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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE FEIRA DE SANTANA
DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS EXATAS
PROGRAMA DE PÓS GRADUAÇÃO EM
MODELAGEM EM CIÊNCIAS DA TERRA E DO AMBIENTE-PPGM
CLÁUDIA OLIVEIRA DOS SANTOS
Kosi omi, kosi orixá. Sem água, sem orixá.
Modelagem etnoecológica sobre uso da água no Ilê Axé Iyá Nassô Oká /
Terreiro da Casa Branca, em Salvador-Bahia
FEIRA DE SANTANA - BAHIA
2009
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CLÁUDIA OLIVEIRA DOS SANTOS
Kosi omi, kosi orixá. Sem água, sem orixá.
Modelagem etnoecológica sobre uso da água no Ilê Axé Iyá Nassô Oká /
Terreiro da Casa Branca, em Salvador-Bahia
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Modelagem em Ciência da Terra e
do Meio Ambiente da Universidade Estadual de
Feira de Santana.
Orientador: Profº Dr. FÁBIO PEDRO
SOUZA DE FERREIRA BANDEIRA
FEIRA DE SANTANA - BAHIA
2009
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Ficha catalográfica - Biblioteca Julieta Carteado da Universidade Estadual de Feira de
Santana.
Santos, Cláudia Oliveira dos.
Kosi omi, kosi orixá. Sem água, sem orixá: Modelagem etnoecológica sobre uso da água
no Ilê Axé Iyá Nassô Oká/Terreiro da Casa Branca, em Salvador-Bahia./Cláudia Oliveira
dos Santos – Feira de Santana, 2009.
1x, fls + anexo
=
Dissertação (Mestrado): DEXA/UEFS – 30.10.2009
Orient.: Bandeira, Fábio Pedro Souza de Ferreira
1. Água 2. Candomblé 3. Etnoecologia I. Título
CLÁUDIA OLIVEIRA DOS SANTOS
Kosi omi, kosi orixá. Sem água, sem orixá
Modelagem etnoecológica sobre uso da água no Ilê Axé Iyá Nassô Oká /
Terreiro da Casa Branca, em Salvador-Bahia
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Modelagem em Ciência da Terra e
do Meio Ambiente da Universidade Estadual de
Feira de Santana.
Feira de Santana, 30 de Outubro de 2009
BANCA EXAMINADORA
_________________________________________
Profº Drº Fábio Pedro Souza de Ferreira Bandeira
Universidade Estadual de Feira de Santana/ UEFS
__________________________________________
Profº Drº José Geraldo Marques
Universidade Estadual de Feira de Santana / UEFS
____________________________________________
Profº. Drº Antônio Almerico Biondi Lima
Universidade Estadual de Feira de Santana / UEFS
Ao meu irmão Clebson (Keu) minha mais
profunda saudade, saudade sem fim... Sempre
foi um cara do bem, entusiasta, determinado,
sonhador, um guerreiro, apaixonado pela
vida. Dedico a ele esta vitória.
AGRADECIMENTOS
Esta é uma parte difícil, onde posso cometer o erro de esquecer alguém. Vejo a trajetória
trilhada e queria saber o nome de cada um que cruzou meu caminho, dos motoristas de ônibus
que me conduziram tantas vezes nessas idas e vindas de Salvador até Feira de Santana até o
pessoal da cantina que muitas vezes me serviu um lanche na hora da fome. Bem, mas vamos
lá.
Quero agradecer primeiramente a Deus, que aprendi a também chamar de
Olodumaré.
Obrigada meu Deus por cada instante, pelas inspirações, pelas pessoas que encontrei nessa
caminhada, por cada dorzinha de cabeça, obrigada por esta realização!
Agradeço às instituições. Obrigada à Universidade Estadual de Feira de Santana, na pessoa da
professora Majorie Nolasco coordenadora da PPGM, por acreditar nessa pesquisa e estimular
meu retorno ao mundo acadêmico. Agradeço à professora Graça, da Biblioteca Julieta
Carteado, pela grande generosidade em nos ajudar na revisão das referências desta
dissertação. Obrigada ao Instituto de Gestão das Águas e Clima, na pessoa do gestor público e
também professor, Julio Cesar de da Rocha, pelo investimento feito nas pessoas, mediante
parceria com a universidade visando qualificar os seus quadros para melhor servir à
sociedade. Obrigada a Conder por ceder as fotos que nos ajudaram a retratar um pouco como
era a área do entorno do Terreiro da Casa Branca.
Muito obrigada aos professores da PPGM da UEFS com os quais cursei disciplinas e que de
uma forma ou de outra me ajudaram no amadurecimento da pesquisa. Obrigada aos meninos
da PPGM, Tiago e Juciane, pelo apoio e disponibilidade em nos ajudar sempre. Obrigada aos
meus companheiros (as) de curso e em especial às meninas: Viviane, Patrícia, Fátima, Oriana.
Obrigada mais que especial a Érika e família (Nilson, Geovana e Guilherme) que tantas vezes
nos abrigaram em sua casa com tanto carinho. Obrigada a Andréa Freitas pela ajuda na
ilustração sobre ciclo hidrológico, a Ana Chérie e Béatrice pela contribuição na tradução do
resumo.
Obrigada imensamente aos professores Almerico Biondi Lima e José Geraldo Marques que
cumpriram um papel fundamental nessa construção, atuando, considero, como co-
orientadores na pesquisa. Emprestaram-me livros, instruíram-me, me abraçaram, me
acolheram.
Muito obrigada ao meu pró Fábio Bandeira. Mais que um orientador, tornou-se um grande
amigo. Afinal, foram tantos os aconselhamentos, foram tantas as palavras amigas e
consoladoras diante de minhas angústias.
Muitíssimo obrigada ao povo da Casa Branca, com quem aprendi um pouco, dentro das
minhas limitações, sobre Candomblé e aprendi muito sobre fé, solidariedade, respeito aos
preceitos da religião, à ancestralidade e aos orixás. Obrigada a todos que me ajudaram nesses
dois anos de pesquisas nos concedendo entrevistas, permitindo nosso ingresso na
comunidade. Quero fazer um agradecimento especial à Ekedy Sinha, uma pessoa adorável.
Uma sábia que tem paciência de explicar, paciência para orientar sobre o Candomblé e está
sempre com os braços abertos para abrigar em seu colo todos aqueles que dela se aproximam
buscando uma palavra de carinho, um pouco de paz. Não à toa é chamada por muitos como
“Mãe Sinha”.
Obrigada aos meus amigos Tati, Glad, Pati, Teotônio e Moabe que sempre estão do meu lado.
Quero agradecer à minha família, minha razão de ser. Obrigada à minha avó Maria. Mulher
guerreira, 89 anos de idade. Não teve a chance de estudar, não aprendeu a identificar no papel
as palavras, mas com seus exemplos tem sido a grande professora na escola da minha vida,
nos repassados valores como: ética, dignidade, respeito ao próximo, solidariedade,
generosidade, humildade e tantos outros.
Obrigada a minha mãe, dona Terezinha, minha linda, minha inspiração para vencer e saber
que esse vencer é simplesmente ser feliz. Obrigada a meu pai, seu Bartolomeu, homem com
princípios sólidos, ético, honrado, trabalhador. Obrigada aos meus irmãos Carlton, Maria
Aparecida, Clebson (in memorian) e Evellyn por serem como são, junto comigo, uma corrente
inseparável. Obrigada também aos meus cunhados Roberto, Luciana e Sheilinha e aos meus
sobrinhos: Andressa, Bruna, Beatriz, Breno e Clarissa pelas alegrias que me dão.
Ao meu amor Valderi mais que obrigada. Chegar até aqui é ter ainda mais a certeza de que fui
abençoada por Deus ao conhecê-lo. Chegar até aqui é saber que amor se consolida com gestos
de solidariedade, de cuidado, de delicadeza, quando se anda de mãos dadas, em reciprocidade,
sobretudo, nos momentos mais difíceis. Chegar até aqui é saber que posso ir para onde quiser
desde que você esteja sempre ao meu lado, amor.
RESUMO
A água tem sido alvo de preocupação por toda parte, envolvendo de autoridades políticas e
comunidade científica, aos cidadãos comuns e à sociedade civil organizada, que
indiferentemente do status, etnia, nível socioeconômico e credo, estão no mesmo nível
biológico de dependência desse recurso natural. A problemática sobre a disponibilidade de
água doce está refletida na realidade atual. Estima-se que 1,4 bilhão de pessoas, o que
equivale a 25% da população existente, ainda não têm acesso regular ao abastecimento. A
crise da água é apontada como um problema para as atuais e gerações futuras. Nesse contexto,
são necessários estudos sobre a água nos seus mais diferentes aspectos. Essa pesquisa se
baseia na análise da relação entre tradições religiosas (ritos e mitos) da Comunidade de
Terreiro Ilê Axé Iya Nassô Oká/Casa Branca, em Salvador e a proteção dos recursos hídricos,
com uma abordagem etnoecológica. A pesquisa enfoca, portanto, como os saberes que são
transmitidos de uma geração a outra, a partir de mitos e ritos podem estar relacionados à
sustentabilidade da água e por serem considerados modelos de representação da realidade,
contribuem para que iniciadas e iniciados tenham uma relação diferenciada com os recursos
hídricos ao ponto de protegê-los e conservá-los dentro e fora do Terreiro.
Palavras-chave: Água, Candomblé, sustentabilidade hídrica.
ABSTRACT
Water has been a subject of concern all over the world, involving from political authorities
and scientific community to ordinary citizens and the organized civil society who, regardless
of status, ethnicity, socioeconomic level and belief, are at the same biological level of
dependence on this natural resource. The issue about the availability of freshwater is
reflecting in the current reality. It is estimated that 1.4 billion people, equivalent to 25% of the
existing population, still lack access to regular supply. The water crisis is identified as a
problem for current and future generations. In this context, studies on water in its different
aspects are needed. This research is based on the analysis of the relationship between religious
traditions (rituals and myths) of the Community at Terreiro Ilê Axé Iyá Nassô Oká / Casa
Branca in Salvador, Brazil, and their protection of water resources, with an ethnoecological
approach. The research focuses, therefore, on how the knowledge which is transmitted from
one generation to another through myths and rituals may be related to the sustainability of
water and, since they are considered as models of representation of reality, how they
contribute to the initiates having a differentiated relationship with the water resources so
much that they keep them and protect them inside and outside of the Terreiro.
Key words: water, Candomblé, water sustainability
LISTA DE FIGURAS E QUADRO
Figura 1 - Gráfico sobre a distribuição da água existente no planeta.....................................29
Figura 2 - Esquema sobre previsão do que deverá acontecer no mundo devido às mudanças
climáticas segundo o IPCC......................................................................................31
Figura 3 - Esquema sobre causas e consequências da escassez hídrica...................................32
Figura 4 - Esquema sobre situação da água no Brasil e distribuição para os diversos
usos..........................................................................................................................36
Figura 5 - Mapa da divisão hidrográfica da Bahia em 26 Regiões de Planejamento e Gestão
das Águas.................................................................................................................38
Figura 6 - Mapa sobre potencial de terras para irrigação na Bahia (PERH, 2000).................39
Figura 7 - Mapa sobre a qualidade da água dos rios na Bacia Hidrográfica do Recôncavo
Norte e Inhambupe ..................................................................................................41
Figura 8 - Mapa sobre balanço hídrico na Bahia. Nas áreas em vermelho, regiões com saldo
de balanço hídrico menor que 0,0 m³/s.....................................................................42
Figura 9 - Fundamentos, objetivos e diretrizes da Lei das Águas..........................................49
Figura 10 - Esquema com os instrumentos da Política Nacional de Recursos
Hídricos..................................................................................................................50
Figura 11 - Esquema com a composição do Sistema Nacional de Gerenciamento dos
Recursos Hídricos.................................................................................................52
Figura 12 - Fotos dos Encontros pelas Águas 2007.................................................................55
Figura 13 - Organograma sobre a composição do sistema hierárquico do Terreiro da Casa
Branca do Engenho Velho......................................................................................70
Figura 14 - Esquema sobre o significado da água na visão do povo de santo.........................77
Figura 15 - Esquema sobre os orixás das águas.......................................................................80
Figura 16 - Fotos aéreas do Barracão (A), de árvores sagradas e que revelam a expansão
urbana no entorno do Terreiro da Casa Branca do Engenho Velho.......................86
Figura 17 - Fotos do telhado do barracão, da casa da família da palha e o assentamento de
Oxossi ladeados por construções de casas..............................................................87
Figura 18 - Foto do assentamento de Exu dentro do barracão do Terreiro da Casa
Branca....................................................................................................................87
Figura 19 - Foto do altar que fica dentro do barracão..............................................................88
Figura 20 - Foto da porta de acesso ao corredor do barracão onde fica, por exemplo, o quarto
de Oxalá..................................................................................................................88
Figura 21 - Fotos da cadeira da yalorixá e da porta do quarto de Xangô e das
yabás........................................................................................................................89
Figura 22 - Foto do barracão com destaque para a imagem que simboliza Logunedé e os
atabaques................................................................................................................89
Figura 23 - Imagem da planta do Barracão e fotos da coroa de Xangô e de uma tela com
figura de
Xangô (D) ..............................................................................................91
Figura 24 - Placa na entrada do Terreiro da Casa Branca que mostra o tombamento do espaço
como Patrimônio Histórico e Etnográfico do Brasil..............................................94
Figura 25 - Imagem aérea da parte da frente do Terreiro onde está o Rio Lucaia..................96
Figura 26 - Fotos aéreas do Terreiro da Casa Branca de 1976, 1980, 1989, 1992 e 1998.
Mostram a expansão urbana no entorno da Casa Branca e como as construções vão
substituindo a vegetação........................................................................................98
Figura 27 - Fotos da frente do Terreiro da Casa Branca do Engenho Velho. As duas mostram
como o rio Lucaia foi transformado em esgoto.....................................................99
Figura 28 - Fotos da fonte de Oxum do Barco, da fonte de Oxum e foto (E) da fonte de
Oxumaré...............................................................................................................103
Figura 29 - Modelo com a sequência de obrigações com uso da água nos rituais do Ilê Iyá
Axé Nassô Oká...............................................................................
....................106
Figura 30 - Modelo que mostra a relação dos orixás com a água doce na visão de iniciados e
iniciadas do Terreiro da Casa Branca..................................................................113
Figura 31 - Modelo que indica a relação dos orixás com a natureza e qual a relação das
divindades com a água conforme entendimento de iniciados do Ilê Axé Iyá Nassô
Oká........................................................................................................................115
Figura 32 - Modelo que indica o papel do orixá Oxumaré no movimento das águas..........117
Figura 33 - Modelo do ciclo hidrológico conforme Hidrologia............................................118
Figura 34 - Modelo que mostra como os orixás são visto nos elementos da natureza segundo
entendimento de autoridade religiosa da Casa Branca.........................................118
Figura 35 - Foto da representação de Indancô......................................................................119
Figura 36 - Foto do Barco de Oxum da Casa Branca ..........................................................120
Figura 37 - Foto da fonte ornamental de Oxum....................................................................121
Figura 38 - Fotos da casa de Oxum e das quartinhas com água sagrada..............................121
Figura 39 - Escadarias que dão acesso à entrada principal do barracão................................122
Figura 40 - Fotos do machado de duas lâminas de Xangô, do arco e flecha de Oxossi e do
assentamento de Exu.................................................................................................123
Figura 41 - Fotos do assentamento de Xangô Airá e da fonte de Oxumaré.........................124
Figura 42 - Fotos dos alguidás com acassá que são distribuídas em alguns lugares do Terreiro
para agradar os orixás..........................................................................................125
Figura 43 - Fotos dos assentamentos de Ossain e Irôco........................................................121
Figura 44 – Fotos dos assentamento de Ogun e das yás......................................................122
Figura 45 - Fotos da casa da família da palha e assentamento de Exu com quartinhas com
água sagrada.......................................................................................................127
Figura 46 - Fotos dos assentamento de Oxossi e Ibualama, com quartinhas e purrões onde
são preparados os banhos de folha.....................................................................128
Figura 47 - Água no assentamento de Exu dentro do barracão............................................129
Figura 48 - Modelo sobre a distribuição da água sagrada no espaço geográfico do Terreiro da
Casa Branca do Engenho Velho.........................................................................129
Figura 49 - Fotos da porta dos fundos do barracão, assentamento da ancestralidade estrutura
de madeira onde é feita a casa para a saída de Oxalá........................................136
Figura 50 - Modelo que retrata a circulação da água na cerimônia de Águas de Oxalá e sua
transformação do estado sagrado para divino.....................................................139
Figura 51 - Fotos da retirada da água da Fonte de Oxum para análise
bacteriológica.....................................................................................................147
Quadro 01 - Resultados da análise da qualidade da água da Fonte de Oxum, conforme análise
da Embasa..........................................................................................................148
SUMÁRIO
I. INTRODUÇÃO...........................................................................................................13
II. PROBLEMATIZAÇÃO E METODOLOGIA.........................................................18
2.1. AS DESCOBERTAS DO SAGRADO.........................................................................22
2.2. PERCURSO METODOLÓGICO ................................................................................23
2.3 OS SUJEITOS DA PESQUISA....................................................................................16
3 PANORAMA DA ESCASSEZ HÍDRICA...............................................................29
3. 1 A ÁGUA NO MUNDO...............................................................................................29
3. 2 ABUNDÂNCIA E ESCASSEZ HÍDRICA: BRASIL DAS CONTRADIÇÕES.......34
3.3 BAHIA: POTENCIALIDADES E VULNERABILIDADES HÍDRICAS................38
3.4 TRATADOS E CONVENÇÕES INTERNACIONAIS: UM OLHAR PARA A
SUSTENTABILIDADE..............................................................................................42
4 A POLÍTICA DAS ÁGUAS ......................................................................................48
4.1 A LEI DAS ÁGUAS E OS INSTRUMENTOS DE CONTROLE DOS
USOS.............................................................................................................................48
4.2 COMUNIDADES TRADICIONAIS: A CARTA PELAS ÁGUAS COMO
INSTRUMENTO DE INCLUSÃO NA GESTÃO DOS RECURSOS
HÍDRICOS....................................................................................................................53
5 CANDOMBLÉ: UMA BREVE INTRODUÇÃO......................................................64
5.1 CANDOMBLÉ: HERANÇA ÉTNICA E RELIGIOSA................................................64
5.2 MITOS E RITOS: MODELOS DE REPRESENTAÇÃO DA REALIDADE.............70
5. 3 DIVINDADES E NATUREZA....................................................................................74
5.4 ORIXÁS DAS ÁGUAS ...............................................................................................79
6 RESULTADOS E DISCUSSÕES. O TERREIRO DA CASA BRANCA..............85
6.1 O LUGAR DA PESQUISA.........................................................................................85
6.2 A CASA BRANCA E A RELAÇÃO COM O MEIO AMBIENTE, O ANTIGO
RIO: SIGNIFICADO E TRANSFORMAÇÕES AO LONGO DO TEMPO...............93
6.3 USO MÁGICO RELIGIOSO DA ÁGUA NA CASA BRANCA..............................102
6.4 ÁGUA: A DIMENSÃO DO SAGRADO NA CASA BRANCA...............................110
6.5 ÁGUA NO ESPAÇO SAGRADO..............................................................................119
6.6 ÁGUA NOS MITOS E RITOS DA CASA BRANCA...............................................130
6.7 RITUAL DE ÁGUAS DE OXALÁ: ÁGUA SAGRADA E DIVINIZADA.............134
6.8 FESTA PÚBLICA: REVERÊNCIA COLETIVA A OXALÁ...................................140
6.9 AS FESTAS DE OXUM.............................................................................................141
6.10 A POLUIÇÃO DA FONTE E A LIMITAÇÃO RITUAL..........................................146
6.11 A CONSERVAÇÃO DOS RECURSOS HÍDRICOS................................................150
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS...........................................................................................155
REFERÊNCIAS ...................................................................................................................164
ANEXO..................................................................................................................................172
1 INTRODUÇÃO
A crise da água de distribuição, conhecimento, acesso, recursos - é pauta cada vez
mais freqüente na agenda mundial e apontada como um problema que afeta as atuais e
compromete as futuras gerações e todas as formas de vida no planeta. Valorizada e respeitada
em todas as religiões e culturas, a água também tornou-se símbolo de equidade social na
medida em que a crise da água de distribuição, conhecimento, acesso, recursos veio à
baila (SELBORNE, 2002).
Necessária em todos os aspectos da vida, a água está vinculada e imbricada ao
processo de desenvolvimento global, seja como insumo fundamental para produção nas
diversas indústrias ou pela produção agrícola, por sua influência sobre a saúde
(ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS - ONU; WATER FOR PEOPLE, WATER FOR
LIFE: EXECUTIVE SUMARY OF THE UN WORLD WATER DEVELOPMENT REPORT
- WWAP, 2003), ou ainda, em meio do debate sobre a sustentabilidade do desenvolvimento.
Bem finito que corresponde a apenas 3% de toda a água existente no planeta é cada vez mais
escasso em função de questões como a poluição e merecedor do cuidado por parte de toda a
humanidade.
No contexto mundial cuja tendência é a de que guerras passem a ser mais freqüentes
em função da água, é necessário um olhar sobre esse bem que deve ser de uso comum nos
seus mais diferentes aspectos. Por isso, o interesse em pesquisar a relação do povo de santo
com a água, por meio do Ilê Axé Iyá Nassô Oká também conhecido como Terreiro da Casa
Branca, em Salvador. As tradições religiosas, os ritos e mitos, contribuem para que as pessoas
tenham uma postura diferenciada no trato com a água cotidianamente dentro e fora do
Terreiro?
Antes de adentrar no foco da pesquisa, de procurar respostas para questionamentos
como estes, no entanto, é apresentado o percurso metodológico, como foi o contato com a
religião de matriz africana, os métodos utilizados na pesquisa, o perfil das pessoas
entrevistadas. Em seguida, no terceiro capítulo faz-se uma abordagem quanto ao panorama da
água no mundo. Uma pesquisa foi realizada sobre a disponibilidade de água no planeta,
buscando na literatura, países onde as populações sofrem com a falta de água, onde há
conflitos por causa dela. Este capítulo apresenta, minimamente, um diagnóstico sobre a
escassez hídrica que está associada seja a questões de ordem climática, de má distribuição, de
uso excessivo dos recursos hídricos para atividades das mais diversas, como indústria e
agricultura, ou está relacionada ainda à poluição.
Esta contextualização incitou ir além com o levantamento de dados sobre a situação da
escassez hídrica no Brasil, país com a maior disponibilidade hídrica do mundo - entre 12 e
16% das reservas hídricas do planeta -, e onde milhares de pessoas enfrentam esse problema.
Foi necessário compreender um pouco dessa realidade neste país para entender porque com
tanta abundância de água, há escassez.
Foram levantados dados sobre disponibilidade hídrica na região do Semi-Árido
Brasileiro que agrega os estados nordestinos e parte de Minas Gerais e onde vivem cerca de
34 milhões de pessoas. Uma região que tem 24% da população urbana do país (IBGE, 2000) e
é a mais afetada pela escassez dos recursos hídricos. Da mesma forma, foi feito uma pequena
pesquisa para mostrar, minimamente, qual a situação dos recursos hídricos na Bahia maior
estado do Nordeste, apresentando dados sobre as potencialidades e vulnerabilidades hídricas e
a escassez hídrica no estado decorrente de fatores como a poluição das águas superficiais e
subterrâneas.
Importante também, nesse cenário, foi apresentar iniciativas adotadas em nível global,
como tratados e convenções, retratando alguns aspectos de como está ocorrendo essa
mobilização planetária, nacional e em níveis locais numa tentativa de assegurar águas em
quantidade e qualidade para as atuais e futuras gerações. Reporta-se, nessa perspectiva, à
Conferência de Estocolmo em 1972, à Eco 92 e às Agendas 21.
Para contribuir com o maior entendimento quanto aos instrumentos de controle do uso
das águas no Brasil e na Bahia, destacou-se no quarto capítulo, a Política Nacional de
Recursos Hídricos e o Sistema de Gerenciamento de Recursos Hídricos. Como um dos
fundamentos desta Política é a gestão participativa das águas, foi feita uma abordagem, ainda
neste capítulo, sobre formas de inclusão de povos e comunidades tradicionais na Gestão dos
Recursos Hídricos da Bahia, com foco na elaboração da Carta pelas Águas. Este documento
foi produzido durante os chamados Encontros pelas Águas 2007 que reuniram comunidades
de terreiro, pescadores e marisqueiras, povos indígenas, povos do campo, quilombolas e os
segmentos criança, juventude e mulheres, que juntos, abordaram seus modos de se relacionar
com a água e propuseram diretrizes para as políticas públicas das águas ao governo do Estado
da Bahia em uma ação fomentada pelo próprio Estado, por meio do seu órgão gestor de
recursos hídricos.
No quinto capítulo, buscou-se compreender mais sobre o Candomblé, as diferentes
nações, minimamente retratar essa herança étnico-religiosa, sua resistência ao longo dos
séculos. Fez-se necessário, portanto, buscar bases conceituais sobre essa religião de matriz
africana, sobre suas características mais marcantes e como os ritos e mitos, modelos de
representação da realidade, ajudam a manter as tradições e são fundamentais para que elas
sejam passadas de geração em geração. Obviamente, nesse âmbito, pesquisou-se sobre as
divindades cultuadas no Candomblé e, sobretudo, a relação destes com a natureza focando os
orixás das águas, do ponto de vista do Candomblé de Tradição Ketu.
A posteriori, sexto capítulo, começam a ser apresentados resultados efetivos da
pesquisa, mais notadamente sobre o Terreiro da Casa Branca, a caracterização da área, as
origens do Terreiro, como foi instalado onde está até hoje às margens do Rio Lucaia, no
bairro do Rio Vermelho. Recorreu-se à literatura existente sobre a Casa Branca e a iniciados
do Terreiro para verificar a relação desta comunidade com a natureza, com a água e
particularmente com o rio que margeia o Terreiro, para tentar descrever o seu significado para
as práticas rituais do ilê axé e as transformações que este manancial passou ao longo do
tempo. Outra abordagem repercute como a poluição do rio contribuiu para a mudança de
comportamento no uso das águas superficiais do ponto de vista doméstico e nas práticas
rituais do povo de santo do Terreiro.
Em seguida, no sétimo capítulo, são destacadas situações de como se o uso mágico
religioso da água na Casa Branca, a água na dimensão do sagrado para iniciados, como a água
está distribuída no espaço sagrado.
O oitavo capítulo revela como a água está presente nos mitos e em ritos da Casa
Branca, a exemplo do ritual de Águas de Oxalá e nas festas de Oxum e de Oxum do Barco.
Modelos são elaborados neste e em outros capítulos para auxiliar na compreensão do uso da
água do ponto de vista do sagrado, como está presente nos rituais, como a água delimita
simbolicamente a presença dos orixás nos assentamentos, como estabelece o vínculo entre as
divindades e como os orixás são vinculados também a outros elementos da natureza.
Neste capítulo, mais resultados da pesquisa: a influência do Candomblé no uso da
água por parte dos iniciados dentro e fora do Terreiro, como iniciados se relacionam com a
água no cotidiano, quais suas atitudes no uso doméstico, fora do Candomblé. Para responder a
outras perguntas norteadoras da pesquisa, o estudo mostra dados sobre a poluição da fonte
sagrada e as implicações disso nos rituais.
Deve-se salientar, que embora seja foco de várias pesquisas no campo antropológico,
sociológico e outros, o Candomblé é uma fonte rica para o desenvolvimento de pesquisas
ambientais na atual conjuntura, quando a humanidade é alertada sobre a necessidade de
redimensionar suas atitudes com relação a água. Muitos são os estudos sobre o Candomblé,
mas há poucas pesquisas focando o tema água nessa perspectiva etnoecológica, ou seja,
considerando a relação de iniciados com a água a partir de suas crenças, saberes, valores e
sentimentos.
A maneira como tratar a natureza e especialmente a água é um norteador para a
manutenção das tradições das diferentes nações do Candomblé, seja Angola, Congo, Jeje,
Nagô, Keto e ou Ijexá. Quando os africanos aportaram nos portos brasileiros para serem
negociados como mercadorias, trouxeram consigo todo o fervor da suas religiosidades,
crenças e fé; trouxeram seus deuses, os orixás dos bosques, dos rios e do céu africano
(BASTIDE, 1958). E a partir do modo que cada um tinha de reverenciar o sagrado, se
consolidou no Brasil o Candomblé, para uns, o local onde são realizadas as festas
(CARNEIRO, 1948), para outros um ambiente que tornou-se, ao longo dos séculos, um
espaço de resistência para a luta seja contra a opressão e preconceitos (SILVEIRA, 2006),
seja pela afirmação de direitos ou simplesmente pela preservação de tradições pautadas no
culto à ancestralidade.
Essas tradições são passadas de geração em geração entre pais, mães, filhos e filhas de
santo, ekedes, ogans, ebomis e outros, em uma dimensão solidificada pela troca de
experiência, pela vivência e respeito ao sagrado, aos orixás, no caso da nação ketu, objeto
deste estudo. Sodré (2002) afirma “que a herança cultural repassada faz da tradição um
pressuposto da consciência do grupo e a fonte de obrigações originárias, que se reveste
historicamente de formas semelhantes a regras de solidariedade".
No relacionamento do povo de santo com a natureza há implicações profundas, pois os
orixás são a representação da terra, do ar, do fogo e tudo o que no universo, do arco-íris
(Oxumaré) às plantas (Ossain). Mais do que isso: Pelo simbolismo do Candomblé, os filhos
(as) de santo têm vínculos de obediência com os orixás. Às divindades estão atreladas as
condutas éticas e morais dos indivíduos.
Uma vez nas comunidades, os iniciados assimilam princípios que delimitam a maneira
com que as pessoas se relacionam com as águas. Estão na visão do Candomblé coisas que se
aprendem na mitologia e as práticas ritualísticas reafirmam. Portanto, ao serem intimamente
subordinados aos preceitos e orientações dos seus orixás, os indivíduos moldam suas condutas
no que diz respeito à totalidade da vida. São os orixás que permeiam os valores éticos, morais
e, sobretudo, espirituais de cada um. Assim, um filho de Oxum, por exemplo, pode assimilar a
partir do perfil do próprio orixá percepções e valores diferenciados quanto à água. O mesmo
pode acontecer com os filhos de Oxalá e assim por diante.
No Candomblé de origem keto, que cultua os orixás, quatro divindades,
especialmente, são relacionadas diretamente às águas: Oxum, senhora das águas doces,
Iemanjá, deusa das Águas Salgadas, Nanã, considerada a grande mãe, avó e senhora dos
manguezais, dos lamaçais e das áreas úmidas. Além dessas,
Oxalá é outra divindade da águas
celestes, é considerado pai da criação, pai de todos os orixás. Para esses orixás são
direcionados pedidos, agradecimentos, louvores, numa sublimação, crença e respeito às forças
que as águas impõem e contêm.
E em função desta relação ancestral, em função dos ritos e mitos, das tradições
passadas de geração em geração, por serem os orixás representação da natureza, um trato
diferenciado de iniciados do Terreiro da Casa Branca do Engenho Velho com a água? É o que
esta pesquisa pretende esclarecer, dando uma contribuição para que se conheça mais a religião
de matriz africana, suas tradições e, sobretudo, contribua para atitudes sustentáveis no uso da
água que sirvam de referência para dentro e para fora da comunidade em estudo.
2 PROBLEMATIZAÇÃO E METODOLOGIA
Sendo a água um recurso natural escasso, faz-se necessário buscar alternativas de
enfrentamento ao problema e que visem o uso racional de modo a assegurá-lo em quantidade
e qualidade para as atuais e futuras gerações. Sabe-se que a água é elemento dotado de
simbolismos para povos e comunidades tradicionais
1
. E enquanto elemento sagrado para o
povo de santo, a água doce norteia a vida religiosa nas comunidades de terreiro. Nas nações
de tradição ketu é usada em todas as práticas rituais e é a própria representação de Oxum, a
divindade da fertilidade que domina e reina sobre as águas doces. Mas, por ser elemento
sagrado há um comportamento diferenciado do povo de santo no trato cotidiano com a água?
A pergunta serviu de base para a realização desta pesquisa. E depois desta, muitas
outras surgiram como uma necessidade de verificar como se no contexto do Candomblé, a
relação com a água. Esta relação baseada em tradições religiosas (mitos e ritos) influencia no
comportamento de iniciados com o uso da água? A dimensão do sagrado contribui para que
iniciados tenham uma atitude sustentável no modo de lidar com a água dentro e fora do
Terreiro?
Neste contexto, um desafio posto era verificar como, de fato, é essa relação do povo de
santo com a água e quais as implicações disso na sustentabilidade hídrica. Deste modo, o
objetivo desta pesquisa mostrava-se bem claro: analisar o papel das tradições religiosas (ritos
e mitos) relacionadas à água doce na proteção e conservação dos recursos hídricos no Terreiro
Ilê Axé Iya Nassô Oká/ Casa Branca.
Para tanto, era preciso identificar e descrever tradições religiosas (ritos e mitos) com
uso da água doce neste Terreiro; analisar o papel dos rituais e mitos envolvendo a água doce e
formas de transmissão do conhecimento na Casa Branca; analisar a receptividade dessas
práticas tradicionais junto a iniciados e de que maneira essas práticas são incorporadas no
modo de lidar com os recursos hídricos no cotidiano e analisar o estado de conservação da
água da fonte e as implicações nas práticas rituais.
E qual a metodologia deveria ser aplicada para alcançar esses objetivos? A princípio,
a metodologia para o desenvolvimento de uma pesquisa como esta foi antes de qualquer coisa,
1
Para Diegues (2007, p.1) a água é um dos elementos centrais para a reprodução material e simbólica
dos povos indígenas e comunidades tradicionais, um elemento presente em mitos de criação das próprias
sociedades.
um desafio de vida. Percorrer esse caminho metodológico não foi tarefa das mais fáceis,
sobretudo, em função da conexão necessária entre as áreas das mais distintas, ciências exatas,
humanas, sociais, ambientais, para uma pessoa com a minha formação profissional e
acadêmica, sempre voltada à área de comunicação.
Outro desafio foi ter de mergulhar em um universo completamente novo e
desconhecido para mim: o Candomblé com toda a sua riqueza e profundidade. A maior
dificuldade, talvez, nessa trajetória metodológica, tenha sido a de estudar a relação entre o uso
sagrado da água e a proteção dos recursos hídricos em uma comunidade de terreiro; temática
pouco estudada mesmo sendo o Candomblé um espaço que historicamente vem atraindo a
atenção e sido objeto de estudos principalmente antropológicos, sociológicos e etnológicos,
incluído a sacralidade da água, mas não nesta perspectiva etnoecológica.
Um procedimento analítico, de fragmentação do todo, com vistas a uma explicação
“parcial” de um fenômeno, não parecia tão simples diante da complexidade do tema, diante de
tantas particularidades. Afinal, nem tudo poderia ser acessado e visto por mim, a exemplo do
uso da água na maioria das práticas rituais, restritas a iniciados. E como perceber,
compreender a dimensão religiosa do uso da água nesse contexto? Como dimensionar essa
relação religiosa com a água e a influência no comportamento cotidiano das pessoas,
considerando os valores coletivos e individuais, a fé, as vivências e os sentimentos, como
explicita Marques (1999, p 136).
Para mim, o nosso trabalho enquanto o de etnoecólogos não é somente o da
prospecção do conhecimento, posto que ele deve lidar, também, com a
prospecção dos sentimentos e com a prospecção dos comportamentos que
intermediam as relações entre os seres humanos e os demais componentes do
ecossistema no qual eles estão incluídos – ou dos ecossistemas dos quais eles
dependem.
Como mergulhar nesse universo de saberes tradicionais e responder a questionamentos
como esses em tão curto espaço de tempo nos dois anos que um curso de mestrado permite?
Como entender a dinâmica dessa relação onde os orixás, o mundo “invisível” orienta as
práticas em um terreiro e as condutas dos iniciados? Como conduzir esse processo em um
percurso metodológico atrelado a regras do segredo, pois no Candomblé nem tudo pode ser
visto e nem tudo que é visto pode ser falado?
Ainda hoje, nos Candomblés do Brasil, procura-se ensinar que a experiência
é a chave do conhecimento, que tudo se aprende fazendo, vendo,
participando. Cada coisa no seu devido tempo. Assim, o conhecimento do
velho é o conhecimento legítimo, ao qual se chega ao longo de toda uma
vida (PRANDI, 2005 p. 44).
A partir desse pressuposto, relato alguns dos nossos passos, experiência, que nos
conduziram ao despertar para a relação do povo de santo com a água, as implicações disso nas
questões ambientais, o amadurecimento para o tema e as abordagens metodológicas possíveis.
Questões que alicerçaram a pesquisa qualitativa e que nos inspirou à delimitação do tema, a
construção e estruturação da pesquisa, a definição da base conceitual, como por exemplo a
“descoberta” da religião e aproximação da comunidade.
O interesse em fazer um mestrado na área ambiental surgiu a partir da nossa relação de
trabalho na assessoria de comunicação do órgão gestor das águas na Bahia, o Instituto de
Gestão das Águas e Clima (INGÁ), antiga Superintendência de Recursos Hídricos. Cada vez
mais, diante de cenários de escassez hídrica e conflitos de uso, era provocada por mim mesma
para desenvolver uma pesquisa que contribuísse a um despertar quanto à necessidade de
proteção dos corpos d´água.
De tudo que pensei, não imaginava o foco alcançado, até que me envolvi na
coordenação de Comunicação dos Encontros pelas Águas 2007, uma série de reuniões
temáticas com povos e comunidades tradicionais da Bahia e outros segmentos para a
elaboração de diretrizes às políticas de recursos hídricos na Bahia. A primeira reunião
temática foi denominada de Encontros das Comunidades de Terreiros pelas Águas que reuniu
diferentes nações em Salvador.
Apesar de saber a importância da água para diferentes religiões e culturas e do sentido
de purificação e sacralidade, nunca tinha visto uma reverência às águas como a que foi feita
por diferentes nações no Encontro das Comunidades de Terreiro daquele ano, o que nos
conduziu a uma reflexão quanto à dimensão diferenciada que o povo de santo demonstrava ter
quanto à água.
Naquele espaço de diálogo, a visão da água transcendia a noção de bem econômico, ou
bem de uso comum a todos, como geralmente ocorre em discussões acadêmicas ou mesmo de
cunho político ou doméstico. A água, era tratada na dimensão do divino, era saudada como
divindades, por exemplo, ora como Oxum (água doce) hora como Iemanjá (água salgada). A
água recebia ali uma valoração simbólica.
O que para muitos poderia ser considerado apenas como um líquido indispensável para
a manutenção da vida no planeta, percebia que entre o povo de santo reunido era classificado
como algo transcendente. O encontro serviu para nos instruir, minimamente, quanto à
premissa de que a água é elemento sagrado para o Candomblé; o que nos provocou profundas
reflexões e encantamento.
A partir de então, inquietações foram surgindo, a principal delas motivou a elaboração
desta pesquisa: será que em função dessa reverência que o povo de santo tem com a água,
existe uma relação diferenciada no uso da água no cotidiano, de tal modo que assuma uma
postura de proteção e conservação das águas?
O primeiro passo nessa jornada desafiadora foi me dirigir a um Terreiro. Segui, então,
em direção à Casa Branca apontada por muitos estudiosos do Candomblé como a “mãe” de
todos os ilês do Brasil, a mais antiga do país. É um Terreiro que tem filhos e filhas espalhados
pelo mundo afora e é respeitado nacional e internacionalmente, inclusive, pelo esforço de
manter a cultura e identidade dos antepassados mediante o culto aos orixás. Além disso, a
Casa Branca foi um dos Terreiros envolvidos na organização dos Encontros pelas Águas.
Na Casa Branca fui recebida com carinho para uma reunião. Apresentei minhas
inquietações, ansiedade e desejo de trabalhar o tema na comunidade. A primeira coisa que nos
foi alertada era a de que poderia encontrar dificuldades. Chamaram minha atenção quanto às
limitações impostas pelo fato de não ser iniciada e que mesmo se fosse, não teria como
registrar tudo que visse no ilê axé, principalmente, os rituais. Aqui nem tudo que é visto pode
ser falado. As coisas do Candomblé a gente aprende vendo e ouvindo. Para conhecer, escute
mais do que fale”, alertou uma ekede nos dando as boas-vindas para o trabalho de pesquisa.
Se você chegou até aqui foi porque Oxalá permitiu, seja bem-vinda”, acrescentou.
Comecei então a estudar sobre Candomblé para desenvolver o projeto de pesquisa.
Havia possibilidades de inscrever o projeto em várias linhas de pesquisa como antropologia e
sociologia, mas um convênio entre a Universidade Popular das Águas (Unihidro) e a
Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), em Modelagem das Ciências da Terra e
do Ambiente, surgiu como uma grande oportunidade para abordar o tema de maneira
transversal e interdisciplinar. Então, ao nos inscrever no processo seletivo, o projeto foi
submetido à banca de seleção do Mestrado em Modelagem das Ciências da Terra e do
Ambiente, como um dos requisitos para a nossa aprovação no processo seletivo.
2. 1 AS DESCOBERTAS DO SAGRADO
A partir de então um longo caminho tem sido percorrido em busca do conhecimento
sobre essa religião tão rica, que está diretamente ligada às origens do povo brasileiro. Ao
mesmo tempo em que freqüentava as aulas para a obtenção dos créditos e trabalhava dois
turnos, geralmente mais de oito horas por dia, passei aos poucos a freqüentar o Candomblé,
sobretudo, as festas públicas dedicadas aos orixás.
Consequentemente, o percurso metodológico era mais e mais refinado. Uma pesquisa
qualitativa era evidente, pois como afirmam Marshall e Rossman (1989: 46), a pesquisa
qualitativa tem uma superioridade metodológica em situações como: Quando a pesquisa não
pode ser realizada de modo experimental, por razões práticas ou éticas e quando a pesquisa
tem por objetivo aprofundar processos complexos, como é o caso da relação sagrada com a
água e as implicações no uso cotidiano. Desta forma, buscamos respaldo na pesquisa
descritiva e exploratória, considerando que a primeira suscita precisão nos detalhes e a
segunda, também proporciona que se estabeleça um vínculo com os entrevistados de maneira
ao aprofundamento quanto às suas percepções sobre dados fenômenos.
Uma pesquisa qualitativa de natureza exploratória possibilita familiarizar-se
com as pessoas e suas preocupações. Ela também pode servir pra determinar
os impasses e bloqueios, capazes de entravar um projeto de pesquisa em
grande escala. Uma pesquisa descritiva colocará a questão dos mecanismos e
dos atores (o “como” e o “o quê” dos fenômenos); por meio da precisão dos
detalhes, ela fornecerá informações contextualizadas que poderão servir de
base para pesquisas explicativas mais desenvolvidas. Entretanto, ela é, a
maior parte do tempo, completa em si mesma, e não tem obrigatoriamente
necessidade de ser continuada por outros pesquisadores, por meio de outras
técnicas (DESLAURIERS et al., 2008, p. 130).
Na busca do como o povo da Casa Branca se relaciona com a água e porque essa
relação passa pelo sagrado passei mais e mais a freqüentar o Candomblé. Pouco a pouco fui
entendendo que era com música, dança, comida, muita alegria e que se reverenciavam as
divindades. Percebi, que naquela ambiente de tantos segredos e condutas, a yalorixá é a
grande líder espiritual, a quem todos deveriam pedir à benção. Aprendi que abençoar uns aos
outros era uma prática que denotava respeito e os laços de irmandade entre os membros da
comunidade. Compreendi que os Orixás ocupavam espaços distintos no terreno, que cada um
tinha seu assentamento representado por casa, por árvores, por objetos. Fui percebendo que os
orixás estavam diretamente ligados à natureza e que a água era algo fundamental,
imprescindível para a existência do Candomblé. Tanto que era comum ouvir: Com a água
limpamos todos os males, com a água curamos todas as doenças.
Por todos os lados, as quartinhas demonstram que ali havia segredos, mensagens que
nos desafiavam conhecer e entender essa relação entre uso ritual e uso cotidiano. Um mundo
novo se descortinava para mim e na metodologia, tanto a observação direta quanto a
observação participante eram cada vez mais evidentes e necessárias. Uma das primeiras
experiências vivenciadas na Casa Branca foi a participação no ritual de Águas de
Oxalá. A
Casa Branca estava tomada de gente. Muitos filhos do ilê axé que moram fora em outros
estados ou países estavam lá. As casas de pessoas que moram na comunidade hospedavam os
que vieram de longe. Todos estavam de branco e pareciam em estado de concentração. O
silêncio predominava e durante toda a noite em que se reverenciou Oxalá, pouco se falava.
E como não podia usar lápis, papel, máquina fotográfica ou qualquer outra forma de
registro, ficava atenta a tudo que ocorria e tudo era uma provocação. Como se manter
eqüidistante, com um olhar de pesquisadora, sem se arrepiar diante da beleza do Alá
estendido pelo barracão na saída de Oxalá do seu quarto?
Durante toda a noite e a madrugada, havia um ordenamento que mostrava a unidade e
profundo envolvimento das pessoas no ritual. Não era preciso dizer o que cada um deveria
fazer. A maneira como carregar a água para Oxalá subindo e descendo os degraus que ligam a
fonte de Oxum a casa onde estava Oxalá, exigia um esforço muito grande, principalmente dos
mais idosos. Além do mais, era preciso evitar que a água fosse derramada das quartinhas.
Percebi que a água era muito valiosa para aquelas pessoas. Restava entender o grau dessa
“valoração” e se a sacralidade interferia no comportamento e trato cotidiano destas com a
água, como afinal se dava essa relação ambiental a partir da dimensão do sagrado.
2.2 O PERCURSO METODOLÓGICO
No caminho metodológico que ia sendo construído, surgiu a necessidade de submeter
o projeto de pesquisa à apreciação e aprovação do Comitê de Ética da Universidade Estadual
de Feira de Santana. Era preciso mais esse respaldo acadêmico para um projeto dessa
envergadura. O projeto foi aprovado e o caminho metodológico começava a ser mais definido.
Um enfoque metodológico convencional, baseado na ciência ortodoxa não parecia
mesmo o mais apropriado. Apesar de os critérios de validação do conhecimento e elaborações
teóricas da ciência ocidental terem alcance universal, o manejo da água em um Candomblé de
Terreiro e sua repercussão na vida doméstica das pessoas, considerando as implicações disso
para a proteção e o uso sustentável das águas, não eram derivados de um conhecimento
baseado exclusivamente em fatos objetivos, verificáveis e aferidos universalmente. Talvez
poderia ser explicado sobre a égide do universalismo epistemológico proposto por Siegel
(1997), ou seja, mostrar que uma ciência tradicional também pode resultar em teorias,
explicações e previsões como as produzidas pela ciência ortodoxa
2
. Porém, havia ai outro
desafio, como atesta Bandeira (1999, p. 128):
A eficiência desse conhecimento é local, prática e de caráter adaptativo
embora ela, às vezes, possa mesmo modificar e gerar novas hipóteses sobre
os fenômenos e processos naturais – portanto, pode mudar de acordo com as
mudanças e condições do entorno cultural e ambiental (ou seja, não é
estático). Além disso, esses conhecimentos, práticas e crenças são o que
permite a produção e reprodução dessas culturas e dessas sociedades através
do tempo.
Entender como se essa relação entre comunidade tradicional e o meio ambiente em
que vive, exigiu a busca pelo enfoque etnoecológico, por ser epistemologicamente um campo
de estudo interdisciplinar que busca entender as diferentes culturas e sociedades através do
tempo e sua inter-relação com a natureza, usando como ferramentas teórico-metodológicas,
distintos campos científicos como a antropologia, geografia, sociologia e ecologia
(BANDEIRA, 1999, p. 119).
O antropólogo estruturalista francês Lévi-Strauss (1989) em O Pensamento Selvagem
rompeu com correntes teóricas da antropologia baseada no evolucionismo social de Tylor e
Spencer, que consideravam as sociedades não-ocidentais como “primitivas”, sem capacidade
de organização social e política. Ele faz uma análise do que classifica como “ciência do
concreto”, um novo modo de perceber o universo dos povos indígenas, inclusive do Brasil,
onde estudo vários grupos do Xingu.
Apesar de o autor apresentar as mesmas bases epistemológicas da ciência moderna,
baseada em métodos de observação, essa leitura contribuiu para reforçar o entendimento de
que não é possível estudar os mitos, os sistemas de crenças e a cosmovisão do Candomblé a
partir de epistemologias ocidentais.
Era preciso compreender melhor a etnoecologia, buscar bases de sustentação para essa
área que vem respaldando academicamente estudos que buscam entender e apreender
conhecimentos e saberes de civilizações historicamente consideradas “marginais” e que são
2
Ver Bandeira e El-Hani (1998)
direcionados, sobretudo a povos indígenas. Buscamos assim, referências em Toledo para
quem a etnoecologia não é uma disciplina (1997), mas uma abordagem teórico-metodológica
para o estudo da relação sociedade-natureza:
A etnoecologia é o estudo dos conhecimentos, estratégias, atitudes e
ferramentas que permitem as culturas rurais produzir e reproduzir as
condições materiais de sua existência social através de um manejo
apropriado dos recursos naturais (TOLEDO, 1987, apud BANDEIRA, 1999,
p. 117).
Estudar a água numa comunidade de terreiro, como é usada nas práticas rituais,
passadas de geração em geração e as implicações disso no uso da água no dia-a-dia das
pessoas, exigia a compreensão da etnoecologia conforme define Nazarea (1999):
Como uma forma de ver as relações entre os seres humanos e o mundo
natural [...] uma poderosa perspectiva da qual se pode compreender o
reconhecimento e o manejo dos recursos: os esquemas, scripts e planos de
ação que orientam os povos no mundo e determinam a produtividade,
equidade e sustentabilidade de suas práticas.
Nazarea pontua que a etnoecologia “oferece uma estrutura útil para analisar problemas
relacionados com o manejo ambiental, sustentabilidade da agricultura, conservação da
biodiversidade e direitos de propriedade intelectual, bem como promove uma compreensão
básica do homem no ambiente”.
Podia-se, então, chegar a delimitações mais precisas sobre o problema
3
desta pesquisa,
para entender melhor como se essa relação entre a comunidade de terreiro, considerando a
diversidade social e cultural, os sistemas de crença, os ritos e mitos e o uso da água do ponto
de vista sagrado e doméstico. O conhecimento tradicional da Comunidade de Terreiro em
estudo nos conduziria a explicações/interpretações sobre o fenômeno observável, ou seja, o
uso da água a partir de regras de condutas pautadas no culto e crença aos orixás. “O
conhecimento tradicional integra os sistemas de crenças religiosas e morais com o manejo”
(GADGIL et al., 1993).
