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UNIVERSIDADE
DE
SÃO
PAULO
FACULDADE
DE
FILOSOFIA,
LETRAS
E
CIÊNCIAS
HUMANAS
DEPARTAMENTO
DE
TEORIA
LITERÁRIA
E
LITERATURA
COMPARADA
PATRÍCIA
TRINDADE
NAKAGOME
DESCOBERTA
E
LIMITAÇÃO
os livros autobiográficos de Graciliano Ramos
São Paulo
2008
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PATRÍCIA
TRINDADE
NAKAGOME
DESCOBERTA
E
LIMITAÇÃO
os livros autobiográficos de Graciliano Ramos
Dissertão apresentada à Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de o Paulo para a
obtenção do título de Mestre em
Letras.
Área de concentração: Teoria Literária e
Literatura Comparada.
Orientadora: Profa. Dra.. Andrea Saad Hossne
São Paulo
2008
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F
OLHA DE APROVAÇÃO
P
ATRÍCIA TRINDADE NAKAGOME
Descoberta e limitação: os livros autobiográficos de Graciliano Ramos
Dissertação apresentada à Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo para a
obtenção do título de Mestre.
Área de concentração: Teoria Literária e
Literatura Comparada.
Aprovado em: ________________
Banca examinadora
Prof. Dr.:___________________________________________________________________
Instituição:___________________________ Assinatura:_____________________________
Prof. Dr.:___________________________________________________________________
Instituição:___________________________ Assinatura:_____________________________
Prof. Dr.:___________________________________________________________________
Instituição:___________________________ Assinatura:_____________________________
À memória do Júnior, anjo menino,
que me ensinou o valor do aprender.
A
GRADECIMENTOS
À professora Andrea Saad Hossne, que generosa e carinhosamente me orienta desde a
Iniciação Científica. Seu apoio, confiança e conhecimento são a base desse trabalho e da
minha formação acadêmica.
Aos professores Jaime Ginzburg e Jorge de Almeida pelas sugestões no exame de
qualificação, a partir do qual essa dissertação ganhou um novo direcionamento.
Aos funcionários do DTLLC, especialmente ao Luiz, por conciliar eficiência e
gentileza.
Às pessoas especiais com as quais trabalhei na Escola Móvel do GRAACC e no
Centro de Línguas da USP, lugares que proporcionaram a rara oportunidade de unir a prática
profissional à formação acadêmica.
À Silvia Dafferner, pela gentileza e disponibilidade com que compartilhou
informações sobre Graciliano.
À Fabiana de Melo Oliveira, pelo bom humor constante, que acompanha nossas longas
discussões sobre a vida e a educação.
À Fernanda Rodrigues Freires, a irmã que eu escolhi, sempre presente com intensas
reflexões trágicas e cômicas.
Ao Carlos Eiji Hirata Ventura, alma de letras e mente de números, pela companhia
tranqüilizadora, pelas risadas e pelo amor parceiro e confiante que me deixa mais forte e
humana há dez anos.
Aos meus pais, por tudo. Agradeço ao apoio incondicional manifestado com
preocupação e amor. As comidinhas da minha mãe e as invenções do meu pai tornaram esse
período muito mais confortável e prazeroso.
Uno se embarca hacia tierras lejanas, indaga la naturaleza,
ansia el conocimiento de los hombres, inventa seres de ficción, busca a Dios.
Después se comprende que el fantasma que se perseguía era Uno-Mismo.
Ernesto Sabato. Hombres y engranajes
R
ESUMO
Este trabalho consiste em uma leitura de Infância e Memórias do Cárcere de
Graciliano Ramos a partir de dois aspectos que consideramos fundamentais em sua obra
autobiográfica: descoberta e limitação. A criança vive um processo de formação no livro,
incorporando o novo aos seus referenciais. O adulto, com a absurda prisão, marca o texto com
uma problematização de suas certezas.
Com especificidades que separam experiências tão distintas, discutimos como as obras
apresentam literariamente a limitação imposta pela violência e pela opressão e a possibilidade
concreta de descobrir mais sobre a própria subjetividade e o mundo, que se pela relação
com pessoas singulares. Principalmente na cadeia, o contato estreito com os homens em
condições precárias permite que se conheça o quanto eles são surpreendentes, com ações
inverossímeis àquela realidade. Nesse sentido, ao contrário do tão discutido pessimismo de
Graciliano, consideramos que a experiência carcerária permitiu-lhe lampejos de esperança,
que tiveram impacto sobre as obras escritas após sua libertação.
Para entender o outro, Graciliano reflete profundamente sobre si mesmo, julgando-se
incapaz de opor-se a um mundo de tamanha negatividade. Mas a sua resistência virá através
da escrita, especialmente a autobiográfica. Essa forma traz o olhar do sujeito sobre a própria
experiência, o que implica, por exemplo, em discutir verdade, ficção, verossimilhança e
rememoração e, principalmente, em reconhecer o impacto da união de personagem, narrador e
autor sob o nome de um único homem. Recorrer à autobiografia indica mais do que a
necessidade de passar da ficção à confissão, pois essa forma, ao exigir maior unidade do
sujeito, é a que melhor concretiza a resistência do homem a tantas experiências
fragmentadoras.
PALAVRAS-CHAVE: Graciliano Ramos; Memórias do Cárcere; Infância; memória;
autobiografia.
A
BSTRACT
This research consists of a reading of Infância and Memórias do Cárcere by
Graciliano Ramos based on two points here considered fundamentals of his autobiographical
works: discovery and limitation. The child incorporates all kind of newness during his
upbringing process. The adult put in doubt his conviction because of the absurd prison.
Considering the specificities of the distinct experiences, it will be discussed how the
books present the limitation imposed by the violence and oppression and how it is possible to
know oneself and the world through the relationship with extraordinary people. Mainly on the
jail, the sociability on hard living conditions allows that one notice how people can be
surprising, capable of non-expected actions to that reality. Therefore, on the contrary of the
much discussed Graciliano’s pessimism, it can be considered that the experience on the jail
showed to the author signs of hope, which have affected his written works after he got out the
prison.
Graciliano thought deeply about himself to understand other people, concluding he is
unable to make an opposition to such a negative world. But his resistance appears through the
writing, specially the autobiographical, which requires a discussion about truth, fiction,
verisimilitude, remembrance and mainly about the impact of character, narrator and author
united under a single name. Writing an autobiography means more than a need of moving
from fiction to confession. As this form demands an unitary person, it’s the best one to show
the resistance of someone against so many experiences of dissolution.
KEYWORDS: Graciliano Ramos; Memórias do Cárcere; Infância; memory; autobiography.
S
UMÁRIO
A
PRESENTAÇÃO
:
DESCOBERTA E LIMITE
................................................. p. 11
PARTE
I
M
UNDO
1.
O
RECONHECIMENTO DO MUNDO
.......................................................... p. 18
1.1 Um mundo desconhecido ......................................................... p. 19
1.2 Um mundo a ser conhecido ...................................................... p. 24
1.3 O mundo do sujeito .................................................................. p. 28
2.
A
S INSTITUIÇÕES
.................................................................................... p. 34
2.1 A família ................................................................................... p. 34
2.2 A escola .................................................................................... p. 44
2.3 A cadeia .................................................................................... p. 48
2.4 A formação do sujeito nas instituições .................................... p. 52
3.
A
S PESSOAS
DESVIANTES
.................................................................... p. 56
3.1 As autoridades ......................................................................... p. 58
3.2 Os marginais ............................................................................ p. 65
3.3 O sujeito .................................................................................. p. 77
PARTE
II
O
H
OMEM
1.
A
MEMÓRIA
........................................................................................... p. 82
1.1 A memória fragmentada ........................................................... p. 83
1.2 A memória deformada .............................................................. p. 88
2.
O
EU
....................................................................................................... p. 94
2.1 O esvaziamento do sujeito ....................................................... p. 94
2.2 A dualidade .............................................................................. p. 100
2.3 A ação do sujeito ...................................................................... p. 108
3.
A
PALAVRA
............................................................................................. p. 115
3.1 A forma da escrita .................................................................... p. 123
3.2 O homem pela escrita ............................................................... p. 136
3.3 Marcas da experiência carcerária sobre a escrita ..................... p. 144
C
ONSIDERAÇÕES
F
INAIS
............................................................................ p. 154
B
IBLIOGRAFIA
........................................................................................... p. 160
11
A
PRESENTAÇÃO
:
DESCOBERTA E LIMITE
Infância e Memórias do Cárcere são as duas obras de Graciliano Ramos que, por seu
próprio gênero literário, representam o ponto culminante de uma trajetória autoral
profundamente permeada pela necessidade de recorrer à memória e testemunhar sobre o
mundo, o que Candido apontou como a necessidade de ir da ficção à confissão.
Infância é uma narrativa sobre “a educação violenta e autoritária da família patriarcal,
ou o que restou da família patriarcal do começo do século.”
1
, em que são retomados alguns
episódios fundamentais da formação de Graciliano. Por não ter a pretensão de constituir um
painel total da infância, alguns capítulos foram inicialmente publicados em separado, tal como
já havia ocorrido com Vidas Secas. Lançada integralmente em 1945, a obra retoma a memória
mais primitiva do menino e termina com início de sua adolescência, pontualmente marcada
pela entrada do sexo na sua vida. O transcorrer de sua vida infantil é marcado por episódios
de aprendizagem sobre a violência, a autoridade, a solidão, a amizade, a diferença traços de
um mundo que se oferece como uma infinitude a ser descoberta, através de pessoas e
experiências.
Não são poucos os críticos que consideram Infância um dos grandes livros de
Graciliano Ramos
2
. Em oposição a isso, Memórias do Cárcere desfruta de um lugar menos
privilegiado na obra do autor
3
, ainda que tenha provocado grande impacto social, quando
publicada postumamente em 1954:
O livro (MC) provocaria impacto com suas revelações, inclusive no Palácio do Catete.
Em suas memórias Alzira Vargas do Amaral Peixoto diria que a obra fora lida “com
emoção e respeito por todos os seus algozes, conscientes ou inconscientes”. No
Congresso, udenistas e trabalhistas se digladiariam por causa das denúncias sobre os
cárceres do Estado Novo: a oposição explorando o fato contra Getúlio; a situação
mostrando que o presidente tinha se rendido à democracia. Pela primeira vez,
Graciliano estouraria nas vendas –dez mil exemplares esgotados em 45 dias.
4
1
Lafetá, João Luiz. “O porão do Manaus” In: neros de Fronteira. Xamã: São Paulo, 1997, p. 228.
2
Candido considera Infância a obra-prima do “setor” autobiográfico de Graciliano. In: Candido, Antonio. Tese e
Antítese. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1964. p. 98; Castello a chama de “obra admirável” Castello,
José Aderaldo. “Aspectos da formação e da obra de Graciliano Ramos” In: Homens e intenções: cinco escritores
modernistas. São Paulo: Conselho Estadual de Cultura, s/d, p. 3; e Faria considera Infância “o livro mais
importante” Faria, Octavio de. “Graciliano Ramos e o sentido do humano”. In: RAMOS, Graciliano. Infância.
Rio de Janeiro: Record, 1995, p. 251.
3
Há críticos que destacam a importância dessa obra, como Hermenegildo Bastos, cuja obra discutiremos adiante.
4
Moraes, Dênis de. O Velho Graça. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1993, p. 310.
12
Não foi apenas ao redor do governo que giraram as polêmicas sobre Memórias do
Cárcere, que o próprio Partido Comunista desejava evitar que o livro fosse publicado por
fazer “referências pouco lisonjeiras à União Soviética”
5
. Às discussões ligadas à publicação
do livro, junta-se outra relevante: a acusação de que a obra não seria idônea, por apresentar
um texto distinto do originalmente redigido pelo autor
6
. Esses debates revelam a importância
do livro para a compreensão política do Estado Novo e apontam para um aspecto que será
constantemente ressaltado em relação a ele: trata-se de um documento, e é como tal que será
encarado por alguns críticos literários e outros pesquisadores das ciências humanas,
especialmente historiadores. Por certo, não podemos negar o valor documental do livro, mas
acreditamos que haja também escolhas estéticas de grande significação, algumas bem
apontadas pela crítica. Lima, por exemplo, considera que o livro é híbrido, precisamente por
ser “documento e literatura, não por algum artifício, mas por direito próprio”
7
.
Além do que é possível conhecer através das obras, como por exemplo a educação
tradicional e o tratamento recebido pelos presos políticos, elas, pelo caráter autobiográfico,
fornecem importantes informações sobre a personalidade de um autor instigante e reservado,
que, no entanto, são algumas vezes apropriadas de forma pouco mediada, como ocorre, por
exemplo, no comentário de Faria:
Em Graciliano Ramos, o menino Graciliano é tudo. Seus heróis são o menino, sua
timidez é a do menino, seu pessimismo é o do menino, sua revolta é a do menino. Em
uma palavra: o sentido que tem do humano é o que o menino adquiriu no contato com
os homens que o cercavam, com quem travou as primeiras relações, de quem recebe
as primeiras ordens, que conheceu nas inúmeras fraquezas.
8
Não devemos negar a importância da infância na formação de uma pessoa, mas
tampouco podemos diminuir o papel dos outros períodos da vida. Além disso, é fundamental
5
Idem, p. 311.
6
Em O Estado de São Paulo, Wilson Martins aponta diferenças entre os fac-símiles dos originais e o texto final
de Memórias do Cárcere, com interpolações, correções e cortes. Chega por fim, a sugerir que o texto fora
adulterado por Ricardo Ramos. Este, por sua vez, rebate, no mesmo jornal, as acusações de Wilson Martins,
revelando a existência de três versões do texto. Dias depois, Wilson Martins encerra a questão, afirmando
desconhecer a multiplicidade de originais. Cf. Abel, Carlos Alberto Santos. Graciliano Ramos: cidadão e artista.
Brasília: Editora UNB, 1999. A discussão é retomada anos depois por Clara Ramos, que também considera ter
havido falha na definição do texto final de Memórias do Cárcere In: Ramos, Clara. Mestre Graciliano:
confirmação humana de uma obra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979.
7
Lima, Luiz Costa. História. Ficção. Literatura.o Paulo: Companhia das Letras: 2006, p. 364. Na conclusão
de seu estudo de caso sobre Memórias do Cárcere, afirma o autor: “[...] Graciliano compreende a estreiteza da
concepção documentalista do romance que praticara e à qual o seu nome permanecerá ligado. As Memórias
parecem então demonstrar que pertencem à forma híbrida, mesmo porque reconhece que o documento não
exaure o que a configuração verbal admite.”
8
Faria, Octavio de. “Graciliano Ramos e o sentido do humano”. In: Ramos, Graciliano. Infância. Rio de Janeiro:
Record, 1995, p. 251.
13
considerar as especificidades do gênero autobiográfico, que não reproduz uma verdade
absoluta, mas antes, como brevemente discutiremos nesta dissertação, configura um modo
específico de ler o mundo, a partir de um ponto de vista distanciado dos fatos narrados.
Consideramos, portanto, que talvez o menino não seja a chave para a interpretação de
Graciliano, mas sim o homem que recorda e apresenta a vida dele próprio, pois em termos
literários, é impossível desconsiderar o intervalo entre a vivência dos fatos e sua narração.
Como vemos, é complexa a tarefa de trabalhar a literatura e a realidade. Enquanto
alguns consideram os livros como documentos, Lafetá, por exemplo, trata Memórias do
Cárcere e Infância como textos ficcionais.
9
Em uma posição intermediária, temos a análise de
Candido que relaciona Infância à ficção e Memórias do Cárcere, essa “narrativa sem atavios
dum trecho decisivo da sua vida de homem.”
10
, ao documento. Apenas no capítulo “A
palavra”, faremos uma discussão mais profunda sobre a ficcionalidade dos textos, mas cabe,
por ora, adiantar, que não é essa marca que norteará a análise dos livros: partindo do gênero
em que as obras estão primordialmente inseridas (a autobiografia), priorizaremos a discussão
de como o sujeito sente-se em relação à sua experiência. Assim, ao invés de considerarmos,
por exemplo, se determinadas pessoas são trabalhadas como personagens, discutiremos por
que o olhar do narrador as dotou de tal especificidade. É, portanto, a partir do olhar do sujeito
que elaboraremos nossa análise.
Para compreender como se manifesta a relação do sujeito com o mundo, optamos por
uma leitura bipartida e complementar, centrada no modo como Infância e Memórias do
Cárcere são marcadas pela descoberta e limitação, que permitem ao indivíduo conhecer sua
realidade de forma complexa e, consequentemente, a compreender melhor a sua
subjetividade. Pelo fato de uma obra estar relacionada aos primeiros contatos com o mundo
público, e a outra a um afastamento forçado dele, seria possível pensar que a limitação estaria
relacionada às barras da cadeia, e a descoberta, à formação infantil. No entanto, logo notamos
que não há tal oposição simplista.
Descoberta e limitação interagem dialeticamente ao longo das duas narrativas, não
apenas como eixos condutores do enredo, mas como constituintes da forma autobiográfica,
mais especificamente pelo modo como ela é apropriada por Graciliano Ramos. Através de
estreitas limitações, em que toda a complexidade da realidade (ou da observação individual da
realidade) deve ser adequada a um texto, as autobiografias permitem que o escritor se
9
Para considerá-los como ficção, Lafetá recorreu às análise de Frye, para quem todo texto com tratamento
literário pode ser considerado ficção In: Lafetá, João Luiz. “O porão do Manaus” In: Gêneros de Fronteira.
Xamã: São Paulo, 1997, p. 227.
10
Candido, Antonio. Tese e Antítese. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1964. p. 98.
14
descubra, entendendo suas ações e avaliando criticamente acontecimentos marcantes. Os
limites da autobiografia também estão relacionados aos do próprio sujeito, pelo modo como
ele se (re)conhece e é capaz de narrar acontecimentos nos quais estava presente. A estreita
ligação entre o homem e o texto literário nos leva a uma discussão sobre as diferentes
concepções de sujeito presentes nas obras.
Antes de prosseguirmos nossa discussão, é necessário ressaltar um aspecto que pode
causar algumas imprecisões. Buscamos, ao longo deste trabalho, distinguir e registrar, sempre
que possível, os diferentes papéis abrigados sob o nome do autor empírico. Há, no entanto,
limitações nessa tarefa, já que a própria nomeação Graciliano Ramos impossibilita distinguir
se nos referimos a ele como narrador, autor ou personagem.
11
Em análise feita para Memórias
do Cárcere, que pode ser estendida à Infância, fica evidente essa imbricada relação de papéis:
A elaboração deste texto [Memórias do Cárcere], iniciada pelo autor dez anos após a
passagem do personagem pelo cárcere, estabelece, de início uma relação de
distanciamento temporal do Graciliano-narrador em relação à experiência do
Graciliano personagem ou Graciliano-narrado. Esta distinção narrador-narrado, autor-
personagem constitui uma outra forma de distanciamento produzida pelos papéis
diferentes exercidos pelo Graciliano empírico.
12
As categorias de narrador, personagem e autor perpassam a discussão sobre as
particularidades da forma autobiográfica na obra de Graciliano, inclusive quanto à descoberta
e à limitação. Vejamos como essas duas chaves estão presentes nas narrativas e na formação
dos sujeitos. Sobre Infância, afirma Candido:
Um dos seus aspectos mais belos é a progressiva descoberta do mundo, - das pessoas,
das coisas, do bem e do mal, da liberdade peada e da tirania da convenção, às quais se
choca, ou se adapta, a tenra haste da meninice.
13
No processo de descoberta, reconhece-se que o horizonte não é ilimitado. Descobrir o
mundo implica também em aprender a lidar com uma série de limitações impostas ao
desenvolvimento dos homens. É através desse mundo (e de suas regras pré-existentes) que o
homem torna-se humano
14
, de modo que, ao descobri-lo, o menino também descobre a si
11
Cabe uma observação separada quanto ao uso de “personagem”. Utilizamos esse conceito quando nos
referimos àquele que viveu os fatos no momento da narrativa. No entanto, nos referenciais deste trabalho, como
amplamente discutido adiante, não consideramos adequado falar na existência de personagens, e sim de pessoas.
12
Neto, João Ribeiro. A construção da Identidade Narrativa nas Memórias do Cárcere de Graciliano Ramos.
Campinas: Unicamp, 2006 (dissertação de mestrado), p. 77.
13
Candido, Antonio. Tese e Antítese. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1964. p. 115
14
“Se os indivíduos, como mostramos, agem segundo as necessidades sociais, parece que a sociedade impõe
aos homens insuportável tirania. Na realidade, porém, eles mesmos são interessados nessa submissão; porque o
ser novo que a ação coletiva, por intermédio da educação, assim edifica, em cada um de s, representa o que
de melhor no homem, o que em nós de propriamente humano. Na verdade, o homem não é humano senão
15
mesmo. A complexidade do processo pode ser vista pela imagem esclarecedora de Candido,
que aponta a presença do choque e da adaptação na descoberta. A “tenra haste” da criança,
por sua flexibilidade, quando se depara com um obstáculo, acomoda-se ao desvio; o adulto,
seguindo a metáfora, poderia ser imaginado como um tronco rígido, que não se dobra
facilmente e insiste em seu curso, vergando-se para novos espaços apenas quando encontra
uma limitação aparentemente intransponível.
As imagens da haste e do tronco são representativas da socialização dos indivíduos, a
qual visa ao “estabelecimento de uma simetria entre o mundo objetivo da sociedade e o
mundo subjetivo do indivíduo”.
15
Embora esse processo ocorra continuamente ao longo da
vida do homem, é mais “efetivo” em seu início, como discutiremos a seguir. Por essa razão, o
menino está mais aberto a conhecer e aceitar o mundo, enquanto o homem adulto, mesmo
diante de uma realidade absolutamente nova - como a cadeia - , irá sempre avaliá-la em
relação a uma série de parâmetros já formados.
O homem adulto vivencia a descoberta não apenas de algo inédito, mas também,
frequentemente, de algo conhecido que lhe mostra facetas desconhecidas:
O resultado principal parece ter sido a compreensão de que estes [os homens] são
mais complicados e muito mais esfumada a divisão sumária entre bem e mal. um
nítido processo de descoberta do próximo e revisão de si mesmo, que o romancista
anota sofregamente, como que completando pela própria vivência o panorama que
antes havia elaborado no plano fictício.
16
Pelo contato estreito com uma parte desconhecida da realidade, o sujeito tem a chance
de redefinir as avaliações que faz até de si mesmo. Conceitos formados pela experiência são
confrontados, e o mundo mostra-se ainda mais complexo. Nessa mesma linha de pensamento,
afirma Bosi:
Além de admitir a incerteza dos seus juízos de realidade, o memorialista sente que
deve rever alguns de seus juízos de valor mais arraigados. A vida na prisão traz à luz o
lado vil dos que, fora dela, se supõem indefectivelmente briosos. Em contrapartida,
desperta naqueles que a ordem social votou ao desprezo centelhas de inesperada
dignidade e humana compaixão.
17
porque vive em sociedade.” In: Durkheim, Émile. Educação e Sociologia. São Paulo: Edições Melhoramentos,
1967, p. 35.
15
Berger, Peter L. O dossel sagrado: elementos para um teoria sociológica da religião. São Paulo: Paulus,
1985, p. 28.
16
Candido, Antonio. Ficção e Confissão. São Paulo: Editora 34, 1999, p. 63 (grifo nosso)
17
Bosi, Alfredo. “A escrita do testemunho em Memórias do CárcereIn: Revista Estudos Avançados 23. São
Paulo: 1995, p. 316.
16
O limite da prisão impõe um contato estreito com as pessoas, permitindo que o homem
descubra o que não pode ser conhecido em contatos superficiais e, consequentemente, que
reconheça a fragilidade de seus julgamentos.
De modo geral, é possível afirmar que enquanto em Infância há uma descoberta
progressiva do mundo, com uma sequência de fatos inteiramente novos, em Memórias do
Cárcere, torna-se mais complexo o que se julgava descoberto, de modo que os fatos novos
sobreponham, mas não ocultem completamente, os antigos. Na primeira obra viveu-se a
limitação para descobrir mais sobre o mundo, na segunda viveu-se o mundo para descobrir a
limitação.
A imbricada relação entre homem e mundo, costurada pela descoberta e pela
limitação, está marcada na própria estrutura do nosso trabalho. A primeira parte denominada
“mundo” foi dividida em três capítulos: partimos do modo como o personagem, em cada
livro, reconhece uma realidade que lhe é nova, estabelecendo seus referenciais espaciais;
depois vemos como isso está perpassado pelas instituições fundamentais de formação dos
homens, que impõem limitações aos seus impulsos; por fim, discutimos a importância de
algumas pessoas que, ao fugir do seu papel institucional, permitem que Graciliano descubra
mais sobre sua realidade e até sobre si mesmo. Na segunda parte, “homem”, vemos como o
personagem questiona a sua posição no mundo. Para isso inicialmente discutimos como a
memória opera a recriação de fatos ocorridos no passado; em seguida, analisamos como o
sujeito se afirma ao longo do livro, observando suas mudanças e discutindo o impacto delas
sobre a narrativa; por fim, apontaremos as marcas deixadas na escrita pelo embate do homem
com o mundo, pelos processos de descoberta e limitação que marcam os livros
autobiográficos.
17
PARTE I – MUNDO
18
1.
O
RECONHECIMENTO DO MUNDO
O título deste capítulo, marcado pela palavra “reconhecimento”, guarda em si uma
dupla possibilidade de aproximação da realidade: na infância, está mais relacionada a
“considerar com atenção; observar, explorar” e, na fase adulta, está mais ligada à
possibilidade de “tomar conhecimento de novo ou em outra situação”
18
. Isso ocorre porque,
como indicado, a criança está em contato com um mundo completamente novo a ela,
enquanto o adulto lida com situações pertencentes a uma realidade conhecida, ainda que de
modo superficial. A diferença no trato de uma pessoa com o mundo, em sua fase infantil ou
adulta, expressa-se, por exemplo, pelo modo como são construídos o tempo e o espaço na
narrativa. O espaço será discutido neste momento para mostrar como o sujeito trava seus
primeiros contatos com uma realidade específica, seja o mundo social, seja a cadeia
19
.
Como são capazes de revelar a relação de descoberta e limitação que o sujeito
estabelece com o mundo, tempo e espaço serão discutidos ao longo de todo o trabalho. Eles
formam a base para o desenvolvimento da criança em Infância e colocam em questão a
própria existência do homem em Memórias do Cárcere ao mostrar que a realidade na qual ele
se formou é apenas parte de um mundo muito mais complexo. Isso ocorre porque embora os
dois livros sejam marcados pela descoberta (da vida social e da vida na cadeia), m
especificidades que vão além de contextos narrativos diferenciados. O sujeito tem formas
diferentes de se relacionar com as pessoas e principalmente de interiorizar valores e normas
sociais de acordo com a fase da sua vida, pois o processo de socialização, agora apresentado
de forma mais detalhada, é distinto para crianças e adultos:
[...] socialização, que pode ser assim definida como a ampla e consistente introdução
de um indivíduo no mundo objetivo de uma sociedade ou de um setor dela. A
socialização primária é a primeira socialização que o indivíduo experimenta na
infância, em virtude da qual torna-se membro da sociedade. A socialização secundária
é qualquer processo subseqüente que introduz um indivíduo já socializado em novos
setores do mundo objetivo de sua sociedade.
20
18
Cf. RECONHECIMENTO. In: HOUAISS dicionário da ngua Portuguesa. Rio de Janeiro: Editora Objetiva,
2001, p. 2403.
19
Uma discussão mais concentrada sobre o tempo será feita no próximo capítulo.
20
Berger, Peter L.; Luckmann, Thomas. A construção social da realidade: tratado de Sociologia do
Conhecimento. Petrópolis: Vozes, 1983, p. 175.
19
Na socialização primária, o mundo é identificado com sujeitos conhecidos, de tal
modo que nesse processo esteja envolvido um elevado grau de emoção. Assim, a criança
interioriza o mundo de forma mais arraigada e unitária, pois não o entende como uma
construção social, mas como o mundo
21
. Na fase adulta, o contato com o mundo dá-se de
forma plural, pois o homem lida tanto com o que foi conhecido, quanto com a certeza de
que o vivenciado representa apenas um “setor” de tantas possibilidades existentes. A
pluralidade faz com que haja menor emoção na sua relação com o mundo.
1.1
U
M MUNDO DESCONHECIDO
O tom mais duro de Memórias do Cárcere decorre da consciência do sujeito de que o
espaço do encarceramento é mais um que ele precisa entender e ao qual deve se adaptar, o que
é possível, para o homem adulto, através de uma constante retomada de referenciais
passados, como das experiências do hospital e da infância, nas quais ele também havia se
sentido fortemente limitado pelo mundo. Antes da entrada na prisão, fatos externos são
valorizados por permitirem que, a partir deles, o homem construa sua nova realidade:
Na atrapalhação da partida, esquecera-me de um aviso importante. De fato não havia
importância, mas ali, ausentando-me do mundo, começava a dar às coisas valores
novos. Sucedia um desmoronamento. Indispensável retirar dele migalhas de vida,
cultivá-las, ampliá-las. De outro lado, seria o desastre completo, o mergulho
definitivo.
22
O homem sente a necessidade de manter os vestígios do que conhece para suportar o
novo, pois ainda que a realidade conhecida não seja coerente (como indica sua própria prisão,
sem motivo ou julgamento), a cadeia representa o vazio, a impossibilidade de compreensão.
Mas não é apenas por isso que o desmoronamento do mundo é grave: sem guardar seus
21
“A criança não interioriza o mundo dos outros que são significativos para ele [sic] como sendo um dos muitos
mundos possíveis. Interioriza-o como sendo o mundo, o único mundo existente e concebível, o mundo tout
court. É por esta razão que o mundo interiorizado na socialização primária torna-se muito mais firmemente
entrincheirado na consciência do que os mundos interiorizados nas socializações secundárias.” In: Peter L.;
Luckmann, Thomas. A construção social da realidade: tratado de Sociologia do Conhecimento. Petrópolis:
Vozes, 1983, p. 180.
22
Ramos, Graciliano. Memórias do Cárcere. Rio de Janeiro: Record, 1989, 34ª edição. p. 59. A partir deste
momento, faremos referência a essa obra com MC, sendo o volume II indicado com MC II.
20
vestígios, o homem coloca em risco sua própria existência, pois mesmo a sua singularidade
foi formada em condições de liberdade. As referências externas à prisão são fundamentais
para que a pessoa compreenda sua nova realidade e lembre-se de quem é, algo fundamental
em um meio de singularidades opacas, em que tantos outros homens, também destituídos de
referenciais, encontram-se amontoados em um pequeno espaço, privados dos recursos
básicos de manutenção da vida.
Enquanto no início de Memórias do Cárcere considera-se mundo aquilo que é externo
à cadeia, após o encarceramento, a prisão é entendida como “um” mundo, uma realidade
com marcas específicas:
Na verdade me achava num mundo bem estranho. Um quartel. Não podia arrogar-me
inteira ignorância dos quartéis, mas até então eles me haviam surgido nas relações
com o exterior, esforçando-se por adotar os modos e a linguagem que usávamos
fora. Aparecia-me de chofre interiormente, indefinido, com seu rígido simbolismo, um
quadro de valores que me era impossível recusar, aceitar, compreender ao menos.
23
O quartel configura um espaço determinado, apenas uma parte do mundo ao qual
pertencia o personagem. Este, ao mostrar sua dificuldade para lidar com esse contexto
peculiar, revela a fragilidade do seu conhecimento, construído através de uma imagem do
exército adaptada à sociedade civil. Estar em contato direto com o que antes era visto na
superficialidade revela ao sujeito um ambiente com valores que sequer poderiam ser
compreendidos, o que o obriga a trazer os parâmetros do seu mundo anterior, por meio dos
quais ele não se sente fora de toda a realidade, apenas de uma faceta específica. Sem os
referenciais externos, o mundo militar, com toda sua ordenação, apontaria a incoerência do
sujeito e o tornaria objeto de dúvida.
Ao longo do livro, a retomada do que é externo à cadeia não diminui, mas
gradativamente deixa de encobrir a realidade do cárcere, que passa a colocar-se ao seu lado e
constituir, também, um mundo, embora com limitação estabelecida:
Lá fora tínhamos funções, representávamos de qualquer modo certo valor. Pelo menos
julgávamos representar. Agora nos faltava o mínimo préstimo, e o pior é que sabíamos
disso. Arrastávamos as pernas ociosas; uma vez por dia deixávamos a gaiola um,
dois, um, dois alcançávamos o banheiro, o limite do mundo; regressávamos à
sonolência e à imobilidade.
24
23
MC, 64.
24
MC, 116.
21
Agora, ao opor o mundo de fora e o de dentro da cadeia, é neste que o narrador finca
suas certezas, ainda que negativas. A descoberta de um mundo inimaginável faz com que ele
questione dados que antes podiam ser considerados certeiros, como o fato de sua própria vida
ter algum valor. A experiência da cadeia evidencia sua inutilidade dentro, mas também
coloca em dúvida a sua importância quando estava em liberdade, pois se ele, de fato,
representasse alguém considerável, não poderia ser mantido preso. O encarceramento revela o
valor negativo do homem, cuja pretensa nocividade teria obrigada a sua retirada da sociedade.
A prisão instaura a dúvida, que ao se estender sobre a sociedade e seus valores, coloca em
xeque o próprio homem, que julgava não agir contra os parâmetros impostos.
Contrariando a hipótese de que a cadeia ofereceria incertezas em oposição às certezas
da liberdade, o narrador propõe, por vezes, uma inversão: fora da cadeia, tudo é incerto sob a
aparência da certeza, enquanto ali dentro, algumas certezas são bem definidas (por exemplo:
regras, punições, alimentação), especialmente por se guiarem pela conduta militar,
representada na cena com certa ironia pela contagem dos passos. A cadeia, configurada como
um mundo amplamente coerente dentro de seus limites estreitos, não restringe o sujeito na
mesma proporção de seu espaço físico. Muitas descobertas são possíveis em seu meio
25
e, em
alguns momentos, tornadas compulsórias justamente por obrigar o contato tão próximo entre
as pessoas:
Agora na prisão havia mais espaço: deixaram aberta uma grade e nosso mundo se
estendeu alguns metros, pudemos andar na sala vizinha. Estive ali parte do dia, a
contar os passos de uma a outra parede, a imaginação presa no curral de arame, as
palavras insensatas de Medina fervilhando-me na cabeça.
26
Quase no final de Memórias do Cárcere, a cadeia é chamada de “nosso mundo”, o que
revela uma mudança no papel daquele espaço para o personagem. Cabe observar que nossa
análise não está unicamente centrada no rastreamento do termo “mundo”, pois é possível que
ao longo do livro ele tenha sido utilizado de formas distintas das que apresentamos, mas
julgamos interessante apontar suas marcas nas citações selecionadas, pois são indicativas da
relação que o homem estabelece com sua nova realidade. A cadeia, vista como uma outra face
25
MC, 366: “Ali dentro essas limitações desaparecem, anulam-se as fronteiras, vemos que nos podemos mover
para um lado e para outro, indiferentes às restrições, alheio às conveniências. Movemo-nos até bater com o nariz
numa porta de ferro. Mas esse obstáculo é transitório. Descerra-se a porta, queremos transpô-la, sem perguntar se
havia para isso uma proibição. Os deveres incutidos lá fora não existem: vamos até onde podemos ir [...]. Moésia
Rolim, alto e rouco, afirmava que ali nhamos liberdade; era o único lugar no Brasil onde havia liberdade.
Perfeitamente. Agarrava-me a esse paradoxo. Gritávamos, cobríamos de baldões a polícia assassina de Filinto
Müller. Tínhamos essa liberdade. E havia outra. Andar nus, não escovar os dentes, falar à toa, admitindo ou
recusando farrapos de noções obrigatórias noutra parte.”
26
MC II, 317 (grifo nosso).
22
do mundo conhecido - espécie de vazio - é encarada, aos poucos, como o seu mundo,
inclusive mais coerente que o anterior. Diante do reconhecimento da cadeia como um espaço
de convívio de muitas pessoas, é possível entender o tom de coletividade que distingue as
memórias de Graciliano. Um único homem narrará fatos compartilhados por tantas pessoas
sujeitas a um convívio estreito, de intensa vigilância.
No mundo de todos, o espaço é um grande ganho, pois permite um nimo
afastamento. A contagem dos passos, dessa vez sem a marcação militar, representa uma
pequena vitória individual, pois ainda que as palavras do outro não saíssem de sua cabeça,
fisicamente Graciliano poderia ganhar um distanciamento, algo incomum: “Essa
impossibilidade de isolamento, a obrigação de sentir a miséria alheia, é imposta dentro.”
27
O contato permanente com as pessoas é um dos aspectos que dificulta, mesmo anos depois,
uma percepção meramente individual dos fatos, pois os sofrimentos e opiniões de todos estão
sempre em cena.
No reconhecimento de um mundo tão marcado pela coletividade, o espaço merece
grande destaque precisamente por ser o elemento de ligação entre todas as pessoas da cadeia,
sejam os vigilantes, sejam os vigiados. A especificidade do espaço deixa sua marca sobre
todos, mas apesar disso ela não restringe a imprevisibilidade humana. É precisamente por isso
que a descrição é um recurso tão forte em Memórias do Cárcere: ela é essencial para mostrar
a situação de adversidade em que vivem as pessoas e, consequentemente, destacar as ações
que contrariam as expectativas criadas por um espaço tão precário
28
, de tal modo que seja
impossível reconhecer no livro uma oposição entre a narração e a descrição.
29
As fortes
descrições, por exemplo, do sufocamento no porão do navio e da opressão das celas pequenas
levam o leitor, talvez influenciado pela forte tendência naturalista da literatura brasileira
30
, a
pensar que é possível prever as ações das pessoas. Mas Graciliano mostra o quanto elas
podem ser surpreendentes. O espaço precário torna-se parte das pessoas o “nosso mundo”),
27
MC II, 326.
28
Ocorre algo semelhante ao que Lukács observou em relação ao uso da descrição feito por Balzac: “A descrição
exata da pensão Vauquer, com sua sujeira, seus odores, seus alimentos, sua criadagem, é absolutamente
necessária para tornar realmente de todo modo compreensível o tipo particular de aventureiro que é Rastignac.
[...]
Ainda que prescindamos do fato de que a reconstituição do ambiente não se detenha, em Balzac, na
pura descrição, e venha quase sempre traduzida em ações (basta evocarmos o velho Grandet, consertando a
escada apodrecida), verificamos que a descrição, nele, não é jamais senão uma ampla base para o novo, decisivo
elemento: o elemento trágico.” In: Lukács, Georg. “Narrar ou descrever?”. In: Ensaios sobre Literatura. Rio de
Janeiro, Civilização Brasileira, 1968, p. 51.
29
Assim como faz Candido em análise de L’Assomoir: “Aqui poderíamos dizer contrariando o famoso ensaio de
Lukács que descrever é narrar.” In: Candido, Antonio. Discurso e a cidade. São Paulo: Duas Cidades, 1998, p.
72.
30
O naturalismo recorrente na literatura brasileira foi mostrado por Süssekind em Tal Brasil, qual romance?
23
mas não as determina. Assim, embora o sujeito se esforce para reconhecer seu espaço, logo
verá que está na singularidade de cada pessoa a chave para o reconhecimento daquele mundo:
Imaginara-o tenente e surpreendia-me que houvesse inferiores tão bem educados.
Julgava-os ásperos, severos, carrancudos, possuidores de horríveis pulmões fortes
demais, desenvolvidos em berros a recrutas, nos exercícios. E aquele, amável,
discreto, de aprumo perfeito e roupa sem dobras, realmente me desorientava. Surpresa
tola, por causa das generalizações apressadas.
31
O encarceramento obriga o contato entre os presos, mas também com os militares, que
deixam de ser vistos apenas como representantes de uma instituição desagradável, para se
mostrarem como pessoas, igualmente capazes de surpreenderem por suas ações. A surpresa é
considerada tola, pois como grande observador dos homens, o autor sabe que não se pode
reduzir a ação humana
32
a mero comportamento. Atento a toda sua realidade, Graciliano
oferece um livro que, como afirma Lima, não é surpreendente por testemunhar sobre o
horrível, mas sim por mostrar algo positivo.
33
Ao longo de Memórias do Cárcere, as atitudes
das pessoas, inclusive as suas, ainda irão surpreendê-lo outras vezes:
Como iria comportar-me? Se me dessem tempo suficiente para refletir, ser-me-ia
possível juntar idéias, dominar emoções, ter alguma lógica nos atos e nas palavras,
exibir a aparência de um sujeito mais ou menos civilizado. Mas na situação nova que
me impunham, fervilhavam as surpresas, e diante delas ia decerto confundir-me,
disparatar, meter os pés pelas mãos.
34
A ação humana provoca surpresa, e as surpresas provocam a ação humana. Ou seja:
não é apenas o narrador que se surpreende com os homens, ele próprio pode ser surpreendente
ao agir no novo ambiente, no qual necessitaria de muito mais tempo e tranquilidade para
organizar reações que seriam comuns em liberdade.
A surpresa torna-se uma marca da experiência no cárcere, configurando-se como um
signo do profundo processo de descoberta. Através dessa ruptura com o esperado, surge a
constante necessidade de (re)construção do próprio sujeito, que está sempre se defrontando
com situações inusitadas, existentes apesar das gidas regras da cadeia. A instabilidade do
31
MC, 65.
32
Arendt destaca a ação dentre as atividades humanas: “Só a ação é prerrogativa exclusiva do homem; nem um
animal nem um deus é capaz de ão, e a ação depende inteiramente da constante presença dos outros.”
Arendt, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 31.
33
Lima, Luiz Costa. História. Ficção. Literatura. São Paulo: Companhia das Letras: 2006, p. 363, 364: “Como
documento, as Memórias do Cárcere são apenas testemunho, terrível mas não surpreendente, do que ali se
passava. Em troca, evidencia a surpresa de que algo de positivo ainda pudesse brotar naquele meio. Como se
fosse indispensável que o livre-arbítrio recebesse outra formulação: a terra é o lugar em que o homem pode
percorrer todos os graus entre a besta e o anjo.”
34
MC, 67.
24
ambiente, ao fazer com que o sujeito perceba sua fragilidade, torna -o mais aberto ao outro,
em quem identifica suas próprias incoerências, medos, erros e acertos. Assim, o homem
adulto, que já conhece a arbitrariedade da justiça, como vemos em Infância, não se surpreende
por ser preso. A prisão sem acusação é uma incoerência, mas não uma surpresa, pois
configura uma concretização da injustiça conhecida. Já o ser humano, em sua pluralidade,
oferece diversas oportunidades de surpresa, pois contrariando qualquer expectativa
pessimista, muitos agem de maneira desinteressada, o que obriga Graciliano a repensar sua
concepção de mundo e a de si mesmo.
1.2
U
M MUNDO A SER CONHECIDO
Em Infância o mundo todo é uma surpresa, pois a criança ainda precisava se situar em
relação à sociedade, não apenas viver em uma de suas facetas específicas (como a cadeia). As
pessoas, por fazerem parte desse mundo a ser descoberto, também surpreendem, mas de
forma gradual ao longo do livro: de início o menino aceita suas ações, julgando-as naturais, e
somente após conhecê-las melhor ou ter contato com pessoas diferentes, é capaz de avaliar
suas atitudes.
Nessa narrativa sobre um menino que toma, pouco a pouco, contato com o mundo, a
dificuldade de retomar fatos antigos faz com que o início do livro seja fragmentado, com uma
aglutinação de imagens e recordações diversas. Além disso, o menino não conseguia guardar
e apresentar todos os detalhes do que via porque tudo era absolutamente novo a ele, o que
dificultava a distinção do diferente, do merecedor de atenção especial
35
. Os fragmentos
encontram-se em um plano de indistinta igualdade, soltos na memória desordeira:
Datam desse tempo as minhas mais antigas recordações do ambiente onde me
desenvolvi como um pequeno animal. Até então algumas pessoas, ou fragmentos de
pessoas, tinham-se manifestado, mas para bem dizer viviam fora do espaço.
35
Conrado apresenta uma explicação mais completa para a fragmentação de Infância. Haveria três razões: o
distanciamento temporal entre o narrador no presente e seu passado; a focalização interior, pela mente “infantil
ainda pouco articulada, dada a sua pouca idade”; e a opção artística do autor que estaria ligado ao Cubismo e ao
Expressionismo. Neste trabalho, discutimos as duas primeiras razões, com alterações na segunda. In: Conrado,
Regina Fátima de Almeida. O mandacaru e a flor: a autobiografia Infância e os modos de ser de Graciliano.
São Paulo: Arte & Ciência, 1997, p. 118.
25
Começaram pouco a pouco a localizar-se, o que me transtornou. Apareceram lugares
imprecisos, e entre eles não havia continuidade. Pontos nebulosos, ilhas esboçando-se
no universo vazio.
36
A localização das pessoas transtorna o menino possivelmente porque lhe revela uma
realidade mais complexa do que os recortes anteriormente apreendidos: o mundo tem uma
ordem na qual as pessoas se ligam a seus contextos. Se ele, assim como os outros, está preso
ao espaço onde se formou, é importante retomar os lugares das memórias mais remotas para
que ele encontre a si próprio.
Como mostra a citação, o menino sabe que as pessoas estão relacionadas a lugares
que, por enquanto, ainda parecem isolados de um contexto maior; a criança conhece apenas
pequenas “ilhas”, logo descritas com riqueza de detalhes:
Ali perto era a sala, de janelas sempre fechadas, armas de fogo e instrumentos
agrícolas pelos cantos, arreios suspensos em ganchos, teias de aranha, a rede segura
em armadores de pau, grosseiros caixões verdes, depósitos de cereais, se não me
engano. No corredor desembocavam camarinhas cheias de treva e a sala de jantar. A
cozinha desapareceu, mas o quintal subsiste duro e nu, sem flores, sem verdura, tendo
por único adorno, ao fundo, junto a montes de lixo, um pé de turco, ótimo para a gente
se esconder das perseguições. Desse lado o de turco marcava o limite do mundo.
Do outro lado a terra se estendia por longas distâncias.
37
Essa é uma das descrições mais extensas do livro. Ela apresenta ao leitor uma
realidade profundamente marcada pela ausência, limitada por um de turco. A partir desse
marco, reconhece-se um vasto espaço, ainda inacessível ao menino. Em momento posterior, o
desconhecido integra o mundo infantil, ampliando-o a partir do mesmo referencial familiar:
“Agora o mundo se estirava além do monturo do quintal, mas não nos aventurávamos a
penetrar nessa região desconhecida. O de turco era meu refúgio.”
38
A vastidão a ser
descoberta transformou-se em algo potencial, não apenas existente, tanto que o “pé de turco
deixou de ser apenas um referencial para tornar-se um refúgio. A planta que marcava a
separação entre dois mundos passa a ser elemento fundamental, pois oferece uma dupla
possibilidade de proteção: contra outras pessoas, quando se deseja a solidão, e contra a
descoberta, que pode revelar algo assustador.
A descoberta do desconhecido era uma empreitada ligada à coletividade, como marca
o garoto ao usar o verbo no plural. Em oposição a isso, o refúgio é o lugar da individualidade.
Essa distinção no trato com o espaço indica a gradativa compreensão de que o conhecimento
36
Ramos, Graciliano. Infância. Rio de Janeiro: Record, 1995, 30ª edição, p. 10. A partir deste momento, faremos
referência a essa obra com I.
37
I, 10 (grifo nosso).
38
I, 21.
26
pessoal não determina os limites do mundo, ou seja, outros podem revelar novas dimensões
do espaço, no qual ele seria inserido de forma repentina, sem a naturalidade da descoberta
gradativa. As citações mostram que o espaço descontextualizado passa a ser visto como algo
mais amplo, deixando de ser, após poucas páginas, uma realidade afastada da criança. Há uma
estreita relação entre o espaço e o menino, pois apenas através da compreensão de seus
próprios limites e possibilidades, ele apreende o espaço de forma mais complexa, como
indicado em outro trecho do livro:
O que então me pasmou foi o açude, maravilha, água infinita onde patos e marrecos
nadavam. Surpreenderam-me essas criaturas capazes de viver no líquido. O mundo
era complicado. O maior volume de água conhecido antes continha-se no bojo de um
pote e aquele enorme vaso metido no chão, coberto de folhas verdes, flores, aves
que mergulhavam de cabeça para baixo, desarranjava-me a ciência. Com dificuldade,
estabeleci relação entre o fenômeno singular e a cova fumacenta.
39
A novidade é introduzida através de imagens concretas para representar a dificuldade
inicial de abstração da criança. As descrições são elaboradas de maneira profundamente
imagética, representativa de como o menino apreendia o mundo. A necessidade de estabelecer
comparações favorece a linguagem metafórica do livro (o seu tom até mesmo poético), algo
que retomaremos em outro capítulo. Importante salientar, por ora, que o lirismo de Infância é,
muitas vezes, advindo da necessidade da descoberta, da compreensão de uma realidade com
poucos referenciais objetivos.
Descobrir o mundo, e consequentemente conhecer sua complexidade, é “complicado”
porque implica em lidar, por exemplo, com sua imprevisibilidade. A impossibilidade de
prever o futuro a partir do passado desorienta o menino, revelando que o processo de
ampliação dos limites não é algo que apenas surpreende positivamente, mas que é também
incômodo, pois desestabiliza o conhecimento construído e, por consequência, o sujeito
formado no processo de descoberta. É “complicado” saber que o novo pode ser algo
efetivamente singular, o apenas uma expansão do conhecido. Embora a descoberta nem
sempre ocorra como ampliação de um núcleo conhecido, ela não destrói o antigo, apenas
desestabiliza-o para agregar-se a ele como outro referencial. Algo distinto ocorre quando a
descoberta do novo se dá diante de uma situação limite:
Arrependia-me de haver atendido ao convite de José. Bom voltar ao sítio, deitar-me
num colchão de folhas, admirar os periquitos, as flores de mulungu, as espigas
39
I, 12 (grifo nosso).
27
amarelas. Não conseguiria, porém, tranqüilidade. Excitava-me, preso ao cisco ardente
e fuliginoso, ao choro, às lamúrias, propenso, num gesto mórbido, a torturar-me.
40
José convidou Graciliano para ver o resultado de um incêndio. Havia os restos de uma
cabana, pessoas chorando e um “toco chamuscado”. Após inteirar-se do ocorrido, o menino
descobriu que o “objeto escuro” era o cadáver de uma menina que morrera ao entrar em uma
cabana em chamas para salvar a litografia de Nossa Senhora. A narração deixou o menino
atordoado, o que o faz afirmar o quanto seria bom voltar para o sítio, onde, no entanto, ele
reconhece que não encontraria tranquilidade. O espaço familiar, configurado pela
enumeração de elementos de sua flora e fauna, não poderia oferecer refúgio contra aquela
descoberta, pois o impacto causado pela morte é maior que qualquer experiência vivida. O
mundo conhecido, com suas cores e imagens idílicas, não condizia com a negritude da morte
e, portanto, não oferecia ao garoto a sensação de proteção. Novamente fica exposta a profunda
relação do menino com o mundo, pois este se modifica quando uma ruptura no modo de
compreender a vida. A mudança ocorrida no menino leva a uma alteração no ambiente, pois o
olhar infantil o considera de outra forma, enxergando no espaço as marcas do limite (não mais
apenas da descoberta). Ao reconhecer que a descoberta pode ser mais dura que a limitação, o
garoto inclusive anseia por um limite protetor ou mesmo punitivo
41
, pois ao materializar a
dor, ele a tornaria mais compreensível.
