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LUANA FERREIRA DE FREITAS
TRADUÇÃO COMENTADA DE
A SENTIMENTAL JOURNEY
DE LAURENCE STERNE
Florianópolis
2007
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
CENTRO DE COMUNICAÇÃO E EXPRESSÃO
CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA
TRADUÇÃO COMENTADA DE
A SENTIMENTAL JOURNEY
DE LAURENCE STERNE
Luana Ferreira de Freitas
Orientador: Prof. Dr. Walter Carlos Costa
Co-orientador: Prof. Dr. John Gledson
Tese submetida como parte dos
requisitos para a obtenção do
título de Doutor pelo Programa de
Pós-Graduação em Literatura da
Universidade Federal de Santa Catarina.
Área de Concentração: Teoria Literária.
Florianópolis
2007
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À alegre Julia.
AGRADECIMENTOS
Ao CNPq – Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico – por possibilitar esta pesquisa;
Ao meu orientador, Prof. Dr. Walter Carlos Costa;
Ao meu co-orientador, Prof. Dr. John Gledson;
Ao programa de Pós-Graduação em literatura e à Elba em especial;
À minha família;
Aos meus amigos, em especial Alessandra, Juliet, Juliana e Júlio.
RESUMO
Este trabalho parte da tradução de A Sentimental Journey, de Laurence Sterne, para
fazer um exame de questões ligadas à narrativa quando confrontadas com a
necessidade da tradução. Para tal, serão consideradas a oscilação entre o sentimental
e o humor e a fronteira sutil que os separa ao longo do romance, a ironia, a paródia,
bem como as estratégias adotadas na tradução proposta e em outras já publicadas no
Brasil.
Palavras-chave: Sterne, narrativa, tradução, sentimental, humor, ironia.
ABSTRACT
This study will look at the translation of Laurence Sterne’s A Sentimental Journey and
examine certain translational issues arising from the narrative. These include the
oscillation between sentimental and humorous elements and the fine line that
separates them throughout the novel, use of irony, parody, and also translational
strategies adopted by the author, and by others in previous translations of the work
in Brazil.
Key words: Sterne, narrative, translation, sentimental, humour, irony.
SUMÁRIO
RESUMO
INTRODUÇÃO.........................................................................................................
1
CAPÍTULO 1 -
A SENTIMENTAL JOURNEY
EM SEU CONTEXTO...............
6
1.1 STERNE EM SEU CONTEXTO....................................................................................
8
1.2
A
S
ENTIMENTAL
J
OURNEY
EM SEU CONTEXTO......................................................
10
1.3 A LITERATURA SENTIMENTAL...............................................................................
14
1.3.1 STERNE E A LITERATURA SENTIMENTAL...........................................................
17
1.4
A
S
ENTIMENTAL JOURNEY
E A CRÍTICA CONTEMPORÂNEA ..................................
30
1.5
A
S
ENTIMENTAL JOURNEY
E A TRADUÇÃO............................................................
34
1.5.1
A
S
ENTIMENTAL
J
OURNEY
EM PORTUGUÊS......................................................
41
CAPÍTULO 2 - ASPECTOS ESTILÍSTICOS...........................................................
45
2.1 ESTILO E LITERATURA...........................................................................................
46
2.1.1 ESTILO E TRADUÇÃO LITERÁRIA.......................................................................
51
2.2 A PARÓDIA EM
A
S
ENTIMENTAL
J
OURNEY
........
.....................................................
55
2.3 IRONIA....................................................................................................................
63
2.3.1 A IRONIA EM
A
S
ENTIMENTAL
J
OURNEY
..........................................................
65
2.4
T
HOU
...................................................................................................... ...............
72
2.4.1
T
HOU
EM
A
S
ENTIMENTAL
J
OURNEY
..............................................................
74
CAPÍTULO 3 - A TRADUÇÃO DE
A SENTIMENTAL JOURNEY
.....................
83
3.1. A ESTRUTURA DE
A
S
ENTIMENTAL
J
OURNEY
...............
........................................
89
3.2. NOTAS...................................................................................................................
95
3.2.1 NOTAS EM
A
S
ENTIMENTAL
J
OURNEY
..............................................................
99
3.2.1.1 OCORRÊNCIAS EM FRANCÊS EM
A
S
ENTIMENTAL
J
OURNEY
......
................
99
3.2.1.1.1 TRECHOS EM FRANCÊS E O AUTOR........................................................
100
3.2.1.1.2 TRECHOS EM FRANCÊS E O TRADUTOR.................................................
103
3.2.2 NOTAS DE TRADUÇÃO EM
A
S
ENTIMENTAL
J
OURNEY
.......................................
105
3.3. INTERTEXTUALIDADE...........................................................................................
108
3.3.1 INTERTEXTUALIDADE EM
A
S
ENTIMENTAL
J
OURNEY
......................................
111
3.3.1.1
T
RAVELS THROUGH
F
RANCE AND
I
TALY
EM
A
S
ENTIMENTAL
J
OURNEY
....
112
3.3.1.2 A BÍBLIA EM
A
S
ENTIMENTAL
J
OURNEY
....................................................
116
CONCLUSÃO............................................................................................................
122
ANEXO – TRADUÇÃO.............................................................................................
126
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.......................................................................
336
INTRODUÇÃO
Esta tese objetiva fazer uma análise da tradução de A Sentimental Journey
through France and Italy, de Laurence Sterne, lançado em 1768, na Inglaterra, e discutir
as idiossincrasias do texto e as opções de tradução.
A edição de A Sentimental Journey usada para a minha tradução é a de 2001, da
Penguin. Optei por esta edição por ter sido fundamentada na primeira edição do
romance, bem como, de acordo com Goring, que assina a introdução e as notas da
edição, pela pretensão de “reproduce as far as possible the often idiosyncratic nature
of the original” e acrescenta: “Sterne died on 18 March 1768, and there is no firm
evidence that he revised the text for the second edition of 29 March 1768” (2001, p.
xxxvi). Priorizei, dessa maneira, aproximar o leitor do texto que Sterne idealizou
originalmente, sem interferências posteriores, com as suas singularidades.
Este trabalho fundamenta-se na relação de complementaridade que acredito
haver entre tradução e crítica literária. Rose, ao defender a tradução literária como
uma forma de crítica literária, explica: “What translating does is to help us get inside
literature. (...) We can do this directly, by putting into our own language the
literature we are studying, or indirectly, by comparing translations” (1997, p. 13). E,
dessa maneira, decidi-me por conduzir esta pesquisa partindo da tradução do
romance de Sterne e então cotejando a minha tradução com as outras produzidas no
Brasil.
A opção por Sterne e por este romance deu-se em virtude da sua
complexidade, que se traduz sobretudo no emprego do mais puro sentimentalismo
1
,
de que Sterne em geral é considerado o principal romancista
2
, alternado com o
exagero deste mesmo sentimentalismo. Segundo Benedict,
1
Ver capítulo 1, seção 1.3.
2
De acordo com Barbara M. Benedict, especialista em prosa inglesa do século XVIII.
Both The Life and Opinions of Tristram Shandy (1759-67) and A
Sentimental Journey (1768) exploit the themes of compassion and
benevolence, sensation and impression, that characterize
sentimental philosophy. Both also balance on the delicate line
between parody and pathos. Ostensibly, rules are mocked and
feelings celebrated (1994, p. 69).
Os desafios impostos à tradução, como a ironia manifesta no texto, o
distanciamento temporal, a complexidade lingüística e as divergências
interpretativas, bem como o uso idiossincrático de capitulares e pontuação,
contribuiram igualmente para a escolha de A Sentimental Journey como objeto deste
estudo, não obstante já existirem traduções em língua portuguesa. Os tradutores
3
de
Sterne lidaram com essas particularidades do texto mediante estratégias diversas. Há
traduções que optaram por um texto mais domesticado, adaptando pontuação,
reformulando períodos, parágrafos e divisão de capítulos, aproximando o texto do
público alvo, assim como há casos em que se priorizou uma tradução mais próxima
do original, realçando algumas das singularidades do texto de partida.
Por que optar pela tradução e análise de um texto já traduzido para o
português? Ricoeur observa que “Il faut peut-être même dire que c’est dans la
retraduction qu’on observe le mieux la pulsion de traduction entretenue par
l’insatisfaction à l’égard des traductions existantes” (2004, p. 15). Pym foi mais
assertivo: “retranslation strongly challenges that validity (of the previous
translation), introducing a marked negativity into the relationship at the same time
as it affirms the desire to bring a particular text closer” (1998, p. 83). Acrescento às
razões alegadas por Ricoeur e Pym a possibilidade de oferecer ao leitor mais um
matiz da viagem sentimental de Sterne, que, somado aos outros já apresentados, dá
uma idéia ainda mais próxima do texto fonte, porque complementares entre si.
A tradução, assim como a crítica, renova o texto literário; os leitores
idealmente mais atentos de literatura, o tradutor e o crítico, conferem um novo
fôlego à obra, ainda que o objeto seja somente tangenciado, constituindo uma
3
Ver Capítulo 1 para a apresentação das traduções e dos tradutores de Sterne.
2
tentativa de abarcar esse todo jamais abarcável; daí a validade de novas traduções de
textos literários.
A atividade tradutória encerra um paradoxo na medida em que busca
suplantar o texto de partida na língua de chegada e se pretende legítima, autônoma e
atemporal, sem, contudo, dar conta daquela totalidade. De acordo com Benjamin, “a
tradução, embora não possa pretender que suas obras perdurem – e nisso
diferencia-se da arte – não nega seu direcionamento a um estágio último, definitivo e
decisivo de toda estrutura de linguagem” (2001, p. 201). Há casos de traduções que
alcançaram estatuto de original, como a Septuaginta, porém Borges nos advertiu da
inesgotabilidade do texto quando disse “el concepto de texto definitivo no
corresponde sino a la religión o al cansancio” (1996, p. 239). É, pois, pelo caráter
inesgotável do objeto literário e pela possibilidade de oferecer uma outra viagem
sentimental que esse trabalho se justifica.
“Manuale del sentimento del patetico, del viaggio nell’io, oppure
singolarissimo ‘elogio’ della gioia, del gioco, della fuga dell’io nel mondo?”
(Bulgheroni, 1998, p. xix). É justamente na complexidade desta pergunta, ou na
oscilação ou na ambigüidade entre o patético, o sentimental e o irônico, que A
Sentimental Journey se impõe como romance tão fascinante quanto desafiador para a
tradução. Algumas críticas manifestam a preocupação se Sterne fez, de fato, um
relato sentimental da sua viagem, ou se ironiza o sentimental, muito em voga então.
No entanto, de acordo com Goring, “it is because ambiguity is so fundamental to
Sterne’s method that such questions will continue to be asked” (2001, p. xxiv). É
nesta ambigüidade mesma que a tradução aqui proposta tenta investir, buscando,
sempre que possível, manter a tensão e não pretender resolver as questões
levantadas pela crítica.
Aristóteles defendia a superioridade da literatura se comparada à história
porque esta se limita à narração de fatos ocorridos, inexoráveis; enquanto que a
outra lida com a possibilidade, com o que pode acontecer, “a poesia é algo de mais
filosófico e mais sério do que a história, pois refere aquela principalmente o
universal, e esta o particular” (1987, p. 209). A literatura é, pois, um sistema de
3
símbolos. É precisamente nessa possibilidade ou nesse sistema que a tradução por
vezes se perde, quando pretende desfazer de alguma forma o nó do texto, correndo
o risco de gerar uma interpretação enviesada. Acredito que, idealmente, a tradução
literária deva tentar de alguma maneira manter esse nó, ela toca o texto em um
ponto determinado, de acordo com uma determinada leitura, sem, contudo,
pretender desvendá-lo.
Na minha tradução, não segui uma teoria específica de tradução por não
acreditar na produção de um texto verossímil enquadrado em um esquema
preconcebido de usos lingüísticos. Contudo, aproximei-me tanto quanto possível da
concepção de tradução que Berman expõe em La traduction et la lettre ou l’auberge du
lointain. Esta escolha deu-se pela análise pertinente que o autor faz da atividade
tradutória, sobretudo no que se refere à possibidade que a sua concepção apresenta
de retomar textos estrangeiros, proporcionando de fato o acesso do leitor ao novo.
Esta tese seguirá a seguinte estrutura: no Capítulo 1, contextualizo o universo
literário do século XVIII na Inglaterra, sobretudo a literatura sentimental, abordo a
inserção de Sterne naquele contexto e trato de A Sentimental Journey tanto em relação
à época quanto aos desdobramentos que teve na crítica e nas traduções. Na última
seção, faço um levantamento das traduções que o romance teve no Brasil e que
serão abordadas nos outros capítulos da tese.
No Capítulo 2, faço um exame dos aspectos estilísticos da narrativa de Sterne
e da questão da sua traduzibilidade. Para tal, parto de uma análise do emprego
intercambiado que o autor faz dos pronomes you e thou e faço um exame da ironia e
da paródia em A Sentimental Journey. A dificuldade de lidar com a ironia é que ela é
um recurso que depende do refinamento do público e da sua capacidade de
associação, ao passo que a paródia depende de um objeto anterior que o leitor deve
ser capaz de identificar. Estas dificuldades vêem-se ressaltadas, neste caso, pelo
deslocamento temporal e cultural do texto de partida.
E, por fim, no Capítulo 3, discuto as principais inquietações surgidas no
processo tradutório, suas dificuldades e possibilidades, bem como as estratégias
utilizadas na tradução. A discussão sobre o processo tradutório inicia-se com um
4
exame da estruturação não-canônica da narrativa proposta por Sterne e como as
diferentes traduções brasileiras lidaram com este aspecto. Em seguida, proponho
uma análise do emprego de notas dada a distância temporal e os recorrentes trechos
em francês no texto de partida e, por fim, discuto a intertextualidade no romance e
como a identificação ou o apagamento destas marcas repercutem na tradução.
5
CAPÍTULO 1
A SENTIMENTAL JOURNEY
EM SEU CONTEXTO
Neste capítulo, pretendo apresentar o contexto social e literário em que
Sterne escreveu A Sentimental Journey, partindo das razões para o prestígio de que o
gênero romance já gozava em meados do século XVIII. A partir desse panorama,
que não se pretende exaustivo, busco identificar correntes e tendências literárias de
então, em especial, a literatura sentimental e examinar a inserção do autor naquele
ambiente literário. Além disso, examinarei a repercussão do texto, sobretudo no que
diz respeito à crítica e à tradução.
É importante observar que a Inglaterra de meados do século XVIII já é um
estado industrial desenvolvido. Este processo de industrialização, que é resultado da
ascensão da burguesia desde o século XVII, causa um impacto na estrutura da
sociedade inglesa ao atrair para os centros urbanos uma grande quantidade de
habitantes de zonas rurais.
Os centros urbanos, Londres sobretudo, contam então com uma
considerável população de trabalhadores alfabetizados.
Literacy was increasingly common, for both men and women, in
the middling and lower orders of the population, although
substantial numbers of people, especially in rural areas,
remained illiterate. Literacy was higher in some regions of
Britain than others: highest in Southeast of England, and
(especially) London. (Hunter 1996, p. 20)
A maciça imigração para os centros urbanos aliada a um nível crescente de
alfabetização entre as classes mais pobres da população urbana gerou uma demanda
igualmente crescente de material impresso. Os jornais, por exemplo, “had sprung up
everywhere: by 1710, London boasted twelve newspapers; by 1750, some twenty-
6
four; and by 1790 there were thirteen morning, one evening, two bi-weekly, and
seven tri-weekly newspapers.” (Benedict. 2004, p. 10). A exemplo dos jornais, a
publicação de revistas segue um ritmo notável, entre elas destacam-se: The Idler,
Spectator, Gentleman’s Magazine, Monthly Review, Critical Review e Literary
Magazine. Estas revistas exibiam um conteúdo bastante variado, que incluía ensaios,
poesia, política e crítica literária.
Editores e livreiros perceberam que a literatura podia ser lucrativa e a
indústria editorial desenvolve-se e moderniza-se no século XVII e, sobretudo, no
XVIII, levando a uma sistematização do processo de produção e venda de livros.
Dessa maneira, “together, printers, publishers, booksellers, writers, readers,
and critics transformed literature in the eighteenth century from a rarified pleasure
tasted by an elite and leisured gentry into a ubiquitous consumer product.” (id., p. 4)
A literatura então, ao longo de todo o século XVIII, vai paulatinamente deixando de
ser privilégio de um número reduzido de ricos e letrados para se transformar em um
produto democrático, capaz de agradar do leitor mais sofisticado ao mais simples. É
esta convergência de industrialização, crescimento urbano e alfabetização que
permite a ascensão do romance.
A popularidade do romance no século XVIII está relacionada a essas
mudanças socioculturais. Em um primeiro momento, o romance atraía leitores
diferentes daqueles da literatura tradicional. O romance funcionava para os jovens
imigrantes recém-chegados ou para aqueles que planejavam ir a Londres como um
guia para a vida urbana e um manual de civilidade ou sofisticação.
Novels became, for tens of thousands of young men and
women in eighteenth-century England, guides to many practical
decisions about life (…) One reason that the social norms of
novels had such cultural power in the eighteenth century was
that they usually reflected the values of “modern” London life.
(Hunter, 1996 p. 23)
7
Os romances dirigiam-se a estes leitores, tratavam dos seus interesses. O
leitor reconhecia personagens e contexto, o romance buscava identificar leitor e
enredo, narrando histórias corriqueiras, contemporâneas. A verossimilhança,
característica do romance, garantia o seu êxito. O leitor reconhecia-se na ficção, que
priorizava o cotidiano, o particular e o individual.
For the novel, the ordinary and the specifically and concretely
experiential come in this new world of narrative to define the
absolute boundaries or limits of reality and by extension of
moral significance. (…) The novel tends to validate the
perspective of the newly conceptualized modern individual,
whose particularized and personalized view of the world is
explored. (Richetti. 1996, pp. 4-5)
Apesar da resistência inicial ao romance por parte de alguns intelectuais,
como Pope e Johnson, os escritores viram no gênero um meio de sobrevivência.
Muitos autores foram atraídos pela crescente popularidade da ficção realista e
tiraram proveito da situação. Mais tarde, de acordo com Hunter, escritores que
desejavam se dedicar a outros gêneros, como Fielding e Smollett, que se
interessavam por teatro, viam-se impelidos a escrever romances. E então “by 1750
the novel had become culturally significant enough to influence (and in many cases
determine) the careers of anyone, male or female, interested in writing.” (Hunter.
1996, p. 28). Este prestígio adquirido pelo romance vai refletir-se no alcance do seu
público: “The characteristic feature of novel readership was its social range, not its
confinement to a particular class or group.” (id. p. 19)
A partir de então pode-se falar em uma profissionalização do escritor. A
Inglaterra de meados do século XVIII já tem um mercado literário sofisticado e
estabelecido e é nesse cenário que Sterne escreve A Sentimental Journey.
8
1.1 STERNE EM SEU CONTEXTO
O pastor Laurence Sterne teve sua primeira experiência como escritor por
volta dos trinta anos como jornalista político. Esta experiência pareceu-lhe
desestimulante e, por conseguinte, não resistiu muito tempo. A partir de então,
escreveu um poema, “The Unknown World”, publicado na Gentleman’s Magazine,
quase que totalmente ignorado, alguns sermões, dois dos quais publicados, que
passaram igualmente despercebidos e, em janeiro de 1759, publicou A Political
Romance, que, por abordar a ganância de alguns membros do clero, teve todos os
seus exemplares recém-publicados incinerados por ordem do arcebispo de York
4
.
Até então Sterne tivera pouco sucesso em suas incursões literárias. Contudo, em
dezembro do mesmo ano, os dois primeiros volumes de The Life and Opinions of
Tristram Shandy, Gentleman são publicados em York, em uma edição limitada de cerca
de 500 cópias e, em dois meses, Sterne já é uma celebridade. O sucesso tão esperado
por Sterne não foi fortuito,
for virtually a year before the first instalment of Tristram Shandy
went on sale Sterne had been writing and rewriting his work as
well as considering, in finely calculated commercial detail, what
profit it might bring and how best it might be marketed (Ross.
2001, p. 5)
Sterne, aproveitando a fama, publica dois volumes de sermões, The Sermons of
Mr. Yorick, em maio de 1760, e outros dois volumes em janeiro de 1766. Os
volumes de Tristram Shandy aparecem de maneira mais ou menos regular até o
último, o IX, em janeiro de 1767. Neste interregno de sete anos, entre o
reconhecimento e o lançamento do último volume de Tristram Shandy, Sterne viaja
duas vezes para o continente, visita a França e a Itália, por períodos mais ou menos
longos, a primeira com duração de quase dois anos e a segunda de oito meses. A
4
Ver Ross, Ian C. Laurence Sterne: A Life. Oxford. Oxford University Press, 2001.
9
partir destas viagens Sterne coleta material para escrever passagens de Tristram
Shandy e A Sentimental Journey.
Em vinte e sete de fevereiro de 1768, Sterne, já muito doente, publica os dois
primeiros volumes de A Sentimental Journey. Duas semanas mais tarde, em dezoito de
março de 1768, Sterne morre, em Londres, depois de apenas oito anos de fama,
ainda que nem sempre em um sentido positivo.
1.2
A SENTIMENTAL JOURNEY
EM SEU CONTEXTO
Em A Sentimental Journey, o patético, o irônico, o erótico e o cômico
convivem em uma narrativa cuidadosamente pensada. Entwistle, ao falar de Sterne
afirma que ele
Em Tristram Shandy e A Sentimental Journey é um mestre
consumado da narração caprichosa. Obriga o estilo e o curso da
narrativa a obedecer a suas ásperas fantasias e a oferecer saídas
para seu humor e seu sentimentalismo, aquele rabelaisiano e
lascivo ao mesmo tempo, este simultaneamente patético e
repugnante
5
. (1955, p. 124)
Refere-se com freqüência a Sterne pela sua originalidade. Virginia Woolf, por
exemplo, escreveu
It needed a strong dose of the assurance of middle age and its
indifference to censure to run such risks of shocking the
lettered by the unconventionality of one’s style, and the
respectable by the irregularity of one’s morals. But the risk was
run and the success was prodigious. (1963, p. v)
5
Tradução da versão em espanhol: en Tristram Shandy y A Sentimental Journey es un maestro consumado de la
narración caprichosa. Obliga al estilo y al curso de la narración a obedecer a sus díscolas fantasías y a ofrecer
salidas a su humor y su sentimentalismo, aquél rabelesiano y salaz al mismo tiempo, y éste patético y a la vez
asqueroso.
10
Mas como se dá esta originalidade? Em que Sterne é original? Faz-se, em geral,
quando se trata de Sterne, alusões à ironia, aos episódios que dão forma à narrativa,
ao patético, ou sentimental, e à mediação autoral. Mas até que ponto estes elementos
eram, de fato, originais?
É preciso, antes de tentar responder a estas perguntas, entender que este
caráter inovador não surgiu do nada; ele deve ser compreendido no contexto
literário em que Sterne estava inserido.
Defoe construiu Moll Flanders (1722) e depois Roxana (1724) a partir de
episódios. Richardson, pouco mais tarde, em Clarissa (1747), tratou do sentimental.
É importante ressaltar neste ponto que havia na Europa uma forma narrativa, o
romance
6
, ou narrativa romanesca, que se desenvolveu no século XII e que “depicted
chivalry and the rules of ‘courtly’ life rather than the sublime elements which were
so much a part of the epic tradition” (Cobley, 2001. p. 74). Assim, pode-se dizer que
a literatura sentimental já existia; contudo, era vista como algo menor. A
originalidade de Richardson está justamente em ter conciliado o sentimental do
romance com uma narrativa mais sofisticada.
Fielding, por outro lado, esforçou-se por se distanciar do romance. O autor,
lançando mão da ironia, prioriza um tipo de realismo, que acaba por inaugurar uma
forma de narrativa em que “authorial mediation is noticeably intrusive” (Fowler,
1987. p. 194). Smollett, contemporâneo de Sterne, que fez alusão ao seu mau humor
em A Sentimental Journey
7
, retoma a ironia de Fielding e o esquema de construção em
episódios de Defoe nas suas narrativas de viagem.
Sterne recupera alguns procedimentos e a temática destes seus antecessores,
sem, contudo, deixar de ser original. Esta originalidade está, sobretudo, na
extrapolação da mediação autoral de Fielding e no tom ambíguo da sua narrativa,
que oscila entre o sentimentalismo e a paródia do sentimentalismo.
6 Entendido aqui comparado a novel.
7 Sterne refere-se a Smollett como Smelfungus. Ver página 172.
11
Sterne ressuscita Yorick, personagem de Tristram Shandy, morto no capítulo
XII do volume I, lançado em 1759, com cujo nome ele assina The Sermons of Mr.
Yorick, em 1760, volumes I e II, e em 1766, volumes III e IV. Em 1768, publica os
dois primeiros volumes de A Sentimental Journey sob o mesmo pseudônimo. Yorick,
em Tristram Shandy, é pastor e descende diretamente do bufão shakespeariano de
Hamlet
8
. Esta combinação de religião e comicidade, na figura do “laughing cleric”
(Goring, 2001, p. xvi), parecia agradar a Sterne que gostava de ser confundido com
Yorick
9
.
Sterne já assinara os seus sermões com o mesmo nome, o que era de
conhecimento público, e isto frustrava previamente qualquer expectativa de uma
autobiografia propriamente dita. O fato de Sterne escrever uma ficção com traços
biográficos, porque fundamentada na sua experiência de viagem, e, além disso,
lançar mão de um autor fictício inaugura aquela sua extrapolação da mediação
autoral e parece derivar de uma necessidade extremada de aproximação com o real.
Esta aproximação com o real manifesta-se na visão de mundo e nas
experiências relatadas pelo autor-narrador, Yorick. Ainda que a primeira reação ao
texto seja de frustração pela constante interrupção da narrativa, uma leitura mais
atenta revela um uso regular e consciente de um procedimento realista de criação,
em que o fluxo de pensamento de Yorick dita a ordem segundo a qual ele apresenta
o romance. Este ordenamento se dá a partir de uma dinâmica subjetiva,
introspectiva, que redimensiona o papel autoral.
Para atingir o propósito de representação realista da experiência individual,
Sterne lançou mão de um método que priorizava a digressão
10
e que, por
conseguinte, ignorava qualquer imposição cronológica. Este método empresta um
ritmo próprio à narrativa, forçando-a a um sem-número de interrupções e a um
aparente contínuo reordenamento, o que explica, em parte, a expressiva quantidade
de capítulos com o mesmo título, por vezes, intercalados com outros de títulos
diferentes.
8
Ver Tristram Shandy, volume I, página 23.
9
Ver introdução de Paul Goring de A Sentimental Journey.
10
Em A Tale of a Tub, de 1704, Jonathan Swift levara a digressão ao extremo, ao nível estrutural do romance.
12
A digressão remete a uma discrepância entre o tempo interior, ou subjetivo, e
o exterior ou objetivo, que, assim, é distendido. Dubois, ao definir a digressão
afirma que “Est-elle le fait de l’auteur et n’interrompt-elle la continuité du récit que
pour tourner vers le lecteur l’instance énonciative” (p. 179). Ainda de acordo com o
autor, a afirmação repentina da relação narrador-leitor em detrimento da narrador-
narrativa indica um desvio do tempo.
Um dos aspectos mais intrigantes destas digressões é uma suposta
negociação com o leitor, como no seguinte exemplo: “As I have told this to please
the reader, I beg he will allow me to relate another out of its order, to please myself
– the two stories reflect light upon each other, – and ’tis a pity they should be
parted.” (p. 258) Em outro trecho, o narrador pede desculpas por citar um episódio
que não tem relação com o enredo: “But this is nothing to my travels – So I twice –
twice beg pardon for it.” (p. 272) Observa-se a partir destes dois fragmentos o
alcance das digressões em A Sentimental Journey e a intervenção do autor-narrador:
eles refletem a citada extrapolação da mediação autoral, que nos parece familiar dada
a presença de traços de Sterne na escrita de Machado
11
, e que, com freqüência,
lembra o leitor do caráter ficcional do que está lendo.
O narrador subverte a ordem cronólogica e, com alguma freqüência, a ordem
dos acontecimentos não coincide com a ordem estabelecida pelo narrador ao contá-
los. É interessante observar como o narrador classifica eventos, a importância de
cada um deles e o momento apropriado de apresentá-los ao leitor, como no excerto
destacado: “I know the reason. It is time the reader should know it, for in the order
of things in which it happened, it was omitted; not that it was out of my head; but
that had I told it then, it might have been forgot now – and now is the time I want
it.” (p. 236) Assim, o tempo narrativo interrompe o tempo da ação e o leitor se vê
preso aos caprichos do narrador, como, por exemplo, quando o narrador
interrompe a ação e se dirige a Eugenius
12
, seu amigo: “And here, I know, Eugenius,
11
A relação entre Sterne e Machado foi vista, por exemplo, por Antônio Cândido em À roda do quarto e da vida
e por Sergio Paulo Rouanet em Tempo e espaço na forma shandiana: Sterne e Machado de Assis.
12
Personagem de Tristram Shandy e amigo de Yorick.
13
thou wilt smile at the remembrance of a short dialogue which pass’d betwixt us the
moment I was going to set out – I must tell it here” (p. 240).
A subjetividade extremada do narrador reflete-se igualmente no paradoxo
entre a expectativa gerada pelo título, um suposto relato de viagem, e o enredo, que
prioriza a vida mesma, com todos os encontros e desencontros, paixões, pulsões,
tristezas, arrependimentos e pequenas alegrias. Inversamente ao que se espera de um
relato de viagem, o narrador afirma que
I have not seen the Palais royal – nor the Luxembourg – nor the
Façade of the Louvre – nor have attempted to swell the
catalogues we have of pictures, statues, and churches – I
conceive every fair being as a temple, and would rather enter in,
and see the original drawings and loose sketches hung up in it,
than the transfiguration of Raphael itself. (p. 264)
Quando, à página 13, o narrador se classifica como “sentimental traveller”, o leitor
já tem uma expectativa da subjetividade que permeará a narrativa, o que se confirma
com a notável ausência de alusões a lugares meramente turísticos. E quando o
narrador ensaia uma descrição, ao partir de Paris e atravessar uma bela região, ele,
mais uma vez, interrompe o curso e volta ao que lhe interessa:
I never felt what the distress of plenty was in any one shape till
now – to travel it through the Bourbonnois, the sweetest part of
France – in the hey-day of the vintage (…) Just heaven! – it
would fill up twenty volumes – and alas! I have but a few small
pages left of this to croud it into – and half of these must be
taken up with the poor Maria my friend, Mr. Shandy, met with
near Moulines. (p. 310)
A suspensão e o descompasso em A Sentimental Journey fazem parte de um
esquema maior que reflete em Sterne a lucidez e a consciência no uso da língua. E
se, em um primeiro momento, tem-se a impressão de desalinho, é importante
observar que a irregularidade em Sterne é calculada e que tem como fim um efeito
estético.
