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Sérgio Xavier Gomes de Araújo
Uma leitura de Da Glória e Da Presunção e a
idéia do autoretrato nos Ensaios de Montaigne
Tese de Doutorado
Tese apresentada como requisito parcial para
obtenção do grau de Doutor pelo Programa de Pós-
Graduação em História Social da Cultura, do
Departamento de História da PUC-Rio.
Orientador: Prof. Antônio Edmilson Martins Rodrigues
Rio de Janeiro, Setembro de 2008
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410556/CB
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Sérgio Xavier Gomes de Araújo
Uma leitura de Da Glória e Da Presunção e a
idéia do autoretrato nos Ensaios de Montaigne
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História
social da Cultura do Departamento de História da PUC-Rio
como parte dos requisitos parciais para obtenção do título de
Doutor em História. Aprovada pela Comissão Examinadora
abaixo assinada.
Prof. Antonio Edmilson Martins Rodrigues
Orientador
Departamento de História - PUC-Rio
Prof. Ricardo Augusto Benzaquen
Departamento de História – PUC-Rio
Prof. Danilo Marcondes de Souza Filho
Departamento de Filosofia – PUC-Rio
Prof. Sergio Cardoso
Departamento de Filosofia – USP
Prof. Maria das Graças de Souza
Departamento de Filosofia – USP
Prof. Nizar Messari
Vice-Decano de Pós-Graduação do Centro de Ciências Sociais - PUC-Rio
Rio de Janeiro, 12 setembro de 2008
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410556/CB
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Todos os direitos reservados, é proibida a reprodução
total ou parcial do trabalho sem autorização da
Universidade do autor e do orientador.
Sérgio Xavier Gomes de Araújo
Graduou-se em História na Universidade Federal
Fluminense (UFF) em 2000, e ingressou no curso de
Mestrado em História Social da Cultura na Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro em 2001,
concluindo-o em 2003. Iniciou o doutorado na mesma
instituição em 2004, concluindo-o em 2008.
Ficha Catalográfica
CDD: 900
CDD: 900
Araújo, Sérgio Xavier Gomes de.
Uma leitura de Da glória e Da presunção e a idéia
do auto-retrato nos Ensaios de Montaigne./ Sérgio
Xavier Gomes de Araújo; orientador: Antonio
Edmilson Martins Rodrigues. – 2008.
207 f. ; 30 cm
Tese (Doutorado em História) – Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, 2008.
Inclui bibliografia
1. História Teses. 2. História social da
cultura. 3. Renascença. 4. Humanismo. 5.
Montaigne. 6. Glória. I. Rodrigues, Antônio
Edmilson Martins. II. Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro. Departamento de
História. III. Título.
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Dedico este trabalho a Fabrina,
que sempre esteve ao meu lado.
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AGRADECIMENTOS
Ao meu orientador e amigo Antonio Edmilson M. Rodrigues.
Ao CNPq, pela bolsa fornecida e aos professores e funcionários do Programa de
Pós-Graduação em História da PUC-Rio.
A Marcelo Jasmim pela amizade e pelo incentivo.
A Sergio Cardoso pelo grande e decisivo auxílio que suas reflexões sobre os
Ensaios forneceram para a realização deste trabalho e a todos os colegas do
departamento de filosofia da USP, que integram o grupo de estudos de ética e
política no Renascimento.
A Ricardo Benzaquen por suas observações sempre pertinentes e enriquecedoras
sobre esse tema da cultura do Renascimento, que nos é tão caro.
A Danilo Marcondes que em seus cursos sobre a tradição cética tanto ampliou
minhas perspectivas.
Aos meus grandes amigos da PUC Felipe Charbel e Danrley.
Aos meus pais pelo apoio e pela confiança.
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RESUMO
Araujo, Sergio Xavier Gomes de; Rodrigues, Antonio Edmilson Martins.
Uma leitura de Da Glória e Da Presunção e a idéia do autoretrato nos
Ensaios de Montaigne. Rio de Janeiro, 2008, 207 p. Tese de Doutorado -
Departamento de História, Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro.
Na primeira página dos Ensaios Montaigne se dirigia diretamente aos seus
leitores para declarar seu objetivo de representar a si mesmo em sua forma mais
simples e ordinária. O intento do autoretrato o levava a advertir de imediato: “je
me suis proposée aucune fin que domestique et privée. Je n`ay nulle consideration
de ton service ny de ma gloire”. Seu estilo privado, assim, representava uma
novidade em seu tempo, contrastando com a prática geral dos autores humanistas
de exibir sua erudição e servir à instrução pública a fim de fazer-se imortalizar
como exemplos de sabedoria. Pretendemos investigar aqui esse caráter de
novidade da obra de Montaigne sob a égide das motivações e dos procedimentos
próprios do autoretrato tomando como centro de nosso estudo sua crítica da glória.
Esta, com efeito, marcava sua distância em relação ao ideário humanista, assim
como aos modos que determinavam os padrões da relação entre autor e leitor no
Renascimento, pautados no desejo do autor de instruir e de glorificar-se e na
disposição do leitor em ser instruído e elogiar. Para isso tomaremos aqui como
objeto de análise o percurso da reflexão de Montaigne do ensaio Da glória, em
que melhor desenvolve sua perspectiva negativa sobre as ambições e Da
presunção, que se lhe segue imediatamente, em que toma a si mesmo como
objeto, traçando de si um autoretrato oposto à aspiração de engrandecer-se.
PALAVRAS-CHAVE
Montaigne; humanismo; Petrarca; glória; autoretrato; ceticismo.
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ABSTRACT
Araujo, Sergio Xavier Gomes de; Rodrigues, Antonio Edmilson M. An
aproach of De la Gloire and De la Presumption and the idea of the
autoportrait in Montaign`s Essays. Rio de Janeiro, 2008, 207 p. PhD
Thesis – Departamento de História, Pontifícia Universidade Católica do Rio
de Janeiro.
In the first page of his Essays, Montaigne turned directly to his readers to
declare his purpose of representing himself in his most simple and ordinary way.
The purpose of the autoportrait leads him to admonish: “je me suis proposée
aucune fin que domestique et privée. Je n`ay nulle consideration de ton service ny
de ma gloire”. His private style represents a newness in that time, forming a
contrast with the general practice of humanist authors of exhibits their erudiction,
serving the public instruction and make himself imortals, occupying the position
of wisdon models. Our intent here is investigate that newness character of
Montaigne`s work in the perspective of that peculiar motivations and procedures
of the autoportrait, taking for object his critic of humanist`s gloria theme. That
critic marks his distance of the humanists ideals and of the modes which regulates
the traditional patterns of relationship between author and reader in the
Renaissance, founded in the author desire of instruct and glorify himself and in
the disposition of the reader to learn and eulogize the author. To accomplishe our
purpose, we anlyze here the course of Montaigne`s reflection in De la gloire,
where his negative perspective of the ambitions takes the most expressive form,
and De la praesumption, which follows De la gloire, with a autoportrait for
theme, against the ambition of aggrandize himself.
KEYWORDS
Montaigne; humanism; Petrarch; glory; autoportrait; scepticism
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SUMÁRIO
1. Introdução 10
2. A idéia de glória no Ocidente e seu elogio na cultura do
Renascimento 22
2.1 A glória em suas diversas acepções e formas da
Antigüidade à Renascença 22
2.2 A emergência dos studia humanitatise o culto
à glória das letras 39
2.3 Os postulados do elogio humanista da glória:
a valorização da dignidade humana 45
2.4 As ambigüidades da reflexão sobre a glória 52
3.A crítica montaigneana das ambições em Da Glória (II, 16):
aproximações e distâncias em relação aos ideais
antigos de sabedoria 59
3.1 A opção pela vida contemplativa 59
3.2 Crítica da glória e desprezo do homem 63
3.3 As ambições mundanas de Epicuro
e a denúncia do orgulho da sabedoria 66
3.4 A apropriação montaigneana da mediania aristotélica 75
3.5 Glória da vida tranqüila e destituição do valor moral
dos exemplos 81
4. Negação do culto à glória e afirmação do autoretrato 86
4.1 Uma leitura da Advertência ao leitor 86
4.2 A identificação entre ambição de glória e grandeza de alma
na Antigüidade clássica e no humanismo 98
4.3 O ceticismo de Montaigne:
a escolha da autonomia contra a imitação 103
4.3.1 A suspensão cética quanto a valores e crenças
em Da Glória 112
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4.4 A fidelidade a si face ao modelo da fides
e da vera gloria ciceroniana 118
4.5 Ambição de glória e perfeição moral em Petrarca 124
4.6 A peroração de Da Glória: a ambigüidade
da crítica e o diálogo com a tradição da historia magistra vitae. 130
5. Uma leitura de Da Presunção (II, 17) 144
5.1 O proêmio de Da Presunção: a defesa da legitimidade
da escrita de si e da liberdade do jugement 144
5.2 O autoretrato de Da Presunção 157
5.2.1 As produções do espírito como primeira tópica
do autoretrato 159
5.2.2 A descrição das condições e aptidões físicas 166
5.2.3 O autoretrato moral: as qualidades do espírito 170
5.3 Ceticismo e subjetividade: há presunção nos Ensaios? 181
6. Conclusão 195
7.Referências Bibliográficas 201
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1.
Introdução
Essa capacidade de selecionar o verdadeiro, qualquer que seja em mim, e esse
humor livre, de não sujeitar facilmente minha conviccão, devo-os
principalmente a mim mesmo; pois as idéias mais firmes e gerais que tenho são
as que, por assim dizer, nasceram comigo. São naturais e totalmente minhas.
Produzi-as cruas e simples, numa produção ousada e forte, mas um tanto
confusa e imperfeita; em seguida estabeleci-as e fortifiquei-as com a autoridade
alheia e com os saudáveis discursos dos antigos, com os quais me vi
coincidindo em julgamento: eles me garantiram a consistência delas e deram-me
sua posse e gozo mais integral. (Montaigne, Da presunção II, 17)
1
O elogio da glória, ligado à valorização dos grandes feitos, ditos e
realizações dos homens (entendida sob uma perspectiva bem ampla, que abrangia
desde as ações heróicas no domínio da guerra e da vida política às grandes
criações artístico literárias) foi tema freqüente na literatura moral e política da
Antigüidade assim como do humanismo, a partir da reflexão de autores como
Petrarca e Coluccio Salutati. Essa tradição tinha como pressuposto a idéia de que
a conquista de fama imortal era marca externa da virtude e expressão da
realização mais perfeita da excelência humana. O tema e os valores a ele ligados
também apareceram nos Ensaios de Montaigne; ele o abordou à sua própria
maneira ao longo da obra, não apenas no capítulo do segundo livro que lhe
dedicou especialmente. Nos ressurgimentos e recorrências dessa questão nos
Ensaios, Montaigne afirmou freqüentemente uma visão crítica, enfatizando uma
concepção negativa da glória, com que contrapôs-se aos valores da tradição
clássica e humanista, pautada na confiança nas potencialidades da razão humana e
no estímulo à sua ação criativa. Como veremos em nossa leitura do ensaio Da
glória, segundo ele, era um erro concebê-la como marca da virtude, pois era o
orgulho e a presunção humana que a motivavam. De sua perspectiva, inspirada
1
“Cette capacité de trier le vray, quelle qu`elle soit en moy, et cett`humeur libre de n`assubjectir
aisément ma creance, je la dois principalement à moy: car le plus fermes imaginations que j`aye, et
generalles, sont celles qui, par maniere de dire, nasquirent avec moy. Elles sont naturelles et toutes
miennes. Je les produisis crues et simples, d`une production hardis et forte, mais un peu trouble et
imparfaicte; depuis je les ay establies et fortifiées par l`authorité d`autruy, et par les sains discours
des anciens, ausquels je me suis rencontré conforme en jugement: ceux-là m`en ont assuré la
prinse, et m`en ont donné la jouyssance et possession plus entiere.” MONTAIGNE, Ensaios, II,
17, p. 658.
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11
nos preceitos da sabedoria helênica, a glória era antes um dos mais graves vícios:
sinal inequívoco da insensatez dos homens. A reincidência desse tema, assim,
possibilitando um diálogo com os valores ligados ao ideal humanista da dignidade
humana, promovia também um rico contraponto, no interior do qual se revelavam
as próprias idéias de Montaigne em sua atitude de desconfiança em relação às
potencialidades da razão e em sua aversão natural a qualquer espécie de vaidade e
presunção.
A crítica da glória assim, operava também no sentido de consolidar e de
destacar um significado ético positivo à sua decisão da renúncia aos cargos
públicos a partir de 1571, aos 38 anos de idade. De fato, tratava-se de conduta
bastante incomum para um membro da nobreza togada da França, à qual cabia
ocupar as mais altas posições no âmbito da administração pública e ampliar seu
renome. À diferença de seus contemporâneos, profundamente engajados nos
negócios do mundo e empenhados na realização de grandes feitos, Montaigne se
entregava então, ainda em posse de suas forças, a uma vida retirada na biblioteca
de seu castelo, dedicada à sua própria tranqüilidade.
Seguia então a velha tradição moral e intelectual do otium cum litteris; do
elogio à dignidade da reclusão letrada que teve em Petrarca um de seus mais
ilustres representantes no Renascimento. Mas, como afirmou repetidas vezes nos
Ensaios, não escolhera esse caminho pelos mesmos motivos que os autores da
época que haviam abandonado os negócios do mundo a fim de conquistar uma
celebridade imortal pela grandeza de seus escritos e pela sua sabedoria. De fato,
isso Montaigne afirmou já na primeira página de seu livro, na Advertência ao
leitor, em que, conforme declarou, ao invés de guiar-se pela aprovação dos outros
e obter seus aplausos, escrevera seus Ensaios somente para retratar-se em sua
maneira mais simples e privada: “Quero que me vejam aqui em minha maneira
simples, natural e ordinária, sem apuro ou artifício: pois é a mim que pinto.”
2
Afirmando assim não ter a admiração pública como objetivo - não podendo
ostentar grandes dotes artísticos e literários, pelos quais os autores de seu tempo
conquistavam a glória - Montaigne objetivava também o preceito em que se
baseava sua empresa do autoretrato. Ou seja, de adequar-se à sua própria razão de
preferência a agir como os ambiciosos, que se afastavam cada vez mais de sua
2
“Je veus qu`on m`y voie en ma façon simple, naturelle et ordinaire, sans contention et artifice:
car c`est moy que je peins.” Idem, Advertência ao leitor, p. 3.
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12
razão, subordinando sua conduta à opinião alheia, deixando-se arrastar por suas
paixões.
Acreditando na relevância desse tema no interior da meditação de
Montaigne e nos modos de autoafirmação de suas escolhas - no diálogo que seu
discurso estabelecia com as tópicas mais recorrentes ligadas ao elogio da glória
nas obras clássicas e humanistas - o tomamos como ponto de partida e cerne
dessa nossa reflexão acerca do autoretrato, do pensamento original que o movia e
que articulava sua forma nos Ensaios. Através da análise dos percursos da crítica
de Montaigne no ensaio Da glória e da maneira como ela se transformava e se
estendia ao ensaio seguinte Da presunção, em que tomou a si mesmo por tema,
procuraremos examinar sua postura filosófica à luz da consolidação de sua
perspectiva negativa sobre a glória.
3
Nossa leitura dos dois capítulos, portanto,
será orientada pela ênfase no modo como seus temas e discussões – da crítica das
ambições do mundo e da pintura de si - se correspondiam, formando uma
meditação contínua na qual o discurso de Montaigne declarava sua própria
originalidade
4
em relação às obras da época.
3
Discordamos do que pensa Pierre Villey para quem o projeto do autoretrato afirmado na
Advertência ao leitor exprime apenas a concepção que Montaigne tinha de seus Ensaios à época
de sua publicação em 1580. O conteúdo da Advertência assim em sua declaração fundamental,
c`est moy mesme la matière de mon livre”, não poderia ser levado em conta tanto para os
primeiros capítulos, escritos por volta de 1572 quanto para os capítulos posteriores, de 1588.
Segundo essa perspectiva eram exclusivamente os capítulos escritos entre 1578 e 1580 que se
adequariam à declaração da Advertência. Entre eles, por exemplo, Da educação das crianças, Da
afeição dos pais pelos filhos, Dos livros e Da presunção nos quais Montaigne nos expõe seus
gostos e humores, extrai ensinamentos gerais de suas experiências, ou pinta mais propriamente sua
imagem, em seus traços físicos e morais. Villey, P., Les Essais, 82. Adotamos aqui de preferência
a posição sustentada por Andre Tournon, da necessidade de levar a sério o conteúdo da
Advertência ao leitor
e o projeto do autoretrato
como informando a totalidade dos Ensaios e não
apenas
os capítulos em que Montaigne se representa em sentido estrito, falando de si mesmo. Com
efeito, ele reitera esse desígnio de descrever-se desde os primeiros tempos, como podemos
comprovar, por exemplo na leitura do capítulo Da ociosidade em que reconhece já o caráter
original de sua escrita privada pelo fato de ter como objeto o registro das “quimeres et monstres
fantasques” produzidos por sua imaginação sobre toda espécie de matéria. MONTAIGNE, idem, I,
9, p. 32. Assim, segundo Tournon, Montaigne na verdade se ‘dá a conhecer’ em cada uma de suas
asserções, qualquer que seja o objeto de que trata, mesmo quando não diz nada sobre si mesmo.
TOURNON, A., Montaigne, p. 114.
4
Michel Beaujour ressalta a originalidade da forma reflexiva do autoretrato a partir da
consideração de que parte de uma experiência de vazio e de ausência interior pelo qual se põe sua
fórmula operatória própria, que o autor reconhece como uma variante do fim do capítulo 3 do livro
X das Confissões de Sto Agostinho: muitos porém que querem saber quem eu sou no
momento atual em que escrevo as Confissões” Sua forma privada, segundo Beaujour responde a
uma necessidade interna de definir “quem sou eu no momento em que escrevo esse livro”,
distinguindo-se dos desígnios da autobiografia, por exemplo, que podem se exprimir pela fórmula
“vou lhes contar sobre meus feitos e minha vida”. BEAUJOUR, M., Miroirs d`encre, p. 9.
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13
Mas para tornar mais claro e melhor embasar esse percurso, são
necessárias algumas considerações teóricas e metodológicas sobre a leitura dos
Ensaios. Sua crítica renovou-se de maneira fundamental quando Jean Yves
Pouilloux em seu Lire les Essais de Montaigne, publicado em 1969, dirigiu várias
objeções a alguns de seus mais célebres comentadores pelo fato de abordarem a
obra procurando extirpar dela um sentido dado. Ou, melhor dizendo, esforçando-
se por encontrar nos Ensaios uma síntese doutrinal, constituída da formulação das
próprias idéias de Montaigne. através da interpretação de determinadas sentenças,
passagens e lineamentos, recortados do contexto desordenado em que se inseriam
originalmente no livro. De fato, atenta o intérprete, é impossível encontrar nos
Ensaios concepções certas e fixas sobre os temas de que trata, pois sobre cada um
deles, há várias e diversas concepções que se contradizem, deixando entrever
apenas em sua escrita um índice de indecisão
5
. Como atenta Pouilloux: “Esta
leitura analógica de que podemos citar inúmeros exemplos repousa sobre a ilusão
de que é possível ordenar a desordem, sem antes interrogar a desordem.”
6
Segundo ele, portanto, tais leituras - não importa o quanto sejam
elucidativas - deixam de lado o que importa realmente na abordagem dos Ensaios,
ou seja, sua inteligibilidade duvidosa; o caráter imperfeito e inacabado dos modos
de suas enunciações. De fato, somente reconhecendo a impossibilidade radical de
liberar o texto de suas contradições e a importância central de sua função na obra,
de acordo com Pouilloux, é que se torna possível buscar-lhe um sentido.
Ao ler os Ensaios, sublinha ainda o autor, aqueles que se perguntam pelo
significado de determinada frase não devem perder de vista que as sentenças se
põem no livro como inspiradoras de reflexões diversas, completamente
imprevistas, levando a novos sentidos não contidos nelas mesmas. Esse
procedimento tem alcance bastante grande, ampliando-se com o hábito de
5
Pouilloux acusa esse método, por exemplo, na interpretação de Hugo Friedrich em seu
Montaigne, que faz dos Ensaios um livro de sagesse, desvendando seu sentido a partir da busca
pelas razões que teriam levado Montaigne a escrever. Segundo Friedrich, tal como os filósofos
morais de seu tempo Montaigne saía em busca da natureza do soberano bem. Mas, como atenta
Pouilloux, o que se espera dum moralista é justamente aquilo que é impossível encontrar em
Montaigne. De fato, o que definia aquele, nesse contexto, eram algumas sentenças e fórmulas
lapidares destinadas à perenidade literária e que indicassem o seu pensamento, afirmando-se como
verdades eternas a instruir os homens. Qualificar os Ensaios como um livro de sagesse pela leitura
de suas sentenças, significa não interrogar o sentido da desordem e da contradição entretecida
entre elas na miscelânea do discurso e isolá-las arbitrariamente de seus contextos discursivos para
determinar, de maneira inadequada e apressada, um suposto sentido global do livro.
POUILLOUX, J. Y., Lire les Essais de Montaigne, p. 20.
6
Idem., p. 26.
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14
Montaigne de inserir acréscimos aos seus escritos passados, afirmando e
atualizando seu intento de situar-se como primeiro leitor e interlocutor de sua
obra, a fim de retratar-se segundo sua razão. Tais acréscimos (designados pelas
letras A, B e C na edição de Pierre Villey, referentes respectivamente, aos
primeiros tempos da escrita dos Ensaios de 1571 a 1580; ao segundo de 1580 até
1588; e ao terceiro de 1588 até 1595) reforçam a impossibilidade de se atribuir
sentido unívoco às frases, pois provocam às vezes grandes contradições, e
freqüentemente descontinuidades e rupturas no texto, às vezes pouco aparentes,
mas que testemunham o arbitrário de um número variado de sentidos e a
impossibilidade de discernir aí a evolução linear de uma argumentação, ou a
declaração de um ponto de vista próprio.
7
Desse modo, enfim, conclui Yves Pouilloux a partir dessas considerações,
é preciso reconhecer que ele jamais emite opiniões coerentes, mas ao contrário,
sempre divergentes
8
. Isso se liga estreitamente, na interpretação do autor, com o
problema do ceticismo
9
que permeia o discurso dos Ensaios e que no célebre
capítulo Apologia de Raymond Sebond tem sua formulação mais profunda e
expressiva. Dessa perspectiva, a crítica cética da razão, levando à epoché – a
suspensão pirrônica do juízo – e destituindo-a da prerrogativa de conhecer as
coisas e a si mesma, restringiria o texto de Montaigne à consciência de sua própria
fraqueza e ignorância, limitando-o a uma reflexão de segundo grau sobre o
exercício da razão e sobre seus esforços malogrados pelo conhecimento. Dessa
perspectiva, Montaigne jamais poderia estar enunciando qualquer espécie de
crença ou convicção a título próprio pois isso implicaria contrariar sua postura
cética, ou seja, implicaria na confiança nos poderes de suas faculdades e na
legitimidade de seus enunciados em sua busca da verdade. Em outras palavras,
para Pouilloux nos Ensaios “O único conhecimento possível é, portanto, um saber
do conteúdo do saber como um nada e não a afirmação de uma posição ou
opinião.”
10
7
Idem, p. 35.
8
Idem, p. 38.
9
O tema do ceticismo foi largamente explorado pelos intérpretes dos Ensaios. No quarto capítulo
desse trabalho dedicamos um item a esta importante questão, procurando investigar a maneira
própria como Montaigne tomava para si os argumentos dessa tradição e o modo como ela se
articulava com as motivações da empresa do autoretrato.
10
BIRCHAL, T. O eu nos Ensaios de Montaigne, p. 89.
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15
Acreditamos ser de fundamental importância para uma leitura mais
adequada dos Ensaios, levar em consideração a recomendação do intérprete, da
necessidade de interrogar a desordem e a contradição do texto e prevenir-se contra
o ato de retirar arbitrariamente suas sentenças e passagens de seus contextos
discursivos particulares a fim de deduzir delas a formulação de uma filosofia,
supostamente expressiva das idéias de Montaigne e das razões de seus Ensaios.
As precauções assinaladas nos levam a tomar como ponto de partida da presente
reflexão e como norte de nossa interpretação de Da glória o esforço em
diferenciar a natureza própria de sua crítica moral das tópicas e sentenças de que
se utilizavava para enfatizá-la, extraídas das escolas do helenismo e da tradição
cristã.
Entretanto, não podemos concordar com a conclusão que Pouilloux tira
dessa consideração da desordem e das contradições, definindo o discurso de
Montaigne como renúncia à produção de um pensamento, enquadrando
prematuramente a obra no que se apresenta, à primeira vista, como puro e simples
paradoxo. Isso, de fato, impossibilitaria em princípio a questão que propomos
aqui, do exame da posição de Montaigne sobre o elogio renascentista da glória e
como esta se vinculava à afirmação dos desígnios particulares de seu autoretrato e
contribuía para dar-lhes forma.
Concordamos com André Tournon
11
, quando observa – opondo-se a
Pouilloux – que reduzir os Ensaios à sua função de crítica das tradições é
distinguir mal suas perspectivas. A falta de aquisições positivas e a constatação da
fraqueza e da ignorância humana não se resolviam para Montaigne na enunciação
de um discurso de segundo grau e numa aceitação passiva de si e da ordem
desconhecida do mundo. É preciso, como nos mostra Tournon, relacionar seu
ceticismo com sua prática do ensaio em sua intenção sempre reafirmada de
“regrar” seu pensamento e sua vida conforme o exercício de sua própria razão:
essa intenção desautoriza de imediato o entendimento de sua escrita como
expressão reiterada do repúdio à razão humana. Ela deixa entrever as linhas de
uma filosofia de alcance totalmente novo, fundada na fidelidade a si e no
exercício autônomo de suas faculdades intelectuais.
11
TOURNON, A., Montaigne, p. 144.
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16
Assim, retomando a ênfase de Pouilloux na abordagem dos Ensaios pelo
exame de sua desordem e de suas contradições constitutivas, mas afastando-se de
sua conclusões, o intérprete entende sua forma não simplesmente como um
conjunto de constatações reiteradas em torno do tema da “fraqueza humana”.
Define-a sobretudo como um modo de enunciar opiniões a título de meras
reflexões pessoais, sob a consciência plena da contingência de seu pensamento,
em sua incapacidade de conhecer a verdade: “(...) ele não dá por caução senão a
atitude que nesta exposição se decifra, como marca de um selo, e nela se confirma
por reflexão. Pouco ou nada, para as exigências de um pensamento dogmático;
tudo, para quem se libertou dele.”
12
De fato, como se evidencia na epígrafe desse trabalho, extraída do ensaio
Da presunção, Montaigne assumia as idéias enunciadas no texto como suas, ainda
que afirmadas de maneira um tanto imperfeita: “Je les produisis crues et simples,
d`une production hardis et forte, mais un peu trouble et imparfaicte (…)” e que se
utilizasse da autoridade dos antigos para conferir-lhes mais consistência.
Conforme enfatiza Tournon:
(...) seu julgamento pronuncia veredictos seguros, teremos a oportunidade de
constatar; e nada autoriza-nos a negligenciar este aspecto de sua obra. A
redução fenomenológica operada pelo ensaio não diminui o alcance de sua
mensagem; ela apenas modifica a caução que lhe dá crédito.
13
Era, portanto, a franqueza e a boa fé do próprio testemunho que dava
crédito às afirmações contidas nos Ensaios. Sua legitimidade não era da pretensão
de se atribuírem a condição de verdades doutrinais mas sim de serem próprias e
manifestarem a natureza própria de seu autor. Como Montaigne afirmava no
ensaio Da semelhança dos filhos com os pais, suas idéias eram tanto mais suas na
medida em que não eram passíveis de ter um sentido unívoco e universal mas
inspiravam novas considerações e novos “ensaios” do jugement, que se definiam
como modo privilegiado de retratar-se: “De resto, não corrijo minhas primeiras
idéias com as segundas; (C) na verdade talvez alguma palavra, mas para
diversificar, não para retirar. (A) Quero representar o curso de meus humores, e
12
Idem.
13
Idem, p. 116.
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17
que se veja cada parte em seu nascimento.”
14
Os acréscimos que inseria no texto
não vinham, portanto, anular suas idéias, mas antes conferir-lhes maior solidez
pois através deles ele melhor se apropriava delas, enriquecendo-as e as
multiplicando em novos desenvolvimentos.
O que não é possível encontrar na meditação dos Ensaios, desse modo,
sublinha Tournon, não é a afirmação de pensamentos, mas sim a ordem serial e
linear com que eram comumente enunciados nas obras de seu tempo, nos
discursos que se pretendiam portadores de verdades atestadas. A lógica própria à
meditação dos Ensaios não é serial mas sim combinatória. A partir dessa
avaliação positiva da empresa de Montaigne, em sua originalidade própria, é
possível indagar de maneira adequada sobre suas idéias, delineadas no âmbito
mesmo da desordem e das contradições do texto: isto é, no modo como
ressurgiam de maneiras diversas, solicitadas pelo movimento incessante de sua
reflexão, fazendo-se, assim, sempre passíveis de novas abordagens que atestavam
seu caráter contingente, como meras opiniões, mas nem por isso menos
assumidas: “(...) le plus fermes imaginations que j`aye, et generalles, sont celles
qui, par maniere de dire, nasquirent avec moy. Elles sont naturelles et toutes
miennes”. Como observa Tournon: “O conjunto do livro se organiza numa rede,
cujas linhas são desenhadas pelos ressurgimentos a intervalos regulares, das
questões de importância maior sobre as quais Montaigne retorna em diferentes
épocas.”
15
A crítica moral da glória, segundo acreditamos, é uma dessas questões de
grande importância, sobretudo para os capítulos dos primeiros tempos. Vale
exemplificar aqui alguns entre muitos modos como Montaigne enunciou sua
concepção sobre seu caráter vão e ilusório, pois, como veremos, essas tópicas
seriam retomadas no ensaio Da glória e exploradas de maneira profunda no
interesse da afirmação da dignidade de suas próprias motivações.
No curto capítulo, De não transmitir sua glória, escrito provavelmente por
volta de 1572, segundo Villey, Montaigne ressaltou a propensão intrínseca do
espírito humano aos excessos do orgulho que tornava o desejo de glória uma
condição praticamente impossível de ser suprimida. A força dessa ambição era
14
“Au demeurant, je ne corrige point mes premieres imaginations par les secondes; (C) ouy à
l`adventure quelque mot, mais pour diversifier, non pour oster. (A) Je veux representer le progrez
de mes humeurs, et qu on voye cháque piece en sa naissance.” MONTAIGNE, II, 37, p. 758.
15
TOURNON, A., op. cit., p. 175.
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18
sinal da extrema ignorância dos homens, que em função de suas ilusões de
grandeza, deixavam de lado os verdadeiros bens da vida:
De todas as tolices do mundo a mais aceita e mais universal é a preocupação
com a reputação e a glória que esposamos a ponto de deixar de lado as riquezas,
o descanso, a vida e a saúde, que são bens reais e substanciais, para seguirmos
essa vã imagem e essa simples palavra, que não tem corpo nem pregnância.
16
No ensaio Dos nomes, também escrito por volta de 1572, tornou a acusar a
insensatez humana, atentando para o modo como os homens de seu tempo
cultuavam a fama de seus nomes, esforçando-se por acrescentar-lhe novos títulos
genealógicos. A crítica da glória aparecia então ligada a denúncia da impotência e
do caráter vão das palavras para comprovar a verdadeira nobreza de espírito.
Conforme sublinhava, era a celebração pública do renome que a fundava e não a
essência da virtude e da excelência: “Sondemos de perto um pouco, e, por Deus,
perguntemo-nos em qual fundamento ancoramos essa glória e reputação pela qual
o mundo se transtorna.”
17
Mas ele também abordou o tema de um ponto de vista positivo, para
expressar sua admiração pela glória dos grandes heróis do mundo antigo, tal como
em Do jovem Catão e em Da grandeza romana, o primeiro escrito pouco depois
de 1572, o segundo bem mais tarde, por volta de 1578. Mas a expressão do apreço
pela excelência sem par dos homens da Antigüidade não significou um recuo em
relação à sua perspectiva negativa, nem tampouco uma contradição que viesse
neutralizá-la, ao aproximar mais sua reflexão dos valores celebrados pela tradição
humanista. Ao contrário, veio antes precisá-la e enriquecê-la sob uma nova
visada, de natureza comparativa, explicitando o modo como se ligava à crítica aos
costumes de seu tempo. O elogio da virtude dos antigos, nos Ensaios, propiciava
constantemente o destaque dos vícios dos contemporâneos revelando, por
contraste, os costumes viciosos e pervertidos do presente. Em Do Jovem Catão,
por exemplo, Montaigne acusou o falso valor das grandes ações dos homens que
lhe cercavam, movidas por suas ambições pessoais e, portanto, por causas alheias
ao bem da virtude:
16
“De toutes les resveries du monde, la plus receüe et plus universelle est le soing de la reputation
et de la gloire, que nous espousons jusques à quitter les richesses, le repos, la vie, la santé, qui sont
bien effectuels et substantiaux, pour suyvre cette vaine image et cette simple voix qui n`a ny corps
ny prise.” MONTAIGNE, I, 41, p. 255.
17
“Sondons un peu de pres, et, pour Dieu, regardons à quel fondement nous attachons cette gloire
et reputation pour laquelle se bouleverse le monde.” Idem, I, 51, p. 279.
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19
Já não se reconhece ação virtuosa: as que apresentam tal aspecto não têm
entretanto sua essência, pois o lucro, a glória, o temor, o hábito e tais outras
causas alheias nos encaminham para produzi-las. (...) Ora, a virtude só assume
aquilo que se faz por ela e para ela apenas.
18
Da grandeza romana, por sua vez, já se iniciou pela declaração de que
pretendia tratar de um outro assunto, que era como um reflexo daquele anunciado
no título. Seu objetivo, então, não era tanto celebrar a glória dos antigos quanto
ressaltar a imensa distância que a separava da vã glória do presente: “Quero dizer
apenas uma palavra sobre esse assunto infinito para mostrar a ingenuidade
daqueles que comparam com aquela as acanhadas grandezas dos tempos de
hoje.”
19
Mas foi em Da glória que Montaigne desenvolveu todos esses
argumentos, explorando em suas conseqüências éticas e morais as críticas que
lançava contra os costumes de seu meio - “les chetives grandeurs de ce temps”.
No terceiro capítulo de nosso estudo e no próximo que se lhe segue nos propomos
a uma interpretação da abordagem crítica desenvolvida neste ensaio, procurando
acompanhar o movimento de seu pensamento para que possamos discernir o modo
como desembocava no autoretrato de Da presunção, propiciando a investigação
sobre suas motivações de descrever-se em sua forma “simples, natural e
ordinária” nos Ensaios.
Primeiro, como antes dissemos, procuraremos trazer à luz o caráter
particular do discurso de Montaigne em relação aos argumentos do helenismo
antigo de que se apropriava para ressaltar o caráter vão da glória. Em seguida, no
quarto capítulo, nosso esforço é de uma articulação mais sólida entre sua recusa e
as razões do autoretrato e de seus procedimentos, a partir de uma análise do texto
de abertura dos Ensaios, a Advertência ao leitor, em que se declarava de imediato
o intento de retratar-se. Mas o ponto que está no cerne desse quarto capítulo e que
articula sua discussão é do exame da postura cética de Montaigne e como ela se
18
“Il ne se recognoit plus d`action vertueuse: celles qui en portent le visage, elles n`en ont pas
pourtant son essence, car le profit, la gloire, la crainte, l`accoutumance, nous acheminent à les
produire.(…) Or la vertu n`advoue rien que ce qui se faict par elle et pour elle seule.” Idem, I, 37,
p. 230.
19
“Je ne veus dire qu`un mot de cet argument infiny, pour montrer la simplesse de ceux qui
apparient à celle là les chetives grandeurs de ce temps.” Idem, II, 24, p. 686.
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20
vinculava à rejeição da glória e ao preceito fundamental de sua sabedoria: da
fidelidade à sua própria razão.
No quinto capítulo, interpretaremos o ensaio Da presunção, em que
procurava provar que sua prática desse preceito de voltar-se para si estava isenta
de tal vício. Com efeito, conforme a definia no início do ensaio, a presunção, era
outra espécie de glória, impulsionada, entretanto, não pelos aplausos externos do
mundo, mas pelos excessos do amor próprio, que faziam com que um homem se
considerasse como mais perfeito do que era. Com isso Montaigne reforçava sua
profissão de sinceridade, preceito fundamental dos Ensaios como um todo: foi
declarando a “bonne foy” de seu livro que ele se dirigiu aos seus leitores já na
primeira frase da Advertência.
Mas nossa leitura será desenvolvida a partir do exame do universo de
valores e questões com os quais Montaigne se confrontava para dar forma às suas
próprias perspectivas e terá assim como pano de fundo o exame de alguns dos
conceitos mais generalizados na cultura clássica e humanista.
Como atenta Pierre Villey
20
, o tema de Da glória pode ter sido sugerido
por uma passagem do prefácio do Méthode de l`histoire de Jean Bodin, que para
declarar a utilidade moral da historiografia reforçava a tradição clássica de culto à
glória como imagem da virtude exemplar dos grandes homens. Bodin retomava,
então, a tradição clássica da história mestra da vida - historia magistra vitae
21
,
destacando sua dignidade como uma exortação à virtude, por incitar os homens do
presente a imitar esses célebres exemplos, estimulando-os assim a também
cumprir feitos heróicos nas guerras e evitar o vício em todas as circunstâncias.
Não pretendemos aqui, com essa menção ao Méthode de Bodin,
comprovar ou não a validade dessa hipótese sustentada por Villey mas sim atestar
o quanto permanecia viva na França de meados do século XVI essa concepção
positiva das ambições de glória que remontava à reflexão moral e política dos
20
Segundo Pierre Villey, Da glória foi escrito em sua maior parte por volta de 1578, à época em
que Montaigne lia o Méthode de l`histoire de Bodin, mas reconhece, entretanto, o caráter incerto
dessa interpretação acerca da gênese do ensaio. De todo modo enfatiza a grande probabilidade de
sua influência ao tempo em que escrevia o ensaio, apontando para um empréstimo na parte final de
Da glória extraído diretamente do Méthode. Trata-se da passagem em que Montaigne nos fala do
desejo insaciável de fama de Trogus Pompeius e de Mânlio Capitolino, que a ambicionavam a
qualquer preço, fosse boa ou má (p. 626). VILLEY, P. Sources et Evolution des Essais de
Montaigne, p. 382.
21
Essa tradição da historia magistra vitae remonta ao pensamento de Cícero, conforme
examinaremos no nosso quarto capítulo, sendo retomada intensamente pelos autores italianos dos
séculos XV e XVI, de Collucio Salutati a Maquiavel.
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21
primeiros humanistas italianos. Como veremos, a crítica de Montaigne ao elogio
da glória também esteve impregnada da consciência acerca de sua estreita ligação
com o domínio da linguagem e com a exaltação de suas prerrogativas morais na
cultura humanista. Ao abordar a glória, o autor dos Ensaios também passou ao
tema da utilidade moral da história, questionando-lhe tais poderes de funcionar
como impulso da virtude, opondo-se assim a uma das proposições mais difundidas
na época. Antes de passarmos ao exame de Da glória e de Da presunção,
portanto, dedicamos o capítulo que se segue a uma caracterização geral dos
significados e das formas diversas sob os quais esse conceito da glória surgiu
desde a tradição grega mais arcaica até o Renascimento, sem perder de vista o
modo como ligou-se desde seus primórdios à valorização da história e da
dinâmica dos negócios humanos. Depois disso cabe nos voltar mais propriamente
para o exame dos valores inerentes ao seu elogio na cultura humanista, situando o
tema no âmbito mais profundo de sua filosofia moral, centrada no ideal da
dignidade humana, com que o humanismo se impôs entre os séculos XIV e XV
contra a ética cristã agostiniana pautada na miséria do homem.
Mas, com efeito, conforme veremos, essa afirmação da idéia da glória
como expressão da virtude na literatura do Renascimento, se estabeleceu sempre
sob a consideração dos argumentos críticos ligados ao tema, que penetraram de
maneira profunda a cultura do ocidente através da tradição filosófica dos antigos e
da ética cristã agostiniana que dominou os séculos da Idade Média. Assim, para
que não percamos de vista as complexidades ligadas ao tema, concluiremos o
capítulo que se segue detendo-nos na apresentação da forma ambígua que esse
elogio assumiu freqüentemente nas obras da época de uma maneira geral. A
oscilação de significados, entre uma acepção negativa e outra positiva também
esteve presente em Da glória, mas o tratamento de Montaigne sobre o tema e de
suas considerações diversas não se ligou à valorização da ação criativa do homem
e de seu poder de intervenção sobre a ordem do mundo, tal como ocorreu, de
diversas formas, entre os autores da Renascença.
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2.
A idéia de glória no Ocidente e seu elogio na Cultura do
Renascimento.
2.1) A glória em suas diversas acepções e formas: da Antigüidade à
Renascença.
Através dos tempos a glória sempre seduziu o olhar do homem ocidental
como deusa tentadora e irresistível fazendo perdurar por séculos a fama de seus
nomes celebrados por grandes autores e poetas. Dos antigos gregos aos homens
do Renascimento, a promessa da glória se afirmou no Ocidente como modo de
insuflar coragem aos espíritos, de incitar-lhes ao cometimento de grandes
façanhas, que fossem dignas do louvor dos poetas. A glória de guerreiros
extraordinários, como Aquiles, Ajax e Ulisses, com efeito, é a matéria por
excelência dos poemas homéricos que se afirmaram como fontes inspiradoras de
gregos e latinos, mas também dos cavaleiros medievais e dos conquistadores
ibéricos dos séculos XV e XVI
1
.
Na tradição grega arcaica a glória era tida como a maior das aspirações
humanas por designar a realização mais pura do valor pessoal traduzida na estima
permanente da comunidade. Ela era então inseparável do conceito fundamental da
cultura grega, de arete
2
que designava a excelência humana mais perfeita, definida
por seus méritos e habilidades. Conforme a tradição aristocrática dos tempos de
Homero a palavra arete compreendia sobretudo a força e a destreza de guerreiros
e lutadores, sendo atributo exclusivo de uma nobreza guerreira, geralmente
1
Sobre isso ver Lida de Makiel, M. R. L`idée de la gloire dans la tradition occidentale,
Klincksieck, Paris, 1968. Apesar de propor-se a tratar mais especificamente do conceito de glória
na Idade Média castelhana a obra nos fornece uma abordagem mais ampla do tema a partir das
fontes clássicas e das fontes medievais francesas. Ver também Vieira, Ana Thereza Basílio, O De
Gloria, Livro I, de Jerônimo Osório, tese de Doutorado, UFRJ, 1999. Ao proceder à tradução e
interpretação da primeira parte do diálogo do célebre humanista português Jerônimo Osório, a
autora empreende uma caracterização das várias formas de que o conceito de glória se revestiu na
cultura ocidental, desde a Antigüidade às cruzadas da Idade Média e aos conquistadores ibéricos.
2
O conceito de arete entre os gregos era usado freqüentemente em sentido mais amplo, para além
da designação da excelência humana. Arete significava um valor objetivo, algo como uma
disposição, força ou função própria de cada ser e de seus atributos, que constituía sua perfeição. A
arete do corpo era o vigor e a saúde, a arete do espírito a sagacidade e a penetração. Na República
Platão nos fala da arete dos cães e dos cavalos (I, 335b) assim como da arete dos deuses,
designando sua superioridade (I, 381). JAEGGER, W., p. 24.
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23
desvinculada de um sentido moral e ético. Mas, como nos mostra Werner
Jaegger
3
, já na Ilíada, Homero ampliava essa acepção para definir o tipo ideal do
homem perfeito fazendo com que abrangesse a sabedoria do espírito,
estabelecendo em seus princípios o modo como seria doravante compreendido: ao
lado da destreza expressa em feitos guerreiros, o conceito de arete passava a
designar também as habilidades no domínio da palavra, associadas pelos antigos
gregos à nobreza superior do espírito bem formado. Esse ideal de perfeição surge
já nas palavras do velho Fênix preceptor de Aquiles, a este que era um dos
maiores entre os heróis gregos: “Para isso me enviou a fim de eu te ensinar a saber
fazer discursos e realizar feitos nobres”
4
.
Esse alto valor que os antigos gregos conferiam à glória imortal de ditos e
feitos como expressão da excelência, conforme atenta Hannah Arendt
5
, se
associava intrinsecamente à sua concepção de grandeza forjada a partir de sua
experiência com os fenômenos da natureza, ou seja, enquanto domínio que
compreendia todas as coisas imortais, que existiam por si mesmas, expressas pelo
conceito de physis. Foi com efeito o tema da physis, do fluir permanente dos
elementos naturais e do movimento dos astros que impulsionou as investigações
dos primeiros filósofos pré socráticos na busca de uma ciência racional e
metafísica da natureza que desse conta da origem fundamental de sua imanência.
Face ao ser grandioso e permanente da natureza se aprofundou na cultura grega a
consciência do caráter fútil e instável do domínio do devir em que transcorria a
existência humana
6
e assim a aspiração a conferir aos seus atos e realizações uma
grandeza própria, traduzida em durabilidade e permanência, com que pudesse
medir-se com o ser-para-sempre da natureza. Na Grécia antiga coube ao discurso
da história e à poesia
7
ocupar-se dos assuntos humanos e do valor de seu feitos e
3
Idem, p. 27.
4
HOMERO, Ilíada, IX, 442-443.
5
ARENDT, H., O Conceito de História antigo e moderno, In: Entre o passado e o futuro, p. 72.
6
Uma manifestação dessa consciência na poesia de Homero está na passagem da Odisséia em que
narra as palavras da mãe de Ulisses quando este a encontra no hades: “(...) esta é realmente a sorte
normal dos mortais quando falecem. Os nervos não mais seguram carnes e ossos; a força poderosa
do fogo em chamas destrói essas partes, assim que o alento abandona os brancos ossos, enquanto a
alma se evola e paira como um sonho.” HOMERO, Odisséia, XI, 161-166.
7
Como sublinha Hannah Arendt, o paradoxo dessa concepção grega de grandeza humana
residindo em atos e palavras – práksis ou pragmata - era que, em se tratando das coisas realizadas
pelo homem, estas eram as de essência mais precária, nunca podendo sobreviver ao momento de
sua realização. Ao contrário das obras realizadas pelas mãos humanas – poièsis - que, em certa
medida tomavam emprestada a matéria do ser-para-sempre da natureza e eram dotadas de certa
permanência, seus atos e palavras se esvaíam para o nada assim que ocorriam, sem deixar vestígios
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24
ditos, negligenciados pelos filósofos e conferir-lhes uma forma de imortalidade ao
fixar a glória imortal de seus nomes na memória literária.
De fato, foi essa missão de responder aos anseios humanos mais
profundos de transcender os limites mesquinhos de sua existência mortal que
Heródoto declarou como atribuição própria do discurso historiográfico já na
primeira sentença de suas Guerras Pérsicas. Ela subtraía das trevas do olvido a
arete dos grandes heróis e lhe dava forma perfeita através da imortalidade da
glória: “Esta é a exposição das investigações de Heródoto de Halicarnasso, para
que os feitos dos homens se não desvaneçam com o tempo, nem fiquem sem
renome as grandes e maravilhosas empresas realizadas quer pelos Helenos quer
pelos bárbaros (...)”
8
Mas a poesia teve precedência nessa função, estabelecendo-se desde os
tempos da Grécia arcaica, a partir da obra de Homero, como a educadora
privilegiada da humanidade no sentido de dar forma exemplar à arete humana.
Com efeito, celebrando a glória em suas belas formas ela dotava de sólido
significado moral e de universalidade as experiências da vida em que se realizava
a excelência, movendo os homens de todos os tempos à imitação desses exemplos
de grandeza
9
.
Essa associação estreita entre arete e glória entretanto foi combatida no
contexto democrático da polis grega que transformou as condutas e os valores
atrás de si. A solução grega para esse paradoxo se dava portanto no domínio da poièsis da palavra
escrita, que conferia uma forma de imortalidade ao domínio da práksis, embora jamais igual à
eternidade do mundo da natureza. Tal função era atribuída especialmente à poesia e à
historiografia, unidas sob a mesma categoria na Poética de Aristóteles (1448b25 e 1450
16-22)
pelo fato de terem os feitos e ditos dos homens como tema e como pressuposto a idéia grega
tradicional de grandeza. ARENDT, H., op. cit., p. 74.
8
HERÓDOTO, Guerras pérsicas, I, 1, p. 53.
9
A idéia de que Homero era o grande educador de seu povo manteve sempre sua importância na
cultura grega, mas seu caso era apenas o exemplo mais acabado de uma noção aceita em geral no
mundo grego, da função educativa da poesia. A arte era vista nesse contexto como detentora de um
poder ilimitado de conversão espiritual sobre os homens que os gregos chamavam de psicagogia:
a beleza da poesia conferia plenitude e força emocional aos grandes exemplos, lhes dava validade
universal, capaz de mover imediatamente os homens para a imitação. Essa noção manteve-se viva
apesar da famosa crítica de Platão, no livro X de sua República, aonde destituía a poesia de seu
valor na cidade em virtude da limitação de seu conteúdo de verdade. Com efeito, no capítulo IX da
Retórica de Aristóteles encontramos uma boa prova do valor que a cultura grega ainda atribuía à
poesia: se Aristóteles ressaltava que ambas, a poesia e a história tinham por matéria a imitação das
ações dos homens, afirmava por outro lado a posição inferior da última em relação à primeira. Se a
história lidava com a narração das coisas que realmente haviam acontecido, a poesia ocupava-se
daquilo que poderia ter acontecido, segundo a verossimilhança ou a necessidade. Desse modo
segundo Aristóteles: “Por tal motivo a poesia é mais filosófica e de caráter mais elevado que a
história, porque a poesia permanece no universal e a história estuda apenas o particular.”
ARISTÓTELES, Poética, IX, p. 252. Sobre isso ver Jaegger, W., Homero, educador, op. cit.
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25
entre os séculos VIII e VI inaugurando um novo modo das relações humanas,
oposto à organização feudal aristocrática, baseado no ideal da igualdade, da
participação de todos no poder. A organização social e política da polis implicou o
surgimento de um domínio público, a centralidade de um setor de interesse
comum, cerne da vida da cidade, que se sobrepunha às ambições privadas e aos
poderes individuais.
Foi a comunidade civil que se afirmou então como a expressão mais plena
da excelência humana, fonte dos bens supremos da vida e de suas normas mais
perfeitas. Como nos mostra Jean Pierre Vernant
10
é significativo que nesse
contexto a força do velho ideal grego da glória guerreira, tão vivo à época de
Homero, se esvaziasse de sentido. O aparecimento dos hoplitas, dos guerreiros
espartanos que lutavam em formação cerrada segundo o princípio da falange é
indício importante da transformação da concepção tradicional da arete humana
dentro do universo espiritual da polis. O valor militar não se definia mais então,
tal como nos tempos homéricos, pela glória de grandes façanhas individuais
realizadas em combates singulares. Ao contrário, vinculava-se substancialmente
ao domínio de si, a um rígido controle dos próprios instintos – sophropsyne – que
perturbariam a ordem geral da formação das falanges caso emergissem.
Com efeito, essa nova atitude observada no domínio da guerra
11
ilustrava
uma mudança profunda em todos os planos da vida social, sob a afirmação de
uma outra noção da excelência humana; de uma arete propriamente política. Esta
identificava-se à sophrosyne, ao autodomínio com que o cidadão se adequava à
disciplina da vida comum. Tinha assim como pressuposto fundamental a rejeição
das paixões individuais de glória, assim como da sede de poder e de riquezas
como descomedimento – hybris – que ocasionavam a inveja e as divisões na
comunidade política
12
. Assim, nesse contexto democrático da polis, a excelência
10
VERNANT, J. P. As origens do pensamento grego, p. 44.
11
No caso de Esparta, diferentemente do caso de Atenas, é o fator militar que parece ter tido papel
decisivo no advento da nova mentalidade, permanecendo fora das grandes correntes intelectuais da
época. Entre os séculos VII e VI Esparta rompeu com os velhos privilégios aristocráticos,
repudiando toda forma de riqueza e de primazia, concentrando-se inteiramente nas instituições que
a consagravam à guerra. Idem, p. 45.
12
Foi num contexto de crise que atingiu a polis dos fins do século VII ao século VI, devido a
crises internas, que Sólon um dos maiores legisladores da república ateniense se esforçou em
estabelecer normas de justiça – diké – iguais para todos a fim de equilibrar as forças sociais
antagônicas e de ajustar as atitudes humanas sempre em oposição. Solón entendia que era a hybris
humana, seu desejo insaciável de riquezas e poder, a grande causa da desordem e da injustiça na
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26
humana passou a definir-se não pela ousadia de grandes feitos individuais, dignos
de fama imortal, mas sobretudo pela sabedoria do espírito, expressa
essencialmente pelas próprias aptidões intelectuais e oratórias, as mais necessárias
à formação dos grandes homens de Estado, que velavam pela integridade do bem
comum
13
.
A filosofia socrática aprofundou e desenvolveu essa concepção
moralmente negativa da glória forjada a partir do ideal democrático da polis
entendo-a não como marca de excelência mas sim como ligada aos excessos das
paixões individuais, à presunção e a ganância dos homens. Procurando desviar as
investigações teóricas da filosofia do domínio da physis para os problemas
humanos Sócrates atribuiu a ela o papel de educadora privilegiada no
desenvolvimento de uma nova espécie de arete que tinha na apropriação do velho
preceito grego do “conhece-te a ti mesmo” seu motivo fundamental.
Tradicionalmente, na cultura grega arcaica, esse preceito possuía um significado
essencialmente religioso, fazendo lembrar ao homem sua condição mortal,
infinitamente distante da perfeição dos deuses e sua incapacidade de penetrar os
mistérios. Mas Sócrates o interpretou numa direção inteiramente nova, dotando o
“conhece-te a ti mesmo” de um conteúdo moralizante, definindo-o como
exortação a um retorno a si, para o conhecimento dos móveis das próprias ações e
da ciência dos valores que as guiavam. Essa arete fundava-se no movimento pelo
qual o homem aprendia a regular sua conduta de maneira reta, de acordo com a
cidade. Foi de fato, em nome da preservação dessa justiça igual para todos e da instauração de um
espaço para a igualdade que ele recusou-se à tirania, que estava a seu alcance. Idem, p. 60.
13
Atraídos pela efervescência política e pelo desenvolvimento cultural que teve lugar na polis
ateniense durante os séculos IV e III a.C., muitos representantes do movimento sofista para lá se
dirigiram à procura de fama, reconhecimento e remuneração. O ensino sofista era voltado
especificamente para aqueles que buscavam fazer carreira na política e na vida pública em geral,
desejosos da apreensão de um saber bastante específico: a compreensão dos métodos de
elaboração de um discurso persuasivo. Nada mais propício para o momento de extensão
democrática que Atenas vivenciava, pois as instituições de uma cidade democrática pressupunham
a faculdade não apenas de falar em público, mas de argumentar, a partir do conhecimento de
técnicas retóricas específicas, de modo persuasivo, sendo estas qualidades de suma importância
para a defesa dos interesses tanto públicos quanto privados. No entanto, a pedagogia sofista sofreu
duras críticas, sendo Platão um dos seus adversários mais contundentes. Este filósofo afirma,
através da voz de Sócrates, em obras como Protágoras, Górgias e Fedro que a retórica não é uma
arte (téchne), negando-lhe em decorrência todos atributos de uma téchne, tais como a utilidade, a
possibilidade de ser transmitida e o conhecimento de seu objeto. Além disso, a retórica foi ainda
acusada pelo filósofo de dizer respeito apenas à opinião e não à verdade, de não possuir uma
finalidade própria, de não ter um comprometimento moral e de manipular as emoções dos
ouvintes. Cf.: KENNEDY, G., The art of persuasion in Greece, p.323.
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27
razão a partir do reconhecimento de suas insuficiências naturais com que excluía
de si o orgulho e a arrogância como impulso dos próprios atos
14
.
Essa crítica socrática da glória como paixão perturbadora que deveria ser
excluída em benefício de um ideal de sabedoria do espírito esteve presente na
maior parte das doutrinas posteriores, sobretudo entre os estóicos e entre os
epicuristas, que preconizavam, entretanto, o afastamento do mundo público e o
divórcio entre o sábio e a polis. Em sua crítica da glória, como veremos,
Montaigne se apropriou largamente dos argumentos e tópicas peculiares a essas
tradições.
Mas para voltarmos a Sócrates, na Apologia, um dos primeiros escritos de
Platão, ele enfatizou essa sua missão educadora como filósofo, estimulando os
homens a conhecer-se a si mesmos a fim de afirmar-se em sua razão e comportar-
se sempre de maneira justa sem jamais sobrepor suas paixões particulares aos
interesses da coletividade:
(...) enquanto tiver um sopro de vida, enquanto me restar um pouco de energia,
não deixarei de filosofar e de vos advertir e aconselhar, a qualquer de vós que
encontre. Dir-vos-ei, segundo o meu costume: ‘Meu caro amigo, és ateniense,
natural de uma cidade que é a mais afamada pela sabedoria e pelo poder e não
se envergonhas de só cuidares de riquezas e dos meios de as aumentarem o mais
que puderes, de só pensares em glória e em honras, sem a mínima preocupação
com o que há em ti de racional, com a verdade e com a maneira de tornar sua
alma o melhor possível?’
15
Com efeito, no âmbito dessa arete política, expressa na retidão moral da
conduta, a única espécie legítima de orgulho era o de pertencer ao Estado
democrático de Atenas e de agir sempre visando a manutenção de seus altos
valores, da liberdade e da igualdade.
Essa concepção negativa das ambições de glória aparece também na
filosofia política de Platão sobretudo nas Leis, aonde enfrenta o problema na
14
O pensamento de Sócrates se situou nesse mesmo contexto ideológico das reformas de Sólon
operando no sentido da restauração da cultura espiritual da polis, contra a ostentação de riquezas
dos poderosos e de suas ambições de distinguir-se. Mas como salienta Werner Jaegger, ele trouxe
uma novidade fundamental à investigação acerca da essência da arete política, responsável por seu
conflito com o Estado ateniense: reorientou essa reflexão da submissão externa às leis da cidade
para a ênfase no domínio interior da própria personalidade e do caráter moral como medula da
existência humana tanto particular como coletiva. Com efeito, a educação para a virtude política
que ele pretendia instaurar pressupunha antes de tudo a restauração da polis no seu sentido moral
interior do conhecimento humano de sua própria essência racional superior. JAEGGER, W., op.
cit., p. 614.
15
PLATÃO, Apologia de Sócrates, 29 d, p. 28.
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28
consideração central que estava nas raízes de seu elogio desde os gregos antigos,
ou seja, do anelo natural dos homens à imortalidade
16
. Com sua doutrina da
imortalidade potencial dos homens mortais através da procriação ele pretendeu
conferir uma fruição legítima a essa afecção, adequada à razão e à natureza,
impedindo que degenerasse em vícios contra o bem da vida civil. Como afirmava
no quarto livro de suas Leis o homem só era dotado de imortalidade – athanasía -
enquanto espécie, em sua condição sempiterna dada pela procriação. Por isso
Platão declarou como uma das principais tarefas do legislador ideal bem
direcionar através da instituição do casamento as ambições comuns de grandeza
no sentido de sua adequação à ordem eterna da natureza: “Sua maneira de ser
imortal, é de deixar filhos e filhos de seus filhos atrás de si; ele permanece sempre
o mesmo através da geração e participa assim da imortalidade.”
17
Entretanto após a crítica socrática e platônica o mundo grego contou com
uma importante reabilitação da noção antiga da glória pessoal de grandes feitos
como marca da virtude que teve grande influência sobre as elaborações
posteriores de um modelo ético positivo para a glória em âmbito político e social,
tanto entre os autores romanos como entre os humanistas do Renascimento. Ela se
deu na figura do homem magnânimo - megalopsychos – delineada por Aristóteles
na Ética a Nicômaco
18
, que encarnava o ideal da mais plena perfeição moral,
ligada à sophrosyne – domínio de si – e à phronesis – prudência; ‘sabedoria
prática’ - mas sem dissociá-las entretanto da aspiração às honras. Segundo
Aristóteles esta era, na verdade, o indício mais evidente da grandeza de espírito,
definindo-se como afecção natural e peculiar à sua virtude superior. Com efeito,
seu caráter bom e nobre se comprovava em sua altivez, que o punha acima das
ambições de primazia vulgarmente acatadas pelo vulgo, do fausto, do poder, do
lucro e do prestígio social que por eles podiam adquirir. O magnânimo ocupava-se
somente com ações belas e grandiosas no espaço público, que fossem dignas de
trazer-lhe o reconhecimento de uma honra justa e verdadeira, adequada à sua
própria grandeza.
Os romanos herdaram os argumentos da filosofia grega de crítica à glória
assim como a consciência dos vícios e imposturas morais que podiam decorrer da
16
ARENDT, H., op. cit., p. 76.
17
PLATÃO, Leis, IV, 721.
18
ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco, IV, 3.
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29
identificação entre as ambições pessoais de primazia e as ações da virtude no
mundo público
19
. Entretanto como afirma Cícero em seu De republica
20
, a
tradição romana se distinguia por sua hostilidade ao espírito contemplativo da
filosofia grega, voltando-se sobretudo para o domínio externo e prático da ação na
cidade, tendo como principal objetivo educar os cidadãos para cumprir da maneira
mais perfeita seus deveres públicos e privados na comunidade política. Dessa
perspectiva para a realização da virtus humana (que era o equivalente latino do
ideal grego da arete) Cícero enfatizou a superioridade da educação nos costumes e
nas leis romanas – mos maiorum
21
- em relação aos estudos teóricos dos gregos,
para o cultivo da alma e o conhecimento das leis divinas. Assim, portanto, mais
que a crítica da glória, a moralidade cívica romana, centrada no domínio da vida
prática retomou intensamente o culto grego à glória pessoal, especialmente através
do ideal Aristotélico de perfeição moral da magnanimidade, associando
estreitamente a boa reputação à virtus. De fato, a cultura do cidadão centrava-se
no culto à glória dos personagens grandiosos que haviam lutado para fortalecer a
república promulgando novas leis e combatendo fortemente os inimigos. Homens
de virtus extraordinária, cujos feitos haviam tido importância crucial para a
grandeza de Roma, como Rômulo, Numa Pompílio, Cipião e Catão tiveram sua
glória celebrada tanto pelos historiadores latinos, de Tito Lívio a Salústio, como
pela epopéia virgiliana, estimulando as ambições de glória dos homens do
presente e incitando-os assim aos atos da virtude.
19
Sêneca afirmou de maneira recorrente seu repúdio contra a glória assim como contra o modo de
vida dedicado a grandes ações na vida pública. Podemos encontrar exemplos dessa crítica por
exemplo nas cartas 19, 21 e 22 de suas Cartas a Lucílio. Um outro bom exemplo dessa crítica na
literatura romana se encontra em Cícero, em seu Do sumo bem e do sumo mal (De finibus) aonde
denuncia os excessos do amor à glória por esvaziar a virtude de seu próprio valor, fazendo com
que dependesse da aprovação pública: “E o que é por si mesmo reto e louvável, não havemos de
chamá-lo honesto porque o louvam muitos, mas sim por ser tal, que ainda que os homens o
ignorassem ou calassem, seria louvável por sua própria beleza.” CÍCERO, Do sumo bem e do
sumo mal, II, 15, p. 55.
20
CÍCERO, De Republica, I, 2, 2. Apud. Michel, A, Rhetorique et Philosophie chez Ciceron, p.
449.
21
O mos maiorum designava a profunda convicção romana acerca da grandeza e superioridade de
seu ideal de educação centrado no domínio prático de seus costumes, instituições e leis calcados
no ideal da liberdade cívica e no desdém pelo saber teórico dos gregos. Essa convicção se afirma
especialmente entre os romanos dos primeiros tempos da época de Catão, mas os traços dessa
mentalidade continuaram presentes na obra de Cícero. Além do De republica podemos encontrá-lo
reafirmando a tradição do mos maiorum romano em passagem do primeiro volume do De Oratore:
“(...) que se tome todas as coleções de obras de todos os filósofos reunidos; por si mesmo o
pequeno livro das XII Tábuas, fonte e fundamento de nossas leis, me parece, tanto por sua
autoridade reconhecida quanto por sua fecunda utilidade, ser-lhes infinitamente superior.” Idem,
De Oratore, I, 44, 195.
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30
Esse culto à glória extraído da Antigüidade, envolvendo a confiança nas
próprias capacidades em alcançar uma perfeição imortal por seus feitos, foi
recuperado pelo humanismo renascentista e seus argumentos cumpriram papel
central no âmbito dessa moralidade, pautada num ideal de dignidade humana
estreitamente ligado à valorização dos méritos individuais. Em seu estudo sobre o
tema da glória no Renascimento italiano, Carlo Varotti
22
celebrou o pioneirismo
de Jacob Burckhardt em reconhecer que esse motivo de elevar-se, de tornar-se
glorioso, que aparecia com tanta insistência na literatura política e moral da época,
dizia respeito à expressão de um ideal de humanidade que caracterizava de forma
profunda essa cultura e era como que sua marca, calcada numa noção heróica e
grandiosa do homem em plena posse de suas potencialidades. Era o ideal do
uomo universalis’, cuja excelência se manifestava não somente na coragem de
feitos guerreiros mas sobretudo na sabedoria do espírito, capaz de dominar todos
os elementos da cultura que se dava como pressuposto desse ideal de glória
pessoal. Para melhor apreendê-lo é importante examinar de que modo essa
tradição considerava as velhas tópicas que esse tema da glória envolveu desde os
antigos, isto é, da glória das armas e da glória das letras, assim como a ênfase
que punha nesta última, que constituía o cerne daquele que era seu valor central,
da formação moral do espírito.
A glória das armas expressa no culto aos grandes heróis do mundo antigo,
assentada, como já vimos, tanto na poesia de Homero quanto na historiografia de
Heródoto, marcaria de maneira particularmente profunda o imaginário medieval,
associada porém à tradição cavalheiresca e ao orgulho de casta típico da ética
aristocrático feudal. De fato o ethos guerreiro da nobreza da Idade Média se
pautava não pela avaliação clássica do homem em termos do elogio de suas
aptidões naturais, como no caso dos antigos, mas sim pela noção de pertencimento
ao estrato superior da cavalaria, associada a uma concepção do mundo social
como dividido em degraus hierárquicos determinados pela vontade divina
23
.
Como nos mostra Huizinga em seu O Declínio da Idade Média a sociedade
medieval não permitia formas ideais de grandeza apartadas do domínio
transcendente da religião: a glória era então privilégio da nobreza cavalheiresca
22
Jacob Burckhardt dedicou o capítulo 4 de seu clássico A Cultura do Renascimento na Itália ao
tema da glória. VAROTTI, C., Gloria e ambizione politica nel Rinascimiento, p. 110.
23
HUIZINGA, J., O Declínio da Idade Média, p. 59.
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31
considerada como a coroa de todo o corpo social e nível terreno mais próximo da
santidade. Desse modo, a fama imortal dos nobres se devia à superioridade de sua
função, que lhes fora atribuída pela providência divina, de defender a Igreja e os
valores cristãos.
Entretanto, é importante lembrarmos, como bem sublinha Huizinga, que
esse ideal da cavalaria, como instituição divina, jamais se realizaria plenamente na
prática devido à sua origem terrena, afirmada no orgulho dos cavaleiros medievais
que aspiravam à glória mundana e à fama imortal do próprio nome, inspirada nos
heróis do mundo antigo. De fato, é certo que esse ethos guerreiro da nobreza
medieval também nutria-se de um profundo caráter secular e nesse sentido pode
ser considerado até certo ponto como uma das raízes fundamentais da glória
renascentista
24
. Com efeito, ele se fez presente também entre a aristocracia da
Renascença, especialmente na França e nos demais países do norte da Europa em
que a tradição feudal fincou raízes mais fundas.
