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UNIVERSIDADE DO RIO DE JANEIRO
A BUSCA POR UM TEATRO DA NÃO-REPRESENTAÇÃO
uma perspectiva filosófica da arte do ator
FERNANDA COUTINHO BOND
2008
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UNIVERSIDADE DO RIO DE JANEIRO
CENTRO DE LETRAS E ARTES
Programa de Pós-Graduação em Teatro
2008
FERNANDA COUTINHO BOND
A BUSCA POR UM TEATRO DA NÃO-REPRESENTAÇÃO
uma perspectiva filosófica da arte do ator
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa de Pós-graduação em Teatro,
Universidade do Rio de Janeiro, como
parte dos requisitos necessários à
obtenção do título de Mestre em Teatro.
Orientador: Charles Feitosa
Rio de Janeiro,
Março de 2008
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3
A BUSCA POR UM TEATRO DA NÃO-REPRESENTAÇÃO
uma perspectiva filosófica da arte do ator
FERNANDA COUTINHO BOND
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação
em Teatro, Universidade do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos
necessários à obtenção do título de Mestre em Teatro.
______________________________
Profª. Drª. Virgínia Kastrup
______________________________
Profª. Drª. Ângela Materno
______________________________
Prof. Dr. Charles Feitosa (orientador)
______________________________
Prof. Dr. Beatriz Resende (suplente)
4
Bond, Fernanda Coutinho
A busca por um teatro da não-
representação uma
perspectiva filosófica da arte do ator/Fernanda
Coutinho Bond. –
Rio de Janeiro:UNIRIO/CLA, 2008.
iv 114f
Orientador: Charles Feitosa
Dissertação (mestrado) – UNIRI
O/CLA/Programa
de pós-graduação em teatro, 2008.
Referências bibliográficas: f. 112-114.
Ator. 2. Século XX. 3. Deleuze. 4. Devir 5. Corpo sem
órgãos 6. trágico I- Feitosa, Charles. II – Universidade
do Rio de Janeiro, Centro de Letras e A
rtes, Programa
de pós-graduação em teatro. III – A busca por um
teatro da não-
representação uma perspectiva filosófica
da arte do ator.
5
Resumo
A presente dissertação busca empreender uma reflexão teórica acerca do trabalho do ator a
partir da filosofia deleuziana e nietzschiana sobre a arte. O enfoque desta pesquisa é o ator
fruto de experiências teatrais do século XX que usaram seus esforços para criar uma
alternativa ao teatro enquanto mimesis do mundo real. Ao estabelecer relações entre estes dois
campos do saber, a Filosofia e o Teatro, esta pesquisa pretende refletir sobre o estar em cena e
sobre as práticas que contribuem para que o ator saia do seu estado cotidiano. Utilizando
como referência os conceitos de Devir e Corpo sem órgãos em Deleuze e o Trágico em
Nietzsche pretende-se abordar a questão do ator como criador de um novo estado de ser. O
objetivo deste estudo não é se deter especificamente em nenhuma técnica ou teoria, mas
transitar por diferentes estudos que tenham como foco o desenvolvimento da arte do ator não
naturalista, estabelecendo as aproximações e ressonâncias entre este tipo de teatro e os
conceitos filosóficos citados.
Palavras-chave: Ator; Século XX; Deleuze; Devir; Corpo sem órgãos; trágico
Abstract
The present dissertation seeks the undertaking of a theoretical reflection on the Actors’ work
from the Deleuzian and the Nietzschian philosophy over art. This research focuses on the
Actor as a result of the theatrical experiences from the 20
th
century. Those made use of their
efforts in order to create an alternative to theatre as the mimesis of the real world. By
establishing connexions between the fields of Philosophy and Theatre, this research aims to
promote a reflection over performing and also over the practices that incites the Actor to
abandon his ordinary everyday state. The intention is to approach the Actor as a creator of a
new state of being, taking as a reference the concepts of Deleuze’s Becoming and Body
Without Organs as well as Nietzsche’s Tragic. The main goal of this study is not to be
specifically detained in any techniques or theories, but rather to transit through distinct studies
that are focused on the development of the non-naturalist Actor’s art, establishing the
proximities and resonances between this kind of theatre and the cited philosophic concepts.
Key words: Actor; 20th century; Deleuze; Becoming; Body Without Organs; Tragic
6
Se eu me confirmar e me considerar verdadeira, estarei perdida porque não
saberei onde engastar meu novo modo de ser se eu for adiante nas minhas
visões fragmentárias, o mundo inteiro terá que se transformar para eu caber
nele.
Clarice Lispector
7
A
GRADECIMENTOS
À Nina, minha filha, que nasceu no meio dessa empreitada e transformou
definitivamente a minha vida e o meu modo de ver o mundo.
Ao Vinícius, meu amor e companheiro, que me ajudou também nesse “parto”,
seja cuidando da Nina para que eu pudesse trabalhar, seja passando a noite em
claro a revisar o texto. Sempre presente, sempre junto.
Ao Charles Feitosa, meu orientador, por acreditar nas minhas idéias e respeitar
as minhas escolhas.
Ao Roberto Machado, pela orientação inicial, pelas conversas, pela
generosidade, pelos cursos memoráveis e por me revelar o universo deleuziano.
À Virgínia Kastrup, por me fazer ver que a Psicologia pode não ser algo
limitado a uma afirmação do eu e por me introduzir às minhas mais importantes
referências teóricas hoje.
À minha mãe, pela inspiração. Por ter me ensinado a viver com paixão, entrega
e intensidade.
Ao meu pai, pela sua confiança e amor
À Clarice, minha amiga querida, que se debruçou sobre este trabalho, com
comovente generosidade, e me forneceu o tão precioso olhar “de fora”.
À todos aqueles que, de alguma maneira, me inspiraram e me apoiaram durante
este período de “gestação
8
SUMÁRIO
RESUMO v
INTRODUÇÃO 9
Capítulo I – A renovação da arte do ator no século XX 14
A atuação naturalista 14
O encenador moderno e a reformulação da arte do ator 17
A busca por novas linguagens e por um novo ator 19
O “princípio de atualidade” e o teatro acontecimento 31
O
teatro sagrado e o teatro do cotidiano 33
O ator amador e o ator profissional 37
Capítulo II – O ator e o devir- uma crítica ao teatro da representação 41
O devir 41
O ator-criador e o devir 44
O teatro da não-representação 47
O ator e a ação real – experimentação X interpretação 52
A perda do rosto 53
O devir-personagem 61
Capítulo III– O ator e a criação do corpo cênico 66
O teatro do corpo sem órgãos 66
O corpo cênico: a construção de um novo corpo 70
O corpo paradoxal e a problemática corpo/pensamento 77
O pensamento encarnado 81
Capítulo IV – O ator entre a forma e a força 87
Nietzsche e a arte trágica 88
Do dionisíaco puro ao dionisíaco artístico ou a peste e o ator 92
A experiência trágica no ator 95
A partitura e o fogo 101
CONCLUSÃO 106
BIBLIOGRAFIA 112
9
INTRODUÇÃO
Este trabalho é fruto de uma aproximação entre arte e filosofia, e mais especificamente,
entre o trabalho do ator e a abordagem deleuziana sobre a arte. Ao estabelecer relações entre
estes dois campos do saber esta pesquisa pretende refletir sobre o estar em cena, sobre o que
está em jogo quando uma pessoa disponibiliza seu corpo e sua subjetividade para criar uma
nova forma de existência, uma nova realidade. Neste sentido, o enfoque desta pesquisa é o
trabalho do ator sobre si mesmo, tudo o que contribui para que o ator saia do seu estado
cotidiano e se torne um outro. Mas o que define o trabalho do ator? Se o ator cria algo a partir
de seu corpo, a partir de sua subjetividade, então ele precisa enfrentar um processo de
reconstrução subjetiva? Ou é sempre ele em diferentes situações? Quando ele cria, o que ele
cria? Qual é a relação entre a sua produção e a vida? Ele reproduz a vida? Ele constrói uma
outra vida? Ele vive verdadeiramente quando está em cena?
Para iniciar essa discussão é importante definir o que é um ator. Importante porque
dentro do que se chama “ator” existe uma grande diversidade de práticas e formas de pensar
que levam a caminhos e resultados os mais diferentes. O ator, objeto de estudo deste trabalho,
é o ator autocriador, inventor de outros estados de ser; e desta forma inventor de novas
possibilidades de mundo; um ator que desenvolve um poder de atuação sobre o corpo como
forma de acesso a novas modalidades de existência. Esta maneira de pensar o ator coloca em
cheque o conceito de teatro como representação de algo que é externo a ele, o teatro como
tradução cênica de um texto escrito ou como ação mimética da realidade.
Este tipo de ator, ao qual nos referimos e que nos interessa para este trabalho, é
idealizado por muitos pensadores do teatro, principalmente a partir da segunda metade do
século XX. Eles contribuíram de forma definitiva para a construção desta nova maneira de
pensar o ator. Estes autores deram uma ênfase muito grande ao treinamento físico-imaginativo
nas suas escolas e laboratórios, como forma de fazer o ator se conscientizar de suas
10
possibilidades expressivas, em grande parte inexploradas, e que estão a sua disposição, dando-
lhes, assim, condições de poder se transformar de um “interprete-executor” em um “criador”
1
.
O fato de o ator passar a trabalhar com todo o seu corpo e de prepará-lo tecnicamente
para criar algo diferente de si e de sua realidade cotidiana, é o foco do trabalho deste tipo de
ator, condição para que ele não repita simplesmente sua forma pessoal e ao mesmo tempo não
esteja preso a uma verossimilhança em relação ao mundo. É essa qualidade de atuação que
será valorizada e tematizada ao longo do trabalho. É importante deixar claro queo é
objetivo deste estudo se deter especificamente em nenhuma técnica ou teoria, mas transitar
por diferentes estudos que tenham como foco o desenvolvimento da arte do ator
estabelecendo as aproximações e ressonâncias entre este tipo de teatro e determinados
conceitos filosóficos.
Mas por que Deleuze? Por que utilizar os conceitos delezianos para pensar o trabalho
do ator? Sabemos que Deleuze falou muito pouco sobre o teatro. Os seus textos sobre a arte
discutiram principalmente a literatura, o cinema e até a música e as artes plásticas. É verdade
que escreveu sobre Carmelo Bene e Becket “Um manifeste de moins” e “L’épuisé”
respectivamente - mas mesmo nesses textos o enfoque da discussão era mais a dramaturgia e
não tanto a cena. O que parecia interessar Deleuze era o texto, a literatura dentro do teatro.
Ele chegou mesmo a afirmar, no documentário “Abecedário de Deleuze”
2
, que não gostava
da arte teatral. Então por que usá-lo como interlocutor?
Essa insistência, para além de qualquer evidência, tem a sua razão de ser. Deleuze é
um filósofo da diferença, que construiu a sua obra a partir de uma crítica à representação, à
identidade, à semelhança, valorizando o imediato e o singular, criticando a filosofia da
representação pela tentativa de subordinar as diferenças ao idêntico e criar um mundo estático
1
Marinis,Copeau, Decroux et la naissance du mime corporelin Étienne Decroux, mime corporel, p. 274.
2
Abecedário de Deleuze, documentário dirigido por Claire Parnet.
11
e mediatizado. “O verdadeiro movimento seria baseado na imediateidade da diferença, ao
passo que, a verdadeira liberdade seria possível no formigamento de diferenças
desconectadas do idêntico”.
3
Deleuze abandona a concepção de um sujeito fechado em si
mesmo e do pensamento como sendo fruto desse sujeito, como sendo uma representação do
mundo; para ele o ser é um ser de devir e o pensamento é também devir, em constante
confronto com forças externas e não recolhido em uma forma interior.
Apesar de Deleuze ser o foco, também serão discutidos conceitos nietzschianos e
foucaultianos ao longo do trabalho, sempre, de alguma maneira, relacionando esse autores
com o pensamento deleuziano da diferença. A filosofia da diferença nos um material
riquíssimo para pensar o trabalho do ator justamente porque no âmago da questão está uma
crítica à imobilidade do sujeito e do mundo. Ora, se o mundo é imutável e o sujeito
inabalável, o teatro nada mais pode fazer a não ser copiar este mundo e ao ator resta
permanecer o mesmo e ter a si como modelo. O ator para ser um ator-criador deve apostar na
diferença. Quando este ator realiza um trabalho sobre si é justamente para se libertar do
modelo, para se reinventar, para tornar-se outra coisa, devir outro. Neste sentido,
problematizar a identidade e a representação é acreditar na multiplicidade das formas e na
construção de novas qualidades subjetivas. Se o projeto deleuziano era “abolir as noções de
original e derivado, de modelo e cópia, e a relação de semelhança entre esses termos na
medida em que tal tipo de pensamento reduz necessariamente a diferença à identidade”
4
, o
projeto do ator-criador também está direcionado para uma luta contra a idéia de identidade,
contra o teatro como representação, cópia de um suposto modelo.
Deleuze persegue uma filosofia, que como em Nietzsche, produz um “movimento
real”, um “movimento capaz de comover o espírito fora de toda representação”
5
. O teatro que
nos interessa é também real, busca a ação direta e sem mediações. Ao passo que o teatro da
3
Feitosa,Para além da dialética: o anti-hegelianismo de Nietzsche e Deleuze, p. 13.
4
Machado, Deleuze e a filosofia, p. 34.
5
Deleuze, Diferença e repetição, p. 32.
12
representação, tanto para a filosofia quanto para o teatro, está comprometido com a
representação do mundo dado, com a tentativa de ilustrar e mediatizar as experiências, no
lugar de criá-las.
Desenvolvemos este projeto em três capítulos. Todos os capítulos têm como objetivo
desenvolver um estudo acerca do trabalho do ator, cada um enfocando um aspecto deste
trabalho, a saber, o ator como experimentador, a construção de um novo corpo cênico, e a
relação entre a técnica e a criação, respectivamente.
“No primeiro capítulo, “A renovação do ator no século XX”, foi traçado um breve
histórico sobre a arte da atuação. A partir de uma crítica as bases da interpretação naturalista,
o capítulo tem como objetivo delimitar teoricamente o ator foco de atenção do presente
estudo. O foco desta dissertação é o trabalho e formação do ator enquanto criador de uma
realidade cênica que se desapega da exigência de representar o mundo dado. Propõe-se
afirmar que a influência do naturalismo na atuação não permitiu, ao ator, utilizar de maneira
ampla seus recursos cênicos e a teatralidade, pois se baseia numa mimesis do mundo real.
Como reação a esta limitação, importantes pensadores do teatro apostaram na investigação de
novas linguagens que tem o ator como principal elemento de transformação.
No segundo capítulo, “O ator e o devir - uma crítica ao teatro da representação”,
analisaremos o trabalho do ator-criador a partir da experiência do devir, apostando nesta
relação para introduzir a idéia de um teatro da não-representação. Pensar um ator como um
ser em devir, que é capaz de se transformar em outro, é acreditar na possibilidade do teatro
produzir um descentramento subjetivo, que produz um abalo na forma pessoal e no
fechamento do sujeito.
O terceiro capítulo, “O ator e a invenção do corpo cênico”, trata da (des)construção do
corpo do ator. Partindo de uma análise das idéias elaboradas por Artaud e Deleuze acerca do
corpo sem órgãos, pensaremos o trabalho do ator sobre seu próprio corpo. Se o corpo sem
13
órgãos é um conjunto de práticas que se destina a desfazer o organismo e a criar um novo
corpo, o ator, visto a partir deste ponto de vista, deve buscar se livrar de seu corpo/organismo,
impregnado de velhas representações e automatismos, e construir também um novo corpo.
Finalmente, utilizaremos o conceito de “corpo paradoxal” e a problemática corpo/pensamento
com o objetivo de refletir sobre a arte do ator a partir da quebra da dicotomia mente/corpo.
Esta quebra, que implica a constituição de um corpo-espírito, é condição concebida, por
muitos teóricos do teatro, como fundamental para a conquista da presença cênica.
No quarto capítulo, “Por um ator trágico”, através do estudo do pensamento de
Nietzsche, relacionado à arte trágica, analisaremos a experiência trágica no ator. Os elementos
presentes no trágico fornecem um ponto de partida para pensarmos a relação entre a técnica e
a criação. Se o trágico pressupõe, para ser uma arte, a união entre a forma apolínea e a força
dionisíaca, o ator também deve aliar a forma engendrada pela técnica e a partitura com a força
inventiva que derruba qualquer forma pré-estabelecida.
14
CAP I –A RENOVAÇÃO DA ARTE DO ATOR DO SÉCULO XX
As grandes teorias modernas sobre a arte de representar se construíram a partir de uma
critica às bases da interpretação tradicional e apresentaram propostas que visavam reformular
a arte do ator. Essas teorias contribuíram para uma mudança tanto técnica quanto estética, que
se deu a partir da descoberta e exploração de novas possibilidades e caminhos para a atuação
6
.
A atuação naturalista
Enquanto a arte teatral manteve-se voltada para o pensamento aristotélico - que é a
base da interpretação tradicional - tudo o que dizia respeito à cena era posto de lado e a
representação propriamente dita não tinha um lugar privilegiado. Nesta concepção, o ator
estava subjugado à arte do bem dizer, a uma utilização mecânica dos códigos e o texto era o
centro da representação. Daí ser conhecido como o teatro das convenções. A arte do ator,
enquanto parte integrante da pesquisa cênica, passou a ser teorizada e discutida, como
vemos na atualidade, após a queda da hegemonia da influência de Aristóteles.
A estética naturalista se construiu como uma alternativa a este teatro das convenções e,
neste sentido, teve uma função decisiva para o teatro de sua época, focando primordialmente a
cena. O naturalismo foi fundamental para pensar o teatro a partir da representação e não
somente através da escrita dramática. As técnicas que surgiram a partir desta estética
contribuíram para a transformação do teatro, distanciando-o de uma formalidade enrijecida e
repetitiva, própria da atuação tradicional
7
.
Stanislavski, diretor russo do começo do século XX, um dos primeiros homens de
teatro a propor uma sistematização ao treinamento do ator, estava muito influenciado pela
6
Roubine, A linguagem da encenação teatral, p. 147
7
Roubine. Introdução as grandes teorias do teatro, p. 118,119
15
estética naturalista. A técnica do ator proposta por ele visava eliminar o formalismo e
aniquilar os estereótipos, as convenções e os automatismos, grandes responsáveis por
conduzir “o ator ao exibicionismo, a uma interpretação pouco sincera. (...) A arte de viver um
papel é uma violenta rebelião contra os princípios tradicionais da interpretação.”
8
Stanislavski defendia o reviver no lugar de representar, acreditava que o ator deveria aprender
a utilizar a emoção verdadeira, fruto de sua experiência mais íntima, para construir o
personagem.
Levando em consideração o contexto histórico ao qual Stanislavski estava inserido,
podemos compreender que sua proposta de psicologização do personagem era, num certo
sentido, uma reação a um teatro que não tinha nenhuma preocupação com verossimilhança ou
verdade. Se por um lado o naturalismo aprisionava a cena no mundo da semelhança e da
verossimilhança, por outro libertava o teatro de determinados vícios que há muito dominavam
o meio teatral. Contudo, pretendemos aqui desenvolver a hipótese de que a influência do
naturalismo no trabalho do ator acabou por não permitir que se lançasse mão dos infindáveis
recursos da teatralidade, estando sempre em prol de uma mimesis do mundo real.
No teatro ocidental, marcado pela estética naturalista, o ideal dos atores passa muitas
vezes por uma imitação que procura colocá-los tão próximos quanto possível de uma verdade
psicológica do personagem. O valor artístico que se à imitação na arte está associado ao
movimento que é próprio da “cultura burguesa”.
9
O gosto pela identificação com o
personagem, o desejo de se ver em cena, a busca dos valores e sentimentos, a psicologização e
crença em um eu interiorizado são características marcantes dessa cultura. É numa época de
expansão da burguesia que se deu o fechamento do problema do ator “ nos limites de um
debate psicológico sobre a verossimilhança “. A arte teatral do ocidente é uma arte
8
Stanislavski, A Construção do personagem
9
Barthes, Escritos sobre teatro p.220
16
eminentemente burguesa, realista, que coloca o ator e o espectador reféns de uma visão
psicológica do papel.
Na sociedade pré-burguesa, o ator, não sendo considerado cidadão, permaneceu num
estatuto de exclusão fruto do “mito de possessão”.
10
. Neste mito,o ator é visto como um
feiticeiro, alguém que é possuído por outros seres. Ele é aquilo que o resto da sociedade não é,
está a sua margem. Nesse sentido, exerce uma função complementar, a função da minoria
11
,
contribuindo, com a sua exclusão, para formar um organismo social equilibrado. Ele fixa
aquilo que a sociedade não ousa ser e com isso representa e exorciza seus riscos. Este estigma
era de ordem social e religiosa. O ator não fazia parte da sociedade civil ou da comunidade
religiosa, tratava-se de uma exclusão explícita e direta.
Na sociedade moderna dessacralizada, o “mito da possessão” ganhou um novo estatuto
ao ser racionalizado, civilizado e transformado no “mito da naturalidade”. Enquanto no “mito
da possessão” o ator era “invadido” por forças ocultas, no “mito da naturalidade” ele é
possuído por seu personagem, sem, no entanto, deixar à mostra os sinais dessa possessão. Ao
atuar de acordo com este novo mito, o ator submete-se ao modelo da possessão e da
naturalidade, o que acaba, necessariamente, por limitar e gerar uma imobilidade em sua arte.
Como é possível uma saída para essa imobilidade?
“Encontrar a liberdade, para o ator, pode ser colocar-se abertamente no palco como ator,
como intérprete, nem totalmente ele próprio, nem totalmente o personagem : não pode haver
desmistificação mais segura do seu ofício”.
12
A tentativa de ultrapassar este ideal naturalista, que durante muito tempo norteou a
estética teatral, se principalmente a partir do rompimento com o realismo mimético.
13
A
10
Barthes, O mito do ator possuído, p. 220
11
Baseada em observações de lévi-Strauss, Barthes, O mito do ator possuído p. 220
12
Barthes, O mito do ator possuído p. 222
17
autonomia da imagem cênica com relação à realidade surgiu como possibilidade quando o
naturalismo passou também a ser alvo de críticas e questionado como única forma de trazer o
real para a cena. Ao longo do século XX, diversos importantes autores construíram sua
reflexão acerca da arte do ator protestando contra o ideal naturalista. De diferentes maneiras e
intensidades estes autores condenavam um tipo de interpretação preso à idéia de
verossimilhança e, portanto, condenado a repetir formas cotidianas e rotineiras.
O encenador moderno e a reformulação da arte do ator
A investigação teatral das vanguardas contemporâneas, desde o começo do século XX,
trabalha pela superação das convenções que reduzem o teatro a uma prática artística relegada
a uma mera reprodução mimética da realidade. Essa mudança se construiu de maneira
complexa e pode-se dizer que até hoje o naturalismo ainda tem um grande espaço no meio
teatral. Porém, atualmente já é possível uma concepção radicalmente diferente desta arte.
Uma das condições de possibilidade de superação do naturalismo é o advento da
figura do encenador teatral. A figura do diretor coexiste e não é incompatível, muito pelo
contrário, com o naturalismo. Porém, seu surgimento provocou mudanças na prática do ator
indispensáveis aos posteriores questionamentos do teatro mimético. Quando a figura do
diretor torna-se central na composição cênica, a representação passa a ser pensada como um
conjunto de práticas orquestrado por ele. O encenador entra em cena.
14
O surgimento desse elemento central modificou a dinâmica das relações dentro da
composição teatral. Algumas dessas mudanças foram fundamentais para o cenário teatral do
século XX como um todo. O objetivo é compreender a importância de alguns diretores, de
suas práticas e teorias, que buscam superar a interpretação naturalista. Para que possamos
13
Barthes, O ator sem paradoxo,in: , O mito do ator possuído p. 104
14
De marinis, Comprender el teatro p. 177
18
analisar posteriormente essas contribuições específicas colocaremos brevemente algumas das
transformações que esse novo “personagem” em cena provocou no que diz respeito ao ator e à
atuação.
O aparecimento da figura do diretor na cena teatral é diretamente responsável pelo
incremento da arte do ator.
15
Apesar de aparentemente servir como cerceadora da livre
manifestação da expressão artística em cena, o surgimento do diretor colocou em xeque uma
certa forma de atuação que valorizava o culto à personalidade e ao individualismo do ator,
aquele fruto do teatro de Boulevard, das vedetes e astros do século XIX. A interpretação
característica dos chamados “monstros sagrados” parecia estar além de qualquer técnica e o
que interessava era a simbiose constitutiva da personalidade do ator com seu personagem.
Esse tipo de trabalho de ator era incompatível com a idéia de submeter-se a uma encenação,
onde ele é uma parte do todo regido pelo encenador soberano. Assim, a personalidade
singular e excepcional do grande ator, marca de todo o século XIX, foi sendo gradativamente
enfraquecida. Houve uma reformulação da arte do ator, com a utilização de novos recursos e
técnicas, necessários a um aumento na variabilidade expressiva em cena.
Esta valorização da personalidade do ator enquanto a matéria mesma do seu trabalho
se desfez muito principalmente em função dos grupos permanentes de pesquisa.
16
O Théatre
du soleil e o centro coordenado por Peter Brook, por exemplo, duas grandes referências do
teatro atual, defendem o anonimato do ator. O vedetismo é fruto de um teatro de culto à
personalidade, onde o carisma teatral do ator concentra-se preponderantemente na voz e onde
o personagem e o texto são seus os grandes aliados. O novo ator é ao mesmo tempo menos
espetacular e mais virtuosístico. Em oposição à vedete que interpreta e se impõe através do
phatos, “esse ator novo é um ator sem rosto e sem voz”. Enquanto a vedete utiliza uma
estilização da dicção e uma vocalização, o ator novo domina técnicas que ela nunca seria
15
Roubine, A linguagem da encenação teatral, p. 147
16
Apesar de sabermos que os grupos permanentes, com um grau maior de comprometimento e com uma
pesquisa contínua, são raridades no mundo contemporâneo, Odete Aslan, O ator no século XX p. 310
19
capaz de executar. Este ator faz uso da “teatralidade do corpo” a partir de técnicas
acrobáticas, trabalho com máscaras e exploração de novos registros sonoros. De uma maneira
geral, as teorias do ator de hoje visam práticas coletivas que excluam o individualismo e o
narcisismo. E mesmo o vistuosismo desenvolvido é uma forma de tornar o ator um
instrumento disponível para as mais diferentes experiências e formas de teatralidade.
