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UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião
Antigas memórias bélicas sobre Javé em Juízes 5,3-5.9-
13.19-22.23 e em Habacuque 3,3-6
Por:
LUCIANO ROBSON PETERLEVITZ
Orientador:
P
ROF
.
D
R
.
MILTON
SCHWANTES
São Bernardo do Campo, Março de 2006
Dissertação de mestrado apresentada
em cumprimento às exigências do
Programa de Pós-graduação em
Ciências da Religião, para obtenção
do grau de Mestre.
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2
Agradecimentos
Ao meu Senhor Jesus Cristo, Autor e Consumador de minha fé.
Aos meus pais, Sérgio e Rita, por me apoiarem absolutamente em tudo.
À minha amada noiva, Paula, que me acompanhou no processo de escrita e defesa dessa
Dissertação.
Ao Jonas e Márcia, esse casal que muito me ajudou na hora em que mais precisei, em
recursos financeiros e em orações.
Ao Prof. Dr Milton Schwantes, pela simpatia e prontidão em sempre orientar-me.
Ao Prof. Ms. Natanael, diretor da Faculdade Teológica Batista de Campinas, que tanto me
motivou e me apoiou.
Ao CNPQ, pelo grande auxílio financeiro.
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3
PETERLEVITZ, Luciano Robson, Antigas memórias bélicas de Javé em Juízes 5,3-5.9-
13.19.22.23 e Habacuque 3,3-6, Dissertação de Mestrado, Universidade Metodista de São
Paulo, São Bernardo do Campo, 2006.
Sinopse
A imagem de Javé em Juízes 5 constitui-se nas primeiras impressões que o Israel antigo
teve do seu Deus. Ela desenha a saída de Javé de sua antiga morada no Sinai para adentrar
na terra da Palestina, a fim de lutar por seu povo contra a opressão cananéia. O período
tribal foi o momento formativo desse antigo conceito de Javé no Antigo Testamento.
Grupos israelitas reformularam o conceito de Javé promulgado pela tradição do Sinai,
afirmando, assim, que Javé não é mais o Deus estático e teofânico, morador de uma
montanha, mas é o Deus de Israel. E a migração da divindade de um monte para um
campo de batalha não representa meramente a caminhada dessa divindade, mas representa
o caminhar dos vários estágios em que Israel conceituou seu Deus. Decisivo nessas novas
articulações teológicas foi o campo de batalha, que foi o moto da celebração à Javé
ressalvada em Juízes 5. Javé é celebrado por seu agir histórico! A história é a mediadora
entre Javé e seu povo. Ela é a via pela qual se pronuncia sobre Javé. Assim, as novas
conjunturas históricas requerem novas formulações sobre Deus. A antiga memória bélica
de Javé contida em Juízes 5 perpassa a história da religião de Israel, podendo ser observada
também em Habacuque 3,3-6. Esse é um texto do século VII a.C. Assim, detectamos uma
memória corrente na história da religião de Israel, que começou nos momentos
antecedentes à da formação da monarquia (Juízes 5) e ainda pode ser notada em
Habacuque, no século VII a.C. Nesse desenrolar da religião de Israel, a memória bélica
sobre Javé esteve sujeita a várias mutações. Mas, essencialmente, manteve sua proposta:
tornar os sujeitos da opressão promulgada pelos impérios em agentes de transformação
social. O conceito bélico de Javé patrocinou as revoltas contra o despotismo social, sendo,
portanto, uma forma de resistência dos grupos desprestigiados da sociedade, em Israel e
Judá.
PALAVRAS CHAVES: memória, guerra, reformulação, resistência, Javé.
4
PETERLEVITZ, Luciano Robson, Old warlike memories of Javé in 5,3-5.9-13.19.22.23
Judges and Habacuque 3,3-6, Dissertation of Pos-Graduation, Universidade Metodista de
São Paulo, São Bernardo do Campo, 2006.
Abstract
The image of in Judges 5 is constituted in the first impressions that old Israel had of its
God. She draws the exit of Javé of her old one dwelled in the Sinai to enter in the Earth of
Palestine, in order to fight by her town against the oppression of Canaã. The tribal period
was the moment of that old concept of Javé in the Old Testament. Israelite groups
reformulated the concept of Javé promulgated by the tradition of the Sinai, affirming, thus,
that Javé is not more the static and teofanic God, inhabitant of a mountain, but it is the
"God of Israel". And the migration of the divinity of a mount for a battlefield merely does
not represent the walked one of that divinity, but it represents walking of the several
practices in which Israel concepted its God. Decisive in those new theological joints it was
the battlefield, that was moto of the celebration to the Javé in Judges 5. Javé is celebrated
by his to act historical! History is the mediator between Javé and its town. It is the route by
which is pronounced on Javé. Thus, the new historical conjunctures require new
formulations on God. The old warlike memory of Javé contained in 5 Judges pass the
history of the religion of Israel, can be also observed in Habacuque 3,3-6. That is a text of
century VII a.C. Thus, we detected a current memory in the history of the religion of Israel,
that began at the antecedent moments to the one of the formation of the monarchy (Judges
5) and still can be noticed in Habacuque, in century VII a.C. In that to unroll of the religion
of Israel, the warlike memory on Javé was subject to several mutations. But, essentially, it
maintained his proposal: return the subjects from the oppression promulgated by the
empires in agents of social transformation. The principles of military organization of Javé
sponsored the revolts against the social despotism, being, therefore, a form of resistance of
the groups discredited of the society, in Israel and Judá.
Key-words: memory, war, resistance, formulation, Javé.
5
Sumário
Introdução.......................................................................................................................7
Capítulo 1 Antigas memórias bélicas sobre Javé em Juizes 5,3-5.9-13.19-22.23...........11
1.1 Questões introdutórias...............................................................................11
1.1.1 O livro dos Juizes............................................................................11
1.1.2 O Cântico de Débora como uma antiga unidade literária..................13
1.1.3 Juizes 5 como um gênero hínico, a semelhança de outras
peças literárias do Antigo Oriente Próximo.................................................15
1.2 A forma ....................................................................................................17
1.2.1 V.3-5...............................................................................................17
1.2.1.1 Delimitação.........................................................................17
1.2.1.2 Unidade interna...................................................................17
1.2.1.3 Estilo poético ......................................................................18
1.2.2 V.9-13.............................................................................................23
1.2.2.1 Delimitação.........................................................................23
1.2.2.2 Unidade interna...................................................................24
1.2.2.3 Estilo poético ......................................................................25
1.2.3 V.19-22...........................................................................................30
1.2.3.1 Delimitação.........................................................................30
1.2.3.2 Unidade Interna...................................................................30
1.2.3.3 Estilo poético ......................................................................31
1.2.4 V.23................................................................................................36
1.2.4.1 Delimitação.........................................................................36
1.2.4.2 Unidade interna...................................................................37
1.2.4.3 Estilo poético ......................................................................38
1.3 Época........................................................................................................38
1.3.1 Os integrantes da batalha.................................................................37
1.3.2 O motivo da batalha ........................................................................41
1.3.3 O lugar do confronto .......................................................................42
1.3.4 A data da batalha.............................................................................46
1.3.5 Autores(as)......................................................................................46
1.3.6 O Cântico e seu Sitz im Leben..........................................................46
1.4 Conteúdo ..................................................................................................48
1.4.1 V.3-5...............................................................................................48
1.4.2 V.9-13.............................................................................................59
1.4.3 V.19-22...........................................................................................71
1.4.4 V.23................................................................................................80
Capítulo 2 A antiga memória bélica sobre Javé em Habacuque 3,3-6............................85
2.1 Questões introdutórias...............................................................................85
2.1.1 O lugar de Habacuque 3 no livro de Habacuque ..............................86
6
2.1.2 Habacuque 3,1-19 como uma unidade literária ................................89
2.2 A forma, em especial dos v.3-6.................................................................90
2.2.1 Delimitação.....................................................................................90
2.2.2 Unidade interna...............................................................................91
2.2.3 Estilo poético ..................................................................................92
2.3 Época........................................................................................................100
2.3.1 O autor............................................................................................100
2.3.2 A data..............................................................................................102
2.3.3 O contexto histórico ........................................................................103
2.4 Conteúdo ..................................................................................................107
Capítulo 3 A progressividade do conceito de Javé desde o monte Sinai até
Os campos de batalha e suas adaptações e relevância para a história de Israel..................123
3.1 A formação do conceito bélico sobre Javé no período tribal ......................124
3.1.1 Javé e o Sinai ..................................................................................124
3.1.2 A transformação do conceito sobre Javé na terra de Canaã ..............131
3.1.2.1 Javé O Deus da tempestade...............................................132
3.1.2.2 Javé e El..............................................................................133
3.2 Continuações e transformações da memória bélica sobre Javé expressa
em Juizes 5 e no decorrer da história subsequente de Israel................................136
3.2.1 Continuações da memória bélica sobre Javé ....................................136
3.2.2 Transformações da memória bélica sobre Javé ................................142
3.2.2.1 A ausência da tradição êxodal na memória bélica
sobre Javé em Juizes 5 e sua inserção em Habacuque 3......................142
3.2.2.2 As várias imagens do Javé guerreiro nos Salmos
como implicação de sua relevância para a história de Israel ...............144
Conclusão .......................................................................................................................147
Bibliografia.....................................................................................................................157
7
Introdução
Quanto mais conheço a violência, mais a condeno e a detesto como instrumento de
progresso humano e de transformações sociais. No entanto, (...) morrer por uma causa
justa, ainda que aceitando o recurso à violência, é muitíssimo mais admirável do que
converter-se em instrumento da pior das violências: aquela que se apresenta com a
máscara da paz, da legalidade ou da democracia, mas que em realidade nada mais é do
que a fonte de injustiça social.
1
Javé é homem de guerra (Ex 15,3)! Esse é um conceito um tanto difícil de ser
maturado pela teologia cristã, que rege sua conduta teológica tendo como eixo norteador o
amor e o perdão de Deus. Assim, surgem algumas questões. O Deus do Antigo Testamento
abandonou suas armas para, no Novo Testamento, morrer numa cruz, por causa do seu
amor à humanidade? Se assim fosse, que valia teria para o cristianismo uma análise do
conceito do Deus guerreiro? Teria esse conceito sucumbido no Novo Testamento, sendo,
então, desnecessária a análise de um conceito arcaico? Teria alguma relevância
contemporânea? Instigar-nos-ia a alguma ação?
Na verdade, afirmamos que o conceito do Deus guerreiro é também muito relevante
para hoje. Principalmente no contexto da teologia latino-americana, que formula seus
conceitos à luz da exploração dos pobres e da avultação do despotismo social presentes na
América Latina.
Os grupos que compuseram o fenômeno social denominado de Israel, que surgiram
na Palestina nos fins do segundo milênio a.C., recorreram ao conceito do Javé guerreiro
para fundamentar sua autonomia e sobrevivência naquela terra. Essa teologia tem como seu
moto a denúncia aos setores opressores de Canaã. Observar-se-á isso no Cântico de Débora
(Juízes 5). Veremos que o antigo javismo que estava sendo maturado na época do Israel
antigo adequou-se à situação iminente. Da resistência à opressão social surgirá a memória
bélica de Javé em Juízes 5.
1
Tristán Athayde, citado por Walter Altmann, Recurso à violência e transformação social, em Estudos
Teológicos, São Leopoldo, Escola Superior de Teologia, vol.30, 1990, p.126, nota 2.
8
Assim também, a partir de alguns grupos marginalizados nos fins do sétimo século
a.C., surgirá a memória bélica registrada em Habacuque 3,3-6, semelhante àquela de Juízes
5. Ela também ameaçará o imperialismo massacrador dos oprimidos.
Portanto, detectaremos uma memória bélica em relação à Javé, corrente na antiga
religião israelita, que visa instigar grupos contra a opressão que os cercava. A autonomia
perdida mediante um arrasador sistema de despotismo, promulgado principalmente através
das estruturas religiosas dos grandes impérios, somente seria resgatada através de uma
articulação teológica formulada em moldes contrapostos àquelas. Dessa forma,
observaremos no decorrer desse estudo que o conceito do Javé guerreiro deixa de ser um
fim em si mesmo, tendo seu moto voltado à resistência e sobrevivência dos grupos.
Assi, essa dissertação visa analisar a articulação teológica sobre o Javé guerreiro
enquanto um fenômeno de resistência de grupos que lutam contra a opressão. A luta de
Javé é a luta dos oprimidos! Dois textos serão analisados sob essa ótica: Juízes 5 e
Habacuque 3,3-6. Neles encontramos duas antigas memórias bélicas sobre Javé. Surgem
algumas perguntas introdutórias: por que essas memórias são antigas? Que aspectos bélicos
sobre Javé o desenvolvidos nesses textos? Que relação teria essas duas memórias? Essas
e outras questões serão analisadas no decorrer dessa dissertação.
Desde o início se percebe que essa dissertação não visa à análise do conceito de
guerra santa com todas suas nuanças representadas no Antigo Testamento. Nem se
objetiva a análise de Juízes 5 e Habacuque 3 de maneira integral. Assim, não vamos
analisar todo o Cântico de Débora. Valhamo-nos somente de alguns versículos, aqueles que
realçam o conceito de Javé. O mesmo vale para Habacuque 3, que nos limita à análise de
somente os v.3-6. Também não atentaremos intensamente sobre as questões literárias nos
textos, exceto aquelas que são relevantes ao tema pois,nosso foco é o conceito de Javé
bélico em Juízes5,3-5.9-13.19-22.23 e Habacuque 3,3-6.
Feitas essas considerações, voltemos à questão da relevância do conceito do Deus
guerreiro para nossos dias. A aplicabilidade desse conceito para a América Latina teria
como alvo a articulação de uma teologia confrontadora das estruturas dominantes que
geram o despotismo social. Falar sobre um Deus violento eqüivaleria à não-conformação
com a situação degradante em que a maioria das pessoas vive no Brasil e em toda América
9
Latina. A teologia do Deus guerreiro é uma luta pela sobrevivência! Assim foi que Camilo
Torres, sociólogo e sacerdote, decidiu-se pela luta guerrilheira em fins de 1965, na
Colômbia. Ele se autodenominava não como um causador de violência, mas sua vítima.
2
A
revolução, assim, seria legítima. Tudo o que ele queria é que os colombianos não fossem
mais uma geração de escravos, mas que seus filhos tivessem educação, teto, comida,
roupa, e sobretudo dignidade
3
. Após a análise de possíveis formas de transformação
radical das estruturas, Camilo Torres concluiu que a via armada era a única alternativa para
que o setor popular alcançasse sua dignidade. Ele disse: o povo sabe que as vias legais
estão esgotadas. O povo sabe que não resta outro caminho, a não ser a via armada.
4
Walter
Altmann, terminando sua menção à Camilo Torres, diz: concluindo, podemos dizer que a
violência revolucionária é vista como uma resposta passageira a um estado de violência
permanente. É uma contra-violência, uma violência subversiva a uma violência
institucionalizada.
5
As pontuações até aqui explicitaram que nosso referencial teórico será uma
hermenêutica que privilegie o texto bíblico e sua situação concreta e histórica. Mas também
se previligiará a contemporaneidade que aflige os grupos oprimidos na América Latina
pois, inevitavelmente, olhamos o texto bíblico como um espelho da realidade atual. Os
estudos bíblicos atuais adquiriram uma aguda consciência do fator subjetivo, do impacto
que a posição do leitor tem sobre a experiência e a compreensão do texto blico
6
. Mas,
mesmo assumindo o inevitavél (pre)conceito sobre os textos objetos de nossa pesquisa,
reafirmamos a possibilidade de se entender a época e a teologia refletidas neles. Assim,
nossa abordagem fundamentar-se-á nos métodos exegéticos que possibilitam melhor
contextualização do sentido original de cada passagem... sanando muitos defeitos da
teologia cristã e, de forma indireta, gerando uma renovação em todos os campos da
atividade teológica
7
.
Na busca das antigas memórias bélicas de Javé, essa dissertação se desenvolverá em
três capítulos. O primeiro capítulo terá como objeto de pesquisa Juízes 5,3-5.9-13.19-22.23.
2
Walter Altmann, Recurso à violência e transformação social, p.128.
3
Walter Altmann, Recurso à violência e transformação social, p.128.
4
Camilo Torres, citado por Walter Altmann, Recurso à violência e transformação social, p.129.
5
Walter Altmann, Recurso à violência e transformação social, p.129.
6
M. OBrien, A natureza do monoteísmo bíblico Experiências e ideologias, em Concilium Revista
interncional de teologia, vol.289 (Deus experiência e Mistério), Petrópolis, Vozes, 2001/1, p.69.
10
Trata-se de alguns versículos que aludem a Javé. Na verdade é uma celebração a Ele e nela
poderemos identificar o conceito do Javé bélico no texto. Perguntaremos sobre a forma
poética do texto, sua época, a situação histórica transcrita ali, os(as) autores(as), e,
principalmente, a teologia sobre o Deus guerreiro contida em Juízes 5. Questionaremos
primordialmente o papel desempenhado pela memória de Javé presente em Juízes 5.
No segundo capítulo, analisar-se-á Habacuque 3,3-6. Determinar-se-á a possibilidade
ou a impossibilidade de identificarmos uma extensão da antiga memória de Javé
promulgada em Juízes 5. Pensaremos nas matizes e estruturas particulares e singulares que
a memória de Habacuque 3,3-6 realça. Esta análise terá seu roteiro semelhante à apreciação
de Juízes 5: primeiro, discutiremos a forma do texto, sendo seguido pela época, tendo seu
ponto culminante na análise da teologia proclamada pela memória.
Finalmente, no terceiro capítulo, pensar-se-á no processo (des)construtivo da antiga
memória de Javé promulgada em Juízes, perguntando por suas origens e os eixos
hermenêuticos sustentadores de sua argumentação. Assim, observaremos que, para a
memória formar-se, foi preciso uma série de reformulações ideológicas sobre Javé. Será
importante relacionar aquela memória de Juízes 5 com a de Habacuque 3,3-6, perguntando
por suas semelhanças e dessemelhanças. Então, as construções mais antigas sobre Javé
tiveram alguns mecanismos de compatibilidade, mas tiveram também suas nuanças
próprias.
Portanto, essa dissertação visa resgatar uma memória bélica sobre Deus, que têm sua
compatibilidade em Juízes 5 e Habacuque 3,3-6. Analisar-se-á a teologia do Javé como
uma ideologia da luta. Com isso queremos alertar sobre o perigo de uma teologia que se
apresenta com uma fachada pacifista, mas que tolera os equívocos da violência promovida
pela ideologia das grandes nações, e às vezes até alinha-se a tais equívocos. Assim, uma
teologia do Javé guerreiro convoca-nos à luta por uma vida melhor, calcada na justiça e no
amor ao próximo.
Vamos à luta!
7
José Severino Croatto, Hermenêutica Bíblica - Para uma teoria da leitura como produção de significado,
São Paulo/São Leopoldo, Edições Paulinas/Editora Sinodal, 1986, p.13.
11
Capítulo 1 A antiga memória bélica sobre Javé em Juízes 5,3-5.9-13.19-22.23
Introdução
O objetivo desse capítulo é discorrer sobre a memória de Javé em Juízes 5. Esse texto
é chamado de Cântico de Débora. Não vamos analisar todo o Cântico, com todas as
nuanças literárias e teológicas, pois, nos interessa principalmente o conceito de Javé no
texto. Delimitamos então, a análise de alguns versos. É importante analisarmos aqueles
que aludem a Javé, especificamente ao conceito de Javé guerreiro.
Iniciaremos abordando algumas questões introdutórias, que prepararão caminho para
o desenvolvimento deste capítulo. Refiro-me a composição do livro de Juízes e o lugar do
Cântico de Débora (Juízes 5) dentro dele. Num segundo momento, vasculharemos a forma
do texto, delimitando alguns blocos literários, verificando sua subunidade literária e sua
estrutura poética. Procuraremos então situar a época da composição do ntico de Débora,
pensando em seu contexto. E, finalmente, destacaremos o conteúdo do texto, a teologia do
Javé guerreiro em Juízes 5.
Apresentado o roteiro de pesquisa a ser seguido nesse primeiro capítulo, vamos ao
trabalho!
1.1 Questões introdutórias
Teceremos algumas considerações iniciais sobre o livro de Juízes. Primeiro,
observaremos o livro como um todo. Depois, especificaremos nosso objeto de pesquisa,
nos restringido ao Cântico de Débora (Juízes 5).
1.1.1 - O livro dos Juízes
O nome Juízes provém dos líderes carismáticos referidos em sua narrativa, xoftaim
juízes. Esses são personagens que viveram entre a morte de Josué e o surgimento de
Samuel.
12
O conteúdo do livro tematiza o tempo entre a conquista da terra e o surgimento da
monarquia em Israel. Pressupõe um momento de muita pluralidade entre os israelitas, onde
as tribos agiam independentemente. Em algumas ocasiões, como Juízes 5, elas uniam-se.
Mas, não há um poder centralizador como houve na monarquia.
De acordo com seu conteúdo, o livro divide-se em três partes desiguais: 1. Uma
introdução (1,1-2,5), que apresenta a conquista da terra pelas tribos israelitas. 2. O corpo do
livro (2,6-16,31), que se constitui na parte central, onde lemos a história dos juízes. 3. Duas
adições ao livro, que narram à migração dos danitas para o norte, com a fundação do
santuário em Dã (17-18), e a guerra contra Benjamim para punir o crime de Gabaá (19-21).
A partir da tese de Martin Noth, em 1943, muitos estudiosos têm afirmado que uma
escola deuteronomística compôs os livros de Deuteronômio até 2Reis (exceto Rute).
8
Trata-se da Obra Historiográfica Deuteronomística. Essa seria uma avaliação histórico-
teológica da monarquia, para se buscar as causas da destruição pelos Babilônicos em 587
a.C. Os constantes afastamentos do povo de Javé, seu Deus único, e a inclinação à idolatria,
conforme lemos no livro de Juízes, explicam as diversas catástrofes, não no período dos
juízes, mas na contemporaneidade dos autores do livro de Juízes.
Deve-se observar, pois, que o livro de Juízes é a leitura deuteronomística da história
de Israel. Assim, a roupagem deuteronomística precisará ser despida, para que se encontre
sob ela a interpretação daqueles que mais próximo estiveram dos eventos ainda hoje
preservados na Bíblia.
9
Por isso, nossa atenção estará em Juízes 5. Como mostraremos
abaixo, trata-se de uma antiga unidade poética.
1.1.2 O Cântico de Débora como uma antiga unidade literária
8
Nobert Lohfink, Balanço após a catástrofe A obra historiográfica deuteronomística, em Josef Schreiner
(editor), Palavra e mensagem do Antigo Testamento, tradução de Benôni Lemos, São Paulo, Editora
Teológica, 2
a
edição, 2004, p.259-274.
9
Carlos Arthur Dreher, O Cântico de Débora Juízes 5 Conflito social e teologia num episódio da
história do Israel pré-estatal, São Leopoldo, Faculdade de Teologia, 1984, p.18 (Dissertação Mestrado).
13
A história de Débora e Baraque é apresentada na forma prosaica (4,1-24) e na forma
poética (5,1-31a). O poema de Juízes 5,1-31a apresenta algumas características literárias
antigas: 14 hepaxlegomena e formas arcaicas.
10
O texto constitui-se, pois, numa das peças
literárias mais antigas do Antigo Testamento. É um antigo poema épico, que pode ser
datado nas proximidades do evento que descreve.
11
Nosso alvo, agora, é mostrar que, Jz 5,2-31a, além de ser um antigo poema, é uma
unidade literária. Isso tem sido contestado por alguns pesquisadores. Segundo J. Alberto
Soggin, existem duas camadas no Cântico de Débora, uma mais antiga, com o estilo épico
(v.6-8.[12].13-30) e outra mais recente, com uma característica teológico-cúltica, própria
dos salmos.
12
No entanto, a existência de duas camadas parece ser problemática, conforme
demonstrou Carlos A. Dreher.
13
Portanto, analisaremos o Cântico de Débora em sua
redação final.
Primeiro, observemos a relação entre Juízes 5 e o texto que lhe antecede, a saber, 4,1-
24. Juízes 4 e 5 aludem ao um mesmo acontecimento. Há, no entanto, diferenças literárias
entre eles, que acenam para uma existência anterior em separado. O capítulo 4 é prosaico.
Distingue-se de 5,1-31a. Esse, por sua vez, é poesia. Outro dado aponta para o fato de que
esses dois capítulos existiram alguma vez separadamente: a inserção de 3,31 entre 3,30 e
4,1. Esses últimos referem-se à Aod. 3,31 alude à Samgar. Há, pois, um corte entre 3,30
e 4,1. O capítulo 4 silencia-se sobre Samgar, que somente é mencionado no poema (5,6).
Assim, se há uma ligação entre 3,30 e 4,1, por outro lado, uma ligação entre 3,31 e o
poema de 5,1-31a. Isso sugere que, em algum momento, o capítulo 4 tenha existido
separadamente do capítulo 5.
Um outro dado parece apontar para o descompasso entre Jz 4 e 5. Valhamos aqui das
palavras de Carlos A. Dreher: 4,23.24 apresentam formulação de redação
deuteronomística para o final de suas narrativas, faltando-lhes apenas a constatação final:
10
Carlos Arthur Dreher, O Cântico de Débora, p.59-60.
11
Ernst Sellin e Georg Fohrer, Introdução ao Antigo Testamento Livros históricos e códigos legais,
tradução de D. Mateus Rocha, São Paulo, Edições Paulinas, vol.1, 1977, p.293-294.
12
J. Alberto Soggin, Judge A commentary, Philadelphia, The Westminster Press, 1981, p.94 (Old
Testament Library).
13
Carlos Arthur Dreher, O Cântico de Débora, p.62-63.
14
E a terra ficou em paz X anos. Este, por sua vez, encontra-se ao final do capítulo 5, no
v.31b.
14
Todos esses dados indicam que o relato do capítulo 4 termina no v.22, sendo os v.23-
24 mais 5,31b uma conclusão redacional. A esse trabalho redacional também pertence 5,1,
que situa os leitores sobre a época do poema. Jz 5,2-31a, pois, desvincula-se de Jz 4.
Portanto, observamos como Juízes 5,2-31a se desliga literariamente do texto que lhe
antecede. Agora, notemos como 5,2-31a desvincula-se do texto seguinte. Já observamos
que 5,31b é nota de redatores. Em 6,1 começa uma nova narrativa. Detecta-se novamente a
redação deuteronomística e temos a mudança de personagens. Agora, a narrativa refere-se à
Gideão, o novo herói que Javé levanta para libertar Israel. Jz 6,1s é, pois, uma outra
narrativa.
Portanto, 5,2-31a é uma unidade literária, um antigo poema. Distingue-se da redação
deuteronomística. É uma perícope.
1.1.3 - Juízes 5 como um gênero literário hínico, a semelhança de outras peças
literárias do Antigo Oriente.
Discorreremos agora sobre o gênero literário do antigo poema que compõe Juízes 5,2-
31a, e sua relação com outras peças literárias do Antigo Oriente.
Juízes 5,2-31a é uma celebração ao Javé guerreiro. Não é classificado como um
salmo, mas, é um cântico religioso triunfal. Abrange um começo e uma conclusão, a
modo de hino. A descrição da época da calamidade, antes da guerra da libertação, pode ser
comparada à narrativa de um cântico de ação de graças.
15
14
Carlos Arthur Dreher, O Cântico de Débora, p.16.
15
Ernst Sellin e Georg Fohrer, Introdução ao Antigo Testamento, p.294.
15
Esse antigo gênero hínico encontra correspondência em outros textos do Antigo
Oriente. Hermann Gunkel
16
já havia afirmado a importância da oralidade para a
constituição dos elementos mais primitivos dos textos do Antigo Testamento. Através da
crítica das formas, descobriu-se a possibilidade de recompor os conceitos que precederam o
texto em sua forma redacional final. Assim, buscaram-se as substâncias, ou seja, as
antigas tradições, idéias e enraizamentos sociológicos presentes na oralidade popular mais
antiga da religião de Israel. O trabalho de Hermann Gunkel e sua escola foi elaborado
mediante a análise dos textos mitológicos e textos literários provindos do mundo
mesopotâmico.
17
Valhamo-nos das palavras de Thomas Römer e Albert de Pury:
Ao contrário dos pan-babilonistas da virada do século (do 19 para o 20), os
representantes da religionsgeschichtliche Schule não procuravam fazer da religião de
Israel um simples subproduto, de qualidade inferior, da civilização babilônica, mas
pretenderam colocar em evidência a particularidade da experiência israelita, precisamente
situando-a no contexto histórico das outras experiências particulares testemunhadas pelos
textos, recentemente descobertos, do mundo ambiente.
18
Assim, o Cântico de Débora se depara com outras peças poéticas do Antigo Oriente,
provindas do contexto militar, onde se celebrava a intervenção bélica de um deus. Tais
cânticos de vitórias eram comuns no Antigo Oriente Próximo. A exemplo disso -se um
cântico assírio, o Épico de Tukulti-Ninurta (século treze a.C.), que descreve a campanha de
Tukulti-Ninurta contra o rei cassita Kashtiliash. Esse ntico relata como Tukulti-Ninurta
pede o auxílio divino, com base em seu relacionamento anterior com a divindade, e como
recebe essa ajuda, e também inclui um trecho zombando do rei inimigo que havia fugido da
16
Thomas Römer e Albert de Pury, O Pentateuco em questão Posição do problema e breve história da
pesquisa, em O Pentateuco em questão As origens e a composição dos cinco primeiros livros da Bíblia à
luz das pesquias recentes, Albert de Pury (organizador), tradução de Lúcia Mathilde Orth, Petrópolis, Vozes,
1996, p.37.
17
Pierre Gilbert, Une théorie de la légende: Hermann Gunkel, Paris, 1979, p.15-34.
18
Thomas Römer e Albert de Pury, O Pentateuco em questão Posição do problema e breve história da
pesquisa, p.37.
16
batalha.
19
Outros exemplos poderiam ser citados.
20
Mas esse basta, para afirmarmos o
gênero literário de Juízes 5 em sua relação com o Antigo Oriente Próximo.
Em resumo, afirmamos que o livro de Juízes é uma obra oriunda do século a.C.,
que analisa teológica e historicamente a monarquia de Israel e as causas de sua extinção,
em 587 a.C pelos Babilônicos. Mas, inserido nesse complexo literário está o Cântico de
Débora (5,2-31a), que compõe uma antiga unidade poética dentro do livro de Juízes. Nele
ausenta-se a redação deuteronomística. Trata-se, pois, de um antigo hino que celebra ao
Javé guerreiro, composto nas proximidades dos eventos referidos. Esse poema tem
correspondência com outros textos do Antigo Oriente Próximo.
19
John Walton, Victor Matheus e Mark Chavalas, Comentário bíblico Atos Antigo Testamento, tradução de
Noemi Valéria Alto, Belo Horizonte, Editora Atos, 2003, p.259.
20
Sabemos de relatos sobre batalhas preservados tanto em prosa como em verso, da época de Tiglate-Pileser I
e Ramsés II (século treze a.C.) e Tutmés III (século catorze a.C.). Veja John Walton, Victor Matheus e Mark
Chavalas, Comentário bíblico Atos Antigo Testamento, p.259.
17
1. 2 A forma
Analisamos até aqui algumas questões literárias concernentes ao livro de Juízes como
um todo, e, especificamente, aquilo que concerne a 5,2-31a. Mostramos que este poema é
uma antiga unidade literária. Agora, estamos prontos para centralizarmos nossas lentes em
alguns versículos específicos dessa unidade literária. Trata-se de delimitarmos algumas
subunidades, aquelas que nos interessam para o realce do conceito de Javé.
A forma do texto será analisada em três passos. O primeiro será a delimitação de um
bloco literário, separando-o dos versos que o antecedem e dos versos que o seguem. Trata-
se, pois, de separar o bloco, definindo a subunidade. Num segundo passo, analisaremos o
modo como esse bloco se constitui, ou seja, sua unidade literária interna, seus amarres
literários. Provaremos, então, porque tal bloco é uma subunidade. E, num terceiro passo,
analisaremos o estilo poético, considerando as frases separadamente e a relação dessas com
a subunidade, onde mostraremos as vigas que compõe o bloco literário.
1.2.1 - V.3-5
Nosso interesse aqui é demonstrar a forma poética dos v.3-5 de Juízes 5. Primeiro,
consideraremos o descontinuidade entre eles e os versículos que os antecedem e que os
seguem. Depois, observaremos os amarres literários que compõem sua unidade interna,
para finalmente atentarmos para seu estilo poético.
1.2.1.1 Delimitação
Primeiro olhemos a relação entre os v.3-5 e o v.2. Eles se separam, porque há um
corte entre eles. Carlos A. Dreher afirma que o v.2b conclama ao louvor à Javé, mediante
um imperativo, sem que, contudo, sejam indicados aqueles, a quem o convite se dirige. Os
imperativos do v.3a não têm conexão com v.2b, iniciando, por sua vez, uma nova unidade
de sentido.
21
21
Carlos Arthur Dreher, O Cântico de Débora, p.18.
18
Agora, olhemos à relação dos v.3-5 com o v.6. Este inicia uma nova subunidade,
separada dos v.3-5, pois, Javé o é mencionado nos v.6-8. Se antes o objetivo era o
cantar a Javé, recitando o texto de teofania, agora se descreve uma situação, localizada no
tempo através da citação de dois nomes: Samgar, filho de Anate, e Jael.
22
Observamos, portanto, que os v.3-5 se distinguem dos versos que os antecedem e dos
que os seguem. Formam, pois, uma subunidade. A seguir observaremos como se constitui
essa subunidade.
1.2.1.2 Unidade interna
Como observamos, os v.3-5 estão inseridos numa unidade maior, no Cântico de
Débora, mas eles formam em si mesmo uma subunidade própria. Mas como se constitui
essa subunidade? Não seria melhor analisar os v.4-5 como uma subunidade, separados do
v.3? Afinal, os v.4-5, junto com o Sl 68,8-9, encontram correspondência em outros do
Antigo Oriente Médio e são modelos de teofanias do Antigo Testamento.
23
J. Blenkinsopp
advogou que os v.4-5 não pertencem ao Cântico de bora.
24
Eles seriam oriundos de uma
tradição independente, mais antiga, a saber, a tradição sinaítica. No entanto, afirmamos que
tais versos foram re-trabalhados pelo(s) autor(es) do Cântico de Débora e inseridos em tal.
Portanto, os v.4-5 devem ser analisados como parte do Cântico de Débora.
25
Além dos v.4-5 fazerem parte do Cântico de Débora e de serem analisados como
parte dele, também eles devem ser analisados à luz do v.3. Pois, percebemos a relação entre
o final do v.3 e o final do v.5, através da expressão laer'f.yI yhel{a/ elohey yixrael
Deus de Israel Esta aparece na última frase do v.3, após duas repetições do nome Javé
(hw"hyl; para Javé). A mesma expressão aparecerá no final do v.5, onde também é
22
Carlos Arthur Dreher, O Cântico de Débora, p.22.
23
Carlos Arthur Dreher, O Cântico de Débora, p.23.
24
J. Blenkinsopp, Ballad Style and Psalm Style in the Song of Deborah A Discussion, em Biblica, Roma,
Pontifici Instituti Biblici, vol.42, 1961, p.61-76. Ainda sobre a possibilidade de curtas declarações poéticas
serem inseridas num corpo maior de tradição no Cântico de Débora, conferir Peter R. Ackroyd, The
composition of the Song of Deborah, em Vetus Testamentum, Leiden, E. J. Brill, vol.2, 1952, p.160-162.
25
Carlos Arthur Dreher, O Cântico de Débora, p.23.
19
precedida pela dúplice menção do nome Javé (hw"hy> ynEP.mi diante de Javé).
Logo, o final do v.5 retoma o final do v.3, formando, dessa forma, uma subunidade.
Portanto, os v.3-5 formam uma subunidade dentro do Cântico de Débora. Tendo
mostrado isso, interessa-nos agora olharmos a estrutura interna dessa subunidade, o modo
como sua beleza literária é desenhada poeticamente.
1.2.1.3 Estilo poético
Nossa subunidade é poesia. Muito se tem discutido sobre as formas estilísticas da
poesia hebraica. Assumimos que a poesia hebraica se baseia em repetições e não
propriamente em paralelismos.
26
Essas repetições são de frases e idéias, e não de palavras
isoladas.
Tendo afirmado que nosso texto é poesia, agora mostraremos como ela se constitui.
Primeiro, identificaremos as frases dos v.3-5. Depois, estudaremos como elas se repetem e
correlacionam-se entre si. Averiguaremos, assim, o estilo poético de nossa subunidade.
Comecemos com o v.3:
Ouvi, reis.
Dai ouvidos, comandantes.
Eu sou para Javé.
Eu cantarei.
Salmodiarei para Javé, o Deus de Israel
Identificamos cinco frases. Observemos agora como elas estão correlacionadas entre
si.
26
Para tal discussão, conferir Pedro Julio Triana Fernádez, Caminhar para a esperança Uma leitura de Joel
3,1-5, São Bernardo do Campo, Instituto Metodista de Ensino Superior, 1994, p.127-132 (Dissertação de
Mestrado).
20
As duas primeiras frases iniciam-se cada qual com um imperativo. A primeira
principia-se com W[m.vi ximu ouvir. A segunda com WnyzIa]h; haazinu
daí ouvidos. Na primeira, lemos ouvi, reis. Na segunda, lemos dai ouvidos,
comandantes. As duas frases referem-se ao público que é convidado para ouvir: reis e
príncipes. Elas são muito semelhantes, portanto.
Então, nossa subunidade se inicia com duas frases interligadas. Afirmamos que a
segunda repete a primeira. Convoca-se a elite citadina de Canaã para se atentar ao Cântico.
Trata-se, pois, de uma dúplice ordem para ouvir aquilo que vai ser cantado a seguir.
Os reis e comandantes são convidados à ouvir e à dar ouvidos. Mas a que?
Aí surgem as três frases seqüências, onde o público é convocado a ouvir o cantar e o
fazer música para Javé. Vejamos cada uma delas.
A terceira frase do v.3 é uma oração nominal, onde está implícito o verbo ser: eu
(sou) para Javé. A quarta é uma oração verbal: eu cantarei, onde está implícito a palavra
hebraica hw"hyl; la-yhvah para Javé. Assim, se falta um verbo na terceira frase, na
quarta falta um substantivo. O que falta na terceira está na quarta, e o que falta na quarta
está na terceira. As duas frases são, portanto, gramaticalmente diferentes, mas se
complementam.
Notamos ainda que a terceira e quarta frases começam com a primeira pessoa comum
do singular ykinOa' anoki eu.
A quinta frase é mais completa: salmodiarei para Javé, o Deus de Israel. Ela tem o
verbo e o substantivo precedido pela preposição l. le para, seguido de hw"hy>
Javé. Diferente das duas frases anteriores, essa não tem o ykinOa' anoki eu.
Porém, ela relaciona-se com as duas anteriores, pois o verbo na primeira pessoa
rMez:a] azamer salmodiarei, no início da frase, leva-nos ao início das duas frases
21
anteriores, onde lemos o ykinOa' anoki eu. Também, à semelhança das duas frases
anteriores, se diz que o salmo é para Javé.
Ao final da quinta frase lemos uma expressão inédita a aqui: laer'f.yI
yhel{a/ o Deus de Israel. Isso não distingue essa frase das anteriores, onde o Deus
de Israel é uma repetição de Javé, mencionado na terceira frase e implícito na quarta.
Observamos então, que a temática apresentada na quinta frase retoma às duas frases
anteriores. Todas elas conclamam que o único objeto de celebração é Javé. O sujeito
dessas frases é o eu, aquele que celebra a Javé.
A partir do v.4 a cena muda. Não mais o eu, mas Javé é o sujeito, que é
mencionado pelo eu. Vejamos o estilo poético dos v.4-5:
4
Javé, em teu sair a partir de Seir.
Em teu marchar a partir do campo de Edom.
Terra tremeu.
Em especial céus gotejaram.
Em especial nuvens gotejaram águas.
5
Montes escorreram
De diante de Javé, aquele do Sinai.
De diante de Javé, o Deus de Israel.
Identificamos duas frases iniciais: Javé, em teu sair a partir de Seir e em teu
marchar a partir do campo de Edom. uma perfeita relação sintática entre elas. Ambas
são constituídas por uma oração adverbial temporal regida pelo sufixo da 2
a
pessoa do
singular. A primeira frase começa com ^t.aceB. be-setk em teu sair, e a segunda
22
com be-sadk ^D>[.c;B. em tua marcha. Dessa forma, elas caracterizam, através da
repetição, a ação de Javé, seu sair a partir de Seir e seu marchar a partir do campo de
Edom.
A conseqüência do sair e marchar de Javé podem ser observados na terceira
frase: terra tremeu. Começa a teofania. Quando Javé sai, quando Javé marcha, a terra
treme. Então, a terceira frase relaciona-se tematicamente com as duas primeiras. Ela inicia-
se com o sujeito #r,a, ers terra seguido pelo verbo qal perfeito hv'['r' raaxah
tremeu.
Percebe-se que a quarta frase, em especial céus gotejaram, e a quinta, em especial
nuvens gotejaram águas, m uma dinamicidade própria. Ambas iniciam com a partícula
~G: gam em especial, enfatizando o gotejar. Uma outra relação entre essas frases é
que elas usam a mesma raiz hebraica (@jn ntf) para gotejar: Wpj'n" natapu na
quarta, e Wpj.n" natpu na quinta. As duas palavras podem ser traduzidas como
gotejaram. Na quarta frase não aparece o termo água, mencionado na quinta. Dessa
forma o termo esperado no final da quarta frase só é mencionado no final da quinta. No
entanto, a temática das duas frases é a mesma: a água.
Podemos delinear a seguinte disposição para essas frases:
Em especial céus gotejaram.
Em especial nuvens gotejaram água.
Percebe-se que o primeiro e o terceiro termo das frases são repetidos. Depois da
repetição acentua-se o essencial, a saber, a água.
Segue a sexta frase, montes escorreram. Essa se relaciona com a terceira, terra
tremeu. Semelhante a essa, a sexta frase inicia-se com o sujeito ~yrIh' harim montes
23
seguido pelo verbo qal perfeito Wlz>n" nazlu escorreram. Afirmamos que a sexta
frase deve ser entendida à luz da terceira, portanto.
As afirmações finais, de diante de Javé, aquele do Sinai e de diante de Javé, o
Deus de Israel, parecem ser um adendo às conseqüências do sair/marchar de Javé,
expressas na terceira, quarta, quinta e sexta frases. Pois, as reações sentidas na natureza
acontecem diante de Javé. Mas essas afirmações finais também retomam às duas frases
iniciais do v.4. Vejamos como isso acontece.
A expressão de diante de Javé, aquele do Sinai menciona a antiga morada de Javé,
o Sinai. Essa frase parece se relacionar com as duas frases iniciais do v.4 onde se diz que
Javé saiu de Seir e marchou desde o campo de Edom. Ou seja, se as duas frases iniciais do
v.4 mencionam a origem de Javé, a penúltima expressão do v.5 também o faz.
Notemos ainda a expressão final do verso 5, de diante de Javé, o Deus de Israel.
Aqui lemos que Javé não é o Deus do Sinai, mas sim, o Deus de Israel. Essa última
expressão do v.5 também se relaciona com as duas frases iniciais do v.4, pois essas
proclamam a saída de Javé e sua marcha para lutar, e a última expressão do verso 5 refere-
se exatamente a Javé que é o Deus de yisra-el Israel, o Deus que luta. Portanto, as duas
frases iniciais do v.4 e a duas últimas expressões do v.5 referem-se ao Deus bélico, sua
saída do Sinai para lutar por seu povo.
Concluindo, podemos resumir a seqüência poética dos v.3-4. Notamos que,
tematicamente, as duas afirmações finais do v.5 retomam às duas frases iniciais do v.4.
Formam, pois, a moldura externa da subunidade composta pelos v.3-5. Referem-se à Javé,
sua origem e sua ação bélica. A moldura interna é composta pelas reações da natureza, que
realçam a teofania de Javé de duas formas diferentes: tremor da terra e escorrer dos montes
(terceira e sexta frase) e inundação (quarta e quinta frase). Todas essas frases internas
referem-se às conseqüências da ação de Javé e à ação da natureza diante de Javé.
