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ELIAS DOS SANTOS SILVA
REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DE VIOLÊNCIA NO FILME
TROPA DE ELITE: O HOMEM COMO PREDADOR DO
PRÓPRIO HOMEM
UNIVERSIDADE CATÓLICA DOM BOSCO - UCDB
CAMPO GRANDE - MS
2009
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2
ELIAS DOS SANTOS SILVA
REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DE VIOLÊNCIA NO FILME
TROPA DE ELITE: O HOMEM COMO PREDADOR DO
PRÓPRIO HOMEM
Dissertação elaborada como requisito para a
obtenção do Titulo de Mestre do Programa de
Mestrado em Psicologia da Saúde da
Universidade Católica Dom Bosco, sob a
orientação da Profª. Dra. Sonia Grubits.
UNIVERSIDADE CATÓLICA DOM BOSCO - UCDB
CAMPO GRANDE MS
NOVEMBRO - 2009
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3
A dissertação intitulada REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DE VIOLÊNCIA NO FILME
TROPA DE ELITE: O HOMEM COMO PREDADOR DO PRÓPRIO HOMEM”,
apresentada por Elias dos Santos Silva como exigência final para a obtenção do
título de Mestre em Psicologia da Saúde à Banca Examinadora da UCDB, Campo
Grande-MS, obteve nota ______________, para aprovação.
BANCA EXAMINADORA
_________________________________________________
Profª. Dra. Sonia Grubits (UCDB)
Orientadora
_________________________________________________
Profª. Dra. Heloisa Grubits (UCDB)
Convidada
________________________________________________
Profª. Dra. Anita Guazzeli Bernardes (UCDB)
Convidada
________________________________________________
Profª. Dra. Sônia Margarida G. Sousa (PUC-GO)
Convidada
Campo Grande-MS, _____ de ___________________de 2009.
4
Dedico este trabalho a minha mãe, Joana
dos Santos (in memorian), e a meu pai,
José Nicodemo Silva (in memorian): isso,
provavelmente, não faz mais qualquer
sentido para vocês, mas, de qualquer
forma, obrigado por terem sido e estado.
5
AGRADECIMENTOS
A Deus, criador de todas as coisas e esteio seguro e firme em que busco apoio e
refúgio nos difíceis embates da vida.
À professora orientadora Sonia Grubits, pelas valiosas colaborações e dedicação
com que sempre me agraciou.
Às professoras Heloisa Grubits e. Anita Guazzeli Bernardes, pelas observações e
críticas pertinentes e esclarecedoras, que permitiram o redirecionamento da
pesquisa.
Às professoras e professores do Mestrado em Psicologia da Saúde da UCDB: sua
atuação é tão motivadora que me levou à decisão de cursar a graduação em
Psicologia saber, desde então, significa querer mais e mais.
Aos colegas de curso, pelas valiosas trocas intelectuais e experienciais que tanto
nos enriqueceram.
Alea jacta est.
6
“Se gosto da vida? Mas é claro que sim! Aliás,
não consigo viver sem ela.”
(E. S. S.)
7
RESUMO
O presente estudo promove uma análise das muitas formas de violência de violência
encontradas no filme Tropa de Elite, do cineasta José Padilha, objetivando verificar
quais as representações sociais de violência constatáveis junto aos quatro grupos
enfocados na obra, a saber: o Batalhão de Operações Especiais (BOPE), a Polícia
Militar convencional, os traficantes de drogas dos morros e os jovens universitários
de classe média alta. O filme apresenta uma visão bastante próxima da atuação da
polícia militar de elite do Rio de Janeiro em suas incursões contra os traficantes de
drogas, o que traz à tona considerações sobre o relacionamento insuspeito entre
determinados grupos sociais, o que acaba por gerar implicações que demandam
uma série de reflexões e eventuais medidas e/ou iniciativas de contenção/repressão
no âmbito governamental contra o tráfico de drogas sem que isso importe,
obrigatoriamente, em ações letais, como se vê na película. Valendo-se de uma
pesquisa no formato qualitativo e de tipo documental, o estudo promove um
levantamento teórico-bibliográfico sobre a violência, passando em seguida ao exame
da Teoria das Representações Sociais a partir de alguns de seus pressupostos e
conclui que as representações sociais de violência exercem considerável
condicionamento no fomento de determinados traços da personalidade dos
indivíduos em relação aos vários grupos a que pertencem, assim como na
configuração de percepções, valores e crenças, aspectos que, somados e de
maneira gradual, conduzem o ser humano a manifestar formas de comportamento
coadunadas com o senso comum que impera nos núcleos sociais nos quais se
insere.
PALAVRAS-CHAVES: Representações Sociais Violência Batalhão de
Operações Especiais Identidade
8
ABSTRACT
The present study promotes an analysis about the social behavior through violence
found in the film “Tropa de Elite”, by José Padilha, with the aim to verify which factors
influence the identification at a Military Policeman at the Special Operation Battalion
(BOPE) come from a perception of aggression in their formation, relationships and
functional action. It is worth of a qualitative way of research and the hypothetical-
deduced method, the study promotes a theoretical-bibliographic survey about
violence and then, the social representation theory exam about their behavior and
concludes that the social representations of violence have a considerable
conditioning in the cancellation of some traces about the Tropa de Elite soldiers’
personality when they join the formation courses, as their perceptive reconfiguration,
values and beliefs, aspects which added and in a gradual way, lead the policeman,
when effectively joined the corporation, to show an aligned behavior with the attitude
of the ones called “war dogs”.
KEYWORDS: Social Representation Violence BOPE - Identity
9
LISTA DE ANEXOS
Anexo a: O símbolo do BOPE: faca na caveira-------------------------------------------------140
Anexo b: Nascimento, Neto e Matias na segunda fase de treinamento ----------------141
Anexo c: O corrupto Capitão Fábio desistindo de integrar o BOPE----------------------142
Anexo d: Elenco do filme Tropa de Elite-----------------------------------------------------------143
10
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO-----------------------------------------------------------------------------------------------12
I HISTÓRIA DA PESQUISA-----------------------------------------------------------------------------15
1 TIPO DE PESQUISA ---------------------------------------------------------------------------------17
2 TÉCNICA E MÉTODO DE PESQUISA---------------------------------------------------------18
3 FONTES DE INFORMAÇÃO E INSTRUMENTOS UTILIZADOS---------------------19
4 PASSOS DA COLETA DE DADOS -------------------------------------------------------------19
5 ORGANIZAÇÃO DOS DADOS -------------------------------------------------------------------20
6 ANÁLISE DE DADOS--------------------------------------------------------------------------------20
7 OBJETIVOS ---------------------------------------------------------------------------------------------21
7.1 GERAL-----------------------------------------------------------------------------------------------21
7.2 ESPECÍFICOS ------------------------------------------------------------------------------------21
8 OBJETO DE ESTUDO-------------------------------------------------------------------------------22
II A VIOLÊNCIA: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES----------------------------------------------23
1 VIOLÊNCIA: POSSIBILIDADES E IMPOSSIBILIDADES CONCEITUAIS--------23
2 A VIOLÊNCIA AO LONGO DOS SÉCULOS-------------------------------------------------28
3 A VIOLÊNCIA COMO REGIME POLÍTICO---------------------------------------------------37
3.1 O ESTADO DE VIOLÊNCIA: O FASCISMO---------------------------------------------42
4 O HOMEM VIOLENTO: QUEM É ELE?-------------------------------------------------------47
III A TEORIA DAS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS COMO SABER CIENTÍFICO E
ALGUMAS DE SUAS APLICAÇÕES----------------------------------------------------------------53
1 ORIGENS DA TEORIA DAS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS-------------------------53
2 CONCEITO E EVOLUÇÃO DA TEORIA DAS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS-56
3 SISTEMAS CENTRAIS E PERIFÉRICOS ----------------------------------------------------61
4 ANCORAGEM E OBJETIVAÇÃO ---------------------------------------------------------------64
5 A TEORIA DAS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS APLICADA EM PESQUISA--66
6 A IDENTIDADE E AS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS-----------------------------------69
7 NÚCLEOS CENTRAIS-------------------------------------------------------------------------------73
8 A VIOLÊNCIA E AS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS-------------------------------------75
IV AS REPRESENTAÇÕES DE VIOLÊNCIA NO FILME TROPA DE ELITE ---------78
11
1 O BOPE ---------------------------------------------------------------------------------------------------78
2 TROPA DE ELITE O FILME---------------------------------------------------------------------80
2.1 ENREDO---------------------------------------------------------------------------------------------81
2.2 INFORMAÇÕES GERAIS ----------------------------------------------------------------------82
3 A POLÍCIA APRESENTA SUAS ARMAS: A VIOLÊNCIA DO BOPE -------------84
3.1 A VIOLÊNCIA NA FORMAÇÃO DO POLICIAL-----------------------------------------85
3.2 A VIOLÊNCIA NAS RELAÇÕES DO POLICIAL----------------------------------------87
3.3 A VIOLÊNCIA NAS FUNÇÕES DO POLICIAL------------------------------------------90
4 REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DE VIOLÊNCIA INTRA E INTERGRUPAL -----95
4.1 REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DO BOPE SOBRE A POLÍCIA ------------------95
4.2 REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DO BOPE SOBRE OS UNIVERSITÁRIOS -97
4.3 REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DO BOPE SOBRE OS TRAFICANTES----98
5 AS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DE VIOLÊNCIA DA PM---------------------------99
5.1 “AMIGOS DOS AMIGOS” COMO A PM REPRESENTA SOCIALMENTE A
PM-----------------------------------------------------------------------------------------------------------99
5.2 REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DA PM SOBRE OS TRAFICANTES --------102
5.3 REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DE VIOLÊNCIA DA PM SOBRE O BOPE 103
6 REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DE VIOLÊNCIA DOS TRAFICANTES--------104
6.1 AS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DE VIOLÊNCIA DOS TRAFICANTES
SOBRE SI MESMOS--------------------------------------------------------------------------------104
6.2 AS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DE VIOLÊNCIA DOS TRAFICANTES
SOBRE O BOPE--------------------------------------------------------------------------------------105
6.3 REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DE VIOLÊNCIA DOS TRAFICANTES
SOBRE A PM------------------------------------------------------------------------------------------106
6.4 AS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DE VIOLÊNCIA DOS TRAFICANTES
SOBRE OS UNIVERSITÁRIOS -----------------------------------------------------------------107
7 REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DE VIOLÊNCIA DOS UNIVERSITÁRIOS -----109
7.1 REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DE VIOLÊNCIA DOS UNIVERSITÁRIOS
SOBRE SI MESMOS--------------------------------------------------------------------------------109
7.2 REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DE VIOLÊNCIA DOS UNIVERSITÁRIOS
SOBRE A POLÍCIA ----------------------------------------------------------------------------------110
7.3 REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DE VIOLÊNCIA DOS UNIVERSITÁRIOS
SOBRE OS traficantes------------------------------------------------------------------------------111
8 MARCADORES DAS REPRESENTAÇÕES DE VIOLÊNCIA-----------------------113
8.1 O lugar do símbolo nos grupos sociais O BOPE ----------------------------------113
9 O RIO DE JANEIRO CONTINUA LINDO?--------------------------------------------------119
CONSIDERAÇÕES FINAIS ---------------------------------------------------------------------------126
REFERÊNCIAS--------------------------------------------------------------------------------------------133
ANEXOS -----------------------------------------------------------------------------------------------------139
12
INTRODUÇÃO
A violência sempre acompanhou, de algum modo, a trajetória evolutiva do ser
humano até nossos dias. Evento multifacetado tanto em suas causas quanto nos
objetivos e conseqüências aos quais dá ensejo, pode-se dizer que a violência já foi
simbolizada e, por extensão, representada/interpretada de modos tão diferentes
como diversas também foram suas formas de promoção.
Cultuada por sociedades guerreiras (vikings, tribos bárbaras, romanos, etc.);
sacralizada por quase todas as grandes religiões, desde que a serviço da “causa
santa” da expansão da fé, seja esta cristã, muçulmana, xiita ou de qualquer outra
matriz; e, mais recentemente, execrada por movimentos e indivíduos pacifistas ou
simplesmente cansados da brutalidade humana, o fato é que a violência ainda
ocupa um lugar de destaque nos aglomerados sociais, constituindo-se desde
instrumento de afirmação até uma preocupação recorrente das autoridades da área
de segurança pública e da sociedade organizada.
Essa relação ambígua da raça humana com a violência, ou seja, as diferentes
e oscilantes percepções e representações dos agrupamentos humanos em face da
violência constitui, indiscutivelmente, um fascinante tema de estudos, seja por tratar-
se de um assunto sempre atual, seja por colocar em foco a natureza da violência e,
por conseguinte, quais os posicionamentos possíveis e esperados do indivíduo
diante de algo visceralmente complexo e de natureza multifatorial.
Se remetermos tais considerações para o âmbito da Psicologia
contemporânea e, mais precisamente, para a esfera da Teoria das Representações
Sociais (TRS), não teremos maiores dificuldades em verificar que a análise da
violência através das representações sociais de alguns grupos sobre as atitudes e
comportamentos violentos, é uma instigante área de estudos. No mesmo sentido, se
restringirmos o enfoque para as representações sociais de grupos distintos entre si e
dotados de representações sociais de violência ora concordantes, ora conflitantes,
mas sempre presentes, verificaremos que se trata de algo particularmente
13
significativo, notadamente se tais grupos se relacionam direta e indiretamente e
estão contidos em um universo devidamente delimitado. Este é o caso do filme
Tropa de Elite e das representações sociais de violência dos quatro grupos
principais que enfoca: o Batalhão de Operações Especiais da Polícia Militar do Rio
de Janeiro (BOPE); a Polícia Militar convencional; os traficantes de drogas dos
morros cariocas; e os jovens universitários de classe média alta usuários de drogas.
Trata-se de uma temática na qual se vislumbra facilmente a justificativa de
sua realização, tanto pela natureza pulsante do assunto (a violência e as diversas
formas como é vista/praticada) quanto ainda por suas, até aqui, pouco estudadas
implicações, notadamente no que se refere aos chamados “cães de guerra”,
expressão tirada do mais conhecido livro do escritor britânico Frederic Forsit (2003).
Tendo presente essa justificativa, o estudo aqui apresentado tem como
questão central a indagação sobre quais as representações sociais de violência
presentes nos diversos grupos apresentados filme Tropa de Elite? Evidentemente, o
estudo atêm-se àquilo que é mostrado no filme, sem pretender verificar até que
ponto existe ou não verossimilhança nas cenas e nos personagens apresentados.
Para tentar responder à indagação central deste estudo, optamos por dividir a
pesquisa em partes distintas, embora complementares, da maneira que se segue:
No primeiro capítulo é apresentada a história da pesquisa, sua origem e
fatores motivadores, bem como alguns dados de natureza metodológica, como a
qualificação do estudo, método escolhido, etapas da pesquisa, assim como os
objetivos geral e específicos a serem atingidos.
No segundo capítulo são trazidas à tona algumas considerações sobre a
violência, iniciando por uma tentativa de definição e passando a alguns aspectos
relevantes como a trajetória histórica da violência e, de modo mais direcionado, a
violência como regime político, isto é, amparada e mantenedora, simultaneamente,
pelo e do Estado.
No terceiro capítulo, a Teoria das Representações Sociais é abordada, tendo-
se o cuidado de situá-la, inicialmente, em uma perspectiva temporal, incluindo-se a
contribuição dos autores clássicos, passando-se em seguida para o exame de
alguns de seus pressupostos e chegando até alguns dos muitos usos possíveis da
TRS na época atual.
No quarto e último capítulo, discorremos sobre as representações sociais de
violência presentes no filme Tropa de Elite, objetivando demonstrar as várias formas
14
como a violência é representada socialmente e como isso influi em comportamentos,
atitudes e relações intra e intergrupos. Neste capítulo também é promovida uma
breve discussão sobre as conseqüências das representações sociais de violência
dos grupos enfocados na sociedade carioca e algumas das implicações dessa
problemática no plano social.
Evidentemente, não é pretensão deste estudo exaurir, sob qualquer aspecto
ou modo, uma temática tão abrangente e profunda como a que ora buscamos
analisar, mas tão somente oferecer algumas pequenas, porém efetivas,
contribuições às discussões que têm lugar sobre a violência crescente de nosso
tempo.
15
I HISTÓRIA DA PESQUISA
A história da pesquisa teve início com algumas perguntas que, com certa
freqüência, nos ocorriam, ainda que de um modo quase retórico, tais como: por que
a violência urbana tem crescido tanto nos últimos anos?; quem são e o que pensam
aqueles que a promovem?; e, por que não se consegue debelar e/ou prevenir
eficientemente os eventos violentos? Conquanto sejam indagações fáceis de serem
compreendidas, logo nos demos conta da complexidade das respostas possíveis. O
conhecimento que reuníamos sobre violência se resumia a algumas leituras de
natureza sociológica ou ainda de questões pontuais, como a suposta necessidade
de rebaixamento da maioridade penal, a premência das vítimas de violência
doméstica em denunciar seus agressores e outros tópicos de igual jaez.
Tendo presente a natureza não apenas endógena, mas principalmente
ambiental, da violência, passamos a promover uma busca de materiais teóricos que,
sem deixar de lado os aspectos psicológicos envolvidos nas ações violentas,
também os situassem sob a perspectiva social, o que nos levou a autores decanos
como Montagu (1978), Wertham (1967) e Sorel (1993), para ficarmos apenas nos
considerados clássicos.
Antes mesmo da elaboração do problema de pesquisa, já havíamos elencado
como requisito de análise a visão da violência como algo que nasce, se desenvolve
e, sob determinadas condições, tende a permanecer em estado ativo. Se
optássemos pela corrente determinista, que vê na violência o mero desdobramento
de condições orgânico-cerebrais anômalas ou ainda como algo decorrente de
estruturas bioquímicas que não podem ter seus efeitos detidos ou minimizados, a
pesquisa estaria abortada antes mesmo de começar, pois não teria solução possível
de continuidade. Aliás, adotar o ponto de vista que procuramos refutar traz em seu
bojo um componente de fatalidade que tornam, se levado a efeito, inertes e inócuas
quaisquer formas de enfrentamento do problema.
16
Isto posto, o estudo ainda não ganhara, todavia, uma forma e pretender
abordar a violência de uma perspectiva tão genérica seria não apenas algo
incompatível com os objetivos da dissertação, mas também praticamente
inexeqüível, dadas a extensão e profundidade do objeto a ser estudado. O viés de
análise procurado surgiu quando das aulas de Representações Sociais e Identidade,
quando nos deparamos com a Teoria de Serge Moscovici e, após algumas
incursões nesta área, pudemos notar a significância daquilo que Abric (2000)
denomina Núcleo Central, marcadores fundamentais para o entendimento dos
elementos nucleares das representações sociais.
O passo seguinte foi a escolha do que ou mesmo de quem estudar. Optamos,
após algum tempo de reflexão, pelo filme Cidade de Deus, um dos mais bem
acabados exemplos de violência cinematográfica já produzidos no Brasil. O enredo
nos pareceu perfeito para a análise de quais as representações sociais de violência
presentes não apenas junto ao universo dos traficantes, mas também na
comunidade da Cidade de Deus. Apesar dos diversos aspectos positivos (do ponto
de vista dos objetivos da pesquisa) encontrados no material a ser examinado,
Cidade de Deus apresentou um senão significativo, qual seja a idade da obra e o
grande número de estudos já realizados sobre a mesma. Como não era de nosso
interesse abordar assuntos muito estudados anteriormente, acabamos por
abandonar o filme, mas não o recorte da pesquisa. Após um tempo de procura
incessante, surgiu-nos, por acaso, uma cópia (pirata, envergonhamo-nos de
confessar) de Tropa de Elite, o explosivo filme de José Padilha. Foi uma surpresa
extremamente bem-vinda: o filme trazia não apenas um poderoso conteúdo de
violência latente e ativa, como ainda nos permitia a análise de representações
sociais no Batalhão de Operações Especiais (BOPE), da PM convencional, assim
como dos grupos de traficantes e até mesmo dos universitários de classe média alta
usuários de drogas.
Após a leitura de algumas obras sobre TRS, especialmente as de Moscovici
(1978), Jodelet (2001) e Abric (2000), chegamos, enfim, à questão-central: quais as
representações sociais de violência presentes nos diversos grupos apresentados
filme Tropa de Elite?
Feito isso, ainda restavam alguns aspectos metodológicos imprescindíveis à
condução do trabalho, a saber:
17
1 TIPO DE PESQUISA
A escolha do tipo de pesquisa, em seus contornos gerais, não foi algo
especialmente complexo, uma vez que o estudo se resume em sua essência, à
recepção crítica de um filme à luz da Teoria das Representações Sociais. Assim,
optamos, até mesmo pela própria natureza do trabalho, pela chamada pesquisa
qualitativa. Minayo (1999, p. 21) afirma sobre essa modalidade de pesquisa que
Ela se preocupa, nas ciências sociais, com um nível de realidade que
não pode ser quantificado. Ou seja, ela trabalha com um universo de
significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes, o que
corresponde a um espaço mais profundo das relações, dos
processos e dos fenômenos que não podem ser reduzidos à
operacionalização de variáveis.
No caso da presente pesquisa qualitativa, a matéria-prima básica utilizada é a
palavra, mas também a imagem, as relações inter ou intragrupos e, em especial, o
quantun de elementos emocionais que se verificam em determinados eventos
retratados pelo filme.
Minayo (1999, p. 24) acrescenta ainda, referindo-se ao método qualitativo,
que
Os autores que seguem tal corrente não se preocupam em
quantificar, mas, sim, compreender e explicar a dinâmica das
relações sociais que, por sua vez, são depositárias de crenças,
valores, atitudes e hábitos. Trabalham com a vivência, com a
experiência, com a continuidade e também com a compreensão das
estruturas e instituições como resultado da ação humana objetiva.
Ou seja, desse ponto de vista, a linguagem, as práticas e as coisas
são inseparáveis.
Dessa forma, a preocupação principal do estudo que ora submetemos à
análise foi verificar, em nível subjetivo e personalizado, a ocorrência de eventos
representativos de violência socialmente concebida, tendo como parâmetro a Teoria
das Representações Sociais.
18
2 TÉCNICA E MÉTODO DE PESQUISA
A opção por uma pesquisa cujo método seja qualitativo em seus contornos
gerais e, mais precisamente, no exame do objeto analisado nesta dissertação, traz
sempre uma certa dose de risco, não pela incapacidade da pesquisa qualitativa de
atuar como instrumento de sistematização de estudos dos mais diversos setores,
mas sim da capacidade do pesquisador em saber utilizar, adequada e diretivamente,
os elementos disponibilizados no estudo qualitativo.
Sobre isso, é valiosa a contribuição de Martins (2004, p.292) quando explica
que uma
[...] característica importante da metodologia qualitativa consiste na
heterodoxia no momento da análise dos dados. A variedade de
material obtido qualitativamente exige do pesquisador uma
capacidade integrativa e analítica que, por sua vez, depende do
desenvolvimento de uma capacidade criadora e intuitiva.
Desse modo, além de coligir informações, organizá-las e examiná-las, cabe
ao pesquisador, quando do desenvolvimento de uma pesquisa qualitativa, integrar
os dados de maneira a formar um todo que se relacione e, concomitantemente,
permita uma visão geral do objeto de estudo.
Conforme explicam Richardson et al (1989, p. 29), “método em pesquisa
significa a escolha de procedimentos sistemáticos para a descrição e explicação dos
fenômenos”. Isso significa que a pesquisa deve ser planejada e executada de um
modo sistemático, não contraditório, capaz de fornecer respostas às questões
centrais que investiga.
Na presente dissertação procuramos fazer uso, no tocante à técnica de
pesquisa, da análise documental, uma vez que a fonte primária do estudo é um
filme, isto é, uma visão particularizada, restrita, de um cineasta sobre objetos e
circunstâncias que o chamado “olhar de câmera” traz ao expectador.
A pesquisa documental, segundo Gil (1994, p.73) [...], vale-se de
materiais que não receberam ainda um tratamento analítico, ou que ainda
podem ser reelaborados de acordo com os objetivos da pesquisa”.
19
No tocante ao método escolhido, esse não poderia ser outro que não o
método comparativo, uma vez que são analisadas no presente trabalho as
representações sociais de violência de grupos distintos em um universo
cinematográfico. Por conta disso, não seria possível proceder um exame acurado
das diferentes cadeias de senso comum presentes em cada agrupamento humano
sobre uma temática específica sem compará-las. Segundo explicam Lakatos e
Marconi (2000) tem-se a necessidade de, a partir de uma questão-central, proceder-
se ao exame da mesma pela via da observação comparada entre segmentos
diversos, o que não apenas justifica o método escolhido, mas também o torna
fundamental para a elucidação dos pontos da pesquisa que buscamos aclarar.
3 FONTES DE INFORMAÇÃO E INSTRUMENTOS UTILIZADOS
Dentre as fontes de informação utilizadas na pesquisa destaca-se, em um
primeiro momento, a pesquisa bibliográfica, ou seja, o levantamento de dados e
conceitos junto a revistas (Veja, Vip, etc.), artigos científicos, bem como ao cabedal
teórico adotado.
Em seguida, procurou-se levantar os dados da filmografia, através da seleção
e análise de cenas que, isoladamente ou em conjunto, reúnem indicativos da
presença das representações sociais de violência.
O material colhido foi analisado, a priori, a partir das expressões mais
evidentes de violência que apresentava para, somente então, serem submetidos ao
crivo da teoria das representações sociais.
4 PASSOS DA COLETA DE DADOS
Os passos efetuados na coleta de dados ficam bastante claros no estudo,
dada a ordem de sua inserção na pesquisa. De fato, após o levantamento
bibliográfico e o fichamento de obras referentes à violência e às representações
20
sociais, foram procuradas as informações pertinentes que constam do filme,
seguidas de um cotejo crítico com os dados teóricos que dão suporte ao estudo.
5 ORGANIZAÇÃO DOS DADOS
A maneira como os dados coletados foram organizados buscou atender às
especificidades do estudo. Após a coleta de informações bibliográficas e
filmográficas, o pesquisador dispôs os mesmos de forma a permitir, a priori, uma
visão teórica dos aspectos enfocados no estudo para, logo a seguir, discorrer sobre
os elementos encontrados no filme Tropa de Elite.
Graças a isso, o leitor é informado, nos capítulos iniciais do estudo, sobre
conceitos como violência em suas múltiplas manifestações, representações sociais,
aspectos identitários e, ao fim, sobre as representações sociais de violência
verificadas nos diversos grupos mostrados no filme de José Padilha.
Procuramos, assim, tornar a leitura compreensiva e apresentar os dados de
uma maneira que nos pareceu lógica e organizada, embora sem termos certeza do
acerto nas escolhas realizadas, risco que, de certa forma, é inerente a quase todos
os trabalhos da natureza do que ora submetemos à avaliação.
6 ANÁLISE DE DADOS
Atendendo ao fato de que a pesquisa realizada é de natureza essencialmente
qualitativa, a análise de dados procurou ter sempre presente essa especificação,
atendo-se ao exame de situações de natureza subjetiva e, ao mesmo tempo,
significativas enquanto indicadores de um dado comportamento (no caso,
representações sobre violência).
Essas configurações, somadas, permitem a classificação da pesquisa como
um estudo de caso, isto é, a análise em profundidade de um objeto específico ou,
como explicam mais detidamente Ludke e André (1986, p. 17),
21
O estudo de caso é o estudo de um caso, seja ele simples e
específico, como o de uma professora competente de uma escola
pública, ou complexo e abstrato, como o das classes de
alfabetização ou do ensino noturno. [...] O interesse, portanto, incide
naquilo que ele (o estudo de caso) tem de único, de particular,
mesmo que posteriormente venham a ficar evidentes certas
semelhanças com outros casos ou situações. Quando queremos
estudar algo singular, que tenha um valor em si mesmo, devemos
escolher o estudo de caso.
Assim sendo, a análise manifesta uma natureza particularizada, específica,
sem ter, por razões óbvias, qualquer pretensão de exaurir o assunto ou mesmo
apresentá-lo em bases amplas, mas tão somente sondar uma visão cinematográfica
de realidade sui generis de forma aprofundada, possibilitando a obtenção de
resultados que, sem serem absolutos, exaustivos ou lateralmente amplos, se
mostrem suficientemente eloqüentes para serem considerados um efetivo contributo
ao exame das representações sociais de violência encontradas no filme.
7 OBJETIVOS
O trabalho elencou diversos objetivos a serem atingidos quando de seu
término. Dentre estes, podemos destacar os seguintes:
7.1 GERAL
Evidenciar algumas das representações sociais de violência encontradas
junto aos grupos enfocados no filme Tropa de Elite.
22
7.2 ESPECÍFICOS
Ø Analisar os possíveis fatores que influiriam e mesmo determinariam a
eclosão das representações sociais de violência nos diversos grupos mostrados no
filme Tropa de Elite.
Ø Discutir alguns dos pontos de contato entre o que é exposto no filme e
a forma como é enfrentada a criminalidade atualmente na cidade do Rio de Janeiro.
8 OBJETO DE ESTUDO
Do ponto de vista conceitual e teórico, o objeto de estudo desta dissertação é
a violência e as suas múltiplas manifestações no interior de grupos sociais distintos
e, mais especificamente, nos quatro grupos principais apresentados no filme Tropa
de Elite: os policiais do BOPE, a PM, os traficantes de drogas e os universitários que
utilizam drogas.
No tocante ao objeto concreto (material) do estudo, o filme Tropa de Elite é o
universo a ser analisado, assim como a visão de José Padilha, exposta no filme,
sobre as concepções de violência dos grupos que se relacionam inter e
intrasocialmente na película. Não é, pois, uma pesquisa essencialmente social,
ainda que o social seja seu principal foco de estudos. Com isso, estamos deixando
patente que não se trata de um exame da realidade policial e criminal cariocas, mas
sim da maneira como esses aspectos são enfocados no filme aqui analisado,
independentemente do seu grau de verossimilhança.
23
II A VIOLÊNCIA: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
Neste capítulo são apresentadas algumas considerações teórico-críticas
sobre o que vem a ser, em linhas gerais, a violência, sua delimitação e, de modo
mais específico, como vislumbramos esse complexo processo à luz da Psicologia e
moderna.
1 VIOLÊNCIA: POSSIBILIDADES E IMPOSSIBILIDADES CONCEITUAIS
A violência acompanha o ser humano desde suas mais remotas origens,
manifestando-se de modos tão diversos quanto díspares em termos de intensidade,
origem/finalidade e legitimidade (não adentraremos, por ora, ao mérito semântico
deste último termo, reservando tal discussão para mais adiante, ainda nesta
dissertação). Todavia, se buscássemos um denominador comum e atemporal entre
a violência e o homo sapiens, este seria, indubitavelmente, a evolução pareada e
mutuamente influenciável verificada em ambos.
Ao longo de milhares de anos, a violência apresentou as mais diversas faces
e formas, elementos condicionados pela autoria, finalidade, contexto, método e
limites imanentes ao ato violento, o que torna particularmente difícil a apresentação
de um conceito absoluto, capaz de abranger o que a violência foi, é e poderá vir a
ser, bem como os processos, determinantes e variáveis envolvidos nas práticas
violentas.
Some-se a isso o fato de que a violência, antes de ser praticada, foi
certamente elaborada em contextos repassados de grande complexidade e ter-se-á
uma pequena, porém elucidativa, idéia de quão íngreme é a tarefa de tentar defini-
la, pelo menos de modo a não deixar dúvidas quanto ao seu significado em nossos
24
dias. Já que não podemos nos furtar à necessidade de delimitar esse tema, ainda
que sem maiores pretensões que não as de ordem didática e funcional, podemos
intentar iniciá-lo por uma definição lexicológica, qual seja a de Houaiss (2001, p.
2866) quando afirma que a violência é
[...] ação ou efeito de violentar, de empregar força física (contra
alguém ou algo) ou intimidação moral contra (alguém); ato violento,
crueldade, força [...] exercício injusto ou discricionário, geração ilegal,
de forma ou de poder [...] cerceamento da justiça e do direito;
coação, opressão, tirania [...] força súbita que se faz sentir com
intensidade, fúria [...] dano causado por uma distorção ou alteração
não autorizada [...] constrangimento físico ou moral exercido sobre
alguém, para obrigá-lo a submeter-se à vontade de outrem; coação
[...].
Como se vê, a violência é concebida a partir de alguns de seus sentidos mais
comuns, mas não há uma tentativa (incompatível, aliás, com o propósito
lexicográfico) de delimitação da mesma a partir de suas naturezas, propósitos,
circunstâncias ou efeitos, o que torna a definição dicionarizada incompleta, já que é
uma medida léxico-diametral da violência.
Isso não significa, todavia, que as explicações de Houaiss (2001) devam ser
desconsideradas. Pelo contrário, servem de ponto de partida para o exame mais
detalhado dos elementos conceituais que integram e dão forma à noção de
violência. De fato, se vertermos nosso olhar sobre a concepção filosófico-social de
violência, notaremos certa similaridade, pois, como salienta Chauí (1985, p.35), esta
pode ser concebida a partir de um prisma dual, qual seja
Em primeiro lugar, como conversão de uma diferença e de uma
assimetria numa relação hierárquica de desigualdade, com fins de
dominação, de exploração e opressão. Em segundo lugar, como a
ação que trata um ser humano não como sujeito, mas como coisa.
Esta se caracteriza pela inércia, pela passividade e pelo silêncio de
modo que, quando a atividade e a fala de outrem são impedidas ou
anuladas, há violência.
Temos, nessa concepção, uma visão que encampa a noção denotativa da
violência constante do dicionário, porém, avança no sentido de situar o homem
como sujeito de diversas relações nas quais, se ocorrerem desigualdade, assimetria
e/ou “coisificação” (perdoem-nos o neologismo) que prejudiquem alguém, haverá
inegavelmente violência.
25
Em outras palavras e ainda tendo Chauí (1985) como ponto de partida, pode-
se conceber a violência como a desproporção entre sujeitos em relações diretas ou
indiretas com danos de diversas jaezes para um ou mais desses indivíduos
deliberadamente provocados por alguém, sendo que esse alguém não necessita ser,
por razões óbvias, uma pessoa física, mas também entidades, instituições ou o
próprio Estado, como veremos mais adiante.
