser colocado em macha, os
“exemplos de resistênciaem “situações limites” podem vir a ter implicações políticas, quan-
do “as cartas estão jogadas na mesa”.
355
A recusa em agir diante daquilo que está acontecen-
do e que nossa perplexidade nos diz somente que isto nunca deveria ter ocorrido, é realizada
por pessoas “normais”, não por pensadores profissionais, ou seja, por indivíduos que preferi-
ram manter-se em paz com sua consciência do que pactuar com algo desprovido de significa-
Atenta aos acontecimentos e teorias surgidas em sua própria época, afastava-se das discussões e dos problemas
contemporâneos o tempo suficiente para refletir sobre eles” (SALES. Hannah Arendt: Ética e Política, p. 240).
174
do. Se a sua recusa em agir viria a influenciar a conduta de outros, somente a imprevisibilida-
de da ação pode responder.
O certo é que em circunstâncias tais como as “situações limites”, o máximo que se po-
de esperar de um “homem de bem”, um sujeito portador de uma imagem particular, é a sua
“resistência” muda diante do horror sem precedentes, “resistência” esta que aparece em luga-
res públicos como a única opção a ser tomada. É nessa perspectiva que a fala final de Hannah
Arendt, em seu discurso pronunciado por ocasião de sua premiação em Copenhague do Prê-
mio Sonning, no ano de 1975, soa com uma plausibilidade inquestionável, pois, como ela
mesma nos diz, citando o poema de W. A. Auden:
Rostos particulares em lugares públicos
São mais sóbrios e mais simpáticos
Do que rostos públicos em lugares particulares.
356
355
ARENDT. A vida do espírito, p. 145.
356
Young-Bruehl apud ARENDT. Por amor ao mundo, p. 402.
175
CONCLUSÃO
Ao término de nossa pesquisa, a exemplo de Hannah Arendt no final do Volume I de
A vida do espírito, gostaríamos de alertar ao leitor que não temos nenhuma pretensão, nesse
momento, de empreender uma conclusão de caráter definitivo acerca do tema por nós tratado.
Tal pretensão pareceria uma ambição desmedida, diante da amplitude, da complexidade e da
profundidade dos textos de Arendt sobre esse tema, bem como da vasta bibliografia daqueles
que se debruçam, há anos, sobre os escritos arendtianos.
Nossa pretensão se pautou, única e exclusivamente, na crença de que nossa pesquisa
pudesse servir como uma rota alternativa para àqueles que se colocam na tarefa de refletir
acerca da faculdade de pensamento e de sua possível implicação política. Estamos cientes de
que as análises que realizamos nesse estudo estão longe de esgotar o tema. Outras vias exis-
tem e devem ser percorridas, com a intenção de lançar luz e tentar compreender o que Hannah
Arendt nos deixou em forma de obras filosóficas-políticas, que tratam de diversos temas, en-
tre eles, da atividade de pensar e de sua relação com as ações políticas.
Quando principiamos nossa pesquisa, no âmbito do primeiro capítulo, realizando uma
análise entorno de algumas das características da primordial faculdade espiritual o pensa-
mento –, nosso escopo foi tão somente o de procurar compreender qual era o lugar de perten-
cimento da atividade de pensar dentro do conjunto das obras de Hannah Arendt. É nessa pers-
pectiva que era de suma importância iniciar nossas reflexões, tendo como fio condutor a fe-
nomenologização que Arendt realizou no que tange à vida do espírito e, assim, percorrer, jun-
tamente com ela, os caminhos que a levaram a realizar uma desmontagem das falácias metafí-
sicas que, em nosso entendimento, tinha tão somente como finalidade fazer entender que “ser
e aparência coincidem”.
176
Dizer que “ser e aparência coincidem” remete à questão de que o âmbito que sempre
foi valorizado nos escritos de Hannah Arendt é o terreno da visibilidade: palco no qual ocor-
rem as ações humanas em concerto. É nesse locus que o “quem” da ação realizada é revelado;
é nele que julgamentos; que ações e palavras podem ser avaliados; é nele que a recusa em
aderir ao que homens fazem, sem se importarem se aquilo que estão colocando em marcha
possui algum sentido para eles, ganha status de “exemplo” a ser seguido por todos aqueles
que queiram viver em paz com suas consciências e, assim, tornar manifesto o “bom homem”
que habita em seu interior.