Contrariando o rigor habitual, os pais apenas se preocupam em acalmar a criança,
possivelmente porque entenderam que o choque da descoberta foi mais doloroso que qualquer
repreensão. A materialização do limite da vida havia sido muito angustiante para o menino,
assim que, ao contrário do que ele imaginava, a não-punição não indicava uma tentativa de
transformar o horror em algo ordinário, mas de mostrar que a morte era, de fato, um horror
ordinário, cujo enfrentamento era mais doloroso que qualquer castigo. O aprendizado foi
decorrente do próprio processo de descoberta, não da punição causada por uma infração
inicial. Nem sempre há, portanto, uma diferença tão marcada entre descoberta e limitação, já
que muitas vezes elas se revelam através da complementaridade.
O mundo, que até aquele momento parecia uma construção infantil pelo fato de suas
revelações acompanharem a capacidade de compreensão da criança, mostra sua imensidão de
forma dura. Essa descoberta provoca uma fissura no andamento da história, mas tal como
40
I, 82
41
I, 85: Deviam repreender-me, dizer que me comportara mal abandonando o aceiro, as árvores, os periquitos, as
flores. A lembrança infeliz me atormentava: necessário que os outros soubessem isto e me censurassem. Tinham
sido sempre rigorosos em demasia, e agora me deixavam com aquele peso no interior. A arguição e o castigo me
dariam talvez um pouco de calma: eu esqueceria, nos lamentos e na zanga, a visagem terrível. Não me puniram,
quiseram transformar aquele horror num fato ordinário.
28
ocorre em outros momentos, é superada. O contato com a morte configura um choque,
momento em que o menino é obrigado a se defrontar com a distância que existe entre ele e o
mundo:
Um dia faltou água em casa. Tive sede e recomendaram-me paciência. A carga de
ancoretas chegaria logo (...). A minha vida era um extenso enleio que sobressaltos
agitavam. Para bem dizer, eu flutuava, pequeno e leve. De repente, um choque,
novos choques, estremecimentos dolorosos. Impossível queixar-me agora. Não me
dirigiam ameaças, abrandavam, e as recusas apareciam quase doces. Na verdade não
recusavam.
42
A morte certamente é uma das experiências que poderia ser classificada como um
“choque”
43
na vida do garoto, mas não é a única, que sua existência é marcada por uma
série de abalos, que perpassam Infância. Para os leitores, os capítulos do livro configuram
diversas narrativas desses choques, mas para o garoto apenas alguns o abalam, pois de modo
geral, são naturais em seu cotidiano infantil. Por ser constante, a surpresa descaracteriza-se e
torna-se aprendizado, parte constitutiva da formação do menino, que o abala apenas quando se
opõe a todas as demais novidades sedimentadas. É por essa razão que a morte, com seu
valor destrutivo, de negação, consegue estremecer a frágil estrutura da criança.
Ao afirmar que “flutuava”, o garoto mostra como aceitava as limitações existentes e se
adaptava a elas: lida tranquilamente com um ambiente marcado pela violência em suas
diferentes feições. O inesperado assusta, mas também forma, tanto que por vezes é
denominado “surpresa”: “Vivia a surpreender-me. E as surpresas se multiplicavam.”
44
. Diante
de acontecimentos inesperados, o menino poucas vezes questionava “por quê?”, pois
diferentemente do que caracteriza as crianças, ele não desejava motivos ou causas para os
acontecimentos, bastam-lhe confirmações, coerência, que o ajudem a viver sua realidade.
1.3
O
MUNDO DO SUJEITO
Nos dois livros, a realidade é apreendida em sua diversidade, por vezes de forma
fragmentária, o que dificulta a configuração de uma unidade. Apesar disso, vê-se o esforço
42
I, 24 (grifo nosso).
43
Como mostrado em capítulo anterior, o choque, segundo Candido, é uma marca do processo de descoberta
infantil.
44
I, 24.
29
pela constituição de um mundo mais unitário, em que seja possível viver e agir de forma
coerente. Mas os esforços para realizá-lo são diferentes: em Infância, a criança, por
reconhecer a novidade em tudo, tenta dar um sentido a suas experiências para que possa
nortear suas ações em função de outras realizadas. Nem sempre ela obtém êxito, pela
complexidade da realidade e imprevisibilidade humana, e isso se reflete na forma do livro, em
que as recordações se estendem por capítulos independentes, uma espécie de sequência de
contos. A forma aponta esse desejo de integração e compreensão total (o livro), mas evidencia
que a totalidade é possível em fragmentos (os capítulos). Em Memórias do Cárcere, os
diversos fragmentos da realidade não surpreendem como desestruturam o homem, pois
revelam o quanto a prisão difere de tudo o que ele conhecia, em cuja base ele se formou. A
tentativa de dar um sentido à sua nova realidade também se revela na forma do livro: os dois
volumes repletos de descrição mostram o esforço humano de estabelecer relações entre uma
série de acontecimentos distintos, que ocorrem com tantas pessoas da prisão.
O olhar de outras pessoas sobre um mesmo acontecimento tem lugar distinto em cada
livro. Com o esforço de manter as marcas da fragmentação em um discurso único, o adulto
apresenta a compreensão dos outros com certa independência em relação ao seu
posicionamento individual, enquanto a criança esforça-se por inserir o diferente em seu
repertório, o que revela, mais uma vez, a criação de uma unidade que, no fundo, é total
naquela instância. O menino está disposto a aceitar o mundo, fortalecendo sua visão, quando
necessário, através de suas próprias explicações, sem a necessidade de entender toda a
complexidade envolvida, como vemos na sequência da citação:
Eu necessitava uma autoridade, um apoio. Desconfiava da coisa próxima, vista,
ouvida, pegada, mas em geral admitia sem esforço o que me contavam.
Aceitei, pois, o cavalo-do-cão, o bicho que o diabo monta quando faz estrepolias pelo
mundo. [...] Acreditei nele, dócil, porque o homônimo concreto lhe forneceu alguns
caracteres, porque a voz da experiência o revelou, enfim porque nos redemoinhos
que açoitavam a catinga pelada havia provavelmente um ser furioso, soprando,
assobiando, torcendo paus e rebentando galhos. Essa criatura de sonho e bagunça, um
cavalo de asas, não me causou espanto.
45
Assim como veremos no episódio em que o menino pede à sua mãe uma explicação
sobre o inferno, aqui ele também necessita de afirmações sobre o mundo. A informação
solta, apreendida ao acaso, não o satisfaz, sendo aceita apenas quando se transforma em uma
narração, inserida em um contexto coerente. Ele não busca uma verdade profunda, mas algo
45
I, 25 (grifos nossos).
30
verossímil ao seu repertório infantil, que lhe permita construir suas próprias explicações,
textualmente marcadas pela repetição de “porque”, indicativa do seu esforço pessoal de dotar
a realidade de sentido. Através da mediação do outro, não surpresas, apenas a inserção
natural no mundo desconhecido, seu processo de formação. quando o diferente é
apreendido diretamente por ele, tem-se também o encontro com algo inesperado, o espanto,
ainda mais intenso que a surpresa: “Espanto, e enorme, senti ao enxergar meu pai abatido na
sala, o gesto lento.”
46
A criança aceita o inexistente porque sua experiência ainda não o provou como tal,
mas não pode aceitar o inverossímil, como é, para ela, a postura abatida do pai, que se opõe à
força habitual de suas funções de pai e proprietário. O homem, com suas fragilidades, estava
geralmente oculto pelos seus papéis institucionais, de modo que surpreenda quando ele muda
seu posicionamento. A contradição que se observa aqui é ilustrativa do que se nas duas
obras autobiográficas, pois embora elas sejam centradas nas instituições, têm seu valor
diferencial, original, nas fissuras e contradições existentes por trás de alguns sistemas
ordenadores, como família, prisão, escola, etc.
A criança, ao descobrir o mundo, conhece a si mesma, o que faz com que Infância seja
uma narração de um duplo movimento de quebra dos limites: do mundo e da criança; em
Memórias do Cárcere, o adulto, dentro dos limites da cadeia, descobre principalmente o seu
desconhecimento em relação ao homem, o que o leva a repensar a si mesmo, que se formou
com uma visão mais planificada das relações humanas.
A nomeação dos subtítulos “O mundo desconhecido” e “O mundo a ser conhecido”
indica o quanto o novo espaço tem um valor negativo em Memórias do Cárcere e positivo
em Infância. Não no sentido de estabelecer um julgamento de como se constitui esse mundo,
mas das potencialidades que ele oferece ao sujeito: no primeiro, é um espaço que se oferece
em oposição ao espaço da liberdade, no qual o sujeito se formou; no segundo livro, é o
espaço onde o sujeito irá se formar e que, portanto, ganhará os contornos de sua própria
individualidade.
A cadeia é um espaço profundamente marcado pela coletividade. As limitações físicas
impõem o estreito contato entre as pessoas, que compartilham momentos de exposição do
corpo e de revelação da interioridade. O espaço limitado é determinante para o livro de
Graciliano Ramos, ganhando destaque na construção narrativa. Ao tratar o espaço, o autor
recorre a extensas descrições, como se desejasse caracterizar o principal, possivelmente único,
46
Ibidem.
31
“personagem” de seu livro, enunciado desde o título: o cárcere. O título Memórias do
Cárcere também indica a ação do sujeito, através da rememoração, sobre a realidade. A
princípio isso parece um pouco em desacordo com a aguda consciência do autor quanto à
precariedade da memória, da sua grande limitação em resgatar uma experiência que o
modificou. No entanto, devemos lembrar que, como mostra Clara Ramos, o nome do livro foi
definido após a morte do autor, que anteriormente pensava em chamá-lo de Cadeia, título cuja
dureza parece expressar melhor o traço “graciliânico”
47
. De forma semelhante à apontada por
Seligmann-Silva em relação à obra de Wilkomirski, a colocação posterior do termo memória
poderia indicar uma “solidez” do sujeito que não existia na realidade
48
. A consciência de sua
identidade esfacelada é um traço que faz Graciliano destacar o ambiente carcerário, em que
suas certezas são colocadas em xeque. A cadeia, mais do que servir de ambientação à
narrativa, é o lugar do questionamento da identidade e da humanidade. Em relação aos outros,
é ali que Graciliano, por exemplo, tem a possibilidade de reavaliar pessoas conhecidas, como
seu ex-funcionário Luccarrini, e conhecer a generosidade desinteressada de estranhos.
Apresentar a cadeia em seus detalhes é fundamental para quebrar o elo causal entre o meio e
as pessoas.
A cadeia é um meio coletivo tratado por um olhar individual, sendo, portanto,
impossível apresentá-la de modo estritamente realista,
49
pois o próprio homem foi
influenciado por aquele “mundo desconhecido”. Ao tornar-se conhecido, o mundo modifica o
sujeito e este, por sua vez, modifica o mundo, que não pode mais ser apresentado de forma
totalmente objetiva. Mas assim como ocorre na pintura, o narrador se esforça para traçar um
espaço absoluto:
A perspectiva cria a ilusão do espaço tridimensional, projetando o mundo a partir de
uma consciência individual. O mundo é relativizado, visto em relação a esta
consciência, é constituído a partir dela; mas esta relatividade reveste-se da ilusão do
absoluto. Um mundo relativo é apresentado como se fosse absoluto. É uma visão
47
Ramos, Clara. Cadeia. Rio de Janeiro: José Olympio, 1992, p. 27: “[...] o depoimento que Graciliano Ramos
não prestou nas prisões do Estado Novo eterniza-se numa obra que tem a dureza e a duração de um presídio-
fortaleza incrustado na rocha. Durante os anos de escavação, seu autor deu-lhe um título duro, graciliânico:
Cadeia.”
48
Seligmann-Silva, Márcio. O local da diferença: ensaios sobre memória, arte, literatura e tradução. São Paulo:
Editora 34, 2005, p. 107: “O tradutor brasileiro, por sua vez, lamentavelmente não foi muito feliz já no próprio
título: não se trata de memórias de uma infância’. O termo memória’ não consta no original; antes se trata
simplesmente de ‘fragmentos de uma infância 1939-1948’. Certamente não foi apenas um acaso o fato de
Binjamin Wilkomirski ter optado por deixar o termo ‘memória’ fora do título da sua primeira e, até o momento,
única obra. A sua intenção era justamente a de mostrar a impossibilidade de ele redigir as ‘memórias’ da sua
infância. Wilkomirski não possui uma história (nem uma identidade ‘sólida’) a partir da qual ele poderia ter
construído essas suas memórias.”
49
Uma discussão mais profunda sobre o realismo será feita no capítulo “Palavra”.
32
antropocêntrica do mundo, referida à consciência humana que lhe impõe leis e óptica
subjetivas.
50
Graciliano tem profunda consciência de que todo o seu relato não escapa a uma marca
individual, e com o espaço não é diferente. Embora ele saiba que sua caracterização espacial
será feita a partir de um ponto de vista individual, esforça-se por apresentá-la na totalidade
que pode ser apreendida por único homem. Graciliano assume a responsabilidade de
caracterizar um espaço que não limitou apenas a ele, mas a todos os outros presos e militares.
A grande quantidade de detalhes do espaço é uma forma de garantir que todos os participantes
daquela vivência se sentissem contemplados em suas memórias pessoais. uma pretensão
do absoluto em uma visão do espaço que se sabe parcial. Essa tentativa de caracterização
totalizadora da cadeia é consoante com a visão dos responsáveis por ela, que não se
preocupam em enxergar a dificuldade no convívio de tantas pessoas diferentes em um espaço
reduzido. No entanto, ao retratar o espaço carcerário da forma mais absoluta possível,
Graciliano se aproxima da visão dos responsáveis institucionais para desmontá-la. Só uma
totalidade quem está afastado daquele espaço, pois ali dentro se reconhece que a diversidade
humana dá tantas nuances ao espaço que seria impossível apreendê-lo adequadamente sob um
ponto de vista individual.
a abordagem do espaço em Infância é menos realista, devido à maior marca da
subjetividade nesse livro, em que o espaço possui estreitas relações com o modo do menino
entender o mundo, de tal forma que seus horizontes se expandem com o desenvolvimento
da criança. Os limites do mundo muitas vezes coincidem com os do menino, tanto que apesar
do livro apresentar uma série de deslocamentos espaciais, eles, em geral, não são textualmente
marcados, pois o sujeito não se transforma apesar das mudanças de residência. Não há
necessidade de contextualizar um novo ambiente quando ele é apenas a reiteração da mesma
face de uma realidade conhecida, que não possibilita, portanto, qualquer mudança
individual. Pode-se dizer assim, que o espaço é menos realista porque ganha uma
configuração lírica pela estreita relação que estabelece com o olhar infantil.
A descrição menos recorrente em Infância porque a criança usa seus próprios recursos
para conhecer o novo. Muitos elementos do espaço não são considerados absolutamente
inéditos, podendo ser entendidos a partir de algo já conhecido
51
. No livro de memórias
50
Rosenfeld. “Reflexões sobre o romance moderno”. In: Texto/Contexto. São Paulo: Perspectiva, 1969, p. 77, 78.
51
O “pé de tuco”, aqui mostrado como um refúgio para a criança, não está mais presente quando ela muda de
vila, mas se torna um referencial para o conhecimento do novo: “Desinteressei-me do carro de bois, igual a
outros vistos, mas desejei que me explicassem a árvore pelada, muito diferente do pé de turco do meu
quintal.” I, 34.
33
infantis, o conhecimento do mundo se de forma aglutinadora, sem a carga de negação da
cadeia em relação ao que lhe é externo. O espaço pode surpreender, mas não é imprevisível
como as pessoas, por isso, em geral, ele se modifica em consonância com o próprio
amadurecimento infantil. As descrições são muito usadas em Memórias do Cárcere, porque
aqui as pessoas, muitas vezes, agem contra o mundo, opondo-se aos limites de um meio
opressivo e massificador. Apenas com a dimensão mais completa daquele mundo é possível
entender a resistência operada por alguns indivíduos.
Nos dois livros, de maneiras distintas, o espaço não é apenas um elemento do enredo,
é estruturante na narrativa por permitir que o sujeito se posicione frente à sua experiência. A
diferença na abordagem está no fato de que o menino, especialmente no início de Infância,
considera-se central em seu mundo, cabendo a ele todas as descobertas possíveis, enquanto o
adulto reconhece-se como uma parte do mundo, devendo, portanto, dar-lhe o adequado relevo
por ser fundamental na constituição de outras pessoas.
34
2.
A
S INSTITUIÇÕES
As obras analisadas revelam uma realidade profundamente fundada em regras e
valores que extrapolam o âmbito individual. Desde o título, é possível notar o quanto elas
são perpassadas pelas instituições: Infância é marcada pela escola e família. Memórias do
Cárcere, além da família, apresenta, evidentemente, a prisão. Não esmiuçaremos o papel
dessas instituições centrais, pois a complexidade do tema exigiria um trabalho apenas para
elas. Por ora, apenas destacamos que embora elas possibilitem descobertas, estão mais
comumente ligadas à limitação individual. Isso, no entanto, não deve ser entendido de forma
estanque, pois implica em um processo entre homem e sociedade:
As instituições se apresentam ao indivíduo como data do mundo exterior a ele, mas
também como data de sua própria consciência. Os programas institucionais
estabelecidos pela sociedade são subjetivamente reais como atitudes, motivos e
projetos de vida. O indivíduo se apropria da realidade das instituições juntamente com
os seus papéis e sua identidade.
52
Como discutido, homem e sociedade interagem em uma complexa relação dialética.
As instituições materializam algumas escolhas sociais ao mesmo tempo em que se efetivam
através da participação ativa dos indivíduos, os quais, por sua vez, não apenas se limitam por
suas normas, mas agem e descobrem-se em meio a seus parâmetros. Desse modo, a análise do
papel das instituições nas obras memorialistas de Graciliano visa a discutir em que medida o
adulto e a criança se sentem limitados em seu meio e como se modificam através do contato
com o novo.
2.1
A
FAMÍLIA
Qualquer tentativa de delimitação do conceito “família” seria imprecisa. Neste tópico,
centramo-nos na família nuclear, cientes de sua especificidade
53
. Para iniciar, retomemos o
52
Peter L. O dossel sagrado: elementos para um teoria sociológica da religião. São Paulo: Paulus, 1985, p. 30.
53
“Podemos já aqui dizer que a definição de família, como ‘nuclear’ ou ‘extensiva’ expressa uma deformação da
realidade, isto porque a família se apresenta como uma teia de relações que pode ser basicamente de parentes
(provável no caso de família extensiva) ou envolver amigos (provável no caso de família nuclear). O que ressalta
35
espanto do menino diante da fragilidade paterna, apresentado no capítulo anterior
54
. O pai era
um representante do capital e suas relações com o filho são pautadas nessa lógica: ele
incentiva os estudos da criança porque desejava exibi-la como uma mercadoria valiosa, da
qual pudesse posteriormente extrair algum lucro
55
. Mas a criança é um investimento de
retorno menos garantido que seus negócios, o que explica o fato de o pai participar da sua
educação quando não está envolvido com o trabalho:
Ora, uma noite, depois do café, meu pai me mandou buscar um livro que deixara na
cabeceira da cama. Novidade: meu velho nunca se dirigia a mim. [...]
Com certeza o negociante recebera alguma dívida perdida: no meio do capítulo pôs-se
a conversar comigo, perguntado-me se eu estava compreendendo o que lia. Explicou-
me que se tratava de uma história, um romance, exigiu atenção e resumiu a parte
lida. [...]
Na terceira noite fui buscar o livro espontaneamente, mas o velho estava sombrio e
silencioso. E no dia seguinte, quando me preparei para moer a narrativa, afastou-me
com um gesto, carrancudo.
Nunca experimentei decepção tão grande. Era como se tivesse descoberto uma coisa
muito preciosa e de repente a maravilha se quebrasse. E o homem que a reduziu a
cacos, depois de me haver ajudado a encontrá-la, não imaginou a minha desgraça. A
princípio foi desespero, sensação de perda e ruína, em seguida uma longa covardia, a
certeza de que horas de encanto eram boas demais para mim e não podiam durar.
56
A longa citação justifica-se pela importância do episódio. O pai é um personagem de
pouca participação no livro, geralmente visto em seus afazeres profissionais e não no núcleo
familiar. Surpreende o menino que o seu pai fale com ele, em uma aparente humanização
repentina. O menino nota que a mudança de atitude está relacionada ao homem em seu papel
de “negociante”, não de pai, o que nos permite inferir que ele não humanizava seu filho, mas
o reificava
57
. O negociante decide dar um pouco de atenção ao menino para ver se ele
é o não isolamento dos membros componentes da família nuclear, sempre relacionando-se com elementos
externos, familiares ou não.” Medina. C. A. de. Família e Mudança. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 1974, p. 55.
54
I, 25: “Espanto, e enorme, senti ao enxergar meu pai abatido na sala, o gesto lento. Habituara-me a vê-lo
grave, silencioso, acumulando energia para gritos medonhos. Os gritos vulgares perdiam-se; os dele
ocasionavam movimentos singulares: as pessoas atingidas baixavam a cabeça, humildes ou corriam a executar
ordens. Eu era ainda muito novo para compreender que a fazenda lhe pertencia.”
55
Vejamos um exemplo disso em um trecho do livro. I, 95: “Aí meu pai perguntou-me se eu não desejava
inteirar-me daquelas maravilhas [as palavras escritas], tornar-me um sujeito sabido como Padre João Inácio e o
advogado Bento Américo. Respondi que não. Padre João Inácio me fazia medo, e o advogado Bento Américo,
notável na opinião do júri, residia longe e não me interessava. Meu pai insistiu em considerar esses dois homens
e relacionou-os com as cartilhas da prateleira.”
56
I, 188, 189.
57
O menino não era visto como uma simples mercadoria, era uma mercadoria da qual se esperava um alto valor
porque seu “fabricante” era o próprio pai, o agente da reificação. I, 102, 103: “Provavelmente ele desejava
enganar-se e enganar os outros. ‘Estão vendo esta maravilha? Produto meu.’ Desdenhava a maravilha, decerto,
apresentava objeto falsificado, mas negociante não tem os escrúpulos das pessoas comuns. Tanto elogiara as
36
melhorava sua produtividade, já que até aquele momento não tinha tido sucesso com a leitura.
Mas a formação de uma criança é muito complexa e exige bastante tempo, algo de que o
homem não poderia dispor quando tivesse problemas com outros objetos que lhe
preocupavam mais. Nessas circunstâncias, o filho é novamente deixado de lado, em situação
pior que a anterior, pois agora havia descoberto algo que o interessava muito. Ele vislumbrou
um outro mundo, que, de repente, foi tampado por quem o havia revelado. Diferentemente do
que ocorria antes, em que o mundo expandia junto com o menino, a leitura trouxe a certeza de
que havia muito a ser conhecido e, pior, que ele estaria e, consequentemente,
impossibilitado de ter acesso completo àquele mundo, que por um breve período sobrepôs-se
à sua realidade da escola e da família. Interiorizando a postura de negação de seu pai, o garoto
conclui que não teria direito ao prazer da fantasia e estaria condenado à circularidade de sua
vida solitária. Como veremos depois, é justamente a leitura que lhe permitirá uma vida mais
completa e a sensação de que ele é, de fato, uma pessoa.
O garoto ainda não tem consciência das diferenças sociais e lutas de classe, algo
desenvolvido ao longo de sua infância, mas nota a estreita relação de seu pai com o poder e o
dinheiro, pois mesmo sem entender qual o papel que ele desempenhava fora do meio familiar,
sempre o viu agindo como um patrão
58
. O espanto do garoto pelo abatimento paterno explica-
se porque, sob o seu ponto de vista, aquele homem, mesmo em seu papel paterno, se portava
como um proprietário, dando-lhe tarefas para cumprir na loja ou exigindo resultados de
“produtividade” (a cobrança da leitura, por exemplo).
Como era comum na estrutura familiar tradicional, o pai é responsável pelo
provimento financeiro da família, e a mãe permanece em casa para zelar pelos filhos e fazer o
trabalho doméstico. Entretanto, apesar de ser presença constante no lar, a mãe é ainda menos
presente na narrativa que o pai. Ela está no espaço físico, mas deixa poucas marcas na
formação do mundo subjetivo de seu filho. Por vezes, sabemos que ela um livro, ouve
canções e prepara a comida, mas raramente podemos vê-la dando suas opiniões, as quais,
quando apresentadas, são questionadas pelo menino, que revela a fragilidade de seus
posicionamentos pouco refletidos, mera reprodução do discurso de outrem. Suas convicções,
por exemplo, quanto ao fim do mundo ou à existência do inferno, são desmanteladas diante
das perguntas da criança, que com sua curiosidade, coloca em xeque a gica e a veracidade
mercadorias chinfrins expostas na prateleira que sem dificuldade esquecia as minhas falhas evidentes e me
transformava numa espécie de fechadura garantida, com boas molas.
58
I, 26: “Eu era ainda muito novo para compreender que a fazenda lhe pertencia. [...] Meu pai era terrivelmente
poderoso, e essencialmente poderoso. Não me ocorria que o poder estivesse fora dele, de repente o abandonasse,
deixando-o fraco e normal, um gibão roto sobre a camisa curta.”
37
de algumas proposições. A mãe não consegue responder discursivamente, por isso impõe o
silêncio através de castigos.
A lógica familiar cria leis convenientes aos seus interesses e limita as descobertas do
menino, que demandam criatividade, o questionamento, a dúvida
59
: elementos que contrariam
a relação de produção e reprodução existente no núcleo familiar. Enredado nessa situação, o
menino fica destituído da possibilidade de ação e aceita a sua condição de inferioridade na
família:
Minha mãe tinha a franqueza de manifestar-me viva antipatia. Dava-me dois
apelidos: bezerro-encourado e cabra-cega.[...]
Eu aparentava pendurar nos ombros um casaco alheio. Bezerro-encourado. Mas não
me fazia tolerar. Essa injúria revelou muito cedo a minha condição na família:
comparado ao bicho infeliz, considerei-me um pupilo enfadonho, aceito a custo.
Zanguei-me, permanecendo exteriormente calmo, depois serenei. Ninguém tinha
culpa do meu desalinho, daqueles modos horríveis de cambembe. Censurando-me a
inferioridade, talvez quisessem corrigir-me.
60
O bezerro-encourado é um órfão que carrega o couro (“casaco alheio”) de uma cria
morta para ser alimentado por sua família. O apelido dado a Graciliano revela, portanto, que
a mãe aceita o menino e cuida dele, mas não o reconhece totalmente como seu filho, o
produto esperado da relação com o marido. O seu casamento produzira uma criança
desajeitada, enquanto em relacionamento anterior, o marido havia dado vida à Mocinha, uma
bela filha bastarda. Assim, ao criticar a aparência do filho e associá-lo a um animal rejeitado,
ela deixa implícita uma crítica a si mesma, a uma suposta inferioridade que não lhe permitiu
gerar uma criança mais bela e inteligente.
Através da injúria, o garoto percebe seu lugar na família e julga-se merecedor da
condição de inferioridade. Ele assume a culpa por ser como é, mas mesmo assim não
consegue ter certeza do intuito das ações de sua mãe, pois apenas “talvez” ela quisesse
corrigi-lo. A vivência com os pais, repleta de punições e poucas explicações, faz com que ele
se retraia, considerando-se individualmente fraco. O meio familiar, ao contrário de proteger
da luz pública
61
, parece torná-la ainda mais intensa, pois é na sua casa que ele recebe as
maiores críticas:
59
Garbuglio, José Carlos. “Graciliano Ramos: a tradição do isolamento” In: Garbuglio, J.C. et alii. Graciliano
Ramos. São Paulo: Ática, 1987, p. 367: “A curiosidade infantil, o anseio das descobertas não entram em
consideração. Pelo contrário, côo incomodam e abalam certezas, tirando a segurança do adulto, é necessário
evitá-los ou, o que é mais frequente, escondê-los.”
60
I, 129, 130.
61
Arendt, Hannah. “Crise na educação” In: Entre passado e futuro. São Paulo: Perspectiva, 2000, p. 235, 236:
“Por precisar ser protegida do mundo, o lugar tradicional da criança é a família, cujos membros adultos
38
O Dilúculo também morreu logo. Distanciei-me da crítica. E não me entendi com o
público, muito incerto. No colégio, na Escola Pedro Silva, na Instrutora Viçosense,
toleravam-me. Em casa, sem exame, detestavam as minhas novas ocupações.
62
O Dilúculo tratava-se de um periódico do qual Graciliano, juntamente com seu primo
Cícero, era diretor. Foi ali que ele publicou algumas narrativas, não elogiadas pelo público,
mas detestadas pela família, que sequer as examinou. Ao lado da punição, a indiferença
também a tônica dessa relação familiar. Durante a infância, o menino resigna-se a esse
tratamento, embora ao longo do livro consiga, especialmente através da literatura, mostrar
uma superação desse posicionamento familiar que mina as tentativas de fortalecimento do
sujeito. Como mostraremos no último capítulo, o mundo da leitura e da escrita lhe permite
reconhecer que não existe apenas a negação familiar.
É precisamente através da literatura, não no tempo da narrativa, mas no da escrita, que
Graciliano mostra, em relação aos pais, que ele também pode tratá-los com certa indiferença:
os pais não são nomeados no livro, em uma espécie de devolução literária da desumanização
que eles infligiram ao garoto e a outros viventes que se encontravam em posição social ou
familiar inferior. Por certo, a ausência de nomeação está também ligada ao modo de
tratamento familiar, pois em geral dirige-se aos pais apenas através da denominação da
relação de parentesco. Mas isso não justifica o apagamento dos nomes na escrita, pois os
professores, por exemplo, poderiam ser tratados apenas por suas funções, mas quando são
importantes e permanecem por longo tempo na vida do menino, são nominalmente
apresentados. A ausência de nomeação dos pais parece indicar que, sob o ponto de vista do
garoto, eles são individualmente menos destacados que, por exemplo, os empregados da
fazenda - todos nomeados. O apagamento individual reforça a forte marca institucional que os
envolve - pais para o menino, patrões para os empregados mostrando que a representação
deles é mais relevante que a essência .
Na convivência com pessoas distantes, o menino pode sentir-se um deslocado em sua
própria casa, o que não ocorre apenas com ele, tanto que diz sobre Mocinha: “Era como
estranha, hóspede permanente [...]”
63
. No caso dele, era também um estranho, pois seus pais
pouco o conheciam, mas a condição de filho legítimo permitia que não se sentisse hóspede em
diariamente retornam do mundo exterior e se recolhem à segurança da vida privada entre quatro paredes. Essas
quatro paredes, entre as quais a vida familiar privada das pessoas é vivida, constitui um escudo contra o mundo
e, sobretudo, contra o aspecto público do mundo. Elas encerram um lugar seguro, sem o que nenhuma coisa viva
pode medrar.”
62
I, 230.
63
I, 150.
39
tempo integral, tanto que em alguns momentos, recebia carinho e apoio de sua família. É
interessante que vejamos a postura dos pais para tratar os hóspedes reais, pois ela é ilustrativa
do comportamento deles dentro da estrutura familiar:
Naquele tempo os hóspedes fervilhavam em nossa casa[...]. Sujeitos desconhecidos
entravam, incerimoniosos, como se tivéssemos a obrigação de recebê-los, ficavam
dois, três dias, embarcavam de madrugada, sem agradecimentos, à socapa.
Minha mãe se arreliava, prometia uma desfeita àquela súcia de parasitas. Mas baixava
a pancada, engolia a indignação, ia lacrimejar na fumaça da cozinha, à beira do fogo,
rosnar o desgosto à criada e aos moleques.
Meu pai afetava paciência magnânima, não isenta de interesse. Calculista, é possível
que enxergasse na hospitalidade matuta um emprego de capital.
64
Pai e mãe tinham posturas bem diferentes em relação aos hóspedes: embora os dois
não gostassem da presença estranha na casa, aquele se demonstrava agradável por interesses
financeiros, e esta apenas os tolerava, com uma fúria contida. O pai reifica as pessoas e
demonstra a necessidade de ser paciente com o capital, sempre oscilante, e a mãe os aceita por
entender as motivações do marido e saber-se também sujeita à necessidade do dinheiro.
A postura demonstrada com os hóspedes é representativa do comportamento familiar:
o pai está ligado à produção, sempre preocupado em garantir o aumento do capital; a mãe tem
uma função reprodutiva, que traz para dentro do lar o valor que o marido atribui ao capital, o
que explica por que, apesar de ela estar em casa, não consegue criar relações entre as pessoas
o capital estabelece lugares sociais, não aproxima pessoas. Com respeito ao filho, o lado
produtivo demonstra preocupação quando o reifica, considerando que ele possa dar alguma
forma de retorno concreto, o lado reprodutivo lhe é indiferente, por não acreditar
pessoalmente na possibilidade de haver algum retorno. Por isso, assim como acontece com os
hóspedes, a mãe revela amargura em relação ao desenvolvimento do filho, pois não enxerga a
chance de ele deixar de ser um bezerro-encourado e produzir um retorno financeiro. A mãe é
mais indiferente, pois ela apenas reproduz a expectativa paterna em relação ao filho, o
acredita nela efetivamente. A postura materna é um dos fatores que limita o desenvolvimento
autônomo do filho, que, por exemplo, foi punido quando se opôs à sua definição de inferno.
Esse episódio encontra paralelo na obra ficcional de Graciliano, em que a curiosidade infantil
é limitada com um coque, o que segundo Garbuglio, revela a reprodução do autoritarismo no
meio familiar:
64
I, 231.
40
Ao proceder assim, sinhá Vitória responde, ela também, aos estímulos acumulados,
pelos quais condicionou e modelou suas reações, obediente à prática em que crescera.
Mais que um desafio, a pergunta ‘insolente’ é uma alteração do estabelecido, que
invade seu universo desacostumado a dar respostas e provoca a reação intempestiva.
Reproduzindo o comportamento adquirido, o gesto copia os atos ordinários do meio e
ajuda a manter assim aquele distanciamento, que se sustenta e prolonga sem despertar
a consciência do fato.
65
Podemos pensar que o pai e a mãe em Infância, sob a perspectiva do menino,
apresentam boa parte da opressão social encontrada, por exemplo, em Vidas Secas. É como
se, sob o ponto de vista infantil, o núcleo familiar contivesse o conflito do romance: o pai
representa o poder e a força do Soldado amarelo, e a mãe configura a aceitação amargurada de
sinhá Vitória, que se sabe incapaz de ser produtor. Essas duas tensões são causadas por
pessoas próximas ao menino, deixando-o em situação mais complexa que a dos personagens
ficcionais, que podem voltar seus sentimentos contra figuras distanciadas. O elo familiar
impossibilita que o menino faça distinções maniqueístas das pessoas, pois ainda que
predominasse a impaciência, por vezes, ele era alvo de carinho.
A pertença a uma família faz com que o menino aprenda a lidar com normas que o
precedem, de modo que a ação de seus pais é, em geral, encarada com naturalidade
66
.
Enquanto o menino de Infância se forma em sua família, o homem de Memórias do Cárcere é
formador de uma, o que impõe significativas diferenças na relação com essa instituição.
As responsabilidades atribuídas à função de chefe da família fazem com que, a
princípio, a prisão seja algo até desejado, pois permitiria o afastamento de algumas obrigações
e, consequentemente, o tempo necessário para a escrita de um livro:
Naquele momento a idéia da prisão dava-me quase prazer: via ali um princípio de
liberdade. Eximira-me do parecer do ofício, da estampilha, dos horríveis
cumprimentos ao deputado e ao senador; iria escapar a outras maçadas, gotas
espessas, amargas, corrosivas. Na verdade suponho que me revelei covarde e egoísta:
várias crianças exigiam sustento, a minha obrigação era permanecer junto a elas,
arranjar-lhes por qualquer meio o indispensável. Desculpava-me afirmando que isto se
havia tornado impossível. [...] A cadeia era o único lugar que me proporcionaria o
mínimo de tranquilidade necessária para corrigir o livro.
67
A limitação imposta pela prisão não parecia diferenciar-se daquela existente fora de
suas grades, sendo antes uma concretização simbólica da ausência de liberdade. As grades que
impedem a saída do sujeito também dificultam a entrada de seus problemas, permitindo que
65
Garbuglio, José Carlos. “Graciliano Ramos: a tradição do isolamento” In: Garbuglio , J.C. et alii. Graciliano
Ramos. São Paulo: Ática, 1987, p. 368, 369.
66
Questionamentos sobre a família gradualmente aparecerão na obra. O episódio com Venta-Romba, analisado
em outros momentos deste trabalho, exemplifica a postura mais crítica do menino.
67
MC, 45.
41
ele fique centrado em si mesmo, em suas necessidades. Ele deseja um afastamento do seu
tempo presente e acredita que uma mudança no espaço não trará alterações profundas. Mas
uma mesma tarefa ganha dimensões específicas em cada contexto: a publicação de Angústia,
o livro que precisava ser corrigido, deixa de ser o desejo de um autor para, dentro da cadeia,
torna-se uma necessidade de um homem que precisa garantir recursos financeiros para a
família. Graciliano reconhece que sua satisfação momentânea com a prisão revelava seu
egoísmo, um exclusivismo impossível para quem possuía obrigações sociais e
principalmente familiares. O comentário do autor sobre sua prisão indica o quanto ele estava
dividido em suas funções: “[...] a conjugação dessas miuçalhas mandava para as grades um
pai de família, meio funcionário, meio literato”
68
É na função de pai que ele se afirma como
um sujeito inteiro, pois ali encontram-se suas responsabilidades vitais, as quais, aliás, são
determinantes das outras metades, já que, por exemplo, o desejo de dedicar-se exclusivamente
à literatura não é viável diante da necessidade de sustentar os filhos.
O afastamento das obrigações, que pareceria permitir uma maior unidade do sujeito,
dando-lhe o tempo de fazer o que desejava individualmente, acaba por contribuir para sua
desagregação. Ao impossibilitar o sustento da família, a cadeia rompe o único papel em que
Graciliano é exigido por inteiro e pode afirmar sua singularidade
69
. A limitação da prisão
revela-se, assim, mais severa por não permitir que o homem aja de acordo com as limitações
que o formaram, nos papéis que assumiu ao longo da vida.
A principal limitação da prisão não é a física, mas a econômica, pois impede ações
fundamentais do sujeito. O hospital frequentemente surge como elemento de comparação com
a cadeia, pois também ali ele estava impossibilitado de mover-se e ser produtivo. Essas
recordações do passado estão presentes em diversas partes do livro, ajudando-o a significar a
situação vivida
70
. Enquanto o passado fortalece o sujeito para enfrentar a vida carcerária,
mostrando que ele já superou um drama de certa forma semelhante, o presente, que se
desenrola fora da cadeia, desestrutura a frágil estabilidade do preso, o que justifica seu desejo
de afastar-se das notícias de sua família:
68
MC, 50
69
Bosi, Ecléa. Memória e Sociedade. São Paulo: Companhia das Letras: 1999, p. 425: “De onde vem, ao grupo
familiar, tal força de coesão? Em nenhum outro espaço social o lugar do indivíduo é tão fortemente destinado
[...] Apesar dessa fixidez de destino nas relações de parentesco, não lugar onde a personalidade tenha maior
relevo. Se, como dizem, a comunidade diferencia o indivíduo, nenhuma comunidade consegue como a família
valorizar tanto a diferença de pessoa a pessoa.”
70
MC, 132: “Talvez me achasse de novo no hospital, com o ventre rasgado, a queimar de febre. Talvez me visse
num manicômio, a criar fantasmas. A incerteza pouco a pouco esmoreceu – convenci-me de que estava doido.
42
Perplexo, tomei o envelope. Era realmente para mim, rasguei-o, vi um cartão, a
fotografia dos meus três filhos mais novos. Num assombro, olhei as figurinhas
distanciadas por tantos sucessos imprevistos; devo ter ficado minutos sem nada
entender, suspenso. Esqueci a presença de Hora e Sérgio, num instante as crianças me
apareceram vivas e fortes: tinham deixado a praia, a areia branca de Pajuçara, feito
longa viagem, transposto grades – estavam no cubículo 35. [...] Pouco mais ou menos
me achei como um vidente de fantasmas. De que jeito me haviam chegado aquelas
almas do outro mundo? [...] Surdo a esses rumores, alheio à presença dos
companheiros de célula, perdia-me em reflexões inúteis, mirando o cartão de quinze
centímetros. Não me ocorreu observar-lhe o dorso: foi por acaso que o virei. Distingui
dez ou doze linhas a lápis, uma data, uma assinatura – e explodiu a cólera bestial:
- Que diabo vem fazer no Rio essa criatura?
Era uma quinta-feira, princípio de maio: algumas letras e algarismo me trouxeram de
relance a noção de tempo esquecido. Minha mulher chegara e prometia visitar-me na
segunda-feira, entre dez e onze horas.
- Que estupidez!
Percebi no aviso a ameaça de aborrecimentos e complicações inevitáveis. Imaginei-a
pobre, desarmada e fraca, a mexer-se à toa na cidade grande, a complicar-se no
aparelho burocrático, enervando-se nas antecâmaras das repartições, mal se orientando
nas ruas estranhas, fiscalizadas por investigadores. Nada me seria possível dar-lhe. E
dela me chegariam decerto preocupações insolúveis, novas cargas de embaraços.
Alarmava-me sobretudo o esgotamento dos recursos guardados no porta-níqueis. [...]
Dois meses de cadeia. Sem a última linha escrita no verso da fotografia, esse tempo,
decorrido em ambientes diversos, numerosos imprevistos a cortá-lo, parecer-me-ia
talvez mais longo.
71
A longa citação mostra o atordoamento de Graciliano em seu primeiro contato com a
família após a prisão. A visão da foto não faz com que o pensamento afaste Graciliano da
precária realidade da cadeia, mas sim que traga seus filhos para o interior das grades. Essa
cena é representativa da responsabilidade familiar de Graciliano, que não consegue se distrair
com a lembrança dos filhos, através, por exemplo, de boas recordações de momentos
familiares, mas que apenas sente a tensão por estar afastado deles, sem poder garantir seu
sustento. Inclusive é como “vidente de fantasmas” que ele se coloca diante da foto, o que
indica não apenas sua capacidade de ver as figuras de forma bem estruturada, mas de enxergar
além do que está manifesto na imagem, como se adivinhasse o futuro das crianças: elas são
fantasmas, de modo que possam estar presentes na cadeia e tragam em si a marca da morte,
que, na mente do pai zeloso, poderia ocorrer se ele não conseguisse protegê-las, alimentá-las,
etc. O risco de morte é reforçado pela denominação “almas do outro mundo”: são pessoas
vindas do além ou de um espaço (e de um tempo) ao qual o narrador não pertence mais. Nessa
segunda possibilidade, essas almas viriam do passado, trazendo consigo o presente e o futuro,
que tanto preocupam o autor.
71
MC 267, 268.
43
É precisamente pela ligação temporal estabelecida através da família que Graciliano se
opõe às visitas de sua mulher. Ao invés de oferecerem consolo, são portadoras de
preocupações, tanto que ao pensar em sua esposa, ele repete: “Que estupidez”. Esse é tom
predominante das visitas, apesar de, como o próprio autor admite, elas quebrarem a
monotonia da cadeia e trazerem importantes informações sobre o exterior.
A família amplia tempo e espaço, algo que carece ao preso e está na base da totalidade
do sujeito. Mas essas características não a tornam desejada por Graciliano, tanto que ela é
mencionada quando se faz materialmente presente, o que indica a necessidade do personagem
de viver aquela realidade como total. Se é no papel de pai que Graciliano encontra sua
condição imutável, à qual está integralmente ligado, é precisamente dela que ele se esforça
para se desligar dentro da cadeia, a fim de que consiga sobreviver ao seu novo cotidiano.
A família, que impõe a Graciliano uma limitada condição de funcionário e escritor
(decorrentes da necessidade de ter uma renda estável), torna-se elemento de desagregação
dentro da cadeia, pois dificulta uma vida centrada ali. Nota-se um movimento oposto ao do
menino de Infância, na qual a família o forma, apesar de suas ações contraditórias. A família
lhe oferecia a certeza de pertença a um grupo maior que sua individualidade, ao qual ele
poderia se opor precisamente quando estivesse fortalecido enquanto sujeito. No momento em
que o menino consegue apontar falhas na ação de seus pais, como no episódio de Venta-
Rombas, ele terá completado parte de sua formação, não sendo mais limitado às informações
e opiniões familiares.
É cil entender por que a família tem participação menor em Memórias do Cárcere
que em Infância. Além evidentemente de ela não estar presente na maior parte das ações do
livro, cujo próprio título aponta a centralidade da prisão (e não do homem), o pouco esforço
em retomá-la indica a necessária tentativa de atingir uma unidade dentro da cadeia. Sua
narrativa mostra que é possível manter a sobriedade da observação apesar do desmonte
ocorrido. A vivência na cadeia exige que o encarcerado esvaziado seja priorizado em
detrimento do seu “fantasma”, que segue em um tempo e espaço paralelos aos da cadeia. É a
única alternativa restante para que o homem mantenha o nimo de sua humanidade, ainda
que com características bem diferentes daquelas que o definiam em liberdade.
44
2.2
A
ESCOLA
Diferentemente do que ocorre com a família e a igreja (duas instituições ligadas à
esfera privada), que em geral levam o garoto a reproduzir seus valores, a escola consegue em
alguns momentos efetivar seu papel pré-político
72
, ou seja, de preparação da criança para a
vida pública, através do fortalecimento do menino para o enfrentamento das adversidades.
A experiência escolar é marcada por irregularidades, especialmente porque o menino
frequentou diversas instituições. Apesar disso, a escola possui elementos constantes, que
influenciam a criança mesmo antes de seu primeiro dia de aula:
Trouxeram-me a roupa nova de fustão branco. Tentaram calçar-me os borzeguins
amarelos: os s tinham crescido e não houve meio de reduzi-los. Machucaram-me,
comprimiram-me os ossos. As meias rasgavam-se, os borzeguins estavam secos,
minguados. Não senti esfoladuras e advertências. As barbas do professor eram
imponentes, os músculos do professor deviam ser tremendos. A roupa de fustão
branco, engomada pela Rosenda, juntava-se a um gorro de palha. Os fragmentos da
carta de ABC, pulverizados, atirados ao quintal, dançavam-me diante dos olhos. A
preguiça é a chave da pobreza. Fala pouco e bem: ter-te-ão por alguém. D, t, d, t.
Quem era Terteão? Um homem desconhecido. Iria o professor mandar-me explicar
Terteão e a chave?
73
Pelo fato de a tônica geral do núcleo familiar ser de profunda opressão, a ida para a
escola poderia não significar uma limitação maior, pois o conhecimento que ela
disponibilizaria não seria diferente daquele violentamente introduzido pelo pai. Mas essa
instituição assusta por representar uma limitação nova, ou pior: não inteiramente nova, mas
formada como algo terrível no seu imaginário, construído por fragmentos de lembranças e de
informações alheias. A imagem do velho de barbas corresponde à primeira lembrança com
contornos definidos do livro. A impressão da escola é tão forte que o menino a retoma
detalhadamente quando é defrontado com a necessidade de iniciar seus estudos regulares. A
construção da cena revela a mesma tensão e fragmentação que envolveu seu processo de
aquisição do conhecimento até aquele momento: recordações, angústias e dúvidas. Essas
marcas subjetivas, juntamente com a reprodução do provérbio, quebram a linearidade
narrativa para mostrar o quanto a escola representaria um momento diferencial em sua
formação, pois ao impor uma separação do mundo privado, obriga o menino a lidar com uma
72
O fato de a escola fazer a mediação entre o mundo público e o privado é aceito com certa tranquilidade nas
discussões sobre a instituição escolar. Nos limites deste trabalho, não realizaremos uma discussão mais profunda
acerca do tema, discutindo, por exemplo, o valor do seu papel: se é algo amplamente positivo, como mostra
Durkheim, ou se é negativo ao reproduzir as desigualdades sociais, como mostra Bordieu.
73
I, 104.
45
pluralidade de informações, no meio das quais ele se posiciona através do discurso indireto
livre. O pouco destaque dado às suas dúvidas na citação é representativo de um espaço escolar
com pouca abertura para a manifestação individual.
A escola, embora possibilitasse a descoberta de novos conhecimentos, parecia, ao
olhar do menino, oferecer-lhe acesso apenas ao que o limitaria ainda mais. Até a preparação
para a entrada naquele meio o obriga a controlar seus hábitos anteriores, mostrando-os como
inadequados para o convívio social. O uniforme indica que no ambiente escolar ele será
entendido como parte de um grupo, não como um indivíduo, algo raro mesmo em sua
família. A ida à escola faz a iniciação do menino em costumes que também visam a tornar o
corpo dócil
74
, a adestrá-lo para o convívio social.
Em diversos momentos da narrativa, indica-se como a escola atua no controle das
crianças, impondo a limitação do corpo e tentando estendê-la à mente, especialmente através
de atividades repetitivas e decorativas. O menino adequa-se a esse sistema no início de sua
escolarização, não conseguindo opor-se até mesmo a regras que parecem injustas. A escola o
coloca em lugar de ambiguidade, pois ele aceita as normas, mas não consegue enquadrar-se
nelas completamente, como já fica evidente na primeira observação sobre o meio escolar, na
chegada de um novo aluno:
Foi difícil subjugar o bicho brabo, sentá-lo, imobilizá-lo. O garoto caiu num choro
largo. Examinei-o com espanto, desprezo e inveja. Não me seria possível espernear,
berrar daquele jeito, exibir força, escoicear, utilizar os dentes, cuspir nas pessoas,
espumante e selvagem. Tinham-me domado. Na civilização e na fraqueza, ia para
onde me impeliam, muito dócil, muito leve, como os pedaços da carta de A B C,
triturados, soltos no ar.
75
Os sentimentos provocados são contraditórios, afinal como desprezar e, ao mesmo
tempo, invejar? Pela totalidade da citação, em que o menino discute os motivos de sua inveja,
vemos a sua prevalência pela ordem em que foi apresentada: primeiramente ele se assusta
com a movimentação, depois despreza uma pessoa que não seguia a norma e, por fim,
manifesta inveja, desejando ser resistente como o outro garoto.
74
Foucault, Michel. Vigiar e Punir. Petrópolis: Editora Vozes, 2008, p. 119: “A disciplina fabrica assim corpos
submissos e exercitados, corpos dóceis’. A disciplina aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de
utilidade) e diminui essas mesmas forças (em temos políticos de obediência). Em uma palavra: ela dissocia o
poder do corpo; faz dele por um lado uma ‘aptidão’, uma ‘capacidade’ que ela procura aumentar; e inverte por
outro lado a energia, a potência que poderia resultar disso, e faz dela uma relação de sujeição estrita.”
75
I, 108.
46
Será necessário um grande esforço para que ele adquira uma autonomia em relação ao
mundo, o que precisamente ocorrerá quando o alfabeto deixar de ser um mistério e
transformar-se em um instrumento, ajudando-o a solidificar sua subjetividade.