Se for posicionada em uma perspectiva antropológica e, mais
especificamente, relacional, a violência não se caracteriza “[...] como ato isolado,
psicologizado pelo descontrole, pela doença, pela patologia, mas como um
desencadear de relações que envolvem a cultura, o imaginário, as normas, o
processo civilizatório de um povo” (FALEIROS, 1998, p.37).
Isso é especialmente importante para que se compreenda que a violência,
sob esse prisma, não implicará em ações derivadas de descontrole, patológico ou
não, mas sempre em uma visão que é cultural, construída socialmente e ciente das
normas que regem o contrato social de vivência e, em especial, de convivência. É
claro que isso não nega a matriz patológica do ato violento em alguns casos
(psicopatias, etc.), mas o situa em circunstâncias específicas.
Como podemos verificar sem maiores dificuldades, a delimitação da violência
esbarra em diversas barreiras, especialmente no que diz respeito ao objeto de sua
ação, à variedade, quantidade e interação das causas passíveis de serem arroladas
e, de modo mais restrito, aos aspectos/direcionamentos que serão impressos ao
exame do tema.
Nesse sentido é bastante oportuna a contribuição de Ristum e Bastos (2004,
p.227) ao salientarem que, quando da tentativa de se definir o que é violência,
Encontram-se aqui duas posições extremadas e opostas. Uma delas
focaliza sua natureza inata, como a posição de importantes etólogos
que afirmam a existência de um instinto geral de agressão. [...] com
base nas formulações de Freud, afirma a existência de instinto
agressivo no homem e distingue agressividade de violência; e a de
Figueiredo (1998), que afirma a impossibilidade de uma vida social
destituída de agressividade e violência, acrescentando que a
violência é estruturante e constitutiva da subjetividade humana.
Esse é um aspecto que deve ficar bastante claro neste estudo, qual seja a
oposição entre etólogos ou ainda de cientistas que acreditam na violência como
manifestação instintiva e aqueles que acreditam serem os atos violentos produtos de
26
uma determinada ambiência e de outros fatores (afetivos, familiares, etc.) que
acabam por determinar um comportamento violento. Ristum e Bastos (2004, p.228)
salientam, por outro lado, que
A outra posição advoga que a violência tem suas raízes na
aprendizagem, a exemplo da posição de Bandura (1973), que
propõe, na perspectiva da teoria da aprendizagem social, que o
comportamento agressivo é adquirido por modelação (aprendizagem
por observação de modelos) ou por experiência direta e sob
influência de fatores biológicos estruturais. Para Skinner (1976, p.
1982), o comportamento violento do homem é modelado na sua
história ontogenética e mantido pelas conseqüências reforçadoras
que produz.
Os esclarecimentos de Ristum e Bastos (2004) revestem-se de ampla
significância no âmbito deste estudo por sintetizarem de forma bastante clara
algumas das dificuldades e mesmo impossibilidades que se colocam no sentido de
dar forma a um conceito suficientemente representativo de violência, em todas as
suas nuances e variáveis. Assim e tendo em vista a necessidade de clarificarmos
nosso posicionamento face à violência, cumpre, no entanto, trazer a lume qual a
visão que adotamos sobre o tema.
Dado que laboramos a partir da análise de indivíduos fictícios (personagens
de um filme), na perspectiva da Teoria das Representações Sociais, procuramos
uma delimitação de violência que não se mostrasse contraditória com esses fatores.
Em outras palavras e para efeitos de esclarecimento, quando nos referirmos à
violência e às suas representações, nesta dissertação, o fazemos a partir dos
seguintes aspectos, apontados por Wertham (1967), o qual a violência, a grosso
modo, como algo que apresenta algumas (ou, raramente, todas) das seguintes
características:
Abuso de poder: toda violência nasce de uma desigualdade de poder entre
o(s) agressor(es) e a(s) vítima(s). Basicamente, pode-se afirmar que o violento tem o
poder de causar danos de alguma espécie a outro ser humano porque abusa de um
poder que uma pessoa detém em maior escala do que outro indivíduo.
Essencialmente, quem comete uma violência o faz por que tem, em última análise,
poder para fazê-lo e abusa desse poder.
Uso de força: o emprego da força é algo imprescindível à violência, pois se
esta advém de um posicionamento/relação desigual de poder, somente poderá ter
lugar se e quando alguém empregar alguma forma de força, seja esta física, moral
27
ou de outros jaezes. Como exemplo podemos dizer que uma ordem dada por um
oficial superior a um subordinado pode conter considerável uso de força, mesmo que
revestida de legitimidade marcial.
Forma inadequada de resolução de conflitos: a violência, na imensa maioria
das vezes, é uma forma totalmente inadequada de resolução de conflitos, pois se
apóia em um modus pouco elaborado de ação, independentemente do tipo de
conflito (familiar, social, racial, criminal, etc.) Em outras palavras, o indivíduo que se
utiliza da violência em quaisquer de suas formas, o faz, predominantemente, por
desejar uma via rápida de resolução, ao contrário do que ocorre, por exemplo, em
um diálogo com argumentos de parte a parte sobre algo ou alguém. Trata-se, assim,
do predomínio da força sobre o diálogo ou ainda da brutalidade sobre ações que,
sem serem brutais, consigam atingir resultados talvez mais satisfatórios. Assim,
combater a violência com uma violência ainda mais brutal não pode ser considerada
uma forma adequada de resolução de conflitos e problemáticas, dado que implica no
recrudescimento do comportamento e mesmo da atitude violentos.
Tem uma origem: toda violência humana tem uma origem, isto é, forma-se a
partir da confluência de vários fatores que, de modos e intensidades diferentes, vão
erigindo os mecanismos que levam alguém à violência. Essa perspectiva exclui, de
modo polêmico (existem várias divergências entre psicólogos sociais e etólogos
nesse campo), a violência como um instinto, um processo inato do e no indivíduo.
Se essa hipótese fosse aceita, tiraria do homem qualquer responsabilidade por seus
próprios atos, o que é inaceitável psicológica, psiquiátrica e juridicamente.
Reproduz um modelo apreendido: neste item repousa grande parte da
controvérsia entre os que defendem a idéia da violência como instinto e aqueles que
acreditam ser a violência a reprodução de um modelo aprendido, isto é, ela derivaria
de um conjunto de aspectos que, somados, formam um todo que influencia e mesmo
determina a ocorrência de violência.
Não é natural: a violência, na concepção que adotamos neste estudo, não é
e não pode, sob qualquer aspecto, ser considerada um ato natural, dado que é
aprendida, mas não é, em absoluto, uma necessidade como o sexo (instrumento da
fecundação) e a comida (instrumento de conservação), por exemplo. Obviamente,
esse não é exatamente um ponto pacífico entre os vários estudiosos da violência,
antes, trata-se de um autêntico imbróglio, suscetível de críticas de parte a parte. De
nossa parte (e temos que tomar posição nessa problemática), adotamos a noção da
28
violência como decorrente de uma aprendizagem complexa, porém nitidamente
ambiental.
Como se pode verificar nos enunciados aqui dispostos, qualquer tentativa de
definição do que é a violência é diretamente influenciada e mesmo determinada
pelas crenças subjacentes do estudioso. Ou seja, depende muito mais daquilo que
se acredita provocar, instigar ou ser violência do que de um cotejo crítico entre
postulados diversos. Conosco, até mesmo por uma questão de coerência, não
poderia ser diferente, e adotamos como delimitação de violência a proposta por
Wertham (1967), segundo a qual se trata de um abuso de poder que se baseia na
força e nas desigualdades entre o violentado e o violentador; não é uma forma
adequada de solução de conflitos, dado que sua ação costuma provocar problemas
ainda maiores; tem uma origem ambiental e reproduz modelos apreendidos,
conscientemente ou não; e não pode ser considerada algo natural, mas sim um
comportamento aprendido.
Faz-se necessário dizer que não alimentamos nenhuma pretensão de
esboçar uma definição absoluta de violência, mas tão somente deixar claro qual é a
concepção com que trabalhamos nesta dissertação, já por necessidades didáticas,
já pelo direcionamento que está sendo dado ao estudo aqui apresentado. Em nossa
visão, a violência é, principalmente, fruto de condições ambientais que,
paulatinamente, levam ao comportamento, latente ou ativo, violento, não o resultado
de um instinto, ainda que não possam ser descartados os casos de doença mental
que também levam à violência.
2 A VIOLÊNCIA AO LONGO DOS SÉCULOS
O ser humano é, inquestionavelmente, o ser mais criativo que já pisou na
Terra. Conseguiu sempre obter respostas adequadas ou pelo menos razoáveis a
inúmeros problemas, dificuldades e anseios, tornando-se gradativamente o senhor
do planeta, das águas, dos continentes e dos seres que o habitam.
Se buscarmos estabelecer uma linha do tempo no tocante à evolução do
homem do ponto de vista biopsicológico, bem como às suas ações e interações
sociais, se torna facilmente verificável que a espécie humana sofreu um avanço
29
exponencial, seja no que tange ao suprimento de suas necessidades essenciais,
seja moldando o ambiente de acordo com aquilo que se fez/faz necessário, ou ainda
no dimensionamento mais adequado do homem-social (vide os códigos legais, as
regras de convivência, etc.).
Todo esse processo milenar fez emergir novos recursos, comportamentos e
modelos de organização social, extinguindo meios e métodos anteriormente
utilizados. Tome-se como exemplo dessa afirmação o caricatural, embora realístico,
processo de conquista de uma fêmea pelo homem de Neanderthal, que consistia da
captura seguida de um rapto da vítima-esposa-reprodutora. Em nossos dias a
conquista de uma companheira se dá de modo consideravelmente mais suave,
inclusive do ponto de vista físico (levar pauladas na cabeça não deve fazer parte do
imaginário romântico feminino, segundo acreditamos).
Não obstante o progresso, a evolução e mesmo as revoluções
comportamentais, sociais, políticas, dentre outras, a violência nunca deixou de
acompanhar o homem, seja em matanças generalizadas, seja ainda em atitudes
individuais sangrentas. Se compararmos os primeiros humanóides com os
executivos e funcionários de carreira que proliferam nas empresas e no mercado
financeiro de nosso tempo, não teremos dificuldades em constatar que ambos
manifestam algum grau de violência, com a ressalva de que apenas os meios e
métodos sofreram mudanças. Às vezes, nem isso.
Em linhas gerais, não se pode falar de um instinto violento nos seres
humanos, como salienta Montagu (1978), pois isso implicaria em risco permanente
para todos os membros de um determinado grupo, incluindo-se as eventuais proles,
anciãos e companheiras. Sabendo que o homem é um ser, por sua própria natureza,
político, social e mesmo gregário, um instinto agressivo permanente e ativo levaria
os grupos sociais à auto-destruição em períodos de tempo relativamente curtos.
Por ora não adentraremos ao mérito dessa questão, pois reservamos tal
discussão para um tópico adiante, onde ela será melhor enfocada. O que desejamos
evidenciar é que o paralelismo entre a evolução do homem e a manutenção de
hábitos, meios ou atitudes violentos não é prova, como desejam alguns etólogos,
segundo explica Werthan (1967), de que a violência é intrínseca ao ser humano,
independentemente do seu grau de evolução. Ou seja, a crença de alguns
estudiosos no fato de a violência não ter sido erradicada do seio social até o
presente decorrer da possibilidade dela integrar o totun humano, fazendo parte de
30
sua constituição global, é, segundo Montagu (1978), uma falácia, mesmo porque
não fornece explicações suficientemente críveis sobre as diferenças
comportamentais entre indivíduos violentos ou pacíficos, limitando-se a traçar
semelhanças entre o comportamento humano e o animal.
De fato, se fizermos recuar nossa análise à época dos macacos-homens
(semi-humanóides, na verdade), os austrolopitecos, poderemos verificar que não há
indícios significativos de prática contumaz de violência. Mesmo as ferramentas
criadas por esses hominídeos não se prestariam, como crêem os etólogos, a ser
utilizadas como armas. Montagu (1978, p.115) afirma que
Basta examinar as ferramentas dos austrolopitecos para ver que não
é provável terem sido feitas para servir de armas destinadas a matar
animais [Ou humanóides grifo nosso]. [...] Resta então a
possibilidade de que as ferramentas dos austrolopitecos tenham sido
feitas para servir de armas destinadas a matar outros
austrolopitecos? É bastante improvável, pois estes instrumentos
seriam inúteis em combates corpo-a-corpo.
É preciso ter presente que os austrolopitecos, até mesmo para poderem
garantir sua alimentação, andavam em pequenos grupos, com poucos integrantes e
tendiam a evitar a aproximação com outros agrupamentos. Se eles pouco se
encontravam e, mais raramente ainda, se envolviam em combates, por que criar
armas? Ferramentas eram, por razões óbvias, muito mais importantes (MONTAGU,
1978).
As afirmações de Montagu (1978) prestam-se não apenas como uma forma
de contrapor, de maneira racional e lógica, argumentos contrários (etológicos), como
também deixar claro que, já na sua gênese, o homem não manifestava um
comportamento violento com seus semelhantes de forma sistemática.
Isso não significa, por outro lado, que os austrolopitecos não utilizassem suas
ferramentas rudimentares para matar animais que faziam parte da dieta dos
membros do grupo. Tais atos envolviam, necessariamente, um grau de violência
nascida de uma necessidade premente e incontornável: a fome (MONTAGU, 1978).
Some-se a isso o fato de que os grupos de austrolopitecos eram bastante
restritos, com cerca de 20 a 30 membros, e ter-se-á uma idéia bastante clara da
situação, isto é, se a violência intra-grupal fosse tão intensa como querem os
etólogos, em pouquíssimo tempo não haveria mais do que 1 ou 2 indivíduos vivos, o
31
que significaria, na prática, o aniquilamento dos humanóides, já que, sem armas
potentes, refúgios e/ou formas de defesa apropriadas, os sobreviventes logo
sucumbiriam às feras, à inclemência do clima e às doenças agravadas por um
quadro que, certamente, seria de sub ou desnutrição permanentes (MONTAGU,
1978).
Ao avançarmos alguns milhões de anos até o ser pré-Homo sapiens com
características humanóides, o homem de Neanderthal, poderemos verificar com
razoável facilidade que é a cooperação entre os membros de um grupo e não a
violência o principal traço que os distingue.
Para compreender essa afirmação, basta um pequeno esforço de imaginação.
Tome-se como ponto de partida as ferramentas que, mesmo consideravelmente
mais evoluídas que as pertencentes aos austrolopitecos, ainda são rudimentares
demais para permitir a caça e a defesa contra seres consideravelmente mais ágeis e
perigosos como leopardos, babuínos e mamutes, para ficarmos em apenas três
exemplos. É evidente que a união (cooperação) consiste no melhor modo não
apenas de obter alimentos, mas também de defesa, haja vista que em grupo a fuga
ou o enfrentamento tende a ser muito mais eficiente do que individualmente
(MONTAGU, 1978).
Tendo esses dados como parâmetro, torna-se pouco crível a afirmação de
que tais indivíduos passavam o tempo divididos entre a caça e sangrentas lutas
corpo-a-corpo, seja para desenvolver sua habilidade guerreira, seja para se
tornarem líderes dos demais.
Realmente, se as ferramentas de que dispõem são pouco desenvolvidas
tecnologicamente, se a caça requer a participação de vários indivíduos e se a
defesa/fuga é facilitada pela presença de vários indivíduos, acreditar que o homem
desse período, já bastante próximo do seu sucessor indireto, o homo sapiens,
alimentasse instintos violentos com a função de ferir e/ou destruir seus semelhantes,
é totalmente irracional. Pode-se, numa concessão um tanto otimista, acreditar que
as lutas intra-grupais dessem origem a uma espécie de seleção natural em que
apenas os fortes sobreviveriam. Isso, porém, não se verifica, pois, por mais forte que
fosse um indivíduo dessa época, com sua altura de cerca de 1,50 metro,
aproximadamente 55 quilos e lanças rudimentares, não seria páreo para um
leopardo (que ainda hoje é considerado o animal carnívoro mais temido pelos
africanos), um alce ou um mamute (MONTAGU, 1978).
32
Em outras palavras, se apenas os fortes sobrevivessem em função
justamente de sua maior habilidade, a noção/necessidade grupal seria afetada de
modo terminal, impedindo a evolução progressiva de um modo de vida
nômade/grupal para um outro fixo/social. Não estamos, é claro, advogando que não
existiam líderes nos grupos, pelo contrário, esse parece ser um signo permanente
das relações entre membros de um mesmo grupo, mas tão somente dizendo que o
extermínio dos pares pela violência gratuita (instinto) seria algo totalmente
contraproducente para a sobrevivência do conjunto.
Se pularmos mais algumas centenas de milhares de anos e demarcarmos
como ponto de partida o mundo de 100 mil anos atrás, poderemos verificar que
haviam no planeta três “humanidades”, a saber: o Homo sapiens, que ocupava
porções consideráveis da África e da Ásia; o Homem de Neanderthal, que se fixava
na Europa; e o Homo erectus, descendente de primatas inferiores que permanecia
em Java (MONTAGU, 1978).
O fato de a espécie que predominou ter sido a do Homo sapiens não se apóia
em guerras de extermínio como sustentam os defensores da violência inata, mas
pura e simplesmente porque desenvolveu tecnologias de caça e defesa melhores,
estabeleceu os primeiros lócus fixos sociais, além de ter estipulado regras de
conduta, pois sem isso a formação dos primeiros núcleos sociais não teria sido
possível. Outrossim, se levarmos em consideração a baixa densidade demográfica
dessa época (as pessoas viviam, em média, entre 18 e 20 anos) e as distâncias
enormes que separavam as diferentes espécies, como acreditar que tenha sido
possível uma mobilização organizada, inclusive em termos de logística e estratégia,
de grandes contingentes de Homo sapiens com o objetivo de exterminar as outras
raças (MONTAGU, 1978)?
Nesse sentido, é bastante oportuna a contribuição de Narvaz e Koller (2006,
p.122) ao afirmarem que
Estudos antropológicos indicam que, no início da história da
humanidade, as primeiras sociedades humanas eram coletivistas,
tribais, nômades e matrilineares. Tais sociedades (ditas "primitivas")
organizavam-se predominantemente em torno da figura da mãe, a
partir da descendência feminina, uma vez que desconheciam a
participação masculina na reprodução.
Note-se que as sociedades referidas pelos autores retrocitados são
matriarcais, isto é, sem os costumes, crenças e, mais importante, a agressividade
33
aniquiladora da atuação grupal masculina. Esse tipo de sociedade era, ao contrário,
bastante unida, já que demandava a cooperação de todos para a realização de
tarefas que, em caso de brigas e agressões freqüentes, se tornariam inviáveis.
Os papéis sexuais e sociais de homens e de mulheres (...) e as
relações sexuais não eram monogâmicas. Todos os membros
envolviam-se com a coleta de frutas e de raízes, alimentos dos quais
sobreviviam, bem como a todos cabia o cuidado das crianças do
grupo. Muito tempo depois, com a descoberta da agricultura, da caça
e do fogo, as comunidades passaram a se fixar em um território.
(NARVAZ e KOLLER, 2006, p.125).
Foi somente com a criação de comunidades que as relações sociais se
modificaram sensivelmente, pois cabia aos homens a tarefa de prover a alimentação
via caça (em grupo, geralmente) e coleta, enquanto que às mulheres exigia-se
cuidar da prole, alimentando-a e protegendo-a com os poucos recursos existentes.
Somente então, as relações sexuais foram se tornando monogâmicas, não por uma
mutação dos instintos sexuais, mas sim por necessidades sociais, especialmente a
partilha de eventuais heranças (NARVAZ e KOLLER, 2006).
Como podemos perceber, não há quaisquer evidências de uma violência inata
que, emergindo dentro do grupo numa perspectiva individual, embora recorrente,
colocasse em risco a integridade dos membros desses núcleos humanos primários.
Aliás, é a pouca freqüência de violência incapacitante e/ou exterminadora que
permite o surgimento desse modelo de agrupamento social, uma vez que é a
cooperação que permite a sobrevivência de todos e não a brutalidade em quaisquer
de suas formas (NARVAZ e KOLLER, 2006).
Exemplo bastante eloqüente dessas afirmações é o surgimento da família,
isto é, de uma base fixa e erigida a partir de normas e regras de conduta na qual a
necessidade de cooperação, organização e defesa formam o tripé essencial de sua
existência. Ora, nada menos inato do que o desejo de formar um pequeno grupo
social que permanece unido por meio da observação de convenções e não de
necessidades ou determinações biológicas. A família, independente do seu formato,
é o aspecto que erige e solidifica o todo social, pois será a partir dela que se
organizará a sociedade, por mais primitiva que seja (NARVAZ e KOLLER, 2006).
Assim, na transição do nomadismo para o estabelecimento de um lócus mais
ou menos permanente, há a predominância de vários elementos de caráter social e
agregador, a saber: estabelecimento de regras, inter-proteção dos membros e a
34
formação de mini-grupos (famílias) que dão a sustentação necessária à formação e
permanência de um grupo social.
Em outras palavras, a violência não podia ser ou atuar como um
comportamento natural nessa estrutura social, posto que colocaria em risco a
continuidade da mesma. Ser violento, nesse meio, equivaleria a desequilibrar e
mesmo destruir uma construção social que se fez gradualmente necessária para a
sobrevivência da espécie, o que contraria in extremis a idéia do homem como um
ser violento por natureza (MONTAGU, 1978).
Se pularmos do período pré-histórico para o chamado período civilizacional
ou, como é mais conhecido, histórico, encontraremos a marca indelével da violência,
seja na Antigüidade Clássica com seus grandes pensadores, seja no obscuro
período medieval, passando pelo Iluminismo e chegando até às matanças em escala
industrial do século XX.
Tomando-se a civilização hebraica como ponto de partida e o confrontamento
da mesma com outras civilizações e suas respectivas evoluções histórico-sociais,
não há nada que impeça a visualização, em intervalos regulares ou irregulares,
dependendo-se do ponto de vista adotado, da violência sempre presente, seja em
que escala for (MONTAGU, 1978).
A Bíblia, o Alcorão e a Torah são repletos de menções à violência, seja na
descrição de atos violentos, seja ainda na prescrição de leis que deveriam reger os
povos. O código de Hamurabi, o mais antigo compêndio organizado de leis, é de
uma dureza pétrea ao determinar quais as sanções cabíveis em situações
consideradas passíveis de punição.
De fato, em Gênesis 4, versículo 23 vemos que a primeira forma de violência
aplicada se deu antes mesmo do assassinato de Abel por seu irmão Caim, mais
precisamente quando Deus expulsou Adão e Eva do Paraíso, obrigando-os, com
isso, a sofrerem com as dificuldades atinentes à sobrevivência e à procriação. Com
a morte de Abel temos, contudo, uma forma deliberada e dolosa de violência fatal,
isto é, Caim mata seu irmão de forma intencional, sendo, logo a seguir expulso por
Deus do local onde habitava e passando a levar uma vida errante. O Senhor, porém,
coloca em Caim um sinal para que aqueles que o vissem não o matassem. É
oportuno, aliás, salientar que o sinal (alguns o denominam de marca) de Caim é um
ícone na não-violência, pois Deus o imprimiu ao primeiro homicida com vistas
35
justamente a preservar sua vida. Logo, afirmar que alguém que porta o sinal de
Caim é, por definição, violento, é um equívoco (BÍBLIA SAGRADA, 1998).
A violência aparece de forma reiterada na Bíblia, notadamente no Velho
Testamento, que assinala desde a ocorrência de sacrifícios rituais freqüentes,
passando por maldições e expulsões de filhos ou outros tipos de parentes pelo
patriarca de cada clã e, principalmente, nas guerras. Saul, o primeiro rei dos judeus,
era um homem de armas, tendo derramado sangue em muitas batalhas. O genro de
Saul e posterior rei de Israel, Davi, mostra ter um caráter violento, pois mencionam-
se na Bíblia suas lutas contra feras e, em seguida, o ataque ardiloso que promove
contra o gigante Golias (Davi não se bate em duelo contra o gigante, mas sim o
ataca à distância, de um modo que se poderia denominar tanto de estratégico
quanto covarde, o que faz emergir a figura de um rapaz ainda imberbe, porém
suficientemente frio e calculista para derrotar, de maneira maquiavélica, um
oponente bem mais poderoso). Outrossim, ao longo da relação de Saul com Davi, o
primeiro arma emboscadas, traições e tramas com a intenção de assassinar seu
genro, pois este é mais popular do que ele. Ao cabo, Saul e Jônatas, seu filho,
acabam por cometer a forma suprema de violência: o suicídio (BÍBLIA SAGRADA,
1998).
O que se vê neste, como em muitos outros exemplos de violência na Bíblia e
na história, são ações desencadeadas a partir de motivos diversos, porém
nitidamente sócio-culturais. De fato, Saul persegue Davi por ter inveja dele; Amon
violenta sua meia-irmã Tamar porque a deseja sexualmente e não consegue se
livrar desse desejo incestuoso. Absalão, o mais carismático filho de Davi, promove
um conjunto de ações deliberadas para, com o apoio popular, derrubar seu pai do
poder e acaba sendo morto por um oficial de Davi por razões que não se assentam
em qualquer instinto, mas pura e simplesmente na necessidade de supressão de um
elemento que se mostrava capaz de promover graves problemas políticos e sociais
e desestabilizar a ordem vigente (BÍBLIA SAGRADA, 1998).
A Lei de Talião (a mesma do Código de Hamurabi) é, essencialmente, reativa,
ou seja, pensada e articulada em uma perspectiva de vingança, de represália, o que
a torna uma violência fria, calculada, que muito pouco tem a ver com hipotéticos
instintos animais.
A formação do Império Romano deu-se, basicamente, pela força e pela
posterior dominação, com inequívoco emprego de violência. Não de qualquer tipo de
36
violência, mas sim de métodos guerreiros de combate e extermínio. Nas arenas do
Coliseu, centenas (alguns estudiosos falam em milhares) de homens morreram de
maneira atroz apenas para divertimento do público. Poder-se-ia dizer que os
gladiadores lutavam para conquistar a liberdade e/ou algum tipo de recompensa,
mas o fato é que lutavam porque não tinham nenhuma outra opção. Aliás, escravos
que se rebelassem contra as ordens dos Césares eram sumariamente executados.
Mas, e o público, por que se regozijava tanto com tais espetáculos? Por que eram
indivíduos inatamente apreciadores da violência homicida? A resposta, também
desta vez, não repousa em instintos pulsantes, mas sim em hábitos de cultura
guerreira, pois Império nenhum se firma como conquistador de outras terras e povos
sem ser por intermédio da violência. Além disso, a morte de um escravo (a maior
parte dos gladiadores) era vista com os mesmos olhos com que, atualmente, a
grande maioria das pessoas vê a matança de animais comestíveis, tais como vacas,
porcos e galinhas, dentre outros (“A vaquinha de hoje é o bife de amanhã”), ou seja,
algo comezinho, destituído de importância emocional significativa (CRETELLA JR.,
1998).
Na Idade Média, a violência continuou a ser concebida e executada muito
mais em função dos aspectos socioambientais e culturais do que por manifestações
que pudessem se aproximar de um caráter inatamente violento. Exemplo disso é o
tratamento reservado às diferentes classes sociais do período medieval, pois
enquanto os senhores feudais e os membros do seu círculo próximo gozavam de
prerrogativas diversas, a escala mais avultada e menos importante da população era
sistematicamente espoliada de seus bens, de sua liberdade e mesmo de sua honra.
Segundo historiadores, alguns senhores feudais e mesmo seus vassalos abusavam
de modo freqüente dos seus servidores, escravizando uns, espoliando outros,
aviltando todos. E por que agiam desse modo? Porque consideravam essa atitude
comum, exeqüível e, sobretudo, normal, em que pese a dificuldade de se definir
esse último termo.
Datam dessa época, ainda, as guerras entre feudos, os estupros (“filhos”
diretos dos conflitos, mas também de uma cultura que considerava a mulher espólio
de guerra), os roubos, as torturas e, acima de tudo, o assassínio de crianças,
mulheres e idosos.
Entre as classes mais baixas também imperavam modos e costumes
violentos, incluindo-se o bárbaro costume de extirpar o clitóris de meninas pré-
37
adolescentes, as brigas sangrentas por motivos de ordem pessoal ou social
ancorados, por sua vez, em atitudes ditadas pelos hábitos entranhados em tais
sociedades.
Sob o primado da honra, a vida tinha um valor menor que o da
estima pública, sendo a belicosidade primitiva parte da lógica social.
A violência era compreendida como um imperativo social que visava
o prestígio ou a vingança, e o ato de vingar-se de um ultraje, de um
assassinato ou de uma doença atribuída às forças maléficas de um
feiticeiro inimigo visava o restabelecimento de um equilíbrio
provisoriamente quebrado, na expectativa que a ordem do mundo
pudesse ser restabelecida (NARVAZ e KOLLER, 2006, p.231).
Os Estados modernos, porém, modificaram estruturalmente a natureza da
guerra. O que antes era um ato encetado para manter a ordem ou ainda com função
punitiva de ações que iam contra a honra e o conservadorismo vigentes, passou a
ser um instrumento de conquista, de imposição de uma cultura sobre outra e, acima
de tudo, uma forma especialmente eficiente de se obter vultosos dividendos e poder
(NARVAZ e KOLLER, 2006). O que se sobressai nos enunciados anteriores é a
constatação de que a violência era empregada, em muitas situações, de um modo
sistemático, racionalizado e devidamente pensado, o que demonstra, em seus
contornos gerais, um não-inatismo dos atos violentos no homem, posto que os
mesmos eram sempre conseqüência de aspectos que pouco ou nada têm a ver com
os instintos primordiais humanos. A violência é, assim, um instrumento que tanto se
presta como resposta emocional ativa ou reativa, quanto um modus operandi do
indivíduo, do grupo ou mesmo dos regimes políticos, como se vê em seguida.
3 A VIOLÊNCIA COMO REGIME POLÍTICO
Falar sobre a violência no mundo civilizado é, quase sempre, referir-se
também ao Estado e aos seus agentes, assim como às múltiplas finalidades e metas
do ato violento e de suas motivações. Isso implica, de per si, a necessidade de
analisar a violência no âmbito do Estado e, mais especificamente, a violência como
regime político. Para isso, é importante compreendermos que a formação de
pequenos grupos, logo transmudados em comunidades e, por fim, em sociedades
38
complexas, demandou a diversificação das tarefas, iniciativas e meios de execução
em inúmeros elementos e situações.
Em outras palavras, se numa tribo indígena norte-americana como a dos
Dakotas (também conhecidos como Sioux), a raça mais guerreira das planícies dos
EUA até o final do século XIX, era possível a um pequeno grupo de pessoas (8 ou
10), de modo relativamente simples, deliberar e determinar quais as ações
prioritárias da tribo, a divisão de tarefas e mesmo julgar comportamentos
inadequados ou merecedores de honrarias, em sociedades mais complexas isso
seria impraticável (BROWN, 2004).
Ora, em sendo assim, como determinar regras e leis de conduta, faze-las
serem cumpridas e, ao mesmo tempo, estabelecer deveres e direitos e, sobretudo,
promover a convivência do modo mais harmônico possível em agrupamentos
humanos volumosos, estáveis do ponto de vista geográfico e bastante heterogêneos
em sua composição? A resposta é relativamente fácil de se entender, mas
extremamente difícil de ser explicada em bases científicas: o Estado é o ente
jurídico, social e político que identifica, une e dispõe sobre a sociedade em seus
diferentes substratos.
A essa altura, uma definição do que vem a ser o Estado em suas
multifacetadas possibilidades seria bem-vinda, mas alongaria por tal forma este
tópico que acabaria por desvirtuar aquilo que, do ponto de vista desta dissertação,
nos interessa diretamente, qual seja o poder legitimado pelo povo e pelas
instituições criadas para representar, coagir, punir e proteger o homem social. Nesse
sentido é oportuna a afirmação do grande jurista italiano Norberto Bobbio, quando
salienta que
Poder é a possibilidade de contar com a obediência a ordens
específicas por parte de um determinado grupo de pessoas. Todo
poder carece do aparelho administrativo para a execução das suas
determinações. O que legitima o poder não é tanto, ou não é só, uma
motivação afetiva ou racional relativa ao valor: a esta se junta a
crença na sua legitimidade. O poder do Estado de direito é racional
quando, escreve Weber, "se apóia na crença da legalidade dos
ordenamentos estatuídos e do direito daqueles que foram chamados
a exercer o poder (BOBBIO, 2000, p. 402).
Valendo-nos do pensamento de Bobbio (2000), podemos inferir que o
componente fundamental do Estado, que tanto o distingue do ente humano
39
individual quanto dos grupos e subgrupos dentro de sociedade estamentária,
ultrapassando a ambos em sua extensão e domínio, é a legitimação que, ao ser
concedida aos mandatários que formam e dão corpo ao Status, também concedem
ao Estado o Poder em sua forma mais ampla e absoluta.
Assim sendo, podemos afirmar, sem quaisquer pretensões de exaurir o tema
ou mesmo delimitá-lo em definitivo, que o Estado só existe enquanto tal na mesma
proporção em que seu poder seja maior do que o do indivíduo ou dos grupos, em
comunhão ou não, e que, respaldado pela legitimidade, permita, pela ordem: a
existência do Estado, a dominação, o controle e a proteção dos entes físicos e
jurídicos sobre os quais incide.
Dominação legal em virtude de estatuto. Seu tipo mais puro é a
dominação burocrática. Sua idéia básica é: qualquer direito pode ser
criado e modificado mediante um estatuto sancionado corretamente
quanto à forma [...] Obedece-se não à pessoa em virtude de seu
direito próprio, mas à regra estatuída, que estabelece ao mesmo
tempo a quem e em que medida se deve obedecer (WEBER, 1989,
p. 128-129).
Evidentemente, nessas circunstâncias, o Estado deverá estar capacitado não
apenas a mandar cumprir (poder de mando), mas também e igualmente importante,
do poder de fazer cumprir, que encampa, nos modelos de Estado de Direito, os
próprios mandatários.