Isso me fez refletir sobre a necessidade da aplicação de métodos mais recentes, como
as observações direta e participante. Metodologicamente, a observação direta era necessária
porque a pesquisa exigia-nos um contato maior com a comunidade, conhecer suas práticas,
rotinas, de maneira que pudesse observar e fazer os registros livre dos fenômenos observados
3
Chevrier ( 1993, p. 50) afirma que “um problema de pesquisa se concebe como uma separação consciente,
que se quer superar, entre o que nós sabemos, julgamos insatisfatório, e o que nós desejamos saber, julgando
desejável”.
em campo. Mas observar apenas, sem estar presente em alguns rituais talvez não nos
conduzisse a outras respostas que precisávamos.
Portanto, havia a necessidade da observação participante. Através desse método, o
pesquisador pode obter informações sobre o cotidiano da comunidade, pode se envolver
totalmente, permitindo a “análise de dentro” da realidade observada, facultando perceber a
maneira como um elemento da cultura, lastreado no senso comum, no coletivamente aceito e
legitimado, desenvolve o conhecimento”, neste caso a respeito das águas no seu meio
(ALBUQUERQUE et al., 2004, p. 48 - 51).
Como a pesquisa tomou como referência os mitos e ritos como modelos de
representação da realidade, a observação participante ocorreu durante a realização do rito de
“Águas de Oxalá e das festas de Oxum do Barco” e “de Oxum”; festas onde mais
significativamente o uso da água é explicitado. Participamos também de outras festas públicas
como Festa de Oxossi e Obaluaiê.
Seguindo o caminho metodológico traçado, começamos a partir do envolvimento com
a comunidade e participações em festas rituais, fazer anotações no diário de campo eletrônico.
Não era permitido uso de lápis ou papel para quaisquer anotações no Terreiro, nem o registro
fotográfico no local no memento das festas e rituais. Por isso, após participar de qualquer
atividade no terreiro, me debruçava no computador para descrever o que ficara registrado na
minha memória recente. As anotações eram separadas por data, cronologicamente.
De tudo que via e ouvia, sentia que era impossível compreender a relação do povo de
santo da Casa Branca com a água apenas por meio da observação seja direta ou participante,
em função de várias razões citadas como o desconhecimento dos rituais e proibição de
presenciar muitos deles por não ser iniciada. Além disso, não poderia entrar na casa das
pessoas e ficar o tempo todo observando e aferindo como elas usam a água em seus
domicílios.
Na coleta de dados, foram necessárias ainda, entrevistas semi-estruturadas, através das
quais formulamos algumas perguntas sobre o tema que serviram como norteadoras das
entrevistas, mas que possibilitavam outras perguntas a partir dos elementos que surgiam ao
longo das entrevistas. Este é um dos procedimentos muito usados para a coleta de dados em
pesquisas etnobotânicas e que se adéquam perfeitamente à temática estudada, pois “as
perguntas são parcialmente formuladas pelo pesquisador antes de ir ao campo, apresentando
grande flexibilidade, pois permite aprofundar elementos que podem ir surgindo durante a
entrevista” (ALBUQUERQUE et al., 2004, p.41).
As entrevistas foram feitas em locais e horários marcados de acordo com a
conveniência dos entrevistados em momentos sem a presença de terceiros. Apenas duas delas
foram feitas fora do Terreiro, mas também em função das necessidades dos entrevistados.
Utilizando a metodologia de bola de neve um entrevistado indicou o outro e assim
sucessivamente. Essa metodologia é usada para a seleção intencional de informantes, que são
também considerados “especialistas locais” (ALBUQUERQUE et al., 2004, p.26-27). No
caso das comunidades de terreiro, buscou-se, a princípio, lideranças religiosas com muitos
anos de iniciação, vivência e conhecimento sobre o Candomblé e que gozam de grande
respeito e reconhecimento na comunidade. A perspectiva inicial era a de que 30 pessoas
participassem das entrevistas, mas a partir da técnica qualitativa baseada no “consenso dos
informantes”, o número de 15 entrevistados foi considerado satisfatório na medida em que
passou a ocorrer a repetição das respostas.
Sem sombra de dúvida, essas técnicas estão assentadas na idéia de que
cultura é conhecimento compartilhado. Esta idéia foi desenvolvida como
teoria do consenso cultural por antropólogos cognitivos na década de 80. A
teoria do consenso cultural assume que: “a) existe uma resposta
culturalmene correta para uma dada questão; b) cada informante responde
independentemente de outro informante; c) a probabilidade que um
informante responderá corretamente uma questão em um domínio de
conhecimento reflete a competência do informante do domínio” (REYES-
GARCIA et al., 2004, apud ALBUQUERQUE et al., 2004, p.23)
Como a proposta é investigar a repercussão das tradições do Candomblé (ritos e mitos)
envolvendo a água junto aos freqüentadores do Terreiro Casa Branca, verificando se em
função disso há, naturalmente, uma postura de proteção e conservação das águas fora e dentro
da comunidade, o estudo de caso foi o meio apropriado e eficaz. Por meio do estudo de caso,
segundo Yin (1994) é possível compreender e explicar dinâmicas estabelecidas em atividades
da vida real, cuja complexidade não podem ser abordadas por designs do tipo experimental. O
estudo de caso, ainda segundo o autor, permite “descrever e compreender o contexto da vida
real no qual ocorreu, ou ocorre, uma dada intervenção”. E ainda, possibilita avaliar e
compreender uma determinada intervenção num dado contexto real, explorando as situações
em que os seus resultados não são suficientemente claros, mas são específicos”.
2.3 OS SUJEITOS DA PESQUISA
Para este trabalho, foram entrevistadas 15 pessoas: quatro ekedes, cinco ogans, uma
ebomi, duas iaôs, uma abiã, um babalorixá e uma yamorô. O babalorixá, a yamorô e uma das
ekedes entrevistados foram de outros terreiros, mas têm ligação com a Casa Branca porque
são filhos e ou filhas de iniciados da Casa Branca. Dos entrevistados, quatro são pessoas com
mais de 50 anos de iniciação, uma tem mais de 40 anos de iniciada, uma tem 34 anos de
iniciada, outra 30 anos, outra 29 anos. Três pessoas têm entre sete e 21 anos de iniciação, a
outra com sete anos de iniciação e duas menos de dois anos. Apenas uma das entrevistadas
não é iniciada, mas tem cinco anos de freqüência na Casa Branca. Destes, todos têm um orixá
com ligação com a água, principalmente Oxalá e Oxum.
A maioria, como percebe-se nos números, tem cargos e status religioso no Terreiro.
Optou-se por este critério por serem pessoas com grande vivência e sabedoria tanto no que se
refere à religião quanto às práticas rituais da Casa Branca, podendo assim conferir maior
respaldo para a pesquisa.
Antes de toda entrevista, os entrevistados leram e assinaram o Termo de
Consentimento Livre e Esclarecido tomando conhecimento sobre o assunto e autorizando a
participação na pesquisa.
Metodologicamente, o próximo passo foi adentrar ainda mais no foco de estudo e
especificar as relações existentes com o uso da água na Casa Branca, para posterior
sistematização e análise dos fenômenos. Para tanto, buscou-se sempre respaldo de lideranças
da comunidade para que pudessem permitir e validar nossas visitas à comunidade, nossos
contatos com as pessoas, a participação em rituais públicos e mesmo no ritual de Águas de
Oxalá, restrito a iniciados e poucos convidados geralmente adeptos de outras nações ou
simpatizantes da religião.
Uma das pessoas com grande respeito na comunidade e com mais de 50 anos de
iniciação foi nosso ponto focal, o informante principal ou informante chave que colaborou
mais efetivamente com a pesquisa, contribuindo para dirimir dúvidas sobre rituais da Casa
Branca e quanto à modelagem desenvolvida a partir das percepções dos entrevistados. Foi
uma necessidade para entender o sistema de crenças, aquele conhecimento passado dos mais
velhos para os mais novos.
3 PANORAMA DA ESCASSEZ HÍDRICA
3.1 A ÁGUA NO MUNDO
A água regula os ciclos biogeoquímicos. É imprescindível para os organismos vivos, o
equilíbrio na terra, a sustentação, manutenção e interligação dos ecossistemas. Princípio
elementar da vida e de toda a biodiversidade; constitui 75% do corpo humano.
Academicamente ou instintivamente, todos sabem da interdependência da vida com relação a
água seja para saciar-se ou para os diversos usos, domésticos, industriais, para a agricultura;
que garanta a produção de alimentos, a vida nos rios, a perpetuação das espécies.
De toda água existente no planeta, 97% estão nos oceanos. Apenas 3% da água
disponível no globo é doce, isto é, tem baixa concentração de sais e, portanto, é apropriada
para tornar-se potável, com sabor, odor e especificidades químicas, físicas e biológicas
próprias para ser ingerida . Do total de água doce existente no planeta, 2,4% estão nas regiões
polares ou geleiras; 0,5% estão nos aqüíferos (águas subterrâneas) e somente 0,1% refere-se
às águas superficiais encontradas na atmosfera, rios e lagos (HAMBLIN, 1992 p. 570). Veja
no gráfico a seguir:
Figura 1 - Este gráfico mostra a distribuição da água existente no planeta
A água se renova no globo terrestre a partir do ciclo hidrológico
4
. Estima-se que a
terra possui 1,4 bilhão de km³ de água nos estados sólido e líquido (VILLIERS, 2002, p.54).
Mas, no contexto de mudanças climáticas, de aceleração do aquecimento global, mais do que
estatísticas hidrogeológicas, esses números sobre a disponibilidade de água no planeta devem
ser levados em conta.
Pesquisas feitas por mais de 2 mil cientistas que compõem o Painel
Intergovernamental Sobre as Mudanças Climáticas (IPCC), vinculado à Organização das
Nações Unidas
5
e divulgadas em fevereiro de 2007 revelam que todos os ecossistemas estão
sofrendo alterações em virtude das mudanças climáticas provocadas pela aceleração do
aquecimento global. O aquecimento global é um fenômeno decorrente do efeito estufa que
vem sendo acentuado pelo aumento do volume de gás carbono (CO2) lançado na atmosfera
principalmente devido à queima de combustíveis fósseis, como o petróleo e carvão mineral.
De acordo com o IPCC, por ano são emitidas 8,8 bilhões de toneladas de carbono, o
equivalente a 32,3 bilhões de toneladas de CO2 e mais 7,2 bilhões de toneladas referentes à
queima de combustíveis fósseis. Cerca de 60% desse total é absorvido pelos oceanos e pela
biosfera e o restante fica na atmosfera por um tempo em média de 150 anos (Angelo, 2008,
p.30).
Para o IPCC, da revolução industrial, final do século XVIII, até o ano de 2005, a
concentração de CO2 no ar aumentou 99 partes por milhão (PPM), passando de 280 ppm para
379 ppm. O que mais alarma a comunidade científica é que nos últimos 650 mil anos, o CO2
jamais tinha superado as 300 ppm na atmosfera. Se a emissão de CO2 continuar aumentando
na mesma proporção em relação à era pré-industrial, chegando entre 500 e 550 ppm no ar, a
temperatura da terra deverá ficar até 4ºC mais alta até o ano de 2100 (Angelo, 2008, p.20-59).
Veja no esquema adiante, as previsões quanto às consequências das mudanças climáticas no
futuro segundo o IPCC:
4
Rutkowski conceitua ciclo hidrológico como fenômeno basicamente caracterizado pela evaporação,
transpiração e precipitação que promove a partir disso, a reposição da água nos rios, lago, aqüíferos e mares
(1999). Considera-se que o ciclo hidrológico só é possível devido a distância entre a terra e o sol, o que faz
com que a água seja encontrada nos estados sólido, líquido e gasoso.
5
Ver mais em: O Aquecimento Global, de Cláudio Angelo, 2008, Publifolha, da série Folha Explica.
Figura 2 - Este esquema mostra a previsão do que deverá acontecer no mundo devido às mudanças climáticas segundo o
IPCC.
A conseqüência disso são alterações climáticas como secas e furacões intensos,
ocorrência de chuvas ácidas, aumento da temperatura, secas mais intensas e prolongadas,
enchentes, derretimento das calotas polares e outros impactos que podem provocar
instabilidade nos ciclos biogeoquímicos, causar a extinção de espécies
6
, reduzir os índices de
chuva e contribuir para aumentar também a escassez de água no planeta.
“Vários países africanos dependem da agricultura irrigada pelas chuvas, que
poderá sofrer perdas de 50% em 2020, segundo o IPCC. Em 2020, de 75
milhões a 250 milhões de africanos estarão expostos a uma escassez de água
aumentada devido à mudança climática” (ANGELO, 2008, p. 77).
No cenário apresentado, estima-se, por exemplo, que a água dos rios alimentados pelo
degelo do Himalaia, que beneficiam 40% da população mundial, não existam mais até 2050,
pois já estão recuando rapidamente devido às mudanças climáticas. A situação deverá levar ao
colapso a agricultura na Índia e China. A escassez da água nos dois países mais populosos do
mundo pode também provocar uma crise planetária sem precedentes na disputa por alimentos
(ANGELO, 2008, p. 76).
Nos locais mais longínquos ou até nos grandes centros urbanos, a falta de acesso a
esse bem natural e, em uma escala mais dramática, a escassez
7
da água é um problema que
conduz a uma crise global, ao ponto de a Organização das Nações Unidas instituir a década da
água, de 2005 e 2015. Até 2015, os 191 Estados que elencaram os objetivos para o
6
Relatório do IPCC, 2007, indica que de 20 a 30% das espécies do planeta correrão o risco de extinção se a
temperatura da terra ultrapassar os 1,5% Angelo, 208, p.63 .
7
Embora possa estar sendo acentuada em conseqüências das mudanças climáticas provocadas pelo aquecimento
global (IPCC), a escassez hídrica não é um problema atual. Civilizações antigas como Egito e China, a Índia e
a Mesopotâmia, chamadas de “civilizações hidráulicas”, experimentaram ascensão e declínio devido ao uso
abusivo da água (DREW, 1986, p. 206).
desenvolvimento do milênio, devem reduzir em 50% o número de pessoas que não têm acesso
à água no planeta
8
. A escassez, ressalta-se, é provocada em parte pelas condições de clima
adversas, principalmente, nas regiões áridas, semi-áridas e sub-úmida seca, parte pela
poluição dos mananciais ou pela má distribuição dos recursos hídricos.
A problemática sobre a disponibilidade de água doce está refletida na realidade atual.
Calcula-se que 1,4 bilhão de pessoas, o que equivale a 25% da população existente, ainda não
têm acesso regular ao abastecimento. De acordo com a Organização das Nações Unidas
(ONU) cada ser humano precisa de 20 a 50 litros de água diariamente para os diversos usos,
beber, cozinhar, tomar banho, lavar roupas e utensílios.
Das 14 nações do Oriente Médio, nove vivem situações de escassez. Países como
Kuwait, Emirados Árabes, Ilha Bahamas e Faixa de Gaza estão na lista dos que têm um
elevado índice de escassez hídrica. A disponibilidade de água por pessoa nesses países varia
de 10 a 66 litros por ano (ÁGUA, 2006, p. 17). Observe no esquema adiante, as principais
causas e consequências decorrentes da escassez hídrica.
Escassez
Hídrica
Poluição
1,4 bilhões
sem acesso à
água potável
no mundo
Atinge 14 das
9 nações do
Oriente
Médio
Na África 12
países vivem
sob tensão
Na China 60
milhões são
atingidos
300 países
tem águas
fronteiriças
Exploração
excessiva
Mudanças
climáticas
Distribuição
desigual
Figura 3 - Causas e consequências da escassez hídrica
O cenário é ainda mais crítico em países como Jordânia, Israel, Gaza, Chipre, Malta e
Península Arábica, onde todas as reservas de água doces superficiais e subterrâneas foram
esgotadas. As previsões são a de que até 2012, o Marrocos, Argélia, Tunísia e Egito estejam
8
Década da água. Disponível em: <http://www.pnud.org.br/odm/index.php>. Acesso em: 03 dez. 2008.
na mesma situação. No lago Chade que foi apontado como uma das nascentes do Rio Nilo,
decresce 100 metros por ano (VILLIERS, 2002, p. 29-39).
Na África, 12 países, entre os quais, Quênia, Ruanda, Burundi e Malaui, totalizando
mais de 250 milhões de habitantes, vivam sob tensão no suprimento de água. As previsões são
as de que até 2025, esses quatro países enfrentem uma crise extrema no suprimento da água e
que até 2025 passe para 1 bilhão o número de pessoas atingidas pelo problema (SELBORNE,
2002, p. 46).
Na Namíbia, a situação é caótica. O país é o mais árido do extremo sul da África,
um dos mais secos do mundo, não tem rios perenes e os que existem ficam secos na maior
parte do ano. Cerca de 80% da água da chuva registrada em Namíbia evapora e apenas 1%
realimenta os aqüíferos. A escassez hídrica é uma ameaça para a permanência da população
no local e de quase todo o continente africano, exceto as bacias do Congo, Níger e Zambezi.
Em 1980 uma seca atingiu a maior parte da África, chegando a causar a morte de milhões de
pessoas (VILLIERS, 2002, p. 29-38).
Conflitos e guerras têm sido travados em função da escassez por toda parte. Na China,
país mais populoso do mundo, a escassez de água atinge 60 milhões de pessoas,
principalmente os habitantes das áreas mais secas das planícies do norte. Falta água em 400
das 668 cidades da região e conflitos no campo têm sido recorrentes (BURKE, 2003, p. 90 A).
Outro agravante: Na China, 80% dos 50 mil quilômetros dos principais rios não têm mais
peixes devido à poluição (VILLIERS, 2002, p. 87-142).
Conflitos entre países fronteiriços também têm sido desencadeados. Em mais de 300
países as águas superficiais são originárias de outras fronteiras. É o caso da Síria e Turquia. A
seca e a exploração das águas subterrâneas fizeram com que Rio Khabour, principal afluente
do Rio Eufrates na Síria, secasse por mais de cinco anos e como o aquífero do Eufrates fica no
país vizinho, Turquia, a questão é um divisor político entre as duas nações (BOUGUERRA,
2004, p. 93). Os rios Tigre e Eufrates também são assuntos de segurança nacional na Síria,
Turquia e Israel. E as águas do Ganges são objeto de cobiça e disputa entre a Índia e
Bangladesh e motivam prática de guerrilha entre os militantes de Tâmil Nadu e Karnataka.
(VILLIERS, 2002, p. 29-43)
Cerca de 98% das águas do Turcomenistão são originárias de outros países; assim
como 97% das águas do Egito; 95% da Hungria; 95% da Mauritânia e 89% da Holanda. Os
países a jusante, geralmente, sofrem as conseqüências de problemas como a redução do fluxo
fluvial, o assoreamento normalmente ocasionado pela construção de represas, o uso da água
para irrigação, a poluição causada pela indústria ou uso de agrotóxico na agricultura e até
mesmo à salinização dos rios, entre outros. São medidas adotadas pelos países e que geram
conflitos pelo uso da água junto aos países à montante (SELBORNE, 2002, p. 62-63).
As águas do Colorado, no México, são tão exploradas pelos norte-americanos que
ameaçam o abastecimento para milhares de pessoas na península mexicana de Baja
Califórnia. Em 2001, o Ministério das Relações Exteriores do México elaborou um protesto
contra o projeto norte-americano de exploração da Bacia do Colorado. No México, a
contaminação dos recursos hídricos pelas usinas estrangeiras, tem feito com que as mães
substituam a água por refrigerantes para os seus bebês. Acredita-se, que a guerra do Irã-
Iraque, em 1980, teve como uma das motivações o controle do delta mesopotâmico de Chatt-
el-Arab (BOUGUERRA, 2004, p. 94).
E até mesmo internamente nos Estados Unidos há conflitos por causa do uso da água.
O norte tem resistência em desviar água da Califórnia, do Oregon e Washington, para o sul. A
poluição industrial e o lançamento de esgotos sem tratamento comprometem mananciais
como os lagos Michigan, Huron, Erie, Ontario, o sul da baía da Geórgia, a baía de São
Francisco e Los Angeles, o rio Hudson, em Nova York. (VILLIERS, 2002, p. 87-142).
Percebe-se, desta forma, que a escassez hídrica está associada a fatores climáticos e
outros como exploração excessiva dos recursos hídricos, da distribuição desigual deles e ainda
à poluição dos mananciais. Em 1997, a Population Action International afirmou que 436
milhões de pessoas no mundo viviam em “estado crítico de falta de água”. Segundo as
Nações Unidas, um em cada cinco países está vulnerável a sofrer com a falta de água dentro
de 25 anos (VILLIERS, 2002, p. 29-42).
3.2 ABUNDÂNCIA E ESCASSEZ: O BRASIL DAS CONTRADIÇÕES
Mesmo no Brasil, que possui a maior disponibilidade hídrica do mundo - entre 12 e
16% das reservas hídricas do planeta -, milhares de pessoas enfrentam a escassez hídrica e
convivem com a desigual distribuição de água. O país tem uma taxa de 35 mil m³/ano por
habitante,
9
o maior rio do planeta, o Amazonas com mais de 6 mil km de extensão e 112 mil
km³ de reservas subterrâneas.
9
Rebouças ( 2004, p.145) cita levantamento das Nações Unidas nos seus países membros que aponta o volume
de 2000 m³/hab/ano como o suficiente para o gozo da qualidade de vida moderna e desenvolvimento
sustentável
.
Dentre os aqüíferos existentes no território nacional, o Guarani se destaca por ser o
maior das Américas e um dos maiores do mundo. Dos 1,2 milhões de km², distribuídos entre
o Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai, 71% ou o equivalente a 840 mil km² do aqüífero
estão distribuídos entre os estados brasileiros de Minas Gerais, Mato Grosso do Sul, Goiás,
São Paulo, Santa Catarina, Paraná e Rio Grande do Sul (ÁGUA, 2006, p 23).
Apesar de tanta riqueza de águas superficiais e subterrâneas, o Brasil tem um histórico
de escassez desde os tempos do império. A criação da floresta da Tijuca e da Floresta das
Paineiras, em 1861, foi uma medida tomada por D. Pedro II para proteger e aumentar o
volume dos mananciais que abasteciam a capital do Império. Esta foi uma reação à
degradação dos mananciais devido à excessiva exploração dos corpos d´água; fato que levou a
capital do Império a enfrentar uma escassez de água (CENTRO DE CONSERVAÇÃO DA
NATUREZA, 1966; DEAN, 1996).
Em pleno Século XXI, com a expansão urbana, o crescimento desordenado das
cidades, o aumento da população, a acelerada demanda e uso intensivo e exaustivo dos
recursos hídricos, sobretudo, pelas atividades econômicas, o cenário de escassez está posto e
de forma alarmante. E é assim, mesmo nesse Brasil de águas em abundância; país que tem
uma área de 8.574.403,5 km
2
, segundo o IBGE (2000) e que registra chuvas regulares entre
1.000 e 3.000 mm/ano em mais de 90% do seu território (REBOUÇAS, 2004, p. 39).
Essas são evidências de que o panorama de escassez da água no Brasil, assim como
em várias partes do mundo, está associado a questões como irregularidade no abastecimento
da água, crescimento urbano e das populações e também à falta de qualidade da água. Mesmo
na região com maior riqueza de biodiversidade do mundo, o Norte brasileiro, onde está a
maior bacia hidrográfica do mundo, a Amazônica, 30% da população não têm acesso à água
potável. No Sudeste, a escassez de água para consumo humano pode atingir mais de 40
milhões de pessoas em uma década, principalmente nas regiões metropolitanas de São Paulo,
Rio de Janeiro e Belo Horizonte, regiões onde rios como o São Francisco nas cidades de
Itaúna, Betim e Extrema estão poluídos por resíduos industriais e domésticos.
10
Em todo o país, os corpos d´água estão cada vez mais poluídos.
11
De toda a água
existente no país, 70% é destinado ao agronegócio, 20% para a indústria e 10% para consumo
10
Fonte: Fórum Social Mundial. Disponível em: <http://fsma2009.org/langs/arquivos.php>. Acesso em: 3 jan.
2009 “O Estado real das águas e da biodiversidade no Brasil 2004/2008”, editado pela Defensoria da Água, da
Confederação Nacional dos Bispos do Brasil, como resultado da campanha da fraternidade intitulada “Água,
fonte da vida”. O relatório envolveu 10 mil paróquias em todas as regiões do país e apresenta o registro de
454.235 notificações de conflitos pelo uso da água no território nacional.
11
Rutkowski (1992 p. 1) em estudo sobre bacia ambiental, afirma que a falta de água potável e o sobrar de
esgotos fazem parte do cotidiano das regiões urbanizadas no país ao longo dos séculos.
humano, geração de energia, pesca e turismo. E são os maiores consumidores os maiores
poluidores dos recursos hídricos. As causas são diversas. Estão mais relacionadas aos lixos
tóxicos, destinação ilegal de resíduos industriais e de indústrias de fundição, contaminação
por derivados de petróleo, destinação de resíduos de indústrias de alimentos, contaminação
por atividades siderúrgicas e petroquímicas, despejos de esgotos urbanos e rurais e a
existência de lixões em mais de 4.700 municípios.
Menos de 3% dos lixões enquadram-se na categoria “aterros controlados”.
registros de 20.760 áreas contaminadas com mais de 5 milhões de
pessoas afetadas... O agravante está na falta de controle ambiental quanto à
geração, tratamento e destinação final de resíduos gerados no processo
produtivo, normalmente acumulados nas margens de cursos de água (O
ESTADO REAL..., 2004/2008)
Segundo o Estado Real das Águas no Brasil 2004/2008, 70% das águas superficiais do
Brasil são impróprias para o consumo humano e a previsão é a de que até 2012, 90% das
águas superficiais do país estarão impróprias para o contato humano. Levantamento da
própria organização afirma que de 1994 a 2004, a contaminação dos mananciais brasileiros,
incluindo, rios, lagos, lagoas e oceanos, cresceu 500%. Observe no esquema adiante, um
panorama sobre os recursos hídricos no Brasil.
Figura 4 - Esquema apresenta a situação da água no Brasil e distribuição para os diversos usos
Além desse contexto de distribuição dos recursos hídricos e, principalmente, da
poluição que compromete os mananciais e aumenta os riscos de escassez hídrica no Brasil,
outro cenário é que em todo o país há muitos ecossistemas em situação de estresse hídrico, ou
seja, praticamente mortos porque os recursos naturais estão sendo saturados a partir,
sobretudo, do uso excessivo para abastecimento e irrigação. A bacia do Rio Piracicaba é um
desses casos. Parte das suas nascentes foi revertida para o abastecimento de água potável para
São Paulo e Região Metropolitana. Na bacia, a extração é muito maior do que a capacidade de
reposição (RUTKOWSKI, 1999, p. 20).
A região do Semiárido brasileiro que agrega os Estados Nordestinos e parte de Minas
Gerais e onde vivem cerca de 34 milhões de pessoas, 24% da população urbana do país
(IBGE, 2000), é a mais afetada pela escassez dos recursos hídricos. Tem índices
pluviométricos abaixo dos 900 mm/ano e outras características geoclimáticas desfavoráveis.
Registra altas temperaturas, baixas amplitudes térmicas e elevadas taxas de evapotranspiração
que, geralmente, superam os totais pluviométricos irregulares, conduzindo a taxas negativas
no balanço hídrico da região. “Trata-se, portanto, de uma área vulnerável, em que a
sazonalidade inter-anual das chuvas pode acarretar condições extremas, caracterizando
períodos críticos de seca” (ATLAS NORDESTE, 2006, p. 24).
A incidência de secas periódicas torna a região ainda mais vulnerável à escassez e
conseqüentemente aos conflitos em torno do uso da água. Esse quadro de seca no semi-árido
nordestino foi registrado pela primeira vez na "História da Companhia de Jesus no Brasil",
quando o padre Serafim Leite, em 1559, citou a seca na Bahia. Outro jesuíta, Fernão Cardim
em 1587, também fez registros da seca na Bahia e em Pernambuco. As secas de 1915, 1919,
1930/32 e 1958 também tiveram registros como as maiores do século XX. Para esses eventos
extremos, foram organizadas 500 mil frentes de serviço. Entre 1979 e 1983, o Centro
Aeroespacial de Campinas (SP) previu a seca e chegou a fazer uma levantamento na época
que incluía 3,1 milhões de pessoas nas frentes de trabalho (PLANO NACIONAL DE
COMBATE À DESERTIFICAÇÃO E MITIGAÇÃO DOS EFEITOS DA SECA, 2006)
12
.
Acredita-se que as condições de sustentabilidade hídrica da região do Semi-Árido
Nordestino sejam agravadas por vários fatores, entre eles, as mudanças climáticas, que
deverão contribuir com o aumento significativo da temperatura e com a diminuição de
precipitações e da umidade do solo. Também devem sofrer conseqüências devido a
intervenções humanas no ambiente (REBOUÇAS et al., 1999, p. 522). De acordo com o
Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, até o final do Século XXI, as temperaturas podem
aumentar de 2ºC a 5ºC no semi-árido, a evaporação aumentará e a disponibilidade hídrica será
reduzida; a diminuição das chuvas diminuirá a vazão dos rios e limitará a diluição dos esgotos
comprometendo a geração de energia (GREENPEACE, 2006, p. 53).
Na atualidade, 2.200.000 domicílios no Nordeste já não dispõem de água de boa
qualidade. Homens, mulheres e crianças costumam percorrer 3 km por dia, em média, em
12
Programa Nacional de Combate à Desertificação e Mitigação dos Efeitos da Seca (PAN-Brasil). Disponível
em: <http://www.iicadesertification.org.br>. Acesso em: 13 dez. 2009.
direção aos açudes ou outros tipos de mananciais para encontrar água para consumo humano e
dessedentação animal (PAN Brasil, 2006).
3.3 BAHIA: POTENCIALIDADES E VULNERABILIDADES HÍDRICAS
Maior estado do Nordeste, a Bahia tem grande potencial hídrico. Dividido em 26
Regiões de Planejamento e Gestão das Águas, como apresenta o mapa adiante, o Estado é
cortado por centenas de rios, entre os maiores estão o Paraguaçu, Real, Itapicuru, Contas,
Pardo, Jequitinhonha e São Francisco, esses dois últimos de domínio Federal (PLANO
PLURIANUAL, 2008-2011, p.445).
Figura 5 - Mapa da divisão hidrográfica da Bahia em 26 Regiões de Planejamento e Gestão das Águas
de aqüíferos, a Bahia tem 567.000 km². Os maiores são o Urucuia, com 75.000
km², o Aqüífero de Irecê, com 20.000 km² e o Aqüífero Tucano e Recôncavo, com 43.000
km² (PLANO ESTADUAL DE RECURSOS HÍDRICOS, 2000) .
A riqueza hídrica do Estado não o torna imune à questão da escassez. A Bahia está
vulnerável e sofre com o problema assim como a maior parte dos estados nordestinos e as
causas da escassez são várias. A escassez hídrica está ligada, por exemplo, ao acesso. Na
Bahia, a falta de abastecimento atinge 24,9% da população
13
e está relacionada à
distribuição: 60% da água na Bahia é utilizada na irrigação (ATLAS NORDESTE, 2006, p.
35).
A maior parte do território baiano tem baixo, restrito ou médio potencial de terras para
irrigação. Mas na região Oeste do Estado, caracterizada como uma região onde
predominam os níveis médio, baixo e restrito potencial de irrigação, aproximadamente 12
bilhões de metros cúbicos de água são utilizados diariamente para esse fim no agronegócio,
sobretudo, cultivo da soja. Nesta região, predomina o modelo de irrigação por pivô central,
onde é verificado o volume de 40% de desperdício da água utilizada; a distribuição e uso da
água para o agronegócio provocam disputa e conflitos pelo uso da água naquela área
14
.
Figura 6 - Mapa sobre potencial de terras para irrigação na Bahia (PERH, 2000)
Um dos fatores que agravam o quadro de escassez hídrica na Bahia é a poluição tanto
das águas superficiais quanto subterrâneas e que tem como principais fontes de contaminação
os esgotos domésticos, industriais, efluentes agro-industriais, salinização, mineração e
agrotóxico (ATLAS NORDESTE, 2006, p. 49). Outros fatores contribuem para a poluição
das águas superficiais e subterrâneas, como a agricultura de sequeiro pelo uso de insumos
químicos como fertilizantes, corretivos e agrotóxicos. De acordo com o Plano Estadual de
13
Informações do Plano Plurianual 2008-2011, do governo do Estado da Bahia
14
Conflitos de uso da água na Bahia. Disponível em: <www.inga.ba.gov.br>. Acessso em: 03 de agosto. 2008.
Recursos Hídricos do Estado da Bahia
15
, os 417 municípios baianos apresentam algum risco
potencial de poluição hídrica por agricultura de sequeiro, sendo que em 6% do total, ou seja,
27 municípios há alto risco potencial de poluição, isso equivale a 10% do território estadual.
Os riscos de contaminação dos recursos hídricos na Bahia são maiores quando
referem-se à irrigação que na região do São Francisco, onde estão os pólos de Barreiras e
Juazeiro, representa 65% da área irrigável do Estado. O Pano Estadual de Recursos Hídricos
(2002) indica que médio risco potencial de contaminação das águas superficiais e
subterrâneas em 80 municípios baianos, 21% do total, e existe alto risco potencial em 94
municípios, ou 23% do total. A irrigação na agricultura eleva a composição físico-química das
águas superficiais e dos aqüíferos devido ao uso intensivo de corretivos, fertilizantes,
agrotóxicos, mecanização agrícola e uso contínuo do solo. Outro fator determinante para a
poluição das águas é que os perímetros irrigados geralmente estão muito próximos aos
mananciais que os abastecem e se tornam receptores dos efluentes que resultam da atividade.
Os esgotos são outra potencial fonte de contaminação dos corpos d´água na Bahia. O
Programa Monitora que faz o monitoramento
16
da qualidade das águas dos maiores rios da
Bahia apontou na primeira campanha, de dezembro de 2007 a março de 2008, que há
problemas de poluição por esgoto doméstico até mesmo nas bacias hidrográficas que
apresentaram a qualidade da água em boas ou ótimas condições. Foram avaliados aspectos
físicos (temperatura, turbidez e sólidos totais), químicos (OD, pH, DBO, N total e P total) e
biológicos da água (Coliformes Termotolerantes) de acordo com o Índice de Qualidade da
Água (IQA), com a água coletada em 208 pontos amostrais.
17
As alterações mais significativas na qualidade da água estão relacionadas às áreas mais
populosas e com concentração de atividades econômicas. Os rios com menores vazões têm
sua qualidade afetada em proporções maiores que os de grandes vazões, devido á baixa
capacidade de depuração. A Região de Planejamento e Gestão das Águas da Bacia do
Recôncavo Norte e Inhambupe, onde estão localizadas cidades como Salvador, Camaçari,
Conceição do Jacuípe, foi aquela em que os rios apresentaram os piores índices de qualidade
da água. Os rios mais comprometidos nessa região, que tiveram a qualidade entre regular,
ruim e péssima de acordo com os parâmetros do IQA, foram, conforme aponta mapa abaixo, o
Bandeira, Petecaba, Jacarecanga, Piaçabeira, Muriqueira, Ipitanga, Cabuçu, Joanes.
15
Plano Estadual de Recursos Hídricos, 2002 p. 629 - 658
16
O Monitora é um programa executado pelo Instituto de Gestão das Águas e Clima (INGÁ) e vai avaliar até
2010 de forma contínua e sistemática a qualidade das águas superficiais e subterrâneas do Estado, com
recursos de aproximadamente 7 milhões de reais.
17
Monitora. Disponível em < http://monitora.inga.ba.gov.br>. Acesso em: 05 dez. 2008.
Figura 7. Mapa sobre contaminação dos rios na Bacia Hidrográfica do Recôncavo Norte e Inhambupe
Figura 7 - Mapa mostra a qualidade da água dos rios na Bacia Hidrográfica do Recôncavo Norte e Inhambupe
Estado com quatro ecossistemas naturais: Cerrado, Semi-Árido, Serras e Chapadas e
Mata Atlântica (PERH 2000), a Bahia tem várias regiões com baixa potencialidade hídrica,
ou seja, inferior a 2 L/s/km², fator que também agrava o cenário de escassez. Estudo realizado
pelo Atlas Nordeste (2006 p.39), sobre alternativas de oferta de água para as sedes municipais
da Região Nordeste do Brasil e do Norte de Minas Gerais, apontou na Bahia as áreas da Bacia
do rio Verde Grande e quase todas as bacias hidrográficas do centro, norte e leste do Estado
como áreas com baixa potencialidade hídrica, como ressaltado no mapa abaixo com o saldo
do balanço hídrico. Toda área em vermelho no mapa mostra as regiões com saldo de balanço
hídrico menor que 0,0 m³/s.
Figura 8 - Mapa sobre balanço hídrico na Bahia. Nas áreas em vermelho, regiões com saldo de balanço hídrico menor que 0,0
m³/s.
A área mais vulnerável do Estado é o Semi-Árido, que abrange, segundo o IBGE,
391,6 km² dos 564,7 mil km² de todo a Bahia. O Semi-Árido representa 69,3% do território,
onde vivem 48,4% da população do Estado, ou seja, 6.451.835 habitantes distribuídos em 266
municípios (PPA 2008-2011 p. 445). Enfatiza-se que o Semi-Árido é característico nos vales
dos Rios São Francisco, Vaza-Barris, Itapicuru, Paraguaçu e Contas, apresenta temperaturas
elevadas, com médias mínimass superiores aos 25ºC e déficit hídricos, com precipitações
inferiores a 800 mm anuais.
3.4 TRATADOS E CONVENÇÕES INTERNACIONAIS: UM OLHAR PARA A
SUSTENTABILIDADE
O cenário de escassez hídrica seja a nível mundial, nacional ou local, tem contribuído
para uma mobilização de organismos em escala global. Uma das grandes discussões em torno
do tema e que é considerada vital, é a sustentabilidade
18
. O grande desafio é assegurar água
em qualidade e quantidade para os diversos usos às atuais gerações e às que virão. O mundo
está sendo obrigado a encarar os problemas em torno dos recursos hídricos por uma questão,
sobretudo, de sobrevivência
19
.
Essa atenção com a proteção e conservação dos recursos naturais e em especial com a
água doce, é, no entanto, um movimento recente, cerca de 30 anos, e surgiu da necessidade de
frenar os graves impactos que o desenvolvimento, desde a revolução industrial, vem
provocado nos diversos ecossistemas. Discutir a problemática ambiental tem sido imperativo
na agenda política dos governos, comunidade científica, movimentando recursos sejam eles
financeiros, técnicos, científicos ou administrativos, pela compreensão de que urge uma
18
O conceito é definido pela união Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN), Pelo Programa de
Meio Ambiente das Nações Unidas (PNUMA) e pelo World Wildlife Fund (WWF) como “uma característica
de um processo ou estado que pode manter-se indefinidamente”. Leonardo Boff, no documentário “Ética &
Ecologia: Desafios do Século XXI” (2008), diz que sustentabilidade é o dever de usar os recursos de tal
maneira que eles satisfaçam as necessidades das gerações atuais sem danificar o capital natural às gerações
futuras. Afirma que essas gerações têm direito de herdar uma vida saudável. Acrescenta que a sustentabilidade
é a garantia do bem-estar que cada um pode dar aos cidadãos.
19
Lovelock, em A vingança de Gaia (2006, p 145) afirma que “de várias maneiras, estamos em guerra
involuntária contra Gaia (nome que ele atribui a terra), e para sobreviver com nossa civilização intacta
precisamos urgentemente selar uma paz justa com Gaia enquanto somos fortes o bastante para negociar, e não
uma ralé derrotada e debilitada em vias de extinção”
reação por parte de todos para reduzir os impactos provocados pela degradação ambiental
(MACHADO et al., 2004).
Desde o início dos anos 70 que, por meio de congressos, convenções, tratados, entre
outros instrumentos, autoridades e ambientalistas vêm discutido, especialmente, o problema
da escassez hídrica; debatem a necessidade da adoção de medidas urgentes para coibir a
degradação ambiental, propõem diretrizes, assumem compromissos com o objetivo de levar à
redução dos danos causados pelo desenvolvimento desordenado.
Em 1972, o meio ambiente entrou na pauta internacional quando realizada, em
Estolcomo, a Conferência das Nações Unidas sobre o Ambiente Humano. Na Declaração do
Meio Ambiente Humano
20
resultante do evento, o artigo I classifica que O homem é ao
mesmo tempo obra e construtor do meio ambiente que o cerca, o qual lhe dá sustento material
e lhe oferece oportunidade para desenvolver-se intelectual, moral, social e espiritualmente” e
que “os dois aspectos do meio ambiente humano, o natural e o artificial, são essenciais para o
bem-estar do homem e para o gozo dos direitos humanos fundamentais, inclusive o direito à
vida mesma”.
Um conceito de sustentabilidade começou a ser então esboçado. Um dos princípios da
declaração é que “O homem tem o direito fundamental à liberdade, à igualdade e ao desfrute
de condições de vida adequadas em um meio ambiente de qualidade tal que lhe permita levar
uma vida digna e gozar de bem-estar, tendo a solene obrigação de proteger e melhorar o meio
ambiente para as gerações presentes e futuras”.
Outro princípio mostra a preocupação com elementos da natureza, incluindo a água.
Proclama que “os recursos naturais da terra incluídos o ar, a água, a terra, a flora e a fauna e
especialmente amostras representativas dos ecossistemas naturais devem ser preservados em
benefício das gerações presentes e futuras, mediante uma cuidadosa planificação ou
ordenamento”.
No artigo IV, a Declaração destaca que os problemas ambientais são cada vem
maiores e que repercutem internacionalmente independentemente se acontecem apenas em
escala regional e que consequentemente requerem a colaboração mútua entre as nações. A
Conferência conclama para que os diferentes governos e povos se unam “para preservar e
melhorar o meio ambiente humano em benefício do homem e de sua posteridade”.
20
Declaração do Meio Ambiente Humano. Disponível em:
<http://www.mp.ba.gov.br/atuacao/ceama/material/legislacoes/declaracao_estocolmo_meio_ambiente_hum
ano_ 1972.pdf>. Acesso em: 11 dez. 2008.
Um ano antes, em Founex, os organizadores da conferência levavam à baila a
discussão sobre a dependência entre desenvolvimento e meio ambiente. Na Conferência,
prevaleceu o entendimento de que o crescimento econômico nos países em desenvolvimento
era necessário, mas que esse desenvolvimento deveria ser socialmente receptivo e introduzido
por meios favoráveis ao meio ambiente, ao invés de favorecer a incorporação predatória do
capital da natureza ao PIB (SACHS, 2002, p. 48).
Em 1987, o documento “Estratégia Mundial para a Conservação da Natureza”
produzido conjuntamente pela União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN),
o Programa de Meio Ambiente das Nações Unidas (PNUMA) e o
World Wildlife Fund
(WWF) apresentou o conceito de sustentabilidade como “uma característica de um processo
ou estado que pode manter-se indefinidamente”. Relatório elaborado pela Comissão
Brundtland (NOSSO FUTURO COMUM, 1991) propõe o conceito de desenvolvimento
sustentável que passa a ser aceito mundial, inclusive, para balizar políticas ambientais e
desenvolvimentistas (DIAS, 2007, p. 19-33). Para a Comissão Brundtland, desenvolvimento
sustentável é:
Um processo de transformação no qual a exploração dos recursos naturais, a
direção dos investimentos, a orientação do desenvolvimento tecnológico e a
mudança institucional se harmonizam e reforçam o potencial presente e
futuro, a fim de atender às necessidades e aspirações humanas”
(COMISSÃO BRUNDTLAND, 1991, p.49, apud DIAS, 2007, p.31)
A concepção de desenvolvimento sustentável vem provocando polêmica desde que
foi instituída, pois há várias definições para a terminologia (BARONI, 1992, p. 14-24). Mas é
a partir desse parâmetro que discussões têm-se intensificado para que sejam encontradas
formas, alternativas de usufruto dos recursos naturais conciliando o desenvolvimento e a
sustentabilidade, ou seja, a proteção dos recursos naturais de modo a resguardá-los também
para uso das futuras gerações.
Dias (2007, p. 33) avalia que a evolução de um desenvolvimento predatório para um
desenvolvimento sustentável, que mantenha o equilíbrio com a natureza, implica na mudança
de postura da humanidade na sua relação com o meio ambiente:
Envolve um manejo racional dos recursos naturais e também modificar a
organização produtiva e social que produz e reproduz a desigualdade e a
pobreza, assim como as práticas produtivas predatórias e a criação de novas
relações sociais, cujo eixo não será a ânsia de lucro, mas o bem-estar da
humanidade.
E foi com o objetivo de auxiliar os países em desenvolvimento a alcançar o
desenvolvimento sustentável, contribuindo com a redução das emissões de CO2, que entrou
em vigor em 16 de fevereiro de 2005, o Protocolo de
Kyoto. A meta é a de que os países em
desenvolvimento reduzam para 5,2%, em média, as emissões de CO2 entre os anos de 2008 e
2012. Para tanto, foram criados o Comércio de Emissões e proposta a Implementação
Conjunta e Mecanismos de Desenvolvimento Limpo (GREENPEACE, 2006, p.53).
Entre outras convenções sobre meio ambiente, a Conferência Internacional de Água e
Desenvolvimento Sustentável, em 1992, em Dubin, na Irlanda deu enfoque todo especial aos
sérios riscos e ameaças que a escassez e o mau uso da água doce significam para a proteção
do ambiente e ao mesmo tempo como comprometem o desenvolvimento sustentável
21
. Foi
declarado na conferência, que a escassez e o mau uso da água são uma ameaça generalizada à
saúde humana - por ser a água vetor de doenças hídricas -, ao bem-estar, à segurança
alimentar e ao desenvolvimento dos ecossistemas. Da mesma forma, considerou que esses
problemas podem e devem ser revertidos a partir da utilização de formas mais eficazes dos
recursos da água doce e do solo e do gerenciamento dos recursos hídricos.
22
A Organização das Nações Unidas (ONU) redigiu em 1992 um documento
denominado “Declaração Universal dos Direitos da Água” que faz, entre outras coisas, apelo
para o uso racional da água no planeta. “Os recursos naturais de transformação da água em
água potável são lentos, frágeis e muito limitados. Assim sendo, a água deve ser manipulada
com racionalidade, precaução e parcimônia”. A declaração também enfatiza que o “equilíbrio
e o futuro de nosso planeta dependem da preservação da água e de seus ciclos. Estes devem
permanecer intactos e funcionando normalmente para garantir a continuidade da vida sobre a
Terra”.
No Brasil, em 1992, a cidade do Rio de Janeiro, sediou o maior e mais importante
evento de meio ambiente do país até os tempos atuais. E foi um marco na história do Brasil e
dos 179 chefes de Estado e de Governo que participaram e assinaram a Agenda Global da
Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento. Essa agenda reúne
as recomendações de substituir padrões de desenvolvimento em prática no mundo, de modo
que os recursos naturais sejam usados sem que isso signifique o seu esgotamento (AGENDA
21, 1997).
21
Em Estocolmo 1972, esse conceito foi formulado a partir da necessidade de conciliar o crescimento econômico
com a proteção dos recursos naturais, de forma a garantir seus usos para as atuais e futuras gerações. Ler
Caminhos para o desenvolvimento sustentável (SACHS, 2002).
22
Conferência Internacional de Água e Desenvolvimento Sustentável: Disponível em: <
http://www.meioambiente.uerj.br/emrevista/documentos/dublin.htm>. Acesso em: 15 de dez. 2008.
A partir da Agenda Global, os países participantes assumiram publicamente o
compromisso de desenvolver suas próprias agendas, elencando prioridades, englobando da
sociedade ao governo, na perspectiva de promover parcerias e implementar políticas públicas
internas eficazes de controle dos processos predatórios de desenvolvimento. A essência da
Agenda Global foi a de que cada nação encontrasse o equilíbrio entre crescimento econômico,
equidade social e preservação ambiental.
23
Para tanto, cinco documentos foram elaborados: a declaração do Rio de Janeiro sobre
Meio Ambiente e Desenvolvimento; a Declaração de princípios para a gestão sustentável das
florestas; o Convênio sobre a Diversidade Biológica; o Convênio sobre Mudanças Climáticas
e o Programa das Nações Unidas para o século XXI também denominada de Agenda 21 que
aponta os desafios e estabelece diretrizes para que seja alcançado o desenvolvimento
sustentável econômico, social e ambiental (DIAS, 2007, p.33).
Para a execução dessas metas, no Brasil, em 1997, foi criada por Decreto presidencial,
a Comissão de Políticas de Desenvolvimento Sustentável e da Agenda 21, coordenada pelo
Ministério do Meio Ambiente, construída a partir de seis eixos temáticos: agricultura
sustentável, cidades sustentáveis, infra-estrutura e integração regional, gestão dos recursos
naturais, redução das desigualdades sociais e ciência e tecnologia para o desenvolvimento
sustentável. A Agenda 21 colocou a sociedade como protagonista desse processo ao ser
construída com a participação social (AGENDA 21, 1997).
A própria Agenda 21 explicita que o acesso à água é um direito humano fundamental
e que toda pessoa dever dispor de água potável em quantidade suficiente, custo acessível e
boa qualidade físico, química e biológica, para os usos pessoais e domésticos. Enfatiza ainda
que “ao desenvolvermos e utilizarmos os recursos aquíferos é preciso dar prioridade à
satisfação das necessidades básicas e à salvaguarda dos ecossistemas”.
Cinco anos depois da ECO 92, em Nova York, foi realizada a Rio + 5, quando durante
sessões extraordinárias da Assembléia Geral da ONU, foi feito um balanço para saber o nível
de execução dos compromissos assumidos pelos chefes de Estado reunidos no Rio de Janeiro.
Em torno do debate sobre desenvolvimento sustentável, novos acordos foram firmados e
resultaram em um documento com 58 páginas que, entre outras coisas, estabelece a adoção de
medidas jurídicas para a redução da emissão de gases do efeito estufa, a adoção de
modalidades sustentáveis de produção, distribuição e utilização de energia e o esforço
concentrado na erradicação da pobreza como requisito prévio do desenvolvimento
23
Utilizam-se aqui informações da parte introdutória da Agenda 21 Brasileira – Ações Prioritárias, elaborada
pela Comissão de Políticas de Desenvolvimento Sustentável e da Agenda 21 Nacional, 1997.
sustentável. O mesmo encontro foi repedido em 2002, em Johannesburgo, África do Sul, e
ficou conhecido como Rio + 10, onde a Cúpula Mundial sobre Desenvolvimento Sustentável
reafirmou os compromissos assumidos na Eco 92 (DIAS, 2007, p. 34-43).