O tempo verbal dessa citação, com o pretérito perfeito ligado à narrativa da cena e o
imperfeito às reflexões do homem, indica que a atitude domesticada não se restringia ao
momento infantil, mas que era uma marca do passado daquele narrador e podia ser vista
também em Memórias do rcere, em que o homem manteve-se tranquilo, sem demonstrar o
descontrole de tantos outros. Na infância, a docilidade característica do primeiro contato com
a escola vai, aos poucos, cedendo espaço a uma força de resistência, que não se impõe de
forma violenta, mas que garante ao menino a possibilidade de observar sua realidade e de
rejeitá-la:
O lugar de estudo era isso. Os alunos se imobilizavam nos bancos: cinco horas de
suplício, uma crucificação. Certo dia vi moscas na cara de um, roendo o canto do
olho, entrando no olho. E o olho sem se mexer, como se o menino estivesse morto.
Não prisão pior que uma escola primária do interior. A imobilidade e a
insensibilidade me aterraram. Abandonei os cadernos e as auréolas, não deixei que as
moscas me comessem. Assim, aos nove anos ainda não sabia ler.
76
A escola é um lugar de muitos, o que, por um tempo, permitiu que o garoto se
esquivasse da atenção de seus mestres. Mas ele passa por uma mudança no seu processo de
escolarização: permanece dócil, mas não mais passivo. O menino que se formou aceitando e,
muitas vezes, reproduzindo os valores familiares e religiosos, encontra na escola, esse
ambiente da coletividade, a primeira chance de afirmar-se como sujeito, por meio de uma
ação negativa. Ele se nega a ser como os outros e, ao fazê-lo, afirma sua singularidade, muitas
vezes entendida como uma incapacidade de aprender as lições dadas.
Como alguém que se afirmara “dócil” passa a negligenciar as normas escolares? Isso é
possível pela constância dessa instituição. O modelo de escolarização de Graciliano centrava-
se na figura do docente (e não propriamente de uma escola) e, em decorrência das mudanças
da família, o menino estudou com diversos professores, que buscavam ensiná-lo de formas
muito distintas - desde a delicadeza de D. Maria até a dureza de d. Maria do Ó. No entanto,
apesar da instabilidade de sua formação, calcada em diversos indivíduos, os valores e normas
da instituição escolar permaneciam, especialmente a obediência e a aquisição de
conhecimento. Cada professor tinha um modo de buscar o aprendizado do aluno, mas a busca
era a mesma. Tal regularidade não estava presente no ambiente familiar:
76
I, 188.
47
Contudo as pancadas e os gritos figuravam na ordem dos acontecimentos, partiam
sempre de seres determinados, como a chuva e o sol vinham do u. E o céu era
terrível, e os donos da casa eram fortes. Ora, sucedia que minha mãe abrandava de
repente e meu pai, silencioso, explosivo, resolvia contar-me histórias. Admirava-me,
aceitava a lei nova, ingênuo, admitia que a natureza se houvesse modificado. Fechava
o doce parênteses – e isto me desorientava.
77
O paralelismo estabelecido entre o céu e os donos da casa é extremamente
significativo. É do céu que vêm a chuva e o sol; é dos donos da casa que vêm os gritos e
pancadas. Ao destacar a posse da casa, a nomeação feita por Graciliano relevo ao poder
dos pais (detentores do lar, não apenas formadores dele), o que aponta para uma estreita
relação entre punição e representatividade institucional. Embora geralmente ajam como os
donos da casa, momentos em que eles também se mostram pai e mãe, homem e mulher.
Esses seres humanos que desempenham uma variedade de papéis podem ter ações diversas
das usuais, sem a constância esperada de uma instituição. No entanto, o garoto não entende
isso, porque está em formação e acredita que deve haver coerência nas ações das pessoas.
Atitudes diversas se opõem aos seus frágeis parâmetros, tornando-se fatalidades, que fogem
portanto, à sua capacidade de compreensão
78
.
Sob o olhar da criança, a natureza, assim como seus pais, tinha uma lei. Caso algo
escapasse a ela, seria necessário tomar conhecimento de uma nova lei, admitida em
decorrência da complexidade do mundo. O fato de essas mudanças na natureza não serem
entendidas apenas como eventos, mas como leis, traz dificuldade para a criança, pois ela
assenta sua formação em terreno móvel, julgando-o estável. Já a escola, pelo contrário,
pautava-se por uma lei mais definida, não oscilando conforme a mobilidade do menino, que
trocava de instituição quando sua família se mudava.
Por oferecer regularidade, a escola faz com que o menino compreenda o seu sistema
com mais rapidez. Isso, como pontuado anteriormente, permite que ele modifique a sua
própria relação com a instituição, pois sabe o lugar que desfruta (e continuará desfrutando)
nela. O conhecimento permite que ele recuse ou aceite a escola, enquanto o desconhecimento,
como o existente em relação à conduta familiar, faz com que ele apenas se esforce por
77
I, 18 (grifo nosso).
78
Isso fica indicado em outro momento do livro. I, 89: “Atrapalhava-me perceber que um ato às vezes
determinava punição, outras vezes não determinava. Impossível orientar-me, estabelecer norma razoável de
procedimento. Mais tarde familiarizei-me com essas incongruências, mas no começo da vida elas me apareciam
sem disfarces e me atenazavam. Mexia-me como se andasse entre cacos de vidro. Julgando inúteis as cautelas,
curvei-me à fatalidade.”
48
compreender a situação, levando-o a centrar-se no tempo presente. É um esforço diário para
entender, ou ao menos aceitar, regras familiares aleatórias que norteiam a sua vida.
A escola também tem o tempo presente como seu eixo fundamental, ainda mais
porque cada aula se mostra como um tormento infinito ao menino. Mas diferentemente do que
ocorre na família, em que o presente estendia-se de forma circular, como se nada fosse
esperado do/pelo menino; na escola, principalmente através da alfabetização, um
desenvolvimento, forma-se a noção de futuro, com suas dores consequentes. Assim, cabe
adiantar que consideramos que o eixo temporal de Infância se instala em torno da palavra
escrita, pois é através das mudanças de escola e das tentativas de leitura que notamos o tempo
transcorrer no livro. A escola e a necessidade do conhecimento revelam ao menino seus
limites, mostram as dificuldades de pertencer integralmente ao mundo público, o que exigiria
o conhecimento da leitura e escrita. Ela instaura um problema, sem grande preocupação em
resolvê-lo. Mas por mais que o garoto se recuse a participar da monotonia da escola, ele passa
a buscar outras formas de ter acesso à palavra escrita, descobrindo-se ele próprio capaz de
ação. O menino se forma e a narrativa ganha alguns contornos, especialmente temporais,
porque ele passa a ter objetivos a serem buscados, não apenas a viver o momento.
2.3
A
CADEIA
Foucault mostra-nos que a prisão não foi sempre a forma de punição adotada contra
infratores. Mas ela se solidificou principalmente em consequência de seus parâmetros
fundamentais: a tentativa de transformação técnica do indivíduo e a punição através da
privação da liberdade, algo valorizado indistintamente. Além disso, sua pena pode ser
mensurada e oferece uma reparação coletiva: “Retirando tempo do condenado, a prisão parece
traduzir concretamente a ideia de que a infração lesou, mais além da vítima, a sociedade
inteira.”
79
No caso de Graciliano, não uma vítima expressa, de modo que sua prisão indica
uma possível falta cometida contra toda a sociedade. Por quase um ano, o Estado detém
79
Foucault, Michel. Vigiar e Punir. Petrópolis: Editora Vozes, 2008, p. 196.
49
controle sobre seu corpo, mas não é apenas que retira dele o tempo, é principalmente em
sua possibilidade de futuro:
O mundo se tornava fascista. Num mundo assim que futuro nos reservariam?
Provavelmente não havia lugar para nós, éramos fantasmas, rolaríamos de cárcere em
cárcere, findaríamos num campo de concentração. Nenhuma utilidade
representávamos na ordem nova. Se nos largassem, vagaríamos tristes, inofensivos e
desocupados, farrapos vivos, velhos prematuros; desejaríamos enlouquecer, recolher-
nos ao hospício ou ter coragem de amarrar uma corda ao pescoço e dar o mergulho
decisivo. Essas idéias, repetidas, vexavam-me; tanto me embrenhava nelas que me
sentia inteiramente perdido. Afligia-me especialmente supor que não me seria possível
nunca mais trabalhar; arrastando-me em ociosidade obrigatória, dependeria dos
outros, indigno e servil.
80
Privado de liberdade, o homem não tem certeza sobre os rumos da História, mas
imagina que não temais lugar no mundo, pois o esvaziaram de tal forma que ele se tornara
um “fantasma”
81
. Se está morto no espírito, não será difícil que o corpo se perca
definitivamente - uma certeza agravada por ele ter vivenciado o processo de massificação das
pessoas, em que todos são iguais e, consequentemente, ninguém é indispensável. Mas não é
essa a preocupação que o toma durante a maior parte do livro, e sim a de não ser mais útil, de
não voltar a ter um lugar produtivo na sociedade e, por consequência, não readquirir sua
independência. As hipóteses negativas em relação ao futuro faziam com que Graciliano se
sentisse “inteiramente perdido”, pois nelas ele sequer existiria.
Dentro da cadeia, Graciliano depende dos recursos do Estado e conta também com a
insistência de alguns companheiros para que ele se mantenha vivo (por exemplo, para que
coma apesar da repulsa à comida). Ao projetar para o futuro uma dependência semelhante, ele
instaura uma espécie de presente perpétuo na narrativa. Não crença na saída da prisão, mas
isso é indiferente: mesmo que ele fosse solto, viveria apenas uma mudança de espaço, não
de tempo, pois a marca da cadeia continuaria nele, fazendo-o permanecer sujeito à ajuda dos
outros. As marcas desse tempo presente atingiam até o passado do autor:
Imaginei-me em país distante, falando língua exótica, ocupando-me em coisas úteis,
terra onde não os patifes mandassem. Logo me fatiguei dessas divagações malucas
e dei um salto para trás, vi-me pequeno, a correr num pátio branco de fazenda
sertaneja, a subir na porteira do curral, a ouvir os bodes bodejarem no chiqueiro. De
qualquer forma, enveredando no futuro ou mergulhando no passado, era um sujeito
morto. Necessário esquecer tudo aquilo: o porão, o carro de segunda classe, o
80
MC, 178.
81
Tal como já ocorreu em relação aos filhos, a condição de fantasma está novamente associada à
impossibilidade de ser uma pessoa produtiva.
50
tintureiro, os cubículos, a recordação da infância, o país distante e absurdo, refúgio
impossível.
82
As imagens do passado são reais enquanto as do futuro são fantasiosas. Esse é,
inclusive, um dos poucos momentos do livro em que o narrador se descola completamente de
sua realidade. Mas isso dura pouco, porque mesmo na fantasia não é possível encontrar saída
para o seu momento presente. Parte da impossibilidade de futuro se explica por sua situação
no passado, quando ele também é um “sujeito morto”. Ao dizer isso, Graciliano não apenas
mostra sua inexistência no passado: nega o papel do passado na sua constituição. Ao afirmar
sua própria morte em um tempo não existente, nega sua formação, sua essência. Com isso,
revela que o presente criou um tempo absoluto, que atrai para si todos os demais referenciais
temporais e os altera completamente, quando não os destrói. O passado, em que ele formou
seus valores e parâmetros, perde sentido diante de sua própria prisão, ocorrida sem crime e
julgamento. Não é possível crer no passado quando o presente instaura uma lógica tão
diferente, que implica uma ruptura com tudo o que conhecia. O presente é tão forte que, aos
poucos, estabelece uma nova lei em função desse tempo:
E o pior é que nos sentíamos infratores, éramos levados a admitir isso. Sinais
intempestivos de compaixão, simples referência ao ambiente sórdido, à horrível
miséria, mais nos reforçariam a certeza. Tínhamos delinquido, sem dúvida. Muitas
daquelas criaturas ignoravam que delito lhe imputavam. Na verdade não imputavam:
mantinham-nas em segregação, e isto devia bastar para convencê-las. Com o andar do
tempo, chegariam a dar razão à justiça nova. Ninguém iria prendê-las e maltratá-las
sem motivo.
83
É interessante observar o uso da primeira e da pessoa na citação. Através da
marcação verbal, notamos que o narrador se inclui entre os presos que incorporam alguma
culpa desconhecida, mas se distancia daqueles que dão razão à “justiça nova”, que só ganharia
alguma legitimidade pela aceitação dos condenados. Graciliano mostra que embora ele não se
coloque entre os criadores dessa nova forma de justiça, também está sujeito a regras que
negam toda a sua formação. A justiça e suas leis, fruto de um profundo acordo social
84
, são
colocadas em xeque quando um espaço novo tem normas tão distintas.
82
MC II, 337.
83
MC, 138 (grifo nosso).
84
Freud, Sigmund. O mal-estar na civilização. Rio de Janeiro: Imago, 1997, p. 49: “A vida humana em comum
se torna possível quando se reúne uma maioria mais forte do que qualquer indivíduo isolado e que permanece
unida contra todos os indivíduos isolados. O poder dessa comunidade é então estabelecida como ‘direito’, em
oposição ao poder do indivíduo, condenado como ‘força bruta’. A substituição do poder do indivíduo pelo poder
de uma comunidade constitui o passo decisivo da civilização. Sua essência reside no fato de os membros da
comunidade se restringirem em suas possibilidades de satisfação, ao passo que o indivíduo desconhece tais
51
A cadeia, essa instituição autônoma de forte tônica militar, estabelece uma realidade
peculiar, ordenada por toques de corneta, obediência, controle e, inclusive, leis novas.
Tamanha mudança explica a dificuldade inicial de Graciliano para se situar naquele espaço,
naquele tempo,
85
o que justifica sua obsessão inicial em procurar relógios.
86
Mas a alteração
mais profunda está na desestabilização de toda a temporalidade da sua vida, pois ele sequer
consegue acreditar nas leis conhecidas em seu passado. Esse meio é tão diferente do espaço
no qual ele se formou, que a desorientação temporal é apenas um sinal do abalo sofrido pelo
sujeito, que se sentirá profundamente esvaziado, destituído de sua humanidade.
O homem da cadeia frequentemente se sentirá reduzido ao seu corpo. Mas ele logo
reconhecerá que essa desumanização não ocorre apenas com os presos, é uma marca da
disciplina militar, em que muitas pessoas limitam-se em seus papéis institucionais:
[...] passei em frente do manequim teso, sem me decidir a perguntar-lhe quantos
metros o fio que me amarrava poderia estender-se: provavelmente nas funções de
espantalho, a criatura emudecia.
87
O narrador se encontra diante de uma pessoa com função de amedrontar, de coibir as
ações dos vigiados, mas que, na realidade, apenas provoca o silêncio. O silêncio do ambiente,
no entanto, não é causado pela sensação de temor, mas apenas porque o personagem decide
nada perguntar. Ele não pergunta, porque acredita que o “manequim” não poderá dar uma
resposta. Reconhece a contradição: o encarcerado pode perguntar e o vigia não pode
responder? Com esse questionamento, Graciliano transpassa a aparência da figura
uniformizada para perceber sua limitação; o mesmo ocorre com o pássaro, que após perceber
que seu temor era provocado por um simples boneco, pousa na cabeça do espantalho e
observa, em posição superior, o desejoso campo que se estende.
Graciliano encontrava-se amarrado, tendo seus movimentos limitados pelo
comprimento do fio, mas a descrição do militar mostra que sua restrição era ainda maior que a
dele, visto que é o personagem que se desloca para vê-lo e o o contrário. As únicas ões
restrições. A primeira exigência da civilização, portanto, é a da justiça, ou seja, a garantia de que uma lei, uma
vez criada, não será violada em favor de um indivíduo.”
85
Essa impossibilidade deve-se ao fato de a cadeia, em poucas horas, romper o que se levou muito tempo para
ser construído, como vemos em MC, 67: “A minha vida anterior se diluía, perdia-se além daquele imenso espaço
de vinte e quatro horas. Um muro a separar-me dela, a altear-se, a engrossar, e para do muro nuvens,
incongruências.”
86
MC, 130: “Ligeiras pausas, cochilos, nenhum meio de avaliar em que ponto da noite me achava. Os relógios
me desagradam: em geral a marcha dos ponteiros, o tique-taque, a indicar a urgência de concluir um capítulo, me
desarranjam o trabalho; assado, porém, no terrível forno, em vão tentava adivinhar, explorando os arredores,
abrindo os ouvidos, o pingar lento dos minutos. Queimou-se o último fósforo.”
87
MC, 53.
52
possíveis para aquele “espantalho” eram as corretivas, que não significavam qualquer atitude
do sujeito, mas sim a ação motivada por uma força de disciplina. Tem-se a sensação de estar
diante de um personagem que, embora teoricamente privado de liberdade, é o único capaz de
se deslocar entre figuras que apenas representam seu uniforme. Ao falar sobre a função de
espantalho - boneco que deve espantar as aves das plantações - Graciliano indica que a
aparência é a única semelhança entre o militar e um indivíduo, pois o espantalho assemelha-se
ao homem apenas no tamanho mas, de perto, mostra-se apenas um objeto enganador. O
personagem mostra a sua liberdade de se aproximar desse boneco humano e atestar sua
falsidade. Desse modo, o reconhecimento de que a despersonalização imputada a ele era
reflexo do sistema militar que o cercava.
2.4
A
FORMAÇÃO DOS SUJEITOS NAS INSTITUIÇÕES
Em seu estudo sobre Graciliano Ramos, Garbuglio observa que “existe um verdadeiro
esquema institucionalizado que responde pelo condicionamento e deformação e que, para
manter-se intacto provoca graves lesões nas pessoas enquanto indivíduos.”
88
Como vimos
aqui, muitas pessoas, que aplicam ou sofrem as sanções institucionais, estão esvaziadas de sua
condição humana. Cabe, nesse momento, discutir como essa despersonalização incide sobre
Graciliano, adulto ou criança, nos limites institucionais, sendo que uma discussão mais
completa sobre o modo como o sujeito se descobre será feita ao longo de todo o trabalho.
Concordamos que as instituições limitam as pessoas e as modificam. Mas cabe
ressaltar as diferenças existentes dentro desse “esquema institucionalizado”, pois há variações
conforme o público e o papel das instituições.
A escola limita o corpo para tentar “completar” o menino com o conhecimento, apesar
de nem sempre estimulá-lo. Já a cadeia, longe das promessas de reintegração social, usa a
limitação como forma de obter um controle mais fácil dos homens, introduzindo padrões
automatizados de comportamento que mostram a ausência de sentido daquelas pessoas dentro
e fora da cadeia. Embora as duas instituições visem a corpos dóceis por meio, por exemplo, de
88
Garbuglio, José Carlos. “Graciliano Ramos: a tradição do isolamento” In: GARBUGLIO, J.C. et alii.
Graciliano Ramos. São Paulo: Ática, 1987, p. 367.
53
disciplina e horários, a cadeia esvazia o sujeito de tal modo
89
que lhe parece impossível
retomar a vida fora das grades. Ao sequestrar o sujeito da realidade, mostra que ele é
dispensável, está fora da ordem moderna, devendo ser afastado do mundo público:
O impulso geral das instituições modernas é no sentido de criar cenários de ação
ordenados segundo os termos da dinâmica da própria modernidade e livres de
‘critérios externos’ fatores externos aos sistemas sociais da modernidade. Embora
existam numerosas exceções e contratendências, a vida social do dia a dia tende a
separar-se da natureza ‘original’ e de uma variedade de experiências ligadas a
questões e dilemas existenciais. Os loucos, os criminosos e os doentes graves são
fisicamente sequestrados da população normal, enquanto o ‘erotismo’ é substituído
pela ‘sexualidade’ – a qual então desloca-se para trás da cena, escondendo-se.
90
A escola, com suas falhas, visa à preparação do sujeito para o mundo público e,
portanto, se orienta para o futuro, já a cadeia parece reconhecer um fim em si mesma, não
pretendendo uma efetiva reintegração do cidadão à sociedade. Ao apropriar-se do tempo do
sujeito, a cadeia mostra que não importa seu passado, tudo o que lhe formou, nem seu futuro,
em que talvez não tenha mais serventia. Esse ambiente de profunda exposição coletiva indica,
inclusive através de seus representantes, que todos podem ser substituídos, pois são apenas
corpos, não individualidades. Em um meio de apagamento da singularidade humana, a
continuidade temporal é rompida.
Através das instituições, é possível ver por que o espaço é mais marcante em
Memórias do Cárcere. A cadeia, como ferramenta de segregação espacial, visa a separar os
homens do presente histórico, que está na base da prisão política, e prende-os a um tempo
presente individual, de busca pela sobrevivência. Em Infância, a profunda relação do menino
com o espaço, revelado em uma expansão quase simultânea de ambos, faz com que
geralmente este se modifique apenas com uma alteração na subjetividade infantil. As
mudanças no menino, por sua vez, decorrem de uma ampliação de seu conhecimento
temporal, pois quando ele amadurece (o que o implica apenas um transcorrer do tempo,
mas no modo como este foi vivido), pode resistir às instituições e aos espaços por ela
determinados. Em oposição a isso, não é possível que o sujeito se separe da cadeia, que por
ser totalmente externa a ele, não está sob seu controle.
Em Memórias do Cárcere, no ponto de vista do homem preso, as instituições, seja a
família seja a cadeia, o desagregam. Já em Infância, as instituições são formadoras, ainda que
89
Discussão mais profunda sobre a anulação do sujeito será feita no capítulo “Eu”
90
Giddens, Anthony. Modernidade e Identidade Pessoal. Oeiras: Celta Editora, 1994, p. 7.
54
seja para revelarem as contradições do mundo e fornecerem instrumentos para que o menino
se oponha a elas posteriormente. Vejamos um exemplo disso:
Sozinho, vi-o de novo cruel e forte, soprando, espumando. E ali permaneci, miúdo,
insignificante, tão insignificante e miúdo como as aranhas que trabalham na telha
negra.
Foi esse o primeiro contacto que tive com a justiça.
91
Os períodos acima marcam o final do capítulo “Um cinturão”, certamente um dos mais
emblemáticos de Infância por mostrar quanto o garoto estava sujeito à violência e ao poder
arbitrário. O pai, nervoso, pergunta onde estava o seu cinturão. O garoto, que não tinha a
resposta, foi açoitado. Depois disso, o pai encontra o “maldito cinturão” em sua rede. O
menino pensava que seu pai falaria com ele, mas apenas o viu demonstrar um pouco de
abatimento. Em seu primeiro contato com a justiça, esta revelou-se injusta.
Embora o garoto tenha conseguido perceber a fragilidade de seu pai, ainda se sente
inferior por reconhecer nele um poder absoluto, que possibilitava, inclusive, uma punição
arbitrária e a ausência de arrependimento. A diferença entre o pai e o filho torna a comparação
com a aranha extremamente representativa, pois ela realiza seu trabalho quase invisível nas
telhas, que, de fato, constituem a proteção da casa. A diferença de poder (e neste caso de
tamanho) entre pai e filho, teia e telhado, faz com que um lado da oposição esteja
completamente suscetível: o pai bate injustamente em seu filho e o homem que construiu o
telhado pode subitamente destruir uma teia que esteja em seu caminho.
Em uma comparação entre o conceito de justiça na infância e na maturidade de
Graciliano Ramos, percebe-se a existência de similaridade, pois o menino fora réu
desconhecendo o julgamento, e o homem fora preso sem ser sequer acusado.
92
De certo modo,
a “justiça nova que o narrador vivenciava na cadeia era um prolongamento da realidade
conhecida desde a infância. Mas enquanto na infância o conceito arbitrário de justiça é
acompanhado por reflexão e conformismo, na maturidade ele é rearticulado pela chave do
inconformismo, fazendo com que o homem se volte contra a situação vivida e também contra
a aceitação passiva dos outros presos. A diferença se dá porque a criança, nova no mundo e na
91
I, 32.
92
A “presença do réu sem culpa”, considerada por Chaves como uma marca da literatura de Graciliano, será
retomada no capítulo “A palavra”, em que discutimos como a presença dessa temática sugere a importância da
experiência carcerária na obra do autor. Chaves, Flávio Loureiro. “A metáfora da tirania” Cadernos Ponto &
Vírgula I. Porto Alegre: Secretaria Municipal de Cultura, 1993.
55
vida, como diz Arendt
93
, inicialmente interioriza o mundo que lhe é oferecido, tentando dar-
lhe sentido; o adulto, tendo passado toda sua vida em liberdade, questiona a novidade, que
aos seus olhos é uma deturpação.
Embora as instituições modifiquem as pessoas, não se pode esquecer que as pessoas
constituem as instituições. Isso indica que apesar do esforço de despersonalização, refletido
em seus próprios representantes, as instituições nem sempre conseguem ocultar a
singularidade humana. São discutidos em nosso próximo capítulo homens, como Graciliano,
que por meio da ação, fazem valer a sua essência de mutação.
94
93
Arendt, Hannah. “Crise na educação” In: Entre passado e futuro. São Paulo: Perspectiva, 2000, p. 234: “[a
criança] é nova em um mundo que lhe é estranho e se encontra em processo de formação; é um novo ser humano
e é um ser humano em formação. Esse duplo aspecto não é de maneira alguma evidente por si mesmo, e não se
aplica às formas de vida animais; corresponde a um duplo relacionamento, o relacionamento com o mundo, de
um lado, e com a vida, de outro.”
94
Jaspers, Karl Introdução ao pensamento filosófico. São Paulo: Cultrix, 1965, p. 47: “[...] a essência do homem
é mutação: o homem não pode permanecer como é. Seu ser social está em evolução constante. [...] Embora preso
a linhas prescritas, cada novo nascimento corresponde a um começo novo. Para Nietzsche, ‘o homem é o animal
que jamais se define.’”
56
3.
A
S PESSOAS
DESVIANTES
Antes de iniciar o capítulo, é necessário dar uma explicação sobre seu título. Ele indica
que nossa discussão está centrada em pessoas, não em personagens. Como já apontado, há um
debate sobre a ficcionalidade existente nos textos memorialistas de Graciliano Ramos. No
tocante aos personagens, Lafeconsidera que eles são construídos em Memórias do Cárcere
“exatamente como em um romance”
95
e destaca Capitão Lobo, chamado de “personagem
ímpar”; Candido, por sua vez, aponta que apenas em Infância “as pessoas parecem
personagens e o escritor se aproxima delas por meio da interpretação literária, situando-se
como criações.”
96
Esta análise nos parece mais precisa, pois deixa espaço para a diferença
entre os dois livros e não estabelece uma identidade do personagem com a pessoa, apenas os
aproxima. Isso é importante porque Graciliano, especialmente em Memórias do Cárcere,
mostra sua preocupação em expor pessoas reais:
O receio de cometer indiscrição exibindo em público pessoas que tiveram comigo
convivência forçada já não me apoquenta. [...] Procurei observá-los onde se acham,
nessas bainhas em que a sociedade os prendeu. A limitação impediu embaraços e
atritos, levou-me a compreendê-los, senti-los, estimá-los, não arriscar julgamentos
precipitados. E quando isto não foi possível às vezes me acusei. Ser-me-ia
desagradável ofender alguém com esta exumação. Não ofenderei, suponho. E,
refletindo, digo a mim mesmo que, se isto acontecer, não experimentarei o desagrado.
Estou a descer para a cova [...].
97
Personagens vivem nos limites do livro, enquanto as pessoas têm um passado e um
futuro que extrapola os fatos narrados. Por essa razão, Graciliano se preocupa em apresentá-
las em uma situação muito específica, em que todos podem agir de forma distinta ao que
fariam em liberdade. É difícil expor as pessoas a partir de seu olhar individual, dando-lhes
contornos de personagens nos limites impostos à escrita. É, inclusive, essa limitação,
representativa da “maior conquista” da obra ficcional, que estabelece a diferença entre o
personagem e a pessoa:
Precisamente porque o mero das orações é necessariamente limitado (enquanto as
zonas indeterminadas passam quase desapercebidas), as personagens adquirem um
cunho definido e definitivo que a observação das pessoas reais, e mesmo o convívio
95
Lafetá, João Luiz. “O porão do Manaus” In: Gêneros de Fronteira. Xamã: São Paulo, 1997, p. 229.
96
Candido, Antonio. Ficção e Confissão. São Paulo: Editora 34, 1999, p. 58.
97
MC, 35.
57
com elas, dificilmente nos pode proporcionar a tal ponto. Precisamente porque se trata
de orações e não de realidades, o autor pode realçar aspectos essenciais pela seleção
dos aspectos que apresenta, dando às personagens um caráter mais nítido do que a
observação da realidade costuma sugerir, levando-as, ademais, através de situações
mais decisivas e significativas do que costuma ocorrer na vida. Precisamente pela
limitação das orações, as personagens têm maior coerência do que as pessoas reais (e
mesmo quando incoerentes mostram pelo menos nisso coerência).
98
Em consonância com a colocação de Rosenfeld, Graciliano sabe que ele apreendeu as
pessoas de forma fragmentária. Mas ao transpô-las para uma narrativa acaba por dar-lhes um
aspecto mais “definitivo”, fixando sua própria visão. Embora em Memórias do Cárcere as
pessoas ganhem os limites de personagens, não passam a ter “maior coerência”, pois o autor
não tenta dar sentido ao que ele próprio não entende. Em outras palavras: ele precisa limitar as
pessoas pelo ato de escrita, mas não quer esvaziar a complexidade humana, por isso deixa que
cada leitor interprete acontecimentos singulares. Ele apresenta situações sob seu ponto de
vista, algumas vezes mostra seu espanto (como no caso do Capitão Lobo aqui analisado), mas
evita limitações maiores, através de relações de causalidade, por exemplo.
Em Infância, não essa mesma preocupação em expor as pessoas, possivelmente
porque o autor considerava que as conhecia de forma mais profunda. Além disso, elas
foram vistas em situações corriqueiras, sem a especificidade da privação da liberdade da
cadeia, o que permitiria uma compreensão menos condicionada. Ainda assim, como veremos,
as pessoas da vivência infantil de Graciliano também não se encaixam nos estreitos limites
dos personagens.
Talvez possamos até dizer que é a incoerência de algumas pessoas que norteia esse
capítulo, pois discutimos aqui as “desviantes”, as que se distanciam da linha estruturante das
instituições analisadas: seja por estarem fora delas, seja por contrariá-las em suas ações. Se,
de modo geral, viu-se que as instituições limitam a ação de Graciliano Ramos, aqui
discutiremos como essas pessoas favorecem o processo de descoberta. Com isso, não
pretendemos sugerir uma oposição redutora: instituições e limites de um lado; pessoas e
descoberta de outro. Cremos que o foco nas pessoas e nas instituições permite compreender
como o sujeito entende a si mesmo e ao mundo em que está inserido, descobrindo uma forma
de viver em meio às adversidades.
98
Rosenfeld, Anatol. “Literatura e Personagem”. In CANDIDO, Antonio et alli. A personagem de ficção. São
Paulo: Editora Perspectiva, 1981, p. 34, 35.
58
3.1
A
S AUTORIDADES
As pessoas analisadas neste tópico estão inseridas em instituições fundamentais das
obras de Graciliano Ramos, mas não as representam propriamente. A marca que as distingue
pode ser notada na citação abaixo. Em Infância, quando os pais não conseguem controlar as
atitudes do filho, através de punições, recorrem ao auxílio de outras instâncias de controle - a
Igreja representada por padre José Inácio e a polícia por José da Luz. Enquanto no segundo
caso, o homem se distancia do papel outorgado a ele socialmente, sendo, portanto, um
representante das pessoas aqui discutidas, o primeiro configura uma espécie de identidade
entre homem e instituição:
Para reduzir-me as travessuras, encerrar-me na ordem, utilizaram diversos elementos:
a princípio os lobisomens, que, por serem invisíveis, nenhum efeito produziriam; em
seguida a religião e a polícia, reveladas nas figuras de Padre João Inácio e José da
Luz. Resumiram-me o valor dessas autoridades, que admirei e temi de longe, mas
quando elas se aproximaram, o Vigário manteve a reputação. José da Luz
desprestigiou-se logo.
99
Como indicado em outro capítulo, nota-se aqui a importância dada pela criança ao que
pode ser apreendido de forma concreta, o que explica a ineficiência do lobisomem. Em
oposição a isso, há os representantes da religião e da polícia. A autoridade do policial
esmoreceu quando ele se aproximou do menino, deixando que suas características pessoais
sobrepusessem o papel institucional. no caso do padre, a força de sua palavra religiosa
provoca um conflito no interior da criança, como vemos a seguir:
Contudo esse julgamento absurdo acompanhou-me. Fixou-se, ganhou raízes. Indigno-
me, quero extirpá-lo, reabilitar seu Afro e d. Maroca. Duas pessoas normais. Penso
assim. E desprezo-as, sinto-as recaídas. Impossível deixar de senti-las recaídas. Repito
mentalmente os desconchavos do Padre João Inácio.
100
No capítulo “A vila”, Graciliano faz uma breve apresentação de pessoas da sua cidade,
em geral caracterizadas em pequenos parágrafos. Seu Afro e d. Maroca, tratados com
antipatia pela cidade, recebem mais detalhes. A citação mostra o confronto entre o julgamento
corrente e o do menino, que não consegue compreender como eles poderiam ser inferiores aos
outros. Por mais que o julgamento negativo seja considerado absurdo, ele passa a fazer parte
de seu próprio pensamento. a resistência à opinião alheia, avaliada segundo seus
99
I, 87.
100
I, 51 (grifo nosso).
59
parâmetros, mas ao fim chega-se à sua reprodução, o que revela a forte influência da opinião
religiosa.
O embate entre a opinião individual e a coletiva está profundamente marcado na
citação. A força da opinião dos outros é reforçada pela escolha verbal. Os dois primeiros
períodos são escritos no passado, e os demais, no presente. É como se o fato o houvesse
marcado quando ocorreu, mas seus efeitos seguissem até o momento da escrita do livro.
Além disso, para reforçar a distância dos dois discursos (o próprio e o alheio), o autor
inicia o parágrafo com uma conjunção adversativa. Essa marcação, repetida em outro
momento também relacionado ao padre
101
, materializa no texto o quanto a oposição ao seu
modo de pensar é algo distante a ele, mas que, tem força para influenciá-lo. Como é pouco
comum que em Infância os parágrafos sejam iniciados com orações adversativas, chama
atenção que sejam utilizadas sequencialmente duas vezes no capítulo “Samuel Smiles”, em
que o menino aprende a pronunciar corretamente esse nome em inglês e, por tal
conhecimento, não se sente inferior a tantos homens que zombavam dele. Diferentemente da
sua negação às diversas formas de autoridade, aqui ele invoca a do professor e sente-se
tranquilo frente à adversidade: “Mas sosseguei” e “Mas Samuel Smiles impunha-se
facilmente”. Nesse caso, a conjunção adversativa mostra o quanto, o conhecimento ajudava o
menino a se diferenciar da situação predominante em parágrafos anteriores, marcados pela
diminuição infantil. Tem-se aqui a formação infantil pela autoridade
102
do adulto, algo oposto
ao autoritarismo institucional, que leva à reprodução de suas opiniões por simples medo.
As pessoas “desviantes” funcionam como conjunções adversativas nos livros de
Graciliano, pois possibilitam o novo em um meio de profunda limitação, com contornos
especialmente definidos pelas instituições. Essas pessoas não abrem mão de regras
institucionais fundamentais (a ordem na cadeia ou o ensino na escola, por exemplo), apenas
não se valem do poder de suas funções para coibir as pessoas. O professor que mostrou a
pronúncia correta de “Samuel Smiles” não foge à sua função de ensinar, mas a faz sem o
rebaixamento de seus alunos
103
:
101
I, 58: Contudo uma sombra às vezes nos toldava a alegria: a recordação do Vigário. Na cozinha e na sala de
jantar pintavam-no terrível, uma espécie de lobisomem criado para forçar-nos à obediência. Citavam-se os
despropósitos dele na igreja.” (grifo nosso).
102
A autoridade diferencia-se do autoritarismo, segundo Arendt, porque enquanto esta leva a uma obediência
pela coerção, a autoridade “implica uma obediência na qual os homens retêm sua liberdade.” In: Arendt, Hannah
“Que é Autoridade?” In: Entre passado e futuro. São Paulo: Perspectiva, 2000, p. 144.
103
Tal postura é comum em professores que representam estritamente a instituição escolar, como D. Maria Ó.
60
[...] A firmeza séria me deu a suspeita de que me achava na presença de uma
autoridade. E como não me seria possível discernir razões profundas, contentei-me
com as aparências – e a suspeita se transformou em convicção.
Eu afirmava com facilidade. Lera um romance e conseguira entendê-lo. Entendera
pedaços, que o meu vocabulário era insignificante. Pois julguei-o, seguro, o maior
romance do mundo. Depois a certeza se abalou, assaltaram-me vacilações
dolorosas.
104
Como vimos no capítulo anterior sobre o menino, ele aceita o que lhe parece coerente.
Mas aqui a “suspeita transforma-se em convicção” pela autoridade do professor. É por sua
mediação que o menino considera aquele romance o maior do mundo. Tem-se aqui um
exemplo da afirmação de Durkheim “A liberdade é filha da autoridade bem
compreendida.”
105
, pois o exercício correto da atividade docente permite a autonomia do
sujeito.
O professor que ensinara a pronúncia correta do nome estrangeiro é uma exceção entre
os responsáveis pela sua alfabetização. Mas certamente ninguém se afasta mais da
representação institucional da escola, com suas punições e normas, que D. Maria, cujo espaço
diferencial em relação ao sistema escolar é marcado na própria divisão dos capítulos de
Infância. “Escola” configura uma unidade distinta de “D. Maria”, o que já revela a separação
entre o ser humano e a instituição, que a mulher tem um jeito diferenciado de educar. Ela
também é separada de suas atividades difíceis, pois no capítulo seguinte, “O Barão de
Macaúbas”, apresentam-se os problemas do menino para entender um livro infantil dado por
seu pai.
D. Maria deixa o menino ler sozinho, sempre estimulando-o. Ao contrário de outros
professores, que impõem sua presença através de gritos
106
, ela se mostra calma e delicada,
permitindo que as crianças se concentrem no aprendizado, não nela. Mas como sua atitude é
pouco comum no mundo de Graciliano, ele lhe devota grande atenção, observando e
admirando cada detalhe daquela mulher. D. Maria é apresentada pelos detalhes delicados de
suas ações, a voz mansa, o cheiro agradável, a limpeza do vestido. Através de fragmentos, o
menino tenta mostrar que aquela mulher é tão diferente das outras pessoas, que não pode ser
imaginada com uma observação pontual, tal como a que ele dedica a D. Maria do Ó: “mulata
104
I, 194.
105
Durkheim, Émile. Educação e Sociologia. São Paulo: Edições Melhoramentos, 1967, p. 44.
106
Garbuglio, José Carlos. “Graciliano Ramos: a tradição do isolamento” In: Garbuglio, J.C. et alii. Graciliano
Ramos. São Paulo: Ática, 1987, p. 370: O grito é uma forma de ordem implícita no modo de articulação da
própria fala por oposição, a redução ao silêncio, ou a censura da fala, constitui uma das formas mais radicais,
mais escondidas e mais seguras de exclusão do indivíduo do próprio direito de fala –, o grito indica a classe e a
autoridade de que está investido o locutor.”
61
fosca, robusta em demasia, uma das criaturas mais vigorosas que vi. Esse rigor se
manifestava em repelões, em berros [...]”
107
.
Através de D. Maria, o menino “começou vida nova”
108
, repensando inclusive o valor
do uniforme, que lhe dava alguma segurança. Na sua presença, a criança adquiriu mais
confiança. Sabia que poderia não aprender, mas não tinha medo de errar diante de uma
pessoa que não perdia a paciência:
Felizmente D. Maria encerrava uma alma infantil. O mundo dela era o nosso mundo,
vivia farejando pequenos mistérios nas cartilhas. [...] A escola exigia a palmatória,
mas não consta que o modesto emblema de autoridade e saber tenha trazido lágrimas a
alguém. D. Maria nunca o manejou. Nem sequer recorria às ameaças.
109
A identificação do mundo de D. Maria com o das crianças facilitava a comunicação
entre eles. Ela não assume uma posição institucional, nem sequer um lugar de adulto: coloca-
se no mesmo plano das crianças, recorrendo à ferramenta que eles têm para ação a palavra.
Aliás, é esse o instrumento que une Graciliano às pessoas que estão dentro das instituições,
pois são apenas aquelas que acreditam na comunicação (não no poder mudo) como forma de
lidar com os outros que interagem com o ele. o pessoas que se colocam à disposição do
menino para conversar e para mostrar-lhes os caminhos do mundo, sem se considerarem
portadoras da verdade. José da Luz, mencionado anteriormente, é uma dessas pessoas.
Quando o menino estava entediado na sala de aula, imaginava seu amigo cantando.
Esse homem é detalhadamente descrito para mostrar sua diferença em relação aos demais
policiais, desleixados e provocadores. Ele conversava com as pessoas e cantava alguns versos
que, assim como os de José Baía, permaneceram na memória de Graciliano. Apesar disso, o
garoto tinha medo do homem, pois enxergava nele um representante da lei, com poder de
prender e de ferir. A atitude do policial, no entanto, foi classificada como “extraordinária”,
pois ele conversou com o menino da mesma maneira que “os viventes mesquinhos, Amaro,
José Baía, os moradores da fazenda.”
110
É nesse representante da lei que o menino novamente
encontra um referencial para tirar dúvidas sobre o que ele não entendia e, mais do que isso,
para descobrir o mundo e principalmente as pessoas, que o assustavam por estarem sempre
tão distantes:
107
I, 164.
108
I, 110.
109
I, 111.
110
I, 92.
62
Éramos duas insignificâncias, uma loquaz, buliçosa, outra cheia de sonhos,
emperrada. Os meus bonecos da altura de um polegar esmoreceram.
Esse mestiço pachola teve influência grande e benéfica na minha vida. Desanuviou-
me, atenuou aquela pusilanimidade, avizinhou-me da espécie humana. Ótimo
professor. Acho, porém, que era mau funcionário. O Estado não lhe pagava etapa e
soldo para desviar-se dos colegas, sujos e ferozes, encher com lorotas as cabeças das
crianças. Um anarquista.
111
Graciliano considera José da Luz seu amigo. O menino o olha como a um igual, “que
diminuía junto ao balcão” para contar histórias e cantar algumas tristezas. Ele é superior
apenas em sua autoridade natural, vinda da experiência de conhecer mais sobre o mundo. Em
sentido contrário à proibição familiar de brincar com outras crianças, o contato com o policial
mostrou os prazeres possíveis na companhia de outras pessoas, não apenas de seres
imaginários. Aproximar-se de alguém que inicialmente inspirava receio torna mais concreta a
possibilidade de relacionar-se com outros, mesmo que fossem inicialmente distantes.
A descoberta de algo novo através de uma pessoa responsável pela ordem social não
aconteceu apenas essa vez na vida de Graciliano Ramos, pois algo semelhante se deu em
Memórias do Cárcere. Ao contrário do que ocorreu com José da Luz, que era apresentado
pelos outros como um policial rigoroso e se revelou um “anarquista”, o capitão Lobo, em
quem Graciliano uma generosidade surpreendente, foi lembrado por outros por sua dureza
extrema:
Ora, sucede que eu também conheci o capitão Lobo, já em 1942 [...]. Para nós,
estudantes, era lobo não só no nome, mas de verdade, sem intermediações
metafóricas. Por isso mesmo, foi com surpresa que reencontrei este mesmo
personagem nas páginas das Memórias, visto sob aspecto oposto, como homem capaz
de atitude generosa, com relação a uma pessoa acusada de comunismo e que podia
perceber do lado dos inimigos.
112
Nos primeiros dias da prisão de Graciliano, capitão Lobo destacou-se pelo seu modo
gentil e respeito às ordens. Além disso, o militar afirmou respeitar suas ideias, ainda que não
concordasse com elas. A narração de Graciliano (especialmente quando o militar lhe oferece
dinheiro) parece não condizer com a descrição feita por Gorender. Tal discrepância ocorre
porque capitão Lobo é uma pessoa. Ainda que o homem tenha sido delimitado em um livro,
suas ações são discutidas fora desse contexto, pois se trata de alguém real, do qual outros têm
sua própria opinião. Diferentemente de um personagem sem relação com a realidade, uma
111
I, 93.
112
Gorender, Jacob. “Graciliano Ramos: lembrança tangenciais” In: Revista Estudos Avançados 23. São Paulo:
1995, p. 328.
63
pessoa não é a criação de um autor
113
, mas uma delimitação feita por ele. Assim, embora o
oficial apresente certa coerência dentro do texto, pode revelar-se incoerente na percepção de
outros. Candido questiona:
Por outras palavras, pode-se copiar no romance um ser vivo e, assim, aproveitar
integralmente a sua realidade? Não, em sentido absoluto. Primeiro, porque é
impossível, como vimos, captar a totalidade do modo de ser duma pessoa, ou sequer
conhecê-la; segundo, porque neste caso se dispensaria a criação artística; terceiro,
porque, mesmo se fosse possível, uma cópia dessas não permitiria aquele
conhecimento específico, diferente e mais completo, que é razão de ser, a justificativa
e o encanto da ficção.
114
Candido mostra a impossibilidade de transplantar uma pessoa para os limites da
ficção. Mas sempre que um ser real é colocado em um texto literário ele se torna um
personagem? Não temos como responder essa questão lato sensu, apenas afirmamos que no
caso de Graciliano Ramos, especialmente em Memórias do Cárcere, um grande esforço
para não limitar as possibilidades humanas nas linhas da narração. É certo que o ato da escrita
já dá certa unidade à fragmentação humana, mas o autor, para além de seu desejo de
testemunhar sobre a História, mostra grande preocupação em respeitar a complexidade das
pessoas, dentre as quais ele se inclui. Para narrar o oferecimento de empréstimo feito pelo
capitão Lobo, o autor não hesita em mostrar suas incertezas quanto ao sentido da ação
daquele homem e até mesmo quanto ao fato daquilo ter, de fato, ocorrido.
A oferta do militar é apresentada em poucas linhas, fazendo com que o leitor sinta-se
como Graciliano e não entenda a motivação do personagem”. Mas a complexidade humana
fica registrada na longa reflexão inconclusiva do autor. A organização do texto revela o lugar
do personagem e o da pessoa. A narração tem pouca extensão porque o autor deseja mostrar
que ali, onde o homem deve se apertar nos limites do personagem, não está o mais
significativo do momento. O surpreendente está no que não pode ser entendido, no inusitado
da ação humana, no que sequer pode ser narrado. As longas reflexões rompem o limite dado
ao personagem e expõem o caráter ilimitado da ação humana. Graciliano descobre a
imprevisibilidade humana e respeita-a nos limites do seu texto, colocando apenas fragmentos
de sua compreensão. Ele lança hipóteses e principalmente registra suas dúvidas, deixando que
os leitores, também pessoas, criem suas próprias interpretações. Por certo, personagens
113
Candido mostra que Forster considera a identidade entre criador e narrador como o fator que permite
conhecer o interior do personagem, em oposição à percepção externa que se pode atingir de um homem real.
Candido, Antonio. “A personagem do romance”. In Candido, Antonio et alli. A personagem de ficção. São
Paulo: Editora Perspectiva, 1981, p. 63.
114
Idem, p. 65.
64
também estão sujeitos à interpretação, mas elas são pautadas pela narração dos fatos. Aqui,
como a narração do episódio está esvaziada, a tentativa de compreensão conduz cada leitor à
sua própria percepção fragmentária do ser humano.
Graciliano se esforça por revelar a pessoa por trás do personagem narrado. Ou antes:
não quer limitar a humanidade daquele gesto ao que ele, em sua fragilidade individual, foi
capaz de apreender. Selecionamos um trecho em que o narrador reflete sobre a atitude de
capitão Lobo, mostrando o quanto é impossível chegar a algo conclusivo:
Capitão Lobo, portanto, fugira ao preceito. De certo modo havia no caso uma espécie
de deserção. Impossível explicá-la. Se ele condenava as minhas idéias, sem conhecê-
las direito, por que me trazia aquele apoio incoerente? Insolência e brutalidade com
certeza me atiçariam o ódio, mas seriam compreensíveis, e nada pior que nos
encontrarmos diante de uma situação inexplicável. Admitimos certo número de
princípios, julgamo-los firmes, notamos de repente uma falha neles - e as coisas não
se passam como havíamos previsto: passam-se de modo contrário. A exceção nos
atrapalha, temos de reformar julgamentos. Qual seria a razão daquilo?
115
Diante de tantos absurdos que marcaram sua experiência carcerária, nada deixou
Graciliano mais assombrado que o oferecimento do empréstimo. Tal episódio é marcado por
um diálogo de frases breves entre ele e o capitão Lobo, em que este apresentava seu
empréstimo como uma espécie de ordem, não de favor. Antes de chegar ao desfecho do
diálogo, Graciliano diz que sequer contaria aquela “inverossimilhança” se o próprio militar
não a tivesse confirmado anos depois. Apesar se saber que a cena ocorreu, ele não entende seu
sentido, como pode ser visto na citação acima, retirada já do final do capítulo. Nela, o autor
mostra o incômodo causado por ação tão surpreendente, contrária a tudo que viu em sua
formação. Sua posição é de questionador inconformado, sem intenção de resposta.
Capitão Lobo é o símbolo maior de um sentimento de solidariedade que por vezes se
manifesta dentro da cadeia. Não desejamos afirmar que a aproximação entre as pessoas a
tônica do livro. Na verdade, o desrespeito generalizado e as relações fortemente
institucionalizadas servem antes para destacar ões pontuais, como, por exemplo, do oficial
que dá vários copos de água a Graciliano quando ele estava no porão do navio:
[...] Precisamos viver no inferno, mergulhar nos subterrâneos sociais, para avaliar
ações que não poderíamos entender aqui em cima. Dar de beber a quem tem sede.
Bem. Mas como exercer na vida comum essa obra de misericórdia? [...] Na véspera
outro desconhecido, negro também, me havia encostado um cano de arma à espinha e
à ilharga; e qualquer gesto de revolta ou defesa passaria desapercebido. Esquisito. Os
acontecimentos me apareciam desprovidos de razão, as coisas não se relacionavam. A
violência fora determinada apenas pela grosseria existente no primeiro negro; o ato
115
MC 112, 113 (grifo nosso).
65
caridoso que havia no coração do segundo. Ausência de motivo fora isso, eu não
merecia nenhum dos dois tratamentos [...] Não podia esquivar-me àquela piedade que
ali espreitava o fundo do porão, em busca de sofrimentos irremediáveis. Nunca
percebera, em longos anos, casos semelhantes.
116
Tal como demonstrou no episódio com capitão Lobo, Graciliano também mostra o
quanto o encarceramento possibilita novas formas de conhecer as pessoas, fazendo-o analisá-
las em sua singularidade, em movimento contrário ao das instituições. Ele reconhece o perigo
das generalizações, não podendo associar um negro que o aborrecera com outro que o ajudara:
cada pessoa ali representava uma chance ímpar de conhecer sentimentos extremos, da
violência à caridade.
3.2
O
S MARGINAIS
Chamamos de marginais as pessoas analisadas nesta parte do trabalho porque elas não
representam nenhuma instituição central para Graciliano Ramos, seja por não terem a força de
conseguir um lugar ali ou por terem sido expulsas ao ferir alguma norma. Embora sejam
socialmente marginais, ganham destaque no plano literário, pois são elas que, de fato, ajudam
Graciliano (quando homem ou menino) a descobrir como viver dentro do mundo.
