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Breno Machado dos Santos
OS JESUÍTAS NO BRASIL DOS FELIPES: encontros e desencontros de
uma Ordem plural
UFJF-PPCIR
2009
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIA DA RELIGIÃO
OS JESUÍTAS NO BRASIL DOS FELIPES: encontros e desencontros de
uma Ordem plural
Dissertação apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em
Ciência da Religião como requisito
parcial à obtenção do título de
Mestre em Ciência da Religião por
Breno Machado dos Santos.
Orientadora: Profª. Drª. Beatriz
Helena Domingues.
Juiz de Fora
2009
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Dissertação defendida e aprovada , em 27 de janeiro de 2009, pela banca constituída por:
__________________________________________________
Presidente: Prof. Dr. Francisco Luiz Pereira da Silva Neto
__________________________________________________
Titular: Profª. Drª. Maria Cristina Bohn Martins
__________________________________________________
Orientadora: Profª. Drª. Beatriz Helena Domingues
Para meu querido irmão Thiago,
in memoriam.
AGRADECIMENTOS
Vencida mais uma etapa de minha formação intelectual cabe, neste momento,
expressar com sinceridade a minha gratidão àqueles que muito me auxiliaram na
concretização deste projeto. Assim, me volto primeiramente a Deus, força maior que me
sustentou em momentos de dificuldades; aos meus pais, Rubens e Heloísa, por estarem
sempre de braços estendidos, prontos a me amparar; à Lívia, por compartilhar cada momento
dessa longa caminhada com muita paciência e amor; à Bia, pela acolhida e incentivo desde os
primeiros passos da graduação.
Agradeço a todos os professores do PPCIR, principalmente aos da área de
concentração em Ciências Sociais da Religião, com os quais tive maior oportunidade de
contato: o meu muito obrigado à Fátima, Marcelo e Robert pela atenção e sugestões; ao
querido Fabiano pelas frutíferas leituras e discussões; ao Francisco pelos ensinamentos, a
quem demonstro profunda admiração. Agradeço a Profª. Drª. Maria Cristina Martins por ter
aceitado participar de minha banca.
Não poderia deixar de mencionar a importância de ter feito duas grandes amizades
durante o mestrado: ao Carlos Procópio e Heiberle Heigsberg obrigado por compartilharem
momentos importantes de minha experiência acadêmica. Ao grande Luiz Fernando Souza
Lima, agradeço pelo valioso levantamento de fontes e pelo exemplo de amor à historiografia;
sou ainda muito grato por toda atenção despendida pelos meus amigos Luiz Gustavo
Mandarano e Igor Costa.
Por fim, quero manifestar meu agradecimento ao Seminário Arquidiocesano Santo
Antônio de Juiz de Fora, em especial aos seus bibliotecários Maria Izabel, Érika e Carlos
Rafael, e à CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), pelo
fomento à pesquisa.
Tinha eu grande prazer em ver os meninos acima de três ou quatro anos, a
que chamam curumimirim gorduchos e mais bem fornidos do que os
meninos europeus e já enfeitados com suas arrecadas de osso nos beiços
furados e com os cabelos tosquiados a seu modo. Tinham não raro o
corpo pintado e nunca deixavam de vir dançar diante de nós, em grupos,
quando nos viam chegar às suas aldeias. Rodeavam-nos, na esperança de
uma recompensa, afagando-nos e pedindo repetidamente na sua gíria:
cutuassá, amabé pindá (meu amigo aliado, -me anzóis para pescar).
[...] Durante um ano que passei nesse país, contemplei com curiosidade
adultos e crianças e quando me recordo agora desses garotos parece-me
tê-los diante dos olhos; mas não se me afigura possível descrevê-los com
exatidão nem pintá-los com fidelidade. É preciso vê-los em seu país. Em
verdade é a viagem bem longa e difícil, por isso quem não tiver bom olho
e bom pé ou se sentir temeroso de tropeços, que não se arrisque.
Jean de Léry, Viagem à terra do Brasil.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO....................................................................................................................... 01
CAPÍTULO 1: A ORDEM E SUAS RELAÇÕES.................................................................. 08
1.1. Os primeiros jesuítas e as características do “nosso” Instituto............................. 08
Fundando Colégios.......................................................................................... 12
Obediência e Accomodatio............................................................................... 16
A Instituição Epistolar jesuítica....................................................................... 20
1.2. Os jesuítas e as Coroas.......................................................................................... 22
Os jesuítas no tempo dos Felipes..................................................................... 26
CAPÍTULO 2: MODIFICANDO A ORDEM......................................................................... 34
2.1. Aldeamentos jesuíticos.......................................................................................... 35
No âmbito das aldeias...................................................................................... 37
2.2. Colégios do Brasil................................................................................................. 53
CAPÍTULO 3: A CRISE DE UM MODELO MISSIONÁRIO.............................................. 64
3.1. Os jesuítas em “novas searas”............................................................................... 70
Missões ao sul................................................................................................... 70
Missões ao norte............................................................................................... 73
3.2. As missões indígenas nos relatos edificantes........................................................ 79
3.3. Missões urbanas.................................................................................................... 85
3.4. Capítulos da Guerra do Brasil............................................................................... 91
CONCLUSÃO......................................................................................................................... 96
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..................................................................................... 99
ANEXOS............................................................................................................................... 106
RESUMO
Este trabalho analisa a presença da Companhia de Jesus no Brasil durante o período
filipino enfocando a intensificação das distintas posturas encontradas no modus procedendi
dos inacianos em função da opção pelas missões indígenas ou pelos colégios. Se por um lado,
a partir do estabelecimento da União Ibérica as dificuldades em relação ao projeto missionário
jesuítico na Colônia se acirram, por outro lado, os colégios do Instituto assumem uma posição
de destaque junto à sociedade. Neste momento, os relatos das atividades realizadas pelos
jesuítas atribuem uma maior importância aos ministérios praticados junto aos noviços e
escolásticos, assim como aqueles voltados para o auxílio dos habitantes dos núcleos citadinos,
se comparados aos trabalhos despendidos junto aos indígenas. Esta dissertação se propõe a
analisar o impacto causado pelo crescimento dos colégios no interior da Ordem como uma
forma diferente de abordar a crise missionária nos aldeamentos. Neste sentido, espera lançar
novas luzes sobre a atuação da polêmica Companhia de Jesus no Brasil colonial.
PALAVRAS-CHAVE: Jesuítas; Missões; Colégios; Brasil colonial; União Ibérica.
ABSTRACT
This study analyses the presence of the Society of Jesus during the Philippine period
focusing on the intensification of the distinct positions found into the Jesuits’ modus procendi
related to the option between Indian missions or schools. After the establishment of the
Iberian Union, the difficulties for the Jesuit missionary project in the Colony increased a lot.
In the other hand, the Jesuit schools get a position of importance in society. At that time, the
reports of the activities executed by the Jesuits started giving more importance to the
ministries practiced with the novices and scholastics, and also those dedicated to help the
inhabitants of the urban areas, instead of the works with the Indians. This dissertation
purposes the analysis of the impact caused by the increasing of schools inside the Society of
Jesus as a different way of understanding the crises in the Indian missions. In this direction, it
tries to enlighten the presence and works of the polemic Jesuit Society in colonial Brazil.
KEY-WORDS: Jesuits; missions; schools; colonial Brazil; Iberian Union.
INTRODUÇÃO
Que é a História, senão um contínuo revisar
de idéias e de rumos?
Oswald de Andradre
Vilipendiados como demônio ou reverenciados como santos os jesuítas evocaram
esses extremos de caracterização através dos 450 anos de existência da Companhia de Jesus”.
1
Ordem polêmica, responsável por inflamar a história ligada aos mais distintos territórios em
que se mostrou atuante, a Societatis Iesu realizou, no caso brasileiro, uma trajetória marcada
por despertar sentimentos e opiniões contraditórios que refletiram na produção de uma
volumosa bibliografia.
Na virada do século XIX para o século XX, Capistrano de Abreu lançava
importantes bases para a constituição de um novo modelo historiográfico no Brasil.
Influenciado pelo “cientificismo”, o autor de obras como Caminhos antigos e povoamento do
Brasil e Capítulos de História Colonial buscava interpretar a “nossa história a partir da
valorização de fenômenos sociais se afastando daquele conhecimento pautado nos aspectos
políticos, preso à seriação de datas e nomes. Além desta significativa contribuição, muitos
outros aspectos importantes do trabalho realizado por Capistrano de Abreu poderiam ser
destacados, entre eles a árdua tarefa de procurar, traduzir e publicar documentos inéditos
referentes à América portuguesa. No entanto, é sobre um ponto de sua obra que eu gostaria de
me deter. Refere-se às suas já tornadas célebres palavras a respeito dos inacianos, que diziam:
Durou duzentos e dez anos a sua atividade [da Companhia de Jesus] em nossa terra, e sua
influência deve ter sido considerável. Deve ter sido, porque no atual estado de nossos
conhecimentos é impossível determiná-la com precisão. [...] Uma história dos jesuítas é obra
urgente; enquanto não a possuirmos será presunçoso quem quiser escrever a do Brasil”.
2
1
John W. O’MALLEY. Os Primeiros Jesuítas, p. 15.
2
Capistrano de ABREU. Capítulos de História Colonial, p. 165.
2
Ao apontar a necessidade de se realizar estudos sobre a presença da Companhia de
Jesus na Colônia, Capistrano de Abreu parece ter despertado uma tendência que se tornaria
cada vez mais presente na produção acadêmica brasileira.
Durante a década de 1930 despontava a primeira grande polêmica relacionada à
história da Ordem no Brasil envolvendo as importantes obras de Sérgio Buarque de Holanda e
de Gilberto Freyre - Raízes do Brasil e Casa-Grande e Senzala - que atribuíam aos inacianos
um papel pouco representativo na formação da sociedade brasileira, e a publicação do
primeiro dos dez volumes da apologética obra de Serafim Leite assinalando o triunfo do
catolicismo jesuítico na Colônia, responsável por influenciar diretamente na composição dos
aspectos culturais e educacionais do Brasil.
No entanto, como bem indicado por Charlotte de Castelnau-L’Estoile, a obra de
Serafim Leite parece ter causado um “congelamento” sobre os estudos relacionados à
Companhia de Jesus no Brasil, efeito superado apenas nas últimas décadas do século XX,
3
momento em que importantes trabalhos de cunho antropológico e/ou historiográfico são
formulados com o auxílio de uma volumosa documentação jesuítica.
4
O surgimento de uma considerável bibliografia relacionada à denominada Nova
História Indígena, a permanente realização de pesquisas seguindo uma perspectiva associada
à História Social e Cultural na Colônia, e a eclosão de importantes análises preocupadas com
o projeto jesuítico em si, explicam o atual estado vigoroso da produção intelectual envolvendo
a atuação dos membros da Companhia de Jesus na América portuguesa.
Influenciada pelo panorama acima, esta pesquisa propõe analisar a atuação dos
inacianos no Brasil durante o estabelecimento da União Ibérica (1580-1640). Apontado como
um período “pouco conhecido e pouco estudado” da história do Brasil,
5
tal recorte
cronológico acabou sendo “marginalizado” pelos estudiosos da Ordem, se considerarmos o
desproporcional volume de pesquisas destinadas à “primeira geração” de jesuítas na Colônia
ou a fase de atuação da Companhia de Jesus durante o denominado “ciclo maranhense”.
Em 1549, chegavam à Colônia os primeiros missionários jesuítas incumbidos da
tarefa de catequizar os habitantes indígenas da América portuguesa. No entanto, decorridas
três décadas de atuação na Província, o otimismo inicial expresso pelos inacianos foi aos
3
Charlotte de CASTELNAU-L’ESTOILE. Operários de uma vinha estéril: Os jesuítas e a conversão dos índios
no Brasil (1580-1620), p. 28.
4
Em relação às abordagens antropológicas, ver, por exemplo: Eduardo VIVEIROS DE CASTRO. O mármore e
a murta: sobre a inconstância da alma selvagem. In: _____. A inconstância da Alma Selvagem: e outros ensaios
de antropologia. Quanto aos estudos historiográficos destaco as obras de Laura de Mello e SOUZA, John
Manuel MONTEIRO e Ronaldo VAINFAS.
5
Sérgio Buarque de HOLANDA (coord.). História Geral da Civilização brasileira: Época colonial, t. 1. v. 1: do
descobrimento à expansão territorial, p. 197.
3
poucos cedendo lugar ao desânimo frente à difícil tarefa missionária empreendida junto ao
gentio. As constantes fugas e os elevados índices de mortalidade indígena, a instituição de leis
ambíguas dando margem para que os colonos realizassem manobras a fim de obter a mão-de-
obra nativa, e o fracasso das conversões são alguns dos principais fatores responsáveis por
acirrar uma forte “crise missionária” no Brasil dos Felipes.
Além disso, ao analisar de maneira brilhante a presença jesuítica na Colônia entre os
anos de 1580-1620, Charlotte de Castelnau-L’Estoile demonstra que as missões indígenas
passavam a ser marginalizadas pela maior parte dos membros do Instituto devido
principalmente ao impacto negativo da experiência cotidiana nos aldeamentos sobre os
religiosos.
6
Nesse sentido, buscando lançar novas luzes sobre tal fenômeno, parto de uma
interpretação pautada na existência de uma diferenciação no interior da Companhia de Jesus
em relação ao seu modus procedendi e relaciono a crise missionária indígena com o
crescimento dos colégios do Instituto na Colônia. De maneira semelhante ao processo
ocorrido na Europa - quando a abertura dos primeiros estabelecimentos de ensino jesuíticos
teria gerado um ambiente propício para queixas quanto ao declínio do fervor missionário dos
inacianos -
7
a consolidação dos colégios da Ordem na Província durante a União Ibérica vai
refletir diretamente sobre a atuação dos jesuítas no Brasil marcando profundamente a
trajetória da Companhia de Jesus na América portuguesa. Fundados com o objetivo de
constituir novos “operários” para o trabalho de catequese, os colégios jesuíticos passam a
formar religiosos interessados em realizar trabalhos junto aos povoados, preferindo assistir
aos colonos a integrar as aldeias. Além disso, cabe destacar que a fundação de
estabelecimentos de ensino do Instituto na Província vai colocar em xeque o estimado voto de
pobreza firmado pelos jesuítas, animando constantes ataques à Ordem pelo fato de ela ter se
tornado proprietária de diversas fazendas e engenhos, assim como de grandes criações e uma
multidão de escravos - bens apontados como necessários para o sustento de seus membros.
A análise da presença da Companhia de Jesus no Brasil durante o período filipino
enfocando a intensificação das distintas posturas encontradas no modus procedendi dos
inacianos, em função da opção pelas missões ou pelos colégios, nos possibilita abordar a crise
missionária nos aldeamentos sob uma nova perspectiva, relativizando tradicionais
6
Charlotte de CASTELNAU-L’ESTOILE. Operários de uma vinha estéril: Os jesuítas e a conversão dos índios
no Brasil (1580-1620).
7
John W. O’MALLEY. As Escolas. In: _____. Os Primeiros Jesuítas.
4
interpretações que abordam a história da Ordem a partir da existência de um forte espirit de
corps presente no interior do Instituto.
Este trabalho também se insere dentro de uma linha de pesquisa ligada à História das
Missões e parte para um valioso diálogo com a Antropologia. Tema polêmico, o encontro
cultural ocorrido no âmbito missionário tem gerado uma gama crescente de novos estudos
responsáveis por renovar as interpretações sobre tal processo.
8
Desta forma, influenciado pela sistematização teórica proposta por Paula Montero,
pode-se dizer que este trabalho busca “compreender como se produz histórica e socialmente a
‘convergência de horizontes simbólicos’ entre grupos indígenas e missionários”,
9
destacando
a importância das “relações sociais que constituem (sustentam, resistem, interferem,
informam) o processo de mediação implicado na ação missionária, e por meio das quais se
articulam diversos códigos culturais, diferentes estratégias individuais, coletivas e
institucionais, assim como diferentes fluxos de informações (mercadorias materiais e
simbólicas)”.
10
Assumir tal postura nos permitirá contestar a eficácia do projeto catequético
desenvolvido pelos inacianos e apresentar as missões jesuíticas no Brasil dos Felipes como
um espaço gerador de trocas culturais, capaz de promover a eclosão de formas culturais
“híbridas”, “mestiças”.
11
Retomando a idéia de Capistrano de Abreu exposta no início desta introdução,
reconstruir parte da história dos jesuítas no Brasil filipino nos conduzirá a um caminho que
forçosamente esbarra em diversos aspectos econômicos, políticos e sócio-culturais de nosso
passado colonial.
* * *
8
Ver, por exemplo, as obras de Cristina POMPA, de Maria Regina Celestino de ALMEIDA e de Adone
AGNOLIN (2007).
9
Paula MONTERO. Introdução. In: _____ (org.). Deus na aldeia: missionários, índios e mediação cultural, p.
23.
10
Id., p. 21.
11
Ronaldo VAINFAS. A heresia dos índios: catolicismo e rebeldia no Brasil colonial; Serge GRUZINSKI. O
pensamento mestiço.
5
No final da década de 1980, era publicado no Brasil o importante artigo de Carlo
Ginzburg intitulado “Sinais: raízes de um paradigma indiciário”.
12
Preocupado em demonstrar
os motivos da emersão de um novo modelo epistemológico no final do século XIX, um dos
principais expoentes da “micro-história” apontava aos historiadores a possibilidade de se
realizar novos estudos através de um paradigma amplamente operante, constituído na busca
de indícios e sinais capazes de construir um conhecimento muito mais amplo, revelando
fenômenos gerais. Segundo Ginzburg “se as pretensões de conhecimento sistemático
mostram-se cada vez mais como veleidades, nem por isso a idéia de totalidade deve ser
abandonada. [...] Se a realidade é opaca, existem zonas privilegiadas sinais, indícios que
permitem decifrá-la”.
13
Em Relações de Força, ao combater as tendências do ceticismo pós-moderno que
reduzem a historiografia à retórica, Ginzburg retoma a idéia de que a história pode ser
reconstruída com base em rastros, indícios, sendo que tal processo implica, implicitamente,
uma série de conexões naturais e necessárias. Fora de tais conexões, cabe ao historiador se
mover no âmbito do verossímil, do provável.
14
Segundo o historiador,
As fontes não são nem janelas escancaradas, como acreditavam os positivistas,
nem muros que obstruem a visão, como pensam os cépticos: no máximo
poderíamos compará-las a espelhos deformantes. A análise da distorção específica
de qualquer fonte implica um elemento construtivo. Mas a construção, como
procuro mostrar nas páginas que se seguem, não é incompatível com a prova; a
projeção do desejo, sem o qual não há pesquisa, não é incompatível com os
desmentidos infligidos pelo princípio de realidade. O conhecimento (mesmo o
conhecimento histórico) é possível.
15
Em sua mais recente publicação, Carlo Ginzburg, fortemente influenciado pela
Apologia da História ou o ofício do historiador de Marc Bloch, propõe ao historiador servir-
se da estreita relação existente entre o fio dos relatos - “que ajuda a nos orientarmos no
labirinto da realidade” - e os rastros deixados por tais narrativas, ou seja, fragmentos de
verdade surgidos de testemunhos involuntários ou isolados nos testemunhos voluntários.
16
Baseando-me nas reflexões metodológicas sugeridas nos parágrafos acima, analiso
uma produção textual reunindo fontes primárias e secundárias seguindo os apontamentos -
12
In: Carlo GINZBURG. Mitos, Emblemas, Sinais: morfologia e história.
13
Carlo GINZBURG. op. cit., p. 177.
14
Carlo GINZBURG. Relações de Força: História, Retórica, Prova, p. 57-58.
15
Id., p. 44-45.
16
Carlo GINZBURG. Introdução. In: _____. O fio e os rastros: Verdadeiro, falso, fictício.
6
rastros, indícios, sinais - deixados por John O’Malley
17
e José Eisenberg,
18
referentes ao
impacto da fundação dos colégios jesuíticos sobre o “ideal missionário” dos inacianos em
atividade na Europa e no Brasil em meados do século XVI. Debruçar sobre as fontes
selecionadas, acompanhando “o fio” dessa temática em relação à atuação dos inacianos no
Brasil filipino, nos permitirá perceber que a consolidação dos colégios da Ordem durante a
União Ibérica foi responsável por suscitar uma diferenciação no modus procedendi dos
inacianos na Província, comprometendo o trabalho de conversão indígena realizado pelos
jesuítas na Colônia.
Assim, em relação às fontes primárias, pode-se dizer que são duas as categorias
privilegiadas por esta pesquisa. Em busca de uma melhor compreensão sobre as principais
diretrizes do “nosso Instituto”, foi priorizada uma análise sobre os textos fundadores da
Ordem, entre eles os Exercícios Espirituais, a Fórmula do Instituto e as Constituições.
Embora trate de diversos assuntos ligados aos colégios jesuíticos na Colônia, não incluí na
listagem acima os famosos planos de estudo traçados pela Companhia de Jesus conhecidos
como Ratios Studiorum, devido ao fato de este trabalho não estar voltado sobre as questões
filosófico-pedagógicas do Instituto.
19
Em um sentido distinto, para avaliar a intensificação das
diferentes posturas encontradas no modus procedendi dos inacianos e estabelecer uma
abordagem histórico-antropológica do encontro cultural ocorrido entre índios e jesuítas na
Colônia, foi dada ênfase à produção epistolar jesuítica, assim como à documentação colonial -
crônicas, relatos, etc. - deixada pelos próprios inacianos e/ou por autoridades seculares,
religiosos de outras Ordens e viajantes.
Além das principais fontes primárias citadas acima, considero de grande importância
para o desenvolvimento da presente pesquisa a extensa História da Companhia de Jesus no
Brasil, verdadeira compilação de documentos jesuíticos organizada pelo padre Serafim Leite.
Por fim, a análise de uma produção bibliográfica secundária me auxiliou na tarefa de
reunir e organizar diversas informações sobre a história dos inacianos na América portuguesa.
No primeiro capítulo proponho, inicialmente, a partir de uma articulação entre a
história da Companhia de Jesus e as trajetórias de Inácio de Loyola e do notável “grupo de
Paris”, esclarecer as principais características do Instituto e as posteriores transformações
sofridas pelos jesuítas nas décadas finais do século XVI. Em um segundo momento, busco
17
John W. O’MALLEY. Os Primeiros Jesuítas.
18
José EISENBERG. As missões jesuíticas e o pensamento político moderno: encontros culturais, aventuras
teóricas.
19
Para maiores detalhes sobre as Ratios Studiorum, ver: Egídio SCHMITZ. Os Jesuítas e a Educação: A
filosofia educacional da Companhia de Jesus.
7
caracterizar as peculiaridades do período referente ao estabelecimento da União Ibérica para a
Ordem seja, por exemplo, devido à perda de influência junto aos monarcas espanhóis, seja
pela eclosão de uma série de dificuldades internas ao Instituto em função do crescimento
extraordinário que a Companhia conheceu durante as primeiras décadas de sua existência.
No segundo capítulo faço uma análise da presença jesuítica no Brasil dos Felipes
enfocando as duas últimas décadas do século XVI, destacando a profunda diferenciação
existente na atuação dos inacianos em função da opção pelas missões indígenas ou pelos
colégios. Para isso, me volto primeiramente sobre a situação dos aldeamentos jesuíticos na
Província buscando lançar luzes sobre o encontro cultural ocorrido entre os nativos e os
missionários. Ao questionar a eficácia do projeto catequético empreendido pelos inacianos na
Colônia, encaro o choque entre Europa e Novo Mundo como gerador de um processo de mão-
dupla, no qual os jesuítas fomentavam, em diversos momentos, o surgimento de um novo
padrão cultural caracterizado através dos conceitos de mestiçagem ou hibridismo.
20
Se por um
lado, a partir do estabelecimento da União Ibérica as dificuldades em relação ao projeto
missionário indígena na Colônia se acirram, por outro lado, os trabalhos desenvolvidos pelos
jesuítas junto aos seus colégios apontam o surgimento de um novo momento histórico para a
Ordem no Brasil, caracterizado pela consolidação e expansão de outras diretrizes de atuação
da Companhia de Jesus na América portuguesa. Demonstrar tal processo é o objetivo da
segunda parte do capítulo.
No terceiro e último capítulo mantenho o foco da análise na crise missionária
indígena na Colônia durante o século XVII, seja em função das distintas posturas dos
inacianos, seja como fruto das constantes dificuldades surgidas das tarefas de conversão. Na
contramão deste processo, seguindo o fenômeno verificado no início da União Ibérica,
procuro demonstrar que as atividades realizadas pelos jesuítas junto aos núcleos urbanos vão
se revelar cada vez mais diversificadas e importantes para a Ordem no Brasil. Além disso,
busco resgatar o papel dos religiosos da Companhia de Jesus no importante processo de
expansão do domínio colonial sobre o território brasileiro durante o reinado dos Felipes,
assim como alguns aspectos relevantes da história da Ordem durante o período inicial das
invasões holandesas no Nordeste.
20
Serge GRUZINSKI. O pensamento mestiço; Ronaldo VAINFAS. A heresia dos índios: catolicismo e rebeldia
no Brasil colonial.
CAPÍTULO 1: A ORDEM E SUAS RELAÇÕES
Procure ter sempre diante dos olhos primeiramente a Deus e depois a regra deste
seu Instituto, que é um caminho determinado para ir até Ele. E este fim, que lhe
foi proposto por Deus, procure alcançá-lo com todas as forças. Cada um, porém,
segundo a graça que lhe foi concedida pelo Espírito Santo e a medida peculiar da
sua vocação.
Fórmulas do Instituto da Companhia de Jesus, 1540.
Fundada oficialmente em setembro de 1540, através da carta Apostólica Regimini
militantis ecclesiae concedida pelo papa Paulo III, a Companhia de Jesus entraria na década
de 1580 tendo atravessado por uma fase de formação das principais diretrizes do Instituto.
Como nos mostra o historiador jesuíta John O’Malley, em sua valiosa obra intitulada Os
Primeiros Jesuítas, “apesar de a Companhia enfrentar muitos desafios após 1565 e passar por
posteriores mudanças, algumas delas significativas, seu projeto naquele período havia sido
estabelecido, e a maior parte dos elementos fundamentais de seu ‘modo de proceder’ já estava
delineada”.
21
Desta forma, ao tecer uma análise sobre a atuação dos membros da Companhia de
Jesus no Brasil durante o período filipino (1580-1640), torna-se imprescindível realizar um
estudo preliminar que abarque as primeiras décadas de existência da Ordem, a fim de alcançar
uma melhor compreensão sobre as principais características do Instituto e perceber as
transformações sofridas pela Compagnia di Gesù durante a União Ibérica.
1.1. Os primeiros jesuítas e as características do “nosso” Instituto
Embora o início da história da Ordem dos jesuítas apresente como seu marco oficial
o ano de 1540, data em que o Instituto é pela primeira vez aprovado por uma bula papal,
21
John W. O’MALLEY. Os Primeiros Jesuítas, p. 20.
9
dissociá-lo da biografia de Inácio de Loyola e da trajetória do famoso “grupo de Paris”,
22
núcleo fundador da Companhia, seria um equívoco.
Nascido provavelmente no ano de 1491, em território basco situado no nordeste da
Espanha, Inigo Lopez de Loyola
23
viveria um episódio no ano de 1521 responsável por
imprimir “marcas profundas” em sua existência: trata-se da participação em um conflito
travado entre tropas francesas e espanholas, do qual o futuro santo sairia com graves
ferimentos nas pernas após ser atingido por uma bala de canhão. Tendo passado por duas
cirurgias, Inigo sofreria uma terceira objetivando simplesmente realizar correções estéticas,
que por fim, o deixaram coxo. Após este episódio, a necessidade de atravessar um longo
período de recuperação na Casa y Solar - castelo dos Loyolas -, fez com que Inigo entrasse
em contato com duas obras que o conduziram ao início de um novo caminho a ser trilhado:
trata-se da Fábula dourada, de Jacopo da Voragine, e a Vida de Cristo, cuja autoria é de
Ludolfo da Saxônia. Segundo O’Malley, essas leituras levaram-no a especular sobre a
possibilidade de moldar sua própria vida à maneira dos santos e imitar suas proezas,
imaginadas por ele nos moldes dos heróis cavalheirescos com que estava mais
familiarizado”.
24
“Convertido”,
25
Inigo decide peregrinar à Terra Santa orientado por uma busca
espiritual intensa marcada por renúncias e abnegações. Antes de alcançar Jerusalém o
caminho do jovem basco seria assinalado por mais dois eventos importantes para a dirão de
sua nova vida. É em Monserrat, na Catalunha, que o errante realiza a sua confissão geral e
despoja-se - diante da famosa imagem da Virgem Negra - de todas as suas armas tomando em
seguida as vestes de peregrino, ritualizando o nascimento de um novo homem.
Posteriormente, em Manresa, Inigo vivencia o período em que ele designou como sendo sua
“Igreja primitiva” e conhece a obra Imitação de Cristo, - que era então atribuída a Jean
Gerson, chanceler da Universidade de Paris - livro que o influenciará durante toda a sua vida.
Além disso, nesse momento o conteúdo básico de seus Exercícios Espirituais - revistos ao
longo de vinte anos aproximadamente - encontrar-se-á escrito.
22
Além do próprio Inácio de Loyola, os demais jesuítas que constituíam esse grupo eram: Francisco Xavier,
Diogo Laínez, Pedro Favre, Alfonso Salmerón, Simão Rodrigues, Nicolau Bobadilla, Cláudio Jay, Paschase
Broët e João Codure.
23
Os bascos não utilizam o til que em castelhano se escreve por cima do “n” de Inigo.
Sobre a polêmica envolvendo a data de nascimento do fundador da Companhia de Jesus, ver: Jean
LACOUTURE. Os Jesuítas: A Conquista, p. 18.
24
John W. O’MALLEY. Os Primeiros Jesuítas, p. 46.
25
Segundo a Autobiografia e os relatos das pessoas mais próximas de Inácio - Laynez e Polanco - o fundador da
Companhia era um homem que embora tivesse sua fé, era ligado às vaidades do mundo, dado a jogos e
mulheres, assim como às armas. Jean LACOUTURE. O vagabundo e o inquisidor. In: _____. op. cit.
10
Proibido pelos franciscanos - responsáveis pelos peregrinos - de permanecer em
Jerusalém, Inigo retorna à Europa se sentindo inclinado a se aperfeiçoar junto às letras.
Depois de permanecer um período estudando gramática latina em Barcelona, tendo
posteriormente freqüentado a recém-fundada Universidade de Alcalá, o futuro fundador da
Ordem dos jesuítas começa a orientar algumas pessoas através de seus Exercícios Espirituais,
assim como a ensinar catecismo a um grande número de pessoas. Após ter sido acusado de ser
um alumbrado
26
e ter passado algumas vezes pela prisão - sendo sempre absolvido pelos
juízes de Salamanca - Inigo percebe a necessidade de deixar a Espanha e partir para Paris, no
ano de 1528, novamente com o intuito de completar seus estudos.
27
É na capital francesa que Inigo - após receber o grau de mestre em Artes passa a
referir a si mesmo como Ignatius, acreditando erroneamente ser este nome apenas uma
variante do primeiro - vai conhecer os primeiros companheiros responsáveis pelo futuro
surgimento do grupo que, a partir do ano de 1537, passa a se autodenominar Companhia de
Jesus. Um pouco antes disso, em 1534, Inácio e seus primeiros seis companheiros estavam
unidos por um voto que os conduziam por um mesmo caminho de ação, assim como também
haviam firmado a necessidade de viver uma vida de pobreza.
28
A importância deste contexto para o nosso estudo reside no fato de a Universidade de
Paris ter proporcionado uma formação de extrema qualidade aos primeiros jesuítas,
experiência que certamente influenciou diretamente na decisão tomada pela Ordem, poucos
anos mais tarde, de fundar estabelecimentos de ensino próprios.
O contato com o papa Paulo III também surge neste período como fruto da
incansável vontade de Inácio - agora compartilhada pelos seus nove companheiros - de seguir
para Jerusalém sob as bênçãos do Pontífice. No entanto, a proximidade do inverno e as más
condições políticas impediriam a viagem do grupo reunido em Veneza. Depois disso, em
1539 uma nova visita a Roma é realizada pelos dez membros da Companhia, momento em
que os “Cinco Capítulos” - espécie de esboço da Fórmula do Instituto, documento semelhante
às Regras de outras Ordens - é formulado e entregue a Paulo III.
26
“Os alumbrados (iluminados) surgem um pouco por toda a parte sobretudo em Castela de um húmus
popular onde os anseios da não encontram resposta no ensino e no comportamento de um clero deficiente e
corrupto. Muitos deles levam o ardor místico ao ponto de negarem qualquer obrigação sacramental. [...] Trata-se
em todo o caso de um movimento que faz convergir o plano de reforma conventual emanado principalmente dos
conventos franciscanos (impulsionado por Cisneros) e uma espiritualidade espontânea animada no meio laico
pelas ‘beatas’, que terão um papel activo junto de Inigo, e pelos dejados, os abandonados à vontade de Deus (no
hacer nada, nada fazer senão entregar-se ao seu amor) precursores do quietismo”. Jean LACOUTURE. O
vagabundo e o inquisidor. In: _____. Os Jesuítas: A Conquista, p. 41.
27
John W. O’MALLEY. Os Primeiros Jesuítas, p. 52.
28
Ibid., p. 59.
11
Quinze meses após esse episódio surgia a Ordem dos jesuítas,
[...] instituída principalmente para o aperfeiçoamento das almas na vida e doutrina
cristãs, e para a propagação da fé, por meio de pregações públicas, do ministério da
palavra de Deus, dos Exercícios Espirituais e obras de caridade, e nomeadamente
pela formação cristã das crianças e dos rudes, bem como por meio de Confissões,
buscando principalmente a consolação espiritual dos fiéis cristãos.
29
Como fica explícito no trecho da Fórmula citado acima, os primeiros jesuítas haviam
enfatizado a prática de alguns ministérios. Segundo O’Malley, o programa pastoral dos
inacianos era constituído na tríade palavra-sacramento-obras, sendo o discurso o principal
veículo pelo qual a maior parte dos ministérios alcançava seus objetivos.
30
Desta forma, a
pregação assumia um papel de destaque entre os ofícios praticados pelos membros do
Instituto. “Pregavam assim, nas ruas, nas praças públicas, nos mercados, nos hospitais, nas
prisões, nos navios atracados, em fortalezas ou em campos de jogos, em alojamentos e
pensões e nas confraternidades”.
31
Outro ministério central encontrado no modus procedendi jesuítico é a “educação das
crianças e gente rude na doutrina cristã, o ensino dos dez mandamentos e outros rudimentos
semelhantes que lhes parecerem convenientes”,
32
realizado através da catequese. O emprego
de Doutrinas Cristãs - também chamadas de catecismos a partir do século XIV - como
instrumento de formação religiosa utilizado pela sociedade européia data do início da Baixa
Idade Média. Porém, a partir do século XVI a catequese ganhava novas proporções.
33
O
surgimento da imprensa e a necessidade de arregimentar e instruir fiéis com base em um
corpo doutrinário uniforme são fatores que fomentaram a eclosão de diversos catecismos
neste período, e, embora a utilização de tais instrumentos fosse comum entre protestantes e
outros grupos católicos, pode-se dizer que a instrução catequética atribuída pela Companhia
de Jesus talvez tenha sido a mais enfática.
34
Por fim, depois dos Exercícios Espirituais - prática que será brevemente analisada
adiante -, as “missões” constituíam a estratégia pastoral mais peculiar delineada pela Ordem
29
Fórmulas do Instituto da Companhia de Jesus aprovadas e confirmadas pelo Sumo Pontífice Paulo III. In:
Constituições da Companhia de Jesus e Normas Complementares, p. 29.
30
John W. O’MALLEY. Os Primeiros Jesuítas, p. 145.
31
Id., p. 149.
Seguindo o sentido das pregações, as preleções sacras e as conversações devotas assumiam um papel de destaque
entre os ministérios praticados pelos jesuítas.
32
Fórmulas do Instituto da Companhia de Jesus aprovadas e confirmadas pelo Sumo Pontífice Paulo III. In:
Constituições da Companhia de Jesus e Normas Complementares, p. 33.
33
Adone AGNOLIN. Jesuítas e Selvagens: a negociação da no encontro catequético-ritual americano-tupi
(séc. XVI-XVII), p. 44-45.
34
John W. O’MALLEY. op. cit., p. 185.