1.2.2 - V.9-13
24
Assim como procedemos com os v.3-5, faremos com os v.9-13. Primeiro, olharemos
como eles se desvinculam dos versos que os antecedem e dos versos que os seguem.
Depois, delinearemos como se constituí a subunidade dos v.9-11, e finalmente,
observaremos o estilo poético desses versículos.
1.2.2.1 Delimitação
Os v.9-13 se desvinculam dos v.6-8. É verdade que relação entre eles. No v.8
verifica-se a presença da guerra, e ao mesmo tempo, a ausência de armas: não se via
escudo nem lança. no v.9 nota-se a presença de comandantes. Portanto,
comandantes, há voluntários, os quais são semelhantes aos camponeses descritos no v.7a,
que engordam em despojos.
27
No entanto, apesar dessa relação, uma desvinculação entre os v.9-13 e os v.6-8.
Identificamos que gramaticalmente há uma cesura entre eles. Observa-se o emprego da
primeira pessoa do singular, meu coração, no início do v.9, e os imperativos louvai a
Javé (v.9) e falai disso (v.10). Além disso, muda-se a temática. Uma nota de Carlos A.
Dreher ajuda-nos aqui:
Nos v.6-8 descrevia-se uma situação; agora acontece uma tomada de posição por
parte de um indivíduo, para nós desconhecido (v.9), uma convocação dirigida a três grupos
de pessoas (v.10), solicitando sua atenção para determinado ato (v.11a), o que tem por
conseqüência uma tomada de atitude por parte de um coletivo (v.11b).
28
Agora perguntamos sobre a relação entre os v.9-13 e os versículos seguintes. Há um
corte entre o v.13 e o v.14, pois nesse começa-se a alistar as tribos que participaram da
batalha e aqueles que se ausentaram. Muda-se a temática. Portanto, a partir do v.14 começa
uma nova subunidade.
1.2.2.2. Unidade interna
27
Carlos Arthur Dreher, O Cântico de Débora, p.29-30. O autor traduziu assim o v.7a: engordaram os
camponeses, em Israel engordaram em despojos, p.24.
28
Carlos Arthur Dreher, O Cântico de Débora, p.29.
25
Carlos A. Dreher afirma que os v.9-11 e 12-13 são duas unidades literárias distintas.
No v.13, nota-se o advérbio za' az então, junto aos termos descer (dry yrd) e povo
de Javé (hw"hy> ~[;), presentes no v.11b. Com isso, os v.11b e 13 formam uma
espécie de moldura para o v.12, colocando-o em lugar de destaque. Assim, a separação
entre as unidades v.9-11 e 12-13 é muito tênue.
29
Afirmamos, no entanto, que todos os v.9-13 são uma subunidade. A primeira pessoa
no fim do v.13, yli li para mim, leva-nos ao início do v.9, onde também observamos a
primeira pessoa yBili libi meu coração. Além disso, o v.9 se refere à ação dos
comandantes, que estão entre o povo (v.9), que é o povo de Javé mencionado no v.13.
No início do v.9 e no fim do v.13 menciona-se o hw"hy>-~[; am Javé povo de
Javé.
Há, pois, alguns amárres literários e temáticos entre os v.9-13. Portanto, esses
versículos constituem-se uma subunidade.
1.2.2.3 Estilo poético
Visualizemos, nesse momento, o estilo poético dos v.9-13:
9
Meu coração para os comandantes de Israel,
os quais se oferecem entre o povo.
Louvai a Javé!
10
Que cavalgam jumentas brancas.
Que assentam sobre túnicas.
E que andam sobre caminho.
Atentai
11
a partir da voz dos que distribuem água entre os bebedouros.
Lá se cantam as justiças de Javé.
As justi
ças de seus camponeses, em Israel.
Então, desceram para os portões o povo de Javé.
29
Carlos Arthur Dreher, O Cântico de Débora, p.35.
26
12
Desperta, desperta, Débora.
Desperta, desperta, diga um cântico.
Levanta, Baraque,
e leva teus presos, filho de Abinoam.
13
Então, desceu um sobrevivente para os nobres.
Povo de Javé desceu para mim como fortes.
O v.9 é constituído por duas frases. Lemos a primeira frase no v.9a meu coração
para os comandantes de Israel, seguida por um complemento, os quais se oferecem entre
o povo. A frase se inicia com o termo yBili libi meu coração (v9a), acentuando a
tendência do locutor para os comandantes de Israel, sendo que, seu complemento explica
o porquê dessa tendência: a ação voluntária dos comandantes (v.9a ). A segunda frase, no
v.9b, convida ao louvor: louvai a Javé. Identificamos uma relação entre a frase inicial do
v.9a com a frase do v.9b baracu Javé hw"hy> Wkr]B' louvai a Javé, que o
louvor à Javé (v.9b) é motivado pela entrega voluntária dos comandantes (v.9a).
Notamos também uma relação entre o v.9 e a frase final do v.2. Em ambas lemos
louvai a Javé. Nelas lemos a raiz bdn ndb oferecer, que precede o termo ~[ am
povo. Então, o v.2 e o v.9b acenam ao louvor à Javé. Logo, a segunda frase do v.9 nos
remete ao fim do v.2.
No entanto, a frase do v.9b, que ordena o louvor a Javé, se direciona também para o
v.10, pois aqui são alistados diferentes grupos para os quais se dirige o imperativo de 9b.
No v.10 notamos três frases. A primeira frase é que cavalgam jumentas brancas. Esta se
inicia com o particípio plural construto ybek.ro rokbey que cavalgam, seguido por
um substantivo e um adjetivo, respectivamente tAntoa] atonot e tArxoc. sehorot.
A segunda frase é que assentam sobre túnicas. Assim como a primeira frase, a segunda
inicia-se com um particípio, ybev.yO yoxbey que assentam, sendo que, diferente
daquela, essa apresenta em sua seqüência a preposição l[;al sobre, junto com o
substantivo !yDImi midiyn túnicas. A terceira frase é e que andam sobre caminho.
27
Inicia-se com a partícula ve w> e, que conecta essa frase com a anterior. Observa-se,
pois, uma íntima relação entre a segunda e a terceira frase. A construção morfológica da
terceira é idêntica a segunda: inicia-se com um particípio ykel.ho holkey que andam,
segue-se uma preposição l[;al sobre, com o substantivo %r,D, derek caminho.
Notamos, pois, que as diferenças entre as três frases do v.10 o mínimas. Todas elas
se iniciam com o particípio masculino plural. Elas estão interligadas sintaticamente,
portanto. Essas três frases objetivam direcionar o imperativo expresso no v.9b.
No v.11 detectamos quatro frases. A primeira é composta pelo final do v.10 e pelo
início do v.11. É difícil entender a relação entre o imperativo Wxyfi sihu atentai, no
final do v.10, e a preposição !mi minde, no começo do v.11. Pois, o verbo Wxyfi
sihu requer um complemento. E no v.11 a preposição min demanda um verbo que a
anteceda. Assim, para relacionar o verbo à partícula, Carlos A. Dreher entendeu, junto com
a LXX, que o verbo Wxyfi sihu é o termo inicial do v.11. Assim, a preposição min
indicaria o local a partir do qual provém o som que deve ser escutado, que combina
perfeitamente com o advérbio ~v' xam , no v.11ab........
30
Então, a frase ficaria assim: atentai (v.10) a partir da voz dos distribuidores de água
entre os bebedouros (v.11aa). Ela relaciona-se com as três frases do v.10, porque
conclama os diferentes grupos apresentados no v.10 para atentarem à cantiga entre os
bebedouros. Assim, se o imperativo no v.9b se direciona para as três frases do v.10, o final
do v.10 também o faz. Observa-se, pois, um destaque conferido ao v.10!
Vamos à segunda frase do v.11, se cantam as justiças de Javé. Essa frase nos faz
retornar à frase anterior. Pois, o advérbio ~v' xam remete-nos aos bebedouros. Além
disso, a forma verbal WNt;y> yetanu cantam, terceira pessoa masculina plural,
30
Carlos Arthur Dreher, O Cântico de Débora, p.32.
28
pode referir-se aos distribuidores de água. Ainda algo se observa nessa segunda frase. A
partir dela entendemos o conteúdo que se canta na voz dos distribuidores de água:
hw"hy> tAqd>ci sidqot yehvah justiças de Javé. Assim, essa frase remete-nos a
segunda frase do v.9b, onde Javé é louvado. Advogo, deste modo, que o cantar dos
distribuidores de água é uma resposta ao imperativo barucu Javé cantai a Javé! Logo,
há uma intensa relação entre a segunda frase do v.11 e a segunda frase do v.9b. E,
intercambiando a essas frases, está a voz dos distribuidores de água, que entoam o cântico
(final do v.10 e início do v.11) e os vários grupos apresentados (três frases do v.10), que
são convocados a se atentar ao som cantado.
Também, entre os bebedouros, se cantam as justiças de seus camponeses, em Israel.
Estamos, já, na terceira frase do v.11. Esta é uma oração nominal. Nela parece estar
implícito o verbo WNt;y> yetanu cantam, da frase anterior. Aqueles que cantam
essas justiças são os distribuidores de água.
Então, notamos que a relação entre a segunda e a terceira frase do v.11 se constitui
pela menção do conteúdo cantado nos bebedouros, tAqd>ci sidqot justiças. Mas
nota-se também uma diferença: na segunda as justiças são de Javé, enquanto que na
terceira são de seus camponeses.
Segue-se a quarta frase no v.11c: então, desceram para os portões o povo de Ja.
O advérbio za' az então liga esta última frase com as três anteriores. O convite para
que se ouçam os atos de justiça cantados entre os bebedouros tem como resultado a
movimentação do povo de Javé para os portões.
Também, observo uma relação entre o v.11c e o v.9a. Ambos se referem ao am ~[''
povo. Eles dizem respeito à ação do povo. Na primeira frase do v.9, os comandantes
dentre o povo se oferecem voluntariamente para a guerra. Enquanto isso, na quarta frase do
v.11 o povo desce para os portões, não para guerrear, mas para celebrar as justiças.
29
O v.12 é um arremate. Evocam-se assuntos anteriores. Constatamos uma relação entre
as duas primeiras frases, no v.12a. A primeira é desperta, desperta, Débora. Lemos dois
imperativos yrIW[ yrIW[uri uri desperta, desperta, para depois se referir a
pessoa para quem o verbo impera, Débora. A segunda frase, em seu início, é idêntica a
primeira: yrIW[ yrIW[uri uri desperta, desperta, mas diferente daquela, essa
anuncia o porquê do despertar: ryvi-yrIB.D diga um cântico;. Assim, depois de
uma série de repetições do imperativo yrIW[uri, lemos um novo imperativo,
yrIB.D; diga. Convoca-se Débora para dizer um ntico. Assim, as duas frases
correlacionam-se. A segunda frase não repete a primeira, mas a complementa.
Convoca-se à celebração. Dessa forma, o v.12a remete-nos novamente aos v.9b-11, onde a
celebração já fora ordenada e anunciada.
O v.12b é uma memória sobre a guerra. Lemos duas frases correlacionadas. A
primeira é levanta, Baraque. À semelhança das duas primeiras (v.12a), essa frase inicia-
se com um imperativo, ~Wq qum levanta. Porém, a primeira do v.12b o se refere
mais à celebração, mas à guerra. A segunda frase, e leva teus presos, filho de Abinoam,
conecta-se à primeira através do vav conjuntivo W e. A sentença y>b.v, hbev]
xabeh xebyek leva teus prisioneiros explica o objetivo do levantar, expresso na frase
anterior.
As duas frases do v.12b, pois, aludem a uma movimentação para a luta. Dessa forma,
o v.12b é um prenúncio do v.13, que também alude à guerra. Esse, por sua vez, conclui a
subunidade. Lê-se novamente a preposição zaaz ', o verbo dry yrd descer e a
expressão hw"hy>-~[; am Javé povo de Ja, já prenunciados no v.11c. Assim, o
v.11b e o v.13 formam uma espécie de moldura para o v.12, colocando-o em lugar de
destaque.
31
Afirmamos que esse destaque ao v.12 acontece porque, nesse versículo,
anunciou-se a grande temática da subunidade que compõem os v.9-13: a celebração
(v.12a) e a guerra (v.12b).
31
Carlos Arthur Dreher, O Cântico de Débora, p.35.
30
Voltemos ao v.13. A primeira frase é então, desceu um remanescente para os
nobres. Após o advérbio então, lemos o verbo desceu, seguido pelo sujeito,
remanescente, e, finalmente, indica-se o objeto os nobres, prefixado com a preposição
le para. A segunda frase é povo de Javé desceu para mim como fortes. Começa com
o sujeito, povo de Ja, segue com o verbo desceu, alude-se ao objeto mim (o
próprio locutor do texto), prefixado com a preposição le, para. Observa-se, pois, que a
construção das duas frases é semelhante. Ainda, notamos que o sufixo na primeira pessoa
remete-nos novamente ao início da subunidade (v.9a, onde o locutor se expressou em
resposta a ação dos comandantes), e fecha a subunidade que os v.9-13 compõem. No final
da segunda frase do v.13 lê-se adjetivo ~yrIABGI giborim fortes, que caracteriza o
povo de Javé.
As duas frases do v.13 tratam do dry yrd descer, portanto. Referem-se à ação do
povo de Javé, já anunciada no v.9a e no v.11c.
Resumindo, os v.9-13 se estruturam pela ação do povo. Sua ação pode ser lida no
v.9a, no v.11c e no v.13. A primeira e a última menção (v.9a e v.13) aludem à ação bélica
do povo de Ja, enquanto que a intermediária (v.11c) refere-se à sua celebração a Javé.
Nas intermediações da ação do povo o foco está na celebração entre os bebedouros (v.9b-
11b). Convocam-se diferentes grupos a essa celebração (v.10). Destaca-se o v.12. O v.12a
remete-nos aos v.9b-11b. O v.12b, além de aludir ao fim da subunidade (v.13), arremessa-
nos novamente ao início da mesma (v.9a).
1.2.3 V.19-22
Nosso objetivo agora é provarmos que os v.19-22 de Juízes constituem-se uma outra
subunidade literária. Então, vamos ao trabalho!
1.2.3.1 Delimitação
31
Os v.19-22 pintam uma virada no texto. Carlos A. Dreher observou: se do v.6 ao
v.18 se descrevia a situação de Israel e sua organização emergente, culminando na
disposição de descer ao vale, agora se passa a apresentar o inimigo e seu destino
32
.
Então, um desconexo literário e temático entre o v.19 e os versos precedentes. Esses
aludiam às tribos de Israel, e a partir do v.19 mencionam-se os reis de Canaã.
Também um corte entre o v.22 e o v.23. Nesse lemos sobre Meroz e não mais
sobre os inimigos de Israel, que são focalizados nos v.19-22.
Portanto, os v.19-22 é uma subunidade, que se diferencia dos versos que a precedeu e
dos versos que a seguiu. Vejamos, agora, como se constitui essa subunidade.
1.2.3.2. Unidade interna
Para Carlos A. Dreher a subunidade que compõe os v.19-22 constitui-se através de
uma antítese à ação dos reis. O v.19a diz que eles vieram, enquanto que no v.22 diz que os
cascos dos cavalos martelaram o chão, no sentido de que eles fugiram. Então, os reis
vieram (19a) e fugiram (v.22). Carlos A. Dreher nos explica a seqüência dessa
subunidade:
No centro desta antítese, coloca-se a interferência dos elementos, chuva e água,
que atuam como verdadeiros adversários dos reis. V.19-20 estão intimamente
interligados pela repetição da forma verbal nilhamu Wmx]l.n, perfeito nifal
de lhm, lutar. V.21 representa a conseqüência imediata de v.20, o mesmo
acontecendo com o v.22 em relação ao v.21. A partícula za' então, presente logo
no início do v.22, faz o conjunto voltar ao seu início, onde, no v.19b, ela se
encontra: então lutaram...então fugiram.
33
No entanto, notamos que no v.19a a ação dos reis em si mesma é umaão frustrada,
pois, a frase do final do mesmo versículo diz lucro de prata não levaram. Revela-se,
32
Carlos Arthur Dreher, O Cântico de Débora, p.45.
33
Carlos Arthur Dreher, O Cântico de Débora, p.45.
32
assim, a ineficácia da peleja dos reis. Então, o v.19 prenuncia o v.22! A peleja dos reis é
uma frustração! Portanto, não uma antítese entre o v.19 e o v.22, como afirmou Carlos
A. Dreher. Há, sim, uma continuidade entre eles. A ineficácia da ação dos reis afirmada no
v.22 já foi prevista no final do v.19.
Ainda observamos que, a última expressão do v.22 seus garanhões, com o sufixo da
terceira pessoa do masculino singular, refere-se a Síse(v.20). Este é igualado aos reis de
Canaã em 19a e 20b. Então, o sufixo, além de aludir a Sísera, refere-se também aos reis de
Canaã. Portanto, a última expressão do v.22 remete-nos ao início do v.19, fechando assim a
subunidade.
1.2.3.3 Estilo poético
Pode-se observar minha proposta quanto ao estilo poético dos v.19-22:
19
Vieram reis lutaram.
Então lutaram os reis de Canaã,
em Taanaqe junto as águas Meguido
lucro de prata não levaram
20
Dos céus lutaram as estrelas.
De suas estradas lutaram com Sísera.
21
O ribeiro do Quison os arrastou.
O ribeiro veio aos encontros.
Ribeiro Quison.
Pisa a garganta do forte.
22
Então, martelaram o chão os cascos de cavalos.
Galopar, galopar dos seus garanhões.
Nossa subunidade começa com duas frases relacionadas entre si. A primeira é
vieram reis, pelejaram. A segunda é então pelejaram os reis de Canaã. uma
relação morfológica entre elas, já que ambas mencionam os reis e caracterizam a ação
33
deles mediante o verbo nifal da terceira pessoa masculina singular Wmx]l.nI nilhamu
pelejaram. Os reis são os sujeitos das frases. O particípio adverbial za' então, no
início da segunda, amarra as duas frases.
Contudo, observamos que a construção dessas frases é diferente. Detectamos nelas a
inversão da posição dos verbos Wmx]l.nI nilhamu pelejaram. Na primeira, esse
verbo está na posição final. Na segunda, o mesmo está na posição inicial. Obviamente,
essa inversão também acontece com o substantivo reis. Dessa forma, as duas frases
formam um quiasma, já que a primeira frase começa falando dos reis e a segunda termina
falando dos mesmos.
No v.19b segue a expressão em Taanaque, junto às águas de Megido, que se
constitui um complemento das duas primeiras frases. Ela especifica o lugar da batalha,
aonde os reis de Canaã vieram. Na seqüência, lemos uma terceira frase, lucro de prata não
levaram. Carlos A. Dreher, ao analisar a disposição literária dos v.19-20, omitiu o v.19b,
alegando que essas expressões fogem ao estilo do conjunto, do mesmo modo como os
termos chaves de Canaã e Sísera parecem fugir ao estilo dos versos acima estudados
34
.
No entanto, o v.19b se relaciona com o conjunto que compõe os v.19-22. A
expressão que complementa as duas frases iniciais do v.19a faz menção ao objeto que
destruiu os reis cananeus, ou seja, a água (águas de Megido), que além de nos remeter
novamente ao v.4 (gotejaram), nos leva para o v.21, onde por três vezes se menciona o
ribeiro. E atentemos-nos ainda à frase lucro de prata não levaram. O verbo Wxq'l'
laqahu levaram, na terceira pessoa, refere-se aos reis citados em 19a. Destaca-se,
ainda, a ação frustrada dos reis. Eles são os agentes da frase, à semelhança das frases
iniciais do versículo. Porém, a ação deles é distinta daquela das frases anteriores: não
levaram. Trata-se da frustração da peleja, para eles. Por isso, não entendemos que a
expressão lucro de prata não levaram possa ser desconexa do v.19b. Refere-se à
frustração em relação à peleja citada no v.19a.
34
Carlos Arthur Dreher, O Cântico de Débora, p.47.
34
Seguem-se as duas frases inicias do v.20. A primeira é dos céus pelejaram as
estrelas. A segunda é de suas estradas pelejaram contra Sísera. um amarre
morfológico entre elas. As duas começam com a preposição !mi min de. O min indica
o local de onde as estrelas lutaram: a partir dos céus e a partir de suas estradas. As
duas frases dizem que as estrelas lutaram Wmx]l.nI nilhamu.
Por outro lado, na segunda frase, acrescenta-se uma informação não contida na frase
anterior: o inimigo dos israelitas, Sísera. Mas esse também está implícito na primeira
frase, de modo que a idéia da primeira frase é dos céus as estrelas lutaram contra Sísera.
Dessa forma, a segunda frase complementa a primeira.
Agora, observemos à relação entre as duas frases iniciais do v.20 com as duas frases
iniciais do v.19. Em cada uma delas lemos o verbo Wmx]l.nI nilhamu pelejaram.
Portanto, há uma relação etimológica entre elas. No entanto, as duas frases iniciais do v.20
contrapõem as frases do v.19a. Pois, o sujeito das duas frases do v.20 é as estrelas, e não
mais os reis de Canaã! No v.19a duas vezes se diz que reis de Canaã lutaram, e, em
contrapartida, é dito duas vezes no v.20 que as estrelas lutaram contra os reis de Canaã.
Os reis lutam. Mas as estrelas também lutam! E essas prevaleceram. Assim, há uma
contraposição entre as duas frases iniciais do v.19 e as duas do v.20.
Não somente as estrelas derrotaram os reis cananeus, mas o ribeiro Quison também.
Isso nos leva ao v.21. Esse se inicia com duas frases: ribeiro Quisom os arrastou e
ribeiro veio aos seus encontros. Elas se relacionam entre si mediante a menção do
lx;n: nahal ribeiro, com a diferença que na segunda não menciona o Quison, mas só o
lx;n: nahal ribeiro. Porém, o Quison está implícito na segunda. Ademais, esta frase
é complementada pela expressão ribeiro Quison, que fecha a primeira parte do v.21.
Além de completar a segunda frase, a expressão ribeiro Quison conecta-se à primeira
frase, formando a seguinte moldura literária entre a primeira e segunda frase: a primeira
expressão da primeira frase é ribeiro Quison e, a última expressão complementar da
segunda frase é, também, ribeiro Quison.
35
Além disso, essas duas frases se relacionam pela menção da ação do ribeiro Quison
contra os reis: gerapam ~p'r'G> os arrastou na primeira, e qedumim ~ymiWdq.
encontros, confrontos, na segunda.
As duas frases do v.21a estão relacionadas com as duas frases iniciais do v.19. A
frase ribeiro Quisom os arrastou nos remete ao início do v.19, através do termo
~p'r'G> gerapam os arrastou, cujo sufixo da terceira pessoa do plural masculino é
uma clara menção aos reis/reis de Canaã. Assim também a palavra ~ymiWdq.
qedumim confrontos, na segunda frase do v.21, que refere-se à ação do Quison contra os
reis cananeus.
Logo, as duas frases iniciais do v.21 falam da ação do Ribeiro Quison contra a ação
dos reis cananeus de 19a. No v.19a, duas vezes se diz que os reis lutaram. o v.21
afirma a derrocada dos reis cananeus, mediante a ação do Quison. Assim, a ação do ribeiro
Quison contrapõe à ação dos reis. O sujeito das frases do v.21 é o Quison, não os reis
cananeus, que na verdade, são objetos do agir do ribeiro.
Então, à semelhança das duas frases do v.20, as duas frases iniciais do v.21 é uma
contraposição às duas frases do v.19a. Portanto, há uma correlação entre as duas frases do
v.20 e a duas primeiras do v.21.
Há uma terceira frase no v.21: pisa a garganta do forte. Ela tem sido reputada como
uma adição ao texto.
35
No entanto, deve ser entendida dentro de nossa subunidade. Ela
começa com o verbo ykir>d>Ti tidreki pisa. A palavra z[ oz forte, no final da
frase, remete-nos à segunda frase do v.20, onde se menciona Sísera, e por extensão
refere-se ao reis cananeus citados no v.19a. A contraposição entre essa terceira frase do
v.21 e as duas primeiras do v.19 mais uma vez é sentida: o sujeito não são os reis, mas
aquele que os destrói.
35
Bíblia Hebraica Stuttgartensia, in loco.
36
Dessa forma, a terceira frase do v.21, à semelhança as duas frases do v.20 e das duas
anteriores (v.21a), é uma contraposição às duas frases do v.19a.
O v.22 compõe-se de duas frases: então, martelaram os cascos de cavalos e
galopar, galopar dos seus garanhões. As duas frases relacionam-se entre si. A segunda
frase repete a idéia da primeira. Pois o tArh]D; tArh]D; daharot daharot
galopar, galopar da segunda frase seria uma onomatopéia que reproduz o som do
martelar dos cascos expressos na primeira frase. A última palavra da segunda frase
wyr'yBia; nobres é uma adjetivo que caracteriza os cavalos da primeira frase.
Assim, as duas frases estão praticamente interligadas.
Verificaremos, agora, como as duas frases do v.22 se relacionam com as frases
anteriores. A preposição za' az então, no início do v.22, conecta as frases desse
versículo com as do v.20 e v.21. Pois, a fuga dos reis cananeus é conseqüência do lutar das
estrelas, da ação do ribeiro Quison e da ação daquele que pisa a garganta dos reis. Assim, o
v.22 é um arremate da subunidade e revela as conseqüências da ação das estrelas e do
ribeiro (v.20-21). E não somente isso. No v.22 o sujeito é os reis novamente, ou mais
especificamente seus cavalos, que fogem da batalha. Descrevem novamente a ação
frustrada dos reis, já prevista no v.19!
Portanto, reafirmo a seqüência poética da subunidade composta pelos v.19-22. Eessa
subunidadew se constituí inicialmente por três frases, que aludem à ação frustrada dos reis
cananeus (v.19). E, no final da subunidade, notamos duas frases, que também referem-se ao
à frustração dos reis (v.22). Assim, os v.19 e v.22 perfazem a moldura externa da
subunidade. Irtercambiando a esses versículos estão os v.20-21, que compõem a moldura
interna da subunidade: duas frases expressam a luta das estrelas (v.20); duas aludem à ação
do ribeiro Quison (v.21a), e uma se refere à alguém que pisa a garganta do forte (v.21b).
A ação dos sujeitos nos v.20-21 contrapõe-se à ação dos reis nos v.19 e v.22.
1.2.4 V.23
37
Amaldiçoai a Meroz, diz o Anjo de Javé,
Amaldiçoai duramente os seus moradores.
Porque não vieram em socorro de Javé,
em socorro de Javé com os guerreiros.
Observo, agora, que o v.23 constitui-se numa outra subunidade. Nele há uma coesão
literária, que lhe confere o valor de uma subunidade. Vejamos!
1.2.4.1 Delimitação
Há uma relação entre o v.23 e a subunidade que compõe os v.19-22. Pois, o v.23
alude ao vir em socorro de Javé, o que ainda indica o combate anunciado nos v.19-22.
Relacionado a essa temática também está o termo guerreiros, no v.23. No entanto, afirmo
que há um corte entre o v.23 e os v.19-22. Pois, o v.23 não se refere mais aos reis cananeus,
mas sim a Meroz e seus moradores, que não participaram da batalha. Trata-se de uma
crítica a Meroz. Assim, volta-se a temática dos v.14-18, onde se alude àqueles que
participaram da batalha e àqueles que se recusaram a participar da mesma. Há, pois, uma
ruptura entre o v.23 e os v.19-22.
Também há um corte entre o v.23 e o v.24. No v.23 menciona-se a maldição,
enquanto que o v.24 refere-se à benção. Mas, ainda uma relação entre esses versículos.
Pois, no v.24 continua a aludir àqueles que participaram da batalha (Jael). Então, uma
continuidade e uma descontinuidade entre esses versos. Como disse Carlos A. Dreher: não
se pode desligá-los de um do outro; também não se pode ligá-los a um, em detrimento de
outro. Em vista disso, há que tratar o versículo como unidade separada.
36
1.2.4.2 Unidade interna
Observemos como se constitui a unidade interna do v.23. Essa se subdivide em duas
partes, unidas entre si. Na primeira parte anuncia-se a maldição, e o objeto da mesma
(Meroz). A segunda parte (v.23b) inicia-se com uma partícula relativa yKi ki
38
porque, que explica o motivo da maldição anunciada no v.23a. Assim, pois, essas duas
partes amarram-se, através de sua sintaxe e seu conteúdo.
2.4.3 Estilo poético
23
Amaldiçoai a Meroz, diz o Anjo de Javé,
Amaldiçoai duramente os seus moradores.
Porque não vieram em socorro de Javé,
em socorro de Javé com os guerreiros.
O v.23 constitui-se em três frases. Vejamos a correlação entre elas.
A primeira frase é amaldiçoai a Meroz, diz o Anjo de Javé. A frase inicia-se com
o imperativo masculino plural WrAa oru amaldiçoai, e em seguida menciona-se o
objeto da maldição: zArme Meroz. Na seqüência, cita-se quem pronuncia a mesma,
hw"hy> %a;l.m; o anjo de Javé. A segunda frase, amaldiçoai duramente os
seus moradores, da mesma forma que a primeira, inicia-se com o imperativo masculino
plural Wraooru amaldiçoai. A diferença nessa segunda frase em relação à primeira
é que o termo Wraoru o é seguido pelo verbo qal infinitivo absoluto da mesma raiz
rAra' aror. Na seqüência alude-se aos moradores mediante o qal participativo
h'yb,v.yO seus moradores, cujo sufixo na terceira pessoa seu refere-se a Meroz.
Dessa forma, a segunda frase remete-nos à primeira.
As duas frases, pois, relacionam-se através do imperativo rra rr amaldiçoar e
pela menção do objeto da maldição, Meroz e seus moradores.
36
Carlos Arthur Dreher, O Cântico de Débora, p.49. O autor se refere ao versículo como uma unidade. No
entanto, designamo-lo como uma subunidade, pois, advogamos que o Cântico de Débora como um todo é
uma unidade.
39
A terceira frase é porque o vieram em socorro de Javé. Segue um complemento,
em socorro de Javé com os guerreiros. Este tem implícito a forma verbal Wab' bau
vieram. Nota-se, na frase e em seu complemento, a repetição da locução hw"hy>
tr;z>[,l. le-ezrat yhvh em socorro de Javé. Observa-se, então, como as duas
sentenças se amarram etimologicamente. A expressão hw"hy> tr;z>[,l. le-ezrat
yhvh em socorro de Javé se encontra na posição final da frase, enquanto que no
complemento a mesma expressão encontra-se na posição inicial. Na frase, antecedendo à
locução em socorro de Javé, está uma alusão aos moradores de Meroz mediante o verbo
qal perfeito na terceira pessoa Wab' bao vieram, tendo como antecedente a partícula
negativa al{ lo não. No complemento, seguindo a repetição da locução hw"hy>
tr;z>[,l. le-ezrat yhvh em socorro de Javé, está a expressão com os guerreiros, que
complementa o verbo da terceira frase.
Portanto, as duas primeiras frases do v.23 aludem à maldição. A terceira frase e seu
complemento explicam o porquê da maldição.
1.3 A época
Já afirmamos que o Cântico de Débora é uma antiga unidade literária, composta por
várias subunidades. Focalizamos nossa atenção em algumas dessas subunidades, que
realçam a Javé. Observamos a forma poética dessas subunidades.
Convém, agora, mostrar a situação refletida no texto. Juízes 5 relata a revolta das
tribos israelitas contra a opressão cananéia. Esse acontecimento é relatado também em 4,1-
24, numa narrativa em prosa. No entanto, o cântico de Débora merece a preferência para a
obtenção dos dados históricos da batalha.
37
37
Herbert Donner, História de Israel e dos povos vizinhos Dos primórdios até a formação do estado,
tradução de Claudio Molz e Hans Trein, São Leopoldo, Sinodal, vol.1, 1997, p.186.
40
Começaremos descrevendo os integrantes da batalha. Na seqüência, aludiremos o
motivo da batalha, passando depois à localização geográfica da mesma. Importante
também será salientar a data do acontecimento, tentando, depois, buscar a autoria da
composição que se refere à tal acontecimento. Finalmente, falaremos do Sitz im Leben do
Cântico de Débora, o contexto vivêncial onde ele foi entoado.
1.3.1 Os integrantes da batalha
Nesse cântico lemos o confronto entre os reis de Canaã (5,19) e Israel (5.2.7-
9.11). Nossa atenção se volta para esses grupos. Quem seriam eles?
Os reis de Canaã talvez não estivessem exclusivamente sob a liderança de Sísera,
mas provavelmente sua participação na batalha foi proeminente (5,20.26). O termo
cananeu não é uma designação étnica distinta dos israelitas. Refere-se à classe
dominante, que são os reis das cidades-Estado da Palestina.
38
Eles utilizam a tecnologia
mais avançada da época: cavalos (v.22) e carros de combate (v.28b).
39
Esses reis moram
em cidades fortificadas.
40
Pela localização geográfica da batalha
41
, eles moram nas cidades-
Estado da Planície de Jezreel e parecem compor uma coalizão. Sísera, soberano de uma
dessas cidades, lidera tal coalizão.
Compondo o outro lado da batalha, está Israel. Através de Juízes 5 sabemos que
esse grupo é constituído por 10 tribos, sendo que cada uma delas compõem uma entidade
diferente.
42
Meroz é amaldiçoado por o participar da batalha (5,23), o que pressupõe
que esse grupo estava aliado à Israel e descumpriu o voto de lutar. Provavelmente Meroz
era uma cidade, composta por yoxbim governantes e giborim guerreiros. Outro grupo
autônomo de Israel, mas aliado a esse, são os quenitas (Juízes 4,11.17-23; 5,24-27).
38
Sobre a constituição das cidades-estado, veja Milton Schwantes, História de Israel Local e origem, p.52,
55-57.
39
Foram os hicsos que trouxeram à Canaã os carros de guerra puxados a cavalo. Veja Antonius H. J.
Gunneweg, História de Israel Dos primórdios até Bar Kochba e de Theodor Harzl até nossos dias,
tradução de Monika Ottermann, São Paulo, Editora Teológica, Edições Loyola, 2005, p.34 (Série Biblioteca
de Estudos do Antigo Testamento); Nelson Kilpp, A Sociedade e a Religião do Israel Libertado, em
Estudos Teológicos, São Leopoldo, Faculdade de Teologia, vol.22, 1982, p.244.
40
Carlos Arthur Dreher, O Cântico de Débora, p.95; Nelson Kilpp, A Sociedade e a Religião do Israel
Libertado, p.245.
41
Sobre a localização da batalha, veja p.43.
42
Carlos Arthur Dreher, O Cântico de Débora, p.85-91.
41
Sabe-se que os quenitas eram ferreiros (Gn 4,22). A habilidade de Jael em utilizar um
martelo talvez confirme isso (5,26).
43
De qualquer forma, os grupos que comporiam a entidade chamada Israel, bem
como seus aliados, seriam aqueles que eram espoliados pelo feudalismo cananeu. Assim,
Juízes 5 alude ao conflito entre cidade e campo. Pastores e agricultores se unem contra a
dominação das elites urbanas.
44
Numa ação conjunta, liderada por Débora e Baraque, as tribos de Efraim, Benjamim,
Maquir, Zebulom, Issacar e Naftali batalham contra os reis de Canaã (5,13-15.18). As
tribos que não participaram da batalha o criticadas: Rubem, Gileade, e Aser (5.15b-
17). Judá e Simeão não são mencionados. Portanto, essas duas tribos não faziam parte
desse Israel composto por dez tribos. Herbert Donner explica o motivo da ausência dessas
tribos em Israel: isso certamente tem seu motivo no fato de que o cinturião meridional de
cidades cananéias isolava essas tribos de tal maneira daquelas do centro, do norte e do
leste que já nem sequer se contava com sua ajuda e participação
45
. Uma outra explicação
para a ausência das tribos do sul é que nessa época elas ainda não estavam integradas em
Israel; na época da batalha, apenas 10 tribos comporiam Israel.
46
Assim, reis de Canaã, uma coalizão de vários reis das cidades-Estado de Canaã,
compõem uma ala da batalha. A outra é composta por entidades campesinas, denominada
de Israel.
1.3.2 O motivo da batalha
Vejamos o motivo do conflito entre os reis de Canaã e as entidades campesinas.
Buscar-se-á entender os elementos geradores da batalha.
43
Ainda outras duas possibilidades: a palavra yater estaca poderia referir-se a estaca de madeira que
fincava-se no chão, sugerindo que os quenitas eram nômades; ou, a palavra significa pino de tear, o que
indicaria uma atividade artesanal por parte de Jael. Veja Carlos Arthur Dreher, O Cântico de Débora, p.92-
94.
44
Nelson Kilpp, A Sociedade e a Religião do Israel Libertado, p.250-251. Ainda sobre a composição da
sociedade do Israel pré-estatal, veja Robert A. Butterfield, A evolução sócio-política do Israel pré-estatal
Uma tentativa de reconstrução histórica a partir de vários textos do período, inclusive o Cântico de Débora,
em Estudos Teológicos, São Leopoldo, Escola Superior de Teologia, vol.28, 1988, p.99-110.
45
Herbert Donner, História de Israel e dos povos vizinhos, vol.1, p.188.
46
Carlos Arthur Dreher, O Cântico de Débora, p.76.
42
Um dado importante sobre o motivo da batalha pode ser lido em Juízes 5,6: nos
dias de Sangar, filho de Anate, nos dias de Jael, cessaram as caravanas; e aqueles que
andavam pelos caminhos, andavam por rotas tortuosas. Herbert Donner comenta esse
texto:
Isso dificilmente era outra coisa do que o bloqueio, pelos cananeus, das
principais vias de comunicação dos israelitas. Considerando-se que a batalha se
travou na Planície de Meguido, não pode haver dúvidas que as cidades cananéias
do cinturião setentrional haviam se tornado ativas, bloqueando as estradas que
atravessavam a planície e ligavam o sul com o norte e o leste com o oeste.
47
A comunicação entre as tribos de Israel na Galiléia, na Palestina Central e na
Transjordânia era observada pelos cananeus como uma ameaça. Por isso, bloquearam as
estradas. Assim, as caravanas de Israel andavam por rotas tortuosas. O acesso a
alguma áreas cultiváveis da planície de Jezreel, particularmente aos ribeiros, foi negado
aos camponeses. Isso desencadeia a batalha.
Para Carlos A. Dreher, a causa da batalha expressa em Juízes 5 encontra-se nas
relações econômicas. Trata-se do tributo. Fundamenta sua afirmação em 5,19: reis
vieram, reis lutaram, mas lucro de prata não levaram. Esse versículo, para Carlos A.
Dreher, não se refere aos despojos arrancados pelo vencedor. Pois, para despojo, o
Antigo Testamento usa o vocábulo xalal. O substantivo besa lucro empregado no v.19
significa aqui o equivalente a um tributo que se tornou extorsivo
48
. Carlos A. Dreher
defende que o modo de produção refletido no Cântico de Débora é o tributário. No
feudalismo o meio de produção é a propriedade privada do senhor feudal. o modo de
produção tributária caracteriza-se pela coletividade dos meios de produção.
49
Em nada
difere do sistema comunitário (que para Carlos A. Dreher está refletido em Juízes 5
50
),
excedo no fato de que uma minoria dominante se expropria do seu excedente de produção.
Assim, o motivo da revolta campesina refletido em Juízes 5 desencadeia-se não pela
propriedade dos meios de produção (a terra), mas porque o tributo se tornou extorsivo.
47
Herbert Donner, História de Israel e dos povos vizinhos, vol.1, p.188.
48
Carlos Arthur Dreher, O Cântico de Débora, p.78.
49
Carlos Arthur Dreher, O Cântico de Débora, p.97-101.
43
Esse tributo seria efetuado em forma de prata. As tribos israelitas negam-se a pagá-lo. Esta
recusa desencadeia o conflito armado.
No entanto, um ideal igualitário contido na memória bíblica veteroneotestámentaria,
especificamente no Cântico de Débora, não contradiz a existência de um feudalismo
cananeu. Pois, a coletividade da terra, pressuposta nos moldes tribais israelitas, pode
relacionar-se com fomentação ideológica dos camponeses em adquirir a propriedade
privada dos cidadinos senhores cananeus. Ou ainda, considerando que as cidades
fortificadas continuaram sua existência depois do conflito relatado em Juízes 5, o
igualitarismo na propriedade deve restringir-se as montanhas, local de ocupação dos
camponeses empobrecidos, como uma forma de resistência à opressão cidadina. Sabe-se
que a ocupação das montanhas a partir do final do 13º século determinou, durante séculos,
a história da terra de Canaã.
51
Assim, o espaço de socialização da terra não seria as
planícies, que ainda estavam ocupadas pelas cidades fortificadas da elite opressora, mas as
montanhas, que passou a ser o lugar de ocupação dos camponeses refugiados. Por isso, não
é circunstancial que Débora estava na montanha de Efraim (Juízes 4,5), e o lugar da
reunião das tribos é o monte Tabor (4,12)! No entanto, tratando-se de Juízes 5, observa-
se que o campesinato visava ainda uma sobrevivência nas planícies, em meio ao
feudalismo cananeu. As rotas acessíveis aos ribeiros das planícies férteis do norte foram
bloqueadas pelos reis cananeus (5,6). Assim, o campesinato luta pela sobrevivência nas
planícies.
Portanto, nas planícies o conflito social opõe campo e cidade, vila e burgo,
camponeses e cavalheiro. A cidade espolia a roça e controla a terra. Designamos este
sistema de feudalismo cananeu.
52
Esse parece ser o motivo da batalha relatada em Juízes
5.
1.3.3 O lugar do confronto
50
Carlos Arthur Dreher, O Cântico de Débora, p.99.
51
Milton Schwantes, História de Israel Local e origem, p.63-80; Euclides Martins Balancin, História do
povo de Deus, São Paulo, Paulus, 1989, p.21-22.
52
Milton Schwantes, História de Israel Local e origem, p.57; Nelson Kilpp, A Sociedade e a Religião do
Israel Libertado, p.244-248.
44
Até observamos os integrantes da batalha e a causa da mesma. Agora nossa tarefa é
localizar geograficamente a batalha. Vejamos!
Juízes 5,15a refere-se ao vale. O texto nos coloca no Vale de Jezreel, a mais vasta
planície da Palestina. O lugar do confronto entre as tribos israelitas e os reis de Canaã seria
entre Taanaque (Tell Taannek) e Meguido (Tell el-Mutesellim), aproximadamente 10-15
km de extensão no sentido noroeste-sudeste. No leste e nordeste do Meguido há uma
grande quantidade de fontes de água e riachos perenes; entre esses riachos está o curso
superior do Quison (nahar el-Muqatta). Trata-se das águas do Meguido, citadas em
5,19-22.
O Quison é um pequeno ribeiro de curso periódico. No verão, época da seca, o curso
superior do ribeiro quase não tem água. Por isso, provavelmente a batalha aconteceu no
inverno, nas primeiras ou nas últimas chuvas. Os reis cananeus, apesar de possuir um
melhor equipamento do que os israelitas (carros de ferro, 4,3), foram sucumbidos pela
correnteza do ribeiro Quison. Carlos Dreher comenta que na época das chuvas intensas, o
leito do Quison pode espraiar-se por mais de 100m, num local onde antes sua largura era
de aproximadamente 1,5 m.
53
E não é nada incomum o caminhante incauto ser apanhado
de surpresa pela torrente de um wadi até pouco ainda seco, mas transbordado pelas águas
escorridas das encostas montanhosas, em virtude de uma chuva repentina, entre os meses
de outubro e novembro, diz Carlos Dreher.
54
Assim, o local da batalha favoreceu a derrocada da elite cidadina. A inundação do
Quison transformar-se-á num numa referência teológica à Javé (Juízes 5,20-21). Por aqui,
basta-nos a referência geográfica do Quison.
1.3.4 A data da batalha
Não é uma tarefa fácil responder acerca do momento histórico em que ocorreu a
batalha liderada por Débora e Baraque. Tentaremos, com outros estudiosos, sugerir o
momento temporal do conflito.
53
Carlos Arthur Dreher, O Cântico de Débora, p.69.
54
Carlos Arthur Dreher, O Cântico de Débora, p.69.