14
1.3 A LITERATURA SENTIMENTAL
A literatura sentimental surge na Inglaterra em meados do século XVIII e
está diretamente relacionada à emergência do romance como gênero. Apesar de
haver registro do uso da palavra sentiment em língua inglesa desde meados do século
XIV
13
, a palavra sentimental tem seu primeiro registro em 1749
14
, na muito aludida
carta de Lady Bradshaigh a Samuel Richardson em que ela pergunta qual o
significado do adjetivo tão usado então, que se aplicava a quase tudo e que resistia à
definição
15
. As derivadas sentimentality, sentimentalist e sentimentalise surgem, ainda de
acordo o Webster’s, entre 1760 e 1800, o que sinaliza a centralidade do conceito no
contexto em que Sterne escreveu A Sentimental Journey.
Um dos conceitos associados ao sentimentalismo é o da sensibilidade
[sensibility], que originalmente se referia à sensibilidade física ou ao tato e que passa,
a partir do começo do século XVIII, a indicar a sensibilidade das emoções e dos
sentimentos
16
. Na ficção, esta sensibilidade, que encerrava tanto refinamento e
distinção quanto fragilidade, tanto agudeza quanto aflição, caracterizava-se pelo
caráter pedagógico, visando produzir no leitor sentimentos de benevolência e
compaixão. De acordo com Mullan, “Sentimental texts appealed to the benevolent
instincts of a virtuous reader, who might be expected to suffer with those of whom
he or she read.” (1996, p. 238) Este efeito da literatura da sensibilidade produzido
no leitor dependia do seu grau de agudeza de espírito. Dessa maneira, percebe-se
que a estética da sensibilidade está associada à capacidade perceptiva e que exclui o
olhar trivial, chão.
13
Webster´s Encyclopedic Unabridged Dictionary of the English Language.
14
Oxford English Dictionary.
15
“What, in your opinion, is the meaning of the word sentimental, so much in vogue amongst the polite (…)
Everything clever and agreeable is comprehended in that word. (…) I am frequently astonished to hear that
such a one is a sentimental man; we were a sentimental party; I have been taking a sentimental walk.” Ver The
Correspondence of Samuel Richardson, ed. Anna Laetitia Barbauld, 6 vols. Nova York: AMS Press, 1966, vol. IV, p.
282.
16
Ver capítulo “Sentimental Novels” de Mullan in The Eighteenth Century Novel ed. Richetti, J. Cambridge:
Cambridge University Press, 1996; Eighteenth-century Sensibility and the Novel de Van Sant. Cambridge:
Cambridge University Press, 1993 e capítulo “Sensibility” de Manning in English Literature 1740-1830 eds.
Keymer, T e Mee, J. Cambridge: Cambridge University Press, 2004.
15
Na literatura sentimental, a emoção é central. O discurso aqui não é capaz de
abarcar os sentimentos e a emoção transcende a língua de tal forma que o
sentimentalismo atinge sua plenitude quando não verbalizado, o que provoca, testa e
obriga uma participação constante do leitor. No texto, esta irredutibilidade da
emoção em palavras traduz-se em uma codificação paralela, como, por exemplo,
recursos gráficos e léxico sugerindo suspiros, hesitações, lágrimas ou silêncios. Os
silêncios são siginificativos na ficção sentimental porque suspendem a narrativa,
instigando e, às vezes, desnorteando o leitor.
Os recursos gráficos, como travessões, asteriscos ou páginas em branco,
eram prática corrente entre os autores do período e convidavam o leitor à
decifração. Tanto em Tristram Shandy quanto em A Sentimental Journey, Sterne fez uso
abundante deste expediente. Por exemplo, os capítulos 18 e 19 do volume IX de
Tristram Shandy são representados por duas páginas em branco e o capítulo 20
começa com sete linhas de asteriscos.
Há, no sentimentalismo, uma inclinação para o excesso – as emoções são
ressaltadas e as sensações inspiradas e exarcebadas muitas vezes por cenas
dramáticas de sofrimento, visando despertar compaixão no leitor. As ocorrências de
sofrimento na ficção sentimental relacionam-se, em geral, à indigência ou à
fragilidade psicológica dos personagens. Dessa maneira, para que o efeito patético
fosse alcançado, o episódio passaria amiúde pela exploração da diferença social,
econômica ou do distúrbio emocional, o que provocou reações quanto à natureza
condescendente da estratégia. Esta filantropia, que idealmente objetivava despertar a
benevolência no leitor, teve sua motivação questionada por funcionar mais como
uma autopromoção que como caridade em si, uma vez que atos isolados de
desprendimento material explorados nas narrativas sentimentais não sanam,
tampouco mitigam, a miséria da qual o autor se beneficiou.
A emoção, objeto e fundamento da literatura sentimental, dita o ritmo do
texto. A ficção sentimental é fragmentada e a narrativa segue uma ordem que é
subvertida em favor da autenticidade e espontaneidade da emoção. A narrativa,
assim, segue uma dinâmica subjetiva, o que se traduz em uma seqüência de cenas ou
16
quadros aparentemente desconexos. A estratégia de fragmentação da narrativa é
explorada para isolar e ressaltar sensações diferentes ou com motivações variadas
em um determinado momento, como se cada quadro representasse uma percepção
distinta.
Na seção seguinte, examino a forma como Sterne se insere neste contexto de
literatura sentimental e de que maneira o autor explora em A Sentimental Journey cada
um dos elementos citados.
1.3.1
STERNE E A LITERATURA SENTIMENTAL
Quando Sterne escreveu A Sentimental Journey, a literatura sentimental já
gozava de prestígio. Por exemplo, Clarissa de Samuel Richardson tinha sido
publicado em 1740. Este romance talvez seja um dos mais representativos do
sentimentalismo por compreender suas principais características e por ser um dos
livros mais citados em trabalhos e pesquisas sobre o período.
Segundo Mullan, “Sterne was acutely conscious of public taste and
sensitivity” (1996, p. 239). O nível de comprometimento do autor com a estética
vigente pode ser resumida em uma frase da correspondência de Sterne: “I write not
to be fed, but to be famous.” (1935, p. 90) Sterne estava atento para o que o público
queria e desejava ser reconhecido como escritor, o que acabou se concretizando:
“Sterne was one of the most celebrated figures of his day, famous not merely among
a literary elite but as a celebrity known even to those who never read a word he
wrote” (Ross. 2001, p. 5).
Uma leitura atenta do romance revela que o autor se serviu das características
da literatura sentimental à sua maneira. Como as opiniões sobre Tristram Shandy
eram conflitantes e giravam em torno da ambigüidade, havia uma expectativa de que
Sterne explorasse, mais uma vez, o mesmo recurso.
17
Uma das questões centrais do sentimentalismo é a relação que se estabeleceu
entre a capacidade de sensibilidade e de resposta diante da emoção e a aptidão
perceptiva. Na narrativa, a agudeza de percepção é explorada em personagens e
cenas, como no trecho destacado:
– What a large volume of adventures may be grasped within this
little span of life, by him who interests his heart in every thing,
and who, having eyes to see what time and chance are
perpetually holding out to him as he journeyeth on his way,
misses nothing he can fairly lay his hands on.– (p. 172)
A melancolia e a compaixão, marcas da produção do período, são exploradas
ao longo de toda a narrativa, mesmo quando não se sabe muito sobre o objeto,
como no fragmento que se segue, em que o narrador descreve o rosto de uma
mulher, a Madame de L***, visto pela primeira vez:
I fancied it wore the characters of a widow'd look, and in that
state of its declension, which had passed the two first
paroxysms of sorrow, and was quietly beginning to reconcile
itself to its loss – but a thousand other distresses might have
traced the same lines; I wish'd to know what they had been (p.
154)
Em A Sentimental Journey, o cenário, apesar da alusão a um relato de viagem
no título, é o mundo interior do narrador, Yorick. Isto já pode ser pressentido
quando Yorick, ao escrever seu prefácio, no sétimo capítulo, adverte: “[M]y travels
and observations will be altogether of a different cast from any of my fore-runners
(...)” (p. 144).
Nesta viagem sentimental que Yorick faz em si mesmo, ele trava uma relação
epistemológica com as coisas, na medida em que investiga ou experimenta o mundo
exterior, interiorizando experiências e lhes dando um novo significado. É por meio
desta estratégia de reordenação de acontecimentos de acordo com um valor
subjetivo e agudeza perceptiva que o narrador define o que, de fato, interessa. Esta
18
subordinação das coisas à apreciação perceptiva do narrador indica que “the
external event is important not in itself, but as it figures in the internal landscape”
(Van Sant. 1993, p. 99). Ao explorar esta consciência que o narrador tem de si
mesmo e da sua capacidade perceptiva, Sterne o afasta do mundo e revela a
personalidade autocentrada de Yorick, que impõe ao leitor suas sensações e a sua
perspicácia.
Dessa maneira, acontecimentos, independentemente da atenção que
geralmente lhes é atribuída em um relato de viagem, têm seus valores
redimensionados. O trajeto do narrador até a França, por exemplo, passaria
despercebido não fosse o incidente com o monge (pp. 132-162). Calais não merece
um comentário, é citada apenas como cenário do encontro entre Yorick e Madame
de L*** (pp. 140-170). Ocorrências comuns podem tomar proporções de grandes
acontecimentos e ocupar vários capítulos, não importando o tempo cronológico da
ação em si. A noção de tempo é redefinida e apenas o que chama a atenção do
narrador é digno de nota.
Há, por exemplo, dezessete capítulos que se passam em Calais, na chegada de
Yorick e, no entanto, o próprio narrador se surpreende: “Lord! said I, hearing the
town clock strike four, and recollecting that I had been little more than a single hour
in Calais –” (p. 172).
No trecho seguinte, Yorick, referindo-se à experiência relatada naquele
pouco tempo que esteve em Calais, anuncia a natureza do seu relato:
– If this won't turn out something – another will – no matter –
'tis an assay upon human nature – I get my labour for my pains
– 'tis enough – the pleasure of the experiment has kept my
senses, and the best part of my blood awake, and laid the gross
to sleep. (p. 172)
A fragmentação da narrativa, recurso corrente então, é também empregada
por Sterne. A recusa da linearidade é entendida como qualidade imprescindível na
expressão dos sentimentos, e, em favor da autenticidade da representação da
19
emoção, o autor lança mão de uma narrativa organizada em fragmentos, ou
episódios, que, em última análise, podem ser lidos isoladamente. O ritmo da
narrativa de A Sentimental Journey é o ritmo da vida mesma, natural, que, ainda que se
queira planejar, resiste à previsibilidade: a narrativa se impõe ao leitor como a vida a
Yorick.
A estratégia da fragmentação visa isolar e portanto ressaltar momentos, que,
na reorganização do narrador-personagem, mostraram-se relevantes e “whose
significance an unsentimental narrative would never consider” (Mullan. 1996, p.
241). Esta estratégia não apenas é apropriada por Sterne, como também é
extrapolada por ele, uma vez que o próprio romance é um fragmento, que se inicia
com um diálogo em andamento e se encerra com uma frase ambígua interrompida.
Esta é uma das instâncias de suspensão da narrativa de Sterne, que, a exemplo de
um fragmento, frustra o leitor e priva a narrativa de uma organização previsível,
canônica.
O leitor de Sterne é, com freqüência, estimulado a participar da produção da
narrativa
17
, não apenas, como em outros romances sentimentais, decifrando
silêncios e recursos gráficos, mas, em certos trechos, como convidado explícito do
narrador para completar o texto. Como no trecho destacado:
There was but one point forgot in this treaty, and that was the
manner in which the lady and myself should be obliged to
undress and get to bed – there was but one way of doing it, and
that I leave to the reader to devise; protesting as I do it, that if it
is not the most delicate in nature, 'tis the fault of his own
imagination – against which this is not my first complaint. (p.
328)
Quando testa o leitor, pondo à prova suas virtudes e censurando uma
possível impropriedade, Sterne chama a atenção para o efeito pedagógico e
moralista da literatura sentimental. O mesmo expediente é aplicado a Yorick, que, ao
17
Ver “Sterne’s Novels: Gathering up the Fragments” de Elizabeth W. Harries in Critical Essays on Laurence
Sterne New, M (ed). Nova York: G. K. Hall & Co, 1998. (pp. 257-269).
20
longo da sua viagem interna, tem sua nobreza de sentimentos testada e vai, aos
poucos, revelando suas fraquezas, paixões e virtudes. Esta humanização do herói
sentimental pode ser exemplificada no excerto que se segue em que Yorick, ao
tentar resistir à fille de chambre, no quarto de hotel, justifica sua moral elástica:
I felt something at first within me which was not in strict unison
with the lesson of virtue I had given her the night before (…)
my hand trembled – the devil was in me.
I know as well as any one, he is an adversary, whom if we resist,
he will fly from us – but I seldom resist him at all; from a terror,
that though I may conquer, I may still get a hurt in the combat
– so I give up the triumph, for security; and instead of thinking
to make him fly, I generally fly myself. (pp. 276)
A forma como Sterne lida com o amor em A Sentimental Journey é, de certa
forma, reforçada mais tarde, em 1819, na metafísica do amor de Schopenhauer, que,
ao falar do amor físico, afirma: “It then sets aside all considerations, and overcomes
all obstacles with incredible force and persistence, so that for its satisfaction life is
risked without hesitation; indeed, when that satisfaction is denied, life is given as the
price” (1966, p. 532). E mais adiante arremata: “It is the ultimate goal of almost all
human effort” (id., p. 533). Tem-se aí o pano de fundo da viagem sentimental do
narrador-personagem: a busca de Yorick pela auto-satisfação no amor.
(…) having been in love with one princess or another almost all
my life, and I hope I shall go on so, till I die, being firmly
persuaded, that if ever I do a mean action, it must be in some
interval betwixt one passion and another: whilst this
interregnum lasts, I always perceive my heart (pp. 182)
Yorick segue pela França apaixonando-se regularmente por tipos variados de
mulher – casada, solteira, viúva, jovem – e, em cada ocasião, é igualmente
persistente e destemido, como no caso da grisset, em que se expõe, tocando-a, na
presença do marido
18
.
18
Ver capítulos The Pulse e The Husband.
21
Sterne apropria-se da generosidade e da melancolia que a literatura
sentimental explora. Há episódios que encerram um pathos notável, como no
capítulo “The Captive. Paris.”, volume II, em que o narrador imagina os
padecimentos de um prisioneiro:
I beheld his body half wasted away with long expectation and
confinement, and felt what kind of sickness of the heart it was
which arises from hope deferr’d. (…) He gave a deep sigh – I
saw the iron enter into his soul – I burst into tears – I could not
sustain the picture of confinement which my fancy had drawn
(pp. 246)
O que diferencia Sterne de seus contemporâneos é que ele não se detém na
exploração das tendências do sentimentalismo. O autor questiona as reais
motivações para os atos de benevolência e caridade tão explorados na produção
literária de então, revelando seus impulsos contraditórios. Por exemplo, Yorick,
depois do seu primeiro ato de caridade da viagem, distribuindo dinheiro para um
grupo de mendigos, declara: “but as this was the first publick act of my charity in
France, I took the more notice of it” (p. 184). Sterne, assim, chama a atenção para
pretensos atos de desprendimento material, que se configuravam mais como uma
autopromoção que como caridade; é como se a caridade servisse para enaltecer o
autor, sua sensibilidade e percepção: “sentimentality here operates by a
straightforward calculus: the more pathetic the victim, the greater the hero’s
generosity, and the more affecting the scene” (Markley. 1998, pp. 284-285).
Um exemplo pertinente desta investigação de Sterne sobre a razão para a
caridade está nos capítulos “The Act of Charity” (pp. 300-304) e “The Riddle
Explained” (p. 304). O episódio refere-se a um homem bem-apessoado, que pede
esmola apenas para mulheres e que atinge seu objetivo em todas as tentativas. A
situação fascina e provoca a curiosidade do narrador pela destreza do homem e
sucesso do método, que, por fim, é desvendado acidentalmente. O narrador, ao
esperar uma carruagem, reconhece o mesmo homem pedindo dinheiro a duas
mulheres, sem muito êxito. A recusa das mulheres estende-se até que o pedinte diz:
22
My fair charitable! said he, addressing himself to the elder –
What is it but your goodness and humanity which makes your
bright eyes so sweet, that they outshine the morning even in this
dark passage? and what was it which made the Marquis de
Santerre and his brother say so much of you both as they just
pass'd by?
The two ladies seemed much affected; and impulsively at the
same time they both put their hands into their pocket, and each
took out a twelve-sous piece. (p. 302-304)
E, mais adiante, o narrador afirma: “I found at once his secret or at least the
basis of it – 'twas flattery.” (p. 304). Sterne examina a motivação da benevolência e
descobre a vaidade, tanto nas ocorrências de autopropaganda como no caso da
bajulação
19
. É como se ele estivesse de volta ao púlpito, citando o Eclesiastes:
“Vaidade das vaidades, tudo é vaidade” (Ecl. 1, 2).
Em seguida, Yorick, referindo-se à adulação, avalia:
Delicious essence! how refreshing art thou to nature! how
strongly are all its powers and all its weaknesses on thy side!
how sweetly dost thou mix with the blood, and help it through
the most difficult and tortuous passages to the heart! (p. 304)
Sterne usa um tom solene caracterizado pelo emprego do thou e do thy
20
,
comumente associado ao discurso bíblico ou religioso, chamando a atenção para o
que mobiliza o gesto cristão da caridade, que, contrariamente ao que se espera, não é
a fé nem algum tipo de princípio moral, mas a vaidade.
Além da vaidade, um dos motivos mais dignos de nota explorados por Sterne
para ações generosas é o desejo sexual. De acordo com Kraft, Sterne estabelece no
romance uma relação entre o desejo sexual e a benevolência e sugere que “the
charitable impulse and the erotic impulse are not in fact different. The same longing
19
Para uma discussão sobre este último episódio, ver “The Pentecostal Moment in A Sentimental Journey”,
de Elizabeth Kraft, em Critical Essays on Laurence Sterne. 1998, pp. 292-293.
20
Ver capítulo 2 para uma discussão do emprego do pronome thou e suas formas correlatas na narrativa de
Sterne.
23
for comfort, help, and companionship is expressed in both” (1998, p. 304). Yorick,
na travessia para Calais, tem sua generosidade testada com o episódio do monge:
No man cares to have his virtues the sport of contingencies – or
one man may be generous, as another man is puissant – sed
non, quo ad hanc – or be it as it may – for there is no regular
reasoning upon the ebbs and flows of our humours; they may
depend upon the same causes, for ought I know, which
influence the tides themselves – 'twould oft be no discredit to
us, to suppose it was so (…) The moment I cast my eyes upon
him, I was predetermined not to give him a single sous. (p. 136)
Mas, quando chega a Calais e vê o monge conversando com uma mulher,
diz: “I was full as much restrained by the appearance and figure of the lady he was
talking to. Suspicion crossed my brain, and said, he was telling her what had passed:
something jarred upon it within me – I wished him at his convent.” (p. 154)
A partir de então, o narrador preocupa-se em desfazer a má impressão que a
história teria supostamente causado na mulher e, na primeira oportunidade, mostra-
se cordial e generoso com o monge, tornando-se amigo dele. Por fim, lembrando-se
de quando soube da morte do monge, relata: “I sat by his grave, and (...) I burst into
a flood of tears – but I am as weak as a woman; and I beg the world not to smile,
but pity me.” (p. 160)
Da mesma forma que a sensibilidade na literatura sentimental só pode ser
desfrutada por um leitor com capacidade perceptiva aguçada, Sterne exige um nível
equivalente de refinamento para que o leitor capte o erotismo, que ele explora, de
maneira regular, ao longo de toda a narrativa de A Sentimental Journey. Sterne lança
mão do erotismo ora em abordagens mais manifestas, ora mais veladas. A última e
inconclusa frase da narrativa, por exemplo, em que a ambigüidade se apresenta em
um jogo de palavras, é um exemplo representativo do erotismo mais evidente no
romance: “when I stretch’d out my hand, I caught hold of the Fille de
Chambre’s/end of volume II” (p. 330). Já o trecho que se segue é de um erotismo
24
sutil e, ao mesmo tempo, perceptível: “The pulsations of the arteries along my
fingers pressing across hers, told her what was passing within me” (p. 158).
Sterne, ao mesmo tempo em que se serve dos valores do sentimentalismo
para agradar o público, questiona sensibilidade e percepção, importantes
fundamentos da literatura sentimental. A percepção, qualidade imprescindível
naquela literatura, é, em algumas passagens, uma via ou uma desculpa para o
erotismo – a sensibilidade é tão aguda que capta até as pulsações das artérias do
narrador.
Esta constante oscilação entre uso e contestação dos valores sentimentais,
que redunda em outra oscilação no romance, a oscilação entre o sentimental e a
paródia, é uma das marcas de Sterne. Sua estratégia de confronto baseia-se no
exagero do próprio valor em questão. A ironia, como no episódio da bajulação, é
ativada pela teatralização do sentimentalismo em si. Sterne estica valores, como a
caridade, a moral, as virtudes, até que adquiram a feição de paródia; o autor usa
recursos e tendências do período tanto de uma maneira convencional quanto
subversiva. Van Sant diz que o humor e o tom paródico presentes em A Sentimental
Journey não resultam de um antagonismo à sensibilidade ou ao sentimentalismo, mas
destes valores mesmos, da exploração deles, e afirma que “Sterne exploits the
essencial ambiguities of sensibility and thereby achieves the instability of tone that
defines his fictional world” (1993, p. 107).
A exploração da ironia por meio do tom ambíguo talvez seja a razão, como
explora Mullan, de A Sentimental Journey, contrariamente a outros romances da época,
não ter se tornado um fóssil inacessível e desinteressante para leitores não versados
na literatura do século XVIII
21
.
Ao pôr à prova os princípios morais do leitor e do narrador, em um processo
de humanização, e ao questionar as motivações para os atos de caridade,
teatralizando-a, Sterne explora possibilidades e se distingue de seus
contemporâneos. A originalidade do autor pode ser localizada no tom ambíguo da
21
Ver Mullan, J. “Sentimental Novels” In The Eighteenth-Century Novel. 1996, p. 245.
25
narrativa, marca de Sterne tanto em Tristram Shandy quanto em A Sentimental Journey,
que rejeita de partida qualquer tipo de autoridade, seja na figura do autor, seja na
figura do crítico. Sterne, dessa maneira, reduz qualquer interpretação a um ato
fugidio, e é possivelmente por meio desta exploração do caráter parcial da verdade
ou da negação do dogmatismo que se explica o fascínio que seus dois romances
provocam desde o lançamento.
Este caráter ambíguo em Sterne tem como origem a abordagem cética que o
autor dá aos fundamentos da literatura sentimental. Mullan resume: “Sentimentalism
never got more sophisticated than this: absorbing into its drama the likeliest
objections of skeptical readers” (1996, p. 240)
Sterne, ao adotar este sentimentalismo cético, que se traduz, em grande
medida, em humor, deixa em suspenso juízos de valor ligados ao sentimentalismo
humanizando-o, como no fragmento em que Yorick alia a própria disposição para a
generosidade à paixão:
[T]he moment I am rekindled, I am all generosity and good will
again; and would do any thing in the world either for, or with
any one, if they will but satisfy me there is no sin in it. – But in
saying this – surely I am commending the passion – not
myself.” (p. 182)
A negação da racionalidade é explorada ao longo de toda a narrativa. A
pretensão à racionalidade é desabonada em diferentes passagens, entre as quais
destaca-se o episódio da contratação de La Fleur, em que Yorick comenta o método
que utiliza para a sua escolha:
When La Fleur enter’d the room (…) the genuine look and air
of the fellow determined the matter at once in his favour; so I
hired him first—and then began to inquire what he could do:
But I shall find out his talents, quoth I, as I want them—
besides, a Frenchman can do every thing.
26
Now poor La Fleur could do nothing in the world but beat a
drum, and play a march or two upon the fife. (p. 178)
E, depois de uma discussão entre Yorick e a sensatez, o narrador-personagem
conclui:
It is enough for heaven! said I, interrupting him—and ought to
be enough for me—So supper coming in, and having a frisky
English spaniel on one side of my chair, and a French valet,
with as much hilarity in his countenance as ever nature painted
in one, on the other—I was satisfied to my heart’s content with
my empire. (p.178)
A vaidade, em especial a intelectual, que passa por uma presunção de
entendimento e por uma autoconfiança excessiva, é exposta em A Sentimental Journey.
O episódio em que Yorick é louvado por intelectuais e nobres em Paris talvez seja
um dos mais representativos da censura de Sterne à pretensão de inteligência e
perspicácia:
I had been misrepresented to Madame de Q*** as an esprit—
Madam de Q*** was an esprit herself; she burnt with
impatience to see me, and hear me talk. I had not taken my seat,
before I saw she did not care a sous whether I had any wit or
no—I was let in, to be convinced she had.—I call heaven to
witness I never once open’d the door of my lips.
Madame de Q*** vow’d to every creature she met, “She had
never had a more improving conversation with a man in her
life.” (p. 306)
O ceticismo
22
, que não é invenção do século XVIII, sofreu tanto naquele
século como no anterior um processo de notável desenvolvimento com John
Locke
23
e posteriormente com David Hume que se manifestou de forma irrefutável
22
O ceticismo é creditado a Pírron de Elis, filósofo grego do século III a.C., que, partindo da incerteza de
tudo, defendia a suspensão do juízo.
23
Com o seu Essay concerning Human Understanding publicado em 1690.
27
na literatura de então
24
. No caso de Sterne, pode-se identificar o impacto de Hume
tanto em Tristram Shandy
25
quanto em A Sentimental Journey. A admiração por Hume,
Sterne declara no capítulo Montriul de A Sentimental Journey em uma questão
lingüística, ao esclarecer a diferença entre tant pis e tant mieux:
A prompt French Marquis at our ambassador's table demanded
of Mr. H ––, if he was H –– the poet? No, said H –– mildly –
Tant pis, replied the Marquis.
It is H –– the historian, said another – Tant mieux, said the
Marquis. And Mr. H ––, who is a man of an excellent heart,
return'd thanks for both. (pp. 176)
Contudo, sua presença na narrativa não se limita a esta citação. Pode-se mesmo
dizer que, de certa forma, Sterne romanceou idéias de Hume em A Sentimental
Journey.
Hume, ao examinar a elaboração de juízos e a percepção que se tem dos
objetos, defende que a natureza age de maneira independente do pensamento e do
raciocínio, intervindo nos julgamentos mais elaborados. Sterne retoma a idéia e
enaltece a natureza e sua força em detrimento de um suposto julgamento racional e
objetivo ao longo de toda a narrativa de A Sentimental Journey. No excerto destacado
do episódio do estorninho, tem-se um dos exemplos mais representativos da
oposição entre razão ou abstração e natureza ou o mundo factual:
I vow, I never had my affections more tenderly awakened; nor
do I remember an incident in my life, where the dissipated
spirits, to which my reason had been a bubble, were so suddenly
call’d home. Mechanical as the notes were, yet so true in tune to
nature were they chanted, that in one moment they overthrew
all my systematic reasonings upon the Bastile; and I heavily
walk’d up stairs, unsaying every word I had said in going down
them. (p. 244)
24
Ver Parker, Fred. Scepticism and Literature: an Essay on Pope, Hume, Sterne and Johnson. Oxford: Oxford
University Press, 2003.
25
Ver capítulo “Tristram Shandy: Singularity and the Single Life” em Scepticism and Literature: an Essay on Pope,
Hume, Sterne and Johnson. Oxford: Oxford University Press, 2003.
28
Aqui a realidade se impõe à sistematização do raciocínio, traduzindo uma das
marcas do ceticismo – o empirismo como fonte do verdadeiro conhecimento.
Este episódio do estorninho na gaiola é representativo como amostra de
realidade que invade e se impõe à mera reflexão ou da passagem da abstração
intelectual à vida mesma. Hume, no trecho que se segue, aborda a questão ao tratar
do impasse que se estabelece quanto à real influência do raciocínio quando o
ceticismo invade a própria teorização:
If we embrace this principle, and condemn all refin'd reasoning,
we run into the most manifest absurdities. If we reject it in
favour of these reasonings, we subvert entirely the human
understanding. (…)
The intense view of these manifold contradictions and
imperfections in human reason has so wrought upon me, and
heated my brain, that I am ready to reject all belief and
reasoning, and can look upon no opinion even as more
probable or likely than another. (1990. pp. 268-269)
E Hume liberta-se deste impasse intelectual da maneira mais prosaica que se possa
imaginar:
Most fortunately it happens, that since reason is incapable of
dispelling these clouds, nature herself suffices to that purpose,
and cures me of this philosophical melancholy and delirium
(…). I dine, I play a game of back-gammon, I converse, and am
merry with my friends; and when after three or four hour’s
amusement, I wou'd return to these speculations, they appear so
cold, and strain'd, and ridiculous, that I cannot find in my heart
to enter into them any farther. (id., p. 269)
A partir do estranhamento causado pela disparidade entre a formulação cerebral, a
aflição gerada pelo seu caráter aparentemente irremediável e a trivialidade da
solução, Hume estende o ceticismo até que o próprio ceticismo questione a si
29
mesmo. Sterne, como já observado, usa o mesmo expediente, ou seja, duvida dos
fundamentos que ele mesmo utiliza.
Nas próximas seções, examino a repercussão de A Sentimental Journey,
procurando traçar um histórico da recepção do romance. Este caminho percorrido
pelo romance será abordado mediante um exame da história da sua crítica e da sua
tradução, sobretudo para a língua portuguesa.
1.4
A SENTIMENTAL JOURNEY
E A CRÍTICA CONTEMPORÂNEA
A democratização da leitura, já na metade do século XVIII, e o papel que a
sua prática desempenhava nos campos social e moral, “Reading had become a route
for the development of the individual into a fully formed member of society”
(Benedict. 2004, p. 3), levou à profissionalização de escritores, o que estabeleceu um
mercado de produção e venda de livros. Este processo de profissionalização da
prática literária acaba por originar uma outra atividade: a crítica literária. Benedict
discute o surgimento da atividade ao falar do desenvolvimento do romance como
gênero: “such genres were produced by a growing class of writers who considered
themselves professionals, and vetted by another new type of professional, the
literary critic” (id., p. 3).
