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UFF - UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
MESTRADO EM LITERATURA PORTUGUESA E LITERATURAS AFRICANAS
DE LÍNGUA PORTUGUESA
SUELI ALVES DOS SANTOS
A NOITE GENESÍACA DO EU, EM NÃO ENRES TÃO DEPRESSA NESSA NOTE
ESCURA, de António Lobo Antunes.
Niterói
2007
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SUELI ALVES DOS SANTOS
A NOITE GENESÍACA DO EU, EM NÃO ENTRES TÃO DEPRESSA NESSA NOITE
ESCURA, de António Lobo Antunes.
Dissertação apresentada ao curso de Pós-
Graduação em Letras da Universidade
Federal Fluminense como requisito
parcial par obtenção do grau de Mestre:
Área de Concentração: Literatura
Portuguesa e Literaturas Africanas de
Língua Portuguesa.
Orientador: Prof. Dr. Silvio Renato Jorge (UFF)
Co-orientadora: Profª. Drª. Ângela Beatriz de Carvalho Faria (UFRJ)
Niterói
2007
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Ficha Catalográfica elaborada pela Biblioteca Central do Gragoatá
S237 Santos, Sueli Alves dos.
A noite genesíaca do eu em Não entres tão depressa nessa noite
escura, de Antônio Lobo Antunes / Sueli Alves dos Santos. 2007.
135 f.
Orientador: Silvio Renato Jorge
Co-orientador: Ângela Beatriz de Carvalho Faria
Dissertação (Mestrado) Universidade Federal Fluminense,
Instituto de Letras, 2007.
Bibliografia: f. 121-126.
1. Antunes, Antônio Lobo, 1942 - Não entres tão depressa nessa
noite escura. 2. Ficção portuguesa. 3. Filosofia. 4. Psicanálise. 5.
Literatura. I. Jorge, Silvio Renato. II. Universidade Federal
Fluminense. Instituto de Letras. III. Título.
CDD 869.3009
SUELI ALVES DOS SANTOS
A NOITE GENESÍACA DO EU EM, NÃO ENTRES TÃO DEPRESSA NESSA NOITE
ESCURA, de António Lobo Antunes.
Dissertação apresentada ao curso de Pós-
Graduação em Letras da Universidade
Federal Fluminense como requisito
parcial par obtenção do grau de Mestre:
Área de Concentração: Literatura
Portuguesa e Literaturas Africanas de
Língua Portuguesa.
Aprovada em fevereiro de 2007.
BANCA EXAMINADORA
______________________________________________________________________
Prof. Dr. SILVIO RENATO JORGE - Orientador
UFF
______________________________________________________________________
Profª. Drª. ÃNGELA BEATRIZ DE CARVALHO FARIA Co-orientadora
UFRJ
______________________________________________________________________
Profª Drª. LUCI RUAS
UFRJ
______________________________________________________________________
Profª Drª. DALVA CALVÃO
UFF
Niterói/2007.
Esta dissertação é dedicada aos meus pais:
Manoel dos Santos, pelo exemplo de
transformação e superação que uma pessoa
pode ter em meio a momentos cruciais na vida.
Jacirema Benevenuto Alves - in memoriam.
Mulher rara que, com sua sabedoria, ensinou-
me, desde menina, a ocupar meu tempo ocioso
com a leitura. Segui sua orientação e, hoje, o
resultado disso é especialmente para ela.
AGRADECIMENTOS
À CAPES, pelo patrocínio da pesquisa que tornou possível a realização dessa
dissertação.
À Universidade Federal Fluminense, os funcionários do Departamento de Pós-
Graduação e professores do Departamento de Letras, subárea de Literatura Portuguesa
e Literaturas Africanas de Língua Portuguesa.
A António Lobo Antunes por ter feito com que eu adoecesse e nunca mais conseguisse
convalescer.
Ao Professor Dr. Silvio Renato Jorge por ter aceitado ser meu orientador.
A minha co-orientadora Profª Drª Ângela Beatriz de Carvalho Faria que, mesmo
ocupando outro espaço acadêmico, esteve sempre presente em minha jornada
partilhando, opinando e corrigindo com dedicação e paciência meus apontamentos com
a paixão em comum pelo autor e pela noite subjetiva das palavras, o meu incansável
muito obrigada.
À Profª Drª Claudia Amorim, por ter me apresentado Lobo Antunes, despertando em
mim o entusiasmo pelo autor que acabou por se tornar o motivo da minha pesquisa
acadêmica.
Ao Profº Drº Mário Lugarinho por sua amizade, simplicidade e grandeza de ser.
À Profª Drª. Nadiá Paulo Ferreira, por ter me “fisgado” para os assuntos freudianos e
por ter aceitado me guiar nas reflexões psicanalíticas.
À Profª Drª Luci Ruas que, carinhosamente, sugeriu e emprestou-me livros que muito
enriqueceram minha pesquisa.
À amiga Cristina Cataldi, que, com sua calma incondicional, esteve sempre presente
para os assuntos práticos e para aqueles que requeriam a grandeza da amizade.
Aos amigos Wandercy de Carvalho e Ana Lídia Afonso, com quem pude
compartilhar a bengala da persistência, escorando-nos mutuamente, ombro a ombro,
cada vez que a ameaça da queda parecia eminente.
Aos meus irmãos e irmãs e suas respectivas famílias, por estarem sempre presentes
em mim como referencial de partida e de chegada atuando como fonte de valores
primitivos e verdadeiros.
A minha filha Elis, razão maior do meu viver e vencer, aquela em que a noite escura do
amanhã se tornou claridade na materialização do amor.
Ao meu companheiro e apaixonado em comum pelos livros Gladstone, que com todo
seu ciúme por suas obras raras ou não, emprestou-me livros, opinou e ouviu minhas
idéias com a sabedoria de um verdadeiro lobo, incentivando-me a prosseguir até o fim
por acreditar em mim e em minha capacidade.
Noturno
Os que nascem de noite
E, entre ossos, vigiam
O fogo
Os que olham os astros
E, oprimidos, respiram
em cavernas
os que vão viver apesar
da escuridão e nos olhos
a luz clandestina
acendem
os que não sonham, os que nascem
de noite
não vieram brincar: seu peito
guarda uma só palavra.
Orides Fontela
SUMÁRIO
1. Introdução ..................................................................................................................09.
2. O poema de Dylan Thomas - origem da criação de Não entres tão depressa nessa
noite escura, o romance-poema: diálogos possíveis..................................................... 21.
2.1. A reflexão em torno do viés lírico na narrativa de António Lobo Antunes........... 35.
3. As simbologias da caverna ....................................................................................... 52.
3.1 – A reflexão filosófica ...................................................................................... 56.
3.2 – A reflexão psicanalítica ..................................................................................63.
3.3. A reflexão da escrita: A noite genesíaca do eu, em Não entres tão depressa
nessa noite................................................................................................................85.
4. Conclusão.................................................................................................................113.
5. Referências Bibliográficas .......................................................................................121.
6. Anexos .....................................................................................................................127.
9
1.INTRODUÇÃO
As fronteiras de um livro nunca são bem definidas: por trás do título, das
primeiras linhas e do último ponto final, por trás de sua configuração
interna e de sua forma autônoma, ele fica preso num sistema de referências
a outros livros, outros textos, outras frases: é um nó dentro de uma rede.
Michel Foucault
1
Se percorrêssemos o caminho seqüencial do século XIX à contemporaneidade,
poderíamos considerar as características que fomentaram os ideais romanescos de cada
época e, desse modo, portanto, observar que os padrões estabelecidos foram sendo
modificados ao longo dos tempos até culminarem com a falta de linearidade estética no
romance contemporâneo, cuja principal diferença, em relação ao romance tradicional, é
o desconforto proporcionado pela leitura, uma vez que não há mais um “fio condutor” a
guiar o leitor por dentro da narrativa. O leitor deve ser capaz de ir ao texto e trazer
elementos “não ditos”, transformando-se, assim, no “leitor ideal
2
que coopera e
trabalha junto com o texto para que encontre o seu sentido, pois, quanto mais o enredo
deixar espaços em branco, mais o leitor nele atuará, já que é o texto que gerará sua
interpretação.
Em A posição do narrador no romance contemporâneo, Adorno, diz: “não se
pode mais narrar ao passo que a forma do romance exige a narração. O romance foi a
forma literária específica da era burguesa”.
3
Coadunando com o pensamento do
filósofo, diríamos, então, que o romance contemporâneo, ao romper com os padrões
estéticos típicos de um período burguês, propõe novas formas de organização do
1
FOCAULT, M. Apud: HUTCHEON, Linda. Poética do pós-modernismo. História. Teoria. Ficção.Trad.
Ricardo Cruz. Rio de Janeiro: Imago, 1991.
2
ECO, Umberto. A leitura do texto literário. Lector in fabula. Portugal: Editoral Presença, 1983.
3
BENJAMIN, HABERMAS, HORKHEIMER, ADORNO. Pensadores, textos escolhidos. Posição do
narrador no romance contemporâneo. São Paulo: Abril Cultural, 1983.
enredo, buscando exprimir a “experiência do mundo desencantado”
4
e o domínio
artístico puramente existencial como dois de seus principais elementos. No curso de um
desenvolvimento que remonta ao século XIX, essa questão se tornou problemática e,
atualmente, se encontra cada vez mais exigente em seu aforismo. No romance os fatos
podem ser modificados, mesmo que os objetos, como panorama real, tendam a
desaparecer. Contemplar e aceitar, facilmente, é começar do mais simples e rudimentar
e pressupor que o amor e o mundo, se tivessem lógica, poderiam ser narrados.
O romance - cujo aparecimento se dá no início da era moderna - mudou de rumo
ao ter sua importância subtraída por outras formas de entretenimento - tanto quanto a
pintura também a teve, a partir do advento da fotografia-, e também pela perda da
experiência comunicável que cria a cisão entre os interesses interiores do homem e os
de sua vida coletiva, centralizando-se, portanto, naquilo que não podia mais ser
abordado de forma desistoricizada, ou seja, “naquilo de que o relato não dá conta”,
5
passando, então, a surgir simultaneamente com a história. Em contraponto com as artes
plásticas, a linguagem coloca limites na emancipação do objeto, pois ela ainda o
restringe à ficção do realismo. Adorno nos diz ainda:
Joyce foi conseqüente quando vinculou a rebelião do romance contra
o realismo a uma rebelião contra a linguagem discursiva. (...)
Desintegrou-se a identidade da experiência a vida articulada e
contínua em si mesma que só a postura do narrador permite. É
preciso apenas ter presente a impossibilidade de quem quer que seja,
que tenha participado da guerra, a narrasse como antes uma pessoa
contava suas aventuras.
6
Dessa maneira, então, diríamos que, em não havendo mais a necessidade de viver
uma experiência para poder contá-la, mas sim o conhecimento proferido, tal fato faz
com que o ceticismo conflua para a narrativa que surge. Se o ceticismo pode ser
4
Idem, ibidem, p. 269.
5
Idem Ibidem, p.269.
6
Idem, ibidem.
compreendido como uma mentalidade caracterizada não pela dúvida propriamente dita,
mas pela incredulidade e por uma tendência para desconfiar das máximas morais que os
homens professam”,
7
é admissível que tais sentimentos se contraponham com a
narração, uma vez que o narrador desvinculado da tradição oral que se liga ao costume
transmissível da experiência e, assim, se encontra exilado da experiência coletiva - não
domina aquela experiência e o leitor contemporâneo não é mais conduzido por um fio a
guiar-lhe a leitura, sentando-se confortavelmente para “ler um bom livro”, em virtude
do que está sendo comunicado e da maneira como o texto foi construído. O desconforto
percebido deve ser mantido diante daquele elemento que incomoda na leitura como
traço da verdade, não uma em particular, mas aquela inserida no horizonte que cada um
vai vislumbrar à medida que lê e faz contato com a escrita.
No romance contemporâneo o que fica é a ilusão do enredo. Não se consegue
parar a leitura de um livro e voltar a lê-lo com a mesma compreensão, uma vez que a
obra não tem a categoria do acabado e do completo. Torna-se, assim, a aventura de
lançar-se para um salto, cujo percurso não reside no simples ato de ler o livro enquanto
aberto e em seqüência de folhas numeradas.
O leitor contemporâneo escolhe ser parceiro ou não da narrativa, o que vai
depender da afinidade de cada um, e isso o fará retornar sempre ao texto num ato de ler,
reler, ler, reler. A leitura é feita com os elementos do que é lido. Desse modo, ao ler, é
preciso encenar o autor na leitura e encenar-se também nela, uma vez que um autor
existe à medida que é lido, e o leitor é quem vai dizer algo àquele texto, pois este
sobreviverá a ele e não ele a ela. Diríamos ainda que um texto moderno está no plano do
vazio e não diz tudo de uma vez, mas sim lentamente, sem revelar facilmente o que
propõe, de tal modo, que é possível encontrar a satisfação na dissonância. Afinal, essas
7
LALANDE. André. Vocabulário técnico e crítico da filosofia. Trad. Fátima Sá Coréia, Maria Emília V.
Aguiar, José Eduardo Torres, Maria Gorete de Souza. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p.345.
palavras, imbuídas do pensamento do mestre Adorno, encontram ressonância na
expressão de Walter Benjamim que em seu texto O narrador,
8
diz:
O local de nascimento do romance é o indivíduo na sua solidão, que já
não consegue exprimir-se exemplarmente sobre seus interesses
fundamentais, pois ele mesmo está desorientado e não sabe mais
aconselhar. Escrever um romance significa levar o incomensurável ao
auge da representação da vida humana.
9
A estética da recepção considera a literatura um sistema que se define por
produção, recepção e comunicação, tecendo uma relação dialética entre autor, obra e
leitor. Não revitaliza a noção de produção e representação, bases da estética tradicional.
Destaca que o ato de leitura tem uma perspectiva dupla na dinâmica da relação com a
obra e a projeção desta obra pelo leitor de uma determinada sociedade. Interessa-se
pelas condições sócio-históricas que formularam as diversas interpretações que o texto
ficcional recebeu e assinala que o discurso literário é o resultado de um processo de
recepção ao mover a pluralidade destas estruturas de sentidos historicamente mediadas.
Permite, ainda, compreender o sentido e a forma da obra literária pela variedade
histórica das suas interpretações. Exige, por outro lado, que a obra individual seja
introduzida na seqüência literária adequada, o que permitirá reconhecer o seu papel
histórico no contexto das experimentadas pela literatura canônica e, desse modo, captar
todo o seu potencial criativo.
Assim, ao analisarmos a narrativa contemporânea, fragmentada por excelência,
com seus espaços em branco, muitas imagens subjetivas e, praticamente, ausência de
juízo de valor definitivo, veremos que ela permite múltiplas leituras de um mesmo texto
literário, conduzindo, entre outras, a uma reflexão sobre o comportamento existencial
daqueles que, conscientes desse mundo que massifica e não individualiza, assumem o
papel do sujeito solitário, introspectivo e questionador de sua própria origem e
8
Op. Cit. 1983.
9
Idem, Ibidem, p.60.
existência. Tal procedimento evidencia a profunda dor e descentramento do sujeito no
contemporâneo. Surge, então, o questionamento: Para que e por que volver ao passado?
Se esse olhar para o pretérito significa reviver marcas profundas pela voz da memória,
espera-se que a palavra, ao dialogar com algumas áreas do saber humano, traga outras
interpretações e respostas para aquilo que se queria análogo e sem inquietações.
A obra de António Lobo Antunes, nosso objeto de estudo, é um território em que
se pode buscar esses caminhos de múltiplos sentidos. O escritor, tido como um dos mais
desconcertantes escritores portugueses contemporâneos, assinala em sua escrita,
considerada muitas vezes corrosiva e irônica, além do registro de parte da história de
Portugal, a trajetória de histórias individuais vividas de formas interditas pelas
personagens ou vozes que se manifestam no enredo. O papel destinado a esses
personagens é a representação fenomenológica de uma literatura temática em que a
interminável noite sem fim prossegue sem trégua na mostra daquilo que não se perdeu e
que pode ser resgatado de dentro de cada indivíduo.
Sem as naus do glorioso caminho dos “mares dantes navegados”, coube ao
ficcionista português nos conduzir pelos túneis da memória, em uma viagem sem tempo
estabelecido, ao mundo de Maria Clara, que se desenvolve em um fluxo, ora
consciente, ora inconsciente, para percorrer a caverna do comportamento, do imaginário
e do inconsciente humano em descobertas únicas e singulares.
É, pois, nesse espaço, que iremos conhecer, em Não entres tão depressa nessa
noite escura,
10
a história de uma mulher cujos conflitos residem na busca do
conhecimento do Outro, da origem paterna e, posteriormente, em processo especular, ao
conhecimento do próprio Eu. Esta procura faz do tempo passado matéria viva para o
posicionamento em um mundo que se desejou estagnado e, ao sabê-lo impossível,
10
ANTUNES, António Lobo. Não entres tão depressa nessa noite escura. Lisboa: Dom Quixote, 2000.
estabelece Maria Clara a representação da experiência individual, não sendo possível
delimitar em que ponto termina a memória e começa a imaginação.
Filosofia, psicanálise e literatura nascem da busca por respostas a perguntas
fundamentais relacionadas à gratuidade de nossa existência, mas somente a investigação
que leva às respostas de tais temas nos sensibiliza naquilo que realmente interessa, ou
seja, nas emoções que dão um acesso abrangente à vivência humana. Felicidade e
tristeza resultam do ato de sentir emoções, não de entendê-las, pois são os afetos que
movem e comovem o sujeito. Tal hipótese pode ser amparada ao se observar, nos
primeiros romances de António Lobo Antunes, o comportamento do narrador-
personagem. Obedecendo a uma escala progressiva de perda da própria identidade e à
combinação de variados sentimentos, o sujeito que assume a instância narrativa
contemporânea mostra-se estilhaçado, devido à falta de escolha para aquilo que foi
designado fazer; a seguir, despersonalizado, como reflexo daquela experiência vivida e,
finalmente, descentralizado por não saber mais que lugar ocupa no mundo.
É desse modo, portanto, ao descrever com subjetivismo e melancolia o mundo
que cerca a protagonista de Não entres tão depressa nessa noite escura, que o texto
revela, atrás do não dito, o mundo que a circunda, repleto de buscas, angústias e
invenções, resultado de uma experiência existencial limítrofe.
Partimos, portanto, da análise do décimo quarto romance de António Lobo
Antunes, ressaltando: a) o processo de descentralização do sujeito aí problematizado,
seja pela questão existencial observada na ficção portuguesa contemporânea; seja por
uma re-articulação do conceito de identidade, que se dá a partir das suas diversas
possibilidades de configuração; b) a escrita singular do autor, proposta em “Receita para
me lerem” - Segundo Livro de Crônicas.
11
Nossa pesquisa baseia-se em explorar o viés
11
Lisboa: Dom Quixote, 2002, pp.109-111.Publicada, também, na Separata que acompanha o romance
por ocasião dos 20 anos na Dom Quixote. Ver anexo 1.
lírico na ficção de António Lobo Antunes, especificamente na obra selecionada, assim
como remetemos a possível apreciação para “A noite genesíaca do Eu”.
12
Outrossim, há que se destacar que a problemática da noite como tópico
recorrente e significativo na narrativa antuniana, está implícita no título mesmo não
sendo o componente nodal do romance, e permite a observação de outros elementos
expressivos que aí ficam ocultos e implicados. O noturno, com seus vários significados,
admite os múltiplos sentidos divergentes na segmentação da noite que se apresenta.
Entre eles, destacamos, nos níveis temático e poético, a problemática inerente à noite
citada.
Assim, este trabalho parti de uma análise que busca correlacionar algumas
informações depreendidas de três áreas do saber humano a filosofia, a psicanálise e a
literatura -, aplicando tais informações à compreensão da obra do romancista português
António Lobo Antunes, mais especificamente ao seu romance Não entres tão depressa
nessa noite escura, publicado em 2000. Para tanto, estruturamos nossa dissertação em
duas grandes partes:
Na primeira delas, propomos uma reflexão acerca do viés lírico na narrativa do
romancista português em busca de compreender, primeiramente, o porquê da adição da
palavra poema ao título do romance e, ainda, identificar em uma linguagem em prosa e,
portanto, aparentemente distanciada do aspecto lírico, os recados poéticos
subjetivamente inseridos ao longo da narrativa, além de longas elipses, repetições e
ritmos discursivos. Tais construções nos pareceram indicar, para o narrador e para o
leitor, a chance de se envolver, sofrer, sentir e perceber o pulsar poético que vai além da
estrutura de superfície das frases, dissolvendo-as no vazio do não-dito e, por isso
12
SEIXO, Maria Alzira (2002), p.386. “Em termos de temática e de poética, [a problemática da noite]
parece regressar em força, e logo a partir da sua sobredeterminação titular na incisividade de percepção
que lhe atribui a sua posição de paratexto”.
mesmo, permitindo que sejam interpretadas de forma mais abrangente pelo olhar que
transpassa o lugar comum da escrita.
Desta forma, não apenas buscamos interpretar a nítida opção pelo diálogo com o
poema “Do not go gentle into that night”,
13
do escritor galês Dylan Thomas, mas
também outras insurgências líricas em meio à obra do autor e suas possíveis
ressonâncias intertextuais. Nesse sentido, foram de fundamental valor as reflexões
desenvolvidas por Ivan Junqueira, em “Dylan Thomas: Um perfil”, do livro Poemas
reunidos,
14
texto em que o autor discute aspectos relacionados a Thomas, tais como:
suas principais influências literárias, sua escrita e seus poemas. Além disso, contamos
também com os comentários feitos no “Prefácio” e “Notas”, pelos editores do livro,
professores Walford Davies e Ralph Maud, ao analisarem os poemas presentes na obra.
Seguindo outro caminho, complementar a essas ponderações, contamos também
com a análise de Rosa Maria Goulart, em seu Romance lírico O percurso de Virgílio
Ferreira,
15
aí recolhendo informações sobre os conceitos de romance lírico e sua
aplicação no texto narrativo contemporâneo.
Cabe fazer referência, ainda, como pilar fundamental para o aspecto lírico que
pesquisamos em António Lobo Antunes, à Maria Alzira Seixo, em “Prosódia do texto
de ficção,
16
texto no qual a ensaísta discute a qualidade poética, ou mesmo lírica, da
prosa romanesca do autor de Não entres tão depressa nessa noite escura.
A segunda parte da dissertação volta-se para a análise de três sentidos que
identificamos no texto para a simbologia da caverna antuniana, em alusão à caverna
platônica. Para isso, recorreremos a três teorias, capazes de ampliar a percepção de seu
13
Não entres nessa noite acolhedora com doçura.Tradução de Ivan Junqueira.
14
THOMAS, Dylan. Poemas reunidos (1934-1953), Trad. Ivan Junqueira, Rio de Janeiro: José Olympio,
1991.
15
GOULART, Rosa Maria. Romance lírico o percurso de Virgilio Ferreira. Lisboa: Bertrand Editora,
1990.
16
In: Op. cit. SEIXO (2002).
sentido e, por isso, de oferecer um grau maior de segurança para a sua análise: a
filosófica, a psicanalítica e a literária.
A simbologia da caverna foi utilizada no sentido de lermos o sótão como o lugar
escolhido pela personagem-narradora para encerrar-se e tornar real tudo aquilo que ela
julga existir de fato. Ou seja, lemos a presença do sótão no romance como espaço de
reconhecimento, de ultrapassagem dos recalques e, por fim, de criação. Para isso
recorremos ao clássico texto da alegoria da caverna de Platão, mais especificamente A
República
17
, livro VII, em que o filósofo grego trata do diálogo entre Sócrates e Glauco,
no que se refere às diferentes etapas de ascensão de um filósofo para a sabedoria
suprema, ou seja, a ciência do Bem com o intuito de torná-lo capaz de governar a
Cidade Ideal.
Para a teoria psicanalítica utilizaremos Sigmund Freud e seus estudos para
explicação do inconsciente. É, pois, pela caverna do inconsciente que buscamos a
explicação psicanalítica para Maria Clara que, em suas livres [re]criações, mostra, pelo
modo narrativo em seu diário e em suas idas ao psicólogo, um conjunto constituído por
conteúdos recalcados aos quais foi recusado o acesso ao sistema pré-consciente pela
ação do recalque. Para Freud, os principais determinantes da personalidade, as fontes da
energia psíquica, as pulsões e os instintos, estão no inconsciente.
Em relação ao que diz respeito ao sentido literário da caverna, buscamos, em
Maria Alzira Seixo, mais uma vez, a acepção para tal definição. Em um estudo
meticuloso de Não entres tão depressa nessa noite escura, a estudiosa qualifica a obra
de Noite Transfigurada. A partir de tal concepção, procuramos identificar o mistério da
noite, que simbolicamente pode ser vista como a própria escritura difícil de ser
penetrada; o processo de conhecimento a ser empreendido por Maria Clara ao tentar
17
PLATÃO. A República. Trad. Enrico Corvisieri. São Paulo: Nova Cultural, 1997.
desvendar os segredos contidos no sótão; a morte e uma viagem sem tempo estabelecido
para percorrer a caverna do comportamento, do imaginário e do inconsciente humano, o
sentido para traduzirmos nossa impressão de leitura do texto literário em epígrafe.
Investiremos, também, na leitura de Maurice Blanchot
18
como suporte
fundamental para o mote da noite e a incapacidade do sujeito em lidar com o mundo que
o circunda externamente, preferindo a reclusão e o silêncio.
Dessa maneira, portanto, procuraremos produzir uma análise que aponta a
presença, na obra de António Lobo Antunes, de uma reflexão acerca da história
individual. Tal reflexão, ao dialogar com o presente em outras obras literárias, sejam
elas referências universais ou não, acaba por estabelecer sentidos produtivos para a
compreensão do mundo contemporâneo, permitindo olhar para os conflitos
fundamentais do Ser, estejam eles resolvidos ou recalcados. Para tanto, resta destacar
ainda que foi fundamental, para nosso percurso, a leitura de teóricos e críticos como:
Walter Benjamim, Teodor Adorno, Umberto Eco e Octávio Paz.
E, finalmente, trazemos, em anexo, algumas fotografias que julgamos
pertinentes para ilustrar, materializado pela imagem, aquilo que percebemos no plano
do imaginário e inconsciente ao interpretar e traduzir nossa impressão de leitura em Não
entres tão depressa nessa noite escura.
Com a primeira fotografia,
19
acreditamos delinear perfeitamente o modo pelo
qual imaginamos a personagem-narradora principal do romance na caverna. Apesar de
seus inúmeros conflitos ela mostra um leve sorriso, que concebemos ser de satisfação -
independente da melancolia percebida no final do romance assinalada pela estagnação e
solidão-, pois sabe que, livre e independentemente, percorrerá os sinuosos e escuros
caminhos daquele lugar eleito espaço propiciador de suas ilusões. Assim, A República,
18
BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Rocco, 1987.
19
Homenagem a Platão, Jeanloup Sief (fotografia, 1975). Captured on line in 12/11/2005,
www.google.com . Ver anexo 2
particularmente no livro VII, configura o que Heidegger denomina uma inflexão na
determinação da essência da verdade. Essa inflexão se exprime, antes de tudo, pela
mudança que a alegoria da caverna simboliza e que consiste em passar a atribuir o ser
verdadeiro ao inteligível, não mais ao sensível.
20
Salientamos que a ausência de vestuário na mulher, posicionada à entrada da
caverna, conduz também à imagem original do sujeito ao nascer - o que combina
perfeitamente com o desenrolar dos sucessivos fatos na vida da personagem que,
supostamente, ao ter imaginado ou almejado outros rumos para si, se desvincula de
qualquer imagem já estabelecida e reconstrói os fatos e as vidas intimamente ligados a
ela -, ou seja, nu e em um mundo desconhecido que há que se depender, aprender e
depreender tudo que dele emanar até alcançar o ponto em que se torna possível aferir
diferentes e novos valores a ele. Aqui, em particular, podemos dizer que a imagem
funciona como um retrato daquela que, na noite genesíaca do Ser e apesar de adulta, vai
criar e recriar mundos e situações favoráveis e traumáticas nesse recôndito por ela
habitado e coberto pela abóbada do inconsciente. Cabe ressaltar que, segundo o conceito
de idéia ou verdade platônica, para Platão, o que é verdadeiro são as idéias, sendo que
verdade é sinônimo de realidade, pois as idéias são realidades inteligíveis, mais reais do
que as realidades sensíveis”.
21
Trazemos, ainda, a célebre imagem de O pensador
22
como forma de
representação do Homem contemporâneo. Apesar de ocupar um contexto em que as
facilidades e os apelos publicitários consumistas são inúmeros e o mundo,
aparentemente, oferece quase todas as possibilidades de realizações, sejam elas
20
AUBENQUE, Pierre. Prefácio de Platão: A República: Livro VII, Brasília: UNB, São Paulo: Ática,
1989. p.2-3.
21
Op. cit., p.111, glossário.
22
O pensador, escultura por Auguste Rodin. - captured on line in 18/09/2006
www.pt.wikipedia.org/wilk/filosofia. Ver anexo 3.
materiais ou pessoais, esse mesmo Homem volta-se para o introspecto e procura outro
tipo de consumação, pois, despido de qualquer traje e/ou rotulação, nos dá a exata
grandeza de suas reflexões e angústias mais primárias. Assim também entendemos a
escrita contemporânea, particularmente em Não entres tão depressa nessa noite escura,
somos conduzidos, ainda que despercebidamente, ao questionamento acerca do mundo
que nos circunda e aquele que de fato gostaríamos de viver. Nesse lugar habitado,
portanto, são inseridas marcas indestrutíveis das experiências, do descentramento e das
reflexões tecidas a respeito da existência em um ambiente em que nenhum apelo
externo furta ou anula do Homem sua capacidade de se sentir fora do senso comum. A
partir de tal consciência, surge a inquietação humana típica no desejo de compreender e
questionar os valores às interpretações tão facilmente aceitas à respeito de sua própria
realidade. Aquilo que, filosoficamente, seria a análise, a formação e a reflexão de idéias
ou visões de mundo em uma situação geral abstrata ou fundamental.
