Download PDF
ads:
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO: MESTRADO
Área de Concentração: História e Historiografia da Educação
ALCUÍNO E A EDUCAÇÃO DE GOVERNANTES
(FINAL DO SÉCULO VIII E INÍCIO DO SÉCULO IX)
PRISCILA SIBIM DE OLIVEIRA
MARINGÁ
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
2
2008
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO: MESTRADO
Área de Concentração: História e Historiografia da Educação
ALCUÍNO E A EDUCAÇÃO DE GOVERNANTES
(FINAL DO SÉCULO VIII E INÍCIO DO SÉCULO IX)
Dissertação apresentada por PRISCILA
SIBIM DE OLIVEIRA, ao Programa de Pós-
Graduação em Educação, Área de
Concentração: História e Historiografia da
Educação da Universidade Estadual de
Maringá, como um dos requisitos para a
obtenção do título de Mestre em Educação.
Orientador(a):
Prof
(a)
. Dr(a).: TEREZINHA OLIVEIRA
MARINGÁ
2008
ads:
3
AGRADECIMENTOS
A Deus por mais esta vitória alcançada.
À minha mãe Teolinda Sibim por sua dedicação e amor.
À minha família pela compreensão, amor, auxílio e por acreditarem na realização
deste trabalho.
À professora Dra. Terezinha Oliveira por me proporcionar oportunidades de
aprender sobre a ciência e sobre a vida.
Ao meu namorado Luis Carlos pelo amor, pelo estímulo, pela dedicação e
compreensão.
Aos professores Marta Sueli de Faria Sforni, Lourenço Zancanaro, e Ivana
Guilherme mili, por aceitarem gentilmente fazer parte de minha banca e pelas
significativas considerações feitas no exame de qualificação.
A todos os professores do Programa de Pós-graduação em Educação que
contribuíram com meu aprendizado.
À minha amiga Andréia Auresco com quem pude contar em todos os
momentos.
A todos os meus colegas de trabalho que vivenciaram comigo esta caminhada.
À professora Marta Balbé pelo apoio e incentivo.
Às professoras Alexandra Ferreira e Jakeline Soares pelas traduções dos
documentos em inglês.
À professora Ruth Yamashita pelo auxílio nas traduções dos documentos em
francês.
Ao professor Aluysio Fávaro pela gentileza em traduzir o documento em latim.
À professora Regiani Vitoretti pela disposição nos empréstimos de materiais.
À professora Dra. Silvina Rosa pela revisão deste trabalho.
E a todos os mestres que passaram por minha vida e acreditaram na Educação.
4
I OLIVEIRA, Priscila Sibim. ALCUÍNO E A EDUCAÇÃO DE GOVERNANTES
(FINAL DO SÉCULO VIII E INÍCIO DO SÉCULO IX) (120 fls.). Dissertação
(Mestrado em Educação) Universidade Estadual de Maringá. OrientadorA:
(Dra.: Terezinha Oliveira). Maringá, 2008.
RESUMO
Esta pesquisa tem por objetivo analisar a proposta pedagógica do mestre
medieval Alcuíno de York destinada à educação de governantes no Imrio
Carolíngio a partir do ano 800. Este personagem histórico foi um mestre na corte
de Carlos Magno, o mais importante líder dos francos no movimento denominado
pelos historiadores de Renascimento Carolíngio. Além da função de mestre,
Alcuíno foi tamm conselheiro em questões políticas e religiosas. Desta forma,
contribuiu, significativamente, no processo de civilização do Ocidente Medieval no
século IX principalmente pelo trabalho voltado à restauração da cultura antiga e
pela atenção demonstrada à educação necessária à formação do governante da
época. Suas propostas de ensino no que diz respeito à educação de governantes
visavam formar primeiramente o homem, capaz de compreender-se como um ser
social. Depois, a intenção do mestre era habilitá-lo a desempenhar, segundo as
exigências da época, o cargo de dirigente. O contexto histórico foi delineado
numa perspectiva educacional e política, desde as grandes incursões dos povos
nômades até o princípio de organização dos povos francos, sem omitir o papel
que a Igreja desempenhou neste processo. Ao considerar que a sociedade
carolíngia encontrava-se no período, em um processo de organização e
sistematização de suas relações, nos dispomos a evidenciar por meio de escritos
de Alcuino, de outras autoridades medievas e de análises historiográficas a
importância da educação, principalmente no que diz respeito aos líderes, uma vez
que estes, eram os que estavam à frente da reconstrução social. Para expor o
tema proposto analisamos primeiramente o Debate sobre a retórica e sobre as
virtudes do sapientíssimo rei Carlos e do mestre Alcuíno para sumariamente
compreender a intenção do mestre em ensinar ao seu aluno a arte da retórica,
ciência muito importante àquele que detinha todo o poder sobre o reino franco.
Em seguida nos dispomos a analisar o Diálogo entre Pepino e Alcuíno que se
constitui em uma aula dica que tinha como objetivo formar o jovem Pepino filho
de Carlos Magno, na arte da liderança. E, por último, apresentaremos
considerações analíticas a respeito da obra de caráter moral Livro acerca das
virtudes e dos vícios ao conde Guido que evidencia variados conselhos
destinados a um governante que desejava seguir os princípios cristãos. E tamm
Acerca da naturaleza da alma que apresenta a concepção filosófica do autor,
importante à compreensão das demais obras. Estes documentos fornecem
indícios para compreender qual a importância e função de mestre e governante
na alta Idade Média, bem como nos permite entender, por meio das expectativas
depositadas nestes líderes, a sociedade que se pretendia formar.
PALAVRAS – CHAVE: História da Educação, Idade Média, Alcuíno, Mestre,
Governante.
5
OLIVEIRA, Priscila Sibim. ALCUIN Y L’ÉDUCATION DE GOUVERNANTS ( FIN
DU SIÈCLE VIII ET DÉBUT DU SIÉCLE IX) (120 fls). Dissertação (Mestrado em
Educação) – Universidade Estadual de Maringá. Orientadora: (Dra. Terezinha
Oliveira). Maringá, 2008
RESUMÉ
Cette recherche a pour but l’analyse de la proposittion dagogique du maître
médieval Alcuin de York, sur l’éducation de gouvernants à l’empire Carolingien à
partir de l’année 800. Ce personnage historique a été um maître à la cour de
Charlemagne, le plus important leader des francs au mouvement dont les
historiens de la Rennaissance Carolingienne en parlent. Au délà d’avoir le métier
de maître, il a éaussi conseiller pour des questions politiques. Il a contribué
d’une façon remarquable au processus de civilisation de l’Occident médieval au IX
siècle, surtout à cause du travail sur la restauration de la culture ancienne et de
son intérêt vers l’éducation qu’il fallait pour les gouvernants de l’époque. En ce
qui concerne à l’éducation de gouvernants, ses propositions envisageaient tout
d’ábord que ces gouvernants soyaient capables de comprendre eux-mêmes en
tant qu’êtres sociaux. En ayant cette capacité, le prochain pas à faire c’était les
rendre optes à exercer, d’aprés les exigences de l’époque, le poste de dirigeant.
L’analyse a pris pour cible le sens contextuel historique qu’ a été esquissé sous
une perspective éducationelle et politique, dès les grandes incursions des peuples
nomades jusqu’au principe d’organisation des peuples francs, sans omettre le rôle
que l’église a joué dans ce processus. Si l’on considère que la société
carolingienne était à ce moment-là dans un processus d’organisation et de
systématisation de leurs rapports, on a voulu mettre en exergue par les écrits
d’Alcuin, par d’autres autorités médiavistes et par des analyses historiographiques
l’importance de l’éducation plus actuelles, plus particulièrement quand il s’agit des
leaders puisqu’eux, ils étaient au devant de la reconstruction sociale. Pour
exposer le thème proposé on a analysé primo le Débat sur la rhétorique et sur les
vertus du savant roi Charles et du maître Alcuin pour, sommairement, comprendre
l’intention du maître à apprendre à son élève l’art de la rhétorique très important à
celui qui détenait tout le pouvoir sur le règne franc. Ensuite , un autre point de
notre anlyse a été l’étude du Dialogue entre Pepin et Alcuin, un cours ludique qui
avait pour but éduquer le jeune Pepin fils de Charlemagne dans l’art de
commandement. Et en dernier, on va vous présenter des considérations
analytiques à propos de l’oeuvre d’essence morale Livre sur des vertus et des
vices au comte Guido qui évidencie plusieurs conseils dirigés à un gouvernant qui
souhaitait suivre les principes chrétiens, et aussi, l’étude de Sur la nature de
l’âme dont la conception philosophique est importante pour la compréhension dus
autres oeuvres. Ces documents nous donnent des indices pour comprendre
quellle était l’importance de la fonction de maître et de gouvernant au haut Moyen
Âge, et encore pour savoir qu’elles étaient les expectatives mises sur ces leaders
ceci étant, c’est possible avoir un aperçu de la société qu’on voulait former.
Mots–Clés : Histoire de l’Education, Moyen Âge, Alcuin, Maître, Gouvernant.
6
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
....................
.............................................
....................
07
1. ASPECTOS HISTORIOGRÁFICOS QUE CONTRIBUÍRAM COM AS
REFORMAS EDUCACIONAIS NO OCIDENTE CAROLÍNGIO
17
1.1 A situação do Império romano no século V ......................................... 17
1.2 As bases cristãs do pensamento medieval........................................... 23
1.3 Igreja e Estado: uma nova prerrogativa de organização social 28
2. CARLOS MAGNO: HISTÓRIA E CULTURA DE SEU IMPÉRIO ..........
35
2.1 Os princípios de organização educacional na corte Carolíngia............ 37
2.2 Davi e Salomão: personagens bíblicos que influenciaram a corte.......
carolíngia
43
2.3 A influência de Cícero na prática pedagógica de Alcuíno ................... 50
2.4 O sagrado e o profano na preservação do saber................................. 54
2.5 Alcuíno e as relações estabelecidas com os escritos de Platão, Plotino
e Santo Agostinho...........................................................................
59
3. A PROPOSTA PEDAGÓGICA DE ALCUÍNO E A EDUCAÇÃO DOS
GOVERNANTES
66
3.1 Livro a respeito das virtudes e dos vícios para o conde Guido: um
“espelho de príncipe” do século IX .............................................................
68
3.2 Contribuições de Alcuíno para com a formação de Carlos Magno ...... 81
3.3 Diálogo entre Pepino e Alcuíno: uma proposta pedagógica de ensino 88
4. CONCLUSÃO......................................................................
112
REFERÊNCIAS.......................................................................................
116
7
INTRODUÇÃO
A linha de concentração História e Historiografia da Educação à qual este
trabalho está vinculado é considerada como base dos programas que visam à
formação docente na atualidade. Ao mencionarmos o termo base, temos como
objetivo enfatizar seu significado, qual seja, o de apoio, sustentáculo. Embora
essa área seja questionada por intelectuais contemporâneos da educação, quanto
à sua finalidade e relevância, as disciplinas que a compõem ainda permanecem
como requisitos obrigatórios, especialmente se houver continuidade da prudência
dos que lideram as questões educacionais.
Estas ponderações iniciais decorrem do valor que a sociedade, acadêmica
ou não, tem atribuído ao estudo da História e, no caso presente, da História da
Educação. Poucos reconhecem sua importância. Os preconceitos aumentam um
pouco mais, quando o recorte histórico diz respeito ao período medieval,
intensamente caracterizado como ‘período de trevas’ e durante o qual, como
alguns afirmam equivocadamente, não teria existido desenvolvimento do
conhecimento. Sobre o assunto, Lauand afirma:
(...) os preconceitos que prejudicam o estudo de qualquer período
histórico parecem manifestar-se mais acentuadamente quando se
trata da Idade Média. Medieval ainda é sinônimo, para os menos
informados, de obscurantismo e ignorância, uma vez que somos
técnica e cientificamente muito mais avançados socialmente, muito
mais tolerantes, etc. E, no entanto, é surpreendente como, além
das diferenças existentes entre nós e “eles”, é possível localizar
semelhanças de comportamento e de mentalidade (e, talvez
também, alguns pontos em que somos nós que temos que
aprender (...) [LAUAND, 1998, p. 2-3].
Estudar o passado para compreender o presente. Esta sentença é
aparentemente destituída de essência e considerada como uma justificativa do
estudo da História pautado no senso comum. No entanto, se pensarmos a mesma
à luz das considerações de Marc Bloch, historiador do século XX, que afirma que
“(...) a incompreensão do presente nasce fatalmente da ignorância do passado
(...) (BLOCH, 2001)”, é possível compreender que a História tem sua importância.
8
O estudo do passado requer sensibilidade para interpretar personagens,
fatos, pensamentos que existem nos textos e o desenvolvimento desta
habilidade nos faz hábeis tamm para compreender o presente. Todavia, o
mesmo autor completa: “Mas talvez não seja menos vão esgotar-se em
compreender o passado se nada se sabe do presente” (BLOCH, 2001) o que nos
faz concluir que o presente e o passado completam-se mutuamente.
Esta análise pode admitir a contraposição de que a Idade Média não
apresenta semelhanças com a época que vivenciamos, uma vez que dizem
respeito a sociedades, modos de produção, homens e, conseqüentemente,
mentalidades diferentes e isto não pode ser negado. Entretanto, mesmo que os
momentos históricos sejam diferentes e as relações humanas, consequentemente
divergentes, podemos nos deter em estudar o homem, um ser social que luta para
sobreviver da melhor forma possível. Este homem, sabemos que,
independentemente de qualquer época histórica, permanece homem. Nas
palavras de BLOCH:
Aprendemos que o homem mudou muito (...). É preciso, claro, no
entanto, que exista, na natureza humana e nas sociedades
humanas, um fundo permanente, sem que os próprios nomes de
homem e de sociedade nada iriam querer dizer (BLOCH, 2001, p.
65).
O homem, nas diferentes épocas, enfrentou conflitos e, por causa deles,
desenvolveu meios para superá-los, o que remete ao uso prático de sua razão.
Este fato pode ser verificado nos textos e talvez este seja o ‘fundo permanente’ do
qual fala Bloch.
A Idade Média, foco temporal deste trabalho, se considerada
cronologicamente, é intermediária entre a Antiguidade e a Modernidade. Se, a
exemplo dos antigos, considerarmos que ‘nada surge do nada’
1
, podemos
constatar que cada período recebeu um legado do período que o antecedeu, o
1
Esta máxima está presente nos escritos dos primeiros filósofos da cultura ocidental, oriundos da
escola de Mileto na Jônia e denominados de pré-socráticos (século IV. A. C). Anaximandro, um de
seus representantes, refletindo sobre a existência humana afirmou: “Vede como murcha vossa
Terra; os mares se retraem e secam; a concha sobre a montanha vos mostra o quanto já secaram;
o fogo, desde já, destrói vosso mundo, que, no fim, se esvaiem vapor e fumo. Mas sempre, de
novo, voltará a edificar-se um tal mundo de inconstâncias: quem seria capaz de livrar-vos da
maldição do vir – a – ser?(Anaximandro apud Nietzsche In Os pré-socráticos, 1996, p. 53)”.
9
que nos faz herdeiros do peodo medieval. Esta asserção é um convite aos
profissionais da educação para que reflitam sobre a importância do estudo de
temas pertencentes à História da educação, especialmente a medieval, pois eles
tornam possível a compreensão das origens das instituições, dos conteúdos e
pensamentos que permeiam a educação contemporânea.
Especificamente, o período que pretendemos analisar é o do reinado e
Império de Carlos Magno (768 - 814), o líder que mais se destacou dentre o povo
franco. Este recorte histórico deve-se a um outro, mais específico: a presença, na
corte Carolíngia, do mestre Alcuíno de York (~730 - 804), personagem principal
de nosso estudo e que, por meio dos seus escritos, fornece uma mostra da
educação do período. Dessa perspectiva, pretendemos analisar as construções
sociais e educacionais da época e suas contribuições para períodos posteriores,
de forma a estimular os leitores a refletir sobre a importância do tema para a
atualidade, uma vez que “(...) uma ciência nos parecerá sempre ter algo de
incompleto se não nos ajudar, cedo ou tarde a viver melhor” (BLOCH, 2001, p.45).
Mestre e governante serão as funções eminentes nesta dissertação,
porque tanto a função de educador quanto a função de governante encontram-se
intrinsecamente ligadas à forma como se constrói e organiza a sociedade, não
a do período medieval, mas também a de nossos dias. Como afirma Kant, “Entre
as descobertas humanas, duas que são dificílimas: a arte de governar os
homens e a arte de educá-los (Kant, 2004, p. 20)”.
Em suma, motivados pela perspectiva de que a importância de ambas
independe do momento a que se referem, pretendemos analisar estas duas
funções por meio de uma pesquisa bibliográfica. O mestre, ou educador, é
absolutamente necessário em qualquer contexto social, uma vez que auxilia o
homem a se integrar individual e coletivamente. Essencial tamm é o cargo de
governante. Este exerce significativa influência no povo que lidera e, em nossa
concepção, desempenhará um bom papel aquele que lutar pelos interesses da
sociedade.
Nosso trabalho foi desenvolvido com base nas obras de Alcuíno que foram
traduzidas em língua moderna, algumas do latim para o espanhol por Rubén
Peretó Rivas e outra do latim para o português pelo professor Aluysio Favaro.
Além delas, tamm nos apoiamos nos estudos realizados por historiadores,
10
como François Guizot, Émile Durkheim, Jacques Le Goff, Louis Ralphen, Etienne
Gilson, March Bloch, Jean Favier e Eleanor Ducket. Estes escritos, que nos
forneceram diferentes olhares históricos sobre as obras escolhidas, exerceram a
função de ‘ferramentas’ na construção de nossas análises.
É válido ressaltar que são poucos os textos escritos por Alcuíno traduzidos
em língua moderna. Talvez este seja um dos motivos de, no transcurso da
pesquisa, quase não encontrarmos trabalhos científicos que contemplem a
atuação deste mestre medieval ou que analisem suas obras.
Apesar disso, alguns dos temas específicos que abordamos no presente
trabalho aparecem em outros trabalhos científicos desenvolvidos no campo da
educação. Dentre eles, destacamos: Carlos Magno e as propostas de Reforma
Social e educacional (Final do século VIII e início do século IX), de autoria de
Regiani Vitoretti. Esta dissertação, na qual foi contemplado alguns aspectos da
educação medieval, será citada algumas vezes no presente trabalho.
Os documentos que fazem referência à educação medieval revelam a
autoridade e o prestígio que possuíam os grandes mestres. De acordo com essas
fontes, esses intelectuais sempre participavam ativamente na tomada de decisões
políticas e os governantes, quando não possam conhecimento de determinado
assunto, os consultavam.
É quase inevitável olharmos para os nossos dias e refletirmos sobre as
condições constrangedoras em que se exerce a função de educador e
governante. Aqueles que se dedicam à carreira docente infelizmente estão
cônscios de que nossa sociedade não compreende a importância do trabalho de
formação das futuras gerações do país. Esta ignorância social tamm deriva da
consideração (ou da falta dela) dos líderes do nosso país pela Educação.
Os educadores da Idade Média tiveram a iniciativa de preservar a cultura
antiga, porque tinham clareza da importância daquele modelo de Educação.
Mesmo que prezassem o ensino cristão, não dispensaram o conhecimento
desenvolvido até o momento.
No caso da experiência medieval, a cultura antiga salvou-se.
Graças a um trabalho de imenso valor, mas que nós hoje não
sabemos apreciar. Um trabalho humilde (e, necessariamente,
pouco original) de aprendizado elementar. “Um trabalho de
preservação, de salvação, da cultura antiga, conservando-a sob a
11
forma de minúsculas sementes que iriam sofrer longo e demorado
processo germinativo em solo novo” (LAUAND, 1986, p. 23).
Da citação acima, podemos tirar duas lições valiosas. A primeira é que não
podemos incorrer no erro de ignorar o conhecimento construído em épocas
anteriores, pelo fato de vivenciarmos um período de grande avanço científico e
tecnológico. Como afirma Durkheim:
Entre um estado histórico novo que o antecedeu, não um vazio,
mas sim um estreito laço de parentesco, pois, num certo sentido, o
primeiro nasceu do segundo. Os homens, porém, não têm
consciência desse laço; sentem a oposição que os separa de
seus predecessores; não em o que têm em comum com esses
últimos (2002 p. 24).
A segunda é que nós, educadores contemporâneos, precisamos ter a
percepção de qual é o processo educacional que contribuirá, de forma mais
significativa, para o desenvolvimento de nossa sociedade. Para isso, é necessário
ter conhecimento e disposição para interpretar os homens de nossa época.
Talvez, um bom início para tão árdua tarefa seja atentarmos para alguns
aspectos da educação medieval com base na vida, formação e prática
pedagógica de Alcuíno. Esse mestre, que demonstrou preocupação com as
necessidades educacionais do período em que viveu, tornou-se um dos
personagens principais de um movimento educacional importante ocorrido na alta
Idade Média: o Renascimento Carolíngio.
Alcuíno foi filho de uma família nobre. Ele nasceu entre os anos 730 e 735
em York,
2
ou em suas proximidades, e foi levado por seus pais, ainda criança, à
escola da catedral desta localidade, cujo arcebispo era Egberto. Elberto, seu
discípulo, foi o mestre responsável pela formação de Alcuíno. Foi nesta escola
que ele compreendeu a importância do estudo das escrituras e das artes liberais
compostas pelo Trivium e Quadrivium,
3
o que o tornou, posteriormente, um dos
principais defensores de tais conteúdos.
2
A cidade de York, capital da Nortúmbria, situava-se no norte da Inglaterra dos séculos VII e VIII
(RIVAS, 2004).
3
As artes liberais, constituídas do trivium e do quadrivium, são consideradas um legado da
antiguidade clássica. O trivium corresponde a três disciplinas literárias: gramática, dialética e
12
Paulatinamente, Alcuíno adquiriu responsabilidades dentro da escola:
tornou-se mestre e, em 757, quando Elberto foi consagrado arcebispo de York,
assumiu a direção desse centro de saber. Foi nesta escola que ele desenvolveu
uma das características mais importantes de seu trabalho educacional: preservar
e cuidar das obras que faziam parte da biblioteca pela qual tamm foi
responsável. Seu anseio por copiar e colecionar livros auxiliou significativamente
sua formação; por meio deste trabalho, ele adquiriu o conhecimento das obras
que influenciaram a sua prática pedagógica no Império Carolíngio.
Foi no ano de 781, na cidade de Parma em Roma, que Carlos Magno
encontrou Alcuíno, na época, com cinqüenta anos, e o convidou a ser mestre na
escola palatina. De acordo com alguns documentos, é provável que Alcuíno e
Carlos Magno se conhecessem desde o ano de 773
4
.
O mestre anglo-saxão aceitou o convite e instalou-se na corte até o ano de
790. Regressou à Inglaterra e permaneceu no país durante três anos. Quando
retornou à corte, tornou-se “[...] o promotor do que um dia seria o Renascimento
Carolíngio” (FAVIER, 2004. p. 412).
Os documentos historiográficos que abordam a história de Alcuíno revelam
que este mestre se tornou amigo próximo da família de Carlos Magno. Segundo
Rivas, ele tinha um carinho muito grande por Gisela, irmã de Carlos Magno, e por
Luís, o Piedoso, filho do imperador. Eleanor Ducket (1951) tamm o apresenta
como um mestre que cultivava a amizade no interior da corte.
Nesta família e comunidade, então, liderado e inspirado pelo rei,
Alcuíno logo encontrou seu lugar como professor, conselheiro, pai
e amigo. Ele cresceu para conhecer cada membro e amou cada
um de uma maneira santa e individual através do seu espírito de
amizade. (DUCKET, 1951, p. 91. Tradução nossa).
retórica. O quadrivium é constituído de disciplinas ligadas ao conhecimento matemático, são elas:
aritmética, geometria, astronomia e música. (JAEGER, 1995)
4
“Quando Carlos conheceu Alcuíno? Uma simples frase em Vida de Alcuíno nos revela que em
Parma o monge anglo-saxão não era um desconhecido para o rei. Carlos Magno o conhecia, diz o
biógrafo, “porque o monge tinha sido mandado ao seu encontro por seu mestre”. Ora, o Liber
pontificalis, que fala da embaixada enviada por Carlos a Roma em 773, menciona um certo
Albuinus, qualificado de deliciosus do rei. Traduzir deliciosus constitui um problema. Favorito?
Encarregado da diversão? De qualquer modo, esse Albuinus não é nem um bispo, nem um abade,
nem um conde, do contrário o Líber pontificalis não deixaria de mencioná-lo. O cubicular (alto
funcionário) Albin(o), que encontramos em 799 na corte pontifical entre os fiéis do papa, não podia
ser, em 773, o embaixador do rei franco. Além disso, nenhum outro texto menciona um Albuíno no
entourage de Carlos, ao passo que, como tamm sabemos, Alcuíno se fará chamar de bom
grado Albinus” (FAVIER, 2004, p. 400).
13
Além dos laços de amizade desenvolvidos por Alcuíno na corte, ele foi um
dos principais responsáveis pela formação de seus alunos, especialmente no que
diz respeito ao exercício de responsabilidades políticas. Aconselhava
constantemente pessoas que lhe solicitavam auxílio e o fazia, geralmente, por
meio de cartas repletas de exortações de cunho moral.
Cumpre destacar que, na Idade Média, este meio de comunicação era
muito utilizado, principalmente como uma forma de educar e instruir.
Diferentemente dos livros, as cartas eram breves e, segundo Rivas (2004),
constituídas basicamente de quatro partes: saudação, exortação introdutória do
tema a tratar, corpo da carta e conclusão. Elas tamm poderiam ser dirigidas a
públicos maiores por meio da cópia.
Como relatam toda a sua história na corte Carolíngia, as mais de 320
cartas de Alcuíno possuem um significativo valor documental. Segundo Rivas,
elas eram copiadas no scriptoria e propagavam-se nos monastérios e nas escolas
das catedrais.
5
Outra forma de ensino muito utilizada pelos mestres medievais e, em
particular, por Alcuíno eram os diálogos. Os seus geralmente abordavam
assuntos relacionados à teologia, retórica e gramática, exegese bíblica e
enigmas. Apresentam semelhanças e até mesmo citações dos diálogos clássicos
de Santo Agostinho, Platão e Cícero. Isto demonstra que Alcuíno tinha um amplo
conhecimento das obras clássicas da Patrística, bem como da cultura antiga.
Tanto o recurso pedagógico utilizado pelo mestre como as cartas tinham o
objetivo de instruir e ensinar. Contudo, os diálogos, além de caracterizar uma aula
da época, promoviam, por meio das perguntas e respostas, o estímulo constante
da reflexão, seja do aluno seja do mestre.
Matter. E.Ann, (1990), no artigo intitulado Alcuin’s Question and answer
texts, afirma que Alcuíno utilizava os diálogos com o objetivo de levar o aluno a
5
“La mayoría de las cartas de Alcuino fueron conservadas como colecciones en diferentes
manuscritos. El más antiguo que se posee es el Oesterreichischer Nationalbibliothek Cod. 795,
escrito a fines del siglo VIII en Salzburgo mientras era arzobispo del lugar Arno, uno de los amigos
más dilectos de Alcuino” (RIVAS, 2004 p. 42)”.
“A maioria das cartas de Alcuíno foram conservadas como coleções em diferentes manuscritos. O
mais antigo que se tem é o Oesterreichischer Nationalbibliothek Cod. 795, escrito ao final do
culo VIII em Salzburgo enquanto Arno, um dos amigos mais íntimo de Alcuíno era arcebispo do
lugar. (RIVAS, 2004 p. 42)”
14
desvendar uma determinada resposta que, a princípio, era definitiva, ou seja, em
seus diálogos não evidências de argumentações como se observa em Platão.
O filósofo antigo, notável por seus diálogos, buscava uma verdade elusiva,
passível de modificações por meio das controvérsias, cuja discussão tinha como
objetivo buscar nas perguntas e respostas uma compreensão crescente do
assunto exposto.
Entretanto, em um dos diálogos que pretendemos analisar no decorrer do
trabalho e cujo título é Diálogo entre Pepino e Alcuíno, o mestre, apesar de
transmitir respostas prontas, apresentava-as como resultado de intensa
observação e interpretação das diversas coisas que no mundo, o que confirma
mais uma vez que, na Idade Média, houve intenso uso de uma habilidade que é
inerente somente ao ser humano: a capacidade de reflexão.
É importante observar que os mestres medievais se preocupavam com a
forma de transmissão de conteúdos. Para eles, era muito importante que o
processo de ensino aprendizagem se efetivasse da melhor maneira; por isso, era
muito comum usarem recursos dicos, como, por exemplo, diálogos, enigmas e
também teatro
6
. Apesar da isenção de formalidade, a educação medieval tinha
uma finalidade e primava pelo desenvolvimento da observação, da reflexão e da
memória, habilidades que, consequentemente, promoviam o desenvolvimento da
própria humanidade.
A habilidade da observação era fundamental, pois fazia com que o
indivíduo se compreendesse como um elemento constituinte de um universo que,
de acordo com as necessidades da época, precisava ser desvendado. A reflexão
é a habilidade que diferencia o homem dos animais
7
; por isso, os mestres
medievais estimulavam, constantemente, seus aprendizes a refletir sobre suas
6
Há uma peça de teatro, cujo título é Sabedoria, escrita pela monja medieval, Rosvita de
Gandersheim (935), que busca ensinar, por meio de charadas, conteúdos matemáticos, além de
enfatizar as virtudes da fé, esperança e caridade (Lauand, 1998). Uma análise desta obra:
BOVOLIM, Zenaide, Z. C. Polido. A proposta educacional de Rosvita de Gandersheim no século
X. 165 f. Dissertação (Mestrado em Educação) Universidade Estadual de Maringá. Maringá,
2005.
7
A vida parece ser comum até para as próprias plantas, mas agora estamos procurando o que é
peculiar ao homem. Excluamos, portanto, a vida de nutrição e crescimento. A seguir uma vida
de percepção, mas essa também parece ser comum ao cavalo, ao boi e a todos os animais.
Resta, pois, a vida ativa do elemento que tem um princípio racional; desta, uma parte tem tal
princípio no sentido de possuí-lo e de exercer o pensamento. (...) se realmente assim é, afirmamos
ser a função do homem uma certa espécie de vida, e esta vida uma atividade ou ações da lama
que implicam um princípio racional (...) [ARISTÓTELES., 1973, p. 256].
15
inquietações, as quais poderiam ser desfeitas pela aquisição e desenvolvimento
dos conhecimentos cristãos. A memória, por sua vez, é uma habilidade que retém
o conhecimento que o torna homem e, por isso, tamm mereceu a atenção dos
mestres medievais no processo de formação de seus educandos.
Em nossos dias, embora o ‘aprender com prazer’ seja muito discutido em
todos os níveis de ensino, o aprendizado raramente se efetiva. Vivemos em uma
sociedade que, em geral, não compreende que a finalidade da educação vai
muito além de obter um emprego e sobreviver. Talvez seja esta incompreensão
que esteja produzindo alunos desinteressados, os quais, na melhor das
hipóteses, apenas cumprem as exigências que lhes o impostas. Comumente
encontramos professores que buscam o ensino por meio do lúdico e se esquecem
de promover o desenvolvimento da reflexão, o que significa deixar de promover o
desenvolvimento da humanidade em seus educandos. Sobre isso, Lauand faz,
com sabedoria, algumas considerações:
Pensemos, por exemplo, nos rbaros analfabetos que se
instalavam no espaço do ex Império Romano. Que faziam eles
com os livros? Que acesso físico (obter os manuscritos),
motivacional, de língua etc. tinham ostrogodos e visigodos à cultura
clássica? Quem contempla o panorama educacional brasileiro
percebe imediatamente que o ostrogodo é uma realidade atual,
atualíssima. Tal como no século VI, o perigo que enfrentamos é o
do simples desaparecimento da cultura greco-romana que plasmou
o Ocidente. Quem e compreende a fundo, hoje, Platão,
Aristóteles, Virgílio, Cícero, Agostinho, Tomás de Aquino, Dante?
(LAUAND, 1998, p. 3).
O autor chama a atenção para o perigo de desaparecimento completo dos
conhecimentos legados pela cultura greco-romana e que ainda podem ser
encontrados no interior das instituições de ensino. Esse desaparecimento
contribuiria ainda mais para o declínio do pensamento reflexivo.
Alcuíno, consciente do legado deixado pela educação antiga, soube, com
sabedoria, utilizá-la juntamente com a educação cristã, que, pelos esforços de
Carlos Magno, difundia-se rapidamente pelo Império.
É esta forma de educar que analisaremos no decorrer deste trabalho, cuja
divisão contém três momentos.
16
O primeiro é dedicado aos aspectos historiográficos que contribuíram para
as reformas educacionais no Império Carolíngio, mais especificamente os
aspectos políticos, sociais, educacionais e religiosos, desde a queda do império
Romano no Ocidente até a organização dos francos na dinastia Carolíngia. Nossa
atenção tamm está voltada para a difusão do cristianismo, bem como para o
desenvolvimento das bases cristãs no pensamento medieval. Esta apresentação
historiográfica é importante, porque situa o leitor no contexto histórico do período
que pretendemos analisar, qual seja, o dos séculos VIII e IX.
No segundo, analisaremos a organização do Império Carolíngio como o
contexto no qual a cultura clássica, que influenciou Alcuíno, se fundiu com a
formação cristã que o mestre recebeu. Estes temas são de significativa
importância, porque se relacionam com as fontes que Alcuíno utilizou ao longo de
sua formação e nos auxiliam a analisar como isso está evidenciado em suas
obras.
No terceiro momento, desenvolvemos o tema que deu origem ao título do
presente trabalho. Baseando-nos em três documentos destinados à educação de
governantes: Debate sobre a retórica e sobre as virtudes do sapientíssimo rei
Carlos e do mestre Alcuíno, Diálogo entre Pepino e Alcuíno e Libro acerca de las
virtudes y los vícios para el conde Guido, além da obra Acerca de la naturaleza
del alma
8
, é possível perceber como o homem medieval considerou a função de
mestre e governante no período de Alcuíno, bem como analisar as propostas
pedagógicas deste mestre medieval para a formação de dirigentes.
8
Os títulos destas obras foram traduzidas do espanhol e são respectivamente Livro a respeito das
virtudes e dos vícios para o conde Guido e A respeito da natureza da alma.
17
1. ASPECTOS HISTORIOGRÁFICOS QUE CONTRIBUÍRAM PARA AS
REFORMAS EDUCACIONAIS NO OCIDENTE CAROLÍNGIO
A historiografia, que consiste no estudo histórico e crítico acerca da
história, sem dúvida, oferece elementos a diversos campos do saber e permite a
construção de uma análise e de uma reflexão mais aprofundada a respeito dos
problemas e inquietações já vivenciadas pelos homens.
A apresentação de um estudo a respeito do século IX e do Renascimento
Carolíngio é possível, de nosso ponto de vista, se antecedida de uma
exposição do contexto histórico dos séculos anteriores. Por isso, antes de
apresentarmos aspectos importantes sobre a dinastia Carolíngia, buscamos
compreender, em linhas gerais, como se deu o desenvolvimento político e
educacional da dinastia anterior, a Merovíngia.
Estas informações delinearão as condições que contribuíram para a
organização da dinastia Carolíngia, cujo destaque em nossa análise se explica
pela presença do mestre Alcuíno de York, foco de nossa investigação.
Com base nos aspectos mencionados, sepossível elucidar o principal
objetivo do capítulo, qual seja, o de apresentar ao leitor a importância da
educação dos governantes na história do povo franco, bem como o papel
desempenhado pela Igreja neste processo.
1.1. A situação do Império romano no século V.
Os primeiros agrupamentos humanos nos revelam que o homem, por
possuir um instinto gregário, atribuía ao convívio social o papel fundamental para
a manutenção da vida. Ele poderia ter força física ou espírito guerreiro, porém
tinha a consciência de que estes atributos, utilizados apenas de forma individual,
não o protegeriam dos perigos que julgava existir. Logo, a capacidade de
organização e as relações de solidariedade de um determinado grupo estavam
intrinsecamente ligadas às condições de existência do mesmo
9
.