Esta crítica manifestava-se em periódicos, entre os quais destacam-se a
Gentleman’s Magazine, fundada em 1731 e de conteúdo eclético, a sua concorrente
Monthly Review de 1749, que lidava exclusivamente com crítica literária e a Critical
Review, fundada por Tobias Smollett em 1756.
Assim, em 27 de fevereiro de 1768, data da publicação de A Sentimental
Journey, já havia uma crítica literária estabelecida e reconhecida. Contudo, como
Sterne morreu duas semanas depois do lançamento, é possível que não tenha tido
acesso às primeiras resenhas e críticas do romance. Sterne acreditava que A
30
Sentimental Journey mudaria as opiniões desfavoráveis a ele devido à publicação de
Tristram Shandy. Em carta a William Stanhope, ele anuncia: “my Sentimental Journey
will, I dare say, convince you that my feelings are from the heart, and that that heart
is not of the worst of molds
26
”.
Em um primeiro momento, talvez pela proximidade entre o lançamento do
romance e a morte de Sterne, as críticas ao romance nos periódicos foram bastante
benignas.
Justly esteemed the best of the late Mr. Sterne’s ingenious
performances. To that original vein of humour which was so
natural to him, and which constitutes the chief merit of his
works, he has here added the moral and the pathetic; so that
even while he is entertaining (as he always is) we are agreeably
instructed.
27
A Critical Review foi a exceção e fez críticas duras ao romance e a Sterne:
“Who does not see that this character of La Fleur is pieced out with shreds which
Mr. Yorick has barbarously cut out and unskillfully put together from other
novels?”
28
Contudo, deve-se levar em consideração que a revista foi fundada por
Smollett, a quem Sterne se refere como Smelfungus no próprio romance
29
.
Desde estas primeiras críticas a A Sentimental Journey, a natureza ambígua da
narrativa ficava evidente. A Monthly Review, por exemplo, ressaltou o patético ao
passo que a Political Register chamou a atenção para o humor. Esta dubiedade
intrínseca provocou uma discussão que perdura até hoje. Talvez essa resistência do
texto a uma definição seja um dos motivos para o interesse que o romance desperta
desde a sua publicação. Esta ausência de unanimidade e essa impossibilidade de
consenso indicam a riqueza da narrativa de Sterne.
26
Carta a William Stanhope em 27 de setembro de 1767.
27
Anônimo. Political Register de maio de 1768.
28
Anônimo. Critical Review de março de 1768.
29
Ver página 172 do original em anexo.
31
Já no ano seguinte à sua morte, dados biográficos de Sterne passam a invadir
a crítica e, com alguma freqüência, as críticas são mais direcionadas à vida do autor
que ao objeto literário em si. De acordo com Howes, “much of the biographical
material which was available consisted of inaccuracies, or at best anecdotes and
legends of doubtful authenticity, supplemented by moralizing” (1971, p. 53). A
Gentleman’s Magazine, por exemplo, alegou que a esposa de Sterne se mudou para
a França para fugir das provocações diárias de um marido indelicado que não era
uma boa companhia para uma senhora sensível. Dois anos depois de sua morte era
ainda constante a presença de Sterne nos periódicos
30
.
A popularidade de Sterne na época pode ser comprovada por três fatos
objetivos: publicações póstumas, reimpressão de publicações anteriores e publicação
de suas obras completas. Ross afirma que o aparecimento das publicações póstumas
foi decorrente tanto da demanda do público quanto da necessidade financeira da
família de Sterne depois da sua morte
31
e que se deveu, em grande medida, aos
esforços de Lydia Sterne, filha do autor. Lydia conseguiu reunir cento e quarenta e
quatro cartas, umas verdadeiras e outras reconhecidamente forjadas, e publicou em
1775 Letters of the Late Rev. Mr. Sterne. Em 1769, consegue reunir dezoito sermões e
publica em três volumes Sermons by the Late Rev. Mr. Sterne.
Howes fala da demanda que havia por reimpressões de toda a produção de
Sterne. Tristram Shandy, por exemplo, teve alguns de seus volumes reimpressos entre
1768 e 1769 e edições que compreendiam os nove volumes apareceram em 1768,
1769, 1770, 1775, 1777 e 1779. Um dos indicadores da popularidade de Sterne é o
lançamento da primeira compilação das suas obras já em 1773, seguida por edições
regulares, culminando na edição crítica de 1780, Works of Laurence Sterne, lançada em
Londres em dez volumes e que, de acordo com Howes, “was to remain the standard
one for nearly 125 years” (1971, p. 61). Esta edição foi reimpressa onze vezes até o
fim daquele século.
30
Este número da Gentleman’s Magazine é de julho de 1769.
31
Ver pp. 420-428 de Laurence Sterne: A Life. Oxford: Oxford University Press, 2001.
32
O impacto de A Sentimental Journey até o fim do século XVIII pode ser
percebido de diferentes formas. Pode revelar-se, por exemplo, ao examinarmos o
histórico das edições do romance. A Sentimental Journey teve uma primeira tiragem de
2635 exemplares e foi seguida, um mês mais tarde, pela segunda e, no fim do
mesmo ano por uma terceira. Duas edições surgiram em Dublin uma em 1768 e
outra em 1769. Em 1770 o romance foi reimpresso acompanhado da continuação
de Hall-Stevenson
32
e várias reimpressões
33
se seguiram, totalizando treze até
1799
34
. Além das reimpressões do romance, o impacto de Sterne pode ser percebido
pelo número de línguas para as quais o romance foi traduzido desde a sua
publicação até o fim do século XVIII: alemão, francês, dinamarquês, holandês,
sueco, italiano e russo.
Outro indício é o efeito que o romance teve na produção literária da época.
Ross destaca The Man of Feeling, de Henry Mackenzie, como “the most celebrated of
the many hundreds of sentimental novels to appear in the wake of Sterne’s success.”
(2001, p. 418). Mackenzie, no entanto, apropriou-se apenas do sentimentalismo de
Sterne, rejeitando seu humor: “Sterne often wants the dignity of wit. I do not speak
of his licentiousness, but he often is on the very verge of buffoonery, which is the
bathos of wit.” (1927, p. 182).
O reconhecimento de Sterne como um autor sentimental acaba por gerar em
1782 o The Beauties of Sterne; Including all his Pathetic Tales, & Most Distinguished
Observations on Life, em cujo prefácio o editor diz que o livro foi feito pensando nos
“chaste lovers of literature and their offsprings”. Esta obra, que chegou a treze
reimpressões até o fim do século XVIII, tinha como objetivo trazer aos leitores
excertos sentimentais e patéticos de Tristram Shandy, A Sentimental Journey e Sermons,
que, descolados do seu contexto, eram reorganizados para “the most exquisite
emotional effect” (Ross. 2001, p. 418). Este artifício garantiu que Sterne fosse lido
32
Hall-Stevenson publicou Yorick’s Sentimental Journey Continued, alegando que estava levando adiante o projeto
de Sterne confidenciado pelo autor em conversas pessoais. A continuação de Hall-Stevenson, todavia, foi
censurada pela crítica de forma irrestrita.
33
Ver Ross, I. Laurence Sterne: A Life. Oxford: Oxford University Press, 2001. Howes, A. Yorick and the Critics:
Sterne’s Reputation in England, 1760-1868. Hamden: Archon Books, 1971.
34
Ross e Howes discordam em relação ao número de reimpressões do romance neste período. De acordo
com Ross, houve 13 edições e de acordo com Howes 15 edições.
33
apenas como sentimental e dificultou a percepção da ironia e as leituras indesejadas,
tendência que foi mantida até o fim daquele século.
As opiniões a respeito de Sterne e sua obra seguiram conflitantes ao longo do
século XVIII. Noorthouck, por exemplo, escreveu: “Sterne was credited with
profundity, till the public were profoundly tired with the investigation of his hidden
meanings.”
35
Na direção oposta, Knox afirma ver em Sterne: “power of shaking the
nerves and affecting the mind in the most lively manner in a few words, and with
the most perfect simplicity of language.”
36
Houve muitas imitações e propostas de continuação para A Sentimental Journey
e, não obstante a divergência da crítica quando o assunto era Sterne, as resenhas
foram bastante severas com estas tentativas. Howes resume:
Even the best of Sterne’s imitators were open to the charges of
lacking freshness and originality, while the worst were accused
of being servile copyists or of merely imitating Sterne’s ‘frivolity’
or his ‘indecency and extravagance’. (1971, p. 69)
De uma maneira geral, A Sentimental Journey teve uma recepção muito mais
favorável que Tristram Shandy no século XVIII. Esta situação mudaria em meados do
século XX: “After its immense success in the eighteenth and nineteenth centuries, A
Sentimental Journey has lost ground to Tristram Shandy, seen as an exciting and
experimental text.” (Bandry. 2004, p. 67).
1.5
A SENTIMENTAL JOURNEY
E A TRADUÇÃO
Nesta seção, busco recompor a trajetória das traduções de A Sentimental
Journey, sobretudo para o português. A identificação da primeira tradução, bem
35
Monthly Review de agosto de 1790, p. 412.
36
Winter Evenings, 1790, p. 159. “On modern Criticism”, Essays Moral and Literary.
34
como do número de traduções e do intervalo entre elas para uma determinada
língua pode indicar a inserção e o prestígio de Sterne e do seu romance naquela
determinada cultura. Este breve histórico não pretende esgotar línguas nem
traduções, trata-se apenas de uma tentativa de sondar a repercussão do romance
tendo a tradução como instrumento de exame.
As primeiras traduções de Tristram Shandy, Sermons e A Sentimental Journey
foram para o alemão em respectivamente 1763-7, 1766-7 e 1768
37
. Esta disposição
para a tradução está aliada, de acordo com Large, à inserção da literatura inglesa na
Alemanha e ao distanciamento do modelo literário francês neoclássico. A tradução
de Tristram Shandy, finalizada em 1767 por Johann F. Zückert, foi bastante criticada,
pois os leitores de Sterne já conheciam bastante o original. O prestígio de Sterne
estabeleceu-se, de fato, nos países de língua alemã com a tradução de A Sentimental
Journey no mesmo ano da sua publicação, em 1768, por Johann Joachim C. Bode. O
texto traduzido por Bode foi tão elogiado que permaneceu como a tradução
canônica do romance para o alemão até o início do século XIX. Há, até hoje, doze
traduções de A Sentimental Journey para o alemão e, de acordo com Large, a influência
de Sterne
can be mapped against all the major periods in German culture
since his time, right through to twentieth-century modernist
and, now, postmodernist appropriations – he has proved a
constant resource to whom writers (and by no means just
writers) can return. (2004, p.70)
A segunda língua para a qual A Sentimental Journey foi traduzido foi o francês.
A obra de Sterne já era amplamente discutida e resenhada nos periódicos mais
influentes da França quando a tradução de Frénais de A Sentimental Journey surgiu,
em 1769. De acordo com Asfour, a crescente influência política e econômica da
Inglaterra sobre o continente foi possivelmente a causa da reação francesa contra a
influência cultural inglesa e, por conseguinte, contra a tradução de literatura inglesa
de uma maneira geral. Contudo, o fato de a narrativa de Sterne se passar na França e
37
Ver tabela em The Reception of Laurence Sterne in Europe pp. xvii-xxv.
35
de ser um raro exemplo, naquele momento, de uma história favorável ao país e à sua
cultura favoreceu a tradução do romance, que foi muito bem aceito. É possível que
Asfour tenha alguma razão na sua afirmação se se considerar que, apesar da
aceitação de Sterne e de A Sentimental Journey pelos franceses, Tristram Shandy só foi
traduzido em 1785.
A tradução de Joseph-Pierre Frénais foi a única até o fim do século. A
segunda tradução do romance só surge em 1801 por Paulin Crassous, que, com
propósitos didáticos, forneceu um volume separado só com notas. A terceira é de
Moreau-Christophe em 1828. O romance gozava de tanto prestígio que Walckenaer
escreveu: “Le Voyage Sentimental est incomparablement le meilleur des ouvrages de
Sterne. C’est le seul qu’on réimprime très-souvent, le seul qu’on aime à relire en
entier”
38
(1830, p. 420).
Depois da tradução de 1828, há, em 1841, a publicação de três traduções do
romance, respectivamente de Jules Janin, Defauconprêt e Léon de Wailly. Destas
traduções, de acordo com Bandry, a de Janin é mais naturalizada e portanto mais
ligada à estética das belas infiéis ao passo que a de Wailly é a mais colada ao original.
Esta foi considerada a tradução de A Sentimental Journey por quase um século apesar
das outras que surgiram posteriormente. Em 1866 tem-se a tradução de Narcisse
Fournier, em 1875 a de Alfred Hédouin, em 1884 a de Emile Blémont e, finalmente,
em 1934 a de Aurélien Digeon, que, ainda de acordo com Bandry, é uma das mais
acessíveis até hoje.
É curioso o quadro que se tem da tradução na Alemanha e na França a partir
dos dados expostos. Enquanto na Alemanha as obras de Sterne foram traduzidas
uma após a outra, na ordem em que foram publicadas na língua-fonte, na França
três traduções de A Sentimental Journey foram produzidas em um único ano.
Estas práticas parecem refletir as concepções de tradução em ambas culturas.
Schleiermacher em 1813 defende no ensaio Sobre os diferentes métodos de
tradução sua concepção de tradução, congruente com os dados relativos às
38
Em “Vies de plusieurs personnages célèbres des temps anciens et modernes”.
36
traduções de Sterne: uma prática tradutória “em grande escala, um transplantar de
literaturas inteiras em uma língua”(2001, p. 61), já que o leitor tem que apreender o
“espírito da língua e o espírito peculiar ao autor na obra”. (id..). Pode-se dizer que
D’Alembert resume a concepção francesa de tradução ao comentar a sua tradução
de Tácito:
Quelquefois enfin j’ai pris la liberté d’altérer un peu le sens,
quand il m’a paru présenter une image ou une idée puérile. Car
ma juste admiration pour Tacite ne m’aveugle pas jusqu’au point
de me fermer les yeux sur un petit nombre d’endroit où il me
paraît au-dessous de lui-même. (2004, p. 84)
Esta posição de D’Alembert parece refletir a tendência etnocêntrica das belles
infidèles, em que a prática tradutória valoriza o sentido, ou parte do pressuposto que
sabe a intenção do autor. Berman, que conhece a tradição alemã de tradução e
rejeita a concepção de tradução das belles infidèles, explica que “la captation du sens
affirme toujours la primauté d’une langue. Pour qu’il y ait annexion, il faut que le
sens de l’ouvre étrangère se soumette à la langue dite d’arrivée”. (1999, p. 34).
Em 1775 foi a vez do dinamarquês ter a sua tradução de A Sentimental Journey
feita por Hans Jørgen Birch. Contudo, traduções das obras de Sterne para o alemão
já eram citadas em periódicos do país. De acordo com Goring e Løfaldi, a influência
da língua alemã era notória, visto que “around half of the printed works circulating
in late eighteenth-century Denmark were German-language publications” (2004, p.
96) e, apesar de a tradução de Birch ter sido feita a partir do original inglês, os
autores discutem a possível mediação da tradução alemã: “there are certain points of
variation where the German text may have had an influence upon the Danish” (id.,
p. 100). A tradução de Birch foi seguida por outras duas: a de Magnus em 1841 e a
de Jens Kruuse de 1942. Interessante observar como Sterne percorreu caminhos
distintos em outros países escandinavos. Na Suécia, por exemplo, houve igualmente
três traduções: a de Johan Samuel Ekmanson de 1791, a de Richard Hejll de 1931 e
a de Majken Johansson de 1958. Todavia, enquanto a Dinamarca tinha na Alemanha
o seu modelo literário e cultural, a Suécia estava mais ligada à França: “the Swedish
37
reception of Sterne is, in part, the Swedish reception of the French reception of
Sterne” (id., 108). Já na Noruega a primeira tradução do romance é de Morten
Claussen e só apareceu em 1992.
Bernardus Brunius traduziu para o holandês Tristram Shandy entre 1776 e
1779, A Sentimental Journey em 1778 e Sermons entre 1779-1780. De acordo com
Voogd, a tradução de Brunius é minuciosa, seguindo inclusive detalhes tipográficos.
A tradução seguinte do romance foi feita por Jacob Geel e surgiu apenas em 1837.
O texto de Geel teve três reimpressões, a última em 1946. A última tradução de
1982 é do romancista Frans Kellendonk e teve uma nova edição em 1991, já que, de
acordo com Voogd, Kellendonk simplificou o texto de Sterne e cometeu alguns
erros no prefácio. Voogd diz que o impacto literário de Sterne pode ser limitado a
um breve período do sentimentalismo holandês e acrescenta: “It should surprise no
one that none of the Dutch editions of Sterne are available nowadays. They had
limited print runs to begin with, and have by now been remaindered.” (Voogd.
2004, p.95).
A realidade italiana é radicalmente oposta à holandesa. Segundo Santovetti, a
influência de Sterne na Itália pode ser sentida “in the catalogues of most Italian
publishing houses, that feel compelled to have Sterne in their collection. In the
bookshops in Italy one may choose between three editions of Tristram Shandy and
eight of A Sentimental Journey.” (2004, p.193).
As duas primeiras traduções de A Sentimental Journey para o italiano foram
anônimas. A primeira, lançada em Veneza, é de 1792 e foi traduzida do francês. A
segunda, lançada em Milão, é de 1812 e aparentemente foi traduzida do original.
Contudo, a tradução de Ugo Foscolo
39
, lançada apenas um ano mais tarde, eclipsaria
as anteriores. Esta tradução, considerada uma obra-prima até hoje, marca de
maneira definitiva a recepção de Sterne na Itália. Foscolo disse que quis traduzir A
Sentimental Journey porque queria aprender inglês e experimentar os limites da própria
língua. Entre as várias reimpressões da tradução de Foscolo, vinte e seis até hoje, em
39
Apesar de ser um dos grandes autores italianos, Foscolo é pouco conhecido no exterior.
38
1932, Ipsevich-Bocca lança a sua tradução do romance, que passa praticamente
ignorada.
Em 1991, Giancarlo Mazzacurati traduz A Sentimental Journey, que, até então
estava disponível apenas na versão de Foscolo. Segundo Santovetti, a tradução de
Mazzacurati foi a mais rigorosa até agora para a língua italiana. Mais duas traduções
para o italiano foram lançadas: a de Gianluca Guerneri de 1996 e a de Viola Papetti
de 2002.
Sterne apareceu em russo pela primeira vez em fragmentos isolados
traduzidos de A Sentimental Journey. O primeiro fragmento, que data de 1779, foi
traduzido por Bogdan Arndt da versão alemã de Bode e refere-se ao episódio de
Lorenzo. O segundo que data de 1791 foi traduzido por Nikolai Karamzin do
original e refere-se ao episódio de Maria
40
. A primeira tradução foi de Kolmakov em
1793, seguida de outras cinco, a última sendo de 1940 por Adrian Frankovski que
traduziu além de A Sentimental Journey, as cartas de Sterne, Journal to Eliza e Tristram
Shandy.
Segundo Bystydzieńska e Nowicki, até meados do século XX apenas A
Sentimental Journey era conhecido e lido na Polônia e que naquele país o romance era
visto de duas maneiras: como uma obra sentimental e como um texto favorável à
liberdade. Ainda de acordo com os autores: “In patriotic circles, Sterne was
celebrated as a champion of freedom, along with writers like Rousseau. It was the
starling-episode from A Sentimental Journey, in particular the apostrophe to liberty,
that gave Sterne this position”. (2004, p. 156).
O romance teve três traduções para o polonês no século XIX. A primeira, de
1817, é de Stanisław K. Kłokocki e foi traduzida provavelmente da versão de
Frénais de 1769. A segunda tradução de A Sentimental Journey, de 1845, é de Bogumił
Wisłocki foi publicada na Alemanha, em Leipzig, e foi traduzida do original. A
terceira, de 1853, é de Noakowski que, publicada em Varsóvia, sofreu com a censura
40
Ver Stewart, N. From Imperial Court to Peasant’s Cot: Sterne in Russia. 2004, pp. 128-132.
39
russa e omitiu trechos relacionados à liberdade, o que não aconteceu com a tradução
anterior por ter sido impressa na Alemanha
41
.
Em 1954, Agnieszka Glinczanka traduz A Sentimental Journey, tentando
aproximar-se do padrão tipográfico de Sterne. Esta tradução e a primeira de Tristram
Shandy, de 1958, por Krystyna Tarnowska, tiveram inúmeras reimpressões. Ainda de
acordo com os autores, monografias, dissertações e teses sobre A Sentimental Journey
e Tristram Shandy são escritas regularmente na Polônia.
O espanhol contou com dez traduções de A Sentimental Journey
42
. Três foram
anônimas, a saber, a primeira, que é de 1902 e teve seu texto reimpresso em 1843 e
posteriormente em 1851, a segunda, que é de 1932 e apareceu numa edição bilíngüe
e a terceira, que é de 1967 e fez parte da série Libro Clásico. As outras traduções
surgiram em 1890 por Diego G. Douse, em 1915 por Edmundo G. Blanco, em
1919 por Alfonso Reyes, em 1940 por María Luz Godoy, que foi reimpressa na
antologia Las diez mejores novelas inglesas em 1965, em 1983 por Lauvent, em
1997 por Jesús del Campo e em 1998 por Francesc L. Cardona. Tristram Shandy
foi traduzido em 1975 por José A. L. Letona.
O catalão contou com três traduções de A Sentimental Journey: em 1912 por
Manuel Vallvé, em 1934 por Josep J. Margaret e em 1996 por Joaquim Mallafré. O
galego tem uma tradução do romance de 1992 por Manuel Outeiriño e o basco tem
uma tradução de 1998 por Josu Barambones.
Talvez um paralelo possa ser estabelecido entre as traduções tardias de A
Sentimental Journey para o norueguês, o galego e o basco, em respectivamente 1992,
1992 e 1998: em todos os casos, o público tinha acesso a pelo menos outra língua
para a qual o romance já tinha sido traduzido. No caso norueguês, o público pode
ter lido Sterne em dinamarquês; no galego, em espanhol e talvez português e no
basco, em espanhol. Esta possibilidade pode, até certo ponto, justificar a demora
para que A Sentimental Journey tivesse uma tradução nestas línguas.
41
Ver Bystydzieńska, G e Nowicki, W. “Sterne in Poland”. 2004, pp. 154-164.
42
Ver Pegenaute, L. “Sterne Castles in Spain”. 2004, pp. 234-246.
40
1.5.1
A
S
ENTIMENTAL
J
OURNEY
EM PORTUGUÊS
Sterne teve sua primeira aparição em português apenas no século XX, mas a
sua presença na literatura de língua portuguesa antecede à tradução de qualquer obra
sua. Em Memórias Póstumas de Brás Cubas, lançado em 1881, por exemplo, o narrador
cita o autor quando dirige-se ao leitor para falar sobre a intenção do livro:
Ao leitor
(...) Trata-se, na verdade, de uma obra difusa, na qual eu, Brás
Cubas, se adotei a forma livre de um Sterne, ou de um Xavier de
Maistre, não sei se lhe meti algumas rabugens de pessimismo.
Pode ser. Obra de finado. Escrevi-a com a pena da galhofa e a
tinta da melancolia (...)
A presença de Sterne neste fragmento vai além da menção do seu nome.
Mesmo em um pequeno excerto como este, tem-se alguns dos elementos distintivos
da escrita de Sterne: a digressão, o flashback, a metaficção, a combinação
previamente anunciada de galhofa e melancolia tão presente em Sterne. A
combinação destes dois últimos é tão sutil, sobretudo em A Sentimental Journey, que
fica difícil se decidir por um dos elementos dada a oscilação entre o sentimentalismo
e a paródia do mesmo ao longo da narrativa. Apesar de a crítica reconhecer a
presença de Sterne em Machado, a exemplo do que faz Rouanet no seu recente Riso
e melancolia
43
e Nogueira em Laurence Sterne e Machado de Assis: a tradição da
sátira menipéia
44
, Machado assume esta presença, adota as marcas de Sterne e as
torna suas.
De acordo com Manuel Portela, “In Portugal the number of texts devoted to
Sterne in newspapers, magazines and academic journals was, and remains,
43
Rouanet, S. P. Riso e melancolia. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
44
Nogueira, N. H. A. Laurence Sterne e Machado de Assis: a tradição da sátira menipéia. Rio de Janeiro: Galo
Branco, 2004.
41
negligible”. (2004, p. 221). A primeira tradução de um texto de Sterne para a língua
portuguesa só surge em 1902 e foi feita para uma série popular portuguesa que
mesclava textos portugueses e estrangeiros. Apesar do prestígio de admiradores de
Sterne do porte de Machado no Brasil e de Garrett em Portugal, este inclusive
anterior a Machado (o Viagens na minha terra é de 1846), A Sentimental Journey esperou
mais de uma década, no caso de Machado, e mais de meio século no caso de
Garrett, para ter a sua primeira tradução em língua portuguesa apesar da presença
notória de traços da escrita e do estilo de Sterne na produção dos dois autores.
A primeira tradução de A Sentimental Journey para o português foi lançada em
1902 e assinada por Luís Cardoso, em Portugal, para a já citada série, em formato de
bolso. A próxima tradução portuguesa do romance foi publicada pela editora
Antígona, em 1999 e assinada por Portela. Portela, além da tradução, é responsável
pelo prefácio e notas, cento e quarenta e nove ao todo.
Portela, ao falar do Viagens na minha terra, de Garrett, comenta: “[it] is one of
the masterpieces of the century and it is widely read today, as it has been on the
secondary school syllabus for several decades. No single text in Portuguese literature
is more indebted to Sterne than this one. (2004, p. 224). Cabe observar que apesar
do prestígio na história literária portuguesa de Garrett e mais especificamente deste
romance, francamente inspirado por A Sentimental Journey, o intervalo entre as duas
traduções portuguesas do romance seja de noventa e sete anos.
Pode-se dizer que, ao contrário de outros países europeus que traduziram e
então imitaram Sterne, Portugal fez o caminho inverso, ou seja, imitou e depois
traduziu, o que, de modo muito semelhante à realidade brasileira, acabou eclipsando
Sterne. Segundo Portela, esta situação se deve, em parte, à hegemonia da cultura
francesa sobre Portugal até meados do século XX e a uma prática de tradução
limitada e diletante. A elite alfabetizada lia literatura estrangeira traduzida para o
francês e só ao longo do século XIX este cenário começa a mudar.
Interessante observar as diferenças entre a realidade italiana e a brasileira no
que se refere à inserção de Sterne em cada país. Foscolo e Machado são figuras
42
reconhecidamente respeitadas nas histórias literárias de seus países e pode-se
identificar traços de Sterne na produção de ambos os autores, porém o fato de
Foscolo ter traduzido Sterne parece ter sido fundamental para a recepção do autor
naquele país. Santovetti, ao falar da tradução de A Sentimental Journey de Foscolo, diz:
“Foscolo’s interpretation of Sterne is the key event which dominated the Italian
reception of Sterne in the nineteenth century.” (2004, p. 196). A alusão a Sterne no
prólogo de Machado não assegurou o ingresso daquele autor no Brasil.
No Brasil, até o momento, há três traduções publicadas de A Sentimental
Journey: Viagem sentimental na França e na Itália da editora Athena, tradução de
Berenice Xavier de 1939; Uma viagem sentimental através de França e Itália da Cultrix,
tradução de Anna Maria Martins de 1963, reimpressa duas vezes, e Uma viagem
sentimental através da França e da Itália da Nova Fronteira, tradução de Bernardina da
Silveira Pinheiro de 2002.
As três tradutoras resolveram de maneira bem distinta questões delicadas do
romance como, por exemplo, os capítulos seguidos com o mesmo título, a
pontuação idiossincrática e os excertos, alguns bastante longos, em francês, que
constam no original. Estas diferenças, sobretudo, se considerarmos o lapso
temporal entre os três textos, podem ajudar a contar uma parte da história da
tradução no Brasil, sendo possível reconhecer a hegemonia de certas tendências em
determinados períodos, em especial, quando confrontadas com as modernas teorias
da tradução.
Assim, na discussão que desenvolvo nos próximos capítulos, incluí as três
traduções brasileiras, além da minha, que apresento em anexo, o que, acredito,
enriquecerá a discussão.
Apesar de Marta de Senna ter dito na introdução à tradução de Pinheiro que
o texto de Sterne foi “vitimado no passado por algumas tentativas infelizes” (2002,
p. 8), acredito que uma das riquezas da retradução é justamente poder contar com
traduções anteriores, não obstante eventuais falhas ou omissões em que essas
possam ter incorrido. Em um texto como A Sentimental Journey, em que convivem
43
sentimentalismo, paródia e ironia, contribuições passadas são muito bem-vindas. A
complexidade e a sutileza da narrativa sterniana podem incorrer em deslizes
evitáveis se outras traduções forem consultadas, inclusive em outras línguas. Ao
longo do processo de revisão da tradução que proponho, quando me confrontei
com passagens obscuras, consultei tanto as três traduções brasileiras, quanto a
portuguesa de Manuel Portela e a de Foscolo para o italiano, Viaggio sentimentale di
Yorick lungo la Francia e l’Italia da Garzanti, uma vez que, como afirmou Godoy, uma
tradutora de A Sentimental Journey para o espanhol, citada por Pegenaute, “Si la
sensación más frecuente del lector – y aún crítico – es frente a Sterne el
desconcierto, la del traductor es la desesperación, casi la impotencia.”
45
45
Sterne, Laurence. Viaje sentimental por Yorick. Tradução de María Luz Godoy. Madri: Apolo Press, 1940.
44
CAPÍTULO 2
ASPECTOS ESTILÍSTICOS
Escrever sobre estilo é tarefa espinhosa dada a imprecisão e a prudência que
cercam qualquer tentativa de defini-lo, o que parece se confirmar na afirmação de
Spencer e Gregory: “O estilo em literatura é um fenômeno reconhecível, mas
esquivo. (...) trata-se de um conceito que, embora muito usado e diversamente
definido, escapa à precisão.” (1974, p. 75). Neste capítulo, não pretendo definir
estilo, tampouco expor um histórico de conceitos a ele relacionados e que são
muitas vezes discrepantes, mas, partindo de algumas referências, proponho uma
apreciação de aspectos da maneira singular de Sterne fazer seu relato, em especial,
em A Sentimental Journey, e fazer um exame do que pode ser apreendido na narrativa,
partindo da sua coerência e das incongruências ali presentes.