Para iniciar nossa análise, retomemos o já mencionado episódio do cinturão. Antes de
seu desfecho, Graciliano ainda imagina uma possibilidade de esquivar-se da surra paterna: se
o moleque José ou um cachorro entrasse na sala, as pancadas destinadas a ele poderiam ser
transferidas. Não se tratava de indicar que um deles fosse responsável pelo sumiço da cinta,
mas apenas de desejar que seu pai se distraísse, e ele conseguisse fugir. Isso não aconteceu. O
narrador afirma: “minha mãe, José Baía, Amaro, sinhá Leopoldina, o moleque e os cachorros
da fazenda abandoram-me”
117
. A sequência da enumeração indica um movimento decrescente
de importância social das pessoas a esposa; os empregados (primeiramente os homens,
depois a mulher); o moleque da fazenda, que desde o nascimento é caracterizado como um
animal (“cria de gato”
118
); e, por fim, os cachorros. O referencial paterno do proprietário
116
MC, 154.
117
I, 31
118
I, 75.
66
está na base dessa ordenação. Por não ser sequer produtivo, o menino reconhece que os únicos
que estariam abaixo de sua condição infantil são o moleque e os cachorros, aos quais a surra
poderia ser transferida. Aos demais, caso aparecessem, restaria apenas o papel de distrair o
pai, mas dificilmente dissuadi-lo de sua decisão, pois não teriam o poder de enfrentá-lo com
argumentos de autoridade.
O episódio do cinturão ilustra o fato de que dificilmente alguém poderia interferir na
lei criada pelo pai, ainda que ela fosse arbitrária. No entanto, de maneira indireta, seria
possível agir para que ela fosse vivenciada de forma menos dolorosa pelo menino. É
exatamente isso que ele busca em algumas pessoas secundárias ao longo da narrativa.
A continuidade da cena aponta a principal pessoa a quem o narrador, no início do
livro, recorre quando deseja alegrar-se e em momentos de dificuldade: José Baía. Após
receber as primeiras chicotadas do pai, o garoto conclui: “Nenhum socorro. José Baía, meu
amigo, era um pobre-diabo.”
119
. Antes de receber a surra, vimos que o garoto pensa em
diversas pessoas; após sua concretização, no momento de tristeza, é apenas ao peão que ele
dirige seu pensamento, o que revela sua importância na construção do ânimo do garoto. Essa
recordação não visa a um fim “prático”, como quando o menino queria que o moleque ou o
cachorro aparecessem na sala para desviar a surra, pois o peão não poderia aliviar a dor física.
Por seu papel na formação do menino, José Baía é a primeira pessoa a ser efetivamente
personalizada em Infância, como pode ser percebido no início do livro:
Mas pai e mãe, entidades próximas e dominadoras, as duas irmãs, uma natural, mais velha que
eu, a outra legítima, direita, dois anos mais nova, eram manchas paradas. [...]
E a hibernação continuou, inércia raramente perturbada por estremecimentos que me aparecem
hoje como rasgões num tecido negro. Passam através desses rasgões figuras indecisas: Amaro
vaqueiro, caboclo triste, encourado num gibão roto; sinhá Leopoldina, companheira dele,
vistosa na chita cor de sangue; mulheres que fumavam cachimbo. Mais vivo que todos, avulta
um rapagão aprumado e forte, de olhos claros, risonho. Calçava alpercatas, vestia a camisa
branca de algodão que usa o sertanejo pobre do Nordeste, áspera, encardida, ordinariamente
desbotada, as pontas das aberturas laterais presas em dois nós. Chamava-se José Baía e tornou-
se meu amigo, com barulho, exclamações, onomatopéias e gargalhadas sonoras.”
120
Na caracterização apresentada no início do livro, as pessoas, principalmente os
membros da família, perdem sua singularidade em um borrão manchado. O tecido negro que
envolve o acesso ao passado deixa passar outras imagens “indecisas”, mas apenas uma delas
se destaca: a de um rapaz apresentado de modo iluminado. Em uma frase, tem-se uma breve e
reveladora descrição permeada de subjetividade. Logo em seguida, ao identificar suas vestes
119
I, 31
120
I, 9.
67
com as de tantos outros homens, o autor apresenta seu amigo com detalhes que dificilmente
poderiam ser compreendidos pelo menino que vivia a narrativa. Embora ele reconhecesse
algumas diferenças entre as roupas dos homens, ainda não conseguia relacioná-las ao nível
social, de tal modo que não lhe fosse possível, pelas roupas, considerar alguém como um
“sertanejo pobre do Nordeste”
121
. Tem-se, assim, como ocorre em diversas passagens do texto
uma intercalação entre o personagem e o narrador, que busca ausentar-se, mas ainda assim se
faz presente. Para finalizar a descrição do homem, há a frase que, de fato, o define ao menino:
ele possui um nome próprio e é seu amigo, principalmente por suas alegres manifestações
sonoras.
O garoto se lembra de José Baía ao longo do livro, mesmo quando ele não faz mais
parte da sua realidade, o que mostra sua importância no período de formação: foi o
responsável por muitos momentos de descobertas e alegria, repletos de músicas e
brincadeiras. O peão transformou-se em um referencial para as perguntas infantis, pois ainda
que não fossem respondidas, não eram censuradas. Enquanto a mãe se impacientava e Amaro
resmungava, “José Baía pilheirava”
122
. Os “porquês” infantis podiam permanecer sem
respostas, mas não eram impedidos. José Baía facilitaria a descoberta ou a deixaria em aberto
ao garoto, mas jamais colocaria apenas limites ao garoto, como geralmente faziam os
membros da família.
Quando a família havia deixado a fazenda e chegado a uma vila, o menino ouve seu
pai comentar “parece um papa-lagartas”
123
. A afirmação logo se converte em interrogação na
cabeça do garoto, que, no entanto, desanima de lançá-la ao pai ou a qualquer outra pessoa. O
desejo de conhecer o novo e a certeza de que permanecerá com a dúvida fazem o garoto
lembrar de seu amigo:
Em geral eu usava camisa, saltava e corria como um bichinho, trepava nas pernas de
José Baía, que nascera de sete meses e fora criado sem mamar. José Baía era ótimo,
talvez por não ter mamado e haver nascido de sete meses, o que devia ser uma
exceção. Se José Baía aparecesse ali, explicar-me-ia o papa-lagartas.
124
As falas de José Baía são assumidas pelo menino, que as considera um motivo de
distinção. Seu amigo é tão singular, que Graciliano recorria a ele (e ainda desejava recorrer)
para tirar uma dúvida, para entender uma expressão nunca ouvida. Não é o seu pai, o autor do
121
I, 26: “As nossas roupas grosseiras pareciam-me luxuosas comparadas à chita de sinhá Leopoldina, à camisa
de José Baía, sura, de algodão cru.”
122
I, 25.
123
I, 41.
124
I, 42.
68
comentário, que pode explicá-lo, é o amigo que o tratava efetivamente como uma criança:
apresentando o mundo através de palavras simples e brincadeiras. José Baía tinha uma postura
contrária a do pai do garoto, o que talvez explique a diferença como os dois foram
apresentados no início do livro:
Meu pai e minha mãe conservavam-se grandes, temerosos, incógnitos. Revejo
pedaços deles, rugas, olhos raivosos, bocas irritadas e sem lábios, mãos grossas e
calosas, finas e leves, transparentes.(...).
125
Diferentemente de José Baía, que em páginas anteriores havia recebido uma
caracterização mais ampla, os pais são apresentados de modo fragmentado, afinal é apenas
uma parte deles que o menino julga conhecer. Ele não se recorda das pessoas completas,
apenas de alguns “pedaços”, dentre os quais, como mostra a sequência do texto, as mãos
desfrutam de detalhamento mais extenso, possivelmente porque é através delas que se a
maior parte do contato familiar e que os pais desempenham suas funções institucionais, algo
presente no discutido episódio do cinturão:
Havia uma neblina, e não percebi direito os movimentos de meu pai. Não o vi
aproximar-se do torno e pegar o chicote. A mão cabeluda prendeu-me, arrastou-me
para o meio da sala, a folha de couro fustigou-me as costas.
O pai é inicialmente um ser indefinido, encoberto por uma neblina. A materialização
dele ao olhar do garoto se apenas através de sua mão detalhada, não do corpo inteiro. É a
mão que prende e arrasta, e é a folha que fere as costas. A ação do homem fica reduzida aos
seus instrumentos, o que, de certa forma, reduz a significância da ação paterna: não é
propriamente a pessoa que pune, é o papel institucional de pai, materializado em mãos e
chicote. Em episódio reavivado por causa do cinturão, o menino se recorda de uma surra com
corda nodosa dada pela mãe, sobre o qual conclui: “Não guardei ódio a minha mãe: o culpado
era o nó.”
126
De fato, em relação aos outros castigos, esse fora mais danoso porque o
instrumento usado era mais agressivo, mas o sujeito poderia colocar a culpa na mãe, que
pegou uma corda nodosa, e não nos nós existentes. O ponto de vista do menino revela, mais
uma vez, a relação entre ação e instrumento, o que distancia o agente das consequências de
sua ação.
A despersonalização da punição operada pelo garoto o leva a, em um primeiro
momento, não responsabilizar diretamente o pai e a mãe pela dor física (e moral). Eles agem
125
I, 12.
126
I, 29.
69
conforme o poder que lhes foi “naturalmente” atribuído, com os instrumentos que têm ao
dispor. O garoto só irá contestar, ainda que apenas mentalmente, os agentes da punição
quando ficar evidente que ele não deu qualquer motivo (legítimo dentro das regras
estabelecidas na relação familiar) para ser castigado. No episódio do cinturão, no qual o
garoto vive “seu primeiro contato com a justiça” e reconhece sua arbitrariedade, ele avaliou
seu pai criticamente após ficar evidente que não havia cometido qualquer falha. Assim, à
parte situações em que fica comprovada sua inocência, o garoto considera justas as punições,
naturalizando-as de tal forma que as relaciona diretamente aos instrumentos, não aos agentes.
Os pais, por um direito confirmado pelo próprio filho, devem impor os limites. Assim,
caso Graciliano descumprisse alguma regra familiar, a punição seria legítima e esperada. O
papel institucional que eles desempenham é de tal modo intenso que suas figuras encontram-
se, em geral, relacionadas à ordem, impedindo as descobertas. Essas ficam, muitas vezes, a
cargo de pessoas secundárias na narrativa, que rompem a forte estrutura familiar para
introduzir elementos novos no universo infantil, como se viu no caso de José Baía, que
apresentou canções, histórias e brincadeiras ao menino.
Algumas pessoas ganham maior importância no processo de descoberta infantil, outras
são apenas brevemente mencionadas, como os hóspedes e passageiros, que embora não sejam
sequer nomeados, têm o papel de romper o “ramerrão fastidioso”
127
, na medida em que
trazem para o limitado mundo da fazenda informações e costumes de uma realidade externa
ainda pouco conhecida. De uma certa forma, todos as pessoas que contribuem
significativamente para a descoberta de um mundo diferente daquele apresentado nos estreitos
limites das instituições formadoras (igreja, família e escola), atuam como forasteiros na
história: eles rompem o cerco de formação tradicional da criança, deixam sua marca e se vão.
São fundamentais para a formação do menino, mas não permanecem ao lado dele em todo seu
processo de desenvolvimento. José Baía, por exemplo, é a quem o menino procura quando se
encontra perdido na vila. É a ele, e não ao seu pai, que são dirigidos os anseios, o que mostra
a importância da pessoa para Graciliano. Mas é importante observar que isso ocorre no
capítulo “Chegada à vila”, ou seja, quando o menino ainda não se desapegou da fazenda, na
qual José Baía era um de seus principais referenciais. A partir do capítulo seguinte “A vila”,
em que o garoto se sente mais parte de um novo ambiente, a imagem do peão perde sua
força. É necessário, então, encontrar novas referências, outras pessoas que o auxiliem em seu
caminho de descoberta.
127
I, 21.
70
O moleque José criança como Graciliano também é um bom parceiro para
descobertas. No segundo capítulo do livro, ao retomar a caracterização das pessoas, diz-se
pontualmente que “O moleque José começava a revelar-se”
128
. Sem muitas explicações sobre
o garoto, ele repentinamente torna-se parte da narrativa, na qual, em geral, desempenha um
papel passivo junto a Graciliano. No entanto, o modo como os leitores acompanham o
moleque José modifica-se após o capítulo que leva o seu nome, em que ele recebe a descrição
pessoal mais detalhada no livro, inclusive com sua genealogia conturbada, reveladora de uma
pessoa talhada para a sobrevivência. O seu modo de viver mostra primeiramente como lidar
com as situações impostas: ele ria muito, mas não era alegre; rogava perdão, mas não chorava.
O moleque José descobriu uma forma de sobreviver da melhor maneira possível dentro dos
limites impostos.
O moleque José tratava Graciliano por “senhor”. A diferença social foi determinante
para um valioso aprendizado. O pai de Graciliano arrastou José após este ter negado a autoria
de alguma “traquinada insignificante”. Ao ver a cena, afirma Graciliano: “Segui-os, curioso,
excitado por uma viva sede de justiça.”
129
O deturpado conceito de justiça ao qual o garoto
havia sido apresentado no episódio do cinturão reaparece aqui. E Graciliano assume uma
posição ativa nessa justiça:
me veio a tentação de auxiliar meu pai. o conseguiria prestar serviço apreciável,
mas estava certo de que José havia cometido grave delito e resolvi colaborar na pena.
Retirei uma acha curta do feixe molhado, encostei-a de manso a uma das solas que se
moviam por cima da minha cabeça. Na verdade apenas toquei a pele do negrinho. Não
me arriscaria a magoá-lo: queria somente convencer-me de que poderia fazer alguém
padecer. O meu ato era a simples exteriorização de um sentimento perverso, que a
fraqueza limitava. Se a experiência não tivesse gorado, é possível que o instinto ruim
me tornasse um homem forte. Malogrou-se – e tomei rumo diferente.
130
O desejo de auxiliar o pai não vem ao menino em forma de presteza, mas de tentação,
“esse impulso para a prática de alguma coisa censurável ou não recomendável”
131
, em que
está apontado que talvez o moleque José não houvesse praticado um “grave delito”. Não havia
uma real consciência de justiça, mas uma vontade de colocar-se ao lado da figura paterna e,
consequentemente de seu poder. O garoto sai de sua usual passividade para tomar parte no
castigo, em uma súbita necessidade de testar a si mesmo. Paralelamente a isso, a reação do
moleque José não decorreu da dor física infligida pelo outro, mas de sua afronta moral. Dois
128
I, 21.
129
I, 79.
130
I, 80.
131
Cf. TENTAÇÃO. In: HOUAISS dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2001, p.
2695.
71
meninos que conviviam são, subitamente, colocados como representantes de suas posições
sociais, algo recusado pelo moleque José, que não reconhece no outro o “direito” de punir-lhe.
Diante dessa situação, interpõe-se a ação paterna, que condena a atitude de seu filho e
transfere para ele a punição anteriormente destinada a José, o que obriga Graciliano a
“participar do sofrimento alheio”
132
.
A atitude do pai fez com que Graciliano não apenas olhasse para o outro como a um
semelhante, mas que compartilhasse sua condição e relembrasse de que ele não tinha poder e
que também fora castigado em outros momentos. Ao se tornar parte da punição, a noção de
justiça que regia sua ação converte-se em sofrimento na passividade. Irmanar-se com o outro
foi fundamental para que ele redefinisse conceitos e, principalmente, para que não desse
vazão ao “sentimento perverso” existente em seu interior, “que a fraqueza limitava”.
Esse episódio foi fundamental para o processo de descoberta do menino Graciliano,
pois não apenas possibilitou-o a reencontrar o conceito de justiça, que havia se cristalizado de
forma deturpada em sua mente, como também permitiu que ele conhecesse melhor a si
mesmo, os sentimentos limitados pelo seu interior. Mas além disso, esse episódio forneceu
novos parâmetros para que o menino entendesse a ação limitante de seus pais, que será
novamente confrontada em outro episódio envolvendo o moleque José.
A idade semelhante das crianças possibilitava um compartilhamento de experiências,
mas, como se viu, não em um plano de igualdade. Na contrapartida da condição social
favorecida de Graciliano, o moleque José conhecia uma realidade externa à proteção familiar
e se encarregava de mediar o acesso de Graciliano a ela, controlando a fala de outros - “Cala a
boca. Ele não entende isso.”
133
- ou efetivamente mostrando um pouco do que conhecia
“lugares, pessoas, bichos e plantas”
134
. De tudo que apresentou a Graciliano, o que mais o
marcou foi o primeiro contato com a morte, que, como discutido anteriormente, não foi
seguido de uma punição familiar.
As experiências ligadas ao moleque José foram fundamentais para ajudar Graciliano a
descobrir a justiça de uma forma mais profunda: ele pôde repensar as ações de seus pais,
porque ele próprio se viu punindo alguém apenas para mostrar seu poder e também percebeu
que a punição nem sempre era decorrente do que ele considerava uma infração. Algo
semelhante pode ser visto no episódio “Venta-Romba”, nome de um mendigo humilde. Um
dia, Venta-Romba entrou na casa da família de Graciliano sem que ninguém o ouvisse
132
I, 80.
133
I , 77.
134
I, 77.
72
batendo na porta. A mãe ordenou que ele saísse, mas antes que o mendigo pudesse se
explicar, o pai de Graciliano chegou em casa. Este, por sua vez, tinha solicitado a presença
do comandante e, mesmo percebendo que a presença do homem era inofensiva, ordenou sua
prisão. O mendigo perguntava o motivo daquele ato, mas não recebia resposta.
Graciliano, que observou toda a cena, colocava-se ao lado de Venta-Romba,
interpretando seus gestos e compartilhando suas dúvidas sem manifestá-las. A aproximação
entre os dois fica marcada no texto através de alguns questionamentos, que não podem ser
atribuídos com segurança ao homem ou ao menino que se coloca em seu lugar: “Por quê?
Como se prendia um vivente incapaz de ação?” ou ainda “Como havia de ser? Como havia de
ser o pagamento da carceragem?”. Diferentemente do menino Graciliano que se mostrava no
início de Infância, capaz de admitir absurdos apenas com explicações simples, tem-se aqui
alguém mais questionador, que mostra suas dúvidas e inconformismo diante do que via.
Possivelmente ele se identificou com Venta-Romba porque viu que ambos eram tratados de
forma semelhante, com a condenação antecedendo a possibilidade de explicação. Apesar
desse breve momento de profunda identificação, Graciliano não tomou nenhuma atitude:
Eu experimentava desgosto, repugnância, um vago remorso. Não arriscara uma
palavra de misericórdia. Nada obteria com a intervenção, certamente prejudicial, mas
devia ter afrontado as consequências dela. Testemunhara uma iniquidade e achava-me
cúmplice. Covardia.
Mais tarde, quando os castigos cessaram, tornei-me em casa insolente e grosseiro e
julgo que a prisão de Venta-Romba influiu nisto. Deve ter contribuído também para a
desconfiança que a autoridade me inspira.
135
Assim como ocorreu no episódio do moleque José, o menino se descobre através de
sua ação, ou falta de ação, com os outros. Mas o contato com Venta-Romba foi fundamental
para que ele estabelecesse uma outra relação com a autoridade, como pode ser visto pelo uso
dos verbos: ainda que o aprisionamento do mendigo tivesse ficado no passado, seus efeitos
estendem-se até o presente, tanto que podemos ver sua marca até mesmo em Memórias do
Cárcere. É principalmente através das pessoas que ele cria uma visão mais complexa do
mundo e consegue formar suas opiniões, opondo-se à ordem existente. É possível, portanto,
perceber uma passagem da plena aceitação do poder alheio ao questionamento sobre ele.
Muitas outras pessoas de Infância poderiam ser discutidas aqui. A importância delas
na formação do menino, em seu aprendizado da diversidade, fica evidente pela própria
estrutura do livro, em que muitos capítulos levam o nome de pessoas singulares. Essas
135
I, 224.
73
pessoas, através de suas ações ou palavras, mostram que não apenas um modo correto de
agir (como costumam colocar os representantes plenos das instituições), mas diversas formas
de descobrir a realidade. Essa diferença pode ser observada, por exemplo, no modo como José
Leonardo, outra pessoa singular, lida com ele: sempre respondeu suas perguntas com
naturalidade e paciência, sem “tentar corrigir-me, sem dar-me conselhos que sempre me
aperrearam e não serviram para nada.”
136
Não o conselho do correto, mas a paciência de
colaborar na descoberta individual.
Diferentemente do que se viu em Infância, em que várias pessoas com suas
contribuições individuais - são fundamentais para que o menino descubra o mundo, em
Memórias do Cárcere, essas pessoas, ainda que igualmente importantes, poucas vezes
mostram sua singularidade:
Escrevi até à noite. Se houvesse guardado aquelas páginas, com certeza acharia nelas
incongruências, erros, hiatos, repetições. O meu desejo era retratar os circunstantes,
mas, além dos nomes, escassamente haverei gravado fragmentos deles: os olhos azuis
de JoMacedo, a contração facial de Lauro Lago, a queimadura horrível de Gastão
[...]
137
Essa cena marca um dos momentos em que Graciliano tenta tomar nota do que lhe
acontecia na prisão. Suas anotações guardariam o que ele conseguiu apreender naquele
momento: fragmentos de pessoas. Isso ocorre porque na cadeia ele está exposto ao contato
com muitos, alguns totalmente desconhecidos. Nas anotações registra-se a observação
momentânea, mas no livro não é necessário ficar limitado às suas percepções, o que permite
atualizar a apresentação das pessoas com o conhecimento posterior que se tem delas. Mas isso
não ocorre de forma o marcada como em Infância, no qual os capítulos (semelhantes a
contos por configurarem uma unidade), são focados em acontecimentos, sobre o qual o
narrador traz todos os detalhes que dispõe. Assim, por exemplo, um capítulo que leva o nome
de uma pessoa traz quase todas as informações que o menino tinha sobre ela. Desse modo, a
ação de alguém é colocada diante de seu retrospecto, que contém tanto as observações do
menino quanto a opinião de outros. A organização textual de Infância favorece uma
compreensão mais completa da pessoa e, consequentemente, que ela ganhe maior destaque na
narrativa.
Embora Memórias do Cárcere não seja pensada como uma transcrição fiel da
realidade, o que inclusive faz com que o narrador não lamente a perda de suas anotações, há a
136
I, 148.
137
MC, 152.
74
busca por apresentar os fatos com linearidade. A retomada de acontecimentos passados não é
tão frequente, porque na prisão estão reunidos desconhecidos, que pouco poderiam informar
uns sobre os outros. Tal situação é agravada por eles serem presos políticos, que não sabem
em quem confiar: não podem contar detalhes de suas vidas porque não sabem se algum
traidor ali. Apesar de conhecer profundamente poucos deles, Graciliano, através da
observação dos grupos, consegue realizar importantes descobertas, ou antes colocar em xeque
muitos valores estabelecidos:
As minhas conclusões eram na verdade incompletas e movediças. [...] A nossa
obrigação é analisá-los [homossexuais], ver se são intrínsecos à natureza humana ou
superfetações. Preliminarmente lançamos opróbrio àqueles indivíduos. Por quê?
Porque somos diferentes deles. Seremos diferentes, ou tornamo-nos diferentes? Além
de tudo ignoramos o que eles têm no interior. Divergimos nos hábitos, nas maneiras, e
propendemos a valorizar isto em demasia. Não lhes percebemos as qualidades,
ninguém nos diz aque ponto se distanciam ou se aproximam de nós. Quando muito
chegamos a divisá-los através de obras de arte. É pouco: seria bom vê-los de perto
sem máscaras.
138
Graciliano mostra seu “nojo”
139
em relação aos homossexuais, mas diante da
possibilidade de observá-los de perto, considera necessário analisá-los antes de emitir
qualquer juízo. Nota-se aqui a atenção do autor ao ser humano, o qual ele tenta compreender
apesar de sua oposição pessoal. A proximidade, que arranca as máscaras, sejam elas ficcionais
ou sociais, permite discutir o homem, não seu estereótipo
140
. Através de diversas perguntas,
que se estendem além da citação, Graciliano questiona a si próprio, que formou seu
julgamento pessoal sem base na experiência, algo vital para sua literatura e vida.
Memórias do Cárcere revela as pessoas de forma gradativa, pois demora para o
narrador conhecê-las a ponto de se impressionar com suas atitudes. É certo que diversas
pessoas surpreendem, pois têm comportamentos peculiares em uma realidade tão específica
como a cadeia, mas são poucas as que, de fato, conseguem colocar uma marca pessoal sobre o
mundo, de sorte a revelar uma outra faceta dele.
Na cadeia, Graciliano terá a possibilidade de conhecer de forma mais profunda
revolucionários e bandidos. O contato com o primeiro grupo era visto de forma
138
MC, 311.
139
MC, 311: “Penso assim, tento compreendê-los – e não consigo reprimir o nojo que me inspiram, forte demais.
Isto me deixa apreensivo. Será um nojo natural ou imposto? Quem sabe se ele não foi criado artificialmente,
com o fim de preservar o homem social, obrigá-lo a fugir de si mesmo?” (grifos nossos).
140
Vejamos que o desejo de ver além das máscaras é aplicado tanto a desconhecidos quanto a pessoas
admiradas, como capitão Lobo. Essa postura revela um desejo indistinto de entendê-las. MC, 93: “Em todo o
caso tolerância, uma admirável tolerância imprudente que, sem exame, tudo chega a admitir. Era o que me
levava a admirar capitão Lobo. Isso e a suspeita de me achar diante de uma criatura singular. Observava-lhe a
máscara expressiva, esforçava-me também por ultrapassá-la, divisar lá no íntimo embriões de atos generosos.”
75
entusiasmada
141
, com o segundo havia certa indignação
142
. Mas a proximidade com esses
dois “tipos” de homens revela que eles são, acima de tudo, pessoas, com as quais sempre é
possível surpreender-se.
Rodolfo, Secretário do Partido Comunista Argentino, era homem de grande eloquência
e conhecimento. Graciliano admira o homem capaz de manifestar suas convicções políticas
mesmo estando preso, inclusive em cenas inusitadas, como ao fazer um discurso apenas de
cueca e tamanco. Mas nada fez Rodolfo se destacar tanto aos olhos de Graciliano quanto a sua
fragilidade, que revelou o homem por trás do político:
Imaginei naquela situação e naquela angústia alguém que houvesse fraquejado ao
torniquete : - ‘Nem sei o que disse. Terei cometido infâmia?’. Sim ou não. Como no
jogo do cara-ou-cunho, a moeda oculta debaixo da palma. Súbito a descoberta
medonha sim, e está um homem perdido, coberto de opróbrio, inteiramente
impossível a reabilitação. Num caso ou noutro, ausência de culpa, ausência de mérito.
Pensamos assim. E não evitamos o desprezo ou o entusiasmo. Rodolfo cresceu muito
aos meus olhos. A energia involuntária deu-lhe maior prestigio que a inteligência
revelada nos discursos longos.
143
Após um interrogatório, Rodolfo não sabia se havia dito algo que comprometesse
outras pessoas. havia mentido tantas vezes que não sabia se tinha revelado algum segredo
ou cometido incoerências em sua fala. Graciliano mostra que não importa saber se Rodolfo
havia, ou não, sido imprudente, pois sua imagem havia sido manchada. Mas onde outras
pessoas podiam ver fraqueza, ele reconhecia uma marca distintiva, reveladora de um grande
homem. Naquela situação, Rodolfo nem seria culpado por ser incoerente mediante coerção,
nem deveria receber mérito por um bom discurso. O revolucionário cresce aos olhos de
Graciliano quando se mostra humano, com uma “energia involuntária” que às vezes pode
contrariar o pensamento do revolucionário.
A cadeia oferece uma chance ímpar para que as pessoas se mostrem como pessoas, em
sua imprevisibilidade. Um outro exemplo disso é Cubano, responsável pela organização na
cadeia e que sempre se mostrou preocupado com Graciliano, especialmente com sua
alimentação. Assim como Rodolfo revelou a fragilidade de um revolucionário, Cubano
mostrou a gentileza de um homem de postura austera
144
. Suas ações generosas, por certo,
141
MC, 70: “Até certo ponto podia considerar-me uma espécie de revolucionário, teórico e chinfrim. Sorria-me a
perspectiva de olhar de perto revolucionários de verdade, que ultimamente eram presos em magotes.”
142
MC, 142: “E estávamos ali, encurralados naquela imundície, tipos da pequena burguesia, operários, de
mistura com vagabundos e escroques.”
143
MC, 262.
144
MCII, 384. “O ar de tédio, gestos maquinais de fantoche; ninguém adivinharia aí um coração. Achei, contudo,
que me ia tornar amigo daquele negro vagabundo, e não me iludi: a amizade até hoje resistiu. Era uma criatura
76
favoreceram que ele, juntamente com Capitão Lobo, figurassem na lista dos melhores amigos
de Graciliano no seu Auto-retrato aos 56 anos
145
.
Graciliano afirma que Cubano o reconhecia como um indivíduo, cuja debilidade física
exigia atenção diferenciada. Para realizar essa personalização, no entanto, Cubano recorria à
sua própria animalização, o que revela a complexidade em que está envolvida a ação humana
dentro da cadeia:
Amável, serviçal, procurava tornar-nos a vida menos dura no lugar infame. De
repente, a inopinada agressão. Gente singular, meio esquisito: até para revelar
sentimentos generosos, era indispensável a brutalidade. Na desordem, mexendo-nos
ao acaso, via-me forçado a achar razoável o disparate: o homem recorria à violência
com o intuito de prestar-me favor, e admitir que não podia comportar-se de outro
modo. Tinha um coração humano, sem dúvida, mas adquirira hábitos de animal.
Enfim todos nos animalizávamos depressa.
146
Ao analisar o outro, ele acaba por reconhecer a si mesmo, indicando que a cadeia
facilitava um processo de animalização generalizado. É precisamente por isso que a ão de
Cubano é tão diferenciada: ainda que ele próprio interiorize aquela realidade, tenta devolver o
seu reverso a alguns presos. O modo de agir de Cubano é aproveitado por Graciliano na
composição de sua narrativa: mesmo dando destaque a um meio que tanto animaliza, é
possível (e necessário) reconhecer a humanidade nas pessoas e mostrá-la através da escrita. É
fundamental para o autor criar um meio capaz de revelar pessoas absolutamente singulares,
entre os quais também se encontram Gaúcho e Paulo Turco: o primeiro era um bandido “vira-
lata” muito atencioso, que narrou fugas espetaculares a Graciliano, no desejo de ser
apresentado em seu livro, preferencialmente com nome e retrato
147
; o segundo, um criminoso
temido, possível assaltante e assassino, que se preocupava em obter dinheiro na cadeia para
educar duas meninas. Graciliano observa os bandidos como humanos, o que lhe permite
reconhecer ações “incompreensíveis”, que novamente escapam aos limites dos personagens.
Ele não se preocupa com a classificação a priori dada à pessoa, até porque, como grande
conhecedor da sociedade, sabe que muitos que expropriam bens alheios sem que sejam
presos por isso:
esquisita, empenhada constantemente em nos prestar algum serviço, obrigando-nos à vezes a aceitá-lo à força.
Nunca vi ninguém assim.”
145
In: Moraes, Dênis de. O Velho Graça. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1993.
146
MCII, 420.
147
MCII 376: “- Quer que mude seu nome? - Mudar? Por quê? Eu queria que saísse o meu retrato.
77
Não aprovei as aventuras de Gaúcho, meu amigo na Colônia Correcional; não as
aprovei por serem perigosas. Gaúcho não produzia riqueza. Muitos não a produzem, e
contudo acham maneira de apropriar-se dela sem arriscar-se. Gaúcho e Paulo Turco
haviam pelo menos revelado coragem. E em situação difícil achavam maneira de
praticar ações generosas, incompreensíveis.
148
3.3
O
SUJEITO
O título desse tópico já indica que o próprio Graciliano pode ser considerado
“desviante”, o que em grande medida é possível pelo seu contato com outras pessoas. A
singularidade delas ajuda-o a descobrir formas distintas de viver dentro das instituições, sem a
ordenação e limitação esperadas. Deve-se observar que isso se dá de formas distintas nos dois
livros, embora todas pessoas analisadas sejam fundamentais para tornar a vida institucional
mais tolerável.
Em Memórias do Cárcere, o contato com as pessoas é uma das poucas “vantagens”
que Graciliano reconhece na prisão, pois através da observação delas (o que se faz no caso de
muitos) e do contato estreito (o que se dá no caso de poucos), ele pôde conhecer novas facetas
do homem
149
, que dificilmente se mostrariam em liberdade: desde a generosidade
desinteressada do Capitão Lobo até a leviandade apequenada de um preso que rouba o troco
de uma venda. Estar em meio a tantas pessoas possibilitou a Graciliano ver como elas agem
em uma realidade de profunda animalização: algumas se entregam aos impulsos da
sobrevivência, enquanto outras, as “desviantes”, mostram sua resistência, revelando a
imprevisibilidade do ser humano – que vai desde a exposição da fragilidade do revolucionário
à preocupação do homem contido, Cubano. A imprevisibilidade humana não é tão recorrente
em Memórias do Cárcere quanto em Infância, pois além de ela ser filtrada pelo olhar de um
homem adulto, as condições da cadeia não favorecem um contato tão estreito entre as pessoas.
Assim, não analisamos tantos sujeitos em Memórias do Cárcere, porque não pessoas
fisicamente afastadas da instituição carcerária e são poucas as que, individualmente, agem de
148
MCII, 505.
149
MC, 113 “Realmente a desgraça nos ensina muito: sem ela, eu continuaria a julgar a humanidade incapaz de
verdadeira nobreza [...]. Para descobri-la não era muito agüentar algumas semanas de cadeia? Seriam apenas
algumas semanas?
78
modo distinto ao imaginado, embora coletivamente isso seja notado com maior força (elas
têm, por exemplo, empenho político apesar de todas as adversidades).
Enquanto as pessoas “desviantes” estão dispersas em Memórias do Cárcere, em
Infância elas ajudam a estruturar a narrativa, como pode ser visto pelo índice do livro, que
tem muitos capítulos com seus nomes. Isso indica a importância das pessoas na formação do
menino, pois são elas que revelam o mundo em que ele vive, permitindo-lhe construir seu
próprio conhecimento e não apenas aceitar o que é imposto pelos outros, especialmente pelos
representantes institucionais. Ao invés de proporcionar a descoberta do mundo, as pessoas na
cadeia mostram uma outra feição dele, em que não predomina o egoísmo anteriormente
imaginado.
150
Em Infância, as pessoas permitem ao menino criar algumas hipóteses sobre o mundo,
enquanto em Memórias do Cárcere elas destroem hipóteses mais planificadas do adulto e
revelam a maior complexidade das pessoas e da realidade. Isso ocorre por causa da fase de
formação de Graciliano: o menino, como ele próprio afirma, geralmente não requer longas
explicações, apenas afirmações simples, já o homem adulto não deseja apenas opiniões,
impressões, pois uma vida de experiências, marcada inclusive por sua prisão arbitrária,
mostrou o vazio existente por trás de conceitos vagos. As palavras não surpreendem, mas as
ações sim, especialmente aquelas que não visam a nenhuma vantagem pessoal.
No livro de memórias infantis, o contato com as pessoas revela o inédito ao menino,
que passa a conhecer a complexidade do mundo (é por pessoas de fora das instituições que ele
tem o primeiro acesso à morte e à desigualdade social, por exemplo). Ao ver-se parte de uma
realidade mais complexa que o meio familiar e escolar, onde o poder tinha uma localização
precisa, o menino encontra a possibilidade de ser diferente do que os moldes institucionais
indicavam. O homem adulto conhece o quanto o mundo é complexo, mas a entrada na
cadeia também lhe revela uma nova realidade, da qual ele tinha apenas informações
superficiais. Mas a maior descoberta que ela traz é da diversidade humana e sua
imprevisibilidade. Enquanto em Infância, as pessoas são um meio para o acesso ao mundo,
permitindo-lhe perguntas e outras experiências, em Memórias do Cárcere, elas são um fim em
si mesmo. O espanto provocado por ações que não condizem com os papéis sociais leva o
homem a questionar-se. Nesse livro, as pessoas não fortalecem o sujeito, como fizeram com o
menino, mas o colocam em dúvida. Seria ele próprio capaz de tais demonstrações de
150
MC, 113: “Eu passara a vida a considerar todos os bichos egoístas – e ali me surgia uma sensibilidade curiosa,
diferente das outras, pelo menos uma nova aplicação do egoísmo, vista na fábula, mas nunca percebida na
realidade.
79
generosidade, ousadia ou fragilidade? Ele próprio é alguém surpreendente, capaz de fugir aos
seus papéis institucionais, como aquelas pessoas? A descoberta de tais respostas talvez esteja
na base da motivação para a escrita do livro, como discutiremos adiante.
A diferença que as pessoas adquirem ao olhar de Graciliano, em sua fase infantil ou
adulta, é fundamental para que retomemos a discussão sobre a configuração de “personagem”.
Por estar muitas vezes diante do inédito do mundo, a criança aceita a irregularidade das
pessoas, acreditando que ela própria deveria criar uma regra nova para comportamentos
alterados, como vimos no capítulo anterior
151
. A aceitação infantil talvez favoreça um olhar
mais ficcional sobre as pessoas de Infância, pois o próprio narrador estabelece um sentido a
suas ações, algo que, como mostra Rosenfeld, é definidor das personagens, coerentes mesmo
em sua incoerência. Essa coerência característica dos personagens é rompida em Memórias do
Cárcere, pois como as ações humanas vistas na cadeia contrariam tudo o que ele conhecia, o
narrador se vê obrigado a interromper a narrativa para inserir seus comentários. Ele expande o
espaço textual dedicado àquelas pessoas, não através da narração de suas ações, mas da
inserção de seus próprios pensamentos e dúvidas, como vimos no questionamento feito a
respeito de capitão Lobo: “Se ele condenava as minhas ideias, sem conhecê-las direito, por
que me trazia aquele apoio incoerente?”
152
Ao marcar a sua voz no meio da ação, o narrador
quebra a linearidade narrativa para tentar encontrar uma coerência humana, que explique sua
atitude a ele mesmo.
Independente do caráter ficcional das pessoas analisadas, cada uma dela ajuda
Graciliano a viver em sua nova realidade, pois o fortalece enquanto sujeito, ainda que seja,
como no caso de Memórias do Cárcere, para deitar por terra suas convicções. Com suas
diferenças, as pessoas “desviantes” dos livros memorialistas mostram as possibilidades de
ação do ser humano além do círculo social, algo que vemos, por exemplo, no episódio “Um
cinturão”, segundo Garbuglio:
Desfazem-se deste modo qualquer base para entendimento, toda disposição de
tolerância. O círculo social se estreita, desaparecem as possibilidades de convívio
pacífico. O arbítrio se impõe e o distanciamento tende sempre a crescer, modelando os
comportamentos e determinando as estruturas. Conscientes ou não, em cada indivíduo
dessa sociedade existe uma ordem classificatória, infundida desde o berço, alimentada
dia-a-dia na articulação do autoritarismo, núcleo de todas as tensões. Em
consequência, as pessoas estão sempre separadas em camadas diferenciadas, que se
desconhecem e que não podem nem têm disposição para interferir no curso dos
151
I, 18: “Admirava-me, aceitava a lei nova, ingênuo, admitia que a natureza se houvesse modificado. Fechava o
doce parênteses – e isto me desorientava” (grifo nosso).
152
I, 112.
80
acontecimentos e sobretudo para alterar os suportes daquela ordem, que permanece e
se propaga sem nenhuma alternância.
153
As pessoas apresentadas por Garbuglio são legítimas representantes institucionais, que
fazem com que as normas atinjam os veis capilares das relações humanas. Mas isso não se
de forma tão simplista. O próprio Graciliano, quando entra na narrativa autobiográfica,
mostra a possibilidade de transgredir os limites impostos, nos quais o próprio ser humano é
revelado:
Graciliano Ramos, tanto na obra fictícia quanto na autobiográfica, é um negador
pertinaz dos valores da sociedade e das normas decorrentes. [...] Em MC, são a
iniquidade da ordem vigente, incompreensíveis, contraditória, algo fantásticas; e
apenas quando infringidas dão lugar a certo fermento de humanidade.
154
Ao transgredir as normas, Graciliano se aproxima das pessoas e essas, por sua vez,
revelam o inusitado através da diversidade humana. As instituições impõem limites, mas as
pessoas que se desviam de seus parâmetros (estejam dentro ou fora delas) são responsáveis
por permitir a descoberta da vida de forma mais complexa: elas não pedem uma concordância
passiva do outro, mas permitem que ele construa a sua própria opinião e se forme nesse
processo.
153
Garbuglio, José Carlos. “Graciliano Ramos: a tradição do isolamento” In: Garbuglio, J.C. et alii. Graciliano
Ramos. São Paulo: Ática, 1987, p. 368.
154
Candido, Antonio. Ficção e Confissão. São Paulo: Editora 34, 1999, p. 73.
81
PARTE II – HOMEM
82
1.
A
MEMÓRIA
A parte II, como já indicado na apresentação, tem o objetivo de mostrar como o sujeito
se apropria ativamente de sua realidade, em sua ação sobre o mundo. Nota-se que não uma
diferença sensível entre as duas partes do trabalho. Aqui apenas um maior enfoque no
homem (e sua ação), não no mundo (e sua influência).
A memória abre essa parte do trabalho porque ela é, especialmente no caso das obras
analisadas, representativa da ação do homem sobre o mundo. Consideramos a memória,
portanto, não como conservação do passado, mas como uma reconstrução dele:
Na maior parte das vezes, lembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir, repensar,
com imagens e idéias de hoje, as experiências do passado. A memória não é sonho, é
trabalho. Se assim é, deve-se duvidar da sobrevivência do passado, tal como foi’, e
que se daria no inconsciente de cada sujeito. A lembrança é uma imagem construída
pelos materiais que estão, agora, à nossa disposição, no conjunto de representações
que povoam nossa consciência atual.[...] O simples fato de lembrar o passado, no
presente, exclui a identidade entre as imagens de um e de outro, e propõe a sua
diferença em termos de ponto de vista.
155
Os livros autobiográficos não são portadores de verdades. São obras literárias, em que
a marca pessoal de Graciliano não apenas determinou a forma, mas também seu material, pois
não é possível nem desejado pelo autor transcrever o passado. As obras configuram sua
visão pessoal dos acontecimentos, a partir de um tempo presente que se distancia da vivência
narrada. A memória, além de atuar sobre o passado, repensando-o, age no tempo presente, na
tentativa de modificá-lo:
A rememoração também significa uma atenção precisa ao presente, em particular a
estas estranhas ressurgências do passado no presente, pois não se trata somente de não
se esquecer do passado, mas também de agir sobre o presente. A fidelidade ao
passado, não sendo um fim em si, visa à transformação do presente.
156
A memória tem relação com as duas chaves fundamentais do nosso trabalho, porque
revela os limites da retomada do passado e permite a descoberta de formas de agir sobre o
tempo. O verbo “descobrir”, entre suas acepções, aponta tanto para a tomada de
conhecimento, quanto para a revelação de algo oculto, encoberto. No caso dos livros
155
Bosi, Ecléa. Memória e Sociedade. São Paulo: Companhia das Letras: 1999, p 55 (grifo da autora).
156
Gagnebin, Jeanne Marie. Lembrar escrever esquecer. São Paulo: Editora 34, 2006, p. 55.
83
analisados, o processo de descoberta abarca esses dois sentidos: é conhecimento inédito e
revelação; é o contato com o novo vivido por Graciliano e o desvelamento operado pelo
narrador no momento da enunciação da história. A descoberta do novo ocorre através do olhar
do personagem, atento a situações ímpares, e das palavras do narrador, que retoma os
acontecimentos pelo fio da memória e os ordena em matéria literária. Como veremos a seguir,
esses processos ganham feições distintas nas duas obras.
1.1
A
MEMÓRIA FRAGMENTADA
Infância é iniciada com a tematização da memória, seus limites e possibilidades. Em
cena muito comentada da obra
157
, o menino apresenta sua recordação mais antiga, a imagem
detalhada de um vaso:
A primeira coisa que guardei na memória foi um vaso de louça vidrada, cheio de
pitombas, escondido atrás de uma porta. Ignoro onde o vi, quando o vi, e se uma parte
do caso remoto não desaguasse noutro posterior, julgá-lo-ia sonho. Talvez nem me
recorde bem do vaso: é possível que a imagem, brilhante e esguia, permaneça por eu a
ter comunicado a pessoas que a confirmaram. Assim, não conservo a lembrança de
uma alfaia esquisita, mas a reprodução dela, corroborada por indivíduos que lhe
fixaram o conteúdo e forma. De qualquer modo, a aparição deve ter sido real.
Inculcaram-me nesse tempo a noção de pitombas e as pitombas me serviam para
designar rodos os objetos esféricos. Depois me explicaram que a generalização era um
erro, e isto me perturbou.
158
Essa recordação não carrega em si um valor fundamental, mas desencadeia outros
episódios e reflexões, como a tentativa de compreensão do significado de “pitombas”. A
criança associa o termo a um objeto e, em seu incipiente contato com o mundo, crê na
possibilidade de relacionar sua forma ao nome, apagando outras especificidades do fruto.
Parágrafos depois, quando o menino se defronta com uma laranja, constata a falha no
processo de generalização. a construção de seu conhecimento e, de modo mais específico,
do reconhecimento da arbitrariedade, seja em algumas relações sociais, o que discutimos,
157
Comentaremos aqui as leituras feitas por Pellegrini e Bosi, respectivamente em: Pellegrini, Tânia. “Regiões,
margens e fronteiras: Milton Hatoum e Graciliano Ramos.” Disponível em http://www.abralic.org.br/
enc2007/anais/44/281. Acessado em 03 mar. 08; e Bosi, Ecléa. Memória e Sociedade. São Paulo: Companhia
das Letras: 1999.
158
I, 7.
84
seja nos signos linguísticos, como ocorre nesse caso. Nas duas situações, a criança se depara
com a complexidade do mundo, que a faz errar em suas suposições. Rompem-se as certezas
que orientavam as frágeis descobertas, de tal modo que mesmo na apreensão das palavras, é
possível notar um comportamento gradativamente mais crítico, permeado por
questionamentos nem sempre respondidos
159
ou por um conhecimento construído com base
na experiência
160
.
O processo de descoberta das palavras não representa o mero aprendizado de termos
novos, mas sim, uma ampliação do mundo, dos limites do conhecimento. O desenrolar do
texto revela, através do contato com as palavras, o amadurecimento infantil. Enquanto, por
exemplo, no episódio das “pitombas”, o garoto se frustrou por haver produzido generalizações
imperfeitas, no do “inferno”
161
seu inconformismo foi produzido pela via contrária: não
aceitava que alguém definisse um lugar de grande complexidade pelo adjetivo generalizante
“ruim”. Ele exigia saber os detalhes do lugar (“necessitava pormenores”
162
), porque apenas
uma descrição completa quebraria as marcas de incongruência reconhecidas no discurso do
outro. O menino anseia por uma apresentação verossímil baseada no testemunho de alguém
que conhecesse mais sobre o mundo que ele. Isso é semelhante ao que ocorre com os limites
da memória, que por vezes depende da informação de outras pessoas:
Graciliano Ramos faz ver como um objeto vai ganhando concretude à medida que
outras pessoas dele têm conhecimento e se comunicam com a criança, reafirmando
sua presença. Se assim não fosse, talvez nossas lembranças deslizassem para a ilusão
e nos deixassem em dúvida, o que é comum, quando nos dedicamos a pesquisar
lembranças remotas. Aqui, não a alfaia esquisita é confirmada em sua existência,
mas se abre para outros pontos de vista.
163
As pessoas são importantes para a rememoração, especialmente na fase inicial da vida
do menino. Mas destacamos que embora as informações sejam aceitas, seu conteúdo é
questionado. O início fragmentado da recordação das “pitombas”, “onde os fatos se articulam
aparentemente sem integração, como na memória”
164
, mostra que, a princípio, o menino
159
I, 9: “Grajau? Que seria grajau?”
160
I, 9: “... oculto atrás de um móvel a que a experiência deu o nome de porta.”
160
161
I, 72: “O inferno era um nome feio, que não devíamos pronunciar. Mas não era apenas isso. Exprimira um
lugar ruim, para onde as pessoas mal-educadas mandavam outras, em discussões. E num lugar existem casas,
árvores, açudes, igrejas, tanta coisa, tanta coisa que exigi uma descrição. Minha mãe condenou a exigência e quis
permanecer nas generalidades. Não me conformei.”
162
I, 73.
163
Bosi, Ecléa. Memória e Sociedade. São Paulo: Companhia das Letras: 1999, p 406 (grifos da autora).
164
Pellegrini, Tânia. “Regiões, margens e fronteiras: Milton Hatoum e Graciliano Ramos.” Disponível em
http://www.abralic.org.br/enc2007/anais/44/281. Acessado em 03 mar. 08.
85
apenas se esforça para registrar a realidade, para, em seguida, desenvolver sua compreensão
pessoal.
O questionamento que envolve o acesso à palavra (aceitação para posterior
questionamento) se estende à memória, também uma forma de comunicação: através dela
tem-se acesso à palavra ouvida e lida, posteriormente convertida em palavra escrita. No
processo de rememoração, portanto, volta-se aos fatos para problematizá-los. Em todo o
trecho apresentado, apenas a primeira frase é formada por uma afirmação assertiva; todas as
demais são marcadas por hesitação ou hipótese, indicando que a hesitação na recordação é
ainda maior quando ancorada em outras pessoas. A dúvida torna-se uma constante quando se
atrela à memória e à palavra. Mas nessa narrativa da descoberta do mundo, o limite da
memória será encarado como uma fronteira transponível - nuvens que obscurecem o céu, mas
permitem vê-lo.
Nuvens. A metáfora não é minha. Graciliano usa o termo para nomear o primeiro
capítulo de Infância. A única menção das “nuvens” se no início do segundo parágrafo:
“houve uma segunda aberta entre as nuvens espessas que me cobriam: percebi muitas caras,
palavras insensatas.”
165
. Não era possível saber, até aquele momento, que as nuvens
estiveram abertas uma primeira vez. Mas ao fazermos uma releitura a partir dessa frase,
notamos que embora as nuvens não estivessem textualmente enunciadas, estavam presentes
na construção narrativa: não encobriam o céu, mas a memória. Elas simbolizam o segundo
movimento de descoberta existente no texto: não aquela apresentada com clareza – dos passos
do menino em direção ao conhecimento do novo - mas uma descoberta mais nebulosa, que
consiste em retirar o que encobre a memória dos tempos infantis, processo indispensável para
atingir o passado e transformá-lo em matéria narrativa.
As nuvens ocultam um pedaço do céu, mas deixam transpassar a luz. De forma
semelhante, a barreira da memória faz com que cheguem à narrativa apenas as lembranças
que venceram os limites do tempo, permanecendo na mente do adulto após tantos anos. O
narrador sente a necessidade de situar tal limite, mas não irá restringir seu relato em função
disso. Por esta razão, ainda que algumas certezas infantis sejam atenuadas, Infância é
predominantemente construída pelas recordações fluidas do menino, pela dinamicidade de sua
grande descoberta – do mundo, das pessoas e de si mesmo.
O primeiro capítulo do livro é marcado pelo modo como o novo se revela aos olhos
inexperientes do menino. A presença de algumas expressões adverbiais (por exemplo: “de
165
I, 7.