A aspiração a afirmar a própria nobreza por feitos guerreiros marca forte
presença na França de Montaigne devastada pelo caos das guerras de religião. Em
sua crítica moral das ambições em Da glória ele ressaltou seu repúdio ao ethos
guerreiro dos nobres que viam no ambiente dos conflitos civis um palco para dar
mostras de sua coragem e valentia, a fim de conquistar o prêmio de uma honra
imortal. Montaigne reforçava assim sua concepção acerca da falsidade dessa
espécie de excelência e virtude superior, que dependia de grandes feitos para
realizar-se: “Os que ensinam a nobreza a buscar na valentia apenas as honras (C)
24
De fato, se o culto aos heróis clássicos, gregos e romanos e a aspiração à grandeza da vida antiga
definia a paixão pela glória no Renascimento, é preciso reconhecer, contudo, que tais elementos já
estavam presentes na sede de honras dos cavaleiros e príncipes da Idade Média. Assim Johan
Huizinga afirma sua discordância da posição assumida por Burckhardt, em seu A Cultura do
Renascimento na Itália, quanto à glória, fundada na imitação dos heróis clássicos, ser atributo
exclusivo dos homens da Renascença. Segundo Huizinga, ele exagera muito a distância entre a
Itália e o resto dos países ocidentais, especialmente da França, assim como entre o Renascimento e
a Idade Média. A forte ênfase no papel do indivíduo, do mito de sua condição singular superior e
excepcional que Burckhardt aponta como precondição da glória renascentista estava bem presente
também no protótipo do homem glorioso elaborado na Idade Média, ainda que se tratasse aqui de
uma glória fortemente associada ao orgulho de casta da aristocracia, componente estranha à
cultura florentina centrada no ideal da vita civile. E, ainda que o culto aos heróis da Antigüidade
não se distingüisse tanto na cultura medieval das lendas cavalheirescas: “Por um lado a figura de
Alexandre tinha entrado há muito na esfera da cavalaria, por outro admitia-se que a cavalaria tinha
uma origem romana (...) Os feitos de César, de Hércules e de Troilus são fantasiosamente
atribuídos ao rei Renato, lado a lado com os de Artur e de Lancelote.” Segundo Huizinga, apesar
dessas considerações a glória cavalheiresca e seu culto aos heróis clássicos deve ser tomada como
um prenúncio ingênuo do Renascimento, cuja influência não pode ser menosprezada no que diz
respeito à centralidade que o culto à glória pessoal veio a desempenhar nesses tempos. Idem, p. 73.
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32
‘Como se uma ação só fosse virtuosa quando se tornasse célebre’ (A) o que
ganham com isso a não ser instruí-los a nunca se arriscarem se não forem vistos
(...)”
25
No capítulo Das Recompensas Honoríficas, por sua vez, que versava
especificamente sobre esse tema, ele denunciou o absurdo da prática de tomar as
grandes ações guerreiras como medida de nobreza, pois a qualidade que deveria se
dar como sua marca deveria necessariamente ser rara, difícil de ser encontrada em
qualquer homem. Com efeito, os atos de coragem e valentia haviam se tornado
banais à época de Montaigne, por isso ele procurou então estabelecer uma outra
concepção de excelência como sinal de nobreza, ou seja, a de uma virtude
filosófica, mais perfeita do que a outra, porque constante, invariável e uniforme,
definida como firmeza de alma, que desprezava os acidentes e paixões do mundo.
Essa sim poderia ser honrada com justiça, já que tão rara entre os homens de seu
tempo, que negligenciavam o cultivo da sabedoria do espírito em sua sede
insaciável de despertar a admiração pública pela exibição de seus feitos. Ao fim
desse ensaio Montaigne criticou duramente os valores da nobreza francesa ainda
fortemente ligados ao ethos guerreiro típico da tradição cavalheiresca medieval
que a mantinha fechada aos novos ideais humanistas de excelência, centrados na
formação do espírito sob os estudos da cultura clássica:
(...) quando nós dizemos de um homem, que vale muito, ou um homem de bem
ao estilo de nossa corte e de nossa nobreza, isso não significa outra coisa que
um homem valente à maneira dos antigos romanos. Pois a designação geral de
virtude toma em geral entre nós a etimologia de força. A forma própria e única
de nobreza em França é a profissão militar.
26
Mas essa ênfase na profissão militar não se restringiu à aristocracia
francesa no Renascimento. Ela se fez viva também na Itália, aparecendo de
maneira marcante, por exemplo, no tão influente O Cortesão de Baltazar
25
“Ceux qui apprenent à la noblesse de ne chercher en la vaillance que l`honneur (C) ‘comme si
une action n`etait vertueuse que lorsqu`elle est célèbre.’ (A) que gaignent-ils par là que de les
instruire de ne se hazarder jamais si on ne les voit, et de prendre bien garde s`il y a des temoins qui
puissent rapporter nouvelles de leur valeur, là où se presente mille occasions de bien faire sans
qu`on en puisse estre remarqué?” MONTAIGNE, II, 16, p. 622.
26
(...) quand nous disons un homme qui vaut beuacoup, ou un homme de bien au stile de nostre
court et nostre noblesse, ce n`est pas à dire autre chose qu`un vaillant homme, d`une façon pareille
à la Romaine. Car la generalle apellation de vertù prend chez eux etymologie de force. La forme
propre, et seule, et essencielle de noblesse en France, c`est la vacation militaire.” Idem, II, 7, p.
384.
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33
Castiglione, publicado em 1528. Neste, sob a narração de um diálogo entre vários
nobres transcorrido no palácio ducal de Urbino, Castiglione procurou definir quais
as qualidades fundamentais para a realização da mais perfeita cortesania
27
. Assim,
logo nos inícios da primeira parte do diálogo um de seus interlocutores salientou:
“(...) considero que a principal e verdadeira profissão do cortesão deve ser a das
armas; à qual desejo sobretudo que ele se dedique vivamente, e seja conhecido
entre os outros como ousado, valoroso e fiel a quem serve.”
28
Desse modo,
evidenciava-se imediatamente, na obra, as raízes da idéia de cortesania, situadas
no contexto da elaboração medieval das virtudes cavalheirescas. Durante a Idade
Média, de fato, os valores tradicionais da cavalaria, opostos ao autocontrole e ao
refinamento, foram sendo progressivamente complementados por um conjunto de
qualidades menos militaristas, que abrangiam as ‘boas maneiras’ e designavam
um modelo de ‘civilidade’. Por volta do século XII, como nos mostra Peter
Burke
29
o comportamento da corte foi sendo definido como um modelo ideal para
o de outras pessoas, definindo os padrões de uma civilidade perfeita. Entretanto,
tais padrões estavam ainda, no mundo medieval, definitivamente subordinados à
profissão das armas, que definia mais propriamente a honra do cavaleiro-cortesão.
Mas a ênfase no início do diálogo de Castiglione na profissão das armas,
longe de responder à pergunta sobre a essência da cortesania perfeita em termos
estritamente medievais, tinha a função de provocar a discussão central do primeiro
livro, sobre a importância que devia cumprir na superioridade de sua formação, a
profissão das letras; a capacidade de saber falar e escrever em bom latim: “(...)
para um cortesão desse jaez e tão perfeito, não há dúvida de que uma e outra coisa
são necessárias e de que sem essas duas condições talvez todas as outras seriam
pouco dignas de louvor.”
30
Com efeito, esse debate representava o sintoma de
uma transição importante entre a Idade Média e a Renascença no que dizia
27
Como nos mostra Burke, o livre de Castiglione despertou grande interesse em seu tempo, pois
sua publicação nos inícios do século XVI coincidiu com o aprofundamento do debate sobre esse
tema da cortesania ideal para o aconselhamento dos reis em toda a Europa, sob a ascensão de três
grandes monarcas, Carlos V na Espanha, Francisco I na França e Henrique VIII na Inglaterra. Por
volta de sessenta edições do texto em outras línguas que não o italiano foram publicadas entre
1529 e 1619, tornando-se regra geral para a vida de corte da aristocracia de toda a Europa.
BURKE, P., As Fortunas d`O Cortesão, p. 67.
28
CASTIGLIONE, B., O Cortesão, I, 17, 31.
29
Em total oposição a esse ideal, os heróis das chansons de geste da Idade Média eram notáveis
exclusivamente pela coragem e valentia; lembravam a imagem medieval dos leões, fáceis de serem
irritados mas difíceis de serem acalmados. BURKE, P., op. cit., p. 25.
30
CASTIGLIONE, B., op. cit., I, 31, p. 49.
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34
respeito aos atributos definidores da verdadeira nobreza e excelência. Ligava-se à
imensa importância que a tópica da glória das letras assumiu na cultura do
Renascimento, do louvor à superioridade moral do caráter formado pelos estudos,
valor que mais tarde, Montaigne também emularia, como vimos no ensaio acima,
sob a designação do ideal da “vaillance philosophique”, em substituição da
tradicional “vaillance militaire
31
.
A consideração da importância da capacidade do cortesão em falar e
escrever bem se afirmava então sob os valores humanistas de elogio dos studia
humanitatis, resgatados dos antigos, e sobretudo da eloqüência, como modo
privilegiado de cultivar o espírito e de torná-lo sábio. Este, como veremos no
próximo item, era o pressuposto por excelência da dignidade de um discurso belo
e bem formado: “Assim, o que mais importa e é necessário para o cortesão, para
falar e escrever bem creio que seja o saber; porque quem não sabe; e no espírito
não tem o que mereça ser entendido, não o pode dizer nem escrever.”
32
A
consolidação dessa imagem da cortesania perfeita sob a incorporação dos ideais
humanistas, já se estabelecia então como contraposta à nobreza francesa, que,
profundamente arraigada ainda ao velho ethos guerreiro, era incapaz de
reconhecer o valor da sabedoria provinda dos estudos das obras clássicas para a
realização plena de uma excelência humana universal:
(...) penso que o verdadeiro e principal ornamento do espírito são as letras,
embora os franceses só reconheçam a nobreza das armas e pouco estimem todo
o restante; de modo que não só não apreciam as letras, mas abominam-nas; e
consideram todos os literatos homens vis (...) nada mais é, por natureza, tão
desejável e adequado para os homens que o saber e grande loucura é dizer ou
acreditar que não seja sempre bom.
33
Essa tópica da glória das letras talvez nunca tenha sido mais exaltada do
que à época do Renascimento com a expansão do humanismo, em seu movimento
de resgate das grandes obras da Antigüidade, e em sua moralidade centrada no
estímulo ao exercício das aptidões naturais e criativas do espírito humano. Essa
ênfase na profissão das letras seria impensável na Idade Média em que a profissão
das letras era prerrogativa dos clérigos
34
. De fato, os primeiros poetas humanistas,
31
MONTAIGNE, II, 7, p. 382.
32
CASTIGLIONE, B., op. cit., I, 33, p. 52.
33
Idem, I, 42, p. 64.
34
A recuperação humanista do valor clássico segundo o qual o homem deveria buscar sua mais
perfeita excelência (arete entre os gregos e virtus entre os romanos) teve como efeito a rejeição da
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35
de Petrarca a Salutati, praticando uma arte estranha a qualquer preocupação
teológica ou filosófica no sentido estrito, possuíam plena consciência da dignidade
de sua tarefa como escritores, pois era a beleza de seu estilo que imortalizava a
virtude de grandes heróis, além da sua própria na condição de autores, pela
grandeza de sua sabedoria. Celebraram portanto a excelência dos poetas e autores
do passado como modelos ideais, porque através das belas formas de seu estilo
eles souberam vivificar as virtudes dos homens grandiosos da Antigüidade assim
como alcançar e liberar as energias singulares de cada um para a imitação
(imitatio
35
), despertando-os para o desejo de também desenvolver suas
potencialidades. Com efeito, a leitura de autores como Cícero, Demóstenes,
Quintiliano e Plutarco, entre outros, foi valorizada no âmbito da cultura humanista
por sua prerrogativa moral de modelar a humanidade segundo sua experiência
mais plena e rica.
Foi desse modo que Castiglione louvou a profissão das letras em sua obra,
sublinhando o valor moral dos estudos das obras clássicas porque além de
habilitar o cortesão a bem dizer, continham as vidas de homens insignes que
haviam realizado à perfeição suas próprias virtudes e exortavam os
contemporâneos a fazer o mesmo. A verdadeira grandeza dos atos heróicos, dessa
perspectiva, só podia ser apreendida em todo seu significado através das belas
formas da arte aonde eram representadas da maneira mais perfeita, mais vivas do
que quando realmente haviam ocorrido. O fervor do espírito que buscava a glória
devia provir da freqüentação das letras; do mesmo modo como a medida da
antiga distinção medieval, central em sua prática pedagógica, entre um sistema de educação
adequado aos fidalgos, que versava sobre os ideais de cavalaria e as artes da guerra e outro próprio
aos clérigos, centrado nas letras e nos estudos filosóficos. Essa distinção que remontava à alta
Idade Média permaneceria viva por longo tempo adentrando o século XIV sobretudo nos países do
norte da Europa. Tais distinções entretanto seria tornada inútil a partir dos primeiros tratados
humanísticos do Quatroccento. Dariam lugar ao ideal renascentista do uomo universalis, objeto do
máximo louvor porque sua excelência combinava a habilidade das letras, sinal de superioridade do
espírito, ao gládio do guerreiro. SKINNER, Q., op. cit., p. 112.
35
Como salienta Eugenio Garin, a questão da imitação dos antigos – imitatio – tanto no domínio
dos atos quanto no domínio estilístico das grandes obras literárias foi talvez o problema mais
controverso da cultura humanista, que, apesar de proclamar sua originalidade como libertadora das
energias individuais dos homens, voltava-se para o passado numa atitude de respeito ao mundo
antigo, considerado modelo de perfeição. Entretanto, atenta o autor: “A ação do modelo não é a de
produzir uma cópia, mas sim de suscitar uma obra nova; nesta é uma ação e não uma absorção
passiva de uma formação intelectual. O contato com o exemplo suscita na alma dos homens uma
fecunda excitação e lhes impulsiona a criar por eles mesmos, qualquer coisa de pessoal e original.”
GARIN, E., L`Education de l`homme moderne., p. 103.
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36
grandeza de suas aspirações devia ser dada pelo modo como apreendia nas vidas
dos grandes homens da Antigüidade o alto significado da glória
36
:
Que espírito é tão desgraçado, tímido e humilde a ponto de, lendo os feitos e a
grandeza de César, de Alexandre, de Cipião e Aníbal e de tantos outros, não se
inflamar por um ardente desejo de ser igual a eles e não pospor esta vida
efêmera de dois dias para conquistar aquela famosa, quase perpétua, a qual a
despeito da morte, torna o viver muito mais luminoso que antes? Mas quem não
sente a doçura das letras não pode saber quanta é a grandeza da glória tão
longamente conservada por elas (...)
37
Preconizando o contato direto com as vidas ilustres dos grandes homens
do passado, os humanistas louvaram o valor dos studia humanitatis como essência
de um novo modelo de educação, voltado para a formação de um novo ideal de
homem
38
. Propunham então uma reforma profunda na pedagogia tradicional da
Idade Média. A educação escolástica fundava-se na primazia dos estudos
teológicos, subordinando a leitura dos textos clássicos a complicados
procedimentos dialéticos e silogísticos para servir àquele que era então o objetivo
supremo do saber, o debate sobre as verdades da fé e sua defesa. Os humanistas
por sua vez, concentrando seus esforços no sentido da apreensão de seu sentido
original conferiram centralidade em sua pedagogia aos estudos das técnicas
retóricas a fim de habilitar seus discípulos a uma boa leitura dos textos clássicos e
36
A profissão das letras para a glória do cortesão perfeito foi também endossada como muito
superior à profissão das armas, por Pietro Bembo, um dos interlocutores do diálogo, através da
citação de um poema de Petrarca que narrava uma visita de Alexandre à tumba de Aquiles:
“Giunto Alessandro alla famosa tomba del fero Achille, sospirando disse: O fortunato, che sì
chiara tromba trovasti, e chi di te sì alto scrisse! (‘Alcançado Alexandre a famosa tumba/ do altivo
Aquiles, disse suspirando: / Oh, afortunado, que tão forte trombeta/ achaste, e quem de ti tão alto
exegeta!’) E se Alexandre invejou Aquiles não por seus feitos, mas pela fortuna que lhe carreou
tanta felicidade que suas façanhas foram celebradas por Homero, pode-se compreender que
apreciava mais as letras de Homero que as armas de Aquiles” CASTIGLIONE, B., op. cit., I, 45,
p. 70.
37
Idem, p. 66.
38
Procurando precisar o sentido da designação de humanistas tal como concebida no
Renascimento, P. O. Kristeller utilizou essa definição especificamente para aqueles que se
destacaram nesse grupo particular de disciplinas que constituíam o programa dos studia
humanitatis, ou seja, gramática, retórica, história e filosofia moral. Mas não podemos concordar
com ele quando classifica esse movimento de renovação do humanismo como um fenômeno
meramente escolar do gramático moderno contra os barbarismos da escolástica, fechado dentro das
escolas e das universidades. Tratava-se sim de uma ampla reorganização do saber que expressava a
emergência de novos problemas, da crítica filológica e do questionamento das autoridades
seculares. É verdade que o humanismo se originou e se desenvolveu no âmbito dos studia
humanitatis, mas não se conteve aí, suas preocupações não permaneceram, como nos diz
Kristeller, “circunscritas nos seus interesses clássicos e retóricos, com influência externa e indireta
sobre outros campos”. A valorização dos studia humanitatis, como procuraremos demonstrar aqui
correspondeu na Renascença a uma nova concepção do homem e de seu papel no mundo e na
sociedade. KRISTELLER, P. O. “O Movimento Humanístico” In: Tradição Clássica e
Pensamento no Renascimento Italiano, pp. 11-29.
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37
a tomá-los como o que verdadeiramente eram, isto é, tesouros de autênticos
ensinamentos.
Apontando a diferença profunda que havia entre a educação escolástica da
Idade Média e a pedagogia humanista no que diz respeito à leitura dos antigos,
Eugenio Garin afirma:
(...) não foi outra coisa que a substituição de uma recolha de fórmulas
extrínsecas a serem repetidas mecanicamente, por uma formação completa sob
o contato direto com as obras mais marcantes de cada ramo do saber, com essas
obras às quais as mais altas experiências humanas haviam sido confiadas, na
plenitude exemplar de sua significação
39
.
De fato, a pedagogia humanista se distinguia, sobretudo, por situar o
homem no centro de suas preocupações. A sólida educação nos studia humanitatis
era a garantia de sua elevação moral, operando no sentido de restituir ao homem
sua consciência de si e de sua liberdade, ou seja, de torná-lo apto a tomar posse de
suas faculdades e de desenvolvê-las em seu mais alto grau de perfeição. Para isso,
o velho modo escolástico para a compreensão do mundo antigo era falho e
superficial, articulado em grandes compilações como a Chartula e o Catholicon
que agrupavam fragmentos aleatórios dos textos clássicos, destinados a serem
imprimidos na memória com a ajuda de elementos rítmicos ou fórmulas a serem
aplicadas de forma mecânica. Longe disso, os studia humanitatis procuravam
promover a natureza crítica e reflexiva de seus discípulos: seus métodos
privilegiavam a leitura, a compreensão e a interpretação de seu conteúdo
genuíno
40
.
É significativo que a capacidade de falar e escrever bem, assim como o
contato direto com as obras clássicas tenham sido tão enfatizados em O Cortesão.
39
GARIN, E., op. cit., p. 29.
40
A escola de Guarino de Verona foi uma das mais importantes escolas italianas que
protagonizaram esse movimento de renovação pedagógica, destronando a tradição escolástica da
primazia dos estudos teológicos. Foi fundada em 1420 após a autorização da comuna de Verona e
atraiu homens de toda parte da Europa: da escola de Guarino saíram príncipes, cortesãos, sábios e
chefes eclesiásticos, como que nascidos uma segunda vez, como homens novos modelados
segundo seus ensinamentos para serem enviados de novo ao mundo e intervir sobre ele segundo
suas capacidades. A escola de Guarino ensinava retórica através dos discursos de Cícero e dos
antigos padres da Igreja assim como todas a matérias que diziam respeito à eloqüência, de grande
utilidade para a vida prática dos homens em domínio público e privado, assim como dos cidadãos
do distrito veronês. Seus métodos visavam a realização de uma excelência perfeita e universal
combinando uma séria e rigorosa educação moral com exercícios físicos, além de considerar as
potencialidades de seus discípulos tomados individualmente. Idem, p. 123-135.
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38
Isso comprova a força dos ideais pedagógicos do humanismo e dos valores a eles
associados no que diz respeito à concepção renascentista de nobreza a ser
premiada com a glória imortal, ou seja, não restrita à performance de feitos
extraordinários, mas também à sabedoria do espírito e à retidão da própria
conduta. O tema de O Cortesão, de fato, o situava numa tradição literária voltada
para a definição de comportamentos e modos de vida ideais a serem imitados, que
se enraizava no velho conceito grego de arete, da excelência humana perfeita
41
. O
modelo de perfeição do cortesão, assim, tendo a idéia de civilidade e domínio de
si como centrais, remontava sobretudo à descrição aristotélica do homem
magnânimo, associando a essas qualidades o desejo de ser reconhecido pelos seus
pares e ao amor da honra: “E considero que, assim, como é ruim buscar falsas
glórias e para aquilo que não as merece, é igualmente ruim negar a si próprio a
honra devida e não procurar aquele louvor, que é o verdadeiro prêmio das
virtuosas fadigas.”
42
Mas os louvores do perfeito cortesão não podiam dever-se à primazia da
profissão das armas, mas sim à condição de excelência universal que encarnava,
hábil nas mais diversas artes, do corpo e da alma. Deviam-se assim ao modo como
associava as virtudes militares à profissão das letras, à sabedoria do espírito bem
formado, que sabia falar e escrever elegantemente como os grandes autores
clássicos
43
: “(...) estas duas condições concatenadas, uma ajudando a outra, o que
41
BURKE, P., op. cit., p. 20.
42
CASTIGLIONE, B., op. cit., II, 8, p. p. 93.
43
Refutando a posição de Bembo quanto à superioridade da profissão das letras o conde Gaspar
Pallavicino, louvou a excelência universal que devia caracterizar a cortesania perfeita, enfatizando
a interdependência essencial entre as armas e as letras e fornecendo uma outra interpretação do
poema de Petrarca: “Basta dizer que os literatos quase sempre dedicam-se a louvar apenas os
grandes homens e os feitos gloriosos, os quais de per si merecem louvores, pela própria virtude
essencial de que nascem; além disso constituem mui nobre matéria para os escritores, o que é
grande ornamento e, em parte causa da perpetuação dos escritos, os quais talvez não seriam tão
lidos e apreciados, mas sim vãos e efêmeros se lhes faltasse nobre sujeito. E se Alexandre invejou
Aquiles por ter sido louvado por quem foi, não se pode daí deduzir que apreciasse mais as letras
que as armas. Pois se se tivesse sabido estar nelas tão distante de Aquiles quanto estimava que
deveria estar de Homero, todos os que dele estivessem no escrever, estou certo de que preferiria
muito mais o bem fazer nele do que o bem falar nos outros. Porém creio eu isso seria louvar
tacitamente a si mesmo e desejar o que não lhe parecia possuir, a saber, a suprema excelência de
um grande escritor, e não o que já se presumia ter conseguido, a saber, a virtude das armas, na qual
não estimava que Aquiles lhe fosse superior; daí tê-lo chamado de afortunado, como se dissesse
que, se sua fama não fosse celebrada no mundo como aquela que era, para tão divino poema, clara
e ilustre, isso não se devia a que os valores e os méritos não fossem tantos e dignos de tantos
louvores, mas à fortuna, à qual havia colocado diante de Aquiles aquele milagre da natureza para
que fosse a gloriosa trombeta de suas obras; e, talvez, também tenha desejado incitar algum nobre
talento a escrever sobre si, mostrando por isso dever-lhe ser tão grato quanto amava e venerava os
sagrados monumentos das letras, acerca dos quais já se falou bastante agora.” Idem, I, 45, p. 70.
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39
é bastante conveniente, quero que estejam em nosso cortesão: não por isso parece
que tenha eu mudado de opinião.”
44
Após avançarmos desse modo sobre os valores humanistas relacionados à
glória, no protótipo de excelência universal encarnado pelo cortesão de
Castiglione, nos resta agora compreender melhor o significado desse elogio da
profissão das letras. A formação dos studia humanitatis, de fato, tinha valor
crucial no que dizia respeito à concepção humanista da excelência perfeita, como
veremos no próximo item examinando os esforços de Petrarca, o grande precursor
do humanismo e de seus seguidores, no sentido de resgatar o pensamento de
Cícero sobre a dignidade dos estudos da eloqüência.
2.2) A emergência dos studia humanitatis e o culto humanista à
glória das letras.
Petrarca contribuiu de maneira decisiva para a ampliação da esfera do
heróico - restrita na Idade Média aos feitos guerreiros - pela introdução do valor
intelectual da cultura, da inteligência e da sabedoria. Foi assim louvado por seus
sucessores humanistas
45
como primeiro autor moderno a compreender em sua
essência a importância que Cícero concedeu aos estudos da retórica e da filosofia
dos antigos.
Segundo Cícero tais estudos deveriam estar a serviço da busca da virtus,
isto é, da excelência humana em sua plenitude, de sua afirmação como força
social criativa, apta a intervir sobre o mundo e sobre seu próprio destino. Para ele,
a sabedoria do caráter bem formado pela filosofia moral era condição distintiva do
vir virtutis (homem virtuoso), mas por outro lado, essa sabedoria era destituída de
valor se não fosse tornada ativa através das habilidades no discurso persuasivo e
desenvolvida no cumprimento dos deveres do vir virtutis em sua vida prática de
44
Idem, p. 70.
45
O resgate do conceito ciceroniano de virtus, sob a associação dos estudos de retórica e de
filosofia esteve nas bases do elogio humanista da glória das letras. Desse modo o talento de
Petrarca fundamentou sua fama como portador de uma sabedoria mundana exemplar, pelos
benefícios que cumpriu à posteridade com sua obra. Assim sua glória seria celebrada mais tarde,
por Leonardo Bruni em seu Vita di Petrarca: “Francesco Petrarca foi o primeiro com talento
suficiente para reconhecer e trazer de volta à luz a antiga elegância do perdido e extinto latim.
Mesmo admitindo que ainda não era perfeito nele, foi ele por si mesmo que viu e abriu caminho
para sua perfeição, por ter redescoberto as obras de Cícero, tê-las compreendido e saboreado (...).”
BRUNI, L., Vita de Petrarca, In: The Three Crowns of Florence, p. 75.
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40
cidadão
46
. Daí a importância da retórica e sua grande prerrogativa moral na
educação do vir virtutis, pois, como Cícero afirmava em seu célebre De Oratore,
era o privilégio da palavra que definia a superioridade dos homens sobre os
animais e aquele que se distinguia pela excelência em tais artes, portanto, era o
que realizava de forma mais perfeita sua humanidade. Assim enfatizava Crasso
em célebre passagem do De Oratore, louvando a palavra como a principal
responsável pela fundação das sociedades e da civilização:
Que outra força poderia reunir em um mesmo lugar os homens dispersos, tirar-
lhes de seu vício grosseiro e selvagem para lhes trazer ao nosso grau atual de
civilização, fundando as sociedades, fazendo reinar as leis e o direito? (...) Da
sábia direção que um grande orador imprime aos negócios públicos depende
não somente sua própria reputação mas a saúde de um número imenso de
cidadãos e a saúde do Estado como um todo.
47
O pensamento de Cícero sobre o tema da glória também foi fortemente
determinado por esse ideal da eloqüência. Se seu tratado De gloria se perdeu, é
possível, entretanto, reconstituir sua perspectiva sobre a questão recorrendo a
diversas passagens de suas obras, especialmente o segundo volume de Dos
deveres, em que trata dos meios de adquiri-la, definindo a glória como condição
pela qual a multidão nos quer bem, tem fé em nós, e nos admira
48
. Tratou primeiro
da glória militar, recomendando o empenho em grandes feitos guerreiros,
sobretudo, aos adolescentes de origem humilde que pretendiam destacar-se
49
. Mas
passou logo em seguida a uma extensa celebração das artes liberais e do poder da
eloqüência, louvando a larga cultura de Crasso e a fama de integridade de Públio
Rutílio devida ao seu profundo conhecimento do Direito: “Assim como, nos
outros domínios, os trabalhos do espírito são mais valiosos que os do corpo,
46
Vários são os textos na Antigüidade que destacaram a necessidade de uma aliança entre a arte da
eloqüência e as virtudes morais do orador. Não nos resta dúvida que Cícero atribuiu grande
relevância a esta questão em seu De oratore (I, 20, 90), porém, talvez tenha sido Quintiliano o
autor que mais ênfase deu a essa questão, recusando-se a definir a retórica como arte da persuasão:
“muitos julgam que a função do discurso consiste em persuadir ou em dizer de maneira apta a
persuadir, [e esta pode] ser realizada mesmo por quem não é homem de bem.” Quintiliano,
pretende, pelo contrário, promover uma retórica realizada unicamente pelo vir bonus e
inteiramente comprometida com o bem. Ao orador causídico e adulador, criticado por Platão,
Cícero e por filósofos posteriores, Quintiliano opõe o seu orador virtuoso, o vir bonus dicendi
peritus, possuidor da bene dicendi scientia, saber verdadeiro próprio a um homem de bem. Cf.:
QUINTILIANO. Institutio oratoria, II, 15, 3, II, 15, 11 e II, 15, 34. Ver também Vasconcelos,
Beatriz A. Ciência do dizer bem: a concepção de retórica de Quintiliano em Institutio oratoria, II,
11-21, pp. 51-56.
47
CÍCERO, De Oratore, I, 33, p. 18.
48
Idem, Dos deveres, II, 9, 31, p. 93.
49
Idem, II, 13, 45, p. 100.
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41
aquilo que buscamos com o engenho e a razão é mais grato do que aquilo que
buscamos com a força.”
50
Tal como a arte militar, portanto, a eloqüência conferia
glória, porém, de um tipo bem superior, pois exprimia a realização perfeita da
virtus de seu detentor. Ela o tornava capaz de conquistar a mais sólida estima de
seus pares no mundo público pela grandeza dos benefícios que cumpria,
garantidores da fé e admiração permanentes da coletividade: “Grande é, de fato, a
admiração por aquele que fala copiosa e sabiamente; os ouvintes julgam que ele
compreende e sabe mais que os restantes”
51
. Esse elogio da eloqüência, como das
mais importantes fontes de glória, se devia ao seu caráter de humanidade, à sua
prerrogativa de defender sempre a justiça no fórum e nas assembléias, salvando os
homens, conservando seu bem estar e mantendo a estabilidade da vida política e
social
52
:
O que, com efeito é preferível à eloqüência, dada a admiração dos que ouvem, a
esperança dos indefesos ou a gratidão dos que são defendidos? Assim também a
ela foi dado pelos nossos antepassados o primado da dignidade entre as
atividades civis. Do homem eloqüente, que trabalha por escolha própria –
segundo os costumes pátrios – defende de bom grado e gratuitamente as causas
de muitos, os benefícios e patrocínios têm grande repercussão.
53
A afirmação da dignidade da eloqüência a partir da retomada do pensamento
de Cícero, teve lugar central na cultura humanista a partir dos primeiros tempos de
sua formação, no contexto cívico das cidades italianas do Quatroccento, sob a
pena de célebres autores como por exemplo, Coluccio Salutati, Leonardo Bruni e
Matteo Palmieri, que tinham seus escritos em latim como medida do próprio
prestígio e honra. Como bem salienta Christopher Celenza
54
a atividade literária
dos humanistas relacionava-se estreitamente à honra e à reputação, especialmente
nessa época, em que os studia humanitatis ainda não tinham se afirmado como
base da educação européia. Os humanistas dos inícios do século XV se atribuíam
uma função que os equiparava ao sentido militar do termo avant-garde,
posicionando-se na linha de frente de um movimento de profunda renovação
intelectual e cultural, de que não podiam ainda saber o desfecho. Mas foram os
esforços de Petrarca na recuperação desse escopo ciceroniano da tarefa de uma
50
Idem, II, 13, 56.
51
Idem, II, 14, 48, p. 101.
52
Sobre isso ver MICHEL, A., Rhetorique et Philosphie chez Ciceron, p. 459.
53
CÍCERO, Dos deveres, II, 66.
54
CELENZA, C., The lost Italian Renaissance, p. 118.
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42
educação calcada na retórica e na filosofia moral para o desenvolvimento da
virtus, que tornaram possível a consolidação dos aspectos fundamentais do
humanismo: da boa formação da alma sob os preceitos dos antigos e do estímulo à
liberdade humana e à sua ação interventora na ordem do mundo.
A carta 9 da coleção das correspondências privadas de Petrarca - de suas
Familiares - é um documento de crucial importância para se reconhecer a
influência decisiva de sua obra na evolução posterior do humanismo. Nela
Petrarca fez uma veemente defesa dos estudos da eloqüência segundo os
postulados da virtus ciceroniana, enfatizando a prerrogativa moral do discurso
como atributo do vir virtutis, pois ele o capacitava a bem agir no mundo, servindo
ao bem de seus pares. Segundo essa perspectiva, sua sabedoria era diminuta ou
nula caso não fosse manifesta em ato, ou seja, usada em prol dos interesses da
comunidade
55
:
(...) eu insisto e advirto para que corrijamos não apenas nossa vida e conduta,
que é a primeira preocupação da virtude, mas também o nosso uso da
linguagem. Isso nós faremos através do cultivo da eloqüência. Nosso discurso
não é um pequeno indicador do estado de nossa alma, tampouco nossa alma é
uma controladora insuficiente de nosso discurso. Um depende do outro, mas
enquanto o primeiro reside no coração o segundo emerge para fora.
56
Nesse contexto, havia duas formas de se medir a grandeza da própria virtus,
de sua reputação e honra pelo talento na eloqüência, uma delas dependia da
posição social que alguns dos humanistas alcançaram, como Coluccio Salutati e
Leonardo Bruni, que tornaram-se chanceleres da república de Florença e puseram
seu talento literário a serviço da consolidação de um sólido ideário de defesa da
liberdade, inspirado nos ideais ciceronianos. Parte de sua honra nesse caso, se
devia à honra da cidade e de sua forma política. Isso podemos atestar, por
exemplo, na invectiva que Salutati escreveu contra Antonio Loschi Vicenza nos
inícios do século XV, baseando-se sempre em seu vínculo com a tradição
55
Nesse sentido, em sua leitura própria do conceito antigo de virtus, Petrarca louvou as
habilidades nas artes do discurso como elemento essencial também para tornar viva a charitas,
uma das principais virtudes cristãs, sendo marca externa da grandeza do espírito piedoso:
“Finalmente se nenhum senso de caridade em relação aos nossos companheiros cidadãos nos
move, eu considerarei o estudo da eloqüência como o auxílio mais grandioso para nós mais do que
algo que deva ser tomado sob baixa estima.” PETRARCA, To the same Tommaso de Mesina, I, 9,
Familiares, p. 49.
56
Idem, p. 48.
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43
republicana florentina, assim como na grande estima que lhe votavam as elites da
cidade
57
.
Mas, paralelamente a esta havia também a honra que os humanistas
pretendiam angariar dentro do círculo mais restrito de seus pares, dos que
integravam a ‘república das letras’. De fato, queriam sobretudo ser vistos como
homens de eloqüência, avaliados pela dignidade de seu latim e de suas obras e
isso dependia sobretudo do que pensavam de seus esforços literários os seus
próprios companheiros intelectuais. Essa questão da honra e da reputação era
tanto mais importante para eles nesse período quanto sua prática ainda não tinha
se institucionalizado nas cortes e universidades da Europa e o sucesso de suas
carreiras individuais dependia em grande parte da estima dos que já eram
conhecidos e bem sucedidos e de quem poderiam seguir os passos. Com efeito,
como bem nos mostra Celenza
58
, a cultura humanista, sobretudo nesses primeiros
tempos, podia ser definida essencialmente como concentrada no valor do
reconhecimento externo, como uma cultura do testemunho público; do ‘ver e
ouvir’, enraizada no velho conceito de honra e de virilidade entendido em termos
da performance de grandes atos a ser avaliada pelos homens. Mas no caso do
humanismo tratava-se de uma concepção de valor que ia bem além da
performance, definida pela própria experiência e sabedoria a ser realizada em sua
dignidade mediante a estima pública.
Um sinal evidente dessa dinâmica é o modo como muitos desses autores, a
partir de Petrarca, escreveram suas correspondências pessoais com o propósito da
publicação e de fazê-las circular o mais largamente possível. Procuravam dar-se a
conhecer e afirmar sua dignidade e sabedoria como homens de letras, com a
esperança de conseguir talvez um patrocínio para suas atividades e de ingressar
nas grandes cortes da Europa
59
. Em uma de suas cartas, escrita a Francesco Da
Napoli, secretário da corte Papal em 1347, Petrarca confessou sua indisposição
57
SALUTATI, C., Invenctivum in Antonio Luschum Vicentinum, In: Prosari latini de
Quatroccento, Apud, Celenza, C., op. cit., p. 119.
58
Idem, p. 121.
59
A corte Papal, especialmente por volta de 1440 se constituía num ótimo lugar para buscar
emprego e posição. Tratava-se de uma instituição em fluxo, sofrendo profundas transformações
sob a eclosão do cisma, que minimizava a ortodoxia romana e tornava mais aberta à penetração da
cultura de vanguarda dos humanistas. Petrarca voltou seus esforços para inserir-se na corte Papal,
empenhando-se em sua obra na consolidação de um novo modelo cultura que harmonizasse a
eloqüência dos humanistas com as preocupações religiosas dos pensadores medievais. Idem, p.
123.
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natural à vida agitada e feita de incessantes atribulações daqueles que se
engajavam apaixonadamente nos negócios da vida pública em busca de uma
reputação imortal, mas afirmou-se, por outro lado, como exemplo de perfeição
moral, sob o cultivo dos estudos clássicos e das grandes virtudes dos antigos.
Louvou então a grandeza da vida dedicada aos estudos, pintando a excelência de
caráter daqueles que, tal como ele, procuravam elevar-se acima das paixões do
mundo. Sua honra se devia ao seu empenho numa empresa grandiosa e de bem
mais ampla utilidade aos homens, ou seja, de afirmar sua própria existência e a
retidão de sua conduta como exemplo para a instrução moral
60
:
Eles deixam as delicadezas vazias para as mulheres, eles se alegram com coisas
nobres e viris; eles não se preocupam em dormir seja à sombra de uma árvore
seja no banco de um rio. Eles podem passar alegremente uma boa parte do dia
em meio a colinas verdes, para adiar sua refeição até a tarde, esquecer sua
refeição principal, e, se a ocasião surgir, passar a noite em claro com prazer em
meio aos livros. Eles não têm menos amor por cavernas úmidas do que por
camas adornadas com ébano e marfim, não menos amor por um gramado
florido do que por uma cama colorida coberta de veludo. Eles permanecem
numa ingênua pobreza; eles não odeiam o lucro propriamente, mas conferem
pouco valor a ele. (...) Eu não conto a mim mesmo nesse número de pessoas.
Mas todavia estou me esforçando e parece que faço algum progresso.
61
Antes de concluirmos esse item, é importante frisar que, de maneira mais
profunda, o mito humanista da glória, seguido do cortejo dos valores éticos e
morais extraídos da valorização ciceroniana da eloqüência, esteve associado
também à afirmação de uma nova concepção acerca da natureza do homem e da
extensão de suas capacidades. Era esse ideário que definia a diferença profunda
que havia entre a glória renascentista e a glória medieval; pois o orgulho
cavalheiresco em seu culto dos heróis antigos não envolvia propriamente uma
reflexão sobre a natureza humana e a afirmação de uma nova moralidade pautada
na realização de sua excelência perfeita, mas sim um heroísmo individual
condicionado à pertença à ordem mais alta da sociedade, instituída por Deus,
assim como pelo desejo de cumular de mais honras a própria linhagem.
60
Nessa passagem de Petrarca se evidencia aquilo que Christopher Celenza procura nos mostrar
em relação ao significado da honra na cultura do Renascimento como ligada essencialmente à
diferenciação entre os gêneros. Segundo Celenza, honra e reputação, assim como o elogio do bom
Latim, eram tópicas ligadas à afirmação da masculinidade. É freqüente, assim, na literatura da
época a associação entre desonra e um comportamento dissoluto, dominado pelas paixões,
definido como feminino. Idem, 127.
61
PETRARCA, Familiares, To Francesco Da Napoli, Apostholic Prothonotary, XIII, 4, p. 184.
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45
A glória renascentista, por sua vez, tinha como princípio uma consciência
profundamente enraizada no interesse pelo âmbito mundano das atividades
humanas e no questionamento acerca de suas potencialidades e da forma de sua
grandeza. A glória humanista era expressão de uma excelência propriamente
humana, expressa na arte e na sabedoria de grandes oradores e poetas. Estes, por
sua vez eram os que detinham o poder de conferir glória e validade universal aos
exemplos de virtude, nos mais diversos campos da atuação humana, cumprindo a
grandiosa missão de estabelecer a imagem pura da virtus como uma medida de
valor moral na comunidade dos homens.
Era o conceito de dignidade humana que estava no cerne da moralidade
humanista, forjado a partir da retomada e do desenvolvimento dos pressupostos da
virtus ciceroniana, desde a obra de Petrarca. Isto é, do alcance dessa perfeita
excelência como possibilidade aberta a todos os homens e de uma sólida educação
calcada na primazia dos estudos coligados de retórica e filosofia como sua
precondição. É importante apreender esse contexto ideológico e o modo como se
opunha à tradição medieval agostiniana que acentuava a noção da miséria
humana, entre os séculos XIV e XV para que possamos dimensionar o alcance do
elogio humanista da liberdade e da glória dos grandes homens.
2.3) Os postulados do elogio humanista da glória: a valorização da
dignidade humana.
De um ponto de vista mais geral e profundo, pode-se dizer que esse elogio
humanista da glória articulou-se a um debate central dos primeiros tempos do
Renascimento, da conciliação entre a confiança na presciência divina,
característica da cultura medieval, e a afirmação da liberdade do agir e do querer
humanos, traço marcante da nova moralidade humanista. De acordo com a ética
cristã e com a tradição agostiniana da natureza decaída do homem, a exaltação de
sua liberdade de ação e de sua glória se definia como um dos mais graves vícios,
pois, de sua perspectiva, a glória humana não passava de vã glória, implicando em
blasfêmia contra a única verdadeira excelência que estava na plenitude de Deus.
Portanto, nesse contexto, o que temos é a reafirmação de uma concepção negativa
da glória e sua radicalização profunda, orientada num outro caminho e por razões
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distintas daquelas que haviam impulsionado o pensamento dos moralistas da
Antigüidade. Com efeito, a única glória bem aceita pelos cristãos era a glória
divina. Ao bom cristão não cabia crer em suas próprias capacidades, mas sim
desprezar sua existência terrena sem distorcer em proveito próprio os
ensinamentos recebidos
62
. Devia aspirar somente à salvação reconhecendo que a
excelência perfeita era atributo de Deus e de sua glória
Assim Santo Agostinho na Cidade de Deus negava ao homem a
possibilidade de atingir a virtus, denunciando sua confiança presunçosa nas
próprias forças que lhes afastava da glória divina e da salvação: “Exclui a
jactância e responde-me depois: que são todos os homens senão homens? E se a
perversidade do século permitisse que todos os honrados fossem os melhores
mesmo assim não seria o caso de considerar-se grandeza a glória humana, porque
fumaça de nenhum peso.”
63
Com efeito, a ênfase que o humanismo pôs no ideal clássico de educação
fundado no preceito ciceroniano da busca da virtus implicou num rompimento
profundo com a tradição agostiniana, dominante nos séculos da Idade Média, que
considerava inúteis todos os esforços humanos no sentido da transformação de sua
condição miserável e lhe negava a excelência moral. Reafirmamos então, com
Eugenio Garin
64
, que essa centralidade da educação na cultura humanista foi sinal
de uma profunda revolução no pensamento dada pela emergência de um novo
modo de se conceber o homem. Isto é, sua vida no mundo não era mais vista de
maneira estática como dada definitivamente sob a vontade inexorável da
62
No Evangelho de São João é possível encontrar várias passagens que demonstram claramente
que a glória é atributo exclusivo de Deus e que entre os homens ela é falsa e viciosa: “E o Verbo se
fez carne e habitou entre nós e vimos sua glória, a glória que o Filho único recebe do seu Pai,
cheio de graça e de verdade.” (João. 9, 14); “Quem fala por própria autoridade busca a própria
glória, mas quem procura a glória de quem o enviou é digno de fé e nele não há impostura
alguma.” (João. 8, 54). Sobre a negação agostiniana da glória mundana é interessante relermos o
capítulo 6 do sexto livro das Confissões, pois, procurando nos dar a medida da miséria de suas
antigas ambições de grandeza, Agostinho nos narrou a ocasião de seu encontro com um mendigo
embriagado e comparou-se com ele: “Aquele mendigo folgava na embriaguez, tu ambicionavas a
alegria na glória. E em que glória Senhor? Naquela que não está em Vós. Porque aquela alegria
não era verdadeira, assim como não era a glória, esta ia agitando cada vez mais o meu espírito. O
ébrio curaria ainda naquela noite a sua embriaguez, e eu já me deitara e erguera com a minha e
com ela me havia de deitar e erguer. E reparai Senhor por quantos dias! Importa saber as razões
por que cada qual se alegra. Conheço e vejo que a alegria da esperança fiel dista infinitamente
daquela vaidade! Também entre o ébrio e mim havia grande diferença. Sem dúvida ele era mais
feliz não só porque transbordava de hilariedade – porém eu era devorado por ansiedades – mas
porque ele adquirira o vinho desejando prosperidade aos seus benfeitores, enquanto eu procurava a
ostentação com a mentira.” SANTO AGOSTINHO, Confissões, VI, 6. p. 114.
63
SANTO AGOSTINHO, A Cidade de Deus, V, 17, p. 215
64
GARIN, E., L`Education de l`homme moderne., p. 28.
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providência divina mas era posta no domínio do devir, apreciada como evolução
de potencialidades. Sua convicção fundamental era a de que todos aqueles que
tivessem uma vocação natural para o estudo das humanidades deveriam fazer do
desenvolvimento máximo e da busca da virtus, o objetivo mais alto de suas
vidas.
65
Essa exortação teve grande importância entre os humanistas republicanos
do Quatroccento que também consideraram essencial a formação nos studia
humanitatis para a vida virtuosa do cidadão. Sua reflexão moral e política
centrada no valor da vita civile se constitui num exemplo expressivo de aplicação
prática dos ideais humanistas e de desenvolvimento de seus princípios na
sustentação ideológica do ideal da liberdade. Com efeito, autores como Coluccio
Salutati e Leonardo Bruni (ambos chanceleres de Florença) conceberam a antiga
republica romana como o maior repositário de virtus em toda a história do mundo,
conclamando seus compatriotas do Regnum italico a restaurar as glórias passadas.
Em seu famoso Panegírico a cidade de Florença Leonardo Bruni procurou
defender a cidade e fazer renascer sua virtus contra as ameaças do despotismo
milanês nos inícios do século XV. Bruni sustentou então a tese de que Florença
fora fundada pelos antigos romanos nos tempos mais gloriosos da sua história, à
época da república e se constituía, portanto, no último grande bastião da liberdade
no Regnum italicum, que tanto havia decaído sob as ambições tirânicas dos
príncipes, do Império e do papado:
Agora, se a glória, nobreza, virtude, grandeza e magnificência dos pais podem
tornar também destacados os filhos, nenhum povo no mundo inteiro pode ser
mais merecedor de dignidade como o são os florentinos, pois eles nasceram
desses pais que ultrapassaram extensamente todos os mortais em qualquer sorte
de glória.
66
O alcance desse resgate humanista da idéia de virtus e de seu otimismo
quanto às capacidades do homem se manifesta ainda na tendência verificada entre
os moralistas da época em reavivar o velho tema clássico da dramatização da
65
Desse modo um dos pontos cruciais da pedagogia humanista se baseava num compromisso com
o futuro dos homens e da sociedade: daí a preocupação recorrente em vários de seus escritos com a
educação das crianças, pois disso dependia a formação de homens mais justos e virtuosos. Entre os
muitos tratados humanistas que abordaram esse tema estavam o De Pueris instituendis de Erasmo
de Rotterdã (1529); A boa educação dos meninos, de Sadoleto, (1534) e o Tratado sobre a boa
educação de Juan Luís Vives (1531). Sobre esse assunto ver PINTO, Fabrina Magalhães, O
Discurso Humanista de Erasmo: uma retórica da interioridade. Tese de doutorado, Puc-RJ, 2006.
66
BRUNI, L., Panegiric to the city of Florence, In: The earthly republic, p. 150.
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48
condição humana sob o embate das forças contrárias da virtus e da fortuna. De
fato, esse ato de desfazer-se da noção de uma providência divina onipotente e de
retomar a noção antiga de fortuna pressupunha já a confiança na virtus humana
em moldar seu próprio destino segundo sua vontade e de assim conformar o
mundo à sua volta. Dessa perspectiva, já não eram mais os desígnios imutáveis da
providência que limitavam a liberdade do homem, mas sim os caprichos da
fortuna, sobre os quais ele deveria triunfar pelo poder de seu livre arbítrio
realizando grandes feitos e arrancando dela o prêmio de uma fama e glória
imortais
67
.
Retomando para si essa noção de fortuna os humanistas em geral lhe
concederam bem menos poder do que os antigos romanos, que adoravam a Deusa
fortuna como filha de Júpiter e a entendiam como um poder que governava em
sua inteireza as coisas do mundo; como uma roda que quase sempre arrebatava o
homem em suas engrenagens e rumos imprevisíveis. Eles atribuíam muito mais
poder à virtus do que os antigos, tal como podemos ver pelo exemplo do célebre
capítulo 25 de O Príncipe, aonde Maquiavel declarou que a fortuna governava
apenas a metade da vida humana e que a outra metade era deixada ao seu livre
arbítrio. Ressaltava então a idéia de que a liberdade de escolha e de ação humana
desempenhava papel bem mais importante do que se supunha no fluxo dos
acontecimentos. Desse modo, Maquiavel comparou a fortuna a um desses rios
impetuosos que alagava as margens, arrastava as árvores e casas, sem que os
homens pudessem resistir-lhe, mas nunca o fazia uma segunda vez se estes
mesmos homens tomassem providências para conter-lhe o ímpeto. A fortuna se
transformava assim em força débil diante do despertar do poder criativo e
intelectual do homem de impor-se contra seus assaltos:
O mesmo acontece com a fortuna, que demonstra sua força aonde não encontra
uma virtù ordenada, pronta para resistir-lhe e volta seu ímpeto para onde sabe
que não foram erguidos diques e barreiras para contê-la. Se considerares a Itália,
67
Como nos mostra Skinner, Burckhardt ilustrou bastante bem esse ideal no capítulo em que nos
falou sobre a personalidade de Léon Battista Alberti, que, tendo nascido com o estigma de
bastardo, vivendo a indignidade da pobreza e do exílio além de limitações de saúde, considerou
todos esses problemas como desafios da fortuna, vencendo-os um a um e conquistando para si uma
honra imortal. Segundo Burckhardt a vida de Alberti expressa a plena realização do ideal
humanista de excelência universal: destacou-se por suas obras no domínio da arquitetura, no
âmbito literário e artístico. BURCKHARDT, J., op. cit., p. 117.
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49
que é sede e origem dessas alterações, verás que ela é um campo sem diques e
sem qualquer defesa (...)
68
Essa confiança nos poderes humanos de intervir na ordem do mundo e
transformá-lo segundo seus ideais havia sido formulada de modo mais nítido no
âmbito da filosofia do humanismo na noção de dignidade humana. Que, como,
nos mostra Quentin Skinner
69
constituiu-se quase em matéria de um gênero
literário distintivo no âmbito da literatura humanista, destinado a exaltar a
excelência e dignidade do homem. Seu exemplo mais famoso e expressivo é o
Discurso sobre a dignidade humana de Pico Della Mirandola, publicado em 1484,
aonde a questão recebeu sua formulação filosófica mais profunda
70
.
Em seu Discurso o jovem membro da Academia de Marsilio Ficino
desenvolveu sua concepção sobre a dignidade humana pelo elogio dos poderes
livres e criativos do indivíduo, afirmando com um exagero quase herético o seu
poder de intervenção na ordem da natureza. De acordo com ele, o homem se
distinguia pelo poder de moldar a si mesmo da maneira que quisesse: podia
escolher ser uma planta, uma fera ou um anjo. E podia também, Pico continuava,
aproximar-se da perfeição divina pelos próprios esforços. Assim ele nos narrou as
primeiras palavras de Deus ao homem no momento de sua criação, assinalando
sua posição no universo e em relação à hierarquia dos seres criados:
Eu te coloquei no centro do mundo a fim de poderes inspecionar daí de todos os
lados, da maneira mais cômoda tudo quanto existe. Não te fizemos nem celeste
nem terreno, mortal ou imortal, de modo que assim, tu por ti mesmo, qual
modelador e escultor de sua própria imagem segundo tua preferência e, por
conseguinte, para tua glória possa retratar a forma que gostarias de ostentar.
Poderás descer ao nível dos seres baixos e embrutecidos; poderás ao invés por
livre escolha de tua alma, subir aos patamares superiores que são divinos.
71
68
A partir dessa perspectiva Maquiavel podia denunciar a ausência de virtù na Itália de seu tempo
como causa de suas agitações, perpassada por conflitos internos e invasões, conclamando à
emergência da virtù ordenadora do príncipe. MAQUIAVEL, O Príncipe, I, 25, p. 121.
69
SKINNER, Q., op. cit., p. 114.
70
Mas ela já havia sido abordada anteriormente por Gianozzo Manetti em seu De dignitate et
excelentia hominis, escrito em 1452 como refutação do extremo pessimismo expresso pelo Papa
Inocêncio III em sua obra intitulada a Miséria do homem. Neste seu tratado Manetti avançou sobre
um ponto que seria retomado mais tarde por Pico e que cumpriria papel central em sua idéia da
dignidade humana: do louvor ao homem por sua aptidão própria de moldar seu destino segundo as
numerosas operações da inteligência e da vontade em impor-se contra as forças da natureza e de
suas necessidades. Idem.
71
PICO DELLA MIRANDOLA, Discurso sobre a Dignidade do Homem, primeira parte, p. 39.
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50
Dessa perspectiva, portanto, o homem era um ser insubstancial por
natureza. Ao contrário dos demais seres existentes (dos animais mais brutos às
mais altas esferas dos seres celestiais) ele não tinha por si uma configuração
própria dada por nascimento, mas se forjava a si mesmo e seu ser era sempre
produto de seu livre agir. De fato, certamente, não houve na cultura humanista
expressão mais extravagante da liberdade, mas como sublinha Thomas Greene
72
, a
noção de dignidade humana de Pico expressava como nenhuma outra um dos
traços mais importantes do pensamento humanista, ou seja, a noção de que a
natureza humana se definia por sua essência flexível e moldável segundo o poder
determinante da razão. Em suma, ele afirmava que a capacidade de intervenção do
poder criativo do homem na ordem natural se exprimia tanto no âmbito externo da
realidade do mundo quanto no âmbito interno de sua própria natureza. Isso se
confirma, sobretudo, na confiança que declarava em seu Discurso na excelência
do currículo pedagógico humanista como meio de uma transformação metafísica,
numa evolução rumo à perfeição que aproximava o espírito da transcendência
divina. As disciplinas do programa humanista apareciam então como degraus que
encaminhavam o homem finalmente à perfeição da teologia:
Ó Senhores sejamos sim transportados em êxtases socráticos. São eles que nos
situam além do intelecto de sorte a colocar a mente e a nós mesmos em Deus.
Aí estaremos, com toda certeza, se antes, tivermos realizado quanto depende de
nós. Se, de fato, por meio da moral a força dos apetites for direcionada por
freios reguladores segundo suas exatas medidas, de modo a se harmonizarem
entre si e em concordância estável; se, ainda graças à dialética, a razão progredir
dentro de sua ordem e medida; então tangidos pelo forte sentimento das musas,
haveremos de absorver, com os ouvidos de nossa interioridade a celeste
harmonia
73
Greene classifica essa espécie de flexibilidade da natureza humana como
vertical
74
por promover o contato direto entre homem e Deus, estabelecido pelo
exercício livre de suas faculdades na busca do conhecimento e no cultivo da
sabedoria da alma. Embora de maneira mais velada e bem mais moderada, é
possível reconhecer a presença desse ideário nos grandes tratados pedagógicos do
humanismo, especialmente entre os autores cristãos do norte da Europa,
72
GREENE, T., The Flexibility of the self in the Renaissance literature, In: The disciplines of
criticism, p. 243.
73
PICO DELLA MIRANDOLA, op. cit., p. 52.
74
GREENE, T., op. cit., p. 243.
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51
seguidores das propostas de Erasmo de Rotterdam
75
. Eles se baseavam na
convicção, típica da mais pura estirpe do humanismo, de que os estudos liberais
possuíam a prerrogativa de operar uma profunda transformação moral e espiritual
que tornava os homens capazes de exercer sua virtus à perfeição, neste caso,
aproximando-se dos ensinamentos cristãos mais genuínos.
Enfim, para voltarmos ao nosso tema e concluirmos esse excurso sobre os
princípios e aspectos mais relevantes da moralidade humanista, é importante
lembrarmos: a intensidade do culto à glória nesse contexto, tal como apareceu de
modo insistente na literatura da época, se inscreveu no âmbito mais amplo dessa
ruptura com a concepção agostiniana da natureza decaída do homem. A glória
ligava-se a esse elogio generalizado da liberdade, que aparecia no cerne de seus
ideais pedagógicos e do conceito lapidar de sua moralidade, da dignidade
humana. Fixando as formas da perfeição na memória dos livros ela celebrava o
homem pondo sua essência fora do tempo e de suas vicissitudes.
Como sublinha Carlo Varotti
76
o resgate dos gloriosos modelos de
perfeição moral da Antigüidade foi o modo privilegiado pelo qual os humanistas
puderam tornar plausível e veicular sua concepção da dignidade humana, de
modo que o exercício das liberdades individuais e suas ambições de grandeza não
incorresse em riscos contra a vida socialmente organizada. O preceito da imitação
75
Especialmente para Erasmo os homens que não têm acesso ao conhecimento da
filosofia e das outras disciplinas não passam de criaturas inferiores, muito
próximas aos animais: “De fato, enquanto os animais obedecem cegamente aos
instintos da natureza, o homem, desprovido dos parâmetros das letras e dos
ensinamentos da filosofia, fica antes sujeito a impulsos mais que animalescos.
Nenhum animal é tão ferino e nocivo quanto o homem, quando arrastado por
ímpetos de ambição, de cupidez, de ira, de inveja, de luxúria e de lascívia. Razão
porque quem não se antecipa para iniciar o filho na esfera de preceitos sadios não
se tenha a si mesmo na conta nem de ser humano nem de filho de homem algum.”
Para o humanista, cabe inicialmente aos pais e, em seguida, ao próprio aluno/filho
desejar se transformar moral e espiritualmente; e esta formação apenas é possível
com o estudo das “boas letras”, condição primeira para se moldar até a perfeição
aquela matéria flexível e maleável. Assim, recomenda ainda o humanista: “Que tu
reflitas, em teu íntimo, quanto de conforto, de utilidade e de glória refluem do
filho sobre os pais, posto que retamente educado.” Erasmo se dedica a esta tópica
da formação humana em tratados pedagógicos como o De pueris, De ratione
studii e De copia, pois é o propósito central da sua nova educação “formar seres
livres na liberdade que é ao mesmo tempo tão difícil e tão bela.” ERASMO, De
Pueris apud Pinto, Fabrina Magalhães. O discurso humanista de Erasmo: uma
retórica da interioridade, p. 112.
76
VAROTTI, C. op. cit. p. 120.
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52
imitatio – tinha lugar central nessa moralidade tocando no sentimento da vida
como um todo: o culto à autofirmação exemplar das próprias potencialides, nos
moldes dos grandes espíritos do passado implicava num verdadeiro ritual de
reconhecimento coletivo, pelo qual se estabeleciam os valores de uma pátria
comum e terrestre dos homens e, sobretudo, que tornava possível a afirmação do
ideal humanista da dignidade humana como uma aspiração conjunta à excelência
individual e à universalidade.
Com efeito, imortalizada pelos grandes autores à semelhança dos modelos
clássicos, a realização da glória pessoal, conquanto particular, adquiria um
significado válido para toda a humanidade como expressão mais plena da virtus.
Entretanto, é importante lembrarmos, essa questão foi sempre uma matéria
controversa desde a crítica filosófica dos antigos, cercando-se de ambigüidades; e
mesmo o elogio humanista foi fruto em geral de grandes esforços na consolidação
de um modelo exemplar que o traduzisse, pois partilhava também da consciência
negativa da glória entendida como paixão que originava os vícios do orgulho e da
presunção dos homens. Antes de encerrarmos essa discussão é necessário
abordarmos essa ambivalência de sentidos que o termo assumiu, no esforço por
distinguir sua forma negativa de sua condição positiva como imagem da virtus, a
fim de não contrapor de maneira muito simplificada a acepção negativa afirmada
por Montaigne ao elogio tradicional da glória. O debate em ambos os casos se
ofereceu à investigação sobre a natureza humana, o significado de suas ações,
assim como sobre as relações entre suas paixões e sua virtude.
2.4) As ambigüidades da reflexão sobre a glória
Já assinalamos o pioneirismo de Jacob Burckhardt em reconhecer no ideal
humanista da glória um dos traços mais marcantes e distintivos da cultura do
Renascimento e como que sinal de sua especificidade histórica. Entretanto, como
salienta Carlo Varotti
77
em seu estudo sobre o tema, se retomamos o debate tal
como se manifesta no pensamento político de Maquiavel, por exemplo, nos
deparamos com uma atmosfera bem distinta do modo como Burckhardt
77
Idem, p. 108.
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53
compreende esse elogio renascentista da glória. Com efeito ao final de seu
capítulo sobre a glória o historiador a traduz como paixão exaltada, que punha a
época sob o signo inquietante do culto a uma titânica e solipsística afirmação
individual: segundo essa interpretação a glória era tida como valor absoluto na
Renascença, independente da consideração de seus objetivos e resultados
78
.
O que encontramos, entretanto, na reflexão que Maquiavel desenvolve
sobre a questão em seus Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio, é uma
visão desencantada da glória no registro de um profundo calculismo político,
pautado na consideração da ambição natural de primazia por parte dos homens
dotados de grande virtú. De fato, esta era concebida de maneira bastante ambígua
ao longo dos Discursos, a um tempo como fundamental à segurança da república
e como uma ameaça aos seus princípios básicos, da igualdade e da libertàs, pelos
riscos do desejo de ascensão degenerar em sede desmesurada de poder e resultar
em tirania. Dessa perspectiva, da identificação entre virtude dos homens valorosos
e sua aspiração à glória, a estabilidade da república fazia-se frágil, sustentando-se
sobre uma conflitualidade latente e permanente entre a coletividade e as ambições
dos grandes, dependendo de um esforço constante para bem orientar suas
aspirações naturais ao poder:
E, para discorrer sobre isso com mais particularidades, digo que, sem os
cidadãos bem reputados, as repúblicas não podem manter-se nem bem
governar-se. Por outro lado, a reputação dos cidadãos é razão para o surgimento
da tirania nas repúblicas. E quem quiser regular tais coisas precisa ordenar tudo
de tal modo que os cidadãos sejam bem reputados, que sua reputação seja útil, e
não nociva, à cidade e à liberdade desta.
79
Maquiavel esforçou-se nesse sentido nos Discursos, procurando
diferenciar os modos úteis de se adquirir reputação dos modos nocivos à cidade:
aqueles que procuravam obtê-la prestando favores privados a uns e outros,
estimulavam seus favorecidos a corromper o público e enfraquecer as leis, por
isso, a república deveria acusá-los e vituperá-los, a fim de evitar que as falsas
78
Atestando essa atmosfera de paixões exaltadas Burckhardt nos fala da ânsia de glória de
Lorenzino de Médicis que o levou ao assassinato do duque Alexandre de Florença (1537), à
maneira do exemplo antigo de Erostrato que, à época de Felipe da Macedônia, incendiou o templo
de Éfeso a fim de perpetuar para sempre a recordação de seu nome. BURCKHARDT, J., op. cit.,
p. 125.
79
MAQUIAVEL, Discursos, III, 28, p.406.
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imagens do bem pervertessem os bons costumes. Já os que buscavam reputação
por intermédio das vias públicas, aconselhando e agindo em prol do bem comum,
deveriam ser premiados com a glória, para que obtivessem honra e satisfação por
seus bons atos e servissem de exemplo para os seus pares.
Com efeito, o que ressalta na reflexão política de Maquiavel não é um
culto exacerbado da glória, mas um elogio prudente de seu valor moral no interior
da república, fundado numa aguda consciência da dinâmica própria das paixões
humanas e das conseqüências perigosas das ambições pessoais – gloriae cupido;
appetitu gloriae –; de como degeneravam freqüentemente em sede insaciável de
ascensão causando a má fortuna dos Estados.
Era o reconhecimento da naturalidade dessa espécie de ambição no caráter
dos grandes homens que estava no cerne do pensamento de Maquiavel, pelo qual
a glória aparecia como elemento concreto, necessário e determinante dos rumos
da vida política. Mas nem sempre nos Discursos a ênfase recaía em seu
entendimento como afecção a ser refreada; amiúde se reforçava sua acepção
positiva como estímulo de crucial importância à virtù, sem a qual a república não
poderia manter-se. A glória dos grandes, assim, designava a condição particular
através da qual ela podia irradiar-se para a coletividade, pelo impulso que dava à
sua disposição de cumprir atos extraordinários
80
.
O estímulo ao livre desenvolvimento da virtù dos ânimos grandiosos se
constituía num alicerce importantíssimo da força da república com que podia
impor-se contra os acidentes da fortuna. Maquiavel nos fala disso no início do
capítulo I, 10 dos Discursos listando em ordem hierárquica segundo o valor, os
méritos diferenciados dos indivíduos virtuosos que cumpriam um papel de
extrema relevância para conferir solidez e estabilidade à vida social e política.
Recuperava então em sua obra o argumento central do ideal humanista da historia
magistra vitae, de sua dignidade como guia moral, dotada da prerrogativa de
conferir louvor imortal à vir dos grandes homens:
Entre todos os homens louvados, os mais louvados foram os cabeças e
ordenadores de religiões. Logo depois destes os que fundaram repúblicas ou
reinos. Depois destes são célebres os que, comandando exércitos, ampliaram
seu próprio domínio ou o da pátria. A estes se somam os homens de letras. E,
como estes são de vários tipos, são eles celebrados segundo o mérito de cada
80
VAROTTI, C., op. cit., p. 426.
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55
um. A qualquer outro homem cujo número é infinito, atribui-se a parte de
louvores que lhe é dada pela sua arte e pela sua atividade.
81
Mediante a emulação de modelos éticos positivos da glória como
verdadeira expressão da virtù, nos Discursos, Maquiavel esforçava-se por fundar
o nexo essencial ao bom funcionamento da república, ou seja, entre liberdade e
grandeza individual e manutenção do bem comum. Por isso, exortou os homens
de seu tempo a imitar os antigos modelos de grandeza dos antigos a fim de
reavivar a velha virtù romana em Florença, tal como nos dizia na introdução do
primeiro livro. Segundo suas palavras, escrevia seus comentários sobre os eventos
da história romana narrados por Tito Lívio a fim de que os homens “(...) possam
retirar deles mais facilmente a utilidade pela qual se deve procurar o
conhecimento das histórias.”