Em 2005, foi lançado em Nova York, o relatório da Força-tarefa Saúde, dignidade e
desenvolvimento: o que é preciso. Este plano está inserido no plano de ação global de
combate à pobreza, doenças e a degradação ambiental nos países em desenvolvimento e
também tem a finalidade de contribuir para que os Objetivos do Milênio da ONU sejam
alcançados. A força-tarefa faz uma série de recomendações para o enfrentamento da crise de
água, que envolve desde investimentos em saneamento básico o empoderamento de
autoridades locais e de comunidades para a eficiente gestão dos recursos hídricos
24
.
4 A POLÍTICA DAS ÁGUAS
4.1 A LEI DAS ÁGUAS OS INSTRUMENTOS DE CONTROLE DOS USOS
Os tratados, protocolos e convenções têm sido relevantes instrumentos na tentativa de
proteção dos recursos naturais, incluindo a água. As legislações de vários países também têm
avançado e apontado a necessidade de um meio ambiente ecologicamente equilibrado, com
ênfase, inclusive, na proteção e uso racional das águas.
24
Objetivos do Milênio. Disponível em: <http://www.pnud.org.br/milenio/ft10.php>. Acesso em: 06 de
jan.2009.
Os governos nacionais, por sua vez, são cada vez mais pressionados por
diversos atores ambientalmente ativos tanto no plano interno como no
externo, e respondem com ações administrativas e jurídicas no âmbito
nacional, e iniciativas bilaterais ou multilaterais no plano internacional,
incrementando sua participação na agenda diversificada, criada para debate
dos múltiplos problemas relacionados com o meio ambiente natural (DIAS,
2007, p. 104).
A legislação brasileira com foco no meio ambiente mais antiga é o Código Florestal,
datado de 1934; mesmo ano em que foi publicado o Código das Águas. Em 1938 foi editado o
Código da Pesca e em 1941, o Código de Minas. Mas longe de representarem uma
preocupação com a proteção e conservação ambiental, essas legislações tinham como
elemento norteador, o incentivo ao desenvolvimento econômico e a normatização da
exploração dos recursos naturais (MACHADO et al., 2004, p. 6).
Em 1981, a Lei 6.938, de 31 de agosto, inaugura a Política Nacional de Meio
Ambiente de forma mais abrangente. No artigo 3º, inciso I, considera o meio ambiente como
toda a biodiversidade existente. E no artigo 2º, inciso I, classifica o meio ambiente como “um
patrimônio público a ser necessariamente assegurado e protegido, tendo em vista o uso
coletivo” (MACHADO, 2004, p. 11).
Mas, foi em 1998 que a legislação brasileira deu um salto decisivo para a concepção
de que o meio ambiente é um direito de todos e que precisa ser resguardado por qualquer
cidadão no presente e para o futuro. Trata-se da Constituição Federal de 1988, que no artigo
225 estabelece que “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de
uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à
coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”. Na
mesma Constituição, no art. 5º, LXXIII reza que “qualquer cidadão é parte legítima para
propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que
o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e
cultural”.
No artigo 21, inciso XIX, a constituição é clara no que diz respeito à salvaguardar as
águas superficiais e subterrâneas do país: “compete à União instituir sistema nacional de
gerenciamento de recursos hídricos e definir critérios de outorga de direito do uso”.
O grande avanço no Brasil para resguardar os recursos hídricos, porém, visando a
sustentabilidade hídrica se consolida com a edição e publicação da Lei 9.433/97, também
chamada de Lei das Águas. Esta Lei estabelece a Política e cria o Sistema Nacional de
Gerenciamento de Recursos Hídricos. É um marco, pois impõe uma concepção inovadora
quanto ao manejo dos recursos hídricos, principalmente, no que se refere ao tratamento hora
dispensado pelo poder público (MACHADO et al
., 2004 p. 4). Veja no modelo adiante os
fundamentos da política, os objetivos da Lei das Águas e as diretrizes do Sistema Nacional de
Gerenciamento de Recursos Hídricos.
Figura 9 - Fundamentos, objetivos e diretrizes da Lei das Águas
Nesse sentido, destaca-se um dos fundamentos da Lei 9.433/97 que classifica a água como
um bem de domínio público. Nesse quesito, a lei é clara quanto à prerrogativa de que a água é
de todos e deve ser repartida para atender os interesses da coletividade (MACHADO et al.,
2004, p. 4). Outros fundamentos da Lei dizem que a água é um recurso natural limitado,
dotado de valor econômico; que o uso prioritário dos recursos hídricos deve ser para consumo
humano e dessedentação animal em caso de escassez. Destaca que a gestão deve ser voltada
ao uso múltiplo das águas; que a bacia hidrográfica é a unidade territorial para implementação
da Política Nacional e atuação do Sistema Nacional de Recursos Hídricos e a gestão dos
recursos hídricos tem de ser descentralizada contando com a participação do poder público,
usuários e das comunidades.
A política emprega de forma sistemática o conceito de sustentabilidade, pois tem como
objetivos garantir a disponibilidade de água para as atuais e futuras gerações, em quantidade e
qualidade para os múltiplos usos; o uso racional e integrado visando o desenvolvimento
sustentável e à prevenção e defesa contra eventos hidrológicos críticos de origem natural
(cheias e secas) ou consequentes do inadequado uso das águas superficiais e subterrâneas
(ÁGUA, 2006, p. 31).
Segundo a Lei das Águas, a gestão dos recursos hídricos deve ter como diretriz a
associação de fatores como a qualidade e quantidade, a adequação às diferenças físicas,
bióticas, demográficas, econômicas, culturais e sociais de acordo com as especificidades de
cada região do país e a gestão integrada de recursos hídricos e meio ambiente com a gestão
dos sistemas estuarinos e costeiros e de uso do solo. Observe no esquema adiante os
instrumentos de controle de uso da água conforme Política Nacional de Recursos Hídricos.
Figura 10 - Esquema com os instrumentos da Política Nacional de Recursos Hídricos
Como complemento, a Lei das Águas estabelece instrumentos da Política Nacional de
Recursos Hídricos também com o viés de sustentabilidade, ou seja, que contribuam para
proteger as águas e resguardá-la para as futuras gerações. O primeiro deles são os Planos de
Recursos Hídricos. Os planos são aplicados nas esferas Federal e Estadual e por bacia
hidrográfica, envolvendo estratégias e diretrizes para a conservação, recuperação e uso dos
recursos hídricos.
O enquadramento dos corpos d´água é outro instrumento da política que visa classificar os
usos da água através do qual são estabelecidos critérios e metas de qualidade da água a serem
conquistados para garantir usos futuros das águas nos corpos d´água, como por exemplo, o
lançamento de efluentes. Alguns dos objetivos do enquadramento é o combate à poluição
hídrica e a adoção de medidas preventivas (ÁGUA, 2006, p. 31).
Essa é uma questão determinante da política quando se leva em consideração que a
qualidade da água está cada vez mais comprometida devido ao lançamento de resíduos
industriais, domésticos e outras fontes de contaminação. Villiers (2002) atesta que quanto
maior o desenvolvimento, proporcionalmente cresce a quantidade de contaminação da água
com poluentes a exemplo do petróleo e metais tóxicos.
Outro instrumento da política que colabora na perspectiva da proteção e preservação
dos recursos hídricos para as atuais e futuras gerações é a outorga, direito do uso. Trata-se da
autorização concedida pelos órgãos de recursos hídricos estaduais para os rios de domínio
estadual e pela Agência Nacional das Águas para os rios federais, a partir de critérios
determinados visando o controle do uso das águas superficiais e subterrâneas.
A cobrança é outro instrumento da política, de caráter inibidor, que se pretende
educador à medida que força o usuário a pagar pela água que consome e conseqüentemente
estimula o uso racional. É um mecanismo considerado estratégico para uma conscientização
dos usuários quanto aos riscos de indisponibilidade da água no Brasil e no mundo e, portanto,
necessário para conduzir à racionalização (VIEGAS, 2005, p. 55). O quinto instrumento da
Política Nacional de Recursos Hídricos é o Sistema Nacional de Informações sobre Recursos
Hídricos que agrega informações sobre os recursos hídricos e a gestão das águas.
Para que a Política Nacional de Recursos Hídricos seja consolidada, no entanto, além
dos fundamentos e instrumentos, a própria Lei das Águas cria o Sistema Nacional de
Gerenciamento de Recursos Hídricos que é composto pelos seguintes organismos: Conselho
Nacional de Recursos Hídricos (CNRH), Conselho de Recursos Hídricos dos Estados e do
Distrito Federal, Comitês de Bacia Hidrográfica, órgãos públicos federais, estaduais e do
distrito federal de gerenciamento de recursos hídricos, a Secretaria de Recursos Hídricos
(SRH), vinculada ao Ministério do Meio Ambiente, a Agência Nacional de Águas (ANA),
Agências de Águas ou de Bacia, conforme demonstra no esquema adiante. Cada organismo
desses tem uma função definida.
Instrumentos
Conselho
Estadual de
Recursos
Hídricos
Conselho de
Recursos
Hídricos
Estaduais
e do DF
Comitês de
Bacias
Hidrogficas
Secretaria
de Recursos
Hídricos
Agência
Nacional
de Águas
Agência de
Águas ou
Bacias
Sistema
Nacional de
Gerenciamento
de Recursos
Hídricos
Figura 11- Esquema com a composição do Sistema Nacional de Gerenciamento dos Recursos Hídricos
Dentre as atribuições do CNRH, enquanto organismo colegiado, consultivo, normativo e
deliberativo, está a de articular o planejamento de recursos hídricos com os planejamentos
nacional, regionais e estaduais e dos setores usuários. Formado por representantes dos
usuários da água, governo e sociedade civil, é de competência também do CNRH estabelecer
critérios para a outorga e traçar diretrizes complementares para a Política Nacional de
Recursos Hídricos. Os conselhos estaduais seguem as mesmas atribuições e competências do
CNRH, mas com o foco na gestão estadual de recursos hídricos (ÁGUA, 2006, p. 32).
Conhecidos como “parlamento das águas”, os Comitês de Bacia são também organismos
colegiados, consultivos e deliberativos apontados como a base do Sistema Nacional de
Gerenciamento de Recursos Hídricos que abrangem rios estaduais e federais e por isso têm
essas duas classificações a depender da delimitação geográfica do manancial.
O comitê de bacia hidrográfica agrega representantes das diferentes esferas de governo,
entidades civis de meio ambiente, da sociedade civil e usuários da água. Têm como
competência, dentre outras coisas, mediar conflitos pelo uso da água na bacia, aprovar e
acompanhar a execução do Plano de Recursos Hídricos da bacia. Os comitês de bacia são
alguns dos componentes do Sistema Nacional de Recursos Hídricos que têm como objetivo
cumprir um dos fundamentos da Lei 9.433/97 quanto à gestão descentralizada e
participativa dos recursos hídricos. Eles garantem a participação social na gestão. O artigo 38
da Lei das Águas, 9.433/97 estabelece que competem aos Comitês de Bacia Hidrográfica,
no âmbito de sua área de atuação, promover o debate referentes as águas superficiais e
subterrâneas e articular a atuação das entidades intervenientes; arbitrar, em primeira instância
administrativa, os conflitos relacionados aos recursos hídricos e aprovar o Plano de Recursos
Hídricos da bacia.
No âmbito da Lei das Águas, os comitês de bacia podem ser reconhecidos como
instrumento de consolidação da democracia; pois envolvem os diversos atores com interesses
distintos na Bacia Hidrográfica, inclusive, povos e comunidades tradicionais
25
representados
por meio de associações, sindicatos, cooperativas, pastorais e outras pessoas jurídicas. À
medida que há um processo de escuta, diálogo e de decisão na gestão das águas, os comitês se
configuram como um dos determinantes para o exercício da cidadania ambiental no poder
público (MACHADO et al., p. 33).
4.2 COMUNIDADES TRADICIONAIS: A CARTA PELAS ÁGUAS COMO
INSTRUMENTO DE INCLUSÃO NA GESTÃO DOS RECURSOS HÍDRICOS
A gestão das águas nos estados é orientada pela Política Nacional de Recursos Hídricos,
onde os fundamentos, os instrumentos de controle de uso são igualmente aplicados. Assim
como ocorre em nível federal, a gestão estadual também deve ser descentralizada e
participativa envolvendo os diversos atores interessados no uso da água através dos Conselhos
Estaduais de Recursos Hídricos (Conerh) e dos Comitês de Bacia (BRASIL, 1997).
Quase do tamanho da França, o Estado da Bahia tem 564.692,669 km
2
, 26 Regiões de
Planejamento e Gestão das Águas (RPGAs), milhares de rios, mais de 65 Bacias
Hidrográficas, 417 municípios, cerca de 14 milhões de habitantes (IBGE, 2007)
26
. No Estado,
experiências têm sido desenvolvidas para ampliar a participação social na gestão dos recursos
hídricos em atendimento, inclusive, à orientação das Políticas Nacional e Estadual. Em 2007
foi publicado edital fomentando a criação de mais quatro comitês de Bacia no Estado: os
Comitês das Bacias Hidrográficas do Rio Grande, do Rio de Contas, do Entorno do Lago de
Sobradinho e do Rio Corrente.
25
De acordo com a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável para Povos e Comunidades Tradicionais
(2007), Povos e Comunidades Tradicionais são Grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como
tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais
como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando
conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição.
26
População na Bahia. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/estadosat/perfil.php?sigla=ba>. Acesso em: 13
de junho de 2008
Iniciativas vêm sendo adotadas também no sentido de fomentar o envolvimento dos povos
e comunidades tradicionais na gestão dos recursos hídricos na Bahia. O Conselho Estadual de
Recursos Hídricos (Conerh) elegeu, pela primeira vez, em 2007, representantes de povos
quilombolas, de fundo de pasto e de povos indígenas para fazerem parte do conselho. Outra
iniciativa que se destaca nesse sentido, foi a série denominada de Encontros pelas Águas.
Realizados de agosto a dezembro de 2007, em diferentes Bacias Hidrográficas baianas, os
encontros reuniram comunidades de terreiro, na cidade de Salvador; povos indígenas, em
Euclides da Cunha; povos do campo, em Juazeiro; quilombolas, no município de Santa Maria
da Vitória; pescadores e marisqueiras, em Canavieiras e os segmentos: empresários, em
Salvador; juventude, em Ilhéus; mulheres, no município de Mucugê e as crianças, em Irecê,
como mostram as fotos adiante.
A
B
C D
Figura 12: Fotos dos Encontros com Comunidade de Terreiro (A), Povos indígenas (B), Povos do Campo (C), Marisqueiras e
Pescadores (D),Quilombolas (E) e Mulheres (F)
Entre as mais de 2.300 mil pessoas que participaram da série de encontros, também
estavam servidores e colaboradores do órgão gestor de recursos hídricos na Bahia,
representantes de poderes públicos municipais, de organizações não governamentais,
sociedade civil e de movimentos sociais.
Os encontros foram espaços para que as comunidades e povos tradicionais reafirmassem a
vontade e necessidade de permanecer nos lugares onde moraram e historicamente habitaram
seus antepassados, buscando condições de viver com dignidade e em harmonia com a
natureza. Os encontros foram considerados ainda, oportunidades de reafirmação da cultura e
identidade dos povos e comunidades tradicionais da Bahia (OLIVEIRA DOS SANTOS;
SCALCO, 2008).
Pautados a partir de quatro eixos temáticos: “Nós e a Água”; “A água no lugar onde
vivemos”; “Nós e a gestão das águas” e “Nossos sonhos pelas Águas”, os Encontros pelas
Águas foram reuniões temáticas, de sensibilização para a proteção, conservação e usos
sustentável da água, que objetivaram ouvir as pessoas que dependem mais diretamente dos
recursos naturais, suas demandas e construir coletivamente a Carta pelas Águas. Cada
segmento elaborou sua carta pelas águas. As cartas foram reunidas em um documento
também denominado de Cartas pelas Águas que foi entregue ao governador do Estado durante
a Conferência Estadual de Meio Ambiente, em março de 2008, em Salvador. As Cartas pelas
Águas contêm as demandas dos povos e comunidades tradicionais e demais segmentos quanto
às políticas públicas das águas na Bahia.
As Cartas pelas Águas expressam os desejos das comunidades e povos tradicionais e
demais segmentos envolvidos quanto às políticas públicas das águas; suas percepções
27
quanto ao ambiente em que vivem, a maneira como compreendem essa realidade e quais
27
Entende-se aqui percepção como sensação; uma atividade que envolve organismo e ambiente e que sofre
influência dos órgãos de sentido (HOEFFEL; FADINI, 2007).
E
F
mudanças que querem ver implementadas para que se alcance o ideal de viver em um meio
ambiente saudável com o adequado usufruto dos recursos naturais.
As Cartas pelas Águas foram escritas e formatadas por representantes das comunidades
tradicionais e demais segmentos envolvidos que compõem o Conselho de Acompanhamento e
Aplicabilidade da Carta pelas Águas, ou Conselho das Águas. Esse conselho foi instituído por
portaria do Instituto de Gestão das Águas e Clima (INGÁ) como medida que visa garantir que
os pleitos elencados pelos povos e comunidades tradicionais sejam encaminhados e
implementados na política de recursos hídricos da Bahia.
As discussões ambientais traduzidas na Carta pelas Águas refletem os interesses dos
grupos sociais e étnicos envolvidos, as visões de mundo e paradigmas diferenciados, assim
como conflitos entre valores, atitudes, percepções, conceitos e estratégias sociais (TUAN,
1980; MACHADO, 1996).
Por outro lado, esses espaços criados, permitem conhecer as experiências de modo
coletivo, estabelecendo o diálogo de saberes ambientais
28
entre os diversos atores envolvidos:
sociedade civil, organizações não governamentais, universidades, gestores públicos, povos e
comunidades tradicionais. Desta forma, o desafio da gestão participativa e da política pública
é auxiliar na busca de soluções para os problemas apontados por grupos que embora vivam
dramas ambientais muito parecidos, têm percepções e modos de lidar com a natureza
diferenciados a partir dos contextos sociais, econômicas e culturais aos quais estão inseridos.
Sobre a questão, Woodgate; Redclift (1998, p. 157), consideram que:
Os sistemas ecológicos e sociais dentro dos quais os seres humanos estão
inseridos são compreendidos de formas distintas por diferentes indivíduos e
instituições (homens, mulheres, agências governamentais, diferentes setores
produtivos, etc). Os espaços sociais ou mundos vivenciais criados ou
experienciados por cada um destes diferentes atores sociais são
caracterizados por uma série de relações sociais materiais e simbólicas
específicas, que definem suas estruturas e podem ser reconhecidos dentro de
limites espaciais e temporais delimitados. Quando atores de diferentes
espaços sociais interagem, o significado e o valor destes elementos e
atividades, sejam sociais ou naturais, precisam ser negociados de forma que
uma compreensão compartilhada de determinado cenário possa ser
alcançada. Esta situação envolve processos de reformulação do
conhecimento e transformação e assim a construção e reconstrução social de
espaços sócio-ambientais.
28
Para Leff (1999), o saber ambiental se configura com o estabelecimento de processos políticos, culturais e
sociais para transformar as relações sociedade-natureza.
As Cartas pelas Águas foram publicadas e se tornaram um instrumento de cobrança
devido ao compromisso assumido pelo Estado quanto à proteção e conservação das águas na
Bahia perante não os povos e comunidades tradicionais envolvidos nos Encontros Pelas
Águas como também diante de toda a sociedade. Foi um passo considerado estratégico para
conhecer a realidade e desencadear políticas públicas igualmente estratégicas de inclusão
social dos grupos étnicos na gestão dos recursos hídricos e ações efetivas que resultem na
proteção das águas
29
. “A compreensão das diferentes percepções e representações sociais do
ambiente deve ser a base na busca de soluções para os problemas ambientais” (HOEFFEL et
al., 2007, p. 259).
A Carta dos Povos de Campo reúne pensamentos e aspirações de comunidades
tradicionais de cidades como Juazeiro, Cansanção, Campo Formoso, Morro do Chapéu,
Ourolândia, Campo Formoso, Euclides da Cunha, Queimadas, Morpará. No documento, está
explícita a preocupação com as agressões às águas como consequências de ações antrópicas
como o desmatamento, lixos, construções de barragens, despejo de efluentes, agrotóxicos,
fertilizantes, destruição de nascentes, doenças de veiculação hídrica. Evidencia-se a apreensão
com as implicações sociais e econômicas que a poluição das águas ocasiona no meio rural,
como o êxodo dos povos do campo para as cidades.
A partir da lida com a natureza, o povo do campo deixa uma mensagem de interesse na
efetiva participação na gestão das águas:
Sonhamos que as pessoas lutem em conjunto para melhorar a vida da
comunidade e não prevaleça a busca individual. Afinal, sozinhos não
somos nada. Aprender o significado de compartilhar, garantindo a
participação das pessoas na gestão dos Comitês de Bacias, executando
projetos que visem a atender às necessidades das comunidades.
Na Carta pelas Águas, os povos do campo propõem investimentos sustentáveis
voltados para a elaboração de projetos de educação ambiental; criação e implementação de
comitês de bacia em todas as bacias hidrográficas da Bahia; campanhas de recuperação de
mata ciliar; coleta de embalagens de produtos químicos e de descartes industrializados;
sugerem que seja dada prioridade a ações de revitalização do Rio São Francisco e propõem
que sejam exigidos “royalties” para destinação à gestão ambiental.
29
Ver mais: Água, comunidades tradicionais e gestão participativa: A Cartas pelas Águas e as diretrizes para as
políticas públicas dos recursos hídricos na Bahia”, de Oliveira dos Santos, no VII Simpósio Brasileiro de
Etnobiologia e Etnoecologia.
A maneira como os povos e comunidades tradicionais se expressam pode ser
considerada como “avaliações ambientais”, conceito aplicado por Redclift (1995). Segundo o
autor, avaliações ambientais são “orientadas por compromissos sociais e servem para que
sejam atingidas metas sociais específicas. Sendo assim, ao serem abordados os usos de certos
recursos naturais, leva-se em consideração a sua dimensão no meio social diverso, que pode
ser influenciado por questões econômicas, políticas, sócio-cultural ou ambiental dominante”
(HOEFFEL; FADINI, 2007).
Partindo desse pressuposto, é possível verificar na Carta das Águas dos pescadores e
marisqueiras a concepção da água como um bem econômico e social porque essas
comunidades dependem da água para o sustento de suas famílias. A água é avaliada com um
bem de uso comum, que deve ser preservado coletivamente. Na carta, eles destacam a
interdependência que têm com os vários ecossistemas aquáticos seja do ponto de vista
econômico, social ou cultural e de como as diversas formas de vida e a cultura da pesca
tradicional estão sendo ameaçadas, inclusive, por muitos não terem o título de posse das terras
onde vivem e viveram seus antepassados.
Denunciam, por exemplo, como os grandes empreendimentos, sobretudo a
carcinicultura, estão se apropriando de áreas historicamente ocupadas por comunidades
tradicionais e como a atuação empresarial representa um risco para o meio ambiente,
tornando-os vítimas de racismo ambiental
30
. “os empreendimentos imobiliários, industriais e
agroindustriais não fazem tratamento adequado dos esgotos (chorume), ocasionando a
poluição dos rios por metais pesados, como chumbo e resíduos de fábricas de papéis,
ocasionando doenças nas pessoas e animais”.
Denunciam ainda problemas que comprometem a água dos rios tais como: poluição
por esgotamento sanitário e por agrotóxicos; ausência de coleta de lixo com destinação dos
resíduos para os corpos d´água; pesca com bomba; desmatamento de mata ciliar;
contaminação de rios por óleo diesel e celulose; barragens e hidrelétricas causando
desaparecimento de espécies e insegurança alimentar e social das famílias e desmatamento de
manguezais.
30
Pacheco (2008) afirma que racismo ambiental são as injustiças sociais e ambientais que recaem de maneira
implacável sobre etnias e populações mais vulneráveis, se configurando através de ações com intenção racista e
por meio de ações que tenham impacto racial, independente da intenção que lhes originaram.
“O futuro da água, aquele que sonhamos, começa com a conscientização do homem,
despoluindo a mente para proteger o meio ambiente”
(Carta dos Pescadores e Marisqueiras, 2008)
Na Carta pelas Águas, os pescadores e marisqueiras mostram-se conscientes da
necessidade de usufruir da natureza sem degradar; querem ter acesso aos manguezais e outros
espaços públicos que estão sendo cercados por fazendeiros, para que seja garantido o pleno
exercício da profissão. Reivindicam que sejam intensificadas a fiscalização e monitoramento
das águas, para que sejam coibidas práticas que degradam o meio ambiente.
A participação e a consciência política são demonstradas mediante propostas como a
implementação de novos comitês de bacia, a realização de diagnóstico sobre impactos
causados pelas barragens, proibição de novos empreendimentos impactantes para o Cerrado e
a implantação de sistemas de captação de água de chuva. Sugerem projetos de educação
ambiental que colaborem na resolução de conflitos e dos problemas ambientais que vivenciam
por uma vida sustentável.
São sugestões e diretrizes que podem ser incorporadas nas políticas públicas de
educação ambiental do Estado. Educação ambiental que se processa quando o
entendimento da concepção de meio ambiente:
Por intermédio das interações intersubjetivas e comunicativas entre as
pessoas com diferentes concepções de mundo e relações com o meio natural
construído; características de vida social e afetiva; acesso a diferentes
produtos culturais; formas de manifestar as suas idéias, conhecimento e
cultura; dimensões de tempo e expectativas de vida; níveis de consumo e de
participação política que poderemos estabelecer diretrizes mínimas para a
solução dos problemas ambientais que preocupam a todos” (
REIGOTA,
2002. p. 28).
“Nós não temos água. Bebemos de cisternas e poço. Tinha água no rio, 10 ou 15
anos atrás, inclusive existiam peixes como traíras e iuiu. Agora não está havendo mais
enxurradas e enchentes. Nem os peixes”
(Carta dos Quilombolas, 2008)
O trecho acima é uma das frases que revelam como ações antrópicas no meio ambiente
ao logo do tempo têm interferido no modo de vida de povos e comunidades tradicionais e faz
parte da Carta pelas Águas escritas pelos Povos Quilombolas. Os depoimentos refletem a
reafirmação da identidade e cultura de um povo socialmente e historicamente vulnerável à
negação de direitos fundamentais da pessoa humana como o acesso a água em quantidade e
qualidade. “Infelizmente, vivemos em uma sociedade onde a desigualdade, a ganância e o
poder estão prevalecendo. Enquanto uma parte tem água em abundância, os demais nem
mesmo têm para beber”.
No documento, os quilombolas apresentam como ameaças ambientais e para os povos
dos quilombos, questões que vão desde a poluição de mananciais, desmatamento e queimadas
e falta de acesso à água, a problemas como o funcionamento de carvoarias em áreas de
Caatinga e Cerrado, envenenamento de mananciais e o enfraquecimento das associações
enquanto entidades representativas, denunciando casos explícitos de racismo ambiental.
Sugerem diretrizes para as políticas das águas no Estado que passam pela criação de
novos Comitês de Bacia Hidrográfica para a garantia de participação popular; fomento à
educação ambiental; revitalização de rios; realização de convênios entre poder público e
movimentos sociais para a proteção das águas; implementação de fiscalização para evitar
queimadas e uso de agrotóxicos e incentivos à agricultura orgânica.
“Onde não há água, passarinho não canta”
(Carta dos Povos Indígenas, 2008)
Assim como os quilombolas, os povos indígenas vêm sofrendo historicamente
situações de exclusão e racismo ambiental. Embora as políticas públicas tenham evoluído no
sentido de resguardar os direitos dos povos e comunidades tradicionais, inclusive, com a
instituição da Política Nacional para Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades
Tradicionais, os primeiros habitantes do Brasil, vítimas de toda ordem de massacre como
aponta a história do país, ainda nos dias atuais “lutam” para permanecer em seus territórios e
em condições de harmonia com a natureza.
Na Carta pelas Águas dos Povos Indígenas, um forte apelo pela proteção dos
recursos naturais, principalmente das nascentes, matas ciliares e rios, isso, em função,
sobretudo, da relação cotidiana que boa parte deles tem com a água, seja, por exemplo, para
uso na agricultura de subsistência ou cultivo de plantas medicinais:
Nós, índios sabemos que a água é muito importante para nós, para
melhorarmos nossas medicinas e o nosso plantio. Queremos água para
nossas lagoas e barragens, para criatório de peixes, para a nossa
alimentação... Antigamente bebíamos água de poços de lama, águas
barrentas e não nos prejudicavam. Hoje, com tantos remédios, vários índios
adoecem.
Todo o conteúdo da Carta dos Povos Indígenas enfatiza os laços culturais e aponta
para a compreensão de que proteger as águas e a natureza é também proteger, preservar e
contribuir para fortalecer as tradições indígenas, ou seja, a transmissão do conjunto de saberes
de geração a geração (SODRÉ, 2002, p.103). E vai além, cobra políticas públicas e
investimentos em ações como recuperação de matas ciliares, uso adequado e acesso a água,
educação ambiental, a garantia da participação e decisão dos povos indígenas nas deliberações
sobre possíveis construções de barragens que afetem diretamente os seus territórios e a
garantia de acento de povos indígenas nos comitês de bacia hidrográfica.
Representantes de etnias como Kaimbé, Kiriri, Pataxó, Pankarú, Tuxá, mostram que
água em abundância em algumas aldeias e em escassez em outras. Revelam especial
preocupação com lagoas e poços que secaram ou com rios que sofrem com a contaminação
por lixo e agrotóxicos. Descrevem o desejo de contribuir com a sustentabilidade do planeta.
A natureza pede socorro, os humanos também pedem socorro. Então não
vamos deixar morrer... A água é importante, principalmente no que diz
respeito à preservação, porque ela controla o nosso ecossistema. Se não
preservarmos as nascentes e as pessoas não contribuírem, não haverá água
para gerações futuras. Todos nós devemos economizar a água e saber usá-la.
“A Água é elemento sagrado. Nascemos dela e vivemos com sua presença. Ela é o
sangue cristalino que circula a terra, em nossos corpos e de todos os seres vivos. Tudo está
interligado através da água em nosso planeta”...
(Carta das Comunidades de Terreiros, 2008)
A Carta pelas Águas das Comunidades de Terreiro mostra a visão diferenciada que o
povo de santo tem com as águas superficiais e subterrâneas. Os representantes das várias
nações que construíram coletivamente o documento revelam que o sentido da água para o
Candomblé vai além do material, da necessidade da sobrevivência humana, da proteção
ambiental. A água tem valoração espiritual e enquanto elemento sagrado está presente em
todos os ritos de matriz afro-brasileira.
Conforme descrito na Carta, a água serve de escudo contra o mal e representa limpeza,
pureza, transparência, a força encontrada nas quedas e correntezas. Isso significa que a
proteção das águas é imprescindível para a vida espiritual, pois também nesse patamar
representa limpeza, pureza. “A água que existe em nós está em sintonia com a água do
planeta. As águas vibram em uníssono. vida onde vibração da água e isso, por si só,
já é motivo para considerá-la sagrada”.
A compreensão é a de que a conservação ambiental, a proteção das águas, é mais que
uma necessidade para as comunidade de terreiro; é uma filosofia para a manutenção das
tradições da religião de matriz africana e uma coisa está diretamente imbricada na outra. “A
sobrevivência dos terreiros está ameaçada, pois a água é um elemento que integra a flora, a
fauna e todos elementos de vida”.
Por isso, a Carta pelas Águas destaca princípios do Candomblé como, por exemplo, a
de que não se faz nada sem água no Candomblé, de que a água é fonte de energia para os
Orixás. Os adeptos da religião de matriz africana denunciam como o processo de
desenvolvimento das sociedades, a exemplo da expansão urbana, a ocupação desordenada, o
aterramento das nascentes, riachos e rios provocaram o desequilíbrio entre homem e natureza.
na Carta, o reconhecimento de que é preciso uma organização social das comunidades de
Terreiro para promover a mobilização em defesa das águas, algo que, segundo pontuam os
relatores, passa pela educação e sensibilização das comunidades.
Ao mesmo tempo em que assume a responsabilidade pela conservação da água dentre
do Candomblé, o povo de santo deixa o registro na Carta pelas Águas de que é vital
compartilhar essa responsabilidade com o Estado, ressaltando que também cabe ao poder
público “estabelecer um diálogo com a sociedade, para firmar um pacto de gestão das águas”.
Essa parceria, ou cooperação mútua entre Estado e sociedade civil é imperiosa “para que
setores mais amplos acessem direitos mínimos envolvidos no conceito de cidadania e, por
extensão, de democracia” (MACHADO et al., 2004, p. 27).
Várias são as contribuições elencadas pelas comunidades de Terreiro pela proteção das
águas, todas contemplando a água como bem sagrado. Entre as sugestões encaminhadas na
Carta pelas Águas estão: Resgate histórico-cultural-religioso, reconhecendo-se as fontes
sagradas como patrimônio; revitalização das fontes, despoluindo minadouros, replantando as
folhas sagradas no entorno e repondo as plantas aquáticas; Preservar a fauna e a flora no
entorno e nas nascentes, assim como no Parque São Bartolomeu, Dique do Tororó
31
e outros;
Elaborar projetos de preservação e conservação da água; Implantar projetos de monitoramento
e fiscalização das águas das fontes públicas e de Terreiros; proporcionar mais segurança às
áreas ambientais que historicamente são usadas pelo culto afro e desenvolver projetos de
captação e utilização das águas da chuva para uso doméstico.
Entre as sugestões para as diretrizes das políticas públicas na Bahia apontadas na Carta
pelas Águas das Comunidades de Terreiro, estão a promoção de programas de
conscientização e educação ambiental nos Terreiros e escolas aplicados às práticas rituais;
garantir a representatividade das religiões de matriz africana nas estruturas de gestão de
políticas públicas e estabelecer diálogo entre o Estado e o segmentos empresarial, para o uso
racional do patrimônio natural, exercendo o Estado seu papel de agente fiscalizador.
31
O Parque São Bartolomeu e o Dique do Tororó são espaços considerados sagrados pelas comunidades de
terreiro onde elas costumam realizar oferendas e outros rituais, como é o caso da entrega de presentes a Oxum,
no Dique do Tororó.
5 CANDOMBLÉ: UMA BREVE INTRODUÇÃO
5.1 CANDOMBLÉ: HERANÇA ÉTNICO-RELIGIOSA
Religião de matriz africana, herança dos negros de diferentes etnias trazidos ao Brasil
pelos colonizadores, o Candomblé é a reafirmação da de um povo. passada de geração
em geração por quem foi escravizado, mas resistiu a toda e qualquer tentativa de aniquilação
da sua crença, da sua forma de reverenciar o sagrado.
Silveira (2006, p. 146) explica que a política social colonialista disseminada no Brasil
pela Igreja seguia os mesmos moldes da evangelização européia dos pagãos. Objetivava,
sobretudo, desestruturar as sociedades nativas, pois perseguia os rituais, estigmatizando-os de
“coisas diabólicas”, ao mesmo tempo em que tentava persuadir os nativos fazendo com que
assimilassem novos valores e padrões sociais, incluindo, uma nova concepção de culto e fé.
No processo de colonização, a sociedade brasileira foi sendo modelada de modo a reproduzir
padrões culturais e civilizatório europeus, uma maneira de tentar neutralizar a presença
marcante do negro e suas raízes culturais e religiosas, mais notadamente o Candomblé. A
tentativa era erguer uma civilização sem a interferência e com total esquecimento de outras
civilizações, como a Africana (BRAGA, 2000, p. 124 - 125).
Apesar da influência de outras culturas e religiões, o Candomblé, que é definido por
Carneiro (1948, p. 1) como lugar em que os negros da Bahia realizam as suas festas religiosas,
ainda preserva características de séculos atrás quando no Brasil a religiosidade africana
aportou através do canto às divindades que ecoava dos porões nos navios negreiros.
[...] Nos flancos sonoros dos navios negreiros vieram não os
filhos da Noite mas também os seus deuses, os orixás dos
bosques, dos rios e do céu africano[...] (BASTIDE, 1958, p.
327).
O Candomblé se espalhou pelo Brasil de Norte a Sul, de tal forma que por todos os
cantos do país é possível encontrar traços e evidências de como essa religião de matriz
africada sobrevive. A Bahia, por onde a colonização foi deflagrada no país, porta de entrada
para os africanos
32
usurpados de suas terras e transformados em mercadorias, é apontada
como o Estado onde mais há ramificações do Candomblé (BASTIDE, 1958, p.29).
32
Renato da Silveira, O Candomblé da Barroquinha (p. 336), descreve que até o ano de 1850, 2 milhões de
escravos saíram da região da Costa da Mina, sendo que destes, quase 500 mil foram trazidos para a Bahia.
Eram trazidos por ano, nessa época, 8 mil escravos, isso sem citar os que eram transportados de Angola e do
Para Verger (1957, p.20) Candomblé é a representação das tradições dos antepassados
enquanto cerimônia africana. Afirma que essas tradições foram passadas de geração em
geração apesar do preconceito, mesmo sendo desprezadas pelos senhores que obrigavam os
escravos a participar de sua religião e salienta que foram essas tradições que fortaleceram os
africanos para conservá-las. Do ponto de vista da literatura etnográfica, o Candomblé pode ser
definido como “grupos religiosos caracterizados por um sistema de crenças em divindade e
associados aos fenômenos de possessão ou transe místico” (LIMA, 2003, p. 17). Lima
acrescenta que o termo Candomblé pode designar desde o “Corpus ideológico do grupo, seus
mitos, cosmogonias, rituais e ética ao próprio local onde as cerimônias religiosas desses
grupos são praticadas, quando, então, Candomblé é sinônimo de terreiro, de casa de santo, de
roça”. Para o autor, a palavra Candomblé também comporta a conotação de sistema
ideológico.
Serra e outros (2000, p. 11) atestam que o Candomblé “é um culto entusiástico em
que, através do transe e da possessão, certos iniciados encarnam os espíritos evocados” e
constitui uma variedade de ritos “(re) criados no Brasil por africanos e seus descendentes, no
contexto de amplos contactos interétnicos, mas com forte ponderação de elementos dos
Kultbildern de povos da costa ocidental africana, falantes de iorubá e de línguas fon”. Para
estes autores, um princípio básico do Candomblé é a obtenção e manutenção da saúde física e
espiritual.
33
Convictos de suas crenças, os africanos aportavam aos milhares nos portos da Bahia
vindo de várias partes, seja de Portugal, como parte dos bens dos colonizadores, ou trazidos
diretamente do continente Africano. Eles vieram de regiões como Dahomey, Nigéria e Sudão,
do Congo, Angola, Moçambique e Quelimane. Pesquisadores afirmam que a maioria
sudanesa ficou na Bahia e os demais foram distribuídos nos portos de São Luiz do Maranhão,
Recife e Rio de Janeiro, sendo depois espalhados para o litoral do Pará, interior alagoano,
mineiro e paulista (CARNEIRO, 1948, p. 39).
Congo.
33
Em Águas do Rei (1995, p. 205), Serra afirma que a estrutura mística dos cultos afro-brasileiros foi construída
ao longo da história no que ele chama de “diálogo criativo” existente entre negros de diferentes origens e seus
descendentes. Para o autor, as trocas culturais, as múltiplas origens e a condição de escravo imposta pela
classe dominante serviram para a construção de solidariedades entre os negros, transcendente às suas divisões
étnicas possibilitando, consequentemente, a construção positiva de uma identidade negra. Para o autor, o
Candomblé também é um resultado disso, “um projeto” que veio a corroborar para (re) definição,
transformação ou revalidação de identidades de modo a permitir, inclusive, uma variada exploração política do
novo meio.
A história revela que esses africanos foram capturados, cerceados da sua liberdade e
negociados entre colonizadores europeus
34
. Pesquisas realizadas pelo Gabinete de Estudos
Religiosos e de Geomorfologia da Universidade Federal da Bahia na década de sessenta,
estimaram que cerca de 90 milhões de brasileiros ou 35% da população têm origem africana
35
.
No Novo Mundo, homens negros de várias origens étnicas, aloglotas,
provindos de regiões, sociedades e culturas diferentes, foram
reduzidos a membros de uma classe explorada, ao status de escravos,
pelos colonizadores brancos, para quem eles vinham a ser, em
princípio, apenas força de trabalho sujeita, coisificada pela sua
condição jurídica de propriedade (SERRA, 1995, p. 204).
Os negros e seus descendentes imprimiram no Brasil profundas marcas ao longo dos
séculos; marcas essas que são presentes até hoje seja na culinária, na música, na dança, nas
artes, na cultura de um modo geral. Independentemente da região geográfica de onde vinham,
os africanos traziam consigo também outro traço forte enraizado no ser: a religiosidade. Este é
um princípio que respalda e faz compreender a origem das variadas formas de culto dentro do
Candomblé no Brasil, as chamadas tradições Angola, Congo, Jeje, Keto e Ijexá. Essas nações
têm suas particularidades. São caracterizados por diferenças culturais, étnicas,
36
religiosas,
podendo ser reconhecidas pelo toque dos tambores, pela roupa, pelas músicas, pela dança,
pela forma de cultuar as divindades (BASTIDE, 2001, p. 29).
As divindades recebem denominações distintas em cada nação. São orixás para o
Candomblé Ketu e Ijexá de origem Nagô; inquices para as nações Angola e Congo, e vôdúns
para o Candomblé jeje (CARNEIRO, 1948, p. 77 95). E isso está relacionado às origens
étnicas dos escravizados. Na medida em que eles foram criando sistema de inter-
relacionamento, trocando experiências culturais e religiosas, acabaram por formar no Brasil, o
culto às divindades no formato entendido como Candomblé.
Desses grupos, os nagôs são considerados como os que instituíram de forma mais
incisiva sua cultura e suas tradições religiosas na Bahia. Eles foram trazidos para o Brasil
entre o final do século XVIII e início do século XIX depois que grupos Egba, Egbado e Sábé,
particularmente dos nagôs, do Sul, Norte e do Leste do reino do país Yorùba foram
34
Conveniente lembrar que mesmo na África havia escravos em decorrência de conflitos entre tribos rivais. Os
traficantes aproveitavam esses conflitos para comercializá-los para o Brasil. Para mais informações, ler José
Beniste, em Águas de Oxalá (2002, pg 20).
35
Informações extraídas do livro Os Nàgô e a Morte, de Juana Elbein dos Santos (2002, pg 27).
36
Serra (1995 p.104), ao fazer uma abordagem do livro Etnicidade: Ser negro em Salvador, de Jefferson Bacelar,
afirma que a composição dos Candomblés na Bahia tem por base a etnia, mas não apenas. Segundo o autor, a
etnicidade encontra bases em suportes ideológicos e religiosos. Lembra que um membro de uma nação mesmo
que tenha pele branca, pode estar ligado a ela pelo axé, pela ancestralidade; mesmo não tendo ligação étnica
diretamente.
capturados pelos Daomeanos de Abomey. O mesmo aconteceu com grupos de Òyó, capital do
reino Yorùbá e os grupos Ijesa e Ijebu. Esses grupos da região conhecida como Yorubaland,
Sul e Centro do Daomé e do Sudoeste da Nigéria, são reconhecidos no Brasil como Nagô
(ELBEIN DOS SANTOS, 2002, p. 28 - 29).
Como lembra Juana Elbein, todo povo yorubá, sejam os Ketu, Sabe, Òyó, Ègbá,
Ègbado, Ijesa, Ijebu são identificados como nagôs e se consideram descendentes do
progenitor mitológico Odùduwà e originários do mítico lugar Ilê Ifè. As semelhanças da
língua, cultura, origem mítica possibilitaram que os Nagôs transportassem para o Brasil um
complexo sistema de adoração dos orixás e seus ancestrais, mantendo suas práticas religiosas
através dos Candomblés que também são conhecidos, como citado anteriormente, roça ou
Terreiro, um espaço sagrado para a tradição religiosa africana (ELBEIN DOS SANTOS,
1986, p. 32).
Serra (1995, p. 38) acredita que os primeiros cultos religiosos afro-brasileiros
instalados no Brasil foram de matriz “banto”. Para o autor, a mais antiga forma de culto de
Candomblé foi uma criação de congos e angolas. Ele ressalta, no entanto, que o chamado
“Candomblé Angola” surgiu no século XIX como reação e assimilação do culto religioso jêje-
nagô, um “revivalismo banto”, um retorno místico a uma tradição angola/congo reinventada”
(SERRA, 1995, p. 32).
O culto do Candomblé como é conhecido hoje é uma formação de diferentes grupos
étnicos, sobretudo aos jejes e aos nagôs, escravos sudaneses, os seja, dos nagôs, jejes, hauçás
e tapas, entre outros, que formavam a composição étnica da população escrava no século XIX.
Essa inter-relação e a troca de conhecimentos, experiências e o diálogo religioso inter-étnico
são apontados como as bases para que fosse reconstituído no Brasil o que Serra chama de
“microcosmo simbólico” que comporta elementos de formações religiosas de povos banto e
de grupos fon e iorubá.
Os cultos africanos sofreram transformações, mas ressalta-se que ao longo dos séculos
também vêm sendo caracterizados como uma expressão de resistência. Para falar de
Candomblé, Silveira (2006, p. 127 - 151) faz um relato histórico sobre o envolvimento dos
negros nas chamadas Irmandades de Pretos na Bahia nos séculos XVIII e XIX e como a
inserção nessas organizações religiosas contribuiu para que os negros se articulassem entre si
e até mesmo com representantes da elite branca para acobertar a fundação de Candomblés.
O autor explica que a inclusão de negros nas irmandades era um costume em Portugal
e que foi incorporado no Brasil. A práxis interessava à elite por várias razões, uma delas era
manter o padrão clientelista de conservação do status. Por meio dessas irmandades
(SILVEIRA, 2006, p. 127 151), a sociedade colonial institucionalizava redes de
cumplicidade, se organizava de tal maneira que conseguia estabelecer vínculos pessoais de
lealdade entre pessoas de todas as camadas sociais, estabilizando correntes de opinião
conservadora. Eram, portanto organismos de dominação, que tentavam limitar a atuação dos
negros ao submetê-los a regras de controle comportamental e político.
A dinâmica interna do organismo deveria ser regida pelas convenções
dominantes, promover estabilidade dos procedimentos, a previsibilidade dos
comportamentos, a postura moderada e contida, aplicando sanções
regimentais aos “revoltosos”, da advertência à expulsão, exigindo apenas
pontualmente a intervenção fiscalizadora das instâncias superiores
(SILVEIRA, 2006, 148).
Embora tenham sido decisivas para a manutenção da ordem no Império Colonial, as
irmandades possibilitaram prestígio e influência a lideranças negras viabilizando até o
surgimento de estruturas paralelas de poder que, inclusive, acobertavam a fundação de
Candomblés, a exemplo da Irmandade do Senhor Bom Jesus dos Martírios da Igreja da
Barroquinha. O autor acrescenta que as irmandades negras utilizavam uma terminologia
familiar, estimulavam sentimentos de fraternidade e deflagraram um processo, por meio do
qual, valores étnicos fundiam-se ao Cristianismo.
Foi esse nicho que abrigou os fundadores do Candomblé da Barroquinha,
que trouxeram uma cultura africana tradicional, fortemente arraigada, a qual
foi contudo reprocessada por um movimento de urbanização africano como
americano, que iria desorganizar e reestruturar-se na simultânea preservação
da tradição e na geração de algo novo (SILVEIRA, 2006, p. 152).
Ao logo dos tempos, o Candomblé foi sofrendo retaliações, muitas casas foram
perseguidas pela polícia, seus membros foram considerados “impuros” e “não valorizados. A
discriminação passava pelo viés ideológico de segmentos da classe dominante para os quais
tudo que vinha do negro era negativo. A religião era mais um motivo para considerá-lo
diferente, ameaçador. Leis discriminatórias foram escritas para reforçar esse estereótipo. A
primeira Constituição Brasileira, de 1824, por exemplo, organizou o Estado em bases étnico-
patrimonialistas e escravagistas. Situações como essas contribuíram para que grupos étnicos
se organizassem, se unissem politicamente para a manutenção das suas culturas e
sobrevivência do Candomblé (SODRÉ, 2002, p. 68 - 70).
O Candomblé, como mostram vários estudiosos, foi então se consolidando como
instância de articulação política e de luta por igualdade de direito, sobretudo de liberdade.
Torna-se espaço comunitário, “uma sociedade de auxílio mútuo”, onde regras de
“solidariedade mística”, templo que reúne um panteon de divindades, o microcosmo da terra
ancestral, a “África em miniatura em que os templos se tornaram casinholas entre as moitas,
quando as divindades pertencem ao ar livre, ou então cômodos distintos da casa principal, se
são divindades adoradas nas cidades” (BASTIDE, 2001, p. 76, 78 e 111). Candomblé nesse
sentido pode ser compreendido como a representação de como a África é lembrada e sonhada
pelos afrodescendentes na Bahia.
É um território sagrado com graus de hierarquia bem definidos e onde a mãe-de-santo
ou a
yalorixá é a autoridade máxima. A ela todos os filhos e filhas de santo devem reverência,
obediência. É a yalorixá, a mãe dos orixás, a sacerdotisa suprema do terreiro, quem detém os
maiores conhecimentos e experiências ritual e mística, a portadora do máximo do axé
37
do
terreiro, ou seja, dos princípios vitais e essenciais de tudo o que existe, de tudo que constitui o
àiyê, o mundo e o òrum, o além (ELBEIN DOS SANTOS, 1986, p. 42 e 43)
38
. Em muitos
terreiros, a autoridade máxima o babalorixá, o pai-de-santo, o sacerdote supremo.