86
repente”, “repentinamente”) indica o quanto as primeiras recordações se revelam com grande
rapidez, provocando o sentimento de surpresa no menino, que se assusta diante de algo que,
de um momento para o outro, surge diante de seus olhos. Além disso, as memórias
apresentam-se de modo fragmentário, unindo um painel irregular, composto por imagens que
surgem como momentos de despertar entre fases de adormecimento.
166
Em meio a tantas recordações fragmentadas, que constituem com a maior brevidade
possível um painel do primeiro contato do menino com o mundo, encontram-se as pessoas
importantes para ele. Os membros da família são inicialmente descritos como “manchas
paradas”. Em seguida, embora os pais ainda permanecessem “incógnitos”, o menino revê
alguns de seus “pedaços”: “rugas, olhos raivosos, bocas irritadas e sem lábios, mãos grossas e
calosas, finas e leves, transparentes.”
167
, sendo, como apontado anteriormente, pelas mãos,
que distingue a personalidade dos familiares:
Foi o medo que me orientou nos primeiros anos, pavor. Depois as mãos finas se
afastaram das grossas, lentamente se delinearam dois seres que me impuseram
obediência e respeito. Habituei-me a essas mãos, cheguei a gostar delas. Nunca as
finas me trataram bem, mas às vezes molhavam-se de lágrimas e os meus receios
esmoreciam. As grossas, muito rudes, abrandavam em certos momentos. O vozeirão
que as comandava perdia a aspereza, um riso cavernoso estrondava e os perigos
ocultos em todos os recantos fugiam, deixavam em sossego os viventes miúdos:
alguns cachorros, um casal de moleques, duas meninas e eu.
168
O processo de descoberta dos pais se inicia em uma nebulosidade completa, que
gradativamente revela partes de corpos pouco detalhados, formadores de uma unidade
indefinida, na qual não é possível desvincular o pai da mãe. É com a caracterização das mãos
que o menino distingue dois indivíduos, que o tratam de modos específicos. Em processo
metonímico
169
, as mãos revelam seus pais, que nelas está fundada aquela relação familiar.
O menino tem consciência de que uma pessoa (neste caso, representada pela voz) por trás
das ações das mãos, mas são elas que, de fato, materializam qualquer pensamento, tornando-o
perceptível para o menino.
166
Como se vê, por exemplo, em “a hibernação continuou” ou em outra cena na qual o garoto estava descendo
uma escada e afirma “adormeci, não cheguei a pisar no barro vermelho. Acordei numa espécie de cozinha.” I, 8.
167
I, 11.
168
I, 12.
169
Algo também notado por Pellegrini: “[...]a notação metonímica usada para representá-las, terrivelmente
expressiva, conota o ‘olhar oblíquo’, à margem, dos ‘viventes miúdos: alguns cachorros, um casal de moleques,
duas meninas e eu.’” In: Pellegrini, Tânia. “Regiões, margens e fronteiras: Milton Hatoum e Graciliano Ramos.”
Disponível em http://www.abralic.org.br/enc2007/anais/44/281. Acessado em 03 mar. 08.
87
O conhecimento fragmentado da criança é reconhecido pelo narrador de Infância,
capaz de complementar informações sobre pessoas, como se por exemplo na apresentação
de sua avó:
Minha avó, grave, ossuda, tinha protuberâncias na testa e bugalhos severos. Anos
depois contou-me desgostos íntimos: o marido, ciumento, afligira-a demais. me
inteirei de que ela havia sofrido e era boa, mas na época do ciúme e da tortura não
notei-lhe a bondade.
170
A descrição inicial da avó a apresenta de forma assustadora, quase demoníaca. Os
detalhes destacados pelo menino condizem com a imagem negativa que ele tinha da avó. Mas
o narrador, com conhecimento posterior mais profundo, interfere na narração, não para
modificar a descrição, mas para colocar novas informações. O olhar do menino é colocado ao
lado da visão do narrador, que reconhece o enigma onde a criança podia encontrar certezas
171
.
O narrador quebra a relação direta entre a “classificação” de uma pessoa e sua aparência. Ao
fazer isso, desestabiliza relações causais feitas pela criança e maior complexidade à
narrativa, mostrando a impossibilidade de compreender alguém apenas a partir de sua
imagem. Quando detém um conhecimento diferenciado, o narrador interfere sobre o olhar
infantil para revelar outros aspectos da realidade.
A busca do adulto pela precisão, embora reconhecida como algo impossível no
processo de descoberta do passado, não se apenas através da complementação da narrativa
com informações seguras. Graciliano mostra no livro seus embates quanto à legitimidade dos
fatos e suas escolhas. a marca do narrador / escritor, que discute seus hábitos de
composição na rememoração, seja quando tenta corrigir uma frase
172
, seja quando imagina um
ambiente:
Desse antigo verão que me alterou a vida restam ligeiros traços apenas. E nem deles
posso afirmar que efetivamente me recorde. O hábito me leva a criar um ambiente,
imaginar fatos a que atribuo realidade. Sem dúvida as árvores se despojaram e
enegrecera, o açude estancou, as porteiras dos currais se abriram, inúteis. É sempre
assim. Contudo ignoro se as plantas murchas e negras foram vistas nessa época ou em
170
I, 20.
171
Afirma Aguiar, Flávio. “Visões do inferno ou o retorno da aura”. In: O olhar. São Paulo: Companhia das
Letras, 1988, p. 318: “O olhar apreende a identidade daquilo que acabara de ver, de tudo o que vira, inclusive de
si mesmo, olhar. Uma visão revela o mundo enquanto portador de um segredo, que pode muito bem ser um
enigma, e não uma resposta. Uma visão nos e além do mundo do conhecimento, que admite o desconhecido;
ela emerge do mundo do saber, que admite o enigma, o limite, o silêncio.”
172
I, 15: “Outra emenda. O hábito de corrigir a língua falada instiga-me a consertar o primeiro verso:
Levante-se, Papa-hóstia.
Vacilo um minuto, buscando por dentro a forma exata da composição. Persuado-me enfim de que minha mãe
dizia:
Levante, seu Papa-hóstia.”
88
secas posteriores, e guardo na memória um ude cheio, coberto de aves brancas e de
flores. [...] Certas coisas existem por derivação e associação: repetem-se, impõem-se –
e, em letra de fôrma, tomam consistência, ganham raízes. Dificilmente pintaríamos
um verão nordestino em que os ramos não estivessem pretos e as cacimbas vazias.
Reunimos elementos considerados indispensáveis, jogamos com eles, e se
desprezamos alguns, o quadro parece incompleto.
O meu verão é incompleto. O que me deixou foi lembrança de importantes
modificações nas pessoas.
173
O menino guardou as mudanças nas pessoas, mas não fixou detalhes do espaço que
emoldurou os acontecimentos. Na recordação infantil, o verão tem um ude, aves e flores,
elementos que contrariam a imagem habitual daquela época do ano, com a vegetação
enegrecida e a falta de água. O adulto tem certeza (“sem dúvida”) que a seca marcava aquela
imagem, mas não o afirma em relação àquele verão específico. Sabe que alguns elementos
deveriam estar presentes na narrativa para completar o ambiente, dar-lhe certa coerência, mas
opta por deixá-lo incompleto. Não impõe a força da “letra de forma” e registra, novamente, o
olhar da criança ao lado da visão do adulto. As certezas infantis ficam registradas, mas elas
são problematizadas pelo narrador, que revela certas incoerências ou limitações.
1.2
A
MEMÓRIA DEFORMADA
Para deixar claras as limitações enfrentadas na escrita de Memórias do Cárcere,
Graciliano compõe o primeiro capítulo do livro, um recuo à narração dos acontecimentos, e
explica os motivos de seu silêncio inicial e da sua de escrever.
Como indicado em outro momento deste trabalho, é também nesse capítulo que o
autor discute os problemas de apresentar pessoas reais em sua narrativa. É, inclusive, por
causa delas que a memória ganha maior complexidade no livro. O homem expõe e aceita as
falhas da sua memória, julgando-as naturais para quem partilhou momentos complexos com
dezenas de pessoas, que podem ter compreensões muito distintas dos fatos por ele narrados:
Nesta reconstituição de fatos velhos, neste esmiuçamento, exponho o que notei, o que
julgo ter notado. Outros devem possuir lembranças diversas. Não as contesto, mas
173
I, 23
89
espero que não recusem as minhas: conjugam-se, completam-se e me dão hoje a
impressão de realidade. Formamos um grupo muito complexo, que se desagregou. De
repente nos surge a necessidade urgente de recompô-lo. Define-se o ambiente, as
figuras se delineiam vacilantes, ganham relevo, a ação começa. Com esforço
desesperado arrancamos de cenas confusas alguns fragmentos. Dúvidas terríveis nos
assaltam. De que modo reagiram os caracteres em determinadas circunstâncias? O ato
que nos ocorre nítido, irrecusável, terá sido realmente praticado? Não será
incongruência? Certo a vida é cheia de incongruências, mas estaremos seguros de não
nos havermos enganado?
174
Mesmo tendo consciência das limitações da rememoração, Graciliano escreve
Memórias do Cárcere por considerar a necessidade de testemunhar sobre a História e os
homens com os quais conviveu. Apesar da insistência para que escrevesse suas memórias, ele
demorou a assumir o projeto, enveredando antes por obras substancialmente diferentes das
anteriores à prisão, algo que discutiremos adiante. Como ele próprio afirma, esperava que
outros assumissem tal responsabilidade.
175
Quando a toma para si, mostra-se cheio de
dúvidas.
A “impressão de realidade” que Graciliano transmite ao longo do livro é
desestabilizada por suas incertezas, por exemplo quando questiona se algumas ações são
condizentes com as pessoas e as situações da narrativa. As incongruências da vida adquirem
outra dimensão no texto literário, pois ali elas são controladas por aquele que recorda e conta
a história. Enquanto na vida, todas as pessoas são responsáveis por suas “incongruências”, no
texto autobiográfico essa responsabilidade recai inteiramente sobre o narrador, que filtra as
ações coletivas e tenta apresentá-las nos limites da coerência do texto. Os questionamentos da
citação mostram a dificuldade de saber o que é incongruente e, portanto, o que desestabiliza a
linearidade da narrativa: as ações dos outros ou a rememoração do narrador. As dúvidas
recorrentes em Memórias do Cárcere, que revelam a incerteza quanto ao que foi visto, por
vezes, expõem a fragilidade do sujeito de forma mais direta:
No escotilhão estabelecera-se um pequeno comércio. Foi ali com certeza que achei
meio de renovar minha provisão de fósforos e cigarros. Não me recordo. Também não
sei como nos forneciam água. Lembro-me de que ela se achava à entrada, perto do
camarote do padeiro, mas esqueci completamente se estava em balde ou ancoreta, se
vinha de encanamento. Afasto a última suposição, estou quase certo de que não existia
nenhuma torneira. Esta lacuna me revela o desarranjo interno, pois a sede era grande,
estávamos sempre a beber.
176
174
MC, 36 e 37.
175
MC, 33: “... julgando a matéria superior às minhas forças, esperei que outros mais aptos se ocupassem dela.
Não vai aqui falsa modéstia, como adiante se verá”
176
MC, 150.
90
Assim como vimos em Infância, o levantamento de hipóteses para cobrir as
dúvidas da memória, mas o narrador, sem convicção do que ocorreu, faz sua escolha. O que
distingue esse momento de outros em que incerteza quanto aos fatos vividos é a
identificação que o sujeito faz entre a fragilidade da sua memória e a sua própria condição no
momento da narrativa. A falha não está apenas no narrador que deve se lembrar, mas no
próprio personagem que viveu no porão do navio. Não é só o distanciamento temporal do
narrador que dificulta a precisão, é a grande privação vivida pelo homem, que o leva a
concentra-se naquilo que lhe é vital. Por vezes, a necessidade de sobrevivência se sobrepõe à
de observação. Os cigarros e a água são tão fundamentais que o homem se deteve apenas no
objetivo da ação (fumar e beber), não em seu desenvolvimento. Algo distinto do que, por
exemplo, se em parágrafo anterior ao transcrito, em que ao falar da comida repugnante,
Graciliano consegue apresentar os detalhes de como era servida. Isso se porque ele não
considera a comida indispensável para sua sobrevivência, já que por sentir repulsa a ela, não
consegue se alimentar, tendo passado dias sem comer.
A citação mostra a oscilação entre a certeza e a dúvida, especialmente marcada no
início, quando ele afirma ter “certeza” sobre onde comprou cigarros e fósforos para, logo em
seguida, colocar “não me lembro”. Há aqui, portanto, a indicação de que o homem sabe o que
ocorreu, embora não se lembre. Isso é possível porque o narrador conhece além daquele
momento, podendo completar a narração com informações posteriores, tal como vimos em
Infância.
O “desarranjo interno” ocorrido na recordação da água e dos cigarros reaparece
quando Graciliano recebe o oferecimento de um lugar tranquilo para ficar. Nas palavras do
autor, a impossibilidade de recordar detalhes desse fato revela sua “perturbação”:
Não me lembro do oferecimento e isto revela minha perturbação. Nem consigo
reconstituir a figura do padeiro. Sei que era um homem baixo, moreno, de mangas
arregaçadas. O resto perdeu-se. O indivíduo que me livrou daquele inferno e me
facultou algumas horas de silêncio e repouso sumiu-se e poucos traços me deixou no
espírito. Esqueci as conversas que tive com ele. Provavelmente não houve conversa.
Algumas palavras apenas.
177
também aqui a oscilação entre dúvida e certeza, em que o narrador opta por
garantir o mínimo: a existência de palavras (quando não tem segurança quanto às conversas),
e de alguns traços físicos do padeiro (na impossibilidade de reconstituir toda sua figura). Por
envolver pessoas, há maior preocupação de Graciliano em reiterar a dificuldade de apresentar
177
MC, 169.
91
a cena com precisão. Ele apresenta os dados dos quais está seguro, mas indica que a ausência
de detalhamento não reflete pouca profundidade da outra pessoa, mas sim de sua fragilidade
individual: tanto na capacidade de recordação quanto na observação dos fatos, quando nisso
intervém a sua própria integridade física e mental.
Tanto nessa cena quanto na anterior, tem-se o oferecimento de algo que possibilita
estabilidade ao sujeito (matérias fundamentais para a sobrevivência do corpo e isolamento
para a tranquilidade do espírito). Diante de elementos que ajudam a sobrevivência, ele se
volta para si mesmo e não consegue observar os detalhes do que o cerca. Reconhecendo essa
limitação, o sujeito se preocupa em não ocultar as pessoas mesmo nos momentos de maior
centralidade individual. Tem-se, neste exemplo, indicada a postura de Graciliano na
observação dos fatos:
A testemunha é, neste caso, antes um observador arredio e perplexo que um intérprete
empenhado em dar uma explicação articulada dos valores cuja defesa levou aqueles
militantes à desgraça. É uma visada tópica, que se detém no horizonte mais próximo
possível da situação vivida e não se dispõe a ultrapassá-lo como se receasse dizer mais
do que sabe.
178
Graciliano é testemunha dos acontecimentos, mas por reconhecer a centralidade de seu
papel, não vai além do que consegue ver, pois sabe que mesmo o que foi efetivamente visto
está marcado por suas limitações. As dúvidas sobre seu próprio comportamento e memória
são ainda mais intensas quando se relacionam a outras pessoas. Incertezas quanto ao
comportamento alheio o assaltam não apenas no momento da escrita do livro, mas durante a
própria vivência na cadeia, porque, como discutido, o ambiente favorece as incongruências
características dos seres humanos.
um episódio em que Graciliano pede para que Sebastião Hora lhe pegue um prato
de comida, mas este se recusa. Há uma longa reflexão do autor sobre o fato de ter incomodado
o outro com seu pedido. Findo o almoço, no entanto, Hora o procura com a comida,
afirmando não ter recusado o favor:
Não tinha havido recusa. Assombrei-me, olhei-o esbugalhadamente. Não tinha
havido? Lembrava-me das palavras: - Não recebo prato de ninguém não. O
desconchavo inteiro vinha dali; arrependera-me da inconveniência: molestara-o sem
querer. Súbito a declaração estapafúrdia: não me dera aquela resposta. Examinei-me
por dentro. Parecia-me ter distinguido bem todas as sílabas. E reproduzi-as. Vascolejei
178
Bosi, Alfredo. “A escrita do testemunho em Memórias do Cárcere” In: Revista Estudos Avançados 23. São
Paulo: 1995, p. 310.
92
a memória, firmei-me na convicção. Apesar de rosnada, a negativa permanecia com
muita clareza. E o moço queria suprimi-la, anular o testemunho dos meus ouvidos.
179
A cena do pedido e da recusa é narrada com grande segurança. Mas é desestabilizada
quando o interlocutor apresenta uma visão contrária ao ocorrido. A fala de Sebastião Hora não
chega a instaurar a dúvida sobre o fato, pois teve menos espaço que toda a reflexão do autor,
mas consegue indicar a instabilidade da matéria de Memórias do Cárcere. As incertezas
mostram quanto Graciliano tenta esforça-se por ser fiel, dentro do possível, ao que ocorreu ali
dentro, como fica indicado na própria sequência desse episódio, que não é narrada
detalhadamente, porque o autor não conservou “na memória nenhuma daquelas frases
ásperas.”
O movimento que se vê na cena é próximo ao que ocorre ao longo de todo o livro (sem
a existência um interlocutor concreto): é o próprio Graciliano quem coloca em questão a real
existência de alguns fatos, indicando uma diferença em relação à Infância, na qual o narrador
adulto questiona as certezas da memória infantil. A própria distância temporal entre quem
vive e quem conta a história faz com que haja uma distinção bem marcada entre personagem e
narrador, em que por meio da memória, este se esforça por tornar a visão daquele mais
completa, “corrigindo” possíveis incoerências não percebidas pela criança. Há, no entanto, o
predomínio do olhar infantil, que facilmente se distingue das colocações do adulto. em
Memórias do Cárcere, as dúvidas da memória são muito mais recorrentes porque personagem
e narrador assumem seus papéis de forma crítica. Na condição de adultos, eles colocam
duplamente em questão o que está no texto - tanto pelo que foi vivido quanto pelo que é
rememorado:
Estaria possivelmente a equivocar-me atribuindo aos vizinhos cogitações, divagações,
produtos do meu desassossego. Percebera fadiga em diversos rostos, alguns traços
deformados e apressava-me a estender ao grupo mudanças individuais, emprestava-
lhes caráter epidêmico. E teria realmente observado aqueles sinais? A vista perdia a
segurança, efeito com certeza da luz escassa; difícil ler à noite; quando me soltassem,
ver-me-ia obrigado a usar óculos. Os objetos surgiam trêmulos. Sulcos, hiatos. Quem
sabia lá se isso não me levara a conclusões falsas?
180
Essa reflexão é decorrente do relato de Chermont sobre um assassinato. Graciliano
ouviu a narração com grande horror e, ao olhar para seus colegas, considera que todos
compartilhavam seus sentimentos. Depois, no entanto, questiona o quanto ele próprio não está
colocado na imagem que se cria do outro, o que, consequentemente, levaria a uma deturpação
179
MC, 349, 350.
180
MC, 336.
93
da realidade. Há, como vimos, a apresentação de uma memória que é, logo em seguida,
deformada pela dúvida, tornando textualmente evidente algo intrínseco ao processo de
rememoração.
Essa cena é representativa do modo como a memória opera de formas distintas nos
dois livros de Graciliano. Em Infância, a criança em diversos momentos apreende fragmentos
da realidade, indicados no uso recorrente da metonímia e nos capítulos independentes do
livro, e os une em algo coerente à sua vivência. Quando é reconhecida alguma “falha”, o
narrador intervém para problematizar a memória infantil. Sua intervenção interrompe a
unidade narrativa criada em torno do menino. A memória da criança é total dentro de sua
limitação e a adulta instaura dúvidas onde havia certezas. Memórias do Cárcere, em oposição
a essa fragmentação unificadora da criança, é marcada por um processo de desestabilização.
Personagem e narrador quase configuram uma identidade que se esforça para dotar de sentido
uma realidade que, ao contrariar o imaginável, torna-se inverossímil na narração. Os
questionamento e dúvidas marcam que o inverossímil é real. Através deles, o homem mostra
reconhecer a complexidade da realidade ao mesmo tempo em que admite ser incapaz de
rememorá-la e apresentá-la sem deformar ainda mais o que já é instável.
O narrador em Infância mais relevo aos acontecimentos da vida infantil, enquanto
em Memórias do Cárcere questiona quais são as intervenções individuais que ocultam as
pessoas e fatos. Nos dois casos, o narrador busca uma visão mais “real” do que se passou, mas
desempenha funções diferentes nas obras: na primeira, a sua distância em relação ao
personagem não cinde a narrativa, pois predomina o olhar do menino; na segunda, em que
essas duas figuras aparecem unidas, a narrativa mostra-se duplamente entrecortada pelas
dúvidas de ambos. A memória mostra que o menino apreende a parte, que se torna sua
totalidade, enquanto o homem esforça-se por apreender um todo que sabe ser instável - um
painel confuso onde ele próprio se perde. Tem-se indicadas, através da memória, concepções
bem distintas de sujeito, como veremos no próximo capítulo.
94
2.
O
EU
dissemos que não propriamente personagens nos livros de Graciliano Ramos e
sim pessoas reais, que não podem ser limitadas por um esforço narrativo. A complexidade das
pessoas de Infância e Memórias do Cárcere é indicativa de que o “eu” não é um elemento
profundamente centralizador nas obras, capaz de simplificar os outros para destacar-se. Caso
fosse assim, o autor poderia optar por uma escrita que anulasse as incoerências humanas a fim
de fixar as pessoas como personagens, dependentes de sua escrita. Há, pelo contrário, um
esforço de Graciliano de dar-lhes liberdade, filtrando-as, o nimo possível, pelo seu crivo
literário.
Além de discutir outras implicações que envolvem Graciliano em sua feição autoral e
narrativa, veremos como ele, enquanto pessoa na função de personagem, perde sua
singularidade, de modos distintos diante da experiência infantil ou prisional.
2.1
O
ESVAZIAMENTO DO SUJEITO
Em episódio de Memórias do Cárcere, Luís Lins de Barros conversou com Graciliano
e lhe passou a impressão “lastimosa” de um “imbecil”, por não conseguir articular sua
expressão. Pouco depois, os dois homens se reencontram, e Luís mostra-se completamente
diferente, o que faz Graciliano não entender seu fingimento anterior. Vejamos o diálogo entre
eles:
- Não é simulação, tornou baixinho o original personagem. Acredite, sou um imbecil.
- Para o diabo.
Afastei-me. Que precisão tinha o homem de induzir a gente em erro? [...] Aquele
engenho de ator, faculdade horrível de mascarar-se, despersonalizar-se, aterrava-me.
Procurei desanuviar-me na companhia de indivíduos regulares.
181
181
MCII, 467.
95
Luís é chamado de personagem, pois facilmente consegue apresentar um lado oposto
de sua personalidade, tendo a simplicidade de uma persona, não a complexidade humana. A
possibilidade de anular sua singularidade, transformando-se em alguém diferente do que havia
se mostrado, revela uma pessoa vazia, apenas uma máscara, que pode atuar de maneiras
diferentes de acordo com a situação. Aquele homem estava intencionalmente
despersonalizado, o que o diferenciava de tantos outros que sofriam a ação anuladora dos
agentes institucionais e do meio carcerário. Graciliano se afasta desse personagem e busca
“indivíduos regulares”, que tentavam manter sua individualidade apesar da ação contrária da
realidade.
A despersonalização é operada de diversas formas na cadeia: a prisão sem acusação
contra o indivíduo, mas contra o que ele supostamente representa; o alojamento coletivo, com
todos igualados em suas necessidades; a conduta automatizada, especialmente marcada pela
rotina militar. Os traços de despersonalização, que pontuam todo Memórias do Cárcere, se
mostram no início da narrativa:
Essa vaidade tola devia basear-se na suposição de que enxergariam em mim um
indivíduo, com certo mero de direitos. Logo ao chegar, notei que me
despersonalizavam. O oficial de dia recebera-me calado. E a sentinela estava ali
encostada ao fuzil, em mecânica chateação, como se não visse ninguém.
182
A despersonalização não exige condições específicas, pois está marcada em ações
cotidianas, atingindo prisioneiros e oficiais. Como indica Sérgio Adorno
183
, o encarceramento
impõe uma fragmentação na história dos sujeitos, de tal modo que as pessoas vivam ali uma
história paralela àquela que segue fora das grades.
A perda da personalidade, da individualidade, é o primeiro momento do processo de
anulação do sujeito. Logo, ele reconhece que seu esvaziamento não decorre apenas da
impossibilidade de distingui-lo de outras pessoas, mas também dos animais. Assim, o homem
se conta da animalização sofrida, que expõe toda sua degradação. Ao comparar-se, por
exemplo, a ratos e bois, Graciliano não recorre aos animais como nas fábulas, em que eles
assumem características humanas para facilitar a instauração de uma moral. Na via contrária,
a animalização revela o lado instintivo do homem, que, por vezes, leva à diluição da moral.
182
MC, 52.
183
Adorno, Sérgio. “A prisão sob a ótica de seus protagonistas.” In: Tempo Social. Revista de Sociologia da
USP. nº3. São Paulo: FFLCH, 1991, p. 26: “[...] separam-se o preso de seu correspondente prontuário de modo
que, no interior do estabelecimento penitenciário, sua história institucional passa a ser objeto de registros
diversos, mediante assentamentos colhidos em diferentes setores, fazendo com que se fragmente a experiência
e se divorciem a história real e a história oficial do sentenciado.” (grifo nosso).
96
Recorrendo à ficção de Graciliano, notamos que a animalização é algo constante.
Lembremos, por exemplo, que em São Bernardo, o narrador indica a existência de uma
gradação de humanidade entre as pessoas: “Essa gente faz o que se manda, mas não vai sem
pancada. E Marciano não é propriamente um homem.”
184
. Esta é a explicação dada por Paulo
Honório ao questionamento indignado de Madalena sobre por que havia agredido fisicamente
um funcionário. Já em uma das frases mais renomadas da literatura nacional: “Você é bicho,
Fabiano”, a consciência da animalização, que, no entanto, é encarada pelo personagem em
seu aspecto positivo, de resistência às adversidades: “Sim senhor, um bicho, capaz de vencer
dificuldades.”
185
Saindo da ficção e entrando nas memórias pessoais, em que o autor passa a reconhecer
a animalização em si mesmo, a reflexão torna-se mais profunda:
Enfim todos nos animalizávamos depressa. O rumor dos ventres à noite, a horrível
imundície, as cenas ignóbeis na latrina não nos faziam mossa. Rixas de quando em
quando, sem motivo aparente; soldados ébrios a desmandar-se em coações e injúrias.
Essas coisas a princípio me abalavam; tornaram-se depois quase naturais. E via-me
agora embrulhado num pugilato.
186
A cena mostra a estreita relação entre a degradação do ambiente e a anulação do
sujeito. A brutalidade se impõe como uma condição da prisão, exigindo até mesmo que
Graciliano participe do “pugilato”, ainda que não seja como combatente direto. A
animalização reconhecida nas outras pessoas estende-se ao próprio sujeito, que naturaliza
comportamentos animalescos
187
. Esta naturalização que cerca o olhar do narrador é
representada a seguir, quando Graciliano instaura um pequeno absurdo no seu cotidiano
carcerário para garantir uma breve fuga da animalização:
Depois de viver naquela miséria, sem alimentos, sem banho, encurralado como bicho,
sugado por mosquitos e piolhos, resguardando-me com trapos sujos de hemoptises,
ocupar-me assim de um prejuízo insignificante era absurdo. Ao entrar na Casa de
Detenção agarrara-me a um frasco de iodo quase vazio que me queriam tomar,
defendera-o com vigor, mostrando uma unha cicatrizada; conseguira salvá-lo e
jogara-o no lixo, pois não me servia para nada. Qual seria o objetivo dessa obstinação,
agora repetida? Julgo que meu intuito, embora indeciso, era reaver uma personalidade
que se diluíra em meio abjeto.
188
184
Ramos, Graciliano. São Bernardo. Rio de Janeiro: Record, 2002, p. 110.
185
Ramos, Graciliano. Vidas Secas. Rio de Janeiro: Record, 2002, p. 19.
186
MC, 420.
187
Em consonância com a citação anterior, outro momento em que Graciliano evidencia a naturalização do
absurdo. MC, 175: “Ia-me habituando àquela existência de bicho em furna; as desgraças, repetindo-se, deixam de
impressionar-nos, mudam-se em fatos normais.”
188
MC, 426.
97
A tentativa de reaver a personalidade faz com que o narrador discuta com os militares
a fim de manter um frasco de iodo para um tratamento não mais necessário. Graciliano Ramos
quer o direito de guardar algo inútil, sem ter apenas que acatar opiniões alheias. Tomando o
frasco de iodo como um indício da individualidade, concluiríamos que a personalidade pode
ser descartada em um lugar padronizado, onde homens se igualam a bichos. Assim, é
necessário um grande esforço para que os traços de singularidade sejam mantidos em um
ambiente de negação.
Na recorrente comparação entre boi e homem, a cadeia é entendida como um grande
curral. O boi é de vital importância na alimentação do homem, de modo que estabelecer uma
associação com ele é diferente, por exemplo, de relacionar o personagem Fabiano com o
cachorro, o cavalo e o macaco. Estes três animais possuem existências autônomas, enquanto o
boi é primordialmente criado em função de necessidades alheias. Dessa forma, ao indicar a
relação entre Fabiano e os animais, pretende-se mostrar o quanto eles se assemelham no
aspecto físico, o que coloca em xeque a condição humana do personagem; na associação
com o boi, a indicação de que os encarcerados se assemelham ao animal em seu
comportamento - aprisionados, vivem no limite do desejo do outro. A diferença na
animalização sofrida pelos personagens ficcionais e pelas pessoas reais fica evidente no
habitat dos animais eleitos para a comparação: o curral dos bois apenas fornece o necessário à
sobrevivência - espaço e comida reduzidos ao mínimo.
Desnecessário arrolar uma série de exemplos da intensa animalização e
despersonalização reconhecidas dentro da cadeia. A forte presença delas nas ações dos outros
e do próprio narrador indica o quanto a instituição desagrega o sujeito. Mesmo quando um
esforço para retirar as pessoas do anonimato, a ação institucional é movida apenas por
burocracia
189
.
Em Infância as instituições também agem no esvaziamento dos sujeitos, mas o menino
geralmente não reconhece como esse processo o afeta. De modo geral, a animalização e a
despersonalização se mostram como formas de marcar o lugar de pessoas ainda mais
marginalizadas que a própria criança. A genealogia do Moleque José, por exemplo, inicia-se
com a breve apresentação de “machos” e “fêmeas”, indicando o quanto os empregados negros
estavam afastados da condição de humanos. Podemos lembrar também de Mocinha, que,
189
Na primeira vez em que é fichado, por exemplo, Graciliano não pode afirmar-se ateu, pois o funcionário tinha
instruções para preencher todas as lacunas. MC, 192: “[...] três funcionários hábeis dispostos a caracterizar-nos,
arrumar-nos convenientemente no papel. Bem. Agora nos personalizavam. Tínhamos sido aglomeração confusa
de bichos anônimos e pequenos, aparentemente iguais, como ratos. Decidiam, em meia dúzia de quesitos,
diferenciar-nos. Trabalho sumário, poucas linhas para indivíduo.”
98
como mostrado anteriormente, era considerada uma hóspede permanente, não reconhecida em
sua individualidade pelas pessoas da família. Apenas quando foi cortejada por um dos jovens
mais importantes da cidade, Mocinha é “elevada à categoria de pessoa
190
, recebendo alguma
atenção de sua família que não desejava o relacionamento. Embora o menino não
identificasse em si mesmo o esvaziamento individual, ao mostrá-lo em seus semelhantes
191
,
indica que possivelmente ele próprio não seria visto como um sujeito pleno: a baixa
consideração no meio familiar e social fazia com que poucos o reconhecessem como alguém
digno de atenção, com quem se poderia conversar. Ele é, como dissemos, ao olhar de sua mãe,
um bezerro-encourado, que não recebia a atenção devida por ser menos que um animal: é um
animal intruso em outro habitat.
momentos em que o menino se coloca coletivamente entre animais (“Vivíamos ali
em promiscuidade, bichos e cristãos miúdos.”
192
) ou ainda identifica que outras pessoas não o
tratam como um igual, como na discussão com sua mãe sobre o fim do mundo, em que ela
“teimava em declarar-me um animal. Não conseguiu intimidar-me.”
193
Como fica evidente
nessa afirmação, a animalização é vivida pelo menino, mas não reconhecida por ele.
O fato de a criança geralmente não reconhecer o seu próprio esvaziamento está
marcado no modo como os animais são tratados no livro. Em Memórias do Cárcere, a
animalização faz-se presente através de metáfora, recurso que identifica animal e homem,
tornando mais evidente o esvaziamento da singularidade humana. em Infância, animais e
homens são normalmente relacionados por meio de comparação
194
, recurso indicativo da
necessidade imagética da criança, que entende complexas ações através da imagem dos
bichos. Há, no entanto, momentos em que a animalização é efetivamente reconhecida pelo
garoto:
Longo tempo ficava a observá-lo, como se procurasse manchas na roupa, ausência de
botões, e tinha uma horrível brandura felina, o bigode eriçava-se, a patinha curta
erguia-se de manso, a voz era um suave ronrom. A distância, poderíamos supor algum
discurso amável. De repente a maciez vagarosa miava:
- Descarado.
O pobre rato fingia-se impassível, escondia-se por detrás de um livro; perturbava-se
ao cabo de minutos, esmorecia, punha-se a tremer.
195
190
I, 151.
191
Como vimos, por exemplo, em relação ao Moleque José e Mocinha.
192
I, 161.
193
I, 69
194
Vejamos, por exemplo, I, 202: “Não vivia numa cadeia pequena, como papagaio amarrado na gaiola.” ou I,
195: “[...] escapulia-me como um rato, mas não conseguia livrar-me.”
195
I, 236.
99
Essa cena está inserida no capítulo “A criança infeliz”. O título nos faz pensar que o
próprio Graciliano seria o núcleo dessa penúltima parte do livro, no qual teríamos uma
espécie de conclusão sobre a sua formação infantil. Mas é outro menino, sequer nomeado, que
se revela nessas páginas. Essa criança era ignorada por todos na escola, sem qualquer motivo.
Apesar de seu esforço por integrar-se, todos (especialmente o diretor da instituição)
continuavam isolando-o e diminuindo-o. Na cena acima estão precisamente diretor e aluno,
aquele representado pelo gato, e este, pelo rato. A rivalidade que separa os animais é
representativa dessa relação humana. Vejamos que o menino é animalizado por consequência
do comportamento do diretor, apresentado textualmente como um bicho, tanto na
caracterização de seu corpo, quanto em suas ações. Ao ressaltar características felinas no
homem, Graciliano indica a complexa rede de animalização, em que um é tornado vítima
natural se o outro decide assumir a função de caçador.
Após essa cena, sabemos que Graciliano não seria o centro do capítulo, pois ele já não
podia mais considerar-se infeliz do modo que imaginava: A comparação revelou que me
tratavam com benevolência, Infeliz.”
196
O recurso da comparação permite que o garoto crie
parâmetros para seus julgamentos. Ao fazer isso, ele conhece o outro de forma mais profunda,
mas pouco a si mesmo. Algo distinto ocorre em Memórias do Cárcere, em que a
comparação é uma forma de descobrir-se. Isso se porque o menino ainda está descobrindo
o mundo, as relações de poder e a desigualdade. Em outro momento de Infância, a criança
nota como uma pessoa extremamente importante para ele está destituída de sua condição
humana, o que revela o seu valor como um mero objeto:
Mas envelhecia, encarquilhava-se na cozinha. Às vezes a coxa se desarticulava e a
infeliz torcia gemendo, os bugalhos doloridos fixos nas crianças, que mangavam das
caretas dela. Os amos se condoíam, levavam para a cama de varas a pequena máquina
desarranjada, tentavam desenferrujá-la e azeitá-la. Os ossos se juntavam, levantavam-
se, iam coxeando consertar as cercas do jardim, regar os craveiros e a losna, encher no
rio o pote, que voltava penso na rodilha, ameaçando cair, um penacho de folhas verdes
no gargalo.
Essa ruína vacilante e obstinada era um refúgio: defendia-nos dos perigos caseiros,
enrolava-nos na saia de chita, protegia-nos as orelhas e os cabelos com ternura
resmungona, esquisita expressão de maternidade agora.
197
Vitória era uma ex-escrava do avô de Graciliano Ramos. Sua vida retrata a
perversidade da escravidão brasileira, que mesmo após seu término condenou muitos negros a
196
I, 239.
197
I, 126.
100
permanecerem como serviçais. Ela fazia trabalhos pesados, sempre atendendo às ordens dos
patrões. Para Graciliano e as outras crianças, Vitória representava mais que uma empregada:
era um refúgio, como outras pessoas “desviantes”. De modo geral, no entanto, Vitória é
mostrada em suas funções produtivas, em uma quase identidade entre a mulher e o trabalho, o
que fica textualmente marcado na descrição mecanizada feita pelo autor. O corpo é reduzido a
uma máquina defeituosa, com peças desajustadas. Após sua morte, o menino constata: “Fez
muita falta, embora, não podendo ser vendida e com uma banda desconchavada,
representasse apenas valor estimativo.”
198
Como já vimos, a voz do narrador interfere na cena.
Aqui, ele ironicamente indica o esvaziamento de Vitória. Para mostra sua condição,
assemelha seu discurso ao dos poderosos, indicando que ela não era apenas um objeto
qualquer: uma máquina cujo valor ultrapassava seu uso, mas ainda assim, uma máquina.
O menino descobre as limitações impostas para que os homens revelem sua
humanidade, o que os reduz à condição de animais e objetos. Embora ele esteja por vezes
esvaziado em sua singularidade, não reconhece os efeitos disso nele próprio, pois considera as
marcas de animalização e despersonalização naturais em seu processo de formação ou, ao
menos, não tão intensas quanto nota nos outros. Conforme mencionado anteriormente, mesmo
quando é reificado por seu pai, considera que está apenas sendo tratado com a consideração
natural. Isso reforça como ele aceita passivamente o tratamento animalizado que recebia,
baseado no adestramento, na contenção dos instintos (“Tinham-me domado. Na civilização e
na fraqueza, ia para onde me impeliam.”
199
). O questionamento de sua condição de sujeito, e
consequentemente o seu fortalecimento, se dará através da palavra escrita. Antes dela, o
menino considera-se alguém pleno dentro de grande limitação.
2.2
A
DUALIDADE
Além de o sujeito se reconhecer cindido em sua relação com o meio externo, que, por
vezes, favorece o apagamento de traços humanos distintivos, ele pode viver uma dualidade
198
Ibidem.
199
I, 108. Essa afirmação já foi discutida com maior profundidade em outro momento.
101
em si mesmo, com ações e pensamentos divergentes. Assim como ocorreu no tópico anterior,
a cisão no sujeito se dá de forma mais intensa em Memórias do Cárcere:
Uma dualidade, talvez efeito da cadeia, principiava a assustar-me: a voz e os gestos a
divergir de sentimentos e idéias. dentro, uma confusão, borbulhar de água a ferver.
Por fora, um sossego involuntário, frieza, quase indiferença. A fala estranha me saía
da garganta seca.
200
Nessa cena, Graciliano cria imagens poderosas com o uso de termos aparentemente
comuns: sua agitação interior é comparada à fervura da água, processo no qual a passagem do
estado quido ao gasoso gera grande mobilidade das moléculas; a garganta, condutora física
do interior ao exterior, está seca, por efeito desse calor que sai de sua base para concretizar-se
em vapor - estado gasoso da água capaz de representar a frieza de suas ações, que sua
temperatura é mais baixa que na fervura iniciada dentro do corpo. Como produto dessa
mistura complexa, a “fala estranha”, cujo adjetivo a caracteriza como esquisita ou
estrangeira: nas duas situações, é algo não esperado da confusão interna do autor e que se
distancia excessivamente do emissor, passando a ser reconhecido como produto alheio. a
indicação, assim, de que o indivíduo não se encontra apenas segmentado em sua totalidade,
mas identificado em duas unidades distintas.
Graciliano revela um descompasso entre seu interior e exterior por efeito da prisão,
algo em grande parte decorrente da impossibilidade de compreender uma realidade sequer
anteriormente imaginada. A vivência na cadeia impõe uma inversão de valores, pois ele se
“ligava a fatos pouco mais ou menos ignorados, esquecia casos a que dera muita
importância.”
201
Os casos não são efetivamente esquecidos, mas misturados aos da nova
experiência, tornando, como afirma o narrador, impossível saber “o que estava dentro ou
fora”
202
dele. A dificuldade de entender transformações repentinas fica textualmente marcada
pelos diversos questionamentos e hipóteses colocados ao longo do livro. Apesar deles, no
entanto, a escrita de Graciliano, com seu detalhamento e linearidade, mostra o esforço de
atenuar a forte cisão sofrida pelo sujeito, que por não se compreender, por vezes identifica sua
dualidade com uma loucura:
Parecia-me observar o interior de outra pessoa. Julgo na verdade que estive doido.
Nessa loucura fria indivíduos e objetos diluíram-se, inconsistentes. E afinal apenas
200
MC, 127 (grifo nosso).
201
MC, 184.
202
MC, 184.
102
distingui um braço escuro, cabeludo, grosso, um negro bestial, de focinho dormente, a
coçar os escrotos.
203
A observação da realidade torna-se difusa quando o homem não se reconhece como
uma unidade. O espaço narrativo perde os contornos juntamente com a incompreensão do
próprio sujeito. Após sair de sua “loucura fria”, ele pode gradualmente compreender a
realidade, marcada na forma fragmentária de apresentação da pessoa, ao final reconhecida
como um ser animalizado. Em um meio de profunda animalização das pessoas, Graciliano
não apenas se sente destituído de sua humanidade, mas cindido em essência, o que o leva a
considerar-se louco. Sua loucura não o leva a um afastamento da realidade, pois ele ainda olha
para si mesmo e para os outros de modo “frio”, indicando que sua capacidade de análise o
fora anulada pelo calor dos acontecimentos.
vimos que a prisão, enquanto instituição, opera uma cisão no homem na medida em
que impõe uma separação de seus papéis sociais e uma fratura entre pensamento e ação. Algo
semelhante se no hospital, em que o indivíduo também se sente dividido: “supunha-me
dois, um são e outro doente, e desejava que o cirurgião me dividisse, aproveitasse o lado
esquerdo, bom, e enviasse o direito, corrompido, para o necrotério.”
204
Além das cisões
impostas pelos limites concretos das instituições, a rotina prisional de profunda exposição faz
com que o sujeito sinta-se cindido em sua essência: ao observar detidamente o outro, seja em
ações nobre ou rebaixadas, o homem já não sabe quem é:
Sei o que se passava no meu interior? Difícil sermos imparciais em casos desse
gênero; naturalmente propendemos a justificar-nos, e é o exame do procedimento
alheio que às vezes revela as nossas misérias íntimas, nos faz querer afastar-nos de
nós mesmos, desgostosos, nos incita à correção aparente. Na verdade, vigiando-nos
sem cessar, livrava-me de exibir sentimentos indignos. Afirmaria, porém, que eles não
existiam? Tudo dentro é confuso, ambíguo, contraditório, os atos nos
evidenciam, e surpreendemo-nos, quando menos esperamos, fazendo coisas e dizendo
palavras que nos horrorizam. De fato ainda não me assaltara o medo, faltava razão
para isto; vinha-me, porém, às vezes o receio de experimentá-lo. Sensação angustiosa
e absurda: medo de sentir medo. Aparentemente nada nos ameaça, estamos calmos;
súbito nos chega uma inquietação que nos domina, cresce e nos suores frios: - “Se
um perigo surgir, de que modo me comportarei? Reagirei como um sujeito decente ou
sucumbirei, trêmulo e acanalhado? ”
205
Graciliano fora chamado à sala de um capitão para que abrisse sua correspondência na
frente dele. O militar pede perdão por obrigá-lo a isso e diz estar cumprindo apenas uma
formalidade. Graciliano se incomoda por uma pessoa gentil ter que se ocupar de “exigências
203
MC,132.
204
MC, 355.
205
MC, 104, 105.
103
burocráticas desarrazoadas” e manifesta um desejo de que o homem tivesse lido a carta de sua
mulher e reconhecesse que ali não havia nada comprometedor. Esse pensamento, que o autor
considera uma “baixeza”, é levantado apenas como uma hipótese, afinal ele não conseguia
saber o que se passava em seu interior.
Um fato aparentemente simples desencadeia uma longa reflexão, em que Graciliano
revela a oposição entre seus sentimentos e ações. O episódio apenas serve de estopim para a
discussão de uma questão que reaparece ao longo do livro: quem é, de fato, aquele que narra e
vive a história? Como ele se comportaria se estivesse na posição de outras pessoas? Os
questionamentos mostram que o sujeito não apenas se reconhece dual, como necessita
conhecer seus limites, tentando compreender-se a partir da observação dos outros. A
dificuldade de reconhecer a própria singularidade em meio a tantos homens é textualmente
marcada, por exemplo, pela constante alternância no uso da primeira pessoa: ora no singular,
ora no plural.
A comparação com outras pessoas é fundamental para que o homem se descubra de
forma mais profunda em Memórias do Cárcere. Ademais, os comentários alheios são uma
forma de ele entender como seus sentimentos são manifestados, que, como vimos, não
consonância entre seu interior e exterior. O papel do outro na compreensão pessoal pode ser
ilustrado pelo episódio em que Graciliano é chamado de “candeeiro velho” por um carcereiro
que o vira uma única vez. Posteriormente os dois conversam, e o homem explica como havia
reconhecido o nervosismo:
- Não. O senhor fingia calma, falava, ria, pilheriava com os seus amigos. Notei a
agitação porque mexeu na valise mais de vinte vezes. Não achava lugar para ela.
Admirado, felicitei o astuto observador. Nenhuma consciência daqueles movimentos
houvera em mim. Julgava-me tranquilo explicando-me ao funcionário a respeito do
frasco de iodo. E o guarda me supusera à vontade, em casa, afeito à cadeia. Todos se
enganavam, só a criatura estigmatizada me via por dentro; o hábito de examinar
minúcias, em permanência longa na prisão, certamente lhe desenvolvera a
sagacidade.
206
A cena gira em torno de objetos simples: o carcereiro reconheceu a aflição de
Graciliano pela sua preocupação com a valise, e este julgava-se tranquilo ao explicar sobre o
uso do iodo.vimos que o frasco do iodo não é apenas um remédio, é índice de humanidade
do sujeito. O mesmo se com a valise. De fato, é notável a quantidade de vezes que esse
objeto é mencionado no livro, a ponto de quase se tornar um personagem passivo. Graciliano
206
MC , 204.
104
se preocupa em manter a valise sob seus olhos porque sabe que está sempre sujeito a furtos.
Apenas um olhar “treinado” foi capaz de notar algo além disso. quem viveu grande
limitação material e reconhecia a importância fundamental dos objetos vindos de fora da
cadeia pôde compreender a angústia oculta no interior de Graciliano. Primo Levi,
sobrevivente dos campos de concentração, discute a importância dos objetos, não apenas para
garantir a sobrevivência em um meio de privação, mas também para manter a integridade do
homem: “essas coisas fazem parte de nós, o algo como os órgãos de nosso corpo.”
207
Os
objetos têm um valor que os ultrapassa: são marcas do próprio sujeito, pois trazem consigo os
vestígios do tempo de liberdade.
As instituições não conhecem Graciliano, pois seu sistema apenas se preocupa com
ordenações burocráticas, nas quais seres humanos são fichados e animalizados, tornando-se
parte de uma massa uniforme. Seria difícil que os representantes institucionais notassem
(ainda que quisessem) sinais de transformação nos homens encarcerados, pois não viveram
experiências semelhantes. É por essa razão que o guarda da cadeia não conseguiu avaliar
Graciliano apenas pelo seu cuidado com os objetos. Além disso, a cena revela que o próprio
personagem não foi capaz de reconhecer suas fragilidades. Ao notar os limites da
compreensão de si mesmo, ele pode apurar seu olhar para a observação dos outros, a fim de
não registrá-los de forma deturpada.
A dualidade instabilidade/segurança vivida por Graciliano deixa marcas no texto de
Memórias do Cárcere. Ao viver os fatos, o personagem pode até sentir-se louco e incompleto,
mas quando os narra, esforça-se por apresentá-los na forma realista, que lhe oferece certa
liberdade desejada: não condiciona um mimetismo de uma coerência falseada, nem
desarticula ainda mais as incoerências de sua experiência. Em Infância, dá-se algo distinto
porque o menino pouco reconhece a inconstância em si mesmo e nos outros. Lembremos, por
exemplo, o já discutido episódio em que a criança tem dificuldade para entender a fragilidade
do poderoso pai, pois isso se opunha à forte imagem institucional daquele homem. O
reconhecimento de que os sujeitos não são seres constantes se em poucos momentos,
geralmente associados ao outro. Aos poucos, as pessoas deixam de ser encaradas apenas no
papel institucional que desempenham em relação ao menino e passam a ser vistas na sua
complexidade de relações sociais.
207
Em Levi, Primo É isto um homem? Rio de Janeiro: Rocco, 1988, p. 25, está indicado que a apropriação de
objetos pessoais é mais um dos indícios de anulação do sujeito
105
A professora d. Maria do Ó ensinava com repelões e berros. Mas sua personalidade
não se limitava à condição de professora, tanto que fora daquele espaço institucional ela
podia, inclusive, revelar uma máscara de contenção desconhecida pelas crianças:
Constrangida no espartilho, branqueada a pó-de-arroz, d. Maria do Ó fingia
humanizar-se fora: a voz amansava, a carne se reprimia, doméstica, os bugalhos
amarelentos se ocultavam sob as pálpebras roxas – e a fera metia as garras nos cabelos
das crianças, adulando.
208
A violência da professora não se limitava a castigos por falhas escolares, mas se
estendia a humilhações gratuitas, cuja vítima mais infeliz era Adelaide, prima de Graciliano.
D. Maria do Ó, no entanto, é capaz de mostrar duas faces distintas, como o menino em
uma ação simples: o que é agressivo para as crianças pode ser considerado um afago por
outros. É necessário apenas um distanciamento para que as “garras” não sejam notadas entre
os cabelos das crianças. Isso reforça o fato de que a chave para a compreensão da pessoa está
no olhar do observador. E, no caso do menino, apenas com o passar da narrativa ele consegue
se distanciar do que lhe concerne diretamente, observando as pessoas em sua diversidade de
ações.
Nota-se no livro um movimento gradativo de reconhecimento da complexidade das
pessoas. A criança nota que as ações delas são tão contraditórias que parecem ser produto de
um indivíduo bipartido, como indicado, por exemplo, no questionamento: “Qual dos dois era
o verdadeiro Chico Brabo?”
209
. O menino esforça-se por entender como um homem podia ser,
ao mesmo tempo, amável e feroz. No entanto, ele logo reconhece que a contradição estava
dentro da pessoa e que não seria possível harmonizar dois seres incompatíveis.