82
Mas essa tópica da aceitação da glória como afecção natural que aparece
de maneira central na reflexão política dos Discursos, relacionada aos grandes
homens, já surgira num contexto diverso e muito mais remoto, na escrita pessoal
de Petrarca, associada mais propriamente ao âmbito artístico-literário e dizendo
respeito às complexidades internas da alma humana, de uma maneira mais geral.
Na verdade, como procuraremos mostrar, essa noção da naturalidade da glória,
que teve tanta importância no sentido de consolidar-lhe um estatuto ético positivo
em âmbito político e social, entre os autores italianos, enraizou-se na reflexão de
Petrarca. Nela, com efeito, essa tópica funcionou como princípio da consolidação
de alguns dos elementos básicos da cultura humanista, da autoafirmação do
homem e da valorização de sua experiência no mundo, em oposição aos valores
cristãos e medievais que a condenavam em nome da salvação.
O reconhecimento da naturalidade da glória, já aparecia, portanto, na
meditação do Secretum, escrito por volta de 1342 e 1343 em que Petrarca
tematizou a dualidade vivenciada em seu espírito, num conflito angustiante entre
sua aspiração à salvação e o apelo de seu amor pelas coisas do mundo e pela sua
atividade literária, que o levavam num outro caminho. A ambição de glória
mundana emergiu no Secretum para por em jogo as suas convicções morais mais
íntimas; era fortemente condenada por sua consciência cristã, personificada na
obra pela figura de Santo Agostinho, pois contradizia seu desejo de libertar-se de
81
MAQUIAVEL, op. cit., I, 10, p. 44.
82
Idem, I, 1, p. 7.
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suas paixões e sua aspiração à libertação do espírito em Deus. De fato, essa
aceitação da glória no Secretum se deu como ocasião de embate entre códigos de
valores e concepções de mundo opostas: entre a admiração de Petrarca pelos
valores de sabedoria mundana e de grandeza da Antigüidade e a ética cristã
agostiniana do desprezo do homem, da condenação de sua glória como vício e
blasfêmia contra a glória divina.
Na meditação do Secretum, portanto, transcorrida mediante a encenação de
um diálogo com Santo Agostinho, este o censurava pela afirmação de suas
ambições mundanas, exortando-o a renunciar ao empenho que votava à sua
atividade literária. Ao invés de desejar uma falsa glória imortal, deveria libertar-se
do jugo dos vícios através da perpétua mediatção da morte, de sua condição falha
e miserável, que só poderia redimir-se sob a luz da graça divina. Para que pudesse
alcançar a única verdadeira glória, desse modo, precisava reconhecer a
insignificância das obras e dos esforços humanos face à eternidade de Deus. Tinha
que aprender a aceitar o caráter medíocre de sua existência mortal para dedicar-se
a uma vida de pura contemplação com o objetivo de agradar a Deus e não de obter
os aplausos dos homens. Assim Santo Agostinho lhe dizia nas últimas páginas do
Secretum:
Desde de que eu o vi tomar da pluma, eu entretanto o preveni que a vida é curta,
incerta, e que tu trabalhavas muito em função de um proveito medíocre.
Somente suas orelhas estavam repletas dos aplausos do público que você
maldizia, mas que você seguiu para meu grande espanto. (...) Se alguns de meus
conselhos te são agradáveis, não os perca. Retire-se imediatamente para a
ociosidade e a inércia.
83
A resposta de Petrarca a essa advertência entretanto, tornava problemática
a conclusão do Secretum. De fato, apesar da condenação religiosa de sua
consciência cristã, Petrarca reafirmou seu amor pela vida e a ambição de gravar
seu nome na memória da posteridade. Via-se forçado a confessar sua impotência
em suprimir da alma o desejo de glória, mesmo mediante os mais firmes
ensinamentos da fé e a aceitá-la como uma condição natural e necessária do
espírito:
Mas enquanto nós falamos, ocupações numerosas e importantes - embora
profanas - me atraem ainda. (...) Eu sei bem que seria melhor, de fato, me
83
PETRARCA, Mon secret, p. 183.
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ocupar de minha alma e abandonar os caminhos transitórios para seguir a rota
certa do sol. Mas eu não posso conter meu desejo.
84
A conclusão ambígua do Secretum exprimia já, ainda que de maneira
incipiente, sob a sombra da condenação cristã, a afirmação de uma legitimidade
relativa do ideal do homem glorioso e seu direito de cidadania no espaço de
permanência do registro literário. Desse modo, diante desse caráter natural do
desejo de glória, tido como impossível de ser erradicado do espírito, Santo
Agostinho respondeu a Petrarca, despedindo-se dele afinal: “É a vontade que tu
qualificas de impotência. E que assim seja se é impossível de outro modo. Eu
suplico a Deus que te acompanhe e guie seus passos errantes.”
85
Com efeito, essa tópica da naturalidade da glória, conforme aparece no
Secretum, seria afirmada de maneira mais positiva em outra obra de Petrarca, em
uma das correspondências privadas das Familiares, em que aconselhava seu
amigo Tommaso Da Messina quanto ao seu apetite de glória. Nessa carta, as
tópicas cristãs de condenação da glória só surgiam ao final, convivendo entretanto
com o reconhecimento de que essa espécie de ambição era sinal da grandeza de
um “generosus animus”. A partir disso, Petrarca procuraria determinar as
condições necessárias de uma ambição positiva de glória, como expressão da
virtude, difereciando-a do vício dos orgulhosos:
A fama que buscamos não é nada além de vento, fumaça, sombra: não é nada.
Por isso pode ser facilmente desprezada por um julgamento claro e correto.
Mas, se por acaso – desde de que essa espécie de ambição pode facilmente
infiltrar-se no ânimo generoso – não puderes erradicar esse apetite porque
profundamente enraizado, ao menos pode refreá-lo com o poder da razão.
86
Examinaremos melhor o conteúdo dessa carta mais adiante, na
caracterização do modelo de conduta ideal do “generosus animus” e do
significado positivo de seu desejo de glória, oposto à vã glória do vulgo. De fato,
no âmbito desse questionamento acerca da natureza das ambições humanas
presente na obra de Petrarca tinha início o esforço que seria tão próprio aos
autores que se lhe seguiram, de conferir um significado elevado à glória e do
anseio por conferir às grandes realizações humanas a força da durabilidade, capaz
84
Idem, p. 184-85.
85
Idem.
86
PETRARCA, Familiares, I, 2, p. 21.
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de superar sua natureza finita
87
. Mas o que consideramos de grande importância
reter aqui é o modo como em ambos os casos, tanto nos Discursos de Maquiavel
quanto na obra de Petrarca - a despeito do contexto totalmente distinto de suas
reflexões e de seus objetivos - esse argumento da naturalidade das ambições de
glória pôs-se no centro de seu pensamento propiciando sua aceitação como
necessária, assim como a oscilação entre um significado positivo e outro negativo
do termo. Abrindo caminho, entretanto, de maneira decisiva, para a legitimidade
de um conteúdo ético ideal para o conceito de glória como realização da
excelência pessoal.
Após essa nossa digressão introdutória sobre os significados que essa
questão da glória assumiu desde os antigos e sobre seu elogio na Renascença,
cumpre finalmente nos interrogarmos sobre o caráter próprio do interesse de
Montaigne pelo tema e de que modo sua abordagem crítica em Da glória que a
partir de agora nos ocupará, operava no sentido da objetivação das motivações e
dos desígnios próprios da escrita privada dos Ensaios. De fato, essa tópica da
aceitação da naturalidade da glória que acabamos de abordar também aparece no
ensaio, tornando também ambíguo o conteúdo de sua crítica e distanciando sua
forma da crítica filosófica tradicional, a que parecia aderir num primeiro
momento. Sua apropriação por Montaigne vinha revelar o caráter original de seu
trabalho reflexivo que se definia como princípio do estilo privado e pessoal de sua
escrita. Como procuraremos frisar, em seu interior ela também afirmava sua
importância, mas não servia como ponto de partida para a afirmação de um
significado positivo para a glória: ela não funcionava para relativizar tanto assim a
sua crítica, mas dizia respeito a desígnios bem diversos da preocupação humanista
com a exortação dos homens à virtude e com a realização de sua excelência.
87
VAROTTI, C., op. cit., p. 124.
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3.
A crítica montaigneana das ambições em Da Glória (II, 16):
aproximações e distâncias em relação à tradição estóica.
3.1) A opção da vida contemplativa.
O conteúdo do ensaio Da glória, redigido provavelmente por volta de 1578,
se concentra sobretudo nos vários argumentos filosóficos e religiosos que
enfatizavam o caráter negativo dessa ambição. Montaigne os explorava então
desenvolvendo sua própria perspectiva acerca da natureza humana e da virtude,
ressaltando também o caráter privado de sua escrita, avessa ao desejo de glória e
de celebridade póstuma.
De fato, essa crítica moral das ambições, já remontava aos primeiros textos,
redigidos à época de sua decisão pelo abandono dos negócios públicos, entre 1571
e 1572, manifestando já sua relevância nos Ensaios como exaltação do ideário que
estava nas bases de sua forma, exclusivamente a serviço de sua tranqüilidade.
1
Uma de suas mais expressivas ocorrências se encontra no capítulo Da solidão em
que Montaigne celebrou as qualidades da vida solitária, dedicada ao cultivo da
alma, enfatizando a enorme diferença que havia entre seus próprios valores e
costumes e os dos homens de seu tempo, dominados pelas paixões de primazia:
“Quem não troca voluntariamente, a saúde o repouso e a vida pela fama e pela
glória, a mais inútil vã e falsa moeda em uso entre nós?”
2
Ao invés destes, que não passavam de servos de suas ambições e que
tinham sua razão de ser no engajamento total nos negócios do mundo público,
Montaigne renunciou ao seu cargo de conselheiro no Parlamento de Bordeaux a
partir de 1571 em benefício de uma vida pautada na fidelidade a si próprio, não
dependente dos interesses externos. A partir de então ele estabeleceu o espaço
privado da biblioteca de seu castelo como lugar de ruptura com a insensatez que
1
Ver introdução.
2
“Qui ne contre-change volontiers la santé, le repos et la vie à la reputation et à la gloire, la plus
inutile, vaine et fauce monnoye Qui soit en nostre usage.” MONTAIGNE, I, 39, p. 241.
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caracterizava os costumes de seus contemporâneos, de onde desenvolveria seus
Ensaios
3
.
Em seu elogio da vida filosófica Da solidão é um dos capítulos da obra, mais
marcados pelo estoicismo de Sêneca, no qual o autor francês, tal como o antigo
filósofo cordovano, manifestou sua confiança no poder da razão, entendendo que
o verdadeiro sábio era aquele que levava a cabo uma perfeita resistência contra as
paixões do mundo e encontrava na solidão o caminho privilegiado para o
autoconhecimento e a felicidade
4
. Em Da glória ele também se utilizou de uma
3
É impossível saber ao certo as razões pelas quais Montaigne se decidiu tão repentinamente pelo
abandono da vida pública. Como nos mostra Pierre Villey: “Vejam bem, diz-se: quando
magistrado, ele agarrava todas as oportunidades para acorrer a Paris e mostrar-se na corte. Vai para
lá pelo menos duas vezes, e na segunda fica ausente por longo tempo, talvez dezessete anos. Todas
as vezes acompanha a corte em viagens pelas províncias (...)” Villey, P. Vida e Obra de
Montaigne, In: Ensaios, V. I, p. LX. Montaigne recebera de seu pai Pierre Eyquen uma sólida
educação humanista e fora criado para alçar as mais altas posições. Tomou assento na Câmara de
Inquéritos do Parlamento de Bourdeaux ainda em 1561 e lá permaneceu até o momento da
renúncia dez anos depois. Os conflitos internos entre seus colegas e uma tentativa frustrada de
ascensão à grande Câmara (a mais soberana, aonde se pronunciavam as sentenças) podem ter
precipitado a retirada, além de outras razões, como a melancolia causada pela morte de seu grande
amigo Etienne De La Boètie em 1563 que conhecera no cumprimento de suas funções no
Parlamento, assim como a morte de seu pai em 1568. De todo modo, como se sabe, ele não iria
abandonar completamente os negócios públicos a partir de então. Em 1574 estava no exército real
no baixo Poitou, além de cumprir ainda missões diplomáticas junto a seus ex colegas do
Parlamento. Era muito íntimo do rei Henrique de Navarra por quem foi nomeado fidalgo de seu
gabinete em 1577. No entanto, muito pouco de sua vida pública aparece nos Ensaios, fruído a
partir do domínio privado de sua vida retirada. Como bem nos mostra Starobinski quanto ao
estabelecimento do espaço do autoexílio, celebrado pela inscrição de 1571: “o importante para ele
é ter conquistado a possibilidade de estabelecer-se em um território pessoal e privado, de ali tomar
a todo tempo um recuo absoluto, saindo do jogo: o importante é ter dado à distância reflexiva sua
localização a um só tempo simbólica e concreta, ter-lhe reservado um sítio, sem se obrigar a
habitá-lo constantemente.” STAROBINSKI, J. op. cit., p. 16.
4
A fonte principal desse “eventual” estoicismo de Montaigne tomado de Sêneca, parece ter sido
principalmente as Cartas a Lucílio. Além de Da solidão, podemos atestar a forte influência do
“senequismo” nos capítulos I, 19; I, 20 e I, 40, todos datados dos primeiros tempos da escrita dos
Ensaios. Mas se devemos levar em consideração a observação de Pierre Villey, que em seu
Sources et Evolution des Essais, nota o modo como as citações tomadas diretamente de Sêneca
perderam espaço na edição de 1588, é preciso por outro lado, observar que a crítica e o
afastamento de Montaigne em relação a ele jamais foram generalizados, incidindo exclusivamente
ao que restava de dogmático e de normativo em sua reflexão moral, ou seja, ao ideal regulador do
sábio que pemanecia no horizonte de seu pensamento filosófico. O autor dos Ensaios não deixou
de reificar sempre seu “senequismo”, especialmente no que dizia respeito ao modo como o filósofo
afirmava seu próprio afastamento do antigo dogmatismo dos estóicos gregos, expresso no
ecletismo das Cartas a Lucílio e no modo como declarava limites à pretensão da filosofia em
prover a felicidade humana, contrapondo às suas generalizações a diversidade individual e as
particularidades dos homens. Sobre isso ver, por exemplo, a carta 22 do primeiro volume de suas
Cartas a Lucílio. EVA, L., “Notas sobre a presença de Sêneca nos Essais de Montaigne”. In:
Educação e Filosofia, 17, p. 42-47. De resto, concordamos ainda com Fausta Garavini, que em seu
Itinéraires à Montaigne, sublinha que o autor dos Ensaios encontrou nas Cartas de Sêneca antes
um modelo estilístico para sua escrita pessoal do que um mestre filosófico. Agradava a ele o
caráter peremptório das frases de Sêneca e a densidade de significado contida em suas sentenças
concisas e lapidares. Nesse sentido, o afastamento do estoicismo que se verifica nos ensaios
posteriores, não significou propriamente um afastamento de Sêneca: Montaigne jamais renegou
sua influência em termos estéticos e formais ao longo dos anos em que desenvolveu seu discurso,
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passagem das cartas de Sêneca para demonstrar o absurdo de ter nas ambições do
mundo as razões da própria vida e para enunciar aquele que era o preceito central
que dava sentido à sua crítica, ou seja, da necessidade de se praticar a virtude por
seu próprio valor: “Os sábios propõem-se um fim mais belo e mais justo para um
empreendimento tão importante. (C) ‘A recompensa de uma boa ação é havê-la
feito’”
5
Em Da solidão, do mesmo modo, ele destacou a motivação essencial de
sua empresa, isto é da busca da liberdade e autonomia de uma vida tranqüila
pautada exclusivamente em seu próprio bem:
6
“Ora, pois que decidimos viver sós
e dispensar companhia, façamos que nosso contentamento dependa de nós;
desapeguemo-nos de todas as ligações que nos prendem a outrem, obtenhamos de
nós mesmos o poder de viver sós e de vivermos a gosto assim.”
7
Essa passagem de Da solidão, com efeito, definia a maneira e os princípios da
denúncia da glória como ilusão, que seria o tema de Da glória, explicitando a
relevância dessa convicção nas origens da escrita dos Ensaios, assim como o
aspecto fundamental que levava Montaigne identificar-se aos argumentos do
estoicismo e especialmente de Sêneca, ou seja, a reivindicação de autonomia de
sua razão mediante a exclusão das volúpias involuntárias do corpo e da alma a
partir da escolha da vida contemplativa, oposta às paixões pelos falsos bens
externos, que escravizavam o espírito
8
.
de 1571 a 1595. A sua relação estreita com Sêneca, estabelecida desde os primeiros ensaios,
pautada em seu gosto por belas expressões, afirmou-se como paradigma de sua relação com os
demais autores clássicos. GARAVINI, F., Itinéraires à Montaigne, p. 30.
5
“Les sages se proposent une plus belle et plus juste fin à une si importante entreprise. (C) ‘La
récompense d`une bonne action, c`est de l`avoir faite.”” MONTAIGNE, II, 16, p. 629.
6
Sobre esse tema nas Cartas a Lucílio de Sêneca ver cartas 7, 19 e 22 por exemplo. VILLEY, P.
op. cit., p. 239.
7
“Or, puis que nous entreprenons de vivre seuls et de nous passer de compagnie, faisons que notre
contentement despende de nous; desprenons nous de toutes les liaisons qui nous attachent à autruy,
gaignons sur nous de pouvoir à bon escient vivre seuls et y vivre à nostr`aise.” MONTAIGNE, I,
39, p. 240.
8
Nesse tom Sêneca exortava Lucílio a abandonar as ambições que o vinculavam à vida pública,
definindo-a como uma servidão, oposta à verdadeira liberdade e felicidade da vida retirada,
dedicada à sabedoria: “Uma rápida e bem sucedida carreira apartou-te para longe das perspectivas
de uma vida salutar: uma província a administrar, um cargo de procurador, as novas missões que
logicamente seriam de esperar! Cargos ainda mais importantes estarão à sua espera, e depois
outros ainda. Até quando? Porque esperar até não haver mais postos que desejes ocupar? Tal
momento nunca chegará! Segundo a nossa escola, o destino tece-se a partir dum nexo definido de
causas; idêntico é o nexo das ambições: cada uma gera sempre mais outra! Estás metido numa vida
que, por si mesma, nunca porá um termo à miséria de tua servidão. Retira de sob o jugo o teu
pescoço magoado: é preferível que te cortem de uma vez que te sobrecarregares sempre! Se te
retirares para a vida privada terás tudo em escala reduzida, mas o que tiveres chegará para te
cumulares; presentemente, todos os bens e honras que se acumularem sobre ti não bastam para te
saciar.” SÊNECA, Cartas a Lucílio, carta 19, p. 67.
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Essa ênfase no caráter vão da glória ligava-se estreitamente à formulação de
seu ponto de vista pessoal sobre a natureza do homem, enquanto imperfeita, falha
e inconstante, e ao modo como a contrapunha ao ideal humanista da dignidade
humana. Ela se inscrevia no âmbito de uma visão mais geral de Montaigne sobre
o domínio público, dos negócios humanos, como feito de logro e de artifício,
movido por paixões e vícios. Mas para explorar esse ponto de vista ele se utilizou
também, como veremos, de outras tradições, para além do “senequismo” das
Cartas a Lucílio. De fato esse tema do mundo como um teatro de ilusões e
expressão mais perfeita da insensatez esteve presente nas escolas do helenismo e
também no pensamento religioso medieval através de João de Salisbury e Boécio
na tópica do contemptus mundi, do mundo como lugar de império dos vícios, de
seduções e armadilhas. Do mesmo modo, os moralistas do Renascimento também
se serviram bastante dessa figura do mundo “às avessas” movido pela loucura
humana – stultitia – que aparecia nos Ensaios de Montaigne.
Como nos mostra Jean Starobinski em seu Montaigne em movimento essa
visão desencantada sobre a dinâmica da vida pública definia-se como ponto de
partida para a instauração deste que era o ato inaugural do discurso dos Ensaios,
da opção pela vida retirada. A célebre inscrição de 1571, pendurada numa das
vigas da biblioteca, comemorando essa decisão da ruptura, marcava o momento a
partir do qual viveria livre, voltado para sua própria tranqüilidade após um longo
tempo de escravidão sob o domínio das vãs ambições e interesses que
determinavam a vida comum dos homens:
No ano de 1571, com a idade de trinta e oito anos, à véspera das
calendas de março, aniversário de seu nascimento, Michel de
Montaigne, já há muito tempo desgostoso da escravidão do
Parlamento e dos cargos públicos, retirou-se, ainda em posse de suas
forças, para o seio das doutas virgens (as Musas), aonde, com calma e
segurança passará o pouco de tempo que lhe resta de uma vida já em
grande parte transcorrida. (...)
9
9
“L`an du Christ 1571, à l`age de trente et huit ans, la veile des calendes de mars, ennuyée de
l`esclavage de la Cour du Parlement et des charges publiques, se sentant encore dispos, vint à part
se reposer dans le sein des Doctes Vierges dans le calme et la securité (...)” MONTAIGNE, op.
cit., p. LIX.
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3.2) Crítica da glória e desprezo do homem.
Foi em Da gloria contudo, como já enfatizamos, que ele desenvolveu mais
amplamente sua defesa da dignidade dessa escolha, tendo como cerne o olhar
crítico sobre a sociedade de seu tempo e dando corpo à imensa distância que seu
autoexílio instaurava em relação a seus valores e costumes mais arraigados de
valorização das capacidades humanas. Assim, já no proêmio de nosso ensaio, ele
se apropriou dos argumentos cristãos de desprezo da glória para introduzir sua
crítica, enfatizando desde já como seu princípio, uma concepção da natureza
humana marcada pela miséria, cheia de defeitos e de insuficiências. Tal concepção
era enunciada aqui pela denúncia da impotência da linguagem humana, que
atestava de maneira inequívoca sua incapacidade cognitiva:
Há o nome e a coisa: o nome é uma palavra que indica e significa a coisa; o
nome não é uma parte da coisa nem da substância, é uma peça externa, juntada
à coisa e fora dela.
Deus que é em si total plenitude e o ápice de toda a perfeição, não pode
engrandecer-se e crescer interiormente; mas seu nome pode ser engrandecido e
crescer pelo agradecimento e louvor que prestamos às suas obras exteriores.
Como não podemos incorporar-lhe esse louvor, posto que ele não pode ter
acréscimo de bem, atribuímo-lo ao seu nome que é sua parte exterior mais
próxima. Eis como apenas a Deus cabem glória e honras; e não há nada tão
distante da razão como nos pormos a buscá-las para nós, pois sendo
interiormente pobres e necessitados, nossa essência sendo imperfeita e
precisando continuamente de melhora é nisso que nos devemos afainar. Somos
todos ocos e vazios não é de vento e de palavras que temos de nos encher,
precisamos de substância mais sólida para nos reparar.
10
Era assim a demonstração da insignificância do homem que dava início ao
ensaio, enfatizada pela sua comparação com a plenitude infinita e imortal de Deus
- único verdadeiro merecedor de glória e honras. Mas, com essa ênfase na
10
“Il y a le nom et la chose: le nom c`est une voix que remerque et signifie la chose, le nom c`est
n`est pas une partie de la chose ny de la substance, c`est une piece estrangere joincte à la chose et
hors d`elle.
Dieu, qui est en soy toute plenitude et le comble de toute perfection, il ne peut s`augmenter et
accroistre au dedans ; mais son nom se peut augmenter et accroistre par la benediction et louange
que nous donnons à ses ouvrages exterieurs. Laquelle louange, puis que nous ne la pouvons
incorporer en luy, d`autant qu`il n`y peut avoir accession de bien, nous l`attribuons à son nom, qui
est la piece hors de luy la plus voisine. Voylà comment c`est à Dieu seul à qui gloire et honneur
appartient; et il n`est rien si esloigné de raison que de nous en mettre en queste pour nous: car
estant indigens et necessiteux au dedans, nostre essence estant imparfaicte et ayant continuellemnt
besoing d`amelioration, c`est là à quoy nous nous devons travailler.” Idem, II, 16, p. 618.
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64
impotência do discurso, em conceber a perfeição divina e render-lhe justos
louvores, Montaigne não pretendia tanto abordar as relações entre homem e Deus,
quanto tematizar o mundo dos negócios humanos e suas relações entre si,
denunciando como ignorância o culto que seus contemporâneos prestavam ao
renome
11
. A glória, que assegurava a celebridade póstuma do próprio nome, de
sua perspectiva, estava longe de identificar-se à virtude, definindo-se tão somente
como sua parte externa, absolutamente alheia à sua verdadeira substância.
Tratava-se, de fato, de uma aparência falsa, que servia somente à presunção dos
homens; se valiam dela para mascarar para si mesmos e para os outros suas
insuficiências naturais e sua irremediável distância da verdadeira glória de Deus.
Atestando essa distância instransponível entre “le mot et le chose”, Montaigne
desmascarava, desde já, como ignorância o orgulho humanista dos poderes do
discurso, em sua prerrogativa de apreender a excelência humana e destituía
também a glória mundana de qualquer validade moral.
Entretanto, ainda assim, ele sublinhava a grande diferença entre o
significado dos louvores ao nome de Deus e às suas obras, e aqueles que os
homens buscavam para si mesmos: os primeiros definiam-se como virtude por se
constituir no único modo pelo qual era possível aproximar-se de Deus e render-lhe
graças. Já os louvores que os homens pretendiam atribuir-se eram vícios, porque
inteiramente injustificados; porque ao não se corresponderem com sua essência
funcionavam como modo de dissimulação de suas fraquezas. Eram, enfim, frutos
de sua vã glória que os levava a tomar para si um atributo divino: “Voylà
comment c`est à Dieu seul à qui gloire et honneur appartient; et il n`est rien si
esloigné de raison que de nous en mettre en queste pour nous (...)”.
Desse proêmio do ensaio é importante retermos ao menos duas afirmações
importantes e interligadas que permeiam todo o resto do texto. Uma é a visão da
glória como vent et voix”, mero ornamento externo, incapaz de dar expressão à
virtude e a outra, que lhe é correspondente, é a idéia de que atrelar seu valor à
dimensão externa do renome e dos aplausos do mundo constitui-se num forte
estímulo à dissimulação. Segundo a mensagem dessa parte introdutória, o
principal dever do homem no sentido de bem conduzir-se no camimho da virtude
era reconhecer sua inferioridade face à plenitude divina e procurar cultivar as
11
FRIEDRICH, H., Montaigne, p. 169.
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65
qualidades internas da alma ao invés de engrandecer a dimensão externa de seu
nome.
Logo em seguida, no entanto, Montaigne deixou para trás esses
argumentos religiosos para avançar mais propriamente sobre o teor de sua crítica,
que não pretendia versar sobre as relações entre homem e Deus. Assim, a primeira
parte de Da glória se inicia com uma proposição extraída dos ensinamentos de
Crisipo e Diógenes, sobre o menosprezo da glória a partir do reconhecimento do
perigo em deixar-se levar pela volúpia da admiração alheia. De fato, segundo essa
perspectiva, o ato de ter os critérios da aprovação dos homens como medida do
valor dos próprios atos e intenções equivalia a colocar o próprio ser sob a
dependência dos outros e a perder-se a si mesmo em benefício da glória que eles
podiam conferir-lhe. Nesse início de Da glória Montaigne enfatizou a relevância e
a verdade dessa lição do estoicismo, tendo como base os dados de sua própria
experiência cotidiana, que comprovavam o quanto esse desejo de
engrandecimento externo tornava os homens vulneráveis à prática da adulação.
Explorando a inclinação humana natural em comprazer-se excessivamente com os
aplausos alheios, ele destacou o quanto a adulação contaminava profundamente as
relações humanas nos mais variados contextos
12
:
Crisipo e Diógenes foram os primeiros autores e os mais firmes do menosprezo
pela glória; e entre todas as voluptuosidades diziam que não havia outra mais
perigosa nem que devesse ser mais evitada do que a que nos vem da aprovação
de outrem. Na verdade a experiência nos faz sentir muitas de suas perfídias
bastante prejudiciais. Não há coisa que envenene tanto os príncipes como a
adulação, nem coisa pela qual os maus mais facilmente obtenham crédito em
volta deles; nem alcovitice mais própria e mais comum para corromper a
castidade das mulheres do que entretê-las com louvores. (B) O primeiro
encantamento que as sereias utilizam para enganar Ulisses é dessa espécie,
12
A atenção aos males da adulação era tópíca freqüente na literatura moral e política da
Renascença. Maquiavel, no Príncipe (1515), e Erasmo, no Manual para um príncipe cristão,
escrito um ano após o texto de Maquiavel e em correspondência direta com este, procuraram
alertar o príncipe sobre os perigos da adulação e a necessidade de se manter imune a este mal o
quanto possível. Diz Erasmo, citando Diógenes: “se não me equivoco, foi ele que interrogado
sobre qual animal era o mais nocivo de todos, disse: ‘se falas das feras, o tirano, se falas dos
animais domésticos, o adulador.’ E continua: “tem essa peste um doce veneno, mas virulento,
chegando ao ponto de que em outro tempo, enlouquecidos por ele, os príncipes dominadores do
mundo permitiram aos mais desprezíveis aduladores que julgassem com eles; e estes abomináveis
e libertinos homenzinhos, muitas vezes escravos dos próprios governantes, reinavam de fato sobre
os donos do mundo.” ERASMO. Éducación del Príncipe Cristiano. Madrid: Editorial Tecnos
(Grupo Anaya, S. A.), 2003, p. 86.
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66
‘Vinde aqui junto a nós ó louvável Ulisses, o mais glorioso que na Grécia
floresce.’
13
O recurso ao exemplo de Ulisses - objeto de um acréscimo posterior ao
texto, extraído da Odisséia - condensava e ilustrava bastante bem o sentido da
passagem, da necessidade dos homens preservarem-se contra os riscos das
volúpias causadas pelos louvores de outrem; pois, atraído pelo cântico que as
sereias entoavam à glória de seus feitos, até mesmo ele fora incapaz de perceber
que cedendo aos seus chamados caminhava para a própria destruição, estando
totalmente destituído dos poderes de sua razão.
3.3) As ambições mundanas de Epicuro e a denúncia do orgulho da
sabedoria.
Entretanto, apesar dessas considerações, Montaigne não deixou de
reconhecer também as grandes vantagens práticas que decorriam da boa estima
dos homens. Esclareceu que sua crítica se direcionava ao desejo de glória por si
mesma, por sua própria ilusão e volúpia, movido exclusivamente pelo orgulho de
eternizar o próprio nome. Concedia, enfim, que ela podia ser legitimamente
desejada caso o fosse de maneira lúcida, em função de sua utilidade prática para a
traqüilidade da vida solitária, pois, como ele admitia, a benevolência “torna-nos
menos expostos às injúrias e ofensas de outrem, e coisas semelhantes”
14
.
Se por um lado, a volúpia da aprovação externa punha a perder o maior
bem da preservação da própria liberdade e integridade racional, por outro, os
males da injustiça decorrentes do desprezo alheio podiam acarretar numerosos
incovenientes que punham a perder a própria tranqüilidade. Hesitando assim em
condenar de maneira radical a consideração da opinião pública Montaigne
recorreu à filosofia de Epicuro, cujo lema central, “cache ta vie”, ele mesmo
13
“Chrysippus et Diogenes ont esté les premiers autheurs et les plus fermes du mespris de la
gloire; et, entre toutes les voluptez, ils disoient qu`il n`y en avoit point de plus dangereuse ny plus
à fuir que celle que nous vient de l`approbation d`autruy. De vray, l`experience nous en faict sentir
plusieurs trahisons bien dommageables. Il n`est chose qui empoisonne tant les Princes que la
flatterie, ny rien par où les meschans gaignent plus aiséement credit autour d`eux; ny maquerelage
si propre et si ordinaire à corrompre la chasteté des femmes, que de les paistre et entretenir de leurs
louanges. (B) Le premier enchantement que les Sirenes employent à piper Ulisses, est de cette
nature, ‘Deça vers nous deça ô treslouable Ulisse, Et le plus grand honneur dont la Grece
fleurisse’, MONTAIGNE, II, 16, p. 619.
14
“(...) moins exposez aus injures et offences d`autruy, et choses semblables”. Idem.
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67
praticava. Esse preceito que recomendava o abandono dos negócios públicos e o
cuidado em não regrar a própria vida pela opinião comum, Epicuro o ensinou ao
seu discípulo Idomeneu, alertando-o para não se deixar diluir no reino da opinião
e exortando-o a ocupar-se exclusivamente de si mesmo. Mas, ainda assim,
Epicuro sublinhou a importância da glória como modo de evitar possíveis
inconvenientes à vida filosófica, mas somente enquanto estivesse limitada às
vantagens práticas que trazia:
(...) este preceito de sua seita ‘esconde tua vida’, que proíbe os homens de se
enredarem com cargos e assuntos públicos, também pressupõe necessariamente
que se menospreze a glória, que é uma aprovação que o mundo dá às ações que
colocamos em evidência. Quem ordena que nos ocultemos e nos ocupemos
apenas de nós quer menos ainda que sejamos homenageados e glorificados. Por
isso ele aconselha a Idomeneu a não pautar suas ações pela opinião e
considerações gerais, a não ser para evitar os outros inconvenientes acidentais
que o menosprezo dos homens lhe poderia trazer.
15
Mas, essa menção aos preceitos de Epicuro ocasionaria uma mudança de
tom significativa no ensaio, pois, como Montaigne constatava, diante da
proximidade da morte, as palavras derradeiras do grande filósofo revelavam uma
contradição flagrante entre sua doutrina e a expressão de seus sentimentos.
Assolado pela doença e pela perspectiva de seu breve desaparecimento, a única
verdadeira alegria que ele dizia sentir na alma era devida à lembrança do valor de
suas descobertas e discursos, pelos quais pedia aos seus discípulos que
celebrassem sempre a memória de seu nome na data de seu aniversário. Sobre
suas palavras Montaigne assim refletia: “(...) elas são grandes e dignas de tal
filósofo, mas, mesmo assim, trazem uma certa marca do prestígio de seu nome e
daquele estado de espírito que ele depreciara em seus preceitos.”
16
Epicuro não
apenas ambicionou a glória por sua própria volúpia como também solicitou
diretamente o auxílio externo de seus seguidores para que fosse feita justiça à sua
sede de grandeza. Embora detivesse uma sabedoria superior enquanto fundador de
uma das mais importantes escolas filosóficas da Antigüidade, o grande filósofo
15
“(...) car ce precepte de sa secte: CACHE TA VIE, qui deffend aux hommes de s`empescher des
charges et negotiations publiques, pressupose aussi necessairement qu`on mesprise la gloire, qui
est une approbation que le monde fait des actions que nous mettons en evidence” Idem.
16
“(...) elles grandes et dignes d`un tel philosophe, mais si ont elles quelque marque de la
recommendation de son nom, et de cette humeur qu`il avoit décriée par ses preceptes.” Idem, p.
620.
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68
temeu cair no esquecimento, tal como os homens comuns, aspirando intensamente
a glória para transcender os limites mesquinhos de sua existência mortal.
À luz desse caso, o autor dos Ensaios questionou a validade prática desses
preceitos filosóficos que preconizavam a exclusão radical das ambições assim
como de seu ideal de sabedoria e de firmeza interior: “Esses argumentos são
infinitamente verdadeiros em minha opinião e lógicos. Porém, não sei como,
somos duplos em nós mesmos, o que nos faz não acreditarmos no que acreditamos
e não nos podermos desembaraçar do que condenamos.”
17
Essa passagem tem grande importância para a compreensão do conteúdo
crítico do ensaio. Ela confere forma aos desígnios originais da obra de Montaigne,
cuja maneira privada e pessoal em nada se identificava com um anseio de
perfeição moral e de obtenção da glória devida à exibição de uma sabedoria
superior, tal como sustentavam os argumentos dos estóicos Crisipo e Diógenes de
que utilizou-se no início de nosso ensaio, fundados na confiança irrestrita nos
poderes da razão. Por isso, voltaremos a essa passagem ao longo desse trabalho,
nos detendo nas conseqüências que implicava no interior de sua reflexão.
Com efeito, essa constatação da glória como uma condição universal da
natureza humana, impossível de ser plenamente unificada pelos preceitos da razão
– “doubles en nous mesmes” – determinava um limite à sua ação, explicitando a
natureza própria da experiência interior de Montaigne e as conclusões que extraía
de sua observação do comportamento dos homens, tal como se manifestava à sua
volta e nas obras da Antigüidade.
18
A partir dela ganhavam novos significados não
apenas a velha tópica clássica da naturalidade da glória como também o ideal
filosófico do estoicismo do centramento interior na firmeza da razão. Aquela ao
17
“Mais nous sommes, je ne sçay comment, doubles en nous mesmes, qui faict que ce que nous
croyons, nous ne le croyons pas, et ne nous pouvons deffaire de ce que nous condammons.” Idem,
p. 619.
18
Essa passagem em seu teor e em sua forma se assemelha a outras que destacavam-se de suas
reflexões em outros ensaios. Tal como esta que ressaltamos em Da glória, elas delineavam uma
determinada imagem da natureza humana extraída das idéias e considerações de Montaigne. Isso
ocorre especialmente no primeiro ensaio do livro I, Por diversos meios chega-se ao mesmo fim:
“Decididamente, o homem é um assunto espantosamente vão, variado e inconstante. Sobre ele é
difícil estabelecer uma apreciação firme e uniforme.” (I, 1, p. 9) E também no primeiro do segundo
livro, Da inconstância de nossas ações: “Nosso comportamento ordinário, é de seguir as
inclinações de nosso apetite, à esquerda, à direita, acima, abaixo, conforme nos leva o vento das
ocasiões.” (II, 1, p. 333). Tal como no trecho de Da glória em que Montaigne postulava essa
condição contraditória e universal de ser “doubles en nous mesmes”, a imagem do homem que
surgia nesses ensaios sublinhava a impossibilidade prática do espírito humano fixar-se em sua
razão. Sua natureza definia-se pelo movimento diverso e imprevisível de suas afecções, idéias e
impressões no contato com as coisas do mundo externo.
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invés de servir à denúncia da insensatez humana, aparecia como signo da própria
humildade em aceitar seus próprios limites enquanto a aspiração filosófica à
sabedoria (da “citadelle interieur” segundo a expressão célebre de Pierre Hadot
19
)
mediante a exclusão absoluta das paixões surgia como um orgulho desmedido
pois implicava num desejo de grandeza sobre humana.
Como já bem nos mostrou Pierre Villey
20
, a avaliação de Montaigne
acerca do poder da razão em regrar a alma, tão forte nos primeiros ensaios dos
primeiros anos da década de 1570, perdia espaço num momento posterior, por
volta de 1576, quando passou a assumir uma postura cética refletida sob a
apropriação dos antigos argumentos dessa tradição. Sua desconfiança no poder da
razão de conferir estabilidade ao espírito, que se faz sentir em Da glória, pode ser
muito bem exemplificada como opção consciente na Apologia de Raymond
Sebond, em que tomando para si o tropo cético da diaphonia – da balbúrdia entre
as mais diversas concepções contraditórias que havia sobre o soberano bem desde
os antigos - Montaigne condenou a pretensão da filosofia em prover a felicidade
humana. Criticou então o dogmatismo estóico e seu ideal do sábio sob a forma da
denúncia da vanité humana. Tal ideal se afigurava como não mais que uma ficção
inalcançável aos seus olhos, pois visando extirpar as paixões e o caráter
inconstante e múltiplo do espírito, ele acabava por aniquilar o próprio homem.
21
O
ideário que se expressava em Da glória, portanto, era o mesmo que resultava da
postura cética da Apologia, da vida adequada aos próprios limites e da aceitação e
preservação da existência humana em sua verdade natural e concreta: “Na
verdade, quem desarraigasse o conhecimento do mal estaria extirpando ao mesmo
tempo o conhecimento da voluptuosidade e por fim aniquilaria o homem.”
22
19
O primeiro exercício filosófico do estoicismo no sentido da realização plena da sabedoria e da
autonomia interior consistia em discernir a diferença entre o princípio diretor da alma -
hegemonikon -, lugar da identidade do eu e de sua consciência de si, das partes constitutivas da
alma e do corpo que não faziam parte do ser por receber involuntariamente as impressões do
mundo sensível definindo-se como lugares de origem das paixões do corpo e da alma. O princípio
diretor da alma exercia sua liberdade de escolha recusando-se a assentir nas falsas representações
das coisas do mundo recebidas por sua faculdade vital e afetiva - phantasia -assim como aos
desejos do corpo, impedindo assim a emergência das paixões que o desertavam de sua própria
razão. Sobre isso ver especialmente as Meditações de Marco Aurélio (II, 2, 1-3; II, 17, 1-4; III,
16,1) HADOT, P. La citadelle interieur, p. 131.
20
VILLEY, P. Sources et Evolution des Essais, p. 53.
21
Sobre a afirmação desse ideal em Sêneca ver a carta 20 das Cartas a Lucílio.
22
“De vray, qui desracineroit la cognoissance du mal, il extirperoit quand et quand la cognoissance
de la volupté, et en fin aneantiroit l`homme.” MONTAIGNE, II, 12, p. 493.
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70
Mas é importante frisar que o autor dos Ensaios sempre manteve viva sua
identificação com os argumentos do estoicismo, dos primeiros aos últimos
escritos. Se desfazia-se do aspecto dogmático e doutrinal dessa tradição, é preciso
reconhecer que o uso de seus preceitos sempre lhe foi conveniente na medida em
que exaltavam o desejo de autonomia e o esforço da própria vontade em libertar-
se das exigências e interesses do mundo. Nesse registro, exclusivamente, o
objetivo da sabedoria estóica condizia com o da escrita privada de Montaigne,
conforme podemos verificar no capítulo Da glória, que ora analisamos.
Mas, com efeito, postulando a duplicidade e a fragmentação interior como
marca distintiva da natureza humana, ele feriu o estoicismo em seu dogma central,
que, a seu ver, expressava a presunção que lhe era inerente. De fato, desde Zenão
e Crisipo, os filósofos estóicos sustentavam a unidade substancial do espírito
determinada por sua natureza racional; ao se converterem a ela, mediante a
exclusão das paixões, os homens faziam-se semelhantes à superioridade dos
deuses
23
. Para Montaigne, essa espécie de perfeição filosófica engendrava a
inumanidade, favorecendo também a seu próprio modo as falsas imagens externas
de superioridade voltadas para a admiração pública de que procurava desfazer-se a
fim de apreender-se em sua verdade
24
.
23
Esse velho dogma estóico do monismo intelectual da alma marcava sua diferença em relação ao
platonismo que postulava a dualidade entre uma parte racional, boa por si mesma, e outra
irracional, má e pervertida em sua própria essência. Para os estóicos, era a razão o princípio diretor
da alma – hegemonikon -, sua única substância e lugar da própria identidade e autonomia. As
paixões e perturbações da alma, assim, não correspondiam a outra parte sua, distinta de sua
natureza racional, mas se davam como resultado de um mau funcionamento do princípio diretor.
Eram como doenças a serem extirpadas da alma através da interiorização dos preceitos da doutrina
para que ela pudesse restaurar-se na pureza de sua razão. Ao homem que desejasse ser realmente
virtuoso e feliz era necessário que vivesse somente pela razão e para ela. Devia aprender a
submeter sempre à crítica seus desejos, temores e paixões a fim de não tornar-se um refém de suas
faculdades afectivas; de suas phantasias, produzidas pelas impressões sensíveis dos objetos
externos do mundo. Como Sêneca afirmava, a autosuficiência da razão humana se traduzia num
poder de discernimento e escolha moral que a associava à transcendência e à plena liberdade dos
deuses. Desse modo, era somente nela que podia realizar-se a grandeza humana mais alta: “(...)
esta não tem qualquer ponto de referência além de si própria, pelo contrário, serve ela de ponto de
referência a tudo. Também a razão divina governa tudo quanto existe sem a nada estar sujeita; o
mesmo se passa com a nossa razão, que aliás provém daquela.” SÊNECA, op. cit., carta 92, p. 462.
24
Sobre isso nos diz Jean Starobinski logo no início de seu Montaigne em Movimento: “É no efeito
de ilusão desse teatro que Montaigne insiste, como tantos de seus contemporâneos. Esse jogo que
se impõe a nós é um jogo de sombras. A grandeza dos príncipes é pura comédia: simulacros hábeis
bastam para figurar a majestade e suscitar o respeito dos povos. A sabedoria dos prudentes e a
doutrina dos sábios não são menos ilusórias. Tudo é trapaça, logro, aparência, artifício.”
STAROBINSKI, J., op. cit., p. 11.
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71
De fato, como bem nos mostra Pierre Hadot
25
, tanto o estoicismo como as
outras escolas helênicas jamais pregaram uma filosofia de absoluta evasão em
relação aos interesses da comunidade dos homens e de sua aprovação. Nenhum
desses filósofos renunciaram realmente a exercer certa influência sobre a cidade, a
conquistar a benevolência dos homens e a transformar a sociedade através de seus
ensinamentos. O sábio, portador de uma rara forma de grandeza também atraía a
admiração pública por sua condição excepcional, como exemplo de perfeição
moral, de liberdade e autonomia, fazendo-se exemplo da excelência mais perfeita
a que a condição humana podia se converter.
Na carta 21 das Cartas a Lucílio de Sêneca podemos encontrar uma
expressão significativa da atitude do sábio, retirado do mundo, em relação à
glória. Nessa ocasião, Sêneca exortou seu discípulo Lucílio a abandonar a vida
pública e a preocupação com a fama de grandes feitos, acenando com a promessa
de uma outra espécie de glória, bem mais plena e sólida, proveniente da dedicação
aos estudos. A independência das circunstâncias exteriores e o retorno à
interioridade, segundo enfatizava, não implicava numa vida obscura mas ao
contrário, num brilho muito mais intenso, em razão do próprio gênio e da
sabedoria superior, expressa na escrita pessoal das cartas:
Tu atribuis uma certa grandeza ao tipo de vida que deverás abandonar; embora
tenha uma antevisão da vida sábia e tranqüila a que irás aceder, o brilho
aparente da vida mundana continua a atrair-te, como se o fato de abandonares a
sociedade equivalesse a caíres numa vida de obscuridade completa. Estás
enganado Lucílio: passar da vida mundana à vida da sabedoria é uma ascensão!
A luz distingue-se do reflexo por ter sua origem em si mesma, enquanto o
reflexo brilha com luz alheia; a mesma diferença separa os dois tipos de vida: a
vida mundana tira seu brilho de circunstâncias exteriores e o mínimo obstáculo
imediatamente a torna sombria; a vida do sábio essa brilha com sua própria
luminosidade. Os teus estudos farão de ti um homem ilustre e famoso!
26
A meditação dos Ensaios por sua vez, estava longe de pretender
extravasar nessa luminosidade externa, prometida por Sêneca, garantidora da
glória imortal da sabedoria. Como Montaigne nos diz em Da solidão, era o
reconhecimento de suas insuficiências naturais e de seu caráter impróprio para
servir à utilidade dos homens que o movia ao isolamento: “Aqueles que têm o
25
HADOT, P. “La philosophie comme manière de vie” In: Exercices spirituels et philosophie
antique, p. 301.
26
SÊNECA, Cartas a Lucílio, 21, p. 74.
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entendimento lento e frouxo e uma afeição e vontade delicadas e que não se
sujeita nem se empenha facilmente – entre os quais me encontro tanto por
condição natural como por reflexão – curvar-se-ão melhor a esse conselho (...)”
27
Afirmando assim esse alvo privilegiado, da fidelidade às suas próprias
inclinações, ele criticou duramente o ato exaltado por Sêneca, de fazer da vida
isolada, dedicada aos estudos um meio de conquistar glória. De sua perspectiva,
essa era apenas mais uma maneira de alienar-se de si mesmo e de deixar-se levar
pelas próprias paixões. Assim, em Da solidão, denunciou a grande insensatez do
conselho dado por Plínio a Cornélio Rufo, de dedicar-se à prática solitária do
estudo das letras para adquirir um renome imortal:
Ele se refere à reputação, com disposição semelhante a de Cícero, que diz
pretender empregar sua solidão e descanso dos assuntos públicos em conquistar
através de seus escritos uma fama imortal: ‘Ora essa! Teu saber não é nada se
alguém mais não souberes que tem saber?’ (...) Eles preparam bem seu jogo
para quando não estiverem aqui; mas ainda então, ausentes, pretendem obter do
mundo o fruto de seu projeto por uma ridícula contradição.
28
Como podemos observar através da leitura do capítulo Da ociosidade, por
exemplo, (um dos mais antigos dos Ensaios
29
, redigido à época da decisão da
renúncia ao cargo no parlamento de Bordeaux.), a escrita privada de Montaigne,
em sua forma e em seus desígnios, não poderia estar a serviço das ambições de
glória. Neste curto ensaio é possível atestar que a natureza de sua experiência
interior sempre fora bem diversa daquela dos grandes sábios, apesar de cultivar
grande estima por seus preceitos. Com efeito, Montaigne confessava então que ao
retirar-se da vida pública pretendendo não se dedicar a outra coisa além da própria
tranqüilidade, seu espírito revelou-se incapaz de fixar-se - “s`arrester et rasseoir
en soy” - na solidez de uma essência racional tal como os grandes exemplos
antigos. Uma vez entregue a si mesmo no isolamento do retiro ele se precipitava
27
“Celles qui ont l`apprehension molle et làche, et un`affection et volonté delicate, et qui ne
s`asservit ny s`employe pas aysément, desuqels je suis et par naturelle condition et par discours, ils
se plieront mieux à ce conseil (...)” MONTAIGNE, I, 39, p. 242.
28
“Mais oyons le conseil que donne le jeune Pline à Cornelius Rufus, son amy, sur ce propos de la
solitude: Je te conseille, en cette pleine et grasse retraicte, où tu es, de quitter à tes gens ce bas et
abject soing du mesnage, et t`adonner à l`estude des lettres, pour en tirer quelque chose qui soit
toute tienne. Il entend la reputation: d`une pareille humeur à celle de Ciceron, qui dict vouloir
employer sa solitude et sejour de affaires publiques à s`en acquerir par ses escris une vie
immortelle: ‘Quoi donc! ton savoir n`est-il rien si quelque autre ne sait pas que tu as du savoir?’
(...) Ils dressent bien leur partie, pour quand ils n`y seront plus: mais le fruit de leur dessein ils
pretendent les tirer encore lors du monde, absens, par une ridicule contradition.” Idem, p. 244.
29
VILLEY, P. op. cit., p. 351.
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73
“(...) dans le vague champ des imaginations”, engendrando toda sorte de
“chimeres et monstres fantasques”. Não havia preceito capaz de retê-lo e de dar-
lhe uma forma fixa e ideal em seu movimento perpétuo e espontâneo de
proliferação de juízos e impressões sobre as coisas do mundo:
(...) imitando o cavalo fugido, ele dá a si mesmo cem vezes mais trabalhos do
que assumia por outrem; e engendra-me tantas quimeras e monstros fantásticos,
uns sobre os outros, sem ordem nem propósito, que para examinar com vagar
sua inépcia e estranheza comecei a registrá-los por escrito, esperando com o
tempo fazer com que se envergonhe de si mesmo por causa delas.
30
Esta passagem contém talvez a primeira declaração de Montaigne acerca
da origem e da matéria de seu discurso, definidos pelo desejo de comprazer-se
consigo mesmo no registro dos movimentos espontâneos e desordenados do
espírito. Na escrita de Montaigne era justamente a diversidade de sensações
causadas na alma pelas impressões sensíveis do mundo externo, rejeitadas pela
sabedoria estóica, que lhe forneciam sua matéria e pelas quais realizava seu
intento de representar-se em sua forma natural. Situava-se como objeto, portanto,
pela observação dos juízos e impressões diversas da alma; suas “chimeres et
monstres fantasques”.
De fato, não era essa espécie de matéria, fornecida pela vida ociosa e
impassível de ser útil e instruir os homens, que legitimava e dignificava a escrita
privada de Sêneca em suas Cartas a Lucílio. Na carta 108 ele falou da semente
das virtudes sociais, da justiça e da benevolência que a providência divina havia
depositado em todos os espíritos e que a própria razão estava encarregada de
desenvolver, traduzida no esforço em cumprir benefícios: “(...) a todos nós a
natureza deu, em potência, a semente da virtude. Todos nós nascemos com
aptidão para toda espécie de bem.”
31
Assim, na carta 8, Sêneca declarou ao seu
discípulo que sua escrita pessoal se endereçava à posteridade, se afirmando como
meio de aperfeiçoamento moral através da interiorização plena dos preceitos da
doutrina. Centrado na fortaleza de sua razão ele se oferecia como exemplo para a
instrução da humanidade:
30
“(...) faisant le cheval eschappé, il se donne cent foix plus d`affaire à soy mesmes, qu`il n`en
prenoit pour autruy; et m`enfante tant de chimeres et monstres fantasques les uns sur les autres,
sans ordre, et sans propos. que pour en contempler à mon aise l`ineptie et l`estrangeté, j`ay
commancé de les mettre en rolle, esperant avce le temps luy en faire honte à luy mesmes.”
MONTAIGNE, Idem, p. 33.
31
SÊNECA, Cartas a Lucílio, 108, p. 593.
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74
(...) estou trabalhando para a posteridade. Vou compondo alguma coisa que lhe
possa vir a ser útil; passo ao papel alguns conselhos salutares, como as receitas
dos remédios úteis, - conselhos que sei serem eficazes por tê-los experimentado
em minhas próprias feridas (...) Indico aos outros o caminho justo, que eu só
tarde encontrei cansado de atalhos.
32
Mas, a despeito dessa diferença, é importante não perder de vista que a
atitude contemplativa própria aos preceitos do estoicismo - e do otium cum litteris
praticado pelo Sêneca das Cartas -, permanecia no cerne do discurso dos Ensaios,
que tinha na solidão da vida retirada e em sua meditação interior o modo
privilegiado da conquista da própria autonomia. Ainda que a dualidade interna
que se instaurava nesse movimento de tomar a si mesmo como objeto de
conhecimento não se definisse para Montaigne como um estado provisório a ser
superado por uma razão substancial e unificadora
33
, o apreço pela liberdade e pela
independência de seu juízo em relação aos excessos das paixões, que era tão
característico dos preceitos estóicos, se afirmava como força motriz de sua crítica
à ambição de glória.
Segundo ele mesmo nos dizia em Da ociosidade, esta instabilidade interna
traduzida na proliferação de “monstres fantasques”, embora fosse uma
conseqüência imprevista de suas pretensões à tranqüilidade filosófica,
estabeleceu-se como princípio e método de sua empresa de conhecer-se em sua
verdade nas páginas do livro. Apresentava, então, em sua origem o processo de
produção de seu discurso como um diálogo interiorizado, fruído num
desdobramento interno que se recusava a toda identificação. Nele tomavam seus
lugares o eu autor, incapaz de fixar-se e o eu narrador que testemunhava e
registrava as ‘chimeres et monstres fantasques’ produzidos, exercendo seu
jugement sobre eles
34
.
Agora, para voltarmos ao exame de Da glória, é importante retermos
dessas breves considerações sobre Da ociosidade, que ao mudar o tom de sua
crítica moral das ambições em nosso ensaio - postulando essa condição
fragmentada da alma, “doubles en nous mesmes”, e o desejo de glória como seu
elemento insuprimível -, Montaigne exprimia o caráter particular de sua
32
Idem, 8, p. 19.
33
STAROBINSKI, J., op. cit., p. 28.
34
KUSHNER, Eva. “Monologue et Dialogue dans les deux premiers livres” In: Actes du colloque,
p. 105.
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75
experiência interior e as motivações próprias de seu discurso. Como já vimos, seu
repúdio à glória de grandes atos não se fundava no anseio pela glória da sabedoria
em que se fundava em geral a crítica à glória de grandes ações, com que um
homem se alçava bem acima do vulgo, extirpando da alma todas as paixões que a
levavam para fora de si mesma.
O reconhecimento da naturalidade dessa ambição, após a afirmação de sua
crítica, longe de funcionar como ponto de partida para a consolidação de um
sentido ético positivo para a glória, atualizava seu desígnio fundamental, ou seja,
de assegurar a plena liberdade de seu jugement, tomando seus próprios enunciados
como objetos de questionamentos e de reconsiderações.
3.4) A apropriação montaigneana da mediania aristotélica.
O exemplo das derradeiras palavras de Epicuro, com efeito, suscitou ao
exercício de seu jugement novas reflexões sobre o tema abrindo espaço para a
consideração da glória como um grande bem da vida humana sob o recurso às
opiniões opostas à tradição estóica, representadas por Carnéades e por
Aristóteles
35
:
35
Montaigne se utiliza nessa primeira parte de Da glória de um caro procedimento da retórica
clássica e humanista: a variatio, sobretudo se pensarmos nas diversas opiniões contrárias que
explora sobre o tema. Tradicionalmente, a variatio era usada nos manuais retóricos antigos para
enriquecer o discurso e multiplicar suas possibilidades de persuasão, sendo enfatizada tanto a
diversidade das formas de expressão (verba) quanto a capacidade de se multiplicar os temas ou as
coisas (res). No De Oratore, Cícero destaca a variatio como um elemento fundamental da boa
eloqüência e das virtudes do orador: “Quem é o homem que sabe estremecer uma assembléia? (...)
Que parece quase um Deus diante dos mortais? Aquele cujo estilo possui variedade, clareza e
amplitude, que sabe iluminar pensamentos e palavras, e que, se exprimindo em prosa cria uma
sorte de ritmo e de cadência poética; em suma isso é que entendo por brilhante.” (De Or. III, 14,
53) Manuais como o de Cícero e o de Quintiliano destacavam como é possível variar as verba: as
palavras, o estilo, as expressões e os ornatos sem obscurecer o tema do discurso e evitando a
tautologia, ou seja, a repetição das mesmas palavras ou expressões; considerado um vício tão
ofensivo quanto evidente, que impossibilitava a plena persuasão. Do mesmo modo, eles
ressaltavam também como variar e amplificar as res através de procedimentos como o uso dos
exemplos, das digressões e das descrições: de uma cena, por exemplo, que transporta o leitor para
um teatro e lhe coloca a coisa diante de seus olhos; da tomada de uma cidade; de um banquete, de
revoltas e batalhas, cerimônias religiosas, animais, trabalhos de arte, máquinas, edifícios, entre
várias outras. Além destas, existem ainda outras várias formas de variatio segundo a retórica
clássica, mas não é nosso objetivo aqui destacar todas as formas inerentes a este procedimento.
Nosso objetivo consiste apenas perceber a(s) forma(s) de variação utilizada(s) em Da glória. Neste
ensaio acreditamos que Montaigne recorre, em grande medida, aos exempla, ressaltando sua
relação de semelhança, de dissemelhança ou de oposição (simile, dissimile, contrarium) que pode
existir entre o personagem/tema ou a situação da qual se fala. Podemos perceber este fato quando
observamos a variedade de exemplos contrários (e diversos) sobre a questão da glória, sem que, no
entanto, o autor adote ou prescreva qualquer juízo de valor sobre eles. Esta opção de Montaigne
define a originalidade de sua posição enquanto consubstancial à própria forma de sua expressão
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Carnéades liderou a opinião contrária e sustentou que a glória era por si mesma
desejável, assim como nos apegamos a nossos póstumos por eles mesmos sem
ter deles qualquer conhecimento e proveito. Essa opinião não deixou de ser
seguida pela maioria, como costumam ser as que mais se adaptam às nossas
inclinações. (C) Aristóteles dá-lhe o primeiro lugar entre os bens externos.
Evita, como dois extremos viciosos, a falta de moderação tanto em buscá-la
como em fugir dela.
36
Portanto, a crítica da glória que Montaigne tomava para si recorrendo à
tradição cristã e aos grandes filósofos do helenismo perdia espaço diante dessa sua
aceitação como um bem próprio ao espírito humano.
Com efeito, o preceito aristotélico da mediania - fruto de um acréscimo
posterior ao ensaio, que lhe indicava novos rumos - parecia condizer mais com a
posição de Montaigne sobre a glória do que a crítica estóica das paixões, que,
como já vimos, segundo ele, pretendia elevar o homem acima de si mesmo. A
virtude conforme a entendia, dessa perspectiva aristotélica, não se definia, como
para os estóicos, enquanto cumprimento de um dever preestabelecido pela ordem
natural e universal dada pela providência divina, cuja plena adequação
determinava a forma da boa conduta, suficiente para prover o seu bem
37
.
Aludindo ao preceito aristotélico da mediania, assim, Montaigne,
reforçava sua aspiração de autoafirmar-se pela liberdade de suas próprias escolhas
e das asserções particulares de seu jugement nos Ensaios. Apresentava, portanto, a
discursiva como ensaio, como pensamento que se ensaia no livro se afirmando sem negar sua
relatividade enquanto mera opinião. Como bem nos mostra Geralde Nakam a propósito dos
princípios constitutivos do discurso dos Ensaios: “Suas idéias, suas convicções ele as enuncia a
título de ‘ensaios’ sem nada de preestabelecido, nem no conteúdo nem na forma, sem nada de
imutável. O pensamento se encontra ele mesmo ‘se ensaiando’ e encontra assim sua forma,
através, de nodo, de suas recusas e diferentes deslocamentos.” NAKAM, G., Montaigne la
Manière et la Matière, p. 10. Sobre as formas de variatio empregadas pelo humanista Erasmo de
Rotterdam, no século XVI, ver: PINTO, Fabrina M., op. cit., capítulo 4.
36
“Carneades a esté chef de l`opinion contraire, et a maintenu que la gloire estoit pour elle mesme
desirable: tout ainsi que nous ambrassons nos posthumes pous eux mesmes, n`en ayans aucune
connoissance ny jouissance. Cette opinion n`a pas failly d`estre plus communement suyvie,
comme sont volontiers celles Qui s`accomodant le plus à nos inclinations. (C) Aristote luy donne
le premier rang entre les biens externes. Evite, comme deux extremes vicieuses, l`immoderation et
à la rechercher et à la fuir.” MONTAIGNE, II, 16, p. 620.
37
Na carta 92 das Cartas a Lucílio Sêneca explicita o sentido desse preceito estóico de viver
conforme à natureza como adequação a uma ordem necessária e transcendente: “Todo esse
universo que nos rodeia é uno, é Deus. Nós somos participantes dele, somos como que os seus
membros. A nossa alma tem capacidade bastante para se elevar até a divindade desde que os vícios
não a deitem por terra. Tal como a estrutura de nosso corpo está organizada para se erguer em
direção ao céu, também a nossa alma – que tem a capacidade para abarcar tudo quanto queira! –
foi formada pela natureza com a finalidade de conformar os seus propósitos aos dos deuses.”
SÊNECA, Cartas a Lucílio, 92, p. 471. Sobre esse assunto ver Veyne, P. Seneca en el estoicismo,
p. 56.
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conduta virtuosa em relação à glória como fruto de uma atividade própria da alma,
concebida como expressão de uma disposição de caráter particular – hexis -
exercida em relação a esta espécie de paixão
38
. De fato, entendendo a virtude não
como resultante de um determinismo naturalista, mas como fruto de um “hábito”
adquirido, definidor de sua própria natureza
39
, ele melhor ressaltava a motivação
fundamental de seus Ensaios, de conhecer-se em sua própria verdade, enquanto
alheia à normatividade das doutrinas universalistas. Examinaremos mais
profundamente este último ponto no próximo capítulo, ao analisarmos o ceticismo
de Montaigne. Por ora, nos basta atentar, que à diferença da ética estóica, a
conduta virtuosa em relação às paixões em Da glória, identificada à perspectiva
aristotélica, tinha como causa motora a disposição própria do agente; sua prática
constante e o deleite com a escolha das ações virtuosas, condizentes com as
próprias inclinações.
40
Mas a maneira como ele tomava para si esse primado da mediania, fazia
com que incidisse a acusação do excesso e vício dessa afecção diretamente sobre a
fórmula típica do pensamento político clássico e humanista, isto é, de seu elogio
como estímulo da virtude, sua expressão e recompensa privilegiada. Na prática,
devido às inclinações humanas naturais aos excessos da vaidade, essa fórmula se
prestava à situação absurda de inversão dos termos, ou seja, da subordinação do
valor da virtude ao desejo da glória que não passava afinal, segundo a definição
já dada no proêmio do ensaio, de um simples ornamento externo, alheio à razão e
dependente das opiniões do vulgo. Isso Montaigne declarou no registro da crítica
às ambições desmedidas que entrevia no caso de Cícero:
38
ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco, II, 5.
39
A relação entre natureza e virtude na Ética a Nicômaco está bem exposta na seguinte passagem
do início do segundo livro, que ressalta a importância da noção de “hábito” na perspectiva
aristotélica sobre o tema: “Não é pois, por natureza, nem contrariando a natureza que as virtudes se
geram em nós. Diga-se antes, que somos adaptados por natureza a recebê-las e nos tornamos
perfeito pelo hábito.” Idem, II, 1, 1103
a 23. Com efeito, desse modo, a virtude natural, enquanto
inata, é insuficiente para realizar a ação moral propriamente dita. Aparece como algo que se
assemelha à virtude, sem porém identificar-se plenamente com ela: trata-se de uma disposição
excelente da alma – hexis - mas que sozinha, sem o concurso da prática; da prudência; da
deliberação refletida – phronesis – permanece sem valor moral. VIANO, C., “O que é a virtude
natural?” In: A Ethica Nicomachea de Aristóteles, Analytica, 8, p. 116.
40
Na seguinte passagem Aristóteles explicita essa imensa distância entre sua concepção acerca da
natureza da virtude em relação aos preceitos estóicos: “Com efeito, a excelência moral relaciona-
se com prazeres e dores; é por causa do prazer que praticamos más ações e por causa da dor que
nos abstemos de ações nobres. Por isso deveríamos ser educados de uma determinada maneira
desde a juventude, como diz Platão, a fim de nos deleitarmos e de sofrermos com as coisas que nos
devem causar deleite ou sofrimento pois essa é a educação certa.” Idem, II, 3, 1194b 10.
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78
Creio que se tivéssemos os livros que Cícero escrevera sobre esse assunto ele
nos diria disparates; pois esse homem foi tão arrebatado nessa paixão que, se
tivesse ousado, facilmente teria creio eu caído no excesso em que caíram outros
de que a própria virtude só era desejável pelas honras que vinham sempre em
sua esteira, ‘A virtude escondida pouco difere da ociosidade obscura’
41
Essa passagem aparecia como uma espécie de conclusão extraída da
ambigüidade de suas considerações sobre a glória precisando sua concepção
negativa desenvolvida no ensaio. Se é verdade que Montaigne admitia a
naturalidade da glória e a impossibilidade de encerrar-se em sua própria razão, tal
como preconizavam os estóicos Crisipo e Diógenes, esse reconhecimento não
vinha tanto atenuar sua crítica quanto reforçar a fragilidade da alma humana e a
necessidade de um cuidado constante para não recair no excesso de tomar a glória
como expressão da virtude e medida de seu valor.
Acusava, assim, como falsa e perniciosa uma opinião largamente
difundida na França de seu tempo e que determinava os costumes de uma nobreza
que se empenhava em grandes ações guerreiras unicamente para dar mostras de
sua valentia e conquistar mais honras. Montaigne destacava essa opinião como
origem das mais graves imposturas morais, pois, entender que os atos da virtude
extraíam seu valor da glória significava perverter sua verdadeira essência
realizada na dimensão interna do cultivo das qualidades da alma. Retomava então
a definição da glória afirmada no início do ensaio, como um vão simulacro; uma
falsa aparência da virtude. Com efeito, se o contrário fosse verdade, ou seja, se a
virtude extraísse seu valor dos signos externos de grandeza: “(...) só precisaríamos
ser virtuosos em público; e as atividades da alma, que é a verdadeira sede da
virtude, só teríamos que mantê-la em regra e em ordem na medida em que
devessem chegar ao conhecimento de outrem.”