45
Herbert Donner sugere a segunda metade do século 11 a.C., em algum momento que
antecedeu a monarquia de Saul. Atentemo-nos às suas palavras:
Considerando-se, porém, o surgimento certamente paulatino de uma consciência
de coesão israelita e a circunstância de que no começo da época dos juizes as
tribos dificilmente estavam em condições de travar uma confrontação bélica desse
porte contra os cananeus, uma data mais recente se torna mais provável do que
uma mais antiga: a primeira metade, talvez só a segunda metade do séc. 11 a.C.,
não muito antes do rei Saul.
55
No entanto, Carlos A. Dreher propõe uma data mais recuada. A menção dos danitas
trabalhando com navios (5,17) pressupõe um trabalho portuário, muito mais propenso na
época em que os danitas ainda estavam no sul da Palestina, pois, o acesso no norte às
cidades portuárias é muito mais difícil que no sul.
56
Portanto, a menção dos danitas
trabalhando com navios alude à uma época em que ainda o havia migrado para o
norte. Além desse dado, Carlos A. Dreher argumenta que em 5,8b alude-se a 40 unidades
em Israel, pressupondo assim um período muito mais antigo do que a monarquia de Saul
que, segundo 1Sm 11,8, conta com 300 unidades de defesa somente em Israel,
acrescidas de mais 30 de Judá
57
. Notamos outros dois dados que leva Carlos A. Dreher a
concluir que a batalha relatada em Juízes 5 é de um período mais antigo:
58
a ausência da
menção das tribos do sul, o que sugere que elas ainda não estavam ingressadas em Israel; e
a ausência da teologia exodal, o que acena a um período em que a libertação do Egito
ainda não fora disseminada na Palestina. Através desses argumentos, Carlos A. Dreher
data os acontecimentos relatados em Juízes 5 na primeira metade do século 12 a.C, ou em
números redondos, para antes de 1150 a.C.
59
55
Herbert Donner, História de Israel e dos povos vizinhos, vol.1, p.189-190.
56
Carlos Arthur Dreher, O Cântico de Débora, p.74.
57
Carlos Arthur Dreher, O Cântico de Débora, p.75.
58
Carlos Arthur Dreher, O Cântico de Débora, p.75-76.
59
Carlos Arthur Dreher, A formação social do Israel pré-estatal Uma tentativa de reconstrução histórica, a
partir do Cântico de Débora (Juízes 5), em Estudos Teológicos, São Leopoldo, Escola Superior de Teologia,
vol.26, 1986, p.171.
46
Sabe-se que em 1220 há uma entidade chamada Israel na Palestina, referida na
estela de Mernepta
60
. Porém, é evidente que, antes de 1220 a.C., deve ter se formado
e existido uma grandeza chamada Israel. No final do 13º século a terra de Israel
caracteriza-se por um fenômeno de profunda pauperização da população campesina nas
vilas e nos vilarejos das cidades-Estado. Esta pauperização se de dois modos.
61
O
primeiro é: não podendo aumentar os tributos ou na falta de ter o que arrecadar, o estado
cananeu aperfeiçoa a corvéia, fazendo o agricultor trabalhar mais para os senhores da
cidade. O segundo é: não podendo pagar suas dívidas, o camponês é sujeito à escravidão,
ou seja, vende-se a si mesmo e sua família para saldar as dívidas em tributos e
empréstimos. A alternativa que os camponeses encontram para fugir da opressão cananéia
é a fuga para as montanhas, onde os carros de guerra, manuseados por aqueles, não são
acessíveis. No decorrer do século 12 a.C. os israelitas passavam a ocupar as montanhas.
Observa-se em Juízes 4,12 que o lugar da reunião é o Monte Tabor, e em 4,5 -se que
Débora é das montanhas de Efraim. Nessa época se deu a batalha relatada em Juízes 5,
quando os israelitas ainda nem pensavam em conquistar as cidades fortificadas. Junto ao
Quison, Débora e seus aliados obtiveram espetacular vitória, mas esta vitóriao alterou o
estatus quo. Milton Schwantes explica:
Em nenhum momento o alvo de guerra é a derrocada dos burgos! Débora e
Baraque não visavam a conquista, mas a sobrevivência do campesinato na
planície. Em jogo estavam o direito de passagem pelas estradas da planície (Juízes
5,6) e o acesso a algumas áreas agricultáveis, particularmente junto aos
ribeiros.
62
Assim, a batalha relatada em Juízes 5 ocorreu no desenvolvimento dos séculos
anteriores a 1200, quando o campesinato cananeu se batia por sua sobrevivência em meio
às planícies férteis do norte
63
. Portanto, datamos a batalha do Quisom por volta da
primeira metade do século 13 a.C.
1.3.5 Autores(as)
60
Milton Schwantes, História de Israel Local e origem, p.71-72.
61
Milton Schwantes, História de Israel Local e origem, p.63.
62
Milton Schwantes, História de Israel Local e origem, p.74.
47
A composição do Cântico de bora provavelmente ocorreu num momento muito
próximo à batalha que descreve. Esse momento destaca o papel das mulheres. O texto é
fortemente carregado por mulheres Débora e Jael são as heroinas; as mulheres do palácio
são ridicularizadas , e provavelmente foi composto por mulheres.
64
Portanto, é provável que o Cântico de Débora provém originalmente de círculos
femininos.
1.3.6 O cântico e seu Sitz im Leben
Procuraremos aqui pela situação vivêncial do Cântico de Débora, seu Sitz im Leben.
Em que situação esse Cântico foi entoado? Onde surge? Atentemo-nos, pois, a essas
perguntas.
P. C. Craigie já havia afirmado que o Sitz im Leben do cântico é um festival, uma
celebração depois da vitória sobre uma confederação cananita. Tratar-se-ia, pois, de um
Festival de Renovação.
65
A menção das portas em 5,11 não se referia ao lugar onde os
guerreiros dormiam, nem à cidade dos inimigos, mas sim, seria o lugar onde o festival foi
celebrado, talvez sobre o Monte Tabor. Este festival seria celebrado por uma confederação
de tribos, constituída por Isacar, Naftali e Zebulon, que já se intitulavam Israel. Depois
de vencer Sísara de Hasiret-Goim, a noroeste da planície de Jezrael, essas tribos de Israel se
reuniram no Tabor para celebrar a vitória sobre os cananeus. Estaríamos, então, no Sitz im
Leben da antiga memória de Javé, ou seja, numa celebração cúltica .
A. H. Mayes havia dito que a ausência da tradição exodal no ntico, que é um
elemento traditivo constitutivo para o Israel enquanto nação, bem como a menção de
somente algumas tribos no Cântico, faz com que a afirmação de que o Cântico é um poema
cúltico somente é válida para um particular cenário da história do Cântico.
66
63
Milton Schwantes, História de Israel Local e origem, p.75.
64
Carlos Arthur Dreher, A formação social do Israel pré estatal Uma tentativa de reconstrução histórica,
a partir do Cântico de Débora (Juízes 5), p.171.
65
P. C. Craigie, The Song of Deborah and Epic of Tukulti Ninurta, em Journal of Biblical Literature,
Philadelphia, The Society of the Biblical Literature and Exegesis, vol.88, 1969, p.256.
66
A. D. H Mayes, Israel in the Period of the Judges, em Peter R. Ackroyd, Studies in Biblical Theology,
London, SCM Press, vol. 29, p.86.
48
No entanto, segundo Carlos A. Dreher, o gênero de literário de Jz 5, 3-31a é
nitidamente uma cântico de batalha. Seu lugar vivêncial seria o campo de batalha, não o
culto.
67
Assim, Jz 5 não nasceria no culto, mas no campo de batalha. Neste cântico o culto
está ausente. Nem mesmo o rito existe. A é transmitida na rua, cantada por
trabalhadores.
68
Até que ponto a afirmação de Carlos A. Dreher tem solidez? Pois, a possibilidade
de existir uma tradição cúltica antiga em Juízes 5,4-5, oriunda do sul do Mar Morto, sobre a
qual, a memória bélica se fundamenta. Valhamos, aqui, de uma observação de Roland de
Vaux: O relato em prosa e principalmente o cântico são bastante próximos dos eventos
para poderem nos transmitir fielmente o sentido que os participantes deram a essa guerra:
ele era para eles um ato sagrado
69
.
Então, afirmamos que apesar de o Cântico de Débora o pertencer ao âmbito do
culto, ele perfaz a guerra como um elemento sagro. O texto rememora uma celebração ao
Javé guerreiro. Discordamos, dessa forma, de Carlos A. Dreher, que defende que o poema
surgiu no campo de batalha. Antes, sustentamos que ele surgiu na celebração ao Javé
guerreiro. Esse é seu Sitz im Leben.
1.4 Conteúdo
Chegamos ao nosso tema: as antigas memórias de Jaem Juízes 5. analisamos a
forma do texto, o modo como poeticamente ele está estruturado e é desenvolvido. Também,
já detectamos a época e o lugar do texto, e constamos que ele é do período tribal. Então,
tendo observado à forma, agora observaremos o conteúdo ensinado através da forma. E,
tendo ressaltado a época e o lugar do texto, agora estamos aptos para desenvolver o
conteúdo, que pertence a um período antigo da história de Israel. Por isso, o Cântico de
Débora se trata de uma antiga memória bélica de Javé.
67
Carlos Arthur Dreher, O Cântico de Débora, p.23.
68
Carlos Arthur Dreher, O Cântico de Débora, p.124.
69
Roland de Vaux, Instituições de Israel no Antigo Testamento, tradução Daniel de Oliveira, São Paulo,
Editora Teológica, 2003, p.300.
49
Como já demonstramos anteriormente, o Cântico de Débora é composto por várias
subunidades literárias, sendo do nosso interesse aquelas que realçam o conceito de Javé
guerreiro. Vejamos, agora, os conteúdos de cada uma dessas subunidades.
1.4.1 V.3-5
Interessa-nos aqui analisar o conteúdo da subunidade que compõe os v.3-5.
Observando a relação entre as frases que compõem essa subunidade, realçaremos aqui o
conceito de Javé.
Começando com o v.3, notamos que este comporta cinco frases:
Ouvi, reis.
Dai ouvidos, comandantes.
Eu sou para Javé.
Eu cantarei.
Salmodiarei para Javé, o Deus de Israel
As duas primeiras frases são ouvi, reis e dai ouvidos, comandantes (v.3a). A
segunda frase é uma repetição da primeira. O conteúdo dessas duas frases são
intercambiáveis, portanto.
Nessas duas frases iniciais (v.3a) obtemos dois dados. O primeiro, alude a uma
convocação. O segundo, acena ao objeto da convocação.
A convocação é protagonizada por dois imperativos, cada qual nas duas frases iniciais
do v.3. Na primeira, o imperativo é W[m.vi ximu, cuja raiz é xm ouvir. Na
segunda, o imperativo é WnyzIa]h; haazinu, da raiz zn dar ouvidos. O primeiro é
um verbo qual imperativo masculino plural. O sentido básico do termo é o de notar uma
50
mensagem ou simplesmente um som.
70
É sinônimo do segundo termo, zn dar ouvidos.
Este, por sua vez, é um verbo hifil imperativo masculino plural, usado também em Dt 32,1
e Gn 4,23 para introduzir um cântico. Frequentemente aparece com xm, formando uma
fórmula introdutória na boca do maestro
71
. As duas frases, pois, iniciam-se com dois
imperativos sinônimos, o que parece enfatizar e solenizar a convocação.
Na seqüência das frases lemos o objeto da convocação. Na primeira frase lemos os
~ykil'm. melakim reis e na segunda notam-se os ~ynIz>ro roznim
comandantes, dignitários. Carlos A. Dreher diz que comandantes são os senhores das
cidades-estado cananéias, adversários de Israel, citados no v.19.
72
O termo %lm mlk na
primeira frase alude à todo tipo de domínio monárquico, seja de um estado, de um país ou
território, de uma tribo ou de um povo.
73
Talvez os ~ynIz>ro roznim seriam os
comandantes ou dignitários que comporiam o exército cananeu. Mas, no geral, ~ykil'm.
melakim e ~ynIz>ro roznim aludem a um mesmo grupo de pessoas: senhores das
cidades-Estado da Palestina. Referem-se aos dominadores dos camponeses empobrecidos.
Interessantemente a subunidade que compõem os v.3-5 começa falando sobre os
reis e comandantes, nas duas primeiras frases do v.3. Esses são os adversários de
Israel. A subunidade não se principia falando de Israel, ou do Deus de Israel, mas dos
inimigos deste e daquele. Alude aos inimigos, não porque eles sejam os focos da
subunidade, mas porque eles são sujeitos que ouvem e que dão ouvidos ao cântico que será
anunciado nas próximas três frases do v.3, entoado pelo vencedor. Então, não se fala deles
(inimigos) para eles, mas deles para aquele que canta. Com isso, já estamos na terceira
frase do v.3: eu, para Javé. Depois da menção dos derrotados (reis e comandantes), o
texto imediatamente fala daquele que venceu: eu ykinOa' anoki. Mas, esse também
70
Hermann J. Austel, xm , em Laird Harris, Gleason L. Archer e Bruce K. Waltke (editores), Dicionário
internacional de teologia do Antigo Testamento, tradução de Márcio Loureiro Redondo, Luiz Alberto Sayão e
Carlos Osvaldo Pinto, São Paulo, Edições Vida Nova, 1998, p.1586.
71
G. Liedke, zn , em Ernst Jenni e Claus Westermann (editores), Diccionario teológico manual del Antiguo
Testamento, Madrid, Ediciones Cristiandad, vol.1, 1978, p.165, citando Hans Walter Wolf.
72
Carlos Arthur Dreher, O Cântico de Débora, p.19. O autor traduz roznim como príncipes. No entanto,
acreditamos que a melhor tradução seja comandantes ou dignitários, pois não haviam príncipes no
período tribal.
51
não fala de si para si, mas de si para Javé. A preposição l. le para prefixada ao nome
hw"hy> Javé expressa um ser, estar ou acontecer em direção a, para. O
ykinOa' anoki eu é para Javé.
Então, até aqui o texto apresentou as personagens do drama: os reis e os comandantes,
que perderam a batalha; o locutor eu, vencedor da batalha, e Javé, o agente da vitória.
Este é apresentado por último, não por ser o menos importante, mas por ser aquele ao qual
a dramaticidade do texto preparou caminho para sua menção. Após o perdedor e após o
vencedor, está Javé, que é o responsável em fazer do perdedor um perdedor e o responsável
em fazer do vencedor um vencedor.
Na quarta frase, anuncia-se o verbo esperado na terceira frase, hr'yvia' axirah
cantarei, verbo qal imperfeito na primeira pessoa, cuja raiz é xyr salmo, canto. O
vencedor entoa um cântico. Interpretando essa frase à luz da frase anterior e da posterior,
sabemos que o cântico é hw"hyl; para Ja. Então, agora, na quarta frase do v.3, o
eu canta, considerando que na frase anterior já havia expressado o real motivo de sua
cantiga: Javé. Ele canta, mas não antes de anunciar aquele ao qual a canção é direcionada.
Dessa forma, o ryvi xyr canto, na quarta frase, é anunciado depois da subunidade
ter falado sobre os derrotados (reis e comandantes), depois da apresentação do
vencedor eu, e depois da apresentação daquele que concedeu a vitória ao vencedor,
Javé. O canto vem por último, portanto. É aquilo que sucede a vitória. É uma resposta à
vitória! É aquilo que resta para um vitorioso. Quando a vitória acontece, quando os
inimigos são derrotados, não resta outra coisa ao vencedor, senão o canto.
No entanto, a terceira e quarta não disseram tudo o que o ykinOa' anoki quis
dizer. A menção de Javé por si mesma, na terceira frase, não tem sentido. Ganhará uma
nova representação com a quinta frase: salmodiarei para Javé, o Deus de Israel. Agora,
73
Alberto J. Soggin, mlk , em Ernst Jenni e Claus Westermann (editores), Diccionario teológico manual del
Antiguo Testamento, vol.1, p.1242.
52
nessa frase, se dirá o verdadeiro motivo da vitória, e consequentemente, a razão do canto.
Vejamos!
Iniciando a quinta frase está o verbo rMez:a] azamer salmodiarei, verbo piel
imperfeito na primeira pessoa, da raiz zmr, que aparece 39 vezes nos salmos
74
. Este termo
associa-se com xyr, da quarta frase. Portanto, a quarta e a quinta frases iniciam-se com dois
verbos sinônimos, ambos no imperfeito.
Na seqüência da quinta frase lemos a expressão laer'f.yI yhel{a/ hw"hyl;
para Javé, o Deus de Israel. Volta-se ao real motivo do salmo, para Javé, já anunciado
na terceira frase, mas agora, com um novo sentido: Javé é o Deus de Israel. O nome
laer'f.yI Isra-el Israel fecha a última frase do v.3. O termo é composto pelo verbo
hrf xrh lutar, acrescido por
lae
el Deus. Por isso, Isra-el significa Deus luta.
Assim, somente na última frase do v.3 apresenta-se o conceito do Deus bélico! Mas, o
fato de vir por último não significa que esse conceito é diminuto. Pois, se os reis e
comandantes devem ouvir e dar ouvidos, e se o ykinOa' anoki eu têm motivos
para proclamar um canto e um salmo para Javé, é porque este Deus lutou, derrotando
os reis e os comandantes, concedendo a vitória ao ykinOa' anoki. Então, o para
Javé não é suficiente para entendermos o conceito da divindade no texto. A menção de
Javé por si mesma não proporciona nenhuma razão na subunidade. O Deus que luta, o Isra-
el, é o mais importante! Portanto, afirmamos que todas as frases do v.3 devem ser
direcionadas ao final do mesmo. Pois aqui se anuncia o Deus bélico, o Deus que luta. Aqui
se explica o que os reis e comandantes devem ouvir e dar ouvidos; anuncia-se não somente
Javé, mas a ação de Javé, que é a real razão do canto e do salmo proclamados na quarta e
quinta frases. Se Javé não fosse o Deus de Israel, o Deus que luta, não haveria razão para o
ykinOa' anoki celebrar. A celebração se dá em função da luta!
74
Luis Alonso Schökel, Dicionário bíblico hebraico-português, tradução de Ivo Storniolo e José Bortolini,
São Paulo, Paulus, 1997, p.195.
53
A repetição da expressão laer'f.yI yhel{a/ Deus de Israel nos v.3 e 5 não
tem somente uma função literária de unir esses versos numa única subunidade. Quer
também expressar um conteúdo teológico. Afinal, o poema ensina o conteúdo através da
forma, traduz em poesia sua teologia. Afirmamos, pois, que a repetição objetiva identificar
Javé como o Deus de Israel. Javé é o Deus de Israel. Ele é o Deus que luta!
Portanto, a quarta e a quinta frase do v.3 expressa o som a ser ouvidos pelos reis e
comandantes: um canto, um salmo. Observa-se, pois, que o Javé guerreiro é celebrado.
Assim, o Cântico de Débora, logo no início de sua primeira subunidade literária, proclama
uma memória bélica onde o Javé guerreiro é celebrado.
A partir do v.4 o eu sai de cena. A ação do vencedor desaparece. Fala-se, agora, da
ação daquele que deu ao vencedor a vitória, Javé. Proclama-se agora a real motivação para
o canto e para o salmo anunciados nas três frases finais do v.3: a saída de Javé do Sinai e
sua marcha com o povo de Israel. Estamos, pois, no v.4. Este, logo no início de sua
primeira frase anuncia a hw"hy> Javé. Agora ele é o protagonista e diante dele os
elementos da natureza reagirão.
4 Javé, em teu sair a partir de Seir.
Em teu marchar a partir do campo de Edom.
Terra estremeceu.
Em especial céus gotejaram.
Em especial nuvens gotejaram águas.
5 Montes escorreram
De diante de Javé, aquele do Sinai.
De diante de Javé, o Deus de Israel.
54
Após a apresentação do protagonista principal, hw"hy> Javé, a primeira frase
do v.4 passa a falar de sua ação: ^t.aceB.. be-stek em teu sair, infinitivo construto
de acy ys sair, apresentar, avançar
75
, sufixado com a segunda pessoa masculino
singular, tu. A frase encerra-se falando da origem de Javé: ry[iFemi mi-seir de
Seir. O substantivo ry[iFe seir é prefixado pela preposição !mi min de, a partir
de. Esta preposição pode indicar o ponto inicial de um movimento ou designar o lugar de
origem de algo.
76
Em nossa frase, o termo parece designar tanto o ponto inicial da marcha
de Javé, bem como sua originalidade: monte Seir. Este termo, Seir, à luz da expressão no
final do v.5, aquele do Sinai, parece designar a morada de Javé antes dele sair à luta.
O sentido da primeira frase se clarificará mediante a segunda frase. Esta se inicia com
a forma verbal ^D>[.c;B. besadek, oriunda do verbo qal infinitivo construto de D[c
sd marchar, dar passos, com o sufixo da segunda pessoa masculino singular tu. Esse
termo tem uma conotação bélica. Em linguajem militar, usa-se o vocábulo basicamente
com referencia a Javé. Ele marcha diante do exército de Israel, garantindo seu povo a
vitória em combate (Jz 5,4).
77
Na continuação da frase, lemos que Javé marchou ~Ada/ hdeF.mi mi-sdeh
edom desde o campo de Edom. A semelhança do termo que encerra a primeira frase, de
Seir, o termo mi-sdeh a partir do campo é prefixado pela preposição !mi min de.
Considerando, pois, que essas duas frases que iniciam o v.4 são intercambiáveis,
afirmamos que os termos Edom e Seir são sinônimos (Gn 36.20s). Portanto, as duas
primeiras frases aludem a região onde estava localizado o Sinai, antiga morada de Javé.
Na construtividade das duas frases iniciais do v.4, observamos que a seqüência
poética delas é semelhante. Logo, afirmamos que as duas frases expressam conteúdos
75
Dicionário hebraico- português & aramaico- português , Nelson Kirst, Nelson Kilpp, Milton Schwantes,
Acir Raymann e Rudi Zimmer (autores), p.92.
76
Dicionário hebraico- português & aramaico- português , Nelson Kirst, Nelson Kilpp, Milton Schwantes,
Acir Raymann e Rudi Zimmer (autores), p.130.
55
semelhantes. A segunda frase repete a primeira. O sair de Javé deve ser entendido à luz
do seu marchar. Um não pode existir sem o outro. Para marchar, é preciso sair, e a saída
consiste na marcha. O sair tem uma conotação bélica. O conceito de Javé como um Deus
estático, morador de uma montanha, está superado! Então, ele saiu do seu santuário, e isso
significa necessariamente afirmar que ele marchou desde seu santuário. Agora, Javé não
está mais no monte, mas está com seu povo. Este conceito pertence ao período tribal. È,
pois, uma antiga memória de Javé. Tal conceito conflita com a teologia que será
desenvolvida posteriormente pelo templo de Jerusalém, onde se afirma que o nome divino
habita no templo.
78
Após as duas frases iniciais do v.4 mencionar o sair e o marchar de Javé, as
frases seqüências do v.4 e o início do v.5 referem-se à algumas convulsões da natureza.
Agora, não se fala mais da ação de Javé em si. Mas, alude-se às reações da natureza ante a
saída e a marcha de Javé. Trata-se da teofania. À medida que Deus avança, todos os
elementos da natureza reagem afirmativamente, reconhecendo seu senhorio e apoiando seu
esforço (Sl 68,7; Hc 3.12; cf. Jr 10.5).
79
A teofania inicia-se com a terceira frase do v.4, terra tremeu. Essa se inicia
anunciando o sujeito da frase, terra, para depois afirmar sua ão mediante um verbo qal
perfeito na terceira pessoa feminina: hv'['r' raaxah tremeu, cuja raiz é v[r rx
tremer, estremecer. O mesmo termo aparece em 1Rs 19,11 para se referir à teofania. O
texto de 1Rs 19 rememora a antiga tradição sinaítica. E sabemos que uma das
características da teofania do Sinai era o tremor (Ex 19,16.18). Portanto, a frase terra
tremeu alude a tradição do Sinai.
A quarta e a quinta frase do v.5 são em especial os céus gotejaram e em especial
nuvens gotejaram águas. Já notamos que o estilo poético dessas duas frases é muito
parecido. Nelas nota-se a repetição da partícula conjuntiva ~G: gam em especial. Uma
observação de se fazer sobre ~G: gam. Essa conjunção tem um caráter enfático (em
77
John E. Hartley, sd, em Laird Harris, Gleason L. Archer e Bruce K. Waltke (editores), Dicionário
internacional de teologia do Antigo Testamento, p.1296.
78
J. Alberto Soggin, Judges A commentary, p.84-85.
56
especial, cf. Jl 3,2), mais que associativo (também).
80
Então, essas duas frases conferem
uma atenção especial à água.
Referindo-se à água, as duas frases aludem ao gotejar @jn ntp. Em outros textos
do Antigo Oriente o termo @jn ntp é usado para referir-se a tal orvalho e shr chuva,
com o campo ou montanhas como sujeito, para simbolizar a alegria futura.
81
O termo é
usado metaforicamente em Jó 29.22: minhas palavras ficavam gotejando sobre eles, ou
seja, suas palavras eram agradáveis para seus ouvintes, igual a chuva.
82
Mentalizando isso,
afirmamos que a quarta e a quinta frase do v.4 enfatiza o gotejar da água.
No entanto, na quarta frase, a LXX traduziu Wpj'n" natapu como etaraxte,
embora outro manuscrito transcreva como exestathen, propondo respectivamente duas
possibilidades para o hebraico: namogu e namotu
83
, ambos no nifal. A primeira procederia
de mvg
84
, que em qal significaria derreter, e no nifal dissolver
85
. A segunda seria de
mvt
86
, que em qal referia-se a um tremor, enquanto que no nifal significaria ser
abalado
87
. Se a segunda proposta estiver correta, o abalo dos céus seria paralelo ao
tremor da terra. No entanto, não de se duvidar da vocalização do texto massorético,
pois este realça a água que goteja das nuvens nos céus e caracteriza a teofania de Javé, o
qual se manifestou-se ao derrotar os reis cananeus exatamente mediante a água, que
inundou o riacho de Quison (v.20-21).
79
John E. Hartley, sd, em Laird Harris, Gleason L. Archer e Bruce K. Waltke (editores), Dicionário
internacional de teologia do Antigo Testamento, p.1296.
80
Pedro Julio Triana Fernández, Caminhar para a esperança Uma leitura de Joel 3,1-5, São Bernardo do
Campo, Instituto Metodista de Ensino Superior, 1994, p.175 (Dissertação de Mestrado).
81
Madl, ntp, em Theological Dictionary of the Old Testament, G. Johannes Botterweck, Helmer Ringgren e
Heinz-Josef Fabry (editores), Grand Rapid/ Cambridge, William B. Eerdmans Publisching Company, vol.9,
1999, p.395.
82
Samuel Prideaux Tregelles, ntp, em Gesenius Hebrew and chaldee lexicon to the Olde Testament
Scripture, p.547.
83
Bíblia Hebraica Stuttgartensia, in loco.
84
Benjamim Davidson, namog, em The analytical hebrew and chaldee lexicon, London, Hendrickson
Publishers, 1850, p.551.
85
Dicionário hebraico- português & aramaico- português , Nelson Kirst, Nelson Kilpp, Milton Schwantes,
Acir Raymann e Rudi Zimmer (autores), p.117.
86
Benjamim Davidson, namog, em The analytical hebrew and chaldee lexicon, p.551.
87
Dicionário hebraico- português & aramaico- português, Nelson Kirst, Nelson Kilpp, Milton Schwantes,
Acir Raymann e Rudi Zimmer (autores), p.118.
57
Além disso, parece ter outra razão mais forte para se apoiar o texto massorético,
observando simplesmente a dinamicidade própria entre a quarta e a quinta frase do v.4. Na
quinta frase fala-se do gotejar (Wpj'n") das nuvens, aludindo às águas (~yIm').
Considerando que a quarta frase deve ser entendida à luz daquela que a segue, afirmamos
que ela (a quarta frase) não refere-se ao tremor dos céus, mas ao seu gotejar; alude às
águas. Ao meu ver, isso é uma alusão a uma chuva que inundou o ribeiro Quison (v.20-
21). Com isso, sustenta-se a vocalização de Wpj'n" natapu do texto massorético, bem
como entendemos o seu significado.
Logo, o termo ntp significa gotejar, escorrer, destilar, pingar, manar,
verter
88
. É água de cima e água de baixo! A quarta e a quinta frase do v.4 alude a água
que pinga e água que mana. E elas o somente aludem a água, mas enfatizam-na: ~G:
gam em especial.
Passemos agora a primeira frase do v.5, montes escorreram. Discute-se sobre a
vocalização do termo Wlz>n" nazlu escorreram. A LXX traduziu o termo como
, que seria equivalente ao nifal nazollu
89
, uma derivação de zll
llz
tremer,
estremecer
90
. Assim também traduziu o Targum e Peshitta.
91
Mas o texto massorético
apresenta a forma derivada do verbo nzl lzn, que significa fluir, escorrer, pingar,
gotejar, manar
92
. Se a primeira forma estiver correta, o estremecimento dos montes no
verso 5aa retomaria o tremor da terra em 4bb. No entanto, muitos exegetas, como Carlos A.
Dreher, afirmam que parece não haver motivo para se duvidar da vocalização de nazlu
Wlz>n". Carlos A. Dreher afirma que o(s) autor(es) alterou as vogais da palavra, para
lhe dar uma nova conotação, aludindo, dessa forma, ao assunto do seu interesse: a relação
88
Luis Alonso Schökel, ntr, em Dicionário bíblico hebraico-português, p.433.
89
Biblia Hebraica Sttgartensia, in loco.
90
Samuel Prideaux Tregelles, zll, em Gesenius Hebrew and chaldee lexicon to the Olde Testament Scripture,
p.246.
91
Biblia Hebraica Sttgartensia, in loco.
92
Dicionário hebraico- português & aramaico- português, Nelson Kirst, Nelson Kilpp, Milton Schwantes,
Acir Raymann e Rudi Zimmer (autores), p.153.
58
entre a teofania de Javé descrita nesse texto e a ruína dos reis cananeus mediante a
enchente de um ribeiro, conforme lemos nos versos 20-21.
93
Então, sem hesitação, podemos afirmar, junto com Carlos A. Dreher, a autenticidade
da vocalização de Wlz>n" nazlu. No entanto, discordamos dele quanto ao significado
de Wlz>n
"
nazlu. Advogamos que, aqui em Jz 5,5, o sentido de nazlu não é gotejar,
mas manar, escorrer. Refere-se, pois, ao escorrer das lavas vulcânicas pelas
montanhas! Interpretamos a primeira frase do v.5 olhando para a terceira do v.4. A
construção de ambas é semelhante: iniciam-se com o sujeito, tendo, na seqüência, o verbo
qal perfeito na terceira pessoa:
Terra tremeu hv'['r' #r,a,
Montes escorreram Wlz>n" ~yrIh'
Então, o tremor da terra e o escorrer das lavas são intercambiáveis. Quando os montes
tremem, as lavas vulcânicas escorrem. Trata-se da antiga memória sinaítica! Aqui
identificamos um antigo conceito da divindade: o Deus vulcânico.
No entanto, a tradição sinaítica é re-atualizada. Não se trata mais do Deus vulcânico,
estático, que mora numa montanha. Na antiga tradição sinaítica Javé manifestava-se pelo
tremor, pelo escorrer das lavas e pelo fogo. Mas, agora, a manifestação do fogo se em
função da luta! Então, a manifestação lica de Javé acontece pela água (v.4) e pelo fogo
(v.5a). Assim, perguntamos: fogo e água são termos antagônicos? Sim. Mas, em nosso
texto não! Pois, todos eles se fundem na manifestação do mesmo Deus Javé. A água e o
fogo se manifestam diante de Javé como lemos nas duas expressões do v.5b.
Dessa forma, a re-atualização do conceito de Javé se evidenciará nas duas últimas
expressões do v.5. O tremor, as lavas vulcânicas e as águas agem diante de Javé,
literalmente diante das faces de Javé (hw"hy> ynEP.mi).
93
Carlos Arthur Dreher, O Cântico de Débora, p.22-23.
59
Na penúltima expressão do v.5 lemos sobre a antiga tradição sinaítica: yn:ysi
hz< zeh sinay aquele do Sinai. Muitos gramáticos acreditam que a expressão do texto
hebraico devesse ser alterado, ou então, que se trata de um acréscimo.
94
Mas, o uso do
pronome hz< zeh usado em Juizes 5,5 levou muitos estudiosos a pensarem que a
formulação seja muito antiga. John Gray afirmou que o pronome demonstrativo é uma
antiga fórmula do particípio relativo de (aramaico e ugarítico), sendo que em árabe é dhu.
95
Observemos, ainda, uma nota de Milton Schwantes:
hz< poderia introduzir uma frase relativa (Javé que é o Sinai neste caso teria
o sentido de rv,a] ou poderia ser um pronome demonstrativo acrescido de um genitivo
(Javé aquele do Sinai). Em Jz 5,5 a partícula hz< só pode ser pronome demonstrativo.
Por isso a expressão n:ysi hz< hw"hy> significa: Javé, aquele do Sinai.
96
Então, Ja é aquele do Sinai. Alude-se à origem de Javé, sua antiga morada no
Sinai. Mas na última expressão do v.5 lemos que ele não é mais o Deus que mora no Sinai,
antes, é o Deus de Israel. Esta expressão fecha a subunidade e arremessa-nos ao fim do
v.3, onde o locutor emprega-a para expressar o real motivo de sua canção. Entendo, pois,
que a subunidade que compõe os v.3-5 centraliza-se no Deus de Israel. Este o somente
age pelo tremor e pelas lavas vulcânicas, como aquele do Sinai, mas, principalmente, age
pela água: ele é o Deus que luta através dos elementos na natureza. Jao está mais no
Sinai, mas na Palestina, na terra cultivável. Então, essa última expressão do v.5 confere
sentido aos v.4 e v.5. Se ele fosse o Deus estático do Sinai faria sentido somente afirmar
que os elementos tremor e escorrer das lavas agem diante dele. Mas, como ele é o
Deus de Israel, evoca-se em especial a água, elemento da terra cultivável. A água é um
elemento teofanico tão importante quanto àqueles elementos da antiga tradição sinaítica!
Em resumo, reafirmo aqui o conteúdo dos v.3-5. Eles estão a acenar para Javé, o
Deus de Israel. No v.3, os inimigos derrotados de Israel são convocados a ouvir a cantiga
94
Bíblia Stuttgartensia, in loco.
95
John Gray, Joshua, Judges and Ruth, Oliphants, Morgan & Scott, 1977, p.216 (New Century Bible).
60
do vencedor. A centralidade desse ouvir e desse cantar é Javé, o Deus de Israel. Pois, a
menção de Javé em si não é valorosa. É preciso que ele seja o Deus de Israel. Assim, o
ouvir dos inimigos e o cantar do vencedor acontece em função do Deus da luta. Os v.4-5
afirmam sua saída do monte Sinai para os campos de batalha. O foco deles é a água,
mencionada nas frases finais do verso 4, onde a repetição da partícula gam enfatiza-a. Já o
tremor da terra e o escorrer dos montes relembraria a tradição sinaítica. Assim,
intercambiam-se no texto duas tradições. Uma, seria a tradição da terra cultivável, que
alude ao Deus Javé que manda água, a semelhança do deus agrário baal. Outra, seria a
tradição nômade, não pertencente à terra da Palestina, a saber, a antiga tradição sinaítica.
Observa-se, no entanto, a fusão das duas tradições. O Javé sináitico é re-atualizado: não
somente age mediante elementos vulcânicos, como no Sinai, mas também por elementos da
terra da Palestina, água e chuva. E nessa mistura de tradições e re-atualizações está a antiga
memória de Javé em Juízes 5, pertencente ao período tribal.
1.4.2 V.9-13
9
Meu coração para os comandantes de Israel,
os quais se oferecem entre o povo.
Louvai a Javé!
10 Que cavalgam jumentas brancas.
Que assentam sobre túnicas.
E que andam sobre caminho.
Atentai
11
a partir da voz dos que distribuem água entre os bebedouros.
Lá se cantam as justiças de Javé.
As justiças de seus camponeses, em Israel.
Então, desceram para os portões o povo de Javé.
12
Desperta, desperta, Débora.
Desperta, desperta, diga um cântico.
Levanta, Baraque,
e leva teus presos, filho de Abinoam.
13
Então, desceu um sobrevivente para os nobres.
96
Milton Schwantes, História de Israel Local e origem, p.153-154.
61
Povo de Javé desceu para mim como fortes.
A subunidade composta pelos v.9-13 abarca dois conteúdos: a guerra e a celebração
ao Javé da guerra. Esses conteúdos são intercambiáveis. Pois, a subunidade começa com
uma memória da luta (v.9a), que havia sido referida no v.8; prossegue com a celebração
(v.9b-12a), para finalmente aludir-se novamente a guerra (v.12b-13). Vejamos em detalhes
como isso se desenvolve!
A primeira frase do v.9 é meu coração para os comandantes de Israel. O locutor,
que já havia se expressado no v.3, volta à cena. Roberto G. Boling diz que o termo leb
coração é freqüentemente usado no sentido de decidir, sendo empregado dessa forma
nos v.15 e 16.
97
Na expressão lehoqqey yisrael para os comandantes de Israel a
preposição para indica exatamente a direção à qual o locutor se dirige: os
comandantes’’. Assim, o locutor expressa sua decisão em unir-se aos comandantes. O
termo hebraico que traduzimos como comandante é ~yqiq.Ax hoqqim, um particípio
plural de hqq esculpir, entalhar, inscrever
98
. Ou, ainda, pode ter o sentido de
determinar, decidir. Este último significado é proposto por Carlos A. Dreher,
indicando, então, aqueles que decidem, aqueles que tomam decisões
99
. Nesse sentido, a
tradução comandantes, proposta pelos dicionários
100
, é bastante coerente. Isso se clarifica
na forma verbal seguinte, os quais se oferecem. Então, aqueles que decidem (os
comandantes) se oferecem.
Ainda teço outra observação sobre a expressão os quais se oferecem entre o povo.
Os comandantes não compõem um exército organizado, mas são voluntários entre o povo
. Então, esses comandantes se oferecem. Mas para que? Considerando que o contexto é
bélico, que a guerra estava às portas (v.8), é obvio que se oferecem para a guerra.
97
Roberto G. Boling, Judge A new translation with introduction and commentary, New York, Garden City,
1975, p.110 (The Anchor Bible).
98
Dicionário hebraico- português & aramaico- português , Nelson Kirst, Nelson Kilpp, Milton Schwantes,
Acir Raymann e Rudi Zimmer (autores), p.76.
99
Carlos Arthur Dreher, O Cântico de Débora, p.31.
100
Jack P. Lewis, hqq, em Laird Harris, Gleason L. Archer e Bruce K. Waltke (editores), Dicionário
internacional de teologia do Antigo Testamento, p.520.
62
Portanto, o v.9a trata-se da entrega voluntária dos comandantes à batalha. E não
somente isso. Refere-se também a decisão do locutor em unir-se aos comandantes, como
uma resposta a decisão desses comandantes. Esses comandantes já haviam se decido à luta!
Mediante a entrega voluntária dos comandantes e da união do locutor à eles, surge o
brado do v.9b: hw"hy> Wkr]B' barucu Javé louvai a Javé. A forma verbal
baracu Wkr]B' está no piel, que significa abençoar, bendizer, louvar
101
. Em
Gênesis 14,20 a mesma raiz é usada, onde lemos bendito seja El Elyon. Também aí é um
contexto bélico (que entregou os teus inimigos nas tuas mãos). As expressões paralelas
mostram que se trata, em primeiro lugar, de uma ação de graças.
102
Assim, a LXX traduziu
como euvlogei/te, que se constitui também uma alegre exclamação de agradecimento e
admiração
103
.
Ainda notamos outra observação sobre Wkr]B' baracu. O termo evoca uma
benção verbal que:
Podia ser descritiva, sendo um reconhecimento de que aquele a quem ela se dirigia
estava evidentemente cheio deste poder que tivesse uma vida abundante e produtiva (Gn
14,19; 1Sm 26,25). Tal tratamento tornou-se um meio formal de expressar agradecimento e
louvor a certa pessoa pelo fato dela ter compartilhado dos benefícios de sua vida. É
bastante comum que o Senhor seja tratado dessa maneira.
104
Portanto, Javé é louvado. Da entrega voluntária dos comandantes (v.9a) passa-se
abruptamente para a celebração de Javé (v.9b). Retoma-se à celebração anunciada no
v.3b. Mas a relação mais forte é com o v.2b, onde havia aparecido a expressão
hw"hy> Wkr]B' , após a menção dos voluntários do povo. Os voluntários se
101
Dicionário hebraico- português & aramaico- português , Nelson Kirst, Nelson Kilpp, Milton Schwantes,
Acir Raymann e Rudi Zimmer (autores), p.33.
102
Keller, G. A., brk, em Ernst Jenni e Claus Westermann (editores), Diccionario teológico manual del
Antiguo Testamento, vol.1, p.521.
103
Keller, G. A., brk, em Ernst Jenni e Claus Westermann (editores), Diccionario teológico manual del
Antiguo Testamento, vol.1, p.521.
104
John N. Oswald, brk, em Laird Harris, Gleason L. Archer e Bruce K. Waltke (editores), Dicionário
internacional de teologia do Antigo Testamento, p.221.
63
entregam para a guerra, e o Javé da guerra é celebrado. Portanto, se o v.9a alude à guerra, o
v.9b refere-se à celebração que se seguiu a guerra!
O imperativo expresso do v.9b é direcionado a três grupos mencionados no v.10.
Esses são aludidos através de três frases, cada qual se iniciando pelo qal particípio
masculino plural: que cavalgam jumentas brancas, que se assentam sobre túnicas e
que andam sobre caminho. Roberto G. Boling sugere a possibilidade de que esses três
particípios representem um merisma, onde a totalidade da população é mencionada por
dois extremos: os que cavalgam (ricos) e os que andam a pé (pobres).
105
A segunda frase,
que se assenta sobre túnicas, também se referiria aos ricos. No entanto, Carlos A. Dreher
afirma: o conjunto da população é caracterizado pelo movimento ou postura de diferentes
grupos de pessoas, isto é, aqueles que cavalgam, aqueles que estão assentados, aqueles que
andam a pé
106
. Logo, parece que as frases não aludem à diferentes classes sociais, mas à
grupos de pessoas diferentes. Portanto, aos vários grupos dirige-se o imperativo do v.9b.
Assim, pois, a temática do v.10 ainda é a celebração. Refere-se aos grupos que devem
atender o imperativo do v.9b.
No final do v.10 surge um novo imperativo, Wxyfi sihu, que também se dirige aos
diferentes grupos da população. Assim, a menção de tais grupos é precedida e seguida por
dois imperativos, um no v.9b e outro no fim do v.10. O primeiro, no v.9b, convoca os
diferentes grupos para louvar a Javé; o segundo, no fim do v.10, convoca-os para se atentar
a outro grupo, os que distribuem água. Esse segundo imperativo é de significado
ambíguo. A tradução proclamar, falar alto é possível. Mas, como sugerem outros
estudiosos, o verbo também pode significar considerar, refletir, no sentido de prestar
atenção, como traduziu Carlos A. Dreher
107
. Como notamos anteriormente, o sihu
Wxyf não pode ser desassociado da expressão inicial do v.11, ~ycic.x;m.
lAQmi a partir da voz dos que distribuem água. Então, os diferentes grupos do v.10
são convocados à prestar atenção ao som entoado por aqueles que distribuem água.
105
Roberto G. Boling, Judge A new translation with introduction and commentary, p.110.
106
Carlos Arthur Dreher, O Cântico de Débora, p.33.
107
Carlos Arthur Dreher, O Cântico de Débora, p.10.
64
O termo ~ycic.x;m. mehassim os que distribuem água é um particípio piel de
#icx hss. O Targum e outros escritores judaicos traduziram como argueiro, de hts,
termo que aparece em Juízes 5,8.
108
Ou ainda, o texto está corrompido e possivelmente a
expressão ~ycic.x;m. lAQmi miqol mehassim é para ser lida como qol
mahasosrim
109
, o que sugeriria a tradução tocando trombetas
110
.
Mas não há razão para se alterar o texto massorético. A tradução distribuir é
possível.