O Terreiro da Casa Branca, objeto deste estudo, é uma sociedade matriarcal, onde as
mulheres sempre tiveram um papel muito importante. Até hoje, a maioria da comunidade é
formada por mulheres. Embora os homens também exerçam papel significativo, desde a
Barroquinha, a yalorixá é a maior autoridade. Ela foi a escolhida por todos os orixá para ser a
líder religiosa da comunidade. Todos os demais iniciados ou não iniciados que têm ligação
com o Terreiro estão subordinados a ela, lhe devem respeito e reverência. A pessoa que está
mais próxima à
yalorixá hierarquicamente na Casa Branca é a Iya kekerê, também conhecida
como mãe-pequena. Considerada uma “assessora” da
yalorixá. A Iya Kekerê faz tudo no
Candomblé e para chegar até à yalorixá tem que primeiro se dirigir à ela. No mesmo grau
hierárquico da Iya Kekerê estão a Iyalaxé e a Iyaebé; dois cargos que habilitam as duas a
serem futuramente uma yalorixá. A yaebé, na Casa Branca, é a mais idosa do terreiro,
desfruta de grande prestígio, tanto que nada pode ser feito no axé sem consultá-la. É
considerada aquela que ouve e tem paciência para ensinar. A Iyalaxé sabe de todos os
segredos do axé, tudo que uma yalorixá precisa saber. Depois, são as Iyadagã e Iyamorô. Na
sequência, estão: yaefum, ekede, ogan, Iyabassê, ebomi e por último, na escala hierárquica,
estão: iaôs e abiãns, conforme esquema adiante:
37
Para Bastide (2002, p.77) não há Candomblé sem axé que ele classifica como “a força invisível, a força
mágico-sagrada de toda divindade, de todo ser animado, de todas as coisas.”
38
Elbein dos Santos afirma ainda que o axé “é uma força que permite serem as coisas, terem elas existência e
devir”, que “tudo que existe para poder realizar-se, deve receber àse”. Acrescenta que “é a força do àse que
permite que o Òrisà seja e se realize” (2002, p. 42 – 44).
Figura 13 – Organograma sobre a composição do sistema hierárquico do Terreiro da Casa Branca do Engenho Velho
O Candomblé também é um território onde modos de fazer e ser, conhecimentos e
tradições são passados de geração em geração entre pais, mães, filhos e filhas de santo,
ekedes, ogans e outros, em uma dimensão solidificada pela troca de experiência, pela vivência
e respeito à ancestralidade. Segundo Sodré (2002) “a herança cultural repassada faz da
tradição um pressuposto da consciência do grupo e a fonte de obrigações originárias, que se
reveste historicamente de formas semelhantes a regras de solidariedade". Destaca-se que as
tradições são passadas de geração em geração, mas são reconstruídas. As gerações
reinterpretam, reinventam, ampliam as tradições, introduzindo novos elementos, como
disparar foguetes na hora que baixa o santo como acontece na festa de Oxum no Terreiro da
Casa Branca.
5.2. MITOS E RITOS: MODELOS DE REPRESENTAÇÃO DA REALIDADE
O Terreiro de Candomblé é também um sistema onde do ponto de vista antropológico,
valores culturais e sociais são construídos como forma de representar a realidade.
Representações que, segundo Waldman (2006, p. 39) são imprescindíveis “para a modelagem
do espaço habitado e a ordenação do tempo social, referências estas essenciais para
compreendermos diversos desdobramentos da questão ambiental”.
De maneira sintética, pode-se considerar um ponto de partida nessa direção, o
entendimento de que o terreiro de origem ketu é considerado por muitos pesquisadores como
um “modelo reduzido” do espaço original iorubano, onde estão distribuídas as casas para a
comunidade e onde moram filhos e filhas de santo, ekedes, babalorixás ou yalorixá, dentre
outros iniciados e onde existem também os ilês dos orixás e áreas verdes destinadas ao culto
de árvores sagradas e até mesmo de folhas e ervas para emprego em práticas religiosas
(RISÉRIO, 2004, p. 394), modelos de vida reproduzidos a partir da necessidade que os
religiosos têm de agir.
Essa dimensão do conhecimento tradicional possibilita a compreensão do Candomblé
também do ponto de vista da etnoecologia. A etnoecologia é caracterizada pelo cruzamento de
saberes, sentimentos, por meio da relação e integração do homem com o ambiente no qual
está inserido (MARQUES, 2001, p. 49). Isso por tratar-se de um ambiente onde um
sistema de crenças, valores, saberes norteados pelo relacionamento dos homens com os orixás
que, por sua vez, são representações da natureza.
Muito desses saberes, conhecimentos tradicionais reproduzem a realidade a partir de
ritos e mitos. Nos espaços sagrados dos terreiros, os ritos e mitos se perpetuam, são passados
de geração e geração e ajudam a manter viva a cultura dos antepassados, sobretudo, de culto e
respeito aos orixás.
Os ritos são modelos de realidade, são a maneira de fazer com que o ser humano se
integre à natureza e a força dos orixás. Há, nesse contexto, a valorização dos elementos da
natureza, natureza que pode ser classificada como um conjunto de seres e forças que formam
o mundo e estabelecem relações simbólicas entre o domínio da sociedade e do humano. É
uma cosmovisão onde se valoriza o equilíbrio procurado na sociedade e na natureza, por meio
da qual busca-se estabelecer uma interligação entre esses dois mundos.
Essa associação entre divindades e elementos da natureza para os nagôs tem uma
razão de ser. Segundo Prandi (2005, p. 102) o povo africano acreditava que forças
sobrenaturais impessoais, espíritos ou entidades estavam presentes ou corporificados em
elementos da natureza. Eles passaram a oferecer comida em sacrifício para selar essa relação e
a submissão do homem frente a fenômenos naturais que ele não podia controlar.
Tementes dos perigos da natureza que punham em risco constante a vida
humana, perigos que eles não podiam controlar, esses antigos africanos
ofereciam sacrifícios para aplacar a fúria dessas forças, doando a própria
comida como tributo que selava um pacto de submissão e proteção e que
sedimentava as relações de lealdade e filiação entre os homens e os espíritos
da natureza. Muitos desses espíritos da natureza passaram a ser cultuados
como divindades, mais tarde designados orixás, detentores do poder de
governar aspectos do mundo natural, como o trovão, o raio e a fertilidade da
terra, enquanto outros foram cultuados como guardiões de montanhas, cursos
d´água, árvores e florestas.
Reproduze-se no terreiro de Candomblé, um modelo de realidade que interfere, que
orienta para que os indivíduos possam se guiar, reconhecendo os valores da natureza. É como
se cada elemento da natureza tivesse seu estatuto ecológico, estatuto que o homem precise
seguir para haver controle, equilíbrio, um equilíbrio que é procurado na sociedade e no meio
ambiente.
Na visão de Bastide (2001, p. 153-155) a “organização clânica da sociedade” pode ser
entendida como o “modelo da organização do cosmo”. Na pátria de origem, os orixás são
deuses de clãs, “cada clã se vê ligado não apenas a um ritual apropriado, de que é possuidor –
com a condição de utilizá-lo em benefício da coletividade maior -, mas também a uma série
de cores, de plantas, de animais, a uma direção do espaço, a uma estação do ano... A estrutura
social fornece o primeiro modelo para a estrutura do cosmo”.
No Brasil os clãs africanos não foram conservados dentro do conjunto escravista
porque as pessoas não tinham liberdade para escolher seus casamentos e conservar as regras
de parentesco predominante no seu país de origem. Bastide apregoa que os orixás deixam de
ser deuses dos clãs e passam a ser deuses dos Candomblés e a personificação das forças da
natureza. Para Bastide, são os mitos que explicam a classificação dos orixás, portanto, que
narram a história dos orixás, como eles estão ligados às cores, a metais, a animais, a folhas, a
fenômenos meteorológicos, a plantas, a espaços geográficos como o mar e as florestas. A
partir dos mitos é que são realizados os ritos que são recriados para simbolizar a vida dos
orixás (BASTIDE, 2001, p. 221).
Para Bastide, “o próprio Candomblé como grupo humano é a imagem da sociedade
divina”. Acrescenta que até mesmo as relações entre os religiosos refletem a relação
estabelecida entre os orixás. Uma filha de Xangô poderá ser uma ekede de Iansã, por serem
estes orixás marido e mulher. O que não será possível é estabelecer uma relação entre Xangô e
Ogum para evitar problemas no terreiro. Isso também é refletido nos casamentos. Não é
aconselhável que filhos de um orixá realizem matrimônio, pois, acredita-se, que a união
estaria fadada ao insucesso porque o homem reedita os mitos, as histórias, as lutas entre os
orixás (BASTIDE, 2001, p. 222 - 225)
Os ritos são recriados nos terreiros de nação ketu tendo como referência um lugar de
origem dos principais fundadores do culto, estando relacionados desta forma à origem étnica,
mas também reproduzem modelos litúrgicos como é o caso do modelo de feitura do santo do
processo de iniciação, onde pela tradição nagô, é realizado, entre outras coisas, a raspagem da
cabeça e o banho de sangue (SERRA, 2005, p. 71 e 78).
Mitos sobre Oxalá mostram que tratar-se do orixá da criação, do firmamento. Serra
(1995, p. 235) relata que os nagôs celebravam em sua terra natal Oxalá como Orixá Criador,
filho do Deus Supremo com o status de Pai Soberano em relação às demais divindades.
Descreve que um mito nagô mostrando que
Oxalá “faz emergir a terra do seio das águas
primordiais, a partir de uma elevação considerada, por isso mesmo, o umbigo do mundo”.
Estão na visão de mundo do Candomblé, coisas que se aprendem na mitologia e as
práticas ritualísticas reafirmam, reproduzem, põe em movimento. Um mito sobre
Oxalá
mostra que certo dia ao se deslocar para visitar o reino de Xangô, Oxalá passou por grandes
provações. Antes de viajar ele teria pedido auxílio a um babalaô que o aconselhou a desistir
da viagem. Oxalá persistiu e ouviu o conselho de que não deveria negar nada para ninguém
durante a viagem e que levasse três roupas brancas. No caminho três vezes Oxalá teria sido
tentado por Exu. Foi convidado para que ajudasse Exu a levantar barris com azeite, óleo de
coco e carvão e nas três vezes teve a roupa suja pelos líquidos e o carvão, quando
prontamente Oxalá as substitui pelas roupas que trouxera de reserva. Ao adentrar no reino de
Xangô, Oxalá avistou o cavalo de Xangô e ao ser visto com o animal, foi preso pelos súditos
de
Xangô que não conheciam Oxalá e pensaram que ele teria roubado o animal. Oxalá foi
agredido, teve as pernas quebras e mal conseguia andar. Acabou ficando preso por sete anos,
período que o reino de Xangô é abatido por problemas de toda a ordem, como pragas, doença,
seca. Foi descoberto quando Xangô resolveu consultar um babalaô que ao jogar o ifá
verificou que um homem de roupas brancas estava preso e justificou que o que estava
acontecendo era uma revolta natural pela injustiça praticada contra o aprisionado. Ao
descobrir Oxalá e como forma de tentar se redimir diante dele, Xangô exigiu que todos do
reino carregassem água para lavar Oxalá que foi encontrado com as roupas sujas e muito
maltratado. Antes de voltar para casa, Xangô prometeu a Oxalá que as gerações futuras iriam
carregar água para lavar os sofrimentos de Oxalá. Na volta para casa, Oxalá passa pelo reino
de Oxaguian que resolve fazer uma grande festa pelo seu aparecimento, com muita comida
branca, inclusive inhame (BENISTE, 2002, p. 237-271). Até hoje esse mito é perpetuado e
revivido através do ritual “Águas de Oxaláem terreiros de origem ketu, quando os iniciados
e iniciadas carregam água para banhar Oxalá, um ato, inclusive, que tem o mesmo sentido de
purificação e de remissão diante da divindade.
As tradições místicas e ritualísticas ocupam uma função na transmissão dos valores e
da cultura da ancestralidade. Uma vez nas comunidades, os filhos e filhas de santo assimilam
princípios que delimitam a maneira com que as pessoas se relacionam com os elementos na
natureza, fogo, terra, ar e águas. Os rituais contribuem para manter também o respeito à
hierarquia, proteger e manter a sabedoria, os ensinamentos deixados pelos antepassados.
Como certifica Martins (2000)
39
, os ritos “de ascendência africana, religiosos e seculares
ocupam um lugar ímpar como veículo de transmissão de um dos mais relevantes aspectos da
visão de mundo africana, a ancestralidade”, a força que, conforme Padilha (1995, p. 10)
integra todos os níveis de existência na religião de matriz africana e norteia a relação entre
vivos e mortos, entre o homem, o natural e o sobrenatural estabelecendo entre esses vários
componentes “uma mesma e indissolúvel cadeia significativa”.
5.3 DIVINDADES E NATUREZA
As transformações que os cultos de origem africada passaram ao longo dos tempos
não impediram que os religiosos praticantes do Candomblé continuassem, como certifica
Lima (2003, p 18), estruturados e resistentes na sua forma de cultuar as divindades. Braga
(2000, p. 145) afirma que o Candomblé é dinâmico com valores respaldados pela sociedade
que por estar em constante mudança também cobra da instituição religiosa sua atualização,
fazendo com que o Candomblé, como afirma o autor: “fosse capaz de mudar permanecendo”,
ou seja, acompanha a evolução social, porém mantendo as estruturas para a organização e
hierarquia.
Uma característica forte nessa conjuntura é que as nações reverenciam a natureza,
independente dos nomes que são atribuídos às divindades e a forma de culto com as
respectivas influências étnicas. No Candomblé, as divindades são vinculadas a terra, ao ar, ao
fogo, a água, estão relacionados a
poderes como a chuva, o orvalho, a mata, o rio;
39
Fonseca, Maria Nazareth Soares (Org.) Brasil Afro-brasilero (p. 78). Esse processo de intervenção
no meio e essa potencialidade de reconfiguração formal e conceitual fazem dos rituais um modo eficaz de
transmissão e de reterritorialização de uma complexa pletora de conhecimentos.
representam ainda os estados sólido, líquido e gasoso do corpo humano e os reinos animal,
vegetal e mineral (BENISTE, 2002, p. 101).
Na mitologia do Candomblé, são as divindades as responsáveis pela criação do
universo e tudo o que nele há. Elas são a representação da natureza; são a própria natureza.
Os orixás nagôs são, em geral, personagens evemerizados, que
representam as fôrças elementares da natureza [...] Os deuses
representam – como ensinou Nina Rodrigues – “por objetos
inanimados”, água, pedras, conchas, pedaços de ferro, árvores e
frutos (CARNEIRO, 1948, p. 68 - 92).
Na África, além de serem considerados antepassados que viveram na terra e depois
que morreram foram divinizados, “os orixás são forças da natureza, fazem chover, reinam
sobre as águas doces, ou representam uma atividade sociológica bem determinada, a caça, a
metalurgia...” (BASTIDE, 2001, p. 153).
Mãe Olga do Alaketu, no Caderno Oku Abo Espaço Sagrado”, afirma: “Meu filho,
orixá é tudo isso que está ai... É o princípio da vida, está em todas as coisas. Por isso, tome
muito cuidado, pois quando você mexe em uma coisa, desequilibra a outra”. Considera-se, por
exemplo,
Èsu (Exú) como o orixá dos caminhos, trilhas e encruzilhadas; Ògún (Ogum), do
ferro; Òsóòsi (Oxossi), das florestas; Òsanyìn (Ossain), segredo das folhas; Obalúayé
(Obaluaiê/Omolu), terra; Òxùmàrè (Oxumaré), o arco-íris e Sàngó (Xangô), o orixá dos raios,
trovões e pedras.
A natureza é associada a outras divindades como: Oya (Oiá/Iansã), chuva, tempestade,
vento; Òsun (Oxum), a divindade dos rios, cachoeiras; Yemonja (Iemanjá), mares e rios; Obà
(Obá), grutas, cavernas e encontro das águas; Yewa (Euá), o Cosmos e a mata virgem; Nàná
(Nanã)
é a divindade dos pântanos e mangues e Òòsàálà (Oxalá) é considerado a harmonia de
natureza (Ibidem). Braga (2000, p. 167) reforça que orixá é a representação de fragmentos da
natureza
40
, mas mesmo sendo parte cada orixá integra o todo.
Entre os esses elementos da natureza e a associação às divindades, a água tem lugar de
destaque no Candomblé, tanto que costuma-se dizer: kosi omi, kosi orixá, ou seja, sem água,
sem orixá. Para o Candomblé é a água o elemento essencial para a relação dos humanos com
as divindades e fundamental para que estas tradições religiosas continuem existindo.
41
Para o
40
O autor também afirma que orixá pode ser compreendido a partir da mitologia como seres criadores do
universo e que já foram humanos.
41
Salienta-se que para Sodré (2002, p.103), tradição “é entendida como um conjunto de saberes que são
transmitidos de uma geração para outra”. O esforço, resistência e empenho do povo de santo em manter suas
tradições não impediram que elas, até mesmo nos Candomblés mais antigos, sofressem modificações, por
vários motivos. Lima (2003, pg. 19) avalia que essas modificações são decorrentes de vários fatores como os
de ordem socioeconômica.
povo de santo de um modo geral a água é considerada mais do que fonte essencial e primária
da vida humana; é cheia de simbolismo, é fonte de vida para o corpo e para o “espírito”.
Para o Candomblé, a água serve de escudo contra o mal e significa pureza, limpeza
espiritual; é cheia de vibrações que impulsionam a vida, estando interligadas a toda biosfera.
É, talvez, o elemento da natureza mais forte e com implicações amplamente arraigadas no
modo de ser e viver dos religiosos. É elemento sagrado, premissa para qualquer ritual e que
sacraliza as oferendas
42
.
Acontece no entanto às filhas de santo, em visita, sentiram apelo insistente
da divindade desabrochar-lhe no íntimo; bebem então grandes copos de
água gelada, que têm o poder de impedir que se produza a possessão
(BASTIDE, 2001, p. 38).
A água tem um significado considerado imprescindível na comunidade de Terreiro,
veja no esquema adiante. A água é usada em todos os rituais sejam eles com fins litúrgicos
(simbólicos) ou com fins de cura. A reverência e o significado da água para o Candomblé são
tão fortes que para que um Terreiro seja construído é preciso uma cerimônia onde a
yalorixá
ou babalorixá deposite no terreno, o que Carneiro (1948 p.24) descreve como “água dos
axés”. Para Sodré (2002 p.102) o axé é “a força” que circula naquele território e “a terra, as
plantas, os homens são portadores do axé, são veículos de possibilidades de afetar e ser
afetado, diretamente vinculados às práticas rituais”
43
.
42
Ver Oliveira dos Santos e Scalco (INTERCOM, 2008) e a Carta pelas Águas (2008)
43
Sodré afirma ainda que o axé é o elemento mais relevante do patrimônio simbólico mantido e perpetuado nos
terreiros brasileiros. “O axé é algo que literalmente se planta (graças a suas representações materiais) num
lugar, para ser depois acumulado, desenvolvido e transmitido. Existe axé plantado nos assentamentos dos
orixás, dos ancestrais e no interior (inu) de cada membro do terreiro” (2002, p. 97). Elbein dos Santos (2002,
p. 39-
42), como ressaltado acima, acentua que é a força responsável pela existência de todas as coisas em um
terreiro; tudo para existir tem que ter axé para poder realizar-se.
Figura 14 - Esquema sobre o significado da água
A água está tão imbricada no cotidiano do povo de santo que não deve faltar água
jamais no assento dos orixás. É fundamental que haja água todo o tempo nas quartinhas
(ELBEIN DOS SANTOS, 1986, p. 35), utensílio de hidrocerame, indispensável para as
práticas religiosas no Terreiro que contém, geralmente, um quarto de litro de água e cuja
função simbólica é indicar o assentamento das divindades enquanto espaço sagrado ou ritual
no Terreiro, e, sobretudo, guardar líquidos, especialmente a água.
A água usada nas quartinhas tem vários fins de purificação, serve para a limpeza
individual ou coletiva. No Candomblé ketu é usada no padê de
Exu, quando a água da
quartinha é colocada em uma árvore no terreiro e oferecida junto com farofa de água, farofa-
de-dendê e acaçá. Como é tradição, costuma-se também haver o despacho de água na porta
dos terreiros quando a casa recebe uma visita ilustre (LODY, 2003, p. 113 - 114 e 204). “Este
ato serve como uma espécie de passaporte mágico para a entrada no espaço sagrado. A água
limpou, purificou e renovou” (LODY, 2003, p. 114).
Tão imprescindível é a água no Candomblé que além de ser plantada no terreno”, é
com água que se faz o ritual que marca o primeiro passo para o ingresso de um indivíduo à
religião. Trata-se da lavagem das contas que tem a cor do orixá a qual pertence o candidato à
iniciação. Na lavagem, as contas são colocadas em uma bacia cheia de água misturada às
folhas do respectivo orixá; podem ser azuis se essa divindade for Iemanjá. Depois que as
contas estão prontas para serem usadas, a mesma água com as folhas que serviram para lavar
o objeto serve para lavar a cabeça e também o corpo inteiro do iniciado indicando a
purificação e estabelecendo assim o princípio da sua ligação com o divino. “Assim entram em
contato os membros do trinômio, deus, homem e colar, permitindo a passagem da corrente
mística entre o primeiro e o último, por intermédio do segundo” (BASTIDE, 2001, p. 40-41).
Mesmo para que ocorra a possessão é preciso usar água. Ainda durante a iniciação, o
iniciado deve coletar água da fonte e banhar-se e dela deve fazer uso durante todo o tempo de
reclusão para as obrigações (BRAGA, 2000, p. 188 189). A água também é usada para
respingar naquele que vai dar possessão e colocada na boca, até mesmo ingerida, por quem
está e vai sair do transe (LODY, 2003, p. 114).
Muitos são os banhos de folhas para curar “mau olhado” e outros problemas de ordem
física e espiritual. O abô é um destes preparos por meio da maceração de folhas com as mãos,
pilão e pedras usadas em rituais secretos e cuja força do sumo das próprias folhas potencializa
aquele líquido fazendo com que empreendam maior sacralidade e poder. Nestes casos para o
Candomblé, a água tem de ser colhida sempre de um manancial, nunca de uma torneira. Ao
integrar-se às águas assim com outros elementos da natureza, a exemplo das folhas, de acordo
com a visão mágico-religiosa do Candomblé, o homem busca alcançar a harmonia pessoal, o
equilíbrio consigo e com o universo (BRAGA, 2000, p . 190 - 194).
O abô é normalmente preparado no peji de Ossain, orixá das folhas, e consumido em
diferentes situações dentre e fora do terreiro pelos membros da comunidade, como para rituais
de purificação, banho de iniciação e para ser ingerido. O amassi é outra mistura de folhas que
serve para banhar os animais antes do sacrifício e ao tempo em que ocorre a maceração das
folhas é acrescentada água lustral (LODY, 2003, p. 289). Outra mistura de folhas maceradas
recebe o nome de ariaxé e também serve para banhos rituais durante a feitura de santo
(CARNEIRO, 1937, p. 113). Muitos são também os chás preparados para livrar o corpo e o
espírito das doenças
44
.
As folhas dos banhos ou chás estão associadas aos orixás. Serra e outros (2002, p. 135)
mostram que depois de Ossain que está associado às folhas no Candomblé Ketu, Oxum é o
orixá que mais partilha folhas no sistema com outros orixás por ter conhecimentos mágicos e
por ser a representante das águas doces. Compartilha folhas com Oxalá e Xangô, os orixás
ligados aos domínios superiores e com Oxossi e Ogum, ligados ao domínio terrestre.
A água é essencial também para lavar objetos de uso ritual, como os tambores rum,
rumpi e lé. Antes destes instrumentos serem utilizados passam por uma cerimônia que
envolve desde a matança de um caprino para que seja retirado o couro de forma bastante
artesanal até a sacralização do instrumento que, pela música, servirão para evocar os deuses
africanos nos rituais e para onde todos os iniciados devem se direcionar e realizar
cumprimentos. Durante a preparação, os tambores são deitados em uma esteira e sobre o
44
Lody (2003, p. 290) afirma que tão grande é a variedade de ervas usada seja com fim medicinal ou mágico-
religioso quanto as finalidades no estabelecidas no saber tradicional.
maior deles, o rum, é depositada uma quartinha com água lustral e após ser também banhado
com sangue de galo e a carne é preparada e dividida entre os participantes, considera-se
estabelecida a ligação entre os deuses e os homens (LODY, 2003, p. 68).
A importância da água para a vida religiosa também pode ser justificada pela
aproximação dos terreiros aos mananciais, sejam eles rios, córregos, nascentes e na
inexistência destes, sempre cava-se uma fonte para que a água seja usada em rituais sagrados.
Acredita-se que a água em estado natural, sem intervenção humana, está e é impregnada de
sacralidade, de axé, da força da natureza por serem as “águas primordiais”, possibilitando a
reconciliação do homem com as forças da natureza (BRAGA, 2000, p. 184)
A água está associada a todos as práticas rituais em um Candomblé nagô onde a
divindade da água geralmente tem uma fonte dedicada a ela e invariavelmente aquela água
torna-se sagrada e usada para todos os fins rituais. Nos Candomblés mais tradicionais é com a
água da fonte que é feito o ossé, ou seja, da lavagem do assentamento até a comida dos orixás.
Acredita-se que aquela água é cheia de energia pura porque brota da terra.
5.4 OS ORIXÁS DAS ÁGUAS
Além de estar associada a todas as práticas rituais em um Candomblé, a água está
diretamente associada aos orixás. No Candomblé de origem ketu, como é o caso do Terreiro
da Casa Branca, quatro divindades especialmente, são relacionadas diretamente às águas:
Oxum, Senhora das Águas Doces; Iemanjá, Rainha das Águas Salgadas; Nanã, considerada a
grande mãe e avó Senhora dos manguezais e Oxalá, divindade das águas lustrais. Veja figura
adiante:
Figura 15 - Esquema sobre os orixás das águas
Oxalá teria recebido, de acordo com a mitologia Nagô, do seu pai Olorum (Deus
supremo transcendente ao universo) a missão de criar o mundo físico (SERRA et al., 2002,
p.12). E no panteon básico dos orixás estão outras divindades além dessas; 17 ao todo.
Obaluaiê (omolu), Oxumaré, Xangô, Oiá (Iansan), Obá, Oxossi, Logunedé, Ogun, Euá, Ibeji,
Iroko, Ossain e Exu (SERRA et al., 2002, p 17).
45
Para o povo de santo do Terreiro da Casa Branca, na tradição ketu, todos os orixás
estão relacionados de alguma forma às águas e para eles são direcionados pedidos,
agradecimentos, louvores, numa sublimação, crença e respeito às forças que as águas impõem
e contêm.
Um dos orixás das águas cultuado no Candomblé é Oxum, nome de um rio (Òsum),
muito reverenciada nas nações iorubás. Em torno da divindade das águas doces, vários
mitos que falam da sua majestade, soberania sobre as águas doces, da sua relação com outros
orixás. A depender da região, como era adorada por diferentes nações, Oxum recebia nomes
distintos, sendo reconhecida também como Oxum Apará, Oxum Abalu, Oxum Ijumu, Oxum
Laujimi, Oxum Tomiuá, Oxum Muiuá e Oxum Ipondá. Para os ijexás, Oxum era a divindade
mais conhecida sendo reverenciada em várias regiões do país iorubá, incluindo, a costa,
45
Silveira (2006 p.460 -461) afirma que os Candomblés da Bahia eram cultos de uma só divindade, mas houve o
que ele chama de “acumulação de forças místicas” e “aglomeração de divindades”. E um dos fatores que ele
aponta foram os grandes movimentos migratórios, além do fato de que as religiões “pagãs” aceitavam com
tranquilidade deuses imigrantes. Bastide (2001, p. 156) explica que uma divindade pode ser chamada por
nomes diferentes porque embora as etnias tivessem mantido seus cultos, em cada uma delas existiam seu
Oxalá, seu Ogum, sua Oxum.
Lagos, o extremo Ocidente, em Ketu, tendo como centro litúrgico a região centro-oriental do
país iorubá (SILVEIRA, 2006, p. 468).
Bastide (2001, p.155), ao referir-se à classificação dos orixás, ressalta que estes são
múltiplos e que dezesseis Oxuns. Fato de fácil compreensão quando lembra-se que os
africanos trazidos ao Brasil de diferentes nações, cultuavam seus orixás e estes embora
fossem as mesmas divindades, recebiam nomes distintos de um terreiro para outro. O autor
ressalta que mesmo assim, ainda pluralidade de Oxuns dentre de uma mesma etnia e cada
uma dessas divindades tem seus mitos especiais e funções distintas.
Oxum é assentada no Terreiro Casa Branca como uma das tradições vindas de Ijexá,
na região centro-leste do império Iorubá, atual Nigéria e o Benin. Oxum era a divindade mais
reverenciada entre os ijexás, embora também fosse cultuada na costa e em Ketu e em
províncias ao Sul do Rio Oxum. Oxum era a protetora do Ataojá, o senhor de Oxogbô, cidade
do século XVII. O fundador do reino Larô, antepassado de Ataojá, fez um pacto com a
divindade e todo rei a partir de então, era consagrado ritualmente no templo de Oxum,
tornando-se um iniciado (SILVEIRA 2006, p. 468).
Ao ser incorporada ao Candomblé da Bahia, Oxum passou a ser cultuada em vários
rituais nas águas doces dos rios e das fontes baianos. É considerada a divindade das fontes,
dos lagos, da fertilidade porque é a orixá dos rios que fertilizam o solo. É Oxum que cuida da
gestação, do sangue menstrual. É atribuída a ela a função de cuidar das crianças até que
comecem a falar. Seus elementos são a água, metal amarelo e o sangue menstrual. É saudada
como mãe de bondade: “òóré yeye o!” (BENISTE, 2002, p. 125 -127).
Oxum é representada pela cor de ouro, pelo metal latão, os animais de oferenda são a
cabra e a galinha, a água doce é o elemento da natureza que a ela está representada e do ponto
de vista da sociedade e das relações humana é associada ao amor (Bastide, 2002, p.156).
Também come bode e chupa cana. É a deusa das fontes e dos regatos, uma deusa menina. Nos
Candomblés está assentada perto das fontes (CARNEIRO, 1948, p. 72).
Òsun mo pè ó o!
Òsun
eu lhe chamo!
Mo pè o si níní àlàáfià
Eu lhe peço felicidade
Mo pè o si orò!
Eu lhe peço uma vida de riqueza
Mo pè o si níní omo
Eu lhe peço filhos”
(BENISTE, 2002 p. 127)
Iemanjá é outra divindade associada às águas e apesar de ser conhecida pela maioria
como a Rainha do mar, originalmente era uma divindade do Rio Ogum, Odò Ògun também
chamada de
Odò Yemonja, cujo culto foi introduzido no Brasil pelos egbás, vindos do centro-
sul do país iorubá. Era o orixá oficial da cidade de
Abeokutá. Acredita-se que Yemonja tenha
passado a ser considerada a Rainha do Mar, segundo a iconografia baiana, por ser filha de
Olokun, o oceano. Na própria cidade de Abeokutá ela era reverenciada como a “velha
senhora do mar”. No entanto, a saudação a ela dirigida até os tempos atuais faz referência a
sua origem:
“odò oya”, ou seja: “a mãe do rio” (SILVEIRA, 2002, p. 475). Ela também é
saudada com “Odò fé´yaba” que quer dizer: “as águas amam sua rainha” (BENISTE, 2002
p.123).
Na África existiam outros orixás associadas às águas. Em
Oyó eram cultuadas
Iyamassê e Ogunté e que na Bahia tornaram-se qualidades de Iemanjá. Outras divindades
como Iamanjá Ogunté, Iemanjá Assobá e Iemanjá Assessu são outras qualidades de Iemanjá,
denominações que ela recebeu no culto afrobaiano. Um dos terreiros mais conhecidos no
Brasil, o do Gantois, tem como nome oficial Ilê Iyá Omi Axé Iyamassê que significa “a casa
de Iyamassê, a mãe das águas” (SILVEIRA, 2002, p. 475-476). As comidas dedicadas a ela
são: pato, cabra, conquém, galinha, acaçá (CARNEIRO, 1948, p. 71).
Iemanjá é reconhecida como mãe de alguns orixás, entre os quais, Ogun e Xangô. As
danças para Iemanjá são marcadas pelo movimento das mãos e ombros e simulam o vai e vem
das ondas do mar. Portanto, seu elemento é a água, usa roupas brancas, azuis e verde-claro;
usa contas transparentes, brancas, verde e azul-claro. Por ser identificada com diferentes
“qualidades”, Iemanjá pode ter cores e oferendas variadas. No sacrifício usa-se cabra, galinha,
carneiro, bode castrado, pata, pombo e galinha-d´angola. Recebe oferendas com àkàsà, milho
branco, obì, orógbó, peixe, camarão com coco e arroz (BENISTE, 2002, p. 122-123).
Yemonjá Olókun
Senhora do mar
Olómú agu ìsi
Famosa pelos seios fartos
Ìyá mi la kèsán
Minha mãe elegante
Olówó orí mi
Dona da minha cabeça
Yemonjá àgbódò dáhun ire
Dentro das águas responde com o bem
Nanã é a divindade mais velha entre os orixás femininos e está representada pelas
lama e todos os pântanos e manguezais. Para o Candomblé, é no ventre de Nanã que os
homens são gerados porque a ela pertencem as águas primordiais e é para o ventre de Nanã
que todos voltam após a morte. Esta associação é justificada porque o ventre deste orixá é
compreendido como sendo a própria terra, por isso a ligação com a lama. Além de ser mãe de
todos os homens é a mãe das divindades Omolu e Oxumaré. Quando se manifesta em
cerimônia ritual, Nanã segura em seus braços como se fosse uma criança o Ìbírí, um feixe
produzido com talo de dendezeiro, enfeitado de búzios que tem uma das pontas voltadas para
baixo simbolizando a vida que retorna. Seu elemento é a fertilidade, sua cor é o branco
embora use contas azuis e vermelhas. Como sacrifício para ela são entregues: cabra, rã,
galinha-d´angola, pata, coruja e oferendas de pipoca, feijão, arroz, mel, inhame e efó
(BENISTE, 2002, p. 120-121).
Por serem filhos de Nanã, Omolu e Oxumaré podem ser relacionados à água. Omolu
que é também é chamado de Obaluaiê é o dono da terra. É entendido como o orixá das
doenças transmissíveis e aos filhos desta divindade é atribuído o poder de cura. Tem como
elementos a cura, a terra e as doenças. Destaca-se que muitas vezes é através de chás e de
banhos de folhas que doenças são tratadas no Candomblé. Oxumaré simboliza o arco-íris que
liga o àiyé e o órun (BENISTE, 2002, p. 114). Oxumaré assume também a forma de uma
serpente. Seus elementos são água e terra. Para os nagôs, conforme oríkís entoados nos rituais
é
Oxumaré que faz a chuva cair na terra (BENISTE, 2002, p.117-119).
Òsùmàrè
O arco-íris
Lókèrè
Está distante
E lòke re
Lá no alto
Òsùmàrè
O arco-íris
Ó gbé jí ró
Ele se ergue e faz cair
Ó gbé jí ró
A chuva fertilizante
Saudado como “E se e bàbá; Epá bàbá”, Oxalá tem como título Aláàbáláàse, o
escultor perfeito e é considerado o pai dos orixás, corresponde à cabeça do homem, avô de
todos os homens. Aparece como Òsàlufón, Òsàguiyán, Odùdúwà, Òrìsá Oko, Òsàfuru, Bàbá
Àjàlé e Bàbá Lejúgbé e está diretamente ligado à água, por ser o orixá continuador da obra da
criação, dever que lhe foi passado por Olodumaré, o Deus supremo (BENISTE, 2002, p. 138-
139). Para a mitologia nagô, foi através das águas primordiais que Oxalá fez brotar a terra. É,
portanto, o orixá criador, o pai da vida (SERRA, 1995, p. 235).
Bàbá nlá! Oko Iyemowo
Grande pai, marido de Iyemowo
Ibi rere l ´órisá ka´
O lugar feliz onde ele está assentado
Òrìsànlá atererekáiye
Grande Òrìsà que reina sobre todas as coisas
Òrìsà nlá Adìmúlà
O grande Òrìsà Salvador
Olójú kará bi ajere
Ele tem olhos que vêem tudo
Èwù rè funfun ni
O manto dele é branco
Adàgbà jê ìgbín
O velho que come caramujo
Eni olà etì!
Um ser nobre e imutável
(BENISTE, 2002 p 139)
6 RESULTADOS E DISCUSSÕES. O TERREIRO DA CASA BRANCA
6.1 O LUGAR DA PESQUISA
Os portões de ferro esculpidos pelo artista plástico Bel Borba com motivos
representativas do Candomblé são uma referência de destaque para a localização do
Ilê Axé
Iyá Nassô Oká ou simplesmente Casa Branca, em Salvador. Pelo viés convencional, o Ilê A
Iyá Nassô Oká
tem como endereço, a Avenida Vasco da Gama, número 463, Engenho Velho
da Federação.
Muitos outros ícones podem ser citados para orientar qualquer um que queria chegar
àquele espaço considerado sagrado pelo povo de santo. Um dos mais emblemáticos é o
próprio barracão pintado de branco construído no vale em meio a muitas plantas e, inclusive,
árvores centenárias, árvores adornadas pelo ojá
46
, árvores sagradas, conforme fotos abaixo do
lateral do barracão e da área verde ao seu entorno.
46
Ojá é um tecido branco amarrado nas árvores sagradas sinalizando o assentamento de um orixá.
A
B
Figura 16 - Foto lateral do Barracão (A), com escadarias que levam à casa da família da palha. Na outra foto (B) rampa de
acesso ao lado direito do barracão e a dependências como a cozinha. Na foto C, o ojá adorna o assentamento de um orixá e
na foto D, a vista da área do entorno do Terreiro que mostra a expansão urbana.
A área verde é uma das poucas do bairro, cujo entorno do Terreiro é completamente
ocupado por casas, edifícios e empreendimentos comerciais. Até mesmo os assentamentos dos
orixás, a exemplo da casa de Oxossi, estão “imprensados” entre construções, como destacam
fotos adiante. Uma realidade muito diferente de décadas atrás quando estes assentamentos
eram no meio das matas, como aponta Carneiro (1948). Ao fazer a descrição do Terreiro da
Casa Branca, o autor mostrou que naquela época, o Oxossi principal estava a alguns metros de
distância do barracão, enfurnado no mato circundante”. As fotos, adiante, do Barracão, da
Casa da família da palha, pintada de rosa e a de Oxossi, da cor azul, mostram como o Terreiro
da Casa Branca perdeu espaços com a expansão imobiliária.
C
D
A
B
Figura 17 - Na página anterior, as fotos A, do telhado do barracão e (B) da casa da família da palha e as fotos (C) e D do
assentamento de Oxossi, mostram a ocupação urbana na área do Terreiro
O barracão é a maior edificação do Candomblé da Casa Branca, mede 11,65 m de
comprimento por 10,20 m de largura (CARNEIRO, 1948, p. 33). De frente para a escada que
liga à edificação a praça de Oxum, estão a porta de entrada e mais duas janelas. Perto da porta,
do lado esquerdo de quem entra, está o assentamento de Exu. Veja na foto adiante:
Figura 18 - Foto do assentamento de Exu dentro do barracão do Terreiro da Casa Branca
Na lateral direita de quem entra, está o local reservado para colocar cadeiras e bancos
onde sentam os homens nos dias de festa. Um pouco mais a frente no mesmo sentido lateral
direito está a saleta dos ogans e em seguida o altar das imagens de santos católicos, como
Jesus Crucificado, São Jorge, Santa Bárbara e São Lázaro, conforme destaque na foto adiante.
C
D
Figura 19 - Foto do altar que fica dentro do barracão
Depois está a porta do corredor que acesso aos assentamentos de Oxalá, do axé,
cozinha ritual e quarto da yalorixá e outros moradores da casa, conforme imagens abaixo.
Figura 20 - Foto da porta de acesso ao corredor onde fica, por exemplo, o quarto de Oxalá
Logo depois fica a cadeira da yalorixá da casa e depois, a porta do assentamento de
Xangô e das yabás. À esquerda deste assentamento, são colocadas cadeiras para autoridades
convidadas para as festas públicas e para os ogans da casa, veja nas fotos adiante.
Figura 21. Foto da cadeira da yalorixá (A) e foto (B) da porta do quarto de Xangô e das yabás
Em sentido contrário à porta de entrada, sob uma pilastra está a imagem de um menino
simbolizando o assentamento de Logunedé. Ao lado esquerdo da imagem é colocada a cadeira
da Ikekerê e logo depois próximo à porta dos fundos, de onde se saúda o assentamento de
Oxossi, está o pequeno quadrado de cimento onde estão os atabaques que são tocados pela
orquestra ritual nos dias de festa e obrigação.
Figura 22. Foto do barracão. Ao fundo imagem de um menino representando o orixá Logunedé (A) e a foto (B) mostra os
atabaques
Na outra parede lateral estão mais duas janelas de onde se saúda os assentamentos da
ancestralidade e da família da palha (Nanã, Obaluaiê e Oxumaré). É neste local onde estão os
A B
A
B
bancos reservados às mulheres. Elas também sentam em outros bancos dispostos ao lado da
casa de Exu. No centro do barracão está a coroa de Xangô, talhada em madeira, sustentada por
quatro colunas e um pilar de alvenaria e o estrado onde está assentado o axé da Casa Branca.
Fixado no pilar de alvenaria, está um quadro com a figura de Xangô. Adiante, desenho do
espaço a partir de Carneiro (1948, p. 34) e fotos da coroa de Xangô e da imagem de Xangô.
B C
A
Figura 23 - Imagem da planta do Barracão (A). Fotos (B e C) da coroa de Xangô e figura de Xangô (D)
O templo religioso foi implantado, onde permanece até hoje, na década de 1850
47
. Ele
teve origem entre 1804 e 1807 em terreno situado atrás da Igreja da Barroquinha. Foi fundado
pela comunidade nagô na Bahia que se organizava desde o final do século XVIII por meio das
Irmandades do Senhor Bom Jesus dos Martírios. No ano de 1811 um salão construído na Rua
da Barroquinha marcou definitivamente a instalação do Candomblé que por estar situada
naquela área da cidade foi denominado de Candomblé da Barroquinha sendo consagrado a
Airá Intile (SILVEIRA, 2006, p. 523 - 524).
Durante anos, o terreiro funcionou na Barroquinha e foi alvo de invasões e repressão
das forças policiais da província. A urbanização da área na Barroquinha, inclusive com a
derrubada de árvores sagradas, obrigou a saída definitiva do
ilê axé daquele ambiente. O
Terreiro teria sido transferido para locais como o Calabar até ficar definitivamente no
Engenho Velho da Federação (SILVEIRA, 2006, p. 529 -530).
A escolha do local para a instalação do Terreiro da Casa Branca foi feita pela própria
mãe-de-santo Iyá Nassô Oká, que também é saudada entre os iniciados como Iyá Nassô Oió
Acalá Magbô Olodumaré. Ela é apontada como uma das responsáveis pela reorganização do
Terreiro da Barroquinha e do culto a Xangô segundo os preceitos da casa real de Oyó. O
Bamboxê Obitikô, importante liderança religiosa e política da época da comunidade iorubana
na Bahia, participou do processo e inclusive ajudou Iyá Nassô Oká na mudança. Ela
implantou o axé do Terreiro no Engenho Velho e o Bamboxê Obitikô fez a primeira coroa de
Xangô Ogodô que foi fixada nos quatro pilares do atual barracão central do Terreiro; pilares
que representam os regentes da casa: Oxossi, Xangô, Oxum e Oxalá (SILVEIRA, 2006, p. 528
e 529). Outras duas mães-de-santo, Iyá Dêtá e Iyá Kalá também são citadas como fundadoras
47
Muitos pesquisadores da história da Casa Branca, como Carneiro (1948, p.48) atribui a data da fundação do
Terreiro da Casa Branca, no Engenho Velho da Federação em 1830.
D
do Terreiro no Engenho Velho da Federação que muitos, em função disso, chamam de “A
casa das três princesas”.
Por muito tempo estas três mulheres emprestaram grande brilho à casa, não
se tendo certeza, entretanto, quanto a se repartiam entre si o poder ou se se
sucederam nele. De qualquer maneira, o nome de qualquer das três merece
ainda as maiores reverências
(CARNEIRO, 1948, p. 48).
Dizem os mais velhos que ao ser instalado no Engenho Velho, o antigo Candomblé da
Barroquinha, a casa construída para abrigar os pilares de Xangô e assentamentos dos orixás,
teria sido toda pintada de branco e a cor ajudava na identificação daquele lugar considerado
remoto, distante, isolado do centro da cidade. A cor branca virou então sinônimo de
identificação para que o Terreiro fosse facilmente encontrado por aqueles que freqüentavam o
ilê axé desde a Barroquinha. Ao ser avistada a Casa Branca, mesmo ao longe, sabia-se que ali
era o
Ilê Axé de Iyá Nassô Oká ou Candomblé da Barroquinha. Ao longo do tempo, aquele
hábito do passado acabou sendo incorporado à definitiva identificação do espaço: O Terreiro
da Casa Branca do Engenho Velho ou simplesmente a Casa Branca
48
. Era assim e assim ficou.
A origem desta Casa está associada ainda à organização de escravos libertos
provenientes da Costa da Mina, Irmandade do Senhor Bom Jesus dos Martírios, que
funcionava na Barroquinha desde 1764. Como destaca Silveira (2006, p. 152), para se
consolidar e continuar perpetuando os cultos aos orixás, a irmandade absorvia representações
da própria igreja Católica. Era assim quando se dizia que se fazia festa para São Jorge e toda a
sociedade baiana participava.
Porém, as honrarias da celebração eram para
Odé/Oxossi. Sobre a questão, Silveira
(2006 p. 356) reforça que o dia de
Corpus Christi marca a fundação do respectivo culto no
Terreiro da Casa Branca. A associação da data se deve à festa cristã que se fazia em
homenagem a São Jorge, mas que na verdade era uma adaptação para esconder o rito africano
para saudar Odé, o mais importante orixá dos caçadores na região jeje-nagô e Oxossi outro
orixá dos caçadores.
Por suas origens iorubanas, as raízes míticas do Terreiro da Casa Branca o ligam as
antigas cidades africanas de Oió, atual Nigéria, que é centro do culto a Xangô e de Ketu onde
está situada hoje a República do Benin, que é consagrada a Oxossi. Por isso, diz-se que o
Terreiro Casa Branca pertence a Oxossi, o onilé, o senhor da terra, e o barracão central a
48
Oliveira, Rafael (2005, p. 35-36) lembra que “Casa” também significa terreiro delimitado por um perímetro
onde existem moradores permanentes ligados ao Candomblé ou não, casas para visitantes em época de festa e
monumentos sagrados dedicados às divindades.
Xangô, o onilê, dono da casa. Em reconhecimento das tradições de Ijexá e Efan-Ifé que
tinham sido implantadas na Bahia à época da refundação do Candomblé da Barroquinha,
Oxum e Oxalá também foram assentados como regentes do Terreiro da Casa Branca
(SILVEIRA, 2006, p. 525).
O Terreiro da Casa Branca é considerado a mãe de todas as casas de axé. “O
Candomblé do Engenho Velho deu, de uma forma ou de outra, nascimento a todos os demais
e foi o primeiro a funcionar regularmente na Bahia” (CARNEIRO, 1948, p. 48). Com mais de
dois séculos de história, situado em uma área de 8.500.38 m², o Terreiro da Casa Branca é
considerado um “monumento vivo e um precioso legado que se conserva no Brasil da grande
civilização iorubana, as origens de cujo florescimento remontam ao século IX” (SERRA,
2008).
O laudo antropológico do Terreiro elaborado pelo professor doutor Ordep Serra
descreve características físicas da Casa Branca, como está representado civilmente por meio
da Sociedade São Jorge do Engenho Velho e como aos poucos este espaço foi sendo
reconhecido em diferentes instâncias governamentais até ser tombado pelo Instituto do
Patrimônio Artístico e Cultural, órgão vinculado ao Ministério da Cultura, como Patrimônio
Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico
49
.
2 A CASA BRANCA E A RELAÇÃO COM O MEIO AMBIENTE, O ANTIGO RIO:
SIGNIFICADO E TRANSFORMAÇÕES AO LONGO DO TEMPO
A placa fixada do lado de fora, foto a seguir, mostra que o Ilê Axé Iyá Nassô Oka é um
Patrimônio Histórico e Etnográfico do Brasil. É um marco simbólico por retratar os séculos
de história daquele espaço considerado sagrado pelo povo de santo, onde se cultua divindades
e a ancestralidade africanas.
49
Veja laudo completo nos anexos
Figura 24. Placa na entrada do Terreiro da Casa Branca que mostra o tombamento do espaço como Patrimônio Histórico e
Etnográfico do Brasil.
O Terreiro Ilê Iyá Nassô Oká é um espaço que representa muita resistência e luta do
povo para não deixar extinguir o elo com a ancestralidade, com as origens africanas, com o
passado por meio do qual é possível resgatar muitos aspectos da própria história do Bahia e
do Brasil. No vale, está a casa que foi erguida na década de 1850 em meio à Mata Atlântica,
cercada de verde por todos os lados, muitas águas subterrâneas e margeado pelo rio
denominado de Rio Lucaia, cuja bacia hidrográfica tem cerca de 14 km².
Quando foi construído, nos tempos da escravidão, o mato era uma floresta, e
o templo bem escondido (CARNEIRO apud LANDES, 1967, p. 48).
Também conhecido como o Candomblé do Engenho Velho, o Terreiro da Casa Branca
foi fundado próximo a mananciais e onde havia muitas árvores; algo característico dessa
religião de matriz africana. Carneiro (1948, p. 29-30) descreve que os Candomblés estavam
localizados em lugares distantes, de difícil acesso, “no meio do mato”. A aproximação de rios,
lagoas, nascentes, era estratégica para que neles pudessem ser realizados rituais.
A água está na fonte mais próxima, talvez em cisternas. As mulheres vão
buscá-la em latas de querosene... Esta água enche os porões, talhas e
moringas da casa e é distribuída nas festas, em canecos de folha-de-flandres
ou de ferro esmaltado, aos assistentes
O fato de ser um local escondido, de difícil acesso foi, sem dúvida, determinante para
a instalação do Ilê Axé Iyá Nassô Oká no Engenho Velho. Assim também o foi a aproximação
dos elementos da natureza, como a mata e água, uma vez que os orixás são representações da
própria natureza e ali onde havia mato e água em abundância e certo distanciamento dos
aglomerados urbanos, era possível realizar os rituais e cultos aos orixás sem muita exposição.
Relatos há, no entanto, que mesmo esta tentativa não eximiu o Terreiro da Casa
Branca da perseguição e da repressão policiais. Em 31 de maio de 1855 o Jornal da Bahia
anunciava a prisão de vários religiosos da Casa, a exemplo de Cristovam Francisco Tavares,
Maria Salomé, Joana Francisca, Leopoldina Maria da Conceição, Escolástica Maria da
Conceição, porque estavam “no Sítio do Engenho Velho, em reunião a que denominam de
Candomblé” (SILVEIRA, 2006, p. 530).