42
41
“Je croy que, si nous avions les livres que Cicero avoit escrit sur se subject, il nous en conteroit
de belles: car cette homme là fut si forcené de cette passion que, s`il eust osé, il fut, ce crois-je,
volontiers tombé en l`exces où tombarent d`autres: que la vertu mesme n`estoit desirable que pous
l`honneur que si tenoit tousjuours à sa suite: ‘La vertu cachée diffère peu de l´obscure oisivité’”.
MONTAIGNE, II, 16, p. 620.
42
“(...) il ne faudroit etre vertueux qu`en public; et les operations de l`ame, où est le vray siege de
la vertu, nous n`aurions que faire de les tenir en regle et en ordre, sinon autant qu`elles debvroient
venir à la connoissance d`autruy.” Idem, p. 621. Tópica das mais recorrentes na literatuta moral da
Renascença era esta de não confundir vícios com virtudes. Como atentava Eramo, por exemplo, no
capítulo 5 de seu Enquiridion, o homem é sempre vítima do mau entendimento das coisas do
mundo, levado pelas aparências enganosas: “(...) há vícios tão próximos às virtudes que corremos
o perigo de confundir uns com os outros.” Por isso, continuava, o caminho para a verdadeira
virtude deveria partir do velho preceito grego e socrático do conhece-te a ti mesmo, da própria
razão como fundamento do bem agir: “Este é, pois o único caminho para a virtude: primeiro
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Montaigne se estendeu ainda sobre a espécie de vícios que decorriam de
tal opinião, usando também para o entendimento do vício o mesmo raciocínio que
ela estabelecia para conceber o valor da virtude, como extraindo seu valor das
aparências. Se levássemos em consideração esse ponto de vista de que a virtude
deixava de sê-la por estar oculta seria coerente que pensássemos da mesma forma,
que o vício que não chegasse ao conhecimento de outrem deixasse de ser vício.
Com efeito, essa valorização excessiva da opinião alheia abria caminho para toda
sorte de dissimulação: “Então se trata apenas de errar com astúcia e sutileza?”
43
A
interiorização do juízo dos outros como critério valorativo dos próprios atos e
intenções levava à perda da própria razão e ao hábito da falsidade.
Ele atentava assim para as conseqüências danosas das ações de tais
homens que se deixavam arrastar a tal ponto pela consideração do juízo alheio.
Embora ocultos dos olhares externos seus atos viciosos não causavam menos
males na prática do que se fossem exercidos abertamente, tal como dizia uma
sentença de Carnéades incluída no ensaio: “Se souberes, diz Carnéades, que há
uma serpente escondida no lugar em que, inadvertidamente, se sentará aquele de
cuja morte esperas proveito, ages mal se não o avisares, e ainda mais na medida
em que tua ação só será conhecida por ti mesmo”
44
Com essa sentença Montaigne situou o debate sobre o significado dos atos
no domínio da disposição de caráter do agente, reforçando em seu interior a
doutrina aristotélica da virtude, que antes de valorizar os atos por sua aparência
externa, determinava as condições da ação moralmente judicável pelas condições
internas do agente: com efeito, a virtude e o vício da perspectiva aristotélica só
poderiam ser tomados como tais - ou seja, como objetos de elogio e de vitupério -
não tanto por suas conseqüências externas, mas sobretudo enquanto ações
voluntárias, tendo no interior do indivíduo seu motor fundamental.
45
Desse ponto de vista, o vício que se dissimulava nas aparências, aparecia
como o que mais se intensificava em maldade, por ocultar-se deliberadamente.
Com essa reflexão, Montaigne parecia desafiar aqueles que pensavam que a
conhece-te a ti mesmo. Segundo agir, não segundo as paixões, mas sim, de acordo com os dictados
da razão.” ERASMO, Enquiridion, 5, p. 100-101.
43
“N`y va il donc que de faillir finement et subtilement?” MONTAIGNE, II, 16, p. 621.
44
“Si tu sçais, dit Carneades, un serpent caché en ce lieu, auquel, sans y penser, se va seoir celuy
de la mort du quel tu esperes profit, tu fais meschammant si tu ne l`en advertis; et, d`autant plus
que ton action ne doibt estre connue que de toy.” Idem.
45
Sobre esse assunto ver Aristóteles, Ética a Nicômaco, II, 3 e III, 5.
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80
virtude vivenciada no domínio interno da consciência, ao contrário do vício, era
destituída de sentido.
46
Conforme sublinhava, era a firmeza de caráter e a
sinceridade da vida virtuosa, cuja retidão não se deixava abalar por nenhuma
circunstância externa que determinavam a verdadeira excelência humana: “Se não
buscarmos em nós mesmos a regra de agir bem, se a impunidade nos é justiça, a
quantas espécies de maldade temos de nos entregar diariamente!”
47
Execrável era
trair a verdade e a razão para apegar-se somente às aparências externas dos atos,
tal como concebidos pelo juízo alheio, pois eram as afecções e impressões da
alma, comandadas pela fortuna, que determinavam seus veredictos. O domínio das
aparências se definia como o prisma enganoso através do qual os ignorantes e
viciosos concebiam seu próprio valor; elas os distanciavam do conhecimento de si
mesmos e os acostumava assim à perfídia.
Conforme Montaigne nos mostrava, sob a primazia de um critério externo
como medida da virtude e do vício, era possível agir ao mesmo tempo em plena
conformidade com as leis e cometer crimes contra a sociedade humana. Isso ele
atestava pelo exemplo de P. Sextílio Rufo, que Cícero
48
recriminava por ter
recebido de acordo com as leis e contra sua consciência uma herança que não lhe
cabia de direito. Assim como este último, também M. Crasso e Q. Hortensio não
hesitaram em usufruir os lucros provenientes de uma fraude, uma vez a salvo das
testemunhas externas e encobertos das leis.
Após enfatizar assim os graves vícios da mentira e da dissimulação que
provinham da confusão tão comum que os homens faziam entre vícios e virtudes,
Montaigne reforçou seu elogio de uma moral calcada exclusivamente na dimensão
interna do próprio caráter através de um empréstimo feito a Dos deveres de
Cícero, obra moldada nos princípios do estoicismo. Ele advertia assim aos
46
Tal noção radicava nos princípios da velha moralidade romana de culto à vida ativa, dedicada
aos negócios da cidade como forma superior de vida. Segundo essa perspectiva, o valor da virtude
se impunha sobretudo em razão de sua visibilidade social, comprovada pelo alcance de uma
posição pública de relevo. Entre os costumes dos antigos romanos, centrados numa educação
enraizada na práxis da formação dos cidadãos, não havia lugar para a noção de uma virtude cuja
força superior se definisse pelo fato de bastar-se a si mesma, realizando-se na dinâmica interior da
vida do espírito. Longe disso, sua posse deveria se manifestar por grandes atos e empresas,
levando à fama e à notoriedade no mundo público. Como veremos no próximo capítulo, esse
ideário teve uma de suas mais vigorosas formulações na obra de Salústio sobre a conjuração de L.
Catilina.
47
“Si nous ne prenons de nous mesmes la loy de bien faire, si l`impunité nous est justice, à
combien de sortes de meschancetez avons nous tous les jours à nous abandoner!” MONTAIGNE,
II, 16, p. 621.
48
CÍCERO, Dos deveres, III, 18, 73.
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81
dúplices que ainda que pudessem dissimular seus vícios dos olhos de seus pares
nunca poderiam ocultar sua essência nefasta das vistas de sua razão: “Que eles se
lembrem que têm Deus por testemunha, ou seja, no meu entender, sua própria
consciência.”.
49
De fato, Montaigne não deixou de fazer uso dos preceitos estóicos no
interesse da ênfase em sua perspectiva negativa sobre a glória e de sua dissociação
da essência da virtude. Segundo ele, da mesma maneira que para os estóicos, ela
era exatamente o oposto da virtude, pois se dava como fruto da fortuna, assim
como o era o movimento das opiniões dos homens no mundo público. Desse
modo, a glória estava longe de ser capaz de exprimir a virtude, pois não era a
disposição de caráter do agente que a fundava:
A virtude é coisa muito vã e frívola se extrair seu valor da glória. Inutilmente
nos proporíamos a fazê-la ter seu lugar à parte e a dissociaríamos da fortuna;
pois o que é mais fortuito do que o renome? (C) ‘Indiscutivelmente a fortuna
estende a todas as coisas seu domínio; ela distribui a glória ou a sombra mais
segundo seus caprichos do que pelo verdadeiro mérito’ (A) Fazer com que as
ações sejam conhecidas e vistas é simples obra da fortuna.
50
3.5) A glória da vida tranqüila e a destituição do valor dos exemplos.
Essa tópica da associação entre glória e fortuna que Montaigne enfatizou
acima, recorrendo a uma passagem do Catilina de Salústio, assume grande
importância no ensaio desde então. Ele a desenvolverá ao longo do texto, como
veremos, explorando os contrastes entre a insensatez dos homens que se deixavam
levar por suas ambições, subordinando suas vidas aos rumos incertos da fortuna e
a virtude da vida reta, cujo alvo privilegiado era a fidelidade à própria razão. Isso
se evidenciava em inúmeras passagens reflexivas de Da glória, nas quais
Montaigne falava em seu próprio nome, como que interrompendo o fluxo do
49
“Qu`ils se souviennent qu`ils ont Dieu pour témoin, c`est-à-dire comme je l`entends, leur propre
conscience.” MONTAIGNE, II, 16, p. 621.
50
“La vertu est chose bien vaine et frivole si elle tire as recommendation de la gloire. Pour neant
entreprendrions nous de luy faire tenir son rang à part et la déjoindrons de la fortune (C) ‘Certes la
fortune étend sa domination sur toutes choses; elle distribue la gloire ou l`ombre plus selon ses
caprices que selon le vrai mérite’ (A) De faire que les actions soient connuës et veuës, c`est le pur
ouvrage de la fortune.” Idem.
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discurso para sintetizar suas próprias perspectivas. Procuraremos analisar aqui o
teor dessas passagens ao longo de nossa leitura do ensaio, pois, elas exprimiam a
reflexão do autor dos Ensaios sobre o caráter singular de sua empresa de escrever
sobre si, suscitada pela crítica da glória.
Na primeira passagem reflexiva do ensaio, fruto de um acréscimo posterior
a 1588, ele declarava que a única glória que lhe era possível almejar deveria ser
radicalmente dissociada do reconhecimento público e fruída na dimensão
puramente interna de sua meditação. Esta só dizia respeito à aprovação de seu
próprio jugement e por isso jamais degenerava nas aspirações orgulhosas dos
filósofos.
51
A primeira conseqüência dessa espécie de glória, segundo sua razão,
era da destituição do valor moral dos exemplos generalizados de virtude da
Antigüidade e do repúdio à prática da imitação:
Toda a glória que pretendo de minha vida é tê-la vivido tranqüila: tranqüila não
segundo Metrodoro ou Arcesilau ou Aristipo, mas segundo eu mesmo. Pois que
a filosofia não soube encontrar um caminho para a tranqüilidade que fosse bom
em comum, que cada um o procure por si mesmo.
52
Ao negar a imitação dos exemplos como modo de dar forma à sua natureza
particular e afirmar seu valor, Montaigne parecia negar também o potencial
comunicativo de seu discurso no contexto humanista - sobretudo tal como
constituído em seus primeiros tempos, entre os autores italianos - em benefício da
veracidade de sua representação de si, avessa a encontrar regras de bem viver em
determinações artificiais, impostas de fora.
51
Erasmo também concedeu destaque a esse tema da crítica ao orgulho e à ambição dos autores de
seu tempo no Elogio da Loucura, afirmando já a diferença de seus propósitos daqueles dos
pedantes e dos eruditos humanistas, principalmente dos italianos, que escreviam para exibir seus
conhecimentos das formas e dos saberes dos antigos, buscando imortalizar seu próprio nome: “Da
mesma forma são os escritores, que aspiram à fama imortal com a publicação de seus livros. Todos
me devem enormemente, sobretudo aqueles que escrevinham no papel puras patranhas. Quanto
aos que submetem sua erudição ao julgamento de um pequeno número de sábios e não recusam
nem Pérsio nem Lélio, parecem-me muito mais infelizes, dada a tortura sem fim que se impõem.
Acrescentam, mudam, suprimem, abandonam, retomam, reformulam, consultam sobre seu
trabalho, guardam-no nove anos, não se satisfazem jamais; e a glória, fútil recompensa que poucos
recebem, pagam-na singularemnte à custa do sono, esse bem supremo, e com tantos sacrifícios,
suores e labutas. Acrescentemos a perda da saúde e da beleza, a oftalmia e mesmo a cegueira, a
pobreza, os invejosos, a privação de todo prazer, a velhice precoce, a morte prematura e tantas
outras misérias. Com esta série de sacrifícios nosso sábio julga pagar caro demais a aprovação que
lhe regateia este ou aquele caquético.” ERASMO, O Elogio da Loucura, L, p. 63.
52
“Toute la gloire que je pretens de ma vie c`est de l`avoir vescue tranquille: tranquille non selon
Metrodorus, ou Arcesilas ou Aristipo, mais selon moy. Puis que la philosophie n`a sçeu trouver
aucune voye pour la tranquilité, que fust bonne en commun, que chacun la cherche en son
particulier.” MONTAIGNE, II, 16, p. 622.
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83
Podemos dimensionar melhor esse alcance da negação da glória afirmada
acima se compararmos esta passagem com trecho de uma carta de Petrarca, o
primeiro grande representante humanista da tradição clássica do otium cum
litteris. Nessa carta a Francesco Da Napoli, Petrarca (tal como Montaigne faria
mais tarde em Da glória), apresentava-se como dotado de um temperamento
naturalmente impróprio às atribulações da vida pública e à glória que era o prêmio
das ações mais grandiosas e mais adequado ao exercício de uma vida
contemplativa dedicada aos estudos. Entretanto, sua opção pelo retiro só ganhava
legitimidade sob uma outra forma de aspiração ao reconhecimento do mundo,
bem direcionada pela razão e pelos estudos e devida ao aperfeiçoamento moral do
espírito. Petrarca expunha assim na escrita pessoal de suas cartas a imagem de sua
vida como plenamente absorvida pela imitação e oferecida à avaliação do juízo
público. Seu desejo de glória, dessa maneira, se dava como sinal de sua grandeza
e firmeza interior, que o impedia de deixar-se levar cegamente por seus instintos:
Eu não negarei que por natureza sou muito desejoso de glória, mas eu tanto
moldei minha alma com estudo que ficarei feliz em alcançá-la se possível. (...)
Desejo ser Demóstenes por natureza e Demócrito por imitação. Nós lemos que
o primeiro procurava a glória e o último a desprezava. Enquanto isso para não
permitir que meu talento enfraqueça pela negligência eu exercito meus olhos na
leitura, meus dedos na escrita e minha mente na meditação. Finalmente eu não
omiti nada que estivesse em meu poder para alcançar este objetivo, então, caso
não seja bem sucedido, eu deverei acreditar que terá sido para o melhor não tê-
lo conquistado. Esta é minha vida, que eu espero que seja julgada por você
através das minhas cartas (...)
53
Sua desejada recusa da glória, por meio do estudo, portanto, não se
afirmava, como ocorreria no caso de Montaigne, em benefício do desnudamento
de uma forma particular, avessa ao recurso a qualquer espécie de generalização e
que, portanto, seria obscurecida pelos artifícios da imitação. Longe disso, ligava-
se ao culto da perfeição dos grandes exemplos que haviam conseguido libertar-se
de suas ambições mundanas. Estes se davam como elementos reguladores da
personalidade de Petrarca e garantidores do reconhecimento externo de sua
dignidade. Era em benefício desta que Petrarca voltava a solicitar a sanção do
juízo externo para atestar o valor e dignidade de sua firmeza.
53
PETRARCA, “To Francesco da Napoli, Apostolic Prothonotary, how restless and agitated are
the lives of men of affairs, and yet great glory is unattainable without great toil” Familiares, XIII,
4, p. 185.
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84
Já a glória “selon moy” de Montaigne exprimia a consciência da
originalidade irredutível da forma e dos desígnios de sua escrita a serviço do
registro de seu modo de ser e de seus comportamentos privados mais simples e
ordinários, implicando na afirmação de relações totalmente diferenciadas com
seus leitores. Longe de definir-se a partir de um anseio de constituir-se para fora,
tendo como principal meta a aprovação dos homens, era a fidelidade à sua
experiência imediata e interna consigo mesmo que exprimia sua natureza. Essa
espécie de glória traduzia-se, assim, na livre expressão da vivência de uma
interioridade naturalmente fragmentada, a cujo movimento que Montaigne aderia
totalmente.
Diante disso, cabe nos perguntarmos sobre o lugar dessa condição, do
reconhecimento das insuficiências da própria razão, no novo modo de relação que
implicava com seus leitores. De fato, a declaração desse intento de uma glória
selon moy”, avessa a aderir aos grandes exemplos de sabedoria dos antigos,
sintetizava em poucas palavras, a natureza original da empresa do autoretrato nos
Ensaios, de apreender-se em sua verdade particular, por isso voltaremos ainda a
ela ao longo desse trabalho.
Para que possamos examinar melhor a natureza e os desígnios próprios do
autoretrato nos Ensaios, em suas relações com a crítica da glória, consideramos
bastante útil e enriquecedor nos desviarmos um instante da leitura de nosso
ensaio, situando seu tema, do repúdio às ambições, num contexto mais amplo que
ultrapasse seus limites. Daremos início, assim, ao próximo capítulo, interpretando
o conteúdo da Advertência ao Leitor, em que Montaigne se dirige aos seus leitores
na página de abertura dos Ensaios a fim de tornar clara a natureza exclusivamente
privada de sua escrita. Com efeito, nos deparamos já aí com uma significativa
afirmação de sua recusa da glória, já no início do texto, condicionada à afirmação
de suas motivações, opostas ao intento de retratar-se nas páginas do livro como
uma figura bem composta e estudada, segundo os cânones das artes, sob os quais
seus contemporâneos se retratavam a fim de angariar para si a admiração do povo.
Acreditamos que essa perspectiva e alcance do tema encontra sua mais ampla
ressonância e desenvolvimento em Da glória, e, particularmente no modo como
sua reflexão propicia o autoretrato do capítulo seguinte, Da presunção, numa
representação de si totalmente inadquada para servir à própria glória. A leitura da
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Advertência nos ajudará a ter em mente de maneira mais nítida o modo como essa
crítica favorece a autofirmação de si.
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4.
Negação do culto à glória e afirmação do autoretrato.
4.1) Uma leitura da Advertência ao leitor.
Montaigne escreveu a Advertência ao leitor em 1580 como apresentação
dos dois primeiros volumes dos Ensaios quando de sua primeira publicação.
Esclareceu então já na página de abertura do livro que seu único objetivo era
pintar de si um autoretrato em sua maneira simples e natural e não adquirir glória
como autor. A empresa do autoretrato, de ter a si mesmo como matéria em sua
maneira privada, excluía por princípio a ambição de engrandecer-se. O discurso
pessoal de Montaigne, segundo a Advertência, era inteiramente desprovido das
duas precondições para a obtenção da aprovação do mundo, isto é, da beleza da
forma - constituída de acordo com as regras da boa eloqüência dos antigos – e da
disposição de servir à instrução moral dos homens:
Está aqui um livro de boa fé leitor. Desde o início ele te adverte que não me
propus nenhum fim que não doméstico e privado. Nele não levei em
consideração nem teu serviço nem minha glória. Minhas forças não são capazes
de um tal intento. Votei-o ao benefício particular de alguns parentes e amigos;
para que ao me perderem (do que correm o risco dentro em breve), possam
reencontrar nele alguns vestígios de minhas tendências e humores e que por esse
meio mantenham mais vivo e mais íntegro o conhecimento que tiveram de mim.
Se fosse para buscar o favor do mundo eu me paramentaria melhor e me
apresentaria em uma postura mais estudada. Quero que me vejam aqui em
minha maneira simples, natural e ordinária, sem apuro ou artifício, pois é a mim
que pinto. Nele meus defeitos serão lidos ao vivo, e minha maneira natural tanto
quanto o respeito público mo permitiu. Pois se estivesse estado entre aqueles
povos que se diz viverem ainda sob a doce liberdade das primeiras leis da
natureza, asseguro-te que de muito bom grado me teria pintado inteiro e nu.
Assim leitor, sou eu mesmo a matéria de meu livro: não é sensato que
empregues teu lazer em um assunto tão frívolo e tão vão.
1
1
“C`est icy un livre de bonne foy lecteur. Il t`advertit dès l`entrée, que je me suis proposée aucune
fin que domestique et privée. Je n`ay nulle consideration de ton service ny de ma gloire. Mes
forces ne sont capables d´un tel dessein. Je l`ay voué à la commodité particuliere de mes parents et
amis: à ce que m`ayant perdu (ce qu`ils ont à faire bien tost) ils y puissent retrouver aucuns traits
de mes conditions et humeurs, et que par ce moyen ils nourissent plus entiere et plus vifve, la
connoissance qu`ils ont eu de moy. Si c`eust esté pour rechercher la faveur du monde, je me fusse
mieux paré et me presanterois en une marché estudiée. Je veus qu`on m`y voie en ma façon
simple, naturelle et ordinaire, sans contention et artifice: car c`est moy que je peins. Mes defauts
s`y liront au vif, et ma forme naifve, autant que la reverence publique me l`a permis. Que si j`eusse
esté entre ces nations qu`on dit vivre encore sous la douce liberté des premieres loix de la nature,
je t`asseure que je m`y fusse tres-volontiers peint tout entier, et tout nud. Ainsi lecteur je suis
moys-mesmes la matière de mon livre: ce n`est pas raison que tu employes ton loisir en un subject
si frivole et si vain.” MONTAIGNE, op. cit., p. 3.
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A sentença conclusiva do texto como que condensava o conteúdo de sua
mensagem: “Ainsi lecteur, je suis moy-mesmes la matière de mon livre ce n´est
pas raison que tu employes ton loisir en un subject si frivole et si vain.” Era esse
intento de ter somente a si mesmo por matéria que condicionava o
reconhecimento do caráter “si frivole et si vain” do discurso, assim como a
consciência de sua originalidade, levando Montaigne a despedir os leitores
desconhecidos como interlocutores.
De fato, é bastante paradoxal o conteúdo da Advertência, como uma
apresentação destinada a questionar o seu próprio valor discursivo e a afastar os
leitores dos Ensaios, mas, ao mesmo tempo, desse modo, chamando a atenção
para o seu caráter singular e totalmente novo em sua época. A negação da glória
declarada logo no início se relacionava estreitamente à consciência dessa
originalidade, que tornava a obra frívola e vã, imprópria aos contatos públicos e à
utilidade de seus pares: “Nulle consideration de ton service ny de ma gloire. Mes
forces ne sont capables d`un tel dessein.” Vinculava-se também à enunciação da
marca de caráter mais constante de Montaigne, ou seja, sua aversão natural à
arrogância e ao orgulho.
Com efeito, ao decidir retratar-se segundo sua própria razão, em sua
natureza privada, ele se opunha à prática comum entre os nobres de seu meio, de
fazer-se representar por grandes pintores, fixando uma imagem exemplar para
passar à posteridade. Do mesmo modo, recusava deixar testemunho de si pela
narração dos feitos e eventos de sua vida à maneira de uma autobiografia, na
constituição de uma imagem acabada de sua vida, com início, meio e fim. Ao
invés de erguer um monumento em sua homenagem e desfigurar sua verdade
numa falsa aparência, congelada e morta, Montaigne pretendia registrar “aucuns
traits de mes conditions et humeurs”, procurando deixar para aqueles que já o
conheciam previamente, uma imagem que o representasse em sua verdade viva de
sujeito: “et que par ce moyen ils nourissent plus entiere et plus vifve, la
connoissance qu`ils ont eu de moy”. De fato, essa representação “ao vivo”
traduzia-se numa coleção de traços dispersos de seu modo de ser e de seus
“humores”; de múltiplos registros de si, que deveriam conservá-lo em movimento
e em sua própria verdade, ou seja, tal como em vida. Mas a destinação a alguns
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parentes e amigos próximos parecia restringir a realização desse intento à
condição de uma freqüentação familiar vivida anteriormente com Montaigne.
Afinal, a inexistência dessa condição impediria que seus traços isolados,
retratados no livro, pudessem produzir vida. Sem relacionar-se com uma imagem
prévia de seu autor, seus traços pareciam correr o risco de vagar sem qualquer
suporte.
2
Mas se essa destinação exclusivamente privada dos Ensaios tinha a
função de dissipar as prováveis acusações de orgulho e vaidade como suas
motivações, podiam despertar, ao mesmo tempo, fortes suspeitas nesse sentido,
uma vez que a renúncia à glória na Advertência vinha acompanhada pela
afirmação do desprezo pela aprovação e pela utilidade pública. Com efeito, a
expressão de sua meditação interior, incapaz de servir aos seus leitores, poderia
permanecer restrita ao círculo restrito de amigos e parentes, sem fazer-se publicar.
De fato, seria razoável que sua maneira simples e ordinária, tão particular na
prática, pretendessse tornar-se pública em conhecimento? Afinal, lido por aqueles
que não tivessem travado uma convivência com Montaigne, suas confissões e a
2
Centrando-se nessa intenção de traçar um retrato vivo como princípio da escrita dos Ensaios,
conforme declarada na Advertência ao leitor, Sergio Cardoso se opõe à abordagem de Erich
Auerbach no capítulo dedicado a Montaigne em seu Mimesis. De fato, a interpretação de Aeurbach
possui o mérito fundamental de introduzir na crítica dos Ensaios essa relação entre o intento de
retratar-se e a forma peculiar de seu estilo. Sergio Cardoso, entretanto, discorda de sua abordagem
sobretudo quando define o procedimento de Montaigne como um método correspondente ao
caminho experimental que as ciências da natureza começavam a trilhar em seu tempo. Segundo
Auerbach, a investigação de si e o registro de seus movimentos internos define-se como: “(...) o
único caminho que, segundo Montaigne, pode ser percorrido pela ciência do homem enquanto ser
moral.” Auerbach, E., Mimesis, p. 261. Se esse método, de acordo com Auerbach, se inicia pelo
acúmulo de inúmeras experiências de si é para resolver-se posteriormente na obtenção de uma
imagem de conjunto de si próprio, através da ordenação e acomodamento da dispersão. A partir
desse momento se consolida a consciência da “vida própria” e a plena posse de si mesmo, que
representa o triunfo sobre o perturbador excesso de fenômenos internos que atrapalha a integridade
de Montaigne como sujeito. Esse momento se dá assim como ponto de partida para a investigação
da “humaine condition”, segundo Auerbach. Levando em consideração, por outro lado, a
permanente confissão de insegurança, vacilação e indecisão que permeia os Ensaios, Sergio
Cardoso define o discurso do autoretrato, de preferência, como uma acumulação de instantâneos;
uma coleção desordenada de traços casuais que se alimenta de perspectivas sempre novas, e que,
portanto, se opõe essencialmente à formulação de uma imagem única, fixa e definida de si.
Enquanto um legado aos amigos e parentes próximos, essa escrita pessoal se assemelharia assim
aos álbuns de retratos, constituída de registros próprios nas situações mais diversas e tempos mais
variados: “(...) ao tomar traços segmentados e isolados, particularidades relativas a uma figura
fixada na memória, fazemo-nos mais sensíveis a ressonâncias novas, a nuanças antes
desapercebidas ou mal percebidas, as quais vêm ampliar, recompor, transformar o conhecimento
que deles temos, aparentemente selado em definitivo pela morte. Em outras palavras: a
particularidade mesma dos instantâneos ou fragmentos desconcertados desestabiliza o quadro dos
elementos fixados e cristalizados na memória, reproduzindo em tudo uma situação semelhante ao
de seu conhecimento – aberto e constantemente oscilante – em vida.” CARDOSO, S., op. cit., p.
59.
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representação de seus humores atestariam apenas os frívolos pensamentos de um
homem comum e presunçoso, incapaz de fazer-se admirar pela posse de grandes
dotes e talentos.
Com efeito, inerente a essa confissão das próprias incapacidades (de
empreender “un tel dessein, de conquistar glória e ser útil) com que Montaigne
se mostrava isento de vaidade estava a consciência de que sua forma incorria na
transgressão dos procedimentos tradicionais da retórica e pervertiam seu
mandamento básico da comunicação e da persuasão.
3
A retórica clássica e
humanista afirmavam insistentemente as altas prerrogativas do discurso como
modalidade de ação, de civismo, assim como sua vocação pedagógica, devendo
servir à utilidade pública e à formação dos espíritos na defesa de valores morais,
políticos ou religiosos.
4
Sua dignidade se atrelava, assim, à sua natureza transitiva,
à sua eficácia, persuadindo, dissuadindo, louvando ou culpando, sempre a serviço
de grandes causas. No âmbito dessa tradição a ética e a retórica dos antigos
conceberam com maus olhos os excessos na prática de falar de si mesmo,
compreendendo o discurso em primeira pessoa, como indissociável da presunção,
sempre que não fosse feito por personagens ilustres, dignos de servir de exemplo.
A afetação de presunção do discurso em primeira pessoa, nesse contexto, era
considerada como um dos elementos mais contrários e prejudiciais à virtude e às
boas relações entre os homens, pois provocava não apenas a reprovação pública,
mas também a cólera e a inveja.
Na Ética a Nicômaco
5
Aristóteles fez uma alusão a essa prática, para
defini-la como imprópria ao comportamento do homem magnânimo, posto que a
vaidade de buscar para si os elogios alheios não condizia com sua perfeição moral
e com seu caráter superior. Já Cícero, em Dos deveres, reafirmou essa concepção
como uma das recomendações do decoro
6
, que designava a adaptação do próprio
3
Esse é um traço distintivo do gênero reflexivo do autoretrato segundo Michel Beaujour, ou seja,
de ser uma escrita conscientemente desprovida de utilidade pública, produzida por uma retórica
que é puro discurso ocioso e livresco; que não se justifica como modo de reificar e tornar ativos os
valores morais da tradição. Nesse sentido a confissão de sua inutilidade se dá como o único álibi
do escritor de um autoretrato: apesar de utilizar-se dos procedimentos e artifícios da retórica
incorrendo contra seus princípios fundamentais, ele sempre acusa a própria ousadia, assumindo a
gravidade dessa falta e procurando afirmar o caráter diferenciado de seus próprios desígnios.
BEAUJOUR, M., Miroirs d`encre, p. 14.
4
Idem.
5
ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco, 1125 a
6
A noção de decoro desenvolvida por Cícero em seu Dos deveres associa-se à sabedoria própria
do orador em saber adaptar as palavras e as sentenças de seu discurso aos mais diversos auditórios
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modo de vida, incluindo as palavras, a postura e a gesticulação às conveniências
da vida social. O decoro implicava no controle racional das paixões aparecendo
em Dos deveres como um conceito fundamental que ditava as regras do sermo
filosófico como avesso aos excessos do auto louvor, feito de maneira injusta e
imprudente, por desviá-lo de sua razão, podendo provocar a cólera e a inveja nos
interlocutores: “Também é desagradável gabar-se, sobretudo de feitos mentirosos,
e em meio a zombarias imitar o ‘soldado fanfarrão’.”
7
Entre os autores da Antigüidade e da Renascença, entretanto, foi comum o
esforço em definir os casos particulares em que essa prática podia ser legitimada
por sua utilidade sem se dar como signo das paixões desenfreadas dos homens.
Em Da velhice
8
, Cícero também discerniu as circunstâncias em que o falar de si
não devia ser tido como sinal de vã glória, mas sim da grandeza de alma. Tratava-
se, segundo ele, de prerrogativa dos espíritos extraordinários desejosos de ter seu
valor publicamente reconhecido. Deveria definir-se como privilégio de
personagens extraordinários, que deviam retirar-se à ociosidade para escrever
sobre si e imortalizar sua virtus após uma vida inteira dedicada ao bem comum.
Partilhando da mesma opinião, Plutarco, em suas Obras Morais, dedicou
um opúsculo ao tema, destinado ao seu amigo Herculano, cônsul sob o reinado de
Trajano. Reconhecia já na abertura do opúsculo: “Falar de si diante de outrem
para se atribuir qualquer mérito ou qualquer poder, meu caro Herculano, todo o
mundo declara, em palavra, que é odioso e vil; mas de fato, poucas pessoas
e circunstâncias. Diz ele: “É preciso atentar no que se fala, tratando seriamente de coisas sérias,
agradavelmente de coisas jocosas. O mais importante é não deixar escapar qualquer coisa que
denote vício de caráter; isso se percebe quando se fala mal dos ausentes, seja para levá-los ao
ridículo, seja para arruiná-los com maledicências e ultrajes. A conversação corre de ordinário entre
negócios particulares, sobre política, ou sobre artes e ciência; quando ela se desvia, é preciso ter
cuidado em reconduzi-la, sem esquecer que nem todos têm o mesmo gosto, pois as coisas que
satisfazem a todos, não agradam igualmente a cada um.” (I, XXXVII) Portanto, é próprio do bom
orador adaptar a sua linguagem à sua elevada função, da mesma forma que este deve falar de
maneira adequada ao seu auditório, às temáticas tratadas e aos diferentes contextos em que se
encontra, de modo a conquistar e a seduzir o seu público. Contudo, existe um problema moral
relacionado a esta questão, pois, seria permitido ao orador em nome do decoro se distanciar da
verdade em seus discursos, deturpando-a? Sobre este ponto, destaca Cícero que a capacidade de
deliberação sobre o que é bom e vantajoso está alicerçada em uma sabedoria prática, sendo o
conhecimento e a prudência do orador que estabelecem a aceitação do auditório das suas teses.
Desta forma, como ele próprio estabelece, a faculdade da prudência – “a mais nobres de todas as
virtudes” - seria inseparável do decoro, ou seja, do “conhecimento do que é preciso evitar, e do
que é preciso procurar.” CÍCERO, Dos Deveres, I, XLIII. Ver também: KAHN, Victoria.
“Humanist Rhetoric” In Rhetoric, Prudence, and Skepticism in the Renaissance. pp. 29-84.
7
Idem, I, XXXVIII, 137. O “soldado fanfarrão” era personagem típica da comédia grega e romana
e intitulava uma peça de Plauto.
8
CÍCERO, Da velhice, 9-10. Apud, Friedrich, H., p. 238.
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conseguem evitar esse defeito desagradável, mesmo entre aqueles que o
condenam.”
9
Esforçou-se assim ao longo do texto por distinguir os casos em que
um homem podia louvar-se a si mesmo com justiça. Isso ocorria, segundo
Plutarco, sempre que não o fizesse de maneira fútil, apenas para se fazer louvar,
mas sim quando as circunstâncias de sua ação o exigiam
10
. Tal prática, contudo,
deveria ser prerrogativa de homens de Estado que podiam proferir verdades úteis
e elevadas sobre os grandes atos que haviam cumprido e as vantagens que deles
resultaram para o bem de seus pares. Esta espécie de elogio produzia belos frutos
e deveria ser sempre estimulada como reconhecimento da virtus dos espíritos
grandiosos. Entretanto, Plutarco atentava, jamais deveria ser feito de maneira
excessiva, mas sempre com prudência, sob o cuidado de evitar o aspecto fútil e
irritante que poderia por a perder sua utilidade moral.
No âmbito da literatura humanista, Petrarca, em suas cartas privadas,
condenou o impudor dos excessos de dados íntimos e pessoais como prejudicial à
beleza de seu estilo, muito embora este fosse destinado à descrição de sua vida e
de seus caracteres
11
. Essa falta de prudência em falar de si ele reconhecia
sobretudo nos escritos privados de Cícero, a partir dos quais tirava suas
conclusões desse hábito: “Eu os considero uma leitura agradável pois essa leitura
representa uma mudança em relação a ter que lidar com matérias difíceis, e é uma
fonte de prazer se feita de maneira intermitente, mas é uma fonte de desprazer se
feita continuamente.”
12
Entre os autores modernos, também Castiglione se pronunciou sobre essa
questão do falar de si em seu O Cortesão. A cortesania perfeita, de fato, não
9
PLUTARCO, Oeuvres Morales, “Comment se louer soi-meme sans exciter l`envie”, VII, 539
a –
547f., p. 65.
10
Dessa forma, Plutarco descreve a degeneração dessa prática em vício: “Do mesmo modo que as
pessoas privadas de nutrição, na necessidade, contrariamente à natureza, têm que se alimentar de
seu próprio corpo, o que é o limite extremo da fome, do mesmo modo, aqueles que são famintos de
elogios, se não encontram ninguém para lhes louvar, parecem querer tirar de si mesmos qualquer
sustento e contribuição ao seu amor pela glória e por isso eles faltam à decência.” Idem, 539f, p.
66.
11
O gênero epistolar se afirmou desde a Antigüidade como o mais adequado à expressão da
consciência individual. Através dele se tornou possível introduzir na prosa o discurso íntimo e
privado pois pressupunha uma conversação entre amigos ou parentes próximos. As Cartas a Ático
de Cícero e as Cartas a Lucílio de Sêneca são alguns dos mais célebres modelos do gênero
epistolar na Antigüidade. No Renascimento, podemos citar as cartas de Petrarca, de Erasmo e de
Guillaume Budé. De fato, enquanto forma adequada à linguagem privada em primeira pessoa, o
gênero das cartas se aproxima bastante da forma reflexiva dos Ensaios, entretanto, as
conveniências do estilo preconizam ainda um certo pudor no excesso de dados íntimos e pessoais,
a fim de não tornar frívolo demais o discurso. FRIEDRICH, H., op. cit., p. 368.
12
PETRARCA, Familiares, I, 1, p. 10.
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poderia condizer jamais com a louvação de si impudente e ostentatória: “(...) com
que um homem sempre atrai para si ódio e repulsa por parte de quem o ouve.”
13
.
Mas, por outro lado, o falar de si era legítimo ao cortesão enquanto homem
superior e consciente de seu valor, quando não fosse efetivamente reconhecido
como tal:
(...) me parece que isto possa muito bem ser-lhes concedido; porque aquele que
conhece seu valor, quando verifica não ser reconhecido por suas obras pelos
ignorantes, se indigna por seu valor estar oculto e forçoso é que de algum modo
o demonstre para não ser defraudado da honra, que é o verdadeiro prêmio das
virtuosas fadigas.
14
Com efeito, nada poderia ser mais estranho à maneira como Montaigne
pretendia representar-se nos Ensaios do que a obediência a estes preceitos que
restringiam o discurso em primeira pessoa à manifestação duma excelência
perfeita e recomendavam a prudência e até mesmo, a dissimulação no falar de si.
Além de não poder narrar grandes feitos e realizações que justificassem sua forma
pessoal como um legado à posteridade, Montaigne expunha “ao vivo” e sem
nenhum pudor os seus defeitos, conforme nos dizia na Advertência. Seu único
cuidado em relação à opinião pública era de não ofendê-la demasiadamente,
evitando aparecer efetivamente nu no livro, tal como os selvagens do novo
mundo. Relembremos:
(...) car c`est moy que je peins. Mes defauts s`y liront au vif, et ma forme naifve,
autant que la reverence publique me l`a permis. Que si j`eusse esté entre ces
nations qu`on dit vivre encore sous la douce liberté des premieres loix de la
nature, je t`asseure que je m`y fusse tres-volontiers peint tout entier, et tout nud.
Ao longo dos Ensaios Montaigne manifestou a consciência de se atribuir
um privilégio que não lhe pertencia ao tomar a pena para falar de si e muitas vezes
expressou suas excusas pelo despudor de seu estilo, abundante em dados
pessoais
15
. A negação da glória na obra, desse modo, era tanto mais decisiva
13
CASTIGLIONE, B., op,. cit., I, 17, p. 33.
14
Idem, I, 18.
15
Montaigne exprime essa consciência por exemplo no ensaio Do desmentir que se segue a Da
presunção: “Sim, mas me dirão que esse projeto de servir-se de si mesmo como objeto de escrita
seria desculpável em homens raros e famosos, que por sua reputação, tivessem despertado
qualquer desejo de conhecê-los.” Montaigne, II, 18, p. 663. Já em Da afeição dos pais pelos filhos,
ele reconhece a frivolidade de sua atividade literária associando-a às conseqüências nefastas da
melancolia: “Foi um humor melancólico, e conseqüentemente um humor inimigo de minha
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quanto deixava entrever a ambigüidade inerente à declaração de modéstia que lhe
era inerente: ao mesmo tempo em que atestava o desprezo por suas capacidades
comportava o reconhecimento de sua ousadia deliberada em atentar contra as
conveniências estabelecidas, rejeitando aderir aos modelos da tradição que
tornavam um homem digno de fixar ele mesmo por escrito a sua virtus. A negação
da glória, assim, vinculada à renúncia em servir ao bem dos homens e da virtude,
implicava um anseio de autoafirmação radical que tornava premente a
comprovação de sua modéstia. De fato, esse esforço ressurge com freqüência no
livro se inscrevendo, em geral, no registro dessa necessidade de desvincular sua
forma da acusação de presunção que podia indispor os leitores contra si
16
.
Essa ambivalência a que se prestava a tópica da rejeição da glória se
manifestava na segunda metade da Advertência em que a crítica das ambições
surgia sob a designação mais geral de “faveur du monde”. Com efeito, nessa
passagem ele declarava essa crítica mais como uma escolha livre e lúcida de
desdenhar as considerações pelo juízo de seus pares do que no contexto da
afirmação de sua modéstia, como ocorre no início do texto: “Mes forces ne sont
capables d`un tel dessein. Desse modo, se na primeira parte da Advertência ainda
era possível confundir sua recusa da glória com uma modéstia meramente formal,
usada com freqüência nos prefácios humanistas
17
, em seguida, essa afirmação
emergia, antes como uma livre deliberação de realizar um projeto totalmente
novo. De fato, segundo suas palavras, não se apresentava “en une marche
estudiée” para adequar-se ao “faveur du monde”, não apenas porque não era capaz
disso, mas sobretudo porque não o desejava, optando por ser visto no livro em sua
“façon simple et ordinaire, sans contention et artifice”. Não é demais retornarmos
aqui a essa última parte da Advertência:
constituição natural, produzido pela tristeza da solidão na qual há alguns anos mergulhara, que
primeiramente me pôs na cabeça essa loucura de aventurar-me a escrever, descobrindo-me
inteiramente desprovido e vazio de qualquer matéria, apresentei-me a mim mesmo como tema e
como assunto.” Idem, II, 8, p. 385.
16
Célebres humanistas contemporâneos de Montaigne como Pasquier e Scaliger não esconderam
seu desprezo por sua falta de escrúpulos em falar de si e apresentar-se em sua maneira privada nas
páginas dos Ensaios. Posteriormente Pascal denunciaria também como tolice esse ato de fazer de
suas confissões pessoais a matéria de seu livro. FRIEDRICH, H. op. cit., p. 237.
17
A modéstia era uma forma de captatio benevolentiae, segundo a definição dada na Retórica a
Herênio: uma forma de captar a benevolência dos ouvintes, garantindo seu interesse e atenção ao
próprio discurso e à causa a ser defendida, antes de proferi-lo. Abrangia quatro maneiras: baseada
na própria pessoa, nos adversários, nos ouvintes ou na própria matéria do discurso. Retórica a
Herênio, I, 7, p. 59. A modéstia era uma forma de captatio benevolentiae baseada na própria
pessoa, especialmente utilizada nas correspondências humanistas para bem dispor os leitores ao
estilo privado e pessoal das cartas.
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Se fosse para buscar o favor do mundo eu me paramentaria melhor e me
apresentaria em uma postura mais estudada. Quero que me vejam aqui em
minha maneira simples, natural e ordinária, sem apuro ou artifício, pois é a mim
que pinto. Nele meus defeitos serão lidos ao vivo, e minha maneira natural tanto
quanto o respeito público mo permitiu. Pois se estivesse estado entre aqueles
povos que se diz viverem ainda sob a doce liberdade das primeiras leis da
natureza, asseguro-te que de muito bom grado me teria pintado inteiro e nu.
Assim leitor, sou eu mesmo a matéria de meu livro: não é sensato que
empregues teu lazer em um assunto tão frívolo e tão vão.
18
Mas apesar de despedir seus leitores distanciados (os não “parentes e
amigos”) já na primeira página de seus Ensaios, Montaigne jamais deixou de estar
plenamente consciente de que a singularidade de sua forma não permitiria que
seus Ensaios não chamassem a atenção do público e não despertasse sua
curiosidade. Ele exprimiu essa consciência, por exemplo, no início do capítulo Da
afeição dos pais pelos filhos, reconhecendo a possibilidade de que justamente o
seu desdém deliberado em constituir-se para fora, para despertar o interesse dos
homens, contribuísse para obtê-lo, devido à novidade de seu processo de
autoconhecimento pelo registro incansável das manifestações da própria vida:
(...) se a estranheza, e a novidade, que costumam valorizar as coisas não me
salvar, jamais sairei honrado desse tolo empreendimento; mas ele é tão fantástico
e tem um ar tão distante do uso comum que isso poderá lhe abrir caminho.”
19
Através da maneira peculiar de sua forma, afinal, ele pretendia instaurar
um novo modo de relacionar-se com seus leitores. De fato, paradoxalmente -
ainda que declarasse destinar-se somente a alguns amigos e parentes - ao abolir as
convenções impostas pela tradição, seu estilo deveria alcançar um número muito
maior de leitores do que apenas os seus próximos. Com efeito, eram as
características mesmas desse método de conhecer-se, ensaiando-se na aplicação
de seu pensamento às mais diversas matérias; registrando a si mesmo de maneira
contínua e cuidadosa a fim de fazer-se “plus entiere et plus vifve que lhe
18
“Si c`eust esté pour rechercher la faveur du monde, je me fusse mieux paré et me presanterois en
une marché estudiée. Je veus qu`on m`y voie en ma façon simple, naturelle et ordinaire, sans
contention et artifice: car c`est moy que je peins. Mes defauts s`y liront au vif, et ma forme naifve,
autant que la reverence publique me l`a permis. Que si j`eusse esté entre ces nations qu`on dit
vivre encore sous la douce liberté des premieres loix de la nature, je t`asseure que je m`y fusse
tres-volontiers peint tout entier, et tout nud. Ainsi lecteur je suis moys-mesmes la matière de mon
livre: ce n`est pas raison que tu employes ton loisir en un subject si frivole et si vain.”
19
“(...) si l`estrangeté ne me sauve, et la nouvelleté, qui ont accoustumé de donner pris aux choses,
je ne sors jamais à mon honneur de cette sotte entreprise; mais elle est si fantastique et a un visage
si esloigné de l`usage commun que cela luy pourra donner passage.” MONTAIGNE, II, 8, p. 385.
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garantiam uma contrapartida - “É um empreendimento espinhoso, e mais do que
parece, seguir uma marcha tão errante como a de nosso espírito; penetrar as
profundezas opacas de seus recessos internos; distinguir e fixar tantas aparências
miúdas de suas agitações.”
20
– ou seja, que abriam a possibilidade a qualquer
leitor de também colocar-se na posição de amigo e parente, mediante a
assiduidade da freqüentação com ele, nas manifestações concretas de sua vida,
num contato vivo viabilizado pela leitura dos Ensaios.
21
Procurando dar-se a ver em sua verdade viva de sujeito – “C`est moy que
je peins” – Montaigne também se relacionava consigo mesmo como um outro,
sanando a experiência da inconstância interna e a impossibilidade de alcançar-se a
partir de dentro, exteriorizando-se pela escrita e procurando recuperar-se a partir
de fora. De fato, desse modo, sua experiência de sujeito do saber a si mesmo pelo
reflexo da vida interior no livro não diferia daquela atribuída a seus amigos e
parentes, abrangendo também os que poderiam fazer-se como tais dispondo-se a
deixar pra trás as conveniências da tradição para conhecê-lo em sua subjetividade
viva constituída nos “ensaios” de si mesmo.
Há uma passagem bastante ilustrativa do capítulo Da vaidade que define a
natureza dessa espécie de abertura de sua forma aos leitores distanciados, sob a
condição de tornarem-se próximos no domínio privado da interioridade, alheio às
ambições e interesses do mundo. Oferecendo-se como espaço do encontro entre
espíritos, o autoretrato deveria reproduzir o mais fielmente possível a vivência de
um comércio em vida:
(...) se advier que meus humores agradem e convenham a algum homem de bem
antes que eu morra, ele procurará juntar-se a nós; dou-lhe uma boa dianteira,
pois tudo o que um longo conhecimento e convivência poderiam ter-lhe obtido
em vários anos, ele o lê em três dias nesse registro. (C) Uma fantasia engraçada:
digo ao público muitas coisas que não gostaria de dizer a ninguém (...)
22
20
“C`est une espineuse entreprinse, et plus qu`il ne semble, de suyvre une alleure si vagabonde
que celle de nostre esprit; de penetrer les profondeurs opaques de ses replis internes; de choisir et
arrester tant de menus airs de ses agitations.” Idem, II, 6, p. 378.
21
CARDOSO, S., op. cit., p. 60.
22
“(...) s`il advient que mes humeurs plaisent et accordent à quelque honneste homme avant que je
meure, il recerchera de nous joindre; je luy donne beaucoup de pays gagné, car tout ce qu`une
longue connoissance et familiarité luy pourroit avoir acquis en plusieurs années, il le voit en trois
jours en ce registre, et plus seurement et exactement. (C) Plaisante fantasie: plusieurs choses que je
ne voudroy dire à personne, je les dis au peuple (...)” MONTAIGNE, III, 9, p. 981.
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Para concluirmos esse nosso breve exame da Advertência ao leitor, vale
retomar aqui a observação de Andre Tournon
23
que ao destacar o conteúdo
paradoxal dessa apresentação dos Ensaios (de um texto que coloca a si mesmo em
questão e despede seus leitores), nos adverte para que não o tomemos como
simples afetação de modéstia, sem maiores conseqüências no que diz respeito à
enunciação de sua natureza particular. Como bem sublinha o intérprete, isso
equivaleria a tomar como falsa a profissão de sinceridade - de “bonne foy” - a que
de fato Montaigne atribuía um valor primordial como fundamento do discurso dos
Ensaios e com que se dirigia inicialmente aos seus leitores procurando atrair sua
benevolência. Com isso Montaigne rompia frontalmente com o contrato habitual
entre autor e leitor sancionado pela tradição, de trocar um serviço por um elogio,
ou em outras palavras, de oferecer ensinamentos certos para em contrapartida ter o
próprio nome celebrado como exemplo de sabedoria.
O conselho dissuasivo da Advertência tinha na verdade um endereço certo,
se destinava exclusivamente aos leitores que pretendiam aumentar seu cabedal de
saberes e de conhecimentos através da leitura do livro; somente a estes afinal o
seu assunto poderia ser tomado realmente como “si frivole et si vain”.
É claro que ao despedir essa classe de leitores ele excluía dos desígnios
dos Ensaios a maioria esmagadora ou quase a totalidade daqueles que teriam
acesso à obra. Era bastante rara em seu tempo a espécie de homens aos quais seu
discurso se abria, ou seja, os que haviam se libertado das exigências de uma
filosofia dogmática e do apego às aparências belas. Aqueles que, ao invés de
querer prover-se de verdades atestadas e celebrar a sabedoria de seu autor, se
regozijavam em conhecê-lo como um indivíduo concreto, Michel de Montaigne,
na leitura de um discurso que, longe de pretender afirmar-se como doutrina, se
distinguia por buscar-se nas relações de seu autor com o universo de valores que
lhe cercava.
Cabe relembrar agora, o ponto em que paramos de nossa leitura do ensaio
Da glória, podendo compreender melhor o conteúdo e o alcance da primeira
passagem do ensaio em que ele se refere a si mesmo, declarando pretender buscar
uma glória “selon moy” irredutível à generalidade dos exemplos. Reafirmava
então os desígnios declarados na Advertência, adequando seu modo de vida ao
23
TOURNON, A, op. cit., p. 8.
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princípio da fidelidade a si, desdenhando da adequação aos padrões externos do
mundo.
De fato, seu caminho para a tranqüilidade da alma dizia respeito somente a
ele e à sua própria razão. Assim, ao invés de fundar-se em certas ações ou
realizações extraordinárias, essa glória “selon moy” se constituía de maneira
integral, no conjunto dos próprios atos e intenções, na retidão de sua fidelidade a
si, conforme fruída no livro. A glória que movia os homens de seu tempo, por sua
vez, os levava a subordinar aos rumos incertos da fortuna suas próprias vidas, por
isso era falsa e oposta à virtude pois dependia dos acasos do mundo que
determinavam ou não a aprovação externa aos próprios atos. Se realizava portanto
“selon la temerité” dos acasos:
É a sorte que nos aplica a glória segundo seus caprichos, muitas vezes a vi
caminhar antes do mérito e freqüentemente ultrapassá-lo em larga medida.
Aquele que primeiramente se apercebeu da semelhança entre a glória e a
sombra, fez melhor do que pretendia. São coisas altamente vãs.
24
Para que possamos dimensionar melhor o modo como a escrita de
Montaigne atentava contra as conveniências em sua maneira de descrever-se,
negando o apreço pela aprovação pública, é útil examinar, em alguns de seus
aspectos fundamentais, a imagem de grandeza e de perfeição moral que as
restrições tradicionais ao falar de si implicavam. Assim, nossa leitura do restante
de Da glória, será feita paralelamente à abordagem de algumas das discussões da
Antigüidade que inspiraram intensamente os autores humanistas a afirmar esse
conteúdo ético positivo do desejo de glória pessoal, tanto no que dizia respeito ao
culto de feitos heróicos quanto ao ideal da sabedoria e do cultivo filosófico da
alma.
De fato, era a posse de grandes talentos e capacidades que habilitavam um
homem a escrever sobre si nesse contexto. Desse modo, no próximo item,
abordaremos a imagem de excelência perfeita do homem magnânimo –
megalopsychia – conforme o descreveu Aristóteles na Ética a Nicômaco, na
afirmação de uma grandeza interior associada estreitamente à aspiração às honras
24
“C`est le sort qui nous applique la gloire selon sa temerité. Je l`ai veüe fort souvent marcher
avant le merite et souvent outrepasser le merite d`une longue mesure. Celuy qui, premier, s`advisa
de la ressemblance de l`ombre à la gloire, fit mieux qu`il ne vouloit. Ce sont choses excellament
vaines.” Idem, p. 621.
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pela grandeza de seus atos. Pois, ainda que Aristóteles considerasse impróprio ao
comportamento do magnânimo o hábito de falar de si, muitos dos autores que se
lhe seguiram e que retomaram esse ideal de perfeição, lhe atribuíram este
privilégio sob a consideração da necessidade de que sua superioridade fosse
reconhecida como tal entre os homens
25
. Assim, procuraremos também investigar
alguns dos modos pelos quais esse ideal de perfeição foi reapropriado e redefinido
de maneiras diversas, na Antigüidade e no Renascimento.
Entretanto o ponto central que norteia o restante de nossa leitura do ensaio
e que articula essa discussão sobre as figuras exemplares da magnanimidade está
no item 4.3 em que tratamos da postura cética de Montaigne como princípio
definidor de sua maneira de descrever-se.
4.2) A identificação entre ambição de glória e grandeza de alma na
Antigüidade clássica e no humanismo.
No quarto livro da Ética a Nicômaco Aristóteles dedicou um capítulo à
virtude da magnanimidade, segundo ele essa virtude se definia como uma
disposição de caráter relacionada a grandes coisas. A superioridade de espírito do
magnânimo, contudo, não se afirmava somente pela grandeza de suas aspirações,
mas sobretudo por sua justeza, ou seja, no modo como suas aspirações grandiosas
jamais se baseavam na presunção, mas sempre numa avaliação correta de suas
próprias qualidades: “Diz-se que é magnânimo o homem que com a razão se
considera digno de grandes coisas.”
26
Esse conhecimento pleno do alcance de seus
méritos, de fato, o distinguia tanto dos vaidosos que se julgavam merecedores de
grandes coisas injustamente - sem que suas aspirações correspondessem às suas
verdadeiras qualidades – quanto dos indevidamente humildes, que cultivavam
25
Plutarco, por exemplo, no opúsculo dedicado ao tema em suas Obras Morais, utilizou-se do
exemplo grandioso de Epaminondas, que discorrendo com ênfase sobre seus grandes feitos como
general, provocou não a inveja, mas sim um frêmito geral de admiração no povo por sua pessoa.
Segundo Plutarco, o ato de louvar-se por parte do magnânimo, quando assim não fosse
reconhecido pelos seus pares, era meio privilegiado de combater os excessos dos presunçosos, que
não tinham pudor em louvar-se por falsos méritos: “Falar quando há dignidade de si mesmo não
somente tem por resultado evitar a charlatanice, a futilidade, a ambição, mas ainda demonstra um
espírito elevado e grandioso, de um mérito, que, não se rebaixando, rebaixa e domina a inveja. (...)
nós partilhamos seus transportes de orgulho se ao menos eles são fundados e verdadeiros.”
PLUTARCO, op. cit., 4d., p. 67.
26
ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco, IV, 3, 1123b.
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aspirações inferiores às suas capacidades: “O magnânimo, portanto, é um extremo
quanto à grandeza de suas aspirações, mas um meio-termo no que tange à justeza
das mesmas; porque se arroga o que corresponde aos seus méritos, enquanto os
outros excedem ou ficam aquém da medida.”
27
Assim, se de acordo com Aristóteles, a condição superior do magnânimo
se relacionava a grandes coisas, era necessário determinar qual era o maior entre
os bens externos para que fosse possível reconhecer sua grandeza de espírito.
Esta, portanto, deveria manifestar-se pela ambição da honra. A honra, com efeito,
definindo-se como justo prêmio e reconhecimento à excelência de feitos heróicos,
dava-se como a mais plena e acabada tradução externa do valor extraordinário dos
homens. Ela marcava com o signo da imortalidade os mais distinguidos, que se
dispunham a deixar para trás as comodidades e os interesses comuns da vida para
enfrentar os maiores perigos e dar mostras de sua virtude. De acordo com
Aristóteles tratava-se do maior bem que um homem poderia conceder a outro
pois
28
: “(...) é aquele que prestamos aos deuses e que as pessoas de posição mais
ambicionam e que é o prêmio conferido às mais nobres ações.”
29
A magnanimidade, em suma, ligava-se à capacidade de cumprir ações
belas e destacadas no âmbito das atividades públicas e ao desejo de ter o próprio
valor plenamente reconhecido junto a comunidade. E, de fato, se o magnânimo se
considerava com plena justiça um merecedor desta tão alta conquista, era
impossível também que não possuísse um caráter nobre e bom no mais alto grau.
Assim, era sobretudo por sua perfeição moral que Aristóteles louvava sua
superioridade:
Ora, o magnânimo, visto merecer mais do que os outros, deve ser bom no mais
alto grau; pois o homem melhor sempre merece mais, e o melhor de todos é o
que mais merece. Logo o homem verdadeiramente magnânimo deve ser bom.
Além disso a grandeza em todas as virtudes deve ser característica do homem
magnânimo.
30
27
Idem, 1123b10.
28
Julia Annas nota o modo como Aristóteles resgata e redefine o velho ideal grego de grandeza
extraordinária, encarnada em heróis como Aquiles e Ajax, nessa sua elaboração do carater do
magnânimo como uma espécie de herói moral, possuidor de todas as virtudes. Ele se eleva bem
acima dos homens comuns e é reconhecido como tal pelas honras que recebe tal como os
guerreiros da época homérica. ANNAS, J., The Morality of Hapiness, p. 116.
29
Idem, 1123b 15.
30
Idem, 1123b 30.
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100
A honra, portanto, que era atributo dos deuses, deveria ser também do
magnânimo, pois sua virtude implicava na posse de todas elas no grau mais
perfeito que o homem podia possuir por seus próprios méritos. A grandeza de suas
ações, desse modo, provinha da retidão excepcional de seu caráter, que o elevava
bem acima do comum dos homens. Com efeito, segundo Aristóteles, sua virtude
não se manifestava somente nas ações destacadas, na verdade, ele jamais afastava-
se de seu exercício em quaisquer circunstâncias: “A magnanimidade parece, pois
ser uma espécie de coroa das virtudes, porquanto as torna maiores e não é
encontrada sem elas. Por isso é difícil ser verdadeiramente magnânimo, pois sem
possuir um caráter bom e nobre não se pode sê-lo.”
31
Sua aspiração à honra, de fato, não se confundia com a pretensão dos que
se julgavam merecedores dela em função de ocuparem alguma posição de
superioridade, seja por seu poder, por suas riquezas ou pela nobreza de
nascimento; pois estas coisas, nos dizia Aristóteles, não implicavam em virtude
perfeita e não atestavam a verdadeira essência do caráter magnânimo.
32
Desse
modo, era injustamente e movidos por suas paixões e não pela razão que esses
últimos julgavam-se superiores aos demais:
Imitam o homem magnânimo sem serem semelhantes a ele, e o fazem naquilo
que podem; proceder como homens virtuosos está fora de seu alcance, mas
desprezar os outros não. Com efeito, o homem magnânimo despreza com justiça
(visto que pensa acertadamente) mas o vulgo o faz sem causa nem motivo
33
.
Aristóteles enunciava então um dos traços mais determinantes pelo qual a
superioridade de caráter do magnânimo se dava a conhecer - traço que seria
retomado posteriormente pela reflexão de Cícero sobre o tema em seu Dos
deveres - ou seja, seu comportamento desdenhoso em relação aos bens do mundo
que interessavam o comum dos homens.
34
Era sua ambição da honra de belas
31
ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco, 1124a.
32
Apesar disso, o texto de Aristóteles é um tanto ambíguo quanto ao valor desses bens. Ele não os
considera, completamente vãos no que diz respeito à honra, na medida em que reconhece a
dinâmica das opiniões e juízos do mundo como sua base: “(...) tudo que se mostra superior em
algo é tido em grande honra. Daí que até essas coisas tornem os homens mais magnânimos, pois
alguns os honram pelo fato de possuí-las. Mas, em verdade, só merece ser honrado o homem bom;
aquele porém, que goza de ambas as vantagens é considerado mais merecedor de honras.” Idem,
1123b 30.
33
Idem, 1124
a 25.
34
Como nos mostra Carlo Varotti, Leonardo Bruni, se apropria do conceito aristotélico da
magnanimidade em seu Isagicon Moralis Disciplinae, mas, de maneira significativa, não se
concentra muito nesse aspecto da superioridade face aos bens do mundo. Na verdade, Bruni define
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ações acima de todas as coisas, o princípio da retidão de seu modo de vida, pois a
verdadeira honra era incompatível com a valorização excessiva das riquezas, do
poder e das falsas honrarias e sobretudo das ações ímpias que se exerciam
constantemente em seu nome: “(...) pois com que fim praticaria ações
vergonhosas aquele para quem nada é grande. Se considerarmos ponto por ponto
veremos o perfeito absurdo de um homem magnânimo que não seja bom.”
35
Sua
perfeição moral, desse modo, traduzia-se em sua autosuficiência, isto é, numa
conduta que jamais se subordinava às paixões dos bens externos mas que se
pautava somente em sua disposição em praticar as virtudes.
Por essa razão, ele jamais se ocupava com ações ordinárias, ainda que
pudessem provocar a admiração do vulgo ignorante. Isso era comportamento
peculiar àqueles que só agiam arrastados pelos excessos dessa paixão:
Igualmente próprio do homem magnânimo é não ambicionar as coisas que são
vulgarmente acatadas, nem aquelas em que os outros se distinguem; mostrar-se
desinteressado e abster-se de agir, salvo quando se trate de uma grande obra ou
de uma grande honra, e ser homem de poucas ações, mas grandes e notáveis.
36
Tendo a razão por guia, o magnânimo escolhia as ações mais
extraordinárias, que estivessem realmente à altura de suas aspirações, elevadas
bem acima dos interesses comuns. Sua aspiração às mais altas honras o elevava
até mesmo acima do desejo de conservar a vida: “(...) enfrentará os grandes
perigos, e nesses casos não poupará a sua vida, sabendo que há condições em que
não vale a pena viver.”
37
De fato, nem mesmo a própria honra fazia com que exultasse
excessivamente, a ponto de transformá-la em uma paixão que perturbasse a
o conceito pela centralidade da noção do desejo de uma honra adequada a seu próprio valor, que
no texto aristotélico é apenas um dos aspectos dessa virtude, ainda que decisivo. Segundo o
chanceler florentino, o magnânimo se afirma em sua superioridade moral sempre “Quando seja
digno de grandíssimas honras e não hesite em cercar-se delas.” Portanto, a magnanimidade, que,
segundo Aristóteles era sobretudo a capacidade de elevar-se acima das paixões pelas coisas do
mundo, aparece nessa obra de Bruni principalmente sob o signo da legitimidade moral de seu
apetite de honras, que o diferenciava dos presunçosos. Com isso, atenta Varotti, Bruni procurava
enfatizar a dignidade da ambição dos grandes homens de cumprir carreira pública e de ascender
politicamente. O ideal de perfeição da megalopsychia, estava então a serviço da ideologia elitária
que Bruni sustentava em seu anseio de formar uma classe dirigente de homens valorosos para
conduzir os negócios da república e manter sua solidez, sem que isso implicasse em atentar contra
o valor tradicional da igualdade. VAROTTI, C., op. cit., p. 162.
35
ARISTÓTELES, op. cit., 1124 a.
36
Idem, 1124b25.
37
Idem, 1124b10.
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retidão de sua conduta. Na verdade, ele a tinha como recompensa justamente
merecida e nunca se comportava em relação a ela como se fosse algo de
extraordinário.
38
A recebia com moderado prazer por saber-se à sua altura, com
razão e justiça.
Esse ideal aristotélico da grandeza merecedora de honras imortais foi
reapropriado mais tarde em contextos diversos, servindo não raro, ao esforço por
determinar a natureza de uma ambição justa de glória, dissociada da presunção e
da cupidez dos orgulhosos. Sob a influência dos preceitos do estoicismo
39
sua
condição superior, capaz dos atos mais extraordinários, passou a centrar-se
bastante também nesse outro aspecto do texto aristotélico, isto é, na noção de sua
perfeição moral, traduzida na autosuficiência da virtude; no alcance de uma
sabedoria exemplar, desdenhosa das paixões do vulgo.
40
A reflexão de Cícero
sobre o tema em Dos deveres, por exemplo, frisava não tanto a realização de
grandes feitos quanto a importância dessa sua condição de autosuficiência para
que a ambição de primazia não ferisse o bem comum e o valor da liberdade e se
traduzisse na conquista de uma vera gloria, exercida exclusivamente por seu
próprio valor e não pelos bens que vinham em sua esteira. Desse modo, a glória de
seus atos servia de exemplo à comunidade civil e de estímulo às suas virtudes.
41
No contexto humanista a magnanimidade estaria estreitamente ligada ao
valor da formação da alma na filosofia e na retórica dos antigos, principalmente a
partir da obra de Petrarca, que renunciara às volúpias do mundo para dedicar-se
inteiramente aos estudos na solidão da vida retirada, para legar à posteridade uma
imagem exemplar de perfeição moral, que seria objeto de louvor dos autores
humanistas.
Como sabemos, Montaigne também adotou a opção da vida
contemplativa, mas sua meditação aplicada na sabedoria dos antigos, não operava
nele essa transformação interior pela qual pudesse tornar-se imagem exemplar de
perfeição, destinada a servir à instrução moral dos homens. Nessa passagem, de
Do exercício, a fim de afirmar seu intento de dar testemunho de si simplesmente
38
Idem, 1124a15.
39
VAROTTI, C., op. cit., p. 263.
40
ANNAS, Julia, op. cit. p. 119.
41
Essa concepção da magnanimidade se enraizava no princípio estóico de que a virtude deveria ter
em si mesma sua recompensa. Segundo Diógenes: “(...) megalopsychia é autosuficiente por nos
colocar acima de todas as coisas e se isso é parte da virtude, então a virtude é também
autosuficiente para a felicidade, desprezando inclusive as coisas que parecem importunas.”
DIÓGENES, VII, 128, Apud ANNAS, J., op. cit., p. 119.