111
A observação abaixo clarificará isso, e também demonstrará quem são esses
que distribuem água:
O cântico a Yahweh devia ser cantado ainda mais alto que os gritos daqueles que
disputavam um lugar junto aos bebedouros para dar de beber aos animais durante as
paradas das caravanas. Esses homens proclamavam em alta voz as novidades ou contavam
histórias, muitas vezes com a ajuda de címbalos ou outros instrumentos. Enquanto
divertiam os viajantes e transportavam água, esses homens obtinham algum sustento e
transmitiam os acontecimentos.
112
Assim, a partir da voz desses homens, pode-se ouvir o cântico que celebra as
justiças de Javé. Estamos, já, na segunda frase do v.11: se cantam os atos de justiça
de Javé. O advérbio ~v' xam , que inicia a frase, especifica o lugar onde se canta:
entre os bebedouros. O termo WNt;y> yetanu cantam é um verbo piel imperfeito.
A LLX traduziu como dw,sousin dar, conceder. Mas, a raiz do termo hebraico é hnt
tnh, cujo significado é controvertido. No entanto, pode-se sugerir que seja cantar,
celebrar
113
. Trata-se, indubitavelmente, da resposta ao imperativo do v.9b! Assim, os
distribuidores de água entoam o louvor ordenado no v.9b.
108
Samuel Prideaux Tregelles, hss, em Gesenius Hebrew and chaldee lexicon to the Olde Testament
Scripture, p.299.
109
Bíblia Stuttgartensia, in loco.
110
Luis Alonso Schökel, hss, em Dicionário bíblico hebraico -português, p.241.
111
Dicionário hebraico- português & aramaico- português , Nelson Kirst, Nelson Kilpp, Milton Schwantes,
Acir Raymann e Rudi Zimmer (autores), p.75.
112
John Walton, Victor Matheus e Mark Chavalas, Comentário bíblico Atos Antigo Testamento, p.259.
113
Dicionário hebraico- português & aramaico- português , Nelson Kirst, Nelson Kilpp, Milton Schwantes,
Acir Raymann e Rudi Zimmer (autores), p.268.
65
Analisando, ainda, a segunda frase do v.11, realço o conteúdo cantado entre os
bebedouros: hw"hy> tAqd>ci sidqot yehvah justiças de Javé. No início da
terceira frase lemos a mesma temática: atos de justiças de seus camponeses em Israel.
Embora sugeriu-se a possibilidade dessa terceira frase ser excluída do texto
114
, afirmamos
que há uma relação entre esta e a frase precedente. Pois, na segunda frase do v.11 alude-se
às justiças de Javé, e, na terceira, às justiças de seus camponeses. A derrocada dos
cananeus deve-se não somente à intervenção de Javé, mas também, à ação dos camponeses!
Antes de alisarmos a relação entre essas duas frases, convém observamos o
significado de tqod>ci sidqot justiças. Robert G. Boling disse que o tqod>ci
sidqot são vitórias.
115
Então, as justiças de Javé são os atos que Javé faz triunfar a
causa dos oprimidos, defendendo seu direito, fazendo justiça.
116
Ainda insistimos sobre o significado de sedaqah justiça no Antigo Testamento.
Hans-Joachim Kraus, comentando sobre o termo, diz que não é um conceito normativo,
mas sim um conceito de relação ou referência
117
. Ou seja, o termo não é tanto de caráter
jurídico, mas, principalmente, refere-se a uma relação (com Deus e com a comunidade).
Embora no Antigo Testamento a lei jurídica e religiosa o dissociava, pode-se dizer que
o termo tem um alcance muito mais moral do que forence, ou seja, é mais pertencente ao
campo ético do que a esfera de um tribunal
118
.
Notemos, ainda, o que diz Gerhard von Rad sobre a sedaqah justiça: constitui o
critério das relações entre o homem e Deus, dos animais entre si, até nas disputas mais
insignificantes, do homem com os animais e do homem com meio natural em que ele se
move
119
. Carlos A. Dreher também diz: em sentido lato, significa o conjunto de ões e
atitudes que mantêm, ou visam manter a igualdade entre as partes. Prevê um estado de
integridade absoluta, uma total ausência de males, que precisa ser restabelecida, quando a
114
Bíblia Stuttgartensia, in loco.
115
Robert G. Boling, Judges A new translation with introduction and commentary, p.111. Na mesma
página, o autor afirma que o termo é equivalente a (mi)spatim julgamento, usado em outros textos (Ex 6,6;
7,4; 12,12; Nm 33,4).
116
Luis Alonso Schökel, Josue y Jueces, Madrid, Ediciones Cristandad, 1973, p.159 (Los Libros Sagrados).
117
Hans-Joachim Kraus, Teologia de los Salmos, p.207.
118
Isaltino Gomes Coelho Filho, Teologia dos Salmos Princípios para hoje e sempre, p.60.
66
situação de igualdade se desfaz.
120
No contexto do Cântico de Débora a igualdade fora
rompida pela religião cananéia, que fundamentava a exploração e advogava para si o poder.
No entanto, a classe campesina recorre, também, à religião (javista) para legitimar sua
contestação. Pois a sedaqah justiça está quebrada, ferida, no momento em que a relação
contratual existente entre os grupos antagônicos deixou de ser recíproca
121
. A sedaqah
está transtornada. Mas, Israel está convencido que Javé intervém e restabelece a sedaqah de
seu povo.
122
Então, a expressão hw"hy> tAqd>ci sidoqod Javé alude a um aspecto
relacional. Além de Juízes 5,11, a expressão aparece 1Samuel 12,7 e Miquéias 6,5. Em
1Samuel 12,7 o termo é uma rememoração dos ações bélicas de Javé em favor de Israel,
inclusive das mãos de Sísara, que é celebrado no ntico de Débora (I Samuel 12, 9, cf.
Juízes 5,26.28).
Feitas essas considerações sobre a sedaqah, voltemos para a segunda e terceira frase
de Jz 5,11. A justiça fora rompida pela exploração dos reis cananeus. Então, celebra-se
Javé, que recompôs novamente a justiça. Mas não somente Javé fez isso, mas também os
camponeses de Israel. Lemos isso na terceira frase do v.11. Traduzimos o termo
AnzOr>Pi pirzono como camponeses. Normam Gottwald
123
e Carlos Dreher
124
traduziram como camponeses. Friedrich Erich Dobberahn questiona essa tradução,
propondo a alteração do texto massorético.
125
No entanto, mantemos o sentido de
camponeses. Defendemos que o Cântico de Débora assume uma postura anticananita a
favor dos camponeses empobrecidos pelo feudalismo cananeu. Então, se a segunda frase do
v.11 aludiu-se à celebração das justiças de Ja, a terceira refere-se às justiças dos
camponeses.
119
Gehard von Rad, Teologia do Antigo Testamento, vol.1, p.353.
120
Carlos Arthur Dreher, O Cântico de Débora, p.116-117.
121
Carlos Arthur Dreher, O Cântico de Débora, p.117
122
H. Koch, sdq, em Ernst Jenni e Claus Westermann (editores), Diccionario teológico manual del Antiguo
Testamento, vol.2, p.666-667.
123
Normam Gottwald, As tribos de Yahweh Uma sociologia da religião do Israel liberto 1250-1050 a.C.,
tradução de Anacleto Álvarez, São Paulo, Paulinas, 1986, p.589 (Coleção Bíblia e Sociologia).
124
Carlos Arthur Dreher, O Cântico de Débora, p.29.
125
Friedrich Erich Dobberahn, Carta ao leitor, em Estudos Teológicos, São Leopoldo, Escola Superior de
Teologia, vol.1, 1988, p.111-112.
67
Portanto, aqui em Juízes 5.11 as ações guerreiras são identificadas como divinas e
humanas; são justiças de Javé e justiças de seus camponeses. O poema alude à ação de
Javé, mas também, à ação dos personagens que desempenharam uma função bélica. A
vitória não é somente de Javé, mas também dos camponeses, que lutaram. Afirmamos que
esses camponeseso os voluntários do v.9a. Eles decidiram defender-se. São vitoriosos!
Por isso, as cantigas entre os bebedouros rememoram não somente Javé, mas também os
guerreiros protagonistas da batalha.
Assim, identificamos um outro conceito de Javé no Cântico de bora: ele deveria
ser socorrido pelos guerreiros. Nesse sentido, a ação de Javé é limitada. Ele não age
sozinho, mas age pelas mãos dos camponeses. Esse mesmo conceito está no v.23, onde se
diz que Javé precisa de socorro!
Vamos ao v.11c, então, desceram para os portões o povo de Javé. Trata-se do
momento final, que fora iniciado no v.9b. Ali lemos um imperativo, direcionado aos
diferentes grupos do v.10. O final do v.10 e o início do v.11 também convocam tais grupos
a se atentar na voz dos distribuidores de água, que cantam as justiças de Ja e dos
camponeses. Esses distribuidores de água, por sua vez, anunciam o que os diferentes
grupos do v.10 devem ouvir (v.11b), e assim, atendem ao imperativo expresso no v.9b.
Notamos, pois, que o v.9b e fim do v.10 e o v.11a destacam os grupos do v.10. A eles
dirigem os imperativos, que essencialmente evocam a celebração a Javé. Dessa forma a
ênfase está na convocação à celebração.
Dita essas palavras, centralizemos nossa atenção no v.11c. Alude-se a descida do
povo para os portões, que entendemos ser também uma resposta ao imperativo do v.9b.
Vejamos!
Observamos que a celebração das justiças, que se trata da resposta ao imperativo no
v.9b, está relacionada com a descida do povo de Javé aos portões. Após a dúplice repetição
do termo justiças, aparece o advérbio za' então, que interliga as justiças (de Javé e
dos camponeses) com a descida do povo aos portões. Assim, sustentamos aqui a hipótese
de que a descida do povo para os portões refere-se à celebração dos israelitas ao Javé
68
guerreiro, após a batalha contra os reis cananeus. Então, os portões não seriam o lugar da
guerra, como afirmou Carlos A. Dreher.
126
Este relacionou o v.11c com o v.8a, onde se diz
que a guerra estava às portas. Mas as portas do v.8 não seria o mesmo lugar do v.11.
Aqui, trata-se do lugar da celebração ao Jávé guerreiro. Aliais, o termo traduzido no v.8
como guerra é ~x,l', que só parece nesse texto, e é interpretado por outros estudiosos
como o pão da cevada acabou
127
.
A cantiga era entoada entre os bebedouros, num lugar não definido (v.11a) Isso
parece aludir à explosão imediata de um louvor que se seguiu imediatamente a após a
guerra. O euforismo e a alegria da vitória foram expressos nos primeiros momentos que
segue a batalha, ainda num lugar não definido, entre os bebedouros, na boca daqueles
que receberam as primeiras novidades da batalha. Mas, depois, a celebração passa a ser
entoada nos portões, num lugar definido. Ali está o povo de Ja, não para guerrear, mas
para atender ao imperativo do v.9b. A celebração acontece em função das justiças de
Javé e dos camponeses (v.11b). É a resposta ao restabelecimento da sedaqah justiça!
A forma verbal Wdr>y" yardu, perfeito de yrd descer, expressa uma ação
acabada. Portanto, o v.11c finaliza tudo aquilo que vinha sendo dito desde v.9b. A descida
do povo de Javé é a resposta do imperativo v.9b. É a resposta, inclusive dos grupos do
v.10! Eles também parecem compor o povo de Javé. Eles também parece terem atendido
ao imperativo do v.9b! Diferentes grupos, pois, formam o povo de Javé. Assim, as
diferenças igualizam-se pela celebração ao Javé guerreiro. A confissão num mesmo Deus,
que luta por uma causa comum, resulta na união de vários grupos. Afirmo, pois, que a
celebração a Javé é efetuada pelos diversos grupos que se alegraram após a derrocada dos
reis cananeus.
Portanto, os ~yrI['V. xearim portões não seria o lugar da guerra, mas o lugar
da celebração ao Javé guerreiro.
126
Carlos Arthur Dreher, O Cântico de Débora, p.34.
69
O v.12 é um arremate dos v.9-11. Pois se evoca os dois grandes temas dessa
subunidade: a celebração (v.12a) e a guerra (v.12b).
No v.12a lemos duas frases. A primeira é desperta, desperta, Débora. Lemos dois
imperativos, yrIW[ yrIW[ uri uri desperta, desperta, para depois mencionar para
quem se dirige tais imperativos: hr'AbD> Débora. A segunda frase,
semelhantemente a primeira, inicia-se com dois imperativos yrIW[ yrIW[uri uri ,
para finalmente dizer um novo imperativo, o mais importante dessas duas frases: diga um
cântico (ryvi-yrIB.D; dabri xir). Assim, a repetição do imperativo yrIW[uri
prepara caminho para a menção da expressão mais importante do v.12a, ryvi-yrIB.D
dabri xir.
O que seria o ryvi xir cântico de Débora? P. C. Craigie disse que o canto de
Débora entoou é o canto de guerra entoado pelas mulheres, que acompanhava os
guerreiros, inspirando-os à luta, do qual diversos exemplos em textos do Oriente
Próximo Antigo.
128
Dessa forma, Débora o somente seria uma cantora que celebra a
vitória depois dos guerreiros ter voltado da batalha, antes, sua participação na luta é
decisiva. É dela que depende o envolvimento dos homens na campanha.
129
No entanto, preferimos entender que o ryvi xir cantico de Débora foi um canto
celebrado à Javé. Eis algumas razões para entendermos assim. Primeiro, a segunda frase do
v.12a retoma ao v.3, onde o xir é para Javé. Segundo, precedendo o v.12, estão os v.9b-
11, onde se aludiu a celebração a Javé. Assim, o cântico entoado por Débora não pode ser
outro, se não um canto a Javé. O canto de Débora trata-se, pois, da celebração evocada nos
v.9b-11.
127
Walter C. Kaiser, lhm, em Laird Harris, Gleason L. Archer e Bruce K. Waltke (editores), Dicionário
internacional de teologia do Antigo Testamento, p.784.
128
P. C. Craigie, The Song of Deborah and Epic of Tukulti Ninurta, p.259.
129
Carlos Arthur Dreher, O Cântico de Débora, p.35.
70
O v.12b também se constitui por duas frases. Mas, agora, não se refere mais à
celebração. Trata-se, antes, de uma memória bélica. É um arremate do v.9a. A primeira
frase do v.12b inicia-se com o imperativo levanta ~Wq qum, para depois mencionar
para quem o imperativo direciona-se: Baraque. O termo ~Wq qum, em várias passagens
do Antigo Testamento, indica o dispor-se à luta.
130
Assim, a primeira frase do v.12b
rememora a disposição de Baraque para a luta. A segunda frase clarifica isso e explica o
porquê do levantar: e leva teus presos, filho de Abinoam. Inicia-se com um imperativo,
que convoca Baraque a levar (hbv) teus presos( ^y>b.v,). É possível que a
expressão ^y>b.v, hbev] xabeh xebyek lembra um desfile triunfal de prisioneiros
depois da batalha.
131
No entanto, junto com Carlos A. Dreher, afirmamos que a expressão é
um pleonasmo, onde se acrescenta como objeto um substantivo que tenha a mesma
constituição consonantal que o verbo, reforçando o significado deste último
132
.
Portanto, as duas frases do v.12b referem-se à batalha. Essas frases remetem-nos ao
fim da subunidade (v.13), e ao mesmo tempo, para o início da mesma (v.9a), onde lemos
uma referencia à batalha.
A primeira frase do v.13 é então, desceu um sobrevivente para os valentes. O
advérbio então parece remeter-nos novamente ao v.11c, onde já se aludiu ao descer
(yrd) do povo de Javé. No entanto, no v.11c o descer é uma referência à celebração a
Javé, enquanto que aqui, no v.13, é uma memória da guerra. A segunda frase do v.13 é uma
repetição da primeira, povo de Javé desceu para mim como fortes. Os conteúdos são
repetidos nessas duas frases. Na primeira frase, lemos que descer (dry) do
sobrevivente (dyrIf' sarid) se constitui numa ação para (l. le) os valentes (adirim
~yrIyDIa;). Na segunda frase, observamos o descer (dry) do povo de Ja, que
também se constitui numa ação para (l. le) o locutor do texto. Dessa forma o dyrIf'
130
Carlos Arthur Dreher, O Cântico de Débora, p.35.
131
John Gray, Joshua, Judges and Ruth, p.221.
132
Carlos Arthur Dreher, O Cântico de Débora, p.36.
71
sarid sobrevivente se coliga com o hw"hy> ~[' am Javé povo de Javé ; e os
~yrIyDIa; adirim valentes se identificam com o locutor do texto.
Mediante o termo dyrIf' sarid sobrevivente, remanescente o povo de Javé
não representaria um grande exército nacional organizado, mas um remanescente, um
pequeno grupo de pessoas militarmente aptas a fazer frente ao inimigo
133
. Esse pequeno
grupo militarizado desce para auxiliar os adirim. Este último termo é oriundo da raiz dr,
que significa poderoso, forte. Em nosso texto refere-se aos valentes de guerra, aos
quais o locutor do texto se identifica.
O último termo da segunda frase é ~yrIABGIB; ba-giborim como fortes.
Trata-se de um adjetivo masculino plural ~yrIABGI giborim;, prefixado com a
preposição B be, como (na qualidade de)
134
. A frase termina caracterizando o
sobrevivente, o povo de Javé. Eles são fortes, poderosos, que lutaram junto com os
valentes.
Portanto, o v.13 traça uma coligação formada entre os sobrevivente/povo de Jae
valentes/locutor do texto. Esses, juntos, lutaram contra os reis cananeus. O locutor do texto
é identificado com esses valentes, que foram auxiliados pelo povo de Javé.
Observamos que o mesmo conteúdo anunciado no v.9a é retomado no v.13! Naquele já se
aludira à decisão do locutor de unir-se aos comandantes, que são voluntários dentre o
povo (de Javé). No v.13, inversamente, se diz da ação do povo de Javé em unir-se ao
grupo do locutor. Trata-se, tanto no v.9a como no v.13, da ação conjunta de rios grupos
contra os reis cananeus!
Concluímos que os v.9-13 tratam de dois assuntos: a guerra (v.9a e v.12b-13) e a
celebração após a guerra (v.9b-12a). Esses versículos tematizam o campo de batalha,
constituem uma memória bélica. No entanto, essa memória não surge no campo de batalha,
133
Carlos Arthur Dreher, O Cântico de Débora, p.36-37.
134
Dicionário hebraico- português & aramaico- português , Nelson Kirst, Nelson Kilpp, Milton Schwantes,
Acir Raymann e Rudi Zimmer (autores), p.21.
72
e sim, na celebração. Essa celebração se deu imediatamente após a guerra. É uma
celebração ao Javé guerreiro, articulada na explosividade da alegria imediatamente após a
vitória, que pode ser ouvida a partir voz dos distribuidores de água, mas que, depois, num
segundo momento, concentra-se num lugar definido, nas portas (v.11c). Tal celebração, à
semelhança do v.3, acontece em função do Deus guerreiro: ele é Javé, que restabeleceu a
sedaqah justiça que fora rompida pelos reis cananeus.
Ainda observo as peculiaridades do v.3 e dos v.9-13. No v.3 a celebração é evocada
na individualidade; o locutor quer entoar uma cantiga a Javé. Já nos v.9-13 a celebração
estendendo-se à coletividade: primeiro eclode-se na voz dos distribuidores de água, para
depois ser entoada por todo o povo de Javé. Assim é que a celebração ao Deus guerreiro
vai da individualidade para a coletividade. Não se restringe a um indivíduo, mas estende-se
ao coletivo. Contagia! Sociabiliza!
1.4.3 V.19-22
19
Vieram reis lutaram.
Então lutaram os reis de Canaã
em Taanaqe junto as águas Meguido
lucro de prata não levaram
20
Dos céus lutaram as estrelas.
De suas estradas lutaram com Sísera
21
O ribeiro Quison os arrastou.
O ribeiro aos encontros,
ribeiro Quison
Pisa a garganta do forte
22
Então, martelaram o chão os cascos de cavalos
Galopar, galopar dos seus garanhões.
73
Passemos, agora, aos conteúdos dos v.19-22. Eles descrevem a batalha. Nos
versículos anteriores ela havia sido anunciada. Mas, nos v.19-22, alude-se ao confronto
entre Javé e os reis cananeus. Esses são frustrados (v.19 e v.22) e são massacrados pelas
águas do ribeiro Quison (v.20-21). Assim, o conteúdo anunciado no v.4 é retomado nos
v.20-21. Aquele se referiu a água; esses explicam a ação da água. Mostraremos, pois, que o
conceito do Javé que controla a água é o fundamento para se referir a ele como guerreiro.
No v.19 lemos três frases, onde obtemos três dados importantes. O primeiro, refere-se
aos inimigos de Israel e sua ação. O segundo, o local da batalha. O terceiro, a causa da
batalha, e principalmente a frustração dos inimigos em atingir seu alvo.
Nas duas primeiras frases do v.19 lemos sobre os reis / reis de Canaã, inimigos de
Israel. O substantivo ~ykil'm melakim. reis provavelmente refere-se a Sísera e
também a seus aliados, os reis locais das cidades cananitas.
135
Retoma-se, pois, o v.3, onde
eles já foram mencionados.
A primeira frase do v.19 diz: vieram reis, pelejaram. Logo em seu início a frase
afirma a ação dos reis: WaB' bau vieram, verbo qal perfeito na terceira pessoa plural.
Depois se anuncia o sujeito reis. E, finalmente, se diz sobre uma segunda ação do sujeito,
que explica a primeira, Wmx'l.nI nilhamu pelejaram, verbo nifal, que, a semelhança
do primeiro verbo, está no perfeito na terceira pessoa plural. Então este último verbo
explica o sentido do primeiro: os reis vieram para a peleja. O vir tem uma conotação
bélica, portanto.
A segunda frase é uma repetição do conteúdo da primeira. Mais uma vez descreve-se
a ação dos reis mediante o qal perfeito Wmx'l.nI nilhamu pelejaram. Agora, no
entanto, o termo reis está em estado construto (ykel.m; malkey) relacionando-se com
o substantivo que seguinte Canaã. Assim, especifica-se o lugar de domínio desses reis, a
saber, Canaã.
135
John Gray, Joshua, Judges and Ruth, p.224.
74
Portanto, as duas primeiras frases do v.19 anunciam a vinda dos reis, que consiste
numa peleja, e também se diz sobre o domínio desses reis, a terra de Canaã. Esse é o
conteúdo dessas frases: a ação bélica dos reis cananeus e o domínio deles.
No complemento da segunda frase lemos sobre o local da batalha: em Taanaque,
junto as águas do Megido. Sobre isso já abordamos.
136
Na terceira frase, vemos a causa da batalha, e, principalmente, a frustração dos
inimigos de Israel. A frase é lucro de prata não levaram. A expressão lucro de prata
poderia referir-se a despojos arrancados pelo vencedor do vencido. Mas, como demonstrou
Carlos A. Dreher, quando se quer indicar uma presa de guerra, o texto hebraico utiliza
outra palavra, xalal. Para Carlos A. Dreher o termo [c;B, besa refere-se a um tributo
que se tornou extorsivo.
137
O último verbo da frase Wxq'l' laqahu levaram, significa
tomar, agarrar, arrancar, adquirir. A frase, pois, alude à tentativas dos reis
cananeus de adquirir, arrancar o lucro dos camponeses. Mas, tal tentativa falhou:
Wxq'l' al{ não levaram. Então, essa terceira frase, que fala da ação dos reis,
contrapõe o sentido das duas primeiras frases, ou melhor, ilumina-nos para compreender
aquelas duas frases iniciais do v.19. Pois, essas anunciam a peleja. Já essa terceira frase do
v.19, alude não ao motivo da peleja (lucro de prata), mas, principalmente proclama a
ineficácia da peleja dos reis, não levaram. A partícula negativa al{ lo não, explicita
isso. Assim, se entendermos as duas primeiras frases do verso à luz da terceira, afirmamos
que o texto não esreferindo-se a peleja em si, mas a ineficácia de tal peleja para os reis
cananeus. O foco não está na ação em si, mas na ineficácia da ação! Os reis de Canaã
pelejaram em busca de lucro de prata, mas não levaram. Para os reis cananeus a peleja
significa frustração!
Então, se as duas primeiras frases do v.19 falam do domínio dos reis (reis de Canaã),
a terceira alude a vulnerabilidade dos mesmos. Se aquelas afirmaram o reinado dos
136
Veja p.43.
137
Carlos Arthur Dreher, O Cântico de Débora, p.77-79. Ainda sobre o modo de produção tributário, veja
Carlos Arthur Dreher, A constituição dos exércitos de Israel, São Leopoldo/São Paulo, Centro de Estudos
Bíblicos, Paulus, 2002, p.151-156.
75
senhores de Canaã, essa diz que eles não impõem seu reinado. A partir das frases do v.20
isso se explicitará melhor.
No v.20 lemos duas frases. Elas discorrem não mais a peleja frustada dos reis, mas a
eficácia da peleja das estrelas.
Perguntamos, ainda, pelo significado da luta das estrelas. Teria um sentido mítico?
Relaciona-se com a astrologia? Refere-se a algum conceito circundante no Antigo Oriente
Médio?
Alguns comentaristas interpretaram a luta das estrelas como uma referência a um
eclipse ocorrido durante a batalha.
138
Outros estudiosos afirmaram que o texto descreve a
intervenção de poderes dos céus, e mais especificamente, é uma referência às hostes
celestiais, afirmando-se com isso que os anjos auxiliaram os israelitas na batalha contra os
cananeus.
139
No entanto, outros eruditos entenderam que o texto descreve uma tempestade,
destacando que entre os povos antigos, inclusive o de Ugarit, acreditava-se que certas
estrelas influenciavam a chuva.
140
Nas religiões das cercanias do Mediterrâneo e do Antigo Oriente Próximo associava-
se os deuses a diversos corpos celestes. Por exemplo, o deus egípcio Resefe, o deus
mesopotâmico Nergal e o deus grego Apolo aparecem associados a planetas, estrelas ou
cometas.
141
Assim, na religiosidade que cercava Israel acreditava-se que os astros podiam
intervir nas batalhas humanas e derrotar os inimigos. Esse conceito já existia muito antes da
vivência de Israel como entidade religiosa. Ainda no final do terceiro milênio, encontramos
nos textos de Sargom o Sol desfavorecendo os inimigos, ao ofuscar-lhes a visão, e as
estrelas avançando contra eles. A mesma idéia encontramos na estela de Gebal Barkal de
Tutmés III, onde as estrelas que brilham dos céus ajudam a derrotar os inimigos hurritas.
142
138
John F.A. Sawyer, From heaven fought the stars (Judges 5,20), em Vetus Testamentum, Leiden, E. J.
Brill, vol.31, 1981, p.87-89.
139
P. C. Craigie, The Song of Deborah and Epic of Tukulti Ninurta, p.262.
140
J. Blenkinsopp, Ballad style and psalm style in the Song of Deborah, p.73; Robert Boling, Judges A
new translation with introduction and commentary, p.113.
141
John Walton, Victor Matheus e Mark Chavalas, Comentário bíblico Atos Antigo Testamento, p.259.
142
John Walton, Victor Matheus e Mark Chavalas, Comentário bíblico Atos Antigo Testamento, p.259.
76
Será que encontramos um conceito religioso intervencionista de astros celestiais
contra os reis cananeus em Juízes 5,20? Creio que não podemos correlacionar tão
acirradamente a religião de Israel com a religiosidade do Antigo Oriente Próximo. É
verdade que muitos conceitos religiosos presente no mundo antigo migraram para as
comunidades israelitas. Contudo, essas comunidades, de onde provieram os textos contidos
nas Escrituras, conferiram a esses conceitos religiosos um novo significado. Isso se pode
dizer no que diz respeito ao conceito intervencionista das estrelas em favor de um povo. No
Antigo Oriente Próximo, as estrelas eram divinizadas. Mas, uma nota nos ajuda aqui: é
importante observar, porém, que as estrelas mencionadas nessa passagem de Juízes não são
personificadas como divindades, e sim, vistas como mensageiros ou instrumentos nas mãos
de Yahweh
143
. Há, ainda, outra observação que nos parece pertinente: no pensamento de
Israel, as estrelas influenciavam a vida, mas apenas na condição de agentes de Yahweh
144
.
Carlos A. Dreher diz que a luta das estrelas refere-se à chuva, que fez o Quison
transbordar e arrastar os inimigos.
145
Sendo assim, em termos de conteúdo, os v.20-21
retomam a teofania dos v.4-5: a terra treme; os céus e as nuvens gotejam água; as estrelas
lutam do céu, e o Quison inunda, aniquilando os inimigos.
Portanto, as estrelas são agentes nas mãos de Javé para destruir os reis cananeus. Elas
fazem o Quison inundar. No entanto, exploramos um significado a mais, quando
interpretamos a dinamicidade própria das frases do v.20, relacionando-as, não só com o
v.21, como fez Carlos A. Dreher, mas também com as frases do v.19. Vejamos!
Na primeira frase do v.20 lemos: dos céus pelejaram as estrelas. A preposição !mi
min de, a partir de indica o lugar de onde as estrelas lutaram: ~yIm;v' xamayim
céus. Observemos a mudança entre o v.19 e v.20. De Canaã, das águas do Megido (v.19),
somos levados aos céus (v.20)! De as estrelas lutam.
143
John Walton, Victor Matheus e Mark Chavalas, Comentário bíblico Atos Antigo Testamento, p.259.
144
John E. Hartley, kkb, em Laird Harris, Gleason L. Archer e Bruce K. Waltke (editores), Dicionário
internacional de teologia do Antigo Testamento, p.694.
145
Carlos Arthur Dreher, O Cântico de Débora, p.45.
77
Na seqüência da primeira frase do v.20 lemos o verbo Wmx'l.nI nilhamu
lutaram, para depois aludir ao sujeito, estrelas. O mesmo verbo hebraico que é usado
para ação dos reis (v.19) é usado para a ação das estrelas. A frase, pois, alude à ação das
estrelas contrapondo a ação dos reis.
A segunda frase, de suas estradas pelejaram contra Sísera! repete a idéia da
primeira, descrevendo novamente a ação das estrelas através do verbo Wmx'l.nI
nilhamu pelejaram. Contrapõe-se, mais uma vez, a ação dos reis anunciada nas duas
primeiras frases do v.19. Mas, agora, o v.20 anuncia o objeto da ação das estrelas:
ar's.ysi-~[iim-sisra contra Sísera. Se no início da primeira e da segunda frase
somos levados aos céus (dos céus e de suas estradas), no fim da segunda frase
voltamos novamente a Canaã, onde está Sísera, contra o qual as estrelas dos céus lutam.
Os céus interferem na terra! Além disso, os senhores cananeus não podem
fundamentar seu poder nos céus, como fazia a religião de baal. A preposição ~[i im, que
antecede o termo Sísera, em outros contextos significa com, ao lado de, junto de.
O conceito básico dessa preposição é companheirismo, experiências comuns. Em nosso
texto até poderia dizer que as estrelas lutam com Sísera, no sentido de que elas aliaram-se a
ele. Mas, não é isso que a preposição expressa nesse verso! Ironicamente, se diz que as
estrelas lutam com Sisera, estão junto dele, mas não para ajudá-lo, mas para destruí-lo! A
idéia é de alguém que se coloca ao lado, mas não para ajudar, mas para aniquilar. Portanto,
os céus estão contra os reis cananeus. Os oprimidos pelo sistema cananeu podem contar
com a ajuda dos céus! Os oprimidos sim é que podem dizer que os céus estão com eles, ao
lado deles! Sob esse ângulo interpreto a luta das estrelas.
As estrelas lutam, mas quem destrói os reis cananeus é o ribeiro, que os arrastou,
que veio aos encontros dos reis cananeus. Os céus lutam (estrelas), mas não é uma luta
celeste, mas uma luta terreal! Então, nas duas primeiras frases do v.21 descreve a ação do
ribeiro e a derrota dos reis cananeus.
78
No v.21 as três frases iniciais intercambiam-se. Aludem ao lx;n: nahal ribeiro. A
primeira frase é ribeiro Quison os arrastou. O termo ~p'r'G> gerapam os arrastou,
provém da raiz grp varrer, e alude à ação do ribeiro contra os reis: esses foram varridos
pelas águas tempestuosas do ribeiro.
Na segunda frase, lemos ribeiro veio aos encontros. No final dessa frase lemos o
termo ~ymiWdq. qidumim encontros, substantivo masculino plural absoluto. O
termo é um hapax legomena, que não encontra tradução satisfatória. Sugere-se que a
palavra hebraica esteja corrompida, e que possivelmente deva ser lida como qiddmah
146
,
uma forma verbal com o sufixo, sendo então traduzida como ele veio ao seu encontro, da
raiz ~dq qdm estar na frente, encontrar, ir ou vir de encontro
147
. Carlos A. Dreher
opta pela alteração texto, e comenta que essa palavra significa estar à frente, estar de
frente, encontrar, defrontar, que paraliza com a forma verbal anterior ~p'r'G> gerapam
arrastou-os, sem modificar em demasia a formação consonantal da palavra
148
. Mas,
apesar de o termo ~ymiWdq. qedumim ser de significado incerto
149
, parece que
podemos entender sua função no texto. Pois o plural apresentado pelo texto massorético
remete-nos às duas frases do v.19a e ao final da primeira frase do v.21, onde
respectivamente se menciona o substantivo masculino plural reis e o sufixo da terceira
pessoa plural ~ ' am os. O Quison veio aos encontros dos reis cananeus, ou seja, os
destruiu. Sustentamos o plural do texto massorético, portanto.
Afirmamos que os encontros referem-se, evidentemente, ao varrer apresentado
no fim da primeira frase. Os encontros, pois, sugere a derrota dos reis pelo ribeiro. Além
disso, quando relacionamos essa segunda frase do v.21 com as duas primeiras do v.19,
descobrimos que os encontros referem-se ao confronto em si. Ou seja, nas duas primeiras
do v.19 se diz que os reis vieram, enquanto que na segunda do v.21 se diz que aos
146
Bíblia Hebraica Stuttgartensia, in loco.
147
Dicionário hebraico- português & aramaico- português , Nelson Kirst, Nelson Kilpp, Milton Schwantes,
Acir Raymann e Rudi Zimmer (autores), p.210.
148
Carlos Arthur Dreher, O Cântico de Débora, p.48.
149
Dicionário hebraico- português & aramaico- português , Nelson Kirst, Nelson Kilpp, Milton Schwantes,
Acir Raymann e Rudi Zimmer (autores), p.210.
79
encontros deles veio o ribeiro. Portanto, afirma-se o encontro entre os reis e o ribeiro, o que
já pressupõe a derrota daqueles. Os reis vieram (v.19), mas aos encontros deles veio o
ribeiro, que os destruiu.
Depois das duas frases do v.21, lemos a expressão ribeiro Quison. Remete-nos as
duas frases anteriores, onde ele já foi mencionado. A vitória dos israelitas se deveu
muitíssimo ao rio, que estava em período de cheia. O termo lx;n: nahal alude a um vale
com leito de um curso de água, curso de água, riacho, corrente
150
. Este substantivo
geralmente se refere ao leito seco do rio ou à ravina, que na estação das chuvas, torna-se
uma torrente caudalosa.
151
O lx;n: nahal, pois, estava no período das cheias, o que deve
ter feito a Planície de Jezreel fofa demais para os carros de Sísera, os quais se atolaram e se
tornaram inúteis.
Dessa forma, o conteúdo dos v.19-20 é uma retomada ao v.4. No v.4 a água já havia
sido anunciada. Javé controla a água. Nos v.19-20 isso se evidência!
Devemos observar, ainda, a frase
z[o yvip.n: ykir>d>Ti
pisa a garganta
do forte.
A palavra vp.n: nafx significa alma, vida. Entendemos, junto com Carlos
A. Dreher, que o termo yvip.n: nafxi não é a junção de nefex com a primeira pessoa do
singular, antes, se trata de nefex mais o Chirek Compaginis, que acentua a ligação do
substantivo com o genitivo subseqüente.
152
O termo z[o oz forte, finaliza não a
frase, mas todo o v.21. A partir desse termo, tecemos duas considerações. Primeira, o
termo refere-se à Sísera, e por extensão, ao poderio cananeus, reis de Canaã (v.19).
Observa-se, então, a grande semelhança entre o v.20 e v.21: eles terminam aludindo aos
inimigos (Sísera, no v.20; e forte, no v.21). Segunda, o termo z[o oz forte é irônico.
Chama o derrotado de forte, mas, este é pisado na garganta! Ele é forte, mas está no
150
Dicionário hebraico- português & aramaico- português , Nelson Kirst, Nelson Kilpp, Milton Schwantes,
Acir Raymann e Rudi Zimmer (autores), p.154.
151
Leonard J. Coppes, nhl, em Laird Harris, Gleason L. Archer e Bruce K. Waltke (editores), Dicionário
internacional de teologia do Antigo Testamento, p.950.
152
Carlos Arthur Dreher, O Cântico de Débora, p.48.
80
chão! O imperfeito ykir>d>Ti tidreki é oriundo de darak. Esta palavra relaciona-se
com o pôr os pés em lugares e em objetos. No sentido idiomático, pisar sobre os altos da
terra (Dt 33,29; Habacuque 3,15) indica controle sobre o inimigo.
153
Em nossa frase
afirmamos o sentido idiomático: pôr os s no pescoço do forte indica o domínio sobre
ele.
Portanto, embora a frase z[o yvip.n: ykir>d>Ti tem sido reputada como
uma adição ao texto
154
, ela enquadra-se no contexto. Ela lembraria um convite para
praticar o gesto de vitória, comum no Antigo Oriente, de colocar o pé sobre o pescoço do
vencido, indicando mais uma vez a derrota das hostes cananéias
155
. A imagem expressa a
total derrota de um inimigo.
156
O particípio adverbial no início do v.22 za' az então, alude não a
conseqüência imediata da ação das estrelas e do ribeiro (v.20-21), como também nos
remete ao início do v.19, especificamente à segunda frase, a qual também se inicia com o
particípio az. Na primeira frase do v.22 o Wml.h' halmu martelar, golpear, socar
refere-se à intensidade com a qual os cascos dos cavalos (sWs-ybeQ.[i ) atingiam o
chão. Na segunda frase, a repetição do termo tArh]D; tArh]D; daharot daharot
galopar, galopar o somente é uma onomatopéia que reproduz o som dos cascos dos
cavalos expressos na primeira frase, como também reproduzem a intensidade com a qual os
reis fugiram. No fim da frase, o termo ryBia; abir, garanhões, adjetivo masculino
plural com o sufixo na terceira pessoa plural wy ', refere-se aos cavalos dos reis
cananeus. Semelhante ao v.20 e ao v.21, o v.22 termina aludindo aos inimigos derrotados.
E essa última expressão do v.22 parece ser irônica (tal qual a última do v.21,forte), pois
ela refere-se aos ryBia; abir garanhões, que significa forte, poderoso. Os
cavalos poderosos dos reis cananeus são vulneráveis. Galoparam para fugir!
153
Herbert Wolf, drk, em Laird Harris, Gleason L. Archer e Bruce K. Waltke (editores), Dicionário
internacional de teologia do Antigo Testamento, p.324.
154
Bíblia Hebraica Stuttgartensia, in loco.
155
Carlos Arthur Dreher, O Cântico de Débora, p.48.
81
Portanto, o v.22 volta a referir-se à ação frustrada dos reis, pressagiada no v.19.
Ironiza-os. Seus cavalos são fortes, mas fogem.
Para concluir, afirmamos que o conteúdo dos v.19-22 relaciona-se ao conteúdo dos
v.4-5. Os v.19-22 descrevem a luta das estrelas (refere-se a chuva) e a voragem do ribeiro
Quisom (que inunda e destrói os inimigos). Apesar de Javé na ser mencionado nos v. 19-
21, as conseqüências do seu sair de Seir e marchar dos campos de Edom estão aqui
claramente presentes. A terra treme, os céus gotejam água as estrelas lutam a partir do
céu -, os montes escorrem e o Quisom se enche de água, arrastando consigo os
inimigos.
157
Ainda observo que os elementos da natureza são usados em função da guerra. Isso é
expresso nos v.4-5 e nos v.20-21. Os elementos da natureza, inclusive a água, são armas
nas mãos de Javé para destruir os reis cananeus. A natureza não pode ser manejada pelos
dominadores cananeus. A natureza é de Javé. Ele é o seu dono. Ele faz ela se voltar contra
os opressores de Israel.
1.4.4 V.23
Amaldiçoai a Meroz, diz o Anjo de Javé,
Amaldiçoai duramente os seus moradores.
Porque não vieram em socorro de Javé,
em socorro de Javé com os guerreiros.
O v.23 alude àqueles que foram omissos na batalha. Nele identificamos um
importante aspecto do conceito do Javé guerreiro, anunciado no v.11. Trata-se de sua
dependência dos guerreiros para lutar. Vejamos como esse conceito se desenvolve no v.23.
156
J. Alberto Soggin, Judges A commentary, p.91.
157
Carlos Arthur Dreher, O Cântico de Débora, p.45-46. Este autor sustente que o escorrer refere-se a água,
distinta de minha interpretação na p.57.
82
Identifico duas frases no v.23a. Cada qual se inicia com dois imperativos: WrAa
aror na primeira; e Wrao aru na segunda. A raiz desse termo é rra rr maldizer,
prender (por encantamento), cercar com obstáculos, deixar sem forças para
resistir.
158
Na segunda frase, o segundo imperativo é seguido pelo infinitivo qal da
mesma raiz, rAra' aror. Este termo relaciona-se com fórmulas de maldição, onde se diz
arur é. Essas fórmulas servem para designar como arur determinada pessoa ou grupo,
para carregá-la com desgraça por meio de uma eficácia inerente a fórmula, que em algumas
ocasiões são pronunciadas por uma pessoa especialmente capacitada (Nm 22-24).
159
Aqui,
em Jz 5,23, a pessoa que pronuncia a maldição é o anjo de Javé. Essa maldição equivale
a uma excomunhão ou exclusão da comunidade.
160
Assim, Meroz e seus moradores são
amaldiçoados. Através dessa maldição, provavelmente se quer excluir da comunidade
israelita o grupo de Meroz.
Além do significado dessa maldição, notamos o agente da mesma: hw"hy>
%a;l.m; malak yhvh anjo do Senhor. Quem é ele? O termo malak significa
essencialmente mensageiro (enviado por homens ou por Deus), anjo (mensageiro do
céu)
161
. No entanto, o malak yhvh se distingui de outros seres celestiais, devido suas
funções especificas no AT.
162
A LXX traduziu como , dissipando
qualquer diferença entre malak Javé e os demais seres celestes, pois aplica  a
qualquer ser celeste.
163
Também, outro problema é saber a relação entre Javé e seu malak.
O malak yhvh se identifica com Javé, e, ao mesmo tempo, se distingue. Mas, nisso não
contradição, pois o malak pode normalmente se identificar com seu mandante.
164
158
Victor P. Hamilton, rr, em Laird Harris, Gleason L. Archer e Bruce K. Waltke (editores), Dicionário
internacional de teologia do Antigo Testamento, p.126.
159
C.A. Keller, rr, em Ernst Jenni e Claus Westermann (editores), Diccionario teológico manual del
Antiguo Testamento, vol.1, p.357.
160
Luis Alonso Schökel, Josue y Jueces, Madrid, Ediciones Cristandad, 1973, p.161 (Los Libros Sagrados).
161
Dicionário hebraico- português & aramaico- português , Nelson Kirst, Nelson Kilpp, Milton Schwantes,
Acir Raymann e Rudi Zimmer (autores), p.127.
162
R. Ficher, mlk, em Ernst Jenni e Claus Westermann (editores), Diccionario teológico manual del Antiguo
Testamento, vol.1, p.1236.
163
R. Ficher, mlk, em Ernst Jenni e Claus Westermann (editores), Diccionario teológico manual del Antiguo
Testamento, vol.1, p.1232-1235.
164
R. Ficher, mlk, em Ernst Jenni e Claus Westermann (editores), Diccionario teológico manual del Antiguo
Testamento, vol.1, p.1236.