9
Agora é evidente que o homem, muito mais que a abelha ou outro animal gregário, é um animal
social (...) a característica específica do homem em comparação com os outros animais é que
somente ele tem o sentimento do bem e do mal, do justo e do injusto e de outras qualidades
morais, e é a comunidade de seres com tal sentimento que constitui a família e a cidade
(ARISTÓTELES, 1985, p.15).
18
Neste item do trabalho temos a intenção de apontar algumas
características da organização dos povos nômades, mais especificamente dos
Francos, bem como refletir sobre o desenvolvimento desta tribo até a dinastia
Carolíngia.
Como os Francos, aos poucos, conseguiram invadir o Império Romano no
século V, também é oportuno verificar o que a historiografia nos informa a
respeito desta sociedade nesse período. Embora sejam comunidades opostas
quanto à concepção de organização social, o estudo dos povos francos,
acompanhado de algumas considerações sobre o povo romano da época, torna
possível a compreensão de como os governantes romanos assimilavam os
conceitos de organização social, necessidade de sobrevivência e bem comum e
como os líderes francos aos poucos desenvolveram a compreensão desta
estrutura social.
O Império Romano (1000 a.C. a 476 d.C. aproximadamente), mbolo de
força, poder, cultura e desenvolvimento na Idade Antiga, vivenciou períodos de
crises e decadência. Os motivos que levaram a este acontecimento foram rios:
declínio econômico, cultural e o enfraquecimento do exército. Diante deste
quadro, as invasões dos povos nômades contribuíram de forma significativa para
o processo de desestruturação da sociedade romana
. Na busca constante por
salvaguardar a vida, as tribos germânicas se instalavam nos arredores do Império
e se utilizavam do único recurso aprendido no interior de suas tribos, ou seja, da
força. Para uma sociedade que estava em crise, o saque, a pilhagem e a
destruição de alguns territórios foram elementos que enfraqueceram
definitivamente o Imrio Romano.
Quando nos deparamos com o fato de que uma sociedade aparentemente
organizada é invadida por povos incultos, tendemos a fazer uma leitura
maniqueísta
10
da situação. Porém, como foi mencionado, estes povos
buscavam fundamentalmente o que todo homem buscaria diante de situações
10
Doutrina do sacerdote persa Mani (lat. Manichaeus), que viveu no séc. III (...). Admite dois
princípios: um do bem, ou princípio da luz, e outro do mal, ou princípio das trevas (...)”
[ABBRAGNANO, N. Dicionário de filosofia. Trad. Alfredo Bosi. 4 ed. São Paulo: Martins fontes,
2000].
19
ameaçadoras: preservar a vida por meio do vínculo social. Os romanos, por sua
vez, tamm tentaram, à sua maneira, adaptar-se e conviver com os invasores.
Sobre o assunto, Le Goff afirma:
Quando Jordanes acentua que, se os Godos pegaram em armas
contra os Romanos em 378, foi porque tinham sido confinados num
território exíguo e sem recursos, onde os Romanos lhes vendiam a
peso de ouro carne de cão e de animais repugnantes, exigindo-
lhes os filhos como escravos em troca de um escasso alimento. Foi
a fome que os armou contra os Romanos. De fato, duas atitudes
romanas tradicionais perante os Bárbaros. A princípio, conforme as
circunstâncias e os homens, dispunham-se a acolher os povos que
se lhes apinhavam à porta e, mediante o estatuto de federados,
respeitavam-lhe as leis, os costumes e a originalidade; desse modo
lhes moderavam a agressividade e faziam deles, em seu proveito,
soldados e camponeses minorando a crise de mão-de-obra
militar e rural (1983 p. 31).
O povo romano, subjugado por seus governantes, em rios momentos
preferiu aliar-se aos povos nômades que aos poucos se infiltravam no império.
Esta crise despertou diferentes reflexões por parte dos estudiosos da época. Le
Goff cita Salviano, monge do século V, que assim descreve a situação social do
período:
Os pobres estão despojados, as viúvas gemem e os órfãos são
pisados a pés, a tal ponto que muitos, incluindo gente de bom
nascimento e que recebeu educação superior, se refugiam junto
dos inimigos. Para não perecer à perseguição pública, vão procurar
entre os Bárbaros a humanidade dos Romanos, pois não podem
suportar mais, entre os Romanos, a desumanidade dos rbaros.
São diferentes dos povos onde se buscam refúgio; nada têm das
suas maneiras, nada m da sua língua e, seja-me permitido dizer,
também nada têm do odor tido dos corpos e das vestes dos
Bárbaros; mas preferem sujeitar-se a essa dissemelhança de
costumes a sofrer, entre os Romanos, a injustiça e a crueldade.
(...) gostam mais de viver livres sob aparência da escravidão que
de ser escravos sob a aparência da liberdade (Salviano apud LE
GOFF, 1983, p. 36).
Salviano revela que a concepção, que se tinha na época, sobre os
invasores mades e os romanos poderia estar distorcida. Estes últimos eram
considerados como indivíduos civilizados. Os primeiros, por sua vez, eram
famosos por sua crueldade na conquista de territórios. No entanto, a massa da
sociedade romana, oprimida, principalmente, pela alta carga tributária imposta
20
pelos governantes, encontravam mais humanidade nos estrangeiros que
adentravam o território do que em seus próprios dirigentes.
É possível perceber que, neste momento, os governantes romanos não
estavam interessados no bem comum da sociedade, mas apenas na satisfação
de seus próprios interesses. Este comportamento por parte de quem estava na
liderança o era algo incomum. É possível verificar que, desde o século V a.C.,
em razão dessa tendência, a formação dos governantes foi tema de vários
escritos de Platão, inclusive em A República
11
. Pode-se afirmar, portanto, que,
naquela época, o indivíduo designado a liderar deveria possuir uma boa formação
para que não fosse tentado a subjugar com injustiça os interesses do povo. Sobre
a educação do governante, Jaeger considera:
Para Platão, é evidente, e não precisa ser fundamentado, o fato de
que os governantes do Estado só podem sair da camada dos
representantes das supremas virtudes guerreiras e pacíficas.
Segundo ele, é exclusivamente pelo fato de possuir a melhor
educação que o exercício do poder supremo está subordinado.
Mas a educação não acaba, de forma alguma, na formação dos
“Guardiões”.
...Mediante uma observação e um exame incessantes mantidos
desde a infância, verifica–se quais o os “guardiões” que
possuem em mais alto grau as qualidades de sabedoria prática, de
talento e de preocupação com o bem comum, decisivas naqueles
que vão reger o Estado ( JAEGER, 1999, p.802).
A educação mencionada ocorria desde a infância até os 50 anos e visava
formar um rei-filósofo, ou seja, um sábio, e não apenas um indivíduo perspicaz
nas artes guerreiras. Platão pensava a educação da perspectiva da totalidade, de
forma que, para ele, a virtude, a justiça, a prudência, a temperança e a força eram
adjetivos intrínsecos à arte de governar.
Xenofonte foi outro autor que escreveu um tratado de liderança, destinado
a enfatizar que o dever do príncipe era lutar pelos interesses de seu povo.
Nascido em Atenas, aproximadamente no ano de 430 a.C, e tendo sido discípulo
11
“Quinze anos. Será tempo, então, de conduzir ao termo os que, cumprindo cinqüenta anos,
hajam saído puros destas provas e se tenham salientado tanto na ciência como na conduta,
obrigando-o a volver os olhos da alma ao ser que tudo ilumina, a contemplar a essência do bem
para dêle se servir daí por diante como padrão regulador dos próprios costumes e dos costumes
do Estado e de cada cidadão, e ocupando-se quase sempre do estudo da filosofia; mas, quando
lhes chegue a ocasião, encarregando-o do pêso da autoridade e da administração dos negócios,
com a mira no bem público e na persuasão de que é menos um posto que uma obrigação
penosa e inelutável (PLATÃO, s/d, p. 324)”.
21
de Sócrates e contemporâneo de Platão, Xenofonte vivenciou praticamente o
mesmo período desses grandes filósofos. Observou os diversos regimes de
governo e, posteriormente, por meio de uma de suas obras, a Ciropédia, cujo
significado é educação de Ciro”, apresentou ao povo grego como deveria ser o
príncipe perfeito.
O texto é um romance, cujo enredo é imaginário, inspirado em Ciro, o
antigo, um militar persa. Por meio desse personagem Xenofonte constrói a
imagem de um monarca ideal, conquistador de vários territórios, que ascendeu ao
trono graças à sua habilidade na arte da liderança.
É importante ressaltar que a Ciropedia é uma proposta de educação
que, pautada em princípios morais, destina-se aos governantes. De acordo com o
autor, o líder de um povo deveria desenvolver as virtudes guerreiras, ser mais
sábio que os seus súditos, ser capaz de resolver os conflitos humanos da melhor
maneira possível e, principalmente, zelar pelos interesses de seu povo. Dessa
forma, promoveria a admiração por parte daqueles que estavam sob seu jugo. A
seguir, um trecho do diálogo que contém os principais conselhos de Cambises,
pai de Ciro e um dos principais responsáveis por sua educação:
Realmente, quando reflito sobre isso, parece – me verificar em tudo
que o meio mais eficiente de conduzir à obediência é louvar e
honrar o obediente, vituperar e punir o desobediente.
- Esse, com efeito, meu filho, o caminho para uma obediência
imposta, mas outro, mais curto, para outra obediência muito
melhor, a espontânea. Os homens obedecem com o máximo gosto
quem, na sua opinião, pensar melhor do que eles próprios no que
lhes convém. Podes verificá-lo, além de muitos casos, sobretudo
no dos doentes, que chamam com tamanha prontidão quem lhes
prescreva o que fazer; bem assim, na docilidade com que, no mar,
obedecem ao piloto os companheiros de viagem e na constância
dos itinerantes em seguir na pegada de quem eles acreditam
conhecer o caminho melhor do que eles. Quando, porém,
imaginam que a obediência redundará em algum dano, não se
dispõem a recuar sequer um pouco diante dos castigos, nem
influenciar-se pelas dádivas, pois ninguém aceitará de boa mente
dádivas a troco de seu próprio dano.
_ “Tu queres dizer, pai, que a coisa mais eficaz para mantê-los na
disciplina é parecer mais sábio do que os subordinados”.
_ É que eu estou dizendo.
_ “Sim. Agora, o meio de ganhar a estima dos subordinados, o que,
a meu ver, é da máxima importância, é o mesmo, é claro, de quem
deseja a afeição dos amigos; é necessário, penso eu, que vejam
em mim o seu benfeitor (Xenofonte 197? p. 45-46)”.
22
A citação acima revela que Xenofonte busca elementos que possam
transformar a sociedade da época em uma ordem caracterizada principalmente
pela justiça e pela força, uma vez que, em razão das guerras, a situação que
vivenciava era contrária a este anseio. O governante, segundo ele, deveria ser
sábio e, mais do que isso, ser reconhecido pelos seus súditos como tal. Um líder,
possuidor desta virtude, certamente teria um governo forte, difícil de ser abalado
por conflitos vindouros. A obediência espontânea por parte dos súditos e a
valorização da amizade por meio de atitudes justas para com eles revela que a
outra virtude constantemente pregada pelos filósofos e legisladores gregos era a
justiça.
Para Xenofonte e Platão, a organização da polis deveria ser pautada
nos interesses do bem comum. Ambos estavam preocupados com a educação
helênica e principalmente com a direção política ideal para aquele momento de
reconstrução social. No entanto, é importante ressaltar que, em seus diálogos,
Platão enfatiza a necessidade de existência das diferentes classes na sociedade,
legitimando o serviço do escravo e das classes menos favorecidas e
caracterizando-os como sustentáculos da República:
(...) Frisemos agora que, ao contrario, quando cada classe do
estado, a dos mercenários, a dos guerreiros e dos magistrados, se
atém aos limites dos próprios deveres especiaes, tem-se o domínio
da justiça, o que faz justo o estado (PLATÂO, s/d, p. 159).
Diferentemente da República de Platão, na
Ciropedia, Xenofonte
acrescenta à necessidade de suprir as necessidades sociais uma valorização de
princípios morais para que os subordinados sempre tivessem admiração pelo
príncipe e o obedecessem de livre e espontânea vontade.
É válido evidenciar tamm que, ao descrever o chefe ideal, Xenofonte
menciona algumas características do mau governante, como seu tio, por exemplo.
Estes aspectos são citados no prefácio da obra da seguinte forma:
Em contraste com o chefe ideal, delineia a caricatura do chefe
errado. Ciaxerxes queria tudo para si, até os presentes que os
súditos ganhavam; avocava a si toda honra e todo proveito;
chegava a ter ciúmes dos êxitos de seus colaboradores. Por isso,
os vassalos procuravam ocasião de libertar-se de seu mando e
passavam gostosamente para o de Ciro (Xenofonte, prefácio).
23
Esta situação é bem semelhante com a que a plebe romana vivenciou,
quando identificou nos povos germânicos mais humanidade que nos líderes a que
estavam submetidos. Em busca de condições de existência, tanto os germanos
quanto os romanos tornaram-se aliados e “Deste modo, cada um dos dois
campos parecia ter caminhado ao encontro do outro. Os romanos, decadentes,
barbarizados por dentro, rebaixavam-se ao nível dos Bárbaros, ainda mal
talhados, só polidos por fora” (LE GOFF, 1983, p. 39).
Para que esta situação não se tornasse permanente, fez-se necessário que
uma nova educação respondesse às necessidades sociais. É neste momento que
a Igreja, propagadora dos ensinamentos cristãos, começou a se tornar a principal
responsável pela reconstrução social.
1.2. As bases cristãs do pensamento medieval
Mesmo em meio ao caos decorrente das grandes invasões, a Igreja
apresentou-se como uma instituição mais organizada que as demais, cumprindo
um papel fundamental: am de preservar a integridade física dos indivíduos que
dela se aproximavam, também se ocupou de preservar a integridade intelectual
(OLIVEIRA, 1999).
Na opinião de François Guizot, foi ela que mais contribuiu para a
organização da sociedade da época. Além disso, na medida em que produziu a
unidade entre os homens, favoreceu o desenvolvimento das sociedades
posteriores. Em suas palavras:
[...] Na sociedade religiosa, ao contrário, manifesta-se um povo
muito animado, um governo ativo. As causas da anarquia e da
tirania o numerosas; mas a liberdade é real e o poder também.
Por toda a parte encontram-se e se desenvolvem os germens de
uma atividade popular muito enérgica e de um governo muito forte.
É em uma palavra, uma sociedade cheia de futuro, de um futuro
agitado, carregado de bem e de mal, mas poderoso e fecundo
(GUIZOT, 1999 p. 4).
Guizot faz uma comparação entre a sociedade secular e a religiosa e
conclui que esta última se apresenta mais organizada que a primeira. Para o
24
autor, em razão desta organização, a Igreja se erigiu como uma instituição que
exerceria, no futuro, um poder real.
A Igreja assumiu a função de educadora dos povos nômades e ofereceu
um ensino que diferiu substancialmente da cultura antiga, o qual não pode ser
considerado como superior ao anterior, pois, embora diferentes, as duas
propostas tinham o mesmo objetivo, o de formar indivíduos para a sociedade. O
fato de as sociedades antiga e medieval serem distintas em muitos aspectos
implica uma educação tamm diferenciada. Sobre a educação ministrada pela
Igreja, Durkheim afirma:
Todos os ensinamentos reunidos eram dados num mesmo local e,
portanto, submetidos a uma mesma influência, a uma mesma
direção moral. Era a que emanava da doutrina cristã; era a que
fazia almas. À dispersão de outrora sucedia-se, portanto, uma
unidade de ensinamento. O contato entre os alunos e o professor
dava-se, entretanto, a todos os instantes (...) Ora, essa
concentração do ensinamento constitui uma inovação fundamental,
que testemunha a profunda mudança ocorrida na concepção que
se tinha da natureza e do papel da cultura intelectual (DURKHEIM,
2002, p. 32).
A organização educacional construída pela Igreja favoreceu a organização
da própria sociedade. Embora a desestruturação do império romano tenha afligido
os grandes centros que difundiam o conhecimento na época, a Igreja atuou de
forma decisiva quanto ao objetivo principal de pregar o evangelho e reeducar os
indivíduos que dela se aproximavam. Esta instituição, empenhada nesta missão,
contou com o apoio de muitos personagens que contribuíram significativamente
para o processo de organização e evangelização. Dentre estes, destacamos São
Bento de Núrsia, cuja importante atuação como educador teve repercussões em
toda a Idade Média.
São Bento de rsia (480-547) foi fundador da Abadia de Monte Cassino,
onde criou 78 regras que obrigatoriamente deveriam reger a vida dos monges que
adentravam o mosteiro.
Este abade estabeleceu a ordem no recinto religioso, fazendo várias
admoestações relacionadas à liturgia, ao comportamento da liderança e dos
demais funcionários. São Bento retirou das Sagradas Escrituras padrões de
comportamento essenciais ao desenvolvimento físico, mental e espiritual dos
25
indivíduos. Segundo Favier, “o monacato beneditino é feito de equilíbrio, de
independência espiritual, de sabedoria econômica” (2004, p.389). Estas
características ressaltam que o desenvolvimento da organização foi fundamental
no processo de civilização social, pois não há sociedade sem princípios de
organização e sem a interação civilizada entre os indivíduos que a constituem. As
relações de reciprocidade entre os membros de um determinado grupo são
essenciais à manutenção da vida, por isso, as regras beneditinas foram
importantes para a sociedade medieval.
Os ensinamentos das Sagradas Escrituras eram considerados
fundamentais pelos religiosos, os quais sabiam que seus preceitos eram capazes
de organizar a vida do indivíduo, estimulá-lo à reflexão e torná-lo apto a viver em
sociedade. As regras de São Bento são um exemplo nítido de que os princípios
bíblicos foram essenciais naquele período de crise moral, uma vez que ensinaram
o homem inserido em uma sociedade desorganizada a se tornar capaz de se
relacionar com seu próximo. Vejamos, a seguir, algumas sentenças do quarto
capítulo da Regra intitulada Quais são os instrumentos das boas obras:
1 - Primeiro, amar ao Senhor Deus de todo o coração, de toda a
alma, com todas as forças.
2 - Depois, amar ao próximo como a si mesmo.
3 - Em seguida, não matar.
4 - Não cometer adultério.
5 - Não furtar.
6 - Não cobiçar.
7 - Não dar falso testemunho.
8 – Honrar todos os homens.
(SÃO BENTO, 1993, p. 23)
As duas primeiras regras o uma resposta de Jesus a uma pergunta feita
por um doutor da lei sobre qual seria o grande mandamento (Mateus 22,37-39).
Ele respondeu que eram essas duas porque elas representariam o resumo dos
dez mandamentos, uma vez que a observância delas implicaria na obediência ao
restante da lei.
As sentenças de três a sete são partes do decálogo, ou seja, das leis
especificadas no texto descrito em Êxodo 20, 13-17 , o que, de certo modo, é uma
repetição, porque se um indivíduo é capaz de amar a Deus sob todas as coisas e
ao próximo como a si mesmo será incapaz de prejudicar a outrem.
26
Alguns dos capítulos restantes não mencionados apresentam outros
conselhos bíblicos, como, por exemplo, o capítulo 36, Dos irmãos doentes”, e o
capítulo 25, “Das culpas mais graves”, que aponta as orientações para os que
cometem erros. Nestas sentenças, São Bento utiliza textos bíblicos para confirmar
a validade da regra.
Por fim, algumas regras desenvolvidas pela Igreja são de caráter
tradicional. O capítulo 14, Como se celebram as Vigílias nas festas dos Santos”,
e o capítulo 49, “Da observância da quaresma”, o exemplos desta categoria de
sentenças.
De maneira geral, podemos considerar que os princípios cristãos
contemplados, sistematicamente, nas Regras expressam que a reflexão de São
Bento tinha como base as Sagradas Escrituras. Por meio delas, ele descobriu que
os desígnios divinos tinham por finalidade educar o homem para que este
pudesse viver da melhor forma possível consigo mesmo e também em sociedade.
A reflexão cristã de São Bento caracterizou toda a Idade Média. As regras
foram adotadas pela maioria dos mosteiros criados posteriormente. Os mosteiros
adeptos da Ordem Beneditina, criada pelo monge, zelavam principalmente pela
observância de preceitos de boa convivência.
12
Estes mosteiros desempenharam um papel muito importante na
preservação e na propagação do conhecimento. Seus monges desenvolveram um
importante ofício, o de copistas, o que contribuiu para o aumento do número e
para a circulação das obras que iriam auxiliar na formação dos futuros teóricos da
Idade Média. Nas palavras de ULLMANN:
As escolas monacais e os mosteiros não viviam isolados. Além da
troca epistolar, mantinham intercâmbio de códices, os quais eram
copiados para enriquecer os tesouros das bibliotecas. Salvaram-se,
assim, muitas obras, que, sem o labor persistente dos monges,
para sempre teriam desaparecido. Graças a eles, sobreviveram as
humanidades clássicas (ULLMANN, 2000, p. 37).
No interior dos mosteiros, a arte da cópia era um trabalho comum e muito
importante. Muitos estudiosos, preocupados com a integridade das obras
12
O conceito de Ordem dentro da perspectiva de organização religiosa refere-se à “Associações
de indivíduos da mesma crença que decidem viver num ambiente diverso da sociedade dos
homens comuns para se libertarem dos interesses e preocupações mundanos e levarem uma vida
de sacrifícios e ascetismo (...) [SCHLESINGER. H, PORTO. H, 1995]”.
27
reescritas pelos copistas, escreveram algumas recomendações aos que se
ocupavam dessa arte da reprodução. Eis como Cassiodoro (485-580), fundador
do mosteiro de Vivarium
13
, outro mosteiro de fundamental importância na época, e
que era admirador do trabalho dos copistas, se manifestou a respeito do assunto:
Quanto a mim, eu vos manifesto minha predileção: entre as tarefas
que podeis realizar com esforço corporal, a dedicação dos
copistas, se escrevem sem erros, é - e talvez não injustamente - o
que mais me agrada. Pois, relendo as Escrituras divinas, instruem
de modo salutar sua mente e copiando espalham por toda parte os
preceitos do Senhor.
Pois Satanás recebe tantas feridas quantas são as palavras do
Senhor que o copista transcreve. Ele, permanecendo em seu lugar,
percorre diversas províncias com a disseminação de suas obras.
Seu trabalho é lido em lugares santos. Os povos ouvem e podem
renunciar à sua vontade perversa e servir o Senhor com mente
pura. Com seu trabalho, ele age, mesmo estando ausente
(CASSIODORO, Instituições, cap. 30).
14
Cassiodoro considera importante este trabalho, especialmente pela função
social que os monges “trabalhadores” desempenhavam. Referindo-se à pregação
do evangelho, ele afirma que o conteúdo das obras escritas ou copiadas pelos
copistas era capaz de penetrar nas mentes dos homens, mesmo que seus
autores não estivessem presentes
15
.
A propagação do conhecimento foi o lema dos teóricos da Antiguidade e da
Idade Média. Mesmo diante dos vários aspectos sociais que se confrontavam com
o desenvolvimento da educação, eles não se deixaram abater, pelo contrário,
fizeram incessantes esforços para transmitir à sua época conhecimentos que
13
Segundo Lauand: No Cap. 29, "Sobre a localização do Mosteiro de Vivarium e do Castellense",
Cassiodoro fala do quão adequado é o lugar (perto de Squillace, Calábria) e do empenho e
cuidados que teve ao construir Vivarium. Nas palavras de Cassiodoro: “Na verdade, a posição do
mosteiro de Vivarium é adequada para prestar ajuda a muitos peregrinos e necessitados, pois
tendes hortos irrigados e tendes perto as correntes piscosas do rio Pellena
, que não é perigoso
pela dimensão de suas águas nem desprezível por pequenez. Regulado com engenho, ele corre
por onde julgueis necessário e é suficiente para vossos hortos e moinhos. Ele está aqui quando
desejeis e, depois de atender a vossos desejos, afasta-se em seu curso. Assim, ele devota-se a
este serviço: não vos atemoriza e não vos pode faltar quando o procurais”. Disponível : <
http://www.hottopos.com/videtur31/jean-cassiodoro.htm> Acesso em: 26/08/2007.
14
Disponível em: http://www.hottopos.com/videtur31/jean-cassiodoro.htm
. Acesso em:
10/02/2008).
15
Esta discussão foi feita por Oliveira, T. em trabalho apresentado na VI ANPEDSUL, 2006, cujo
título é O papel dos Mosteiros na preservação do ensino e da vida na Primeira Idade Média. Em
breve será publicado como artigo.
28
desenvolveriam no homem a capacidade de viver em sociedade. Sem saber o
alcance de tais esforços, legaram às gerações posteriores grande parte do
conhecimento construído pela humanidade até então, além do exemplo de
mestres
16
.
Vejamos, no item a seguir, como os princípios religiosos ultrapassaram os
limites dos mosteiros e começaram a influenciar a organização dos povos francos,
povos nômades, que deram origem à dinastia carolíngia.
1.3. Igreja e Estado: uma nova possibilidade de organização social
Com a queda do Império romano, a concepção de Estado que se tinha até
então, ou seja, a idéia de Respublica deixou de existir. Os francos, povos
nômades que evidenciavam uma maior assimilação da cultura romana,
apresentaram, em seus princípios de organização, características de uma
sociedade patronal e patrimonial. Sua compreensão do que seria um rei e das
funções que este deveria desempenhar era totalmente oposta à concepção antiga
de realeza. Nas palavras de Strayer:
Na alta Idade Média, a forma dominante de organização política na
Europa ocidental foi o reino germânico, que, nalguns aspectos,
representava a perfeita antítese daquilo que é um estado moderno.
Baseava-se num sistema de lealdade a pessoas, e não a conceitos
abstractos ou a instituições impessoais. Um reino era constituído
por todos aqueles que aceitavam um determinado homem como
rei, ou que, nas sociedades mais estáveis, reconheciam o direito
hereditário de uma determinada família a reinar.
[...] O rei existia para resolver casos de emergência, e não para
dirigir um sistema legal ou administrativo. Falava em nome do seu
povo com os deuses, conduzia-o na batalha com outros reis, mas
cada comunidade resolvia os seus próprios assuntos internos. A
segurança provinha da família, da vizinhança e do senhor, não do
rei (STRAYER, s/d p. 18-19).
Desde a queda do Império Romano até a alta Idade Média, não havia a
compreensão de um Estado destinado a servir ao interesse comum, mas a de um
governo impregnado de uma cultura da força e da guerra que o impulsionava a
conquistar cada vez mais territórios.
16
Alcuíno também desenvolveu a arte da cópia e certamente foi influenciado por Cassiodoro
Retomaremos este assunto no item 2.4 O sagrado e o profano na preservação do saber.
29
Não obstante, como podemos verificar no item anterior, o cristianismo
propagado pela Igreja contribuiu para o processo educacional da época.
Durkheim considerava esta instituição como a professora dos povos nômades: E
a Igreja é que serviu de mediadora entre os povos heterogêneos, ela foi o canal
pelo qual a vida intelectual de Roma conheceu uma progressiva transfusão nas
novas sociedades que estavam em via de formação” (2002, p. 26). Com isso, a
forma como os povos mades, inclusive os francos, concebiam o governo
começou a mudar.
As reflexões de dois teóricos do final do século VI, Gregório Magno (590-
604) e Isidoro de Sevilha (560-636), apontam para uma reestruturação da
concepção de Estado que se tinha até então. Nesta nova compreensão, o novo
modelo, diferente do antigo, era o do Estado cristão.
Gregório Magno, pontífice romano, ainda fortemente influenciado pela
estrutura do Antigo Império, reformou a liturgia e o canto da Igreja e, na missão de
cristianizar os povos nômades, assumiu o papel de pastor orientador dos
governantes. Seu grande objetivo era unir o poder civil e religioso em um regime
de colaboração, cujo foco estaria centralizado nos interesses da sociedade. Em
favor dela é que o poder deveria ser exercido.
Manifesta-se, aí, o propósito deliberado de trazer ao rebanho povos
ainda não cristianizados, chamar à ordem reis convertidos, mas
pouco atentos às coisas da fé. A atitude de Gregório é, porém, a de
pastor zeloso que aconselha. O que o anima é a vontade de
estreitar a colaboração, não a de subordinar o Estado à Igreja. Ao
que aspira é que o poder secular sirva de desígnio divino da
salvação do homem, numa retomada da doutrina gelasiana de
dualismo e cooperação de poderes (RIBEIRO, 1995, p. 96).
Para Gregório, o rei é responsável pelo povo diante de Deus. A moral e
o ato de servir a sociedade devem ser as principais características de um
soberano. Este não deve gozar de privilégios pessoais; sua ação perante o povo
deve ser ética e justa. É importante observar que Gregório combate a atitude dos
reis indolentes de Roma e aconselha atitudes opostas por parte daqueles que
tinham em suas mãos o poder de liderança.
Os homens justos, quando estão no poder, não se vestem da força
do mando, porém da igualdade de natureza; nem se vangloriam de
governar os homens, mas servi-los. Ora, eles sabem que os
30
antepassados são lembrados não tanto por terem sido reis de
homens, quanto por terem sido pastores de seus rebanhos. Em
verdade, na natureza o homem tem precedência sobre os animais
irracionais, não sobre os outros homens (GREGORIO MAGNO
Apud RIBEIRO, 1995, p. 100).
Segundo as palavras de Gregório, o título adquirido por um indivíduo não o
torna superior aos seus semelhantes. Este sentimento se deve ter em relação
aos animais que não se utilizam da capacidade de reflexão. Ao enfatizar a atitude
de servir por parte dos governantes, ele retoma os princípios do Estado justo em
Platão, para quem os líderes devem (...) carregar nos ombros o peso das
funções políticas e da direção das questões públicas tendo em mira apenas o
Bem da cidade, com convicção, o de que executam uma função honrosa, mas
de que cumprem um dever iniludível” (PLATÃO,1985 p. 84).
Além de Gregório Magno, como mencionamos anteriormente, Isidoro de
Sevilha tamm escreveu sobre o poder secular e religioso. Este arcebispo
espanhol, que vivenciou o governo visigótico do século VII, foi considerado um
importante matemático, teólogo e tradutor de sua época. Uma de suas obras de
maior relevância, composta por vinte livros que abordam conteúdos das mais
diferentes cncias, tem como tulo Etimologias, que, segundo o próprio autor,
significa origem dos vocábulos”. Muito consultada pelos estudiosos, ela foi
considerada como uma enciclopédia medieval. (LAUAND, 1998, p. 105).
Isidoro atribuía muita importância à linguagem escrita de sua época. Ele
retomava a palavra em sua essência ou analisava a sua procedência e, desta
forma, proporcionava mais vida àquilo que se propunha a expressar. Um estudo
dedicado à palavra reflete a preocupação do autor com o gradativo esquecimento
da cultura de sua época. Preservar a língua latina em sua essência contribuiria
para a conservação do saber antigo que já sofria significativas mudanças.
Como um intelectual de seu tempo, Isidoro lutou para salvaguardar
questões que julgava serem fundamentais à preservação da instrução.
Influenciado por Gregório, ele tamm elaborou uma doutrina política acerca do
poder secular e religioso e, de forma semelhante, propôs a colaboração entre os
dois poderes, num regime igualitário, embora considerasse que a realeza deveria
estar a serviço da causa cristã. Sempre muito próximo ao modelo delineado por
Gregório, ele tamm afirmava que o poder do príncipe era de origem divina:
31
Os príncipes seculares ocupam, por vezes a supremacia do poder
na Igreja a fim de proteger, através desse poder, a disciplina
eclesiástica. De resto, na Igreja esses poderes não seriam
necessários se não impusessem o terror da disciplina, o que os
sacerdotes são impotentes para conseguir com sua pregação.
Frequentemente o reino celeste vale-se da realeza terrena: quando
aqueles que estão na Igreja vão contra a fé e a disciplina, são
destruídos pelos príncipes. Que estes saibam que Deus lhes pedirá
contas a respeito da Igreja, por ele confiada à sua proteção. Pois,
quer a paz e a disciplina eclesiástica se consolidem pela ão de
príncipes fiéis, quer periguem, aquele lhes pedirá contas, que
confiou sua Igreja ao seu poder (ISIDORO apud RIBEIRO, 1998, p.
110).
É possível perceber que Isidoro reforçava qual era a função que o poder
religioso e secular precisava desempenhar na sociedade e que dava ênfase à
cooperação mútua. Quando um dos poderes não tinha condições de realizar algo,
o outro deveria auxiliá-lo: é o caso da incapacidade da Igreja para impor a
disciplina por meio de leis, razão pela qual deveria receber o apoio do poder
secular.
É válido ressaltar que Isidoro, por investigar constantemente a origem das
coisas, abordou a origem e a função da realeza, tornando-se mais um intelectual
que contribuiu para o processo de constituição da sociedade ocidental na Alta
Idade Média.
O processo de civilização outorgado pelo cristianismo e a concepção de
Estado cristão discutida por Gregório Magno e Isidoro de Sevilha tiveram
repercussão direta nas questões políticas do Império Carolíngio a partir do
reinado de Pepino. Aos poucos, desenvolveu-se uma compreensão, por parte dos
governantes francos, da importância da aquisição do conhecimento sagrado e
intelectual para a preservação e organização do reino. Não se podia mais admitir
no governo reis incapazes de ocupar esta função, como era comum no período
merovíngio, quando os governantes ocupavam o trono ainda crianças e, diante de
sua inabilidade, os prefeitos do palácio
17
eram os responsáveis pela direção dos
reinos.
17
“Em princípio, o prefeito do Palácio é apenas um funcionário doméstico. Ao major domus, o
mordomo, cabia organizar o serviço e manter a disciplina nas casas da aristocracia. O palácio real
dispunha tamm de um major domus . No culo VII, ele se tornou chefe da administração.
32
Desde o início da dinastia carolíngia, ficou perceptível que a educação
passou a ser um dos requisitos necessários àqueles que iriam ocupar o cargo de
governante.
Pepino (714 -768) filho de Carlos Martel, foi um dos primeiros
descendentes dos francos a ser educado de uma forma diferente da de seus
antecessores e sobre isso Favier afirma:
Pepino recebeu uma educação que faria dele um rei, mas um rei
de um novo tipo, mais inspirado no exemplo anglo-saxão do que
nos costumes francos: ele foi educado em Saint Denis, não por um
preceptor leigo, como eram as crianças da família merovíngia. E
Fulrad é abade de Saint Denis (FAVIER, 2004, p. 42).
A educação de Pepino foi promovida pelos monges da abadia de Saint
Denis, o que implicava uma educação predominantemente religiosa, embora
apresentasse muitos aspectos da filosofia antiga, análise que desenvolveremos
mais adiante.
O povo franco estabeleceu o reino mais duradouro constituído de duas
dinastias: a dos Merovíngios e a dos Carolíngios. As sucessões reais do período
merovíngio foram caracterizadas por golpes, usurpações, armadilhas e acordos, o
que demonstra um interesse significativo e constante pelo poder. Favier (2004)
considera que, até a morte de Carlos Martel (688 - 741), o reino ainda era
merovíngio
18
. Assim, a mudança desta dinastia foi conduzida de forma planejada
por Pepino, que contou com o apoio expressivo da Igreja.
Ele possuía uma parte da Nêustria, que compreendia as regiões francas de
outrora. Seu irmão, Carlomano (751 - 771), tinha sob seu poder as áreas
germânicas e o restante da Austrásia. Carlomano dedicava-se à religião e, em
momentos de paz, retirava-se para os claustros. Quando isto acontecia, Pepino
se tornava responsável por todo o reino franco, que se encontrava unificado
19
.
em meados do século, ele é o major palatii o “maior no palácio”. Na realidade, agora é ele quem
governa” (FAVIER, 2004, p. 23).