17
Além do enfraquecimento da supremacia do ator-personalidade, devemos também
atribuir ao aparecimento do diretor a tomada de consciência da importância de um elenco
permanente. Este caráter permanente se tornou um instrumento de trabalho e possibilitou a
pesquisa continuada de uma estética, de uma linguagem e de uma técnica. Enquanto o teatro
de boulevard mantinha a dinâmica do teatro comercial, que ainda hoje é muito comum e que
se caracteriza pela junção efêmera de profissionais em prol de um trabalho específico visando
o público, nada ou muito pouco, no que diz respeito à investigação de novas formas de
atuação, pôde ser trabalhado.
A busca por novas linguagens e por um novo ator
Analisamos o surgimento da figura do diretor como a condição de possibilidade para a
transformação da engrenagem teatral. Particularmente importante para presente pesquisa é a
possibilidade de investigação de novas linguagens, que tem o ator como foco principal,
inaugurada pelo encenador moderno. Alguns diretores, tais como Craig, Artaud, Grotowski,
Brook, Barba e Mnouchkine, apostaram no trabalho e na pesquisa do ator e da sua prática
como forma de superar a concepção teatral naturalista. A opção de discutir esses diretores,
entre outros tantos, é não perder de vista o foco dessa dissertação no trabalho e formação do
17
Roubine, A linguagem da escenação teatral, p. 175, 176
20
ator enquanto criador de uma realidade cênica que se desapega da exigência de representar
um mundo externo real, já visto, já vivido.
Uma grande referência nesse contexto é Edward Gordon Craig. Craig defendia o poder
absoluto do diretor na representação, a autoridade máxima do regente e a desobediência e a
autonomia do diretor frente ao texto. O ator, para Craig, deveria ser um instrumento nas mãos
do diretor, um ator utópico, livre de afetos, livre das imperfeições humanas e dotado de um
domínio absoluto das técnicas de atuação: a “supermarionete” de Craig.
A idéia da Supermarionete não é uma tentativa de eliminação da figura do ator, mas
trata-se do ideal que deveria ser o norte para seu trabalho. É uma marionete dotada de vida, de
paixão, porém rigorosamente controlada. « O comediante com fogo demais e egoísmo de
menos.
18
Craig protesta contra a reprodução decalcada e desajeitada da natureza, o tom
natural e todos os elementos que tentam levar a vida cotidiana para a cena. O ator é
identificado como o principal elemento responsável pelo grosseiro realismo em cena. No
lugar do ator, a cena deveria ser ocupada por uma personagem inanimada, a
“supermarionete”, sem as fraquezas e os frêmitos da carne do ator vivo, sem a vaidade e a
comoção, sem a confusão dos gestos, sem a oscilação incontrolável de humor. A
supermarionete “não rivalizará com a vida, mas irá além dela; não figurará o corpo de carne e
osso, mas o corpo em estado de êxtase(...)”
19
Craig, apesar de não ter formulado uma técnica para o ator que servisse de base para
sua idéia de atuação, teve uma importância substancial no modo de pensar essa arte. Suas
proposições acerca do ator tinham um cunho muito crítico e muitas vezes ofensivo. Contudo,
mesmo sem a sistematização de um método, um caminho estava sendo aberto para uma
atuação mais vigorosa. Muitos vêem esse caminho como uma negação da arte do ator, mas se
trata simplesmente de apontar alguns equívocos cometidos em demasia no teatro de sua
18
Craig in Aslan, O ator no século XX p. 99
19
Craig, Da arte do teatro p.111
21
época, o que o próprio autor deixa claro em suas críticas. Ele rejeita principalmente os clichês
e a má teatralidade e, neste sentido, rejeita no próprio ator aquilo que ele tem de incontrolável,
seus automatismos e o lado repetitivo de sua personalidade.
No teatro de Craig as palavras têm um valor menos importante do que a ação. Ele
determina ser necessário três quartos de ação e apenas um de palavras. Neste sentido, propõe
ao ator que não mais se deixe aprisionar pela idéias de um autor e pela tirania da dramaturgia.
Além disso, luta contra o realismo nas atuações, instaurando um “artificialismo consciente”.
20
Craig exige que o ator ultrapasse sua própria personalidade pois, segundo ele, quanto menos
um ator for ele mesmo mais se torna um ser humano.
21
Este apelo remete a uma outra crítica muito presente em seus escritos, o caráter
mimético da representação: “o desejo de identificação afetiva desemboca na incoerência (os
acidentes) ou nos estereótipos esperados pelo público”.
22
O ator imita as característica que ele
supõe que tenha o personagem e indica através de uma interpretação suas particularidades. A
confusão entre o interprete e o personagem e o tipo de representação que usa como base a
emoção descontrolada, apontam para um desejo de identificação afetiva que resulta em
estereótipos esperados pelo espectador. O ideal da supermarionete - um ator capaz de
alcançar este grau supremo de virtuosismo e domínio técnico, tal qual um instrumento a ser
manipulado - talvez se tratasse apenas de um mito pedagógico.
23
A supermarionete de Craig
nunca existiu, no entanto a direção de sua premissa tem um sentido de despersonalizar o ator,
de arrancá-lo da representação imitativa da vida e, neste sentido, ela abre caminho para uma
“intervenção criativa do novo ator”. Se por um lado Craig parece não apresentar uma visão
otimista acerca do trabalho do ator, seus escritos trazem críticas muito contundentes à falta de
rigor e ao espontaneísmo das formas de atuação. Ele , ao evocar a supermarionete, expõe seu
20
Odete Aslan, O ator no século XX p. 101
21
Idem, p. 106
22
Roubine, A linguagem da encenação teatral p. 153
23
Idem, p. 161
22
modo de pensar o ator e os caminhos possíveis para um ator-artista em oposição a um ator-
personalidade. O fato de Craig não ter concretizado a supermarionete não enfraquece sua
discussão sobre o ator. O caráter utópico dessa teoria não invalida a influência e contribuição
de sua visão do ator na história das teorias da representação.
Assim como Craig Antonin Artaud, é um pensador que marca a transformação recente
da arte do ator, inspirando muitas experiências posteriores. Assim como a supermarionete, o
ator artaudiano busca uma “ritualização do desempenho”. Tanto Craig como Artaud baseiam
suas teorias no “princípio da despersonalização”, onde o personagem (imitação) e o ator
(personalidade) ficam de fora. O que resta desta despersonalização, que não é nem o ator nem
o personagem, é o que interessa para esses autores. A diferença entre eles está mais no projeto
que fundamenta a prática do que nas práticas em si. Em termos de projeto, enquanto Craig
insistia na criação de um objeto perfeito, algo que se possa denominar obra de arte, Artaud
lutava por um “teatro-acontecimento” capaz de transformar o espectador.
24
Como Craig,
Artaud apostou na figura do diretor regente, dotado de poderes absolutos, como condição
para o resgate do sagrado no teatro. No caso de Artaud, o sagrado é a experiência dos limites,
é um ato de sacrifício. E neste sentido é um acontecimento real, não se reduz a uma
representação da vida, mas é a vida em sua potência máxima e distante das “irrisórias rotinas
miméticas” nas quais o teatro de sua época se encontrava preso.
25
Artaud considerava o ator como um atleta afetivo, onde a respiração tinha um papel
fundamental na aquisição de um estado. O corpo, o gesto eram a base da poesia do espaço e a
palavra deveria ser proferida como se ela tivesse o valor de um movimento. Sua crítica ao
teatro literário está relacionada à falta de novidade e às regras subjacentes a este tipo de teatro
que se prende a um texto pré-determinado. O teatro sofre uma “dupla alienação: submissão ao
significado ou à ressonância psicológica das palavras, submissão ao estereótipo mimético. Ou
24
Idem, p. 162
25
Roubine, Introdução as grandes teorias do teatro, p. 170
23
seja, as potencialidades do corpo e do gesto são deixadas estéreis pelo teatro ocidental e
condenadas à atrofia.”
26
Artaud recusava qualquer teatro governado pela psicologia e pelo
texto literário. Em oposição a isso ele propõe o teatro do acontecimento, com a recriação de
algo vivo.
Ele opõe, nos seus escritos, o ator dominado pelo realismo ocidental ao ator do teatro
oriental de Bali, onde o segundo possui uma gama de vocabulário corporal tão preciso e bem
estudado que qualquer espontaneísmo é eliminado. O teatro para ser renovado precisa voltar a
explorar determinadas potencialidades energéticas que o ator ocidental abriu mão de utilizar.
Este ator deve também poder entregar-se a uma disciplina física e vocal tão completas que
qualquer signo solicitado possa ser produzido.
O ator artaudiano, como um pestífero, um mártir queimado vivo, se oferece em
sacrifício. Contudo, esse sacrifício deve ser enquadrado num ritual e o ator deve controlar
todo o processo, conter a imprevisibilidade. “Trata-se de uma técnica que ele deve aprender
a dominar”. E é nesse sentido que o ator se diferencia do pestífero, o seu duplo simbólico.
Enquanto o pestífero se consome e definha o ator “ é ao mesmo tempo sacrificador e vítima”.
No entanto, Artaud não indica claramente quais as técnicas responsáveis por fazer o
ator controlar e amplificar essa força. Sua obra tem uma importância crucial para o trabalho
do ator, por fundamentar teoricamente um determinado tipo de teatro e de ator, mesmo que
não tenha, propriamente, construído uma técnica que possibilite a realização deste teatro.
Mas, apesar dos escritos de Artaud não definirem claramente uma práxis para o ator, eles são
mais efetivos do que muitos costumam acreditar.
27
No texto “Um atletismo afetivo”, Artaud
cria a base de um aprendizado para o ator de controle da energia e dos estados afetivos.
Algumas Importantes experiências posteriores, inspiradas nos escritos artaudianos,
buscaram concretizar cenicamente aquilo que objetivava sua obra. O living Theatre, o Bread
26
Roubine, A linguagem da encenação teatral p. 155
27
Idem, p. 164
24
and Puppet Theatre e Bob Wilson, são exemplos de grupos que têm em Artaud um norteador
de suas pesquisas.
28
. Também inspirado pelas idéias de Artaud, Peter Brook busca eliminar a
psicologia naturalista e procura inventar, com seus atores, uma linguagem de sons e gestos e
“tornar a palavra parte do movimento”.
29
O diretor polonês Jerzy Grotowski é considerado outra importante referência para esse
estudo por ter desenvolvido uma completa investigação sobre a arte do ator. Apesar de
tardiamente ter entrado em contato com “O teatro e seu duplo”, a obra principal de Artaud,
Grotowski se aproxima do teatro da crueldade de Artaud quando luta também pela
ressacralização do teatro e por conduzir manifestações que podem ser consideradas antes
rituais do que espetáculos. Assim como Artaud e os que nele buscavam aspiração, Grotowski
tinha um repúdio à mimesis e a simulação, armadilhas do teatro de sua época, e buscava uma
“experiência vital”. Ele é responsável pelo surgimento de um tipo de ator muito próximo
daquele sonhado por Artaud.
30
Grotowski considera o ator como a essência da arte teatral: um ator nu, sem os
artifícios que ajudam no trabalho de simulação e imitação de uma realidade, como a
maquilagem e figurinos. Ou seja, um ator que renuncie a todos os truques que visem uma
transformação mecânica, um ator que prescinda inclusive do personagem enquanto figura a
ser “encarnada” pelo ator.
31
“Grotowski, embora elimine o personagem, quer dizer, a armadilha mimética, não
renuncia ao papel enquanto forma estruturada, portanto decifrável.”
32
O papel, livre do
personagem, livre do imperativo de encarnação e psicologização, é a base do ator para a
elaboração de uma partitura, um sistema formalizado de signos que permitirão ao ato de
28
Idem p. 166
29
Aslan, O ator no século XX p. 303
30
Roubine, A linguagem da encenação teatral p. 175
31
Idem p.177
32
Idem, p. 178
25
desvelamento ser legível, controlado e reiterado.”
33
Deve-se tirar do teatro tudo aquilo que é
base para a ilusão, o ator não é mais o ilusionista e o imitador do palco tradicional. Se a
formação tradicional é apenas uma aprendizagem de clichês, onde o ator se põe,
histrionicamente, a simular o que deseja representar, para Grotowski, a representação não
deve mais ser a simulação de uma ão, deve ser o próprio ato, num esforço de total
sinceridade. Um ator que abre mão da ilusão se lança e se mostra ao espectador “sem
mediação”. O poder de irradiação do ator grotowskiano vem desse ato de entrega.
Porém, esta entrega se confunde, em Grotowski, com “uma exploração de seu
universo interior mais profundo”.
34
Atuar é um ato de desvelamento, o que, num certo
sentido, remete a uma essência de um eu a ser buscada. O ator se livra do eu cotidiano,
anedótico para buscar o eu espiritual.
35
Essa visão do trabalho do ator aparece, em Grotowski,
como uma oposição à algo que é simplesmente uma reprodução do real. Sua teoria parece
limitar o ator ao seu eu profundo, sua alma, sua essência. Grotowski, ao pretender essa
“descida ao fundo de si mesmo” do ator estava provavelmente influenciado por pensamentos
da época
36
e isso marca sua visão teórica do teatro.
Ao mesmo tempo em que insiste no ato de desvelamento do ator, o autor acredita que
o desvelamento é artístico se formalizado. A idéia de Grotowski não se aproxima das
experiências que marcaram os Estados Unidos na época, os chamados Happenings, que
afirmavam o autodesvelamento, mas de maneira espontânea e catártica, sem nenhuma
preocupação com a forma. O happening é uma invenção poderosa, uma tentativa de lutar
contra as formas mortas e despertar o espectador e o próprio performer. Se a idéia do
Happening é pôr o inconsciente a nu
37
a forma deveria, no caso dos happening, dificultar o
livre curso dessa força. Influenciado pelo Zen e pela Pop Arte essa mistura gera uma fórmula
33
Idem, p.179
34
Idem, p. 177
35
Aslan, O ator no século XX p. 288
36
A psicanálise está muito presente no contexto intelectual dos anos 60
37
inconsciente usado aqui propositalmente, remetendo à influência psicanalítica em ambos os fenômenos
26
pretensamente livre, mas que com freqüência acaba por se limitar à repetição dos mesmos
símbolos. A filosofia Zen afirma que é possível tornar visível o invisível, mas que este
invisível-visível é visto em certas condições, não é algo automático. E para compreender
que o invisível pode ser visível é necessário um trabalho que dura uma vida. O “Teatro
sagrado” busca fazer esse trabalho. “Um teatro sagrado não apresenta o invisível, mas
também oferece condições que possibilitam a sua percepção”. O Happening não se detém na
elaboração dessas condições, ele não examina o problema da percepção. “Ingenuamente ele
acredita que o grito ‘Acorde’ basta; que o gritar ‘Viva’ fornece vida”. É preciso mais do que
isso.”
38
Grotowski, ao contrário, passou boa parte da sua pesquisa tentando tornar essa força
formalizável, pois acreditava que a simples exposição não configurava necessariamente
expressão: É o teatro do instante, diferente do teatro da espontaneidade ou da
improvisação em moda, porque impõe um longo preparo na fase dos ensaios, uma técnica de
gestos artificialmente compostos, uma partitura preliminar de atos.”
39
Por isso afirma a
necessidade de uma formação do ator. O que o torna um autor de referência para o ator é
exatamente o seu trabalho em tornar visível o invísivel. Grotowski desenvolveu uma técnica,
com seus atores, para criar uma partitura física onde a “essência”
40
do homem pudesse se
mostrar. Neste processo de formalização do invisível , o corpo é o veículo privilegiado, e por
isso é exigido do ator um conhecimento profundo de suas possibilidades corporais. “No teatro
tradicional, tratava-se de magia ilusionista. No caso em pauta, o espectador será
profundamente atingido se tiver a sensação de estar assistindo a ações que ele mesmo não
pode realizar.”
41
É importante, pois, não confundir o desvelamento proposto por Grotowski,
com a prisão do ator num estado conhecido e experimentado. É de um eu invisível que se
38
Brook, O teatro e seu espaço p.53
39
Aslan, O ator no século XX p. 291, grifo meu
40
Termo usado aqui propositalmente para fazer referência ao pensamento de Grotowski
41
Roubine, A linguagem da encenação teatral, p. 167
27
trata.
42
Isso que se quer mostrar e que está nas profundezas do ser é algo que se refere a uma
força interior desconhecida, é o colocar-se a nu.. Será que esse lugar ainda pode ser chamado
de Eu? Será alguma coisa que sempre esteve ali, à espreita? Será o reencontro com algo que
se perdeu? Sabemos que isso que se chama de invisível, e que não é acessível, assume, ao
longo da história diversas formas e conceitos. Podemos pensar na dimensão transcendental do
invisível, como o conceito de essência em Platão, ou podemos apostar em um invisível
imanente, como o conceito de força em Deleuze, para tentar dar conta disso que move o ser
mas que não é explicável empiricamente.
A idéia de um desvelamento e doação de si pode parecer, num certo sentido, fruto de
um pensamento ultrapassado, mas a potência da busca de Grotowski está na idéia de que o
trabalho do ator é sempre a exploração dos limites do eu – limites corporais, limites
subjetivos. O ator em Grotowski está em perigo permanente e sua função apesar de crucial é
sempre precária. Essa fragilidade e, ao mesmo tempo, potência do metier nos um
importante ponto de vista sobre o que é o trabalho do ator longe do mimetismo tradicional que
permitia a estabilidade e o conforto de um percurso familiar. O ator deste teatro não tem como
base o elemento cotidiano e por isso a liberdade criadora é alargada. Um teatro pensado dessa
forma tem o risco, em última instância, de colocar o ator num mergulho profundo nas suas
possibilidades expressivas e num estado de abandono da vida cotidiana. Grotowski pretendia
uma verdadeira ascese, uma completa entrega e até o rompimento com o mundo exterior.
Poderíamos nos perguntar se isso é possível como uma rotina no mundo hoje e se essa
experiência é realmente frutífera na formação do ator.
O trabalho de pesquisa de Grotowski é hoje algo extremamente difícil de ser
empreendido, porém sua colaboração para a renovação da ate do ator é algo incontestável.
Alguns grupos, como teatro Odin do grupo dinamarquês de Eugênio Barba e o Open Theatre
42
No teatro, muitos outros autores falaram sobre o invisível, sobre essa força transformadora, cada um do seu
modo. Voltaremos a falar sobre isso adiante
28
de Joe Chaikin de maneiras diferentes buscaram dar continuidade ao trabalho de ator proposto
por Grotowski. Barba, autor também escolhido como referência para este estudo, é
considerado um discípulo de Grotowski, pois além de ter participado ativamente da
elaboração dos exercícios grotowskianos, mantém em sua pesquisa a mesma disciplina do
grupo de Grotowski. A disciplina é, para ambos, a qualidade mais importante de um ator; ter
talento é possuir o espírito de pesquisa. De Stanislavski, tanto Grotowski quanto Barba,
guardaram a importância de um “modo de vida” para o ator, de uma disciplina rigorosa e
permanente.
43
Assim como Eugênio Barba, outras experiências contemporâneas foram referências
fundamentais para este trabalho, pelas contribuições feitas ao estudo sobre a arte do ator. As
pesquisas do inglês Peter Brook e da francesa Ariane Mnouchkine, ambos diretores de
importantes companhias - o Centro Internacional de Pesquisas Teatrais e o Théatre du soleil,
respectivamente são extremamente relevantes para quem deseja compreender os rumos do
ator no teatro da atualidade. Ambos consideram a problemática do ator como o centro da
pesquisa teatral e recusam veementemente o aprisionamento do teatro no mimetismo fruto da
tradição naturalista. Para escapar da mimeses, trabalham no sentido de promover uma prática
do ator baseada em um virtuosismo corporal e um domínio vocal, reabilitando a teatralidade
do ator.
44
Tendo como referência a Commedia dell’arte, as práticas orientais e os clowns,
essas Companhias visam centrar o teatro na exploração da teatralidade. A primeira convicção
de Ariane Mnouchkine é que o teatro ocidental não criou nenhuma forma teatral, além da
Commedia dell’arte, e mesmo ela é de inspiração oriental. “O teatro é oriental”. No ocidente
se criou formas realistas, ou seja, não se criou “verdadeiramente” formas. Segundo
Mnouchkine, a força do ocidente está na dramaturgia e a do oriente é o trabalho do ator. Estas
companhias visam justamente unir as duas forças, ou seja , ligar uma dramaturgia excepcional
43
Aslan, O ator no século XX p. 292, p. 294
44
Idem, p. 146
29
como Shakespeare a um trabalho de ator tão potente quanto a arte dos atores orientais. As
referências às técnicas antigas, que há muito deixaram de influenciar o teatro ocidental,
voltam a tona, na tentativa de se criar um treinamento para o ator que leve em conta
possibilidades expressivas mais amplas e com um uso mais elaborado do corpo e da voz.
Além de Brook e Mnouchkine, a commedia dell’arte foi revisitada e recuperada por
diversos outros pensadores do teatro moderno. É um engano relacionar a Commedia dell’arte
com o “teatro popular da espontaneidade e da livre fantasia criativa” e com a arte do
improviso. Na realidade este fenômeno teatral, que se desenvolveu entre os séculos XVI e
XVIII, possui uma rica codificação e uma predeterminação do jogo. A commedia dell’arte foi,
sobretudo e essencialmente, um teatro de ator, mas faltam registros históricos que precisem
as técnicas cênicas e métodos de preparação física e vocal. Na busca moderna pela
recuperação de um teatro “teatral”, em oposição a um teatro pautado na mimesis realista, as
referências da commedia dell’arte tiveram grande influência nas pesquisas teatrais de
importantes nomes do teatro.
Da mesma maneira, as práticas orientais exerceram uma forte influência no teatro
ocidental, ajudando na construção de um caminho alternativo ao naturalismo. Pensadores do
teatro ocidental utilizaram técnicas orientais em suas pesquisas, aprendendo com elas a se
libertar do empuxo à verossimilhança e necessidade da ilusão. Nos teatros orientais não
realismo e o corpo do ator é moldado durante anos por uma técnica precisa e códigos
passados tradicionalmente de mestre para discípulo. A palavra não é um elemento
fundamental para este teatro, e o ator não é apenas aquele que fala um texto, mas um “Ator-
cantor-dançarino aperfeiçoado”. O ocidente descobre, desta forma, uma outra forma de
expressão, uma expressão não naturalista que preserva o sentido do sagrado, que zela pelo
longo treinamento sistemático do ator, que se baseia na fusão entre o corpo e o espírito.
45
O
45
Idem, p. 110
30
ator vai buscar tudo no oriente, o mito e a realidade, ao mesmo tempo a interioridade e a
exteriorização. A arte do ator da tradição oriental consiste em mostrar a paixão, o interior do
ser humano. A missão do ator oriental, de qualquer ator, é “abrir o homem, como uma
granada. Não para mostrar suas tripas, mas para desenhá-las, colocá-las em signos, em
formas, em movimentos, em ritmos.”
46
Todos os importantes diretores do século XX, todos os
pedagogos do teatro do século XX passaram, incontornavelmente pelo “caminho da Ásia”,
seja Meyerhold, Brecht, Artaud, Grotowski, Barba, Brook ou Mnouchkine. A partir do
momento em que as técnicas orientais de formação de atores, como o Kathakali, o teatro Nô e
muitas outras, são integradas na formação desses grupos ocidentais há uma quebra na tradição
do texto, no senso da mímeses, da representação.
47
Pretendemos aqui discorrer sinteticamente sobre os autores escolhidos como
referência para este estudo, com o intuito de situar o leitor e ao mesmo tempo justificar a
escolha. Sabemos que muitos outros importantes autores para o desenvolvimento da arte do
ator no século XX não foram citados. Mas, como seria impossível dar conta de todo esse
universo, buscamos por autores que tivessem uma mesma base de pensamento, que, mesmo
com diferenças cruciais, caminhassem numa direção parecida no que diz respeito à
investigação sobre o ator.
É importante ter em mente que cada modelo, cada experiência é singular e é muito
difícil pensar a arte a partir de pontos comuns, tendências e modismos. Ao mesmo tempo é
necessário que se conte essa história, pois o ator é fruto destas influências e mestiçagens.
46
Mnouchkine in: Féral, Dresser un monument à l’éphémère , p. 17, 18
47
Ouaknine in: Féral, Dresser un monument à l’éphémère , p. 61
31
O “princípio de atualidade” e o teatro acontecimento
Na busca por um ponto comum a essas experiências teatrais, Roubini afirma que uma
das grandes inspirações do novo teatro, mais do que uma teoria específica ou um pensamento
único, é “o principio de atualidade”. Este princípio é comum a diversos modelos teóricos
modernos. Atualidade não no sentido mais superficial, que diz respeito às questões
circunstanciais, sociais e psicológicas, uma “atualidade de sensações e preocupações mais do
que de fatos.”
48
Esse principio comum diz respeito principalmente à valorização da cena
enquanto acontecimento presente, vivo e verdadeiro.
O objetivo comum das muitas experiências de vanguardas do século XX, mesmo
sabendo que os meios de realizá-lo são os mais distintos possíveis, é “devolver ao teatro sua
condição de acontecimento vivo, caracterizado pela mesma imprevisibilidade, complexidade e
indeterminação própria da vida, dos acontecimentos naturais.”
49
O “novo teatro” busca
aproximar a arte da vida, se propõe a criar um acontecimento vivo. Mas que tipo de vida é
essa a qual nos referimos? É a vida cotidiana, a vida social e política ou é de outra coisa que
se trata?
Artaud
50
, ao fazer uma análise crítica do teatro de sua época, expõe a necessidade do
teatro ser relançado na vida. Ao mesmo tempo ressalta que relançá-lo à vida não significa
dizer que se deva fazer vida no teatro, isto é, teatro como imitação da vida. O fato do teatro
buscar uma representação da vida e se sujeitar ao conhecido é a causa absoluta e direta da
queda do teatro ocidental atual, pelas limitações que impõe em todos os domínios. A
psicologia é uma das causas desta sujeição e desperdício de energia, pois se empenha em
48
Artaud, O teatro de Alfred Jerry, in: Roubine, Introdução as grandes teorias do teatro p.189
49
De marines, Comprender el teatro p. 177
50
Artaud, Linguagem e vida
32
reduzir o desconhecido ao conhecido, ou seja, ao cotidiano e ao comum. “Me parece que tanto
o teatro, como nós mesmos devemos acabar com a psicologia”
51
A forma naturalista do teatro leva a uma psicologização da atuação, convida o ator a
interiorizar os signos e exteriorizar somente seus efeitos. Este tipo de trabalho psicológico
acaba por reduzir o jogo do ator e o faz se afastar da “teatralidade”.