Desse modo, portanto, buscamos trazer questões, referentes à possível
descentralização do sujeito contemporâneo e à problemática acerca de sua identidade
em relação ao espaço-tempo que ocupa, imergido em profunda crise existencial. Pode-
se ler em Não entres tão depressa nessa noite escura “a aventura (...) que o narrador e o
leitor fazem em conjunto ao negrume do inconsciente, à raiz da natureza humana”.
23
23
ANTUNES, António Lobo. “Receita para me lerem”. Separata.
2. O POEMA DE DYLAN THOMAS E O ROMANCEPOEMA DE LOBO
ANTUNES: DIÁLOGOS POSSÍVEIS.
... por enquanto o cheiro da morte,
apenas o que principia a constituir o cheiro da ausência...
24
António Lobo Antunes
Ao apresentarmos o poema Do not go gently into that night
25
do escritor galês
Dylan Thomas como a parte inicial de nossa dissertação, objetivamos evidenciar sua
interlocução com o romance antuniano, uma vez que a obra literária Não entres tão
depressa nessa noite escura teve seu título, subtraído, quase integralmente, de um dos
versos do poema que transcrevemos adiante e, assim, estabelecer um diálogo possível
entre as obras. Ressaltamos que “a noite acolhedora” de Thomas, transforma-se em
“noite escura”, a partir da criação antuniana. Julgamos oportuno trazer, também,
algumas considerações sobre o escritor Dylan Thomas, seu poema e, por aspectos em
comum, traçar um possível paralelo entre o escritor galês e o ficcionista português
António Lobo Antunes e seu romance denominado poema.
Dylan Marlais Thomas nasceu ao sul do País de Gales Swansea, em 27 de
outubro de 1914. Morreu em 1953, em Nova York, provavelmente em razão da mistura
de cortisona medicamento, na época, de efeito ainda pouco conhecido e álcool, que
ele bebia em doses inimagináveis. Acrescenta-se a isso a constante falta de dinheiro
agravada principalmente após o casamento com Caitlin Macnamra e o nascimento de
24
Op. cit. 2000, p. 201.
25
Do not go gently into that night “Não entres nessa noite acolhedora com doçura”. Trad. Ivan
Junqueira In: op.cit. THOMAS, 1991, p.p.134-135.
três filhos, o que contribuiu de forma decisiva para a degradão e morte de Dylan
Thomas.
Procedente de uma família de vertente rural, composta de fazendeiros de Gales
do Sul, dos condados ocidentais de Carmathen e Cardigan e do norte e oeste de
Swansea, teve em seu pai, D.J. Thomas - que, quando jovem, ambicionava ser poeta,
mas terminou professor de inglês - a mais forte e fecunda influência a propósito de sua
vida, inclusive o hábito de beber imoderadamente desde menino. Dylan Thomas cresceu
em uma casa que possuía uma vasta biblioteca, o que torna possível dizer que sua
infância transcorreu entre livros, muitos dos quais o pai costumava ler para ele. Aos
quatro anos aprendeu os versos de Shakespeare e trechos da Bíblia. Assim, compreende-
se a forte depressão que acometeu Dylan Thomas na ocasião da morte de seu pai, a que
ele sobreviveu por apenas um ano. A identificação, a convivência e o amor eram por
demais intensos para que a lacuna da perda pudesse apagar “docemente” a figura
daquele que tanto representava para a vida de Thomas.
O poeta de língua inglesa teve sua curta vida marcada por uma existência
conturbada, ditada pela falta de limite que ele não se permitia, excedendo-se também no
amor pelas mulheres. Dylan Thomas, que teve sua vida privada vasculhada como
poucos escritores de sua época, não deixou aparecer em suas líricas o uso do álcool,
exceção feita a This bread I break
26
lido na versão original, uma vez que se faz mister
para a devida compreensão a respeito de duas palavras que em língua inglesa, por
possuírem grafia muito parecidas, fizeram com que o poema “Trinta e três” (24 de
dezembro de 1933), ao ser preparado para divulgação em 16 de julho de 1936, no New
English Weehl, tivesse sido publicado com a falha tipográfica que assinalava “vento”
(wind) como “vinho”(wine), (o que, evidentemente, muda a acepção do poema) e que só
26
A esse respeito ver o poema traduzido em Língua portuguesa por: “Parto esse pão”, em Poemas
reunidos, 1991, p.35.
seria corrigida depois de aparecer nas primeiras edições dos Poemas reunidos.
Dylan Thomas, pode-se dizer, foi vítima de tradutores devido a seus
neologismos e à profundidade na linguagem rítmica. Algumas dessas traduções acabam
por perder seu valor ou ganham uma importância diferente pela não fidelidade, uma vez
que não é fácil traduzir o poeta galês e seu valor lingüístico, já que Thomas é tido como
um poeta difícil, “até mesmo para leitores refinados de língua inglesa”.
27
Além da grandiosidade criativa de autor e leitor de poemas, com uma voz
profunda e encantadora, Dylan Thomas foi ainda roteirista de cinema, produtor de
programas radiofônicos e conferencista. Era possível perceber que sua maneira de ser
revelava carência, autodestruição e um indisfarçável egoísmo. Gostava de chamar
atenção e ser visto como “rebelde” e, para que este traço se acentuasse em sua imagem,
vivia intensamente em seus próprios descomedimentos. Apesar de não ter desejado ser
um homem solitário, um poeta isolado ou um desses escritores que demonstram um
certo tipo de recato literário, sua vida assim ficou marcada, exatamente devido a sua
exclusão dos principais movimentos literários do século XX, apesar de não ser
divergente a nada em relação à idéia de uma literatura popular.
Outrossim, as suas inquirições pelos acontecimentos e conjuntura humanas
deslumbraram muitos jovens rebeldes e sonhadores que imitaram a famosa fotografia na
qual Thomas acende um cigarro. Esta foto permaneceu explorada e apontada por muitos
editores como um fato taticamente mal aproveitado e inadequado para a imagem do
poeta galês, exatamente por mostrar mais uma imagem de vício praticado por Thomas e
que não servia para enaltecê-lo.
Detentor de um estilo extraordinariamente pessoal, dedicou-se às palavras e,
27
Ivan Junqueira - Dylan Thomas: Um perfil, in Op. cit, 1991, p.xxxiv.
compulsivamente, desejava penetrar na alma de todas as letras”,
28
imprimindo-lhes
vigor nas imagens e ritmo em uma escrita que se tornou sua marca registrada. Em suas
poesias é possível perceber a densidade, o tom vibrante e impecável e à narratividade
bíblica; nos contos representa-se o lugar de alívio a essas situações, nas quais o amor e a
morte são os dois motivos dominantes à intenção poética.
Sinônimos como negro, sombrio e nebuloso contribuem na formação de
extensos subconjuntos de um conceito, apenas para dar diferentes tons ao mesmo
pretexto e pontos de vista e sentimentos desiguais a cada palavra. A escrita thomasiana
é riquíssima em metáforas, cujo âmbito abrange os sentimentos e acontecimentos como:
o nascimento, a morte, o amor e a infância, “temas que adquirem em sua linguagem um
denso e misterioso sentido de sacralidade”.
29
Isto posto, citamos o poema que, ao que tudo indica, foi escrito como despedida
e homenagem de Thomas para seu pai.
DO NOT GO GENTLE INTO THAT GOOD NIGHT
Do not go gentle into that good night,
Old age should burn and rave at close of day;
Rage, rage against the dying of the light.
Though wise men at their end know dark is right,
Because their words had forked no lightning they
Do not go gentle into that good night.
Good men, the last wave by, crying how bright
Their frail deeds might have danced in a green bay,
Rage, rage against the dying of the light.
28
Expressão usada por Maria Amélia Melo, na “orelha” do livro Poemas reunidos.
29
Op. Cit.1991, p.xxxiv.
Wild men who caught and sang the sun in flight,
And learn, too late, they grieved it on its way,
Do not go gentle into that good night.
Grave men, near death, who see with blinding sight
Blind eyes could blaze like meteors and be gay,
Rage, rage against the dying of the light.
And you, my father, there on the sad height,
Curse, bless, me now with your fierce tears, I pray.
Do not go gentle into that good night.
Rage, rage against the dying of the light.
30
Segundo Ivan Junqueira, tradutor do livro Poemas reunidos,
31
a origem do
poema pode ser o ano de 1945 e o mesmo não foi escrito rapidamente, uma vez que o
30
captured on line in www.poesia.net. em 16/01/07. A Tradução, abaixo, é de Ivan Junqueira in Op. cit
1991, p.134-135.
Não entres nessa noite acolhedora com doçura
Não entres nessa noite acolhedora com doçura,
Pois a velhice deveria arder e deslizar ao fim do dia;
Odeia, odeia a luz cujo esplendor já não fulgura.
Embora os sábios, ao morrer, saibam que a treva lhes perdura,
Porque suas palavras não garfaram a centelha esguia,
Eles não entram nessa noite acolhedora com doçura.
Os bons que, após o último aceno, choram pela alvura,
Com que seus frágeis atos bailariam numa verde baía.
Odeiam, odeiam a luz cujo esplendor já não fulgura.
Os loucos que abraçaram e louvaram o sol na etérea altura,
E aprendem, tarde demais, como o afligiram em sua travessia,
Não entram nessa noite acolhedora com doçura.
Os graves, em seu fim, ao ver com um olhar que os transfigura,
Quanto a retina cega, qual fugaz meteoro, se alegraria,
Odeiam, odeiam a luz cujo esplendor já não fulgura.
E a ti, meu pai, te imploro agora, lá na cúpula obscura,
Que me abençoes e maldigas com a tua lágrima bravia.
Não entres nessa noite acolhedora com doçura,
Odeia, odeia a luz cujo esplendor já não fulgura.
31
Op. Cit. 1991.
escritor galês não o apresentou com euforia em suas cartas, colocando-o à apreciação
dos editores da Botteghe Oscure, em 28 de março de 1951, mesma data em que
escreveu a Vernon Watkins: “Meu pai está terrivelmente mal esses dias, com problemas
cardíacos e dores difusas e o mundo que foi outrora cor de breu para ele torna-se agora
o mais negro dos lugares”.
32
Dylan Thomas acrescentou ainda o seguinte comentário ao
editor: “acabo de concluir o poema curto que segue anexo”,
33
e no post scriptum: “A
única pessoa a quem não posso mostrar o pequeno poema anexo é, naturalmente, meu
pai, que não sabe que está morrendo”. Diante desta explicação, nos reportamos à
imagem que conduz ao entendimento do verso “luz cujo esplendor já não fulgura”. Luz
da vida do pai a quem Thomas tanto amava e que percebe estar lentamente sendo
abandonada para adentrar na “noite acolhedora com doçura”. Acolhedora para aqueles
que querem ou imaginam que serão “recebidos” ou “existirão”, em uma outra esfera de
melhor maneira daquela vivida em uma existência terrena, quando a misteriosa e
inevitável morte acontece. Mas, o entendemos também como mensagem filial e poética
de Thomas, que o derradeiro momento não deve ser aceito facilmente e com “doçura”
por aquele que se encontra na iminência da partida, ou seja, há que se relutar com
indômito sentimento, tanto para a satisfação dos que ficam, quanto para os que partem,
principalmente em se tratando de um homem agnóstico por natureza, uma vez que
Dylan Thomas, ao recitar o poema em epígrafe na Universidade de Utah, disse, na
época, a respeito de seu pai:
(...) fora um militante ateísta, mas cujo ateísmo nada tinha a ver com o
fato de Deus existir ou não, e sim com uma violenta antipatia pessoal por
Deus. Ele era capaz de ser ofuscado pela luz da janela e rosnar: ”Está
chovendo, maldito seja Ele” ou “O sol está brilhando Senhor, que
estupidez!” Ele ficou cego e muito doente antes de morrer. Tinha lá pelos
oitenta anos, e permaneceu meigo e afável até o fim. Thomas não o
quisera modificar.
34
32
Letters, p.548 poema publicado em Botteghe Oscure, em novembro de 1951.
33
Letters, p.800.
34
Op. cit. 1991, p.161. (itálicos nossos)
Ao destacarmos a última frase do recorte acima, objetivamos assinalar que
Dylan Thomas, mesmo sendo conhecedor do traço descrente de seu pai em Deus, assim
o aceitava e não se deixou abalar nem se influenciar pelo comportamento paterno. Tal
fato também não impediu que o poeta galês imprimisse em sua escrita aquilo que, para
ele, era a consciência da importância de uma linguagem bíblica cuja finalidade consistia
na reinterpretação da linguagem divina e de onde “emerge a religiosidade que domina
boa parte de sua produção poética”.
35
É Dylan Thomas quem fala: “Tudo o que usei da
Bíblia em minha obra vem de minhas recordações da infância, e é propriedade comum
de todos os que foram educados nas comunidades que falavam o inglês”.
36
Assim, após essa breve incursão pela biografia e pelo poema de Dylan Thomas,
passamos a observar António Lobo Antunes, Não entres tão depressa nessa noite
escura, o romance-poema e traços pertinentes aos dois ficcionistas.
António Lobo Antunes (0l/09/1942), é natural de Benfica, Lisboa. Proveniente
de uma família da grande burguesia portuguesa, cresceu rodeado por livros de literatura
estrangeira de consagrados escritores que o encantaram, sobretudo na adolescência, tais
como: Céline, Hemingway, Sartre, Camus, Malraux, Júlio Verne e Emílio Salgari; mais
tarde a descoberta foi de Simenon e, posteriormente, dos russos Tolstoi e Tchekov, além
dos norte-americanos: Faulkner, Scott Fitzgerald e Thomas Wolf. Estudou medicina,
especializando-se em psiquiatria, por achar semelhança com a literatura, pela
Universidade de Lisboa. Parte de sua experiência clínica, como tenente e médico do
exército português, foi praticada em Angola entre 1970 e 1973 durante a fase final da
Guerra Colonial, o que marcou intensamente os seus três primeiros romances.
37
No
regresso a Portugal, trabalhou no hospital psiquiátrico Miguel Bombarda, em Lisboa.
35
Idem, ibidem, p.xxxv
36
Idem, ibidem.
37
Entenda-se por: Memória de elefante (1979), Os cus de Judas (1979) e Conhecimento do inferno
(1981).
Vive atualmente em Lisboa, mas não exerce mais a profissão de médico, dedicando-se,
a partir de 1985, quase que exclusivamente à arte da escrita, tendo publicado quase 30
livros até a atualidade.
38
Para uma melhor compreensão do conjunto evolutivo da obra
de Lobo Antunes, recorremos as palavras do próprio escritor que diz:
Os livros que escrevi agrupam-se em três ciclos. Um primeiro, de
aprendizagem, com Memória de Elefante, Os cus de Judas e
Conhecimento do Inferno; um segundo, das epopéias, com Explicação
dos Pássaros, Fado Alexandrino, Auto dos Danados e As Naus, em que o
país é o personagem principal; e agora, o terceiro, Tratado das Paixões
da Alma, A Ordem Natural das Coisas e A Morte de Carlos Gardel, uma
mistura dos dois ciclos anteriores, e a que eu chamaria a Trilogia de
Benfica.
39
É fundamental destacar que passados treze anos da época da entrevista, a
produção literária (quase compulsiva) do escritor prosseguiu em constante
desenvolvimento em que novos títulos surgiram. Dentre eles, está Não entres tão
depressa nessa noite escura. O montante de sua obra e o distanciamento temporal
permite observar, na escrita romanesca de Lobo Antunes, a tematização recorrente a
uma acentuada inscrição pessoal de cariz autobiográfica na relação subjetiva com os
outros e o mundo. O que justifica, freqüentemente, o mote da infância, da família, da
aprendizagem, das experiências profissionais e daquelas vividas em aspectos
circunstanciais perfeitamente identificados em um tempo histórico existido. E, ainda,
um universo que vai de objetos, acontecimentos e pessoas que o narrador consegue
descrever com exatidão de configuração e, simultaneamente, manter o distanciamento
necessário, ao descentramento do sujeito imerso em solidão no questionamento
existencial com diálogos e discursos de ordem interna que conferem a dimensão do
conflito dos valores existentes no universo do narrador.
38
Ver a relação de obras no anexo 4.
39
Entrevista a Rodrigues Silva, em 1994, p.17. Appud REIS.Carlos. António Lobo Antunes: uma casa de
onde se vê o rio. In: A escrita e o mundo em António Lobo Antunes.Actas do Congresso Internacional da
Universidade de Évora. (orgs) CABRAL. Eunice, JORGE. Carlos J.F., ZURBACK. Cristiane. Lisboa:
Dom Quixote, 2003.
O escritor português começou seu percurso como romancista utilizando o
material psíquico que tinha marcado toda uma geração, ou seja, os enredos das crises
conjugais, as contradições revolucionárias de uma burguesia empolgada ou agredida
pelo 25 de abril, os traumas profundos da guerra colonial e o regresso dos colonizadores
à pátria originária. Este fato permitiu-lhe, de imediato, obter reconhecimento junto aos
leitores, o que, no entanto, não foi suficientemente acompanhado pela crítica. As
desconfianças em relação a um estranho que surgia no meio literário, a pouca adesão a
um estilo excessivo e o próprio sucesso de público contribuíram para alguns
desentendimentos persistentes que começaram a se desvanecer com a repercussão
internacional, particularmente na França, que a obra de Lobo Antunes obteve.
Ultrapassadas estas duplas e dúbias interpretações, Lobo Antunes tornou-se um dos
escritores portugueses mais lidos, vendidos e traduzidos em todo o mundo. Pouco a
pouco, a sua escrita concentrou-se, ganhou espessura e eficácia narrativa. De um modo
impiedoso e obstinado, podemos dizer que sua obra traça um dos quadros mais
exaustivos e sociologicamente pertinentes de Portugal do século XX, e seus últimos
romances já são melhores recebidos pela crítica, marcando definitivamente a ficção
portuguesa dos últimos anos.
Desse modo, ressaltamos que esse autor extraordinário que nos conduz à
reflexão de “como o escritor criativo consegue em nós os efeitos emocionais
provocados por suas criações”,
40
permite observar, entre outros aspectos em Não entres
tão depressa nessa noite escura, um discurso lírico subjetivamente inserido na
narrativa, que há que ser procurado de forma minuciosa e atenta. Acreditamos que tal
fato se dá, e insistimos nessa busca, em decorrência de identificarmos esse traço
poético, ainda que de forma camuflada, em algumas obras literárias do escritor, como
40
FREUD. Sigmund. Escritores criativos e devaneios. Volume IX. Trad. Maria Aparecida Moraes Rego.
Rio de Janeiro: Imago Editora, [s/d], p. 157.
resultado daquilo que o próprio Lobo Antunes sente ao afirmar: “...escrevo romances
porque não tenho talento para fazer poemas”.
41
Isto posto, e partindo da proposição acima, indagamos: Por que um romance
intitulado poema? Poderíamos dizer que como traço típico aos poetas (e Lobo Antunes
em nossa opinião é um deles), existe sempre a posição do papel que a esses artesões da
palavra é destinado. Gerando, assim, em forma de romance ou poema, o resultado das
indagações e desconforto existencial a eles reservado que há de permanecer na
subjetividade das palavras de Octávio Paz, ao dizer que poesia é:
... súplica ao vazio, diálogo com a ausência, é alimentada pelo tédio, pela
angústia e pelo desespero (...) em seu seio resolvem-se todos os conflitos
objetivos e o homem adquire, afinal, a consciência de ser algo mais que
passagem.
42
É esse tênue traço do pulsar poético que identificamos na escrita do autor de
Não entres tão depressa nessa noite escura e que, no nosso entendimento, apresenta os
elementos assinalados por Paz, mesclados às suas observações e vivências ocorridas,
muitas vezes, em cenários reais que as personagens transpõem para a ficção. O texto
evoca e provoca, portanto, o real, denotando princípios de verossimilhança da realidade
e da ficção na cena social. Assim, Lobo Antunes escreve romances de ampla
abrangência na tradução dos sentimentos humanos e, tal como os poetas, cunha sua
indelével marca no mundo.
Conjecturamos, ainda, três hipóteses para definir o subtítulo poema adicionado
ao romance Não entres tão depressa nessa noite escura. Primeiro: por “fidelidade” à
apropriação do verso de Thomas; segundo, pelo desejo confesso do escritor português
de fazer poemas e, terceiro, por ser o próprio Lobo Antunes quem destaca ter o romance
essas características, conforme se lê em: “Chamei poema ao romance com o mesmo
41
Jornal de Letras, Artes e Idéias de Lisboa outubro/2000.
42
PAZ. Octávio. O Arco e a Lira. Trad. Olga Savary. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1982, p.15.
espírito com que o Gogol chamou poema às Almas Mortas. É também pela estrutura do
livro, pela sua natureza e pelo trabalho com a língua”.
43
Lembramos que a literatura
contemporânea acata a diluição dos gêneros literários e que o romance, como um gênero
híbrido, permite que várias outras formas nele se manifestem.
Neste ponto, julgamos oportuno acrescentar, ainda, que a abordagem que
procuramos fazer de Dylan Thomas e António Lobo Antunes, traz como escopo
delinear um paralelo entre os pontos convergentes percebidos nos dois autores que,
tidos como rebeldes, diferentes e de personalidades marcadamente determinadas, além
das aproximações temáticas percebíveis em suas respectivas obras literárias, faz com
que a identificação do ficcionista português para com o poeta galês ocorra naturalmente
e resulte no romance poema: Não entres tão depressa nessa noite escura, que traz em
seu título a vinculação do verso “não entres tão depressa nessa noite acolhedora com
doçura”.
Acreditamos que tal artimanha se torna possível devido à habilidade na escrita
ficcional do escritor português para desenvolver aquilo que sabiamente soube captar
como enredo para o extenso romance e que terminou por espelhar não somente a
perspectiva inicial percebida no poema de Thomas - oriunda de um momento de perda e
dor -, mas, também, todo um ambiente de descentralização e conflitos pertinentes ao
sujeito contemporâneo. O que pode ser percebido, ainda, como um diálogo intertextual
do romance com aquilo que o poema simboliza. Outrossim, podemos acrescentar que os
textos literários, tanto o de Thomas quanto o de Lobo Antunes, terminam por se
aproximar devido a ambos constituírem-se como um exercício de linguagem em torno
da morte e da solidão e, também, por privilegiarem o mundo inteligível em detrimento
do sensível, o que constitui uma outra analogia com a reminiscência platônica.
43
Jornal de Letras, Artes e Idéias de Lisboa outubro/ 2000. Julgamos oportuno acrescentar que Nicolai
Vassilievitch Gogol, escritor ucraniano nascido no início do século XIX, foi o iniciador da moderna
literatura russa e sua obra mais famosa Almas Mortas, surgiu a partir de idéias do poeta russo Puchkin.
O ficcionista português faz, assim, com que o círculo se feche: do título tomado
como empréstimo; do enredo que revela as inquietações típicas dos Homens conscientes
das angústias que envolvem a existência e, simultaneamente, retomam sua origem; ao
tributo à vida e à maneira de sentir o mundo daquele que precocemente morreu aos
trinta e nove anos e, direta ou indiretamente, teve que parar. Pois, como nos diz Maurice
Blanchot:
Cada cidadão tem, por assim dizer, direito à morte: a morte não é sua
condenação, é a essência do seu direito; ele não é suprimido como
culpado, mas necessita da morte para se afirmar cidadão, e é no
desaparecimento da morte que a liberdade o faz nascer.
44
Do mesmo modo, entendemos que, se para uns a morte se faz necessária, para
outros, ela, ou estar no caminho dela, significa fonte de inspiração e introspecção para
argüir o sentido de estar no mundo. É sabido por todos que António Lobo Antunes, ao
ser designado para o combate na guerra colonial angolana e por lá permanecendo por
vinte e sete meses, fez dessa experiência, decisiva e marcante em sua vida particular e
literária, o principal manancial para seus enredos.
Na existência de Dylan Thomas, observa-se uma experiência atípica. Enquanto
na cena real ou fictícia, é quase unânime o não desejo dos homens em irem para o
combate no front, com o poeta galês ocorre o contrário. Sob forte influência de James
Joyce, no início da segunda guerra mundial, Thomas apresenta Retrato do artista
quando jovem cão para ser publicado e de tudo faz para ser convocado para a guerra. O
que não ocorre devido aos seus problemas de saúde e ele fica, então, decepcionado, pois
alguns de seus amigos já haviam sido convocados e ele não, o que faz com que ele se
sinta e permaneça meio que alijado do contexto bélico. Assim, indagamos: Não seria
essa vontade de Thomas um desejo secreto de morrer e fazer jus às palavras de
44
BLANCHOT. Maurice. A parte do fogo. Trad. Ana Maria Scherer. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.
Blanchot? Nessa aura de proposição, retomamos a figura do retornado anônimo
45
de Os
cus de Judas
46
que nos revela exatamente a face de um jovem que, impelido para a
guerra sem opção de escolha, ao voltar não se reconhece mais no contexto de sua
própria vida e da sociedade lisboeta após o experimento do combate e encontra refúgio
na bebida, passando a ter uma existência nebulosa, em “... um túnel onde se penetra
mugindo a dor antiga que se não consegue sarar, antiga como a morte que dentro de nós
cresce, desde a infância, o seu musgo pegajoso de febre...”.
47
Poderíamos, então, em
digressão, tomar como empréstimo, literalmente, o título “jovem cão”, aludido por
Thomas para designar tanto seu criador como a figura do retornado anônimo da guerra
colonial, para um possível entendimento dos efeitos da guerra no contexto existencial. E
mais, se a experiência da guerra passa a ser a matéria-prima essencial para os primeiros
enredos antunianos, em Dylan Thomas o período passa a ser de esfriamento poético e
efervescência cinematográfica, iniciando a carreira de roteirista de cinema.
Dessa maneira, só nos resta acrescentar que tanto para Dylan Thomas como para
Lobo Antunes a existência ou o experimento da guerra serviu de mote para a criação,
independente do segmento adotado. Ambos vestiram-se com a farda da inspiração e
fizeram da palavra a arma principal para o combate às situações que surgiam para
estraçalhar, mas que, sinuosamente, os fortaleciam para as dificuldades presentes, assim
como para as vindouras, em sua melhor forma criativa.
Assim, é com um feeling especial e a imagem recorrente da noite que Lobo
Antunes nos convida a percorrer os caminhos pelos quais hesitamos passar, por temor
ou falsa idéia de imortalidade. Leva-nos, também, à procura da elucidação e do
encontro da “eterna noite sem fim”, que poderíamos ler como o mistério e o negrume
45
A esse respeito ver AMORIM, Claudia. A razão cética na era da atrocidade. O Marrare, ano 2, no. 3,
outubro/2002, EdUERJ, Rio de Janeiro
46
ANTUNES, António Lobo. Os cus de Judas. Lisboa: Ed. Marco Zero, 1984.
47
Idem, Ibidem p.64.
que a morte encerra, morte esta que tanto pode ser emocional ou física, de acordo com
o contexto em que o sujeito esteja inserido em busca da identidade que lhe foi moldada.
Aponta, ainda, para o processo de revisitar as noites escuras da memória pela caverna
do inconsciente, afim de melhor entender e conviver com a própria existência. Qual
poeta não fez das indagações perdidas, no eco da memória, mola propulsora para gerir a
própria vida revestida do breu da caverna acolhedora daquilo que não se sabe? Se a luz
ofusca, a busca por ela origina dor, dor que traz o passado e o desconhecido e, ainda,
aquilo que se quis ou imaginou vivido como poder criador de se fazer à imagem e
semelhança “Dele”. Mas, “Ele” como imagem do perfeito, daquele que vivenciou no
plano terrestre toda sorte de provações, recebeu, como júbilo pelo ato de bravura e
desprendimento, as benesses celestiais. Na via contrária a esse fato, aos poetas o que
resta é percorrer o túnel escuro da história, adentrar na caverna mais escura da origem
que também não se escolheu e nem se sabia, tentar transmutar, em palavras ou frases
fragmentadas, os profundos túneis da construção histórica, pessoal e coletiva em que
cada um se encontra inserido.
Dor e inquietação fazem parte desse processo. A tentativa de criação de outro
Gênesis, diferente daquele da criação do mundo na raiz judaico-cristã, com o propósito
de construir uma história própria, ainda que seja necessário reinventá-la, é tarefa
destinada a poetas em Portugal ou em Gales,
48
uma vez que, sendo a poesia universal,
aqueles que nessa noite subjetiva das palavras se aventuram percorrer é que podem
traduzir as diversas noites escuras silenciadas em cada indivíduo.
48
Conforme explicado anteriormente a respeito do título do romance-poema, fazemos aqui uma alusão ao
poeta galês Dylan Thomas.
2.1. A REFLEXÃO EM TORNO DO VIÉS LÍRICO NA NARRATIVA DE
ANTÓNIO LOBO ANTUNES
Escrever poesia, no mundo actual,
é uma forma de conservar
o que, em cada dia, vamos perdendo:
o ser no tempo, a identidade do eu na dissolução
do sujeito devorado pelo movimento do mundo.
49
Nuno Júdice
No lastro dos diálogos possíveis, acreditamos ser plausível desenvolver uma
reflexão em torno do viés lírico na narrativa de António Lobo Antunes. No entanto, por
ser o universo ficcional do escritor bastante amplo, nos deteremos especificamente em
fragmentos de Não entres tão depressa nessa noite escura, obra que, em nosso
entendimento, torna possível extrair, inclusive, “recados poéticos”, que proporcionam
vislumbrar o viés lírico que identificamos no ficcionista português. Assim sendo,
começamos por assinalar que António Lobo Antunes nos convida a interagir com seu
texto, de modo a completarmos as lacunas por ele deixadas em suas muitas suspensões
frásicas, interrupções de palavras e recados subjetivos. Nas diversas leituras que daí
podem ser depreendidas, é preciso dedicar um trabalho de garimpeiro e buscar de forma
artesanal - a mesma com que o autor elabora sua obra em mais de dez horas de faina
diária em que cada palavra é trabalhada de forma única, mas não possui um sentido
acabado aquilo que, para vir à tona, precisa ser descoberto em meio ao incompleto.Tal
incompletude é revelada pelo autor como aquela que, tardiamente, “recebemos da vida,
é um conhecimento dela que chega demasiado tarde. Por isso não existem nas minhas
49
JÚDICE. Nuno. As máscaras do poema.Lisboa: Aríon Publicações, 1998.
obras sentidos exclusivos nem conclusões definidas: são, somente, símbolos materiais
de ilusões fantásticas, a racionalidade truncada que é a nossa”.