18
“Até a morte de Carlos Martel, ainda se poderiam definir em termos antigos os reinos confiados
a seus filhos, reinos ainda merovíngios na tradição das partilhas do culo VI e VII” (FAVIER,
2004, p. 34).
19
O “reino” franco em seu conjunto é uma herança de Clóvis. Depois da morte do rei Dagoberto,
em 639, ele não seria mais unificado. sempre um rei na Nêustria, um rei na Aquitânia, um rei
na Austrásia, um rei na Borgonha. Como se vê, o mapa é complexo, pois sobrepõe “reinos”
continuamente redistribuídos entre os ramos da dinastia franca. [...] Em 263 anos, só durante 72
33
Segundo Favier, isto instigou cada vez mais Pepino a se tornar rei. Assim, ele
aprisionou seu irmão em um mosteiro em Vienne e, em 751, tornou-se rei, mas de
uma nova dinastia, a dos Carolíngios.
A forma como Pepino se consagrou rei diferiu da de seus antecessores em
vários aspectos. O papa Zacarias (~700 752) afirmou, diante de uma pergunta
acerca da realeza franca feita pelos conselheiros de Pepino, “que valia mais
chamar rei àquele que tinha, do que àquele que o tinha o poder real”
(HALPHEN, 1974, p. 28). Estava, assim, por antecipação, legitimada a atitude do
papa Estevão II (752-757), que, validando essa sentença do papa Zacarias, por
meio de uma cerimônia não usual, ungiu Pepino como rei. Nesse momento, o
pontificado estava sendo ameaçado e as circunstâncias impeliam a uma aliança
com o reino Franco. A santa unção não era até então utilizada no estabelecimento
dos reis no poder, marcando, desse modo, uma nova concepção de governo: o rei
designado por Deus. Nas palavras de Halphen:
A sua subida ao trono, contrária, em princípio, à tradão franca,
que limitava a escolha do rei aos membros da família merovíngia,
ocorreu em condições desusadas: a eleição habitual pelo povo
exigida pelo velho costume franco (more francorum, diz o cronista),
foi seguida em Soissons de uma cerimônia, até então
desconhecida na Gália no decorrer da qual o novo eleito recebeu a
santa unção das os do bispo da Germânia, Bonifácio. [...] O
representante mais qualificado do chefe supremo da cristandade
significava, portanto, aos olhos dos espectadores, que a
instauração de uma ordem nova tinha o acordo total daquele que
devia ser considerado o intérprete mais legítimo da vontade divina
(HALPHEN, 1970, p. 29).
Pepino, ao ser proclamado rei por meio da unção, retomou o gesto
simbólico de origem bíblica. Diante de vários exemplos, podemos citar Saul
(~1095 a. C), rei de Israel, que foi proclamado rei pelo povo depois de ter sido
ungido por Samuel, um profeta divino. A seqüência da cerimônia é proposital,
ratificando que a escolha e a aprovação divina devem vir em primeiro lugar.
[...] Disse Samuel a Saul: Enviou-me o Senhor a ungir-te rei sobre
o seu povo, sobre Israel; ouve, pois, agora a voz das palavras do
Senhor. (I Samuel 10,1)
anos os merovíngios conheceram um reino dos francos que tinha à frente um único rei (FAVIER,
2004, p. 20-21).
34
[...] disse Samuel ao povo: Vinde, vamos nós a Gilgal, e renovemos
ali o reino. E todo o povo partiu para Gilgal, onde proclamaram a
Saul por rei perante o SENHOR, e ofereceram ali ofertas paficas
perante o Senhor; e Saul se alegrou muito ali com todos os
homens de Israel (BÍBLIA, V.T. I Samuel 11,14 e 15).
Portanto, tal como Saul, que antes foi ungido pelo profeta Samuel para
depois ser reconhecido rei perante o povo, Pepino foi ungido e, posteriormente,
coroado. Esta cerimônia inovadora torna mais nítido o papel que a Igreja vai
desempenhar nas questões políticas daquela sociedade. Os princípios cristãos, a
partir desse momento, vão se tornando cada vez mais indispensáveis na
administração do reino. Em colaboração com a Igreja, o rei deve propagar o
evangelho e guiar o povo de acordo com os princípios nele contidos. Verifica-se
então que as idéias de Gregório Magno e Isidoro de Sevilha tornaram-se efetivas
no governo de Pepino e de seus sucessores carolíngios.
A unção do primeiro governante da dinastia Carolíngia pela Igreja
determinou, em linhas gerais, as novas relações entre o poder real e o religioso.
Escolhido por Deus, o rei estava encarregado de uma importante missão: a de
propagar o evangelho entre os povos de seu reino. A Igreja, por sua vez, deveria
colaborar nesse processo; seria, portanto, uma aliada do rei.
Esta aliança fortalecia mutuamente os dois poderes. Quando as terras
pertencentes à Igreja foram invadidas por povos mades, por exemplo, a Igreja
contou com o apoio do rei para auxiliá-la na restituição do patrimônio. Da mesma
forma, este tinha a missão de auxiliar a Igreja na pregação do evangelho para os
povos ainda não cristianizados. A legitimação do poder por meio da sagração
proporcionava a garantia de que o domínio dos territórios não seria uma
prerrogativa do indivíduo mais forte, mas, sim, do rei ungido pelo ritual religioso. A
união entre os poderes estendeu-se aos sucessores de Pepino: Carlomano e
Carlos Magno.
Tanto a Igreja como o Estado tinham, como objetivo comum, formar
indivíduos para a sociedade A Igreja possuía o instrumento fundamental para
cristianizar os povos nômades, o evangelho. Porém, era o Estado que detinha o
poder de efetivação das leis que assegurariam o cumprimento deste desígnio. A
união entre o poder secular e o religioso favoreceu, significativamente, a
organização social necessária à época de Pepino e também de seus sucessores.
35
2. CARLOS MAGNO: HISTÓRIA E CULTURA DE SEU IMPÉRIO
A situação resultante da união entre poder secular e religioso foi a
realidade do Império Carolíngio, cujo líder de maior expressão foi Carlos Magno
(~742 814), filho de Pepino, o Breve, e de sua esposa Berta. Sua primeira
sagração ocorreu por volta de onze anos de idade, pelo papa Estevão II (FAVIER,
2004, p. 135), demonstrando que as gerações posteriores a Pepino se pautaram
na união anteriormente realizada entre Igreja e Estado.
A História nos informa
20
que Carlos Magno, depois da morte de seu irmão
Carlomano II, dirigiu-se ao reino que ele deixara, onde, pela terceira vez, por meio
do ritual religioso e político, foi sagrado como rei. É bem provável que, desta
maneira, ele almejasse um reconhecimento por parte da Igreja e, ao mesmo
tempo, a legitimação de seu domínio sobre o território do irmão. Sobre a aliança
deste período, Favier considera:
A aliança com o papado, sem a qual Pepino não teria passado de
um simples príncipe dos francos, em pé de igualdade com os
outros príncipes nacionais, permite a Carlos calcular imediatamente
o que ele deve à Igreja e o que esta lhe deve. Escolhido por Deus e
não mais pela sua aristocracia, o rei deve conduzir o povo para a
salvação. Isto lhe acarreta muitos deveres, e o da rápida
evangelização dos povos germânicos entra facilmente no desejo
divino, ainda que ela implique uma rude conquista e não menos
rude repressão. Orar-se–á no reino franco pelo sucesso das armas
francas. (...) A sagração faz do rei responsável pelas almas. Isso
lhe dá direitos que só ele tem o poder de definir (2004, p. 132).
O processo de cristianização dos povos sob seu domínio, como nos
informa a citação, não foi pacífico. Le Goff (1983) descreve as medidas cruéis
utilizadas pelo soberano Carlos e seus missionários auxiliadores
21
. Esta atitude
talvez enuncie a seriedade com que se desincumbiu do compromisso de
cristianizar o povo franco e, ao mesmo tempo, a necessidade de afirmação de seu
20
(FAVIER, 2004, p. 129-135) .
21
(...) Carlos Magno inaugurou uma tradição de conquista em que se misturaram o morticínio e a
conversão – a cristianização à força, que a Idade Média iria praticar durante longo tempo(...)
Auxiliado por missionários todo e qualquer ferimento nalgum deles e toda e qualquer ofensa à
religião cristã eram puníveis com a morte segundo umas capitulares publicadas para auxiliar a
conquista e, levando, ano após ano, os soldados para o interior da região, com uns a baptizar
(sic) e outros a pilhar, a queimar, a matar, e fazendo deportações maciças, Carlos acabou
realmente por subjugar os Saxões. Foram criados bispados em Bremen, Munster, Paderborn,
Verden e Minden (LE GOFF, 1983, p. 66-67).
36
poder. Embora ele tenha utilizado a força para evangelizar, e esta atitude seja
contraditória com os princípios cristãos, o fato é que tanto a Igreja quanto o
Estado tinham a necessidade de poder. De nossa perspectiva, era como se os
meios justificassem o fim, ou seja, um reino unido, e a religião seria um dos
elementos para se atingir esse objetivo.
Civilizar era o grande objetivo de Carlos Magno. Na medida em que,
durante a história, a Igreja tinha revelado este caráter civilizador, nada mais
conveniente do que unir forças. Guizot, ao considerar a história do período
Carolíngio, referiu-se a Carlos Magno da seguinte forma:
No reinado de Carlos Magno, seja qual for o aspecto debaixo do
qual o estudemos, encontraremos sempre o mesmo caracter; a
saber: a lucta contra o estado bárbaro e a manifestação do espírito
de civilisação. É o que se torna bem patente no ardor com que
funda escholas, anima os sábios, protege os ecclesiásticos, e em
geral tudo o que lhe affigura que pôde influir sobre a sociedade ou
sobre o homem (GUIZOT, apud VITORETTI, 2004, p. 86).
Segundo Guizot, tanto cristianizar como promover uma educação escolar
para auxiliar na formação deste novo homem eram objetivos deste soberano No
entanto, esta educação não foi unicamente religiosa, pelo contrário, o soberano
fez questão de retomar a cultura antiga. Neste processo, uma questão, a
nosso ver, importante de ser analisada: a fusão de conceitos sagrados e
seculares, amplamente evidenciados nos documentos da época.
Esta análise é importante, porque consideramos que, no período medieval,
a religião foi difundida de forma a enfatizar tamm a importância da cultura
greco-romana, uma vez que esta, na visão dos mestres medievais, auxiliava na
compreensão das sagradas escrituras. Assim, no meio religioso, esta era uma
justificativa para a união destes dois conhecimentos.
Carlos Magno, ao reunir intelectuais em seu palácio para auxiliá-lo nas
questões educacionais, encontrou no mestre Alcuíno de York semelhanças de
propósitos quanto à evangelização e à retomada da cultura antiga.
Nos escritos deste intelectual, a união destes dois conhecimentos foi
constantemente mencionada. Por isso, no presente capítulo, contemplaremos as
relações que este mestre medieval fez entre alguns membros da corte e dois
personagens bíblicos, de forma a compreender como as escrituras sagradas
37
influenciaram a sua prática. Em seguida, baseando-nos em algumas referências
documentais do período, analisaremos alguns autores que, retomando
nitidamente conceitos pertencentes ao cristianismo e à filosofia antiga,
influenciaram as obras do mestre Alcuíno.
2.1. Os princípios de organização educacional na corte carolíngia.
Consideramos que o nível de organização de um determinado grupo
contribui para o desenvolvimento reflexivo de seus indivíduos, da mesma forma
como um ambiente organizado e que ofereça certa pacificidade favorece a
construção do pensamento. Como exemplo desta afirmação, podemos mencionar
os mosteiros, nos quais, isolados da sociedade desorganizada, os monges foram
capazes de preservar, desenvolver e difundir o conhecimento. Segundo Vitoretti
(2004 p. 78), os mosteiros “tiveram um papel decisivo na vida religiosa,
econômica, social e educacional da Alta Idade Média e formaram o substrato sob
o qual o Renascimento Carolíngio pôde se desenvolver”.
Mesmo que a sociedade carolíngia, em seu princípio de organização, não
tenha se apresentado como exemplo de sociedade estruturada, à medida que,
com o apoio da Igreja, foi se constituindo como Estado, contribuiu também para o
desenvolvimento das questões educacionais. Aos progressos na educação
carolíngia correspondeu o desenvolvimento do Estado como tal, o que evidencia a
relação entre educação e governo. Pepino, o Breve, em razão de sua formação,
estabeleceu a aliança com a Igreja e modificou os rumos políticos e culturais do
Ocidente. Carlos Magno, por sua vez, pretendeu dar continuidade a essas
transformações; por isso, as reformas educacionais foram enfatizadas em seu
governo.
A nova organização ansiada por Pepino se materializou, de fato, com o
governo de seu filho, que se tornou rei dos Francos (768-800) e imperador (800-
814). Carlos Magno, um dos personagens mais importantes da Alta Idade Média,
além de ter conquistado um grande mero de territórios no período em que
esteve no poder, a exemplo de seu pai, preocupou-se tamm com a situação
38
educacional de sua época. Ações voltadas para a reforma da Igreja Franca
22
e
para a restauração das letras são reveladoras de sua disposição para organizar o
império.
Para que seus objetivos se tornassem reais, com auxílio provável de
Alcuíno, ele elaborou as capitulares
23
, destinadas a reger as questões
educacionais de seu império. Nas palavras de Carlos Magno:
Por isso exortamo-vos a não negligenciardes o estudo das letras,
mas, ao contrário, a vos empenhardes porfiosamente com esforço
humilde e agradável a Deus esta tarefa, para que com mais
facilidade e correção possais penetrar nos mistérios das sagradas
escrituras.
Mas como se encontram nas páginas sagradas figuras, tropos e
outros insertos semelhantes, ninguém duvida que qualquer um que
ler isso, tanto mais rapidamente entenderá seu sentido espiritual
quanto mais instruído for no magistério das letras (KAROLI
EPISTOLA DE LITTERIS COLENDIS apud VITORETTI 2004, p.
151).
Carlos Magno realizou também rias viagens aos grandes centros
culturais da Itália, Espanha e Ilhas Britânicas, em busca de intelectuais capazes
de o auxiliarem em seu governo, uma vez que seu território possuía dimensões
significativas.
Em Roma, após o ano de 750, alguns centros culturais, como Monte
Cassino, São Vicente de Volturno, abadia de Bobbio e a Província de Pavia,
foram restabelecidos e, neles, além das cópias e dos estudos dirigidos à
compreensão das escrituras sagradas, a cultura clássica foi preservada e,
posteriormente, difundida (FAVIER, 2004, p. 394-395). Estes centros promoveram
a circulação dos mais diversos livros e obras clássicas, contribuindo, assim, para
a formação de muitos estudiosos. Foi na Lombardia que, no ano de 781, Carlos
Magno encontrou rios intelectuais, como Pedro de Pisa, que se tornou um de
seus mestres de latim, Paulo, o Diácono, (720-800), que contribuiu
22
Vitoretti (2004) faz uma análise sobre a reforma que Carlos Magno realizou na Igreja Franca a
fim de restabelecer a hierarquia eclesiástica, melhorar a formação destes religiosos, além de
regenerá-los moralmente. A autora considera que “(...) a Igreja, por meio de diversos
componentes, principalmente seus representantes e sua estrutura física, fornecia as bases para a
atuação do soberano”. Desta forma, a reforma na Igreja pretendia preparar as ações de Carlos no
campo educativo (VITORETTI, 2004, p. 83-87)”.
23
Chama-se capitulare ou capitularium, “capitular”, a um conjunto de parágrafos, de pequenos
“artigos” capita, ou “capítulos, capitula (FAVIER 2004 p.293)”.
39
significativamente para o aumento do número de obras clássicas em sua
biblioteca real e Paulino de Aquiléia, grande gramático e poeta.
Na Espanha visigótica, encontramos Isidoro de Sevilha, que se tornou um
influenciador dos mestres que ocuparam as funções no palácio e até mesmo de
Carlos Magno. Segundo Favier:
Foi o bispo de Sevilha, Isidoro (falecido em 636), quem compilou
em suas etimologias uma enciclopédia dos conhecimentos
adquiridos pelos gregos e pelos romanos e fez o balanço das
“autoridades” que se invocam na defesa da fé. Ele dirige uma
revisão dos cânones conciliares que regem a vida da Igreja.
Comentador da Bíblia, fino analista das alegorias da história
sagrada e da história profana, Isidoro não se interessa menos por
matemática, geografia e cosmografia. Sua obra servirá de base a
todas as tentativas feitas na Idade Média para conhecer o mundo
no espaço e no tempo (2004, p. 395).
A obra deste intelectual influenciou diretamente o movimento educacional
carolíngio. O conhecimento que os intelectuais da época tinham de suas obras
será mais bem evidenciado na análise que se feita no decorrer deste trabalho.
Nas Ilhas Britânicas concentrou-se o maior mero de centros culturais,
dos quais saíram os mais importantes personagens do renascimento carolíngio,
como Alcuíno de York. Na Irlanda, os mosteiros utilizavam muito as obras
clássicas com o intuito de compreender as Sagradas Escrituras. Desta forma, os
acervos de suas bibliotecas eram cada vez mais ampliados com livros profanos e
sagrados, trazidos por intelectuais viajantes.
Com o passar do tempo, a necessidade da cultura clássica se fez presente
no meio religioso e foi a partir dela que a educação medieval se desenvolveu. No
século VIII, as Ilhas Britânicas se tornaram muito fecundas e, segundo Rivas
(2004), foi em virtude do cultivo das línguas clássicas, da criação de centros
literários, do desenvolvimento de escolas e da distribuição destes saberes por
todo o continente que o nascimento da cultura cristã medieval se efetivou.
Carlos Magno, ao convidar rios intelectuais destes grandes centros para
que o auxiliassem na corte, mostrou-se capaz de aproveitar toda a cultura
preservada nestas regiões. Apesar de virem de diferentes regiões e possuírem
diferentes personalidades e formação intelectual, esses sábios tinham um objetivo
comum: a restauração das letras no Império Carolíngio. Segundo Rivas:
40
A mesma atitude fundamental fazia das questões da vida
intelectual, as mesmas idéias do literário, os mesmos modelos
referenciais. Impulsionado pela possibilidade de intercâmbio, como
em nenhum outro período da época ao viverem no coração do
reino e por suas relações pessoais com o soberano, os sábios mais
próximos de Carlos Magno realizam a idéia da unidade intelectual
da Europa (RIVAS, 2004, p. 23).
24
Foi em Roma que Carlos Magno encontrou Alcuíno de York (730-804), que
seria um de seus braços direitos na corte. Tendo estudado na escola catedral de
York e posteriormente, no ano de 778, assumido o cargo de mestre nesse mesmo
lugar, foi orientado pelo arcebispo Egberto, que, por sua vez, tinha sido discípulo
de Beda, o Venerável
25
. O conhecimento transmitido de mestre para mestre
desenvolveu em Alcuíno habilidades que o auxiliariam na importante missão que
assumiria no Ocidente Carolíngio:
A reputação de Alcuíno havia excedido os limites da Grã Bretanha.
Quem melhor que ele para dirigir a escola da corte, onde se
educavam os membros da família real e da nobreza franca? Com a
permissão de seu bispo, Alcuíno deixa a escola catedrática de York
e se incorpora à corte de Carlos Magno em 782, aos cinqüenta
anos (RIVAS, 2004. p. 27)
26
.
Por ser um distinto organizador e por ser comprometido com as questões
educacionais do Império, Alcuíno se tornou um dos mestres mais importantes da
Escola do Palácio. Como veremos adiante, a forma como ele encaminhou a
educação na escola Palatina contribuiu, significativamente, para o
desenvolvimento da formação do líder da dinastia. Em conseqüência disto, a
estruturação do Império foi, aos poucos, se tornando efetiva. Vejamos, a seguir,
24
La misma actitud fundamental hacía las cuestiones de la vida intelectual, las mismas ideas en lo
literario, los mismos modelos referenciales. Incitados por la posibilidad de intercambiar, como en
ninguna otra parte de la época al vivir en el corazón del reino y por sus relaciones personales con
el soberano, los sabios que rodean a Carlomagno realizan la idea de la unidad intelectual de
Europa (RIVAS, 2004, p. 23).
25
Beda o Venerável, foi um dos precursores do movimento intelectual da Europa. Duas de suas
obras mais famosas são: Da natureza das coisas e História eclesiástica do povo inglês. Esta
última narra a missão e o êxito da pregação do evangelho aos ingleses (GILSON, 2001).
26
La reputación de Alcuino había sobrepasado los límites de la Gran Bretaña. ¿Quién mejor que él
para dirigir la escuela de la corte, donde se educaban los miembros de la familia real y de la
nobleza franca? Con el acuerdo de su obispo, Alcuino deja la escuela catedralicia de York y se
incorpora a la corte de Carlomagno en 782, a los cincuenta años (RIVAS, 2004 p. 27).
41
um trecho do diálogo em que Alcuíno ensina alguns elementos da arte da retórica
a Carlos Magno:
C. A ordem exige que fales da partição (da oratória).
A. Falarei. A partição é a divisão das coisas que pertencem à
própria causa que, exposta corretamente, torna todo o discurso
claro e ordenado. Ela consta de duas partes: uma é aquela que
mostra aquilo em que se concorda com os adversários e aquilo em
que divergência; desta parte algo que é certo destina-se ao
auditório e nisso deve estar a mente ocupada; a outra parte é
aquela na qual se dispõem breve e ordenadamente aquelas coisas
das quais se tratará. Procura-se com essa disposição fazer que o
ouvinte retenha certas coisas. Esta parte deve ser breve, completa
(positiva) e sóbria. A brevidade consiste em não usar a não ser
palavras necessárias; a completude está em incluir na partição
todos os gêneros que ocorrem na causa e dos quais se deva falar;
a sobriedade se tem quando se colocam na partição somente
aquelas coisas que se consideram necessárias (DISPUTATIO DE
RHETORICA...Tradução Aluízio Fávaro).
O cuidado com as palavras era importante para a arte da retórica, cujo
conhecimento, por sua vez, era necessário a quem detinha o poder, que a
transmissão de suas decisões precisava ser feita com coerência. Por isso, Carlos
Magno tornou-se aluno dedicado de Alcuíno, adquirindo diversos conhecimentos
que o auxiliaram diretamente em sua função
27
.
O grande anseio do mestre Alcuíno era revigorar o estudo que havia sido
abandonado pelo povo, o que seria possível mediante zeloso esforço, leitura e
estudo das obras clássicas da Antiguidade. Em uma de suas cartas enviadas a
Carlos Magno, ele demonstra o seu grande anseio: Construir na França uma
nova Atenas (forsan Athenae nova perficeretur in Francia)” (ALCUÍNO apud
GILSON 1995, p. 230). Esse anseio encontra correspondência no imperador, que
assim se pronuncia em uma de suas cartas:
Impomo-nos a tarefa de fazer reviver, com todo o zelo de que
somos capazes, o estudo das letras, abolido pela negligência de
nossos antecessores. Convidamos todos os nossos súditos, na
medida em que são capazes, a cultivarem as artes liberais do que
lhe damos o exemplo (CARLOS MAGNO apud GILSON, 2001 p.
225).
27
No item 3.2 do presente trabalho apresentaremos a análise do documento Debate sobre a
retórica e sobre as virtudes do sapientíssimo rei Carlos e do mestre Alcuíno. Esta obra evidenciará
o ensino transmitido por Alcuíno a Carlos Magno sobre os elementos constituintes da arte da
retórica.
42
As artes liberais constituídas do trivium e do quadrivium representam para
Alcuíno instrumentos que auxiliam na compreensão do conhecimento cristão.
Esta concepção não era comum ao período e, como exemplo, podemos citar
Beda, para quem as sete artes eram pagãs e os filósofos adeptos a elas,
patriarcas dos hereges. Ele pontua as artes do trivium como doutrinas humanas
dissociadas de Deus e consequentemente de sua sabedoria (RIVAS, 2004).
Alcuíno possuía uma concepção diferente. Em uma das cartas enviadas
a Carlos Magno, utilizando a opinião de alguns teóricos de seu tempo a respeito
das artes liberais, ele afirma que, sem elas, Santo Agostinho não conseguiria
desvendar os mistérios da Santíssima Trindade. Ao se referir às artes, o filósofo
de York as considera como de origem divina, como instrumentos fundamentais
para conhecer os mistérios do Criador:
Uma afirmação do autor que situa as artes como um fazer divino.
Foram criadas pelo mesmo Deus na natureza, e somente os
filósofos as encontraram. Deste modo as artes liberais legitimam
sua procedência; não é um saber pagão, mas sim um aspecto do
Criador nas criaturas, devendo ser, portanto, plenamente aceitas
pela consciência cristã (RIVAS, 2004, p. 48).
28
É possível perceber que Alcuíno, embora defenda as doutrinas
evangélicas, retoma as pagãs, fundindo-as e transformando-as em complemento
mútuo. Alcuíno se apropria dos conhecimentos antigos, como a arte da retórica e
da dialética desenvolvida por Cícero, as artes liberais compostas pelo Trivium e
Quadrivium, as virtudes defendidas por Platão e Aristóteles, as ciências pré-
socráticas e aquelas desenvolvidas por Isidoro de Sevilha e Cassiodoro. Enfim, as
leituras que fez dos clássicos antigos o aproximam de boa parte do pensamento
Antigo e Medieval desenvolvido até o momento. Sendo um homem da Igreja e
conhecendo a doutrina cristã, Alcuíno dedica-se à propagação do evangelho e, ao
mesmo tempo, luta para preservar os elementos da Antiguidade, pois os julgava
28
[...] una afirmación del autor que ubica a las artes como factura divina. Han sido creadas por el
mismo Dios en la naturaleza, y los filósofos sólo las han encontrado. De este modo las artes
liberales legitiman su procedencia: no son un saber pagano, sino una traza del Creador en las
criaturas, debiendo ser, por tanto, plenamente aceptadas por la conciencia cristiana (RIVAS, 2004
p. 48).
43
fundamentais. Com isso, ele torna complementares os conhecimentos que, antes,
eram distintos. Isto pode ser expresso no grande desejo de Alcuíno: edificar na
França uma Academia superior à de Atenas, pois considerava a sabedoria divina
mais elevada do que a sabedoria humana:
Aquela, sem outro ensinamento além das disciplinas de Platão,
brilhou com a ciência das sete Artes, mas esta supera em
dignidade toda a sabedoria deste mundo porque está, ademais,
enriquecida com a plenitude dos sete dons do Espírito Santo
(ALCUÍNO apud GILSON, 2001, p. 230).
Como foi possível observar, Alcuíno conheceu a educação desenvolvida
na academia de Platão e a considerou importante; por isso, manifestou o desejo
de retomá-la. Esta recuperação da sabedoria antiga, porém, se efetivou de
maneira muito diferente, pois a época de Alcuíno era caracterizada pela religião
cristã e não pelo paganismo.
Alcuíno norteou seu trabalho na corte pelos conselhos das Sagradas
Escrituras. Para orientar o rei, ele retirou exemplos dos reis bíblicos que, com
sabedoria e auxílio divino, teriam governado Israel com êxito. As admoestações
do livro de Provérbios e Salmos também o constantemente mencionadas nos
escritos de Alcuíno, indicando que um dos objetivos do mestre foi propagar estes
ensinamentos entre as pessoas que o rodeavam, transformando-os numa prática
diária.
2.2. Davi e Salomão: personagens bíblicos que influenciaram a corte
Carolíngia
A filosofia antiga proporcionou muitas respostas às inquietações dos
homens da Antiguidade e destas originaram-se as mais diversas ciências. O
cristianismo, por sua vez, tamm foi capaz de prover respostas, mas para o novo
modelo de homem que tentava se organizar e sobreviver em face das dificuldades
posteriores à ruína do Império romano. No início, afirma Durkheim (2002, p. 27), o
cristianismo “Era por excelência, a religião dos pequenos, dos modestos, dos
pobres, material e espiritualmente pobres (...)”, mas, com o tempo, desenvolveu-
44
se e tornou-se a essência fundamental de impérios e reinados, especialmente no
Ocidente Medieval, como foi o caso do Império Carolíngio.
Alcuíno considerou as Sagradas Escrituras como uma espécie de mapa a
ser utilizado para o êxito do Império. Ao analisar a idéia cristã contida nos
evangelhos, ele a considerou mais importante que a filosofia produzida pelos
antigos. A relação que foi capaz de fazer implica o conhecimento das duas e,
embora faça essa afirmativa, ele vai utilizar elementos tanto da filosofia antiga
quanto do pensamento cristão para dirigir os ensinos na corte e isto fica
explicitado na maioria de suas obras.
No documento intitulado Diálogo acerca da verdadeira filosofia
29
, Alcuíno
afirmou que as artes liberais eram de origem divina e, para legitimar sua tese de
que as artes liberais possuíam a função de degraus para a aquisição da
verdadeira sabedoria, ou seja, da cristã, ele utilizou o texto de Provérbios, 9, 1: “A
sabedoria edificou a sua casa, lavrou as suas sete colunas” (BÍBLIA, V.T.). Esta
exegese de Alcuíno legitima o uso preponderante das artes liberais na
compreensão da filosofia cristã. Vejamos o trecho do Diálogo acerca da
verdadeira filosofia que contém esta afirmação:
Discípulo: De qualquer modo que estas coisas devam ser ditas,
rogamos que nos sejam apresentadas aos primeiros escalões da
sabedoria, para que concedendo Deus e ensinando você, sejamos
capazes de chegar desde as coisas inferiores até as superiores.
Mestre: Lemos, quando disse Salomão, por quem a Sabedoria
disse de si mesma: ‘a sabedoria edificou sua casa, levantou suas
sete colunas’. Esta sentença corresponde à sabedoria divina, a que
construiu sua casa no útero virginal, ou seja, o corpo, a fortaleceu
com os sete dons do Espírito Santo, e inclusive iluminou a Igreja,
que é a casa de Deus, com os mesmos dons. No entanto, a
sabedoria é fortalecida pelas sete colunas das artes liberais, de
outro modo não conduz a ninguém ao conhecimento perfeito se
não for exaltado por estas sete colunas ou escalões. (ALCUÍNO,
2004, p. 71. Tradução nossa).
30
29
O título deste documento em latim é De vera philosophia. O mesmo foi traduzido para o
espanhol por Rivas (2004) com o título Diálogo acerca de la verdadera filosofia.
30
Discípulo: De cualquier modo que estas cosas deban ser dichas, rogamos que nos sean
presentados los primeros escalones de la sabiduría, para que concediendo Dios y enseñando tú,
seamos capaces de llegar desde las cosas inferiores a las superiores.
Maestro: Leemos, cuando dice Salomón, por quien la Sabiduría se cantó de sí misma: ‘la
Sabiduría edificó su casa, levantó sus siete columnas. Esta sentencia corresponde a la sabiduría
divina, la que construyó su casa en un útero virginal, es decir el cuerpo, la fortaleció con los siete
dones del Espíritu Santo, e incluso iluminó a la Iglesia, que es la casa de Dios, con los mismos
dones. Sin embargo, la sabiduría es fortalecida por las siete columnas de las artes liberales; de
45
Ao fazer uma analogia entre as sete colunas da sabedoria do versículo
bíblico com as sete artes liberais, Alcuíno confirma a fusão dos conhecimentos
sagrados e seculares na qual necessariamente vai basear sua prática.
Para exemplificar sua tese, Alcuíno afirma que o conhecimento da
astronomia permitiu a Abraão conhecer e admirar o seu Criador e que os
conteúdos da aritmética possibilitavam uma maior compreensão das Sagradas
Escrituras.
Contudo, é pertinente ressaltar que o momento histórico em que o diálogo
foi escrito foi marcado por conflitos entre doutrinas cristãs. O combate contra a
heresia de Félix, bispo de Urgel, denominada adocionista
31
instigou Alcuíno a
escrever o tratado (797-798) Contra a heresia de Félix com passagens completas
dos cânones dos concílios de Éfeso de 431 (FAVIER, 2004, p. 369). O momento
turbulento vivenciado pela Igreja estimulou Alcuíno a justificar o uso que fazia dos
elementos da filosofia antiga, o que explica sua idéia de que as artes liberais e os
dons do Espírito Santo seriam juntamente capazes de desenvolver a sabedoria.
Um dos personagens bíblicos que mais discutiram a virtude da sabedoria
foi Salomão, que viveu aproximadamente no século X a. C. Suas reflexões
possuem como eixo principal o fato de que não é possível encontrar a verdadeira
sabedoria distante de Deus. O homem, mediante obediência aos desígnios
divinos, é capaz de manter uma íntima comunhão com o seu Criador, o que
implica o desenvolvimento da semelhança entre criatura e Aquele que a criou.
Respeitadas as diferenças de condição, se Deus ébio, o homem também pode
alcançar esta sabedoria, que, de acordo com os escritos sagrados, ele foi
criado à sua imagem e semelhança.
Alcuíno é um leitor da Bíblia, mas, algumas vezes, apropria-se das
reflexões de outros intelectuais cristãos, como Orígenes (185 a 253 d. C), por
exemplo, para quem Salomão foi o fundador da verdadeira sabedoria, (RIVAS,
otro modo no conduce a nadie hacia el conocimiento perfecto si no es exaltado por estas siete
columnas o escalones. (ALCUÍNO, 2004, p. 71).
31
O adocionismo, formulado por volta de 780 por Elipândio,, arcebispo de Toledo, e por lix,
bispo de Urgel, distancia-se ainda mais da ortodoxia no fim do século VIII: “Verbo de Deus”, o
Filho é gerado por Deus. Enquanto homem, ele é o Filho de Deus e de Davi, um filho adotivo.
Sendo Filho “adotado” de Deus, Cristo não é natureza divina (FAVIER, 2004, p. 369).
46
2004, p. 52-53). Este personagem bíblico elaborou algumas máximas, muitas de
cunho social e moral, que estão descritas em dois de seus livros, Provérbios e
Eclesiastes, e que foram utilizadas na corte Carolíngia.
Salomão considera o “(...) temor do Senhor como princípio da sabedoria
(...)” [BÍBLIA, V.T. Provérbios 1,7]. Portanto, toda a sabedoria e conhecimento que
se relacionam a esse temor devem estar baseados no reconhecimento da
realidade, do poder e da bondade de Deus. Ele é o ponto de partida de toda a
sabedoria verdadeira. Esse rei de Israel, por providência divina, recebeu esta
virtude em abundância e, consequentemente, tinha a habilidade para julgar o seu
povo. A história bíblica narra que, em certa noite, em sonho, Deus apareceu a
Salomão e disse: “Pede o que quiseres que te dê” (BÍBLIA, V. T. I Reis 3,5). A
resposta do jovem rei foi: “Dá, pois ao teu servo sabedoria para julgar a teu povo,
para que prudentemente discirna entre o bem e o mal; pois quem poderia julgar
este grande povo? (BÍBLIA, V.T. I Reis 3, 6-9)”.
O narrador da história afirma que o pedido de Salomão para se ter
prudência, discernimento e capacidade para julgar foi agradável aos olhos de
Deus. Isto nos faz refletir sobre a influência desta história na formação do
governante do período carolíngio. Alcuíno, ao mencionar diversas passagens do
livro de provérbios, provavelmente escrito por Salomão, toma como exemplo a
necessidade de os governantes de sua época serem sábios, justos e prudentes,
características que poderão ser desenvolvidas pelo estudo e principalmente
pelo “temor do Senhor”.
O pedido para que Deus lhe desse sabedoria para ser um grande rei
demonstrou uma submissão completa aos desígnios divinos, o que lhe garantiria
a sabedoria para reinar. Perante Deus, o rei era responsável por seu povo, por
isso, deveria governar segundo Sua vontade, tal como descrito na Bíblia. O povo,
por sua vez, devia obediência e respeito à sua investidura, o que foi mencionado
pelo apóstolo Paulo em uma de suas cartas aos Romanos: "Todo homem esteja
sujeito às autoridades superiores; porque não autoridade que não proceda de
Deus; e as autoridades que existem foram por Ele instituídas" (BÍBLIA, N.T.