Este exame que proponho fundamenta-se no texto em si, na minha tradução
e no cotejo entre a minha e as traduções de Berenice Xavier, Ana Maria Martins e
Bernardina Pinheiro.
Neste capítulo, explorarei o humor de Sterne, a que Masson se referiu como
“something unique in our literature” (1859, p. 145) e acrescentou: “There is scarcely
anything more intellectually exquisite than the humour of Sterne” (id., p. 146).
Como o humor é uma das características mais distintivas do autor e tem na paródia
e na ironia seus principais meios, dedicarei duas seções aos esquemas de
representação da paródia e da ironia em A Sentimental Journey e à traduzibilidade
destes esquemas.
Farei igualmente um exame do uso que Sterne faz dos pronome thou e de
suas formas correlatas, como se dá o esquema de alternância entre o emprego dos
pronomes you e thou ao longo da narrativa e, por fim, como essa alternância se
reflete nas traduções brasileiras.
45
2.1 ESTILO E LITERATURA
“O próprio conceito de ‘estilo’ é notoriamente escorregadio e de difícil
codificação em termos concretos que permitam o estudo operacional” (Enkvist.
2002, p. 300). Não obstante a dificuldade de definição de estilo e a multiplicidade de
abordagens existentes, é necessário estabelecer algumas premissas a partir das quais
alguns aspectos estilísticos do texto A Sentimental Journey serão discutidos ao longo
deste capítulo.
O estilo é um fenômeno literário e lingüístico – é na literatura que o estilo se
manifesta e tem na língua o seu meio. No caso em questão, ou seja, na ficção, a
língua é veículo para a representação de um universo fundamentado em fatos, uma
ilusão representada de uma determinada maneira por um autor. É nesta exposição
que o estilo se manifesta. E a estilística investiga justamente esta manifestação: “the
relation between the writer’s artistic achievement, and how it is achieved through
language. That is, it studies the relation between the significances of a text, and the
linguistic characteristics in which they are manifest” (Leech e Short. 1986, p. 69).
Este writer’s artistic achievement citado pelos autores pode ser definido como um
uso de língua que chama a atenção para si próprio, quando este uso causa um
estranhamento. Este estranhamento acontece quando a língua deixa de ser mero
veículo de uma mensagem, quando a leitura se vê desautomatizada por um recurso
lingüístico que se impõe no processo de decodificação. O leitor é levado a
aperceber-se do instrumento com que a ficção é criada e a língua sai de uma posição
de figurante para ocupar o centro das atenções, deixando de ter um papel
instrumental na produção literária, levando a uma assimetria que tem como fim um
efeito estético. A desautomatização, assim, associa-se a um uso idiossincrático da
língua.
46
O fenômeno estilístico tem sido analisado na literatura sob diferentes
enfoques. O estilo pode ser examinado considerando-se um indivíduo, um grupo,
um país ou uma época, e pode igualmente ser definido considerando-se o autor, o
leitor, ou o texto.
A investigação do estilo fundamentada no autor é defendida, por exemplo,
por Buffon, que afirmou “Le style est l´homme même”
46
ou por Câmara Júnior “o
estilo é a definição de uma personalidade em termos lingüísticos” (1978, p. 13). Este
tipo de exame exige, acredito, uma análise de toda a produção do autor, o que
destoa do objetivo deste trabalho. No caso de Sterne, seria necessário um exame de
todo o material escrito por ele, ou seja, sermões, romances, os escritos jornalísticos e
a correspondência, esta última com elementos comprovadamente forjados.
47
O exame do estilo apoiado no leitor foi defendido, por exemplo, por
Guiraud, que disse “Only the reader can decode it [the message], and the reader’s
code will be closely tied to that of the author” (1971, p. 23). Este tipo de
investigação é mais dependente de aspectos relativos, uma vez que está sujeito a
uma série de fatores pouco mensuráveis como atenção, experiência de leitura,
percepção, intenção da leitura, conhecimento da língua ou entendimento do
contexto em que a obra foi escrita. Cada uma destas particularidades influencia a
reação ao fenômeno estilístico e pode levar a um exame, em última instância,
contestável.
A análise textual é, acredito, a forma mais específica de investigação do estilo.
Leech e Short, por exemplo, disseram que “within a text it is possible to be more
specific about how language serves a particular artistic function” (1986, p. 13). No
texto ou em um fragmento textual, o uso da língua é mais homogêneo, o que facilita
o exame ao ressaltar de maneira mais precisa as incidências de desautomatização da
leitura. A minha análise de aspectos estilísticos em A Sentimental Journey será pautado,
pois, no texto em si e, sobretudo, na maneira como Sterne recombina elementos
lingüísticos para chamar a atenção de alguma forma para a sua escrita.
46
Discurso proferido por Buffon em 25 de agosto de 1753 intitulado “Discours sur le style”.
47
Ver Ross, I. C. Laurence Sterne: A Life. Oxford: OUP, 2001.
47
O estilo é um fenômeno dinâmico, o que pode ser comprovado por
variações de vozes na narrativas, alternância de registros, mudanças de tom,
emprego de vocabulário e sintaxe que indiquem, por exemplo, bajulação, compaixão
ou ironia. O estilo é também um fenômeno complexo, pois em um texto o autor
pode adotar um padrão que negará de maneira sistemática ao longo da narrativa,
frustrando uma expectativa, rompendo uma corrente e ressaltando, dessa maneira, a
singularidade da própria produção. O autor segue um modelo, subverte este modelo
a cada certo tempo, apropriando-se dele e tornando-o seu. Por exemplo, em alguns
casos, inclusive no caso de Sterne, o autor subverte o modelo adotado e então
subverte o que já era uma subversão, estabelecendo, dessa forma, uma série de
estilos no mesmo texto.
Apesar de, como já disse, não pretender dar uma definição de estilo neste
capítulo, nem expor um histórico de conceitos aliados ao fenômeno, é necessário
que a análise de aspectos estilísticos que proponho fazer ao longo deste capítulo siga
alguns critérios. Contudo, não seguirei um modelo de análise estilística
preestabelecido, não obstante os muitos propostos por estudiosos do estilo, pois
acredito que “there is no one model of prose style which is applicable to all texts”
(Leech e Short. 1986, p. 39). Esta escolha por não seguir um esquema fechado de
análise se deve à percepção de que a língua e os seus usos são amplos demais para
que sejam reduzidos a um único modelo, apesar das notórias vantagens de cada
proposta.
O estilo analisado, por exemplo, de acordo com a perspectiva da retórica
clássica apresenta diferenças consideráveis se comparado ao estudo do estilo como
tem sido feito aproximadamente desde o século XVIII. Cito duas destas principais
diferenças: “Rhetoric is a productive art, aiming to teach students methods of
persuasive communication; literary stylistics is an analytical practice” (Fahnestock.
2005, p. 216) e a condenação pela retórica da ambigüidade, opacidade, do emprego
de arcaísmos, dialeto e palavras inusitadas, o que causaria admiração aos atuais
estudiosos de estilo. O que era considerado um bom estilo deveria ser examinado
com detalhes para que servisse de modelo. O estilo imitável, dessa forma, seguia
48
determinados padrões que estabeleciam um valor normativo e prescritivo à
produção textual, fosse oral ou escrita.
A retórica clássica estabeleceu igualmente a questão de o estilo ser visto
como um adorno, o que, de certa forma, é defendido até hoje. O estilo assim visto
fundamenta-se na oposição entre idéia e palavra, ou seja, na oposição entre inventio e
dispositio, ligadas à idéia, e à elocutio, a maneira como essas idéias serão expostas por
palavras. O estilo como adorno estabelece a noção de desvio, que se define em
relação ao distanciamento do uso comum da língua e que tem como intenção
adornar o discurso.
Estas etapas distintas para a elaboração de um texto pressupõem que a língua
pode ser usada de várias maneiras, ou que as idéias formadas nas etapas anteriores
podem ser expostas de maneiras variadas, ou melhor, o estilo como adorno e como
desvio pressupõe a sinonímia, o que fundamentará os ataques mais agudos contra
esta visão de estilo.
48
O estilo como adorno e como desvio fundamenta-se na dicotomia entre
pensamento e língua, que fundamentou o enfoque dualista de conteúdo e forma,
muito presente nas discussões sobre estilo e sobre tradução. Estes dualismos
apresentam uma questão discutível quando se trata de instâncias em que há um
entrelaçamento de conteúdo e forma, como na metáfora ou na ironia. Em uma
oposição radical a este enfoque, surge o monista, que defende a impossibilidade de
separar conteúdo e forma e, por isso mesmo, alega a impossibilidade da tradução, o
que a prática comprova que não se sustenta.
Em um processo de tradução, ainda que muito atento, as perdas são
inegáveis, mas contestar a possibilidade de tradução é negar uma prática da qual se
tem registro, pelo menos, desde Cícero. Ambos enfoques apresentam problemas,
mas apresentam também avanços no processo de entendimento do fenômeno
estilístico e não devem ser entendidos como excludentes, mas complementares.
48
Este conceito foi relativizado por Goodman que defendeu uma sinonímia relativa. Ver Goodman, N. “The
Status of Style” in Ways of Worldmaking.
49
O estilo visto como traço individual, que surge por volta do século XVIII,
mas que ganha força sobretudo no XIX, de acordo com Compagnon, “est objectif
comme code d’expression et subjectif comme reflet d’une singularité. (...) Suivant la
conception moderne, heritée du romantisme, le style est associé au génie bien plus
qu’au genre, et il deviant l’object d’un culte” (1998, p. 201). A identificação de um
estilo por meio de um estudo descritivo atribui valor a uma determinada obra e lhe
confere autenticidade. Um exame minucioso do estilo de um autor identificaria,
dessa forma, detalhes específicos que caracterizariam a percepção que aquele
indivíduo tinha do mundo e da vida.
Acredito que cada um desses enfoques contribui de alguma maneira para a
discussão do estilo e que uma combinação deles seria ideal em uma análise estilística.
Cabe ao pesquisador de estilo avaliar que maneira seria mais apropriada para
examinar o objeto que ele tem diante de si, dependendo, em grande medida, do
propósito da pesquisa e do corpus com que está trabalhando.
A identificação do estilo na literatura, acredito, dá-se pela comparação, ou
seja, em relação a um uso determinado e reconhecível. O fenômeno estilístico
consiste em um uso consciente da língua e, para que um elemento se configure
marca de estilo, é necessário que apareça com alguma freqüência, ou seja, atos
isolados não configuram traços estilísticos. No entanto, não usarei estatística para
comprovar incidência de palavras, construções ou extensão de períodos, tampouco
partirei de uma pretensão de quantificação do valor.
A sondagem de estilo que farei neste capítulo estará fundamentada na
comparação, o que pressupõe uma diferença, e diferença se estabelece dentro de um
contexto. Daí a análise de aspectos estilísticos a partir do texto em si, comparando
modelos e usos de língua adotados por Sterne em A Sentimental Journey, variações e
alternâncias destes modelos e usos com vistas a chamar a atenção para a sua escrita,
para a desautomatização da leitura e para o emprego da língua além da mera
decodificação de uma mensagem.
50
O exame do estilo deve levar em conta não apenas “traços lingüísticos
isoladamente, mas também considerar suas relações com outros aspectos do texto e
sua situação contextual. De outro modo, seus enunciados finais serão meramente
lingüísticos” (Spencer e Gregory. 1974, p. 118). Um exame de estilo deve, dessa
maneira, entender contextualmente o porquê, por exemplo, de uma narrativa
demasiado segmentada, de uma variação de registro de um personagem em uma
determinada situação ou, até mesmo, de uma apresentação cronólogica incomum da
narrativa.
2.1.1
ESTILO E TRADUÇÃO LITERÁRIA
A relação entre estilo e tradução literária é relativamente pouco explorada,
talvez até pela dificuldade de lidar de maneira objetiva com uma definição de estilo,
o que levaria a discussões desde um primeiro momento. Há, contudo, estudos sobre
a questão dignos de nota, entre os quais destaco “Towards a Methodology for
Investigating the Style of a Literary Translator” de Baker, do qual ressalto alguns
pontos.
Baker inicia o artigo citando tentativas anteriores de exame do estilo e da
tradução das quais ela discorda, tendo em vista que apresentam “choices made by
specific translators or, more frequently, prescribe guidelines for the selection of
specific translation strategies on the basis of broad stylistics categories formalized as
text types or registers” (2000, pp. 242-243). A imposição de estruturas fechadas para
a prática da escrita não é recente, basta lembrar a retórica clássica, mas é bastante
discutível, uma vez que os usos da língua escapam à normatização sistemática.
Contudo, a crítica de Baker não se fundamenta em uma possível imposição
de um modelo para a prática da escrita, seja do tradutor seja do autor, mas na
recorrente queixa: “this is clearly because translation has traditionally been viewed as
a derivative rather than creative activity” (id., p. 244).
51
Há duas questões na queixa acima das quais não se pode fugir: a primeira é
que a tradução é uma atividade derivativa, sim, ela é produzida a partir de um texto
que já existe, que está pronto. A segunda é a questão da criatividade – Baker fala
como se o tradutor prescindisse de criatividade para traduzir ou como se o fato de o
trabalho ser derivativo excluísse a criatividade. Acho que a atividade tradutória é
tanto derivativa quanto criativa e o fato de ser derivativa não implica demérito ao
tradutor.
Outro ponto pertinente é que a autora parece ignorar o fato de que a
produção textual se insere em uma determinada época e realidade social, o que, por
si só, põe em xeque a questão da criatividade como um valor. Além disso, a escrita,
quer do tradutor quer do autor, depende da bagagem literária e cultural da qual ele
não pode se abstrair.
A partir de então Baker propõe uma investigação do estilo do tradutor, da
sua presença no texto traduzido e expõe a sua definição de estilo: “a kind of thumb-
print that is expressed in a range of linguistic – as well as non-linguistic – features”
(id., p. 245), adotando, dessa forma, a definição a ligada ao romantismo em que o
autor deixa uma marca própria no seu texto. E então passa a explicar o que chamou
de marcas [features]:
Rather than original writing, the notion of style might include
the (literary) translator’s choice of the type of material to
translate, where applicable, and his or her consistent use of
specific strategies, including the use of prefaces or afterwords,
footnotes, glossing in the body of the text etc” (id., p. 245).
Em nota, Baker explica a alegada escolha de material a ser traduzido: “In
literary translation generally (...) it is possible and fairly common for translators to
propose books to publishers, often because they feel they have a particular affinity
with the writer” (p. 263). Essa realidade, infelizmente, não é a brasileira, pelo menos,
não para tradutores profissionais. Salvo raras exceções, a editora compra o título,
estabelece um prazo e o preço da lauda e contata o tradutor.
52
Quanto às estratégias de uso de paratexto, o tradutor, de maneira geral, afora
situações específicas, não tem autonomia suficiente para introduzir prefácios ou
posfácios, as notas de tradução são aceitas em geral
49
, mas a glosa parece não ser
uma prática habitual no mercado de tradução no Brasil.
E, por fim, a autora acrescenta:
More crucially, a study of a translator’s style must focus on the
manner of expression that is typical of a translator, rather than
simply instances of open intervention. It must attempt to
capture the translator’s characteristic use of language, his or her
individual profile of linguistic habits, compared to other
translators (p. 245)
O que Baker pretende então é estabelecer padrões lingüísticos fundamentados nas
escolhas dos tradutores, o que não difere em nada de uma das abordagens mais
correntes de análise estilística a partir do autor. Neste ponto, retomo o desassossego
de Baker e de outros estudiosos de tradução quanto ao estatuto do tradutor e da sua
função como derivativa em oposição à do escritor, criativa. Baker pretende elevar o
prestígio do tradutor valendo-se de um dos princípios do romantismo que é a
singularidade da escrita do autor e o seu gênio. Se o intuito de Baker é examinar o
estilo do tradutor tendo como interesse a sua produção textual idiossincrática, por
que não se propor a analisar textos originais dele? Afinal, que contribuição à
estilística e à tradução a proposta de Baker apresenta?
Não acredito que os tradutores trabalhem em condições ideais, porém há de
se lembrar que existe um mercado que funciona com regras e expectativas
determinadas. Cito abaixo um trecho de uma entrevista que fiz a uma editora em
que ela responde o que, de uma maneira geral, a editora espera de um tradutor.
Que reproduza em português, na medida do possível, as
características do texto original e seu registro lingüístico. Isto é:
se o original apresenta um registro elevado, a tradução tem de
49
Informação extraída de um documento intitulado “Padronização de texto – orientações para tradutores e
copidesques” enviado por uma editora em virtude de uma tradução que fiz em 2005.
53
seguir isso. Se apresenta um registro coloquial, o português
também deve ser coloquial.
50
Ou seja, que haja um eco do estilo do autor na tradução. Acho que o estatuto do
tradutor deveria ser repensado, sim, sobretudo no que diz respeito a pagamento,
direitos autorais, como acontece na editora Hedra
51
, prazos, mas não tentando
escapar do fato de que a tradução, seja intralingual, intersemiótica, ou a tradução em
si, resulta de um objeto pronto e, portanto, constitui uma atividade posterior à do
autor e derivativa, o que não significa que devamos voltar ao estágio em que a busca
por uma definição de equivalência mobilizava tradutólogos.
Claro que o tradutor e o pesquisador de tradução devem estar atentos à
impossibilidade de apreensão da realidade e ao fato de que a prática textual não
passa de uma aproximação do real. Contudo, como afirma Britto:
Conceitos como “significado”, “original” e “equivalência” são
pressupostos incontornáveis das práticas textuais, por mais
problemáticos que sejam. Devemos criticá-los, estar sempre
atentos para seu caráter construído, mas deles não podemos
abrir mão. O jogo do logocentrismo é, em última análise, o jogo
da linguagem. Recusar-se a jogá-lo é condenar-se ao silêncio.
(2001, p. 48)
Ora, não há produção textual que não seja derivativa em alguma medida da
mesma forma que não há uma escrita que seja totalmente original. Toda prática
textual é uma representação ou uma aproximação do real balizada por uma série de
elementos, que, em última análise, tornam a compreensão e a produção textual
possíveis.
A análise estilística que proponho fazer neste capítulo é do texto de Sterne e
a partir deste exame pretendo cotejar, quando necessário, as traduções brasileiras do
texto. Este cotejo faz-se necessário na medida em que manifesta as dificuldades e a
50
Este trecho faz parte de uma série de entrevistas que fiz a alguns editores em virtude de uma comunicação
apresentada na UnB em 17/04/06 intitulada “Autoria e tradução na universidade e no mercado”.
51
Jorge Sallum, um dos entrevistados para a comunicação referida na nota anterior, explicou que na Hedra o
tradutor ganha por lauda e direitos autorais.
54
traduzibilidade do estilo de uma obra. É pertinente, todavia, que se tenha em mente
que o texto traduzido envelhece, de acordo com Benjamin, “enquanto a palavra do
poeta perdura em sua língua materna, mesmo a maior tradução está fadada a
desaparecer dentro da evolução de sua língua” (2001, p. 197). Além disso, a cada
tradução, as dificuldades do texto de Sterne foram diminuindo, auxiliando, assim, a
próxima.
Percebe-se a desautomatização da leitura como um projeto consciente na
escrita de Sterne em A Sentimental Journey já na expectativa de um relato de viagem
dado o título e o que se revela de fato ser a matéria do livro e no deslocamento do
prefácio, que só é escrito depois de seis capítulos. Uma leitura atenta do romance
expõe habilidades estilísticas de Sterne, que, por meio de ambigüidades e ironias,
sacraliza e dessacraliza, enaltece e deprecia as mesmas questões, pessoas e entidades.
Farei uma exposição ao longo das próximas seções de alguns aspectos
estilísticos observados na narrativa de Sterne e discutirei a traduzibilidade de tais
aspectos e, quando necessário, cotejarei as traduções propostas do romance de
Sterne para o português do Brasil.
2.2 A PARÓDIA EM
A SENTIMENTAL JOURNEY
A paródia é uma das marcas da escrita de Sterne nos seus romances e em A
Sentimental Journey é de tal forma construída que desde o seu lançamento a presença
do recurso é motivo de debate. Apesar de mais notória em Tristram Shandy, a paródia
no segundo romance de Sterne é igualmente perceptível, mesmo em pequenos
detalhes.
A compreensão da paródia como um recurso estilístico de Sterne deve,
acredito, partir da percepção do romance como uma continuidade do romance,
narrativa que tem como características ser “una historia de aventura o de amor. (...)
55
El tiempo y el espacio no necesitan someterse a normas empíricas. (...) Los
personajes han sido psicológicamente simplificados. (...) Los asuntos morales son
simplificados” (Riley. 2001, p. 190). A literatura sentimental, por exemplo,
apropriou-se de certos elementos do romance, a mudança está, sobretudo, no tom
realista que os autores imprimem à narrativa.
Sterne emprega elementos do romance em A Sentimental Journey e, a cada certo
tempo, explora seus excessos. Seria uma simplificação afirmar que o romance de
Sterne é uma paródia do romance ou do sentimentalismo, mas ele tira proveito do que
Riley chamou de elemento paródico que parece estar latente no próprio romance e
acrescenta que esta é a razão para que tantos romances dêem “la impresión ambigua
de ser parodias de sí mismos. De forma desconcertante y divertida nos dejan
confundidos sobre cómo o hasta qué punto el escritor se está burlando de nosotros”
(2001, p. 188).
Sterne reconheceu este elemento potencialmente paródico do
sentimentalismo e, em um processo dinâmico, enaltece e escarnece dos seus
princípios. Este uso que Sterne faz do sentimentalismo é possível porque o autor
não só leu a literatura sentimental como também estudou e deslindou o seu método
e, de forma consciente, buscou mostrá-la sob enfoques diferentes.
O esquema de paródia no romance de Sterne dá-se pelo exagero de um
elemento empregado de maneira convencional na narrativa até que adquira uma
feição absurda
52
. A ficção de Sterne pode ser caracterizada pela volubilidade de tom,
que se dá por meio da ambigüidade e que confere aos leitores a sensação de
desconcerto a que Riley se referiu.
A melancolia e o pathos são elementos correntes na literatura sentimental, e
Sterne vale-se destes valores ao longo do romance, como no capítulo em que Yorick
distribui dinheiro para um grupo de mendigos que o rodeia:
Let no man say, “let them go to the devil”—’tis a cruel journey
to send a few miserables, and they have had sufferings enow
52
Ver capítulo 1, seção 1.3.
56
without it: I always think it better to take a few sous out in my
hand; and I would counsel every gentle traveller to do so
likewise: he need not be so exact in setting down his motives for
giving them—they will be register’d elsewhere. (p. 184)
Dois capítulos adiante, os mesmos elementos servem de pretexto para a
paródia do sentimentalismo no episódio do asno morto
53
. Neste episódio, um
homem faz uma viagem da Alemanha até a Espanha para pagar uma promessa em
decorrência da morte de dois filhos e para salvar a vida do terceiro. O esforço pelo
longo trajeto prova-se fatal para o asno que acompanhava o homem, levando-o a
um estado notório de abatimento. A pungência do homem confunde o narrador,
mas não parece espantá-lo: “And this, said he, putting the remains of a crust into his
wallet—and this, should have been thy portion, said he, hadst thou been alive to
have shared it with me. I thought by the accent, it had been an apostrophe to his
child; but ’twas to his ass” (p. 190).
A cena que se segue é de um pathos digno da literatura sentimental:
The mourner was sitting upon a stone bench at the door, with
the ass’s pannel and its bridle on one side, which he took up
from time to time—then laid them down—look’d at them and
shook his head. He then took his crust of bread out of his wallet
again, as if to eat it; held it some time in his hand—then laid it
upon the bit of his ass’s bridle—looked wistfully at the little
arrangement he had made—and then gave a sigh (p. 190).
O grupo de pessoas que o rodeia está tomado de compaixão e a dor do
enlutado sensibiliza todos, como é de se esperar na literatura sentimental. O fato de
o objeto da tristeza do homem ser um asno, a despeito da morte dos filhos, parece
passar despercebido do público que o rodeia e não representa impedimento para a
melancolia alcançada pela cena, uma vez que objetivo do sentimentalismo é este
mesmo e a morte do asno não passa de motivo para a exploração da piedade. O
capítulo encerra-se com uma afirmação do narrador em tom sermonário: “—Shame
53
Páginas 190-192.
57
on the world! said I to myself—Did we love each other, as this poor soul but loved
his ass—’twould be something.—” (p. 192).
O capítulo seguinte Nampont – The Postillion complementa o tom paródico
quando o narrador, na partida da carruagem, tenta moralizar a partir da cena: “The
concern which the poor fellow’s story threw me into, required some attention: the
postillion paid not the least to it, but set off upon the pavè in a full gallop” (p. 192).
O sentimentalismo tem como objetivo provocar a compaixão em um público
sensível e é, dessa forma, dependente de público e deste caráter moralizador.
Quando o narrador, como uma criatura sensível e generosa, comovido com a cena
melancólica, tenta moralizar e se vê impedido pelo cocheiro, toda a sensibilidade e
generosidade empalidecem e ele explode:
I then tried to return back to the story of the poor German and
his ass—but I had broke the clue—and could no more get into
it again, than the postillion could into a trot. —
—The deuce go, said I, with it all! Here am I sitting as candidly
disposed to make the best of the worst, as ever wight was, and
all runs counter. (p. 194)
A seguir, faço um cotejo das quatro traduções brasileiras da cena em que o
homem, mudo, dispõe os apetrechos do asno no chão. As quatro versões não
apresentam inconsistências e, de uma maneira geral, o tom paródico é mantido.
Freitas Martins
O enlutado estava sentado num banco
de pedra, perto da porta, com o xairel e
as rédeas do asno de um lado, que ele
pegava de vez em quando – e então os
pousava de novo – os olhava e meneava
a cabeça. Então tirou o pão da sacola,
como se fosse comer, segurou por
algum tempo – o colocou então sobre o
O inconsolável achava-se sentado num
banco de pedra, junto à porta, tendo ao
lado o arreio e o freio do asno, os quais
segurava de quando em quando, mas
logo os largava, e fitáva-os abanando a
cabeça. Tirava outra vez do alforje os
restos do pão, como se os fosse comer,
mantinha-os na mão durante algum
58
bocal da rédea do asno – olhou
melancolicamente para o pequeno
arranjo que tinha feito – e então
suspirou (p. 191).
tempo, depositava-os em seguida sobre
o freio do asno, contemplando
amarguradamente a cena, e deixava
escapar um suspiro (p. 64).
Xavier Pinheiro
O infeliz estava sentado sobre um banco
de pedra, à porta, tendo ao lado a
albarda e a brida do burro, nas quais
pegava de vez em quando e em seguida
tornava a por no chão; e olhando-as
balançava a cabeça. Tirou novamente do
saco a codea de pão como para come-la;
conservou-a algum tempo na mão e
logo colocou-a ao lado da ponta da
brida do burro, olhando tristemente
para o pequeno arranjo que fizera;
soltou então um suspiro. (pp. 62-63)
O pranteador estava sentado num banco
de pedra junto à porta, tendo de um
lado a sela do asno e sua rédea, que ele
erguia de vez em quando – em seguida
as pousava no chão – olhava para elas e
sacudia a cabeça. Depois retirou a crosta
de pão da sacola novamente, como se
fosse comê-la; segurou-a algum tempo
em sua mão – passou-a depois sobre o
freio das rédeas do asno – olhou
pensativamente para o pequeno arranjo
que fizera – e em seguida soltou um
suspiro. (p. 53)
Os trechos apresentam variações lexicais não representativas para o efeito
paródico, que se dá pelo emprego dos apelos sentimentais em detrimento do objeto.
Há, contudo, uma variação de tempo verbal entre a tradução de Martins e as outras
traduções: no segundo período, a tradução de Martins mantém o pretérito
imperfeito do primeiro período ao passo que as outras mudam para o pretérito
perfeito.
Apesar de a intenção aqui ser o exame da paródia, chama a atenção a escolha
de Martins, que, por si só, não afeta o esquema paródico de Sterne, e que talvez
resulte de um esquema de representação do autor: a descrição de cenas em câmara
lenta, quase como se se apresentassem em série, uma cena após a outra, que Sterne
59
emprega ao longo de todo o romance.
54
Esta representação quase estática que
Sterne faz de certas cenas talvez tenha influenciado Martins a conservar o pretérito
imperfeito dado o seu caráter mais distante.
Estas cenas em câmara lenta associam-se quase sempre à negação de uma
cronologia canônica e representam estados psicológicos muito específicos, neste
caso a melancolia e o desamparo do homem que chorava pelo asno. De acordo com
Watkins, Sterne é dotado de um
astonishing imaginative power in portraying the body in repose
and in movement, and also that hypnotic slow motion, giving
the impression that momentarily time is in abeyance, that the
swift flow of life outside in the world has virtually stopped
(1968, p. 178).
Em uma análise mais detida do parágrafo em questão, percebe-se que o
primeiro período é mais descritivo, o que se pode comprovar com was sitting, que
confere ao quadro uma noção de exposição confirmada com from time to time, que,
por seu turno, empresta à cena uma idéia de continuidade ou sucessão.
No segundo período, todavia, este efeito de representação seriada é
quebrado. Esta quebra dá-se pelo emprego do then. Pode-se argumentar que no
primeiro período há igualmente um then, mas, acredito, esta incidência do advérbio
está ligada à locução from time to time, reiterando a noção de repetição da cena
introdutória. A primeira incidência no segundo período de then combinada a again
retoma o período inicial do capítulo, “And this, said he, putting the remains of a
crust into his wallet—” (p. 190)
e a ação interrompida pela descrição do narrador.
Partindo deste exame, acredito que a opção pelo pretérito perfeito no
segundo período ativada por mim, Xavier e Pinheiro seja mais indicada para a
tradução do trecho. Martins, acredito, hesitou diante deste efeito de descrição
recorrente da narrativa de Sterne e tomou uma decisão que seu próprio texto revela
54
Ver, por exemplo, capítulos “The Gloves – Paris” e “The Captive – Paris”.
60
ter sido vacilante. Ao traduzir then por outra vez, a tradutora manteve o tom
descritivo, não estalecendo a ruptura do original.
Há cenas em que a paródia é menos óbvia e, em grande parte, estas cenas
apresentam um tal entrelaçamento de sentimentalismo e paródia do sentimentalismo
que geram a sensação de suspeita diante do tom pungente. A menção à morte do
padre Lonrenzo é um dos exemplos mais significativos desta ambigüidade
I had a strong desire to see where they had laid him—when,
upon pulling out his little horn box, as I sat by his grave, and
plucking up a nettle or two at the head of it, which had no
business to grow there, they all struck together so forcibly upon
my affections, that I burst into a flood of tears—but I am as
weak as a woman; and I beg the world not to smile, but pity me.