50
É, pois desse modo, que nos debruçamos sobre o mosaico de falas a serem
interpretadas e dos espaços a serem preenchidos na instância narrativa de Não entres tão
depressa nessa noite escura e encontramos “uma reflexão em torno do viés lírico na
narrativa de António Lobo Antunes”. Esta busca tem sido por nós observada desde um
estudo feito em 2002
51
a propósito da obra literária Os cus de Judas, em que
procuramos abordar tal possibilidade, em meio ao processo de transformação por que
passa o retornado anônimo após o experimento da guerra, estabelecendo uma análise
que se subdividiu em três partes: em Absurdo, discutimos a representação da guerra
colonial; em Náusea, a partir de um viés existencialista, analisamos a inserção do
sujeito nesse contexto e em Delicadeza, buscamos, por fim, identificar a presença de um
discurso lírico que problematizasse os elementos anteriores, evidenciando suas
contradições. Em Os cus de Judas, em meio ao caos e à desagregação da guerra
colonial, recuperados pela memória do sujeito, deparamo-nos com “recados líricos”
subjetivamente inseridos na narrativa. Desde então, observar o viés lírico na obra de
António Lobo Antunes, tem sido nossa hipótese de pesquisa, que, agora, pretendemos
comprovar de maneira mais ambiciosa. Para isso, não inadvertidamente, escolhemos
Não entres tão depressa nessa noite escura. Romance em que aspectos como os
relacionados à África, à exploração colonial e à nacionalidade, cederam lugar à
liberdade de escolha da personagem para criar e recriar mundos e situações favoráveis e
traumáticas. Outrossim, lembramos que as considerações, aqui tecidas, são em
50
Prosódia do texto de ficção. As palavras em vaga, in: op. cit. SEIXO, 2002, p. 526.
51
A esse respeito ver SANTOS. Sueli Alves. “Uma leitura de retorno e poética em Os cus de Judas, de
António Lobo Antunes”. CD-ROM do XX Encontro de Professores Brasileiros de Literatura Portuguesa
No Limite dos Sentidos”. Instituto de Letras da UFF, 23 a 26 de agosto de 2005.
continuidade àquelas já estabelecidas no capítulo anterior, as quais já indicam a forte
presença de traços líricos no autor português.
Os sonhos, as ilusões, a quebra das certezas, o abandono interno, o encontro da
noite encerrada em cada indivíduo e a ruptura de características tradicionalmente
encontradas em personagens de outros romancistas são aspectos que, naturalmente,
poderiam causar estranheza aos leitores acostumados com uma lógica discursiva e
espírito cartesiano. Buscar e encontrar o “prazer do texto
52
requer do leitor um
possível desprendimento de conceitos pré-estabelecidos para descobrir os prováveis
significados ocultos nas malhas do enredo. Este procedimento se materializa na
narrativa de António Lobo Antunes a partir do aviso do próprio escritor, a indicar a
necessidade de convalescença do leitor após a leitura de seu romance, conforme
observamos no seguinte recorte:
Caminhem pelas minhas páginas como num sonho porque é nesse sonho,
nas suas claridades e nas suas sombras, que se irão achando os
significados do romance, numa intensidade que corresponderá aos vossos
instintos de claridade e às sombras da vossa pré-história. E uma vez
acabada a viagem e fechado o livro convalesça.
53
Essa convalescença estaria intimamente ligada à recuperação de uma “doença”
adquirida não ao ler o livro, mas sim, durante o processo de apreendê-lo. É Lobo
Antunes quem convocamos novamente para esclarecer: “meus livros não são para serem
lidos no sentido em que usualmente se chama ler: a única forma parece-me de abordar
os romances que escrevo é apanhá-los do mesmo modo que se apanha uma doença”.
54
Assim, acometidos por essa “doença”, seguimos avizinhando-nos de alguns
aspectos líricos possíveis de serem depreendidos em Não entres tão depressa nessa
noite escura, o que também é observado por Maria Alzira Seixo, ao definir diversas
52
BARTHES, Roland. O Prazer do Texto. São Paulo: Perspectiva, 1977.
53
LOBO ANTUNES, António. “Receita para me lerem”. Separata.
54
Idem, ibidem.
nuances no romance que podem configurar, na escrita, a “inigualável qualidade lírica”
55
que atribuímos ao escritor português. É a professora quem fala: “...as cadências
capitulares recolhem um sentido incisivo, às vezes vagamente aforístico, mas
predominantemente de tipo elegíaco, marcando a emergência também episódica do
modo lírico.
56
Diz ainda a estudiosa: “esta noção de tempo e de intervalo (...) cria
muito provavelmente este clima lírico ou poemático que com alguma plausibilidade
poderemos ligar a este romance”.
57
Assim, procuramos também, com “alguma
plausibilidade” e amparados por esse embasamento teórico, buscar os aspectos que
julgamos pertinentes para que nossa hipótese de trabalho se consolide.
Desse modo, portanto, há que se destacar no romance, ora estudado, alguns
aspectos comumente utilizados e identificados no gênero lírico que são: a repetição, a
parataxe, imagens subjetivas e a unidade entre a significação das palavras e sua
musicalidade. Além desses aspectos, assinalamos que a coesão temática em relação ao
drama do indivíduo em um ambiente hostil repleto de angústia existencial em função
dos projetos fracassados, a frustração, devido à falta de escolha, a impossibilidade de
amar, a solidão, a doença e a morte, acrescidas do desencontro das relações pessoais, se
tornam ingredientes suficientes para que o romance asile um caráter lírico.
Nessa perspectiva há que se considerar a presença, no texto, desse viés lírico
responsável por apresentar aspectos que conduzem à reflexão daquilo que pode ser lido
além de simples manifestações do lirismo em um romance de ficção, mas também,
como um espelho a refletir parte da existência humana por demasiado sofrida, cujos
conflitos ali são representados por Maria Clara e nas muitas vozes a ecoar na caverna
encerrada em cada indivíduo. Este pensamento certamente encontra ressonância nas
palavras de Lobo Antunes, ao assinalar:
55
SEIXO, 2000, p.417.
56
Idem, ibidem.
57
Idem, ibidem, p.418.
Exijo que o leitor tenha uma voz entre as vozes do romance ou poema,
ou visão, ou outro nome que lhes apeteça dar a fim de poder ter assento
no meio dos demônios e dos anjos da terra (...) o livro ideal seria aquele
em que todas as páginas fossem espelhos: reflectem-me a mim e ao
leitor, até nenhum de nós saber qual dos dois somos. Tento que cada um
seja ambos e regressemos desses espelhos como quem regressa da
caverna do que era.
58
Dessa maneira, ao acompanharmos Maria Clara em sua incursão ao sótão,
terminamos por estabelecer uma caverna que abriga os ideais propostos por Lobo
Antunes, e, a voz que ouvimos é a que encerra aquela ouvida há tempos ao
perseguirmos a reflexão acerca da existência do viés lírico na narrativa do romancista
português. Outrossim, procuramos isolar, em Não entres tão depressa nessa noite
escura, traços líricos e, nessa probabilidade, poderíamos até denominar a obra de
‘romance lírico’, uma vez que o romance possui alguns aspectos, aí embutidos, que
justificariam tal afirmação, mas se assim não o fazemos, categoricamente, é por
esbarrarmos na questão da fronteira do gênero lírico na perspectiva da narrativa
contemporânea. Assim sendo, tomamos como empréstimo algumas considerações
tecidas por Rosa Maria Goulart, em seu excelente livro intitulado Romance Lírico O
percurso de Virgílio Ferreira
59
e nele encontramos subsídios satisfatórios para
determinadas considerações por nós aqui tecidas. Desse modo, recortamos as palavras
de Ralph Freedman
60
que ressalta, na obra supra citada, não ser o romance lírico
essencialmente definido por um ‘estilo poético’ ou por uma ‘prosa refinada’, assim
como:
58
LOBO ANTUNES, António. “Receita para me lerem”. Separata.
59
Op. cit.1990.
60
FREEDMAN, Ralph. Apud GOULART(1990). p.31.
The Lyric novel
Every Novel may rise to such heights of language or contain passages
that contract the world into imagery. Rather, a lyric novel assumes a
unique form wich trancends the causal and temporal movement of
narrative within the framework of fiction. It is a hybrid genre that uses
the novel to approach the function of poem.
61
Desse modo, portanto, se Freedman nos fala que a elocução ou o estilo poético
são importantes na construção do romance lírico, mesmo que não funcionem como
fatores determinantes para isso, poderíamos dizer que a obra por nós trazida a estudo é
pontuada por essas características. Essa forma única, usada para aproximar a função do
poema na narrativa, seria o ponto em que poderíamos fazer àquela afirmação deixada
em suspenso, mas preferimos nos deter por aqui, uma vez que ao esbarramos na questão
do gênero, o encontramos tendo sido considerado “um problema desde Platão até a
atualidade.
62
Assim, prosseguimos em nossas considerações nos restringindo a afirmar
a existência de um viés lírico e não um romance lírico propriamente dito, por mais que
as evidências o caracterizem como tal, pois “para questionarmos o romance do nosso
tempo, teremos de questionar o tempo do nosso romance”.
63
Nessa perspectiva, devemos ressaltar que não é por nós olvidada a diferença
entre a linguagem poética - que se constitui pelas características formais de um texto
que são o verso, a estrofe, a rima e a métrica , e a prosa - que tende a manifestar-se
como uma linguagem verbal de construção aberta - e, para tanto, transcrevemos o que
nos diz Maria Alzira Seixo a esse respeito:
61
A tradução é nossa. O romance lírico. Todo romance permite desenvolvimento semelhante no ponto
culminante da linguagem ou contém passagens combinadas de imagens do mundo. Preferencialmente, um
romance lírico adota a forma única que supera o movimento casual e leigo da narrativa dentro da estrutura
da ficção. Ela é um gênero híbrido que o romance usa para aproximar a função do poema.
62
SILVA, Vítor Manuel de Aguiar e. Teoria da Literatura. Coimbra: Livraria Almedina, 1988, p. 339.
63
FERREIRA. Virgílio. O espaço do invisível. Apud: GOULART (1999). p. 50.
A técnica da análise de poesia se desenvolveu na literatura ocidental
sobretudo em função da metrificação do verso, com manifesta
negligência da medida na expressão estética verbal em prosa (com algum
caráter de excepcionalidade para a sermonária do período barroco, dado
o seu caráter prioritariamente declamatório, e só ‘a posteriori’
considerado como publicação em prosa).
64
Assim, preferimos não ficar aprisionados às muitas definições histórico-literárias
para o gênero lírico. Optamos por esquadrinhar uma outra visão para essas práticas, de
acordo com a lógica que vimos desenvolvendo e, ainda, pelo que nos diz Nuno Júdice
65
, no seguinte fragmento:
Ao dizer a palavra poesia, imediatamente se estabelece uma antinomia
com prosa que, durante séculos, terá servido para a diferenciar como
gênero literário. Pouco importa que a poesia remeta para o estado
fundador da própria linguagem e para o étimo grego poiéw que une dois
significados: fazer e criar. Nessa união coincide o ato criador e a sua
expressão, não havendo a diferenciação entre o mundo real e o mundo
poético, ou literário, que irá separar essas duas categorias: realidade e
poesia.
66
Deste modo, nossa busca se dá exatamente no sentido de não ficarmos atrelados
a um roteiro de literatura clássica e tradicional, procuramos ver o que existe além das
fronteiras da tradição e mostrar a quebra dessa ordem em António Lobo Antunes, já que
“A maneira como lemos relaciona-se com a maneira como vemos, ao menos do ponto
de vista da subjetividade”.
67
Assim, a epígrafe, inserida no início do capítulo, abre o
caminho na interlocução entre o sentir poético, de caráter exclusivamente subjetivo, e a
narrativa, constituída em meio à imagens de descentralização e desarticulação do sujeito
contemporâneo, cujo lenitivo a esse ambiente hostil pode ser a fuga para o poético, uma
vez que o Eu se encontra meio que na dissolução do movimento do mundo.
64
Prosódia do texto de ficção. In: Op. cit. 2002, p. 529.
65
Op. Cit. 1998.
66
Idem, Ibidem, p. 11.
67
HUTCHEON, Linda. Poética do pós-modernismo. História. Teoria. Ficção. Trad.Ricardo Cruz. Rio de
Janeiro: Imago, 1991, p.204.
Essa produção de sentidos admite que vejamos em Não entres tão depressa
nessa noite escura, Maria Clara como aquele ser representativo da oscilação
existencial. Ao apresentar suas estórias pessoais relacionadas à história coletiva - as
quais ela subverte na causalidade e na continuidade daquilo que requer as limitações da
linearidade de suas próprias estórias no contexto narrativo -, mostra a criação de tramas
múltiplas da experiência humana que se ensaiam e diferenciam na leitura e que podem
ser observadas por meio dos quatro planos utilizados, ou seja, redondo reportado,
redondo dialogal, parênteses e itálicos. Deste modo, é no terceiro capítulo que aparece a
primeira interseção em itálico, observada no recorte abaixo, indexando o desejo e a
fantasia, como uma espécie de fuga da realidade do mundo por Maria Clara, que, ao
final do romance, ocupará o lugar do abandono e da partida.
se ao menos houvesse uma forma de sair, apanhar o auto-carro
para casa, esquecer-me, se alguém me mostrasse que tudo isso é mentira
, não pode acontecer, não aconteceu, enganei-me, o meu pai não ficou
doente, o meu pai não está no escritório com os jusgolavos, os árabes, os
pretos a falarem de canhões e espingardas, ao voltar do cinema passei
no corredor e ouvi-os, a minha avó sim, o primo tenente sim, só as
pessoas muito idosas morrem.
68
Assim, podemos dizer que António Lobo Antunes, ao construir a narrativa com
uma personagem autodiegética, abre espaços, por meio dos recursos estilísticos acima
descritos, acrescidos de digressões, comentários e intrusões subjetivas, para que outras
vozes também pontuem o romance e, no conjunto final, seja possível se subtrair uma
leitura lírica na junção das vozes auto e heterodiegéticas. O mundo narrado por Maria
Clara não é o mesmo narrado pelas outras vozes e sua não participação no mundo dos
outros deixa indistinta a fronteira entre o que de fato é real e o que, a partir daí, ela faz
como uma releitura ou, ainda, cria.
68
Op. Cit. 2000, p. 43.
Essa temporalidade na criação indistinta comporta modos diferenciados de
apreensão do real em que fica implícita a relação da personagem principal com os
outros (vozes heterodiegéticas) que a circundam na narrativa. Cabe, entretanto, a Maria
Clara o papel de evidenciar o seu Eu na hegemonia sobre os outros, pois “o mundo
narrado é o mundo do eu, mesmo se os outros lá estão”.
69
Assim, é nessa relação entre o
“eu” e os “outros” que se compreende a linguagem subjetiva, por nós aludida
anteriormente, que fica além da estrutura de superfície da narrativa, permitindo,
inclusive, que se integre à essa imagem a da poética não formulada em concepção
original, concebida como metáfora para relacionar-se com o mundo. Nesse âmbito é
conveniente anotar o que nos diz Goulart:
...as relações eu/mundo objectivam-se numa forma que é lírica sem
chegar a ser poema propriamente dito, mas que pode continuar a dizer-se
romance sem restrições (...) o romance é um gênero francamente aberto à
natural convivência, sem destruir o que o define como gênero, das mais
diversas atitudes e dos mais diferentes recursos técnicos- formais. Lírico
ou não, continuaria a ser romance (...) a lírica tem a ver sobretudo com a
tonalização do todo o romance ou com a criação de uma atmosfera.
70
Assim, guardadas as devidas proporções, a relação desse “eu/mundo”, subjetivo
e poético, pode ser observada, na obra antuniana, (conforme vimos insistindo
veementemente), uma vez que tal articulação evidencia, no romance, o sujeito que narra
recorrendo aos acontecimentos passados e revividos por meio da memória, a tradução
de sua experiência pessoal e ambiencial sem uma forma definida e acabada, porém
intensamente sentida e significativamente descrita para o leitor como experiências
singulares e determinantes no percurso existencial daquele que narra. Nesse contexto,
cria-se o espaço para que a combinação dessa percepção, aliada à reflexão, interaja e,
69
Op. cit. GOULART, 1990, p.32.
70
Idem, Ibidem, p. 32.
daí, resulte a atmosfera em que “a lírica encontra nessa zona de indefinição o lugar
propício ao seu eclodir”.
71
É desse modo que percebemos os recados líricos
72
que nos chegam da escrita de
Lobo Antunes, assim como outros sentidos, outras mensagens, outras vozes distantes e
dissolvidas na dicotomia ver/sentir, vozes “representando a voz da Humanidade e
constituindo uma espécie de sabedoria universal na qual o homem tem de ser iniciado. É
uma voz que resiste à uma voz de superfície, a voz das raízes, vinda de longe, não
pronunciada, escutada apenas lá dentro do homem atento aos murmúrios do mundo”.
73
São essas vozes que, somadas a outras vozes que do romance derivam agrupadas ao
exercício constante da imaginação criadora de Maria Clara, se reproduzem como se
fossem acordes oscilantes de uma musicalidade que daí se desprende e nos faz ouvi-la
em forma de poética reveladora dos “murmúrios do mundo”.
Nessa perspectiva, aproximamos os murmúrios do mundo, quase sempre
revelados por meio da Arte, àquilo que Maria Alzira Seixo fez ao cognominar Não
entres tão depressa nessa noite escura, de “noite transfigurada”. Ao fazê-lo, a estudiosa
estreita a musicalidade defendida por ela no romance, com a opus 4 de Arnold
Schoenberg,
74
que, segundo Seixo, “é considerada na história da música, como um
exemplo igualmente limite do género, insistindo o próprio autor em que se tratava de
música apenas inspirada no correspondente poema de Richard Dehmel”.
75
Acrescentam-
se a isso as considerações de que, no referido poema, a temática perpassa “na
conjugação dramática de afectos repartidos”,
76
em que a junção desses elementos dá
71
Idem, ibidem, p.33.
72
Podemos dizer que esses recados líricos são frases que se insinuam na narrativa, semelhantes a recados
dados a outrem e que revelam a sensibilidade do autor e, aparentemente, não possuem nenhuma relação
lógica com o que está sendo narrado.
73
Op. cit. GOULART, 1990, p. 38. (itálicos no original)
74
Franz Walter Arnold Schoenberg (1874-1951) compositor austríaco, foi um renovador da linguagem
musical do século XX ao criar o método composicional conhecido por do decafonismo.
75
Op. Cit. 2002, p. 422.
76
Idem, ibidem.
relevo às tonalidades graves prolongadas em agudos intensos e em prosseguimento à
narrativa longa e pausada na qual as interrupções e suspensões se relacionam com a
formulação dos acordes naquilo que, de modo incomum, desfaz a harmonia habitual. A
relação, portanto, entre a música de Schöenberg e o romance de Lobo Antunes, pode ser
assim compreendida
Schönberg parte de um patrimônio que encarece, e que é afinal o da
forma-sonata, como António Lobo Antunes parte de uma leitura
formadora e intensa do romance ocidental e da prosa de clássicos e
modernos. Mas em ambos os processos de escrita e o teor geral da
composição nos dão uma visão da arte que é diferente do que é feito até
então, pela sua maneira de organizar, musicalmente ou literariamente, o
texto que escrevem. Em Lobo Antunes, como em Schöenberg, já não se
pretende que a literatura (ou a música) signifique na relação com o real
afectivo, como no poema sinfônico, sobretudo se ele for o real
considerado da literatura (ou da música).
77
A forma diferenciada de apresentar combinação de estilos artísticos diferentes,
na tentativa de traduzir as dores silenciosas do Ser, nos leva a concordar com a
existência de uma musicalidade em Não entres tão depressa nessa noite escura, a qual
se relaciona, de forma também lenta e longa na narrativa, com os “altos e baixos”
desencadeados pelas inúmeras falas tonalizadas, por vezes, na excitação, e por outras,
pela calmaria com que Maria Clara nos dá a perceber seus afetos repartidos. Nessa
conjuntura, transcrevemos, adiante, o poema de Jorge de Sena,
78
no qual o escritor
português faz uma releitura da obra musical de Schöenberg e, por si só, expressa as
idéias aqui formuladas.
77
Idem, ibidem, p. 423.
78
Texto gentilmente, a nós cedido, pela Prof. Dra. Luci Ruas da Universidade Federal do Rio de Janeiro,
na ocasião de nosso exame de qualificação.
Noite transfigurada, de Schöenberg
Como tão tensas cordas
vibram assim, apaixonadamente,
a dor dos gestos que nos arcos vai
e volta em contrapontos tão contínuos
que a tessitura de inconsútil música
é como um mar de luz e sombria
em que se afunda este rigor furioso?
Depois do desespero destas formas puras
que se entregeram sem cessar abrindo-se
em novos horizontes sempre iguais
num repetir-se dos acordes que
se vão do espaço-tempo renovando
no próprio desdobrarem-se em suspensas
pausas de som chorando cataclismos,
sussurros e murmúrios, gritos, e, sem voz,
o cântico dulcíssimo que volta ansioso
depois de tais excessos de ser música
a música que nasce de sentir-se
o próprio ser abstracto de ela ser escrita
que música podia haver?
Tão tensas as arcadas, tão furiosas,
tão grandiosamente este pavor que canta
- que humanidade resta após o dissipar-se
deste sonho de som perpetuado em cordas
vibrando assim frementemente humanas?
Embalados por esse clima poemático, prosseguimos no recolhimento das
“pedras preciosas” que acreditamos existirem no romance-poema Não entres tão
depressa nessa noite escura, as quais lhe conferem um caráter de extrema sensibilidade
e grandeza. Para isso, precisamos voltar a visitar o sótão no qual Maria Clara se
encontra, e lá “folhear seu diário”, pois coadunamos do pensamento de que “A
verdadeira poesia poderá, quando muito, ter um sentido alegórico geral e exercer um
efeito indirecto, como a música. Por isso, a natureza é pura poesia tal como o gabinete
de um mágico, de um físico, um quarto de criança, um sótão assombrado ou um quarto
de arrumos”.
79
79
. BENJAMIM, Walter. Origem do drama trágico alemão. Trad. João Barrento. Lisboa: Assírio &
Alvim 2004. p. 204.
As palavras de Benjamim, portanto, acabam por resumir e expressar aquelas que
gostaríamos fossem nossas. Nesse caminho, com seus respectivos lugares, os tordos, os
freixos e os goivos são outros elementos que ajudam a compor o clima poemático da
narrativa. Assim, Maria Clara, ao esboçar: “... na primavera o cheiro dos canteiros
ajudava-me a adormecer, inclinava-me do peitoril e os goivos, debaixo do pijama,
serenavam-me a pele, sentia-os respirarem doçuras cúmplices, de tempos a tempos uma
cintilação num comprimento ou num ondear de adeus...”,
80
mostra que essas flores
marcam um ritmo poético na narrativa, uma vez que elas comparecem como
sinalizadores da sua sensibilidade, quer seja quando são colhidos por Adelaide para
levá-los ao cemitério no enterro da avó, quer seja quando Luis Felipe os esmaga com a
máquina de aparar grama, ao ter o ataque do coração e, assim, os goivos passam a se
misturarem ao cheiro da vida e da morte, ou, ainda, quando, no final, a família abandona
a casa e os goivos, então, são substituídos por uma árvore de magnólias brancas que
“tombavam na água”. Do mesmo modo, “entende-se porque é que estas flores vão
marcar o ritmo do romance, no plano da ficção e no plano da poética, até o final do
texto”.
81
Os freixos aparecem como marca daquilo que oculta o lado prazeroso da
companhia dos goivos, pois “Quando os freixos se tornaram mais negros e cessei de ver
os goivos e o baloiço tranquei o sótão, escondi as chaves nos papéis da gaveta...”.
82
Tal
atitude indica que Maria Clara prossegue em sua busca - com os sentidos olfativo,
auditivo e visual apurados - ladeada, por flores que lembram a ela “os campos que havia
nas trevas” e, neles, há a mistura de outras fragrâncias que lhe chegam pela memória
olfativa, como o perfume lilás “confundido com o cheiro dos crisântemos, begónias e
80
Op. cit. 2000. p. 38.
81
Op. Cit. .SEIXO (2002). p. 402.
82
Op. cit. 2000. p. 75.
tulipas”,
83
de modo que esses sentidos “preenchem a maioria do universo sensorial do
romance”,
84
o que confirma aquela imagem da musicalidade como metaforização do
viés lírico no romance, já que a música remete inevitavelmente à audição.
Assim sendo, nessa trajetória individual de viagens sensoriais e internas, é com
imagens da natureza, acompanhadas do silêncio na percepção e contemplação desses
elementos, que vão sendo marcadas as lacunas e os vazios do passado. Tais vazios são
preenchidos pela imaginação, recriando o espaço como metáfora pluralizada para falar
de um mundo descentralizado, em que se destaca a excentricidade. Isto pode ser
compreendido como um olhar para o Outro, como um afastamento de si próprio, que é
percebido através do modo lírico de lidar com o mundo, conforme se lê em:
Todos sabemos, que em face de certas paisagens, do mar e da montanha,
de um nascer ou do pôr-do-sol, do momento em que uma grande lua se
levanta, da contemplação de uma flor, de um animal, de uma pedra, a
olhos limpos e disponíveis, nós sentimos um estremecimento íntimo, um
transporte de nós, um indizível encantamento na interrogação que não
ousa, na revelação de uma realidade irreal, oblíqua e misteriosa, que nos
sublima a deslumbrar.
85
A experiência do individual que nos “sublima a deslumbrar” vai para além da
razão, pois a complexidade da subjetividade no texto literário finaliza na crise
identidária. Espera-se que apareça um eu que não surgirá e, assim, será um Outro que
virá. É o estado de inspiração que trará esse Outro, em uma “moradia parada, os freixos
trazendo consigo os bolbos japoneses, o silêncio e um resto de tarde, e no centro do
silêncio, no centro da tarde, no centro da moradia, no centro do murmúrio dos freixos,
etéreo, calado, dos bolbos japoneses, etéreos, calados”.
86
De tal modo, quanto mais se despersonaliza mais se chega ao Outro ou Outros, é
como se o escritor, assumindo o papel de poeta, aceitasse agir sobre a experiência da
subjetividade por intermédio da narradora-personagem, em que a identidade sentimental
83
Idem, ibidem, p.75.
84
Op. cit. 2000. p. 403.
85
FERREIRA, Virgílio. Espaço do invisível IV. Apud: GOULART, 1990, p.54.
86
Op. cit. 2000, p.87.
está em construção. Nessa perspectiva, podemos dizer que Maria Clara finge ser outro
para ser ela mesma, “a sentir não sei quê, a ternura benevolente pelo outro que
fomos”.
87
Cabe colocar, ainda, que esse Outro, em uma singularidade das coisas,
sinaliza para a existência de um sopro emotivo na elevação da palavra ao topo lírico do
romance, aliada à condição de essa palavra se fazer Verbo e habitar o mundo recriado
pela personagem. Assim é que, em Não entres tão depressa nessa noite escura, a
criação poética pode ser associada a esse parâmetro de sopro emotivo necessário em
fazer da palavra o Verbo que é o Outro - para ele habitar o universo de Maria Clara,
recriado, a partir da imagem do Gênesis, (o qual explicaremos adiante) enquanto o mar
me falava [a ela] dúzias de pontinhos incandescentes à superfície da água, a claridade
negra que persiste na ausência da luz e nos torna as feições mais cavadas, mais
tristes...”.
88
Estabelecendo-se, portanto, a vida, cria-se uma imagem contrária a ela: a da
morte. Com ela, surge, dissociado, o medo da morte que transmuta o medo da vida e
marca a questão da individualidade, a partir da rotulação atribuída à personagem como
sendo “o homem da casa”, o que deixa Maria Clara confusa e a impulsiona na busca
pela individuação com “... o lenço ia tecendo uma lágrima em retoquezinhos de
algodão, a guardava na carteira para que cristalizasse sem perder a forma...”.
89
Assim, observamos que essa extensa prosa apresenta vários indícios de
qualidade lírica, em que se faz mister anotar, mais uma vez, o que nos diz Maria Alziro
Seixo a esse respeito:
87
Idem, Ibidem, p.118.
88
Idem, Ibidem, p.423. (itálicos no original)
89
Idem, ibidem, p.306.
... o que conceptualmente nos importa é olhar para os romances de
António Lobo Antunes (...) e perspectivar o modo como o seu caráter
vincadamente romanesco adquire marcas de trabalho poético, não apenas
pela qualidade lírica que por vezes assume, mas pelo tipo de tratamento
da prosa que a ficção admite no seu encadeamento e na sua formulação
formal e discursiva.
90
Encontramos, assim, muitos episódios que conferem ao texto “como se todo o
romance não fosse mais do que uma longa frase interminável,
91
aquela inigualável
qualidade lírica e que poderia ser aqui materializada, além dos aspectos já mencionados,
como uma colcha de retalhos ou como notas musicais soltas à espera de serem
agrupadas em nota única. Poderíamos citar algumas, à guisa de formarmos um mosaico
de reflexões, a partir de versos igualmente soltos para comporem uma imagem que, no
conjunto final, refletisse a poética maior, aquela do ser e do tempo, pois, “... talvez a
morte seja um beijo assim antes de apagarem a luz...”,
92
mas as palavras “deslizam para
o silêncio sem terminarem a frase...”