12
dos jesuítas. A missio englobava um programa de atividades que incluía a pregação, a
catequese, a confissão, sendo realizadas junto às aldeias e vilas européias, assim como nos
diversos territórios coloniais. Segundo a Fórmula do Instituto,
[...] fiquemos obrigados, quando estiver na nossa mão, a ir sem demora para
qualquer região onde nos quiserem mandar, sem qualquer subterfúgio ou escusa,
quer nos enviem para entre os turcos ou outros infiéis, que habitam mesmo que seja
nas regiões que chamam Índias, quer para entre hereges ou cismáticos, quer ainda
para junto de quaisquer fiéis.
35
A Fórmula do Instituto revisada e aprovada pelo papa Júlio III, no ano de 1550,
apresentaria uma mudança em relação à primeira versão, acrescentando a administração de
outros Sacramentos” à lista de ministérios citados.
36
A confissão e a comunhão eram práticas
que estavam implícitas na maioria dos ofícios realizados pelos jesuítas. Daí o motivo de os
inacianos acreditarem que a eucaristia e a penitência seriam os únicos sacramentos
administrados normalmente pelos membros da Companhia de Jesus. Como os jesuítas não
podiam aceitar qualquer forma de prelatura, ficavam proibidos de aplicar as ordens e a
confirmação, ministradas apenas por bispos. Em relação aos sacramentos reservados aos
párocos - batismo, matrimônio e extrema-unção - os jesuítas poderiam oficiá-los somente em
casos de necessidade ou em locais onde as paróquias ainda não tivessem sido estabelecidas.
37
Fundando Colégios
As atividades realizadas pelos inacianos não ficariam restritas à lista de sacramentos
e práticas descritas acima. O modelo evangélico jesuítico, baseado no ministério de Jesus e de
seus discípulos, ou seja, no ideal apostólico e itinerante (vita apostolica) exemplificado no
Novo Testamento, rapidamente começaria a sofrer seus primeiros abalos, frutos de tensões
surgidas no interior da Ordem a partir da eclosão dos colégios da Companhia.
De acordo com a primeira versão da Fórmula, os jesuítas poderiam estabelecer
domicílios próximos às universidades com a intenção de lhes proporcionarem unicamente
alojamento para a manutenção de suas formações, sem haver, desta forma, qualquer tipo de
35
Fórmula do Instituto da Companhia de Jesus aprovada e confirmada pelo Sumo Pontífice Paulo III. In:
Constituições da Companhia de Jesus e Normas Complementares, p. 31-32.
36
Fórmula do Instituto da Companhia de Jesus aprovada e confirmada pelo Sumo Pontífice Júlio III. In:
Constituições da Companhia de Jesus e Normas Complementares, p. 29.
37
John W. O’MALLEY. Os Primeiros Jesuítas, p. 212.
13
instrução.
38
No entanto, a idéia de que os próprios inacianos poderiam ministrar aulas aos
noviços surgiu e foi aos poucos ganhando amplitude, processo que mais tarde evoluiu e
resultou na abertura do primeiro colégio da Companhia de Jesus para externos em Goa, na
Índia. Na Europa, o primeiro estabelecimento de ensino destinado a estudantes jesuítas e não-
jesuítas foi fundado em Gandia, na Espanha, no ano de 1546. Assim, estava dado um passo
importante para o surgimento de um novo ministério na história da Ordem que se consolidaria
dois anos mais tarde, na experiência ocorrida em Messina, que reuniu um grupo contendo
alguns dos melhores talentos da Companhia disponíveis em Roma para dar aulas gratuitas de
teologia, casos de consciência, artes, retórica e gramática, sob o financiamento das
autoridades políticas da cidade italiana.
39
Eis a justificativa dada pelas Constituições da Companhia de Jesus para a abertura de
instituições de ensino pela Ordem:
Sendo o objetivo e fim desta Companhia percorrer as diferentes partes do mundo
[...] pareceu-nos necessário, ou muito conveniente, que os que entrarem nela sejam
pessoas de vida honesta, e com instrução capaz para este trabalho. E, como homens
bons e instruídos se encontram poucos [...] pareceu-nos bem a todos [...] tomar
outro caminho: admitir jovens que, pela sua vida edificante e pelos seus talentos,
dêem esperança de vir a ser homens, ao mesmo tempo virtuosos e sábios, para
cultivar a vinha de Cristo Nosso Senhor. Devemos igualmente, nas condições
indicadas na Bula, aceitar colégios, fazendo parte ou não de universidades, quer
tais universidades sejam governadas pela Companhia, quer não. Estamos
persuadidos em Nosso Senhor que isso será de maior serviço de sua divina
Majestade, porque assim aumentará o número dos que se hão de empregar nele, e
serão ajudados a progredir mais na ciência e na virtude.
40
Egídio Schmitz complementa que a criação de colégios “correspondia a uma
necessidade, representando também uma solução prática para o problema da falta demembros
da Companhia, que ainda não possuía pessoal suficiente para assumir escolas próprias”. Tal
estratégia possibilitava a formação de novos religiosos sem o dispêndio de grandes
investimentos de pessoas e recursos.
41
Oferecendo um ensino gratuito e de maior qualidade, se comparado às alternativas da
época,
42
assim como fundando colégios em diversos territórios onde anteriormente não havia
nenhum, os jesuítas alcançavam um significativo sucesso através da prática educacional. No
38
John W. O’MALLEY. Os Primeiros Jesuítas, p. 316.
39
John W. O’MALLEY. As Escolas. In: _____. op. cit.
40
Constituições da Companhia de Jesus, p. 115-116.
41
Egídio SCHMITZ. Os Jesuítas e a Educação: A filosofia educacional da Companhia de Jesus, p. 40.
42
Para maiores detalhes sobre os aspectos filosófico-pedagógicos seguidos pelos colégios jesuíticos,
influenciados pelo modus parisiensis ver, por exemplo: John W. O’MALLEY. As Escolas. In: _____. op. cit.
14
entanto, se a Ordem recém-fundada começava a ganhar espaço e prestígio junto à sociedade,
por sua vez, problemas de caráter institucional surgiam como reflexo do crescimento
acelerado dos colégios. em 1553, Inácio de Loyola chamava a atenção sobre a necessidade
de não aceitar precipitadamente novos estabelecimentos de ensino, enquanto na segunda
Congregação Geral da Ordem, ocorrida em 1565, afirmava-se a exigência de limitar o número
dos institutos e de concentrar os esforços na consolidação dos já existentes.
43
O primeiro grande impacto sofrido pela Companhia de Jesus em relação ao
surgimento dos colégios está relacionado com a transformação no caráter do importante voto
de pobreza dos jesuítas.
44
Além do fato de terem se tornado proprietários de imponentes obras
arquitetônicas, assim como de grandiosas propriedades rurais, os inacianos acabaram se
rendendo facilmente à aceitação de coros e doações para a manutenção de seus
estabelecimentos de ensino. Segundo as Constituições,
Em colégios que, com os próprios rendimentos, podem sustentar o corpo docente e
ainda doze escolásticos, não se pedirão nem aceitarão esmolas ou presente algum,
para a maior edificação das almas. Se, porém, o rendimento não desse para tanto,
poder-se-iam receber algumas esmolas, mas sem as pedir, a não ser que a pobreza
fosse tal que obrigasse a solicitar pelo menos a algumas pessoas.
Contudo, se houvesse benfeitores que quisessem dar qualquer propriedade ou
alguma renda fixa, poderia aceitar-se, a fim de manter por ela um número maior de
escolásticos e de professores, para maior serviço divino.
45
Outra questão importante diz respeito à criação de um vínculo mais estreito com as
elites da sociedade, uma vez que a maior parte dos estudantes era proveniente de tais
segmentos. Além disso, tornou-se assunto delicado para o Instituto a íntima relação
estabelecida pelos seus membros com a literatura pagã e com a cultura secular. Ao assumirem
cargos de ensino de disciplinas como matemática, astronomia, filosofia natural (física) e
humanidades os jesuítas se aproximavam de uma esfera intelectual que se relacionava apenas
indiretamente com a religião cristã.
46
Segundo O’Malley,
43
Egídio SCHMITZ. Os Jesuítas e a Educação: A filosofia educacional da Companhia de Jesus, p. 16.
O autor faz um belo levantamento dos colégios da Companhia fundados no período compreendido entre as duas
primeiras décadas de existência da Ordem. Ver: p. 45-49.
44
“Sabendo nós, por experiência, ser a vida tanto mais alegre, pura e apta para a edificação do próximo, quanto
mais afastada estiver de todo o contágio da avareza e quanto mais semelhante for à pobreza evangélica; e porque
sabemos que Nosso Senhor Jesus Cristo aos seus servos, há de dar o necessário para a alimentação e o vestuário,
façam todos e cada um voto de perpétua pobreza, declarando que não em particular mas nem mesmo em
comum podem adquirir para sustentação e uso da Companhia qualquer direito civil a quaisquer bens estáveis,
frutos ou rendimentos; antes se contentem em usar somente das coisas que lhes vierem a ser dadas, para
satisfazer às suas necessidades”. Fórmula do Instituto da Companhia de Jesus aprovada e confirmada pelo Sumo
Pontífice Paulo III. In: Constituições da Companhia de Jesus e Normas Complementares, p. 33-34.
45
Constituições da Companhia de Jesus, p. 120.
46
John W. O’MALLEY. Os Primeiros Jesuítas, p. 375.
15
os jesuítas mais velhos começaram a queixar-se de que os escolásticos enviados
aos colégios, especialmente aqueles procedentes do altamente prestigioso Colégio
Romano, conheciam Terêncio melhor do que conheciam Tomás de Aquino. Os
escolásticos haviam se acostumado a delicadezas na alimentação e vestimentas e
mostrado favoritismo no tratamento dos estudantes e manifestavam pouco interesse
em ensinar, eram “áridos nas coisas do espírito” e sonhavam com a “honra de uma
cátedra”.
47
Por fim, não podemos deixar de apontar o abalo em relação à primeira característica
da Companhia de Jesus, ou seja, o fato de seus membros estarem livres para realizar missões
em qualquer parte do mundo. O surgimento de estabelecimentos de ensino amplos e
complexos requeria a presença constante de professores e administradores capazes de
sustentar tal sistema. Conforme sugestões levadas pelo Colégio Romano - principal
estabelecimento da Ordem - à segunda Congregação Geral, era necessário não mudar
freqüentemente os superiores, os mestres de noviços, os confessores e os pregadores, a fim de
que ocorresse um bom funcionamento de todas as atividades ligadas aos colégios do
Instituto.
48
Assim, “a tensão entre a insistência contínua sobre a necessidade da mobilidade e
o compromisso a longo prazo requerido pelos colégios permaneceria através da história dos
jesuítas”.
49
Segundo as palavras de Juan de Polanco - Secretário Geral da Ordem -, em carta
endereçada a todos os superiores no ano de 1560, a Companhia passava a enxergar duas
possibilidades de ajudar ao próximo: uma através dos colégios, por meio da educação da
juventude, no ensino e na vida cristã; a outra, por meio dos sermões, confissões, e outros
meios que se enquadram no costumeiro noster modus procedendi dos jesuítas.
50
Além das tarefas de ensino, cabe destacar que as “residências” requeriam dos
inacianos a ocupação com uma série de práticas caritativas. De acordo com asConstituições,
A Companhia procura ajudar o próximo, não deslocando-se por diversos países,
mas também permanecendo com residência estável em vários sítios, como nas
casas e colégios. É, portanto, bom que se tenha compreendido como é que nestas
residências se hão de ajudar as almas [...].
A primeira é o bom exemplo da perfeita honestidade e vida cristã, procurando
edificar aqueles com quem se trata, tanto com boas obras como com palavras, ou
antes, mais com obras do que com palavras.
Outro modo de ajudar o próximo será por meio de Missas e de outras funções
litúrgicas pelas quais nenhuma esmola se aceitará [...].
47
John W. O’MALLEY. Os Primeiros Jesuítas, p. 356.
48
Ladislaus LUKÁCS, S. J. [1974]. Monumenta Historica Societatis Jesu. Monumenta Pedagogica Societatis
Jesu III (1557-1572) apud Egídio SCHMITZ. Os Jesuítas e a Educação: A filosofia educacional da Companhia
de Jesus, p. 38.
49
John W. O’MALLEY. op. cit., p. 373.
50
Ibid., p. 313.
16
Poder-se-á também ajudar o próximo pela administração dos sacramentos,
sobretudo pelas confissões, e pela Sagrada Comunhão, que se fará na própria
igreja.
Esforçar-se-ão também por fazer bem aos indivíduos em conversas piedosas,
aconselhando-os, exortando-os à virtude, ou dando-lhes os Exercícios Espirituais.
[...] empregar-se-ão também nas obras de misericórdia corporais. Tais são, por
exemplo, auxiliar os doentes, especialmente nos hospitais, visitando-os e enviando-
lhes algumas pessoas para os servir; fazer as pazes entre os desavindos; socorrer os
pobres e os presos.
51
Atividades comumente realizadas em território europeu desde os primeiros anos após
a fundação da Ordem, quando transplantadas para a Província brasileira serão responsáveis
por causar um impacto no modus procedendi jesuítico operado na Colônia.
Obediência e Accomodatio
Questão bastante polêmica em estudos referentes à Companhia de Jesus, o conceito
jesuítico de obediência tem gerado interpretações
52
que atribuem ao Instituto características
semelhantes às das Ordens militares medievais, tais como os templários e os hospitalários, em
que a exagerada disciplina e a abolição da vontade atribuída aos inacianos perante o Sumo
Pontífice e aos seus superiores hierárquicos acabam por lhes conferir uma imagem negativa.
Embora na sexta parte das Constituições jesuíticas fique explícito que os coadjutores
formados e os professos deveriam fazer “com grande prontidão, alegria espiritual e
perseverança tudo quanto nos for mandado [...] abnegando com obediência cega qualquer
opinião e juízo pessoal contrário [...]”,
53
podemos concordar com Jean Lacouture que “a
disciplina inventada por Loyola está salpicada de clareiras a fim de se evitar a infelicidade de
ser apenas a execução mecânica de uma ordem imposta que, como na caserna, não teria outro
corretivo senão a contra-ordem”.
54
Considerado pelos jesuítas como uma das principais ferramentas utilizadas para
“ajudar as almas”, os Exercícios Espirituais compostos por Inácio de Loyola após sua
conversão ocorrida em Manresa revelam aspectos importantes presentes na prática dos
inacianos. De acordo com O’Malley,
51
Constituições da Companhia de Jesus, p. 184-186.
52
Ver, por exemplo: Luiz Felipe Baêta NEVES. O combate dos soldados de Cristo na terra dos papagaios:
colonialismo e repressão cultural.
53
Constituições da Companhia de Jesus, p. 162.
54
Jean LACOUTURE. Perinde ac cadaver. In: _____. Os Jesuítas: A Conquista, p. 127.
17
Este documento encapsulou a própria essência da conversão espiritual de Inácio e a
apresentou de uma forma intencionada a guiar outros a mudanças análogas de visão
e motivação. Inácio usou os Exercícios como principal meio de motivação de seus
discípulos e os prescreveu como uma experiência a ser vivida para todos os que
entrassem mais tarde na Companhia. Embora os Exercícios não fossem destinados
exclusivamente aos jesuítas, permaneceram como o documento que disse aos
jesuítas, em nível mais profundo, quem eles eram e quem deveriam supostamente
ser. Além disso, os Exercícios estabeleceram os paradigmas e as metas de todos os
ministérios nos quais a Companhia se engajou, mesmo que isso não fosse
explicitamente reconhecido. Não se pode conhecer os jesuítas sem referência a esse
livro.
55
Os Exercícios são destinados a proporcionar auxílio ao indivíduo para que ele possa
“tirar de si todas as afeições desordenadas, e, depois de tirar estas, buscar e encontrar a
vontade divina na disposição de sua vida e para a sua salvação”.
56
Dentro deste propósito
genérico e aplicável a qualquer situação, Inácio tinha em mente que os Exercícios deveriam
ser realizados em ocasiões onde uma pessoa se encontrasse em situações que exigissem a
tomada de decisões difíceis.
57
Influenciado pelo movimento religioso conhecido como devotio
moderna, o manual apresenta inúmeras práticas religiosas - tais como o exame de consciência,
meditação, contemplação e oração - destinadas a habilitar o “exercitante” a realizar escolhas
sob imediata inspiração divina, cabendo ao orientador a restrita função de conduzir o
indivíduo pelos Exercícios.
58
A importância dos Exercícios Espirituais em nossa análise está no fato de sua
pedagogia apresentar uma característica fortemente presente nos posteriores documentos da
Ordem, e de maneira geral, no modus procedendi dos membros do Instituto: trata-se do
princípio da adaptação. Segundo Inácio de Loyola, embora repleto de regras e diretivas, os
Exercícios “devem ser adaptados à disposição das pessoas que desejam fazê-los. Isto é,
conforme a sua idade, instrução e talento [...] dar-sea cada um segundo queira se dispor,
para que mais se possa ajudar e aproveitar”.
59
De maneira semelhante aos Exercícios, instrumento extraordinariamente flexível,
que pode ser acomodado a uma variedade de situações e indivíduos, a Fórmula do Instituto
55
John W. O’MALLEY. Os Primeiros Jesuítas, p. 20.
56
Santo Inácio de LOYOLA. Exercícios Espirituais: Cópia Autógrafa, 1° Anotação, p. 9-10.
57
John W. O’MALLEY. op. cit., p. 65.
58
[...] em tais exercícios espirituais, mais conveniente e muito melhor é que, procurando a vontade divina, o
mesmo Criador e Senhor se comunique à pessoa espiritual, abraçando-a em seu amor e louvor e dispondo-a para
o caminho em que melhor poderá servi-lo depois. Assim, aquele que os exercícios não opte nem se incline a
uma parte ou a outra, mas, ficando no meio, como fiel de uma balança, deixe imediatamente agir o Criador com
a criatura e a criatura com seu Criador e Senhor”. In: Santo Inácio de LOYOLA. op. cit., 15° Anotação, p. 16.
59
Id., 18° Anotação, p. 17.
18
prescreve que os jesuítas enviados em missão a diversos territórios devem estar sempre
dispostos a se adaptarem “segundo as circunstâncias de pessoas, de lugares, e de tempos”.
60
As Constituições jesuíticas também designavam uma liberdade de agir a cada um de
seus membros, isentando-os de rígidas prescrições.
61
De acordo com Jerônimo Nadal - jesuíta
responsável pela promulgação e explicação das Constituições - nenhum formato
universalmente obrigatório seria possível nem desejável na Companhia de Jesus; daí o fato de
ter declarado que “há muitas coisas que por necessidade devem ser diferentes de acordo com
as diferenças dos lugares e das pessoas”.
62
Esta mesma idéia é exposta na Chronicon
Societatis Jesu. Publicada pelo Secretário Juan Afonso de Polanco, entre os anos de 1573-74,
tal obra traz revelações interessantes sobre como os primeiros jesuítas definiam o seu
ministério. De acordo com este volumoso trabalho, que detalha minuciosamente as atividades
dos missionários desde 1537 até o ano da morte de Inácio em 1556, o estereótipo de que a
Companhia de Jesus atuava sob uma rígida disciplina militar, estando seus membros sujeitos e
limitados às ordens de seus superiores, é apontado como totalmente equivocado. OChronicon
substitui esta imagem homogênea da Companhia de Jesus por um quadro onde coexiste uma
vasta rede de indivíduos empreendedores, que mantendo estreita comunicação com seus
superiores, e recebendo deles orientação e consolação, adaptam-se às necessidades locais e
tentam aproveitar as oportunidades como se lhes apresentam.
63
Por fim, o próprio Inácio de Loyola em sua famosa “carta de obediência” endereçada
aos jesuítas de Coimbra, escreveu que “[...] nós não podemos dizer que a obediência requer
somente a execução do comando e o desejo de se sentir bem por causa disso, pois ela também
requer que o julgamento veja as coisas à maneira que são ordenadas pelo Superior, desse
modo [...], o entendimento da pessoa pode ser melhor movido pela Vontade.”
64
Os elementos citados acima são importantes para que possamos compreender a
existência de um avançado processo de autonomização ocorrido na Província do Brasil
durante o generalato de Aquaviva, onde uma série de medidas tomadas pelo centro da Ordem
em Roma eram rechaçadas pelos inacianos residentes na Colônia.
65
Como apontado por
Castelnau-L’Estoile,
60
Fórmula do Instituto da Companhia de Jesus aprovada e confirmada pelo Sumo Pontífice Paulo III. In:
Constituições da Companhia de Jesus e Normas Complementares, p. 33.
61
Charlotte de CASTELNAU-L’ESTOILE. Operários de uma vinha estéril: Os jesuítas e a conversão dos
índios no Brasil (1580-1620), p. 69.
62
Apud John W. O’MALLEY. Os Primeiros Jesuítas, p. 522.
63
John W. O’MALLEY. op. cit., p. 30.
64
Apud José EISENBERG. As missões jesuíticas e o pensamento político moderno: encontros culturais,
aventuras teóricas, p. 37.
65
Charlotte de CASTELNAU-L’ESTOILE. op. cit.
19
Confrontados a novas situações, a dados desconhecidos do centro romano, isolados
de seus superiores, os jesuítas dispersos devem poder agir segundo seu
discernimento, sem prescrições. A adaptabilidade não era imposta pela prática a
uma regra que teria sido concebida de forma muito rígida e que se revelaria
impossível de aplicar; ao contrário, ela está prevista nas Constituições como sendo
a contrapartida necessária a toda regra.
66
Além de exercer uma forte influência sobre as ações/decisões dos membros da
Ordem, o princípio da accomodatio mostrava-se fortemente presente nas estratégias de
conversão adotadas pelos inacianos. Um dos exemplos mais importantes utilizados por
estudiosos preocupados em analisar o emprego de tal método pelos jesuítas é o caso das
missões realizadas na China.
Em meados do século XVI, o Império exaltado pelo jesuíta Francisco Xavier por ser
“imensamente grande e povoado por pessoas muito inteligentes e por muitos sábios”
67
vivenciava um constante estado de desconfiança, ameaçado por invasores japoneses vindos do
leste, assim como tártaros, mongóis e “bárbaros” que chegavam pelo oeste. Como apontado
por Jean Laconture, depois de Marco Pólo, no fim do século XIII, os europeus receberiam
autorização para permanecerem na China no final da cada de 1570, momento em que é
concedida aos portugueses a instalação de uma feitoria na pequena ilha de Amacao (Macau).
Embora esse fato representasse um passo importante para a expansão européia na China, o
Império do Meio permanecia inatingível. Como penetrar na hermética China continental? A
solução seria encontrada pelo padre jesuíta Alessandro Valignano, que apontava a
necessidade de se obter uma sólida dominação lingüística - não somente do cantonês
meridional, mas também do mandarim, língua do poder - assim como de assimilar
profundamente a civilização chinesa.
Através de uma política de acomodação deliberada pelo padre Visitador das
Províncias Orientais, os primeiros missionários jesuítas viveriam por cerca de onze anos na
China continental sob a imagem de bonzos budistas, pois o vice-rei e todos [os mandarins]
desejavam que usássemos o hábito dos seus ‘padres’ de Pequim”.
68
Após perceberem
tardiamente que os bonzos eram tão mal vistos pela sociedade chinesa, sendo este um dos
prováveis motivos para o fato de nenhuma conversão significativa ter sido alcançada, os
66
Charlotte de CASTELNAU-L’ESTOILE. Operários de uma vinha estéril: Os jesuítas e a conversão dos
índios no Brasil (1580-1620), p. 69.
67
Apud Jean LACOUTURE. Li Mateu, o relógio e o senhor do céu. In: _____. Os Jesuítas: A Conquista, p. 269.
68
Padre Ruggieri apud Jean LACOUTURE. Li Mateu, o relógio e o senhor do céu. In: _____. op. cit., p. 279.
20
inacianos adotariam um novo modo de vida conforme os eruditos confucianos, utilizando a
ciência como principal meio de propagar a fé.
69
No caso brasileiro, as estratégias de conversão indígena utilizadas pelos inacianos
também foram predominantemente marcadas pelo princípio da accomodatio presente no
modo de proceder jesuítico. De acordo com os escritos de Oswald de Andrade, “fomos
modelados por uma cultura de larga visão - a jesuítica - que infelizmente foi cortada pela
incompreensão romanista quando estava levando aos limites pagãos dos ritos malabares o seu
afã de ecletismo e de comunicação humana e religiosa.
70
Embora vista pelos inacianos como uma poderosa ferramenta de auxílio para
aproximar infiéis e pagãos ao catolicismo, os parágrafos acima nos permitem vislumbrar
que a “flexibilidade jesuítica” foi, em diversas situações, responsável por gerar resultados
contrários aos desejados pelos religiosos da Companhia de Jesus. Como apontado por Carlo
Ginzburg em seu artigo intitulado “As Vozes do Outro: uma revolta indígena nas Ilhas
Marianas” ao adotarem a polêmica atitude de adaptar-se aos costumes dos outros povos para
difundir a fé cristã, os jesuítas corriam o perigo de ultrapassar os limites da concepção
eurocêntrica.
71
A Instituição Epistolar jesuítica
Para concluir esta primeira etapa de nosso estudo, voltada para a compreensão das
principais características da Companhia de Jesus, é preciso tecer uma breve análise sobre o
papel desempenhado pelas correspondências no interior do Instituto.
A inovadora atividade missionária empregada pelos jesuítas gerava uma ligeira
expansão dos inacianos por diversos territórios. Preocupado em unir os membros do Instituto
dispersos, Inácio de Loyola desenvolve, ainda nos primeiros anos após a fundação da Ordem,
um hebdomadário estabelecendo a troca periódica de correspondências entre os religiosos,
prática essencial para que estes prestassem contas de suas atividades e pedissem auxílio para
as obras realizadas. Além disso, as cartas jesuíticas tornavam-se importantes ferramentas para
69
Jean LACOUTURE. Li Mateu, o relógio e o senhor do céu. In: _____. Os Jesuítas: A conquista. Ver tamm
os artigos de Andrew C. CROSS. Alessandro Valignano: The Jesuits and Culture in the East; e de Nicolas
STANDAERT, S.J. Jesuit Corporate Culture As Shaped by the Chinese. In: John W. O’MALLEY; Gauvin
Alexander BAILEY; Frank KENNEDY; Steve HARRIS (orgs.). The Jesuits.
70
Oswald de ANDRADE. A Utopia Antropofágica, p. 168.
71
Carlo GINZBURG. As Vozes do Outro: uma revolta indígena nas Ilhas Marianas. In: _____. Relações de
Força: História, Retórica, Prova.
21
que a Companhia de Jesus legitimasse seus trabalhos junto à Igreja e às Coroas, principais
responsáveis por conceder amparo político e financeiro ao Instituto.
72
Desta forma, em 1541, percebendo a necessidade de controlar as informações que
eram muitas vezes escritas para serem lidas em público, o Geral dos jesuítas constitui a
hijuela, tipo de carta contendo apenas assuntos relativos aos problemas institucionais. Estas
apresentavam um estilo da correspondência clássica marcado pela informalidade, enquanto os
chamados relatos edificantes, produzidos para o alcance de um público amplo, eram escritos
de acordo com a formalidade retórica da ars dictaminis medieval.
73
A Instituição epistolar jesuítica surge apenas ano de 1547, através da publicação de
uma longa circular escrita por Juan de Polanco destinada a todos os membros da Ordem,
contendo vinte fatores que justificavam a necessidade de se manter uma correspondência
diligente. De acordo com José Eisenberg, podemos classificar as razões expostas pelo
Secretário em três grupos. Primeiramente, a troca periódica de correspondências contribuía
para a união e o governo da Ordem. Um segundo motivo consiste no fato de as cartas também
produzirem o bem externo da Companhia, pois cooperavam a atrair novos membros e
possibilitavam que pessoas de fora do Instituto pudessem conhecer os seus trabalhos e ajudá-
los de alguma forma. Por fim, a terceira razão era que a redação das cartas fomentava o bem
privado do correspondente, pois o conhecimento das atividades dos demais religiosos tornava
a vocação mais sólida e o ministério mais humilde e diligente.
74
Com a publicação das Constituições da Companhia de Jesus, em 1558-1559, se
estabelece uma série de normas regulamentando a correspondência epistolar jesuítica,
considerada pelo Instituto como sendo o principal meio - depois do amor em Deus - de “unir
com a cabeça e entre si aqueles que estão dispersos”. Além das detalhadas orientações quanto
à freqüência no envio de notícias, chama atenção no texto dasConstituições o fato de as cartas
dos inacianos ficarem submetidas à censura.
75
72
José EISENBERG. As missões jesuíticas e o pensamento político moderno: encontros culturais, aventuras
teóricas, p. 50.
73
Id., p. 51-53.
74
Id., p. 50.
75
Maiores detalhes, ver a “Oitava Partedas Constituições da Companhia de Jesus.
22
1.2. Os jesuítas e as Coroas
O fato de a expansão ultramarina européia ter sido marcada pela forte aliança entre a
Cruz e as Coroas, representada através da instituição da Patronagem real - Padroado em
Portugal, e Patronato na Espanha -, resultou na existência de uma relação caracterizada pela
combinação de direitos, privilégios e deveres concedidos pelo papado à Coroa na qualidade
de patrocinadora das missões e dos estabelecimentos eclesiásticos nos domínios coloniais.
76
Tal vínculo outorgava, desde 1522, uma série de vantagens às Ordens religiosas que ficavam
detentoras de uma autoridade ilimitada para conduzir os trabalhos pioneiros de conversão e de
administração paroquial em tais territórios.
77
A história dos jesuítas em Portugal tem início no ano de 1539, quando d. João III
solicita a presença de alguns inacianos em seu reino, marcando o princípio de uma íntima e
harmoniosa relação entre a Ordem de Santo Inácio e a dinastia de Avis. O projeto religioso
traçado pelo rei buscava, através da consolidação da Companhia de Jesus nos domínios
lusitanos, alcançar uma unificação religiosa capaz de dar sustentação à centralização política
portuguesa.
78
Para a manutenção dos jesuítas, d. João III se prontificava a dar todo o apoio
material e financeiro necessário para as despesas dos religiosos, condição que permaneceria
sendo cumprida após a morte do monarca, em 1557. O fato de os três próximos sucessores do
trono português - dona Catarina d’Áustria, d. Henrique e d. Sebastião - terem tido como
confessores padres jesuítas tornava a Ordem extremamente influente em territórios lusitanos,
permitindo à Companhia alcançar um significativo crescimento durante as quatro primeiras
décadas de sua presença em Portugal.
De maneira semelhante à situação encontrada na Metrópole, os inacianos
assumiriam, durante o início da colonização brasileira, um papel hegemônico e privilegiado
no que se refere à administração espiritual na Província. Enviados à Colônia tendo como
principal tarefa a catequese dos habitantes indígenas, os primeiros jesuítas chegaram à Bahia
no ano de 1549 e, de maneira geral, encontraram junto aos primeiros governadores e demais
autoridades coloniais, o auxílio necessário para a expansão de seus trabalhos.
76
Charles R. BOXER. A Igreja militante e a expansão Ibérica (1440-1770), p. 98.
77
Id., p. 85.
78
Segundo Paulo de Assunção, desde o período de fundação da nação, Portugal era marcado pela pluralidade
religiosa, que embora beneficiasse o poder real no jogo político e econômico, criava disputas entre diversos
setores da sociedade, situação nem sempre fácil de ser controlada pela monarquia. Daí a busca de uma forte
unificação religiosa capaz de dar sustentação à centralização política portuguesa. In: Paulo de ASSUNÇÃO.
Negócios Jesuíticos: O Cotidiano da Administração dos Bens Divinos, p. 90.
23
Em uma carta enviada à Simão Rodrigues, Superior da Companhia em Portugal, o
primeiro Provincial do Brasil, padre Manuel da Nóbrega, escreve:
O Governador [Tomé de Sousa] nos mostra muita vontade. Pero de Góes
[donatário de Campos dos Goytacazes] nos faz muitas charidades. O Ouvidor Geral
é muito virtuoso e ajuda-nos muito. Não fallo em Antonio Cardoso [provedor-mór
da Fazenda], que é nosso pae. A todos mande Vossa Reverendissima os
agradecimentos.
79
Segundo uma Informação escrita por Anchieta em 1584, Tomé de Sousa era devoto
da Companhia e grande incentivador para o início dos trabalhos missionários entre o gentio.
o segundo governador-geral, Duarte da Costa, mesmo não tendo idealizado o projeto de
Nóbrega de reunir os indígenas em grandes aldeias - uma vez que d. João havia “mandado que
desse paz aos Índios e não os escandalizasse” - acabou favorecendo os jesuítas com a
pacificação dos nativos revoltosos e também através da fundação de igrejas entre os
ameríndios.
80
Inigualável, porém, foi a relação estabelecida com o terceiro governador-geral,
responsável por render os melhores frutos aos jesuítas no Brasil.
A partir de meados da década de 1550, os inacianos começam a substituir a imagem
do indígena brasileiro idealizada durante os primeiros anos de atividade missionária - em que
o nativo era portador de uma natureza pura, de uma humanidade edênica - por outra
caracterizada por concepções de bestialidade. Essa transformação no pensamento jesuítico
talvez se explique pela eclosão de uma série de eventos neste contexto, entre eles, os diversos
levantes indígenas nas capitanias do Nordeste; o episódio da morte de dois padres em missão
no sul do Brasil; o naufrágio da nau que transportava o primeiro bispo do Brasil, d. Pedro
Fernandes Sardinha, culminando na morte de toda a tripulação pelos índios caetés. Somados a
todos estes fatores estava a inconstância do selvagem brasileiro frente ao projeto catequético,
questão alvo de constantes queixas dos religiosos da Companhia.
81
É neste momento que surge a ameaça de Nóbrega em abandonar o projeto
missionário na Colônia e seguir para as terras do Paraguai. Segundo o primeiro Provincial do
Brasil, havia uma única medida a ser tomada para evitar o fracasso das conversões dos
indígenas:
79
Carta ao Padre Mestre Simão [1549]. In: Manoel da NÓBREGA. Cartas Jesuíticas 1: Cartas do Brasil, p. 87.
80
José de ANCHIETA. Informação do Brasil e de suas capitanias [1584]. In: _____. Cartas Jesuíticas 3: cartas,
informações, fragmentos históricos e sermões, p. 311.
81
Eduardo VIVEIROS DE CASTRO. O mármore e a murta: sobre a inconstância da alma selvagem. In: _____.
A inconstância da alma selvagem.
24
[...] a ordem que desejamos era fazerem ajuntar ao Gentio, este que está sujeito em
povoações convenientes, e fazer-lhes favores em favor de sua conversão e castigar
nelles os males que forem para castigar e mantel-os em Justiça e verdade entre si,
como vassalos d’El-Rei, e sujeitos á Egreja, como nesta parte são, e fazer-lhes
tambem justiça nos aggravos, escandalos dos Christãos [...]. E os que não
quisessem recebel-os, sujeital-os e fazêl-os tributarios ao serviço d’El-Rei e dos
Christãos, que os ajudassem a senhorear, como se fez em todas as terras novas que
são conquistadas, como do Perú e outras muitas.
82
O plano traçado por Manuel da Nóbrega seria colocado em prática a partir da
chegada de Mem de à Província, dando fôlego aos trabalhos da Companhia. De acordo
com os escritos de frei Vicente de Salvador, Mem de Sá,
[...] em pondo os pés no Brasil, que foi no ano de 1557, nenhuma coisa do seu
regimento executou primeiro que o que el-rei lhe mandava em favor da religião
cristã. Pera isto mandou logo chamar os principais índios das aldeias vizinhas desta
baía, e assentou com eles pazes com condição que se abstivessem de comer carne
humana, ainda que fosse de inimigos presos ou mortos em justa guerra, e que
recebessem em suas terras os padres da Companhia e outros mestres da fé, e lhes
fizessem casas em suas aldeias onde se recolhessem, e templos onde dissessem
missa aos cristãos, doutrinassem os catecúmenos e pregassem o evangelho
livremente.
83
Em uma carta enviada ao ex-governador e amigo Tomé de Sousa, Manuel da
Nóbrega mostra a sua satisfação com os métodos empregados pelo terceiro governador-geral
no propósito de ajudar a conversão, “por paz ou por guerra”, que resultaram na queima de
centenas de aldeias promovendo a sujeição ou a morte de milhares de indígenas.
84
Segundo Anchieta, durante os quatorze anos em que governou o Brasil, Mem de
“sempre se confessou e comungou na Companhia e quatro ou cinco anos antes de sua morte
[1572] o fazia cada oito dias e o mesmo dia que morreu se confessou geralmente com um dos
nossos. Resava o Ofício Divino, e todos os dias da semana por muitas tormentas e chuvas que
fizesse não deixava de vir ao Colégio a ouvir missa ante manhã”.