52
Isso, em última
instância, se torna uma prisão para o ator, pois a psicologia, vista sob essa perspectiva, limita
o corpo a uma determinada gama de reações conhecidas e que correspondem a sentimentos
já esperados. O tipo de teatro que quebra com essa necessidade de causa e efeito está
interessado justamente no inesperado que pode surgir de um corpo em cena. Muitos autores
modernos construíram seus pensamentos acerca do trabalho do ator a partir de uma crítica à
psicologia.
É importante porém definir o que se quer dizer com psicologia. Usa-se essa palavra de
forma genérica para indicar um certo tipo de psicologia. Parece que Artaud, e muitos outros
autores como Craig Brook e Mnouchkiine, criticam uma idéia de subjetividade que é passível
de ser conhecida e reduzida a esquemas fechados e definitivos, uma espécie de verdade
psicológica. Algo que, por outro lado, representa um mundo supostamente dado. O teatro não
deve representar a psicologia, mas as paixões, os “movimentos da alma, do espírito, do
mundo, da história”. No Theatre du soleil, fala-se em psicologia sempre como uma crítica.
Quando Mnouchkine diz para um ator: “Atenção, é psicológico”, isto quer dizer que não é
verdadeiro, que é lento, narcisista. Contrariamente ao que se pode pensar, a psicologia
criticada pela diretora não vem do interior mas de uma “máscara interior”.
53
A psicologia no teatro se expressa, segundo Artaud, na obstinação em fazer diálogos
baseados estritamente em sentimentos e impulsos psicológicos, em que a palavra substitui o
gesto. A palavra clara, que tudo diz, leva ao “ressecamento das palavras”. “Estamos desejando
51
Artaud, O teatro e seu duplo, p. 86
52
Féral, Dresser un moviment à l’éphémère
53
Mnouchkine in: Féral, Dresser un monument à l’éphémère , p. 46
33
um silêncio onde possamos ouvir melhor a vida”. Se o teatro não ultrapassar o domínio
daquilo que as palavras, tomadas em seu sentido mais corrente, em sua acepção mais
ordinária, podem atingir, isto levará a ideais que fazem de todo teatro “uma espécie de imenso
auto de ocorrência psicológica”.
54
Na busca por um teatro que transcendesse a razão discursiva e a psicológica, Artaud
formula uma distinção entre a “linguagem do espaço”, que se produz no palco, e a “linguagem
das palavras”. Na “linguagem do espaço”, é tirado das coisas seu sentido direto e lhes é dado
um outro. É a “poesia do espaço”, uma poesia concreta: a produção objetiva de algo através
da presença ativa em cena, o teatro como uma realidade instantânea, como atualidade e não
uma ilustração da vida. Mas qual seria exatamente essa diferença entre a vida em sua
realidade cotidiana e esta nova realidade criada pelo teatro?
O teatro sagrado e o teatro do cotidiano
O que o “novo teatro” nos apresenta é uma “inversão do esquema tradicional
teatro/vida”. Do ponto de vista tradicional o teatro é o lugar da ficção, do falso, em oposição à
realidade, ao verdadeiro. Com efeito, a inversão proposta pelos artistas de vanguarda do
século XX parte do questionamento dessas oposições. A vida cotidiana e a realidade social se
tornam “o lugar e o tempo do inaltêntico, da falsidade, das aparências enganosas, das ficções
hipócritas.” E o teatro, por sua vez, tem a função de se projetar como o lugar da autenticidade
e da sinceridade.
55
Esse teatro contribui para a criação de algo genuinamente verdadeiro que
se oculta por trás das mentiras cotidianas.
Criadores como Grotowski, Brook, Barba e Artaud apostam nesta inversão, nesta
recuperação do teatro como um lugar de vida. O “espetáculo das aparências”, marca da vida
54
Artaud, O ator e seu duplo p.139
55
De Marinis, Comprender el teatro p. 177
34
diária, lugar à “verdade do indivíduo”. Mais uma vez, podemos criticar a crença na
possibilidade da “recuperação de um si mesmo autêntico” que persiste por trás desse jogo de
representações. Essa concepção da arte como liberdade total - como liberação dos
condicionamentos impostos pela sociedade, a busca por uma essência perdida e pela verdade
profunda que persiste para além das aparências - se aproxima, segundo De Marines, de uma
“filosofia idealista-romântica da arte” e o vínculo com esse tipo de pensamento é comum a
grande parte das vanguardas históricas.
56
Porém, podemos também vincular essa concepção
da arte com outra corrente filosófica. Essa outra perspectiva aposta num corpo intensivo que é
primeiro em relação a nossa identidade subjetiva. O corpo e a subjetividade são fabricados por
dispositivos limitadores e se libertando disso uma outra instância pode emergir. Falaremos
sobre essa concepção mais adiante, ao longo do trabalho.
Na busca por essa “realidade autêntica” ou por esse “corpo intensivo” que na vida
cotidiana se encontram ocultados, o teatro assumiu duas atitudes muito distintas: uma parte
das experiências teatrais do século XX pertence a uma área de investigação que defende uma
espécie de “refundação mágico-ritual do teatro”. Essa concepção percebe o teatro como um
“espaço-tempo sacro” e distancia radicalmente a experiência teatral do cotidiano, de todas as
rotinas sociais institucionalizadas e da civilização de consumo. Artaud, Craig, Grotowski,
Brook, Barba e Mnouchkine, autores por nós discutidos, fazem parte deste grupo.
57
Uma outra parte das experiências artísticas e teatrais do século XX, da qual fazem
parte os trabalhos de Duchamp, a pop art de uma forma geral, a performance, os
happening,Wilson, Foreman, entre outros, concebem a arte como algo imerso na vida
cotidiana, algo fruto da forma de vida atual, da civilização tecnológica e de consumo.
58
Essa
relação de contigüidade tanto espacial como temporal com a vida comum fez com que as
experiências teatrais de Wilson e Foreman, por exemplo, fossem nomeadas como “teatro do
56
Idem p. 177
57
Idem p.178
58
Idem p.17
35
cotidiano”, mesmo com elementos surrealistas e hiperealistas em suas criações. Nessas
experiências estéticas a intervenção do artista, e mais especificamente do ator, tem a função
de desalienar a percepção do espectador com relação a elementos que povoam a paisagem
cotidiana, como comportamentos, formas e sons. Elas propõem uma descontextualização e
uma revisitação dos “objetos-acontecimentos dados”, uma transformação destes objetos em
feitos estéticos, como forma de efetuar uma mudança de olhar, uma sensibilização e uma
nova consciência.
59
Sabemos que este grupo é também um importante movimento de reação ao
naturalismo e é motivo de atenção para quem deseja discorrer sobre as mudanças do teatro
contemporâneo. Porém, todo trabalho exige um recorte metodológico fundamental para o foco
do estudo e, nesse caso, optamos por ter como foco principal autores que tomam por objeto o
ator, o ator profissional, com uma formação específica. Percebemos que o chamado “teatro do
cotidiano” , a perfomance e as outras importantes manifestações artísticas deste grupo, não
utilizaram o ator como instrumento principal na construção de seus projetos artísticos. (pelo
menos não este ator do qual este estudo trata)
“A arte da performance é o resultado final de uma longa batalha para liberar as artes
do ilusionismo e do artificialismo”
60
Nessa batalha, o ator profissional não ocupou um lugar
privilegiado, talvez por se tratar, a princípio, de um representante da ilusão e do artificialismo.
Apesar de configurar um caminho fundamental para arte cênica, este grupo não apostou no
ator como agente transformador. Foi através de outros meios que reinventou o teatro, com a
implosão de qualquer técnica ou especialidade que pudesse aprisionar a arte em um sistema
pré-definido. Essa manifestação das artes se distancia daquilo que pode interessar a este
trabalho, que exige um conjunto de práticas que pensem o ator enquanto um sujeito em
59
Idem p. 178
60
Glusberg, A arte da performance, p. 46
36
formação e tendo a técnica como fundamental para a recriação do corpo e da subjetividade
em cena.
Bob Wilson
61
, um dos grandes nomes que norteia o movimento da performance,
pensa o teatro como um lugar para performers e não para “atores”. Também avesso às formas
tradicionais de atuação, Bob Wilson busca um caminho que valoriza o potencial artístico de
cada performer, o que implica na não aprendizagem de técnicas ou habilidades. Não existe no
seu trabalho a imposição de um modo de fazer, pois seu interesse é desvendar o modo pessoal
do performer. O artista deve fazer a descoberta de sua própria linguagem.
62
Wilson trabalhou com não atores e atores não profissionais nas suas pesquisas,
acreditava que o objetivo maior de um ator tradicional era despertar emoção e isso para ele
não interessava. Avesso a um tipo de ator influenciado pelo psicologismo da tradição
naturalista, Wilson cria experiências cênicas onde o ator técnico, profissional não tem lugar e
o que interessa são características pessoais de uma determinada pessoa que ele acredita serem
potencialmente cênicas. O modelo a ser seguido é o modelo pessoal do próprio performer.
Essa característica aproxima Bob Wilson das experiências de perfomance mais do que do
teatro, se é que é possível fazer essa distinção de forma absoluta. Performance é entendida
aqui como um desenvolvimento da arte teatral que valoriza o pessoal, as habilidades
individuais do artista. A performance leva em consideração o não teatral no teatro, não
distingue arte da não arte, visa justamente trabalhar nesse limite, brinca com esse limite, não
cria métodos.
63
Neste sentido, se a performance foi fundamental para a história recente do teatro, o
mesmo não podemos dizer com relação as técnicas de atuar. A aposta em não atores ou em
61
Galizia, Os processos criativos de Robert Wilson p. 75
62
A palavra performer é utilizada aqui no lugar de ator de propósito para indicar uma diferença no pensamento
de Bob Wilson com relação ao artista da cena
63
Galizia, Os processos criativos de Robert Wilson p. 38
37
atores não profissionais dificulta a inclusão das reflexões sobre esses movimentos no rol dos
autores pertinentes a esta pesquisa.
O ator amador e o ator profissional
Segundo Peter Brook, se a um ator amador for pedido que ele se comporte atuando da
mesma forma como age na vida cotidiana, é possível e até provável que ele consiga executar a
exigência sem muitos contratempos. Mas, ao ser compelido a executar movimentos que não
estejam profundamente enraizados no seu corpo, ou criar em si um novo estado emocional,
o ator sem o conhecimento de uma técnica teatral acaba completamente perdido e se torna
incapaz de atuar de maneira natural.
O fato de se fazer algo de forma natural não significa obedecer a uma estética
naturalista. Pode-se criar uma forma exterior inteiramente artificial, que não se pareça com
nada na natureza e, no entanto, fazer parecer algo natural. O real, atual, verdadeiro não é
necessariamente o cotidiano. Um gesto de balet é tão artificial quanto um aperto de mão e
ambos podem ser reais ou não dependendo da forma como é feito. Então, se livrar do
artificialismo e fazer algo natural vale tanto para o que é familiar quanto para os gestos mais
estilizados. O naturalismo também é uma convenção tão real quanto o bel canto na ópera, e
ambos são artificiais. “A tarefa do ator é tornar qualquer estilo natural”. Quando Brook usa a
palavra natural, ele se refere a algo que no momento em que acontece, não análise nem
comentário, simplesmente parece de verdade.”
64
O fato de não haver um comentário ou
análise para que a ação esteja completa significa um tipo de ação direta, que prescinde de
qualquer tipo de mediação, de psicologismos. Segundo Brook, é muito difícil para um corpo
destreinado criar em si mesmo um novo estado emocional. Um não profissional fica
64
Brook, A porta aberta, p. 60
38
completamente perdido quando deve executar algo que não esteja já profundamente enraizada
em sua vida, em seu corpo. Fazer algo que não pertence ao ator - e mesmo que não pertence
ao ser humano - parecer natural e real, é a função do verdadeiro ator.
“O teatro não tem categorias, é sobre a vida”, mas, apesar disso não se pode dizer que
não existe uma diferença entre teatro e vida. O teatro é um encontro com a vida, mas ele
perde o sentido se a vida em cena for igual a vida fora. Nas décadas de 60/70, profissionais
do teatro que criticavam o “teatro morto”
65
defendiam que, se a vida é um teatro, se o teatro
está em toda parte, então todos nós somos atores, qualquer um pode fazer teatro. Mas alguns
pensadores do teatro trabalham de outra forma, vêem os atores de outra maneira e, por isso,
não acreditam nesta afirmação. Mas o que de errado com a afirmação de que todos nós
somos atores? Como justificar a importância de um ator treinado?
No caso do ator a diferença entre amador e profissional é sempre mais sutil pois a
técnica não é tão cartesiana e não como medir de forma exata e absoluta sua aquisição. No
caso, por exemplo, do canto, da dança ou da acrobacia as técnicas são muito óbvias, é muito
difícil pedir para alguém que não tenha conhecimento da técnica executar um movimento em
cima de um trapézio ou um passo de dança definido. Para o ator, apesar das exigências
também serem enormes, a técnica não é definida de forma clara e absoluta, “é quase
impossível definir os elementos envolvidos”
66
e, no entanto, existe uma série de exercícios e
técnicas construídas com o intuito de fazer do ator alguém capaz de criar suas ações e gestos
em cena. “A habilidade específica do ator profissional consiste em provocar em si mesmo,
sem esforço nem artificialidade perceptíveis, estados emocionais que não pertencem a ele e
sim à personagem”.
67
65
Teatro Morto é uma expressão usada por Peter Brook para designar o mau teatro. Seria problematizar de
forma equivocada identificar o teatro morto com a tradição, necessariamente. A tradição não é a barreira
fundamental ao teatro vivo.
66
Brook, A porta aberta, p.60
67
Idem
39
É interessante perceber que Brook recorre à idéia de personagem, assim como também
o faz frequentemente Ariane Mnouchkine, mas devemos ficar atentos ao que querem dizer
quando lançam mão dessas palavras. Uma das dificuldades de teorizar sobre diversos autores
e movimentos é que uma mesma palavra pode ser utilizada para nomear práticas
completamente distintas. A noção de personagem proposto por Stanislavski e que reflete um
ideal naturalista de possessão, de identificação e de psicologização, certamente não é a mesma
noção de personagem que Peter Brook ou Mnouchiquine têm em mente quando discorrem
sobre a sua construção. Esses últimos estão interessados muito mais num afastamento do ator
daquilo que lhe é familiar e característico de sua forma de estar no mundo, em prol de uma
construção física e emocional que traga algo de novo à cena, algo que não seja simplesmente
os maneirismos e idiossincrasias do sujeito ali exposto. Fazendo uma comparação entre as
diversas maneiras do ator se relacionar com o personagem podemos dizer que, no caso da
formação tradicional, a personagem é algo externo ao ator, “um personagem-robô” construído
através de informações sucessivas e o texto é o único elemento capaz de deter a verdade sobre
ele. Em Stanislavski o personagem é uma projeção imaginária criada ao longo dos ensaios a
que o ator empresta seu corpo, mas não sua personalidade. “O ator se apaga diante da
personagem”. Em Grotowski, por exemplo, o ator “absorve a personagem”, engloba a
personagem criando uma partitura onde esse hibrido possa se exprimir. A questão não é
desfazer a noção de personagem, mas analisar a relação que o ator estabelece com esta noção
numa determinada forma de teatro. O ator pode elevar-se até a personagem, identificar-se com
a personagem, anular-se diante da personagem, mostrar a personagem ou ainda destruir a
noção de personagem.
68
Para além das importantes diferenças que separam as muitas poéticas do novo teatro,
existe um ponto comum que permeia esse percurso. Sejam pertencentes ao teatro sagrado ou
68
Aslan, O ator no século XX p. 290
40
ao teatro do cotidiano, para falar de forma mais simples, o novo teatro do século XX se
distancia radicalmente da concepção de teatro encerrada nos limites da convenção mimético
representativa. Nas experiências e propostas do novo teatro, mesmo que agora com contornos
mais amplos e difusos, não existe mais o comprometimento com a reprodução da realidade,
da vida, de um texto. O teatro é produção do real, de vida, de textualidade.
69
Esta “concepção
produtiva do teatro” aponta para o caráter de realidade verdadeiramente constitutivo do
espetáculo teatral, onde as ações, os efeitos que o compõe são reais. O espetáculo teatral
expõe, com o novo teatro, o seu aspecto bidimensional, ao mesmo tempo acontecimento real e
acontecimento fictício.
69
De Marinis, Comprender el teatro p.179, grifo meu
41
CAP II - O ATOR E O DEVIR – Uma crítica ao teatro da representação
Sendo o foco principal deste trabalho o processo de criação do ator, faz-se necessário
definir mais precisamente o que o ator cria. Vimos no primeiro capítulo que esse ator, o tipo
de ator produzido pelas diversas manifestações artísticas pós naturalismo, tem uma forma
específica de se relacionar com sua arte. Na sua crítica à estética naturalista, os defensores de
um novo teatro nascente exigem do ator um distanciamento crítico com relação à realidade
cotidiana e a criação de uma forma singular de vida cênica. Diante disso surgem algumas
questões: como o ator pode fazer dele mesmo um ator que cria, neste sentido do termo,
através de que prática? O que é a criação do “novo ator”?
Optamos por iniciar este capítulo analisando o conceito deleuziano de devir. Isto
porque acreditamos estar nesta discussão o caminho para compreendermos o que define o
processo inventivo do ator.
O devir
Para Deleuze e Guattari, não ato de criação que não seja “trans-histórico”. Eles,
como Nietzsche, relacionam a criação com o intempestivo e o devir: “As criações são como
linhas abstratas mutantes que se livraram da incumbência de representar um mundo,
precisamente porque elas agenciam um novo tipo de realidade que a história pode
recuperar ou recolocar nos sistemas pontuais”
70
.
O devir não é uma forma, pois está sempre inacabado, ele é um processo, uma
“passagem de vida” que comporta sempre um “componente de fuga que se furta à própria
formalização”. A criação é sempre um processo que está para além da forma e não comporta
70
Deleuze e Guattari, Mil platôs vol. 4, p. 95.
42
qualquer estabilidade. A forma está do lado da identificação, imitação, mimese e o devir
encontra uma “zona de vizinhança”, uma “zona de indeterminação ou de incerteza” que não
significa imprecisão, mas refere-se a um entre, uma indiscernibilidade, onde não se pode dizer
onde está a fronteira de um e outro.
“Devir é, a partir das formas que se tem, do sujeito que se é, dos órgãos que se possui ou das
funções que se preenche, extrair partículas, entre as quais instauramos relações de movimento
e repouso, de velocidade e lentidão, as mais próximas daquilo que estamos em vias de nos
tornarmos, e através das quais nos tornamos”.
71
O devir é a experiência do entre, o intermezzo: não é uma imitação, semelhança ou
identificação, mas também não é o tornar-se realmente. A dicotomia ser/imitar limita o
entendimento acerca do devir, pois Deleuze diz que é uma falsa alternativa a que nos faz
dizer: ou imitamos ou somos. Não se trata de uma produção real, tornar-se realmente,
tampouco trata-se de uma semelhança, como o imitar algo. O devir é antes um "encontro entre
dois reinos", um curto circuito, uma ruptura de cogito onde cada um se desterritorializa. Não é
o caso de imitação, mas de conjugação: “compor seu organismo com outra coisa”
72
. O que é
real é o próprio devir: “Devir é um verbo tendo toda sua consistência; ele não se reduz, ele
não nos conduz a parecer, nem ser, nem equivaler, nem produzir”.
73
O devir é sempre uma anti-memória, pois a lembrança é sempre um fator de
reterritorialização. Ele opera por contágio e não por filiação. A produção filiativa tem como
característica a simplificação das diferenças em simples questões de gênero e espécie, além de
pequenas modificações inter-geracionais. No devir não existem limitações identitárias, mas
multiplicidades: “Sabemos que entre um homem e uma mulher passam muitos seres, que vem
71
Deleuze e Guattari, Mil platôs vol. 4, p. 64.
72
Deleuze e Parnet, Diálogos, p. 57
73
Deleuze e Guattari, Mil platôs vol. 4, p. 19.
43
de outros mundos, trazidos pelo vento, que fazem rizoma em torno das raízes, e não se deixam
compreender em termos de produção, mas apenas de devir”.
74
Sobre o devir animal Deleuze diz: “Tenho que me tornar cachorro, mas como? Não se
trata nem de imitar o cachorro, nem de uma analogia de relações. É preciso que eu consiga dar
às partes do meu corpo relações de velocidade e lentidão que o façam tornar-se cachorro num
agenciamento original que não procede por semelhança ou por analogia. Pois não posso me
tornar cachorro sem que o cachorro não se torne ele próprio outra coisa”.
75
Em um devir-
animal conjugam-se um homem e um animal, mas um não se assemelha ao outro, ao
contrário, cada um desterritorializa o outro através de uma linha de fuga que é criadora desses
devires. O devir-animal é perfeitamente real, mas, apesar disso, o homem não se torna
realmente um animal: “O devir-animal é real sem que seja real o animal que ele se torna”. A
“mera semelhança imaginária entre termos” ou “analogias simbólicas de relações” não faz um
devir. O devir-animal é formado por velocidades e lentidões, pela circulação dos afetos. Ele
não está relacionado nem com a imitação de um sujeito, nem com a proporcionalidade de uma
forma. Tornamo-nos coletividades, hecceidades e não formas ou sujetos pré-existentes.
76
O grande risco compreendido no devir é sempre o de voltar a representar, o de
encontrar uma forma. sempre uma dinâmica que compreende este ir e vir entre os planos:
o plano de organização que cobre as formas, os sujeito, os órgãos e o plano de imanência ou
composição, que implica numa desestratificação, num Corpo sem órgãos
77
. O primeiro plano
não pára de trabalhar sobre o segundo, tentando reterritorializá-lo, reconstituir formas e
inversamente o plano de imanência trabalha no sentido de quebrar a forma, de afetá-la,
modificá-la.
74
Deleuze e Guattari, Mil platôs vol.4, p. 23.
75
Idem, p. 44.
76
Deleuze e Parnet, Diálogos, p. 63,66 e 67.
77
devires, desterritorialização, linhas de fuga
44
O ator-criador e o devir
Uma criação que se furta à formalização, que não é uma produção real real no
sentido de ser incluída na realidade comum - , mas que também não é imitação de algo; uma
criação que opera por contágio e que não se limita à identificação com algo. Isso é Devir. Não
seria possível aproximar essas características e atribuições ao trabalho do ator, esse novo ator,
que não busca imitar uma forma visitada, que está para além de uma identificação com o
papel, que busca o real sem ser realidade, que está situado no entre, entre o ser e o imitar,
entre o real e a ficção, entre o território e a desterritorialização? Seria o trabalho do ator numa
experiência de Devir?
Deleuze afirma que é uma falsa alternativa a que nos faz dizer ou imitamos ou somos
78
, mas é exatamente neste dualismo ser/imitar que muitas vezes chegamos quando refletimos
sobre o trabalho do ator: o ator, quando está em cena, imita uma realidade, um mundo, um
tipo, ou ele é tudo isso? O conceito de devir rompe com este dualismo ao propor algo que está
entre estas duas alternativas. Quando se propõe que um ator quando interpreta está em devir
isto significa dizer que este ator não imita, mas também não é, ele se cria de uma outra
maneira. Para o ator não se trata de imitar, identificar-se ou experimentar sentimentos. Trata-
se de saber como dar a seus próprios elementos
79
, relações de movimento e repouso, “afectos”
que o fazem devir outro.
Para devir outro, Artaud acredita que os sentidos, o corpo, a razão e a alma do ator
devem ser dispostos por ele como um instrumento, forçando-o e mudando o seu sentido.
“Qualquer idéia tem que se materializar em carne, sangue e realidade emocional: tem que ir
além da imitação, para que a vida inventada seja também uma vida paralela”
80
. Há, no teatro,
78
Deleuze e Parnet, Diálogos, p. 57.
79
Seu corpo, seu pensamento, sua alma
80
Brook, A porta aberta, p.8.
45
a construção de uma vida paralela que não corresponde à vida cotidiana do ator. É de outra
vida que se trata. Artaud
81
valoriza, ao longo de sua obra, essa construção. Ele afirma que, se
o teatro é um duplo da vida, a vida é o duplo do verdadeiro teatro. Mas a vida que o teatro
deve duplicar não corresponde, para ele, à realidade cotidiana e direta, mas a uma outra
realidade mais perigosa. A função do teatro é, então, ser o duplo desta vida renovada, que
para Artaud constitui a verdadeira vida. O que se faz necessário é reencontrar a “vida do
teatro”, em toda a sua liberdade, que não é imitar a vida, mas, ao contrário, a formação de
uma realidade, “a irrupção inédita de um mundo”. O teatro deve nos dar este mundo efêmero,
este “mundo tangente ao real” e a criação será, ela própria, este mundo. Trata-se do sentido da
vida renovado pelo teatro, onde o homem torna-se senhor daquilo que ainda não é, e o faz
nascer: “E tudo o que não nasceu pode vir a nascer, contanto que não nos contentemos em
permanecer simples órgãos de registro”
82
. Artaud procurava um teatro que transcendesse a
razão discursiva e a psicológica, um teatro como uma realidade instantânea e não uma
ilustração da vida. O grande problema, para ele, é quando o teatro tende a buscar uma
representação da vida. Isto é, segundo ele, uma sujeição ao conhecido e a causa absoluta e
direta da queda do teatro ocidental atual, pelas limitações que impõe em todos os domínios.
Também numa crítica ao teatro como representação, Craig conta a história do
surgimento do ato, que nasceu da vaidade de duas mulheres. Elas presenciaram uma
cerimônia onde um ídolo envolvia toda a platéia com seu vivo esplendor e todos os presentes
foram possuídos por um êxtase enebriante. As mulheres ficaram embriagadas pela força
daquela cerimônia e desejaram exercer aquele poder, desejaram ser o símbolo do que de
divino no homem. Então fizeram uma paródia e construíram um templo e se fantasiaram com
trajes e gestos semelhantes aos do ídolo. Assim nasceu o ato: “da louca vaidade de duas
81
Artaud, “Carta a Jean Paulhan” in Linguagem e vida, p. 127.