Romanos 13:1). Esta passagem enfatiza a necessidade do respeito ao poder
temporal, o que legitima que a atuação do governante seja orientada por
47
conselhos sagrados. Esta, portanto, se a concepção de rei no Ocidente
Carolíngio e, consequentemente, o lema do Rei Carlos Magno.
O livro de provérbios é composto por um conjunto de máximas acerca de
vários assuntos, além de fábulas, enigmas, sátiras e parábolas.
32
Nesta obra,
Salomão parece representar a primeira fase de sua vida, que se caracterizou pela
completa fidelidade a Deus, garantindo-lhe a sabedoria anteriormente solicitada.
De acordo com a história bíblica, Salomão adquiriu e desenvolveu dons e
qualidades morais por meio de sua dependência de Deus. A educação recebida
de seu pai contribuiu também para o êxito dos primeiros anos do seu reinado.
Antes de lhe entregar a coroa, Davi chamou a atenção de seu filho para duas
virtudes: a prudência” e a “sabedoria” (BÍBLIA, V.T I Reis 2, 6 e 9). A aquisição
desta última tornou-o famoso e muito respeitado diante das nações vizinhas.
No Ocidente, como abordamos no capítulo anterior, as virtudes de um bom
governante foram amplamente discutidas na República de Platão. Um Estado
justo deveria ser governado por sábios filósofos, nos quais as virtudes da justiça,
temperança, força e prudência deveriam ser eminentes. Alcuíno também
menciona essas virtudes, com a diferença de que, para ele, o princípio da
sabedoria consiste na submissão aos desígnios divinos. É desta forma que as
quatro virtudes retomadas da cultura Antiga serão essenciais ao governante da
época carolíngia.
De acordo com a história bíblica, o reinado de Salomão entrou em declínio
por razões políticas e morais. Primeiramente, ele desenvolveu em seus ditos
uma expressiva insatisfação com seu governo, relacionada à imposição de altas
cargas tributárias, o que empobreceu o povo à custa de sua ambição. Além disso,
a aliança por meio de casamentos com mulheres pertencentes a reinos que não
serviam ao Deus de Israel fez propagar a idolatria e rituais pagãos. Segundo o
narrador, o distanciamento dos desígnios divinos ocasionou a ruína de seu
32
Assuntos principais do livro de Provérbios: (I) Louvor à sabedoria, 1,7 até cap. 9,18; poema
didático em forma de conselhos de um pai a seu filho, destinado principalmente a um jovem ; (II)
Provérbios de Salomão, caps. 10 a 22, 16; máximas em ordem irregular, e consistindo na maioria
dos casos de duas sentenças em contraste; (III) sem inscrição formal, que pode ser encontrada no
primeiro v. compara as palavras do sábio, contidas no cap. 22, 17 até cap. 24,22, com as do cap.
24, 23. No meio delas existe um poema sobre embriaguez, suplementado pelas palavras do bio,
contidas no cap. 24, 23-34, inclusive uma ode sobre o preguiçoso ; (IV Provérbios de Salomão,
copiados pelos servos de Ezequias, rei de Judá, contidos nos caps. 25 a 29. Todos eles têm
cunho de provérbio popular, consistindo de poderosas sentenças formadas de duas até cinco
cláusulas, paralelas (DAVIS, J, 1996, p. 489).
48
reinado. Assim, no final de seu reinado, como nos relata o livro bíblico de
Eclesiastes, ele não foi considerado um bom governante.
Em nossa análise, esta história bíblica transmite à época carolíngia uma
lição importante: o Rei cristão deve dirigir suas ações pela revelação divina
descrita nas sagradas escrituras. Atitudes contrárias a este conselho certamente
promoverão um mau governo.
O livro de Eclesiastes
33
parece apresentar Salomão já em sua velhice, uma
vez que suas reflexões denotam certa insatisfação com alguns acontecimentos de
sua vida. Ele percebe que, de certa forma: “O que foi é o que de ser, e o que
se fez, isso se tornará a fazer, nada há pois, novo debaixo do sol(BÍBLIA, V.T.
Eclesiastes 1,9).
Esta inquietação adveio de uma reflexão: a Terra continua a existir, mas os
seres humanos, não. A natureza, por exemplo, se fez presente antes de nós e
permanece após a nossa existência. Os seres humanos não são imortais e,
apesar de possuírem todo o conhecimento, não conseguiram explicar ou resolver
a questão da morte. Estas e outras reflexões filosóficas estão descritas em
Eclesiastes, cuja principal característica é a retomada de consciência e a
afirmação de que os preceitos divinos são justos e garantem a verdadeira
felicidade.
Os livros escritos por Davi (Salmos) e Salomão (Provérbios, Eclesiastes e
Cantares) mereceram comentários em algumas obras de Alcuíno, bem como
várias menções na íntegra em muitas de suas cartas. Pelo seu conhecimento da
história bíblica, ele ofereceu a Carlos Magno o pseudônimo de “Davi”, um
personagem bíblico que se destacou na arte de um governo cristão e foi também
o patriarca de cuja linhagem viria o Cristo, Aquele que deveria libertar o povo de
Israel. Sobre o pseudônimo de Carlos Magno, Favier considera:
33
O nome Eclesiastes é uma derivação fonética do termo grego Ekklesiastes, que aparece como
título do livro na versão grega do Antigo Testamento, denominada Septuaginta. Por sua vez, esse
termo encontra sua raiz no vocábulo: ekklesia; que tem o sentido de reunião ou assembléia. Na
Bíblia hebraica, aparece o termo Qohelet, cuja raiz encontra-se na seqüência das consoantes: Q,
H, L e cuja primeira acepção é reunião ou ajuntamento de pessoas. Nas formas verbais, essas
consoantes dão o sentido de reunir, juntar. Dessa maneira, o termo substantivado, Qohelet, pode
significar aquele que reúne uma assembléia para falar-lhe; ou seja, o pregador. AGUILAR, R.
Disponível em:
www.cpb.com.br/htdocs/periodicos/licoes/adultos/2007/arqcom/doc/com112007.doc
. Acesso em:
05/02/2008
49
Quanto a Carlos, ele escolheu para si um nome que evoca ao
mesmo tempo o poder do rei e o talento do poeta, mas que nada
tem de grego ou de latino: ele é Davi. [...] Para Alcuíno ele é “Davi,
o rei pacífico”. O que é prestar homenagem a Carlos fazendo
referência àquilo com que ele sempre sonha e sobre o que não se
cansa de falar: a paz. Davi é ao mesmo tempo o vencedor de
Golias, isto é, do pagão, o organizador do reino da Judéia, o
fundador de Jerusalém, o chefe da “casaonde nasceria o Cristo.
Ele é considerado o autor dos Salmos. E muitos imperadores
cristãos viriam a ser chamados, a partir do culo V, o “Novo Davi”
(FAVIER, 2004, p. 424).
Carlos Magno encontrou no rei israelita algumas características que lhe
serviram de inspiração no governo de seu Império. A sabedoria, coragem,
resignação diante de Deus e a responsabilidade de propagar o evangelho às
nações pagãs foram os principais exemplos retirados das Sagradas Escrituras
para nortear o seu reinado. Alcuíno, ao comparar Carlos Magno ao rei Davi,
expressou-se da seguinte forma:
Feliz, disse o salmista, a nação de que Deus é o Senhor; feliz o
povo exaltado por um chefe e apoiado por um pregador da fé cuja
mão direita brande a espada dos triunfos e cuja boca faz
ressoar a trombeta da Verdade católica. Foi assim que outrora
David, escolhido por Deus para o rei do povo que era então o seu
povo eleito [...]. Submeteu a Israel, pela sua espada vitoriosa, as
nações dos arredores, e pregou entre os seus a lei divina. Da
nobre descendência de Israel saiu, para a salvação do mundo, a
flor dos campos e dos vales”, o Cristo a quem nos nossos dias o
(novo) povo que ele fez seu deve um outro rei David. Sob o mesmo
nome, animado da mesma virtude e da mesma fé, este é agora o
nosso chefe e o nosso guia: um chefe à “sombra do qual” o povo
cristão repousa na paz e que de todos os lados inspira o terror às
nações pagãs; um guia cuja devoção não cessa, pela sua firmeza
evangélica, de fortificar a fé católica contra os partidários da
heresia, velando para que nada de contrário à doutrina dos
apóstolos se introduza em qualquer ponto, esforçando-se por fazer
brilhar por toda a parte a católica à luz da graça celestial
(ALCUÍNO Apud HALPHEN, 1970, p. 199).
Davi é apresentado como um exemplo das escrituras sagradas para um
bom governante; submisso aos desígnios divinos, ele conquistou na época o
maior número de territórios alcançados pelo povo de Israel. Quando Alcuíno fala
de paz no reinado de Carlos Magno, talvez esteja se referindo à paz que o
evangelho pode proporcionar ao se difundir pela sociedade e que era um dos
grandes anseios do soberano carolíngio. No entanto, para isso, era preciso
50
evangelizar e, como vimos no início deste capítulo, embora o resultado esperado
fosse a união e a paz social, o processo não foi tão pacífico em termos literais.
Ao mesmo tempo em que Alcuíno se utilizou de nomes de personagens
bíblicos, ele tamm retomou alguns nomes da filosofia antiga. Isto confirma,
mais uma vez, que as duas vertentes do conhecimento, ou seja, os
conhecimentos clássicos e cristãos estavam presentes na Escola Palatina. Nas
palavras de Favier:
Os nomes que se dão os que participam da Academia são às
vezes ricos de significado. Nos debates da corte e em sua
correspondência com o rei, Alcuíno se chama Albinus (Albino) ou
Flaccus (Flaco), ou seja, Horácio. Angilbeto é Homero, Teodulfo é
Píndaro e o jovem poeta Modoíno é Naso, isto é, Ovídio. Esses
quatro nomes dizem bem do gosto desses letrados pela poesia,
lírica ou épica, mas poder-se-á notar que, apesar das restrições de
Alcuíno, dois deles reportam-se à literatura grega, em mesmo
número, portanto que os das letras latinas (2004, p. 423).
Podemos perceber, neste item do trabalho, que Alcuíno e Carlos Magno
orientaram muitas das questões organizacionais e educacionais do Império
pautadas na filosofia cristã. Porém, a filosofia antiga também se fez muito
presente, pois para o mestre elas não eram independentes e isso pôde ser
verificado na discussão que faz no Diálogo acerca da verdadeira filosofia.
A seguir, apresentaremos como o mestre Alcuíno contribuiu para a
preservação do conhecimento na Idade Média e, por meio de excertos de suas
obras, demonstraremos como se deu a apropriação do conhecimento antigo por
este filósofo anglo-saxão e refletiremos sobre o fato de que ele contribuiu, não
para a restauração das letras no Imrio Carolíngio, mas para a permanência do
conhecimento, nas sociedades posteriores.
2.3. A influência de Cícero na prática pedagógica de Alcuíno
A cultura antiga foi essencial na organização do Império, especialmente no
que tange à educação. Sua apropriação por Alcuíno auxiliou-o na formação dos
governantes de sua época, principalmente na de Carlos Magno. Para desenvolver
51
esta questão, iremos discorrer um pouco sobre a influência de Cícero na corte
carolíngia.
Cícero (Arpino, 106 Caieta, 43 a. C)foi um eminente pensador latino que
defendia o estudo das sete artes liberais na formação do sábio. Considerava que
a eloquência era o elemento fundamental a ser desenvolvido em todo homem,
inclusive do líder. Contudo, era necessário que esta eloquência fosse
acompanhada da sabedoria, pois (...) é possível ser filósofo sem ser eloquente,
mas não eloquente sem ser filósofo, o ideal humano que se deve perseguir é o
do doctus oratur, o orador instruído ( Cícero Apud GILSON, p. 205).
Influenciado pelos escritos de Cícero, Alcuíno baseou a instrução de
Carlos Magno em várias disciplinas do trivium e quadrivium, dentre as quais se
destaca, conforme registro nos documentos históricos, a arte da retórica. No
entanto, ao mesmo tempo em que é possível verificar essa influência, é
conveniente também levar em conta a diferença cultural e social entre Alcuíno e
Cícero. Alcuíno enfatiza o estudo das setes artes liberais, mas em outro contexto,
o cristão. Cícero apresenta a filosofia como um conhecimento fundamental
que o líder deve desenvolver. Sobre Cícero, Gilson afirma:
que se trata de formar líderes, o futuro orador deverá antes de
mais nada possuir a fundo a ciência do direito, que será sua
técnica própria, mais uma massa de conhecimentos diversos, como
a filosofia (dialética e ciência dos costumes, a história, as belas
letras, em suma, toda essa eruditio que constitui a bagagem de um
espírito culto (GILSON, 2001 p. 206)
Alcuíno foi autor de outro diálogo, cujo título é Debate sobre a retórica e
sobre as virtudes do sapientíssimo rei Carlos e do mestre Alcuíno
34
. Este diálogo
é uma aula de retórica, com algumas considerações sobre as habilidades que
Carlos Magno deveria desenvolver. Vejamos como Alcuíno retoma o
conhecimento passado para conduzir a sua aula:
C..Introduze-me, mestre, antes de mais nada no estudo dessa arte.
A. Fá-lo-ei com a autoridade dos antigos. Com efeito houve, dizem,
um tempo em que os homens vagavam pelos campos a esmo, à
maneira das bestas, nada fazendo orientados pela razão; quase
34
Título original da obra: Alcuin: disputatio de rhetorica et de virtutibus sapientissimi regis Karli et
Albini magistri
52
tudo faziam com a força corporal. Ainda não havia o culto de uma
religião divina nem o senso do dever, mas o homem, levado pela
cega, temerária e dominadora cobiça, abusava das forças do corpo
para satisfazer-se. Naqueles tempos alguém, certamente um
homem importante e sábio, percebeu que talento tinha o homem e
de quantas realizações ele seria capaz, se alguém o pudesse
orientar e aperfeiçoar ordenadamente. Este bio compeliu, de
alguma maneira, os homens dispersos pelos campos e
acostumados a recolher-se em abrigos silvestres e induziu-os a
alguma coisa útil e honesta, tornando-os de ferozes e cruéis em
pacíficos e tratáveis, a eles que de início reclamavam da novidade
que se introduzia, mas depois passaram a ouvir com mais atenção,
graças às palavras de convencimento. A mim, senhor meu rei,
parece-me que uma sabedoria (inativa) e carente de palavra não
poderia remover subitamente os homens de seus antigos costumes
e orientá-los para uma nova maneira de viver (DISPUTATIO DE
RHETORICA ...Tradução Aluysio Favaro).
Alcuíno chama a atenção de Carlos Magno para a importância de saber
expressar a sua sabedoria em palavras, ou seja, não seria suficiente o Imrio
Carolíngio possuir um rei sábio, fazia-se necessário que esta sabedoria fosse
coerentemente expressa por palavras e isto poderia ser desenvolvido com a
arte da retórica.
É importante observar tamm que a forma como Alcuíno introduziu a
explicação é muito semelhante às considerações de Cícero, quando este afirma
que o homem difere dos animais apenas pela linguagem e por este motivo tal
habilidade deve ser muito bem desenvolvida. Vejamos a seguir como Cícero
descreveu a importância da linguagem na sociedade:
(...) o que de mais agradável nos dias de lazer, o que de
mais verdadeiramente humano que uma conversa espiritual entre
jovens instruídos? A principal superioridade do homem sobre o
animal é de poder conversar com seus semelhantes e exprimir
seus sentimentos por meio da palavra. Também temos nós o
direito de reservar nossa admiração e de consagrar todos os
nossos esforços à um trabalho que nos permitirá sobrepô-lo sobre
os demais precisamente quando coloca o homem acima do animal.
Mas, o mais belo título da eloqüência é ter tido a única potência
capaz de agrupar dois homens dispersos, de tê-los feito renunciar
a vida selvagem de animal para levá-los à cultura e à civilização
presente, e depois à constituição dos Estados, de ter estabelecido
a justa , as leis e o direito (Cícero, s/d, p. 17. Tradução nossa)
35
.
35
(...) quoi de plus agréable dans lês jours de loisir, quoi de plus vraiment humain qu’une
conversation spirituelle entre gens instruits? La principale supériorité de l’homme sur la bête est de
pouvoir converser avec ses semblables et exprime ses sentiments par la parole. Aussi, avons-
nous le droit de réserver notre admiration et de consacrer tous nos efforts à un travail qui nous
53
Cícero afirma que o homem deixa de ser selvagem à medida que se
utiliza da linguagem para se inserir no contexto social. O diálogo é o meio pelo
qual os homens se tornam humanos
36
, que a palavra exprime sentimentos que
os homens são capazes de sentir. Além disso, Cícero afirma ter sido por meio
da linguagem que a organização social se estabeleceu. Este pode ser um dos
motivos pelos quais Alcuíno, baseando-se em suas idéias, procurou ensinar seu
superior a utilizar bem esse mecanismo de comunicação e, assim, organizar da
melhor maneira o seu governo. Sobre as vantagens de o Estado possuir bons
oradores, Cícero complementa:
Eu não quero continuar a enumerar estas vantagens que são
quase infinitas: resumo: pelo seu talento e sabedoria o orador
perfeito assegurará, não somente sua própria glória, mas ainda a
saudação dos concidadãos e a saudação do Estado. Continuem
então jovens, como vocês começaram, atem-se a este estudo: será
a glória para vocês, uma vantagem para seus amigos e um grande
bem para a República (Cícero, s/ d p. 17-19. Tradução nossa)
37
.
Como podemos verificar, Cícero atribui grande importância à presença
de bons oradores no Estado. Isto se deve à necessidade de os deres se
expressarem da melhor maneira perante o povo e, assim, garantirem sua
autoridade na sociedade.
É importante enfatizar o papel da formação neste quadro. Ao ler as
obras de Cícero, um autor latino, Alcuíno redireciona suas idéias para a prática
pedagógica do século IX, cujo fim é ensinar um líder sobre a arte do bem falar e
consequentemente auxiliá-lo na constituição do Império Carolíngio. O mestre foi
permetra de l’emporter sur les autres, précisement par ce qui met l’homme au-dessus de l’animal.
Mais le plus beau titre del’oquence, c’est d’avoir été la seule puissance capable de grouper les
hommes dispersés, de les avoir fait renoncer à la vie sauvage des bêtes pour les amener à la
culture et à la civilisation présentes, et aprés la constitution des États, d’avoir établi la justice, les
lois, le droit (Cícero, s/ d p. 17-19).
36
Etienne Gilson ao referir-se a Cícero considerou: [..] melhor se fala , melhor se é homem . É por
isso que a eloqüência é, a seus olhos, a arte suprema, e não só uma arte, mas uma virtude. Como
ele mesmo diz em De inventione rhetorica e em De oratore, a eloqüência é a virtude pela qual um
homem leva a melhor sobre os outros homens, por aquilo que faz a superioridade do próprio
homem sobre os outros animais. Quem cultiva a eloqüência cultiva a própria humanidade (2001, p.
204).
37
Je ne veux pas poursuivre l’énumération de ces avantages, qui sont en nombre presque infini; je
me résume : par son talent et sa sagesse, l’orateur parfait assurera non seulement sa propre
gloire, mais encore le salut de ses concitoyens et de l’État. Continuez donc, jeunes gens, comme
vous avez commencé, attachez-vous à cette étude : ce sera de la glore pour vous, un avantage
pour vos amis, un grand bien pour la république (Cícero, s/ d p. 17-19).
54
capaz de aplicar à sua realidade um conhecimento produzido por seus
antecessores, o que foi possível porque os mosteiros, principalmente,
preservaram essas obras.
Vejamos, no item a seguir, como os conhecimentos sagrados e
profanos fizeram parte do processo de preservação da cultura que se realizou no
interior dos mosteiros.
2.4. O sagrado e o profano na preservação do saber
Como discutimos no primeiro capítulo, o isolamento dos mosteiros
favoreceu a preservação da cultura antiga. Contudo, os religiosos conviviam com
uma contradição. Apesar de prezarem o ensino baseado nas Santas Escrituras, a
cultura presente era a greco-latina. Assim, quando os monges se dedicavam ao
estudo do latim, que era a língua da Igreja, automaticamente se deparavam com
um fato inevitável, ou seja, com as obras antigas de literatura latina. Durkheim
levanta questões sobre o assunto:
[...] o ensino supõe uma cultura, e não havia então outra cultura
senão a pagã. A Igreja tinha, pois, a obrigação de apropriar-se a
ela. O ensino, a prédica, supõem, em quem ensina ou prega, uma
certa prática ou língua, uma certa dialética, um certo conhecimento
do homem e da história. Ora onde encontrar esses conhecimentos,
senão nas obras dos antigos? (DURKHEIM, 2002 p. 29).
Como estas instituições estavam inseridas em uma cultura que, no seu
apogeu, primava pela erudição clássica, muitos intelectuais refletiram sobre os
ensinos cristãos à luz da filosofia antiga. Na tentativa de compreender as mais
variadas inquietações humanas, acabaram por unir essas duas formas de
conhecimento. Um dos intelectuais que buscou desenvolver suas máximas desta
perspectiva foi Boécio (480-525).
Filósofo de um período de transição, Boécio (c. 480-525), cidadão romano
e filho de família nobre, adquiriu, por meio do estudo das ciências gregas, um
vasto conhecimento da cultura clássica. Sua formação privilegiada o fez
compreender a essencialidade da instrução e, diante do declínio cultural que
55
acompanhou a queda do Império romano e as incursões mades, transmitiu, por
meio de suas obras, a importância da filosofia. Inspirou, desta maneira, a grande
maioria dos mestres medievais posteriores.
Boécio era Ministro de Teodorico (454 526), líder dos Godos. Um de
seus principais deveres era auxiliar seu superior em todos os aspectos políticos e
administrativos; no entanto, sua atenção maior estava voltada para a preservação
e propagação da cultura que recebera. Nas palavras de Gilson:
Traduzir, comentar, conciliar e trasmitir, era essa, em sua primeira
intenção, a obra de Boécio. Ela estava em harmonia com as
necessidades desse século VI que se sente como trazendo em
gestação um novo mundo (2001, p. 175).
Boécio foi considerado o fundador da Escolástica por seus comentários
teológico-filosóficos. De acordo com Lauand (1998), ele apresenta em sua obra
De Trinitate um tratado sobre a Trindade, no qual, para compreender e analisar a
natureza da fé utiliza como base o pensamento de Aristóteles.
Suas formulações revelam nitidamente os conflitos que vivenciava na
transição entre a Idade Antiga, pautada na filosofia clássica, e a Idade Média, que
se servia da filosofia cristã.
Segundo o prefácio da obra, a Consolação da Filosofia foi escrita na prisão.
A clausura foi uma punição aplicada em razão de uma acusação de conspiração
contra Teodorico. Mesmo desprovido de sua liberdade, sofrendo a dor da injustiça
por parte daqueles que anteriormente o admiravam, ele registrou suas reflexões
sobre toda a sua vida, sobre o conhecimento adquirido e sobre o prazer que a
riqueza e a fama tinham lhe proporcionado. Solitário, ele teria iniciado um diálogo
com a Filosofia, expressando todos os sentimentos que lhe revoltavam a alma.
Obteve dela respostas que o consolavam.
É essa recompensa que tenho por ter aderido a ti? E, no entanto
foste tu que ditaste pela voz de Platão que seriam felizes os
estados governados pelos sábios ou que se consagrassem à
sabedoria. Tu, pela boca do mesmo filósofo, me persuadiste de
que os sábios deveriam governar os estados, para impedir que o
governo caísse nas mãos de pessoas sem escrúpulos e sem
palavra, e que fosse uma praga para os bons. [...] Quando eram
tomadas as riquezas dos habitantes da província ou estavam eles
sobrecarregados de impostos, sofri tal como qualquer cidadão
comum (BOÉCIO, 1998, p. 11).
56
Este desabafo revela a sua indignação perante a desestruturação do
Império romano. Ele considerava como ideal de governante aquele que buscava
desenvolver as quatro virtudes, justiça, prudência, temperança e força, com um
único fim, o bem comum. No entanto, vivenciava uma realidade distante daquela
que zelava pelos interesses da sociedade. Por isso, em A Consolação da
Filosofia, por meio da descrição dos comportamentos dos personagens da época
e da angústia de seu autor, ele nos mostra as características do homem inserido
em uma sociedade que estava se desestruturando. Além de buscar na filosofia
respostas para as questões que não cessavam de ir e vir na sua mente, ele
também considerava Deus como auxiliador de todos que se achegavam a Ele:
Aquele que nos observa do alto, que perdura eternamente, que tem
a presciência de todas as coisas, é Deus, que com a eternidade
sempre presente do seu olhar, concorda com a qualidade futura de
nossas ações distribuindo aos bons as recompensas e aos maus
os castigos. E não é em vão que colocamos em Deus nossas
esperanças e preces, as quais, sendo justas, não podem
permanecer sem algum efeito. (BOÉCIO, 1998, p. 156).
Nesta citação, é possível perceber que Boécio enfatiza a consolação que a
filosofia lhe traz a respeito da injustiça dos homens. O autor recorre também a
algumas reflexões cristãs, segundo as quais o homem é possuidor do livre-
arbítrio, mas recebe de Deus as recompensas por suas obras, sejam elas boas ou
más, o que traz ao autor certa consolação.
Para Boécio, a filosofia é o caminho que leva o homem até Deus, pois é
Ele o doador da capacidade de reflexão que os seres humanos possuem. Ele
considera que as quatro ciências do quadrivium, (aritmética, astronomia,
geometria e música) são fundamentais à aquisição da sabedoria e que as
ciências do trivium (a gramática, a retórica e a lógica) podem ser ferramentas que
auxiliam a filosofia. Este raciocínio marcará profundamente os ideais educacionais
do Renascimento Carolíngio. Nas palavras de Gilson:
A influência de Boécio foi múltipla e profunda. Seus tratados
científicos alimentaram os ensinamentos do Quadrívio; suas obras
de lógica substituíram as de Aristóteles durante vários séculos,
seus Opúsculos deram o exemplo, que atormentará vários espíritos
na Idade Média, de uma teologia que se constituiria como ciência e
segundo a expressão do próprio Boécio, se deduziria, de acordo
57
com certas regras, a partir de termos previamente definidos.
(GILSON, 2001, p. 174)
Assim, podemos observar influências de Consolação da filosofia de Boécio
no período carolíngio, especialmente nas obras de Alcuíno de York. Em Diálogo
acerca da verdadeira filosofia, este faz algumas referências diretas a ela:
Ouvimos-te dizer frequentemente doctiloqüentíssimo mestre, que a
filosofia seria a professora de todas as virtudes e que, entre todas
as riquezas do mundo, ela teria sido a única que nunca deixou
miserável àquele que a possui (…) [ALCUÍNO 2004, p. 65.
Tradução nossa] .
38
Na seqüência do texto, ele reproduz um trecho semelhante da obra de
Boécio, evidenciando que as formulações realizadas por um intelectual do século
VI influenciaram diretamente o pensamento de um intelectual do século IX
39
.
Mediante tais considerações, é possível destacar duas questões
importantes: as reflexões de Boécio não contribuíram para a educação de sua
época, mas para boa parte do pensamento medieval; Alcuíno, apesar de prezar
pelos ensinamentos cristãos, busca, em fontes seculares, elementos que julga
importantes para a educação de sua época.
Outra obra de Alcuíno que apresenta esta fusão entre conceitos da cultura
antiga e cristã é o Diálogo entre Pepino e Alcuíno, datado do século IX. Este
diálogo, que será analisado no próximo capítulo, além de possibilitar a
compreensão desse processo de fusão de conhecimentos diferentes, fornece-nos
também uma amostra do ensino ministrado na escola do palácio e da importância
que o mestre Alcuíno atribuía à brincadeira no processo ensino-aprendizagem.
Vejamos alguns exemplos:
Quem gera a palavra? (Fala 5)
A língua (Fala 6)
38
Te oímos decir frecuentemente doctísimo maestro, que la filosofía sea la maestra de todas las
virtudes y que, entre todas las riquezas del mundo, ella habría sido la única que nunca dejó
miserable al que la posee (…) [ALCUÍNO 2004, p. 65]
39
Segue uma das passagens da obra Consolação da filosofia de Boécio que apresenta
semelhanças com a de Alcuíno: “E eu lhe perguntei: ‘Mas que fazes aqui, na solidão de meu
exílio, ó mestra de todas as virtudes, tendo descido do alto do céu? Ou também tu, culpada,
queres partilhar as acusações caluniosas? ’ E ela disse: ‘Haveria eu de abandonar meu discípulo e
não tomar também do fardo que suportas e da calúnia que te impuseram? Mas à filosofia não é
lícito deixar caminhando sozinho um discípulo seu. Temeria eu a censura, como se isso jamais
tivesse acontecido comigo, e ficaria em pânico? (...)’ [BOÉCIO, 1998, p. 8]”.
58
O que é a língua? (Fala 7)
O chicote do ar (Fala 8)
O que é o ano? (Fala 131)
A quadriga do mundo (Fala 132)
E quem a conduz? (Fala 133)
A noite e o dia, o frio e o calor. (Fala 134)
E quem dirige as rédeas? (Fala 135)
O sol e a lua. (Fala 136)
Quantos são seus palácios? (Fala 137)
Doze. (Fala 138)
Quem são os governantes dos palácios? (Fala 139)
Áries, Touro, Gêmeos, Câncer, Leão, Virgem, Balança, Escorpião,
Sagitário , Capricórnio, Aquário e Peixes. (Fala 140)
(Diálogo entre Pepino e Alcuíno 1986, p. 79, 84-85)
Muitas das charadas apresentadas por Pepino, filho de Carlos Magno, a
Alcuíno contemplam respostas reveladoras da influência significativa das
Sagradas Escrituras. Nas falas de cinco a oito, é possível verificar que o
significado dado à palavra língua é semelhante às menções que são feitas na
Bíblia sobre esta parte do corpo que é capaz de edificar a outra pessoa, ou o
contrário. Muitas referências o encontradas no livro de Salmos: "Guarda a tua
língua do mal, e os teus lábios de falarem o engano (BÍBLIA, V.T. Salmos 34,13)”.
Esta é uma recomendação moral ao cuidado com as palavras, à prática justa por
parte do governante. É importante à época que os líderes se vigiem para não
cometer o vício da mentira.
No livro de Provérbios também admoestações semelhantes: "Há alguns
que falam como que espada penetrante, mas a língua dos sábios é saúde"
(BÍBLIA, V.T. Provérbios 12,18). Novamente há uma ênfase à sabedoria e à
linguagem. Se considerarmos esta citação na perspectiva do governante,
poderemos afirmar que oder sábio que utiliza bem as palavras promove a saúde
de seu reino e viverá em harmonia com seus súditos.
Nos livros do novo testamento, como o escrito por Tiago, por exemplo,
também encontramos versículos que advertem sobre o mau uso da língua,
representando-a como algo que pode ferir outra pessoa, como Alcuíno alertava.
"A língua tamm é um fogo; como mundo de iniqüidade, a língua está posta
entre os nossos membros, e contamina todo o corpo, e inflama o curso da
natureza, e é inflamada pelo inferno (BÍBLIA, N.T. Tiago 3,6)”.
nas perguntas que se referem a “o que é o ano” (Fala 131) e vão até
a explicação das doze constelações que se localizam na faixa do zodíaco (Fala
59
140), revela-se um conhecimento elementar sobre a ciência astrológica, conceitos
matemáticos combinados com o misticismo, oriundos de Pitágoras (570-
495a.C)
40
. Outros exemplos presentes no documento evidenciam o conhecimento
de Alcuíno sobre os pré-socráticos e outros clássicos da filosofia antiga. Isso
comprova que Muitos bispos cristãos das Gálias formaram-se nessas escolas,
aprenderam nelas a apreciar a literatura antiga e, portanto, esforçaram-se para
conciliar o culto das belas letras com as exigências da nova fé” (DURKHEIM,
2002 p. 37).
Como afirmamos, a fusão entre as duas formas de compreensão de
mundo estará sempre presente nas obras de Alcuíno. O livro, A respeito da
natureza da alma, compreendido à luz das discussões realizadas por Platão,
Plotino e Santo Agostinho evidenciará isso mais uma vez.
2.5. Alcuíno e as relações estabelecidas com os escritos de Platão, Plotino e
Santo Agostinho
Conhecer o homem e desvendar os seus mistérios por meio da razão foi o
anseio de muitos filósofos da antiguidade e da medievalidade. Esse tema é difícil
de ser explicado, porque envolto em múltiplas teorias metafísicas
41
, mas é de
suma importância, que diz respeito à constituição do homem e de suas
potencialidades, único saber que possibilita um viver satisfatório.
40
“Da imputação de polimathia, pode-se concluir que procedem de Pitágoras aqueles que mais
tarde Aristóteles referiu-se como ‘os chamados ‘pitagóricos’, considerando-os fundadores de um
novo tipo de ciência que eles, diversamente da ‘metereologia’ dos nios, denominaram apenas
Mathemata, isto é, ‘os estudos’. Pitágoras é um homem universal, que abrange de fato muitas
coisas heterogêneas: a doutrina dos números e os elementos da Geometria, os primeiros
fundamentos da acústica, a teoria da música e o conhecimento dos tempos dos movimentos das
estrelas. (JAEGER, 1994, p. 204)”
41
Metafísica é a ciência, por ter como objeto de todos as outras ciências, e como princípio, um
princípio que condiciona a validade de todas as outras. Por essa pretensão de prioridade (que a
define) a metafísica pressupõe uma situação cultural determinada em que o saber se organizou
e dividiu em diversas ciências, relativamente independentes e capazes de exigir a determinação
de suas inter-relações e sua integração com base numa fundamentação comum. (...) a segunda
concepção fundamental é a da metafísica como ontologia ou doutrina que estuda os caracteres do
ser: os que todo ser tem e não pode deixar de ter (...) [ABBAGNANO, N. Dicionário de Filosofia,
2000]
60
Alcuíno procurou responder às inquietudes de homens e mulheres de seu
tempo. Suas reflexões filosóficas não foram originais, mas foram suficientes para
educar e transmitir àquela sociedade o conhecimento desenvolvido até o
momento.
Ele buscou em outros autores respostas para suas inquietações do corpo e
da alma. Neste item, abordaremos as influências que ele recebeu direta ou
indiretamente de três filósofos, cujas reflexões originais diziam respeito à natureza
da alma: Platão, Plotino e Santo Agostinho.
Platão, um dos mais célebres intelectuais da Idade Antiga, afirmou que o
homem é constituído de dois princípios divergentes: a “razão, a parte da alma que
raciocina, e apetite sensual, destituído de razão, amigo de sensações e prazeres
(...) e que se atira com ímpeto a todos os desejos” (PLATÃO s/d, p. 167).
O uso da razão desenvolve o sumo bem, que tamm pode ser entendido
como virtude ou felicidade. Porém, esta razão encontra um obstáculo, melhor
explicado pelo dualismo filosófico-religioso de alma e corpo. O corpo, susceptível
às sensações e desejos, deve ser dominado pelo uso da razão. Se esse domínio
se efetiva, é porque a alma se tornou superior ao corpo, sendo possível, então,
atingir a virtude suma, que é a filosofia. Neste processo, Platão destaca quatro
virtudes essenciais, denominadas de naturais ou cardinais: prudência, força,
temperança e justiça.
Esta definição filosófica sobre alma e corpo construída por Platão foi
emprestada e modificada pelos teóricos subseqüentes e até mesmo pelos padres,
entre os quais se destaca Santo Agostinho. Logo, os escritos de Alcuíno
certamente não permaneceram imunes a estas influências.