Podemos dizer que a assertiva que aponta para o fato de que “ser e aparência coinci-
dem” configura-se como o alicerce a partir do qual a faculdade de pensamento é compreendi-
da. Analisar a atividade de pensar pela ótica da fenomenologia significa que Hannah Arendt
esteve, o todo o tempo, preocupada em trazer o pensar para o terreno da visibilidade e, assim,
fazer com que aqueles que estivessem absorvidos pelo diálogo sem som do eu consigo mesmo
não viessem a ignorar ou aviltar o mundo dos afazeres humanos e, portanto, não se esqueces-
sem que os eventos que o pensamento questiona e busca significação o oriundos da vida
vivida: tudo o que se passa na existência humana.
Não é com o afã de encontrar naturezas nobres, homens capazes, dispostos e aptos a se
enveredarem pelas sendas da atividade de pensar, que Arendt se empenhou em pensar o pen-
samento. Mas ao contrário, foi com o propósito de refletir sobre a possibilidade sempre pre-
sente, em todos, de poderem pensar o significado de suas vidas e, assim, não aderirem, a partir
de algum tipo de “resistência”, ao que uma dada época coloca para os seus indivíduos, que
nossa autora fez de sua vida uma constante atividade voltada a refletir sobre os acontecimen-
tos que marcaram profundamente sua geração.
Nessa perspectiva, ao percorrermos as trilhas das análises arendtianas acerca da ativi-
dade de pensar, compreendemos que é preciso um espírito sempre aberto às manifestações do
177
ser, ou seja, da vida em seu sentido concreto, para que a partir dessa complexa e exaustiva
atividade, que procura reconciliar-se com a realidade pensar possamos estar sempre aler-
tas contra os perigos de uma nova epifania totalitária.
A necessidade de estarmos sempre alertas contra o perigo de um ressurgimento dos
regimes totalitários se encontra na razão de que os germes para tanto não foram de todo extin-
tos. Em outras palavras, “os homens”, essa cifra” sem identidade, composta de um número
gigantesco de pessoas anônimas, que compõem nossas cidades e, conseqüentemente, nossas
sociedades de massa, é compreendido como supérfluo, cuja dizimação pode trazer “benefí-
cios” em um mundo cuja “roda da fortuna” continua a girar e aqueles que não têm a capacida-
de para acompanhá-la devem ser expurgados, como um “tumor maligno” ou um “inseto per-
nicioso”, pois eles impedem o pleno funcionamento das burocracias modernas. Assim, como
nos adverte Hannah Arendt: “As soluções totalitárias podem muito bem sobreviver à queda
dos regimes totalitários sob a forma de forte tentação que surgirá sempre que pareça impossí-
vel aliviar a miséria política, social ou econômica de um modo digno do homem”.
357
Para que o fenômeno totalitário, diante do qual o espírito humano não possui parâme-
tros para compreendê-lo e julgá-lo, possa ser superado, faz-se necessário que cada indivíduo
resgate as características que lhe são peculiares, ou seja, rompa com o amálgama que o prende
e o atomiza. Nesse sentido, as tiranias, os despotismos, as ditaduras e, em nossos termos, os
regimes totalitarismos fracassam onde instituições livres, que garantam e motivem a plena
ativação da faculdade de pensamento. A possibilidade de poder pensar por conta própria e,
assim, poder formular perspectivas diversas em relação aos eventos que são percebidos por
uma multidão de indivíduos é a melhor barreira que os homens podem construir contra o a-
vanço de regimes de cunho totalitário.
Nesse âmbito de análise, percebemos que o fracasso do totalitarismo somente poderá
ser consumado, a partir de atividades de cunho livre, tal como a faculdade de pensamento, que
178
se colocam contrárias à uniformização da sociedade, pois onde quer que haja a constante ati-
vidade de pensar, a mais livre das atividades humanas, haverá o escarnecimento de toda tenta-
tiva do totalitarismo se sobrepujar ao homem enquanto ser aberto ao novo. E este estar cons-
tantemente aberto ao novo significa poder dizer “não”, “resistir” e, portanto, negar-se a agir
em concerto, ou seja, em atuar juntamente com aqueles que irreflexivamente aderem a um
regime político, sem se preocuparem com o significado do conteúdo normativo que impulsio-
na seus adeptos à ação planeja.
Refletir a relação entre a faculdade de pensamento e a política para além do efeito li-
berador produzido pela atividade de pensar sobre a faculdade de julgar constituiu o cerne
principal de nossa pesquisa. Dentro deste quadro teórico, nos deparamos com a possibilidade
de pensar a relação entre a filosofia e a política para além do prisma adotado pela tradição do
pensamento filosófico-político, que constantemente subsumia uma esfera da vida humana
uma na outra.