85
Além do impulso dado ao projeto missionário na Colônia, Mem de ficaria
conhecido pelas diversas doações feitas à Companhia de Jesus, estando entre as mais
importantes a da Igreja anexa ao Colégio da Bahia, na qual foi sepultado, e as terras do
82
Carta do Padre Nóbrega para o Provincial de Portugal [1557]. In: Manoel da NÓBREGA. Cartas Jesuíticas 1:
Cartas do Brasil, p. 173-174.
83
Frei Vicente do SALVADOR. História do Brasil: 1500-1627, p. 151-152.
84
Carta a Thomé de Sousa [1559]. In: Manoel da NÓBREGA. op. cit.
85
José de ANCHIETA. Informação do Brasil e de suas capitanias [1584]. In: _____. Cartas Jesuíticas 3: cartas,
informações, fragmentos históricos e sermões, p. 312.
25
Camamú, “que são 12 leguas em quadra com 8 aguas para engenhos de assucar”.
86
Mem de
ainda deixou firmado em seu testamento que se seus filhos morressem sem possuírem
herdeiros, todas as suas propriedades no Brasil deveriam ser vendidas, sendo a soma do
dinheiro dividida de maneira igual entre a Misericórdia da Bahia, o Colégio da Bahia e os
pobres de Salvador. No entanto, desacatando as ordens do pai, em 1618, dona Felipa deixaria
todos os bens da família nas mãos do Colégio Jesuíta de Lisboa, criando uma situação de
contenda entre os inacianos das distintas províncias resolvida apenas em meados da década de
1650.
87
De maneira geral, podemos afirmar que até a chegada de Manuel Teles Barreto, no
ano de 1583, a relação entre jesuítas e autoridades coloniais permaneceu seguindo o
harmonioso padrão visto até o momento, onde os governadores-gerais favoreciam a
cristandade no que podiam.
88
Retornando o nosso olhar sobre a Europa, encontraremos neste contexto o
surgimento de um primeiro momento de incertezas para a história da Companhia em Portugal.
A crise de sucessão do trono lusitano irrompida com a morte do rei d. Sebastião na “clássica”
batalha contra os hereges em Alcácer-Quibir, no ano de 1578, ameaçava a privilegiada relação
estabelecida entre os jesuítas e a Coroa portuguesa. A volta do cardeal d. Henrique ao trono -
pois havia permanecido no cargo entre os anos de 1562-1568 - não se mostraria eficaz, uma
vez que o rei viria a falecer dois anos mais tarde. Assim, a falta de um descendente legítimo
da dinastia de Avis levaria o monarca Felipe II de Espanha ao trono português em 1580,
passando a ser Felipe I de Portugal, após a confirmação das cortes de Tomar, em 1581. Desta
forma, tem-se o início do período histórico da “União Ibérica”, compreendido entre os anos
de 1580 e 1640, caracterizado pelos reinados dos Felipes de Espanha.
89
86
José de ANCHIETA. Informação do Brasil e de suas capitanias [1584]. In: _____. Cartas Jesuíticas 3: cartas,
informações, fragmentos históricos e sermões, p. 312.
87
Maiores detalhes, ver: Stuart B. SCHWARTZ. Segredos Internos: Engenhos e Escravos na sociedade
colonial, 1500-1835, p. 393-399.
88
Após a morte de Mem de Sá, o governo do Brasil foi dividido em duas partes, ficando Luiz de Brito de
Almeida responsável pelas capitanias do Norte e Antônio Salema como governador das capitanias do Sul. Em
1578, o governo seria unificado sob o comando de Lourenço da Veiga. Para maiores detalhes sobre a relação
entre os jesuítas e estes governadores-gerais, ver: José de ANCHIETA. Informação do Brasil e de suas capitanias
[1584]. In: _____. op. cit.; Serafim LEITE. História da Companhia de Jesus no Brasil. t. II, p. 275.
89
Para maiores detalhes sobre a crise de sucessão em Portugal, ver: Dauril ALDEN. The Perils of Propinquity:
The Jesuits and the Crown, 1557-1640. In: _____. The Making of an Enterprise, The Society of Jesus in
Portugal, Its Empire, and Beyond, 1540-1750.
26
Os jesuítas no tempo dos Felipes
Muito diferente do caso português, durante os reinados do imperador Carlos V e de
seu sucessor, Felipe I, a Companhia não alcançaria nenhum apoio político e financeiro por
parte da Coroa espanhola. Jorge Caldeira expressa de maneira muito feliz a relação dos
jesuítas com os primeiros Áustrias: Inácio de Loyola tornou-se santo, mas em casa, nunca
fez milagre.
90
Neste período, os pequenos avanços realizados pela recém-fundada Companhia de
Jesus em territórios espanhóis resultavam do fato de os inacianos terem encontrado uma
pequena, porém valiosa brecha junto às mulheres portuguesas residentes na corte de Madrid,
posição que lhes permitiam aos poucos, estender sua influência junto à sociedade castelhana.
Entre as principais devotas da Ordem de Santo Inácio estavam a imperatriz Isabel e sua filha
Joana de Áustria, única “mulher jesuíta da história.
91
A princesa se destacaria como a
principal defensora da Companhia de Jesus na Espanha, tendo o seu apoio resultado na
instalação de alguns colégios jesuíticos na Península, assim como na anulação do interdito
eclesiástico feito pelo bispo de Zaragoza, que proibia a freqüência à Igreja dos inacianos nesta
cidade. Porém, o exercício de sua influência duraria poucos anos, desaparecendo a partir da
ascensão de seu irmão Felipe II ao trono, marcando o início de um período de mais quatro
décadas de lento progresso para a Ordem nos domínios espanhóis.
92
O embarque dos primeiros jesuítas para a América hispânica ocorre no ano de
1566, momento em que o nobre espanhol Francisco de Borja assume o generalato da Ordem
(1565-1572). Até então, todos os pedidos realizados pelos “jesuítas castelhanos” para
exercerem suas atividades no ultramar haviam sido negados pelo Conselho das Índias. Além
de terem encontrado dificuldades na prática de seus ministérios também nas terras espanholas
do Novo Mundo, os inacianos teriam que conviver com o poder e a influência dos
mendicantes em tais domínios.
Interessante notar que é a partir do início da União Ibérica que uma série de
representantes de outras Ordens religiosas chega ao Brasil. Segundo Anchieta,
No ano de 1581 vieram em companhia de Frutuoso Barbosa, que vinha povoar o
rio da Paraíba, três frades do Carmo e dois ou três de S. Bento a Pernambuco. Mas
90
Jorge CALDEIRA. O Banqueiro do Sertão, v. 1, p. 172-174.
91
Joana seria admitida secretamente com o nome de Mateo Sanchez. Sobre a benéfica relação entre a Ordem e
outras “famosas devotas” nas primeiras décadas de existência da Ordem, ver: Jean LACOUTURE. Mulheres
não! In: _____. Os Jesuítas: A Conquista.
92
Jorge CALDEIRA. op. cit., v. 1, p. 172.
27
como não se povoou a Paraíba, não fizeram mais que prègar e confessar sem fazer
mosteiro. Veio também em sua companhia um de S. Francisco que tambêm prègou
algum tempo em Pernambuco e tornou-se para o reino.
No ano de 83 vieram dois de S. Bento com ordem de seu Geral. A êstes se deu um
bom sítio na Baía e uma igreja de S. Sebastião e fazem mosteiro: são três por
todos até agora e começam a receber alguns outros a ordem.
Na mesma cidade, no mesmo ano, se deu sítio e casa a uns dois de S. Francisco,
que vieram mandados por El-Rei para o rio da Prata com outros; mas êstes ficaram-
se na capitania do Espirito Santo, como ficaram outros em S. Vicente, que vieram
na armada do Estreito. Praza a Deus que todos vão adeante para a sua glória.
93
Franciscanos, carmelitas e beneditinos se espalhariam rapidamente pelas diversas
regiões da Colônia, atuando através do sistema tripartite caracterizado pela fundação de
conventos, fazendas e aldeamentos.
94
Embora tais eventos estivessem longe de significar a
perda da hegemonia da Companhia de Jesus no Brasil, evidenciavam o início de uma nova
fase da história da Ordem, marcada até então pela exclusividade quanto às práticas religiosas
ministradas por regulares na América portuguesa.
95
Em meados da década de 1580 escrevia
Luiz da Fonseca, reitor do Colégio da Bahia, que os jesuítas tinham como opositores os
padres religiosos de S. Bento, “a quem o governador [Manuel Teles Barreto] queria dar uma
Aldeia deles para terem numa sua fazenda e servirem-se deles, porque a licença foi a eles
concedida”.
96
No mesmo período os jesuítas seriam obrigados a deixar as terras da Paraíba,
entregues à administração dos franciscanos.
97
Além disso, é no período dos Felipes que os jesuítas conhecem os primeiros
governadores-gerais opositores da Ordem. De acordo com Serafim Leite, Manuel Teles
Barreto (1583-87) “refletia aquela vontade [da dinastia filipina], e exagerou-a”.
98
“Já em
Lisboa, sendo Vereador da Câmara, contrariava, no que podia, os requerimentos do Colégio
de Santo Antão”.
99
No Brasil, além das dificuldades em efetuar o pagamento das rendas dos
colégios, outros episódios marcaram as manifestações conflitantes da autoridade máxima da
93
José de ANCHIETA. Informação do Brasil e de suas capitanias [1584]. In: _____. Cartas Jesuíticas 3: cartas,
informações, fragmentos históricos e sermões, p. 321-322.
94
Eduardo HOORNAERT. A Igreja Católica no Brasil colonial. In: Leslie BETHELL (org.). História da
América Latina: América Latina colonial, v. 1.
Sobre a expansão de tais Ordens na Colônia, ver: Riolando AZZI. Ordens Religiosas Masculinas. In: Eduardo
HOORNAERT... [et al.]. História da Igreja no Brasil: primeira época, Período Colonial.
95
Cabe considerar que embora os três primeiros religiosos em atuação na Colônia tenham sido da Ordem de S.
Francisco - o franciscano Henrique Soares de Coimbra celebrou a Primeira Missa em Ilhéus, em 26 de abril de
1500 -, todos acabaram mortos ainda nos primeiros anos após chegarem ao Brasil. Luiz Fernando Conde
SANGENIS ainda aponta a fundação da primeira “escola” do Brasil como sendo obra de dois franciscanos em
atuação na região de Laguna dos Patos, no ano de 1538, a serviço da Coroa espanhola. In: _____. Gênese do
Pensamento Único em Educação: Franciscanismo e jesuitismo na história da educação brasileira, p. 29-30.
96
Serafim LEITE. História da Companhia de Jesus no Brasil, t. II, p. 277-278.
97
Luiz Fernando Conde SANGENIS. op. cit., p. 65-66.
98
Serafim LEITE. op. cit., t. II, p. 275.
99
Id., t. II, p. 277-278.
28
Colônia em relação à Companhia de Jesus, com destaque para as acusações de que os jesuítas
teriam sido os responsáveis por fomentar a violência contra o poder civil auxiliados pelos
nativos em dois eventos: um crime cometido contra um oficial de justiça em Ilhéus e um
desastroso “descimento” de indígenas de Sergipe.
100
Outro famoso opositor da Ordem foi o
governador-geral d. Diogo de Meneses (1608-1612) que declarava explicitamente em seus
escritos a sua postura anti-jesuítica. Em uma carta enviada ao monarca Felipe III de Espanha,
o governador expõe sua avaliação sobre os aldeamentos na Colônia.
101
Primeiramente ha V. Magestade de saber que neste estado não ha índio que seja
christão nem saiba que cousa he a que disem que professão, e o que sabem he
como pessoa que tem aquillo de cor a não ha mais, e a principal parte por onde isto
está desta maneira he pela pouca comunicação que tem comnosco, e seu pouco
entendimento, e para isto me pareçe, que V. Magestade deve mandar por estas
Aldeas e repartillas por toda esta costa segundo a necessidade dos sitios, e
engenhos, e nas Aldeas por um saçerdote que os doutrine [...].
102
Em outra missiva Diogo de Meneses expõe sua opinião contrária à lei de liberdade
indígena declarada em 1609.
[...] avisei a V. Magestade muitas veses, quão seu serviço era, o regimento das
Aldeas ser de modo q’ se puderão valer dos Indios dellas pera suas lavras,pagando
lhe seu serviço conforme a mesma naturesa dos Indios, e não a de quem os
governa, a isto me deffirio V. Magestade nunca senão com huã lei, em favor da
liberdade delles, a qual tem mil inconvenientes pera se poder guardar [...].
103
Segundo o governador,
[...] pera que os padres da Companhia também entendam quanto dependem de V.
Magestade he necessario e forçado que se lhe huma repreenção pois comem
tanto da fazenda de V. Magestade que neste Estado tem perto de três contos de
renda em que V. Magestade perde no modo do pagamento, mais da terça parte, e o
que grangeão com os Indios vale mais que tudo.
104
100
Serafim LEITE. História da Companhia de Jesus no Brasil, t. II, p. 275-276.
101
Segundo Charlotte de CASTELNAU-L’ESTOILE, o governador-geral Diogo Botelho (1603-1607) também
se revelou um forte anti-jesuíta, buscando favorecer aos interesses dos colonos no que se refere à administração
da mão-de-obra nativa. In: _____. Operários de uma vinha estéril: Os jesuítas e a conversão dos índios no
Brasil (1580-1620), p. 281.
102
Carta para El-Rei, sobre a arribada à Baía do galeão de D. Constantino de Meneses, que ia para a Índia; sobre
as aldeãs do gentio; sobre o serviço dos engenhos; etc. Olinda, 23 de Agosto de 1608. In: Anais da Biblioteca
Nacional do Rio de Janeiro, v. 57, p. 38-39.
103
Carta para El-Rei [...]. Bahia, 8 de Maio de 1610. In: Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, v. 57,
p. 68.
104
Carta para El-Rei [...]. Bahia, 7 de Fevereiro de 1611. In: Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, v.
57, p. 74.
29
Adiante no texto, será possível perceber que a pressão exercida pelo governador em
suas cartas enviadas ao monarca provavelmente influenciou no rumo das leis sobre o cativeiro
indígena no Brasil seiscentista.
Com a morte de Felipe II, ocorrida no ano de 1598, os inacianos conseguiriam
assumir uma postura pouco mais influente junto ao sucessor da dinastia dos Habsburgo.
Embora Felipe III tivesse como confessor um padre franciscano, o fato de ter delegado
poderes a um valido que era neto do duque de Gandia, ou seja, Francisco de Borja, teria
aberto algumas portas para a influência jesuítica na corte. Além disso, o palácio no qual a
rainha Margarida de Áustria passou sua infância comunicava-se com um colégio jesuítico por
uma passarela. Daí o motivo de ela ter afirmado que “os bens que dela [Companhia de Jesus]
recebi em minha alma são inumeráveis e tais e tantos que eu os estimo mais do que toda a
grandeza deste mundo e me acho obrigada a mostrar, quanto eu possa, mãe no temporal dos
que a mim foram sempre tão fiéis pais no espiritual”.
105
A partir do reinado de Felipe III, os jesuítas se deparam com um período de intenso
crescimento no que se refere aos números da Ordem na América hispânica. É neste momento
que os inacianos conquistam pela primeira vez o apoio do erário espanhol para a realização de
missões na região do Paraguai.
106
Até o início do século XVII, os jesuítas encontraram-se
predominantemente concentrados nos trabalhos ligados aos colégios da Ordem sob a alegação
de que as missões espanholas - doctrinas - funcionavam também como paróquias, o que
criava deveres administrativos que os membros do Instituto estavam isentos de realizar.
107
O
impulso dado pelo monarca espanhol, seguido pelo apoio de diversas autoridades locais, entre
elas governadores e bispos, faria com que entre os anos de 1607-1610 o número de jesuítas
instalados na região formada por Paraguai, Tucumán e Chile subisse de oito para sessenta e
três membros; “no lugar das três casas isoladas, havia colégios em Cordoba, Tucumán,
Buenos Aires, Assunção e Santa Fé, além das casas em Jujuy, Santiago del Estero, Salta e
Guairá”.
108
Conquistado o apoio financeiro, os jesuítas seriam coroados com as Ordenações
de Alfaro, publicadas em Assunção em 1611.
109
Em síntese, tal decreto legislava a proibição
de qualquer forma de escravatura - inclusive a encomienda - para os índios convertidos; o
reagrupamento dos indígenas em aldeias fixas; e o veto à penetração de colonos em tais
105
Apud Jorge CALDEIRA. O Banqueiro do Sertão, v. 1, p. 176-177.
106
Jorge CALDEIRA. op. cit., v. 1, p. 177.
107
Ibid., p. 175.
Ver também: Josep M. BARNADAS. A Igreja Católica na América espanhola colonial. In: Leslie BETHELL
(org.). História da América Latina: América Latina colonial, v. 1, p. 544.
108
Jorge CALDEIRA. op. cit., v. 1, p. 189.
109
No ano de 1612, Francisco de Alfaro decretou uma versão levemente modificada na Província de Tucumán
causando um impacto semelhante aos vistos no Paraguai.
30
comunidades.
110
Assim, as condições para o desenvolvimento das famosas reducciones
jesuíticas no Paraguai estavam dadas.
No entanto, se por um lado a política desenvolvida pelo monarca em território
espanhol visava concentrar poderes nas mãos dos inacianos, retirando-os das mãos de civis e
da hierarquia eclesiástica, por outro lado, nos domínios portugueses, Felipe III seria
responsável por legislar atendendo aos interesses dos colonos. Através da lei de 1611,
o monarca tornava novamente legal a escravidão de nativos em guerra justa;
voltava atrás para declarar lícita a escravidão de prisioneiros de guerra comprados
de outros nativos (e com isto tornava legal o trabalho de pombeiros ou traficantes
locais); dava poderes a juntas para decidir sobre a legalidade das guerras justas sem
o aval do monarca; criava incentivos para os nativos morarem e comerciarem com
os moradores; transferia o poder secular nos aldeamentos para capitães de aldeias
escolhidos entre os mais ricos; retirava o monopólio dos jesuítas no descimento
de índios para as cidades e autorizava o trabalho de padres seculares em incursões
de apresamento; acabava com o privilégio dos inacianos no controle dos
aldeamentos (a prioridade na escolha do cargo passava a ser para um cura ou
vigário que seja português e saiba a língua, de nomeação do bispo ou do vigário
e, portanto, da hierarquia eclesiástica).
111
Seguindo a linha de sucessão, Felipe IV chegaria ao poder real em 1621 e a exemplo
de seu pai nomearia um valido, o conde-duque de Olivares. Pela primeira vez na história, os
inacianos conquistavam uma posição privilegiada na Espanha na condição de confessores do
monarca.
112
No entanto, os resultados de tal conquista pelos jesuítas não devem ser
superestimados. Segundo Dauril Alden,
For sixty years Portugal suffered the indignity of being ruled from Madrid. How
much it suffered is a matter of dispute. Certainly some socioeconomic groups
benefited immeasurably from the new regime by gaining lucrative positions,
contracts, and privileges. They included members of the higher clergy, the landed
aristocracy, the large wholesale merchants, tax farmers, importers of Castilian
wheat, and exporters of slaves to the Spanish empire. But the Portuguese Jesuits
were not among the chief beneficiaries of Spanish rule. For the first time since the
Society’s founding they were excluded from the highest levels of political
authority. Because the three Philips were served by Dominican rather than Jesuit
confessors, Portuguese Jesuits did not have access to the same quality of
confidential information at court obtained by their predecessors, nor were they in
positions to influence royal policies.
113
110
Jean LACOUTURE. Os Jesuítas: A Conquista, p. 450.
111
Jorge CALDEIRA. O Banqueiro do Sertão, v. 1, p. 287.
112
Jorge CALDEIRA. Finalidades da Riqueza. In: _____. op. cit.
113
Dauril ALDEN. The Perils of Propinquity: The Jesuits and the Crown, 1557-1640. In: _____. The Making of
an Enterprise, The Society of Jesus in Portugal, Its Empire, and Beyond, 1540-1750, p. 91.
“Durante sessenta anos Portugal sofreu a humilhação de ser governado por Madrid. O quanto foi humilhado é
uma questão em discussão. Certamente alguns grupos socioeconômicos foram incomensuravelmente
beneficiados pelo novo regime, obtendo posições lucrativas, contratos e privilégios. Entre eles estavam incluídos
31
Em suma, o período da União Ibérica pode ser caracterizado como um momento
peculiar para a Companhia de Jesus, principalmente nos domínios portugueses. Os jesuítas na
Colônia, pela primeira vez em sua história, atravessavam uma situação marcada pela perda de
influência junto aos monarcas, responsável por lhes causar uma série de dificuldades na
Província. No entanto, os problemas atravessados pelo Instituto neste período não ficaram
restritos às relações com as autoridades políticas.
Coincidentemente com o período de instauração da União Ibérica, a Ordem fundada
por Inácio de Loyola encontrava-se diante de uma série de problemas internos e externos.
Como afirma Calstelnau-L’Estoile, depois do crescimento extraordinário que a Companhia de
Jesus conheceu durante as primeiras décadas de sua existência, abre-se uma nova fase de
reorganização e consolidação. Neste momento, o Instituto contava com um número superior a
cinco mil membros dispersos pelos quatro cantos do mundo. Assim, o generalato de Cláudio
Aquaviva (1581-1615) será marcado por uma série de medidas tomadas com o intuito de
manter a unidade do “corpo disperso” e “restaurar o verdadeiro espírito da Companhia”. É
neste contexto que a Ordem conhece a versão definitiva de seus principais textos fundadores:
as Regras (1580), as Constituições (1594) e a Ratio Studiorum (1599).
114
Em um primeiro momento, a prática missionária assumiria um lugar de destaque nas
reflexões e nos escritos do Geral, sendo vista como um meio privilegiado que conduziria a
renovatio spiritus buscada pela Ordem. No entanto, no início do século XVII, o apelo à
missão vai sendo aos poucos ofuscado pela temática referente aos perigos da estreita relação
estabelecida entre a Companhia e o “secular”. Os trabalhos nos colégios levavam a uma
especialização nas tarefas de ensino, assim como os cargos de confessores reais assumidos
pelos jesuítas conduziam a um maior envolvimento com a esfera política. Além disso, uma
série de acusações em relação aos desvios cometidos pelos missionários na Colônia chegava
ao conhecimento dos superiores da Ordem em Roma.
115
Desta forma, o longo generalato de Aquaviva será caracterizado pela adoção de uma
prática administrativa mais restritiva, representada pelo envio de padres Visitadores às
os membros do alto clero, da aristocracia da terra, grande parte dos mercadores atacadistas, cobradores de
impostos, importadores de trigo de Castela e exportadores de escravos para o Império espanhol. Mas os jesuítas
portugueses não estavam entre os principais beneficiários do reinado espanhol. Pela primeira vez desde a
fundação da Companhia de Jesus, os inacianos eram excluídos do mais alto nível da autoridade política. Pelo
fato de os três Felipes terem sido servidos pelos dominicanos em preferência aos confessores jesuítas, os jesuítas
portugueses não tiveram acesso às informações confidenciais na mesma qualidade obtida por seus predecessores,
nem estavam em posição de influenciar políticas reais”. (tradução minha)
114
Charlotte de CASTELNAU-L’ESTOILE. Exigências espirituais e estratégias locais. In: _____. Operários de
uma vinha estéril: Os jesuítas e a conversão dos índios no Brasil (1580-1620).
115
Ibid.
Para maiores detalhes, ver o terceiro capítulo desta dissertação.
32
diversas províncias, uma maior exigência quanto à freqüência na troca de correspondências
entre os membros do Instituto, e uma nova elaboração doutrinária, caracterizada por buscar
imprimir a dilação do tempo de oração e estudo da ação apostólica, assim como a leitura da
sagrada escritura de São Basílio e São Bernardo, fontes clássicas do monaquismo.
116
O conjunto de reformas propostas por Aquaviva gerou uma onda de contestação por
parte de muitos jesuítas, fomentando uma verdadeira convulsão interna na Companhia. Nesse
momento, muitos inacianos insatisfeitos com as novas diretrizes da Ordem produzem textos
polêmicos e buscam apoio junto a opositores externos do Instituto, entre eles, Felipe II de
Espanha. Aquaviva chega a ser submetido a uma sindicância ocorrida durante a V
Congregação Geral reunida em 1592 que, no entanto, o isenta de estar realizando qualquer
conduta errônea.
117
É ainda no final do generalato de Aquaviva, mais precisamente em 1614, que surge o
mais famoso libelo anti-jesuítico da história da Ordem: trata-se do opúsculo impresso em
latim intitulado Monita privata Societatis Jesu, conhecido também pelo título abreviado de
Monita Secreta (Instruções Secretas). O texto, cuja autoria parece ser do ex-jesuíta Jerónimo
Zahorowski, expulso da Companhia em 1613, revela uma série de instruções reservadas a
uma parcela de escolhidos do Instituto, tendo como objetivo a promoção do aumento do poder
temporal da Ordem através de meios pouco escrupulosos, tais como, “de que maneira os
padres da Companhia poderão adquirir e conservar a familiaridade dos príncipes, dos grandes
e das pessoas mais notáveis”, “de que modo a Companhia poderá conquistar o afeto das
viúvas ricas”, “como aumentar os rendimentos dos colégios”; etc.
118
Múcio Vitelleschi, antigo assistente de Aquaviva, assume o governo da Ordem em
1615, permanecendo no cargo até o ano de 1645. De maneira geral, pode-se dizer que as
diretrizes impostas por seu generalato seguiram as bases do antecessor, uma vez que buscou
harmonizar e integrar a Instituição formada por um número crescente de indivíduos
espalhados em diversos territórios, assim como manter a boa imagem da Companhia frente à
sociedade da época.
119
Após completar cem anos de fundação, no final do generalato de Vitelleschi, a
Companhia de Jesus apresentava números surpreendentes: contava com 36 províncias, 521
116
Charlotte de CASTELNAU-L’ESTOILE. Exigências espirituais e estratégias locais. In: _____. Operários de
uma vinha estéril: Os jesuítas e a conversão dos índios no Brasil (1580-1620).
117
José Eduardo FRANCO & Christine VOGEL. Monita Secreta, Instruções Secretas dos Jesuítas: História de
um Manual Conspiracionista.
118
Ibid.
As citações são referentes aos títulos de alguns capítulos do libelo.
119
Paulo de ASSUNÇÃO. Negócios Jesuíticos: O Cotidiano da Administração dos Bens Divinos, p. 90.
33
colégios, 49 seminários, 24 casas professas, além de casas de provação, missões e residências,
somando aproximadamente 17 mil religiosos.
120
120
Paulo de ASSUNÇÃO. Negócios Jesuíticos: O Cotidiano da Administração dos Bens Divinos, p. 55.
CAPÍTULO 2: MODIFICANDO A ORDEM
[...] E espero eu dos que saírem deste nosso, também [colégio] real, teólogos,
filósofos e humanistas, que, quando chegarem ao Grão-Pará e Rio das
Almazonas, e se virem naquela imensa universidade de almas, espero, digo, do
seu espírito, e ainda do seu juízo, que, esquecidos das ciências, que de
deixam, se apliquem todos à conversão [...].
Quando eu estava no mundo, não deixei o mundo do mundo por salvar a minha
alma? Pois agora que sou religioso, por que não deixarei o mundo da Religião
por salvar muitas almas? Qual é o mundo da Religião? São as retóricas, são as
filosofias, são as teologias, são as cadeiras, são os graus, que na mesma religião
reputa o mundo por mais autorizados.
Exortação I em Véspera do Espírito Santo.
Padre Antônio Vieira, Colégio da Bahia, 1688.
O estudo realizado no capítulo anterior nos possibilitou vislumbrar que a chegada da
década de 1580 marcou o início de um momento peculiar para a Companhia de Jesus,
principalmente nos domínios portugueses. Durante as primeiras décadas correspondentes ao
estabelecimento da União Ibérica, a Ordem fundada por Inácio de Loyola passava por uma
série de dificuldades, tais como a crise de “identidade atravessada pelos religiosos, a perda
de influência política frente à ascensão dos Felipes de Espanha e o surgimento de ataques de
caráter temporal contra o Instituto.
No mesmo sentido, o corpo da Ordem no Brasil também se deparava com um
período sem precedentes em sua história, surgido principalmente da tensão existente entre os
dois principais ministérios praticados pelos inacianos na Província: as missões realizadas
entre os nativos e os trabalhos ligados aos colégios. Se em território europeu, a polêmica
gerada pelo crescimento dos estabelecimentos de ensino girava em torno de questões como a
transformação do voto de pobreza, a estreita relação estabelecida com a literatura pagã, assim
como com a cultura secular e, por fim, a crise no ideal itinerante, primeira característica do
Instituto, no Brasil, somava-se a todos esses fatores a questão indígena.
No momento em que a Companhia de Jesus enfrentava uma forte crise em relação ao
empreendimento missionário no Brasil, os colégios fundados pelo Instituto assumiam um
importante papel junto à sociedade, apontando a intensificação das distintas posturas
existentes no interior da Ordem na Colônia. Este capítulo faz uma análise da presença
35
jesuítica no Brasil filipino enfocando as duas últimas décadas do século XVI, destacando a
profunda diferenciação existente na prática dos inacianos em função da opção pelas missões
indígenas ou pelos colégios.
2.1. Aldeamentos jesuíticos
Os primeiros missionários jesuítas enviados ao Brasil chegaram à Bahia no ano de
1549, acompanhando o primeiro governador-geral, Tomé de Sousa, incumbidos da tarefa de
catequizar os nativos. O impulso dado por Mem de ao projeto traçado pelo padre Manuel
da Nóbrega no final da década de 1550, no qual os indígenas eram forçados a se deslocarem
para as aldeias jesuíticas e se sujeitarem a “polícia cristã”
121
- uma vez que a resistência
justificava a guerra justa contra os nativos - resultou no assentamento de quatorze
aldeamentos no Nordeste brasileiro, reunindo cerca de quarenta mil indígenas. Porém, a
situação declinara de tal maneira que a Companhia de Jesus entraria na década de 1580 com
apenas três aldeias na Bahia - Espírito Santo, São João e Santo Antônio -, reunindo no
máximo três mil e quinhentas almas, e duas no Rio de Janeiro, São Lourenço e São Barnabé,
somando três mil “índios cristãos”.
122
Embora durante as duas últimas décadas do século XVI fossem fundados alguns
aldeamentos jesuíticos nas capitanias do Espírito Santo e de Pernambuco,
123
podemos dizer
que a prática missionária na Colônia encontrava-se em um contexto difícil: as capitanias de
Ilhéus e de Porto Seguro apresentavam-se, segundo o padre Pero Rodrigues na carta Ânua de
1599,
124
impossibilitadas de fazer missões fixas, uma vez que seus arredores estavam
121
Termo tratado aqui com o sentido de “aprimoramento civil dos costumes”. Para maiores detalhes, ver:
Cristina POMPA. Para uma antropologia histórica das missões. In: Paula MONTERO (org.). Deus na aldeia:
missionários, índios e mediação cultural. Ver também o subtítulo “Missão por redução: civilizar e evangelizar”
da obra de Maria Cristina Bohn MARTINS. In: _____. Sobre festas e celebrações: as reduções do Paraguai
(séculos XVII e XVIII), p. 131-139.
122
José de ANCHIETA. Dos impedimentos para a conversão dos Brasis e, depois de convertidos, para o
aproveitamento nos costumes e vida cristã [1584]. In: _____. Cartas Jesuíticas 3: cartas, informações,
fragmentos históricos e sermões, p. 385.
123
Aldeamentos no Espírito Santo: Nossa Senhora da Conceição ou Maracajaguaçu e S. João são fundados no
ano de 1586; S. Cristóvão surge em 1589, mas posteriormente desaparece dos documentos; em 1598 estabelece-
se o aldeamento de Nossa Senhora da Assunção ou Reritiba; o quarto aldeamento tem o nome de Santo Inácio
dos Reis Magos. Em Pernambuco, o catálogo de 1589 aponta a existência de um aldeamento fixo, São Miguel de
Muçuí, surgindo outros dois na década de 1590: Nossa Senhora da Escada ou da Apresentação e “Gueena” ou
Santo André de Goiana.
124
In: Serafim LEITE. História da Companhia de Jesus no Brasil, t. I, p. 70. Ver também: Cópia de uma carta
do Padre Pero Rodrigues, Provincial do Brasil da Companhia de Jesus, para o Padre João Álvares da mesma
Companhia: assistente do Padre Geral [da Bahia, primeiro de Maio de 1597]. In: Anais da Biblioteca Nacional
do Rio de Janeiro, v. 20.
36
ocupados pelos “bárbaros” aimorés;
125
na capitania de S. Vicente havia apenas duas aldeias
fixas, porém sem padres residentes, que as visitavam todos os domingos.
126
Esta parte de nosso trabalho tem como objetivo analisar o encontro cultural
estabelecido no interior dos aldeamentos da Companhia de Jesus. Uma das principais
polêmicas relacionadas à presença jesuítica no Brasil refere-se ao trabalho de catequese
desenvolvido pelos religiosos junto aos indígenas gerando, no âmbito acadêmico,
interpretações distintas quanto aos métodos e resultados de tal projeto.
A produção intelectual voltada sobre essa temática apresentou-se até a década de
1970, predominantemente marcada por uma interpretação pautada no conceito de
“aculturação”, enfatizando o processo de assimilação e seus resultados desagregadores paraas
culturas nativas.
127
Exemplo disso é a “clássica” obra de Luiz Felipe Baêta Neves, intitulada
O combate dos soldados de Cristo na terra dos papagaios, que enxerga a Companhia de Jesus
como a principal força de europeização do espaço colonial, afirmando que os aldeamentos
“descaracterizavam em todos os níveis praticamente, a vida dos grupos indígenas”.
128
A partir de meados da década de 1980, surgem novas abordagens preocupadas em
avançar rumo a uma melhor compreensão do modo de pensar das culturas indígenas. Embora
esses estudos devam ser considerados de extrema importância para o esclarecimento da forma
como os ameríndios encaravam o contato a partir de seus próprios termos, tais análises
apresentam uma proposta predominantemente voltada para a elucidação das cosmovisões
nativas, “sem analisar as dinâmicas e os agentes que produzem essas novas formas de
significação”.
129
Nos anos 1990 teve início a formação de novos paradigmas teóricos, críticos da
denominada antropologia do colonialismo - pautada no binarismo colonizador/colonizado; na
assimilação e perda cultural - e capazes de propor análises distintas das realizadas por estudos
de caráter etnográfico presentes em abordagens cosmológicas.
130
125
Embora a convenção da Associação Brasileira de Antropólogos (ABA) de 14/11/1953 estabeleça que os
nomes dos povos indígenas devam ser grafados no singular e com inicial maiúscula, substituindo as letras c e q
pelo k, adotei como padrão as regras gramaticais da norma culta, escrevendo-os com minúsculas e usando as
devidas concordâncias.
126
Serafim LEITE. História da Companhia de Jesus no Brasil, t. I, p. 170.
127
Paula MONTERO. Índios e Missionários no Brasil: para uma teoria da mediação cultural. In: _____ (org.).
Deus na aldeia: missionários, índios e mediação cultural, p. 35.
128
Luiz Felipe Baêta NEVES. O combate dos soldados de Cristo na terra dos papagaios: colonialismo e
repressão cultural, p. 161.
129
Paula MONTERO. op. cit., p. 48-50.
130
Id., p. 38-39.
37
Recentemente, no campo da historiografia, muitos trabalhos influenciados pelos
estudos realizados por Serge Gruzinski
131
e Ronaldo Vainfas
132
, têm demonstrado que o
encontro cultural estabelecido no âmbito missionário foi responsável por fomentar a eclosão
de formas culturais mestiças, híbridas.
133
Compreender as características e os resultados de tal
processo no caso brasileiro, durante o período dos Felipes, constitui o objetivo da primeira
parte deste capítulo.
No âmbito das aldeias
Para pensar as relações simbólicas e políticas entre nativos e missionários jesuítas na
Colônia no final do século XVI, este estudo parte da análise da Narrativa Epistolar de uma
viagem e missão jesuítica escrita no ano de 1585 pelo padre Fernão Cardim, secretário e
companheiro do padre Visitador Cristóvão de Gouvêa.
A visita de Gouvêa à Província tinha como principal propósito, conforme os próprios
termos utilizados por Aquaviva, “a consolação dos nossos”, ficando ainda incumbido de “ver
como é conservada a disciplina religiosa, segundo o Instituto, no que se refere às
Constituições, às regras e às ordens de Roma, fazer com que sejam aplicadas, e pôr tudo em
ordem na medida em que as circunstâncias das pessoas e dos lugares podem suportá-lo”.