Em função das práticas rituais e até mesmo por integrar um rico ecossistema que
facilitava a perpetuação das tradições de culto à ancestralidade africana mediante seja do uso
das plantas e água ou da representatividade dos orixás por elementos como rochas e ferro,
historicamente houve uma relação de conectividade da comunidade do terreiro com a
natureza.
O ritual de iniciação marca essa interligação homem-divindade-ecossistema. É através
desse rito de passagem que o indivíduo é purificado, morre de uma vida profana para renascer
para uma vida divina. A iniciação “seria o renascer de uma vida em que o indivíduo, para
participar de um universo mágico religioso, redefine sua relação com a natureza [...] A
natureza é sagrada e o renascer para o Candomblé é o retorno ao sagrado e, por consequência,
o retorno à natureza natureza que é símbolo maior dessa noção de sagrado no Candomblé”
(BRAGA apud PEREIRA DOS SANTOS, 1997).
Na cosmogonia nagô, além da lavagem da cabeça com sangue ou com água, a lavagem
das contas e a lavagem das pedras dos santos com água macerada de folhas sagradas são
maneiras de mostrar essa ligação do homem com as divindades e consequentemente com as
“forças da natureza”. “Não pode haver melhor modo de mostrar que a essência do homem não
é simples imitação ou repetição da essência dos orixás e sim que ela é uma verdadeira
divinização, a inserção do homem no tronco divino” (BASTIDE, 2001, p. 227-228).
As imagens do Google earth e foto aérea adiante, do arquivo da Companhia de
Desenvolvimento do Estado da Bahia (Conder), datada de 1959, ou seja, mais de 100 anos
após a instalação do Terreiro Ilê Axé Iyá Nassô Oká no Engenho Velho da Federação,
mostram como aquela área da cidade era rodeada de mata e como o riacho ainda tinha mata
ciliar. Na ausência de infraestrutura urbana, mais precisamente de água encanada, as águas
daquele rio abasteciam as casas da redondeza e o Candomblé seja para uso doméstico ou
religioso
50
.
Figura 25 - Imagens aéreas (A) do Google earth da área do Terreiro da Casa Branca do Engenho Velho e foto aérea (B) de
1959. A área escura representa a área verde na área do entorno do Terreiro. A seta mostra exatamente onde é instalado o
Terreiro.
Os mais antigos da Casa Branca contam que ainda se lembram como o rio Lucaia era
limpo e como existia muita vida dentre e fora d´água.
50
Estudos realizados na Bacia do rio Lucaia mostram que as “água subterrâneas são normalmente cloretadas
sódicas e, secundariamente, cloretadas calcio-magnesianas, sendo as mais profundas de natureza bicarbonatada
sódica. Todas são águas doces com baixo conteúdo salino, apresentando cálcio, sódio, potássio, magnésio,
cloreto, sulfato e bicarbonato, dentro dos padrões normais de potabilidade, tomando-se como referência, a
portaria 518/2004 do Ministério da Saúde”. Ver mais: MORAES, Sérgio Augusto de; BARBOSA, Johildo
S.F. Qualidade da água do aquífero freático no alto cristalino de Salvador, Bacia do rio Lucaia, Salvador,
Bahia.
Revista Brasileira de Geociências, v. 35, n. 4, 2005.
B
A
A gente morando num lugar que hoje é cidade, antigamente era roça, por
conta disso que o nome é roça. Eu brinquei criança nesse rio ai, tomei
banho nesse rio, catei bobó, aqueles peixinho nesse rio ai. Então, a gente
entrava no rio sem nenhum problema, bebia água do rio. Todas as pessoas
com mais de sessenta anos da roça tomaram banho nesse rio
(2008, Ent. 1).
A água era considerada tão pura que muitos dos rituais eram feitos dentre do rio a
própria representação de Oxum. Então quando as pessoas eram iniciadas tomavam banho
nesse rio ai” (2008, Ent. 5).
Plantas sagradas eram cultivadas no local que aos poucos foi sendo engolido pela
expansão urbana. As fotos abaixo, também do arquivo da Conder, de 1976, 1980, 1989, 1992
e 1998, retratam bem esse quadro, a evolução histórica da ocupação ao redor do Terreiro da
Casa Branca do Engenho Velho.
A
Figura 26 - Fotos aéreas do Terreiro da Casa Branca de 1976 (A), 1980 (B), 1989 (C), 1992 (D) e 1998 (E) mostrando a
expansão urbana no entorno da Casa Branca e como as construções vão substituindo a vegetação
B C
D
E
A partir da década de 1960, cada vez mais, ruas e avenidas foram sendo abertas, casas
foram construídas vale acima e abaixo, árvores consideradas sagradas, centenárias, frondosas,
gigantescas que rodeavam o terreiro encravado na encosta, foram cortadas. As margens do rio
foram sendo cobertas por asfalto. A roça da Casa Branca, que não se tem idéia da real
dimensão geográfica que chegou a ocupar, foi cada vez mais sendo cercada por edificações de
todos os tipos, residenciais e comerciais. A frente do terreiro chegou a ser ocupada por um
posto de gasolina construído em 1970, o que motivou vários protestos da comunidade em um
episódio marcado por mais um processo de luta e resistência. Somente em 1989 que a área foi
devolvida para o Terreiro e transformada em Praça de
Oxum projetada pelo arquiteto Oscar
Niemayer. A praça é hoje espaço de adoração das divindades, inclusive, por meio de festas.
O rio passou por intenso processo de degradação, teve a mata ciliar derrubada, partes
do rio foram cobertas para que ruas e pontes fossem construídas, como pode-se verificar nas
imagens adiante.
Figura 27 - Fotos da frente do Terreiro da Casa Branca do Engenho Velho. As duas mostram como as margens do rio Lucaia
foram impermeabilizadas pelo asfalto.
O manancial acabou sendo destinação para efluentes, sobretudo resultantes do
lançamento de esgotos domésticos. O volume de água não é até os dias atuais o suficiente
para a diluição dos resíduos e consequentemente, o rio foi transformado em esgoto.
Me lembro, quando eu vinha de férias, eu morava no Rio (Rio de Janeiro),
vinha de férias a Salvador 25, 30 anos atrás e nós pescávamos aqui na
frente. Era um grupo de crianças aqui na comunidade, um saco cheio de
furos, aquela engenharia de pesca rudimentar e nós pescávamos aqui em
frente. Nós pescávamos, e assim, havia competição entre as crianças daqui
de quem pescava mais peixes. Então todo mundo com saco de
supermercado, furava o saco, amarrava, jogava o saco dentro d´água e de
vez em quando ficava puxando pra ver se tinha peixe dentro. Eu tinha,
inclusive, um aquário em casa de peixes que eu pegava aqui... Anteontem
andando aqui na frente eu vi o rio sujo, quer dizer, não é mais um rio agora
é um esgoto, antes era um rio, agora não é mais rio, é um esgoto e a
diferença é exatamente essa antes era um rio, agora um esgoto e isso diz
tudo
(2008, Ent. 2).
A
B
O rio era importante para a vida cotidiana das pessoas. A abundância de água
subterrânea na região e a ausência de água encanada motivaram a abertura de fontes no
Terreiro.
Era o seguinte, porque aqui abrigava muita gente porque era poucos locais
aqui que tinha determinada fonte limpa, água potável. E aqui no Terreiro da
Casa Branca, como até hoje ainda tem uma fonte, tinha a água potável.
Defronte tinha outra fonte, mas aquela fonte é como naquela época usava a
linguagem, água pra gasto, pra lavar roupa e a água potável, o pessoal daí
de cima, do Bogum, do Engenho Velho descia pra pegar essa aqui, aqui da
Casa Branca pra levar pra consumo e as outras fontes que tinha aqui que a
água não era potável se usava pra gasto, não é? pra lavagem de roupa, pra
ferver essa coisa toda, agora e água potável pegava aqui na Casa Branca. E
esse brejo ai na frente tinha um bocado de bonina, que é uma flor roxa e
corria um córrego que também era uma água limpa, mas não pra consumo,
mas existia ai muito peixe, camarão, pitu essas coisas ai na frente no
Terreiro da Casa Branca
(2009, Ent. 8).
Havia uma dependência direta da fonte para as atividades do dia-a-dia dentro e fora do
Candomblé, seja para uso doméstico ou religioso. Do ponto de vista do uso doméstico, a água
da fonte era utilizada para diversos fins, seja para lavar roupa, tomar banho, beber e também
era sacralizada, com significado de purificação espiritual.
Antigamente só usava aqui água da fonte. Eu mesmo fui criada com água de
fonte, tomava banho de rio, a minha madrinha usava muito carvão de pedra
dentro d´água, ela dizia que era para despoluir e usava enxofre, sei que a
água ficava uma delícia. A gente pegava água na fonte, trazia com a latinha
na cabeça, as crianças, os adultos era a lata grande e as crianças a lata
pequena, era uma folia na fonte, né? Ai trazia a água, lavava, minha
madrinha era bem pobrezinha, trabalhava muito, mas era tudo limpinho, era
limpeza. A água mesmo era limpinha, ai lavava os potes, o purrão e ela
botava o carvão em pedra, o enxofre que era pra a gente poder beber aquela
água. E água era uma delícia melhor do que a água na torneira”
(2008,
Ent. 3).
Na década de 40, Carneiro (1948, p. 29-30) registrou como as águas do rio e das
fontes, também popularmente chamadas de cisternas, eram usadas na Casa Branca. Segundo
ele, era comum a lavagem de roupas para ganho na fonte e no rio mais próximo, assim como
o banho diário.
A água está na fonte mais próxima, talvez em cisternas. As mulheres vão
buscá-la em latas de querosene, que trazem equilibradas à cabeça, às vezes,
desde mais de duzentos metros de distância, - provável costume bântu. Esta
água enche os porrões, talhas e moringas da casa e é distribuída nas festas,
em canecos de fôlhas-de-flandres ou de ferro esmaltado, aos assistentes. Na
fonte ou no riacho mais próximo, as mulheres lavam roupa de ganho.
As águas subterrâneas captadas nas fontes eram igualmente utilizadas com a função
mágico-religiosa.
A água entra, porém, em porcentagem considerável, na vida religiosa: a água
de Oxalá – cerimônia que inaugura as festas da casa é mesmo uma
divinização desse elemento na natureza; a quartinha de barro dos orixás deve
ter a água mudada cada dia e as iaôs são obrigadas pela tradição a, durante o
noviciado, tomar banho todos os dias na fonte mais próxima, antes da
aurora; os ògãs em visita devem, antes de transpor os umbrais da casas,
beber um pouco d´água e atirá-la, depois, aos lados e à frente da porta.
Sabe-se que a cerimônia de Águas de Oxalá não abre o ciclo de festas do Terreiro da
Casa Branca. O ciclo de festa é iniciado no mês de junho com a festa de Oxossi, no dia
dedicado a Corpus Cristi conforme calendário litúrgico da Igreja Católica. A Oxossi é
consagrado o espaço geográfico do terreiro, por isso dize-se que Oxossi é “dono” do terreno
do Terreiro da Casa Branca.
A distribuição de água via sistema de abastecimento urbano não mudou a utilidade da
fonte do Terreiro da Casa Branca do ponto de vista mágico-religioso, onde os filhos e filhas
de santo eram iniciados e continuam sendo.
Todo mundo aqui foi iniciado com a água do rio porque a água da fonte é a
água do rio. É até hoje. não pode ir mais pro rio. Primeiro porque o rio
chegou pro meio da pista e a Casa Branca se afastou porque passou uma
cerca no meio, né. Antigamente quando tinha o rio, tomava banho no rio,
mas antigamente era mato, né, não tinha perigo que tem hoje, hoje faz até
medo descer duas, três horas da manhã
(2008, Ent. 5).
Com a poluição gradativa do Rio Lucaia, aos poucos a comunidade deixou de fazer os
rituais no manancial e a fonte foi assumindo um papel ainda mais importante. Deixou de ser
usada com fins domésticos como no passado para que fosse protegida e reservada aos fins
rituais. Foi cercada para evitar que fosse degradada e isso ocorreu na década de 70 quando foi
construído o posto de gasolina próximo dela.
A fonte a gente teve que fechar pras pessoas não usarem, não usarem de
forma inadequada, né. A fonte era da comunidade, não era só da Casa
Branca. As pessoas não tinham água e vinham buscar também na fonte,
entendeu? Não era uma fonte só nossa, como até hoje se têm necessidade, às
vezes os vizinhos têm necessidade, a fonte está ai pra isso. Mas não assim
pras pessoas chegarem e usarem do jeito que querem, tomar banho, porque
ai não pode mais fazer isso, então por conta disso foi fechado. Mas se
alguém precisar de vir buscar a água, com certeza não tem problema. Oxum
tá ai
(2008, Ent. 5).
6. 3 O USO MÁGIDO RELIGIOSO DA ÁGUA NA CASA BRANCA
“Jô me pá, Tetê omi, ô ô Jô Jô me pá, Tetê Ogum, Jô Jô omi pá”
No Terreiro da Casa Branca existem cinco fontes, conforme fotos adiante, quatro são
consagradas a
Oxum. Uma delas, além de ser consagrada a Oxum, também é consagrada a
Nanã e Iemanjá e fica no espaço Vovó Conceição. A outra está instalada no centro do Barco
de
Oxum e a outra é fonte onde está assentada Oxum na praça que leva o nome dela. Existe a
fonte que é o assentamento de Oxumaré que não tem minadouro. Há outra fonte na praça onde
também está assentada Oxum. É uma fonte ornamental, que tem uma imagem de sereia e que
também não tem minadouro e nem água armazenada como é o caso da Fonte de Oxumaré.
Todas estas fontes são sagradas, mas o uso da água para o ritual se concentra na fonte de
Oxum. A água existente nas demais fontes também pode ser utilizada para fins religiosos.
A
B
Figura 28 - Fotos (A e B), na página anterior, da fonte de Oxum do Barco, fotos (C) e (D) da fonte de Oxum e foto (E) da Fonte
de
Oxumaré.
A tradição religiosa faz com que até os dias atuais, repita-se o hábito dos antepassados
no Terreiro da Casa Branca. Em dias de obrigação, acorda-se bem cedo, nos primeiros raios
do sol para carregar água com a lata na cabeça. A gente tem que acordar muito cedo pra
pegar essa água em quantidade em certas vasilhas chamada quartinha e guardar pra
descansar e logo em seguida tudo pra orixá é usado com essa água da fonte, da cisterna,
entendeu? (2008, Ent. 2).
C
D
E
A manhã daqueles que se envolvem no conjunto do trabalho festivo
começa com o nascer do sol. Desde esse momento, diferentes mobilizações
se processam, envolvendo os membros da “comunidade”. Mulheres mais
velhas. E alguns dos homens se destacam do conjunto maior, como
protagonistas de rituais internos que não podem ter a participação de todos,
em ambientes sagrados a que não se franqueia o acesso a qualquer um
(OLIVEIRA, 2005, p. 20)
E são várias as obrigações que devem ser feitas com a água da fonte, como ossé. Ossé
é o ato de lavar o assentamento dos orixás, lavar as louças, o elemento da natureza através do
qual o santo está representado, como rochas e ferro.
É que tem uma coisa, hoje em dia nós temos aqui, numa linguagem bem
popular, a água encanada e naquela época não tinha, então toda água que
se usava era da fonte daí da nascente e até hoje quando a gente faz o ossé
que vem cuidar dos orixás, limpar o quarto dos orixás, botar água nova pros
orixás não é da torneira é da nascente. Se desce as escadarias e pega
água lá embaixo e traz para os orixás
(2009, Ent. 8).
O ossé precede todas as festas rituais em um ato que, às vezes, reúne várias pessoas da
comunidade
51
na mesma obrigação.
Normalmente antes de todas as festas, o ossé, a gente fala ossé, ossé é lavar
todas as louças dos orixás, é deixar tudo limpinho, ele arrumadinho,
bonitinho pra festa. Então, antes de acontecer qualquer festa, a gente faz
ossé. O ossé vem carregar água na fonte, todo mundo desce com sua lata ou
seu balde, vem carrega a água e volta para o axé. em cima lava as
coisas, enche todas as quartinhas que é pra na hora da obrigação a gente
usar a água daquelas quartinhas. Por isso é importante a água estar sempre
limpinha porque a gente precisa usar aquela água
(2008, Ent. 5).
A água da fonte é aquela que brota da terra, é cheia de energia pura, é o próprio orixá
para iniciados entrevistados do Terreiro da Casa Branca.
A água da fonte é uma água de orixá, uma água que vem da terra, que vem
do chão, então por conta disso é a água da fonte de Oxum. Então tudo pra
orixá tem que ser com água da fonte por que a gente tá lidando de um orixá
para outro orixá
(2009, Ent. 14).
A água da fonte é livre de processo químico, por isso, para o povo de santo, ela é
vigorosa, tem força, é portadora do axé.
51
Segundo Oliveira (2005, p. 22) comunidade é o termo para designar todas as pessoas que são adeptas da
religião e participantes dos rituais, como as pessoas vinculadas às atividades cúlticas oriundas de outros estados
ou países.
A água da fonte é pura, sem processo químico nenhum. Essa água vem da
terra, vem da natureza, brota da natureza, então não tem processo químico
nenhum e é a pureza, então tem que ser lá de baixo da nascente. Porque é o
seguinte: A água vem do Orum, do céu, cai e essa é uma coisa sagrada
porque desde quando ela vem de descendo, se acumulou na terra, né,
então ela torna voltar com toda a energia para os orixás é uma questão de
fortificar o axé
(2009, Ent. 8).
Em todo o processo ritual, desde o início, a água é usada meticulosamente. Só pessoas
autorizadas pela
yalorixá da casa podem entrar no assentamento onde está a fonte. Aliás, tudo
que se faz no terreiro precisa do consentimento da yalorixá. Não se tira uma folha aqui sem
que yalorixá permita (2008, Ent. 5).
Após autorização da
yalorixá, usam-se baldes para pegar a água da fonte, carrega-se
na cabeça os baldes até o local onde será usada. Se for para banho, faz-se o preparo com as
folhas sagradas em uma bacia.
Geralmente a gente lava as folhas na bacia, dependendo de
que folha seja, porque se for lavar uma alface é na torneira, se for lavar uma couve é na
torneira, agora se for lavar pra o axé é na bacia, a obrigação, o uso sagrado é na bacia
(2009, Ent. 7).
As folhas variam de acordo com o orixá e a necessidade de cada pessoa. As ervas são
maceradas na água que foi coletada na fonte bem cedo, ainda com o sol frio. Com o preparo
pronto, o omioró (banho de folha) é jogado no corpo ao tempo em que o religioso, em estado
de oração, deve evocar a divindade direcionando-lhe pedidos e agradecimentos.
Banho de folha não se toma com chuveiro. Quando é um banho sagrado, um
banho purificação tem que ser na canequinha mesmo, no balde. Porque
cada canequinha daquela que a gente joga é um desejo, é um pedido. Não se
joga água assim aleatoriamente, não se toma um banho xuuuuuu, entendeu?
Cada caneco de água que a gente toma, cada gole de água que a gente bebe
a gente faz um pedido
(2008, Ent. 5).
O banho com água da fonte deve preceder a qualquer ritual no Terreiro da Casa
Branca, deve ser tomado antes, inclusive, do ossé, pois significa pureza, limpeza, uma espécie
de licença para que o indivíduo possa se dirigir ao orixá e cultuá-lo. É o rito que permite que o
religioso entre em sintonia com os orixás e a partir de então seja contemplado no atendimento
aos seus pedidos. Veja o modelo abaixo que retrata a sequência do uso da água nos rituais
segundo descrito por entrevistados do Ilê Axé Iyá Nassô Oká.
A gente, pra cultuar orixá, a gente tem que lavar, limpar, tem que tudo
limpinho, a gente precisa dessa água pra beber, a gente precisa da água pra
tomar banho de folha. Então, a água é muito importante pra gente e a gente
não costuma desperdiçar água pelo valor religioso que ela tem. A gente usa
a água da fonte e acho que é por isso as pessoas falam que a gente usa
pouca água e gosta de tomar banho de canequinha porque acho que com a
canequinha a gente economiza mais a água, né?
(2008, Ent. 5).
Água da
Fonte
Banho de
Folha
Despacho
da Porta
Saudação
aos orixás
Ossé
Matança
Padê de
Exu
Beber para dar
possessão e sair
do transe
Outros usos, como a
distribuição
na festa de Oxalá
Preparo de
comidas dos
orixás
Saudação à
iyalorixá e aos
mais velhos
Figura 29 - Modelo com a sequência de obrigações com uso da água nos rituais do Ilê Axé Iyá Nassô Oká
A fonte é sagrada para os filhos e filhas da Casa Branca. Mais do que conter energia e
axé, nesta água para eles está um encantado, o orixá Oxum.
Todos os rituais de orixá usa água da fonte sim. Tem que ser da fonte
porque a gente tem ela disponível e como a gente tem ela disponível e é uma
água que brota do chão, não é uma água encanada, a gente não compra,
não paga pela água, é uma água que é um presente que a gente tem, então,
como é um presente é um sinal de que tem orixá ali, Oxum, claro
(2009, Ent.
10).
A fonte de água doce é desta maneira uma representação de Oxum e consequentemente
permite que a comunidade, que o indivíduo esteja mais próximo à divindade por meio deste
elemento que também é uma ligação que conduz ao Deus Supremo, Olorun.
A gente pega água da fonte, vai na fonte porque está mais próxima à
natureza e pra gente, a nossa religião é natureza, é tanto que barracão não
tem andar, é tanto que ilê orixá não tem andar, é telha, é a cobertura de
telha, então o que a gente precisa é estar bem mais próximo à natureza para
ver se as energias nos conduzem a Olorum como elemento criador. A água é
elemento de ligação do ser humano com os orixás. Enfim, é o elemento que
equilibra e que permite o homem e o meio ambiente estar em plena
harmonia com a criação que é Olorun
, (2009, Ent. 9).
E essa ligação se dá de várias formas como explica este entrevistado.
Veja bem. Tem várias situações. A situação principal é ingerir. O ato de
iniciação não é tirar, raspar a cabeça, ou então abrir curas como dizem
algumas nações, mas é a água o veículo de união entre o homem e o meio
ambiente, o homem e orixá e consequentemente Olorun, porque é o elemento
de ligação. É ela que conduz todos os outros elementos para a gente ter um
assento junto a Olorun. Nós usamos ela não só pra beber, mas também para
aplacar, para é, chamar, para permitir que o orixá esteja cada vez mais
presente nos rituais de oferecimentos a eles e a gente encerra, vamos dizer,
um ritual de chamamento, um ebó ao orixá espargindo água porque ai é a
água que cela, que coroa, que inclui a ligação entre homem e orixá e
consequemente Olorun”
(2009, Ent. 9).
Como elo entre o indivíduo e o divino, a água da fonte é merecedora de reverência da
comunidade, é sagrada. E para que seja usada, é preciso seguir normas, procedimentos, ter o
preparo espiritual que se alcança a partir da vivência no Candomblé.
Nem todo mundo pode entrar no poço pra pegar, entendeu, porque é um
lugar sagrado. Pra você abrir um poço você tem que estar com pessoas
iniciadas e depois que abre você faz certos processos, entendeu, como
limpezas, é, você coloca ervas também, essas coisas todas, por isso que é
lugar sagrado e é usada por orixá. A água é pura, natural e o que é
natural é sagrado pra gente. Quando a gente pega a água da fonte, sempre
a gente pede permissão. Sempre a gente fala pra Oxum, reza pra Oxum,
pede permissão pra Oxum, pede licença pra Oxum e às vezes pega um balde,
coloca na rua também, saudando os deuses da rua também, entendeu,
pedindo licença
(2008, Ent. 2).
Essa água cheia de axé também é usada na “matança” (ritual de sacrifício de animais
para oferenda aos orixás e que é compartilhada com o público que participa das festas
públicas) e para fazer as comidas dos orixás, a exemplo de acassá, com milho branco. Em
dias de festa tem sempre um adijá com acassá no último degrau da escada de frente para a
porta do barracão e dentro do salão de festa ao lado de um dos assentamentos de Exu no
Terreiro. Aquela água com milho branco diluído simboliza um agrado pro orixá. O acassá é
a comida de Oxalá, mas todo orixá come milho branco por conta de Oxalá. A gente faz em
dia de festa pra dar tranquilidade, pra dar paz. Sempre uma vasilha com acassá na porta é
pra dar paz, tranquilidade (2008, Ent. 5).
A água da torneira é usada para lavar os animais antes do sacrifício, para lavar a
comida, mas o cozimento é feito com a água da fonte. A água da fonte também é ingerida
antes, durante e depois do ritual em dados momentos. É a chamada água do orixá, do peji do
orixá, a água dos pés do orixá, que, dentre outras finalidades, também tem o poder de
restabelecer o equilíbrio para pessoas que possam estar com algum tipo de transtorno.
Às vezes as pessoas estão com algum problema e bebe água antes do ritual
ou durante o ritual, que não seja até problema de orixá, né. De repente a
pessoa com algum problema assim que passa mal de alguma forma, a
gente vai no do orixá pega uma quartinha e pra pessoa beber. Todo
mundo que participa do axé, durante a festa, né, usa, normalmente, água do
axé, a água que está no orixá e iaô principalmente
(2008, Ent. 5).
Pela tradição, no quarto das iaôs deve haver uma quartinha com água para que possam
beber, inclusive, para sair da possessão. No quarto das iaôs tem uma jarra, uma moringa,
cada um tem a sua e quando quer beber vai lá, pega seu canequinho, bota a água da moringa
e bebe. E no final do ritual, bebe pra voltar do transe
(2008, Ent. 5).
Todos os dias, a água é usada com sentido de pureza, limpeza no Terreiro da Casa
Branca e para pedir proteção. Todo dia é preciso despachar a porta. Uma pessoa, a
yaloxá, é
encarregada de jogar na porta do barracão algumas gotas de água da quartinha.
Todo ritual que você vai fazer no Candomblé, você primeiro tem que jogar
água no chão, pedir licença a terra e esfriar a terra: Omitutu, omitutu,
omitutu, água fresca pá acalmar. Todo ritual, qualquer coisa, você não abre
um obi sem molhar e às vezes ainda salpica assim nas pessoas também.
Toda obrigação que se faz tem uma cantiga e depois molha todo mundo
acalmar as energias. A cantiga é assim: me pá, Tetê omi, ô ô me
pá, Tetê Ogum, Jô Jô omi pá, que quer dizer: é pra acalmar, é pra
acalmar. Despachar a porta é abrir os caminhos, entendeu? Omitutu, a
gente fala, omitutu, omitutu, omitututu, água fresca, que a água acalma o
caminho, onantutu, onantutu, caminho fresco, caminho de felicidade;
onairê, a gente tem que dizer essas palavras pra ter caminho de felicidade,
caminho de paz, que a terra fique fresca, fique calma. A gente joga água na
terra para acalmar a terra. A terra é a nossa grande mãe. Então ela tem que
estar sempre fresca, úmida
(2008, Ent. 5).
Costuma-se despachar a porta com água igualmente mediante chegada de uma visita
e/ou autoridade no terreiro.
Tem sempre quartinha de água perto da porta, pra quando chega uma
autoridade a gente botar aqueles três pinguinhos de água na porta,
desejando boas-vindas, que ele seja bem-vindo e que nada de ruim quando
ele entre, aconteça, que nada de ruim entre junto com ele de negativo. Por
isso, quando chega uma autoridade a gente vai na porta e entrega uma
quartinha de água pessoa botar os três pinginhos na porta. E quando a
pessoa sai, também. Às vezes nem tanto no dia de festa, mas normalmente
quando vem uma pessoa em outros dias aqui, quando a pessoa sai,
novamente joga os três pinguinhos de água na porta pra pedir caminho de
paz e felicidade
(2008, Ent. 5).
A água é imprescindível em rituais como axexê (cerimônia fúnebre) e o icomojadê
(batizado). O axexê é o rito de passagem do religioso do àiyé para o òrun, por meio do qual
são cortados todos os vínculos do iniciado com a vida na terra
52
e estabelecidos outros com o
òrun.
Sem Àsèsè, não começo, não existência. O Àsèsè é a origem e,
ao mesmo tempo, o morto, a passagem da existência individual do àiyé à
existência genérica do òrun. Não nenhuma confusão entre a realidade do
àiyé o morto e seu símbolo ou seu doble no òrun o Egún. um
consenso social, uma aceitação coletiva que permite transferir, representar e
materializar num sistema simbólico complexo a realidade cultural Nagô da
existência simultânea do àiyé e do òrun, da vida e da morte. O asè integrado
pelos três princípios-símbolos e veiculado pelo princípio de vida individual
manterá em atividade a engrenagem complexa do sistema e, através da ação
ritual, propulsionará as transformações sucessivas e o eterno renascimento
(ELBEIN DOS SANTOS, 1986, p. 235).
No ritual do axexê o uso da água é igualmente necessário e imprescindível em todas as
práticas rituais realizadas no Terreiro da Casa Branca. O mesmo acontece no momento do
icomonjadê. Quando uma criança nasce e a família é da religião, é costume que avós joguem
búzios, o jogo do ifá, para saber qual o odum (destino) da pessoa, ver qual o orixá que está
regendo a cabeça dele e quais as pessoas que devem batizar. Nos icomojadês a criança, que
não nasceu na África, recebe o nome em iorubá para marcar sua ligação com a ancestralidade.
Folhas do orixá da criança são embebidas em uma bacia de água onde também são colocados
objetos como búzios que significa dinheiro, moedas, flores e essa água é usada para dar banho
na criança.
Durante o ritual do icomojadê, o obi é jogado para consultar o orixá se está tudo sendo
realizado de acordo com o gosto da divindade.
Como a criança não pode comer o obi, o mais velho que tiver direcionado o
ritual mastiga o obi e depois põe nos lugarezinhos da criança, assim como
põe o olho na igreja católica aquele óleo que eles passam, a gente coloca o
obi em todos aqueles lugares que o padre faz, cruza a criança todinha,
passa na nuca, no coração, à direita e à esquerda e depois põe a água nos
mesmos lugares também pá purificar, né. Tudo tem água
(2008, Ent. 5).
52
Para saber mais sobre axexê e respectivas implicações da morte de um iniciado na vida cotidiana de um
terreiro de Candomblé Nagô, como o processo sucessório, ler Elbein dos Santos (1986, p. 220-235)
6. 4 ÁGUA: A DIMENSÃO DO SAGRADO NA CASA BRANCA
Kosi Omi, Kosi Orixá
A água é imprescindível para a existência de um Terreiro e está imbricada na vida
religiosa individual e coletiva. Muitos trabalhos etnográficos mostram a importância da
natureza através da relação dos orixás com as plantas (SERRA et al., 2000, 2002). Tanto que
dizem “kosi ewê, kosi Orixá”, “sem folha não há orixá”. Mas também não há Candomblé sem
água e isso é evidente no Candomblé da Casa Branca segundo os entrevistados: kosi omi,
kosi orixá”.
No Candomblé não se faz nada sem água e sem a folha. Uma coisa
complementa a outra, porque a gente não pode fazer nada sem folha e
também não pode fazer nada sem água, nada, absolutamente nada. Sem a
água não se faz nada, né. Como é que toma um banho? Como é que lava
uma folha, porque nós não usamos folha sem lavar, temos que lavar as
folhas e ai tem que usar a água. A água doce pra nós é tudo, tudo, tudo, nós
não fazemos nada sem que tenha a água, nem que seja uma gota de água pá
botar no chão tem que ter a água
(2009, Ent. 7).
A água está no mesmo nível de importância das folhas para o Candomblé. Um
elemento sagrado completa o outro.
A água é muito importante o tempo todo; é importante como as folhas. A
água e as folhas elas se entrelaçam porque ela é muito importante. Assim
como a religião vive da natureza como a gente fala, a natureza como meio
ambiente de folhas, a água tem a mesma importância para o Candomblé e
pra mim também
(2008, Ent. 4).
A água pra minha religião é como ter um ditado ioribá que diz kosi ewê,
kosi orixá, é como kosi omi, kosi orixá, porque sem água não pode haver
orixá, não pode haver os preceitos. A água é tudo no Candomblé porque é
por intermédio da água que a gente prepara os nossos omiorós que é pra
lavar os santos. Por intermédio da água que tem uma das obrigações mais
finas aqui do Candomblé que vem ser Água de Oxalá. Então enfim, água é
vida, é a sobrevivência. Então no Candomblé não se faz nada sem omi.
Primeiro quando você vai oferecer até alguma coisa a um orixá por
intermédio do obi que vem ser a noz de cola, primeiro você joga um pouco
de água no chão para salvar a terra e depois você molha o obi na água para
depois oferecer ao orixá ou a cabeça, seja lá a obrigação que você for fazer,
não existe Candomblé sem água. Sem água não existe orixá é a mesma coisa
da folha, sem folha você não pode cultuar orixá e sem água você também
não pode cultuar orixá
(2009, Ent. 8).
Há iniciados do Terreiro da Casa Branca que consideram a água enquanto princípio da
existência humana, o elemento da natureza de maior relevância para a vida religiosa, através
do qual inicia-se todo tipo de obrigação, de vínculo com a ancestralidade, de culto aos orixás,
de purificação.
A água é o elemento principal para as nossas obrigações que nós não
fazemos nada sem água. A água serve pra fazer ossés, ossés é lavar os
santos, pra tomar banho de folha, machucar as folhas pra tomar o banho. A
água serve pra botar nas quartinhas, a água serve para beber e para as
obrigações quando nós estamos recolhidos, toma banho com essa água
(2008, Ent. 3).
A água é sobrevivência, a água dentro da nossa religião e na nossa vida é o
elemento mais precioso que a gente tem. A água é sobrevivência porque sem
água não vida, sem água não se faz nada na nossa religião, um banho,
uma comida, uma lavagem, então sem água não tem como existir a religião
do Candomblé
(2009, Ent. 14).
Nesse lidar com a água dentro do Candomblé da Casa Branca, a água é assimilada
como algo divino e descrita pelos religiosos sempre na dimensão sagrada, algo do qual não se
pode prescindir. Todos os entrevistados consideram a água elemento imprescindível para o
Candomblé, elemento sagrado que norteiam as prática rituais, a existência da religião.
Não se vive sem água, né? A água é a riqueza, a água é soberana, cristalina
é a água que cura, é a água que mata a nossa sede, não é isso? A água é
sublime, nós não podemos viver sem a água, não tem condição. A água
esfria, a água acalenta, um pingo de água é um remédio, a água é a
salvação, entendeu? Vindo do Candomblé nós não vivemos também sem a
água porque você sabe as folhas, como se diz não se vive sem as folhas, mas
também não se vive sem a água. A água pra mim é o todo, é o ar que eu
respiro, é o que eu como e é o que eu bebo
(2009, Ent. 12).
Para os entrevistados, água doce é o elemento através do qual se processa a conversão
entre o que é profano em sagrado, sem o qual não se pode haver Candomblé, haver orixá.
Água é vida, é princípio e é o elemento primordial que rege o mundo, um
dos elementos, é o líquido, é vamos dizer, o veículo que conduz
determinadas, eu não digo coisas, mas substâncias, energias. Na religião
existem três elementos que tornam o que era profano em sagrado e a água
está inclusa. A água, a erva e o igé, o igé é o sangue. Esses elementos que
têm como primordial a água é fundamental na religião afro
(2009, Ent. 9).
A água assume assim característica de transcendente para o povo de santo do Terreiro
da Casa Branca.
Minha filha a água é tudo, é o sagrado, é o poder, é a força, é a limpeza. A
água é a purificação, é por isso que eu sempre digo, água fria, correntia,
que corre de noite que corre de dia, porque a água não pára, ela não pára,
ela é um movimento é uma onda sempre batendo, até também a água do mar
ela vai e volta, bate e leva, então essa água é poderosa, água da cachoeira,
água do mar, água do rio, olha quantas águas nós temos, as águas doces, as
águas salgadas, as águas salobras, as águas paradas, tudo isso é água.
Água é orixá, o elemento água, ternura, doçura, calma, poder, limpeza,
refrescante, é água que lhe purifica para lhe lavar. Com água a gente lava,
a gente enxágua corpo e mente, purifica o interior
(2009, Ent. 12).
Tudo no Candomblé é ligado a oferenda aos orixás e antes de oferecer
qualquer coisa, a primeira homenagem que a gente faz é a limpeza. Então,
aquilo que é chamado de ossé, limpar o símbolo dos orixás é feito com água.
As comidas que são feitas para os orixás nos dias das festas deles precisam
de água pra ser cozida. Toda a indumentária, a casa tem que ser limpa,
porque a limpeza ligada também à espiritualidade. Você não recebe seu
orixá, você não presta homenagem ao seu orixá se você tiver sujo. A limpeza
física também está ligada a água. Todos esses vários aspectos de limpar a
casa, de você mesmo estar limpo, o lado simbólico de tá purificado, a
purificação vem também da água
(2008, Ent. 1).
A água doce é orixá. É a representação de Oxum para 100% dos entrevistados. “Oxum
é a própria água, na nossa religião Oxum é a água. Iemanjá ligada a água salgada e ai
tem outros orixás como Obá, Nanã (2009, Ent. 14). A água também é orixá porque as águas
dos rios são de Oxum, as águas do rio são Oxum (2008, Ent. 3).
Para os entrevistados, todos os orixás têm ligação com a água, precisam da água. Essa
relação também é ressaltada pelo fato de todos os orixás serem filhos de Oxalá, pai da criação,
e Iemanjá ser a dona de todas as cabeças.
Todos os orixás dependem da água, né. De Exu a Oxalá, todos dependem da
água doce. Porque não se faz nada sem água pra nenhum orixá. A gente faz
ossé em todos os orixás, todos a gente bota água pra eles beber. Porque o
ossé é pra isso, é pá lavar, pá limpar. É como você toma um banho, você se
arruma, você se purifica.Você tem que manter a água. É porque eles comem,
eles bebem, todos precisam da água doce. Ossain é o dono das matas, das
folhas, Oxossi também, da floresta, precisam de água né; sem água as
plantas não crescem, não é isso? É, Euá, Obá, todas as mulheres são
vaidosos, gostam de tomar banho, se arrumar, se enfeitar, precisa de água.
Oiá precisa de água, apesar de ela ser a dona do fogo, mas precisa de água
pra viver
(2008 Ent. 5).
Veja no modelo adiante, como os orixás estão relacionados à água segundo os
entrevistados do Terreiro da Casa Branca:
Ieman
Oxum
Oxossi
Euá
Ossain
Logunedé
Nanã
Oxuma
Obalua
Oxa
Exu
Ogun
O
Xangô
O
Oxa
Oxa
Figura 30 - Este modelo mostra qual a relação dos orixás com a água doce na visão de iniciados e iniciadas do Terreiro da
Casa Branca: 1) Todos têm ligação com água porque são filhos de Oxalá, o criador que tem como elemento a água. 2) Oxum é
a divindade das águas doces. Oxossi tem ligação com a água porque além de ser representado pela mata, pela mitologia teve
um relacionamento com Oxum do qual nasceu Logunedé que ora vive no mato, ora vive na floresta e que foi criado por Oiá na
beira do rio. Ossain e Euá têm relação com a água e com Oxossi porque Ossain representa os vegetais, as plantas e Euá a
mata virgem. Exu e Ogun têm ligação com a água doce porque são filhos de Iemanjá que também está nas águas doces e
paradas. Exu, além disso, é o grande comunicador é quem leva as mensagens do aiê para o orun. Xangô além de ser filho de
Oxalá também representa chuva, o trovão, foi casado com Oiá que também é representada pelas tempestades e raios. Nanã é
a divindade dos lamaçais, dos manguesais, mãe de Obaluaiê que é a divindade da cura e sem água não cura e de
Oxumaré, representado pelo arco-íris que é responsável pelo movimento das águas do aiê para o Orun e vice-versa. E Obá é a
divindade que representa o encontro das águas.
Iemanjá é da água salgada, Oxum dos rios e Nanã é da lama, mas é água
também. Todos, todos têm ligação com a água porque sem água e folha o
orixá não vive, tem que ter água, tem que ter folha
(2008, Ent. 3).
iiiii, eu acho que todos tem ligação com a água, de preferência Iemanjá,
Oxum, Nanã, todas elas pertence a água cada um no seu setor,
principalmente Oxum, Iemanjá e Nanã
(2009, Ent. 7).
Oxumaré pode pegar água doce, pode não pegar. Mas Oxum é quem
simboliza a água. Logunedé que é energicamente da família e outras
qualidades de orixás que em vez de ser caçador é pescador então ele
também está ligado diretamente ou indiretamente à água que é uma
qualidade de Oxossi
(2008, Ent. 9).
Orixá da água é Oxum, a gente nunca pode esquecer disso, Iemanjá e
Oxalá. Os orixás têm relação com tudo, tudo que relaciona a natureza, uns
com mais outros com menos. Então, quando você for falar de água, você
sempre vai lembrando de Oxum, você vai lembrar até de Oxossi porque
existe Oxossi que caça no rio. Então, todos os orixás estão relacionados a
tudo na natureza, agora uns com mais outros com menos. Então quando
você vai falar de mar sempre vai se lembrar de Iemanjá
(2008, Ent. 4).
Entre os orixás que mais intimamente têm ligação com a água, Iemanjá também é
lembrada entre iniciados do Terreiro da Casa Branca como uma divindade ligada aos olossais,
ou seja, água parada.
Bom, aqui no Brasil, além de Oxum os outros orixás das águas são
Iemanjá que na África era água doce, mas aqui ela foi associada a água salgada, mas que é
água de qualquer forma e também é um viveiro, né, o mar
(2009, Ent. 10).
Ligação entre o àiyé e o òrun, a água é igualmente elo entre os orixás. Esta ligação é
estabelecida pelo grau de parentesco entre as divindades conforme a mitologia e se consolida
mediante a interligação dos elementos da natureza. Isso evidencia como um orixá depende do
outro a partir da água, o que reforça a premissa de que é essência da criação, do todo e do
divino.
Um dos símbolos de Oxumaré é a água que é o arco-íris que é provocado
pela água, sem água não existe arco-íris. Além deles tem o filho de Oxum
com Oxossi que é Logunedé e como Oxossi é o rei das matas e Oxum é a
rainha das águas, Logunedé passa algum tempo com o pai e algum tempo
com a mãe, ou seja, algum tempo ele fica nas matas e algum tempo ele fica
nas águas. Ah, Oxalá claro, porque Oxalá, na mitologia iorubana como
criador, o maior símbolo dele também é água e, deixa eu ver se lembro de
mais algum, ah, sim claro, Nanã. Nanã é um orixá interessante que é na
verdade um orixá que habita a lama, ou seja, sem água não existe lama, não
existe os mangues, né? que os biólogos falam que é o grande centro de
riqueza biológica, de decomposição e transformação da matéria que
acontece justamente na lama. Os outros orixás têm ligação com a água por
causa da questão mitológica, por exemplo, Iansã é a deusa de raios e
trovões, só acontece raios e trovões quando chove, então existe essa ligação
indireta mas que tem. Xangô também pela mesma razão,o trovão”
(2009,
Ent. 10).
Veja no modelo a seguir, como os orixás estão relacionados à natureza e porque as
divindades têm relação com a água conforme entendimento dos entrevistados do Terreiro da
Casa Branca,:
DIVINDADE
Nosso grande pai Oxa,
ele que vem purificar a
água, ele é o dono de
tudo, foi ele quem fez o
mundo, Olorumai, ele
vem energizar a água
Orixá dos
Manguezais, dos
lamaçais
OXUM
É a dona das águas doces. Oxum é a
grande genitora, a protetora da
barriga, do ventre, aquela que envolve
a criança, que a gente nasce numa
bolsa de água. É oxum que protege a
barriga das mulheres, Oxum é a
senhora da fertilidade.”
Divindade dos rios,
das cachoeiras, das
águas correntes
Divindade dos
mares
NA
Divindade das
águas celestes
É a mãe de todas as iabás, a
grande , a senhora da vida e
da morte, é senhora dos
pântanos, dos manguezais
RELAÇÃO
COM A ÁGUA
RELAÇÃO
COM A
NATUREZA
IEMANJÁ
OXA
OXOSSI
Orisá das florestas
Dono do mato, orixá guerreiro,
caçador, que habita nas
florestas, necessita de água
OSSAIN
Dono de todas as
folhas, domina o reino
vegetal e para tanto
precisa de água
Orixá das folhas
OBALUA
Senhor das mostias e das curas. Sem
água não há remédio, não há cura”
Orixá da terra
“é a mãe de todas
as cabeças, a
dona das águas
salgadas, a
grande mãe peixe
OXUMA
XANGÔ
Orixá do trovão
Xangô é trovão e
o trovão chama a
chuva
Orixá dos raios e
tempestades
A grande mãe, profundezas da terra,
ventania e rege as águas caudalosas.
Esposa de Xangô, com quem compartilha
o fogo
IANSÃ
Orixá do ferro
Tem relação com a água porque é
filho de Ieman
OGUM
EXU
É um dos filhos de Ieman, o grande comunicador,
quem leva os pedidos do a para o orum. Depois de
agradar a ancestralidade, a gente tem que agradar a Exu,
inclusive, com água
Orixá que abre os caminhos, é o
grande comunicador
OBÁ
Divindade das grutas,
cavernas, dos encontro
das águas
Obá é vaidosa,
gosta de tomar
banho, se arrumar,
se enfeitar, precisa
de água
EUÁ
Divindade dos Cosmos e
da mata virgem
"Sem mata não tem
água e sem água não
tem mata, uma coisa
depende da outra"
LOGUNEDÉ
Orixá pescador e
caçador, criado por O
na beira do rio
É filho de Oxum com Oxossi. Algum tempo
ele fica nas matas e algum tempo ele fica
nas águas
Orixá do arco-íris
Oríxá do movimento,
que traz a chuva
DIVINDADE
RELAÇÃO
COM A ÁGUA
RELAÇÃO
COM A
NATUREZA
Figura 31 - Modelo que indica a relação dos orixás com a natureza e qual a relação das divindades com a água conforme
entendimento de iniciados do
Ilê Axé Iyá Nassô Oká.
A renovação da água no planeta que cientificamente é explicado pelo ciclo hidrológico
é compreendida do ponto de vista mágico-religioso, conforme percepção de iniciados, como
um processo decorrente do encontro das energias, dos orixás, que mantém o universo em
constante movimento.
Orixás são energias que vivem perenimente. Orixás são os elementos que
fornecem o equilíbrio, permitem o equilíbrio entre às naturezas [...] Então,
orixá é na verdade o elemento existente na natureza, a energia da natureza,
são fenômenos da natureza criados por Olorun, Odudua, não é? [...]
Consequentemente a relação entre a natureza e os orixás é uma relação,
volto a dizer, é inclusiva, porque inclui, ela soma, ela coloca, ao tempo que
coloca ela fortifica, ela cria um caminho energético para a gente chegar ao
orixá e consequentemente se poder ir até Olorum. Essa é a grande relação.
E como nós nos expressamos através de simbologias, ai a gente criou isso,
nós criamos nomes, eu digo nós, mas na verdade é uma herança africana.
Oxum-água, Xangô-cosmo, Oxossi–mato, Ossain-ervas e etc, etc
(2009, Ent.
9).
A ilustração adiante ajuda nessa compreensão. Uma informante que nasceu e foi
criada na comunidade, que ocupa função importante e desfruta de grande respeito no terreiro,
identificou, a partir de um modelo do ciclo hidrológico como essas energias se movimentam,
como permitem, a partir da ligação entre si, manifestações da natureza, a renovação da água
no planeta estabelecendo, portanto, a ligação do homem com o divino.
Sem água não adianta, todos os outros elementos da natureza precisam.
Você tem o ar que foi Oxalá, que é o dono do ar. Mas uma hora você precisa
da água. Como é que você vai ter ar, se você não tiver folha, né? Uma coisa
não existe sem outra, os elementos da natureza um precisa do outro, mas
tem um assim que, sabe, tem que ter aquele porque sem água nada brota,
nada acontece, você vai ter só pedra.
Essa ligação dos orixás evidencia-se nos próprios rituais. Quando as divindades se
encontram, que se abraçam, acredita-se que ali se processa o encontro de elementos da
natureza.
É que um depende do outro, um precisa do outro pá dar força. Um não pode
viver longe do outro, né? E por conta disso, a gente cultua a ancestralidade,
que se não cultuou a ancestralidade antes, a gente não tem nada no futuro,
como ter futuro se não teve passado. Então, a gente não começa nada sem
primeiro cuidar do nosso passado que é a ancestralidade. Então vai sempre
existir o encontro das forças da natureza. E é importante, né, o orixá tal, o
orixá tem sua festa, é importante que os outros estejam ali pra dar suporte.
Não pode ser uma energia boa quando tem uma energia só, né? Você
precisa do conjunto. Você precisa do vento, você precisa do ar, você precisa
da chuva; tudo na medida certa, não pode também um querer ser maior do
que o outro. Mas é a confraternização, né, quando na festa de um orixá tem
que ter outros orixás, a não ser que não tenha ali na casa, na hora uma
pessoa não esteja e tal
(2008, Ent. 5).
O mito de Oxumaré ajuda a explicar como se dá a renovação da água no cosmo e essa
interligação entre as divindades, as energias representadas pelas forças da natureza. Na
cosmovisão do povo de Santo da Casa Branca
Oxumaré pega água do aiê leva para o Orum
garantindo a circulação da água no planeta, conforme depoimentos e modelo adiante:
Oxumaré, que é o nosso grande pai, o arco-iris, né, que é um dos orixás
também muito importante em relação a água, que a gente tem um mito que
ele vem buscar água. Quando chove você que ele se aparece logo, se
apresenta, né. Ele que vem buscar água dos rios, né, das cachoeiras, pra
levar pro orun, vem buscar do aiê pá levar pro orun pá fazer a chuva. Que é
ele quem trás a chuva pra gente, é o dono do ajo, ligação. Ajô é a união, né,
da terra, do aiê e do orun. Então ele é que faz essa união da gente, através
da chuva. Busca água aqui e leva pra cima pra devolver pra gente, né,
pra fortalecer, pra fortificar a terra, fertilizar a terra. Todos precisam de
água. Nosso grande pai Oxalá, esse a gente nem fala porque ele que vem
purificar a água, ele é o dono de tudo, foi ele quem fez o mundo, Olodumaré,
ele vem energizar a água
(2008, Ent. 5).