O movimento filosófico tradicionalmente denominado de neoplatonismo,
representado pela filosofia de Plotino e seus discípulos, busca, em Platão,
Aristóteles e nos estóicos, a metafísica que possibilitou o desenvolvimento de
suas teorias (BRUN, 1988). Plotino descreve sua concepção de alma e corpo da
seguinte forma:
A alma preside ao raciocínio (logizómenon); para isso parte de
imagens vindas das sensações, imagens que compõem ou que
divide. O conhecimento discursivo (dianoia) apóia-se nas
contribuições que ela recebe dos sentidos, ajustando as imagens
61
presentes às que conheceu, mas também às que provém da
Inteligência (V, 3, 3).
Sentimos por intermédio dos sentidos e somos s que sentimos.
Raciocinamos da mesma maneira? Sim somos precisamente s
que raciocinamos e concebemos as noções incluídas no raciocínio;
estas noções, somos nós mesmos. Os actos da Inteligência m
de cima, como as imagens originadas da sensação vêm de baixo.
Para nós, somos essa parte principal da alma, que é intermediária
entre duas foas, uma inferior e outra superior, a sensação e a
inteligência. Quanto à sensação, concordamos que ela é nossa
porque sentimos sempre. Mas, quanto à Inteligência, duvidamos,
porque não a utilizamos sempre e porque ela está separada; está
separada quer dizer que não se inclina em direção a s, antes
somos nós que nos inclinamos para ela, quando olhamos para o
alto. A sensação para nós é uma mensageira; a inteligência é o
nosso rei (V, 3, 3) (PLOTINO apud BRUN, 1988, p. 60-61).
Como podemos verificar na citação acima, as definições de Plotino para
alma e corpo e as relações que ele faz com as sensações são muito semelhantes
com as de Platão
42
. Estas definições mantêm a essência, mas se revestem de
formas diferentes, principalmente nos escritos de Santo Agostinho (354 - 430),
considerado o último dos antigos, pela influência que recebeu deste período, e o
primeiro dos medievais, pela influência marcante nos escritos dos grandes
teóricos que o sucederam.
Santo Agostinho encontrou nos escritos neoplatônicos muitas respostas
para as inquietações que a seita maniqueísta, da qual era adepto, não foi capaz
de lhe proporcionar. A filosofia agostiniana desenvolveu-se sobre os pilares da
filosofia neoplatônica, mas acrescentou-lhe a nova interpretação pautada nas
doutrinas cristãs.
Agostinho considera a alma como uma criação de Deus para reger o corpo,
mas, com a entrada do pecado no mundo e com o uso que o homem faz do livre
arbítrio, acontece exatamente o contrário. Isto torna impossível que a alma se
salve do domínio das paixões sem a graça divina que auxilia o homem a se
libertar da escravidão do pecado. A incessante luta pela submissão das paixões à
razão também foi assunto de uma das cartas do apóstolo Paulo aos Romanos.
Ele tamm utilizou termos filosóficos para ensinar a cristã, mas, segundo
42
Jean Brun considera que embora o neoplatonismo tenha como sua fonte primeira o platonismo e
o aristotelismo, constitui-se como uma corrente filosófica diferente de suas fontes. (BRUN, 1988,
p. 25)
62
Gilson (1988), substituiu o significado construído pela filosofia antiga por um
sentido religioso novo. Nas palavras de Paulo:
Porque não faço o bem que quero, mas o mal que não quero esse
faço. Ora, se eu faço o que não quero, o o faço eu, mas o
pecado que habita em mim. Acho então esta lei em mim, que,
quando quero fazer o bem, o mal está comigo. Porque, segundo o
homem interior, tenho prazer na lei de Deus; Mas vejo nos meus
membros outra lei, que batalha contra a lei do meu entendimento, e
me prende debaixo da lei do pecado que está nos meus membros.
Miserável homem que eu sou! quem me livrará do corpo desta
morte? (BÍBLIA, N.T. Romanos 7:15-24)
A citação bíblica refere-se à luta constante entre a razão e as paixões
humanas. O apóstolo Paulo afirma ter a consciência do que deve ser feito, no
entanto, na maioria das vezes as paixões imperam em sua vida e o fazem praticar
aquilo que é contrário à sua razão.
Alcuíno, por sua vez, influenciado pelos escritos de Santo Agostinho ,
também escreveu sobre a dicotomia existente entre alma e corpo. No entanto, é
possível que ele não tenha conhecido, em profundidade, a metafísica das fontes
que influenciaram sua fonte direta. Em seu tratado A respeito da natureza da
alma, ele retoma as quatro virtudes cardeais de Platão, mas as interpreta de uma
perspectiva cristã, afirmando que elas, juntamente com a caridade, são virtudes
que possibilitam uma aproximação da alma com Deus
43
43
Sobre as quatro virtudes Alcuíno considera: “E estas quatro virtudes, aperfeiçoadas pela
caridade, aproximam a alma a Deus. E, em efeito, não nada melhor para o homem, nem nada
que lhe faça mais feliz que Deus, ao qual certamente podemos unir-nos somente pelo amor. Por
isso estas quatro virtudes devem ser coroadas pelo diadema da caridade. O que é a verdadeira
sabedoria senão compreender que é necessário amar a Deus? O que é a justiça senão adorar
Àquele que é a fonte de nossa existência e de quem recebemos todos os bens? O que é a
temperança senão o oferecimento puro de si mesmo Àquele que se ama em estado de vida
perfeita? O que é a fortaleza senão suportar todas as adversidades por amor a Deus? (ALCUÍNO,
2004, p. 160-161 Tradução nossa)”
“Y estas cuatro virtudes, perfeccionadas por la caridad, acercan el alma a Dios. Y, en efecto, no
hay nada mejor para el hombre, ni nada que lo haga más feliz que Dios, al cual ciertamente no
podemos unirnos sino por el amor. Por eso, estas cuatro virtudes deben ser coronadas por la
diadema de la caridad. ¿Qué es la verdadera sabiduría, sino comprender que es necesario amar a
Dios? ¿Qué es la justicia sino adorar a Aquél que es la fuente de nuestra existencia y de quien
recibimos todos los bienes? ¿Qué es la templanza sino el ofrecimiento puro de sí mismos a Aquél
que se ama en estado de vida perfecta? ¿Qué es la fortaleza sino soportar todas las adversidades
por amor a Dios? (ALCUÍNO, 2004, p. 160-161)”.
63
Nesta obra, Alcuíno também afirma que a alma é superior ao corpo e que é
capaz de levá-lo a desenvolver as virtudes e evitar os vícios
44
Os vícios estão
diretamente ligados às sensações do nosso corpo, por isso, a necessidade de
vigilância para que a alma o perca sua liberdade. Segundo ele, cada vício
possui uma virtude que o combate, porém isso acontece quando a alma está
unida com seu Criador, o que a torna semelhante a Ele. Alcuíno recupera,
portanto, a interpretação neoplatônica de Santo Agostinho sobre as sensações
captadas pelo corpo e entendidas pela alma:
Consideremos agora a admirável velocidade que possui a alma
para conceber as coisas que percebe através dos sentidos
corporais, dos quais recebe, como se fossem mensageiros,
qualquer aspecto da realidade sensível conhecida ou desconhecida
(ALCUÍNO, 2004, p. 163. Tradução nossa).
45
Embora Alcuíno não apresente reflexões inéditas sobre o assunto,
consideramos significativa esta retomada interpretativa que ele faz das principais
idéias de Santo Agostinho e, indiretamente, de toda a influência anterior de que
este filósofo é portador. Se o mestre retoma, provavelmente isto se deve a dois
motivos: um possível esquecimento destas importantes discussões construídas
nos séculos anteriores ou a necessidade histórica do conhecimento nas duas
perspectivas, cristã e filosófica. Nas palavras de Gilson:
Alcuíno reproduz como evidente a doutrina agostiniana e plotiniana
da sensação: os sentidos são mensageiros que informam a alma
sobre o que sucede no corpo, mas é a alma que modela, ela
mesma e nela mesma, as sensações e as imagens (...). Admitir
44
Sobre o assunto Alcuíno afirma: “Portanto, sendo a alma a melhor parte do homem, convém que
seja ela a senhora e que, como desde o alto de um trono real, que governe por meio do quê, onde,
de que modo deve comportar-se com o corpo; e que considere diligentemente que coisa ordenar a
cada membro, e que coisa permitir-lhe a cada um segundo a necessidade natural dos mesmos. É
necessário que a alma discirna todas estas coisas com a intuição racional da mente, de modo que
nada indecoroso ocorra no dever assinado à própria carne (ALCUÍNO, 2004, p. 160. Tradução
nossa)”.
“Por tanto, siendo el alma la mejor parte del hombre, conviene que sea ella la señora y que, como
desde lo alto de un trono real, gobierne qué, por medio de qué, cuándo, dónde, de qué modo debe
comportarse con el cuerpo; y que considere diligentemente qué cosa ordenar a cada miembro, y
qué cosa permitirle a cada uno según la necesidad natural de los mismos. Es necesario que el
alma discierna todas estas cosas con la intuición racional de la mente, de modo que nada
indecoroso ocurra en el deber asignado a la propia carne (ALCUÍNO, 2004, p. 160)”.
45
Consideremos ahora la admirable velocidad que posee el alma para concebir las cosas que
percibe a través de los sentidos corporales, de los cuales recibe, como si fuesen mensajeros,
cualquier aspecto de la realidad sensible conocida o desconocida (ALCUÍNO, 2004, p. 163).
64
que a sensação seja um ato da alma é aderir implicitamente à
definição do homem dada por Platão no Alcibíades, emprestada de
Platão por Plotino e de Plotino por Santo Agostinho: o homem é
uma alma que se serve de um corpo. E essa definição mesma está
ligada a uma ontologia e a uma metafísica definidas (GILSON,
1998, p. 238).
Sua adesão inconsciente ao neoplatonismo faz dele um mestre
impregnado por uma filosofia mística que, considerando alma e corpo como
elementos distintos, caracteriza a primeira como imortal
46
. No entanto, a
imortalidade da alma não se confirma nos escritos que regem a doutrina cristã.
Pelo contrário, as escrituras sagradas afirmam que o homem é uma alma e que
esta é mortal. Vejamos a seguir como se deu a criação do homem na perspectiva
das Escrituras e como nelas aparece o sentido da alma
Então formou o Senhor ao homem do pó da terra, e lhe soprou nas
narinas o fôlego da vida, e o homem passou a ser alma vivente
(BÍBLIA, V.T. Gênesis 2,7).
Eis que todas as almas são minhas; como o é a alma do pai, assim
também a alma do filho é minha: a alma que pecar, essa morrerá
(BÍBLIA, V.T. Ezequiel 18, 4).
Porque os vivos sabem que hão de morrer, mas os mortos não
sabem coisa nenhuma, nem tampouco terão eles recompensa,
mas a sua memória fica entregue ao esquecimento (BÍBLIA, V.T.
Eclesiastes 9, 5).
Isto evidencia que a religião cristã ensinada pelos religiosos da Igreja
manteve, de certa forma, a supremacia das escrituras, porém foi muito
influenciada pela filosofia desenvolvida na antiga Grécia e em Roma. Esta
influência deu origem a determinados dogmas e interpretações, que não se
originam da bíblia, mas sim dos antigos filósofos, o que confirma mais uma vez a
46
Por muito miserável que seja a alma, quando se desprende do Criador, em si mesma, não
poderá perder a eternidade e a imagem da própria dignidade, não tendo o poder de sair da carne
e de retornar a ela novamente, porque isto depende da vontade Daquele que a criou, e a
introduziu na carne. Sairá,
no entanto, ainda involuntariamente, a fim de apresentar-se ante o
tribunal divino e, segundo Deus a julgue, entrará em um lugar de acordo com seus próprios
méritos, onde esperará a sentença do último dia, para revestir a carne na qual havia vivido nesta
vida (ALCUÍNO, 2004, p. 166, tradução nossa).”
“Por muy miserable que sea el alma cuando cae del Creador en misma, no podrá perder la
eternidad y la imagen de la propia dignidad, no teniendo el poder de salir de la carne y de retornar
a ella nuevamente, porque esto depende de la voluntad de Aquél que la creó y que la introdujo en
la carne. Saldrá sin embargo, aunque involuntariamente, a fin de presentarse ante el tribunal
divino y, según Dios la juzgue, entrará en un lugar acorde a sus propios méritos, donde esperará
la sentencia del último día, para revestir la carne en la cual había vivido en esta vida (ALCUÍNO,
2004, p. 166).”
65
fusão de conhecimentos sagrados e seculares no ensino cristão da
medievalidade.
Em razão disso, quando Alcuíno escreve sobre as virtudes e os vícios no
Livro a respeito das virtudes e dos vícios para o conde Guido, no qual ele
organiza os principais vícios que devem ser evitados pelo líder a fim de que ele
primeiramente saiba governar a si mesmo, para depois se tornar apto a governar
outrem. Observadas suas influências, ele não transmite regras baseadas na
religião cristã, mas as fundamenta na filosofia antiga, cujo escopo é a tentativa de
explicar o significado e a dialética existente entre as funções do corpo e da alma.
No próximo capítulo analisamos a obra citada acima para evidenciar a
educação transmitida por Alcuíno numa perspectiva moral, além das obras
Debate sobre a retórica e sobre as virtudes do sapientíssimo rei Carlos e do
mestre Alcuíno e Diálogo entre Pepino e Alcuíno que se referem a modelos de
aulas da época, nas quais a transmissão de conhecimentos filosóficos ou não,
são evidenciados.
66
3. A PROPOSTA PEDAGÓGICA DE ALCUÍNO E A EDUCAÇÃO DOS
GOVERNANTES
Como afirmamos no primeiro capítulo, a organização social está
intrinsecamente ligada à preservação e ao desenvolvimento da vida humana.
Qualquer grupo de pessoas em uma determinada comunidade vai possuir um
líder, oficial ou não, que será responsável por sua direção. O homem, segundo
Aristóteles, sempre sentiu a necessidade de ter um modelo a ser seguido, ter
alguém mais sábio, fosse este um ser real ou mítico, que lhe indicasse as
diretrizes para viver ou conviver em grupos ou em comunidades maiores
47
.
O que pretendemos, neste momento, é analisar como intelectuais
envolvidos com a formação de governantes interferiram em suas ações. A
dinastia Carolíngia será o destaque, que a organização deste Império
reverbera, nitidamente, a contribuição do mestre Alcuíno na formação do rei e
imperador, Carlos Magno, bem como na de seu filho, o príncipe Pepino, o
provável sucessor de Carlos.
Refletir sobre a principal característica de um líder perante o seu povo é um
difícil desafio, porque implica considerá-la no tempo e no espaço. Não é possível
ignorar que a concepção de líder ou governante variou constantemente em razão
dos movimentos e das necessidades sociais existentes em determinados
momentos da história.
No período mitológico, nos tempos homéricos, os heróis eram exemplos
educativos; com a ajuda dos deuses eles buscavam o modelo mais completo de
formação (Cambi 1999 p.49), em Platão (séc. V a.C), a concepção de
governante é distintamente mais elaborada; é resultado do desenvolvimento do
pensamento reflexivo, para o qual os acontecimentos são conseqüência dos
próprios atos humanos. Dotado desta compreensão, este lebre filósofo propõe
uma educação específica para os governantes. Ele vivenciou uma época que, de
um lado, era resultante de um período de guerras e, de outro, se preparavam
47
(...) pois em todas as coisas compostas, onde uma pluralidade de partes, seja contínua ou
descontínua, é combinada para constituir um todo único, sempre se verá alguém que manda e
alguém que obedece, e esta peculiaridade dos seres vivos se acha presente neles como uma
decorrência da natureza em seu todo, pois mesmo onde não vida existe um princípio
dominante, como no caso da harmonia musical (ARISTÓTELES, 1985, p. 18-19).
67
tentativas de organização da República. Ou seja, vivenciou um período de
transição que demandava um líder que tivesse desenvolvido algumas virtudes
que o capacitassem a governar em prol do bem comum.
48
Com base nesses exemplos históricos, podemos pensar que, tamm na
Idade Média, cada momento vivenciado influenciou diretamente o modo de
produção da vida dos indivíduos, ou seja, de acordo com o momento histórico, o
homem criou as suas necessidades e consequentemente meios para satisfazê-
las. Os primeiros líderes dos povos francos buscavam a conquista do maior
número de territórios como uma forma de preservação e organização da vida,
que o domínio das terras conquistadas era sinônimo de poder. No entanto, como
o período foi marcado por um declínio educacional quase geral, os líderes
merovíngios foram incapazes, segundo BACKER, (1936, p. 221-223), de
administrar as riquezas conquistadas, o que contribuiu para a ruína da dinastia.
A dinastia sucessora, ou seja, a Carolíngia, teve características diferentes,
especialmente no que se refere à educação. O vínculo que Carlos Magno
estabeleceu com alguns mestres medievais possibilitou uma reorganização social,
cultural e educacional de seu império. Como já mencionamos, Alcuino foi um dos
personagens que mais se destacou nesse meio intelectual, motivo pelo qual é sua
proposta pedagógica destinada ao ensino de governantes que será abordada
neste capítulo do trabalho.
Três propostas educacionais serão contempladas neste capítulo. Cada
uma enfatiza uma esfera da atividade humana: a da moral, a do conhecimento e a
da filosofia. A primeira está contida no Livro a respeito das virtudes e dos vícios
para o conde Guido, considerado um “espelho de príncipe” da época. Nela,
Alcuíno propunha-se a educar um conde com base nos princípios morais
defendidos principalmente pela cristã. Na perspectiva do conhecimento
classificamos o Debate sobre a retórica e sobre as virtudes do sapientíssimo rei
Carlos e do mestre Alcuíno: uma aula em que Alcuíno ensina Carlos Magno a
ciência da retórica. Por último, analisaremos a obra Diálogo entre Pepino e
Alcuíno, que contempla uma educação mais filosófica voltada a um futuro
governante da dinastia carolíngia.
48
Esta discussão foi realizada no primeiro capítulo deste trabalho.
68
3.1. Livro a respeito das virtudes e dos vícios para o conde Guido: Um
espelho de príncipe do século IX
Neste item, a intenção é analisar aspectos considerados muito importantes
na proposta pedagógica de Alcuíno para o governante.
Na pesquisa histórica, de cunho bibliográfico, exposta nos capítulos
anteriores, nos deparamos com rios gêneros textuais, escritos por diferentes
mestres, os quais, por sua vez, influenciados por fontes diversificadas, abordaram
os mais variados assuntos. No entanto, é possível perceber neles uma
característica comum: a intenção de ensinar.
O anseio de organizar e desenvolver a sociedade medieval está expresso
no caráter educativo das obras, nas quais encontramos propostas pedagógicas
pertinentes a cada um dos momentos vivenciados por esses mestres. Suas
propostas eram direcionadas a públicos específicos, que, na maioria das vezes,
eram líderes, governantes, ou religiosos.
Uma das características mais evidentes dos autores medievais é
que eles não escreviam seus livros para um público anônimo e
desconhecido, mas também dirigidos a pessoas ou comunidades
determinadas, com um propósito concreto e propondo a solução
dos problemas reais que haviam sido esboçados em momentos
anteriores embora logo pias desses escritos fossem enviadas a
grande parte dos centros culturais da Europa, com o conhecimento
e a satisfação do autor (RIVAS, p,92 tradução nossa).
49
Como foi afirmado tantas vezes, essas obras baseavam-se em duas
vertentes do conhecimento: a antiga e, sobretudo, a cristã. É o que pretendemos
caracterizar nas obras de Alcuíno.
Alcuíno de York foi capaz de analisar a sociedade em que estava inserido
e, mediante o seu trabalho no palácio, buscava atender não aos interesses
diretos de Carlos Magno, como também aos de outros deres que solicitavam
suas orientações. Isto evidencia o seu compromisso em compartilhar seu
49
(...) una de las características más salientes de los autores medievales es que no escribían sus
libros para un público anónimo y desconocido sino dirigidos a personas o comunidades
determinadas, con un propósito concreto y proponiendo la solución a problema reales que habían
sido planteados con anterioridad, aunque luego copia de esos escritos serían enviadas a gran
parte de los centros culturales de Europa, con el conocimiento y complacencia del autor. (RIVAS,
2004, p. 91-92)
69
conhecimento com aqueles que tinham nas mãos o poder sobre outros. Por ser
um cristão, sentia o dever de auxiliar o próximo. Nas palavras de Rivas:
Alcuíno considera um dever de caridade, ao qual o obriga sua
posição na Igreja, o aconselhar, não somente a seus discípulos ou
achegados, mas também a todas aquelas pessoas que ocupam a
um posto de comando como o Imperador, arcebispos ou abades.
Alcuíno toma certa responsabilidade sobre o cumprimento dos
preceitos cristãos e consequentemente da salvação eterna dos
seus amigos (RIVAS, 2004, p. 92. Tradução nossa).
50
O contato que Alcuíno estabeleceu com diversos líderes, ora aconselhando
ora ensinando, fez dele um mestre político que se preocupava em atender as
diversas solicitações dos governantes a fim de beneficiar a própria sociedade. Os
conselhos eram específicos para cada líder, mas todas as orientações buscavam
estimulá-los a orientar suas vidas nos moldes cristãos
(...) Alcuíno de York, além de desempenhar tarefas relacionadas
com a cultura e educação do Império Carolíngio, foi um funcionário
político de destaque. Seu epistolário testemunha a nutrida
correspondência que trocava com diversos expoentes do governo,
foram estes, parte do governo imperial ou não
. Depois da vitória de
Carlos Magno sobre os avaros em 796, Alcuino instruiu o rei e a
Mangefredo, tesoureiro do palácio, sobre o modo de dirigir a
conversão deste povo ao cristianismo. [...] Aconselha também aos
filhos do Imperador: a Pepino, rei da Itália, o repreende a fim de
que deixe seus costumes licenciosos; escreve um livro de
conselhos a Luis, rei da Aquitânia; e aconselha a Carlos sobre
diversos temas. Os soberanos anglo-saxões, que não faziam parte
do reino, são também destinatários dos conselhos sobre suas
obrigações: Aeterredo, Osvaldo e Eardulfo, reis da Nortumbria;
Offa, Egfrido e Ceonulfo, reis de Mercia e o duque Osberto.
Escreve a um chefe franco e sua esposa sobre o amor conjugal e a
Mangenario, conde de Sens, sobre as suas responsabilidades
como governante (RIVAS, p. 90, Tradução nossa).
51
50
Alcuino considera un deber de caridad, al cual lo obliga su posición en la Iglesia, el aconsejar,
no solamente a sus discípulos o allegados, sino también a todas aquellas personas que ocupan un
puesto de mando como el emperador, arzobispos o abades. Alcuino toma cierta responsabilidad
acerca del cumplimiento de los preceptos cristianos y, consecuentemente, de la salvación eterna
de sus amigos (RIVAS, 2004, p. 92-93).
51
(...) AlcuIno de York, además de desempeñar tareas relacionados con la cultura y la educación
del imperio carolingio, fue un destacado funcionario político. Su epistolario testimonia la nutrida
correspondencia que intercambiaba con diversos exponentes del gobierno, fueran estos parte del
gobierno imperial o no. Luego de la victoria de Carlomagno sobre los ávaros n 796, Alcuino
instruye al rey y a Mangefredo, tesorero del Palacio acerca del modo de manejar la conversión de
este pueblo al cristianismo. […] Aconseja también a los hijos del imperador: a Pepino, rey de Italia,
lo reprende a fin de que deje sus costumbres licenciosas, escribe un libro de consejos a Luis, rey
de Aquitania; y aconseja a Carlos sobre diversos temas. Los soberanos anglosajones, que no
70
Como vimos acima, Alcuíno escreveu continuamente a líderes,
governantes e filhos destes. Seus conselhos auxiliavam estes indivíduos a
desenvolver um melhor governo. Isto evidencia a contribuição significativa do
mestre para com a organização do Império Carolíngio.
Uma de suas cartas, destinada a um dos funcionários de Carlos Magno
que possuía um cargo de liderança, é considerada por Rivas como um “espelho
de príncipe”. O Livro a respeito das virtudes e dos vícios para o conde Guido
caracteriza-se como uma espécie de manual de comportamento cristão, cujo
objetivo era orientar o destinatário a desenvolver as virtudes e evitar os vícios
para que a função ocupada fosse exercida com êxito.
Virtude e vício. Dois termos antagônicos, porém repletos de significado,
mereceram destaque neste documento escrito por Alcuíno. Seu anseio era
transformar Guido, líder de uma das províncias do reino franco
52
, em um
governante virtuoso.
A palavra virtude é entendida como uma disposição firme e constante de
praticar o bem. Quando o indivíduo escolhe este comportamento e não outro, ele
faz uso da razão. O uso da razão, por sua vez, foi analisado sob múltiplas teorias,
inclusive à luz da filosofia antiga e do cristianismo. Como pudemos evidenciar nos
capítulos anteriores, a todo momento Alcuíno se baseava na sabedoria antiga,
utilizando escritos de importantes filósofos, porque os julgava importantes
também para sua época.
Para compreendermos a concepção filosófica que norteou a escrita deste
documento político e ao mesmo tempo religioso, é importante entender como
Alcuíno entendia os significados dos termos virtude e vício.
Alcuíno, antes de ensinar ao governante os deveres necessários à sua
função, pretendia formar e desenvolver o homem em três direções diferentes,
porém complementares entre si, ou seja, a moral, a espiritual e a intelectual.
formaban parte del reino, son también destinatarios de consejos acerca de sus obligaciones:
Aetelredo, Osvaldo y Eardulfo, reyes de nortumbria; Offa, Egfrido y Ceonulfo, reyes de Mercia, y el
duque Osberto. Escribe a un jefe franco y su esposa acerca del amor conyugal y a Mangenario,
conde de Sens, sobre sus responsabilidades como gobernante. (RIVAS, 2004, p. 90-91
52
Guido era denominado de margrave, ou seja, era um chefe da Bretanha, uma das províncias
que faziam fronteira com o Império franco, encarregado do comando das tropas e da
administração da justiça (RIVAS, 2004).
71
O Livro a respeito das virtudes e dos vícios para o conde Guido, como já foi
mencionado, é considerado como um “espelho de príncipe”. No período medieval,
esses textos geralmente eram escritos por homens religiosos, com o objetivo de
aconselhar, orientar os governantes a viver uma vida cristã de acordo com as
Sagradas escrituras, de forma a cristianizarem também os seus ditos. Sobre o
assunto, Rivas afirma:
Os bispos, abades e religiosos, conscientes de serem depositários
da sabedoria da Igreja e, portanto, os únicos capazes de
cristianizar os líderes a fim de que estes cristianizem os seus
súditos, começam a escrever pequenos tratados de caráter moral
dirigidos a estes “príncipes”. Trata-se de espécies de manuais onde
estão resumidos os deveres de um governante cristão a fim de que
possa dirigir seu povo com justiça e ser merecedores deste modo
do reino eterno (RIVAS, 2004 p. 87. Tradução nossa).
53
A obra mencionada, portanto, pretendia formar o destinatário numa
perspectiva moral, a fim de que este soubesse governar primeiramente seus
próprios impulsos, para, então, habilitar-se a governar os súditos.
O livro é composto por uma epístola dedicatória, seguida de vinte e seis
capítulos a respeito das diversas virtudes e vícios. Seguem-se ainda nove
capítulos sobre os vícios capitais e as virtudes cardinais; o último capítulo é o
epílogo da obra. Segundo Rivas (2004), o primeiro grupo de capítulos apresenta
um estilo homilético e os demais são descritivos e factuais. Destacaremos, no
decorrer da análise, as seções que julgamos mais importantes para a formação
do governante.
Segundo Alcuíno, para cada vício há uma virtude que o combate. Em razão
dessa informação, organizamos a análise de forma a contemplar os termos
antagônicos, e, assim, evitar as repetições que contém o documento.
Alcuíno, no primeiro capítulo, adverte o leitor sobre a necessidade de
buscar a verdadeira sabedoria, que consiste em honrar a Deus em todos os seus
mandamentos. Esta sabedoria é adquirida pela leitura e estudo das sagradas
53
Los obispos, abades y religiosos, conscientes de ser depositarios de la sabiduría de la Iglesia y,
por tanto, los únicos capaces de cristianizar a los líderes a fin de que estos cristianicen a sus
bditos, comienzan a escribir pequeños tratados de tipo moral dirigido a estos “príncipes”. Se
trata de especies de manuales en los que están compendiados los deberes propios de un
gobernante cristiano a fin de dirigir a su pueblo con justicia y ser acreedores de ese modo del reino
eterno. (RIVAS, 2004, p. 87)
72
escrituras, uma vez que a bíblia deve ser considerada como um (...) ‘espelho’ no
qual podemos refletir e conhecer se nossa vida está adequada aos seus ensinos
(RIVAS, 2004 p. 100. Tradução nossa)
54
Em seguida, Alcuíno destaca a importância das três virtudes teologais: fé,
esperança e caridade. Mencionadas pelo apóstolo Paulo em uma de suas cartas
aos Coríntios
55
, estas três virtudes são consideradas “filhas” da Sabedoria, motivo
pelo qual sua discussão vem logo após o capítulo a ela dedicado
56
.
Outra virtude abordada ao longo do tratado é a paz. Alcuíno adverte para a
necessidade de se ter paz consigo mesmo, para que assim seja possível a uno
e o bom relacionamento com o próximo. Diversas passagens bíblicas são
utilizadas para enfatizar a necessidade e os benefícios desta virtude
57
, a qual
seria alcançada se o indivíduo obedecesse a Deus. Libertando-o das acusações
de sua própria conscncia, a paz produziria a harmonia entre Deus, indivíduo e
sociedade.
A paz foi uma das virtudes que, naquele contexto social, mereceram a
atenção de Carlos Magno. Ele dedicou a capitular Admonitio para enfatizar o
dever que o rei tem diante de Deus, de fazer reinar a paz e a concórdia. Em suas
palavras:
54
“(...) ‘espejo’ en el cual podamos reflejarnos y conocer si nuestra vida se adecua a sus
enseñanzas. (RIVAS, 2004 p. 100)
55
Agora, pois, permanecem a fé, a esperança e a caridade, estes três, mas o maior destes é a
caridade” (I Coríntios 13,13).
56
Mais de um século depois da escrita do “Livro a respeito das virtudes e dos vícios para Conde
Guido (802 804) estas três virtudes são retomadas por uma monja, Rosvita de Gandersheim
(935) em uma peça de teatro medieval. Sobre o enredo Lauand comenta: “É a história de Santa
Sabedoria (Santa Sofia) e de suas três filhas chamadas Fé (Pístis, em grego), Esperança (Elpís) e
Caridade (Ágape), que são denunciadas por Antíoco ao Imperador Adriano, acusadas de praticar
a religião cristã. As meninas (de doze, dez e oito anos, respectivamente) o interrogadas e, pela
persistência na fé, são sucessivamente martirizadas
Por fim, Cristo atende às preces da mãe e
leva-a também para o Céu. Essa história não foi inventada por Rosvita; ela simplesmente adaptou
para o teatro, algo que existia de há muito. Aliás, no c. X, celebrava-se liturgicamente a festa
das Santas Sabedoria, Fé, Esperança e Caridade. O mais famoso relato do martírio dessas santas
- festa do dia de agosto - procede do célebre contemporâneo de Rosvita, Simeão Metafraste,
que é "une sorte d'abbé Migne de l'époque (séc. X)"
. Quanto ao problema da existência histórica
das quatro santas, Mario Girardi faz notar a sua ausência nos calendários e martirológios mais
antigos, o que, junto com outras razões, "dificilmente deixa de levar à conclusão de estarmos
diante de uma personificação da Sabedoria divina e das três virtudes teologais". (LAUAND, 1986,
p. 34)
57
Salmos 118, 103; João 14, 27; Mateus 5, 9 e Zacarias 8, 19
73
Sob o perpétuo reinado de N. S. Jesus Cristo, eu, Carlos, por graça
e misericódia de Deus , rei regente do reino dos francos, devoto da
santa Igreja e seu humilde servidor, envio, no Cristo Senhor, a
todas as ordens votadas à piedade eclesiástica e aos dignatários
do poder secular a saudação de perpétua paz e felicidade
(ADMONITIO..., apud VITORETTI, 2004, p. 105).
Para o cristianismo, a paz é uma virtude necessária à vida; é a partir dela
que advém todos os elementos necessários à sociedade temporal, como a
organização, a harmonia e consequentemente a felicidade. Para que isto se
efetivasse em seu Império cristão, Carlos Magno e, consequentemente, os líderes
das províncias de seu império deveriam considerar em suas ações o cuidado com
o “bem público”, com a “ordem pública” e principalmente com a paz pública”
(FAVIER, 2004, p. 304).
Para a obtenção da paz social, é necessário o desenvolvimento de outras
virtudes, como a misericórdia e a indulgência. A primeira é o perdão que se deve
ofertar quando outros agem com injustiça. Quando o indivíduo perdoa seu
próximo, ele se torna merecedor da miserirdia de Deus, como encontramos na
Bíblia: “Felizes os misericordiosos, porque eles alcançarão misericórdia” (BÍBLIA,
N.T. Mateus 5,7). Além do sentido espiritual, Alcuíno também evidencia a
necessidade desta virtude nas decisões políticas:
No juiz deve existir misericórdia e justiça, porque uma sem a outra
não pode ser bom. Pois se existir somente a misericórdia, daria
segurança para pecar. E se aparecer à lei, empulsaria o ânimo
do delinqüente ao desespero (ALCUÍNO, 2004, p. 113. Tradução
nossa).
58
Provavelmente, essa ênfase na necessidade da misericórdia e justiça
deve-se à finalidade de educar Guido na virtude da prudência. Segundo Alcuíno,
o governante deve ter equilíbrio em suas decisões para não ser injusto com
aquele que está sendo acusado e, consequentemente, com Deus, nem adverso à
lei, que assegura a ordem social. Esta passagem é importante, porque enfatiza a
necessidade de os governantes agirem com ponderação.
58
En el juez debe existir misericordia y justicia, porque con una y sin la otra no puede ser bueno.
Pues si existiera solamente la misericordia, daría seguridad para pecar. Y si sólo apareciera la ley,
empujaría el animo del delincuente a la desesperación (…) (ALCUÍNO, 2004, p. 113)
74
Agir com ponderação, por sua vez, exige outra virtude: a paciência. Ele
recomenda que Guido se valha dela em todos os aspectos de sua vida,
principalmente diante das tribulações, das tentações e das injúrias, uma vez que o
conselho divino é dar glórias a Deus nestes momentos. Esta atitude é enfatizada
em um trecho da carta de Paulo aos Romanos: “(...) a tribulação produz a
paciência, e a paciência a experiência, e a experiência a esperança (BÍBLIA, N.T.
Romanos 5, 13). O governante que desenvolver esta virtude será seguro em suas
decisões e dificilmente se abalará com momentos adversos.
A virtude da paciência, no entanto, será alcançada se o vício da ira for
vencido. Ao discorrer sobre a ira, Alcuíno baseia-se nas citações das escrituras
para fundamentar o seu conselho
59
. Alguns filósofos, ao discutirem sobre a
natureza da alma, afirmaram que o comportamento irascível corresponde a uma
das três partes que a compõem
60
. Em sua obra, A respeito da natureza da alma
Alcuíno tamm recupera esta discussão:
As bestas e os animais possuem duas destas partes em comum
conosco, a concupiscível e a irascível. Somente o homem entre os
seres mortais possui a foa da razão, que sobressai na sabedoria
e excede na inteligência. Mas a razão, que é a característica da
mente, deve governar estas duas, ou seja, a concupiscência e a ira
(ALCUÍNO, 2004, p. 160. Tradução nossa)
61
.
É de uma perspectiva cristã que ele enfatiza o abandono deste vício, ou
seja, como a natureza humana é pecadora, o homem estaria condenado pelos
vícios, se o fosse pela graça redentora de Deus na pessoa de Seu Filho.
Porém, esta redenção está diretamente ligada ao livre arbítrio. É necessário
escolher, governar as paixões e, assim, receber o que o cristianismo denomina de
graça, que nada mais é que o poder divino para tal ação.