Também quem ordena obedece, ao emitir uma ordem, a uma regra:
à "lei" ou "regulamento" de uma norma formalmente abstrata [...] Seu
ideal é: proceder sine ira et studio, ou seja, sem a menor influência
de motivos pessoais e sem influências sentimentais de espécie
alguma, livre de arbítrio e capricho e, particularmente, "sem
consideração da pessoa", de modo estritamente formal segundo
regras racionais ou, quando elas falham, segundo pontos de vista de
conveniência "objetiva" (WEBER, 1989, p. 128-129).
A contribuição de Max Weber ao breve exame que aqui procedemos é
fundamental, dado que visamos examinar, restrita e estritamente, as representações
de violência de um dos braços mais fortes do Estado, qual seja uma ou mais forças
armadas. De fato, o filósofo germânico deixa evidente a necessidade de dominação
que o Estado deve impor sobre o indivíduo, dominação esta que será sancionada
não com base nos direitos próprios da pessoa, mas na regra legalmente editada e
consagrada. E em que isso implica, do ponto de vista do trabalho aqui apresentado?
Significa que o estado instituirá a lei, o ordenamento jurídico-processual, os limites
40
desse Estado (especialmente quando se trata de um Estado de Direito) e os meios e
recursos de que se valerá para manter o status, que outro não poderia ser que o de
dominação legalmente demarcada e legitimada.
Nesse sentido, Miranda (2000, p. 47-48) comenta algumas das características
permanentes do Estado. Destas, elencamos as seguintes:
a) complexidade: o Estado reúne instituições, organizações e estratos sociais
diversos, o que lhe confere grande complexidade.
b) institucionalização: por sua própria natureza o Estado demanda a criação
permanente de instituições que possibilitem o desenvolvimento de suas atribuições,
o que o torna algo em permanente transformação.
c) coercibilidade: isoladamente, esta é a principal categoria do nosso estudo,
pois se refere à obrigatoriedade do Estado em fornecer, de modo permanente,
segurança pública aos cidadãos e às instituições, ou seja, o Estado,
obrigatoriamente, deve agir de modo coercitivo na promoção da segurança dos
indivíduos e instituições, através de recursos, meios e iniciativas/atividades que
previnam e combatam ações criminosas e/ou violentas de quaisquer espécies.
É evidente, diante do que aqui foi exposto, que o Estado, até mesmo para ser
considerado como tal, deve ser capaz de exercer um domínio coercitivo em relação
aos cidadãos e instituições sob sua égide, o que implica, em contrapartida, na
disponibilização de serviços que fomentem o bem-estar da população ou, de modo
mais simples e pouco “sociológico”, que o Estado retribua aquilo que toma do
indivíduo, seja através de tributos, seja através dos muitos deveres que recaem
sobre o homem política e socialmente considerado.
E o que isso tem a ver com a violência, notadamente no âmbito do Estado?
Adorno e Pasinato (2007, p.134) salientam que
Esse longo processo demandou requisitos institucionais, entre os
quais o mais importante - o monopólio estatal da violência. É célebre
a fórmula weberiana: no interior de um território delimitado, o Estado
moderno é justamente a comunidade política que expropria dos
particulares o direito de recorrer à violência como forma de resolução
de seus conflitos (pouco importando aqui a natureza ou o objeto que
os constitui).
Esta afirmação traz à tona, de modo bastante claro, a noção de que a
violência somente será legitimada em condições tais que possibilitem ao estado
empregá-la amparado em preceitos legais. É curioso, pois, que o Estado em sua
41
condição de representante do coletivo social tenha em si tal poder, negando-o,
todavia, ao ente individualizado. É a reafirmação, por vias transversas, da
precedência e significância do Estado sobre o homem, do institucional sobre o
pessoal.
Na sociedade moderna, não há [...] qualquer outro grupo particular
ou comunidade humana com "direito" ao recurso à violência como
forma de resolução de conflitos nas relações interpessoais ou
intersubjetivas, ou ainda nas relações entre os cidadãos e o Estado.
Aqueles que estão autorizados ao uso da violência o fazem em
circunstâncias determinadas, em obediência ao império da lei [...].
Legitimidade identifica-se, por conseguinte, com legalidade, e
legalidade constitui, por conseguinte, o fundamento de um sistema
jurídico confiável, [...] um sistema cuja funcionalidade e operações
garantem previsibilidade de ações e resolução de conflitos segundo
regras reconhecidas como legítimas. (ADORNO e PASINATO,
2007, p.134).
Deduz-se dessas afirmações que o Estado não apenas detém o poder de
forma legitimada como é por meio dessa legitimação que ele pode agir
coercitivamente contra o cidadão e as instituições. Isso pode significar que nem
sempre o Estado paute suas iniciativas pelo bem-estar do maior número de pessoas
possível, mas sim, por vezes, por razões, interesses, motivações e objetivos
inteiramente diversos daquilo que se prevê, resumindo em linhas gerais, na Teoria
Geral do Estado: a identificação e a reunião de meios e agentes em busca do bem-
comum.
Ao contrário disso, alguns regimes, especialmente os ditatoriais, são
notoriamente violadores de direitos humanos e de cidadania, além de favorecer
apaniguados dos membros do poder e impedir manifestações que se respaldem em
atitudes libertárias e democráticas.
3.1 O ESTADO DE VIOLÊNCIA: O FASCISMO
Um aspecto que se destaca quando nos dispomos a analisar, mesmo que
brevemente, a evolução da violência no meio de sociedades organizadas e
complexas, é a recorrência com que a violência foi (e é) empregada no sentido de
garantir o domínio do Estado sobre as instituições e pessoas que o integram.
42
De fato, regimes políticos diversos, em situações e momentos também
variados, empregaram e empregam a força coercitiva do poder estatal para
intimidar, reprimir, controlar ou mesmo eliminar pessoas/grupos (não
necessariamente nesta ordem) que estejam em conflito, por quaisquer razões, com
os mandatários do Estado.
Nesse sentido, há que se abordar os chamados regimes totalitaristas,
independente de sua ideologia fundadora (esquerdista, anarquista, direitista, etc.),
uma vez que é justamente à sombra dos governos que se erigem sob tal égide que
se verificam ações violentas em escalas que vão da simples pressão psicológica ao
extermínio. Como explica Escorel (1993, p.50), os regimes totalitários caracterizam-
se por algo mais do que a exclusão ou o impedimento do pleno usufruto da condição
humana
A exclusão é a impossibilidade de realizar plenamente a condição
humana: é não poder ser um cidadão de sua polis. Essa exclusão é
distinta da abolição de direitos políticos e da supressão do espaço
público levado a cabo pelos regimes autoritários, despóticos e
ditatoriais.
Temos, assim, que um regime totalitário irá impor ao indivíduo uma ordem na
qual ele, pessoa humana, não tem mais direitos elementares, nem quaisquer
possibilidades de, agregando-se a outros indivíduos, atuar em uma direção que não
se coadune com os propósitos do Estado. Torna-se desnecessário dizer que, sob
um regime político de tal natureza, qualquer forma de antagonismo do homem em
relação aos mandatários políticos será reprimida com formas diversas de violência.
Escorel (1993, p.50), citando Arendt, afirma que
Percorrendo [...] "Os Três Pilares do Inferno" - o anti-semitismo, o
imperialismo e o racismo, a autora analisa a construção de uma
situação social e de uma forma de governo, única, com traços
distintivos e singulares: o Totalitarismo. Nessa forma de governo há
um processo constante, sem fim, de exclusão de grupos sociais e
uma forma específica de exclusão: o extermínio. É o domínio do
terror.
Tendo essa asserção como base, não é difícil intuirmos que, quanto mais
totalitário for o Estado, mais poder ele terá e, justamente para manter e, quiçá,
aumentar esse poder, irá instaurar formas diversas de terror, de barbárie e de
43
violência em suas múltiplas possibilidades, como ocorreu com o malfadado regime
fascista imediatamente antes e durante a Segunda Guerra Mundial.
É necessário ressaltarmos, contudo, que não estamos afirmando que o
fascismo seja o regime que mais violências praticou, pois em outros regimes
totalitários, especialmente o comunismo, na antiga União Soviética de Stalin ou
ainda as ditaduras militares na América do Sul, assim como o Nazismo na
Alemanha, entre muitos outros exemplos, foram muito mais longe na prática de atos
brutais contra a população. Afinal, é por meio do terror que o totalitarismo aniquila
fisicamente seus desafetos, sendo que a principal lei a ser obedecida é justamente a
da não contestação do regime (ESCOREL, 1993).
O que queremos dizer, fazendo coro a Wertham (1967), é que o fascismo, em
sua essência, é um regime erigido e mantido pela violência. Isso significa que, na
perspectiva fascista, a violência é o meio mais adequado de conquistar e manter o
poder. Uma tal visão não implica em dizer que o fascismo tenha eliminado mais
inimigos ou matado mais pessoas que outros regimes totalitários, mas sim que ele (o
fascismo) é apenas o que valoriza mais a violência como veículo e modo de
governo.
É oportuno ressaltar que não são apenas os regimes totalitários que
promovem formas diversas de violência e terror contra o cidadão. As democracias
também incorrem em tais “deslizes”, ainda que de modo menos recorrente. Aliás, é
interessante deixar claro que a democracia não é uma forma de governo encontrável
em estado “puro”, isto é, sem as máculas comuns do totalitarismo. A priori, podemos
afirmar que as democracias, por mais estabelecidas e longevas que sejam, possuem
“nódoas” bastante visíveis e violentadoras. Exemplo dessa afirmação é a asserção
de Escorel (1993) de que existem práticas totalitárias em regimes não totalitários.
Tome-se como base o caso do Brasil, onde milhões de pessoas vivem em situações
precárias econômica, social e politicamente. “Cerca de 1/5 da população sequer
atinge as franjas do espaço público, não adquire a igualdade de direitos que o
regime político democrático potencialmente lhe ofereceria” (ESCOREL, 1993, p.53).
Isso é um exercício de totalitarismo dentro de um regime, oficialmente falando,
democrático.
Da mesma maneira, a mais antiga (tomando-se como referência a época
atual) democracia, os Estados Unidos, apresentou casos de violação incontestável
dos direitos humanos quando, na prisão de Abu Ghraib, soldados norte-americanos
44
humilharam, ofenderam e torturam prisioneiros suspeitos de ligação com grupos
terroristas. Desse modo, não se pode pensar em regimes políticos como algo
homogêneo, sem arestas ou contradições, pois tais regimes, a exemplo do próprio
homem, reagem de acordo com as circunstâncias e estas nem sempre são
previsíveis ou adequadas àquilo que pode ser mantido sob controle direto ou
indireto.
É preciso evidenciar, pois, que todo e qualquer regime político pode se valer
da violência, independentemente de ideologias. De fato, até mesmo as democracias
não são imunes ao emprego de força como forma de imposição e dominação. Não
existem regimes “puros” (socialismo, comunismo, anarquismo, etc.), já que, sob
certos aspectos, podem se igualar. Isso se vê, por exemplo, nas práticas perniciosas
de violência e humilhação impostas pelos americanos (cidadãos da maior e mais
antiga democracia do planeta) à população do Vietnam e aos civis mortos no Iraque
que, segundo fontes diversas, pode já ter chegado à casa dos seis dígitos (VEJA,
2007).
Posto isto, podemos dizer, de acordo com Wertham (1967), que nenhum
regime político, nenhuma ideologia (mesmo as militaristas), foi tão longe, todavia,
em sua relação com a violência quanto o fascismo. Erigido a partir de uma visão
distorcida do poder coercitivo do Estado, o fascismo é, em que pesem eventuais
atenuantes históricas específicas (o fascismo teve seu auge imediatamente antes e
durante a sangrenta Segunda Guerra Mundial, sob o comando, na Itália, de Benito
Mussolini), a violência como forma de governo.
Durante sua implantação na Itália pré-Segunda Guerra Mundial, o fascismo
escorou-se no descontentamento das classes operárias com a política de franca
negligência para com necessidades imprescindíveis da população como alimentos e
remédios. Isso permitiu o avanço fascista e, já nos primeiros confrontos com o
governo, o uso de violência para atingir as finalidades desejadas. Se teve uma
discutível legitimidade em seus primórdios, ao se instalar no poder o fascismo
mostrou sua verdadeira face, tornando o Estado um mecanismo de repressão e
totalitarismo e, ao mesmo tempo, voltando-se contra a classe operária, além de se
aliar aos burgueses e à cúpula da Igreja Católica (WERTHAM, 1967).
Temos, assim, um quadro bastante peculiar: o fascismo tem origem e se
define enquanto modus de governança no período entre guerras mundiais, mas, ao
mesmo tempo, transmuda suas origens de tal forma que, instalado no poder, nega o
45
seu programa inicial para se aliar justamente àqueles que supostamente deveria
combater. Evidentemente, isso causou revolta e essa revolta foi o pretexto para
ações militaristas e opressoras sobre grande parte da população italiana. E tudo
com o aval das elites sociais e clericais. As brutalidades cometidas eram sempre
“sustentadas” em argumentos nos quais sobejam termos como “necessidade de
proteger o Estado”, “debelar a barbárie das classes dominadas”, etc. (WERTHAM,
1967)
Qualquer matiz de ideologia pré-fascista, religiosa ou de livre-
pensamento, nacionalista ou pacifista, elitista ou populista, poderá
ser tragado pela corrente totalitária, não importando as
inconsistências desse agrupamento. A racionalidade fascista
consiste muito mais no estabelecimento de um sistema onipotente de
poder do que no respeito a algum tipo de “filosofia”. Assim a
importância do conteúdo dogmático do médium religioso como tal
não importa muito. (ADORNO, 1976, p. 86-87)
Como se depreende das palavras de Adorno, o fascismo reformulou e
ampliou o conceito de agressão do Estado da auto-defesa. Ações de franca
repressão e violência desmedidas foram perpetradas sob o manto e, por que não
dizê-lo?, pela conveniente leniência da Igreja com a suposta pretensão de defender
os fracos. Aliás, esse termo, fraco (ou, como preferiam os fascistas, frágil), é um
símbolo eloqüente da visão fascista, pois é para defender esse indivíduo “indefeso”
que o estado promove massacres e atos brutais, tornando o fraco, paradoxalmente,
forte, pois é ele quem pratica os atos de violência para, logo em seguida, ser
também vítima da violência do Estado.
O fascismo se mostra tão totalitarista que, à medida que encampa o poderio
estatal e o utiliza para perpetrar-se no poder e, concomitantemente, suprimir via
violência os pontos de conflito, os questionamentos e até a presença do homem
pensante, se faz tão próximo do cidadão que este, literalmente, leva o medo do
Estado para dentro de casa.
Sob o fascismo, psicologicamente, a ninguém é permitido dormir -
uma das torturas preferidas, aplicadas pelos governos autoritários às
suas vítimas, é do seu sono ser a toda hora interrompido até que os
seus nervos entrem em colapso. O ódio fascista ao sono - no sentido
mais amplo de deixar alguém a sós - é refletido na ênfase do líder
fascista sobre a sua própria infatigabilidade, por meio da qual
estabelece um exemplo para os seus seguidores. A infatigabilidade é
uma expressão psicológica do totalitarismo. Nenhum descanso é
46
dado, a menos que tudo esteja confiscado, agarrado, organizado.
(ADORNO apud CARONE, 2002, p.202)
Em sua expressão mais plena, o domínio pela violência, o fascismo encampa
e/ou produz meios e normas de emprego da violência como instrumento de
dominação, apaziguamento e permanência do status quo (fidelização) dentro de um
Estado, mas não permite às instituições e aos indivíduos usufruir das benesses que
supostamente são asseguradas pelo regime: segurança, conforto material, livre-
pensar, etc. Longe disso, o Estado fascista toma para si e para alguns privilegiados
tudo o que de bom se oferece em uma sociedade relativamente organizada e
complexa.
A essa altura, podemos ser inquiridos quanto aos por quês dessa breve
análise sobre o fascismo. As respostas são várias, mas mantêm como
denominadores comuns dois aspectos, a saber: a polícia (e as forças armadas, de
maneira geral) e as instituições, no modelo fascista, são os mecanismos que
permitem ao Estado reprimir, coagir e manipular o indivíduo, ao mesmo tempo em
que esmaga, na acepção mais destrutiva do termo, o contrário, o desviante e o
distante. O segundo elemento é que, no fascismo, ataca-se sempre, mesmo que o
perigo não se concretize ou se torne real. Essa concepção, longe de já ter
desaparecido, apresenta-se pujante em nossos dias.
Em outras palavras e se usarmos essas assertivas no rumo do estudo aqui
apresentado, podemos dizer que em um Estado fascista ou mesmo semi-fascista, a
violência será a resposta à violência, ao crime, à rebelião e ao questionamento. O
governo fascista limitar-se-á ao emprego da força como resposta às demandas
sociais e às suas próprias obrigações, alheando-se à busca por novos e diferentes
caminhos que obtenham iguais ou melhores resultados que o emprego da força
bruta.
Dito de outro modo e mantendo o foco no tema desta dissertação, em um
governo onde a violência é institucionalizada e legitimada, a polícia será a ponta de
lança de uma opção francamente agressiva e destruidora em relação às opções de
confronto entre esse governo e parte de seus oponentes. Ou seja, criam-se as
condições para que surjam e se fortaleçam os indivíduos e organizações treinados
para agredir, ferir, torturar e matar. Abrem-se as portas para que surjam os “cães de
guerra” que atuam legitimados pelas políticas de segurança pública do Estado.
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4 O HOMEM VIOLENTO: QUEM É ELE?
Poucos são os temas que se mostram tão difíceis no tocante à sua
delimitação como a indagação que busca saber quem é o homem violento, quais as
suas características, seu perfil psicossocial, suas experiências de vida.
Essa dificuldade pode ser melhor entendida quando se verifica que o homem
violento é tanto o pai de classe média alta que repreende a filha adolescente diante
dos amigos da mesma, abusando, desse modo, do pátrio poder, quanto o traficante
de drogas que manda executar inimigos e/ou “inconvenientes. O homem violento
também pode ser o agricultor analfabeto que espanca frequentemente os filhos,
tanto quanto pode ser um indivíduo dotado de rara argúcia e inteligência, como o
eram os oficiais da temida SS nazista. Mesmo que adotemos outros quesitos (idade,
localização geográfica, períodos históricos, etc.), ainda teremos posições extremas
igualmente envolvidas com a violência, independente do ângulo que se queira
enfocar essa problemática. Como explica Montagu (1978), a violência não é a marca
de um grupo, de um indivíduo ou de um outro fator isoladamente: freqüentemente é
o somatório de vários aspectos.
Essas conjecturas são fundamentais para que se possa compreender que o
homem violento não é, em definitivo, o produto de uma carga genética X apenas ou
ainda de uma hereditariedade da qual não pode fugir. Não há, do mesmo modo, um
único agente causal das atitudes violentas, mas sim a concorrência de muitos e
diferentes aspectos que, em um determinado indivíduo, em um determinado tempo e
lugar, irá fomentar um “aprendizado” (experienciação) de violência para, então,
concretizá-la no ataque aos seus semelhantes.
Tendo em vista essas afirmações, não se pode falar do homem violento como
um ser naturalmente capaz de praticar atos violentos, mas sim como alguém que, a
partir de experiências, meio cultural e influências distintos, passou a conceber,
inicialmente de modo inconsciente, a noção de que, atuando violentamente,
conseguiria obter algo e/ou se sobrepor de um modo que, de outra maneira, não
poderia lograr atingir (MONTAGU, 1978).
Em todo o longo e complexo processo de formação de uma personalidade
violenta, há que se ter em mente que vários fatores estarão presentes/ausentes,
guardando entre si, contudo, como denominador comum, o fato de advirem do
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ambiente, das relações sociais e da cultura. Nesse sentido, é valiosa a contribuição
de Vellasco (2005, p. 176), ao afirmar que
Entender a violência, antes de tudo, como um fenômeno cultural,
permite contornar as dificuldades postas pelas concepções de
anomia, como recurso explicativo das condutas que, aparentemente,
indicariam uma incapacidade de apreensão de regras e normas
desejáveis e pela idéia de irracionalidade desta violência, uma vez
que, aos olhos do observador, haveria uma desproporção entre seu
uso e as finalidades pretendidas.
Praticar a violência, sob quaisquer de suas formas, é um ato que resulta de
uma combinação de fatores, especialmente de natureza cultural (passível de
aprendizagem, portanto), não de um único fator que determinaria a conduta do
indivíduo.
Homens e mulheres e sempre mais os primeiros em todos os
estratos sociais, tornavam-se violentos, ou melhor, recorriam à
violência física, como forma corriqueira de solução dos problemas,
de enfrentamento de conflitos, como defesa do que julgassem seus
direitos e [...] neste sentido, o uso da força era amplamente
reconhecido e valorizado. Honra era, afinal, a possibilidade de ser
respeitado pelos demais e a violência, um teste de força, de coragem
e valentia, pelo qual se demonstrava a disposição de estar no mundo
e ocupar aquele espaço que, de outro modo, não lhe pertenceria
(VELLASCO, 2005, p.177).
Conquanto Vellasco (2005) se refira a um tempo/lugar específicos (Interior de
Minas Gerias no final do século XIX), as suas observações são perfeitamente
válidas no âmbito do presente estudo, seja por deixar claro quais os parâmetros de
julgamento adotados, via de regra, pelo homem violento, seja ainda por esclarecer
que existe uma grande desproporcionalidade entre o agravo (se é que podemos
chamá-lo assim em determinadas situações) recebido e a resposta dada.
Evidentemente, estamos nos referindo a um tipo específico de homem
violento, qual seja aquele que, convivendo em um ambiente no qual praticar a
violência é uma forma rápida de obter justiça, reparação e/ou desagravo (não vamos
entrar no mérito semântico desses termos), isto é, ao indivíduo inteiriço, dotado de
pouca ou nenhuma instrução e produto efetivo do meio violento que o cerca. O
homem violento, porém, não se restringe a esse protótipo. Antes, pelo contrário, é
extremamente diversificado. Tome-se, como mais um exemplo, o caso do terrorismo
e dos seus agentes, os terroristas. O que leva, afinal, alguém a morrer em nome de
49
uma crença e, não satisfeito, matar a maior quantidade possível de pessoas no
transcorrer de um suicídio que poderíamos denominar de “auto-martirização” (o
termo mártir, aqui, é empregado com acepção religiosa)? Como explica Wellausen
(2002, p.88)
A história registra a presença da violência em suas formas mais
extremas: guerra, massacre, genocídio, extermínio, terrorismo. A
guerra resulta de uma violência institucionalizada, ritualizada, e por
mais cruel que seja, admite regras e leis que engendram a
beligerância e supõe a busca da paz; reconhece o inimigo como
pessoa, respeita os feridos e prisioneiros, poupa as populações civis.
Em termos teóricos e mesmo legais, a guerra (independentemente do horror
que provoca) seria ou deveria ser um elemento passível de controle através de
regras (respeitar a população civil, por exemplo), o que implicaria dizer que existe
um limite para a brutalidade humana quando esta está protegida pelo “manto” da
civilidade (perdoe-se-nos a incongruência de associarmos termos tão díspares
quando guerra e civilização).
Essa prática ideal é negada pelo massacre, pelo desencadear
selvagem do ódio e das pulsões destrutivas: abandono de feridos,
matança de prisioneiros, tortura, violação, mutilações, queima,
execução de mulheres, crianças e velhos. Através de destruições
deliberadas, sistemáticas e programadas, o genocídio atinge o auge
do horror na eliminação total de indivíduos. (WELLAUSEN, 2002,
p.89).
Partindo dessas afirmações, podemos concluir, não sem certo espanto, que o
homem violento terrorista é produto de uma ideologia/crença absolutamente
fanática, mas, no seu agir violento, é racional, seletivo, qualitativo: não se atinge
algo ou alguém apenas por sua vulnerabilidade, mas também por critérios vários
como etnia, religião, credos políticos, etc. O terrorista enquanto homem e ser
violento, é uma mescla extremamente complexa de racionalidade violenta com
fanatismo igualmente violento, embora neste último caso estejamos nos referindo a
um dos fatores que levam alguém à prática do terror (WELLAUSEN, 2002).
Como podemos perceber facilmente, os perfis de violência são, em grande
parte, moldados pelo meio. De fato, podemos ter o caso de um homem violento
como produto da ignorância, da observação de valores e princípios repassados de
preconceito e desconsideração pela vida humana. Nesse ambiente, noções tão
50
imprecisas como honra, macheza e/ou coragem moldam caracteres até tornarem-
nos altamente suscetíveis a circunstâncias que poderiam ser resolvidas pelo diálogo
ou, no máximo, pela justiça; longe disso, porém, são “resolvidas” violentamente. Em
outra situação, podemos ter um indivíduo razoavelmente culto, inteligente, instruído
que, não obstante, traz em si uma violência desapiedada, a qual desemboca em
ações brutais e difíceis de se compreender.
Ao buscarmos dizer quem é o homem violento, acabamos por formular muito
mais indagações do que respostas, pois não se fomenta um caráter violento a partir
deste ou daquele episódio, mas sim de um amplo rol de experiências, fatores de
influência, percepções e concepções do indivíduo face ao meio e à cultura, bem
como às suas próprias singularidades como ator, agente e receptor de inúmeras
interações com aquilo e aqueles que o cercam (SOREL, 1993). De outro modo, as
respostas para a identificação do homem violento encontram-se na psicologia, não
podendo ser encampadas, em seus múltiplos desdobramentos pela sociologia
apenas. Quando inseridas em um contexto mais restrito e específico, como soe ser
o caso da atuação policial militar (tema geral da dissertação aqui apresentada),
verificamos, mais uma vez, que a violência não pode se restringir a alguns
indivíduos ou grupos, mas também às corporações.
O senso comum, a mídia e também análises de cunho acadêmico
têm revelado grande consenso ao insistir no caráter violento da
atuação policial, além de enfatizar que essa violência é o estopim
para outros tipos de violência protagonizados pelo cidadão comum,
numa resposta em cadeia, que se converte em uma espécie de
círculo vicioso (PORTO, 2004, p. 132-133).
De modo geral, pode-se dizer, metaforicamente, que uma semente de
violência, quando enfocada pela mídia, faz emergir a idéia, freqüentemente falsa, de
que tudo o mais é resultante de uma mesma matriz, que a violência é a resposta
mais adequada à resolução de problemas ou quaisquer outras situações, mesmo
que passíveis de serem contornadas pelo diálogo.
Essa violência, contida estruturalmente no ethos e na cultura
organizacional dos modelos de polícia em vigor no Brasil (...),
poderia, em certo sentido, ser pensada como expressão da violência
que, enquanto representação social, estrutura e regulamenta
relações sociais. A sociedade se representa como violenta, as
políticas públicas de segurança estão referidas a esse conteúdo do
imaginário social, deixando emergir sentimentos ambíguos e mesmo
contraditórios: por um lado, a exigência, quase obsessiva, de que a
51
impunidade seja enfrentada e combatida pelos poderes competentes
aponta na direção de uma recusa da violência como forma de
resolução de conflitos (PORTO, 2004, p.133).
Se utilizarmos como ponto de partida as asserções de Porto (2004), torna-se
possível promover uma ilação que coloca em xeque o funcionamento da segurança
pública: se a polícia combate a violência em um contexto de “des-civilização”, não a
está suprimindo ou, pelo menos, reprimindo-a tão somente, mas sim aumentando-a.
Em outras palavras, o terreno da atuação policial, por definição, é o jurídico-criminal,
o que torna as corporações policiais o braço operacional da justiça. Ao promover
formas de prevenção e, em quantidade muito maior, repressão brutais, os policiais,
mesmo chegando ao final desejável para a ação policial (tirar de circulação
criminosos e outros elementos nocivos à sociedade) em algumas situações,
promovem e disseminam modos de violência que, ressalte-se, são recorrentes
demais para serem considerados exceção.
Temos, assim, de um lado, a marginalidade e parte significativa da população
e, de outro, a polícia. O choque entre os dois lados é necessário e inevitável desde
que haja atividade policial, embora ocorram aumentos significativos de atos violentos
nesse entrechoque, dado que a polícia não irá “servir e proteger” apenas: irá agredir,
torturar, matar... (PORTO, 2004).
Basicamente, não parece haver uma distinção precisa entre o que é violência
no sentido marginal e violência policial, pois ambas se mesclam e se confundem na
arbitrariedade e no dano que causam às pessoas pobres e desvalidas em qualquer
escala.
Do ponto de vista das representações sociais de diversos grupos (bandidos,
policiais, grupos sociais, etc.), violência é um modus aceitável de combater eventos
diferentes como criminalidade, desobediência dos filhos, discussões de trânsito e até
mesmo pequenas desavenças com os vizinhos. A mídia, afinal, “consagra” essas
representações como válidas.
Como afirma Porto (2004), o homem violento que serve (ou deveria servir) à
lei, é ou aparenta ser, eivado dos mesmos fatores influenciadores e até
determinantes de um comportamento brutalizado, com a única ressalva de que se
encontra do “outro lado do balcão” e tem por si o judiciário, as corporações e o
Estado.
52
A essa altura, responder a questão que norteia este tópico se mostra ainda
mais íngreme, pois os dados apresentados apontam para uma tal diversidade de
possibilidades de definição/caracterização do homem violento, que seria infrutífero e
pretensioso querer dizer, em termos absolutos, quem é esse ser.
Podemos, contudo, aventar a hipótese de que o homem violento é, em linhas
gerais, o substrato daquilo que o ser humano precisa abolir para poder evoluir de
modo minimamente justo e equânime: a incapacidade para alijar de si o mal que
torna um ser racional em alguém que não apenas prejudica, mas vai de encontro ao
ambiente social, desde que tenha sido influenciado pelo ambiente. Nem todo
indivíduo violento será o que dissemos, mas com certeza tudo o que dissemos é
parte de alguns indivíduos que vivenciam a violência como uma forma aceitável de
vida.
53
III A TEORIA DAS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS COMO SABER
CIENTÍFICO E ALGUMAS DE SUAS APLICAÇÕES
Neste capítulo são tecidas algumas considerações sobre a Teoria das
Representações Sociais (TRS), as características imanentes à mesma, bem como
algumas possíveis aplicações deste conjunto de saberes nas sondagens
psicológico-sociais.
1 ORIGENS DA TEORIA DAS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS
A Teoria das Representações Sociais, enquanto corpus teórico devidamente
delimitado e distinto de outras áreas análogas, teve seu marco fundador nos
trabalhos do húngaro Serge Moscovici, especialmente no (hoje) clássico compêndio
“Psicanálise: sua imagem e seu público”, de 1961. Conquanto não traga uma
definição conceitual formalizada, a obra, que reúne vários, embora complementares,
aspectos da visão do autor sobre TRS, apresenta um painel bastante elucidativo
sobre as bases nas quais se encontra assente a teoria, assim como suas inúmeras
aplicações em análises de grupos, comunidades e sociedades complexas, além do
próprio indivíduo.
Como nenhum conhecimento é produzido a partir do não-existente, também a
TRS foi significativamente influenciada pela concepção de Emile Durkheim da
sociedade como algo que tem um fim em si própria, expressa no conceito de
Representações Coletivas. Segundo Durkheim (1989), a sociedade apresenta
elementos, aspectos e valores que se condensam e fogem ao controle do indivíduo
para se cristalizarem nos agrupamentos sociais. Isso implica dizer que o indivíduo
traz em si uma espécie de “zona cinzenta” que, mesmo sendo inerente à sua
54
condição de ser social, lhe é totalmente autônoma, tornando-se tangível apenas e
tão somente no corpo coletivo.
Uma diferença fundamental entre os estudos de Moscovici (1978, 2004) e os
de Durkheim (1989) refere-se ao caráter de reminiscência subjacente às
Representações Coletivas e o recorte de aspectos dinâmicos que ocorrem no dia-a-
dia promovido pelo primeiro. De fato, embora concordem quanto às influências do
social sobre o individual, Durkheim (1989) e Moscovici (1978) aportam em
concepções finais distintas, cabendo a este a compreensão de que as zonas
cinzentas correspondentes às representações sociais influenciam, mas não anulam,
o totun do indivíduo. Nesse sentido, conforme explica Guareschi (1997, p.196),
Moscovici tinha consciência que o modelo de sociedade de Durkheim
era estático e tradicional, pensado para tempos em que a mudança
se processava lentamente. As sociedades modernas, porém são
dinâmicas e fluidas. Por isso o conceito de “coletivo” apropriava-se
melhor àquele tipo de sociedade, de dimensões mais cristalizadas e
estruturadas. Moscovici preferiu preservar o conceito de
representação e substituir o conceito “coletivo”, de conotação mais
cultural, estática e positivista, pelo “social”: daí o conceito de
Representações Sociais.
De acordo com Sá (2004), em linhas gerais, Moscovici parte da crença de que
há, em qualquer sociedade, mormente as mais complexas, duas modalidades
genéricas de pensamento: as que se baseiam na chamada reificação e as outras,
nominadas de consensuais. A primeira modalidade diz respeito às diversas
manifestações dos conhecimentos acadêmicos e científicos, onde se dá um rigoroso
exame desses saberes a partir de referenciais lógicos, metodológicos e objetivos.
Nesse âmbito, ocorre também a chamada especialização do saber, bem como o
estabelecimento de uma hierarquia entre os diferentes produtos do saber humano.
Logicamente, não há, nessa esfera, predomínio de senso comum, mas sim de
dados e informações passíveis de reprodução e dotados de um caráter fidedigno.
Isso já nos permite inferir, por contraposição, que a outra modalidade é justamente a
que se baseia nas observações superficiais ou destituídas de método, nas crenças,
mitos e visões produzidos e reproduzidos no seio da sociedade, sem que para tanto
concorra qualquer rigor científico ou acadêmico. É, pois, o senso comum, o
predomínio do aspecto prático e cotidiano ou, como bem notou Moscovici (1978), as
representações sociais. Nesse sentido, Sá é bastante feliz ao salientar que
55
A quantidade e a forma das informações sobre o objeto, assim como
o meio pelos quais elas se tornam acessíveis para o sujeito, o grau
de interesse intrínseco ou externo que o objeto desperta e a
necessidade mais ou menos premente de seu conhecimento para o
grupo são variáveis que certamente afetarão - e por isso poderão
explicar, pelo menos parcialmente - o conteúdo e a estrutura da
representação (SÁ, 1998, p. 71-72).