(p. 160-162)
O sentimentalismo não prima pelo comedimento, mas o exagero da dor e das
lágrimas gera uma certa desconfiança. Cotejo, a seguir, as quatro traduções
propostas:
Freitas Martins
senti uma vontade forte de ver onde o
colocaram – quando, tirando sua
caixinha de chifre, sentado próximo ao
seu túmulo e arrancando uma urtiga ou
duas da cabeceira que não tinham nada
que crescer ali, fui tomado tão
violentamente pelos meus sentimentos,
que desatei num choro convulso – sou
tão frágil quanto uma mulher, e peço ao
mundo que não ria, mas que se
compadeça de mim. (p. 161-163)
Dominou-me forte desejo de visitar o
lugar onde o haviam enterrado, e
quando, sentado à beira de seu túmulo
arranquei umas urtigas que ali não
deveriam ter crescido, e tirei do bolso a
caixinha de chifre, – tudo aquilo
pressionou com tal vigor a minha
ternura, que rompi em lágrimas. Sou tão
frágil, porém, quanto uma mulher, e
peço ao mundo que não sorria, mas se
condoa de mim. (p. 46)
61
Xavier Pinheiro
Tive grande desejo de ver o lugar onde o
haviam deposto – assim, sentado perto
do seu túmulo tirei a pequena caixa de
rapé em chifre e arranquei uma ou duas
ortigas que nada tinham a fazer
crescendo aí e tudo isso me commoveu
tão profundamente que desatei em
lágrimas – mas sou tão fraco quanto
uma mulher e rogo ao mundo que não
ria, mas antes me lastime. (p. 36)
tive muita vontade de ver onde o
haviam depositado, – quando, ao retirar
sua caixinha de chifre, enquanto estava
sentado ao lado de sua sepultura, e
arrancando, da parte superior dela, uma
urtiga ou duas que não tinham direito de
nascer ali, fiquei tão fortemente abalado
em meus sentimentos com tudo isso,
que me desfiz em uma torrente de
lágrimas – mas sou tão fraco quanto
uma mulher; e rogo ao mundo que não
sorria de mim, mas me tenha
compaixão. (p. 32)
A solução para o trecho em questão, acredito, deva estar em ressaltar o
exagero melancólico da cena de Sterne, o que se justifica pelo caráter já um tanto
piegas do sentimentalismo. As quatro traduções, acredito, alcançaram em seus textos
este tom excessivamente sentimental por meio da escolha lexical: forte, grande,
violentamente, profundamente, torrente, convulso, desatar e romper, por exemplo.
Acredito que o trecho examinado seja de fato de paródico, apesar de uma
paródia menos manifesta se comparada ao exemplo anterior. Esta convicção vem
do exame de todo o romance e das ocorrências de sentimentalismo puro em Sterne,
como no capítulo The Grace (pp. 320-322). Neste capítulo, o sentimentalismo de
Sterne é legítimo, mas é sóbrio ao mesmo tempo e está associado ao sublime e não a
lágrimas copiosas.
As traduções de Martins e Pinheiro chamaram a minha atenção por escolhas
um tanto artificiais, como “tudo aquilo pressionou com tal vigor a minha ternura” e
“peço ao mundo que não sorria, mas se condoa de mim” de Martins, a muito
parecida “rogo ao mundo que não sorria de mim, mas me tenha compaixão” e
“fiquei tão fortemente abalado em meus sentimentos” de Pinheiro. As ocorrências
62
referem-se aos mesmos fragmentos e o que surpreende é a combinação de
elementos, como pressionar ternura, abalar em sentimentos, sorrir de alguém em oposição a
se condoer. Mas estes são apenas detalhes que não afetam a paródia implícita no
trecho.
Lefevere disse que, de todos os gêneros literários, a paródia é o de mais difícil
para tradução, uma vez que é necessário traduzir “not just one work but two, the
parody and the original. (...) Parody, then, is where’s the translator’s impotence
stands more glaringly exposed, through no fault of his or her own” (2002, p. 44).
Contudo, o que foi observado aqui é que no caso de A Sentimental Journey as
tradutoras não enfrentaram este problema, e a paródia em si não apresentou
dificuldades. Uma possível razão, partindo da afirmação de Lefevere, é a difusão da
estética sentimental.
2.3
IRONIA
Apesar dos conceitos geralmente simples que os manuais atribuem à ironia
como, por exemplo, “use of a word in such a way as to convey a meaning opposite
to the literal meaning of the word” (Corbett e Connors. 1999, p. 405), trata-se de
um recurso sofisticado que “plays with the possibilities of extreme otherness of
speech, of life, or of existence as such” (Oesterreich. 2001, p. 404).
A ironia tem como conceitos agregados a contradição e a dissimulação. A
ironia é dependente do contexto, uma vez que é por meio dele que ela é apreendida;
esta apreensão se contrói por contraste. Assim, a ironia estabelece uma ruptura, uma
tensão, em relação ao contexto, que deve prepará-la com muito cuidado.
A ironia, desse modo, cria uma relação desigual na medida em que corre o
risco de ser incompreendida, podendo incorrer em exclusão de leitura ou em
interpretação enviesada. De acordo com Oesterreich, “The full range of irony is
63
only intelligible through an awareness of the problematic relationship between the
expressed and the intended, between character and the statement, and between
essence and appearance” (id., p. 404).
Na tensão que inaugura entre a literalidade e o que subjaz a ela, a ironia
redefine o limite do provável dentro do discurso, partindo do avesso da letra. A
complexidade da ironia está justamente na obrigatoriedade de se fazer este percurso,
muitas vezes obscuro; ela se dá precisamente no não-dito, ou, ainda, na negação do
dito, o que desafia a inteligibilidade.
A ironia pode se manifestar de formas e em níveis variados, mas implica, de
uma maneira geral, distanciamento, superioridade e uma certa arrogância. A ironia
socrática, por exemplo, refere-se ao método dialético que Sócrates empregava e no
qual fingia ignorância para ressaltar aquela de seus interlocutores, ou, mesmo, na
ironia divina, quando, no episódio da queda do homem, Deus, depois de determinar
o castigo de cada participante, fala: “Eis que o homem se tornou como um de nós,
conhecedor do bem e do mal (...)” Gn 2, 22.
Estes dois exemplos encerram uma certa crueldade na medida em que
expõem a insignificância e a impotência dos alvos da ironia dos dois episódios, mas,
dado o destino de Adão e Eva, que inclui dor, submissão e trabalho, a ironia bíblica
é mais cruel se comparada à socrática em que a crueldade é mais pontual ao passo
que a divina não é passível de desforra. De acordo com Morier,
L’ironie s’accompagne d’un sentiment de parfaite supériorité;
c’est pourquoi elle convient à Dieu, et c’est pourquoi elle
importe chez les hommes une nuance de dédain. (...) C’est une
arme tranchante, qui fait de cruelles blessures d’amour-propre
(1961, p. 217).
Pode-se dizer que a ironia como recurso estilísitico é o avesso da
condescendência, na medida em que estabelece uma distância entre o autor e o
leitor, que se submete. Contudo, esta distância aumenta conforme o tempo decorre
entre a escrita do texto e o ato da leitura, dificultando, por vezes, o reconhecimento
64
da ironia. Certas edições atuais de textos temporalmente afastados acompanhadas de
prefácios, posfácios e notas podem facilmente comprovar isso. Por exemplo, ambas
edições da Penguin dos romances de Sterne Tristram Shandy e A Sentimental Journey
vêm com uma cronologia dos principais acontecimentos pessoais e literários do
autor, prefácio e muitas notas; a edição The Oxford Shakespeare Complete Sonnets and
Poems da OUP vem acompanhada de prefácio, introdução, apêndice, índice
remissivo e notas.
Estes recursos têm como um dos objetivos aproximar um texto afastado
social, temporal e lingüisticamente de um público atual, muitas vezes formado por
estudantes. No entanto, quando soma-se a esses fatores a transposição entre línguas,
o emprego do paratexto parece-me essencial, o que será discutido no próximo
capítulo.
A tradução da ironia é um processo complexo uma vez que envolve uma
série de questões que devem ser observadas. Além do aspecto lingüístico-cultural, há
a preparação contextual para que a ironia se manifeste, e esta manifestação se dá
tanto no conteúdo quanto na forma, o que pode gerar alguma dificuldade para o
tradutor. Mateo chamou a atenção para a questão:
A conception of translation as a process of transporting “sense”
does not account for the intricate process of humour translation
since “sense” in humour, and particularly in irony, has a much
more complex nature (…). It is not sense alone that constitutes
the core of a humorous or ironic statement or situation: the
form is also very important (1995, p. 174)
Examino a seguir alguns trechos de A Sentimental Journey em que Sterne
explora a ironia e, partindo do cotejo das traduções brasileiras, pretendo ver como
as tradutoras lidaram com estas ocorrências.
65
2.3.1 A IRONIA EM
A
S
ENTIMENTAL
J
OURNEY
A ironia em A Sentimental Journey apresenta-se em graus variados e
compreende desde a consciência dos impulsos contraditórios que minam intenções
pretensamente virtuosas até a imagem que os franceses têm de si mesmos.
Quando, por exemplo, o Conde de B****, depois de providenciar o
passaporte para Yorick, lhe pergunta: “And how do you find the French?” (p. 272).
Seu interlocutor tenta escapar de toda forma, mas o conde não desiste e retoma a
questão: “Speak frankly, said he; do you find all the urbanity in the French which
the world give us the honour of?—I had found every thing, I said, which confirmed
it—Vraiment, said the count.—Les François sont polis—To an excess, replied I” (id.). A
resposta do narrador deixa o conde curioso e Yorick vê-se forçado a explicar:
A polish’d nation, my dear Count, said I, makes every one its
debtor; and besides urbanity itself; like the fair sex, has so many
charms; it goes against the heart to say it can do ill; and yet, I
believe, there is but a certain line of perfection, that man, take
him altogether, is empower’d to arrive at—if he gets beyond, he
rather exchanges qualities, than gets them. I must not presume
to say, how far this has affected the French in the subject we are
speaking of—but should it ever be the case of the English, in
the progress of their refinements, to arrive at the same polish
which distinguishes the French, if we did not lose the politesse de
coeur, which inclines men more to human actions, than
courteous ones— we should at least lose that distinct variety
and originality of character, which distinguishes them, not only
from each other, but from all the world besides. (id.)
Há, no excerto destacado, uma incongruência entre o tom amistoso,
complacente e um tanto didático de Yorick e a severidade do julgamento que ele
faz. É neste contraste que está a ironia da cena.
66
Importante observar neste ponto que, como não há palavra, expressão ou
tom irônico per se e como a ironia se dá pelo contexto, ou melhor, é preparada por
ele, as citações desta seção serão, em geral, mais longas.
Um dos alvos mais recorrentes da ironia de Sterne são os franceses, porém
ela não se atém a um só aspecto, é antes difusa, atingindo vários pontos, como
habilidades e juízos de valor. Examinarei dois exemplos representativos deste
recurso no romance: ambos referem-se a La Fleur, o primeiro aborda suas
habilidades e o segundo o requinte dos franceses.
No trecho que destaco a seguir, La Fleur apresenta-se a Yorick, que o
contrata antes mesmo de se informar a respeito de suas habilidades:
But I shall find out his talents, quoth I, as I want them—
besides, a Frenchman can do every thing.
Now poor La Fleur could do nothing in the world but beat a
drum, and play a march or two upon the fife. I was determined
to make his talents do; and can’t say my weakness was ever so
insulted by my wisdom, as in the attempt. (p. 178)
Faço um cotejo a seguir das quatro traduções relativas ao segundo parágrafo
citado:
Freitas Martins
Bom, o pobre La Fleur não sabia fazer
absolutamente nada, além de tocar
tambor e uma ou duas marchas no
pífaro. Eu estava determinado a fazer
com que os seus talentos bastassem; e
posso dizer que a minha fraqueza nunca
foi tão insultada pela minha sensatez
quanto nesta tentativa. (p. 179)
Acontecia, porém, que o pobre La Fleur
nada mais sabia fazer senão tocar
tambor, e uma ou duas marchas no
pífano. Mas eu estava resolvido a fazê-lo
mostrar seus talentos, e não posso dizer,
com relação a essa tentativa, que minha
fraqueza de sentimentos jamais tivesse
sido insultada por minha sabedoria. (p.
56)
67
Xavier Pinheiro
Ora, o pobre La Fleur não sabia no
mundo senão bater tambor e tocar uma
ou duas marchas no pífaro. Eu estava
decidido a achar que seus talentos
bastavam; e não posso dizer que a
minha fraqueza tivesse sido algum dia
tão insultada pela minha prudência
como nessa ocasião. (p. 51)
Ora, o pobre La Fleur não sabia fazer
nada no mundo a não ser rufar um
tambor e tocar no pífaro uma ou duas
marchas. Eu estava decidido a fazer com
que seus dotes funcionassem; e não
posso dizer que minha fraqueza tenha
jamais sido tão insultada por minha
sabedoria quanto nesta tentativa. (p. 44)
A realidade invade, com freqüência, a narrativa de Sterne. Mendilow chamou a
atenção para o fato de que
The great aim of Sterne was to give as true a picture as possible
of real human beings as they are in themselves, not as they
imagine themselves to be, nor as others judge them to be by
their own actions and outward behavior alone. This meant the
shifting of emphasis (…) from the patterned plot artificially
conceived and imposed on the characters, to the free evocation
of the fluid, ever-changing process of being. (1968, p. 90)
A ironia do fragmento está no contraste estabelecido entre o senso comum e
o fato em si, que, apesar da boa vontade do narrador, se sobrepõe a qualquer ato de
generosidade. Sterne generaliza com a Frenchman can do every thing para, em seguida,
supreender com o incisivo nothing in the world. A tradução, acho, deve ressaltar a
contradição marcada no texto, o que o “não sabia fazer absolutamente nada, além
de” da minha tradução e o “nada mais sabia fazer senão” da tradução de Martins
parecem conseguir. As traduções de Xavier e Pinheiro, na minha opinião,
enfraquecem a ironia com as opções menos categóricas. Contudo, não obstante a
variação de destaque dada por cada tradutora, a ironia do fragmento resiste.
68
O período seguinte, I was determined to make his talents do; and can’t say my
weakness was ever so insulted by my wisdom, as in the attempt, porém, parece ter gerado
algum tipo de dificuldade para Martins e Pinheiro, cujas traduções apresentaram
variações um tanto significativas. O trecho de Martins, na minha opinião, parece
apresentar três questões discutíveis. A primeira é a opção da tradutora por “fazê-lo
mostrar seus talentos”, o que parece não ter relação com o make his talents do do
original. A segunda é a sua tendência à prolixidade, que, neste caso, se revela com
“porém” e “de sentimentos”. A terceira diz respeito à ausência de tradução de ever
so, o que gera um texto um tanto distante do original, uma vez que “e não posso
dizer, com relação a essa tentativa, que minha fraqueza de sentimentos jamais tivesse
sido insultada por minha sabedoria” não traduz and can’t say my weakness was ever so
insulted by my wisdom, as in the attempt.
A tradução de Pinheiro apresentou igualmente uma opção, a meu ver,
questionável para make his talents do, ou seja, “fazer com que seus dotes
funcionassem”. Apesar de a opção de Pinheiro estar mais próxima do original se
comparada à de Martins, “funcionar” não parece transmitir a idéia que do transmite
no original. Além disso, o emprego de “jamais” tanto por Martins quanto por
Pinheiro parece-me artificial. É um tanto raro ver o emprego do advébio “jamais”
aliado ao pretérito mais-que-perfeito composto em um texto originalmente escrito
em português do Brasil. Se fosse uma opção estilística em que conscientemente, a
exemplo de Sterne, as tradutoras buscassem chamar a atenção para a própria escrita,
seria, pelo menos, uma intenção discutível, o que não parece ser o caso.
A seguir examino um trecho que ironiza o refinamento dos franceses:
It is not mal a propos to take notice here, that tho’ La Fleur
availed himself but of two different terms of exclamation in this
encounter—namely, Diable! and Peste! that there are nevertheless
three, in the French language; like the positive, comparative, and
superlative, one or the other of which serve for every
unexpected throw of the dice in life.
69
Le Diable! which is the first, and positive degree, is generally
used upon ordinary emotions of the mind, where small things
only fall out contrary to your expectations—such as—the
throwing once doublets—La Fleur’s being kick’d off his horse,
and so forth—cuckoldom, for the same reason, is always—Le
Diable!
But in cases where the cast has something provoking in it, as in
that of the bidet’s running away after, and leaving La Fleur
aground in jack-boots—’tis the second degree.
’Tis then Peste!
And for the third—
—But here my heart is wrung with pity and fellow-feeling, when
I reflect what miseries must have been their lot, and how
bitterly so refined a people must have smarted, to have forced
them upon the use of it (pp. 188-190).
O capítulo a que este trecho se refere é todo dedicado a ironizar os franceses:
em um primeiro momento, a empáfia e então o refinamento, que será examinado
aqui. A ironia é preparada ao longo do trecho com a explicação do narrador em tom
um tanto pedagógico das exclamações de frustração na França, a classificação, a
gradação e a aplicabilidade de cada uma, para então, por fim, condoer-se com a
contradição de um povo tão refinado usar expressões tão grosseiras.
Apresento a seguir parte das quatro traduções propostas para análise:
Freitas Martins
E, quanto ao terceiro –
Mas, neste caso, meu coração fica
apertado de compaixão e solidariedade,
quando reflito sobre os infortúnios
sofridos e os martírios enfrentados por
um povo tão refinado a ponto de se ver
forçado a empregá-lo. (pp. 189-191)
E, quanto ao terceiro...
Mas aqui sinto apertar-me o coração, de
compaixão e solidariedade, ao refletir
quão amargamente deve ter sofrido um
povo tão requintado, para se ver
obrigado ao uso de semelhantes
expressões. (p. 63)
70
Xavier Pinheiro
Quando ao terceiro...
Sinto o coração desolado de piedade e
de compaixão fraternal, pensando nas
misérias que deve ter sofrido, nas
amarguras em que se terá saciado um
povo tão refinado, a ponto de se ver
constrangido a fazer uso dela. (p. 61)
E quanto ao terceiro –
– Mas aqui meu coração se confrange de
piedade e de sentimento de
solidariedade quando reflito que
desgraças devem ter sido o quinhão de
um povo tão refinado, que deve ter
sofrido amargamente para ter sido
forçado a usá-lo. (p. 52)
As quatro traduções apresentam o paradoxo explorado por Sterne para
alcançar o tom irônico da cena e, em graus variados, encontraram soluções bastantes
felizes. Martins oblitera um trecho do original, que todavia não priva o texto da
ironia. A minha tradução e a de Xavier aproximam-se na estruturação do período e a
tradução proposta por Pinheiro parece-me muito apropriada, a sua reorganização do
período foi bastante eficiente, em especial, ao adiantar “um povo tão refinado” e o
emprego de “quinhão” parece estabelecer uma relação mais próxima com o texto
proposto por Sterne.
Contudo, apesar de a tradução proposta por Pinheiro do trecho examinado
apresentar, na minha opinião, opções mais interessantes, a ironia é mantida nas
quatro traduções.
A atividade tradutória, por mais cuidadosa que seja, reflete uma leitura, uma
percepção resultante de uma experiência literária, além de gerar escolhas, que, por
mais que se evite, suprimirão, em algum momento, certos aspectos do texto original.
Contudo, apesar de eventuais frustrações, há certos textos que resistem a repetidas
traduções, Borges, por exemplo, disse que “Quijote gana póstumas batallas contra
sus traductores y sobrevive a toda descuidada versión” (1931). Outros casos
bastante representativos dessa categoria são alguns livros da Bíblia como o
71
Eclesiastes e o Cântico dos Cânticos, que resistiram até mesmo à tradução em geral
literalista de João Ferreira de Almeida
55
.
Os excertos traduzidos examinados relativos à paródia e à ironia revelaram
opções por vezes bastante discrepantes, mas, de uma maneira geral, preservaram os
esquemas de ironia e paródia propostos por Sterne. Acredito que a sobrevivência
destes esquemas nas traduções brasileiras se deva, sobretudo, ao texto mesmo. A
escrita de Sterne, ao mesmo tempo que é complexa e desafiadora para o tradutor, é
tão cuidadosamente estruturada, a ponto de dificultar deslizes consideráveis. Isto
evidencia o apuro língüístico com que Sterne escreveu A Sentimental Journey que tem
sobrevivido até mesmo à prova da tradução, apesar de simplificações, interpretações
enviesadas e tentativas de disciplinar pontuação e paragrafação propostas por
algumas tradutoras brasileiras.
2.4
THOU
Nesta seção, faço uma análise dos desvios no uso que Sterne faz do pronome
thou e das suas formas correlatas thee e thy ao longo do texto, a que está associado
este recurso e como isto se reflete na tradução.
No inglês antigo, o thou era o pronome da segunda pessoa do singular com a
função de sujeito, o pronome correspondente com função de objeto era o thee, as
formas no plural eram respectivamente ye e you. No early modern English, o pronome
ye foi sendo gradualmente substituído pelo you; e
By the time of Shakespeare, you had developed the number
ambiguity it retains today, being used for either singular or
plural; but in the singular it also had a role as an alternative to
thou / thee. It was used by people of lower rank or status to
those above them (such as ordinary people to nobles, children
55
Padre português que traduziu a Bíblia no século XVII.
72
to parents, servants to masters, nobles to the monarch), and was
also the standard way for the upper classes to talk to each other.
(Crystal. 1995, p. 71)
Dessa forma, na linguagem coloquial, na época de Shakespeare, o thou e o thee eram
ativados, ao passo que o you se aplicava a um uso mais formal. Ainda de acordo com
Crystal, o ye continuava em uso até que “by the end of the 16th century it was
restricted to archaic, religious, or literary contexts. By 1700, the thou forms were also
largely restricted in this way” (id., p. 71). Wales concorda: “Most histories of English
stop discussing ‘thou’ after the seventeenth, or the eighteenth at the latest, when it is
considered ‘marked’ rather than ‘unmarked’ and characteristically regard it as
‘obsolete’”, mas acrescenta que isto é verdade para o inglês padrão e formal.
O caráter solene que comumente se associa a thou pode ser uma
conseqüência do seu emprego no texto bíblico, em especial, quando se dirige a
palavra a Deus. Apesar de you ser então uma alternativa viável e, talvez, a mais
apropriada até mesmo pela formalidade que encerrava, o texto bíblico ativa o thou.
Crystal aponta duas possíveis razões para esta opção:
This may be because the usage was consciously archaic – a
recollection of the early Middle English situation when Thou
would have been the only possible form of address in the
singular. Alternatively, the usage may show the influence of the
first Bible translators, who were following languages that
distinguished second person singular and plural pronouns. (…)
This practice may have influenced the choice of Thou in English,
even in an age when a singular you would have been possible. (p.
71)
Assim, o emprego de thou em clássicos da literatura como Shakespeare e no texto
bíblico, primeiro na tradução de Tyndale e depois retomado na King James,
imprime uma formalidade ao pronome, que, na prática, inexistia.
73
Wales ressalta que o thou não é empregado apenas na Bíblia, mas em sermões,
hinos religiosos, cerimônias religiosas e que o seu emprego no discurso litúrgico é
“very much a powerful symbol, a style marker of something set apart”.
Cabe ressaltar porém, ainda de acordo com Wales, que o pronome thou e suas
formas correlatas são usados em áreas de Yorkshire, Derbyshire, Nottinghamshire e
Lincolnshire mas estes são usos restritos, que não configuram em enciclopédias e
gramáticas do inglês padrão e que tendem a desaparecer “because of the spread of
standard English into the educational system, the increased mobility of the
population, and the rise of urbanization”.
2.4.1
T
HOU
EM
A
S
ENTIMENTAL
J
OURNEY
Em A Sentimental Journey, bem como em Tristram Shandy, Sterne muda o
registro, passando do emprego do pronome you para o thou, às vezes, em períodos
seguidos e, com alguma freqüência, sem conexão aparente com o enredo:
– And what have you to do, my dear, said I, with The Wanderings
of the Heart, who scarce yet know you have one; nor, till love has
told you it, or some faithless shepherd has made it ache, canst
thou ever be sure it is so. – Le Dieu m'en garde! said the girl. –
With reason, said I – for if it is a good one, 'tis pity it should be
stolen; 'tis a little treasure to thee, and gives a better air to your
face, than if it was dress'd out with pearls. (p. 232)
Esse uso intercambiado dos pronomes não é inaugurado por Sterne. Tome-se, por
exemplo, Shakespeare que o fez em diversas ocasiões
56
.
56
Ver King Lear, ato I e Hamlet, atos I e III.
74
Sterne escreveu A Sentimental Journey em inglês coloquial do século XVIII e o
pronome thou já era então um arcaísmo comumente associado a um registro mais
solene, poético ou religioso.
Em A Sentimental Journey, Sterne lança mão do pronome thou e suas formas
correlatas, thee e thy, ao longo de todo o texto. Há, como é de se esperar, casos em
que o emprego do pronome está direta ou indiretamente relacionado ao texto
bíblico. Há citações literais: “What aileth thee? and why art thou disquieted? and why is thy
understanding troubled?” (p. 154) e inúmeras adaptações e paráfrases do texto bíblico,
nas quais o texto da Bíblia apresenta outros pronomes e que o autor os reescreve
com o thou: “Imbibe the oil and wine which the compassion of a stranger, as he
journeyeth on his way, now pours into thy wounds”
(p. 316).
É importante ressaltar que as citações e as adaptações da Bíblia de que Sterne
lança mão têm como objetivo a exaltação do texto bíblico e de Deus, ainda que
indiretamente, como quando exalta Bevoriskius, que, por sua vez, exaltou Deus
57
.
A associação que o autor faz do thou com o divino explicita-se nas
ocorrências em que o autor se dirige a Deus em orações ou pedidos, como, por
exemplo:
Gracious heaven! cried I, kneeling down upon the last step but
one in my ascent, grant me but health, thou great Bestower of it,
and give me but this fair goddess as my companion – and
shower down thy mitres, if it seems good unto thy divine
providence, upon those heads which are aching for them. (p.
244)
Em português, a Bíblia Sagrada de João Ferreira de Almeida, do século XVII,
e a Bíblia de Jerusalém, de 1981, apresentam o pronome tu em todo o texto,
independentemente do receptor, mesmo nas preces
58
. Apesar de A Bíblia na
Linguagem de Hoje, de 1973, apresentar o você quando os homens falam entre si ou
57
Ver original p. 270 e tradução p. 271.
58
Ver Lc 11, 2-4 e Mt 6, 9-13.
75
quando Deus lhes dirige a palavra, o tu é mantido quando o receptor é Deus. Para a
tradução do romance, usei a Bíblia de Jerusalém e a Bíblia Sagrada de Almeida para
as alusões e citações bíblicas no texto de Sterne.
Dessa forma, mantive o tu na tradução para manter a relação que Sterne
estabelece com o texto bíblico e com o divino e para conservar o estranhamento
motivado pelo emprego do pronome na narrativa, como, por exemplo, no trecho
destacado
59
:
Sterne Freitas
and wast thou in my own land, where I
have a cottage, I would take thee to it
and shelter thee: thou shouldst eat of my
own bread, and drink of my own cup – I
would be kind to thy Sylvio – in all thy
weaknesses and wanderings I would
seek after thee and bring thee back (p.
314)
e se estivesses na minha terra, onde
tenho uma choupana, te levaria lá e te
abrigaria: comerias do meu pão e
beberias da minha taça – seria gentil
com o teu Sylvio – em todas as tuas
fraquezas e desvios, procuraria por ti e
te traria de volta (p. 315)
Em todas as ocorrências em que o thou é ativado em A Sentimental Journey, em
citações e paráfrases da Bíblia ou em preces, o traduzi pelo tu, uma vez que é o
pronome empregado no discurso bíblico em língua portuguesa. Há a opção pelo vós,
sobretudo em relação às preces; isto, contudo, incorreria em discordância com o
texto bíblico, citado ao longo de toda a narrativa. Nas Bíblias em língua portuguesa,
os pronomes tu e vós são empregados de forma discriminada, de acordo com o
número, portanto optei por manter o tu em todo o texto.
Das três traduções de A Sentimental Journey para o português que analisei,
duas, a de Xavier e a de Pinheiro, adotaram a mesma estratégia, ao passo que
Martins emprega tanto o tu quanto o vós. O trecho acima destacado refere-se a
Maria, personagem de Tristram Shandy, a quem Yorick se dirige com you, com
59
2Sm 12, 3.
76
exceção de dois trechos em que há alusão ao texto bíblico, este e outro referente à
parábola do bom samaritano.
60
A minha tradução, bem como a de Xavier e a de Pinheiro, seguiu o esquema
do original, ou seja, onde havia referência ao texto bíblico e portanto o thou, usei o tu
e onde havia you, traduzi por você. Martins ignorou a opção estabelecida no original e
optou por ativar somente o tu, como, por exemplo, no trecho destacado:
Sterne Martins
And where will you dry it, Maria? said I.
– I'll dry it in my bosom, said she –'twill
do me good.
And is your heart still so warm, Maria?
said I. (p. 314)
– E onde o secarás, Maria? – perguntei.
– Eu o secarei em meu seio –
respondeu; – far-me-á bem.
E o teu coração ainda conserva calor,
Maria? (p. 135)
A opção de Martins intriga porque não há como entender suas razões. Supor que
Sterne tenha empregado o thou e o you aleatoriamente é um tanto ingênuo, dada a
regularidade do emprego dos pronomes em toda a narrativa e da coerência
subjacente às ocorrências do thou. Contudo, o que há de mais curioso nesta opção é
a desatenção com suas conseqüências.
A atividade tradutória requer uma leitura meticulosa. Claro que muitos
aspectos escapam à leitura do tradutor e que tradução completa e perfeita inexiste;
todavia, é difícil não identificar esta assimetria no romance e mais ainda não
perceber que por trás desta irregularidade há, ainda que não se entenda, um porquê
e um efeito. Ao optar pelo emprego do tu no trecho acima, a tradução de Martins se
priva de ressaltar o discurso bíblico, de que Sterne lança mão ao longo de toda a
narrativa.
Contudo, para além da relação dialógica do texto de Sterne com a Bíblia e da
presença da culpa e da melancolia, que percorre igualmente todo o romance, o que
chama a atenção nas ocorrências do thou é que uma parte delas está ligada a um
60
Ver p. 316 do original.
77
discurso lamentoso, melancólico, sentimental e outra parte a um discurso cômico.