93
e, por isso mesmo, recorremos mais uma vez a
Goulart, para concluir afinal que:
Outro aspecto em que a narrativa tem de fazer cedências à lírica é no da
discursividade. Costuma apontar-se como um dos traços do modo lírico a
sua não discursividade, ao invés do caráter discursivista do modo
narrativo. Assim, o texto romanesco não pode ser um texto lírico puro.
Mas, por outro lado, a atitude lírica altera a discursividade própria da
narrativa. Donde a necessidade de se restabelecer, pelo preenchimento de
espaços em branco entre duas seqüências narrativas, de pressupostos ou
subentendidos, os nexos que a lírica obscureceu, interrompeu ou adiou.
94
E não é exatamente isso o que mais se observa na narrativa de António Lobo
Antunes? Afirmamos que sim. O escritor termina por problematizar, em seus romances,
os “nexos” que a lírica obscureceu. Àquela voz lírica transforma - independente de
códigos e regras métricas -, o texto narrativo em um ritmo próprio, marcado pelo
90
Prosódia do texto de ficção, in: Op. cit. 2002, p.528.
91
Idem, ibidem, p. 538.
92
Op. cit. 2000, p.187.
93
Idem, ibidem, p.200.
94
Op. cit. 1999, p.47. (itálicos no original)
compasso subjetivo que termina por espelhar a angústia do Homem que a si regressa e
revela o insondável que brota da desilusão com o mundo, por meio da arte romanesca.
3. AS SIMBOLOGIAS DA CAVERNA
O que foi torna a Ser. O que é perde a existência.
O palpável é nada. O nada assume a essência.
Goethe
A leitura de Não entres tão depressa nessa noite escura fomenta inúmeras
questões que podem ser amplamente discutidas. Inicialmente, pode-se observar que o
texto aponta, se assim podemos distinguir, para o espelhamento da descentralização do
sujeito no espaço-tempo que ocupa abarcando seus conflitos e conseqüências. O que é
retratado de forma não muito fácil, para aqueles acostumados com uma lógica
discursiva e espírito cartesiano. Portanto, pela memória fragmentada de Maria Clara,
personagem narradora principal do romance-poema, a narrativa se desenvolve
construindo um discurso reflexivo e impactante.
Tal discurso singular fez com que identificássemos em Não entres tão depressa
nessa noite escura uma relação possível com duas áreas do conhecimento humano: a
filosofia e a psicanálise. Buscamos, em cada uma dessas ciências, aquilo que julgamos
substancial e pertinente para o desenvolvimento e correlação de hipóteses na obra
literária em epígrafe, assim como seus possíveis desdobramentos. Desse modo, como
pretendemos utilizar apenas o que achamos necessário dentro de cada campo citado,
passamos a uma concisa explanação de cada ciência e, a seguir, à justa relação com o
romance citado.
Iniciamos pela Filosofia - do grego philosophía: “Saber racional, ciência no
sentido mais geral da palavra.Todo conjunto de estudos ou de considerações que
apresentam um alto grau de generalidade e tendem a reduzir seja uma ordem de
conhecimento, seja todo o saber humano, a um pequeno número de princípios
diretivos”.
95
Pode-se dizer que é uma especialidade que envolve os estudos relacionados
à investigação, à análise, à discussão e à formação de idéias ou visões de mundo em
uma situação geral, abstrata ou fundamental. Surgiu da inquietação gerada pela
curiosidade humana em compreender e questionar os valores para às interpretações
facilmente aceitas a respeito de sua própria realidade. Tais interpretações constituem,
inicialmente, o embasamento de todo o conhecimento e foram adquiridas, enriquecidas
e repassadas de geração em geração. Ocorreram inicialmente por meio da observação
dos fenômenos naturais e sofreram influência das relações humanas estabelecidas até a
formação da sociedade, isto em conformidade com os padrões de comportamentos
éticos ou morais tidos como aceitáveis em determinada época, relação humana ou
grupo.
A partir da Filosofia, surge a Ciência, uma vez que o Homem reorganiza as
inquietações que assolam o campo das idéias e se utiliza das experiências para interagir
com a sua própria realidade. Assim, a partir da inquietação, o homem, por meio de
instrumentos e procedimentos, equaciona o campo das hipóteses e exercita a razão. São
organizados os padrões de pensamentos que formulam as diversas teorias agregadas ao
conhecimento humano. No entanto, o conhecimento científico, por sua própria natureza,
torna-se suscetível às descobertas de novas ferramentas ou instrumentos que
aprimoraram o campo da sua observação e manipulação o que, em última análise,
implica tanto na ampliação, quanto no questionamento de tais conhecimentos. Neste
contexto, a filosofia surge como "a mãe de todas as ciências".
Didaticamente, a Filosofia divide-se em: Lógica: trata da preservação da verdade
e dos modos de se evitar a dedução e raciocínio inválidos; Metafísica ou Ontologia:
95
Op. cit. LALANDE, 1999.p.422.
trata da realidade, do ser e do nada; Epistemologia ou teoria do conhecimento: trata da
crença, da justificação do conhecimento; Ética: trata do certo e do errado, do bem e do
mal; Filosofia da arte ou Estética: trata do belo.
A partir desse breve esboço a respeito da filosofia, acreditamos que a definição
que melhor se adequa à nossa proposta é a que trata da realidade do ser e do nada na
perspectiva em que lemos o sótão em que a narradora-personagem de Não entres tão
depressa nessa noite escura escolhe por encerrar-se, como sendo uma caverna. Para
tanto, buscamos no clássico texto da alegoria da caverna de Platão, especificamente A
República,
96
livro VII, tal conceito como arquétipo pertinente acerca das verdades
presumíveis de que o ser humano imagina ser conhecedor e que julgamos coerente ao
ser arrolado ao mundo de descobertas e aos novos fatos que Maria Clara passa a
integrar à sua vida, a partir de sua (simbólica) permanência e saída do sótão, mesmo
sendo um espaço de interdição, conforme se observa na frase “O meu pai nunca me
deixou entrar aqui”
97
.
Assim, julgamos conveniente apresentar um esboço do pensamento platônico.
Platão (428/27 a.C. - 347 a.C.) não achava que este era o melhor dos mundos. O filósofo
acreditava que este espaço é uma espécie de prisão em que estamos trancafiados em
escuridão e sombras, mas que, além dessa prisão, há um mundo de verdades a que ele
chamou de idéias ou ideais e é por isso que os conceitos platônicos são chamados de
doutrina de idealismo. Tais doutrinas foram desenvolvidas de forma extraordinária na
República em que seu porta-voz, como de costume, é seu mestre, Sócrates, que compara
nosso mundo cotidiano a um "abrigo subterrâneo", uma caverna onde somos mantidos
acorrentados. E, desse modo, vemos somente sombras, sejam elas de seres humanos ou
objetos que, naturalmente, são percebidas como reais, não conhecendo nada além disso.
96
Op. cit. 1997.
97
Op. cit. ANTUNES (2000), p.15.
Entretanto, se pudéssemos ser libertos das correntes e nos virar, no mínimo, para
a entrada da caverna, seria possível constatar o erro. A princípio, a luz direta seria
dolorosa e perturbadora, mas logo haveria a adaptação e perceberíamos as pessoas e os
objetos reais que eram conhecidos em forma de sombras. Mesmo assim, devido ao
costume, nos agarraríamos às sombras acreditando ainda que elas eram reais e suas
fontes, apenas ilusões. Mas se fossemos tirados da caverna para a luz, inevitavelmente,
chegaríamos à visão correta das coisas e lamentaríamos nossa antiga ignorância.
Desse modo, entendemos a analogia de Platão como uma investida aos nossos
hábitos de pensamento, uma vez que, como disse o filósofo, estamos acostumados a
aceitar os objetos concretos que nos cercam como "reais", mas que, na verdade, não o
são. Apresentam-se apenas como cópias imperfeitas e menos "reais" de "formas"
imutáveis e eternas. Platão define, essas formas, como as realidades permanentes, ideais
e originais, a partir das quais são construídas cópias concretas imperfeitas e corruptíveis.
Por exemplo, cada objeto, que compõe nosso familiar mundo de elementos, é
meramente uma imitação ou "sombra" do Objeto Ideal que não muda nunca e existe
pela eternidade e no qual o indivíduo nunca pode interferir.
Esses objetos ideais, segundo Platão, não são fantasias; são, de fato, mais "reais"
que suas imitações materiais por serem mais perfeitos e universais. No entanto, como
nossos sentidos corrompidos têm sido sempre enganados, ficamos cegos para o mundo
dos ideais. Assim, nossas mentes estão escravizadas à imitações que confundimos com
a realidade, o que nos torna prisioneiros em uma caverna filosófica.
Desse modo, portanto, passamos a abordar o processo de descobertas, criações,
transformações e um possível amadurecimento por que passa a principal personagem-
narradora de Não entres tão depressa nessa noite escura devido à experiência da morte
do pai, o revisitar o passado e o situar-se em outra realidade, que se subentende ser na
fase adulta. Identificamos que esse não se situar, ou seja, a descentralização da
personagem, se dá em função dos conflitos que nela se vêem refletidos por meio da
construção de um outro Eu a se edificar no atrito entre seu Eu e o mundo. Lembramos
que há uma delicada diferença entre a caverna platônica e o sótão em que Maria Clara
habita, ou seja, se na caverna as pessoas julgavam ser real apenas o que elas viam como
sombras projetadas nas paredes e precisaram sair dali para descobrirem a realidade na
luz no exterior da gruta, com Maria Clara se dá o contrário: para dar forma às verdades
que imagina serem reais, ela sai do mundo externo em que vive físico, emocional e
mental - com sua realidade, verdades prontas e luz própria, para adentrar no espaço da
criação de um mundo ilusório, equivalente às coisas que ela cria e inventa e, assim,
tornar real tudo aquilo que ela desejava como verdadeiro, concebido, porém, sob as
sombras do sótão.
3.1 A REFLEXÃO FILOSÓFICA
A noite é inacessível, porque ter acesso a ela
é ter acesso ao exterior, é ficar fora dela
e perder para sempre a possibilidade de sair dela.
98
Maurice Blanchot
Sendo nossa proposição destacar a gama de sentimentos e interpretações que
ficam imbuídas no mistério da simbologia de uma caverna e suas respectivas sombras,
inevitavelmente, somos conduzidos a aproximar a noite desse suposto espaço vazio
como fonte de criação. Assim, ao utilizarmos a epígrafe acima, tentamos traduzir nosso
entendimento naquilo que tange em como foi possível a permanência da narradora-
98
Op. cit. BLANCHOT (1987). pp.164-168.
personagem de Não entres tão depressa nessa noite escura em sua caverna/sótão”.
Uma vez que ela, ao ter acesso à noite, ou seja, às prováveis verdades à espera de serem
descobertas, assim como suas (re)criações, tornou quase impossível o recuar e
acomodar-se à claridade dos fatos já estabelecidos. Esta primeira noite “é acolhedora
(...) parece que, ao avançar-se, encontrar-se-á a verdade da noite, que se caminhará, ao
ir-se mais adiante, na direção de algo essencial”.
99
Contrario à noite, surge o dia, o
primeiro dos sete da criação e entre cada um desses espaços luminosos, fatigantes e
laboriosos, a noite espera para se fazer a própria luz já que “a noite que se faz dia torna
a luz mais rica e faz da claridade, em vez da cintilação da superfície, a irradiação
oriunda da profundidade”.
100
Em um breve resumo do mito platônico da Caverna, podemos dizer que, geração
após geração, os seres humanos ficaram confinados com suas pernas e pescoços
imobilizados, permanecendo no mesmo lugar sem poder olhar em nenhuma direção que
não fosse para frente. Deste modo, vêem algumas sombras desfilarem sobre as paredes
da caverna e escutam ecos de vozes. A luz existente na caverna provém de uma fogueira
que ali queima e a obscuridade permite que os prisioneiros enxerguem apenas o que se
passa no interior, que na verdade são as sombras dos homens que do lado de fora
caminham carregando suas estatuetas. Assim, sem poderem ver essas imagens reais, os
confinados imaginam que aquilo que vêem é o que de real para eles existe, uma vez que
não sabem que há outros seres humanos reais fora da caverna, do mesmo modo como
não podem saber que enxergam porque há a luz no exterior e imaginam que toda a
luminosidade possível é a que reina na caverna.
Se alguém libertasse um confinado, ele começaria a descobrir o mundo real fora
da caverna e poderia sofrer de uma possível cegueira, já que o dia é iluminado pela luz
99
Idem, Ibidem, pp.164-168.
100
Idem, Ibidem, p.168.
do sol e ele permaneceria inteiramente ofuscado por ela. Depois, acostumando-se com a
claridade e com as coisas externas, descobriria que durante toda sua vida não vira senão
sombras de imagens e que somente agora está contemplando a própria realidade.
Libertado e conhecedor do mundo, o confinado regressaria à caverna, ficaria
desnorteado pela escuridão, contaria aos outros o que viu e tentaria libertá-los. O que
levaria os demais confinados a zombarem dele não acreditando em suas palavras e se
não conseguissem silenciá-lo com suas brincadeiras, tentariam fazê-lo espancando-o e
se, mesmo assim, ele teimasse em afirmar o que viu e os convidasse a sair da caverna,
certamente acabariam por matá-lo.
Desse modo, retomando Não entres tão depressa nessa noite escura,
imaginemos que Maria Clara, mesmo não estando nem amarrada, nem com suas pernas
e pescoço imobilizados de tal maneira que seja forçada a permanecer sempre no mesmo
lugar e a olhar apenas para frente, escolha por encerrar-se em uma caverna e, ao habitá-
la, imagina serem reais suas criações e tudo aquilo que ela percebe como familiar a seu
mundo e solidão inconteste. Por temor às novas descobertas, prefere o isolamento
voluntário e, no diálogo consigo mesma, refugia-se dos perigos externos julgando-se
protegida da luz que ofusca e pode até mesmo cegar, construindo um Eu recalcado nos
domínios do inconsciente para, assim, se sentir segura.
Assim, vimos Maria Clara encerrando-se em uma caverna, ou melhor, elegendo
o sótão como seu habitat, aquele da casa da infância interdito pelo pai, o sótão/caverna
que é a sua própria memória e inconsciente e lá a personagem vive e recria
simbolicamente sua vida e a dos outros. É a proximidade da morte do pai, ou seja, o
início do fim (“... sons de bronquite humilde a escorregarem-lhe em cima a sua pá de
terra...”),
101
que faz com que ela se instale na caverna. Este ato de reclusão pode ser
101
Op.cit. 2000, p.94.
visto também como uma maneira de Maria Clara fugir ou esconder o momento confuso
pelo qual está passando, assim como seu amor pelo pai, exatamente por não entender
plenamente o desligamento terreno e as mudanças que ela imagina, doravante,
acontecerem de fato, já que, como primogênita, assume devidamente o papel do
“Homem da casa”.
Dentro dessa subjetividade múltipla, em que outras vozes, acontecimentos,
procedimentos físicos, sociais e históricos estabelecem o Eu a dividir-se, a personagem
traz, ao topo da questão, outros temas que se fazem presente de forma indireta. As
idéias de Maria Clara são cambiantes, subjetivas, incertas e pertencem ao mundo das
aparências. A consciência pessoal de Maria Clara, ao ser designada como “homem da
casa”, faz dela de Ser único, o Ser duplo, conforme se observa em:
...tudo em que mexo sem graça, ponho um par de brincos ou um colar teu
desses que ligam seja com o que for e comigo, e porquê, não ligam com
nada, um vestido que me esteja bem na cintura sobeja nos quadris e
escorrega do corpo, dá idéia de usado ou emprestado ou velho, o idiota
do homem da casa a tentar ser mulher, madeixas feitas cartolina pelo
vapor da laca, os saltos aprisionados nas pedras, ao erguer o calcanhar
uma dificuldade, um puxão de desespero, o cabedal rasgado, a desgraça,
caminhar ao pé coxinho...
102
Na multiplicidade conflituosa do Eu, conseqüentemente, Maria Clara retoma o
passado e narra as histórias de sua vida, de seu pai, de sua família e de seu país e nelas
se confunde e imprime o cunho das inúmeras marcas que deseja serem percebidas pelo
mesmo ambiente que fez dela um ser plural, mesmo antes “... do mundo principiar a
encolher à medida que eu [ela] crescia uma constelação de pressentimentos, de dúvidas,
de exaltantes mistérios...”.
103
Essa consciência titubeante de Maria Clara exprime sua condição de sujeito não
situado. Suas diferenças não são reconhecidas, assim como sua ideologia. Falta-lhe
102
Idem,Ibidem, p. 191.
103
Idem, Ibidem, p.272.
alguma sugestão, ainda que hipotética, como alternativa para sua subjetividade, segundo
nos diz Coward Rosalind e John Ellis:
104
A presença errante e sinuosa do inconsciente, sem o qual não se pode
compreender a posição do sujeito, persiste na heterogeneidade e nas
contradições dentro do próprio sujeito. Portanto, ela proporciona a mais
rigorosa crítica à pressuposição de um sujeito consistente, inteiramente
acabado.
105
Deste modo, observamos em Não entres tão depressa nessa noite escura que no
início tudo são trevas (sejam elas filosóficas ou inconscientes), assim como no
Gênesis do livro bíblico, citado com livre adaptação do autor, na abertura do primeiro
capítulo do romance, em que se lê:
No princípio, Deus criou o céu e a terra. A Terra achava-se vazia, as
trevas cobriam o abismo e o vento de Deus girava sobre as águas. Então
Deus disseExista a luz e assim se cumpriu. Deus viu que era boa,
apartou-a das trevas, chamou à luz “dia” e às trevas “noite”. Houve uma
tarde e uma manhã: Primeiro dia.
106
Há, portanto, que se percorrer todo o processo da criação. Nesse percurso, existe
uma tarde e uma manhã e o que fica no meio é exatamente a noite, com seus vários
símbolos que podem ser a tradução do mistério, do impenetrável, do desconhecido. Esta
noite determinante seria aquela em que “se avizinham a ausência, o silêncio, o repouso
[em que] (...) aquele que morre vai ao encontro de um morrer verdadeiro, aí se cumpre a
palavra na profundidade silenciosa que a garante como o seu sentido”.
107
É assim o
mundo que Maria Clara resolve percorrer, já que ao associar a morte do pai com o
próprio percurso vivido, descobre afinal que “... não há nada que meta medo no
escuro”,
108
uma vez que no escuro surgem suas criações; isso lhe dá segurança para
104
Rosalind Coward e John Ellis, Apud: Op cit.HUTCHEON. 1988.
105
Idem, ibidem, p.205.
106
Op. cit. 2000, p.14.
107
Op. cit. BLANCHOT(1987). p. 163.
108
Op. cit. 2000, p.343.
dissipá-las, pois “criaturas inventadas apagam-se num instante”.
109
Neste cenário, portanto, Maria Clara quer encontrar o passado e não o presente
que se apresenta, pois “... amanhã colocam-lhe a dentadura postiça e encontro o meu
pai, não uma pessoa muito idosa que morre”.
110
Mas, se ele continuar vivo, ela não pode
prosseguir a rebuscar o passado e a simbologia da morte é seu passaporte para isso, uma
vez que em sua confissão: (“... não hei de aborrecê-lo pai, mais ninguém vem ao sótão
senão eu, se ao menos me ajudasse a conhecer quem sou...”),
111
demonstra seu desejo.
Se fosse possível Maria Clara se transformaria no próprio pai, já que ela é o
“homem da casa”, transitaria livremente por um território que tem “...os
compartimentos aumentados não pelo nada, pelo receio do nada (...) e eu na poltrona de
perna cruzada num vagar masculino”.
112
E, desse modo, ela começa a se despedir do pai:
“... compreendo que se alegre, se levante, me abandone e se vá embora com eles...”.
113
Eles aqui são Leopoldina e o professor que, para Maria Clara, irão morrer assim como
seu pai, e o que ocupará esse vazio deixado é o desdobramento da própria história que
ela narra.
As imagens recorrentes da noite e também as que a ela se contrapõem aparecem
em larga escala em Não entres tão depressa nessa noite escura. Citamos algumas:
“morcego”, “lâmpada”, “clarão”, “buraco”, “escuridão”, “lua”, “sombras”, “trevas”,
“escuro”, “noturno”, “penumbra”, “crepúsculo”, “acender”, “apagar”, “céu”, “chuva”,
“água”, “incandescente”, “manhã”. Neste cenário “sempre noite, tão sempre noite”,
114
abre-se um espaço para, curiosamente, notarmos que os capítulos sétimo e o décimo
sexto do romance parecem se enlaçar com essas imagens, tanto as da vida quanto as da
109
Idem, ibidem.
110
Idem ibidem, p.46.
111
Idem, ibidem, p.48.
112
Idem, ibidem, p.204.
113
Idem, ibidem, p.100.
114
Idem, Ibidem, p.209.
morte. Seguindo ainda o roteiro genesíaco bíblico, no sétimo dia, após toda a criação,
“Deus descansou”. Pois bem, no sétimo capítulo, tudo indica que Luis Felipe morreu,
ou não é descrita a presença física dele a ocupar o espaço doméstico, do mesmo modo
como “Deus”, ele também “descansou”. Maria Clara, por sua vez, se sente meio que
estranha àquele ambiente, conforme se observa pelo seguinte recorte: “Sem o meu pai a
casa parece repelir-me (...) nunca estive aqui, sou uma intrusa (...) perdida sem
encontrar o vestíbulo numa moradia de ricos, alguém respira por mim”.
115
Esse alguém
pode ser traduzido como o espectro que Maria Clara se sente; ou o próprio pai que
mesmo estando morto, ocupa sempre o lugar da motivação dela em suas incansáveis
buscas e criações; ou, ainda, o pretexto para a personagem dissipar as sombras que
sempre a envolveram.
O capítulo décimo sexto nos faz lembrar da teoria da numerologia em que,
segundo tal conceito, a soma de dez mais seis será igual a sete, uma vez que se despreza
o zero e somam-se os números que sobram. Assim, completamos o raciocínio anterior
referente à simbologia do sétimo dia. Acreditamos, também, que não inadvertidamente,
Lobo Antunes fez esse jogo numérico ou caleidoscópio de interpretações. Observa-se,
no referido capítulo, imagens de sol e sombra que se contrapõem analogamente à
criação genesíaca, conforme destacamos em:
Quando a Ana disse ao almoço com nós três em redor da cabeceira
deserta e o sol a iluminar metade da toalha. (...) a cadeira de braços
presidia sem copo nem prato nem talheres à frente e no entanto de cada
vez que passava com a travessa a criada fazia menção de aproximar-se,
dava conta, desistia, da mesma forma que por mais de uma ocasião
reparei em mim a estender o galheteiro ou o sal sem que ninguém os
recebesse na metade da toalha que permanecia na sombra, da
mesma forma.
116
Assim sendo, é possível constatar, pelo recorte acima e pelos itálicos por nós
marcados, a nítida separação entre o sol simbolicamente similar à vida -, e a noite -
115
Idem, Ibidem, p.101.
116
Idem, Ibidem, p.233. (itálicos nossos)
que igualmente remete à morte e à perda. Esse vazio, portanto, à mesa de jantar, refere-
se ao pai de Maria Clara. A metade da toalha iluminada era aquela em que Luis Felipe
se sentava, a outra, imersa na sombra, representa a morte, o vazio. Fatos que começam a
tomar forma ao saírem do escuro da caverna para ocuparem o espaço no lume do
reconhecimento e entendimento das coisas, o que justifica a constante alusão às
alegorias noturnas.
Se Maria Clara optasse em não revisitar e reconstruir o passado, seguiria na
mesma condição daqueles confinados na caverna de um mundo que já conheceram
pronto. Ousar sair e descobrir além daquilo que ela conhecia como real, significava
muito mais que uma vida limitada e rotineira no gesto simples de “...trancar o sótão,
esquecer-me, ser-me indiferente que continuassem lá em cima por não haver lá em
cima...”,
117
e onde ficariam então os “... restos do passado nesses fundos de gaveta que
são a margem do tempo?”,
118
ou seja, de que maneira permaneceria o tempo revolvido,
todas as coisas que incomodavam e inquietavam Maria Clara? O seu sentir e sua
escrita, efetuadas por meio de sua memória, não podiam recuar diante do fluir de tantas
coisas, a partir de sua entrada no mundo inteligível e de sua volta ao mundo sensível.
3.2 A REFLEXÃO PSICANALÍTICA
O mundo desconhecido parte da própria casa e da
própria infância,
para prolongar-se na vida futura, num universo
cujas fronteiras não estão marcadas.
119
Dylan Thomas:
117
Idem, ibidem, p.143.
118
Idem, ibidem, p.113.
119
Op. Cit. 1991.
Ao iniciarmos nossas considerações a respeito da leitura da caverna sob o ponto
de vista psicanalítico, julgamos interessante esclarecer que, entre os aspectos que
procuramos elencar ao longo deste capítulo, a psicanálise pode ser definida como uma
teoria sobre o Homem que se fundamenta na descoberta, por Freud, do inconsciente. Se
o que buscamos é interpretar a narradora-personagem de Não entres tão depressa nessa
noite escura, acreditamos que a acepção acima nos fornece “a chave” que buscamos
para o possível entendimento acerca de Maria Clara. Tal sentido, correlacionado a uma
das significações, destaca-se na longa, porém necessária definição para o inconsciente,
feita por Lapanche & Pontalis,
120
em que os estudiosos afirmam:
O adjetivo inconsciente é por vezes usado para exprimir o conjunto dos
conteúdos não presentes no campo efetivo da consciência, isto num
sentido ‘descritivo’ e não ‘tópico’, quer dizer, sem se fazer discriminação
entre os conteúdos dos sistemas pré-consciente e inconsciente. (...) É
constituído por conteúdos recalcados aos quais foi recusado o acesso ao
sistema pré-consciente consciente por ação do recalque. (...) podemos
resumir do seguinte modo as características essenciais do inconsciente
como sistema : os seus ‘conteúdos’ são ‘representantes’ das pulsões;
estes ‘conteúdos’são regidos pelos mecanismos específicos do processo
primário, principalmente a condensação e o deslocamento;fortemente
investidos pela energia pulsional, procuram retornar à consciência e à
ação (retorno do recalcado), mas só podem ter acesso ao sistema Pcs-Cs
nas transformações de compromisso, depois de terem sido submetidos às
deformações da censura. São mais especialmente, desejos da infância
que conhecem uma fixação no inconsciente (...) No quadro da segunda
tópica freudiana, o termo inconsciente é usado sobretudo na sua forma
adjetiva, efetivamente, inconsciente deixa de ser o que é próprio de uma
instância especial, visto que qualifica o id e, em parte, o ego e o super.
(...) As características atribuídas ao sistema Ics na primeira tópica são de
um modo geral atribuídas ao Id na segunda; a diferença entre o pré-
consciente e o inconsciente, embora já não esteja baseada numa distinção
intersistêmica, persiste como distinção intra-sistêmica (o ego e o
superego são em parte pré-conscientes e em parte inconscientes).
121
Essa reflexão crítica e pontual permite-nos correlacioná-la à epígrafe do capítulo
e, assim, começar a delinear um perfil para a narradora-personagem de Não entres tão
depressa nessa noite escura e possibilita o nosso trânsito confiante por este território,
120
LAPLANCHE & PONTALIS. Vocabulário de Psicanálise. Trad. Daniel Lagache. São Paulo: Martins
Fontes, 1997.
121
Idem, Ibidem, p.235-236. (negritos nossos)
uma vez que tudo leva a crer que Maria Clara, ao narrar os fatos, encontra-se na fase
adulta, porém presa aos seus desejos recalcados na infância. Desse modo, só nos resta
assinalar que, dentre os significados para o inconsciente, entendemos que tal definição é
a que melhor traduz traços que observamos na personagem de António Lobo Antunes.
Antes, porém, de começarmos a interpretar alguns desses aspectos em Maria
Clara, a partir da teoria freudiana para o inconsciente, passamos a uma breve explicação
da psicanálise: ciência do inconsciente, criada por Sigmund Freud (1856 -1939),
caracteriza-se por uma teoria e uma prática clínica de investigação que consiste,
essencialmente, em assinalar os efeitos do inconsciente, ou seja, o sintoma neurótico,
por meio das palavras, das ações, da formação do inconsciente que são o sonho, o ato
falho e o esquecimento de um indivíduo. A psicanálise é um método baseado na
investigação da prática onírica do sujeito e especificado pela interpretação controlada da
resistência, da transferência e do desejo. Caracteriza-se, ainda, por um conjunto de
teorias psicológicas e psicopatológicas em que são sistematizados os dados introduzidos
pelo método psicanalítico de prática clínica e de tratamento. O reconhecimento do
desejo e do recalcamento e a consideração da sexualidade e do complexo de Édipo são
os conteúdos principais da psicanálise e os fundamentos de sua teoria.
Cabe, portanto, assinalar que Sigmund Freud, médico especializado em
tratamento para transtornos mentais, desenvolveu a psicanálise teoria do
funcionamento da mente humana e um método exploratório de sua estrutura destinado a
tratar os comportamentos compulsivos e diversas doenças de natureza psicológica
aparentemente sem motivação orgânica. Para chegar aos postulados da teoria que
chamou psicanálise, Freud consolidou, por meio de longa prática clínica e muita
pesquisa, essa tarefa. Assim sendo, esteve no período compreendido entre 1885 e 1886
em Paris estudando com J. M. Charcot. Quase uma década depois, interessado pelos
fenômenos histéricos e pela aplicação do hipnotismo, apresentou os resultados das
pesquisas a respeito da histeria que foram realizados com a colaboração de Josef Breuer.
Essas pesquisas foram, por vezes, consideradas uma primeira versão da ulterior
psicanálise. No entanto, a psicanálise - primeiro como método, depois como doutrina -,
só se constitui quando o abandono do procedimento hipnótico conduziu Freud à sua
terapêutica da descarga psíquica e à sua doutrina do impulso sexual mascarado e
reprimido. Os trabalhos de Freud multiplicaram-se a partir de 1900. Seis anos após essa
data, começaram a trabalhar com ele vários psicólogos que depois se tornaram famosos,
entre eles: Eugen Bleuler, C.G. Jung e Alfred Adler. Em 1910, fundou a associação
psicanalítica internacional da qual Jung foi o presidente e, desde então, a psicanálise
difundiu-se rapidamente em todos os países. Esta nova teoria estabelecia que as
pessoas que adoeciam mentalmente eram aquelas que não reconheciam seus desejos.