O processo de descoberta da complexidade das pessoas se estende à própria criança,
que aos poucos também reconhece não haver plena identidade entre suas ações e
pensamentos. A dualidade manifestada pelos outros, pouco entendida pela criança, é
percebida em seu interior, no qual atuam sentimentos contraditórios:
Mas os sustos esmoreceram, vieram receios diversos. Houve um transtorno, e isto se
operou sem que eu revelasse que alguma coisa se havia alterado dentro. Pouco a
pouco mudei. Arrojaram-me numa aventura, o começo de uma série de aventuras
funestas. Quando iam cicatrizando as lesões causadas pelo alfabeto, anunciaram-me o
desígnio perverso – e as minhas dores voltaram. De fato estavam apenas adormecidas,
a cicatrização fora na superfície, e às vezes a carne se contraía e rasgava, o interior se
208
I, 165.
209
I, 142.
106
revolvia, abalavam-me tormentos indeterminados, semelhantes aos que me produziam
as histórias de almas do outro mundo. Desânimo, covardia.
210
Essa é a reflexão do menino em um momento de transição de sua vida, que
precisamente marca a entrada no mundo público, onde é necessário assumir comportamentos
adequados ao convívio em comum. O garoto se mostra assustado porque seu pai,
repentinamente, passou a valorizá-lo. Tal mudança era indicativa de que novos momentos
difíceis viriam, reabrindo a dolorida ferida do início da alfabetização. A metáfora da
cicatrização é ilustrativa da dualidade vivida pelos sujeitos: o processo indica que não há uma
passagem brusca da ferida à pele reconstituída e, mesmo quando isso ocorre, sempre restará
uma marca. No caso do menino, ele vivencia diversos momentos de “cicatrização”, em que
alguns problemas não foram totalmente resolvidos apesar de terem sido superados para a
continuidade da existência. Esse processo marca uma mudança gradual no comportamento
infantil. Em outras palavras: o menino tem receios nem sempre manifestos, o que indica
também uma cisão em sua aparente unidade, pois apesar de ele demonstrar tranquilidade, há,
em seu interior, problemas sem resolução algo além das cicatrizes. Elas são, portanto, tal
como ocorre no reconhecimento de Odisseu
211
, mais do que marcas do passado: representam
um presente que se oculta por baixo da pele, uma identidade que ainda não é plenamente
conhecida.
A mudança gradativa que se opera no menino faz com que ele lide com sua frágil
dualidade e supere as dificuldades dela decorrentes. A ruptura na unidade infantil não é
marcada de forma tão conflitante como em Memórias do Cárcere. Durante a infância, como
dissemos, “choques” e “surpresas” são considerados parte do processo de formação da
criança. Diante da morte, no entanto, os questionamentos se impõem e colocam em xeque o
sentido da própria existência:
fora cantavam grilos, o vento zumbia nos ramos das laranjeiras e na cerca de pau-
a-pique, vaga-lumes e baratas começavam a manifestar-se, os moleques cochichavam.
Apenas. E dentro – um feixe de ossos. Apenas. A carne se eriçava, o sangue
badalava na artéria Isso tudo seria gasto pelos vermes. A imagem horrorosa se
obstinava. As imagens também seriam gastas pelos vermes. Então para que me fatigar,
rezar, ir à loja e à escola, receber castigo da mestra, escaldar os miolos na soma e na
diminuição? Para quê, se os miolos iam derreter-se, abandonar a caixa inútil?
212
210
I, 103.
211
Episódio discutido em Auerbach, Erich. “A cicatriz de Ulisses”. In: Mimesis. São Paulo: Perspectiva, 1998.
212
I, 174.
107
havíamos visto como Graciliano lidou com a morte pela primeira vez: após ver o
corpo queimado de uma menina, ele desejava o retorno para um ambiente que já não lhe tinha
mais sentido; os elementos idílicos foram esvaziados e o mundo se adaptou às novas
experiências do menino. Aqui, quando a morte é apresentada em seu ritual no capítulo Um
enterro”, as marcas da cisão entre a criança e o mundo. Os limites entre o exterior e o
interior das pessoas são delimitados pela palavra “apenas”, que estabelece uma fronteira entre
o “lá fora”, que comporta elementos da natureza, e o “ dentro”, que abriga apenas os
vestígios da negação da vida.
A morte, ao evidenciar a fragilidade do corpo, favorece uma reflexão sobre o sentido
da vida. O garoto questiona por que ele deveria suportar tantas dificuldades, em geral
fundadas no seio das instituições fundamentais da narrativa: família, escola e igreja. A
materialidade da morte leva-o momentaneamente a negar sua formação, revelando um
descompasso entre o desejo e a necessidade. Nas palavras de Campos: “A morte aparece
também como miséria, metaforizando a miséria daqueles viventes, a morte na materialidade
dos ossos, o aniquilamento total da matéria e da palavra.” Para fugir disso, o desejo se
dirigiria para “a fuga, a evasão, a liberdade, a literatura'
213
, sendo esta fundamental para o
menino fortalecer-se frente a uma realidade adversa.
Questionamentos que indicam a cisão do sujeito se dão pontualmente nessa narrativa e
são menos profundos, opondo-se à dinâmica de Memórias do Cárcere, inteiramente permeada
por dúvidas. Em Infância, o foco está na vida, nas ações que levam à formação de um novo
sujeito. A criança constrói seus referenciais ao viver, gradativamente assimilando eventuais
contradições de fatos e pessoas. As pessoas fazem sentido dentro do mundo infantil:
inicialmente entendidas a partir de partes do corpo, em processo metonímico, são depois
vistas de forma mais complexa, em suas contradições. um processo gradual de
reconhecimento do mundo, de tal forma que o diferente é construído como parte de si.
Embora a criança tenha pouca vivência no mundo, ela consegue configurar uma pequena
totalidade, poucas vezes abalada.
o homem adulto tem o questionamento na base de sua experiência carcerária. Ele
olha para as outras pessoas na ânsia de entender a si mesmo e, ao reconhecer comportamentos
tão diversos, desde a animalização profunda até uma humanização desconcertante tem
dúvidas constantes de como ele estaria, de fato, vivendo aquela situação. O absurdo
213
Campos, Maria do Carmo “Nas voltas da memória: a experiência de Infância” In: Cadernos ponto e vírgula 1.
Porto Alegre: Secretaria Municipal de Cultua, 1993, p. 51.
108
reconhecido nas pessoas e nos acontecimentos faz com que o homem se sinta cindido dentro
de seu próprio corpo.
2.3
A
AÇÃO DO SUJEITO
Logo no princípio de Memórias do Cárcere, Graciliano mostra seu desconforto em
utilizar o pronome “eu” e afirma empregá-lo apenas porque lhe facilita a narrativa:
Desgosta-me usar a primeira pessoa. Se se tratasse de ficção, bem: fala um sujeito
mais ou menos imaginário; fora isso é desagradável usar o pronomezinho irritante,
embora se façam malabarismos para evitá-lo.
214
De fato, o pronome é omitido sempre que não é determinante para a compreensão do
texto. Evita-se usar a primeira pessoa porque não se está diante de uma obra de ficção
215
e
porque o sujeito que narra a história não é, de forma alguma, imaginário. mediações que
cercam a figura do narrador, mas ele é, de qualquer modo, o representante textual de
Graciliano Ramos empírico. A ponderação acima, portanto, visa a garantir a individualidade
do homem que escreve e narra, ainda que ela tenha sido apagada naquele que viveu a
experiência carcerária. Já temos indicado aqui um dos eixos da discussão do próximo
capítulo: o fato de a escrita demonstrar uma vitória humana, contrariando toda a anulação do
sujeito operada pelas instituições.
Em Infância não se coloca qualquer limitação ao uso do eu”, ainda que fosse
precisamente no contexto desse livro que o termo poderia ser restringido, que, como se
sabe, esse pronome é uma das últimas palavras a ser dita pela criança, pela dificuldade de
expressar-se como sujeito
216
. Haveria uma justificativa, portanto, para que em Infância se
manifestasse o desgosto por utilizar a primeira pessoa, mas ela é usada com tranquilidade, o
que maior destaque para a observação feita acerca de seu uso em Memórias do Cárcere.
214
MC, 37.
215
A discussão sobre a ficcionalidade do texto será retomada no próximo capítulo. Lembremos, por ora, que o
próprio Graciliano esforça-se para mostrar que seu livro não é ficcional, contrariando, como indicado
anteriormente, a leitura de alguns críticos, que tomam o conceito de ficção de forma ampla.
216
O uso do “eu” pelas crianças é discutido em Dolto, Françoise “O aparecimento do eu gramatical na criança”.
In: Indivíduo e poder. Lisboa: Edições 70, 1987.
109
Além de ressaltar as mencionadas implicações de um gênero literário não ficcional, a
observação no primeiro capítulo do livro revela que Graciliano não se reconhece como sujeito
em um meio marcado pela coletividade. Apesar disso, sua obra revela um esforço contrário ao
da cadeia, ou seja, busca considerar todos os homens em sua individualidade, sem deturpá-la
através de seu ponto de vista pessoal. Para restituir a humanidade do grupo, é necessária uma
ocultação de si próprio, de suas limitações.
O incômodo com o uso do “eu” não é a única marca de apagamento do sujeito nesse
livro. Lembremos, por exemplo, o fato de seu nome nunca ser mencionado, tanto que ele é
chamado de Fulano”, índice amplamente genérico e impessoal. Poder-se-ia argumentar que
também em Infância não se tem o nome de Graciliano atribuído à sua função de personagem.
A diferença, entretanto, é que neste caso não uma cena em que o nome seja compulsório.
Não há marcação do vocativo, porque praticamente não há uso do imperativo. Aliás, é
interessante que se observe: a ausência do imperativo não indica a ausência de exigências em
relação ao menino, mas talvez o não reconhecimento dele como alguém capaz de ação. Pode-
se ainda pensar que a escassez desse modo verbal indica que Graciliano, revertendo a lógica
do imperativo no momento da narração, o transforma em discurso indireto, o qual deve,
necessariamente, passar pela sua mediação, enquanto narrador e autor. É curioso observar que
os únicos imperativos mantidos em discurso direto são os da professora que ele respeita, com
a qual, inclusive, ele trava um breve diálogo. Do restante, as ordens alheias transformadas em
discurso indireto indicam que, ao menos no momento da escrita e da rememoração, Graciliano
possui grande força. Teria-se, assim, uma forma de devolver às pessoas, através da palavra, a
descrença que elas depositavam no menino.
Embora os dois livros não tenham o nome de Graciliano Ramos identificando os
personagens, ele está presente na capa dos livros, o que, segundo Lejeune, é fundamental para
o estabelecimento do pacto autobiográfico:
É, portanto, em relação ao nome próprio que devem ser situados os problemas da
autobiografia. Nos textos impressos, a enunciação fica inteiramente a cargo de uma
pessoa que costuma colocar seu nome na capa do livro e na folha de rosto, acima ou
abaixo do título. Mas o lugar concedido a esse nome é capital: ele está ligado, por uma
convenção social, ao compromisso de responsabilidade de uma pessoa real, ou seja,
de uma pessoa cuja existência é atestada pelo registro em cartório e verificável.
217
Na capa dos livros há a indicação da autoria, na qual estariam os problemas da
autobiografia, pois é precisamente ali que o texto se liga a uma realidade extraliterária.
217
In: Noronha, Jovita Maria Gerheim (org.) O pacto autobiográfico: de Rousseau à Internet. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2008, p. 23.
110
Graciliano não hesita em assumir essa complexa posição, o que seria minimizado se ele, por
exemplo, optasse por um pseudônimo, já que especialmente no caso de Memórias do Cárcere,
seu depoimento traria repercussões políticas, tanto ao governo quanto à oposição. O uso do
pseudônimo não romperia o pacto autobiográfico, pois como mostra Lejeune, ele continua
indicando a existência de um autor, mas poderia, ao menos, permitir que o homem não se
expusesse pessoalmente. Ao contrário do que ocorre dentro do livro, Graciliano assume sua
posição de autor porque ali ele se sente completo. Após anos de reflexão sobre experiências
desumanizadoras, a escrita é um ato de fortalecimento do sujeito.
Há, nos livros de Graciliano Ramos, uma posição oscilante do “eu”, desde a
fragilidade do personagem à confiança do narrador. É importante observar que, como ocorre
com as outras pessoas dos livros, Graciliano não pode ser considerado propriamente um
personagem, pois sua complexidade humana também não se restringe aos limites da categoria
literária. Difere-se dos outros “desviantes” por não ser alvo de incompreensão externa e sim
de si próprio, algo que embora seja atenuado com o tempo, especialmente através da escrita
do livro, não é apagado. Ainda que a autobiografia configure uma oportunidade de repensar as
próprias atitudes, nem todas elas serão compreendidas, pois foram produzidas em um
momento muito específico, ao qual não se tem acesso irrestrito por meio da memória.
Narrador, autor e personagem - permeados por grande complexidade nos livros de
Graciliano não constituem propriamente a “relação de identidade”
218
indicada por Lejeune
como condição indispensável para um texto autobiográfico. No entanto, devemos lembrar que
tal exigência é atenuada em artigo posterior do crítico, em que ele reconhece que havia
estabelecido uma relação muito genérica, devido ao seu “ponto de vista essencialmente
linguístico e formal”
219
O canônico Pacto autobiográfico, de grande esforço de síntese,
revelou suas fissuras ao tentar abranger um objeto extremamente amplo e complexo. No
nosso caso, pela intenção e limites deste trabalho, optamos por restringir o foco de análise:
centramo-nos em discutir como o “eu” é revelado nas obras, sem deter-nos propriamente no
gênero dos livros.
Partindo da premissa de que os livros são autobiográficos
220
, possivelmente a forma
mais discutida dentre todas as que recorrem ao uso da primeira pessoa, encontramos um
debate no interior desse gênero, em que Gusdorf, por exemplo, afirma que “el género
218
Idem, p. 15.
219
Idem, p. 64.
220
Assumimos uma postura semelhante ao que se em Bastos, Hermenegildo. Memórias do rcere:
literatura e testemunho. Brasília: Editora da UnB, 1998, p. 55: “Utilizaremos o termo ‘autobiografia’ por
referência ao gênero. Mas procuraremos acompanhar o próprio texto nos seus movimentos, que ora se
encaminham numa direção, acentuando o aspecto confessional, ora outra, acentuando o aspecto memorialístico.”
111
autobiográfico está limitado em el tiempo y en el espacio”
221
, enquanto Paul de Man diz que
“los intentos de definir la autobiografía como género parecen venirse abajo entre preguntas
ociosas y sin respuesta.”
222
Após debater questões e limites ligados à autobiografia, seria
necessária uma extensa discussão, dificilmente conclusiva, sobre outros gêneros,
especialmente o testemunho, memorialismo, autoficção e romance autobiográfico.
Como Miranda, pensamos que os livros de Graciliano fazem “uso da ‘forma
autobiográfica’ sem deixar levar-se cegamente pelas ilusões que ela comporta.”
223
. Nesse
sentido, é necessário, acima de tudo, discutir o sujeito, central em textos pessoais escritos em
primeira pessoa:
Mais ainda: é na maneira pela qual cada texto autobiográfico busca colocar-se diante
da noção de indivíduo a ele inerente que reside a sua maior ou menor criatividade, o
endosso ou desmascaramento da ilusão autobiográfica. Por paradoxal que seja, textos
dessa natureza tornam-se mais criativos quando se contrapõem à aludida noção,
desconstruindo-a através de um processo incessante de renovação e transformação
levado a efeito por um eu inquiridor, não imobilizante.
224
Em Infância, o livro é profundamente permeado pelo olhar infantil. Embora haja
intervenções do narrador adulto, a criança, com sua curiosidade pela descoberta, marca o livro
com lirismo. O mundo se mostra como um espaço para o aprendizado, o que leva a uma
ampliação simultânea de ambos. Há, como mostramos, poucos momentos em que o sujeito e
o mundo colocam-se em lados opostos, pois mesmo quando se depara com barreiras à sua
ação, o menino as considera formadoras de sua infância.
Ao longo do livro, vê-se um processo de amadurecimento do menino, em que ele
passa a questionar o lugar social ocupado pelas pessoas, suas decisões e ações. Há indícios de
uma postura de resistência que, no entanto, não chega a tomar contornos precisos nos limites
do livro, que encerra precisamente quando a criança entra na adolescência. Em seu processo
de formação, o menino muitas vezes compara-se a outras pessoas: é uma forma de ampliar
sua compreensão de si mesmo e do mundo. De modo geral, ao observar seres mal-tratados
(como Adelaide e a criança infeliz), ele considera o quanto a realidade podia ser mais dura do
que já era. Desse modo, a observação dos outros fortalece o seu eu. Na comparação com eles,
221
Gusdorf, Georg. “Condiciones y límites de la autobiografía” In: LOUREIRO, Ángel G et alli. Suplementos
Anthropos – la autobiografía y sus problemas teóricos: estudios e investigación documental. Monografías
temáticas nº 29. Barcelona: Editorial Anthropos, 1991, p. 9.
222
Man, Paul de. “La autobiografía como desfiguración” In: LOUREIRO, Ángel G et alli. Suplementos
Anthropos – la autobiografía y sus problemas teóricos: estudios e investigación documental. Monografías
temáticas nº 29. Barcelona: Editorial Anthropos, 1991, p. 113.
223
Miranda, Wander Melo. Corpos Escritos. São Paulo: Edusp, 1992, p. 41.
224
Idem, p. 26.
112
o menino não se sente tão fragmentado, fazendo com que se reconheça como um sujeito
dentro de limites estreitos. Há, no entanto, algumas observações que revelam o mundo como
uma antinomia, não como uma realidade na qual está integrado. O mencionado episódio de
Venta-Romba é ilustrativo desse sentimento, tendo, inclusive, influenciado o adulto
Graciliano, ao contribuir para sua desconfiança em relação à autoridade. Trata-se de um dos
poucos momentos em que o contato com o outro desarticula a formação do sujeito.
Enquanto Infância traz poucos episódios em que o menino se sente minado em seus
limites, em Memórias do Cárcere eles são recorrentes. Neste livro, o outro é constantemente
encarado como uma possibilidade de aprofundar o conhecimento sobre si mesmo. As pessoas,
portanto, não apenas revelam novos aspectos da realidade, mas também apontam a fragilidade
do próprio Graciliano. No primeiro livro, a observação das pessoas permite que o menino não
se reconheça tão infeliz, o que lhe a sensação de relativa completude; já na segunda obra,
exemplos superiores ou inferiores sempre apontam um esvaziamento do sujeito, seja porque o
levam a questionar a sua própria ação
225
, seja porque fazem com que veja em si mesmo as
marcas de anulação da singularidade humana
226
. Notamos, de modo geral, que todo
comportamento distinto não é encarado apenas como uma forma de conhecer algo novo, mas
de considerá-lo como parte de sua própria subjetividade: “Essas descobertas de caracteres
estranhos me levam a comparações muito penosas: analiso-me e sofro
227
Além de levar a constantes questionamentos sobre o interior de si mesmo, a
observação de outras pessoas permite que Graciliano reconheça-se externamente, pois ele se
identifica na imagem dos outros, que também viveram fisicamente os efeitos da experiência
carcerária. Os presos são espelhos que revelam e problematizam o personagem. Embora
cercado por essas pessoas refletoras, Graciliano se surpreende diante de uma imagem real de
si mesmo:
Desembocamos numa espécie de antecâmara; vi na parede um espelho, avizinhei-me
dele. Não contive a exclamação de espanto:
- Que vagabundo monstruoso!
225
MCII, 414: “É estranho um indivíduo perceber que não tem meio de ser digno. Mas relutava em convencer-
me disto, não via a exigência de comportamentos diversos em condições diversas. Com efeito, dentro os
melindres de consciência embotoam-se, alteram-se os valores morais e o nosso dever principal é existir. Por
isso os atos de solidariedade avultam em demasia, não os esquecemos.”
226
MC, 345: “Observadas nos outros, certas mudanças me assustavam; depois descobria em mim mesmo sinais
de anormalidade.”
227
MC, 58.
113
Estava medonho. Magro, barbudo, covas no rosto cheio de pregas, os olhos duros
encovados. Demorei-me um pouco diante do espelho. Não podia ver-me na Colônia,
de nenhum modo avaliava os estragos, a medonha devastação.
- Que vagabundo monstruoso!
228
Gusdorf discute o impacto do espelho sobre as pessoas, considerando angustiante e
complexo o encontro do homem com sua imagem, pois “la imagen es um otro yo-mismo, um
doble de mi ser, pero s fragil y vulnerable, revestido de um carácter sagrado que lo hace a
la vez fascinante y terrible.”
229
O susto de Graciliano indica que ele tinha uma imagem
distinta de si, provavelmente retentora de traços de sua aparência em liberdade. A mirada no
espelho revela uma degradada aparência, marcada pelas experiências negativas da cadeia.
Assim, embora conhecesse os efeitos da prisão sobre os outros, Graciliano não imaginava
como se mostrava em seu rosto uma experiência que reduzira sua singularidade a um número,
que o limitava a um registro burocrático e que controlava seu corpo, inclusive da maneira
mais elementar através da alimentação. Graciliano, que se assustava com a aparência dos
outros presos, pôde, através do espelho - essa “prótese” neutra -, ver melhor o mundo e saber
como os outros o viam
230
. O espelho consegue a objetividade impossível à escrita e à
memória, pois ele “não ‘traduz’. Registra aquilo que o atinge da forma como o atinge. Ele diz
a verdade de modo desumano [...]. O cérebro interpreta os dados fornecidos pela retina, o
espelho não interpreta os objetos.”
231
É difícil ter consciência de como uma experiência, enquanto é vivida, marca o sujeito,
tanto que, como discutido antes, Graciliano se assusta com o comentário negativo de um
preso sobre ele e, apenas posteriormente, reconhece o acerto de seu astuto observador”. A
dificuldade de reconhecer-se está marcada na autobiografia, a qual Gusdorf chama de “el
espejo en que la persona refleja su propia imagen”. O distanciamento que narrador e autor
tomam em relação ao personagem Graciliano permite que sua experiência seja vista de forma
mais profunda. Tal distanciamento não é igualmente possível em relação às outras pessoas de
Memórias do Cárcere, pois mesmo o afastamento temporal em relação a elas não permitiu
que Graciliano entendesse o sentido de suas ações, permanecendo ainda limitado ao que
228
MCII, 456.
229
Gusdorf, Georg. “Condiciones y límites de la autobiografía” In: LOUREIRO, Ángel G et alli. Suplementos
Anthropos – la autobiografía y sus problemas teóricos: estudios e investigación documental. Monografías
temáticas nº 29. Barcelona: Editorial Anthropos, 1991, p. 11.
230
Eco, Umberto. Sobre os espelhos” In: Sobre os espelhos e outros ensaios. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1989, p. 18: “A magia dos espelhos consiste no fato de que sua extensividade-intrusividade não somente nos
permite olhar melhor o mundo ma também ver-nos como nos vêem os outros: trata-se de uma experiência única,
e a espécie humana não conhece outras semelhantes.”
231
Idem, p. 17.
114
apreendeu durante o período do cárcere. Eis a razão por que apesar de estarem textualmente
restritas como personagens, as pessoas ganham a possibilidade de serem incompreendidas por
um observador externo a elas - ou o próprio Graciliano ou os leitores em geral.
232
O modo como Graciliano vive suas experiências e concebe a si mesmo é muito
distinto em Memórias do Cárcere e Infância. A busca por uma identidade, que caracteriza
textos em que autor e personagem estão unidos sob um mesmo nome próprio, é um processo
que se no interior dos livros, durante a vivência dos fatos
233
. Dando continuidade a essa
discussão, veremos no próximo capítulo como o processo de formação do sujeito – de
descoberta e formação da sua identidade - está profundamente marcado pela relação com a
palavra, não apenas de composição das memórias (que atinge o homem em seu papel autoral),
mas de práticas de leitura e escrita vividas por ele.
232
Tal comentário estende-se à Infância.
233
Afirma Bastos: “Projetando-se como personagem, o autor cria um duplo de si mesmo, desdobra-se em herói.
O desdobramento é um ato de diferenciação. Isso posto, procura recompor a identidade, embora ela pareça
irremediavelmente perdida. A diferenciação é condição para a busca da identidade, é o caminho para a
autoconsciência. É a partir dela que a identidade se torna um projeto. É o outro que torna o eu possível. Embora
sejam o mesmo ser, unidos inclusive pelo uso do pronome de primeira pessoa, autor e personagem separam-se
assinalando uma distância de voz e de ponto de vista. Eles não podem ocupar o mesmo lugar no espaço, muito
menos no tempo. A busca da identidade entretanto continua. Narra-se, então, um processo de identificação que
não se completa, mas avança, não retilineamente e sim perfazendo um círculo ou espiral.” In: Bastos,
Hermenegildo. Memórias do Cárcere: literatura e testemunho. Brasília: Editora da UnB, 1998, p. 18.
115
3.
A
PALAVRA
Nos dois livros analisados, é possível notar como a interação com as pessoas permite a
Graciliano, quando criança ou adulto, marcar sua singularidade em um meio de profunda
desumanização e animalização. Como indicado em outros momentos do trabalho, são poucas
as pessoas com as quais a criança consegue conversar, podendo tirar dúvidas e expressar suas
opiniões, pois, de modo geral, ela ocupa um lugar de passividade em relação ao outro. É
principalmente através da comunicação escrita, que tal condição se desfaz, pois a leitura e a
escrita exigem seu esforço individual, não apenas a disponibilidade de outrem.
Diferentemente de uma conversa, em que um outro deve ser convencido a participar, no texto
literário o outro oferece sua participação através do texto, que deve ser desvendado pelo
leitor. O empenho individual é necessário, por exemplo, para que se consiga entender uma
linguagem distanciada da realidade. No episódio “O Barão de Macaúbas”, o menino mostra
seu descontentamento com a “linguagem dos doutores”, que não é compreendida por não
condizer com os personagens simples. Inicialmente, a dificuldade com a linguagem
impossibilitava que os textos escolares permitissem a ampliação do mundo infantil, algo
recorrente nas conversas com outras pessoas: “O nosso mundo exíguo podia alargar-se um
pouco, enfeitar-se de sonhos e caraminholas.”
234
A palavra escrita oferece uma grande possibilidade de descoberta, para a qual é
necessário superar os rígidos limites da compreensão de um código específico. Desde o início,
Infância mostra o sofrimento diante da leitura, que exigia a memorização das letras, chamadas
de “maldades grandes e pequenas, impressas e manuscritas.”
235
. Em meio à impaciência de
alguns adultos e a textos escolares padronizados, o menino não entendia o poder da palavra,
que o pai havia anunciado no início de sua alfabetização
236
. Os livros eram problemas e não
promessas. Quando passam a despertar interesse no garoto, este ainda está em condição de
passividade, pois por considerar-se “uma besta”, não se acreditava capaz de ler algo sozinho.
Poucos haviam mostrado que ele não precisaria sempre depender dos outros: D. Maria o
havia incentivado a “andar só pelo caminho desconhecido” e sua prima Emília questionou por
234
I, 118.
235
I, 97.
236
I, 95: “Meu pai tentou avivar-me a curiosidade valorizando com energia as linhas mal impressas, falhadas,
antipáticas. Afirmou que as pessoas familiarizadas com elas dispunham de armas terríveis. Isto me pareceu
absurdo: os traços insignificantes não tinham feição perigosa de armas. Ouvi os louvores, incrédulo.”
116
que ele não poderia ler sem a ajuda de seu pai, que o havia acompanhado por poucos dias. Ao
falar dos astrônomos, Emília mostrou que se eles eram capazes de ler o céu, o menino
certamente poderia ler as palavras. Diante da argumentação da prima, o menino assumiu a
tarefa da leitura:
E tomei coragem, fui esconder-me no quintal, com os lobos, o homem, a mulher, os
pequenos, a tempestade na floresta, a cabana do lenhador. Reli as folhas
percorridas. E as partes que se esclareciam derramavam escassa luz sobre os pontos
obscuros. Personagens diminutas cresciam, vagarosamente me penetravam na
inteligência espessa. Vagarosamente.
237
Com a leitura, o menino não está mais sozinho. Os personagens do livro lhe fazem
companhia e revelam um mundo de aventuras diferente da sua realidade. A repetição do
advérbio reforça a dificuldade desse processo, em que os próprios personagens, não as
palavras, passam a fazer parte da interioridade infantil. A partir desse momento, Graciliano
encarará a palavra escrita como um código de acesso a novas experiências, não mais como
mera tarefa. É, inclusive, por essa razão que as leituras obrigatórias serão rejeitadas em favor
de outras mais prazerosas, escolhidas pelo menino. Tem-se, através da literatura, a afirmação
de um sujeito que anteriormente sequer conseguia manifestar suas vontades. Como veremos a
seguir, esse fortalecimento individual é um processo gradativo, pois em seus primeiros
contatos com a leitura, a criança ainda se sujeita a limites externos, que parecem lhe
aprisionar:
Enxergara a libertação adivinhando a prosa difícil do romance. O pensamento se
enganchava trôpego no enredo: as personagens se moviam lentas e vagas, pouco a
pouco se destacavam, não se distinguiam dos seres reais. E faziam-me esquecer o
código medonho que me atenazava. De repente as interdições alcançavam o mundo
misterioso onde me havia escondido. Impossível mexer-me, papagaio triste e mudo,
na gaiola. Quando principiava a imaginar espaços estirados, a lei vedava-me o sonho.
Graciliano havia encontrado o folheto O Menino da Mata e o seu Cão Piloto, que
tratava de um tema que lhe interessava, possivelmente porque oferecia uma possibilidade de
identificação: as crianças abandonadas.
238
Ao mostrar o texto à Emília, ela falou que seria um
pecado lê-lo porque havia sido escrito por um protestante, “sujeito ruim”. O menino viveu a
interdição de forma “extremamente dolorosa”, porque não lhe privara apenas da leitura, mas
de um refúgio contra o cotidiano.
237
I, 191.
238
I, 202: “Ai de mim, ai das crianças abandonas na escuridão. Chorei muito.”
117
A lentidão, reforçada na citação anterior pelo duplo uso adverbial, também está
presente aqui, indicando a dificuldade de compreender a ação dos personagens, que ganham
contornos de verdade, o apenas verossimilhança. Em oposição ao lento processo de criação
do mundo imaginário, a rápida (“de repente”) mudança imposta por sua realidade, que age
com a força da lei. Em consonância com a discutida relação entre o espaço e o sujeito em
Infância, tem-se a indicação de que o mundo infantil ganhou maior amplitude quando o
garoto pôde sonhar, imaginando e participando de situações inusitadas. Ao voltar-se contra a
leitura, a interdição limita a própria criança, que deixava sua incipiente condição de sujeito
para assemelhar-se a um animal: o papagaio. A comparação não é estabelecida com uma ave
qualquer, o que indicaria o quanto o menino se sentia limitado em suas ações e escolhas, mas
com o papagaio, aquele que reproduz falas alheias mecanicamente, algo que nem ocorre neste
caso, pois o animal engaiolado está mudo. Destituído da característica que o diferencia de
outras espécies, esse papagaio é representativo do igualmente infeliz Graciliano, que embora
já soubesse o poder da palavra, ainda não sabia como reivindicá-lo.
Diferentemente desse episódio de veto à leitura do folheto, em que o menino aceita ser
novamente fechado em sua gaiola, há um posterior, no qual ele manifesta esforço para sair do
seu cárcere. Após interessar-se pela leitura, o menino Graciliano vive uma limitação no seu
acesso aos livros. Sua prima lembra que Jerônimo Barreto possuía diversos exemplares.
Causando surpresa a si mesmo, o menino dirigiu-se ao homem para pedir-lhe um empréstimo
com um “arranco de energia”: “Foi uma inexplicável desaparição da timidez, quase a
desaparição de mim mesmo.”
239
A necessidade de ler fez com que o menino superasse suas
próprias limitações. Desaparece o Graciliano anterior ao contato com a leitura, completamente
dependente das outras pessoas, para ganhar espaço um sujeito mais forte, capaz de buscar
suas necessidades e desejos. Vejamos essa transformação no final do episódio:
A existência comum se distanciava e deformava; conhecidos e transeuntes ganhavam
caracteres das personagens do folhetim. Descurei as obrigações da escola e os deveres
que me impunham na loja. Algumas disciplinas, porém, me ajudavam a compreensão
do romance e tolerei-as – bocejei e cochilei buscando penetrá-las.
Em poucos meses li a biblioteca de Jerônimo Barreto. Mudei hábitos e linguagem.
Minha mãe notou as modificações com impaciência. E Jovino Xavier também se
impacientou, porque às vezes eu revelava progresso considerável, outras vezes
manifestava ignorância de selvagem. Os caixeiros do estabelecimento deixaram de
afligir-me e, pelos modos, entraram a considerar-me um indivíduo esquisito.
239
I, 212.
118
Minha mãe, Jovino Xavier e os caixeiros evaporavam-se. A única pessoa real e
próxima era Jerônimo Barreto, que me fornecia a provisão de sonhos, me falava na
poeira de Ajácio no trono de S. Luís, em Robespierre, em Marat.
240
Ao compararmos esse episódio com o anterior, podemos ver a mudança que a leitura
provocou no menino. O universo literário deixa de ser um plano paralelo para se tornar o
principal. Se antes os personagens se assemelhavam a pessoas reais, indicando o quanto elas
eram verdadeiras no pensamento do menino, agora são as pessoas reais que ganham traços de
personagens, o que indícios da capacidade de criação literária do menino Graciliano. A
leitura possibilita o contato com o novo e uma nova forma de observar o conhecido. Além
disso, é possível notar que o menino não mais se submete ao que os outros consideram
adequado: enquanto antes, por exemplo, aceitava com passividade o conselho que contrariava
seus desejos, agora já se opõe às tarefas escolares repetitivas.
Não as ordens alheias são encaradas com olhar mais crítico, as pessoas também
passam por esse crivo. No segundo parágrafo transcrito, o menino mostra como elas reagiram
às transformações que a leitura provocou nele. Quando o menino deixa de ser visto com
indiferença, sendo considerado um “indivíduo”, consegue reagir contra os outros, voltando
a eles a indiferença que recebeu por tanto tempo.
O reconhecimento das outras pessoas desenvolveu-se paralelamente à sua conquista de
uma vivência autônoma na imaginação. A formação como indivíduo possibilita que o mundo
real, repleto de sofrimentos, tenha seus problemas vividos sob uma perspectiva dialética
241
,
sem tanta resignação do menino. O conhecimento da palavra escrita não apenas possibilitou o
acesso à fantasia, mas à compreensão do mundo em limites mais amplos, pois como mostra
Postman: “Não devemos negligenciar o fato de que um povo que desenvolve a capacidade
de conceituar num nível de abstração mais alto do que o analfabeto.”
242
A aquisição da
palavra escrita representou, portanto, no caso de Graciliano Ramos, a possibilidade de encarar
os fatos próximos de modo mais amplo. Ele próprio torna-se objeto de análise, não estando
mais apenas condicionado a avaliações externas. A leitura favorece o fortalecimento do
sujeito ao criar instrumentos para uma compreensão mais profunda da realidade e de si
mesmo e também ao impor um afastamento do homem em relação ao seu meio social:
240
I, 216.
241
“Os valores que a sociedade preconiza, ou os que considera prejudiciais, estão presentes nas diversas
manifestações da ficção, da poesia e da ação dramática. A literatura confirma e nega, propõe e denuncia, apóia e
combate, fornecendo a possibilidade de vivermos dialeticamente os problemas.” In: Candido, Antonio. “O
direito à literatura” In: Vários Escritos. São Paulo: Duas Cidades, 1995, p. 243.
242
Postman, Neil. O desaparecimento da infância. São Paulo: Graphia, 1999, p. 53.
119
Na leitura, tanto o escritor como o leitor participam de uma espécie de conspiração
contra a presença e consciência social. A leitura é, em resumo, um ato anti-social.
Desta maneira, nos dois extremos do processo a produção e o consumo a
tipografia criou um ambiente psicológico dentro do qual os reclamos de
individualidade se tornaram irresistíveis. Isso não quer dizer que o individualismo foi
criado pela prensa tipográfica, e sim que o individualismo se tornou uma condição
psicológica normal e aceitável.
243
Em Infância, a leitura ofereceu uma nova realidade ao menino, que lhe ajudou a
formar sua personalidade
244
em um meio hostil. Ao centrar-se nas histórias e em si mesmo,
Graciliano saiu fortalecido do processo de descoberta de suas potencialidades e limitações.
em Memórias do Cárcere a leitura não tem o mesmo papel na consolidação do sujeito,
possivelmente porque na cadeia não estão dadas quaisquer condições para o individualismo.
Para o Graciliano preso, a leitura representa um esforço de afastar-se momentaneamente de
sua nova realidade
245
, algo difícil pelo convívio coletivo e pela necessidade de suprir suas
necessidades básicas. Para fugir a questionamentos sem resposta sobre sua nova realidade, o
personagem tenta se dedicar aos livros, algo impossível precisamente pela dinâmica da
cadeia:
Que diabo seria aquilo? Discutimos, procuramos achar qualquer falta nossa que
motivasse tal frieza, recusa a um cumprimento. Nada percebendo, entregamo-nos às
pequenas distrações que se iam tornando hábitos e suavizavam a monotonia das horas
longas. Embrenhei-me na leitura maquinal dos três volumes difíceis.
246
Após mencionar o início da leitura, Graciliano escreve dois parágrafos sobre as
encomendas trazidas pelo faxina, a falta de cigarro e as dificuldades para escrever. Esses dois
parágrafos são a marcação textual do modo como a rotina da cadeia fragiliza a relação com a
literatura, tanto que após essas interrupções, ela é abandonada: “Largando a literatura,
ocupava-me horas num curativo desastrado com a tesourinha”
247
Não se sabe exatamente se a
“literatura” refere-se à escrita ou à leitura. De qualquer forma, nota-se o quanto ela se
encontra fragmentada em um meio no qual a atenção é atraída para diversas direções.
243
Idem, p. 41.
244
[...] convém lembrar que ela [a literatura] não é uma experiência inofensiva, mas uma aventura que pode
causar problemas psíquicos e morais, como acontece com a própria vida, da qual é imagem e transfiguração. Isto
significa que ela tem papel formador da personalidade, mas não segundo as convenções; seria antes segundo a
força indiscriminada e poderosa da própria realidade.” In: Candido, Antonio. “O direito à literatura” In: Vários
Escritos. São Paulo: Duas Cidades, 1995, p. 243.
245
Exemplos disso pontuam o livro, como se vê, por exemplo em MC, 324: “Falávamos com muitas pausas.
Vali-me de uma e interrompi a conversa, fui lavar-me. Em seguida, me recolhi, em desassossego, buscando na
leitura e na escrita apagar o caso desagradável, receando minúcias, informações penosas. Vieram à noite.”
246
MC, 86.
247
Ibidem.
120
Em geral, há poucos momentos para que Graciliano se dedique à leitura e, quando isso
ocorre, sua ação está impregnada de necessidade, sem a fruição do menino. Encarcerado, ele
para ocupar o tempo ou para dar um sentido aos poucos objetos trazidos de sua casa. Os
livros se tornam um sinal das obrigações não-cumpridas do homem preso que, apesar de ter
disponibilidade de tempo, não consegue sequer dar conta do que está ao seu alcance. Ao
longo de Memórias do Cárcere, no entanto, notamos uma redução na importância dada aos
livros. Enquanto inicialmente Graciliano nomeava seus objetos como “a valise e os três
volumes”, depois, como discutido, apenas a valise permanece alvo de intenso cuidado, e os
livros já não são sequer nomeados.
Em Memórias do Cárcere, a escrita é alvo de maior atenção que a leitura, opondo-se
ao que ocorre em Infância. Embora neste livro seja possível notar o fortalecimento do senso
crítico juntamente com a formação do leitor e do escritor, este papel é menos desenvolvido na
narrativa. Apesar de serem poucas as experiências autorais, elas foram muito significativas
para o menino, pois nelas culmina todo seu processo de apropriação da palavra, no qual
assume uma posição ativa frente ao mundo. Ele, por exemplo, ajuda a fundar o periódico da
sua escola, apesar da desistência de outras pessoas: “A idéia, aceita com entusiasmo, ao cabo
de uma semana esfriou, teria morrido se eu e meu primo Cícero não a resguardássemos.
Aferramo-nos a ela e, vencendo embaraços e canseiras, tornamo-nos diretores do Dilúculo
[...]”
248
.
A menor ênfase na escrita se explica pelo fato de sua consolidação ocorrer fora do
período infantil abarcado no livro. Como se sabe, Graciliano é um dos autores brasileiros que
inicia sua carreira literária mais tardiamente, por considerar que a experiência e a palavra
exata estão na base do processo de escrita. Desnecessário mencionar a árdua revisão dos
textos literários, a qual parece nunca satisfazê-lo. Exemplo disso pode ser percebido em
Memórias do Cárcere, quando o autor faz críticas severas a seus livros anteriores e à
Angústia, que acabara de entregar para publicação.
A palavra escrita é permeada pela negatividade na autobiografia da maturidade: “De
nada me serviam os molambos de conhecimentos apanhados nos livros, talvez até isso me
impossibilitasse reparar na coisa próxima, visível, palpável.
249
A experiência carcerária é de
tal forma desagregadora que não leva apenas a um questionamento sobre o sentido da leitura
dentro da cadeia, mas também fora dela. O conhecimento adquirido com os livros era
incompatível com a nova realidade, chegando até a dificultar sua observação prioridade
248
I, 226.
249
MC, 252.
121
naquela vivência
250
. Em liberdade, Graciliano pensava que a prisão lhe possibilitaria maior
dedicação à escrita, que ele estaria afastado das obrigações familiares e profissionais. No
entanto, dentro da cadeia, reconhece que não era o tempo que limitava sua atividade, mas o
seu próprio esvaziamento, pois não tinha mais a tranquilidade necessária para a escrita, nem
via sentido em sua tarefa:
Haviam-me no Pavilhão dado conselhos, mostrado a conveniência de narrar a vida na
cadeia; a tarefa imposta me esfriava, em horas de aborrecimento vinha-me a tentação
de berrar que não tinha deveres, estava longe da terra e imbecilizado.
251
Em Memórias do Cárcere, a atividade da escrita está geralmente em declínio, mas não
chega a apagar-se porque o sujeito se agarra a ela para tentar dar um sentido a sua
experiência
252
, que pode ser efetivado apenas no futuro, quando o distanciamento dos fatos
permitiria que eles fossem analisados e transformados em matéria literária. A palavra, ainda
que negativa, mantém o vínculo do sujeito com seu passado e mostra que é possível oferecer
um produto daquela experiência no futuro. A palavra constrói o tecido temporal do homem
encarcerado, mesmo que, por vezes, ele próprio não consiga reconhecê-lo, desejando fugir da
atividade literária.
O olhar do escritor encarcerado não consegue se fechar diante de uma realidade com
tantas peculiaridades, que oferecem material tão vasto para quem considera a primazia da
experiência. Diante disso, a observação atenta dos acontecimentos torna-se um imperativo. Os
registros feitos por Graciliano são extraviados na cadeia, o que o leva a reflexões
contraditórias: ora lamenta-se por tê-los perdido
253
, ora sente um alívio porque eles o
obrigariam a ser fiel aos fatos
254
. A realidade observada pode não se adequar aos limites
literários:
250
MC, 70: “A idéia de escrever o livro voltava com insistência. Cada vez mais, porém, me convencia de que,
persistindo aquela enorme burrice, não escreveria coisa nenhuma. Mas observaria fatos e pessoas que me
despertavam curiosidade. [...] Sorria-me a perspectiva de olhar de perto revolucionários de verdade, que
ultimamente eram presos em magotes.”
251
MCII, 331.
252
MC, 59: “O desejo de fazer um livro na cadeia arrefecia; contudo apegava-me a ele, por não me ocorrer
outro.”
253
MCII, 430: “Não me seria possível reconstituir no futuro a massa informe, imponderável. Os papéis
abandonados entre os ferros da cama e a esteira iam fazer-me falta. Essa perda me inquietava [...]
254
MC, 36: “Quase me inclino a supor que foi bom privar-me desse material. Se ele existisse, ver-me-ia
propenso a consultá-lo a cada instante, mortificar-me-ia por dizer com rigor a hora exata de uma partida, quantas
demoradas tristezas se aqueciam sob o sol pálido [...]. Mas que significa isso? Essas coisas verdadeiras podem
não ser verossímeis. E se esmorecem, deixá-las no esquecimento: valiam pouco, pelo menos imagino que valiam
pouco.
122
A minha decisão de traçar um diário encolhia-se, bambeava, sem nenhum estímulo
fora ou dentro. Os fatos, repisados, banalizavam-se. Apenas quatro ou cinco
sobressaíam, mas, ao dar-lhes forma, vi-os reduzidos, insignificantes. Difícil enxertar
neles alguma circunstância que lhes desse relevo e brilho: saíam naturalmente
apagados, chatos – e irremediáveis. Prosa de noticiarista vagabundo.
255
Tem-se nitidamente a visão de um romancista sobre suas anotações. Retomando
brevemente a complexa discussão de gênero literário, notamos que Graciliano não optou pelo
diário íntimo porque este se caracteriza essencialmente pela “possibilidade maior de exatidão,
de precisão e fidelidade à experiência real.”
256
Graciliano deseja assumir uma distância em
relação ao fato vivido, em que ,como sujeito livre, mais pleno, possa avaliar e ordenar sua
experiência.
Ainda que não se preocupe com a reprodução exata do ocorrido, necessita ser fiel à
palavra dita dentro da cadeia, pois é, em função de sua precisão, que se organiza aquele
sistema carcerário. Falhas corriqueiras de comunicação transformam-se, em motivo para
desavenças profundas.
257
Assim, a escrita de Memórias do Cárcere, está profundamente
indicada na busca por ser fiel à palavra, forma adequada de apresentar um ambiente em que
uma imprecisão vocabular pode ser fatal.
O livro está marcado por essa dualidade: comprometimento com o passado, através da
precisão da palavra, e aposta no futuro, em que provas materiais poderiam ser dispensadas em
favor de um trabalho de recordação e articulação dos fatos. A palavra, apesar de dar algum
sentido à experiência carcerária de Graciliano, geralmente aponta o quanto ele está preso à
circularidade do tempo presente, no qual sequer poderia imaginar uma serventia para suas
anotações. um embate entre o personagem que entende, porque viveu, a necessidade da
exatidão da palavra no meio carcerário e o narrador/ autor que saiu da cadeia e deseja mostrar
sua vitória: livre, ele pode compreender melhor sua experiência e expressá-la com menor
precisão, deixando aparecer as marcas da memória e da construção propriamente literária.
255
MC, 97, 98.
256
Vejamos a colocação completa de Miranda: “Há uma possibilidade maior de exatidão, de precisão e
fidelidade à experiência real no diário, justamente pela menor separação temporal entre o evento e o seu registro,
o que é mais difícil de ser atingido pela autobiografia, em razão do caráter seletivo da memória, que modifica,
filtra e hierarquiza a experiência.” In: Miranda, Wander Melo. Corpos Escritos. São Paulo: Edusp, 1992, p. 34.
257
MC, 551: “Houve luta física na Sala da Capela, e isto me alarmou, pois nunca me viera a suposição de que
desavenças miúdas tomassem vulto, chegassem ao pugilato. Quais eram afinal os motivos dos rijos dissídios?
Palavras. As discórdias começavam por elas, embrulhavam-se na significação delas, aprofundavam-se,
alargavam-se. Por quê? Exatamente porque faltava razão para se alargarem, aprofundarem. Se houvesse razão,
os adversários conseguiriam provavelmente superá-la, julguei. Repeti a mim mesmo que a dificuldade estava em
darem à mesma coisa nomes diversos, darem a várias coisas um nome só. Impossível entenderem-se.”
123
3.1
A
FORMA DA ESCRITA
“Alguém certamente havia caluniado Josef K. pois uma manhã ele foi detido sem ter
feito mal algum.”
258
Essa é uma das frases mais impactantes da literatura mundial,
frequentemente retomada para exemplificar o “sem-sentido” que caracteriza o tema e a forma
do livro de Kafka
259
. O Processo é capaz de ilustrar algumas tendências literárias de sua
época, que negativamente representavam o alheamento entre homem e mundo, a parede que
os separa. As duas primeiras palavras da citação caracterizam o muro que limita o
personagem: é de uma concretude invisível, de uma invisibilidade concreta. O pronome,
classificado como indefinido, marca a vaguidade do fato, mas, por outro lado, o advérbio
concretiza essa ausência, tornado-a real, ainda que imperceptível. Dúvida e certeza caminham
juntas em um solo movediço, formador da base primordial do livro, contra a qual todos
personagens e leitores não podem lutar, apenas aceitar. A aceitação constante termina por
jogar até mesmo as frágeis certezas na vala do vazio absurdo.
Em um contexto mais ensolarado e tardio, Graciliano Ramos também inicia Memórias
do Cárcere com uma afirmação que, de certo modo, se assemelha à anteriormente discutida:
“No começo de 1936, funcionário na Instrução Pública de Alagoas, tive a notícia de que
misteriosos telefonemas, com veladas ameaças, me procuravam o endereço.”
260
Ao lado do
tempo e do sujeito definidos, encontra-se uma ameaça imprecisa. A intimidação ganha, aos
poucos, contornos mais nítidos, que não são suficientes para assustar, apenas para evidenciar
a arbitrariedade de um mundo que limita a ação humana, como notamos na série de
questionamentos indicada no texto:
Demais estaria eu certo de não haver cometido falta grave? Efetivamente não tinha
lembrança, mas ambicionara com fúria ver a desgraça do capitalismo [...]. Tinha o
direito de insurgir-me contra os depoimentos venenosos? De forma nenhuma. Não
nada mais precário que a justiça.
261
258
Kafka, Franz. O Processo. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 9.
259
Como discute Bischof, Betina. “Um improvável precursor: Tchecov e Kafka” In: Literatura e Sociedade n. 9.
São Paulo: USP/ FFLCH/ DTLLC, 2006, p. 115.
260
MC, 36.
261
MC, 46.
124
Ao contrário da frase de abertura de O Processo, a dúvida não está na atitude do outro,
ela se torna um questionamento acerca da ação do próprio personagem que reconhece a
impossibilidade de haver incoerência entre as ações do mundo e as regras pautadas por ele.
Para o personagem, o “erro” poderia estar nele próprio, possivelmente incapaz de
compreender “regras do jogo” que variam de acordo com o jogador sentado diante do
tabuleiro. A justiça é precária, e mais ainda é a possibilidade de compreender seus parâmetros.
Diante disso, resta a consternação, a certeza de que “de forma nenhuma” haveria o direito de
questionar o que ocorria. Não se questiona, aceita-se, embora muitas vezes não se saiba o quê,
nem o porquê.
Os sujeitos dos dois livros estão conformados, mas a forma como concretizam
esteticamente seus posicionamentos são radicalmente distintas. A obra de Kafka é alvo de
leituras diversificadas, que variam desde uma perspectiva teológico-psicanalítica até uma que
considera sua obra como uma representação do totalitarismo moderno que assolaria o
mundo
262
décadas após sua morte. Tamanha diversidade é explicada pela forma do livro,
constituída por uma rígida rede de leves e transparentes fios que envolve a todos: diálogos
fragmentados, imagens desorientadoras e escolhas imprevisíveis paradoxalmente atuam na
construção do vazio, representando a separação radical, ainda que invisível, entre o homem e
o mundo, entre suas ações e as consequências delas.