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103
pelos “ensaios” de seu jugement, ele não fez distinção entre as grandes obras do
espírito e os atos célebres pelos quais os homens pretendiam se autoafirmar como
detentores de dotes extraordinários, que atestassem sua perfeição:
Talvez se pretenda que eu dê testemunho de mim por obras e atos, não
puramente por palavras. Eu pinto principalmente meus pensamentos – assunto
informe, que não pode redundar na produção de uma obra. (...) As ações diriam
mais sobre a fortuna do que sobre mim. Elas atestam seu próprio papel, não o
meu, a não ser de maneira conjectural e incerta: amostras de um aspecto
particular.
42
Desse modo, portanto, ao invés de atribuir a obras e atos externos e
distinguidos a função de dar testemunhos de si, Montaigne tomava todos os
movimentos de seu juízo como apropriados para dar-se a conhecer, recolhendo no
livro as “imaginations” e “fantasies” mais diversas produzidas pelo juízo. Estes
sim, ele os tomava como testemunhos fidedignos de si, pelos quais avançava em
sua empresa de autoconhecimento. De fato, seus Ensaios buscavam um único
conhecimento, ou seja, seu próprio autor, Michel de Montaigne e, de imediato,
para ele mesmo
43
.
Encontramos, portanto, como princípio de sua atividade literária, algo bem
diverso da pretensão em representar-se como homem de gênio e da consideração
de sua escrita como uma obra acabada, destinada a imortalizar-se como exemplo.
O grande valor aí celebrado e que definia a natureza própria de sua autonomia era
da integridade intelectual, ou seja, da fidelidade ao movimento de sua própria
reflexão. Esta tinha por base, como examinaremos no próximo item, sua adoção
da perspectiva filosófica cética da Antigüidade.
4.3) O ceticismo de Montaigne: a escolha da autonomia contra a
imitação.
De todo modo, como já vimos, as tópicas ligadas aos ideais helênicos de
perfeição moral do sábio - elevado acima das paixões do mundo e centrado na
fortaleza de sua sabedoria -, serviram bastante à expressão e ao elogio do desejo
42
“A l`adventure, entendent ils que je tesmoigne de moy par ouvrages et effects, non nuement par
des paroles. Je peins principalement mes cogitations, subject informe, qui ne peut tomber en
production ouvragere. (...) Les effects diroyent plus de la fortune que de moy. Ils tesmoignent leur
role, non pas le mien, si ce n`est conjecturalement et incertainement: eschantillons d`une amostre
particuliere.” MONTAIGNE, II, 6, p. 379.
43
CARDOSO, S., op. cit., p. 52.
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de autonomia de Montaigne em sua empresa de autoafirmar-se em sua razão. Ele
se utilizou delas no desenvolvimento de sua crítica das ambições em Da glória.
De fato, a imagem do sábio foi então seu corolário, reforçando a idéia de que a
verdadeira virtude jamais poderia extrair seu valor da glória; ela só podia ser
buscada pelo seu próprio valor e somente, portanto, por aqueles que se adequavam
à sua razão e não aos aplausos do mundo e que punham a virtude acima dos
interesses vulgares, da glória, do lucro e do poder:
Não é para a exibição que nossa alma deve desempenhar seu papel; é dentro de
nós, no íntimo, aonde outros olhos não chegam exceto os nossos: ali ela nos
protege do temor da morte, das dores e mesmo da desonra; ela nos assegura
contra a perda de nossos filhos, de nossos amigos e de nossas fortunas, e,
quando a ocasião se apresenta, ela nos conduz também para os acasos das
guerras (C)‘Não por algum proveito mas pela honra da própria virtude’
44
Mas, como também já vimos, a confissão expressa da incapacidade em
erradicar da alma as ambições do mundo e da impossibilidade de fixar-se e
unificar-se interiormente – “nous sommes, je ne sçay comment, doubles en nous
mesmes, qui faict que ce que nous croyons, nous ne le croyons pas ” – vinha
distanciá-lo, de imediato, dessa tradição, exprimindo, logo na primeira parte do
ensaio, a natureza diversa de sua profissão de autonomia, dada sob o
questionamento da validade prática dos preceitos filosóficos estóicos e epicuristas,
pautados na confiança nos poderes superiores da razão.
Esse distanciamento ganhava forma ainda mais precisa na passagem em
que nos detivemos há pouco, que é a primeira em forma reflexiva do ensaio, em
que Montaigne declarava que desejava somente a glória de uma vida tranqüila,
segundo sua razão natural, face à constatação das insuficiências das diversas
filosofias da Antigüidade em determinar a natureza do soberano bem: “Puis que la
philosophie n`a sçeu trouver aucune voye pour la tranquillité qui fust bonne en
commun, que chacun la cherche en son particulier”.
Nessa destituição do valor moral dos exemplos que deveriam ensinar aos
homens o caminho universalmente válido para a tranqüilidade da alma – “non
selon Metrodorus, ou Arcesilas ou Aristipus” - Montaigne expressou o vínculo
44
“Ce n`est pas pour la montre que nostre ame doit jouer son rolle, c`est chez nous, au dedans, où
nuls yeux ne donnent que les nostres; là elle nous couvre de la crainte de la mort, des douleurs et
de la honte mesme; elle nous asseure là de la perte de nos enfans, de nos amis et de nos fortunes,
et, quand l`opportunité s`y presente, elle nous conduit aussi aux hazards de la guerre. (C) ‘Non
pour un profit, mais pour l`honneur attaché à la vertu même.” MONTAIGNE, II, 16, p. 623.
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profundo que havia entre seu projeto de emancipação e sua crítica cética do
conhecimento. Com efeito, uma das maiores provas da impotência da razão
humana era o fato de que as diversas escolas filosóficas que pretendiam responder
sobre a natureza do bem e estabelecer os preceitos certos para alcançá-lo, não
concordavam entre si mas afirmavam opiniões diversas, que manifestavam antes a
ignorância humana do que a excelência de suas capacidades.
Essa constatação da fraqueza da razão e a renúncia ao orgulho de
acreditar-se possuidor da verdade, que estava no cerne do discurso dos Ensaios,
tinha por base o conceito pirrônico da diaphonia, que exprimia o reconhecimento
do conflito permanente entre as diversas posições teóricas sustentadas pelos
filósofos, dada a verificação da igual força persuasiva de todas elas e a
impossibilidade de se encontrar um critério suficiente para escolher uma em
detrimento das outras.
45
Segundo os argumentos do ceticismo, a diaphonia,
exprimindo a confusão entre afirmações e argumentos variados e a impotência da
razão deveria levar à epoché, à suspensão do juízo quanto à busca da verdade. De
fato, era justamente a experiência da epoché cética que fundava a opção
fundamental dos Ensaios, da glória de uma vida tranqüila “selon moy”, ao invés
de aderir às pretensas razões superiores de outrem.
Montaigne formulou seu ceticismo de maneira sistemática, como opção
filosófica refletida, no amplo capítulo Apologia de Raymond Sebond. Apresentou
e comentou aí os argumentos da tradição cética antiga
46
, a partir de suas principais
45
Quase todos os dez tropos de Enesidemo, no primeiro livro das Hipotiposes Pirrônicas tratam
desse problema do critério. Os dez tropos são destinados a facilitar o método de por em situação de
conflito fenômenos e pensamentos, definindo mais exatamente, em que consiste o ceticismo, ou
seja, num método para levar à epoché, à suspensão do juízo, a partir do reconhecimento da
incapacidade de escolher ou optar por qualquer pretensa solução para problemas relativos à real
natureza das coisas. Nesse sentido o antidogmatismo pirrônico define-se como um processo de
elaboração de argumentos críticos contra as pretensões otimistas das diversas doutrinas que
pretendem fornecer a verdadeira descrição do mundo; a correta reprodução do modo como as
coisas são: “O ceticismo é a capacidade de colocar frente a frente [ou opor], umas com as outras,
da maneira que seja, tanto as coisas que aparecem – phainomenoon -, quanto as coisas inteligíveis
noouménoon -, capacidade esta que, devido à força igual que há nas coisas e nos pensamentos
opostos, nos faz ter à suspensão – epochée em seguida à tranqüilidade – ataraxia.” SEXTO
EMPÍRICO, Hipotiposes Pirrônicas, I, IV.
46
O ceticismo teve sua origem no pensamento grego antigo com a filosofia de Pirro de Élis (360-
270 a. C.), mas formou pelo menos duas concepções distintas relativas ao conhecimento, a dos
acadêmicos e a dos pirrônicos, que se diziam mais autênticos seguidores da filosofia de Pirro. Vale
aqui apresentá-las em linhas gerais. O ceticismo acadêmico (que leva este nome por ter sido
formulado na Academia de Platão no século III a. C.) estabelecia que nenhuma forma de
conhecimento das essências do real era possível à razão humana. Arcesilau (315-241 a. C.) e
Carnéades (213-129 a.C.) foram seus principais teóricos e se voltaram sobretudo para o
questionamento das pretensões filosóficas dos estóicos, mostrando que nada na natureza é passível
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fontes, as Hipotiposes Pirrônicas de Sexto Empírico, os Academicos de Cícero,
além de outros escritos da Antigüidade que faziam referências a essa filosofia,
como de Plutarco e de Diógenes Laércio
47
.
Quanto ao ceticismo de Montaigne, tão explorado pelos seus
comentadores
48
, cabe aqui precisar em linhas gerais a perspectiva por nós adotada.
Discordamos da interpretação de Pierre Villey
49
que restringe seu alcance no que
diz respeito ao âmbito mais geral dos desígnios dos Ensaios, limitando-o ao
conteúdo da Apologia como expressão de uma “crise cética”, circunscrita ao
momento em que leu as Hipotiposes Pirrônicas, por volta de 1576, bem como
diversas outras atinentes a essa tradição. A noção de uma “crise cética”
desautorizaria a consideração da existência desse modo de filosofar, baseado na
renúncia em atestar verdades, tanto nos primeiros capítulos dos Ensaios, como
naqueles escritos nos anos posteriores a Apologia, que expressariam segundo
Villey, a superação da “crise”.
Ao contrário deste, consideramos de extrema importância para uma melhor
abordagem do conteúdo da obra, conceber nela a existência permanente e
fundamental de uma postura cética, que articula seu pensamento e seu modo de
conhecer-se. Aceitamos, assim, a pertinência de uma outra corrente interpretativa,
representada por exemplo por Yves Pouilloux
50
e Andre Tournon
51
, que
reconhecem a lição da dúvida cética como princípio constitutivo da linguagem dos
de ser realmente conhecido em sua verdadeira substância. Diante da impossibilidade da elaboração
de premissas que alcançassem a certeza absoluta Carnéades desenvolveu o argumento de que o
melhor tipo de informação que se pode obter é o provável, tomando-o como guia e critério de
conduta na vida prática. O probabilismo de Carnéades influenciou Cicero, Diógenes Laércio e
Santo Agostinho, sendo a retomada de suas obras durante a Renascença o que tornou possível a
transmissão dessa tradição para o mundo moderno sobretudo entre os fins do século XV e inícios
do XVI. Já a principal fonte do ceticismo pirrônico, as Hipotiposes Pirrônicas de Sexto Empírico,
foi publicada pela primeira vez em 1562 na França por Henri Etienne. Os pirrônicos afirmavam
não haver evidência adequada ou suficiente para se determinar a possibilidade ou não de alguma
forma de conhecimento e, portanto, pregavam a suspensão do juízo – epochè - em relação a toda
espécie de dogmatismo. Como se vê logo na primeira parte das Hipotiposes, Sexto condenava a
declaração dos acadêmicos de que nada podia ser conhecido como uma afirmação negativa de
dogmatismo, que portanto, os excluiria dessa tradição, apesar de que o conceito fundamental do
ceticismo, a epochè, estivesse presente também entre os acadêmicos, com exceção do pensamento
de Carnéades, cuja tese do probabilismo, implicava na rejeição à suspensão total do juízo.
47
Sobre as fontes céticas de Montaigne na Apologia de Raymond Sebond ver EVA, L. A Figura do
Filósofo, p. 29.
48
É sobretudo a partir do importante trabalho de Richard Popkin História do Ceticismo de Erasmo
a Spinoza, publicado em 1962,que os Ensaios começam a ser vistos como dotados de um pleno
estatuto filosófico, inscritos na tradição do ceticismo e exigindo dos intérpretes o ato de medi-los
aos topoi desta escola filosófica para sua adequada abordagem.
49
VILLEY, P. Les Essais de Montaigne, p. 68.
50
POUILLOUX, Y., op. cit. p. 104-105.
51
TOURNON, A., op. cit., p. 128.
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Ensaios, indissociável da afirmação de seu modo de filosofar, para além dos
limites da Apologia.
Com efeito, os paradoxos e contradições que impedem a afirmação de uma
verdade atestada como conclusão, se fazem presentes como instrumentos de sua
forma literária desde os primeiros capítulos
52
. Por seu próprio princípio
constitutivo seus escritos implicavam na redução ao estatuto de crenças e de
comportamentos contingentes os valores instituídos, para confrontá-los com as
fantasies” pessoais de Montaigne. Retirando-lhes o caráter de autoridade a que
deveria aderir passivamente, ele os submetia todos (tanto os valores da tradição
quanto as próprias “fantasies”) à investigação sem fim do seu jugement, que
media por sua vez suas audácias e sua incapacidade de possuir a verdade.
Com efeito, essa ativação do próprio juízo é que movia os Ensaios e lhes
fornecia matéria. Mas Montaigne só podia se reapropriar de suas faculdades e
utilizá-las de forma livre e integral renunciando à pretensão de ter encontrado a
verdade, ou seja, exercendo-se externamente a aderência a qualquer espécie de
dogmatismo, cuja presunção de considerar-se em posse da verdade implicava na
estagnação da ação investigativa do juízo.
Mas atestar a existência de uma postura cética permeando os Ensaios não
deve confundir-se com o não reconhecimento da originalidade de sua apropriação
dos conceitos dessa tradição. De fato, a epoché, a experiência de suspensão do
juízo quanto à verdade, para os antigos pirrônicos não tinha o mesmo sentido que
teria para Montaigne. Para eles a constatação da fraqueza da razão, provocada
pela diaphonia entre as diversas doutrinas, funcionava como ponto de partida para
a realização do objetivo primordial da filosofia de Pirro: a tranqüilidade da alma,
definida pela noção de ataraxia, da imperturbabilidade do espírito que renunciava
exercer sua razão para dar seu assentimento a alguma falsa aparência da
verdade
53
:
52
C. B. Brush que situa o ceticismo de Montaigne como um traço permanente de seu
“temperamento” cita, por exemplo, o capítulo I, 27, intitulado É loucura condicionar ao nosso
discernimento o verdadeiro do falso, como um dos mais céticos de seus ensaios, escrito por volta
de 1572 e, portanto, bem antes da Apologia. BRUSH, C. B., Montaigne and Bayle, variations on
the theme of Skepticism, p. 37.
53
Sobre isso ver MARCONDES, D. A Tradição Cética, os argumentos limitativos do
conhecimento e a questão da linguagem. Departamento de Filosofia (PUC-RJ). Conferência em
1997.
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108
Chamamos de ‘força igual’ a igualdade no que diz respeito à credibilidade ou à
falta dela, de modo que nenhum dos pensamentos em conflito possui qualquer
superioridade sobre os outros por ser mais convincente. A ‘suspensão’, ela é a
estagnação do pensamento – stasis dianoias – que se deve ao fato de que não
rejeitamos nem afirmamos coisa alguma. E quanto à ‘tranqüilidade’ – ataraxia
– ela é a ausência de perturbações, a quietude da alma.
54
Longe de servir a esse estado da ataraxia, de absoluta quietude, como nos
mostra José Raimundo Maia
55
, a epoché cética para Montaigne, representava o
modo pelo qual se restituía às faculdades humanas, cognitivas e morais, seu uso
integral, da maneira mais correta e perfeita, ou seja, em sua atividade
investigativa, alheia à pretensão de considerar-se a altura de uma verdade a que
não podia ascender naturalmente por suas próprias forças. Assim, ao desconfiar
das teses dos dogmáticos e denunciar a presunção do saber, segundo Montaigne,
os pirrônicos eram os que usavam suas capacidades racionais à perfeição, pois,
livre do assentimento aos dogmas, podiam exercitar melhor sua atividade de
inquirir e de investigar.
O elogio a este benefício dos argumentos do ceticismo se expressava numa
passagem da Apologia, em que Montaigne fazia referência aos filósofos em geral,
mas especialmente aos céticos: “Eles trabalharam sua alma em todos os sentidos e
em todos os aspectos (...) é neles que se aloja a extrema elevação da natureza
humana.”
56
Essa passagem introduzia a apresentação dos céticos na Apologia,
que, da mesma maneira como o eram nas Hipotiposes de Sexto, apareciam no
interior de uma divisão tripartite entre as filosofias
57
, centrada na valorização da
prática da investigação: a dos dogmáticos, que consideravam ter encontrado a
54
Sexto Empírico, Hipotiposes Pirrônicas, I, IV.
55
A noção de perfeição como uso integral das capacidades do intelecto é afirmada aqui no sentido
aristotélico, da total realização da função natural do homem, estabelecida no início do primeiro
livro da Ética a Nicômaco, embora, não fosse idêntica à concepção de Aristóteles, pois para
Montaigne a razão humana se realizava plenamente não na obtenção da verdade, mas sim em sua
atividade investigativa. MAIA NETO, J. R., “Epoché as Perfection: Montaigne`s view of ancient
scepticism” In: Skepticism from Renaissance to the Elightement, pp. 13-42.
56
“Ils ont manié leur ame à tout sens et à tout biais (...) c`est en eux que loge la hauter extreme de
la nature humaine.” MONTAIGNE, II, 12, p. 502.
57
“Aparentemente, quando empreendemos uma investigação – zetésis - sobre alguma coisa, segue-
se que ou fazemos uma descoberta; ou negamos ter feito uma descoberta, reconhecendo, assim,
que a coisa é inapreensível; ou continuamos procurando. E por isso, provavelmente, que, no que
diz respeito ao que é investigado pela filosofia, alguns afirmam ter descoberto a verdade; outros,
que ela não pode ser apreendida; e, outros ainda, continuam investigando. Aqueles que pensam ter
encontrado são os dogmáticos, em sentido estrito: por exemplo, os seguidores de Aristóteles e de
Epicuro, os estóicos entre outros. Clitômaco, Carnéades e outros acadêmicos são partidários do
inapreensível. Os que continuam procurando são os céticos. Assim parece razoável manter três
tipos de filosofia, a dogmática, a acadêmica e a cética.” SEXTO EMPÍRICO, Hipotiposes
Pirrônicas, I, I.
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verdade; a dos acadêmicos, que a tinham como inapreensível; e a dos céticos, que
continuavam procurando, sem afirmar ser ela apreensível ou não.
De fato, com essa recomendação quanto à busca da tranqüilidade da alma,
de “que chacun la cherche en son particulier”, Montaigne retomou em Da glória a
mensagem libertadora da Apologia, da celebração da própria integridade
intelectual; do agir consciente e deliberado, segundo os próprios critérios, contra
as determinações morais que regulavam a vida e os costumes comuns que
levavam os homens a agir sem escolha e sem discernimento, aderindo a valores
dados como verdadeiros, por simples autoridade. Montaigne falou sobre essa
questão na Apologia, pautando na epoché que dela resultava, a sua concepção
própria sobre o modo como deveria exercer-se o juízo humano. Ou seja, não
entendido como um poder inato e universal, dado igualmente a todos, como meio
de apreender a realidade objetiva das coisas, mas como capacidade subjetiva de
compreensão, em sua instabilidade própria, posta em ação a cada vez que se julga,
sob a crítica às lições dos filósofos:
Mas o fato de não se ver proposição alguma que não seja debatida e controversa
entre nós, ou que não o possa ser, mostra bem que nosso julgamento natural não
apreende muito claramente aquilo que apreende; pois meu julgamento não pode
fazer com que isso seja aceito pelo julgamento de meu companheiro, o que é
sinal de que o aprendi por algum outro meio que não um poder natural que
exista em mim e em todos os outros homens.
58
Dessa perspectiva, de fato, a maneira particular como se julga era
valorizada como manifestação mais plena da própria sigularidade como sujeito,
liberada pela suspensão do juízo. Assim, no âmbito da apropriação montaigneana
da argumentação cética, a epoché pirrônica era utilizada com vistas ao autoexame
e se dava apenas como um primeiro momento do processo de retomada de sua
autonomia. Esta, em suma, longe se identificar à ataraxia pirrônica, enfatizava,
sobretudo, a ação investigativa da razão – zétesis – lhe conferindo centralidade.
59
A afirmação da fraqueza da razão humana, jamais sugeriu em nenhum momento,
nos Ensaios, a aspiração de alcançar um estado caracterizado pela renúncia ou
58
“Mais ce qu`il ne se void aucune proposition qui ne soit debatue et controverse entre nous, ou
qui ne le puisse estre, montre bien que nostre jugement naturel ne saisit pas bien clairement ce
qu`il saisit; car mon jugement ne le peut faire recevoir au jugement de mon compagnon: qui est
signe que je l`ay saisi par quelque autre moyen que par une naturelle puissance qui soit en moy et
en tous les hommes.” MONTAIGNE, II, 12, p. 562.
59
EVA, L., op. cit., p. 247.
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pela limitação da atividade do conhecimento, mas levava Montaigne a apresentar
suas asserções a título de opiniões e convicções próprias, referentes somente ao
seu processo pessoal de reflexão, incapaz de instruir os homens. Como declarava
no proêmio do capítulo Dos livros: “Quem estiver em busca de conhecimento que
o pesque aonde ele se aloja: não há nada que eu professe menos. Estão aqui
minhas fantasias, pelas quais não procuro dar a conhecer as coisas e sim a mim
mesmo (...)”
60
A reapropriação da própria liberdade e integridade intelectual assegurava
sua pintura mais fiel. Num trecho da Apologia, inspirado não nas Hipotiposes,
mas nos Acadêmicos de Cícero, Montaigne celebrou esse valor de importância
fundamental e decisiva em seu método de autoconhecimento. Seu alinhamento
com o pirronismo não o impediu de utilizar-se da obra de Cícero como uma de
suas principais fontes, pois, com efeito, como nos mostra a passagem abaixo, a
noção acadêmica, da inapreensibilidade da verdade não levava a um rompimento
com a zetésis; a atividade da investigação, mas antes a recrudescia.
61
Seguindo os
argumentos de Cícero, Montaigne defendia então a superioridade moral da epoché
quanto à verdade em detrimento do assentimento dos dogmáticos, cujo orgulho
implicava numa paralização da atividade da razão
62
:
(B) Por que, dizem, também a eles não será permitido duvidar, como entre os
dogmatistas é permitido a um dizer verde, ao outro amarelo? Haverá coisa que
vos possam propor, para admiti-la ou refutá-la, que não seja lícito considerar
60
“Qui sera en cherche de la science, si la pesche où elle se loge: il n`est rien dequoy je face moins
de profession. Ce sont icy mes fantasies, par lesquelles je ne tasche point à donner à connoistre les
choses, mais às moy (...)” MONTAIGNE, II, 10, p. 407.
61
Com efeito, Montaigne se utilizou de fontes pirrônicas e acadêmicas na construção de sua visão
própria do ceticismo, o que não impedia que eventualmente expressasse seu juízo sobre a
discordância entre as duas escolas. Mas como nos mostra Luiz Eva, desde o primeiro momento de
seu engajamento no ceticismo, as duas escolas, ao que parece, se apresentaram a ele como
modalidades diversas de um único gênero de filosofar, que tinha por fundamento a suspensão do
juízo quanto à verdade. Assim, ao invés de indagar sobre a aderência de Montaigne a uma ou outra
dessas duas tradições, Eva propõe uma outra perspectiva para avaliar seu pensamento: “(...)
pensamos que levar em conta ambos os elementos – tanto sua ênfase em uma diferença de gênero
entre o ceticismo e a filosofia dogmática como sua tendência em operar, de modo geral, com as
diferentes fontes céticas, a fim de encontrar nelas, de modo geral, uma forma de concordância e de
continuidade – pode nos conduzir a observar as coisas de outro modo.” EVA, L., op. cit., p. 219.
62
Abordando esse benefício que Montaigne atribui à epoché, como estado em que se realiza à
perfeição a natureza racional e emocional do homem, José Raimundo Maia questiona a
interpretação de Richard Popkin do ceticismo de Montaigne, como fideísta. Essa perspectiva de
Popkin, de fato, contradiz frontalmente o entendimento da epoché como modo de restituir aos
homens o uso adequado e perfeito de suas faculdades. Do ponto de vista fideísta, a epoché
descreveria um estado de miséria humana e seria valorizado na medida do esvaziamento da alma
de suas crenças para que pudesse receber a luz transcendente da graça divina. MAIA NETO, J. R.
op. cit.
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como ambígua? E, ao passo que os outros são levados (ou pelo costume de seu
país, ou pela educação dos pais, ou por acaso, como por uma tempestade, sem
julgamento e sem escolha, e mesmo, quase sempre antes da idade do
discernimento) a esta ou aquela opinião, à seita estóica ou à epicurista, à qual se
encontram hipotecados, submetidos e presos como a uma armadilha que não
podem soltar: (C) – ‘Agarram-se a qualquer doutrina como a um rochedo sobre
o qual a tempestade os houvesse lançado’ – (B) por que a estes aqui não será
igualmente concedido que mantenham sua liberdade, e considerem as coisas
sem comprometimento ou sujeição? (C) ‘Inda mais livres e mais independentes
porque nada limita seu poder de julgar’ Não é uma vantagem ver-se liberto da
necessidade que freia os outros?
63
Defendendo o direito dos céticos de duvidar, assim como o era aos
dogmáticos de assentir, Montaigne, na verdade, ressaltava a superioridade moral
da epoché sobre o assentimento, destacando o prejuízo que o dogmatismo causava
à faculdade do julgamento, comprometendo o exercício adequado da razão,
segundo seu funcionamento natural. Assim, a aderência às doutrinas, tal como
apresentada acima, revelava sua ausência de base epistêmica, dada inclusive antes
do alcance de uma maturidade intelectual, devida somente, à imposição das
autoridades externas, como dos costumes, da fortuna e da educação. Os céticos,
dessa perspectiva, eram os que usavam suas faculdades em sua inteira capacidade,
justamente por não se pretenderem possuidores da verdade.
64
Assim, ao invés de
hypothéquer” seu próprio juízo, agarrando-se às doutrinas como a rochedos – de
acordo com a passagem citada dos Academicos de Cícero – eles encontravam um
refúgio seguro para a movência e instabilidade do mundo na epoché.
65
63
“(B) Pourquoy ne leur sera il permis, disent-ils, comme il est les dogmatistes à l`un dire vert, à
l`autre jaune, à eux aussi de doubter? est il chose qu`on vous puisse proposer pour l`advouer ou
refuser, laquelle il ne soit loisible de considerer comme ambigue? Et, où les autres sont portez, ou
par la coustume de leur païs, ou par l`instituition des parens, ou par rencontre, comme par une
tempeste, sans jugement et sans chois, voire le plus souvant avant l`aage de discretion, à telle ou
telle opinion, à la secte ou Stoique ou Epicurienne, à laquelle ils se treuvent hippothequez, asserviz
et collez comme à une prise qu`ils ne peuvent desmordre: (C) ‘Ils se cramponnent à n`importe
quelle doctrine comme à un rocher sur lequel la tempête les aurait jetés’ – (B) pourquoy à ceux cy
ne sera il pareillement concedé de maintenir leur liberté, et considerer les choses sans obligation et
servitude? (C) ‘D`autant plus libres et plus indépendants que rien ne limite leur pouvoir de juger.’
N`est ce pas quelque advantage de se trouver desengagé de la necessité qui bride les autres?”
Idem, II, 12, p. 504.
64
Da mesma maneira Cícero condenou essa imposição de fatores externos sobre o intelecto. Em
seus Academicos ele frisou os riscos da influência não racional, de amigos e do ensino das
proposições dos filósofos dogmáticos, na infância, como obstáculos à própria integridade
intelectual. Ver CÍCERO, Acadêmicos, II, 8, apud. Maia Neto, J. R., op. cit., p. 16.
65
MAIA NETO, J. R., op. cit., p. 17.
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112
4.3.1) A suspensão cética quanto a valores e crenças em Da Glória.
Mas essa liberdade do próprio juízo de que se faziam os Ensaios, se dava
necessariamente também às expensas de sua utilidade, implicando numa
representação indecorosa de si, que não se justificava pela celebridade de seus
feitos e pela nobreza do próprio caráter, poderia, portanto, ser facilmente tomada
como orgulho e altivez.
Entretanto, conforme declarava em Da glória, conquanto não se adequasse
a nenhum exemplo reconhecido de sabedoria, sua opção, desse ponto de vista, se
afigurava como estando bem mais próxima da virtude, pelo fato de sua conduta
não pretender extrair das falsas aparências externas o seu valor e basear-se
somente em sua própria prática.
A virtude que subordinava sua realização aos testemunhos externos jamais
poderia ser verdadeira, pois era um juízo errôneo que a validava, exercido
somente sobre as aparências. Isso implicava em destituir a virtude de sua essência
e associá-la ao seu extremo oposto, ou seja, à fortuna dos acasos que, afinal,
determinavam os rumos das opiniões dos homens. Mais que isso, era também a
fortuna que determinava até mesmo a presença ou a ausência dos testemunhos
alheios para o registro da glória. Dessa perspectiva, os ambiciosos em excesso,
que agiam sempre sob o anseio de serem vistos, podiam ser levados à fama na
mesma medida que ao esquecimento absoluto, segundo os acasos, sendo ambos
(glória e esquecimento) frutos do caráter fortuito e imprevisível do testemunho de
outrem e não devidos ao próprio mérito ou à ausência dele:
A que devem César e Alexandre a grandeza infinita de seu renome senão à
fortuna? A quantos homens ela se estendeu sobre os inícios de seu progresso,
dos quais nós não temos nenhum conhecimento, e que usariam tanta coragem
como aqueles se a desventura de sua sorte não os tivesse detido de chofre nos
inícios de suas empresas
66
.
Declarando, assim, a impossibilidade de judicar sobre a excelência
humana através da dimensão exterior dos exemplos e de seus feitos
extraordinários, Montaigne questionou a grandeza excepcional de alguns dos mais
66
“A qui doivent Caesar et Alexandre cette grandeur infinie de leur renommée qu`à la fortune?
Combien d`hommes a elle esteint sur le commencement de leur progrés, desquels nous n`avons
aucune connoissance, qui y apportoient mesme courage que le leur, si le malheur de leur sort ne les
eut arrestez tout court, sur la naissance de leur entreprinses!” MONTAIGNE, II, 16, p. 622.
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célebres heróis do mundo antigo. Com efeito, dada a desordem caótica dos
negócios humanos e o quanto a fortuna estendia seu domínio sobre eles, era
preferível fazer como os pirrônicos e suspender o juízo quanto a tais valores e
crenças, que determinavam arbitrariamente a essência da virtude e do vício; do
bem e do mal, que causavam tantos problemas e agitações ao espírito,
engendrando as superstições e os excessos das ambições. A tranqüilidade da alma
proporcionada pela suspensão do juízo não apenas em relação às teses dos
dogmáticos mas também quanto a valores e crenças é um topoi especificamente
pirrônico, bastante presente no elogio montaigneano da epoché como modo de
purificar o homem de suas dores desnecessárias, relacionadas às convicções da
tradição sobre o que era bom ou mal, que o levavam a tudo fazer para alcançar o
primeiro e a empenhar todos os seus esforços para evitar o segundo.
67
De fato, a passagem acima, exprimindo essa maneira de suspensão,
implicava num forte desdém quanto a um dos valores mais celebrados em seu
meio. Fazendo devedora da fortuna a exemplaridade de homens do porte de César
e de Alexandre, Montaigne pôs em jogo a posição privilegiada que o discurso da
história havia ganhado no âmbito mais geral do pensamento moral e político
humanista a partir dos autores italianos, como apreensão e expressão ideal da
excelência humana. Entendendo a história como expressão da fortuna, ele feria em
seu cerne a concepção clássica da historia magistra vitae, que, como já vimos, se
fez presente de maneira intensa na literatura da época, dos escritos de Salutati aos
Discursos de Maquiavel e ao Méthode de L`histoire de Jean Bodin. Segundo esta
tradição, a história tinha a prerrogativa de ordenar o mundo humano e de bem
conduzir suas ações, fornecendo-lhes balizas seguras face à instabilidade dos
eventos, mediante o registro da glória exemplar dos homens virtuosos e do
vitupério dos maus.
A partir dessa passagem, a crítica de Montaigne ao culto da glória e o
elogio de sua opção de voltar-se para si, se associaria estreitamente à ênfase na
natureza caótica, diversa e imprevisível das coisas humanas e a essa visão da
história como instrumento falho e insuficiente para ordená-lo. De seu ponto de
vista, era apenas a insensatez dos homens que os levava a atribuir-lhe a elevada
função moral de ensinar o caminho da virtude. Afinal, como mais um produto de
67
Sobre isso ver o capítulo 30 do primeiro livro das Hipotiposes de Sexto. MAIA NETO, J. R., op.
cit., p. 26.
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suas pretensas ciências e artes, o discurso histórico jamais se elevava acima da
fortuna. Conforme atentava Montaigne, o número das ações extraordinárias que
ela imortalizava nos livros, jamais podia equiparar-se à imensa quantidade
daquelas que não era capaz de subtrair ao esquecimento: “Inúmeras belas ações
devem perder-se sem testemunhas antes que uma delas traga proveito.”
68
Um exemplo bastante significativo do alcance da utilidade moral conferida
à história entre os primeiros representantes do humanismo se encontra numa das
cartas de Coluccio Salutati ao seu correspondente aragonês Juan Fernandez de
Heredia, datada de 1392. Nela Salutati atribuiu à história a alta função de
possibilitar aos homens do presente o pleno conhecimento acerca da essência da
virtude e do vício através do elogio da glória dos heróis do passado e do vitupério
dos viciosos. Desse modo, a consciência histórica se afirmava como principal
meio de organizar o presente e de bem conduzir os assuntos humanos, pois se
constituía numa exortação aos grandes atos da virtude a partir da promessa de uma
glória imortal e do desencorajamento das ações injustas pela perspectiva do
vitupério: “Que coisa é afinal essa ciência senão uma sorte de combate e luta entre
as ações cumpridas e as ações por cumprir-se? De fato, se queremos bem ajuizar,
o que vem inscrito no elogio e no vitupério senão o que pode ser julgado virtuoso
ou imoral? ”
69
A crítica de Montaigne à tradição da historia magistra vitae em Da glória,
com que se opunha à confiança humanista nas capacidades humanas, vinha dar
maior destaque ao sentido unívoco do ensaio. Isto é, da oposição simétrica entre
seu modo de vida, apartado do mundo público e pautado exclusivamente na
autonomia de sua própria reflexão e a confusão do mundo externo, dominado pela
insensatez dos que abdicavam de si mesmos em nome de sua paixão de glória.
Examinaremos melhor essa tradição da historia magistra vitae, no último item
desse capítulo, tal como formulada no mundo antigo por Cícero em seu De
Oratore, e retomaremos também a carta de Salutati a Juan Fernandez de Heredia,
pois, como veremos, a crítica de Montaigne a essa tradição no ensaio se tornaria
mais relevante sobretudo em sua parte final, quando levaria a novas considerações
sobre o valor moral da glória e de sua decisão pelo abandono do mundo.
68
“Infinies belles actions se doivent perdre sans tesmoignage avant qu`il en vienne une à profit.”
MONTAIGNE, II, 16, p. 622.
69
SALUTATI, C., Epistolario, pp. 295-296, apud Varotti, C., op. cit., p. 90.
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Por enquanto, é interessante notar, desse ponto de vista que negava o valor
moral do registro das grandes ações pela história, a atitude própria ao magnânimo
aristotélico, de escolher as ocasiões mais extraordinárias para agir, deixava de
definir-se como sinal de superioridade para expressar a conduta desordenada de
um espírito incapaz de sobrepor-se às suas paixões e de cultivar a virtude por seu
próprio valor. Assim, o olhar sobre as guerras religiosas que assolavam a França
de Montaigne destacavam esse panorama no ensaio não como contexto apropriado
à manifestação da virtude a ser imortalizada pela história, mas, sobretudo, como
modo de perder os espíritos mais valorosos e de precipitá-los no esquecimento.
Com efeito, os homens verdadeiramente virtuosos não esperavam pelas
circunstâncias mais notáveis para bem agir e jamais o faziam em função da
admiração alheia:
Se prestarmos atenção, veremos que, por experiência, as ocasiões menos
brilhantes são as mais perigosas; e que nas guerras que aconteceram em nosso
tempo, perderam-se mais homens de bem em ocasiões ligeiras e pouco
importantes e na disputa por alguma baiúca do que em lugares dignos e
prestigiosos.
70
Após atentar assim para o caráter aleatório da glória e o quanto a boa
reputação era insuficiente para atestar o valor moral, ele inseriu um acréscimo c
ao ensaio, posterior a 1588, demonstrando o absurdo daquele que era um aspecto
central do elogio da glória desde os antigos, ou seja, do ideal de uma morte
heróica e espetacular em combate como suprema realização da vida. Esse ideário
era o exato oposto do preceito que movia o discurso dos Ensaios em
profundidade, ou seja, da adequação à própria natureza e às condições concretas
da existência humana, a partir da exclusão da vaidade de querer ultrapassar seus
limites:
Quem tem sua morte por mal empregada caso não seja em ocasião destacada,
em lugar de ilustrar sua morte, obscurece sua vida, deixando escapar enquanto
isso muitas ocasiões normais de se arriscar. E todas as ocasiões normais são
suficientemente brilhantes se a consciência de cada um trombeteá-las para si
‘Nossa glória está no testemunho de nossa consciência’
71
70
“Et si on prend garde, on trouvera qu`il advient par experience que les moins esclattantes
occasions sont les plus dangereuses; et qu`aux guerres qui se sont passèes de nostre temps, il s`est
perdu plus de gens de bien aux occasions legeres et peu importantes et à la contestation de quelque
bicoque qu`és lieux dignes et honnorables.” MONTAIGNE, II, 16, p. 623.
71
“Qui tient sa mort pour mal employée si ce n´est en occasion signalée, au lieu d`illustrer sa mort,
il obscurcit volontiers sa vie, laissant eschapper cependant plusieurs justes occasions de se
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Também no âmbito da definição aristotélica do caráter do homem
magnânimo a consideração do valor da vida tinha pouca ou nenhuma importância
diante de sua estima pela honra de feitos extraordinários e de sua disposição em
enfrentar grandes perigos.
72
Como veremos no item 4.5, através da abordagem da
segunda carta do primeiro volume das Familiares
73
de Petrarca, esse pensamento
voltado para a morte também esteve presente a seu próprio modo no contexto
literário do humanismo. Segundo Petrarca, também no que dizia respeito à glória
literária era somente o modo de vida que tinha a morte como alvo e horizonte, que
merecia a verdadeira glória, porque renunciava aos bens e interesses imediatos da
vida em nome do objetivo superior de fixar-se permanentemente nos livros, na
forma da perfeição, para instruir a posteridade.
Embora essa glória literária fosse de natureza diversa da glória militar, a
que Montaigne se referia mais especificamente nesse ponto do ensaio, nossa
alusão antecipada à carta de Petrarca mostra o quanto o pensamento da morte
esteve vinculado de maneira geral à questão da glória, para além do ideal da
bravura guerreira. Nesse acréscimo, portanto, Montaigne impôs uma dimensão
nova ao seu discurso, que o reorientava da perspectiva última da morte e da ânsia
de imortalidade para centrar-se no valor da vida e em suas exigências concretas
74
:
“au lieu d`illustrer sa mort, il obscurcit volontiers sa vie.”
Acrescida dessa citação latina de Pérsio a título de conclusão: “Notre
gloire c`est le témoignage de notre conscience”, o conteúdo dessa passagem
mantinha um nexo importante com o acréscimo c que lhe antecedia em que, como
já vimos, Montaigne nos declarava o desejo de uma glória “selon moy”. Ela
corroborava a dignidade de sua escolha ética pelo exercício de uma autonomia
baseada na renúncia à ambição de celebridade imortal, que se punha sobretudo no
registro de atender as solicitações imediatas da vida.
hazarder. Et toutes les justes sont illustres assez sa conscience les trompettant suffisammant à
chacun. ‘Notre gloire c`est le témoignage de notre conscience’” Montaigne, II, 16, p. 623.
72
ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco, IV, 3, 1124b10.
73
PETRARCA, Familiares, I, 2, “To Tommaso da Messina, on untimely appetite for glory”, p. 15.
74
Eva Kushner usa esse exemplo de Da glória a fim de nos mostrar como os acréscimos
posteriores que Montaigne inseria em seus escritos tinham função transformadora, ainda que,
como nesse caso, o acréscimo viesse corroborar as idéias que lhe antecediam e que se lhe seguiam.
Essa menção à vida no ensaio, enriquecia a ênfase já afirmada em seu desprezo das ambições e
apontava para novas considerações, fazendo ressaltar a centralidade que tinha a perspectiva da
morte no ideário tradicional de elogio da glória. KUSHNER, E., “Monologue et dialogue dans les
deux premiers livres des Essais”, In: Actes du colloque international, p. 109.
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Conforme atentava, a dignidade da verdadeira nobreza deveria comprovar-
se pela liberdade e autonomia do espírito, com que agia sempre de acordo com os
critérios da própria deliberação, pelo regozijo interno com a virtude e não como
espetáculo para a admiração alheia: “Quem só é homem de bem para que os
outros fiquem sabendo e porque o estimarão mais depois de ficar sabendo, quem
só quer agir bem com a condição de sua virtude chegar ao conhecimento dos
homens não é homem de quem possamos obter grandes serviços.”
75
Segundo este
ponto de vista, com efeito, não podia haver grande distinção entre os atos da
virtude, notáveis ou ocultos dos olhares externos. E nem mesmo os pensamentos
virtuosos, que não se exteriorizavam em atos eram destituídos de valor moral:
É preciso ir à guerra por seu dever e esperando essa recompensa que não pode
faltar a todas as belas ações, por ocultas que sejam, nem mesmos aos
pensamentos virtuosos: é o contentamento que uma consciência bem regrada
recebe em si por bem agir. É preciso ser valente por si mesmo e pela vantagem
de ter sua coragem fincada numa posição firme e segura contra os assaltos da
fortuna.
76
Enfim, sublinhava, a verdadeira virtude deveria desempenhar seu papel
“au dedans, où nuls yeux ne donnent que les nostres”. De fato se a profissão de
autonomia de Montaigne tinha por princípio a experiência cética da epoché e a
constatação da fraqueza da razão, era sobretudo através dos argumentos próprios
aos ideais helênicos de sabedoria, especialmente do estoicismo, que ele ressaltava
e ampliava essa sua ênfase na independência e autonomia do espírito, em Da
glória. Atualizava então a prerrogativa peculiar de sua escrita pessoal - baseada
em sua maneira própria de aderir à dúvida cética - de utilizar-se indistintamente
das tópicas que mais lhe convinham, sem aderir a nenhuma escola filosófica, a fim
de expressar suas próprias idéias.
Como enfatizava em nosso ensaio, fazer com que a vida do sábio
dependesse da opinião do vulgo, segundo o estoicismo, era agir contrariamente à
razão. Da mesma maneira, segundo Montaigne, por não ter como critério a
75
“Qui n`est homme de bien que par ce qu`on le sçaura, et par ce qu`on l`en estimera mieux apres
l`avoir sceu; qui ne veut bien faire qu`en condition que sa vertu vienne à la connoissance des
hommes: celuy-là n`est pas homme de qui on puisse tirer beaucoup de service.” MONTAIGNE, II,
16, p. 623.
76
“Il faut aller à la guerre pour son devoir, et en attendre cette recompense, qui ne peut faillir à
toutes belles actions, pour occultes qu`elles soient, non pas mesmes aux vertueuses pensées: c`est
le contentement qu`une conscience bien reglée reçoit en soy de bien faire. Il faut estre vaillant pour
soy-mesmes et pour l`avantage que c`est d`avoir son courage en une assiette ferme et asseurée
contre les assauts de la fortune.” Idem, p. 623.
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aprovação do próprio juízo, livre das imposições externas dos costumes, a glória
do mundo definia-se essencialmente como alvo fortuito e informe: “Quem visa a
agradar-lhe nunca o consegue; trata-se de um alvo que não tem nem forma nem
solidez”
77
. O juízo do povo, ele enfatizava, era inconstante e injusto, por isso suas
asserções não possuíam qualquer validade intrínseca. Exortava, assim, para que os
homens encontrassem antes dentro de si mesmos suas motivações de bem agir,
para que pudessem fazer-se verdadeiramente virtuosos:
Nenhuma arte, nenhuma flexibilidade de espírito poderia conduzir nossos
passos atrás de um guia tão desvairado e desregrado. Nessa confusão
tumultuosa de rumores, de relatos e opiniões vulgares não é possível estabelecer
um caminho que valha. Não nos proponhamos uma finalidade tão errante e
mutável, estejamos sempre ao lado da razão.
que a aprovação pública nos
siga, se quiser; e, como ela depende totalmente da fortuna, não temos
motivo para esperá-la num outro caminho ao invés deste.
78
4.4) A fidelidade a si como princípio ético face a fides e a vera gloria
ciceroniana.
Diante da constatação dessa impossibilidade de se estabelecer, a priori da
experiência, os atos e palavras mais adequados para garantir a benevolência da
opinião alheia, destacava-se novamente, a maior sensatez do preceito da
fidelidade a si, da franqueza absoluta em todos os próprios atos e ditos. Nesse
contexto, manifestando-se na dimensão externa do mundo público, esse preceito
deixava de apresentar-se como impróprio ao exercício da vida social por
dissociar-se tanto dos costumes comuns. Ao contrário, refletindo-se na fidelidade
à própria palavra dirigida a outrem ele assegurava sua benevolência justamente
por sua singularidade e rareza, contrastando com a falsidade daqueles que
interpunham entre si e o outro, um comportamento afetado e as máscaras dos
77
“Quiconque vise à leur plaire, il n`a jamais faict; c`est une butte qui n`a ny forme ny prise.”
Idem, II, 16, p. 624.
78
“Null`art, nulle souplesse d`esprit pourroit conduire nos pas à la suitte d`un guide si desvoyée et
si desreiglé. En cette confusion venteuse de bruits de raports et opinions vulgaires qui nous
poussent, il ne se peut establir aucune route qui vaille. Ne nous proposons pointe une fin si
flottante et vagabonde: allons constammant apres la raison. que l`approbation publique nous suyve
par là si elle veut; et, comme elle despend toute de la fortune, nous n`avons point de loy de
l`esperer plustost par autre voye que par celle là.” Idem.
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119
artifícios retóricos
79
, que, de resto, enfim, talvez não funcionassem tão bem no
trato com os homens: “Vi em minha época mil homens maleáveis, dúplices,
ambíguos e que ninguém duvidaria, serem homens do mundo mais prudentes do
que eu, perderem-se onde me salvei. ‘Ri ao ver que as artimanhas podem
fracassar.’”
80
.
De fato, como já vimos, fundado na profissão de “bonne foy” conforme a
primeira frase da Advertência ao leitor, seu discurso tinha na ética da lealdade sua
força motriz. Possuía a prerrogativa de abrir-se totalmente à confiança de qualquer
um, justamente na medida em que se recusava a adequar-se aos códigos
tradicionais que determinavam os modos convenientes da relação com o leitor,
despindo-se da vaidade do saber, assim como dos adornos e artifícios retóricos,
próprios para conquistar os aplausos do mundo. Com efeito, inaugurava um novo
modo de atrair sua benevolência, pelo testemunho sincero de si dado no registro
do movimento incessante de sua reflexão. Montaigne reproduzia assim através do
livro a possibilidade de qualquer um conhecê-lo em vida, em sua maneira mais
simples e natural, afirmando o repúdio em oferecer de si um vão simulacro, sob a
máscara de uma sabedoria exemplar, própria a imortalizar-se.
O modo como esse princípio ético fundamental dos Ensaios foi tematizado
na passagem citada acima de Da glória
81
, sob a ênfase em sua utilidade na vida
79
Como nos diz Antoine Compagnon, Montaigne opunha assim dois genera dicendi da tradição
retórica, seu estilo baixo, simples e privado ao estilo sublime da eloqüência pública e deliberativa.
Compagnon, A., “Montaigne ou la parole donnée”, In: Rhetorique de Montaigne, p. 11.
80
“J`ay veu de mon temps mill`hommes souples, mestis, ambigus, et que nul ne doubtoit plus
prudans mondains que moy, se perdre ou je me suis sauvé. ‘Jai ri de voir que les ruses pouvaient
échouer.” p. 625.
81
Com efeito, Montaigne recheou seu ensaio sobre a glória com passagens de Dos deveres, entre
citações latinas, alusões e passagens traduzidas. Uma ocasião particularmente ilustrativa da
retomada da reflexão ética de Dos deveres no ensaio se dá num acréscimo c quando Montaigne fez
alusão à lenda platônica do anel de Giges, extraída diretamente da obra de Cícero para exaltar o
valor de uma moral fundada na própria razão como bem mais útil à vida social, por não dissociar-
se da honestidade: “(C) E se alguém pudesse usar o anel de Platão, que tornava invisível quem o
levasse no dedo e o virasse para a palma da mão, muitas pessoas se esconderiam quando mais é
preciso mostrar-se (...)” Montaigne, II, 16, p. 625. Segundo nos conta Cícero, retomando a lenda
de Platão, Giges, um humilde pastor, vendo-se em propriedade do anel mágico que o tornava
invisível segundo sua vontade, não hesitou, uma vez oculto dos olhares alheios, em desonrar sua
rainha, assassinar seu rei e eliminar seus opositores, sagrando-se rei da Lídia em virtude de sua
astúcia. Recorrendo ao mito platônico, Cícero formulou uma questão ética fundamental, no que
dizia respeito ao elogio de uma conduta pautada somente na razão e na honestidade; questão que
se pode reconhecer também subjacente ao modo como Montaigne enfatizava o valor de sua
escolha de agir sempre em conformidade com a aprovação de seu testemunho interno em Da
glória. Assim, portanto, nos esclarece Cícero:Eis o significado do anel e da história: acaso farias
qualquer coisa para obter riqueza, poder e amor se ninguém o soubesse ou sequer o suspeitasse, se
tudo permanecesse para sempre ignorado dos deuses e dos homens?” Com efeito, quem senão
aqueles que se distanciavam dos costumes comuns, procurando ter somente sua razão por guia e só
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120
social, ecoava o princípio ciceroniano da fides, “da verdade e da constância em
palavras e acordos”
82
que, segundo Cícero afirmava em Dos deveres, era o
principal fundamento da justiça e da preservação da vida em sociedade. No
capítulo Do desmentir, Montaigne exaltou a fides nesses mesmos termos,
condenando o hábito da mentira e da dissimulação daqueles que adaptavam sua
palavra à diversidade das ocasiões, conforme seus interesses e ambições: “Como
nosso entendimento mútuo se conduz unicamente pelo caminho da palavra, quem
a falsear está traindo a sociedade humana.”
83
Louvando a ética da lealdade,
portanto, ele ressaltava as motivações próprias de sua escrita, que renunciava ao
orgulho de pretender-se possuidora de uma sabedoria superior e à glória que
poderia advir dela, a fim de estabelecer um contato vivo e direto com o leitor,
pautado na livre atividade do jugement.
Em Dos deveres, Cícero também opôs diametralmente à fides os excessos
da ambição de glória, como origem das maiores injustiças perpetradas contra o
bem comum: “Muitas pessoas se deixam arrastar a um ponto tal que esquecem a
justiça, quando cedem ao desejo de comandos, honras, glórias. Bem disse Ênio:
‘Nenhuma sociedade é inviolável, Nem há fé na monarquia.’”
84
Entretanto, como
veremos, ao contrário de Montaigne, Cícero também procurou ao longo de Dos
deveres, apoiar na fides o conceito de uma vera gloria, de uma glória justa e
verdadeira como imagem e prêmio da virtude
85
. Através dela, promoveu a
reconciliação entre a primazia da fidelidade à própria razão com a da fidelidade ao
bem da comunidade civil, dada mediante a caracterização de uma ambição
legítima dos louvores do mundo, própria aos que possuíam dotes extraordinários.
Nessa obra Cícero empreendeu uma das mais influentes reflexões morais sobre a
buscando as coisas honestas não fariam mal uso do anel ? Assim, conforme afirmava em Dos
deveres esse era o primeiro preceito, responsável pela retidão da vida e de sua utilidade, preceito
que nunca poderia ser amado pelos que antepunham o bem ilusório da glória ao bem da virtude:
“Com efeito, se é que demos alguns passos em filosofia, devemos estar suficientemente
convencidos de que, se pudéssemos escapar a todos os homens e a todos os deuses, ainda assim
bom seria nada fazer de cúpido, injusto, libidinoso ou intemperante.” Cícero, Dos deveres, III, 9,
37-39.
82
Idem, I, 7, 23.
83
“Nostre intelligence se conduissant par la parole, celuy qui la fauce, trahit la societé.”
Montaigne, II, 18, p. 666.
84
Idem, I, 8, 26.
85
Quanto aos modos de se adquirir vera gloria Cícero elencou no segundo livro de Dos deveres os
benefícios prestados; a reputação de liberalidade; a fé e justiça, sendo que acrescentou mais
adiante: “Assim, a justiça realiza todas as três condições que foram propostas para a glória: tanto a
benevolência (porque deseja ser útil a muitos) quantop, pelo mesmo motivo, a fé e a admiração,
porque desprezam e negligenciam aqueles atrativos para os quais a maioria, inflamada pela avidez,
é arrastada.” Idem, II, 11, 38.
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121
ambição de glória e sobre o caráter do homem magnânimo no mundo antigo.
Inspirou-se no estoicismo de Panécio, que foi um dos primeiros autores a
reabilitar no interior da doutrina a relação do grande homem com o serviço da
comunidade política, pondo suas virtudes excepcionais a serviço de seus pares
86
.
A reflexão de Cícero se enraizava na experiência concreta da tirania de
César e das guerras civis que se lhe seguiram, partindo portanto de uma amarga
consciência de que as energias naturais dos homens grandiosos, marcadas pela
consciência que tinham de sua superioridade e da grandeza de suas aspirações,
freqüentemente descambavam em excessos na prática, afastando-se da razão para
consolidar-se numa sede insaciável de poder e honras. É flagrante aqui a diferença
de sua concepção da magnanimidade em relação ao ideal aristotélico. De fato,
como já vimos, o caráter do homem magnânimo foi definido por Aristóteles como
condição que o impedia de praticar o vício e afastar-se da virtude em quaisquer
circunstâncias. Essa era a aporia fundamental de Dos deveres a que Cícero se
esforçava por dar uma solução satisfatória: do impulso natural e instintivo voltado
para a grandeza definir-se ao mesmo tempo como raiz da virtude - nas belas e
gloriosas ações individuais - e do vício – na incapacidade em aceitar as limitações
impostas pela justiça e pelos interesses da comunidade civil
87
:
Pois em tudo que é dessa natureza, não podendo muitas ser excelentes, quase
sempre eclode tão grande contenda que se torna difícil preservar a ‘sociedade
inviolável’. Isso mostrou há pouco a temeridade de César, o qual perverteu
todos os direitos divinos e humanos em virtude de um principado que ele
próprio se atribuíra por um erro de opinião. E aqui há uma coisa molesta: em
ânimos superiores e talentos brilhantes a maior parte do tempo estão presentes
anseios de honra, comando, poder e glória. Por isso devemos cuidar para que
nada nesse âmbito se faça com erro.
88
Sua resposta a esse problema estava na elaboração dos princípios de uma
noção de vera gloria, tarefa em que se debruçava especialmente no segundo
volume da obra: de uma glória justa e verdadeira que deveria ser apanágio de uma
aspiração à grandeza pautada no rígido controle racional das paixões, num
fortíssimo instinto social e numa sabedoria cifrada no desprezo das paixões pelas
86
Varotti, C., op. cit., p. 264.
87
Idem., p. 265.
88
Cícero, Dos deveres, I, 8, 26.
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122
coisas do mundo, tal como postulava a reflexão aristotélica sobre a
megalopsychia’.
O conteúdo de Dos deveres, apresentando-se como um manual prático
sobre os deveres do cidadão na república, teve valor paradigmático entre os
humanistas florentinos do Quatroccento, entre os quais Cícero afirmou-se como
protótipo do grande intelectual que punha seu próprio valor e seus dotes a serviço
da comunidade
89
. No segundo volume da obra portanto, ele sublinhou que a vera
gloria só poderia ser conquistada por aqueles que valorizavam o domínio externo
do espaço público como lugar próprio de exercício e de realização de suas
virtudes excelentes e singulares, de coragem, sabedoria, justiça e benevolência
para com os seus semelhantes e não como meio de satisfação de suas ambições
desmedidas. A glória que se obtinha às custas do bem comum, por meio do uso da
força e de práticas injustas, era em tudo falsa, destituída da solidez da estima
pública, única a poder garantir a celebração perene do próprio nome. Esse
pensamento, empenhado no bom direcionamento das ambições de primazia dos
grandiosos, em benefício do fortalecimento da virtus na cidade, exerceu larga
influência sobre a filosofia política de Maquiavel, em sua abordagem desse
mesmo tema nos Discursos
90
.
Mas Cícero enfatizava que somente a fides, a fé e a justiça em todos os
atos e intenções era capaz de acarretar a vera gloria. Ela era um atributo próprio
daqueles que se alçavam acima da fortuna que escravizava o vulgo, desdenhando
das paixões pelo dinheiro e pelo poder, assim como dos temores da pobreza, da
morte e do exílio, a fim de antepor a tais interesses seu inteiro empenho em belas
ações; em propósitos grandiosos e honestos para o bem da comunidade civil. A
glória destituída de virtude, por sua vez, forjada na dissimulação daqueles que
afetavam externamente um falso ar de grandeza e honestidade, não tardava a
desfazer-se por si mesma, tal como se podia comprovar pelo exemplo de César,
cujo nome deveria passar à história como objeto de um vitupério eterno, pelos
89
Em seu diálogo De la vita civile, Matteo Palmieri se propõe a mesma tarefa de Cícero e
reproduz com fidelidade suas idéias, conforme expostas em Dos deveres. Sobre isso destacamos o
modo como Palmieri dedica à justiça o terceiro livro do diálogo considerando essa a virtude mais
importante a ser praticada pelo cidadão para a conservação da república, tal como Cícero enfatiza
ao longo de sua obra. Na dedicatória de seu De la vita civile, Palmieri nos apresenta sua estrutura e
assim nos diz sobre a justiça: “(...) é a parte mais excelente dos homens mortais e necessária sobre
todas as coisas na manutenção do bom ordenamento da república.” Palmieri, M., Civic life, In:
Three Crowns of Florence, p. 88.
90
Ver sobre isso o item 2.4 do segundo capítulo deste trabalho.
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crimes que perpetrou contra a república: “A verdadeira glória deita raízes e até as
espalha, mas os engodos caem rapidamente como flores miúdas; o que é simulado
não pode ser duradouro.”
91
Segundo o grande orador, a vera gloria, prerrogativa da autêntica
magnanimidade, anulava a separação entre âmbito interno e externo porque tinha
a fides, a justiça como base. Assim, a comprovação de sua autenticidade se
realizava através da solidez da estima da comunidade civil. De acordo com essa
perspectiva, o caminho da virtude interior em sua verdadeira essência deveria
regular-se pelo culto à sua forma exterior, conforme acatada pela sociedade nos
grandes exemplos reconhecidos publicamente como sua realização mais perfeita:
(...) Sócrates dizia brilhantemente que o caminho mais próximo e curto para a
glória é ser o que se deseja parecer. Pois, se cuidam alguns obter glória estável
com simulações e ostentação vã, não só com palavras, mas também com
fisionomia fingida, erram cabalmente. (...) Assim quem desejar alcançar a
verdadeira glória da justiça que cumpra os deveres da justiça.
92
A fidelidade a si mesmo em Montaigne não se resolvia como em Cícero,
encontrando na dimensão externa do parecer um caminho legítimo para o ser e
alcançando a partir dela, uma vera gloria. Ainda que se confessasse naturalmente
propenso à volúpia provinda da aprovação alheia, jamais a consideração do
reconhecimento e da utilidade dos homens deveriam afirmar-se como força motriz
de sua conduta: “Há não sei que doçura natural em sentir-se louvado, mas lhe
damos demasiado valor. ‘Não detesto o louvor pois minha fibra não é insensível;
mas me recuso a considerar que o termo e o objetivo que devamos propor à
virtude sejam um bravo! Muito bem!”
93
Montaigne não tinha em tão grande conta
a aprovação alheia de modo a antepô-la à primazia da fidelidade a si mesmo e a
ponto de questionar a perspectiva declarada no proêmio do ensaio, que
desautorizava de imediato a existência de uma vera gloria, segundo os termos
declarados acima por Cícero, através das palavras de Sócrates. De fato, tais termos
eram postos abaixo a partir da afirmação da distância intransponível entre
aparência e essência na aberura do ensaio; de que a glória era sempre e
91
Cícero, Dos deveres, II, 12, 43.
92
Idem.
93
“(B) Il y a je ne sçay quelle douceur naturelle à se sentir louer, mais nous luy prestons trop de
beaucoup. ‘Je ne hais pas la louange, car je n`ai pas la fibre insensible; mais je me refuse à voir le
terme et le but qu`on doit proposer à la vertu dans un bravo! Tres bien!” Montaigne, II, 16, p. 625.
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invariavelmente um mero “ornemen externe” alheia à própria verdade, tal como o
nome não passava de “une piece estrangere joincte à la chose et hors d`elle.”
De resto, se a sua boa fé lhe franqueava a benevolência dos homens e se
não era insensível a ela, esse resultado deveria ser sempre concebido como
conseqüência natural e inadvertida do primado da fidelidade à sua razão. No
trecho que se segue Montaigne reafirmou essa mensagem central de Da glória,
declarando sua recusa em tomar o juízo externo, exercido sobre as aparências,
como testemunho verdadeiro de si:
Não me preocupa tanto qual eu seja para outrem como me preocupa qual eu seja
em mim mesmo. Quero ser rico por mim, não por empréstimo. Os estranhos
vêem apenas os acontecimentos e as aparências externas; cada qual pode ter um
ar alegre exteriormente e por dentro estar cheio de febre e de receio. Eles não
vêem meu coração; vêem apenas mes contenances.
94
4.5) Ambição de glória e perfeição moral em Petrarca.
A abordagem dessa tradição clássica de identificação entre ambição de
glória e perfeição moral; ou em outras palavras, entre a realização do valor da
virtude e sua exteriorização no mundo público - contra a qual Montaigne se
posicionava em nosso ensaio – estaria incompleta sem um exame sobre o modo
como ela foi reapropriada no contexto renascentista. Para isso optamos aqui pela
análise de uma das cartas de Petrarca “do apetite impróprio da glória”, por ter sido
ele o primeiro autor a retomar os estudos da tradição clássica - e especialmente
das obras de Cícero - esforçando-se por compreender o significado próprio de
seus valores. Mediante a redescoberta dos textos ciceronianos, Petrarca encenava
em suas correspondências um diálogo direto com essa tradição, atribuindo um alto
sentido ético e moral à sua atividade intelectual, que o tornava digno de escrever
sobre si mesmo, enquanto detentor de uma sabedoria exemplar. Imbuído dos
valores clássicos ele afirmou uma releitura própria dessa questão da glória que
influenciaria gerações de humanistas, tomando a si mesmo como modelo.
94
“Je ne me soucie pas tant quel je sois chez autruy, comme je me soucie quel je sois en moy
mesme. Je veux estre riche par moy, non par emprunt. Les estrangers ne voyent que les
evenements et apparences externes; chacun peut faire bonne mine par le dehors, plein au dedans de
fiebvre et d`effroy. Ils ne voyent pas mon coeur, ils ne voyent que mes contenances.” Idem.
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125
Esta carta, situada já no início da coleção de suas correspondências
privadas, escritas entre 1325 e 1356, explicitava a importância de seu esforço por
estabelecer um conteúdo ético positivo para a ambição de glória pessoal, nos
inícios da Renascença, no sentido de conferir plena legitimidade à sua solidão
laica e erudita, fundamento ideal da “civitas hominum”, constituída de sábios
humanistas, que se opunha, ao menos implicitamente à “civitas Dei” da Idade
Média. Em seu epistolário, Petrarca afirmou-se como um exemplo ideal de
sabedoria mundana e de esforço no sentido do aperfeiçoamento moral da alma
através dos estudos dos antigos. Nelas, como já vimos, se encontram alguns dos
motivos de fundo que constituiriam a nova mentalidade humanista: a cultura da
alma, a importância dos estudos da eloqüência, a função cívica da palavra e a
autoafirmação do homem.
A reputação de Petrarca como homem de letras ultrapassou as fronteiras da
Itália ainda em vida, especialmente após sua coroação em Roma como poeta
laureado em 1351. Como nos mostra Jacob Burckhardt em seu clássico A Cultura
do Renascimento na Itália
95
, a cidade natal de Petrarca, Arezzo, lhe prestava um
culto que no passado só era prestado aos santos, de conservar para sempre a casa
em que nascera como lugar de visitação em nome da celebração perene de sua
glória. Privilégio que anteriormente em geral as cidades conferiam às celas
daqueles que haviam transcendido sua condição de homens no domínio da vida
secular, tais como São Tomás de Aquino e São Francisco de Assis, por exemplo,
no convento dos dominicanos em Nápoles.
Já na segunda carta das Familiares, se explicitava a importância que o
tema da glória desempenhava em sua vida e na consolidação de sua imagem como
exemplo de sabedoria mundana. Dirigindo-se ao poeta Tommaso da Messina, seu
velho colega de estudos, Petrarca retornava então a este problema retomando sua
aceitação de maneira bem mais serena do que fizera no Secretum: só usou então
as tópicas e metáforas cristãs de sua condenação uma única vez, ao fim da carta,
denunciando sua nulidade como vento e fumaça. Mas ao fazê-lo, ele não exortou
seu correspondente a combater essa afecção. Se reconhecia por um lado que ela
podia ser facilmente desprezada por um discernimento reto, sabia também o
quanto era difícil possuir tal discernimento na prática, especialmente para o
95
Burckhardt, Jacob, op. cit., p. 120.
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126
homem que possuía grandeza de alma e excelência superior. Assim, ele
aconselhou a seu amigo não que extirpasse seus desejos mas que soubesse
moderá-los pela razão. Desse modo, a ambição de glória não devia ser entendida
como um vício mas ao contrário, como expressão comprovadora da mais alta
virtude que aspirava a ser reconhecida externamente como tal. Dessa perspectiva,
a incapacidade de suprimi-la mediante os bons preceitos cristãos não era tanto
uma fraqueza, mas a marca pela qual se reconhecia a nobreza de alma, o
generosus animus”, cujos anseios de fama levavam ao empenho no cumprimento
de grandes feitos e realizações para o benefício da humanidade, conforme o ideal
clássico da magnanimidade:
A fama que buscamos não passa de vento, fumaça, sombra: não é nada. Portanto
pode facilmente ser desdenhada por um claro e justo juízo. Porém se porventura
- já que este mal pode infiltrar-se facilmente no ânimo generoso – não seja
capaz de erradicá-lo de tua alma, cuida ao menos de frear seu crescimento com
a foice da razão.(...) para resumir meu pensamento mais brevemente, cultive a
virtude enquanto você ainda está vivo, e você encontrará fama após a morte.
96
Segundo o conselho de Petrarca ao poeta Tommaso da Messina, para que
este pudesse satisfazer sua aspiração de engrandecer e imortalizar o próprio nome,
bastava que soubesse cultivar a virtude em sua conduta e a glória viria como sua
conseqüência natural, mas somente num futuro post mortem: “(...) a fama segue a
virtude assim como a sombra segue um corpo sólido.”