Nuvens
Corpos d´água
Chuvas
Oxumaré
Figura 32 - Modelo que indica o papel do orixá Oxumaré no movimento das águas. Segundo entrevistados, a divindade,
representada pelo Arco-íris, pega água no aiê e leva para o orun e depois devolve do orun para o aiê.
Iansã é a deusa de raios e trovões; acontece raios e trovões quando
chove, então existe essa ligação indireta com a água mas que tem. Xangô
também pela mesma razão, trovão. Os demais seriam Ossain, claro por
causa das plantas, das folhas, sem água não existe vegetação. Oxossi
também por causa da mata. Ogum sim por ser filho de Iemanjá, Exu também
por ser filho de Iemanjá. Todos estão conectados com a água diretamente ou
indiretamente todos têm uma ligação com a água e na mitologia também as
histórias envolvendo esses orixás sempre envolvem água. Obaluaiê também
que é o rei do solo, Orixá Irôco que é o orixá da agricultura também sem
água ele não existiria
(2009, Ent. 10)
Figura 33 - Modelo do ciclo hidrológico de acordo com a Hidrologia.
Oxalá/Odudua
Xangô Oiá
Oxumaré
Xangô
Iemanjá
Oxossi/Ossain/
Ogum/
Logunedé
Oxum
Iemanjá
Exu: “Está em todos os lugares”
Oxum Euá
Obá
Iemanjá
Figura 34 - Representação da natureza segundo entendimento de autoridade religiosa da Casa Branca
6. 5 A ÁGUA NO ESPAÇO SAGRADO
A relação entre orixá e água é tão vital que esse elemento sagrado é visto por todo o
espaço do Terreiro da Casa Branca, sobretudo no assentamento dos orixás. Logo quando se
entra no Terreiro pelo portão principal onde está modelado um machado de Xangô pelas mãos
do artista plástico Bel Borba, é possível ter uma visão global de como a água é representada
por diversos elementos como fontes, quartinhas, barcos, a imagem de uma sereia.
Do lado esquerdo do portão principal, é possível avistar logo o assentamento do orixá
Indancô ou Inancô orixá funfun ligado à família de Oxalá. Aos pés de Indancô, simbolizado
por um bambuzal, ficam duas quartinhas e uma porcelana branca, onde geralmente é
depositado o acassá, o milho branco, que é a comida de todos os orixás da família de Oxalá.
Pela tradição seria necessário uso permanente de água nas quartinhas. Mas muitas delas ficam
vazias como uma forma de prevenção. Com exceção dos dias de festa onde se coloca comida
e água, é possível encontrar quartinhas sem água para evitar a proliferação de mosquitos como
o transmissor da dengue. A gente toma cuidado para evitar doenças, o pessoal da vigilância
sanitária recomenda e a gente segue, (2008, Ent. 5)
Ao redor do tronco de Indancô um ojá, tecido branco, amarrado, conforme fotos
adiante. É um sinal de que ali foi encantado um orixá. A água e a renovação das oferendas aos
pés desse orixá, a poda dos galhos é feita pelos homens. quem pode mexer nele são os
homens.
Figura 35 - Representação de Indancô. Na foto A, o ojá que representa que ali está assentado um orixá. Na foto B, detalhe das
quartinhas que para prevenir a incidência de mosquitos só ficam cheias nos dias de obrigação.
Em frente a Indancô está o barco de Oxum que é uma representação da vinda da
ancestralidade africana para o Brasil. Dentro e nas bordas do barco existem mais de 10
A
B
quartinhas. A maioria é fechada com conchas. Uma quartinha maior fica no mastro e a cerca
de meio metro da abertura da fonte do interior do barco. Esta é uma das duas quartinhas
existentes no barco de
Oxum que são de obrigação. Da cor natural, elas se diferenciam das
outras que são pintadas de dourado, e também porque aquela água da fonte ali depositada
pode ser usada por quem tiver uma necessidade.
Se você descer, sentir qualquer perigo,
mesmo que jogue água na porta, vai no orixá, pega a água da quartinha e pede para
aplacar, acalmar a terra. Essa água é uma ligação do homem com a divindade (2008, Ent.
5).
A fonte do barco de
Oxum não é coberta. Nela existem algumas plantas aquáticas, são
plantas de
Oxum e de Oxossi, uma delas é conhecida como Oxibatá e golfo de Ojuorô, da
família da Vitória Régia. O pneu na proa do barco tem uma cavidade ao fundo para não
acumular água e é pintado de prata. As quartinhas da borda do barco são pintadas de dourado
e as que ficam dentro, de prata. As cores podem variar de um ano para outro durante as festas
de Oxum.
Figura 36: O barco de Oxum da Casa Branca
Do lado direito do Barco de Oxum está a fonte ornamental em forma de onda, onde na
ponta está a imagem de Oxum em forma de sereia com coroa dourada, conforme fotos a
seguir. Ao redor da fonte e da praça do Terreiro da Casa Branca estão várias árvores como pé
de coco, de dendê, pau Brasil e árvores consideradas sagradas como cajá e baobá.
Figura 37 - Nesta fonte também está assentada uma Oxum, mas não há água, a fonte é ornamental.
Em frente ao barco de Oxum está a fonte de Oxum, uma casa coberta de telha de
cerâmica, pintada de branco com a porta azul. No interior do ilê axé, ou casa do orixá, há duas
quartinhas de aproximadamente 5 litros de água cobertas com tampa em cerâmica, conforme
fotos a seguir. Nesta nunca pode faltar água. Por isso estão tampadas para evitar o mosquito
da dengue (2008, Ent. 5). Muitas outras quartinhas estão dispostas no interior da casa. Oxum
fica no canto direito da casa vestida de dourado. Também pode ser vestida de branco ou outra
cor quando a roupa é trocada nos dias de festa.
Figura 38 - Na foto A, imagem da casa de Oxum. No interior (foto B), as quartinhas que precisam ter água o tempo todo ficam
tampadas como medida de prevenção para evitar proliferação de mosquitos.
A
B
Segundo um informante, três Oxuns são assentadas na Praça, uma na fonte do Barco,
outra na fonte de Oxum e outra na fonte ornamental onde a imagem de uma sereia.
ainda outra fonte que fica do lado esquerdo do barco, sentido quem entra, na casa onde está
localizado o Espaço Vovó Conceição. Esta fonte é no interior da casa, está coberta e é ladeada
por três quartinhas, uma delas é dedicada a Oxum, uma a Iemanjá e a outra a Nanã. Quando a
casa que abrigava a fonte de Iemanjá foi transformada no Espaço Vovó Conceição, a fonte
também passou a ser considerada de Nanã por ser Nanã a orixá da cabeça (eledá) de Vovó
Conceição
53
.
É a partir da fonte de Oxum que está a escadaria onde os 53 degraus levam à parte alta
do terreiro. Detalhe na foto adiante.
Figura 39 - Escadarias que dão acesso à entrada principal do barracão.
Logo nos primeiros oito degraus é possível avistar do lado esquerdo sentido barracão,
um painel do artista plástico Bel Borba, o machado de duas lâminas de Xangô chamado de
Óse. A posição naquele lugar é, segundo um informante, para demarcar que Xangô é o dono
da Casa, o orixá do fogo, o senhor da justiça. Logo em frente ao machado de duas lâminas do
lado direito da escadaria, está outra escultura, o arco e a flecha que são símbolos de Oxossi, o
dono do terreno da Casa Branca. Um pouco mais acima, na altura do 24º degrau, está o
53
Vovó Conceição era sacerdotisa da Casa Branca. Morreu em 1992 e ocupou importantes funções na casa,
como por exemplo, a de yadagã, aquela que é responsável por botar as oferendas para
Exu.
assentamento de Exu. Esta casa fica fechada e só é aberta para iniciados na hora da obrigação.
É para essa casa, esse orixá que são direcionadas as primeiras oferendas antes de qualquer
ritual, inclusive água. Fotos adiante do machado de duas lâminas, do arco e flecha de
Oxossi e
do assentamento de
Exu.
Todos os orixás têm relação com a água, todos bebem água. Orixá vive de
água e de luz. Ninguém vive sem beber água que é o elemento mais
importante de nossa religião. Você pode não dar uma comida para uma
pessoa, mas tem que dar água. Água que acalma, que aplaca tudo da terra.
Não existe um orixá que não beba água. Pode até ter aqueles que não
gostam de tomar banho, mas todos bebem água. E antes de qualquer festa,
tem uma quartinha que fica no altar no Barracão que é levada para,
primeiro, antes do xirê, fazer o padê de Exu. Exu é o primeiro orixá que a
gente homenageia depois da ancestralidade. Exu é filho de Oxalá e Iemanjá,
todos são
(2008, Ent. 5).
Figura 40 - Na foto A, o machado de duas lâminas que Xangô que mostra que este é o orixá dono da Casa, na foto B, o arco e
flecha de
Oxossi o orixá dono do terreno e na foto C, o assentamento de Exu.
A
B
C
As oferendas para Exu são feitas apenas pela iyamorô. Esse é um cargo considerado de
extrema importância para o Candomblé da Casa Branca pela função de fazer a comida e levar
a oferenda a
Exu. Diz-se que esta é uma função ligada a energias muito fortes do axé, por isso
tem de ser executada por uma pessoa de confiança da
yalorixá, compromissada com a
religião, de bons sentimentos para pedir por toda a comunidade.
Quando se agrada Exu, a iyamorô leva todas as mensagens do homem para
Orumilá/Olorum (Deus supremo) e Exu leva essas mensagens para a
ancestralidade para que tudo ocorra bem. A primeira obrigação é o padê
para direcionar pedidos bons, energias boas
(2009, Ent. 5).
De frente para o assentamento de Exu, do lado esquerdo da escada está a casa de
Xangô Airá, homenageado no dia 29 de junho. De frente para a casa de Xangô Airá tem uma
árvore de Acocô, a folha do orixá Xangô que simboliza dinheiro, prosperidade e que
geralmente é usada para banho e outras funções. Atrás da casa de Exu está a fonte de
Oxumaré, pintada com as cores do arco-íris que é uma forma de representação desta
divindade e envolta por uma cobra de cimento que também representa Oxumaré, um pouco
mais a frente, está o assentamento de Ossain. Destaque nas fotos abaixo.
Figura 41 - Na foto à esquerda, a casa de Xangô Airá e na foto à direita, a fonte de Oxumaré.
Ao final da escada, em frente ao barracão estão três alguidares sempre com água e
milho branco, conforme fotos adiante. É o acassá oferenda feita de milho branco diluído em
água que é oferecido a todos os orixás.
Acassá é um bolinho branco que é enrolado na folha, só que a gente faz tipo
um mingauzinho assim ralinho, botar que é um agrado pro orixá, pra
todos os orixás. É a comida de Oxalá, mas todo orixá come milho branco
por conta de Oxalá. É pra dar tranquilidade, pra dar paz. Sempre uma
vasilha com acassá na porta é pra dar paz, tranquilidade
(2008, Ent. 5).
Figura 42 - Na foto A, o alguidá com acassá, comida de milho branco para agradar o orixá do dia. Na foto B, o destaque. Na
foto C, os dois alguidares em frente às janelas do barracão. Na foto D, o destaque.
Do lado esquerdo da entrada do barracão, um pouco mais acima da fonte de Oxumaré
uma gameleira dedicada a Irôco, uma qualidade de Xangô. Adornada por um ojá, duas
quartinhas e um prato de madeira estão aos pés da gameleira. E de frente para o Irôco, está o
assentamento de Ogun. A casa é verde e as janelas e a porta são adornadas por mariô, uma
espécie de cortina feita de palha do dendezeiro. Do lado da casa de Ogum tem um anexo
ligado às iabás, orixás femininos, como Euá e Iemanjá. E também abaixo da casa de Ogum
uma jaqueira sagrada dedicada as iyás que é toda enfeitada com fitas coloridas e tem quatro
quartinhas por serem várias as iyás. Detalhes nas fotos adiante:
A
B
C
D
Figura 43: Na foto A, assentamento de Ossain, com um alguidá permanentemente com água e na foto B, o destaque do
alguidá. Na foto C o assentamento de Irôco também com água permanentemente, na foto D, o destaque do alguidá com água.
A
B
C
D
Figura 44 - Na foto, a casa verde que é o assentamento de Ogun e ao lado, o assentamento das iyás. Nestes assentamentos
há sempre quartinhas com água.
Do lado esquerdo da entrada principal do barracão está o assentamento da
ancestralidade, a casa dos mistérios, adornada com mariô. Uma rampa mais abaixo, dá acesso
a casa da família da palha: Obaluaiê, Nanã e Oxumaré. A casa é pintada de rosa com portas
vermelhas. As cores representam os orixás. Omolu gosta de preto e branco ou vermelho e
preto. Nanã gosta de lilás e rosa e Oxumaré de todas as cores (2008, Ent. 5).
Ao lado direito do assentamento da família da palha tem outro assentamento de Exu e
ao lado está fixado um mastro com a bandeira da família que é hasteada quando tem festa e há
árvores como acocô e palmeiras. Outra bandeira, de cor branca, está instalada em frente à
entrada principal do barracão simbolizando a paz e o tecido é trocado no mês de agosto
quando da festa de Oxalá. Fotos adiante:
Figura 45 - Na foto à esquerda, a casa da família da palha, com foto em destaque mostrando o alguidá no telhado. Na foto à
direita o assentamento de Exu com quartinhas que ficam cheias de água nos dias de obrigação.
No fundo do barracão, no lugar mais alto do terreno está o assentamento de Oxossi, o
dono do terreno. A casa é pintada de azul e uma cobertura de palha de coqueiros é feita
durante as festas da casa. Uma quartinha é fixada no meio da parede de frente da Casa. Do
lado esquerdo do assentamento estão outras duas quartinhas e dois porrões, potes grandes de
barro onde é guardado o omioró, banho de folha na época de festas. Outro Oxossi, Ibualama,
é assentado do lado esquerdo da casa porque gosta de ficar do lado de fora (2008, Ent. 5).
Figura 46: Na foto à esquerda, assentamento de Oxossi. Na casa tem água no interior e é permitido acesso a pessoas
autorizadas ela
yalorixá. Na foto à direita, o assentamento de Ibualama, uma qualidade de Oxossi, com purrões que nos dias
de obrigação ficam cheios de água e folhas. A água é usada para o banho de purificação.
Do lado de dentro do barracão água sagrada em vários pontos. um alguidá com
água e milho branco e duas quartinhas ao lado do assentamento de Exu, conforme foto
adiante, que fica a cerca de um metro do lado esquerdo da porta de entrada. Segundo um
informante, no quarto de Xangô, que ele divide com as iyabás, também tem água em
quartinhas e no quarto de Oxalá existem dezenas delas. É que todo filho da Casa Branca é
filho de Oxalá e tem por obrigação manter uma quartinha no quarto do orixá. inclusive
quartinhas para simpatizantes da religião e de amigos que participam da cerimônia de águas
de Oxalá.
Figura 47 - Água no assentamento de Exu dentro do barracão.
O modelo a seguir, feito a partir de visitação ao lugar, mostra a disposição da água
sagrada no Terreiro da Casa Branca. A exceção é a Fonte ornamental de
Oxum onde está
assentado o orixá, mas não há quartinha para demarcar esta condição.
Idancô
Oxum do Barco
Assentamento
Oxum
Fonte Oxum
Assentamento Exu
Fonte de Oxumarê
Assentamento de
Ossain
Assentamento de
Xangô Airá
Alguidás
com Acassá
Assentamento de
Irocô
Assentamento
de Ogum
Assentamento
das Iyás
Casa da
Família
da Palha
Telhado
da Casa
da
Família
da Palha
Assentamento
de Exu
Assentamento da
ancestralidade
Assenta-
mento de
Oxóssi
Assenta-
mento de
Ibualama
Assentamen-
to de Exu
Altar
Quarto de
Xangô e
yabás
Quarto de Oxalá
Fonte Oxum,
Iemanjá e Nanã
Figura 48 - Modelo sobre a distribuição da água sagrada no espaço geográfico do Terreiro da Casa Branca do Engenho Velho.
O primeiro ponto abaixo do modelo é o assentamento de Idancô, próximo ao portão principal do Terreiro. À esquerda a Fonte
de Oxum, Iemanjá e Nãnã que fica no Espaço Cultural Vovó Conceição. Em vermelho, a fonte ornamental onde está assentada
uma Oxum representada pela imagem da sereia. O assentamento de Oxum fica próximo à escada que dá acesso ao barracão.
Segundo uma pessoa entrevistada, ao fazer a troca de água das quartinhas, essa
obrigação, não pode trocar apenas de uma quartinha, tem que trocar a dos outros também em
sinal de solidariedade, partilha.
Não pode ser egoísta, não pode pensar em si. Tem que dividir, se
fazendo para o orixá, faz pela nossa fé, pelo nosso amor. Tanto que tudo que
a gente oferece ao orixá tem que ser com as duas mãos, a gente pede a
bênção com as duas mãos, é porque uma precisa da outra e na nossa
religião é assim.
A água dessas quartinhas também é trocada todo mês, inclusive as quartinhas daqueles
que não estão presentes, que faltam por algum motivo, inclusive daqueles que moram no
exterior. As iaôs e as
ekedes são as que mais fazem ossé, a troca da água das quartinhas e a
lavagem do quarto e dos objetos de
Oxalá. E isso tem um motivo como declara uma pessoa
entrevistada:
se aprende fazendo. Por mais que tenha teoria, na prática nem tudo é
igual como no livro. Tem pessoas que escrevem porque participam, tem
outras porque acham. Não pode basear só no sistema da Casa Branca, cada
casa tem seu segredo, sua forma de fazer, sua ancestralidade. Essa é a
nossa verdade, não significa que é a dos outros. Para nós é. É o que a gente
aprende. Axé é isso. A força está no que a gente faz frequentemente, tem que
encantar, cultuar e preservar para obter o resultado
6.6 A ÁGUA NOS MITOS E RITOS DA CASA BRANCA
A mitologia mostra e as pessoas reproduzem no âmbito do Terreiro da Casa Branca
mediante práticas rituais, a importância da água para os orixás e para a manutenção de todas
as formas de vida no universo.
Odudua quando foi criar o mundo, Odudua que é uma qualidade de Oxalá,
ele queria homem pra fazer o mundo e não permitiu mulher nenhuma. E
ai, Olorumilá, Olodumaré, o Ser Supremo, soube desse comentário e viu que
se Odudua não convocasse mulher nenhuma, o mundo não seria feito e
quem era o orixá que trazia a água era Oxum. E ai o mundo podia ser
feito com as águas que Oxum enviou ao mundo
(2008, Ent. 4).
Oxum é lembrada na mitologia entre pessoas da comunidade como a orixá responsável
pela essência da vida, porque sem ela não fertilidade, não perpetuação de espécies. É a
orixá que desperta paixões, o único orixá feminino que desceu, por ordem de Olodumaré,
deus supremo, ao panteon dos orixás, para formar e estabelecer o equilíbrio na terra.
Oxum é o grande amor de Oxossi, né. Aliás, Oxum é o amor de todos, né,
todos são apaixonados por ela. Oxum é uma beleza. Todos são apaixonados
por ela. Oxum é a grande feiticeira, ela é realmente a grande feiticeira,
Oxum. É a primeira orixá feminina que desceu do panteon dos orixás, que
veio pra terra, de tão forte que ela é. E ela que teve o poder de: quanto o
mundo era água, Orumilá deu o poder a ela de descer e formar o mundo
aqui embaixo, entendeu? E foi ela que fez, que jogou a terra na água pra
formar a terra e no dia que os homens, os orixás masculinos queriam tirar
ela do meio, ela fez tudo secar, as planta, secou tudo, as mulheres não
pariam mais, nada acontecia porque eles excluíram ela. Coisa do machismo,
né. Isso acontece desde os tempos dos orixás, pra você ver como são as
coisas. Ai foi que Olodumaperguntou o que tava acontecendo no mundo,
se ele criou o mundo pra crescer, mandou Oxum descer justamente porque
ela é a dona do ventre, né. Ela que o poder da mulher, da maternidade,
de tudo, como é, o que é que tava acontecendo? Ai ficou todo mundo,
ninguém sabia, que não sei o que, que não sei o que, ah que vocês fizeram
alguma coisa, o que foi que vocês fizeram? Ai, Oxum disse: “Eles me
tiraram, eles me excluíram”. Ai Olodumaré: “Mas vocês são malucos,
Oxum é a dona da fertilidade”. E ela é metida a gostosa, senhora da beleza,
do poder, toda, toda, se sentiu logo ofendida e não fez por menos: “A é, é!
Não pode não é? Então vocês vão ver o que é bom tosse, se mulher tem
ou não tem poder!”. Ai num instante eles correram, ficaram doido e
mandaram logo chamar Oxum, pra Oxum voltar pra, ai pronto, tudo
floresceu novamente
” (2008, Ent. 5)
A mitologia ecoa na vida prática das pessoas para quem os orixás são pais e mães,
donos das cabeças e cujas histórias sevem de espelho, de exemplos para moldar as condutas
éticas e morais dos religiosos.
A água significa minha mãe, né! Minha mãe é a divindade que se chama
Oxum; é uma das. Eu sou filha de todas as yabás: eu sou filha de Oxum, sou
filha de Iemonjá, sou filha de Nanã, Nanã foi a mulher que me trouxe ao
mundo. Minha mãe era de Nanã, que é um dos orixás, é a mãe de todas, a
grande vó, a senhora da vida e da morte, é senhora dos pântanos, dos
manguezais, né. E a nossa vida a gente tem que agradecer a ela, apesar de
Oxum ser a grande genitora, a protetora da barriga, do ventre, aquela que
envolve a criança, que a gente nasce numa bolsa de água. É oxum que
protege a barriga das mulheres, Oxum é a senhora da fertilidade. Mas Nanã
também é a dona da vida. Eu vim ao mundo através de Nanã, minha mãe
(biológica) era de Nanã, né, e foi através do ventre dela que eu fui gerada.
Oxum me trouxe no ventre de uma mulher de Nanã, né. Então eu tenho
muito envolvimento com a água. E eu sou de Xangô e Sangô é filho de
Iemonjá, então eu sou filha de Iemanjá, também. Sem contar que Iemanjá é
a dona dos oris, é a senhora das cabeças, é a dona das águas salgadas, a
grande mãe peixe, né. Então, são as iabás mais ligadas as águas, né, ou que
são a própria água, né, cada uma no seu, do seu jeito, mas Iemanjá também
é a senhora das águas paradas, das lagoas, não Oxum que é dona da
água doce, Iemanjá também é feita na água doce. E Nanã fica nas três
águas. Ela é a senhora da lama, a senhora do pântano, mas a gente agrada
ela nas águas doces (
2008, Ent. 5).
Oxum é a mãe. É uma mulher linda, riquíssima na água, né, uma mulher da
água doce. Então, são as mulheres da água e eu sou uma mulher que sou de
Iemanjá e de Oxum, tenho essa mistura, então é a força, energia, e ainda
sou de Oxalá. Pá minha religião água é a força, é a energia. É da água que
a gente tira a nossa energia, a nossa força porque eu mesmo sou uma
mulher de Iemanjá e Iemanjá é água, então, eu necessito da água porque a
minha água é a minha força
(Ent. 15).
Dentro dos preceitos do Candomblé da Casa Branca, as idéias e concepções de vida
dos indivíduos e o aperfeiçoamento moral e espiritual dos mesmos, são baseados nos
ensinamentos dos orixás que a mitologia ajuda a perpetuar juntamente com as práticas rituais.
Uma das práticas rituais mais marcantes no Terreiro da Casa Branca é o Águas de Oxalá
quando os religiosos carregam água para esta divindade. O mito que mostra como Oxalá foi
aprisionado no reino de Xangô é passado dos mais velhos para os mais novos.
Tem o ritual da vida de Oxalá, um itã, itã é uma história que a gente conta.
Que ele foi preso num calaboço, Oxalufã por algum tempo por conta de ser
confundido com um ladrão de cavalo, né, um dos seus filhos achou que ele –
coisa de um outro filho dele que aprontou uma com ele -, né, que queria
disputar poder com ele. Então ele pegou o cavalo e ia andando com o
cavalo de Xangô, e foram dizer a Xangô que tinha alguém que tinha
roubado o cavalo dele, e Xangô, muito poderoso, o rei, né, ai mandou
prender, não queria nem saber quem era, mandou prender ele e o velhinho
ficou lá, não disse absolutamente nada, ficou com aquela boa paciência
que a gente tem que ter e às vezes não tem, mas tudo na vida tem que ter
paciência pra que um dia a verdade aparece. E ai quando procuraram,
procuraram cadê Oxalá, cadê Oxalá, cadê Oxalá, cadê Oxalá, procuraram
no mundo todo, todo mundo desesperado, que o pai dele sumiu, todo mundo
caçando, ai Exu teve que confessar, né, que ele tinha feito essa bobagem.
Exu que denunciou o pai dele, ele fez tudo pra o pai dele, porque ele queria
disputar, mostrar, porque as pessoas desmistificam muito o poder dele,
acham que ele não é poderoso, então e ele queria mostrar que tinha
poderes. Aquela coisa entre pai e filho, porque um quando cresce quer
mostrar que é mais que o pai, né, ai ele fez isso. Oxalá encontrou o cavalo
do filho dele (Xangô), pegou o cavalo e foi andando, aí outra pessoa, porque
Exu é o homem da comunicação, ele bota palavras na boca das pessoas.
Então, foi um outro mensagem: Oi Xangô, tem um homem, um ladrão
de cavalo roubando seu cavalo. E ai Xangô disse: “manda prender, bota no
calabouço”. Ai depois de algum tempo começou a rodar, procurar Oxalá,
cadê Oxalá, que Oxalá tinha sumido e ai quando foi um dentro e
descobriu: “Meu pai Xangô, Oxalá que tá lá dentro”. Ah pronto, foi quase a
morte pra Xangô. Xangô ficou desesperado, mandou buscar o veinho lá,
trouxeram o veinho. Ai Oxaguian, que é o guerreiro, o grande estrategista,
ai disse o que é que Xangô tinha que fazer. Ele tinha por conta disso, ele
tinha que fazer uma grande festa na colheita do inhame que é a comida que
Oxalá gosta, na colheita do inhame ele tinha que fazer uma grande festa,
fazer um pilão de inhame pilado e dá pra toda comunidade, tinha que dividir
toda comunidade, e ele tinha que carregar o pilão na cabeça e tinha
que umas varinhas pás pessoas, pás pessoas se baterem. É como é o
termo mesmo? É como se fosse uma autoflagelação, por culpa, né, porque
todo mundo foi culpado com o que tinha acontecido com Oxalá, porque
jamais poderia fazer isso sem ter ido lá, ele principalmente, Xangô, né?
Devia ter ido lá ver quem era que ele mandou fazer isso. Então, essa foi uma
ordem que Oxoguian mandou pra defender o pai dele e por conta disso é
que tem a festa do pilão, né? E essa festa do pilão é oferecida pra Oxoguian
e tem o ritual primeiro de água de Oxalá. Que primeiro ele falou que todos
tinham que carregar água um banho no velhinho, pro velhinho ficar
limpinho, bonitinho, fazer uma festa pra ele e depois fazer o pilão de Oxalá.
Aqui na nossa casa, a festa de Oxolufã é primeiro, Oxoguian é a última festa
(2008, Ent. 5).
Para iniciados da Casa Branca, Águas de Oxalá repete o mito da prisão de Oxalá pelo
seu filho Xangô e a representação da realidade é cheia de significados: significa sacrifício,
purificação de todos diante do criador Oxalá e ainda recomeço, prosperidade.
Tanto Oxalá quanto Xangô eram reis e numa viagem que Oxalá fez pra
visitar Xangô, Oxalá é todo branco, né, ele se veste todo de branco, ele foi
tentado várias vezes por Exu e nessas tentações por qual ele passou, em uma
delas Exu se fingiu de um velho e pediu a Oxalá pra carregar e esse saco
tinha carvão e Oxalá se sujou todo de carvão, mais adiante Oxalá encontra
outra pessoa pedindo ajuda pra carregar um pote e esse pote tinha azeite, o
pote quebra e Oxalá toma um banho de azeite. Então quando ele chega no
reino de Xangô ele chega todo sujo e não é reconhecido. Então Xangô
manda aprisioná-lo e ai várias pragas começam a atacar o reino de Xangô.
Os cavalos morrem, que ele era rei, a agricultura já não produz mais nada,
as pessoas são atacadas por peste e inclusive seca, ele manda uma seca. E
ai quando Xangô vai consultar o babalaô pra saber o que acontecendo,
ele disse que porque você tem aprisionado o pai de todos os orixás. Então
ele envia Airá que é um orixá branco também pra resgatar Oxalá da prisão
e lavar todas as suas vestes ficarem alvas como antigamente. Então a gente
aqui, na última quinta feita de agosto, a gente faz esse ritual que é carregar
água da fonte embaixo que é uma fonte de água natural e cada pessoa
carrega e trás essa água pra que essa água seja derramada encima de
Oxalá simbolizando essa recuperação da autoridade do pai de todos os
orixás. E ai depois que isso acontece na mitologia, Xangô recupera todas
as suas riquezas e a agricultura volta a florescer e isso a gente faz todo ano
como símbolo, que é um sacrifício principalmente para as mais velhas
descerem e subirem três vezes com um pote nas costas e em troca a gente
espera isso, a prosperidade que Xangô teve no reino dele depois que ele
lavou Oxalá inteiro
(2009, Ent. 10).
Tudo é preparado minuciosamente para reviver o mito sobre a prisão e libertação de
Oxalá, por meio do ritual Águas de Oxalá, todos os anos, conforme descrito abaixo a partir de
observação participante em agosto de 2008. Destaca-se que aqui não é feito aprofundamento
do ponto de vista litúrgico, limita-se apenas a descrever o que pode ser visto durante o ritual
no qual a água está mais fortemente presente nas ações do grupo religioso.
6.7 RITUAL DE ÁGUAS DE OXALÁ: ÁGUA SAGRADA E DIVINIZADA
Antes de o dia escurecer, o arroz-doce está pronto, as roupas brancas caprichosamente
passadas e até engomadas para que durante a noite e madrugada, iniciados e não iniciados e
alguns poucos convidados da Casa Branca reverenciem o orixá que é considerado “o abóbada
celeste que cobre o mundo” (Bastide, 2005, p.151), “o pai dos orixás”, “o criador do mundo
físico” (Serra et al., 2000, p. 12-13), na cerimônia “Águas de Oxalá”.
54
A comida e a cor branca simbolizam o orixá. E se a água norteia todos os rituais sejam
eles com fins litúrgicos ou de cura no Candomblé, essa cerimônia marca a continuação do
ciclo de festas no Terreiro Casa Branca e é a que mais fortemente revela a divinização da
água.
55
Para a realização do ritual, o assentamento de Oxum foi pintado, os objetos ali
dispostos foram limpos e a fonte esvaziada para que a nova água brotasse da terra.
A cerimônia de Águas de Oxalá acontece na última quinta-feira do mês de agosto. O
sol se vai, a noite chega e por volta das 22 horas, descalços em sinal de humildade, usando as
contas que os ligam aos seus orixás de cabeça e as outras indumentárias típicas para a ocasião,
como saia de baiana (para as mulheres) e batas para os homens, os religiosos que estavam
dispersos por vários cômodos do terreiro, se reúnem ao longo do corredor e na sala de jantar
para que seja iniciado o ritual
56
. Enfileiram-se próximos e em direção ao quarto de Oxalá; o
segundo a esquerda do corredor, sentido salão de festas – cozinha.
Contritos em profundo silêncio, muitos baixam as cabeças e todos esperam
pacientemente a yalorixá sinalizar o início das honrarias a Oxalá, com o toque do adjá, um
instrumento de metal usado nas cerimônias religiosas para chamar o orixá. Ogans entram com
a yalorixá no quarto de Oxalá, onde velas estão acesas e cuidadosamente o orixá é coberto
54
Serra e outros (2006, p. 13) afirmam que Oxalá exerce influência decisiva para a compreensão dos mitos
cosmogônicos. Oxalá é ao mesmo tempo Obatalá, o senhor do céu e Odudua que corresponde a terra e seu
domínio. É também Oxalufã, o velho, Oxaguian, o moço.
55
Carneiro (1948, p. 30) afirma que a quartinha de barro dos orixás deve ter a água mudada todos os dias e as
iaôs têm por obrigação tomar banho diariamente na fonte mais próxima antes da aurora. Os ogans, por sua
vez, antes de transpor os muros da casa devem beber um pouco de água e jogar um pouco aos lados e à frente
da porta.
56
Rituais como o ossé e o padê de Exu precedem Águas de Oxalá para pedir proteção e para que tudo ocorra
bem, em paz e de acordo com a vontade do Orixá homenageado.
para a sua saída. É quando então, a yalorixá toca o adjá e todos os religiosos presentes batem
palmas, pão, em cadências que mudam de acordo com o som emanado do adjá orquestrado
por ela.
Nesse instante, os ogans da casa abrem um extenso pano branco, o alá, pelos
corredores em direção ao barracão que está vazio, sem as cadeiras dos orixás, sem flores, sem
folhas, sem enfeites. Senhoras de grande autoridade religiosa no terreiro carregam Oxalá e o
retiram do quarto. O orixá permanece coberto com outro alá. Em um andor é carregado pelas
mulheres abaixo dos quadris, próximo ao chão. Por debaixo do
alá, Oxalá circunda a coroa de
Xangô localizada no centro do salão de festa por três vezes. A cada volta, o andor do orixá é
tocado três vezes no chão em frente ao quarto de
Xangô e em frente à imagem que representa
Logunedé; diante da porta dos fundos para saudar Oxossi cujo assentamento fica na parte dos
fundos do barracão; é tocado em frente as duas janelas laterais que ficam em frente ao
assentamento da ancestralidade e da casa da família da palha; em frente a porta de entrada
para saudar Exu e demais orixás e em frente ao altar. É uma forma de saudar os orixás e à
ancestralidade.
Atrás do andor, caminham as mulheres mais velhas da casa e as com mais elevado
grau de hierarquia; a yalorixá, as ebomis, chegando às iaôs e abiãs até as convidadas. Entre as
mulheres, alguns homens se misturam, são autoridades religiosas. depois vêm os demais
homens com diferentes distinções na casa e os não iniciados. Quanto maior a fila, mais ao
fundo ficam os que não têm qualquer autoridade ou titulação no terreiro.
As mulheres colocam o orixá ainda dentro do barracão, mas em frente à porta dos
fundos. Porta que acesso à casa feita com tecidos brancos e adornada com palhas de coco,
onde Oxalá será colocado e passará a noite e cujo acesso é restrito aos homens. O adjá pára
de ser tocado, ninguém mais bate palmas e os religiosos são dispersos no salão, sentam em
bancos espalhados pelo espaço e no chão. A yalorixá e a kekerê sentam próximas à porta
de saída onde está a casa do orixá, de costas para o canto da orquestra; outras se posicionam
ao lado esquerdo delas.
E o ritual tem seqüência. Ainda em silêncio, o povo de santo reunido faz outra fila,
para bater cabeça para Oxalá. Iniciadas e iniciados se ajoelham, batem a cabeça no chão e
batem a cabeça em Oxalá. Muitos se deitam em frente a Oxalá. A maneira de cada iniciado
prostra-se diante do orixá é diferente, de acordo com cada divindade dono ou dona de seu ori.
Aqueles que são consagradas aos orixás femininos, por exemplo, fazem o iká, ou seja, se
deitam aos cumprido no chão, virando o quadril e o antebraço primeiro para o lado direito,
depois para o lado esquerdo e os homens fazem o dobalé; nessa saudação, os iniciados para
orixás masculinos se deitam com a barriga para o chão. Ao levantarem, os religiosos pedem a
bênção à yalorixá da casa e para as demais autoridades do ilê.
São quase meia noite, quando a última pessoa cumpre essa obrigação,
Oxalá é
colocado na casa preparada para ele nos fundos do barracão, veja fotos abaixo, o
alá é
dobrado e é iniciada uma vigília até que todos possam carregar águas para Oxalá. Muitos
ficam sentados ou deitados no salão, conversam baixinho; outros dormem. Enquanto isso,
ainda na madrugada, mulheres arrumam as quartinhas embaixo da coroa de Xangô. E as iaôs
em cumprimento de obrigações, tomam banho de purificação usando água da fonte de Oxum
onde apenas uma vela acesa serve para iluminar o ambiente.
Figura 49 - Na foto A, a porta dos fundos do barracão à esquerda e o assentamento da ancestralidade à direita. Em madeira, a
estrutura que é arrumada para a saída de Oxalá. Destaque maior da estrutura de madeira, na foto B.
A sensação é a de que o tempo passa devagar, mas o relógio aponta para uma, duas
horas da madrugada... Abiãs, ekedes e iaôs distribuem mingau de arroz doce, de carimã e
tapioca. E perto das três da manhã, as quartinhas são distribuídas e às 3h10, a yalorixá levanta
de sua cadeira, se posiciona próximo à porta de entrada do barracão e volta a tocar o adjá.
Mais uma vez, as mulheres saem na frente e as primeiras posições são ocupadas pelas mais
idosas e com maior autoridade. No final da fila, vêm os homens com seus diferentes graus de
titulação no ilê.
Concentrado e em aparente estado de oração, o povo de santo desce as escadarias com
53 degraus. embaixo, a Casa de Oxum foi aberta pelos ogans. Um dos ogans retira a
água da fonte e coloca em baldes e outros dois ficam encarregados de encher as quartinhas
que são colocadas na cabeça pelas mulheres e nos ombros pelos homens.
Pouco a pouco, os religiosos vão fazendo a volta no barco de Oxum. À medida que
muitos ainda descem as escadas pelo lado direito, as iniciadas de maior autoridade e que
encabeçam a extensa fila, começam a subir os degraus pelo lado esquerdo. O processo é lento,
A
B
cuidadoso, para que a água não seja derramada. E após cruzar o barracão de festa, as
quartinhas são entregues a ogans que as depositam em purrões na casa onde está Oxalá.
Todos repetem o mesmo trajeto duas vezes. Na terceira descida, depois que as
quartinhas são cheias, além de caminharem ao redor do barco de Oxum, grupos de seis ou
mais pessoas colocam as quartinhas já cheias de água no muro ao lado do portão principal do
terreiro e batem palmas em sequência e sintonia em frente ao assentamento de Indancô, cuja
árvores estão adornadas com um ojá. Depois seguem e repetem o mesmo gesto em frente à
imagem da sereia, na fonte ornamental de
Oxum.
Ao subir as escadas pela terceira vez rumo ao barracão, as mais velhas quebram o
silêncio, antes interrompido pelo bater das mãos. Começam a cantar em
iorubá e é nesse
momento que ouvem-se as baquetas ou aguidavis fazerem ecoar o som dos ilus, que na
mesma língua africana, significa atabaques.
57
Passo a passo, com as quartinhas cheias d´água,
os religiosos sobem os degraus e ao se aproximarem da porta de entrada, muitas iaôs
58
entram
em transe. Imediatamente os orixás são amparados pelas ekedes que lhes seguram as costas,
permanecendo ao lado das divindades o tempo todo, arrumando suas roupas, cuidado-as e
limpando-as o rosto molhado de suor com uma toalha branca tida como imaculada. Um a um,
vários orixás masculinos e femininos chegam para saudar Oxalá.
No barracão, no instante em que a água da última quartinha é colocada nos potes na
casa onde está Oxalá, todos se posicionam nas cadeiras de ferro e nos bancos de madeira ao
redor da coroa de
Xangô enquanto os orixás circundam o salão. Mais de 20 divindades se
apresentam.
Oxalá novo (Oxaguian) senta em uma cadeira de madeira de frente para a
orquestra. Oxalá Velho (Oxalufã), ao seu lado esquerdo, senta em um banco menor.
Uma seqüência de cânticos é iniciada numa ordem que é chamada de o xirê e cada
divindade é saudada com cânticos e dançam revezando as coreografias conforme a música
também chamada de ponto. Hora os orixás dançam seguindo Oxalá Velho e Oxalá Novo pelo
salão. Em outro momento, uns dançam e outros ficam parados, dividindo espaços em total
harmonia. Todas as divindades também dançam em frente a orquestra, onde saúdam os
atabaques com gestos e por vezes abraçam os músicos em uma atitude que remete à
ancestralidade africana.
57
Os tambores também são sagrados para o Candomblé e cheios de simbolismo. Bastide, em texto publicado em
A Cigarra, Rio de Janeiro, nº 18, 24 de junho de 1949, pp. 2-8 e reproduzido em Bastide (2005, p 329), afirma
que os três tambores, rum, rumpi e lé, são deuses, foram batizados com sangue do animal e neles habita a alma
dos orixás.
58
Pela tradição do Ilê Axé Iyá Nassô Oká, só as mulheres da Casa Branca entram em transe. Mas muitos
iniciados de outras casa que participam do ritual também entram em possessão.
E quando as mãos ágeis dos músicos dança negra de dedos sobre a pele
tensa ferem o tambor, os deuses falam aos corpos. O tã-tã mágico não é
somente a saudade da África, nem a lembrança desse outro tã-tã, o reboar
das vagas no flanco dos navios negreiros, mas a decida dos orixás na cabeça,
nos músculos, no coração de seus filhos. Quem entra vem saudá-los, deitar-
se diante do instrumento sagrado (BASTIDE, 2002, p. 329).
São mais de 5 horas da manhã, quando os orixás começam a ser recolhidos até o
quarto de
Oxalá e as iaôs saem do transe. Oxalá Novo é o penúltimo a sair, seguido de Oxalá
Velho. É quando os tambores param de tocar, os religiosos seguem para outras atividades e
obrigações à espera das 17 horas para prosseguir com o ritual, com o retorno do orixá para o
seu quarto e distribuição das águas divinizadas.
No segundo dia do ritual de Águas de Oxalá, perto de escurecer os religiosos estão
apostos mais uma vez ao longo do corredor da Casa Branca onde esteiras estão espalhadas
pelo chão. Os sacerdotes se dirigem até a casa onde dormiu Oxalá e retiram o andor com o
orixá que é carregado pelos mais velhos. Novamente, Oxalá percorre o salão debaixo do
longo alá suspenso pelos braços dos ogãs. O orixá é seguido pelas dezenas de iniciados e não
iniciados na mesma ordem que no dia anterior durante a saída do orixá: mulheres na frente,
homens depois. Desta vez, os homens carregam o andor tocando-o no chão três vez cada vez
que passa diante de uma das portas ou janelas do barracão, em reverência à ancestralidade e
aos demais orixás.
Oxalá então é conduzido para seu quarto e todos os religiosos voltam a ocupar espaços
no corredor e na sala de jantar. Ficam sentados no chão e em silêncio. Nesse instante, ouve-se
o tilintar das louças onde é servida a comida do santo. Momentos depois, a yalorixá toca o
adjá, todos se ajoelham prostrando a cabeça no chão e começam a cantar repetindo o tom e as
palavras direcionadas pela do ilê. Também batem palmas em resposta ao som do
instrumento religioso.
Quando todos se levantam, os tambores começam a tocar. A yalorixá está sentada na
porta do quarto de Oxalá e, novamente por ordem hierárquica, todas as pessoas presentes à
cerimônia, param em frente à yalorixá, se ajoelham, se deitam conforme seu orixá e alguns
entram no quarto para saudar Oxalá. Depois, seguem para o salão. Muitas iaôs entram em
transe ainda no corredor, novamente são cuidados pelas ekedes e as próprias divindades
saúdam Oxalá antes de seguirem para o barracão onde a festa continua com a dança dos
orixás.
Até que as divindades se recolhem novamente e a cerimônia religiosa chegue ao fim,
as águas de Oxalá que foram carregadas nas quartinhas na noite anterior até a casa de Oxalá
nos fundos do barracão, são distribuídas entre os presentes. Depois de todo o ritual, esta água
não é a mesma. Para os iniciados do Terreiro da Casa Branca, depois te ter sido usada para
os banhos, para o
ossé, para a matança dos animais, para o padê de Exu, depois de ter sido
carregada da fonte, de ter lavando
Oxalá, esta água passa por um ciclo e tem uma outra força,
é ainda mais sacralizada, na verdade passa a ser uma água com muito mais axé, mais força e
mais energia. É uma água divinizada, pois foi embebida em Oxalá, conforme modelo adiante
com ilustrações de Caribé.
Banho em
Oxalá
Fonte de
Oxum
Água Sagrada
Água
Divinizada
Distribuição à
comunidade
Figura 50 - Modelo que retrata a circulação da água na cerimônia de Águas de Oxalá. AO estar na fonte, na visão dos
entrevistados ela é sagrada porque é Oxum, ao ser embebida em Oxalá, a água passa a ser divina, com maior força e axé.
Pode ser usada com vários fins, inclusive o de cura
Se era sagrada por representar Oxum, a água da fonte de Oxum ao banhar Oxalá passa
a ter muito mais poder, inclusive de cura. E ao ser levada para casa pelos iniciados e
convidados da festa, passa a ser usada com esse sentido, de curar, de purificar, abrir
caminhos, enfim é usada conforme as necessidades dos que têm fé.
Cada pessoa usa pá tomar um banho, pra beber, pá botar dentro de casa, pá
no caso de ter um problema, tomar três golinhos, uma dor de cabeça, pode
molhar a cabeça. É uma purificação mesmo. É uma água sagrada que é
algum remédio pra gente. A gente usa como remédio água de Oxalá. Se tiver
com algum problema. Nunca pá jogar fora
(2008, Ent. 5).
A água de Oxalá a gente usa pra banho, muita gente usa ela pra deixar em
casa, pra evitar mal olhado, pra evitar problemas de saúde, simplesmente
deixa no canto de casa, outras pessoas lavam a casa com a água, enfim, se
usa a água na de que afastar o mal e atrair prosperidade. Também se
usa pra limpeza espiritual
(2009, Ent. 10).
Eu coloco na minha roupa, quando eu acordo eu passo em mim, eu me
banho. É uma água sagrada, você faz o que você quiser para o bem seu e de
quem você quiser. Quando boto na cabeça, sinto muita paz e me passa uma
tranquilidade. Oxalá, a gente sente a presença mais uma vez, a gente fica
mais próximo da paz, da tranquilidade. Água em sim ainda mais vindo de
Oxalá, a gente fica mais firme, mais forte e tranqüilo
(2008, Ent. 2).
6.8 FESTA PÚBLICA: REVERÊNCIA COLETIVA A OXALÁ
No terceiro domingo de Oxalá, celebra-se a festa do pilão, como forma de continuar
representando o mito de Oxalá. Muita gente vem chegando por toda parte da cidade, tem
gente de outros Terreiros de Candomblé, inclusive de outras nações. Pouco a pouco, o
barracão fica cheio. E quem chega vê logo na frente, no último degrau da casa o alquidá com
água e milho branco, um agrado para o orixá festejado no dia. Um alguidá e duas quartinhas
de água continuam devidamente colocados dentro do barracão ao lado do assentamento de
Exu.
Coberto com um pano branco e carregado por quatro senhoras, o pilão sai do quarto de
Oxalá carregado de inhame com galinha; este é o prato preferido do orixá e percorre três
vezes o salão no sentido horário, em volta da coroa de Xangô. Ao fixar o pilão com o
alimento encima de uma toalha branca estendida no chão, os atabaques são tocados
fortemente e as senhoras, em súbito, soltam a comida como se tivessem tomado um choque e
sentam-se exaustas nas cadeiras dos orixás. Farofas e milho branco sem açúcar também são
servidos e todos comem com as mãos.
O barracão está todo adornado em branco e prata, com bandeirolas, figuras decorativas
como pombas. Lírios brancos e rosas ocupam com imensos arranjos lugares de destaque nos
quatro cantos do salão. Todas as mais velhas, as iaôs, abiãs e babalorixás que não são da
Casa Branca, mas têm ligação com o terreiro, vestem trajes de gala, roupas brancas, muito
brancas. As iaôs ficam sentadas no chão quase todo tempo, quando quatro divindades se
manifestam. O primeiro toma o babalorixá por possessão, ainda quando a yalorixá da casa
começa a servir o inhame com carne branca, de frango, pegando com as mãos a mistura que é
passada de mão em mão e distribuída entre os presentes à cerimônia ritualística.
Na segunda-feira seguinte ao terceiro domingo de
Oxalá, acontece a festa de Ogum, o
ferreiro, o senhor dos caminhos e
Ossain, divindade que no Candomblé ketu é responsável
pela manipulação das folhas, dos vegetais. Além de todos os adereços que adornaram o
barracão para a festa de Oxalá, folhas são jogadas pelo chão. Os tambores começam a evocar
a ancestralidade e os orixás se manifestam com grande energia; os iniciados dão possessão e
dançam, rodam, estremecem ao longo de todo o salão, principalmente diante dos atabaques
consagrados. A cada mudança da música, iniciados tocam as mãos no chão e duas vezes na
cabeça, uma na tez outra na nuca, como sinal de reverência ao orixá saudado naquele
momento. A festa prossegue até que as divindades saem do barracão em direção ao corredor
que leva aos quartos de Oxalá e Xangô.
Na segunda-feira após festa de Ogun e Ossain é realizada a festa de Obaluaiê, o orixá
da cura. Depois que as mais velhas e iaôs saúdam os orixás no barracão dedicado a Xangô, os
atabaques silenciam e todos seguem como em “procissão” para a casa de Obaluaiê, do lado
esquerdo para quem entra no Barracão, também conhecida como a casa da família da palha.
As mulheres mais idosas do terreiro entram na casa da família da palha, pintada de rosa, e
grandes panelas de barro são retiradas para que um banquete seja servido aos presentes, sejam
eles de santo ou não. quando os atabaques novamente voltam a ecoar o som em saudação
aos orixás, que as comidas com muito dendê são servidas em folhas de mamona. Tem acarajé,
abará, farofa e xixim-de-galinha, por exemplo, e quem aceita a comida dos santos, come com
as mãos e se delicia.
6.9 AS FESTAS DE OXUM
No dia 23 de novembro de 2008 ocorreu a Festa de Oxum. O barracão é enfeitado de
amarelo para saudar a divindade das Águas Doces, Oxum. Seja nas cortinas ao redor da coroa
de Xangô ou na frente do altar, seja nos laços que adornam os tambores ou nos peixes e
espelhos, símbolos da divindade, espalhados pelo barracão, o amarelo ouro predomina.
Arranjos com folhas de palmeira e outras folhas incrementam a ornamentação
dependurados nas paredes, expostos em vasos ou espalhadas pelo chão. Do lado de fora, nas
proximidades do último degrau das escadarias de acesso ao local da festa, mais um alguidá
com água e milho branco.