82
Artaud, O teatro e seu duplo, p. 8.
46
mulheres que não puderam ver o símbolo da divindade sem desejarem ter a sua parte nele.”
83
Houve o declínio do ídolo, do fantoche e o êxito das vaidosas mulheres, com o culto de suas
personalidades e a chegada do caos. É por isso que Craig pensa na marionete como um
substituto para o ator, como um mbolo da guerra contra o realismo na arte. O regresso do
fantoche visa o renascimento da “antiga alegria das cerimônia, da celebração da Criação, do
hino à vida, da feliz e divina invocação da Morte”.
84
Por trás desta visão pessimista do
nascimento do teatro, está o desejo de criticar a vaidade e a semelhança como
impulsionadoras do ato cênico.
Se não é a semelhança e o narcisismo o alimento do ator, o que deve impulsionar
então o fazer teatral? Segundo Craig, um ator que simplesmente empresta seu corpo a
exprimir pensamentos de um autor, ou imitar uma realidade pré-determinada, servindo apenas
como um porta voz, faz isso por vaidade. Para escapar dessa “servidão actual” que recriar
uma nova maneira de representar que consistirá nos “gestos simbólicos”: Nos nosso dias, o
ator aplica-se a personificar um caráter e a interpretá-lo; amanhã, tentará representá-lo e
interpretá-lo; um dia criará ele próprio. Assim renascerá um estilo.” Personificar um caráter é
imitar o mais exatamente possível aquilo que ator indicou que iria realizar, ele explica e
mostra, como se fizesse um desenho e escrevesse embaixo seu significado. O artista deve, ao
contrário, conseguir evocar somente através de traços o “espírito da coisa”.
85
Criar, como vimos em Deleuze, está relacionado com o abandono do estatuto da
representação, com a quebra de uma relação identitária com o mundo e com o agenciamento
de uma nova realidade. Pensar a criação desta forma fornece um precioso ponto de partida
para uma reflexão acerca da prática do ator em sua potência de produzir diferença nos afetos e
sensações.Vimos através de Craig e Artaud que esta produção de diferença é fruto de uma arte
que se produz no próprio corpo e reside sua força. O ato de criação do ator o distancia de
83
Craig, Da arte do teatro p. 119
84
Idem p. 119
85
Idem p. 89
47
sua história pessoal e o faz produzir-se diferentemente. Isso diz respeito a um movimento de
fuga das identidades, uma perda das referências, uma ruptura com o eu, o penetrar em outra
vida. Foge-se da história, de sua história, e das determinações que ela implica, corporais e
subjetivas, para adentrar num outro registro, para tornar-se outro. É neste sentido que se
propõe que a criação do ator seja pensada como uma experiência de devir.
O teatro da não-representação
Em “Un manifeste de moins”
86
Deleuze aponta Artaud, Grotowski e também Carmelo
Bene como exemplos de criadores do “teatro da não representação”. Ele faz uma distinção
entre o teatro como representação da vida e o teatro como criação de vida quando analisa o
modo de criação de Carmelo Bene. Segundo Deleuze, Bene constrói a sua dramaturgia a
partir da amputação dos elementos de poder elementos que fazem ou representam um
sistema de poder. E quando ele escolhe este procedimento não é somente a matéria teatral que
muda, mas a forma de se fazer teatro, que deixa de ser representação. A subtração dos
elementos estáveis de poder produz uma nova potencialidade do teatro, uma força não
representacional, sempre em desequilíbrio.
No lugar da “representação dos conflitos”, Bene constrói a cena valorizando a
“presença da variação” como elemento mais ativo, mais agressivo. O conflito torna o teatro
representativo na medida em que os conflitos são normalizados, codificados,
institucionalizados, são produtos. “Como sair desta situação de representação conflitual,
oficial, institucionalizada? Como fazer valer o trabalho subterrâneo de uma variação livre e
presente?”
87
O que possibilita esta “variação contínua da cena” em oposição à representação
de conflitos? Para Deleuze, ela seria uma conseqüência de um “devir minoritário de todo
86
In: Deleuze e Bene, Superposition.
87
Deleuze, « Un manifeste de moins », Superposition, p. 114.
48
mundo” por oposição ao “fato majoritário da pessoa”, seria o resultado da luta contra o
pessoal e a identidade. O homem só é o sujeito de um devir quando entra num devir-
minoritário que o arranca de sua identidade maior
Para falar do “Teatro da não representação” Deleuze utiliza a dramaturgia de Bene,
uma dramaturgia minoritária, e reflete sobre como ela engendra uma nova cena. Essa nova
cena é habitada por atores, então convém relacionar tudo isso que Deleuze imputa ao “Teatro
da não-representação” ao trabalho do ator. Se compreendemos que a experiência do ator é
uma experiência de Devir, que o teatro é criação de vida, que a força que o move é uma força
não representacional, em desequilíbrio, então chegamos a um tipo de ator e um tipo de arte
em consonância entre si. Ambos são experiências que produzem uma potencialidade presente,
atual, em busca de caminhos inesperados.
“O teatro surgirá como o que não representa nada, mas como o que apresenta e
constitui uma consciência de minoridade, enquanto devir-universal”
88
. Esta consciência,
Deleuze alerta que ela não tem a ver com uma consciência psicanalítica ou político-marxista.
A tomada de consciência é uma grande potência, mas não é feita pelas soluções ou
interpretações. É quando a consciência abandona estes amparos que ela conquista sua luz,
seus gestos, seus sons, sua transformação decisiva. O que conta é o devir, o devir
revolucionário, e não o passado ou futuro da revolução. O devir está no meio, onde o
movimento, a velocidade, o turbilhão: “O meio não é uma média, pelo contrário, é um
excesso”. Quando se pensa em termos de passado ou futuro, é a história. Um autor minoritário
é “sem futuro nem passado, não há nada além de um devir, um meio, pelo qual ele se
comunica com outros tempos, outros espaços”
89
.
Assim também podemos pensar o ator: se ele se mantém colado em sua própria
história, seu tempo e espaço, sua identidade permanece intacta e não criação. Se, no
88
Idem, p. 130.
89
Idem, p. 96.
49
entanto, ele entra num devir é possível transportar-se e transformar-se, sair de si, conectar-se
com a velocidade e com a variação. Mas como fazer para ser um ator/autor menor e alcançar
um devir minoritário? Também Deleuze se pergunta: “como impor um tratamento menor ou
de minoração, para criar os devires contra a história
90
, as vidas contra a cultura, as graças ou
desgraças contra o dogma?” Deleuze diz que há cultura desde o instante em que nós
estamos examinando uma idéia e não vivendo esta idéia. “Se nós somos a idéia, então nós
podemos dançar a dança de Saint-Guy e estamos em estado de graça”.
91
Neste sentido, a
“função anti-representativa” do teatro seria a de traçar, constituir uma figura de consciência
minoritária, produzir uma potencialidade presente, atual.
“Estar no presente é o nosso método”.
92
Para Mnouchkine, diretora do Théatre du
soleil, o essencial para o ator é estar no presente. “Eu acredito que o teatro é a arte do presente
para o ator.” O ator deve estar no presente, no presente de sua ação, de sua emoção, de seu
estado.”
93
O teatro existe no instante.
94
Quando um ator diz que está no presente isso quer
dizer que ele parou de interpretar. O ator que explica no lugar de viver, comenta sem cessar
seus gestos, não está absolutamente no presente. É necessário que o ator saiba renunciar
àquilo que estava previsto para seguir o que se apresenta. É por isso que , diferentemente de
Stanislavski, Mnouchkine não importância à memória como motor do jogo cênico. A
imaginação deve ser trabalhada através do próprio jogo e não pela lembrança ou pela história
pessoal do ator. A arma é a ação. Mas estar somente no fazer não basta, é fundamental
encontrar um estado. “É o estado que justifica as ações.” Enquanto permanecer ilustrativo,
figurativo, não poderá decolar. O importante é que o ator se torne um visionário e acredite em
90
Esta visão não condena a história como inimiga do Devir. A história é o conjunto de condições que possibilita
o nascimento do novo, de algo que escapa a própria história. Sem a história como condição o experimentar não
teria aonde se sustentar, ficaria sem determinação, sem sua condição de possibilidade. A história, ao mesmo
tempo em que cerca e delimita, indica “aquilo de que estamos em vias de diferir”, num caminho contrário ao
estabelecimento de uma identidade, “em proveito do outro que somos” (Deleuze, 1992, 119)
91
Idem, p. 125.
92
Mnouchkine in: Féral, Dresser un monument à l’éphémère , p. 56
93
Idem p.42
94
Idem p.40
50
suas visões, no jogo, na sua força, na sua cólera. É preciso crer.
95
O vidente ou visionário, segundo Deleuze, não é aquele que antevê o futuro. O vidente
apreende o intolerável de uma situação; ele tem visões, percepções em devir ou perceptos, que
colocam em xeque as condições usuais da percepção, que envolvem uma mutação afetiva. A
abertura de um novo campo de possíveis está ligada a estas novas condições de percepção: o
exprimível de uma situação irrompe bruscamente.
96
Assim como os poetas precisam pescar o rumor das palavras, para além e aquém
destas, prescindindo da existência de sujeito e objeto, habitando a neutralidade, o visionário
liberta-se do ego, da consciência para entrar em sintonia com a vertigem, o vazio, o indizível,
enfim, com as forças coletivas. A literatura permite compreender como o visionário torna-se
um sujeito impessoal e singular. Escavando-se a si própria, em desdobramento permanente
para fora de si, num processo de distanciamento, diferenciação, dispersão, a literatura faz
aparecer visões e audições que não pertencem a nenhuma língua.
97
O visionário pertence ao
exílio não por estar expatriado, mas também por se colocar fora de si, isto é, por engendrar
um apagamento das características que o definem como determinada pessoa, personalidade.
Na literatura quem fala não é o eu do escritor, tampouco o eu do personagem ou do leitor.
Tudo acontece na espessura da própria palavra, num espaço neutro, silencioso e sem
referente. Portanto, o desaparecimento do sujeito torna-se condição de aparecimento da
literatura. Algo semelhante acontece com o visionário, que suas ‘visões’ são resultantes de
individuações sem sujeito. O visionário tornou vivível uma experiência exterior, isto é,
produziu uma diferença ao multiplicar as visões.
“O essencial é admitir a existência de um mundo invisível que é preciso tornar
visível”.
98
O invisível não se refere ao nível psicológico proposto por freud e muito presente
95
Féral, Dresser un monument à l’éphémère , p. 22,23
96
Zourabichvili, Deleuze e o Possível: sobre o involuntarismo na política p.340
97
Deleuze, Clínica e crítica
98
Brook,, A porta aberta p. 49
51
no teatro do século XX, que valorizou e tem valorizado o universo subjacente aos gestos e
palavras onde se encontra as zonas do inconsciente, ego e super-ego. No teatro, é de outra
invisibilidade que se trata, “implica a existência de algo mais, abaixo, em volta e acima, uma
outra zona ainda mais invisível, ainda mais distante das formas que conseguimos identificar
ou registrar e que contém fontes de energia extremamente poderosas”. Brook usa o termo
“teatro sagrado” ou o “Teatro do Invisível-tornado-visível” para identificar esse tipo de teatro,
pois o sagrado é justamente esta transformação qualitativa do que originalmente não era
sagrado. O teatro tem como base a vida de seres humanos que não são sagrados por
definição. “A vida de um ser humano é o visível através do qual o invisível pode aparecer”
99
e
a experiência teatral tem um objetivo: tornar esse invisível visível através da presença do
interprete. O mundo da aparência é uma crosta e “debaixo desta se encontra a matéria
fervente que vemos quando espiamos dentro de um vulcão”
100
e a maior parte da vida escapa
aos nossos sentidos.A arte se explica pela capacidade de falar de temas que podem ser
reconhecidos quando manifestados através de ritmos ou formas. Não é o maestro quem faz a
música, é ela que o está fazendo, “o invisível toma posse dele”. Este é o verdadeiro sonho do
Teatro.
99
Idem p.50
100
Brook, O teatro e seu espaço p.51
52
O ator e a ação real: experimentação x interpretação
“Na vida cotidiana, ‘se’ é uma ficção, no teatro, ‘se’ é um experimento.
Na vida cotidiana, ‘se’ é uma evasão, no teatro ‘se’ é a verdade.
Quando somos persuadidos a acreditar nesta verdade, então teatro e vida são uma só
coisa.”
101
O Teatro busca por rituais verdadeiros construídos através de formas verdadeiras. O
princípio fundamental do teatro é a ação real
102
: na cena, a ação deve ser real, o que não quer
dizer absolutamente que ela deva ser realista. “Mais do que nunca desejamos uma experiência
além da monotonia cotidiana”
103
. O ator não revive a ação, ele recria aquilo que é vivo
naquela ação. Essa diferença é fundamental. Muitas formas teatrais valorizam a vivência de
uma ação da mesma maneira como acontece na vida ou a partir da psicologização desta ação.
Aqui, a ação real se refere a algo completamente distinto, o que se busca é um ato verdadeiro:
“A verdade não é realista. Entrar em cena já é entrar num lugar simbólico onde tudo é
musical, poético.”
104
Grotowski
105
, ao analisar o trabalho de seu ator Cieslak, diz que o que mais chamava
atenção nele era a verdade de seu jogo: seu ato era real, a sua energia era real, a cada vez.
Cieslak nunca quis mostrar o que não estava realmente lá, não havia mentira. No final de seus
monólogos ele emitia reações concretas, suas pernas tremiam, o coração estava acelerado.
Isto, para Grotowski, era uma reação psicofísica ligada ao trabalho não somente do corpo,
mas do cérebro. “É por isso também que eu digo que não é acting, na significação inglesa da
101
Idem p.151
102
Barba, Le canoe de Papier, p. 59.
103
Brook, O teatro e seu espaço p.46
104
Mnouchkine in: Féral, Dresser un monument à l’éphémère , p. 32
105
Grotowski, “Le Prince Constant de Ryszard Cieslak” in : Ryszard Cieslak, acteur-emblème des annés
soixante, p. 19.
53
palavra, aquela a que somos habituados. É alguma coisa outra, e, ao mesmo tempo, é um
sentido mais alto, talvez o maior, a substância da arte”.
106
Essa “outra coisa” que o ator experimenta, não é um acting - fingir algo que não vive -
e ao mesmo tempo não é se manter o mesmo, como na vida cotidiana. De novo, ator se
encontra situado num lugar entre duas categorias. Podemos aproximar este lugar do que
Deleuze chama de “experimentação-vida”, que é uma forma de se estar em “linhas de fuga”.
Estar numa linha de fuga não consiste em fugir da vida, uma fuga para o imaginário, “ao
contrário, é produzir algo real, criar vida, encontrar uma arma”.
107
Neste lugar não existe
mais o ‘Eu sou assim’, o que existe são “programas de vida”, sempre modificados, em devir.
Os “programas de vida” são como “meios de orientação para conduzir uma experimentação
que ultrapassa nossas capacidades de prever”.
108
Deleuze pede: “Experimentem, nunca
interpretem. Programem, nunca fantasiem”. Cieslak, em uma entrevista sobre a sua arte,
comenta o princípio que lhe transmitiu Grotowski: “Nós interpretamos a tal ponto na vida
que, para fazer teatro, é suficiente parar de interpretar!”
109
Grotowski, assim como Deleuze,
pensam a interpretação como um entrave à experimentação, e a experimentação como algo
concreto, real, uma ação no mundo.
A perda do rosto
Se na vida uma tendência à interpretação, um trabalho deve ser feito para que no
teatro possamos estar livres para experimentar. Muitos autores falam de um processo de
desconstrução subjetiva e corporal do ator como forma de permitir ao corpo experimentar.
106
Idem, p. 20.
107
Deleuze e Parnet, Diálogos, p. 62. Grifo da autora.
108
Deleuze e Parnet, Diálogos, p. 61.
109
Cieslak, « Je cours pour toucher l’horizon », in :Ryszard Cieslak, acteur-emblème des années soixante, p.
121.
54
Grotowski
110
propõe a tentativa de eliminar a resistência do organismo do ator ao
processo de criação. O resultado que se busca é a “eliminação do lapso de tempo entre o
impulso interior e reação exterior”, para que o impulso e a ação possam acontecer em um
tempo. Este método é chamado de “via negativa” que não é uma “coleção de técnicas”, mas
uma “erradicação de bloqueios”, devendo, para se manter vivo, permanecer aberto. É o
próprio processo que deve possuir o ator. Para isso é importante que haja uma passividade
interna e uma atividade externa. A fórmula de ativamente “não fazer” é um estímulo, pois
quando se começa a conduzir muito cedo o trabalho, o processo fica bloqueado. Assim, para
Grotowski, deve-se buscar uma disposição passiva a realizar um trabalho ativo: “não um
estado pelo qual ‘queremos fazer aquilo’ mas ‘desistimos de não fazê-lo”
111
. A idéia é
subtrair, eliminar elementos do comportamento “natural” que obscurecem o “impulso puro”.
De uma maneira parecida, Eugênio Barba e Nicola Savarese
112
indicam uma expressão
para resumir o que é fundamental na vida do ator: “être décidé”, “to be decided”.Esta é uma
expressão gramaticalmente paradoxal, na qual uma forma passiva assume um significado
ativo e em que uma indicação de disponibilidade para ação é expressa como uma forma de
passividade. Segundo os autores, esta expressão não é ambígua, é hermafrodita, combinando
dentro dela ação e passividade. O processo criativo caminha numa direção oposta a uma busca
por resultados. Busca-se, ao contrário, um estado de “desorientação voluntária”, que exige
que toda energia do ator seja posta em movimento, que o seu sentido seja aguçado “como
quando se caminha no escuro”. O risco deste trabalho reside na perda do controle do
significado da própria ação, mas para os autores este é um risco falso pautado na crença de
que o casamento entre a ação e seus significados é indissociável, como se a alma da ação
fosse o seu significado e não sua qualidade de energia. O importante não é o significado do
que se está fazendo, mas antes a precisão da ação que “prepara o vazio no qual um sentido -
110
Grotowski, Em busca de um teatro pobre.
111
Idem, p. 3
112
Barba e Savarese, A arte secreta do autor: Dicionário de antropologia teatral
55
um significado inesperado - pode ser capturado”.
113
A partir desta concepção, a ação é
liberada da ordem preestabelecida, da dependência do resultado que se deseja obter. O
crescimento de significados inesperados torna-se possível por uma disposição particular das
energias físicas e mentais e pode ser conseguida e destilada através do treinamento.
Brook
114
diz que a preparação do personagem é o oposto de construir: é demolir,
remover “tijolo por tijolo” os entraves dos músculos, idéias e inibições do ator. Através deste
trabalho de desconstrução dos vícios das idéias e da rigidez do corpo, o ator se prepara para
“receber a personagem”: “... até que um dia, numa bufada de vento, a personagem penetra por
todos os seus poros”
115
. A forma de um personagem é um nascimento, mas para Brook, a
verdadeira forma não é como a construção de um edifício, em que cada ação é um avanço
lógico em relação à ação anterior. Pelo contrário; como vimos, é o processo de demolição que
conduz à criação. Para o autor, a demolição implica sempre a aceitação do medo, pois toda
desconstrução cria um espaço perigoso, no qual menos suporte e menos apoio. Por isso,
todos os elementos que dão segurança precisam ser observados e questionados. Os elementos
familiares, compreensíveis, reduzem o mistério da atuação ao próprio nível de compreensão
do ator e sua interpretação, neste caso, fica limitada ao sabido. Desse modo, a interpretação
deixa de ser um veículo através do qual se projeta no ator aquilo que ele “nunca poderia
atingir por si”. O trabalho teatral permite um olhar plural, uma capacidade de olhar em várias
direções ao mesmo tempo: “a possibilidade de estar em si e além de si, num movimento para
dentro e para fora que se expande na interação com os outros e constitui a base da visão
estereoscópica da vida que o teatro pode proporcionar”.
116
Faz-se absolutamente essencial ser
impulsionado pelo “lado de fora” e isso se dá quando o ator busca trabalhar algo que desafia o
entendimento, forçando a visão para além do próprio horizonte pessoal. Neste sentido, o ator
113
Idem p.57
114
Brook, O ponto de mudança
115
Idem p.25
116
Idem p.24
56
deve ser um “servidor de uma imagem” que sempre será maior do que ele mesmo, a
“corporificação de uma imagem humana maior do que aquilo que pensa conhecer”
117
. Para
isso, Brook aposta num trabalho com o extremo. A busca do ator caminha para o lado oposto
ao naturalismo. Segundo ele, o “natural” serve como escudo para proteger o ator de uma
experiência teatral verdadeira, isto é, um trabalho com o limite. Porque uma experiência
autêntica pode ser tão dolorosa e estranha que pareça “irreal”, “inverossímil”, “não natural”.
Vimos que, em todos os autores citados acima, a tentativa de conceituar a criação do
ator envolve expressões com palavras parecidas: perda da identidade, eliminação da
resistência, desorientação voluntária, demolição do personagem, desconstrução subjetiva.
Deleuze, em “Un manifeste de moins”
118
, afirma que o processo criativo de Bene também
está relacionado a uma operação de subtração, a supressão de todos os elementos de poder,
na língua e nos gestos, na representação e no representado. Não se trata de uma operação
negativa, na medida em que ela engendra um processo positivo: a amputação da história,
porque a história é o “marcador temporal do poder” e a supressão da estrutura, porque a
estrutura é o “marcador sincrônico, o conjunto de relações entre invariantes”. Com a
subtração das constâncias, dos elementos estáveis ou estabilizados, que pertencem ao uso
maior, o que resta? Segundo Deleuze resta tudo, mas sob uma nova luz, com novos sons e
gestos. No teatro essa operação também não é negativa
119
. É uma perda, uma eliminação que
engendra novas aquisições, novas possibilidades expressivas. O que é eliminado é aquilo que,
de alguma forma, retém a expressão.
Deleuze pensa a arte como uma traição. “Trai-se as potências fixas que querem nos
reter, as potências estabelecidas da terra”.
120
A arte é a intensificação da linha de fuga e numa
linha de fuga sempre traição, pois quem foge trai o mundo das significações dominantes e
117
Idem, 309
118
In: Deleuze e Bene, Superposition, p. 103
119
Apesar de Grotowski chamar sua técnica de trabalho de via negativa, ele deixa claro que este processo tem
como proposta exatamente aumentar as possibilidade expressivas do ator, retirando dele seus entraves à criação
120
Deleuze e Parnet, Diálogos, p. 53.
57
da ordem. O traidor é um experimentador e um criador. Trair é criar e para isso é preciso
perder sua identidade, seu rosto, é preciso desaparecer, tornar-se desconhecido. Perder o rosto,
ultrapassar ou furar o muro das significações, trair é isso.
Fazer de si mesmo a criação, perder o rosto, supõe uma guerra contra um sistema
social que impregnam a forma subjetiva e as significações daquele ser. Deleuze
121
descreve o
sistema social como um “sistema muro branco buraco negro”: o muro das significações
dominantes e o buraco negro do nosso eu. “Muro onde se inscrevem todas as determinações
objetivas que nos fixam, nos enquadram, nos identificam e nos fazem reconhecer; buraco
onde nos alojamos, com nossa consciência, nossos sentimentos, nossas paixões, nossos
segredinhos por demais conhecidos, nossa vontade de torná-los conhecidos”. O rosto é o
produto deste sistema, é fruto de uma sociedade que tem a necessidade dele. Deleuze se
pergunta como desfazer o rosto, como atravessar o muro branco sem ser esmagado, como sair
do buraco negro, como se tornar imperceptível. Os rostos concretos nascem de uma “maquina
abstrata de rostidade”, que irá produzi-los quando der aos significantes seu muro branco e à
subjetividade seu buraco negro. E esta máquina não se efetua apenas no rosto que produz,
mas no corpo, nos objetos, em diversos graus. A máquina sempre constituirá uma unidade de
rosto encaixando-o em um sistema de correlações, reconhecendo-o em um conjunto pré-
definido: preto ou branco, homem ou mulher, x ou y: “Introduzimo-nos em um rosto mais do
que possuímos um”.
122
Neste sentido, o rosto confere ao ser uma única substância de
expressão, mas ele não supõe um sujeito pré-existente, ao contrário é o rosto que aos
sujeitos a substância: “Não é um sujeito que escolhe os rostos (...) são rostos que escolhem
sujeitos”.
123
O rosto é o homem branco, é cristo, é o europeu típico. Ao longo da história produziu-
se um “desmoronamento generalizado de todas as semióticas primitivas, polívocas,
121
Deleuze e Parnet, Diálogos, p. 59.
122
Deleuze e Guattari, Mil platôs vol. 3, p. 44
123
Idem, p. 48.
58
heterogêneas” para dar lugar a uma semiótica de significância e subjetivação, que tem em
comum o poder de aniquilamento de qualquer polivocidade, edificando a linguagem como
forma de expressão exclusiva. A significância e a significação são impostas por
agenciamentos de poder e constituem suas formas de expressão: “trata-se de uma abolição
organizada do corpo e das coordenadas corporais pelas quais passavam as semióticas
polívocas ou multidimensionais. Os corpos serão disciplinados, a corporeidade será desfeita,
promover-se-á a caça aos devires animais (...)”.
124
Tudo isso tem como conseqüência a
produção de uma única matéria de expressão, a operação de uma rostificação de todo o corpo:
“A semiótica do significante e do subjetivo nunca passa pelos corpos”.
A única forma de escapar do rosto, de desfazer o rosto e as rostificações, é através de
“estranhos devires” que ultrapassarão o muro e sairão dos buracos negros. A ruína do rosto
está relacionada à constituição de um “corpo sem órgãos”
125
, fazer do corpo “um raio de luz
que se move numa velocidade cada vez maior”. A arte é o lugar da velocidade, é o que
possibilita esta empreitada, todavia ela não pode ser vista como um fim, mas como um
instrumento para traçar linhas de vida.
Se antes, no teatro, o eu do ator e as significações dominantes eram valorizadas,
consequências de um culto à personalidade do ator e do vedetismo, agora o novo ator “é um
ator sem rosto e sem voz”.
126
As teorias sobre o ator, esse novo ator, visam práticas coletivas
que excluam o individualismo e o narcisismo. O ator deve criar um instrumento com seu
corpo, um instrumento que prescinda de sua “própria pessoa”. “Não creio de forma alguma,
no poder pessoal do homem, mas no seu poder impessoal”. Mas o que de impessoal no
homem? Segundo Craig, ao perdermos aquilo que constitui a nossa identidade, ao nos
destituirmos de nossa personalidade, uma nova força se apodera da subjetividade, uma força
124
Idem, p. 49.