Juntamente com Hannah Arendt, procuramos, em nossos estudos, encontrar uma ma-
neira de refletir sobre a relação do invisível com o visível, que não levasse em consideração a
subjugação de uma pela outra. Nessa perspectiva, quando nos deparamos com a possibilidade
de pensar o vínculo da faculdade de pensamento com o mundo plural a partir do fenômeno da
“resistência”, percebemos que mais um passo pode ser dado na direção de se pensar a relação
entre filosofia e política.
Em nosso entendimento, estudar o conceito de mundo no pensamento filosófico-
político de Hannah Arendt e como esta autora conseguiu ir além de seu mestre Heidegger
diante dessa perspectiva, assinala uma possibilidade de reconciliar pensamento e ação. Assim,
demonstrar que o mundo, definido filosoficamente como espaço do encontro da pluralidade, o
qual é antecipado pela cisão do ego pensante na atividade do pensar, constitui-se como um
357
ARENDT. Origens do totalitarismo, p. 511.
179
passo para a superação do hiato entre filosofia e política, pois faz com que ambas as perspec-
tivas visem à vida a partir do prisma da pluralidade que é a Lei da terra.
O passo que leva em consideração a perspectiva de mundo a partir da visão do ego
pensante cindido em dois, que antecipa, em sua atividade, a certeza de que a “pluralidade é
Lei da Terra” constitui-se como um desdobramento da pesquisa que ora estamos finalizando,
que poderá ser desenvolvido em um momento oportuno.
Nas nossas reflexões pautamo-nos por tentar compreender a implicação política da fa-
culdade de pensamento por um viés diverso daquele que comumente se toma quando se pro-
cura analisar este tema do pensamento de Hannah Arendt. Antes, porém, que possamos, pro-
visoriamente, suspender as nossas cogitações entorno da atividade de pensar e de sua relação
com a política, gostaríamos de chamar a atenção de nosso leitor para um ponto que, em nosso
entendimento, é crucial ressaltar nesse momento de nossas reflexões.
Em várias obras consagradas a analisar o pensamento filosófico-político de Hannah
Arendt, têm-se o hábito de se referir à nossa autora como alguém que esteve, ao longo de seu
percurso intelectual, “entre” a filosofia e a política. Gostaríamos de salientar, apoiados pela
explicação contida no Dicionário Aurélio, que a palavra “entre” tem, como uma de suas deno-
tações, a “relação de lugar ou de estado no espaço que separa duas pessoas ou coisas”.
358
Nessa perspectiva, dizer que a palavra “entre” aponta para algo que separa duas pessoas ou
coisas significa que devemos substituí-la por outra, caso a usemos para se referir ao pensa-
mento de Hannah Arendt. Em outras palavras, deveríamos substituir a palavra entre” por
outra que traduza, com mais exatidão, o que foi a vida intelectual de nossa autora que, ao con-
trário que a palavra entre” sugere, não procurou separar a filosofia da política. Assim, em
nosso entendimento, vislumbra-se que a atividade de Hannah Arendt esteve voltada para “a-
conchegar” filosofia e política, lembrando que a palavra “aconchegar” é uma das denotações
358
Dicionário Aurélio – Século XXI, versão eletrônica (grifos nossos).
180
da palavra “unir”, que em termos arendtianos significa harmonizar duas atividades humanas
que aparentemente são díspares.
A partir das análises expostas ao longo do corpo de nosso trabalho, podemos dizer que
não se constituiu como objetivo de Hannah Arendt transpor, na acepção da palavra, o abismo
que por século divorciou a filosofia da política. Em nossa opinião, para realizar a transposição
de tal abismo seria necessário uma personalidade intelectual que estivesse imbuída de trazer
para o plano da vida activa seus pensamentos e, assim, estivesse engajada em ações políticas,
inspiradas por aquilo que pensa, o que seria uma contradição, diante do que apresentamos
sobre as características da faculdade de pensamento. Mas possuímos subsídios suficientes
para crer que não era esse o posicionamento de Hannah Arendt. Acreditamos que o melhor
que se pode dizer com referência à atitude de nossa autora é que foi seu propósito pensar a
relação entre filosofia e política a partir de uma perspectiva que suprimisse o embate que por
séculos caracterizou a relação entre a vida contemplativa e a vida activa. E, na perspectiva
arendtiana, o que se pode fazer para alcançar tal objetivo é pensar a política dentro dos parâ-
metros que resgatem a verdadeira dignidade da política, ou seja, um parâmetro que leve em
consideração, acima de tudo, a assertiva que, para nós, pode ser considerada a marca indistin-
ta do pensamento arendtiano, o fato de que “a pluralidade é a lei da Terra” e, assim, “não o
homem, mas os homens é que habitam a Terra”.
181
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