Temos, em face de tais considerações, que as origens formais da TRS
encontram-se na visão de representações que mediatizam a relação do indivíduo
com o grupo ao qual pertence, bem como com a sociedade em seus estratos mais
amplos. O marco fundador dessa visão, contudo, distancia-se consideravelmente da
visão expressa por Durkheim (1989), pois adota recortes do social e propõe-se a
estudá-los em seu dinamismo, profundidade e alcance enquanto instrumento que
auxilia, de forma e em graus de intensidade diversos, na formação do Eu social.
Desse modo, a TRS, enquanto conjunto de saberes que parte de uma outra
perspectiva, mais precisamente a das representações coletivas propostas por
Durkheim (1989), não se limita a reestruturar as proposições do criador da sociologia
moderna, mas sim a ultrapassá-las na medida em que cria não mais uma visão
conceitual, mas sim processual, ainda que não dialética.
De fato, a grande diferença entre os conhecimentos sobre representações
sociais formulados por Moscovici (2004) e o trabalho de Durkheim (1989) repousa,
em uma simplificação grosseira, porém didática, no caráter estático, quase imóvel,
das representações coletivas, que pertencem a grandes agrupamentos humanos em
suas múltiplas facetas, como ocorre, via de regra, nas sociedades complexas. Trata-
se, pois, de um tipo de construto que permanece inalterado, em seus contornos
gerais, mesmo que amplamente disseminado entre as várias classes sociais e as
suas diferentes concepções. Nas representações sociais, por sua vez, há uma visão
processual, dado que o psicólogo social e/ou o sociólogo irá se valer dos preceitos
da mesma para avaliar e compreender aspectos dinâmicos, mutáveis e perceptíveis
de modo, intensidade e significância variáveis.
Evidencia-se, assim, que ao falarmos nas origens das representações sociais
cientificamente estudadas não podemos, sob nenhuma hipótese, situá-las como
reelaborações, pura e simplesmente, dos postulados durkheinianos, mas sim como
um avanço considerável em relação aos mesmos, posto que não apenas dão conta
de novos e diferentes aspectos da vida social e das representações a elas
56
subjacentes, mas também criam as bases de uma nova teoria, criticável,
aprimorável, mas sempre única em seus principais aspectos delimitadores.
Conceitos igualmente importantes criados por Moscovici (1978) quando
propôs sua teoria são a chamada objetivação (refere-se ao todo abstrato que se
transforma em imagens concretas, mediante novos agrupamentos de pensamentos-
imagens focado na mesma temática) e a ancoragem (se relaciona com a
assimilação das imagens advindas da objetivação, havendo uma soma entre as
novas imagens e as já existentes, de modo a criar, de modo contínuo, novas idéias),
que serão vistos de maneira mais aprofundada no tópico 3.4 desta dissertação.
Em face desses dados, podemos concluir que a TRS surge a partir da visão
manifestada por Moscovici (1978) do homem como um ser particionado em dois
lados intervenientes: o eu-indivíduo e o eu-coletivo, não havendo uma distinção
precisa na interinfluência de um em outro, mas sim a convicção de que parte muito
significativa do que o homem apresenta como traços individuais são, em suma,
aspectos derivados de uma permanente interação com o meio, com o tempo-lugar
que auxilia na formação e fixação de certos caracteres.
Assim, para entender o indivíduo, é necessário inseri-lo em uma perspectiva
mais ampla, que leve em consideração o seu lugar em grupos imediatos e
posteriores, numa sondagem que pode ser considerada perene, já que não poderá
encontrar todas as respostas que procura, mas sim elementos que comprovem a
presença da coletividade em cada um de seus membros. Estava, resumindo
grosseiramente, criada e assentada a Teoria das Representações Sociais.
2 CONCEITO E EVOLUÇÃO DA TEORIA DAS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS
Após os estudos iniciais conduzidos por Moscovici (1978), coube a uma de
suas mais brilhantes seguidoras, Denise Jodelet (2001), ampliar a noção de
representações sociais não apenas como teoria, mas como referencial de análises
em Psicologia Social. Diferentemente de seu mentor, Jodelet não se furtou à difícil
empreitada de tentar definir formalmente a TRS, antes, fê-lo com rara argúcia e
felicidade. De fato, é com a pesquisadora que as representações sociais passam a
ser consideradas “uma forma de conhecimento, socialmente elaborada e partilhada,
57
tendo uma visão prática e concorrendo para a construção de uma realidade
comum a um conjunto social" (OLIVEIRA e WERBA, 1998, p. 106).
Denise Jodelet também enumera aquilo que considera
características principais das representações sociais, segundo Ibañez (1994):
a) A criação permanente de representações se dá pela via das comunicações
e ações interagentes dos membros e dos próprios grupos sociais, trazendo à tona
temáticas que permeiam seu cotidiano;
b) Sua natureza é, como se pode deduzir da própria nomenclatura,
compartilhável e, por extensão, coletiva.
c) Colaboram decisivamente para a delimitação e as características dos
grupos sociais e, dentro deles, para a existência de zonas cinzentas comuns a todos
os membros do agrupamento humano.
Buscando explicar as concepções de Jodelet, Ibañez (1994, p.182) esclarece
que as representações sociais, na visão daquela autora,
[...] são sociais tanto pela natureza de suas condições de
produção, como pelos efeitos que engendram e pela dinâmica de seu
funcionamento, sendo permanentemente influenciadas pelo conjunto
de condições econômicas, sociais, históricas em uma determinada
sociedade, pelos mecanismos de ancoragem e objetivação, e
pelas diversas modalidades de comunicação social.
Graças à visão expressa a partir de diversos estudos, torna-se possível não
apenas utilizar a TRS como parâmetro de exame crítico de determinadas realidades
coletivas, mas também estudar as próprias representações como forma de buscar
encontrar o coletivo no indivíduo e, de modo mais abrangente, os pontos comuns
(verdadeiros marcadores simbólicos) de pensamento, crença, ação e interação, ou
seja, a análise do social em sua vertente mais “socializada”. Como explica a própria
Jodelet,
O estudo das Representações Sociais dá os meios para pensarmos
a representação não somente como conteúdo, mas também como
estrutura e forma cognitiva, expressiva dos sujeitos que a constroem,
na sua ligação com os processos simbólicos e ideológicos e, com a
dinâmica do sistema social (JODELET, 2001, p.46).
Para efeito de melhor fixação, podemos afirmar que, no âmbito da
representação social, serão denominadas núcleos figurativos aqueles termos e
58
vocábulos, símbolos ou ainda expressões que melhor traduzem a representação em
foco, isto é, cada representação social é traduzível em vocábulos e fórmulas
lingüísticas que se situam mais próximos do que efetivamente a visão coletiva
implica.
Nesse sentido, é valiosa a observação de Veloz, Nascimento- Schulze &
Camargo (1999), em uma releitura de Moscovici (1978), ao salientarem que
Um enorme estoque de palavras, que se referem a objetos
específicos, está em circulação em toda a sociedade [...] mas nem
todas as palavras que constituem esse estoque podem ser ligadas a
imagens, seja porque não existem imagens suficientes facilmente
acessíveis, seja porque as imagens que são lembradas são tabus.
As imagens selecionadas pela sua capacidade de ser representadas
são integradas ao que denominamos ‘núcleo figurativo’, um
complexo de imagens que reproduz visivelmente um complexo de
idéias. (MOSCOVICI apud VELOZ, NASCIMENTO-SCHULZE e
CAMARGO, 1999, p. 36)
Em outras palavras, podemos afirmar que é justamente essa peculiaridade,
qual seja a de apresentar núcleo figurativo, que torna a representação social tão
valiosa para o estudo que aqui tentamos conduzir, pois ela permite não apenas
simbolizar grafologicamente o lugar-tempo social analisado, mas também e não
menos importante, formularmos uma série de marcadores simbólicos do objeto de
estudo (no caso aqui presente, as representações sociais de violência presentes no
o filme Tropa de Elite), criando categorias e sub-categorias que podem, a exemplo
de vários marcos, servir de alegoria heurística.
Essa amplitude da TRS, aliás, é um de seus principais atrativos, o que já
havia sido, inclusive, salientado por Jodelet (2001), ao afirmar que a TRS encontra-
se na junção entre a Psicologia e a Sociologia, sendo que estas “duas disciplinas
que tratam do mesmo objeto: o conjunto das condutas humanas que comportam
cada uma delas, desde o nascimento e em graus diversos, um aspecto mental e um
aspecto social [...] o homem é um e que todas suas funções mentalizadas são
igualmente socializadas” (JODELET, 2001, p.40).
Avançando também no sentido de determinar o alcance da TRS, Jodelet
(2001) deixa claro uma importante característica da Teoria das Representações
Sociais, ao dizer que
59
[...]o há representação sem objeto. Isto é, as representações
sociais dos sujeitos surgem quando estes entram em contato com
um objeto, seja ele uma pessoa, uma coisa, um conceito, uma idéia,
um fenômeno natural, mas um objeto é sempre requerido (JODELET,
2001, p. 22).
Neste particular, Jodelet (2001) procura salientar que não haverá uma
representação sem que haja um objeto, o que retira desse objeto um valor (idéia,
noção, simbologia) apriorística. Assim, para efeitos de ação e movimento, de um
objeto se obtém uma (re)configuração de cada sujeito, que se faz operante e/ou
operativo tão somente nas instâncias que guardam em si o binômio sujeito-objeto,
algo extramente significativo nas análises literárias e cinematográficas.
Dentre os trabalhos que contribuíram para o desenvolvimento e a evolução da
TRS e suas aplicações, encontra-se também o de Doise (2001), para quem o
emprego desta teoria é extremamente útil, dado que une o nível intrapessoal com o
interpessoal e destes com o grupo, o que amplia significativamente o ângulo de
observação do homem em suas múltiplas interações e mesmo nos papéis diversos
que representa. Para Doise (1990), é nítido que, por intermédio das representações
que cada indivíduo tem sobre determinados corpus (objetos concretos ou não)
sociais, é perfeitamente possível esquadrinhar os mecanismos da cognição do grupo
(social), logo, é dentro da TRS que se pode buscar as respostas às indagações que
sobrepõem o indivíduo e tomam corpo somente no coletivo consciente ou
inconsciente. Jodelet (2001) indica pelo menos seis grandes possibilidades de
estudos para TRS, as quais são resumidas por Sá a seguir:
Uma primeira perspectiva se relaciona à atividade puramente
cognitiva pela qual o sujeito constrói sua representação. [...] Uma
segunda perspectiva acentua os aspectos significante da atividade
representativa. [...] Uma terceira corrente trata a representação como
uma forma de discurso e faz decorrer suas características da prática
discursiva de sujeitos socialmente situados. [...] Na quarta
perspectiva, é a prática social do sujeito que é levada em
consideração. [...] Para o quinto ponto de vista, o jogo das relações
intergrupais determina a dinâmica das representações (SÁ, 1998, p.
62-63).
O autor menciona ainda uma última perspectiva, de caráter mais socializador,
isto é, o indivíduo é portador de alguns aspectos sociais determinantes em sua
conduta, o que o torna instrumento e parâmetro das representações de um grupo.
60
Neste estudo, a quarta concepção nos pareceu melhor coadunada com os
propósitos da pesquisa.
Na atualidade, os estudos que utilizam a TRS como ponto de partida e/ou
referencial de análise encontram-se em um patamar consideravelmente mais
diversificado do que em seus primórdios, encampando desde o exame de realidades
específicas (menores infratores, policiais, condutores de veículos no trânsito, etc.)
até abordagens mais amplas (a natureza da cognição social em determinadas
etnias, as “vozes” dos outros presentes nos preceitos e preconceitos de
determinados grupos humanos, entre outros), o que demonstra seu enorme
potencial de aplicações, assim como a característica mais marcante das
representações sociais: o social no indivíduo que somente é social se for,
individualmente, também coletivo. Os avanços na Teoria das Representações
Sociais, contudo, não param por aí. Abric (1994), por exemplo, ofereceu novas
perspectivas de análise ao postular a idéia do núcleo central, isto é,
[...] o elemento fundamental da representação, pois é ele quem
determina, ao esmo tempo, sua significação e sua organização
interna [...] composto de um ou de alguns elementos cuja ausência
desestruturaria a representação ou lhe daria uma significação
completamente diferente [...]. Não obstante [...] a centralidade de um
elemento não pode ser exclusivamente remetida a uma dimensão
quantitativa. [...] O que importa é sua dimensão qualitativa, ou seja, o
fato de que este elemento dá sentido ao conjunto da representação
(ABRIC,1994, p. 73-74).
O núcleo central, conforme o entende Abric (1994), é o parâmetro constante
da representação e, caso sofra alguma alteração, irá transformar também a própria
estrutura representacional, o que o torna imprescindível como elemento que funda e
dá consistência às visões sociais compartilhadas pelos vários grupos.
Ao tomar consciência (progressivamente) dos elementos subjacentes ao
núcleo central, o indivíduo passa a construir os modos de apropriação dessa
representação, seja através da familiarização, seja ainda mediante construtos que
concretizam o abstrato, colocando-o numa esfera mais compreensível, posto que
familiar e acessível: o senso comum.
61
3 SISTEMAS CENTRAIS E PERIFÉRICOS
A TRS, no modo como é concebida por autores como Duveen (2003), atua,
como já dissemos, em seus contornos gerais, no sentido de familiarizar o que não é
familiar, em trazer para a esfera do conhecido/compreensível e/ou aceitável aquilo
que emerge do processo dinâmico e dialético que se encontra por baixo das
representações sociais, até que o novo possa ser considerado digerível (aceitável).
Tal processo, contudo, não se dá de uma maneira sempre homogênea em
seu percurso, dado que as representações, por definição, implicam na comungação
do coletivo em relação a determinadas idéias, crenças, opiniões e tudo o mais que
se construa no (in)consciente coletivo. Existe, a par da criação e manutenção desse
senso comum, tentativas de aproximar a ciência da representação social, o que
Moscovici (2004) denominou de “mito científico”, isto é, a reelaboração de um saber
científico (ou, pelo menos, de origem científica) de modo a transformá-lo em algo
mais fácil, mais simples de ser compreendido, em que pese a ocorrência freqüente
de mutilações no corpus do saber cientificamente criado, até torná-lo algo
semelhante a um senso comum que traz em seu bojo alguns laivos científicos.
Temos, por conta dessas asserções, a idéia da representação social como
um clima (Moscovici o chama atmosfera) partilhado por um grupo social, ainda que
de maneiras distintas no tocante à familiarização, aceitação e corroboração do
elemento consagrado pela sociedade imediata ou mediata.
De modo geral, as representações sociais “(...) se impõem sobre nós com
uma força irresistível. Essa força é uma combinação de uma estrutura que está
presente antes mesmo que nós comecemos a pensar e de uma tradição que decreta
o que deve ser pensado”. (MOSCOVICI, 2004, p.36)
Esse dado é particularmente importante na medida em que faz vir à tona um
questionamento ao livre arbítrio, pelo menos quando concebido como algo
totalmente autônomo, uma espécie de decisão inteiramente personalizada,
individual. Na verdade, o livre arbítrio está, desde que começa a se formar, presa de
uma série de condicionantes que atuam em níveis diversos (cada pessoa, afinal,
reage de um modo ao novo e aos saberes experienciais que acumula), assim como
de fatores de influência que não apenas “sugerem” formas de
pensar/conhecer/saber, mas também de agir, o que nos leva, por dedução, à
62
indagação sobre qual o real grau de liberdade imanente às decisões e escolhas do
homem?
Responder a essa indagação, porém, é bem mais trabalhoso do que formulá-
la e, embora não nos esquivemos desse mister, cabe dizer que promovemos aqui
apenas uma breve tentativa de dar resposta a essa problemática. Por ora, basta-nos
saber que as representações sociais, a maneira como estas influenciam e moldam o
psicologismo do indivíduo, assim como seu impacto no grupo social como um todo,
são por demais significativas para que possamos conceber o poder de escolha e
decisão do indivíduo como algo único, peculiar, derivado daquilo que diferencia e
distingue o homem dos seus pares (MOSCOVICI, 2004).
Ainda segundo Moscovici (2004), livre arbítrio, mesmo sendo o mote, em
última análise, das escolhas pessoais, é por tal forma influenciado pelas
representações sociais que seu produto nunca será uma extensão do eu-indivíduo,
mas do eu-social, isto é, da simbiose (se é que podemos usar esse termo na sua
acepção original) homem-sociedade.
Evidentemente, uma visão que contemple na ação pessoal, no livre arbítrio, a
presença das representações sociais, choca-se, em certa medida, com preceitos
legais, religiosos e até mesmo com a visão da racionalidade, pois se em
determinados grupos e situações o meio atua no sentido de conceder ao indivíduo
“pretextos” para agir de maneiras anti-sociais ou mesmo criminosas (vide o caso-mor
do Brasil: o homem que mata a mulher supostamente adúltera), a concretização de
parte das noções constantes do senso comum quanto a “honra” e outras que tais
têm no indivíduo, para todos os efeitos, o único que deve responder por isso. Assim,
mesmo admitindo que não podemos fugir à ação das representações sociais na
formação de parte significativa de nossa consciência societária, esta não se dá de
modo tão intenso e cristalino que possa isentar o indivíduo dos efeitos de suas
escolhas (SÁ, 1998).
Em outras palavras, e tendo o cuidado de aceitar as premissas e os
elementos gerais da Teoria das Representações Sociais, temos que levar em
consideração que, produto do ambiente, influenciado em suas crenças, experiências
e visões de mundo pelo grupo social que o cerca e/ou com o(s) qual(is) tem contato,
o homem é, por definição, responsável por suas ações. Isso implica dizer que os
valores, as ideologias, os mitos, os saberes que contribuem para formar o indivíduo
63
e, por extensão, “empurrarem-no”em determinadas direções, não impedem que
emirja deste indivíduo concepções e ações específicas, personalizadas (SÁ, 1998).
Conforme pode ser visto e aduzido nos parágrafos anteriores, as
representações sociais, entendidas e utilizadas neste estudo a partir de sua
capacidade de moldar parcialmente, em maior ou menor intensidade, a
personalidade do indivíduo, bem como atuar no sentido de explicar e justificar, sob a
ótica consensual do grupo imediato, determinadas ações, não podem, por conta
disso, se responsabilizar pelo homem como ser complexo e multifacetado, passível
de agir de modos e com motivações distintos em diversos contextos.
O que parece uma contradição da TRS, contudo, é perfeitamente explicável a
partir da noção trazida por Abric (2000) de elementos centrais e de elementos
periféricos. Enquanto os primeiros pertencem à esfera nuclear das representações
sociais e dificilmente podem ser modificados, pois isso implicaria em uma crise cujo
final descambaria para a derrubada de uma idéia-conceito familiar por outra nova e
estranha, mas logo tornada familiar. Já os elementos periféricos não possuem um
caráter tão rígido, antes, pelo contrário, são bastante flexíveis, dado que se
encontram mais no terreno da identidade individual e/ou das
experiências/concepções/representações do indivíduo do que naquilo que forma o
lastro social.
A conseqüência mais visível dessa dupla face do homem (ser social e
individual), mesmo que perenemente intercambiável, é a tomada de decisões de
natureza personalística, não avalizada pelo conjunto das representações sociais
imperantes em um dado contexto, mas tão somente por aquilo que o indivíduo
(entendido nesse estágio como produto do eu principalmente) logrou retirar das
representações sociais em confronto ou até mesmo situadas abaixo de suas
experiências de cunho pessoal. Trata-se, pois, de uma ação que tem mais de uma
personalidade e de uma identidade individualizadas do que de uma identidade social
(SÁ, 1998).
Essas considerações prestam-se não somente como forma de explicar a
aparente contradição interna das representações sociais, mas também para o fato
de que somente o social, em suas muitas interações, influências e condicionamentos
sobre o indivíduo, não dá conta da formação integral da personalidade do homem,
de suas ações e mesmo da compreensão que manifesta em relação a si e aos
outros.
64
Sistemas periféricos são consideravelmente revestidos de maior concretude
do que as abstrações que compõem as representações sociais em seus contornos
nucleares. Tem-se, pois, ao cabo, que a personalidade do indivíduo tende, em
determinados momentos, a reagir de forma socialmente embasada, ao passo que
em outras, por mais que tenha sido influenciado pela zona nebulosa das
representações sociais, suas ações tenderão a apresentar um cunho de morfologia
essencialmente individual, como fruto que é das experiências, motivações,
sensações e aprendizados do homem em sua esfera privada e pessoal (SÁ, 1998).
Ainda nesse âmbito é pertinente salientar que aquilo que é visto, analisado ou
observado por meio do filtro das representações sociais, qual seja, o objeto, é
percebido de uma maneira na qual se encampem os diferenciados relacionamentos
que podem ser verificados quanto ao dito objeto, além de variáveis como contexto,
finalidade e modo de apresentação daquilo que é alvo das representações. É claro
que objetos frequentemente observados à luz das representações sociais tendem a
criar aquilo que podemos denominar de “sedimentação representacional”, o que os
fará apresentar uma maior quantidade de dados e informações de senso comum a
adornar suas múltiplas possibilidades de visualização.
4 ANCORAGEM E OBJETIVAÇÃO
Dentro dos estudos da TRS aplicada em pesquisa, as noções de ancoragem
e objetivação apresentam uma relevância inequívoca, já que se encontram na base
da formação e manutenção de idéias do senso comum sobre objetos, eventos,
modos de conhecer e muitos outros aspectos. Como explicam Cardoso e Arruda
(2005), pode-se afirmar que as representações sociais se assentam em três
elementos basilares, a saber: a elaboração e o compartilhamento social; a função
prática de organizar e estruturar o meio circundante; e, a distinção de um grupo,
propiciando ao mesmo um sentido de identidade, posto que há uma construção da
realidade que é comum a um segmento social.
Para tornar familiar (aproximar) alguns objetos, situações, eventos ou
quaisquer outros aspectos que podem ser dispostos numa perspectiva social, as
representações sociais se valem de dois processos fundamentais: a ancoragem,
65
operação que consiste na busca pela inserção da representação em uma forma de
pensamento social preexistente, o que permite a inserção de sentido ao que está
sendo familiarizado. Novas doenças, por exemplo, em seus primeiros momentos
após as descobertas científicas, são associadas com outras manifestações
semelhantes ocorridas no passado (CARDOSO e ARRUDA, 2005).
A objetivação, por seu turno, compreende os mecanismos dos quais os
indivíduos se valem para tornar concreto (objetivo) noções, idéias ou valores
excessivamente abstratos. Assim, por exemplo, a palavra ética será, em seus
contornos abstracionais, algo difícil de ser compreendido por alguém que não se
dedique a estudar o assunto. As ações que a envolvem, porém, são bem mais fáceis
de serem compreendidas, mormente em questões essencialmente éticas como a
recente discussão sobre a adoção ou não do tratamento medicinal com células-
tronco e a decorrente necessidade de se definir, juridicamente, quando um conjunto
de células pode ser considerado um ser humano (CARDOSO e ARRUDA, 2005).
Evidentemente, tais processos não se dão de maneira homogênea ou
imutável, pois variam o envolvimento do conteúdo da informação (as noções que se
têm sobre o objeto da representação), o campo de representação (na verdade são
as imagens despertadas pelo objeto nos agrupamentos humanos) e, por fim, a
atitude, isto é, o conjunto de visões e concepções que o grupo passará a manter em
relação àquilo que está sendo representado (CARDOSO e ARRUDA, 2005).
Em face desses dados é possível afirmarmos que as representações sociais,
ao mesmo tempo em que buscam familiarizar aquilo que é desconhecido, trazendo-o
para uma esfera passível de maior compreensão, inclusive associando-o com dados
da memória sensorial e cognitiva, não implicam, obrigatória ou necessariamente, na
aceitação do fato e de seus desdobramentos de modo passivo.
Tome-se como exemplo da afirmação anterior uma situação de doença, a
qual tende a ser fortemente rejeitada pelo indivíduo e pelo grupo. Essa situação,
conquanto seja familiarizada e objetivada, não terá aceitação em sua total extensão,
ou seja, sabemos (em nível de senso comum) o que é tuberculose, familiarizamo-la
e concretizamo-a, mas disso não decorre uma aceitação plena desse estado:
compreender ou saber de que se trata não implica, obviamente, em comungar com
algo.
Essas asserções são bastante pertinentes quando as situamos no âmbito
dessa dissertação. De fato, ancorar socialmente o que é violência em seus aspectos
66
mais brutais (assassinato, estupro, tortura, etc.), assim como objetivar o corpus da
mesma não implica em aceitação pela grande maioria dos grupos sociais, apenas
entendimento sócio-representativo.
Em outras palavras, estar em contato com um grupo que aceita, sanciona e
pratica atos violentos não é, per si, algo suficientemente forte para determinar
condutas e atitudes, uma vez que o indivíduo promove, na esfera pessoal, os
mesmos processos promovidos pelo grupo, com a ressalva de que, apesar de
pertencer ao grupo, não é obrigado a avalizar, ativamente, as representações deste
agrupamento. Isso será melhor discutido no próximo capítulo, quando
confrontaremos atitudes e comportamentos dos grupos mostrados no filme Tropa de
Elite tendo como parâmetro o ser-estar indivíduo-social.
5 A TEORIA DAS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS APLICADA EM PESQUISA
Utilizar a Teoria das Representações Sociais como instrumento de análise de
determinadas realidades, assim como posicioná-la como um referente
especialmente privilegiado de exame crítico de fenômenos e eventos complexos,
pode ser considerado uma iniciativa passível de êxito, desde que, para tanto,
concorra uma compreensão (e um uso compreensivo) da TRS como conjunto que,
ao explicar determinados fatores, traz a luz para os mesmos sem que isso, implique,
contudo, na exaustão do tema.
De fato, se partirmos da aplicação de alguns dos conceitos das
representações sociais a recortes sociais, poderemos verificar que, para além de
fornecer um determinado foco, esse enfoque possibilita a obtenção de respostas
para problemáticas nem sempre apreensíveis pelos instrumentos da Psicologia
Social ou da Sociologia separadamente.
Tome-se como exemplo dessa asserção o modus como se dá aquilo que
Moscovici (2004) denominou ancoragem. A maioria das pessoas, em face de algo
novo e/ou não compreendido, tende a oferecer algum grau de resistência em aceitá-
lo, o que implicaria, desde que esse quadro permanecesse inalterado, na
impossibilidade de novos e diferentes saberes irem se (re)agrupando no
inconsciente coletivo. O que ocorre, contudo, é um processo diverso, que passa pela
67
utilização de estratégias de interpretação/representação e aceitação (parcial,
modificada ou total) do novo.
Esse processo, obviamente, não pode se dar apenas na esfera individual,
posto que demanda a sanção de um grupo social imediato que age, assim, como um
“tradutor” de dados e informações para seus membros, iniciativa sem a qual não se
daria a incorporação do novo e do inaudito. Se posicionada em uma perspectiva
mais funcional, isso se torna igualmente mais compreensível, senão vejamos: o
divórcio enquanto instituição legal e, por extensão, permitida e atinente ao
comportamento de pessoas que vivem em regime consorcial, não pôde, por razões
mais do que evidentes, ser aceito de maneira integral tão logo a lei do divórcio,
aprovada em 1978, foi posta em vigor.
Não havia, em um primeiro momento, condições favoráveis a essa lei e às
suas conseqüências, uma vez que a sociedade brasileira, por esse tempo, era
fortemente ligada às doutrinações católicas e, ainda mais importante, às convenções
sociais que imperavam, o que impediu ou pelo menos dificultou de modo bastante
significativo a aceitação imediata da separação entre cônjuges legalmente casados.
E o que ocorreu, então? Foram colocados em ação os mecanismos subjacentes às
representações sociais, mais precisamente uma reelaboração do dado novo
(divórcio), de suas características e impactos (conseqüências) na sociedade.
Aspectos abstratos, crenças, valores e outros elementos basais foram rearranjados
(em alguns casos modificados em seu núcleo) de modo a acomodar (aceitação
gradual) a nova realidade trazida pelo divórcio.
Assim, gradualmente um fato novo foi concretizado (trazido da esfera abstrata
para o real), reelaborado e, finalmente, aceito como algo natural ou, pelo menos, tão
aceitável quanto quaisquer outros eventos análogos (sexo antes do casamento, por
exemplo). Criaram-se, pois, os mecanismos que possibilitaram a ancoragem de algo
novo, o qual nada mais é que a representação social que hoje vigora em grupos
sociais distintos sobre o divórcio (JODELET, 1998).
O evento tomado para análise é particularmente significativo quando
compreendemos que, para sua aceitação, foram modificadas estruturas periféricas e
até mesmo o núcleo central imanentes ao divórcio na sociedade antes de 1978. Isso
implica em dizer que as representações sociais antes existentes e as que se
seguiram gradualmente após a aprovação da lei e dos conseqüentes divórcios foram
se alterando mediante o complexo fenômeno que se inicia no contato com o novo,
68
tem prosseguimento na sua concretização, passando em seguida para a
reelaboração das idéias do senso comum até chegar à aceitação, se não plena pelo
menos inconteste, da possibilidade de casais virem a se separar legalmente sem
maiores problemas.
As representações sociais prestam-se, assim, à condição de veículos que
não apenas permitem o advento do novo e/ou diferente, mas também de sua
acomodação progressiva até chegar á aceitação e, em decorrência, à ancoragem
proposta por Moscovici (2004).
Sem prejuízo de compreensão, podemos afirmar que representar
socialmente, nesse contexto, é reformular o senso comum, as idéias que dispensam
um crivo científico ou o aceitam apenas de modo parcial ou mesmo supostamente
repassado do rigor da ciência. É a mutação do pensamento do homem, de suas
crenças e visões, em contato com a zona cinzenta da sociedade onde o todo é uno,
tanto quanto o indivíduo é, sob a perspectiva do que pensa e sente, um ser social
(SÁ, 1998).
A contrapartida das representações sociais presente no indivíduo e no grupo
no qual se insere é justamente a identidade, esse complexo fenômeno que faz do
indivíduo parte de algo maior e torna esse algo dependente das características
coletivas presentes em cada membro de uma coletividade para continuar existindo.
Isso não significa, evidentemente, que a identidade, concebida aqui como o
resultado da ação do intra e do interpsiquismo no indivíduo até construir aquilo que o
mesmo manifesta como caracter, seja estática, pelo contrário, ela tende a se alterar
tanto no plano pessoal quanto social, formando um amalgama que molda e modifica
estruturas de pensamento/comportamento e atitude nos mais diversos planos.
Dito de outra maneira, o homem e a sociedade compreendem, assimilam e
pensam através das representações sociais, o que posiciona a identidade, individual
e/ou coletiva, o produto direto, embora não exclusivo, das visões
coletivas/particulares (SÁ, 1998).
Desse modo, ao utilizarmos a TRS aplicada em pesquisa, nos colocamos na
posição de poder saber quais os possíveis agentes causais e as conseqüências de
determinados eventos no grupo (ou etnia) e/ou no indivíduo, unindo o estudo
intrapessoal (Psicologia) com o extrapessoal (Sociologia), o que confere uma
riqueza de exame extremamente valiosa aos estudos realizados sob essa égide.
69
6 A IDENTIDADE E AS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS
Discorrer sobre a identidade do ser humano, seja mediante a compreensão
do arcabouço individual, experiencial, de sua personalidade, seja através do efeito
que as representações sociais e outros aspectos (ideologias, religiosidade, etc.,)
exercem sobre o ser, não se configura como algo que possa ser intentado com êxito
pleno em análises simplistas ou superficiais.
Essa afirmação prende-se à constatação, em primeiro lugar, de que aquilo
que constitui identitariamente o homem é dinâmico, uma espécie de fluxo, nunca
uma construção estática, que condensa e cristaliza percepções, valores, atitudes e
outros elementos que tais de modo perene (SÁ, 1998).
Sendo assim, não se pode falar em identidade como algo plano, circunscrito a
vários núcleos e características que, tão logo a individualidade da pessoa se forme,
não mais sofrerá mutações, aprimoramentos, resignificações ou quaisquer outros
processos capazes de modificar, estrutural ou perifericamente, o totun do homem.
De maneira geral e seguindo a linha de raciocínio que tem norteado a
confecção deste estudo, para que possamos compreender a identidade pessoal em
um plano mais amplo, é necessário, por razões óbvias, o entendimento do papel
exercido pelas representações sociais sobre o indivíduo. Logicamente, isso não
pode ser realizado de modo meramente quantitativo, mas principalmente qualitativo,
o que torna essa iniciativa, para além de quaisquer pretensões, um esforço assaz
intenso (SÁ, 1998).
Exemplo eloqüente do que foi afirmado no parágrafo anterior, a questão dos
múltiplos papéis que o homem desempenha é particularmente esclarecedora quanto
às influências do meio, das percepções individuais e grupais, além do efeito exercido
pela memória, que constrói uma espécie de paradigma disposto diacronicamente,
capaz, pelo grande número de dados experienciais, sensações, informações e
crenças que traz em seu bojo, de facultar ao indivíduo usar dos elementos que
compõem seu interior como ponte de ligação entre o ser e o estar. Essa ligação,
contudo, dá-se em cada nova experiência, em cada novo contato, em um processo
dinâmico e constantemente em movimento que traz à tona novos traços, novas
visões ou, se quisermos ir direto ao ponto, novas identidades.
70
É claro que, com isso, não estamos afirmando que alguns traços (núcleos
seriam termos mais adequados) não sejam relativamente fixos no ser humano, mas
sim que, nos embates diversos do seu cotidiano, esse ser tende a ir moldando,
positiva ou negativamente, sua personalidade. Saber quem é essa pessoa se
mostra, assim, como uma tarefa dialética que não pode ser barrada ou paralisada,
pois o homem jamais será, de modo definitivo, igual a si próprio no decorrer da vida
(BRASILIENSE, 2008).