125
Esta expressão de Deleuze será melhor discutida no segundo capítulo deste trabalho.
126
Roubine, A linguagem da encenação teatral p.175
59
distinta de qualquer outra e superior a qualquer outra.
127
Para criar esse instrumento o ator
deve recorrer a uma série de técnicas corporais que explorem novos registros valorizem a
teatralidade do corpo.
Um técnica corporal bastante utilizada nos grupos teatrais de pesquisa e que fornece
um exemplo emblemático para essa discussão é a o estudo da máscara. Diversas pesquisas e
exercícios para o ator envolveram o uso da máscara neutra ou máscaras de tradições orientais,
como a balinesa. É interessante pensar este recurso à luz da teorização acerca da rostidade: o
trabalho com a máscara como um combate à ditadura do rosto, como forma de escapar das
formas subjetivas constituídas. Esconder o rosto sob uma máscara tem a função de revelar
algo que não passa pelo rosto e suscitar no ator uma via de expressão multifacetada. Copeau
128
foi o pioneiro no uso da máscara neutra, desenvolvendo um trabalho sobre o estado neutro
e preparatório e sobre a improvisação silenciosa com a máscara inexpressiva. Decroux
129
também empregava, freqüentemente, a máscara neutra em seus exercícios e no trabalho
técnico dos mímicos. Segundo ele, este tipo de máscara tem um aspecto que permite ao ator
interpretar todos os sentimentos possíveis, pois fornece ao ator todas as possibilidades,
mesmo as mais diversas e contraditórias. A máscara, para Decroux, é “sublime”, pois quando
o ator faz uso dela não estamos mais diante de um homem determinado, mas do “homem de
todos os tempos”.
Ariane Mnouchkine e sua companhia também utilizam a máscara nos processos de
criação de espetáculos e nos estágios para atores. Segundo Mnouchkine as máscaras são
instrumentos de trabalho fundamental porque deixam o ator nu. Os atores têm a impressão de
que a máscara os escondem e essa crença produz um efeito contrário de liberação. Na
realidade, mais do que esconder o ator, a máscara tem o poder de ocultar o Eu. De fato, ela
não esconde nada, mas engendra uma abertura, é como uma “lupa sobre a alma”. Além disso,
127
Craig, Da arte do teatro p.80
128
Copeau, Registres I, Appels, p. 272.
129
Decroux, « Les dits d’Étienne Decroux », in : Étienne Decroux, mime corporel, p. 133.
60
obriga o ator a trabalhar o detalhe, pois o corpo fica mais evidente com a máscara. Ela é vista
como um objeto divino e essa crença é, na verdade, mais uma estratégia poética do que uma
superstição. É preciso estar à escuta da máscara, não é o ator que fala por ela, mas o inverso.
Colocando a máscara, o ator se torna um oráculo através do qual a máscara revela sua vida e
isso exige uma árdua aprendizagem.
130
Se o ator traz a máscara para si, ao invés de ser levado
até ela, ele a banaliza. uma viagem a ser feita até a máscara. “As máscaras vêm de longe,
de um outro continente. O teatro é um outro continente.”
A “potência do impessoal” que a arte busca é, não uma generalidade, mas uma
singularidade levada ao extremo, cria-se um homem, uma mulher. Sobre a literatura, Deleuze
diz que a arte começa quando “nasce em nós uma terceira pessoa que nos destitui do poder de
dizer Eu”.
131
Escrever é desertar esta forma dominante personológica, é libertar a vida onde
ela está aprisionada na forma dominante do eu. A literatura, como a arte, deve experimentar
uma espécie de paradoxo: tornar-se impessoal, “alheia à forma pessoal do eu”, aos seus
dramas psicológicos. O impessoal na arte tem o poder de atrair o eu para uma esfera plural e
criar espaços onde possam brotar devires outros que a forma do eu esconde ou soterra.
132
No
teatro, a sujeição da arte ao já conhecido, aos dramas psicológicos que limitam a subjetividade
não permitem o surgimento dessa “potência do impessoal”. Por isso, a aposta num novo tipo
de teatro, um novo tipo de ator, uma aposta em renovar a vida pelo teatro, onde o homem
torna-se senhor do desconhecido e o faz nascer.
130
Féral, Trajectoires du Soleil p.29
131
Deleuze, Critica e clínica, p. 13.
132
Pélbart, A vertigem por um fio, p. 71.
61
O devir-personagem
O ator faz nascer o desconhecido, faz nascer essa terceira pessoa, que não é mais ele
mesmo. Podemos chamar esse nascimento de criação do personagem? O que é o personagem
no teatro? Deleuze fala que a construção dos personagens literários não consiste em imaginar
ou projetar um eu. Apesar dos personagens serem individualizados e precisos “seus traços
individuais os elevam a uma visão que os arrasta num indefinido como um devir potente
demais para eles.”
133
São essas visões que dão ao personagem da literatura a “potência do
indefinido”. Ao falar sobre o personagem no teatro devemos saber que essa palavra não é
portadora de um significado. Como vimos no primeiro capítulo, é importante analisar a
relação que se estabelece com o personagem, pois ela pode ser construída de muitas formas
diferentes.
Mnouchkine diz numa entrevista: (...) eu uso a palavra personagem e, às vezes, me
arrependo e digo: não, esqueça a palavra personagem. Porque a partir do momento que se
utiliza esta palavra, torna-se um pouco racista, limitativo. A palavra personagem pode
estreitar a visão, a partir da definição do que se é e o que não é.”
134
O conceito de trabalho
sobre o personagem, o próprio conceito de personagem pode ser algo muito limitador. Para
Mnouchkine, o personagem deve ser construído como algo ilimitado que sempre i
surpreender. Como afirmou Deleuze, ele deve ser mais do que a projeção de um eu, deve
conter a potência de um impessoal. Não se fala da psicologia, mas da alma do personagem O
personagem deve ser portador de signos, deve ser “teatral”, e não fruto da pessoa do ator
simplesmente vibrando emocionalmente em cena. Os personagens criados não carregam
consigo a totalidade da fábula de um sujeito acabado, a psicologia banaliza a história do
personagem. Essa concepção de personagem explica porque o ator do Teatro de Soleil
133
Deleuze, critica e clinica, p. 13
134
Mnouchkine in: Féral, Dresser un monument à l’éphémère , p. 46
62
trabalha as situações, os estados, e não as emoções. A emoção não deve ser algo programado
na peça. Elas virão, ou não, como consequência do encontro entre o signo justo e a recepção.
A tarefa mais importante para o ator é encontrar uma situação justa e verdadeira. É a situação
que permite definir o personagem, pois ela obriga o ator a trabalhar o detalhe, o fato preciso, e
não o conjunto de fatos que compõe a vida de um personagem. Não é necessário saturar os
personagens com um passado que os sobrecarregam antes mesmo deles entrarem em cena. É a
partir dos pequenos atos justos e verdadeiros que o personagem vai adquirir a força da
existência e que a emoção vai nascer. O risco, no “trabalho do detalhe”, é do ator representar
a idéia da situação ou do personagem e não a fazer a ação, ela mesma. Isso tem como
consequência uma “tagarelice gestual” que sufoca a pureza do jogo. É preciso aprender a criar
um espaço para a respiração, a inscrever as pausas e aceitar a imobilidade.
Brook pensa o personagem de forma parecida. O autor acredita que o personagem não
é uma entidade estática a ser construída ao longo do ensaio, para no final se tornar algo
concreto e imutável, algo sem mobilidade e vida. A exploração de determinados aspectos do
personagem são sempre parciais, não constituem uma verdade sobre o personagem. O
processo de pesquisa de um personagem é infindável, não existem formas acabadas.
135
O ator
criativo deve abandonar seus resultados precedentes, pois somente desta maneira o papel pode
nascer ao invés de ser construído. O papel construído não possui poros por onde o novo pode
penetrar, ele é o mesmo todas as noites e por isso se desgasta. o papel nascido, ele deve
renascer para permanecer o mesmo em frescor e potência e isso faz dele sempre outro. Mas é
claro que esse esforço de renascimento diário seria algo insuportável e impossível se o ator
não pudesse se apoiar num segundo nível chamado técnica. Falaremos disso adiante.
O risco para o ator é sua relação com o personagem se transformar num reencontro
com um eu, que personagens podem levar ou a uma interiorização numa forma pessoal e
135
Brook, O teatro e seu espaço p.122
63
limitada, ou ainda à imitação de um modelo externo fechado à experimentação. Para escapar
novamente das duas alternativas - ou vivemos o personagem (identificando-se com ele) ou
imitamos a sua forma externa - apostamos no devir para se pensar a relação do ator com o
personagem..
Ao falar sobre o devir-animal, Deleuze
136
usa como exemplo Robert de Niro, na
seqüência de um filme em que ele anda “como” um caranguejo. Este “como” não se refere a
uma imitação do animal caranguejo, mas de compor com a imagem, com a velocidade da
imagem algo que tem a ver com o caranguejo. Em outro contexto Artaud escreve, em uma
nota ao final de O Teatro e seu Duplo, suas impressões sobre a ação dramática do ator Jean-
Louis Barrault num espetáculo. O espetáculo, segundo ele, o fez mergulhar na magia a partir
da interpretação de Barrault quando este vive uma espécie de cavalo-centauro: “É aí, nesta
atmosfera sagrada, que Jean Louis Barrault improvisa os movimentos de um cavalo selvagem
e que de repente nos surpreendemos ao vê-lo transformado em cavalo”.
137
Esta
transformação, este devir-cavalo de Barrault centauro, meio-homem meio-cavalo - é
possível, para Artaud, graças à importância concedida ao gesto, a “ação irresistível do gesto”.
Fazendo uma aproximação entre o devir-animal e o devir-personagem, apesar de
ambos, tanto o animal como o personagem, terem uma forma muitas vezes pré-existente e
independente, tornar-se é sempre criação. Apesar de Hamlet existir como personagem de um
texto pré-concebido isso não determina a relação que o ator vai estabelecer com o papel. Ele
pode simplesmente imitar um príncipe em sofrimento, à maneira como podemos imitar um
latido de um cão; ou ainda ele pode procurar as justificativas psicológicas e sofrer em cena
cada amargura e desencanto do personagem. Porém ele tem a alternativa de criar um Hamlet
através do corpo e de sensações, através da conjugação original Hamlet-ator, um levando o
outro a novos agenciamentos e formas.
136
Deleuze, Mil Platôs, vol. 4, p. 66.
137
Artaud, O teatro e seu duplo, p. 169.
64
Deleuze
138
define os personagens do escritor Thomas Hardy como “coleção de
sensações intensivas”, “bloco de sensações variáveis” e não sujeitos ou pessoas. Hardy cria
uma individuação sem sujeito. O fato de não haver sujeito não significa uma imprecisão ou
generalidade, mas “seus traços individuais os elevam a uma visão que os arrasta num
indefinido como um devir potente demais para eles.”
139
Deleuze se refere à construção do
personagem na literatura, mas esta perspectiva constitui uma interessante forma de se pensar o
personagem no teatro, fora do psicologismo que poderia envolver sua construção. O teatro
não voltado para a psicologia valoriza a ação como forma de se relacionar com o personagem.
O personagem está no corpo, está na sensação.
Para simplificar essa afirmação recorreremos ao relato de Yoshi Oida
140
sobre uma
apresentação no japão em que um ator interpretava uma senhora idosa que teve seu filho
morto por um samurai. Foi uma interpretação extraordinária, era como se a alma da senhora
realmente estivesse dentro daquele ator. Ao visitá-lo no camarim depois da apresentação Oida
perguntou sobre o momento, o mais importante e emocionante, em que o ator entrava em cena
para perguntar ao samurai porque matara seu filho. Oida supôs que o ator poderia ter usado
algum método relacionado a memória afetiva em função da dramaticidade com a qual
realizava as ações. Mas o ator respondeu que se concentrou, durante toda a cena no seu
caminhar: por ser uma senhora idosa ele constatou que deveria caminhar a passos menores e
mais lentamente e essa exigência física ocupou sua mente durante todo o percurso. “Através
de absoluta simplicidade do jogo corporal e da constante concentraçãode seu espírito e
energia no trabalho físico, o ator conseguiu criar um ‘espaço, permitindo uma dilatação da
imaginação do público”.
141
Em outro exemplo, Oida se refere a atuação de Irene Worth no
138
Deleuze e Parnet, Diálogos, p. 53.
139
Deleuze, Crítica e clínica, p. 13.
140
Ator japonês integrante da companhia de Peter Brook
141
Oida, Um ator errante p.31
65
papel de Jocasta
142
. Na cena do suícidio, Jocasta fazia uma ação que consistia em dobrar os
joelhos e se abaixar lentamente até um determinado ponto onde permanecia estática e com os
olhos esbugalhados. A cena era extremamente tocante e de uma beleza única. Contudo, ao ser
perguntada sobre esse momento, a atriz contou que, como o movimento de descida exigia
muito de seu corpo para que permanecesse equilibrada, toda a sua concentração convergia
para isso. Não existia espaço para outros pensamentos, pois o corpo a trazia para a cena e para
o presente daquele acontecimento. O corpo em desequilíbrio não permitia que ela se
distanciasse e “interpretasse” uma mulher que se mata. E, no entanto, estava tudo ali.
Se o personagem está no corpo, se o corpo é o lugar por onde o ator pode escapar das
formas personológicas estáticas e limitadas e entrar em devir, então é importante focar na
questão do corpo do ator. A relação que o ator estabelece com o corpo, a função do corpo no
teatro,
a criação do corpo cênico são questões a serem aprofundadas.
142
Produção de Édipo Rei, de Sófocles encenada por Peter Brook no Teatro Nacional de Londres em 1968.
66
CAP III – O ATOR E A CRIAÇÃO DO CORPO CÊNICO
"Nada em ti está pronto, nem mesmo este corpo, e sobretudo este corpo."
143
O ocidente, ao contrário do teatro ritual oriental, que preservou ao longo de sua
história minuciosos processos de trabalho corporal do ator, manteve-se voltado para a
dramaturgia e o texto escrito. Esta escolha teve como consequência um afastamento dos
procedimentos de encenação voltados para o corpo e da cena como principal fonte expressiva
do teatro. Porém, diversos mestres do teatro contemporâneo reassumiram a importância de
um trabalho consistente do corpo do ator, a partir da criação de técnicas e ensinamentos que
visavam a preparação e reconstrução do corpo cênico.
O teatro do corpo sem órgãos
Vimos, no último capítulo, que o ator trabalha para estar em devir e luta contra os
automatismos da vida cotidiana. Tudo isso exige uma prática que proporcione essa abertura
corporal ao Devir. Este trabalho nos remete às praticas direcionadas à construção de um
"corpo sem órgãos". Deleuze e Guattari
144
reinventaram esta expressão para condensar as
idéias artaudianas de transformação do corpo e do homem. O corpo sem órgãos seria, para os
filósofos, um conjunto de práticas destinadas a desfazer o organismo, entendido como uma
determinada experiência do corpo, construída e mediada por uma série de representações. A
cultura ocidental teria constituído campos de saber, especialidades e práticas que atuam no
corpo definindo formas de se estar no mundo. O corpo é organizado em função de uma ordem
maior ao qual ele permanece enredado, e o organismo não é somente uma estrutura biológica,
143
Artaud, Oeuvres, p. 1531.
144
Deleuze e Guattari, Mil platôs vol. 3.
67
mas essa operação social, essa canalização de suas forças e desejos, essa ligação de seus
fluxos e mapeamento de suas intensidades. Fabrica-se um corpo funcional, produtivo, dócil e
adaptado. A ordem orgânica é inseparável dessa ordem social e cultural , que modela o corpo
e fabrica as subjetividades. O corpo sem órgãos parte de uma necessidade profunda de
liberdade, e permite produzir um novo corpo povoado pela circulação de fluxos e
intensidades. "Não estou querendo encontrar nada, mas sim: 1- evadir-me do ser: 2- continuar
minha marcha fora dele; 3- marcha que não tem como objetivo o infinito, mas escava o
infinito indefinidamente".
145
A construção do corpo sem órgãos supõe uma busca permanente, pois quando se
imagina que se tenha encontrado depara-se com o limite: "vamos mais longe, não
encontramos ainda nosso CsO, não desfizemos ainda suficientemente nosso eu."
146
O corpo
sem órgãos é aquilo que não sou eu, aquilo que não vem de um sujeito ou organismo posto
que ainda não pertence a um estrato. Ele não é um lugar a que se chega, é o lugar do "não
lugar", da não estabilidade, é um corpo povoado por intensidades nômades, é enfim o "vazio-
pleno", o que resta quando tudo foi retirado. E o que se retira é justamente o fantasma,
conjunto de significâncias e subjetivações".
147
Esta busca pelo corpo sem órgãos visa fazer o
homem recriar-se no trânsito entre ser e não ser, entre o vazio e a forma, através de uma
construção-descontrução; tem a função de integrar o não representável no seio da vida. Para
criação deste corpo, Deleuze e Guattari enfatizam o aspecto de invenção experimental sempre
acompanhado de prudência. É a experimentação que conduz o corpo a um novo estado de ser.
A decomposição das formas e modelos é etapa fundamental para a gênese de um outro
corpo. Artaud se antecipa às teses de Foucault, Deleuze e Guattari ao analisar o controle
minucioso sobre o corpo e os condicionamentos orgânicos fabricados pelo poder: “não haverá
revolução política e moral possível enquanto o homem permanecer magneticamente preso nas
145
Artaud, « Suppôts et suppliciations», in Oeuvres, p. 1219.
146
Deleuze e Guattari, Mil platôs, vol. 3, p. 11.
147
Idem, p. 12.
68
suas mais elementares e mais simples reações nervosas e orgânicas".
148
O teatro artaudiano é
o lugar da desconstrução do organismo produzido pelas formas de poder e da reconstrução de
um outro corpo possível. Seu projeto se refere a uma destruição do corpo enquanto signo de
escravização. "O corpo deve ser modificado, refeito pelo homem que, ao dar-lhe uma forma
nova, escolherá a realidade".
149
E o "Teatro da crueldade" é visto, por Artaud, como uma
forma de se encontrar esse novo corpo:
"O ato de que eu falo visa a total transformação orgânica e física verdadeira do corpo
humano. Por quê? Porque o teatro não é essa parada cênica em que se desenvolve virtual e
simbolicamente um mito, mas esse caldinho de fogo e de verdadeira carne em que,
anatomicamente, pela trituração de ossos, de membros e de sílabas, os corpos se refundem, e
se apresenta fisicamente e ao natural o ato mítico de se fazer um corpo”.
150
Neste sentido, o corpo torna-se a principal expressão da eficácia da ação teatral a partir
de um poder de atuação sobre ele que funciona como forma de acesso a novas modalidades de
ser.
"O corpo é uma multidão excitada, uma espécie de caixa de fundo
falso que nunca mais acaba de revelar o que tem dentro
E tem dentro toda a realidade.
Querendo isto dizer que cada indivíduo existente é tão grande
como a imensidão inteira, e pode ver-se na imensidão inteira".
151
O fundo falso corporal não revela a alma, mas o próprio corpo prenhe de infinitas
possibilidades, um corpo habitado pela multidão que ultrapassa o invólucro pessoal e passa a
experimentar forças outras vindas de fora. Esta experiência do corpo é possível a partir da
148
Artaud apud Virmaux, Artaud e o teatro, p. 322.
149
Lins, Antonin Artaud, o artesão do corpo sem órgãos, p. 67.
150
Artaud apud Virmaux, Artaud e o teatro, p. 321.
151
Artaud, conferência “Tète a tète” cit. In: Quilici, Antonin Artaud..Teatro e Ritual, p. 197.
69
destruição das representações que o habitam, pois a criação deste "outro corpo" pressupõe um
refazer-se através de uma "experimentação rigorosa". Este processo de construção de um
novo estado de ser não era visto por Artaud como uma experiência momentânea, uma
inspiração ou delírio passageiros, mas como um trabalho de "desorganização programada",
uma arte que tem o próprio artista como foco. A arte é justamente esta operação de refazer-se,
é o "processo de sutilização da percepção e da consciência", é a criação de "espaços para a
vida" a partir do esvaziamento das representações que congelam o corpo numa determinada
forma de existir.
152
Este despovoamento do espaço corporal libera-o dos automatismos e
recupera a liberdade de um corpo sem órgãos, de um corpo-multidão, de um corpo
experimentado como infinito: “Quando tiverem conseguido um corpo sem órgãos, então o
terão liberado dos automatismos e lhe devolvido sua verdadeira liberdade. Então poderão
ensiná-lo a dançar às avessas como no delírio dos bailes populares e esse avesso será seu
verdadeiro lugar".
153
Os automatismos, aos quais se referia Artaud, não se manifestam
somente nos gestos estereotipados, mas também no modo como sentimos, no nascer das
sensações, atuando também num nível "microfísico", através da repetição de padronização do
sentir. Além disso, a interpretação e representação contínuas das sensações e gestos não
permitem que estes sejam vividos na sua singularidade, pois tudo o que acontece no corpo
passa a ser fixado num esquema pré-definido de valores. Isto faz com que se perca a
possibilidade de apreensão das contínuas metamorfoses corporais e de sentir o corpo como
instável e mutável.
Despertar um "corpo sem orgãos" implicaria, então, a afirmação desta instabilidade, a
luta contra as cristalizações das experiências e das sensações. O grande desafio é criar
mecanismos experimentais que possibilitem viver o corpo como uma realidade ainda
desconhecida e não mapeada, como um espaço onde possam circular intensidades ainda não
152
Quilici, Antonin Artaud, teatro e ritual, p. 199.
153
Artaud, « Pour en finir avec le jugement de dieu », in Oeuvres, p. 1643.
70
nomeadas. Desta forma, o corpo sem orgãos coloca em cheque também a representação de
um eu acabado e fechado em si, pois se o corpo é um "corpo-instável", um "corpo-multidão",
ele não está mais circunscrito em um contorno que define um sujeito. Esta "descolonização do
corpo" dos mecanismos de controle e de poder, o "dissolver a carcaça do indivíduo para abrir-
se a novos seres", permite experimentar a vida de uma nova forma, permite "respirar com a
vida do mundo".
154
O corpo cênico: a construção de um novo corpo
O corpo não é, por natureza, teatral. um processo de aprendizagem que implica
uma nova forma de “estar” no espaço artificial que é o palco. Este espaço tem um potencial
esmagador e ocupá-lo exige um enfrentamento. É importante, nesse sentido, um trabalho
constante sobre si mesmo, pesquisando o corpo como quem explora um território.
155
O ator
busca habitar seu corpo de uma nova maneira, criar um corpo cênico, um novo corpo capaz de
ser vivo cenicamente.
Quando a arte teatral passa a renunciar à idéia de personificação, de “imitação da
natureza”, o ator precisa desenvolver um trabalho no sentido de “libertar o corpo da prisão
mimética”.
156
É mais fácil, por uma questão cultural desenvolver sensivelmente a fala e o
rosto, do que o corpo. Por isso é fundamental ampliar essa sensibilidade para resto do corpo,
para todo o corpo. “‘Ser sensível’ para o ator, significa estar permanentemente em contato
com a totalidade de seu corpo.”
157
O início do ato de representar começa com um movimento
interior mínimo, leve e quase invisível. Este movimento sutil é como um tremor, uma
mudança de energia. Mas esse primeiro impulso, esse estremecimento deve passar para todo o
154
Quicini, Antonin Artaud, Teatro e ritual, p. 203
155
Roubine, A arte do ator.
156
Craig, Da arte do teatro p.103
157
Brook, A porta aberta p.17
71
organismo, e para isso é preciso trabalho. É preciso haver um “processo bilateral”, onde o
movimento de dentro é ajudado pelo estímulo de fora.
158
No trabalho do Teatro de Soleil, por exemplo, não uma separação entre o jogo
cênico, a interpretação e sua inscrição no corpo do ator. Um trabalho físico consistente faz
parte da tarefa fundamental do ator. É necessário um corpo o mais livre possível, o mais
engajado possível, mas também uma imaginação trabalhada que permita escapar dos
automatismos cotidianos.
159
O ator deve se defender da tentação de colocar a vida cotidiana
em cena, pois isso envolve a utilização de técnicas cotidianas do corpo e falsas
espontaneidades que limitam a expressão. Mas o que são as técnicas cotidianas e como fazer
para encontrar uma nova técnica para o corpo?
Cada pessoa, a partir das vivências em uma sociedade particular, em uma determinada
época, é aculturada. Não se trata somente de uma aculturação mental, mas de uma aculturação
do corpo. Trata-se de um processo de condicionamento que se cristaliza em esquemas de
comportamento, que determina, assim, uma maneira de utilizar a própria dinâmica física. Esta
utilização do corpo, que Barba chama de “técnica cotidiana”, constitui a cultura corporal que
é, na realidade, uma forma de aculturação. As técnicas cotidianas são tão funcionais que se
tornam involuntárias.
Fazemos uma série de gestos que acreditamos ser “naturais”, mas que são, ao
contrário, culturalmente determinados. É usualmente chamado de espontaneidade o que, no
entanto, não é mais do que um conjunto de reações realizadas automaticamente. O fato de
realizar com facilidade certas ações, de se sentir cômodo, faz com que estas pareçam reações
espontâneas, fáceis de repetir, dando a sensação de liberdade. Mas, na realidade, esta
espontaneidade é um conjunto de automatismos que aprisiona o corpo e que é extremamente
difícil de abrir mão. Para se libertar destes automatismos, para se desaculturar, é necessário
158
Brook, O teatro e seu espaço p.115,116
159
Féral, Dresser un monument à l’éphémère p.23
72
travar uma luta contra a espontaneidade, o “natural”. É preciso inventar um método que se
concentre no oposto do natural: “algo artificial”.
160
A desaculturação do ator é trabalhada a
partir de técnicas extracotidianas, que o obrigam a perder, no palco, o comportamento natural.
Neste processo de desaculturação, tudo se passa como se o corpo do ator fosse
decomposto e depois recomposto. No final desse trabalho o corpo não se parece mais com ele
mesmo. Nesse sentido, o ator deve ser arrancado de seu contexto natural dominado por
técnicas cotidianas do corpo. Para que este corpo seja cenicamente vivo, ele não pode parecer
com aquilo que é ordinariamente. Para tanto ele deve abandonar sua própria espontaneidade,
seus próprios automatismos. “As diversas codificações da arte do ator são, antes de tudo,
métodos para escapar dos automatismos da vida cotidiana (...)”.