83
A terceira frase do v.23 inicia-se com ki porque, que amarra sintaticamente essa
frase com as duas frases precedentes. A partir daqui, explica-se o porquê da maldição. Na
seqüência da terceira frase -se que Meroz e seus moradores não vieram hw"hy>
tr;z>[,l. le-ezrat yhvh para socorro de Javé. A quarta frase principia-se com a
locução que encerrou a terceira, para socorro de Javé. O termo tr;z>[, ezrat socorro
é um substantivo feminino singular construto de rz[ zr ajudar, apoiar
165
. O
significado de zr é bem parecido com a forma masculino. As ocorrências do termo
predominam em contextos militares.
166
No v.23, entendemos seu significado no final da
quarta frase, onde se explica o que consiste o vir em socorro de Javé: com os guerreiros.
A vinda de Meroz com seus guerreiros seria o socorro de Ja.
Valhamos aqui de uma observação de Carlos A. Dreher: A ação divina necessita de
cooperação humana. no v.11 se traçava esta relação, ao paralelizarem-se os atos de
justiça de Javé com os atos de justiça de seus camponeses.
167
Assim, Javé não dispensa
a ajuda de guerreiros.
Então, aqui identificamos um outro conceito sobre Javé: ele não é o Deus que luta
sozinho, mas solicita a ajuda humana.
Interessante também é uma observação de Milton Schwantes:
Em Juízes 5 a ação de Javé, de modo algum, quer ser diminuída; Deus não
fica a mercê dos feitos dos combatentes. A afirmação do vir em auxílio de Javé
busca coordenar uma tensão descrita de modo quase que genial em Jz 5. A tensão
é a seguinte: por um lado esta poesia atribui a vitória totalmente a Javé, pois a
os céus entraram na luta; por outro lado esta poesia atribui a vitória integralmente
a pessoas, ao incentivo de Débora, à valentia dos guerreiros, à presença de espírito
de Jael. Deus faz tudo e as pessoas são integralmente ativas; é o que a fórmula do
vir em socorro de Javé tenta expressar a seu modo. Nesta acentuação teológica
165
Carl Schultz, zr, em Laird Harris, Gleason L. Archer e Bruce K. Waltke (editores), Dicionário
internacional de teologia do Antigo Testamento, p.1103.
166
Luis Alonso Schökel, zr, em Dicionário bíblico hebraico- português, p.488.
84
de Jz 5 há algo de fascinante para nós, pois nosso dilema é o querer romper a
tensão: ou tudo é feito por pessoas e Deus é inativo e inexistente, ou tudo é feito
por Deus e as pessoas são feitas passivas. Aqui, em Jz 5 a soberania total de Deus
é celebrada e a intervenção das pessoas na história é descrita com a mesma alegria
e jubilo. As pessoas que assumem a história em nada diminuem o senhorio
divino.
168
Assim, as pessoas e a divindade, numa ação bilateral, entram no palco da história de
Israel para juntos escreverem a libertação dos oprimidos pela religião que advogava o
sistema tributário em Canaã. Na literatura cananeia de Ugarit, a deusa Astarte (que
aparece na Bíblia com o nome de Astarote) é conhecida como uma deusa guerreira que
esmaga a cabeça de seus oponentes.
169
Mas, no texto de Juízes 5,26 quem esmaga a
cabeça do inimigo (Sísera) não é Javé, nem uma deusa, mas sim, uma mulher, Jael. Assim,
Javé intervém não somente pelas mãos dos camponeses combatentes, mas pelas mãos de
uma mulher.
Além dessa ação conjunta de Javé com seu povo, detectamos um outro conceito de
Javé no v.23: ele não é somente o Deus libertador de seu povo oprimido, mas também é o
Deus amaldiçoador daqueles que foram omissos na batalha contra a opressão.
Concluindo, identificamos dois conceitos de Javé no v.23. O primeiro diz respeito ao
Javé que amaldiçoa aqueles que foram omissos em lutar pela libertação. São castigados não
somente os que praticam a injustiça, mas aqueles que deliberadamente deixam de lutar pela
justiça. Pois, aquele que sabe fazer o bem e não o faz, está pecando. Assim, o Deus bélico
de Israel amaldiçoa àqueles que foram omissos em lutar pelo bem. O segundo conceito diz
respeito ao Javé que luta pela cooperação das mãos dos guerreiros. As mãos de Deus e as
mãos dos combatentes escrevem a história da libertação.
Conclusão
167
Carlos Arthur Dreher, O Cântico de Débora, p.51.
168
Milton Schwantes, Teologia do Antigo Testamento Anotações, São Leopoldo, Faculdade de Teologia,
1986, p.90.
85
As tribos de Israel foram buscar sua fundamentação para a revolta contra as cidades
estados na religião javista. Nesse contexto articula-se sobre Deus. Não mais um Deus da
montanha, que simplesmente não cabe para a teologia das tribos. Mas sim, o Deus bélico,
lutador. Esse é Javé! Nas experiências de vitória das tribos israelitas sobre os reis cananeus
é que surge a teologia do Javé guerreiro.
É claro que tudo isso como fenômeno coletivamente vivido, não acontece da noite
para o dia. O tribalismo for elaborando os diversos elementos do passado e a fé ganhou
novos espaços. O monoteísmo combativo é a nova maneira que as tribos encontram para
sua experiência de Deus. Trata-se de um falar histórico sobre Deus.
170
A partir desse falar histórico sobre Deus, notemos alguns conceitos conclusivos sobre
Javé, no Cântico de Débora.
Javé é aquele do Sinai. Lemos uma referência à sua morada, seu santuário sagrado (Jz
5,4) Mas ele não está mais lá. Saiu do lugar santo, caminhou com seu povo e adentrou
junto com este na terra da Palestina, para lutar contra os reis de Canaã. É, pois, o Deus de
Israel, o Deus que luta (v.3-5). A menção de Javé por si mesma não é significativa. Mas,
a teologia do Cântico de Débora se articula tendo como moto o Deus que luta. Para os
camponeses, eles só são vitoriosos porque Javé é o Deus que luta.
Também reçaltamos que celebração e luta relacionam-se (v.9-13). Eclode-se uma
celebração (v.9b-12a), mas não sem acenar à guerra (v.9a e v.12b-13). A celebração a Javé
acontece pelo triunfo da justiça (v.11).
Os v.19-22, a semelhança dos v.4-5, afirmam que domínio de Javé sobre a natureza é
exercido em função da guerra. Notamos, pois, a relação entre os v.4-5 e v.19-21,
principalmente o paralelo entre o gotejar dos céus e das nuvens no v.4 e a inundação do
nahal no verso 21. Enfatiza-se, pois, a ação de Javé mediante a água. Mas esse conceito é
uma re-atualização de uma tradição mais antiga, a tradição sinaítica, onde o tremor, as
lavas vulcânicas e o fogo caracterizavam aão de Javé. Agora, a teofania de Javé está em
função da luta. Essencialmente, os v.19-22 aludem ao confronto entre os reis cananeus e os
169
John Walton, Victor Matheus e Mark Chavalas, Comentário bíblico Atos Antigo Testamento, p.259.
170
Milton Schwantes (acessor), História de Israel, s/d, p.44.
86
elementos da natureza, sendo que, para os primeiros, o confronto significa frustração (v.19
e v.22), enquanto que para os segundos, significa vitória.
A partir do v.23 pudemos observar que Javé não somente luta contra a opressão, mas
também contra àqueles que deixam de afrontar contra a mesma (v.23). Também, Javé não
luta sozinho. Suas mãos se unem às mãos dos guerreiros para a efetuação da batalha
(v.23b).
87
Capítulo 2 A antiga memória bélica sobre Javé em Habacuque 3,3-6
Analisamos o conceito do Javé guerreiro promulgado no antigo Cântico de Débora
(Juízes 5). Trata-se de um antigo poema, escrito por volta do século 13 a.C., que enfoca a
ocasião em que algumas tribos de Israel celebraram a derrocada dos reis cananeus junto ao
ribeiro Quison. Essa vitória israelita motivou a composição do Cântico. Esse celebra a
saída de Javé do monte Sinai (Juízes 5,4-5) e seus atos de justiça na terra da Palestina
(Juízes 5,9-13), que constitui-se na inundação do Quison que derrotou os inimigos
cananeus (Juízes 5,19-22). Para tal façanha, Javé contou com a ajuda de guerreiros (Juízes
5,23).
O conceito bélico de Javé, o qual promulga sua saída do Sinai, para caminhar com
seu povo e adentrar na terra da Palestina para batalhar por ele, não restringiu-se somente a
Juízes 5. Esse texto parece ser o mais antigo que contém esse conceito. Mas outros textos
também desenvolveram essa teologia do Javé guerreiro. Poderíamos analisar Deuterônomio
33,2 e o Salmo 68,8-9
171
. Mas o foco de nossa pesquisa aqui será Habacuque 3,3-6. Nesse
reencontramos o conceito de Javé proclamado em Juízes 5,4-5! Refere-se à saída e à
caminhada de Javé, desde a região do Sinai, para batalhar contra o poderio das nações!
Para análise de Habacuque 3,3-6, seguiremos uma trajetória semelhante àquela
aplicada em Juízes 5. Primeiro, trataremos de algumas questões introdutórias referente ao
livro de Habacuque, e ao capítulo 3, especificamente. Depois, delimitaremos nossa
pesquisa aos v.3-6 desse capítulo, analisando a forma, a época e finalmente o conteúdo.
Vamos ao trabalho!
171
Vidal Enrique Becerril, Quando os deuses eram aclamações de libertação... As peregrinações dos pobres
e os sete nomes de Deus no Salmo 68, São Bernardo do Campo, Universidade Metodista de São Paulo, 2000,
137p (tese de doutorado).
88
2.1
Questões introdutórias
Objetivamos aqui discutir alguns lemas concernentes ao aspecto literário de
Habacuque 3. Primeiramente vamos situar Habacuque 3 no livro de Habacuque. Como esse
capítulo se relaciona com os capítulos 1 e 2? Depois, nos deteremos especificamente a
esse capítulo, perguntando por sua unidade literária. Essas questões prepararão o caminho
para a análise específica de Habacuque 3,3-6.
2.1.1 O lugar de Habacuque 3,1-19 no livro de Habacuque
Há um grande debate sobre a originalidade de Habacuque 3,1-19 no livro de
Habacuque.
172
Antonio Bonora afirma que muitos autores advogam que Habacuque 3 é um
antigo salmo, que remonta até cerca do fim do X culo a.C.
173
Já outros, como Bernhard
Stade
174
e B. Stade
175
consideram 3,2-19 como um salmo pós-exílico.
176
Resumo aqui quatro argumentos que corroboram à essa disparidade relativa ao
capítulo 3 de Habacuque. Mas alisto simultaneamente as dificuldades de tais argumentos.
Vejamos.
Primeiro, o gênero literário de 3,1-19 é diferente de 1,1-2.20. Pois 3,1-19 é um salmo
cúltico. No entanto, nos dois primeiros capítulos se encontram, a juízo de vários estudiosos,
a liturgia para um dia penitencial. A lamentação, a oração e a alocução divina direta,
172
Domingos Sávio da Silva, Habacuc e a resistência dos pobres Tradução crítica do profeta Habacuc,
Aparecida, Editora Santuário, 1999, p.218-219; Giuseppe Bernini, Osea Michea - Nahum Abacuc
Versione introduzione, note, em Nuovissima Versione della Bibbia daí testi originali, 2
a
edição, Roma,
Edizioni Paoline, 1977, p.402-403; Otto Eissfeldt, The Old Testament An introduction, Oxford, Brasil
Blackwell, 1974, p.420-421.
173
Antonio Bonora, Naum, Sofonias, Habacuc, Lamentações Sofrimento, promessa e esperança, tradução
de Lucy R. M. César, São Paulo, Edições Paulinas, 1993, p.117-134 (Coleção Pequeno Comentário Bíblico
AT).
174
Antonio Bonora, Naum, Sofonias, Habacuc, Lamentações Sofrimento, promessa e esperança, p.132.
175
Ernst Sellin e Georg Fohrer, Introdução ao Antigo Testamento, tradução de Mateus Rocha, São Paulo,
Paulinas, vol.2, 1977, p.683 (Nova Coleção Bíblica).
176
Domingos Sávio da Silva, Habacuc e a resistência dos pobres Tradução crítica do profeta Habacuc,
p.219.
89
pronunciada através do ministro do culto, são elementos habituais na liturgia antiga em
Israel.
177
Segundo, um texto encontrado em Qumrã (Comentário de Habacuque) não contém
este salmo
178
, o que sugere seu desligamento dos capítulos antecedentes. Mas, outra é a
opinião de J. M. Albrego de Lacy:
O fato de que o comentário a Habacuc encontrado em Qumrân (1QqHab) careça
deste capítulo não costuma representar assunto de dúvida, pois não seria de
estranhar que a deterioração maior que o manuscrito sofreu tenha sido na parte
final. Os que aceitam o influxo cultual também na partes anteriores não terão
maior problema em admitir a unidade do livro.
179
Terceiro, o salmo contêm elementos mitológicos, e assemelha-se com o antigo
cântico de Débora (Jz 5) e com o cântico de Moisés (Dt 33), que são antigas peças literárias
dentro do Antigo Testamento. Mas isso não anula a possibilidade de Habacuque ter
retomado um antigo poema e re-atualizado para sua época.
Quarto, 3,17-19, diferente de 1,2-2,20, não se referem a um problema da história, mas
de uma catástrofe agrícola e pecuária. No entanto, Alonso Schökel e Sicre Dias
argumentam: em textos proféticos a prosperidade da natureza é sinal de que a catástrofe
histórica passou. Ao castigo causado por invasão inimiga sucede época de paz e
prosperidade (cf Amós 9,11-13; Jl 4,17-18; Ez 36,1-15). Natureza e história aparecem
estreitamente ligadas.
180
Portanto, muitas são as possibilidades sugeridas para a reconstrução literária do livro
de Habacuque,
181
principalmente no que diz respeito ao capítulo 3. Mas afirmamos que o
177
J. M. Albrego de Lacy, Os livros proféticos Introdução ao estudo da Bíblia, tradução de Alceu Luis
Orso, São Paulo, AM Edições, 1997, p.179.
178
Domingos Sávio da Silva, Habacuc e a resistência dos pobres Tradução crítica do profeta Habacuc,
p.223. Ver nota de rodapé.
179
J. M. Albrego de Lacy, Os livros proféticos Introdução ao estudo da Bíblia, p.180.
180
Luis Alonso Schökel e José Luis Sicre Dias, Profetas II Ezequiel, Doze profetas menores, Daniel, Baruc,
Carta de Jeremias, tradução de Anacleto Alvarez, São Paulo, Edições Paulinas, 1991, p.1126.
181
Veja uma breve discussão sobre as camadas literárias do livro em Erich Zenguer, O livro dos doze
profetas, em Introdução ao Antigo Testamento, Erich Zenguer e outros autores, tradução de Werner Fuchs,
São Paulo, Edições Loyola, 2003, p.519-520 (Coleção Bíblica Loyola ,36).
90
livro é uma unidade literária. Alinhamo-nos entre aqueles que afirmam que o salmo é
original do rolo profético de Habacuque. Habacuque 3,1-19 deve ser lido à luz de 1,2-2,20.
O cap.3 de Habacuque pertence ao livro como um todo.
182
O salmo é uma continuação de
1,1-2,20. Pois, em 1,2-2,20 lemos uma problemática, a opressão do ímpio sobre o justo. E
em 3,1-19 lemos a proposta para tal problemática: Deus intervirá para a libertação do justo.
Essa parece ser a esperança do profeta em 3.16b. Além disso, a salvação clamada em 1,2 é
encontrada em 3,18.
Defender que Habacuque 3,1-19 é um texto independente do livro é desqualificar a
proposta do profeta. Pois, fica claro que, no contexto do livro enquanto um todo, Habacuc
3 funciona como conclusão corroborativa que corresponde aos problemas levantados em
Habacuc 1-2. O poema expressa confiança em que na visão mencionada em 2,1-4 realizar-
se-á, e em que a justiça de Deus será satisfeita com a libertação do povo, da opressão.
183
Domingos S. da Silva argumentou que Habacuque cita propositadamente o
intervencionismo estrangeiro (Hc 1,5-11), para rejeitá-lo e criticá-lo.
184
No entanto, prefiro
entender que Habacuque não armou uma literatura teatral em 1,5-11, antes, expressou ali a
completa hegemonia do Senhor Javé sobre a história. O clímax desse conceito é o capítulo
3 de seu livro, onde a teofania intervencionista de Javé pelo seu povo substitui a
intervencionismo estrangeiro exposto em 1,5-11.
Além das considerações acima, teço duas observações, no que diz respeito à relação
entre Habacuque 3 e os capítulos precedentes. Primeira, 2.20 é um apelo ao silêncio que
prepara a vinda de Javé (cf. Sf 1,7; Zc 2,17; Ne 8,11), evocada em 3,2-19. Esse versículo é
a transição dos ais (Hc 2,6b-19) para a teofania (3,3-15). Assim, 2,20 prepara caminho
para o que vai ser dito em 3,1-19. Segunda, em 1,2-2,19 lemos sobre a crise do profeta,
que, num primeiro momento, questiona a violência vigente em sua época (1,2-4), e, num
segundo momento, sua crise é desencadeada pela primeira resposta de Javé: trairia os
caldeus para julgar Judá (1,5-17). A violência seria tratada com violência, o que horroriza o
182
Sobre a relação e Hb 1-2 e 3, veja William Hugh Brownlee, The placarded revelation of Habakkuk, em
Jornal of biblical literature, Philadelphia, The society of biblical literature and exegesis, vol.82, 1963, p.320-
321; Luis Alonso Schökel e José Luis Sicre Dias, Profetas II Ezequiel, Doze profetas menores, Daniel,
Baruc, Carta de Jeremias, p.1123-1124.
183
Domingos Sávio da Silva, Habacuc e a resistência dos pobres Tradução crítica do profeta Habacuc,
p.225, citando Marvin A. Sweeney, Book of Habakuk, p.5.
91
profeta. Mas, a partir de 3,1 a crise do profeta encontra uma resolução. Celebra-se a
libertação efetuada por Javé. Dessa forma, o livro traça a caminhada de um homem justo,
que horroriza-se com a opressão aventada pelo ímpio, mas depois regozija-se na libertação
efetuada por Javé. Pois, Habacuque inicia seu livro com um clamor desesperador (1,2) e
termina-o com uma confissão de esperança (3,17-19). Começa com uma pergunta, até
quando? (1,2), e termina com uma afirmação de fé, Javé, meu Deus, é a minha força
(3,19). Assim, o enredo do livro denota a jornada espiritual do justo: da crise à fé, da
dúvida à certeza.
É óbvio que, mesmo afirmando a unicidade do livro, não exclui-se a afirmação de que
Habacuque adaptou um antigo hino que celebrava a marcha de Javé de sua antiga morada
no Sinai para destruir os inimigos de seu povo na terra prometida
185
(Dt 33,2-5; Juízes 5,4-
5; Salmo 68,8-9[7-8]). Assim, parece que Habacuque adapta um antigo poema a uma nova
realidade, onde os inimigos de Javé seriam o rei de Judá e os babilônicos.
Portanto, Habacuque 3,1-19 deve ser lido como parte integrante do livro de
Habacuque. Não é um mero acaso redacional. Trata-se de um antigo poema adaptado por
Habacuque. Sem ele o livro perderia o sentido. Com ele renasce a esperança dos
oprimidos!
2.1.2 Habacuque 3,1-19 como uma unidade literária
Mostramos anteriormente a continuidade entre 3,1-19 e 1,1-2,20. Observamos 3,1-19
na relação do livro como um todo. Agora, nossa tarefa é observar 3,1-19, somente. A
unidade literária de 3,1-19 é discutível.
186
Trata-se, agora, de olharmos a continuidade entre
os versículos desse capítulo, para provarmos que se trata de uma unidade literária.
Vejamos!
184
Domingos Sávio da Silva, Habacuc e a resistência dos pobres Tradução crítica do profeta Habacuc,
p.232-242.
185
J. J. M. Roberts, Nahum, Habakkuk and Zephaniah A comentary, Westminster, John Knox Press, 1991,
p.148 (The Old Testament Library).
186
J. Alberto Soggin, Introduction to the Olde Testament From its origins to the closing of the Alexandrian
canon, Westminster, John Knox Press, 1989, p.328-329 (The Old Testament Library).
92
Habacuque 3,1 é um título. Ele mostra que todo o capítulo 3 é uma hL'piT. tepilah
oração. Esse é muito comum ao se introduzir salmos. O estilo hínico pode ser observado
durante o desenvolvimento do salmo: nos v.3.9.13 lê-se o sinal pausal hl's, selá. A nota
do v.19b também é muito comum nos salmos: ao mestre de canto, para instrumentos de
corsa. Dessa forma o título em 3,1 e em 3,19b delimitam a descrição hínica da teofania
do cap.3 como sendo uma unidade textual concisa em si
187
. O título no início, os sinais de
pausa no decorrer do texto e a anotação do v.19b denotam que todos esses versículos têm
algo em comum: eram utilizados num ambiente comunitário. Portanto, 3,1-19, como um
todo, parece ter sido lido como um salmo.
Além disso, uma outra questão leva-me a pensar na unidade de 3,1-19. Após o título
(v.1), o locutor inicia sua oração (v.2), na primeira pessoa: Javé, ouvi. Esse mesmo
locutor se manifestará no v.7. Ele volta a manifestar-se no v.16, onde sua atitude (eu
ouvi) relembra o v.2. Por fim, nos v.18-19a, finalizando o salmo, o locutor expressa-se
novamente. Assim, do início ao fim o salmo é articulado por um locutor, um eu, que
parece-me ser o próprio profeta.
Portanto, os elementos que indicam uma leitura pública do texto e a manifestação de
um locutor, do início ao fim do salmo, levam-me a concluir que 3,1-19 é uma unidade
literária. É uma perícope.
2.2. A forma, em especial dos v.3-6
Até aqui averiguamos que o salmo composto por Habacuque 3,1-19 é parte integrante
do livro de Habacuque. Aludimos à unidade do livro de Habacuque. Também defendemos
que o salmo que compõe o capítulo 3 é uma unidade literária, sendo do início ao fim
articulado pelo profeta. Agora delimitaremos nosso objeto de pesquisa. Para isso,
afirmamos que a unidade literária que compõe 3,1-19 subdivide-se em várias subunidades.
Uma delas constitui-se pelos v.3-6, foco de nossa análise. Abaixo mostraremos como isso
acontece.
187
Erich Zenguer, O livro dos doze profetas, em Introdução ao Antigo Testamento, Erich Zenguer e outros
autores, p.517.
93
2.2.1 Delimitação
Nossa primeira tarefa é delimitar a subunidade que almejamos pesquisar. Trata-se dos
v.3-6. Mostraremos como eles se desvinculam dos versículos que os precedem e daqueles
que os seguem.
No v.2 o texto inicialmente é construído pela primeira pessoa, yTi[.m;v' xamati
ouvi e ytiarey" temi yareti, seguidos por uma súplica a Javé. A partir do v.3 a
primeira pessoa desaparece. Não se trata mais de uma súplica, mas de uma descrição da
vinda de Javé. Não há, pois, relação morfológica entre os v.2 e 3.
Do v.3 ao v.6 o texto é construído pela terceira pessoa, sempre referindo-se à
divindade. Já no v.7 quebra-se essa seqüência. O locutor do texto manifesta-se novamente,
mediante a primeira pessoa: ytiyair' raiti vi. Assim, somos arremessados novamente
ao v.2. Além disso, no v.7, lemos um novo elemento, inédito no texto: tendas de Cusan e
terra de Madian. Trata-se dos inimigos de Judá. Assim, notamos a descontinuidade entre
os v.6 e 7.
Portanto, os v.3-6 são uma subunidade. Desvinculam-se dos versículos que os
precedem e dos que os seguem. Veremos, agora, como constitui-se essa subunidade
internamente.
2.2.2
Subunidade interna
O v.3 principia-se com o substantivo masculino singular h;Ala/ Eloá. A última
expressão do v.6 é
Al
lo para ele. Desta forma, Eloá é mencionado no início do v.3, e no
decorrer da subunidade é mencionado mediante os sufixos da terceira pessoa (sua
majestade, seu louvor, suas mãos, suas pernas). Após descrever todas as ações de
Eloá, o texto fecha-se com a expressão para ele. Eloá é o centro da subunidade. O
94
primeiro termo da subunidade é o seu nome, e o último é o sufixo que se refere a ele.
Portanto, os v.3-6 constituem-se numa subunidade que se centraliza em Eloá.
No entanto, é bom observarmos a relação dessa subunidade com o v.7. Pois, ela abre-
se com a dúplice menção da vinda da divindade (v.3a), e no v.7 lemos a dúplice menção do
objeto da teofania: tendas de Cusan e terra de Madian. Assim, as duas menções do
mesmo inimigo no v.7 parece contrapor as duas menções da divindade no v.3. Além disso,
parece que o v.7 constitui-se numa transição para a subunidade seguinte (v.8-15). Aqui se
aludirá ao combate de Javé contra as nações (v.12), anunciado no v.6a. O v.7
simboliza tais nações. Há, pois, certa relação do v.6 para com o v.7.
Concluindo, afirmamos que os v.3-6 formam uma subunidade literária, mas o v.7
poderia ser um tipo de adendo ao texto. Sem ele o texto faria sentido e não sentiríamos sua
falta. Mas com ele o texto também não perde seu sentido, antes, ganha uma nova direção,
através da conexão com o v.3. Ele prepara caminho para a subunidade seguinte (v.8-15).
2.2.3 Estilo poética
Nosso texto é poesia. Nos v.3-6 observo o estilo poético, a repetição
188
. Isso se
evidenciará na análise da estrutura poética.
Comecemos com o v.3, onde notamos quatro frases:
3
Eloá de Temã vêm.
E o Santo do monte Parã. Selá.
Cobriu céus o seu esplendor
e seu louvor encheu a terra.
Primeiramente, analisemos as duas primeiras frases (v.3a). Depois, as duas
últimas
(v.3b).
188
Sobre as características da poesia hebraica, veja a p.18.
95
A primeira frase do v.3a é Eloá de Te vêm. Ela principia-se com o sujeito
Eloá; na seqüência nota-se o predicado, designando a origem de Eloá, de Temã, e
anunciando sua ação mediante o verbo na terceira pessoa imperfeito aAby" yabo
vem. No hebraico, a sequencialidade das palavras na oração verbal é, no geral,
estruturada pelo predicado seguido pelo sujeito, tendo como predicado um verbo finito. No
entanto, o imperfeito apresenta indícios de uma seqüência mais antiga, sujeito-predicado
189
.
Assim, a primeira frase do v.3a apresenta uma forma arcaica da oração hebraica.
Vamos à segunda frase do v.3a, e o Santo do monte Parã. Trata-se de uma oração
nominal. No entanto, o verbo aAby" yabo da primeira frase está implícito nela. Essa
oração inicia-se com o vav conjuntivo w> e, junto ao adjetivo vAdq' qadox Santo,
que caracteriza a divindade anunciada na primeira frase, e ao mesmo tempo é o sujeito da
frase. À semelhança da frase anterior, essa tem em sua seqüência a preposição min junto
ao substantivo (do/a partir do monte Parã). As duas frases relacionam-se, portanto. O vav
conjuntivo w> ve e indica que a segunda frase é uma continuação da primeira.
Abaixo demonstramos a estrutura das duas frases:
Eloá de Temã vêm.
E o Santo do monte Parã. Selá.
Então as primeiras duas frases do v.3a proclamam a vinda da divindade. Ele é o
sujeito das frases. A partir desse anúncio da vinda da divindade se desencadearão todas as
frases seguintes da subunidade.
Vamos ao v.3b. A primeira frase é cobre us o seu esplendor. Ela inicia-se com o
verbo em piel perfeito na terceira pessoa do singular masculino, hS'Ki kisah cobriu,
anunciando, na seqüência o objeto (~yIm;v' xamayim céus) e terminando com o
sujeito (dAh hod esplendor), sufixado com o pronome da terceira pessoa masculino A
189
Rudolf Meyer, Gramática del hebreo bíblico, traduccion por Ángel Sáenz-Badillos, Barcelona, Talleres
96
seu. A segunda frase é e seu louvor encheu a terra. Essa se inicia com a partícula W
vav e, prefixando o sujeito hL'hit. tehilah louvor, e esse tem como sufixo a terceira
pessoa singular masculino A seu. Segue-se o verbo qal perfeito ha'll..m' mallah
encheu, terminando com o objeto, a terra. O sufixo seu presente nessas duas frases
demonstram a continuidade com as duas anteriores. Alude-se a Eloá.
Olhemos ainda a relação entre as frases do v.3b. Observa-se que o início da segunda
frase leva-nos ao final da primeira, pois, o sujeito com sufixo pronominal da terceira pessoa
masculina singular seu aparece no início da segunda e no fim da primeira. As duas frases
emolduram-se morfologicamente de maneira inversa, portanto. Também nota-se a
conjunção vav e, no início da segunda, que a conecta com a primeira. Ainda notamos que
nas duas frases o verbo precede o objeto (cobriu céus, na primeira, encheu a terra, na
segunda), com a única diferença que na segunda aparece o artigo definido ha- a.
Vejamos a estrutura das frases:
Cobriu céus o seu esplendor
E seu louvor encheu a terra.
Portanto, evidenciamos a seguinte estrutura para sujeito e predicado:
Predicado objeto sujeito
Sujeito predicado objeto
Há de se observar ainda a relação entre as frases do v.3a e as frases do v.3b. A
primeira do v.3b é estruturalmente diferente das duas do v.3a, pois apresenta a
sequencialidade predicado-objeto-sujeito. Já a segunda do v.3b assemelha-se com as duas
do v.3a, pois apresenta a seqüência sujeito-predicado. Nota-se, ainda, que as duas frases do
v.3a têm como sujeito a divindade. as duas frases do v.3b aludem indiretamente à ação
de Eloá. O sujeito das frases não é propriamente a divindade, mas sua manifestação.
Gráficos de la M.C.E Horeb, 1989, p.309.
97
Vamos, agora, à seqüência da subunidade, o v.4, onde lemos três frases. A primeira
frase é verbal e brilho como luz será. Inicia com a partícula conjuntiva vav, e
prefixando o sujeito brilho, dando a entender uma continuidade da frase com as duas
frases anteriores. O brilho é um elemento pertencente à divindade, assim como os
elementos anunciados nas frases do v.3b. Assim, pois, notamos uma relação entre a
primeira frase do v.4 e as do v.3b. Na seqüência da frase, nota-se o predicado como luz
será. O último verbo dessa frase é o imperfeito tihyeh será, acontecerá, evocando,
portanto, uma ação à vir acontecer.
A segunda frase é força de sua mão para ele será. É uma oração nominal, onde está
implícito o verbo hyh acontecer, que traduzimos como será. O sufixo da terceira pessoa
singular masculino (de sua mão), e também o final da frase (Al lo para ele), remetem-
nos às duas primeiras frases do v.3a. Pois, o ele é Eloá, o Santo. A frase inicia-se com o
sujeito, tendo na seqüência o predicado. A terceira frase, e esvéu de seu poder , à
semelhança da primeira, inicia-se com a partícula conjuntiva ve- w> e, denotando a
sequencialidade entre as frases. Além disso, o particípio adverbial ~v' xam refere-se a
sua mão, mencionada na segunda frase. A terceira frase também é nominal, e tem
implícito o verbo hyh ser, que traduzimos como estará. Ainda notamos que tanto na
segunda com na terceira frases aparecem o sufixo da terceira pessoa do singular masculino
seu (A na segunda; e h na terceira). Referem-se, ainda, à manifestação de Eloá.
Portanto, as três frases do v.4, a semelhança do v.3b, aludem a elementos que
referem-se à divindade. O v.4 alude à manifestação de Eloá:
E brilho como a luz será.
Força de sua mão para ele será.
E lá estará véu de seu poder.
Perguntamos, agora, como se correlacionam essas frases. A primeira frase refere-se à
manifestação de Javé (brilho) que está acontecendo ou que está para acontecer
(imperfeito tihyeh é ou será). A segunda frase, à semelhança da primeira, também
afirma a manifestação de Javé. Mas, ela especifica a origem da manifestação de Javé (de
98
sua mão), e, simultaneamente, a direção da mesma (para ele). E, finalmente, a terceira
frase também alude à manifestação de Javé. Mas, a peculiaridade dessa frase em relação às
duas primeiras é que ela visa ocultar (véu) o brilho e a força de Javé. Assim, se as
duas primeiras frases do v.4 apontaram para a manifestação de Javé, a terceira, em
contrapartida, indica seu ocultamente.
No v.5 a cena muda. Ainda que se fala da manifestação da divindade, alude-se,
especificamente, à alguns elementos que reagem ante sua manifestação. Isso é expresso
mediante duas frases:
5
Ante sua face caminhará a peste
e sairá epidemia ante suas pernas.
Identificamos duas frases, sendo a primeira ante sua face caminhará a peste e a
segunda e sairá epidemia ante suas pernas. Nota-se as semelhanças entre elas. Ambas
são constituídas pelo verbo imperfeito, %l,yE yelek caminhará, na primeira, e
aceyE yese sairá, na segunda. Ambas referem-se à divindade mediante um
substantivo construto precedido pela conjunção l. le, e seguido pelo sufixo na terceira
pessoa singular masculino: le-fanayo ante sua face, na primeira; e le-raglayo ante suas
pernas, na segunda. Verifica-se, então, a semelhança entre essas frases. No entanto,
notamos que a ordem das palavras constituí-se em ordem inversa: a palavra le-fanayo inicia
a primeira frase e a palavra le-raglayo finaliza a segunda. Portanto o verbo e o sujeito
finalizam a primeira frase, enquanto que na segunda, o verbo e sujeito iniciam-na. Assim,
na primeira frase temos a seqüência predicado-sujeito, e na segunda a seqüência predicado-
sujeito-predicado. O v.5 contém inversão!
Essas duas frases do v.5 expressam a continuidade da vinda de Eloá, mencionada no
v.3a. O sufixo masculino na terceira pessoa masculino, seu, refere-se a Eloá. Assim
notamos uma continuidade entre o v.3a e o v.5. No entanto, concernente às duas frases do
v.3b e as três frases do v.4, observamos que as frases do v.5 é uma inovação, pois, se no
v.3b e no v.4 descrevia-se os elementos majestosos de Eloá, esplendor, louvor,
brilho, força, poder, agora, no v.5, fala-se de alguns elementos punitivos, que reagem
99
ante à manifestação de Eloá. Portanto, todas as frases do v.3b-5 assemelham-se, pois
aludem a manifestação de Eloá, conseqüência de sua vinda (v.3a). No entanto, uma
descontinuidade temática entre as frases do v.3b-4 e as duas frases do v.5.
Vamos agora para o v.6. Identifiquemos as frases desse verso:
6
Parou
e tremeu terra,
Olhou
e fez saltar nações
e destroçaram-se montanhas de eternidade.
Inclinaram-se colinas de eternidade,
caminhos de eternidade para ele.
Identificamos duas expressões verbais que denotam o agir de Eloá, parou e
olhou, sendo que cada uma delas é seguida por sentenças que denotam as conseqüências
do seu agir. Observemos como isso acontece. Para melhor compreensão, dividimos o v.6
em três partes.
Vejamos o v.6a. Identificamos uma expressão verbal: parou. Trata-se de uma única
palavra no hebraico, dm;['amad, verbo qal perfeito. Trata-se de um predicado, com o
sujeito implícito ele. A segunda expressão é uma sentença relativa à primeira: e tremeu
a terra. Pois essa sentença se inicia com o verbo poel vav consecutivo imperfeito,
dd,moy>w: va-yemoded e tremeu, o que denota a relação com a expressão anterior,
uma conseqüência daquela (e por isso
190
). Por fim, anuncia-se o sujeito, #r,a, eres
terra. O tremor da terra é uma conseqüência da parada de Eloá.
Ainda observo a relação entre o v.3a e o v.6a. No primeiro anunciou-se a vinda de
Javé. No segundo, protagoniza-se sua parada. Assim, Javé vem (v.3a), manifesta-se (v.3b-
5) e pára (v.6a).
190
Page H. Kelly, Hebraico Bíblico Uma gramática introdutória, tradução de Marie Ann Wangen Krahn,
São Leopoldo, Sinodal, 1998, p.178.
100
Vamos ao v.6b. Observo uma segunda expressão verbal que denota o agir de Eloá:
olhou. À semelhança do v.6a, trata-se de uma única palavra no hebraico, ha'r' raah,
verbo qal perfeito terceira pessoa masculino singular. Na seqüência, notamos duas
sentenças conseqüentes do olhar de Eloá: e fez saltar as nações e e destroçaram-se
montanhas de eternidade. Ambas iniciam-se com verbos vav consecutivos imperfeito: va-
yater (hiphil) na primeira, e va-yitpossu (hithpolel) na segunda. Essas sentenças estão
interligadas, portanto, mediante a partícula e. Elas denotam a conseqüência do agir de
Eloá. Há de se mencionar, no entanto, que a primeira sentença não fala somente da
conseqüência do olhar de Eloá, mas de uma ação do próprio Eloá, através do verbo hiphil
faz saltar. Na seqüência, observa-se o objeto ~yIAG goyim nações.
Na segunda sentença observa-se o predicado destroçaram-se, e na seqüência o
sujeito montanhas de eternidade. O vav consecutivo e prefixado no verbo imperfeito
denota ações consecutivas, e indica que o destroçar das montanhas é conseqüência da
parada de Eloá.
Assim, as sentenças dos v.6a e v.6b assemelham-se. Ambas falam da ação de Eloá,
seguida por suas conseqüências. Observo ainda que essas sentenças são o ponto
culminante de toda a subunidade. Agora, ele volta a agir explicitamente, assim como no
v.3a. Na verdade, o v.6a.b é a concretização de vinda de Eloá, anunciada no v.3a.
Vamos ao v.6c. Lemos uma só frase:
Inclinaram-se colinas de eternidade,
caminhos de eternidade para ele.
Nota-se uma frase, inclinam-se colinas de eternidade. Essa começa com o
predicado, o verbo perfeito na terceira pessoa plural, Wxv; xahu inclinaram. O sujeito
é indicado na seqüência, colinas de eternidade. Não se fala mais de uma ação de Eloá e
suas conseqüências. O vav consecutivo não aparece aqui. Agora, alude-se à ação de alguns
elementos para Eloá: eles inclinaram-se. Além dessa frase, nota-se uma
101
complementação, caminhos de eternidade para ele. está implícito o verbo da frase
inclinaram-se, sendo, ainda, este verbo complementado pela palavra Al lo para ele .
Então, tanto as colinas de eternidade(tA[b.GI ~l'A[) como os caminhos de
eternidade (~l'A[ tAkylih] ) inclinam-se para ele.
Assim, a subunidade inicia-se anunciando por duas vezes a ação (vinda) da divindade
(v.3a), e encerra-se aludindo duas vezes à ação dos elementos eternos para a divindade.
Quando se refere à tais elementos eternos, de suas ações, a referência não é deles para eles
mesmos, mas deles para a divindade, de forma que a expressão para ele (fim do v.6)
amarra a subunidade, fechando-a e remetendo-nos novamente ao início da mesma, onde se
menciona ele, Eloá. O termo Al lo para ele também aparece no fim da segunda frase
do v.4. No entanto, o elemento pertencente à própria divindade (poder), no v.4b, age dela
para ela mesma; enquanto que no v.6 as colinas e os caminhos não agem para elas mesmos,
mas para a divindade.
Para concluir, reafirmemos aqui a seqüência poética de nossa subunidade. Ela inicia-
se com duas frases que promulgam a vinda de Eloá (v.3a). Seguem-se as manifestações de
sua vinda, expressa nas cinco frases seguintes (duas no v.3b e três no v.4). Nas duas frases
do v.5 muda-se a temática. Ainda refere-se à manifestação divina, conseqüências de sua
vinda. Mas agora, diferente dos v.3b-4, alude-se a alguns elementos punitivos, peste e
epidemia, que agem diante de Eloá. O v.6a.b é o ponto culminante da subunidade: é a
concretização da vinda de Eloá. o v.6c não se refere mais à ação de Eloá, mas dos
elementos eternos para ele. Então, o termo para ele não somente fecha a subunidade,
como também demonstra o foco central da mesma: Eloá.
Abaixo pode-se visualizar minha proposta quanto a estrutura poética e prosaica dos
v.3-6:
3
Eloá de Temã vêm.
E o Santo do monte Parã. Selá.
Cobriu céus o seu esplendor
102
e seu louvor encheu a terra.
4
E brilho como a luz será.
Força de sua mão para ele será.
E lá está véu de seu poder.
5
Ante sua face caminhará a peste
e sairá epidemia ante suas pernas.
6
Parou
e tremeu terra.
Olhou
e fez saltar nações
e destroçaram-se montanhas eternas.
Inclinaram-se colinas de eternidade,
caminhos de eternidade para ele.
2.3 A época
Até aqui observamos algumas questões literárias concernentes ao livro de Habacuque.
Vimos algo sobre o lugar de Habacuque 3 no livro como um todo. Notamos também que o
capítulo 3 é uma unidade literária, composta por várias subunidades, sendo uma delas, os
v.3-6. Finalmente, exercitamos sobre a forma dos v.3-6, delimitando-os e entendendo a
disposição poética destes versículos.
Agora, apontaremos a época do texto. Mesmo afirmando que Habacuque tenha se
valido de um antigo poema, este deve ser entendido enquanto uma atualização na época do
profeta. Pois, profecia tem hora. Ela desenvolve-se no âmbito da história. Habacuque está
inserido na problemática de seu tempo. Ele também é símbolo, porque este homem
103
superando o seu momento histórico, mergulhará no problema da história enquanto tal como
também da ação de Deus nela
191
.
Logo, é importante compreendermos a época do livro, perguntando por sua autoria,
sua data e seu contexto histórico. Vamos à tarefa!
2.3.1 O autor
Os títulos anunciados em 1,1 e 3,1 afirmam que Habacuque é o autor do livro.
Habacuque é um dos profetas sobre os quais escassos dados possuímos. O título do seu
livro não indica o nome de seu pai, nem seu lugar de origem. Fora do livro que leva seu
nome, Habacuque é mencionado em outros dois lugares. O primeiro, é Daniel 14,31-39.
Trata-se de um relato lendário. Não sabemos como se originou essa lenda, e qual sua
relação com nosso profeta. A segunda menção está no livro apócrifo Vida dos profetas, que
lhe dedica o capítulo 12. Ele é mencionado como pertencente à tribo de Simeão e como
sendo natural de um lugarejo chamado Beth-Zufar, que nem mesmo seria uma aldeia, mas
uma granja.
192
Erich Zenguer afirma que para alguns pesquisadores, o livro seria uma liturgia
profética formulada por Habacuque enquanto profeta cultual, através da seqüência
lamentação oráculo de Deus - exclamações de ais oração conclusiva.
193
Tanto em 1,1
como em 3.1 lemos o título ha-nabi o profeta, que aludiria a uma função cultual. Uma
outra questão pareceria depor a favor do fato de Habacuque ser profeta cultual: a recepção
da revelação divina em 2,1-3, que através de sua terminologia, rememora um Sitz im Leben
que só poderia ser o templo de Jerusalém, a vigia-do-templo
194
. Além desse título de Hc
3,1, e da condição física do profeta ao receber a revelação teofânica (v.16), haveria ainda
sintomas de pertença ao profetismo cúltico, nos vários sinais de pausa (selá, v.3a.9a13b) e
191
Luis Alonso Schökel e José Luis Sicre Dias, Profetas II Ezequiel, Doze profetas menores, Daniel, Baruc,
Carta de Jeremias, p.1123.
192
Isaltino Gomes Coelho Filho, Os profetas menores II Miquéias, Naum, Habacuque, Sofonias, Ageu,
Malaquias, Rio de Janeiro, Juerp, 2002, p.75.
193
Erich Zenguer, O livro dos doze profetas, em Introdução ao Antigo Testamento, Erich Zenguer e outros
autores, p.518.
104
nas conclusivas indicações musicais (ao dirigente com meus instrumentos de corda,
v.19b)
195
.
No entanto, é difícil afirmar que Habacuque foi um profeta cúltico. O esquema do
diálogo entre o profeta e Deus e a oração (tefillâ) do cap.3 são certamente indícios de uso
litúrgico ou da escolha intencional para adaptar-se à liturgia, mas não são suficientes para
fazer de Habacuc profeta cultual.