Do mesmo modo, a construção da memória pela identidade é algo facilmente
verificável, dado que o arcabouço que identifica o indivíduo é, também, uma espécie
de filtro, capaz de reter as informações e outros elementos menos tangíveis
coadunados com a identidade que apresenta ou que julga possuir. Trata-se, pois, de
uma relação simbiótica entre identidade e memória.
Como salienta Brasiliense (2008, [s.p.])
Na medida em que nossa memória vai sendo reativada contando
aquilo que já aconteceu, o passado se torna flexível, e o presente um
fluxo de mudanças constantes. Ao contrário, o senso comum
costuma pensar que o tempo do passado e do presente é fixo e
imutável. Mas se pensarmos na memória como um instrumento de
reconfiguração do passado [...], um trabalho de enquadramento do
passado a partir das demandas do presente, concluímos que
vivemos com a impressão de uma linear repetição e que as
mudanças são geradas por contextos sociais diversos que associam
e selecionam a memória para preencher o presente e configurar o
futuro (BRASILIENSE, 2008)
A criação da identidade em nível individual pode ser entendida, por outro lado,
como algo que ultrapassa, necessariamente, a barreira do análogo, do semelhante,
pois irá firmar-se também através das diferenças que, não obstante, não são de
natureza tal que se desviem diametralmente daquilo que é comum e, por caminhos
vários, consagrado como tolerável e/ou compreensível.
Assim, falar de identidade hoje pressupõe a superação da nostalgia
do idêntico, a ruptura com o princípio da permanência que, em
nossas instituições, em muitos momentos, transmutou-se em um
verdadeiro princípio de inércia, produzindo práticas sociais
orientadas por um ritualismo mimético, eternas reprodutoras do já
produzido (MARTINELLI, 1995, p.145).
71
Superar a nostalgia do idêntico, como bem define Martinelli (1995) é a
condição sine qua non para que possa emergir o homem-indivíduo quando
posicionado na perspectiva grupal, isto é, a identidade em nível pessoal será
produto principalmente da dessemelhança, do não idêntico, ao passo que a
identidade social será justamente as aproximações, semelhanças e pertenças do ser
em relação ao seu grupo social imediato. Com isso, tornar-se pertencente
socialmente falando e, concomitantemente, se mostrar individualizado, um ser único
em sua totalidade, é uma tarefa que deve ser elaborada e reelaborada em um
continuum cujo final não pode ser vislumbrado, uma vez que a própria identidade
coletiva tende a ir sofrendo alterações; pelo menos em parte de sua estrutura. Essa
parte nada mais será do que a norma que serve de parâmetro.
Como podemos verificar sem maiores dificuldades, a identidade do ser
humano não pode ser considerada, pelo menos para efeito de análise dos
mecanismos que a (re)constroem, como algo unitário, já que se desdobra em
tentativas de aproximação da entidade referencial e, também, em buscas que visam
diferenciá-la dessa mesma entidade. Trata-se, pois, de um processo permanente,
que não pode ser interrompido, seja porque o indivíduo precisa apresentar traços de
pertencimento ao agrupamento social do qual faz parte, seja porque precisa
desenvolver traços que o distingam. Ora, os valores, crenças, ideários e outros
aspectos que tais são mutáveis, até porque as sociedades, em seus diversos níveis,
sofrem mudanças de diversos jaezes. Isso torna a identidade individual igualmente
transformável, já pela necessidade de continuar pertencendo, já por desejar se
diferenciar.
Verifica-se, assim, que a identidade deve ser concebida em uma visão dual:
de um lado a pertença grupo-social e de outro a individualidade em nível pessoal.
Essa divisão, contudo, só se dá em patamares didáticos ou de análise, jamais no
todo do indivíduo inserido em suas práticas sociais e, de modo análogo, em suas
vivências pessoais, individualizadas (MARTINELLI, 1995).
Em termos gerais, pode ser dito que tanto a identidade coletiva quanto a
individual somente existem se confrontadas com a identidade étnica (regional ou
grupal) e social (sociedade). Torna-se, desse modo, inegável que ao homem não se
dá o poder de ser uno se estiver só, posto que sem parâmetros não há comparações
e, por conseguinte, semelhanças e individualidades possíveis (ALMEIDA, 2007).
72
Outrossim, as asserções imediatamente anteriores podem dar a (falsa)
impressão de que a identidade, na perspectiva do ser/estar, pressupõe apenas um
par identitário pessoal-coletivo. Na verdade, o mesmo indivíduo terá diversas
pertenças grupais e sociais, seja em nível hierárquico, seja através da multiplicidade
de sua ação pessoal (um mesmo homem pode ser religioso, pai de família, policial e
atleta de fim-de-semana, etc.). Ao transmudar seus papéis sociais, o homem
modifica, amplia ou substitui seus pares identitários, isto é, o individual e o social
presentes em cada pessoa são mutáveis e, ainda, extinguíveis, posto que
dependem da maleável vontade humana para existirem. Como salienta Almeida
(2007, [s.p.])
As pessoas significam o processo de interação social através da
construção de sentidos, individuais, e do uso de significados, sócio-
históricos. Um instrumento privilegiado que possibilita a apreensão e
a materialização dessas significações é a linguagem. À medida que o
homem utiliza e se apropria das diversas linguagens existentes
(gestual, oral, escrita, etc.), passa a ter acesso a um vasto conjunto
de significados historicamente produzidos, que integram a sua
cognição.
É claro que o homem não irá receber passivamente tais linguagens e suas
significações, ao contrário, irá reelaborá-las de acordo com sua capacidade de
compreensão, suas crenças, o ambiente que o rodeia, dentre muitas outras variáveis
que influenciam e possibilitam a (re)construção dos significados.
Evidentemente, o processo descrito por Almeida (2007) não se dá de modo
homogêneo ou mesmo similar para todos. Na verdade, a construção de sentidos, a
(re)significação, a simbolização e outros mecanismos que propiciam o
desenvolvimento de personalidades individuais e sociais é extremamente complexo
e, entre outros senões, pode se mostrar contraditório em seu próprio interior. Tome-
se como exemplo dessa afirmação a crescente “liberação” no modo de conceber a
sexualidade humana. Grande parte dos homens e mulheres na faixa etária entre 20
e 50 anos (produtos, com maior ou menor intensidade, da liberação comportamental
dos anos 60) tem, de si e para si, uma identidade que se coaduna com a de um ser
liberal (na melhor acepção do termo) nos moldes contemporâneos, especialmente
se confrontados com as gerações anteriores.
Não obstante, um membro desse mesmo grupo poderá manifestar
posicionamentos absolutamente contrários à liberação quando seus filhos, cônjuges
73
ou mesmo seus pais passem a exercer a sexualidade em uma instância também
“liberal”. O que aparenta ser hipocrisia (provavelmente é, de fato), em suas bases
mais profundas, é parte da identidade de tais pessoas.
Isso torna inegável a contradição interna dos grupos e dos indivíduos
tomados isoladamente, mas não anula a construção de identidades sociais e
individuais baseadas na interinfluência. Ser incoerente, afinal, é da natureza do
homem e possibilitou o questionamento de si e de seus semelhantes com as
conseqüências (positivas e negativas) daí advindas.
7 NÚCLEOS CENTRAIS
Ao promovermos o levantamento e a análise de dados teóricos sobre a Teoria
das Representações Sociais, acabamos por nos deparar, como já mencionado
superficialmente anteriormente, com a Teoria dos Núcleos Centrais proposta por
Abric. Para este estudioso, em uma explicação de caráter didático e sem maiores
pretensões, as representações sociais organizam-se ao redor de elementos
nucleares que condensam e cristalizam a parte mais significativa (tanto em
importância quanto na qualidade de significar) de um modo de pensar compartilhado
por determinado grupo.
Em outras palavras, Núcleos Centrais nada mais seriam do que o fato gerador
e depositário da representação social, posto que trazem em si os elementos
fundamentais do pensar social sobre determinado fato, evento ou circunstância, ao
mesmo tempo em que definem e diferenciam uma representação social de outra, o
que equivale dizer que, sem eles, não há representação social possível, apenas
idéias, visões e crenças dispersivas e aleatórias. Como explica Sá, citando Abric
a organização de uma representação apresenta uma característica
particular: não apenas os elementos da representação são
hierarquizadas, mas além disso toda representação é organizada em
torno de um núcleo central, constituído de um ou de alguns
elementos que dão à representação o seu significado. (ABRIC apud
SÁ, 2002, p.62).
74
Essa noção é importante por diversas razões, dentre as quais podemos
destacar a relação hierárquica que se estabelece entre os elementos de uma
representação e, em especial, aquilo que contém sua essência primeira e fixa. Essa
essência, obviamente, não pode ser modificada sem que sobrevenha, por
conseguinte, a transformação da própria representação.
Ainda segundo a visão manifestada pelo estudioso, a Teoria dos Núcleos
Centrais, hoje relativamente agregada à teoria maior da TRS, possui as seguintes
funções:
Uma função geradora: ela é o elemento através do qual se cria, ou
se transforma, o significado dos outros elementos constitutivos da
representação. É através dele que os outros elementos ganham um
sentido, um valor. Uma função organizadora: é o núcleo central que
determina a natureza dos elos, unindo entre si os elementos da
representação. Neste sentido, o núcleo é o elemento unificador e
estabilizador da representação (ABRIC, 2001, p. 31).
Temos, pois, assim, que a existência de núcleos centrais estabelece um
vínculo fixo entre aquilo que constitui uma representação e as formas (flexíveis, já
que se situam na periferia) como esta mesma representação é percebida em seus
contornos mais amplos, o que significa, já em um primeiro momento, na admissão
dos núcleos centrais como símbolos-primários e nas construções representacionais
como a produção de sentidos (significação) cujo alcance e formato são delimitados
pelo e no grupo.
De outro modo, núcleos centrais são elementos estáveis em construção
representacional que, mesmo percebida perifericamente de modos relativamente
flexíveis e distintos, guardarão a essência da coisa em si, isto é, enquanto a
representação social de algo existir da maneira como se dá em um determinado
momento, os núcleos centrais serão o fato gerador da mesma, em que pese a
flexibilidade dos elementos periféricos.
Como podemos ver, a posição funcional dos núcleos centrais de Abric (2001)
não se mostra inadequada quando a posicionamos na condição de “pedra
fundamental” de determinadas visões coletivas (representações sociais sobre algo).
Assim e em que pese as singularidades e diferenças entre núcleos centrais e outras
formas similares de construção de núcleos de sentido, nada parece impedir,
75
estruturalmente, que os núcleos centrais permitam um viés de análise das
representações sociais de violência no filme Tropa de Elite.
8 A VIOLÊNCIA E AS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS
Uma temática bastante pertinente e atualizada é a que relaciona a violência
com suas possíveis representações sociais, dado que o modo como a violência é
concebida (representada socialmente) será determinante na maior ou menor
incidência de atos de agressão.
Essa relação se mostra complexa não apenas por aquilo que é pensado, mas
também pelo que não é. Em outras palavras, se um determinado grupo de pessoas
manifesta posicionamentos específicos em relação à violência, isso implica, até
mesmo em função da relação diametral entre escolha e renúncia, lacunas, falta de
conhecimento e, de um modo mais profundo, a renúncia de outras representações
sociais sobre o mesmo tema.
Outrossim e dentro desse contexto, há que se ter presente que não existem
apenas representações sociais de violência, mas também da violência como
representação (PORTO, 2004). Não se trata, obviamente, de um mero jogo de
palavras, mas sim de uma dicotomia que envolve a sociedade, instituições e
membros de grupos específicos.
Em outras palavras, enquanto alguns concebem, em termos de representação
social, a violência como algo crescente, ameaçador, fortemente associada a
determinados grupos, em outros agrupamentos pode-se ter
[...] representação da sociedade brasileira como uma sociedade
violenta faz da violência uma categoria articuladora e organizadora
de ações. Constrói uma conexão de sentido entre o imaginário e as
práticas, e abarca amplos setores da vida social; envolve atores tanto
na sociedade civil como no aparato de segurança (PORTO, 2004,
p.139).
Não deixa, pois, de ser curioso, que alguns pensem na violência como algo
que emerge a partir de situações específicas, com indivíduos que não se constituem
no grupo social maior (no sentido quanti e qualitativo) da sociedade e sob condições
peculiares. Trata-se da representação social da violência, vista como uma distorção
76
do real, do cotidiano, do banal. Existem, também, ainda que em menor escala,
pessoas para quem as próprias representações são violentas, seja porque
amparam-se em instituições estatais, seja porque alguns (policiais e militares de
maneira geral) julgam a si próprios como uma categoria à parte, diferente do “civil”.
As representações sociais de violência, se posicionadas em uma perspectiva
semelhante àquelas que foram apresentadas no parágrafo anterior, evidenciam que
sua estrutura é processual, não conceitual. De modo diverso, podemos dizer que as
representações de violência, ao serem erigidas desta ou daquela maneira, pautada
em tais ou quais crenças valores, preceitos e preconceitos, só podem ser
consideradas como tal em seu próprio dinamismo (logo, trata-se de algo mutável),
não como conceito estático.
À luz dessa afirmação, tornam-se compreensíveis (não aceitáveis, ressalte-
se) atitudes de franca violência, como em atentados terroristas ou a manutenção de
um Estado constante de terror como se vêem em alguns regimes totalitários.
Ressalte-se, contudo, que não há aqui nenhum julgamento de valor quanto a esses
ou quaisquer outros eventos, apenas uma tentativa de entendimento.
Posto isso, ainda resta a questão de como relacionar, de modo tão objetivo
quanto possível, as representações sociais e a violência. Obviamente, trata-se de
uma questão consideravelmente complexa, o que impede uma abordagem em
profundidade. Apenas para efeito de aclaramento, todavia, podemos recorrer a Porto
(2006, p. 261-262) quando afirma que
em alguns casos, como o da violência pela violência dita
despolitizada ou sem objeto pode-se supor que {a violência} foi, ela
mesma, erigida em valor (violência como afirmação identitária, como
afirmação pela força). Já em outros, torna-se relevante investigar
quais valores, crenças e sentidos estão em busca de hegemonia no
contexto social, a partir do qual condutas violentas se desenvolvem
como a forma mais imediata de resolução de conflitos.
Temos, com isso, uma visão que, se não encampa todas as possibilidades de
relacionamento entre a TRS e a violência, nós dá uma visão panorâmica digna de
apreço, dado que posiciona a violência como um valor em si própria, como ocorre,
por exemplo, nas brigas de gangues ou a violência como resultado, extensão ou
conseqüência de determinadas representações sociais que vão se formando sobre a
mesma até atingir um determinado corpus.
77
Porto (2006) refere-se, de modo bastante oportuno, à chamada cultura da
virilidade que ainda viceja em muitos recantos do Brasil como um valor que
determina, em certos grupos, sob condições especificas, a representação social do
homem como um ser que deve se dotado de “macheza”, coragem (física,
evidentemente) e disposição e capacidade de confrontamento com indivíduos ou
situações que contrariem quaisquer de seus valores, crenças e princípios.
Ainda nesse sentido, é oportuno comentar que, quanto mais ampla e
disseminada forem as representações sociais de violência, menores serão os
questionamentos, as contrapartes e as disposições contrárias às mesmas. Em
outras palavras, quanto mais se dissemina uma maneira de representar socialmente
a violência em suas múltiplas possibilidades (sem entrarmos no mérito da avaliação
dos atores sociais quanto às “melhores” formas de punição e sanção dos
envolvidos), menores serão as vozes que se elevam contra eventuais desmandos,
arbitrariedades e outros elementos de mesma ordem.
Assim sendo, relacionar as representações sociais com a violência,
especialmente em nossa época, é algo de uma importância fundamental, dado que,
mesmo restrita, em alguns casos, a pequenos grupos, com idéias próprias, parece
bastante evidente que, com a chamada Era da Informação, se tornou
consideravelmente mais simples e eficiente fomentar idéias, crenças, valores ou,
ainda, a cultura da violência pela violência. Não se trata, também desta vez, de um
julgamento de valor da mídia, pois sua própria condição de veículo de transmissão
de informações a torna uma formadora de opiniões e, partindo-se da impossibilidade
de um discurso que seja totalmente imparcial, a própria existência de meios de
comunicação já pressupõe a modelagem de formas de representações sociais sobre
os mais diversos temas, inclusive e principalmente, a violência.
78
IV AS REPRESENTAÇÕES DE VIOLÊNCIA NO FILME TROPA
DE ELITE
Neste capítulo são apresentadas algumas considerações sobre as
representações sociais de violência constatadas no filme Tropa de Elite, além de
serem inclusos alguns marcadores simbólicos de violência.
1 O BOPE
O Batalhão de Operações Especiais (BOPE) da Polícia Militar do Estado do
Rio de Janeiro foi criado em 19 de janeiro de 1978 com finalidades, características e
recursos completamente diversos daqueles que apresenta na atualidade. Com um
contingente de apenas 30 homens, era, então, a Companhia de Operações
Especiais (COE), cuja principal tarefa consistia no resgate de reféns, uma
necessidade que se tornava cada vez mais premente no final da década de 1970, na
cidade do Rio de Janeiro (RIBEIRO, 2007).
Ao longo dos anos 1980 o tráfico de drogas tornou-se gradualmente um dos
principais focos de preocupação para a Secretaria de Estado de Segurança do Rio
de Janeiro, principalmente depois que quadrilhas fortemente armadas passaram a
controlar, nos morros cariocas, a distribuição de maconha, cocaína e crack para toda
a cidade. Se os crimes passaram por mudanças, o mesmo não poderia deixar de
ocorrer com seus agentes, os criminosos, que tiveram seu perfil transformado.
De fato, de assaltantes, seqüestradores e golpistas, muitos se converteram
em “barões da droga” à moda nacional, isto é, reuniam cada vez mais dinheiro e
poder e, para defender suas valiosas atividades (do ponto de vista estritamente
financeiro, ressalte-se), passaram a se armar de modo assustador, reuniram um
79
arsenal que ia desde pistolas de alto impacto (Browning, Taurus, etc.), contava com
granadas de diversos graus de letalidade e fuzis de grande poder de destruição
como AK-47 e AR-15, chegando a impensáveis (para grupos de bandidos urbanos)
lançadores de granadas e morteiros e até mesmo um míssil Exocet (RIBEIRO,
2007).
Foi justamente para fazer frente a essa escalada da violência e dos meios
utilizados pelos traficantes de drogas que o COE passou a se chamar Companhia
Independente de Operações Especiais, já com características de tropa de elite da
PM. Entre os anos de 1987 e 1988, a companhia esteve em ação várias vezes,
quando matou os líderes do tráfico em diversos morros, em especial o da Rocinha, e
acabou com muitas bocas-de-fumo.
Em face dos bons resultados alcançados (sob a ótica da SSP-RJ,
evidentemente), cada vez mais a companhia passou a ser acionada. Assim, em
1991, foi criado o BOPE, que passa de companhia a batalhão. A unidade ganha uma
nova e melhor área de treinamento, no bairro de Laranjeiras. O ingresso no batalhão
passou a se dar de modo continuamente rigoroso, seja no tocante à avaliação da
vida pregressa do PM, seja pelas exigências elevadas de resistência física,
psicológica e moral feitas aos candidatos. Por volta de 1997 (período focado no filme
que ora tomamos para análise) o BOPE reunia um efetivo de 100 homens altamente
treinados, embora de modo bastante controverso (RIBEIRO, 2007).
Dentre as ações mais célebres do batalhão destacam-se a trágica intervenção
no seqüestro do ônibus da linha 174, em 2000 (também abordado por José Padilha,
diretor de Tropa de Elite, no documentário Ônibus 174), que terminou com a morte
da professora Geisa Gonçalves e do seqüestrador Sandro do Nascimento; e a morte
do traficante Lulu da Rocinha, em uma ação que demorou mais de 15 minutos de
intenso tiroteio. O caso envolvendo a morte da professora foi decisivo na história do
BOPE, consistindo em uma espécie de divisor de águas: foi criada uma divisão
apenas para negociação e ação em seqüestros, composta por negociadores de alto
nível, preparados por psicólogos e oradores, além de policiais especializados; e, de
outro lado, a temida Tropa de Elite, cuja função é, essencial e oficialmente,
apreender armas de traficantes de drogas. Constam, ainda, do BOPE, um grupo de
atiradores de precisão e um grupo de apoio (RIBEIRO, 2007).
Atualmente, o BOPE conta com cerca de 400 homens e pode receber novos
candidatos a partir do Curso de Ações Táticas (CAT) ou do Curso de Operações
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Especiais (COESP), ambos tão rigorosos que aprovam menos de 30% dos
aspirantes à farda preta. Em seus 17 anos de atuação como Batalhão de Operações
Especiais, o BOPE perdeu apenas um homem em ação, o soldado Wilson Santana,
morto em maio de 2004, quando tentava cruzar uma rua, sob fogo intenso, no
Complexo do Alemão. É particularmente emblemático, como veremos mais adiante
neste capítulo, que uma tropa composta por centenas de homens tenha perdido
apenas um componente em dezenas e dezenas de combates.
2 TROPA DE ELITE O FILME
Tropa de Elite foi um dos filmes brasileiros mais polêmicos de 2007, o que, de
uma perspectiva estritamente cultural, não deixa de ser relevante, mesmo se esse
for o único parâmetro de análise da obra. O filme, contudo, ultrapassa a barreira
cinematográfica (entendida aqui em sua vertente artística) para adentrar, densa e
poderosamente, no inconsciente/consciente coletivo, atingindo fortemente a
sociedade e não de um modo especialmente ameno ou “digerível”. Seu foco, aliás, é
justamente a necessidade da ação do BOPE diante de uma situação que aparenta
não apresentar solução possível de outro modo que não o da violência
sistematizada (CARNEIRO, 2007).
De fato, mesmo sob a estridência da crítica de cinema e de alguns segmentos
da sociedade, especialmente aqueles ligados às múltiplas manifestações de
ideologia esquerdista, Tropa de Elite apresenta como principal mérito a ousadia de
não se omitir diante de uma guerra alimentada, de um lado, pela hipocrisia da classe
média e dos seus filhos narcoviciados e, de outro, pela incapacidade do Estado em
dar uma resposta eficiente e repassada de legalidade à explosão da criminalidade
nos grandes centros (no caso presente, no Rio de Janeiro). Padilha, ao trazer a lume
a narrativa do capitão Nascimento, não almeja e nem consegue, realmente, ser
neutro, mas sim provocador, sem negar a cada parte seu quinhão de culpa,
covardia, poder e miséria (CARNEIRO, 2007).
Cineasta de carreira curta, porém inspirada, José Padilha já havia causado
celeuma com seu documentário “Ônibus 174, que conta o desfecho trágico do
seqüestro do ônibus 174, no Rio de Janeiro, após uma ação desastrada do mesmo
81
BOPE. Tropa de Elite, contudo, é um considerável passo adiante, seja no plano
estético, seja, principalmente, por seu conteúdo altamente combustivo.
A seguir, detalhamos alguns dos aspectos referentes ao filme para, em
seguida, analisarmos as representações de violência presentes na película.
2.1 ENREDO
O enredo de Tropa de Elite é bastante simples, consistindo na narrativa de
Nascimento, Capitão do BOPE, sobre o período em que, pressionado por razões
familiares (ele está prestes a ser pai) e pelo estresse diário (o personagem participa
ativamente de dezenas de confrontos armados nas favelas e sente um esgotamento
nervoso cada vez mais evidente), decide abandonar o comando da Companhia Alfa,
a mais ativa da unidade. Para que possa fazer isso, Nascimento necessita, contudo,
treinar um substituto à altura, o que significa dizer que deve ser alguém honesto,
íntegro, racional e capaz de operar sob pressão, que não se descontrole e,
principalmente, não tenha piedade dos inimigos que enfrenta.
É a partir dessa necessidade e da entrada em cena dos aspirantes Neto e
Matias, dois oficiais honestos e idealistas, que Nascimento passa a descrever,
inicialmente, a rotina de treinamento dos candidatos à “caveira” (nome dado ao
soldado do BOPE) e, posteriormente, a transformação de um oficial legalista
(Matias) em um autêntico “cão de guerra”. Matias não apenas cursa Direito em uma
das melhores universidades do Rio de Janeiro, mas acredita, segundo Nascimento,
na polícia como o braço armado da lei, jamais uma corporação corrompida e dividida
entre policiais honestos, omissos e corruptos.
Embora gire ao redor de um núcleo relativamente simples, qual seja o do
BOPE e suas ações, Tropa de Elite também traz à tona o cotidiano dos jovens
universitários de classe média alta que fazem uso “social” de drogas, assim como
dos desmandos e falcatruas da Polícia Militar do Rio de Janeiro. Com isso,
consegue formar um mosaico onde os fatos nem sempre correspondem à lógica
convencional, mas sim à perversa lógica do sistema policial, abertamente criticada
pela fala do Capitão Nascimento.
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Ao final, o tenente Neto acaba morto em uma emboscada e seu amigo de
infância, Matias, talvez o único policial do filme a ter uma visão da polícia como
extensão do sistema judiciário (em uma perspectiva de Estado de Direito, ressalte-
se), acaba por renegar alguns de seus mais viscerais princípios para atuar em
consonância com as regras do BOPE. O batalhão ganha um novo Nascimento, mas
a justiça, certamente, perde um dos poucos exemplos de policiais legalistas da PM.
2.2 INFORMAÇÕES GERAIS
Tropa de Elite foi uma das mais caras produções cinematográficas brasileiras
de todos os tempos. Orçada, inicialmente, em 8 milhões de reais, Tropa de Elite
atingiu, ao fim, a cifra de 10,5 milhões de reais, o que a situa em um patamar poucas
vezes atingido por outras produções da cinegrafia nacional.
Com um elenco relativamente jovem, no qual se destacam Wagner Moura
(Capitão Nascimento), André Ramiro (André Matias), Caio Junqueira (Neto), Milhem
Cortaz (Capitão Fábio), Fernanda Machado (Maria) e Fábio Lago (Baiano), entre
outros, Tropa de Elite, apesar dos elevados custos de produção, em nada se
assemelha ao estilo norte-americano de filmografia superproduzida, antes, pelo
contrário, traz a lume uma violência na qual se vêem grande parte dos problemas
que, se não são específicos do Brasil, parecem ter uma coloração inegavelmente
brasileira.
Abordado por publicações que gozam de reputação jornalística elevada como
Super Interessante, Veja, Isto é, entre outras, o filme é mostrado sob ângulos
diversos, mas não sem certo grau de passionalismo inspirado nas fortes cenas dos
conflitos diários entre o BOPE e os traficantes de drogas dos morros cariocas.
Tome-se como exemplo dessa afirmação a corrupção em larga escala da
polícia, a criminalização da pobreza, a violência dos morros cariocas e as
sanguinárias guerras inter-quadrilhas e destas com a polícia. Assim e por mais que
se queira universalizar as questões que Tropa de Elite faz emergir, é inegável que
seu foco maior, acima de qualquer relação de causa e conseqüência, é a realidade
brutal das grandes cidades brasileiras, em especial do Rio de Janeiro.
83
Os próprios dados numéricos relativos ao filme parecem indicar a ressonância
que a produção causou na sociedade. Pirateadas por funcionários da empresa que
fez as legendas do filme, cópias da obra foram vistas por um público não inferior a
11 milhões de pessoas (BOSCOV, 2007).
Após ser lançado e somando-se os dados legais, Tropa de Elite atingiu o
patamar de, aproximadamente, 16 milhões de expectadores, o que o posiciona
como uma das maiores produções cinematográficas brasileiras.
Tropa de Elite foi inspirado no livro A Elite da Tropa, de autoria do ex-capitão
do BOPE, Rodrigo Pimentel, do major PM André Baptista e de Luiz Eduardo Soares,
sociólogo ligado à SSP-RJ. Embora use o relato escrito como ponto de partida, o
filme promove uma adaptação à linguagem cinematográfica, o que o obrigou a
promover mudanças em personagens e situações, sem, contudo, fugir ao elemento
mais importante do livro: a essência da formação e atuação do policial do BOPE
(PIMENTEL, BAPTISTA e SOARES, 2006).
Dirigido por José Padilha, que vem acompanhando o BOPE desde a
desastrosa tentativa de acabar com o seqüestro do ônibus da linha 174, Tropa de
Elite foi rodado entre setembro e novembro de 2006, em diversas locações no Rio
de Janeiro. Fátima Toledo, que já foi diretora da Febem, ficou responsável pela
preparação dos atores, optando por dividi-los em quatro grupos distintos: policiais do
BOPE, PM convencional, traficantes e os jovens da universidade. Com isso, logrou
obter um comportamento baseado em uma visão sempre parcial dos atores, nunca
uma panorâmica geral que, normalmente, estes possuem. Desse modo, aproxima-
se da vida real, onde universitários dificilmente terão uma noção apropriada de como
é o cotidiano de um grupo de traficantes na favela, assim como das ações e do
trabalho do BOPE ou mesmo da PM e vice-versa (RIBEIRO, 2007).
Rodado, nas cenas de ação, no teatro de operações real do BOPE, o filme,
em diversos momentos, se viu ameaçado e/ou prejudicado por atitudes que
dificilmente se veriam em outras produções cinematográficas. Um dos primeiros
problemas se deu quando uma van, carregada com 91 armamentos reais
modificados para darem tiros de festim, foi roubada por traficantes. Nem o veículo
nem as armas foram vistos novamente, o que obrigou a direção do filme a
encomendar outro lote de armamentos, a um custo considerável.
As filmagens também sofreram revezes com a comunidade e as quadrilhas
que controlam o morro Chapéu Mangueira, pois a PM ocupou o local, sem aviso
84
prévio à equipe, por duas vezes, o que causou irritação nos moradores, pois estes
creditaram a ocupação a Padilha e seus auxiliares. Os produtores do filme foram
obrigados a pagar cerca de 2 mil reais a traficantes para fazerem algumas cenas
dentro da comunidade, segundo o que foi apurado pela equipe de jornalistas da
Revista Vip (RIBEIRO, 2007).
Um dado também significativo em Tropa de Elite é que, durante as filmagens,
a equipe de Padilha teve a consultoria de policiais do BOPE, de um lado, e de
traficantes de drogas, de outro. Ambas consultorias foram relevantes,
respectivamente, por mostrarem a forma “adequada” (perdoe-se a contradição
semântica do termo dentro da oração) de se torturar uma pessoa com o saco
plástico usado pelos policiais do BOPE; assim como matar as pessoas queimadas
no “microondas” (forma de assassínio particularmente bárbara, na qual a vítima é
colocada dentro de uma pilha de pneus e, em seguida, tem o corpo molhado por
gasolina ou querosene, sendo ateado fogo na seqüência).
Em vários momentos os atores se viram em risco de serem atingidos pela
guerra diária dos morros, inclusive na cena onde colocam fogo ficticiamente em um
dos personagens, iniciativa que, por pouco, não deu início a um tiroteio entre
quadrilhas rivais.
A busca pelo maior realismo possível, aliás, levou Padilha a usar policiais
verdadeiros do BOPE em algumas cenas, o que conferiu uma aparência
assustadoramente verídica a determinadas imagens. Outro dado que revela a
tensão nos bastidores do filme é o fato de os personagens, em grande parte das
externas na favela, usarem coletes à prova de balas verdadeiros sob as roupas
(VERSIGNASSI, NARLOCH E RATIER, 2007).
As informações sobre os bastidores e mesmo sobre sua
exposição/comercialização tiveram que ser, em grande parte, baseadas em
informações jornalísticas, seja pela inexistência (até o momento em que escrevemos
este capítulo) de livros e dados oficiais, seja ainda pela repercussão imediata do
filme, o que impediu uma visão geral mais aprofundada.
Não obstante, tratam-se de informações imprescindíveis para se compreender
a dimensão do filme em que, aparentemente, “A sociedade ansiava [...] por esse
tapa na cara dado pelo capitão Nascimento (...)” (CARNEIRO, 2007, p.82).
85
3 A POLÍCIA APRESENTA SUAS ARMAS: REPRESENTAÇÕES DE VIOLÊNCIA
NO BOPE
Analisar as representações sociais de violência partilhadas pelos membros
do BOPE afigura-se como uma tarefa particularmente laboriosa, dado que a
agressividade, a brutalidade e a tortura (para ficarmos em apenas 3 exemplos da
violência intra-estrutural da corporação aqui enfocada) estão por tal forma
entranhadas no cotidiano dos policiais que não é possível, a priori, existir uma tropa
de elite na PM carioca atual sem a configuração que apresenta. Em outras
palavras, em que pese a ousadia da asserção, acreditamos poder afirmar que o
BOPE, como a tropa de elite que é, não teria condições de manter o seu formato de
ação, metas e resultados, sem que para tanto concorressem os métodos brutais dos
quais faz uso. Isso somente se daria em uma reformulação estrutural da
corporação, como veremos mais adiante.
Por conta disso, aferir a visão coletiva de violência dos soldados é uma
iniciativa que demanda o exame da conformação formacional, relacional e funcional
do policial de elite, passando pelas transformações impressas na personalidade do
militar até que este se converta no cão de guerra desejado.
3.1 A VIOLÊNCIA NA FORMAÇÃO DO POLICIAL
O treinamento do soldado do BOPE mostrado no filme tem, como ponto de
partida, um processo de transformação da identidade pessoal, social e,
principalmente, profissional do futuro “caveira”. De fato, sem esse processo, não
seria possível ao BOPE, segundo o Capitão Nascimento, obter os resultados
almejados.
Conforme se verifica no filme, tão logo inicia seu treinamento, o candidato
tem suas características mórficas, sociais e psicológicas anuladas tanto quanto
possível: não é mais um indivíduo dotado de autonomia moral, intelectual e
profissional, mas sim um número, uma massa de modelagem nas mãos dos
instrutores. Temos, pois, assim, uma violência inicial que brutaliza o homem-policial
86
na medida em que retira deste o ser-estar pessoa/cidadão/profissional. Não existe
mais um Capitão Fábio, mas sim um soldado sem patente conhecido como 02, tanto
como não há mais um aspirante com nome e sobrenome (André Matias), mas tão
somente o 05 (Zero-cinco).