161
As chamadas “técnicas cotidianas”, seguem o princípio do menor esforço: para a
obtenção do resultado máximo, o mínimo dispêndio de energia. É um comportamento
baseado na funcionalidade, em economia de forças. Ao contrário, as “técnicas
extracotidianas”, que fundamentam a arte do ator, se baseiam no máximo emprego de energia
para um resultado nimo. Neste tipo de comportamento, cada ação preconiza o desperdício,
o excesso. O que chamamos de técnica é, de fato, um uso particular do corpo e apesar das
técnicas extracotidianas serem diferentes das técnicas cotidianas elas mantêm uma relação
entre si, sem se tornarem isoladas ou separadas. O desnudamento do corpo de tudo aquilo que
diz respeito aos hábitos cotidianos e banais visa evitar que ele seja apenas um corpo humano
condenado a se parecer consigo mesmo, apresentando e representando somente a si mesmo. O
corpo do ator é tomado separadamente e pode sofrer uma espécie de recomposição de acordo
com outras regras diferentes das regras cotidianas. O corpo recomposto desiste das próprias
respostas automáticas. Porém, Barba deixa claro que a ruptura do automático não é, em si, a
expressão.
160
Barba, Além das ilhas flutuantes,p. 94.
161
Barba, Le canoë de papier, p. 59.
73
A elaboração de técnicas para o corpo do ator tem como meta a construção de uma
nova tonicidade muscular: “um corpo dilatado”. O corpo dilatado do ator é um corpo quente,
mas não no sentido sentimental ou emotivo. Sentimento e emoção são as reações, as
conseqüências. Os procedimentos para alcançar o “bios cênico” do ator consistem em “matar
o próprio corpo, a cultura que o modela e renascer, através de novas tensões, um corpo
dilatado, com a totalidade de suas possibilidades de irradiar vida e de contagiar o espectador”.
162
Mata-se o próprio corpo quando se aprende a utilizá-lo de maneira diferente. Trata-se de
uma nova aculturação através de uma técnica particular aprendida. É possível que o ator
alimente um processo contínuo que o faz chegar a uma outra cultura do corpo: uma técnica
pessoal produzida singularmente.
Barba
163
faz uma analogia entre a arquitetura e o teatro. Diz que existe uma
configuração que é resultado da inércia, da entropia, e existe uma configuração que é
resultado de um dinamismo de forças contrárias. Seria a diferença entre pedras esparramadas
no chão e catedrais de pedras, onde as pedras dão a impressão de não ter peso, aéreas. A
arquitetura ajuda a visualizar esta qualidade das oposições, das tensões. Este é o segredo da
arquitetura, mas também da “vida” do ator: “a transformação do peso e da inércia, por meio
do jogo das oposições, em energia que voa”. A tensão pode tanto demonstrar um esforço,
como pode, ao contrário, escondê-lo e transformá-lo em leveza. A leveza tem seus
fundamentos invisíveis no esforço de uma tensão. O segredo do corpo do ator reside na
mutação do peso em energia, na contínua irrupção de microdinamismos, na alternância das
tensões que não estão rígidas, que não congelam o que está vivo, mas que o afirmam,
colocam-no em evidência. “Todas as metodologias do jogo teatral tentam criar uma
arquitetura nova de tensões no corpo do ator, isto é, uma nova tonicidade”.
164
Essa mudança de energia é possível quando abandonamos a “vida espontânea” que
162
Barba, Além das ilhas flutuantes, p. 94.
163
idem, p. 95.
164
Barba, Além das ilhas flutuantes, p. 97.
74
possuímos para manifestar a “vida do corpo”. Assim como o ator não pode limitar-se a
representação de si mesmo, nem ser literal, auto-referencial em relação ao que faz, da mesma
maneira sua presença física não pode consistir em seu peso e sua espontaneidade: deve criar
“uma ressonância de forças em conflito, em oposição. Pois tensão e drama são sinônimos”.
165
É através da rede de tensões, que se manifesta, no ator, a qualidade da energia cênica. A
experiência impalpável que se vivencia tem sua raiz em algo que é comensurável: uma
alteração de postura, uma mudança no ponto de equilíbrio. Não é uma questão de talento ou
de querer se expressar; é uma autoprodução que tem como ponto de partida o próprio corpo.
Penando nisso, podemos retornar aos exemplos da atriz que interpretava Jocasta em
Édipo Rei e do ator japonês interpretando uma velha senhora. Os atores utilizavam o esforço
de executar um movimento extracotidiano para construir uma rede de tensões. Concentravam
toda a sua energia na ação, potencializam essa energia através da ação. E, como em um “passe
de mágica”, da tensão física surgia o drama.
Mas como fazer, concretamente, para que o corpo se disponibilize e adquira esta
plasticidade? Tal como o músico trabalha seus dedos todos os dias, o ator também deve fazer
trabalhar seu corpo. O ator deve se concentrar no seu instrumento. A partir de Stanislavski,
consideram-se os exercícios ou trainings essenciais para "afinar" o instrumento corporal do
ator.
166
Até então os exercícios eram utilizados somente para aprender algum adereço
necessário aos personagens tais como esgrima, dança ou acrobacia. Mas os novos exercícios
tornaram-se, para certos atores, a quintessência da profissão, um fim e não mais um meio. Se
os exercícios não servem para preparar o repertório, mas para formar o corpo-espírito cênico,
compreende-se porque, cessando de ser uma introdução ao teatro, eles se tornaram, do ponto
de vista do ator, o cerne do teatro, uma síntese de seus valores. Os exercícios de training
físico permitem o desenvolvimento de um novo comportamento, uma maneira diferente de se
165
Idem.
166
Barba, Le canoë de papier, p. 169.
75
mover, de agir e reagir; são como um conjunto de práticas que servem para transformar o
corpo cotidiano do ator em corpo cênico. Esta “deformação”, engendrada pelo trainning
físico, obriga o ator a abandonar o território de aculturação coletiva para penetrar no território
de outra cultura do corpo.
Uma boa formação para o ator é aquela que aumenta os seus obstáculos, que lhe dá um
bom corpo, disponível, preciso, com um senso rítmico, um senso de harmonia, uma “cultura
do corpo”. Se trata, não propriamente de uma ginástica, mas de fortificar, exercitar a
imaginação. “Reencontrar, antes de mais nada, sua infância, o poder mágico que ela contém, e
depois exercitá-la. Poder invocá-la à seu bel prazer, poder chamar por ela.”
167
Em seu
trabalho, o ator deve penetrar na infância – não regredir à infância – e se desnudar das
imagens feitas que não alimentam a imaginação. Essas imagens feitas são os clichês e neste
registro não teatro.
168
A imaginação é um músculo que se trabalha, se cultiva, se
mantém.
169
Ela é exercitada pelo jogo, pela sinceridade do jogo eo pelas lembranças
pessoais. A teoria essencial do teatro é que é preciso crer no jogo.
Segundo Brook
170
os exercícios tem como objetivo, inicialmente, libertar o ator,
permitindo investigar suas potencialidades. Num exercício elaborado com seu grupo de
pesquisa, Brook pediu que uma das atrizes fizesse o papel de um navio e todos os seus
passageiros. Ela se sentou no chão de olhos fechados e Brook lhe fez uma série de perguntas.
Todas as questões por ele suscitadas tinham o objetivo e evocar a “sensação da realidade
física por meio do inconsciente”. Além de perguntas, ele se utilizou também de sons não
verbais. Aos poucos, a atriz assumiu a “materialidade do navio” e sua respiração mudou de
ritmo. O importante nesse exercício de improvisação é que ele não visava a imitação de uma
forma externa obtida através dos movimentos do corpo, não era para ser uma ilustração do
167
Féral, Trajectoires du Soleil p.19
168
Féral, Dresser un monument à l’éphémère p.41
169
Idem p.21
170
Oida, Um ator errante p.35
76
navio. Brook desejava que a atriz se distanciasse dos clichês e das imagens prontas que
poderiam aparecer num primeiro impulso. Ele exigia uma renovação dos seus recursos
expressivos.
Os exercícios de improvisação dão uma incrível noção do verdadeiro limite da
liberdade de um ator, pois se o ator não tem outra fonte que não a cotidiana, rapidamente
chega na fronteira das suas possibilidades expressivas, um esgotamento do repertório. O
que aparece a princípio nesse tipo de exercício é a bagagem de clichês em posse do ator. Tudo
o que é tido como uma suposta espontaneidade é, na realidade, uma reação condicionada,
repetida, é a “imitação de uma forma vista”. A verdadeira reação interior é bloqueada e o
que fica é uma imitação forjada pela memória, uma mentira. “Este teatro morto vive à espreita
dentro de todos nós”. Neste sentido, o objetivo da improvisação, o objetivo do exercício em
geral é fugir do Teatro Morto, é confrontar o ator com suas próprias barreiras, é revelar as
mentiras e atitudes imitativas que impedem um “impulso mais criativo e mais profundo”.
171
O
exercício, ao exigir do ator a obediência a regras severas externas a sua conduta, regras
intrínsecas a qualquer exercício, o faz perceber movimentos que cotidianamente seriam
imperceptíveis. A dificuldade técnica do exercício, que em princípio absorve completamente a
atenção do ator, gradualmente torna-se um instrumento que o impede de usar seu
equipamento normal de expressão. “Então de repente, ele rompe uma barreira e experimenta
quanta liberdade pode existir dentro da mais severa disciplina”.
172
Porém, assim como um ator que não tem técnica fica preso aos automatismos da vida
cotidiana, um ator demasiado técnico sufoca a vida com os automatismos de uma maneira
particular de utilizar o corpo. Então qual é a saída para o ator? A resposta mais uma vez está
no entre. Como na experiência do Devir, o ator deve se equilibrar “na transição de uma
cultura a outra”. É a busca de como estar sempre em transição, “de não se assentar no que foi
171
Brook, O teatro e seu espaço p. 119
172
Idem p.120
77
acumulado, de não capitalizar as habilidades e as teorias, de não se afundar em um território
especializado”
173
O que se procura não é uma técnica que o forme, mas uma técnica pessoal,
que é a recusa de toda técnica que especializa. Trata-se, enfim, da busca por uma modelação
da energia que não se deixe congelar em uma modelagem.
A produção do corpo cênico, que não cessa nunca de se construir, que é uma busca
permanente, que deseja libertar o corpo das representações e do mapeamento das
intensidades, pode ser relacionada com o caminho de busca do “corpo sem órgãos”. Poderia a
prática corporal do ator ser incluída nos conjuntos de práticas destinados à fazer emergir o
“corpo sem órgãos”?
O corpo paradoxal e a problemática corpo/pensamento
174
Considerando que a criação de um corpo a partir do esvaziamento das representações é
o caminho possível para a circulação de novas intensidades, resta saber como fazer do próprio
corpo um CsO. Qual é a operação a partir da qual se constrói esse novo corpo? Se o corpo
sem orgãos é sempre o não-inscrito, se não tem forma, se é uma busca, ele não pode ser
colocado no rol dos fenômenos, do concreto, do percebido. Este corpo é como a latência do
transcendental no empírico e desta forma é como visível e virtual ao mesmo tempo. É um
corpo que pode devir animal, que se abre a outros corpos, um "corpo paradoxal".
175
O "corpo
paradoxal" está latente em toda a espécie de corpo empírico, e é graças a ele que a formação
do corpo sem orgãos e a arte de uma maneira geral são possíveis. O corpo empírico, nossa
condição habitual, é uma ficção criada a partir de imperativos de saberes e poderes, é um
corpo que recusa a intensidade e os paradoxos. E apesar de vermos este corpo morno como
173
Barba, Além das ilhas flutuantes, p. 98.
174
Algumas noções aqui apontadas, tais como “corpo empírico”, “transcendental” e “intensivo”, serão mais
explicitadas no desenvolvimento posterior deste trabalho.
175
Gil, “O corpo paradoxal”, in Nietzsche e Deleuze: que pode o corpo, p. 140.
78
"normal" e "natural", o corpo intensivo é primeiro em relação a ele, vide o corpo infantil,
poroso e desregrado.
O corpo da criança experimenta intensidade nos mínimos gestos, ele é capaz de
explorar meios, graças a sua capacidade de devir, o corpo como potência do devir. Aos
poucos, aquele corpo que antes transitava e atravessava as forças do mundo, passa a receber
um nome, a se territorializar. O corpo agora é uno, é forma definida, é um conjunto de órgãos.
É um corpo fabricado e, nesta medida, impossibilitado de devir. De um corpo que não existe
enquanto nomeado - e que por isso pode existir em profunda liberdade - passamos ao corpo
empírico, isto é, fabricado.
Retomamos, a partir daí, a questão inicial: como fazer do próprio corpo um corpo sem
órgãos, uma vez que ele se tornou, a partir de imperativos de saberes e poderes, um corpo
empírico que recusa a intensidade e os paradoxos? Em outras palavras, "como acordar no
nosso corpo empírico comum, aprisionado de mil maneiras, as intensidades do corpo sem
órgãos, que está lá, que sempre esteve lá, antes mesmo do corpo empírico?"
176
Para José
Gil a resposta está em fazer funcionar a lógica do paradoxo, criando um vazio interior para
que os movimentos paradoxais possam acontecer "fora dos modelos sensórios motores
habituais que enclausuram o corpo". Interior entendido, aqui, como "coextensivo do espaço
exterior".
177
O corpo empírico, mesmo com sua suposta identidade corporal, é ainda,
potencialmente, um corpo intensivo e é isso que permite a experiência desse vazio interior,
onde pode surgir um corpo sem órgãos, em devir.
Como vimos no primeiro capítulo, os artistas de vanguarda do século XX constroem
suas teorias a partir da oposição entre a vida cotidiana, enquanto lugar do inaltêntico e da
aparência, e o teatro, enquanto lugar de vida e de novas intensidades O ator deve se liberar
dos condicionamentos da vida cotidiana e buscar uma essência perdida, uma realidade
176
Gil, “O corpo paradoxal” in Nietzsche e Deleuze: que pode um corpo, p. 145.
177
Deleuze, Crítica e clínica, cit in: Gil, “O corpo paradoxal”, p. 145.
79
primeira. intrinsecamente a esta visão sobre o teatro, a crença na recuperação de um si
mesmo autêntico, para além do espetáculo das aparências. Podemos, por um lado, associar
essa visão a um pensamento antigo, pautado em uma visão essencialista do homem. Porém,
podemos entender esse retorno a algo que a cultura soterra de outra maneira. A diferenciação
estabelecida por Gil entre o corpo empírico - a suposta identidade corporal criada a partir de
imperativos de saberes e poderes - e o corpo paradoxal - um corpo intensivo, fora dos
modelos corporais habituais - pode ser uma pista. O corpo paradoxal é primeiro em relação ao
corpo empírico, é o corpo infantil, que ainda não se territorializou completamente. Ele é
primeiro, não no sentido de ser a essência, mas no sentido de ainda não ter sido fabricado
enquanto corpo empírico. Ele existe em profunda liberdade, em experimentação, é o corpo
como potência de devir. Para retornar a esse corpo é necessário segundo Gil criar um vazio
interior, mas não um interior que remeta a um si mesmo limitado, mas interior enquanto um
espaço coextensivo do exterior. A idéia de “criar um vazio interior”, remete ao que foi dito
sobre a eliminação da resistência, desorientação voluntária, desconstrução subjetiva, a
subtração de todos os elementos de poder, a traição das potências fixas. O ator também
precisa deste vazio, precisa voltar a ser criança. Como disse Mnouchkine “reencontrar, antes
de mais nada, sua infância, o poder mágico que ela contém, e depois exercitá-la.”
178
O ator
busca um corpo paradoxal.
Mas por que paradoxal? Poderíamos enumerar aqui uma série de paradoxos do corpo,
mas optamos por restringir a análise a um aspecto que julgamos ser, no contexto deste
trabalho, o mais importante, a saber, o problema da articulação psyché/soma ou da união da
alma e do corpo. O corpo é a fonte de todo tipo de paradoxo, por ser um elemento
extremamente paradoxal. Quando o pensamento percorre um trajeto intrínseco aos
movimentos do corpo e que não é possível ser traçado nos moldes de um pensamento reto e
178
Féral, Trajectoires du Soleil p.19
80
representativo, nasce um pensamento paradoxal. Neste momento, o pensamento faz-se corpo.
Quando a consciência se deixa impregnar pelos movimentos do corpo forma-se a
"consciencia do corpo".
179
A consciência vigil, relacionada ao pensamento representativo e
que tem como foco a formação do sentido, torna-se porosa, apresentando furos de não-
inscrições. Isto acontece quando os movimentos corporais se desenvolvem depressa demais
para que as imagens possam ser enredadas a significações. Esta consciência nasce de uma
lacuna, ela tem lugar no momento em que a consciência clara e intencional é obscurecida por
elementos impuros. Assim, o corpo preenche esses buracos e a consciência entra na zona das
"pequenas percepções": percepções de espaço e tempo, de movimentos afetivos e
cinestésicos, de movimentos ínfimos e forças poderosas. uma transformação da própria
natureza da consciência, cria-se um outro tipo de consciência a partir de uma inversão, onde
os movimentos do corpo passam a dirigir os movimentos do pensamento: "a consciência dos
movimentos mudou-se em movimentos de consciência. Os movimentos do corpo subiram a
superfície da consciência, infiltraram-se nela e tornaram-se consciência do corpo".
180
Ela não
pode, portanto, ser confundida com o simples tomar consciência de uma sensação ou tensão
muscular; ela é o próprio universo das pequenas percepções.
O movimento de uma cambalhota, por exemplo, do ponto de vista do interior do corpo
constitui o vivido do espaço do corpo e está para além do vivido pela consciência, pois se
constroi na fronteira entre o sentido e o pensado. Isto porque, enquanto vivido, o movimento
da cambalhota é "todo o corpo movimento-tornado-pensamento"; o pensamento aqui é o
próprio movimento enquanto é pensado, é "o movimento de cambalhota do pensamento". O
pensamento retoma o movimento, o segue, não se descola, não tenta enquadrar o movimento à
dóxa, aceita o paradoxo e se torna ele próprio paradoxal. Esta conexão entre o movimento do
corpo e o movimento do pensamento acontece quando algo no corpo não é pensável
179
Gil, “O corpo paradoxal”, p. 142.
180
idem
81
unicamente pelo conceito, quando o pensamento precisa ir junto para conseguir traçar com a
imaginação o movimento. um ponto em que o movimento do corpo se torna movimento
do pensamento, e, neste momento, o pensamento só pode pensar estes movimentos paradoxais
voltando ao próprio movimento das figuras paradoxais no espaço, pois ele não o
compreenderá a não ser que se espacialize também, ou que se torne "corpo de pensamento".
181
O pensamento encarnado
"Sonho com uma carne por onde caminhe o pensamento".
182
O trabalho de aproximação corpo/espírito é visto, por muitos, como condição
fundamental para a realização plena da arte do ator : “a distância entre o corpo e o espírito, a
sensação de que um espírito que comanda e um corpo que executa deve se amenizar até
desaparecer por completo."
183
Certos atores afirmam que, quando um trabalho funciona, a
distância entre a cabeça que comenta e o corpo que executa se encontra abolida: “É o corpo
que pensa, os ombros, os cotovelos, os joelhos, as costas”.
184
Nós somos tentados a crer que é
uma questão somente corporal, de ações físicas e não mentais. Mas a maneira de se deslocar
no espaço revela uma forma de pensar. É um movimento do pensamento posto a nu. Dito de
outra forma, um movimento que guia o pensamento. O pensamento se prolonga pelo corpo, o
ator passa a "pensar em movimento";
185
o pensamento atravessa a matéria e se junta ao corpo
em ação, ele vai junto, e com isso opõe-se ao evidente, ao inerte.
O termo "metafísica em atividade" proposto por Artaud visa dar conta justamente
desta forma de experiência intelectual que se enraiza no corpo e que contamina múltiplos
181
Gil, “O corpo paradoxal”, p. 143.
182
Artaud, citado, em aula, pela professora e diretora Ana Teixeira, da Amok Companhia de teatro.
183
Barba, Le canoë de papier, p. 177.
184
Barba, le canoë de papier, p. 152.
185
Decroux, « Les dits d’Étienne Decroux » in Étienne Decroux, mime corporel, p. 107
82
planos - sensoriais, afetivos, intuitivos - provocando descolamentos e fissuras naquilo que
está sedimentado e estratificado. A “metafísica em atividade” traduz uma idéia de ação
contaminada por uma "intelecção intensa" capaz de promover novas profundidades de
percepção.
186
É valorizado um "aspecto físico do pensamento": sua maneira de se mover, de
mudar de direção, de saltar. O que distingue o pensamento criativo é precisamente proceder
por saltos, através de uma desorientação súbita que o obriga a se reorganizar, deixar seu
invólucro tranqüilizador. É o "pensamento-em-vida", nem retilíneo, nem unívoco.
187
John Blacking, ao longo do seminário “Teatro, Antropologia e antropologia teatral"
188
fala de um pensamento que não se torna conceito, de um corpo que pensa pela dança. Ele
propõe a polaridade "thinking in motion" x "thinking in concepts". Barba se pergunta se
"thinking in motion" não seria uma maneira de definir o ensinamento sobre as ações físicas
que Stanislavski tentava transmitir ao ator, esta técnica que Grotowski desenvolveu
posteriormente.
189
Grotowski
190
, ao discutir a relação entre o corpo e o pensamento, a impressão de
contradizer a idéia acima, na medida em que coloca o pensamento como uma espécie de
entrave à criação. Segundo Grotowski, o corpo do ator deve ser libertado de toda resistência,
“deve virtualmente deixar de existir”. Como o material do ator é o seu próprio corpo, ele deve
ser treinado para obedecer, para responder, como se não existisse no momento da criação, não
oferecendo resistência alguma. Isto realmente ocorre quando o aparelho torna-se capaz de
produzir impulsos tão rapidamente que o pensamento não tenha tempo de intervir. Para o
autor, nenhum pensamento é capaz de orientar o organismo de forma viva pois o pensamento
leva à imitação das emoções. O organismo do ator não pode ser usado para “ilustrar um
186
Quicini, Antonin Artaud, o teatro e o ritual, p. 39
187
Barba, Le canoë de papier, p. 138.
188
Blacking, cit in: Barba, Le canoë de papier, p. 140.
189
Barba, Le canoë de papier, p. 140.
190
Grotowski, Em busca de um teatro pobre.
83
movimento da alma”, mas “deve realizar este movimento com seu organismo”.
191
Fica claro na posição de Grotowski uma concepção distinta de pensamento. Grotowski
aborda o pensamento como representação, como algo que, de fora, controla e tolhe as
expressões do corpo, algo próximo ao "thinking in concepts" sugerido por Blacking. Mas
uma outra forma de pensar que não se opõe à criação, um pensamento que é passível de ser
organizado de novas maneiras, abandonando uma concha bem ordenada de organização. É o
que Barba denomina o “pensamento-em-vida”.
O processo de “teatralização” do corpo exige mais do que um treinamento atlético.
Vimos que os exercícios físicos são importantes, mas não bastam para tornar presente e
falante o corpo. Este treinamento deve ser, ao mesmo tempo, uma “ginástica do imaginário”.
Isto reforça a importância das interações entre o corpo e o psiquismo. É a partir desta
articulação entre o psíquico e o estritamente corporal, que o corpo vai aprender a “falar”. “O
corpo veicula uma palavra complexa e permite que venha à tona um sentido ambíguo,
impossível de ser formulado”.
192
A arte do ator se transforma, através do corpo, numa
“polifonia” . O corpo é fundamental para a perpétua renovação interpretativa que faz a própria
vida do teatro. Mas existe uma hierarquia, uma sucessão temporal, um movimento de
ação/reação entre as idéias e o corpo? Serão as ações a expressão física de um pensamento
anterior ou serão elas primeiras, libertas de uma idéia preconcebida ou de emoções a serem
encarnadas?
193
Decroux, em Paroles sur le mime, fala sobre esta relação: “Se as ações são
engendradas pelos sentimentos, nós poderíamos pensar que os sentimentos, por seu turno, são
engendrados pelas ações?
194
Decroux insiste não tanto na origem e na anterioridade da forma
corporal ou dos sentimentos, mas na ação física que coloca em movimento, que fortalece os
191
Idem, p. 74.
192
Roubine, A arte do ator, p. 45.
193
Pavis, « Decroux et la tradition du théâtre gestuel », in Étienne Decroux, mime corporel, p. 292.
194
Idem, p. 176.
84
sentimentos e idéias. Ao mesmo tempo que não se sabe a origem do movimento – do
movimento do corpo, mas também do movimento das idéias – deve-se considerar a marca que
a idéia imprime no corpo. Decroux foi extremamente influenciado pelo que chama corpo pré-
cartesiano , a partir de um projeto de desmontar a dicotomia mente/corpo valorizada por
Descartes. Leabhart afirma que o trabalho de Decroux buscava a liberação do corpo como
algo indissociável do pensamento, fazendo dele um instrumento capaz de “tornar o
pensamento visível”.
195
Para Artaud
196
, o ator é um “atleta do coração”. O "organismo afetivo" é como uma
espécie de duplo do corpo físico, da mesma forma que o teatro é o duplo da vida, da
verdadeira vida. O plano físico e o plano afetivo não podem ser dissociados, e a eficácia do
teatro depende desta ligação; é o ponto de encontro entre o afeto e o corpo que interessa
Artaud. O afeto é o principal campo do ator, mas o modo de entrar em contato com as
emoções é sempre físico. O ator deve “alcançar as paixões através de suas forças” e não
considerá-las como puras abstrações, apostando numa saída corporal para a alma. É preciso
acreditar na materialidade da alma e essa crença é para ele indispensável no ofício do ator.
“Saber que uma paixão é matéria, que ela está sujeita às flutuações plásticas da matéria,
sobre as paixões um domínio que amplia nossa soberania”.