196
Portanto, apesar de sua familiaridade com o culto, não
é preciso afirmar categoricamente que Habacuque era um profeta cultual,
197
pois a
expressão cúltica não se restringe ao campo do profissionalismo piedoso, mas estende-se
também para o arraial leigo, que pode e tem acesso ao culto. Afinal, ter familiaridade com
os salmos usados no culto é uma coisa; ser profeta cultual é outra
198
. Erhard
Gerstenberger afirmou que os salmistas, que compuseram os salmos de lamentação, bem
como Habacuque, eram pessoas que não pertenciam à classe oprimida, antes eram letradas
e fariam opção pelos justos oprimidos, colocando-se do lado deles e desenvolvendo seus
escritos motivados por uma profunda solidariedade aos oprimidos.
199
Assim, parece que
Habacuque seria sim um desses justos sofredores, os quais articulam uma esperança em sua
proposta profética.
200
Portanto, Habacuque tinha familiaridade com o culto. Mas não era um profeta cúltico.
Era um letrado que se colocara ao lado dos oprimidos, para lutar com esses contra a
opressão promulgada pelos poderosos do rei de Judá, bem como contra o intervencionismo
estrangeiro. É muito provável que ele era profeta em Jerusalém, onde confrontava as
injustiças reinantes (2,6-19).
194
Domingos Sávio da Silva, Habacuc e a resistência dos pobres Tradução crítica do profeta Habacuc,
p.210
195
Domingos Sávio da Silva, Habacuc e a resistência dos pobres Tradução crítica do profeta Habacuc,
p.211. O autor translitera o hebraico
hl's
,
como çelá. Todavia, nós o transliteramos como selá.
196
Antonio Bonora, Naum, Sofonias, Habacuc, Lamentações Sofrimento, promessa e esperança, p.118.
197
Domingos Sávio da Silva, Habacuc e a resistência dos pobres Tradução crítica do profeta Habacuc,
p.213.
198
Jesus Asurmendi, Os profetas do século VII Naum, Sofonias e Habacuc, em Samuel Amsler (editor),
Os profetas e os livros proféticos, São Paulo, Edições Paulinas, 1992, p.171 (Biblioteca de Ciências Bíblicas).
199
Erhard Gerstenberger, Salmos, São Leopoldo, Comissão de Publicações, Faculdade de Teologia, 1982,
vol.1, p.19 (Série Exegese).
200
Domingos Sávio da Silva, Habacuc e a resistência dos pobres Tradução crítica do profeta Habacuc,
p.112-113.
105
2.3.2 A data
O conteúdo principal de Habacuque é um anúncio da destruição de Babilônia, a nação
conquistadora. Isso leva-nos a datar Habacuque nos fins do século VII a.C., quando Judá
estava sendo ameaçada pela Babilônia, que estava ascendendo no cenário internacional.
Embora alguns considerem 1,6 como um enxerto no texto original, os caldeus são
mencionados ali. Depois da queda de Nínive, em 612 a.C., e a derrota do exército egípcio
em 605, na batalha de Carquêmis, a Babilônia surge no cenário mundial como a grande
dominadora. Eles são os opressores mencionados por Habacuque. Os caldeus foram
instrumentos de Deus para castigar o povo (Jr 27,6), mas também serão castigados por sua
vez (Jr 51,24).
Habacuque foi, pois, contemporâneo de Jeremias (627-582 a.C.). Ambos profetizaram
em Jerusalém, no reino do Sul. O contexto social, político e religioso de ambos foram o
mesmo, portanto. Como disse Claude Tresmontant, Habacuque não foi apenas
contemporâneo de Jeremias, mas também seu companheiro
201
. Eles lutaram contra a
opressão social.
Tratemos, agora, de algumas evidências de sua época. Primeira, a ausência de
referência a Nínive indica uma data posterior à sua destruição, que ocorrera em 612 a.C.
Segunda, a menção dos caldeus (neo-babilônicos) em 1,6 alude a uma ascensão da
Babilônia no cenário mundial. Terceira, a menção da violência hamas (1,2) demonstra que
a situação em Judá é de calamidade pública. Parece indicar uma época posterior à morte de
Josias (609 a.C). A época é caracterizada pelo iníquo reinado de Jeoaquim (2,6-19).
Portanto, advogamos que Habacuque prega nas proximidades do ano 600 a.C.
Passamos, agora, a analisar esse período. Falemos, pois, do contexto do livro de
Habacuque.
2.3.3 O contexto histórico
106
Na busca do contexto do profeta Habacuque, tentamos responder, agora, sobre quem
seria o opressor, denominado em 1,6 de caldeus. Pergunta-se se esses seriam os
assírios (antes de 612 a.C) ou os egípcios que mataram o rei Josias (609 a.C).
202
Há quem
defenda que o opressor seria Alexandre Magno (considerando o livro numa época
posterior), sugerindo que o termo do texto massorético em 1,6akasdim (caldeus) pode
ser substituído por kittim gregos.
203
No entanto, o nome aparece no ostraca de Tell Arad,
o que sugere o período que o profeta é tradicionalmente datado.
204
Alguns autores pensaram que as duas lamentações (1,2-4 e 1,12-17) se referiam
originalmente à opressão assíria, à qual Javé poria fim mediante a vinda dos caldeus.
205
Assim, o profeta pode ser datado de cerca de uma década antes do óbvio sucesso
babilônico de 625 em diante
206
.
Outros estudiosos, como Domingos Sávio da Silva, pensam que o livro refere-se a um
problema interno, onde o rei judaíta chefiava a perversidade e exploração. Domingos
Sávio da Silva defende que Habacuque é da época de rei judaíta Jeoaquim.
207
O profeta
está questionando a hamas violência, que era um elemento característico da situação
interna de Judá nos dias de Jeoaquim. Além disso, para Domingos S. da Silva, a menção de
3.13a, ungido, não se refere ao rei
208
. Pois, o rei, longe de cumprir sua função que lhe
competia, principalmente a favor dos oprimidos da sociedade (com os quais Habacuque
identificava-se), coloca-se, sim, na posição totalmente ao contrário. Domingos Sávio da
Silva identifica a maior parte da atuação maldosa do ímpio intestino contra justo (1,2-4)
como uma alusão à ão do rei judaíta contra os empobrecidos da sociedade judaíta.
209
O
201
Claude Tresmontant, O problema da revelação, São Paulo, Edições Paulinas, 1972, p.256.
202
Antonio Bonora, Naum, Sofonias, Habacuc, Lamentações Sofrimento, promessa e esperança, tradução
de Lucy R. M. César, São Paulo, Edições Paulinas, 1993, p.118 (Coleção Pequeno Comentário Bíblico AT).
203
Jesus Asurmendi, Os profetas do século VII Naum, Sofonias e Habacuc, p.172.
204
J. Alberto Soggin, Introduction to the Olde Testament From its origins to the closing of the Alexandrian
canon, Westminster, John Knox Press, 1989, p.327-331 (The Old Testament Library).
205
Albert Gelin, Os livros proféticos posteriores, em Introdução à Bíblia Antigo Testamento, os livros
proféticos posteriores, André Robert e André Feuillet (editores), São Paulo, Editora Herder, vol.2,1967, p.53.
206
John Eaton, Misteriosos mensageiros - Curso de profecia hebraica, tradução Cacília Camargo Bartalotti,
São Paulo, Edições Loyola, 2000, p.101.
207
Domingos Sávio da Silva, Habacuc e a resistência dos pobres Tradução crítica do profeta Habacuc,
p.173-216.
208
Domingos Sávio da Silva, Habacuc e a resistência dos pobres Tradução crítica do profeta Habacuc,
p.162-165.
209
Domingos Sávio da Silva, Habacuc e a resistência dos pobres Tradução crítica do profeta Habacuc,
p.20-21.
107
raxa ímpio poderia aplicar em seu bojo a pessoa e a atuação do rei.
210
O poder salvífico
de Javé não seria manifestado através do rei, mas através do marginalizado, que seria o
justo sadiq, que é identificado no conjunto da profecia de Habacuque com o ani
oprimido.
211
Mas observa-se aqui uma nota de Luis Alonso Schökel e José Luis Sicre Dias:
contra esta interpretação podemos objetar que 1,17; 2,5.8 parece referir-se claramente a
potência estrangeira, não a rei judaíta nem a grupo concreto dentro do povo
212
.
No entanto, não se exclui a possibilidade de Habacuque ter proferindo oráculos
denunciando a opressão dentro do reino judaíta (1,2-4). Mas, a negação de um
intervencionismo estrangeiro parece fugir, ao meu entender, ao propósito do livro. Pois, o
salmo que compõe o capítulo 3 anuncia a queda das nações (v.6), o que engloba,
indubitavelmente, Judá e também Babilônia.
Opinamos, portanto, que a época de Habacuque caracteriza-se pela ascensão da
Babilônia como nação imperialista. Ernest Sellin e Georg Fohrer afirmam que Habacuque
se volta contra um povo estrangeiro: ele pensa claramente em uma potência estrangeira
(1,17; 2,5.8) e proclama que Javé intervirá por seu ungido, o rei judaíta (3,13).
213
Assim,
1,6 refere-se ao surgimento dos caldeus, novos elementos semitas que fixaram-se na
Babilônia e estabeleceram um império. O domínio assírio começara a ruir-se, diante de
duas grandes ameaças:
214
os medos, a partir das montanhas de Irã, e os citas, bandos de
cavalheiros e conquistadores oriundos do sul da Rússia. A Assíria estava destroçada, mas
ainda não surgira um outro império que preenchesse seu lugar. Assim, surge um vácuo de
poder na região da Síria e da Palestina, que possibilitou a expansão do reino de Josias.
215
210
Domingos Sávio da Silva, Habacuc e a resistência dos pobres Tradução crítica do profeta Habacuc,
p.250.
211
Domingos Sávio da Silva, Habacuc e a resistência dos pobres Tradução crítica do profeta Habacuc,
p.269
212
Luis Alonso Schökel e José Luis Sicre Dias, Profetas II Ezequiel, Doze profetas menores, Daniel,
Baruc, Carta de Jeremias, p.1123-1124.
213
Ernst Sellin e Georg Fohrer, Introdução ao Antigo Testamento, vol.2, p.687.
214
Antonius H. J. Gunneweg, História de Israel Dos primórdios até Bar Kochba e de Theodor Harzl até
nossos dias, tradução de Monika Ottermann, São Paulo, Editora Teológica/Edições Loyola, 2005, p.195
(Série Biblioteca de Estudos do Antigo Testamento).
215
Sobre a reforma de Josias, veja Antonius H. J. Gunneweg, História de Israel Dos primórdios até Bar
Kochba e de Theodor Harzl até nossos dias, p.195-195.
108
Mas, em 609 a.C., Josias morre, em confronto com as tropas do faraó Neco. Esse
assenhorou-se da Palestina. Depois do enterro de Josias, seu filho Jeoacaz sobe ao trono,
mas após três meses foi deposto por Neco, que entronizou Jeoaquim no lugar de Jeoacaz.
O domínio do Egito sobre a Palestina durou poucos anos. Em 605, em Carquêmis, no
Eufrates, os babilônicos vencem os exércitos egípcios (Jr 46,2).
216
Surge, então, o império
neobabilônico. Ele é anunciado em Habacuque 1,6.
Assim, Habacuque refere-se a ascensão dos neobabilônicos no cenário mundial. Mas
também afirmamos que ele prega contra a desigualdade interna (1,2-4). Rejeita não o
poderio babilônico, como também o poderio da nação judaíta. Mas qual o motivo dessa
rejeição da monarquia judaíta? Seria a opressão patrocinada pelos reis. As campanhas
expansionistas de Josias vitimaram a muitos, pois eram fundamentadas na incrementação
do comércio, cuja fonte de renda eram os recursos captados da população judaíta. Depois
da morte de Josias, sucedeu-o no trono Joacaz, que reinou por apenas três meses, sendo
deposto pelo faraó do Egito, que colocou em seu lugar o rei Joaquim (609-597 a.C.). Esse
contribuiu para o agravamento da situação que já era precária na época de Josias. Por isso,
Domingos Sávio da Silva traduziu o termo ani de Hc 3,14b como miserável, como
uma alusão aos levitas empobrecidos, como os pobres que, sobretudo com o advento da
monarquia, perderam suas terras e, às vezes, até a liberdade pessoal mediante a contração
de dívidas. Comporiam esse elenco também os proprietários rurais sob taxações
escorchantes
217
.
Parece que os destinatários originais do profeta Habacuque seriam os desprestigiados
da sociedade judaíta. Então, a memória bélica de Javé de Hc 3 seria um questionamento da
dominação aventada pela monarquia judaíta, uma voz que defende o ani e questiona a
ordem vigente. Assim, essa memória é parecida com a de Juízes 5, onde a ordem vigente
questionada é o poderio cananita, que governava as cidades-estado da Palestina no século
XIII a.C.
216
Herbert Donner, História de Israel e dos povos vizinhos Da época da divisão do reino até Alexandre
Magno, São Leopoldo, Sinodal, vol.2, 1997, p.413-412.
217
Domingos Sávio da Silva, Habacuc e a resistência dos pobres Tradução crítica do profeta Habacuc,
p.257.
109
Portanto, o tempo de Habacuque caracteriza-se por uma grande opressão promulgada
pelo rei Jeoaquim e pela crise resultante do surgimento de um novo império no cenário
mundial, a Babilônia. problemas internos na nação judaíta. Mas há problemas externos,
também. A Babilônia desponta como uma grande nação opressora. Assim caracterizam-se
os fins do sétimo século a.C. Essa é a época de Habacuque e de nosso tema.
2.4 O conteúdo
Tendo observado a forma de Habacuque 3,3-6 e a época do profeta, o que nos
possibilitou entender a motivação para a composição de seu livro, estamos aptos agora para
atentarmos para os conteúdos dos v.3-6 do seu livro, em relação à nossa temática.
Eloá de Temã vêm.
E o Santo do monte Parã. Selá.
Cobriu céus o seu esplendor
e seu louvor encheu a terra.
O v.3 constitui-se em quatro frases. As duas primeiras aludem à vinda de Javé. É de
fundamental importância entendê-las, porque a partir delas se desencadearão todos os
versículos subseqüentes. As implicações da vinda de Eloá podem ser observadas a partir
das duas frases do v.3b. Averiguemos, pois, essa temática.
As duas frases iniciais do v.3 repetem a vinda de Eloá. O verbo bo aparece somente
no final da primeira frase, Eloá de Temã vêm, mas está implícito na segunda, e o Santo
do monte Parã. Essa segunda frase inicia-se com sujeito vAdq' qadox santo, um
adjetivo referente a Eloá. O vav conectivo w> e une as duas frases, dando-lhes uma
dinâmica própria. As duas frases, pois, aludem à vinda de Eloá.
A forma verbal aAby" yabo é o imperfeito da raiz aAb bo entrar, vir. O
imperfeito aAby" yabo alude a uma ação no presente-futuro. Javé age no presente,
mas sempre estará para agir no futuro.
110
Dentre os vários significados da vinda de Javé
218
, nota-se a vinda teofânica. Nesse
sentido, Ernest Jenni afirma que a palavra tem seu Sitz im Leben original a festa da vitória
do exército israelita, que celebrava a vinda de Javé para ajudar seu povo na guerra.
219
Afirmamos, pois, que a vinda de Javé têm um caráter bélico. Ele vem para lutar! Aqui se
canta a vinda de Javé. Considerando que Hc 3 é um salmo hínico, pode-se afirmar que a
imagem da vinda de Javé para salvar seu povo e derrotar seus inimigos foi incorporada na
lírica cultual.
220
Assim, a vinda de Javé era cantada. Sempre alimentava-se a esperança de
uma intervenção divina na história, com vistas ao favorecimento do oprimido.
A primeira frase do v.3 inicia-se com o sujeito h;Ala/ Eloá. Esse nome,
designando a divindade, ocorre numa das mais antigas poesia do Antigo Testamento (Dt
32,15.17), e muito freqüentemente aparece nos debates entre e seus amigos. O termo
não é usado largamente em outros livros am de Jó. Em Hc 3,3 alude a Eloá vindo do
Temã, região que está associado a um dos três amigos de , Elifaz (Jó 4,1). A palavra
hebraica é muito semelhante ao termo aramaico elah, o nome mais comum para Deus no
aramaico bíblico.
Tem sido sugerido que o termo veio a aparecer via aramaico, a partir de dois
elementos: el e ah (forma abreviada de ahyeh, Êx 3,14, eu serei [eu sou, ARA], a
designação de Iavé na primeira pessoa. Isto sugere a possibilidade de que originalmente
dois deuses distintos estavam envolvidos e posteriormente formaram uma unidade. Tal
sugestão não parece provável, visto que o termo é quase sempre usado nas Escrituras como
designação do Deus verdadeiro.
221
Após o sujeito (Eloá, o Santo), as duas frases aludem à origem da divindade:
!m'yTemi mi-teyman a partir de Temã e !r'aP'-rh;me me-har paran a partir
218
Veja Ernst Jenni, bo, em Ernst Jenni e Claus Westermann (editores), Diccionario teológico manual del
Antiguo Testamento, Madrid, Ediciones Cristiandad, vol.1, 1978, p.398.
219
Ernst Jenni, bo, em Ernst Jenni e Claus Westermann (editores), Diccionario teológico manual del
Antiguo Testamento, vol.1, p.398.
220
Horst Dietrich Preuss, entrar, em Dicionário teológico del Antigo Testamento, G. Johannes Botterweck e
Helmer Ringgren (editores), Madrid, Ediciones Cristandad, vol.1, p.569.
221
Jack B. Scott, lh, em Laird Harris, Gleason L. Archer e Bruce K. Waltke (editores), Dicionário
internacional de teologia do Antigo Testamento, tradução Márcio Loureiro Redondo, Luiz Alberto Sayão,
Carlos Osvaldo Pinto, São Paulo, Edições Vida Nova, 1998, p.71.
111
do monte Paran A preposição min de, refere-se à origem de Eloá. O primeiro lugar,
Temã, é um distrito ao sul da terra de Edom (Gn 36,34; Jr 49,7.20; Ez 25,13; Am 1,12;
Ob 9).
222
A localização de Parã é questionável. Pode estar localizado no sul de Israel e a
oeste da Arábia (Nm 12,16; 13,3.26), ou ainda, a leste da Arábia, na região de Temã.
223
De
qualquer forma, Temã é uma região desconhecida da tradição do Sinai, mas Habacuc a
coloca em paralelismo com Farã, esta sim, de forte caráter sinaítico
224
. Em Dt 33,2 Javé
vem do Sinai... de Seir... do monte Paran
225
. Assim, à semelhança de Juízes 5,4-5, o salmo
de Habacuque em 3,3 remete-se à tradição sinaítica, porém, com uma diferença gritante: a
menção da tradição exodal, ausente em Juízes 5. Aliás, a temática do êxodo marca
profundamente esta terceira parte da profecia de Habacuque.
226
Então, o v.3a alude à tradição sinaítica. O rh; har monte refere-se a antiga morada
de Javé.
227
Esta divindade antigamente vinculava-se a uma montanha (Ex 3,1). O texto
não somente vincula Eloá com Javé, mas também remete-nos a uma antiga memória bélica
de Javé, que dramatiza a vinda da divindade de sua antiga morada na península arábica,
anunciada em antigos textos poéticos (Dt 33,2-5; Juízes 5,4-5; Salmo 68,8-9[7-8]).
Além dessa vinculação entre Eloá e Javé, nosso texto anuncia a vinda de Eloá para os
campos de batalha. Menciona-se a origem de Eloá, mas ele não manifesta-se no seu local
de origem. O v.3b anuncia que a manifestação de Javé o se restringe a uma montanha. A
primeira frase diz: cobre céus o seu esplendor. O sujeito dAh hod esplendor está
sufixado com o pronome na terceira pessoa A seu, que refere-se a Eloá. A forma
verbal hS'Ki kisah cobriu, do verbo kasah cobrir, ocultar
228
, refere-se ao
ocultamente dos céus devido à manifestação de Eloá pelas nuvens. o se os us, mas
222
J. J. M. Roberts, Nahum, Habakkuk and Zephaniah A comentary, p.151.
223
J. J. M. Roberts, Nahum, Habakkuk and Zephaniah A comentary, p.151.
224
Domingos Sávio da Silva, Habacuc e a resistência dos pobres Tradução crítica do profeta Habacuc,
p.147.
225
Martin Noth, Historia de Israel, p.133.
226
Euclides Martins Balancin e Ivo Storniolo, Como ler o livro de Habacuc A teimosia do justo, São Paulo,
Edições Paulinas, 1991, p.5.
227
Sobre a localização do Sinai, veja p.124.
228
R. Laird Harris, ksh, em Laird Harris, Gleason L. Archer e Bruce K. Waltke (editores), Dicionário
internacional de teologia do Antigo Testamento, p.738.
112
o esplendor de Javé! A manifestação de El oculta os céus! Assim, a frase anuncia a
manifestação de Eloá nos céus, confirmando assim sua vinda anunciada no v.3a.
A segunda frase do v.3b é e seu louvor encheu a terra. O sujeito com o sufixo
pronominal seu refere-se a Eloá. Agora a manifestação divina enche a terra. A forma
verbal ha'l.m' malah provém da raiz ml ser completo
229
, sendo que sua forma
substantivada alude à plenitude
230
. Em outros textos, o termo refere-se a presença de
Deus que enche terra e céus (Jr 23,24; confira Nm 14,21; Sl 72,19; Is 6,3). Então, a
segunda frase do v.3b afirma que o louvor de Elmanifesta-se plenamente na terra.
Completa-se, dessa forma, o anúncio da frase anterior, que referiu-se aos us. Os céus
e a terra perfazem a totalidade do cosmo!
Habacuque emprega termos majestáticos e gloriosos, que acompanham a marcha de
Javé desde Temã. Elementos majestáticos também estão presentes na teofania do Sinai (Ex
19,16-19; 24,15-18). J. J. M. Roberts afirma que os verbos usados com os substantivos e o
imaginário que alude à luz no v.4 sugere que Habacuque descreve um fenômeno similar
a tradição do êxodo: o verbo kissah indica uma nuvem tempestuosa que cobre os céus (Ex
24,15-16; 40,34; Nm 9,15-16; 17,17; Ez 32,7; Sl 147,8) e o malah implica em que este
fenômeno enche por completo o horizonte (Ex 40,34-35; 1Rs 8,10-11; Is 6,1; Ez 10,3).
231
Mas é preciso tecer uma observação: os textos citados relacionam-se com o tabernáculo e
com o templo. Habacuque fala dos céus e da terra. Portanto, afirmo que as duas frases
do v.3b proclamam a manifestação cósmica de Eloá, nos us e na terra, não restritos a
um santuário. Essa manifestação é uma implicação de sua vinda, anunciada no v.3a. Eloá
vem do sagrado para o cotidiano, de Temá e de Paran para os céus e para a terra.
Isso significa que as articulações religiosas que promulgavam a sacralidade de uma
divindade estática, moradora em uma montanha, foram superadas pela promulgação de
uma divindade locomotiva, que se manifesta na totalidade do cosmos. E principalmente
observo o v.3b, que termina aludindo à manifestação divina na terra, no cotidiano. Javé
luta sobre a terra (v.12). Ele se manifesta entre nós! Só um Deus que se revela nos céus não
229
Heinz-Josef Fabry, ml, em Theological Dictionary of the Old Testament, G. Johannes Botterweck,
Helmer Ringgren e Heinz-Josef Fabry (editores), vol.8, 1997, p.298.
230
Walter C. Kaiser, ml, em Laird Harris, Gleason L. Archer e Bruce K. Waltke (editores), Dicionário
internacional de teologia do Antigo Testamento, p.836.
231
J. J. M. Roberts, Nahum, Habakkuk and Zephaniah A comentary, p.152.
113
cabe na teologia bélica javista. É preciso que ele esteja na terra, entre nós. Isso se
evidenciará ainda mais no v.6a.b. Analisaremos isso depois.
No v.4 continua-se a proclamar a manifestação de Eloá. São três frases:
E brilho como a luz será.
Poder de sua mão para ele será.
E lá está véu de sua força.
A primeira frase é e brilho como luz será. O vav conectivo e demonstra a
continuação com as frases anteriores (v.3b). O Hg:nO nogah brilho, no texto
massorético, não está sufixado com o pronome seu, mas é provável que se refira à
manifestação de Eloá. O v.4a é a continuação da manifestação aludida no v.3b, portanto.
Contemplar o brilho de Javé significa experimentar sua salvação.
232
Aqui em nosso
texto o Hg:nO nogah brilho é comparado com a rAa or luz. Apesar do extenso
uso de luz pela religiosidade do Antigo Oriente
233
, o termo aqui é metafórico. Dentre os
vários significados metafóricos de luz no Antigo Testamento, destaca-se o conceito de que
Deus é para o homem a salvação e o auxílio (Sl 27,1; 2Sm 22,29; Is 10,17; 60,1; Mq
7,8).
234
Em outros textos (Is 9,1; 53,11), ver a luz significa experimentar a salvação e a
libertação. Assumimos que esse é o significado de luz aqui em Hab 3,4. O versículo prevê
um momento em que o brilho de Deus será como a luz. Ou seja, anuncia-se a libertação
efetuada por Javé. Essa salvação será, acontecerá, (hy<h.Ti tihyeh), imperfeito de
hyh hyh acontecer. Considerando que um dos usos mais comuns do verbo imperfeito
hebraico é descrever uma ação em acontecimento
235
, e assumindo esse sentido para
hy<h.Ti tihyeh afirmamos que essa manifestação de Eloá ainda está acontecendo.
232
H. Eising, ngh, em Theological Dictionary of the Old Testament, G. Johannes Botterweck, Helmer
Ringgren e Heinz-Josef Fabry (editores), vol.9, 1998, p.186.
233
Sobre o conceito de luz na história as religiões, veja Sverre Aalen, or, em Dicionário Teológico del
Antigo Testamento, G. Johannes Botterweck e Helmer Ringgren (editores), vol.1, p.160-163.
234
Sverre Aalen, or, em Dicionário Teológico del Antigo Testamento, G. Johannes Botterweck e Helmer
Ringgren (editores), vol.1, p.173.
235
Page H. Kelly, Hebraico Bíblico Uma gramática introdutória, p.163.
114
Então, se o v.3b afirma que Eloá o se limita a um espaço determinado, mas sua
manifestação estende-se para todo o cosmo, o v.4a afirma que ele não se restringe a um
tempo determinado, mas sempre estará em acontecimento. Isso já foi confirmado pelo v.3a,
que aludiu a vinda presente-futura de Javé. A manifestação de Javé não se estratifica no
tempo e no espaço! Sempre está para agir! Isso indubitavelmente fomenta a u-topia de um
povo que busca libertação.
A segunda frase do v.4 é força de sua mão para ele será. O substantivo dual
~yIn:r>q;
qarnayim, que traduzimos como força, literalmente significa dois
chifres. Justifico aqui minha tradução. O termo provém de qeren, força, vigor,
chifre, poderio. Embora a forma literal aluda a chifre, o seu uso metafórico significa
força, poder.
236
É uma imagem tirada de touros e outros animais (Jr 48,25 o chifre de
Moab é quebrado, ou seja, seu poder está destruído).
237
Por isso traduzi ~yIn:r>q;
qarnayim como força. Este é um atributo de Javé. A forma dual enfatiza o termo,
podendo ser traduzida como totalidade de força
238
. A fonte desse poder é indicado na
seqüência da frase: AdY"mi mi-yado de sua o. Mas, ao mesmo tempo que se diz
da origem da força, de a mão de Eloá, afirma-se a direção de tal força: Al para ele.
Assim, origem (min de) e direção (le para ) se fundem num mesmo Deus.
A terceira frase, e está véu de sua força desenvolve essa idéia. Nessa alude-se
ainda a força, poder de Eloá, mas, com outra palavra: Z[ oz. Essa essencialmente é
sinônimo de ~yIn:r>q;
qarnayim, poder. O oz força é anunciado estando ali
(~v' xam ), ou seja, na o de Eloá. Nas mãos de Javé força, que pressuponho, de
acordo com a frase anterior, que também seja para ele. Assim, o que origina-se dele é
para ele. Isso promulga um paradoxo. Pois, Javé age para a libertação dos oprimidos, mas
essas ação nunca será dele para eles, mas dele para ele. A ação de Javé é função de si
mesmo ao ser para o oprimido!
236
Leonard J. Coppes, qarnayim, em Laird Harris, Gleason L. Archer e Bruce K. Waltke (editores),
Dicionário internacional de teologia do Antigo Testamento, p.1374-1375.
237
Samuel Prideaux Tregelles, qrn, Gesenius hebrew and chaldee lexicon, p.744.
115
No entanto, força de Javé é um !Ayb.x, hebyon u. Este último termo é uma
forma verbal oriundo de habah, que significa esconder, ocultar. Notamos uma
observação de Domingos Sávio da Silva: Desde o v.3, o profeta vem descrevendo o Deus
epifânico, o seu poder em a natureza. E esta, por um lado, é palco de demonstração do seu
poder. Mas, por outro, revela-se muito mais como véu a esconder a sua verdadeira força.
O seu poder é muito mais do que parece!
239
Se a segunda frase do v.4 anuncia a totalidade
da força, a terceira objetiva ocultar tal força. Ainda tecemos mais uma observação.
Notamos que o conteúdo da primeira frase do v.3a é retomado na terceira frase do v.4,
ainda que em sentido diferente. Pois aquela se referiu ao ocultamento dos céus devido à
manifestação do esplendor de Eloá. Essa alude ao ocultamento da manifestação de Eloá.
Portanto, Javé se manifesta na totalidade do cosmos, mas a totalidade de sua manifestação
não se evidenciou!
Notamos, pois, dois paradoxos no v.4. O primeiro é que Jaage para os oprimidos,
mas essa ação é para si mesmo (segunda frase do v.4). O segundo é que ele se manifesta
integralmente, na totalidade do cosmo (v.3b), mas essa manifestação está oculta (terceira
frase do v.4).
O v.5 ainda se refere a manifestação de Javé. Mas agora se muda a tônica. Se os v.3b-
4 aludiram aos elementos esplendorosos de Javé, o v.5 refere-se a seus elementos
punitivos:
Ante sua face caminhará a peste
e sairá epidemia ante suas pernas.
Este versículo inicia-se com wyn"p'l. le-fanao, literalmente na presença de,
diante de. Esse é um substantivo que transformou-se em preposição devido à sua união
238
Domingos Sávio da Silva, Habacuc e a resistência dos pobres Tradução crítica do profeta Habacuc,
p.144.
239
Domingos Sávio da Silva, Habacuc e a resistência dos pobres Tradução crítica do profeta Habacuc,
p.145.
116
com o prefixo.
240
Segue-se o verbo imperfeito
%l,yE
yeleq caminhará, para depois
anunciar o sujeito da frase: rb,D' daber peste. Essa frase, pois, alude a ação da rb,D'
daber peste. Esse termo refere-se a deber pestilência. A palavra indica qualquer tipo
de peste que resulte em morte. Com exceção de cerca de cinco casos, todos os usos de
deber referem-se a peste enviada por Deus como castigo.
241
Assim, deber refere-se a uma
praga, relacionado com mot, morte (Ex 9,3; Lv 26,25; Dt 28,21; 2Sm 24,13; 1Rs
8,37).
242
A LXX normalmente traduz como thanatos, mas aqui em Hab 3,5 leu-se logos,
referindo-se ao hebraico dabar. O termo deber nunca aparece sozinho, mas sempre em
paralelismo com outro termo
243
, e no nosso texto, aparece junto a @v,r, rexep
epidemia. Assim, nosso texto apresenta Javé cercado de pestilência e epidemia. Tal
descrição assemelha-se à apresentação de outros deuses do Antigo Oriente Médio, cercados
de seus criados para a batalha.
244
É indubitavél que a frase faz menção ao êxodo, através da palavra rb,D' daber
(confira Êxodo 9,3). A memória do êxodo marca profundamente Habacuque 3.
245
O v.15
rememora a vitória de Javé sobre os egípcios. Mas Habacuque adapta a memória exodal
numa nova contemporaneidade, onde os babilônicos são os inimigos.
246
Peste e epidemia
constituem-se como que a escolta de Javé nessa sua intervenção na história. qüito divino
evocando o modo de uma divindade apresentar-se, acompanhada de deuses menores, na
literatura oriental.
247
Dessa forma, o v.5 relembra não as pragas do Egito, a luta entre
240
Victor P. Hamilton, lipne, em Laird Harris, Gleason L. Archer e Bruce K. Waltke (editores), Dicionário
internacional de teologia do Antigo Testamento, p.1222.
241
Earl S. Kalland, deber, em Laird Harris, Gleason L. Archer e Bruce K. Waltke (editores), Dicionário
internacional de teologia do Antigo Testamento, p.296.
242
Samuel Prideaux Tregelles, daber, Gesenius hebrew and chaldee lexicon, p.188.
243
G. Mayer, daber, G. Johannes Botterweck, Helmer Ringgren e Heinz-Josef Fabry (editores), Theological
Dictionary of the Old Testament, vol.3, Grand Rapids/Cambridge, William B. Eerdmans Publisching
Company, p.126-127.
244
G. Mayer, daber, G. Johannes Botterweck, Helmer Ringgren e Heinz-Josef Fabry (editores), Theological
Dictionary of the Old Testament, vo.3, 1997, p.127; J. J. M. Roberts, Nahum, Habakkuk and Zephaniah A
comentary, p.154.
245
Euclides Martins Balancin, Habacuc A fidelidade do justo, em Vida Pastoral , São Paulo, Paulus,
vol.24, 1983, p.5; Domingos Sávio da Silva, Habacuc e a resistência dos pobres Tradução crítica do
profeta Habacuc, p.148.
246
Klaus Koh, The prophets The babylonian and persian periods, Philadelphia, Fortress Press, vol.2, 1984,
p.82.
247
Domingos Sávio da Silva, Habacuc e a resistência dos pobres Tradução crítica do profeta Habacuc,
p.148.
117
Javé e os deuses egípcios, mas recorda também a liderança de Javé e os terrores (peste e
epidemia) que ele espalha, quando luta à frente do seu povo
248
.
Em nosso texto o deber não age por si mesmo, mas l. le para (diante) Eloá. Diz-
se que ela caminhará, denotando-a como uma escolta de Eloá na intervenção da história.
Dessa forma, evidencia-se a manifestação punitiva da divindade. O sujeito da frase é
peste, mas o predicado ante sua face caminhará afirma que a ação está subordinada à
divindade. O pronome seu refere-se a Eloá. É diante dele, para suas faces que a
peste age.
Na caminhada da peste pressupõe-se a caminhada de Eloá. Isso se evidenciará na
próxima frase, onde lemos e sairá epidemia ante suas pernas. Inicia-se com o imperfeito
acey yse sai. A ação do sujeito é inacabada (considerando que o imperfeito denota
uma ação não concluída), à semelhança da primeira frase (caminhará). O termo @v,r,
rexep epidemia também pode ser traduzida como chama, labareda.
249
É um
hemistíquio de rb,D' praga.
250
John Day referiu-se ao antigo conceito mitológico sobre
o deus Rexef, que num texto cananita luta ao lado de Baal contra o dragão.
251
Habacuque
retoma, então, uma antiga tradição cananita. Mas agora rexef é rebaixado a algo que escolta
não a Baal, mas a Javé.
252
O sair da epidemia não evoca a sua origem, mas simplesmente sua ação para
(diante) Eloá (suas pernas). Assim, a segunda frase encerra-se como iniciou a primeira,
indicando que o sujeito não age por si mesmo, mas para Eloá. Portanto, ação de si para
si somente é reservada a Eloá (v.4b). As duas frases do v.5 promulgam que os elementos
peste e epidemia não têm essa ação. Esses somente agem para Eloá. E a ação desses
elementos é notavelmente contra os inimigos de Israel (v.7).
248
Ivo Storniolo, Como ler o livro de Habacuque, p.40.
249
Dicionário hebraico-português & aramaico- português , Nelson Kirst, Nelson Kilpp, Milton Schwantes,
Acir Raymann e Rudi Zimmer (autores), p.234.
250
Samuel Prideaux Tregelles, rexep, Gesenius hebrew and chaldee lexicon, p.782.
251
John Day, New light on the mythological background of the allusion to resheph in Habakkuk 3,5, em
Vetus Testamentum, Leiden, E. J. Brill, vol.29, 1979, p.353-354.
252
John Day, New light on the mythological background of the allusion to resheph in Habakkuk 3,5, p.354.
118
Observo agora a menção das wyl'g>r;
raglayo suas pernas , na segunda frase
do v.5. São as pernas de Javé! Pressupõe-se sua caminhada. Alude-se a sua mobilidade: ele
anda! Isso não é circunstancial, pois se diz que ele vêm de sua habitação (v.3a). E o
verbo caminhará, na frase anterior, ainda que tenha como sujeito a peste, denota
indiretamente a caminhada divina. Na medida que se protagonizam os passos de Javé, a
epidemia se manifesta para punir os inimigos de seu povo.
Portanto, o v.5 continua a aludir à manifestação de Eloá, mas agora especifica que tal
manifestação é para a punição dos inimigos do povo de Deus. Mas não somente isso. O
versículo também alude, ainda que indiretamente, à caminhada de Javé. Ele vem (v.3a). Ele
caminha (v.5).
O v.6 é uma continuidade temática dos versículos anteriores:
Parou
e tremeu terra.
Olhou
e fez soltar nações
e destroçaram-se montanhas de eternidade.
Inclinaram-se colinas de eternidade,
caminhos de eternidade para ele.
Promulga-se a parada de Javé. Observamos isso no v.6a, onde lemos o verbo
dm;['
amad, qal perfeito terceira pessoa, ele parou. Essencialmente esse verbo
significa estar de , permanecer
253
. Mas também pode significar parar-se, estar
parado
254
. Traduzimos de acordo com esse último significado. Pois, entendemos que o
texto desde o v.3 está descrevendo a caminhada de Javé para a luta; o v.5 pressupõe-na.
O v.6 é o fim dessa caminhada!
253
O verbo é usado frequentememente para aludir a postura de alguém diante de Javé. Confira Ronald B.
Allen, amad, em Laird Harris, Gleason L. Archer e Bruce K. Waltke (editores), Dicionário internacional de
teologia do Antigo Testamento, p.1128-1129.
119
Portanto, essa é a seqüência dos conteúdos: no v.3a ele saiu, nos v.3b-5 alguns
elementos demonstraram sua saída e sua caminhada, no v.6 esse processo atinge seu ponto
máximo, pois, agora Javé parou!
No v.6alemos dd,moy>w:
va-yemoded e tremeu, um verbo polel imperfeito
com vav enérgico, oriundo da raiz mvd/myd
255
. Para os vários significados desse polel
imperfeito, propõe-se por em movimento, fazer tremer, agitar, sacudir
256
. O vav
consectivo e indica ações consecutivas e traça uma relação de coordenação deste verbo
com o anterior (dm;[
'
amad), sendo regido por aquele e adquirindo seu tempo verbal.
257
Assim, a ação de Eloá, expressa no início do v.6 (parou), aponta para uma conseqüência:
e tremeu a terra.
O tremor evoca uma teofânia (Ex 19,18; 1Rs 19,11-12). Na tradição sinaítica
conclamava-se o tremor como uma das manifestações de Javé. O tremor, pois, alude a tal
tradição. No entanto, a divindade não está mais na montanha. Ela saiu (v.3a), manifestou-se
(v.3b-4), caminhou (v.5) e parou (v.6a). Somente depois desse processo, relembra-se uma
antiga tradição que remete-nos exatamente ao lugar de onde a divindade saiu (v.6a).
Assim, pode-se articular um antigo conceito sobre Javé, desde que tal articulação permita
inovações teológicas. A divindade manifesta-se pelo tremor, como na antiga tradição
sinaítica, mas agora tal manifestação não evoca uma divindade estática, moradora de uma
montanha, mas uma divindade que caminhou e que parou, exatamente para lutar fora do
lugar de onde veio.
Depois de Javé parar, ele olhou (v.6b). Estamos na terceira expressão do v.6.
Trata-se do verbo qal perfeito ha'r' raah, que rememora uma ação concluída, semelhante
a do v.6a. Esse verbo tendo como sujeito Deus, abarca um precioso conteúdo teológico
em outros textos do Antigo Testamento. Pois quando se diz que Deus significa que
254
Dicionário hebraico- português & aramaico- português , Nelson Kirst, Nelson Kilpp, Milton Schwantes,
Acir Raymann e Rudi Zimmer (autores), p.181.
255
Confira Luis Alonso Sckökel, Diccionario, no item em questão.
256
Dicionário hebraico- português & aramaico- português , Nelson Kirst, Nelson Kilpp, Milton Schwantes,
Acir Raymann e Rudi Zimmer (autores), p.118.
257
Page H. Kelly, Hebraico Bíblico Uma gramática introdutória, p.245-252.
120
Javé intervém nos acontecimentos, ao contrário dos ídolos, para ajudar Israel.
258
Então,
quando se diz que Javé olhou, não se alude a um mero olhar, mas a um intervir!
Eloá parou e olhou. As duas formas verbais estão no perfeito, que denota uma
ação concluída. Ele vêm (v.3a), mas a manifestação de sua vinda estão concretizadas
(v.3b). Mas, ao mesmo tempo, tais manifestações sempre são um vir a acontecer (v.4-5). E
nessa espera, está a intervenção concretizada de Eloá (v.6a.b). Portanto, a vinda de Javé
sempre é aguardada, ele sempre estará para agir pelo seu povo. E isso não significa um
futurismo desprovido de uma ação divina no presente, mas de um futuro que se alimenta de
um passado, e que, por sua vez, sustenta a esperança do hoje. Sua intervenção foi ontem,
mas sempre será amanhã!
O intervir de Eloá tem um alvo definido: os inimigos de seu povo. Isso parece
demonstrar o v.6b: e fez soltar as nações. O vav conectivo e amarra a sentença com a
anterior. Portanto o saltar das nações é resultado do olhar/intervir de Eloá. Importa
entendermos o significado da forma verbal e faz saltar rTeY:w: va-yater, hiphil vav
consectivo imperfeito. Samuel Prideaux Tregelles propõe que este verbo causativo significa
causar tremor.
259
A raiz do verbo é rTn ntr, que pode ter dois sentidos: um primeiro,
soltar, pôr em movimento, e um segundo, soltar, desfazer.
260
Assumimos que a
sentença e faz soltar as nações alude ao segundo sentido. Como o texto está descrevendo
uma teofânia, o sentido de tremor é possível, como afirma acima Samuel Prideaux, mas
desde que entendamos que sentido do tremor é um rasgar das nações mediante um vento
tempestuoso
261
, um desfazer do poderio delas.
O termo ~yIAG goim nações com freqüência alude aos povos vizinhos de
Israel. Alguns deles são citados no v.7. Mas também goy refere-se ao próprio Israel (Gn
12,2; 17,5; 18,18). Ronald E. Clements aludiu a três aspectos importantes que se observa
258
D. Vetter, rh, em Ernst Jenni e Claus Westermann (editores), Diccionario teológico manual del Antiguo
Testamento, vol.1, p.876-877.
259
Samuel Prideaux Tregelles, natar, Gesenius hebrew and chaldee lexicon, p.574.
260
Milton C. Fischer, ntr, Laird Harris, Gleason L. Archer e Bruce K. Waltke (editores), Dicionário
internacional de teologia do Antigo Testamento, p.1021.
261
P. Maiberger, ntr, em G. Johannes Botterweck, Helmer Ringgren e Heinz-Josef Fabry (editores),
Theological Dictionary of the Old Testament, vol.10, 1997, p.121.
121
no Antigo Testamento sobre goy: a raça, o governo e o território.
262
Assim, goy não é
somente uma nação, mas também o governo que ela exerce, seu domínio. Por diversas
vezes goy está em paralelismo com reino (Is 14,6.18; 41,2; Jr 25,14). Entendo, pois, que
o v.6b anuncia não o desfalecimento das nações enquanto raças, mas das nações enquanto
capacitadas para exercer um domínio. Assim, a sentença promulga o desfazer das nações, o
desmantelamento do poderio delas. Essa ação destrutiva de Javé já fora prenunciada no v.5.