59
Efésios 4,31; Tiago 1,20; Provérbios 15:1, 18, 18:24, 27:4; Salmos 4, 5; Romanos 12,21 e
Eclesiastes 7, 9 (RIVAS, 2004, p. 132 notas 178, 179, 180, 181, 182, 183, 187, 188, 189).
60
Platão foi o autor desta divisão quando discutiu o dualismo filosófico - religioso entre alma e
corpo. Para ele a alma se compõe de três partes: concupiscível, racional e irascível
. Esta
discussão é evidenciada em sua obra intitulada Fédon.
61
Las bestias y los animales poseen dos de estas partes en común con nosotros, la concupiscible
y la irascible. lo el hombre entre los seres mortales posee la fuerza de la razón, sobresale en
sabiduría y excede en inteligencia. Pero la razón, que es característica de la mente, debe gobernar
a estas dos, es decir, a la concupiscencia y a la ira (ALCUÍNO, 2004, p. 160).
75
Alcuíno considera Guido como Homem perfeito e um juízo incorruptível”
(ALCUÍNO, 2004 p. 91. Tradução nossa)
62
. Esteder buscava aprender a viver de
forma cristã, mas era fato que ainda não tinha alcançado seu objetivo. No entanto,
seu mestre o enaltecia por ele utilizar sua razão e livre arbítrio, por escolher uma
vida conforme os ensinamentos cristãos. No processo de mudança de atitudes o
querer torna-se o primeiro passo.
A soberba é considerada por Alcuíno como o pior vício, porque, segundo
ele, este seria o início de todos os pecados
63
. A humildade, virtude que combate
este mal, torna o indivíduo agradável aos olhos de Deus
64
. A humildade promove
o desenvolvimento de outras virtudes, como a compunção, a confissão e a
penitência. Segundo os preceitos da Igreja, o indivíduo que observasse estas
virtudes seria um bom candidato a herdar a vida eterna.
Naquele contexto social, evitar a soberba e praticar a humildade
certamente seria uma forma de promover a aceitação do indivíduo por aqueles
que estivessem ao seu redor. Este era um fator importante nas relações entre os
líderes e seus súditos. O mestre também reprova o vício de buscar o louvor
humano. Para ele, as boas obras devem ser realizadas para Deus e não com o
intuito de receber fama. Isto remete a uma reflexão importante: o rei ou
governante cristão não deveria buscar os louvores dos seus súditos, mas
somente a aprovação de Deus.
Posteriormente aos capítulos em que adverte sobre a necessidade do
temor a Deus, o mestre chama atenção para a prática de uma virtude que
certamente era contrária aos costumes da aristocracia medieval
65
: o jejum. Esta
prática, juntamente com a oração, aproxima o homem de Deus e o impede de
62
“Hombre perfecto y un juez incorruptible (ALCUÍNO, 2004 p. 91)
63
Alcuíno fez esta afirmação explicando da seguinte forma: “A soberba é pior que qualquer vício
porque frequentemente se realizam atos bons e o homem se orgulha de suas boas obras, e desse
modo perde pela altivez o que possuía pela caridade. O último de todos os vícios é a soberba
porque uma vez que o homem alcança as virtudes começa a engrandecer-se delas (ALCUÍNO,
2004, p. 131 tradução nossa).
“(...) la soberbia es peor que cualquier vicio porque frecuentemente se realizan actos buenos y el
hombre se ensoberbece de sus buenas obras, y de ese modo pierde por la soberbia lo que poseía
por la caridad. El último de todos los vicios es la soberbia porque una vez que el hombre alcanza
las virtudes comienza a ensoberbecerse de ellas. (ALCUÍNO, 2004, p. 131)”.
64
E o que a si mesmo se exaltar será humilhado; e o que a si mesmo se humilhar será exaltado
(MATEUS, 23, 12)”
65
Segundo Favier, “A aristocracia forma um grupo social coerente, de onde emergem aqueles aos
quais cabiam as oportunidades de fortuna, que são as funções públicas, como as dos condes,
duques e bispos. Em suma, aquilo a que chamam “honras” (FAVIER, 2004, p. 86)
76
pecar. “A abstinência consome o corpo, mas robustece o coração; debilita a
carne, mas fortifica a alma” (ALCUÍNO, p. 123. Tradução nossa)
66
. Isto nos faz
concluir que a Igreja estava preocupada em manter não a saúde física, mas
também a saúde espiritual dos indivíduos, pois, sem a primeira, a razão poderia
não exercer suas funções como deveria.
Contrária a esta virtude, tem-se a gula, que afeta diretamente a saúde do
corpo. Alcuíno afirma que esta atitude causa “A instabilidade da mente, a
ebriedade, a luxúria; porque do ventre satisfeitos nasce a luxúria do corpo
(ALCUÍNO, 2004, p. 136. Tradução nossa)”
67
. Estas menções à gula e ao jejum
mereceram lugar na lista de conselhos por motivos convenientes à época.
Vejamos, por meio das palavras de Favier, algumas informações a respeito da
alimentação de Carlos Magno:
Ele tem um comportamento bastante adequado à mesa, preferindo
aos grandes banquetes os jantares com pouca gente, onde se
conversa, toca-se música e se recitam poemas. (...) Nesse jantar,
que se faz aí pelo meio da tarde, servem-lhe cinco pratos, um dos
quais é caça assada no espeto. Para encerrar, ele come frutas.
Isso significa dizer que, ainda que observe escrupulosamente os
jejuns prescritos pela Igreja, eles não agradam esse grande
amante da comida. Mas bebe com uma sobriedade – imposta
também aos que o rodeiam que contrasta fortemente com os
hábitos da aristocracia. Carlos se cuida. (2004, p. 138).
A aristocracia tinha o hábito de beber e se fartar em grandes banquetes;
por isso o sábio conselho destinado aos governantes. Carlos Magno esforçava-se
em cumpri-lo e esta deveria tamm ser a postura de Guido. A boa alimentação
também poderia ser uma alegoria do alimento espiritual. Nas palavras de Alcuíno:
Abstém-se corretamente das comidas quem jejua também dos
maus atos e das ambições deste mundo. É melhor alimentar o
espírito, que viverá para sempre, com o alimento da santa
predicação e com alimento da palavra de Deus, que fartar o ventre
com a mortífera carne e o pão terreal nos voluptuosos banquetes
(ALCUÍNO, 2004, p. 123. Tradução nossa)
68
.
66
“La abstinencia consume al cuerpo pero robustece al corazón; debilita la carne, pero fortifica el
alma” (ALCUÍNO, p. 123)
67
“La inestabilidad de la mente, la ebriedad, la lujuria; porque del vientre satisfecho nace la lujuria
del cuerpo (ALCUÍNO, 2004. p. 136).
68
Se abstienen correctamente de las comidas quien ayuna también de los malos actos y de las
ambiciones del mundo. Es mejor alimentar el espíritu, que vivirá para siempre, con el alimento de
77
O mestre procura informar ao conde sobre a importância da temperança no
que diz respeito à ingestão do alimento necessário ao corpo físico, além de
aconselhar sobre os perigos de se alimentar” dos vícios. Para Alcuíno, o melhor
alimento eram os espirituais, pois uniam o humano com o Divino.
Em seguida, Alcuíno discorre a respeito da esmola, prática comum entre os
religiosos, mas que também diz respeito aos governantes, pois “Quem reparte os
bens temporais certamente adquire os eternos (ALCUÍNO, 2004, p. 124.
Tradução nossa)”
69
.
Segundo o mestre, três classes de esmolas: corporal, que consiste em
atender aos necessitados com bens materiais; espiritual que é perdoar a todos
aqueles que ofendem, e o terceiro tipo de esmola seria ajudar as pessoas que
estão longe do caminho de Deus mostrando-lhes o caminho de volta. A esmola é
uma virtude que complementa a virtude da misericórdia, além de se opor ao vício
da avareza.
Carlos Magno se esforçava em cumprir estes conselhos. Nas palavras de
Favier:
Quando uma grande escassez de alimentos assola o reino em 779,
ordena ao clero que esmolas aos pobres fixando os valores
destas. Naturalmente ele próprio esmolas. (...) O rei determina
aos condes que não dêem prioridade aos casos dos poderosos,
deixando em segundo lugar a causa dos humildes, que não têm a
quem apelar: as causas das viúvas e dos órfãos deverão ser
tratadas sem tardar (FAVIER, 2004, p. 149).
Ao mencionar a atenção com os menos favorecidos, ele inclui a
preocupação que os governantes carolíngios deveriam ter para com a sociedade
de forma geral, ou seja, desde a aristocracia até os camponeses. Isto evidenciaria
o esforço, por parte de Carlos Magno, de construir uma sociedade justa nos
padrões humanos e também divinos. Logo, consideramos que não foi por acaso
que ele se tornou modelo de Rei e Imperador.
la santa predicación y con el alimento de la palabra de Dios, que hartar el vientre con la mortífera
carne y el pan terrenal en los voluptuosos festines. (ALCUÍNO, 2004, p. 123)
69
“Quien reparte los bienes temporales ciertamente adquiere los eternos(ALCUÍNO, 2004, p.
124).
78
Com relação aos julgamentos, detalhes importantes a serem
observados quanto à postura do governante. Primeiramente, Alcuíno adverte
sobre a necessidade de se evitar a fraude, pois, do contrário, a justiça não
encontraria lugar no reino. A fraude gera a avareza e esta, por sua vez, gera a
injustiça. Além disso, pondera que é ilusório vender a alma por dinheiro, pois o
indivíduo que comete esta falta não é considerado justo perante Deus. Para
justificar a importância de evitar a fraude, Alcuíno utiliza uma citação bíblica do
Evangelho de São Mateus “Pois que aproveita o homem ganhar o mundo inteiro e
perder a sua alma? (BÍBLIA, N.T. Mateus 16, 26).”
Depois ele escreve sobre o dever de nunca levantar falsos testemunhos e,
por fim, ressalta que os governantes devem escolher criteriosamente os seus
juízes: “Nenhum governante deve nomear juízes incapazes ou desonestos porque
o incapaz desconhece a justiça por sua preguiça e o desonesto a modifica por
sua ambição (ALCUÍNO, 2004, p. 128. Tradução nossa).”
70
Para vencer as disposições de ânimo para praticar coisas censuráveis no
que diz respeito aos julgamentos, é necessária outra virtude: a força. Esta,
segundo Platão, é a conservação das leis a despeito da dor, do temor, do desejo
e do prazer. Definição, a nosso ver, significativamente completa, mas que ganhou
um sentido cristianizado ao ser discutido por Alcuíno.
Estas admoestações revelam seu desejo de auxiliar na constituição de
uma sociedade justa, que nada mais é do que considerar o próximo da mesma
maneira que se considera a si mesmo. O governante deveria zelar pelos
interesses da sociedade como se fossem os seus e, desta forma, garantir uma
sociedade organizada e zelosa com os interesses comuns.
Embora Alcuíno seja de um momento histórico distinto do de Platão, é
possível encontrar uma proximidade no sentido social de justiça adotado pelos
dois, o que prova mais uma vez que os conflitos humanos independem de
épocas. Nas sábias palavras de Platão:
(...). Quer, pois a justiça que o homem, depois de haver bem
disposto todas as coisas internas, depois de se haver tornado
senhor e amigo de si mesmo, de haver estabelecido a ordem e
correspondência destas três partes com perfeita consonância entre
70
“Ningún gobernante debe nombrar jueces incapaces o desonesto, porque el incapaz desconoce
a la justicia por su pereza y el desonesto la cambia por su ambición (ALCUÍNO, 2004, p. 128.).”
79
si, como entre os tres tons extremos da harmonia a oitava, a baixa
e a quinta e os outros tons intermédios, se existirem; de as haver
unido e ligado umas às outras de sorte que deste conjuncto resulte
um tom bem ordenado e harmônico; quer digo, que somente então
comece o homem a agir, seja que applique suas actividades á
acquisição das riquezas ou aos cuidados do corpo, na vida privada
como nos negócios públicos; que em todas estas circumstancias
chame justo e honesto ao que nelle produz e mantém esta bella
ordem e chame prudência á sciencia que produz acções de tal
natureza; que ao contrario, chame injustiça á acção que nelle
destroe esta ordem, e ignorância á opinião que a tal acção preside.
(PLATÃO, s/d, p. 173)
A citação acima revela que o indivíduo, antes de ocupar funções públicas,
deve ter domínio sobre si mesmo. Alcuíno, por sua vez, incentivará o governante
a submeter seus vícios e paixões, uma vez que a cristã assimilada pelo livre
arbítrio proporcionaria o fortalecimento das virtudes
Ao falar sobre a inveja, o autor utiliza a seguinte citação do livro apócrifo de
Sabedoria: Pela inveja do diabo entrou a morte no mundo (Sabedoria 2,24 apud
Alcuíno, 2004, p. 130. Tradução nossa)”.
71
Desta forma, ele enfatiza o mal que
este cio causa, uma vez que afeta o indivíduo no âmbito espiritual e social. A
avareza tamm é reprovada por Alcuíno, porque pode gerar uma lista de outros
pecados como o furto, o homicídio, a mentira, o perjúrio, a rapina, a violência,
juízos injustos, a depreciação da verdade, o esquecimento das bem-aventuranças
futuras e a dureza de coração. O remédio contra a avareza seria:
(...) o temor de Deus e a caridade fraterna, pelas obras de
misericórdia, pela esmola aos pobres e pela esperança na
felicidade futura, pois as falsas riquezas deste século são vencidas
com as verdadeiras riquezas do mundo futuro. (ALCUÍNO 2004, p.
137. Tradução nossa)
72
Era difícil evitar esses vícios em um tempo em que as conquistas dos
territórios alheios eram fundamentais ao crescimento do Imrio e do poderio de
seus governantes. Entretanto, o conhecimento desses conselhos talvez pudesse
conscientizar os líderes na abstenção de disputas desnecessárias e
71
“Por envidia del diablo entró la muerte en el mundo” (Sabiduría 2,24 apud Alcuíno, 2004, p. 130)
72
(...) el temor de Dios y la caridad fraterna, por las obras de misericordia, por la limosna a los
pobres y por la esperanza en la bienaventuranza futura, puesto que las falsas riquezas de este
siglo son vencidas con las verdaderas riquezas del mundo futuro. (ALCUÍNO, 2004, p. 137)
80
principalmente enfatizar os benefícios de se viver em paz uns com os outros, o
que nos leva a refletir tamm sobre as virtudes da prudência e da temperança
73
.
Alcuíno dedica dois capítulos distintos a dois vícios semelhantes: acídia e
tristeza. A primeira consiste em um abatimento do corpo e do espírito. Este
sentimento ocasiona: “(…) a sonolência, a preguiça para as boas obras, a
inconstância, o ir de um lugar ao outro, a indiferença no trabalho, o tédio do
coração, a murmuração e as conversas vãs (ALCUÍNO, p. 138. Tradução
nossa)”
74
. Para se esquivar deste vício, o mais conveniente é evitar a ociosidade.
A tristeza, por sua vez, pode ser boa se é concernente aos pecados cometidos,
mas a da alma leva o indivíduo ao desânimo. Segundo Alcuíno, a cura pode ser
encontrada nas Escrituras, na alegria espiritual e no diálogo fraterno.
É importante mencionar estes sentimentos, porque a imagem que
geralmente se tem de um bom governante é a de um indivíduo caracterizado pela
força e altivez. No entanto, Alcuíno es se referindo a ele como um homem
qualquer, que tem os sentimentos comuns a todos. De certa forma, se
considerarmos o contexto social, o governante não deveria permitir o abatimento;
caso contrário, seria incapaz de comandar seus ditos e cumprir os deveres que
lhe seriam próprios.
Guido também é advertido sobre o dever de evitar a fornicação e
condescender com a virtude da castidade. Novamente, Alcuíno retoma a
necessidade de a alma racional controlar os desejos da carne, sentença que
regeu todo o tratado.
Por fim, em um dos capítulos conclusivos, Alcuíno retoma as quatro
virtudes cardeais discutidas por Platão, Plotino e Santo Agostinho e as reformula
numa perspectiva teocêntrica:
A prudência é a ciência das coisas divinas e humanas, na medida
em que tem sido dado ao homem, e a ela lhe compete
compreender do que se deve cuidar, e o que se deve fazer, e é isto
que se lê no Salmo: “Aparta-te do mal e faça o bem”.
73
A temperança foi descrita por Platão da seguinte forma: “SOCRATES A temperança outra
coisa não é que certa ordem ou freio que se põe aos prazeres e paixões. Daqui vem a expressão
senhor de si mesmo e outras semelhantes, que o, por assim dizer, outros tantos vestígios desta
virtude” (PLATÃO, s/d, p. 154)
74
“la somnolencia, la pereza para las buenas obras, la inconstancia, el ir de un lugar a otro, la
tibieza en el trabajo, el tedio del corazón, la murmuración y las charlas vanas(ALCUÍNO, p. 138).
81
A justiça é a nobreza de ânimo que a cada dignidade o que lhe
é próprio. Desta maneira se o culto à divindade e o direito à
humanidade, e o juízo justo, e se conserva a equidade de toda a
vida. A fortaleza é a grande paciência e longanimidade da alma, a
perseverança nas boas obras e a vitória contra todo o tipo de
vícios. A temperança é a medida da vida, a fim de que o homem
não ame ou odeie com excesso, mas também que modere com
diligência todas as mudanças da vida (ALCUÍNO, 2004, p. 140.
Tradução nossa)
75
.
Este “espelho de príncipe” escrito por Alcuíno é uma obra importante que
auxiliou Carlos Magno a constituir uma sociedade justa e correspondeu à sua
preocupação com a formação do homem e ao interesse em transmitir
conhecimentos úteis aos governantes, a fim de que estes seguissem a cristã e
desempenhassem suas funções com base em princípios que certamente
assegurariam o bem comum.
O Livro a respeito das virtudes e dos vícios para o conde Guido é, com
certeza, mais que um manual de conselhos a respeito de vícios e virtudes. É
possível verificar no documento o valor e a consideração que os homens
atribuíam ao mestre e aos seus conselhos. Nele também estão contidos diversos
valores que, embora sejam medievais, o buscados também pela sociedade
contemporânea no que diz respeito aos governantes.
Alcuíno foi um mestre político. A análise a seguir, a respeito de uma aula
ministrada a Carlos Magno, nos auxiliará ainda mais na compreensão desta
sentença.
3.2. Contribuições de Alcuíno para a formação de Carlos Magno
Alcuíno, um mestre de grande percepção pedagógica, servindo-se de vários
meios, como a prosa, o verso, o diálogo e análises de outros escritos, foi capaz
75
La prudencia es la ciencia de las cosas divinas y humanas, en la medida en que ha sido dada al
hombre, y a ella le compete comprender de qué debe cuidarse y qué debe hacer, y esto lo que se
lee en el salmo: “Apártate del mal y haz el bien”. La justicia es la nobleza de ánimo que da a cada
dignidad lo que le es propio. De esta manera se da el culto a la divinidad y el derecho a la
humanidad, y el juicio justo, y se conserva la equidad de toda vida. La fortaleza es gran paciencia
y longanimidad del alma, la perseverancia en las buenas obras y la victoria contra todo tipo de
vicios. La templanza es la medida de la vida, a fin de que el hombre no ame u odie con exceso,
sino que modere con diligencia todas los cambios de la vida (ALCUÍNO, 2004, p. 140).
82
de transmitir aos nobres da Escola Palatina os saberes clássicos e cristãos de
uma maneira compreensível.
O Renascimento Carolíngio aconteceu em virtude da aquisição,
desenvolvimento e preservação dos conhecimentos transmitidos pelos mestres
presentes na escola Palatina. Alcuíno foi o que mais contribuiu para esse
processo, uma vez que utilizou estes conhecimentos no processo de construção
do homem medieval, principalmente daqueles destinados às funções de liderança
como Carlos Magno e seu filho Pepino.
Carlos Magno, apesar de pouco versado nas letras, apresentava-se como
um grande líder. A iniciativa de convidar intelectuais para auxiliar no processo de
restauração das letras em seu Império foi deliberada. Era seu objetivo estender a
todos de seu Império a oportunidade de adquirir conhecimentos úteis à vida
76
.
Foi na fase adulta de sua vida que ele se dedicou de forma mais acentuada
à sua própria educação. Porém isto não foi obstáculo ao seu grande intento:
organizar seu Império, a começar pelas questões educacionais. Nas palavras de
Favier:
Pouco instruído na infância, a princípio ele fala a língua
materna, o frâncico dos ripuários, que é um médio alemão, e
certamente um pouco da língua românica [...] Foi no curso de sua
vida adulta que ele buscou aprender mais. Conhece-se a
participação pessoal do rei nas atividades intelectuais no palácio.
Em qualquer momento do dia, na cama, como no banho, faz que
leiam para ele. As conversas com Alcuíno têm sempre caráter de
um curso particular. Em função disso, a cultura do rei terminará por
suplantar a da maioria dos leigos seus contemporâneos (FAVIER,
2004, p. 143).
A iniciativa de aprender e o apoio intelectual que tinha disponível em seu
palácio tornaram possível que ele retomasse o estudo das letras. Com base nos
documentos disponíveis sobre o período, podemos perceber que ele considerava
a instrução como um instrumento fundamental ao seu governo. Por isso,
demonstrou interesse em conhecer todas as ciências que o auxiliassem na
liderança de seu povo.
76
Evidentemente, não estamos nos referindo à escola para todos, ou a conhecimentos de técnicas
de produção, mas, sim, a princípios morais que possibilitassem a todos o convívio social.
83
Por meio da análise do Debate sobre a retórica e sobre as virtudes do
sapientíssimo rei Carlos e do mestre Alcuíno, poderemos verificar que, de um
lado, um governante consciente do que precisa aprender para melhor
desempenhar sua função. De outro, está um mestre que busca, nas fontes
antigas, respostas às inquietações de seu aluno. Vejamos um trecho do diálogo:
[1] Porque, venerando mestre Alcuíno, Deus te trouxe e te levou de
volta, peço me seja permitido fazer-te algumas perguntas acerca
dos preceitos relacionados aos procedimentos retóricos (natureza
da retórica); porquanto lembro-me que disseste que a sua
importância está nas questões civis.. Mas como muito bem sabes,
nós, por causa das ocupações do palácio costumamos dedicar-nos
assiduamente a tais questões, e é certamente ridículo desconhecer
as normas desta arte, em que é necessário estar envolvido
cotidianamente. Na verdade, desde que me abriste, com tuas
poucas respostas, as portas da arte retórica ou as sutis regras da
dialética, deste-me motivo para me tornar aplicado nessas razões,
máxime porque antes me introduziste com perspicácia nos
domínios da matemática como também me iluminaste (encantaste)
com o esplendor da astronomia.
A. Deus, ó senhor meu rei Carlos, te iluminou com a plena luz da
sabedoria e te exornou com a luz da ciência, não para
acompanhares prontamente o talento dos mestres, mas também
para poderes ir à frente e com rapidez em muitas coisas; oxalá a
centelha do meu exíguo talento nada possa acrescentar à luz
cintilante de tua sapiência; contudo, para que ninguém me olhe
como desobediente respondo prontamente a tuas interrogações e,
pudera, com tanta clareza quanta obediência. (DISPUTATIO DE
RHETORICA ...Tradução Aluysio Favaro).
Esse diálogo revela a dedicação de Carlos Magno a algumas das artes
liberais, a retórica, a matemática e a astronomia. Enfatizemos a importância
destes conhecimentos para a formação de um líder: A retórica diz respeito à
comunicação, fundamental ao governante; o conhecimento da matemática, por
sua vez, está diretamente ligado à economia e à administração do reino; a
astronomia tem utilidade para a produção rural e o comércio marítimo do território
franco. O soberano carolíngio, aos poucos, compreendia a importância dos
conhecimentos para sua vida prática e para a realização de um governo melhor,
motivo pelo qual se dedicava com zelo ao aprendizado.
É importante observar, também, que o imperador reconhecia a insuficiência
de seu conhecimento sobre a cncia da retórica e a considerava fundamental em
qualquer governo civil.
84
A arte da retórica, relacionada ao uso persuasivo da linguagem, é de
origem antiga. Supostamente foi criada e desenvolvida pelos sofistas no século IV
a.C. e posteriormente retomada por Aristóteles. Em razão do reconhecimento do
poder e da importância da linguagem, esse conhecimento foi assunto de muitas
obras filosóficas e, como vimos no capítulo anterior, Cícero foi o que mais
influenciou Alcuíno a respeito dele. A citação seguinte, na qual, em linguagem
compreensível, ele explica os elementos constituintes da arte do bem falar, é mais
uma evidência do interesse de Carlos Magno por dominar essa ciência.
C. Onde encontra a retórica sua denominação?
A. Apo tu retoreuein, deste verbo grego que significa falar em
público.
C. Qual é sua finalidade?
A. Ela tem por fim a ciência de bem dizer.
C. Versa sobre que assunto?
A. Sobre questões civis relacionadas à instrução que podem ser
concebidas pela força natural do engenho. Pois, como é natural
que cada um se proteja e fira o adversário, mesmo que não tenha
aprendido o manejo das armas e a disciplina corporal, assim é
natural que de ordinário alguém acuse o outro e se exima de culpa,
mesmo que não se tenha exercitado nisso. Mas, com mais proveito
e mais prontamente faz uso da palavra quem se instrui e se
exercita nesse mister; pois a fala é natural a todos, contudo muito
mais se avantaja sobre os demais quem fala seguindo as normas
gramaticais.
C. Dizes bem, mestre, também toda a nossa vida progride graças à
disciplina e adquire vigor pelo exercício. Expõe-nos, então, as
regras dessa disciplina retórica; a necessidade de nossas
ocupações cotidianas nos obriga ao exercício dessas regras. Dize-
nos primeiramente quantas são as partes desta arte.
A. São cinco as partes da retórica: invenção, disposição, elocução,
memória, declamação (discurso). Invenção é a ação de pesquisar
as coisas verdadeiras ou verossimilhantes que dão probabilidade a
uma causa; disposição é a ordenação do que foi encontrado;
elocução é a adaptação (emprego) das palavras; declamação é o
equilíbrio (moderação) da voz e da postura de acordo com a
importância do assunto e das palavras. Em primeiro lugar requer-
se, então, encontrar o que se vai dizer, em seguida dispor o que foi
encontrado, depois que explicar com palavras pela ordem do
assunto, em quarto lugar que compreender na memória o que foi
encontrado, organizado e elaborado em linguagem, por fim, como
coroamento, proferir aquilo que a memória retém.(Idem)
Alcuíno, na primeira resposta, retoma a origem grega e o significado
correspondente da palavra, demonstrando a importância do conhecimento sobre
85
as origens das palavras. Em seguida, afirma que a principal finalidade da retórica
é o desenvolvimento da eloqüência, ou seja, a arte do bem falar.
Segundo o mestre, o assunto discutido pela retórica são as questões civis
relacionadas com o conhecimento. Alcuíno afirma que, nas situações de disputa
retórica, é natural que o indivíduo se proteja e, ao mesmo tempo, acuse seu
interlocutor. A naturalidade com que Alcuíno trata desta particularidade humana
de almejar sempre a vitória, nas mais distintas situações, revela seu
conhecimento dos vícios que imperam em todos os homens, especialmente nos
que participam das questões civis e políticas
77
. Porém, revela também sua
opinião a respeito da necessidade dessas discussões nesse meio, que visam
melhorias na sociedade. Por isso, ele enfatiza que o governante se dedique à
instrução na arte do bem falar, de forma a garantir êxito nas disputas que
porventura enfrente.
Carlos Magno concorda com a lição e faz algumas considerações
importantes a respeito do aprendizado contínuo da vida e do exercício deste
aprendizado. Para ele, a disciplina tanto na aquisição dos conhecimentos quanto
no exercício deles é um aprendizado prático em seu cotidiano. Seu
posicionamento no diálogo é muito semelhante ao de Aristóteles, em sua obra
Ética a Nicômaco: “(...) Com as virtudes dá-se exatamente o oposto: adquirimo-
las pelo exercício, como tamm sucede com as artes (1973, p. 267)’.
No final da citação, Alcuíno expõe a Carlos as cinco partes que constituem
a arte da retórica, apresentando primeiramente suas denominações e, em
seguida, explicando-as com suas próprias palavras. A organização do discurso na
mente, a utilização da memória e uma linguagem coerente no momento de se
expressar garantirão o sucesso no discurso.
De uma maneira prolongada, Alcuíno ressalta a importância de duas
habilidades inerentes do ser humano, mas que precisam ser desenvolvidas,
especialmente por aqueles que ocupam cargos de liderança: a linguagem e a
memória. A primeira diz respeito à organização social e a segunda, ao não
esquecimento dos conhecimentos úteis anteriormente apreendidos. O líder que
não desenvolver estas capacidades certamente não terá êxito.
77
Seu conhecimento sobre o assunto também é evidenciado numa perspectiva moral. No Livro
acerca das virtudes e dos vícios para o conde Guido Alcuíno aconselha o líder a não buscar
louvores humanos, mas sim o louvor divino. (Alcuíno, 2004, p. 133)
86
Na vida cotidiana de Carlos Magno, a verbalização era fundamental nas
atitudes de decidir, julgar, argumentar e ordenar. Nas assembias e concílios, a
arte do bem falar estava intrinsecamente ligada à organização do próprio império.
Assuntos importantes eram abordados nestas reuniões políticas, nas quais os
pronunciamentos do imperador, caracterizados pela autoridade e pela sabedoria,
eram ansiosamente esperados.
Favier afirma que, em momentos de discurso, Carlos Magno tamm
contava com o apoio de seus intelectuais
78
: Todavia, embora ele contasse com
esse auxílio quando se tratava de falar publicamente, não estava isento da
exigência de ter essa habilidade para se expressar, para questionar e para exigir
de seus súditos aquilo que era necessário realizar. Vejamos um exemplo de um
discurso severo e um tanto irônico relacionado aos costumes dos eclesiásticos:
Em seguida deve-se pedir-lhes que nos digam claramente o que
significa para eles abandonar a vida secular e como se pode
distinguir aqueles que abandonaram a vida secular daqueles que
nela permanecem: a diferença está no fato de que os primeiros não
portam armas e não são publicamente casados?
É preciso perguntar-lhes também se se pode dizer que abandonou
a vida secular aqueles que não pára de aumentar a cada dia, suas
posses, recorrendo a todo tipo de meios, utilizando todo tipo de
procedimento, invocando a beatitude do reino dos Céus,
ameaçando com suplício eterno do inferno e foando, em nome de
Deus ou seja de qual santo for, o rico ou o pobre simples de
natureza, pouco instruído e imprudente, a se privar de seus
próprios bens, a deserdar seus herdeiros legítimos e a levar, com
isso, muita gente a se entregar, por causa da miséria, a uma vida
de malfeitor, pois aqueles que não receberam a herança dos pais
nada podem fazer senão se tornarem ladrões e gatunos. (CARLOS
MAGNO apud FAVIER, 2004, p. 276)
Nesse discurso, Carlos Magno reprova veementemente a atitude dos
religiosos, exigindo ordem no meio eclesiástico, principalmente porque estes
homens estavam se aproveitando de situações para benefício próprio. É um
exemplo do porquê era necessário desenvolver a arte da retórica e, assim,
78
Favier menciona situações em que Carlos Magno era auxiliado por intelectuais. Em suas
palavras: .Na prática, os conselheiros prepararam, para uso do imperador, notas que dão
subsídios para o discurso e até para sua elaboração. Conservou-se uma síntese redigida para a
assembléia de 811, e sem vida guardada até os concílios regionais de 813, nos quais foi
utilizada pelos missi. Não apenas o autor faz uma lista das questões a serem propostas, mas
também sugere uma retórica feita de perguntas capciosas e de traços irônicos às vezes ácidos,
que deverão chamar a atenção dos prelados a vencer suas eventuais resistências. (2004, p. 275).
87
garantir êxito nos discursos. Favier afirma que O rei precisa de um grande
talento: diante da multidão de povos reunidos no reino, o menor engano pode
trazer graves conseqüências” (2004, p, 276).
Para evitar erros o se tem outro caminho: a aquisição de conhecimentos
sobre as diversas ciências, o que implica a retomada da cultura antiga. Por outro
lado, é preciso também que o governante tenha virtudes e sensibilidade no trato
das questões humanas. Naquele momento específico, o conhecimento disponível
que certamente proporcionaria tal aprendizado eram os princípios cristãos:
A vida espiritual faz parte das preocupações do rei, não como um
ornamento da corte, mas como uma necessidade da vida em
sociedade. Um mundo mais instruído se afigura a Carlos como
uma das condições para o aperfeiçoamento da Jerusalém terrena,
e uma corte menos inculta parece permitir uma maior compreensão
dos problemas suscitados pela administração do reino (FAVIER,
2004, p. 152).
Carlos Magno tem consciência da importância de sua educação, bem como
da dos líderes que o auxiliavam. As questões espirituais eram dignas de
constante atenção. No ano de 811, por exemplo, ele profere aos bispos e abades
as seguintes palavras:
pastores para os quais é mais importante que seu clérigo ou
seu monge cante e leia bem do que viva na justiça e na santidade.
Embora não haja motivos para condenar, nas igrejas, a disciplina
do canto e da leitura, devendo ela ser exercida por todos os meios,
parece-nos que a imperfeão do canto é mais tolerável que a da
vida. (CARLOS MAGNO apud FAVIER, 2004, p. 152).
Tais palavras revelam seu conhecimento a respeito da vida e dos homens,
uma vez que ele é capaz de refletir sobre estes elementos na busca de alcançar o
melhor governo.
Consideramos que, por trás de um grande homem, existe um grande
mestre. Alcuíno, no caso, ora ensina diferentes conhecimentos, ora aconselha
79
,
ora auxilia o rei nas reformulações de leis e documentos religiosos necessários ao
79
Como exemplo de conselho proferido por Alcuíno, Favier considera: Fazer batizar à força e
deixar que os missionários se entreguem ao massacre não é comportamento de um governo
bio. As dificuldades encontradas na Saxônia serviram de lição, e homens de fé como Alcuíno e
Paulino advertem Carlos contra a precipitação (FAVIER, 2004, p. 151).”
88
império
80
, ora educa todos os que necessitavam de instrução para a arte de
governar.
Pepino, filho de Carlos Magno, também foi educado para ser um
governante e, por meio do Diálogo entre Pepino e Alcuíno, é possível verificar que
o mestre utiliza didaticamente a brincadeira de perguntas e respostas para induzir
o discípulo a fazer significativas reflexões e estimular a investigação de supostas
verdades. No item a seguir, analisaremos o diálogo mencionado, com o objetivo
de pormenorizar a proposta pedagógica de Alcuíno, bem como de explicitar os
elementos que o mestre medieval julgava importantes na formação de um líder.
3.3. Diálogo entre Pepino e Alcuíno: uma proposta pedagógica de ensino.
Com o fim de transmitir aos homens o conhecimento construído e
acumulado socialmente, a filosofia se desenvolveu e propagou por meio dos mais
variados gêneros literários. Um dos gêneros mais utilizados no desenvolvimento e
formação do homem foi o diálogo, que, em geral, situava o assunto em um
contexto social e estimulava o desenvolvimento do pensamento e da expressão
deste por meio da linguagem. Desta forma, caracterizava a essência do homem
por meio de três elementos: pensamento, linguagem e sociedade.
A capacidade de se comunicar com outrem e expressar em linguagem o
que se encontra em nível de pensamento é inerentemente humana
81
e se
efetiva mediante a interação social. Numa perspectiva psicológica, o
desenvolvimento da linguagem está intrinsecamente ligado ao desenvolvimento
do pensamento
82
, porque a fala auxilia o indivíduo a se apropriar dos elementos
80
Favier também enfatiza em Alcuíno a função de mestre na corte:
Alcuíno é principalmente
pedagogo. Sua principal luta é a que empreende contra o analfabetismo. Mas logo amplia o
campo de suas ambições: o que pretende vulgarizar é o conjunto das artes liberais, portanto do
conhecimento, buscando facilitar o acesso primeiro dos clérigos, e em seguida dos leigos. Ele
conduz ativamente a reforma litúrgica, estimulando a adoção dos ritos romanos e trabalhando
pessoalmente na revisão do sacramentário e do lecionário gregorianos, de que o rei obteve do
papa Adriano alguns exemplares. Com Alcuíno, o classicismo latino e o rigor litúrgico triunfam na
corte (FAVIER, p. 412).”