197
Neste sentido, é fundamental
para Artaud a construção de um corpo que permita a passagem dos afetos a partir do domínio
e consciência sobre esse corpo. Temos a tendência a vincular as emoções ao psicológico, mas
Artaud desestrutura esta forma de pensar ao propôr uma via corporal dos afetos. O fato de os
afetos não estarem aliados a uma interiorização num sujeito que sente implica uma outra
qualidade dos afetos, a partir da criação de uma emoção não cotidiana, não naturalista. Para o
ator, diferentemente do atleta, não basta trabalhar a expressão externa do movimento, algo
deve acompanhar este movimento, ou melhor, deve ser produzido ao mesmo tempo em que
195
Leabhart, “Sport, statuaire et redécouverte du corpos.” In Étienne Decroux, mime corporel, p. 369.
196
Artaud, O teatro e seu duplo.
197
Idem, p. 154.
85
ele se produz.
Segundo Barba e Savarese,
198
o ator pode escolher começar pelo físico ou pelo mental,
o importante é que na transição de um para o outro, “uma unidade seja reconstituída”. Um
modo de pensar pode ser expresso através da forma de se mover no espaço, como um
“movimento do pensamento desnudado” e, por sua vez, o pensamento também é movimento,
ação. Assim, um treinamento físico implica um treinamento mental. “É necessário trabalhar
na ponte que une as margens físicas e mentais do rio do processo criativo.”A ponte entre o
físico e o mental provoca uma “mudança de consciência” que permite vencer a inércia e a
monotonia da repetição. Para os autores a dilatação do corpo físico é de fato sem utilidade se
não for acompanhada por uma dilatação do corpo mental. “O pensamento deve atravessar de
forma tangível a matéria”.
199
Para isso aposta num trabalho com o "Sats": minúscula descarga
que permite ao pensamento se enervar na ação e de se experimentar como pensamento-ação,
energia, ritmo no espaço. No instante que precede a ação, quando toda a força necessária
está pronta para se desenvolver no espaço, mas suspensa e ainda contida, o ator experimenta
sua energia sob a forma de “sats”.
200
O “sats” é o princípio de absorção da ação, é a potência
que pode virar ato a qualquer momento, é o momento onde a ação é pensada/agida por todo o
corpo. O trabalho sobre o sats permite penetrar no mundo molecular do comportamento
cênico e eliminar a fratura entre pensamento e ação, que por razão de economia caracteriza
frequentemente o comportamento cotidiano. O valor do sats, sua riqueza secreta para o ator é
poder parar o movimento sem imobilizá-lo no interior.
Os exemplos de algumas proposições de autores teatrais acerca das relações entre o
corpo e o espírito cada um usa um termo: pensamento, sentimento, idéia, alma, afeto, ou
seja, o que está para além do estritamente corporal tornam clara a importância do
198
Barba e Saravese, A arte secreta do ator.
199
Barba e Saravese, A arte secreta do ator, p. 57.
200
Barba, le canoë de papier, p. 96.
86
corpo/espírito trabalhado com uma coisa. O físico puro, o movimento sem algo que o
alimente, é ginástica, não tem valor cênico e muito menos potencial transformador. O mental
sem o engajamento físico se torna restrito ao pensamento da representação, ao psicologismo, à
história pessoal, pois é o corpo que leva as idéias e o espírito para um novo lugar. O corpo é
uma realidade instável, lugar de experiências múltiplas e fugidias, difíceis de se enquadrar em
representações totalizantes e unificadoras. Por mais que tentemos nos agarrar ao corpo,
atribuindo-lhe uma suposta solidez, ele sempre nos trai, nos tira o chão debaixo dos pés. o
próprio corpo que chegou ao limite de sua distensão e de suas forças e que precisa, apesar de
tudo, ir mais longe".
201
201
Artaud, “Quem no seio...”, in: Linguagem e vida.
87
CAP IV – O ATOR ENTRE A FORMA E A FORÇA
“O nascimento da tragédia não é uma reflexão sobre o teatro antigo, mas a fundação prática
de um teatro do futuro”.
202
O devir, a desterritorialização, a linha de fuga, são conceitos que, na arte, necessitam
de um contraponto para tornar-se algo vivível. Do mesmo modo, o corpo sem órgãos é uma
busca, não se chega sem destruição. A destituição completa das formas é a morte. Existe algo
que é da ordem da força , que é a presença, a vida cênica, a experimentação de novas
intensidades e afetos, e existe algo que é da ordem da forma, a construção de uma partitura, o
corpo transformado, os exercícios que possibilitam a construção desse corpo, a técnica.
Ambos são fundamentais. Para entrar em devir, para experimentar no lugar de representar,
para traçar linhas de fuga no lugar de se identificar, o ator necessita habitar o meio, o entre.
Experiência que não é uma imitação formal, mas que também não é o tornar-se. Uma
conjugação que necessita de forma , mas também e primordialmente, de intensidade. Como
fazer para estar nessa fronteira, nesse limite entre a forma e a força, entre a construção e a
demolição, entre a aparência e a essência? Como promover uma rachadura no sistema
subjetivo já edificado sem que isso implique unicamente em destruição?
Uma frase de Nietzsche a respeito da especificidade da arte trágica desencadeou a
elaboração deste capítulo: “o servidor de Dionísio deve estar em estado de embriaguez e ao
mesmo tempo permanecer postado atrás de si como um observador”.
203
Há, no artista, aquele
que age e aquele que observa de fora a ação. Os dois não têm as mesmas exigências, ou
melhor, suas exigências estão em contradição. Como estar em dois lugares, vivenciando um
estado e, ao mesmo tempo, cuidando e vigiando esta experiência? Na frase, Nietzsche, apesar
202
Deleuze, Diferença e repetição.
203
Nietzsche in Machado, Nietzsche e a verdade, p. 24.
88
de se referir especificamente à arte trágica, remete a uma das maiores questões do ator, a
saber, a relação entre a técnica e a criação, entre a disciplina e o excesso, entre a forma e a
força. Um ator deve saber conjugar esses elementos aparentemente contraditórios para que a
sua arte não se torne, por um lado caótica e puramente intuitiva, ou, por outro, fria e sem
intensidade. Esta conjugação fica mais explícita na citação de Artaud: “Os atores devem ser
como mártires queimados vivos, que ainda nos fazem sinais de dentro de suas fogueiras”.
204
Aqui, assim como frase de Nietzsche, Artaud joga com oposições, com condições
aparentemente inconciliáveis. Esta citação, para Grotowski, contém todo o problema desta
conjunção de opostos que origina o ato do ator. O ator, como o servidor de Dionísio, deve
estar embriagado, no fogo, e ao mesmo tempo conseguir se ver de fora, deve ser capaz de
fazer sinais. As duas frases, de Nietzsche e Artaud, seguem uma mesma lógica: elas utilizam
um paradoxo para tratar da complexidade da arte. Foi esta proximidade entre as idéias que
deu origem ao desejo de aprofundar as convergências entre a arte trágica e a arte do ator.
Nietzsche e a arte trágica
Nietzsche, na elaboração de sua filosofia, constrói uma profunda reflexão sobre a arte,
valorizada, por ele, como a atividade que possibilita o acesso às questões fundamentais da
existência. Para Nietzsche
205
, o desenvolvimento da arte está ligado à relação entre o apolíneo
e o dionisíaco. Apolo e Dionísio estabelecem universos artísticos separados entre si e em
oposição. Um jogo de forças e uma luta incessante caracterizam esta relação. O apolíneo
constitui o mundo da bela aparência, do sonho, e obedece ao “princípio de individuação”. Já a
força dionisíaca rompe com esse princípio e pode ser apreendida pela analogia com a
204
Artaud cit in: Grotowski, Em busca de um teatro pobre, p. 76.
205
Nietzsche, O nascimento da tragédia.
89
embriaguez. Em O Nascimento da tragédia, o filósofo parte da arte grega como modelo para
pensar o dionisíaco e o apolíneo, estes estados artísticos imediatos da natureza.
A criação do impulso apolíneo da beleza se deu, na Grécia, como forma de barrar o
horror de existir e o sofrimento. Este povo, bastante vulnerável à dor, era suscetível ao perigo
do pessimismo radical, à negação da própria vida. A arte grega apolínea nasceu para tornar
possível a vida, diante dos temores e horrores da existência, com a criação dos deuses
olímpicos e da poesia apolínea, a epopéia. A existência foi assim envolvida por uma glória
mais alta e a arte foi trazida à vida como um modo de reagir ao seu próprio aniquilamento. A
arte apolínea tem a potência de inverter a sabedoria popular de Sileno, na qual o pessimismo é
retratado anunciando que o bem supremo é não ter nascido e o segundo maior é morrer o
quanto antes. Esta nova arte expressa a religião da beleza, que diviniza aquilo que existe.
Divinizar, neste sentido, é tornar belo; através da medida, da harmonia, da ordem, o grego
encontra a arma para lutar contra a dor, encontra refúgio no mundo da aparência, no mundo
da bela aparência.
Se a beleza é aparência, é porque existe uma verdade da essência que é mascarada.
Então, o mundo da beleza criado pelos gregos é uma estratégia para que não apareça a
verdade, é uma aparência necessária para a intensificação das forças da vida e do prazer de
existir. “Dionísio é como uma tela sobre a qual Apolo borda a bela aparência; mas, sob Apolo
é Dionísio quem ruge”.
206
A hipótese metafísica de O Nascimento da tragédia é que “o ser
verdadeiro, o uno originário tem necessidade da bela aparência para sua libertação”,
207
aparência esta que circunscreve o ser individual. O ser tem necessidade do apolíneo como
consciência de si, como criação das fronteiras do indivíduo.
206
Deleuze, Nietzsche e a filosofia, p. 10.
207
Machado, Nietzsche e a verdade, p. 19.
90
Disto depende a constituição do processo artístico: a individualidade é uma
representação do uno imaginário e é através dela que se produz a transfiguração da realidade
que caracteriza a arte.
Mas a edificação da arte apolínea, Nietzsche ressalta, é apenas uma barreira contra os
demônios da desmedida, um véu que dissimula um mundo que não pode ser ignorado. Para
além das fronteiras do apolíneo, a “verdade do mundo”, a força dionisíaca, sem a qual
Apolo não pode sobreviver. Este deus estrangeiro e bárbaro insistia em se manifestar e
quando isso acontecia o desmedido revelava-se como a verdade e o individuo, seus limites e
medidas, sucumbia ao estado dionisíaco e submergia no auto-esquecimento. O efeito do
êxtase dionisíaco é a negação do indivíduo, da história, da consciência. Dionísio arrasta o
indivíduo no grande naufrágio e absorve-o no ser original. Essa religião dionisíaca bruta e
destruidora põe em cheque a harmonia apolínea conquistada.
É novamente através da arte que o povo grego vai buscar se relacionar com esta força
dionisíaca. Mas desta vez, ao invés de construir uma barreira que impossibilite sua irrupção,
esta nova estratégia artística visa integrar o elemento dionisíaco. A antítese é resolvida e
transformada em unidade. O horror e o absurdo da existência, que caracterizam Dionísio,
modificam-se numa representação capaz de tornar possível vivenciá-lo. E essa representação
é conseqüência da força apolínea, é o dionisíaco transformado em arte; o fenômeno natural se
transforma em fenômeno estético. É fundamental observar esta dependência que o filósofo
estabelece entre o apolíneo e a possibilidade de se criar artisticamente. A arte não se faz
apenas com a força da essência e sem um contorno apolíneo que a sustente. “A ilusão
apolínea, característica da arte, liberta da opressão e do peso excessivo do dionisíaco,
permitindo à emoção se descarregar em um domínio apolíneo”. Enquanto o puro dionisíaco é
algo impossível de ser vivido porque acarreta o aniquilamento da vida, a arte dionisíaca
91
transforma este poder destrutivo, tornando possível participar da experiência dionisíaca sem
ser destruído por ela: “É uma experiência de embriaguez sem perda de lucidez”.
208
A arte trágica não tem a força desruptiva de Dionísio, mas joga o tempo todo com ela.
Uma primorosa citação de Nietzsche explica muito bem a dinâmica desse jogo: “Se a
embriaguez é o jogo da natureza com o homem, a criação do artista dionisíaco é o jogo com a
embriaguez [...] O servidor de Dionísio deve estar em estado de embriaguez e ao mesmo
tempo permanecer postado atrás de si como um observador. Não é na alternância entre lucidez
e embriaguez, mas em sua simultaneidade, que se encontra o estado estético
dionisíaco”.
209
Neste sentido, na arte trágica, é como se Apolo desse a Dionísio uma medida
artística, reprimindo no dionisíaco bárbaro seus elementos destruidores. Nietzsche assinala,
dessa maneira, a distinção entre as duas manifestações dionisíacas, o dionisíaco orgiástico e o
dionisíaco artístico, esta última superando a oposição com o apolíneo, pois, por ser artístico,
implica fundamentalmente aparência.
A comunhão entre essência e aparência que caracteriza a arte trágica é possibilitada
pela transposição em imagens dos estados dionisíacos. É uma experiência trágica da essência
do mundo. Nesta experiência proporcionada pela arte o homem se torna o próprio ser
originário. Nietzsche afirma que o sujeito, na medida em que se torna artista, liberta-se de sua
vontade individual e se torna “um médium através do qual o único sujeito verdadeiramente
existente celebra a sua redenção da aparência”.
210
No ato da criação o artista se torna capaz de
revirar os olhos e contemplar-se a si mesmo. Ele é, ao mesmo tempo, sujeito e objeto, encarna
o poeta, o ator e o espectador.
211
Segundo Nietzsche, foi a partir do coro que surgiu a tragédia. O processo do coro
trágico, que tem seu início no coro ditirâmbico, é o “protofenômeno dramático”. Ele consiste
208
Machado, Nietzsche e a verdade, p. 23 e 24.
209
Nietzsche cit in: Machado, Nietzsche e a verdade, p. 24.
210
Nietzsche, O nascimento da tragédia, p. 47.
211
Idem, p. 48.
92
em “ver-se a si próprio transformado diante de si mesmo e então atuar como se na realidade a
pessoa tivesse entrado em outro corpo, em outra personagem”. Este processo, segundo
Nietzsche, difere do processo artístico do pintor, pois este não se confunde com suas imagens,
as fora de si. No processo do coro trata-se de “uma renúncia do indivíduo através do
ingresso em uma natureza estranha”.
212
Ele acrescenta que o encantamento é o pressuposto de
toda arte dramática, pois a partir da metamorfose o artista fora de si uma nova visão que é
a contribuição apolínea para o fenômeno. Neste encantamento o entusiasta dionisíaco se
como sátiro e “como sátiro por sua vez, contempla o deus”. É Apolo quem desdobra o trágico
em drama: a tragédia é o coro dionisíaco a “descarregar-se sempre de novo em um mundo de
imagens apolíneas”. O drama é uma aparição de sonho, é a materialização de estados
dionisíacos; ele representa a unificação com o ser primordial e não a redenção apolínea na
aparência. O drama é, portanto, a encarnação apolínea de cognições e efeitos dionisíacos.
213
A visão trágica do mundo supõe uma tensão entre a verdade e a ilusão. O dionisíaco
necessita da arte para se tornar possível, que a força do dionisíaco puro é aniquiladora da
vida. Ao mesmo tempo, para que a forma, na tendência apolínea, não congele e enrijeça a
criação, o dionisíaco impulsiona o eterno movimento, desestabilizando sempre a medida
encontrada.
Do dionisíaco puro ao dionisíaco artístico, ou a peste e o ator
Artaud
214
aponta a peste como um dos duplos do teatro. A peste representa a ruptura, o
desmoronamento da ordem, a completa destruição dos padrões morais e a derrocada da
psicologia. O teatro, como a peste, é um mal porque não pode ser alcançado sem destruição.
212
Idem, p. 60.
213
Deleuze, Nietzsche e a filosofia, p. 10.
214
Artaud, “Carta à Jean Paulhan” in Linguagem e vida.
93
Ele convida o espírito ao delírio que exalta suas energias. Ao mesmo tempo, a ação do teatro,
assim como da peste, do ponto de vista humano é benfazeja, pois leva os homens a se verem
como são, fazendo cair a máscara. “Põe a descoberto a mentira, a tibieza, a baixeza, o engodo;
sacode a inércia asfixiante da matéria que atinge os dados mais claros dos sentidos; e
revelando para coletividades o poder obscuro delas, sua força oculta, convida-as a assumir
diante do destino uma atitude heróica e superior que, sem isso, nunca assumiriam”.
215
Podemos pensar a relação que Artaud estabelece entre teatro e peste a partir da
experiência trágica. Se a arte trágica se constitui numa tentativa de se relacionar com a força
dionisíaca, podemos pensar a peste como este dionisíaco puro, orgiástico e completamente
aniquilador e o teatro como o dionisíaco artístico que joga o tempo todo com a força
desruptiva de Dionísio. Isto não quer dizer que o teatro seja uma representação, uma imitação
do furor que está em jogo na peste. O ator se realimenta desta energia incessantemente. Já na
peste o homem é consumido pela força da doença, até a morte. O teatro se aproxima da peste
ao deixar vir à tona algo de mais essencial, ao “brincar” com os limites do possível, ao tentar
chegar à origem dos conflitos; ele faz cair a máscara e a mentira forjadas pelo homem para
escapar das forças obscuras da coletividade. Artaud na peste e no teatro a possibilidade de
fazer eclodir no homem um fundo de crueldade que está nele, mas que a moral e a sociedade
não deixam vazar. De uma maneira parecida, Nietzsche acredita que o principio dionisíaco é
a verdade do mundo. O desmedido revela-se como a verdade e o individuo, seus limites e
medidas, sob o poder desta força, sucumbe ao estado dionisíaco e submerge no auto-
esquecimento. O efeito do êxtase dionisíaco é a negação do indivíduo, da história, da
consciência.
A diferença entre o dionisíaco puro e o trágico corresponde, em termos deleuzianos, à
relação entre efetuação e contra-efetuação.
216
A efetuação implica sempre numa destruição, é
215
Artaud, O teatro e seu duplo, p. 29.
216
Deleuze, “Porcelana e vulcão”, in: Lógica do sentido, p. 164.
94
um acontecimento que se inscreve no corpo e produz uma fissura incorporal no homem. A
plena efetuação provoca efeitos devastadores quando encarnada na profundidade do ser. Mas
será que “todo acontecimento é do tipo da peste, da guerra, do ferimento, da morte?”
217
Assim
como Artaud pensa o teatro como o duplo da peste, Deleuze aposta numa “estrutura dupla de
todo acontecimento”. Ao mesmo tempo em que existe o momento presente da efetuação,
onde o acontecimento se encarna em um estado de coisas, também o futuro e o passado do
acontecimento que escapa deste presente definitivo, que permanece livre das limitações de
uma pessoa, que permanece pré-individual. É como o duplo do homem, que, de fora, observa
a embriaguez, e postado diante do acontecimento se livra do presente da bebedeira. Ou como
o ator que “permanece no instante, para desempenhar alguma coisa que não pára de se
adiantar e de se atrasar, de esperar e de relembrar”. O ator efetua o acontecimento, mas de
uma maneira bem diferente de como o acontecimento se efetua na profundidade das coisas.
Ele guarda do acontecimento seu contorno e esplendor, ele torna-se “comediante de seus
próprios acontecimentos, contra-efetuação”.
218
A verdade do acontecimento pode ser
apreendida quando inscrita na carne, mas é preciso duplicar esta efetuação dolorosa por uma
contra-efetuação que a limite e a transfigure:
“(...) ser o mímico do que acontece efetivamente, duplicar a efetuação com uma contra-
efetuação, a identificação com uma distância, tal o ator verdadeiro ou o dançarino, é dar à
verdade do acontecimento a chance única de não se confundir com sua inevitável efetuação, à
fissura a chance de sobrevoar seu campo de superfície incorporal sem se deter na quebradura
de cada corpo e a nós de irmos mais longe do que teríamos acreditado poder”.
219
217
Deleuze, “Do acontecimento”, in: Lógica do sentido, p. 164.
218
Idem, p. 153.
219
Deleuze, “Porcelana e vulcão” in: Lógica do sentido, p. 164.
95
A experiência trágica no ator
Pensar o fazer teatral a partir da arte trágica proporciona um interessante
questionamento a respeito do trabalho do ator. Isso porque esta forma de pensar a arte lança
novos instrumentos que enriquecem a discussão, produzindo uma abertura no modo de
abordar alguns temas importantes.
O primeiro deles diz respeito ao trabalho de desconstrução subjetiva do ator. Como
vimos, o processo de preparação do ator pode provocar um distanciamento em relação aos
automatismos e hábitos da vida cotidiana. Quando isso acontece, a arte teatral se transforma
numa aprendizagem sobre os limites, na medida em que abole os limites aprisionantes
forjados cotidianamente pela repetição do mesmo: hábitos, automatismos e dramas
psicológicos.O ator, a partir de sua busca, possibilita “a irrupção inédita de um mundo”. Ele
constrói uma vida inventada, tangente ao real e impulsionada pelo fora, pois força a
subjetividade para além do seu limite, levando-a a novas direções imprevisíveis. Se o ator
deve ser a “corporificação de uma imagem maior do que aquilo que pensa conhecer”,
220
sua
tarefa é tornar possível a criação de inusitadas formas subjetivas.
Poderíamos entender este processo também a partir da oposição entre o dionisíaco e o
apolíneo. O ator, enquanto indivíduo, aculturado, estabelece uma medida para si e se mantém
consciente daquilo que ele pode chamar de eu. Ele está, nesse momento, sob o signo de
Apolo, pois sustenta uma imagem de sua própria subjetividade e a partir dela se diferencia do
mundo. Quando o ator inicia um trabalho de destituição desta imagem, ele se abre para forças
desconhecidas, fora do seu repertório. É a potência do impessoal. Ele se direciona para um
estado dionisíaco de esquecimento de si e de renúncia da forma pré-estabelecida. O êxtase
dionisíaco é a negação do indivíduo, da história, da consciência. E como não é possível
220
Brook, O ponto de mutação, p. 309.
96
existir sem a forma, como o dionisíaco precisa do apolíneo para se tornar arte, o ator busca
uma nova forma. O desenvolvimento do domínio corporal está intimamente relacionado com
a quebra dos automatismos cotidianos que impregnam o corpo do ator. É a partir deste
controle que a liberdade pode advir. É um paradoxo que aponta a disciplina e o rigor como
requisito para a libertação, para a busca de um “corpo sem órgãos”. O ator, como Nietzsche
esclarece a respeito do coro, se transforma em outro corpo, em outro personagem. O
dionisíaco tem a função de fazer se perder, de jogar com o imponderável.
O segundo tema diz respeito à relação que se estabelece, no processo de criação do
ator, entre a técnica e a força criativa, entre a forma e o novo. Criar, ao contrário do que
podemos supor à primeira vista, exige um árduo trabalho de preparação. A invenção não se
opera como algo mágico que invade o artista inesperadamente. Ela tem no trabalho sua
condição de possibilidade. Neste modo de pensar, a forma não têm uma função restritiva, ao
contrário, ela possibilita uma maior liberdade de criação.
Aqui também os fundamentos da arte trágica proporcionam uma rica contribuição. Se
um ator quer expressar algo, ele se encontra, então, dividido: uma parte que quer e outra
que exprime, uma que comanda e outra que executa as ordens.
221
O ator deve ser, assim como
na arte dionisíaca, um bêbado que, em plena embriaguez, ainda se mantém como um
observador de si mesmo. Ele deve experimentar a embriaguez sem perder a lucidez. Ele revira
os olhos e ao mesmo tempo contempla-se a si mesmo, é ao mesmo tempo sujeito e objeto.Este
milagre trágico, quando operado pelo ator, permite que ele não se perca no excesso. O ator,
através da forma, estabelece um contorno, um solo para o novo, ele transpõe em imagens os
estados dionisíacos.
Segundo Peter Brook, ao longo da história do seu metier, o ator foi levado a concluir
que a forma era fundamental para sua arte. Não bastava a paixão, o sentir, o estado, “um salto
221
Grotowski in : Barba, Le canoë de papier, p. 61.
97
criativo era exigido pra cunhar uma nova forma que contivesse e refletisse seus impulsos”.
222
“Na vida, nada existe sem forma.”
223
Deve-se buscar formas inesperadas, sem reduzir esse
universo potencial, pois a forma pode também se tornar um obstáculo à vida, que não tem
forma em si mesma. Trabalhar com a forma exige uma batalha permanente para não deixar
congelar, para não sufocar a vida cênica: “O processo de dar forma é sempre um
compromisso que temos que aceitar, dizendo, ao mesmo tempo: é provisória, tem que ser
renovada”.
224
“A forma é o virtual que se torna manifesto, o espírito que se faz carne,o som
primordial, o big bang.” O ator precisa da ação, de um gesto,é um homem que faz sinais da
fogueira, como na frase de Artaud.
O desafio para o ator é ser sincero e ao mesmo tempo conseguir manter-se distanciado.
A palavra sinceridade comporta uma armadilha, pois é sobrecarregada, possui um apelo
moral. Por outro lado, quando o ator se mantém totalmente a distância, a técnica vira um fim
em si mesma. O ator se transforma em um técnico e sua arte torna-se destreza corporal e vocal
e perde toda a sinceridade. Então os que optam pela entrega emocional e a honestidade na
tentativa de alcançar o ideal de sinceridade que se espera de um bom ator. Mas essa opção
tem como resultado, na maioria das vezes, a pior espécie de representação. Em qualquer outra
arte a possibilidade do artista se distanciar da obra e ver o resultado, por mais fundo que
mergulhe no ato de criação. Mas a arte do ator não permite esse “passo atrás”, seu material é
traiçoeiro e misterioso, é a própria pessoa do ator. “Exige-se que ele se envolva
completamente, mesmo a certa distância, que se distancie sem que se afaste. Tem que ser
sincero, tem que ser insincero: precisa habituar-se a ser insincero com sinceridade, e a mentir
verdadeiramente”.
225
222
Brook, O teatro e seu espaço p.49
223
Brook, A porta aberta p. 45
224
Idem
Idem p.45
225
Brook, O teatro e seu espaço p.124
98
Leituras equivocadas de Stanislavski, Artaud e Grotowski
226
, levam muitos atores a
construírem seus trabalhos sobre “restos de doutrina” destes autores. Com a crença ingênua de
que o bom ator é aquele que compromete-se emocionalmente e se expõe sem hesitação, cria-
se “uma nova forma de emoção sincera que consiste em viver tudo através do corpo.” Isso é,
em última instância, um novo tipo de naturalismo, pois mantém o ideal de encarnação, de
entrega completa, de totalidade. Se no naturalismo tradicional o ator imita as emoções e ações
do mundo cotidiano com sinceridade e vive o papel, neste novo tipo de naturalismo há
igualmente a entrega completa, mas em prol de viver um comportamento irrealista na sua
totalidade. Apesar de aparentemente distante do naturalismo fora de moda, esses atores
entram no “campo de suas próprias emoções com a mesma crença do antigo ator naturalista” e
cada detalhe é minuciosamente reproduzido. O resultado é, na maioria das vezes pouco
atrativo. O desprezo pelo naturalismo muitas vezes lança os atores a lugares equivocados sem,
no entanto, escapar do problema do naturalismo. “Usar todas as fibras do próprio ser numa
ação pode parecer uma forma de envolvimento total; mas a verdadeira exigência pode ser até
mais rigorosa do que o envolvimento total e talvez precise até de menos manifestações ou de
manifestações diferentes”.