Percebe-se que, no primeiro caso, as circunstâncias encerram ora perda, ora
arrependimento ao longo do texto e servem de baliza para o discurso patético, que,
embora permeie todo o romance, vê-se associado, um sem-número de vezes, ao
emprego do pronome.
A opção pelo thou estabelece amiúde a abordagem do sublime e é por meio
do pronome que Sterne o explicita. Ao longo da narrativa, há inúmeras apóstrofes
dirigidas a tudo que exerce poder sobre a humanidade ou que foge ao controle
humano: Deus, a fantasia, a natureza, a liberdade, a sensibilidade, a paixão. Há
nestas apóstrofes uma melancolia e uma reverência exploradas por meio da
formalidade e do distanciamento a que o narrador se impõe diante delas. Na
tradução, optei por preservar o tu para manter o tom cerimonioso do original e para
marcar o desvio de registro:
Sterne Freitas
Dear sensibility! source inexhausted of
all that's precious in our joys, or costly
in our sorrows! thou chainest thy martyr
down upon his bed of straw – and 'tis
thou who lifts him up to H
EAVEN
eternal fountain of our feelings! – 'tis
here I trace thee – and this is thy divinity
which stirs within me (p. 316)
Cara sensibilidade! fonte inesgotável de
tudo que é precioso nas nossas alegrias
ou custoso nos nossos pesares!
acorrentaste teu mártir ao seu leito de
palha – e és tu que o elevas ao P
ARAÍSO
eterna fonte de nossos sentimentos! –
é aqui que te descubro – e é esta tua
divindade que se agita dentro de mim (p.
317)
Dessa maneira, Sterne trata do sublime com linguagem sublime, em
consonância com Demetrius que defendia que “na prosa, a linguagem poética
imprime sublimidade”
61
(p. 226) e que “o estilo deve ser apropriado para o assunto
61
Em inglês: poetical language in prose lends sublimity.
78
– um estilo simples para um assunto simples e um estilo grandioso para um assunto
grandioso”
62
(p. 228).
Até aqui, viu-se que o desvio estabelecido pelo thou está associado ao
sentimental e ao patético; contudo, Sterne inaugura o desvio no desvio e reinventa
um uso cômico para o pronome, dessacralizando-o, ou, talvez, divinizando o
mundano.
Este efeito no texto de A Sentimental Journey manifesta-se sobretudo em
oposição ao registro formal e ao distanciamento com que Sterne aborda o sublime,
aqui caracterizado pelo uso sacralizado do thou. O pronome, empregado no discurso
divino, patético e poético, é subvertido e passa então a se aplicar a questões
menores, ao prosaico.
A comicidade, que se reflete neste emprego do thou, estabelece-se nos
assuntos tratados, em especial, nas investidas amorosas (pp. 232, 250, 275) e nas
apóstrofes a Eugenius (pp. 212, 240). No trecho que se segue, por exemplo, onde há
uma alusão a um envolvimento entre Yorick e a fille de chambre, o narrador faz uma
espécie de discurso, carregado de sentimento de culpa cristã, em defesa da paixão e
de si mesmo diante de Deus, depois de esboçar alguma resistência:
If Nature has so wove her web of kindness that some threads of
love and desire are entangled with the piece – must the whole
web be rent in drawing them out? – Whip me such stoics, great
Governor of nature! said I to myself – Wherever thy providence
shall place me for the trials of my virtue – Whatever is my
danger – whatever is my situation – let me feel the movements
which rise out of it, and which belong to me as a man –and if I
govern them as a good one, I will trust the issues to thy justice:
for thou hast made us, and not we ourselves. (p. 280)
Exporei a minha tradução e a tradução de Martins referente a parte do trecho acima
para fazer um exame da tradução do thou e da sua coerência ao longo da narrativa:
62
Em inglês: style must be appropriate to its subject – a modest style to a modest subject, and a grand style to
a grand subject.
79
Freitas Martins
Arranca de mim tais estóicos, grande
regente da natureza! disse para mim
mesmo – independentemente de onde a
tua providência me colocar para o
julgamento da minha virtude –
independentemente do meu risco –
independentemente da minha situação –
deixa-me sentir os movimentos que
surgem dela e que pertencem a mim
como homem – e se os conduzo como
se deve – confiarei as questões à tua
justiça, pois tu nos fizeste – e a ti
pertencemos. (p. 281)
Arrancai-me tal estoicismo, grandioso
Governador da natureza! – falei comigo
mesmo. – Onde quer que a providência
me coloque para provar a minha virtude,
qualquer que seja o perigo, qualquer que
seja a situação em que me encontre,
deixai-me sentir as emoções que dela se
originam, e que me pertencem na minha
qualidade de homem; e se eu as
governar como um homem de bem,
confiarei o resultado à vossa justiça,
porque fôstes vós quem nos fizestes, e
não nós próprios. (p. 115)
A tradução de Martins oscila, ao longo do romance, entre os pronomes tu e
vós. O critério para o emprego do vós parece ter sido em preces dirigidas a Deus; há,
entretanto, casos que não se encaixam neste critério e em que a tradutora parece não
atentar para a mudança do pronome no original. Acredito que a opção de Martins
afeta a recepção estética do texto, uma vez que esta outra opção para a tradução do
thou gera um impedimento desnecessário para a associação entre os usos de que
Sterne faz do pronome, sua sacralização e dessacralização.
Há, no trecho destacado, uma referência ao texto dos Salmos
63
. Apesar de a
intenção aqui ser o exame do emprego dos pronomes, chama a atenção o fato de
que, em detrimento do original, Martins tenha optado por ignorar a referência ao
texto bíblico, recurso recorrente em todo o romance. Há uma discrepância entre os
textos das Bíblias em inglês e português, mas, nesse caso, a substituição de um
trecho pelo outro não representa problema interpretativo e, além disso, mantém a
referência pretendida. É importante considerar na atividade tradutória os detalhes
63
Sl 100, 3: Sabei que Iahweh é Deus, ele nos fez e a ele pertencemos.
80
que resultam em efeitos para a recepção do texto, pois ignorá-los incorre em risco
de condescendência com o leitor contemporâneo.
No fragmento acima, Martins opta pelo pronome vós, o que em si não está
errado: há em português a tendência a fazer preces com esse pronome. O que é
questionável nesta opção é a desatenção com o desalinho consciente de Sterne. Ao
optar pelo vós, Martins impede o contraste entre os usos e o seu efeito.
Só se estabelece o efeito destas passagens quando confrontadas com o efeito
melancólico das outras que ativam o thou com tal propósito. No texto traduzido, é
importante que se busque reproduzir este suposto desalinho, ou ainda, que as
oposições exploradas por Sterne entre you e thou e entre o thou sublime e o thou
burlesco sejam reconhecidas e discriminadas na leitura. Dessa forma, optei por
manter a segunda pessoa do singular no texto traduzido tanto para estabelecer uma
identidade com o tu aliado ao discurso bíblico e já adotado ao longo da tradução nas
ocorrências do thou patético, quanto para marcar a irregularidade calculada de
Sterne:
Sterne Freitas
my dear Eugenius, thou hadst passed by,
and beheld me sitting in my black coat,
and in my lack-a-day-sical manner,
counting the throbs of it, one by one,
with as much true devotion as if I had
been watching the critical ebb or flow of
her fever – How wouldst thou have
laugh'd and moralized upon my new
profession?– and thou shouldst have
laugh'd and moralized on – Trust me,
my dear Eugenius, I should have said,
'there are worse occupations in this
world than feeling a woman's pulse.' – But a
meu caro Eugenius, se passasses por ali
e me visses sentado com meu casaco
preto e com meu ar lânguido, contando
as pulsações, uma a uma, com uma
devoção tão verdadeira como se
estivesse acompanhando o fluxo e o
refluxo crítico da sua febre – Como
terias rido e moralizado a respeito da
minha nova profissão? – e terias rido e
moralizado – Acredite, caro Eugenius,
eu diria “há ocupações piores neste
mundo que sentir o pulso de uma mulher.” –
Mas de uma grisette! Dirias – e numa
81
Grisset's! thou wouldst have said – and
in an open shop! (p. 212)
loja aberta! (p. 213)
Acredito que um dos desafios da tradução de A Sentimental Journey está em ressaltar
as marcas do thou, sem, contudo, se pretender um texto do século XVIII. Dessa
forma, mantive a alternância dos pronomes proposta pelo autor, sem perder de vista
que esta tradução é atual, atentando para os arcaísmos já presentes no texto de
partida, buscando aliar o tom arcaizante que Sterne imprime a determinadas
passagens do seu texto à inteligibilidade.
Cabe ressaltar a importância da inteligibilidade do texto, apesar das
alardeadas estratégias de visibilidade do tradutor apregoadas por Venuti
64
, porque o
texto, por si só, já apresenta algumas dificuldades dado o distanciamento temporal e
as várias citações e alusões a outros textos, além dos muitos trechos em francês.
Contudo, acredito ser desnecessária a adoção de uma postura de condescendência
com o leitor, acreditando que a simplificação do texto facilitaria a leitura. Uma
estratégia respeitosa com o leitor, acredito, é a adoção do paratexto, o que será
discutido no próximo capítulo.
64
Ver, por exemplo, The Translator’s Invisibility (1995) e The Scandals of Translation (1998).
82
CAPÍTULO 3
A TRADUÇÃO DE
A SENTIMENTAL JOURNEY
Neste capítulo, discuto aspectos ligados ao processo de tradução de A
Sentimental Journey, atentando, sobretudo, para o lapso temporal entre a sua primeira
publicação e a tradução aqui proposta. Este distanciamento temporal demanda um
posicionamento diante do texto a ser traduzido que pode ir desde uma tentativa de
simplificação do texto até uma de reverência para com o texto original, como na
estratégia defendida por Schleiermacher
65
. Para efeito de análise, discutirei não só as
estratégias da minha tradução, mas também, a exemplo do capítulo anterior,
cotejarei trechos desta com aquelas de Xavier, Martins e Pinheiro. Este exame,
porque pautado neste lapso, versará sobre a estruturação do romance, o papel das
notas de tradução e a relevância do intertexto para a tradução.
A preocupação com a distância temporal não se deve a uma tentativa de
análise fundamentada na recepção do texto de Sterne no século XVIII; deve-se
antes à consciência da relevância do contexto de então para o ato tradutório porque
dependente de um entendimento do ambiente em que se inseria. O exame desta
inserção temporal de A Sentimental Journey é importante na medida em que explicita,
por exemplo, algumas das relações de intertextualidade e de ironia estabelecidas por
Sterne. De acordo com Jauss,
a verificação deste “ser diferente”, da distância estranha na
contemporaneidade da obra literária, exige uma leitura
reconstrutiva que inicie com a procura daquelas perguntas –
geralmente difíceis de reformular – às quais o texto dava a
resposta em sua época.
66
(2002, p. 882)
65
Ver Sobre os diferentes métodos de tradução in Clássicos da toria da tradução, vol. 1, pp. 27-87.
66
Tradução de Marion Hirschmann e Rosane Lopes.
83
O texto de Sterne é rico em referências a outros textos, à literatura de viagem e ao
sentimentalismo. Propor uma tradução e um posterior exame desta tradução sem
entender o diálogo que estava sendo travado na obra pode gerar uma versão
empobrecida na língua de chegada.
A narrativa de A Sentimental Journey é construída a partir de episódios em que
há uma profusão de digressões e alusões diretas e indiretas a outros textos. É no
processo de tradução que estes traços ficam mais claros. O tradutor se vê diante de
capítulos seguidos ou intercalados com o mesmo título, interrupções constantes da
narrativa e inúmeras paráfrases, cujas origens nem sempre são claras. Além disso,
há uma tensão constante entre o sentimental e o humor e uma certa tendência à
sugestão, em detrimento do explícito.
A tradução cuidadosa requer uma leitura pormenorizada. É esta leitura que
idealmente garante a compreensão do texto para que ele seja vertido na língua de
chegada. Sterne parece concordar com isso, pois no capítulo The Fragment – Paris,
Yorick vê-se diante de um fragmento que ele julga ser de Rabelais e, depois de várias
tentativas frustradas de leitura, diz: “I thought I made sense of it; but to make sure
of it, the best way, I imagined, was to turn it into English, and see how it would look
then” (p. 292).
Há instâncias de obscuridade ao longo de toda a narrativa de Sterne. O
primeiro desafio é tentar decifrá-las para então traduzi-las, resistindo à tentação de
esclarecer o texto.
Uma tradução não pode nem deve ser um comentário. (...) nos
momentos em que o original apenas sugere ao invés de
expressar com clareza, onde ele se permite o uso de metáforas
cujas relações são de difícil compreensão, onde omite idéias de
ligação, nesses momentos o tradutor cometeria uma injustiça ao
introduzir por conta própria e arbitrariamente uma clareza que
altere o caráter do texto
67
. (Humboldt, 2001, p. 99)
67
Tradução de Susana Kampff Lages.
84
Busquei manter na minha tradução, sempre que possível, as ambigüidades presentes
no texto original, não por uma reverência ao autor nem por um comprometimento
com alguma teoria específica de tradução, mas pela regularidade destas ocorrências e
pelo efeito que geram.
Acredito que o principal desafio da tarefa tradutória esteja em transcender a
tendência à cisão do texto em forma e conteúdo e enxergar a complementaridade de
ambos os aspectos no texto. Esta transcendência evitaria eventuais simplificações,
desmembramentos e deformações do texto, que geram amiúde traduções que mais
parecem explicações, adaptações ou pastiches do texto original.
Berman, em La traduction et la lettre ou l’auberge du lointain, deu uma das
contribuições mais pertinentes para a discussão da prática tradutória quando propôs
uma categorização das deformações da letra decorrentes da atividade tradutória. O
esquema apresentado pelo autor parte da negação da prática da tradução
etnocêntrica que prima pela mera transmissão de sentido: “La transmission du sens
est mauvaise, parce que le sens est lié à la lettre, et que la captation du sens ne
saurait nous fournir qu’un message brouillé, déformé.” (1999, p. 46)
É interessante observar a relação não explicitada pelo autor entre as suas
idéias e aquelas defendidas por Schleiermacher concernentes à tradução. Ao afirmar,
por exemplo, que na tradução etnocêntrica o elemento estrangeiro deve se aclimatar
à língua de chegada, ou, mais claramente, ao citar os princípios da tradução
etnocêntrica:
On doit traduire l’oeuvre étrangère de façon que l’on ne ‘sente’
pas la traduction, on doit la traduire de façon à donner
l’impression que c’est ce que l’auteur aurait écrit dans la langue
traduisante. Ici la traduction doit se faire oublier (...) Cela
signifie que toute trace de la langue d’origine doit avoir disparu,
ou être soigneusement délimité. (id., p. 35)
85
O trecho destacado estabelece uma relação muito próxima com o que
Schleiermacher disse a respeito do método de tradução por ele condenado, ou seja,
aquele em que o tradutor deixa o leitor em paz e leva o autor até ele:
[A]o não mostrar o autor como ele mesmo teria traduzido, mas
como ele teria originalmente escrito em alemão como alemão,
dificilmente tem outro critério de perfeição, além de que se
pudesse garantir que todos os leitores alemães em conjunto
tivessem se deixado transformar em conhecedores e
contemporâneos do autor
68
. (2001, p. 45)
As idéias do autor alemão se fazem presente na exposição de Berman, ainda que de
forma não manifesta, o que se observa, sobretudo, no último capítulo, quando, ao
defender a literalidade na tradução, Berman se apóia justamente nas duas condições
defendidas por Schleiermacher: um movimento que busque a recuperação de obras
estrangeiras e que a língua para a qual se traduz seja dotada de uma certa
flexibilidade de modo a possibilitar o acesso ao novo, como estrangeiro mesmo, sem
pretender naturalizá-lo.
A literalidade defendida por Berman não significa tradução palavra por
palavra, mas pode causar a impressão de que é, o que se deve à sua preocupação
pela preservação de traços do texto original. No exemplo dado por Berman, a
tradução da Eneida por Klossowski, esta preservação se traduziu na manutenção da
ordem das palavras do original, alheia à língua de chegada, gerando a sensação de
um texto estrangeiro, com elementos estrangeiros, possibilitando, assim, um novo
acesso a um texto já muito traduzido e conhecido na cultura ocidental.
De acordo com Berman, o tradutor deve “chercher inlassablement le non-
normé de sa langue. (...) La traduction, c’est cela: chercher-et-trouver le non-normé de la
langue maternelle pour y introduire la langue étrangère et son dire” (1999, p. 131). É este
caráter acolhedor da língua que permite que o tradutor a elasteça até o limite em que
“le français peut naturellement (re)devenir latin et épique” (id., p. 131). Isto não quer
68
Tradução de Margarete von Mühlen Poll.
86
dizer que o tradutor deva violentar sua língua, mas buscar nela zonas em que haja
flexibilidade de forma a explorar as possibilidades da língua.
Berman discute a tradução e suas implicações com uma lucidez admirável,
sobretudo se considerarmos alguns dos seus contemporâneos que, não obstante o
exemplo do mesmo teórico e tradutor alemão, propuseram estratégias que
priorizavam justamente o não-acesso ao texto traduzido ou a subversão do sentido e
da letra. Entre outros, este é o caso da visibilidade venutiana e das traduções
feministas.
Berman dedica o primeiro capítulo à tradução etnocêntrica, que ele define
como a: “qui ramène tout à sa propre culture, à ses normes et valeurs, et considère
ce qui est situé en dehors de celle-ci – l’Étranger – comme negatif ou tout juste bon
à être annexé, adapté, pour accroître la richesse de cette culture”. (id., p. 29) Apesar
de a crítica à tradução etnocêntrica ser prática corrente há bastante tempo
69
, o autor
provavelmente achou necessário valer-se dela talvez como uma introdução ao seu
esquema, exposto no capítulo seguinte.
Berman trata das deformações que, de acordo com ele, gozam de aprovação
cultural dado o prestígio da tradução etnocêntrica. O autor se propõe então a fazer
um exame destas deformações no campo da tradução da prosa, o que, acredito,
constitui uma de suas principais contribuições. Berman chama, com propriedade, a
atenção para a negligência com que a tradução da prosa tem sido tratada e discorre
sobre características da prosa que têm reflexo direto no ato tradutório.
De acordo com Berman, a prosa literária caracteriza-se pela multiplicidade
lingüística que encerra, já que “elle mobilise et active la totalité des ‘langues’
coexistant dans une langue” (p. 50) e por uma certa informidade conseqüente de
uma enorme combinação de línguas que coexistem na narrativa. Esta informidade
gera um texto em desalinho, em que várias vozes operam simultaneamente,
desafiando a tradução e muitas vezes levando o tradutor a estratégias que visam o
apagamento ou a correção deste descompasso no texto original. Berman acredita
69
Ver, por exemplo, Gender and the Metaphorics of Translation de Lori Chamberlain e The Scandals of Translation de
Lawrence Venuti.
87
que é neste descompasso mesmo que está a riqueza do texto, ou seja, na pluralidade
lingüística.
Estas observações de Berman são bastante relevantes para a discussão da
tradução de A Sentimental Journey, uma vez que sua narrativa é marcada por uma
coexistência de registros, que, por vezes, distingue o que o autor considera prosaico
do que ele considera sublime ou sentimental, com a ressalva de que por vezes ele
ironiza este mesmo sublime. Berman afirma que o principal problema da tradução
da prosa é respeitar a multiplicidade de discursos do romance e, em consonância
com ele, acredito que, na tradução em questão, é importante manter a alternância
proposta por Sterne, uma vez que é partindo do próprio desalinho que se estabelece
um dos traços distintivos da sua escrita: o humor.
70
Berman, que se apressa em dizer que sua classificação não se pretende
exaustiva, lista treze tendências deformantes: a racionalização, a clarificação, o
alongamento, o enobrecimento e a vulgarização, o empobrecimento qualitativo, o
empobrecimento quantitativo, a homogeneização, a destruição dos ritmos, a
destruição das redes significantes subjacentes, a destruição dos padrões textuais, a
destruição ou a exotização das redes linguageiras vernaculares, a destruição das
locuções e dos idiotismos e o apagamento das superposições de línguas.
71
Apesar de Berman explicar cada uma destas tendências, as fronteiras entre
elas parecem com alguma freqüência um tanto imprecisas e por vezes tem-se a
sensação de que duas tendências se sobrepõem. Ao falar da racionalização, por
exemplo, Berman afirma que ela
[P]orte au premier chef sur les structures syntaxiques de
l’original, ainsi que sur cet élément délicat du texte en prose
qu’est sa ponctuation. La rationalisation re-compose les phrases
70
Ver capítulo 2.
71
Em francês: la rationalization, la clarification, l’allongement, l’ennoblissement et la vulgarization,
l’appauvrissement qualitatif, l’appauvrissement quantitative, l’homogénéisation, la destruction des rythmes, la
destruction des réseaux signifiants sous-jacents, la destruction des systématismes textuels, la destruction (ou
l’exotisation) des réseaux langagiers vernaculaires, la destruction des locutions et idiotismes, l’effacement des
superpositions de langues.
88
de manière à les arranger selon une certaine idée de l’ordre d’un
discours. (id., p. 53)
E, mais adiante, ao discutir a destruição dos ritmos, comenta que esta “peut affecter
considérablement la rythmique, par exemple en s’attaquant à la ponctuation”. (id., p.
61) Pode-se dizer que as duas deformações lidam com aspectos textuais diferentes: a
primeira com a organização do discurso, visando a sua uniformização e a segunda
com o ritmo da narrativa. Contudo, acredito que o ritmo da narrativa e a
organização do discurso têm uma relação de interdependência, tanto que, quando a
tradução interfere nestes dois aspectos, o resultado é um texto simplificado com sua
estrutura reorganizada de maneira a favorecer a simples simetria ou a linearidade do
texto na língua de chegada.
No entanto, esta eventual imprecisão não retira da classificação proposta por
Berman a relevância para a análise da tradução, em especial, da tradução de prosa.
Tomarei algumas destas tendências ao longo do exame que proponho fazer da
tradução de A Sentimental Journey e que têm estreita relação com as principais
dificuldades de tradução do romance.
Passo agora a examinar alguns aspectos da tradução de A Sentimental Journey,
em especial daqueles que impõem uma tomada de decisão por parte do tradutor ou
uma estratégia específica dada a idade do texto ou a alguma idiossincrasia do
romance.
3.1 A ESTRUTURA DE
A SENTIMENTAL JOURNEY
Um aspecto relevante da narrativa de A Sentimental Journey é a sua estrutura, a
saber, dois volumes, o primeiro com 38 capítulos e o segundo com 32. Na tradução,
mantive a mesma disposição do original. O mesmo esquema de organização foi
seguido apenas por Pinheiro; Martins não seguiu a divisão em volumes, mas optou
89
pela divisão em capítulos e Xavier ignorou tanto a divisão em volumes quanto em
capítulos. Vale observar a esse respeito que quanto mais antiga a tradução maior é a
sua liberdade com o texto original. A tradução de Xavier é de 1939, a de Martins é
de 1963 e a de Pinheiro é de 2002, o que contraria a moderna corrente que defende
a visibilidade do tradutor.
A visibilidade do tradutor, de acordo com Venuti, se daria pelo que ele
chamou de escrita de resistência. É por meio desta estratégia que o tradutor poderia
idealmente interferir de maneira consciente no texto traduzido para, dessa forma,
desvelar a sua intervenção e deixar claro para o leitor que aquele texto foi
traduzido.
72
Contudo, ao que parece pela estratégia adotada por cada tradutora,
quanto mais se avança nos estudos da tradução, mais colado ao original fica o texto
traduzido.
Em geral, a tradução é gerada por uma demanda e há estratégias que
priorizam justamente a simplificação, como em traduções de clássicos da literatura
para públicos específicos. Todavia, o que se percebe, além destas demandas de
mercado, é que no Brasil, a constante demanda de tradução e o seu crescente
prestígio no ambiente acadêmico vêm redimensionando, ao longo dos anos, a
importância da atividade tradutória e aumentando nos tradutores a consciência do
valor estético do objeto literário.
Acredito que a razão para esta relação mais estreita com o original se deva,
em parte, à conscientização de que a simplificação por si só implica, na maioria das
vezes, perdas que afetam a recepção estética do texto. De acordo com Jauss,
A descoberta do caráter estético, característico ao texto poético
(...), deve seguir a orientação dada à percepção estética pela
disposição do texto, pela sugestão do ritmo e pela realização
gradativa da forma. A compreensão estética (...) está orientada
principalmente para o processo da percepção. Remete, portanto,
hermeneuticamente ao horizonte de experiência da primeira
leitura, o qual muitas vezes pode tornar-se visível em sua
72
Ver Venuti, L. The Scandals of Translation: toward an ethics of difference. Nova York: Routledge, 1998.
90
coerência formal e plenitude de significado – principalmente em
textos historicamente distantes. (2002, p. 877)
Os comentários de Jauss relativos à percepção estética apesar de
originalmente voltados ao texto poético parecem pertinentes à discussão aqui
proposta na medida em que exploram a centralidade da estruturação e do ritmo
textual para a percepção do fato estético. O ritmo, comumente mais associado à
poesia, não está ausente na prosa. Berman, ao discutir o ritmo no romance e no
ensaio, diz: “ils sont même multiplicité entrelacée de rythmes”. (p. 61)
Que conseqüências pode ter para o texto a opção de redução do número de
capítulos de Xavier? A tradutora aglutina capítulos com o mesmo título, como, por
exemplo, os quatro capítulos seguidos intitulados Montriul (pp. 174-182), ou os
quatro seguidos intitulados The Passport: Versailles (pp. 260-272). Ela segue com a
mesma estratégia em capítulos com o mesmo título, porém intercalados, como, por
exemplo, os capítulos Maria Moulines, Maria e Maria Moulines (pp. 310-316) e aglutina
igualmente capítulos com títulos diferentes, como os capítulos The Desobligeant:
Calais, Preface in the Desobligeant e Calais (pp. 140-150). Outra estratégia que chama a
atenção é que a tradutora subtrai dos títulos, quando possível, as referências à
localização, o que Sterne marca em todo o romance. Assim, por exemplo, há nove
capítulos seguidos que apresentam Paris como subtítulo
73
cuja referência Xavier
oblitera.
De fato, há uma recorrência de capítulos com o mesmo título ou subtítulo ao
longo de toda a narrativa. Ora, supor que estas ocorrências sejam casuais é pouco
provável dada a sua constância e é pouco prudente julgar que estas repetições sejam
desnecessárias.
Ao optar por unir capítulos, acredito que Xavier ignora a construção da
narrativa em episódios e se perde. Ainda que os capítulos sejam seguidos e
apresentem o mesmo título, tratam de eventos diferentes, ainda que guardem
relação entre si.
73
São eles: The Wig: Paris; The Pulse: Paris; The Husband: Paris; The Gloves: Paris; The Translation: Paris;
The Dwarf: Paris; The Rose: Paris; The Fille de Chambre: Paris; The Passport: Paris. (pp. 206-236).
91
Os quatro capítulos seguidos intitulados The Passport: Versailles (pp. 260-272),
por exemplo, tratam de eventos diferentes ainda que em torno de uma mesma
questão: a obtenção do passaporte. Nestas ocorrências, observa-se o ritmo que
Sterne imprime à narrativa, que é de uma rapidez e uma espontaneidade próprias do
discurso oral, “the order of ideas, their suddenness and irrelevancy, is more true to
life than to literature” (Woolf. 1963, vii). O esquema de Sterne de representação do
real prima por aproximar o leitor do ritmo da criação e, para tal, o fluxo de
pensamento e a associação de idéias são priorizados. Assim, cada capítulo The
Passport: Versailles prepara o próximo, sem, contudo, tratar a mesma questão. Por
exemplo, o primeiro capítulo apresenta o primeiro contato entre Yorick e o conde
de B**** e acaba com uma referência a Shakespeare, o segundo trata da
apresentação entre os dois personagens, quando o conde confunde o narrador com
o Yorick de Shakespeare, o terceiro começa com uma referência a Much Ado about
Nothing e trata do sublime na literatura e o quarto exalta Beviroskius, que, por sua
vez, exalta a natureza e Deus.
Quando opta pela união dos capítulos, Xavier altera não apenas uma divisão,
mas o ritmo mesmo da narrativa. A tradução em si é bastante legível, o texto
escorreito, mas o empobrecimento gerado pela estratégia de aglutinação fica claro
quando seu texto é confrontado com o original e com as outras duas traduções
posteriores. É provável que a tradutora tenha adotado esta estratégia em favor da
legibilidade, o que indicaria a possibilidade de, na sua leitura, ela ter julgado a
organização adotada por Sterne um obstáculo desnecessário ao acesso ao texto, o
que a levou à adoção de uma estratégia facilitadora. No sistema de deformações
proposto por Berman, a estratégia de Xavier se encaixaria na homogeneização, em
que “Face à une oeuvre hétérogène (...) le traducteur a tendance à unifier, à
homogénéiser ce qui est de l’ordre du divers, voire du disparate”. (1999, p. 60)
Outra questão pertinente à organização da narrativa é a sua estruturação em
parágrafos e a formação dos períodos. O romance é permeado por uma profusão de
parágrafos longos, às vezes, formados por um único período. Há ocorrências de
parágrafos que correspondem a capítulos inteiros, como The Monk: Calais (pp. 140) e
92
The Desobligeant: Calais (p. 140), bem como períodos que correspondem a parágrafos,
como o segundo do capítulo The Monk: Calais (pp. 138) formado por um único
período de 294 palavras. Esta organização proposta por Sterne faz parte do seu
esquema consciente de representação subjetiva das experiências relatadas ao longo
do texto. Os parágrafos e os períodos longos legitimam a aproximação com o real e
o fluxo do pensamento explorados pelo autor e imprimem ao texto a velocidade das
associações.
É o fluxo do pensamento que dita o ritmo da narrativa. Se o tradutor ignora
este mecanismo ou não se dá conta dos procedimentos de que Sterne lança mão
para alcançar este efeito, ele corre o risco de privar a tradução de uma das qualidades
distintivas do texto de Sterne, a representação realista da associação de idéias. Na
tradução aqui proposta, procurei manter a mesma organização do original, preservar
a divisão dos parágrafos e a extensão dos períodos. Busquei, dessa maneira,
imprimir à tradução um ritmo próximo àquele do original.
Xavier reproduz a organização em parágrafos do original, mas segmenta os
longos períodos do texto, estratégia que se mostra coerente com a sua opção de
aglutinar capítulos. A atenção de Xavier parece voltar-se sobretudo à legibilidade do
texto traduzido e as opções da tradutora parecem priorizar um texto mais próximo
do seu público.