Segundo Freud, este tipo de pessoa tinha a capacidade de conter de tal modo esses
desejos em sua mente, que, após algum tempo, esqueciam-se da existência do mundo
externo e, assim, adoeciam. A partir de sua teoria, “o pai da psicanálise” resolveu tratar
esses casos por meio da interpretação dos sonhos e também pelo método da associação
livre. Nesta prática, ele fazia com que seus pacientes falassem livremente à respeito daquilo
que lhes surgia espontaneamente e, desse modo, era capaz de perceber os desejos
recalcados, ou seja, aqueles que seus pacientes guardavam somente para si. Após
desvendá-los, ele os estimulava a externá-los e, desta forma, conseguia curar muitos
transtornos mentais.
Freud iniciou seu pensamento teórico assumindo que não havia nenhuma
descontinuidade na vida mental. Afirmou, também, que os fatos não ocorrem ao acaso e
menos ainda os processos mentais, existindo uma causa para cada pensamento, memória
revivida, sentimento ou ação. Cada sentimento ou desejo é causado pela intenção
consciente ou inconsciente e é determinado pelos fatos que o precederam, uma vez que
alguns episódios mentais parecem acontecer espontaneamente.
Assim, o médico austríaco começou a procurar e a descrever os elos ocultos que
ligavam um evento consciente a outro. Para isso, desenvolveu uma estrutura teórica
equilibrada e promissora a respeito da natureza do inconsciente e ao seu lugar em
relação à consciência, pois não havia, na comunidade intelectual da época, consenso em
relação a esses aspectos. Neste sentido, pode-se dizer que Freud é o pioneiro no
entendimento do funcionamento daquilo que hoje concebemos por inconsciente.
Acrescenta-se, ainda, que o observador Freud tornou possível a construção de hipóteses
para responder questões a respeito de processos mentais em uma mente que não está
consciente deles, ou seja, uma abordagem coerente para explicar a estrutura, o papel
funcional ou a operação do inconsciente ou, ainda, a modalidade de sua relação com a
consciência no esquema geral da vida mental de um indivíduo.
O inconsciente, segundo Freud, existe devido aos eventos passados explicáveis
por meio de mecanismos de recalque e fatos a eles associados e não é, em princípio,
inacessível. Na teoria freudiana, o inconsciente, propriamente dito, se compõe de
processos recalcados que exercem influência na parte consciente da mente do indivíduo
e molda sua vida cotidiana de maneira substancial. Em contraste a esse procedimento,
há o pré-consciente que abarca esses processos que somente, eventualmente, se
encontram fora da consciência. O que é pré-consciente pode facilmente tornar-se
consciente sem técnicas especiais ou esforço; o que é inconsciente, porém, tem de ser
exteriorizado por meio da técnica psicanalítica e com a ajuda de um analista.
As pesquisas elaboradas por Freud dividem-se em duas concepções: primeira
tópica - até 1920 a teoria do aparelho psíquico se constituía por três instâncias, ou
seja, o inconsciente, o pré-consciente e o consciente. Esse mesmo ano seria
considerado, segundo Coutinho Jorge e Nádia Ferreira,
122
aquele que representava “uma
virada em sua trajetória” com a substituição da primeira pela segunda tópica que
compreende o isso, o eu e o supereu, respectivamente o id, o ego e o superego.
No capítulo A consciência e o que é inconsciente,
123
Sigmund Freud trata dos
termos consciente e inconsciente na exemplificação de que um estado de consciência é
caracteristicamente transitório. Uma idéia consciente em dado momento pode não sê-la
imediatamente a seguir e, assim, dizer que ela estava latente e por isso capaz de se
tornar consciente a qualquer tempo. Do mesmo modo atribui ao inconsciente essa
definição, de maneira que “inconsciente” coincida com latente e capaz de se tornar
consciente.
Para o estado em que as idéias existiam antes de se tornarem conscientes, ou
seja, antes de serem recusadas pelo desejo do Eu = consciente, desejo esse que, ao ser
recalcado, tornou-se inconsciente - o qual, por sua vez, proporcionará o retorno do
recalcado, disfarçado e como agente do recalque ainda que o Eu resista ao retorno do
recalcado mesmo consciente -, Freud chama de resistência. Assim, o médico austríaco
estabelece o conceito de inconsciente a partir da teoria do recalcamento como:
O reprimido é para nós, o protótipo do inconsciente. Percebemos, contudo,
que temos dois tipos de inconsciente: um que é latente, mas capaz de
tornar-se consciente, e outro que é reprimido e não é, em si próprio e sem
mais trabalho capaz de tornar-se consciente.
124
Diz ainda o estudioso:
122
JORGE, Marco A.Coutinho. FERREIRA, Nadiá P. FREUD Criador da Psicanálise. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar editor, 2002.
123
FREUD. Sigmund. Volume XIX, pp.25/31.
124
Idem, ibidem, p.27.
Formamos a idéia de que em cada indivíduo existe uma organização coerente
de processos mentais e chamamos a isso o seu ego. É a esse ego que a
consciência se acha ligada: o ego controla às abordagens à motilidade isto
é, à descarga de excitações para o mundo externo.(...) Assim como as
tensões que surgem de necessidades físicas podem permanecer inconscientes,
também o pode o sofrimento algo intermediário entre a percepção externa
e a interna, que se comporta como uma percepção interna, mesmo quando
sua fonte se encontra no mundo externo.
125
Do ponto de vista de tais recortes e do grifo por nós destacados, salientamos
que, dentro dessa probabilidade, há um interessante aspecto a ser considerado em Não
entres tão depressa nessa noite escura.Trata-se do aspecto externo em dois sentidos:
tanto o do espaço físico, habitado na fase adulta; quanto aquele da infância revivido
pela memória observado ao longo da narrativa -, e o da descrição física de Maria
Clara. Em ambos os lugares percebe-se a angústia e a descentralização a se estabelecer
subsequentemente aos mecanismos de defesa utilizados por Maria Clara. Entendemos
que ao reescrever sua história, a narradora- personagem tenta encontrar o sentido para
sua existência a partir dos sentimentos que ficaram recalcados e se prolongaram tempos
afora, conforme se observa em:
Agora que estou no fim do meu relato tenho pena que acabe (...) de modo
que vou adiando o momento de retirar o diário da gaveta onde o escondi
e me sentar à mesa que não pus ainda com a desculpa que o emprego me
cansou, o empadão não descongela, o meu filho lá dentro, são seis horas
e daqui a nada o meu marido de volta do escritório (...) soletrar
parágrafos e a deixar-me nua, episódios tão secretos, tão remotos (...)
cuidando decifrar qualquer coisa que o ajudasse a perceber quem sou.
126
Tal descrição se faz no tempo presente, apesar da desordem entre o ser dividido.
Parece-nos que o tempo transcorrido avolumou ainda mais os conflitos de Maria Clara
na recusa em aceitar o mundo adulto da noite que ela atravessa insegura, ao que
confessa ao marido: “podes beijar-me se quiseres, beija-me depressa e fica no sofá
125
Idem, ibidem, p.p 28/36. (itálicos nossos)
126
Op. Cit. 2000, pp. 467/ 479. (itálicos no original)
comigo até que chegue a manhã”.
127
Assim é que se percebe, pelo recorte acima posicionado nos capítulos finais do
romance, que Maria Clara constituiu sua própria família e necessita dessa garantia para
habitar com ela uma “casa segura”. Sua relação com a casa fora constituída de forma
distorcida e dividida ora com o hospital em que o pai se encontra internado, ora com o
cassino em que a avó ia jogar e não ganhava dinheiro, apenas comprometia sua imagem
de senhora educada. Deste modo, para uma melhor abrangência do aspecto relacionado
a casa em Não entres tão depressa nessa noite escura, recorremos às palavras da
professora Maria Alzira Seixo, que diz:
O centro simbólico do lugar do texto é, deste modo, a casa, ou ‘vivenda’,
que deverá aqui ser entendida na sua dupla acepção de,
etimologicamente, lugar de vida, e, em termos conotativos, de moradia
de gente rica, mundana e promovida (...) Outras casas se articulam com
esta, como o andar em Birre, ou em Alcoitão, ou em Alcabideche, a
quinta de Tomar, ou a própria casa de Santarém, ou Leiria, ou Lisboa,
onde Maria Clara parece viver (de uma maneira indistinta) depois de
casar (...) A articulação de Maria Clara com a casa (e com as casas em
geral, em sentido positivo ou negativo) é fortíssima, correspondendo ao
sentimento de insegurança que a carência afetiva nela provoca.
128
Acrescentamos, ainda, que a representação da casa, por excelência lugar de
segurança e, também, conforme nos diz a professora Ângela Beatriz Faria,
... lugar em que se enreda a espessura de cada ser, o (des)equilíbrio de
cada um. Essas casas de muros desguarnecidos abrigam a mis-en-scène
do “eu” num espaço feito de palavras, margens, deslocamentos e
fronteiras. Esses sujeitos problematizados, ao empreenderem uma
travessia ou uma errância em busca de si mesmos e do outro, deslocam-
se na ordem cultural e social, inscrevem-se em uma escrita de corpos
deslocados, sítios visitados e despaisamento.
129
faz com que Maria Clara, na fase adulta, sentindo-se reconfortada pela presença do
marido - que também pode ser visto como aquele que ocupa ou representa o lugar do
127
Idem, Ibidem, p.486.
128
Op. cit. SEIXO.( 2002). p. 394.
129
FARIA, Ângela Beatriz de Carvalho. “A Casa Portuguesa e os Muros Desguarnecidos: Perda, Risco”,
Travessia e Paixão. Anais XVIII Encontro de Professores Brasileiros de Literatura Portuguesa - Santa
Maria, ABRAPLIP (2001). RS: Ed. Pallotti, 2003, pp.66/72.
pai -, volte a buscar àquela de sua infância. Lá ficaram seus conflitos recalcados na
tensão da percepção das coisas do mundo externo: o jardim repleto de goivos, o menino
de barro, o lago, a horta e o pomar, entre outros aspectos extremamente familiares para
Maria Clara, mas que, ao mesmo tempo, se afiguram estranhos e geradores de parte de
seu sofrimento. Eles seriam a materialização ou a representação simbólica do que foi e
podia não ter sido e daquilo que é sem nunca ter existido em uma “casa esvaziada de
tudo excepto de resposteiros que envelhecem e lembranças de grandeza”.
130
Saindo do espaço da edificação vamos encontrar outro espaço: aquele que se
refere à descrição física de Maria Clara. Excetuando sua “feiúra” e “um jeito
desajeitado de ser” em relação à irmã Ana Maria, essa definição inexiste. Se,
porventura, isso tivesse sido feito no sentido da narradora-personagem ser alta e forte,
por exemplo, poderíamos dizer que esse aspecto, segundo a teoria jungana,
131
indicaria
que tudo o que é robusto e imponente indica a simbolização de afastamento do
introvertido do mundo.
Dessa maneira, percebem-se definições da personagem que não lhe enaltecem,
como: “a Ana, de meias brancas e saia plissada, (...) eu amarrotar-me de propósito,
sujar-me de propósito, tornar-me de propósito mais desagradável ainda”,
132
é que faz
com que a personagem se caracterize como uma pessoa introvertida e na busca do seu
lugar no mundo. E, ainda, é possível perceber que o espaço criador dela se estabelece ao
inventar um habitat forte e imbatível, se olhado pelo ponto de vista imaginativo,
contrário daquele em que ela se sentia hostilizada e sem importância, cujo lugar do
sofrimento ficou recalcado.
130
Op. cit. 2000, p.207.
131
A esse respeito ver: JUNG. Carl G. O homem e seus símbolos. Trad. Maria Lúcia Pinho. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, [s/d]
132
Op.cit, 2000, p.41.
Essa imagem reflete uma espécie de “fortaleza” que a distancia do mundo, uma
vez que na vida exterior não há lugar para a explosão dos sentimentos contidos, assim
como nela não cabem as inúmeras criações feitas por Maria Clara. Isto constitui,
portanto, a angústia entre a percepção externa e a interna, pois como diz Jolande Jacobi:
“A maioria dos introvertidos levava [leva] uma vida exterior bastante monótona”.
133
Deste modo, entendemos que Maria Clara, introvertida por natureza, “ora
trancada no quarto ora sozinha no jardim, na parte mais escura...”,
134
descreve o mundo
que a cerca ou que ela segue construindo, quase sempre, com requintes e aspectos de
imponência e nele cria sua “bastilha” com estrutura que se aproxima do impenetrável.
Esses ambientes são criados, se não realisticamente, ao menos de forma a
conceder, por meio da imaginação fecunda e reconfortante, segurança para seu próprio
ego. Ao (re)criar o mundo por ela encontrado pronto, este ego lhe confere aspectos
grandiosos, eloqüentes e ilimitados, mais combinados, portanto, com sua personalidade
e desejos mais latentes, uma vez que isso pode ser caracterizado como um “problema
freqüente no introvertido, que teme a realidade e a vida exterior”.
135
Assim, entendemos
que por ser a existência externa de Maria Clara monótona ou com elementos difusos no
incremento de seus conflitos, ela subtrai, da aparência, os “ingredientes” necessários
para inventar e criar compulsivamente durante a noite que transcorre, cujo tempo é
medido pelo: “relógio na mesa-de-cabeceira a sugerir horas que não fazem parte do
tempo, há semanas que não existe o tempo (...) as horas que não existiam já, existiam os
ponteiros e, todavia qual a razão dos ponteiros mentirem, visto ser sempre noite”.
136
Assim, adotando por base os pressupostos filosófico e psicanalítico, somos
conduzidos a percorrer a caverna da memória e do inconsciente do mundo particular e
133
In: Símbolos em uma análise individual, p.275. Apud. Op cit. JUNG. [s/d]
134
Op. cit, 2000, p.417.
135
Op. cit. [s/d] p.281.
136
Op. cit. 2000, pp. 200/208.
coletivo de Maria Clara que, em seu intrincado universo de perdas, dissabores e
invenções, proporciona uma possível leitura dos conflitos humanos, o que engloba seus
temores, inquietações e fantasmas. Sentimentos estes que afloram sem compromisso
com seqüência lógica ou desenvolvimento linear dos fatos exatamente por serem as
lembranças fragmentadas e a construção do Eu estar vinculada às diversas formas da
personagem perceber, representar a vida e buscar soluções na reescrita dessa mesma
história.
É, pois, pela reflexão da teoria psicanalítica que vamos interpretar a explicação
para Maria Clara que, em suas livres [re]criações, mostra, pelo modo narrativo em seu
diário e em suas idas ao psicólogo, um conjunto constituído por conteúdos recalcados
aos quais foi recusado o acesso ao sistema p-consciente pela ação do recalque.
Para Freud, no inconsciente estão os principais determinantes da subjetividade:
energia psíquica nas pulsões e, também, elementos pulsionais não acessíveis à
consciência. Além disso, há o material que foi excluído da consciência, censurado e
recalcado. Este material não é esquecido nem perdido, no entanto, não é permitido ser
lembrado. O pensamento ou a memória ainda afetam a consciência, mas apenas
indiretamente. Trata-se do P-Consciente - uma parte do inconsciente que pode tornar-
se consciente com facilidade. As porções da memória que nos são facilmente acessíveis
fazem parte do P-Consciente, podem incluir as lembranças, o segundo nome, os
endereços onde moramos, algumas datas comemorativas, os alimentos preferidos, o
cheiro de certos perfumes e uma grande quantidade de outras experiências passadas. O
Pré-Consciente é como uma vasta área de posse das lembranças de que a consciência
precisa para desempenhar suas funções.
Desse modo, então, observamos que Maria Clara mergulha nas lembranças do
inconsciente: “... palavra que se pudesse ia-me embora já subia ao sótão, deixava de vê-
los a todos reduzidos a luzes que se acomodam no rés-do-chão...”.
137
Todos significam
seres familiares, seus fantasmas, ou seja, seus conflitos revolvidos. Essas luzes
contrastam também com o escuro do inconsciente, pois nada tem forma definida,
apenas “...uma sombra projetada nos canteiros....”,
138
uma vez que Maria Clara espera
que a “ boca das trevas abra-se logo e engula-os”.
139
Ela só é forte e inventiva longe do
que é real em um mundo cuja luz e sombra, ao se oporem, remete à reflexão:
Confiando à sabedoria humana o papel de foco luminoso para o qual o
espírito humano só é capaz de aprender seu objeto se estiver iluminado
por uma luz cuja fonte ele não traz em si, mas que lhe vem de um foco
luminoso transcendente a idéia do Bem, Deus.
140
Pontuados por esse aforismo podemos perceber, entre outras, uma mensagem
extremamente subjetiva que a personagem de Não entres tão depressa nessa noite
escura encerra: a estreita ligação entre o saber divino e a oportunidade de uma criatura
descentrada reinventar o mundo, ainda que este fique restrito à esfera estritamente
particular.
Outrossim, poderíamos dizer que Maria Clara está exposta a uma luz que reflete
toda sua vida interior, luz esta da qual nem ela mesma fazia idéia quando habitava o
mundo externo iluminado e com suas verdades e que, por isso mesmo, a fez caminhar
em direção contrária, ou seja, ao adentrar no escuro do sótão é que ela imagina que a
Luz será feita, pois “é o sol que, no mundo sensível, é por um lado para a vista, e por
outro para as coisas visíveis o que o Bem é por um lado a inteligência e por outro para
as coisas inteligíveis por ela concebidas”.
141
Assim, ela precisa recolher-se para o
mistério do escuro, pois ali sua intuição e os reflexos da luminosidade existente fora do
137
Idem, Ibidem, p.303.
138
Idem, ibidem, p. 303.
139
Idem, ibidem, p.303.
140
J. Brunschwing, in: Règles Apud: LEBRUN, Gerard. Sombra e Luz em Platão. In: O Olhar. Org.
Adauto Novaes. São Paulo: Companhia das Letras, 1988, p.23.
141
LEBRUN, Gerard. Sombra e Luz em Platão. In: O Olhar. Org. Adauto Novaes. São Paulo: Companhia
das Letras, 1988, p.24.
sótão farão com que suas idéias se concretizem em diferentes novas criações. É o
próprio Gênesis a se recriar.
Com este conceito se faz necessário o entendimento de perceber a especificidade
do sentido do olhar. Estando Maria Clara imersa em suas próprias sombras, ela
necessita do elemento externo para dar forma às suas descobertas ou invenções. A
ausência desse elemento que é a luz não impede que seus outros sentidos se
manifestem: ela toca, ouve e cheira. A ausência do sol, portanto, que, teoricamente, a
tornaria “cega”, devido à extrema dependência da visão em relação à luz, faz com que
esse sentido seja apurado não de forma a apreender o real, mas sim como aquele que
precisou do vazio, da ausência, para fazer a leitura do que não é palpável e, portanto,
não necessita de forma, podendo e devendo ser lido exclusivamente pelo inconsciente.
Maria Clara tenta destruir tudo aquilo que não pode construir a seu molde; é
exatamente o que ela não criou que lhe causa desconforto. O que demonstra uma
maneira de livrar-se do indesejado, pois são essas imagens que estão recalcadas em seu
inconsciente: “quanto mais sofria menos podia parar, a raiva de atingir o limite da dor e
para além do limite da dor, a seguir destruí-la”.
142
Há, portanto, a necessidade de criar e
destruir como forma de suprir essa dor, carregada de imensa carência, ao que Maria
Clara confessa: “bastava tocarem-me de leve, roçarem-me com um simples dedo para
que os pedacinhos de que me sentia feita se espalhassem no chão...”.
143
Neste rastro
surge Raquel, que na verdade é a própria Maria Clara - “... cheguei a enviar-me cartas
de Raquel...” -,
144
para fazê-la de fato existir. Este episódio demonstra a solidão total
da narradora que segue inventando pessoas como “...a amiga Dora Leonor Raquel”.
145
Maria Clara, em visita ao psicólogo, confirma essa condição ao lhe dizer:
142
Op. cit. 2000, p.143.
143
Idem, ibidem, p.291.
144
Idem, ibidem, p.144.
145
Idem, ibidem, p.154.
“...invento o tempo inteiro (...) depois de me ir embora separe a verdade da mentira.”
146
Na mentira, Maria Clara era sincera e imaginava que nem o psicólogo acreditava nela,
por isso se sentia à vontade para falar o que de fato era verdadeiro, ainda que seu desejo
fosse ter um amigo para falar com ela “sem relógio, nem dinheiro, nem nuvens.”
147
.
Este estar só, se alia à busca do sentido de seu vazio existencial. Buscar o Eu no
espelhamento do próprio rosto, na tentativa de conseguir encontrá-lo: “... a luz acesa no
espelho antes de se acender na parede e ao acender-se na parede a dizer-me quem
sou...”.
148
Assim, em busca daquilo que é consciente para poder dar forma ao que é
apenas em sentido figurado, ela sai da luz para a sombra e faz da aparência a realidade.
No curso dessa direção em que novas criaturas e fatos surgem, ela acredita que fez a
própria coisa daquilo que acreditava ser a coisa certa que antecedia cada etapa. Deste
modo, cada experiência contém os elementos críticos e sugestivos que melhor
preenchem as experiências anteriores na mistura de aspecto e fato.
Entre o fato e o não fato, no primeiro capítulo do romance, a elocução: “eu a
brincar às fadas com a minha irmã no rebordo do lago”,
149
abre espaço à interpretação
para a questão do dar forma ao que é inconsciente, sob a ótica que distingue os sonhos
dos contos de fadas. Segundo Bettelheim,
150
as diferenças significativas entre os sonhos
e os contos de fadas se processam em termos de, no primeiro, a satisfação dos desejos
ser disfarçada, enquanto no segundo, ser expressa abertamente. Tal diferença se dá
devido os sonhos serem
146
Idem ibidem, p.275.
147
Idem, ibidem, p.387.
148
Idem, ibidem.
149
Idem, ibidem, p. 15.
150
BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. Trad. Arlene Caetano. Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 1986.
o resultado de pressões internas que não encontram alívio de problemas
que bloqueiam uma pessoa, para os quais ela não conhece nenhuma
solução e para os quais os sonhos não encontram nenhuma. O conto de
fadas faz o oposto: ele projeta o alívio de todas as pressões e não só
oferece formas de resolver os problemas, mas promete uma solução
“feliz” para eles.
151
Deste modo, se não é possível controlar em termos consciente o que se passa nos
sonhos, o conto de fadas resulta do conteúdo comum consciente e inconsciente
moldado pela mente consciente não de uma pessoa em especial, mas do consenso de
várias a respeito do que consideram problemas humanos universais e o que aceitam
como soluções desejáveis”.
152
Maria Clara, portanto, projeta desde o início, ao brincar
com uma varinha e a irmã ao rebordo do lago, a criação da estória para a qual ela
também espera alcançar um final feliz, a partir das soluções desejáveis e satisfatórias
que ela elocubra ao longo de sua escrita em diário e, como em um conto de fadas,
encontre ressonância no vazio existencialista daqueles que, ao tomarem conhecimento
da estória, preenchem seu universo imaginativo, se sensibilizam com a fábula por ela
contada e a eternizam.
Assim, o quadro se completa na imagem de Maria Clara idealizando ser uma
fada que, com seu poder mágico, pode erguer sua varinha e satisfazer seus desejos mais
recalcados e criar muitas estórias. Dessa maneira, podemos dizer que Maria Clara não
desejava ser vista como “o homem da casa”, mas sim e de fato, como uma fada capaz
de transformar a própria vida da infância - que se projetou e se apresenta na fase adulta
-, pois o romance, quase finalizado, mostra seu marido tendo lido o diário dela e
pedindo-lhe que parasse com aquilo, ao que ela reage dizendo:
151
Idem, ibidem, p.46.
152
Idem, Ibidem, p. 46.
... não podia parar, sou uma fada com uma varinha de cana e uma
estrela de papel de seda com um dos ângulos dobrado, pintei os olhos e
a boca no toucador da minha mãe e mais fada ainda, a brilhar, embora
uma criança que não era eu nos limos do lago, uma estranha que não
vira nunca, o tal homem da casa de que minha mãe falava com
centopéias e joaninhas e escaravelhos no bolso a caminhar no escuro
apavorada com o escuro, a adormecer de luz acesa.
153
Por conseguinte, “a criança nos limos do lago” pode ser vista como uma
projeção de Maria Clara, uma vez que essa imagem ficava ofuscada pelo costume da
mãe em atribuir, o tempo todo, outro papel para ela. Entretanto, a tal criança, comporta
um perfil normalíssimo com seus bichinhos e “coisinhas- totalmente pertinentes ao
mundo infantil -, os quais eram trazidos junto a ela e que, ainda dentro desse universo
ingênuo, serviam como companheiros para ela transpor a noite que quase sempre foi
sinônimo de medo para as crianças. Faz sentido, portanto, Maria Clara, criar para
externar, em forma de conto de fadas, aquilo que ela desejava como solução para seus
problemas e, simultaneamente, eternização próspera de sua imagem, pois há que se
ressaltar, ainda, uma diferença fundamental entre o mito e o conto de fadas e seu final:
“O mito é pessimista, enquanto a estória de fadas é otimista (...) o final nos mitos é
quase sempre trágico, enquanto sempre feliz nos contos”.
154
Esse estado desarmonioso de Maria Clara vai desembocar exatamente na
terapia psicanalítica, ou seja, em suas idas ao psicólogo. Lá, ela tem a oportunidade de
melhor lidar com suas desordens e entendê-las, desde que não mostre resistência ao se
esconder sob a afirmativa de que “inventa o tempo todo”. Entendemos que ela faz isso
para continuar se refugiando e não se sentir constrangida em ter que percorrer o Outro
caminho, desconhecido daquele já tão familiar a ela e aos seus domínios.
Ao deitar-se no divã e entreter-se nas nuvens, Maria Clara se abandona e se
entrega numa imagem que traduz, em linguagem literária, lirismo e sensibilidade e na
153
Op. Cit. 2000, p. 546. (itálicos no original)
154
Op. Cit. 1986, p. 47.
interpretação psicanalítica, significantes - que não nos compete interpretar -, assim,
destacamos aquilo que entendemos como sendo o sentimento do desconforto da dor
existencial que nela é latente, ao confessar:
...as nuvens assim lentas, sem contornos, mudando de forma e doendo-
me por dentro tal como a minha mãe e o meu pai me doem por dentro, eu
me doo por dentro e por me doer por dentro invento sem parar
esperando que imagine que invento e desde que imagine que invento e
não acredite em mim torno-me capaz de ser sincera consigo.
155
E por que Maria Clara se dói por dentro a partir da imagem da nuvem? Antes de
respondermos a nossa própria indagação, recorremos à definição de Maria Alzira Seixo,
em que a professora diz que tal imagem, remete:
à confusão de idéias de Maria Clara (...) que mistura verdade com
mentira, existência com invenção, e sublinha ao médico que a emissão da
verdade é apenas um lugar (‘tópos’) da construção verossímil, o suporte
morfológico (‘em lugar de’) de uma alternativa de disfuncionamento
(nem pardais nem nuvens são a verdade de Maria Clara).
156
Assim, e com parte de nossa resposta já anunciada pelo recorte acima, podemos
continuar nossa interpretação sob dois aspectos. Primeiro: Maria Clara se dói por
dentro por estar no limiar do processo de abertura, com o analista, de seus conflitos. O
que, implicitamente, se correlaciona ao aspecto nebuloso com o qual ela pauta o mundo
que a circunda e se permitir que a luz transpasse a barreira das nuvens, ou seja, falar
franca e abertamente, inconscientemente, sabe que corre o risco de ter seu controle - do
mundo de sombras comprometido, descoberto e vulnerável. Segundo: conjecturamos
que a imagem de dor associada à leveza da nuvem, pode ser entendida como uma das
formas da representação da figura feminina no romance contemporâneo. Ao avesso dos
romances românticos do século XIX em que o herói é sempre masculino e enaltecido
emblematicamente por seu cinismo e qualidades, mas que, paralelamente, camufla os
155
Op. cit. 2000, p.365. (itálicos nossos)
156
Op. Cit. 2002, p. 411.
conflitos existenciais por não interessar tamanha exposição sentimental, no romance
contemporâneo, especificamente em Não entres tão depressa nessa noite escura, somos
convidados a desfraldar tal apologia. Novos significantes entram em ação. O
protagonista feminino - dita os rumos da história que segue. São as mulheres que
refletem “sobre a complexidade do mundo, que consciencializam e interiorizam as
experiências e vivências, que abordam os homens em forma de ‘objecto’. (...) As
mulheres de Lobo Antunes tornam-se, até, num certo tipo de ‘consciência apurada’ do
autor”.
157
E, desse modo, podemos dizer que a mulher assume um novo contexto na
narrativa contemporânea e rasga o manto imposto por Proudhon:
158
não é mais uma
figura submissa que, ou se casa com um homem escolhido pelo pai, ou irá para o
convento ou, ainda, se torna uma cortesã que irá morrer de tuberculose. Ao contrário,
ela constrói o próprio caminho e, nesse percurso, deixa suas chagas sangrarem
livremente na busca de seu objeto de prazer refletindo uma situação que era destinada
ao homem, e que, agora invertida, permite que façamos uma outra leitura do que ficou
dessa inversão de papéis.
Assim, entre os muitos aspectos que a literatura contemporânea permite analisar
na dicotomia homem/mulher, nos fixamos no ponto que nos interessa. Recortamos a
figura masculina do pai para estudo, pois entendemos que a sua representação é peça
fundamental àquela compreensão, tanto se observada pela teoria psicanalítica ou se
compreendida como metáfora de angústia existencial em personagens femininas que ao
deixarem emergir tal dilema contido, tornam possível uma melhor compreensão de sua
157
SPÁNKOVÁ. Silvie. Reflexões sobre o estatuto da personagem feminina nos romances de António
Lobo Antunes. In: A escrita e o mundo em António Lobo Antuns.Actas do Congresso Internacional da
Universidade de Évora. (orgs) CABRAL. Eunice, JORGE. Carlos J.F., ZURBACK. Cristiane. Lisboa:
Dom Quixote, 2003.