97
Significava dizer que era
necessário que se comportasse de maneira bem distinta de seus contemporâneos
que não sabiam regrar suas paixões, pondo-se a defender publicamente sua fama,
falando de si mesmos de maneira despudorada, despertando o ódio e a inveja
contra si. Quanto às queixas de Tommaso, de que muitos destes, na verdade,
obtinham assim mesmo grandes louvores por suas obras, embora tendo qualidade
bem inferior às suas próprias, Petrarca declarava:
Observe-os bem e acredite na minha predição sobre eles: a fama de todos eles
desaparecerá com suas mortes e um único túmulo será suficiente para seus ossos
e seus nomes. Quando a morte forçar suas línguas a permanecerem frias, eles
não apenas estarão em silêncio, mas serão também silenciosos sobre si
mesmos.
98
96
Petrarca, Familiares I, 2. “on untimely appetite for glory” p. 21.
97
Idem, p. 20.
98
Idem, p. 18.
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127
Procurando estabelecer assim as condições necessárias de uma vera gloria,
em seu próprio tempo, tal como Cícero já havia feito, Petrarca enfatizava que a
glória sólida e autêntica, como marca de grandeza de alma, só se realizava
plenamente após a morte de seu detentor e não havia nada mais impróprio e
oposto à conduta virtuosa que pretender obter grandes louvores em vida: “O
benefício humano começa com a morte de um homem; assim, a morte da vida é o
início da glória.”
99
Mas a reflexão ciceroniana sobre a vera gloria, desprovida
desse horizonte que marcava a reflexão do humanista, impregnado dos valores
cristãos, enraizava-se mais profundamente na consideração da naturalidade das
ambições humanas e nas vantagens práticas e imediatas que ela trazia, não só para
a vida de seu detentor mas para a dinâmica da vida política e social, promovendo
o consenso dos homens em torno do valor da virtude
100
.
Contudo, a afirmação de Petrarca dessa condição post mortem para a vera
gloria não era assim tão radical. Com efeito, segundo ele, a presença da
verdadeira grandeza destinada à imortalidade já podia ser reconhecida no presente
e deveria sê-lo por aqueles que soubessem bem julgar a excelência de seus
talentos. Era atestada pelo exercício de uma conduta reta que renunciava à
arrogância daqueles que se aplicavam na busca de fama e preeminência imediata e
que em geral não sabiam como se engrandecer pelo valor de suas obras. A vida
virtuosa se cumpria com ordem, paciência e sabedoria, tendo no juízo da
posteridade o sentido profundo de sua existência, pois o homem grandioso tinha
consciência de que só num futuro distante o reconhecimento público do próprio
valor poderia esplender de uma luz pura, isenta de vaidade e tamm da inveja por
parte dos contemporâneos que perturbava o reconhecimento pleno e justo da
própria excelência.
Como salientava Petrarca, até mesmo os grandes homens da Antigüidade
como Pitágoras, Platão e Aristóteles haviam contado com inúmeros detratores de
seus talentos quando ainda estavam vivos e, apesar de seu valor excepcional,
somente em sua posteridade suas vidas puderam realizar-se em sua dignidade
mais alta como modelos universais de sabedoria e virtude. No entanto, o caso de
Virgílio, maior poeta da língua latina era uma exceção e merecia ser levado em
conta, pois contara com o apoio do imperador Augusto para desprezar seus
99
Idem, p. 15.
100
Sobre isso ver Cícero, Dos deveres, II, 5, 16; II, 11, 39.
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detratores em grande estilo. Augusto, como lembrava Petrarca, tinha sabedoria
para reconhecer os grandes talentos de seu tempo e não media esforços para
protegê-los de todas as formas possíveis, pois eles representariam no futuro a
excelência de sua época e de seu governo.
O exemplo de bom discernimento do imperador romano levou Petrarca a
denunciar a estreiteza daqueles que reinavam em seu próprio tempo, incapazes de
reconhecer e honrar os grandes espíritos do presente. Dessa forma, seus louvores à
glória dos antigos dessa forma não tinham qualquer validade moral e não
passavam de palavras vazias, pois não operavam no sentido de incitar à imitação:
Com a disposição de não parecer interessados em sua própria época, eles
admiram os antigos, de quem eles desdenham tornar-se parecidos, de modo que
o louvor dos mortos não fica livre de insultos para os vivos. É nosso destino
viver e morrer entre tais juízes, e o que é ainda mais difícil manter-se em
silêncio. Pois, como já disse onde poderemos encontrar um juiz como
Augusto?
101
Mas essa consideração, na qual se manifestava o forte apreço de Petrarca
pela experiência imediata no mundo e seu vínculo estreito com os valores
clássicos e ciceronianos de autoafirmação da própria grandeza, não invalidava o
modo como ele atrelava à posteridade a manifestação da glória. Este, na verdade,
exprimia o caráter extremado de sua confiança nas capacidades humanas em
transcender os limites naturais de sua existência através do registro de sua virtude
nos livros. Com efeito, no âmbito desse pensamento voltado para a morte, ele
declarava uma noção fundamental inerente a esse elogio da glória na cultura
humanista, ou seja, de seu entendimento como mito substitutivo
102
, com vistas ao
qual o grande homem deveria construir toda a sua existência.
Desse modo, a noção do eu enquanto objeto digno de se afirmar como
matéria de escrita se consolidava enquanto tivesse num futuro post mortem o
sentido profundo de sua existência; enquanto esta fosse objeto de uma estilização
deliberada e calculada, em todos os próprios atos e intenções, tendo como
horizonte os grandes exemplos dos antigos. Só assim a existência individual
alcançava sua excelência perfeita, alçando-se à absoluta exemplaridade. A glória,
sublinhava Petrarca, era incompatível com a presença viva de seu detentor e com
sua familiaridade com os homens. Desse modo, definia-se essencialmente como
101
Petrarca, op. cit., p. 16.
102
VAROTTI, C. op. cit.,p. 117.
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imortalidade, constituída de um caráter de distância e de intangibilidade para que
pudesse fixar-se na forma da perfeição e do grau máximo da dignidade humana.
Com vistas a isso Petrarca traçou de si um autoretrato detalhado nas
correspondências privadas reunidas em suas Familiares expondo a dinâmica de
sua vida interior, absorvida inteiramente pela atividade intelectual num imenso
esforço de concentração na leitura dos antigos; assim como de sua vida exterior,
enquanto homem de ação inserido em seu círculo de amigos que compunham o
primeiro grupo de letrados e humanistas na Itália e na Europa, consciente de
protagonizar um amplo movimento de renovação cultural que marcaria para
sempre a grandeza de seu nome.
Nas Familiares se encontra talvez a expressão mais rica e vigorosa de sua
prosa pessoal que chegou até nós, tendo como base a retomada dos mais célebres
modelos do gênero na Antigüidade, tais como as Cartas a Lucílio de Sêneca e as
Cartas a Ático de Cícero. Petrarca consolidava, então, um quadro comportamental
ideal que inspiraria gerações de humanistas através do testemunho interior de sua
própria existência, apresentada como uma busca contínua e incessante da
perfeição.
Bem diversos, como sabemos, eram os desígnios da forma pessoal dos
Ensaios de Montaigne. A ética da lealdade que impulsionava seu discurso -
inspirado na reflexão ciceroniana sobre a fides - traduzia-se sobretudo na
exigência de manifestação livre de seu próprio juízo, pautado em sua dúvida
cética em relação à validade dos exemplos de perfeição moral dos antigos. O
intento de dar testemunho de si para si em sua verdade, implicava diretamente na
aversão a uma pintura fixa e bem acabada, como imagem falsa, destinada somente
a agradar os outros:
Quanto a mim, considero que só existo em mim; e essa minha outra vida que
reside no conhecimento de meus amigos, (C) considerando-a pura e
simplesmente em si, (A) bem sei que não obtenho dela proveito nem gozo a não
ser pela vanidade de uma idéia fantasiosa. E quando estiver morto obterei ainda
menos; (C) e, ademais perderei totalmente o uso das verdadeiras vantagens que
a acompanham acidentalmente às vezes; (A) não terei mais gancho por onde
agarrar a reputação, nem por onde ela me possa tocar ou chegar a mim.
103
103
“Moy, je tiens que je ne suis que chez moy; et, de cette autre mienne vie qui loge en la
connoissance de mes amis, (C) à la considerer nue et simplement en soy, (A) je sçay bien que je
n`en sens quand je seray mort, je m`en resentiray encores beaucoup moins; (C) et si perderay tout
net l`usage des vrayes utilitez qui accidentalement la suyvent par fois; (A) je n`auray plus de prise
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130
Nessa parte de Da glória em que expressou seu repúdio ao orgulho dos
homens de seu tempo, em sua pretensão de transcender seus limites naturais e
fazer-se imortais, Montaigne nos remeteu a um outro capítulo dos Ensaios, a fim
de ampliar e enriquecer essa idéia. Trata-se de Dos nomes, do primeiro volume do
livro, em que ele se estendeu mais sobre essa diferença profunda entre a fama
ilusória do próprio nome e o domínio real e concreto em que transcorria existência
humana. Pôs-se então a ridicularizar e denunciar como loucura a ambição de
imortalizar o próprio nome. Esta, como já vimos, se impunha no âmbito da
moralidade humanista como a realização mais plena da excelência individual e
como modo privilegiado de conferir um valor absoluto à própria experiência
mundana. Tal como na crítica nominalista do proêmio de Da glória, era a imagem
das insuficiências naturais do homem, irremediavelmente restrito aos limites
medíocres de sua existência mortal que ressaltava nessa passagem de Dos nomes:
Em suma, é Pedro ou Guilherme que a portam, que zelam por ela e a quem ela
interessa. (C) Oh, que corajosa faculdade é a esperança, que, em um indivíduo
mortal, e em um momento, vai se apossando da infinidade, da imensidade, da
eternidade: a natureza deu-nos um brinquedo prazeroso. (A) E esse Pedro ou
Guilherme, o que é além de uma palavra pura e simples?
104
4.6) A peroração de Da Glória: a ambigüidade da crítica e o diálogo
com a tradição da historia magistra vitae.
Como já vimos no nosso primeiro capítulo, esse modelo heróico de
grandeza elaborado por Petrarca, pautado na formação moral do espírito, se
expandiria posteriormente no contexto civil republicano de Florença como
condição fundamental para a prática da virtus, no qual urgia harmonizar o ideal da
liberdade individual dos cidadãos com a manutenção do bem comum. De
Coluccio Salutati a Maquiavel o estímulo à ambição de glória se fez exortação
patriótica, ligado especificamente ao elogio da participação cívica e ao anseio de
par où saisir la reputation, fruict ny jouyssance que par la vanité d`une opinion fantastique. Et, ny
par où elle puisse toucher ny arriver à moy.” MONTAIGNE, II, 16, p. 626.
104
“C`est en somme Pierre ou Guillaume qui la porte, prend en garde, et à qui elle touche. (C) O la
courageuse faculté, que l`esperance qui, en un subject mortel, et en un moment, va usurpant
l`infinité, l`imensité, l`aeternité: nature nous a là donné un plaisant jouët.(A) Et ce Pierre ou
Guillaume, qu`est ce, qu`une voix pour tous potages ?” Idem, I, 46, 279.
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131
ascensão política. A idéia de glória ganhou progressivamente, assim, um conteúdo
positivo mais sólido, por ser concebida como elemento de importância crucial na
preservação da estabilidade e força interna da república.
Foi a partir do reconhecimento de sua naturalidade como elemento
peculiar à natureza humana - tal como o fizera Petrarca - que o chanceler
florentino Salutati passou a admitir sua importância política. Ele o fez em carta de
1392 ao seu correspondente aragonês Pellegrino Zambecari, defendendo
veementemente o papel da poesia na república, a necessidade de estimular seus
estudos e de valorizar os poetas. Tal como o discurso da história, a poesia também
se distinguia na cultura humanista por sua função moral de ensinar a bem agir
através dos exemplos, destacando-se tanto entre os antigos como entre os autores
italianos da renascença pela prerrogativa de imortalizar os grandes feitos dos
homens através da beleza de suas formas. Pela promessa da imortalidade ela
deveria incitar as naturais aspirações humanas de elevar-se, orientando-as no
sentido da realização de atos nobres para o bem da república. Salutati declarava
portanto a seu correspondente que a poesia pretendia não apenas ser agradável
àqueles que louvava, mas também ser útil, funcionando como estímulo dos mais
eficientes à conduta virtuosa:
(...) e ela de fato cumpre bem seus objetivos. Desde que aqueles que são
altamente louvados se comprazem na glória, como Valérius escreveu ‘não
existe humildade tão grande que possa resistir à doçura da glória.’ A glória é
também útil ao homem glorioso pois nada é tão efetivo como a recompensa do
louvor para reforçar o desejo da virtude e o desejo de bem agir.
105
Entretanto, entre os humanistas, desde os autores italianos aos do norte da
Europa
106
, seria sobretudo a história que se afirmaria como detentora dessa alta
função. Ao lado da poesia, da gramática, da filosofia moral e da retórica, a história
integrava as disciplinas do currículo pedagógico humanista, mas ligava-se
sobretudo aos estudos da retórica, que desfrutavam então de uma posição de
fundamental importância para a boa formação da alma.
105
SALUTATI, C., “Letter to Peregrino Zambeccari”, In: The Earthly Republic, p. 94.
106
Sobre a importância da história para os autores franceses contemporâneos de Montaigne,
reunidos em torno de Jean Bodin, nos diz Frances Yates, aludindo ao seu projeto da “histoire
parfaicte”: “O objeto da ‘história perfeita’ era ético: aprender dos exemplos dos personagens
históricos como evitar o vício e seguir a virtude, como levar uma vida moral. A exatidão factual, o
uso de fontes documentais, a análise das conexões causais entre acontecimentos, tudo isso eram
coisas subsidárias à meta principal de uma ‘história verdadeira’: ensinar a ética por meio dos
exemplos.” YATES, F., The Histoy of History, In: Renaissance and Reform, p 90.
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132
Essa ênfase em seu aspecto moral, a partir de sua ligação com a retórica,
foi objeto de uma outra carta de Salutati a Juan Fernandez de Heredia, em que,
como já vimos, nos convidou a celebrar a história como instrumento mais
adequado para distinguir o vício da virtude por meio da força persuasiva dos
exemplos:De fato, sabendo bem ajuizar, o que vem inscrito no elogio e na culpa
senão aquilo que pode ser reconhecido como virtuoso ou imoral?
”107
No âmbito do
pensamento político humanista a valorização da utilidade da história assumiu
extrema importância, enquanto arcabouço das mais altas experiências humanas,
contribuindo para conferir maior eficácia à eloqüência em sua tarefa de bem
direcionar a conduta dos homens no sentido da realização plena de sua
excelência.
108
Essa carta de Salutati é bastante representativa dessa concepção,
que atingiria todo o humanismo posteriormente
109
. Os exemplos históricos tinham
a vantagem de transformar mais diretamente em situações concretas e pessoas
vivas as realidades teóricas menos evidentes como os conceitos de justiça e de
magnanimidade. Neste sentido se constituía em mensagem de reconhecimento
imediato possibilitando uma compreensão mais efetiva das causas e alcançando os
intelectos mais ordinários. Assim, em sua carta, Salutati como que propos uma
substituição da forma racional-argumentativa pela apresentação crua do exemplo,
como bem mais útil à persuasão. Indagou então que outra fórmula poderia ser
mais perfeita para que os homens pudessem compreender a essência da justiça e
107
SALUTATI, C. Epistolário, apud VAROTTI, C., p. 90.
108
Mas, no que se refere ao tema da teoria e dos métodos da história nessa sua vinculação com a
retórica, há apenas testemunhos dispersos na literatura humanista, em cartas e dedicatórias, em
virtude mesmo, da escassez do tratamento sistemático da questão no mundo antigo. Uma carta de
Bernardo Rucellai acerca de sua discussão com Pontano sobre a natureza da historiografia
constitui-se talvez num dos mais sintéticos testemunhos das noções aceitas no humanismo acerca
dessa questão. Rucellai planejava então a escrita de sua obra sobre a invasão de Florença pela
França em 1494, retomando no debate com Pontano e com os membros de sua academia em
Nápoles, os principais postulados estabelecidos por Cícero no segundo volume do De Oratore: da
verdade como primeira exigência da tarefa do historiador; de seu conteúdo centrado em grandes
batalhas e nas ações de grandes personagens; e na importância da expressão dos fatos. Mas, o
debate focalizou especialmente este último ponto, versando sobre a questão da imitação dos
modelos clássicos, concentrando-se no problema, sobre se um historiador deveria escolher apenas
um dos autores da Antigüidade como modelo ou se deveria selecionar alguns deles, extraindo de
cada um em que aspecto de suas obras eles melhor afirmavam seus talentos. A preeminência de
Salústio e Tito Lívio foi em geral reconhecida como principal fonte de imitação, para que o
discurso historiográfico se destacasse pela eloqüência, pela clareza e organização do estilo.
GILBERT, F. Machiavelli and Guicciardini, p. 203
.
109
VAROTTI, C., op. cit., p. 88.
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133
como ser justos em seus atos e intenções do que, por exemplo, tendo na
imaginação a figura de Bruto, fundador da república romana.
110
Montaigne jamais perdeu de vista, do início ao fim de seu ensaio sobre a
glória, a estreita vinculação de seu elogio à valorização das prerrogativas morais
do discurso que a fundava. De fato, não por acaso, deu início ao capítulo com uma
denúncia da impotência da linguagem, declarando a diferença profunda entre “le
nom et le chose”. Na parte final do capítulo ele retomou essa crítica, reforçando
seu desprezo da glória mediante o esvaziamento de sentido da concepção retórico-
moralista do discurso da história como mestra da vida, tão cara ao pensamento
político humanista que a resgatara do De Oratore de Cícero.
111
Definindo a história como não mais que um domínio de desordem absoluta
em que os homens se agitavam, escravizados por suas paixões insaciáveis, ele pôs
em evidência a dimensão da insensatez e da ignorância dos que deixavam a ela o
encargo de dar testemunho de si. De fato, os registros históricos dizia mais do
110
SALUTATI, Epistolario, p. 292, apud VAROTTI, C., op. cit., p. 93.
111
A reflexão ciceroniana acerca do discurso historiográfico como parte da retórica e domínio de
atuação do orador no segundo volume do De Oratore é uma das raras apreciações teórico
metodológicas acerca da escrita da história na literatura da Antigüidade, que exerceu influência
decisiva sobre o pensamento moral clássico e renascentista no sentido da consolidação de uma
posição elevada para a história enquanto detentora de grande utilidade moral. Tanto os autores
italianos quanto do norte da Europa retomaram largamente a noção ciceroniana sobre a historia
magistra vitae. Essa valorização da história no diálogo se inscreveu no âmbito de seu esforço por
ampliar o campo de atuação da eloqüência, de sua sabedoria e virtude próprias, para além dos
discursos públicos no fórum e nas assembléias. Como afirmava o personagem Antonio no diálogo,
retomando o elogio de Crassus, a eloqüência deveria abranger os conhecimentos de todos os
gêneros, pois todos apoiavam-se no bem dizer: “Não há nenhuma matéria que não pertença
propriamente ao orador, desde que a linguagem a deva revestir de nobreza e de elegância.” Cícero,
De Oratore, II, 8, 24. Cícero louvou então sua dignidade como guia moral da humanidade ao
conservar a memória dos grandes exemplos de virtude do passado e o vitupério dos maus,
constituindo-se num estímulo crucial à boa conduta dos contemporâneos; mas somente enquanto
sua escrita se desse como parte das atribuições do orador, único capaz de dar forma ao estilo, com
toda sorte de argumentos e de expressões brilhantes, sabendo bem dispô-los no discurso: “(...)
quem poderia exortar mais vivamente ao bem e desviar mais fortemente do mal, culpar com mais
energia os maldosos e louvar os bons com mais brilho (...)? A história enfim, testemunha dos
séculos, luz da verdade, alma da memória, mestra da vida, intérprete do passado, que voz, senão
aquela do orador pode fazê-la imortal?” Idem, II, 9, 35. Em sua digressão sobre a história,
portanto, o grande orador romano procurou estabelecer seus preceitos próprios, sob a crítica que
punha nas palavras de Catulo aos historiadores romanos, como Catão e Fabius Pictor, que ao
contrário dos grandes autores gregos, como Heródoto e Tucídides, restringiam a história a uma
redação de anais, das épocas, dos homens, dos eventos e lugares dignos de registro, sem
preocupar-se com a beleza literária.Com efeito, se o gênero ainda não tinha tido grande destaque
entre os romanos, era porque estes ainda estudavam a eloqüência exclusivamente para brilhar nos
tribunais, enquanto os homens de eloqüência na Grécia procuravam a história como principal fonte
de ilustração e como um dos campos de aplicação mais destacados de sua arte. Assim, Cícero
passou a determinar seus preceitos particulares, a fim de que a história pudesse afirmar-se na
magnitude de sua função moral como mestra da vida: sua primeira lei, de fato, era nada dizer de
falso e de ousar dizer tudo quanto dissesse respeito à verdade. Entretanto, enfatizava, tudo se
pautava nesse gênero, sobretudo na força e na beleza da expressão dos fatos.
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domínio que a fortuna exercia sobre os negócios dos homens do que da excelência
mais alta que podiam alcançar:
(C) Os destinos de bem mais da metade do mundo, por falta de registro, não
saem de seu lugar e se esvaem sem durabilidade. Se eu tivesse em minha posse
os eventos desconhecidos, eu penso que muito facilmente eles suplantariam os
eventos conhecidos em toda espécie de exemplos. (A) Que dizer se, dos
próprios romanos e dos gregos, entre tantos escritores e testemunhos e tantos
raros e nobres feitos, tão poucos chegaram até nós!
112
Este fragmento, situado nos fins do ensaio, explicitava bem o modo como
a crítica da glória levava diretamente ao questionamento da prerrogativa da
história em apreender a virtude e a salvar do esquecimento as maiores realizações
e feitos humanos. O tema propiciava assim a denúncia do culto aos exemplos
como mera fantasia, movida pela presunção dos que confiavam demasiadamente
nas potencialidades do discurso, que fundava a celebridade imortal de grandes
heróis e sábios, para ordenar e moldar o presente.
Não é demais abordarmos aqui a espécie de argumentos próprios a essa
tradição com os quais Montaigne parecia dialogar e opor-se a essa altura de Da
glória. Afirmando sua descrença na utilidade moral da história ele reforçava os
preceitos fundamentais de sua sabedoria, conforme declarados ao longo do ensaio,
de não ter nos aplausos do mundo o critério de seus atos e intenções e de enfatizar
o equívoco de pautar o valor da virtude na dimensão externa e enganosa da glória.
Segundo afirmava nessa significativa passagem, pretender assemelhar-se aos
exemplos louvados publicamente era antes sinal de vaidade do que de disposição
aos atos da virtude: “Ce n`est pas pour la montre que nostre ame doit jouer son
rolle, c`est chez nous au dedans, où nuls yeux ne donnent que les nostres (...)”
O grande historiador romano Salústio foi um dos autores da Antigüidade
que mais enfatizou esse valor moral da historiografia e da glória que ela
celebrava. A partir desse elogio ele formulou em seu Catilina a noção mais clara e
precisa, de que temos conhecimento, de uma virtude que não podia abster-se de
seu aparecimento público, cifrada na aprovação e na reprovação do mundo.
112
“(C)Les fortunes de plus de la motié du monde, à faute de registre, ne bougent de leur place et
s`evanouissent sans durée. Si j`avois en ma possession les evenements inconnus, j`en penserois
tres facilement supplanter les connus en toute espece d`exemples. (A) Quoy, que les Romains
mesmes et les Grecs, parmy tant d`escrivains et de tesmoins et tant de rares et nobles exploits, il en
est venu si peu jusques à nous! ” MONTAIGNE, II, 16, p. 627.
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135
Assim, como afirma Carlo Varotti, no Catilina
113
, se encontra talvez a reflexão
mais penetrante já feita entre os antigos, acerca da identificação entre glória e
virtude, a partir da celebração da função moral da história.
Escrevendo sobre a corrupção dos costumes e das instituições romanas à
época da conjuração de L. Catilina, Salústio celebrou nessa obra a glória dos
primeiros tempos da república, exortando os homens de seu tempo a buscar nos
gloriosos exemplos de virtude do passado, o impulso fundamental para a
realização de suas próprias capacidades para sua glória e para a glória da cidade.
Segundo o célebre historiador romano, conforme afirmava já na primeira frase do
preâmbulo, o desejo de elevar-se acima dos demais e de empregar todas as suas
potencialidades para não passar a vida num obscuro silêncio era o que fazia dos
homens superiores aos animais: “(...) aqueles que me parecem verdadeiramente
vivos e que usufruem da essência que os anima são somente os que, totalmente
absorvidos pelas suas tarefas, procuram a glória de uma ação de destaque ou de
um belo talento.”
114
Essa maneira pela qual os homens realizavam sua própria
dignidade e humanidade, na concepção de Salústio, tinha como espaço ideal os
costumes e as instituições da república, pautados no ideal da libertàs, que permitia
a livre manisfestação dos talentos individuais. Assim, como atentava, o
extraordinário desenvolvimento vivido por Roma nos primeiros tempos da
república teve por princípio o apreço de seus cidadãos por esse valor da libertàs,
que oferecia a todos a possibilidade de exercer sua virtus, ascender socialmente
por seus méritos e conquistar o prêmio de um renome imortal.
Salústio atribuía diretamente a força do regime republicano ao estímulo às
capacidades pessoais dos cidadãos através da promessa da glória. Esta, de fato,
simbolizava a expansão da virtus, como resultado imediato da derrocada da antiga
monarquia. Sob o regime republicano ela podia realizar-se livre e plenamente aos
olhos da coletividade, num contexto baseado na livre competição de valores no
qual todos deveriam dar mostras de suas mais nobres capacidades em benefício da
integridade da vida política e de suas instituições.
Desse modo, sublinhava, os homens de seu tempo deveriam buscar na
história dos tempos passados os verdadeiros exemplos de glória a fim de restituir
à república sua força original mediante o exercício de seus talentos singulares.
113
VAROTTI, C., op. cit., p. 220.
114
SALÚSTIO, Catilina, II, p. 56.
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136
Com efeito, o desejo de ascensão, tal como concebido segundo os bons costumes
e valores da era gloriosa da república, se diferenciava profundamente da ambição
que marcara os tempos posteriores de L. Catilina e os do próprio Salústio,
identificada à avaritia, ou seja, à sede de primazia pelo acúmulo de riquezas, pelo
lucro e pela opulência. No auge da república romana, por sua vez, na era de Catão,
era pelo valor do ingenium que os homens procuravam distinguir-se e por isso sua
glória era expressão mais plena de sua virtude. Pela palavra latina ingenium
Salústio exprimiu a essência do que entendia como a verdadeira glória, que,
enquanto prêmio privilegiado dos talentos de cada homem, designava também a
realização plena de suas qualidades mais íntimas e interiores enquanto indivíduos.
Ele nos descreveu, assim, o imenso desenvolvimento da virtus nos inícios da
república, logo após a queda do velho regime monárquico em Roma, identificando
ingenium (essência do próprio caráter) à sua exteriorização em grandes feitos:
A partir desse momento cada um procurou se fazer valer mais, dando mostras
de seu talento [ingenium]. Porque os reis suspeitavam muito mais dos bons do
que dos maus e o mérito alheio era coisa de que sempre duvidavam. E é difícil
acreditar com que rapidez a cidade se desenvolveu, uma vez em posse da
liberdade: tanto o amor da glória havia ganhado os corações (...).
115
Salústio exortava então aos seus compatriotas que agissem conforme os
espíritos mais valorosos, cuja virtude havia sido imortalizada pela história, isto é,
com vistas à aprovação da comunidade civil e não em função de seus próprios
interesses particulares. A glória que provinha da admiração pública, era bem
muito maior e mais digno do que a obtenção de poder e de riquezas, pois através
dela, podiam realizar seu ingenium e dar mostras de sua virtus tal como aqueles
grandes heróis do passado, que não haviam poupado esforços para ter seu próprio
valor imortalizado: “(...) ferir o inimigo, escalar uma montanha, se exibir aos
olhos dos outros ao cumprir tal empresa, eis em que cada um se esforçava.
116
Em Da glória, por outro lado, traçando um panorama da França
mergulhada no caos dos conflitos civis, Montaigne enxergou nesse mesmo
esforço em bem agir com vistas à admiração alheia, a marca da corrupção de seu
tempo, ressaltando o caráter vão e inútil de tal esforço e a incapacidade da história
115
SALÚSTIO, op. cit., VII, p. 62.
116
Idem.
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em transformar o destino a que estavam fadados todos os feitos, realizações e
palavras dos homens, isto é, o esquecimento:
Será muito se daqui a cem anos ainda se lembrarem, grosso modo, que em
nosso tempo houve guerras civis na França (...) Pensamos nós por acaso, que a
cada arcabuzada que nos atinge e a cada risco que corremos haja um escrivão de
prontidão para registrá-lo? E ademais cem escrivães poderão descrevê-lo, cujos
comentários não durarão mais que três dias e não chegarão aos olhos de
ninguém. Não possuímos a milésima parte dos escritos antigos: é a fortuna que
lhes dá vida, ou mais curta, ou mais longa, segundo seu favor; (C) e o que deles
temos, nos é lícito conjecturar se não será o pior, não tendo visto o restante. (...)
(A) Mesmo aqueles que vemos agir bem, três meses ou três anos depois que
tombaram não se fala mais deles mais do que se nunca tivessem existido.
117
Entretanto, a essa altura, o desprezo pela utilidade da história e pelo valor
da glória reificado com tanta ênfase ao longo do ensaio, sofria uma inflexão de
sentido bastante significativa que modificava sensivelmente o teor de sua crítica.
Como já vimos, em suas asserções, Montaigne não procurava instruir os homens e
declarar verdades morais atestadas quanto exibir os “ensaios” de sua própria
atitude, atualizando a postura cética que permeava seu discurso e que garantia a
integridade e a liberdade do uso de seu jugement. De fato, emitia opiniões a título
pessoal, sem pretensões à verdade, deixando-as sempre abertas a novas
considerações que as diversificavam e enriqueciam. Assim, sob o reconhecimento
da insensatez e das insuficiências naturais dos homens, definitivamente incapazes
de amar a prática da virtude por si mesma – consideração reafirmada repetidas
vezes no ensaio – o movimento de sua reflexão passou a tomar um novo rumo,
concedendo enfim certa utilidade moral à glória, assim como à história em sua
posição de mestra da vida, enquanto impulso fundamental da virtude no mundo
político e social:
Se no entanto essa falsa opinião serve ao público para manter os homens em seu
dever; (B) se por ela o povo é incitado à virtude; se os Príncipes sentem-se
tocados ao ver o mundo bendizer a memória de Trajano e abominar a de Nero;
117
“Ce sera beaucoup si, d`yci à cent ans, on se souvient em gros que, de nostre temps, il y a eu
des guerres civiles em France (...) Pensons nous qu`à chaque harquebousade qui nous touche, et à
chaque hazard que nous courons, il y ayt soudain un greffer, qui l`entrerolle? Et cent greffers,
outre cela, le pourront escrire, desquels les commentaries ne doureront que trois jours et ne
viendront à la veue de personne. Nous n´avons pas la millieme partie des escrits anciens: c`est la
fortune qui leur donne vie, ou plus courte ou plus longue, selon sa faveur; (C) et ce que nous en
avons, il nous est loisible de doubter si c´est le pire, n`ayant pas veu le demeurant. (...) (A) De
ceux mesmes que nous voyons bien faire, trois mois ou trois ans apres qu`ils y sont demeurez, il ne
s`en parle non plus que s`ils n`eussent jamais esté.” MONTAIGNE, II, 16, p. 628.
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se os abala ver o nome desse grande facínora, outrora tão assustador e tão
temido, ser amaldiçoado e injuriado tão livremente pelo primeiro estudante que
o ataque, (A) então que ela cresça vigorosamente e que a alimentem entre nós o
máximo possível.
118
Desse modo, o fim do ensaio, curiosamente, aparecia marcado pela
admissão de que a glória dos grandes homens, celebrada pela história, possuía um
importante valor corretivo, ordenando e bem conduzindo as ações. Mas com essa
observação, de fato, Montaigne não contradizia em sua essênvia a denúncia da vã
glória declarada anteriormente. Ele na verdade, não atribuía-lhe valor intrínseco
mas o condicionava à ignorância dos homens no domínio externo do mundo
público.
Do mesmo modo, isso também não neutralizava sua crítica aos artifícios
da retórica no sentido de apreender e expressar a verdadeira essência da virtude. A
utilidade da eloqüência, na glorificação dos grandes homens e no vitupério dos
maus, aparecia nessa passagem de maneira bastante diversa do modo como era
afirmada no âmbito do pensamento clássico e humanista: não surgia para
confirmar a excelência superior das capacidades humanas, mas definia-se
sobretudo como um expediente necessário para mover as emoções daqueles que
eram incapazes de fundar seus atos no exercício do próprio discernimento e na
afirmação de sua vontade. Sua validade portanto, segundo Montaigne, tinha como
pressuposto, a aceitação da imperfeição humana e dos valores arbitrários que
regiam seus costumes e suas formas de organização políticas e sociais. De todo
modo, ainda que se dirigisse aos homens insensatos e os distanciasse cada vez
mais de sua própria razão, isso não invalidava sua importante prerrogativa no
domínio da praxis, para manter os homens em leur devoir”.
A maneira como legitimava o valor desse ideário - “(...) qu`elle accroisse
hardiment et qu`on la nourisse entre nous le plus qu`on pourra.” - se assemelhava
bastante ao modo como avaliava e reconhecia os costumes sancionados nas mais
diversas civilizações no capítulo do primeiro volume dos Ensaios, Do costume – e
de não mudar facilmente uma lei aceita. Discorreu então sobre o absurdo que
governava todas as coisas humanas, denunciando as insuficiências de sua razão,
118
“Si toute-fois cette fauce opinion sert au public à contenir les hommes en leur devoir; (B) si le
peuple en est esveillé à la vertu; si les Princes sont touchez de voir le monde benir la memoire de
Trajan et abominer celle de Neron; si cela les emeut de voir le nom de ce grand pendart, autrefois
si effroyable et si redoubté, maudit et outragé si librement par le premier escolier qui l`entreprend:
(A) qu`elle accroisse hardiment et qu`on la nourisse entre nous le plus qu`on pourra.” Idem, p.
629.
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sobre a qual pretensamente se fundava a crença sobre a superioridade intrínseca
dos próprios costumes no interior das muitas nações e sociedades: (B) Considero
que não vem à imaginação humana nenhuma fantasia tão insensata que não
encontre exemplo em algum uso público, e consequentemente que nossa razão
não escore e fundamente.”
119
Apesar disso, Montaigne afirmava a necessidade de
obedecê-los como atitude adequada a um homem de bem, isento de orgulho e de
obstinação, pois que se davam como elementos imprescindíveis à manutenção da
ordem e estabilidade da vida social e política: “(...) essas considerações não
impedem um homem de discernimento de seguir o estilo geral; antes, ao contrário,
parece-me que todas as maneiras insólitas e individualistas provêm mais de
loucura ou de afetação ambiciosa que de razão verdadeira; (...)”
120
Esse atitude ambígua em relação aos costumes públicos determinava sua
posição quanto à glória no fim do ensaio. Ao mesmo tempo que associava seu
culto à insensatez, lhe conferia um significado ético positivo. Isso se explicitou
melhor a partir de um acréscimo c, inserido após 1588, em que tomou Platão
como apoio para sua reflexão. Conforme atentava Montaigne, o grande filósofo
recomendava aos cidadãos virtuosos que não desdenhassem da estima pública e
que em sua conduta levassem até mesmo em consideração a opinião dos maus,
pois que, por uma inspiração divina, até eles eram capazes de distinguir o vício da
virtude. Nesse contexto, da abordagem da lógica que regia a vida prática dos
homens na cidade, o valor moral da glória e a importância do reconhecimento
público eram, de fato, inquestionáveis, ainda que Montaigne não hesitasse em
identificar esse ideário às lendas e superstições que os grandes legisladores do
mundo antigo sempre empregaram para manter a obediência dos povos:
(C) E Platão, empregando todas as coisas para tornar virtuosos seus cidadãos,
também os aconselha a não menosprezar o bom conceito e a estima dos povos; e
diz que, por uma divina inspiração, advém que mesmo os maldosos amiúde
sabem, tanto em palavras como em idéias, distinguir acertadamente os bons dos
maus. Esse personagem e seu pedagogo são obreiros admiráveis e vigorosos em
fazer os atos e as revelações divinas chegarem a realmente toda parte aonde
falta a força humana; ‘A exemplo dos poetas trágicos que recorrem a um deus
119
“J`estime qu`il ne tombe en l`imagination humaine aucune fantasie si forcené, qui ne rencontre
l`exemple de quelque usage publique, et par consequent que nostre discours n`estaie et ne fonde.”
MONTAIGNE, I, 23, p. 111.
120
“(...) ces considerations ne destourent pourtant pas un homme d`entendement de suivre le stile
commun; ains, au rebours, il me semble que toutes façons escartées et particulieres partent plustost
de folie ou d`affectation ambitieuse, que de vraye raison (...) Idem, p. 118.
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140
quando não conseguem achar um desenlace para sua peça’ (...) (A) Posto que os
homens, por sua insuficiência, não conseguem pagar-se com uma moeda
verdadeira, que se continue a empregar a falsa. Esse expediente foi praticado
por todos os Legisladores e não existe sociedade em que não haja alguma
mescla ou de cerimônia vã ou de idéia mentirosa que sirva de rédea para manter
o povo no dever. É por isso que a maioria tem suas origens e inícios fabulosos e
enriquecidos de mistérios sobrenaturais.
121
A glória, assim, conquanto estímulo da virtude, era tida como uma espécie
de tolice – “sottisse” -, tal como a que Numa Pompílio usara para aumentar a
fidelidade de seus homens, de que a ninfa Egéria lhe trazia por parte dos deuses
todas as decisões que tomava. Montaigne reconhecia farsas semelhantes entre
persas, egípcios, judeus e árabes, comprovando a rara sabedoria de seus homens
de Estado, com que garantiam a solidez de sua autoridade e a manutenção da
ordem política
122
.
Com efeito, após mostrar essa sua utilidade efetiva e a necessidade de seu
culto para manter os homens em “leur devoir”, ele concluiu o ensaio com outro
acréscimo c, bastante breve, reafirmando sua mensagem central, isto é, da
dignidade superior de uma moral fundada no testemunho da própria razão, em
relação à subordinação do próprio modo de vida à mentira e à loucura que
caracterizavam as opiniões do vulgo: “(C) Toda pessoa honrada escolhe perder a
honra a perder sua consciência.”
123
De fato, se reconhecia sua importância como
sustentáculo fundamental da ordem política, impunha também um limite bem
claro ao alcance de sua legitimidade. Montaigne jamais comprometeria a
liberdade de seu próprio juízo para solidarizar-se pessoalmente com essa idéia
absurda, de que a glória implicava na realização mais alta da excelência humana.
A obediência que lhe devia era apenas externa e formal; não reconhecia nas leis,
nos valores e costumes de seu meio nenhuma autoridade intrínseca.
121
“(C) Et Platon, employant toutes choses à rendre ses citoyens vertueus, leur conseille aussi de
ne mespriser la bonne reputation et estimation des peuples; et dict que, par quelque divine
inspiration, il advient que les meschans mesmes sçavent souvent, tant de parole que d`opinion,
justement distinguer les bons des mauvais. Ce personnage et son pedagogue sont merveilleux et
hardis ouvriers à faire joindre les operations et revelations divines tout par tout où faut l`humaine
force; ‘A l`exemple des poètes tragiques qui ont recours à un dieu quand ils ne savent dénouer leur
pièce.’ (...) (A) Puis que les hommes, par leur insuffisance, ne se peuvent assez payer d`une bonne
monnoye, qu`on y employe encore la fauce. Ce moyen a esté pratiqué par tous les Legislateurs, et
n`est police où il n`y ait quelque meslange ou de vanité ceremonieuse ou d`opinion mensongere,
qui serve de bride à tenir le peuple en office. C`est pour cela que la pluspart ont leurs origines et
commencements fabuleux et enrichis de mysteres supernaturels.” MONTAIGNE, II, 16, p. 629.
122
Idem.
123
“(C) Toute personne d`honneur choisit de perdre plustot son honneur, que de perdre sa
conscience.” Idem, p. 630.
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141
Essa atitude, com efeito, ligava-se ao seu elogio da epoché cética, no
benefício que trazia à alma a suspensão do juízo quanto aos valores e crenças
perpetrados entre os costumes comuns: eles determinavam arbitrariamente a
essência da virtude e do vício, trazendo agitações desnecessárias ao espírito.
124
Se
admitia o poder da glória em disseminar a virtude entre os homens, permanecia
indiferente a ela em seu foro íntimo, assegurando a liberdade de seu jugement,
quanto ao conhecimento do que fosse o bem e o mal. Tal como todas as crenças
veiculadas na vida pública, ele definia a glória como completamente alheia às
noções morais de virtude e de justiça.
Contudo, ainda é necessário nos determos mais no exame dessa parte
conclusiva do ensaio, na maneira como a abordagem de seu tema modificou-se, e
ampliou-se através dos acréscimos c. É importante não perder de vista que se esse
elogio da glória, relacionado exclusivamente com a lógica externa dos costumes
públicos, não contradizia a acepção negativa desenvolvida no decorrer do texto, o
enriquecia de novas nuances, por outro lado. Estas de fato, faziam-se bastante
significativas no que dizia respeito ao modo como a crítica da glória fizera
ressaltar por contraste ao longo do texto, as motivações diferenciadas da escolha
de Montaigne pelo retiro filosófico, enfatizando a ausência de vaidade e orgulho
em seu intento de retratar-se.
A peroração de Da glória é bastante representativa das transformações que
o discurso de Montaigne operava, em geral, sobre os procedimentos tradicionais
da retórica. Ao invés de adequar-se aos preceitos clássicos
125
que atribuíam às
perorações a função de resumir e recapitular o sentido do discurso, ela
desestabilizava de maneira irônica o campo semântico dominante do ensaio ao
afirmar, enfim, o valor moral da glória.
126
Operava menos, portanto, como uma
124
Ver sobre isso item 4.3.
125
Segundo o autor anônimo da Retórica a Herênio, as perorações poderiam tomar três formas
diferentes: a enumeração, a amplificação e a comiseração. Na enumeração: “(...) reunimos e
fazemos lembrar as coisas de que falamos, com concisão, de modo que o discurso seja
rememorado, não refeito.” A amplificação e a comiseração, por sua vez, deveriam ser usada para
instigar ou mover à misericórdia o auditório por meio dos lugares comuns a fim de reforçar a força
persuasiva da causa sustentada pelo discurso. Retórica a Herênio, II, 47.
126
Marcel Tetel define essa espécie de peroração como a mais recorrente nos Ensaios, ela aparece
por exemplo, no capítulo Dos canibais (I, 31) e em Da semelhança dos pais com os filhos (II, 37).
Mas o autor a situa como uma das quatro entre as que Montaigne emprega em geral ao longo dos
vários capítulos de sua obra: além dessa peroração que privilegia as ambigüidades e a
multiplicação dos significados do texto, também a forma usual e ciceroniana, que ele
reconhece, por exemplo no capítulo Da moderação (I, 20). Além desta, há uma terceira categoria,
que sugere ao fim, um outro sentido, totalmente oposto ao discurso do ensaio, conviodando o leitor
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conclusão que o encerrava sobre si do que como um descentramento e uma
multiplicação de significados que deixava em suspenso o juízo do leitor acerca do
caráter negativo das ambições e de sua incompatibilidade com a essência da
virtude enfatizado anteriormente.
Com efeito, essa admissão de um conteúdo positivo para a glória
ressaltava no interior da renúncia e do desprezo que Montaigne lhe conferia, o seu
descaso pelos interesses e pela utilidade de seus pares e punha sua empresa de
voltar-se totalmente para si sob suspeita de presunção e vã glória, isto é, de um
amor próprio excessivo que o levava a considerar-se injustamente como superior
ao comum dos homens. Essas implicações se desdobrariam no capítulo seguinte,
Da presunção, levando-o a voltar o ensaio de seu jugement sobre si mesmo, a fim
de reafirmar sua profissão de modéstia e de “bonne foy”, e sua adequação à
própria razão e não às paixões que o distanciavam de sua própria verdade. A
peroração de Da glória assim, invertia o sentido usual desse procedimento,
segundo a retórica clássica, pondo em questão o sentido do ensaio como um todo
e abrindo-o para a reflexão do capítulo seguinte Da presunção, que examinaremos
no próximo capítulo.
Em suma, esse elogio montaigniano da utilidade da glória, conquanto
ambíguo, sugeria uma curiosa e inesperada inversão dos termos que haviam
determinado até então o significado do discurso. Nessa parte final, sua imagem
destacava-se como detentora de raros atributos que o elevavam acima da loucura
geral dos homens. Mas, apesar de arrogar-se a singular capacidade de adotar um
modo de vida pautado somente no testemunho da própria razão, sua conduta não
parecia nem um pouco proveitosa aos seus semelhantes. De fato, a peroração do
ensaio fazia ressaltar a inutilidade da opção ética e estética de Montaigne,
reavivando a ambigüidade inerente à profissão de modéstia sob a qual a
confessava, latente desde a Advertência ao leitor. Como já vimos, no exame da
Advertência, a inutilidade da empresa de descrever-se podia ser tomada tanto da
perspectiva de uma humilde confissão da própria insuficiência em servir aos
à reflexão. Um exemplo dessa terceira espécie de peroração se encontra no capítulo Do dormir (I,
44). A quarta forma arrolada pelo autor é da peroração por um texto autoreferncial em que o autor
dos Ensaios se olha a si mesmo e descreve seu processo comprovando a consubstancialidade
essencial entre seu discurso e seu objeto. TETEL, M., “Les fins d`essais”, In: Rhétorique de
Montaigne, p. 194.
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homens quanto da altivez de uma escolha deliberada em excluí-los de seus
desígnios.
Sua divisa ele a declarou na frase conclusiva de Da glória, escolhendo a
honra do respeito a si e à própria razão em detrimento do ato doar-se à loucura do
mundo pelo bem de seus pares: “(C) Toute personne d`honneur choisit de perdre
plustot son honneur, que de perdre sa conscience.”
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5.
Uma leitura de Da Presunção (II, 17)
5.1) O proêmio de Da Presunção: a defesa da legitimidade da escrita
de si e da liberdade do jugement.
Há uma outra sorte de glória que é uma opinião excessivamente boa que
concebemos de nosso valor. É uma afeição irrefletida, pela qual nos
encarecemos, que nos representa a nós mesmos diferentes do que somos, assim
como a paixão amorosa empresta belezas e graças ao indivíduo que ela abraça e
faz aqueles de quem se apossa considerarem com o julgamento turvo e alterado,
que o que amam é diferente e mais perfeito do que é.
1
Ainda que na peroração do ensaio anterior a Da presunção Montaigne
houvesse admitido a utilidade moral da glória, sua sentença final como acabamos
de ver, reafirmava sua crítica, reforçando o sentido geral do texto e, portanto,
reforçando também o princípio do autoretrato, da escolha pela fidelidade a si
como sendo a verdadeira e mais autêntica conduta honrada, consolidada mediante
o desdém pelas exigências do mundo e pelo valor de seu reconhecimento: “(C)
Toute personne d`honneur choisit de perdre plustot son honneur, que de perdre sa
conscience.” Em seguida a essa sentença, entretanto, as considerações feitas na
peroração de Da glória não deixaram de imprimir suas ressonâncias sobre a
reflexão de Montaigne, como podemos ver nessa passagem de abertura de Da
presunção. De maneira significativa ele definiu então este vício que dava nome ao
ensaio como “une autre sorte de gloire”, decorrente não da admiração pública mas
sim dos excessos do amor próprio, tida como “une trop bonne opinion que nous
concevons de nostre valeur”. Com efeito, essa primeira consideração seguida
imediatamente daquela que encerrava Da glória, parecia sugerir a necessidade de
voltar o ensaio de seu jugement para a indagação acerca da natureza de suas
1
“Il y a une autre sorte de gloire, qui est une trop bonne opinion que nous concevons de nostre
valeur. C`est une affection inconsiderée, dequoy nous nous cherissons, qui nous represente à nous
mesmes autres que nous ne sommes: comme la passion amoureuse preste des beutez et des graces
au subject qu`elle embrasse, et fait que ceux qui en sont espris, trouvent, d`un jugement trouble et
alteré, ce qu`ils ayment, autre et plus parfaict qu`il n`est.” MONTAIGNE, II, 17, p. 631.
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próprias motivações, a fim de comprovar-lhes a ausência de presunção, e que não
eram as volúpias do orgulho mas sim sua razão que fazia com que se voltassse
totalmente pra si e que votasse grande desprezo à utilidade e aprovação do mundo.
Da presunção, de fato, é o capítulo dos Ensaios em que Montaigne tomava
diretamente a si mesmo por tema de discurso a fim de descobrir-se e descrever-se
em seus detalhes físicos e morais.
Mas, como se vê em sua abertura, o que estava em jogo no texto não era a
descrição de si como um objeto, mas sim o ensaio do juízo que ele formulava
sobre si, enquanto escritor de um autoretrato, numa espécie de movimento
reflexivo em que o jugement se voltava para a instância subjetiva que era a origem
de seus enunciados a fim de testar sua própria retidão. De fato, Montaigne se
situava como objeto nos Ensaios através do exercício de suas faculdades e não
enquanto um eu a ser descrito, já dado apriori da própria experiência.
2
Como já
vimos, o ponto de partida de sua busca intelectual e existencial era da dispersão e
da fragmentação interior e, portanto, da incerteza quanto ao alcance de suas
faculdades. O conhecimento de si não escapava à crítica cética à vacuidade de
todo saber e empresa do homem. Diante da inexistência de uma razão substancial
- que neutralizasse a distância instaurada entre um eu observador e um eu
observado, no interior da meditação de Montaigne – que coferisse unidade e
solidez à própria identidade, a operação da escrita se definia como forma mais
adequada de conhecer-se, pelo registro do movimento perpétuo do juízo, incapaz
de fixar-se e de realizar a desejada igualdade de si para si.
Nesse sentido, o discurso reflexivo dos Ensaios implicava numa
radicalização do preceito socrático do conhece-te a ti mesmo
3
: ao invés de
consistir na indagação acerca dos motes de suas ações ele assinalava a empresa
mesma de constituição da subjetividade, ou, dito de outro modo, satisfazia a
exigência da apreensão da própria verdade mediante o triunfo sobre o fluxo das
manifestações contraditórias do espírito pelo seu registro no livro.
Mas face à incerteza do juízo, o perigo do falseamento da própria imagem
de si para si evidenciava-se como uma ameaça constante, levando ao
2
O tema do eu como objeto de escrita em Da presunção, se dava da mesma maneira como todos
os mais diversos temas ao longo de todo o livro, em que Montaigne procurava conhecer-se
exercitando e avaliando suas próprias faculdades. TOURNON, A., op. cit., p. 185.
3
CARDOSO, S., op. cit., p. 52.
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146
questionamento da veracidade do autoretrato em sua tão reafirmada exclusão dos
excessos do amor próprio; como precondição para sua plena realização, para que
não se considerasse a si mesmo como “autre et plus parfaict qu`il n`est”. Diante da
ausência de uma razão superior que conferisse estabilidade à sua vida interior – tal
como o hegemonikon dos estóicos
4
- o risco da deserção de si não era menor para
aquele que decidisse abandonar os negócios do mundo e ater-se à sua própria
sentença. O orgulho, a vaidade, a adulação podiam nascer sem a intervenção da
aprovação de outrem, perturbando a retidão de sua razão. Desse modo, em Da
presunção, Montaigne explorou em uma nova direção sua crítica da glória,
reconhecendo que não bastava apartar-se das volúpias do mundo e encerrar-se na
solidão da torre de seu castelo para considerar-se plenamente isento dessa paixão.
De fato, tal como aquela, que, segundo frisava no capítulo precedente, não era
mais “(...) qu`un favorable jugement qu`on faict de nous.”
5
essa outra espécie de
glória, sinônimo de presunção, também impedia a apropriação de sua verdade, por
isso era necessário discerni-la e evitá-la ao voltar-se para si, para não perder-se a
si mesmo tal como os ambiciosos.
Da presunção, portanto, teve justamente como tema o esforço do autor
para comprovar a franqueza de sua escrita. Montaigne reforçou aí o antagonismo
profundo de tal vício em relação aos seus propósitos, pautados no funcionamento
correto do juízo, que excluía esse excesso de destacar-se como outro e mais
perfeito do que era. Embora o ensaio fosse impulsionado pelo reconhecimento de
que o ato de voltar totalmente para si o exercício de suas faculdades poderia ser
facilmente contaminado por tais excessos, ele fez questão de diferenciar esse
reconhecimento dos preconceitos da tradição, segundo o qual, a prática de
escrever sobre si mesmo era quase invariavelmente sinal de vaidade e deveria ser
evitada para não provocar o desagrado dos leitores.
Procurou defender então a dignidade do programa de seus Ensaios, de
conhecer-se através da escrita, atentando para o fato de que a proibição ao falar de
si equivalia a restringir a liberdade do próprio jugement em matéria das mais
importantes, que mais exigia seu livre exercício, ou seja, a dimensão da própria
personalidade e de seus caracteres. Apesar dos riscos do orgulho e da vaidade,
4
Sobre isso retornar ao capítulo 3 deste trabalho e especialmente ao item 3.3.
5
MONTAIGNE, II, 16, p. 624.
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aqueles que obedeciam as restrições da tradição e jamais se voltavam para o
exame de si mesmos eram os que mais se expunham aos excessos do amor
próprio.
6
Conforme atentava, impedir que um homem se concebesse e se
apresentasse ao mundo conforme sua própria verdade implicava em forçá-lo a
pautar-se no erro do juízo externo. Este, da perspectiva de Montaigne, tal como a
desenvolveu enfaticamente em Da glória, era incapaz de alcançar a verdadeira
essência dos caracteres humanos, mas somente as aparências externas de seus
atos, ditos e gestos. Deixar-se levar por sua opinião e seus louvores para evitar a
presunção que podia decorrer do ato de exilar-se do mundo, não era o meio mais
adequado de combatê-la.
6
É interessante nos reportarmos ao conteúdo do capítulo Da educação das crianças (I, 26) para
que tenhamos uma idéia mais clara do alto significado moral que Montaigne conferia à liberdade
de exercício do juízo, tido como essencial para a boa formação do caráter. Em Da educação das
crianças ele discorreu sobre qual seria a essência de uma pedagogia ideal e sobre a tarefa do
preceptor, opondo-se à noção humanista da pedagogia perfeita, conforme estabelecida pelos
italianos, cuja principal função era fazer do aluno um erudito, versado nas artes e ciências da
Antigüidade. Montaigne exigia menos ciência de seu preceptor do que sobriedade de costumes e
de discernimento, pois estas o habilitavam a cumprir aquela que, segundo sua perspectiva, deveria
ser sua tarefa principal, ou seja, de estimular os alunos a “se enriquecer e adornar-se
interiormente” com as letras - “s`en enrichir et parer au dedans” – e não de ensiná-los a ostentar
um saber livresco para conquistar as vantagens externas que poderiam advir de uma boa educação.
Assim, para bem orientar seu discípulo, sublinhava o autor dos Ensaios, era preciso não que o
preceptor despejasse em seus ouvidos um punhado de frases e sentenças dos grandes oradores
antigos para que ele decorasse a etimologia das virtudes: “como oráculos em que as letras e as
sílabas participam da substância da coisa.” Era preciso que abrisse caminho para que o aluno
pudesse experimentar, discernir e escolher as coisas por si mesmo - “choisir, gouster les choses,
les discerner” - e lhe pedisse contas não apenas das palavras de sua lição mas sim de seu sentido e
substância interiorizados mediante esse exercício prático do próprio juízo. Nos termos tradicionais
da retórica, essa valorização do juízo implicava num ensino baseado na primazia de res – matéria e
conteúdo do discurso – para a boa formação do espírito, em detrimento de verba – da beleza do
estilo, que, segundo a ênfase que lhe votavam muitos dos autores humanistas, implicava na
exteriorização da própria inteligência e virtude, traduzidos na imitação das belas obras da
Antigüidade. Em suma, da perspectiva dessa nova maneira pedagógica delineada em Da educação
das crianças - que remontava e sintentizava as proposições erasmianas sobre a boa educação
baseada na leitura dos antigos - o cumprimento bem sucedido da tarefa do preceptor se traduzia
num aluno que não se limitasse a repetir e alojar em sua mente tudo aquilo que lhe dissessem, por
simples autoridade e confiança, mas que fosse capaz de dispor de si mesmo, passando todas as
informações recebidas pelo próprio crivo em benefício de sua autonomia e liberdade; movimento
cujo sentido Montaigne ilustrou bem através da metáfora das funções da digestão: “É prova de
crueza e de indigestão regurgitar o alimento como foi engolido. O estômago não realizou sua
operação se não fez mudar a característica e a forma do que lhe deram para digerir.” Esta idéia,
que era a base de sua proposta de uma pedagogia ideal, também era o princípio que definia seu
método de autoconhecimento nos Ensaios, no modo como fazia passar pelo próprio juízo e
conferia-lhe forma concreta através das transformações que operava sobre o conteúdo dos muitos
empréstimos das obras antigas e modernas. Em Da presunção, reivindicando o direito de
representar-se em sua verdade, Montaigne voltou a celebrar a autonomia de seu jugement
denunciando a ignorância e vaidade daqueles que concebiam a si mesmos não segundo sua própria
razão mas sim segundo as opiniões e convenções externas do mundo. Idem, I, 26, p. 151.
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148
Com efeito, o significado que Montaigne atribuía ao direito de
manifestação do juízo sobre si parecia inspirar-se no conteúdo moralizante do
velho preceito socrático do conhece-te a ti mesmo, em sua ênfase na associação
entre autoconhecimento e rebaixamento de si, e, especialmente, na confissão da
própria ignorância. De fato, é possível discernir esse significado na própria
disposição em investigar-se a si mesmo, que era o princípio de Da presunção,
dado sob o reconhecimento de estar se expondo aos seus riscos e das falhas do
próprio juízo. Mas, a fim de ressaltar sua concepção da natureza do homem e de
sua razão como vil e imperfeita e expressar o desprezo por seu orgulho, ele lançou
mão não só da filosofia socrática, como também das mais diversas tradições
filosóficas da Antigüidade, conforme declarava num trecho situado mais adiante
do proêmio do ensaio:
Tenho em geral isto: que de todas as opiniões que a Antigüidade teve sobre o
homem em geral, as que adoto de melhor grado e às que mais me atenho, são as
que mais nos menosprezam, aviltam e aniquilam. A filosofia nunca me parece
ter cartas tão favoráveis como quando combate nossa presunção e vaidade,
quando reconhece de bom grado sua irresolução, fraqueza e ignorância.
7
Assim, foi justamente o costume usual, sancionado pela tradição, de não
falar de si, que ele denunciou como princípio dos excessos do amor próprio e
como origem das maiores imposturas perpetradas por eruditos e homens de
ciências: “Parece-me que a mãe nutriz das mais falsas opiniões, tanto públicas
quanto particulares, é a opinião excessivamente boa que o homem tem sobre si.”
8
Os que se valorizavam por adequar-se a tais conveniências eram em geral os que
mais perturbavam a ordem do mundo, pois convencidos da validade superior de
suas proposições, disseminavam toda sorte de falsas opiniões. Eles ignoravam o
preceito socrático e nunca sondavam sua própria alma para avaliar o alcance
diminuto e medíocre de suas capacidades. Estes eram os verdadeiros presunçosos
e não ele, Montaigne, que voltava para si o exercício de sua razão, reconhecendo a
profunda ignorância em que estava mergulhada a razão humana:
7
“J`ay en general cecy, que de toutes les opinions que l`ancienneté a eües de l`homme em gros,
celles que j`embrasse plus volontiers et ausquelles je m`attache le plus, ce sont celles que nous
mesprisent, avillisent et aneantissent le plus. La philosophie ne me semble jamais avoir si beu jeu
que quand elle combat nostre presomption et vanité, quand elle reconnoit de bonne foy son
irresolution, sa foiblesse et son ignorance.” Idem, II, 17, p. 634.
8
“Il me semble que la mere nourisse des plus fauces opinions et publiques et particulieres, c`est la
trop bonne opinion que l`homme a de soy.” Idem.
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149
Essas pessoas que se empoleiram escarranchadas sobre o epiciclo de Mercúrio
(C) que enxergam tão longe no céu, (A) fazem-me ranger os dentes; pois no
estudo que faço, cujo tema é o homem, encontrando uma tão extrema variedade
de julgamentos, um tão profundo labirinto de dificuldades umas sobre as outras,
tanta diversidade e incerteza mesmo na escola da sapiência, podeis imaginar -
posto que essas pessoas não conseguiram decidir sobre o conhecimento de si
mesmas e de sua própria condição, que está continuamente presente sob seus
olhos, que está nelas; posto que não sabem o que elas mesmas põem em
movimento, nem como descrever-nos e decifrar-nos os mecanismos que elas
mesmas seguram e manejam – como eu acreditaria nelas quanto à causa do fluxo
e refluxo do rio Nilo?
9
Por outro lado, os que incorriam numa autodepreciação exagerada
também não combatiam realmente os excessos da autoestima, pois o faziam
movidos pelo desejo de adequar-se aos preceitos da tradição. Conforme frisava no
proêmio de Da presunção, o essencial para libertar-se desse vício era assegurar a
liberdade de exercício do juízo e de conduzir-se segundo sua própria verdade:
Não desejo que, temendo errar por este lado, um homem se desconheça por isso,
nem que pense ser menos do que é. O julgamento deve em toda parte manter
seu direito, e é justo que ele veja nesta parte como alhures o que a verdade lhe
apresenta. Se for César, que se considere sem hesitar o maior comandante do
mundo.
10
Como Montaigne atentava num acréscimo posterior, era importante não
confundir franqueza e ausência de ambição com a falsa profissão de modéstia,
meramente formal - não impulsionada pela razão mas exclusivamente pela
esperança de obter a aprovação pública - com que tantos presunçosos se
dissimulavam aos olhos do mundo: “(C) Podemos ser humildes pela glória.”
11
Enfim, o intento do autoretrato de apropriar-se de sua verdade, ainda que
sob a confissão da incerteza do juízo, tinha como precondição o embate contra a
9
“Ces gens qui se perchent à chevauchons sur l`epycicle de Mercure, (C) qui voyent si avant dans
le ciel (A), ils m`arrachent les dens: car en l`estude que je fay, duquel le subject c`est l`homme,
trouvant une si extreme varieté de jugements, un si profonde labyrinthe de difficultez les unes sur
les autres, tant de diversité et incertitude en l`eschole mesme de la sapience, vous pouvez penser,
puis que ces gens là n`ont peu se resoudre de la connoissance d`eux mesme et de leur propre
condition, qui est continuellement presente à leurs yeux, qui est dans eux; puis qu`ils ne sçavent
comment branle, ny comment nous peindre et deschiffrer les ressorts qu`ils tiennent et manient eux
mesmes, comment je les croirois de la cause du flux et reflux de la riviere du Nile?”Idem.
10
“Je ne veux pas que, de peur faillir de ce costé là, un homme se mesconnoisse pourtant, ny qu`il
pense estre moins que ce q`il est. Le jugement doit tout par tout mantenir son droit: c`est raison
qu`il voye en ce subject, comme ailleurs, ce que la verité luy presente. Si c`est Caesar, qu`il se
treuve hardiment le plus grand Capitaine du monde.” Idem, p. 632.
11
“(C) On peut estre humble de gloire.” Idem, p. 633.
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150
tradição que proibia o discurso em primeira pessoa para prevenir o atentado contra
o decoro e a ofensa à opinião dos homens.
12
Era em defesa de seus desígnios que
Montaigne invertia os termos dessa equação, denunciando a presunção nas
condutas plenamente obedientes às cerimônias e conveniências sancionadas pelos
costumes.
Essa idéia foi muito bem ilustrada também na parte final do ensaio Do
exercício, que dedicou à defesa do valor moral de seu projeto. Ele excluía ambos
os excessos, tanto da autoestima quanto da autodepreciação em nome do
autoconhecimento:
Se eu parecesse a mim mesmo bom e sábio entoá-lo-ia a plena voz. Dizer de si
menos do que há para dizer é tolice, não modéstia. Cotar-se em menos do que se
vale é fraqueza e pusilanimidade segundo Aristóteles. Nenhuma virtude se
beneficia com a falsidade; e a verdade nunca é matéria de erro. Dizer de si mais
do que se há para dizer é sempre presunção e amiúde é também tolice.
Comprazer-se desmedidamente com o que se é, cair num imoderado amor de si
é, em minha opinião a substância desse vício. O remédio supremo para curá-lo é
fazer exatamente o inverso do que ordenam aqui, os que proíbindo o falar de si,
conseqüentemente mais ainda proíbem pensar em si.
13
Se ele declarava com tanta ênfase sua predileção por depreciar as
capacidades humanas e a associação entre autoconhecimento e autodepreciação:
“La philosophie ne me semble jamais avoir si beu jeu que quand elle combat
nostre presomption et vanité”, não perdia de vista também que, no âmbito da
realidade infinitamente diversificada e imprevisível das coisas humanas havia
casos em que o autoelogio despudorado em relação a certas habilidades e
qualidades particulares, embora podendo ser confundido com orgulho pelo vulgo,
era na verdade, fruto do uso correto e integral do juízo e se adequava ao preceito
de seu livre exercício. O exemplo de César
14
, tal como apresentado na passagem
12
Sobre esse assunto ver item 4.1.
13
“Si je me semblois bon et sage ou près de là, je l`entonneroy à pleine teste. De dire moins de soy
qu`il n`y en a, c`est sotisse, non modestie. Se payer de moins qu`on ne vaut, c`est lascheté et
pusillanimité, selon Aristote. Nulle vertu ne s`ayde de la fausseté; et la verité n`est jamais matiere
d`erreur. De dire de soy plus qu`il n`en y a, ce n`est pas tousjours presomption, c`est encore
souvent sottise. Se complaire outre mesure de ce qu`on est, en tomber en amour de soy indiscrete,
est, à mon advis, la substance de ce vice. Le supreme remede à le guarir, c`est faire le rebours de
ce que icy ordonnent, qui, en défendant le parler de soy, défendant par consequent encore plus de
penser à soy.” Idem, II, 6, p. 379.
14
No ensaio Dos livros Montaigne encontrou outra ocasião de manifestar a admiração que
cultivava pelo grande general romano. Nesta passagem lamentava vivamente o fato de que ele
tivesse falado tão pouco de si: “Mas, César singularmente me parece merecer que o estudemos,
não apenas para a ciência da história mas por ele mesmo, tanto tem de perfeição e excelência
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151
acima, como o maior comandante do mundo, comprovava o quanto o pudor em
proclamar as próprias qualidades podia dar livre curso à mentira e à dissimulação
em nome dos aplausos do mundo, que se constituíam na verdadeira força motriz
da presunção.
Aludindo a esse exemplo ele demonstrava o grande alcance que tinham os
preconceitos da tradição contra o falar de si. De fato, enquanto grande homem de
Estado, César se enquadrava nos casos em que o autolouvor era conveniente, pois
sua vida era digna de servir de exemplo de virtude. No entanto, mesmo nesses
casos os moralistas da Antigüidade recomendavam bastante prudência nessa
prática. Plutarco, por exemplo, em suas Obras Morais, estabeleceu algumas regras
necessárias para que o autolouvor não se fizesse de forma vil e odiosa; com vistas
a não soar de maneira desagradável para o público, na afetação de um amor
intempestivo pela glória. O autoelogio deveria pronunciar-se de forma indireta por
artifícios da linguagem, tais como antíteses e comparações. Entre essas formas
definidas por ele contavam-se o elogio de si que se misturava ao elogio do
auditório; aquele que se fazia pela exaltação das próprias qualidades na pessoa do
outro; e o que se dava mediante a atribuição de uma parte dos próprios méritos à
fortuna
15
.