O indivíduo roda perdido em torno de um mesmo ponto, enquanto o mundo segue
normalmente seus movimentos, revelando sua indiferença a mais-um-homem. Em um tempo
e espaço subjetivos, o homem não se totaliza; ele é apenas o limite de seu corpo e se perde em
labirintos móveis. Adorno afirma que na obra de Kafka: “a pura subjetividade,
necessariamente alienada e transformada em coisa, é levada a uma objetividade que se
exprime através da própria alienação. A fronteira entre o humano e o mundo das coisas torna-
se tênue”
263
. A relação entre mundo e homem se na mesma dimensão de vazio que cerca
cada instância isoladamente, o que legitima e torna significativa a dimensão a-histórica da
obra de Kafka. O traço valorizado por Adorno é, na visão de Lukács, um aspecto negativo,
pois o deslocamento da subjetividade poderia indicar uma ausência de posicionamento do
autor, o que em última instância significaria “uma recusa previamente oposta à perspectiva
socialista.”
264
262
Gagnebin, Jeanne Marie. Lembrar escrever esquecer. São Paulo: Editora 34, 2006, p. 136-140.
263
Adorno, Theodor. “Anotações sobre Kafka” In: Prismas crítica cultural e sociedade. São Paulo: Ática,
2001, p. 260.
264
Lukács, Georg. “Franz Kafka ou Thomas Mann?” In: Realismo crítico hoje. Brasília: Coordenadora Editora
de Brasília, 1969, 101.
125
Dois críticos de peso discordam na base da compreensão de um autor fundamental
como Kafka. Em essência concordamos com a visão de Adorno sobre a totalidade
significativa existente no interior da obra de Kafka, capaz de revelar em seu desligamento da
objetividade os principais impasses do mundo moderno. Mas, por outro lado, embora
discordemos de alguns aspectos centrais da discussão de Lukács, consideramos importante
sua defesa do realismo e julgamos que ela seja extremamente pertinente para o contexto
moderno e contemporâneo. Por certo, isso não quer dizer que realizaremos um embate aos
moldes de “Kafka ou Mann”, ou, no nosso caso, Kafka ou Graciliano Ramos, mas apenas
buscaremos mostrar a força do realismo, evidente não apenas pela sua elevada recorrência,
mas principalmente, conforme acreditamos, pelo fato de permitir uma representação e uma
avaliação críticas de um mundo marcado pelo signo da negação.
Kafka sentia o desconforto de um mundo que gradativamente revelava sua hostilidade
e incoerência. Para representá-lo, concretiza esteticamente este incômodo em uma esfera
subjetiva. Passadas algumas décadas, os paradoxos do capitalismo se adensaram, de tal modo
que os sinais da descartabilidade do homem não se tornaram apenas impressões difusas, mas
evidências demasiado concretas, como comprovam as experiências totalitárias, que
encontraram seu expoente máximo nos campos de concentração. O homem que podia viver
sem sentido, mas que ainda reconhecia a possibilidade de reciclagem, logo se viu na condição
de detrito permanente
265
, excluído principalmente da esfera econômica, na qual se centralizam
paradoxos fundamentais da modernidade. Essa exclusão massiva está na ponta de um
processo de profundo apagamento do homem qua homem, animalizado em sua essência.
Em oposição ao “dever negativo”
266
que Kafka encarna em sua escrita, Graciliano,
especialmente em Memórias do Cárcere, representa o processo de animalização e a
desumanização através de uma outra forma, caracterizada por recorrentes descrições e por
uma linearidade bem definida, que o ajudam a não se perder no caminho do absurdo que o
cercava. Jogar luz na escuridão, buscando sentido e reconhecendo a realidade circundante era
seu modo de resistência. A sua extensa caracterização do ambiente opressor, destacando o
quanto ele é absurdo ao olhar do narrador, permite dar relevo à singularidade humana. Desse
modo, como veremos ao final do trabalho, é precisamente nas pessoas, capazes de ações
265
“A produção de ‘refugo humano’, ou, mais propriamente, de seres humanos refugados (ou ‘excessivos’ e
‘redundantes’, ou seja, os que não puderam ou não quiseram ser reconhecidos ou obter permissão para ficar) é
um produto inevitável da modernização, e um acompanhamento inseparável da modernidade. É um inescapável
efeito colateral da construção da ordem e do progresso econômico.” In: Bauman, Zygmunt. Vidas
desperdiçadas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005, p. 12
266
Afirma Adorno: “Fazer o negativo é o nosso dever: o positivo nos foi dado.” In: Adorno, Theodor.
“Anotações sobre Kafka” In: Prismas – crítica cultural e sociedade. São Paulo: Ática, 2001, p. 269.
126
surpreendentes, que Graciliano coloca algumas apostas esperançosas, algo inexistente em
Kafka, como reforça seu modo de trabalhar a linguagem.
267
Ao invés de representar apenas uma forma conservadora, a escrita preponderantemente
realista pode - como acreditamos ocorrer nos dois livros analisados - configurar uma outra
maneira de revelar as profundas contradições da modernidade
268
, a qual, em seu princípio,
demonstrava a mesma solidez de sua forma literária mais eminente: o romance que, como
mostra Watt
269
tem o realismo como uma de suas principais marcas. Diante disso, poderíamos
questionar: a escrita realista ainda poderia dar conta de uma realidade que não cumpriu as
promessas burguesas dos auspícios da modernidade? Colocado desta maneira, possivelmente
teríamos uma resposta negativa, mas o fato é que consideramos que a modernidade não
apenas cumpriu suas proposições iniciais, como perversamente as superou. Ao contrário de
ser exultada pelos seus ganhos, a modernidade tornou-se, por seu êxito, um produto
amplamente paradoxal, como exemplarmente demonstra sua multifacetada ambivalência
270
.
Diante de tal cenário, um novo questionamento sobre a pertinência do realismo possivelmente
ganharia uma resposta distinta: sim, a forma realista, cujo apogeu representou a necessidade
de dar contornos concretos a um mundo que envolvia sujeitos profundamente singularizados,
pode ser significativa em um contexto de frágeis singularidades e de uma realidade que se
configura num absurdo profundamente hostil. A escrita realista, nessa condição, não significa
um retrocesso a uma fase moderna que não mais voltará, mas uma maneira de reagir a essa
modernidade no modo que lhe é mais peculiar: através de uma negatividade que não recusa a
origem, mas que a supera ao fazer uma crítica assentada, precisamente, nos moldes formais de
sua ascensão. Assim, expõem-se as fissuras da modernidade, devolvendo a ela com um olhar
267
Seligmann-Silva, Márcio. O local da diferença: ensaios sobre memória, arte, literatura e tradução. São Paulo:
Editora 34, 2005, p. 75: “Não há esperança na literatura de Kafka, porque ela leva até às últimas consequências o
saber em torno dessa linguagem ‘decaída’, dessa linguagem que condena a priori, que exclui e vive dessa
exclusão. Na sua literatura, a linguagem é desconstruída enquanto máquina de conceituação e consolo diante da
‘Queda’. Daí a impossibilidade da metáfora e a sua literalização que leva os leitores ao ‘desespero’. O espetáculo
da catástrofe a que se resume a vida (moderna) é apresentado como se fosse um evento banal. Também a
temporalidade da narrativa é estancada: a literatura de Kafka reduz o mundo a imagens sem um necessário nexo
entre elas. Sua obra apresenta o ‘trauma’ do indivíduo alienado moderno que porta em si a marca do choque.”
268
Barbosa, João Alexandre. “A modernidade do romance” In: A leitura no intervalo: ensaios de crítica. São
Paulo: Iluminuras, 1990, p. 128: “Na verdade, sem neologismo, sem montagens abruptas, conservando-se nos
limites da gramática, Graciliano Ramos deixa sempre latejar o momento, en abime, da crise e da crítica. Por sua
prosa precisa, passa a consciência da instabilidade e da ignomínia que marca, em nível profundo, o moderno.”
269
Watt, Ian A Ascensão do Romance. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
270
“A ordem e a ambivalência são igualmente produtos da prática moderna; e nenhuma das duas tem nada
exceto a prática moderna a prática contínua, vigilante para sustentá-la. Ambas partilham da contingência e
falta de fundamento do ser, tipicamente modernas. A ambivalência é, provavelmente, a mais genuína
preocupação e cuidado da era moderna, uma vez que, ao contrário de outros inimigos derrotados e escravizados,
ela cresce em força a cada sucesso dos poderes modernos. Seu próprio fracasso é que a atividade ordenadora se
constrói como ambivalência.” In: Zygmunt. Modernidade e Ambivalência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999, p.
23.
127
negativo (não com a negação de sua forma) o realismo que tanto lhe deu sustentação. Essa
negatividade se assemelha ao modelo original para desmontá-lo, revelando, através da
semelhança, as fissuras que corroem sua base. Isso é possível pelas características que o
realismo assume na obra de Graciliano: é problemático, não orgânico como o de José Lins do
Rego.
271
Segundo Rojas, a autenticidade e recusa à mistificação do autor o levam a um
realismo que se defronta com seus próprios limites.
272
Nos limites do realismo, a modernidade
do texto de Graciliano se revela no questionamento à relação estreita entre literatura e
realidade.
273
Há, no entanto, diferenças no modo como traços do realismo permeiam as duas obras
analisadas de Graciliano Ramos. Pensemos, por exemplo, nas descrições, recorrentes na
caracterização da cadeia e menos marcadas, mas possivelmente mais intensas, na
configuração do ambiente da criança. Em Infância, as descrições não oferecem um painel
amplo e detalhado da realidade do menino, trazem, em geral, apenas seus elementos mais
significativos, recolhidos pelo crivo da subjetividade, que se faz presente pela mencionada
relação estreita entre o menino e o mundo. Frases como “o do turco marcava o limite do
mundo”
274
ou “o fim dele [pátio] tocava o céu”
275
representam o modo recorrente de delimitar
espaços fundamentais da vida infantil. Elas priorizam como o menino reconhecia a vastidão
do mundo, não como ele efetivamente era. Mesmo sem o lirismo reconhecido em Infância, a
subjetividade também está presente nas descrições de Memórias do Cárcere através do olhar
individual de Graciliano. Como reforça o narrador, não a possibilidade de uma mimese
pura da realidade, de modo que a subjetividade se revela nos textos, mesmo quando não está
explicitamente marcada. Além disso, nas duas situações, a marca do testemunho impede uma
“descrição ‘realista’ do ocorrido”
276
, ainda que a tônica geral dos livros revele um esforço
constante em atingir a objetividade, a precisão da imagem:
271
Segundo definição de Carpeaux apresentada por Bosi em: Bosi, Alfredo. “A escrita do testemunho em
Memórias do Cárcere” In: Revista Estudos Avançados 23. São Paulo: 1995, p. 313.
272
Rojas, Yenny Marlene Molina. O realismo crítico de Graciliano Ramos: uma leitura de Insônia (dissertação
de mestrado). São Paulo: FFLCH/USP, 1997, p. 11.
273
Barbosa, João Alexandre. “A modernidade do romance” In: A leitura no intervalo: ensaios de crítica. São
Paulo: Iluminuras, 1990, p. 120: “[...] o autor ou texto moderno é aquele que, independente de uma estreita
camisa-de-força cronológica, leva para o princípio de composição, e não apenas de expressão, um descompasso
entre a realidade e a sua representação, exigindo, assim, reformulação e rupturas dos modelos ‘realistas’”.
274
I, 10.
275
I, 11.
276
Seligmann-Silva, Márcio. O local da diferença: ensaios sobre memória, arte, literatura e tradução. São Paulo:
Editora 34, 2005, p. 105: “O testemunho escrito ou falado, sobretudo quando se trata do testemunho de uma cena
violenta, de um acidente ou de uma guerra, nunca deve ser compreendido como uma descrição ‘realista’ do
ocorrido.
128
Saímos, andamos um pedaço do pátio, alcançamos o nosso destino, alto edifício de
fachada nova. Entramos. Salas à esquerda e à direita do vestíbulo espaçoso. Uma
grade ocupava toda a largura do prédio. No meio dela escancarou-se enorme porta.
Introduzimo-nos por aí, desembocamos num vasto recinto para onde se abriam
células, aparentemente desertas: era provável terem todos os inquilinos vindo receber-
nos.
277
Essa descrição foi retirada do primeiro parágrafo da parte “Pavilhão dos Primários”,
em que se revela o olhar inicial do homem para sua nova realidade. Há a necessidade de
registrar os detalhes do que foi visto, a fim de que o leitor compartilhe a sensação opressora
do ambiente. Para notarmos a diferença em relação à Infância, veremos como é apresentado o
espaço narrativo quando o menino chega à sua nova vila:
De repente me vi apeado, em abandono completo, num mundo estranho, cheio de
casas, brancas ou pintadas, sem alpendres, notáveis. Havia duas maravilhosas: uma de
quadrados faiscantes, uma que se montava noutra. Avizinhei-me do sobradinho, fugi
medroso e confuso: nunca teria podido imaginar uma casa trepada. Na debaixo
percebi criaturas vermelhas e azuis, todas iguais; na de cima dois sujeitos se
debruçavam, conversando, a uma janela, e, nem sei por quê, talvez por estarem de
poleiro, julguei-os enormes.
278
A subjetividade marca a descrição da vila, indicando o espanto do menino diante de
seu novo meio. Inicialmente o temor, fazendo com que o olhar percorra rapidamente o
ambiente, apresentando-o fragmentado, através de uma sequência de imagens. Logo em
seguida, o encanto pela novidade prepondera, de tal modo que a cena ganha cores e o menino
consegue marcar a sua posição em relação ao que o cerca. A aceitação passiva da realidade
cede espaço a uma intervenção do personagem. Não há aqui as mesmas certezas que marcam
o olhar do adulto, pois este, embora esteja diante de uma situação nova, sabe que ela não será
muito diferente do que ele havia conhecido durante seu encarceramento. O inédito para a
criança mostra-se como uma possibilidade; para o adulto é uma repetição. A criança consegue
se desvencilhar do temor do desconhecido, enquanto o adulto se limita diante da opressão
conhecida, o que leva a cadeia, ao menos por alguns momentos, a se impor sobre o sujeito,
deixando-o acuado diante da possível repetição de um cotidiano já conhecido.
Embora com características distintas, tanto em Infância quanto em Memórias do
Cárcere, a descrição é usada para expressar os sentimentos dos personagens, levando o leitor
a viver os acontecimentos, não apenas a observá-los, de acordo com a distinção feita por
Lukács. Desse modo, embora seja utilizada de forma recorrente, especialmente na narrativa
277
MC, 207.
278
I, 42.
129
sobre a cadeia, a descrição não tem o intuito de “nivelar todas as coisas”
279
ou rebaixar os
homens ao nível das coisas inanimadas”
280
. É, pelo contrário, um recurso usado para
evidenciar em que condições moviam-se os sujeitos e o impacto delas sobre as relações inter-
humanas, algo já discutido neste trabalho. A descrição do ambiente é fundamental, por
exemplo, para que se compreendam os momentos de abatimento de Graciliano,
especialmente em relação à escrita. Ainda que, como afirma o autor, ele não esteja impedido
de escrever dentro da cadeia, esta, por impor um espaço físico deteriorado e um contato
estreito entre as pessoas, retira o desejo de escrever. Por outro lado, são precisamente as
negativas condições do ambiente que lhe impõem a tarefa da observação, da qual é impossível
distanciar-se:
Impossível fixar a atenção no período riscado, emendado, incompleto. No camarote do
padeiro a insuficiência permanecia e não tinha recurso para justificar-me.
Vergado no caixão, quase de cócoras, o braço encolhido, limitar-me-ia a reproduzir
sem comentários cenas próximas: seria uma espécie de fotógrafo ou repórter; agora,
isolado, necessitava arrumar pensamentos, e eles recalcitravam.
281
Graciliano estava em meio a muitas pessoas e, por mais que se esforçasse, não
conseguia escrever, pois a constante exposição à coletividade impedia a concentração em uma
atividade individualizada. Quando é chamado para ficar no camarote do padeiro, onde teria
maior tranquilidade, o personagem sente a necessidade de organizar as cenas observadas, mas
não consegue. Essa tarefa será completada muitos anos depois, quando, em liberdade,
puder se distanciar de sua experiência. É no momento da escrita que ele i articular sua
experiência, de modo a dotá-la de sentido inclusive para si mesmo. Mas o material que terá
em sua mente será precisamente o que ele, enquanto personagem, conseguiu apreender, ou
seja, observações semelhantes as de um fotógrafo ou repórter.
A técnica fotográfica está presente no modo de escrita de Memórias do Cárcere, pois
foi a maneira de um sujeito esvaziado apreender sua realidade. Como mostra Sontag, a
fotografia não está isenta de um olhar pessoal, mas ela traz marcas mais definidas da
realidade
282
. O autor trabalhará em sua escrita sobre as imagens mentalmente fotografadas
279
Esse é um dos aspectos que diferenciaria a narração da descrição: “A narração distingue e ordena. A
descrição nivela todas as coisas.” In: Lukács, Georg. “Narrar ou descrever”. In: Ensaios sobre Literatura. Rio de
Janeiro, Civilização Brasileira, 1968, p. 62.
280
Idem, p. 69.
281
MC, 171 (grifo nosso).
282
“[...] uma fotografia não é só uma imagem (no sentido em que a pintura é uma imagem), uma interpretação do
real; é também uma marca, um rastro direto do real, como uma pegada ou uma máscara mortuária. Enquanto
uma pintura, ainda que conforme os padrões fotográficos de semelhança, nunca é mais do que a afirmação de
uma interpretação, uma fotografia nunca é menos do que o registro de uma emanação (ondas de luz refletidas
130
pelo personagem. Haverá, portanto, a junção do pensamento à imagem, algo difícil de ocorrer
durante a vivência carcerária.
Nem todas as descrições têm a objetividade vista na caracterização do Pavilhão dos
Primários, especialmente porque há momentos em que o próprio personagem não consegue
reconhecer seu ambiente. De todo modo, nota-se a preocupação constante em apresentar a
cadeia com o maior detalhamento possível, que, como mostra Candido, “o detalhe sensível
é um elemento poderoso de convicção”
283
. No caso de Graciliano, entretanto, os detalhes não
são oferecidos apenas para mostrar como ele, enquanto personagem, estava seguro do que via,
mas também para favorecer que os leitores se aproximassem de sua realidade, a fim de que
compreendessem uma experiência não vivida:
Meses atrás, se me houvessem repetido esse miserável rogo, exposto as conseqüências
dele, afastar-me-ia incrédulo. A existência anormal obrigava-me a considerar
verdadeiro o relato singular, a princípio com relutância, depois a dizer comigo mesmo
que as coisas não se poderiam passar de maneira diferente. O jejum, a sede, a asfixia
no porão do Manaus, e uma noite a julgar-me vizinho da loucura, davam-me perfeita
idéia do meio estranho. [...] Uma voz martelara-me os ouvidos. Se eu tivesse visto a
cara do leitor, divisaria nela a sombra de passagens fugidias, inexistentes na
exposição. Uma voz apenas – e era o bastante.
284
Somente com a consciência de sua fragilidade, vivenciando uma experiência de
desmoronamento individual, é possível imaginar o que ocorria na prisão, não demonstrando
incredulidade diante de fatos absurdos ou ampliando seus efeitos. Desse modo, a precisão de
sua escrita realista, recorrendo constantemente à descrição, visa, portanto, a criar limites para
a compreensão do leitor, a fim de transmitir-lhes a convicção de que a matéria lida era
verdadeira, ainda que não coubesse nos limites da verossimilhança. Nos limites literários,
cria-se a condição para que os leitores compartilhem sua experiência.
Candido já destacou a profunda relação entre a literatura de Graciliano e a experiência:
“a experiência é condição da escrita”
285
. Isso fica evidente no elogio de Graciliano à obra de
José Lins, que embora não conhecesse os mocambos descritos em Moleque Ricardo,
conseguia fazer uma narração com grande verossimilhança, algo impossível para ele: “Eu
seria incapaz de semelhante proeza: me abalanço a expor a coisa observada e sentida.”
286
Quase ao final de Memórias do Cárcere, Graciliano novamente faz outro comentário sobre
pelos objetos), um vestígio material daquilo que foi fotografado e que é inacessível a qualquer pintura.” Sontag,
Susan. Ensaios sobre Fotografia. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1986, p. 136.
283
Candido, Antonio. “A personagem do romance”. In Candido, Antonio et alli. A personagem de ficção. São
Paulo: Editora Perspectiva, 1981, p. 79.
284
MC, 335.
285
Candido, Antonio. Ficção e Confissão. São Paulo: Editora 34, 1999, p. 58.
286
MC, 61.
131
José Lins. A nova obra do amigo é criticada por ter fugido da experiência, do exame, largando
fatos observados para “aventurar-se a narrar coisas de uma prisão distante”:
Zanguei-me com José Lins. Por que se havia lançado àquilo? O admirável romancista
precisava dormir no chão, passar fome, perder as unhas nas sindicâncias. A cadeia não
é um brinquedo literário. Obtemos informações fora, lemos em excesso, mas os
autores que nos guiam não jejuaram, não sufocaram numa tábua suja, meio doidos.
Raciocinam bem, tudo certo. Que adianta? Impossível conhecer o sofrimento alheio se
não sofremos. O começo do livro de José Lins torturava-me. Quase desejei ver o meu
amigo preso.
287
Graciliano valorizava as obras de José Lins que bebiam da experiência, mesmo que
fosse apenas pela observação da realidade. Incomodava-o um livro unicamente baseado na
imaginação, ainda mais sobre uma realidade tão específica como a cadeia. O fato de não
considerá-la um brinquedo literário” é indicativo do porquê de Memórias do Cárcere ser
tão mais extenso e receber maior detalhamento que Infância: Graciliano reconhece que o
limite da infância foi, de alguma forma, vivenciado por todas as pessoas, que aprenderam a
lidar com as dificuldades do processo formativo. Já os limites da cadeia guardam uma
realidade muito específica, sequer imaginada pela maioria das pessoas. O desconhecimento
generalizado em relação ao cárcere exige que o autor coloque maior precisão em sua
apresentação.
Além disso, menor detalhamento em Infância, porque ali o absurdo é
gradativamente incorporado na vida infantil. Não trata de algo parecido com o sentimento do
homem que, em liberdade, sequer podia imaginar as limitações de uma vida carcerária. A
criança, como dito anteriormente, amplia seus referenciais a partir de comparações, em que
fatos inéditos são pensados à luz de acontecimentos semelhantes conhecidos. Estabelece-se
uma espécie de relação causal entre os fatos, através da qual o menino tenta dotar de sentido
todos os acontecimentos vividos. É o contrário do que vemos em Memórias do Cárcere,
porque o livro narra uma experiência de ruptura com o conhecido, o que exige o
estabelecimento de um novo sistema referencial. A precisão na caracterização do inédito é
indispensável para que os leitores – e o próprio sujeito – compreendam a nova realidade.
No livro sobre a criança, o referencial para o conhecimento do novo geralmente é
trabalhado através das destacadas metonímias e também das comparações e metáforas. A
comparação possibilita inserir um acontecimento inédito em sua história de vida, enquanto a
metáfora, forma à ainda frágil abstração infantil e mostra o quanto um fato singular pode
287
MCII, 476.
132
ser representativo de condições mais amplas da vida humana. Vejamos por exemplo a postura
da criança diante de algumas narrativas:
Padre Pimentel era uma santa criatura e insinuou-me alguns conhecimentos, os
primeiros que aceitei com prazer. Narrou-me a viagem de Abraão, a vida nas tendas, a
chegada à Palestina. Uma linguagem simples, comparações que atualizavam os
acontecimentos. Não hesitei, ouvindo a mudança de homens e gado, com certeza
tangidos pela seca, em situar a Caldéia no interior de Pernambuco. E Canaã, terra de
leite e mel, aproximava-se dos engenhos e da cana-de-açúcar. Mantive essa
localização arbitrária, útil à verossimilhança do enredo, espalhei seixos, mandacarus e
xiquexiques no deserto sírio, e isto não desapareceu inteiramente quando os mapas
vieram.
288
A realidade desconhecida é mais facilmente compreendida através das comparações,
que permitiam uma ligação com o seu mundo. Além disso, o próprio menino opera algumas
modificações na narrativa: mantém o lugar desconhecido porque favorecia a verossimilhança,
mas acrescenta elementos naturais de seu ambiente. O conhecimento do novo como os
mapas - não suplanta o que a imaginação consolidara. Há, ao invés disso, uma maior
complexidade no seu modo de enxergar o mundo, em que o conhecimento construído de
forma ativa se alia àquele que lhe é imposto. Em oposição a isso, Memórias do Cárcere¸ que
conta com referenciais esvaziados, apresenta a tentativa de dar uma base à experiência
singular marcada pelo inverossímil.
Enquanto Kafka incorpora o absurdo do mundo à sua escrita, Graciliano se preocupa
com a verossimilhança, por desejar que o absurdo real seja aceito como tal pelos leitores. A
verossimilhança sobrepõe a verdade, por ser indispensável para revelar sua essência. Não
mentira e não há verdade, há a narração de uma experiência, orientada principalmente pelo fio
da memória tecido por um único homem. Graciliano assume seu papel de tecelão do
fundamental da narrativa, construída por um compromisso com a verdade e também com o
texto. Ele está atado a uma forma que entrelaça pessoas e acontecimentos reais: deve
fidelidade a pessoas, que não são meras construções literárias, e à sua vivência, que é antes
experiência concreta e não relato ficcional. Colocando-se na posição dos leitores, o autor
reforça quão difícil seria para alguém afastado da experiência carcerária aceitar a verdade dos
fatos:
Torturavam-me aqueles fatos imprevistos e inverossímeis. Ou não seriam eles que me
torturavam: era talvez o reconhecimento da minha insuficiência mental, da
incapacidade manifesta de enxergar um pouco além da rotina [...] Conseguiria um
sujeito livre, em casa, diante de uma folha de papel, adivinhar como nos
288
I, 183 (grifo nosso).
133
comportávamos entre aquelas paredes escuras? Tipos iguais a mim seriam incapazes
disso.
289
Nas frequentes discussões sobre os limites da verossimilhança em Memórias do
Cárcere, Graciliano geralmente se preocupa com a credibilidade de sua narração, que
situações em que ele próprio se mostra incrédulo: quase ao final do livro, quando o absurdo da
cadeia já havia sido naturalizado, o personagem não acredita na possibilidade de Olga Prestes
e Elisa Berger serem entregues à Gestapo:
A queixa lúgubre deixava-me em situação penosa; esforçava-me por extingui-la.
Nenhuma verossimilhança: com certeza aquilo era boato, conseqüência de
imaginações desregradas. Vivíamos num ambiente de fantasmagorias. Asserções
imprevistas me deixavam zonzo, entre a realidade e o sonho, a perguntar a mim
mesmo, considerando um homem que se transformava em duende: - Estará doido?
Ou serei doido eu?”
290
O questionamento final revela o esfacelamento do sujeito. Ele, que acreditava ter
redefinido alguns contornos individuais em um meio gradativamente tornado verossímil aos
seus olhos, é levado a questionar sua própria loucura. Ainda que o absurdo tenha sido
incorporado à sua vida dentro da cadeia, um absurdo extremo dificilmente poderia ser narrado
no livro, especialmente pelo descompasso entre vida e literatura:
Quando, lendo um romance, dizemos que um fato, um ato, um pensamento são
inverossímeis, em geral, queremos dizer que na vida seria impossível ocorrer coisa
semelhante. Entretanto, na vida tudo é praticamente possível; no romance é que a
lógica da estrutura impõe limites mais apertados, resultando, paradoxalmente que as
personagens são menos livres, e que a narrativa é obrigada a ser mais coerente do que
a vida.
291
A discussão sobre a verossimilhança está pouco presente em Infância. Ali, como
dissemos, as incoerências são parte do processo de formação do garoto, de tal modo que, com
naturalidade, são incorporadas à narrativa. Em Memórias do Cárcere, por outro lado, fatos
considerados impossíveis se concretizam na experiência carcerária, exigindo que o narrador
mostre consciência do quanto eles podem parecer inverossímeis nos limites do texto literário.
A instabilidade da experiência carcerária deixa outras marcas no texto, tanto que, por
exemplo, o uso das cores é bem distinto nos dois livros. Ao comentar esse aspecto na obra de
Graciliano, Bastide observa que:
289
MC, 162.
290
MC II, 524.
291
Candido, Antonio. “A personagem do romance”. In Candido, Antonio et alli. A personagem de ficção. São
Paulo: Editora Perspectiva, 1981, p. 76.
134
De fato, o clima de seus livros é sempre um clima noturno, em que um doente febril
nutre sua febre com seu próprio eu. Notou-se a pouca importância das paisagens nele;
mas essa falta de descrição não ocorre apenas porque muitas das cenas se passam em
repartições fechadas, em quartos escuros ou à noite; mesmo quando a cena se
desenrola fora e em pleno dia, há, entre o indivíduo e os objetos que o circundam,
como que uma noite opaca.
292
Esse comentário está em consonância com a análise de Bosi, que reconhece em
Angústia e São Bernardo o matiz entre “cinza e negro”. Embora tenhamos dito que o modo
como Graciliano e Kafka se apropriam da estética realista seja distinto, há semelhança quanto
à ambientação, pois na prisão brasileira “quase todos [os fatos] lhe parecem opacos.” O
realismo de Memórias do Cárcere, que “não é um realismo solar, é um realismo plúmbeo”
revela a dificuldade de “um homem que procura apreender a forma e o sentido das coisas, mas
em vão.”
293
O cinza e o negro não caracterizam apenas o ambiente, da “vida escura da furna”
294
. A
escuridão está dentro do sujeito, dificultando, por vezes, o reconhecimento de onde
primeiramente havia ocorrido a imprecisão - no interior ou no exterior de Graciliano: “e
afinal eu já nem sabia se aquela tênue neblina estava dentro ou fora de mim”
295
. O vazio e a
imprecisão, indicados pela escuridão e névoa / neblina, frequentemente marcam não apenas a
dificuldade de entender o que o personagem vive, mas também de relembrar o que se viveu.
Os tons escuros, que indicam a instabilidade e a incerteza ao longo do livro, pintam o pano de
fundo em que se desenrola Memórias do Cárcere.
Em meio à escuridão, pode-se reconhecer cores e alguma luminosidade, que em geral
provocam um estranhamento.
296
As cores intensas têm frequentemente uma relação com a
vida em liberdade, como se vê, por exemplo em: “O rótulo de tintas vivas, colado ao vidro,
forçava-me a um lento recuo no tempo.”
297
, em que a garrafa de aguardente destaca-se no
meio opaco e atrai o olhar de Graciliano. Em relação à luminosidade, ela parece marcar a
intervenção do ser humano sobre a realidade. É o olhar individual (do narrador ou
personagem) que consegue distinguir algum detalhe, dar coerência a um meio obscuro. no
292
Bastide, Roger. “O mundo trágico de Graciliano Ramos” In: Teresa: revista de literatura brasileira 2. São
Paulo: Editora 34, 2001, p. 141.
293
Trechos destacados nesse parágrafo foram retirados de Bosi, Alfredo. “O cemitério dos vivos. Testemunho e
ficção” In: Literatura e Sociedade n. 10. São Paulo: USP/FFLCH/DTLLC, 2007/2008, p. 314.
294
MC, 150.
295
MC, 166.
296
Em relação à luz, ver que Graciliano aceita a noção de ‘trevas luminosas’, embora a considerasse absurda.
MC, 124: “[...] tentei sondar a bruma cheia de trevas luminosas. Idéia absurda, que ainda hoje persiste e me
parece razoável: trevas luminosas. Havia muitas lâmpadas penduradas no teto baixo, ali ao alcance da mão,
aparentemente, mas eram como luas de inverno, boiando na grossa neblina.”
297
MC, 183.
135
início do livro, podemos ver como a ação do narrador ilumina o passado do personagem:
“Demais podemos enxergar luz à distância, emergimos lentamente daquele mundo horrível
de treva e morte. Na verdade, estávamos mortos, vamos ressuscitando.”
298
Opondo-se ao tom cinzento, em Infância as cores são mais definidas, tidas. Por
exemplo, no episódio do enterro, o menino registra sua percepção visual até o cemitério: o
caixão azul, as paredes brancas, a grade verde. A dificuldade inicial de entrar no cemitério,
espaço das trevas das narrativas noturnas, é superado por causa da “claridade forte do sol”
299
.
As cores bem marcadas (inclusive do negro total) caracterizam a apreensão infantil do
ambiente, em que a realidade geralmente se oferece com contornos definitivos. Há, no
entanto, situações em que a incerteza, o tom cinza, marca a interioridade do garoto. Quando,
por exemplo, enfrenta os problemas da leitura, considera-se um “espírito opaco”
300
e quando
vive uma espécie de embate entre literatura e religião, denomina-se um “espírito nebuloso”
301
.
Ao invés das cores definidas do ambiente, o menino reconhece em si mesmo uma imprecisão,
fruto da manifestação da sua singularidade (imperfeita e duvidosa) em um meio com certezas
definidas e impostas.
O grau máximo da oposição entre o menino e o mundo, manifestado nas cores, é
reconhecido no final do livro, cujo último capítulo, “Laura”, leva o nome da menina por quem
Graciliano se apaixonou. A menina morena com habilidades gramaticais se contrapõe a seus
referenciais literários folhetinescos e naturalistas. A literatura, fonte de experiência plena na
formação do garoto (um meio de entender o mundo, não apenas de conhecê-lo), passa a ser,
neste momento, apenas uma exemplificação. A literatura tem sua importância reduzida para o
garoto, tanto que a partir de sua primeira experiência sexual, não repugna O Cortiço, que
não mais “inspirava curiosidade”, nem “era objeto de aversão”. Este capítulo de redefinição
literária é marcado essencialmente por uma série de mudanças no corpo e comportamento do
menino, com a gradativa perda dos traços infantis. Tais alterações culminam no último
parágrafo do livro, marcado pelas cores: “A figura que me perseguia à noite serenou e fugiu.
E a outra, nuvem colorida, evaporou-se.”
302
. A evaporação da nuvem marca imageticamente o
final do livro, que foi iniciado também com as nuvens, retiradas através do esforço da
298
MC, 22.
299
Vejamos o trecho inteiro. I, 169: “Nunca havia entrado em cemitérios e habituara-me a receá-los, por causa
dos espectros que me descreviam na cozinha. À noite essas narrações davam-me tremuras, arrepiavam-me os
cabelos. A treva se enchia de mistérios, as labaredas fumacentas do fogão viviam, acompanhavam a dança das
bruxas. Ali, porém, na claridade do sol, os terrores se dissipavam. O bando de crianças ria, espalhava-me nas
ruas estreitas, galgava montículos fofos, alinhados.”
300
I, 115.
301
I, 199.
302
I, 247.
136
memória. As nuvens sem cores que apenas permitiam uma mirada para o céu cedem lugar às
nuvens coloridas que deixam ver tudo o que por trás delas. Ao final do livro, o céu da
narrativa fica totalmente aberto à descoberta de um sujeito fortalecido, que não é mais um
menino. Precisamente por encerrar um livro intitulado Infância, o parágrafo sintetiza o
distanciamento da condição de criança, em que se desfaz uma oposição entre cores vibrantes e
escuridão. Os extremos desaparecem, indicando que a partir daquele momento a vida será
marcada por mais dúvidas, incertezas. Na narrativa, a figura noturna” indica os culpados
sonhos naturalistas de Graciliano com Laura, e a “nuvem colorida”, seu sonho folhetinesco,
com donzelas repletas de azul e ouro. Acabada a infância, as cores se tornam difusas,
marcando a complexidade humana, sem a idolatria romanesca, nem o desejo repulsivo.
3.2
O
HOMEM PELA ESCRITA
Ainda discutindo o efeito das cores na obra de Graciliano, vejamos como ele
caracteriza sua saída da Colônia Correcional:
No pátio branco, as árvores enfileiradas, marciais, despojavam-se das folhas amarelas,
que voavam lentas na aragem branda. Havia no céu um desperdício de tintas. O
negrume ferruginoso dos montes próximos ganhava tons dourados. E a distância,
verdes e finas, as piteiras imergiam num banho luminoso. Seriam talvez seis horas.
303
A descrição está repleta de muitas cores, inclusive com o céu marcado por um
“desperdício de tintas”. A visão negativa sobre o céu mostra a consciência do personagem
quanto ao descompasso entre a beleza natural e a ação humana, capaz de condenar tantos
presos à escuridão. Apesar de considerada absurda, a intensidade das cores consegue, nesse
momento, modificar a escuridão habitual, revelando uma breve mudança no olhar do
personagem. Diferentemente do que vimos na sua entrada no Pavilhão dos Primários, quando
analisamos a cor como indicativa da fragilidade humana diante do mundo, aqui uma
mudança. O poder da escrita retornou a Graciliano após tanto descrédito. Através da palavra,
ele estaapto a mostrar para todos a falsidade das cores externas, que podem enganar quem
303
MC II, 427.
137
não conhece o interior da prisão. Após essa descrição do pátio, o seu diálogo com o
médico, em que afirma que escreveria sobre a Colônia Correcional:
- Não senhor. Faço livros. Vou fazer um sobre a Colônia Correcional. Duzentas
páginas ou mais. Os senhores me deram assunto magnífico. Uma história curiosa, sem
dúvida.
O médico enterrou-me os olhos duros, o rosto cortante cheio de sombras. Deu-me as
costas e saiu resmungando.
- A culpa é desses cavalos que mandam para aqui gente que sabe escrever.
304
No diálogo, pode-se notar a postura altiva de Graciliano, diferente do que se via no
homem abatido de muitos momentos de Memórias do Cárcere. Aqui uma pessoa que
reconhece que sua existência não está limitada pelos muros da cadeia. Assim, apesar de
vivenciar um intenso processo de fragmentação na prisão, Graciliano tem em sua trajetória
autoral a possibilidade de futuro. Por alguns momentos, ele se colocou acima de um sistema
carcerário que, diariamente, buscava sua rendição. A escrita atua como rastro do sujeito
305
,
forma eficaz de preservar sua integridade. Por essa razão, ela é preservada e valorizada
mesmo quando o personagem a considera uma dura obrigação. O que, de outro modo,
explicaria seu esforço em fazer anotações apesar da constante possibilidade de extravio? Os
papéis podem ser perdidos, mas o empenho na observação e no registro permanecem; eles
testemunham uma chama crítica em um meio de profunda animalização.
Em artigo sobre Lima Barreto, Bosi mostra, também destacando as cores e a
luminosidade, a relação entre a fragilidade humana e o poder institucional:
A imagem que tudo recobre é de uma grande abóbada de treva, de negro absoluto. As
luzes do neoclassicismo trazido pela Missão francesa no tempo do rei queriam ser
racionais e modernas, mas dentro do solene edifício que construíram reinaria uma
treva absoluta onde deveria ser encerrada a desrazão do negro e do pobre.
306
Opondo-se ao exterior sereno, o interior do hospício tinha na escuridão uma forma de
ocultar práticas desumanas. É algo semelhante ao que Graciliano reconhece na Colônia
304
MCII, 427
305
De maneira profunda, Gagnebin destaca a escrita como “metáfora-fundadora da nossa concepção de memória
e de lembrança”: “Porque a dominância dessa metáfora da escrita? Talvez por ser mais arbitrária que a imagem,
pelo menos em nossos alfabetos europeus, a escrita escape com mais facilidade da problemática da aparência e
da realidade, problemática fatal quando se tenta aferir o grau de fidelidade ao real de uma lembrança. Como se
pode traduzir transcrever a linguagem oral, a escrita se relaciona essencialmente como o fluxo narrativo que
constitui nossas histórias, nossas memórias, nossa tradição e nossa identidade”. In: Gagnebin, Jeanne Marie.
Lembrar escrever esquecer. São Paulo: Editora 34, 2006, p. 111.
306
Bosi, Alfredo. “O cemitério dos vivos. Testemunho e ficção” In: Literatura e Sociedade n. 10. São Paulo:
USP/FFLCH/DTLLC, 2007/2008, p. 33.
138
Correcional: ao olhar seu entorno - a parte acessível a um não encarcerado - percebe-se
beleza, mas ela se configura como um “desperdício” para quem conhece a instituição
internamente. A escrita permite que os leitores se coloquem além da fachada, conhecendo a
realidade dos marginalizados, que poucas vezes conseguem expor sua situação e obter
credibilidade. Eis a força da escrita autobiográfica: revelar a diversidade humana além da
padronização institucional. Nas palavras de Bosi:
Daí o valor dos testemunhos (diretos ou ficcionais) pelos quais a literatura de cunho
autobiográfico alcança matizar a história das instituições e de suas ideologias, cujo
risco é subestimar o drama das experiências individuais.
307
Em seus livros autobiográficos, Graciliano, um escritor respeitado, reclama para
suas facetas de preso e criança o direito à palavra, a uma visão singularizada sobre uma
realidade opressiva. Focado em seu ponto de vista, as obras permitem conhecer as pessoas
esvaziadas pelo sistema e também aquelas que exercem a função de controle. A ética e olhar
atento fizeram de Graciliano alguém apto a reconhecer o drama alheio de forma ampla: não
apenas daquele com o qual se identifica, mas também daquele responsável pela limitação
(como pais rudes e militares) que, em geral, tem sua individualidade obliterada em textos
autobiográficos. A escrita de Graciliano visa à singularidade. Nesse sentido, cabe destacar um
aspecto do comentário de Bosi: uma compreensão mais complexa da história é atingida pelos
textos autobiográficos, sejam eles ficcionais ou não. Em outras palavras, o fator determinante
está no posicionamento do sujeito diante do ato de escrita e de rememoração, porque a
decisão de escrever sobre a própria vida é diferenciada, reveladora de alguém que assume as
rédeas da sua existência apesar de toda a pressão desagregadora do mundo. A força desses
textos não está em seu valor ficcional, mas no seu caráter autobiográfico, que potencializa
uma forma de escrita, a qual não busca aplacar a instabilidade da experiência
Lembremos do célebre Ficção e Confissão de Antonio Candido. Ao realizar o que
creio ser a melhor análise abrangente da obra de Graciliano, o crítico mostra o quanto era
coerente e necessário ao autor passar de textos ficcionais a autobiográficos:
Graciliano Ramos, porém, extravasou os limites do gênero e, obcecado cada vez mais
pelas situações humanas, substituiu-se ele próprio aos personagens e resolveu,
decididamente elaborar-se como tal em Infância, aproveitando os aspectos facilmente
romanceáveis que nos arcabouços da memória infantil. A seguir, dando um passo
mais, rompeu as amarras com a ficção ao registrar a experiência de adulto, e realizou-
se nas Memórias com maestria equivalente à dos livros anteriores.
308
307
Idem, p. 22.
308
Candido, Antonio. Ficção e Confissão. São Paulo: Editora 34, 1999, p. 78.
139
Por certo, Candido destacava a passagem do autor da condição de observador de
pessoas a de uma pessoa observada. Mas ao indicar diferenças entre Memórias do Cárcere e
Infância, atribuindo a esta um caráter mais ficcional, Candido coloca a discussão em outro
plano: não seria apenas o posicionamento de Graciliano em suas obras, mas o modo de
escrita, que determinaria a ficcionalidade de seus textos. Diante disso, Lafetá assume um
posicionamento distinto, recorrendo a um conceito de ficção mais amplo:
A confissão é ficção. É aí que eu vario. Na verdade, a confissão é uma forma
ficcional, tomando por conceito de ficção o que Frye nos oferece. Para ele todo texto e
razão de si mesmo, como o poema, é chamado de ficção. Isto é, se o texto tem um
tratamento literário. [...]
Importa sim o tipo de tratamento da linguagem. Se esse tratamento tende a criar uma
autonomia estética para o texto, podemos perfeitamente chamá-lo de ficção. É o que
ocorre no livro Infância de uma forma, aliás, muito mais livre, que em Memórias do
Cárcere.
309
Os críticos não diferem em suas concepções fundamentais, inclusive quanto ao caráter
singular de Infância. A distinção entre eles parece residir, essencialmente, na delimitação do
conceito de ficção complexa discussão que se mostra ainda mais infrutífera no caso de um
autor como Graciliano, por sua constante problematização dos limites da memória e da
experiência. Ao reconhecer a fragilidade da memória, indicativa de que seus textos estão
repletos de tentativas de aproximação dos fatos vividos, e ao afirmar que a experiência está
base de sua literatura, o autor permite que também consideremos, invertendo a conclusão de
Lafetá, que ficção é confissão. Nota-se que os dois conceitos encontram-se em uma zona
ainda mais nebulosa na obra de Graciliano, sendo, portanto, problemáticos como meios de
diferenciação de suas duas obras autobiográficas.
Em meio ao debate sobre a ficção, Lafetá e Candido mostram que as duas obras se
afastam quanto ao modo de escrita. De fato, sabemos que a ficção deixa suas marcas no
interior das obras, no tratamento dado ao tema, mas pela diversidade que isso pode atingir
310
,
acreditamos na necessidade de orientar a discussão por questões que antecedem o modo como
a ficcionalidade se manifesta (ou não) nos textos: qual o sujeito que escreve, narra e vive os
309
Lafetá, João Luiz. “O porão do Manaus” In: neros de Fronteira. Xamã: São Paulo, 1997, p. 229 (grifo
nosso)
310
James, Henry. A arte da ficção. São Paulo: Editora Imaginário, 1995, p. 26: “A única obrigação que devemos
imputar precisamente a um romance, sem cair na acusação de arbitrariedade, é a de que seja interessante. Essa
responsabilidade geral é a única que vejo repousar sobre ele. As formas como ele é livre para tentar atingir esse
resultado (de ser interessante) são surpreendentemente numerosas, e só podem sofrer com as restrições e
prescrições.”
140
acontecimentos das obras? Como sua formação está marcada na escrita dos livros? Em
consonância com a linha deste trabalho, que busca discutir o texto a partir do sujeito,
consideramos essas questões fundamentais devido primordialmente ao caráter autobiográfico
dos livros. Não se trata, portanto, de identificar traços literários distintos nas duas obras, mas
de entender como Graciliano (no triplo papel que assume) marca os livros com seus contornos
individuais. Cremos que o modo diferenciado como ele se assume (e avalia sua experiência)
está na base de textos literários com características singulares.
Aliada à discussão sobre o “eu”, feita no capítulo anterior, retomamos com outro
enfoque a questão do sujeito em obras de cunho autobiográfico. Bakthin mostrou que esse
tipo de texto já podia ser reconhecido desde a Grécia Antiga
311
. No entanto, ele apenas
encontrou os meios para seu pleno desenvolvimento na modernidade:
Apesar de o texto autobiográfico não ter sua origem situada na modernidade, foi com
o advento do homem moderno que as condições de possibilidade de uma narrativa
sobre si, - como forma de expressão subjetiva, de afirmação perante si próprio e
perante os outros, - foram efetivadas.
312
Apenas em um contexto histórico em que o homem reconhece seu poder de ação
frente ao mundo é possível que ele considere importante expressar-se. Devemos lembrar que a
modernidade também é a propulsora do mais difundido gênero literário: o romance.
Diferentemente da epopéia, forma representativa de um mundo que desconhecia a distinção
entre interior e exterior, o que poeticamente Lukács coloca como “o fogo que arde na alma é
da mesma essência que as estrelas.”
313
, o romance, a epopéia burguesa
314
, vive a tensão da
separação entre homem e mundo. Em célebre definição:
O romance é a epopéia de uma era para a qual a totalidade extensiva da vida não é
mais dada de modo evidente, para a qual a imanência do sentido à vida tornou-se
problemática, mas que ainda assim tem por intenção a totalidade.
315
311
Bakhtin, Mikhail. Questões de Literatura e de Estética (A teoria do romance). São Paulo: Editora
Unesp/Hucitec, 1988, p. 200.
312
Teixeira, Leônia Cavalcante. “Escrita autobiográfica e construção subjetiva”. São Paulo: Psicologia USP vol
14, nº1, 2003, p. 4.
313
Lukács, Georg. Teoria do Romance. São Paulo: Editora 34, 2003, p. 25.
314
Lukács, Georg. “O romance como epopéia burguesa”. In: Ad Hominem 1, tomo II: música e literatura. São
Paulo: Estudos e Edições Ad Hominem, 1999, p. 93: “O romance aspira aos mesmos fins a que aspira a epopéia
antiga, mas nunca pode alcançá-los, porque nas condições da sociedade burguesa, que representam a base do
desenvolvimento do romance, os modos de realização das finalidades épicas são o diferentes dos antigos que
os resultados são diametralmente opostos às intenções. A contradição da forma do romance reside precisamente
no fato de que o romance, como epopéia da sociedade burguesa, é a epopéia de uma sociedade que destrói as
possibilidades de criação épica.”
315
Lukács, Georg. Teoria do Romance. São Paulo: Editora 34, 2003, p. 55.
141
Em discussão que não pode ser contemplada nos limites desta dissertação, cremos que,
em oposição ao romance, a autobiografia não aspire à totalidade, mas que seja uma forma
literária capaz de marcar a sobrevivência do homem quando foi derrubado pelo mundo,
precisamente porque ela oferece a possibilidade de compreensão
316
. Assim, enquanto o
romance representa a forma de confronto entre ser e vida, os textos de cunho autobiográfico
podem dar conta de momentos em que a imposição do mundo ao homem é mais extrema. O
único confronto possível entre homem e mundo se efetiva posteriormente aos fatos narrados,
ou seja, após a escrita do livro, quando derrubado pelo mundo, o indivíduo sobrevive para
contar sua história. O romance é a forma do confronto. A autobiografia configura a
sobrevivência. O escritor / narrador carrega o confronto em seus dedos, não o deixando a
encargo do personagem, pois ele, no livro, pode estar diante da possibilidade de aniquilação.
A escrita é um dos poucos lugares em que a vitória do indivíduo torna-se possível.
No caso dos livros aqui analisados, tem-se um menino que viveu uma educação
violenta e um homem que conheceu os abusos de poder na cadeia. A principal diferença no
modo como eles apreenderam suas experiências reside em um aspecto salientado ao longo
deste texto: o menino estava em processo de formação de sua singularidade e o homem de
deformação de si mesmo. Diante, por exemplo, do comentário de Candido, para quem
Infância seria mais romanesco, entre outros fatores, por apresentar as pessoas como
personagens
317
, responderíamos que isso ocorre porque o menino se esforça para restringir a
complexidade delas a um referencial conhecido. Como mostramos anteriormente, o esforço de
compreender a própria realidade leva a criança a construir um sistema com algumas
incoerências, mas com certa unidade. Nesse sentido, a tentativa da criança de aproximar a
complexidade das pessoas a um referencial conhecido é semelhante ao esforço do autor para
colocar as pessoas nos limites das personagens, dando-lhes unidade. Entendemos, portanto,
que as pessoas não são tratadas como personagens por intenção de dar à obra um aspecto
romanesco, mas que o fato de elas ganharem alguns contornos de personagens decorre do
olhar do menino que as conheceu.
316
Vejamos como isso se na obra de um autor contemporâneo, que escreve sobre sua longa experiência
carcerária. Mendes, Luiz Alberto. Às Cegas. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p.237: “A idéia de
escrever minha vida foi automática. Escrever para mim mesmo, para ninguém mais. Sem receio de ser punido ou
censurado. Precisava entender o que havia acontecido. Era isso. Iria escrever minha história para me conhecer.”
317
“Aquele [Infância], narrando os primeiros anos de vida, ainda se prende a uma tonalidade quase romanesca;
no segundo [MC], esta desaparece ante o depoimento.