158
Pierre Jouseph Proudhon. (1809-1865). Anarquista francês que iniciou e propôs uma ciência da
sociedade.
construção identitária sob a ótica literária do século XX. Para tanto, buscamos em
Lacan, o grande freudiano,
159
os pressupostos teóricos para articularmos o sentido do
Real, do Simbólico e do Imaginário, com a figura do pai.
Jacques Lacan construiu uma tripartição conceitual que comporta o R.S.I.,
respectivamente: Real, Simbólico e Imaginário. Ao rever a obra de Freud, sob uma nova
perspectiva inspirada nas ciências de sua época - a lingüística, a antropologia estrutural
e a matemática - descobre, de forma tácita, três registros heterogêneos que constituem o
aparelho psíquico que são exatamente os descritos acima. A partir da concepção do “nó
borromeano”,
160
Lacan fez o entrelaçamento entre o Real, o Simbólico e o Imaginário e
atribuiu o sintoma definido no RSI, como efeito do simbólico no real, conforme se
observa nas palavras de Coutinho e Ferreira:
É o real, sob a forma de buraco, (...) como o nada que antecede o
aparecimento de toda a vida, que é recalcado (recalque original) para que
haja a inscrição de um significante, dando origem ao sintoma do homem
como ser falante. E o que foi recalcado para que o sintoma possa ter sido
constituído retorna nele sob a forma de uma falta que não cessa de não se
escrever. Se o sintoma é constituído pelo nó borromeano, quem seria o
agente deste nó? É o Nome-do-Pai. A função do Nome-do-Pai é fazer o
laço imaginário e o real, para que se estabeleça uma interligação entre
eles.
161
Dizem, ainda, os estudiosos:
...é bastante digno de nota que os três registros se definem tendo como
referência o simbólico, cuja estrutura é a mesma da linguagem e cujo
suporte é o Nome-do-pai. O real é o que está fora do simbólico, sendo
por isso mesmo definido como ‘o impossível de ser simbolizado’. O
imaginário é tudo o que diz respeito à imagem do corpo sem a mediação
da palavra, reduzindo as relações humanas à especularidade, o que faz
com que sejam anulados os limites e as diferenças entre o sujeito e o
outro como semelhante. No imaginário reina a lei do transitivismo, onde
o eu se torna sinônimo do outro.O caráter de univocidade do imaginário
elimina a ambigüidade, a polissemia e o equívoco, marcas indeléveis do
simbólico.
162
159
JORGE, Marco Antonio Coutinho. FERREIRA, Nadiá P. Lacan, o grande freudiano. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar , 2005.
160
Refere-se à existência de um tipo de nó nos brasões de uma família de Milão, apresentado a Lacan por
uma jovem matemática, e que pode ser consultado in Op. Cit. 2005.
161
Op. Cit.2005, p. 31.
162
Idem, ibidem, pp.35/36.
Explanado, portanto, o real, o simbólico e o imaginário, a partir da concepção
lacaniana e considerando ainda que a questão do pai não é facilmente equacionada em
sua obra, devemos considerar que ele retoma a teoria freudiana dos complexos de
castração e de Édipo para articulá-la com a metáfora paterna cujo conceito fora
elaborado em seus seminários, objetivando estabelecer as funções do pai no processo de
simbolização. “Esse processo de simbolização se realiza em três tempos: frustração,
castração e privação. Cada um desses três tempos é marcado pela falta do objeto”.
163
Dessa maneira, passamos a assinalar os três registros da estrutura para a função do pai,
assinalados em Sob os véus da castração a questão do pai na modernidade e na
contemporaneidade.
164
O primeiro registro é o Simbólico, assinala o Pai enquanto significante (aquele
que é nomeado pai). É o campo da linguagem, do discurso e suas leis. A função
simbólica é a origem (nome do pai); e a Lei a lei funda o desejo. O Nome-do-Pai é a
metáfora que substitui o Desejo-da-mãe, tornando-se representante do Outro.
O segundo registro é o Real que assinala o Pai atuando como agente da
castração enquanto signo do drama de Édipo. Está no registro do impossível, só pode
comparecer como falta, vazio. O Pai real: o proibidor, o terrível.
O último registro é o Imaginário que distingue o Pai desempenhando a função
de agente da privação e assim ser investido de onipotência ou impotência. Coloca-se no
plano do sentido e da imagem.
Dependendo do modo como esses registros se articulam em relação um a outro,
qualquer elemento só passa a ter valor dependendo do lugar que ele ocupa em relação
aos outros, e quem ata toda essa estrutura é o Pai como função.
163
Idem, ibidem, p.51.
164
FERREIRA. Nadiá Paulo. In: DAVID, Sérgio Nazar (org.). O que é um pai? Rio de Janeiro: EdUERJ,
1997.
O Pai imaginário, sinônimo de pai idealizado, divide-se em dois: o Herói que é
sempre mediado pela palavra da mãe; e o Denegrido que nunca será mediado pela mãe,
e poderá ser substituído pelo avô, tio ou outra figura masculina.
O Pai desempenhará seu papel de genitor ou não, dependendo do discurso da
mãe. O pai enquanto Lei só terá força se tiver a aprovação da mãe, ou seja, da fala da
mãe. É a mãe que transmite a Lei, mas para isso é necessário que ela também esteja
submetida a alguma Lei e que esta esteja além dela e em sua maneira de se relacionar
com o mundo, seja ele social ou profissional. A lei se introduz quando a mãe diz “não”.
A Lei introduzida é a função paterna atuando e a confirmação dependerá sempre da
palavra da mãe.
Assim, ao retomarmos Não entres tão depressa nessa noite escura, nota-se que
há a presença da mãe, portanto, a Lei foi introduzida e a função paterna atuou e se
confirmou devido à fala materna presente. Mas, quem verdadeiramente é esse pai
“domesticado sem protestar com nada?”.
165
Aquele que permite um questionamento
acerca da figura do pai, que tanto pode abrigar, concomitantemente, o Simbólico, com
seu discurso e Lei e que também foi nomeado pai e o Real, na atitude proibidora da filha
ter acesso ao sótão, conforme se observa na primeira frase do romance: “O meu pai
nunca me deixou entrar aqui”.
166
Aparentemente tudo estaria esclarecido não fosse esse pai Real convertido em
pai Imaginário e, portanto, a causa principal de Maria Clara querer vê-lo investido de
onipotência, e não impotente no rumo que sua vida teve, sempre ditada pela fala de
Amélia - sua mulher - e, ainda, no desfecho que o aguarda, ou seja, a iminência da
morte.
165
Op. Cit, 2000, p.18.
166
Idem, ibidem, p.15.
Como pai Simbólico, nenhuma dúvida de que essa função se cumpriu. Como pai
Real, por estar no registro do impossível, é na ausência de sua presença e no vazio de
sua extenuação que é possível a filha partir para as buscas e elucidações de seus
conflitos, assim como a conquista de seu Bem. Quanto ao Imaginário, acreditamos que
Amélia, “...sempre cheia de palavras e muda”,
167
aparentemente, submissa às atitudes
tomadas por Luis Felipe, ficou longe de fazer dele o Herói. Ao incutir na mentalidade
de Maria Clara que ela era “O homem da casa”, toda “do lado do pai”, que “ele nunca
teve família”,
168
era o “filho de uma criada e de um vagabundo qualquer,
169
fez da
filha a própria extensão representante do Outro, ou seja, do pai Denegrido, já que esse
pode ser substituído por qualquer outra figura masculina - e esta seria Maria Clara
transformada e, nesta condição, nossa protagonista constrói, no plano do sentido e da
imagem, o pai idealizado. Por ele sofre, questiona, busca, inventa e lhe confere outro
status e poder de fala o qual Amélia não poderá destruir. Avança o limite do sótão, “a
vasculhar a família que nunca existiu, nos armários, nas arcas”,
170
repete o gesto do pai
ao sentar-se na cadeira de balanço e nos conduz pensar ser essa a causa primordial da
busca do Eu por Maria Clara, pois ao dizer: “se o meu pai não tem família, nunca teve
família, que família é a minha”,
171
reflete sua condição consciente, porém descentrada
no mundo. E, ainda, ao adentrar no sótão, rompendo com a interdição paterna, o elege
como lugar da busca do Outro e lhe atribui o importante componente “da reflexão, da
indagação, da penetração no mistério de existir, da descoberta perplexa (intrigada e
intrigante) dos outros, e nomeadamente do outro, que é ainda e quase sempre o Pai”.
172
167
Idem Ibidem, p.64.
168
Idem, ibidem, p.32.
169
Idem, ibidem, p.125.
170
Idem Ibidem, p.34.
171
Idem, Ibidem, p.56.
172
Op cit. SEIXO, 2002, p. 395.
3.3 A REFLEXÃO DA ESCRITA:
NÃO ENTRES TÃO DEPRESSA NESSA NOITE ESCURA: A NOITE
GENESÍACA DO EU.
A primeira noite é ainda uma construção do dia. É
o dia que faz a noite, que se edifica na noite: a
noite só fala do dia, é o seu pressentimento, é a
sua reserva e profundidade. Tudo acaba na noite,
é por isso que existe o dia.
173
Maurice Blanchot
O título escolhido para a abertura deste capítulo implica necessariamente na
leitura que nos instrumentaliza para uma reflexão acerca dos vínculos que existem entre
as imagens do sótão e da noite e as articulações possíveis entre o Gênesis e o processo
de construção romanesca. Ao percebermos esses significantes como símbolos possíveis
no desenvolvimento de tal hipótese buscamos correlacionar o sentido da alegoria da
caverna com os demais elementos aí implicados.
Sabemos que o conceito de ‘alegoria’, estabelece uma relação tensa com o
‘simbólico’, mas como situar esse simbólico na nomeação e interpretação do romance
contemporâneo, cujas imagens, extremamente subjetivas, por si só expressam a própria
representação emblemática daquilo que se apresenta em seu sentido interno? Necessário
se faz retomar o pensamento de Walter Benjamim, na análise feita por Kátia Muricy
174
a
respeito das alegorias da dialética, em que se lê:
173
Op. cit, 1987.
174
MURICY. Kátia. Alegorias da dialética. Imagem e pensamento em Walter Benjamim. Rio de Janeiro:
Relume Dumará, 1999.
A teoria da alegoria de Benjamim muito mais do que constituir a
categoria chave para a compreensão do barroco literário alemão do
século XVII quer constituir-se como uma categoria estética capaz de dar
conta das características de sua contemporaneidade artística. O caráter
crítico das considerações é evidente. Por um lado o conceito de símbolo
não serve mais como noção explicativa para os fenômenos estéticos da
atualidade. Por outro, o conceito de alegoria, sempre secundário e
derivado em relação ao de símbolo, é, justamente, o conceito pertinente
para a compreensão da atualidade estética.
175
Buscamos, ainda, compreender e situar tal conceituação no panorama da
atualidade estética, observando que Benjamim inicia sua teoria da alegoria fazendo uma
revelação àquilo que se refere a uma distorção da estética romântica em que estaria
embutido o conceito de símbolo. É Walter Benjamim
176
quem diz:
Há mais de cem anos que a filosofia da arte é dominada por um
usurpador que chegou ao poder no caos gerado pelo romantismo. O
desejo da estética romântica de chegar ao conhecimento de um absoluto,
reverberante e em última instância não vinculativo, permitiu que se
instalasse nos mais simplistas debates estéticos um conceito de símbolo
que nada tem de comum com o autêntico, exceto a designação. Trata-se
de um conceito que, oriundo do domínio teológico, nunca poderia ter
derramado na filosofia do belo aquela penumbra da alma que se foi
tornando mais densa desde o primeiro romantismo.
177
Entende-se, deste modo, que Benjamim faz a correção da compreensão
desvirtuada do símbolo a partir daquilo que ele chama de “contra-senso do símbolo
teológico”, ou seja, a coesão do componente sensível e do supra-sensível , cuja unidade
promulga a indissociabilidade da forma e do conteúdo. É no horizonte teológico que
Benjamim encontra a concepção autêntica de símbolo com a qual pretende restaurar, na
filosofia da arte, não só o lugar do símbolo, mas também o da alegoria”.
178
Assim, admitimos que a teoria benjaminiana comporta um estudo detalhado e
metódico. Entretanto, podemos dizer, que os recortes acima já nos são, por ora,
suficientes para avançarmos em nossas considerações a respeito de Não entres tão
175
Idem, ibidem, p.159.
176
Op. cit.BENJAMIM. 2004.
177
Idem, Ibidem, p.173.
178
Op. Cit. MURICY, 1999, p. 160.
depressa nessa noite escura A noite genesíaca do Eu , principalmente pela
aproximação do “horizonte teológico” com os subsídios encontrados no romance e
aqueles que destacamos como sinais de símbolos que ocupam categoricamente o lugar
da alegoria.
Se em As naus
179
é possível observar que a alegoria textual se processa na
carnavalização ridicularizada das personagens que simbolizam os mitos fundadores da
identidade nacional portuguesa, em Não entres tão depressa nessa noite escura uma
nova alegoria entra em cena: a do sujeito descentrado a quem falta o paradigma da
própria identidade para que possa se construir, genesiacamente, e se estabelecer no
contexto da existência.
Começamos pelo título - Não entres tão depressa nessa noite escura que, com
sua forma negativa imperativa Não, a referência à circunstância, tão depressa e,
especificamente, o determinante, nessa, ganha sua força apelativa diante da inquietante
busca pelas descobertas que gradativamente serão feitas. Diríamos, também, que o título
do romance desperta e inquieta para o aviso que o mesmo sugere, pois ”não entrar tão
depressa nessa noite escura” funciona como uma advertência ou um aviso para aquele
que está à beira da morte ou da descoberta de um segredo, ou, ainda, para aquele que se
propõe a ler e a estar preparado para adentrar nas quinhentas e cinqüenta e duas páginas
do romance sem saber o que lá encontrará. Ao aceitar percorrer todo o conteúdo, as
descobertas podem ser únicas e singulares e coincidirem com aquilo que Lobo Antunes
chamou de “um assombrado vaivém de ondas que levarão ao encontro da treva fatal”,
180
na qual, inevitavelmente, o leitor se verá refletido e imerso.
Assim, após observarmos o processo de leitura da obra do escritor português,
passamos a assinalar traços característicos da composição romanesca. Ao trazer para a
179
ANTUNES. António Lobo. As Naus. 3ª ed. Lisboa: D.Quixote, 1990.
180
LOBO ANTUNES, António. “Receita para me lerem”. Separata.
escrita elementos que privilegiam o sujeito solitário e multifacetado como principal
vetor do texto, Lobo Antunes nos dá a exata dimensão de Não entres tão depressa nessa
noite escura, pois, nessa narrativa ficcional, pode-se vislumbrar a interpretação da vida -
ainda que o enfoque recaia sobre a morte - por intermédio das palavras, cujo produto é a
imaginação criadora que, como arte, tem suas raízes fincadas na experiência humana.
Na narrativa sobressaem, de imediato, as intersecções entre dois tempos - o
passado e o presente - e entre dois aspectos - a fantasia e a realidade -, em um mundo
revisitado e reinventado a partir de um cenário construído sobre os fragmentos da
memória, do imaginário e do inconsciente de Maria Clara. Tais registros são
encontrados na escrita do seu diário - que “sentava-se no caramanchão a escrever no
diário sem se interessar por ninguém...” -,
181
em composição diretamente ligada ao
Gênesis e à criação do mundo. Ao escrever, reescrever, criar, mudar situações e
inventar pessoas e situações, a personagem referida assume o ato genesíaco da criação
romanesca. Termina, assim, por mesclar a ficção geral do livro com a escrita dela
própria enquanto personagem central da ficção. É, portanto, por meio dessa escrita,
que funciona como território livre da personagem, que se observa a construção e
desconstrução de tudo aquilo que parece indicar êxito na ficção geral. Este processo
pode ser percebido, por exemplo, quando Maria Clara, a certa altura, permite que a
irmã, Ana Maria, escreva no diário as suas próprias impressões - “A Ana já não pode
lamentar-se e protestar pelos cantos que a não deixei falar: chamei-a ao meu quarto,
apontei-lhe a secretária, emprestei-lhe o diário”
182
as quais, naturalmente, são
diferentes das de Maria Clara para, posteriormente, rasurá-las.
O livro abrange trinta e cinco capítulos, integrados em sete partes não
numeradas, separadas por citações do início do gênesis bíblico, anunciando,
181
Op. cit. 2000, p. 433. (itálico no original)
182
Idem, Ibidem, p. 433.
antecipadamente, um período coberto pelo abismo das trevas, ou seja, o princípio, a
criação, o começar uma história que pode ser resumida nos binômios: Trevas/Luz;
Céu/Terra, Noite/Sol; Estrelas/Dias; Peixes/Pássaros; Homem/Mulher;
Descanso/Paralisação.
A análise dessas subpartes comporta um estudo sistemático.
183
Não sendo essa
nossa proposição, nos atemos a uma definição sucinta, de maneira que possamos
mostrar, em uma visão global, o conjunto aí compreendido. A estas subpartes entenda-
se como a criação do romance (como já foi dito, concebido em analogia livre com o
livro bíblico da criação do mundo), em que os diversos componentes, imbuídos em
cada um desses pares, aparecem, gradativamente, no surgimento das espécies ao longo
da narrativa e, que, desse modo, compõem o cenário em que a história é contada. Ou,
ainda, a escrita efetuada por Maria Clara que transpõe a noite para transfigurá-la em
aspectos diversos e fazê-la coexistir com os elementos que também compõem o dia
colocando, lado a lado, a noite e o dia, conforme se observa nas palavras da professora
Maria Alzira Seixo, no seguinte recorte:
Maria Clara escreve, então, de certo modo, para diferir a escuridão que
limita o dia, na medida em que, na ordem do discurso, ‘houve uma tarde
e uma manhã’, que configuram ‘o primeiro dia’, a noite está ela própria
no centro do dia, ainda enquanto trevas, e participa da sua ordenação, tal
como a morte (noite?) e a sua tristeza assombrada (trevas?), como os
sótãos (trevas?) cheios de sinais heurísticos para existências a desvelar
(luminárias?), que, ao modo de Mallarmé, caminha em negro sobre
branco para uma manifestação do inquietante ser através de uma
qualquer forma do saber que se escreve. É assim, este livro, considerado
sob vários ângulos, o livro da criação.
184
Prosseguindo com nossas considerações, observamos que a narrativa,
centralizada em uma única pessoa, faz com que o enredo do romance gire em torno das
183
A esse respeito ver Maria Alzira Seixo, em Os romances de António Lobo Antunes, texto em que a
professora faz um minucioso estudo acerca da criação do mundo paralelamente à criação romanesca de
Não entres tão depressa nessa noite escura.
184
Op. cit. 2002, p.397.
lembranças de Maria Clara que, em dois planos temporais, a infância e o tempo
presente, amplia seus pensamentos a partir do desenvolvimento da doença do pai que se
encontra internado e oscila entre a vida e a morte. É por meio da escrita, portanto, que a
narração revela-se ao leitor como sendo processada em um diário - o qual funciona
como uma espécie de confessor -, para o qual verte os sentimentos de Maria Clara ao
assinalar os diversos registros da vida familiar, misturar personagens e fatos ora reais,
ora inventados, os quais compreendem seus sonhos, desejos e medos, em meio à
descrições obsessivas de lugares e estados mentais.
A narrativa, construída com base na rememoração de acontecimentos do
passado, faz disso algo duplamente fulcral em Não entres tão depressa nessa noite
escura: para a personagem-narradora, tal construção é basilar para tentar compreender
seu drama e saber quem ela é; para o corpo da narrativa é o pilar em que se alicerçam os
espaços e tempos psicológicos. Acrescenta-se a isso a originalidade com que Lobo
Antunes esquematiza, minuciosamente, o mundo familiar e doméstico, com seus
códigos e regras e, essencialmente, um universo emocional de extrema complexidade.
Nesse cenário é que cada elemento possui destaque e importância própria e
particular, uma vez que termina por refletir no conjunto das imagens “das salas de
percurso habitacional corrente”
185
aliadas as do sótão e do jardim, “como os espaços
domésticos de maior vigor e conflito”.
186
As cortinas, por exemplo, merecem destaque.
Ao voejarem, transmitem sombras filtradas da luz dos freixos ou do cheiro dos goivos
do jardim. Acreditamos que de outra maneira não poderia ser, pois é por meio das
sombras e dos sentidos, uma vez que “a vista e o olfacto preenchem a maioria do
universo sensorial do romance”,
187
que Maria Clara vê e nos permite observar o seu
185
Idem, ibidem, 394.
186
Idem, Ibidem, p. 394.
187
Idem, Ibidem p.402.
intricado universo pessoal, intenso e inquietante.
Lembrando o filósofo Didi-Huberman,
188
em sua teoria relacionada ao ato de
como o sujeito vê determinada coisa sem conseguir manter-se até o fim e que, este
modo de olhar, irremediavelmente, acabará retornando naquilo que ele acredita apenas
ver, identificamos que em Não entres tão depressa noite escura a construção textual
pode ser vista por esse viés. Nesse jogo atemporal, observa-se que os fatos reais
mesclam-se aos fatos imaginados, o leitor, para não se sentir à deriva na interpretação
da escrita, precisa saber, de fato, aquilo que, simbolicamente, vê ou precisa ver para
poder entender o que está sendo comunicado e desprender-se da lógica linear dos fatos.
Desse modo, portanto, somos conduzidos a “ver” e acompanhar o processo de
criação de Não entres tão depressa nessa noite escura. A noite, como imagem
recorrente nos romances antunianos, pode apresentar vários significados que se cruzam,
intercalam e lentamente se dissipam.
Poderíamos presumir que toda a narrativa se desenvolve em uma única noite,
assim como em Os Cús de Judas,
189
ou ainda, em uma noite central, como a da véspera
de Natal de O esplendor de Portugal,
190
uma vez que o próprio título “nessa noite”
indica que há uma noite a ser vencida. Não entres tão depressa nessa noite escura,
porém, não segue esse estilo. A noite, aqui, não é determinada por datas ou um outro
fato específico, ela se caracteriza como uma noite que poderia ser perfeitamente
identificada àquela do arquitetônico trabalho da Criação. Seu requinte de finitude se dá
ao completar as referidas sete partes que dividem a narrativa, pois a protagonista, ao
preencher o vazio existente com a vida que nela pulsa e clama por ganhar forma,
confunde essa mesma noite com a história do céu e da terra e ordena que o dia se
188
HUBERMAN. Georges Didi. O que vemos, o que nos olha. Trad. Paulo Neves. São Paulo: Editora 34,
1998.
189
Op. cit. 1984.
190
ANTUNES. António Lobo. O esplendor de Portugal. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
estabeleça e, com ele, a “Luz se faça”, para que a luminosidade, proveniente daí, possa
aparecer, conforme define a professora Maria Alzira Seixo, como:
A luz metafórica que ofusca é a do conhecimento, ou a desse dia quase
perpétuo que integra as cenas de Não entres tão depressa nessa noite
escura, o dia simbólico e exemplar que em si reúne o saldo de sentido
dos sete dias da criação, composto por: luz, céu, terra, água e vegetação,
luminárias, animais, homem e mulher, fecundação e repouso.
191
Outrossim, observamos que há uma noite marcadamente significativa no tempo
subjetivo da protagonista do romance, noite esta que seria exatamente aquela que
interdita o dia para estabelecer-se, ou seja, a da morte do pai de Maria Clara. É, ainda,
a noite que faz com que Maria Clara saia da letargia em que se encontrava para buscar
a luz, o esclarecimento para seus questionamentos e inquietações até então reprimidos
pela presença do pai, naquilo que se refere aos “tesoiros” ocultos no sótão. Afinal, a
primeira frase (aquela já conhecida por nós) que a personagem esboça é: “O meu pai
nunca me deixou entrar aqui”.
192
Aqui é exatamente o sótão, a caverna, a noite, o
escuro que ela tentará “clarear”, tal como no Gênesis, dissipando as trevas da luz e
com elas os segredos ali guardados e mantidos sob a estrita vigilância do pai. Vencida,
portanto, a interdição paterna, ela se sente totalmente livre para imergir em toda a
história que o envolvia e se encerrava no sótão, uma vez que esse compartimento pode
ser visto como “um lugar de sonho fascinado e de pesadelo temido, um lugar de
entrada no interdito das coisas ocultas das pessoas mais velhas, um lugar de
contaminação das idades e dos tempos”.
193
Assim, nesse recinto em que se misturam
os tempos, os fatos e as emoções, Maria Clara recua e avança simultaneamente em
suas buscas para, desse modo, tornar mais fácil combinar a criação que já se conheceu
pronta com aquela que se desejou, mesclando, portanto, realidade e imaginação.
191
Op. cit. 2002, p.409.
192
Op.cit. 2000, p.15.
193
Op. cit. 2002, p.395. (itálicos nossos)
Assim, é possível entender o paralelo utilizado por Lobo Antunes com o livro
sagrado ao separar a narrativa em sete partes. Tal procedimento, que termina por
justificar a estrutura externa do livro, nos faz lembrar que, conforme diz o Gênesis, “O
criador” demorou uma semana que, como é sabido por todos, se compõe de sete dias
- para criar o mundo. Esse também pode ser, no campo da hipótese, o tempo simbólico
e emblemático que Maria Clara leva para percorrer, criar e alterar os fatos de sua vida
e da família no pretérito que ela revisita no presente, na condição de adulta e não mais
de menina. Tal fato indica o tempo psicológico (tempo subjetivo, vivido ou sentido
pela personagem, que flui em consonância com o estado de espírito em que ela se
encontra) percorrido por Maria Clara e que se manifesta em suas próprias palavras,
perto do fim do romance: “me lembro da véspera da chegada do meu pai da clínica, há
dez ou onze anos, o tempo dentro de mim é tão rápido e o tempo fora de mim tão
lento...”.
194
Ao nos referirmos ao tempo do romance, recorremos a Vítor Manuel de Aguiar
e Silva
195
para esclarecer o tempo da diegese. É o professor quem diz:
A diegese como sucessão de eventos comportando um “antes, um
“agora” e um “depois”, é inconcebível fora do fluxo do tempo. O
discurso narrativo que institui o universo diegético, existe também, como
seqüência mais ou menos extensa de enunciados, no plano da
temporalidade (...) O tempo da diegese comporta um tempo objectivo,
um tempo ‘público’, delimitado e caracterizado por indicadores
estritamente cronológicos atinentes ao calendário do ano civil anos,
meses, dias, sem esquecer em certos casos as horas, por informações
relacionadas ainda com este calendário, mas apresentando sobretudo um
significado cósmico ritmo das estações, ritmo dos dias e das noites por
dados concernentes a uma determinada época histórica.
196
Portanto, para se medir no discurso narrativo um tempo objetivo, é necessário
que o enredo forneça dados igualmente objetivos, ou seja, algum elemento dentre
194
Op. cit. 2000, p.447.
195
Op. cit SILVA, 1988.
196
Idem, Ibidem, pp 746-747.
aqueles descritos por Silva para que se situe o tempo no qual se desenrolam os fatos.
Entretanto, a diegese comporta um outro tempo que pode ser classificado como “um
tempo mais fluido e mais complexo”,
197
ou seja, o tempo subjetivo e vivencial das
personagens. É este tempo que particularmente gostaríamos de frisar em nossa leitura,
pois é a partir dele que se estabelecem as relações temporais de Não entres tão depressa
nessa noite escura. Como escrevera o crítico português:
Esta temporalidade, refractária à linearidade cronológica, heteromórfica
em relação ao tempo do calendário e do relógio, é entretecida num
presente que ora se afunda na memória, muitas vezes involuntária, ora se
projeta no futuro, ora pára e se esvazia. Este tempo ‘politemporal’,
diferente mas não dissociado do tempo objectivo e do tempo histórico
uma determinada vivência privada e íntima do tempo exprime ou
reflecte, em parte, uma determinada problemática do tempo histórico, do
tempo ‘público’-, caracteriza-se particularmente a diegese do chamado
‘romance psicológico moderno’, isto é um romance contemporâneo.
198
Dessa maneira, se podemos afirmar que o tempo do romance não é elaborado de
forma objetiva, mas ao contrário, subjetiva, não seria demais propor que, ao recompor a
experiência vivida, Maria Clara não entra “tão depressa” na noite escura da criação,
uma vez que a tudo precisa observar cuidadosamente para que possa, a partir daí, criar
as espécies que habitarão a terra e formarão o seu mundo. Afinal, ela (re)cria a história
em que não escolheu estar, a tecitura de que foi feita sua origem. Origem que, entre
outros aspectos, lembra traços do hibridismo e do preconceito social (dos quais
falaremos mais adiante) em que sua família fora e se encontra constituída.
Entrar, portanto, depressa demais nos fragmentos da memória uma vez que a
maioria dessas memórias pode não ser prazerosa e funcionar também como sinônimo
de experiência da alteridade e da procura da própria identidade
199
na caverna genesíaca
197
Idem, Ibidem, p.747.
198
Idem, Ibidem, p. 748.
199
Conforme registra LE GOF, Jacques, em História e Memória. Trad. Irene Ferreira, Bernardo Leitão e
Suzana Ferreira Borges. São Paulo: Editora UNICAMP, 2003, p. 469, referindo-se à memória como: “um
elemento essencial do que se costuma chamar identidade, individual ou coletiva cuja busca é uma das
atividades fundamentais dos indivíduos e das sociedades de hoje, na febre e na angústia”.
do Eu, pode ser por demais penoso, pois, o que o sótão guarda, abriga muitas noites de
criação. Assim, esse lugar de busca, determinante em todo o corpo textual, pode ser
caracterizado como o lugar da memória que se fundamenta no complexo espaço-tempo
em que a personagem se movimenta. É interessante observar o comentário de Maria
Alzira Seixo a respeito deste tema. Diz a professora:
...os romances de Lobo Antunes são textos sobre o tempo, se não fosse o
facto de que esse tempo, qualquer tempo experenciado pelo narrador ou
por algumas de suas personagens, é sempre, afinal, a duração actualizada
dos vários planos da memória, que confluem numa mente singular e a
remetem ao espaço que a enunciação indicia; por outro lado, a
enunciação, que é forçosamente o agora da proferição da palavra do
presente, mesmo que em evanescente fluir, não aponta, como deveria
fazê-lo numa relação de comunicação normalizada, para o lugar da
continuidade existencial do sujeito no momento em que fala, visto que
ela presentifica outros tempos e, ao fazê-lo, convoca irremediavelmente
outros lugares.