81
“(...) a natureza nada faz sem um propósito, e o homem é o único entre os animais que tem o
dom da fala” (ARISTÓTELES, 1985, p. 15).
82
“O momento de maior significado no curso do desenvolvimento intelectual, que origem às
formas puramente humanas de inteligência prática e abstrata, acontece quando a fala e a
atividade prática, então duas linhas completamente independentes de desenvolvimento se
convergem (VIGOTSKI, 2002, p. 33).”
89
socialmente construídos e, por meio desta apropriação, criam-se as condições
necessárias à constituição do intelecto.
A filosofia considera a linguagem como um veículo que auxilia o indivíduo a
descobrir a essência de todas as coisas. Nesse contexto, por suas considerações
sobre homem, pensamento, linguagem e sociedade, vários autores da Idade
Antiga e Idade Média se destacaram. Aristóteles, Platão, Santo Agostinho, Isidoro
de Sevilha, Alcuíno e Tomás de Aquino podem ser considerados referências
sobre o tema.
Consideramos possível o homem desenvolver a linguagem sem se ater à
filosofia, mas seria improvável o filosofar sem o desenvolvimento da linguagem,
que é por meio dela que a transmissão do conhecimento se efetiva. Por isso, o
uso da palavra articulada ou escrita como meio de expressão torna-se
responsável pela formação do próprio homem.
Os diálogos filosóficos da Antiguidade travados com um ou mais indivíduos
tinham a função de, por meio da discussão e da inserção de idéias dos
interlocutores, buscar o mais alto grau de conhecimento a respeito de um
determinado assunto, porque “a verdade não nasce nem se encontra na cabeça
de um único homem, ela nasce entre os homens, que juntos a procuram no
processo de sua comunicação dialógica” (BAKHTIN, 1997, p. 110).
A comunicação dialógica com intenção educativa teve sua origem no
Ocidente, com o movimento sofista do séc. V a.C. Os sofistas eram sábios que,
em razão da crise que ocorria no Estado grego
83
, ocuparam-se em desenvolver e
ensinar a arte da persuasão e da argumentação, geralmente utilizada no contexto
público para a defesa de suas idéias. O raciocínio rápido tornou-se, no princípio
do movimento sofista, um elemento importante para a discussão de temas
filosóficos como o Homem, o Estado e o mundo.
Platão criticou avidamente o movimento dos sofistas e dedicou uma obra,
Diálogo/Sofistas, para argumentar contrariamente a arte da retórica, por
83
O movimento dos sofistas originou-se por causa da crise do Estado grego. Sobre o assunto
Jaerger considera: “Pensemos agora na crescente legislação da democracia grega
contemporânea, que tudo procurava ordenar por leis, mas que incorria em constantes
contradições, ao ver-se forçada a mudar as leis vigentes ou a suprimi-las em benefício de outras
novas; e pensemos tamm nas palavras de Aristóteles na Política segundo as quais é melhor
para o Estado ter leis ruins, mas estáveis do que leis em contínua mudança, por melhores que
sejam” (JAEGER, 1994, p. 378).
90
considerá-la incapaz de ensinar o indivíduo sobre a natureza das coisas. Para ele,
um dos principais objetivos dos sofistas era ludibriar o adversário por meio dos
argumentos, e, ao ensinar, faziam-no mediante pagamento, atitude, na época,
criticada pelo Estado.
Embora no contexto social de Platão também existisse uma disputa entre a
filosofia e a dialética, o diálogo sofista era considerado como um jogo, cujo
objetivo principal era derrotar o adversário por meio de argumentos. Sobre o
assunto, Huizinga
84
considera:
O sofista itinerante como Protágoras obtinha êxitos fabulosos. Era
um autêntico acontecimento quando um sofistalebre visitava
uma cidade. Era admirado como um ser milagroso, idolatrado como
um herói do atletismo. Em resumo, a profissão de sofista estava no
mesmo nível que o esporte. A cada resposta bem dada os
espectadores riam e aplaudiam. Era um verdadeiro jogo apanhar o
adversário numa rede de argumentos ou aplicar-lhe um golpe
devastador (HUIZINGA, 1980, p. 164).
Pela citação, podemos destacar que o aspecto lúdico desta arte da
perspicácia favorecia o entretenimento social e proporcionava o riso
85
dos
participantes, mesmo diante de uma crise social. É como se os indivíduos, nesses
momentos de disputas, deixassem de pensar em sua vida real, embora
discutissem aspectos dela, para vivenciar uma “esfera temporária de atividade
com orientação própria (HUIZINGA, 1980, p. 11)”.
Posteriormente ao período dos sofistas, os diálogos socráticos
reproduzidos por Platão também apresentavam um caráter lúdico
86
. Eles não
eram fiéis à conversação que ocorria entre eles e muitos dos elementos eram
84
Johan Huizinga (1872 1945) considera o jogo como um fenômeno cultural e compreendido
numa perspectiva histórica.
85
“O ato puramente fisiológico de rir é exclusivo dos homens, ao passo que a função significante
do jogo é comum aos homens e aos animais. O animal ridens de Aristóteles caracteriza o homem,
em oposição aos animais, de maneira quase tão absoluta quanto o homo sapiens (HUIZINGA,
1980, p. 8)”.
86
Huizinga considera que: “O diálogo é uma forma de arte, uma ficção, e evidentemente a
verdadeira conversação, por mais requintada que pudesse ser entre os gregos, nunca poderia ter
correspondido exatamente à forma do diálogo literário. Nas mãos de Platão, o diálogo é uma coisa
leve e aérea, completamente artificial. A estrutura narrativa do Parmênides, que é quase igual à de
um conto demonstra isso suficientemente, assim como o início do Crátilo e o tom descontraído e
informal destes dois diálogos e de muitos outros (HUIZINGA, 1980, p. 167-168)”.
91
criados com um único objetivo, o de ensinar. Vejamos a seguir a estrutura deste
tipo de diálogo:
O tema do diálogo socrático é a vontade de chegar com outros
homens a uma inteligência, que todos devem acatar, sobre um
assunto que para todos encerra um valor infinito: o dos valores
supremos da vida. Para alcançar este resultado, crates parte
sempre daquilo que o interlocutor ou os homens de modo geral
aceitam. Esta aceitação serve de “base” ou hipótese, após o que
se desenvolvem as conseqüências que dela resultam,
confrontando-as com outros dados da nossa consciência,
considerados fatos estabelecidos. Um fator essencial deste
progresso mental dialético é a descoberta das contradições em que
incorremos ao aceitar determinadas teses. (...) O objetivo em vista
é reduzir a um valor geral e supremo os vários fenômenos do valor
(JAEGER, 1995, p. 562).
O diálogo socrático, como podemos verificar, tomava como base um
assunto ou um tema de comum interesse dos interlocutores e, por meio das
discussões, procurava alcançar um conhecimento significativamente superior
àquele anteriormente estabelecido. O progresso mental dialético estabelecido no
diálogo era uma maneira lúdica de se ensinar filosofia. Por essa razão,
posteriormente, este gênero literário foi muito utilizado pelos grandes mestres da
filosofia e tamm por intelectuais que se dedicaram à educação.
É lido ressaltar que os diálogos que possuíam intenção educativa
modificaram-se com o tempo, de acordo com o homem que se pretendia formar
na sociedade. Os diálogos caracterizaram-se pela disputa, pelas interrogações
filosóficas, teológicas e pelos enigmas. De qualquer maneira, todas estas formas
de diálogo tinham a intenção de formar o homem e torná-lo apto a viver em
sociedade.
Na Idade Média, alguns intelectuais consideravam a importância das
palavras e concebiam-nas como expressão da sabedoria resultante das
experiências que o homem vivenciou consigo mesmo e com o mundo. A prática
da filosofia tornava-se menos complexa quando a essência das coisas era
analisada por meio dos significados das palavras
87
·.
87
1. O livro das etimologias de Isidoro de Sevilha é um exemplo da relação que o homem
medieval fazia entre a linguagem e a filosofia. Nas palavras deste autor: “Etimologia é a origem
dos vocábulos, que por essa interpretação captamos o vigor das palavras. Aristóteles
denominou-a symbolon; Cícero, adnotatio, porque a partir de uma instância de interpretação
tornam conhecidas as palavras e os nomes das coisas: como, por exemplo, flumen (rio) que deriva
92
Santo Agostinho, autor que contemplava temas sociais, filosóficos,
teológicos e educacionais, além de utilizar os diálogos como uma proposta
educativa, fez várias referências sobre a importância da palavra e
consequentemente da linguagem. Vejamos, em um trecho de sua obra De
magistro, como ele considera estes elementos da comunicação:
AGOSTINHO
- Que te parece que pretendemos fazer quando falamos?
ADEODATO
- Pelo que de momento me ocorre, ou ensinar ou aprender.
AGOSTINHO
- Vejo uma dessas duas coisas e concordo; com efeito, é evidente
que quando falamos queremos ensinar; porém, como aprender?
ADEODATO
- Mas, então, de que maneira pensas que se possa aprender,
senão perguntando?
AGOSTINHO
- ainda neste caso, creio que só uma coisa queremos: ensinar. Pois
dize-me, interrogas por outro motivo a não ser para ensinar o que
queres àquele a quem perguntas?
ADEODATO
- Dizes a verdade.
AGOSTINHO
- Vês portanto que com o falar não nos propomos senão ensinar
(AGOSTINHO, 1973, p. 291).
Vemos que Santo Agostinho considera o diálogo como uma maneira eficaz
de promover o aprendizado. A pergunta e as discussões que ele possibilita
resultam no processo de ensino e de aprendizagem.
Considerando, então, o objetivo principal dos tratados dialógicos, iremos
analisar mais detalhadamente um documento do século IX intitulado Diálogo entre
Pepino e Alcuíno, no qual o autor apresenta questões importantes para a
formação de um jovem destinado a assumir um cargo de liderança no Império
Carolíngio
Esta obra é composta de 214 adivinhações: algumas o pronunciadas por
Pepino, filho de Carlos Magno, na época com doze a treze anos, e outras, por
Alcuíno, seu mestre e provável preceptor. Nas respostas de Alcuíno está
de fluere, porque fluindo, cresce. 2. O conhecimento da etimologia é freqüentemente necessário
para a interpretação do sentido, pois, sabendo de onde se originou o nome, mais rapidamente se
entende seu potencial significativo. O exame de qualquer assunto é mais fácil quando se conhece
a etimologia (SEVILHA, livro I, capítulo 29).”
93
representada a essência do homem medieval, uma vez que ele discorre sobre as
supostas verdades referentes à vida, à morte, à ciência e à religião, além da
influência da cultura antiga e dos ensinamentos cristãos:
(...) a Idade Média herdou da antiguidade clássica suas grandes
formas culturais nos domínios da poesia, do ritual, do saber, da
filosofia, da política e da guerra, e essas formas eram fixas. (...)
Sua tarefa era a elaboração de material tradicional, cristão ou
clássico, e assimilá-lo sob uma forma nova (HUIZINGA, 1980, p.
200).
Esta nova forma de elaboração de conteúdos tradicionais apresentou-se
como uma proposta lúdica de ensino que tinha nas charadas ou adivinhações o
fio condutor do processo ensino–aprendizagem. Além de proporcionar o
entretenimento, o ensino por meio da brincadeira facilitava a compreensão dos
conteúdos que posteriormente auxiliariam Pepino na liderança do Império.
É importante ressaltar que a educação promovida por Alcuíno na Escola
Palatina não era destinada a todos. Geralmente, os candidatos a participar da
educação ministrada no Palácio eram reis, condes, duques, bispos e seus
respectivos descendentes. Aqueles que recebessem tal formação auxiliariam
Carlos Magno no Império ou seriam futuros líderes espirituais nas províncias do
reino franco, o que nos faz concluir que a educação promovida no palácio estava
intrinsecamente ligada à política e à religião
88
.
Contudo, é conveniente considerar tamm algumas exceções no que diz
respeito aos escolhidos para receber tal formação. Alguns eram aceitos nesta
escola não por fazer parte da elite aristocrática, mas por recomendação de
homens deste meio. Vejamos a seguir algumas citações de Favier sobre o
assunto:
Entre os jovens que se beneficiam do meio intelectual formado pelo
Palácio, cumpre considerar à parte as “crias da casa”. Aqui, Carlos
apenas continua a prática dos merovíngios: o rei mantém em seu
entourage alguns jovens escolhidos por ele ou que lhe foram
recomendados. (...) Oriundos, em sua maioria, da aristocracia,
filhos de condes, como é o caso de alguns, e mesmo filhos de
príncipes, como Sancho Lobo, futuro príncipe dos bascos, filhos de
boas falias ou, de qualquer modo, de fiéis, às vezes enviados
88
O renascimento Carolíngio proposto por Carlos Magno visava dois objetivos principais: reformar
os costumes e elevar o nível da formação intelectual principalmente de seus dirigentes, quer estes
fossem civis ou religiosos. (VITORETTI, p. 116)
94
por um bispo ou por um abade que os escolheu em sua própria
escola, os “adotados” por Carlos Magno são meninos e rapazes de
doze a dezesseis anos com uma boa instrução elementar, mas
ainda não formados no exercício das responsabilidades.
(...) O acesso à instrução afigura-se como uma prerrogativa, não
formulada expressamente mas real, desse grupo político que
começa a formar uma nobreza (FAVIER, p. 417).
A educação do setor dirigente garantiria a formação dos líderes e
consequentemente do povo. Todavia, o povo tamm deveria ter acesso à
educação para que, no mínimo, compreendesse as escrituras sagradas, já que o
Império Carolíngio prezava pelos preceitos cristãos. Em razão disso, Carlos
Magno promulgou a capitular de 789 que ordenava que:
(...) se abrissem em cada bispado e em cada mosteiro, escolas em
que seriam recebidas crianças tanto de condição livre, quanto
servil, e em que lhes seria ensinado o saltério, solfejo, canto,
cômputo eclesiástico e gramática. Programa aparentemente
modesto, mas indefinidamente extensível, pois o cômputo podia
incluir toda a astronomia, e a gramática, todas as Belas Letras
(GILSON , 1998, p. 224).
Como foi possível observar, a educação em âmbito geral era um dos
principais objetivos do Imperador no período Carolíngio. Porém, era na Escola
Palatina que se formavam os líderes dos reinos sob domínio desta dinastia e um
exemplo desta formação é evidenciado no Diálogo entre Pepino e Alcuíno.
Esta obra confere ao trabalho uma singularidade, se a compararmos aos
outros documentos escritos pelo mestre que apresentam como tema a formação
dos governantes. Esta distinção deve-se ao fato de que as obras analisadas que
contemplaram o assunto eram dirigidas a líderes que ocupavam a função e
desejavam adquirir do mestre novos conhecimentos nos quais pudessem se
apoiar para o desenvolvimento de suas atribuições.
O mesmo o acontece com Pepino. Responsável por sua formação
89
,
Alcuíno lhe transmite princípios morais, religiosos, científicos e filosóficos que,
num primeiro momento, o formariam como homem para depois educá-lo como
governante.
89
Sobre o assunto, Lauand (1986) afirma : “Pelo próprio texto da disputatio, pode-se supor que
Alcuíno fosse oficialmente o preceptor de Pepino” (p. 71).
95
A prática pedagógica do diálogo auxiliava os jovens na reflexão e
memorização de alguns conceitos importantes. Nas palavras de Lauand (1986):
Na Primeira Idade Média - que tanto cultivou essas brincadeiras -,
as adivinhas tinham, além do caráter jocoso, uma função
pedagógica: aguçar a inteligência dos jovens . As duas coisas
andavam juntas: deve-se ensinar divertindo, diz Alcuíno a Carlos
Magno (1986, p. 73).
O entretenimento obtido por meio do jogo estava ligado à cultura da corte
carolíngia. Talvez, o fenômeno social do riso, os sentimentos, ora de tensão ora
de alegria, acrescentados à distinção do momento com a vida quotidiana
tornavam o aprendizado na academia significativamente prazeroso. Nas palavras
de Favier:
A academia palatina é o divertimento literário do palácio (...)
Alcuíno introduz na corte franca um jogo habitual nos meios
literários anglo-saxões, um jogo que ele praticava em sua
correspondência com seus amigos e com seus alunos: eles se
atribuem pseudônimos. Mas para Carlos, o recurso aos
pseudônimos não é apenas um jogo. É uma diferenciação, um
símbolo oferecido aos iniciados. Ainda que os membros sejam
numerosos e que os alunos de Alcuíno constituiam a nova geração,
a Academia é na verdade um círculo. Há, na corte, os que dela
participam e os que não participam. O apelido facilita a
familiaridade (FAVIER, 2004, p. 423)
Como os jogos de pseudônimos eram usuais para entreter os membros da
corte, não nos surpreende que Alcuíno se utilize de charadas e/ou adivinhas
como proposta pedagógica. De acordo com Matter, (1990) as charadas tinham
um caráter popular e foram muito utilizadas no início da Europa Medieval. Alcuíno
certamente as dispôs em dois volumes intitulados Collectiones aenigmatum que
consistem em enigmas do período merovíngio muito semelhantes aos
apresentados no diálogo. O estudo de Lauand(1986) revela que algumas das
respostas das charadas do documento carolíngio foram encontradas na obra
mencionada.
Sobre o caráter lúdico do jogo de adivinhas do período Carolíngio, Huizinga
considera:
A cultura de corte tem uma tendência especial para adotar a forma
de jogo, dado o fato de mover-se dentro de um círculo restrito. O
respeito que se sentia na presença do imperador era por si só
96
suficiente para impor toda espécie de regras e ficções. Este tom
não é para nós inteiramente desconhecido. Trata-se do velho jogo
de perguntas e respostas, do concurso de enigmas, a resposta
com o sentido oculto numa fórmula. Em resumo, encontramos aqui
uma vez mais todas as características do jogo do saber (...)
(HUIZINGA, 1980, p.172).
Este jogo de saber veiculado pelo diálogo expressa uma forma de reflexão
medieval e evidencia os saberes existentes neste período, o que surpreende
qualquer leitor que desconhece as características educacionais da época. Como
exemplo, temos o Diálogo entre Pepino e Alcuíno
90
que apresenta nas falas
iniciais do mestre e do discípulo, os elementos da linguagem escrita e verbal que
são necessários à interação social:
P.: O que é a escrita? (Fala 1)
A.: O guarda da história. (Fala 2)
P.: O que é a palavra? (Fala 3)
A.: O delator dos segredos da alma. (Fala 4)
P.: Quem gera a palavra? (Fala 5)
A.: A Língua. (Fala 6)
P.: O que é a língua? (Fala 7)
A.: O chicote do ar. (Fala 8)
Pepino inicia o diálogo com uma pergunta, cuja resposta deve satisfazer
provavelmente a sua angústia primeira, ou seja, qual seria a função da escrita.
Alcuíno afirma que a comunicação que se realiza mediante a escrita implica uma
função social, ou seja, o registro da história. Com certeza, o jovem presenciava
esta prática entre os intelectuais do pacio, uma vez que os registros históricos
dos feitos de reis e governantes eram, na maioria das vezes, registrados
91
.
Quando Pepino pergunta sobre a palavra, possivelmente a que
expressamos verbalmente, ele novamente enfatiza a importância da interação
social por meio da comunicação. Pode ser que a definição de Alcuíno tivesse
como objetivo conscientizá-lo da necessidade de se comunicar com prudência,
que as palavras revelam os segredos da alma. Esta sentença se confirma quando
90
Este diálogo possui como título original Pippini regalis et nobilissimi juvenis disputatio cum
Albino scholastico. Foi traduzido para o português por Jean Lauand (1986).
91
Eginhardo era amigo e confidente de Carlos Magno. Escreveu, no período em que era
secretário de Luís, O Piedoso, uma obra intitulada Vida de Carlos, relatando os feitos do
imperador Carolíngio. ‘Os textos da época esclarecem muito mais sobre o assunto que a lenda.
Eginhardo não deixou de apresentar um retrato físico de seu herói nem de lhe traçar um retrato
moral. (FAVIER, 2004, p. 137)
97
Alcuíno responde às perguntas em cadeia, feitas por Pepino: a língua é o órgão
de nosso corpo que gera a palavra, mas ela se compara a um chicote do ar, uma
vez que pode ferir quem ouve. Como vimos na análise anterior do diálogo entre
Carlos Magno e Alcuíno, as situações em que o governante tinha que se
expressar publicamente não admitiam erros de discurso, ou seja, o governante
deveria ser cauteloso com as palavras
Se a língua é o chicote do ar, as perguntas em sequência contemplarão
elementos que caraterizam a existência humana a partir da definição do ar, no
caso, o guarda da vida:
P.: O que é o ar? (Fala 9)
A.: O guarda da vida. (Fala 10)
P.:O que é a vida? (Fala 11)
A.: A alegria dos ditosos, aflição dos miseráveis, expectação da
morte. (Fala 12)
P.: O que é a morte? (Fala 13)
A.: Um fato inevitável, uma incerta peregrinação, lágrimas dos
vivos, confirmação dos testamentos, ladrão do homem. (Fala 14)
P.: Que é o homem? (Fala 15 )
A.: Servo da morte, caminhante passageiro, sempre um hóspede
em qualquer lugar. (Fala 16)
P.: A que é semelhante o homem? (Fala17 )
A.: A um fruto. (Fala 18)
P.: Qual a condição humana? (Fala 19 )
A.: A de uma candeia ao vento. (Fala 20)
P.: O que é o sono? (Fala 29)
A.:Imagem da morte. (Fala 30 )
Nas falas de 10 a 14, Alcuíno refere-se a questões sobre a vida e a
morte. Ao afirmar que o ar é o elemento necessário à vida, ele o fornece uma
resposta científica, mas considera a pergunta do jovem Pepino numa perspectiva
filosófica. Quanto ao conceito da palavra vida, é importante observar as duas
primeiras definições fornecidas pelo mestre, porque, de certa forma, elas
evidenciam a realidade daquele contexto social. A vida em sociedade poderia ser
uma alegria para aqueles que não sentiam falta de nada, mas poderia ser uma
aflição para aqueles dignos de compaixão por sua pobreza, quer seja ela material
ou não. Um governante, por mais que almejasse um Estado justo e feliz, iria se
deparar com este dois grupos de pessoas. Contudo, viver uma vida de
infelicidade ou alegria não modificaria o fato inevítável que todos os seres
humanos teriam de enfrentar, ou seja, a morte.
98
A morte confirma os testamentos
92
, sendo comparada a um ladrão de
homens. Na fala 30, é representada como um sono. Devido à incerteza do
homem quanto à continuidade de sua existência, a partir da fala 15, Alcuíno
define o homem primeiramente como um servo da morte e depois o assemelha a
um fruto, cuja característica é a perecibilidade. A candeia ao vento também é
outro elemento que representa a efemeridade da vida humana. Neste contexto, é
importante ressaltar que o homem medieval, em razão das condições de vida da
época, o tinha uma média de vida longa. Isso ajuda a entender a ênfase que o
mestre dava à fugacidade da vida.
Com base na compreensão do que vem a ser o homem, Pepino faz
perguntas curiosas a respeito de como ele está inserido neste mundo:
Como ele está situado? (Fala 21 )
Dentro de seis paredes. (Fala 22)
Quais? (Fala 23 )
Acima, abaixo; diante, detrás; direita e esquerda. (Fala 24 )
De quantos modos ele é variável? (Fala 25 )
De seis modos. (Fala 26 )
Quais? (Fala 27 )
Pela fome e saciedade; pelo repouso e trabalho; pela vigíllia e
sono. (Fala 28 )
O que é a liberdade do homem? (Fala 31)
A sua inocência. (Fala 32)
As seis paredes o termos alegóricos utilizados por Alcuíno para
descrever as várias ciscunstâncias de lugar, ou seja, a noção de espacialidade.
Por meio destes conceitos, o mestre ensina o seu aluno a lateralidade, ou seja, a
disposição geográfica em que o homem pode se encontrar. Acreditamos que as
perguntas anteriormente analisadas relacionadas ao homem e à existência
humana tiveram o propósito de fazer com que Pepino primeiramente se
compreendesse como homem, para depois se sentisse capaz de se compreender
nos diferentes espaços. Estes conceitos eram elementares ao estudo científico
das artes e dos saberes que compunham o quadrivium principalmente a
astronomia, arte para a qual Carlos Magno mais se inclinava.
93
92
(BÍBLIA, N.T. Hebreus 9, 15-17)
93
Sobre o assunto, Friaça confirma: “Carlos Magno nutre grande paixão pelas artes liberais e em
particular pela Astronomia, o que deu grande impulso ao estudo dessa disciplina em sua época e
nos reinados de seus sucessores (FRIAÇA, 1999, p. 304)”.
99
Quando o mestre afirma que o homem é variável pela fome e saciedade;
pelo repouso e trabalho; pela vigília e pelo sono, ele ressalta as necessidades
físicas e tamm sociais.
As falas 31 e 32 revelam a relação entre o saber e o realizar. Alcuíno,
implicitamente, afirma que, se o homem não tem conhecimento do que é certo, é
livre para errar: o conhecimento traz consigo responsabilidades e esta
consideração é significativamente importante para aquele que futuramente
ocuparia um cargo de governante.
Após as considerações filosóficas sobre o homem, Pepino e Alcuíno
dialogam a respeito do homem físico. Neste momento, é possível observar a
retomada dos conhecimentos da Antiguidade relacionados à anatomia humana:
O que é a cabeça? (Fala 33 )
O cimo do corpo? (Fala 34)
O que é o corpo? (Fala 35)
A morada da alma. (Fala 36)
O que é a cabeleira? (Fala 37)
A veste da cabeça. (Fala 38 )
O que é a barba? (Fala 39 )
Distinção do sexo, honra da idade. (Fala 40)
O que é o cérebro? (Fala 41)
O conservador da memória. (Fala 42)
O que são olhos? (Fala 43 )
Os guias do corpo, recipientes de luz, indicadores da alma. (Fala
44)
O que são as narinas? (Fala 45 )
Os condutos dos aromas. (Fala 46 )
O que são os ouvidos? (Fala 47)
Captadores de sons. (Fala 48)
O que é a fisionomia? (Fala 49)
A imagem da alma. (Fala 50)
Pepino formula suas perguntas com a intenção de conhecer a constiuição
física do homem, mas encontra, nas respostas do mestre, explicações meditativas
a respeito de seu próprio cotidiano. Na citação, é possível perceber explicações
sobre os sentidos, quando o mestre se refere aos ouvidos e as narinas. Porém,
quando ele explica o que são os olhos, oferece três definições filosóficas: são
órgãos essenciais, quando se pretende encontrar um caminho, mas o também
recipientes de luz e indicadores da alma, porque os olhos revelam o estado de
espírito do indivíduo: se este se encontra feliz,eles são brilhantes, mas, se o
100
estado de ânimo for o contrário, esses órgãos também o revelarão. De forma
semelhante, Alcuíno afirma que a imagem da alma é representada pela
fisionomia, uma vez que os sentimentos são na maioria das vezes expressos no
semblante. Esta explicação tamm apresenta semelhanças com o versículo
bíblico de Provérbios, 15, 13, O coração alegre aformoseia o rosto , mas com a
tristeza do coração o espírito se abate”.
É importante enfatizar que, no medievo, as características físicas de um rei
eram importantes, que denotavam a sua autoridade sobre o povo. O cuidado
com a fisionomia, bem como a capacidade de distinguir expressões e interesses
em outrem eram habilidades importantes para queles que a todo momento
administravam situações que envolviam pessoas. Vejamos a importância da
aparência real no período carolíngio, por meio da descrição que Eginhardo fez de
Carlos Magno:
Ele tinha o corpo grande e robusto, de uma estatura elevada mas
que não excedia a justa medida, pois media sete vezes o
comprimento do seu pé, sendo o alto de sua cabeça redondo,
olhos grandes e vivos, o nariz um pouco maior do que a média das
pessoas, os belos cabelos brancos, a expressão alegre e jovial.
Assim, a sua aparência denotava, tanto de pé quanto sentado,
autoridade e dignidade. Embora seu pescoço fosse muito grosso e
curto, e seu ventre bastante grande, os membros eram bem-
proporcionados (FAVIER, 2004, p. 138).
Esta descrição evidencia a relação entre a aparência física, a autoridade e
a dignidade de um rei. Os aspectos como a barba e a cabeleira enfatizam a
virilidade do governante, como o próprio Alcuíno afirma. A menção ao cérebro
como guardador da memória nos leva a refletir sobre a importância desta
habilidade para o líder, uma vez que ela está intrinsecamente ligada ao próprio
conhecimento e à prática da virtude.
Alcuíno, assim como outros mestres medievais, estimulava a memorização
dos conhecimentos porque ela denotava um real aprendizado, e o líder que não
fosse capaz de desenvolver e utilizar estas habilidades certamente seria incapaz
de colocar em prática toda a ciência apreendida. Ao ensinar Carlos Magno sobre
os elementos que constituíam a arte da retórica (invenção, disposição, elocução e
memória), ele retoma a filosofia antiga para fundamentar a importância da
memória:
101
Carlos Magno: O que tu dizes sobre a nobilíssima parte da
Retórica, como penso, a Memória?
Alcuíno: A mesma coisa que Marco Túlio disse: que a Memória é o
tesouro de todas as coisas de que acreditamos que se perderão
num orador, mesmo se forem mui claras, se ela, a Memória, não for
acolhida como a defensora das coisas pensadas, imaginadas, e
das palavras.
Carlos Magno: Existem algumas regras a respeito, como ela pode
ser obtida ou aumentada?
Alcuíno: o temos outras regras a respeito senão o exercício da
aprendizagem, o uso da escritura, o estudo do pensamento, e o
dever de evitar a embriaguez, que é prejudicial para todos os bons
trabalhos, e que não somente tira a saúde do corpo, mas também
priva a mente da integridade.
Carlos Magno: Estas regras são suficientes se alguém é capaz de
cumpri-las, porque, como estou vendo, elas são tanto difíceis para
a inteligência quanto pouco freqüentes para as palavras.
Alcuíno: Sim, difíceis e úteis (ALCUÍNO, apud COSTA, R. 2007).
94
Como se pode verificar, a memória era considerada uma habilidade
importante para aqueles que tinham acesso ao meio intelectual, e principalmente
para aqueles que detinham o poder, já que a ação de recordar algo anteriormente
apreendido denotava dedicação ao conhecimento.
O diálogo dedica várias perguntas e respostas à anatomia humana,
conteúdo que compõe a arte da medicina desde a Antiguidade grega, mais
especificamente a partir da segunda metade do século V. Todavia, o
desenvolvimento desta ciência deve-se em grande parte às primeiras reflexões
feitas pelos filósofos jônicos, mais conhecidos como pré-socráticos, os quais
buscavam encontrar, por meio da razão e o da mitologia, o princípio
substancial existente em todos os seres vivos. Nas palavras de Jaerger:
A Medicina jamais teria conseguido chegar à ciência, sem as
investigações dos primeiros filósofos jônicos da natureza, que
procuravam uma explicação natural para todos os fenômenos, sem
a sua tendência a reduzir todo o efeito a uma causa e a comprovar
na relação de causa e efeito a existência de uma ordem geral e
necessária, e sem a sua inquebrantável em chegarem a
descobrir a chave de todos os mistérios do mundo, pela
94
Esta citação foi retirada de um artigo escrito por Ricardo da Costa, intitulado de: História e
Memória: a importância da preservação e da recordação do passado.. Disponível em:
http://www.indiciarismo.com/revista/Edicao%202/Ricardo%20Costa_artigo.pdf
. - Acesso em
27/02/08
102
observação imparcial das coisas e a força do conhecimento
racional (JAEGER, 1995, p. 1004).
Alcuíno retoma a filosofia pré-socrática para ensinar anatomia a Pepino e
suas respostas explicitam o princípio funcional dos órgãos do corpo humano.
Suas reflexões revelam tamm um conhecimento sobre a constituição humana,
não da parte física, mas também da filosófica. Pepino tamm revela ter uma
curiosidade indicativa de um conhecimento prévio, ou seja, poderia o saber as
respostas, mas conhecia os conceitos. Sobre os órgãos interiores o aluno
questiona:
O que é o pulmão? (Fala 63)
Depósito de ar. (Fala 64)
O que é o coração? (Fala 65)
Receptáculo da vida. (Fala 66)
O que é o fígado? (Fala 67)
O guarda do calor. (Fala 68)
O que é a bílis? (Fala 69)
A que suscita a irritação (Fala 70)
O que é o baço? (Fala 71)
O que produz a alegria e o riso. (Fala 72)
O que é o estômago? (Fala 73)
O cozinheiro dos alimentos. (Fala 74)
O que é o ventre? (Fala 75)
O guarda das coisas frágeis. (Fala 76)
O que são os ossos? (Fala 77)
A fortaleza do corpo. (Fala 78)
O que são as coxas? (Fala 79)
Epistílios das colunas. (Fala 80)
O que são as pernas? (Fala 81)
As colunas do corpo. (Fala 82)
O que são o pés? (Fala 83)
Alicerce móvel. (Fala 84)
O que é o sangue? (Fala 85)
Humor das veias, alimento da vida. (Fala 86)
O que são as veias? (Fala 87)
As fontes da carne. (Fala 88)
As repostas são compostas com base em um princípio lógico, embora não
científico. Suas definições revelam a reflexão do mestre exteriorizada por meio de
frases jocosas, mas que estimulavam o meditar sobre os significados dos
elementos do corpo humano . Até para o leitor contemporâneo, a leitura chama a
atenção pela lógica das respostas , o que implica tamm a reflexão sobre o
conteúdo, tanto por parte do mestre Alcuíno quanto do jovem Pepino.
103
Nestas sentenças, é possível encontrar três esferas de compreensão de
homem: a física, a social e a natural. Ao mesmo tempo em que ele descreve
fisicamente o ser humano, também ressalta estados de espírito, como a alegria,
tristeza, irritação, que ganham sentido no meio social . O homem é integrante
da natureza, porque foi criado por Deus e porque é um ser perfeito no que diz
respeito ao seu funcionamento. Todavia, am de ser frágil quando nasce, o
homem tem a vida caracterizada pela efemeridade.
A menção aos diversos elementos que constituem o corpo humano
estimula tamm a reflexão sobre seu funcionamento. Em algumas das obras de
Alcuíno, encontramos informações a respeito da manutenção de um corpo
saudável
95
. A medicina medieval discutida por Alcuíno contém elementos
retomados das obras de grandes autores da Antiguidade
96
, pois ele considerava
que as informações de épocas anteriores tamm eram importantes ao período
que vivenciava.
Ao sair da esfera de compreensão do que vem a ser o homem em sua
essência e quais são suas características físicas e sociais, Alcuíno e Pepino
dialogam a respeito do mundo natural do qual este homem faz parte. Várias são
as perguntas e respostas que contemplam a arte da astronomia. Embora esta
arte, no período medieval, seja considerada por alguns historiadores como
rudimentar, documentos disponíveis à época de Alcuíno que revelam
conhecimentos que perduraram até o Renascimento (Sec. XIV)
97
. Vejamos como,
95
Informações úteis relacionadas à manutenção da saúde aparecem em várias obras de Alcuíno.
O Livro a respeito das virtudes e dos vícios para o conde Guido contempla o tema ao discutir o
perigo do vício da gula. Outra obra, Dialectica, apesar de tratar da prática lingüística de Alcuíno,
menciona termos relacionados à saúde, o que implica que o assunto era importante à época: A.