Na literatura renascentista, como já vimos, Baltazar Castiglione também
interditou os excessos do autoelogio ao seu cortesão, que se afirmou como figura
ideal da civilidade humanista. Mas, ao descrever a graça do comportamento do
cortesão ele fez eco à lição de Plutarco, reabilitando o autoelogio somente quando
feito de maneira dissimulada:
Digo claramente que é discretíssimo aquele que, ao louvar a si mesmo, não
incorre em erro, nem provoca incômodo ou inveja em quem o escuta (...) tudo
consiste em dizer as coisas de modo que pareça não serem ditas com aquela
finalidade, mas que calham tão a propósito que não se pode deixar de dizê-las e,
sempre mostrando evitar o elogio de si, não deixar de fazê-lo mas não da
maneira como fazem esses valentes, que abrem a boca e deixam vir as palavras
ao acaso.
16
acima de todos os outros (...) penso que somente nisto se possa encontrar o que criticar: que foi
avaro demais ao falar de si mesmo. Pois tantas grandes coisas não podem ter sido executadas por
ele sem que nelas tenha havido muito mais de seu do que diz” Idem, II, 10, p. 416.
15
PLUTARCO. “Comment se louer soi-même sans exciter l`envie.” Oeuvres Morales. Tome VII,
Deuxième partie, 542
a – 542d.
16
CASTIGLIONE, B., op. cit., XVII, L. I.
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152
Não por acaso, antes de passar propriamente a descrever-se em Da
presunção Montaigne considerou apropriado declarar expressamente estar
deixando de lado as cerimônias para prosseguir em seu discurso. Mas, denunciou
ao mesmo tempo o equívoco e a grave impostura moral em que incorriam as
opiniões do vulgo, que só sabiam reconhecer o valor moral dos homens por sua
adequação às aparências consideradas honestas segundo as conveniências. Com
efeito, abusava da linguagem em primeira pessoa e evitava o quanto possível
qualquer forma de artifício para poder conhecer-se e dar-se a conhecer da forma
mais fidedigna possível. Em nome da livre expressão de seu juízo ele não hesitou
em proclamar o direito de expressar as coisas lícitas e naturais sobre sua pessoa.
Para conferir a devida força expressiva à novidade de seu intento e o quanto, em
nome dela, ele desdenhava do respeito à opinião pública, identificou sua forma à
indecência de mencionar suas partes íntimas em público:
Somos apenas cerimônia: a cerimônia transporta-nos e deixamos de lado a
substância das coisas; agarramo-nos aos galhos e abandonamos o tronco e o
corpo. (...) não ousamos mencionar os nossos membros e não hesitamos em
empregá-los em todo tipo de devassidão. A cerimônia proíbe-nos de expressar
em palavras as coisas lícitas e naturais e acreditamos nela, a razão proíbe-nos de
praticar as ilícitas e más e ninguém acredita nela. Encontro-me aqui enredado
nas leis da cerimônia ela não permite nem que se fale bem de si nem que se fale
mal. Vamos deixá-la aí por enquanto.
17
Apesar de não ser um personagem ilustre como César, Montaigne se
arrogou então o mesmo direito de romper com as cerimônias que haviam
impedido este de declarar-se sem floreios o maior comandante do mundo. Incorria
numa grande ousadia ao tomar a pena para descrever-se, pois, como ele mesmo
admitia, a fortuna nunca o favorecera com uma posição de destaque pela qual se
fizesse admirar por seus feitos.
Entretanto, procurando legitimar seu ato, nos dizia ser essa condição
mesma, da inexistência do testemunho alheio, que lhe dava o direito de tomar a
pena para descrever-se, pois ninguém jamais o faria além dele mesmo. Essa
17
“Nous ne sommes que ceremonie: la ceremonie nous emporte, laissons la substance des choses;
nous nous tenons aux branches et abandonnons le tronc et le corps. (...) nous n`osons apeller à
droict nos membres, et ne craignons pas de les employer à toute sorte de desbauche. La ceremonie
nous defend d`exprimer par parolles les choses licites et naturelles, et nous l`en croyons; la raison
nous defend de n`en faire point d`illicites et mauvaises, et personne ne l`en croit. Je me trouve icy
empestré és loix de la ceremonie, car elle ne permet ny qu`on parle bien de soy, ny qu`on parle
mal. Nous la lairrons là pour ce coup.” MONTAIGNE, II, 17, p. 632.
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153
circunstância lhe dava a oportunidade de apreender-se conforme seu próprio juízo,
sem obscurecê-lo pelas falsas determinações externas do mundo. Através dos
Ensaios, assim, Montaigne preenchia a ausência do testemunho público
substituindo-o pelo próprio e desvinculando a forma de sua escrita dos
preconceitos da tradição que associavam diretamente o falar de si com o
autolouvor:
Aqueles que a fortuna (quer devamos chamá-la boa ou má) fez passar a vida em
uma posição eminente podem por seus atos públicos atestarem quem são. Mas
os que ela só utilizou em massa e de quem ninguém falará se eles mesmos não
falarem, são perdoáveis se tiverem a ousadia de falar de si mesmos para os que
têm interesse em conhecê-los (...)
18
Refletiu-se no exemplo antigo do poeta Lucílio para afirmar a natureza
privada de seu discurso, endereçado apenas para alguns poucos que tinham
interesse em conhecê-lo tal como se sentia ser, segundo seu bom senso, livre da
presunção de considerar-se mais perfeito. Seu estilo franco e desenvolto, tal como
do grande poeta latino, não exprimia presunção, mas sim os verdadeiros
sentimentos da alma da maneira mais franca possível, representados como em um
“tableau votif”:
(...) a exemplo de Lucílio: ‘Aquele confiava aos seus escritos, como a amigos
fiéis todos os seus segredos; estivesse infeliz ou venturoso jamais teve outro
confidente. Por isso neles se vê retratada toda sua vida de homem maduro,
como em um quadro votivo’ Aquele confiava ao papel suas ações e
pensamentos e retratava-se tal como se sentia ser.
19
Através da citação de Horácio, referente a Lucílio, que complementava a
passagem, Montaigne sintetizou o programa dos Ensaios, voltado para a
constituição de um “quadro votivo” no qual se veria retratada sua própria imagem,
delineada conforme o uso de seu jugement. Entretanto, como reafirmava, era na
espontaneidade dos sentimentos da alma que se fundava seu exercício e não numa
18
“Ceux que la fortune (bonne ou mauvaise qu`on la doive apeller) a faict passer la vie en quelque
eminent degré, ils peuvent par leurs actions publiques tesmoigner quels ils sont. Mais ceux qu`elle
n`a employez qu`en foule, (C) et de qui personne ne parlera, si eux mesmes n`en parlent, (A) ils
sont excusables s`ils prennent la hardiesse de parler d`eux mesmes envers ceux qui ont interest de
les connoistre (...)” Idem.
19
“(...) à l`exemple de Lucilius: ‘Celui-là confiait, comme à des amis fidèles, tous ses secrets à ses
écrits. Qu`il fût malheureux ou heureux jamais il n`eut d`autre confident; aussi toute sa vie s`y voit
dépeinte comme dans un tableau votif’ Celuy là commettoit à son papier ses actions et ses pensées,
et s`y peignoit tel qu`il se sentoit estre (...)” Idem.
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154
substância racional superior, que conforme acreditavam os estóicos se defnia
como uma centelha divina na alma, que transcendia sua dimensão mundana e
sensível. Com efeito, o modo como declarava a natureza de sua empresa neste
início de Da presunção, apesar de atestar a inconstância da própria razão, tinha
como princípio o preceito central de Da glória, que acusava antes o engano das
opiniões externas. Como declarava então: “Eis como todos esses julgamentos que
se fundam nas aparências externas são extraordinariamente incertos e duvidosos; e
não há outra testemunha tão fiel quanto cada qual sobre si mesmo.”
20
Essa idéia reaparecia na passagem seguinte do proêmio de Da presunção,
que cumpria um importante papel em sua estrutura discursiva, impulsionando e
introduzindo o autoretrato. Nela Montaigne recordava-se de que desde sua
infância os outros observavam em sua postura e em suas atitudes “une vaine et
sotte fierté”, que, entretanto, não correspondia ao modo como se sentia ser; como
concebia a si mesmo de acordo com sua razão. De fato, essa crítica do engano das
aparências vinha então acrescida de uma consideração que a problematizava, sob
o reconhecimento dos limites de seu juízo:
Lembro-me de que, desde a minha mais tenra infância, observavam em mim
não sei que porte de corpo e de gestos que atestava uma vã e tola altivez. Quero
dizer primeiramente isto: que não é inconveniente ter características e
propensões tão pessoais e tão incorporadas em nós que não tenhamos meios de
as sentir e reconhecer. E de tais inclinações o corpo retém facilmente algum
vinco sem nosso conhecimento e consentimento. Era uma certa coqueteria
conforme à sua beleza que fazia a cabeça de Alexandre inclinar-se um pouco
para um lado e que tornava a fala de Alcibíades lenta e gutural. Júlio César
coçava a cabeça com um dedo que é o comportamento de um homem cheio de
pensamentos laboriosos; e Cícero parece-me, costumava franzir um pouco o
nariz, o que significava uma índole zombeteira. Tais movimentos podem surgir
imperceptivelmente em nós.
21
20
“Voylà comment tous ces jugements qui se font des apparences externes, sont merveilleusement
incertains et douteux; et n`est aucun si asseuré tesmoing comme chacun à soy mesme.” Idem, II,
16, p. 626.
21
“Il me souvient donc que, des ma plus tendre enfance, on remarquera en moy quel port de corps
et des gestes tesmoignants quelque vaine et sotte fierté. J`en veux dire premierement cecy, qu`il
n`est inconvenient d`avoir des conditions et des propensions si propres et si incorporées en nous,
que nous n`ayons pas moyen de les sentir et reconnoistre. Et de telles inclinations naturelles, le
corps en retient volontiers quelque pli sans nostre sçeu et consentement. C`estoit une certaine
affetterie consente de sa beauté, que faisoit un peu pancher le teste d`Alexandre sur un costé et qui
rendoit le parler d`Alcibiades mol et gras. Julius Caesar se gratoit la teste d`un doigt, qui est la
contenance d`un homme remply de pensemens penibles; et Ciceron, ce me semble, avoit
accoustumé de rincer le nez, qui signifie un naturel moqueur. Tels mouvements peuvent arriver
imperceptiblement en nous.” Idem, II, 17, p. 632.
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155
O conteúdo dessa passagem destacava a percepção de um território
obscuro em que se enraizavam suas inclinações naturais, inascessível à
consciência de si, mas traído pelos movimentos naturais do corpo, pelos quais o
escrutínio alheio desvendava-lhe uma presunção imperceptível por ele mesmo. A
hipótese de que estes indicassem realmente uma propensão oculta a esta espécie
de glória se reforçava na medida da assimilação desse caso ao seu próprio modo
de observação do comportamento de grandes personalidades da Antigüidade, tais
como Alexandre, Alcebíades, César e Cícero, enquanto meio de descobrir-lhes as
inclinações naturais mais profundas, em geral tão arraigadas na alma, que
desconhecidas deles mesmos. De fato, curiosamente, nesse momento, Montaigne
abordava a questão do juízo alheio, exercido sobre as aparências sob uma visada
bem diversa da maneira como o vinha definindo desde o capítulo anterior,
enquanto fonte de engano. Direcionado não para os movimentos artificiais e
calculados para obter sua aprovação, mas sim para os detalhes dos gestos naturais
e inadvertidos, o juízo externo possuía a prerrogativa de desvendar os traços
internos, indicativos da personalidade de quem era observado.
22
De qualquer modo, como já havia declarado, pintava um retrato do modo
como “se sentia ser” nos Ensaios, e, portanto, não podia responsabilizar-se por
essa “vaine et sotte fierté acusada pelo olhar dos outros. Tornou a afirmar,
assim, a matéria essencial de seu discurso, consolidada sob a recusa em regular-se
pelo juízo de outrem, conforme este o concebia:
22
Com efeito, especialmente com o Plutarco das Vidas Paralelas, o autor dos Ensaios aprendeu a
conhecer os caracteres individuais dos homens através da observação minuciosa de seus costumes,
ditos e feitos privados e fortuitos, que eram sinais espontâneos de seu estado de alma. Através da
leitura de Plutarco ele aprendeu a transpor os séculos e a estabelecer um convívio mais humano
com os grandes personagens e heróis da Antigüidade. Plutarco não punha no centro de sua obra
seus grandes atos apenas, pelos quais estes homens quiseram fazer-se imortalizar, mas sim, suas
intenções e inclinações pessoais, apreendidas pela atenção aos detalhes de sua conduta privada e
cotidiana a fim de apreender-lhes os caracteres. Esse método de escrita coincidia com o gosto de
Montaigne, que no ensaio, Dos livros, afirmara não ter outro interesse na leitura das obras da
Antigüidade que não fosse o conhecimento dos humores privados de seus autores e personagens e
admirar de perto e como que em vida personalidades tão célebres. Deplorava o fato de que quase
sempre tais detalhes eram negligenciados pelos historiadores, em nome do registro de grandes
eventos: “Eu antes escolheria saber com exatidão as conversas que ele manteve em sua tenda com
algum de seus amigos pessoais, na véspera de uma batalha, em vez das palavras que no dia
seguinte disse ao seu exército; e o que ele fazia em seu gabinete e em seu quarto, em vez do que
fazia no meio da praça e no senado.” Idem, II, 10, p. 415.
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156
Não sei se aqueles gestos que observavam em mim eram dessa primeira
natureza e se na verdade eu tinha uma propensão oculta para esse vício, como
pode bem ser, e não posso responder pelos movimentos do corpo; mas quanto
aos movimentos da alma, quero confessar aqui o que sinto.
23
Mas com essa disposição de “confesser ce que j`en sens, assumindo o
compromisso de ser plenamente sincero em sua escrita, ele solicitou a confiança
do leitor em seu testemunho, convidando-o a também exercer livremente seu
jugement sobre seus ensaios, a fim de avaliar se possuía ou não essa inclinação
oculta à presunção.
As confissões de inutilidade, incompetência e frivolidade que permeavam
a obra desde a primeira página, como já bem nos mostrou Andre Tournon
24
,
tinham não tanto por função a exclusão do leitor quanto o convite à sua
colaboração crítica na elaboração do sentido do texto. Ao invés de declarar um
juízo pronto, sua composição apresentava um ensaio de sua própria atitude, a fim
de provocar a curiosidade e a investigação. Através de seus ensaios, de fato,
Montaigne procurava incitar seu leitor a também praticar o que entendia como a
boa filosofia, fundada na experiência da epoché pirrônica quanto ao conhecimento
da verdade que operava no sentido de ativar as próprias faculdades intelectuais de
maneira integral. Isentos da precipitação típica daqueles que tanto se orgulhavam
dos poderes de sua razão, seus leitores deveriam examinar com atenção os
pensamentos, juízos e impressões diversos enunciados por Montaigne a fim de
bem avaliar a natureza de suas inclinações.
De resto, como já observou Jean Starobinski
25
, ele exibia-se para ser visto.
É claro que nunca lhe escapara a estreita conexão que havia entre seu método de
23
“Je ne sçay si ces gestes qu`on remerquoit en moy, estoient de cette premiere condition, et si à la
verité j`avoy quelque occulte propension à ce vice, comme il peut bien estre, et ne puis pas
respondre des bransles du corps; mais, quant aux bransles de l`ame, je veux icy confesser ce que
j`en sens.” Idem, II, 17, p. 633.
24
TOURNON, A., op. cit., p. 168.
25
Sobre esse tema da dialética própria ao discurso do autoretrato nos Ensaios, do movimento
simultâneo do desdém pela aprovação do leitor e da necessidade de seu testemunho, nos diz Jean
Starobinski: “No caso, o valor que o eu se atribui é muito ambíguo: de um lado, explicitamente,
afirma sua importância privilegiada, sua independência; de outro lado (implicitamente), imputa a
si mesmo uma insuficiência radical, que o obriga a buscar no exterior a confirmação de sua
singularidade e o reforço indispensável à sua figura, por demais precária. Singular autarcia que não
pode prescindir de recorrer à exibição! O erro dos outros ou sua indiferença colocariam em perigo
a imagem a que Montaigne confia sua cartada máxima: o contorno se tornaria indistinto, as cores
empalideceriam, os traços individuais se tornariam irreconhecíveis. Para evitar esse prejuízo que o
atingiria em sua existência segunda Montaigne toma o partido de se ‘descobrir’ até em suas
‘cicatrizes’ e em suas deformidades.” STAROBINSKI, J., Montaigne em Movimento, p. 138.
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conhecer-se e o ato de dar-se a conhecer. Valia-se do impudor para chamar a
atenção do testemunho externo, tomando-o como reforço do sentimento turvo que
tinha de sua própria existência. Mas, com o conselho dissuassivo da Advertência,
relembremos, ele demarcava a diferença da composição de sua obra em relação
aos preceitos dos retores e dialéticos, excluindo como interlocutores aqueles que
só sabiam apreciar o artifício e o cálculo dos discursos tradicionais que conduziam
metodicamente a uma conclusão dada. Estes, com efeito, empregavam
precariamente suas faculdades e por isso jamais poderiam ser seus leitores
adequados.
A partir de sua ordem insólita e fortuita, avessa a adequar-se às
“ceremonies” do mundo, Montaigne visava a uma relação com outrem pautada
exclusivamente na liberdade do exercício do juízo e no crédito à palavra dada e
não no registro do assentimento a alguma verdade atestada.
Esta última, no presente caso, deveria dar-se mediante uma argumentação
linear que persuadisse plenamente seus leitores de que não era presunçoso e que o
elevasse a ele e à sua empresa de conhecer-se a exemplo perfeição moral.
Recusando-se a isso, Montaigne solicitava a aprovação de seu leitor não por
docilidade e em virtude da admiração de uma sabedoria afetada e ambiciosa de
louvores, mas sim a partir de um exercício crítico e livre da razão, para
desembaraçar da miscelânea desordenada de seus enunciados o seu significado.
Nesse processo, com efeito, ensaísta e leitor tornavam-se parceiros, no âmbito de
uma composição assaz enigmática para requerer sua participação ativa.
5.2) O autoretrato de Da Presunção
No autoretrato de Da presunção, portanto, Montaigne procurou conhecer-
se, exibindo os movimentos da alma e interpelando seu leitor para que
testemunhasse a autenticidade de suas proposições, contra a impressão de altivez
que desde sua infância acusava em seus gestos, segundo os outros lhe diziam.
Como bem observa Geralde Nakam
26
, talvez o capítulo inteiro não fosse mais que
uma réplica do homem maduro, àqueles que só sabiam enxergar no
comportamento da criança “une vaine et sotte fier” de jovem presunçoso. A
26
NAKAM, G., Montaigne la Manière et la Matière, p. 184.
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158
incompreensão de que fora vítima em sua infância, ele a compensava com a
demonstração de suas qualidades de homem adulto, de franqueza e de
simplicidade, nutridas sob o contato com a sabedoria dos antigos.
O ensaio se dividia em duas partes, conforme a dupla definição que dava
dessa espécie de glória: “Há duas partes nessa glória; a saber: por se estimar
demais e por não estimar suficientemente o outro.”
27
Montaigne se encarregava de
defender-se respectivamente contra esses dois vícios, sendo sua resposta ao
primeiro bem mais longa que ao segundo, determinando a maior parte do ensaio,
num autoretrato franco e detalhado de si, em seus aspectos físicos e morais.
Como introdução a esse “quadro votivo” dos sentimentos da alma, ele
inverteu a dupla definição que acabara de dar da presunção, confessando que, em
geral, depreciava excessivamente a si mesmo e engrandecia demais seus amigos.
Na verdade, se deveria reconhecer-se culpado de algum erro de juízo, este era
totalmente oposto ao vício de valorizar-se em demasia: “É que diminuo do justo
valor as coisas que possuo, porque as possuo; e aumento o valor das coisas na
medida em que são alheias, ausentes e não minhas.”
28
Com isso, impôs também
ao leitor que invertesse o modo de avaliação acerca de seu estilo pessoal
diferenciando-o do estilo de outros autores, que se vangloriavam de suas
capacidades e de seus feitos.
Reafirmava assim aquela que era sua motivação, isto é, da experiência
inaugural de um vazio interior, de uma profunda ignorância quanto à sua própria
natureza e quanto à extensão de suas capacidades:
Admiro a segurança e a expectativa que todos têm de si, sendo que não há
praticamente nada que eu saiba que sei, nem que ouse garantir que posso fazer.
Não tenho meus recursos à disposição e arrolados e só fico sabendo deles após o
resultado, tão em dúvida sobre mim quanto sobre qualquer outra coisa. Disso
advém que, se executo com sucesso um trabalho atribuo-o antes à minha sorte
que à minha força, pois planejo todos eles ao acaso e com inquietação.
29
27
“Il y a deux parties en cette gloire: sçavoir est, de s`estimer trop, et n`estimer pas assez autruy.”
MONTAIGNE, II, 17, p. 632.
28
“Ce que je diminue du juste prix les choses que je possede, de ce que je les possede; et hausse
les prix aux choses, d`autant qu`elles sont estrangieres, absentes et non miennes.” Idem, p. 633.
29
“J`admire l`asseurance et promesse que chacun a de soy, là où il n`est quasi rien que je sçache
sçavoir, ny que j`ose me respondre pouvoir faire. Je n`ay point mes moyens en proposition et par
estat; et n`en suis instruit qu`apres l`effect: autant doubteux de moy que de toute autre chose. D`
il advient, si je rencontre louablement en une besongne, que je le donne plus à ma fortune qu`à ma
force: d`autant que je les desseigne toutes au hazard et en crainte.” Idem, II, 17, p. 634.
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159
A escrita do autoretrato, portanto, jamais poderia servir à sua glória. Longe
de ser um tributo à grandeza de seus talentos e capacidades, seu impulso era antes
dado pela experiência de uma profunda ignorância em relação a si mesmo.
5.2.1) As produções do espírito como primeira tópica do autoretrato:
um paralelo com a Carta a Posteridade de Petrarca.
Nessa primeira parte do autoretrato Montaigne tomou diretamente o estilo
dos Ensaios como objeto, elegendo como sua primeira tópica o tema das
produções do espírito:
Pois na verdade, quanto às obras do espírito, sob qualquer forma que seja, nunca
saiu de mim algo que me satisfizesse plenamente; e a aprovação dos outros não
me recompensa. Tenho o gosto sensível e difícil, e principalmente com relação
a mim mesmo: (C) renego-me incessantemente e (A) em tudo sinto-me flutuar e
curvar-me de fraqueza.
30
Em seguida a este ponto, como veremos, ele passou à descrição de suas
condições e aptidões físicas e logo após, em último lugar, situou seu retrato moral,
no exame das inclinações da alma e de seus caracteres.
É interessante observar como esse modo de estruturação subverte a
maneira tradicional da escrita de si, conforme os padrões estabelecidos pela
autobiografia renascentista. Estes remontam à Carta à Posteridade de Petrarca,
obra em que representou uma imagem de sua vida, de seus traços físicos e de suas
inclinações pessoais, escrita originalmente como introdução de seu epistolário,
pouco antes de sua morte, em 1374. A Carta à Posteridade se afirmou como uma
autoridade exemplar para a forma da biografia e da autobiografia nos séculos XV
e XVI, do mesmo modo como a própria vida de Petrarca, como já vimos, tornou-
se modelo ideal de sabedoria para os autores que vieram depois dele. Enquanto
autobiografia individualística, isenta de um caráter religioso e espiritual, esse
texto emergiu como algo completamente novo em seu tempo, exigindo de
30
“Car à la verité, quand aux effects de l`esprit, en quelque façon que ce soit, il n`est jamais party
de moy chose qui me remplist; et l`approbation d`autruy ne me paye pas. J`ay le goust tendre et
difficile, et notamment en mon endroit: je me (C) desadvoue sans cesse; et me (A) sens par tout
flotter et fleschir de foiblesse. Je n`ay rien de mien dequoy satisfaire mon jugement.” Idem, p. 635.
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160
Petrarca que compusesse primeiramente um ethos próprio de modéstia para essa
forma de escrita, de modo que não soasse como vaidade e se fizesse de acordo
com os valores cristãos da humilita e do comtemptus mundi, do reconhecimento
da transitoriedade das coisas humanas face à perfeição divina
31
.
Com efeito, o modo como ele estruturou sua escrita foi bem diverso
daquele com o qual Montaigne estruturaria a sua bem mais tarde em Da
presunção, que, com o mesmo objetivo de isentar-se das suspeitas de glória,
iniciou seu discurso pela tópica das obras do espírito, tomando os Ensaios e assim
a própria forma e o modo de produção de seu autoretrato como indicador de sua
aversão natural ao orgulho. Procurando, por sua vez, convencer seus leitores de
sua humildade, Petrarca preferiu iniciar sua carta com o retrato moral de sua
personalidade e de seus aspectos físicos, tópicas que Montaigne deixaria para
abordar num momento posterior.
No início da Carta à Posteridade, portanto, o grande humanista
considerou a si mesmo como um homem mortal e comum sem qualquer tro
especial ou extraordinário. Dirigiu-se assim aos seus futuros leitores no início da
carta: “Eu fui um de vocês, um homem mortal, nem de uma muito nobre
descendência, nem de uma baixa origem (...)”
32
. Em seguida descreveu seu
temperamento, seus caracteres, seus aspectos físicos e hábitos, não omitindo as
falhas da juventude, dominada pela volúpia das coisas vãs do mundo, assim como
certas fraquezas morais, como suas inclinações à raiva e ao amor. Entretanto,
frisou sobretudo, seu repúdio natural ao orgulho, à pompa e à ostentação com que
31
A Carta a Posteridade pertence ao gênero clássico da biografia dos autores, desenvolvida na
Antigüidade grega e romana. Foram os filólogos de Alexandria que iniciaram o hábito de prover
suas edições dos clássicos gregos, como de Sófocles e Eurípedes, com curtas narrativas de suas
vidas e com uma lista de suas obras. Esse costume foi transmitido aos gramáticos e filólogos
romanos especialmente através de Suetônio, conhecido por suas biografias dos Césares e dos
grandes poetas romanos como Virgílio, Terêncio e Horácio. Pretendendo adicionar sua biografia
em seu epistolário como uma introdução, tal como os autores da Antigüidade, Petrarca desejou
afirmar-se como um novo Virgílio – melhor poeta – e como um novo Cícero – melhor autor em
prosa – em seu próprio tempo, porém, não tendo à mão uma biografia sua com que pudesse
identificar-se do modo como pretendia, decidiu ele mesmo fabricar uma. A Carta à Posteridade
tornou-se imensamente influente ao longo dos séculos XV e XVI, informando as biografias e
autobiografias humanistas. Entre alguns de seus exemplos, estão o Imagines et elogia virorum de
Fulvio Orsini; a outra Carta à Posteridade escrita por Helius Eobanus Hessus e a Elogia virorum
bellica virtute de Paolo Giovio. Todas estas obras obedeciam à estrutura afirmada pela Carta de
Petrarca adequando-se ao seu modelo para criar um ethos de modéstia, partindo do retrato moral
da própria personalidade. ENENKEL, K, “Modelling the humanist: Petrarch`s Letter to posterity
and Boccaccio`s biography of the poet laureate” In: Modelling the individual, p. 37.
32
PETRARCA, Carta a Posteridade, 1, In: Modelling the individual, p. 257.
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se compraziam os ambiciosos. Nunca presumira demais de si mesmo, nem
tampouco deixara que seu próprio juízo se pervertesse pela volúpia dos aplausos
alheios, cultivando sempre em seu modo de vida o princípio cristão da humilitas,
como forma mais alta de virtude: “Orgulho, eu percebia nos outros, não em mim;
e ainda que eu tenha sido tão desimportante, em meu próprio julgamento eu era
menos importante ainda.”
33
Ao estruturar sua autobiografia, desse modo, procurando reforçar o ethos
de sua modéstia, Petrarca teve razão em deixar para o final a narrativa de sua vida,
passada em algumas das mais poderosas cortes da Europa e entre alguns dos mais
célebres reis e príncipes. Assim como tamm deixou por último o tema das
produções do espírito, que versava sobre sua atividade literária e que se constituía
no grande motivo de sua fama e glória imortal, cujo ápice se deu com sua
coroação como poeta laureado em Roma, no ano de 1341. De fato, essa tópica,
referente às suas próprias obras, se apresentava no autoretrato não tanto associada
à glória de grandes conquistas e como imagem de uma virtude superior, mas, ao
contrário, como mera exemplificação de algumas inclinações naturais aludidas na
primeira parte da Carta. Entre elas, seu gosto pelos estudos das Escrituras e da
Antigüidade clássica
34
; e sua preferência pelo retiro filosófico e intelectual à
agitação das cidades
35
. Petrarca substituiu então o conceito de virtus por um outro
moralmente indiferente de voluntas (inclinações naturais e inatas; preferências
pessoais) com que habilmente identificou aos acasos da fortuna os seus sucessos
como escritor e poeta, dissociando-os do orgulho e da ambição de glória: “Até
agora minha vida tem sido determinada tanto pela sorte quanto pela minha
vontade [voluntas].”
36
Mas, conforme a definição dada por Michel Beaujour
37
em seu estudo
sobre o tema, o autoretrato de Montaigne, embora desenvolvido sob a forma da
primeira pessoa, se distinguia profundamente do gênero da autobiografia em seu
princípio e em sua forma. Seu discurso não se voltava para o passado; não
afirmava sua identidade pela narrativa de feitos cumpridos e por suas relações
com outrem. O autoretrato era essencialmente um discurso do presente,
33
Idem, 7, p. 261.
34
Idem , 9, p. 263.
35
Idem, 18, p. 269.
36
ENENKEL, K., idem, p. 44.
37
Ver nota 5 da introdução.
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162
distanciado do mundo público e dirigido a si mesmo, com o único fim de provar a
presença de si para si no instante imediato de suas enunciações. A exigência de
oferecer a cada momento o registro das novas manifestações do sujeito, impedia a
fixação e o acabamento da representação, que no caso da autobiografia, se
resolvia numa narrativa cronológica dos eventos da própria vida, com início, meio
e fim. Impulsionado pela experiência de uma ausência interior, o discurso do
autoretrato se distinguia por desenvolver-se numa ordem temática e espacial,
constituída de uma espécie de montagem de temas diversos extraídos da literatura
clássica e moderna. Constituía-se não a partir da imitação dos modelos clássicos e
do esforço pela adequação formal aos valores estabelecidos, mas da abordagem
pessoal e transformadora de Montaigne sobre os códigos morais generalizados de
sua época e de sua classe; de suas convenções culturais e sociais. Nesse sentido se
dava como uma espécie de movimento entre o discurso coletivo, suas tópicas e
temas mais comuns e o discurso em primeira pessoa que os percorria.
Ao contrário da Carta de Petrarca, portanto, cujo ethos de modéstia se
consolidava a partir da descrição de sua personalidade, em obediência aos valores
cristãos da humilita, para só depois passar ao tema de suas famosas obras
literárias, o discurso pessoal de Montaigne tinha a autoreferência como ponto de
partida, pois seu livro ao contrário dos demais, não portava saberes e lições,
mediante a descrição de atos e realizações exemplares, mas nele, era sua própria
subjetividade que buscava constituir-se. Assim, à diferença da autobiografia de
Petrarca, era o juízo sobre a forma mesma de sua escrita (que não se definia como
uma obra no sentido convencional do termo) que deveria introduzir seu
autoretrato e determinar todo o seu desenvolvimento posterior, na tematização de
seus caracteres, humores e inclinações naturais. Longe de estar a serviço da
conquista de uma glória imortal tal como os belos escritos de Petrarca, compostos
de acordo as regras da retórica, o discurso dos Ensaios tinha só a si mesmo por
fim, conferindo forma e contornos mais nítidos aos caracteres particulares de seu
autor.
Uma passagem do capítulo Do desmentir, que se segue a Da presunção,
pode nos dar uma idéia mais clara dessa igualdade que procuramos mostrar aqui
entre o homem Montaigne e seu livro. Com efeito, exteriorizando o exercício de
suas faculdades ele tinha no livro o espaço de realização da própria subjetividade,
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tomando sua forma como um espelho a fim de prover-se, através dele, de uma
consistência que faltava ao sentimento que tinha de si próprio:
Pintando-me para outrem, pintei em mim cores mais nítidas do que eram as
minhas primeiras. Não fiz meu livro mais do que meu livro me fez, livro
consubstancial a seu autor, com uma ocupação própria, parte de minha vida; não
como uma ocupação e uma finalidade terceiras e alheias, como todos os outros
livros.
38
É importante observar, esse lugar de outrem assinalado acima, era
primeiramente ocupado pelo próprio Montaigne, que procurava sanar a
impossibilidade de apreender-se de dentro esforçando-se por apreender-se de fora,
escrevendo, portanto, para seu próprio testemunho, de imediato
39
. Assim, pouco
importava a ele escandalizar os outros ao se descobrir nos Ensaios. Negava
qualquer consideração pela aprovação ou reprovação do mundo, contanto que
exteriorizasse sua forma e se fizesse conhecido tal como era, em sua forma
verdadeira. Mas se não podia provocar a admiração de seus leitores pintando de si
uma imagem enganosa e exemplar, lhes oferecia, por outro lado, a oportunidade
de um comércio vivo e franco consigo, no domínio privado da atividade do
espírito, em que não intervinham os interesses do mundo externo.
Assim, dando prosseguimento ao exame de seu autoretrato, quanto a essa
tópica das produções do espírito, portanto, não foi difícil a Montaigne afastar logo
de si qualquer suspeita de orgulho, marcando a imensa distância que havia entre
seu estilo, devido plus à ma fortune qu`à ma force” das ricas produções da
Antigüidade, cuja beleza se sentia absolutamente incapaz de imitar. Conforme
declarou, desdenhando de suas capacidades criativas: “Tenho sempre uma idéia na
alma (C) e uma certa imagem confusa, (A) que me apresenta (C) como em sonho
38
“Me peignant pour autruy, je me suis peint en moy de couleurs plus nettes que n`estoyent les
miennes premieres. Je n`ay pas plus faict mon livre que mon livre m`a faict, livre consubstantiel à
son autheur, d`une occupation propre, membre de ma vie; non d`une occupation et fin tierce et
estrangere comme toutes les autres livres.” MONTAIGNE, II, 18, p. 665.
39
“A operação do livro não expõe ou reflete os traços da constituição prévia de um sujeito mas,
sendo a condição desta constituição, ela própria os prtoduz.. Assim, ao operar o movimento de
autoconstituição de seu autor o livro ocupa, então, ele mesmo, o lugar de ‘condição’ e ‘suporte’
pelo qual se define e assinala a existência de um ‘sujeito’; realiza ele mesmo a figura do sujeito.”
CARDOSO, S., op. cit., p. 63.
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(A) uma forma melhor do que a que pus em prática, mas não consigo captá-la e
explorá-la. E mesmo essa idéia é apenas de nível mediano.”
40
Evitando ao máximo a afetação e os adornos retóricos, o autor dos Ensaios
tinha um objetivo preciso. Procurava fazer com que sua matéria se destacasse por
suas próprias qualidades e por sua autenticidade, sem depender da casca externa
das aparências que tinha a função de torná-la mais bela e sublime para deslumbrar
os sentidos de seus leitores: “Tudo é grosseiro em mim; há falta de elegância e de
beleza. Não sei valorizar as coisas, em sua maioria, mais do que valem; minha
maneira de ser em nada ajuda a matéria. Eis por que preciso dela forte, que tenha
muita consistência e que brilhe por si mesma.”
41
Com efeito, em sua condição de escritor e homem de letras, se apresentava
como o oposto do homem de eloqüência, ideal persseguido com tanta avidez pelos
autores de seu tempo. Conforme enaltecidos no De Oratore, de Cícero, o mérito e
a sabedoria própria do orador estavam em sua habilidade de regrar a elocução e
saber utilizar-se de todos os seus recursos para bem adaptá-la às circunstâncias
particulares e à espécie de ouvintes a que se destinava: “(...) ele merece ser
louvado por esse gênero de mérito que eu denomino de justeza e conveniência.”
42
.
Montaigne se dizia desprovido dessa sabedoria e da abundância de recursos que
implicava a posse desses méritos próprios ao decoro ciceroniano, da justeza e da
conveniência. Só sabia falar com boa fé, “qu`en bon escient”, ou seja, escolhendo
suas palavras não para agradar a outrem e adequá-las à utilidade e ao gosto dos
homens, mas para expressar a realidade dos sentimentos da alma:
Não sei nem agradar nem alegrar nem excitar: a melhor história do mundo seca
e se embaça em minhas mãos. Só sei falar com boa fé e sou totalmente
desprovido dessa facilidade, que vejo em vários companheiros meus, de entreter
o primeiro que chegar e manter em suspenso toda uma tropa, ou distrair um
príncipe sem cansar-lhe os ouvidos, com todo tipo de assuntos, nunca lhes
faltando matéria, devido à graça que possuem de saber empregar a primeira que
surge e adaptá-la ao humor e ao alcance daqueles com quem estão tratando.
43
40
“J`ay tousjours une idée en l`ame (C) et certaine image trouble (A) qui me presente (C) comme
en songe (A) une meilleure forme que celle que j`ay mis en besongne, mais ne la puis saisir et
exploiter. Et cette idée mesme n`est que du moyen estage.” Idem, II, 17, p. 637.
41
“Tout est grossier chez moy; il y a faute de gentillesse et de beauté. Je ne sçay faire valoir les
choses pour le plus que ce qu`elles valent, ma façon n`ayde rien à la matiere. Voilà pourquoy il me
faut forte, qui aye beaucoup de prise et qui luise d`elle mesme.” Idem, p. 637.
42
CÍCERO, De Oratore, III, 13, 53.
43
“Je ne sçay ny plaire, ny rejouyr, ny chatouiller: le meilleur conte du monde se seche entre mes
mains et se ternit. Je ne sçay parler qu`en bon escient, et suis du tout denué de cette facilité, que je
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Assumindo seu provincianismo ele identificou seu estilo ao dialeto gascão
e assim o qualificou, destacando a aversão de sua linguagem a pretender extrair
seu valor dos artifícios de um estilo belo: “Bem acima de nós, perto das
montanhas, há um dialeto gascão que acho singularmente belo, seco, breve,
expressivo, e na verdade uma linguagem máscula e militar mais que qualquer
outra que conheço (...)”
44
Ao eleger esses atributos como marca de beleza “beau, sec, bref,
signifiant, Montaigne enfatizou seu gosto pelas fórmulas e sentenças breves e
concisas, que implicavam uma rica densidade de significado. Colheu sentenças
dessa natureza entre os mais diversos autores da Antigüidade, como Sêneca,
Cícero e Plutarco, com vistas a conferir maior lucidez, expressividade e eficácia à
sua argumentação, buscando a forma mais nítida de seu pensamento nas fórmulas
alheias
45
. Através delas pretendia sobretudo alcançar seus leitores pela força de
sua matéria e não adular e mover seus sentidos pela volúpia de uma forma
sublime, calculada segundo as regras da arte. No âmbito de seus desígnios
próprios, os artifícios da retórica, destinados a valorizar as coisas, eram tidos,
paradoxalmente, como elementos que restringiam a comunicação, sendo a
concisão a qualidade primordial de uma linguagem natural, oposta aos longos
períodos oratórios. Mas as palavras em seu estilo, não eram mais que índices
aproximativos das coisas – res – isto é, da amplitude de suas idéias e
pensamentos, que requeriam de seu leitor uma leitura que não parasse nos
enunciados mas que desse a pensar, enriquecendo o texto de significados
imprevistos
46
.
voy en plusieurs de mes compagnons, d`entretenir les premiers venus et tenir en haleine toute une
trouppe, ou amuser, sans se lasser l`oreille d`un prince de toute sorte de propos, la matiere ne leur
faillant jamais, pour cette grace qu`ils ont de sçavoir employer la premiere venue, et l`accommoder
à l`humeur et portée de ceux à qui ils ont affaire.” MONTAIGNE, II, 17, p. 637.
44
“Il y a bien au dessus de nous que je trouve singulierment beau, sec, bref, signifiant, et à la
verité un langage masle et militaire plus qu`autre que j`entende (...)” Idem, p. 639.
45
GARAVINI, F., Itinneraires à Montaigne, p. 32.
46
TOURNON, A, op. cit., p. 189.
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5.2.2) A descrição das condições e aptidões do corpo.
Após discorrer desse modo sobre seu discurso e a forma de seu estilo,
Montaigne passou ao exame de suas condições e aptidões corporais atentando em
primeiro lugar para a importância da beleza na conquista da benevolência pública
e para sua condição de motivo mais natural e instintivo de orgulho nas relações
entre os homens: “A beleza é moeda de grande prestígio no comércio com os
homens; é o primeiro meio de conciliação de uns com os outros, e não há homem
tão bárbaro e tão rabugento que não se sinta de certa forma tocado por sua
doçura.”
47
Entretanto, frisava, não pretendia descrever sua aparência física para
vangloriar-se mas sim para cumprir plenamente seu intento de pintar uma imagem
verdadeira de si próprio, que jamais estaria suficientemente completa apenas com
o registro das “fantasies” da alma:
O corpo tem uma grande parte em nosso ser, ocupa nele uma posição
importante; assim, sua estrutura e compleição são de muito justa consideração.
Os que querem desunir nossas duas peças principais e afastá-las uma da outra
estão errados. Ao contrário é preciso reacoplá-las e reuni-las.
48
A consideração das características corporais tinha papel de destaque no
autoretrato de Montaigne ao longo dos Ensaios
49
, delineado sob a primazia dessa
perspectiva que priorizava o entendimento da natureza humana como uma junção
indissociável entre alma e corpo. Nesse sentido, entre as várias considerações
acerca da essência da natureza humana, elaboradas na Antigüidade, ele adotava a
escola dos peripatéticos de preferência aos estóicos, por exemplo, que concediam
prevalência absoluta à alma em relação ao corpo:(C) A seita peripatética, de
47
“La beauté est une piece de grande recommendation au commerce des hommes; c`est le premier
moyen de conciliation des uns aux autres, et n`est homme si barbare et si rechingé qui ne se sente
aucunement frapé de sa douceur.” MONTAIGNE, II, 17, p. 639.
48
“Le corps a une grand` part à nostre estre, il y a tient un grand rang; ainsi sa structure et
composition sont de bien juste consideration. Ceux qui veulent despendre nos deux pieces
principales et les sequestrer l`une de l`autre, ils ont tort. Au rebours, il les faut r`accoupler et
rejoindre.” Idem, II, 17, p. 639.
49
Sobre esse tema ver especialmente o capítulo 37 do segundo volume dos Ensaios, Da
semelhança dos pais com os filhos.
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todas as seitas a mais civilizada, atribui à sabedoria o zelo em buscar e
proporcionar em comum o bem dessas duas partes associadas (...)”
50
Com efeito, ao exame das condições corporais se ligava estreitamente o
tema da individualidade, dizendo respeito aos humores e às idiossincrasias
próprias a cada vida particular em suas características inalienáveis. Se no início de
Da presunção Montaigne definiu os sentimentos da alma como condição
necessária do jugement pelo qual pretendia conhecer-se - “quant aux bransles de
l`ame, je veux icy confesser ce que j`en sens.” – isso não excluía a experiência
íntima e direta com sua dimensão física. De resto, definindo o domínio
espontâneo do sentir e não a imposição de uma razão discursiva como base de seu
saber sobre si, ele também conferia maior amplitude a esse domínio, extrapolando
os sentimentos da alma, para a abordagem das sensações do corpo entendido
como lugar de experimentação e conhecimento da própria identidade.
51
Sua exibição, entretanto, era despudorada, pois se a beleza era moeda de
prestígio no comércio com os homens, sua aparência, ao contrário, era imprória
para conquistar sua benevolência e franquear-lhe o caminho para a obtenção de
altos cargos na vida pública: “Ora, minha altura é um pouco abaixo da média.
Esse defeito não apenas é feio como incômodo, particularmente para os que têm
postos de comando e cargos, pois lhes falta a autoridade proporcionada por uma
bela presença e majestade.”
52
Desprovido de um belo porte físico - que era beleza
própria dos grandes homens – Montaigne comparou-se ao exemplo de Filopêmen,
que ao chegar com seu séquito a uma residência, não foi reconhecido como o
comandante excepcional que era, mas, em virtude de sua baixa estatura, foi
confundido com um criado
53
. Tal a importância da presença da beleza para
distingüir os guardiães da república, como já declarava Platão.
50
“(C) La secte Peripatetique, de toutes les sectes la plus civilisée, attribue à la sagesse ce seul
soin de pourvoir et procurer en commun le bien de ces deux parties associés (...)” MONTAIGNE,
II, 17, p. 639.
51
Sobre isso ver a análise de Starobinski do capítulo Da experiência, o último do terceiro volume
dos Ensaios. STAROBINSKI, J., op. cit., p. 153.
52
“Or je suis d`une taille un peu au dessoubs de la moyenne. Ce defaut n`a pas seulement de la
laideur, mais encore de l`incommodité, à ceux mesmement qui ont des commandements et des
charges: car l`authorité que donne une belle presence et majesté corporelle en est à dire.”
MONTAIGNE, II, 17, p. 640.
53
“É muito irritante dirigirem-se a vós no meio de vossa gente para perguntar-vos: ‘Onde está
vosso senhor?” e receberdes apenas o resto da barretada que fazem a vosso barbeiro ou a vosso
secretário.” Idem.
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Mais adiante, recorreu à linguagem da medicina clássica em sua doutrina
dos “humores”
54
reforçando com isso, a importância que concedia às
características físicas na determinação da imagem de seu caráter particular
55
.
Montaigne debruçou-se assim sobre a descrição de seus traços físiscos e do
próprio temperamento: “De resto, meu corpo é robusto e atarracado; o rosto, não
gordo mas cheio; o temperamento, (B) entre o jovial e o melancólico (A)
sanguíneo e ardente, ‘Por isso tenho as pernas eriçadas de pelos’ (...).”
56
Ao fim dessa descrição, passou imediatamente a falar de suas aptidões nos
exercícios e jogos do corpo, declarando-se desprovido da vivacidade e da boa
disposição requeridas em geral de um nobre. Conforme dizia, não pudera igualar-
se ao seu pai, que superara a todos em qualquer exercício físico, dando mostras de
sua habilidade e destreza, que o haviam tornado digno da estima pública como
grande fidalgo:
Na dança, no jogo de péla, na luta, só pude adquirir uma eficiência muito
pequena e banal; no nado, na esgrima, nas acrobacias eqüestres e no salto,
absolutamente nenhuma. Tenho as mãos tão desajeitadas que não consigo
escrever sequer para mim, de forma que prefiro refazer o que garatujo a dar-me
ao trabalho de decifrá-lo; (...) Não sei fechar bem uma carta e nunca soube
apontar uma pena, nem trinchar passavelmente a carne à mesa, (C) nem arrear
um cavalo, nem carregar uma ave no punho e soltá-la, nem falar aos cães, às
aves, aos cavalos.
57
54
Segundo a teoria médica de Galeno, todo ser humano compunha-se de uma mistura específica e
proporcionada de quatro fluidos que definiam seu temperamentum singular: eram estes definidos
como bile vermelha, fleumática, amarela e negra, cujo excesso determinava respectivamente os
caracteres, sanguíneo, fleumático, colérico e melancólico.
55
Esse aspecto da pintura de si nos Ensaios, foi ao longo dos séculos, o que mais surpreendeu seus
leitores, suscitando ora sua irritação, ora seu entretenimento. A atenção aos aspectos físicos como
determinantes na afirmação do próprio caráter era algo condenado pela sociedade cristã da época
da Idade Média e desses primeiros tempos da modernidade. Os grandes Padres da Igreja,
Ambrósio, Jerônimo e Agostinho se empenharam no reforço à condenação cristã do prazer
corporal no interior do pensamento cristão. As sensações do corpo segundo essa tradição,
deveriam ser controladas e reprimidas pelos indivíduos a fim de que pudessem alcançar a salvação
divina na vida eterna. VAN GALEN, Anne, C. E., “Body and self image in the autobiography of
Gerolamo Cardano” In: Modelling Individual, p. 134.
56
“J`ay demeurant la taille forte et ramassé; le visage, non pas gras, mais plein; la complexion, (B)
entre le jovial et le melancolique, moiennement (A) sanguine et chaude, ‘Aussi ai-je les jambes et
la poitrine herissés de poils’ (...).” Idem, p. 641.
57
“A la danse, à la paume, à la suite, je n`y ay peu acquerir qu`une fort legere et vulgaire
suffisance; à nager, à escrimer, à voltiger et à sauter, nulle du tout. Les mains, je les ay si gourdes
que je ne sçay pas escrire seulement pour moy: de façon que, ce que j`ay barbouillé, j`ayme mieux
le refaire que de me donner la peine de le démesler; (C) et ne ly guere mieux. Je me sens poiser
aux escoutans. Autrement, bon clerc. (A) Je ne sçay pas clorre à droit une lettre, ny ne sçeuz
jamais tailler plume, ny trancher à table, qui vaille. (C) ny equipper un cheval de son harnois, ny
porter à poinct un oiseau et le lascher, ny parler aux chiens, aux aiseaux, aux chevaux.” Idem, p.
642.
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De fato, nessa confissão de suas insuficiências, Montaigne acentou sua
inteira inadequação ao comportamento e às capacidades que deveriam distinguir
um homem de sua posição, declarando a impossibilidade de fazer-se merecedor da
glória e dos aplausos do mundo pela nobreza de seu nome.
É marcante o modo como essa sua autodescrição contradizia o modelo do
perfeito cortesão conforme constituído na famosa obra de Baltazar Castiglione,
que fornecera o padrão ideal de comportamento da nobreza ilustrada por toda a
Europa nos séculos XVI e XVII. Seus méritos deviam-se sobretudo à sua
universalidade expressa em suas diversas aptidões; em seu bom desempenho tanto
nas funções guerreiras, como em todos os jogos e exercícios do corpo. Segundo
definia Dom Gaspar Pallavicino, um dos interlocutores do diálogo, o perfeito
cortesão deveria possuir um caráter polimorfo, não restrito a uma especialidade,
mas capaz de adaptar-se às peculiaridades dos costumes da nobreza de cada
nação. Afirmava-se assim, como uma imagem exemplar do homem a ser seguida,
em plena posse de suas potencialidades, conformada ao ideal humanista da
dignidade humana: “E, como se lê a propósito de Alcebíades, que superou todas
as nações junto às quais viveu, e cada uma naquilo que lhe era mais específico,
assim esse nosso deve superar os demais e cada um naquilo que mais o ocupa.”
58
A conduta de Montaigne, indigna até mesmo dos afazeres mais simples da
vida de um nobre - “Je ne sçay pas clorre à droit une lettre, ny ne sçeuz jamais
tailler plume, ny trancher à table, qui vaille.”- se opunha mais profundamente a
esse ideal de vida, sobretudo no modo como a valorização de suas capacidades e a
constituição de seu comportamento se baseavam na aprovação externa do mundo.
Com efeito, após louvar as habilidades do cortesão nos mais diversos jogos e
exercícios do corpo, os nobres do diálogo de Castiglione deram mais evidência a
esse princípio, recomendando a graça, o equilíbrio e o engenho nos gestos e
práticas da vida cotidiana, a fim de torná-lo mais digno de um favor universal.
Com efeito, se somente se exibisse ao juízo público para dar provas de sua
destreza o cortesão poderia atrair a inveja dos homens.
É bastante sugestivo o paralelo entre o autoretrato de Montaigne em Da
presunção em seu autoexílio, no espaço privado da biblioteca de seu castelo, e a
58
CASTIGLIONE, B., op. cit., I, 21, p. 39.
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descrição das capacidades do perfeito cortesão no livro de Castiglione, enquanto
homem do mundo, inserido no ambiente de corte e buscando a aprovação de seus
iguais:
Existem ainda muitos outros torneios que, embora não dependam diretamente
das armas, com elas mantêm muita afinidade e exigem muita força viril; dentre
estes parece-me que a caça é um dos principais, pois tem uma certa semelhança
com a guerra: é um grande prazer de grandes senhores e conveniente aos
homens de corte, e se compreende porque também entre os antigos era costume
assaz difundido. Conveniente é ainda saber nadar, saltar, correr, jogar pedras,
pois além da utilidade que disso se pode extrair na guerra, muitas vezes é
preciso exercitar-se em tais coisas; com que se adquire boa estima,
especialmente na multidão, com a qual é necessário se estar de acordo. (...)
Desejo porém que o cortesão se dedique algumas vezes a mais repousantes e
plácidos exercícios e, para evitar a inveja e para entreter-se prazerosamente com
alguém, faça tudo aquilo que os outros fazem, não se distanciando nunca dos
atos louváveis e governando-se com aquele bom discernimento que não o deixe
incorrer em alguma tolice; mas ria, brinque, graceje, dance, de maneira que
assim, sempre demonstre ser engenhoso e discreto, e em tudo que fizer ou disser
seja gracioso.
59
5.2.3) As qualidades do espírito: o encontro da autodepreciação com
o autoelogio.
Foi a essa altura do ensaio que Montaigne começou a descrever as
qualidades e caracteres da alma, efetuando a transição entre os dois temas a partir
da ênfase na correspondência simétrica das coisas da alma com as coisas do
corpo:
Minhas condições corporais, em suma, harmonizam-se muito bem com as da
alma. Não há nenhuma jovialidade; há apenas um vigor pleno e firme. Suporto
bem o trabalho; mas suporto-o se eu mesmo me decidir a ele e enquanto meu
desejo me conduzir ‘o prazer suavizando a rudeza do trabalho’
60
Como nos diz acima, era essa mesma fraqueza e indisposição ao trabalho
que condicionavam, por outro lado, seu natural apreço pela própria autonomia e
59
Idem, I, 22, p. 39.
60
“Mes conditions corporelles sont en somme tresbien accordantes à celles de l`ame. Il n`y a rien
d`allegre: il y a seulement une vigueur pleine et ferme. Je dure bien à la peine; mais j`y dure, si je
m`y porte moy-mesme, et autant que mon desir m`y conduit, ‘le plaisir trompant l`austerité du
labeur’” Idem, II, 17, p. 642.
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sua obstinação em conservá-la e conduzir-se segundo seu bel prazer. Conquanto
desdenhasse da fraqueza de suas condições, reconhecia entretanto o valor da
independência e liberdade que elas lhe proporcionavam, já que o tornavam
incapaz de comprometer-se em grandes empresas e de sacrificar sua própria
tranqüilidade, subordinando-se às exigências externas do mundo.
Na passagem seguinte, ele tornou mais clara e direta essa identificação.
Juntamente com a que citamos mais acima, ela marcava a transição entre a
descrição das coisas do corpo e as da alma
61
, evidenciando as ambigüidades
inerentes a essa maneira de confessar as próprias fraquezas e inépcias, ou seja,
como modo de autoafirmar-se de maneira radical em sua liberdade:
Tenho uma alma toda senhora de si, acostumada a conduzir-se à sua moda. Não
havendo tido até agora nem chefe nem senhor imposto, avancei o quanto quis e
no passo que me aprouve. Isso me amoleceu e me tornou inútil para o serviço a
outrem, e me fez bom só para mim mesmo.
62
Dono de uma compleição delicada, incapaz de sujeitar-se; produto de uma
infância conduzida de maneira excessivamente livre, segundo os termos de sua
confissão, Montaigne se reconhecia desprovido também da firmeza necessária
para impor-se contra as ocorrências adversas da fortuna. Esta, com efeito, era uma
das qualidades mais essenciais para a conquista da glória, ou seja, a disposição de
intervir nos rumos dos negócios do mundo e de esforçar-se para conduzi-los
segundo seus interesses. Entre suas inépcias, assim, ele declarou-se ainda como
inteiramente incapaz de deliberação, em virtude de sua índole lerda e preguiçosa:
O deliberar, mesmo nas coisas mais ligeiras, importuna-me; e sinto meu espírito
mais entravado para suportar o abalo e os assaltos diversos da dúvida e da
análise do que para firmar-se e decidir por qualquer partido que seja, depois que
a sorte está lançada. Poucas paixões têm perturbado tanto meu sono; mas a
menor das deliberações o perturba.
63
61
STAROBINSKI, J., op. cit., p. 154.
62
“J`ay une ame toute sienne, accoustumée a se conduire à sa mode. N`ayant eu jusques à
cett`heure ny commandant ny maistre forcé, j`ay marché aussi avant et le pas qu`il m`a pleu. Cela
m`a amolli et rendu inutile au service d`autruy, et ne m`a faict bon qu`à moy.” MONTAIGNE, II,
17, p. 643.
63
“Le deliberer, voire és choses plus legieres, m`importune; et sens mon esprit plus empesché à
souffrir le branle et les secousses diverses du doubte et de la consultation qu`à se rassoir et
resoudre à quelque party que ce soit, apres que la chance est livrée. Peu de passions m`ont troublé
le sommeil; mais, des deliberations, la moindre me le trouble.” Idem, p. 644.
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Essa decisão de seguir suas próprias inclinações e de não ser bom senão
para si mesmo - “bon qu`à moy” – comprovava o quanto sua natureza era alheia à
ambição. A presunção, do mesmo modo, não era própria senão aos homens que,
ao contrário de Montaigne, engajavam-se com avidez nos negócios do mundo,
empregando todas as suas forças e suportando as maiores adversidades em busca
do aumento de sua fortuna e da elevação de seu renome:
Quanto à ambição, que é vizinha da presunção, ou antes filha, a fortuna, para
favorecer-me, teve que vir buscar-me pela mão. Pois penar por uma esperança
incerta e sujeitar-me a todas as dificuldades que acompanham os que procuram
elevar-se em renome no início de sua jornada é algo que eu não conseguiria
fazer (...)
64
A esse ponto, passando a focalizar a presunção de seus contemporâneos, o
discurso de Montaigne sofreu uma significativa mudança de tom. O autoretrato
que até então sublinhara suas fraquezas se transformava em reconhecimento das
próprias qualidades. Pois, comparadas às ambições desmedidas e aos vícios
generalizados entre os costumes de seu meio, suas inépcias tornavam-se raros
atributos. Passavam a figurar, curiosamente, não mais como defeitos, mas como
virtudes; sinais da retidão de sua conduta, cultivada sob o diálogo com a sabedoria
dos antigos, que levava Montaigne a desfazer-se dessa paixão da glória, que
assediava a maior parte dos espíritos: “Encontrei o caminho mais curto e mais
fácil, com o conselho de meus bons amigos do tempo antigo, para livrar-me desse
desejo e manter-me quieto (...)”
65
Como bem atenta Geralde Nakam
66
, dessa perspectiva, enumerando suas
insuficiências em Da presunção, ele melhor afirmava a raridade de suas
qualidades, ou seja, de sua moderação, de seu bom senso, de sua liberdade e
franqueza, num movimento de verdadeiro triunfo do eu em suas características
individuais. Assim, sob uma ironia marcadamente socrática, Montaigne fez do
reconhecimento de suas insuficiências uma afirmação do próprio valor,
64
“Quant à l`ambition, qui est voisine de la presumption, ou fille plustost, il eut fallu, pour
m`advancer, que la fortune me fut venu querir par le poing. Car, de me mettre en peine pour
un`esperance incertaine et me soubmettre à toutes les difficultez qui accompaignent ceux qui
cerchent à se pousser en credit sur le commencement de leur progrez, je ne l`eusse sçeu faire (...)”
Idem, p. 645.
65
“J`ay bien trouvé le chemin plus court et plus aisé, avec le conseil de mes bons amis du temps
passé, de me défaire de ce desir et de me tenir coy (...)” Idem, p. 646.
66
NAKAM, G., op. cit., p. 184.
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desprezando o tempo de falsas virtudes e de falsas honras no qual escrevia seus
Ensaios. Encontrava sua própria verdade destacando o imenso contraste entre a
simplicidade de sua conduta e a presunção dos nobres que amavam
excessivamente suas próprias opiniões a ponto de envolver-se nas guerras civis
que assolavam a França e de promover a desordem:
Mesmo as qualidades não censuráveis que existem em mim, achava-as inúteis
nesta época. A tolerância de meus costumes seria chamada de covardia e
fraqueza; a fé e a consciência seriam consideradas pedantes e supersticiosas; a
franqueza e liberdade, importuna, leviana e temerária. Para alguma coisa serve a
desventura. É bom nascer num século muito depravado, pois sois cosiderado
virtuoso a baixo custo. Em nossos dias, quem não for parricida e sacrílego é
homem de bem e honrado (...)
67
Entretanto, esse contraste com os costumes pervertidos de seu tempo
estava longe de esgotar o autoretrato de Da presunção. Longe disso, ele só tomava
sua justa medida no movimento do olhar que se lançava simultaneamente para o
presente e para o passado, tomando como espelho a distância infinita que havia
entre a grandeza dos antigos e a mesquinhez dos contemporâneos:
De acordo com essas comparações, poderia achar-me (C) grande e raro, assim
como me acho pigmeu e comum na comparação com alguns séculos passados,
nos quais era habitual, se outras qualidades maiores não ocorriam
simultaneamente, ver um homem (A) moderado em suas vinganças, ameno no
ressentimento pelas ofensas, escrupuloso no cumprimento de sua palavra, nem
dúplice, nem maleável, nem ajustando sua fé à vontade de outrem e às
ocasiões.
68
Essa passagem, situada, não por acaso, exatamente ao centro do capítulo,
definia o princípio que lhe dava forma como um todo, do deslocamento e do
balanço constante entre os tempos; princípio que movia e determinava os
percursos diversos do autorerato em Da presunção. História e autoretrato, dessa
perspectiva, se aprofundavam e se autentificavam um ao outro por seus contrastes
67
“Les qualitez mesmes qui sont en moy non reprochables, je les trouvois inutiles en ce siecle. La
facilite de mes meurs, ont l`eut nommée lácheté et foiblesse; la foy et la conscience s`y feussent
trouvées scrupuleuses et supersticieuses; la franchise et la liberté, importune et inconsiderée et
temeraire. A quelque sert le mal`heur. Il fait bon naistre en un siecle fort depravé: car, par
comparaison d`autruy, vous estes estimé vertueux à bon marche. Qui n`est parricide en nous jours,
et sacrilege, il est homme de bien et d`honneur (…)” MONTAIGNE, II, 17, p. 646.
68
“Par cette proportion, je me fusse trouvé (C) grand et rare, comme je me trouve pygmée at
populaire à la proportion d`aucuns siecles passez, ausquels il estoit vulgaire, si d`autres plus fortes
qualitez n`y concurroient, de voir un homme (A) moderé en ses vegeances, mol au ressentiment
des offences, religieux en l`observance de sa parole, ny double, ny soupple, ny accommodant sa
foy à la volonté d`autruy et aux occasions.” Idem, p. 647.
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no ensaio
69
. Em seu interior se elaborava e erguia-se a autorepresentação de um
homem comum, cuja imaginação se encontrava repleta do passado, fortalecendo
suas qualidades naturais sob o contato com os espíritos verdadeiramente
grandiosos da Antigüidade, mas que, ao mesmo tempo, se apresentava como uma
espécie de exilado e incompreendido em seu próprio tempo, dotado de qualidades
raras e superiores.
Assim, mais adiante tomou como modelo pictural para ilustrar e legitimar
a empresa dos Ensaios, de um “quadro votivo” dos verdadeiros sentimentos da
alma, o retrato que René d`Anjou, rei da Sicília fez de si mesmo, em sua própria
homenagem e que tivera a oportunidade de ver acompanhando a corte numa
viagem a Lorraine: “Porque não será lícito que da mesma forma cada qual se
retrate com a pena, como ele se retratava com o lápis?”
70
Destacando sua boa fé contra a covardia e a baixeza de ânimo dos que não
ousavam mostrar-se em sua verdade, e que em sua conduta, ajustavam sempre sua
palavra à vontade de outrem e à diversidade das ocasiões, ele não hesitou em
identificar sua franqueza à virtude da magnanimidade, conforme definida por
Aristóteles. Era justamente o descaso pelas opiniões externas e a autonomia em
relação às ambições do mundo que determinavam a retidão do caráter superior do
magnânimo aristotélico:
É uma atitude covarde e servil disfarçar-se e se esconder sob uma máscara e não
ousar mostrar-se tal como se é. (...) Um coração generoso não deve contradizer
seus pensamentos; quer deixar-se ver até o íntimo. (C) Ou tudo nele é bom ou
ao menos tudo nele é humano. Aristóteles considera um dever de
magnanimidade odiar e amar às claras, falar com total franqueza, e, em nome da
verdade, não se importar com a aprovação ou reprovação de outrem.
71
Associando sua franqueza à nobreza de um “coeur genereux”, Montaigne
acentuou seu impudor em exibir-se, já que a constituição de sua imagem nas
páginas do livro não implicava em colocar dotes extraordinários a serviço de seus
pares. Como já vimos nas Familiares de Petrarca, o “generosus animus”, segundo
69
NAKAM, G., op. cit., p. 191.
70
“Pourquoy n`est-il loisible de mesme à chacun de se peindre de la plume, comme il se peignoit
d`un creon?” MONTAIGNE, II, 17, p. 653.
71
“C`est un` humeur couarde et servile de s`aller desguiser et cacher sous un masque, et de n`oser
se faire veoir tel qu`on est. (...) Un coeur genereux ne doit desmentir ses pensées; il se veut faire
voir jusques au dedans. (C) Ou tout y est bon, ou aumoins tout y est humein. Aristote estime office
de magnanimité hayr et aimer à descouvert, juger, parler avec tout franchise, et, au prix de la
verité, ne faire cas de l`approbation ou reprobbation d`autruy.” Idem, p. 647.
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a tradição humanista de culto à glória, era aquele que, incapaz de desfazer-se de
suas ambições de glória, esforçava-se para exercer suas virtudes superiores para o
bem público e tornar reconhecida assim sua grandeza. Sua autonomia face aos
interesses do mundo, portanto, era atestada pela natureza superior de suas
aspirações e não pela simples renúncia em comprometer-se com a utilidade
comum. Sua superioridade, na verdade, se fazia reconhecida pelo desejo de
imortalizar-se pelo cumprimento dos mais perigosos feitos e das mais grandiosas
criações, que os homens comuns jamais poderiam almejar.
O autor dos Ensaios estava muito atento aos movimentos da alma para
ignorar que essa sua identificação com um “coeur genereux o tornava um
presunçoso, pois implicava em conceber-se mais perfeito do que realmente era.
Mas atribuiu essa identificação ao movimento incerto de seu jugement em seu
desígnio de mostrar-se apenas tal como “se sentia ser”, nos mais variados
contextos. Por isso, assumindo a posição de primeiro leitor de suas enunciações,
tomou recuo em relação a elas, a fim de melhor avaliar e conhecer seus próprios
traços e caracteres:
(B) Admito que pode estar misturada uma ponta de altivez e obstinação em
postar-me assim inteiro e descoberto sem considerar os outros; (...) Pode ser
também que me deixe levar por minha natureza na falta de arte. Apresentando
aos grandes essa mesma liberdade de linguagem e de atitude que trago de minha
casa, bem sei o quanto ela se inclina para o excesso e à incivilidade.
72
Reforçou, entretanto, a legitimidade dessa segunda alternativa “Il se peut
estre aussi que je me laisse aller apres ma nature”, insistindo que não era uma
opinião excessivamente boa que fazia de si que o levava à ousadia de exibir-se em
sua maneira simples e privada, mas sim, sua total impossibilidade de apresentar-se
de outro modo, em uma forma mais estudada e mais bela.
A partir de então se estendeu longamente sobre a ausência de habilidade e
de arte que marcava seu temperamento: era destituído daquela que era uma das
partes fundamentais da retórica, a memória, que permitia aos grandes oradores
reter no espírito as mais belas palavras e expressões para a constituição de um
72
“(B) J`advoue qu`il se peut mesler quelque pointe de fierté et d`opiniastreté à se tenir ainsin
entier et descouvert sans consideration d`autruy; (...) Il se peut estre aussi que je me laisse aller
apres ma nature, à faute d`art. Presentant aux grands cette mesme licence de langue et de
contenance que j`apporte de ma maison, je sens combien elle decline vers l`indiscretion et
incivilité.” Idem, p. 649.