Talvez seja errado dizer que Vidas Secas é o último livro de ficção de Graciliano Ramos. Infância pode
ser lido como tal, pois a sua fatura convém tanto à exposição da verdade quanto da vida imaginária; nele as
pessoas parecem personagens e o escritor se aproxima delas por meio da interpretação literária, situando-se
como criações.” In: Candido, Antonio. Ficção e Confissão. São Paulo: Editora 34, 1999, p. 58 (grifo nosso).
142
Lembremos também do modo como tempo e espaço se mostravam de formas distintas
em relação ao Graciliano personagem das duas obras. Enquanto em Infância, essas categorias
fazem parte do menino, ganhando forma juntamente com seu desenvolvimento, em Memórias
do Cárcere são vistas como elementos externos, que, de modo geral, delimitam um mundo
hostil. Notamos, assim, uma relação de maior identidade entre o sujeito e o mundo no
primeiro caso e de afastamento no segundo. A diferença se dá, reforçamos, pelo momento da
vida (e suas circunstâncias) em que se encontram os sujeitos: formação e deformação,
respectivamente relacionadas às etapas de socialização primária do menino e secundária do
adulto, o que, no primeiro caso, implica em agregar o novo à constituição individual e, no
segundo, a desestruturar conceitos e valores já estabelecidos em favor de novas experiências –
um processo certamente mais demorado e menos efetivo.
Assim, além de reconhecer o mundo como uma realidade completamente externa,
contra a qual uma série de choques é inevitável, o Graciliano de Memórias do Cárcere
descobre-se fragilizado, esvaziado de suas certezas. Para mostrar o quanto está destituído de
sua condição humana e ansioso por recuperar sua frágil unidade perdida, seu texto, por
exemplo, é entrecortado por conjeturas:
Roubam-nos completamente a iniciativa, os nossos desejos, os intuitos mais
reservados estão sujeitos a verificação; e forçam-nos a procedimento desarrazoado.
Perdemo-nos em conjeturas. Será que, trazendo-nos para aqui, tiveram a intenção de
melhorar-nos a saúde, fazer-nos respirar um pouco de ar puro, mostrar-nos o sol? Por
que não pensaram nisso antes?Não, com certeza estamos em erro: ninguém vai
inquietar-se com nossos miseráveis pulmões. Por que nos trouxeram, pois? [...] As
suposições nos atordoam, falhas todas; enxergamos enfim uma causa imprevisível ou
permanecemos na ignorância.
318
Contrariando o automatismo da cadeia, o sujeito mostra-se pensante. Mas por não
encontrar respostas, cria suposições sem quaisquer fundamentos, o que indica o quanto está
distanciado daquele mundo. Por mais que se esforce para compreender aquela realidade, a
cadeia, desde a ausência de acusação e julgamento, não oferece qualquer sentido.
319
Assim
como as conjeturas, o livro apresenta diversos questionamentos e repetições de falas alheias,
318
MC, 174.
319
Ilustramos o esforço que o sujeito, em cima do vazio, tenta imaginar o que poderia ocorrer. O tom hipotético
é reforçado pela grande repetição do “se”. MC, 237: “Que nos poderia acontecer?Seríamos postos em liberdade
ou continuaríamos presos. Se nos soltassem, bem: era o que desejávamos. Se ficássemos na prisão, deixar-nos-
iam sem processo ou com processo. Se não nos processassem, bem: à falta de provas, cedo ou tarde nos
mandariam embora. Se nos processassem, seríamos julgados, absolvidos ou condenados. Se nos absolvessem,
bem: nada melhor esperávamos. Se nos condenassem, dar-nos-iam pena leve ou pena grande. [...] Se fôssemos
pra o céu, ótimo: era a suprema aspiração de Ada um. E se fôssemos para o inferno? A cadeia findava aí.
Realmente ignorávamos o que nos sucederia se fôssemos para o inferno.”
143
que também mostram o constante esforço do homem pra entender sua realidade e sua atuação
ali dentro.
Infância também está marcada por questionamentos, embora com menor frequência. A
criança deseja explicações, mas as aceita incompletas, seja porque articula os fatos em seu
referencial conhecido, seja porque se resigna diante do silêncio daqueles que poderiam lhe
oferecer alguma resposta, como sua própria mãe. Na tentativa de encontrar suas próprias
explicações, ela volta-se à solidão, imaginando uma realidade de fantasia que lhe aponte o
sentido ausente no cotidiano. em Memórias do Cárcere, são raros os momentos em que o
personagem pode ficar sozinho, refletindo sobre sua experiência, seja pelas limitações do
espaço físico, seja pelo seu grande interesse em observar as outras pessoas, que lhe permitiam
descobrir novas dimensões da vida social. Graciliano adulto, embora não encontre respostas,
as busca intensamente. As tentativas de explicação, aliadas a um realismo muito mais
mimético em Memórias do Cárcere não são elementos afins a uma construção lírica: “é a
definição discursiva, a necessidade da explicitação do sentido que interfere na maior parte das
vezes e destrói a qualidade lírica.”
320
Por que introduzimos uma discussão sobre lirismo no trabalho? Porque cremos que
algumas características do sujeito de Infância, como seu afastamento do mundo e simultânea
identidade com ele
321
, apontam para um sujeito que se expressaria através de traços líricos ou
da “imaginação lírica” apontada por Candido
322
. A criança, embora limitada em sua vivência,
está fortalecida em torno de uma unidade. Algumas fissuras se mostram apenas ao final do
livro, quando inicia sua adolescência, caracterizada por cores que revelam uma visão do
mundo mais complexa. Em oposição a isso, o homem encarcerado tem sua individualidade
esfacelada e considera impossível qualquer integração com o mundo. Essa discussão busca
mostrar que a forma “mais livre” de Infância, segundo expressão de Lafetá, está relacionada
ao modo como o sujeito se sente em relação à realidade que o cerca, não à ficcionalidade,
aspecto que se manifesta igualmente nas duas obras autobiográficas de Graciliano. Nosso
posicionamento aponta uma discordância em relação à afirmação de Candido:
320
Lafetá, João Luiz. “A representação do sujeito lírico na Paulicéia desvairada”. In BOSI, Alfredo (org.)
Leituras de poesia. São Paulo: Editora Ática, 1996, p. 73.
321
Vejamos a síntese feita por Rosenfeld sobre a diferença entre lírica e épica: “Na Lírica, pois, concebida como
idealmente pura, não a oposição sujeito-objeto. O sujeito como que abarca o mundo, a alma cantante ocupa,
por assim dizer, todo o campo. O mundo, surgindo como conteúdo desta consciência lírica, é completamente
subjetivado. Na Épica pura verifica-se a oposição sujeito-objeto.” Rosenfeld, Anatol. O teatro épico. São Paulo:
Perspectiva, 1985, p. 27.
322
Candido, Antonio. Tese e Antítese. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1964. p. 98.
144
Infância é autobiografia tratada literariamente; a sua técnica expositiva, a própria
língua, parecem indicar o desejo de lhe dar a consistência de ficção. Memórias do
Cárcere é depoimento direto e, embora grande literatura, muito diferente da
tonalidade propriamente criadora.
323
As duas obras possuem uma “tonalidade criadora”, que, no entanto, ganha feições
distintas de acordo com o posicionamento do personagem frente à sua experiência. Infância e
Memórias do Cárcere, como autobiografias, trazem as marcas da ficção e da confissão,
elaborando-as de acordo com a compreensão do mundo do sujeito. Os traços particulares
devem-se ao fato de a criança usar uma linguagem mais lírica, indicativa de um processo de
formação que incorpora o mundo, e o adulto recorrer a traços épicos, capazes de revelar o
quanto ele se afastava do mundo, uma realidade que lhe era amplamente hostil.
3.3
M
ARCAS DA EXPERIÊNCIA CARCERÁRIA SOBRE A ESCRITA
Consideremos dois aspectos antes de iniciar a discussão deste tópico: a experiência
carcerária desarticula o sujeito, inclusive a sua relação com a palavra; a autobiografia é o
gênero em que precisamente se exige uma maior unidade do sujeito, pois narrador,
personagem e autor são unificados sob um nome empírico para a apresentação de uma
determinada experiência. Nesse sentido, Memórias do Cárcere diferencia-se em relação à
Infância, pois mostra uma dupla vitória do homem sobre o mundo: a sobrevivência após um
ano de grandes privações e o testemunho por meio de um livro. A morte, que marca o interior
da narrativa
324
, também está, no caso de Memórias do Cárcere, indicada em seu principal
elemento externo o autor que, durante a escrita da obra, sabia-se próximo a morte
325
,
diante da qual pode-se conhecer melhor uma pessoa:
Poderíamos dizer que um homem nos é conhecido quando morre. A morte é um
limite definitivo dos seus atos e pensamentos, e depois dela é possível elaborar uma
interpretação completa, provida de mais lógica, mediante a qual a pessoa nos aparece
numa unidade satisfatória, embora as mais das vezes arbitrária.
326
323
Candido, Antonio. Ficção e Confissão. São Paulo: Editora 34, 1999, p. 75, 76 (grifo nosso).
324
Lembremos, por exemplo, da grande dificuldade para alimentação.
325
MC, 35: “Estou a descer para a cova, este novelo de casos em muitos pontos vai emaranhar-se, escrevo com
lentidão – e provavelmente isto será publicação póstuma como convém a um livro de memórias”.
326
Candido, Antonio. “A personagem do romance”. In Candido, Antonio et alli. A personagem de ficção. São
Paulo: Editora Perspectiva, 1981, p. 64.
145
Memórias do Cárcere, publicada como obra póstuma, é precisamente o ponto final de
uma trajetória de autoconhecimento profundo e de aproximação em relação aos outros,
sempre surpreendentes. A fragilização dos laços mundanos permite uma compreensão mais
livre das próprias ações. Graciliano não busca justificar seus atos no livro, mas revela
compreendê-los mesmo em suas incoerências, assim como faz com as outras pessoas, que
apesar do esforço realista, não são limitadas à condição de personagens. Os “desviantes”,
cujas ações tampouco se encaixam nos limites da verossimilhança, fogem ao que se espera
deles e, ao fazê-lo, revelam a Graciliano a impossibilidade de ser pessimista quanto aos
homens, pois cada ação humana representa a potencial criação de algo novo.
A experiência carcerária, em que Graciliano conheceu os limites institucionais
impostos arbitrariamente, revelou pessoas que escapavam ao seu jugo e, por consequência, lhe
permitiam conhecer uma nova dimensão humana, que sequer seria revelada em liberdade. Ao
contrário do pessimismo, Ribeiro aponta ser possível reconhecer ali os sinais de uma “ética
humanista”:
Por sua vez, o sentimento de solidariedade que se irradia nas Memórias do rcere e
aproxima indivíduos e personas sociais antes completamente afastados faz com que a
violência do encarceramento e da morte a que os detentos foram submetidos não
triunfe, não seja capaz de suplantar o desejo de vida e a humanidade que ainda podia
haver em muitos dos que ali se encontravam, independente da posição social ou
político-administrativa que porventura assumissem.
327
Essa é uma interpretação que “vai de encontro à esmagadora maioria dos textos
publicados sobre essas obras”
328
, visto que frequentemente Graciliano e seus livros estão
associados a um pessimismo profundo. A aposta no homem, que Ribeiro estende à Infância, é
mais conflitante em Memórias do Cárcere, como destacado por Candido:
Nas Memórias do Cárcere, podendo confrontar o seu modo de ser e o dos outros,
numa situação em que de todos era solicitado um desvendamento completo, pondo às
claras qualidades e lacunas doutro modo sopitadas, essa visão do mundo encontra a
mais perfeita expressão, unificando realmente o que parece inconciliável: pessimismo
e imparcialidade, condenação e confiança no homem.
329
Colocando-se ao lado de outros homens, algo que ocorre com menor frequência em
Infância, é possível avaliá-los de forma mais crítica, o que aponta para uma realidade menos
327
Ribeiro, Gustavo Silveira. “A violência e seus avessos: solidariedade e compreensão nas memórias de
Graciliano Ramos.” Disponível: www.abralic.org.br/enc2007/anais/54/220.pdf . Acessado em 03 fev. 08.
328
Ibidem.
329
Candido, Antonio. Ficção e Confissão. São Paulo: Editora 34, 1999, p. 72.
146
definitiva. Isso não implica em uma plena negação do pessimismo, que marca sua obra
especialmente no plano institucional, em que mãos humanas sancionam o esvaziamento da
vida de outras pessoas. Desse modo, embora haja uma crença no homem, ela não parece se
identificar com uma “ética humanista”. Nem humanismo entusiasta, nem pessimismo
totalizador ou, nos referenciais deste trabalho, nem inteira descoberta, nem inteira limitação.
Como aponta Villaça em relação a Vidas Secas, não chega a haver um otimismo na obra, mas
um movimento
330
. Nessa linha, em Memórias do Cárcere, haveria um movimento decorrente
do conhecimento mais profundo do homem, capaz de provocar surpresas nas rígidas
estruturas institucionais, que, a princípio, são vistas de modo negativo por Graciliano.
uma episódio sobre Graciliano que talvez ilustre seu posicionamento: alguém lhe
havia desejado “bom dia”, ao que ele haveria respondido: “Você acha?
331
. Seu
questionamento não é indício de um pessimismo, mas de crítica em relação ao óbvio. Seu
olhar sobre o mundo não é negativo, mas questionador. No caso do cárcere, suas dúvidas
foram, em geral, respondidas com a certeza do grande potencial humano, de sua capacidade
de ser imprevisível em um meio tão limitado pela ordem. Em consonância com isso,
lembremos do auto-retrato do autor, no qual afirma: “Apesar de o acharem pessimista,
discorda de tudo.”
332
Na mesma linha de nossa interpretação do episódio: aqui a dúvida,
não a pura negatividade. A visão do pessimismo está no olhar do outro, não no do próprio
Graciliano, que é essencialmente cético. Mesmo que o pessimismo fosse uma marca
extremamente forte em sua conduta, como indicam pessoas próximas ao escritor, “não é um
critério literário”
333
, especialmente porque o objetivo do crítico é analisar as obras, não os
autores
334
. Os livros autobiográficos de Graciliano não trazem um olhar apenas pessimista; é
330
Villaça, Alcides. “Imagem de Fabiano” In: Estudos Avançados 60, vol. 21. São Paulo: 2007, p. 239 (grifos do
autor): “E o leitor encontrará, nas últimas frases da novela, um final ambíguo, em que a impressão de
circularidade do destino daquela família, de novo obrigada a ao movimento de fuga, não pode deixar de registrar
a renovação de esperanças que o casal alimenta seguindo para o sul, metidos naquele sonho, acreditando numa
nova terra. Não se fale, aqui, em otimismo de Graciliano; fale-se em movimento (e movimento também íntimo)
das personagens.”
331
Carpeaux conta alguns episódios com Graciliano: “Numa dessas histórias estou mesmo eu figurando; não sei
por que me atribuíram o papel de ter sido o parceiro do diálogo. Teria eu dito a Graciliano: ‘Os tempos são tão
ruins que vamos acabar pedindo esmola’. E ele, respondendo ‘Mas a quem?’ Autêntico é, porém, o diálogo
seguinte: encontrando Graciliano, eu disse: ‘Bom dia!’; e ele respondeu: “Você acha?’” Carpeaux, Otto Maria.
“Amigo Graciliano” In: Teresa: revista de literatura brasileira 2. São Paulo: Editora 34, 2001, p. 146.
332
In: Moraes, Dênis de. O Velho Graça. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1993.
333
Carpeaux, Otto Maria. “Amigo Graciliano” In: Teresa: revista de literatura brasileira 2. São Paulo: Editora
34, 2001, p. 146: “Mais do que Machado de Assis, que sabia disfarçar, é Graciliano Ramos o maior pessimista
desta literatura de pessimistas que é a brasileira. Mas o pessimismo não é critério literário. Afirmar aquilo não
significa contribuir para a caracterização da obra de Graciliano.”
334
Como mostra Reis ao resgatar a advertência de George Steiner: “enquanto o policial ou o censor interroga o
escritor, o crítico interroga apenas o livro.” In: Reis, Zenir Campos. “Sinal de menos”. In: Teresa: revista de
literatura brasileira 2. São Paulo: Editora 34, 2001, p. 160.
147
antes um olhar crítico aberto ao novo. Quando a experiência - base de sua obra -, provou ao
homem (especialmente através da cadeia), as infinitas possibilidades de ão humana, ele não
as negou, tanto que os livros são marcados por seu sentimento de surpresa diante da
imprevisibilidade humana.
Ao lado da principal mudança que a experiência carcerária operou sobre Graciliano
o seu modo de olhar os homens –, podemos notar uma modificação em sua escrita. No
primeiro capítulo do livro, após expor os empecilhos à sua narração, ele discute as condições
necessárias à escrita:
Quem dormiu no chão deve lembrar-se disto, impor-se disciplina, sentar-se em
cadeiras duras, escrever em tábuas estreitas. Escreverá talvez asperezas, mas é delas
que a vida é feita: inútil negá-las, contorná-las, envolvê-las em gaze. Contudo é
indispensável um mínimo de tranqüilidade, é necessário afastar as miseriazinhas que
nos envenenam.
335
A citação indica a necessidade de estar focado na atividade literária para que ela se
efetive, o que explica a dificuldade em escrever dentro da cadeia, onde Graciliano não
conseguia afastar seu pensamento do cotidiano carcerário e de problemas familiares distantes.
Além disso, podemos perceber a centralidade da experiência, em que o rcere deixa marcas
na escrita. Essas condições adversas reforçam aspectos presentes na obra do autor antes da
cadeia: a necessidade de disciplina e a precisão da palavra, que não deve atenuar a realidade,
mas antes revelá-la em sua dureza. Talvez a experiência carcerária, que evidenciou a
arbitrariedade limitante do mundo, tenha adensado tais características no romance publicado
após a saída da prisão - Vidas Secas. Segundo Coelho:
Neste romance, o estilo peculiar de Graciliano, isto é, a concisão, precisão e sugestão
dos vocábulos, chega à sua forma mais depurada, revelando bem a já tão comentada
“magreza” de sua prosa. O nosso romancista consegue aqui uma total adesão à
realidade através de uma extraordinária economia de termos: o vocábulo exato, a frase
séc, curta, direta, revelando apenas o essencial.
336
É importante que reflitamos sobre Vidas Secas, pois este foi o romance que Graciliano
escreveu após a saída da cadeia. Nele, como mostra Chaves
337
, há o “réu sem culpa”,
condição absolutamente central em Memórias do Cárcere. O autor destaca que essa presença
335
MC, 34
336
Coelho, Nelly Novaes. “Solidão e luta em Graciliano Ramos”. In: Tempo, solidão e morte. São Paulo:
Imprensa Oficial do Estado, 1964 , p. 33, 34.
337
Chaves, Flávio Loureiro. “A metáfora da tirania” Cadernos Ponto & rgula I. Porto Alegre: Secretaria
Municipal de Cultura, 1993, p. 17: “Esta personagem [Fabiano] também paga um alto preço por alguma suposta
transgressão que, em nenhum momento, chega a ser claramente definida. Resta-lhe a nebulosa intuição de
trafegar no deserto, quer em sentido geográfico, quer sob o ponto de vista do seu horizonte psicológico.”
148
também se dá em Infância e São Bernardo, ainda que neste seja através de Madalena, que não
é a personagem principal. Tomando os personagens centrais como referência, vemos que
uma divisão na obra de Graciliano: nos seus primeiros livros - Caetés, São Bernardo e
Angústia - a culpa, tanto que a escrita é uma forma de explicá-la; nos outros, a culpa
inexiste, pois estreitos limites são impostos aos sujeitos independentemente de suas ações.
Nessa divisão da obra de Graciliano, o ponto referencial seria precisamente a experiência
carcerária.
ainda que se considerar outros textos de Graciliano, inclusive a Terra dos meninos
pelados, história infantil escrita para um concurso logo após a saída da prisão. Segundo Ali:
Nada mais adequado que a história do menino solitário que idealizou o mundo num
sonho. A terra fantástica saída da imaginação do pequeno Raimundo Pelado foi a
primeira criação de Graciliano Ramos após a experiência pungente do cárcere. Uma
tentativa – podemos ler assim – de recuperar na ficção a imperfeição da realidade.
338
Depois da prisão, as obras de Graciliano deixaram de seguir certas tendências comuns
aos seus livros anteriores. Em oposição aos romances em primeira pessoa, surgiu um romance
em terceira pessoa, autobiografias, literatura infantil e contos. Álvaro Lins reconhece em
Vidas Secas, no qual não é o personagem quem narra a própria história, uma maior
aproximação de Graciliano em relação aos sofrimentos dos “desgraçados nordestinos”
339
. É
pertinente considerar que a cadeia tenha marcado uma mudança de ponto de vista em relação
aos homens e é certo afirmar que a diversidade de formas indica o rompimento com uma
tendência formal existente antes da prisão.
Centrando-nos nas obras fundamentais de Graciliano, notamos essa ruptura de unidade
como marca interna dos livros posteriores à prisão. Infância e Vidas Secas foram
originalmente publicadas em capítulos, o que indica a inexistência de um todo orgânico, e sim
de pequenas unidades fragmentárias
340
. Isso é possível porque cada capítulo faz-se como uma
338
Ali. Fátima. “O mundo imperfeito” In: Cadernos Ponto & Vírgula I. Porto Alegre: Secretaria Municipal de
Cultura, 1993, p. 38.
339
Lins, Álvaro. “Valores e misérias das vidas secas” In: RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. Rio de Janeiro:
Record; São Paulo: Martins, 1975, p. 163: “Antes, em S. Bernardo e Angústia, a sua atitude humana era quase
simplesmente de sarcasmo e revolta egoísta. Em Vidas Secas, ele se mostra mais humano, sentimental e
compreensivo, acompanhando o pobre vaqueiro Fabiano e sua família com uma simpatia e uma compaixão
indisfarçáveis. Aliás, não será significativo e explicativo a este respeito que Vidas Secas seja a sua primeira obra
de ficção em que a pessoa encarregada de narrar a história não é um personagem, mas o próprio romancista? Não
será isto um sinal de que antes deixava os personagens entregues à própria sorte, enquanto agora se identifica
com os desgraçados nordestinos de Vidas Secas?”
340
A estrutura dos livros, especialmente de Vidas Secas, já foi alvo de debate crítico. Vejamos aqui as
considerações de Mourão e Garbuglio. Mourão, Rui. Estruturas: ensaios sobre o romance de Graciliano Ramos.
Curitiba: UFPR, 2003, p. 122: “Na verdade os diversos lances do romance se constituem de peças que, embora
em câmera lenta, giram em torno do seu próprio eixo, antes de integrar aquela corporação planetária comum.”
149
unidade representativa da opressão do mundo sobre o homem; em Caetés, São Bernardo e
Angústia, cada capítulo compõe o processo linear de explicação da reação do sujeito contra o
mundo, o que só será compreendido com a leitura integral de cada obra.
As características até o momento arroladas, que permitiriam dividir a obra de
Graciliano em dois grupos, parecem indicar um movimento de intensificação da consciência
da fragilidade do sujeito e, paradoxalmente, de sua capacidade de resistência. As obras
anteriores à prisão tinham como característica comum o fato de serem escritas em primeira
pessoa e mostrarem uma possibilidade de resistência humana pela força, inclusive da palavra
escrita, que os três personagens centrais eram escritores. Vidas Secas e Infância, por outro
lado, trazem em seu núcleo personagens destituídas da palavra, do direito à voz. Eles estão
sujeitos a um mundo que pouco compreendem, mas, apesar disso, mostram como é possível
resistir à opressão (o que, no caso da criança, se dará também pela aquisição da palavra
escrita). A própria existência mostra uma pequena vitória do sujeito, que se dá através de uma
proximidade com o outro. Vidas Secas, considerado por alguns como o livro mais “humano”
de Graciliano
341
, é marcado, segundo Coelho
342
, por pessoas que, apesar do distanciamento,
não revelam egoísmo: elas formam uma família que, mesmo diante da violência do mundo,
sustentam alguma forma de solidariedade e compreensão. A criança de Infância, condenada
ao isolamento, encontrava meios de fortalecer-se através do aprendizado com o outro. Nesses
livros, diferentemente do que vemos em Caetés, São Bernardo e Angústia, a proximidade
com as outras pessoas não é apenas algo destruidor, mas também capaz de construir a
resistência do homem contra um mundo poderoso.
Em decorrência do que apontamos a escrita em primeira pessoa e o afastamento
em relação aos homens os livros anteriores à prisão indicam maior inclinação à
subjetividade dos personagens, à descoberta do que “vai de mais recôndito no homem, sob as
aparências da vida superficial”
343
. uma sensível mudança em Vidas Secas e Infância, nas
quais apesar do interesse pela interioridade do homem, ele é colocado em segundo plano em
favor da necessidade de entender as relações humanas. Sugerimos que a prisão mostrou a
Garbuglio, Jo Carlos. “Graciliano Ramos: a tradição do isolamento” In: Garbuglio, J.C. et alii. Graciliano
Ramos. São Paulo: Ática, 1987, p. 376: “Escrito em capítulos independentes, como unidades autônomas, o
romance segura cada um em seu lugar, como peças isoladas de um jogo solitário, que retrata o conjunto e
espelha a impossibilidade de agregação.”
341
Vejamos, por exemplo, o comentário de Lins sobre “Vidas Secas”: “o mais humano e comovente dos livros
de ficção do Sr. Graciliano Ramos” Lins, Álvaro “Valores e misérias das vidas secas” In: Ramos, Graciliano.
Vidas Secas. Rio de Janeiro: Record; São Paulo: Martins, 1975, p. 164.
342
Coelho, Nelly Novaes. “Solidão e luta em Graciliano Ramos”. In: Tempo, solidão e morte. São Paulo:
Imprensa Oficial do Estado, 1964 , p. 35.
343
Candido, Antonio. Tese e Antítese. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1964. p. 97.
150
impossibilidade de compreender efetivamente as complexas motivações de um homem, mas
tornou imperativa a necessidade de, ao menos, discutir suas ões e os limites do mundo ao
tentar determiná-las.
Ao ser perguntado sobre o impacto da prisão sobre a visão de Graciliano Ramos,
Reis
344
responde que ela não “transformou as convicções” do autor, “talvez tenha dado mais
clareza intelectual e uma vivência emocional mais profunda do problema.” O crítico mostra
que, desde menino, Graciliano era sensível aos problemas dos homens, algo que se
intensificou com o passar dos anos. Em outras palavras:
Então, eu não acho que ele tenha se transformado radicalmente. Eu acho que ele
ganhou clareza numa série de coisas, mas não é uma transformação do sim para o não.
É uma espécie de ganho de consciência, de aprofundamento de consciência. Isso que
parece que ocorre depois da prisão do Graciliano Ramos.
345
Concordamos com Reis, pois em diversos documentos e obras de Graciliano,
especialmente nas de cunho autobiográfico, está indicada sua preocupação com o homem,
com a dignidade de sua existência. Mas ainda que a cadeia não lhe tenha transformado
radicalmente, a intensificação da consciência, acreditamos, deixa repercussões sensíveis nos
textos posteriores à prisão. Para ilustrar o fato, lembremos de um episódio narrado em
Memórias do Cárcere, no qual Graciliano ouve um relato absurdo e afirma que não o
consideraria possível se nunca houvesse sido preso, novamente reforçando a importância da
experiência. Diante disso ele se coloca uma questão: “notava a deficiência e perguntava como
diabo me atrevia a fazer obra de ficção”
346
. Essa frase indica certa desconfiança de Graciliano
em relação aos seus textos anteriores, que embora sejam também marcados por sua
experiência, contêm fatos que, por ele nunca os ter vivenciado, poderiam ser imprecisos.
Apesar desse questionamento e de algumas dúvidas que o assaltam em relação a seus livros, o
autor continua, após a cadeia, apostando na ficção forma gradativamente abandonada. Com
esse episódio queremos mostrar que, embora a experiência carcerária não tenha operado uma
transformação radical em Graciliano, apenas um adensamento de sua percepção, ela talvez
seja a chave explicativa da passagem da ficção à confissão na obra do autor. Após a prisão,
344
“Entrevista com Zenir Campos Reis”. Disponível em: http://mecsrv04.mec.gov.br/seed/tvescola/Mestres/
PDF/Revisao-T.Graciliano-Zenir%20Campos%20Reis Acessado em 19 jan. 07.
345
Ibidem.
346
Vejamos como Graciliano apresenta a situação com suas palavras. MC, 335: Acomodava-me a ambientes
novos e quando neles surgia uma brecha, alarmava-me. Articuladas as peças da narrativa, via-me forçado a
achá-la natural. Por que não fizera isso antes, não admitira sem auxílio os casos vergonhosos e medonhos?
Evidentemente não podiam ser de outro modo, mas na véspera estivera longe de supor tal coisa. Notava a
deficiência e perguntava como diabo me atrevia a fazer obra de ficção.” (grifo nosso).
151
ele sente a necessidade de buscar uma forma de utilizar a palavra, que possibilitasse a
expressão daqueles que, entre outros aspectos, estão precisamente destituídos do poder da
palavra. Além de dar voz a si próprio na autobiografia, Graciliano escreve Vidas Secas, que
segundo Álvaro Lins, possuiria “dois defeitos consideráveis”: a sua construção em quadros,
com capítulos independentes e a inverossimilhança no trato com os personagens. Vejamos a
crítica a esse segundo aspecto:
O outro defeito é o excesso de introspecção em personagens tão primários e rústicos,
estando constituída quase toda a novela de monólogos interiores. A inverossimilhança,
neste caso, não provém da substância da novela, mas da técnica. [...] Tudo o que o
romancista, nos monólogos interiores, atribui a Fabiano, sua mulher e seus filhos, são
pensamentos e reflexões à altura do que lhes poderia ter ocorrido realmente. Eles
pensam, imaginam e sentem o que seriam pessoalmente capazes de pensar, imaginar e
sentir. O romancista caiu numa inverossimilhança quanto á técnica à disposição dos
monólogos, mas se salvou dessa falha no que diz respeito ao conteúdo deles.
347
Álvaro Lins considera que o tema dos pensamentos, mas não o modo de apresentá-los,
é adequado aos “personagens tão primários e rústicos”. No entanto, como Graciliano poderia
apresentar as ideias desses homens através da fala, da qual eles estavam destituídos
precisamente pelo esvaziamento individual sofrido? Ao mostrar a riqueza de pensamento
daquelas pessoas através de monólogos interiores, Graciliano precisamente afastava a crítica
de que escrevera algo inverossímil, pois como alguém poderia fazer tal afirmação em relação
ao pensamento dos outros, de personagens que embora sejam marginalizados, podem ser
surpreendentes, complexos? Fabiano e sua família representam as pessoas “desviantes” desse
trabalho. Graciliano, após testemunhar, especialmente na cadeia, que as pessoas podiam ir
muito além de qualquer determinismo, não poderia mais restringir seus personagens ficcionais
apenas às expectativas superficiais criadas em relação ao seu estereótipo. Os monólogos dos
sertanejos apontam precisamente que não é possível saber o que pensa um homem (e um
personagem com a complexidade humana), sendo incoerente nivelá-los por baixo, pela
condição social deles. A experiência provou a Graciliano que as pessoas estão além das
funções que desempenham na vida social.
Diante do exposto, reforçamos que a experiência carcerária é central na compreensão
da obra de Graciliano Ramos. Não é propriamente Memórias do Cárcere, é a experiência em
si. Não é fato inédito que esse livro autobiográfico seja tomado como referência para a leitura
dos livros de Graciliano. Bastos, por exemplo, considera que “as Mc são o ponto em torno do
347
Lins, Álvaro. “Valores e misérias das vidas secas” In: Ramos, Graciliano. Vidas Secas. Rio de Janeiro:
Record; São Paulo: Martins, 1975, p. 164.
152
qual se configura o conjunto da obra, não como soma das diversas obras, mas como o todo”.
Tomada como “obra-prima do autor”
348
, Memórias do Cárcere seria um referencial para
estudar os demais livros do autor porque:
Ao ler as Mc, acompanhamos o autor na leitura que ele próprio realiza dos seus livros.
Interessa-nos, assim, seguir as pistas trilhadas pelo próprio autor na busca do
entendimento e de interpretação da sua obra. Graciliano prepara sua futura recepção,
adiantando-se a possíveis críticas e previamente rebatendo-as.
349
Em nossa dissertação, não enfocamos, a leitura que Graciliano faz de suas outras
obras. Consideramos primordialmente a centralidade de Memórias do Cárcere por ela
permitir que se conheça, nas palavras do próprio autor, o modo como uma experiência
singular marcou sua visão sobre o mundo e, principalmente, sobre os homens
350
. A morte que,
como indicamos, é um momento de avaliação mais completa dos acontecimentos, está
duplamente presente nesse livro. Graciliano - personagem e autor - está marcado pela morte.
No primeiro caso, a descida ao subterrâneo da sociedade permitiu que ele conhecesse como os
homens, apesar da luta individual pela sobrevivência, são capazes de preocupar-se com o
outro. Assim, o Graciliano que acompanhamos em Memórias do Cárcere, ao sair da cadeia,
passou a olhar o mundo de uma outra forma, que influenciou suas obras posteriores. no
caso do autor, que se coloca diante dos fatos, tanto tempo após tê-los vivenciado, consegue,
especialmente por saber-se próximo da morte, desvincular-se de amarras sociais, que
poderiam condicionar as palavras com que se referia a si mesmo e aos outros. Em
retrospectiva, fatos que pareciam absurdos como o oferecimento de dinheiro feito pelo
capitão Lobo – permanecem absurdos, sendo registrados como inverossimilhança no contexto
narrativo. A morte permite que ele se aproprie da forma autobiográfica com a liberdade
necessária para revelar uma esperança no homem, no que ele pode guardar de inusitado.
348
Bastos, Hermenegildo. Memórias do Cárcere: literatura e testemunho. Brasília: Editora da UnB, 1998, p. 20.
349
Idem, p. 24.
350
Reis afirma que “A prisão foi uma experiência fundamental na vida adulta de Graciliano Ramos. Ao lado de
Infância, pode-se dizer que Memórias do Cárcere, narrativa de dez meses de cadeia, fornece, mais que uma
autobiografia, mais que um documento histórico, uma chave de compreensão literária daquele escritor.” Reis,
Zenir Campos. “Tempos futuros” In: Revista do Instituto de Estudos Brasileiros 35. São Paulo, 1993, p. 73.
Embora o autor coloque as duas obras como referências para a compreensão da obra de Graciliano, é a narrativa
sobre a cadeia que ganha destaque. Na mesma linha de Bastos, Reis considera a importância de Memórias do
Cárcere porque ali se revelam observações sobre Angústia. Mas acrescenta um ponto que se aproxima do nosso
modo de entender a relevância desse livro autobiográfico: o cárcere influenciou a decisão de escrever sobre o
“sertanejo pobre”, pois aquela experiência fez com que Graciliano abandonasse qualquer possibilidade de ser um
“observador estranho aos acontecimentos”. O olhar atento para as pessoas era uma marca do autor, como
indica sua obra anterior à cadeia, mas se intensifica ali dentro, quando ele também faz parte de uma minoria.
153
Pensando nos termos fundamentais de nosso trabalho descoberta e limite
poderíamos colocar que a centralidade de Memórias do Cárcere para a compreensão da obra
de Graciliano se deve principalmente por revelar uma experiência que provou a arbitrariedade
dos limites mundanos e que, por outro lado, permitiu que se descobrisse a resistência existente
na singularidade humana, o que deixou marcas nas obras posteriores à soltura do autor.
Ademais, esse livro mostrou que, dentro dos limites literários, é possível atingir a força da
palavra (precisamente a forma que Graciliano elege para agir sobre o mundo). Memórias do
Cárcere prova a vitória do homem sobre o mundo porque a obra vence os limites da vida
humana, permanecendo como testemunho apesar da morte das pessoas envolvidas nos
acontecimentos narrados.
154
C
ONSIDERAÇÕES FINAIS
Descoberta e limitação. Descobrir a amizade, limitar-se pela desconfiança; descobrir a
bondade gratuita, limitar-se pela maldade indiscriminada; descobrir novos mundos, limitar-se
no espaço. Na obra autobiográfica de Graciliano, muitas outras variáveis que poderiam ser
arroladas, dentre as quais consideramos central a condição de limitar-se pelas instituições e
descobrir a imprevisibilidade humana.
Escola, família e prisão constituem o veio institucional que estrutura Infância e
Memórias do Cárcere. É seu poder de sujeitar o homem que o tom negativo das obras,
algo ainda mais surpreendente no caso da primeira, na qual quase nem vestígio de sonhos
infantis. Embora nesse livro não haja uma infância idealizada, repleta de carinhos e aventuras,
ela não está reduzida apenas à negação, pois muitas pessoas se colocam como parceiras do
menino na compreensão de um mundo hostil, deixando-o à vontade para duvidar e questionar.
Essas pessoas, que retiram o menino do isolamento ao considerarem-no um interlocutor,
permitem que ele amplie seus referenciais. Por possibilitarem a humanização infantil em um
meio de grande privação, essas pessoas, em geral, recebem uma apresentação profundamente
personalizada, que se opõe à metonímica caracterização dos pais por meio de suas mãos -
instrumento de poder fundamental naquela relação familiar.
As pessoas que tratam o menino com respeito ajudam-no a se reconhecer como uma
pessoa. Com uma compreensão mais profunda de si mesmo (suas vontades e dúvidas), ele
gradativamente descobre a vastidão de um mundo ao qual, a princípio, sente-se ligado de
forma direta. Ensimesmado pela solidão a que o relegavam, considera tempo e espaço como
continuidades de sue corpo. Sem ninguém para dar-lhe explicações, suas dúvidas eram
precariamente respondidas por ele mesmo, que tentava encaixar incoerências humanas em
uma frágil régua construída com sua pouca experiência. Com isso, sua linguagem recebe
fortes traços imagéticos, em que conceitos abstratos são aproximados do que ele podia
apreender concretamente. As condições daquela vida infantil levam o menino a centrar-se em
si, buscando seus próprios meios de entender o mundo. O olhar da criança sobre a realidade
está marcado de lirismo, pois ela e o mundo constituem uma unidade, ainda que frágil e
limitada.
A unidade é rompida com o aprofundamento do processo de descoberta. Aos poucos,
o menino entende que a limitação nem sempre será compreendida por ele, pois algumas
imposições não podem ser pensadas a partir de seus referenciais conhecidos ou sequer
explicadas por outras pessoas. A limitação por vezes instaura o inédito absoluto, que torna um
155
critério válido apenas para uma situação específica. Nesses casos, portanto, a limitação deve
ser simplesmente aceita, pois assume a forma da lei, autoridade e poder
351
.
O aprofundamento na compreensão da realidade e, consequentemente, da natureza dos
limites, tem relação direta com o desenvolvimento da capacidade leitora. Ao ler as palavras, o
menino pode notar o mundo conhecido de outra forma, com sua complexidade.
352
A leitura
ajuda a criança a assumir uma posição ativa nas suas descobertas. Enquanto em relação às
pessoas, ela sempre esteve sujeita à disponibilidade e interesse alheios, na leitura os meios e
os fins da descoberta estão em suas mãos, exigindo apenas empenho. Ao conquistar a palavra
escrita (e a fantasia que ela traz consigo), o menino assume um posicionamento crítico diante
de sua realidade, manifestando juízos e gostos, não aceitando apenas o que lhe era imposto.
Por meio da leitura, o sujeito se fortalece e passa a reconhecer-se como uma unidade separada
do mundo. Essa cisão não se efetiva completamente nos limites de Infância, embora ali
estejam esboçados alguns indícios.
353
O final do livro marca a entrada em uma outra fase da
vida, em que as cores intensas, indicativas de uma compreensão mais polarizada da realidade,
cedem espaço às tonalidades difusas, características da indefinição de um mundo que só pode
ser apreendido por um sujeito capaz de observá-lo com olhar profundamente crítico e
distanciado.
O olhar dialético e crítico, incipiente na vida infantil, está presente em Memórias do
Cárcere, dando-lhe traços muito diferentes. Nesse livro, a limitação institucional está
concretamente marcada nas barras de ferro, que impedem a movimentação e o distanciamento
dos corpos. Os homens animalizados, condenados ao nimo indispensável à sobrevivência
do corpo, por vezes, agem instintivamente, transformando a vivência coletiva em uma prova
de resistência dos mais fortes. O absurdo da situação, instaurado desde a prisão arbitrária,
mostra a Graciliano uma realidade oposta aos seus referenciais. Vivenciando a negação de
toda sua formação, o homem não apenas se reconhece radicalmente separado do mundo, mas
também se sente separado dele próprio, do homem que se formara em liberdade.
351
Os episódios da prisão arbitrária de Venta-Romba e da proibição da leitura de um folheto sobre crianças
abandonadas são representativos dessa condição.
352
Freire, Paulo. A importância do Ato de Ler. São Paulo: Cortez, 1983, p. 11, 12: A leitura do mundo precede
a leitura da palavra, d que a posterior leitura desta não possa prescindir da continuidade da leitura
daquele.Linguagem e realidade se prendem dinamicamente, a compreensão do texto a ser alcançada por sua
leitura crítica implica a percepção das relações entre o texto e o contexto”.
353
No episódio de Venta-Romba, por exemplo, o menino sente-se envergonhado por sua apatia diante do abuso
de poder paterno, mas nada faz. No entanto, o narrador adianta os efeitos do episódio para o futuro: a
dessacralização da autoridade.
156
Aquela realidade leva Graciliano a repensar a compreensão que tinha de si mesmo e
dos homens. Compartilhando com outras pessoas a busca pela sobrevivência (do corpo e da
integridade humana), ele se surpreende quando presos e militares, contrariando qualquer
determinismo, são capazes de ações generosas completamente desinteressadas. Tomando as
pessoas singulares como referencial, o homem se fragiliza por se considerar incapaz de
tamanha resistência ao mundo. Assim, para destacar o que considera efetivamente
fundamental na experiência carcerária as pessoas –, essa autobiografia traz um “eu” pouco
marcado. A consciência do distanciamento entre mundo e homem e da fragmentação
individual alia-se à necessidade de dar voz ao coletivo para criar uma narrativa sem marcas do
lirismo. Para não limitar a complexidade das pessoas ao olhar individual, a escrita
profundamente descritiva e realista visa a permitir que o leitor partilhe do horror do
encarceramento e reconheça, com profundidade, a resistência humana a um meio massificado.
As pessoas, juntamente com a palavra, têm, em Infância, a função de favorecer o
processo formativo do menino, algo bem distinto do que se em Memórias do Cárcere, no
qual revelam os indícios da desagregação individual. Ainda que Graciliano tente se agarrar à
palavra escrita como meio de garantir um sentido para sua experiência, não acreditava
efetivamente nela, seja no conhecimento dos livros lidos, seja nas ficções escritas. A
autobiografia, escrita tantos anos após a saída na cadeia, mostra que a relação com a palavra
foi restabelecida apesar de uma experiência que a colocava em xeque. Nesse sentido, a busca
por essa forma de expressão mais pessoal, para além de indicar a necessidade de passar da
ficção à confissão, mostra um processo de resignificação da palavra escrita, da tentativa de
encontrar uma forma que pudesse expressar os sentimentos de alguém tão modificado pela
prisão. Afastando-se dos romances em primeira pessoa, Graciliano experimenta diversas
formas de escrita para atingir, já quando sabia estar próximo da morte, à composição de
Memórias do Cárcere, que precisamente narraria a experiência que modificara sua relação
com o mundo e a palavra.
A autobiografia é uma forma mais democrática, pois mesmo aqueles que não possuem
qualidades literárias (o que certamente não é o caso de Graciliano) encontram nela um espaço
de expressão. Isso ocorre porque esse gênero característico da modernidade possibilita o
direito de expressão àqueles que foram descartados precisamente pelos estreitos crivos da
modernidade. Apropriando-se da autobiografia, Graciliano mostra que ele, em seus momentos
de maior fragilidade (durante a infância e sua prisão), conseguiu resistir ao mundo. Através de
uma forma que exige a unidade do sujeito (personagem, narrador e autor unidos sob um único
nome), ele venceu a fragmentação de experiências adversas. Enquanto o romance, também
157
estreitamente relacionado à modernidade, é a forma que expressa a separação do homem em
relação ao mundo, a autobiografia é a que melhor responde a um homem que não mais
reconhece o mundo e a si mesmo, mas que ainda assim busca seu espaço. A necessidade de
rememorar fatos para a escrita faz com que o homem possa repensar suas ações,
reconhecendo fragilidades e virtudes. No caso de Graciliano, a escrita autobiográfica mostra o
quanto ele, individualmente, é significativo, ainda que sua forma de ação seja diferente
daquela que o surpreendeu em alguns homens do meio carcerário.
Ao escrever as autobiografias, Graciliano deixa seu rastro individual e se opõe ao
mundo massificado através da palavra, dando um testemunho pessoal sobre a História, que
possivelmente ignoraria a existência de homens “desviantes”. a necessidade de apresentá-
los detalhadamente para que outros, assim como ele, pudessem repensar uma visão mais
simplista da humanidade:
Não imaginara poder testemunhar semelhante ação. Pessimismo? De forma nenhuma.
Não supunha os homens bons nem maus: julgava-os sofríveis, pouco mais ou menos
razoáveis, naturalmente escravos dos seus interesses. Sem dúvida: uma razão miúda,
variável com as circunstâncias e o egoísmo natural: dormir, comer, amar, reproduzir-
se; um pouco acima disto, avaliar quadros e livros, inspirar respeito, mandar.
Ora, a minha observação daquela manhã era desarrazoada e prejudicial ao seu agente.
Isto me causava dolorosa surpresa: chocava exames anteriores, contradizia opiniões
firmes e experimentei uma sensação molesta, devo ter involuntariamente malsinado
a criatura que me abalava. Era possível então alguém proceder de tal maneira? Por
quê? Não conseguia orientar-me, agarrar um móvel qualquer, justificar o disparate.
Sem dúvida um homem que resolvia prejudicar-se em benefício de um estranho não
estava no seu juízo perfeito. Razoável, normal, não me comportaria nunca de tal
modo. Não me comportaria? Nem sequer imaginava que alguém pudesse ter aquele
procedimento.
354
Negando o pessimismo que muitos reconhecem em sua personalidade e obra
355
,
Graciliano afirma que sua descrença em ações singulares não decorria de uma visão
estritamente negativa dos homens, mas de uma concepção crítica, em que, inclusive tomando
a si mesmo como referencial, os indivíduos revelavam seu egoísmo. Quando a cadeia revelou
homens diferentes do que imaginara, Graciliano valeu-se de todos os recursos literários
354
MC, 110.
355
Apenas para ilustrar um dos diversos comentários sobre o pessimismo de Graciliano, vejamos o que diz
Álvaro Lins: “Esta preocupação de fixar e exibir o caráter humano poderia significar que o Sr. Graciliano Ramos
estima seus semelhantes e está interessado pela sua sorte. Mas, não. Verifica-se o contrário; o seu julgamento
dos homens é o mais pessimista e frio que se possa imaginar; o seu sentimento em face deles é de ódio ou
desprezo.” Álvaro. “Valores e misérias das vidas secas” In: RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. Rio de Janeiro:
Record; São Paulo: Martins, 1975, p. 139.
158
possíveis para mostrar sua singularidade, destacando suas ações e dando-lhes a liberdade de
pessoas, não a limitação de personagens.
A experiência carcerária, que consideramos ponto fundamental para a compreensão da
obra de Graciliano Ramos, permitiu que o autor descobrisse não haver limites para o homem,
entre os quais ele próprio se incluía. Por meio da autobiografia, que exige uma reflexão
intensa sobre a experiência, Graciliano manifesta sinais de uma contida esperança, o que,
segundo Jaspers, é fundamental para a vida, sendo real quando se baseia no existente
356
. É
nesse sentido que Memórias do Cárcere, mais que qualquer outra obra de Graciliano, revela-
se um testemunho de sua esperança: agarrando-se ao final de sua vida, o autor se esforçou
para partilhar uma experiência sobre a imprevisibilidade humana. Ao contrário do que coloca
Bastide, a sua carreira literária não é encerrada com um fracasso, mais especificamente o
“fracasso na comunhão com o outro”
357
. É no homem que está sua aposta. Isso não significa
que o livro de Graciliano seja marcado por uma crença fácil e direta na humanidade e no
mundo, que ele reconhece profundamente a forte teia de limitações que envolve a ação
humana. Seu próprio exemplo mostra a necessidade de ultrapassar as limitações da vida e da
escrita para descobrir uma forma de expressar o olhar crítico sobre a realidade, por meio da
qual seja possível vislumbrar algum sinal de mudança:
Liberdade completa ninguém desfruta: começamos oprimidos pela sintaxe e acabamos
às voltas com a Delegacia de Ordem Política e Social, mas, nos estreitos limites a que
nos coagem a gramática e a lei ainda podemos nos mexer.
358
Em meio a tantos limites (os institucionais que atingiram o personagem e a morte que
se mostrava ao autor), a experiência carcerária tornava patente a necessidade de mostrar que
“as potencialidades do homem enquanto homem permanecem ocultas em sua liberdade”
359
. O
mais famoso pessimista da literatura brasileira, Graciliano Ramos, que em sua própria vida
356
Jaspers, Karl. Introdução ao pensamento filosófico. São Paulo: Cultrix, 1965, p. 53: “A coragem engendra
esperança. Sem esperança, não vida. Enquanto vida, sempre um mínimo de esperança, que brota da
coragem. A esperança se mostra ilusória quando o existente naufraga. amparado na coragem pode o homem
caminhar de fronte erguida para o seu fim.”
357
Bastide, Roger. “Graciliano Ramos” In: Teresa: revista de literatura brasileira 2. São Paulo: Editora 34,
2001, p. 137: “Assim, é num fracasso que se encerra a carreira literária deste grande escritor, fracasso da
comunhão com o outro. Mas este fracasso é também o signo de uma vitória, pois, com todo o sofrimento,
escreveu uma das obras mais notáveis da literatura brasileira contemporânea. Das mais notáveis e também das
mais originais pelo seu estilo.” Concordamos com a segunda parte da colocação de Bastide, quanto à qualidade
literária da obra de Graciliano, apenas ponderamos que ela não é decorrente apenas de uma relação negativa com
os homens.
358
MC, 34 (grifo nosso).
359
Jaspers, Karl Introdução ao pensamento filosófico. São Paulo: Cultrix, 1965, p. 53, 54.
159
descobriu formas de agir dentro dos limites
360
, apontou na literatura um caminho para a
descoberta de que a resistência ao mundo é sempre possível.
360
Pensemos, por exemplo, no serviço de Graciliano no DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda), em que
na limitação do regime autoritário ele descobriu uma forma de ganhar dinheiro e expressar-se: “Graciliano
escreve, pois, na revista da elite e para a elite intelectual, sob a tutela do DIP, onde a ambiguidade e mesmo a
oposição eram toleradas, o que permitia ao escritor, ao mesmo tempo, manter as ilusões de sua independência
pessoal e receber vantajosa remuneração por seus textos, de ver que aquela revista era a que melhor pagava (e
em dia...) os seus colaboradores. Tudo no interior do mesmo projeto ideológico, evidentemente.” Facioli,
Valentim. “Biografia intelectual”. In: Garbuglio, J.C. et alii. Graciliano Ramos. São Paulo: Ática, 1987, p. 68.
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