200
Desse modo, o “gênesis”, em Não entres tão depressa nessa noite escura, pode
ser lido como aquele que advém das inquietações geradas pelo desconforto em que se
encontra Maria Clara, já agora alçada à categoria daquela que representa as
inquietações do mundo em que se encontra retratada, é rotulada como “o homem da
casa”. Homem? Sim, pois o Homem é aqui tomado como símbolo primeiro da criação.
Ao ser investida de tal caracterização, Maria Clara torna-se livre na multiplicação
imaginária de outros seres para habitarem com ela um mundo ainda em processo de
descobertas, desenvolvimento e amadurecimento.
É, pois, na simbólica cadeira de “baloiço” - “... agora que ninguém me proíbe,
(...) ficava horas seguidas na cadeira de baloiço” -,
201
local em que outrora se sentava
o pai, que Maria Clara irá se sentar e metaforicamente abrir o baú das lembranças para
atualizar o passado no presente e, desse modo, adentrar no túnel escuro da memória e
do conhecimento, cujas galerias abrigam construções e destruições de pessoas e fatos.
200
Op. cit. 2002, p. 492.
201
Op. cit. 2000, p.15.
O leitor, portanto, depara-se como “o homem da casa” a vasculhar a família e o
passado em seu ritmo balançante de idas e vindas. Sua atitude também implica, a partir
da expressão utilizada pela mãe ao referir-se a menina, o anseio por elucidar a
verdadeira preferência afetiva do pai, uma vez que Maria Clara atribui a ela essa
primazia, conforme nos diz a professora Maria Alzira Seixo no seguinte recorte:
... é assim, de algum modo, a ‘noite escura’ onde entra Maria Clara,
premonitoriamente por seu nome destinada a esclarecer mistérios ou
iluminar o escuro dos segredos da família (...) descobrir os seus segredos
de jovem e o seu destino sem cor, (...) e o seu afecto pelas filhas, tácito e
inexpressivo, de algum modo também incolor, que Maria Clara converte
numa clara preferência por ela própria, que é, na expressão da mãe, ‘o
homem da casa.
202
Maria Clara surge como símbolo de força e unidade criadora da espécie
humana o elemento para a “criação de outro mundo”, imaginário e utópico, em que
desafetos, armas, negócios escusos, guerras e preconceitos de cor, raça ou classe social
não tivessem lugar; apenas jardins, flores, árvores, lagos, crianças brincando e adultos
centrados comporiam o novo cenário. Ambiente sonhado, todavia, tão fictício para se
tornar real como imaginar, em pleno século XXI, um mundo em que as mazelas,
diferenças e preconceitos - em amplo sentido - sofrimentos e conflitos, causados pelo
próprio homem, pudessem ser resolvidos. Afinal não é assim que se percebe, por trás
do não dito, o desejo maior de Maria Clara?
Neste ponto julgamos oportuno assinalar que as obras de António Lobo Antunes
ganham cada vez mais novos leitores, o que pode ser visto como reflexo de um escritor
que consegue, apesar de não obedecer a um cânone tradicionalmente concebido,
retratar, em sua escrita ficcional, enredos polêmicos intimamente ligados à História de
Portugal e, por extensão, à guerra colonial africana (particularmente em Angola),
mostrando as causas e conseqüências desse período. O escritor adota, portanto, uma
202
Idem, Ibidem, p. 395.
nova atitude estética e ética perante o quadro social e político português e trilha um
caminho diferente daquele tradicionalmente repetido.
Em Não entres tão depressa nessa noite escura, o aspecto, acima mencionado,
não ficou excluído. Observa-se, no romance, vestígios dessa temática: a família
enriqueceu com o comércio ilícito de tráfico de armas, tramado de forma obscura e
descoberto por Maria Clara, ao perscrutar o sótão:
...um baú de facturas no sótão, morteiros, bazucas, revólveres, minas, a
minha mãe se eu lhe contasse (...) diante de telegramas da Líbia ou do
Sudão, propostas, recusas, extractos de banco a minha filha a mostrar-
me aquela vergonha na casa do meu avô,
203
Com acuidade é possível perceber, ainda, por uma das falas de Maria Clara, que
esse fato era grande gerador de seus conflitos e escondia uma de suas dores mais
silenciosas. Ao inventar a colega de escola Vitória, “...cujo pai construía girafas para
carrosséis...”,
204
em forte oposição ao trabalho de seu pai, que fazia negócios com o
comércio de armas, é possível entender que essa invenção surge como desejo recalcado
das qualidades que Maria Clara vê nos outros, assim como as qualidades que gostaria
de atribuir a seus familiares, como ela confessa: “...há momentos em que me custa tanto
ser filha dos meus pais...”.
205
Podemos entender tais conflitos, que se mostram como
herança típica do período ditatorial, como marcas intensas nas pessoas direta ou
indiretamente subordinadas a uma situação familiar e política por elas não escolhida.
Maria Clara, a que traz a luz no nome, gradativamente adentra nas brumas do
Eu para melhor conviver e conhecer os inúmeros fantasmas e os diversos nomes sem
rostos que habitam seu inconsciente. Incursionando por esse inconsciente, vamos
encontrar uma multiplicidade de personagens a construir uma polifonia de vozes que
se alteram e intercalam no universo narrativo e criativo de Maria Clara. São elas: o
203
Op. cit. 2000, p. 45. (itálicos no original)
204
Idem, Ibidem, p. 298.
205
Idem, ibidem, p.322.
avô Hernani; a avó paterna, tratada por “a menina”, o pai Luís Felipe; a mãe Amélia;
a tia e também empregada Adelaide e a irmã Ana Maria. Vale ressaltar que algumas
personagens compõem, como em uma formação genealógica, a origem de Maria
Clara. Além delas encontramos, ainda: O marido, O professor; O psicólogo;
Leopoldina; Raquel; Idalina; Senhor General; o presidente Krüger; João; César;
Manuel; Elvira Ernestina Violante Dulce; Lucinda Lourdes Judite; Afonso Henriques;
Margarida; o chofer Sr. Louro; Dna. Irineia; Germano; Ernesto, e os primos e
primas: Enteroviofórmio e Argirol, Hemoglobina e Glicémia.
Por esta quantidade de personagens (algumas sugestivamente nomeadas) já se
torna possível perceber como Maria Clara constrói e desconstrói pessoas, ressaltando
que algumas existem, enquanto outras são apenas frutos da sua imaginação. Como se
fosse um jogo, como aquele da infância em que se coloca uma peça e, caso não
combine ou se encaixe muito bem na construção da “casinha”, retira-se e coloca-se
outra peça em seu lugar até conseguir montar o brinquedo como se imagina ficar
melhor.
Desse modo, as incômodas relações paradoxais, observadas em Não entres tão
depressa nessa noite escura por intermédio de Maria Clara, autorizam os diálogos
entre infância e maturidade, realidade e fantasia, morte e vida, descentramento e
identidade coesa, mostrando diferenças existentes entre o mundo particular e coletivo
da personagem que, em seu complicado universo, por vezes real, outras apócrifo,
proporciona uma possível leitura dos conflitos humanos, o que engloba seus temores,
inquietações e fantasmas. Tais sentimentos afloram sem compromisso com seqüência
lógica ou desenvolvimento linear dos fatos, exatamente por serem lembranças
fragmentadas. Outrossim, a construção do Eu, no romance, está vinculada às diversas
formas de a personagem perceber e representar a vida e buscar soluções para ela na
reescrita da própria história, ora cindida, ora previamente anunciada. Dentro dessa
perspectiva, é possível observar o itinerário de errância e descentramento da
personagem-narradora do romance, ora citado em: “eu tão perdida não pertencia a lado
nenhum...”.
206
Assim, o procedimento oscilante, que se destaca na narrativa, pode ser
visto como uma maneira para se reter o fôlego e, então, percorrer a longa noite que
começa ou o dia que termina como prenúncio do já anunciado incômodo.
Alguns escritores, sob o signo do desconforto existencial, assinalam em sua
escrita o registro de todo um processo de reconstrução identitária, em que se observa a
perda da coerência unitária do sujeito e seu conflito existencial. Na ficção antuniana, é
possível encontrar personagens que, expostos aos paradoxos das relações humanas,
refletem as conseqüências oriundas de um tempo em que se tornaram latentes tais
conflitos, conforme se observa no seguinte fragmento que expressa o dilema da
personagem Maria Clara, dividida entre o partir e o ficar: “Ir-me embora é como tapar
os espelhos todos sobre mim”.
207
Acrescenta-se, a isso, a linha tênue que delimita o
tempo presente, a vivência herdada de todo um passado, e que, agora, sob o estratagema
da contemporaneidade, torna possível a reescrita desse mesmo processo pelo olhar
ficcional do escritor contemporâneo.
Convém lembrar que a sociedade dos séculos XX e XXI, marcada pelo
relativismo, pelo excesso de informações e pela banalização das palavras, ao perceber
no romance contemporâneo a desmistificação daquilo que se tinha como valor
instituído, identifica-se com ele e descobre, no cerne do texto, a vida, que acaba por
tornar-se um espelho a refletir e distorcer as experiências individuais e coletivas com os
possíveis desdobramentos aí implicados.
Retomando Não entres tão depressa nessa noite escura, vamos encontrar na
206
Idem, Ibidem, p.83.
207
Idem, ibidem, p.550.
100
continuidade de nossa análise a respeito da diferença e indiferença na formação
familiar de Maria Clara, a marca desses subsídios e, ainda, “notar que a problemática
das classes sócias aflora no texto, em oposição de pobres e ricos, senhores e criados,
poderosos e submissos”.
208
Vejamos então: Amélia, ao se referir à família do marido, é
categórica ao afirmar “- o teu pai não tem família, nunca teve família”.
209
Atitude para
negar a origem do homem com o qual ela se casou e cuja união gerava comentários
igualmente desprezíveis por parte da mãe de Amélia, e que se lê em: “Bem podias ter
casado com um homem mais apresentável Amélia”.
210
Naturalmente que ele tinha
família, ainda que fosse considerado “filho de uma criada com um vagabundo
qualquer”. Esse comportamento preconceituoso se estendia à avó, que gostava de ir ao
cassino jogar, trajando uma boina velha e jóias falsas.O comportamento de Amélia
funcionava como defesa e autoproteção de uma verdade que a ela pertencia, e que só
mais tarde entenderemos.
É desse modo, portanto, que observamos o traço preconceituoso que estava
incutido naquela família, assim como as diferenças, sobretudo entre Ana Maria e
Maria Clara, que, no lastro de sua reflexão ao ser comparada à irmã, confessa: “a
beleza que me fazia sofrer e eu odiava, o cabelo loiro e o meu quase preto (...) “... não
somos irmãs, se fossemos irmãs éramos morenas as duas”.
211
É a “feiúra” de uma se
contrapondo a beleza e elegância da outra, pois ainda que se vestissem iguais isso
ficava assinalado, pela fala de Amélia, em: “Tu mesmo arranjada como a tua irmã
percebe-se logo que és Ana Maria és tão bonita”.
212
208
Op. cit. 2002, p.394.
209
Op. Cit. 2000, p.32.
210
Idem, ibidem, p.19.
211
Idem, ibidem, p.p 47/62.
212
Idem, ibidem, p.41.
101
São características não apenas físicas que separam Maria Clara de Ana Maria.
O traço do conceito de nobreza estava incutido no imaginário daquela família que
julgava ter tido seus valores furtados em virtude da “mistura de sangue”, ocorrida a
partir de um matrimônio. “Como é que alguém do nosso sangue casou com ele, a Ana
sei lá por que milagre, idêntica a nós, a outra infelizmente da mesma raça que o pai, a
Amélia procurava desculpá-la, fingia que a aceitava, que gostava dela...”.
213
Ao destacar as qualidades de uma moça em detrimento da outra, a avó materna
exprime a pura representação de uma aristocracia falida e distanciada daqueles europeus
que vêem em Ana Maria a conservação de uma espécie, enquanto a outra, alijada desse
conceito, identifica-se com seu lado híbrido, e é no pai que se afirma: “... se não
pertencia ao lado da minha mãe não pertencia a lado nenhum, porque o meu pai nunca
teve família, sozinho no escritório com os pretos...”.
214
Podemos entender o comportamento da avó, como reflexo de ideologia
imperialista que se estendeu para além do período das conquistas portuguesas em
ultramar, e que, reforçada durante o período da ditadura salazarista, acabou por se
impor a toda uma parcela da sociedade deixando presente, no imaginário português, a
idéia da sua supremacia em relação aos outros povos, principalmente sobre os seus
colonos, por mais que a história do século vinte propagasse o contrário. Dentro desse
panorama trazemos as palavras de Gumercinda Gonda,
215
em que a professora diz:
213
Idem, ibidem, pp.80/81.
214
Idem, Ibidem, p.83.
215
GONDA, Gumercinda Nascimento. O Santuário de Judas. Portugal entre a existência e a linguagem.
Dissertação de Mestrado em Literatura Portuguesa, UFRJ, 1988.
102
Durante os últimos anos do período colonial, o governo português
deslocou a ênfase dada à missão do colono ultramarino em Angola e
Moçambique para um novo eixo ideológico que justificaria sua presença
em África. A nova tônica, que deveria sustentar o discurso do sistema,
teria como base a necessidade de preservar as sociedades multirraciais
nestes países. (...) Sabemos que a teoria das sociedades multirraciais
trabalha com conceitos que sempre foram letra morta. Temos, por
conseguinte, uma mentalidade que aponta para a distorção. A simples
presença do poder dentro de uma estrutura colonial, e o caso africano em
si mesmo é expressivo, apontará, inevitavelmente, para a falta de
igualdade, que por seu turno aponta para a falta de fraternidade. É por
isso, talvez, que com o poder, surge a opressão, pois, para conservar-se, o
poder lança mão dos instrumentos a seu alcance.
216
Dessa maneira, e ainda dentro desse contexto, acrescentamos:
Não faltam eminentes autoridades contemporâneas que afirmam que os
portugueses nunca tiveram quaisquer preconceitos raciais dignos de
menção. O que estas autoridades não explicam é a razão pela qual, nesse
caso, os portugueses, durante séculos preservaram tal tônica no
conceito de ‘limpeza ou pureza de sangue’, não apenas de um ponto de
vista classista mas também de um ponto de vista racial, nem a razão por
que expressões como ‘raças infectas’ se encontram com tanta freqüência
em documentos oficiais do século XVIII.
217
Justifica-se, desse modo, essa tópica tão habilmente inserida em Não entres tão
depressa nessa noite escura. Podemos dizer que tais dados estavam, o tempo todo,
presentes naquele “sótão/caverna” à espera de serem revelados como verdades que
precisavam ser descobertas por meio de uma luz que irradiasse não apenas o
conhecimento delas, mas também seus sentidos mais profundos, estabelecendo-se como
farol sinalizador para uma reflexão acerca do processo de formação da identidade
portuguesa.
Desse modo, ao retomarmos para nossa análise de Não entres tão depressa
nessa noite escura, percebemos que a oposição entre um mundo de ricos e um mundo
de pobres é um dos temas fundamentais no enredo, em uma crua exposição de como
uma determinada classe social vê a outra. O desprezo, a miséria e a vergonha dos
pobres é praticada pela família de Maria Clara que sofreu a perda de estatuto social
216
Idem, ibidem, p.103.
217
BOXER, C.R. O império colonial português (1415-1825). Trad. Inês Silva Duarte. Lisboa: Edições
70, 198l, p. 242. Apud. GONDA, 1988, p. 104. (negritos nossos)
103
prestigioso e anterior à um tempo colonial próspero. Nesse contexto, Luis Felipe
trancava e escondia no sótão a sua própria vida e não permitia que nem Amélia, nem
Maria Clara, nem ninguém, lá entrasse para vasculhar suas íntimas e verdadeiras
histórias, pois talvez nem ele soubesse como lidar com elas. Por isso o sótão era motivo
de curiosidade “com seu lixo de criada e a moradia com seus tesoiros de patrão...”,
218
já
que Luis Felipe, segundo Amélia, não tinha família e, portanto, não tinha origem,
representava, seguindo o modelo do pensamento ocidental, o lado pobre, o lixo da
hibridização. Não obstante, é difícil perceber se a desventura da família tenha ocorrido
apenas em virtude da mestiçagem social, devido o casamento com um pobre, ou ainda,
se comporta algo mais implícito: o vício do jogo do seu membro mais ilustre, a avó.
Na perspectiva do recolhimento de Luís Felipe, percebe-se algo similar naquilo
que indica o distanciamento que Maria Clara sente da mãe em relação a ela,
acentuado no desejo de um gesto simples: “Dê-me um beijinho mãe...”.
219
Encurtar
essa distância seria fácil se Maria Clara fosse capaz de pedir abertamente, e não o faz
porque conhece o comportamento da mãe que “... apenas nos retratos nos pegava ao
colo, a cabeça dela desviada das nossas cheiraríamos a pobre...”.
220
É assim que a “casinha”, com seus conflituosos habitantes, vai sendo montada.
Em determinado ponto do romance, encontramos uma carta de Idalina, que seria a
outra avó de Maria Clara, em que aparecem palavras grafadas erradamente, tais como:
mementos, selução, flexa, disgosto, fins (no lugar de fiz), coplexo, doensa, isquecida,
erritada, prajudicar. Esses erros certamente não estão inadvertidamente colocados na
narrativa. Eles podem ter o sentido representativo da humildade e pouca instrução que
218
Op. Cit. 2000, p.91.
219
Idem, ibidem. 181.
220
Idem, ibidem.
104
Idalina possui, em forte oposição ao nobre conservadorismo e conhecimento inerente a
uma determinada classe social que Amélia tenta manter para sua família.
Assim, no transcorrer da narrativa, as inquietações de Maria Clara se avolumam
a respeito de sua identidade e origem. Nessa procura, descobre, em uma mala, “uma
folha quase transparente” com nódoas e manchada de tinta, a certidão de nascimento do
pai em que constata “o nome do professor no lugar do pai e no sitio da mãe um
tracejado vazio”.
221
Encontra, ainda, a certidão de batismo também manchada por tinta,
com dados confusos como a data e a igreja da realização da cerimônia e dessa vez no
lugar do nome do pai, a inscrição: “Incógnito”.
Deste modo, entre indagações e buscas, Maria Clara, por vezes, nega aquilo que
já havia descrito como verdadeiro: “não havia cassino, não havia palmeiras, havia
campos nas trevas, os ecos dispersos de que a noite é feita....
222
O que pode ser
percebido como o desejo de não haver nada de fato ao seu redor, assim como no
Gênesis, para que possa criar, pela escrita, como bem quisesse, o seu mundo particular e
nele colocar seus projetos materializados em forma de acontecimentos menos dolorosos,
nos quais as pessoas e os afetos não ficassem descentralizados e não errassem de
mundo.
Nessa perspectiva, é num olhar bastante nostálgico que Maria Clara se entrega
na confissão: “...de vez em quando a sentir não sei quê, a ternura benevolente pelo outro
que fomos (...) e então julgo que entendi ou entendi que entendia (...) embora o vento
nos cedros, a chamar sem ser a mim que chamava”.
223
Nessa ambientação, Maria Clara
imagina que Amélia vai visitá-la em um lugar bastante simples e lá encontrará a “outra”
- Leopoldina - que, devido à ambigüidade e incertezas de leitura, não se pode afirmar
221
Idem, ibidem, p.66.
222
Idem, ibidem, p.75.
223
Idem, ibidem, p.p 18/119.
105
ser ela mais uma invenção de Maria Clara ou se existe de fato - e Amélia, então, não
deixa de observar “com repulsa o apartamento, a marquise, os lençóis pendurados, o
queijo que se nota logo ser péssimo....”.
224
A discriminação permanecia em
características que eram atribuídas à Leopoldina, mas que, é possível dizer, Maria Clara
atribuía a ela própria. Por isso inventa o espectro de Leopoldina: “Inventei este
apartamento e inventei-te a ti Leopoldina (...) tenho sempre razão, mando em ti, sou tua
dona, inventei-te...”.
225
Invenção para se resguardar dos preconceitos de Amélia e, ao
mesmo tempo, satisfazê-la, uma vez que ela tinha um olhar de repulsa por pessoas do
subúrbio e que, em seu modo de pensar, “sujavam sem sujar”, ao que Maria Clara
retruca e afirma, referindo-se à Leopoldina: “Tu não existes a não ser como uma
imperfeição, uma falha, um defeito insuportável”.
226
Assim, é preciso matar Leopoldina,
“... desculpa matar-te assim”,
227
já que no inconsciente de Maria Clara ela tinha
atingido a mãe, ao criar uma réplica daquilo que Amélia via nela, e, satisfeito o desejo,
Maria Clara destrói essa pessoa inventada. Mas, todo esse comportamento da matriarca
possui uma explicação. É, nesse longo, porém, significativo recorte que podemos ver
imagens reveladoras das relações da vida de Amélia.
224
Idem, ibidem, p.347.
225
Idem, ibidem, p.339.
226
Idem, Ibidem, p.347.
227
Idem, Ibidem, p.339.
106
... sem me reconhecer porque eu não era eu (...) nasci em Alcoitão, que
sou igual a eles, que o meu marido, o neto do senhor general, o senhor
doutor, tão importante, tão rico no dia em que me levou ao Estoril (...) a
família a examinar o colar que a minha avó emprestou a que faltavam
pedras (...) a desprezarem-me conforme desprezavam a cozinheira, o
jardineiro (...) a minha sogra incomodada comigo, o senhor general que
me censura, a modista que me trata por senhora e atrás do senhora o
Amélia e por tu Conheci-te ao balcão da retrosaria Amélia doze horas
por dia a medir tecidos e rendas (...) tanto vento que me escondia de mim
(...) o meu marido incomodado quando eu me sentava na sala, a minha
filha Ana Maria a emendar-me as frases, os olhos dela demonstrando,
explicando, sinaizinhos de dedos, faça assim, não faça assim, endireite-se
no assento, esconda essa alça, aquele talher primeiro mãe - ao passo que
a Maria Clara idêntica a mim no outro canto da mesa, um despeito
idêntico, um embaraço idêntico que me impedia de me interessar por ela,
não posso gostar de ti dado que não gosto de mim, não sou capaz, não
quero ver-te medir tecidos, comer numa marmita sobre um jornal aberto,
ensinar-te a roubar moedas e botões (...) houve instantes assim na minha
vida antes de casar, antes das minhas filhas e da cama no escritório ...
228
A repulsa dela em relação aos pobres está esclarecida, enfim. Era essa a verdade
que Amélia escondia, por isso ela detestava tudo aquilo que pudesse lembrá-la do
passado humilde e ainda transferia esses valores para o marido. Quanto à Maria Clara,
a mãe a evitava por ser parecida fisicamente com ela e, conseqüentemente, perpetuar
“a mistura de sangue” e, ainda, pela menina se identificar mais com os pobres do que
com os ricos, o que representava a lembrança de um passado que Amélia queria
esquecido e, a ameaça, movida pela curiosidade inquietante de Maria Clara, da
descoberta de sua origem.
É nesse ritmo que a memória de Maria Clara está avolumada de fatos.
Imaginando viver ainda no lugar da infância, fala de como estão a mãe e a irmã e do
local onde a família habitava. Tudo está modificado pelo tempo, inclusive para ela que
mora com o marido “num andar longe do Tejo...”.
229
Mas, como Maria Clara está
constantemente presa ao passado, ela tenta negar essa condição ao “pensar na minha
mãe, no meu pai e, portanto não sou Clara, sou Clarinha tenho dezoito anos e passeio lá
228
Idem, ibidem, pp. 355/356/362.
229
Idem, ibidem, 447.
107
no fundo da horta...”.
230
Tal procedimento demonstra que Maria Clara oscila entre a mulher adulta que
possui marido e filho e a jovem que fora, na recusa em aceitar que cresceu e precisa
viver o presente. É ela quem afirma: “quando o meu filho nasceu e uma criatura de bata
mostrou o que não queria ver O seu filho cobri a boca com a fronha para não lhe
garantir Não é meu porque sou filha, não sou mãe de quem quer que seja, sou filha,
tenho dezoito anos, não vinte e oito...”.
231
Se, diante da instabilidade das fronteiras
entre real e imaginário, sequer é possível afirmar que esta pode ter sido a idade em que
Maria Clara foi mãe, ainda assim, é sintomático o gesto de repulsa aí representado, não
pelo filho, mas pelo que ele simboliza. Ao buscar se desobrigar das responsabilidades
que fora convocada a assumir, podemos dizer que a personagem só encontra sentido em
viver o passado, no abandono constante do presente. É, portanto, esse passado, que ela
tenta sempre reconstruir de maneira diferente do que foi para, ao reescrevê-lo
constantemente, iniciar um processo de desvendamento que possibilite a construção de
sentidos para o que se viveu e para o que ainda se vive.
Nesse conflituoso dilema, a narrativa aproxima-se do fim e, desse modo, Maria
Clara anuncia: “Agora que estou no fim do meu relato tenho pena que acabe.
232
Resta-nos argumentar: Porque Maria Clara não quer ver suas histórias findadas? Se, de
fato, sua entrada no sótão, ou melhor, na noite escura, na “caverna na noite genesíaca
do Eu”, funcionou como catalisador de suas descobertas e (re)criações, esta seria a hora
de parar, cônscia de que, em suas buscas, percorreu os possíveis caminhos para o
entendimento de seus conflitos. Mas, é inevitável perceber que ainda permanecem
lacunas a serem esclarecidas nesse percurso e Maria Clara, então, rasura o diário para
230
Idem, ibidem, p.448.
231
Idem, ibidem, p.455.
232
Idem, ibidem, p.467.
108
reescrever frases umas sobre as outras e, em não as entendendo mais, “... tentar decifrá-
las porque afinal era assim, refazê-la na cabeça e perdi-a, procurar a idéia que deu
origem à idéia”,
233
e o marido a perguntar-lhe: “Como é que isto acaba Clara?”.
234
Ela
segue, então, a perder-se em suas digressões por meio da longa noite que pontua a
narrativa, aquela noite na qual ela se refugia com a consciência de que não a atravessa
sozinha, pois sabe que nela estão guardados todos os habitantes que a assustam, o que
explica a advertência contida no título do romance: Não entres tão depressa nessa
noite escura”. Trata-se, portanto, da escuridão da memória, das lembranças, das
histórias que se viveu na realidade e aquelas que se quis diferente; por isso, ela rasura a
escrita para rasurar a sua própria construção identitária.
Mas, toda essa longa noite - que na verdade é apenas alegórica, pois
praticamente toda trama romanesca se ambienta no dia - há que terminar e, no
penúltimo capítulo da narrativa, observamos uma data específica: a Páscoa de 1999.
Por conseguinte, cabe acrescentar que é possível fazer uma analogia entre a simbologia
cristã e a narrativa constituída utilizando recursos bíblicos - e esse é apenas mais um
deles para uma possível leitura intertextual com aquilo que a Páscoa representa e a
narrativa apresenta. Assim, na crença católica, primeiro ocorre a morte do filho do
Criador que fica recluso em uma gruta até acontecer sua ressurreição, compreendendo
um período de dor, abnegação e reclusão para, depois, liberto dos sacrifícios terrenos,
usufruir o prazer da imortalidade e, nessa condição, zelar por todos os que permanecem
vivos.
Poderíamos dizer, então, que o mesmo processo ocorre com Maria Clara.
Primeiro ela experimenta o encontro da proximidade da morte do pai, que acaba por se
tornar o ponto de partida para buscar as verdades que imagina serem reais, recalcadas na
233
Idem, ibidem, 467.
234
Idem, ibidem, p.475.
109
noite do seu inconsciente. Em seguida escolhe o sótão (que preferimos chamar caverna),
para se recolher e para abrigar suas criações feitas à imagem e semelhança dela, e no
diário escrever seu próprio livro da criação. E, finalmente, acreditar que a imortalidade
se estabeleceu e que ela pode cuidar de todos, uma vez que tem uma história para contar
com fatos verdadeiros ou não, designando-lhes um destino por ela escolhido. Ao ouvir
um choro distante - provavelmente do filho a reclamar-lhe a atenção real -, Maria Clara
“ressuscita” de todo o transe em que se encontrava. Podemos ver também a inserção
(não totalmente nítida e apenas no final) de uma criança, como uma imagem que
conduz, inevitavelmente, ao renascimento e a toda a emblemática que envolve a Páscoa,
ou seja, a morte e a vida, igualmente retratados em Não entres tão depressa nessa noite
escura, que agora se manifesta e é trazida por Maria Clara.
Finalmente, os capítulos finais do romance mostram Maria Clara tendo
percorrido todas as possíveis lembranças em um tempo estagnado, e assim o é pela
falta de importância que o externo proporciona, conforme se observa em:
Deixei de me inquietar porque afinal está tudo como sempre foi. (...)
Hoje estava capaz de me ir embora (...) deixava aqui a mala, os
documentos, os sinais de quem sou (...) sem espalhafato, sem conversas,
sem explicações, sem essa espiadela de passagem a verificar se o cabelo
está certo.
235
Essa franca confissão de Maria Clara demonstra seu desejo naquilo que se
refere ao abandono de suas referências, as quais se relacionam à sua própria
configuração identitária e que podemos observar ao longo de nossa análise. Mas, essa
mulher que ainda divaga entre o ser dividido e seus devaneios, já apresenta sinais de
inserção na realidade. Ao ligar a televisão e não se dar conta do que está sendo dito, há,
no entanto, algo que lhe desperta a atenção: o sorriso de uma menina. Tal fato, faz com
que Maria Clara toque no ecrã - “cujo objeto é incapaz, a partir desse momento, de ter
235
Idem Ibidem, pp. 527/550/551.