Portanto, a forma verbal do v.6b refere-se à intervenção de Eloá, enquanto que a
sentença seguinte, no v.6b, afirma as conseqüências de tal intervenção. A próxima
sentença mantém uma seqüencialidade com essa, afirmando, ainda, as conseqüências do
intervir de Eloá: e destroçam-se montanhas eternas. Inicia-se com Wcc.Pot.YIw:
va-yitpossu hithpolel com vav consecutivo imperfeito, cujo significado é ser destroçado,
esmiuçado
263
. Esse esmiuçar é resultado da intervenção de Javé anunciada na sentença
olhou.
Mas o que significa esse destroçar das montanhas eternas? Sabemos que o rh; har
montanha tem um rico significado teológico no Antigo Oriente Médio. Devido à altura
dos montes que se erguiam até os céus, acima das nuvens, os antigos associaram as
montanhas com os deuses.
264
Na Síria-Palestina as montanhas eram lugares de culto e
adoração. Através dos textos de Ras Shamra sabemos que o Zafon, atual monte Cassius, ao
norte de Ras Shamra, era cultuado e considerado a morada de Baal.
Dentre as várias conotações teológicas das montanhas, destacamos duas
265
, que o
nosso texto parece abarcar. Primeiro, Javé é maior que as montanhas. Vários textos
referem-se à sua superioridade diante delas (Sl 65,6[7]; 90,2; Is 42,15; 63,19; Mq 1,4;).
Segundo, as montanhas são símbolo do poder. Babilônia é chamada de montanha
destruidora (Jr 51,25). O reino que durará para sempre é simbolizado por uma montanha
262
Ronald E. Clements, goy, em G. Johannes Botterweck, Helmer Ringgren e Heinz-Josef Fabry, Theological
Dictionary of the Old Testament, vol .2, 1999, p.428-429.
263
Dicionário hebraico- português & aramaico- português , Nelson Kirst, Nelson Kilpp, Milton Schwantes,
Acir Raymann e Rudi Zimmer (autores), p.197.
264
Talmon, hr, em G. Johannes Botterweck, Helmer Ringgren e Heinz-Josef Fabry (editores), Theological
Dictionary of the Old Testament, vol.3, 1997, p.441-442.
265
Bruce K. Waltke, hr, em Laird Harris, Gleason L. Archer e Bruce K. Waltke (editores), Dicionário
internacional de teologia do Antigo Testamento, p.370.
122
(Dn 2,44). Portanto, a sentença que estamos analisando alude ao destroçamento do poderio
das nações, anunciadas na sentença anterior. Essas, com sua religião, apregoam seu
idealismo político e opressor sobre as outras nações. O Israel do norte havia sucumbido
pelo poderio assírio (722 a.C.). E Judá, na época de Habacuque, estava sendo ameaçada
pela Babilônia. No entanto, a intervenção de Javé visa massacrar tal poderio.
Observo ainda que essas montanhas, ou seja, o poderio ideológico e religioso das
nações, está em relação construta com d[;ad eternidade, contínuo. A sentença é
paradoxal: o poder das nações é perpétuo, mas alcançará seu fim ao ser destroçado por
Eloá. É continuo mas terão fim! Assim a sentença parece ironizar o poderio das nações.
As nações estrangeiras não entenderam sua tarefa limitada como instrumento de
Deus e, seguros (sic) de si mesmos (sic), prosseguem em seu próprio plano de conquista e
extermínio, não estão isentos (sic) da crítica de Iahweh (Is 10,5ss.13ss.). Gloria-se o
machado contra aquele que o branda? Eleva-se a foice contra aquele que a maneja? (Is
10.15a).
266
Vamos agora ao v.6c. A primeira frase, inclinam-se colinas de eternidade,
relaciona-se com a anterior. Fala-se ainda das nações. O termo h['b.GI gibah colina
pode-se referir a um lugar menos alto do que har montanha, mas também refere-se, a
semelhança daquela, a lugares de cultos ilícitos.
267
Parece que har e gibah são sinônimos
em nosso texto. Essa última está em relação construta com ~l'A[olam eternidade.
Essa palavra aparece 19 vezes junta com ad, que relacionava-se com as harim da sentença
anterior. Assim, pois, colinas de eternidade ainda refere-se ao poderio das nações, no
entanto, com uma diferença: agora elas inclinam-se! Esse é um verbo qal perfeito
Wxv; xahu, cuja raiz xxv xhh significa curvar-se, inclinar-se, humilhar-se. No
nifal e no hifil, o significado é ser abatido, no sentido de ser humilhado, ter a
arrogância extraída força). No qal o significado de tirar do pedestal os arrogantes
266
Hans Walter Wolff, Bíblia Antigo Testamento Introdução aos escritos e aos métodos de estudo,
tradução Dulcemar Silva Maciel, São Paulo, Edições Paulinas, 1978, p.81.
267
Victor P. Hamilton, gbh, em Laird Harris, Gleason L. Archer e Bruce K. Waltke (editores), Dicionário
internacional de teologia do Antigo Testamento, p.241.
123
também aparece em Isaías 2,11.17; Salmos 107,39; e talvez 9,13, em que a melhor
tradução seria eles rastejam a seus pés.
268
Então, a primeira frase do v.6c alude à humilhação do poderio das nações. E à
semelhança da sentença anterior, as nações o ironizadas: elas são de eternidade olam
mas agora humilham-se! Isso não somente é resultado da intervenção de Eloá na história
(v.6b), mas também conseqüência daquilo que foi expresso nas últimas duas sentenças do
v.6b: a destruição das nações.
Assim, as nações são objetos nas mãos de Eloá. Elas somente se tornam sujeitos para
humilhar-se diante de Eloá. o são sujeitos de si mesmas, mas de si para Javé. Ainda
lemos um complemento da frase anterior: caminhos de eternidade para ele. Os
tAkylih] halikot caminhos refere-se a direção, andamento das nações. Tais
caminhos mantém a qualidade expressa nas sentenças anteriores, ~l'A[ olam
eternidade. Mas, se na frase anterior expressou-se a vulnerabilidade de tal eternidade,
agora expressa-se sua direção: Al lo para ele, ou seja, para Eloá. A direção que elas
trilham não são para si mesmas, mas para Eloá. Nenhuma nação, por mais poderosa que
seja, pode tomar uma direção e segui-la independentemente daquele que controla a história.
Se dependesse do egoísmo, da sede do poder, uma determinada nação sempre seria dona de
sua história, escreveria sua história como sendo um eterno e indestrutível império. Mas a
história de uma nação nunca será como ela quer. Tal nação sempre estará a mercê dos
acontecimentos desencadeadores da história, que escampam ao seu controle, e que apontam
para aquele que controla tais acontecimentos. A história é uma demonstração da
vulnerabilidade das nações. Todos os impérios que caíram, caíram não porque quiseram,
mas porque eles não têm autonomia para escrevem sua própria história! Seus caminhos
estão para Eloá. Esse é o conteúdo do complemento da frase do v.6c.
268
Victor P. Hamilton, xhh, em Laird Harris, Gleason L. Archer e Bruce K. Waltke (editores), Dicionário
internacional de teologia do Antigo Testamento, p.1543.
124
Conclusão
Concluindo esse capítulo, afirmo que Hc 3,3-6 rememora uma antiga memória bélica
sobre Javé. O v.3a anuncia a saída de Javé do seu santo monte. Os v.3b-5 protagonizam-se
a caminhada de Javé, considerando os v.3b-4 como uma referência a alguns de seus
elementos esplendorosos, enquanto que o v.5 alude àlguns elementos punitivos. No v.6a
lemos o fim da caminhada de Javé, parou. E o v.6b e v.6c proclamam a destruição do
imperialismo das nações. A vinda de Javé do seu santo monte para a terra cultivavél
implica no fim do despotismo gerado pelas nações.
Hc 3,3-6 é uma readaptação de um antigo hino, que evocava a marcha de Javé de sua
antiga morada para a Palestina, a fim de destruir os inimigos de seu povo. Na época de
Habacuque, o povo de Javé era oprimido pelo imperialismo das nações (Judá e Babilônia).
Assim, Habacuque contemporiza uma antiga memória. Trata-se da vinda de Javé do seu
santo monte à batalha. Dessa forma, o profeta afirma que assim como Javé agiu nos tempos
passados agirá em sua época a favor de seu povo. O profeta Javé renovando um antigo
modelo de ação.
269
125
Capítulo 3 A progressividade do conceito de Javé desde o monte Sinai até os
campos de batalha e suas adaptações e relevância para a história de Israel
Realçamos dois textos do Antigo Testamento, que contém uma memória bélica sobre
Javé: Juízes 5 e Habacuque 3. No primeiro, que foi Juízes 5, limitamo-nos aos v.3-5.9-
13.19-22.23. Esses versos aludem e celebram a Javé, o Deus de Israel, que saiu de sua
morada no monte Sinai (v.4-5) para batalhar por seu povo na terra prometida. Celebra-se
sua ação bélica (v.9-13), seus atos de justiça (v.11). A ação de Javé desenvolve-se pelos
elementos da natureza (v.4), através dos quais aniquila o poderio cananeu (v.19-22). Sua
ação também se dá pelas mãos dos guerreiros (v.23).
Notamos, em Juízes, a progressividade do conceito de Javé: de Deus da montanha
ele passa a ser o Deus das batalhas; do Sinai ele migra para a Palestina. Esse processo
revela a progressividade do conceito de Javé, cultivada desde a saída de grupo(s) hebreus
do monte Sinai, até a entrada dos mesmos na terra cultivavél. Quando entraram na
Palestina, re-atualizaram seus conceitos sobre Javé! Mostraremos nesse capítulo como se
dá esse processo formativo do conceito de Javé. Advogaremos que o Cântico de bora
269
J. J. M. Roberts, Nahum, Habakkuk and Zephaniah A comentary, p.154.
126
retrata o momento de novas formulações sobre Javé, sendo de extrema relevância aquela
concernente ao conceito de Javé guerreiro.
Assim, notamos em Juízes uma condensação da evolução do conceito de Javé. Trata-
se das atribuições bélicas à ele, que mencionam sua origem no monte Sinai, mas que
sobrepujaram sua estaticibilidade junto a esse monte. Essa é a memória bélica formativa
em Juízes 5,4-5: Javé saiu do Sinai, caminhou com seu povo e adentrou na Palestina, para
lutar contra os cananeus. Mas essa memória não se estratificou no tempo! Ela foi um fator
de grande relevância para o desencadeamento posterior da história da religião de Israel.
Pois, tal memória é novamente visível em Habacuque 3,3-6, profeta que escreve cerca de
seis séculos depois do Cântico de Débora! Isso revela que a memória lica sobre Javé
promulgada em Juízes 5 o estratificou-se no tempo e num único texto. Em outros textos,
como Êxodo 15, Deuteronômio 33,2 e Salmo 68,8-9 ela também é visível.
Em Habacuque 3,3-6 reencontramos aquela memória notada em Juízes 5,4-5. Mas
agora o profeta a atualiza. Confere-lhe novas atribuições. Por isso, mostraremos como uma
memória, apesar de cruzar séculos, altera-se. Todavia, mantém sua proposta: Javé é um
Deus guerreiro, que saiu de sua morada para lutar por seu povo. Assim, pretendo mostrar
que essa memória bélica contida em Juízes 5 perpassa a história de Israel, sendo encontrada
em outros textos, principalmente em Habacuque 3,3-6. A memória do Javé guerreiro é um
fundamento de revolução social que perpassa a história de Israel. Mas, observaremos
também as transformações da memória de Javé expressa em Juízes 5 no decorrer da
história subseqüente de Israel. Também mencionaremos o Salmo 68,8-9, que expressa essa
memória. E por fim, mostraremos as várias roupagens que o Javé guerreiro adquiriu em
outros textos, especificamente em Habacuque 3,3-6, passando depois ainda outros aspectos
do Javé, homem de guerra (Ex 15,3) em alguns salmos.
3.1 A formação da antiga memória bélica de Javé no período tribal
No Cântico de bora , lemos a origem de Javé no monte Sinai e as adaptações
teológicas construídas na Palestina. Juízes 5 é a condensação desse processo. Por isso
proponho uma deconstrução desse processo, analisando a antiga tradição sinaítica, onde
127
encontraremos conceitos arcaicos sobre Javé, e simultaneamente, as adaptações dessa
tradição na terra da Palestina.
3.1.1 Javé e o Sinai
Buscaremos agora as origens de Javé. Trata-se de uma análise da tradição oriunda do
Sinai. Como mostraremos, é dessa tradição que provém o mais antigo javismo. Este é
anterior ao conceito bélico de Javé, que se fundamenta justamente na tradição do Sinai.
Vejamos!
Há um grande complexo literário que abarca a tradição sinaítica. Refiro-me a Êxodo
19 Números 10. Contudo, esse complexo literário encolhe-se consideravelmente quando
são retirados os blocos de leis, inclusive o Décálogo, que pressupõem uma
sedentarização em Canaã. Segundo a crítica da tradição, os elementos referentes à lei são
incorporados num outro momento, sendo que o Sinai originalmente não foi um monte da
celebração de um pacto, mas de uma teofania, mais precisamente uma teofania de Javé. A
perícope do Sinai (Êx 19, especialmente 19,16-20) começa com uma aparição numinosa,
poderosa e assustadora de Javé.
270
O texto de Juízes 5,4-5 e de Habacuque 3,3 (também Dt 33,2 e Salmo 68,8) afirmam
uma teofania de Javé, que se manifestou desde o monte Sinai. Ele veio de Seir/dos campos
de Edom, para adentrar na terra e lutar com seu povo. Javé é aquele do Sinai (Juízes 5,4).
É um Deus, pois, cuja origem está nesse monte. Essas tradições bíblicas afirmam a relação
entre Javé e o Sinai. Corroborando a isso, estão alguns textos egípcios do 13º século a.C.
que mencionam o nome Ja como um nome de um monte ou uma montanha na
Transjordânia meridional (na Arábia), e simultaneamente, um Deus ali venerado por
beduínos.
271
270
Antonius H. J. Gunneweg, Teologia bíblica do Antigo Testamento Uma história da religião de Israel na
perspectiva bíblico-teológica, tradução de Werner Fuchs, São Paulo, Editora Teológica, Edições Loyola,
2005, p.94 (Série Biblioteca de Estudos do Antigo Testamento).
271
Antonius H. J. Gunneweg, Teologia Bíblica do Antigo Testamento Uma história da religião de Israel na
perspectiva bíblico- teológica, p.95.
128
Logo, é evidente que as antigas tradições atestam uma ligação entre o Sinai e Javé.
Mas o que caracteriza a região do Sinai?
Êxodo 19,18 refere-se à teofania de Javé como explosão vulcânica com fumaça e
fogo. Também observa-se uma teofania representada como uma erupção vulcânica em
Êxodo 12,21-22 e 14,19b.24, onde se diz que Javé anda com seu povo em uma coluna de
fogo e fumaça. Interessante aqui é uma colocação de Antonius H. J. Gunneweg:
O Sinai, portanto, era um vulcão, com o qual Javé possivelmente foi identificado
nos tempos mais antigos, ou onde Javé aparecia como erupção vulcânica.
Posteriormente todo esse complexo de concepções foi intelectualizado e a erupção
vulcânica entendida como um mero fenômeno colateral da teofania de Javé.
272
A partir dos dados acima, pode-se concluir algumas premissas sobre a localização do
Sinai, e, associado a isso, o caráter de Javé. Constatamos que a fé em Javé provém de fora
da Palestina. O Sinai não se localiza na chamada Península do Sinai. Ao contrário, fica
claro que se localiza em algum lugar no suldoeste da Palestina, a Península Arábica.
Vejamos alguns textos que demonstra isso:
Javé veio do Sinai lhes alvoreceu de Seir... (Dt 33,2a)
Saindo tu, Javé, de Seir... (Jz 5.4)
Deus vem de Temã e o Santo do monte Parã (Hc 3,3a)
O Temã e o monte Parã estão localizados na região de Edom e de Seir. Edom e Seir
são sinônimos (Gn 36.20-21). Edom originalmente designava a região montanhosa a leste
da Arabá, e depois também veia a designar o oeste
273
. De acordo com os textos acima, o
Sinai está localizado em algum lugar ao oeste do Mar Morto, na região dos edomitas. Tal
constatação pode ser fundamentada nas alusões climáticas referidas acima, que lembram
272
Antonius H. J. Gunneweg, Teologia Bíblica do Antigo Testamento Uma história da religião de Israel na
perspectiva bíblico-teológica, p.95.
273
Milton Schwantes, História de Israel Local e origem, São Leopoldo, Faculdade de Teologia, 1884, p.151
(Série Exegese).
129
erupções vulcânicas.
274
Na Península do Sinai não existiam vulcões. Esses existiam na
região a oeste do Golfo de Ácaba, na Península da Arábia.
Somando a esse dado, está a afirmação no antigo cântico de Miriam (Êx 15,21), o
qual associa o mar (de Juncos) ao nome Javé, e este é situado pelo próprio Antigo
Testamento não nas cercanias do Egito, mas junto ao Golfo de Ácaba ( 1Rs 9,26).
Um outro argumento depõe a favor da localização do Sinai nas regiões de Ácaba.
Trata-se da relação da fé em Javé com os madianitas, bem como a vinculação do Sinai com
Midiã (Ex 3 e 18). Ainda que seja difícil localizar os midianitas, uma vez que aparecem
mais como nômades, é provável que sejam identificados com alguma área da Arábia, talvez
ao sudeste do Mar Morto. É muito provável que Javé outrora foi o Deus dos midianitas, e
Israel, ou grupos pré-israelitas conheceram a Javé mediante o intercâmbio com os
midianitas. Além dos midianitas, em Gn 4 lemos que os quenitas começaram a venerar a
Javé. Isso corrobora a tese de que Javé não foi adorado exclusivamente por grupos
israelitas.
275
Logo, parece mais plausível identificar o Sinai com algum lugar em Edom ao sudeste
do Mar Morto, do que com a Península do Sinai. Portanto, a javista provém de fora da
terra palestinense.
É provável que no Sinai existisse primitivamente um santuário de culto a Javé, para
onde os devotos a Javé peregrinavam (Ex 18). Os relatos do Sinai talvez são uma
reprodução da festa do ano novo, festa já comemorada numa comunidade sedentarizada.
Sendo assim, a ponte entre a antiga tradição cultual praticada no Sinai e a festa cultual na
Palestina é algo obscuro.
Sabe-se que as narrativas do Sinai emergem do culto. Os textos não são resultados de
uma escola erudita que planejou ordenadamente os escritos. Antes, são fundamentos de fé,
e por isso desempenham uma considerável função na comunidade cúltica. Gerhard von Rad
274
Mas ainda, há a possibilidade de tais expressões se referirem os elementos de uma teofania, e não
necessariamente a fenômenos climáticos.
Veja Erich Zenguer, O Deus da Bíblia Estudo sobre os inícios da
fé em Deus no Antigo Testamento, tradução de Eva Maria Ferreira Glenk, São Paulo, Edições Paulinas, 1989,
p.58.
130
afirma que as narrativas sinaíticas têm seu enraizamento original no culto. Diz ele:
recordemos a série sucessiva: santificação preparatória, quer dizer, purificação ritual da
comunidade; a comunidade avança ao encontro de Deus ao soar a trombeta; Deus se
apresenta e proclama sua vontade; sacrifício e celebração da aliança; todo isto é culto.
276
Sendo assim, a perícope do Sinai é uma legenda comemorativa de uma determinada
celebração cúltica.
Martin Noth afirmou que tal celebração era a festa da aliança, que segundo Dt 31,10,
ocorria a cada sete anos no contexto da festa da primavera. Martin Noth diz que a festa
remonta a um período pré-estatal e que, conseqüentemente, se encontrava no contexto da
organização sacra das doze tribos.
277
No entanto, o que podemos abalizar é que a antiga memória sinaítica realçava
somente a teofania. Aliança e lei originam-se da terra sedentarizada. Então, os textos que
dispomos sobre o Sinai fazem parte do processo literário que reuniu a antiga memória
cúltica de beduínos no Sinai. Os fenômenos da natureza denominados de relâmpagos,
trovões, vento e chuva, os quais indicam Javé como uma divindade de fenômenos
climáticos e da natureza (como também era baal), são características que somente passaram
a ser vinculadas a Javé na terra da Palestina. Tais fenômenos lembram uma tradição cúltica
sedentarizada na Palestina. Já outros textos relacionam Javé a fenômenos vulcânicos,
como fumaça, fogo, fornalha e tremor de terra. Parece que esses eram os elementos
originais de uma antiga tradição cúltica do Sinai
278
, aquela que se originou entre os
beduínos ao sul do Mar Morto.
Pode-se afirmar que o culto a Javé realizava-se num determinado lugar. Seus
adoradores peregrinavam para encontrar com este Deus. o é o Deus que vêm. A gente
vai a certa localidade para encontrar-se com Deus. O local da celebração é o monte. Javé é
275
Antonius H. J. Gunneweg, Teologia Bíblica do Antigo Testamento Uma história da religião de Israel na
perspectiva bíblico teológica, p.96-97.
276
Gerhard von Rad, El problema morfogenético del hexateuco, em Estudios sobre el Antiguo Testamento,
Salamanca, Ediciones Sigueme, vol.3, 1976, p.29 (Biblioteca de Estudios Bíblicos).
277
Martin Noth, Estudios sobre el Antiguo Testamento, tradução de Severino Talavero, Salamanca, Ediciones
Sigueme, 1985, p.51.
278
Milton Schwantes, História de Israel Local e origem, p.157-158.
131
uma divindade da montanha.
279
Essa relação entre Javé com um monte pode ser
observado em alguns textos bíblicos, como Êx 3; 19 e 1Rs 19.
O Sinai relaciona-se com o nome Javé. Em Êxodo 3,13-15 lemos que Javé revelou
seu nome por ocasião do evento com Moisés. Esse texto depõe novamente a favor de uma
antiga relação entre Jae o Sinai. Talvez essa seja uma forte razão porque as memórias
bélicas de Javé que estamos analisando mencionam o Sinai. Elas querem fundamentar a
origem de seu Deus.
O significado do nome Javé é muito difícil. Algumas propostas para a etimologia
do tetragrama sagrado yhvh são: aquele que é, ó aquele, aquele que sou, aquele que
faz fazer, aquele que está ou estará. Assim yhvh deve ser reputado como um
substantivo, no qual a raiz hyh é precedido pelo pré-formativo y
280
. Ou ainda, uma outra
possibilidade interessante é que yhwh pode ser a contração de ehyeh axer ehyeh, eu sou
o que sou (Ex 3,14.15).
281
Frank Moore Cross argumentou que a explicação mais razoável é que yhvh tenha
relação com yahvi, uma forma verbal que acompanha o nome de um deus dos amorreus (il
ou Haddu). A vocalização indica um grau causativo: “’il faz existir ou Haddu faz
existir. O fato de aparecer com muita freqüência o nome divino El nas tradições israelitas,
Cross advoga que a forma original de Javé era El du yahwi shebaoth, ou seja, El que
faz existir os exércitos
282
.
Um dos grandes problemas etimológicos de yhvh é saber se a sigla alude a um nome
ou um verbo. Se for um verbo, trata-se de um imperfeito, abrindo discussão se é um verbo
kal ou hiphil. W. Fox Albright defendeu que se trata de um hiphil. Seria, então, um grau
279
Milton Schwantes, História de Israel Local e origem, p.156.
280
J. D. Douglas (organizador), O novo dicionário da Bíblia, São Paulo, Edições Vida Nova, vol.1, 1966, p.
409.
281
Isaltino Gomes Coelho Filho, O Pentateuco e sua contemporaneidade, Rio de Janeiro, Juerp, 2000, p.75-
76.
282
George V. Pixley, Êxodo, tradução de J. Rezende Costa, São Paulo, Paulinas, 1987, p.39 (Coleção Grande
Comentário Bíblico),citando F. M. Cross, Jahwh and the God of the Patriarchs, em Havard Theological
Review, vol. 55, 1962, p.225-259.
132
causativo do verbo hebraico hyh acontecer, que chama a existência.
283
Mas essa
possibilidade é descartada por muitos eruditos, pois tal forma não é usual no caso do verbo
hyh acontecer. Parece também que não poderia ser um verbo qal.
284
Alguns outros sustentaram que a sigla yhvh tenha relação com yhv, não sabendo se
trata originalmente de uma região, um monte ou ainda uma pessoa.
285
A possibilidade para
que o nome designasse um território ou mais especificamente uma montanha é forte.
Dentre os vários materiais extra-bíblicos, um merece atenção: nas listas egípcias da época
pré-israelita, mencionam-se os beduínos de Seir, enquanto que outros textos egípcios
aludem a terra dos beduínos de yhv
286
. Assim, a informação combina com antigas
indicações veteroneotestamentárias nas quais Javé aparece como Deus de um monte
(Sinai), e, além disso, remete novamente ao espaço situado a sudeste da Palestina.
287
Buscou-se a origem do nome Javé em diversas línguas:
Pode-se, por ex., definir Javé como forma nominal ou verbal (do imperfeito) e
deriva-lo da raiz cair (hwh) ou ser (hyh, em aramaico hwh). De acordo com as
alternativas que forem escolhidas e combinadas entre si, resultam significados
bem distintos: aquele que sopra ou abate, isto é, o arremessador de raios, iria
caracterizar Javé como um deus da tempestade, mas divindades análogas do meio
circundante de Israel, como Baal ou Hadade, nunca têm nome parecido.
288
Pudemos, portanto, observar que várias são as explicações para o nome Javé.
Concluímos a questão do nome de Javé com essas palavras:
A rigor, Javé não é um nome próprio. É uma afirmação a respeito da divindade.
hw"hy>
certamente é um imperfeito do verbo
hyh
ser, acontecer,
283
Gerhard von Rad, Teologia do Antigo Testamento, tradução de Francisco Catão, São Paulo, Aste, vol.1,
1973,
p.30-31; E. C. B Maclaurin, The Origin of the Tetragrammaton, em Vetus Testamentum , Leiden, E.
J. Brill, vol.12, 1962, p.440.
284
J. D. Douglas, (organizador), O Novo dicionário da Bíblia, vol.1, p.409.
285
Confira Siegfried Hermann, O Nome de Deus no Antigo Testamento, em Deus no Antigo Testamento,
p.135-147; Herbert Donner, História de Israel e dos povos vizinhos, São Leopoldo, Sinodal, vol.1, 1997,
p.117-118.
286
Milton Schwantes, História de Israel Local e origem, p.156.
287
Werner H. Schmidt, A fé no Antigo Testamento, p.103.
288
Werner H. Schmidt, A fé no Antigo Testamento, p.103.
133
acionar, e significa ele age/é/acontece. Este Ja se torna compreensível e
experimentável em seu agir na história (...) A rigor não conhecemos o nome de
Javé. Conhecemos seus atributos históricos. No decorrer do tempo, veio a
esquecer-se que a palavra Javé o é um nome, mas é uma forma verbal que
aponta para um agir.
289
As impressões de Javé transmitidas no antigo Cântico de Débora articulam sobre
Javé, realçando seu agir no campo de batalha. Assim também Habacuque 3,3-6, que alude
ao intervir de Javé na história das nações. Portanto, a ênfase dessas antigas memórias
bélicas está na ão histórica de Javé. Isso parece explicar o porquê as antigas memórias
bélicas de Juízes 5 e Habacuque 3,3-6 foram procurar pelas origens de Javé. Ainda há outra
premissa para responder esse porquê. Os fenômenos vulcânicos associados a Javé por si
já são uma demonstração de seu caráter ativo. Um Deus cuja teofania é acompanhada por
explosões de caráter vulcânico possui qualidades diferentes do que pacífico-idílicas! Não
por último é também um Deus terrível, inacessível e perigoso, como o vulcão sobre o qual
se manifesta.
290
Isso talvez explicaria o porquê o grupo descontente com o sistema
cananeu foi buscar fundamentação religiosa numa oriunda do Sinai. Pois, Javé, o Deus
perigoso e esplendoroso, está ao deles.
Portanto, a antiga tradição sinaítica relaciona Javé com o Sinai, depondo a favor de
um culto celebrado a Javé nesse monte, onde este Deus num período habitava. Mas o
Cântico de bora inova o conceito de Javé. Não se prega mais um Deus confinado a um
monte santo, mas um Deus ativo, um Deus que vêm! Sua revelação não se dá no Sinai, mas
no campo de batalha. No entanto, sua ligação com o Sinai ainda é feita! O Cântico de
Débora o menciona (Juízes 5,4).
291
Assim também, Habacuque 3,3. A memória bélica
fundamenta-se na antiga memória sinaítica. Afirmamos, pois, que a expressão Javé,
aquele do Sinai (Juízes 5,5) não somente é uma referência à tradição cúltica sinaítica,
provinda do sudeste do Mar Morto, mas também é uma fundamentação para a construção
da memória lica de Javé. Pois, tais memórias apregoam a origem de Javé. Ele não é um
Deus da terra oriundo da terra sedentarizada. Não! Ele vêm de fora. É um Deus nômade.
289
Milton Schwantes, História de Israel Local e origem, p.154.
290
Antonius H. J. Gunneweg, Teologia Bíblica do Antigo Testamento Uma história da religião de Israel na
perspectiva bíblico- teológica, p.98.
291
Para P. C. Craigie o Cântico de Débora é uma re-coleção da teofania do Sinai. Veja P. C. Craigie, The
Song of Deborah and Epic of Tukulti Ninurta, p.256.
134
Isso coaduna com a origem do povo de Israel, que segundo a tradição do Antigo
Testamento, era um povo nômade antes de sedentarizar-se na terra cultivável.
3.1.2 A transformação do conceito de Javé na terra de Canaã
Delineamos acima algumas premissas sobre a origem do culto a Javé. Juízes 5,4 e
Habacuque 3,3 a mencionam. Agora, cabe-nos observar a nova roupagem que foi atribuída
a Javé na terra prometida.
Constatávamos acima que erupções vulcânicas caracterizaram a antiga teofania de
Javé no monte Sinai. Os textos que dispomos sobre o Sinai fazem parte do processo
literário que reuniu a antiga memória cúltica de beduínos no Sinai. Antigas tradições
veteroneotesmantárias relacionam Javé a fenômenos vulcânicos, como fumaça, fogo,
fornalha e tremor de terra. Já aludimos que esses eram os elementos originais de uma
antiga tradição cúltica do Sinai.
Mas, com a sedentarização do grupo sinaítico em Canaã, as articulações sobre Javé
alteram-se. Duas delas são visíveis, particularmente em Juízes 5,4-5.19-22. A primeira, é a
associação de elementos nômades com elementos da terra cultivavél. A segunda, é a
identificação de Javé com El. Vejamos!
3.1.2.1. Javé O Deus da tempestade
Os fenômenos da natureza denominados de relâmpagos, trovões, vento e chuva, os
quais aludem a Javé como uma divindade de fenômenos climáticos (como também era
baal), são características antigas ligadas ao javismo. Tais fenômenos lembram uma tradição
cúltica nômade e, em parte, sedentarizada na Palestina. A inserção desses fenômenos a
outros oriundos do mundo nômade caracterizarão a formação da antiga memória bélica de
Javé no período tribal, na terra cultivável.
A progressividade do conceito de Javé, desde o Sinai até a Palestina, permite
mutações teológicas. O Javé que se manifestava no antigo monte Sinai não se manifesta da
135
mesma forma na terra prometida. Aqui, ele não age somente pelo tremor, e nem sequer
menciona-se o fogo, elemento característico da antiga tradição sinaítica. Agora, na
Palestina, Javé se manifesta pela água! Tal conceito sobre Javé foi adaptado na Palestina.
Na Palestina o deus cananeu Baal era o deus do tempo, da chuva.
292
Ele domina sobre
o vento, as nuvens e a chuva, manifestando-se através do trovão e do relâmpago. Ele era o
deus da tempestade.
293
Por isso ele é chamado de condutor das nuvens. Com isso, ele
também é o deus da vegetação, que dá à terra a fertilidade. A natureza morria, quando ele
descia ao mundo inferior e renascia quando ele retornava à terra.
Um Deus que se manifesta meramente pelo fogo não cabe numa teologia contestadora
da religião cananéia, que fundamentava o poderio cananeu. O Deus sinaítico que se
manifesta pelo fogo na antiga tradição sinaítica agora se revela pela água na terra
cultivável. Essa alteração não é circunstancial. Visa fundamentar a antiga religião javista,
contrapondo-a ao baalismo. Não é Baal que controla os elementos da natureza. É Javé que
o faz! Por isso Juízes 5,4.19-22 celebra o Deus Javé que faz inundar um ribeiro, admitindo
assim que Javé controla a água.
O conceito de Javé como o Deus da tempestade não se infere como em elemento
meta-social. Pelo contrário, a natureza intervém no curso da história. Ela não age a favor
dos abastados da sociedade. A intervenção da natureza visa o estabelecimento de uma nova
ordem.
Assim, o período tribal é um momento formativo das antigas tradições bélicas sobre
Javé. Esse conceito bélico sobre Javé avulta-se como uma força geradora de uma revolução
social que caracterizou a terra da Palestina entre os séculos 13 e 11 a.C., o que resultou no
surgimento de uma nova sociedade em Canaã cognominada de Israel. Portanto, nesse
momento cristaliza-se uma memória bélica sobre Javé, essa que realçamos em Juízes 5.
292
Werner H. Schmidt, A fé no Antigo Testamento, p.227, 244-245; Antonius H. J. Gunneweg, Teologia
Bíblica do Antigo Testamento Uma história da religião de Israel na perspectiva bíblico- teológica, p.63-72;
De Moor, baal, em G. Johannes Botterweck e Helmer Ringgren, Diccionario teologico del Antiguo
Testamento, Madrid, Ediciones Cristiandad, vol.1, p.723-730.
293
Outro deus da tempestade, da chuva e da fertilidade é Hadad, que é identificado com Baal. Veja Georg
Fohrer, História da religião de Israel, tradução de Josué Xavier, São Paulo, Edições Paulinas, 1982, p.50
(Nova Coleção Bíblica 15).
136
3.1.2.2 Javé e El
Nesse período de transformações sobre o conceito de Javé está a identificação de Javé
com el. A relação entre essas duas nomenclaturas é de difícil compreensão.
Javé não é uma divindade cananéia. Isso apontamos acima. As divindades
cananéias são designadas como el, baal, aserah, astart e outros. Observa-se que el está
entre tais divindades cananeías. O epíteto el está contido no nome Isra-el. O el termo
aparece em textos de Ugarit, em descobertas a partir de 1930, como rei e deus maior de um
panteão.
294
Era um deus distante e muito elevado. A questão é: como tal divindade
relaciona-se com o el do Antigo Testamento, o Deus que luta? Uma segunda questão, de
maior interesse para nós, é: como el foi identificado com Javé?
Os estudiosos afirmam que em Canaã havia divindades locais, às quais ministravam
sacerdotes de santuários; tais divindades eram apenas a manifestações locais daquele deus
uno el. Este teria sido adorado em vários lugares diferentes com vários cognomes de várias
formas. Werner H. Schmidt afirma que é exatamente essa coexistência e esse
entrelaçamento de divindade local e universal que abriu a possibilidade à equiparação do
Deus dos pais com el.
295
Quando se trata do Deus el, os estudiosos buscam várias explicações, e
principalmente associam-no com o Deus dos pais e com o panteão cananeu. Para Werner
H. Schmidt, a identificação dos Deuses dos pais com Javé representa um terceiro estágio
no decurso da história da religião israelita. O nome Javé provém, a rigor, de uma área
situada mais ao sul (Jz 5,4).
296
Um dado histórico parece apontar para a identificação de Javé com el. É provável
que as tribos de José e Benjamim fossem as últimas a se consolidarem em solo cananeu. Há
alguns indícios de que a veneração a Javé se enraizou na área de colonização de José, como
294
Werner H. Schmidt, A fé no Antigo Testamento, p.220-225.
295
Werner H. Schmidt, A fé no Antigo Testamento, p.54.
296
Werner H. Schmidt, A fé no Antigo Testamento, p.57.
137
também na Palestina central, e a partir dali irradiou-se.
297
Também em Judá e mais ao sul
ainda, Javé tinha adoradores, como os quenitas e midianitas.
É uma tarefa muito dificil recompor historicamente a gênese do culto a Javé na
Palestina. Dentre os vários motivos que fizeram grupos beduínos do sul do Mar Morto
procurar acesso às estepes e/ou às matas da Palestina
298
, destacamos um. Trata-se da
organização do reinado dos edomitas, justamente ao sul do Mar Morto, por volta do século
13 a.C. Estamos nas proximidades dos eventos históricos relatados no Cântico de Débora!
Pode-se pressupor que a criação do estado edomita resultou numa estruturação dos setores
da população da região. Especialmente, os pastores terão buscado novas pastagens, onde
pudessem esquivar-se do fisco real. Nos morros e nas estepes da Terra de Canaã ainda se
ofereciam espaços para pastores semi-nômades. Através de tal processo migratório,
beduínos da região de Edom teriam alcançado as montanhas cananéias.
299
O Cântico de Débora pressupõe que em Zebulom e Naftali Javé era reverenciado. E
parece ser esse o começo da era em que o el das tradições patriarcais, um Deus idílio que
acompanhava os nômades é transmudado para o El Israel, o Deus que luta. Ou seja, a
identificação gradativa entre Javé e el marca a transição da consolidação pacífica de
Israel na terra para o confronto bélico com os senhores das cidades cananéias. Como já
pudemos salientar, esse conflito tinha o teor meramente defensivo, e não tinha o objetivo
de derrotar o sistema vigente em Canaã. O conceito de El como um protetor de um grupo
nômade, como se nas narrativas patriarcais, estava superado. Agora ele é o Deus el
que luta. E muito mais do que isso, a junção das divindades Javé e El processa-se pela luta.
Os grupos adoradores de El
300
e de Javé visam um mesmo ideal: a luta pela sobrevivência
na terra. Antonius H. J. Gunnewg diz:
Javé, o Deus de Israel, também se chama Javé, o Deus da guerra de Israel, que
não luta mais somente em favor de coligações isoladas que o veneram, mas se
encarrega dos interesses de todo o Israel. Seu espírito guerreiro ativou a federação
297
Antonius H. J. Gunneweg, Teologia Bíblica do Antigo Testamento Uma história da religião de Israel na
perspectiva bíblico- teológica, p.137.
298
Confira Milton Schwantes, História de Israel Local e origem, p.160-162.
299
Milton Schwantes, História de Israel Local e origem, p.161.
300
Sobre a adoração a El, veja Georg Fohrer, História da religião de Israel, p.36-37.68-71; Antonius H. J.
Gunneweg, Teologia bíblica do Antigo Testamento Uma história da religião de Israel na perspectiva
bíblico- teológica, p.127-136; Werner H. Schmidt, A fé no Antigo Testamento, p.51-60.
138
israelita, anteriormente solta, consolidou-a e capacitou-a a romper pela luta com o
domínio do sistema cananeu.
301
No antigo Cântico de Débora, El é o Deus que luta (Isra-el), que está relacionado
com Javé pela expressão Javé, Deus de Israel (Juízes 5,3.5). Pressupomos que esse texto
já alude a uma junção de vários grupos, de terras e divindades distintas, que se uniram para
defender sua causa ante o sistema cananeu.
Portanto, o Cântico de Débora retrata um período formativo de uma antiga memória
bélica sobre Javé. Nessa, o antigo Deus sinaítico é reatualizado por grupos que adentraram
a terra cultivável, e que deram a esse Deus uma nova roupagem teológica. Javé migra do
monte para a terra de Canaã, para ali lutar. Nessa terra, além de receber novas conotações
teológicas, também é identificado com o Deus El, divindade cananéia.
3.2 Continuações e transformações da memória sobre Javé expressa em Juízes
5 no decorrer da história subsequente de Israel
Até aqui analisamos o período formativo do antigo conceito bélico sobre Javé.
Tentamos reconstruir os elementos que precederam a esse conceito, atentando-nos
principalmente à tradição do Sinai. Depois, nos detemos às transformações do conceito de
Javé quando os grupos hebreus adentraram a terra cultivável, o que resultou na antiga
memória bélica que estamos analisando. Assim, o conceito bélico sobre Javé origina-se na
terra cultivável, tendo como fundamentação a tradição sinaítica.
Importa-nos, agora, uma avaliação do desenvolvimento desse conceito lico sobre
Javé na história da religião de Israel. Aqui, observaremos que a antiga memória bélica
sobre Javé encontrada em Juízes 5 e formada no período tribal sujeitou-se à
transformações. No entanto, também manteve certa semelhança no decorrer desse processo.
Comecemos, pois, pensando sobre as continuações da memória lica sobre Javé na
história da religião de Israel.
3.2.1 Continuações da memória bélica sobre Javé
301
Antonius H. J. Gunneweg, Teologia Bíblica do Antigo Testamento Uma história da religião de Israel na
perspectiva bíblico-teológica, p.141.
139
Olharemos, agora, para Habacuque 3, um texto composto (ou re-composto) no fim do
7
a
século a.C. Isso corrobora à afirmação que a memória de Javé promulgada no antigo
texto de Juízes 5 atravessou séculos e ainda era relevante na época do profeta Habacuque.
Assim, a memória bélica sobre Javé construída em Juízes 5 não confinou-se somente a esse
texto.
Essa memória aparece em outros textos, como Dt 33,2 e Salmo 68,8-9. Verificável é a
semelhança entre Juízes 5,4-5 e o Salmo 68,8-9. Vidal Henrique defendeu que no Salmo 68 trata-se
de um hino composto de uma série de gritos e aclamações de vitórias, unificadas pela marcha ao
santuário
302
. Mencionam-se as tribos nortistas Zabulom e Neftali. Essas são elogiadas no cântico de
Débora (Jz 5,18). Mas diferente do Cântico de Débora, o Sl 68 menciona duas tribos do sul: Benjamim
e Judá. Isso nos permite afirmar que a antiga memória bélica de Juízes 5,4-5 também se espalhara ao
sul. Deus está em sua morada santa (Salmo 68,6), mas ele vai descer para ajudar seu povo (Sl 68,10).
Na antiguidade o templo e o palácio se encontravam nas acrópoles e lugares altos. Lá, Deus habita.
Mas, em Israel, Deus irá descer para socorrer seu povo. O Sl 68,8-9 é semelhante a Jz 5,4-5. A
imagem de Deus é de um comandante. Esses dois textos (Sl 68 e Jz 5) ligam o passado de Israel às
teofanias do caminhar de Deus com seu povo.
Pode-se observar abaixo a semelhança entre a memória de Juízes 5,4-5 e Salmo 68,8-9:
302
Vidal Enrique Becerril, Quando os deuses eram aclamações de libertação... As peregrinações dos pobres
e os sete nomes de Deus no Salmo 68, São Bernardo do Campo, Universidade Metodista de São Paulo, 2000,
p.60 (tese de doutorado).
140
Juízes 5,4-5
Salmo 68,8-9
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Tradução:
Jav
é!
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íres de Seir
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^t.aceB.
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~yhil{a/ ynEP.mi
`laer'f.yI yhel{a/
~yhil{a/ ynEP.mi
Tradução:
Elohim !
quando saístes à frente do teu
povo
quando marchaste pelo deserto
(Selah)
a terra tremeu
até os céus gotejaram
141
Ao marchares do campo de Edom
terra tremeu
Em especial céus gotejaram
Em especial nuvens
gotejaram água
montes escorreram
diante de Javé, aquele do Sinai
diante de Javé, o Deus de Israel
diante de Elohim, este do Sinai,
diante de Elohim, o Deus de Israel.
Considerando a proposta de Vidal Enrique, pode-se afirmar que a memória bélica promulgada
originalmente em Juízes 5,4-5 foi celebrada posteriormente no contexto cúltico, como é o caso do
Salmo 68. Como se observa no quadro, poucas diferenças o visíveis, que não alteram
essencialmente a memória.
Nossa atenção se deteve em Habacuque 3,3-6, onde tal memória lica novamente
aparece. Essa também relembra Juízes 5,4-5. Aqui se alude a Javé, que saiu da região
montanhosa dos edomitas, caminhou com seu povo, e adentrou na terra cultivável para
desfazer o poderio das nações. Assim, Habacuque se vale de uma antiga memória javista.