227
Sempre ao lado da emoção um tipo de “Inteligência especial”
cumpre seu papel. Essa inteligência deve ser desenvolvida, é um instrumento usado pelo ator
para selecionar e portanto não pode nunca ser fixada. É preciso tomar distância, elaborar
formas, observar a emoção nascente e efetuar escolhas. O abandono total, o mergulho cego e
indefinido, não é suficiente para o nascimento da expressão.
228
O trabalho torna-se fraco
porque o ator tende a “representar generalizações”. Uma força o impulsiona através da
cena, não nuanças, ele se torna “escravo de sua paixão”, tudo fica impregnado pela sua
possessão, as falas, o corpo, a forma de relacionar. Nada pode freiá-lo.
226
Brook, in: O teatro e seu espaço, fala especificamente sobre esses três autores, O teatro e seu espaço p. 124
227
Idem p.125
228
Idem
99
Em Marat Sade, peça encenada por Peter Brook e seu grupo, os atores deveriam
interpretar a loucura em 1808. Um desafio se apresentava, na medida em que não havia um
modelo a seguir. Não se podia simplesmente recorrer à “imitação da loucura”, a sua realidade
aparente, pois a loucura do passado é completamente diferente da loucura hoje. Como não
podia usar a imagem de uma observação da vida, como não possuía um modelo exterior, o
ator corria um risco maior na invenção da loucura. “Ele tinha que cultivar o ato de estar
possesso”, sem, no entanto, esquecer da sua responsabilidade com a peça. Tinha que aliar
possessão e responsabilidade, pois sem essa disciplina toda a sinceridade perderia o sentido. É
importante, pois, o ator defrontar duas exigências opostas, sem redução dos impulsos para que
estes ‘caibam’ no palco. Para tornar o personagem vivo e funcional ao mesmo tempo é
necessário inteligência.
229
“Ele precisa dar vida a um estado inconsciente pelo qual é
completamente responsável.”
230
Para Craig, o ardor natural, o material instintivo do ator se multiplica quando
direcionados, quando guiados por um “método científico”, por uma arte. Esse método não é
algo abstrato. O ator que só se interessa pela emoção e detesta cálculos não é capaz de edificar
uma arte pois qualquer arte possui uma parte calculável. Um ator que não se debruça sobre as
duas partes é um ator incompleto. “Só a natureza não basta para criar uma obra de arte.” É por
isso que o ator ideal de Craig deve unir uma natureza generosa e uma alta inteligência. O
sentimento e a natureza devem ser controlados pela inteligência, com o objetivo de serem
submetido, no final das contas, a uma perfeita disciplina. O “ator ideal” é capaz de apresentar
símbolos perfeitos de tudo que existe na natureza e saberá que esses símbolos são
constituídos na maior parte das vezes, de “elementos exteriores à sua pessoa”.
231
Quando o
ator, seus gestos e voz, está à mercê das emoções, tudo o que ele cria possui um caráter
acidental. Ele é possuído pela emoção, é seu escravo, não qualquer controle corporal: “ela
229
Idem p.133
230
Idem p.135
231
Craig, Da arte do teatro p. 45 e 46
100
arrasta seus membros, dispõe dele a seu bel-prazer.”
232
Quando a emoção se inflama os
membros não obedecem mais ao pensamento, ele não é mais senhor da expressão. “Num
relâmpago, antes que o pensamento proteste, a paixão incandescente apodera-se da expressão
do ator.” O ator dominado pela emoção e emoções fugidias não podem ter valor artístico. A
emoção destrói o que o pensamento desejava criar. A própria emoção, que na origem é
criadora de todas as coisas, torna-se no contexto artístico destrutiva, pois a arte não admite
acidentes. O ator tomado pela emoção apresenta somente uma série de confissões
involuntárias, assim como uma criança que dança a seu bel prazer. Ambos podem despertar
emoção ou o sentido do belo, mas não são artistas por causa disso.
233
Se a arte só se
desenvolve segundo um plano ordenado, para se criar uma obra de arte é necessário a
utilização de materiais usados com segurança.
Para Mnouchkine, a “maior lei misteriosa” do ator é aquela que rege o mistério entre o
interior e o exterior, entre o estado e a forma. “Como dar forma a uma paixão? Como
exteriorizar sem cair na exterioridade? Como a autópsia do corpo... do coração, pode se
fazer?” A autópsia do coração se faz através do corpo. Se o papel do ator é mostrar o interior
então o teatro surge quando o ator consegue tornar familiar o desconhecido, ou tornar o
familiar irreconhecível. Familiar é diferente, neste caso, do cotidiano. O cotidiano é o já usado
previamente, algo previsível, a repetição de uma mesma gama de atitudes e gestos .
234
A técnica e a forma não excluem a intensidade, mas, ao contrário, elas a liberam. Elas
são o seu suporte e a sua salvaguarda O estudo e a observação dos princípios, dos mecanismos
corporais, uma memória segura, uma dicção obediente, a respiração regular, uma partitura
precisa, tudo isso causa uma segurança que inspira a ousadia. A forma preserva o frescor, o
brilho, a diversidade, a invenção, a renovação. Ela nos permite improvisar. Como uma
espécie de delírio orientado, o abandono de si é sempre acompanhado de um sistema de regras
232
Idem, p.89
233
Idem
234
Ariane Mnouchkine in: Féral, Dresser un monument à l’éphémère p.41
101
apolíneas que transformam a energia dionisíaca pura em arte. O ator procura os meios de se
colocar em estado de sentir: um ponto de partida, que às vezes será o gesto, ou o diapasão da
voz, ou uma descontração particular, ou uma simples respiração. Ele organiza a captura de
qualquer coisa que compreende e pressente, mas que permanece nele exterior, que ainda não
entrou nele, não está alojado nele.
A busca do ator está aliada a uma técnica , uma forma, um treinamento sistematizado
que, não obstante, permite a surpresa e o excesso. O bom ator nunca possuirá uma técnica
permanentemente fechada, pois a cada modificação, a cada excesso, a cada derrubada de
barreiras, ele encontrará novos problemas técnicos num vel mais alto. Ele deve se situar
neste meio, no equilíbrio instável entre este jogo de oposições.
A partitura e o fogo
Decroux,
235
ao edificar sua arte, faz uma dura crítica ao ator que não lança mão da
técnica. Para ele, o corpo humano é como um teclado, com que se pode brincar. O ator deve
se comportar na relação com o seu corpo da mesma forma que o pianista em relação aos
teclados do seu piano. A música é a arte mais técnica: um músico não faz qualquer coisa com
o seu instrumento, ao mesmo tempo, quando ele domina a partitura, depois de estudar
minuciosamente as notas, ele se liberta disso, ele se permite improvisar, sair do que sabe e
depois retornar. O ator, com o seu corpo, deveria seguir o exemplo do instrumentista e dizer:
“meu corpo será um teclado, e tudo o que eu escolher fazer será feito como um solfejo, como
a música escrita”. Espera-se do teatro, do ator, o mesmo regime e disciplina de um músico,
um teatro onde o ator seja o instrumentista de seu próprio corpo e que tudo que ele faça, faça
como artista e não que ele exponha sua natureza pessoal somente. A alma, a intensidade, a
235
Decroux, « Les dits d’Étienne Decroux » in : Étienne Decroux, mime corporel, p. 65, 66.
102
sinceridade, a paixão do ator não existem sem a precisão que é forjada através da partitura:
“Não é a técnica que me interessa. Mas para atingir aquilo que me interessa mais, eu devo me
concentrar nos problemas técnicos essenciais.”
236
O que chamamos técnica comporta, além dos exercícios preparatórios, a construção de
uma partitura física. A existência de uma partitura corporal definida nos seus mínimos
detalhes, rigorosa em sua forma e rica em precisão, é uma necessidade primordial para o ator.
A construção de uma partitura é uma disciplina que, não obstante, parece devolver à vida sua
liberdade e sua fluidez e ao ator sua presença. A forma da partitura, a precisão dos detalhes, o
fato de eles serem fixos e não sofrerem nenhuma variação constituem o edifício movente no
interior do qual o ator vive sua vida extra-cotidiana.
Ryszard Ciéslak, ator de Grotowski, faz um depoimento sobre seu papel no “Prince
constant”: “A partitura é como um vaso de vidro dentro do qual queima uma vela. O vidro é
sólido, imutável, pode-se contar com ele. A chama é o que se passa em mim cada noite; é o
que ilumina a partitura, é o que o espectador vê através da partitura. A chama é viva.
Precisamente como a chama dentro do vidro que treme, palpita, se alonga, diminui, quase se
apaga e de repente readquire vida, se dobrando ao menor sofro de vento, minha vida interior
se modifica a cada noite (...) Toda noite eu começo sem ter nada previsto. É a coisa mais
difícil de aprender. Eu não me preparo para sentir qualquer coisa que seja. Eu não digo para
mim mesmo: ‘Na outra noite esta cena estava extraordinária, eu vou tentar repeti-la.’ Tento
somente ser receptivo àquilo que vai se produzir. E estarei pronto a captar o que chega se
estiver certo de minha partitura, sabendo que mesmo se eu não sentir nada, o vidro não se
quebrará e a forma, que eu trabalhei durante os meses, me sustentará até o fim. Mas, se uma
noite acontecer de ela me inflamar, de fazer brotar a luz, de viver, de revelar, eu estarei
preparado para isso, mesmo não tendo nada previsto. A partitura se mantém a mesma, mas
236
Idem, p. 214.
103
tudo é diferente, porque eu mesmo sou diferente.”
237
Retomando a idéia inicial da oposição entre o dionisíaco e o apolíneo, podemos pensar
que a forma de uma partitura constitui o contorno apolíneo necessário ao fogo dionisíaco. O
imprevisível, o novo, a revelação, não é capaz de se transformar em expressão artística sem
uma partitura que lhe uma forma, um lugar. Ao contrário do que pode parecer à primeira
vista, a composição formal não não limita a experimentação, mas de fato conduz a ela,
que a tensão entre o processo interior e a forma fortalece ambos. É por isso que um fator
essencial para o processo criativo é o desenvolvimento de um controle para a forma. Assim,
quanto mais o ator penetra no que está “escondido dentro dele”, no excesso, na revelação,
mais rígido deve ser nas disciplinas externas, na forma, na artificialidade, no ideograma, no
gesto. Nesta aliança reside todo o “princípio da expressividade”.
238
Cieslak era o exemplo da perfeita encarnação do ideal da arte do ator na concepção de
Grotowski: “Quando eu penso em Cieslak, penso em um ator criador. Parece-me que ele era
verdadeiramente a encarnação de um ator que interpreta como um poeta escreve ou como Van
Gogh pinta”.
239
Isto porque ele soube encontrar a conexão entre o talento e o rigor. Quando
ele criava uma partitura para sua interpretação, ele a construía até os mais minúsculos
detalhes, isto é o rigor. Mas, ao mesmo tempo, ele tinha qualquer coisa de misterioso por trás
deste rigor. Era um dom, um sacrifício dos próprios interesses, uma abnegação: “Era qualquer
coisa mais alta, que vai além de nós mesmo, que nos excede, que está acima de nós”.
240
Como forma de elucidar esta união, no trabalho de Cieslak, entre o rigor e o talento,
ou, em outras palavras, entre a forma e a força, Grotowski relata uma experiência que ocorreu
anos após a encenação de “Le prince Constant”.
241
A universidade de Roma decidiu fazer uma
237
Ciéslak cit in: Barba, Le canoë de papier, p. 196.
238
Grotowski, Em busca de um teatro pobre.
239
Grotowski, “Le prince Constant de Ryszard Cieslak” in Ryszard Cieslak, acteur-emblème des années
soixante, p. 13.
240
Idem. p. 15
241
Espetáculo de Grotowski encenado por Cieslak.
104
montagem dos registros da peça. Ela uniu o som do espetáculo, registrado por uma rádio
norueguesa e uma imagem pirata da peça. Como o espetáculo ficou muitos anos em cartaz, o
som foi registrado alguns anos antes e a imagem alguns anos depois. O fato importante é que
a imagem e o som, apesar de afastados um do outro por muito anos, puderam funcionar
juntos. O que isso indica? Indica o rigor, o nível de estruturação do espetáculo, especialmente
no caso dos grandes monólogos de Cieslak. E apesar disso, muitos que viram o vídeo tinham
a impressão de que se tratava de um improviso do ator. Ao mesmo tempo que era
absolutamente preciso e estruturado, a ponto de ser possível a realização de tal junção entre o
som e a imagem, a sensação para quem via era de que os movimentos eram frescos, novos,
criados na hora, frutos de uma experiência real.
Para Grotowski, é extremamente raro estar em presença de um ator que faz unir, desta
maneira, a força e o rigor. Existem os atores que têm alguma coisa do dom, uma
possibilidade de sacrifício de si, mas como eles não podem chegar a um verdadeiro rigor, a
uma verdadeira estrutura, não a verdadeira decolagem. outros que são capazes de criar
ou aprender uma estrutura, mas não o mistério da vida, e ela se torna unicamente técnica e
o ator se torna unicamente produto. Alguma coisa falta. Apesar da escola ensinar a técnica e a
arte do belo, ela não necessariamente a paixão. O ator que interpreta com “tensão”
242
faz
um espetáculo diferente daquele que interpreta sem nenhuma “tensão” e, no entanto, eles
farão o mesmo itinerário, o mesmo desenho com as mesmas partes do corpo. Colocando-os
lado a lado, fazendo aparentemente a mesma coisa, no que diz respeito à movimentação dos
órgãos, um ator que está vivo e outro que não está, há um ator que está presente
intensamente e outro que está como se tivesse em repouso. Não é possível ver a força, mas
sentir os efeitos dela no jogo.
243
Como então aliar estas duas instâncias, como ser técnico e ao mesmo tempo vivo?
242
No original “tension”, que poderia ser traduzido como mobilização ou intensidade. Esta palavra não parece se
referir aqui a uma tensão muscular ou rigidez.
243
Decroux, « Les dits d’Étienne Decroux », in : Étienne Decroux, mime corporel, p. 122.
105
Como não deixar que a disciplina enrijeça a criação? Toda técnica que não se abre para o
desconhecido é um mau método. No processo de busca que acaba por penetrar no
desconhecido, chega-se a uma contradição de termos: a necessidade de haver um “domínio do
desconhecido”, a utilização da técnica para modelá-lo, estruturá-lo e reconhecê-lo. Isto
porque, caso contrário, na segunda vez que o ator percorrer a mesma trajetória, não terá
esse desconhecido dentro dele como ponto de referência, só ficarão os truques.
O equilíbrio delicado consiste em não deixar que a técnica e a disciplina fechem a
abertura ao novo. O treinamento do ator consiste num trabalho singular de explosão e controle
de suas energias, “como algo incandescente que não obstante é controlado com precisão fria”.
244
É exatamente esta duplicidade, este jogo de oposições que ao ator a possibilidade de
construir para ele mesmo um caminho singular de busca, num meio caminho entre a técnica e
a surpresa do imponderável.
“Por força do vistuosismo multiforme, o ator adquire com isso uma espécie de leveza,
uma alegria de representar na plenitude de seus recursos. Mais que a velha identificação com
o personagem, hoje em dia talvez seja essa alegria que, espalhando do palco para a platéia,
prenda o espectador ao espetáculo no casamento da lucidez e da festa.”
245
244
Barba e Saravese, A arte secreta do ator, p. 246.
245
Roubine, Introdução as grandes teorias do teatro p.194, grifo meu
106
CONCLUSÃO
Este estudo buscou falar sobre a arte do ator a partir de autores que se inclinaram sobre
a problemática da atuação e que, de alguma maneira, escaparam da forma de interpretação
naturalista e da percepção de que o teatro deveria ser uma mímesis da realidade. Apesar de
distantes no tempo e com reflexões diferentes sobre este tema, os autores utilizados para este
estudo visam a renovação da arte do ator, valorizam-no como criador do seu metier, como
implicado na construção de sua arte. Não foi o objetivo desse trabalho lançar um olhar
simplificador e chapado sobre as diversas teorias e, muito menos, dar conta de forma integral
de todos os autores selecionados, mas utilizar deles aquilo que acreditamos constituir uma
forma específica de pensar o ator hoje, sempre tendo em mente que esta forma é limitada e
não corresponde a muitas importantes manifestações contemporâneas.
Vimos que essa renovação da arte do ator se construiu a partir de uma crítica às
restrições impostas, de uma forma ou de outra, à interpretação. O trabalho do ator seguiu
diversos modelos de interpretação. Ele esteve baseado num sistema estratificado de
atitudes, em gestos e expressões consagrados. Já esteve baseado em ideais naturalistas,
composto pelos gestos da vida cotidiana. Ambos são restritos do ponto de vista deste trabalho.
O primeiro, dos gestos convencionados e estereotipados, é mais obviamente limitado; mas
mesmo o ator que baseia sua expressão na espontaneidade e na observação, também impõe
um limite a sua criação. Tanto um quanto o outro utilizam um alfabeto fossilizado. No caso
do ator naturalista, a linguagem dos sinais da vida que ele conhece não é a linguagem da
invenção, mas de seu próprio condicionamento. O que parece espontâneo é, na realidade,
filtrado e dirigido pelo ator. Suas observações são projeções de si mesmo.
Um ator que não tem como base o elemento cotidiano, que não se refere a um mundo
dado, possui inevitavelmente mais liberdade de criação. Este novo tipo de teatro está
107
interessado no inesperado que pode surgir de um corpo em cena e, nesse sentido, ele recupera
sua condição de acontecimento vivo, que não ilustra a vida, mas a produz. O teatro como uma
realidade instantânea, uma atualidade, que não faz referência, não parece, não imita, mas
invoca o verdadeiro. Ser verdadeiro não necessariamente é ser cotidiano, pelo contrário, as
rotinas miméticas limam a força do acontecimento. E é justamente com o objetivo de
recuperar essa força que o novo teatro do século XX se distancia radicalmente da concepção
de teatro encerrada nos limites da convenção mimético representativa. O teatro da não
representação é isso, é o teatro como criação de vida, é a produção de uma força cênica não
representacional.
No teatro da não representação a experiência do ator pode ser relacionada a uma
experiência de devir, pois no lugar de representar o dado, ele apresenta algo que não faz
parte de seu repertório subjetivo. A função anti-representativa do teatro é produzir uma
potencialidade presente, atual. Para isso o ator desse teatro aposta num processo de
desconstrução. Ele deve prescindir de sua própria pessoa, deve apostar em devires outros,
deve criar com o seu corpo um instrumento que adquira a potência do impessoal. Estas teorias
sobre o ator visam práticas coletivas que excluam o narcisismo. A própria idéia de
personagem ganha um outro estatuto, não é mais importante a construção de uma verdade
psicológica do papel. O teatro não voltado para a psicologia valoriza a ação como forma de se
relacionar com o personagem. É o corpo e a sensação do ator que vão moldá-lo. Ele não existe
em uma dimensão interiorizada e anterior a ação. É o corpo que leva o pensamento para um
novo lugar, sem o qual o pensamento se torna restrito à representação, ao psicologismo, a
história pessoal.
Apesar de circunscritos em temas definidos e diferentes entre si, todos os capítulos
abordam a questão do ator como criador: criador de um novo estado de ser, de um corpo
intensivo, de uma forma capaz de se abrir ao inesperado. Os temas propostos têm em comum
108
a idéia de que este tipo de ator entra em contato, ao representar, com forças desconhecidas e
com isso se distancia do seu repertório subjetivo. Ele lida com intensidades potentes e ainda
informes. Neste sentido, o terceiro capítulo é muito importante para fechar esta análise,
porque articula esta força que não tem nome, que ainda não foi representada, com algo
concreto. A técnica, a disciplina, a partitura física são pontos de apoio que o ator lança mão
para lidar com o desconhecido. É uma maneira de tomar distância, não se deixar “engolir”
pelo acontecimento. Quando se fala que para ser ator é preciso voltar a ser criança, não é
porque deve buscar a intensidade ainda informe do corpo infantil, mas também porque, assim
como a criança, ele deve saber brincar. Quando uma criança brinca, ela penetra num outro
mundo, tem visões e audições, vive o que é criado, mas em nenhum momento ela esquece que
está brincando, ela não se apega, não gruda no que é inventado. Também não está
simplesmente fingindo, imitando algo. Ela vive a brincadeira, mas sabe que brincando está.
Assim também o ator deve brincar, sabendo que se trata de uma brincadeira: “a play is a
play”. Ao mesmo tempo que o acontecimento se inscreve na carne do ator essa efetuação é
duplicada por uma contraefetuação que a limita, a representa. “É preciso acompanhar-se a si
mesmo”
246
.
Tudo o que vimos nos três últimos capítulos, sobre a potência inovadora de um devir,
ou o despertar do corpo intensivo, ou ainda a explosão de um estado dionisíaco, só tem
sentido se o ator é capaz de dar forma, mesmo que uma forma inacabada. Ele precisa aprender
a exercer um controle sobre isso, para não se deixar consumir pelas visões. A intensidade, o
puro fluxo de forças, o delírio, o devir se furtam à formalização, não a forma que a arte
necessita. Neste sentido, é de extrema importância repensar os dois primeiros capítulos à luz
desta problemática, pois, se o trabalho do ator deve permanecer entre a forma e a força, de
nada vale a pura ruptura da ordem; uma nova ordem sempre irá se constituir, mesmo que de
246
Deleuze, Porcelana e Vulcão, p. 164
109
maneira absolutamente provisória, mesmo que guarde nela o lugar do imprevisto e do não-
preexistente.
Tivemos como eixo condutor de nosso trabalho o pensamento de Deleuze, sobretudo
relacionado à experiência do devir, e à noção de corpo sem órgãos e também o pensamento de
Nietzsche acerca da arte trágica que, em Deleuze, se aproxima da distinção entre efetuação e
contraefetuação. Essa base filosófica foi fundamental para se pensar uma crítica ao teatro da
representação - um teatro comprometido com a simples imitação de uma realidade prévia, um
teatro das formas dadas. De um modo diferente, o teatro da não-representação é o teatro do
presente, do que está vivo, latejante; é experimentar novas forças e abandonar as formas
gastas, criando sempre novas formas. O ator deste tipo de teatro não representa um
personagem, não interpreta um texto.
Interessante pensar que são exatamente estas duas palavras representação e
interpretação – as que, normalmente, escolhemos quando falamos sobre a ação de um ator em
cena. Talvez essa escolha tenha sua origem em uma forma de fazer teatro onde o ator
permanece ainda enredado na obrigação de obedecer a uma hierarquia, na qual a realidade
cotidiana e o texto dramático se encontram no topo.
A grande apreensão, que permeou a produção deste trabalho, foi o risco de se estar
desenvolvendo uma reflexão do ator como uma generalidade, através da abolição das
diferenças e da integração de práticas múltiplas a partir de um ponto de vista centralizado. O
fato de não estar focando o trabalho de um determinado grupo ou técnica para o ator, e sim
falando do ator a partir de muitos autores, poderia dar a impressão da busca por uma verdade
ou essência do ator. Mas, ao longo do trabalho, pudemos perceber que a filosofia de Deleuze
não nos deixava “cair nessa tentação” de fechar o pensamento em algo definitivo. A essência
do ator é a sua não essência, é a sua multiplicidade, é o dar forma e o desconstruí-la, é o
descentramento de si, é a afirmação da divergência. Talvez o fato de não se ater a um autor ou
110
a uma época tenha, inclusive, ajudado a fugir da produção de uma verdade. É claro que é
sempre uma fuga, a verdade espreita e temos que estar alertas para o risco do pensamento
engolir a diferença e tudo convergir para um só modo de ver o mundo.
Tentando manter este espírito de liberdade e se despindo de qualquer verdade acerca
do ator, este trabalho teve como objetivo principal passar por essas influências e como diretriz
geral a valorização dos pensadores que lutaram pela “reteatralização” do teatro, pela
libertação do teatro das amarras miméticas. Porém, a busca por uma alternativa à arte teatral
tradicional não é tão simples. Ela se depara com certas armadilhas. Não basta ter em mente o
desejo de construir uma representação “fora do comum”, lírica, ritualística, para colocar em
boa direção a pesquisa.
247
O uso das palavras ‘psicológico’ e ‘naturalista’ aparece sempre no
centro do debate sobre teatro, mas muitas vezes uma simplificação com relação a estes
temas. A “linguagem da ação”, ocupa o status de uma linguagem brilhante e eficaz, e a
“linguagem da psicologia” , imprecisa e obscura, é muitas vezes colocada como vilã e a
responsável pelo teatro morto. Mas será essa divisão verdadeira?
248
O teatro se depara o
tempo todo com novas exigências e novos meios. Nenhuma técnica elimina a necessidade de
mais investigação e novas construções. Os métodos se esgotam. “A beleza, a crueldade do
teatro está precisamente no seu caráter efêmero de suas leis.”
249
Escrever sobre teatro é, pois,
um trabalho sempre incompleto, parcial e corresponde a um modo de pensar.
A tentativa de se criar um “Ator novo”, empreendida por muitos pensadores do teatro
do século XX, continua sendo uma meta a se cumprir. Apesar de importantes iniciativas, os
paradigmas do “Ator antigo” continuam sendo, em muitas experiências, a referência para a
cena contemporânea. Apesar de ter se livrado, na maioria das vezes, dos estereótipos herdados
do século XIX e de ter desenvolvido uma interpretação com ênfase numa maior exatidão do
247
Brook, O teatro e seu espaço p.126
248
Idem p.79
249
Féral, Dresser un monument à l’éphémère p.10
111
gesto e um maior requinte nas nuanças, o teatro hoje permanece condicionado à velha tradição
ocidental da valorização de um texto e a individualização de um personagem.
250
250
Roubine, A linguagem da encenação teatral p. 158
112
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