Por volta das 20h30, horário habitual de início do Candomblé, os tambores ecoam o
som forte para evocar a ancestralidade. As iaôs, pouco a pouco preenchem o espaço onde
homens e mulheres, iniciados e não iniciados, sentam nos bancos de madeira e cadeiras de
plástico à espera da celebração. Muitos deles são apenas meros expectadores, curiosos, outros
são filhos e filhas de santos que observam e integram a festividade, participando mediante o
canto e louvor aos orixás.
Como de costume entre o povo de santo, enquanto as
iaôs e algumas ebomis dançam
no entorno da Coroa de
Xangô, todos acompanham os cânticos e respondem com gestos a
cada mensagem passada pelo toque dos tambores. Um hábito comum entre os iniciados e
iniciadas que participam da festa, é o pedido de bênção e concessão da bênção. No
Candomblé todo aquele que pede a bênção tem a obrigação de também concedê-la ao outro e
é assim durante toda a celebração onde um detalhe é marcante. Diferentemente de outras
cerimônias, a cadeira da yalorixá do Terreiro está vazia e o adjá fica nas mãos de uma outra
autoridade religiosa.
Esta autoridade toca o adjá anunciando a chegada do orixá vestida a caráter. Nesse
instante, todas as iaôs já estavam sentadas no chão e durante toda a festividade nenhuma delas
possessão. Ladeada pela autoridade religiosa e por três ekedes o tempo todo, Oxum dança
pelo salão coreografias conforme a música que reproduz um mito conforme descreve uma
pessoa entrevistada.
A música está contando uma história, uma trajetória, o que o orixá
fazendo, entendeu? Iemanjá tem momentos de calma, ela dança assim ô,
calminha, carregando a água, botando de uma mão pra outra, né, tem
momentos que ela dança assim como se tivesse nadando, é a grande mãe
peixe. E tem momentos que ela dança de espadas também. Oxum da mesma
forma
.
Oxum é, então, saudada por gritos entusiasmados òóré yeye o! òóré yeye o! òóré yeye
o!, minha mãe”. Do lado de fora, fogos anunciam a presença da divindade que domina as
águas doces. Não demora muito para outro orixá se manifestar. É Ogun. E poucos instantes
depois, Oiá. No barracão, os elementos água, terra e fogo se encontram. Após dançarem por
cerca de 40 minutos, os orixás saem do barracão em direção ao corredor que liga aos quartos
de Xangô e Oxalá. Por mais de uma hora, as pessoas presentes esperam que as divindades
retornem ao salão. E enquanto isso, por vezes ouve-se apenas o toque dos atabaques; por
outras, cânticos entusiasmos para os orixás como Nanã e Iemanjá.
Passam das 22 horas quando
Ogun adentra no barracão. Vestido de verde, com sua
espada no ombro, vem abrindo caminho para
Oiá, vestida de branco, com laços cor-de-rosa.
As duas divindades abrem passagem para Oxum que chega vestida de verde e amarelo, toda
adornada de acessórios dourados. Novamente é saudada com uma salva de fogos.
Quando Oxum pára em frente aos atabaques, iniciados e iniciadas começam a fazer
louvação, cantam, falam em iorubá, baixam a cabeça e impõem as mãos em direção à
divindade. Uma comoção generalizada toma conta de todos que se abraçam, beijam-se as
mãos, se abençoam reciprocamente e desejam uns aos outros, muito axé.
Os adjás são tocados com fervor e nessa hora, uma ebomi que ladeava Oxum com o
instrumento nas mãos, começa a tremer o corpo, sacudir os ombros e balançar a cabeça para
frente e para trás, sendo amparada por uma ekede; era Iemanjá que acabara de chegar. Juntas,
as quatro divindades, Oxum, Ogun, Oiá e Iemanjá dançam no entorno da coroa de Xangô,
simbolizando o encontro de diferentes forças da natureza.
Ogun toca com a sua espada a cabeça de adultos e crianças. Oxum recebe flores das
cores rosa, brancas e amarelas. Muitos dos iniciados e não iniciados próstam-se aos seus pés.
Dois homens que assistem a cerimônia dão possessão aos orixás e um deles é fácil reconhecer
pela grande curvatura do corpo: Oxalufã.
Oiá a primeira a sair do barracão, depois Ogun e em seguida Iemanjá. Por último, sai a
dona da noite, aplaudida, reverenciada, deixando rostos com expressão de luminosidade.
No dia 07 de dezembro de 2008 mais uma festa para a divindade das águas doces,
desta vez no Barco de
Oxum, Okoiluaiê. Ainda do lado de fora dos portões da Casa Branca é
possível notar as intervenções feitas no espaço sagrado para a festa de Oxum do Barco. Na
praça do terreiro tudo está preparado. A fonte do barco é coberta com uma mesa quadrada
medindo cerca de 2 metros por 2 metros e a mesa está coberta com toalhas douradas. Sobre
ela, várias bonecas vestidas predominantemente de dourado, usando acessórios dourados com
ojás amarelos, azul e branco.
Muitas rosas brancas formam grandes arranjos e a água tem presença marcante nesse
espaço. Além da fonte que está coberta, várias quartinhas estão espalhadas pelo barco. Duas
delas com água estão na parte da frente do barco onde, apesar da toalha, é possível verificar a
boca da fonte sagrada. Outra quartinha, cheia de água está no centro do barco onde mais tarde
um ritual marcaria a chegada de Oxum àquele ambiente.
A fonte de Oxum em frente ao barco está igualmente enfeitada com bonecas, flores e
tecidos dourados. A quartinha com água compõe o cenário iluminado ainda por uma vela
colocada em um castiçal de frente para a única porta de entrada do barco. À medida que os
religiosos vão chegando, a parada em frente ao barco de Oxum parece obrigatória. As pessoas
olham a estrutura montada e muitos fazem mais que isso: tocam as mãos no barco e levam em
direção à tez e à parte de traz da cabeça, num gesto de confirmação ao orixá e rezam. Depois,
seguem em direção à segunda fonte sagrada, a fonte de Oxum para repetir o gesto e então,
se dirigem ao barracão para o primeiro momento da festividade.
No barracão, mais uma vez, a água tem destaque especial. Ao lado da casa de
Exu ,
três quartinhas estão cheias de água e um
alguidá também está cheio de água com milho
branco. Entrem, vai começar o xirê
59
, avisa um Ogan. E quase que imediatamente, os
atabaques enfeitados com laços dourados, começam a ser tocados para evocar a
ancestralidade.
As mulheres mais velhas e de maior autoridade no terreiro são as que entram primeiro.
Circulam a coroa de Xangô. Todas levam às duas mãos à cabeça e em seguida em direção às
portas e o altar do barracão saudando os orixás e à ancestralidade. Também tocam três vezes
na casa que simboliza um assentamento de Exu.
A festa continua e as iaôs mais novas também entram no salão. Elas dançam, pedem a
bênçãos às mais velhas, algumas vezes sentam no chão. E é assim até a entrada da yalorixá.
Mais música é tocada até que a
yalorixá se retira do espaço e atrás dela todas as outras. Um
silêncio predomina no ambiente decorado com peixes e espelhos de Oxum, rosas brancas e
lírios. Passam-se alguns minutos e três
ogãs, filhos de Oxum, prostam-se em frente à porta de
saída do corredor, com atabaques debaixo do braço. Então, começam a tocar com força os
instrumentos.
Diante desse sinal, uma iniciada da casa sai do corredor que liga o barracão à cozinha
com o adjá nas mãos e começa a tocá-lo. Atrás dela, a yalorixá da Casa Branca é seguida por
iaôs e ekedes, estas últimas inclusive, tipicamente vestidas e com os ojás nas cabeças, o que
normalmente não acontece em outras festas. A yalorixá carrega em suas mãos uma panela de
vidro, colorida e com tampa. Vem amparada por uma ekede que carrega uma bandeja com
várias frutas, a exemplo de pêra, manga, abacaxi, maçã, uva e umbu. Todas as demais trazem
comidas nas mãos: frango, feijão, taioba, acarajé, vatapá e mais frutas. Depois que dão duas
59
Xirê é um dos momentos do ritual, quando os orixás são convidados a vir do Orum e marca o início da festa.
voltas ao redor da coroa de Xangô, saem do barracão e descem as escadas em direção ao
barco de Oxum.
Quando a última
iaô sai do barracão, todos os outros, religiosos ou visitante, seguem
em cortejo. As mulheres com as oferendas circulam duas vezes o barco de
Oxum, vão até à
imagem de Oxum representada pela sereia e então, uma a uma começam a entrar no barco. A
yalorixá e os músicos sentam na parte da frente do barco, de frente para a fonte sagrada. Uma
toalha branca e engomada colocada no chão, encostada na abertura da fonte, vai sendo coberta
pelas oferendas. As
iaôs e ekedes entram pelo lado direito do barco, dão uma volta em frente a
tolha, em sentido ante-horário, para entregar as oferendas e voltam para a parte de trás do
barco, onde muitas ficam sentadas e outras ajoelhadas com a cabeça no chão. Apenas as
senhoras mais antigas ficam o tempo todo em pé no centro do barco.
No momento em que o último prato de comida é colocado na toalha, uma
ebomi puxa
as palmas. Os tambores param de tocar e a yalorixá coloca do seu lado uma quartinha cheia
de água e começa a cortar os obis. Depois de molhar os obis na quartinha, joga alguns pingos
sobre a tolha e, como no ifá, jogo de búzios, joga as sementes no prato. Repete o gesto três
vezes e fala algumas palavras em iorubá, para saber se a cerimônia está sendo feita de acordo
com a vontade do orixá. Todos em seguida respondem com palmas e com a saudação: “òóré
yeye o! òóré yeye o!v òóré yeye o!”, é o sinal de que está tudo certo.
No centro do barco, as três religiosas mais idosas, acendem uma vela ao lado de outra
quartinha cheia de água. E uma delas também corta os
obis e os joga sobre o prato branco
duas ou três vezes até falar em voz alta:
“òóré yeye”. A chuva ameaça cair, alguns pingos
molham o chão, mas como uma névoa, chega fraca. Uma visitante comenta: Parece que nem
choveu, a gente se molhou, mas não sente que está molhado. É como se fosse um banho de
energia.
Todos novamente batem palmas. A yalorixá, então, puxa um cântico em iorubá ao
lado de uma ebomi e de uma ekede. Canta três vezes um cântico que é repetido em coro pelos
religiosos do terreiro. Depois, ela levanta, fica de frente para fonte, tendo do seu lado direito
uma das ebomis e do seu lado esquerdo uma ekede. As três começam a dançar e não demora
muito para Oxum se manifestar. Oxum é recebida com muitas palmas. A divindade dança
simulando ondas com as mãos, leva as mãos aos joelhos e sacode os ombros. Repete o gesto
no centro do barco onde está a quartinha e a vela acesa. Ao sair do barco, Oxum tem um alá
sobre a cabeça. Ela passa em frente a outra fonte, a fonte de Oxum, entra, dança e depois sobe
as escadarias.
No barracão, os tambores tocam e enquanto à divindade é recolhida para ser vestida e
arrumada, outra divindade aparece: é Ogun que grita forte num momento marcado pela fé nos
orixás e culto à ancestralidade.
Ogun também é recolhido. Cerca de 50 minutos se passam
intercalados de dança, cânticos e silêncio, até que as divindades são trazidas de volta
tipicamente caracterizadas.
Oxum adentra no barracão com sua coroa, vestido de dourado, com grandes correntes
e braceletes. É recebida com uma chuva de pétalas de rosas brancas. Ela dança, saúda a
ancestralidade diante dos atabaques. Atrás dela, vem
Ogun, vestido de verde, com sua espada.
As duas divindades são ladeadas por quatro ekedes e quatro ebomis o tempo todo. Elas
dançam ao redor da Coroa de
Xangô e três pessoas da platéia entram em transe e são
recolhidas. Uma dessas divindades volta vestida, é Oxaguian que se junta a Oxum e a Ogun
na festa da divindade das águas doces.
Enquanto Ogun dança, Oxum toca com seu espelho a cabeça de todas as iaôs que estão
sentadas no chão. Depois, senta-se na cadeira de madeira e Oxaguian senta-se ao seu lado.
Ogun dança e depois as demais divindades começam a dançar novamente ao redor da Coroa
de Xangô. Nesse momento, as ekedes começam a convidar os participantes a seguirem em
direção à cozinha. O banquete está servido e todos deliciam-se com feijão, vatapá, abará,
acarajé e frango. Comida sem azeite de dendê, com pouco sal, no tempero ao agrado de Oxum
que também ganhou bolo decorado em sua homenagem. Na cozinha, quem lava os pratos
toma cuidado para não desperdiçar água. Primeiro ensaboa todos os pratos para depois
enxaguá-los.
6.10 A POLUIÇÃO E A LIMITAÇÃO RITUAL
Para o Candomblé da Casa Braca a água é sagrada, elemento dotado de energia,
através do qual é possível purificar-se, reenergiza-se, estabelecer o elo com o divino. Mas
atitudes que eram adotadas há séculos com o uso da água no Terreiro da Casa Branca não são
seguidas à risca nos tempos atuais. Com a expansão das cidades, a degradação ambiental e os
impactos nos recursos naturais e, especificamente nos recursos hídricos, as águas das fontes
sagradas têm sido impactadas, com condições de potabilidade comprometidas.
A fonte principal de Oxum é lavada com freqüência, principalmente dias antes do
ritual de Águas de Oxalá, para que haja a renovação da água, mas esse cenário de poluição
hídrica faz com que os dirigentes do Terreiro Casa Branca, todos os anos, antes da cerimônia
de Águas de Oxalá, peçam aos órgãos competentes a análise bacteriológica da água da fonte
na Casa de
Oxum, o que é feito, conforme fotos adiante. A medida é para saber as condições
de potabilidade da água.
Figura 51 - Fotos da retirada da água da Fonte de Oxum para análise bacteriológica. A ação é feita antes do ritual de Águas de
Oxalá para saber as condições de potabilidade da água e certificar se poderá ser ingerida nos rituais.
Segundo um entrevistado, essa é uma preocupação dos líderes religiosos da Casa
Branca para preservar a saúde das pessoas que, conforme os rituais, muitas vezes têm de
beber água da fonte. Pela tradição, a água da fonte deve ser ingerida durante o ritual de
iniciação e em momentos durante as festas. Essa análise também serve de parâmetro para que
os rituais sejam conduzidos, pois a água tem que ser pura, limpa e é também usada para outros
fins como banho e infusão.
A análise feita pela Empresa Baiana de Águas e Saneamento S.A (Embasa), a partir
da coleta da água bruta no dia 26 de agosto de 2008, antes da cerimônia de Águas de Oxalá,
diagnosticou que a água da Fonte de Oxum é imprópria para o consumo humano. Conforme o
laudo, a coleta foi feita às 9h, com tempo “bom”. A análise feita pela Embasa detectou a
presença de coliformes termotolerantes, conforme tabela adiante
60
.
60
LDM (Limite de Detecção do Método), LIOR (Limite Inferior do Órgão Regulador) INC (Incerteza expandida
de medição (k=2) / Data – Data de análise. Fonte: Embasa C-328/08-DO
ANÁLISE OBS DATA RESULTADO UNIDADE INC. MÉTODO SDM
Coliformes
Termotolerantes
- 29/08/08 Presente P/A - Qualitativo
SC
(P/A)
1
Coliformes
Totais
- 29/08/08 200 UFC/100
ml
- Membrana
Filtrante
1
Quadro 1 - Resultados da análise da qualidade da água da Fonte de Oxum, conforme análise da
Embasa.
A Diretoria de Operações da Embasa recomendou à época tratamento da água e que o
uso potável da água seja “exclusivamente, a rede distribuidora da Embasa existente no
local
”. Na nota técnica sobre a análise bacteriológica da água, a Embasa apresenta como
alternativa de uso da água da Fonte de Oxum, a limpeza de pisos e a regagem de jardins.
Ressalta que a água poderá ser usada em cerimônias religiosas,
desde que não haja consumo
humano.
A poluição da fonte não tem, segundo entrevistados do Terreiro da Casa Branca,
alterado as tradições rituais, mas as análises e recomendações técnicas têm sido
condicionantes para algumas práticas dentro do ritual, têm imposto limites, como a redução da
ingestão da água em determinados momentos.
Até hoje, nos rituais, acontece tudo a mesma coisa. Acontece de beber água
da fonte mesmo acusando problema, acontece, acontece. A água passa por
um processo. Diminuiu bastante a ingestão, né, diminuiu porque a gente tem
que se precaver, tem que ter cuidados, a gente não vai também além da fé,
também ultrapassar os limites do que tá acontecendo ai no mundo
.
Uma pessoa entrevistada não quis entrar em detalhes, mas sinalizou que em
circunstâncias como estas, a yalorixá, como líder espiritual, tem alguns métodos, algumas
formas de a gente fazer num momento desses. A água passa por um tratamento alternativo, é
embebida em folhas, cujos nomes não foram revelados, e depois fica preparada para a
ingestão.
Botar em vasilhas grandes, digamos, purrões grandes, com algumas folhas
que a gente sabe que pode purificar a água e depois essa água vai pra
quartinha. Então, a gente não bebe água de todas ou qualquer uma
quartinha, tem uma limitação, só pode usar aquelas que a gente não vai dar
qualquer água pras pessoas chegarem e as pessoas beberem né
.
Outra alternativa para tratamento da água da fonte para a ingestão, conforme os
entrevistados, é a fervura.
Não existe mais em cidade grande água cristalina, normal, né. Toda cidade
tem problemas com a água e ai não fica muito difícil a gente achar que a
coisa tá complicado pra todos, né. A água tá complicada pra todos. Agora a
gente tem usado menos essa água da fonte por causa disso. A gente usou
mais. Hoje tem mais cuidados, porque às vezes tem que ferver a água,
mas a gente faz um tratamento na água até chegar lá encima, entendeu?
.
Mesmo sendo purificada, a água está sendo menos demandada pelas pessoas para a
ingestão, com a poluição da água, a preocupação com doenças de veiculação hídrica é
evidente. As pessoas bebiam muito mais sem problemas. Hoje as pessoas já têm um pouco de
restrição. Não perdeu a fé, sabe que o Orixá vai proteger, mas por conta disso também, a
gente não vai deixar tudo na mão dos orixás, né? (2008, Ent. 5).
A poluição da água da fonte, conforme alguns entrevistados, será determinante para
que esta água a ser ingerida em momentos rituais passe a ser substituída seja por água de outra
fonte sagrada livre de poluição ou até mesmo por água tratada via empresa de abastecimento.
A gente vai ter que se limitar, né, por exemplo, não utilizar mais água pra
beber e tentar limpar a fonte. A fonte como você vive trancada, então
utilizar pra alguns rituais e não pra outros como pra beber, por exemplo,
evitar que se beba essa água ou que use pra banho. Mas é inevitável isso e
adaptar a água de torneira mesmo, de Embasa como a maioria das casas
fazem
(2009, Ent. 10).
O que acontece quando a água poluída é que a gente não pode usar
nossos orixás, e os orixás necessita da água como o ser humano também. A
gente vai ter que passar a utilizar água tratada, porque se não tiver
condição, essa água continuar ficando poluída, a gente vai ter que trabalhar
com água tratada, que não é o que a gente quer porque nós temos o costume
de usar água da fonte e nós queremos continuar usando a nossa água
(2009,
Ent. 15).
O uso da água tratada nas práticas rituais divide opiniões no Terreiro da Casa Branca.
Para alguns religiosos a água tratada não agrada os Orixás, a água precisa estar limpa,
brotando da terra. Eles não aceitaram que a água estava poluída, isso ou aquilo, muita coisa
aqui eles não aceitam. É por isso que a casa fica assim dependendo, o povo não quer se
conformar, mas os orixás não aceitam muita coisa não, essas coisas modernas (2009, Ent. 7).
Para a maioria, a poluição das fontes sagradas é uma ameaça para o Candomblé,
significa uma ameaça às tradições.
A poluição significa a quebra da tradição, a quebra da sua particularidade.
Quando a gente precisa de tomar um banho de folha e faz uso dessa água, a
gente entende que essa água tá imprópria para o consumo, de alguma forma
quebra a essência, quebra o mistério, o sentido mesmo da sua essência, do
seu segredo. Com certeza a poluição é uma ameaça, mas a gente aprende a
lidar com as situações. O importante é não deixar de cultuar o orixá e a
água. O ideal é que ela seja uma fonte natural, embora não seja, temos que
cultuar a água de qualquer forma que ela venha
(2009, Ent. 14).
Para outros, enquanto representação de orixá, a água brota da terra sempre limpa, tem
poder de regeneração, os impactos negativos que ela sofre são decorrência da ação humana, o
que exige uma ação coletiva para evitar que as fontes sejam ainda mais degradadas.
Oxum é a fertilidade, é a água brotando. De jeito nenhum a água deixa de
ser Oxum. E a contaminação não vem de baixo, da origem. A contaminação
ela é depois que a água passa pela superfície e se contamina com esgoto,
mas na origem ela não é contaminada
(2009, Ent. 10).
A peneira da água é a própria vida, ela própria por si ela se limpa, porque
ela expulsa o sujo, quanto tá no fundo ela joga pra cima, não é isso? A gente
tem que trabalhar encima desses poderosos... essas grandes firmas, essas
grandes coisas ai pra poluir. Tanto poder tem a água que ela mostra quando
ela tá agredida e ela agredida é um caso muito sério porque ninguém
agüenta com uma tempestade, ela vem derrubando tudo, então não se pode
agredir a água e eu creio que quando a natureza é agredida isso é uma
resposta do orixá
(2009, Ent. 12).
Diante do diagnóstico de poluição das águas da fonte de Oxum, as autoridades
religiosas tentam buscar alternativas de tratamento. Uma delas é o esvaziamento da fonte
antes do ritual de águas de
Oxalá. Cogita-se até mesmo que seja feita outra fonte.
A gente tá buscando todos os recursos pra ver o que se pode fazer. Até fazer
uma fonte pra cima mais. foi pensado nisso porque a gente não pode
ficar de jeito nenhum sem fonte. E a gente tem uma fonte encima, mas
também a gente tem que, né, ver a viabilidade, mas isso os orixás é quem
sabe, né. Não pode é deixar de fazer os rituais
(2008, Ent. 5)
Outra alternativa estudada pela comunidade é ampliar a profundidade da fonte de
Oxum. Por meio da Associação São Jorge do Engenho Velho da Federação, associação civil
que representa o terreiro, iniciativas estão sendo adotadas para solicitar estudos com
especialistas para saber desta viabilidade e certificar se a perfuração contribuirá para uma
maior potabilidade da água.
É o seguinte. Essa água durante muito tempo ela foi ingerida por nós
mesmos, como eu mesmo já ingeri dessa água e até hoje como por exemplo,
dentro da Água de Oxalá, a gente tem a preocupação de antes lavar, fazer
um tratamento que é pra poder as pessoas, os adeptos que vêm ingerem essa
água. Mas nós tamos tomando providências porque tem uma solução, diz
que se cavar mais um pouco vai encontrar outro lençol e a água vai ficar
cristalina, nós estamos buscando isso ai, inclusive estamos encaminhando
um ofício à Embasa auxiliada pelo pessoal do Iphan para fazer esse
tratamento ai
(2009, Ent. 8)
6. 11 A CONSERVAÇÃO DOS RECURSOS HÍDRICOS
Para contribuir com ações de uso sustentável da água dentro e fora do Terreiro, a
comunidade da Casa Branca tem buscado o engajamento em projetos de cunho
socioambiental. Religiosos têm participado com freqüência de seminários e fóruns que
abordam a temática água. Um desses eventos foi o Encontro pelas Águas 2007 com
comunidades de terreiro. E desde então, a Casa Branca garantiu assento no Conselho de
Acompanhamento e Aplicabilidade das Cartas pelas Águas representando as comunidades de
terreiro.
A Ekede Sinha (Gersonice Azevêdo Brandão), religiosa da Casa Branca, assumiu a
presidência do Conselho das Águas e vem juntamente com representantes de outros povos e
comunidades tradicionais da Bahia e segmentos como mulheres, ocupando espaços no âmbito
da gestão das águas de modo a contribuir com a implementação de políticas públicas voltadas
à sustentabilidade das águas de maneira inclusiva, voltada também para estes públicos.
Representando o Conselho das Águas, Ekede Sinha entregou ao governador da Bahia,
Jaques Wagner, durante a Conferência Estadual do Meio Ambiente, em 2008, a Carta pelas
Águas. Uma das conquistas do Conselho das Águas foi a garantia da participação de um dos
seus membros no Conselho do Programa Água Para Todos, maior programa do Governo da
Bahia que deverá investir até 2010 mais de 2 bilhões de reais para ampliar o acesso à água,
serviços de saneamento e para o desenvolvimento de projetos socioambientais, o que inclui
recuperação de nascentes, preservação e conservação de mananciais de abastecimento e
educação ambiental, ações de interesse direto das comunidades de terreiro, conforme
demandado na Carta pelas Águas 2007.
Internamente na Casa Branca uma mobilização para disseminar informações sobre
sustentabilidade hídrica. Palestras com temas como uso sustentável, educação ambiental e
escassez hídrica são realizadas com regularidade por profissionais ligados a várias instituições
como Ongs, universidades e poderes públicos municipal, estadual e federal. Além disso,
lições sobre uso sustentável da água são, segundo informam os religiosos, passadas no
cotidiano através do modo que o povo de santo historicamente se relacionada com a natureza.
Acho que a gente sempre teve essa preocupação de cuidado e até hoje se
você ver uma pessoa mais velha quando vê alguém abrir uma torneira acha
uma absurdo abrir a torneira, andar pela casa toda e deixar a torneira a
água, sabe, caindo. Quando cai uma água assim do tanque que a bóia sai do
lugar, fica todo mundo doido, preocupado porque desperdiçando água.
Eu acho que essa é uma lição, essa coisa do cuidado mesmo com a água, do
respeito à água
(2008, Ent. 5).
Sempre a gente discutindo a questão da água aqui na associação civil. E
o Candomblé ajuda. Inevitavelmente você acaba sendo um multiplicador
porque as pessoas tendem a ouvir o que você diz, de alguma forma isso afeta
o comportamento delas e observar o que você fazendo. Então, é essa
minha relação com a água, tem a questão religiosa
(2009, Ent. 10)
As atividades de envolvimento nas políticas da águas e as tentativas de envolver a
comunidade em ações que visam estimular o cuidado com a água são para entrevistados do
Terreiro da Casa, uma forma de proteger o meio ambiente como o todo e consequentemente a
própria religião. Além de haver uma preocupação de implementar ações de educação
ambiental muito especialmente direcionada às crianças, a preocupação com a água parece
estar constantemente sendo abordada nas orações dirigida aos orixás.
O que a gente faz aqui é tentar preservar né, o que a gente recebeu em
termos de tradição. Então se a gente sabe, tem consciência de que sem água
não existe religião e sem água também não existe vida, então,
inevitavelmente as suas ações vão ser direcionadas pra não desperdiçar
água. Então, em casa a gente não desperdiça água, a água é bem tratada,
não se deixa torneira aberta, se toma banho rápido... Acho que tem de ter
cuidado com a água agora mais do que nunca, sendo iniciado ou não, né?
Porque agora não é mais uma questão de ser ou não ser religioso, é uma
questão de vida humana, né. Eu acho que é uma coisa que a gente tem de
começar a reeducar e educar a toda a comunidade. Conscientizar acho que
é a palavra mais certa, né, as pessoas de que realmente é verdade o que
acontecendo. Tem gente que não tem condições de viajar, não conhece
outros lugares, outros países fora do nosso, da realidade que as pessoas
estão se matando em alguns lugares por conta de não ter água... Então acho
que nessa hora a gente tem que buscar a fé mesmo, pedir aos orixás, a todos
os inquinces, voduns e caboclos. Nessa hora a gente não tem que ser de uma
religião só não. Eu costumo dizer que a gente, sabe, tem que chamar o nosso
Olodumaré com os nomes que ele tem, na igreja católica, de Buda, de Javé,
Jeová e eles têm que se unirem, vai saber fazer uma confraria pra fazer com
que o homem entenda que ele não é o dono supremo, que ele tem o poder do
mundo. Eles têm que se conscientizar,lembrar que tem de se conscientizar,
que se não preservar um dia vai acabar seja lá o que for.
Outra iniciativa visando a proteção das águas é o estímulo para que as oferendas aos
orixás, sobretudo, as que são colocadas nas águas, sejam o mais sustentáveis possíveis, como
deve ser pelos preceitos do Candomblé. A recomendação no Terreiro da Casa Branca é para
que se utilize sempre material biodegradável, como o oferecimento em folhas dos alimentos
aos orixás.
É preciso que se esclareça essa questão das oferendas. Nós temos algumas
oferendas que são necessariamente jogadas em rios e em água salgada,
porém eu recomendo que perfumes se coloque na água e o frasco, retenha. A
comida, geralmente os peixes comem que são omolucum, fava branca,
alguma coisa assim que se possa colocar, mas que imediatamente vai ser
alimentos pra os habitantes desse local. Quanto aos outros ebós, me permita
que você não perguntou, nós temos uma árvore chamado Iroko que a gente
deposita quase todos os ebós ali, então não é uma agressão ao meio
ambiente. É preciso que haja esse esclarecimento que as pessoas nos
acusam de religião animista e que também agride o meio ambiente, tem ao
contrário, a gente busca equilíbrio do meio ambiente. A religião ela veio por
pessoas sábias e tem a questão da adaptação do lugar novo, né, e tem
também a prática ritualística que as pessoas vêm e querem só repetir. Isso a
gente deve ter muito cuidado
(2009, Ent.9)
Antigamente ia balaios de coisas, tecidos, aquelas coisas ornamentadas,
louças, botava tudo dentro dos rios. Você pode ir no Dique do Tororó que
tem louça que vale ouro, deve ter louça até de ouro, muita coisa, porque as
pessoas que antigamente tinham poder podia fazer. Mas hoje a gente já não
pode mais fazer isso que a gente já começa a aprender que o meio ambiente,
tem coisas que você não pode jogar no mato, tem coisas que não pode
jogar no rio, que poluindo, tá prejudicando. Então, é por conta disso que
a gente tem que ser educado, né. Essas coisas de barro, coisas que demora
de estragar, né, plástico. Quando a gente pega um restinho de comida,
alguma coisa, plástico, a gente não pode jogar o saco plástico no rio junto
com a comida, tem que ter o cuidado de tirar, botar a oferenda lá e trazer o
saco plástico pra casa. Garrafa, você vai querer agradar Oxum, Iemonjá na
beira da praia no dia primeiro do ano, você não precisa jogar a garrafa de
champagne no mar, né. Você pega a garrafa de champagne, abre, joga que
aquilo ali é a sua intenção, né, e a garrafa você traz pra casa. Pra que jogar
uma louça dentro do mar, pra que? Quando você pode pegar uma folha, faz
o mesmo efeito. Os africanos não tinham louça, os africanos não tinha
garrafa, eles sempre agradaram os orixás com folhas. O prato do orixá é a
folha, por isso que tem alguns orixás, Oxum come na folha. Tem uma
comida de Oxum que chama o ipeté que é uma comida de inhame, com
camarão e dendê, é distribuída numa folha. A comida de Obaluaiê, o
ulubagé é distribuída numa folha
(2008, Ent 5).
A Feira de Saúde realiza na Casa Branca é uma das ações que visam envolver a
comunidade em questões ambientais. A Feira está sendo realizada desde 2003 uma vez por
ano. Na ocasião, são montados estandes para que possam ser prestados serviços à comunidade
como medição de pressão arterial e de glicemia. Paralelamente são realizadas outras
atividades como oficinas e palestras que relacionam o cuidado com o meio ambiente como
uma questão de prevenção à saúde. Aborda-se, por exemplo, o cuidado com a água e o
manejo da água nas quartinhas.
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Todos os momentos dos rituais com a água no Terreiro da Casa Branca se constituem
como uma reprodução da vivência da ancestralidade, com as devidas adaptações e
modificações ao longo do tempo. Os gestos, o cortejo, as roupas, a postura dos envolvidos são
cheios de simbolismo, significado. Filho (a) de santo da Casa Branca segue a tradição, se
veste de branco na sexta-feira, o dia de Oxalá, faz oferendas, usa cordões de contas coloridas
para retratar a relação com o seu orixá, cumpre obrigações que lhe são impostas pelo “dono”
ou “dona” da sua cabeça.
A fé nos orixás envolve os religiosos de tal forma que além de cultuar as divindades e
saudar a ancestralidade por meio dos rituais, iniciados da Casa Branca, que foram
entrevistados, demonstram a preocupação em seguir os preceitos, as obrigações da religião
com muito respeito e fidelidade ao que se recomenda. Afinal
não se brinca com orixá,
ensinam os religiosos. E por isso, se faz tudo que os orixás mandam fazer. Eu sigo o que meu
orixá manda fazer, totalmente (2009, Ent. 14).
E como isso ocorre na relação com a água? A percepção de que água é orixá, de que
água doce é Oxum, de que todos os orixás têm uma relação com a água perpassa a área física
do terreiro e a visão religiosa, para ser incorporada em atitudes sustentáveis no uso da água no
cotidiano, inclusive, fora do Candomblé? A dimensão do sagrado da água vivenciada dentro
do terreiro influencia no comportamento das pessoas no uso da água dentro e fora do
Candomblé? Como é essa relação de uso da água dentro e fora do Candomblé?
Pode-se perceber, a partir desses questionamentos e respostas dos entrevistados que o
sentido sagrado da água está imbricado na vida de iniciados da Casa Branca. Inclusive, a
aplicação da água com sentido sagrado e também no sentido divino é evidente em pequenos
hábitos do dia-a-dia.
Ah, água é tudo! Sem água não se vive em religião nenhuma e na nossa!
Quando a gente acorda de manhã cedo, a gente tem que tomar um banho.
Quando a gente abre a porta, a gente tem que botar três pingos de água no
chão pedindo tudo de bom pra gente. Se a gente for sair, a gente pede que
ocorra tudo em paz, que o que a gente vai resolver que a gente consiga
resolver em paz, que aquele dia seja bom pra gente, pra todos nós, entendeu?
Pra comunidade, pra que nada aconteça de ruim, pelo menos que amenize as
coisas que vão acontecer, né? Quando a gente volta pra casa, a gente joga
mais três pinguinhos de água na rua agradecendo pelo dia que a gente teve
(2008, Ent.5).
O uso da água é místico, por ser divina ou por representar uma divindade, a água é
capaz com todo axé do qual é revertida e carrega, de criar uma atmosfera de proteção ao redor
do praticante do ritual e de toda a comunidade que, acredita-se, é igualmente beneficiada.
A gente despacha a porta tanto quando sai, tanto quando chega, entendeu?
A nossa certeza, a nossa confiança de que nós vamos para rua e que vai
ocorrer tudo bem, então nós despachamos e quando chegamos também em
agradecimento, porque hoje em dia no mundo violento que tá, tem mesmo
que agradecer quando chega em casa. Nós despachamos o que é ruim, tá.
Ela tanto serve pra despachar o que é ruim quanto serve pra nos purificar
(2009, Ent. 6).
Para entrevistados, a compreensão de que a água é tão cheia de energia que é
preciso consumi-la para então realizar qualquer coisa na vida, qualquer ação por mais simples
e rotineira que pareça como o ato de falar. É como se a água pudesse embevecer o indivíduo
de uma positividade, energização, influenciando nas suas atitudes. A água é uma coisa muito
preciosa, não é minha filha, eu mesmo não falo se não botar um pouquinho da água no chão,
esse chão que nos sustenta, que nos ampara, essa terra maravilhosa, isso? Então a terra
precisa da água e nós também precisamos da água (2009, Ent. 12).
Para a maioria dos entrevistados, o Candomblé exerce influência no comportamento
de cada um no trato com os recursos naturais cotidianamente. No que diz respeito ao uso da
água, isso tem uma repercussão direta à medida que o jeito de lidar com a água no Candomblé
contribui para modelar a relação, o jeito de lidar com a água dos religiosos fora do ambiente
sagrado, no uso cotidiano.
Dentro do Terreiro, é disseminada a noção de que água é Oxum, água é orixá e que
deve ser cuidada e isso é passado de geração em geração.
Eu aprendi a respeitar a natureza, eu aprendi a importância da água
através do Candomblé, através da Casa Branca, através da comunidade...
Aquilo que minha mãe, que minha avó me ensinaram 30 anos atrás. A
água é a fonte da vida. Hoje em dia quando eu chego em outros lugares
onde eu vejo água contaminada e o impacto negativo que isso teve nas
pessoas, eu lembro daquilo que eu aprendi há 30 anos atrás e que é além do
aspecto religioso, quer dizer, me foi passado como a idéia de manter a água
limpa pra cultuar os orixás, mas vem na origem do Candomblé, a água é um
dos elementos da natureza, a água é vida. Então o aspecto, como te disse,
que vai além do Candomblé. Eu aprendi através da religião, mas acho que é
uma coisa que vai além da religião
(2008, Ent. 1).
Os ensinamentos, a maneira de lidar com a água enquanto elemento sagrado
desenvolve nos indivíduos a consciência do valor religioso e estimula a conservação por ser
um bem escasso.
O que aprendo no Candomblé repercute hoje na consciência de que a gente
tem que tá dando valor o tempo todo à água, né, porque existe hoje até uma
escassez de água. Se fala até num racionamento de água. Então, na nossa
religião o que a gente mais aqui é que a gente tem que cuidar dela,
preservar o tempo todo; as torneiras, como a água tá tratada, como tá vindo
essa água, como é utilizada, como é o tratamento que se dá, pra onde vai
essa água, como a gente está utilizando, repercute assim em mim, na
consciência de que a gente tem que preservar o tempo todo. Há uma grande
dificuldade se faltar água aqui. Se faltar água é como se faltasse a essência
do povo de Candomblé, porque quase tudo, tudo é feito com água, a cozinha
você trabalha com água, pra você lavar você trabalha com a água, pra você
iniciar até um ritual você precisa da água
(2008, Ent. 4).
Essa percepção de proteção dos elementos da natureza, principalmente água e folha, é
estimulado através da associação direta destes com os orixás.
Eu fui educada pra ter cuidado com as coisas. Eu fui educada a não
mexer em planta. Minha mãe batia na mão das crianças quando tirava as
folhas das plantas, ficava puxando. Ela achava que tirar uma galha de uma
planta assim tava machucando Ossain. “Ai é um orixá, você faz assim, ele tá
sentindo dor, se fizer assim com você, puxar sua orelha, você vai gostar?”,
entendeu? Ela pensava no religioso. Hoje eu posso pensar que tirar uma
filha assim, tô machucando Ossain, mas eu vou pensar mais que eu tô
prejudicando a natureza, entendeu? Por que sem necessidade eu vou tirar
uma folha? Se pra ritual religioso, pra tirar uma folha, eu tenho que
acordar cedo porque não posso tirar no sol quente, eu tenho que pedir
licença à mata, eu tenho que rezar. Eu respeito Ossain para tirar uma folha
o religioso, entendeu? Pra fazer alguma coisa dentro do axé. Eu não
chego no mato assim de qualquer jeito e pá, tiro a folha e vou me embora,
eu tenho que acordar cedinho, às vezes tem até que fazer alguma uma
oferenda, botar uma moeda, dar algum agrado pro dono das folhas. Se a
gente vai entrar numa mata, a gente não entrar assim sem pedir licença, tem
que pedir licença, tem que jogar aquela aguinha no chão acalmar a
terra, pá poder mexer na planta, tem que levar um pano pra botar a folha no
pano, não vem assim com a folha correndo, balançando, pegando de
energias que não é legal. Tem que enrolar a folha direitinho pra fazer um
ritual, fazer uma obrigação. E ai tem gente que tem mania de assim o
jardim conversando e picotando a folha toda, né? Me uma agonia tão
grande! Ai às vezes a gente fala, pensa logo que é por causa do Candomblé,
mas às vezes nem é. É porque não tem necessidade de fazer aquilo, você
maltratando a bichinha, né?
.
O cuidado com a água é mais aguçado entre os mais velhos, o que pode ser justificado
pela vivência no Candomblé e assimilação dos preceitos fruto dessa maturidade religiosa.
O Candomblé me ensinou a ter cuidado com a natureza sim. Tem que ter
cuidado pra não secar a água, não é, para não secar as águas do rio, rio
que eu falo aqui é fonte, tem que ter limpeza, a fonte tem que ser cobertinha
pra não cair sujeira
(2008, Ent. 3).
A vinculação do significado da água para os rituais, os orixás, enfim para as vivências
e existência do Candomblé, com o uso da água no cotidiano, acaba sendo inevitável entre
iniciados. Para a maioria dos entrevistados, o que se aprende no Candomblé sobre a
importância da água é, naturalmente, incorporado no cotidiano, no lidar com a água do ponto
de vista doméstico. Logo que eu fui iniciada minha mãe Tetê, ela me deu os conhecimentos da
preciosidade da água, entendeu, quando ela disse bote a água o necessário no banho, não
desperdice a água então isso ficou na minha mente
(Ent.12).
Os ensinamentos passados de geração em geração transmitem o sentido de proteção,
cuidado da água a partir de atos cotidianos de uso da água no terreiro.
Olha, a água eu sempre achei que a gente sempre teve muita água,
entendeu, mas as pessoas sempre gostavam de economizar aqui no
Candomblé. Eu pensava, poxa esse pessoal tem preguiça de carregar água,
não era nem preguiça de carregar água, era aquela coisa muito sagrada, é
essa quantidade, é essa quantidade, pra que mais que isso? Ai eu tinha a
disposição de encher tudão de água pra elas lavarem as coisas, e elas não,
chega, tá bom, se precisar a gente pede a você, entendeu? E ai eu fui
aprendendo que é um bem precioso que elas não gastam tanto não é por
preguiça de fazer as coisas, é por economia, por economia não, é por
respeito, entendeu?
(2008, Ent. 2).
Para iniciados, as práticas com uso da água no Candomblé contribuem para o
desenvolvimento de uma consciência ambiental.
O Candomblé te ensina a você ser forte. Aprendi a ser forte, a dar mais
importância ao que, de fato, nos traz vida: a água. Sem a água não
sobrevivência. Hoje a gente ver muita campanha, mas a campanha ela
começa dentro da nossa casa. Então quando a gente tiver consciência que
ali é um orixá, é um elemento e a gente não pode fazer uso desordenado, ai
sim, a gente vai dar mais importância a essas coisas
(2009, Ent. 14).
As atitudes quanto ao uso da água revelam o traço forte da influência do Candomblé
no dia-a-dia das pessoas no sentido de se fazer um uso racional deste recurso natural. No
Candomblé da Casa Branca, segundo os entrevistados não se pode jogar “água sagrada”, a
água da fonte fora, no esgoto. A água tem que ser usada em quantidade o suficiente para as
obrigações, sem desperdício e o que sobra de uma prática ritual como a lavagem do quarto
dos orixás é reutilizado, por exemplo, para regar as plantas.
Aqui na roça a gente não joga a água a água do ossé no esgoto não, joga na
terra porque a terra é natureza, onde tem plantas nós jogamos pra
aproveitar aquela água, joga nas plantas.
..(Ent. 3). “Existe uma grande
preocupação, os ossés também são feitos, a gente não se joga uma água fora
assim numa vala que possa ir prum esgoto, a gente tem um lugar
específico, um montinho de planta, no fundo certinho do Candomblé, que
não vai ter erosão mesmo, a terra vai absorver, a gente não joga fora
mesmo
(2008, Ent 2).
Como no Candomblé tudo se aprende vendo e fazendo, acredita-se que esse tipo de
prática, de atitude reflita positivamente em pequenas atitudes cotidianas de iniciados fora do
terreiro, como pode-se constatar na fala dos entrevistados a seguir:
Na minha casa mesmo, a gente sempre, principalmente quando
chovendo, a gente sempre bota os vasilhames água da chuva gente
poder molhar as plantas, guardar, limpar o quintal, então a gente utiliza
esse tipo de água
(2009, Ent. 15).
Fora da religião, uso a água com o maior cuidado. Abro minha torneira,
uso o necessário. Quando vou tomar um banho desligo logo, vou me
ensaboar, desligo tudo e brigo com as pessoas também por causa disso. Até
no meu trabalho uma certa vez, o pessoal lavando as coisas eu disse,
gente pelo amor de Deus a água, ai o colega falou a empresa é rica e eu
digo, claro que é rica e sei que pode pagar, mas um dia a empresa vai ter
bastante dinheiro pra pagar mas não vai conseguir água pra fazer o que
você fazendo. Na sua casa você faz isso? A pessoa, me desculpe, mas eu
faço não é porque eu quero, é hábito. E eu digo: pare e pense a quantidade
que você fazia quando era criança e agora, ai resolveu o problema
( 2008,
Ent. 2).
O Candomblé é a minha vida, é minha saúde, é tudo enfim pra mim. Então,
eles ensinam que a gente não desperdice a água, se a água tá limpa, a gente
aproveita pra alguma coisa, se a água suja, aproveita pra alguma coisa.
Na minha casa, se eu lavo uma roupa, na hora de enxaguar aquela roupa
que eu não tenho máquina de lavar, ai, na hora de enxaguar eu guardo
aquela água lavar o pátio, lavar o banheiro, entendeu? Na minha
casa é assim e aqui no Candomblé é a mesma coisa
(Ent. 7, 2009).
A gente usa a água da máquina pra lavar pano de chão, lavar banheiro,
vaso sanitário, a máquina ela tem um tubo e a gente vai deixando em baldes
e quando a gente precisa vai usando aquela água. Na cozinha eu procuro
reciclar a água. Então se eu cozinhando uma verdura, normalmente se
joga a água fora, mas aquela água ali eu já pego, já sai fervendo inclusive e
coloco o arroz, é colocar o arroz dentro e manter ela no fogo, até
economiza gás também porque não vai precisar ferver a água que em
ponto de ebulição e ai você faz outras coisas como o feijão, evita gastar e
também aproveita mais os nutrientes dos alimentos
(200, Ent 10).
Entre entrevistados da Casa Branca, o desperdício é sinônimo de agressão não ao
meio ambiente, mas aos próprios orixás.
Quando eu lido com a água na minha casa, lidando com Oxum. Eu como
sou uma mulher assim muito coisa, eu digo assim ah não, eu tenho uma
força que é de Iemanjá, eu chamo muito pela minha mãe. Eu sou de Iemanjá
com Oxum, minha mãe de Santo é D´oxum, né, minha mãe que me pariu era
D´Oxum, então Oxum me cerca de todos os jeitos. Quando eu tomando
banho eu digo: ô minha mãe que maravilha, então faz parte sim, Oxum pra
mim é tudo
(2009, Ent. 15).
Saber lidar com a água, cuidar da água para muitos iniciados significa uma obrigação
para com seu orixá de cabeça. A percepção do iniciado é que atos de dergadação dos recursos
hídricos são consequentemente ações lesivas aos orixás das águas, sobretudo Oxalá,
considerado pai de todas as cabeças no Terreiro da Casa Branca, como narra um entrevistado
filho de Oxalá e Oxalufã.
Uma vez eu tava aqui e chegou alguém pedindo água, né, ai eu tava fazendo
alguma coisa e ai minha mãe Nitinha falou assim: “você logo dar água
pra essa pessoa porque uma pessoa de Oxalá não pode negar água a
ninguém, ai isso ficou na minha cabeça. Então, sempre que eu chegando
em casa, chega alguém pedindo água, eu tenho que largar tudo pra dar
água a essa pessoa. Então eu não posso negar água a ninguém de forma
nenhuma por causa dessa questão da água ser o elemento chave de Oxalá.
Com certeza isso aumenta a minha responsabilidade tanto na questão da
preservação, tanto na questão de matar a sede das pessoas mesmo
(2009,
Ent. 10).
Dos 15 entrevistados para esta pesquisa no Terreiro da Casa Branca, apenas um disse
que não tem preocupação em poupar a água e evitar o desperdício. A mesma pessoa, que tem
pouco mais de um ano de iniciação, no entanto, mostra consciência do significado da água
para a religião.
A água pra mim acho que é vida, e pra nossa religião ela tem uma grande
importância porque nós, como é que se diz, como é eu posso falar a
palavra? A água está em todos os momentos de nossa religião, que é na
hora do banho, que é uma hora sagrada, na hora que a gente acorda, serve
para as refeições dos orixás, serve pra um monte de coisas (...) Quando uso
a água em casa não penso nisso não. Ah, às vezes, eu deixo a torneira
aberta porque não vou mentir. Na hora de tomar banho, principalmente, é a
parte que eu mais demoro com a água ligada e na hora de lavar o prato,
essas duas coisas que eu demoro muito com a água ligada
.
Desta forma, ao ser concluída esta pesquisa, constata-se que dentro do Terreiro da
Casa Branca do Engenho Velho da Federação uma valorização da água, seja enquanto
elemento sagrado, seja enquanto representação dos orixás. Isso implica diretamente na vida
cotidiana da maioria dos iniciados entrevistados.
Essa relação pautada a partir dos ritos e mitos, através dos quais procura-se reviver,
reproduzir a trajetória dos orixás o que contribui, inclusive, para a sobrevivência da própria
religião, faz com que haja atitudes sustentáveis no trato com os recursos hídricos. Uma destas
atitudes é evitar o desperdício no uso da água dentro do Candomblé, como é orientado dos
mais velhos para os mais novos e fora do Candomblé também, pois incorpora-se no dia-a-dia
os ensinamentos, os preceitos da religião.
Dentro do Terreiro da Casa Branca, as pessoas são orientadas a cuidar da natureza, dos
recursos hídricos, pois cuidar de árvores, por exemplo, é cuidar de Irocô, de Ossain; cuidar de
água doce é cuidar de Oxum, é respeitar Oxum, é reverenciar Oxum. Ao se fazer os ossés,
como exposto, é preciso reaproveitar a água, fazer com que ela tenha nova utilidade, seja
devolvida para a terra, molhe a terra, regue as plantas.
A tradição religiosa reproduzida através dos ritos e mitos também contribui para que
atitudes sustentáveis sejam disseminadas entre os iniciados e até mesmo entre simpatizantes
da religião. Afinal, os ritos mostram a co-relação dos orixás com elementos da natureza. O
mito que conta a história de Oxalá aprisionado no reino do seu filho Xangô e o ritual “Águas
de Oxalá” que reproduz o banho, a lavagem de
Oxalá, revelam a importância da água para a
purificação de todos, limpeza de todos diante do
Oxalá criador. As falas dos entrevistos foram
muito firmes no sentido de que a água é imprescindível para a existência da religião. Existe
para a maioria, a preocupação de que atitudes sustentáveis quanto ao uso da água sejam
adotadas, inclusive, no âmbito das políticas públicas, para que se possa desta maneira,
preservar os recursos hídricos e consequentemente resguardar o culto aos orixás e resguardar
a existência do Candomblé.