110
uma significação, de irradiar um sentido: (...) a coisa se transforma em algo diferente,
ela se converte na chave de um saber oculto, e como emblema desse saber ele a
venera”-
236
como se tocasse a si própria e entrega toda a sua fragilidade ao esboçar:
“Infelizmente o sorriso dura pouco tempo (...) Se calhar sou apenas eu que necessito de
um sorriso. Há momentos na vida que necessitamos tanto de um sorriso.
237
Esse ato,
portanto, termina por refletir a existência em simulacro na qual vive Maria Clara, mas
que implica também,
na visão de visionarismo desmedido que lhe criou o texto. O espelho
com que há pouco se tapou, na metáfora da abalada e do esquecimento, é
um mero vidro, um canal de existência em simulacro. Mas um simulacro
tornado, ainda, espelho, e afinal descoberto”.
238
Assim, esse final extremamente melancólico, mostra que o riso não teve lugar
durante todo o processo de criações, buscas e descobertas feitas por Maria Clara.
Podemos dizer, que ela pratica, portanto, uma tentativa de contato com um simulacro
do real, o que ratifica o seu vazio existencial e sua estagnação.
Conjecturamos, ainda, em torno do “visionarismo desmedido que lhe criou o
texto atribuindo a Não entres tão depressa nessa noite escura mais uma leitura
intertextual com a Bíblia Sagrada. Nela se conhece a história cristã da criação do
mundo, o qual foi criado em sete dias e, neste sétimo dia, Deus descansou de toda a sua
Obra. Acreditamos que António Lobo Antunes do mesmo modo resolve “descansar” de
sua também longa criação de Não entres tão depressa nessa noite escura e na sétima
parte do livro, ou seja, na última, recorta a citação do livro do Gênesis em que se lê:
236
Op. Cit.2004,p. 206.
237
op. cit. 2000, p.551.
238
Op. cit. 2002, p.415.(itálicos nossos)
111
Assim foram acabados o céu e a terra com tudo o que lhes pertence.
Deus concluiu a sua obra ao sétimo dia e descansou. Abençoou o sétimo
dia e santificou-o por haver repousado no fim do grande trabalho da
criação. Tal é a história do céu e da terra consoante Deus os criou.
239
Tal fragmento, indica que a “Obra” do ficcionista português, se aproxima do fim
e, de tal modo, pode-se dizer que em Não entres tão depressa nessa noite escura,
justifica-se toda a narrativa constituída em sete partes e sua livre analogia com o livro
do Gênesis bíblico. Por intermédio de uma “inocente” menina o escritor atribui à
protagonista o poder de re(criar) o mundo, a partir de uma noite fadada a não ter fim
e, nesse percurso, há todo um laborioso trabalho, desgastes, descobertas e tristezas. Está
concluída a Obra, a despeito de toda adversidade. Vimos essa “construção” do eu,
intimamente ligada a própria representação do sujeito descentrado e em busca por
(re)construir-se, ainda que fosse a partir das desventuras e sombras que pairavam no
mundo.
Dessa maneira, podemos dizer que, em nossa opinião, Maria Clara pode ser a
representação do Homem contemporâneo descentrado e que, se pudesse, recriaria esse
mesmo mundo que jaz imerso na guerra da dor existencial imposta por condições
desfavoráveis e independentes de afinidade com verdades que se apresentam absolutas
no domínio dos supostamente mais fracos, cujas conseqüências podem ser, agora,
percebidas na fragmentação do Eu. E, ainda e fundamentalmente, o espelhamento da
angústia, da tristeza, da dor e da diferença social e racial em busca de sua verdadeira
identidade, independente de qualquer que seja sua origem. Tudo isso envolto pela
liberdade ficcional literária que permite, com suas imagens metafóricas, relacionar
esses fatos. Podemos ver, ainda, alguns aspectos pertinentes à família de Maria Clara,
tais como a seriedade e o rigor acrescidos de proibições, terem conduzido a menina à
introspecção e, conseqüentemente, a tristeza oculta por ela. Entretanto, em um
239
Op. Cit. 2000, p. 464.
112
sótão/caverna, Maria Clara se encerra na noite da memória para cumprir “sua missão”
e isto a faz experimentar toda sorte de sensações, incluindo a tristeza, mas que, ao final,
pela imagem do riso, permite a discussão em torno da criação e da representação do
processo de busca obsediante da personagem e a relativização da verdade.
Assim, o “visionarismo desmedido que lhe criou o texto”, pode ser observado
como uma forma alegórica de “vermos como em espelho e de maneira confusa, mas
[que] depois veremos face a face”,
240
mesmo que isso implique na necessidade de
encerrar-se em um sótão/caverna para, a partir de diversas reflexões, construir-se “na
noite genesíaca do Eu”.
240
Bíblia Sagrada. São Paulo: Paulus, 1990. Coríntios. C.13.V.12-14.
113
4.CONCLUSÃO
Dos estudantes sempre se esperara que,
diante de um texto literário, pusessem temporariamente
de lado suas histórias pessoais e o avaliassem
a partir da perspectiva de um sujeito universal
descomprometido, desvinculado
de noções de classe, sexo e etnia.
Terry Eagleton
241
Se levássemos a termo a máxima de que as epígrafes por si só expressam e se
relacionam intimamente com aquilo que, por conseguinte o texto esboçará, poderíamos
terminar por não fazer nenhum comentário a mais. Porém, sabemos que isso não é
possível e, mesmo sabendo que é desnecessária a explicação, ao usarmos as epígrafes,
tanto a introdutória, quanto àquelas inseridas ao longo da dissertação e a conclusiva,
objetivamos, de fato, fazer com que elas dialogassem com a obra literária trazida a
estudo, assim como com aquilo que depreendemos do corpus e desejamos traduzir em
nossa impressão de leitura.
Desse modo, portanto, procuramos encontrar “um nó dentro de uma rede, para,
a partir daí, nos colocar como aquele sujeito universal descomprometido e
desvinculado e traçar nosso longo bordado de escrita não apenas como reflexão para as
longas noites existenciais em que o lugar das indagações é feito de solidão, mas
principalmente, como uma peça em que ao imprimirmos, com paixão, nossa
identificação com autor e obra, recados subjetivos, reflexões, angústias e espelhamento
do Homem contemporâneo, se tornou quase impossível o não envolvimento.
241
EAGLETON. Terry. Teoria da Literatura: uma introdução. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
114
Conhecemos esse sujeito moderno situado na cena fictícia, do mesmo modo que
poderia estar na cena real, com o nome de Maria Clara, descentrada e em constante
itinerário de errância e buscas, em virtude das angústias, dos projetos inacabados, dos
sonhos não realizados e da falta de oportunidade em participar na construção de um
mundo mais alegre e menos conflituoso e preconceituoso. A personagem, de uma
densidade muito incômoda e diferente do habitual, termina por espelhar, por meio de
um romance que rompeu com os padrões estéticos do século XIX, o sujeito deslocado
em um mundo cosmopolita repleto de supostas alegrias e realizações vis, cujas
amarguras vão além daquelas facilmente retratadas em folhetins de fácil assimilação na
digestão completa do “tudo tido”, o que pode ser observado em:
... em Não entres tão depressa nessa noite escura a produção discursiva
de um tempo coagulado que sublinha a palavra que contém, em vez de
apagar na escrita da comunicação directa, nessa escrita de tantas formas
de ficção de consumo fácil e apressado que são hoje abundantes no
convívio superficial das massas (...) Os romances de António Lobo
Antunes, assumindo ocasionalmente uma forte tonalidade de expressão
poética, são textos desenvolvidos numa prosa de ficção que exibe um
trabalho prosódico muito rico e minuciosamente cuidado.
242
Desse modo, podemos dizer que essa prosódica rica que assume aspectos de
expressão poética termina por suavizar, num deslizar de palavras, o conjunto final da
obra que reflete a marca desse escritor genial. Especificamente em Não entres tão
depressa nessa noite escura, acreditamos que a linguagem poética torna-se necessária
para atuar como pano de fundo dessa narrativa, em que, retirando-se esse aspecto,
torna-se por demais crua na atmosfera de todo o drama retratado. Tal perspectiva
permite que também deixemos nosso viés lírico aflorar e, com ele, filosofar um pouco
em nossa conclusão para dizer que nesse relógio do tempo que o tempo do tempo não
marca, inscrevem-se os tempos filosófico, psicanalítico e literário. O tempo da alma
assinala que todas as personagens reais ou inventadas por Maria Clara - Luis Felipe,
242
Op. cit. 2002, p.540.
115
Amélia, Adelaide, Ana Maria e outras -, escrevem e podem ver reescrita a própria
história daquilo que se julgou esquecido, no eco distante da fala do homem e na escrita
do poeta, no entretenimento daquele que lê no disfarce de passar o tempo. Tempo esse
impronunciável na boca sábia, no gesto trêmulo daquele que busca a compreensão para
lançar o grito da memória esquecida nos sótãos daquilo que se viveu. É essa palavra
interdita e impronunciável que se persegue e deseja, em um tempo, saber decifrá-la.
É pelo eco, portanto, da voz das personagens trazidas por Maria Clara que, meio
extasiados, nos identificamos e não podemos convalescer. Sendo a alma velha e
carcomida, assim será a identificação no espelho que refletirá sempre a imagem que se
quis de fato ver. Deixar de lado a emoção. Existir com razão, como se todos fossem de
fato do mesmo barro. Evidentemente não. Se caso o fossem, o mundo não seria tão
diverso e, por isso mesmo, atraente. Cair no fosso e na matéria-prima básica, descobrir
um outro elemento além do pó químico da substância quase perfeita denominada
Homem. Encontrar a alma como reflexo em uma janela próxima de um tempo distante
em que se viu no Déjà Vu.
Ousar enfrentar esse mosaico de reflexões que nos conduziu da alegoria da
caverna para “A noite genesíaca do eu, em Não entres tão depressa nessa noite
escura, não foi tarefa fácil. Procuramos preenchê-lo por intermédio de reflexões
dialogais possíveis com a filosofia, a psicanálise e a literatura, em que, respectivamente,
os ensinamentos para a construção de um “mundo ideal”, os fragmentos do inconsciente
que surgem sob o retorno do recalcado, as muitas construções produzidas pelo
imaginário e o texto romanesco acrescido do subjetivo viés lírico no romance-poema -
detentor de uma prosa espetacular e contundente -, pudessem ser destacados ao longo do
trabalho na tentativa de encontrar, no obscuro túnel da memória, as pedras preciosas da
vida que esperam por se fazer notar e brilhar, após o percurso da noite na criação e
116
formação do Eu.
Procuramos renovar essas leituras, por meio de nosso enfoque maior que recaiu
sobre o posicionamento do Homem contemporâneo face ao seu descentramento imposto
pelo já vivido e estabelecido. Entendemos que este olhar para o passado deveria ser
visto longe do distraído e irrefletido e, nesta relação entre passado e presente, apreender
uma compreensão mais ampla a respeito das relações que nortearam o paradigma da
consciência vivida sem o saber absoluto, mas detendo-se nos erros e nas tentativas de
esclarecê-los, separando as sombras da realidade para permitir-se sair das trevas e
construir-se com uma outra visão de mundo sem ingenuidade e consciente de que:
Não é apenas porque viu o sol que o ex-prisioneiro é superior a seus
companheiros, mas porque compreende que é o sol que garante a existência
do mundo, dos seres vivos, dos artefatos que esses fabricam, dos fogos que
acendem e das sombras que estes últimos projetam.
243
Portanto, podemos dizer que procuramos aclarar os sentidos para traduzir nossa
impressão de leitura subtraída de Não entres tão depressa nessa noite escura, fazendo
leituras paralelas e intertextuais junto com as teorias filosófica e psicanalítica e com a
reflexão literária. Tal procedimento nos permitiu entender a maneira do Homem
contemporâneo estar no mundo, ou seja, descentrado e em busca de algo mais que lhe
faça encontrar o sentido para a caverna moderna, a qual ele parece habitar. O mundo
externo - diferente do mundo interno que cada um traz em si -, ao oferecer inúmeras
facilidades e comodidades, apresenta tudo pronto e estereotipado numa padronização de
objetos e valores, no qual o Homem se sente desorientado e sem saber que lugar ocupa
nesse espaço fomentador de seus conflitos. Assim, caminha-se nas trevas em direção à
Luz, busca-se o não dito, o não percorrido, o cerne do Homem Sapiens para justificar
sua origem, refazendo o caminho darwiniano.
243
Op. cit. LEBRUN (1988). p.27.
117
Encontramos, portanto, o ser diferente, o Outro de si mesmo, que se encontra em
estupefação diante da perda das referenciais que decorrem da dissonância do eu e do
mundo “não tenho certeza se somos nós que crescemos ou o mundo que encolhe, tudo
deixa de nos servir”,
244
e torna-se uma espécie de figura perspicaz e inquieta que pode
ser traduzida por meio da personagem com seu duplo e sua máscara, criada pelo escritor
contemporâneo António Lobo Antunes, em seu romance-poema Não entres tão
depressa nessa noite escura.
Dessa maneira, podemos dizer que o leitor se identifica com a obra e, sem o fio
condutor a guiar-lhe a leitura, percorre o labiríntico caminho da ficção contemporânea
portuguesa observado em Não entres tão depressa nessa noite escura, por meio da
personagem criada pelo escritor que aprendeu a ouvir os apelos e as dores existenciais,
quer tenha sido em sua vivência na experiência da guerra colonial, quer tenha sido nos
corredores e enfermarias do hospital psiquiátrico Miguel de Bombarda, transpondo tais
experiências para o cenário fictício.
Entendemos que entre as muitas reflexões que podem ser depreendidas de Não
entres tão depressa nessa noite escura, de autoria do também psiquiatra António Lobo
Antunes, se fixa, para nós, aquela que julgamos refletir o Homem moderno,
representada pela impropriedade conceitual da personagem-narradora do romance, uma
vez que ao procurar um psicólogo para ajudá-la a nortear seus conflitos, confessa
publicamente sua fragilidade, fraqueza e desorientação existentes no mundo
contemporâneo, de forma cada vez mais acirrada. Para se autoconhecer e conhecer o
outro é preciso recolher-se ao interior de si próprio, alegoricamente uma caverna ou um
sótão, e exercitar a memória em busca de resolver o que ficou guardado nas teias do
passado para, quando se deitar no divã, deixar fluir, lenta e passivamente, tudo o que
ficou recalcado no inconsciente e, em um processo de ebulição, transbordar tais
244
Op. cit. 2000, p. 50.
118
sentimentos que se mostram como reflexo de um período igualmente conflituoso.Torna-
se necessário questionar um tempo em que se apregoava e acreditava se estar
preparando pessoas resolvidas e seguras para um mundo melhor, separando-as em
paradigmas definidos: o mais forte e o mais fraco, o perfeito e o imperfeito e a proteção
e a imposição no exercício do livre arbítrio.
Outrossim, vimos Maria Clara - representante desse ser moderno e
descentralizado -, oscilante em sua maneira de ajustar-se à realidade, em que por vezes,
se sentia adulta e por outras, uma menina repleta de fantasias a construir uma outra
realidade diferente daquela que tanto a incomodava e ela desejava melhor do que se
apresentava.
Nessa probabilidade, as imagens trazidas, em anexo, objetivaram, ao serem
observadas e inseridas no contexto geral, suscitar interpretações para uma reflexão que
não consegue se fazer isolada: é preciso dar forma ao impalpável para, na
contemplação, encontrar o eco resultante na análise da escrita que, ao privilegiar a
perspectiva da noite, nos conduziu “A noite genesíaca do Eu” e tornou-se fecunda, a
partir do viés interpretativo que possibilitou captar essa simbologia, ao termos adotado,
como base, a alegoria da caverna de Platão. Acrescenta-se, a isso, o mistério da noite,
que simbolicamente pode ser a morte, o imaginário e o inconsciente humano ou, ainda,
a obscuridade inerente à escrita antuniana e contemporânea como outros vieses
interpretativos que correlacionamos como leituras possíveis no corpus literário.
Procuramos produzir uma análise que aponta a presença, na obra de António
Lobo Antunes, de uma reflexão acerca da história individual. Tal reflexão, ao dialogar
com o presente em outras obras literárias, sejam elas referências universais ou não,
acaba por estabelecer sentidos produtivos para a compreensão do mundo
119
contemporâneo, permitindo olhar para os conflitos fundamentais do Ser, estejam eles
resolvidos ou recalcados.
Outrossim, ao dividirmos o trabalho em três grandes partes, terminamos por vê-
lo finalizado, propositalmente, em sete partes, ou seja: 1) Introdução; 2) O poema de
Dylan Thomas e o romancepoema de Lobo Antunes: diálogos possíveis; 3) A reflexão
em torno do viés lírico na narrativa de António Lobo Antunes; 4) As simbologias da
caverna; 5)A reflexão filosófica; 6) A reflexão psicanalítica; 7) A reflexão da escrita:
Não entres tão depressa nessa noite escuraA noite genesíaca do Eu. A justificativa
para tal desenvolvimento se deu em função de acompanharmos o estilo adotado pelo
autor, na referida obra, para compor o livro - concebido por meio da escrita do diário de
Maria Clara, em analogia direta com o livro bíblico do Gênesis.
De tal modo, buscamos, também, “criar” nosso primeiro livro. Após esse
exaustivo e solitário exercício de escrita que não durou sete dias, mas sim alguns meses
de reclusão no sótão de nossos pensamentos, acreditamos ter cumprido aquilo a que nos
propomos fazer. Contudo, cabe assinalar, ainda, que, acostumados que estamos ao
cárcere da palavra estar sempre agregada à outra palavra teorizada, finalizar ou resumir
qualquer pensamento ou encadeamento de idéias a respeito de António Lobo Antunes
ou de sua obra ficcional como Não entres tão depressa nessa noite escura, trazida a
lume por nós nessa dissertação, torna-se um exercício igualmente arriscado e penoso.
Por conseguinte, nos socorremos das palavras de Eduardo Lourenço para fazer delas as
nossas e, desse modo, seguramente afirmar que:
120
A ficção de Lobo Antunes vai servir como revelador daquilo que nós
mesmos não queríamos ver, que nós mesmos não queremos ver, não
apenas essa noite exterior, brutal, trágica que ele encontrou em África,
mas outra realidade mais profunda, a nossa realidade de seres
confrontados com qualquer coisa ainda mais profunda que a morte, que é
a do sofrimento, a da injustiça que nós infligimos aos outros, a nossa
própria miséria, os nossos terrores sepultos. Tudo isso ele vai realizar
através da sua ficção, vai realizar a verdadeira psicanálise, mas desta vez
não mítica de Portugal, mas psicanálise visceral, profunda, daquilo que
nós somos ou daquilo que nós imaginamos realmente ser.
245
Diante dessas palavras, o que mais poderíamos dizer? Mais nada, pois é
exatamente isso que também mais nos toca em António Lobo Antunes e, por isso,
adotamos as palavras de Eduardo Lourenço como a mais digna tradução do que
sentimos. Há que se acrescentar, porém, que nossas considerações não se esgotam
deixando nas reticências, nas falas interrompidas, nas interferências em itálico e nas
suspensões frásicas, muitos outros aspectos e observações possíveis de serem
interpretados em Não entres tão depressa nessa noite escura, para cada um que por
esses ângulos se aventure, mergulhe com igual intensidade no intrincado mundo de
sombras que o Homem é capaz de cobrir-se.
245
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126
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YATES, Francês A. The art of memory. USA: The University of Chicago Press 1984.
127
6. ANEXOS
1-Receita para me Lerem”, por António Lobo Antunes.
2 - Imagem - A caverna.
3 - Imagem - O pensador.
4 – Relação das obras literárias de António Lobo Antunes.
128
ANEXO l - “Receita para me Lerem”
Sempre que alguém afirma ter lido um livro meu fico decepcionado com o erro.
É que os meus livros não são para serem lidos no sentido em que usualmente se chama
ler: a única forma parece-me de abordar os romances que escrevo é apanhá-los do
mesmo modo que se apanha uma doença. Dizia-se de Bjorn Borg, comparando-o com
outros tenistas, que estes jogavam tênis enquanto Borg jogava outra coisa. Aquilo a que
por comodidade chamei romances, como poderia ter chamado poemas, visões, o que se
quiser, apenas se entenderão se os tomarem por outra coisa. A pessoa tem de renunciar à
sua própria chave aquela que todos temos para abrir a vida, a nossa e a alheia e utilizar a
chave que o texto lhe oferece. De outra maneira torna-se incompreensível, dado que as
palavras são apenas signos de sentimentos íntimos e as personagens, situações e intriga
os pretextos de superfície que utilizo para conduzir ao fundo avesso da alma.
A verdadeira aventura que proponho é aquela que o narrador e o leitor fazem em
conjunto ao negrume do inconsciente, à raiz da natureza humana. Quem não entender
isto aperceber-se-á apenas dos aspectos mais parcelares e menos importantes dos livros:
o país, a relação homem-mulher, o problema da identidade e da procura dela, África e a
brutalidade da exploração colonial, etc., temas se calhar muito importantes do ponto de
vista político, ou social, ou antropológico, mas que nada têm a ver com o meu trabalho.
O mais que, em geral, recebemos da vida, é um conhecimento dela quer chega
demasiado tarde. Por isso não existem nas minhas obras sentidos exclusivos nem
conclusões definidas: são somente, símbolos materiais de ilusões fantásticas, a
racionalidade truncada que é a nossa. É preciso que se abandonem ao seu aparente
desleixo, às suspensões, às longas elipses, ao assombrado vaivém de ondas, que, a
pouco e pouco, os levarão ao encontro da treva fatal, indispensável ao renascimento e à
renovação do espírito. É necessário que a confiança nos valores comuns se dissolva
página a página, que a nossa enganosa coesão interior vá perdendo gradualmente o
sentido que não possui e todavia lhe dávamos, para que outra ordem nasça desse
choque, pode ser que amargo mas inevitável. Gostaria que os meus romances não
tivessem nas livrarias ao lado dos outros, mas afastados e numa caixa hermética, para
não contagiarem as narrativas alheias ou os leitores desprevenidos: é que sai caro buscar
uma mentira e encontrar uma verdade.Caminhem pelas minhas páginas como num
sonho porque é nesse sonho, nas suas claridades e nas suas sombras, que se irão
achando os significados do romance, numa intensidade que corresponderá aos vossos
129
instintos de claridade e às sombras da vossa pré-história. E, uma vez acabada a viagem e
fechado o livro convalesça. Exijo que o leitor tenha uma voz entre as vozes do romance
ou poema, ou visão, ou outro nome que lhes apeteça dar a fim de poder ter assento no
meio dos demônios e dos anjos da terra. Outra abordagem do que escrevo é limita-se a
ser uma leitura, não uma iniciação ao ermo onde o visitante terá a sua carne consumida
na solidão e na alegria. Isto não se torna complicado se tomarem a obra como a tal
doença que acima referi: verão que regressam de vocês mesmos carregados de despojos.
Alguns quase todos os mal-entendidos em relação ao que faço, derivam do facto de
abordarem o que escrevo como nos ensinaram a abordar qualquer narrativa. E a surpresa
vem de não existir narrativa no sentido comum do termo, mas apenas largos círculos
concêntricos que se espreitam e aparentemente nos sufocam. E sufocam-nos
aparentemente para melhor respirarmos. Abandonem as vossas roupas de criaturas
civilizadas, cheias de restrições e, permitam-se escutar a voz do corpo. Reparem como
as figuras que povoam o que digo não são descritas e quase não possuem relevo: é que
se trata de vocês mesmos. Disse em tempos que o livro ideal seria aquele em que todas
as páginas fossem espelhos: relectem-me a mim e ao leitor, até nenhum de nós saber
qual dos dois somos. Tento que cada um seja ambos e regressemos desses espelhos
como quem regressa da caverna do que era. É a única salvação que conheço e, ainda que
conhecesse outras, a única que me interessa. Era altura de ser claro acerca do que penso
sobre a arte de escrever um romance, eu que em geral respondo às perguntas dos
jornalistas com uma ligeireza divertida, por se me afigurarem supérfluas: assim que
conhecemos as respostas, todas as questões se tornam inimportantes. E, por favor,
abandonem a faculdade de julgar: logo que se compreende, o julgamento termina, e
quedamo-nos, assombrados, diante da luminosa facilidade de tudo. Porque os meus
romances são muito mais simples do que parecem: a experiência da antropofagia através
da fome continuada, e a luta contra as aventuras sem cálculo, mas com sentido prático
que os romances em geral são. O problema é faltar-lhes o essencial: a intensa dignidade
de uma criatura inteira. Faulkner, de quem já não gosto o que gostava, dizia ter
descoberto que escrever é uma muito bela coisa: faz os homens caminharem sobre as
patas traseiras e projectarem uma enorme sombra. Peço-lhes que dêem por ela,
compreendam que vos pertence e, além de compreenderem que vos pertence, é o que
pode, no melhor dos casos, dar nexo à vossa vida.
(in: Segundo livro de Crônicas. Lisboa: Dom Quixote, 2002, pp.109-111).
130
Homenagem a Platão, Jeanloup Sief (fotografia, 1975).
Captured on line in 12/11/2005, www.google.com.br
131
ANEXO 3 - O pensador - escultura por Auguste Rodin
Captured on line in 18/09/2006, www. pt.wikipedia.org/wilk/filosofia
132
Obras de António Lobo Antunes
Romance
1) Memória de Elefante (1979)
2) Os cus de Judas (1979)
3) Conhecimento do inferno (1980)
4) Explicação dos pássaros (1981)
5) Fado alexandrino (1983)
6) Auto dos Danados (1985)
7) As naus (1988)
8) Tratado das paixões da alma (1990)
9) A ordem natural das coisas (1992)
10) A morte de Carlos Gardel (1994)
11) Manuel dos inquisidores (1996)
12) O esplendor de Portugal (1997)
13) Exortação aos crocodilos (1999)
14) Não entres tão depressa nessa noite escura (2000)
15) Que farei quando tudo arde (2001)
16) Boa tarde às coisas aqui em baixo (2003)
17) Eu hei de amar uma pedra (2004)
18) Ontem não te vi em Babilônia (2006)
Crônicas
1) Livro de crônicas (1998)
2) Segundo livro de crônicas (2002)
3) Terceiro livro de crônicas. (2006)
133
Epistolografia
1) D’este viver aqui neste papel descripto: cartas da guerra (2005)
Conto
1) História do hidroavião (infantil 1994, 2005).
Poesia
1) Letrinhas de cantigas (2002) Edição limitada, comemorativa dos 20 anos do autor
na Dom Quixote.
Parcerias
1) Olhares 1951-1998 (co-autoria com Eduardo Gageiro)
2) Apontar com o dedo o centro da terra (2002) Texto de António Lobo Antunes sobre
a pintura de Júlio Pomar.
134
RESUMO
Análise de Não entres tão depressa nessa noite escura, décimo quarto romance de
António Lobo Antunes, publicado em 2000, no qual ressaltamos o processo de
descentralização do sujeito aí problematizado, seja pela questão existencial observada
na ficção portuguesa contemporânea; seja por uma re-articulação do conceito de
identidade, que se dá a partir das suas diversas possibilidades de configuração, e, ainda,
a escrita singular do autor, proposta em “Receita para me lerem” - Segundo Livro de
Crônicas. A Dissertação propõe-se a focalizar uma análise que busca correlacionar
informações depreendidas de três áreas do saber humano a filosofia, a psicanálise e a
literatura, a partir das teorias desenvolvidas por Platão, Sigmund Freud e das reflexões
de Maria Alzira Seixo, visando aplicar tais informações à compreensão da obra
ficcional selecionada, assim como explorar o viés lírico na ficção de António Lobo
Antunes, especificamente no romance selecionado, uma vez que o autor intitula seu
romance de “poema”. A problemática da noite como tópico recorrente e significativo na
narrativa antuniana, mesmo não sendo o componente nodal do romance, permite a
observação de outros elementos expressivos que aí ficam ocultos e implicados. O
noturno, com seus vários significados, admite os múltiplos sentidos divergentes na
segmentação da noite que se apresenta. Entre eles, destacamos, nos níveis temático e
poético, a problemática inerente à noite citada, ao remeter a análise para “A noite
genesíaca do Eu”.
Palavras-chave: Descentralização. Noite. Caverna. Alegoria. Gênesis. Ficção
Contemporânea. Filosofia. Psicanálise. Literatura.
135
ABSTRACT
Analysis of Não entres tão depressa nessa noite escura, fourteenth romance of António
Lobo Antunes, published in 2000, on which jutting out the suit of uncentered of the
subject here showed, or by question of existentialism observer on contemporary
portuguese fiction, or for a re-articulation of the concept of identity, that happens from
its diverse possibilities of configuration, and, still, the singular writing of the author,
proposal in Receita para me lerem Segundo Livro de Crônicas. The Dissertation
intends to focus an analysis that picks correlate information gathered of three areas of
the know human the philosophy, the psychanalysis and the literature, from the theory
developed for Platão, Sigmund Freud and the reflections by Maria Alzira Seixo, aim to
apply these informations to the comprehension of selected fictional work, just as
explore the lyric way on the fiction of António Lobo Antunes, specifically into the
romance selected, since that the author entitles his romance of “poem”. The problematic
of the night as topic recurrent and significant on antuniana narrative, even no being the
component nodal of the romance, allows the observation of another expressive
elements, in that moment hidden and implicit. The nocturnal, with its various
significance, admits the multiple divergent meanings on the segmentation of the night
that it presents. Among them, we can emphasize, on the thematic and poetic levels, the
problematic inherent at the cited night, the send the analysis to “ the night genesiac of
the I”.
Keywords: Uncentered. Night. Cavern. Allegory. Gênesis. Contemporary Fiction.
Philosophy. Psychanalysis. Literature.
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