A tradução que mais se afasta do original quanto à organização dos
parágrafos é a de Martins, que decompõe tanto parágrafos quanto períodos. O texto
de Sterne apresenta diálogos embutidos nos longos parágrafos, marcados por
travessões e capitulares. O autor não abre parágrafos para marcar os diálogos,
estratégia que parece corroborar a agilidade que o autor imprime à narrativa. Martins
desmembra os parágrafos justamente nas ocorrências de diálogos, produzindo, dessa
forma, um texto preso às regras de paragrafação do português. Onde há a
alternância de interlocutores no corpo do parágrafo, a tradutora abre outro
parágrafo, como se quisesse “disciplinar” o texto, ou lhe conferir uma organização
mais rígida, mais depurada.
93
Exponho a seguir um dos exemplos mais significativos desta fragmentação
de Martins:
Sterne Martins
The fair fille de chambre came close up to
the bureau where I was looking for a
card—took up first the pen I cast down,
then offered to hold me the ink: she
offer’d it so sweetly, I was going to
accept it—but I durst not—I have
nothing, my dear, said I, to write
upon.—Write it, said she, simply, upon
any thing.— (p. 276)
A formosa fille de chambre aproximou-se
da escrivaninha onde eu procurava um
cartão, apanhou primeiramente a pena
que eu largara, e então ofereceu-se para
para segurar-me o tinteiro. Ofereceu-se
de maneira tão meiga, que eu ia aceitá-lo
mas não ousei.
– Não tenho nada, minha cara, – falei –
em que possa escrever.
– Escreva sobre qualquer coisa – disse
ela com simplicidade. (p. 113)
Ao longo de todo o capítulo The Temptation – Paris, Sterne vai criando uma
tensão, preparando o trecho final, em que faz uma alusão ao envolvimento sexual
entre Yorick e a fille de chambre. Todo o processo é lento e cuidadoso e a percepção
da cena parece ter um papel central em cada movimento explorado. Watkins disse
que Sterne “visualizes his characters and his scenes, and he makes us visualize them
as clearly as if they were before our eyes” (1968, p. 174).
A tensão que vai sendo criada com gestos, olhares, pensamentos e
interlocuções é representativa do estado psicológico que se estabelece no capítulo.
Ao fragmentar o parágrafo, Martins faz baixar a tensão, diminui a sensação de
urgência de Yorick e quebra o erotismo da cena.
Acredito que uma das questões mais espinhosas ligadas à atividade tradutória
seja reconhecer o que Ricoeur chamou de “irredutibilidade do par próprio e
estrangeiro
74
” (2004, p. 19). O tradutor se vê com freqüência diante de situações em
que forçosamente tem que optar entre naturalizar o texto, neste caso adequando a
74
Em francês: l’irréductibilité de la paire du propre et de l’étranger.
94
paragrafação às normas vigentes, ou estrangeirizá-lo, reproduzindo a disposição
presente no original. No caso da paragrafação, a estratégia adotada terá
conseqüências para o ritmo do texto na língua de chegada.
Pinheiro, de uma maneira geral, mantém a divisão de parágrafos e a extensão
de períodos proposta por Sterne. Há duas ocorrências que fogem do esquema, uma
em que a tradutora aglutina dois parágrafos (p. 100) e outra em que desmembra um
período (p. 117). Contudo, dada a regularidade com que Pinheiro segue a
organização do romance, estes casos parecem ter sido mais desatenções ocasionais
que propriamente opções conscientes.
Na tradução que proponho do romance, procurei preservar a estrutura do
texto por entender que a regularidade de repetições e inserções e a extensão de
parágrafos e períodos propostas por Sterne têm um propósito. Berman afirma que
“les grandes oeuvres en prose se caractérisent par un certain ‘mal écrire’, un certain
‘non-contrôle’ de leur écriture. (...) Mais son ‘mal écrire’ est aussi sa richesse” (1999,
p. 51). Procurei manter a lógica que organiza o texto de Sterne, este pretenso ‘non-
contrôle’, sem, espero, agredir a língua de chegada, mas buscando na língua mesma
meios de estendê-la, ou de ampliar seus limites. Na minha tradução procurei não
comprometer o acesso ao texto, sem, contudo, negar o estranhamento do texto de
Sterne.
Nas seções seguintes, examino o papel das notas de tradução para A
Sentimental Journey, a relevância do intertexto no texto de Sterne e como as tradutoras
lidaram com essas questões.
3.2 NOTAS
O paratexto, de maneira paradoxal, potencia o alcance do texto sem fazer
parte dele, fazendo a mediação entre texto e público. O paratexto é, dessa forma, de
95
uma maneira geral, um satélite do texto, tangenciando-o nesta mediação que faz.
Esta mediação apóia o texto na medida em que lhe dá acesso em maior ou menor
grau. Prefácios e notas são mais representativos deste acesso que dedicatórias, por
exemplo.
Genette conferiu três características básicas ao paratexto: a natureza
funcional, a subordinação ao texto a que se refere e a descontinuidade. De acordo
com ele,
The paratext in all its forms is fundamentally heteronomous,
auxiliary, and dedicated to the service of something other than
itself that constitutes its raison d’être. (...) the paratextual
element is always subordinate to “its” text, and this functionality
determines the essence of its appeal and its existence (2001, p.
12).
A descontinuidade, por sua vez, associa-se a esta funcionalidade, uma vez que a
utilidade do paratexto depende de contingências temporais e socioculturais, que
definem a validade, ou a necessidade, do paratexto.
Em relação à nota, que é o elemento paratextual em análise, este caráter
circunstancial pode ser demonstrado por um breve exame de algumas edições de um
mesmo romance, em uma determinada língua. A edição da Oxford da coleção The
World’s Classic de A Sentimental Journey, datada de 1963, por exemplo, não apresenta
uma nota sequer além das sete propostas por Sterne, ao passo que a edição da
Penguin, datada de 2001, apresenta um total de 243 notas, além das notas do
próprio autor.
Este caráter instável da nota pode estar ligado a uma série de fatores, e
destaco entre eles: a preferência do autor, quando for o caso, ou da editora; o
público que se pretende atingir, no caso de edições acadêmicas [scholarly editions]; a
presença de dialetos ou línguas estrangeiras no texto e o lapso temporal entre a
escrita do texto e uma edição atual.
96
Na minha tradução de A Sentimental Journey, busquei fornecer uma tradução
anotada que favorecesse o contato do leitor com o texto e cujas notas abarcassem
desde questões históricas, intertextuais a lingüísticas, uma vez que
Footnotes serve, at their most elemental, as commentaries on,
or references for, the parts of the text to which they are keyed.
(…) As annotations, they are innately referential as well,
reflecting on the text, engaged in dialogue with it, and often
performing an interpretive and critical act on it, while also
addressing a larger, extratextual world in an effort to relate this
text to other texts, to negotiate the middle ground between this
author and other authors, between this author and the reader
(Benstock. 1983, p. 204).
A nota normalmente traz um tipo de informação muito precisa a respeito de
um trecho do texto. Esta precisão da nota estabelece um paralelo evidente com o
prefácio, como Genette chamou a atenção, na medida em que podem tratar das
mesmas questões, retomando a nota o que o prefácio já tinha preparado, contudo
este de uma maneira mais genérica e aquela mais específica.
A nota, dada a sua especificidade, tem como alvo o leitor do texto, mas não
qualquer leitor. O leitor de notas é um leitor especial, curioso, que se interessa pelo
processo de escrita do texto, ou pelas conexões que o autor estabele entre o texto
que o leitor tem diante de si e, por exemplo, outros textos, culturas ou tendências.
Apesar da autonomia do texto em relação à nota, o tipo de informação que ela
transmite o amplia ao mesmo tempo em que lhe é acessório, sendo portanto
facultativo, tendo uma função relativa e dependente do tipo de leitor do texto.
No caso de textos mais afastados temporalmente, as notas, bem como outros
elementos paratextuais da mesma natureza, direcionam uma leitura ou impõem uma
interpretação, que conferem à narrativa um sentido aliado ao tempo em que foram
produzidas. Ferreira afirma ser “impossível fechar o ciclo das leituras realizáveis de
um texto e também das propriedades materiais geradas por cada nova edição”
(2004). Uma vez que o texto encerra várias leituras e que estas leituras são
97
construídas e produzidas em um determinado contexto sociocultural, como, por
exemplo, algumas leituras feministas dos romances de Sterne
75
, as notas sofrem
variações na mesma proporção.
O conteúdo das notas varia de acordo com o autor das mesmas. As notas do
autor, de uma maneira geral, podem justificar ou esclarecer o texto em si, e, como
lembra Genette, surgem habitualmente em edições posteriores, como uma resposta
à crítica; as notas do editor, em uma publicação póstuma, podem, por exemplo,
esclarecer conjunturas econômicas, sociais e políticas e estabelecer relações
intertextuais.
As notas do tradutor podem explorar, além das questões relacionadas às
notas do editor, questões próprias do processo tradutório, como eventuais
dificuldades decorrentes da distância cultural, lingüística ou temporal entre o original
e sua conjuntura e o texto de chegada e a conjuntura deste,
uma vez que o próprio texto apela à experiência empírica de
cada um dos seus leitores (...) A percepção humana da
experiência empírica é diferente, por isto a variação está no
texto mas também nos leitores e naquilo que a sua experiência
lhes traz, na forma como condiciona as suas leituras não só dos
textos, mas do mundo em geral ” (Ferreira. 2004).
Pode-se estabelecer, assim, uma relação entre nota e tradução, na medida em
que ambas, de uma forma geral, tangenciam os textos a que se referem e têm a
mesma natureza instável. Ao mesmo tempo em que instituem uma interpreteção,
tanto as notas quanto as traduções estão constantemente sofrendo mudanças e
tornando-se supérfluas de acordo com as conjunturas. Benjamin chamou a atenção
para o caráter esgotável da tradução se comparada ao original: “pois enquanto a
palavra do poeta perdura em sua língua materna, mesmo a maior tradução está
75
Ver McMaster, Juliet. “Walter Shandy, Sterne, and Gender: a Feminist Foray” e Descargues, Madeleine. “A
Sentimental Journey, or ‘The case of (In)delicacy’” ambos no Critical Essays on Laurence Sterne. Nova York:
G.K. Hall & Co. 1997.
98
fadada a desaparecer dentro da evolução da sua língua e a soçobrar em sua
renovação” (2001, p. 197).
3.2.1 N
OTAS EM
A
S
ENTIMENTAL
J
OURNEY
Há dois tipos de notas que são examinados nesta tese: as notas de Sterne e as
notas das tradutoras de A Sentimental Journey para o português do Brasil. Sterne lança
mão de sete notas, seis das quais esclarecem palavras ou expressões em francês.
76
Como o autor morreu semanas depois do lançamento do romance, suas notas não
foram resultado de críticas, mas sim uma mediação deliberada, uma decisão tomada
antecipadamente. Dividirei a análise das notas em duas partes: as notas de Sterne e
das tradutoras que resultam das ocorrências em francês na narrativa e as outras
notas de tradução.
3.2.1.1
OCORRÊNCIAS EM FRANCÊS EM
A
S
ENTIMENTAL
J
OURNEY
Uma possível causa de ininteligibilidade manifesta-se quando há mais de uma
língua em um texto a ser traduzido. A exigência de uma intervenção do tradutor
para a compreensão de trechos em língua estrangeira dependerá, em grande medida,
do público a que se destina o texto, da proximidade entre a língua de partida e a de
chegada e da inserção daquele segundo código na cultura para a qual o texto será
traduzido.
Em A Sentimental Journey, há trechos de extensões variadas ao longo de toda
narrativa em francês. Sterne, quando escreveu o romance, entendeu que seu público
prescindia de tradução a não ser em seis ocorrências, são elas: droits d’aubaine (p.
76
A sétima nota de Sterne é intertextual e será analísada na seção 3.3.1.1.
99
132), desobligeant (p. 140), bidet (p. 188), bouquet (p. 298), fiacre (p. 300) e couvert (p.
306). Nos outros casos, o autor não fornece tradução, nem mesmo no caso da carta
que La Fleur oferece como modelo para que Yorick escreva a Madame de L*** às
páginas 202 e 204, indicando uma expectativa de compreensão da língua estrangeira
naquele momento e para aquele público. Segundo Benstock, “footnotes appear to
be (and often are) afterwords, appended to a text that is not in itself fully accessible
to readers; the notes allow the writer to anticipate readers’ needs, to answer potential
questions” (1983, p. 204). Assim, não acredito que houvesse uma estratégia de
opacidade pretendida, uma vez que o autor julgou necessário traduzir determinadas
passagens.
Esta expectativa, claro, varia de acordo com o tempo, o que se pode
demonstrar com a edição de A Sentimental Journey da Penguin de 2001, que usei para
a tradução do romance. Nesta edição, Paul Goring, responsável pela introdução e
notas, achou pertinente traduzir para o inglês todos os trechos em francês.
Examino a seguir as estratégias adotadas pelas tradutoras para estes excertos
em francês em A Sentimental Journey. Para tal, dividirei os fragmentos em francês em
dois grupos: o primeiro inclui as passagens que o autor traduziu e o segundo inclui
os outros trechos em francês do romance.
Estas análises distintas justificam-se na medida em que a postura da tradutora
diante das notas propostas pelo autor pode ser reveladora do seu grau de reverência
para com o autor e com o texto de partida e, por outro lado, sua postura em relação
às outras passagens em francês pode, de certa forma, refletir uma determinada
estratégia de tradução. Por fim, pode-se comparar entre as duas estratégias de uma
mesma tradutora, o que pode ser reveladora da sua postura em relação à atividade
que exerce.
100
3.2.1.1.1 TRECHOS EM FRANCÊS E O AUTOR
Na tradução da Athena, Xavier traduziu apenas três das seis traduções
propostas por Sterne: droits d’aubaine, desobligeant e bidet. Acredito que esta opção deva
estar fundamentada no fato de que as outras três palavras fazem parte do léxico da
língua portuguesa com o mesmo sentido proposto por Sterne nas suas notas. Ainda
que bouquet apresente uma variação em relação à grafia local, a palavra é
prontamente reconhecível. Acredito que a mesma estratégia tenha sido aplicada para
a tradução de bidet, uma vez que o vocábulo seria provavelmente associado ao bidê,
peça sanitária.
Interessante observar que apesar de a etimologia indicar que bidet como peça
sanitária data de 1739, bastante próximo da publicação do romance, e bidet como
cavalo data de 1564, Sterne julgou necessário explicitar o sentido pretendido,
evitando, assim, uma interpretação enviesada.
Na tradução da Cultrix, Martins parece optar por uma não-estratégia. A
tradutora traduz apenas as primeiras notas de Sterne, as referentes a droits d’aubaine e
desobligeant. Bidet e bouquet são traduzidos para o português como cavalo e buquê no
corpo do texto. Já couvert e fiacre passam sem menção e em itálico para chamar a
atenção para o fato de estarem em francês. Tem-se, pois, três posturas distintas em
um mesmo texto traduzido por uma única pessoa. A tradução das duas primeiras
notas de Sterne parece indicar um caminho que não se confirma com a tradução no
texto de bidet. Contudo, mais intrigante ainda é a opção de traduzir ou aportuguesar
bouquet e grafar as duas outras palavras, fiacre e couvert, legítimas integrantes da
língua de chegada, em itálico, ressaltando que se tratam de palavras estrangeiras.
Na tradução da Nova Fronteira, Pinheiro traduziu todas as notas do autor,
porém as dividiu em dois grupos e, para cada grupo, a tradutora adotou uma
estratégia específica. Para o primeiro grupo composto por droits d’aubaine, desobligeant
e bidet, a tradutora, a exemplo de Xavier, traduziu as notas de Sterne. Para o segundo
composto por bouquet, fiacre e couvert, a tradutora optou por preservar a tradução
101
fornecida por Sterne em inglês e, entre parênteses, forneceu a tradução ou uma
explicação da nota do autor. Parecem-me obscuras as razões que levaram a
tradutora a optar pela separação dos grupos.
Bouquet, por exemplo, à página 129, é mantido em francês e em itálico e na
nota tem-se: “Nosegay. (Ou seja, ramalhete de flores perfumadas – N. T.).”
Interessante observar que, justamente nas ocorrências identificáveis pelo leitor
brasileiro no sentido pretendido pelo autor, Pinheiro tenha julgado necessário valer-
se de notas explicativas, como aquela referente a fiacre: “Hackney-coach. (Em
português é comum o uso do francês fiacre, já incorporado ao nosso léxico – N.T.)”
(p. 131). Pinheiro, ao explicitar entre parênteses que fiacre já faz parte do léxico da
língua portuguesa, mostra-se consciente da sua estratégia de usar a nota de Sterne,
ainda que se prove desnecessária. Contudo, mais interessante ainda é observar, por
meio desta estratégia, a reverência que Pinheiro demonstra ter pelo original e pelo
autor. O receio do desvio, ainda que em uma nota, revela-se mais poderoso que o
bom senso e parece indicar que a tradutora ignora o caráter circunstancial e cultural
da nota.
Não defendo a visibilidade nos termos venutianos nem a escrita de
resistência por ele advogada, porém a subordinação inadvertida a um texto ou a um
autor tampouco me parece uma postura refletida. E isso não por uma postura
panfletária ou sindicalista, mas em nome do bom senso, da concisão e, sobretudo,
contra a condescendência para com o leitor, que é a questão mais criticável nesse
caso. A Sentimental Journey é por si só um texto complexo, espinhoso, não só pela
ambigüidade que encerra, como também pela distância temporal. É, portanto,
natural que haja palavras desconhecidas, como talvez fiacre para um leitor
contemporâneo, porém, acredito que, por se tratar de uma palavra já incorporada à
língua portuguesa, a sua tradução seja prescindível.
A tradução que proponho, a exemplo da tradução de Xavier, apresenta
apenas as três primeiras notas propostas por Sterne: droits d’aubaine, desobligeant e
bidet. As outras três traduções do francês, que Sterne julgou necessário fornecer para
o seu público, não julguei relevantes para a compreensão do texto, já que bouquet,
102
apesar de grafado de maneira diferente de buquê, é prontamente reconhecível e fiacre
e couvert fazem parte do léxico da língua de chegada, inclusive com o sentido
explicitado pelo autor. Justifico a minha opção de ignorar as três últimas notas do
autor sobretudo por entender a nota como um elemento cultural localizado
temporalmente e, portanto, fugidio e instável por natureza.
Ainda que a noção de bom senso encerre em si uma parcela substancial de
subjetividade, creio que a minha estratégia, bem como a de Xavier, esteja mais ligada
ao bom senso que à coerência. Ainda que a tradução tenha ignorado três notas do
autor, entendo que as notas, de uma maneira geral, têm valor circunstancial e por
isso optei pela não-tradução. Já a aleatoriedade de Martins inviabiliza a identificação
de uma estratégia por trás das suas opções, que, acredito, não primam pela coerência
nem pelo bom senso. A escolha de Pinheiro de traduzir as notas ininteligíveis para o
público brasileiro e de transcrever as notas inteligíveis de Sterne em inglês com uma
explicação parentética surpreende pela assimetria aparentemente gratuita e parece
igualmente carecer tanto de coerência quanto de bom senso.
3.2.1.1.2 T
RECHOS EM FRANCÊS E O TRADUTOR
O primeiro desafio para um tradutor diante de um texto em que há uma
simultaneidade de línguas é a exigência de uma capacidade mínima de compreensão
instrumental da segunda língua presente no texto fonte. O desafio seguinte será
definir uma estratégia para lidar com estes trechos no texto traduzido. É de se
esperar que as passagens continuem na segunda língua, uma vez que no texto fonte
as línguas fonte e estrangeira coexistem. Contudo, como as traduções são, em geral,
resultado de uma demanda, há de se pensar no leitor e no seu acesso a estes trechos,
ou, até mesmo, na possibilidade de uma opacidade pretendida, o que não será
considerado neste trabalho, já que, como observado na seção anterior, parece
impertinente ao romance.
103
A necessidade de mediação do tradutor entre leitor e texto variará de acordo
com o grau de proximidade entre a segunda língua do original e a língua de chegada
e da inserção daquela cultura na cultura de chegada. Esta intervenção estará
condicionada a uma determinada conjuntura e, por isso mesmo, terá uma
configuração definida temporalmente, ou seja, há possibilidades distintas de lidar
com esta questão em diferentes traduções do mesmo texto ao longo do tempo.
As traduções brasileiras de A Sentimental Journey ilustram a questão neste
romance em que há uma profusão de trechos em francês. Há cerca de cem
ocorrências em francês em A Sentimental Journey e variam de palavras isoladas a uma
carta, a carta de amor de La Fleur (p. 202-204).
Na sua tradução, de 1939, Xavier apresenta apenas uma nota em que
providencia a tradução de uma palavra francesa, fripier. Em 1963, Martins julgou
necessário traduzir apenas a carta de amor que La Fleur empresta a Yorick (p. 71),
salique (p. 77) e plus badinant (p. 131), cujas notas não são propriamente tradução
mas, no primeiro caso, uma explicação (“Sálica – referente à Lei Sálica”) e no
segundo, um direcionamento do significado supostamente pretendido pelo autor
(“No sentido em que emprega o autor, quer dizer ‘mais à vontade’”).
A tradução brasileira seguinte, a de Pinheiro, teve que esperar quarenta anos
para surgir, em 2003. Pinheiro traduziu quinze ocorrências em francês do romance,
catorze das quais foram em nota e uma no corpo do texto. Intrigante esta tradução
de Le Dimanche – Paris , título de um capítulo, por Domingo – Paris (p. 122), já que
Sterne usou o francês em alguns títulos de capítulos e a tradutora optou por traduzir
apenas este. Há três capítulos intitulados The Remise Door – Calais, por exemplo, que
ela traduz por A porta da Remise – Calais e, em nota, dá a tradução de remise, já para
o capítulo Le Patisser – Versailles a tradutora mantém o mesmo título do original sem
tradução em nota.
A estratégia de mediação limitada das duas primeiras tradutoras, Xavier e
Martins, pode ser decorrente da inserção mais significativa da língua e da cultura
francesa no Brasil na época em que as traduções foram produzidas. Parece não
104
haver uma estratégia de mediação da segunda língua estrangeira na tradução
proposta por Pinheiro, que parece seguir um esquema aleatório, uma vez que vis à vis
merece tradução ao passo que voilà un persiflage, por exemplo, não merece.
Na tradução que propus, traduzi em nota todas as ocorrências do francês a
primeira vez que apareceram, com exceção de casos em que o mesmo vocábulo
apresentava significados distintos. Esta estratégia de tradução foi tomada antes da
tradução do romance e tem como fundamento proporcionar ao leitor com uma
compreensão limitada ou nula do francês o acesso aos trechos escritos nesta língua
no texto traduzido.
Além de fornecer a tradução destes fragmentos em notas finais, atualizei no
próprio texto o francês de Sterne, cuja competência no idioma demonstrou-se
duvidosa, o que se confirma com dados biográficos.
77
Este esquema de mediação
que empreguei na tradução do romance decorre da percepção de que não há razão
para dificultar o acesso a um texto que já é complexo por si só. De outra forma,
acho, apenas um leitor do francês com competência suficiente para identificar os
deslizes de Sterne e a grafia do idioma no século XVIII entenderia todos os
fragmentos. Acredito que a atualização e a tradução em notas dos fragmentos em
francês que constam na narrativa conferem ao leitor, seja ele versado no idioma ou
não, os elementos necessários para o acesso ao romance. Como não pretendi que a
minha tradução tivesse sido escrita no século XVIII, pareceu-me insensato um texto
escrito em português contemporâneo com trechos em francês setecentista.
3.2.2 N
OTAS DE TRADUÇÃO EM
A
S
ENTIMENTAL
J
OURNEY
O papel mediador da tradução entre texto e leitor tem nas notas um
mecanismo de ampliação, possibilitando um aprofundamento da compreensão do
77
Sterne escreveu: “I splutter French so as to be understood”. (Correspondência, p. 178). Richard Phelps, em
uma carta a Henry Egerton datada de abril de 1762, comentou que Sterne seria considerado um grande gênio
na França também “if he would learn to speak before he attempts talking”.
105
texto. A necessidade de ampliação e aprofundamento varia de acordo com alguns
fatores, a distância temporal, por exemplo, caso do romance de Sterne em análise.
Quanto maior o lapso de tempo transcorrido entre um texto e uma nova tradução,
mais oportuna será uma intensificação deste processo de intervenção do tradutor.
Em A Sentimental Journey, Sterne faz referência a personagens, textos, e
pessoas nem sempre reconhecíveis para o público brasileiro das últimas sete
décadas, período em que há tradução do romance no país. Há, igualmente, além das
referências apresentadas pelo autor, aquelas que dizem respeito a questões
circunstanciais que, óbvias naquele momento, parecem obscuras hoje. Um exemplo
representativo desta opacidade decorrente da conjuntura de então é o episódio do
passaporte e o temor do narrador de ficar preso na Bastilha dada a Guerra dos Sete
Anos entre a Inglaterra e a França.
A análise que se segue das notas de tradução ignora as notas de tradução do
francês já examinadas em seção anterior. As dez notas que a tradução da Athena
apresenta são aparentemente de Xavier, uma vez que não há indicação de autoria.
As notas da tradução da Cultrix são atribuídas a Jorge de Sena, porém, das cinco
notas apresentadas apenas uma não está acompanhada da sigla N. da T. As
cinqüenta e sete notas da tradução da Nova Fronteira são atribuídas a Marta de
Senna e a tradução que proponho conta com sessenta e três notas minhas.
Entre as dez notas de Xavier, duas referem-se a pessoas (Elizabeth Drapper,
suposta amante de Sterne e mencionada no romance, e Guido Reni, pintor barroco
italiano); quatro são explicativas (peripatético, benefício de clérigo, jâmbico e
heléboro); duas referem-se a vocábulos em italiano (cicisbeo e vetturino) e duas são
intertextuais (Bíblia e Cato).
A tradução da editora Cultrix apresenta cinco notas: uma de Sena e quatro de
Martins. Sena, na sua nota, esclarece que Santiago (p. 64) é Santiago de Compostela.
Duas das notas de Martins traduzem do italiano os mesmos vocábulos traduzidos
por Xavier, uma é explicativa (heléboro) e outra refere-se a Much Ado about Nothing
106
de Shakespeare como “Muita preocupação por um nada”, o que surpreende, uma
vez que já havia tradução do texto com o título Muito barulho por nada.
78
As notas de Senna que acompanham a tradução de Pinheiro denotam leitura
cuidadosa e rigor de pesquisa. Há quinze notas intertextuais, trinta explicativas,
quatro lingüísticas ou sobre o processo tradutório, sete referem-se a pessoas, e uma
traduz um vocábulo em italiano. Apesar do caráter fundamental da intertextualidade
no texto de Sterne, Senna optou por priorizar questões contextuais e históricas em
suas notas, o que se justifica não apenas pelo tempo transcorrido entre a publicação
do original e a tradução de Pinheiro, como também por uma preocupação de suprir
a ausência de intermediação entre texto e público das traduções anteriores.
Não acredito que a centralidade de aspectos contextuais em detrimento de
intertextuais nas notas de Senna se deva à ignorância das relações que Sterne
estabeleceu entre A Sentimental Journey e outros textos, uma vez que suas notas
revelam diligência na tarefa empreendida. Acredito que esta priorização está
condicionada antes ao seu entendimento da não centralidade na cultura de chegada
dos textos com os quais Sterne estabelece diálogo no romance, refiro-me aqui, em
especial, à Bíblia.
As notas que acompanham a minha tradução classificam-se da seguinte
maneira: sete fazem menção a pessoas, trinta e nove são intertextuais, doze são
explicativas, cinco dizem respeito ao processo tradutório e lingüístico, uma refere-se
a um vocábulo holandês e uma a um italiano. Priorizei, sobretudo, questões
intertextuais nas minhas notas. Esta opção deve-se a uma preocupação em ressaltar
o percurso literário de Sterne, os textos que, de uma maneira ou de outra, o
ajudaram na sua formação como escritor e dos quais ele se apropriou na escrita do
romance.
Pode-se perceber, através de um exame das notas das traduções brasileiras de
A Sentimental Journey, o redimensionamento da prática tradutória ao longo destes
setenta anos de tradução do romance no país, que passa de um tanto diletante para
78
Mario Quintana traduziu Much Ado about Nothing com o título acima citado para a editora Globo em 1943,
vinte anos antes da tradução de Martins.
107
uma atividade mais profissional e intelectualizada. Vê-se uma preocupação crescente
com o papel mediador da tradução e das notas, que trazem desde informações
contextuais e lingüísticas aos diálogos que Sterne estabeleceu entre A Sentimental
Journey e outros textos: a intertextualidade, assunto da próxima seção.
3.3 INTERTEXTUALIDADE
O tradutor tem um papel importante na formação do cânone, uma vez que a
tradução importa modelos, temática e gêneros, e, no processo de negociação destes
elementos entre os códigos lingüísticos, a prática tradutória possibilita renovação
para a literatura da cultura de chegada na medida em que integra marcas intertextuais
do texto original à própria rede de referências intertextuais. Além de ajudar na
formação do cânone local, a tradução mostra-se fundamental no seu
estabelecimento, uma vez que retoma a cada certo tempo práticas literárias locais e
estrangeiras, possibilitando e reiterando a comunicação entre culturas.
Gillespie chamou a atenção para o fato de que a tradução não apenas reflete
o prestígio de um determinado texto, mas, em alguns casos, estabelece ou ajuda a
estabelecer o prestígio do texto original e para o fato de que se certos textos fazem
parte do cânone, isto se deve, em grande medida, à prática tradutória que lhes
proporciona, a cada versão, um novo acesso: “Even where a text had been widely
available in a previous translation, a fresh version could place it in a strong new
light, and thus have an equally pronounced effect.” (2005, pp. 9-10). E cita o
exemplo de Pope, tradutor da Ilíada.
Pope’s Iliad was by no means the first in English, but from the
start, it is clear, readers could look to it for things they did not
find, or had not found, in previous ones. Still more pertinently
in the present context, they looked to it for things they did not
find in native English poetry. (id., p. 10)
108
Pode-se dizer que a formação do cânone passa pela apropriação de recursos
literários importados pela tradução, sobretudo em culturas cuja literatura está em
processo de formação ou que atravessa um período de aridez.
O papel ativo do tradutor neste processo de abertura para o novo e o
decorrente trânsito entre duas realidades literárias e culturais que permite a
produção do texto traduzido estão condicionados a fatores conjunturais que
motivam, ainda que não seja um processo consciente para o tradutor, determinadas
posturas. Destes fatores, faz parte, além de questões culturais, temporais e
lingüísticas, o histórico literário do tradutor, através do qual ele estabelecerá
conexões e terá acesso às relações intertextuais apresentadas e exploradas pelo autor.