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estilo decoroso. Recorrendo ao tesouro da memória eles adaptavam seu discurso
às mais diversas circunstâncias impostas pelos negócios do mundo
73
.
Confessando-se desprovido dela Montaigne afirmava: “Por isso me arrisco à
sinceridade e a sempre dizer o que penso, por temperamento e por deliberação,
deixando que a fortuna traga o resultado disso.”
74
Com essa confissão de falta de memória o exame de seus caracteres e de
suas inclinações internas se assimilava à tópica dos feitos do espírito com que
iniciou seu autoretrato, depreciando a falta de arte e de beleza de seus Ensaios:
“Tout est grossier chez moy; il y a faute de gentillesse et de beauté”. Da
perspectiva dos vícios dos autores de seu tempo, porém, esse defeito também não
deixava de ser uma virtude. Nesse caso também a confissão de suas falhas podia
transmudar-se em elogio de seus atributos, pois a ausência de memória ressaltava
a sinceridade das palavras de Montaigne face à falsidade e à astúcia dos
maliciosos. Estes, de fato, jamais ousavam falar livre e abertamente, segundo sua
própria razão, mas sempre inventavam suas verdades, as retendo na memória para
obter a benevolência alheia e persseguir suas ambições. Ao contrário destes, que
sabiam empregar sempre as palavras mais adequadas para agradar, Montaigne,
como já vimos, só sabia falar de boa fé – “à bon escient.”
Assumindo, assim, que a memória artificial não estava entre seus
predicados, ele afirmava também o seu desprezo pelas marcas exteriores de
erudição tão valorizadas en outras obras. Com isso, portanto não pretendia
somente depreciar suas insuficiências e afirmar-se isento de presunção, mas
também, e sobretudo, ressaltar os procedimentos diferenciados de seu discurso.
Marcava aí sua diferença em relação às obras comuns, que pretendiam afirmar seu
valor apropriando-se do que pertencia a outrem: das belas formas e expressões dos
73
Na célebre obra Retórica a Herênio que é o primeiro grande manual de retórica latina que
chegou até nós, a memória é definida como tesouro da inventio e guardiã de todas as partes da
retórica. Se afirma portanto como arte, à diferença da memória natural, situada em nossa mente e
nascida junto com o pensamento. A memória artificial da retórica se consolida com certa indução e
método preceptivo colocando à disposição do orador um imenso número de recursos para a
composição de um estilo belo e conveninente às mais diversas circunstâncias: “Assim como quem
conhece as letras do alfabeto é capaz de escrever o que lhe é ditado e ler em voz alta o que
escreveu, quem tiver aprendido a mnemotécnica será capaz de colocar nos lugares o que ouviu e,
recorrendo a eles, pronunciar de memória. Os lugares assemelham-se muito à tábuas de cera ou
rolos de papiro; as imagens, a letras; a disposição e colocação das imagens, à escrita; a
pronunciação, à leitura.” Retórica a Herênio, III, 28-31.
74
“Parquoy je m`abandone à la nayfveté et à tousjours dire ce que je pense, et par complexion, et
par discours, laissant à la fortune d`en conduire l`evenement.” MONTAIGNE, II, 17, p. 649.
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antigos; das referências, fontes e citações que constituíam a essência de um saber
livresco conservado na memória. A forma dos Ensaios, com efeito, se fazia
apenas do que pertencia a si mesmo, ou seja, dos pensamentos de que seu
jugement havia se apropriado em seu exercício de investigação
75
: “Folheio os
livros, não os estudo; o que deles me fica é coisa que não mais reconheço como de
outrem; meu juízo tirou proveito tão-somente das reflexões e idéias de que se
imbuiu; o autor, o lugar, as palavras e outras circunstâncias esqueço
incontinenti.”
76
As citações tomadas de empréstimo só podiam ganhar
legitimidade na forma pessoal dos Ensaios através da naturalização e do
esquecimento de sua origem estrangeira. Os esforços da memória voluntária
deveriam ser necessariamente banidos porque instauravam uma distância interior
entre a própria invenção e a citação alheia, roubando ao autor e ao seu enunciado
sua presença de si para si na escrita
77
. Agenciados para capturar a própria
presença no discurso presente, os Ensaios jamais poderiam se fundar na memória
de um passado anterior ao momento da escrita. Segundo a significativa passagem
citada mais acima de Da presunção, no autoretrato somente o próprio e aquilo de
que se apropriava (o que vem a dar no mesmo) no instante da enunciação eram
valorizados
78
.
O conteúdo dessa passagem se complementava e se radicalizava com
outra, em que seu processo de autoconhecimento aparecia como uma atividade
sem fim, porque desprendida até mesmo de suas enunciações passadas, que se
identificavam, no presente, à origem alheia dos materiais que tomava de outrem:
“(B) E sou tão notável no esquecimento que mesmo meus escritos e composições
75
No capítulo Do pedantismo (I, 25) Montaigne também acusou esta oposição profunda entre
memória e jugement
no registro de sua crítica ao saber erudito e livresco dos autores da época. A
prática destes representava o exato oposto “da educação de si” que definia a escrita dos Ensaios,
desenvolvida mediante a livre atividade do juízo, concebendo o significado dos temas e valores da
tradição segundo sua própria medida e seu modo particular de julgar: “Atentamos para as opiniões
e o saber dos outros isso é tudo, é preciso fazê-los nossos. (...) (B) Tanto nos deixamos levar pelos
braços de outros que anulamos nossas forças. Desejo armar-me contra o medo da morte? Faço-o à
custa de Sêneca. Quero obter consolação para mim ou para outro? Tomo-o emprestado de Cìcero.
Tê-la-ia buscado em mim mesmo se me tivessem treinado para isso. Não gosto dessa competência
relativa e mendigada.” Idem, I, 25, p. 137.
76
“Je feuillete les livres, je ne les estudie pas: ce qui m`en demeure, c`est chose que je ne
reconnois plus estre d`autruy; c`est cela seulement dequoy mon jugement a faict son profit, les
discours et les imaginations dequoy il s`est imbu; l`autheur, le lieu, les mots et autres
circonstances, je les oublie incontinenti.” Idem, p. 651.
77
BEAUJOUR, M., op. cit., p. 114.
78
Idem, p. 116.
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não esqueço menos que o restante. A todo momento citam-me a mim mesmo sem
que me aperceba disso.”
79
Além de sua falta de memória ele confessou outros graves defeitos, que
também contribuíam muito para sua ignorância: possuía uma inteligência
medíocre; um espírito embotado, desprovido de agudeza, que o tornava inábil nos
jogos que exigiam sua participação, tais como os de cartas, xadrez e damas. Outro
ainda era sua irresolução; deficiência das mais incômodas para a negociação dos
assuntos do mundo, conforme reconhecia. A desconfiança em relação aos poderes
de sua razão o levava a consentir sempre na ordem geral no que se referia aos
assuntos públicos e políticos. Concedia sempre em seus atos bem pouca
participação à sua prudência, preferindo deixar-se levar pela fortuna. Já fizera
referência anteriormente no ensaio à sua natural incapacidade de deliberar ante a
imprevisibilidade dos eventos e o quanto o esforço por decidir-se por um caminho
ao invés de outro perturbava sua alma: “Peu de passions m`ont troublé le
sommeil; mais, des deliberations, la moindre me le trouble.”
Essa confissão, tal como a de falta de memória, também podia ser lida
como explicitação e autofirmação dos princípios que regiam a produção de seu
discurso. Como já vimos, a prática da boa filosofia, segundo a postura cética de
Montaigne
80
, centrada na atividade livre e intregral do juízo, tinha como
pressuposto não apenas o não comprometimento com as teses dos dogmáticos,
mas também com os valores e crenças perpetrados pelos costumes públicos, que
motivavam as ambições e guiavam as boas deliberações dos homens. A boa
filosofia, que dava forma aos Ensaios, era da liberdade filosófica não somente em
face de toda e qualquer descrição das coisas pretensamente verdadeira, mas
também das que se acreditavam próximas da verdade. Assim, nessa passagem de
Da presunção, Montaigne definiu mais propriamente o conteúdo de sua obra
como “ensaios do juízo”
81
, justificando o modo franco e desenvolto como
confessava nela tantas deficiências e inépcias:
79
“(B) Et suis si excellent en l`oubliance que mes escrits mesmes et compositions, je ne les oublie
pas moins que le reste. On m`allegue tous les coups à moy-mesme sans que je le sente.”
MONTAIGNE, II, 17, p. 651.
80
EVA, L., A Figura do Filósofo, p. 208.
81
A etimologia da palavra “ensaios” remonta à palavra latina “exagium” que significa “peso” ou
“pesar”. A palavra remeteria portanto à imagem da balança, implicando na consideração de
distintos pontos de vista sobre determinado assunto. Mas, é digno de nota que Jaques Amyot em
sua tradução de Plutarco, tão freqüentada por Montaigne, tenha usado o termo “essay” para
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Por esses aspectos de minha confissão, podem-se imaginar outros às minhas
custas. Mas, como quer que eu me faça conhecer, contanto que me faça
conhecer tal como sou, realizo meu objetivo. E também não me desculpo por
ousar colocar por escrito observações tão banais e tão frívolas como essas. A
banalidade do tema obriga-me a isso. (C) Critiquem se quiserem meu projeto,
mas meu andamento não. (A) Seja como for, mesmo sem a advertência de
outrem vejo bem o pouco que tudo isso pesa, e a loucura de meu projeto. Já é
bastante que meu julgamento não se atrapalhe, julgamento cujos ensaios estão
aqui.
82
Aos que censurassem essa frívola e extensa confissão, portanto, respondia
que elas faziam jus à sua verdade e que condiziam plenamente com os desígnios
de sua escrita, de colocar as palavras fielmente a serviço de sua matéria, isto é,
com a única prerrogativa de exteriorizar da maneira mais franca o modo como “se
sentia ser”; de conferir forma objetiva aos sentimentos da alma: “pourveu que je
me face connoistre tel que je suis, je fay mon effect”.
Quanto à declaração desse intuito, é interessante observar, que embora
reafirmando o desdém pela aprovação pública, Montaigne tamm destacou a
importância do modo de recepção dos Ensaios para o cumprimento de seu
objetivo. Com efeito, explicitando nessa passagem a consciência aguda do vínculo
fundamental entre conhecer-se e dar-se a conhecer: “pourveu que je me face
connoistre, ele parecia ampliar e enriquecer a declaração de sua opção ética e
estética feita em Da glória cujo acento recaía mais sobre sua autonomia face à
dimensão externa do mundo, no desprezo pelo comércio com os homens afirmado
sob a retomada dos argumentos da sabedoria helênica.
De fato, à primeira vista tal consciência, manifesta em Da presunção,
parecia não adequar-se muito bem a essa outra afirmação de Da glória, que, para
frisar seu anseio de autonomia, servia-se da imagem de uma sabedoria encerrada
em si mesma e do ideal da instauração de uma igualdade de si para si que excluía
por inteiro as opiniões do mundo: “Je ne me soucie pas tant quel je sois chez
designar a atividade dubitativa acadêmica. Assim, o termo poderia também significar “skepsis”
(investigação) o mesmo que os pirrônicos usaram para designar sua filosofia. Idem, p. 230.
82
“Par ce traits de ma confession, on en peut imaginer d`autres à mes despens. Mais, quel que je
me face connoistre, pourveu que je me face connoistre tel que je suis, je fay mon effect. Et si ne
m`excuse pas d`oser mettre par escrit des propos si bas et frivoles que ceux-cy. La bassesse du
suject m`y contrainct. (C) Qu`on accuse, si on veut, mon project; mais mon progrez, non. (A) Tant
y a que, sans l`advertissement d`autruy, je voy assez ce peu que tout cecy vaut et poise, et la folie
de mon dessein. C`est prou que mon jugement ne se defferre point, duquel ce sont icy les essais.”
MONTAIGNE, II, 17, p. 653.
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180
autruy, comme je me soucie quel je sois en moy mesme.” Nesse sentido, com
respeito ao desenvolvimento da reflexão de Montaigne, da espécie de argumentos
utilizados em Da glória aos que apareciam em Da presunção, no que concernia ao
seu método de autoconhecimento, é bastante ilustrativa uma observação feita por
Merleau Ponty que versava sobre a dialética própria ao discurso pessoal dos
Ensaios: “O mesmo autor que queria viver segundo si mesmo experimentou
apaixonadamente que somos, entre outras coisas, aquilo que somos para os outros,
e que a opinião deles nos atinge no centro de nós mesmos.”
83
De qualquer modo, ainda que Da glória estivesse repleto de tópicas que
celebravam o alcance de uma sabedoria superior, não devemos perder de vista a
confissão feita já nos incícios do ensaio, de sua incapacidade em fixar-se em si
mesmo e de desprender-se das volúpias do mundo externo, que diferenciava de
imediato o exercício de autonomia de Montaigne daquela própria a estóicos e a
epicuristas: “Mais nous sommes je ne sçay comment doubles en nous mesmes, qui
faict que ce que nous croyons, nous ne le croyons pas (...)”
Mas para que pudesse cumprir plenamente esse objetivo de “me face
connoistre tel que je suis” era preciso que a atenção de seu leitor não se
direcionasse para a crítica da ousadia de publicar sua escrita privada sem propor-
se a instruir e a ser útil. Montaigne necessitava de um interlocutor que pudesse
por-se em sua própria posição de primeiro leitor de sua obra, pronto a apreender o
testemunho franco que dava de si mesmo sob a aparente frivolidade de sua forma,
e que, portanto, soubesse reconhecer a expressão de seu andamento natural - “mon
progrez” – conforme declarava na passagem citada acima de Da presunção.
Buscava, enfim, um olhar conivente, que não procurasse lições em seu livro e que
ao invés de denunciar-lhe a presunção, se regozijasse em encontrar dados sobre os
quais refletir; opiniões e convicções a serem exploradas e partilhadas livremente.
Que o conhecessem como em vida, nos detalhes de suas diversas manifestações e
em sua maneira privada, tal como os amigos e parentes mais próximos o haviam
conhecido. Desprovido deste olhar, lido por aqueles que ao invés de dispor e
ativar o seu próprio crivo, mantinham-se aprisionados pela consideração das
“ceremonies” do mundo, a composição dos Ensaios não pareceria ser movida
83
MERLEAU PONTY, M., “Leitura de Montaigne”, In: Signos, p. 231.
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senão pela presunção de um espírito fútil, obstinado em expor suas vãs
divagações.
5.3) Ceticismo e subjetvidade: há presunção nos Ensaios?
Ao fim dessa extensa autodescrição, marcada por uma sempre reiterada
depreciação das próprias capacidades, Montaigne procurou tomar recuo de sua
reflexão sobre si para apontar o único aspecto seu pelo qual, evidentemente, se
valorizava. Tratava-se da confiança em seu próprio senso, pelo qual procurava
autoafirmar-se em sua verdade e que era pressuposto de seu método de conhecer-
se: “(...) a única coisa pela qual me valorizo um pouco é algo em que homem
nunca se considerou falho: meu elogio é banal, comum e vulgar, pois quem jamais
pensou ter falta de senso?”
84
Mas na maneira como confessou esse elogio, ele eliminou de imediato a
possibilidade de sua associação com a presunção, pois a confiança nas asserções
do próprio senso não era coisa que despertasse a admiração dos homens e à qual
concedessem o prêmio da glória. Era elogio “vulgaire” e “commune”, vivenciado
não como modo de destacar-se como superior aos demais, mas antes como
condição universal da existência humana, dada muito mais como sinal de seus
limites do que do orgulho quanto às suas capacidades. Com efeito, como já vimos
ao examinar a postura cética de Montaigne
85
, era justamente a ausência de uma
razão substancial, tida como faculdade superior e universal que tornasse os
homens semelhantes aos deuses
86
que determinava essa condição comum a todos,
de agir segundo as limitações de seu próprio juízo:
(...) a partilha mais justa que a natureza nos fez de suas graças é a do senso; pois
não há ninguém que não se contente com o que ela lhe atribuiu (C) Não é
lógico? Quem enxergasse além, enxergaria além de sua vista. (A) Creio que
minhas idéias são boas e corretas, mas quem não crê o mesmo das suas.
87
84
“(...) ce seul par où je m`estime quelque chose, c`est ce en quoy jamais homme ne s`estima
deffaillant: ma recommendation est vulgaire, commune et populaire, car qui a jamais cuidé avoir
faute de sens?” Montaigne, II, 17, p. 656.
85
Ver item 4.3.
86
Ver sobre isso o item 3.3.
87
“On dit communément que le plus juste partage que nature nous aye fait de ses graces, c`est
celuy du sens: car il n`est aucun quin e se contente de ce qu`elle luy en a distribué. (C) N`est-ce
pas raison? Qui verroit au delà, il verroit au delà de sa veue.” Idem, p. 657.
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Movida portanto por esse elogio banal, que atestava antes a ignorância
humana que o orgulho de sua razão, parecia um grande equívoco acusar a vaidade
como impulso da escrita dos Ensaios. Diante disso, com efeito, Montaigne,
constatou: “Assim, essa é uma espécie de exercício do qual devo esperar bem
pouca glória e louvor, e uma forma de composição de pouco renome.”
88
Ao
exercitar seu juízo e viver segundo o significado que sua razão conferia às coisas
ele apenas explicitava nos seus Ensaios a consciência de sua inferioridade, isto é,
de não poder enxergar além de sua própria visão.
Assim, era impossível, de fato, julgar adequadamente sobre a medida do
valor que conferia ao seu senso e sobre o alcance de suas inépcias, pois para fazê-
lo precisaria por-se acima de si, na perspectiva do conhecimento de uma verdade
objetiva e universal, que transcendesse suas próprias medidas. Confiar nessa
capacidade de elevar-se e conhecer plenamente as falhas de seu senso significaria
recair na presunção:
Seria uma proposição que implicaria em si mesma uma contradição (C) é uma
doença que nunca está onde ela se vê a si mesma (...) nesse assunto acusar-se
seria escusar-se; e condenar-se seria absolver-se. Nunca houve carregador ou
mulherzinha que não pensasse possuir senso suficiente para sua provisão.
Facilmente reconhecemos nos outros a superioridade da coragem, da força (C)
física, (A) da experiência, da boa disposição, da beleza; mas a superioridade do
discernimento não cedemos a ninguém; e as razões que provêm do simples bom
senso inato de outrem, parece-nos que só dependia de olharmos para aquele
lado e as teríamos encontrado.
89
Já que não era dado ao homem conhecer a verdade objetiva das coisas,
também não lhe era possível saber se suas opiniões a alcançavam ou mesmo
chegavam perto da verdade. Não podia, portanto, fazer-se superior e obter glória
simplesmemente pelo apreço votado às suas afirmações. De fato, nenhuma delas
poderia ser justamente considerada mais verdadeira que a proposição de um outro,
88
“Ainsi, c`est une sorte de exercitation de laquelle je dois esperer fort peu de recommendation et
de louange, et une maniere de composition de peu de nom.” Idem, II, 17, p. 656.
89
“Ce seroit une proposition qui impliqueroit en soy de la contradiction (C) c`est une maladie qui
n`est jamais où elle se voit (...) s`accuser seroit s`excuser en ce subject là; et se condamner, ce
seroit s`absoudre. Il ne fut jamais crocheteur ny femmelette qui ne pensast avoir assez de sens pour
sa provision. Nous reconnoissons ayséement és autres l`advantage du courage, de la force (C)
corporelle, (A) de l`experience, de la disposition, de la beuaté; mais l`advantage du jugement, nous
ne le cedons à personne; et, les raisons qui partent du simple discours naturel en autruy, il nous
semble qu`il n`a tenu qu`a regarder de ce costé-là, que nous les ayons trouvée.” Idem.
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183
na medida em que todos os homens só contavam com a própria confiança em suas
asserções para proclamar verdades pretensamente absolutas.
Assim, se em Da presunção Montaigne se comprovou capaz de tomar
distância de si mesmo para reconhecer suas imperfeições nas qualidades do corpo
e do espírito que faziam a glória dos outros, também admitiu, por outro lado, os
limites de seu exercício de investigação: apesar do elogio ao próprio senso ser
insuficiente para garantir glória, ele não deixou de confessar que não podia
desprender-se de seus pensamentos para avaliar a medida de suas falhas. A parte
final do autoretrato, centrada nessa questão do elogio à própria razão, fazia
emergir novamente a questão posta no proêmio, ou seja, se o ato de conceber-se
assim, sob um juízo limitado e frágil, significava deixar-se levar pelos excessos do
amor próprio e a apresentar-se como um outro, bem mais perfeito do que era.
Com efeito, como se evidenciou na ocasião em que descrevia seus traços morais,
na parte central do ensaio, seu juízo só podia dar forma a uma imagem ambígua
de si, que movia-se entre pólos opostos: ele era assim, um pigmeu diante dos
antigos tanto quanto grande e raro comparado aos seus contemporâneos.
De qualquer maneira, essa atitude dizia respeito ao princípio da
sinceridade, em que se baseava seu autoretrato. Não podia apresentar-se senão
adequando sua reflexão ao modo como “se sentia ser”: N`est-ce pas raison? Qui
verroit au delà, il verroit au delà de sa veue.” Como sabemos, de fato, a exigência
de veracidade dos Ensaios não se cumpria na fixação de uma imagem última e
acabada de si. Ao invés disso, ela se punha na ordem do não falseamento daquela
que era sua própria verdade, vivenciada nas condições moventes e instáveis do
jugement. Enfim, a opção de Montaigne de aderir aos seus próprios pensamentos,
apesar de seu caráter contingente, não devia ser confundida com presunção, pois
implicava na adoção de um modo de vida pautado no reconhecimento de sua
ignorância, das imperfeições de sua razão e na plena conformidade aos seus
limites naturais.
Isso nos leva novamente à questão do ceticismo, que, segundo
acreditamos, movia os percursos de sua reflexão e de suas escolhas, pois, de fato,
como já vimos, era a experiência cética da epoché – da suspensão do juízo quanto
ao conhecimento da verdade – que lhe permitia apropriar-se do uso integral e mais
perfeito de suas faculdades. Relembremos da passagem da Apologia forjada a
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partir de um trecho dos Academicos de Cícero: “pourquoy à ceux cy ne sera il
pareillement concedé de maintenir leur liberté, et considerer les choses sans
obligation et servitude?”
90
Na conclusão deste mesmo ensaio, face à total impossibilidade de se
estabelecer um conhecimento seguro sobre as coisas e sobre si mesmo, ele exaltou
novamente essa alternativa da liberdade e autonomia da própria razão, criticando a
presunção dos ideais sobre humanos de sabedoria
91
celebrados pelas filosofias
dogmáticas. Expressou o preceito que lhes era peculiar através das palavras de
Plutarco:
“Oh !, que coisa vil e abjeta é o homem, se não se elevar acima da
humanidade!”, diz ele. (C) Eis aí belas palavras, e um desejo útil mas
igualmente absurdo. (...) esperar saltar mais que a extensão das próprias pernas
é impossível e antinatural. E tampouco que o homem se alce acima de si e da
humanidade: pois ele só pode ver com seus próprios olhos e apreender com suas
próprias forças.
92
Como sabemos, a constatação da relatividade de todo conhecimento nos
Ensaios não levava Montaigne a optar pela renúncia em produzir opiniões e
convicções próprias e aderir a elas a cada instante. A maneira com que se
apropriava da atividade argumentativa cética não a limitava a uma capacidade de
opor sentenças e proposições das diversas doutrinas, mas lhe atribuía a
90
Ver item 4.3
91
“Não temos nenhuma comunicação com o ser, porque toda a natureza humana está sempre no
meio entre o nascer e o morrer, cedendo de si apenas uma obscura aparência e sombra e uma
opinião incerta e frágil.” Idem, II, 12, p. 604. Nas páginas finais da Apologia, que enfatizavam esse
movimento perpétuo de todas as coisas, a reflexão de Montaigne parecia reportar-se ao terceiro
dos cinco tropos de Agripa, que demonstrava, nas Hipotiposes, a relatividade de todo
conhecimento, pela constatação de que as afirmações da razão humana eram sempre e
necessariamente indissociáveis das condições particulares de seu exercício. Empírico, Sexto, op.
cit., I, 15. Esse era um dos temas essenciais do pensamento cético, da demonstração da
incapacidade de nossos sentidos em conhecer os objetos tal como realmente eram. Assim,
Montaigne acusava a impossibilidade de uma razão substancial, cujo uso transcendesse suas
medidas e as circunstâncias de seu exercício, pois era preciso que se apartasse das condições
moventes da vida, da velhice, da juventude, da saúde e da doença para poder julgar com
imparcialidade e por se em harmonia com a verdadeira substância das coisas: “Precisaríamos de
alguém isento de todas essas características, para que, sem idéia preconcebida, julgasse sobre estas
proposições como indiferentes a ele; e dessa forma, precisaríamos de um juiz que não existe.”
Atestando o caráter sobrehumano da aspiração de enxergar além de seus limites, o terceiro modo
de Agripa para levar à epoché definia-se como base fundamental do preceito exaltado por
Montaigne ao fim da Apologia, da vida conforme o alcance natural dos sentidos e de acordo com
as próprias crenças. Idem, II, 12, p. 600.
92
“O la vile chose, dict-il, et abjecete, que l`homme, s`il ne s`esleve au dessus de l`hummanité!
(C) Volà un mot et un utile desir, mais pareillement absurde. (...) et d`espérer enjamber plus que de
l`estanduë de nos jambes, cela est impossible et monstrueux. Ny que l`homme se monte au dessus
de soy et de l`hummanité.” Idem, II, 12, p. 604.
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prerrogativa de fundar as condições para seu uso mais perfeito. Mas esse desejo
de perfeição, não se identificava de modo algum a uma confiança excessiva em
sua superioridade. Essa perfeição resultava da prática de regular-se de acordo com
as condições subjetivas e particulares adequadas ao seu funcionamento natural.
93
Ela deveria fazê-lo sempre consciente de que suas afirmações apoiavam-se
somente em si mesmas e não no conhecimento da verdade; lhe eram totalmente
próprias e portanto, contingentes, imperfeitas.
Com essas considerações chegamos à passagem de Da presunção que
serve de epígrafe à introdução desse trabalho em que afirmando o intento do uso
perfeito de sua razão, ele também enunciou a idéia que determinava os princípios
e procedimentos peculiares de seu discurso, que tinha como matéria não a verdade
no sentido forte do termo, mas sim aquilo que era verdadeiro para ele, Montaigne:
Essa capacidade de selecionar o verdadeiro, qualquer que seja em mim, e esse
humor livre, de não sujeitar facilmente minha conviccão, devo-os
principalmente a mim mesmo; pois as idéias mais firmes e gerais que tenho são
as que, por assim dizer, nasceram comigo. São naturais e totalmente minhas.
Produzi-as cruas e simples, numa produção ousada e forte, mas um tanto
confusa e imperfeita; em seguida estabeleci-as e fortifiquei-as com a autoridade
alheia e com os saudáveis discursos dos antigos, com os quais me vi
coincidindo em julgamento: eles me garantiram a consistência delas e deram-me
sua posse e gozo mais integral.
94
93
Esta noção de integridade intelectual, extraída do ceticismo acadêmico e tão crucial para
Montaigne, tinha sua mais viva expressão segundo Cícero, na figura de Sócrates. Montaigne
também demonstrou sua simpatia por ele, sobretudo nos capítulos do terceiro livro dos Ensaios.
Não é demais destacarmos aqui uma passagem de Da fisionomia, que exprime bem sua
identificação com a visão ciceroniana de Sócrates, como expressão mais perfeita do uso das
faculdades racionais, em seu reconhecimento de que o alcance da verdade sobre as coisas do
mundo estava além das capacidades humanas: “(C) Foi ele que trouxe de volta de volta do céu,
aonde perdia tempo, a sabedoria humana, para devolvê-la ao homem, onde está sua mais adequada
e mais laboriosa tarefa e a mais útil.” Montaigne, III, 12, p. 297 A sabedoria de Sócrates se
aproximava bastante da de Montaigne, ao definir a aceitação dos próprios limites e a vida de
acordo com eles como a mais alta virtude humana. Tal como seus discípulos tardios, os
acadêmicos, que mantinham o uso da razão no nível de sua atividade de inquirir e de investigar,
Sócrates jamais pretendeu instilar alguma sabedoria pronta em seus ouvintes, mas refutando
constantemente suas opiniões, os estimulava a ativar de forma integral suas faculdades. CÍCERO,
Acadêmicos, I, 16, apud MAIA NETO, J. R., op. cit. Sobre a consideração montaigneana da
maiêutica socrática ver Maia Neto, J. R., op. cit. p. 24 e examinar, por exemplo, os ensaios II, 12 e
III, 5.
94
“Cette capacité de trier le vray, quelle qu`elle soit en moy, et cett`humeur libre de n`assubjectir
aisément ma creance, je la dois principalement à moy: car le plus fermes imaginations que j`aye, et
generalles, sont celles qui, par maniere de dire, nasquirent avec moy. Elles sont naturelles et toutes
miennes. Je les produisis crues et simples, d`une production hardis et forte, mais un peu trouble et
imparfaicte; depuis je les ay establies et fortifiées par l`authorité d`autruy, et par les sains discours
des anciens, ausquels je me suis rencontré conforme en jugement: ceux-là m`en ont assuré la
prinse, et m`en ont donné la jouyssance et possession plus entiere.” MONTAIGNE, II, 17, p. 658.
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Ao basear-se no ceticismo a adesão ao seu juízo devia isentar-se
necessariamente do orgulho inerente, por sua vez, ao assentimento dado às
doutrinas dogmáticas, por parte daqueles que eram cegos e ignorantes quanto à
mediocridade de seus limites. Segundo ele, aderir à dúvida pirrônica implicava
necessariamente na compreensão do próprio engajamento filosófico duma
maneira completamente distinta do que se entendia usualmente por isso, ao dar-se
autoridade às proposições dos filósofos de outras escolas. Isso porque ao contrário
destas que pretendiam descrever “como as coisas realmente são”, os filósofos
céticos sustentavam a tese de que “nada sabemos”, implicando antes numa
determinada atitude mental, voltada para a verificação da impotência das razões
humanas para alcançar a verdade, do que na proposição de um sistema.
95
Por não se afirmarem como portadores de um significado absoluto – tal
como, por exemplo, as proposições da física materialista e atomista do epicurismo
– seus preceitos e lemas não possuíam qualquer autoridade intrínseca. Como já
vimos, eles tinham como função, não paralisar a atividade do juízo mas liberá-la e
potencializá-la, a partir de uma vivência totalmente pessoal da epoché. A
compreensão da experiência filosófica do ceticismo, portanto, deveria ser solidária
de uma prática da razão que implicava na aceitação de sua “insuffissance”. O
princial benefício da adesão ao juízo não era a volúpia do amor próprio, mas sim a
apreensão de sua precariedade e fraqueza. Montaigne declarou isso em trecho da
Apologia de Raymond Sebond, em que o apreço e fidelidade ao jugement apareceu
como um reforço da consciência de sua fragilidade, expressa na experiência de
seu movimento e inconstância perpétuos.
Vale a pena citar esse trecho da Apologia, apesar de sua extensão. Nele o
autor dos Ensaios explicitou o teor de sua sabedoria de regular-se segundo sua
verdade e de ser-lhe fiel no modo como esta se lhe apresentava de maneiras
diversas, sucessivamente, a cada momento. Se nenhuma de suas formas podia ser
considerada legitimamente mais verdadeira do que as outras, todas deviam
constituir sua própria verdade como sujeito:
95
EVA, L., op. cit., p. 231.
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Deixemos de lado essa infinita confusão de opiniões que vemos até mesmo
entre os filósofos, e esse debate perpétuo e universal sobre o conhecimento das
coisas. (...) Além dessa diversidade e divisão infinitas, pela confusão que nosso
julgamento causa a nós mesmos e pela incerteza que todos sentem em si, é fácil
ver que a posição deste é bem pouco sólida. Quão diversamente não julgamos
nós as coisas? Quantas vezes mudamos nossas opiniões? O que hoje afirmo e
acredito, afirmo-o e acredito com toda a minha convicção; todas as minhas
faculdades e todos os meus recursos empunham essa opinião e respondem-me
por ela em tudo que podem. Eu não poderia abraçar verdade alguma nem
preservá-la com mais força do que faço com esta. Estou nela por inteiro, estou
nela verdadeiramente; porém acaso não me ocorreu, não uma vez, mas cem,
mas mil, e todos os dias, de ter com essas mesmas faculdades, nessa mesma
condição, abraçado alguma coisa que depois julguei falsa? Precisamos pelo
menos nos tornar sábios à nossa própria custa. Se amiúde me vi traído por essa
aparência, se minha pedra de toque costuma se mostrar falsa e minha balança
parcial e injusta, que segurança posso ter nesta vez mais que nas outras? Não
será tolice deixar-me enganar tantas vezes por um guia? No entanto, que a
fortuna quinhentas vezes nos mude de lugar, que não faça mais que, como um
vaso, esvaziar e encher incessantemente nossa crença com outras e outras
opiniões, sempre a atual e mais recente é a certa e infalível. Por esta é preciso
abandonar os bens, a honra, a vida e a salvação, tudo, ‘A última desgosta-nos da
primeira e desacredita-as em nosso espírito’
96
Abraçar a própria verdade, portanto, estar nela por inteiro, apropriar-se
dela por reflexão, a cada momento, apesar de seu caráter provisório e frágil: eis o
modo de “devenir sage à ses propres depans”, contando apenas com seus próprios
recursos, como alternativa a subordinar-se à balbúrdia das opiniões alheias - da
mesma maneira, em Da glória, ele decidira-se pela glória de uma vida tranqüila
“selon moy”, a partir da descrença nos preceitos de todas as doutrinas filosóficas,
que ensinavam um ideal ilusório de tranqüilidade, elevado acima das capacidades
humanas.
96
“Laissons à part cette infinie confusion d`opinions qui se void entre les philosophes mesmes, et
ce debat perpetuel et universel en la connoissance des choses. (...) Outre cette diversité et division
infinie, par le trouble que nostre jugement nous donne à nous mesmes, et l`incertitude que chacun
sent en soy, il est aysé à voir qu`il a son assiete bien mal assurée. Combien diversement jugeons
nous des choses? Combien de fois changeons nous nos fantasies? Ce que je tiens aujourd`huy et ce
que je croy, je le tiens et le croy de toute ma croyance; tous mes utils et tous mes ressorts
empoignent cette opinion et m`en respondent sur tout ce qu`ils peuvent. Je ne sçaurois ambrasser
aucune verité ny conserver avec plus de force que je fay cette cy. J`y suis tout entier, j`y suis
voyrement; mais ne m`est il pas advenu, non une fois, mais cent, mais mille, et tous les jours,
d`avoir ambrassé quelqu`autre chose à tout ces mesmes instruments, en cette mesme condition,
que depuis j`aye jugée fauce? Au moins faut il devenir sage à ses propres depans. Si je me suis
trouvé souvent trahy sous cette couleur, si ma touche se trouve ordinairement fauce, et ma balance
inegale et injuste, quelle asseurance en puis-je prendre à cette fois plus qu`aux autres? N`est-ce pas
sottise de me laisser tant de fois piper à un guide? Toutefois, que la fortune nous remue cinq cens
fois de place, qu`elle ne face que vuyder et remplir sans cesse, comme dans un vaisseau, dans
nostre croyance autres et autres opinions, tousjours la presente et la derniere c`est la certaine et
l`infallible. Pour cette cy il faut abandonner les biens, l`honneur, la vie et le salut, et tout, ‘La
dernière nous désgoûte des premières et les discrédite dans nostre esprit.’” Idem, II, 12, p. 563.
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Após essa pequena digressão sobre o ceticismo dos Ensaios, retornemos
agora ao nosso exame de Da presunção. No ponto em que paramos, Montaigne
enfatizava que ao valorizar suas crenças ele não fazia mais que igualar-se ao erro
mais comum e universal que condicionava a existência humana e por isso esse
elogio não podia ser tido como sinal de presunção: “Il ne fut jamais crocheteur ny
femmelette qui ne pensast avoir assez de sens pour sa provision”.
Mas a única e crucial diferença entre seu apego às suas crenças e o modo
como os outros o faziam era que, à diferença destes últimos, ele reconhecia e
declarava explicitamente a todo instante esse apego na própria forma desordenada
de sua escrita. Essa postura foi destacada desde a primeira página dos Ensaios,
quando Montaigne a declarou para opor-se ao pedido de instrução por parte de
seus leitores. Esse era o princípio que distinguia sua sabedoria. Se é verdade que
não podia ir além de seu senso, não se prendia a ele de modo ingênuo como fazia
o vulgo, que tanto se orgulhava de sua razão. Seu ceticismo, lhe fornecendo uma
idéia sólida de sua fraqueza, dava a ele uma prova da maior sensatez de suas
idéias em relação às dos homens que lhe rodeavam o impedindo de enunciar suas
opiniões como verdades: “Uma das melhores provas que tenho disso é o pouco
valor que me dou: pois se não fossem bastante sólidas elas facilmente se
deixariam enganar pela afeição singular que dedico a mim, uma vez que a dirijo
quase toda para mim e dificilmente a espalho para fora.”
97
O sinal inequívoco de sua sensatez, portanto, era essa sua constante
disposição de depreciar-se. Com isto ele rebatia enfim à questão posta pelo
proêmio do ensaio, ou seja, se era um juízo trouble et alteré” por uma “affection
inconsiderée que o levava a voltar-se para si e a desdenhar os negócios do
mundo. Se apostava mais do que os outros no elo interno de sua verdade, voltando
inteiramente para si sua “affection” e vivendo exclusivamente segundo sua razão,
o modo como se desprezava atestava que a expressão de suas idéias estava isenta
dos excessos do amor próprio, não possuindo, de fato, nada de que pudesse
vangloriar-se.
97
“L`une des meilleures preuves que j`en aye, c`est le peu d`estime que je fay de my: car si elles
n`eussent esté bien asseurées, elles se fussent aisément laissés piper à l`affection que je me porte
singuliere, comme celuy qui la ramene quase toute à moy, et quin e l`espands gueres hors de là.”
Idem.
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Desse modo, em Da presunção, ele concluiu seu autoretrato reafirmando
aquilo que já declarara no proêmio, ao sair em defesa do valor moral de sua
empresa de representar-se, aparentemente tão frívola. Ou seja, de que o preceito
de ter a si mesmo como escola de sabedoria – “devenir sage à ses propres depans
- não implicava em vã glória, mas ao contrário, se constituía em seu antídoto mais
eficiente:
Ora, minhas idéias mostram-se infinitamente dispostas e persistentes em criticar
minha incapacidade. Na verdade, esse é também um assunto em que exerço meu
julgamento tanto quanto em nenhum outro. O mundo sempre olha face a face;
quanto a mim, recolho minha vista para o interior, fixo-a, ocupo-a nele. Cada
qual olha diante de si; eu olho dentro de mim: só de mim me ocupo, examino-
me sem cessar, vigio-me, experimento-me. Os outros vão sempre alhures, se
pensarem bem, vão sempre adiante, ‘Ninguém tenta descer ao interior de si
mesmo’ eu giro em mim mesmo.
98
Ao longo do ensaio deu provas suficientes da solidez de seu jugement. Não
é demais recapitularmos o teor geral de seu autoretrato. Quanto às produções do
espírito, desprezou sua falta de arte, expressa na forma desordenada dos Ensaios.
Não possuía habilidade artística para produzir belas obras literárias à maneira de
seus contemporâneos humanistas, capazes de tomar como modelo as formas
sublimes dos antigos: “J`ay tousjours une idée en l`ame (C) et certaine image
trouble, (A) qui me presente (C) comme en songe (A) une meilleure forme que
celle j`ay mis en besongne, mais je ne la puis saisir el exploiter.” Quanto aos
exercícios e jogos do corpo, em que se destacavam os nobres, confessava: “(...) je
n`en ay trouvé guiere aucun qui ne me surmontant, sauf au courir (en quoy j`estoy
des mediocres)E finalmente em seu autoretrato moral, das inclinações da alma,
destacou a liberdade e indulgência de sua educação como causa de sua “mollesse”,
isto é, da falta de disposição e de vivacidade de seu temperamento que o tornava
impróprio ao serviço de outrem e somente bom para si mesmo.
Entretanto, não podia defender-se tão bem contra o segundo vício próprio
a essa glória da presunção, assinalado no início do ensaio, de não estimar
98
“Or, mes opinions, je les trouve infiniement hardies et constantes à condamner mon
insuffissance. De vray, c`est aussi un subject auquel j`exerce mon jugement autant qu`à nul autre.
Le monde regarde tousjours vis à vis; moy, je replie ma veue au dedans, je la plante, je l`amuse là.
Chacun regarde devant soy; moy, je regarde dedans moy; je n`ay affaire qu`à moy, je me considere
sans cesse, je me contrerolle, je me gouste. Les autres vont tousjours ailleurs, s`ils y pensent bien;
ils vont tousjours avant, ‘Personne ne tente de descendre en soi-même’ moy je me roulle en moy
mesme.” Idem.
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suficientemente os outros. Como já vimos, em seu autoretrato moral, sua
“mollesse” chegava a tornar-se uma rara virtude face aos excessos dos homens de
seu tempo. Pouco acreditava em suas razões e não lhes votava qualquer estima:
“Tudo o que os outros distribuem dela para uma infinita multidão de amigos e
conhecidos, para sua glória, para sua grandeza, eu remeto por inteiro à
tranqüilidade de meu espírito e a mim, o que me escapa para alhures não é
propriamente por ordem de minha reflexão”
99
A própria dissimetria que estruturava o ensaio era prova desse desdém,
com um vasto autoretrato que lhe ocupava a maior parte e com suas páginas finais
somente, dedicadas à avaliação dos homens de sua época pela qual Montaigne
deveria responder-se isento do segundo vício próprio a esta espécie de glória.
Com efeito, entre a passagem em que reconhecia não poder haurir glória
dos ensaios de seu juízo: “Ainsi, c`est une sorte de exercitation de laquelle je dois
esperer fort peu de recommendation et de louange, et une maniere de composition
de peu de nom.”, e essa outra, que atestava o contentamento com o próprio senso
como uma condição comum a qualquer homem: On dit communément que le
plus juste partage que nature nous aye fait de ses graces, c`est celuy du sens: car il
n`est aucun qui ne se contente de ce qu`elle luy en a distribué.”, ele inseriu um
acréscimo c em que formulou para si mesmo uma indagação crucial, suscitada
pelas duas constatações feitas acima, em que revelava seu ponto de vista sobre os
espíritos de sua época na condição de interlocutores dos Ensaios:
(C) Então para quem escreveis? Os sábios a quem compete a jurisdição livresca
só reconhecem valor na ciência e não aprovam outro procedimento em nossos
espíritos que não o da erudição e da arte: se tomastes um dos Cipiões pelo
outro, que vos resta a dizer que valha? Quem ignora Aristóteles, segundo eles,
ao mesmo tempo ignora a si mesmo. As almas comuns e vulgares não vêem a
graça e o peso de um discurso elevado e sutil. Ora, essas duas espécies ocupam
o mundo. A terceira, de que fazeis parte – a das almas bem ajustadas e fortes
por si mesmas -, é tão escassa que precisamente não tem nem nome nem
posição entre nós; é quase tempo perdido esforçar-se por agradar-lhe.
100
99
“Tout ce que les autres en distribuent à une infinie multitude d`amis et de connoissans, à leur
gloire, à leur grandeur, je le rapporte tout au repos de mon esprit et à moy. Ce qui m`en eschappe
ailleurs, ce n`est pas proprement de l`ordonnance de mon discours.” Idem.
100
“(C) Et puis, pour qui escrivez vous? Les sçavans à qui touche la jurisdiction livresque, ne
connoissent autre prix que de le doctrine, et n`advouent autre proceder en noz esprits que celuy de
l`erudition et de l`art: si vous avez pris l`un des Scipions pour l`autre, que vous reste il à dire qui
vaille? Qui ignore Aristote, selon eux s`ignore quand et quand soymesme. Les ames communes et
populaires ne voyent pas la grace et le poids d`un discours hautain et deslié. Or, ces deux especes
occupent le monde. La tierce, à qui vous tombez en partage, des ames reglées et fortes d`elles-
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Conforme evidenciava na passagem, não esperava dos homens de seu
tempo uma compreensão adequada de seus escritos, isto é, do exercício do juízo
neles contido. Exaltou assim de um lado, a forte consciência da novidade de seu
pensamento, ajustado e forte por si mesmo - avesso a pretender afirmar-se
mediante o recurso às marcas externas de erudição - e de outro, a crítica à forma
disciplinar do estudo da filosofia entre seus contemporâneos. Ela se caracterizava
por uma obediência servil e irrefletida à autoridade dos preceitos dos antigos, que
a tornava antes uma espécie de “pseudo filosofia”, porque levava os que a
praticavam a abdicar com extrema liberdade do exercício de suas próprias
faculdades em nome da glória que podiam obter pela ostentação de seu pretenso
saber. Montaigne já manifestara anteriormente a natural impossibilidade de
adequar-se ao pedantismo disseminado em sua época, ao deplorar sua falta de
memória.
101
Opunha já então a “educação de si” em que consistia sua obra àquelas
que recorriam aos artifícios retóricos guardados na memória para constituir-se,
conformando-se às práticas e aos padrões estabelecidos.
Desse modo, ao indagar-se sobre a destinação de seus Ensaios ele só pôde
responder constatando a ausência das almas adequadas a apreender sua mensagem
- “reglées et fortes d`elles-mesmes”. Ao fim de Da presunção, portanto,
Montaigne apresentava-se como uma espécie de exilado em seu próprio tempo,
cultivando as qualidades da alma num contato vivo com a sabedoria dos antigos,
já tão distante dos costumes de seu meio.
Entretanto, não deixou de defender-se contra esse vício do desprezo de
outrem, definindo o descrédito que lhes votava como conseqüência natural de sua
maneira de conhecer-se, isto é, expressando francamente o modo como “se sentia
ser”. De fato como já ressaltava no proêmio, ao pretender apreender-se em sua
verdade deveria desviar-se não apenas dos excessos do amor próprio mas também
da autodepreciação exagerada, evitando confundir modéstia com o falseamento da
própria razão pela obediência às cerimônias do mundo, que a recomendavam
como modo de respeitar o decoro. Dessa perspectiva ela se daria não como meio
de conhecer-se mas apenas de evitar uma autoestima que causaria a desaprovação
mesmes, est si rare que justement elle n`a ny nom, ny rang entre nous: c`est à demy temps perdu,
d`aspirer et de s`efforcer à luy plaire.” Idem, p. 657.
101
Ver p. 183.
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192
geral: “Je ne veux pas que, de peur de faillir de ce costé là, un homme se
mesconnoisse pourtant, ny qu`il pense estre moins que ce qu`il est.” Frisava
assim, que não era uma “affection inconsiderée” que o levava a desdenhar os
espíritos do presente e a estimar suas próprias qualidades, mas sim a freqüentação
com os espíritos mais altos dos tempos antigos, pela qual procurava fortalecê-las e
conferir-lhes maior consistência para melhor apropriar-se delas. Esta freqüentação
com personagens tão célebres só podia levá-lo a desgostar-se, naturalmente, não
apenas dos homens de seu tempo como também de si mesmo:
Talvez que o comércio contínuo que tenho com os temperamentos antigos e a
Idéia daquelas ricas almas do passado me faça desgostar tanto dos outros como
de mim mesmo; ou então, que na verdade vivamos em um século que só produz
coisas bem medíocres; seja como for nada conheço digno de grande admiração;
também conheço poucos homens com a grande familiaridade necessária para
poder julgá-los; e aqueles aos quais minha posição me mistura mais
habitualmente são, na maioria, pessoas que pouco se preocupam com o cultivo
da alma, e às quais se propõe como toda a sua beatitude a honra e como toda a
sua perfeição a valentia.
102
Mas o que tornava o comércio com os antigos digno de tão grande
consideração, não era o culto à sua autoridade, tão comum entre os autores
humanistas, mas sua posição como exemplos de uma atividade livre e superior do
intelecto, semelhante à sua própria prática nos Ensaios, já quase inexistente à sua
volta. Por isso tomava o diálogo com os antigos como melhor modo de conhecer-
se, já que a perfeição que buscavam era sobretudo do uso pleno e integral de sua
razão.
103
Assim, na passagem acima ele parecia admitir, afinal, que o contato com
as grandes almas do passado o levavam a desgostar muito mais dos outros do que
de si mesmo. Diante de “gens qui ont peu de soing de la culture de l`ame, et
ausquels on ne propose pour toute une beatitude que l`honneur, et pour toute
perfection que la vaillance” só restava a Montaigne sentir-se “grand et rare”, mais
102
“A l`adventure que le commerce continuel que j`ay avec les humeurs anciennes, et l`Idée de ces
riches ames du temps passé me dégouste et d`autruy et de moy mesme; ou bien que, à la verité,
nous vivons en un siecle qui ne produict les choses que bien mediocres: tant y a que je ne connoy
rien digne de grande admiration: aussi ne connoy-je guiere d`hommes avec telle privauté qu`il faut
pour en pouvoir juger; et ceux ausquels ma condition me mesle plus ordionairement, sont, pour la
pluspart, gens qui ont peu de soing de la culture de l`ame, et ausquels on ne propose pour toute une
beatitude que l`honneur, et pour toute perfection que la vaillance.” MONTAIGNE, II, 17, p. 658.
103
Como nos mostra Luiz Eva, do ponto de vista da postura servil dos pseudo sábios do presente,
essa avaliação positiva de Montaigne quanto ao modo de filosofar dos antigos não levava em conta
a distinção entre as posturas diferenciadas de dogmáticos e céticos. O essencial aqui não era a
oposição entre o modo cético e o modo doutrinal de filosofar mas sim entre a boa filosofia e a
pseudo filosofia do presente, ligada às marcas externas de erudição. EVA, L., op. cit., p. 233.
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próximo dos antigos do que dos homens que lhe cercavam. E, como já vimos, ao
longo do ensaio, foi recorrendo a detalhes diversos referentes a grandes
personagens da Antigüidade que ele animou e autentificou seus próprios traços no
autoretrato
104
, tais como um pequeno gesto de Alexandre
105
; a baixa estatura de
Filopêmen
106
; a ousadia de Lucílio em falar de si mesmo e confessar às páginas de
seu livro a expressão do modo como “se sentia ser”.
107
Nesse contraste profundo entre as insuficiências dos personagens do
presente e a perfeição das almas do passado, entretanto, Montaigne marcou a
importante exceção de La Boétie, seu grande amigo, que possuía o mesmo grau de
excelência dos antigos, e era portanto um exilado em seu próprio tempo tal como
ele mesmo. La Boétie seria o interlocutor ideal de Montaigne caso estivesse vivo,
pois se tratava de “un`ame à vieille marque
108
:
E o maior que conheci vivo, digo quanto às qualidades naturais da alma e o
mais bem nascido, era Etienne de La Boètie: era verdadeiramente uma alma
plena e que mostrava uma bela face em todos os sentidos; uma alma da espécie
antiga e que teria produzido grandes obras se a fortuna assim tivesse desejado,
tendo acrescentado muito a essa rica natureza por meio de conhecimento e
estudo.
109
Mas, apesar de desprovido de interlocutor e de admitir jamais ter tido a
familiaridade necessária com homens notáveis, para julgá-los à sua maneira - ou
seja, para além das aparências externas -, ele atestou a solidez de seu jugement
louvando de maneira imparcial a glória de alguns dos heróis de seu tempo por
deterem determinadas qualidades excelentes, que também os aproximava bem
mais das virtudes dos antigos do que dos vícios de sua época. Entre essas
qualidades, celebrou a coragem do duque de Alba, o general espanhol que por
fidelidade ao seu rei, mesmo em extrema velhice, não hesitou em investir com
toda força contra o exército vitorioso da França. Elogiou também o grande talento
dos poetas Ronsard e Du Bellay, cujas obras estavam no mesmo patamar da
104
Sobre isso ver NAKAM, G., op. cit., p. 184.
105
Ver p. 162.
106
Ver p. 175.
107
Ver p. 161.
108
Ver sobre esse assunto o capítulo Da amizade (I, 29).
109
“Et le plus grande que j`aye conneu au vif je dis des parties naturelles de l`ame, et le mieux né,
c`estoit Etienne de La Boétie: c`estoit une ame pleine et qui montroit un beau visage à tous sens;
une ame à vieille marque et Qui eut produit de grands effets si la fortune l`eust voulu, ayant
beuacoup adjousté à ce riche naturel pas sciense et estude.” MONTAIGNE, II, 17, p. 658.
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perfeição dos antigos. Ergueu ainda, num acréscimo posterior a 1588, um epitáfio
ao grande guerreiro senhor de La Noue, cuja constante bondade, moderação de
atitudes e tolerância o haviam feito também um exilado na França de seu tempo,
no que dizia respeito às coisas da guerra.
A referência a ele - que como afirmou G. Nakam
110
é um dos raros elogios
fúnebres feito nos Ensaios aos homens de sua geração - fazia ressaltar com mais
força a crueldade, a injustiça e o banditismo dos conflitos civis que marcavam a
época. Assim como também, por contraste, a figura solitária de Montaigne, que
recusando a glória em nome da apropriação de sua verdade, contemplava a
imagem de uns poucos heróis de seu tempo, com sua imaginação repleta da
grandeza dos espíritos do passado.
111
No fim do ensaio, sua solidão filosófica na biblioteca do castelo deixava o
reconhecimento de uma presunção relativa, inscrita num tempo detestável de
decadência e de perversão. Quanto a saber se isso era ou não suficiente para
atestar uma inclinação oculta e natural de seu temperamento a esse excesso e se
era essa glória que animava sua empresa de descrever-se, ele deixou que seu leitor
julgasse por si mesmo. A Montaigne cabia somente exibir-se em sua verdade e
aderir por inteiro a ela a cada instante, apesar de sua contingência e de sua
fragilidade, que a tornava sempre aberta a novas considerações.
110
NAKAM, G., op. cit., p. 184.
111
Idem.
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6.
CONCLUSÃO
Seguindo os rumos de suas reflexões, sem pretender enunciar uma verdade
última que contribuísse para fixar no livro uma imagem exemplar de si,
Montaigne atualizava a intenção afirmada no proêmio, de deixar de lado as
cerimônias para levar a cabo a empresa anunciada desde a Advertência ao leitor,
de representar-se “ao vivo”, numa coleção de registros de seus traços e humores:
“que par ce moyen ils nourissent plus entiere et plus vifve, la connoissance qu`ils
ont eu de moy.”
1
Como dizia nessa passagem de Da presunção, era a preocupação em
obedecer às cerimônias que fazia com que as palavras dos homens jamais se
ativessem à substância das coisas – “le tronc et le corps” - e que se agarrassem
somente ao vazio das aparências “aux branches”
2
. Ou seja, antes à consideração
dos modos como falavam, para que pudessem angariar a aprovação do mundo, do
que à franqueza de suas palavras. Assim, valorizando mais a franqueza que a
obediência às cerimônias, para apreender-se em sua verdadeira substância, ele se
limitou a fornecer aos seus interlocutores indícios seus sobre os quais refletir por
si mesmos, recusando-se a enunciar uma falsa palavra de autoridade que lhes
limitasse a atividade natural do juízo assim como dele próprio enquanto autor.
Procedendo desse modo, com efeito, conferiria ao seu discurso a beleza de um
encadeamento coerente e linear e estaria em harmonia com os preceitos da
dispositio” dos retores, mas porém, em desacordo com a autêntica natureza de
sua experiência interior. A ele, enquanto autor de um autoretrato, cabia, ao
contrário, adequar-se a ela e gerar assim, uma composição que se colocava fora
dos padrões usuais, didáticos e estéticos que regulavam as relações entre autor e
leitor, fundadas, como já vimos, na troca entre a instrução e o elogio, que fazia a
fama do autor como exemplo de sabedoria.
1
Ver p. 90.
2
Ver p. 159.
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196
Escrevendo externamente aos modos convencionais, portanto, Montaigne
não se responsabilizava pelo sentido que fosse conferido à expressão de seus
pensamentos. Investigando a si mesmo para mostrar-se isento dos excessos da
glória e da presunção, não procurava declarar-se possuidor de uma sabedoria
extraordinária. Deveria sê-lo, com efeito, para erradicar inteiramente da alma este
vício reconhecido enfaticamente desde os primeiros humanistas como natural e
profundamente arraigado no espírito humano, manifesto tanto entre os homens do
presente como entre os homens do passado. Provar enfim que não tinha essa
ambição de engrandecer-se não levava Montaigne a acreditar-se portador de uma
certeza acerca da melhor maneira de combater a vã glória e ao desejo de transmitir
ao seu leitor esse alto saber. Com efeito, lhe deixando livre para julgar, concedia a
este o direito de concluir que era um presunçoso, e que se não enunciava ali uma
certeza doutrinal e não concedia autoridade às suas afirmações, sua autodescrição
era frívola, feita somente para vangloriar-se. Seu leitor assim, deveria sentir-se no
pleno direito de irritar-se com sua ousadia e fechar o livro.
Mas, por outro lado, podia também, confiar em sua profissão de “bonne
foy”, compreender e aceitar o convite à boa filosofia da investigação com que os
Ensaios lhe acenavam. Na passagem sobre a crítica das cerimônias – que
escolhemos como mote dessa nossa parte conclusiva -, Montaigne desdenhou a
ignorância e criticou a impostura moral daqueles que eram incapazes disso e que,
portanto, não podiam ser seus interlocutores. Estes eram os que tomavam a
obediência externa às conveniências como medida do valor moral: “La ceremonie
nous deffend d`exprimer par parolles les choses licites et naturelles, et nous l`en
croyons; la raison nous deffend de n`en faire point d`illicites et naturelles, et
personne ne l`en croit.” Antepondo o valor das cerimônias ao da conduta franca,
segundo a própria razão e dando mais importância às palavras de um homem do
que à retidão de seus costumes, eles só poderiam enxergar de modo equivocado o
discurso de Montaigne, entendendo como vício o que era apenas a representação
de seus traços naturais.
De fato, é verdade que não havia nos Ensaios o desenvolvimento serial de
uma argumentação, mas era possível porém, descobrir uma certa lógica na
sucessão de seus percursos e enunciados, ainda que esta estivesse a serviço da
ênfase no caráter contingente de suas afirmações. Àqueles que não buscassem
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respostas instrutivas e exemplares, mas entendiam que o essencial dessa leitura
era não estacar a atividade investigativa da razão, mas ativá-la a todo momento,
Montaigne oferecia a oportunidade de reconhecer os pontos em que se
enunciavam suas idéias mais firmes e gerais, que reapareciam repetidas vezes.
3
Elas se revelavam constantes na própria mobilidade de seu pensamento
dispersando as prováveis suspeitas de presunção.
Era sobretudo combinatória a lógica de sua meditação, formando pontos
de convergência nos quais suas asserções corroboravam-se lateralmente,
reforçando-se em meio à miscelânea de seus materiais. Por isso, para uma leitura
mais adequada dos Ensaios acreditamos útil e necessário retomar, por vezes,
passagens anteriores, reconstituir e enriquecer seus sentidos diante das afirmações
posteriores, a fim de apreender a expressão das idéias de Montaigne
surpreendendo-as em sua própria mobilidade natural. Seu registro, atendia assim,
ao intento de reproduzir sua verdade viva, na própria substância de sua
experiência. Esse intento se cumpria no modo como a formulação de suas
perspectivas era indissociável da expressão dos caminhos da meditação e dos
ensaios do jugement pelos quais as fazia suas, concebendo a realidade das coisas
dentro das medidas naturais de sua razão.
Ao longo dos dois ensaios aqui analisados, Da glória e Da presunção é a
afirmação de lealdade e franqueza que parece ressurgir com mais freqüência,
pontuando os rumos da reflexão de Montaigne. Ela funciona como pano de fundo
contra o qual se destacam em cores vivas os vícios de sua época, marcados pelo
hábito generalizado da dissimulação. A difusão deste hábito tinha então como
princípio as ambições desmedidas de seus contemporâneos, de pretender fazer-se
conhecer não em sua verdade, mas pela glória imortal de grandes feitos ou de
obras primas literárias e artísticas, que os tornavam mais perfeitos aos olhos
alheios, tidos como modelos de excelência perfeita dignos de ser imortalizados
Esse princípio da lealdade solicitado e reforçado pela crítica da glória,
como sabemos, é de fundamental importância nos Ensaios, e aparece ainda em
numerosos capítulos, desde a declaração de “bonne foy” de sua página de
abertura. A exigência de veracidade talvez seja a única proposição que se repete
3
TOURNON, A., op. cit., p. 176.
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sem qualquer alteração nem equívoco pois ela dá caução à obra, apresentada como
testemunho e revelação de si em todos os seus desenvolvimentos.
4
Entretanto, solicitada pela crítica do vício da glória tal exigência parece
consolidar-se da maneira mais expressiva. Com efeito, após atravessar a reflexão
dos dois capítulos, em declarações recorrentes Montaigne retorna a ela, para
conferir-lhe o papel central de tema do ensaio seguinte a Da presunção, Do
desmentir, em que mais uma vez focaliza o modo como a dissimulação tornara-se
comum à sua volta, deplorando a forte presença desse vício como marca da
decadência de seu tempo: “O primeiro indício da corrupção dos costumes é o
banimento da verdade; pois, como dizia Píndaro, o ser verdadeiro é o começo de
uma grande virtude (C) e a primeira condição que Platão impõe ao governante de
sua república.”
5
Conforme já declarava, por exemplo, nessa passagem de Da glória, não
era a presunção mas sua disposição e coragem de exibir-se em sua verdade -
qualidade tão rara de ser encontrada em sua época - que movia o desprezo pela
aprovação de outrem, de preferência a deixar-se levar pelas paixões dos bens do
mundo que tornavam os homens dúplices em suas palavras e em suas ações:
Não me preocupa tanto qual eu seja para outrem tanto quanto qual eu seja em
mim mesmo. Quero ser rico por mim, não por empréstimo. Os estranhos vêem
apenas os acontecimentos e as aparências externas; cada qual pode ter um ar
alegre exteriormente e por dentro estar cheio de febre e receio. Eles não vêem
meu coração vêem apenas meu comportamento
6
De fato, essa maneira de representar-se - fundando sua verdade no desdém
pelas marcas exteriores de sabedoria, que bem disporiam imediatamente a seu
favor o juízo alheio - , paradoxalmente, ao invés de significar uma exclusão
radical da relação com outrem, devia levar a uma maior abertura. Esta se definia
pela recusa em ter seus leitores como estranhos, que, conforme a passagem citada
acima, jamais iam além da consideração das aparências externas e da adequação
4
Idem, p. 186.
5
“Le premier traict de la corruption des moeurs, c`est le bannissement de la verité: car, comme
disoit Pindare, l`estre veritable est le commencement d`une grand vertu, (C) c`est le premier article
que Platon demande au gouverneur de sa republique.” MONTAIGNE, II, 18, p. 666.
6
“Je ne me soucie pas tant quel je sois chez autruy, comme je me soucie quel je sois en moy
mesme. Je veux estre riche par moy, non par emprunt. Les estrangers ne voyent que les evenemens
et apparences externes; chacun peut faire bonne mine au dehors, plein au dedans de fiebvre et
d`effroy. Ils ne voyent pas mon coeur, ils ne voyent que mes contenances” Idem, II, 16, p. 625.
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às conveniências do mundo – “Ils ne voyent pas mon coeur, ils ne voyent que mes
contenances.” A própria maneira da composição de seu discurso deveria levá-los a
se posicionar como amigos e parentes próximos, capazes de ver seu coração e de
estabelecer um comércio vivo com ele, através do conhecimento de seus humores
e inclinações, apreendidos em sua substância viva na escrita.
7
Mais adiante, em Da presunção, ao pintar seu autoretrato moral,
Montaigne reforçou a aversão natural de seu temperamento ao vício da
dissimulação que servia aos excessos das ambições, se interpondo entre os
homens e presidindo suas relações: “(...) quanto a essa nova virtude de fingimento
e de dissimulação, que atualmente está tão em voga, abomino-a mais que tudo (...)
Minha alma por sua constituição, rejeita a mentira e detesta até mesmo pensar
nela.”
8
A rejeição da mentira nos Ensaios, em suma, implicava num discurso
exclusivamente a serviço da disposição de examinar-se a si mesmo e de indagar-
se a todo instante para conhecer-se e conduzir-se de acordo com sua razão, ou
seja, com os modos como “se sentia ser”. Assim, o que sua escrita perdia em
coerência discursiva e em poder de síntese e de demonstração, ganhava pelos
efeitos de insistência
9
, em afirmações de sua sinceridade que se retomavam e se
desenvolviam no interior de seu discurso, e especialmente nos ensaios que
tomamos aqui como objeto, centrados na crítica da glória. De fato, o tema tinha a
prerrogativa de situar Montaigne em sua condição de escritor, tanto diante de si
mesmo e de suas motivações como diante de seus leitores, intimados de maneira
insistente a dar crédito a autenticidade de suas proposições.
Com efeito, essa reflexão não se dava por esgotada ao fim de Da
presunção. No ensaio seguinte Do desmentir ele deu continuidade a ela. Enfim,
reforçava, o desejo de celebridade póstuma jamais poderia combinar-se ao seu
intento de registrar de maneira espontânea, seus comportamentos mais simples e
ordinários, para que sua escrita fosse capaz de produzir vida:
7
Ver item 4.1.
8
“(...) quant à cette nouvelle vertu de faintise et de dissimulation qui est à est à cet heure si fort en
credit, je la hay capitallement (...) Mon ame, de sa complexion. refuit la menterie et hait mesmes à
la penser.” Idem, II, 17, p. 647.
9
TOURNON, A., op. cit., p. 185.
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200
Não estou erguendo aqui uma estátua a ser plantada à entrada de uma cidade ou
numa igreja ou praça pública (...) Isto é para o canto de uma biblioteca e para
distrair um vizinho, um parente, um amigo, que terá prazer em voltar a
encontrar-me e a freqüentar-me nessa imagem. (...) Quanta alegria me causaria
ouvir assim alguém que me narrasse os hábitos, (C) a aparência, as atitudes, as
palavras habituais (A) e as fortunas de meus ancestrais!
10
Mas, de todo modo, era o próprio Montaigne o primeiro interlocutor dos
Ensaios. Como afirmava nesse significativo acréscimo a Do desmentir, a ausência
de leitores não levaria ao fracasso de sua empresa. Através dela ele buscava
apreender sua verdadeira forma, sanando a experiência do vazio e da
fragmentação que caracterizava sua vivência interior, apartada dos enganos do
mundo:
(C) E, mesmo que ninguém me leia, acaso terei perdido meu tempo ao entreter
tantas horas ociosas com pensamentos tão úteis e agradáveis? Ao modelar sobre
mim esta figura, tantas vezes tive de me ajustar e compor para transcrever-me
que o molde se consolidou e de certa maneira formou a si mesmo.
11
10
“Je ne dresse pas icy une statue à planter d`une ville, ou dans une Eglise, ou place publique (...)
C`est pour le coin d`une librarie, et pour en amuser un voisin, un parent un amy, qui aura plaisir à
me racointer et repratiquer en cett`image. (...) Quel contentement me seroit ce d`ouir ainsi
quelqu`un qui me recitast les meurs, (C) le visage, la contenance, les paroles communes (A) et les
fortunes de mes ancetres.” Idem, II, 18, p. 664.
11
“(C) Et quand personne ne me lira, ay-je perdu mon temps de m`estre entendu tant d`heures
oisifves à pensements si utiles et aggreables? Moulant sur moy cette figure, il m`a fallu si souvent
dresser et composer pour m`extraire, que le patron s`en est fermy et aucunement formé soy-
mesmes.” Idem, p. 665.
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