134
No entanto, cabe apontar que o texto surgido da visita não estava destinado à Cúria
generalícia em Roma, mas sim a todo o corpo da Ordem em Portugal. Como aponta o estudo
feito por Castelnau-L’Estoile, escrito em um contexto de dificuldades missionárias, o texto de
Cardim foi construído com base na noção inaciana de consolação, ou seja, através de seu
relato, buscava-se exaltar a terra e os trabalhos de conversão realizados pela Companhia no
Brasil a fim de incitar o desejo dos noviços em se fazer missão no ultramar.
135
Desta forma, se lançássemos um olhar descuidado sobre o relato, poderíamos crer
que o processo de conversão dos índios aldeados se mostrava em um estágio bastante
131
Serge GRUZINSKI. A Colonização do Imaginário: Sociedades indígenas e ocidentalização no México
espanhol (séculos XVI-XVIII); _____. O pensamento mestiço.
132
Ronaldo VAINFAS. A heresia dos índios: catolicismo e rebeldia no Brasil colonial.
133
Ver, por exemplo: Cristina POMPA. Religião como tradução: missionários, Tupi e Tapuia no Brasil
colonial; Adone AGNOLIN. Jesuítas e Selvagens: a negociação da no encontro catequético-ritual
americano-tupi (séc. XVI-XVII); Maria Regina Celestino de ALMEIDA. Metamorfoses Indígenas: Identidade e
cultura nas aldeias coloniais do Rio de Janeiro.
134
Apud Charlotte de CASTELNAU-L’ESTOILE. Operários de uma vinha estéril: Os jesuítas e a conversão
dos índios no Brasil (1580-1620), p. 49.
135
Charlotte de CASTELNAU-L’ESTOILE. As descrições do Brasil: consolação e curiosidade. In: _____. op.
cit.
38
avançado. Tomemos como início de nossa análise o relato da chegada do padre Visitador à
aldeia do Espírito Santo, na Bahia.
Junto da aldêa do Espírito Santo nos esperavam os padres que della têm cuidado
[...]. Houve bôa musica de vozes, flautas, danças e d’alli em procissão fomos até á
igreja [...]. O padre visitador antes da missa revestido em capa d’asperges de
damasco branco com diacono e subdiacono vestidos do mesmo damasco, baptisou
alguns trinta adultos. Em todo o tempo do baptismo houve bôa musica e motetes, e
de quando em quando se tocavam as flautas [...]. O padre na mesma missa casou
alguns em lei da graça [...] deu a communhão a cento e oitenta indios e indias, dos
quaes vinte e quatro, por ser a primeira vez, commungaram á primeira mesa, com
capella de flores na cabeça; depois da comunhão lhes deitou o padre ao pescoço
algumas verônicas e nominas com Agnus Dei de várias sedas, com seus cordões e
fitas, de que todos ficaram mui consolados. Um destes era um grande principal por
nome Mem de que havia vinte annos era christão; foi tanta a consolação, que
teve de ter commungado, que não cabia de alegria [...]. Tive grande consolação em
confessar muitos indios e indias, por interprete [...].
136
O trecho acima é muito elucidativo, uma vez que descreve os diversos ministérios
praticados pelos religiosos no interior dos aldeamentos. É preciso deixar claro a dificuldade
em afirmar o período em que tais indígenas teriam sido reduzidos, uma vez que os elevados
índices de mortalidade e as constantes fugas dos nativos rumo ao sertão” promoviam
constantes “descimentos” de novos grupos, renovando as missões. No entanto, se
observarmos que dentre todos os aldeamentos administrados pela Companhia, neste contexto,
os do Recôncavo baiano eram os mais antigos - foram fundados no final da década de 1550 -
e somando a este dado, o fato de terem sido estabelecidos na principal região colonizadora da
Província, é crível apontar que tais espaços eram os mais aptos para que o processo de
conversão do gentio empreendido pelos jesuítas alcançasse êxito.
Considerando a dificuldade encontrada pelos missionários no que se refere ao
contato realizado no último quarto do século XVI com algumas tribos nômades e beligerantes
de língua jê - principalmente os aimorés e os goitacazes - que ocupavam faixas de terras mais
ao interior situadas entre os rios Camamu e o Paraíba do Sul, nossa análise parte do
pressuposto de que a maioria dos indígenas aldeados fossem tupinambás - etnônimo utilizado
para designar os diversos grupos tupi habitantes da costa brasileira que compartilhavam a
mesma língua e a mesma cultura.
137
136
Fernão CARDIM. Narrativa Epistolar de uma viagem e missão jesuítica [1585]. In: _____. Tratados da terra
e Gente do Brasil, p. 150-151.
137
Os aldeamentos-alvo dos “descimentosde índios guaranis, intensificados a partir do início do século XVII,
eram situados nas capitanias do Rio de Janeiro e de São Vicente. Por fim, as missões jesuíticas entre os “tapuias”
só seriam fundadas a partir de meados do século XVII.
39
Assim, adotando inicialmente como base de nossa análise o conceito de “estrutura da
conjunturadesenvolvido por Marshall Sahlins, é possível contestar a eficácia do projeto de
conversão jesuítico, assim como apontar alguns possíveis resultados do encontro cultural
ocorrido no âmbito missionário em processo desde a chegada dos primeiros religiosos da
Companhia de Jesus à Província.
Através do paradigma sahlinsiano, um acontecimento histórico qualquer (evento) é
significado a partir de um esquema cultural preestabelecido (estrutura). Assim, as formas
culturais tradicionais abarcam o evento e, desta forma, reproduzem a cultura. Porém, por
outro lado,
[...] como as circunstâncias contingentes da ação não se confrontam
necessariamente aos significados que lhes são atribuídos por grupos específicos,
sabe-se que os homens criativamente repensam seus esquemas convencionais. É
nesses termos que a cultura é alterada historicamente na ação. Poderíamos até falar
de “transformação estrutural”, pois a alteração de alguns sentidos muda a relação
de posição entre as categorias culturais, havendo assim uma mudança sistêmica.
138
O primeiro dos sacramentos praticados nos aldeamentos descrito por Cardim não
estava isento de ser “traduzido erroneamente” pelos indígenas. O batismo, responsável por
selar a entrada do indivíduo na comunidade da Igreja, apresentava significados semelhantes
aos proporcionados pelo ato de renomeação sofrido pelos guerreiros tupinambá após o
sacrifício ritual do prisioneiro. Somente a execução do inimigo em terreiro possibilitava ao
indivíduo tupinambá mudar seu nome de infância, integrando-o à categoria de Avá que,
segundo Florestan Fernandes, representava a fase mais importante da vida de um homem,
uma vez que neste momento o indígena tornava-se guerreiro, obtinha o reconhecimento social
de sua maturidade e contraía núpcias.
139
Cabe considerar que a Igreja Católica - via Concílio de Trento -, após ter verificado a
ineficácia das conversões em massa realizadas através do rito batismal em territórios
coloniais, havia estabelecido que o recebimento de tal sacramento deveria ser precedido por
uma etapa de aprendizado feita por meio da catequese. Desta forma, a partir da metade do
século XVI, o sistema de catequese cristã passava por um processo de uniformização e
deslocamento quanto à forma praticada, uma vez que o avanço da imprensa impulsionava o
surgimento de textos doutrinários que substituíam aos poucos a tradicional pregação realizada
através de sermões. Como visto no primeiro capítulo, compêndios reunindo princípios do
138
Marshall D. SALHINS. Ilhas de História, p. 7.
139
Florestan FERNANDES. A Função Social da Guerra na Sociedade Tupinambá, p. 185.
40
cristianismo constituíam um dos principais apoios para os trabalhos realizados pelos jesuítas.
No caso brasileiro não foi diferente. O primeiro Catecismo na Língua Brasílica, de autoria do
jesuíta Antônio de Araújo, embora publicado somente no ano de 1618, era resultado, segundo
o próprio inaciano, de uma obra coletiva da ação missionária.
140
Assim, antes do surgimento
da primeira edição da obra do padre Araújo, outros textos reunindo alguns princípios básicos
do cristianismo em língua tupi já havia sido escritos por alguns jesuítas, sendo os mais
importantes da autoria do padre Anchieta.
141
No entanto, como revela Adone Agnolin, ao realizarem processos de tradução da
língua nativa, essencial nas confissões, nos catecismos e mesmo nas atividades de ler e
escrever realizadas com os kunumis nas escolas, os jesuítas faziam emergir um hibridismo do
próprio ato comunicativo e de seu processo, fomentando a eclosão de uma série de “mal-
entendidos”. Exemplo disso é a tradução para a condição de batizado segundo o catecismo de
Anchieta: pela água (y) feito (monhanga) do sagrado (karaíba) o que está próximo (pyra), ou
seja, “o que, por meio da água está próximo do sagrado”.
142
Além da dificuldade em
conceituar o rito com precisão, Adone Agnolin destaca o fato de o conceito (católico) de
sagrado ser significado através da categoria responsável por manipular osacra indígena.
143
Ainda segundo Agnolin,
Expressões antigas e tradicionais (rituais) desses povos se encontravam na base, e
garantiam o próprio sucesso, da pregação missionária e de sua específica
(estratégica) ritualidade: os (conscientes ou inconscientes) “acomodamentos” dos
missionários, fundamentais para a comunicação da mensagem evangélica, abriam
espaços para um “encontro” dentro do qual, muitas vezes, a própria “conversão”
dos rudes e selvagens revelava o ressumbrar de um “acomodamento” desse outro
lado do encontro que, muitas vezes se constituía como a única garantia e
possibilidade de dar vida nova e novas formas a expressões antigas e tradicionais
de sua própria cultura.
144
Assim,
Bispo é Pai-guaçu, quer dizer pajé maior. Nossa Senhora às vezes aparece sob o
nome de Tupansy, e de Tupã. O reino de Deus é Tupãretama, terra de Tupã.
Igreja, coerentemente é tupãóka, casa de Tupã. Alma é anga, que vale tanto para
140
O catecismo do padre Antônio de Araújo foi duramente criticado pelo padre Antônio Vieira. Segundo o
Superior das Missões do Maranhão e Grão-Pará, tal texto doutrinário deveria ser reduzido a questões simples e
essenciais. In: Serafim LEITE. História da Companhia de Jesus no Brasil, t. VII, p, 51.
141
Adone AGNOLIN. Jesuítas e Selvagens: a negociação da no encontro catequético-ritual americano-tupi
(séc. XVI-XVII), p. 61.
142
Id., p. 305.
143
Id.
144
Id., p. 31.
41
toda sombra quanto para o espírito dos antepassados. Demônio é anhanga, espírito
errante e perigoso. Para a figura bíblico-cristã do anjo, Anchieta cunha o vocábulo
karaibebê, profeta voador.
145
Após sintetizar de maneira brilhante alguns dos resultados originados de tais
processos de tradução, Alfredo Bosi conclui que “a nova representação do sagrado assim
produzida já não era nem teologia cristã nem a crença tupi, mas uma terceira esfera simbólica,
uma espécie de mitologia paralela que só a situação colonial tornara possível”.
146
Neste contexto, a confissão havia assumido um papel de destaque dentre os
sacramentos da Igreja, uma vez que possibilitava aos religiosos avaliar comportamentos,
assim como reforçar a doutrina entre os fiéis. Influenciados por propostas feitas por alguns
teólogos do medievo tardio, os jesuítas foram os principais responsáveis pela difusão de uma
maior freqüência da prática da penitência. Diante da importância do sacramento para a
Ordem, no Brasil os inacianos valiam-se da habitual “flexibilidade” - uma vez que o princípio
da privacidade presente no ato da confissão era violado - e utilizavam intérpretes indígenas
agravando os erros” de tradução. O princípio da accomodatio, da adaptação, presente no
“modo de proceder dos inacianos, mostrou-se constantemente atuante no espaço colonial,
nem sempre gerando os resultados esperados pelos jesuítas. Talvez isso explique o fato de o
lendário inimigo dos inacianos e primeiro bispo do Brasil, Pedro Fernandes Sardinha, ter
criticado duramente ao jesuíta reitor do Colégio de S. Antão em Lisboa, os métodos de
conversão utilizados pelos religiosos da Companhia no Brasil.
[...] dizia y digo aora a V.R. que estrañé mucho, y estrañan todos a los Padres
confessaren las mistiças mugeres casadas com portugueses per intérprete, niño de
doze o 13 años nacido y creado en la tierra; y también andaren tañendo y cantando
los días de fiesta los instrumentos y sonos que os gentiles tañen y cantan quando
andan embriagados y hazen sus matares.
147
Outro fator de destaque no trecho analisado refere-se ao matrimônio entre os nativos.
Para por fim à “incômoda” questão da poligamia tupinambá, a solução encontrada pelos
missionários foi casar os indígenas segundo o direito natural, e não de acordo com as leis
positivas da Igreja, que condenavam a união entre consangüíneos de segundo grau.
148
Porém,
145
Alfredo BOSI. Dialética da Colonização, p. 65.
146
Id.
147
Apud José EISENBERG. As missões jesuíticas e o pensamento político moderno: encontros culturais,
aventuras teóricas, p. 77.
148
De acordo com o costume tupinambá, o “casamento” era preferencialmente realizado na forma avuncular
(matrimônio do tio materno com a sobrinha) ou entre primos cruzados. Sobre a “flexibilidade” sobre as leis do
matrimônio ver, por exemplo: Quadrimestre de Maio a Setembro de 1554, de Piratininga. In: José de
42
esse relaxamento das leis da Igreja não resolvia a situação, pois mesmo casados os indígenas
continuavam tendo relações com suas demais mulheres.
149
De acordo com uma Informação
escrita pelo padre Francisco Pinto,
as detreminações dos casamentos são muito trabalhosas pera quem anda na
conversão & dão aos índios escandalo e impedimento á conversão [...]. E alguns
destes mancebos agora quando se convertem não querem de nenhuma maneira
casar aquella moça q tomarão por enamorada, por q não se pode chamar doutra
maneira, dizendo q não a tinhão por molher senão por amiga, & c q antes se irão
por y alem, q não hão de fazer vida Ella. [...] E agora estão assi; quando se
convertem como se pode tornar a desfazer esta meada, sem grande escândalo,
principalmente alegando elles q aquelle he seu costume & c estes como sentem por
honrados não costumam tomam huma sôo mulher senão quantas podem, poronde
quando tomam huma, ja tem vontade de tomar logo outra e quantas poder, por onde
não tem consentimento cõ aquela primeira que tomaram, pois tem vontade de
muitas.
Outros hay q quando ha alguns vinhos nas Aldeas tomam alguas parentas. E dãonas
a alguns os quais as não tomam como molheres senão assi como o appetito os
ensina & depois sequerem se apertam dellas dizendo q lhas derão e q as não
tomaram por molheres.
150
Para os padres o importante era combater os pecados extremos (tais como a
poligamia), estando dispostos a tolerarem os pecados menores, entre eles o casamento
consangüíneo e o concubinato.
151
De todos os sacramentos citados por Cardim, a eucaristia era responsável por
significar o momento mais alto e representativo do processo de conversão e de maneira
semelhante aos demais ministérios, não estava isenta de evocar paralelismos com a cultura
indígena, uma vez que os termos utilizados pelos jesuítas para traduzir o ato de comungar
conotavam um verdadeiro sentido “teofágico”.
152
Exemplo disso pode ser visto no catecismo
formulado por Anchieta que, diante da pergunta feita pelo Mestre sobre o porquê Cristo teria
instruído tal sacramento, ensinava ao catecúmeno a seguinte resposta: “Seja meu corpo
comida da alma deles” [toikó xe reté iánga remiúramo].
153
ANCHIETA. Cartas Jesuíticas 3: cartas, informações, fragmentos históricos e sermões; Carta do Padre Manuel
da Nóbrega para o Padre Ignácio [de Loyola] [1556]. In: Manoel da NÓBREGA. Cartas Jesuíticas 1: Cartas do
Brasil.
149
José EISENBERG. As missões jesuíticas e o pensamento político moderno: encontros culturais, aventuras
teóricas, p. 77.
150
Informação dos Casamentos dos Índios do Padre Francisco Pinto [s. d.]. In: Serafim LEITE. História da
Companhia de Jesus no Brasil, t. II, Apêndice E, p. 419. Nascido em Angra, Açores, Francisco Pinto entrou para
a Companhia na Bahia em 1568 e fez os últimos votos em 1588. “Grande sertanista e missionário”, foi morto por
índios contrários na serra de Ibiapaba, Ceará, no ano de 1608. In: Serafim LEITE. op. cit, t. IX, p. 403.
151
José EISENBERG. op. cit., p. 83.
152
Adone AGNOLIN. Jesuítas e Selvagens: a negociação da no encontro catequético-ritual americano-tupi
(séc. XVI-XVII), p. 325.
153
Id., p. 326.
43
Por fim, não podemos deixar de analisar a presença da música no interior dos
aldeamentos. Uma das principais peculiaridades dos inacianos em relação às demais Ordens
católicas estava no fato de os inacianos não estarem obrigados a recitar as Horas Canônicas
conforme o rito da Igreja, ou seja, em coro. No entanto, criticados por segmentos internos e
externos à Companhia e percebendo os benefícios que a música poderia oferecer aos trabalhos
apostólicos, os jesuítas não ficariam muito tempo privados da música de órgão e de entoar
cânticos nas missas e demais cerimônias sacras.
154
Neste sentido, o caso brasileiro foi, sem
sombra de dúvidas, um dos maiores responsáveis por romper com tal resistência existente no
interior da Ordem de Santo Inácio. Alguns meses depois de sua chegada a Colônia, relatava o
padre Manuel da Nóbrega:
[...] tivemos missa cantada com diácono e subdiácono; eu disse missa, e o padre
Navarro a Epistola, outro o Evangelho. Leonardo Nunes e outro clérigo com leigos
de boas vozes regiam o coro; fizemos procissão com grande música, a que
respondiam as trombetas. Ficaram os Índios espantados de tal maneira, que depois
pediam ao padre Navarro que lhes cantasse como na procissão fazia.
155
Percebendo que a música era um valioso meio para aproximar os nativos da costa
brasileira ao corpo missionário, os jesuítas não hesitaram em adotar cânticos, instrumentos e
danças indígenas em suas práticas religiosas. Como apontado acima, a utilização da música
em cultos públicos despertava o interesse dos indígenas em participar de tais cerimônias como
cantores ou instrumentistas. Um belo exemplo deste fenômeno é encontrado em uma cena de
um auto de Anchieta intitulada Festa de Natal, onde “os músicos da orquestra, vestidos de
pena e listrados de urucu, descansam as pernas às maças e flechas, e dão sinal para a
representação”.
156
Além disso, a música era vista pelos jesuítas como meio potencial para o ensino da
doutrina ao gentio. Segundo o musicólogo Paulo Castagna, em um primeiro momento os
inacianos aplicaram orações escritas em português e em tupi sobre melodias indígenas no
intuito de auxiliar os nativos tanto no aprendizado do novo idioma quanto no conteúdo da
doutrina católica. Posteriormente, no final da década de 1560, os jesuítas começaram a
154
John W. O’MALLEY. Os Primeiros Jesuítas, p. 213-214.
155
Carta ao padre Mestre Simão [1549]. In: Manoel da NÓBREGA. Cartas Jesuíticas 1: Cartas do Brasil, p. 86.
Grifos meus.
156
Apud Maria Regina Celestino de ALMEIDA. Metamorfoses Indígenas: Identidade e cultura nas aldeias
coloniais do Rio de Janeiro, p. 140.
44
inserir letras com conteúdo cristão traduzidas para o tupi sobre melodias de cantigas
portuguesas.
157
Elemento-chave dentro das manifestações culturais dos tupinambás, a música levaria
aos inacianos a crença de que as festas cristãs pudessem tomar o lugar das celebrações
indígenas.
158
No entanto, ao contrário do esperado pelos religiosos, diversos trechos dos
relatos escritos pelos jesuítas na Província demonstram que tal estratégia acabava
promovendo a formação de um “arranjo cultural peculiar”. Segundo Cardim,
Chegamos á aldêa [Espírito Santo] á tarde; antes della um bom quarto de legua,
começaram as festas que os indios tinham aparelhadas as quaes fizeram em rua de
altissimos e frescos arvoredos, dos quaes saíam uns cantando e tangendo a seu
modo, outros em ciladas saíam com grita e urros, que nos atroavam e faziam
estremecer. Os cunumis sc. meninos, com muitos lhos de frechas levantadas
para cima, faziam seu motim de guerra e davam sua grita, e pintados de várias
cores, nusinhos, vinham com as mãos levantadas receber a bençao do padre,
dizendo em portuguez, “louvado seja Jesus Cristo”. Outros saíram com uma dança
d’escudos á portugueza, fazendo muitos trocados e dançando ao som da viola,
pandeiro e tamboril e frauta, e juntamente representavam um breve dialogo,
cantando algumas cantigas pastoris [...]. As mulheres núas (cousa para nós mui
nova) com as mãos levantadas ao Céo, tambem davam seu Eureiupe, dizendo em
portuguez, louvado seja Jesus Cristo.
159
Vejamos ainda outra passagem do texto que descreve a festa ocorrida durante o
desembarque dos religiosos da Companhia de Jesus na capitania do Rio de Janeiro.
O Sr. Governador com os mais portuguezes fizeram um lustroso alardo de
arcabuzaria, e assim juntos com seus tambores, pífanos e bandeiras foram a praia.
O padre visitador com o mesmo governador e os principais da terra e alguns padres
nos embarcamos numa grande barca bem embandeirada e enramada: nela se armou
um altar e alcatifou a tolda com um pallio por cima; acudiram alguns com as vinte
canôas bem equipadas, algumas dellas empennadas, e os remos de várias cores.
Entre ellas vinha Martim Affonso, commendador de Christo, índio antigo abaeté e
moçacára, sc. grande cavalleiro e valente, que ajudou muito os portuguezes na
tomada deste Rio. Houve no mar grande festa de escaramuça naval. Tambores,
pífanos e frautas, com grande grita e festa de índios; e os portugueses da terra com
sua arcabuzaria e também os da fortaleza dispararam algumas peças de artilharia
grossa e com esta festa andamos barlaventeando um pouco a vela, e a santa relíquia
ia no altar dentro de uma rica charola, com grande aparato de vellas accesas,
musica d’orgão, etc. Desembarcando viemos em procissão até a Misericórdia [...] a
qual acabada deu o padre visitador a beijar a relíquia a todo o povo e depois
157
Paulo CASTAGNA. The use of music by the Jesuits in the conversion of the Indigenous peoples of Brazil. In:
John W. O’MALLEY; Gauvin Alexander BAILEY; Frank KENNEDY; Steve HARRIS (orgs). The Jesuits.
158
Uma importante análise sobre tal processo e seus resultados nas reduções jesuítico-guaranis na Província do
Paraguai foi realizada por Maria Cristina Bohn MARTINS. In:_____. Sobre festas e celebrações: as reduções do
Paraguai (séculos XVII e XVIII).
159
Fernão CARDIM. Narrativa Epistolar de uma viagem e missão jesuítica [1585]. In: _____. Tratados da terra
e Gente do Brasil, p. 145-146.
45
continuamos com a procissão e danças até a nossa igreja: era para ver uma dança
de meninos índios, o mais velho seria de oito annos, todos nusinhos, pintados de
certas cores apraziveis, com seus cascaveis nos pés, e braços, pernas, cinta, e
cabeças com várias invenções de diademas de pennas, collares e braceletes.
160
Os exemplos acima demonstram que os festejos possibilitavam que diversos
elementos constituintes das culturas indígenas tais como os instrumentos, as danças, os
cânticos, os ornamentos e as pinturas corporais juntamente com a nudez, sobrevivessem lado
a lado com as manifestações culturais ibéricas, caracterizando os aldeamentos como espaços
privilegiados para a eclosão de formas culturais híbridas, mestiças. Interessante notar no
trecho citado acima a posição ocupada pelos Principais da terra- com destaque para a figura
de Araribóia ou Martim Affonso de Sousa -, colocados lado a lado com outras autoridades da
Colônia.
Ao buscar compreender os motivos que conduziam a convergência de horizontes
simbólicos entre grupos indígenas e missionários, além do “espírito acomodador” presente no
modus procedendi jesuítico, não podemos deixar de mencionar os limites dos missionários em
captar a alteridade indígena. Imbricados no modelo de religiosidade católico, os jesuítas
muitas vezes apresentaram dificuldades em perceber o profundo sentido de inúmeras práticas
nativas.
A análise da permanência de casos de idolatria
161
entre as sociedades ameríndias no
México colonial realizada por Serge Gruzinski lança luzes para que encontremos, através de
inúmeros traços considerados insignificantes, a existência de um complexo conjunto
simbólico que inseria os povos indígenas brasileiros em uma realidade incompreensível para
os europeus. Segundo Gruzinski falar de idolatria é não se restringir a uma problemática das
visões de mundo, das mentalidades, dos sistemas intelectuais e das estruturas simbólicas, mas
considerar igualmente as práticas, as expressões materiais e afetivas que lhes são
intrínsecas.
162
Na carta escrita por Manuel da Nóbrega, no ano de 1552, ao seu superior, Mestre
Simão, pedindo o seu parecer quanto à adoção de determinadas práticas “flexíveis”
imprescindíveis no auxílio à conversão, podemos perceber a fragilidade do europeu em
160
Fernão CARDIM. Narrativa Epistolar de uma viagem e missão jesuítica [1585]. In: _____. Tratados da terra
e Gente do Brasil, p. 169.
161
Conforme sugerido por Ronaldo VAINFAS, embora a idolatria seja uma “noção caríssima ao discurso
colonialista, e por isso carregada de juízos morais e estigmas diabolizantes”, me refiro a tal fenômeno como
sendo uma “expressão das atitudes e movimentos de resistência cultural das populações indígenas diante da
situação colonial”. Maiores detalhes, ver: _____. Colonialismo e Idolatrias: Cultura e Resistência Indígenas no
Mundo Colonial Ibérico. In: América, Américas: Revista Brasileira de História.
162
Serge GRUZINSKI. A Colonização do Imaginário: Sociedades indígenas e ocidentalização no México
espanhol (séculos XVI-XVIII), p. 224.
46
desmontar a complexidade das formas de pensamento e de expressão que os indígenas haviam
constituído na América.
Si nos abraçarmos com alguns costumes deste Gentio, os quaes não são contra a
nossa Catholica, nem são ritos dedicados a idolos, como é cantar cantigas de
Nosso Senhor em sua lingua pelo seu tom e tanger seus instrumentos de musica,
que elles em suas festa, quando matam contrarios, e quando andam bebados, e isto
para os attrair a deixarem os outros costumes essenciaes, e, permittindo-lhes e
approvando-lhes estes, trabalhar por lhes tirar os outros, e assim o prégar-lhe a seu
modo em certo tom, andando, passeando e batendo nos peitos, como elles fazem,
quando querem persuadir alguma cousa, e dizel-a com muita eficcacia, e assim
tosquiarem-se os meninos da terra, que em casa temos, a seu modo, porque a
similhança é causa de amor, e outros costumes similhantes a estes?
163
Ao permitirem certos costumes nos aldeamentos - como as músicas e as danças - ou
adotarem determinadas práticas - como pregar feito os karaíbas -, os jesuítas provavelmente
não tinham a percepção de estarem constantemente atualizando inúmeros aspectos da
cosmologia nativa. Em diversos momentos os relatos nos dão exemplos de como os padres
eram confundidos com os “feiticeiros ambulantes” indígenas, o que explica as diversas
manifestações exteriores que traduziam os sentimentos de respeito e submissão dos nativos
aldeados.
164
Segundo Cardim,
Feita oração lhes mandou o padre fazer uma falla na língua, de que ficaram muito
consolados e satisfeitos; aquella noite os índios principaes, grandes linguas,
pregavam da vida do padre a seu modo, que é a da maneira seguinte: começam a
pregar de madrugada deitados na rêde por espaço de meia hora, depois se
levantam, e correm toda a aldeã ante muito devagar, e o pregar também é
pausado, freimatico, e vagaroso; repetem muitas vezes as palavras por gravidade,
contam nestas pregações todos os trabalhos, tempestades, perigos de morte que o
padre padeceria, vindo de tão longe para os visitar, e consolar, e juntamente os
incitam a louvar a Deus pela mercê recebida, e que tragam seus presentes ao padre,
em agradecimento. Era para os ver vir com suas cousas, sc. patos, gallinhas,
leitões, farinha, beijus com algumas raízes, e legumes da terra. Quando dão essas
cousas commumente não dizem nada, mas botando-as aos pés do padre se tornam
logo.
165
Vejamos outra passagem do texto:
Acabada a festa espiritual lhes mandou o padre visitador fazer outra corporal,
dando-lhes um jantar a todos os da aldêa [...] no jantar se gastou uma vaca [...] e
vinhos feitos de várias fructas, a seu modo. Emquanto comiam, lhes tangiam
163
Ao Padre Mestre Simão [1552]. In: Manoel da NÓBREGA. Cartas Jesuíticas 1: Cartas do Brasil, p. 142.
164
Alfred MÉTRAUX. A Religião dos Tupinambás, p. 66.
165
Fernão CARDIM. Narrativa Epistolar de uma viagem e missão jesuítica [1585]. In: _____. Tratados da terra
e Gente do Brasil, p. 146.
47
tambores, e gaitas. [...] Quando estes fazem estes motins, andam muitos juntos em
um corpo com magote com seus arcos nas mãos, e molhos de frechas levantadas
pra cima; alguns se pintam, e empenam de várias côres. As mulheres os
acompanham, e os mais delles nús, e junto andam correndo em toda a povoação,
dando grandes urros, e juntamente vão bailando e cantando ao som de um cabaço
cheio de pedrinhas (como os pandeiros de Portugal). Vão tão serenos e por tal
compasso que não erram com os pés, e calcam o chao de maneira que fazem tremer
a terra. [...] De ordinário não se bolem de um lugar, mas estando quedos em roda,
fazem os maneios com o corpo, mãos e pés. Não se lhes entende o que cantam,
mas disseram-me os padres que cantam em trova quantas façanhas e mortes tinham
feito seus antepassados. Arremedam pássaros, cobras, e outros animaes, tudo
trovando por comparaçoes, para se incitarem a pelejar.
166
Temos aqui uma autêntica “festa do cauim”, “bebedeira” que segundo Métraux,
tinha lugar em determinadas ocasiões, como sejam, o nascimento da criança, a
primeira menstruação da moça, a perfuração do lábio inferior do mancebo, as
cerimônias mágicas que precediam a partida para a guerra, ou que sucediam em seu
retorno, o massacre ritual do prisioneiro, o trabalho coletivo da tribo na roça do
chefe e, em geral, em todas as assembléias destinadas a discussão de assuntos
importantes [...].
167
Novamente é possível analisar tal evento através do conceito de “estrutura da
conjunturade Sahlins. Como tudo de importante na vida social e religiosa dos tupinambás
era seguido da cauinagem, os cerimoniais empreendidos pelos missionários, somados à
“flexibilidade” de algumas práticas (vinhos, nudez, música e dança), e à provável
“incompreensão” dos missionários em relação ao significado de determinadas manifestações e
objetos, como por exemplo, os cânticos, os ornamentos e o “cabaço cheio de pedrinhas”,
possibilitavam a existência de inúmeros elementos pertencentes à tradição ritual indígena no
interior dos aldeamentos.
A partir do estudo realizado acima é possível apontar que o encontro cultural
ocorrido no âmbito das missões jesuíticas estava apto a fomentar, em diversos momentos, o
surgimento de um novo padrão cultural que pode ser caracterizado através dos conceitos de
mestiçagem ou hibridismo. No entanto, vejamos mais um trecho da Narrativa epistolar
escrita pelo padre Fernão Cardim:
166
Fernão CARDIM. Narrativa Epistolar de uma viagem e missão jesuítica [1585]. In: _____. Tratados da terra
e Gente do Brasil, p. 151-152. Grifos meus.
Propondo uma interpretação distinta àquela realizada por Métraux, Eduardo VIVEIROS DE CASTRO, ao buscar
um significado para as bebidas fermentadas no interior das culturas indígenas aponta haver uma estreita relação
entre as cauinagens e a memória do grupo, ou seja, assumiam uma função presentificadora. Ainda segundo o
antropólogo: “os Tupinambá bebiam para não esquecer”. In: _____. A inconstância da Alma Selvagem: e outros
ensaios de antropologia, p. 250.
167
Alfred MÉTRAUX. A Religião dos Tupinambás, p. 171.
48
Moravam os índios antes de sua conversão, em aldêas, em umas ocas ou casas mui
compridas [...]. E como a gente é muita, costumam ter fogo de dia e noite, verão e
inverno, porque o fogo é sua roupa, e elles são mui coitados sem fogo. Parece a
casa um inferno ou labyrinto, uns cantam, outros choram, outros comem, outros
fazem farinha e vinhos, etc. [...] Este costume das casas guardam também agora
depois de christãos. Em cada oca destas ha sempre um principal a que tem alguma
maneira de obediencia. Este exhorta a fazerem suas roças e mais serviços, etc.,
excita-os á guerra; e lhe têm em tudo respeito; faz-lhes estas exhortações por modo
de prégação, começa de madrugada deitado na rede por espaço de meia hora, em
amanhecendo se levanta, e corre toda a aldeã continuando suas pregação, a qual faz
em voz alta, mui pausada, repetindo muitas vezes as palavras. Entre estes seus
principaes ou prégadores, ha alguns velhos antigos de grande nome e autoridade
entre elles, que têm fama por todo o sertão, trezentas e quatrocentas guas, e
mais.
168
A partir do fragmento acima constatamos a existência de importantes elementos que
apontam a permanência de práticas indígenas no interior das aldeias jesuíticas pautadas no
modelo de organização social pré-colonial, tais como moradia, roça, família e mesmo
estruturas política e religiosa, o que nos permite vislumbrar o ritmo lento do processo de
mestiçagem ocorrido nos aldeamentos no Brasil durante aproximadamente três décadas.
169
A Relação da Província do Brasil, escrita pelo padre Jácome Monteiro em 1610,
ocasião em que assumia o cargo de secretário do terceiro Visitador da Província revela que a
configuração cultural nos aldeamentos se apresentava pouco distinta daquela descrita por
Cardim. Vejamos o relato da chegada de Monteiro à aldeia de Reritiba na capitania do
Espírito Santo, “famosa” por ter acolhido o padre José de Anchieta no final de sua vida.
Junto a este rio esuma Aldeia de gentio, que temos a nosso cargo, e terá perto de
três mil almas aonde nos fizeram mil festas por mar e por terra, já a seu modo, já à
portuguesa, esperando-nos uma légua antes da Aldeia, a qual toda estava de uma e
outra banda, cercada de palmeiras que pera o dia se trouxeram, aonde os
Morubixabas, vestidos ao natural, com os giolhos em terra, nos davam as boas
vindas, acompanhados de colomins, bem empenados, e mui bons dançantes e
tangedores de frautas, violas, e com bandeiras, arcabuzaria, e mil outras invenções.
No princípio da Aldeia saiu o Morubixaba o açu com uma cruz fermosa e bem
enramada na mão, acompanhado de dous filhos seus, ricamente empenados, e
fazendo uma arenga ou prática de entrega de sua Aldeia, meteu ao P. Visitador a
cruz na mão e os meninos se botaram por terra, largando os arcos e frechas. E com
notável devação, entoando um Te Deum laudamus, nos fomos à Igreja, na qual se
lhes fez uma pratica por intérprete, que pera isso levávamos conosco.
Pus isto de passagem, porque o que nos fizeram de festas em todas as Aldeias, não
tem conto.
170
168
Fernão CARDIM. Narrativa Epistolar de uma viagem e missão jesuítica [1585]. In: _____. Tratados da terra
e Gente do Brasil, p. 152.
169
Ver anexos I, II e III, p. 106-108.
170
P. Jácome MONTEIRO. Relação da Província do Brasil, 1610. In: Serafim LEITE. História da Companhia
de Jesus no Brasil, t. VIII, Apêndice, p. 362.
49
Podemos perceber que uma série de elementos coexistentes no aldeamento nos
permite falar em mestiçagem, entre eles as danças indígenas e portuguesas, flechas e
arcabuzes, prática por intérpretes - provavelmente sermões e/ou confissões. No entanto, uma
lacuna deixada pelo documento merece atenção: qual motivo teria levado o inaciano a não
descrever as festas ocorridas nas aldeias? Seriam estas celebrações semelhantes àquelas
descritas por Cardim?
Como será visto no próximo capítulo, Monteiro é o responsável por delatar
duramente, em outra correspondência enviada ao padre Assistente em Portugal, a ineficácia
do projeto missionário jesuítico na Colônia, sendo os fracassos dos padres da Companhia na
Província explicados pela formação e pelo desconhecimento da língua e dos costumes
nativos.