Portanto, esta pesquisa contribuiu para que se reconheça o Terreiro da Casa Branca
como um espaço onde se agrega um conjunto de saberes integrados; conhecimentos que nem
sempre são referendados pela ciência, mas que, como certifica Boaventura de Souza Santos
(2006), estão baseados na sabedoria popular e constituem-se em parte integrante da natureza
da ciência. O autor ainda pontua que a ciência moderna não é a única explicação possível da
realidade, principalmente quando se refere aos sistemas de crenças e juízos de valor. Ele
reforça que não razões para considerar a explicação científica como a única válida e
superior nesse sentido, justificando assim a necessidade de entender melhor esse conjunto de
crenças, valores, saberes. É o que pode-se dizer quanto aos modos de lidar com o meio
ambiente, com a água.
A partir de modos de agir individual, local, pautado em “obrigações” com os orixás,
acredita-se que é possível desenvolver uma consciência cidadã de proteção e conservação das
águas. Guimarães (2003) explica que o modo de agir local está relacionado a um pensar
global. Isso significa, segundo o autor, que à medida que cada indivíduo tem um
comportamento de proteção e conservação ambiental nos locais onde esteja inserido,
conseqüentemente exerce sua cidadania planetária.
Pode-se afirmar, desta maneira, que no Candomblé da Casa Branca as pessoas são
orientadas para respeitar a natureza. E as tradições (ritos e mitos) no Ilê Axé Iya Nassô Oká
utilizando a água doce (potável) contribuem para que iniciadas e iniciados tenham uma
postura diferenciada de proteção e conservação dos recursos hídricos. Todo iniciado, toda
iniciada, têm, como já exposto, vínculos de obrigação com seus orixás. Se orixá é natureza, se
são as divindades representações da natureza, como é passado de geração em geração e tanto
a mitologia quanto os rituais contribuem para esse entendimento, é dever de todo iniciado
respeitar seu orixá, cuidar do seu orixá e consequentemente zelar pela natureza. Se assim não
o proceder, terá que responder pelos seus próprios atos junto aos seus orixás.
Apesar destas conclusões, percebemos que mesmo tendo sido feita a opção
metodológica pela pesquisa descritiva e exploratória, não foi possível o aprofundamento nesta
pesquisa de todos os fenômenos observados em campo. Ressalta-se que este trabalho não
tinha a pretensão de descrever na sua totalidade as práticas rituais com uso da água do terreiro
da Casa Branca por várias razões elencadas, principalmente porque nem tudo no
Candomblé é dado saber, conhecer, falar. Não teria essa pretensão seja enquanto estudante,
primeiro pela falta de condições de um maior aprofundamento das tradições em tão curto
espaço de tempo em uma pesquisa de mestrado, depois pela própria limitação imposta pelo
fato de não ser uma adepta à religião e mesmo que assim o fosse, com função ou cargo
estabelecido, não poderia ir além, porque como se diz entre iniciados da Casa Branca,
poderia fazer o que os orixás permitissem que fosse visto, transmitido e registrado em
palavras.
No entanto, este trabalho deixa uma contribuição no sentido de que muito ainda
para ser estudado sobre o tema. Percorremos um caminho metodológico que firmou nossa
passagem pelo Terreiro da Casa Branca e nos possibilitou ir até onde foi possível. Quiçá em
uma pesquisa de doutorado, sobre esta relação do povo de santo com a água, com as
divindades, com o ambiente, sobretudo, se levado em consideração as particularidades de
cada nação, em diferentes contextos de urbanização. Relevante lembrar que, na cidade de
Salvador existem mais de 1300 terreiros de Candomblé, localizados em distintas bacias
hidrográficas e com diferentes graus de conservação da sua cobertura florestal. Esta cidade
que ao longo do tempo vem sendo modificada por diversos fatores como: a perda da
biodiversidade pelo acentuado crescimento da malha urbana.
Ressalta-se, porém, a magnitude de trabalhos de pesquisa com esse propósito, pois ao
mesmo tempo que contribuem para que as tradições do povo de santo sejam mais conhecidas
e respeitadas, contribuem para o estudo das formas de manejo da água nas comunidades
tradicionais de terreiro. Consequentemente são evidenciadas as implicações dessa relação
com o ambiente e como isso pode refletir na melhoria da qualidade de vida das pessoas.
Embora essa pesquisa tenha sido focada no uso da água no um único terreiro de Candomblé,
pode-se inferir que por serem as religiões de matriz africana norteadas pela fé e obediência às
divindades, sejam orixás, inquices, voduns e caboclos, os iniciados de comunidades
tradicionais de terreiro tendem a ter uma atitude sustentável no trato com os recursos naturais,
e em particular, com a água.
Portanto, no momento em que o mundo busca alternativa para o uso sustentável dos
recursos hídricos, dirigir o olhar para o manejo da água nas comunidades de terreiro é também
contribuir para que a sociedade, de um modo geral, inclusive da própria comunidade
estudada, assimilem cada vez mais uma postura de cuidado e proteção com as águas. Afinal:
Não há vida sem água e como diz o povo de santo:
Kosi Omi, Kosi Orixá.
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ANEXO
ILÊ AXÉ IYÁ NASSÔ OKÁ - TERREIRO DA CASA BRANCA DO ENGENHO
VELHO - LAUDO ANTROPOLÓGICO DE AUTORIA DO PROFESSOR DOUTOR
ORDEP JOSÉ TRINDADE SERRA, DA UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
O ILÊ AXÉ IYÁ NASSÔ OKÁ, TERREIRO DA CASA BRANCA DO ENGENHO VELHO, é
tradicionalmente considerado, nos meios populares, o mais antigo templo afro-brasileiro ainda
em funcionamento. Os etnógrafos que se ocuparam dele reconhecem que é impossível
precisar a data de sua fundação (na Barroquinha), mas os cálculos baseados na etnohistória e
nos documentos disponíveis fazem-na remontar, no mínimo, à década de 1830 (COSTA
LIMA, 1977; VERGER, 1992. BASTIDE, 1986), ou mesmo a inícios do século XIX, senão
um pouco antes (SILVEIRA, 2006). Sua comunidade de culto o Egbé Iyá Nassô segue
o rito nagô e se auto-identifica como um “candomblé ketu”, ou “de nação ketu”. (COSTA
LIMA, 1976 e 1999). No contexto, o designativo “nação ketu” remete, por contraste
paradigmático, a denominações como [nação] “ijexá”, “angola”, “jeje” etc. No caso do egbé
em questão, existe clara consciência de que a “nação” corresponde a um indicador étnico,
refere-se a um lugar de origem dos (principais) fundadores do culto. [Em outros domínios, no
universo dos ritos afro-brasileiros, os designativos “ketu”, “ijexá”, “angola” etc. conotam
antes um modelo litúrgico, que se sobrepõe à referência étnica quase a elidindo: ver a
propósito Serra, 1995: 71: “O conceito de nação tem duplo alcance: indica ao mesmo tempo
uma tipologia de ritos e uma origem étnica (...); a referência ‘etno-histórica’ pode estar mais
acentuada em um caso do que em outro”]. A comunidade do Terreiro do Engenho Velho
mostra grande consciência do vetor étnico de sua auto-designação. Ela também se identifica
como nagô (“nós somos nagôs!”) e reconhece, neste nível, sua relação de proximidade com
os grupos de culto ijexá, que se
autodenominam com este etnônimo, evocativo de uma sociedade iorubana. Nagô, como se
sabe, é o etnônimo mais usual no Brasil para assinalar grupos ou sociedades iorubafones e
seus descendentes, ou antes, os seguidores de suas tradições, que formam aqui grêmios
religiosos. (SERRA,2005). O hieronímico do Terreiro da Casa Branca do Engenho Velho faz
referência a sua fundadora, Iyá Nassô, ainda hoje invocada nas preces do egbé como Iyá
Nassô Oió Acalamabô Olodumaré. Os estudiosos reconhecem que “Iyá Nassô” vem a ser, na
verdade, um título: um dos mais importantes títulos sacerdotais femininos do Império de Oió
(COSTA LIMA, 1977; SILVEIRA, 2006), correspondente a um elevado posto hierárquico,
indicativo de alta projeção na corte do
Alafin, e liga-se ao culto de Xangô [um orixá, uma
divindade do panteon ioruba, muito cultuado no Brasil (COSTA LIMA, 1977; ABRAHAM,
1958; MORTON-WILLIAMS, 1964; SMITH, 1969; BURT, 1977; VERGER, 1987, 1999)].
Recentemente, Lisa Earl Castillo e Luis Nicolau Parès (2007) sugeriram identificar a
Iyá
Nassô epônima do candomblé do Engenho Velho como uma africana liberta, nagô, que tomou
o nome de Francisca da Silva no Brasil, aqui permaneceu por décadas e retornou a sua terra
natal em 1837; documentos encontrados nos arquivos baianos parecem alentar esta hipótese.
Tudo indica que Iyá Nassô e seu grupo de culto já eram atuantes nos começos do século XIX,
tendo provavelmente ocupado diferentes espaços na cidade do Salvador, antes de estabelecer
seu Ilê Orixá na Barroquinha. Ilê Orixá significa “santuário de orixá”; esta designação tanto
pode ser usada para indicar o mesmo que Ilê Axé como para indicar os santuários individuais
de diferentes orixás num terreiro. A palavra egbé (também grafada ebé e assim pronunciada
pelo povo-de-santo baiano) é outro termo nagô incorporado ao dialeto dos terreiros da Bahia.
Conforme a entendem seus usuários, significa “sociedade”, “associação”, “comunidade”
(CACCIATORE, 1981, s.v. ; CASTRO, 2001, s.v.) . A expressão Egbé Iyá Nassô designa,
pois, a comunidade de culto do Terreiro da Casa Branca, isto é, o grupo de culto formado
pelos iniciados e iniciandos do Ilê Axé Iyá Nassô Oká. O hieronímico Ilê Axé Iyá Nassô Oká,
por sua vez, designa tanto esta comunidade quanto o próprio Terreiro da Casa Branca do
Engenho Velho enquanto lugar, espaço consagrado, percebido como um território por um
grupo com uma identidade étnico-religiosa muito marcada (SERRA, 2005; REGO, 2003).
Ilê
Axé
vem a ser uma expressão da língua ioruba que significa “templo” e se acha incorporada
ao dialeto dos 3terreiros. O templo em apreço é ainda conhecido popularmente como
Candomblé do Engenho Velho, Candomblé da Casa Branca, Casa Branca do Engenho Velho,
ou simplesmente Casa Branca.
De acordo com as tradições do
Ilê Axé que tem seu nome, na fundação dele Iyá Nassô teve a
ajuda de outras sacerdotisas muito veneráveis, vindas da cidade de Ketu (
Iyá Adetá e Iyá
Acalá) e contou também com o apoio de um grande sacerdote ligado aos cultos das
divindades Xangô e Ifá, portador do título de Bamboxé Obitikô, igualmente oriundo de Ketu,
segundo se acredita. Este famoso babalaô (sacerdote de Ifá, especialista no jogo
divinatório) tinha no Brasil o nome de Rodolfo Martins de Andrade (VERGER, 1981). É
honrado entre os ancestrais do Egbé Iyá Nassô juntamente com Babá Oburô e outros
personagens eminentes que, segundo a tradição preservada na Casa, participaram da fundação
do templo da Barroquinha (SERRA, 2005; SILVEIRA, 2006). É fácil ver que as raízes
místicas do Terreiro da Casa Branca do Engenho Velho o ligam de maneira muito especial
com as antigas cidades africanas (iorubanas) de Oió e de Ketu. A vetusta cidadeestado de Oió
(Oyo Ile) é centro do culto de Xangô, lembrado na crônica local como um seu antigo rei
(JOHNSON, 1921; MORTON-WILLIAMS, 1964) . Fica na atual República da Nigéria. Ketu
é consagrada a Oxossi, considerado o fundador da dinastia ioruba que aí reinou, o seu
primeiro soberano [(Alaketu) (PARRINDER, 1956, 1997; SMITH,1969; SANTOS, 1977)].
Esta antiga cidade iorubana fica hoje na República do Benin, perto da fronteira com a Nigéria.
O terreno do Ilê Axé Iyá Nassô Oká é consagrado a Oxossi e a sua principal edificação a
Xangô, tendo como símbolo dominante a Coroa de Xangô (CAPINAN; RIBEIRO, 1985). É a
festa de Oxossi que dá início ao calendário litúrgico deste templo.
O Terreiro da Casa Branca do Engenho Velho pode ser considerado um monumento vivo e
um precioso legado que se conserva no Brasil da grande civilização iorubana, as origens de
cujo florescimento remontam ao século IX. A tradição popular lhe atribuiu remota
antiguidade (AMADO, 1945: 227. SERRA, 2005). Os membros do Terreiro da Casa Branca
do Engenho Velho reconhecem também que tiveram parte na sua fundação
africanos oriundos de outros grupos étnicos além dos oyós e do povo de Ketu, em particular
mebros das etnias tapá, egbá, efan e ijexá, o que explica o culto prestado a divindades
originárias das regiões habitada por esses povos; reconhecem, também, a relação próxima
com grupos de culto jeje.
A tradição preservada na comunidade do Egbé Iyá Nassô reza que este terreiro foi instalado
primeiramente na Barroquinha (Centro Histórico de Salvador), na Ladeira do Berquó, mas
veio a ser transferido, tempos depois, para o lugar onde ainda hoje se encontra, local
conhecido, naquela época, como a Roça do Engenho Velho, sita no Caminho do Rio
Vermelho, no trecho popularmente designado pelo topônimo Joaquim dos Couros
(CARNEIRO, 1985; COSTA LIMA, 1977; SILVEIRA, 2000 e 2006). A transferência pode
ter-se dado na segunda metade do século XIX; há evidência de que “quando a sucessora de
[Iyá] Marcelina faleceu, em 1890, o terreiro se encontrava no Engenho Velho, em terreno
arrendado a José Carneiro de Campos, e possuía uma considerável estrutura física, o que
sugeria que estava ali funcionando havia alguns anos”, como bem presumem Lisa Earl
Castillo e Luis Nicolau Parès (2007: 143) Na passagem citada, os autores se referem à
Venerável Marcelina da Silva, Obatossi, a segunda Ialorixá desse candomblé nascido no
Centro Antigo da cidade. Eles baseiam sua afirmativa em um documento encontrado no
Arquivo Público do Estado da Bahia, um inventário dos bens de uma antiga Ialorixá (a
terceira) do Egbé Iyá Nassô: o documento intitulado Arrecadação de Maria Júlia Figueiredo,
1892 (OLIVEIRA, 1988; CASTILLO; PARÈS, 2007). Hoje, esse local corresponde a um sítio
à margem de uma grande avenida: o endereço atual do Terreiro da Casa Branca vem a ser
Avenida Vasco da Gama, 463. Sua entrada é uma pequena praça consagrada, a Praça de
Oxum
, na parte plana do imóvel, cujo limite com relação à avenida está demarcado por uma
monumental grade de ferro, lavrada com motivos da mítica do candomblé, obra do artista
plástico Bel Borba. Fica numa encosta a edificação principal do Ilê Axé (a “Casa Branca”
donde se tirou um cognome do terreiro), prédio que compreende o salão de festas, sacrários,
cômodos de uso residencial de hierarcas do
egbé, clausura, sala de refeições e cozinha ritual;
na mesma encosta se implantam santuários destacados (
ilê orixá) e também casas onde
residem membros da comunidade (SALVADOR, 1982; SERRA, 2000 e 2005; OLIVEIRA,
2006). Um monumento singular tem destaque na Praça de Oxum: o famoso Barco de Oxum,
Okoiluaiê. Nos festejos de reinauguração desta Praça reuniram-se com o povo-de-santo da
Casa Branca do Engenho Velho as Ialorixás e vários membros ilustres dos veneráveis
egbé do
Gantois e do Axé Opô Afonjá, candomblés que se reconhecem descendentes do
Ilê Axé Iyá
Nassô Oká (MARTINS, 2000; SERRA, 2005).
Segundo os registros da tradição vigente no Egbé Iyá Nassô — uma tradição que as pesquisas
historiográficas em grande medida têm conconfirmado —, a primeira Ialorixá
(Sacerdotiza Principal) do Terreiro da Casa Branca do Engenho Velho, Iyá Nassô, foi
sucedida por Iyá Marcelina da Silva, hieronímico Obá Tossi; depois desta, pontificou a Iyá
Maria Júlia Figueiredo, Omoniquê, sucedida por Iyá Ursulina Maria de Figueiredo, a famosa
Tia Sussu. A esta sucedeu, por sua vez, Iyá Maximiana Maria da Conceição (Oin Funquê), a
também muito célebre Tia Massi. Seguiu-se-lhe Iyá Maria Deolinda Gomes dos Santos (Okê),
sucedida pela Iyá Marieta Vitória Cardoso (Oxum Niquê), cuja sucessora é a atual Ialorixá da
Casa, a Venerável Altamira Cecília dos Santos, Oxum Tominwá (COSTA LIMA, 1977;
OLIVEIRA, 2004; SERRA, 1995 e 2005; SILVEIRA, 2006). O falecimento de uma Ialorixá
(cargo vitalício) é seguido por um longo período de luto em que a Casa é dirigida por uma
iniciada mais velha, usualmente a Iyá Kekerê, ou seja, a titular do segundo cargo sacerdotal
mais importante na hierarquia dos templos de candomblé desta tradição; é possível também
que, na falta de uma
Iyá Kekerê, ou por algum impedimento desta, uma outra sacerdotisa
sênior pontifique nesses interregnos. Enquanto exerce tal papel, a sacerdotisa que substitui a
Ialorixá falecida é designada como Ialaxé (nome também empregado para designar a
dirigente suprema, como um de seus títulos). O interregno conclui-se com a designação de
uma nova Ialorixá, escolhida através de um rito divinatório, o jogo de Ifá, ou jogo de búzios,
que corresponde a uma das formas da geomancia tradicional iorubana (MAUPOIL, 1943;
WOORTMAN, 1978). Em um desses interregnos (entre o pontificado de Tia Sussu e o de Tia
Massi), a venerável Antonia Maria dos Anjos, uma filha de Tia Sussu que chegou a ser
cogitada para sucedê-la (LANDES, 1967), assumiu o papel de Ialaxé, responsabilizando-se
pela comunidade.
As crises de sucessão por vezes levaram a cisões no grupo de culto do Candomblé da Casa
Branca, dando origem a outros Ilê Axé (COSTA LIMA, 1977; SILVEIRA, 2006). Foram
iniciadas neste templo a Ialorixá Maria Júlia da Conceição Nazaré, fundadora do Terreiro do
Gantois, e a Ialorixá Eugênia Ana dos Santos, fundadora do Axé Opô Afonjá. De diferentes
modos, muitos outros terreiros, não apenas da Bahia, mas também do Rio de Janeiro, de São
Paulo e de outras partes do Brasil procedem da Casa Branca do Engenho Velho. Edson
Carneiro (op. cit.) chegou a dizer que deste se originaram, de um modo ou de outro, todos os
demais terreiros de candomblé... O poeta Francisco Alvim (1984) denominou o templo de Iyá
Nassô “A MÃE DE TODAS AS CASAS”.
Um terreiro vem a ser um centro religioso e uma forma tradicional de assentamento que
sedia um grupo eclesial estruturado segundo as normas de um rito afro-brasileiro. A palavra é
dicionarizada, tendo este sentido particular reconhecido e seu emprego verifica-se comum na
vasta etnografia especializada (cf. Lépine, 1982: 68, s. v., Becker 1995, s.v.). O designativo
candomblé, termo de origem quimbundo por cujo emprego se identifica, hoje, uma
modalidade de culto afro-brasileiro, pode também aplicar-se a um centro onde esse culto é
praticado: v.g.
candomblé do Engenho Velho, candomblé do Gantois... (cf. Cacciatore, 1977;
Lépine, op. cit., s.v.; Becker, 1995, p. 374, s.v.; Salvador, 1982). A palavra roça é ainda
empregada, embora cada vez menos, para indicar o espaço físico dos terreiros de candomblé;
algumas pessoas ainda falam em
Roça do Engenho Velho referindo-se ao Candomblé da Casa
Branca. Em casas de culto do rito
ketu, na Bahia, a expressão ebé (do ioruba egbé, cf.
Abraham, 1958 s.v.) se usa para assinalar o tipo de grupo eclesial que se dedica a essa
liturgia; o termo axé também pode ser empregado nesta acepção. O estabelecimento que lhe
corresponde o terreiro propriamente dito, o espaço consagrado que sedia o rito neste
meio chama-se ainda, como se viu,
ilê axé, ou ilê orixá.
O
egbé compreende iniciandos e iniciados. Estes últimos se distribuem na organização
religiosa de acordo com um padrão hierárquico bem definido. No candomblé tradicional do
rito nagô (como sucede também nas grandes casas jeje e angola da Bahia), ritos preliminares
podem garantir a iniciandos uma ligação com o axé, mesmo antes do ingresso formal no
grêmio místico ingresso este que se efetua através do competente rito de passagem —. Os
iniciados progridem num tal grêmio segundo a regra da seniority7(sobremarcada pela
exigência de celebração de ritos específicos que definem as mudanças de status religioso
possibilitadas pela passagem do tempo); mas progridem também por atribuição de cargos e/ou
de títulos honoríficos “não funcionais”, definitivos do que Costa Lima (1977: Capítulo
Segundo: II: 4 e 5; cf. idem 1982) chamou de “hierarquias honoríficas”, justapostas às
“hierarquias de mando” (a propósito dos cargos, ver ainda Santos, 1993).
Em um terreiro de candomblé tradicional, o grupo de culto mais restrito é formado por
neófitos e iniciados. Estes podem ser tanto sacerdotes passíveis de entusiasmo como ministros
religiosos infensos ao transe entusiástico, como os que têm os títulos/papéis de ogã
(masculino) e ekede (feminino). No Terreiro da Casa Branca do Engenho Velho, mulheres
podem ser iniciadas para encarnar os orixás. Os homens apenas podem ser
ogãs e (ou)
portadores de títulos honoríficos.
Relatos feitos por membros seniores do
Egbé Iyá Nassô dão conta do papel exponencial
que aí tiveram as chamadas “mulheres de partido alto”, sacerdotisas conhecidas como pessoas
de grande iniciativa, comprovada tanto no campo religioso quanto na vida civil da população
baiana negro-mestiça: damas muito empreendedoras, com presença dominante no comércio
de rua e com significativa influência no seu meio, onde exerciam forte liderança. No Terreiro
do Engenho Velho, elas se destacaram muito. Conta-se neste e em outros candomblés da
mesma origem (Gantois, Axé Opô Afonjá) que ainda nas primeiras
décadas deste século elas se reuniam em Salvador e “faziam gueledé”, ou seja, celebravam
ritos festivos exclusivamente femininos, ritos esses que incluíam uma pequena mascarada, de
significado religioso. De acordo com depoimento feito ao antropólogo Ordep Serra pelo
Elemaxó Antônio Agnelo Pereira (SERRA, 2005), a famosa Tia Luzia de Oxum, eminente
sacerdotisa da Casa Branca do Engenho Velho, teria preservado mistérios dessa tradição; à
sua iniciativa se deve a construção, por um seu Ogan (o Venerável Floro do Amparo) do
monumento chamado Okôiluaiê da Praça de Oxum, onde outrora a sociedade Gueledé baiana
fazia celebrações. Talvez as “mulheres de partido alto” do Terreiro do Engenho Velho um
Ilê Axé onde o sacerdócio entusiástico permanece um privilégio das mulheres — tenham sido
as responsáveis pela sensível marca feminina desta Casa. O Gueledé tudo indica que se
articulou sob a capa da Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte, que tinha sede na Igreja
da Barroquinha (SILVEIRA, 2006). Muitas filhas-de-santo da Casa Branca do Engenho
Velho pertenceram a essa corporação católica. Em Cachoeira, onde a dita irmandade
sobrevive, são senhoras iniciadas no candomblé as devotas que nela se congregam
(NASCIMENTO, 1995).
A tradição oral do
Ilê Axé Iyá Nassô Oká registra que a Senhora Hilária Batista de Almeida, a
célebre
Tia Ciata, matriarca das Escolas de Samba cariocas, foi uma de tais “mulheres de
partido alto” da Bahia: uma filha de Oxum iniciada no Terreiro da Casa Branca do Engenho
Velho, que acompanhou o célebre Bamboxê Obitikô em sua ida para o Rio de Janeiro, onde o
famoso sacerdote fundou (na Saúde) talvez o primeiro terreiro carioca de nação nagô: o
candomblé de João de Alabá, onde Tia Ciata veio a ser
Iyá Kekerê (MOURA, 1983). Torna-se
claro, assim, porque o terreiro baiano da Casa Branca do Engenho Velho vem a ser uma
referência preciosa para a Escola de Samba Estação Primeira da Mangueira, que o
homenageou com a visita de sua Velha Guarda.
O grupo eclesial de um terreiro conforma-se ao modelo da
família-de-santo (COSTA
LIMA, 1977); o parentesco simbólico estruturador de uma tal
família geralmente lhe estende
os vínculos de modo a compor uma rede que transcende os limites de um
ilê axé. O princípio
da senioridade tem aplicação no desenho da hierarquia em todo o conjunto eclesial, vigendo
mesmo no interior dos grupos de neófitos recolhidos à clausura, classificados segundo a
ordem na qual “surgem” suas divindades nas manifestações entusiásticas do período
iniciático.
É muito raro que a comunidade de culto (egbé) de um terreiro fique toda restrita ao espaço do
mesmo, inteiramente instalada; mas sempre uma fração importante do seu clero reside
nesse âmbito. O grupo local (o conjunto de residentes) de um terreiro não coincide, pois, de
forma necessária, com sua comunidade de culto. Dá-se ainda que, com freqüência, uma
sociedade civil constituída para representar o grupo de culto, defender seus direitos e
preservar-lhe o patrimônio, vem a ser composta por seus membros e, eventualmente, por
outros cidadãos que comungam com eles interesses e objetivos especificados nos estatutos a
cuja norma aderem, sendo-lhe afiliados de modo espontâneo, nos termos da lei brasileira.
Na esfera civil, o Terreiro da Casa Branca do Engenho Velho é representado pela
ASSOCIAÇÃO SÃO JORGE DO ENGENHO VELHO, fundada a 25 de julho de 1943 e
registrada (em 2 de maio de 1945) sob o número 518, no Cartório de Títulos e Documentos,
com o nome de Sociedade Beneficente e Recreativa São Jorge do Engenho Velho. Esta
entidade foi registrada, também, no Departamento das Municipalidades, sob o número 428, às
folhas 155 do Livro de Registro, na forma do disposto no artigo sétimo do Decreto Municipal
16521 (de 28 de junho de 1956); preencheu as formalidades previstas no artigo quarto do
referido Decreto em 21 de agosto de 1958. Foi declarada de utilidade pública municipal pelo
Decreto 759 de 31 de dezembro de 1959. Tem sede no próprio Terreiro da Casa Branca do
Engenho Velho (Avenida Vasco da Gama, 463). Em abril de 1999, uma Assembléia Geral
alterou o Estatuto da que até então se chamara Sociedade Beneficente e Recreativa São Jorge
do Engenho Velho e passou a denominar-se Sociedade São Jorge do Engenho Velho — depois
novamente renomeada, para atender a prescrição legal, como Associação São Jorge do
Engenho Velho. O primeiro Presidente da dita associação foi o Sr. João Capistrano Pires Dias.
Seu atual Presidente é o Sr. Areelson Chagas. A Ialorixá do Terreiro da Casa Branca é
também a Suprema Dirigente da Associação São Jorge do Engenho Velho. Esta associação
não tem fins lucrativos e deu-se por finalidade, de acordo com seus Estatutos (Art. 1o.),
“manter ritos e preceitos do Culto dos Orixás segundo a liturgia nagô instituída pelos
fundadores do Ilê Axé Iyá Nassô Oká; defender os direitos e interesses da comunidade
religiosa do Ilê Axé Iyá Nassô Oká, tradicionalmente designada como Egbé Iyá Nassô Oká”.
O conjunto monumental do Terreiro da Casa Branca do Engenho Velho constitui um
patrimônio por cuja preservação a Associação S. Jorge do Engenho Velho se obriga a zelar. O
imóvel que corresponde ao Ilê Axé Iyá Nassô Oká encerra uma área de 7. 184, 38 metros
quadrados que, segundo consta de Escritura lavrada pelo Tabelionato do VI Ofício de Notas
(Livro 573, folhas 02-4), foi desapropriada pela Prefeitura Municipal do Salvador para doação
à Sociedade Beneficente e Recreativa São Jorge do Engenho Velho (hoje Associação São
Jorge do Engenho Velho), representante, no plano civil, do
Egbé Iyá Nassô, ou seja, da
comunidade religiosa do
Ilê Axé Iyá Nassô Oká; isto se fez em virtude do disposto no Decreto
Municipal número 7.321 de 05 de junho de 1985, publicado no Diário Oficial do Estado da
Bahia em 08 e 09/11/85, retificado pelo Decreto Municipal de número 7.402, de 16/10/85,
também publicado pelo Diário Oficial deste Estado. A desapropriação do terreno em apreço
teve como finalidade, explícita nos referidos decretos, “a preservação e conservação do
acervo cultural do sítio de valor histórico e etnográfico do Ilê Axé Iyá Nassô Oká, Terreiro da
Casa Branca do Engenho Velho.” Soma-se à referida uma outra área de 1316 metros
quadrados (a Praça de Oxum) também integrante do Terreiro, de que adiante se falará. Note-
se que através do Decreto 6634, de 04 de agosto de 1982, a Prefeitura Municipal do Salvador
já havia declarado este sítio “tombado para a preservação de sua memória histórica e cultural”
tornando-o “área de preservação simples” do município. Através da Lei Municipal número
3.591, de 16/12/85, o sítio em apreço foi tornado Área Sujeita a Regime Específico, ASRE, na
subcategoria ÁREA DE PRESERVAÇÃO CULTURAL E PAISAGÍSTICA, APCP; integra a
APCP-03, corrrespondendo a uma Área de Proteção Rigorosa 1. Seu entorno imediato
corresponde a uma Área de Proteção Rigorosa II. Todo o sítio acha-se marcado por
referências simbólicas que o tornam ponto de apoio para uma identificação étnico-religiosa. A
reiteração de liturgias cíclicas em torno a monumentos do terreiro assinalam sua área total
como um templo. É conforme ao padrão desse tipo de assentamento a existência de um
edifício nuclear, verdadeira matriz do conjunto, onde se encontram o salão de festas públicas,
a clausura, a cozinha sagrada e alguns dos principais sacrários, além de celas residenciais,
uma sala-refeitório onde são comungadas as oferendas alimentares, nas grandes festas
públicas, um vestuário onde os iniciados em transe se paramentam e outros anexos. Este
edifício é geralmente designado como barracão e compreende tanto dependências dedicadas a
usos prático-domésticos como a usos religiosos. Além dos sacrários e nichos incluídos no
interior do barracão, outros que constituem pequenos prédios independentes, chamados
(também) de
ilê orixá. O conjunto do terreiro encerra monumenta não edificados (naturais),
que lhe integram o conjunto: arbustos e árvores sagradas, fonte, mancha de vegetação. Esses
itens são considerados hierofanias e investidos de papel simbólico que lhes é adscrito segundo
o modelo de uma cosmologia tradicional, de inspiração religiosa: o
Weltbild a que se reporta o
rito do candomblé. Tais referências simbólicas, os ritos de sagração rememorados e a
atualidade conferida através da reiteração de liturgias ordinárias e cíclicas aos
monumentos que assinalam o terreiro destacam-no como área consagrada, sui generis. No
caso do Terreiro da Casa Branca do Engenho Velho, essa área foi descrita em memorial —
com o devido registro em planta dos monumentos edificados que compôs a Exposição de
Motivos apresentada ao Conselho do IPHAN, quando se fêz o pedido de tombamento do Ilê
Axé Iyá Nassô Oká, assinado pelo Venerável Ogan Elemaxó Antônio Agnelo Pereira, então
Presidente da Sociedade São Jorge do Engenho Velho.
O Terreiro da Casa Branca do Engenho Velho foi efetivamente tombado pelo INSTITUTO
DO PATRIMÔNIO ARTÍSTICO E CULTURAL, órgão do Ministério da Cultura, através do
Processo número 1.067-T-82, Inscrição número 93, Livro Arqueológico, Etnográfico e
Paisagístico, fls. 43, e Inscrição número 504, Livro Histórico, fls 92. Data de inscrição: 14.
VIII. 1986. Este tombamento foi decidido em 31 de maio de 1984 e foi homologado em 27 de
junho de 1986 pelo então Ministro da Cultura, Celso Monteiro Furtado, nos termos da Lei
número 6292, de 15 de dezembro de 1975, e para os efeitos do Decreto-Lei número 25, de 30
de novembro de 1937.
Através do Decreto número 292 de 08 de setembro de 1987, o Governador do Estado da
Bahia, Waldir Pires, declarou de utilidade pública para fins de desapropriação o posto de
gasolina de numeração 459 da Avenida Vasco da Gama, com uma área de terreno de 1.316
metros quadrados, especificando, no Parágrafo único do Artigo Primeiro desse decreto, que a
expropriação da área aí descrita visava “à preservação e conservação do sítio de valor
histórico e etnográfico do I Axé Iyá Nassô Oká Terreiro da Casa Branca do Engenho
Velho, bem como a devolução da área historicamente ocupada pelo Terreiro”. Efetuada a
desapropriação, o posto de gasolina que fora edificado em 1970 foi demolido em 1989, em
obra dirigida pelo Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural, autarquia do Governo do
Estado da Bahia; a área respectiva foi então novamente incorporada ao
Ilê Axé Iyá Nassô Oká,
reintegrando-se à
Praça de Oxum. O Projeto de urbanização da Praça de Oxum foi feito pelo
arquiteto Oscar Niemeyer, que o presenteou à Sociedade São Jorge do Engenho Velho.
O terreno do Ilê Axé Iyá Nassô Oká acha-se demarcado, com limites definidos e especificados
em legislação que diz respeito à ASRE onde se encerra, com plantas de localização e situação,
levantamento planialtimétrico, planta baixa de seu monumento principal (o
Barracão), plantas
de seus principais santuários. As poligonais da área se acham descritas no corpo da lei. Todos
esses documentos se acham disponíveis na Secretaria do Planejamento, Urbanismo e Meio
Ambiente da Prefeitura Municipal do Salvador, onde também é possível conferir as poligonais
correspondentes à área desapropriada pela PMS para fins de garantir a preservação do
patrimônio do
Ilê Axé Iyá Nasô Oká. Um levantamento anterior dessa ordem fora realizado
por uma equipe da Prefeitura Municipal do Salvador para fundamentar a Exposição de
Motivos que instruiu o processo de tombamento do Terreiro da Casa Branca do Engenho
Velho como patrimônio histórico e etnográfico do Brasil.
Embora seu hieronímico contenha uma clara referência à origem étnica de seu grupo de
culto, o Terreiro da Casa Branca do Engenho Velho acolhe pessoas de todas as origens: tem
filhos (iniciados) negros, brancos, mestiços, de diferentes procedências e classes sociais,
brasileiros e estrangeiros. Sua comunidade, que nunca negou reconhecimento ao valor de
outras tradições, é também reconhecida e respeitada tanto por cidadãos não religiosos como
por sacerdotes e adeptos de diferentes crenças. Goza de amplo prestígio, que não se limita ao
povo-de-santo (aos fiéis do candomblé). recebeu visita de um Presidente da República,
Juscelino Kubitscheck, dos Ministros da Cultura Aloísio Pimenta e Francisco Weffort, dos
Secretários Aloísio Magalhães e Marcus Vinicius Vilaça (titulares da Secretaria do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e da Secretaria da Cultura, ligadas, a essa época, à
Presidência da República), dos Governadores Waldir Pires, Antonio Carlos Magalhães e
Jacques Wagner, de vários Prefeitos de Salvador, do Prêmio Nobel Wole Soyinka, de
inúmeras pessoas ilustres do Brasil e do exterior. foram recebidos em seu sagrado recinto
um emissário do Vaticano, uma delegação de pastores evangélicos da Noruega, reis-
sacerdotes da Nigéria, xamãs indígenas como os xinguanos Raoni e Tacumã e muitos outros
visitantes ilustres (SERRA, 2005). De uma Comissão de Defesa do Terreiro da Casa Branca
que lutou pela preservação dos seus templos e pelo seu tombamento participaram, entre
outros, o Abade Dom Timóteo Amoroso Anastácio, do Mosteiro de São Bento, e os líderes
comunistas Haroldo Lima e Fernando Santana (SERRA, 2000). A ética de respeito às
diferenças religiosas e de convivência democrática com grupos que professam outras crenças
é adotada e defendida pelo Egbé Iyá Nassô, segundo podem testemunhar organizações como
as ong’s Koinonia, Presença Ecumênica e Serviço e CESE - Centro Ecumênico de Serviços,
com que o povo-de-santo da Casa Branca do Engenho Velho tem colaborado; igual
testemunho podem dar o CEPESC Centro de Pesquisa, Estudos e Serviço Cristão, assim
como a Fraternidade de Igrejas Evangélicas do Brasil, a Comunidade de Jesus e o Centro
Martin Luther King Jr., que recentemente lhe testemunharam solidariedade.
O valor da produção cultural do povo-de-santo da Casa Branca do Engenho Velho é
amplamente reconhecido por intelectuais de renome; como se viu, a restauração da Praça
de Oxum foi feita com base em projeto do arquiteto Oscar Niemeyer, que o presenteou à
comunidade do templo de Iyá Nassô; artistas, escritores e cientistas, a exemplo de Carybé,
Chico Buarque, Jorge Amado, Gilberto Gil, Francisco Alvim, José Carlos Capinan, Caetano
Veloso, Pedro Agostinho, Abdias Nascimento, Elisa Larkin Nascimento, Joel Rufino,
Emerson Andrade Sales, Naomar Monteiro de Almeida Filho, Débora Nunes e muitos outros
deram testemunho de seu respeito por esta Casa, que é o primeiro monumento negro a ser
reconhecido como patrimônio histórico do Brasil e o primeiro templo de um culto de origem
africana a ter tal reconhecimento nas Américas (SERRA, 2005). Não faltam, pois,
testemunhos de sua importância e da idoneidade de seu grupo de culto. Obras de vários
etnógrafos, como Edison Carneiro, Ruth Landes, Artur Ramos, Pierre Verger, Vivaldo da
Costa Lima, Roger Bastide, Claude Lepine, Marco Aurélio Luz, Juana Elbein dos Santos,
Raul Lody, Renato da Silveira, Ordep Serra, Llorand Mattory, Luis Nicolau Parès, Peter
Cohen, R. M. Becker, Inês Cortes de Oliveira, João José Reis e outros fazem referência ao
famoso terreiro de que aqui se trata; na verdade, na etnografia relativa ao candomblé baiano é
difícil encontrar um estudo que não o cite, pelo menos.
Recentemente o Ilê Axé Iyá Nassô Oká foi objeto de uma alentada tese, de autoria de Rafael
Soares de Oliveira (Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Bahia),
intitulada “O feitiço de Oxum”; além de fazer-lhe a etnografia, na referida tese o citado
antropólogo estudou também a vasta e complexa rede de grupos de culto afro-brasileiro
ligados de diferentes modos à Casa Branca do Engenho Velho (OLIVEIRA, 2004).
Em particular, a etnografia comprova amplamente que a comunidade do Ilê Axé Iyá Nassô
Oká) se encontra instalada, pelo menos desde o terceiro quartel do século XIX (senão antes),
no local em que ainda hoje tem sede: um terreno de que detém posse mansa e pacífica e que
enriqueceu com melhorias e edificações cuja importância para a história do Brasil a própria
União reconheceu. Entre outros documentos, a Exposição de Motivos que instruiu o
tombamento deste Terreiro como patrimônio histórico e etnográfico do Brasil, aceita e
ratificada pelo Conselho do Instituto do Patrimônio Histórico Nacional IPHAN (VELHO,
2007) e disponível neste órgão, comprova que o povo-de-santo da Casa Branca do Engenho
Velho é efetivamente representado pela Associação São Jorge do Engenho Velho. O estatuto
desta associação, registrado em cartório dotado de pública, o confirma de modo
indubitável. Uma publicação do antigo Órgão Central do Planejamento da PMS
(SALVADOR, 1982) também o documenta.
Fica patente pelo exposto que o Terreiro da Casa Branca do Engenho Velho desfruta de
ampla proteção das leis que regem a preservação da memória e da cultura do Brasil. A
Prefeitura Municipal do Salvador acha-se obrigada a zelar por seu cumprimento. Deve
garantir os direitos da comunidade do Ilê Axé Iyá Nassô Oká à plena posse, usufruto e
propriedade do terreno deste templo histórico para a garantia da preservação das tradições que
o erigiram em monumento da urbe soteropolitana e da nação brasileira. As leis que traduzem
esse compromisso da União e do Município de Salvador se encontram em plena vigência. Pôr
em dúvida a realidade e legitimidade da posse que muito o povo-de-santo do Terreiro da
Casa Branca do Engenho Velho detém do terreno onde se acha implantado este venerando
templo importa não em ignorar o testemunho abundante da história e da etnografia, como
também em contradizer o que a Prefeitura Municipal do Salvador, assim como a União,
reconheceu e se comprometeu a garantir.
A PMS não pode alegar que ignora a situação jurídica do terreno em questão: ela o
desapropriou para doá-lo à Sociedade Beneficente e Recreativa São Jorge do Engenho Velho,
hoje Associação São Jorge do Engenho Velho. Tampouco pode alegar que desconhece o
diploma legal editado pelo Governo do Estado da Bahia, efetivando a desapropriação de uma
edificação intrusiva na chamada Praça de Oxum, ato realizado, também, com o propósito de
fazer a doação do imóvel à referida Associação, devolvendo ao Terreiro um espaço que lhe
pertencia. Vale repetir, com toda a ênfase, que se acha ampla, abundante e seguramente
comprovada, para além de qualquer dúvida, a secular posse de tais terrenos pelo povo-de-
santo do venerando Terreiro do Engenho Velho, uma comunidade que a sobredita Associação
representa.
O testemunho da Prefeitura Municipal do Salvador de que o Ilê Axé Iyá Nassô Oká constitui
um templo acha-se contido em textos legais. Atesta-o ainda um documento que
tem a chancela do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (a Exposição de
Motivos citada). A Federação Nacional de Cultos Afro-Brasileiros pode confirmá-lo. E
sendo esse Ilê Axé um templo religioso (fato notório, amplamente conhecido no Brasil e
mesmo no exterior), tem pleno direito à imunidade garantida pela Constituição Brasileira em
seu artigo 150. É, pois, impertinente fazer-lhe a cobrança do Imposto Predial e Territorial
Urbano. Carecem de fundamento os processos judiciais nos 564666-2/2004, 85548-0/2005,
1210730-1/2006 e 1400793826-3, que exigem da falecida Antonia Maria dos Anjos o
pagamento desse imposto. A Associação São Jorge do Engenho Velho, por meio dos seus
ilustres representantes, protocolou na Secretaria Municipal da Fazenda o pedido de
reconhecimento da imunidade fiscal da área que ocupa o Ilê Axé Iyá Nassô Oká, sita nesta
urbe à margem da Avenida Vasco da Gama, nas cercanias do Engenho Velho da Federação:
um terreno de que a PMS tem plantas, descrição e levantamento completo, cuja localização
conhece e cuja situação não pode ignorar: documentação pertinente foi-lhe (re)apresentada e
consta muito de seus arquivos. Nada que possa justificar a denegação desse pedido,
pois, repetindo, o mesmo faz referência a um patrimônio da multicitada Associação e ao
espaço de um templo religioso, segundo podem atestar, entre outras instituições, órgãos do
Governo do Estado da Bahia, órgãos do Ministério da Cultura e a própria Prefeitura
Municipal do Salvador.
É lamentável que a PMS tenha chegado a ponto de solicitar o arresto do imóvel em função de
pretensa dívida, ou seja, de suposta falta de pagamento de um tributo, o Imposto Predial e
Territorial Urbano, na verdade não devido, segundo convém insistir; é estranho que o tenha
feito autuando uma sacerdotisa falecida há oitenta anos e insistindo em cobrança incompatível
com o que reza o art. 150 da Constituição Federal Brasileira de 1988. Recorde-se, a propósito,
que a Prefeitura Municipal do Salvador desapropriou o terreno em apreço e por ele pagou
indenização ao Sr. Hermógenes Príncipe de Oliveira, que reconheceu, então, como seu
proprietário; não se entende porque agora, para fins de cobrança de imposto, a PMS considera
que o mesmo terreno pertence ainda a Antônia Maria dos Anjos. O Senhor Hermógenes
Príncipe de Oliveira, um homem rico, foi aceito como proprietário para ter o bônus da
indenização; a Venerável Antônia Maria dos Anjos, pobre e falecida, é considerada
proprietária para ter o ônus do imposto. Este procedimento não parece compatível com a
lógica nem com o direito.
Mas ainda não é este o embaraço maior. Quando se chegou à ameaça de arresto, no termo da
cobrança de uma suposta dívida de quase oitocentos mil reais, gravemente onerosa para uma
comunidade pobre como a do Candomblé do Engenho Velho [que subsiste da contribuição de
seus membros, um segmento da população cuja renda média mal ultrapassa quatro salários
mínimos, segundo atesta o sério estudo de Rafael Soares Oliveira (2004)],desconsiderou-se
uma lei municipal: privada a comunidade do Ilê Axé Nassô Oká do seu terreno/território
como fatalmente sucederia, por não ter a mesma como pagar a suposta dívida , não
poderia ela manter o culto de cuja realização este espaço depende plenamente para preservar
as características que levaram a caracterizá-lo como APCP (Área de Preservação Cultural e
Paisagística do Município de Salvador).
A Lei que determinou categorizar assim o Terreiro da Casa Branca do Engenho Velho
atribui à PMS um empenho de preservação, não de destruição. Mas destruição é o que
resultaria da medida cogitada pela Secretaria da Fazenda da PMS. Na prática, teria o efeito
imediato de anular o tombamento do imóvel como patrimônio cultural do município e
implicaria em desconstituir uma APCP criada por lei específica, com respaldo na Lei de
Ordenamento do Uso e Ocupação do Solo Urbano do Município de Salvador. Impor à
comunidade que preserva esse patrimônio uma cobrança de tal ordem e ameaçar levá-lo a
hasta pública constitui, na prática, um ato de vandalismo: significa condenar à destruição um
monumento que a União considerou digno de proteção por seu significado histórico para o
país. Pois a monumentalidade do Ilê Axé Iyá Nassô Oká guarda relação íntima e infrangível
com seu uso tradicional, com o acervo simbólico da liturgia que lhe vida. No caso deste
monumento e de outros da mesma natureza, o patrimônio material se vincula estreitamente a
um patrimônio imaterial cuja existência repousa na dinâmica de uma tradição, de um uso
consagrado. Inibir esse uso, impedir-lhe a continuidade levando a leilão o território onde tem
lugar e fazendo com que um manejo tão especial, lícito e legítimo, culturalmente produtivo,
sucumba em face da imposição de outro uso qualquer (a capricho do mercado), sem
consideração nem mesmo pelo que pode acontecer com a própria materialidade do
monumento, é fomentar destruição e dano irreparável para a memória e o capital simbólico do
povo brasileiro.
Quando a Prefeitura Municipal do Salvador decidiu desapropriar o terreno onde secularmente
se acha instalado o Ilê Axé Iyá Nassô Oká para doá-lo à comunidade que, com grande
sacrifício, erigiu e preservou este monumento da Cidade e do país, quis fazer justiça. Levou
em consideração o direito de cidadãos que, no contexto de uma ocupação secular, fizeram
uma obra meritória. Esta decisão foi aplaudida pela sociedade brasileira.
Com efeito, ninguém ignora a iniquidade da distribuição de terras em Salvador; ninguém
desonhece a evidência de que esta distribuição é desigual, injusta, perversa e particularmente
cruel para com amplos setores da população, sobretudo negros e negras, a maioria dos
cidadãos soteropolitanos. É profundamente lamentável que depois de uma
decisão tão aplaudida se tenha cogitado de desapropriar, privar de seu bem mais caro a
comunidade negra e pobre do Ilê Axé Iyá Nassô Oká, invertendo o rumo da tão ansiada e
anunciada reparação. Neste caso, nem sequer a proposição legalista que os juristas romanos
exprobavam —
fiat lex et pereat mundus — pode ser alegada como (falso) embasamento, pois
nem ela teve respeitada a condição mínima que sustenta sua cláusula.
Convém ainda lembrar que além da União (através do IPHAN e da Fundação Palmares) e do
Estado da Bahia (através do IPAC), a própria Prefeitura Municipal do Salvador investiu na
restauração do Terreiro da Casa Branca do Engenho Velho. Seria o caso de indagar:
Restaurou para que? Para depois transformar em ruína o restaurado, tirando-o dos únicos que
podem preservá-lo com seu pleno valor simbólico, inseparável de seu uso tradicional?
Mas este valor é justamente o que a PMS, através de lei e decreto (ambos ainda em vigor) se
propôs a preservar... Por outras palavras: será que a PMS restaurou esse terreiro para transferi-
lo a outros como uma mercadoria comum, ou seja, para que um possível comprador /
arrematador faça do mesmo o uso que bem lhe aprouver? Todavia, por lei, o adquirente não
poderia fazer do bem assim obtido nenhum uso, senão o compatível com uma condição cuja
mantença só pode ser garantida pela comunidade que se quer despojar...
Por último, recorde-se que os documentos pertinentes à delimitação do terreno e os relativos à
sua desapropriação e doação procedem da própria PMS e se encontram nela, em seus
arquivos.
O presente laudo se destina a esclarecer esta situação e se propõe a respaldar pedido de
reconhecimento de imunidade fiscal protocolado pela Associação São Jorge do Engenho
Velho, através de seus advogados, na Secretaria Municipal da Fazenda de Salvador, no
tocante ao terreno onde se acha implantado o
Ilê Axé Iyá Nassô Oká, Terreiro da Casa Branca
do Engenho Velho, inclusive a veneranda Praça de Oxum.
Salvador, 05 de setembro de 2008
Professor Doutor Ordep José Trindade Serra
Antropólogo
Membro da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência
Secretário Adjunto da Associação Brasileira de Antropologia
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