É por meio da identificação e do exame do intertexto que se explicita as
relações que o autor estabelece no seu texto ao reatualizar discursos alheios:
“Writing is the historical praxis of reading made visible” (Culler. 1976, p. 1383). O
autor, de maneira consciente, manifesta o seu histórico literário e revela os autores e
as obras que o ajudaram na sua formação e, mais especificamente, na composição
daquele determinado trabalho. Isto não quer dizer que esta exposição seja
necessariamente benigna, ela pode antes servir de pretexto para a ironia ou de
material para a paródia.
Estas relações intertextuais propostas pelo autor funcionam como marcas
nem sempre explícitas a serem desvendadas pelo leitor e que estão condicionadas a
questões socioculturais. O processo de tradução vê-se balizado por essas questões e
será tanto mais complexo quanto maior a distância entre as culturas estrangeira e
local, uma vez que marcas intertextuais em uma cultura podem ser ignoradas parcial
ou totalmente em outra. O tradutor pode valer-se, em casos de culturas muito
distantes em que a referência ofereça resistência à tradução ou à clareza de
identificação pelo leitor, por exemplo, de paratexto – estratégia que ressalva o
tradutor de ignorar a relação intertextual estabelecida pelo autor. Federici, ao
comentar sobre referências intertextuais, disse:
109
If left untranslated or partly translated, they must be explained
and decoded for the target reader. The translation or the
untranslatability of intertextual references visualises the act of
mediation of the translator, his own journey through a cross-
fertilised text which can maintain the linguistic and cultural
specificities of the original text, or can totally erase them. (2007,
p. 157)
A identificação e eventuais omissões de marcas intertextuais caracterizarão o texto
meta, e o paratexto pode garantir a comunicação entre texto e leitor, enriquecendo e
ampliando o acesso à cultura fonte.
Contudo, além do distanciamento cultural, o tradutor tem o seu processo de
reescrita balizado pela própria bagagem literária e é esta bagagem que lhe permite a
identificação das marcas intertextuais do original. É apenas pelo reconhecimento do
entrelaçamento de textos proposto pelo autor que o tradutor pode estabelecer sua
estratégia de mediação entre texto e leitor.
The many subtle intertextual networks left on the pages by the
author must be recognised by the translator and transmitted to
the target readers embedded in a different culture and context.
In his role as a decoder of the complex and challenging
intertextual web that the writer has interwoven for the reader,
the translator’s ability consists in reproducing the multiple layers
of implied meanings and connotations in the target language for
the receiving literary and cultural context. (Federici. 2007, p.
153)
Dessa maneira, a identificação das marcas intertextuais é bastante reveladora
do conhecimento que o tradutor tem da língua, da cultura, da história e da literatura
em que o texto original se insere. Claro que eventualmente pode escapar ao tradutor
uma ou outra referência intertextual, mas a tradução de uma maneira geral e a
literária em especial é essencialmente uma atividade que exige pesquisa, um certo
ceticismo e interesse intelectual.
110
3.3.1
INTERTEXTUALIDADE EM
A
S
ENTIMENTAL
J
OURNEY
A obra de Sterne, em especial, os romances Tristram Shandy e A Sentimental
Journey, é objeto de discussões e controvérsias desde o lançamento. As críticas
contemporâneas refletiam esta ausência de consenso e alguns críticos o acusaram de
plágio, citando, entre outros, Burton, Rabelais, Donne e Montaigne como fontes
para os escritos de Sterne. Segundo Howes, “Although the originality of Sterne’s
work had strongly impressed most of his contemporary readers as well as those of
the next two decades, the charge had been made more than once that he was
indebted in various ways to his predecessors” (1971, p. 81).
Howes comenta que as críticas mais incisivas estavam ligadas a moralismos,
mas que as apropriações de Sterne eram apreciadas quando julgadas de acordo com
parâmetros mais literários.
[N]o future critic could afford to ignore the fact of Sterne’s
borrowings; but, once the initial furor had died down, the effect
of the disclosures upon his standing was not as great as might
have been expected. Even the moralists, who thought that the
discovery of Sterne’s indebtedness would eventually reduce his
literary reputation to the level on which they believed his
indecency ought to place him, found that their predictions were
unfulfilled. (id., p. 88)
A escrita de Sterne e seu esquema de intertextualidade parece ajustar-se à
discussão de T. S. Eliot sobre tradição:
It [tradition] involves, in the first place, the historical sense, (...)
and the historical sense involves a perception, not only of the
pastness of the past, but of its presence; the historical sense
compels a man to write not merely with his own generation in
111
his bones, but with a feeling that the whole of the literature of
Europe from Homer and within it the whole of the literature of
his own country has a simultaneous existence and a
simultaneous order. (2001, p. 1093)
Sterne propõe um esquema em A Sentimental Journey que prioriza justamente
este historical sense de Eliot, Sterne parece ter tido esta percepção da presença do
passado ou, antes, do universal independentemente de aspectos temporais. Assim, o
texto de Sterne dialoga com textos antigos e contemporâneos, originalmente escritos
em inglês ou em outras línguas.
Em A Sentimental Journey, Sterne além de usar material de Tristram Shandy,
emprega recursos, cita ou faz alusões a diversos autores e obras, entre os quais a
Bíblia, Shakespeare, Rabelais, Cervantes e Smollett destacam-se. Há uma feliz
conjunção de fatores que possivelmente ajudaram Sterne na sua escrita: a crescente
demanda de tradução dado o nível crescente de alfabetização da população inglesa e
as muitas traduções de obras literárias de vulto.
79
Pode-se dizer que a tradução foi
central no esquema intertextual de Sterne, já que o acesso do escritor à língua
francesa era limitado e ao espanhol não devia ser diferente. A tradução de Thomas
Shelton dos dois volumes de Don Quijote, por exemplo, saiu entre 1612 e 1620, e a
de Gargântua e Pantagruel de Rabelais por Urquhart em 1653.
Discuto a seguir dois textos que fizeram parte do esquema intertextual de A
Sentimental Journey e as estratégias das tradutoras em relação às marcas intertextuais
propostas pelo autor. Os textos são: Travels through France and Italy de Smollett e a
Bíblia.
79
Ver Gillespie e Hopkins (eds.) “The Place of Translation in the Literary and Cultural Field 1660-1790” em
The Oxford History of Literary Translation in English, volume 3: 1660-1790, p. 15.
112
3.3.1.1
T
RAVELS THROUGH
F
RANCE AND
I
TALY
EM
A
S
ENTIMENTAL
J
OURNEY
Apesar de reduzida, a presença de Smollett é fundamental porque empregada
como motivo para paródia, recurso recorrente no romance. Há duas marcas
intertextuais relacionadas a Smollett: a primeira está no próprio título do romance A
Sentimental Journey through France and Italy e a segunda em uma nota.
No século XVIII, a literatura de viagem era um gênero estabelecido e
contava com textos como Remarks on Several Parts of Italy, de 1705, de Addison,
Letters to a Young Gentleman in setting out for France, de 1784, de Andrews, The Journeys of
Celia Fiennes, de 1697, de Fiennes, e manuais como The Gentleman's Pocket Companion
For Travelling into Foreign Parts, de 1723. As muitas publicações relacionadas a viagens
para o continente, França e Itália sobretudo, dirigiam-se a pessoas que se
deslocavam por motivo de saúde ou a filhos de aristocratas acompanhados por
tutores em viagens com propósitos educativos – o chamado Grand Tour.
Smollett publicou o relato das suas viagens em forma de cartas intitulado
Travels through France and Italy em maio de 1766. Sterne apropria-se de parte do título
de Smollett e subverte o gênero em um romance que nada lembra a literatura de
viagem.
80
Contrariamente ao conteúdo explorado então, Yorick não demonstra
interesse por pontos turísticos, a sua atenção volta-se para as pessoas que encontra e
para as situações vividas no percurso.
O relato de Smollett revela um viajante interessado em fazer turismo e dar
dicas, por exemplo, o preço de serviços, como no trecho seguinte:
I have been guilty of another piece of extravagance in hiring a
carosse de remise, for which I pay twelve livres a day. Besides
the article of visiting, I could not leave Paris, without carrying
my wife and the girls to see the most remarkable places in and
about this capital, such as the Luxemburg, the Palais–Royal, the
80
Ver capítulo 1, p. 14.
113
Thuilleries, the Louvre, the Invalids, the Gobelins, &c. together
with Versailles, Trianon, Marli, Meudon, and Choissi. (letter VI)
Smollett faz críticas incisivas a condições de instalações, lugares e pessoas,
como no seguinte trecho:
There are three young lusty hussies, nieces or daughters of a
blacksmith, that lives just opposite to my windows, who do
nothing from morning till night. They eat grapes and bread
from seven till nine, from nine till twelve they dress their hair,
and are all the afternoon gaping at the window to view
passengers. I don’t perceive that they give themselves the
trouble either to make their beds, or clean their apartment. The
same spirit of idleness and dissipation I have observed in every
part of France, and among every class of people. (Smollett.
Letter VI)
A intransigência de Smollett é motivo de censura no romance de Sterne:
I pity the man who can travel from Dan to Beersheba, and cry,
’Tis all barren—and so it is; and so is all the world to him who
will not cultivate the fruits it offers. I declare, said I, clapping
my hands chearily together, that was I in a desart, I would find
out wherewith in it to call forth my affections— (p. 172)
Sterne prossegue, referindo-se a Smollett como Smelfungus:
The learned SMELFUNGUS travelled from Boulogne to Paris—
from Paris to Rome—and so on—but he set out with the
spleen and jaundice, and every object he pass’d by was
discoloured or distorted—He wrote an account of them, but
’twas nothing but the account of his miserable feelings. (p. 172)
114
À página 172, Sterne cita parte de um trecho de Smollett referente ao
Panteão: “’Tis nothing but a huge cock pit.”
81
A menção ao comentário de Smollett
é acompanhada de uma nota em que consta: “Vide S ––––-’s Travels.” Esta
estratégia de pronta identificação da fonte em um elemento paratextual por parte do
autor só acontece com esta referência a Smollett, não obstante a alusão a outros
autores e textos.
Vale ressaltar a necessidade que Sterne teve, ao ativar uma nota, de impedir
que qualquer outra leitura fosse ativada ou até que a alusão passasse despercebida.
Sterne julgou necessário direcionar a leitura, destoando da estratégia de ambigüidade
tão explorada ao longo de toda narrativa. O fato de o autor ver a possibilidade de
imprecisão em um trecho, torna ainda mais possível a identificação de uma
estratégia consciente de ambigüidade por Sterne.
Martins obliterou a nota de Sterne e não julgou necessário esclarecer em uma
nota própria a referência a Smollett. Xavier traduziu a nota de Sterne: “Ver as
Viagens de Smollet (sic) (Nota do autor)” e não julgou necessário fornecer nenhum
outro tipo de informação. Na tradução da Nova Fronteira, Pinheiro, a tradutora,
manteve a nota de pé de página de Sterne em inglês, como o autor a propôs, com o
travessão, e Senna, responsável pelas notas, acrescentou duas notas a respeito de
Smollett e sobre a narrativa que provocou a sua citação no romance de Sterne. Eu
optei por traduzir a nota de Sterne como ele a propôs, com o travessão “Vide
Viagens de S ––––” e esclareci em nota: “Refere-se a Tobias Smollett e o seu Travels
through France and Italy [Viagens pela França e pela Itália] em que faz críticas ao longo
de todo relato.”
Martins parece corroborar a sua não-estratégia apontada na seção 3.2.1.1.1
com a opção de apagar a nota de Sterne. Se nas notas do autor referentes a trechos
em francês, a tradutora faz opções discrepantes, sem adotar uma norma aparente,
esta subtração é ainda mais intrigante, já que a tradutora elimina a única marca
intertextual que o autor fez questão de ressaltar. A eliminação em si não é
81
O trecho a que o narrador se refere é: “I was much disappointed at sight of the Pantheon, which, after all
that has been said of it, looks like a huge cockpit, open at top” (Smollett, Letter XXXI).
115
problemática, porém, ao mesmo tempo em que opta pelo corte da marca do autor, a
tradutora não oferece uma opção ao leitor, que, distante temporalmente,
dificilmente identificará Smelfungus como Smollett, tampouco a referência a Travels
through France and Italy.
A opção de Xavier por traduzir a nota de Sterne sem o travessão parece mais
apropriada se comparada à de Martins, uma vez que remete o leitor ao texto de
Smollett. Pinheiro parece confirmar a sua reverência ao autor quando, mais uma
vez, deixa uma nota de Sterne em inglês.
82
Contudo, as notas fornecidas por Senna
preservam a referência aludida pelo autor.
Na minha tradução, optei por traduzir a nota de Sterne pois julguei relevante
a referência que o autor fez a Smollett a à literatura de viagem. Igualmente relevante
pareceu-me explicitar em nota autor, título da obra aludida e o porquê do tom
irônico de Sterne, ou seja, a evidente má vontade de Smollett com os hábitos
estrangeiros.
3.3.1.2
A BÍBLIA EM
A
S
ENTIMENTAL
J
OURNEY
Em A Sentimental Journey, Sterne dialoga com o texto bíblico repetidas vezes.
Este diálogo é tão notório que mesmo traduzido levou a reações da Igreja: “In 1819,
shortly after Foscolo’s successful translation, the Vatican’s Index of Forbidden
Books banned A Sentimental Journey for its ‘licentiousness and obscenity’, and for the
‘incorrect and outrageous use of biblical texts’” (Santovetti. 2004, p. 202). Outra
confirmação da presença do texto bíblico nos romances de Sterne foi citada por
Ginzburg em um diálogo entre Suard, tradutor de Hume para o francês, e Sterne em
82
Ver seção 3.2.1.1.1
116
que aquele teria perguntado o segredo da originalidade do romancista inglês, que
teria respondido entre outros itens a leitura diária da Bíblia.
83
Na narrativa, há adaptações do texto bíblico, como em “she should not only
eat of my bread and drink of my own cup, but Maria should lay in my bosom, and be unto
me as a daughter”, à página 316, que se refere a
But the poor [man] had nothing, save one little ewe lamb, which
he had bought and nourished up: and it grew up together with
him, and with his children; it did eat of his own meat, and drank
of his own cup, and lay in his bosom, and was unto him as a
daughter. (2Sm 12, 3)
E alusões, como em “but La Fleur was out of the reach of every thing; for whether
’twas hunger or thirst, or cold or nakedness, or watchings, or whatever stripes of ill
luck La Fleur met with in our journeyings
, there was no index in his physiognomy to
point them out by”, à página 180, que se refere a
Are they ministers of Christ? (I speak as a fool) I am more; in
labours more abundant, in stripes over measure, in prisons
more frequent, in deaths oft. Of the Jews five times received I
forty [stripes] save one. Thrice was I beaten with rods, once was
I stoned, thrice I suffered shipwreck, a night and a day I have
been in the deep; [In] journeyings often, [in] perils of waters, [in]
perils of robbers, [in] perils by [mine own] countrymen, [in]
perils by the heathen, [in] perils in the city, [in] perils in the
wilderness, [in] perils in the sea, [in] perils among false brethren;
In weariness and painfulness, in watchings often, in hunger and
thirst, in fastings often, in cold and nakedness (2Co 11, 23-27).
Sterne não julgou necessário, contrariamente à sua estratégia de explicitação
no caso de Smollett, valer-se de nota para identificar nenhuma das suas referências à
Bíblia, o que, dependendo da relação que o tradutor tem com o texto bíblico, pode
83
Ver Ginzburg, Carlo. Nenhuma ilha é uma ilha – Quatro visões da literatura inglesa. Tradução de Samuel Titan Jr.
São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 70.
117
dificultar a identificação destas marcas intertextuais. Vale ressaltar a centralidade do
texto bíblico na cultura anglo-americana, representado sobretudo pela King James
Version, publicada em 1611, sobre cujo valor literário Mackenzie disse: “For
Protestantism, and for English literature at large, The AV [Authorized King James
Version] is by 1660 the authoritative text” (2005, p. 458).
A Bíblia parece ocupar um lugar fundamental no ocidente: “It holds a unique
and exclusive status not merely in terms of the religious history of the western world
but also in literary history and even in what might be called our collective cultural
psyche” (Carroll e Prickett. 1998, p. xi). No entanto, este prestígio manifesta-se de
formas variadas de acordo com a cultura. O texto bíblico na cultura em que A
Sentimental Journey foi escrito goza de uma influência literária reconhecida, a Bíblia é
um texto lido e reconhecido, e o fato de Sterne ter sido pastor parece corroborar
mais ainda a expectativa de que suas alusões à Bíblia fossem identicáveis. Contudo,
no Brasil, a Bíblia funciona mais como um amuleto, um objeto de adoração, e não
obstante a sua presença nos lares, raramente é lida fora do ambiente institucional
mediado por padres ou pastores.
Esta assimetria quanto à inserção do texto bíblico nas culturas envolvidas no
processo tradutório gera conseqüências diretas para a tradução do romance. Espera-
se, claro, que o tradutor perceba as redes intertextuais propostas pelo autor e que, a
partir de então, estabeleça uma estratégia de como lidar com as marcas intertextuais
do original. O pronome thou
84
, por exemplo, reconhecido, como afirma Crystal
85
,
como parte de um texto obsoleto, religioso ou literário é comumente traduzido para
o português pelo pronome tu, que não encerra a implicação do original. Esta
ausência de contato com a Bíblia como texto e, por conseguinte, a ausência de
identificação por parte do leitor brasileiro de marcas intertextuais faz com que o
tradutor tenha que optar pela sua obliteração ou por algum recurso que faça com
que o leitor reconheça aquela referência.
84
Ver capítulo 2, seção 2.4.1
85
Ver capítulo 2, seção 2.4
118
Acredito que o apagamento das referências à Bíblia empobrece a tradução e
impede que o leitor, ainda que não identifique prontamente o texto, saiba da
centralidade que o texto bíblico teve na escrita de Sterne. Se o tradutor optar por
evidenciar o texto bíblico, há duas questões centrais que devem ser consideradas: a
escolha da Bíblia a ser usada na tradução
86
e uma pesquisa rigorosa das várias
referências feitas ao texto no romance
87
.
Contudo, não obstante o rigor da pesquisa, a questão da assimetria de
inserção do texto bíblico mantém-se e pode eventualmente gerar incompreensão.
Acredito que a melhor opção seria o emprego de paratexto, por exemplo, um
prefácio que esclarecesse o leitor sobre a centralidade da Bíblia na narrativa de
Sterne e notas que localizassem as citações do autor.
Xavier propõe como paratexto uma introdutória nota biográfica e onze notas
finais, das quais apenas uma refere-se ao texto bíblico. A tradução de Martins, como
já dito na seção 3.2.2, é acompanhada de prefácio
88
e notas de Jorge de Sena, em
que não há uma menção sequer ao texto bíblico, não obstante o apuro do prefácio
que abarca desde questões biográficas à ascendência do romance sobre a história
literária mundial.
A tradução de Pinheiro é acompanhada de introdução e notas por Marta de
Senna.
89
A introdução de Senna, apesar de breve, é bastante abrangente, abarcando
desde a ironia de Sterne até a pontuação idiossincrática do romance. No seu
entusiasmo de incorporar o maior número possível de características da narrativa de
A Sentimental Journey, Senna acaba exaltando o traço irônico em detrimento do
sentimental, direcionando a leitura ao explicar ao leitor o que é engraçado e, de certa
forma, expressando um juízo de valor dispensável:
86
Há duas Bíblias em língua portuguesa que me parecem bastante adequadas para a tarefa tradutória: a Bíblia
Sagrada de João Ferreira de Almeida, por ser considerada a Bíblia do ritual de acordo com Rudi Zimmer,
coordenador da Comissão de Tradução da Sociedade Bíblica do Brasil, e a Bíblia de Jerusalém pelo extenso
material paratextual e o trânsito que proporciona entre seus textos
.
87
A identificação de referências ao texto bíblico no original, que exige uma investigação cuidadosa, pode ser
facilitada por sites como o
www.bibliacatolica.com.br e o www.blueletterbible.org/search.html.
88
Em novelas Inglêsas, da Cultrix, há três prefácios: o primeiro dedica-se a fornecer um panorama literário da
época, o segundo é dedicado a Sterne e ao romance A Sentimental Journey e o terceiro a James e a The Turn of the
Screw. Já na edição pela Ediouro, há apenas o prefácio ao romance de Sterne.
89
Como já explicitado na seção 3.2.2.
119
Engraçado, espirituoso, culto, crítico, irônico, inglês e
protestante até a medula, Yorick é também, às vezes,
sinceramente sentimental. É o que ocorre nos três penúltimos
capítulos, ‘O Bourbonnois’, ‘A Ceia’ e ‘A Ação de Graças’, os
quais, talvez por isso, são os menos saborosos do romance: não
há ironia, não há duplos sentidos, não há insinuações escusas.
(2002, p. 6)
Senna parece certa ao afirmar que estes três capítulos são essencialmente
sentimentais e que não apresentam a ironia de Sterne, mas discordo quanto ao valor
que ela atribui ao sabor deles. Tratam-se, na minha opinião, de três obras-primas do
sentimentalismo sem o apelo da comoção exagerada, esta, sim, motivo de paródia
no romance.
Apesar deste deslize, é na introdução de Senna que a questão intertextual é
apresentada ao leitor pela primeira vez: “Também dignas de nota são as relações
intertextuais, em que se destaca a presença de Cervantes, do texto bíblico (nada mais
natural para um clérigo, como Yorick e como Sterne), da obra do próprio Sterne
(...)” (id., p. 7). Esta menção na introdução é retomada nas notas finais das quais
quinze referem-se a questões intertextuais e destas apenas duas ao texto bíblico.
Na minha tradução, explorei as referências ao texto bíblico em vinte e quatro
das trinta e nove notas finais relativas a questões intertextuais. Optei na minha
tradução pelo emprego da Bíblia de Jerusalém, mas, na nota 40 do segundo volume,
usei a Bíblia Sagrada de João Ferreira de Almeida porque pareceu-me mais
apropriada para o texto. O trecho em questão é: “Surely this is not walking in a vain
shadow—nor does man disquiet himself in vain” uma alusão ao salmo 39, 6. A
Bíblia de Jerusalém apresenta a seguinte tradução: “apenas sombra o homem
caminha, apenas sombra as riquezas que amontoa, e ele não sabe quem vai recolhê-
las” (Sl 39, 7). A Bíblia Sagrada propõe: “Com efeito, passa o homem como uma
sombra; em vão se inquieta; amontoa tesouros e não sabe quem os levará” (Sl 39, 6).
Adotei a tradução de Almeida pela proximidade, neste trecho específico, com a
120
versão da King James, e o traduzi da seguinte maneira: “Isto não é passar como uma
sombra – nem o homem se inquieta em vão”.
Acredito que a coerência seja relevante, mas mais relevante que a coerência
em si é o efeito estético do texto, daí a opção pelo texto de Almeida. Busquei na
minha tradução, na medida do possível, manter as referências propostas por Sterne,
atentando sobretudo para o histórico literário que o autor traçou nas marcas
intertextuais deixadas no romance, e por não pretender perder um dos principais
traços da sua escrita, o texto bíblico, nem a referência ao desassossego do original, a
tradução de Almeida pareceu-me mais apropriada, apesar do emprego da Bíblia de
Jerusalém em todas as outras referências.
Percebe-se pelo exame das estratégias das tradutoras quanto à questão
intertextual que a preocupação com os textos fonte e meta e com o caráter
mediador da tradução tem aumentado ao longo dos anos. Nestas sete décadas de
tradução brasileira de A Sentimental Journey, distingue-se um crescente
compromentimento com a tradução como uma atividade intelectual distanciando-a
do caráter mecânico em que basta o conhecimento lingüístico para que seja
realizada.
A atividade tradutória tem como uma de suas atribuições a mediação entre
texto e leitor e esta mediação passa pelo reconhecimento da rede intertextual
proposta pelo autor na escrita do seu texto. Quando identifica e busca reproduzir as
marcas intertextuais do original, o tradutor possibilita ao leitor o acesso não apenas
ao texto mesmo como aos outros textos que, de alguma maneira, estão inscritos
naquele texto, proporcionando ao leitor uma maior abertura para a cultura fonte.
121
CONCLUSÃO
A Sentimental Journey refletia no seu lançamento, em 1768, a estética da
sensibilidade e do sentimentalismo, muito em voga então. Sterne soube beneficiar-se
dessa estética, apropriando-se dela e a explorando canônica e subversivamente.
Atento ao que agradava o público, Sterne buscou no sentimentalismo material para
explorar sensações e sentimentos; a exemplo do que disse Benedict, “Sterne’s later
novel, A Sentimental Journey, explores sentiment in the travelogue, recasting tourism
as Yorick’s experience of sensation not scenery” (1994, p. 69) e, ao mesmo tempo,
para revelar a autopromoção intermediada por atos de generosidade deste mesmo
sentimentalismo.
Um dos méritos de A Sentimental Journey é esta oscilação presente na
narrativa, ou as contradições humanas que o autor explora através de Yorick:
Le contraddizioni del viaggiatore, diviso tra il sorriso e le
lacrime, tentato ora alla virtù ora alla transgressione, si
compogono nella maschera del fool che, assunta
apparentemente da Sterne per continuità o per calcolo, si rivela
funzionale al gioco dell’identità (Bulgheroni. 1998, xviii).
A tradução e a análise de textos traduzidos revelaram-se instrumentos
valiosos para o exame dos recursos explorados por Sterne, na medida em que
iluminam a escrita do autor. Estas contradições citadas por Bulgheroni ficam
explicitadas na leitura do tradutor, que, ainda que não se pretenda exaustiva, busca,
na transposição de um texto para outro código lingüístico, o rigor.
O cotejo entre traduções e entre estas e o original ajudaram a manifestar
marcas da escrita de Sterne em A Sentimental Journey, como, por exemplo, a oscilação
entre o emprego de thou e you na narrativa. Dificilmente o impacto das opções de
tradução, como, por exemplo, a aglutinação de capítulos de Xavier, o
desmembramento de parágrafo de Martins ou a reprodução das notas de Sterne em
122
inglês por Pinheiro ficaria tão explicitado em um exame que não privilegiasse a
tradução e o cotejo entre traduções e o original como método.
Uma das questões que mais chamaram a atenção em decorrência do exame
das traduções brasileiras do romance de Sterne foi o desenvolvimento da atividade
tradutória no país. Pode-se dizer que houve uma paulatina profissionalização da
tradução, revelando, ao longo das últimas sete décadas, uma atenção crescente com
o caráter mediador da tradução, que ao mesmo tempo em que inclui o leitor, como
no emprego cada vez maior de notas, não busca apagar as marcas de estranhamento
do original. Percebe-se igualmente uma progressiva preocupação com o efeito
estético proposto pela narrativa em detrimento da mera reprodução de conteúdo. A
estruturação do romance, por exemplo, foi aproximando-se cada vez mais da
estrutura proposta por Sterne: Xavier reestruturou capítulos e Martins diálogos, ao
passo que Pinheiro optou por reproduzir o esquema de organização do autor.
Contudo, esta atenção com a narrativa traduziu-se, às vezes, em uma
deferência exagerada com o autor, em especial na tradução de Martins, que tende à
literalidade, e na de Pinheiro, que reproduz no seu texto quatro das sete notas do
autor em inglês
90
.
Curioso observar como este desenvolvimento da atividade tradutória
passando de diletante a profissional no Brasil, país com um fluxo constante de
tradução literária, tenha operado em direção oposta a modernas teorizações ligadas à
visibilidade do tradutor, que defendem, em última análise, a negação do acesso ao
texto. O leitor de A Sentimental Journey, contrariamente ao que esperam estes
tradutólogos, teve um acesso ao texto cada vez maior, especialmente se se
considerar as notas, que, a cada tradução, aumentaram em número e abrangência.
Esta mediação mais consciente da tradução revela-se igualmente com a
identificação cada vez mais atenta e precisa das marcas intertextuais do autor e com
o uso de paratexto para sinalizá-las, proporcionando, assim, ao leitor o acesso aos
90
Ver capítulo 3.
123
textos de que o autor se valeu de maneira consciente e cuidadosa na construção da
sua narrativa.
O reconhecimento da rede intertextual em um texto não é tarefa fácil porque
dependente da bagagem literária e cultural do tradutor. No caso de A Sentimental
Journey, alguns textos e autores são citados com freqüência, entre os quais a Bíblia se
destaca pelas inúmeras alusões ao longo de toda a narrativa. O tradutor de textos
literários ingleses deve idealmente saber da centralidade do texto bíblico na cultura
anglo-americana e, de alguma maneira, perceber sua presença no original.
Tive a oportunidade, na Universidade de Brasília, com um projeto de
iniciação científica e, posteriormente, com uma pesquisa de mestrado no programa
de pós-graduação em Lingüística Aplicada, de trabalhar com o texto bíblico,
sobretudo com o Antigo Testamento, o que facilitou a identificação de alusões ao
texto na narrativa de Sterne. Talvez o pouco contato com o texto bíblico seja um
dos motivos para a quase ausência de referência ao mesmo nas notas que
acompanham as três traduções anteriores à minha.
Observou-se, mediante o exame proposto das traduções do romance para o
português do Brasil, que em instâncias mais puramente lingüístico-textuais, como a
ironia de Sterne, as tradutoras tiveram um desempenho exemplar, mas em instâncias
dependentes de bagagem literária ou cultural o desempenho mostrou-se irregular. A
minha tradução e a de Pinheiro, acompanhada das notas de Senna, revelaram um
apuro maior com aspectos culturais e literários presentes no texto fonte. No
entanto, a escrita de Sterne é de tal forma elaborada que sobrevive mesmo às
tentativas mais modestas de tradução abordadas neste estudo.
Em A Sentimental Journey, Sterne revela uma narrativa tão complexa quanto
surpreendente que transita do piegas ao sublime e que, talvez por isso mesmo,
desafia leituras definitivas. O romance reinventa-se a cada tradução, que pode
privilegiar um ou outro aspecto da narrativa, oferecendo ao público diferentes
acessos ao texto de Sterne. Foi justamente por esta razão que escolhi este romance
como objeto de estudo e, não obstante a última tradução ser relativamente recente,
124
acredito que o meu texto apresenta uma contribuição distinta das anteriores na
medida em que amplia o entendimento de A Sentimental Journey e complementa
aspectos e nuances privilegiados nas versões passadas.
125
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