171
No entanto, como nos mostra Castelnau-L’Estoile, os relatos escritos pelos
religiosos da Companhia de Jesus estavam submetidos a uma rígida censura que colocava a
edificação dos trabalhos do Instituto como o principal objetivo de tais textos, postura esta
responsável por proibir, no ano de 1631, a publicação de uma Relação do Brasil -
infelizmente desaparecida - escrita pelo padre italiano Conrado Arizzi.
172
Isto provavelmente
explica o motivo da omissão do inaciano, que, mesmo demonstrando certa preocupação em
ofuscar em sua descrição a permanência de alguns costumes indígenas no âmbito dos
aldeamentos jesuíticos, permite, em determinados trechos de sua Relação, que tais elementos
venham à tona. Um dos exemplos mais significativos é quando o jesuíta relata os costumes
fúnebres dos nativos.
Tanto que o doente se acha mal, mandam chamar toda a sua parentela, a qual não
falta, por mais longe que a tenha e remontados no parentesco. Em o doente fazendo
algum termo, logo se lançam sobre ele, de modo que lhe apressam a morte, e o
começam a chorar tão alto, de modo que se vão às nuvens, e arremessam-se no
chão com tão grande pancada, que é espanto não morrerem. Isto fazem os que não
podem chegar ao defunto. Os mais se lançam na rede sobre o defunto, outros se
põem em cócoras, elas descabeladas, e com tantos trejeitos, que bem representam
as pérficas dos antigos. Não vi eu neste gentio cousa mais medonha, porque levado
do desejo de ver como se haviam nestes passos, me quis achar à morte de um índio;
e se se há de falar verdade, algum pavor natural me sobreveio deste espetáculo, que
na verdade os urros de uns, os gatimanhos de outros, as quedas destas, os meneios
feios daquelas, representam uma tragédia muito pouco aprazível. Adverti contudo
que tanto que me viram junto a si, pararam de súbito, mas logo tornaram a
continuar com sua triste lamentação. Fica-lhe contudo a memória desta minha
visita, porque em louvor do morto em qualquer ocasião a devem contar, e assim
fica pera netos e bisnetos, quando contarem dos mortos o como o Pai Jacomi
171
Charlotte de CASTELNAU-L’ESTOILE. As descrições do Brasil: consolação e curiosidade. In: _____.
Operários de uma vinha estéril: Os jesuítas e a conversão dos índios no Brasil (1580-1620).
172
Id.
50
zerapi do Pai Guaçu esteve na morte do fulano; e isto tenho por brasão e honra
daquela grande família.
173
Conforme analisado por Charlotte de Castelnau-L’Estoile, uma das peculiaridades da
Relação de Monteiro está no fato de o jesuíta não distinguir se as informações coletadas
durante a visita foram observadas junto aos índios aldeados. Tal postura é explicada pelo tom
pessimista de sua observação que apontava não haver nenhuma diferença entre nativos
“cristianizados” e “selvagens”.
174
Além disso, complementa a historiadora:
O que é mais espantoso ainda é que a cena relatada por Monteiro projeta os índios
num futuro claramente indígena e não num futuro cristão aculturado. De fato,
evoca as três próximas gerações indígenas que, segundo ele, continuarão a praticar
as mesmas cerimônias funerárias. Enquanto habitualmente os costumes indígenas
são vistos como traços de um passado que os missionários procuram tornar caduco,
Monteiro os considera na duração e no futuro.
175
Por fim, o trecho da Relação acima apresenta como outro importante elemento de
análise a “resposta adaptativa” dos nativos diante a presença do inaciano. Ainda que este
estudo tenha até o presente momento apontado de forma privilegiada os “erros de tradução” e
a flexibilidade jesuítica como sendo os principais motivos responsáveis pela manutenção de
inúmeras manifestações culturais indígenas no âmbito dos aldeamentos, de maneira alguma se
pensou em desconsiderar a resistência dos nativos em tal processo. Ronaldo Vainfas, ao
analisar o fenômeno da Santidade de Jaguaripe irrompida no sul do Recôncavo baiano por
volta da década de 1580, chama atenção sobre a necessidade de consideramos a capacidade
dos nativos em resistir aos novos hábitos trazidos pelos europeus, através de estratégias de
ajustamento ou de insurgência.
176
Embora produzido em um contexto bastante distinto do
trabalhado por este estudo, os relatos do padre jesuíta João Daniel exemplificam a forte
presença de tais práticas no interior das missões da Companhia de Jesus no Estado do
Maranhão e Grão-Pará durante a primeira metade do século XVIII. Em um capítulo destinado
às crenças e ritos dos ameríndios, João Daniel relata a permanência dos costumes nativos que
envolvem a adoração da Lua, do Sol e das Estrelas.
173
P. Jácome MONTEIRO. Relação da Província do Brasil, 1610. In: Serafim LEITE. História da Companhia
de Jesus no Brasil, t. VIII, Apêndice, p. 368. Grifos meus.
174
Charlotte de CASTELNAU-L’ESTOILE. As descrições do Brasil: consolação e curiosidade. In: _____.
Operários de uma vinha estéril: Os jesuítas e a conversão dos índios no Brasil (1580-1620), p. 429-430.
175
Id., p. 429.
176
Sobre a diferença entre a natureza das idolatrias, ver: Ronaldo VAINFAS: Colonialismo e Idolatrias: Cultura
e Resistência Indígenas no Mundo Colonial Ibérico. In: América, Américas: Revista Brasileira de História;
_____. A heresia dos índios: catolicismo e rebeldia no Brasil colonial, p. 33.
51
Tudo isto presenciei eu mesmo, achando-me no campo com alguns, não
batizados, mas também ladinos; porque gritando que via um a lua, os mais, que
estavam recolhidos em uma grande barraca, todos saíram a festejá-la; e alguns,
entre as mais ações de alegria, estendiam os corpos, puxavam-se os braços, mãos,
dedos, como quem lhe pedia saúde e forças em tanto que cheguei a desconfiar que
estavam idolatrando. E se assim faziam os mansos educados, e doutrinados nos
dogmas da fé de Cristo, que farão os bravos, e infiéis?
177
João Daniel constata ainda a presença de muitas outras idolatrias. Questionados pelo
inaciano sobre a no catolicismo, os indígenas da Missão de tapajós, responderam que “na
verdade adoravam alguns corpos e criaturas, e que os tinham muito ocultos em uma casa no
meio dos matos, de que sabiam os mais velhos, e adultos”. Além dos “corpos mirrados de
seus avoengos” adoravam pedras, cada qual “com sua dedicação e denominação com alguma
figura que denotavam para que serviam”.
Uma era a que presidiam os casamentos, com o Deus Hymnem [d]os antigos: outra
a quem imploravam o bom sucesso dos partos; e assim as mais tinham todas suas
presidências, e seus especiais cultos na adoração daqueles idólatras, posto que
nascidos, domesticados e educados dentre os portugueses, doutrinados pelos seus
missionários e tidos e havidos por bons católicos, como tinham professado no bom
batismo, conservando aquela idolatria por mais de 100 anos, que tinha fundado a
sua aldeia, e passando esta tradição dos velhos aos moços, e dos pais aos filhos,
sem até ali haver algum que revelasse o segredo.
178
Ainda segundo João Daniel,
Também são sumamente tenazes e misteriosos nos seus segredos, de sorte que
quando eles vêem algum branco desejoso de saber deles alguma coisa útil e
proveitos, por mais mimos, afagos e promessas que lhes façam, não lha tiram do
bucho, respondendo sempre, ou nitiu jxê acuau - eu não sei - ou - - quem
sabe?[...] Por isso sabendo muitas virtudes admiráveis de ervas, arbustos e plantas
medicinais, com que algumas vezes curam doenças e males gravíssimos, não é
possível fazer com que eles as revelem, e descubram.
179
Os relatos acima ilustram a possibilidade de os nativos ocultarem, no âmbito dos
aldeamentos, uma série de costumes pertencentes ao conjunto de crenças e práticas indígenas.
No entanto, os ameríndios não apenas buscavam defender seus interesses através da omissão e
da adaptação de suas tradições. O trabalho realizado por Maria Regina Celestino de Almeida
demonstra, através de uma série de exemplos, que a relação estabelecida entre portugueses e
177
João DANIEL. Tesouro descoberto no máximo rio Amazonas, v. 2, p. 322.
178
Id., p. 323.
179
Id., p. 301.
52
aldeados não se constituía de forma unilateral. As fontes utilizadas pela historiadora indicam
que os nativos tinham consciência de sua importância no projeto colonial, principalmente nos
assuntos referentes às expedições de conquista e exploração de novos territórios, à realização
de “descimentos” e à defesa da Colônia contra tribos hostis, negros levantados e corsários
estrangeiros, o que lhes davam uma margem de manobra na defesa de seus interesses.
180
Isso
explica a existência de diversos requerimentos e petições feitos pelos nativos solicitando
terras, o direito de não serem escravizados e de trabalharem para quem quisessem, cargos,
aumento de salários, ajudas de custo e destituição de autoridades não reconhecidas por eles.
181
Assim, segundo Maria Regina Celestino de Almeida,
No interior dos aldeamentos, os índios misturaram-se e transformaram-se, porém
não necessariamente conforme os padrões dos padres e autoridades. Interessavam-
se por mudanças e aprendizados, mas tinham nisso seus próprios interesses e
atribuíam-lhes rumos e significados próprios. Acordos, negociações, conflitos,
rebeldias, fugas, atitudes ambíguas e contraditórias eram parte do cotidiano dos
índios e dos padres e expressavam as tentativas de realização de seus objetivos, que
se transformavam com o tempo e as circunsncias.
182
O estudo referente ao encontro cultural estabelecido entre jesuítas e indígenas no
âmbito dos aldeamentos da Companhia de Jesus no Brasil filipino nos permite apontar que o
projeto de conversão dos nativos estava muito distante de alcançar os resultados desejados.
Embora muitos exemplos demonstrem a penetração de traços culturais ibéricos no interior dos
grupos étnicos indígenas, percebemos que tal processo não gerou uma simples substituição de
costumes, mas a eclosão de uma nova esfera simbólica híbrida, mestiça. Além disso, vimos
que a recepção de tais fluxos culturais não era realizada de forma passiva pelos ameríndios.
Conforme apontado pelo célebre historiador brasileiro Sérgio Buarque de Holanda, os povos
indígenas,
Longe de representarem aglomerados unânimes e aluviais, sem defesa contra
sugestões ou imposições externas, as sociedades, inclusive e sobretudo entre povos
naturais, dispõem normalmente de forças seletivas que agem em benefício de sua
180
Maria Regina Celestino de ALMEIDA destaca, no trecho da obra de frei Vicente do Salvador referente ao
diálogo entre Araribóia e o governador-geral Antônio Salema, um brilhante exemplo revelador do importante
jogo político estabelecido entre as lideranças nativas e as autoridades régias da Colônia. Trata-se do evento que
narra o fato em que o bravo guerreiro após ter sido “admoestado pelo governador em virtude da descortesia de
ter, diante dele, representante do rei, ‘cavalgado’ uma perna sobre a outra segundo seu costume”, responder “não
sem cólera e arrogância” que “se tu [o governador] souberas quão cansadas eu tenho as pernas das guerras em
que servi a el-rei, não estranharas dar-lhes agora este pequeno descanso; mas já que me achas pouco cortesão, eu
me vou para a minha aldeia, onde nós não curamos desses pontos e não tornarei mais à tua corte”. In: _____.
Metamorfoses Indígenas: Identidade e cultura nas aldeias coloniais do Rio de Janeiro, p. 151.
181
Id., p. 101.
182
Id., p. 130.
53
unidade orgânica, preservando-as tanto quanto possível de tudo o que possa
transformar essa unidade. Ou modificando as novas aquisições até ao ponto em que
se integrem na estrutura tradicional.
183
2.2. Colégios do Brasil
Os primeiros jesuítas enviados ao Brasil não restringiriam suas atividades à missão
de catequizar os habitantes da terra. Seguindo os passos dados pela Companhia de Jesus em
diversos territórios, os inacianos, ainda em seus primeiros anos de trabalho na Província,
começaram a fundar os primeiros colégios na Colônia. Assim, esta parte do estudo busca
investigar as atividades realizadas pelos jesuítas junto aos seus estabelecimentos de ensino no
Brasil durante o final do século XVI. Resgatar a história ligada a estes espaços constituintes
do núcleo da Ordem na Colônia nos permitirá ampliar o nosso olhar em relação à presença da
Companhia de Jesus na América portuguesa.
A estreita relação entre a Ordem dos jesuítas com a formação intelectual na Província
tem início ainda na década de 1550, através da fundação das Confrarias dos Meninos de Jesus.
Destinadas a acolher órfãos enviados de Portugal, essas casas agregavam ainda crianças
indígenas e mamelucas com o objetivo de proporcionar a preservação moral dos jovens, assim
como de preparar candidatos à vida religiosa e sacerdotal na Colônia. Auxiliados por esmolas
e mercês provenientes das autoridades portuguesas e da elite colonial, os inacianos
encontravam os recursos necessários para a manutenção e o crescimento de suas residências
no Brasil. De acordo com o relato escrito pelo padre Manuel da Nóbrega, em 1552,
Este collegio dos meninos de Jesus [da Bahia] vai em muito crescimento, e fazem
muito fructo [...] o mantimento e vestiaria, que nos El-Rei dá, todo lh’o damos a
elles, e nós vivemos de esmolas, e comemos pelas casas com os criados desta gente
principal, o que fazemos por que se não escandalizem de fazermos roças e termos
escravos, e para saberem que tudo é dos meninos. O Governador ordenou de dar a
dez [jesuítas] que viemos de Portugal um cruzado em ferro cada mez, para a
mantença de cada um, e cinco mil e seiscentos réis para vestir cada anno [...].
tenho escripto sobre os escravos que se tomaram, dos quaes um morreu logo, como
morreram outros muitos, que vinham já doentes do mar; tambem tomei doze
vaquinhas para a criação, e para os meninos terem leite [...] em toda maneira este
anno tragam os Padres provisão d’El-Rei, assim de escravos como destas doze
vaccas, porque tenho dado fiador para dentro de um anno as pagar a El-Rei, e será
grande fortuna si deste anno passar; nas vaccas se montaram pouco mais de trinta
mil réis, e tambem os outros collegios das capitanias querem fazer os moradores, e
escrevem-me cartas sobre isso, e querem dar escravos e muita ajuda.
184
183
Sérgio Buarque de HOLANDA. Caminhos e fronteiras, p. 55.
184
Carta do Padre Manuel da Nóbrega para o padre Provincial de Portugal [1552]. In: Manoel da NÓBREGA.
Cartas Jesuíticas 1: Cartas do Brasil, p. 129-130.
54
Em situação semelhante à Casa dos Meninos de Jesus na Bahia estava a Casa de S.
Vicente, fundada pelo padre Leonardo Nunes no ano de 1550, que
[...] servia de doutrinar os filhos e os paes e mães, e outros alguns [...]. Nesta Casa
se grammatica a quatro ou cinco da Companhia e lição de casos a todos, assim
Padres como Irmãos, e outros exercícios espirituais; a mantença da Casa, a
principal, é o trabalho de Índios, lhe dão de seus mantimentos, e é á boa industria
de um homem leigo que, com tres ou quatro escravos da Casa e outros tantos seus,
faz mantimentos, criação, com que mantém a Casa, e com algumas esmolas, que
alguns fazem á Casa, e com a esmola que El-Rei dá; tem também esta casa umas
poucas vaccas [...]. Desta maneira vivemos até agora nesta capitania, onde
estavamos seis Padres de missa e quinze ou dezesseis Irmãos por todos.
185
No entanto, o crescimento das Confrarias dos Meninos de Jesus forçava que tais
casas fossem elevadas ao status de Collegium inchoatum por dois motivos. Primeiramente, as
Fórmulas do Instituto estabeleciam que somente aos colégios e universidades da Companhia
de Jesus era permitido possuir “rendas, frutos ou propriedades para serem aplicados ao uso e
as coisas necessárias aos estudantes”,
186
justificando a posse de escravos, animais e terras. O
segundo motivo, ligado ao primeiro, é que tal transformação dava margem para que os
inacianos exigissem do monarca uma dotação perpétua. Segundo Manuel da Nóbrega, em
carta endereçada a Inácio de Loyola,
[...] si El-Rei ordena de fazer collegio da Companhia, deve-le de dar cousa certa e
dotar-lh’o para sempre, que seja mantença para certos estudantes da Companhia, e
não deve acceitar V. P. dada de terras com escravos, que façam mantimento para o
collegio, sinao cousa certa, ou dos dízimos, ou tanto cada anno de seu
thesouro[...].
187
Desta forma, no ano de 1556, a Casa dos Meninos da Bahia é elevada ao posto de
Colégio Canônico encontrando-se na seguinte situação:
Na cidade reside o padre Antonio Pires, como Reitor da Casa, com o padre
Ambrosio Pires, o qual agora tem cuidado de lêr uma classe aos que mais sabem
latim, e tem também a seu cargo as prégações da cidade; ficaram com Antonio
Blasques os que menos sabiam; ha na mesma Casa, assim mesmo, eschola de lêr a
alguns meninos do Gentio, e com elles se ensinam outros da cidade, e de todos tem
cuidado um Irmão; os estudantes de fóra, não são mais que tres ou quatro moços
185
Carta do Padre Manuel da Nóbrega para o padre Ignácio [de Loyola] [1556]. In: Manoel da NÓBREGA.
Cartas Jesuíticas 1: Cartas do Brasil, p. 152-153.
186
Fórmulas do Instituto da Companhia de Jesus aprovadas e confirmadas pelos Sumos Pontífices Paulo III e
Júlio III. In: Constituições da Companhia de Jesus e Normas Complementares, p. 34.
187
Carta do Padre Manuel da Nóbrega para o padre Ignácio [de Loyola] [1556]. In: Manoel da NÓBREGA. op.
cit., p. 155.
55
capellães da Sé; mas de casa são onze ou doze, d’elles irmãos, e outros orphãos,
d’aquelles que pareceu mostrarem e terem melhor habilidade para estudarem e
melhores partes para poderem ser da Companhia; todos os mais orphãos são dados
a officios, salvo dous ou tres, que nem são para serem da Companhia, por serem
mal dispostos, nem para se darem officios, por não serem para isso; a estes não
vemos outro remedio, salvo tornal-os lá a mandar.
188
Durante o século XVI os jesuítas fundam três colégios na Colônia: na Bahia (1556),
no Rio de Janeiro (1567) e em Olinda (1576). De maneira geral, podemos caracterizá-los
como uma casa de jesuítas, especializada no ensino, destinada em parte aos estudantes
externos à Companhia e provida de recursos que lhe garantissem uma autonomia
econômica.
189
Além disso, surgem neste período cinco “residências”, também chamadas de
“casas professas”, diretamente dependentes dos colégios. Situadas em núcleos colonizadores
mais afastados ou de menor expressão - Ilhéus, Porto Seguro, Espírito Santo, Piratininga e
São Vivente - tais residências serviam como habitação para um reduzido número de jesuítas
oferecendo uma escola elementar para ensinar a leitura e a escrita aos filhos de portugueses,
índios e mamelucos.
Os jesuítas tornavam-se os responsáveis pela constituição do corpo sacerdotal na
Colônia - que incluía os seminaristas candidatos a ingressar na própria Ordem e os religiosos
destinados ao clero secular - assim como recebiam alunos que buscavam se formar para
profissões civis e liberais.
190
Desta forma, se por um lado, os inacianos entram no período da União Ibérica
enfrentando graves dificuldades no âmbito das missões indígenas, por outro lado, os trabalhos
desenvolvidos pelos jesuítas junto aos colégios revelam o surgimento de um importante
momento histórico para a Ordem no Brasil, caracterizado pela consolidação e expansão de
novas diretrizes de atuação da Companhia de Jesus que lhe conferiam uma posição de
destaque na sociedade colonial.
Para sustentar tais argumentos, vejamos primeiramente a descrição do Colégio da
Bahia presente na Narrativa Epistolar” escrita pelo padre Fernão Cardim, no ano de 1585.
Os padres têm aqui collegio novo quasi acabado; é uma quadra formosa com boa
capella, livraria, e alguns trinta cubículos, os mais delles têm as janellas para o mar.
O edifício é todo de pedra e cal de ostra, que é tão boa com a de pedra de Portugal.
Os cubiculos são grandes, os portaes de pedra, as portas d’angelim, forradas de
188
Carta do Padre Manuel da Nóbrega para o Provincial de Portugal [1557]. In: Manoel da NÓBREGA. Cartas
Jesuíticas 1: Cartas do Brasil, p. 171.
189
Charlotte de CASTELNAU-L’ESTOILE. Operários de uma vinha estéril: Os jesuítas e a conversão dos
índios no Brasil (1580-1620), p. 52. Grifos meus.
190
Eduardo HOORNAERT... [et al.]. História da Igreja no Brasil: período colonial, p. 194.
56
cedro; das janelas descobrimos grande parte da Bahia [...]. A igreja é capaz, bem
cheia de ricos ornamentos de damasco branco e roxo, veludo verde e carmesim,
todos com tela d’ouro; tem uma cruz e thuribulo de prata [...]. O Collegio tem tres
mil cruzados de renda, e algumas terras adonde fazem mantimentos; residem nelle
de ordinario sessenta; sustentam-se bem de mantimentos, carne e pescados da terra;
nunca falta um copinho de vinho de Portugal [...] vestem e calçam como em
Portugal; estão empregados em uma lição de Theologia, outra de casos, um curso
d’artes, duas classes de humanidades, escola de ler e escrever; confessam e pregam
em nossa igreja, sé, etc. Outros empregam-se na conversão dos índios.
191
O relato acima, embora priorize os traços físicos do colégio, descreve algumas
atividades desenvolvidas no interior do mesmo, nos permitindo visualizar o grau de
transformação sofrido pelo estabelecimento em três décadas: de uma humilde casa de taipa
destinada aos meninos órfãos portugueses, mamelucos e índios, para um grandioso edifício.
192
De simples residência que ensinava a ler e escrever, o Colégio da Bahia, na década de
1580, disponibilizava aos seus estudantes, além das aulas de ensino secundário (Letras
Humanas) os cursos superiores de Artes e Teologia, ciclo geral dos estudos da Companhia de
Jesus.
193
Cabe ainda apenas destacar o fato de a informação de Cardim pontuar a existência de
uma diferenciação entre as atividades dos jesuítas: professores/pregadores em oposição a
missionários catequistas. Havia duas categorias de estudantes: de uma parcela se formariam
letrados (professores e pregadores); da outra parte sairiam catequistas. A seleção dependia do
talento de cada noviço, mas o conhecimento da língua indígena também tinha um peso na
decisão. Não havia estudo de grego, apenas o “grego da terra”, expressão designada para os
estudos da língua tupi.
Após o término do estudo da Gramática, os inacianos iam para os aldeamentos ou
davam prosseguimento aos cursos superiores de Artes e Teologia. “O curso de Artes ou
Ciências Naturais, como então se denominava o curso de Filosofia, abrangia a Lógica, a
Física, a Matemática e a Ética” com a duração de três a quatro anos. O curso de Teologia era
dividido em Moral, destinado aos estudos de atos, vícios e virtudes (“lição de casos”), e
Especulativa, restrita à compreensão do dogma católico. Após a visitação de Cristóvão de
191
Fernão CARDIM. Narrativa Epistolar de uma viagem e missão jesuítica [1585]. In: _____. Tratados da terra
e Gente do Brasil, p. 144-145.
192
Ver anexos IV e V, p. 109-110.
193
Depois de completado o estudo elementar, o primeiro curso era o de Letras Humanas, entendido como o
estudo de Gramática, Retórica, Poesia e História (as duas últimas também conhecidas com Humanidades). “No
curso de Letras estudavam-se todos os clássicos, desde Ovídio a Horácio, e desde Demóstenes a Homero. Mas os
mestres de estilo, mais recomendados pela Ratio Studiorum, eram Cícero e Virgílio”. In: Serafim LEITE.
História da Companhia de Jesus no Brasil, t. I, p. 29.
57
Gouvêa, as aulas ao invés de ter quatro horas de duração (duas pela manhã e duas pela tarde)
passaram a ter cinco horas, também divididas em dois turnos.
194
No entanto, junto ao crescimento dos colégios na Colônia estava o problema do
sustento dos mesmos. A solução encontrada pelo primeiro Provincial do Brasil ainda na
década de 1550 - permitir aos jesuítas a posse de propriedades agrícolas e escravos - não seria
facilmente aceita no interior da Ordem. O padre Luiz da Grã, nomeado adjunto de Nóbrega,
se mostrou defensor de idéias contrárias às de seu superior hierárquico, julgando
desnecessária a fundação de casas de meninos órfãos e, conseqüentemente, a posse de bens de
raiz, a ocupação com atividades agrícolas e com a criação de animais, e a utilização de mão-
de-obra escrava. O impasse seria resolvido durante a Congregação Geral ocorrida em
Roma no ano de 1568, que afirmava a necessidade de os colégios da Ordem possuírem os
meios necessários para o financiamento de suas atividades missionárias.
195
Em outra
Congregação ocorrida em 1576, os jesuítas alcançariam a permissão para terem escravos
indígenas, pois negros já os detinham desde a fundação das primeiras residências na década
de 1550. Em O Trato dos Viventes, Luiz Felipe de Alencastro mostra o quanto os membros da
Ordem de Santo Inácio estiveram envolvidos, tanto com as transações negreiras ocorridas
entre Brasil e Angola, quanto com a elaboração de um ajustamento doutrinário que
justificasse a escravidão de africanos.
196
Segundo o relato do padre Garcia, escrito em 1583,
A multidão de escravos, que tem a Companhia nesta província, particularmente
neste Colégio [da Bahia], é coisa que de maneira nenhuma posso tragar, maxime,
por não poder entrar no meu entendimento serem licitamente havidos [...]. E dos da
terra, entre certos e duvidosos, é tão grande o numero, que a mim me enfada; e com
estas coisas e com ver os perigos da consciência in multis, nesta terra, alguma vez
me passou por pensamento que mais seguramente serviria a Deus e me salvaria in
saeculum que em província, onde vejo as coisas que vejo.
197
De acordo com o documento formulado por seis padres jesuítas no ano de 1592, em
resposta aos ataques feitos à Companhia de Jesus pelo senhor-de-engenho Gabriel Soares de
Sousa, o Colégio da Bahia continha uma média de 60 residentes, o do Rio de Janeiro 50 e o
de Olinda 20, sendo que a manutenção dos mesmos era assegurada desde o tempo de d.
Sebastião, que “sucedendo no zelo da conversão como no reino de seu avô, fundou os três
194
Serafim LEITE. História da Companhia de Jesus no Brasil, t. I, p. 30.
195
Luiz Fernando Conde SANGENIS. Gênese do Pensamento Único em Educação: Franciscanismo e
jesuitismo na história da educação brasileira, p. 128.
196
Luiz Felipe de ALENCASTRO. A evangelização numa só colônia. In: _____. O Trato dos Viventes:
Formação do Brasil no Atlântico Sul.
197
Apud Luiz Fernando Conde SANGENIS. op. cit., p. 131.
58
colégios que [Gabriel S. Sousa] diz, dando-lhes renda certa para cento e trinta religiosos, à
razão de vinte mil réis para cada um, que fazem seis mil e quinhentos cruzados, como parece
pelos padrões [...]”.
198
Somadas a tais benefícios, estavam outras formas de rendimentos
provenientes das diversas doações, esmolas e mercês concedidas por autoridades coloniais e
moradores da capitania, que possibilitaram ao Colégio da Companhia de Jesus na Bahia
acumular, segundo os próprios inacianos, os seguintes bens:
Não tem o colégio 4.500 cruzados senão 3.000 como consta no padrão. Tem alguns
currais de gado com o qual, além de fazer serviço ao povo em lhe não tomar a
carne que ele mister e de que não é abastado, cumprem com suas necessidades
que sem eles era impossível sustentar-se, como é notório. A renda que tem das
propriedades não passa de doze mil rs. Tem uma fazenda, donde tem os beijus e
farinha para sua mesa e para sua gente, compram cada ano mais de cento e
cinqüenta mil rs. de mantimento. As Aldeias, que tem, são de El-Rei e do povo, e
dos índios nos servimos, como os mais da terra [...].
199
Em outra passagem:
O Colégio anda sempre endividado e pede emprestado a uns para pagar os outros, e
hoje, este dia, está devendo mais de 4.000 cruzados aqui e no reino. Não cortam
carne no açougue, antes muitas vezes compram gado, porque se não acabe, que a
falta dos pastos faz haver pouca multiplicação, vendem alguns novilhos na granja;
dos mantimentos e renda das terras está respondido. Os porcos são tão poucos,
que não são poderosos para matar cada semana um para velhos e mal dispostos; os
carneiros alguma hora têm algum por Páscoa; as galinhas muitas vezes compram
para seus doentes; o peixe fresco o mais dele comprar na vila velha e no engenho
de Cardoso; provaram na rede, largaram-na por ser de muito custo e pouco
proveito. [...] os bois de carro não passam de 24 até 26; o que diz da caça de
alimárias e aves, é muito para rir; as Aldeias distam sete, doze e quinze léguas da
cidade; a caça é muito pouca na terra, os pobres índios não são fartos dela e
escassamente podem sustentar do que têm os Padres, que os ensinam, que residem
com eles [...]. Os padre não mandam courama ao reino nem têm engenhos de
açúcar, nem canaviais [...].
200
Se todos os bens enumerados pelos escolásticos do Colégio da Bahia eram apontados
como sendo de extrema necessidade para a manutenção dos mesmos, como explicar o
destaque dado pelo varão apostólico do Brasil à riqueza dos ornamentos presentes no interior
de tais estabelecimentos? De acordo com o inaciano,
198
Serafim LEITE. Capítulos de Gabriel Soares de Sousa [...]. In: ETHOS: Revista do Instituto Português de
Arqueologia, História e Etnologia, p. 222-223.
199
Ibid., p. 224.
200
Ibid., p. 234-235.
59
[...] o Padre Visitador determinou que, no dia da invenção da Santa Cruz [3 de
maio], no qual se expõe o santo lenho e outras reliquias, para serem visitadas em a
nossa igreja, em solene procissão dos nossos, pelos corredores particulares do
Colegio, forrados de ricos tapetes, ornados de várias imagens e de flores, todas as
reliquias dos Santos fossem conduzidas e colocadas, com toda a publicidade, em
sacrario distinto, em cofrezinhos, previamente ornados.
Celebrou-se em seguida uma devota ceremonia, acompanhando o órgão, as flautas,
e o clavicordio e as citaras a modulação dos salmos.
Os nossos Padres revestidos de riquissimos paramentos, debaixo de um palio de
sêda adamascada, desfilando em boa ordem, carregavam as imagens da Santissima
Virgem e outros Santos, os noviços, porém, e outros irmãos, trajando vestes
brancas, conduziam velas acesas, semelhantemente vestidos, outros agitavam
fumegantes turibulos.
Todas estas cousas respiravam tanta piedade e devoção, que muitos fidalgos, que
instantaneamente haviam solicitado permissão para assistir a esta trasladação,
admirando esta perfeição da Companhia, e impulsionados por fervorosa devoção,
derramaram abundates lagrimas, e espalharam pela cidade entusiasticos elogios da
Companhia.
Para a completa ornamentação desta capela, generosamente ofereceu certo Varão
23 covados de pelucia de seda, outro uma caixa de prata, ainda outro deu uma boa
porçao de assucar, para com seu produto se comprarem coisas necessarias; as quais
esmolas perfazem sôma superior a 657$000.
201
Por fim, antes de tecer algumas considerações sobre o papel histórico dos colégios da
Companhia de Jesus na sociedade colonial quinhentista, voltemos aos trabalhos
desempenhados pelos jesuítas escolásticos. Segundo Anchieta,
Vou agora tratar do que respeita a utilidade e proveito das almas, em cujo exercício
não faltou cuidado e diligência, para aumentar a glória do nome de Deus, nas
contínuas assembléas que se reunem, tanto em nossa igreja, como em maior [...].
Para as paroquias estabelecidas e distantes daqui [Colégio da Bahia] dezoito
leguas, ou mais, são chamados os nossos, com o fim de desempenhar igual
incumbecia [reunir assembéias]; e algumas vezes é tão consideravel a série de
pedidos, que se não póde satisfazer ao desejo de todos.
Não menos abundante é a seara das confissões, na qual os nossos padres
incessantemente labutam, nem menos louvavel é tal desejo, pelo qual os moradores
desta cidade aspiram a esse sacramento [...].
Tambem se não deve omitir esta vantagem, que as mais das vezes é apresentada
pelos nossos, e vem a ser que as confissões determinam a muitos ouvintes e
assintentes a restituição daqueles bens que não poderiam reter, ou possuir sem
pecado, conciliam os que estavam separados pelo odio, alcançam o perdão das
injúrias e socorrem com as esmolas que tiraram as mulheres, cuja honra e virtude
correm perigo, acomodam muitas demandas e questões antigas, e muitos livram do
perigo da morte, e muitas outras não menor relevancia praticam, em honra de Deus
e proveito do proximo, e todas elas se derivam, como de mananciais, das
confissões e assembleas.
202
201
Breve narração das coisas relativas aos Colégios e Residências da Companhia nesta província brasílica, no
ano de 1584. In: José de ANCHIETA. Cartas Jesuíticas 3: cartas, informações, fragmentos históricos e
sermões, p. 404.
202
Id., p. 404-406.
60
Os relatos das atividades realizadas pelos inacianos ligados aos colégios de Olinda e
do Rio de Janeiro, em meados da década de 1580, atribuem uma maior importância aos
ministérios de ensino destinados aos escolásticos e noviços, assim como aqueles voltados para
o auxílio dos habitantes das vilas e engenhos, se comparados aos trabalhos despendidos junto
aos nativos. Ainda segundo Anchieta,
Vivem neste Colegio [de Olinda] dos nossos 20 de ordinario; 11 Padres, os demais
Irmãos [...]. Suas ocupações com os proximos são uma lição de casos que ouvem
os nossos, e de fóra dois a três estudantes e ás vezes nenhum; uma classe de
gramatica que ouvem até 12 estudantes de fóra, e também os casos e gramatica
estudam alguns da casa; escola de ler e escrever, que terá até 40 rapazes, filhos de
portugueses. Prègam em nossa igreja de ordinario, e na matriz e em outras igrejas a
miudo, confessam a maior parte de 8.000 Portugueses, que haverá naquela vila e
comarca; são consultados frequentemente em casos de importancia por a terra ter
muitos mercadores e trato; andam de contínuas missões nos engenhos [...]
catequisam, batizam e acodem a outras necessidades extremas, não somente dos
Portugueses, mas principalmente dos escravos que de Guiné serão até 10.000 e dos
Indios da terra até 2.000, como acima se disse e como os clerigos não os entendem
nem sabem sua lingua [...].
203
No Colégio do Rio a situação era bastante parecida.
Vivem dos nossos neste Colegio de ordinario 24: 10 Padres e os demais Irmãos.
[...] As ocupações dos nossos com os proximos são: uma lição de casos de
consciencia que ouvem de ordinário um ou dois estudantes de fóra e ás vezes
nenhum, mas sempre se aos de casa; uma classe de gramatica onde estudam 10
ou 12 meninos e alguns de casa, escola de ler e escrever que tem cêrca de 30
meninos, filhos de Portugueses.
Prègam e confessam e, como poucos clerigos, os nossos confessam a maior
parte dos Portugueses, e estão ali benquistos e fazem fruto.
Além disso têm a seu cargo duas aldeias de Indios cristãos: a primeira se diz S.
Lourenço que está uma legua da cidade defronte do Colegio, vai-se a ela por mar e
nela residem de contínuo três dos nosso, e todos são Padres; a outra é de S.
Barnabé, dista da cidade sete leguas e por mar: esta se visitam a miudo e entre
ambas terão quase 3.000 Indios.
204
Seguindo os apontamentos de Eduardo Hoornaert e Serafim Leite é crível considerar
que os primeiros jesuítas na Colônia teriam concebido os colégios como um suporte para as
missões indígenas.
205
Diversos documentos produzidos durante a segunda metade do século
XVI buscam afirmar essa idéia. O alvará de d. Sebastião, de 7 de novembro de 1564, em que
203
Informação da Província do Brasil [1585]. In: José de ANCHIETA. Cartas Jesuíticas 3: cartas, informações,
fragmentos históricos e sermões, p. 419.
204
Id., p. 429.
205
Eduardo HOORNAERT... [et al.]. História da Igreja no Brasil: período colonial, p. 47-48; Serafim LEITE.
História da Companhia de Jesus no Brasil, t. I, p. 43.
61
o monarca assumia definitivamente o encargo oficial de sustentar os padres da Companhia de
Jesus no Brasil, apresentava como motivo único da dotação dos colégios a conversão do
gentio, não fazendo nenhum tipo de alusão aos ministérios praticados com os colonos,
inclusive à educação deles.
206
Em seu “regimento das aldeias”, de 1586, escreveu o padre
Visitador Cristóvão de Gouvêa: “Por serem as missões muito necessárias nesta terra e
principal fim das fundações dos colégios [...].”
207
Questionados por Gabriel Soares de Sousa
sobre a importância dos estabelecimentos de ensino jesuíticos na Província, informaram os
jesuítas do Colégio da Bahia, no ano de 1592, que “a intenção que teve S. A. em fundar
Colégios no Brasil não foi abrir estudos para os filhos dos Portugueses, senão criar ministros
para a conversão, que é tanto sua obrigação, como consta dos padrões, que não põem aos
Padres obrigação nenhuma de ter escolas nenhumas.”
208
Por fim, o padre Provincial Pero
Rodrigues dirá, em 1600, que é “sobre a conversão do gentio que estão fundadas as rendas do
Colégio e não sobre estudos”.
209
No entanto, os relatos demonstram que tais discursos mostravam-se distantes da
prática dos inacianos no início do período dos Felipes. Nesse sentido, se a análise feita por
José Eisenberg em relação à presença jesuítica no Brasil quinhentista aponta haver uma
distinção entre os ideais dos inacianos em atuação na Colônia a partir da década de 1560,
uma vez que os missionários que chegaram ao Brasil neste período interessavam-se mais
pelos trabalhos nos povoados, preferindo cuidar da educação dos colonos a integrar as
aldeias,
210
podemos afirmar que a partir das duas últimas décadas do século XVI os trabalhos
realizados pelos jesuítas se aproximam em muitos aspectos das missões européias. Segundo
Charlotte de Castelnau-L’Estoile, o final do século XVIos jesuítas se ocupavam da educação
das elites nos colégios, das pregações de Quaresma e de Advento, das confissões para as
populações européias das cidades. Numerosos eram os jesuítas da província ocupados nessas
tarefas que não se consideravam missionários.
211
Através de uma carta enviada pelo padre Manuel Viegas ao Geral Aquaviva, em 21
de março de 1585, destinada a comentar alguns aspectos da visita feita pelo padre Cristóvão
206
Serafim LEITE. História da Companhia de Jesus no Brasil, t. I, p. 43.
207
Apud Eduardo HOORNAERT... [et al.]. História da Igreja no Brasil: período colonial, p. 47-48.
208
Serafim LEITE. Capítulos de Gabriel Soares de Sousa [...]. In: ETHOS: Revista do Instituto Português de
Arqueologia, História e Etnologia, p. 237.
209
Apud Serafim LEITE. História da Companhia de Jesus no Brasil, t. I, p. 43.
210
José EISENBERG. As missões jesuíticas e o pensamento político moderno: encontros culturais, aventuras
teóricas, p. 131.
211
Charlotte de CASTELNAU-L’ESTOILE. Operários de uma vinha estéril: Os jesuítas e a conversão dos
índios no Brasil (1580-1620), p. 209.
62
de Gouvêa a capitania de S. Vicente, podemos perceber o impacto dos colégios da Companhia
no “modo de proceder” dos inacianos da Colônia. Segundo o jesuíta,
Ele [o padre visitador] provê e deseja prover todas estas Casas, e tem grande zelo
da conversão do gentio do Brasil, e manda que todos, que são para isso, aprendam
e saibam a língua da terra, e a nenhum (conforme ao que V.P. lhe mandou)
consente que se ordene de ordens sacras, ainda que sejam muito para isso, sem que
primeiro saibam e aprendam a língua da terra. O que foi bem ordenado por V.P.,
porque saiba V.P. que muitos poucos a queriam aprender e saber e dar-se a ela:
tudo era darem-se às letras e serem pregadores dos portugueses, e subir ao púlpito
a pregar aos brancos e não se lembravam desta pobre gente de lhe pregar em sua
língua.
As letras em toda a parte são muito necessárias e mais numas partes que noutras.
No Japão são muito necessárias, porque é gente de melhor saber e subtil engenho; e
é necessário saber responder às suas subtis perguntas. Mas para cá, para esta gente
do Brasil, poucas letras bastam. E quem nesta terra sabe a língua dela é aqui
teólogo. E muitos Padres, que vêm de teólogos, nos dizem que, se pudessem ser,
dariam metade de sua teologia pela língua, E eu digo a V.P. que não darei a minha
língua por toda a sua teologia, e folgaria que eles ficassem com a sua teologia e
soubessem também a língua. Agora, todos os que são para isso se dão a saber a
língua, e desta maneira haverá agora muitos línguas na terra e os índios não
perecerão à míngua de línguas, porque nós os línguas antigos já somos velhos, e é
necessário que venham outros em troca e lugar de nós. [...] e saiba V.P. que quanto
mais moços vierem para aqui os operários, que V.P. nos mandar, tanto melhor e
mais facilmente, e com brevidade, aprendem a língua desta terra. E se vierem já de
muita idade não a podem saber e dá-lhes muito trabalho aprendê-la.
212
A missiva do padre Viegas constitui mais um importante exemplo de quanto os
trabalhos realizados pelos inacianos junto aos colonos nos núcleos citadinos da Província
eram valorizados em detrimento daqueles ministrados junto aos indígenas. Ainda segundo
Fernão Cardim,
Piratininga está situada em bom sitio ao longo de um rio caudal. Terá cento e vinte
vizinhos [cerca de 600 colonos], com muita escravaria da terra, não tem cura nem
outros sacerdotes senão os da Companhia, aos quaes têm grande amor e respeito, e
por nenhum modo querem aceitar cura. Os padres os casam, baptisam, lhes dizem
missas cantadas, fazem procissões, e ministram todos os sacramentos, e tudo por
caridade: não tem outra igreja na vila senão a nossa. Os moradores sustentam seis
ou sete dos nossos, com suas esmolas com grande abundancia [...].
Os padres têm uma casa bem acommodada, com um corredor e oito cubículos de
taipa, guarnecida de certo barro branco, e officinas bem acommodadas. Uma cerca
grande com muitos marmellos, figos, laranjeiras e outra arvores d’espinho,
roseiras, cravos vermelhos, cebolas cecêm, ervilhas, borragens, e outros legumes
da terra e de Portugal. A igreja é pequena, tem bons ornamentos, e fica muito rica
com o Santo lenho, e outras relíquias que lhe deu o padre visitador.
213
212
Serafim LEITE. História da Companhia de Jesus no Brasil, t. IX, Apêndice B, p. 542. Grifos meus.
213
Fernão CARDIM. Narrativa Epistolar de uma viagem e missão jesuítica [1585]. In: _____. Tratados da Terra
e Gente do Brasil, p. 173-174.
63
Seja nos principais centros da Colônia, tais como Pernambuco, Bahia e Rio de
Janeiro, ou nas capitanias menos abastadas, a exemplo de São Vicente - porta de entrada para
os “sertões”, onde a presença indígena se fazia marcante - a assistência aos colonos aos
poucos ia tomando o lugar do apostolado junto aos nativos. Como bem informou o padre
Viegas: tudo era darem-se às letras e serem pregadores dos portugueses”. O resultado de tal
processo ao final do século XVI foi contabilizado por Charlotte de Castenau-L’Estoile com
base no Catálogo trienal da Província do Brasil de 1598: de um total de 164 jesuítas instalados
na Colônia, apenas 29 estavam ligados ao trabalho de catequese indígena, seja em aldeias
fixas ou missões volantes.
214
214
Charlotte de CASTELNAU-L’ESTOILE. Operários de uma vinha estéril: Os jesuítas e a conversão dos
índios no Brasil (1580-1620), p. 208-209.
CAPÍTULO 3: A CRISE DE UM MODELO MISSIONÁRIO
[...] e vendo eu tanta multidão de peixe, peço a todos os Reverendos Padres e
caríssimos Irmãos companheiros nossos, que deixando o descanço do Colégio,
ponhão os olhos no sangue e chagas de Jesus-Christo e nos venhão ajudar [...].
Carta que o Padre Superior Manoel Gomes escreveu ao Padre Provincial do Brasil,
do Maranhão, em 1615.
A partir de meados da década de 1580, a questão indígena começava a ser repensada
na Colônia. Neste contexto, a economia açucareira no Nordeste passava por um rápido
processo de expansão, gerando um conseqüente acúmulo de recursos financeiros que
impulsionava a substituição da mão-de-obra nativa pela africana, de maior rentabilidade.
Entretanto, a transição era feita de maneira lenta e gradativa, resultando no fato de a maior
parte da força de trabalho dos engenhos brasileiros, durante a última década do século XVI,
permanecer sendo constituída por “negros da terra”, ou seja, indígenas.
215
Além disso,
segundo Schwartz,
Uma discussão da lucratividade em termos econômicos estritamente neoclássicos
não bastará para explicar a transição da força de trabalho. Estiveram sempre
presentes também determinantes culturais e políticos. Nem todos no Brasil estavam
convencidos da sensatez da mudança. Os colonizadores portugueses em geral não
sentiam propensos a renunciar ao controle dos índios, especialmente quando
podiam ser obtidos por uma ninharia, e demonstraram essa relutância com
protestos e manifestações políticas, particularmente em 1609 e 1640.
216
De acordo com o padre Anchieta,
A gente que de 20 anos a esta parte é gastada nesta Baía, parece cousa, que se não
pode crer; porque nunca ninguém cuidou, que tanta gente se gastasse em tão pouco
tempo; porque nas 14 igrejas, que os Padres tiveram, se juntaram 40.000 almas,
estas por conta, e ainda passaram delas com a gente, com que depois se
forneceram, das quais se agora as três igrejas que tiverem 3.500 almas será
muita. 6 anos que um homem honrado desta cidade, e de boa consciência, e
215
Stuart B. SCHWARTZ. Segredos Internos: Engenhos e Escravos na sociedade colonial, 1500-1835, p. 68-
69.
216
Id., p. 73.
65
oficial da câmara que então era, disse, que eram descidos do sertão do Arabó
naqueles dois anos atrás 20.000 almas por conta, e estas vieram para as fazendas
dos Portugueses. Estas 20.000 com as 40.000 das igrejas fazem 60.000. De seis
anos a esta parte, sempre os Portugueses desceram gente para suas fazendas, quem
traziam 2.000 almas, quem 3.000, outros mais outros menos: veja-se de seis anos a
esta parte o que isto podia somar, se chegam ou passam de 80.000 almas. Vão ver
agora os engenhos e fazendas da Baía, achá-los-ão cheios de negros de Guiné, e
mui poucos da terra e se perguntarem por tanta gente, dirão que morreu, donde se
bem mostra o grande castigo de Deus dado por tantos insultos como são feitos, e se
fazem a estes Índios, porque os portugueses vão ao sertão, e enganam esta gente,
dizendo-lhe que se venham com eles para o mar, e que estarão em suas aldeias,
com lá estão em sua terra [...].
217
O relato do inaciano se destaca por expressar a postura assumida pela Companhia de
Jesus neste contexto. Diante da necessidade crescente de mão-de-obra nos engenhos e do
conseqüente extermínio de diversos grupos étnicos indígenas, os jesuítas passam a denunciar
de forma aberta os abusos cometidos pelos colonizadores. Além de enviarem cartas aos seus
superiores e autoridades na Metrópole, informa Gabriel Soares de Sousa que
Costumam os padres irem pelas fazendas da Baía e confessar a gente que por ela
está espalhada nos engenhos e fazendas, onde são muito servidos e agasalhados [...]
e a volta dessas boas obras perguntam-lhe na confissão como foram resgatados, e
donde são naturais, e se acham que não foi o resgate feito em forma, dizem aos
índios que são forros e que não podem ser escravos, e que se quiserem ir pera suas
aldeias, que os defenderão e farão pôr em sua liberdade, com o que fizeram e
fazem fugir muitos escravos dêstes e recolhem em suas aldeias, donde seus
senhores os não podem mais tirar, do que nasceram grandes desmanchos, e ódios, e
muitos homens, que não querem consentir que os Padres vão a suas fazendas, e
outros que defendem a seus escravos que se não confessem com os Padres e nem
confessem com eles [...].
218
Os inacianos valiam-se não apenas de argumentos de caráter moral e religioso, mas
também buscavam mostrar a necessidade dos índios aldeados como força de segurança contra
os inimigos, “assim Franceses e Ingleses como Aimurés, que tanto mal têm feito e vão
fazendo, e quem ponha freio aos negros de Guiné que são muitos e de sós os índios se
temem”.
219
Desta forma, a pressão exercida pelos padres da Companhia de Jesus não tardaria a
surtir efeito. Em 24 de fevereiro de 1587 surge uma lei afirmando a obrigatoriedade da
presença de missionários junto às tropas de descimento e, em meados da década de 1590, a
217
José de ANCHIETA. Dos impedimentos para a conversão dos Brasis e, depois de convertidos, para o
aproveitamento nos costumes e vida cristã [1584]. In: _____. Cartas Jesuíticas 3: Informações, fragmentos
históricos e sermões, p. 385.
218
Serafim LEITE. Capítulos de Gabriel Soares de Sousa [...]. In: ETHOS: Revista do Instituto Português de
Arqueologia, História e Etnologia, p. 245-246.
219
Ibid., p. 247.
66
Coroa proclama duas novas leis beneficiando os nativos e os religiosos. A primeira, de 11 de
novembro de 1595, determinava que o rei poderia declarar “guerra justa”, um dos títulos
legítimos de escravização indígena. A segunda, datada de 26 de julho de 1596, estabelecia que
os descimentos somente poderiam ser realizados pelos jesuítas.
220
No entanto, o favorecimento ao trabalho missionário indígena realizado pelos
inacianos através da proclamação das leis de 1595 e de 1596 rapidamente seria comprometido
pela decisão tomada pelo Geral Cláudio Aquaviva, que condenava a ocupação dos religiosos
com questões de caráter temporal nas aldeias.
221
Neste momento, os benefícios conquistados
pelos jesuítas lhes conferiam uma posição antagônica aos interesses dos colonos. Como visto
no segundo capítulo, além de terem se tornado grandes proprietários de fazendas, gado e
escravos, gozando de privilégios fiscais que resultavam em vantagens comerciais, os
inacianos tornavam-se o principal entrave para o livre acesso à mão-de-obra nativa. Cabe
ainda destacar que a partir da década de 1590, o centro da Ordem em Roma permite aos
jesuítas da Província a posse de engenhos a fim de angariar recursos para a
manutenção/expansão das atividades da Companhia de Jesus na Colônia.
Ao proibir os jesuítas de lidarem com assuntos referentes à administração dos
trabalhos realizados pelos indígenas aldeados junto aos colonos, assim como afastá-los da
justiça nas aldeias, o Geral da Ordem objetivava manter os missionários longe de qualquer
situação que permitisse aos inimigos da Companhia de Jesus tecer algum tipo de acusação ao
Instituto, como por exemplo, cupidez, desvio de pagamentos feitos aos índios pelos serviços
prestados, assim como por excessos cometidos na aplicação de castigos.
Como demonstrado por Charlotte de Castelnau-L’Estoile, “isolados” nos
aldeamentos, os missionários estavam sujeitos a cometer uma série de delitos, tais como o
pecado sexual, o abuso na aplicação de castigos corporais e a negligência espiritual para com
os indígenas, assim como a desobediência em relação aos seus superiores.
222
220
Beatriz PERRONE-MOISÉS. Índios livres e Índios escravos: Os princípios da legislação indigenista do
período colonial (séculos XVI a XVIII). In: Manuela Carneiro da CUNHA (org.). História dos Índios no Brasil.
De acordo com Charlotte de CASTELNAU-L’ESTOILE, geralmente interpretadas sob o sentido exclusivo de
fortalecimento do poder dos jesuítas na Província, tais leis também representavam a busca de um maior controle
por parte do poder real sobre os religiosos da Companhia de Jesus. Segundo a historiadora, “Estes [os padres]
aparecem como os instrumentos da política real: são os encarregados de -la em ação. Certamente eles são
responsáveis pelos índios, mas sempre sob o controle do governador. São apenas os executores da política real,
os instrumentos locais dessa vontade”. In: _____. Operários de uma vinha estéril: Os jesuítas e a conversão dos
índios no Brasil (1580-1620), p. 279.
221
Charlotte de CASTELNAU-L’ESTOILE. op. cit., p. 283.
222
Ibid., p. 258.
67
Ao analisar as características da formação cultural da sociedade colonial paulista,
Sérgio Buarque de Holanda não apenas destaca a capacidade indígena de combater as
imposições ocasionadas pelo choque entre as civilizações, mas também afirma que,
desenvolvendo com mais liberdade e abandono do que em outras capitanias, a ação
colonizadora realiza-se, aqui [S. Vicente], por uma contínua adaptação a condições
específicas do meio americano. Por isso mesmo não se enrija logo em formas
inflexíveis. Retrocede, ao contrário, a padrões primitivos e rudes: espécie de tributo
pago para um melhor conhecimento e para a posse final da terra.
223
Podemos então fazer uma analogia entre os aldeamentos e a sociedade paulista no
sentido de que ambas possuíam uma ampla liberdade em relação aos seus núcleos que, no
caso da Companhia, era representado pelos colégios e casas professas. Tanto que uma das
maiores preocupações surgidas durante a visita de Cristóvão de Gouvêa é com a criação de
medidas que possam reforçar os laços entre os aldeamentos e o resto da Companhia,
quebrando desta forma com o isolamento dos missionários.
224
Assim, entre as principais
normas prescritas no “regimento de 1586” - que permanecerá em grande parte em vigor até a
expulsão dos jesuítas do Brasil em 1759 - estava a visita anual do Superior às aldeias e a
temporada, também anual, que o missionário deveria passar no colégio a fim de renovar seus
votos e realizar sua confissão geral. Embora houvesse outras ordenações, a melhor maneira de
proteger os missionários dos “perigos” das aldeias consistia em dar oportunidades aos
religiosos para que eles pudessem realizar uma renovação espiritual e reafirmar sua identidade
jesuítica.
225
As normas apontadas por Aquaviva, assim como as três novas medidas surgidas em
1598,
226
destinadas a reforçar o controle interno e externo sobre as aldeias, não seriam
cumpridas na Colônia sob a justificativa de as ordens romanas serem inadequadas para o caso
brasileiro. Na tentativa de exercer a regra que aumentava o número de religiosos por
aldeamento, o Provincial Pero Rodrigues chega a enviar para as aldeias alguns missionários já
afastados dos trabalhos de catequese, assim como jovens jesuítas residentes nos colégios e
223
Sérgio Buarque de HOLANDA. Caminhos e fronteiras, p. 10.
224
Charlotte de CASTELNAU-L’ESTOILE. Operários de uma vinha estéril: Os jesuítas e a conversão dos
índios no Brasil (1580-1620), p. 132.
225
Charlotte de CASTELNAU-L’ESTOILE. A fabricação do regimento sobre as aldeias de 1586. In: _____. op.
cit.
226
A primeira consistia na criação do cargo de Superintendente das aldeias, ocupado exclusivamente por um
religioso residente em um dos colégios, incumbido da tarefa de visitar as missões indígenas; a segunda
estabelecia que cada aldeamento passasse a ter o dobro de jesuítas, isto é, quatro, reforçando assim a vigilância
mútua nas aldeias; a última norma previa que o Superior das aldeias não poderia ser um língoa.
68
recém-chegados de Portugal. O resultado dessa ação é narrado pelo próprio Provincial em
carta enviada ao Geral em Roma, dois anos após ter tomadotal medida.
Comecey a executar a Cousa pondo 4 em cada aldea, mas dahi a poucos dias
começarão de vir dellas alguns com doenças graves, com que o dito numero se
diminhuo por não haver quem suprisse. Depois assi nas 4 aldeas deste Collegio
como nas 2 de Pernambuco comecey a experimentar outras mais graves doenças.
As quaes a charidade, consciencias e avisos de Vossa Paternidade me fazião acudir
com mais diligencia, que era para huma parte a distração e perdição dos noviços, e
de outros de pouco tempo do Collegio, que os olhos visto se hião perdendo. E da
outra parte a moléstia e melancolia que outros sintião por os fazerem estar muito
tempo nas aldeas quasi por força. Pello que huns me rogavão com lagrimas que os
tirasse dellas, e se não que corrião perigo; e que me avisavão primeiro. Vendo eu
estes perigos, e doença, consultando primeiro huma, e muitas vezes, os retirei para
os Collegios procurando deixar sempre dous sacerdotes com hum irmão.
227
Assim, a justificativa para o fracasso da aplicação desta regra no Brasil era
basicamente a falta de vontade dos inacianos em viver nos aldeamentos. O trabalho nas
aldeias jesuíticas neste período era encarado pela Ordem como sendo algo extremamente
perigoso para a integridade dos missionários, que, no entanto, lhes rendia a fama de
“especialistas” no sentido depreciativo. Com média de idade entre 45 a 60 anos, sendo de 25 a
40 anos de trabalho prestados nas aldeias ad majorem Dei gloriam, os missionários eram
considerados sem utilidade alguma para outros serviços que não fosse à conversão de índios.
Estes “especialistas” geralmente possuíam apenas a formação básica para alcançarem a
ordenação e assim pronunciarem os votos de coadjutores espirituais, não podendo, desta
forma, alcançar à profissão do quarto voto, ou seja, o voto missionário; ficavam ainda
incapacitados de se tornarem grandes pregadores devido à insuficiência dos estudos em
Teologia.
228
Durante a passagem do terceiro Visitador da Companhia pela Província, o padre
Manuel de Lima (1607-1610), novas medidas são tomadas no intuito de solucionar os
problemas enfrentados pelos jesuítas no âmbito dos aldeamentos. O teor das reformas assumia
um nítido caráter espiritual, buscando reforçar a disciplina dos inacianos residentes nas
aldeias. Assim, além de recomendar os habituais remédios espirituais, tais como orações,
confissões e outros “ofícios divinos”, o regimento do padre Manuel de Lima deixava claro a
necessidade de uma maior vigilância sobre os missionários - principalmente no trato com as
227
Apud Charlotte de CASTELNAU-L’ESTOILE. Operários de uma vinha estéril: Os jesuítas e a conversão
dos índios no Brasil (1580-1620), p. 250.
228
Charlotte de CASTELNAU-L’ESTOILE. op. cit., p. 222.
69
índias - por parte do Visitador das aldeias, cargo que neste momento passa a ser denominado
como Superintendente das aldeias.
No entanto, segundo Jácome Monteiro, secretário do padre Visitador:
[os padres na Província do Brasil] sofrem mal que lhes vão Visitadores da
Província de Portugal; e quando estes ordenam alguma coisa nova, respondem:
fiquempara a cumprir. Fazem corpo entre si e até os Superiores desfazem o que
podem no Visitador. E comenta: a estes Visitadores falta-lhes a experiência da
terra, e na verdade seria melhor que se elegessem entre os Padres da Província do
Brasil, a não ser que o Visitador ficasse depois também para cumprir e fazer
cumprir o que se ordenava.
229
Além de denunciar o não cumprimento das medidas impostas pelo centro da Ordem
em Roma, Jácome Monteiro faz uma série de denúncias relacionadas aos abusos cometidos
pelos missionários, à tibieza dos superiores, e à ineficácia das conversões, chegando à
conclusão de que as missões indígenas estavam condenadas devendo ser entregues nas mãos
dos seculares.
230
A crise missionária indígena na Colônia conhece seu ápice com a proclamação da lei
de 1611, que autorizava a escravidão dos nativos e retirava das mãos dos jesuítas a
administração temporal e espiritual dos aldeamentos. Embora os inacianos tenham sofrido
neste momento um de seus piores golpes desde a chegada ao Brasil, as autoridades
eclesiásticas, políticas e civis tinham consciência de que não podiam dispensar os trabalhos da
Companhia. A mediação exercida pelos jesuítas junto aos nativos era de extrema importância
para a pacificação dos indígenas, para a defesa da Colônia, assim como para o auxílio às
novas conquistas territoriais. Além disso, a situação dos colégios confiava ao Instituto uma
posição de destaque na Colônia. Somando neste contexto cerca de 170 membros, os três
colégios da Ordem eram os responsáveis pela formação do clero secular e pela educação das
elites coloniais. Desta forma, apesar dos conflitos políticos, os inacianos se mantiveram
senhores das aldeias, tanto no plano temporal, quanto no espiritual.
231
De maneira geral, podemos dizer que a situação das missões indígenas durante as
duas primeiras décadas do século XVII apresentou poucas transformações, se comparado ao
quadro encontrado durante as duas últimas décadas do século XVI. Embora se constate um
aumento no número de aldeias de El-Rei fundadas na capitania de São Vicente durante todo
229
Carta do P. Jácome Monteiro ao P. Assistente de Portugal [28 de Setembro de 1610]. In: Serafim LEITE.
História da Companhia de Jesus no Brasil, t. VII, p. 04.
230
Charlotte de CASTELNAU-L’ESTOILE. Operários de uma vinha estéril: Os jesuítas e a conversão dos
índios no Brasil (1580-1620), p. 321-326.
231
Ibid., p. 350.
70
este período, a maior parte delas mantinha a característica de não possuir padres residentes.
Em relação à região do Rio de Janeiro, surgem mais duas aldeias: a primeira, nomeada aldeia
de São Pedro, é fundada na nova capitania de Cabo Frio no ano de 1617; a segunda,
denominada Itinga, surge em meados da década 1620. Na capitania do Espírito Santo, das
quatro aldeias estabelecidas nas últimas décadas do século XVI, somente duas remanesceriam
a partir da década de 1620, Reritiba e Reis Magos. Por fim, na extensa região submetida ao
Colégio de Olinda - desde o rio São Francisco até o rio Paraguaçu ou Parnaíba, vasto território
que hoje se divide entre os Estados de Alagoas, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e
Ceará - surgem mais duas novas aldeias no início do século XVII, somando aproximadamente
cinco aldeamentos com residência fixa de padres jesuítas.
232
3.1. Os jesuítas em “novas searas”
Caracterizado por ações de penetração e conquista, o período filipino foi responsável
por promover uma forte expansão territorial na Colônia que seguiu basicamente dois sentidos:
um, rumo ao sul, resultado “do trato pessoal, do comércio, das oportunidades e das ligações
anteriores entre o rio da Prata e Piratininga, um movimento a revelia e contra os interesses
espanhóis”; outro, “traçado e executado a planos concretos”, no intuito de ligar o Nordeste
brasileiro com a região Norte e colocar fim à presença francesa em tais domínios.
233
Inserida em tal processo, a Companhia de Jesus teve a oportunidade de reacender em
uma parcela de seus membros o “verdadeiro espírito” do Instituto através da realização de
práticas missionárias volantes entre indígenas e colonos. Lançar luzes sobre as atividades e o
papel assumido pelos inacianos nesses movimentos que transformaram marcantemente a
história de nossa colonização constitui o objetivo desta parte do capítulo.
Missões ao sul
Desde os primeiros anos após a chegada da Companhia de Jesus no Brasil, no final
da década de 1540, os inacianos revelavam em suas correspondências o forte interesse em
232
Em relação aos aldeamentos ligados ao Colégio de Olinda, ver: Serafim LEITE. História da Companhia de
Jesus no Brasil, t. V, capítulos I e II.
233
Sérgio Buarque de Holanda (coord.). História Geral da Civilização brasileira: Época colonial, t. I. v. 1: do
descobrimento à expansão territorial, p. 203-204.
71
promover missões indígenas ao sul de São Vicente.
234
Segundo informações narradas por
castelhanos que vinham a esta capitania por terra, a região do Paraguai necessitava de
“remédio espiritual” urgente para por fim às dissidências entre os colonos, aos maus tratos
com os indígenas, à mancebia, etc. Assim, os jesuítas eram constantemente solicitados por
moradores do Paraguai para que socorressem a região. Além disso, a boa imagem dos carijós
e de suas terras atraía os religiosos, que aos poucos iam realizando missões volantes e
fundando vilas no Brasil meridional, tais como Maniçoba, Piratininga e Jeribatiba.
235
Um
evento que marca este momento de expansão é a entrada dos inacianos Pero Correia e João de
Sousa, mortos a flechadas no ano de 1554.
236
Segundo Serafim Leite, este “é um período de vivas contestações e mútuas
aspirações a territórios poucos delimitados, e sobre os quais as Coroas de Portugal e Castela
se atribuíam direitos, interpretando cada qual a seu sabor o meridiano previsto no Tratado de
Tordesilhas”.
237
Desta forma, em meados da década de 1550, surgiam as ordens de d. João III
para que nenhum português passasse ao Paraguai, assim como todo espanhol que chegasse a
São Vicente por terra fosse deportado.
238
A fundação da prelazia do Rio de Janeiro, no ano de 1576, que estabelecia o rio da
Prata como seu marco limítrofe, também contribuiria para o avanço dos inacianos pela costa
brasileira.
239
No entanto, o evento mais importante para o impulso da expansão jesuítica ao
sul é o estabelecimento da União Ibérica.
Cientes da conjuntura favorável, os inacianos, durante a Congregação Provincial da
Bahia ocorrida em 1583, propõem ao Geral que mostre ao rei Felipe II de Espanha as
vantagens obtidas com o envio de padres da Companhia à região do Paraguai. Neste contexto,
no ano de 1585 d. Francisco de Vitória, bispo de Tucumã, faz um pedido oficial ao Provincial
do Brasil solicitando membros do Instituto para Buenos Aires.
240
Assim, os cinco padres
enviados da Colônia chegariam ao destino estabelecido no ano em 1587, sendo surpreendidos
234
Ver, por exemplo, a carta do padre Leonardo Nunes do Porto de S. Vicente, escrita no ano de 1550. “[...]
determino de sahir por esta terra adentro umas 200 leguas, onde hei de gastar alguns seis ou sete mezes, e levarei
comigo quatro línguas mui boas [...]”. In: Cartas Jesuíticas 2: Cartas Avulsas (Azpilcueta Navarro e outros).
235
Serafim LEITE. Jesuítas do Brasil na fundação da missão do Paraguay.
236
O episódio referente ao martírio dos inacianos é narrado pelo padre Anchieta em uma carta enviada de
Piratininga aos padres e irmãos de Portugal, no ano de 1555. In: José de ANCHIETA. Cartas Jesuíticas 3:
Informações, fragmentos históricos e sermões, p. 385.
237
Serafim LEITE. op. cit., p. 7.
238
Ibid., p. 8.
239
Beatriz Vasconcelos FRANZEN. Jesuítas portugueses e espanhóis no sul do Brasil e Paraguai coloniais, p.
12.
240
De acordo com o estudo feito por Jorge Caldeira, a solicitação de missionários jesuítas feita pelo bispo de
Tucumã não passava de uma estratégia para que se desse a abertura de uma rota comercial entre as terras do
Paraguai e o Brasil. Maiores detalhes, ver: Jorge CALDEIRA. Os lucros do mundo. In: _____. O Banqueiro do
Sertão, v. 1.
72
ao encontrarem dois jesuítas recém-chegados do Peru à diocese de Tucumã, que não
satisfeitos com a “invasão”, retraíram-se e comunicaram o fato a sua Província. Após este
episódio, o Provincial do Brasil ordena que os jesuítas sejam retirados da região no ano de
1591. No entanto, apenas o padre Superior da missão - Leonardo Armínio - retorna,
autorizando a permanência dos demais. O apostolado dos remanescentes não duraria muito
tempo, uma vez que o padre Saloni morre em 1599, enquanto os outros três religiosos são
novamente obrigados a deixar o Paraguai, por determinação do Visitador, padre Paes.
241
No início do século XVII, novamente é solicitado junto à Província do Brasil padres
para o Paraguai sob a alegação das facilidades de comunicação com a América portuguesa, ao
contrário do que ocorria com o Peru. No entanto, a solução para a falta de religiosos na região
seria encontrada no ano de 1607 com a fundação da Província independente do Paraguai,
ordenada desde 1604 pelo Geral Aquaviva.
Durante este longo período, os jesuítas realizaram constantes missões volantes junto
às vilas situadas ao sul de São Vicente. Em Itanhaém, os inacianos chegaram a fundar duas
casas que serviam como residência para os religiosos de passagem pela região. Mais ao sul, as
vilas de Iguape e Cananéia também eram visitadas ainda no século XVI. Os inacianos
chegaram ao litoral de Santa Catarina na expedição realizada entre os anos de 1605 e 1607
pelos padres Jerônimo Rodrigues e João Lobato. Nesta ocasião, fundaram a residência de
Embitira, assim como tentaram, sem sucesso, aldear indígenas da região. Nova expedição foi
organizada em 1609 sob as ordens do Visitador Manuel de Lima, ficando os jesuítas Afonso
Gago e João de Almeida incumbidos das tarefas de promover missão junto aos carijós e
estabelecer contato com os jesuítas espanhóis que começavam a se instalar na região do
Guairá. Os únicos resultados alcançados por esses inacianos foi o descimento de
aproximadamente 1500 indígenas para São Paulo resultando na fundação da aldeia de Barueri.
No final da década de 1610, outra expedição foi organizada pelo Colégio do Rio de Janeiro,
evento no qual os padres Jo Fernandes Gato e, novamente João de Almeida, vão além da
região de Laguna com o objetivo de descer nativos para os aldeamentos de São Vicente,
Rio de Janeiro e Cabo Frio. Devido à resistência dos colonos de São Vicente e Cananéia, o
governador do Rio - Salvador Correia de - seria impedido de enviar os navios para a
viagem de retorno, resultando no fracasso da missão.
242
241
O padre Filds não retornaria por motivo de doença.
242
Beatriz Vasconcelos FRANZEN. A expansão dos jesuítas pelo litoral sul (séc. XVI e XVII). In: _____.
Jesuítas portugueses e espanhóis no sul do Brasil e Paraguai coloniais.
73
As incursões jesuíticas no Brasil meridional foram freqüentes até os últimos anos da
União Ibérica. De maneira geral, pode-se dizer que tais expedições eram promovidas com o
intuito de expandir a catequese indígena e de criar um obstáculo aos avanços dos bandeirantes
paulistas, ávidos pela mão-de-obra nativa. Além disso, muitas “entradas” eram feitas com a
intenção de se fazer descimentosatendendo aos pedidos de autoridades preocupadas com a
defesa da Colônia.
As dificuldades encontradas pelos jesuítas devido à inexistência de povoados
portugueses na região, assim como aos constantes assaltos dos colonos durante as viagens de
regresso, fizeram com que os jesuítas não retornassem mais ao sul da Província a partir de
1637. No ano de 1640, a expulsão da Companhia de Jesus de São Paulo e Santos agravaria a
situação, fazendo com que a volta dos jesuítas à região ocorresse novamente na década de
1680.
243
Missões ao norte
A partir de meados da década de 1570, a Coroa portuguesa declara a necessidade de
conquistar as terras situadas ao norte de Pernambuco. Neste momento, os potiguares, “que
senhoreavam toda aquela terra da Paraíba até o Maranhão”, mantinham uma estreita aliança
com os franceses que exploravam a região e andavam rebelados devido aos constantes
agravos cometidos pelos portugueses das capitanias vizinhas.
244
O conflito entre colonos e
indígenas só ganharia vulto a partir de meados da década de 1580 se estendendo até o ano de
1599, momento em que o Rio Grande é conquistado e as pazes com os indígenas são seladas.
Este episódio, caracterizado como um dos mais sangrentos da história colonial do
século XVI, teve Pernambuco como base de onde se desenvolveu e progrediu a conquista,
efetivada com uma combinação de forças militares espanholas e portuguesas.
245
Integrados ao
exército, que segundo frei Vicente de Salvador, “foi a mais formosa coisa que nunca
Pernambuco viu”,
246
os jesuítas Jerônimo Machado e Simão Tavares estiveram à frente de
centenas de indígenas arregimentados nos aldeamentos da Companhia de Jesus. A
participação dos inacianos em tais conflitos possibilitou, além da realização de algumas
243
Beatriz Vasconcelos FRANZEN. A expansão dos jesuítas pelo litoral sul (séc. XVI e XVII). In: _____.
Jesuítas portugueses e espanhóis no sul do Brasil e Paraguai coloniais.
244
Frei Vicente do SALVADOR. História do Brasil: 1500-1627, p. 184.
245
Sérgio Buarque de HOLANDA (coord.). História Geral da Civilização brasileira: Época colonial, t. I. v. 1:
do descobrimento à expansão territorial, p. 204.
246
Frei Vicente do SALVADOR. op. cit., p. 227.
74
missões volantes, a fundação de uma residência na Paraíba em 1590 que, no entanto, seria
abandonada um ano depois devido à insatisfação dos religiosos com a presença dos padres
da Ordem de S. Francisco na região. Os franciscanos iniciaram suas atividades missionárias
na Paraíba em 1589 dando início a uma série de hostilidades que marcaram a história das
relações entre as distintas Ordens na Colônia.
247
Com a chegada do novo governador-geral
Feliciano Coelho e Carvalho, o caso é levado a Felipe II de Espanha, que ordena a instauração
de um inquérito que atribui as responsabilidades da contenda aos jesuítas. Estes seriam
obrigados a deixar as missões indígenas da Paraíba, fator que permitiu aos franciscanos
estabelecerem o controle sobre estimadamente dezoito aldeamentos na região até o ano de
1619, momento em que resolvem abandonar o projeto por “causas particulares, violências dos
que governam, ambição dos principais, interesse dos rocos e emulação de religiosos de
outra Família, de que seguiam aos nossos, súditos e prelados, turbações, contendas, calúnias e
outros grandes e cotidianos incômodos”.
248
Consolidada a conquista do Nordeste brasileiro, as autoridades portuguesas começam
a cobiçar as terras situadas no norte da Colônia ainda no início do século XVII. No entanto, a
primeira expedição rumo à região localizada entre o Rio Grande e o Maranhão é realizada
através da iniciativa particular. A campanha organizada e chefiada pelo capitão português
Pero Coelho de Sousa - composta por 65 soldados e cerca de 200 índios flecheiros - partiu da
Paraíba no ano de 1603 em três barcos rumo ao rio Jaguaribe, local de onde a jornada seguiu a
pé. Em 1604, quando se encontrava nas proximidades da serra de Ibiapaba, a tropa de Pero
Coelho deparou-se com a resistência dos nativos da região, assim como de alguns franceses
remanescentes da expedição de Jacques Riffault que viviam entre o gentio desde o início da
década de 1590. Embora a aventura expansionista não encontrasse o seu final no evento
narrado acima, as constantes perdas causadas pelos conflitos e pelo cansaço somado a falta de
provisões, fariam com que Pero Coelho abandonasse o empreendimento anos depois.
249
O capitão português ainda não havia desistido de sua expedição quando em 1607, o
padre Provincial da Companhia, Fernão Cardim, atendendo aos pedidos do governador-geral
Diogo Botelho, envia dois religiosos à serra de Ibiapaba. A Relação escrita pelo padre Luiz
Figueira ao Geral Cláudio Aquaviva explica os motivos da missão:
247
Maiores detalhes sobre os conflitos, ver: Luiz Fernando Conde SANGENIS. Gênese do Pensamento Único
em Educação: Franciscanismo e jesuitismo na história da educação brasileira.
248
Frei Antônio de Santa Maria Jaboatão. Orbe Seráfico Novo Brasílico [1761] apud Luiz Fernando Conde
SANGENIS. op. cit., p. 66.
249
Frei Vicente do SALVADOR. História do Brasil: 1500-1627.
75
No mez de janeiro de 607 p. ordem de fernão Cardim provincial desta província
nos partimos pera a missão do Maranhão o padre francisco Pinto e eu obra de
sessenta Índios, intenção de pregar o evangelho a aquela desemperada
gentilidade, e fazermos q’ se lançassem da parte dos portugueses, deitando de si
os franceses corseiros qresidem pera q’ indo os portugueses como determinão
os não avexassem nem captivassem, e pera q’ esta nossa ida fosse sem sospeita de
engano pareceo bem ao padre provincial q’ não levassemos cõnosco portugueses e
assi nos partimos sós cõ aquelles sessenta Índios.
250
Considerados especialistas no papel de mediadores com os indígenas, os jesuítas
estavam encarregados de estabelecer alianças - política necessária para por fim a presença
francesa na região - e doutrinar os bravos tapuias” da serra de Ibiapaba, abrindo o caminho
para a futura chegada dos portugueses ao Maranhão. No entanto, após viverem
aproximadamente um ano no interior das matas do Ceará, a missão seria interrompida quando
os padres estabelecessem contato com os tarairiú, “pellos quais queríamos passar e lhes
tinhamos ja por duas vezes mãdado recados e presentes dando elles boas mostras que queriam
pazes, [...] e elles porem usando de sua acostumada brutalidade, nos matarão os mensageiros,
queimandoos vivos como costumão, reservãdo hu so q’ depois lhe servisse de guia para nos
virem matar a nos”.
251
O episódio que narra o ataque dos “tapuias” é descrito resumidamente
pelo padre Luiz Figueira em sua Relação:
[...] aos 11 de Janeiro de 1608, subitamente dão sobre elles estes barbaros, e
começão ás frechadas com os nossos com grande grita, e logo morreu um dos seus,
e outro foi ferido: e porque os inimigos entrarão pela parte onde estava a choupana
dos Padres a borda do mato, sahio á grita o padre Francisco Pinto, que neste tempo
estava dentro em casa resando suas Horas, e ainda que os nossos Indios, que os
Padres levavão, procuravão quanto podiam de o defender e amparar bradando aos
outros que estivessem quedos, que aquelle era o padre Abaré, que os queria
apasiguar e ensinar-lhes a boa vida; respondião que não tinham de ver com isso que
o avião de matar
Finalmente como os nossos eram poucos, e os inimigos mais, não ficou o Padre
mais que um só mui esforçado e valente homem que o foi amparando e defendendo
até morrer por elle, e, depois deste cahir, chegando ao Padre lhe deram tantas
pancadas com um páu na cabeça que lh’a fizerão em pedaços, quebrando-lho os
queixos, e arrancando-lhe as cachagens e olhos.
Neste tempo quis Nosso Senhor, para que ahi não acabassem ambos, que o Padre
Luiz Figueira andasse um pedaço afastado, ao qual logo correu um mocinho, e
tomando a dianteira lhe ia bradando: ‘apressa-te pai, apressa-te pai’ com o que lhe
fez advertir o Padre, pelo que logo se metteu por um mato onde esteve enquanto
durou a briga, e escapou com vida [...].
252
250
Relação do Maranhão, 1608, pelo jesuíta Padre Luiz Figueira enviada a Cláudio Aquaviva. In: Revista do
Instituto do Ceará, t. XVII, p. 97.
251
Id., p. 121.
252
Em sua retirada para o Rio Grande, realizada em meados de 1608, o inaciano ainda fundaria a aldeia de São
Lourenço nas proximidades do rio Ceará. In: Da missão que fizerão o padre Francisco Pinto e o padre Luiz
76
As bases para a colonização do Ceará foram definitivamente assentadas no ano de
1612, cabendo aos conquistadores portugueses darem o último passo rumo ao Maranhão,
tarefa muito tempo desejada para que se concretizasse a dilatação da ocupação lusa nos
territórios convencionados pelo Tratado de Tordesilhas.
253
A primeira expedição portuguesa contra os franceses do Maranhão foi realizada em
meados de 1613 e a vitória definitiva contra os colonos de São Luís seria alcançada nos
meses finais de 1615, momento em que chegam reforços enviados de Pernambuco. Tratava-se
da armada de Alexandre de Moura, na qual estavam presentes os padres Manuel Gomes e
Diogo Nunes, com cerca de 70 índios guerreiros das aldeias de Pernambuco.
254
Um ano
depois, tendo-se notícia do grande rio Amazonas, Alexandre de Moura manda ao
descobrimento dele Francisco Caldeira, ocasião em que é fundada a povoação de Santa Maria
de Belém - principal núcleo de povoamento português ao ocidente - consolidando o processo
de expansão pelo litoral norte iniciado em meados da década de 1580.
255
Os dois primeiros inacianos permaneceram visitando aldeias
256
e assistindo aos
colonos de São Luís a o ano de 1618, quando foram convocados a retornar para a
Congregação Provincial realizada na Bahia. Segundo uma carta enviada ao rei Felipe III de
Espanha pelo capitão Alexandre Moura,
[...] E em todo o tempo q’ estive se ocuparão os Padres em dar noticia de nossa
Santa fee ao Gentio, doutrinadoo catequizando e batizando cumprindo com suas
obrigaçoens na salvação das Almas assim dos Portugueses pregandolhe e
confessandoos, como pellos povos dos Indios levantavão cruzes e Igrejas e lhe
Figueira ao rio Maranhão. Revista do Instituto do Ceará, t. XVI, p. 253; Relação do Maranhão, 1608, pelo
jesuíta Padre Luiz Figueira enviada a Cláudio Aquaviva. Revista do Instituto do Ceará, t. XVII, p. 135-136.
253
A presença francesa na região data do final do século XVI, quando dois navios da esquadra do aventureiro
Jaques Riffault se perderam nos baixios da ilha batizada de Sant’Ana, sendo parte da tripulação largada em terra.
Entre os homens abandonados estava Charles des Vaux, posteriormente aprisionado pelo capitão-mor da Paraíba
e enviado de volta à França. No Velho Mundo, des Vaux passa a fazer propaganda das riquezas e vantagens em
se fundar uma colônia francesa no Maranhão. Impressionado por tais notícias, o rei Henrique IV de França, no
ano de 1610, ordena ao senhor de la Ravardière, Daniel de la Touche, que deixe de lado a idéia de conquistar
Caiena e verifique se as palavras de des Vaux são verdadeiras. Assim, a nova experiência colonial francesa em
terras brasileiras teria início no ano de 1612. Rodolfo GARCIA. Introdução. In: Claude d’ABBEVILLE.
História da missão dos padres capuchinhos na Ilha do Maranhão e terras circunvizinhas.
254
Frei Vicente do SALVADOR. História do Brasil: 1500-1627, p. 350; Carta de Alexandre de Moura a sua
Majestade, de Setuval, 20 de Outubro de 1620. In: Revista do Instituto do Ceará, t. XVI, p. 263-264.
255
João Felippe BETTENDORFF. Crônica da Missão dos Padres da Companhia de Jesus no Estado do
Maranhão [1699], p. 45.
Em 1621 surge o Estado Independente do Maranhão e Grão-Pará, formado pelas duas capitanias principais
representadas pelas cidades de S. Luís e Belém, além de outras capitanias menores, como por exemplo, Joannes,
Gurupá e Cametá.
256
Claude d’Abbevile fez um levantamento minucioso das aldeias existentes na Ilha Grande do Maranhão, assim
como daquelas localizadas em terra firme nas proximidades de São Luís, sendo a presença dos tupinambás
predominante em toda a região. Para maiores detalhes ver os capítulos XXXII, XXXIII e XXXIV da obra do
padre capuchinho.
77
faziam sua Pregaçoens e Missas cantadas com canto de orgao e charamellasq’ tudo
os Padres levavão exercitavãose nas obras de Mizericordia curando aos doentes
com muita caridade, e procederam os ditos Padres assim na Armada como na
tomada da Fortaleza [...] e nas cousas de Guerra ajudarão quanto sua Religião o
permite.
257
Cabe destacar que os primeiros religiosos portugueses a entrarem no Maranhão eram
da Ordem de S. Francisco, fato que mais tarde, a exemplo do ocorrido na Paraíba no final do
século XVI, seria responsável por gerar novas contendas entre jesuítas e franciscanos. Através
de uma carta régia enviada por Felipe III de Espanha, em 20 de junho de 1618, ficavam
confiadas aos franciscanos as missões indígenas no Maranhão e Grão-Pará, nomeação
confirmada através de um alvará expedido em 1622. No entanto, a leva de frades detentora de
plenos poderes concedidos pelas autoridades reais e eclesiásticas chegaria ao Maranhão
apenas em 1624 encontrando os padres jesuítas Luiz Figueira e Benedito Amodei, residentes
no território desde 1622.
258
O sobrevivente da missão de Ibiapaba seria o grande nome da
empresa missionária nessa primeira fase de atuação jesuítica na Amazônia portuguesa. Já em
1622, Figueira tomou posse de uma ermida consagrada pelos capuchos franceses a S.
Francisco de Assis ainda em 1612, e começou a dar início à construção do Colégio de Nossa
Senhora da Luz.
259
Aberta por volta de 1626, a escola destinada a ensinar aos filhos dos
portugueses seria fechada em 1649 devido à ausência de padres. Ainda em meados da década
de 1620, a Companhia recebia por doação a sua primeira de muitas fazendas administradas na
região.
O missionário foi ainda o responsável por abrir a série de peregrinações
catequizadoras através do rio Xingu.
260
Por ironia do destino, em meados da década de 1640,
quando Figueira retornava com cerca de uma dezena de jesuítas solicitados em Madrid para o
257
Carta de Alexandre de Moura a sua Majestade, de Setuval, 20 de Outubro de 1620. In: Revista do Instituto do
Ceará, t. XVI, p. 263-264.
258
Maiores detalhes, ver: Luiz Fernando Conde SANGENIS. Gênese do Pensamento Único em Educação:
Franciscanismo e jesuitismo na história da educação brasileira.
259
A primeira descrição do Colégio de São Luís encontrada na documentação pesquisada foi a que o padre
Antônio Vieira realizou quando chegou ao Maranhão, no ano de 1651. Segundo o inaciano, o colégio era
composto por um corredor, com quatro cubículos por baixo e seis por cima, dos quais um era livraria, outro
rouparia, outro botica, outro adega, outro tinha as coisas da sacristia, outro despejos de casa, com que apenas
ficavam quatro livres para morar e tomar exercícios, sendo às vezes dezasseis os que ali se ajuntavam, e não
havendo outro lugar em que receber as visitas dos seculares senão o mesmo corredor”. In: Serafim LEITE.
História da Companhia de Jesus no Brasil, t. III, p. 485.
260
João Felippe BETTENDORFF. Crônica da Missão dos Padres da Companhia de Jesus no Estado do
Maranhão [1699], p. 15.
78
apostolado na região, sua expedição naufragou nas proximidades de Belém caindo todos nas
mãos dos índios aruans, não escapando nenhum com vida.
261
ERRATA: Pernambuco (1551).
261
João Felippe BETTENDORFF. Crônica da Missão dos Padres da Companhia de Jesus no Estado do
Maranhão [1699], p. 16.
79
3.2. As missões indígenas nos relatos edificantes
Durante o período filipino, a Companhia de Jesus possuía membros dispersos pelas
diversas capitanias do Brasil, tendo inclusive alcançado, no início do século XVII, os
territórios limítrofes das regiões Sul e Norte da Colônia. No entanto, embora a expansão do
domínio colonial sobre o vasto território brasileiro potencializasse o apostolado realizado
pelos jesuítas junto aos nativos, percebemos que tais missões permaneciam atravessando um
difícil período histórico na Província. Reforça tal argumento o teor dos relatos encontrados
em algumas cartas edificantes escritas pelos inacianos durante a primeira metade do século
XVII.
Assim, tomemos como início de nossa análise a Relação do padre Jerónimo
Rodrigues descrevendo sua viagem realizada juntamente com seu superior, o padre João
Lobato, a “terra dos carijós”. Não fugindo à regra de nenhum outro relato edificante, o texto
de Rodrigues é permeado por inúmeras dificuldades encontradas durante a missão. Já no
primeiro parágrafo do manuscrito, Rodrigues evoca a memória dos jesuítas João de Sousa e
Pero Correia, “que indo-lhes pregar o Evangelho, foram mortos por eles, cujo sangue parece
estar até agora pedindo misericórdia [...]”.
262
Em seu relato, o inaciano descreve os passos da
viagem iniciada em março de 1605, priorizando os obstáculos encontrados nos distintos
territórios atravessados - Santos, Cananéia, Paranaguá - até alcançarem Laguna dos Patos em
agosto do mesmo ano.
263
Junto aos guaranis, após esboçar um sinal de alento e esperança, “dando muitas
graças ao Senhor e alevantando logo uma Cruz”, Rodrigues evoca as primeiras dificuldades
encontradas no trato com os indígenas. Assim,
Logo nos partimos, com estes poucos que vieram, e algum tanto enfadados, que
parece que a natureza estava adivinhando o que nos havia de suceder, ainda que os
índios mostravam alegrarem-se com a nossa vinda, mas toda sua alegria, segundo o
que depois soubemos e vimos, e assaz experimentamos, era por lhes parecer que
com nossa vinda haviam de ficar ricos e cheios de resgate.
264
Mais adiante no texto, o padre faz menção ao início pouco proveitoso dos trabalhos
de conversão realizados junto aos nativos.
262
Jerónimo Rodrigues. A Missão dos Carijós (1605-1607). In: Serafim LEITE. Novas Cartas Jesuíticas (de
Nóbrega a Vieira), p. 196.
263
Entre as dificuldades encontramos as variadas formas de investida do demônio; o desgaste físico - dores
corporais, frio, etc. -; a escassez de mantimentos e conseqüentemente a fome; os perigos na travessia na mata e
no mar, etc.
264
Jerónimo Rodrigues. A Missão dos Carijós (1605-1607). In: Serafim LEITE. op. cit., p. 213-14.
80
[...] começamos a fazer nossas doutrinas, às quais, como quer que, omnia nova
placent, acudiam bem, mas eram tão poucos, e tão mal avenidos, que causavam
pouco gosto. E desta maneira estivemos, passante de mês e meio, sem nos vir
recado das outras aldeias, aonde o Padre tinha mandado, por onde pareceu irmos
nós lá em pessoa [...].
265
Forçados a buscar novas searas de trabalho, os inacianos deslocam-se para as
proximidades do rio Ararungaba, “onde os brancos vão fazer seus resgates, e onde estavam os
principais índios com que havíamos de falar”.
266
Porém, mais uma vez o padre relata o
fracasso na tentativa de convencer os indígenas em permitir a fundação de missões na região,
forçando-os novamente a retornar para Laguna dos Patos.
Interessante citar a passagem em que Rodrigues expõe as dificuldades em doutrinar
as crianças, prática tida como estratégica pelos inacianos e vista por muitos estudiosos como
um meio privilegiado para a penetração da católica no seio dos grupos indígenas. Segundo
o jesuíta,
Mas dir-me-á alguém: _ E como não ensinavam algum menino?
[...] a experiência nos tem bem mostrado não se poder fazer nada com estes, em sua
terra, porque são criados com tanto mimo que diversas vezes os vir dar nos pais e
nas mãis [...]. E porque uma vez disse a um menino, na Igreja, que estava inquieto,
que se mudasse para a outra parte, e o obrigar de palavra somente, a que fosse,
fugiu pela porta da Igreja [...] dizendo:
_ Não quero lá ir que pelejará o padre comigo.
E outra menina, por se não querer benzer, nem falar palavra ao que ensinavam,
pelejei de palavra com ela, um seu tio lhe disse:
_ Não tornas mais à Igreja.
[...] Os meninos de cinco, seis anos, e daí por diante, bailam e bebem com os
índios, de dia e de noite, e seus pais revêm-se nisso; e às vezes dormem por onde
querem seus pais saberem parte disso. E em tudo fazem sua vontade, e se os
mandávamos a algum recado, diziam que tinham preguiça, e não iam, e, se iam,
não tornavam. E o mesmo fazem os grandes que claramente diziam: tenho
preguiça, não quero.
267
Após permanecer cerca de dois anos em território indígena concluía Rodrigues: “E
com tal gente não se pode fazer nada. E mais gente que, quando cuidáveis que estavam na
Aldeia, estavam daí a muitas léguas, e vinham à doutrina se queriam vir, e se não, zombavam
de nós, o que não fizeram, se tiveram algum medo, e se nós tivéramos força, com que os
tomar”.
268
265
Jerónimo Rodrigues, A Missão dos Carijós (1605-1607). In: Serafim LEITE. Novas Cartas Jesuíticas (de
Nóbrega a Vieira), p. 221.
266
Id., p. 221.
267
Id., p. 226.
268
Id., p. 227.
81
Derrotados em seu intuito de tornar os carijós “filhos de Deus”, os inacianos
evocariam a necessidade de colocar em prática o “plano civilizador” elaborado por Manuel da
Nóbrega em meados do século XVI, sendo a sujeição o único modo de conduzir os nativos à
Igreja.
Semelhante aos escritos de Jerónimo Rodrigues é a Relação do Maranhão, escrita
pelo padre Luiz Figueira no ano de 1608. Apontados os resultados de tal expedição no tópico
anterior - que culminou no martírio do padre Francisco Pinto - vejamos mais alguns eventos
ocorridos nessa “entrada”.
Tendo como objetivo alcançar a serra de Ibiapaba, os jesuítas estabeleceriam um
primeiro contato com o gentio na região denominada “pará q’ he hua muy fermosa e quieta
enseada que dista de jagoaribe trinta e cinco legoas pouco mais ou menos em a qual entrão
três a quatro riachos de Agoa doce e outro rio caudal por hu espraiado muy aprasivel [...].
269
Segundo o padre Figueira,
[...] aqui achamos aposentados os índios q’ proximamente tinhão fogido aos
portugueses cujo principal se chama acajuy, hum sobrinho do qual trazíamos em
nossa companhia e outros parentes dos seus. Estes pobres nos receberão como
vindos do céo [...] logo nesse comenos nos fizerão hua choupana de palma q’
tinhão colhido por terem noticia de nossa vinda moços dandonos com grandes
festas erejupe que he o seu modo de dar as boas vindas [...]. Depois de
descansarmos nos troxerão alguns presentes de peixe [...]. Os índios q’ aquy
achamos serião p. todos 50 ou 60 almas ficarão com intento de ajuntarem algumas
relíquias dos seus q’ adão espalhados p. esses matos pera o qual nos pedirão lhe
levantássemos hua cruz, o q’ fizemos co gosto p. q’ á sombra desta arvore p.
entretanto se venhão ajuntar estas avesinhas amedrentadas dos gaviões e aves de
rapina pera q’ depois de juntos todos se viessem pera a Igreja como prometerão
pellos certificarmos da liberdade q’ sua majestade lhes dava.
270
O trecho acima é interessante por nos permitir vislumbrar características importantes
do encontro cultural entre índios e missionários no início do século XVII. Em um primeiro
momento, embora seja crível que os indígenas realmente fossem fugidos dos colonizadores e,
portanto, tivessem estabelecido alguma forma de contato com a civilização européia, fica
claro que as formas culturais tradicionais indígenas abarcam o evento da chegada dos padres,
fazendo com que os nativos não enxergassem os religiosos como missionários cristãos
portadores da “revelação e da verdade”, mas sim, como karaíbas, os “xamãs-profetas” que
prometiam a vida eterna, as curas das enfermidades, a abundância e vitórias sobre os
269
Relação do Maranhão, 1608, pelo jesuíta Padre Luiz Figueira enviada a Cláudio Aquaviva. In: Revista do
Instituto do Ceará, t. XVII, p. 101.
270
Id., p. 102.
82
inimigos.
271
Daí o fato de serem recebidos pelos nativos com inúmeras cortesias, dentre
algumas citadas, os cânticos de boas vindas, as doações de alimentos e a construção de uma
choupana. Além disso, como demonstrado por Maria Regina Celestino de Almeida, os
indígenas aldeados não se diluíam nas categorias genéricas de escravos ou despossuídos da
Colônia. Na condição jurídica de aldeados, os nativos de diversas etnias assumiam uma nova
posição na rígida hierarquia do Antigo Regime, responsável por lhes impor duras obrigações,
mas que também lhes atribuíam direitos e mercês. Nesse sentido, podemos perceber que o
interesse dos indígenas em permitir que se levantasse uma cruz em seus domínios poderia
garantir a todo o grupo algum tipo de proteção em relação às investidas de colonizadores
ávidos pela mão-de-obra indígena.
272
Os inacianos não desistiriam de sua missão e seguindo viagem alcançariam a serra
dos Corvos, onde “parece que se juntarão todas as pragas do Brasil, innumeraveis cobras e
aranhas a q’ chamam caranguejeiras, peçonhentissima de cuja mordedura se diz q’ morrem os
homens, carrapatos sem conta, mosquitos e moscas q’ magoão estranhamente e ferem como
lancetas [...].
273
Daí ter afirmado o padre que “nunca nestes caminhos me lembrarão os
collegios com saudades delles senão nestes santos dias por carecer da vista de tanta devoção
como nelles há; mas isto mesmo por outra parte me consolava vendo q’ carecia de tanto bem
por serviço daquelle Senhor q’ he o autor de todo elle”.
274
Seria realmente a devoção o único
motivo de ter feito o inaciano lembrar-se dos colégios? O certo é que Figueira deixava uma
forte mensagem afirmando a necessidade de se fazer missão na Colônia.
Após enterrar os restos mortais do companheiro Francisco Pinto e não alcançar
nenhum êxito na conversão dos indígenas, Luiz Figueira aponta o fracasso da missão: “Aqui
se rematarão e coroarão tãtos trabalhos passados do santo padre com esta ditosa morte cujo
intento era fazer muitas ygrejas no sertão do maranhão e converter as Almazonas, cortoulhe
Deus o fio p. q’ não era chegada ainda a hora”.
275
271
Eduardo VIVEIROS DE CASTRO. O mármore e a murta: sobre a inconstância da alma selvagem. In: _____.
A inconstância da Alma Selvagem: e outros ensaios de antropologia; Alfred MÉTRAUX. O feiticeiro. In:
_____. A Religião dos Tupinambás. Coroa tal fenômeno o fato dos ossos do padre Pinto terem se tornado objeto
de culto entre os indígenas da região, devido ao “poder” de provocar chuvas. Para maiores detalhes, ver o
subtítulo “Leituras e traduções”. In: Cristina POMPA. Religião como Tradução: missionários, Tupi e Tapuia no
Brasil colonial, p. 149-163.
272
Maria Regina Celestino de ALMEIDA. Metamorfoses Indígenas: Identidade e cultura nas aldeias coloniais
do Rio de Janeiro.
273
Relação do Maranhão, 1608, pelo jesuíta Padre Luiz Figueira enviada a Cláudio Aquaviva. In: Revista do
Instituto do Ceará, t. XVII, p. 103.
274
Id., p. 104.
275
Id., p. 125.
83
Por fim, a Relação escrita pelo padre Jácome Monteiro também não fica isenta de
apresentar uma visão pessimista em relação à possibilidade se obter êxito nos trabalhos
realizados junto aos nativos brasileiros. Além das informações referentes às atividades
realizadas no interior dos aldeamentos da Companhia de Jesus - alvo do estudo apresentado
no segundo capítulo - o secretário do terceiro padre Visitador da Província expõe suas
impressões sobre alguns grupos indígenas. Segundo o jesuíta,
É o Sertão desta Piratininga povoado de muitas e mui várias nações de gentio, dos
quais são os Moromomins, e destes a menor parte se vieram a Igreja. No viver são
mui semelhantes aos Aimurés, porque sua habitação não é certa, sustentam-se de
caça, frutos do mato, não prantam mandioca, nem outro algum legume à guisa do
mais gentio, dormem no chão sobre ramos ou ervas, falam com muita pressa [...]. A
linguagem de que usam é mui dificultosa; não entendê-los. Valem-se os Nossos
de interpretes, e cedo Deus querendo o escusarão, porque temos um padre por
nome de Sebastião Gomes, que os vai entendendo com imenso trabalho e
diligencia que tem posto nesta empresa.
Além destes, temos notícia de outros a que chamam os Bilreiros, por trazerem nas
mãos uns paus roliços a modo de bilros, com os quais guerreiam com tanta
destreza, como com espingardas, e são tão certos no tiro que raramente erram, e
com tal força despendem o pau que até os ossos moem com a pancada [...] e
naquela conjunção que estivemos em Piratininga tinha sucedido matarem eles uns
poucos de brancos por esta arte.
276
Embora seja crível pensar que Monteiro expressasse em seu relato um elevado grau
de dificuldade em se fazer missões nos sertões próximos à capitania de São Vicente -
ocupados pelo mais “bárbaro” gentio - no intuito de valorizar os feitos da Companhia no
ultramar, podemos considerar que se tratava de um olhar pessimista em relação ao futuro das
missões indígenas na Província, uma vez que ele havia se tornado um crítico ferrenho do
projeto de conversão na Colônia.
Em relação à situação da capitania de Porto Seguro, Monteiro descreve:
Está a Capitania mui acabada por respeito dos Aimures, que anos a infestam.
Agora ultimamente, este ano de 609, alevantando-se os Tupinaquis e não há muitos
anos eram doutrinados pelos nossos, deram na Vila e destruíram, matando muita
gente portuguesa, fica em paz por meio de dous Padres nossos, que lá mandou o P.
Visitador, que enfim, o Brasil sem a Companhia montará pouco se o
desempararmos.
277
276
P. Jácome MONTEIRO. Relação da Província do Brasil, 1610. In: Serafim LEITE. História da Companhia
de Jesus no Brasil, t. VIII, Apêndice, p. 360.
277
Id., p. 363.
84
O exemplo citado acima mais uma vez remete à interpretação proposta no parágrafo
anterior: ao mesmo tempo em que exalta a importância da Companhia de Jesus em terras
brasileiras, aponta a ineficácia das conversões e a inconstância dos selvagens.
Em uma hijuela, escrita pelo padre António de Matos do Colégio do Rio de Janeiro
no ano de 1619, podemos ter uma idéia mais clara sobre a situação do projeto de conversão
dos indígenas em terras brasileiras. Após descrever minuciosamente o fracasso da missão
realizada pelos padres Jo de Almeida e João Fernandes junto aos carijós no ano de 1617, e
as dificuldades encontradas pelos pelo padre João Lobato e o irmão Gaspar Fernandes junto
aos goitacazes em território situado entre as capitanias do Rio de Janeiro e do Espírito Santo,
justifica o inaciano:
Quis apontar estas poucas couzas, em particular das occupaçons em que nos
occupamos com o próximo nesta Provincia do Brazil, e Collegio do Rio, e
anteponho estas por serem frescas, e estarem ainda agora in fieri ou se acabarem de
fazer neste mesmo mês de Março de 619 em q’ faço estes apõtamentos e senão
forem tantas as que nesta província se fazem com o Gentio, quantas em outras
províncias transmarinhas, a rezão disto podem dar os q’ entendem q’ nem todas as
matérias se lavrão com igual facilidade. [...] não ha duvida, q’ algumas nasções ha
q’ para as couzas de nossa sancta fee, e da salvação são como cera,
imprimindoselhes milhor por rezão de seu natural e melhor capacidade q’ tam
chegada he a a doutrina evangélica e rezão. Outras respodem á madeira por ser
necessária pera com dias maior força. Outras sam semelhantes a duros mármores; e
tomáramos os q’ nesta Provincia trabalhamos encontrar com estes mármores
todas as vezes q’ o dezejavamos lavrar. Mas pera os achar he necessário andar mui
compridos caminhos e por costas bravas, e por mattos speços, e por serras fragozas,
com tudo não damos elles como desejamos, e muitas vezes de os descubrir
encontramos outros impedimentos, q’ allem da dureza da matéria nos impedem
a obra totalmente, como se pode claramente ver nos exemplos frescos q’ atrás ficão
apontados, na missão que o Padre João Fernandes e o Padre João dAlmeida fizerão
aos Carijós, Arachans e Guayanazes.
278
Como mencionado no primeiro capítulo, ao contrário das hijuelas - destinadas a
descrever os problemas internos da Ordem - as cartas edificantes tinham como principal
objetivo exaltar os feitos da Companhia de Jesus nos distintos territórios em que esta se
mostrava atuante. Escritos com a intenção de alcançarem uma ampla circulação, tais relatos
buscavam fomentar a boa imagem do Instituto auxiliando-o na conquista de mercês junto aos
poderosos da época, assim como na cooptação de novos membros para a Ordem. No entanto,
embora tal nero de correspondência fosse um instrumento hábil para alcançartais objetivos,
podemos questionar a capacidade de tais missivas, quando lidas nos refeitórios dos colégios,
278
Informação do Colégio do Rio de Janeiro pelo P. António de Matos, 1619. In: Serafim LEITE. História da
Companhia de Jesus no Brasil, t. V, Apêndice A, p. 622.
85
estimularem o “espírito missionário” dos noviços. Ao contrário do esperado, é plausível que o
contato com notícias relatando as inúmeras dificuldades encontradas pelos jesuítas em missão
- junto a índios “bestializados” nas brenhas dos sertões
279
- acabasse por abalar o “ideal
missionário” de religiosos acostumados ao estilo de vida encontrado nos estabelecimentos de
ensino da Ordem, contribuindo, desta forma, com a crise de vocação vivenciada na Colônia
no tempo dos Felipes.
3.3. Missões urbanas
De maneira contrária à situação vivenciada pelas missões indígenas na Província, a
documentação produzida pelos membros da Ordem no Brasil nos permite perceber que os
ministérios praticados pelos jesuítas junto à população estabelecida nos núcleos citadinos
280
assumiam, no século XVII, um papel cada vez mais importante dentre as atividades realizadas
pelos religiosos na Colônia. Neste sentido, vejamos primeiramente alguns trechos de uma
carta enviada do Colégio da Bahia pelo Provincial Henrique Gomes ao padre Assistente em
Roma, Antônio Mascarenhas, no ano de 1614. Publicada na íntegra por Serafim Leite, que a
considerou “notável, não sob o aspecto noticioso, histórico e social, mas também por
alguns passos de beleza literária objetiva e direta”, a missiva foi recentemente objeto de uma
valiosa análise feita por Charlotte de Castelnau-L’Estoile. Em sua abordagem, a historiadora
demonstra que um dos principais objetivos da correspondência era relatar ao centro
hierárquico da Ordem em Roma que os conflitos envolvendo a Companhia de Jesus e algumas
autoridades civis e políticas na Colônia, após a promulgação da “lei de liberdade de 1611”,
haviam sido solucionados.
281
Além disso, Castelnau-L’Estoile chama atenção para o fato de o
inaciano evocar uma imagem de esterilidade da terra, relacionada à dificuldade em se alcançar
279
De acordo com o relato de Jerónimo Rodrigues, podemos observar que nem mesmo os carijós, vistos por
muito tempo entre os jesuítas como o “melhor gentio da terra”, ficavam isentos de uma descrição depreciativa.
Dentre os diversos aspectos pejorativos apontados pelo jesuíta com pertencentes ao modo de vida e cultura
guarani estão: o convívio constante com diversos insetos, tais como pulgas e piolhos; a falta de limpeza em
geral, pois “na própria fonte, donde bebem, lavam os pés, lavam peixe e as redes”; a poligamia e a nudez; o fato
de serem considerados extremamente supersticiosos, preguiçosos e cobiçosos, etc.
280
Ver anexos VI e VII, p. 111-112.
281
Charlotte de CASTELNAU-L’ESTOILE. Operários de uma vinha estéril: Os jesuítas e a conversão dos
índios no Brasil (1580-1620), p. 350.
O evento que simboliza a reconciliação é uma festa realizada pelos indígenas da aldeia do Espírito Santo
assistida por diversas autoridades da Colônia.
86
a conversão dos nativos, o que justifica o silêncio da Província sobre o seu trabalho.
282
Eis o
trecho ao qual se refere o estudo da historiadora:
Consola-nos Vossa Reverência com o fruto, que se colhe das doutrinas novamente
introduzidas nessa Cidade e disciplinas da quaresma, etc. Não me atrevo a igualar a
Baía com Roma, nem a seara pode responder com igual novidade, onde é tão
desigual a quantidade do grão que se semeia; mas darei em esta a Vossa
Reverência satisfação em parte, à justa queixa que desta Província, em ser tão
escassa de comunicar por cartas as mercês que o Senhor tão liberalmente lhe faz,
dando-lhes ocasiões de tanto maior serviço e glória sua, quanto são menores os
lustres exteriores de quem lhas veste, no que julgo ser tanto mais digno de estima, e
conseguintemente de não ficar em silêncio seu trabalho, quanto é mais estéril a
terra, em que se empregam, e mais sêca a cruz, árvore donde colhe tão copiosos
frutos, e tão agradáveis ao céu. Mas é mal seu, tão antigo como ela nem para o
desculpar, nem para o desculpar acho desculpa mais que descuido, salvo uma
pequena de pulsilanimidade, nascida de não poderem aparecer a suas coisas com os
faustos, que o primor da Índia, Japão, China e outras partes, dá as suas; mas, como
disse, por isso são mais nossas estas nossas.
283
No entanto, um fragmento da carta não abordado por Castelnau-L’Estoile mostra que
nem tudo na Colônia estava perdido, pois, diferentemente da “esterilidade da vinha” indígena,
muitos “frutos” estavam sendo colhidos entre os colonos.
[...] apontarei brevemente algumas coisas das que achei na última visita, que fiz em
o Colégio de Pernambuco e neste da Bahia [...].
E começando pela nova Confraria dos Oficiais Mecânicos, que pouco se
instituiu em este Colégio e no de Pernambuco, em ambos teve bons princípios e vai
com igual aumento [...]. A de Pernambuco, me escreveram agora, ir muito florente
e passarem os confrades já de cento; aqui, são mais de 80 [...].
Não é menos o fervor que se enxerga em as doutrinas, as quais se fazem todos os
domingos à tarde na nossa Igreja, depois de o Padre, que as tem a cargo, ir pelas
ruas com os mestres e estudantes, ajuntando quantos podem; [...] e se enche a
Igreja como para qualquer pregação. Na mesma forma correm em Pernambuco,
salvo o variarem-se por diversas Igrejas, por estar a povoação da vila mais
espalhada que a desta cidade [...].