Se é justificável de uma perspectiva corporativa, esse aniquilamento do ser
como algo autônomo e individual é extremamente violentador, pois retira do policial
seus referentes, ao mesmo tempo em que o imerge profundamente em um novo
contexto, no qual o coletivo se sobrepõe ao individual, o todo sobre a parte, até que
reste apenas um ser desorientado, perdido, cujo único caminho possível é o do
grupo, dos valores e visões deste e não mais do próprio indivíduo. Criam-se novos
elementos do senso comum através da ancoragem e objetivação de aspectos
ligados à violência. Como explica Porto (1999, p.131) são “Sociabilidades que se
estruturam em razão [...] a partir e em função de sua ausência. É o caso de
sociabilidades estruturadas na e pela violência, quase como resposta a carências,
ausências, falhas, rupturas”.
Em Tropa de Elite temos uma visão progressiva do complexo processo de
transformação do indivíduo em algo que poderíamos denominar de “parte-operativa”
com a trajetória dos aspirantes Neto e Matias, ainda que de modo diverso. Em Neto,
principalmente, a anulação do Eu em prol de uma visão coletivista é particularmente
intensa, dado que existe um forte interesse do oficial em tornar-se um policial do
BOPE. Em Matias, apesar de também presente, o processo é mais lento e não
necessariamente supressor do Eu em seus estágios iniciais, seja porque o aspirante
reluta em acatar alguns dos valores da corporação, seja por estar ali quase que de
modo aleatório, trazido pelo amigo de infância.
De um modo ou de outro, porém, o período de formação do policial do BOPE,
especialmente as duas primeiras semanas (“Semanas do inferno”), consegue ir
gradualmente minando as bases que sustem o ser autônomo e diferenciado, posto
que coloca em xeque, a cada momento, a atitude singularizada em face das novas
demandas que se fazem necessárias. Nesse sentido, são especialmente
elucidativos os episódios nos quais se escolhem soldados para serem “xerifes” do
pelotão. Este não apenas terá que se responsabilizar pelo grupo, como o grupo
deverá respaldar as ações e iniciativas, no plano coletivo, do xerife. Assim, cada um
deve zelar por si e pelo outro, inclusive em situações nas quais o comportamento de
alguém, ainda que isolado, faça reverter sobre o grupo eventos reativos e/ou
87
sanções. O elemento que mais atua no sentido de solidificar as relações inter-
grupais é, inegavelmente, a violência ou, ainda, o temor dos soldados diante das
reações que determinados comportamentos podem dar lugar. Isso só é possível
porque, como argumenta Porto (2006, p.263)
[...] o que os atores sociais nomeiam como violência varia segundo
as representações que estes se fazem do fenômeno. Varia
igualmente segundo a natureza da sociedade na qual o fenômeno é
definido. Sob este aspecto, quanto mais uma sociedade é unilateral
quanto a suas normas e valores, tanto menos aparece o caráter
relativo do conceito e se tem a ilusão de objetividade construída por
uma suposta unidade de pontos de vista. Sociedades mais plurais
convivem com uma multiplicidade normativa, coexistindo lado a lado,
ou disputando hegemonia.
Nesse sentido, a violência, nos estágios iniciais do treinamento dos
candidatos a “caveira” é não somente a “argamassa” que permite a forte ligação dos
membros do grupo, mas também algo que passa a ser considerado normal pelo
soldado em treinamento, em função das representações sociais que passa a
assimilar. Paulatinamente, o policial vai deixando de lado sua visão pessoal de vida
e das funções inerentes à sua atividade para encampar, consciente e
inconscientemente, uma nova perspectiva, moldada a partir da brutalidade e da
intimidação, que é essencialmente grupal e coletiva. Bater, torturar e intimidar
formam o tripé “pedagógico” dos instrutores e, aos poucos, passam a ser encarados
de maneira natural pelos candidatos, até que a noção de violência perca suas
feições primárias e se converta em algo cotidiano, compreensível e aceitável. É
somente então que o candidato passa para a segunda fase do treinamento, a tática
e operacional, quando, mais do que nunca, o coletivo sobrepuja o individual e a
violência se mostra ainda mais coercitiva, seja na formação, seja na compreensão
do policial sobre sua atuação como futuro membro da tropa.
3.2 A VIOLÊNCIA NAS RELAÇÕES DO POLICIAL
Tão presentes e ativas quanto as verificadas na formação do policial, as
representações sociais de violência nas múltiplas relações do policial do BOPE são
88
praticamente inseparáveis de sua atuação dentro do modelo de treinamento e
conduta alimentado pela corporação, pois ser violento, atuar de modo violento e
proporcionar apoio violento mútuo em suas muitas formas de atuação é, pelo que o
filme mostra, imprescindível ao policial de elite.
De maneira geral, o policial do BOPE não apenas espera por atitudes e
comportamentos violentos de seus pares e de si mesmo em relação aos outros, mas
também os aceitam como algo perfeitamente coadunado com aquilo que se busca
como padrão comportamental, logo, natural e até mesmo convencional.
Como se pode perceber em diversos momentos do filme, a forma como se
relacionam os policiais da tropa de elite é, quase sempre, parte das representações
sociais que os mesmos apresentam quanto à violência, o que implica em atos
conscientes e inconscientes repassados de certa brutalidade psicológica e/ou
material mesmo para com os colegas de farda. Porto (1999, 132) explica que “Na
condição de recurso, a violência insere-se em um elenco de estratégias [...]; passa a
ser questão de eficácia, oportunidade, afirmação de identidades socialmente
negadas, explosão de raivas, frustrações, dentre tantas outras possibilidades [...]”.
Duas cenas são particularmente ilustrativas do quanto a violência é
convencionalizada e até banalizada nas relações do policial do BOPE. Logo no início
do filme, há uma cena na qual Nascimento conversa tranquilamente por telefone
com sua esposa, escutando, inclusive, os batimentos cardíacos do bebê em
gestação e comentando banalidades como esquentar o jantar no microondas ao
voltar pra casa. Ato contínuo, o oficial despede-se carinhosamente da mulher e,
alguns instantes depois, ordena ao sniper (atirador de precisão) que mate dois PMs
que vendiam armas aos traficantes de drogas logo abaixo.
Numa outra cena, ainda mais eloqüente, o comandante do batalhão, ao
informar que será criado um novo curso de formação de soldados de elite, determina
que não se verifiquem mais casos de mãos cortadas e tímpanos rompidos.
Nascimento comenta, em tom ameno e banal, que o corte na mão de um soldado
fôra um simples “acidente”, mas que o tímpano rompido tinha sido uma ação
promovida por outro instrutor. O oficial que rompera o tímpano do candidato ao
aplicar-lhe o chamado “telefone” diz, em tom jocoso, que havia sido sem querer,
ocasião em que todos riem, como se fosse uma piada particularmente engraçada
obrigar alguém a usar aparelho auditivo para o resto da vida por conta do sadismo
do instrutor. Um comportamento como o descrito acima implica, obrigatoriamente,
89
numa noção de ancoragem da violência como parte das regras e condutas
aceitáveis, até mesmo banais (MOSCOVICI, 2004).
Aspecto essencial para se compreender as asserções acima é o que se
sobressai na atuação dos policiais em seus confrontos quase que diários com os
marginais e a população dos morros. Ao sair para as operações, o soldado não
apenas está em condições físicas (de modo geral, evidentemente), morais e (muito
importante) sociais plenas para o uso da violência como espera e mesmo deseja
que os membros do seu pelotão se encontrem e atuem de modo semelhante.
Ancorado em visões de violência devidamente assimiladas, o homem do
BOPE é um ser que vai “trabalhar” de modo convencional: usar a violência como
uma ferramenta de trabalho (PORTO, 1999). Assim, estar pronto para matar ou para
quaisquer outras formas de violência, não em nível individual apenas, mas também
e, quiçá, principalmente, grupal, é um fator sempre presente na vida e no trabalho do
membro do BOPE, o que afeta e influencia, como não poderia deixar de ser, seus
relacionamentos em diversas instâncias.
Nos embates com o elemento adverso, qual seja o traficante, o policial do
BOPE age sempre de um modo que tem no coletivo sua expressão mais periculosa.
Em outras palavras, o BOPE é bem mais ameaçador enquanto conjunto de
elementos condicionados pela e para a violência, o que desemboca em uma visão
compartilhada de brutalidade e agressão consideravelmente mais ampla e profunda
do que a soma das perspectivas individuais de violência somadas. De fato,
individualmente, o homem do BOPE procura permanecer oculto tanto quanto
possível em relação à sociedade, pois teme e sabe que não poderá resistir à
violência dos bandidos. Coletivamente, contudo, os membros da corporação formam
um corpus extremamente violento e letal.
Quando inserida em uma panorâmica maior, que contemple também a
atuação do policial de elite junto às comunidades suburbanas, em especial aquelas
situadas nas favelas, podemos constatar que a violência, em suas múltiplas formas,
é o principal catalisador da “temperatura” social dentro do BOPE. Espancamento e
tortura de crianças, adolescentes e mulheres atuam, assim, como sinalizadores das
relações dos membros da tropa de elite com pessoas envolvidas indiretamente (ou
sem envolvimento algum) com o tráfico de drogas.
É particularmente emblemática da visão coletiva de violência do BOPE a cena
na qual o capitão Nascimento, mesmo alertado por um outro policial sobre o
90
flagrante desrespeito à lei e à comunidade que a ação promovida está dando ensejo,
simplesmente ignora a advertência, prosseguindo na brutal caçada ao traficante
Baiano.
De outro modo, fica evidente que, do ponto de vista apresentado no filme, a
violência relacional para os soldados do BOPE é tão natural quanto efetuar
operações portando armas e colete à prova de balas: é mais um item da “bagagem”
do policial, tão presente quanto os símbolos militares, os valores e as atitudes dos
membros desse grupo. A vivência diária da brutalidade pelos soldados do BOPE
acaba por promover um processo contínuo de ancoragem, nos moldes em que
Moscovici (2004) o concebe, tanto quanto objetiva as muitas formas de violação da
integridade física dos oponentes.
3.3 A VIOLÊNCIA NAS FUNÇÕES DO POLICIAL
Aspecto especialmente relevante na análise das representações sociais de
violência pelos membros da tropa de elite da PM do Rio de Janeiro, o exercício das
funções policiais é, se tomado separadamente, um dos melhores indicadores de
qual a visão representacional social do grupo sobre atitudes e comportamentos
violentos.
Inicialmente, há que se ter presente que o policial do BOPE inicia sua carreira
na PM convencional e, somente após alguns anos, pode almejar à farda preta. Isso,
per si, já é um fator influente na visão policial sobre a violência, pois se é fato que o
BOPE, no filme, mostra-se como uma força extremamente brutal, também é inegável
que a Policia Militar age de modo igualmente perverso, com o agravante de não
buscar, na grande maioria das situações, agir de modo a fazer prevalecer a justiça
ou algo do gênero, mas sim os interesses dos membros da própria corporação (“o
sistema”, como denomina o narrador).
Desse modo, ao se tornar um policial de elite, o soldado já tem um histórico
de convivência bastante amplo com a violência em suas múltiplas formas, o que não
deixa de influenciá-lo de algum modo, posto que não é possível alhear-se totalmente
do senso comum presente em grupos sociais imediatos e mediatos.
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A atuação dos homens do BOPE, de forma geral, segue um padrão partilhado
pelos soldados da tropa de elite, uma espécie de categoria representacional da
violência que norteia e determina a ação policial. Por outro viés, já na formação do
agente, criam-se, paulatinamente e de modo intensivo, condições que vão,
celeremente, modificando percepções, criando novas visões de mundo e, em
especial, da atuação policial (PORTO, 2006).
Embora seja fomentada no período imediatamente após o acesso do policial
ao curso de formação, fica evidente, no filme, que as representações sociais de
violência vão sendo rapidamente criadas ou, mais comumente, reformuladas de
modo a encaminhar o policial a um padrão comportamental no qual este passa a
compartilhar de uma concepção da violência funcional bastante diversa daquela que
apresenta sozinho ou antes de entrar para o batalhão.
Conforme se constata em grande parte da fita, o condicionamento dado ao
membro do BOPE durante e após o curso de formação é todo voltado para uma
mudança ou reafirmação de determinadas crenças e valores que, somados, formam
uma personalidade nova ou pelo menos diferente da anterior, o que se reflete na
perfeita adequação do homem ao grupo, o que significa dizer que o membro da
tropa passa, a partir da ação intensiva de (re)formatação de atitudes, princípios e
crenças, a compartilhar as percepções sociais sobre a violência em suas múltiplas
manifestações.
Porto (2004, p.135) afirma que, em face da visão que predomina nas elites
policiais, os membros destas organizações constituem-se em um grupo de seres à
parte dentro da sociedade: se matar alguém faz parte de sua função (promover a
justiça seja lá o que os policiais entendam sobre essa expressão); caso morra,
será no exercício do ato de “servir e proteger” a população. “[...] em certo sentido, o
poder sobre a vida e a morte é o diferencial entre ser policial ou civil, e que esse
diferencial acarreta certas prerrogativas: morrendo ele o faz em nome da lei e
matando também [...]”.
Um exemplo particularmente eloqüente dessa afirmação é o do aspirante
Matias. Tendo ingressado no BOPE não por concordar com a forma de atuação do
grupo em seus desdobramentos mais brutais, mas sim pela célebre conduta honesta
(do ponto de vista da corrupção e da leniência, diga-se) do batalhão e,
principalmente, porque decide acompanhar seu amigo de infância, o também
aspirante Neto que, este sim, desejava de fato ingressar na corporação.
92
Paulatinamente, Matias vai tendo sua personalidade, suas crenças, seus valores e
até mesmo seus ideais modificados. Embora ainda não concorde com a visão de
violência do BOPE, Matias não deixa de ir, aos poucos, se transformando de um
oficial legalista em um legítimo “caveira”: honesto, porém brutal e impiedoso.
O fato de ter sido levado, ao final do drama, a se tornar o substituto de
Nascimento, já que Neto havia sido morto, é apenas o coroamento, o marco zero da
mutação de um jovem que acreditava na lei em sua forma mais institucionalizada
(leia-se: um braço operacional do Estado de Direito) em um duro e desapiedado
policial cuja última ação, na película, é justamente matar, a sangue-frio e motivado
pela vingança pessoal e corporativa, o traficante que matara seu amigo de infância.
Nesse sentido, ao se tornar também um matador, Matias passa, no final do filme, a
ser, de fato e de razão, um policial de elite, adequando-se ao que as políticas de
segurança pública prevêem e exigem dos indivíduos em situação análoga à de
Matias.
A trajetória de Matias na polícia é repassada de uma série de eventos que,
como o filme bem o demonstra, atuam de modo decisivo na modelagem de um novo
homem e, por extensão, de um novo policial, para quem a violência é, agora, uma
condição, uma arma e mesmo um objetivo da ação policial promovida de modo
isento de corrupção.
De modo bastante esclarecedor, a transformação de Matias acaba se
enquadrando dentro da afirmação de Domenach (apud Minayo, 1994, p. 07), quando
salienta que [...] cada manifestação particular (da violência) se articula com as
outras.
Se partirmos da idéia de uma rede ampla o bastante para conter toda a
violência verificada na sociedade, poderíamos notar, sem maiores dificuldades, que
os diversos tipos de brutalidade encontram-se relacionados, ainda que de modo
indireto. Assim, numa redução que não apenas sintetiza, mas também torna mais
claro o que desejemos expor é a compreensão de que o Estado é o ente maior da
violência, posto que subordina a todos (ou quase todos) a uma condição na qual
formas diversas de violência podem ser usadas. Essa premissa (se a consideramos
como tal justamente por sua feição silogística) terá como conseqüência a
consciência da violência pelo homem e da possibilidade de sua concretização em
outras esferas.
93
Fica evidente, no caso de Matias, a presença coercitiva do grupo, do ideário
de violência e nas crenças do BOPE sobre os atos brutais que promove em suas
muitas faces. Realmente, André Matias é produto direto, em sua mutação rumo ao
compartilhamento de representações sociais presentes no BOPE, de elementos que
formam uma rede que erige, sustenta e justifica a violência, em que pesem as
conseqüências dessa promoção da barbárie “justa”, posto que dirigida por homens
que não se corrompem a um grupo particularmente perigoso e indefensável do
ponto de vista legal: o dos traficantes de drogas.
Como enumera Porto (2006), mesmo sendo algo individualizado, muitas
percepções acabam por ser moldadas pelo modo de se situar socialmente do
indivíduo. Elas têm como meta propiciar explicações do universo ao qual o ser se
vincula e fornecer sentido às experiências. Ora, tais experiências e visões formam
grande parte das representações sociais do homem, o que as tornam, na função
prática que apresentam, elementos orientadores de conduta; e, de certo modo,
parece haver uma correspondência entre os fenômenos e suas representações
sociais nesse âmbito.
Mesmo que alguns fatores de ordem pessoal, tais como a morte de Neto, o
amigo de infância do aspirante Matias, tenham exercido influência no
comportamento cada vez mais violento do oficial, fica patente a noção de que, sem a
atuação do BOPE nos aspectos formativo, relacional e, por fim, funcional,
dificilmente Matias deixaria sua violência aflorar de modo cada vez mais intenso,
como se vê, inclusive, em situações que não reclamariam atitudes de violência
física, como a agressão que André promove contra um jovem viciado em uma
passeata pedindo paz, seja quando promove a prisão do traficante de classe média
que atua na universidade. Ela já se vê, nesse momento, como um ser à parte na
sociedade (PORTO, 2004).
Dessa forma, Matias acaba por assimilar, de modo quase inconsciente, a
idéia de que
A violência (força), como uma das formas que move as relações
humanas, não deixa de levar em conta a instabilidade social como
porta de tudo aquilo que, ao invés de suprimir os antagonismos, tenta
ordená-los. A força como elemento de ‘potência’ no jogo do
dinamismo social. E como ‘a lógica do poder’, é a dominação, a
redução ao uno”. (MAFFESOLI apud GUIMARÃES, 1996, p.08).
94
As considerações de Maffesoli servem não apenas para lançar luzes sobre
um comportamento que começa a se firmar em Matias e, de modo relacional, em
outros soldados do BOPE, mas também nos permitem inferir que, somadas às
relações de poder presentes na sociedade e na expressão da polícia como
instrumento essencialmente repressor das bases da pirâmide social de modo a
preservar uma ordem que é benéfica, em grande parte, às elites, criam as condições
ideais para que os aspectos tidos como nocivos ou periculosos possam ser
suprimidos.
Aliás, tendo ainda como parâmetro a trajetória de Neto e, principalmente de
Matias, temos uma visão que mostra, em última instância, uma violência fundadora,
dado que serve como programa inicial de ação, trazendo como conseqüências
imediatas uma reação também violenta e, em médio e longo prazo, o
recrudescimento dos atos de violência. Em uma escala mais ampla, trata-se de uma
postura que inaugura a guerra do Estado contra aqueles que ameaçam o status quo,
o que, para além de previsões, estratégias e iniciativas buscando reduzir a níveis
mínimos a violência, tende, pelo contrário, a fomentar as condições para uma
confrontação perene e, em alguns casos, capaz de ultrapassar o teatro de
operações do BOPE para atingir também outras camadas (GUIMARÃES, 1996).
Se Matias torna-se um cão de guerra ao final da película, ainda que possua
valores anteriores e, quiçá, mais fortes do que os que adquire na corporação, eles
acabam cedendo lugar a uma visão que ultrapassa questões como direitos
humanos, estratos sociais, fatores que descambam para uma visão e, derivado
dessa, um comportamento agressivo cuja base é a idéia de justiça pela violência ou
brutalidade justa, como se verificam nas representações sociais da brutalidade
policial no filme.
Ainda no âmbito das representações de violência no BOPE, é preciso ter em
mente que as altas autoridades (membros do Poder Executivo, Legislativo e
Judiciário) são conscientes de sua própria violência, notadamente na esfera do
Executivo, posto que se relaciona diretamente com os comandos das policias. Ao
instituir, pois, um corpo de ataque altamente treinado para “matar a morte” (o
símbolo da faca cravada na craveira), o Estado age como um ente que propaga um
tipo de “limpeza” moral, material e, principalmente, social, o que nada mais é do que
uma visão da violência como força coercitiva e passível de uma utilização controlada
e eficiente. Abrem-se, pois, as portas para que o BOPE não apenas encampe e faça
95
uso de uma visão de violência, mas sim que materialize e incorpore as
representações sociais de violência por trás da instituição. Simplificando
grosseiramente, a corporação ganha carta branca para matar porque, nos bastidores
do Estado, alguém partilha e comunga com esse ideário da violência.
Como se vê no filme, ocorre uma violência banal, que se quer ou mesmo
está, em alguns casos, totalmente fora do alcance do poder coercitivo do Estado.
Essa violência, que afronta e/ou corrompe a autoridade do Estado, está por tal forma
disseminada que demanda, até mesmo como última linha de ação, uma resposta à
altura, ou seja, no mesmo nível que o dos traficantes. Tem-se, assim, a justificativa
para a existência do BOPE e, mais do que isso, para suas concepções sociais de
violência.
4 REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DE VIOLÊNCIA INTRA E INTERGRUPAL
Este estudo não poderia ser considerado minimamente passível de êxito se,
ao lado das visões de violência intra-BOPE, não procurasse examinar, ainda que
brevemente, as representações sociais de violência do BOPE sobre os outros
grupos, no filme, e desses grupos no aspecto intergrupal e também sobre o Batalhão
de Operações Especiais apresentado na película. Assim sendo e para efeitos
didáticos, optamos por dividir as representações de violência dos elementos
externos do BOPE a partir de três grupos distintos, ainda que relacionados entre si:
4.1 REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DO BOPE SOBRE A POLÍCIA
Acusado de fascista por muitos críticos (vide discussão a esse respeito mais
adiante, neste capítulo), Tropa de Elite é reiteradamente incisivo ao colocar em
evidência a chamada “banda podre” da Polícia Militar do Rio de Janeiro, ao melhor
estilo de documentários que têm na denuncia uma de suas metas (CARNEIRO,
2007).
96
A PM mostrada no filme, do mais alto escalão (Coronel Otávio, Major Oliveira,
Capitão Fábio, entre outros) às patentes menores (sargentos, cabos e soldados), é
por tal forma permeada de vícios, falhas, corrupção e outras mazelas que não se
pode pensar em uma corporação que sofre com a ação e as percepções distorcidas
de alguns indivíduos, mas sim em alguns elementos (os honestos) que sofrem com
a ação e as percepções perversas da corporação.
Como é explicitado logo no início do filme pelo Capitão Nascimento, “se
dependesse apenas da PM convencional, os traficantes já teriam tomado a cidade”,
o que evidencia nitidamente o grau de corrupção nas fileiras da Polícia Militar do Rio
de Janeiro.
Para o soldado do BOPE, a PM convencional é uma espécie de antro de
corrupção, omissão e incapacidade. Isso logo se evidencia nas mais diversas
circunstâncias: o envolvimento dos policiais em crimes de corrupção passiva,
exploração do lenocínio, jogo do bicho, cobrança de proteção, furtos, roubos,
assassinatos, além de uma infração exclusiva dos grandes centros: a remoção de
cadáveres de uma jurisdição para outra.
Voltada para seus próprios interesses, a Polícia Militar convencional
apresentada na película é dotada de uma voracidade venal tão grande que apenas
os desejos e necessidades de seus componentes são levados em consideração, ou
seja, “o sistema trabalha pra resolver os problemas do sistema”, como afirma
Nascimento.
Assim sendo, para os homens do BOPE, a Polícia Militar convencional
apresentada no filme é uma soma de interesses particulares, ineficiência, corrupção
em todos os níveis e, inclusive, um grupo tão detestável quanto os próprios
traficantes de drogas.
Não por acaso, Nascimento manda matar dois PMs que vendiam armas aos
traficantes e também não por acaso, recusa a ajuda da PM convencional para subir
o morro e salvar Neto e Matias, pois não considera os policiais convencionais
confiáveis ou mesmo à altura do BOPE.
97
4.2 REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DO BOPE SOBRE OS UNIVERSITÁRIOS
Um dos pontos altos de Tropa de Elite está em relacionar de forma direta
certos hábitos de jovens universitários de classe média alta e a violência,
posicionando em primeiro plano a participação de grupos de rapazes e moças bem-
nascidos na sustentação do tráfico e, mais do que isso, nas sangrentas atividades
por trás do tráfico (CARNEIRO, 2007).
Em linhas gerais, esse parece ter sido um dos aspectos que mais despertou
celeuma quando da exibição do filme. É compreensível na medida em que se
constata que a corrupção policial, a violência dos órgãos de repressão e de sua
contraparte, o tráfico de drogas, já são temas bastante conhecidos. A inserção dos
filhos da classe média alta em meio a essa complexa equação, contudo, ainda não
fôra feita de modo tão evidente e sem meias-palavras.
A princípio parece exagero dizer que os jovens usuários de drogas mostrados
no filme sejam responsáveis por aspectos tão nefandos quanto a violência, a tortura
e a morte. Basta se examinar a questão de uma forma um pouco mais aprofundada
para se verificar que existe, sim, uma estreita relação entre consumidores de tóxicos
de alto poder aquisitivo e os aspectos mais estarrecedores do tráfico. Como se vê no
filme, jovens pobres também usam drogas, mas, diferentemente de seus “colegas”
universitários, geralmente pagam o caro vício com serviços de transporte e
distribuição de narcóticos ou com objetos furtados. Também pagam com dinheiro,
obviamente, mas não de forma tão regular quanto os jovens cujas famílias possuem
mais posses (CARNEIRO, 2007).
Isso não significa que jovens de classe média alta também não furtem,
roubem, distribuem drogas ou até se prostituem para manter o vício. Na visão
exposta no filme, contudo, o tráfico só pode ser mantido por quem paga em dinheiro,
isto é, pelos jovens de classe média alta. Daí decorre um dos elementos que
permitem o “tapa na cara da sociedade” mencionado por Carneiro (2007).
A partir dessa relação forma-se o perverso e brutal processo que envolve os
traficantes, a polícia e muita violência. Para se armar com material bélico
impactante, os traficantes precisam de dinheiro em espécie e em grande quantidade,
pois a polícia, por razões mais do que óbvias, não recebe em drogas ou quaisquer
outras “moedas”. Para fazer frente a um arsenal que mais se assemelha ao de um
98
exército regular em campanha, a polícia é obrigada a se armar de modo equivalente.
Dessa equação perversa decorre parte significativa da violência a que nos referimos
reiteradamente neste capítulo.
É claro que não se pode culpar única e exclusivamente os usuários de classe
média e universitários por uma situação que encampa diversas variáveis e cuja
solução parece estar tão distante quanto inacessível aos moldes de atuação das
forças policiais atuais. O que não se pode negar, no entanto, é a arguta visão de
Padilha em Tropa de Elite, ao arrolar junto aos demais fatores, a participação ativa
dos jovens de famílias bem-sucedidas na alimentação do tráfico.
4.3 REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DO BOPE SOBRE OS TRAFICANTES
De um ponto de vista estritamente representativo social, os traficantes, na
ótica coletiva do BOPE, são o inimigo perene, que, como uma espécie de Fênix (o
mitológico pássaro que tinha o poder de ressurgir das próprias cinzas), consegue
sempre retornar, mesmo depois de matanças seguidas.
Seria ingênuo supor que, em seus confrontos diários, os policiais de elite do
Rio de Janeiro e os traficantes não mantenham, uns contra os outros, sentimentos
virulentos de ódio e destruição.
Pouco importa se os homens do BOPE são treinados para, como diz o
Capitão Nascimento, “Matar com dignidade”: os soldados alimentam uma visão
compartilhada entre os mesmos de que o elemento oposto é impiedoso, brutal,
sanguinário e que, em razão da própria estrutura do tráfico e do terreno em que os
traficantes dominam, tenha que ser combatido de modo letal.
De uma perspectiva representativa social, o traficante é, independente do
prisma sob o qual seja vislumbrado, o inimigo, a personificação do mal que deve ser
combatido com ações que visam, via de regra, suprimir o indivíduo que vive da
venda de drogas.
O que mais diferencia as representações sociais do BOPE sobre os
traficantes em relação a outros grupos é que, nesse caso, são elementos ancorados
e objetivados de modo linear, direto, sem qualquer subterfúgio: o traficante é, para
todos os efeitos, o inimigo a ser batido.
99
Cria-se, por conta disso, uma forma de representação social que poderia ser
definida de objetiva-direta, diferentemente do que ocorre com outros grupos que se
relacionam de algum modo com o BOPE. Em outras palavras, nem todo universitário
é maconheiro, nem todo PM é corrupto. Com os traficantes, porém, não existem
exceções: trata-se de um grupo representado socialmente como o mal a ser
debelado com uma violência superior á empregada pelos próprios traficantes.
5 AS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DE VIOLÊNCIA DA PM
Discorrer sobre as representações sociais de violência da PM convencional
sobre si e sobre outros grupos mostrados no filme torna imprescindível, em certa
medida, adentrar ao complexo mérito da criminalidade dentro da polícia, com todas
as suas variáveis e elementos de influência. Como o exame exaustivo dessa
questão seria impraticável em algumas páginas, optamos por elencar alguns
ângulos da visão coletiva de violência imperante na PM convencional como
alegorias de um todo bem maior e consideravelmente mais complexo.
5.1 “AMIGOS DOS AMIGOS” COMO A PM REPRESENTA SOCIALMENTE A PM
Uma das mais bem acabadas (no sentido morfológico-conceitual, não em
suas implicações) representações sociais de violência da PM mostrada no filme é o
pagamento de proteção por particulares. Para a maioria dos integrantes da Polícia
Militar, cobrar para fazer algo que nada mais é do que sua obrigação legal é algo tão
normal e aceitável que existem até preços prévios para os serviços de segurança.
Assim, para os comandantes e comandados da PM, pouco importa se uma pessoa
será assaltada, estuprada ou até assassinada na área de atuação do batalhão: o
que importa, mesmo, é estacionar uma viatura nas proximidades dos
estabelecimentos que pagam proteção.
Conquanto em um primeiro instante isso possa parecer algo menor, até
mesmo em função de outros crimes encontrados na PM apresentada no filme, é
100
estarrecedor pensar que um policial, devidamente treinado e pago pelo Estado para
proteger os cidadãos, ache natural ficar parado e inerte próximo a quem lhe paga
propina enquanto próximo dali pessoas possam estar sendo vitimadas pelas muitas
formas de violência dos grandes centros.
Ainda que possamos incorrer no risco de apresentarmos um posicionamento
demasiadamente passional diante dessa questão, ser “amigo dos amigos do
batalhão” como forma de representação social da violência implica, diretamente, em
uma visão na qual os “amigos” devem ser protegidos e viver, ao passo que os
demais ficam à mercê da própria sorte. Nada mais contrário à postura e às crenças
de um policial honesto e cumpridor de suas obrigações do que proteger ou até
mesmo dar atenção apenas a quem lhe paga e ainda acreditar que isso seja algo
legítimo e aceitável.
Os próprios policiais são vítimas da corrupção disseminada no batalhão, pois
são obrigados a participar do suporte dado aos crimes cometidos pela polícia ou
mesmo serem vítimas dessa própria polícia, como é o caso do soldado Paulo que,
ao pedir suas férias após quatro anos sem esse benefício, é “cobrado” pelo
sargento. Como se recusa a pagar e ainda tenta reclamar do sargento aos seus
superiores, o soldado acaba por ir parar na cozinha, ao invés de voltar para a oficina
onde sempre trabalhara.
Esse caso não é isolado, antes, pelo contrário, revela a face mais comum e
freqüente da Polícia Militar convencional. As representações sociais de violência dos
membros da corporação sobre si próprios são tão “contaminadas” pelo espírito da
venalidade, da corrupção e da indiferença ao verdadeiro papel que deveria caber ao
policial que dificultam e/ou impedem mudanças, já que aqueles que apresentam
representações sociais diversas são logo suprimidos, seja pelo silenciamento
obrigatório, seja pelo estado de isolamento em que cedo se encontram. Como
explica Porto (2004, p.133) a violência vai sendo percebida, em grupos como a PM,
[...] como um modo concreto de regulamentação da vida social e de resolução de
conflitos [...]. Isso acaba por constituir uma “[...] representação de ordem social.”
Assim estar na PM, na plena acepção do termo, é partilhar das representações
sociais de violência mais densas e presentes, sob pena de ser suprimido
rapidamente.
Da mesma forma, um dos episódios do filme Tropa de Elite que melhor
definem as concepções coletivas de violência na Policia Militar, especialmente entre
101
os policiais corruptos, é a facilidade com que se dispõem a eliminar qualquer fonte
de problemas e/ou entraves aos negócios sujos dos quais se beneficiam.
Esse “barateamento” da vida humana, mesmo a dos pares policiais-bandidos,
se cristaliza na cena em que o comandante do batalhão, após ter seu “arrego”
(quantia paga pelos banqueiros de jogo do bicho para não serem incomodados pela
polícia) surrupiado pelo aspirante Neto, decide mandar matar o superior imediato do
aspirante, Capitão Fábio, por julgá-lo o responsável pela ação. A ordem é recebida
com naturalidade pelo Major Oliveira e dois sub-oficiais que, juntos, encaminham o
oficial para ser morto por traficantes, numa manobra de ocultação de
responsabilidade, isto é, para todos os efeitos Fábio terá sido morto numa troca de
tiros com traficantes.
As representações sociais de violência, neste caso, são de uma ignomínia
indiscutível, pois o coronel usa a polícia para proteger seus interesses espúrios de
outros policiais também espúrios. Basicamente, pensa-se, de modo geral, na polícia
como meio de assegurar a permanência de uma situação criminosa, mesmo diante
de uma ameaça intestina marginais fardados que matam outros marginais também
fardados para garantir as benesses do crime.
O curioso é que nem mesmo as relações pessoais e, eventualmente, de
amizade parecem suplantar as representações de violência, notadamente quando se
trata de defender as sujas vantagens pecuniárias advindas do crime. A tão
propalada camaradagem de caserna, pelo menos nas relações focalizadas em
Tropa de Elite, parecem inexistir ou, caso ocorram, não têm poder suficiente para
evitar que a violência se perpetre contra os próprios policiais. Aliás, uma passagem
que seria cômica não fosse o absurdo que traz em seu bojo, é a que registra a
“justa” indignação de um oficial (Cap. Fábio) com a ganância do Coronel Otávio e
seus apaniguados, que tiram do capitão (“Eu tenho família, pô!”) até mesmo o
rendimento de alguns “bicos”, como a “inofensiva” exploração do lenocínio.