Observo aqui que a memória bélica sobre Javé perpassa a história de Israel!
Só uma forte razão permitiria que uma memória cruzasse séculos. Defendemos que
ela é uma forte animadora de transformações sociais. Sabemos que a batalha de Quison,
relatada em Juízes 5, e de onde surge a memória que estamos realçando, não resultou na
derrocada total do poderio cananeu. Mas ali surge uma memória que fomenta a revolução
dos camponeses para a derrubada das cidades cananéias e a religião dessas, que se
fundamentava em Baal. A construção bélica sobre Jaé um questionamento da religião e
da ordem vigentes.
Assim também se caracteriza Habacuque 3,3-6. Observamos que o profeta questiona
a opressão intestina de Judá, promulgada pelo reinado de Jeoaquim, bem como o poderio
142
do ímpio império babilônico. Dessa forma, a memória bélica de Javé rememorada por
Habacuque também é um questionamento da ordem vigente, à semelhança de Juízes 5.
Portanto, Juízes 5 e Habacuque 3 fomentam uma revolução contra uma religiosidade
que fundamenta a dominação da elite mandante. Sendo assim, não posso concordar com
Robert A. Butterfield, que afirma que o Cântico de Débora visa fundamentar
ideologicamente uma classe dominante israelita.
303
Atentemo-nos para suas palavras: o
fato de que este cântico atribui o êxito dos israelitas a Javé não tem significado histórico
nem comprova que esta batalha foi uma revolta campesina propriamente dita, pois o fim de
todos os textos provenientes do período dos Juízes é enfatizar o papel de Javé nas guerras
israelitas.
304
Robert A. Butterfield ainda afirma que o êxito dos israelitas foi atribuído à ação de
Javé para fazer os líderes israelitas passarem-se por divinos, e ainda argumenta: isto
constitui o modo clássico de a classe dominante legitimar-se ideologicamente, não em
Israel, mas também em todo o antigo Oriente Próximo
305
.
Mas ressalto que Habacuque retoma a memória de Juízes 5,4-5, para exatamente
anunciar a ruína do imperialismo das nações! Mesmo reconhecendo, que uma memória
pode sofrer mutações, como demonstraremos abaixo, ela não pode sofrer alterações e
adaptação tão abruptas a ponto de mudar sua essência, que realçamos ser a saída de Javé de
sua santa morada para combater contra a opressão da terra cultivável. Assim, advogo que
Habacuque, ao retomar a antiga memória bélica de Juízes 5,4-5, está entendendo que essa
memória em instância alguma pode ser uma legitimação da classe dominante. Ao contrário,
Habacuque parece entender que aquela memória fundamenta uma revolução dos setores
oprimidos. Por isso, nem Juízes 5 e nem Habacuque 3,3-6 parecem ser aliados a uma
ideologia dominante, e seus esteios em meio à sociedade personificados numa elite
político-religiosa.
303
Robert A. Butterfield, A evolução sócio-política do Israel pré-estatal Uma tentativa de reconstrução
histórica a partir de vários textos do período, inclusive o Cântico de Débora, em Estudos Teológicos, São
Leopoldo, Escola Superior de Teologia, vol.28, 1988, p.99-110.
304
Robert A. Butterfield, A evolução sócio-política do Israel pré-estatal Uma tentativa de reconstrução
histórica a partir de vários textos do período, inclusive o Cântico de Débora, p.109.
305
Robert A. Butterfield, A evolução sócio-política do Israel pré-estatal Uma tentativa de reconstrução
histórica a partir de vários textos do período, inclusive o Cântico de Débora, p.109.
143
As manifestações teofânicas de Javé, numa época antiga, vigoravam-se num antigo
lugar santo do monte Sinai. Mas, como apontei acima, essas manifestações sofreram
mutações na terra da Palestina, quando o grupo sinaítico sedentarizou-se. A partir de então,
tais manifestações passam a ser orientadoras da história. O tremor (oriundo da tradição
sinaítica) passa a intervir nos acontecimentos referentes ao povo israelita. Isso se observa
tanto em Juízes 5,4 como em Habacuque 3,6. A água (tradição da terra cultivavél)
proporciona o caos que derrota os inimigos dos israelitas (Juízes 5,4.19-22). Em
Habacuque 3 todo o cosmos reage diante da manifestação de Javé. Ele sai de sua morada
para manifestar-se no cosmos (v.3). A ele responde o sol e a lua (v.11). A teofania de Javé
não é um conceito metafísico e atemporal. Não! É histórico; manifesta-se no tempo. A
história é uma teofania de Javé. Ele a controla e intervém no destino das nações (v.6). Os
fatos referentes a Israel e seus vizinhos estão a mercê da teofania de Javé.
Portanto, a relação entre natureza e história é contundente. Em Habacuque 3,10-11
menciona-se o agir de Javé na natureza (onde os elementos da natureza são vistos como
armas nas mãos de Javé), e em seguida, paralelamente ao agir na natureza, está o agir na
história (Habacuque 3,12). A intervenção na história e sua intervenção na natureza se
fundem num só alarido que celebra a libertação. Se Javé age lá, no cosmos, de forma tão
decisivo, tem condições também de agir aqui, na história.
306
Importantíssimo é a participação dos oprimidos no desenrolar da história. Domingos
Sávio da Silva diz:
Conciliar, em si mesmo, estes dois pólos: acreditar no seu Deus salvador, e em si
mesmo. Sua fé se realmente fé, ao menos no Deus-Javé, unicamente se
comportar também essa fé e certeza que Deus tem nele-suplicante, se acreditar
que ele mesmo, e unicamente ele, é quem, de fato, se constitui nessa mão forte e
transformadora de Deus na história (saíste para salvação de teu povo, para
salvação com teu ungido (Hc 3,13a).
307
306
Giuseppe Bernini, Osea, Michea, Nahum, Abacuc, Roma, Edizioni Paoline, 2ª edição, 1977, p.402
(Nuovissima Versione Della Bibbia Dai Testi Originali).
307
Domingos Sávio da Silva, Habacuc e a resistência dos pobres Tradução crítica do profeta Habacuc,
p.279. Nota-se aqui que o autor identifica o ungido com o próprio oprimido.
144
Ainda interessante é uma observação de Euclides Martins Balancin e Ivo
Storniolo: a grande força do povo reside nele próprio e na reunião das pequeninas
forças de cada um, dirigidas para um objetivo comum (...) O que falta, talvez, seja a
descoberta de que a força mais invencível e que pode derrotar qualquer estrutura
injusta é a vontade de um povo que luta pela justiça.
308
Em Hc 3,13 lemos de uma ação conjunta de Deus e de seu povo/ungido: saíste para
a salvação de teu povo, para salvação com o teu ungido. A preposição com, como
afirma Domindos Sávio da Silva, parece ser bem mais do que o mero lado a lado: Saem
para a luta Javé e seu povo, mas, de certo modo, numa comunhão também de armas, de
arsenal de guerra, fundamentalmente divinos
309
.
Essa é a memória bélica contida em Juízes 5 e Habacuque 3,3-6. Ela é instigadora de
transformação social. Isso explica sua relevância aos vários momentos da história de Israel
e, conseqüentemente, à sua durabilidade. Assim, uma memória bélica sobre Deus, como
um recurso de resistência à opressão patrocinadas por uma minoria da sociedade, também é
relevante para nossa contemporaneidade.
310
A fé cristã também dever ser motivadora à
participação no interior de processos revolucionários.
Os dados apontados acima me levam a duas conclusões parciais. Primeira, o período
tribal foi um momento de adaptações teológicas sobre Javé. Reatualiza-se a antiga memória
sinaítica, para se fundamentar a revolta israelita contra a opressão da elite cananéia.
Segunda, observo que uma memória sobre Javé, geradora de questionamentos da ordem
social vigente, perpassa a história de Israel. Formou-se no período tribal. Vigora, ainda, na
época de Habacuque. Sua durabilidade explica-se pela relevância tanto para os grupos
israelitas lesados pelo poderio cananeu no século 13 a.C. (Juízes 5), como para aqueles
desprestigiados pela sociedade judaíta nos fins do 7
a
século a.C., aos quais Habacuque se
identifica.
308
Euclides Martins Balancin e Ivo Storniolo, Como ler o livro de Habacu A teimosia do justo, p.279.
309
Domingos Sávio da Silva, Habacuc e a resistência dos pobres Tradução crítica do profeta Habacuc,
p.280
145
3.2.2 Transformações da memória bélica sobre Javé
Averiguamos sobre as semelhanças entre a memória lica sobre Javé em Jz 5 e em
Hc 3. Essas semelhanças nos permitiu afirmar que tal memória bélica perpassou a história
da religião de Israel. Agora, deter-nos-emos nas mutações que essa memória sofreu. Dois
elementos serão notados: a inserção da tradição êxodal à memória bélica sobre Javé e as
várias roupagens bélicas aplicadas à Javé nos salmos. Vejamos!
3.2.2.1 A ausência da tradição êxodal na memória bélica de Juízes 5 e sua inserção
em Habacuque 3
No antigo Cântico de Débora, a memória é articula sem o êxodo, ao passo que, em
Habacuque 3,3-6, a memória êxodal marca profundamente a memória de Javé.
Averigüemos como isso acontece.
No texto bíblico atual uma íntima conexão entre o êxodo a o estacionamento dos
israelitas junto ao monte Sinai. Logo após a saída do êxodo, o grupo dos hebreus marchou
para o Sinai, onde permaneceu por dois anos. O material literário que descreve o
acampamento israelita junto ao Sinai é Ex 19,1-Nm 10.11, e em Dt 1-33 há uma
recapitulação sobre o que Javé disse no Sinai. A tradição do Sinai se fundamenta no êxodo,
como observamos em Ex 20,2 e Dt 6,20-23. No entanto, o atual texto que temos em mãos
foi submetido a um exame concernente às histórias das tradições que precederam o estado
atual de tais textos. Coube a Gehard von Rad observar que os textos mais primitivos, os
credos históricos de Dt 26,5b e 6.21-22 omitiam a tradição do Sinai.
311
A tradição do Sinai
não esinserida nos principais eventos salvíficos de Israel. Isso sugere que a interligação
entre o êxodo e Sinai é um fenômeno da tradição
312
. Segundo alguns, como Hans Walter
Wolff, a tradição literária do Êxodo é distinta das tradições do Sinai, e num momento
310
Para uma discussão sobre a violência no contexto das experiências históricas da América Latina, veja
Tristán Athayde, citado por Walter Altmann, Recurso à violência e transformação social, em Estudos
Teológicos, São Leopoldo, Escola Superior de Teologia, vol.30, 1990, p.126-142.
311
Gerhard von Rad, El problema morfogenético del hexateuco, p.11s.
312
Milton Schwantes, História de Israel, p.147.
146
anterior, ambas caminharam separadamente até serem reunidas num processo literário de
redação.
313
Um dos argumentos mais convincentes sobre o desagregamento original entre a
tradição do Êxodo e a tradição do Sinai é o Cântico de Débora, que não menciona o êxodo.
Celebra-se uma derrota cananéia como fruto de uma chuva que inundou o ribeiro de
Quison. Isso leva alguns eruditos a concluírem que os camponeses de Juízes 5 não
conheciam a tradição do êxodo
314
(provavelmente o grupo mosaico ainda não chegara à
Palestina ou sua ideologia exodal não havia se espalhado). Logo, a tradição do Sinai
pode ser mais antiga que a do êxodo.
Sendo assim, o grupo do êxodo não conhece o grupo do Sinai, e conseqüentemente,
não conhece Javé. O próprio nome Israel, que traz consigo o nome divino El,
divindade cananéia, parece contribuir para o argumento de que originalmente o povo
hebreu do êxodo não conheceu Javé.
315
Assim, a alusão a Javé, como o Deus libertador do êxodo, é fruto de um complicado
processo traditivo. No entanto, no antigo Cântico de Débora, Javé já é identificado como o
Deus de Israel. Mas esse grupo Israel que celebra a Javé parece ainda desconhecer a
memória do êxodo. Trata-se, eventualmente, do grupo sinaítico.
Se a tradição do êxodo é omitida em Juízes 5, em Habacuque 3 ela é marcante.
316
Talvez essas seja uma das grandes diferenças entre essas duas memórias. advogamos
que Habacuque 3,5 rememora uma linguagem êxodal.
313
Os textos litúrgicos de Dt 26,5-9; 6,20-25 e Js 24,2-13 traçam uma linha fundamental para a sucessão dos
seguintes temas: os patriarcas, o êxodo e a ocupação da terra. Silenciam sobre o Sinai, o que leva Hans
Walter Wolff a concluir que a tradição do Sinai caminhou numa tradição oral separada do resto do
Pentateuco. Confira Hans Walter Wolff, Bíblia Antigo Testamento Introdução aos escritos e aos métodos
de estudo, tradução Dulcemar Silva Maciel, São Paulo, Edições Paulinas, 1978, p.26-27. No entanto, embora
as narrativas do Êxodo e do Sinai tenham sido promulgadas em diferentes contextos, outros autores, como
Georg Fohrer, afirmam que isso não significa que essas narrativas foram derivadas de grupos diferentes e que
não tenha fundo histórico. Confira George Fohrer, História da religião de Israel, p.76.
314
Carlos Arthur Dreher, As Tradições do êxodo e do Sinai, em Estudos Bíblicos, Petrópolis, Editora
Vozes, vol.16, 1988, p.57-58.
315
Veja Milton Schwantes, História de Israel, p.123-126.
316
Euclides Martins Balancin, Habacuc a fidelidade do justo, em Vida Pastoral, vol.24, n.113, 1983, p.5;
Domingos Sávio da Silva, Habacuc e a resistência dos pobres Tradução crítica do profeta Habacuc, p.148.
147
Portanto, a memória bélica sobre Javé esteve sujeita as mutações no decorrer na
história de Israel. A principal delas, destacada aqui, foi a inserção da tradição do êxodo,
notada em Habacuque 3.
3.2.2.2 As várias imagens do Javé guerreiro nos Salmos como implicação de sua
relevância para a história de Israel
A memória bélica sobre Javé perpassa a história de Israel e marca profundamente sua
religião. Constatamos que a lembrança de Javé que saiu do Sinai, caminhou com seu povo
e adentrou na terra prometida caracteriza um antigo conceito do Javé guerreio, que teve
suas origens no Cântico de Débora e alastrou-se para a história subseqüente da religião de
Israel, como podemos observar em Habacuque 3,3-6. Também mencionamos o Salmo
68,8-9. Daí observa-se sua relevância para a história da religião de Israel.
Mas nesse transcorrer histórico, a memória bélica de Javé aparece em várias
roupagens distintas. São rias características bélicas que Javé foi contemplado na história
da religião de Israel, o que também demonstra sua relevância para essa. Propomos, nesse
último momento de nossa pesquisa, analisar o conceito de Javé guerreiro nos Salmos,
observando assim, sua relevância para a história da religião de Israel. Na verdade, trata-se
de outros matizes sobre a memória bélica de Javé, distintas daquelas observadas em Juízes
5 e Habacuque 3,3-6.
Marc Brettler escreveu em 1993 sobre as imagens de Javé guerreiro nos salmos,
perguntando quais as maneiras que os salmistas conceituaram Javé como guerreiro.
317
Muitos salmos contêm textos que tipicamente discutem a questão do Javé guerreiro (Sl 18,
24, 68). Cerca de três quartos dos salmos desenvolvem esse conceito. Assim, diz Brettler, o
livro dos salmos é um texto apropriado para se fazer um estudo de Javé como guerreiro.
Para ele, o conceito de Javé como guerreiro deve ser desenvolvido como uma metáfora,
sendo que metáfora seria uma projeção de atributos humanos aplicados a Javé, tais como:
rei, marido e pai
318
. Mas Brettler diz que tais metáforas não representam
317
Marc Brettler, Images of yhvh the warrior in Psalms, em Semeia, Arizona , The Society of Biblical
Literature and Exegesis, vol. 61, 1993, p.136.
318
Marc Brettler, Images of yhvh the warrior in Psalms, p.137.
148
substancialmente o mesmo significado aplicado à humanidade, como, por exemplo, quando
se diz que Deus é guerreiro, Javé sempre vence suas batalhas e nunca é morto ou ferido,
como um guerreiro. Observa-se isso em Sl 68,6.22 (Javé como pai e como vencedor.)
Outra questão interessante Bretlher aborda. Para ele as metáforas devem ser
compreendidas cada qual em seu determinado contexto. Isso implica que: 1) as metáforas
são usadas em salmos individuais, e devem ser analisadas em cada contexto particular; e 2)
podemos combinar todos os contextos, para compreendermos a relação entre ação guerreira
humana e a ação guerreira de Javé. Assim, o interesse de Brettler é identificar em que
aspectos as guerras humanas são usadas em tais salmos, e, dessa forma, entender como a
metáfora Javé é guerreiro funciona em determinado salmo.
319
Assim, Brettler analisa alguns salmos, individualmente. São eles: Sl 3 (um lamento
individual); Sl 46 (um hino da comunidade); Sl 83 (um lamento da comunidade) e Sl 144,
que é um salmo constituído por várias citações de literaturas de rios gêneros. Esses
salmos, pelo menos em sua redação final, são oriundos de Jerusalém, embora o Sl 83, de
Asaf, proceda de uma tradição efraimita.
Há aspectos diferentes sobre o Javé guerreiro, em cada salmo analisado.
No Salmo 144,6b apresenta uma arma ofensiva usada em batalhas humanas, chamada de
flecha, projetada para Javé. No Salmo 3,4, Javé é descrito como um escudo (cf.
46,1.11; 144,1-2). No Sl 83, Javé não tem arma. Javé se apresenta através de fenômenos
meteorológicos, que retratam uma teofania (83,13-15; cf. 46,7b; 144,5-6). Javé usa o poder
da tempestade como uma arma. Assim também o Salmo 68,10.
Também Brettler afirma que diferentes noções são desenvolvidas sobre os inimigos
nos salmos.
320
No Sl 3, eles são inimigos do salmista; nos Sl 46 e 144, não o sufixo
pronominal no termo inimigo, enquanto que, no Sl 83, eles são especificamente
chamados de inimigos de Javé. Assim, somente no Sl 83 Javé é visualizado como o chefe
guerreiro de Israel, afirmando que os inimigos de Israel são também seus inimigos. Ainda a
expressão as muitas águas, no Sl 144,7, relembra um inimigo mitológico de Javé. Dessa
319
Marc Brettler, Images of yhvh the warrior in Psalms, p.138.
320
Marc Brettler, Images of yhvh the warrior in Psalms, p.158-159.
149
forma, diz Brettler, os salmistas descrevem dois grupos de inimigos: os inimigos históricos
de Israel e os inimigos mitológicos de Javé.
Brettler mostrou, ainda, que há diferentes noções de como Javé agiu como guerreiro:
somente no Sl 3 Javé é associado especificamente com Jerusalém; somente no Sl 46
aparece o epíteto Javé sebaot; somente no Sl 83 são mencionadas batalhas passadas em
que Javé defendeu Israel dos seus inimigos; e somente no Sl 144 Javé guerreiro é
relacionado com hesed e com o governo jurídico de Javé.
Notamos especialmente o que Brettler diz sobre o Salmo 3,5b, onde lemos ele me
responde do seu monte sagrado. Aqui, ele afirma que há uma relação entre a guerra
divina e a arca, relacionando o texto com o Sl 24 e 1Sm 4.4.
321
É possível identificar a arca
com a carruagem divina, que por sua vez, reflete as carruagens militares humanas. Então, a
arca participava em algumas batalhas no antigo Israel, e ela era símbolo da proteção divina
em tais batalhas. Além do Salmo 24, outros salmos relacionam as libertações de Israel,
mediante uma ação bélica de Javé, e a arca (63,3; 84; 96,6; 132). É possível que o Salmo
24,7-10 relaciona-se com 2Sm 6,12-16 e também com o Salmo 68,25-27. Então, de
fundamental importância para a análise da antiga memória de Javé no Salmo 68, seria a
relação entre a ação bélica de Deus e arca.
Portanto, são muitas as configurações que a memória bélica sobre Javé esteve sujeita
no decorrer da história da religião de Israel. A pesquisa de Marc Brettler nos possibilitou
visualizar isso. Desde o período formativo do conceito bélico sobre Ja(período tribal),
onde o antigo javismo inseriu-se numa linguagem bélica, novas cononatações foram sendo
incrementadas ao Javé guerreiro. De fundamental importância para o nosso tema seria a
análise da expressão Javé sebaot (Sl 46), e a relação dessa expressão com a arca (1Sm
4,4). Sob essa temática, também caberia uma reflexão sobre a relação entre 2Sm 6,12-16 e
Sl 24, 7-10. A pesquisa de Marc Bretter somente nos possibilitou despertar para uma
análise da pluralidade do conceito de Javé guerreiro dos salmos.
321
Marc Brettler, Images of yhvh the warrior in Psalms, p.141.
150
Conclusão
Teceremos algumas observações que resumem nossa proposta de trabalho, bem como
explique a relevância do tema concernente a memória bélica sobre Javé à teologia da
América Latina. Vejamos!
Inquirimos no decorrer da dissertação sobre uma memória lica de Javé. Não
analisamos o conceito de guerra santa, com todas suas peculiaridades na religião de Israel.
Antes, detivemo-nos em uma memória que se constitui nas primeiras impressões que Israel
obteve de seu Deus. Nela, encontramos um conceito bélico sobre Javé.
Para a execução de tal tarefa, analisamos, no primeiro capítulo, o Cântico de Débora,
em Juízes 5. Mas antes disso, afirmamos que o livro de Juízes é uma obra oriunda do
século a.C., que analisa teológica e historicamente a monarquia de Israel e as causas de sua
extinção, em 587 a.C. pelos Babilônicos. E, inserido nesse complexo literário, está o
Cântico de Débora (5,2-31a), que compõe uma antiga unidade poética dentro do livro de
Juízes. Nele ausenta-se a redação deuteronomística. Trata-se, pois, de um antigo hino que
celebra ao Javé guerreiro, composto nas proximidades dos eventos referidos, e que tem
correspondência com outros textos do Antigo Oriente Próximo.
151
Juízes 5 relata o confronto entre os reis de Canaã, uma coalizão de vários reis das
cidades-Estado de Canaã, e as entidades campesinas, denominada de Israel. A batalha
ocorreu no Vale de Jezreel. O v.15a refere-se ao vale. Trata-se do Vale de Jezreel, a
mais vasta planície da Palestina. O lugar do confronto entre as tribos israelitas e os reis de
Canaã seria entre Taanaque (Tell Taannek) e Meguido (Tell el-Mutesellim),
aproximadamente 10-15 km de extensão no sentido noroeste-sudeste. A época parece ser o
desenvolvimento dos séculos anteriores a 1200 a.C, quando o campesinato cananeu se
batia por sua sobrevivência em meio às planícies rteis do norte
322
. Portanto, datamos a
batalha do Quisom por volta da primeira metade do século 13 a.C.
A partir do Cântico de Débora, pôde se observar o conflito entre campo e cidade, vila
e burgo, camponeses e elite citadina. A cidade despoja a roça e controla a terra.
Designamos este sistema de feudalismo cananeu
323
. Esse parece ser o motivo da batalha
relatada em Juízes 5.
Afirmamos também que, apesar do Cântico de Débora não pertencer ao âmbito do
culto, ele perfaz a guerra como um elemento sagro. O texto rememora uma celebração ao
Javé guerreiro. Discordamos, dessa forma, de Carlos A. Dreher, que defende que o poema
surgiu no campo de batalha.
324
Antes, sustentamos que ele surgiu na celebração ao Javé
guerreiro. Esse é seu Sitz im Leben. Ao discorrermos o texto, tentamos fundamentar essa
proposição.
Importante para nossa pesquisa foi a análise de Juízes 5,3-5.9-13.19-22.23, sua forma
poética e seu conteúdo.
Passemos, agora, a resumir a seqüência poética dos v.3-5 de Juízes 5.
Notamos que, tematicamente, as duas afirmações finais do v.5 retomam às duas frases
iniciais do v.4. Formam, pois, a moldura externa da subunidade composta pelos v.3-5.
322
Milton Schwantes, História de Israel Local e origem, São Leopoldo, Faculdade de Teologia, 1884, p.75
(Série Exegese).
323
Milton Schwantes, História de Israel Local e origem, p.57; Nelson Kilpp, A Sociedade e a Religião do
Israel Libertado, em Estudos Teológicos, São Leopoldo, Faculdade de Teologia, vol.22, 1982, p.243-263.
324
Carlos Arthur Dreher, O Cântico de Débora Conflito social e teologia num episódio da história do
Israel pré-estatal, São Leopoldo, Faculdade de Teologia, 1984, (dissertação de mestrado), p.23.
152
Referem-se à Javé, sua origem e sua ação bélica. A moldura interna é composta pelas
reações da natureza, que realçam a teofania de Javé de duas formas diferentes: tremor da
terra e escorrer dos montes (terceira e sexta frases) e inundação (quarta e quinta frases).
Todas essas frases internas referem-se às conseqüências da ação de Javé e à ação da
natureza diante de Javé.
Os v.3-5 estão a acenar para Javé, o Deus de Israel. No v.3 os inimigos derrotados
de Israel são convocados a ouvir a cantiga do vencedor. A centralidade desse ouvir e desse
cantar é Javé, o Deus de Israel. Pois, a menção de Javé em si não é valorosa. É preciso que
ele seja o Deus de Israel, o Deus da luta. Assim, o ouvir dos inimigos e o cantar do
vencedor acontecem em função da luta!
Os v.4-5 referem-se a teofania de Javé. Apregoa-se sua saída do monte Sinai para os
campos de batalha. A conceito de Javé estático, morador de uma montanha (tradição
sinaítica) foi superado! De acordo com Jz 5,4, Javé não está mais num santuário (como será
desenvolvido na história posterior de Israel, quando afirmou-se que o nome divino habita
no templo de Jerusalém
325
). Agora, Javé está no campo de batalha. Esse conceito é, pois,
uma antiga memória bélica sobre Javé, do período tribal. O foco dos v.4-5 é a água,
mencionada nas frases finais do verso 4. A repetição da partícula gam em especial, nesse
versículo, a enfatiza! o tremor da terra e o escorrer dos montes relembrariam a tradição
sinaítica.
Portanto, encontramos em Jz 5,4-5 duas tradições. Uma, seria a tradição da terra
cultivável, que alude ao Deus Javé que manda água, a semelhança do deus agrário baal.
Outra, seria a tradição nômade, o pertencente à terra da Palestina, a saber, a antiga
tradição sinaítica. Observa-se, no entanto, a fusão das duas tradições. O Javé sináitico é re-
atualizado: não somente age mediante elementos vulcânicos, como no Sinai, mas também
por elementos da terra da Palestina, água e chuva. Nessa mistura de tradições e re-
atualizações está a antiga memória de Javé em Juízes 5, pertencente ao período tribal.
325
J. Alberto Soggin, Judges A commentary, Philadelphia, The Westminster Press, 1981, p.85-85 (Old
Testament Library).
153
A segunda subunidade que analisamos em Jz 5 compõe-se pelos v.9-13, que se
estruturam pela ação do povo. Essa ação pode ser lida no v.9a, no v.11c e no v.13. A
primeira e a última menção do povo (v.9a e v.13) referem-se à sua ação bélica, enquanto
que a intermediária (v.11c) refere-se à sua celebração a Javé. A essa celebração os
diferentes grupos devem se atentar (v.10). Destaca-se o v.12. O v.12a remete-nos aos v.9b-
11b. E o v.12b, que refere-se à guerra, além de aludir ao fim da subunidade (v.13),
arremessa-nos novamente ao início da mesma (v.9a).
Portanto, constatei que os v.9-13 tratam de dois assuntos: da guerra (v.9a e v.12b-13)
e da celebração após a guerra (v.9b-11). Esses versículos, que tematizam o campo de
batalha, constituem uma memória bélica. No entanto, essa memória não surge no campo de
batalha, e sim, na celebração. Destaque especial é conferido aos vários grupos (v.10). A
eles se dirigem dois imperativos (v.9b e fim do v.10 e início do v.11). Eles devem louvar a
Javé e se atentar à voz dos distribuidores de água. Esses, por sua vez, entoavam uma
cantiga entre os bebedouros, que celebra os atos de justiça, as ões bélicas de Jae
de seu povo (v.11b). Os distribuidores de água, pois, com sua cantiga entre os bebedouros,
já atentem ao imperativo do v.9b.
A celebração observada nos v.9b-12a aconteceu imediatamente após a guerra. É uma
celebração ao Jaguerreiro, articulada na explosividade da alegria, imediatamente após a
vitória, que pode ser ouvida a partir voz dos distribuidores de água, mas que, depois, num
segundo momento, concentra-se num lugar definido, nas portas (v.11c). Então, a
movimentação do povo de Javé (inclusive dos vários grupos do v.10!) para as portas seria
uma resposta ao imperativo do v.9b.
No v.12a, destaca-se o xir cântico de Débora. Interpretamos esse ntico à luz do
v.3. Trata-se, pois, de um canto à Javé, e, consequentemente, da celebração evocada nos
v.9b-11.
Assim, constatamos que os v.9b-12a aludem à celebração a Javé. Esses versículos, à
semelhança do v.3, afirmam que a celebração acontece em função do Deus guerreiro: ele é
Javé, que restabeleceu a sadaqah justiça (v.11) que fora rompida pelos reis cananeus.
154
Já o v.12b alude à guerra, e da mesma forma, o v.13. Este refere-se a uma coligação
formada por sobrevivente/povo de Javé e valentes/locutor do texto. Eles, juntos, lutaram
contra os reis cananeus.
Ainda observo outra peculiaridade dos v.9-13 em relação ao v.3. Nesse a celebração é
evocada na individualidade; o locutor quer entoar uma cantiga a Javé. nos v.9-13 a
celebração estendendo-se à coletividade: primeiro eclode-se na voz dos distribuidores de
água, para depois ser entoada por todo o povo de Javé, inclusiva pelos grupos anunciados
no v.10! Assim, a celebração ao Deus guerreiro vai da individualidade para a coletividade.
Não se restringe a um indivíduo, mas estende-se ao coletivo.
A próxima subunidade que foi estudada é composta pelos v.19-22. Essa subunidade
se constituiu inicialmente por três frases, que aludem à ação frustrada dos reis cananeus
(v.19). E, no final da subunidade, notamos duas frases, que também se referem à frustração
dos reis (v.22). Assim, os v.19 e v.22 perfazem a moldura externa da subunidade. Entre
esses versículos, estão os v.20-21, que compõem a moldura interna do subconjunto: duas
frases expressam a luta das estrelas (v.20); duas aludem à ação do ribeiro Quison (v.21a), e
uma se refere a alguém que pisa a garganta do forte (v.21b). Assim, a ação dos sujeitos
nos v.20-21 contrapõe-se à ação dos reis nos v.19 e v.22.
Os v.20-21 descrevem a luta das estrelas (referem-se a chuva) e a voragem do ribeiro
Quisom (que inunda e destrói os inimigos). Portanto, remete-nos aos v.4-5, onde se aludiu
à água. Apesar de Javé na ser mencionado nos v. 19-21, as conseqüências do seu sair de
Seir e marchar dos campos de Edom estão aqui claramente presentes. A terra treme, os
céus gotejam água as estrelas lutam a partir do céu -, os montes escorrem e o Quisom se
enche de água, arrastando consigo os inimigos.
326
A última subunidade analisada em Jz 5 foi o v.23, onde as duas primeiras frases
ludem à maldição. A terceira frase e seu complemento explicam o porq da maldição.
Identificamos dois conceitos de Javé no v.23. O primeiro diz respeito ao Javé que
amaldiçoa aqueles que foram omissos em lutar pela libertação. Assim, o castigados não
somente os que praticam a injustiça, mas aqueles que deliberadamente deixam de lutar pela
326
Carlos Arthur Dreher, O Cântico de Débora, p.45-46.
155
justiça. O Deus bélico de Israel, pois, amaldiçoa àqueles que foram omissos em lutar pela
justiça. O segundo conceito diz respeito ao Javé que luta pela cooperação das mãos dos
guerreiros. As mãos de Deus e as mãos dos combatentes, juntas, escrevem a história da
libertação.
Depois da análise da antiga memória bélica sobre Javé em Juízes 5, nossa atenção
voltou-se à Hc 3,3-6. O capítulo 2 da dissertação focalizou esse texto. Afirmamos ali que
Habacuque 3 é uma unidade literária, composta por várias subunidades, sendo uma delas os
v.3-6.
A subunidade composta pelos v.3-6 inicia-se aludindo à vinda de Eloá (v.3a). O
imperfeito do verbo yabo vêm demonstra que a vinda de Javé sempre será inacabada.
Ele sempre virá para defender seu povo! Esta vinda começa a concretizar-se a partir do
v.3b. Fala-se, aí, indiretamente da ação da divindade, por meio de elementos que aludem a
ela. O v.3b, pois, anuncia que a manifestação de Eloá não se restringe a um lugar. Os
verbos usados com os substantivos, e o imaginário que alude à luz no v.4, sugerem que
Habacuque descreve um fenômeno similar a tradição do êxodo.
327
Mas, Habacuque fala
dos céus e da terra. Portanto, afirmo que as duas frases do v.3b proclamam a
manifestação cósmica de Eloá, nos céus e na terra, não restritos a um santuário. Essa
manifestação é uma implicação de sua vinda, anunciada no v.3a. Eloá vem do sagrado para
o cotidiano, de Temá e de Paran para os céus e para a terra.
O v.4a afirma que a manifestação de Javé não se estratifica no tempo. Contemplar seu
brilho significa experimentar sua salvação.
328
Essa salvação sempre será, tal qual a sua
vinda (v.3a). Também constamos no v.4 que a ação de Javé origina-se nele é para ele
(v.4b). Isso promulga um paradoxo. Pois, Javé age para a libertação dos oprimidos, mas
essa ação nunca será dele para eles, mas dele para ele. A ão de Javé está em função de si
mesmo ao ser para o oprimido! E, ainda que ele se manifeste na totalidade do cosmos e na
totalidade do tempo, tal manifestação sempre estará oculta (v.4c). Por mais que a
327
J. J. M. Roberts, Nahum, Habakkuk and Zephaniah A comentary, Westminster, John Knox Press, 1991,
p.152 (The Old Testament Library).
328
H. Eising, ngh, em Theological Dictionary of the Old Testament, G. Johannes Botterweck, Helmer
Ringgren e Heinz-Josef Fabry (editores), Grand Rapid/Cambridge, William B. Eerdmans Publisching
Company, vol.9, 1998, p.186.
156
manifestação de Deus seja visível, a humanidade sempre desconhecerá a inteireza de sua
manifestação.
O v.5 continua a aludir à manifestação de Eloá. Mas agora se muda a temática.
Mencionam-se alguns elementos punitivos que agem diante da divindade, tendo como alvo
os inimigos do povo de Deus: deber peste (freqüentemente refere-se à peste enviada por
Deus como castigo
329
) e rexef (relaciona-se a uma antiga divindade cananéia, que
Habacuque a rebaixa a algo que escolta Javé
330
). Essa linguagem é uma articulação da
tradição exodal.
331
Além disso, pressupomos que o v.5 alude à caminhada de Eloá, através do verbo
caminhará e, principalmente, pela menção de suas pernas. Trata-se da caminhada de
Javé, que teve início a partir de sua saída do monte Sinai (v.3a).
O v.6 é o final dessa caminhada. Alude-se a dois conceitos norteadores: a parada de
Eloá (v.6a), que havia iniciado sua caminhada no Temã, monte Parã (v.3a), e sua
intervenção na história das nações (v.6b). As convulsões na natureza (v.6a) visam a
alteração na história (v.6b). Jaaniquila o imperialismo! Quando se diz que Javé olhou
(raah, no v.6b), isso significa seu intervir nos acontecimentos para ajudar Israel.
332
O
olhar de Javé significa um intervir! Assim, como conseqüência desse olhar divino, vemos a
seguinte trajetória das nações: são desfeitas; destroçam-se; humilham-se.
Observamos ainda a última expressão do v.6c, caminhos de eternidade para ele, que
alude à não-autonomia da trajetória das nações: seus caminhos são para Eloá. O v.6c não
somente fecha a subunidade, mas arremessa-nos ao conteúdo dos v.3b-5. Pois, os v.3b-5
descrevem as manifestações de Eloá, que nunca agem por si mesmos, mas para ele (v.4c
e v.6c).
329
Earl S. Kalland, deber, em Laird Harris, Gleason L. Archer e Bruce K. Waltke (editores), Dicionário
internacional de teologia do Antigo Testamento, tradução Márcio Loureiro Redondo, Luiz Alberto Sayão,
Carlos Osvaldo Pinto, São Paulo, Edições Vida Nova, 1998, p.296.
330
John Day, New light on the mythological background of the allusion to resheph in Habakkuk 3,5, em
Vetus Testamentum, Leiden, E. J. Brill, vol.29, 1979, p.353-354.
331
Domingos Sávio da Silva, Habacuc e a resistência dos pobres Tradução crítica do profeta Habacuc,
Aparecida, Editora Santuário, 1999, p.148.
332
D. Vetter, rh, em Ernst Jenni e Claus Westermann (editores), Diccionario teológico manual del Antiguo
Testamento, Madrid, Ediciones Cristiandad, vol.1, 1978, p.876-877.
157
O surgimento da memória de Habacuque 3 parece remontar-se ao período do governo
do rei judaíta Jeoaquim, que, aceitando a proposta de Domingos Sávio da Silva, seria o
raxa ímpio que Habacuque questiona
333
. No entanto, defendemos que Habacuque não
questiona as violências internas do reino judaíta, mas também, o imperialismo das nações,
em especial a ascensão do poder babilônico. Observamos que o surgimento da memória
bélica sobre Jaem Habacuque 3,3-6, como foi em Juízes 5, surge do descontentamento
dos empobrecido e justiçados pelo poder vigente da sociedade.
No terceiro capítulo pudemos averiguar que a formação da antiga memória bélica
sobre Javé, que promulga sua saída do monte Sinai para batalhar por seu povo na terra da
Palestina, ocorreu no período tribal. Ao adentrar a terra prometida, Javé incorpora novos
elementos, oriundos da terra cultivavél. Esse articular entre a tradição sinaítica e as
tradições da terra da Palestina resultam na elaboração do conceito bélico sobre Javé. Tal
elaboração teológica é efetuada no contexto do período tribal, onde grupos javistas que
eram oprimidos pelos setores cananeus foram buscar motivação para a sobrevivência na
articulação sobre o Deus nômade Javé, que, naquele momento, migrara para a Palestina.
Esses grupos javistas fundamentaram sua fé em Javé, um Deus cuja teofania é
acompanhada por explosões vulcânicas, sendo, assim, um Deus terrível, inacessível e
perigoso, como o vulcão sobre o qual se manifesta.
334
Na Palestina o Deus vulcânico Javé
recebeu novas conotações teológicas, sendo duas notadas em Juízes 5: foi relacionado com
Baal, o deus cananeu do tempo, da chuva
335
, e foi identificado com El, divindade retratada
como rei e deus maior do panteão cananeu
336
.
Mas, a memória bélica sobre Javé promulgada em Juízes 5 não se estratificou no
tempo! Ela foi um fator de grande relevância para o desencadeamento posterior da história
da religião de Israel. Pois, tal memória é novamente visível em Habacuque 3,3-6, profeta
333
Domingos Sávio da Silva, Habacuc e a resistência dos pobres Tradução crítica do profeta Habacuc,
Aparecida, Editora Santuário, 1999, 343p.
334
Antonius H. J. Gunneweg, Teologia Bíblica do Antigo Testamento Uma história da religião de Israel na
perspectiva bíblico- teológica, tradução de Werner Fuchs, São Paulo, Editora Teológica/Edições Loyola,
2005, p.98 (Série Biblioteca de Estudos do Antigo Testamento).
335
Werner H. Schmidt, A fé no Antigo Testamento, tradução de Vilmar Schneider, São Leopoldo, Sinodal,
2004, p.227, 244-245; Antonius H. J. Gunneweg, Teologia Bíblica do Antigo Testamento Uma história da
religião de Israel na perspectiva bíblico- teológica, p.63-72; De Moor, baal, em G. Johannes Botterweck e
Helmer Ringgren, Diccionario teologico del Antiguo Testamento, Madrid, Ediciones Cristiandad, vol.1,
p.723-730.
336
Werner H. Schmidt, A fé no Antigo Testamento, p.220-225.
158
que escreve cerca de seis séculos depois do Cântico de bora! Isso revela que a memória
bélica sobre Javé promulgada em Juízes 5 não estratificou-se no tempo e num único texto.
Pois, em outros textos, como Êxodo 15, Deuteronômio 33,2 e Salmo 68,8-9, ela também é
visível.
Em Habacuque 3,3-6 reencontramos aquela memória notada em Juízes 5,4-5. Mas
agora o profeta a atualiza. Confere-lhe novas atribuições. Por isso, mostramos como uma
memória, apesar de cruzar séculos, altera-se. Notou-se, principalmente, a articulação do
profeta Habacuque entre a tradição sinaítica e a tradição exodal.
Todavia, apesar das alterações dessa memória, observamos que ela mantém sua
proposta: Javé é um Deus guerreiro, que saiu de sua morada para lutar por seu povo.
Assim, pretendi mostrar que essa memória bélica contida em Juízes 5 perpassa a história de
Israel, sendo encontrada em outros textos, principalmente em Habacuque 3,3-6. A memória
do Javé guerreiro é um fundamento de revolução social que perpassa a história de Israel.
Salientamos, ainda, que a antiga memória bélica de Javé promulgada em Jz 5 recebeu,
no decorrer da história da religião de Israel, outras roupagens que conferiram-lhe uma
pluralidade de sentidos. Detivemo-nos principalmente nos salmos, onde pudemos observar
vários outros aspectos do Javé guerrreiro.
337
Portanto, nesse desenrolar histórico e religioso de Israel, a articulação sobre Javé
exerceu um papel preponderante. Novas situações históricas e sociais exigiram da teologia
uma resposta. Assim surge a celebração de Juízes 5 e a oração de Habacuque 3,3-6. Falar
sobre Deus sempre requer novas elaborações! Celebração (Juízes 5) e oração (Habacuque
3) (re)construíram uma memória lica, e são essencialmente (re)elaborações de uma
comunidade que almeja firmar-se dentro da sociedade. Em uma comunidade religiosa,
celebração e oração constituem as pilastras de sua existência. Elas criam teologia! E essas
desenvolturas foram, para Israel, mecanismos dinâmicos e instigadores de novas
perspectivas na sociedade. A não conformação com o despotismo gerado pelas estruturas
337
Marc Brettler, Images of yhvh the warrior in the Psalms, em Semeia, Arizona, The Society of Biblical
Literature and Exegesis, vol.61, 1993, p.135-165.
159
da sociedade, assenhoradas pelo imperialismo de algumas nações, requer uma celebração e
uma oração que instigam o indivíduo a buscar sua autonomia e sua dignidade de existência.
Dessa forma, o estudo das antigas memórias sobre Javé possibilitou proferir que os
grupos objetos da exploração criaram sua teologia visando tornarem-se sujeitos de
mudança social.
Ídolos são objetos feitos pelas mãos que são feitos sujeitos de quem os produziu.
Somente a dominação de quem trabalha, somente a escravidão do trabalhador, através da
força das armas e das idéias, torna possível que os produtos de suas mãos possam virar em
sujeitos de sua vida.
338
A antiga memória sobre Javé articula uma celebração (Juízes 5) e
uma oração (Habacuque 3) que almeja mudar esse cenário. Através dela, os ídolos que
eram objetos e se tornaram sujeitos, foram desmascarados pelo desenvolvimento da
teologia do Javé guerreiro, que combate pelos desprestigiados, tornando os ídolos e os
construtores dos ídolos objetos nas mãos do Javé guerreiro, que os entrega nas mãos dos
desprestigiados, e faz desses sujeitos de mudança. Assim, desenvolve-se a esperança de
uma sociedade melhor e justa!
Terminamos essa dissertação na esperança de que nossa articulação sobre Deus não
se estratifique no tempo e não se esquive de sempre elaborar um projeto de recuperação da
dignidade do indivíduo na sociedade. Que nossa celebração e nossa oração o olhe
para os céus, mas para a terra, também.
160
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