Além disso têm os pregadores bem que fazer em acudir às muitas pregações, que se
nos pedem, não para dentro da Cidade e ainda dos conventos em suas festas
principais, senão também para fora, porque as mais das que se fazem em todo o
Recôncavo da Baía a nós se pedem. Viu-se particularmente esta freqüência este
ano, tempo em que o Senhor nos visitou com um castigo ou castigos, que deu a esta
terra.
[...] Coube aos nossos grande parte de tudo quanto se fez, não menos em
penitências e outras devoções, que em as pregações e particulares amoestações,
com que a todos exercitavam e principalmente a que tirassem a causa do mal, que
eram pecados, de que se não colheu pouco fruto.
284
282
Charlotte de CASTELNAU-L’ESTOILE. Operários de uma vinha estéril: Os jesuítas e a conversão dos índios
no Brasil (1580-1620), p. 352.
283
In: Serafim LEITE. História da Companhia de Jesus no Brasil, t. V, p. 189.
284
Ibid., t. V, p. 189-190.
87
A diferenciação surgida no interior da Ordem se tornava cada vez mais presente na
Província, refletindo diretamente sobre os trabalhos realizados pelos membros do Instituto no
Brasil. Com base em uma Informação anônima escrita do Colégio de Olinda entre os anos de
1615-1618, podemos perceber melhor a ocupação/distribuição dos inacianos pelo amplo
território da capitania. Assim,
No Colégio há 42 sujeitos; 21 sacerdotes e outros 21 não-sacerdotes que se ocupam
da seguinte maneira: dois foram enviados no ano de 1615 em missão ao Maranhão,
os quais exercitaram os ministérios com índios e portugueses. Outros dois
continuam em missão no Rio Grande do Norte. 12 (sendo 6 sacerdotes) religiosos
se ocupam com 7 ou 8.000 índios, repartidos em 5 aldeias, nesta capitania e em
Itamaracá. Sua ocupação é de cura das almas, administrando-lhes os Sacramentos
do Baptismo, Penitência, Comunhão, Matrimónio e Extrema-Unção, e ensinando-
lhes a todos a doutrina, todos os dias, duas vezes: e aos filhos ler e escrever, canto
de órgão, charamelas, frautas e outras coisas a que eles se afeiçoam [...].
285
Segundo o relato, cerca de 1/3 dos inacianos ligados ao Colégio de Olinda estava
ocupado com missões indígenas. Cabe destacar que a capitania de Pernambuco foi durante
toda a primeira metade do século XVII a detentora do maior número de aldeamentos da
Província, provavelmente em decorrência das conquistas e ocupações de territórios realizados
pelas tropas portuguesas em toda a costa norte do Brasil, processo que conseqüentemente
potencializava a expansão missionária.
Ainda segundo o documento,
Dos 28 que residem no Colégio, os 7 estão aposentados por muita sua idade, e por
outros achaques; e assim não ajudam, antes são ajudados dos outros. Dos 21, os 9
são sacerdotes, dos quais se tira o Reitor e o Ministro, que têm bem que fazer no
governo da Casa; 4 são pregadores, prefeitos dos estudantes, das Confrarias da Paz
e das Virgens, e visitador das Aldeias, e confessam quando necessário; 3 são
confessores ordinários e acodem aos presos, hospital, e pobres e enfermos. E
finalmente uns se ocupam como os mais da Companhia em Europa. Fazem missões
pelo contorno da Capitania e socorrem os da Aldeia quando é necessário. Dos 12
que não são sacerdotes, um serve de procurador, dois de mestres de latim e de ler e
contar, cinco estudam Humanidade e a língua do Brasil [...]. Os mais são
coadjutores temporais e fazem os ofícios de casa e acompanham aos Sacerdotes
quando vão afora. Também se ensina a doutrina aos escravos, na Igreja e pela vila,
e aos meninos estudantes.
286
Dentre o restante de jesuítas residentes no Colégio de Olinda, uma parte se ocupava
em prestar assistência à população citadina, outra dedicava-se exclusivamente aos estudos,
285
In: Serafim LEITE. História da Companhia de Jesus no Brasil, t. V, p. 303.
286
Ibid., t. V, p. 303.
88
enquanto um terceiro grupo havia se aposentado. No Colégio do Rio de Janeiro a situação
não se revela muito distinta. Segundo uma Informação escrita no ano de 1619 pelo padre
António de Matos,
[...] [N]este Coll.° do Rio de Janer.° nele como tambem em todos os Collegios
de nossa Companhia tres differenças de religiosos, hu[n]s occupados das portas a
dentro nos oficios que pertencem, ao maneo de hua casa bem ordenada; qual he
qualquer convento religioso, hu[n]s occupados da porta afora noutras obras
diversas a que se pode estender o saber e abelidade de cada hu[m] como he ajudar
os procuradores a ter cuidado das fazendas do Coll.° acompanhar os Padres quando
vão afora e outros semilhantes. Os estudantes se occupão em seu estudo da lingoa
latina, e tambem em apre[n]der a lingoa Brasilica, porq dambas tem necessidade
para exercitarem os ministerios, q os sacerdotes da nossa Companhia tem a seu
cargo nesta provincia.
287
Ao descrever as atividades realizadas pelos religiosos do Colégio do Rio de Janeiro,
o inaciano “mal esbarra” na questão da catequese indígena, apontando que a preocupação dos
escolásticos estava voltada para a realização de estudos, assim como para a administração dos
negócios da Companhia na Província.
288
Além disso, António de Matos complementa:
Conforme a isto os nossos religiosos sacerdotes se occupão em pregar, confessar, e
ensinar a doctrina Christian pellas ruas, e Igrejas da Cidade, em visitar o carcere,
ajudando os presos alem das confissoens com palavras de consolação com esmola,
e com sua intercessão diante dos officiais da justiça. Pello mesmo modo visitão o
hospital.
289
Por fim, é preciso destacar que as atividades realizadas pelos inacianos junto as suas
casas professas na América portuguesa eram semelhantes às desempenhadas em seus
colégios. Um exemplo disso pôde ser visto no segundo capítulo, quando mencionamos o fato
de os jesuítas de São Vicente priorizarem a assistência aos colonos das vilas da capitania já no
início do período referente à União Ibérica. Avançando um pouco no tempo temos outro
exemplo que demonstra a importância da presença desses religiosos nos povoados da Colônia.
Porto Seguro contava com uma residência dos padres da Companhia desde a chegada
dos primeiros jesuítas ao Brasil, em meados do século XVI. No entanto, devido aos
constantes ataques dos aimorés, a vila ficaria praticamente despovoada sendo a casa dos
inacianos abandonada no início do século XVII. Embora os jesuítas mantivessem a prática de
287
Informação do Colégio do Rio de Janeiro pelo P. António de Matos, 1619. In: Serafim LEITE. História da
Companhia de Jesus no Brasil, t. V, Apêndice A, p. 621.
288
Ver anexo VIII, p. 113.
289
Informação do Colégio do Rio de Janeiro pelo P. António de Matos, 1619. In: Serafim LEITE. op. cit., t. V,
Apêndice A, p. 621
89
missões periódicas junto aos habitantes da capitania, os colonos mostravam-se insatisfeitos.
Assim, em 20 de julho de 1620, a “população” escrevia ao padre Geral solicitando que a
antiga residência fosse reaberta.
Nós, o Padre Vigário e o Ouvidor da Vara Francisco Borges de Oliveira, o Capitão-
mor Manuel de Miranda Barbosa, o Ouvidor Pedro Neto de Pina, o Procurador da
Fazenda Frutuoso Cerveira, e os mais oficiais da Câmara desta Vila, o Procurador
do Povo, e todos juntos, em conformidade, visto o grande desamparo que temos de
que nos ensine a nossos filhos a doutrina cristã e nos pregue o Evangelho Sagrado
pelo discurso do ano, e juntamente aos Índios desta Capitania por falta de
Religiosos [...]. Pelo que todos pedimos a Vossa Paternidade, de todo o coração,
por amor de Nosso Senhor e Sua Mãe Santíssima, nos queira conceder virem os
Reverendos Padres da Companhia de Jesus a esta Vila de Porto Seguro, de assento,
e nós nos obrigamos por esta a lhes fazer Casa e Igreja, onde pousem muito a seu
gosto, em o sítio que eles escolherem, dando para isso nossas esmolas, conforme a
possibilidade e cada um, e os sustentaremos com nossas esmolas o melhor que
pudermos [...].
290
Após apresentarem dois motivos que justificassem a necessidade da presença
permanente de membros da Companhia de Jesus na capitania - educação dos filhos dos
portugueses e catequese indígena -, e se comprometerem com o provimento desses religiosos
na vila, os colonos alcançariam o desejado. No entanto, como descrito pelo padre Mateus de
Aguiar em sua Relação, se “aos 4 de Fevereiro [de 1622] abrimos escola aos moços e
chegaram a trinta e quatro”, faltavam outros dois companheiros pelos quais esperamos na
torna-viagem da barca, porquanto os mando pedir ao Padre Reitor, porque sem eles não
podemos acudir às necessidades das Aldeias [...]”.
291
O exemplo acima mais uma vez demonstra que a assistência aos colonos tornava-se
prioridade para os jesuítas, ficando o trabalho junto aos indígenas em segundo plano. Segundo
as informações disponíveis na carta Ânua de Antônio Vieira, a distribuição dos missionários
pela Colônia encontrava-se da seguinte maneira em 1626:
Sustenta esta província do Brasil, pouco mais ou menos, 120 padres da Companhia:
90 sacerdotes, dos quais 31 são professos de quatro votos, de três solenes, 2,
coadjutores espirituais formados, 20; 62 estudantes; coadjutores 50, e destes, 30
formados. Estes todos divididos em três colégios, seis casas, e treze aldeias anexas
às mesmas casas e colégios. No Colégio da Bahia residem comumente, 80; no de
Pernambuco, 40; 35 no do Rio de Janeiro; na Residência do Espírito Santo, 12; na
de Santos, 5; na de S. Paulo, 7; na Casa dos Ilhéus, 4; em Porto Seguro, 4; e 4 no
290
In: Serafim LEITE. História da Companhia de Jesus no Brasil, t. V, p. 263.
291
Ibid., p. 264-265.
90
Maranhão. Todos eles se ocupam em procurar de alcançar a salvação e perfeição
própria e das almas, que é o fim da nossa Companhia.
292
De acordo com as Constituições jesuíticas, “Quatro são as categorias de pessoas que
nesta Companhia de Jesus, considerada no seu todo, se admitem”: Os professos de quatro
votos; os coadjutores espirituais (padres) ou temporais formados (irmãos), ou seja, ligados à
Ordem através dos três votos simples; os escolásticos, indivíduos “compromissados” a
entrarem para o Instituto; e, por fim, o noviciado. Além das quatro categorias, a Companhia
admite alguns à profissão solene de três votos.
293
Antônio Vieira informa que 50
coadjutores (escolásticos), sendo 30 deles formados, ou seja, tinham sido recebidos como
coadjutores temporais (enfermeiros, cozinheiros, marceneiros, etc.). O número de indivíduos
que haviam emitido os últimos votos soma 53, e, mesmo se considerarmos que os 20
escolásticos que ainda não haviam proferido os últimos votos exercessem seus “ofícios”
como sacerdotes, não encontramos o total de 90 padres contabilizado pelo jesuíta.
Considerando um número médio de 3 jesuítas por aldeia,
294
encontramos cerca de 40
membros do Instituto ligados aos trabalhos de catequese indígena, o que não representa 50%
do total de religiosos na Província.
O envolvimento com atividades pedagógicas e/ou apostólicas junto aos colonos
situados nos principais núcleos citadinos da Província requeria um número cada vez maior de
inacianos nos arredores de seus colégios e casas professas na Colônia. Como demonstrado por
Vieira, a Companhia de Jesus contava no ano de 1626 com um total de 62 noviços, número
que seria reforçado a partir de 1631 com a elevação da Casa de São Paulo ao status de
Collegium inchoatum - o que lhe conferia personalidade jurídica independente do Colégio do
Rio de Janeiro ao qual até então estava subordinada. Nove anos mais tarde, o Colégio de São
Paulo possuía duas classes, uma de Português, com 100 alunos, e outra de Latinidade,
somando 50 alunos, onde se liam (citam-se expressamente estes autores) Cícero, Virgílio e
Ovídio.
295
292
Carta Ânua ao Geral da Companhia de Jesus [30 de setembro de 1626]. In: Padre Antônio VIEIRA. Cartas do
Brasil, p. 77.
293
Ver: Constituições da Companhia de Jesus, p. 47 e Normas Complementares, p. 235.
294
Como demonstrado em algumas passagens de nosso estudo, embora o centro da Ordem em Roma exigisse
o número mínimo de quatro religiosos por aldeamento, tal cota dificilmente era cumprida na Província. Mais um
exemplo de tal desvio pode ser constatado com base em um trecho do Catálogo de 1631, que informa a presença
de apenas 12 religiosos nas 5 aldeias ligadas ao Colégio de Olinda. In: Serafim LEITE. História da Companhia
de Jesus no Brasil, t. V. p. 320.
295
Serafim LEITE. op .cit., t. VI, p. 556.
91
3.4. Capítulos da Guerra do Brasil
O período inicial das invasões holandesas
296
no Brasil, restrito à ocupação das
capitanias do Nordeste, marca outro momento importante da história dos jesuítas na Colônia.
A Companhia de Jesus, a exemplo da região, que neste contexto constituía uma das maiores e
mais ricas zonas produtoras de açúcar do mundo, concentrava a maior parte de seus membros
nos colégios da Bahia e de Pernambuco, detendo, além disso, a administração de fazendas e
engenhos, assim como de importantes aldeamentos indígenas.
Desta forma, se por um lado os documentos demonstram uma ativa participação dos
inacianos na luta contra os invasores da Companhia das Índias Ocidentais, por outro lado,
através dos mesmos, será possível detectar outros aspectos importantes que compõem a
história da Ordem de Inácio de Loyola durante este período peculiar de nossa história
colonial. Como apontado por Oswald de Andrade, a guerra holandesa significou um conflito
de duas concepções de vida, a da Reforma e da Contra-Reforma.
297
Os judeus, julgando-se povo eleito, detentor exclusivo dos favores de Deus,
criaram o racismo. Os árabes, povo exogâmico, aberto para as novas aventuras no
mar e para o contato exterior, criaram a miscigenação. [...] Aqueles deram
longinquamente a Reforma, estes a Contra-Reforma. Aqueles produziriam Lutero e
Calvino, enquanto estes, os jesuítas, que foram feridos pelo Vaticano na sua
plasticidade política, filha da miscigenação da cultura que adotavam.
298
Ainda segundo Oswald de Andrade, o sucesso no conflito, tipicamente brasílico, foi
fruto da ação tomada pelos inacianos, principais responsáveis pelo incitamento de colonos,
negros e indígenas contra os invasores. Analisando alguns documentos deixados pelos padres
296
Ronaldo Vainfas aponta a imprecisão das fontes em chamar de holandeses todos os habitantes das províncias
calvinistas dos Países Baixos, que também abrigavam zelandeses, guelridos, frísios, etc. Outra imprecisão é
tratar holandeses e flamengos como sinônimos, pois “flamengo é termo alusivo aos povos e à língua da Flandres,
região que, grosso modo, corresponde ao norte da atual Bélgica e se confunde com o Brabante, onde se
localizam as cidades de Antuérpia e Bruxelas”. Por fim, o autor expõe que para contornar tais imprecisões, a
bibliografia recente tem recorrido ao termo neerlandeses, no lugar de holandeses, para se referir aos naturais da
Neerlândia, isto é, dos Países Baixos, englobando todos, ou ao termo batavos para aludir aos naturais da
província da Holanda, em particular, pois Batávia era o nome latino da Holanda. Assim, como sugerido pelo
historiador, embora impreciso, adoto o termo holandês ao longo de minha narrativa no intuito de não causar
maiores confusões. In: Ronaldo VAINFAS. Traição: um jesuíta a serviço do Brasil holandês processado pela
Inquisição, p. 347-348.
297
Interessante destacar um episódio narrado por Vieira: refere-se ao fato ocorrido ainda durante os primeiros
dias após a tomada de Salvador pelos holandeses, quando o padre Provincial Domingos Coelho e o padre
António de Matos, juntamente com nove inacianos enviados do Colégio do Rio de Janeiro, foram capturados e
levados prisioneiros para Amsterdã. Segundo Vieira, a todos os religiosos e seculares era dada a liberdade,
exceto aos jesuítas, pelo fato de os membros da Ordem fazerem muitas guerras aos holandeses através da
pregação do Evangelho. In: Carta Ânua ao Geral da Companhia de Jesus [30 de setembro de 1626]. In: Padre
Antônio VIEIRA. Cartas do Brasil, p. 88. Ver anexo IX, p. 114.
298
Oswald de ANDRADE. A Utopia Antropofágica, p. 162.
92
da Companhia de Jesus é possível perceber a atuação da Ordem no desenrolar dos conflitos,
principalmente no que se refere à acolhida dos desterrados e a influência sobre a sociedade
colonial.
De acordo com as informações apresentadas pela famosa carta Ânua de Vieira, o
abrigo de grande parte dos moradores em fuga, quando da entrada dos holandeses em
Salvador em 10 de maio de 1624, foi feito nos aldeamentos do Espírito Santo e de São
João.
299
A resistência portuguesa só começaria a ser organizada após a fundação de um arraial
situado a uma légua da cidade, onde se reuniu toda “a gente de guerra, os clérigos religiosos, e
oficiais de justiça que pôde”. Era neste arraial que se ministravam os sacramentos, a justiça, a
cura dos enfermos, assim como o estoque e a distribuição dos mantimentos dos soldados, que
“daqui saem finalmente para os assaltos, tornando a demandar o mesmo lugar”.
300
Segundo
Vieira, após a fundação do arraial, “nele assistiram sempre os nossos padres, dois e quatro às
vezes, pregando, confessando, exortando e animando a gente [...]”. E “enquanto uns faziam
isto no arraial, andavam outros em missão pelo recôncavo, fazendo o mesmo fruto com
grande consolação da gente”.
301
O padre Antônio Vieira reserva uma parte de sua carta para exaltar a ajuda essencial
de cerca de quatrocentos índios aldeados,
parte principal do nosso exército, e que mais horror metia aos inimigos, porque,
quando estes saíam e andavam pelos caminhos mais armados e ordenados em suas
companhias, estando o sol claro e o céu sereno, viam subitamente sobre si uma
nuvem chovendo frechas, que os trespassavam, e, como lhes faltava o ânimo do
outro Espartano (que disse pelejaria mais a seu gosto quando as setas do Persa
fossem tão espessas que, cobrindo o sol, lhe fizeram sombra), não se atreviam a
resistir, porque, enquanto eles preparavam um tiro de arcabuz ou mosquete,
tinham no corpo despedidas do arco duas frechas, sem outro remédio senão o que
davam os pés, virando as costas; mas nem este lhe valia, porque, se eles corriam, as
frechas voavam e, descendo como aves de rapina, faziam boa presa; e ainda que
não matavam algumas vezes de todo, todavia, como muitas eram ervadas, ia o
veneno lavrando por dentro até certo termo, em que lhes dava o último da vida.
302
Além de destacar a infalibilidade do modo de guerrear indígena, Vieira chama a
atenção para a fidelidade dos nativos, pois, “sendo assim que muitos negros de Guiné, e ainda
299
Carta Ânua ao Geral da Companhia de Jesus [30 de setembro de 1626]. In: Padre Antônio VIEIRA. Cartas do
Brasil, p. 87-88.
300
Id., p. 90.
301
Id., p. 93.
302
Id., p. 98.
93
alguns brancos, se meteram com os holandeses, nenhum índio houve que travasse amizade
com eles [...]”.
303
Embora a carta Ânua de Vieira apresente uma riqueza de informações, a hijuela
escrita pelo padre Manuel Fernandes, em 25 de julho de 1624, nos outros tipos de notícias
importantes sobre a história da Companhia de Jesus neste momento conturbado. Segundo o
inaciano,
Nestes dois dias, tanto que elas apareceram e entraram [25 velas holandesas], não
fizeram outra coisa os Padres do Colégio, por ordem do padre Reitor, que confessar
e animar a gente, e parece-me, conforme os que confessei, que todos ou quási todos
se confessaram e muitos comungaram [...]. O Padre Reitor se foi naquela mesma
noite para o Tanque [casa de campo da Companhia], quinta do Colégio, onde
estava a prata, ornamentos, e outro fato para o fazer pôr em salvo; deixou-me em
seu lugar no Colégio, e mandou-me, que entrando os inimigos, fizesse ir todos para
o Tanque, e me fosse com eles [...] e assim despejamos o Colégio naquela
madrugada [...]. Chegados que fomos ao Tanque, o senhor Bispo se partiu logo
para a Aldeia do Espírito Santo, com o Padre Reitor. Outros Padres e eu
acompanhamos todos a pé, porque não vieram cavalos por mais que se buscaram.
[...] Da Aldeia do Espírito Santo mandou o Padre Reitor com os noviços para esta
de S. João [...]. dois meses que aqui estamos 20 religiosos, entre noviços e do
Colégio, com assaz incomodidades e faltos do necessário [...]. Foram outros para
Sergipe de El-Rei com o Padre Simão Pinheiro, outros para o Camamu, e ainda por
aqui estamos perto de quarenta.
304
No trecho acima, chama atenção o fato de cerca da metade dos jesuítas residentes no
Colégio da Bahia ter deixado a cidade rumo aos território vizinhos do Camamu e Sergipe.
Além disso, as queixas dos religiosos quanto à vida nas aldeias vêm reforçar a idéia defendida
neste trabalho de que os escolásticos estavam demasiado acostumados com as delicadezas e
comodidades encontradas nas residências jesuíticas. Por fim, muito interessante é a primeira
preocupação do reitor do Colégio: retirar-se para a casa de campo da Companhia para r a
salvo os objetos valiosos da Ordem.
A invasão holandesa teria causado uma onda de preocupação em toda a Colônia,
principalmente na capitania do Rio de Janeiro, fazendo com que o governador fluminense
Martim de ordenasse a fortificação do território, solicitando a ajuda dos padres da
Companhia e de seus índios aldeados. Segundo Vieira,
Mandou o padre reitor em particular entrincheirar a testada do nosso Colégio e
ajuntar grande número de arcos e flechas para, no conflito, acudir e prover os que
303
Carta Ânua ao Geral da Companhia de Jesus [30 de setembro de 1626]. In: Padre Antônio VIEIRA. Cartas do
Brasil, p. 98.
304
In: Serafim LEITE. História da Companhia de Jesus no Brasil, t. V, p. 196.
94
estivessem faltos de armas. O mesmo cuidado houve da nossa parte em fazer
ajuntar os índios para o edifício de uma fortaleza que, no mesmo, se levantou na
barra. Gastaram-se nela alguns meses, e do Colégio se dava a maior parte dos
mantimentos para os trabalhadores, até que de todo se acabou, e dizem que é a
melhor ou das melhores de todo este Estado. Foi tal a obra que todos estimaram e
estimam muito, e os da Câmara, com os mais principais de terra, o agradecem
muitas vezes aos padres [...].
305
A expulsão dos holandeses da Bahia se concretizaria com a chegada das armadas de
Portugal e Espanha a Salvador, em primeiro de abril de 1625, sendo a cidade invadida pelos
ibéricos em primeiro de maio do mesmo ano. Assim, os padres puderam abandonar as aldeias
e retornar para o núcleo urbano, onde “exercitaram muitas obras de piedade, administrando os
Sacramentos de confessar, dizer missa e comungar, para ganharem o jubileu que sua
Santidade concedeu a todos os que achassem neste cerco [...]. Os que ficaram nas aldeias não
deixaram de ajudar, trabalhando por terem o céu propício, com orações diante do Santíssimo
Sacramento, que nesta ocasião tiveram lá desencerrado”.
306
A Companhia das Índias Ocidentais não desistiria facilmente de conquistar as ricas
terras da costa brasileira e, em 1630, retornaria ao Brasil para tomar as cidades de Olinda e
Recife na capitania de Pernambuco - durante o início da década de 1640 o território ocupado
se estenderia até o Maranhão - de onde seria expulsa somente no ano de 1654.
Com base no relato do provedor-mor de Pernambuco, Pedro Cadena, escrito com o
intuito de exaltar a ajuda dada pela Companhia de Jesus durante o segundo momento da
invasão holandesa no Brasil, podemos buscar reconstruir parte da história dos inacianos
ligados ao Colégio de Olinda. Segundo Cadena,
[...] os Religiosos da Companhia de Jesus, além do cuidado e zêlo com que
acudiram a tôdas as fortificações, animando e confessando a gente de guerra, sem
excepção de tempo, nem de perigo, com particular demonstração me assitiram
sempre, assim na Casa dos Contos, como nas mais partes, a que era necessario
acudir, oferecendo liberalmente os escravos e serventes do Colégio. E sem
embargo de se haver dispendido grande parte do seu gado e criações, para sustento
do Exército de Pernambuco, na retirada que fêz daquela Capitania, havendo sabido
de mim a falta que se padecia de carnes no tempo do cêrco, e a impossibilidade
para se poder trazer de partes mais remotas, mandaram entregar grande quantidade
de vacas, com que se ajudou a aliviar a opressão que nesta parte sentiam os
cercados. E sendo assim mesmo necessário, para se fabricarem e repararem as
fortificações, ferramentas, muitas madeiras e esportas, ofereceram e deram
liberalmente todos êstes géneros, de que me vali com grande utilidade do serviço
de Sua Majestade, em ocasião de tanto apêrto; na qual deram também de sua
fazenda um subsídio de dinheiro, de que constará nos livros da Câmara desta
305
Carta Ânua ao Geral da Companhia de Jesus [30 de setembro de 1626]. In: Padre Antônio VIEIRA. Cartas do
Brasil, p. 104.
306
Id., p. 102.
95
Cidade, para ajuda de sustentar os soldado [cem mil reis]; e largaram livremente
grande quantidade de farinhas e plantas dela, pra que os soldados e gente do povo
tivessem remédio de sustento, como na verdade foi grande remédio, por terem
muitos mantimentos sazonados, e não poder esta cidade ser socorrida de
mantimentos de fora, donde o costumava ser, por causa do cêrco em que estava.
307
O trecho acima nos permite perceber a riqueza acumulada pelo Colégio de Olinda
no final da década de 1640, capaz de disponibilizar para as tropas coloniais escravos,
mantimentos estocados em suas fazendas e uma significativa ajuda em dinheiro. Além do
auxílio material, o Colégio jesuítico em Pernambuco foi ainda responsável por acolher e tratar
os feridos de guerra, assim como possibilitou a formação de uma Companhia de Estudantes
“que com todo o cuidado a mandou [o padre Provincial] logo formar de todos os que podiam
tomar armas, e nas ocasiões que se ofereceram se houvera com valor, pelejando com o
inimigo fora das trincheiras, como os mais destros e experientados”.
308
Segundo o padre Serafim Leite, ocupada Olinda e o Recife pelos invasores, a maior
parte dos padres se retirou para as aldeias ligadas ao Colégio da capitania, “para aliciarem os
índios e terem mãos neles, que não tergiversassem ou passassem ao inimigo”.
309
No entanto, o
que as fontes demonstram é que, ao contrário do ocorrido na Bahia, uma parcela considerável
dos índios do “sertão de fora” - regiões litorâneas de Pernambuco até o Ceará - teria se aliado
aos holandeses.
310
Tudo leva a crer que durante este período de invasões, o trabalho missionário
realizado pelos padres da Companhia de Jesus ficou extremamente prejudicado em virtude de
os indígenas aldeados estarem envolvidos com os conflitos, assim como pelo fato de os
“sertões” estarem impossibilitados de se fazer missão. Tais atividades só seriam retomadas de
maneira mais intensa após a consolidação da vitória portuguesa contra os holandeses,
momento em que o padre Antônio Vieira chega ao Maranhão com ordens de “reformar o
espírito” dos nativos refugiados do conflito pernambucano na serra de Ibiapaba, no Ceará.
307
In: Serafim LEITE. História da Companhia de Jesus no Brasil, t. V, p. 206.
308
Ibid., t. V, p. 206.
309
Ibid., t. V, p. 309.
310
Em tais alianças, cabe destacar os papéis exercidos pelos “tapuias” liderados por Janduí e pelos potiguares
comandados por Pedro Poti.
CONCLUSÃO
Ecce exiit qui seminat, seminare. Diz Cristo que «saiu o pregador evangélico a
semear» a palavra divina. Bem parece este texto dos livros de Deus. Não faz
menção do semear, mas tamm faz caso do sair: Exiit, porque no dia da messe
hão-nos de medir a semeadura e hão-nos de contar os passos. O Mundo, aos que
lavrais com ele, nem vos satisfaz o que dispendeis, nem vos paga o que andais.
Deus não é assim. Para quem lavra com Deus até o sair é semear, porque
também das passadas colhe fruto. Entre os semeadores do Evangelho há uns que
saem a semear, outros que semeiam sem sair. Os que saem a semear são os
que vão pregar à Índia, à China, ao Japão; os que semeiam sem sair, são os que
se contentam com pregar na Pátria. Todos terão sua razão, mas tudo tem sua
conta. Aos que têm a seara em casa, pagar-lhes-ão a semeadura; aos que vão
buscar a seara tão longe, hão-lhes de medir a semeadura e hão-lhes de contar os
passos. Ah Dia do Juízo! Ah pregadores! Os de cá, achar-vos-eis com mais paço;
os de lá, com mais passos: Exiit seminare.
Sermão da Sexagésima. Padre Antônio Vieira,
pregado na Capela Real, no ano de 1655.
Após três décadas desde a chegada dos primeiros jesuítas à América portuguesa, a
Companhia de Jesus se encontra diante de uma nova fase de reorganização e consolidação de
suas diretrizes na Província. Neste momento, percebe-se que a atuação dos inacianos na
Colônia sofre um paulatino processo de transformação, pautado na intensificação das distintas
posturas encontradas no modus procedendi dos religiosos em função da opção pelas missões
indígenas ou pelos colégios, responsável por imprimir marcas profundas em toda a história da
Ordem no Brasil colonial.
A partir do estabelecimento da União Ibérica, as dificuldades sofridas pelos jesuítas
em relação ao projeto missionário indígena na Colônia se acirram em função de diversos
fatores, tais como as constantes fugas dos aldeados, os elevados índices de mortalidade dos
nativos e as dificuldades em se fazer novos “descimentos”. Além disso, este é um contexto em
que a eficácia das conversões é duramente questionada pelos próprios membros do Instituto.
Por fim, neste momento a Companhia de Jesus é abalada por graves “quedas de espírito”
sofridas pelos religiosos nos aldeamentos: afastados dos núcleos da Ordem na Província,
vivendo isolados entre os indígenas, “os missionários procuravam menos
97
transformar os índios do que permanecer eles mesmos”.
311
No entanto, para além dos problemas inerentes aos trabalhos de conversão realizados
pelos jesuítas nas aldeias, espero ter conseguido relacionar a crise missionária indígena com a
consolidação dos colégios do Instituto na Colônia ocorrida durante o tempo dos Felipes.
Como assinalado pelo historiador jesuíta John O’Malley, a fundação de estabelecimentos de
ensino na Europa era apontada pelos primeiros jesuítas como responsável por fomentar a
“perda do verdadeiro espírito” da Companhia entre uma parcela de seus membros. Assim, a
exemplo do ocorrido no Velho Mundo, poucas décadas mais tarde o problema encontrava-se
instaurado no Brasil.
Segundo o padre Serafim Leite,
Fundado o Colégio, a sua igreja foi sempre o ponto mais concorrido da devoção
citadina, e suas festas, aparatosas e solenes. O fato mesmo de ser Colégio, o
exemplo e freqüência dos sacramentos dos alunos internos e externos, a defesa dos
índios, as relíquias que possuía, para cujo relicário deram as senhoras os seus
melhores espelhos, o ensino da doutrina aos índios, em tupi, e aos portugueses,
pela cartilha do Padre Marcos Jorge, fez do Colégio o grande centro cultural e
religioso, donde irradiavam para as aldeias, entradas e missões, os obreiros de
Deus. E dentro da cidade, catequese, sacramentos, confrarias e congregações, obras
de misericórdia, visitas aos presos e doentes, luta contra a blasfêmia e contra o
jogo; e toda atividade não só de ensino, mas de cura de almas.
312
Com a intenção de exaltar os feitos da Companhia de Jesus na América portuguesa, o
historiador jesuíta descreve claramente a profunda transformação ocorrida nas diretrizes do
Instituto na Província a partir da fundação de seus estabelecimentos de ensino. Porém, na
contramão da idéia que atribui aos colégios a função de suporte às missões indígenas, os
documentos analisados revelam que a partir das últimas décadas do século XVI, a maioria dos
inacianos preferia atuar junto aos internos, assim como entre a população citadina situada nos
arredores dos colégios e casas professas da Ordem, a realizar o apostolado entre os nativos.
Desta forma, é no Brasil dos Felipes que a obra jesuítica deixa de ser
essencialmente missionária, instalando-se a alternativa que Eduardo Hoornaert denominou
de colégio-aldeamento, “tão característica dos séculos XVII e XVIII”, momento em que os
inacianos passam a “viver em um ambiente rico e fazer pastoral entre os pobres em fins de
semana”.
313
311
Charlotte de CASTELNAU-L’ESTOILE. Operários de uma vinha estéril: os jesuítas e a conversão dos
índios no Brasil (1580-1620), p. 532.
312
Serafim LEITE. História da Companhia de Jesus no Brasil, t. V, p. 309.
313
Eduardo HOORNAERT... [et al.]. História da Igreja no Brasil: período colonial, p. 47-48.
98
A proliferação de colégios e seminários jesuíticos verificada na Colônia, a partir de
meados do culo XVII, exacerbaria a profunda diferenciação entre as atuações de
“escolásticos” e “missionários” na Província. Figuras como a dos padres Alexandre de
Gusmão e João Antônio Andreoni, sem se importunarem com os assuntos missionários,
representam a posição ocupada por diversos jesuítas restritos ao suntuoso e elegante mundo
barroco dos colégios.
314
Expoentes da outra postura da Ordem, Jacob Roland e João Daniel
expressam bem o ideal missionário jesuítico na Província: este atuando no extenso território
do Estado do Maranhão e Grão-Pará e, aquele, junto aos tapuias do sertão Nordestino.
Por fim, não obstante o impacto sobre as vocações, os colégios fomentaram a
necessidade de a Ordem angariar recursos para a manutenção de seus membros, fazendo com
que os inacianos assumissem a posição de detentores de grandes propriedades fundiárias e
escravaria na Colônia. Tal postura, além de ter gerado uma crescente preocupação por parte
de seus membros com questões relativas à administração dos bens materiais do Instituto,
315
custaria à Companhia de Jesus duros ataques de diversos setores da sociedade durante todo o
período colonial, culminando na supressão da Ordem no ano de 1773.
Além de ter procurado revelar aspectos importantes referentes à história da Ordem
no período filipino, este estudo buscou apontar a necessidade de se realizar novas
interpretações sobre a presença da Companhia de Jesus na Colônia pautadas na existência de
uma profunda diferenciação no interior do Instituto em relação ao seu modus procedendi.
Assumir esta postura, talvez nos possibilite lançar novas luzes sobre a atuação da polêmica
Ordem dos jesuítas na América portuguesa, e nos permita contestar os ataques presentes em
uma extensa bibliografia que enfatiza o espírito de corpo dos inacianos e/ou seus objetivos e
métodos maquiavélicos.
314
Eduardo HOORNAERT... [et al.]. História da Igreja no Brasil: período colonial, p. 51-52.
315
Paulo de ASSUNÇÃO. Negócios Jesuíticos: O Cotidiano da Administração dos Bens Divinos.
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ANEXOS
I
A inserção de uma cruz no pátio do aldeamento representado de acordo com o
modelo de organização tradicional indígena ilustra o processo de mestiçagem ocorrido nos
âmbito missionário.
316
316
Todas as imagens utilizadas por esta dissertação foram retiradas da Primeira edição da História da
Companhia de Jesus no Brasil do padre Serafim Leite.
107
II
108
III
Aldeamento situado nas proximidades da cidade de Salvador representado de acordo
com o modelo tradicional de uma aldeia tupinambá fortificada por paliçadas.
109
IV
110
V
O documento chama atenção por revelar a imponência do Colégio da Companhia de
Jesus da Bahia. Note-se ainda o seu desproporcional tamanho se comparado aos edifícios das
demais Ordens religiosas.
111
VI
112
VII
113
VIII
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IX
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