A avidez atua, assim, como uma extensão das representações de violência
dos policiais desonestos, uma vez que não há qualquer preocupação quanto a
causar mal ou danos a outrem quando se trata da defesa dos interesses pessoais
escusos.
102
5.2 REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DA PM SOBRE OS TRAFICANTES
O título deste subtópico, embora um tanto complexo, é uma das formas de
expressão mais eloqüentes da PM convencional e das representações sociais que a
permeiam, pois, a priori, são lados opostos, isto é, colocam-se em campos
diametralmente contrários policiais e bandidos. Na prática, contudo, os fatos não
são exatamente assim.
Não por acaso, em uma das cenas da parte inicial do filme, os PMs são
chamados de “filhos da puta” pelo capitão Nascimento, que os situa, inclusive, em
um patamar ainda mais criminoso do que aquele no qual estão os traficantes. Essa
visão raivosa de Nascimento é compreensível se levarmos em consideração que,
caso fosse possível indicar, isoladamente, um fator preponderante na caudalosa
violência urbana do Rio de Janeiro, a venda de armas para os bandidos seria
certamente o elemento central.
De fato, sem armas ou, pelo menos, com um número reduzido de material
bélico pesado (fuzis, metralhadoras, granadas, etc.), os traficantes que controlam o
tráfico de drogas e também outras atividades criminosas como assaltos a carros-
fortes não teriam tanto poder de fogo e capacidade operacional. Assim, uma
eventual ação que buscasse atingir a logística do crime teria que impedir, tanto
quanto possível, que as armas chegassem às mãos dos bandidos. Mas como fazer
isso se a própria PM vende armas aos traficantes, como se vê no filme?
O absurdo de uma atitude como essa só encontra explicação, mais uma vez,
em representações sociais de violência nas quais prevalece a lógica do egoísta, qual
seja o dinheiro é o único aspecto que realmente importa, mesmo que o mal advindo
da venda de armas possa atingir os próprios policiais. É algo simplesmente
aterrorizante imaginar que o senso moral coletivo está por tal forma embotado nos
policiais que vendem armas aos traficantes que estes não se dêem ao trabalho de
pensar nas implicações daí advindas.
O policial não apenas sabe para que as armas servirão, mas também pouco
se importa com isso, ao contrário, existem grupos especializados na corporação que
armam campanas para determinadas facções criminosas com o único intuito de
tomar suas armas. Ato contínuo e muitas vezes sem passar pelos depósitos de
armas da PM, o material é vendido a outros bandidos. Para esse tipo de policial, a
103
violência, por brutal que seja, decorrente de sua ação direta, é apenas um detalhe,
que não chega a tirar seu sono; ao invés disso, existe uma forte competição entre
policiais para apreender e logo em seguida vender armas.
Outra fonte perene de armamento para os marginais é o desvio sistemático
de material bélico apreendido e guardado nos depósitos de armas da PM. Muitas
armas dão “baixa” de maneira clandestina e, enquanto se imagina, na Secretaria de
Segurança Pública, que as mesmas estejam devidamente guardadas pela polícia,
estas já estão nas mãos dos traficantes.
Do ponto de vista das representações sociais de violência da PM
convencional em relação aos traficantes, temos uma ancoragem bastante curiosa,
qual seja: vender armas ao “inimigo” nada tem de danoso, mesmo que,
paradoxalmente, esses mesmo traficantes possam usar as armas contra os policiais
corruptos. Em uma das cenas do filme, quando o aspirante Neto mata um traficante
pelas costas, a longa distância, rompe um furioso tiroteio entre a PM e os traficantes.
Para usarmos uma expressão coloquial “o feitiço vira-se contra o próprio feiticeiro”,
pois homens da Polícia Militar são mortos por armas que eles próprios
provavelmente venderam aos bandidos.
5.3 REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DE VIOLÊNCIA DA PM SOBRE O BOPE
Um elemento que não fica muito claro no filme, pelo menos não de modo
direto, são as representações sociais de violência da PM convencional sobre o
BOPE. Não há, por assim dizer, uma fala coletiva explícita sobre os homens do
BOPE, apenas indícios.
Um dos indícios mais óbvios é o ódio generalizado que os PMs corruptos
voltam aos homens do Batalhão de Operações Especiais. De fato, é a tropa de elite
que, mais do que outras corporações, irá “estragar” os negócios dos policiais
escusos. Também será o BOPE que i matar, sem pensar duas vezes, os bandidos
fardados que ajudam o crime organizado.
Por outro lado, para a PM, de modo geral, os homens do BOPE são meros
“otários”, que arriscam suas vidas diariamente para combater numa guerra na qual a
PM ou já se rendeu ou se aliou ao inimigo.
104
Sob essa perspectiva, lutar contra os traficantes afigura-se à PM convencional
como uma atitude infrutífera, tola e destinada apenas a promover mudanças nos
donos das bocas de pó e seus asseclas.
De uma forma mais restrita, contudo, pode-se dizer que ao PM corrupto
interessa até certo ponto a guerra diária que o BOPE promove contra o tráfico, pois
isso fornece razões fortes para uma maior demanda por armas e a conseqüente
elevação de preços. Outrossim, ao armar tão bem os traficantes, alguns policiais já o
fazem na torcida para que os desafetos do BOPE sejam feridos ou mortos.
Em sendo assim, podemos dizer que, mesmo não explicitadas no filme, a
visão dos policiais militares sobre o BOPE é oposta à que tem dos traficantes, pois
se estes significam lucros, aqueles significam problemas, interferências e com certa
freqüência, prisão e morte. Logo, as representações sociais de violência mais
evidentes da PM em relação ao BOPE é de inimigos que devem, tanto quanto
possível, serem combatidos, mesmo que isso implique em alianças temporárias com
os traficantes de drogas.
6 REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DE VIOLÊNCIA DOS TRAFICANTES
6.1 AS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DE VIOLÊNCIA DOS TRAFICANTES
SOBRE SI MESMOS
É uma tarefa complicada tentar trazer à tona o modo como os traficantes
representam socialmente a violência em si próprios, seja pelo fato de a maioria ter
tido, desde a infância, contato próximo com o tráfico, seja ainda pela impassibilidade
que demonstram diante de atos de uma brutalidade ímpar.
Isso significa dizer que, do ponto de vista representativo social, a violência e
seus muitos derivativos, parece tão interiorizada nos traficantes que estes não
distinguem, pelo menos aparentemente, a natureza de suas ações. Como essa
última parte da frase pode dar margem a interpretações dúbias, é conveniente
tentarmos explicá-la melhor. Entenda-se: torturar, violentar, matar e outros eventos
análogos são apenas parte da condição do traficante, já que não há, no filme,
105
qualquer questionamento dos bandidos quanto às suas ações. Na cena em que o
universitário é queimado vivo no “microondas”, os traficantes riem
despudoradamente, como se uma barbárie dantesca fosse algo passível de
provocar hilaridade. As representações sociais de violência entremeiam por tal modo
o viver e o agir dos traficantes que, ao que tudo indica, não há crise de consciência
ou culpa: trata-se apenas da execução de um trabalho.
Como explica Machado (2006, p.03)
Em um primeiro olhar menos atento, podemos perceber alusões aos
promotores da violência, como vítimas de um modelo de sociedade
onde a matriz socioeconômica não dá oportunidade para todos”. Isso
implicaria, por decorrência, em uma visão do traficante de si mesmo
como alguém que promove uma espécie de “luta justa” contra a
sociedade que se lhe opõe.
Do ponto de vista da TRS, fica claro que, ao conviver desde tenra idade com
a violência, os traficantes ancoram e objetivam a brutalidade como algo natural, sem
culpa. Aliás, torturar, aterrorizar e matar são vistos como modos de afirmação, de
“macheza” e hombridade destemida. Isso é, indubitavelmente, a materialização da
violência de todos os dias e faz emergir a seguinte indagação: existem condições
minimamente efetivas para que esses jovens criminosos não se rendam à violência?
6.2 AS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DE VIOLÊNCIA DOS TRAFICANTES
SOBRE O BOPE
Discorrer sobre as representações sociais de violência dos grupos de
narcotraficantes presentes em Tropa de Elite sobre o BOPE só é pertinente na
medida em que se busca especificar alguns dos aspectos subjacentes a tais
representações, uma vez que, em seu corpus geral, elas podem ser intuídas por
qualquer pessoa que acompanhe as sangrentas disputas entre quadrilhas rivais, os
confrontos com as forças policiais, as queimas de arquivo (execução de pessoas
que sabem de fatos comprometedores para seus matadores), entre outras variantes
que guardam como denominador comum a barbárie e a ferocidade. Em outras
palavras, somente pelo fato de muitos adentrarem ao mundo do narcotráfico e nele
permanecerem, nas condições em esse submundo se mostra no Rio de Janeiro,
106
se configura, per si, como uma forma de representação social de violência que foge
a qualquer modo de contenção, pelo menos nos moldes da legalidade e da ordem
social.
Em sendo assim, acreditamos ser despropositado discutir se as
representações de violência dos traficantes sobre o BOPE são repassadas de traços
que beiram a bestialidade, quando não a barbárie e a truculência extremas. O que
acreditamos dever trazer à baila é a morfologia dessas representações em Tropa de
Elite, ou seja, as representações segundo o olhar da câmera.
Para o traficante dos morros cariocas, o soldado do BOPE é uma ameaça
sempre presente e, ainda pior, a mais letal dentre aquelas que se voltam contra o
tráfico de drogas.
Representado socialmente pelos traficantes como o inimigo visceral, o
Batalhão de Operações Sociais, ao mesmo tempo em que é temido pelos
traficantes, se constitui em alvo de todas as ações de defesa e ataque promovidas
pelos meliantes.
Em outras palavras, desde o mais poderoso traficante até o mais ínfimo
membro dessa modalidade criminosa teme e odeia a tropa de elite e se prepara para
combatê-la sempre tendo em mente que, se não matar ou, pelo menos, afugentar o
soldado do BOPE, certamente serão mortos nos confrontos com a polícia.
Não há, pois, como falar sobre as representações sociais dos traficantes dos
morros cariocas, sem que elas estejam associadas a um ódio profundo e a um temor
igualmente arraigado, uma vez que o BOPE é a face mais recorrente e visível da
morte para os narcotraficantes. A ancoragem e a objetivação, nesse caso,
especificamente, são reforçadas a cada novo confronto, criando núcleos centrais tão
fixos e rígidos que, a menos que a tropa de elite pare de matar traficantes, não
poderão ser alterados mesmo em termos mínimos.
6.3 REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DE VIOLÊNCIA DOS TRAFICANTES SOBRE A
PM
Se existe um inegável ódio dos traficantes em relação aos soldados do
BOPE, representados socialmente como a face mais visível da repressão policial,
107
com a Polícia Militar do Rio de Janeiro mostrada no filme as relações parecem ser
ambíguas e ditadas pelas circunstâncias.
Em outras palavras, se em um dado momento a PM atua como “amiga” dos
traficantes, vendendo armas ou “aliviando” uma apreensão de drogas e/ou armas,
em outro momento essa mesma polícia encarna o inimigo, com todas as nuances e
vicissitudes que isso implica.
Assim sendo, não se pode falar de representações sociais estanques de
violência dos traficantes em relação à PM, pois isso, ao que tudo indica, só ocorre
em relação ao BOPE. O policial militar será representado socialmente de diferentes
modos, nas diferentes situações que venham a ter lugar: tanto pode ser um aliado,
como um inimigo.
Essa relação mutável entre PM e traficantes demonstra que, nas
representações sociais, é possível haver a alteração dos núcleos centrais de
maneira célere, ainda que dentro de um arcabouço mais amplo.
Em outras palavras, o PM representado socialmente como amigo, pode, logo
em seguida, ser representado socialmente como inimigo, o que configura uma
aparente contradição.
Na verdade, as representações sociais dos criminosos sobre os policiais
militares não são unidirecionais, pelo contrário, encampam (e o traficante é
consciente disso) tanto a possibilidade de “ter um acerto” como um conflito. Com
isso, podemos verificar que representações sociais são erigidas a partir de
elementos simples e concordantes, mas também sobre aspectos complexos e,
aparentemente, contraditórios, sem que altere suas características essenciais.
6.4 AS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DE VIOLÊNCIA DOS TRAFICANTES
SOBRE OS UNIVERSITÁRIOS
A forma como os universitários são representados socialmente pelos
traficantes do morro é bastante ambígua, ainda que essa ambigüidade só se revele
em momentos extremos, como, por exemplo, quando Baiano se vinga nos membros
da ONG que atua na favela por ter baleado mortalmente um oficial do BOPE.
108
Nas partes iniciais do filme podemos verificar a atuação da ONG na qual
trabalha a universitária Maria e alguns de seus colegas do Curso de Direito da
universidade é tolerada amistosamente pelos traficantes. Ao que tudo indica, a ONG
recebe o aval e mesmo o apoio do traficante Baiano, dono do morro. A convivência
entre a comunidade e os traficantes parece relativamente harmônica, tanto quanto
destes com os universitários.
Esse clima de cordialidade, contudo, não impede que a violência permaneça
em um estado latente, pulsante, pronta a explodir nas mais diversas direções e de
modo quase sempre letal ou extremamente danoso. Um exemplo de rara eloqüência
é a execução do menino responsável por avisar aos traficantes sobre a chegada da
polícia ao morro. Capturado pelo BOPE, o garoto, que não deve ter mais do que 12
ou 13 anos, é obrigado, sob a ameaça de uma arma apontada para seu rosto e
sofrendo grande pressão psicológica, a indicar o “vapor” (indivíduo que transporta e
entrega a droga), durante uma batida policial. Solto pelos soldados após a delação,
a criança foge, desesperada, pelas ruelas do morro, mas não consegue escapar de
um fim trágico, morta pelos traficantes pouco tempo depois (esse dado fica implícito
no filme, mas a visita da mãe do fogueteiro à sede do BOPE esclarece a morte do
menino).
As representações de violência dos narcotraficantes, contudo, encampam
como aceitáveis quaisquer possibilidades de ação violenta, desde que elas
signifiquem uma forma de manter o status quo ou ainda de ampliar o poder do dono
do morro e de seus asseclas. Isso equivale a dizer que, do ponto de vista dos
traficantes apresentados no filme, os membros da ONG só têm utilidade enquanto
mostram para a comunidade que Baiano tem “consciência social” e, enquanto duram
as relações amistosas, são bem recebidos e tratados.
Quando matam o oficial Neto, do BOPE, sem saber que pertencia ao
batalhão, os narcotraficantes não hesitam, porém, em assassinar friamente a jovem
Fernanda e queimar vivo no microondas (uma pilha de pneus colocada em volta do
corpo da vítima que é encharcada de gasolina e depois incendiada) seu namorado,
enquanto riem debochadamente da agonia do rapaz. Tais execuções decorrem
diretamente da percepção de “justiça” de Baiano e de seus comparsas: já que foi
Maria quem trouxe, sem ter conhecimento do fato, um policial para dentro da favela,
nada mais “natural” do que os membros da ONG serem assassinados, pois seu
“papo não foi reto”.
109
Ainda que não seja intenção do presente estudo emitir juízos de valores
estéticos sobre o filme de José Padilha, o cineasta, acusado por muitos de
apresentar uma visão política e ideológica de extrema direita, tem o mérito de não
vitimizar os traficantes, antes, pelo contrário, busca mostrá-los numa dimensão que,
se não é imparcial, também não peca pelo extremismo. Baiano, por exemplo, é
apresentado sob uma perspectiva bastante crível, qual seja a de que deve ter sido
um menino pobre sem maiores opções na vida que não virar traficante. Não se nega
as pequenas tragédias por trás de um bandido, mas também não se exime o mesmo
de sua responsabilidade em face da violência cometida. O filme de Padilha é, para
dizer o mínimo, coerente com um posicionamento que procura (pelo menos tenta)
dar a cada um seu quinhão de direitos e deveres (CARNEIRO, 2007).
O filme mostra que o mesmo garoto que conversa descontraída e
amenamente com a jovem Maria, a impede de sequer ver seus amigos da ONG que,
pouco depois, são sumariamente executados. Pai e marido preocupado com o bem-
estar de sua família, Baiano é, também, um homem que mata ou manda matar com
a mesma naturalidade com que brinca com um de seus “vapores” (estudante
universitário) viciado em cocaína. Fica nítido, assim, que as representações de
violência dos membros do tráfico sobre os universitários são perpassadas de visões
nas quais infringir dor, sofrimento e morte aos outros é apenas uma parte do ofício,
mesmo que isso permaneça oculto sob um frágil “capa” de camaradagem.
7 REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DE VIOLÊNCIA DOS UNIVERSITÁRIOS
7.1 REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DE VIOLÊNCIA DOS UNIVERSITÁRIOS
SOBRE SI MESMOS
Grupo mais distinto em relação aos demais, o dos universitários não parece
ter uma idéia clara sobre a violência a que dão lugar com suas atitudes ou ainda
sobre a violência em geral.
110
Isso se explica pelo fato dos jovens não avaliarem o que existe por trás do
cigarro de maconha que fumam sem qualquer culpa aparente e também por se
acharem distantes da violência urbana de um modo geral.
Isso não significa que os universitários não manifestem representações
sociais de violência, mas são visões que se diluem na aparente segurança que sua
condição de elementos da classe média lhes proporciona. Apesar de serem usuários
de drogas, os universitários não parecem ver os traficantes como indivíduos
violentos, o que não se verifica com relação á polícia, tachada de brutal e covarde
pelos jovens. A violência, em seus contornos gerais, é representada socialmente
pelos universitários de um modo coadunado com sua posição social, econômica e
até educacional, ou seja,
[...] é pensada como um fenômeno que acontece fora de casa, está
situada na rua, não pertence ao grupo no qual os jovens estão
incluídos. Dessa forma [...] assumem determinadas estratégias para
lidar com a violência que estão relacionadas com a representação de
“casa” como um lugar seguro, assim como com a idéia de que o
sujeito se encontra mais seguro em um grupo, seja este um grupo de
amigos ou a própria família (SANTOS, 2007, p. 04).
Assim sendo, podemos afirmar que as representações sociais dos
universitários sobre a violência em relação a si próprios decorre mais de uma revolta
aparente contra a polícia e suas ações (mesmo quando essas ações são legítimas,
como na apreensão de drogas com os estudantes em uma viagem), do que de uma
perspectiva clara, tangível. De certa forma, pode-se dizer que os jovens retratados
no filme possuem uma inconsciência coletiva do que é ou pode ser a violência em
seu meio. Pelo menos até que a violência atinja membros do seu grupo de maneira
brutal.
7.2 REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DE VIOLÊNCIA DOS UNIVERSITÁRIOS
SOBRE A POLÍCIA
No filme Tropa de Elite se verificam algumas cenas que geraram uma
polêmica considerável, dentre as quais se pode destacar a visão que é manifestada
pelos jovens universitários sobre a polícia e sua atuação.
111
De fato, as representações de violência atinentes aos jovens usuários de
drogas de classe média alta no filme, demanda a necessidade de tecermos algumas
ilações, pois ao contrário dos outros grupos focalizados na película, neste as visões
e percepções diluem-se em determinados posicionamentos nem sempre muito
claros.
Elemento significativo nesse percurso de análise, a visão manifesta pelos
universitários quanto à atuação da polícia é bastante esclarecedora. Conforme se vê
no debate promovido na faculdade a propósito da obra de Foucault, “Vigiar e punir”,
os jovens creditam às forças policiais epítetos como covardes, agressoras
contumazes e criminalizadoras da pobreza (atiram primeiro e perguntam depois). Em
uma cena, Maria e Fernanda, usuárias “sociais” de maconha, reclamam da
agressividade da polícia ao parar, em uma batida, o carro no qual estavam as
estudantes.
De modo geral, as percepções sobre violência do grupo recaem, de forma
exclusiva, sobre a polícia, não sobre os traficantes. O policial representa a face mais
violenta da sociedade, seja por atuar de forma brutal junto aos pobres, seja porque
se colocam em posição repressora em relação ao grupo universitário que faz uso
regular de drogas.
Evidentemente, os personagens do filme que compõem o grupo da faculdade
de Direito somente podem ver aquilo que seus olhos enxergam, ou seja, que a
polícia é violenta e que as ações policiais atingem até mesmo pessoas “inocentes”,
como ocorre com membros do próprio grupo.
Tais representações sociais de violência decorrem, pois, da estreiteza do
ambiente no qual os universitários se inserem, o que os impede de representar
socialmente a violência em uma base ampla, mas tão somente de uma perspectiva
na qual não entram questionamentos mais profundos.
Essas considerações poderiam ser tidas como óbvias, mas cumpre lembrar
que se tratam de jovens que cursam uma das melhores faculdades de Direito do
país, o que, em tese, deveria ser o veículo para a ampliação da visão social da
violência dos estudantes, o que só acontece quando membros da comunidade
estudantil são brutalmente assassinados.
112
7.3 REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DE VIOLÊNCIA DOS UNIVERSITÁRIOS
SOBRE OS TRAFICANTES
Se para os universitários a polícia significa repressão, violência física e
psicológica, atos covardes e brutais, os traficantes se constituem o reverso da
moeda, isto é, trata-se de um grupo amigável, do qual os jovens aparentemente
nada tem a temer.
Tal atitude francamente parcial e mesmo suspeitosa, ainda que não inverídica
no tocante às ações da polícia como já frisamos, se explica somente quando
notamos as relações próximas e/ou indiretas entre esses jovens e os traficantes.
Para os membros da ONG, os componentes do “movimento” são amigáveis,
camaradas e até hospitaleiros. Para os usuários de drogas, o traficante é o indivíduo
que disponibiliza, a preços módicos (na visão de um membro da classe média alta,
obviamente), uma fonte de prazer, seja esta na forma de um “bequizinho” (cigarro de
maconha) ou de uma “trilha” (carreira de cocaína batida própria para ser sugada
através do nariz). Por que, então, considerar o traficante um ser abjeto, violento e
imoral?
Da mesma forma, não parece visível aos universitários que seu “pequeno”
vício é um fator considerável na alimentação do tráfico e, por extensão, das
atrocidades cometidas pelos marginais e, ainda, da sangrenta repressão policial.
Para os jovens do filme, violência é a marca da polícia, do Estado que reprime
pobres e indefesos favelados, nunca algo que é fomentado e mantido, também, pelo
uso de tóxicos.
É óbvio que se tratam de representações sociais de violência perpassadas de
hipocrisia e auto-indulgência, mas o aspecto mais relevante não é este e sim o
quanto pode ser promíscua a relação entre grupos sócio-econômicos tão distintos
entre si e, ao mesmo tempo, tão irmanados na perpetuação de um processo
extremamente nocivo e violento.
Isso se explica de modo bastante preciso com a idéia de ancoragem e
objetivação. Tome-se como ponto de partida um jovem que queira experimentar
drogas ou dar continuidade ao seu uso. Para ele, não há nada de mau em seu
comportamento e caso haja, certamente será um mau auto-dirigido.
113
Dentro dessa concepção, que é compartilhada pelos membros do grupo
imediato que também faz uso de drogas, fumar maconha ou cheirar cocaína são
apenas “pequenos” vícios sociais supridos por um cara “boa praça”: o traficante.
Tem-se, desse modo, um senso comum sobre o traficante como o cara que
promove a ligação entre um desejo e sua realização. Logo, por que tê-lo em má
conta?
Totalmente contrários à ação policial, os jovens universitários se crêem
simples expectadores de uma guerra contínua na qual não tem nenhuma
participação, pois apenas consomem alguma droga esporadicamente.
Não parece estar presente em suas percepções sociais de membros das
classes mais favorecidas que o dinheiro pago por um “baseado” ou uma “parada” é a
mola-mestra de um sistema que se sustenta do medo e da violência, que a
aquisição de narcóticos para consumo próprio e dos amigos é uma forma direta de
fomento à brutalidade, à violência e à morte.
Uma tal inconsciência, quando trazida à tona e vindo de quem vem, não
poderia deixar de captar e canalizar críticas acerbas para o filme de José Padilha,
mas, por mais raivosas que sejam essas críticas, a essência do fato não se altera:
ao comprar drogas, os universitários financiam a violência, por mais que isso esteja
longe de suas representações sobre violência dos traficantes.
8 MARCADORES DAS REPRESENTAÇÕES DE VIOLÊNCIA
Dentre as disciplinas próximas da Teoria das Representações Sociais, a
Teoria dos Núcleos Centrais é, ao lado da própria Sociologia, uma das que maiores
afinidades apresenta, podendo, inclusive, servir de contributo teórico ao exame das
representações sociais de violência em Tropa de Elite, mediante a escolha e análise
de elementos nucleares capazes de cristalizar, em sua simbologia, recortes de um
momento-lugar representacional. Com isso, objetivamos trazer à tona alguns
aspectos que, mesmo passíveis de interpretação diversa, atuam como marcos
sinalizadores do senso comum imperante no grupo.
114
8.1 O LUGAR DO SÍMBOLO NOS GRUPOS SOCIAIS O BOPE
A presença do simbólico, isto é, daquilo que é convencionalmente criado,
aceito e respeitado (núcleos centrais de representações sociais) nos mais diversos
grupos sociais e a capacidade do símbolo de reunir em si a visão e a representação,
bem como a metáfora coletiva de um momento-lugar não pode ser negada em
qualquer sociedade que se tome para análise.
De fato, há um espaço dotado de sentido que media a relação do homem com
seu contexto imediato, assim como com seus pares, o que empresta significação
coletiva aos sentidos atribuídos em situações experienciais.
Se posicionarmos essa abordagem sob uma perspectiva mais simples e,
quiçá, prática, não teremos dificuldade para verificar que a atribuição de
significações a determinados símbolos é uma atividade perpassada de um dado
experiencial concreto que não pertence exclusivamente à esfera individual, antes,
mescla-se por tal modo com o social que é condição sine qua non para uma
simbologia existir a sua compreensão societária.
Do mesmo modo, o indivíduo, em sua complexa mescla de ser social e uno,
somente se apodera da visão simbólica em uma base cognoscente ou, por outro
viés, o lugar do símbolo (entendido aqui, frisamos, como núcleo central de
representações sociais específicas) é na movediça faixa de compreensão que
encampa o eu e o outro. Para Fávero (2005, p.19)
é justamente por meio da compreensão da atividade mediada, que
supõe, portanto, um sujeito ativo, que recuperamos o sujeito
cognoscente, [...] isto é, o sujeito que constrói (...). Admitir que a
atividade humana é mediada não é, no entanto, algo trivial, uma vez
que [...] a mediação pressupõe que nunca estamos livres das
dificuldades impostas pelos instrumentos culturais ou como
preferimos, impostas pelos seus significados implícitos ou explícitos.
No nosso entender é a mudança nesses significados, que altera [...]
a organização dos instrumentos culturais, o que altera, por sua vez, o
próprio sentido da dificuldade.
De modo mais específico, o símbolo é apre(e)ndido em uma esfera
cognoscível que, por ser social e também convencional, dá ao indivíduo parte da
compreensão do objeto, mas o coloca, de pronto, como dependente de uma visão
115
que não é somente sua, mas consagrada em uma perspectiva social, logo,
compreender e significar o símbolo é integrar-se ao grupo.
Para que possa situar-se de uma maneira consciente, seja de si, seja da
realidade que o circunda, cabe ao indivíduo apoiar-se em referentes espaciais e
temporais que o permitam entender-se como um ser dotado desta ou daquela
condição face ao mundo no qual se situa. É um processo contínuo, sem o qual
aspectos como crenças, valores, princípios, ideologias e outros que tais seriam
virtualmente impossíveis.
a vida consciente humana, isto é, a vida da cultura, também
demanda uma estrutura espaço-temporal especial para que a cultura
organize a si mesma na forma de um espaço e um tempo, sem o que
ela não pode existir. Ora, isso é o mesmo que dizer, como Moscovici
(1988) que “as representações sociais que modelam nossas relações
com a sociedade, são, ao mesmo tempo, um componente da
organização social”(...) (FAVERO, 2005, p.20).
Temos, como decorrência direta dessas concepções, que a simbolização, isto
é, a atribuição de sentidos e significados aos objetos, pessoas, instituições e outros,
é parte da organização social, posto que serão sociais as representações simbólicas
daí advindas.
Assim sendo e em que pese a necessidade de uma certa cautela para não
incorrermos em uma abordagem absolutista ou exclusivista, é possível, para além
das limitações inerentes aos símbolos enquanto detentores de um valor social que
forma ao mesmo tempo em que faz parte do social, arrolarmos algumas categorias
como emblemáticas e mesmo explicativas das representações de violência em
Tropa de Elite. Note-se que tais símbolos não podem ser quaisquer, mas tão
somente aqueles que integram núcleos representacionais, como se vê a seguir:
A) Faca na caveira - o símbolo do BOPE
Individualmente, a faca na caveira é o símbolo mais eloqüente do BOPE.
Condensa em si não apenas uma crença basilar, qual seja a do crime como a face
mais recorrente da morte, com a decorrente necessidade de os homens do BOPE
“matarem a morte”, mas também serve como alvo a ser atingido, mote de ação e
elemento de reafirmação do status, separadamente e, também, concomitantemente.
Como praticamente todos os símbolos, a faca na caveira não guarda um valor
em si, a priori, mas sim condensa as crenças e percepções de um grupo; mais
116
especificamente, é a forma como é visto que determina seu valor, que é, por conta
disso, extrínseco. Assim, o símbolo é constituinte de um significado no exato
momento em que é observado como fonte de significação.
Em termos mais simples, poderíamos dizer que a significação da faca na
caveira será tanto mais eloqüente quanto mais eloqüentes forem os mecanismos
que levarem o soldado do BOPE a visualizá-la em sua vertente mais significativa
(termo usado aqui não em sua acepção de importância, mas sim capaz de produzir
significados).
É óbvio que o valor simbólico da gravura não será o mesmo, sempre, para o
membro do BOPE. Ao longo de seu contato com o símbolo da entrada no curso
até à ação diária como membro da tropa -, o sujeito irá promover "uma
transformação de estado, operada pelo fazer transformador de um sujeito que age
sobre o mundo em busca de determinados valores investidos no objeto" (BARROS,
1995, p.85). A significação da faca na caveira, obviamente, sofre mudanças de
acordo com o olhar que a vê e a interpreta, o que torna o símbolo eloqüente como
transmissor de idéias e concepções diversas, mas sempre de acordo com o
observador, nunca como algo que detém em si valores definidos. Como explica Eco
(1980, p.60)
Esta contínua circularidade é a condição normal da significação, e é
isto que permite o uso comunicativo dos signos para referir-se a
coisas. Refutar como teoricamente insatisfatória essa situação
significa apenas que não se compreendeu qual seja o modo humano
de significar, o mecanismo através do qual se fazem a história e a
cultura, o modo mesmo pelo qual, definindo-se o mundo, se atua
sobre ele, transformando-o.
De certo modo, o símbolo principal do BOPE constitui-se, emblematicamente,
não somente em uma maneira de perceber o universo de atuação da corporação e
de seus agentes, mas sim como um verdadeiro modo de vida. Ser do BOPE é ser,
na maioria das vezes, um policial em tempo e de maneira integral, o que não
significa, como se vê no personagem Capitão Nascimento, que o soldado não tenha
uma vida social, familiar e até mesmo religiosa, mas sim que o imperativo maior de
sua vida estará, via de regra, no símbolo da adaga atravessando o crânio
esquelético é o que orienta sua existência. Grosso modo, podemos afirmar que o
117
símbolo é um elemento adequado para evidenciar que o conjunto de objetos
denotados por um grupo de índices que se lhe associam.
Um símbolo não indica uma coisa em particular, denota um gênero de
representação social, pois é seu núcleo central. Assim, a faca na caveira coloca em
evidência um gênero coisificado, tornado concreto e intelegivel por aqueles que o
vêem sob uma determinada ótica, como é o caso dos soldados do BOPE, de um
lado, e os traficantes de drogas, de outro. Evidentemente, no caso do segundo
grupo é uma visão absolutamente diversa daquela manifestada pelo BOPE.
B) A farda preta
Um outro elemento que serve para compor a simbologia do BOPE de modo
bastante intensivo é a farda preta. Isso, é claro, não é um fator aleatório. O preto, no
mundo ocidental, é associado ao luto, à morte e ao sofrimento. Do mesmo modo, o
negro (a cor, não a pessoa) faz ecoar um medo ancestral do homem: o da noite e
das trevas que nela têm existência. Assim, a vestimenta do BOPE não foi adotada
apenas como um fator de diferenciação da tropa em relação à PM, mas sim como
um algo que, aos poucos, adquire um status que corrobora e reafirma, de modo
contínuo, a identidade do soldado de elite. Em diversos momentos do filme de José
Padilha são claramente verificáveis a simbologia e a significância do fardamento,
especialmente na fala do Capitão Nascimento, no início do filme, quando diz que, na
prática, o BOPE é algo totalmente diferente da PM. Como explica Fávero (2000,
p.20)
Um signo pode ser definido como um meio para a comunicação de
uma Forma. [...] Como um meio, o Signo está em uma relação
essencialmente triádica com o Objeto que o determina e com o
Interpretante que ele determina. Aquilo que é comunicado a partir do
Objeto através do Signo, para o Interpretante, é uma Forma; vale
dizer, não é nada como um existente, mas é um poder, é o fato que
alguma coisa aconteceria sob certas condições.
Tendo presente essas afirmações, podemos dizer que a farda preta, em si,
não representa, hierarquicamente, nenhum tipo de valor específico. Para ser
compreendida como elemento diferenciador e, ao mesmo tempo, formador de uma
identidade coletiva e especial, ela, como aquilo que é, precisa estar em relação com
sua condição de objeto e, ainda, ser enfocada de um prisma emanado do
118
interpretante, ou, no caso presente, do próprio soldado do BOPE. Assim, a farda
preta é um fator que, mesmo tendo existência real e factual, não traz em si nenhuma
qualidade a priori: é preciso que ela esteja sendo utilizada pelo policial do Batalhão
de Operações Especiais para que ganhe a sua “respeitabilidade” simbólica e
ancestral, como já mencionamos. Trata-se, pois, de um exemplo assaz eloqüente de
valor representativo social.
C) As canções
Outro marcador de grande significância apresentado no filme são as canções
dos soldados do BOPE e, ainda, as canções que eles costumam ouvir. Mais do que
apenas demarcar um campo de sentido, essas canções prestam-se, em última
análise, como elemento definidor da tropa de elite, de sua visão particularizada de
violência e de morte. Tome-se como exemplo os versos de marcha (são cantados
durante exercícios militares) a seguir: “Homem de preto, o que é que você faz? Faço
coisas que assustam Satanás” ou ainda: “Homem de preto, qual é sua missão? É
entrar pela favela e deixar corpo no chão”. Essas duas pequenas estrofes são, per
si, extremamente elucidativas da forma como o soldado do BOPE simboliza a
violência. Mais do que apenas marcar, de maneira sincopada, cansativos exercícios,
essas canções retratam o homem do BOPE e, paralelamente, reafirmam sua missão
e sua identidade: praticar coisas assustadoras (tortura, inclusive) e levar a morte aos
inimigos.
Outra música ouvida frequentemente pelos soldados é a que compõe a trilha
sonora do filme, cujos versos principais são “Tropa de elite, osso duro de roer, pega
um, pega geral, também vai pegar você” numa alusão ao alto grau de letalidade das
ações do BOPE.
Em uma análise superficial e desatenta poderia ser argumentado que
canções “guerreiras” seguem mais ou menos o mesmo padrão, não se constituindo
em exclusividade da tropa de elite da PM carioca. Realmente, isso ocorre em tropas
absolutamente distintas, como os boinas verdes do Exército Britânico ou com os
soldados do Grupo de Operações na Selva, na região amazônica brasileira. O valor
simbólico dessas canções, contudo, não pode ser relegado a segundo plano, pelo
contrário, tais canções atuam como uma espécie de fator de reafirmação identitária.
Como explica Jeudy (1990, p.19)
119
A memória não deixa de brincar com a identidade, embora mantenha
um pacto com ela. Para quem quer que seja, o interesse conferido à
lembrança só se torna princípio de satisfação na confusão das
evocações nesse emaranhado que chama outras lembranças, ainda
que a busca da verdade ou da autenticidade seja a sua finalidade
aparente.
Em outras palavras, um dos papéis das canções é “relembrar” ao soldado do
BOPE quem é ele, qual a sua missão e como deve se portar. É claro que apenas
simples versos não conseguiriam isso sem o intenso e contínuo trabalho de
construção da identidade coletiva já mencionado, mas parece bastante claro que o
cantar guerreiro atue de modo a manter o policial dentro do “cercado” que contém
suas representações sociais.
De maneira geral, as canções do BOPE, se apresentadas a terceiros, pouco
significarão em comum com a interpretação dadas a elas pelos policiais. De outro
modo, versos que poderiam até ser considerados bizarros em outros contextos,
fazem todo o sentido dentro de uma corporação na qual praticar torturas e formas
bárbaras de comportamento são comuns.
Da mesma forma, “deixar corpo no chão” não é apenas uma figura de
linguagem, mas sim um fato concreto. Assim, de sua condição de interpretante, o
soldado de elite compreende as letras em uma perspectiva muito mais intensa,
simbólica e, do ponto de vista de sua identidade, como a reafirmação da mesma,
como algo pleno de significação.
9 O RIO DE JANEIRO CONTINUA LINDO?
O título deste tópico alude a uma canção do cantor carioca Jorge Ben Jor na
qual enaltece as muitas belezas naturais da capital do Estado do Rio de Janeiro.
Pareceu-nos pertinente, assim, indagar se o Rio continua lindo. Não, é claro, em
função de suas inúmeras atrações turísticas e natural formosura, mas sim do ponto
de vista social, mais precisamente da segurança pessoal. Aliás, este estudo não
poderia ser considerado completo se não trouxesse a lume algumas considerações
sobre a presença, na vida real, dos homens de preto, dos traficantes de drogas, da
PM convencional e de alguns universitários retratados no filme de José Padilha.
120
Trata-se, contudo, de uma tarefa arriscada, pois transpor dados, informações e
comportamentos de uma obra de arte para a realidade seria uma atitude infantil e de
uma ingenuidade incompatível com a seriedade impressa à presente pesquisa. Por
outro lado, omitir-se em relação à atuação do Batalhão de Operações Especiais
atualmente na cidade do Rio de Janeiro, seria uma atitude negligente, seja pelo fato
do filme dar azo a essa iniciativa, seja ainda pelas inúmeras implicações que
envolvem o BOPE em suas incursões reais nas favelas cariocas.
Feitas essas considerações, temos que perguntar, inicialmente, que cidade
precisa de um grupo de matadores altamente treinados para lidar com as poderosas
quadrilhas de traficantes de drogas? Que cidade necessita, no espaço de 10 anos
(1997-2007), quadruplicar o número de agentes da tropa de elite da PM? Por fim,
cabe indagar qual a razão de os homens do BOPE, hoje, serem treinados de
maneira ainda mais rígida que no passado e, muito mais preocupante, disporem de
um arsenal tão letal que as chances de sobrevida de alguém baleado pelos homens
da tropa não passam de 10%?
São indagações pertinentes não apenas por aquilo que deixam entrever na
segurança pública carioca, mas também pela visão dos administradores públicos (o
governador Sérgio Cabral e seus antecessores imediatos).
Em outras palavras (e fizemos questão de frisar isso várias vezes no decorrer
desta pesquisa), se o filme de José Padilha não pode, sem que se incorra em
injustiça, ser taxado de fascista, o mesmo não se pode dizer das políticas públicas
de segurança adotadas no Estado do Rio de Janeiro, posto que são frutos diretos
das concepções de seus gestores. Fica cada vez mais evidente, se tomarmos a
época que o filme retrata como ponto de partida e chegar até nossos dias, que o
principal veículo de enfrentamento dos traficantes alojados nos morros cariocas e
também em outras situações de maior periculosidade é o BOPE e, ao optar por
manter e aumentar o efetivo desse grupo, está-se, na verdade, optando pela
violência e pelo assassínio como políticas de estado, ainda que não oficialmente.
Conquanto possa parecer, em um primeiro momento, uma asserção um tanto
precipitada ou mesmo destituída de elementos comprobatórios, a associação entre o
Estado e a violência como forma última de ação é comprovada por números,
circunstâncias e resultados que parecem apontar para o fascismo como concepção
ideológica mantenedora do BOPE.
121
Como mencionado anteriormente, Estados democráticos e amparados pela
legalidade não implicam, obrigatoriamente, na ausência automática de práticas,
concepções e formas de ação totalmente incompatíveis com a Declaração Universal
dos Direitos Humanos, com a legalidade e a justiça em sua forma mais estatutária e
judicial. De fato, com certa freqüência, tais Estados podem abrigar formas de
pensamento e ação cuja matriz ideológica situa-se no lado oposto ao da
democracia.
Tome-se como exemplo dessas afirmativas o seguinte conjunto de dados:
entre 1997 e 2006, o BOPE foi responsável direto por cerca de centenas de mortes,
ao passo que apenas um único soldado da tropa de elite veio a falecer em combate.
Parece claro, assim, que a tropa é voltada para o extermínio dos seus rivais, ao
passo que, graças aos recursos de que dispõe, é quase inatingível pelos traficantes.
Separadamente, esses dados não chegam a ser tão estarrecedores, até
porque a Rota, a temida tropa de elite de São Paulo, possui números bem mais
expressivos, que ultrapassam mais de 6 mil mortos desde seus primórdios, segundo
o repórter Caco Barcelos, em seu famoso livro “Rota 66” (1992). O aspecto mais
preocupante é a formação, a visão e a atuação do BOPE, para quem matar não é
apenas um verbo, e sim um signo dotado de um simbolismo particular e altamente
poderoso.
Poderia ser argumentado, como é bem provável que ocorra realmente, que o
BOPE, para parafrasearmos a fala do capitão Nascimento, é a última linha de defesa
contra o exército de traficantes. O problema é que esse argumento assume duas
posições inadequadas: a primeira dá a entender que a única forma de lidar com o
tráfico é matando seus articuladores; a segunda é a aparente convicção de que toda
tropa de elite precisa promover ações letais para ser considerada eficiente.
Tentamos demonstrar ao longo desta pesquisa que representações sociais de
violência como aquelas apresentadas pelos homens do BOPE, se levam a uma
eficiência inegável no confronto com os traficantes, por outro lado parecem alijar do
senso comum sobre a violência na tropa quaisquer outras possibilidades de
ação/intervenção que não sejam repassadas de brutalidade. Uma vez ancoradas e
objetivadas, tais representações tornam-se, em seus elementos nucleares, tão
poderosas que mudá-las afigura-se como algo extremamente difícil, ainda que não
impossível.
122
Tratam-se, pois, de visões equivocadas, como bem o demonstram exemplos
célebres como a “Lei de tolerância zero” implantada pelo então prefeito de Nova
Iorque, Rodolfo Giulliani, no início dos anos 90. Em poucos anos, a criminalidade foi
reduzida a patamares bastante baixos logo após a implantação de um sistema de
segurança pública que intervinha até mesmo em discussões mais acirradas de
vizinhos, por exemplo. Nada era considerado ínfimo demais para deixar de receber a
atenção das autoridades. O resultado é que, hoje, caminhar no outrora aterrorizante
Central Park, é um programa de famílias, casais de namorados e pessoas idosas,
cenário muito distante do que inspirou os versos do cantor Nick Stracker “A walk in
the park, a trip in the dark”. Um outro exemplo, bem mais próximo da realidade
carioca, é o de Bogotá, na Colômbia, considerada a capital da cocaína. Apesar da
corrupção policial, do poder dos barões cocaleiros e da imensa estrutura de apoio ao
tráfico, a violência na cidade foi reduzida em mais de 70% nos últimos dez anos,
inclusive com a ação de tropas de elite, não tão ferozes quanto o BOPE, mas
igualmente eficientes, graças às políticas que buscavam atingir a origem, não as
conseqüências apenas, dos crimes.
Um outro aspecto que não pode ser deixado de lado são as conseqüências
diretas da violência do BOPE sobre os traficantes. Como o batalhão raramente faz
prisioneiros, concentrando-se em matar tantos traficantes quanto possível, os
meliantes adotam uma postura de enfrentamento impiedoso. Em outras palavras, se
sabem que vão morrer de um jeito ou de outro, só resta aos traficantes vender sua
vida o mais caro possível, tornando as subidas ao morro combates tão acirrados
quanto os de uma guerra urbana, como se vê no Iraque atualmente.
Outrossim, as incursões quase que diárias do BOPE tem feito surgir um tipo
de traficante cada vez mais perigoso. Ao terem suas vidas sob risco potencial de
morte, os marginais não apenas aprendem certas táticas do inimigo, como também
buscam formas de oferecer maior resistência, o que pode ser obtido com
treinamento de tiro, táticas de guerrilha (os labirintos da favela ajudam muito nesse
tipo de ação), elementos logísticos mais eficientes (melhoria das comunicações,
meios de proteção melhores) e estratégia mais eficaz (distribuição de homens em
pontos estratégicos, formação de pelotões de patrulha e confronto coordenados por
um comando central, além da adoção de comportamentos próprios de exércitos
regulares, como cobertura por artilharia pesada, inclusive com as temidas
metralhadoras ponto cinqüenta, uso de uma espécie de infantaria de guarda, cuja
123
missão é segurar o BOPE o maior tempo possível nas partes baixas das favelas,
etc.).
É óbvio que, do ponto de vista das representações sociais dos traficantes
sobre a violência, tratam-se de movimentos e iniciativas perfeitamente coadunadas
com seu cotidiano. O BOPE é o principal “alemão” (inimigo externo) a ser
confrontado e pensa-se na prática da violência como o único recurso possível
(talvez, nesse caso especificamente, seja mesmo) de garantir o status quo. Ainda
mais grave do que isso, porém, é o fato de que, ao crescer em um lugar assim, os
futuros traficantes terão representações partilhadas de violência tais que assassinato
será apenas uma obrigação do “ofício” e a tortura um meio legitimo de alcançar
vários objetivos. É, pois, o fato gerador de uma situação na qual o homem passa a
ser, sem qualquer sinal visível de questionamento, predador do próprio homem.
Seria injusto, não obstante, nesse cenário, dizer que o tráfico aumentou sua
força bélica e seu poder de ação única e exclusivamente por conta do BOPE, já que
a Polícia Civil, a PM e até o Exército (não se sabe bem o porquê deste último
promover ações nas favelas) também sobem o morro. É inegável, contudo, que as
ações altamente eficientes do BOPE têm gerado uma contrapartida no aumento da
eficiência combativa dos grupos de traficantes, até mesmo pelo instinto mais básico,
o da sobrevivência.
Apesar desses senões, nada parece indicar uma mudança de rumo na tropa
de elite da Polícia Militar carioca. Tome-se como exemplo dessa afirmação o fato de
que, após 1997 (época enfocada pelo filme), o BOPE passou de um efetivo de 100
para 400 homens (dados de 2007); incorporou o temido “caveirão”, veículo de
combate extremamente letal com espaço para 10 atiradores e motorista; intensificou
o treinamento de tal modo que somente indivíduos dotados de excepcional
resistência física e força de vontade sejam capazes de permanecer no curso (um
dos exercícios consiste em cavalgar 8 horas, em pelo, em um cavalo, o que provoca
o esfolamento profundo da pele das nádegas e do interior das coxas. Logo em
seguida, para evitar inflamações, o infeliz candidato deve sentar-se em uma bacia
de salmoura, o que provoca dores tão lancinantes que a grande maioria desmaia);
treina os soldados em combates corpo-a-corpo diários (o que os candidatos não
sabem é que os oponentes são lutadores de vale-tudo os resultados de uma “aula”
dessas podem ser facilmente imaginados); e adquiriu material bélico com poder de
fogo muito maior do que o mostrado no filme, inclusive o temido fuzil AK-47, fuzil
124
Para-fal, fuzil Colt M-16 (arma usada pelos norte-americanos na Guerra do Vietnã) e
a arma padrão, o fuzil Colt M4A1, dentre vários outros artefatos bélicos.
Partindo dessas considerações, acreditamos poder afirmar que a atuação do
BOPE, em seus moldes atuais, gera um inegável círculo vicioso: quanto maior for a
violência empregada, maior será a reação dos criminosos. Em outras palavras, o
remédio aparenta estar causando mais danos do que a doença que busca combater.
Não se trata aqui de encontrar pontos de concordância com a ideologia burra
que vitimiza o bandido, associando-o a um destino do qual não pode fugir (isso é
especialmente visível em algumas obras neonaturalistas atuais, como Cidade de
Deus, Carandiru, além dos discursos de membros de ONG’s, partidos de esquerda,
etc.), pelo contrário, o fato de alguém ter sofrido na infância e/ou na adolescência
não justifica, sob qualquer ângulo, a prática do crime. O que deve ser devidamente
sopesado é até que ponto uma polícia nos moldes do BOPE está, de fato,
contribuindo para diminuir a violência ou, como é cada vez mais evidente, se o
modus operandi dos soldados de elite não se torna, ao cabo, em um fator de
fomento daquilo que deseja combater.
Um outro dado que não poderia deixar de ser discutido é o estado no qual se
encontra a Polícia Militar carioca. Com um efetivo de cerca de 40 mil homens, seu
poder de ação é tolhido por fatores apontados no filme, tais como treinamento
deficiente, armamento sem o poder de fogo necessário e, principalmente, pela
corrupção que impera em suas fileiras. Como se vê no filme, para os policiais,
achacar, corromper, furtar, explorar e muitas outras formas de violência são
“apêndices” absolutamente normais na profissão, ou seja, são representações
sociais que longe de verem na polícia um agente de combate ao crime, concebe as
mais diversas formas de violência como meio para obter benefícios próprios, em que
pese o fato de tal conduta acarretar aumento da criminalidade ou outros danos à
população e, por vezes, à própria polícia. A situação é ainda mais grave se levarmos
em conta que as autoridades e mesmo corregedoria da PM sabem perfeitamente o
que ocorre na corporação sem que isso implique em uma “limpeza” profunda dos
quadros da Polícia Militar. Sem ousarmos dizer que se trata de conivência, podemos
aventar, todavia, que as representações sociais de violência policial dos mandatários
em questão coadunam-se com uma visão coletiva de desânimo, de inércia e/ou
também de uma forma de pensar que se assemelhe ao “não há nada que possa ser
feito mesmo” que não o uso da tropa de elite.
125
Por fim e não menos polêmica é a visão que Padilha apresenta em relação
aos universitários de classe média alta, no filme. Diferentemente de outros filmes
que versam sobre a violência e criminalidade no Brasil, Tropa de Elite atinge um
ponto nevrálgico ao mostrar as representações sociais de violência dos jovens
dotados de poder aquisitivo elevado e, em especial, a sua relação promíscua e
“ingênua para com o tráfico. No grupo mostrado no filme, as representações sociais
de violência encampam a brutalidade da polícia, a criminalização da pobreza (são
jovens dotados de “consciência social”, afinal de contas) e... nada mais. Não fazem
parte dessas representações a idéia de que, ao usar maconha, cocaína e outras
drogas, tais jovens estão financiando o crime, a violência e a brutalidade dos morros
e de boa parte da violência da cidade em que vivem.
A cena na qual os rapazes e moças fumam maconha de uma forma
evidentemente prazerosa é tão acintosa no aspecto representativo social quanto sua
aparente ausência de culpa. Não importa, como diz o Capitão Nascimento, quantas
crianças morram para que os jovens possam fumar um “baseado”. O “tapa na cara”
que Padilha dá na sociedade, especialmente em seus estratos mais elevados, é
urdido a partir dessa representação social dos universitários do filme de que, apenas
por usar drogas, não contribuem para a violência de modo algum; antes, pelo
contrário, em seu senso comum auto-indulgente, sentem-se no direito de criticar
acerbamente a polícia. Dos traficantes nada se diz de mal ou, quando muito, que
são vítimas da pobreza, o que leva, inclusive, à criação e manutenção da ONG em
pleno morro. Se somarmos todos os elementos inseridos nesta discussão,
poderemos ter, em uma simplificação assaz grosseira, o seguinte quadro: de um
lado representações sociais de violência como meio e fim de ação (BOPE e
traficantes); de outro, representações sociais de violência que ancoram e objetivam
como legítimos quaisquer formas de ação, desde que redundem em benefícios (PM
convencional); de um outro prisma, representações sociais de violência auto-
indulgentes e recriminadoras apenas quanto à polícia, não com os traficantes
(universitários); e, por fim, representações sociais de violência que veem no
assassínio e na tortura dos bandidos a única forma policial efetiva de agir, o que
descamba, inevitavelmente para uma concepção (senso comum, ressalte-se)
fascista por parte do Estado. Definitivamente, há sobejas razões para se refletir
sobre as representações sociais de violência mostradas no filme de José Padilha.
126
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Conforme procuramos evidenciar ao longo desta pesquisa, a violência sempre
permeou, em alguma escala e/ou de algum modo, a vida social do ser humano,
atingindo desde patamares mais baixos, nos quais o ato de agressão se encontra
dissimulado ou diluído na fala, nos gestos ou mesmo nas não-ações, até níveis nos
quais a barbárie e a brutalidade extremas são a tônica predominante.
Agente direto de coerção, de obtenção de respeito por meios rápidos, de
atemorização e de conquista, a violência também tem sido, ao longo dos séculos,
uma poderosa ferramenta de busca e obtenção de poder, bem como de dominação
e manutenção de um determinado status quo.
Inicialmente ligada ao homem por razões de sobrevivência pura e
simplesmente (obtenção de comida, defesa da família e da própria integridade, etc.),
a violência foi se tornando um fenômeno cada vez mais complexo, à medida que os
próprios agrupamentos humanos cresciam horizontal e verticalmente. Considerada
como mérito em sociedades guerreiras ou baseadas nas conquistas, a violência é
citada e, em várias situações, justificada em diversos textos religiosos, como a
Bíblia, a Torah, o Alcorão e outros, o que parece indicar uma ligação próxima entre
religião e violência, desde que a segunda seja conveniente aos propósitos da
primeira.
Essa trajetória longínqua da violência nos grupos humanos deixa claro, já em
uma primeira, porém criteriosa, análise, que o ato de agressão (usamos agressão
como sinônimo de violência) não traz em si um valor ou mesmo uma marca que o
torne mais aceite ou não, merecedor de maior mérito ou não, mais digno de elogio
ou de crítica. De fato, a violência depende da sanção do grupo, das representações
que os membros de um determinado lócus social apresenta quanto às
conseqüências do ser violento.
A questão da representação social da violência mostra-se, pois, como algo
basilar na compreensão de como as sociedades, menos ou mais complexas, lidam
127
com esse complexo fenômeno, uma vez que um mesmo ato pode ser considerado,
tanto na perspectiva sincrônica (tempo-espaço atual), quanto diacrônica (linha de
tempo histórica), totalmente condenável ou, ainda, complemente aceitável e mesmo
digno de elogios. Um homem que matasse a mulher, acusada de adultério, na
sociedade árabe do século XIX tinha direito a um pedido formal de desculpas por
parte dos pais ou parentes próximos da mulher, cujo assassínio era considerado
algo perfeitamente natural. O mesmo ato, na Nova Zelândia de nossos dias, renderia
pelo menos 30 anos de regime prisional fechado.
Essa ambigüidade histórica e espacial em relação à violência demonstra que
a Teoria das Representações Sociais, enquanto conjunto de mecanismos que visam
identificar e analisar o quantun coletivo presente em cada indivíduo e do somatório
dessas concepções individuais no exame do todo social, apresenta-se como um
valioso cabedal de conhecimentos, capazes de dar conta, em um recorte espaço-
temporal, de como determinados eventos, fenômenos, comportamentos e outros
elementos são concebidos.
Foi a partir dessas considerações que nos propusemos a promover a
recepção crítica do filme Tropa de Elite a partir das representações sociais de
violência nele constatáveis, motivados não só pelo ineditismo do tema, mas também
pela flagrante emergência temática subjacente não tanto ao BOPE mostrado no
filme, mas sim à tropa real quatro vezes maior de nossos dias.
Os resultados alcançados pelo trabalho e o atingimento dos objetivos aos
quais nos propúnhamos permitiu-nos constatar que as representações sociais de
violência encontradas na obra são por tal forma coadunadas com um estado que
poderíamos denominar de terrorismo psicológico, físico e material em tempo integral,
que se torna difícil acreditar que uma tropa formada por verdadeiros cães de guerra
seja a única resposta que pode, por ora, ser dada aos traficantes dos morros
cariocas.
A brutalidade representada socialmente como rotina, a tortura, inclusive dos
próprios soldados, concebida como meio legítimo de obtenção de informação e o
assassínio sistemático como única medida capaz de fazer frente ao poderio dos
traficantes soam como uma espécie de heresia moral, legal e policial, já que não
apenas afronta o Estado de Direito como coloca esse próprio Estado na berlinda ao
demonstrar que, na vida real, o BOPE é ainda mais violento do que o mostrado no
filme, que seu efetivo já é quatro vezes maior, que a PM convencional,
128
definitivamente, se omite ou se corrompe, mas não chega a promover qualquer ação
efetiva de enfrentamento dos marginais.
É óbvio que não podemos simplesmente transpor os eventos apresentados
no filme para o cotidiano carioca, nem esta é, a priori, nossa intenção. O que é
inegável, contudo, é que o BOPE, considerado a melhor tropa de combate urbano
do mundo, não é um simples produto da fantasia criadora de um roteirista e da
habilidade de direção do cineasta José Padilha, mas sim um corpo de exército que
não pára de crescer, tanto em termos quantitativos, quanto qualitativos (os requisitos
para fazer parte da tropa estão cada vez mais rigorosos).
As cenas nas quais as representações de violência dos policiais ficam
evidentes, embora fortes, não trazem à tona a verdadeira questão que subjaze ao
trabalho do BOPE, qual seja: será que treinar exaustivamente, reconfigurar
identidades e legitimar (se é que esse termo é cabível) o homicídio são os únicos
caminhos para a tropa de elite? Ao vermos o sofrimento dos candidatos na semana
do inferno, derivado principalmente do sadismo dos instrutores e de sua visão
distorcida de como formar um soldado de elite, não podemos deixar de pensar que,
submerso em um ambiente de violência extrema de todas as naturezas, não se pode
esperar de um integrante do BOPE algo menos do que uma atitude de cão de
guerra. E, se adotarmos essa linha de raciocínio, também não somos obrigados a
posicionar esse mesmo cão de guerra não mais como um ser que brutaliza, mas que
também foi e é brutalizado, ou seja, mais uma vítima da violência?
Um outro evento preocupante verificado na formação identitária dos homens
do BOPE é o caso de Matias, o oficial legalista que, no início do filme, acreditava na
estreita ligação entre polícia, legalidade e justiça, mas, ao cabo, termina por se
transformar em um novo Capitão Nascimento.
Esse tipo de transformação preocupa porque o “estoque” de oficiais
impiedosos, cuja missão é, sem qualquer exagero, “entrar pela favela e deixar corpo
no chão”, será sempre inextinguível enquanto o BOPE for capaz de formar
indivíduos que passam a acreditar que matam, de fato, a morte. É uma aliança
rigidamente formada por homens que acreditam na justiça, mas não em sua feição
legalista e sim impiedosa e brutal. Por outro viés, as representações sociais de
violência, criminalidade, corrupção e outras que tais presentes na PM convencional
também parecem ser suficientemente poderosas para formarem outros capitães
Fábio e manter a corporação no lastimável estado em que se encontra.
129
De uma perspectiva mais ampla, o filme Tropa de Elite faz emergir questões
que, analisadas à luz das representações sociais de violência, se mostram
alarmantes tanto pela sua recorrência quanto pela dimensão que apresentam.
Dito de outro modo e segmentando-se as representações sociais de violência
encontradas no filme, podemos, a título de síntese, enumerar:
a) A Polícia Militar, nos moldes em que é apresentada, reúne um corpo de
indivíduos cuja grande maioria vê na violência um meio legítimo de obter, através
das suas funções, aquilo que de outro modo não obteriam: dinheiro, “presentes”,
benesses em geral, etc. Trata-se de uma visão coletiva que não apenas distorce o
papel do policial militar, como dá azo a ações criminosas e violentas de diversas
naturezas, o que, no entanto, não aparenta causar preocupações aos soldados, pois
se tratam de atividades devidamente ancoradas e objetivadas como “normais”. Sem
emitirmos um juízo de valor sobre tais representações sociais (são componentes de
uma identidade coletiva passível de valoração, mas não é isso que se enfoca neste
trabalho), não podemos, contudo, deixar de refletir sobre suas implicações na vida
de centenas de milhares de pessoas que, no Rio de Janeiro real, raramente tem na
polícia um corpo treinado para “servir e proteger”. A facilidade com que tais
representações sociais são encampadas pelos membros da PM, por outro lado,
deixa patente a idéia de que muito pouco pode ser feito para se alterar esse quadro,
a menos que se renovem, de modo profundo, as tropas policiais cariocas.
b) Os traficantes, pelo menos nos moldes em que se encontram organizados
e atuantes no filme, parecem partilhar do mesmo tipo de senso comum de violência
dos homens do BOPE, com a diferença, significativa, que seu raio de ação é
consideravelmente mais amplo. De fato, enquanto para os homens do BOPE as
representações de violência recaem sobre um grupo específico (os traficantes e os
bandidos), do outro lado da barricada a violência não parece ter qualquer tipo de
contenção, podendo atingir a polícia, os próprios traficantes, grupos rivais, etc. Para
os bandidos, as representações sociais de violência se ampliam de modo a abarcar
todo o universo no qual se inserem, ou seja, não há ato violento que não possa ser
praticado desde que seja necessário. Tem-se, pois, uma forma representativa social
de violência consideravelmente mais ampla do que as dos outros grupos mostrados
no filme.
c) Os universitários e, mais precisamente, suas representações sociais de
violência, se constituem em um grupo à parte porque não somente não conseguem
130
perceber em si próprios quaisquer resquícios de violência, como demonstram, em
um senso comum amplamente disseminado, que a polícia é a única a promover a
violência, que os pobres são sempre as vítimas, nunca os culpados e que os
traficantes são apenas produto de um ambiente que não lhes deu outra opção que
não se tornarem criminosos. Os jovens não parecem entender que cada baseado
fumado ou cada carreira de cocaína cheirada pode, e muito provavelmente está, de
fato, custar muito caro a alguém, em termos de violência. Criados em um ambiente
distante dos meios policiais corruptos da PM convencional ou do violento cotidiano
do BOPE, a polícia, para esses jovens, é apenas o resultado de manchetes de
jornais ou chamadas televisivas dando conta de ações violentas, corruptas e outras
que tais. Do mesmo modo, subir o morro para trabalhar numa ONG lá situada e, ao
mesmo tempo, fazer uso de drogas sob os auspícios “hospitaleiros” dos traficantes
dão ao senso comum imperante entre os membros desse grupo percepções que se
resumem em: a polícia é violenta e covarde; os pobres são sempre vítimas; o
traficante é um cara legal; e, eles nada têm a ver com a violência, pois não são
violentos e nem auxiliam na promoção de atos brutais.
Quando o Capitão Nascimento afirma, sem meias palavras, que tais jovens
(playboys) sustentam parte considerável do tráfico de drogas e da decorrente
violência advinda do “movimento” (atividades de compra e venda de drogas), não o
faz apenas por considerar tais pessoas alvo de sua ira, mas também porque a
atitude inconseqüente daqueles que moram nos “apartamentos da zona sul” (área
mais nobre do Rio de Janeiro), oriunda de suas representações sociais de violência,
tem repercussão em toda a cadeia do tráfico, com as brutais ações a que já nos
referimos várias vezes neste estudo.
Temos, pois, como resultado da análise das representações sociais presentes
em Tropa de Elite, duas constatações essenciais: o BOPE precisa e vai continuar
formando cães de guerra; e a PM convencional precisa e vai continuar formando
policiais corruptos.
Do mesmo modo, os traficantes vão se armar cada vez mais para fazer frente
ao considerável aumento do poder bélico do BOPE e os usuários “sociais” de drogas
continuarão dando sua contribuição para a explosão de violência advinda dos
confrontos entre tais grupos. O saldo dessa equação perversa será visto nas
estatísticas de “homicídios em missão”.
131
Mais grave ainda é pensar que o Estado do Rio de Janeiro, no tocante à
segurança pública, pode estar apenas repetindo a malfadada fórmula seguida por
Mussolini e seus partidários na Itália dos anos 40: o exercício da violência pelo
Estado como condição para a existência e manutenção deste próprio Estado. Se por
um lado não se pode alcunhar o filme de José Padilha de fascista (o cineasta é
assumidamente um ideólogo de direita) sem sermos injustos, por outro lado seria
ingenuidade não mencionar que, da forma como se acha estruturada a segurança
pública carioca e do poder cada vez maior dado ao BOPE, existe um viés fascista
que é compartilhado pelos responsáveis pelas políticas públicas de contenção da
criminalidade no Rio de Janeiro.
Obviamente, isso é incompatível e está na contramão de um país que é (ou
se acha) democrático, como o Brasil. Contudo e parafraseando o Capitão
Nascimento, quem disse que a vida é fácil?”.
É alarmante pensar que uma estrutura policial militar que custa cerca de 9
bilhões de reais aos cofres públicos do Rio de Janeiro não possa ser sanada, ainda
que em parte e cumprir, mesmo com dificuldades, aquilo que dela se espera.
Do mesmo modo, não se pode conceber que, num país democrático, uma de
suas mais belas e importantes cidades só tenha como última linha de defesa uma
corporação composta por assassinos altamente treinados e cuja única resposta ao
tráfico e a outros crimes seja uma violência frequentemente maior do que aquela
que busca combater.
Não estamos, sob qualquer hipótese, advogando o fim do BOPE, apenas
reiterando a necessidade da existência de uma tropa de elite que não apenas se
limite a matar, mas também a prender e a não torturar. Também reiteramos a
necessidade de uma Polícia Militar que não seja formada por corruptos, criminosos
franca e abertamente e omissos, mas sim por um número razoável de servidores da
lei.
Conquanto esse tom discursivo possa parecer excessivamente passional, não
destoa do filme e do assunto que se propôs analisar, pois se algo pode ser dito com
segurança em relação a Tropa de Elite é que se trata de um filme que causa
impactos emocionais significativos, que não podem ser ignorados pura e
simplesmente, até porque opera com aspectos de uma realidade que chega a ser
surreal em alguns dos seus momentos e desdobramentos.
132
Assim sendo e em que pese o tom um pouco altissonante desta conclusão,
acreditamos ter levado a bom termo o trabalho ao qual nos propusemos,
demonstrando algumas das representações sociais de violência presentes em Tropa
de Elite e, mais do que isso, evidenciando a necessidade de uma séria reflexão
sobre uma cidade que, cada vez mais, precisa de cães de guerra ao seu serviço.
133
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10.1590/S0103-20702002000200005
139
ANEXOS
140
Anexo a: O símbolo do BOPE: faca na caveira
141
Anexo b: Nascimento, Neto e Matias na segunda fase de treinamento
142
Anexo c: O corrupto Capitão Fábio desistindo de integrar o BOPE
143
Anexo d: Elenco do filme Tropa de Elite
WAGNER MOURA Capitão Nascimento
ANDRÉ RAMIRO André Matias
CAIO JUNQUEIRA Neto
MILHEM CORTAZ Capitão Fábio
FERNANDA MACHADO Maria
MARIA RIBEIRO Rosane
FÁBIO LAGO Baiano
FERNANDA DE FREITAS Roberta
PAULO VILELA Edu
MARCELO VALLE Major Oliveira
MARCELLO ESCOREL Coronel Otávio
ANDRÉ MAURO Rodrigues
PAULO HAMILTON Soldado Paulo
THOGUN Cabo Tião
RAFAEL D´AVILA Xuxa
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