(...) Ab un, é quando dizemos que um ferro é “medicinal” ou que um preceito é medicinal”, que
uma ciência é “medicinal” ou que um procedimento é “medicinal”. Ad unum , quando dizemos que
tal remédio é “salutar”, que tal médico é “salutar”, que tal era é “salutar”; com efeito, todas as
coisas estão ligadas pelo único fato de que elas visam à mesma coisa: a saúde (ALCUÍNO, apud
LIBERA, 1998, p. 271)
96
A classificação científica proposta por Alcuíno é semelhante à de Cassiodoro(480-575) e
consiste em: Teologia ou inspectiva, trata das coisas de Deus; Ciência atual (actualis), trata das
coisas necessarias para a vida terreal e por sua vez se divide em 1 – física (antigo quadrivium) 2 –
(astrologia, mecânica e medicina) 3 – Lógica (composta pela dialética e retórica) e Ética segundo
as quatro virtudes cardeais de Aristoteles (MENDOZA apud DE BONI, 2000).
97
“Um documento representativo desse momento é o manuscrito, ricamente ilustrado, conhecido
como o Aratea, que se encontra agora na Biblioteca da Universidade de Leiden. O Aratea é uma
cópia de um tratado astronômico e meteorológico baseado no poema Phaenomena do poeta
grego Aratus (c. 315 -240/39 a. C.). O Phaenomena, em forma poética e sem afetação, informa
uma audiência geral a respeito dos fenômenos celestes; inspirou a arte astronômica desde a sua
composição até o Renascimento. O texto do Aratea é uma tradução latina de Claudius Caesar
104
por meio da brincadeira, Alcuíno ensina temas importantes sobre este
conhecimento.
P.:O que é o céu? (Fala 89)
A.:Uma esfera que roda sobre si mesma, um imenso teto. (Fala 90)
P.:O que é a luz? (Fala 91)
A.:A face de todas as coisas. (Fala 92)
P.:O que é o dia? (Fala 93)
A.:Estímulo ao trabalho. (Fala 94)
P.:O que é o sol? (Fala 95)
A.:O esplendor da terra, a beleza do céu, graça da natureza, a
glória do dia, o distribuidor das horas. (Fala 96)
P.:O que é a lua? (Fala 96)
A.:O olho da noite, doadora do orvalho, aquela que anuncia as
tempestades. (Fala 97)
P.:O que são as estrelas? (Fala 98)
A.:A pintura que adorna o céu, piloto dos navegantes, encanto da
noite(Fala 99).
P.: O que é o ano? (Fala 131)
A.: A quadriga do mundo. (Fala 132)
P.: E quem a conduz? (Fala 133)
A.: A noite e o dia, o frio e o calor. (Fala 134)
P.: E quem dirige as rédeas? (Fala 135)
A.: O sol e a lua. (Fala 136)
P.: Quantos são seus palácios? (Fala 137)
A.: Doze. (Fala 138)
P.: Quem são os governantes dos palácios? (Fala 139)
A: Áries, Touro, Gêmeos, Câncer, Leão, Virgem, Balança,
Escorpião, Sagitário , Capricórnio, Aquário e Peixes. (Fala140)
P.: Quantos dias ficam morando em cada palácio? (Fala 141)
A.: O sol, 30 dias e 10 horas e meia; a lua, 2 dias, 8 horas e 2/3 de
hora. (Fala 142)
Refletindo sobre as charadas acima, elegemos uma razão principal que
justificou o estudo destes temas: o anseio de Carlos Magno e Alcuíno de retomar
a cultura antiga, na qual a arte astronômica era uma auxiliar nas reflexões a
respeito das relações existentes entre o homem e a natureza. Todavia, no período
carolíngio, o estudo da astronomia por um futuro governante, além de valer pela
própria aquisição do conhecimento, tinha também uma função prática.
Germanicus, composta no início do século I com base no original grego. Essa tradução é
complementada por trechos de uma segunda versão do poema Aratus, realizada no século IV por
Rufius Festus Avienus. As trinta e nove miniaturas que ilustram o Aratea, representando as
constelações, as estações e os planetas, constituem o que de mais precioso nesse livro. A
ilustração final do Aratea é a mais extraordinária de todas. Trata-se de um esquema
representando a configuração dos planetas contra o referencial do zodíaco, segundo o modelo
geo-heliocêntrico. Lua, Sol, Marte, Júpiter e Saturno orbitam em torno da Terra, e Mercúrio e
Vênus, em torno do Sol. A posição dos planetas corresponde à data de 28 de março de 579, o que
permite datar o original no qual se baseou a confecção da ilustração (FRIAÇA, 1999, p. 304)”.
105
Se pensarmos que, no período, os governantes viajavam constantemente,
não só para conquistar novos territórios, mas tamm para comercializar produtos
por vias marítimas ou fluviais, entenderemos que o conhecimento sobre os
elementos da natureza auxiliava os homens a se localizar no tempo e no espaço,
sendo, portanto, de muita utilidade.
Além do comércio marítimo, a produção rural também fazia parte da
economia do Império Carolíngio. Na capitular criada por volta de 794, denominada
De Villis, Carlos Magno organiza toda a vida econômica e social do domínio real,
descrevendo, por exemplo, como deve ser o cultivo dos vinhedos, a criação dos
animais, o calendário das caçadas, a plantação de árvores frutíferas, a fabricação
da cerveja. Normatiza também a produção de queijos, manteigas e hidromel,
exigindo a máxima higiene, come uma lista de hortaliças e plantas medicinais
e ornamentais que deviam ser cultivadas nos domínios, bem como orienta sobre o
tipo de solo e clima que deveriam ser observados em cada local. (FAVIER, 2004).
Sobre as relações entre os elementos da natureza e a produção rural, Alcuíno e
Pepino dialogam:
P.: O que é a chuva? (Fala 101)
A.: A fecundação da terra, a mãe dos frutos (Fala 102)
P.: O que é a terra? (Fala 107)
A.: A mãe de tudo o que cresce, a que alimenta os viventes, o
celeiro da vida, a devoradora de todos (Fala 108)
P.: O que é o inverno? (Fala 123)
A.: O exílio do verão. (Fala 124)
P.: O que é a primavera? (Fala 125)
A.: A pintora da terra. (Fala 126)
P.: O que é o verão? (Fala 127)
A.: O revestir da terra, o sazonamento do que germina. (Fala 128)
P.: O que é o outono? (Fala 129)
A.: O celeiro do ano.
(Fala 130)
P.: O que são as ervas? (Fala 151)
A.: A veste da terra. (Fala 152)
P.: O que são os legumes? (Fala 153)
A.: Os amigos dos médicos, o louvor dos cozinheiros. (Fala 154)
P.: O que é que faz doce o amargo? (Fala 155)
A.: A fome. (Fala 156)
P.: O que é que faz com que o homem não se canse? (Fala 157)
A.: O lucro. (Fala 158).
Devido à economia do Império estar voltada para a produção rural, a
menção à chuva, às estações do ano, ervas e legumes é justificada pelo fato de
estarem relacionados entre si. Contudo, as falas 107-108 revelam a existência de
106
significados contraditórios para o elemento terra. É importante evidenciar a
observação que Alcuíno faz da relação entre terra e vida, uma vez que é a partir
dela que se tem o alimento necessário à manutenção da mesma. Porém, como
última definição, o mestre aponta sabiamente que a terra é a devoradora de
todos, ou seja, a terra é um elemento da natureza que participa da vida e da
morte de todos os indivíduos.
Nas falas 157-158, Alcuíno e Pepino falam de trabalho e do que se pode
adquirir por meio dele, ou seja, a riqueza. No Imrio Carolíngio todos os
indivíduos que compunham as estruturas sociais dedicavam-se ao trabalho e esta
também deveria ser a atitude do rei. É importante observar que, desde aquela
época, a aquisição da riqueza era considerada com atenção. Favier menciona
que “a melhora do nível intelectual de sua aristocracia, à qual o rei se liga cada
vez mais, pode ter conseqüências favoráveis para a direção local da economia
rural (p. 340). A citação evidencia a importância da formação intelectual do
governante para administrar seu reino, além do fato de que um Estado próspero
exigia governantes bem formados.
Embora os conteúdos abordados no diálogo sejam variados, é
importante ressaltar que Alcuíno observa os fenômenos da natureza e tenta
explicar sua relação com o comportamento humano. Isto é uma prova de que a
educação medieval baseava-se na razão e na sensibilidade diante das coisas
que existem no mundo. Além da exploração de conteúdos científicos, o mestre
também aborda temas sociais ligados à religiosidade, como podemos verificar a
seguir:
P.: O que é o sonho dos acordados? (Fala 159)
A.: A esperança. (Fala 160)
P.: O que é a esperança? (Fala 161)
A.: Refrigério nos trabalhos; evento incerto. (Fala 162)
P.: O que é a amizade? (Fala 163)
A.: A igualdade das almas; a igualdade dos amigos.(Fala 164)
P.: O que é a fé? (Fala 165)
A.: A certeza das coisas não sabidas e admiráveis. (Fala 166)
Alcuíno elege três elementos de que o ser humano necessita para viver em
sociedade: a esperança, a amizade e a fé. A esperança e a dizem respeito ao
futuro, o que implica em um ensino sobre como viver o presente e ao mesmo
tempo pensar no futuro. Daí a menção ao trabalho, já que, diante das incertezas
107
da vida, é a ação que garante a sobrevivência futura. A amizade, por sua vez,
revela a necessidade que o homem tem de se relacionar com as pessoas, o que
implica mais uma característica da essência humana. Acreditamos que este
trecho do diálogo seja uma retomada das três virtudes teologais: fé, esperança e
caridade, as quais deveriam ser observadas por Pepino. Estes elementos,
elucidados numa perspectiva cristã, seriam capazes de transmitir a paz ao
indivíduo, estado de espírito fundamental ao governante, porque, antes de
promover a paz em seu governo, ele precisava estar em paz consigo mesmo.
uma parte do diálogo em que o autor se manifesta sobre a
responsabilidade que o conhecimento produzia no homem medieval. Pepino,
após ouvir definições sobre os vários temas propostos em suas perguntas, a
impressão de que, por alguns instantes, ele demonstrou receio em continuar
buscando o conhecimento:
P.: Mestre, tenho medo de ir ao alto! (Fala 143)
A.: Quem te trouxe para o alto? (Fala 144)
P.: A curiosidade. (Fala 145)
A.: Se tens medo, descerei. Eu te seguirei aonde quer que vás.
(Fala 146)
P.: Se eu soubesse o que é um navio, prepararia um para ti, para
que viesses a mim (Fala 147)
A.: Um navio é uma casa errante, é hospedaria em qualquer parte,
um viajante que não deixa pegadas, um vizinho da areia (Fala
148).
Possivelmente, ao refletir sobre a afirmativa de Alcuíno de que “A liberdade
do homem é a sua inocência”, Pepino temeu a responsabilidade que estava
adquirindo juntamente com os conhecimentos e que o capacitariam a assumir o
governo. Por isso, afirmou: Tenho medo de ir ao alto”. O governante, embora
ocupe uma função, na maioria das vezes caracterizada por honras e prestígio
social, também convive com as disputas, inimizades e sentimentos de inveja por
parte das pessoas o rodeiam. Talvez essa preparação para o governo tenha de
certa forma inibido o jovem na busca do conhecimento; por isso proferiu a frase
carregada de temor.
Ao afirmar que a curiosidade foi o elemento propulsor de todo o
conhecimento que até então tinha adquirido, Pepino nos oferece uma lição
valiosa. A de que a curiosidade é um sentimento humano, comum a todos, o que
108
implica que a ação de aguçar a inteligência por meio da curiosidade é capaz de
promover tamm um aprendizado significativo.
Ressaltemos tamm a resposta de Alcuíno: “Se tens medo, descerei. Eu
te seguirei aonde quer que s”. Isto revela a sabedoria do mestre e o respeito
para com os limites do seu aluno. Esta atitude talvez revele que o mestre tinha a
consciência de que conhecimento transmitido diante do desinteresse não
produziria um aprendizado genuíno. A última parte da resposta revela também
um apoio em qualquer circunstância, o que evidencia a relação de proximidade
que havia na época medieval entre o mestre e governante.
Em seguida, Pepino resolve continuar os questionamentos, ou seja, ele
implicitamente assume as responsabilidades que porventura adviriam com os
conhecimentos adquiridos. A nosso ver, esta passagem demonstra nitidamente o
aprendizado de Pepino, pois ele compreendeu a relação existente entre o
conhecimento e a prática.
Como última parte do diálogo 18 enigmas
98
, propostos não mais por
Pepino, mas, por Alcuíno. O fato desses enigmas se encontrarem no final do
diálogo e o o contrário pode ser axplicado da seguinte maneira. Após todo o
conhecimento adquirido por meio das respostas do mestre, chega o momento de
o aluno demonstrar, sua capacidade de resolução de problemas com base no
raciocínio rápido. Vejamos alguns exemplos de jogos que estimulavam a
inteligência dos jovens na época medieval:
A.: que és um bom rapaz e dotado de natural engenhosidade,
vou te propor mais algumas "admiráveis"; provarás se, por ti
mesmo, podes adivinhá-las. (Fala 172)
P.: Sim e se eu errar, tu me corrigirás. (Fala 173)
A.: Farei como desejas. Um desconhecido, sem língua e sem voz,
falou comigo; ele nunca existiu, nem existirá. É alguém que não
conheço e nem ouviria. (Fala 174)
P.: Acaso um sonho te importunou, mestre? (Fala 175)
A.: Sim, filho, acertaste. Ouve esta agora: vi mortos gerarem um
vivo e o hálito do vivo consumiu os mortos. (Fala 176
P.: Esfregando-se galhos secos, nasce o fogo que consome os
galhos. (Fala 177)
98
“O enigma ou, em termos menos específicos, a adivinhação é, considerando à parte seus
efeitos mágicos, um elemento importante das relações sociais. Como forma de divertimento social
se adapta a toda a espécie de esquemas literários e rítmicos, como, por exemplo as perguntas em
cadeia, onde cada pergunta conduz a outra, do conhecido tipo O que é mais doce que o mel?”
etc. Os gregos gostavam muito da aporia como jogo de sociedade, ou seja, de fazer perguntas às
quais era impossível dar uma resposta definitiva ( HUIZINGA, 1980 p. 125-126)”.
109
A.: Mas, psst!, põe teu dedo sobre a boca; não aconteça que os
meninos ouçam o que é. Fui eu com outros a uma caçada, na qual
o que apanhamos não trouxemos conosco e o que não pudemos
caçar, sim, trouxemos conosco. (Fala 184)
P.: É a caçada dos camponeses, não é? (Fala 185)
A.: É. Vi o que nasceu, antes de ser concebido. (Fala 186)
P.: Viste e talvez comeste. (Fala 187)
A.: Comi. O que é o que não é e tem nome e responde a quem faz
barulho? (Fala 188)
P.: Pergunta aos papiros na floresta. (Fala 189)
A.: Vi um morador correndo junto com sua casa; ele calava, mas
ela fazia barulho. (Fala 190)
P.: Prepara-me uma rede e eu to mostrarei. (Fala 191)
A.: Quem é o que não podes ver, senão de olhos fechados? (Fala
192)
P.: O que dorme profundamente indicar-te-á. (Fala 193)
99
A.: Vi um homem com oito na mão; de oito, tirou sete e ficou com
seis. (Fala 194)
P.: As crianças, na escola, sabem isso. (Fala 195)
A.: Eram três: um nunca nasceu e morreu uma vez: outro, nasceu
uma vez e nunca morreu; o terceiro, nasceu e duas vezes morreu.
(Fala 198)
P.: O primeiro é homônimo da terra; o segundo, do meu Deus; o
terceiro, do homem pobre. (Fala 199)
A.: Dize as iniciais dos nomes. (Fala 200)
P.: 1,5 e 12 (Fala 201)
Os enigmas apresentados acima, am de entretenimento, tinham como
objetivo exercitar ou desenvolver o raciocínio lógico. Como a maioria delas
consiste em jogos de palavras, analisaremos as falas 194-195, porque abordam o
ensino matemático por meio da brincadeira. Este enigma se refere ao Loquela
digitorum , ou seja, a uma maneira de realizar operações utilizando os dedos.
Lauand o explica da seguinte forma: “O dedo mínimo é o que faz o 7; o anular, o
6; ambos, o 8. De tal modo que, se do 8 tiramos 7 (isto é o dedo que faz o 7) fica
6” (LAUAND, 1986, p. 77). Segue Ilustração abaixo.
(idem)
99
Algumas das soluções dos enigmas são explícitas no diálogo, outras foram encontradas por
Lauand nos volumes “Collectiones Aenigmatum”, como é o caso das falas 184 e 185, cuja
resposta é piolhos e/ou caçar piolhos (Cf. CCL 133ª, p. 651) Nas falas 186 e 187, a solução seria
o ovo (Cf. CCL 133ª p. 554). O eco seria a resposta para o enigma da fala 188 (Cf. CCL 133ª, p.
719). Na fala 191, a solução é o peixe no rio (Cf. CCL 133ª, p. 633) E na fala 192, a solução é o
sonho (Cf. CCL 133ª, p. 720) (LAUAND, 1986, p. 74-75)
110
Os problemas aritméticos da época medieval não tinham como objetivo
primeiro uma utilidade prática, mas sim desenvolver e estimular a inteligência dos
indivíduos. Lauand afirma que “A pouca matemática que se conhece na época é
ensinada de modo vivo, prático, atraente e bem humorado (1986, p. 95).
Por meio da brincadeira, Alcuíno explorou conceitos da ciência
desenvolvida até aquele momento, bem como elementos do cristianismo e
reflexões filosóficas oriundas da antiguidade. As charadas certamente
proporcionaram um aprendizado significativo sobre conteúdos complexos, o que
contribuiu para a formação de Pepino, que, na época, era ainda menino, mas
poderia se tornar o sucessor da dinastia Carolíngia.
Por fim, o documento é concluído com as seguintes charadas:
A.: O que é que é e que não é? (Fala 206)
P.: O nada. (Fala 207)
A.: E como pode ser e não ser? (Fala 208)
P.: É enquanto palavra; não é, enquanto realidade. (Fala 209)
A.: Quem é o mensageiro mudo? (Fala 210)
P.: O que tenho aqui comigo. (Fala 211)
A.: O que tens aí contigo? (Fala 212)
P.: Uma carta tua. (Fala 213)
A.: Que a leias com proveito, filho. (Fala 214).
No início, quando Pepino pergunta “O que é a escrita” e obtém como
resposta O guarda da História”, o diálogo contempla a linguagem em sua forma
escrita. Na conclusão, é novamente mencionado o elemento palavra, além de
outro meio de comunicação que utiliza a escrita, ou seja, a carta. Pode-se
considerar, com base nesta observação, que o documento ressalta o aspecto da
linguagem e da comunicação, talvez pelo fato destes atributos se constituírem
como parte apenas do universo humano.
(...) esse primeiro e supremo instrumento que o homem forjou a fim
de poder comunicar, ensinar e comandar. É a linguagem que lhe
permite distinguir as coisas, defini-las e constatá-las, em resumo,
designá-las e com essa designação elevá-las ao domínio do
espírito. Na criação da fala e da linguagem, brincando com essa
maravilhosa faculdade de designar, é como se o espírito estivesse
constantemente saltando entre a matéria e as coisas pensadas.
Por detrás de toda a expressão abstrata se oculta uma metáfora, e
toda a metáfora é jogo de palavras. Assim, ao dar expressão à
vida, o homem cria um outro mundo, um mundo poético, ao lado do
na natureza. (HUIZINGA, 1980, p. 7)
111
Consideramos que o diálogo em si proporciona o desenvolvimento da
humanidade de seus interlocutores, uma vez que explora a palavra expressa
verbalmente. Desta forma, muito além de transmitir conhecimentos, busca
expressar a vida.
112
4. CONCLUSÃO
A importância da formação intelectual do governante na construção do Estado
medieval no Ocidente foi tema dos três capítulos desta dissertação. No entanto,
foi no terceiro que nos dedicamos mais detalhadamente sobre a atuação de
Alcuíno como mestre de governantes.
Alcuíno, tinha a concepção de que a educação é capaz de modificar os
homens e, consequentemente, a própria sociedade. Ao desenvolver suas
propostas pedagógicas para a formação intelectual dos líderes, ele contribuiu
ativamente para a construção do movimento que se tornou um marco na História,
o Renascimento Carolíngio.
Ele demonstrou, pela sua atuação na corte, a importância de se desenvolver
habilidades humanas como reflexão, memória e linguagem, as quais, juntamente,
com os conhecimentos cristãos auxiliariam na educação moral dos indivíduos.
Pela natureza dessa proposta educacional, é possível concluir que, na Idade
Média, paralelamente à característica religiosa que predominou em suas
instituições, houve uma preocupação com o desenvolvimento da razão e,
consequentemente, da própria humanidade de seus indivíduos.
Tivemos, no decorrer deste trabalho, a oportunidade de refletir sobre a
história do povo franco e sobre os progressos sociais conquistados, os quais
foram resultantes, em grande medida, da consciência adquirida pelos líderes
carolíngios a respeito da importância da educação. Pudemos acompanhar
também como a Igreja participou deste processo de civilização e que a educação
foi a base de sua atuação. Esta instituição, em nossa análise contribuiu
diretamente e indiretamente para a construção da sociedade medieval, pois, além
de educar o povo, foi responsável pela formação dos grandes mestres e
intelectuais que, por sua vez, educaram os governantes.
Foi importante analisar a função que a maioria dos mestres
desempenharam naquele período. Além de um ocupar um cargo nobre, eles
participavam ativamente das decisões políticas, uma vez que eram conselheiros
de seus soberanos. No caso especial de Alcuíno, consideramos que ele contribuiu
significativamente para a construção daquela nova sociedade, porque, ao educar
113
o rei ou o príncipe, ele educava também o povo que estava sob o comando desse
governante.
Como afirmamos na introdução, estudar o passado sem considerar o
presente parece-nos uma ação destituída de sentido, a porque os
conhecimentos que adquirimos sobre outras sociedades e outras épocas nos
induzem inevitavelmente a compará-los aos nossos dias. Com relação à formação
de governantes, desde a Antiguidade e Idade Média até a época contemporânea,
Foucault considera:
Certamente, na Idade Média ou na antiguidade greco-romana,
sempre existiram tratados que se apresentavam como conselhos
ao príncipe quanto ao modo de se comportar, de exercer o poder,
de ser aceito e respeitado pelos súditos; conselhos para amar e
obedecer a Deus, introduzir na cidade dos homens a lei de Deus,
etc. Mas, a partir do século XVI até o final do século XVIII, vê-se
desenvolver uma série considerável de tratados que se apresentam
não mais como conselhos aos príncipes, nem ainda como ciência
da política, mas como arte de governar. De modo geral, o problema
do governo aparece no culo XVI com relação a questões
bastante diferentes e sob múltiplos aspectos: problema do governo
de si mesmo reatualizado, por exemplo, pelo retorno ao
estoicismo no século XVI; problema do governo das almas e das
condutas, tema da pastoral católica e protestante; problema do
governo das crianças, problemática central da pedagogia, que
aparece e se desenvolve no século XVI; enfim, problema do
governo dos Estados pelos pncipes. Como se governar, como ser
governado, como fazer para ser melhor governante possível, etc
(FOUCAULT, 1979, p. 277-278).
Foucault aponta que uma das principais questões que se apresentava aos
governantes no culo XVI era a do governo de si mesmo. Esta questão moral
motiva-nos a refletir sobre o período de Alcuíno, especialmente sobre as
instruções contidas em seu Livro a respeito das virtudes e dos vícios para o conde
Guido, cuja intenção era auxiliar o destinatário a conseguir o governo de si
mesmo, de forma a desenvolver as virtudes e evitar os vícios. Consideramos que
o manual medieval era essencialmente religioso, o que não condiz com a
realidade da época do autor. No entanto, é importante ponderar que os aspectos
educativos da religião, por meio da educação moral dos indivíduos, contribuíram
diretamente, comomencionamos, para a organização da sociedade Medieval.
114
Entendemos que o “problema do governo das almas e das condutas”,
mencionado por Foucault, relaciona-se diretamente ao do governo de si mesmo.
Se um governante não for capaz de dominar seus próprios instintos e inclinações
à luz da filosofia, seincapaz de governar a outrem. É por isso que, em suas
obras, Alcuíno apresenta a ética e a moral como virtudes fundamentais que
devem nortear as ações dos dirigentes: elas é que garantirão que os interesses
da sociedade sejam satisfeitos.
Difícil tarefa é discutir ética e moral no meio político em nossos dias. Aliás,
poucos dos políticos sabem o que significam estas palavras. O poder, que para
Carlos Magno era sinônimo de dever, em nossos dias significa apenas a
realização de projetos individuais que distantes se encontram de um compromisso
social. Mesmo que estejamos nos referindo a diferentes sociedades, os valores
que nos tornam humanos continuam o mesmos e ultrapassam eras históricas,
pelo simples fato de se referirem aos homens.
De nosso ponto de vista, as ações de como se governar, como ser
governado, como fazer para ser o melhor governante possível” estão
explicitamente evidenciadas nas propostas pedagógicas de Alcuíno para os
governantes. Todavia, na contemporaneidade, estas ações o são devidamente
consideradas, o que parece atestar a ausência de consciência social sobre a
importância da educação. Se o homem não é formado pelo processo educativo,
viverá passivamente em seu meio sem se encontrar. No que se refere aos
governantes, a frase de sabedoria popular “ninguém pode oferecer o que não
tem implica diretamente a necessidade de sua formação, de forma que eles
possam incentivar os outros à educação.
Alcuíno oferece uma importante lição aos educadores da atualidade: a
importância de ensinar reflexivamente. Se vivemos em uma sociedade sem
exercer a habilidade que nos faz humanos, precisamos nos perguntar que
sociedade é esta. Giroux
100
, em sua obra Os professores como intelectuais,
considera:
Ao encarar os professores como intelectuais, podemos elucidar a
importante idéia de que toda atividade humana envolve alguma
100
Henry Giroux é um autor do século XX que discute uma teoria de resistência sobre a pedagogia
e o currículo.
115
forma de pensamento. Nenhuma atividade, independente do quão
rotinizada possa se tornar pode ser abstraída do funcionamento da
mente em algum nível. Este ponto é crucial, pois argumentamos
que o uso da mente é uma parte geral de toda atividade humana,
nós dignificamos a capacidade humana de integrar o pensamento e
a prática, e assim destacamos a essência do que significa encarar
os professores como profissionais reflexivos. (GIROUX, 1997, p.
161)
Ao colocar esta discussão na ordem do dia, este autor nos induz a refletir
sobre sua importância. Ao enfatizar a necessidade de os intelectuais
desenvolverem o pensamento reflexivo, Giroux não apresenta nada de novo, uma
vez que, desde a Antiguidade, os mestres já insistiam nela.
Isto nos remete a uma conclusão: a reflexão é uma habilidade que se
adquire com o exercício e este é um ato educativo que independe de épocas
históricas. O homem continua homem e necessita ser educado como tal e, por
isso, enfatizamos a necessidade da formação do governante. Dependendo da
compreensão que este tem de educação, os homens que ele dirige serão
formados e educados, ou não.
116
REFERÊNCIAS
A FONTES PRIMÁRIAS
AGOSTINHO. De magistro. In: Os pensadores. São Paulo: Abril cultural, 1973.
ALCUÍNO. A respeito da natureza da alma. In: RIVAS, R. Alcuíno de York: Obras
Morales. Espanha: EUNSA, 2004.
________. Diálogo acerca da verdadeira filosofia. In: RIVAS, R. Alcuíno de York:
Obras Morales. Espanha: EUNSA, 2004.
________. DISPUTATIO DE RHETORICA ET DE VIRTUTIBUS SAPIENTISSIMI
REGIS KARLI ET ALBINI MAGISTRI. Disponível em
< http://www.thelatinlibrary.com/alcuin/rhetorica.shtml
>. Acesso em: 20 de Maio de
2007. Tradutor: Aluysio Favaro.
________. Livro acerca das virtudes e dos vícios para o conde Guido. In: RIVAS,
R. Alcuíno de York: Obras Morales. Espanha: EUNSA, 2004.
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. In: Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural,
1973.
___________
Política. Brasília: UNB, 1985.
BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada. Tradução: João Ferreira de Almeida. 43. ed.
Rio de Janeiro. Imprensa bíblica Brasileira, 1980.
BOÉCIO. A Consolação da filosofia. São Paulo. Martins fontes, 1998.
CÍCERO. De L’Orateur (De Oratore). Trad. François Rechard. Paris, Libraire
Garnier frères s/d
CASSIODORO, Sobre os copistas e a recordação da ortografia - Cap. 30. In:
LAUAND (Trad.) Cassiodoro e as Institutiones: o Trabalho dos Copistas.
Disponível em < www.hottopos.com>. Acesso em: 26 de Junho de 2007.
DIÁLOGO ENTRE PEPINO E ALCUÍNO. In: LAUAND. Educação, teatro e
matemática medievais. São Paulo: Perspectiva, 1986.
117
OS PRÉ- SOCRÁTICOS. In: Os pensadores. São Paulo: Nova cultural, 1996.
PLATÃO. A República . São Paulo: cultura brasileira, s/d.
________. A República. Livro VI. Brasília: Ed. UNB, 1985.
________. Diálogos: Sofistas. In. Os pensadores. São Paulo: Abril cultura, 1973.
________. Diálogos: Fedon. Sofistas. Político. Rio de Janeiro: Globo, 1961
REGRA de São Bento. Petrópolis: vozes, 1993.
SEVILHA, I. Livro I, capítulo 29 – a Etimologia. In: Lauand (Org.). Cultura e
educação na Idade Média: textos do século V ao XIII. São Paulo: Martins Fontes,
1998.
XENOFONTE. A Educação de Ciro. São Paulo: Cultrix (197?)
B FONTES SECUNDÁRIAS
ABBRAGNANO, N. Dicionário de filosofia. Trad. Alfredo Bosi. 4 ed. São Paulo:
Martins fontes, 2000
BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoiévski. Trad. Paulo Bezerra 2ed. Rio
de Janeiro: forense universitaria, 1997.
BAKER, G. Charlemagne. Créateur d’empire. Payot, Paris 1936
BOVOLIM, Zenaide, Z. C. Polido. A proposta educacional de Rosvita de
Gandersheim no século X. 165 f. Dissertação (Mestrado em Educação)
Universidade Estadual de Maringá. Maringá, 2005.
BLOCH, M. Apologia da História, ou, Ofício de historiador. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2001.
BRUN, J. O Neoplatonismo. Trad. JoFreire Colaço. Rio de Janeiro: Biblioteca
básica de filosofia, 1988.
118
CAMBI, F. História da pedagogia. São Paulo: UNESP, 1999.
DURKHEIM, E. A Evolução Pedagógica. Porto Alegre: Artmed, 2002.
DAVIS, J. Dicionário da bíblia. Rio de Janeiro: JUERP, 1996.
DUCKET, E. Alcuin, friend of Charlemagne. New York: The Macmillan Company.
1951.
FAVIER, J. Carlos Magno. São Paulo, Estação Liberdade, 2004.
FOUCAULT. M. Microfísica do poder. Org. e trad. De Roberto Machado. Rio de
Janeiro. Edições Graal, 1979)
FRIAÇA, A. A unidade do saber nos céus. Astronomia medieval. In MONGELLI, L.
(Coord.) Trivium & Quadrivium: as artes liberais na Idade Média. Cotia: Íbis, 1999.
GILSON, E. A filosofia na Idade Média. Martins Fontes: São Paulo, 1998.
GIROUX, H. Os professores como intelectuais: rumo a uma pedagogia crítica da
aprendizagem. Trad. Daniel Bueno. Porto Alegre: ARTMED, 1997.
GUIZOT, François. O estado da sociedade religiosa no culo V. Org. Terezinha
Oliveira. Apontamentos nº 77 Janeiro 1999.
HALPHEN, L. Carlos Magno e o Império Carolíngio. Lisboa, 1970.
HUIZINGA, J. Homo ludens. O jogo como elemento da cultura. Trad. João Paulo
Monteiro. São Paulo, Perspectiva, 1980.
JAEGER. Paidéia. A formação do Homem grego . trad. Artur Parreira. São Paulo,
Martins Fontes, 1995.
KANT, I. Sobre a pedagogia. Trad. Francisco Fontanella. 4 ed. UNIMEP.
Piracicaba, 2004.
LAUAND, Luiz Jean. Educação Teatro e Matemática Medievais; São Paulo.
Perspectiva. Editora da Universidade de São Paulo, 1986.
119
___(Org.). Cultura e educação na Idade Média: textos do século V ao XIII.
São Paulo: Martins Fontes, 1998.
LE GOFF. A civilização do Ocidente medieval. Vol. I,. Imprensa universitária.
Editorial estampa. 1983, Lisboa.
LIBERA, A. A filosofia medieval. Edições Loyola. São Paulo, 1998.
MATTER, A. Alcuin’s Question-and-answer texts. Rivista di storia della filosofia. n.
4, 1990 (p. 645 – 656).
MENDOZA, C. El concepto y la clasificación de la ciencia en el medioevo (ss. VI-
XV) In: DE BONI (Org). A ciência e a organização dos saberes na Idade Média.
Porto Alegre: Edipucrs, 2000.
OLIVEIRA, T. (org.) François Guizot: O estado da sociedade religiosa no culo
V. Apontamentos nº 77: Janeiro, 1999.
__________. O papel dos Mosteiros na preservação do ensino e da vida na
Primeira Idade Média. VI ANPEDSUL, 2006.
PEREIRA, Silvina Rosa. Da épica cavalheiresca a Os Lusíadas Reflexões sobre a
literatura e a história. 1994. Tese (Doutorado em letras) Faculdade de Ciências
e Letras, Universidade Julio de Mesquita Filho, Assis.
RIBEIRO, D. A sacralização do poder temporal. Gregório Magno e Isidoro de
Sevilha. In SOUZA, J. O reino e o sacerdócio. O pensamento político na Alta
Idade Média. Porto Alegre. Edipucrs, 1995.
RIVAS, R. Alcuíno de York: Obras morales. Introdução, tradução e notas.
Espanha: (EUNSA), 2004.
SCHLESINGER. H & PORTO. H. Dicionário enciclopédico das religiões .
Petropolis: Vozes, 1995.
SOUZA, J. O reino e o sacerdócio. O pensamento político na Alta Idade Média.
Porto Alegre: Edipucrs, 1995.
STRAYER, J, As origens Medievais do Estado Moderno. Lisboa: Gradiva, s/d.
120
ULLMANN, R. A Universidade Medieval. 2 ed. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000.
VIGOTSKI, L. A formação social da mente. 6 ed. São Paulo: Martins Fontes,
1998.
VITORETTI, Regiani Aparecida. Carlos Magno e as propostas de reforma social e
educacional (final do século VIII e início do século IX). Dissertação (Mestrado em
Educação) – Universidade Estadual de Maringá. Maringá, 2004.
REFERÊNCIAS ELETRÔNICAS
AGUILAR, R., Estudos em Eclesiastes.
Disponível em:
www.cpb.com.br/htdocs/periodicos/licoes/adultos/2007/arqcom/doc/com112007.d
oc -Acesso em: 05/02/2008
DISPUTATIO DE RHETORICA ET DE VIRTUTIBUS SAPIENTISSIMI REGIS
KARLI ET ALBINI MAGISTRI. Disponível em
< http://www.thelatinlibrary.com/alcuin/rhetorica.shtml>. Acesso em: 20 de Maio de
2007. Tradutor: Aluysio Favaro.
CASSIODORO, Sobre os copistas e a recordação da ortografia - Cap. 30. In:
LAUAND (Trad.) Cassiodoro e as Institutiones: o Trabalho dos Copistas.
Disponível em: http://www.hottopos.com/videtur31/jean-cassiodoro.htm Acesso
em: 26 de Junho de 2007.
COSTA, R. História e Memória: a importância da preservação e da recordação do
passado. Disponível em:
http://www.indiciarismo.com/revista/Edicao%202/Ricardo%20Costa_artigo.pdf.
Acesso em 27/02/08
121
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo