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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Renata Correia Lima Ferreira Gomes
Agentes verossímeis:
uma investigação sobre a construção
dos personagens autônomos nos videogames
DOUTORADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA
SÃO PAULO 2008
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Renata Correia Lima Ferreira Gomes
Agentes verossímeis:
uma investigação sobre a construção
dos personagens autônomos nos videogames
DOUTORADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA
Tese apresentada à Banca
Examinadora como exigência parcial
para a obtenção do tulo em
Comunicação e Semiótica pela
Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, sob a orientação do Prof. Doutor
Arlindo Machado
SÃO PAULO 2008
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Banca Examinadora
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AGRADECIMENTOS
Os agradecimentos de uma tese são um rito de passagem muito pessoal, uma forma
de narrativizar os quatro anos (e meio) que se passaram. Motores desta narrativa
extremamente não-linear, faço questão de dar nome aos personagens que fizeram
parte de tudo isso.
Nesta história sem fim, um dos personagens principais, a quem agradeço pela
paciência e inspiração, é o prof. Arlindo Machado, meu orientador mesmo antes de
sabê-lo: quando causou uma mudança perpétua no meu olhar com seus “A Ilusão
Especular”, “A Arte do Vídeo” e os “Pré-cinemas e pós-cinemas”. Alguém que me
inspirou tanto e sempre ter virado o “Mega Orientador” paciente e generoso é mais
do que eu poderia desejar.
Na PUC, é preciso agradecer a outros professores que também fazem parte desta
história: à professora Lúcia Santaella, sempre com olhar e palavras generosas, que
me deram força, e por ter posto de pé o CS: Games; à profa. Irene Machado, sem a
qual eu não teria escrito o artigo que funda este trabalho; à profa. Lucrécia Ferrara,
termômetro de rigor a cada linha; à profa. Giselle Beiguelman, pelo eterno
incentivo.
Aos colegas da PUC e do grupo CS: Games, sobretudo à Mirna (“Cérebro, o que
vamos fazer hoje?”), outro termômetro de rigor, que não me deixa esquecer que as
coisas se conseguem mesmo é com muito trabalho, olhar crítico e algumas boas
risadas. Ao Roger Tavares, incrivelmente paciente e prestativo em tantas quintas-
feiras... Ao Otávio Filho, “camiñante, no hay camiño...”
No “além-PUC”: aos colegas do cinema, sobretudo Ana Gianasi, Marco Romiti,
Ruggero Ruschioni, Michael Ruman, Márcio Celeste e Leandro Braga, sem os
quais a vida seria muito menos interessante...
Aos colegas do vídeo: Lucio Agra (e o “método Múcio”!), Nancy Betts, Lucas
Bambozzi, Rogério Borovik, Cleber Rohrer, Chris Mello, que me trouxeram a um
novo mundo, mais inteligente, crítico e divertido, com quem eu gostaria de
conviver ainda mais.
Aos companheiros cinéticos, sobretudo Cleber Eduardo, Eduardo Valente, Ilana
Feldman e Paulo Santos Lima, minha conversa com o melhor do cinema
contemporâneo (e que acreditam na promessa: “depois da tese, depois da tese”).
A todos os muitos amigos, em especial, ao Lemuel, amigo-irmão que me
acompanha desde o mestrado e com quem dividi oito maravilhosos anos num
videogame que é nosso; às amigas-irmãs Lia, de sempre e para sempre, e Ana
Javes, desde as paredes amarelas” e para sempre, que não me deixam esquecer
quem sou; às “Poxocas” Gal e Lila, um oásis de delicadeza e carinho; ao Pablo, a
love supreme, a mind so rare”; à Clara, por todas as conversas regadas a
caipirinhas de frutas vermelhas (sem as quais eu possivelmente não teria
sobrevivido); à Balla, que nunca me deixou cair; a Gui e Beth, que sempre
apareceram quando gritei virtualmente; ao Lamenha e nossa cumplicidade gratuita,
à Gabby e seu vatapá de vitória; à Kety e sua paciência infinita com esta amiga
ausente; à Julita e Diego, vencedores do prêmio aquisição em novas amizades”; a
Johnny, Anne, Paulinho e Rodrigo, pelas melhores terças-feiras do ano.
Ao Manoel Ricardo, que, sem saber, me colocou neste mundo de rigor, inteligência
e delicadeza e dele não me deixa sair de jeito nenhum. Ao Heitor, pela existência
nesta cinza cidade. Ao Carlos Augusto, que não me deixa passar por Fortaleza sem
vê-lo. Ao Guga, com quem, literalmente, me perdi a caminho da comunicação e
me achei para sempre.
À “equipe médica”: Bruno e Luiza, cada um a sua maneira, cuidando do meu juízo
(e me fazendo entender que não estou só). À Verenice Martins, que me botou nos
eixos tantas vezes.
Ao Tadeu Feitosa, eterno mestre e amigo, mesmo com todos os desencontros (mea
culpa, mea culpa...)
À família: vovó Lourdes e tia Zane, as duas pessoas mais generosas que o mundo
me deu; vovó Maria e vovô Antônio, referências para a vida; aos meus muitos tios,
tias, primos e primas. A Davi, Mariana e ao “menino André”, pedacinho tão
importante de família na Paulicéia Desvairada.
Aos Petersen, sobretudo Dona Gláucia e Seu Álvaro, pelo carinho de sempre e por
todas as vezes em que não fui vê-los “por causa da tese”...
A meus pais, por todos os motivos e mais alguns: “Mas, minha filha, estão te
acusando de quê?”. À Adriana, à Francisca e ao Seu Vicente, pois me faziam saber
que eu estava, de fato, em casa.
À Roberta, para sempre “A Irmã”, que me deixa ver, pelos seus olhos, quem sou e
quem gostaria de ser. Ao Gordinho, o outro membro da família, o verdadeiro
mestre jedi espinosista.
A todas as viagens que não fiz, lugares a que não fui, amigos que não vi, festas que
perdi, almoços em família a que faltei, abraços que não pude dar... e àqueles que
nunca me cobraram por isso!
Ao CNPq, pelas bolsas que me proporcionaram fazer mestrado e doutorado.
E, finalmente, ao Álvaro, que não sabia onde estava se metendo quando resolveu
dar a uma doutoranda em semiótica o privilégio de construir a vida a seu lado...
RESUMO
A partir do universo dos “games de personagem” e “games de simulação”, a pesquisa
em curso pretende descrever a narrativa nos games como uma simulação imersiva”,
a ser experimentada pelo interator através de seu percurso pelo espaço virtual do
game no papel de um personagem e de sua interação com personagens autônomos,
operados pelo software. Levamos adiante a hipótese de que a peça-chave para a
implementação de uma estrutura dramática no game ainda que fundamentalmente
diferente daquela conhecida no cinema e teatro - jaz no design dos personagens
autônomos. Estes entendemos como objetos do espaço-tempo virtual, dotados de alto
grau de autonomia, complexidade e intencionalidade, que, através da possibilidade de
empatia, constituiriam em si o caminho para a emergência de uma vontade dramática
com/contra a qual o interator teria que lidar. Para isto, descrevemos a narrativa como
uma estratégia evolutiva de pensamento comunicacional e causal, que se desenvolve
de acordo com os meios nos quais se materializa, da oralidade primária ao audiovisual
digital interativo 3D. Um segundo passo trata de descrever os personagens
autônomos, em sua faceta de Inteligência Artificial voltada para games e narrativas
interativas: os “agentes verossímeis”. Para isso, tomamos como referência o trabalho
dos grupo de pesquisa Oz e Sythetic Characters, assim como do game designer
brasileiro Marcos Cuzziol. Um terceiro passo consiste em abordar a natureza da
personagem de ficção a partir de Aristóteles, Fernando Segolin e do conceito de
empatia, sobretudo na visão de Evan Thompson, esta entendida como pré-condição
para a compreensão do outro e de nós mesmos como entidades afetivas, emocionais e
intencionais. Para finalizar, procedemos a uma análise de alguns aspectos das
“Criaturas” dos jogos Black & White I e II, na tentativa de descrever como se
instanciam algumas qualidades das propostas anteriores.
Palavras-chave: videogame, narrativa, empatia, inteligência artificial, agentes.
ABSTRACT
From the conceptual of “character-oriented games” and of “simulation games” the
present research draws the idea of narrative games as an “immersive simulation”, to
be experienced by the interactor through his or her traversing the virtual space of the
game as an implicated character and through his or her interaction with the
autonomous characters of the game. We carry through the hypothesis that the key for
the implentation of a dramatic strutucture in the game – albeit fundamentally different
from that of film or theater – is in the design of autonomous characters. These we take
to be object inhabiting the space-time of the game, carrying a high degree of
autonomy, complexity and intentionality, who, through the possibility of empathy,
constitute in themselves a pathway towards a dramatic entity with or against whom
the interactor has to act. To demonstrate that, we describe narrative as a evolutionary
strategy towards a causal mindframe, which evolves side-be-side with the media that
materialize it, from oral narratives to 3D interactive digital pieces. A second step
toward demonstrating our hypothesis is to describe autonomous characters through
Artificial Intelligence applied to narrative: the “believable characters”. We take as a
reference the work of the research groups Oz and Synthetic Characters, and of
Brazilian game designer Marcos Cuzziol. Finally, a third step is to approach the
nature of the fiction character, through the work of Aristotle and Fernando Segolin,
and the concept of empathy, under the approach of Evan Thompson. Empathy here is
understood as pre-condition for the comprehension of the Other and of ourselves as
affective, emotional and intentional entities. To illustrate this final view, we analyze a
few aspects of the Creatures from the games Black & White I e II, in an attempt to
point out how some qualities proposed are instantiated.
Keywords: video game, narrative, empathy, artificial intelligente, agents.
SUMÁRIO
1 INTRODÃO
10
2 ORGANIZANDO A EXPERIÊNCIA
17
2.1 Muito em jogo
17
2.1.1 Uns e outros jogos
24
2.2 Narratologia x Ludologia
28
2.2.1 Outras palavras
34
2.3 Qu’est-ce que la narrative?
42
2.3.1 Quem conta um conto?
45
2.3.1.1 O início, o fim e o meio
47
2.3.1.2 O dispositivo e outras contingências
51
2.4 Hamlet no Holodeck?
59
2.4.1 Imersão, presença e o design das affordances
61
2.4.2 A simulação como narrativa
66
3 AGENTES VEROSSÍMEIS
3.1 O design da narrativa como simulação imersiva
3.1.1 Mundo-objeto
3.1.2 Bloco do eu sozinho
3.2 Agentes Inteligentes
3.2.1 Azul Profundo
3.2.2 Comportamento Artificial
3.2.2.1 Grupo Oz – Carnegie Mellon University
3.2.2.2 Synthetic Characters Group – MIT
3.2.2.3 Favor ignorar o senhor atrás da cortina
4 EMPATIA E NARRATIVA
115
4.1 O motor da narrativa
115
4.1.1 A personagem-função
117
4.1.2 A personagem-estado
122
4.2 Alice atras dos neurônios-espelho
127
4.2.1 A evolução da personagem
131
4.2.2 Eu sou um outro
134
4.3 A Criatura
139
4.3.1 Plausível, maleável, amável
141
4.3.1.1 Ciclos de empatia entre Criatura e interator/deus
146
5 CONCLUSÃO
151
6 BIBLIOGRAFIA
158
A repetição não é o retorno do idêntico, o mesmo enquanto tal que
retorna. A força e a graça da repetição, a novidade que ela traz, é o
retorno como possibilidade daquilo que foi. A repetição restitui a
possibilidade daquilo que foi, torna essa coisa novamente possível.
Repetir uma coisa é torná-la novamente possível. É que reside a
proximidade entre a repetição e a memória. Pois a memória não
pode nos restituir tal qual aquilo que já foi. Isto seria o inferno. A
memória restitui ao passado sua possibilidade.
Giorgio Agamben
1 • Introdução
10
1
INTRODUÇÃO
1.1
in m e d i a r e s
Os personagens de Tomb Raider 2 não são sofisticados, se comparados aos que
iremos analisar neste trabalho. São máquinas de estados finitos simples,
normalmente inimigos de pouca esperteza, que atacam cegamente e, pelo menos no
modo “fácil” no qual esta pesquisadora sempre joga acabam sendo presa fácil
para jogadores apenas moderadamente hábeis. os bossesde cada nível, esses
mais desafiadores quanto mais longe se vai no jogo. Bossé o nome que o jargão
aos vilões finais de cada nível, mais poderosos e, às vezes, mais “inteligentes”.
Certamente, a luta com eles é mais difícil, muita vezes requer táticas e estratégias
mais elaboradas do que simplesmente atirar e correr. O bossfinal de TR2, um
monstro que lança raios mortais pelos olhos, requer que o jogador faça seu avatar
a pin up pós-humana, Lara Croft pular de um lado para o outro enquanto atira
sem parar. Cansa, requer muita perseverança e concentração, é caminho quase
certo para um princípio de lesão por esforços repetitivos, mas, ao final, garante
algo muito próximo à catarse dramática. O esforço, a dificuldade, as repetidas
tentativas, parece, equivalem às reviravoltas finais de uma boa narrativa de
aventura. A vitória se assenta em você por horas, dias e faz com que o “fim da
história” tenha a carga de um desfecho, não apenas de uma amputação.
Afinal, é o que Tomb Raider pretende: ser um jogo de aventura. Jogar, como
detalharemos, consiste em explorar o espaço, avançar nele, abrir caminhos, lutar
contra adversários na forma de bandidos, animais ou monstros de fantasia e
passar de um nível a outro, até o final. Mas existe um momento, um único
momento em que a coisa muda um pouco de figura: quando nós o jogador e seu
avatar/personagem chegamos ao Tibet e encontramos logo de cara alguns
monges guardando os templos. A dinâmica bélica que acima descrevemos ativa no
jogador uma rotina de auto-proteção: ao sinal de qualquer entidade, atire. Em TR2,
1 • Introdução
11
tudo o que se mexe é um inimigo, seja carne, peixe (ou flor que se cheire?). Mas aí
chegam os monges. Ou melhor, nós chegamos até eles e, treinados que estamos,
nem pensamos duas vezes: atacamos. Sacamos nossas armas, apontamo-as aos
monges e... assistimos incrédulos à reação de medo do primeiro deles! O monge,
sem fazer menção de correr e muito menos atacar condizente, pois, com seu
status de monge apenas se protege e sua expressão parece nos dizer: “não faça
isso”. É serena, mas deixa “entrever” o medo. Ele fica assim, até perceber que o
o atacaremos, depois, volta à sua rotina de monge.
Eu, diante dessa reação do monge, me desfiz. Por felizmente não ter lido nenhum
mapa do jogo sobre aquele nível, não sabia da existência dos monges e muito
menos de sua natureza pacífica. Até então, a cada início de nível, eu/Lara éramos
prontamente atacadas por morcegos, pássaros, vilões, antes mesmo de
conseguirmos nos situar no novo ambiente. Com a ingenuidade de um herói no
novo mundo, apenas repeti a rotina, preocupada em sobreviver no jogo. Nessa
nova situação, contudo, assustada pela injustiça que quase cometi, tive que parar o
game e passar alguns bons minutos refletindo. Empatia era o que eu havia acabado
de viver: olhar para o monge tibetano de Tomb Raider 2 e ver, em sua expressão de
medo, o sentido de meus próprios atos. Ver, na alteridade daquele personagem de
código e polígonos, meu próprio espelho, num Umwelt que não é o meu. Eu, ali,
era eu mesma e um outro. E estava diante da semente da questão que neste trabalho
perseguimos.
1.2
Entrar no filme?
Dentre as inúmeras perspectivas sob as quais seria possível abordar este novo
formato, uma nos interessa particularmente e a pesquisa empreendida no mestrado
(Gomes, 2003) percorreu um caminho detalhado na tentativa de mapear alguns
aspectos iniciais do game como formato narrativo, audiovisual, imersivo e
participativo. Nessa pesquisa, procedemos a uma tentativa de delimitar um
universo particular do game, diferenciando-o de demais formatos baseados em
software, e definindo-o a partir de características que julgamos essenciais e
1 • Introdução
12
diferenciais, que compõem sua explícita e assumida tentativa de transcriar, no
universo de propriedades do digital, uma experiência em certa medida herdada do
“cinema canônico”, ou seja, do modelo hegemônico de cinema, sistematizado
sobretudo por Hollywood (Bordwell et al, 1985). Em outras palavras, a questão
que baseou nossa pesquisa no mestrado foi
a possibilidade deste novo meio estar gestando um formato narrativo
[capaz de] se tornar uma espécie de cinema interativo, uma forma de
proporcionar a realização de um certo desejo de entrar no filme que, de
um modo ou de outro, parece encontrar-se no imaginário de uma
sociedade moldada pelo cinema canônico, como a que cresceu durante
o século XX (Gomes, 2003, 16).
Relacionamos um dos modos gerais de agenciamento nos games à implementação
de uma narrativa, através da atribuição ao interator das funções do protagonistas de
uma jornada dramática, universo que viemos a identificar como sendo o dos jogos
de personagem. Relacionamos o outro universo, o dos jogos de simulação, à
construção de um mundo de natureza mais ou menos sistêmica, em que o interator
é um controlador das propriedades dos elementos de uma simulação, numa posição
análoga à de um deus.
Ao proceder a estudos críticos de exemplares de cada um dos dois gêneros, nos
deparamos com games já um pouco híbridos, que tentavam se fazer valer de
características do gênero oposto para enriquecer sua própria dinâmica de
agenciamento. Desta forma, pudemos constatar que Black & White é um jogo de
simulação que insere o interator fisicamente no universo ficcional como um
personagem claro e Shenmue, um jogo de personagem que busca implementar um
mundo mais sistêmico, a exemplo dos jogos de simulação. Black & White,
especificamente, se mantém essencialmente fiel à criação de um universo
sistêmico, composto de elementos autônomos e complexos o suficiente para que,
de sua relação com o interator, possam emergir experiências sofisticadas. O trunfo
deste game se encontra, portanto, na criação de personagens autônomos mais
complexos, dotados de objetivos dramáticos, que se relacionam com o interator e
são capazes de ações próprias e de mudanças ao longo do eixo temporal. O game
começa a deixar de lado a construção de subterfúgios para urdir uma cadeia causal
de plena coerência base narrativa do cinema canônico –, passando a deslocar
1 • Introdução
13
essa noção em direção à de emergência de experiências dramáticas a partir da
relação entre os diversos elementos, autônomos e complexos.
Tendo lançado um olhar mais atento a essas duas experiências, finalizamos nossa
pesquisa com a convicção de que, nessa busca pela transcriação do ato de entrar
no filme”, um formato que tente combinar, com sucesso, os dois maiores êxitos
desses gêneros tem tudo para ser um dos mais promissores modelos de drama
interativo. De um lado, parece-nos claro que a característica fundamental e que
aproxima o game de pretensões narrativas da natureza do cinema canônico é sua
possibilidade de criar um mundo no qual o interator se projeta fisicamente e
também como um personagem implicado na história. De outro, esse mundo deve
ser cada vez mais orgânico, para que a experiência narrativa no game possa ir
além de um percurso linear disfarçado.
Na presente pesquisa, partimos do pressuposto que a tentativa de gerar, no game,
uma cadeia causal urdida nos moldes daquela que define o principal sistema do
cinema canônico nos parece cada vez mais fora de lugar, se nada mais, porque
desloca o potencial de complexidade do game para um universo determinista, que
tempos sinais de invalidade no próprio sistema semiótico que o gerou, ou
seja, no próprio cinema canônico. A partir disso, iniciamos esta pesquisa a partir da
crença de que o caminho mais promissor para o game narrativo é o que une o
grande trunfo do jogo de personagem a imersão “física” do interator no mundo
ficcional à construção de uma dramaturgia mais preocupada com a criação de
elementos dramáticos autônomos e suficientemente complexos para que sua
interação possa gerar, no interator, um envolvimento emocional análogo ao de
catarse, ainda que, quiçá, numa redefinição mais afeita à contemporaneidade.
Sob essa perspectiva, passamos a considerar que, dentro de um universo sistêmico
que almeja gerar uma experiência narrativa, os elementos capazes de alcançar
maior complexidade, pela própria natureza de drama, são os personagens
implementados pelo jogo. Levando isto em consideração, e sempre sob a
perspectiva de buscar no game esse ato de entrar no filme, uma questão se coloca,
inevitavelmente: até que ponto é realmente possível a emergência de uma vivência
dramática a partir apenas dessa interação com o jogador/personagem de elementos
1 • Introdução
14
operados pela máquina, conquanto dotados de maior complexidade, mas sem a
presença de uma estrutura maior que possa garantir uma cadeia causal coerente?
Nossa hipótese, em face de tal questão, é a seguinte: acreditamos que a
convivência com uma alteridade no mundo do jogo é o elemento fundamental
apenas a partir do qual pode emergir qualquer tipo de vivência narrativa
sofisticada. Na raiz dessa vivência está o conceito de empatia, como pedra
fundamental no processo de projeção de motivações àqueles com os quais
convivemos. Acreditamos que os personagens autônomos dos games são o
caminho para a concretização dessa possibilidade e na presente pesquisa tentamos
pontuar criticamente caminhos como isso tem se dado.
Um primeiro passo para demonstrar essa hipótese é contextualizar, no capítulo
dois, o que estamos chamando de narrativa no universo do game. Voltamos a
conceitos apresentados no mestrado, aprofundando-os e trazendo à tona a questão
da narrativa como estratégia cognitiva para reoganizar o fluxo do conhecimento.
Enfrentamos as colocações de ludologistas e narratologistas e, a partir do
aprofundamento dos paradigmas de personagem e simulação, definimos nosso
universo de expectativas para o game narrativo.
No capítulo três, procedemos a um mapeamento das estratégias de criação de
personagens autônomos implementados e que tentam apontar caminhos mais
promissores. Adotamos como âncora núcleos de estudo como o grupo Oz, da
universidade de Carneggie Mellon, e o Synthetic Characters Group, do MIT,
ambos nos Estados Unidos, que levaram adiante pesquisas sobre a implementação
de agentes inteligentes ou, em sua nomeclatura, agentes verossímeis” ou
“lifelike characters” para a sofisticação da experiência dramática dos jogos
eletrônicos. Basicamente, o foco investigativo dos grupos consiste na premissa de
que toda uma camada de mecanismos de linguagem, convenções culturais e
dramatúrgicas sobre os quais devem ser aplicados os recursos de inteligência
artificial para que se possam criar personagens verossímeis e que cumpram o
essencial papel de elevar o grau de complexidade das narrativas dos jogos
eletrônicos. Em vez das mesmas preocupações que regem as pesquisas de
inteligência artificial per se, que buscam responder, em última instância, à questão
filosófica da possibilidade da criação artificial de inteligência comparável à
1 • Introdução
15
humana, o que rege a pesquisa de tais grupos é uma questão menos ambiciosa, mas
de extrema valia para a implementação do sonho de entrar no filme: o quão
“inteligentes” precisam ser os personagens autômatos para que cumpram funções
dramáticas sofisticadas?
No capítulo quatro, passamos a olhar a tradição da construção da personagem de
ficção, para tentar reenquadrar sua existência no mundo contemporâneo. De um
lado, buscamos, a partir dos estudos de Fernando Segolin, investigar a mudança na
natureza da personagem, para pensa-la agora como “metáfora epistemologia” e não
mais apenas feixe de ações a serviço do enredo. A partir da compreensão dessa
nova personagem a personagem-estado vamos lançar um olhar para as raízes
evolutivas da personagem de ficção, culminando num olhar mais atento àquilo que
consideramos estar no centro do poder da personagem como agente da narrativa: o
conceito de empatia. A partir desse conceito, um último passo que tomamos é
analisar pontualmente diferentes versões da Criatura dos jogos Black & White II e
II, para, a partir de sua implementação, tentar fechar o ciclo de nossa hipótese e
demonstrar de que maneiras a interação jogador-personagem estabelece as
premissas para um aumento da sofisticação narrativa nos games.
1.2
Da metodologia
Game são uma área interdisciplinar por natureza. Como forma expressiva, herdam
repertório da narrativa, do cinema, da comunicação. Como tecnologia, precisam de
forte interface com áreas como a Inteligência Artificial e a computação de modo
geral. Em seu aspecto de objetos de significação, requerem, mais do que a
exposição a um filme, horas a fio de jogo, além de contato com outros jogadores
para colher suas experiências, na medida em que nem sempre é possível, mesmo
ao mais dedicado dos pesquisadores, passar as 40 horas em média requeridas para
o cumprimento total de um jogo de personagem contemporâneo. Ao mesmo tempo,
jogos de simulação, por sua própria natureza, tornam praticamente impossíveis ou
fortemente improváveis a repetição de um mesmo acontecimento. Ou seja: uma
experiência vivida por um interator num jogo de simulação dificilmente será
repetida deliberadamente noutras circunstâncias ou por outro jogador. Por tudo
1 • Introdução
16
isso, estudar videogames requer uma nova metodologia, que descreveremos aqui
rapaidamente, para tornar transparente o caminho que tivemos que seguir para
obter os dados que aqui constam.
Quase todos os games mencionados ao longo deste trabalho foram jogados pela
pesquisadora. Alguns, como Tomb Raider II, Tomb Raider Anniversary e Shenmue
I, foram jogados até o final, mesmo que por vezes tenhamos recorrido a cheats
(códigos inseridos para destravar níveis particularmente difíceis) e certamente a
walk-thoroughs, mapas escritos colaborativamente por outros jogadores com
muito tempo livre, presume-se para facilitar a outros jogadores o percurso do
jogo. A existência proeminente de diversos walk-throughs para cada jogo lançado
no mercado revela a natureza ainda por demais arbitrária da “narrativa espacial”
dos games: porque é de sua natureza nos perdemos no caminho, torna-se necessária
a ajuda de mapas, sobretudo àqueles que, como nós, não têm tantas horas por dia
para dedicar ao jogo. Contudo, na medida em que o walk-through contraria a
própria natureza do percurso intuitivo por um espaço, sempre que possível
optamos por não usa-lo, recorrendo a eles apenas em momentos em que não se
podia mais recorrer à própria intuição. Outros jogos, como Grand Theft Auto San
Andreas, Resident Evil 4 e os próprios Black & White I e II foram jogados apenas
em parte. Os primeiros porque, além de longos, oferecem, dada sua popularidade,
abundantes relatos de sua jogabilidade tanto na rede, como através de jogadores
com quem temos contato, através do grupo de estudo CS: Games, entre outras
interfaces com gamers de várias idades. Black & White, porque, pela própria
natureza de simulação, não permite a existência de um “fim” propriamente dito. De
toda forma, sempre que falamos de um jogo, ele foi experimentado em primeira
mão em alguma medida e, se um trecho particular do jogo não tiver sido
experimentado em primeira mão, o relato foi colhido de fontes confiáveis, sejam
fóruns de internet, corroborados por mediadores, designers, outros jogadores e, de
preferência, por vídeos gravados do próprio jogo.
2
ORGANIZANDO A EXPERIÊNCIA
Tutto perché Marco Polo potesse spiegare o immaginare di
spiegare o essere immaginato spiegare o riuscire finalmente a
spiegare a se stesso che quello che lui cercava era sempre
qualcosa davanti a sé, e anche se si trattava del passato era un
passato che cambiava man mano egli avanzava nel suo viaggio,
perché il passato del viaggiatore cambia a seconda dell’itinerario
compiuto, non diciamo il passato prossimo cui ogni giorno che
passa aggiunge un giorno, ma il passato più remoto. Arrivando a
ogni nuova città il viaggiatore ritrova un suo passato che no
sapeva più d’avere: lestraneità di ciò che non sei p o non
possiedi p t’aspetta al varco nei luoghi estranei e non
posseduti.
Italo Calvino, Le città invisibili
2.1
Muito em jogo
Falar de videogame
1
pode implicar falar de muitas coisas. Antes de tudo, porque
aquilo que chamamos de videogame pode se manifestar de variadas formas. O
que chamo de videogame pode ser, por exemplo, um first person shooter jogo
de tiro em primeira pessoa jogado num PC em rede local por vários
adolescentes ao mesmo tempo. Pode igualmente ser chamado de videogame um
role-playing game – um RPG – jogado individualmente em um PC desconectado
da rede. Ou o contrário: videogame pode ser um first person shooter jogado
offline, contra a máquina, e um RPG jogado online, com e contra centenas de
outros seres devidamente humanos. Pode ser um jogo de ação 3D jogado num
console da mais nova geração ou num mais antigo; pode ser um jogo de ritmo
jogado numa arcade
2
ou em casa; pode ser um jogo bidimensional jogado num
celular ou emulado
3
num PC de última geração. Pode ser um jogo em flash,
gratuito, baixado da rede e criado por uma pessoa só, ou um jogo proprietário,
caríssimo, criado por uma equipe de dezenas de pessoas e sob um orçamento de
milhões de dólares...
1
Neste trabalho, utilizaremos as palavras videogame”, game”, “jogo eletrônico” (e, em determinados
contextos, apenas “jogo”) de forma intercambiável.
2
Arcade, no Brasil também chamado de fliperama, uma estabelecimento comercial que oferece diversos jogos
eletrônicos, não através de consoles ou PCs, mas em versões customizadas, com acessórios únicos e mais
profissionais.
3
Emular, nesse contexto, significa traduzir, via software, um jogo de um determinada plataforma, processador
ou sistema operacional para outros, de modo que seja possível rodar, por exemplo, um jogo antigo de arcade
num PC contemporâneo.
2 • Organizando a Experiência
18
Toda e qualquer forma expressiva tem inúmeros caminhos e descaminhos, mas o
game, por sua natureza participativa, parece ter ainda mais alguns. Mesmo
quando encaramos um universo mais restrito de games, é possível analisá-lo sob
diversos enfoques. Como afirma Espen Aarseth, um dos pioneiros nos estudos
dos games: “to simply talk about games, or even ‘digital games, seems
irresponsible: there are large and widening differences between game genres,
gaming situations and game technologies” (Aarseth, 2004). Assim, enfoques
voltados à parte técnica, de programação e game design; os que estudam o
impacto dos games na sociedade, nas crianças, nos adolescentes, na educação, na
violência, nas fobias, na cognição; os que estudam a ontologia do game... A
lista vai longe, e lançar um olhar a todas essas formas ao mesmo tempo seria,
além de impossível, impróprio. Cada uma dessas manifestações carrega em si
características particulares que, muitas vezes, se negam mutuamente e que
devem ser analisadas com vagar para que se possa sobre elas dizer algo
minimamente pertinente. A maioria delas traz algo tão incrivelmente novo que
estamos apenas começando a tatear nosso caminho até elas até porque, no
momento mesmo em que escrevo estas linhas, nascem novos jogos, novas
práticas, novas tecnologias.
Felizmente, cada vez mais, há estudos os mais diversos sobre o videogame. E, no
meio de toda essa variedade, é preciso circunscrever e definir. Neste começo de
caminhada, antes de qualquer outra coisa, é preciso mapear minimamente o que
estamos chamando game. Por seu didatismo, adotamos a definição de Juul para o
que vamos chamar jogos eletrônicos, videogames ou simplesmente games:
“games played using computer power, where the computer upholds the rules of
the game and where the game is played using a video display” (Juul, 2005). Esta
definição nos é útil na medida em que adota como diferencial o uso do
computador entendendo, por isto, seja o que comumente chamamos de PC,
seja um console, um celular, um aparelho de DVD ou um exemplar instalado
naquilo que costumava se chamar fliperama ou arcade sobretudo no que diz
respeito a implementação e controle das regras e procedimentos do jogo. Eis o
grande diferencial, aquilo que possibilita a existência do game, que o define. O
2 • Organizando a Experiência
19
que entendemos por regras e a própria definição do que pode um game, a partir
de suas regras, difere um pouco daquilo que ordena o pensamento de Juul, mas
disso trataremos mais adiante.
Ao mesmo tempo, interessam-nos especialmente jogos que sejam veiculados
através de algum suporte audiovisual, seja ele uma tela de computador ou de TV,
uma telinha de console portátil ou uma CAVE ou capacete capaz de gerar a
ilusão de imersão física mais propriamente. Este atributo nos remete a outra
característica importante, capaz de circunscrever o universo de jogos que nos
interessa aqui ao que Aarseth chama de “games in virtual environments”
(Aarseth, 2004), em que a simulação de um mundo virtual é um traço importante
e que define um universo específico de jogos. Aqui, enfatizamos essa qualidade
porque, definitivamente, é a possibilidade do computador de criar esse ambiente
virtual o que mais nos cativa no formato do game e, como veremos adiante, nos
faz crer que o aproxima de todo um histórico humano no universo da
representação e narratividade, algo que, de pronto, o torna diferente do conceito
mais amplo de jogo num universo pré-digital.
Dentro dessa esfera de jogos que sistematizam um ambiente virtual,
operacionalizados computacionalmente, quase todos os games nos interessam.
Contudo, nosso foco se voltará àquilo que enxergamos, dentro do universo maior
de games, como diversas possibilidades de implementar alguma espécie de
narrativa audiovisual, imersiva e participativa. Se podemos ou não chamar esse
universo mais restrito de games de “narrativa” é algo que discutiremos adiante
neste capítulo, mas o que não se pode negar é que existem não é mera
especulação games que fazem o uso deliberado de procedimentos advindos da
tradição narrativa em suas dinâmicas de agenciamento e que alguns chegam a
trazer para si a explícita missão de portar-se como uma narrativa participativa.
Entendemos que isto nos autoriza a lançar os mais generosos olhares a esta
forma ainda emergente em busca de caminhos narrativos, mesmo que seja para
descobrir que essa talvez não seja a maior vocação do formato.
2 • Organizando a Experiência
20
Parece-nos inegável que pelo menos uma face desse existente projeto
narrativo tenha tido franca inspiração no modelo canônico de cinema, tendo sido
levada adiante como uma tentativa de recriar, no game, alguns aspectos do
conceito de narrativa audiovisual perpetuado por seu modelo hegemônico. Por
cinema canônico, entendemos o formato dominante de cinema, presente como
matriz narrativa e de linguagem sobretudo no cinema hollywoodiano, mas que
tem sido disseminado (ainda que nunca num estado de pureza, obviamente) por
todo o mundo, desde que suas mais fundamentais regras começaram a ser
sedimentadas no final da primeira década do século XX. Esse cânone se baseia
na crença de uma possibilidade de transparência do aparato cinematográfico, na
produção de um discurso que se confundiria com a própria realidade. Usando
como trunfo o poder indicial da câmera cinematográfica, do som sincronizado e
da montagem em continuidade para criar um duplo do real, o cinema canônico
porta-se como uma janela para o mundo, no limiar da qual se encontram os
espectadores, e através da qual observam no sentido de Jonathan Crary (1992)
e participam da construção de uma narrativa de gêneros ainda razoavelmente
definidos e compartilhados, com horizontes bastante mapeados. O cinema
canônico culmina numa matriz compartilhada de expectativas que acabam por
definir tão bem um formato narrativo audiovisual que é difícil imaginar algo
para aquém ou além dele.
Por um lado, portanto, parece-nos que o desejo quase atávico de entrar na
imagem, ou, mais propriamente, no filme, ainda se deixa entrever por trás do
desejo narrativo de alguns games. Por outro, a diversidade de manifestações do
game tem conseguido garantir que esse projeto narrativo, excessivamente
centrado nas características de uma linguagem de um meio intrinsecamente
diferente, possa aos poucos ser reconfigurado, ganhando, assim, novos
contornos. Dessa maneira, a questão que nos baseia aqui é a possibilidade de o
game, em sua explícita tentativa de proporcionar a realização de um certo desejo
de entrar no filme, estar gestando um formato narrativo autônomo ou vários
mais afeito às características do digital e aos procedimentos comunicacionais das
sociedades contemporâneas que o utilizam, como explicaremos mais adiante.
2 • Organizando a Experiência
21
Com esse ponto de partida, e ainda no universo da fundamentação, um outro
conceito-chave que nos guia e define a premissa fundamental do game como
forma potencialmente narrativa é o de agenciamento: “o poder satisfatório de
exercer ações significativas e observar o resultado de nossas decisões e escolhas”
(Murray, 2000). No caso específico do game narrativo, acreditamos que o
agenciamento dá ao interator – termos que aqui usamos de forma intercambiável
com “jogador”, no caso dos videogames – a possibilidade de fazer parte da
história, através da tomada de ações significativas como um de seus
personagens. Porque as associações mais óbvias do game à narrativa, que
poderiam nos remeter, por exemplo, à história de fundo que costuma
acompanhar o jogo, são nada mais que “justificativa para o material do próprio
jogo: uma explicação racional que estabelece a situação e constitui a motivação
global para a iconografia e os acontecimentos com que nos deparamos no jogo
(Darley, 2000) e não contribuem necessariamente para aquilo que acreditamos
ser o verdadeiro potencial narrativo do game. O que importa, realmente, é a
experiência em si do jogo, que “implica um certo tipo de “atuação cinestésica”
4
que se converte num fim em si mesma” (Darley, 2000).
Figura 1: To mb R aider Anniversa ry, 2007
4
Uma tradução que propomos a partir do texto original em inglês kinesthetic, do grego kinesthesia, que gera o
português cinestesia, “o sentido da percepção de movimento, peso, resistência e posição do corpo, provocado
por estímulos do próprio organismo” (Houaiss).
2 • Organizando a Experiência
22
Essa “atuação cinestésica”, acreditamos, é capaz de agenciar o interator e
transformá-lo em sujeito da enunciação, no sentido de fazê-lo “experimentar um
evento como seu agente, como aquele que age dentro do evento e como o
elemento em função do qual o próprio evento ocorre” (Machado, 1997: 211-
212). Em seu ato de jogar, o interator se compõe com o “sujeito SE” (Machado,
2007), essa subjetividade implicada no software, com as quais é preciso se
compor para dar sentido aos objetos digitais:
o sujeito implicado nos dispositivos de realidade virtual é agora um
sujeito agenciador, um sujeito que dialoga, que interage com as
imagens (com sons e com estímulos táteis). Ele ganha, portanto,
potencialidades novas, ainda pouco conhecidas e mal utilizadas, além
de passar a conviver num universo de acontecimentos muito mais
complexo, um universo que passa a demandar dele respostas
problematizadoras, respostas não inteiramente previstas (...) (Machado,
2007: 195).
Embora Machado esteja falando especificamente dos dispositivos de realidade
virtual (como as caves, em contraposição aos games ainda jogados num monitor
de TV ou computador), acreditamos que as características por ele enumeradas
dizem respeito a qualquer interator diante de um objeto do mundo digital com o
qual tenha que, para dele/nele fazer sentido, empreender aquilo que Aarseth, por
outro caminho, chama de “esforço ergódico”, um “esforço não trivial na leitura e
apreensão do texto” (Aarseth, 1997).
Essa “atuação cinestésica”, portanto, é o caminho para o agenciamento do
interator e a característica mais fundamental do game, que o define como
formato mais geral, perpassando todos os seus gêneros, desde os menos
figurativos, de lógica puramente formal, até os games esportivos ou os
simuladores de vôo e afins. Contudo, quando chega ao universo daquilo que
estamos chamando de jogos com potencial narrativo, essa característica, que,
num primeiro olhar, separaria o game do cinema, parece-nos iniciar um certo
movimento de imersão emocional muito afim daquele que define o cinema
canônico. Nesse universo, um passo além de projetarmos intenções aos
personagens, somos parte do mundo ficcional, agimos e, assim, manipulamos em
primeira mão a teia de causa-e-efeito que caracteriza as formas narrativas.
2 • Organizando a Experiência
23
A partir disso, importa menos que um determinado jogo tenha pensado para si
um pano de fundo com elementos classicamente narrativos, como enredo e
personagens, se sua jogabilidade como já se diz no mundo dos games pouco
se referir a esse nível temático. Por outro lado, também não nos importa que um
determinado jogo não se proponha explicitamente como narrativa, estando, por
exemplo, na prateleira de esportes, contanto que sua dinâmica de agenciamento
traga algo de importante para essa “atuação cinestésica”, para o estar-no-mundo
do interator no jogo. Para nós, algo de potencialmente mais interessante num
jogo como Gran Turismo (figura 2), na possível encarnação do carro como
avatar, do que em muitos games explicitamente narrativos, nos quais, contudo, a
dinâmica de agenciamento do interator está tão congelada entre fatias narrativas
pré-determinadas que o jogar se reduz a uma mera reação. A narratividade de um
game, bem entendido, não está na quantidade de vídeos pré-renderizados
5
nos
quais a trama e as intenções dos personagens inclusive as suas próprias são
impostas ao jogador, reduzindo-o temporariamente a mero espectador.
Acreditamos que, se é possível falar em narratividade no game, ainda que
circunscrita por esses elementos tradicionais de enredo, ela só pode emergir com
plenitude dessa atuação cinestésica de que Darley fala, da experiência agenciada
do jogador no mundo virtual, normalmente através de seu avatar, que habita o
mundo do jogo não em resposta à sua atuação, mas, também, como veremos
adiante, como consciência geral demiúrgica.
Posto isso, é preciso deixar clara uma premissa, complementar à circunscrição
que fizemos acima: narratividade não é um aspecto necessariamente importante a
todos os tipos de videogames. Se é que podemos aplicá-la a qualquer universo de
games, questão que deve ser levantada, certamente ela não é e nem deve ser o
único viés de abordagem desse fenômeno multiforme, como descrito no começo
deste capítulo. Isso deveria ser óbvio, mas, a tirar pela importância dada ao
embate entre ludologistas e narratologistas, como veremos adiante, não é.
Assim, mais uma vez, deixamos claro que, por um lado, interessam-nos os
5
No linguajar computacional, renderizar forma aportuguesada do verbo inglês to render significa, no caso da
computação gráfica, transformar os cálculos matemáticos em imagens visíveis. No game, a distinção importante
se dá entre as animações renderizadas em tempo real pela engine do jogo, em diálogo com as ações do jogador, e
aquelas previamente renderizadas, também chamadas em inglês de full motion vídeos, com as quais o interator não
pode interferir, atendo-se apenas à função de espectador.
2 • Organizando a Experiência
24
games que carregam consigo, deliberadamente, a missão de criar procedimentos
narrativos, como enredo, personagens, conflito e afins, mesmo aqueles que
consideramos excessivamente colados a dinâmicas pertencentes a meios
anteriores, como o cinema.
Figura 2: Gran Turis mo 4, 2005
Por outro lado, compreendendo que a narratividade do game não emerge pura e
simplesmente de uma intenção pré-determinada e sim da experiência do jogar,
da tal atuação cinestésica que define qualquer forma de jogo (sobretudo os jogos
miméticos), consideramos prudente olhar, com a mesma generosidade, alguns
gêneros e exemplares de jogos que, em princípio, não estariam naturalmente
relacionados às possíveis pretensões narrativas do formato, mas cujo
agenciamento aponta formas potencialmente interessantes de imersão e criação
de sentido.
2.1.1
Uns e outros jogos
Sob essa perspectiva, parece-nos possível delimitar duas categorias mais gerais
de games voltados ao narrativo, as quais propusemos desde o mestrado (Gomes,
2003), e que tentam responder ao desenho dessa experiência ou atuação
cinestésica, focando, cada qual, um aspecto constituinte do game. Em outras
palavras, elas implementam o agenciamento do interator através de práticas bem
2 • Organizando a Experiência
25
diferentes. Uma categoria, que propomos ser a dos “jogos de personagem”, foca
seus esforços na construção de um ambiente navegável, no mais das vezes
tridimensional e cada vez mais sofisticado, a ser habitado pelo jogador através de
um avatar. Neste universo, a sensação de imersão e de “presença vicária”
(Darley, 2000) é forte o suficiente para estabelecer o vínculo emotivo que
caracteriza o cinema canônico algo que, em referência ao game, Santaella
chamou, muito propriamente, de “identificação encarnada” (Santaella, 2004). A
maioria dos games dessa categoria se estrutura em torno de uma jornada através
de um determinado espaço-tempo, o qual o interator penetra como protagonista.
Tanto games de RPG role-playing games como gêneros mais difusos, de
ação ou de tiro, aqui se enquadram, e podemos citar as séries Final Fantasy,
Tomb Raider (figura 1), Half-Life, Grand Theft Auto ou Deus Ex como
exemplares de jogos de personagem bastante populares e que nos servirão mais
adiante. Contudo, admitindo a hipótese de que mesmo os jogos não francamente
narrativos compartilham em algum grau dinâmicas de agenciamento, seria
preciso apontar, por exemplo, também games como Gran Turismo, Tony Hawk
Pro Skater como relacionados a esta categoria. Em ambos, de forma bem
diferente, jogar consiste em “vestir” um corpo virtual, ou, mais propriamente,
“vestir” um carro e um skate/skatista, respectivamente.
Essa categoria deriva em parte das observações acerca daquilo que Marie-Laure
Ryan chama de interatividade “interna e ontológica” (Ryan, 2001), em que os
usuários se projetam como parte do mundo virtual e, através de suas ações,
enviam a história do mundo que habitam a diferentes “caminhos que se
bifurcam”. Uma categoria que se cruza com a nossa é aquela que Aarseth,
criador do conceito de “cibertexto” (Aarseth, 1997), chama de quest games,
universo de jogos nos quais “the player-avatar must move through a landscape in
order to fulfill a goal while mastering a series of challenges (Aarseth, 2004).
Aarseth, forte opositor à possibilidade de se abordar quaisquer games pelo viés
narrativo, considera seus quest games uma forma de discurso “pós-narrativa”.
Da maneira como concebemos a categoria de jogos de personagem, aceitando ou
não essa impossibilidade narrativa proposta por Aarseth, os quest games seriam
apenas uma subcategoria de um universo um pouco maior caracterizado pela
2 • Organizando a Experiência
26
relação imersiva jogador-avatar-ambiente, que é o que propomos como
diferencial para os jogos de personagem.
Jesper Juul propõe uma categoria em algum nível próxima aos quest games de
Aarseth, a que ele chama de “jogos de progressão(Juul, 2005), e que, portanto,
também possui interseções com a nossa. Muito embora a característica
definidora de sua categoria seja a natureza das regras do jogo, que estabelece
uma progressão mais ou menos linear de desafios, em oposição àquilo que ele
vai descrever como uma estrutura de emergência, a maioria dos jogos de
personagem acaba por se encaixar nessa estrutura, por vincularem sua
jogabilidade à vivência de um mundo através de um avatar operado pelo jogador.
Juul, contudo, como um dos representantes da Ludologia, também não acredita
na associação a priori entre game e narrativa, como se verá mais adiante. Mais
uma vez, enxergamos nossa categoria como um conjunto maior que inclui
possivelmente os jogos de progressão de Juul, uma vez que nada na descrição
dos jogos de personagem os vincula a esse caminho mais linear. Aliás, como
veremos, essa forma mais ou menos linear e progressiva operada por parte dos
jogos de personagem é algo a ser superado.
A segunda categoria de games que propomos, cuja conexão com um projeto
narrativo é certamente bem menos óbvia, é a dos “jogos de simulação”. Aqui,
detemo-nos especialmente naqueles games de gerenciamento de parâmetros,
cujas raízes estão ligadas a experimentos com A-life e a modelizações
computadorizadas de sistemas reais. Os desdobramentos dessas práticas nos
deram games como a série SimCity, em que o interator governa uma cidade,
controlando diversos parâmetros como investimentos e planejamento urbano.
Também incluímos, aqui, jogos de estratégia em tempo real, nos quais o interator
faz as vezes de comandante de um exército numa guerra, tomando decisões
acerca de posicionamento, ataque, defesa e, enfim, táticas e estratégias militares,
dentre os quais podemos incluir sucessos como as séries Rome: Total War e
Civilization. Neste universo de games, o jogar consiste, essencialmente, na
observação do comportamento de um sistema, a partir da interferência em alguns
de seus elementos e subsistemas. Neles, normalmente, o jogador ocupa a posição
2 • Organizando a Experiência
27
de um deus ou demiurgo, não estando fisicamente’ inserido no ambiente do
game ou mesmo implicado diegeticamente, muitas vezes.
Essa segunda categoria encontra ressonância naquilo que Ryan chamou de
interatividade “externa e ontológica” (Ryan, 2001), uma vez que o usuário não
se projeta como parte do mundo virtual, controlando-o “de fora”, mas ainda
assim o modifica a partir de suas ações. Juul chama essa categoria de “jogos de
emergência”, pois, nesse universo, um pequeno número de regras se recombina
de modo a gerar dinâmicas incrivelmente complexas e imprevisíveis, até certo
ponto. A categoria proposta por Juul inclui não somente os god games e jogos de
estratégia, mas também jogos de cartas e esportes, simulados a partir de um
referente do mundo presencial ou criados nativamente no computador.
Um olhar mais atento a games recentes, contudo, tem-nos mostrado um
movimento de composição dessas duas tendências de agenciamento, talvez não
acidentalmente. Aliás, nem em nossa categorização e nem na de Juul, como ele
deixa bem claro (Juul, 2005), pretende-se cristalizar exemplares dentro de uma
ou outra categoria. É preciso encarar tais taxonomias não como categorias
fechadas, cristalizadas, mas sim como vetores, que se baseiam em determinadas
características dos jogos, em detrimento de várias outras não menos importantes.
Com isso em mente, de um lado, podemos apontar games de personagem, como
os mais recentes exemplares da série Grand Theft Auto e Deus Ex, criando
universos cada vez mais sistêmicos, nos quais os elementos e subsistemas têm
comportamentos mais autônomos, podendo se combinar de forma não-
antecipada e permitindo caminhos mais abertos à participação do interator,
encorajando, muitas vezes, soluções criativas e francamente divergentes do
mapeamento padrão das regras implícitas do jogo. Do outro lado, games de
simulação têm agregado à modelização de sistemas a imersão e sensação de
presença que marcam os games de personagem, tirando o interator, ainda que
parcial ou momentaneamente, da posição de demiurgo e dando a ele valor de
personagem fisicamente implicado no mundo diegético do jogo, como é o caso
da série Black & White, concebida pelo designer Peter Molyneux.
2 • Organizando a Experiência
28
É justamente a partir dessa composição de formas de agenciamento que nos
parece estar surgindo um formato narrativo autônomo, que paulatinamente se
despe de características onerosamente herdadas de meios anteriores, para buscar,
com mais liberdade, a realização de um processo que lhe seja próprio. Nessa
busca, o conceito de narrativa parece estar se distanciando da construção prévia e
otimizada de uma cadeia de causa-e-efeito a ser percorrida cognitiva ou
“fisicamente” pelo espectador/interator. Agora, a narrativa começa a ganhar
contornos de um processo de modelização de universos conceituais, de maneira
sistêmica, a serem habitados pelo interator da maneira que ele pode
estabelecer a cada experiência. Contudo, antes de prosseguirmos, é preciso
levantar a questão: é possível falar de narrativa no universo dos games?
2.2
Narratologia x Ludologia
Se os videogames são um fenômeno recente
6
, seu estudo mais formal existe
ainda menos tempo. Wolf e Perron (2003) remontam suas origens mais
longínquas ao final da década de 70 e começo de 80, mas o fortalecimento do
campo deu-se mesmo na década de 90, com o recrudescimento da indústria após
sua primeira crise econômica. O lançamento dos games Doom e Myst (figura 3),
em 1993, quando foi dado um salto de sofisticação na construção audiovisual,
tratou de atrair a atenção de pesquisadores, muitos advindos de áreas como a
literatura, o teatro e o cinema, os quais começaram a ver no game a promessa de
uma nova forma expressiva. De pra , o campo dos game studiesvem se
fortalecendo rapidamente e tem se tornado cada vez mais popular, de modo que,
mesmo em países periféricos, como o Brasil, o causa tanto espanto declarar
o game como objeto de estudo
7
, e até mesmo programas de graduação e
especialização voltados primordialmente para o tema.
6
Não tanto quanto muitos imaginam, uma vez que, tendo sido inventado em 1961, já tem 46 anos, sendo mais
velho, por exemplo, do que esta autora. Para mais informações sobre a história dos videogames, ver Steven L.
Kent e seu The Ultimate History of Video Games.
7
Estranhamento mesmo causa entrar numa loja de games e, ao perguntar sobre determinado título, ter que
ouvir como resposta outra pergunta: quantos anos tem o seu filho? Mesmo na cidade de São Paulo, a maior da
América do Sul, ainda causa estranhamento que uma mulher adulta jogue videogame. Mesmo as crianças,
2 • Organizando a Experiência
29
Nesse pouco tempo de existência dos estudos dos games, mais especificamente
desde o final da década de 90, começou a emergir, entre a fauna diversa que tem
o videogame como objeto de estudo, uma rixa que já se tornou clássica: a disputa
entre os auto-intitulados “ludologistas e aqueles, por estes, denominados
“narratologistas”.
Figura 3: Myst, 1993
O marco histórico dessa disputa conceitual está no lançamento da revista
acadêmica online Game Studies, em julho de 2001. Fundada por Espen Aarseth,
a Game Studies estabeleceu-se desde o início como um periódico importante
que, deliberadamente, começou a dirigir seus questionamentos diretamente ao
videogame, em oposição a “eufemismos” então em voga, como “narrativas
interativas”, “remediated cinema ou “procedural stories” (Eskelinen, 2001). De
modo premeditado ou não, seus vários de artigos passaram a abordar diretamente
o assunto “narrativa” no universo dos games, no mais das vezes opondo-se
(agressivamente, com freqüência) à utilização de expectativas e conceitos de
áreas como a literatura e o cinema/drama para pensar uma forma que esses
autores, talvez pela primeira vez no meio acadêmico mais formal, passavam a
considerar como sendo única e importante por si só.
quando informadas de tal predileção, olham com desconfiança, como quem pensa: “essa tia não muito velha
pra isso, não?” Ossos do ofício...
2 • Organizando a Experiência
30
Basicamente, os ludologistas defendem o estudo dos videogames como
disciplina autônoma, a “ludologia, livre de qualquer “colonização” por
disciplinas estabelecidas, cujos objetos o formas reconhecidamente
“elevadasde arte e cultura, como a literatura, o teatro ou, quem diria, o cinema.
Para os ludologistas, toda a questão narrativa revolvendo o universo dos
videogames é, além de franco absurdo, uma impostura de acadêmicos advindos
dessas áreas, em busca de legitimação para o game e, portanto, para suas
próprias pesquisas – como se apenas a promessa de que os videogames irão gerar
novas formas narrativas pudesse fazer deles um formato digno de nota,
justificando seu estudo perante empedernidos departamentos de cinema e
literatura. Dentre outros acadêmicos apontados como “narratologistas” estão:
Janet Murray, professora do Georgia Institute of Technology e “culpada” por
almejar o Hamlet no Holodeck (Murray, 2000); Marie-Laure Ryan, pesquisadora
independente, que defendeu o potencial narrativo da realidade virtual (Ryan,
2001) e, mais recentemente, o game como forma narrativa “transmídia” (Ryan,
2004); Brenda Laurel, da California College of the Arts, e seu enfoque
aristotélico para várias formas computacionais, incluindo os games (Laurel,
1993); e, também, Henry Jenkins, chefe do departamento de Comparative Media
Studies do MIT e arauto da convergência entre as mídias, que defendeu ser o
game uma espécie de “narrativa espacial” ou mesmo uma “narrativa emergente
(Jenkins, 2004).
Do outro lado do ringue, os mais conhecidos e auto-intitulados ludologistas são
os supracitados Jesper Juul e Espen Aarseth, ambos da Universidade de
Copenhagen, e os pesquisadores independentes Gonzalo Frasca e Markku
Eskelinen, todos parte do conselho editorial da revista Game Studies
8
e, afora
Frasca, todos nórdicos (Frasca, uruguaio de nascimento, morava na Dinamarca
até o começo de 2007). Aarseth, de longe o mais articulado de todos eles, cuja
formação original é na área de Letras, descreve assim o viés narrativo no estudo
dos games: “the prevalent view among academic commentators of computer
games seems to be that the games are (“interactive”) stories, a new kind of
storytelling that can nonetheless be analyzed and even constructed using
8
É preciso notar que há também pelo menos uma “narratologista” no conselho editorial da Revista, a
pesquisadora independente Marie-Laure Ryan.
2 • Organizando a Experiência
31
traditional narratology” (Aarseth, 2004, p. 362). Eis os argumentos que Aarseth
desfia para se opor a esse viés:
There are essential discursive differences between stories and computer
games, much more crucial than those between novels and film.
Narrative theory (…) seems to be used because there is nothing better to
use, not because it fits particularly well (and, yes, games do have
beginnings, middles, and ends).
When games are analyzed as stories, both their differences from stories and
their intrinsic qualities become all but impossible to understand.
The narrativistic approach is also unfortunate because it imposes and
external aesthetic on the games, treating them as inferior narrative art, which
may be redeemed only when their quality reaches a higher ‘literary’ or
artistic level.
Computer game studies need to be liberated from narrativism, and an
alternative theory that is native to the field of study must be constructed.
Only then can we begin to see clearly how games relate to stories, how
stories sometimes are used in games and integrate or conflict with the
games’ action in a simulated world, and maybe learn something new about
both discursive modes (Aarseth, 2004: 362).
Jesper Juul, autor do blog The Ludologist
9
defende um caminho ainda mais
“ludológico” para o estudo dos games:
if we think of video games as games, they are not successors of cinema,
print, literature, or new media, but continuations of a history of games
that predate these by millennia. (...) [T]he question is not whether video
games are old or new, but how video games are games, how they
borrow from non-electronic games, and how they depart from
traditional game forms (Juul, 2005: 3-4)
Ou seja, para Juul, é preciso estudar games enquanto jogos e não como
pertencentes à linhagem do cinema ou da literatura. Markku Eskelinen consegue
ser ainda mais enfático em sua defesa do absurdoparentesco entre games com
formas narrativas:
Outside academic theory people are usually excellent at making
distinctions between narrative, drama and games. If I throw a ball at you
I don't expect you to drop it and wait until it starts telling stories. On the
other hand, if and when games and especially computer games are
studied and theorized they are almost without exception colonized from
the fields of literary, theatre, drama and film studies (Eskelinen, 2001).
9
http://www.jesperjuul.net/ludologist/.
2 • Organizando a Experiência
32
Eskelinen é, possivelmente, o mais agressivo de todos os ludologistas, fazendo o
uso corriqueiro de ironia em sua defesa do game como jogo.
Gonzalo Frasca, autor de artigos como “Simulation versus Narrative:
Introduction to Ludology” (Frasca, 2005) ou “Ludology meets Narratology:
Similitudes and Differences between (Video) Games and Narrative” (Frasca,
1999), talvez seja um dos ludologistas que mais propaga a utilização do termo.
Mesmo em seu olhar mais ponderado, onde reconhece possíveis usos e
contribuições da narrativa e/ou do cinema ao game, Frasca defende a diferença
essencial entre os modos discursivos das “mídias tradicionais”, como a literatura
ou o cinema, e o videogame, a saber, o caráter de “representação” dos primeiros
e de “simulação” deste último:
unlike traditional media, video games are not just based on
representation but on an alternative semiotical structure known as
simulation. Even if simulations and narratives do share some common
elements (characters, settings, and events) their mechanics are
essentially different. More important, they also offer distinct rhetorical
possibilities (Frasca, 2005).
O que Frasca chama de “possibilidades retóricas” refere-se às diferenças cruciais
entre “representação” e “simulação”. Para ilustrar a diferença, o autor começa
utilizando o exemplo de um carrinho de brinquedo que, para além de
“representar” a forma e as cores de um carro real, “simula” seu comportamento:
[T]he definition of simulation perfectly describes how toys represent
reality. Unlike photographs, words or sounds, toys do not simply
represent but they model a system. A toy car is not just the
representation of the static characteristics of a real car (color, shape) but
it also represents its behavior (it runs, its wheels turn). These different
interpretations are caused by the particular experience that each player
[has] with the model. Interpretation not only depends [on] the idea that
the observer has from the source system, but also from the idea that the
observer has from the model (Frasca, 2001: 31).
De fato, uma simulação pode ser descrita, acima de qualquer outra coisa, por sua
qualidade de modelar o comportamento de um sistema através de um sistema
2 • Organizando a Experiência
33
mais simples. Contudo, nem Frasca define o que está chamando de
“representação”, nem muito menos se o trabalho de ir mais longe na história
ou epistemologia para indagar que possíveis relações haveria entre uma
“possibilidade retórica” e outra.
Em favor dessas essenciais propriedades da simulação, aliás, Frasca chegou a
propor em seu mestrado por ironia, orientado pela “narratologista” Janet
Murray um modelo semiótico com um quarto signo, o interpretamen”,
alegando que o modelo triádico exaustivamente proposto por Charles S. Peirce
simplesmente não pode dar conta das tais “possibilidades retóricas” da
simulação:
I propose to borrow the concept of mental model [from] HCI and
incorporate it as a new category of Peirce’s model of sign. By doing
this, we will have an expanded model that would be able to explain (…)
simulations in general, as a sign (and, therefore, will allow us to
understand how the interpretation process of simulations work). To be
coherent with Peirce’s terminology, I propose to call this category the
interpretamen since the mental model is to the representamen what
the interpretant is to the object understood as the idea, or mental
model, that an observer has from the representamen (Frasca, 2001: 36).
Possivelmente alertado das incongruências de sua proposta, uma vez que se
baseia numa concepção completamente equivocada dos conceitos de signo
(representamen), objeto e interpretante, Frasca felizmente tem deixado de
mencioná-la, atendo-se à análise do game/simulação como formato discursivo,
com argumentações por vezes muito felizes, mas ainda negligenciando alguns
conceitos, sobretudo o que entende por “representação”.
Seguindo Bunge, que caracteriza a representação como “uma sub-relação da
simulação” (apud Santaella, 2001), parece-nos pouco produtivo tomar o caminho
de Frasca e considerar, que, semioticamente, tais processos sejam tão
absolutamente distantes e um “claramente” mais rico que o outro. Seguir por
essa linha seria não apenas historicamente irresponsável pois deixaria para trás
todos os mais ricos procedimentos de representação (e questionamento desta)
pela arte como de uma enorme complacência em relação aos processos
2 • Organizando a Experiência
34
envolvidos na apreensão de qualquer objeto artístico, semiótico, no que diz
respeito à eterna lacuna que o leitor (no sentido maior do termo) sempre será
obrigado a tentar transpor como razão mesma de ser da comunicação. A
premissa de Frasca de que, para compreender uma simulação, é necessário ao
leitor ter uma idéia a priori do sistema que este modela parece-nos embebida de
um “neo-platonismo” tão ralo e ingênuo que beira a farsa.
Esse é apenas um entre inúmeros problemas na argumentação dos ludologistas
contra a narratividade presente ou desejada por alguns nos games, o que acaba
por vezes esvaziando a questão. O debate, com mais freqüência do que o
aceitável, acaba se dando acerca de problemas que não estão necessariamente
colocados pelos “narratologistasou pelo game e criando falsos problemas
que os ludologistas tratam de resolver sob sua própria ótica.
2.2.1
Outras palavras
Aqui, obviamente, não é o caso de nos atermos a uma agenda negativa, de
encontrar, na oposição aos ludologistas, a causa única desta ou de qualquer outra
pesquisa (como eles parecem por vezes fazer em suas próprias pesquisas).
Ocorre que falar de qualquer possibilidade narrativa no campo de estudo dos
games passou a implicar a compra de uma briga, de modo que até mesmo uma
estudiosa de renome internacional como a profa. Janet Murray se dispôs a
iniciar uma fala, na Conferência Internacional da Digital Games Research
Association (Digra) de 2005, praticamente “defendendo-se” da “acusação” que
paira contra ela e alguns colegas acima mencionados da “colonização” de usar
conceitos advindos dos estudos narratológicos para pensar o game ou qualquer
forma interativa e digital. Em seu bem humorado keynote speach, Murray, que,
por artimanha da organização do evento, foi chamada ao palco por Espen
Aarseth, brincou com a “satanização” dos narratologistas (Murray, 2005) e
contemporizou acerca da relação entre jogos, linguagem e narrativa na evolução
humana (Murray, 2007).
2 • Organizando a Experiência
35
A simples menção da palavra “narrativa” no meio dos game studies” tem
automaticamente criado dicotomias indesejáveis que cabe a nós aqui refutar, sem
a intenção de defesa ou agenda única, mas apenas para recontextualizar
apropriadamente o campo que pretendemos abordar. Concedendo-nos o direito
de encará-los como grupo coeso (para fazê-los provar de seu próprio “veneno”),
consideramos que um dos primeiros problemas da linha de argumentação dos
ludologistas é partir do pressuposto de que os “narratologistas” entendam que o
game é uma forma narrativa tal e qual prescrevem a literatura e o cinema (o que,
em si, seriam duas coisas bem diferentes) e que enxergam para o game apenas
um futuro narrativo e nenhum outro. Parece-nos óbvio que nem os mais
conservadores pesquisadores com formação em literatura ou cinema chegaram
por algum minuto sequer a olhar para o game como sendo a mesma coisa que
um romance ou um filme até porque, fossem iguais, não haveria novo campo
de estudos. Ao mesmo tempo, quando vão proceder às suas análises, os
narratologistas deixam claro seu foco em alguns tipos de games, sobretudo os de
aventura (que Aarseth identifica como quest games), em nenhum momento
alegando que sua análise cabe a qualquer gênero de game, agora e para sempre –
nem que por simples ignorância de outros tipos de game. Como disse Janet
Murray em Vancouver:
In fact, no one has been interested in making the argument that there is
no difference between games and stories or that games are merely a
subset of stories. Those interested in both games and stories see game
elements in stories and story elements in games: interpenetrating sibling
categories, neither of which completely subsumes the other. The
ludology v. narratology argument can never be resolved because one
group of people is defining both sides of it. The “ludologists” are
debating a phantom of their own creation (Murray, 2005).
É verdade que a mesma Murray, em seu Hamlet no Holodeck, abriu espaço para
os exageros compostos pelos ludologistas, ao interpretar o game abstrato Tetris
(figura 4) como
a perfect reenactment of the overtasked lives of Americans in the 1990s
of the constant bombardment of tasks that demand our attention and
2 • Organizando a Experiência
36
that we must somehow fit into our overcrowded schedules and clear off
our desks in order to make room for the next onslaught (Murray, 2000).
Este exemplo foi bombardeado toda vez que o embate jogo versus narrativa
surgiu na última década, considerado infeliz por ir longe demais na interpretação
narrativa de um game reconhecidamente abstrato. Contudo, quando Murray
defende o conteúdo “claramente dramático” de Tetris, não nos parece que esteja
dizendo que a interpretação do jogo como uma metáfora da vida americana dos
anos 90 seja a única possível ou mesmo a mais óbvia. Não é, contudo, uma
interpretação impossível, e o que ela de fato chama de conteúdo “claramente
dramático” é apenas uma descrição do jogar em si:
In Tetris irregularly shaped objects keep falling from the top of the
screen and accumulating at the bottom. The player’s goal is to guide
each individual piece as it falls and position it so that it will fit together
with other pieces and form a uniform row. Every time a complete row
forms, it disappears. Instead of keeping what you build, as you would in
a conventional jigsaw puzzle, in Tetris everything you bring to a
shapely completion is swept away from you. Success means just being
able to keep up with the flow (Murray, 2000).
O ser-jogado remete a um cenário que certamente é bastante familiar a ela e,
conquanto não seja entendido como única interpretação possível para um jogo
que não parece sequer ter pretensões figurativas, também não nos parece absurdo
algum. Ao contrário, é possível pensar numa versão de Tetris que de fato
implemente algo mais próximo à interpretação de Murray, onde, em vez de
blocos genéricos, tenhamos objetos estilizados amontoando-se sobre uma
escrivaninha ou algo parecido. A dinâmica do jogo permaneceria a mesma, mas
um passo teria sido dado em direção à representação e à narratividade, algo que
nos parece muito próximo daquilo que defendem Frasca e Juuls e também Ian
Bogost para o que chamam de serious games(Frasca, 2006) ou persuasive
games(Bogost, 2007), ou seja, games capazes de simular conceitos sociais e
políticos através de seu jogar.
2 • Organizando a Experiência
37
Figura 4: Tetris para o NES, 1989
Na tentativa de combater a utilização de conceitos advindos da narrativa no
estudo dos games, portanto, os ludologistas criam soluções para problemas que
não existiam antes que eles mesmos os criassem. Aarseth, por exemplo, começa
seu artigo “Quest Games as Post-Narrative Discourse” (Aarseth, 2004)
utilizando a complexidade do multi-jogador massivo EverQuest como exemplo
do “impropério” que é importar o arcabouço teórico narrativo para analisar
games:
EverQuest may be a game (...), but the complexities and real-world
ramifications of these massive games are far larger than those of any
other entertainment genre, perhaps sports excepted. The thought that
these complex media can be understood by any existing media theory,
such as narratology, which was developed for a totally different genre,
grows more unlikely with every stage of the ongoing computer
evolution (Aarseth, 2004).
Logo em seguida, Aarseth vai restringir o que ele próprio chama de game, para
não incorrer na equivocada generalização que imputa aos narratologistas.
Contudo, o que fica claro é que, se seus “adversários” incorrem no erro da
generalização, isto é no máximo fruto da ingenuidade de quem, quase uma
década, não podia ainda enxergar que aquilo que nós todos ainda chamamos
unificadamente de game iria se tornar a miríade de manifestações que hoje
pulula planeta afora. Aarseth enfrenta um erro com outro erro, ou seja, cria mais
um falso problema. Murray coloca a coisa desta maneira:
2 • Organizando a Experiência
38
Because the game essentialists want to privilege formalistic approaches
above all others, they are willing to dismiss many salient aspects of the
game experience, such as the feeling of immersion, the enactment of
violent or sexual events, the performative dimension of game play, and
even the personal experience of winning and losing (Murray, 2005).
Em outras palavras, não é por que o game é um fenômeno absolutamente multi-
forme e porque alguns de seus gêneros o ainda mais complexos do que outros
que não podemos analisá-los sob o ponto de vista da narrativa, herdando, sim,
questões que encontram ressonância em outras áreas. O erro seria hierarquizar ou
isolar o olhar aos games partindo ou atendo-nos apenas à narrativa, e, ao que nos
parece, esse erro, se já existiu de fato, já não existe mais.
Outro caminho da argumentação dos ludologistas baseia-se na tentativa de
inscrever os games na genealogia do jogo como forma pré-eletrônica. Quem vai
mais longe nesse caminho é Juul, cujo livro Half-Real: Video Games between
Real Rules and Fictional Worlds (Juul, 2005) direciona boa parte de seu esforço
para recompor a história do jogo e suas diversas definições por teóricos como
Johan Huizinga, Roger Caillois e outros. Juul, a partir de definições propostas
por esses e outros teóricos, cria a sua própria para o modelo clássico de jogo
como sendo
a rule-based system with a variable and quantifiable outcome, where
different outcomes are assigned different values, the player exerts effort
in order to influence the outcome, the player feels emotionally attached
to the outcome, and the consequences of the activity are negotiable
(Juul, 2005).
Para seguir essa linha de investigação, Juul vai traçar um histórico do jogo como
forma maior, assim como de teorias do jogo para aquém do universo digital,
buscando definir não apenas o que é ou pode ser jogo, mas também felizmente
algumas maneiras como o videogame modifica essas definições. Para apontar
algumas maneiras como os videogames se diferenciam do modelo clássico, Juul
cita o fato de o computador controlar as regras, o que libera os humanos de
controlá-las, permite que se tornem cada vez mais complexas, permite a
existência de jogos em que as regras são descobertas durante o jogar e a
2 • Organizando a Experiência
39
possibilidade de jogos abertos, onde o final não é um claro ganhar ou perder,
entre outras coisas (Juul, 2005).
Markku Eskelinen (aqui, ao lado de Ragnhild Tronstad) também se detém com
vagar sobre a defesa da prerrogativa de estudar os games a partir das teorias
gerais sobre jogo, antes e acima de tudo:
In Elliot M. Avedon and Brian Sutton-Smith’s The Study of Games,
there’s no suggestion that games are anything more or less than games.
If one browses through the index of this classic book, comprising a
century or so of Western game scholarship in a wide variety of fields
and disciplines, concepts and entries such as story, drama, or narrative
are nowhere to be found. It seems therefore safe to assume that in the
early 1970s those rare individuals who took games and game studies
seriously understood very clearly they were focusing on activities and
structures that were at least as medium-independent as stories
(Eskelinen e Tronstad, 2003).
Ora, nada contra a inserção do videogame na linhagem dos jogos e, certamente,
tudo em favor de entender suas novas características, mas parece-nos um contra-
senso aceitar que seja possível inserir os games na linhagem evolutiva dos jogos,
entendendo suas semelhanças e diferenças em relação a estes e, por outro lado,
negar com veemência qualquer relação dos games com outras formas
expressivas anteriores a eles, como a narrativa diegética ou dramática. O “viés de
confirmação” dos ludologistas faz com que misturem bons argumentos “os
games como objeto de estudo autônomo” com críticas tão parciais quanto as
que alegam querer combater –“os games são autônomos em relação à narrativa,
mas não a todo e qualquer tipo de jogo anterior ao digital”.
Antes de qualquer outra coisa, é interessante conseguir olhar para trás e buscar,
na milenar história dos jogos, idéias e vocabulário que possam apresentar
caminhos para olharmos os videogames de maneira nova. Definitivamente, jogar
e narrar são coisas diferentes, e é preciso encarar tudo que esse agenciamento
através do jogo traz para um formato como o videogame, seja isso uma grande
novidade ou não. Ao mesmo tempo, o game não é a primeira prática interativa a
surgir no mundo com pretensão sígnica diferente de jogos per se ou mesmo de
esportes. A performance, os happenings e parte da arte contemporânea podem
2 • Organizando a Experiência
40
trazer questões tão importantes quanto a(s) teoria(s) do jogo para a análise desse
formato. Por outro lado, como justamente insistem os ludologistas, mas
esquecem-se na hora que lhes convêm, se videogames com clara ligação ao
universo de jogos pré-digital, também games cuja linhagem evolutiva remete
claramente a formas textuais e narrativas, como os jogos de aventura em texto
estes mesmos, herdeiros da literatura a la Tolkien.
Como argumentamos (Gomes, 2003), os jogos de personagem, sobretudo em
sua versão de quest games”, são um prolongamento audiovisual de jogos de
texto como Adventure ou Zork, e não de formas como xadrez, go ou futebol. É
possível enxergar, em sua forma textual, o embrião do que viria a ser a própria
definição dos quest games, e isso vai muito além da simples temática. Ambos os
jogos em linguagens totalmente diferentes se definem a partir da habitação
de um espaço, onde são colecionados itens, utilizáveis para a solução de
desafios. Nesse espaço, o interator encontra outros personagens, percorre
ambientes, interage com objetos, luta contra inimigos, até chegar ao final de sua
jornada. Se isso não está relacionado a séculos de narrativa, alguém precisa
avisar Joseph Campbell (onde quer que ele esteja!...)
De uma coisa, entretanto, os ludologistas têm razão: passou-se muito tempo até
que estudiosos dessem ao game a real importância como objeto de estudo, para
aquém e além de suas possibilidades narrativas. Mas isso não é responsabilidade
única dos estudiosos e não nos parece que pessoas advindas de campos de
pesquisa os mais diversos devam carregar para sempre a pecha de
“colonizadores” por terem usado, num primeiro momento, o ferramental de que
dispunham para analisar uma forma reconhecidamente nova. Assim, não nos
parece surpresa ou pecado que tenham se chamado por muito tempo os games de
“narrativas interativas”, no balaio de várias outras formas digitais, como a
literatura em hipertexto e o já quase sepultado “cinema interativo”, mas o certo é
que esse tempo passou, e é bom que tenha passado. Parte disso deve-se ao
patrulhamento dos ludologistas, mas alguns anos a briga em questão vem
sendo esvaziada, mantida mais como território de poder do que como questão
conceitual.
2 • Organizando a Experiência
41
Por outro lado, meros quatro ou cinco anos, quando da nossa pesquisa de
mestrado, por exemplo, era muito maior que hoje o número de games que
pareciam tentar se portar deliberadamente como uma “narrativa interativa”,
obedecendo estritamente àquilo que Juul chamou de estrutura de progressão e,
portanto, cabendo bem mais claramente numa análise pautada por questões e
conceitos advindos do cinema. A quantidade de vídeos pré-renderizados que
costuravam as fases do jogo – e ainda costuram – deixava clara a intenção
narrativa desses games e, mesmo hoje, quando parece se popularizar
rapidamente o paradigma mais aberto e complexo implementado por games
como Shenmue e seguido, entre outros, pela franquia Grand Theft Auto, a
progressão (mais ou menos) linear ainda impera. Ou seja: a relação que muitos
fizeram entre game e narrativa pode ser tudo, menos absurda ou arbitrária.
Isso, contudo, não impede que reconheçamos, como o fizemos acima, que tal
missão, excessivamente devedora de um molde poético cunhado pelo cinemae
por um tipo de cinema, em sua versão hegemônica esteja felizmente sendo
reformulada, a revelia, inclusive, do desejo de muitos, entre acadêmicos,
jogadores e empresários da indústria do game
10
. E que um primeiro passo em
qualquer campo de estudos seja reconhecer o que ele realmente é e não o que
desejamos que fosse, sobretudo se esses desejos vierem perigosamente
mapeados por agendas de áreas estabelecidas, cujas características intrínsecas
divergem fortemente da área em questão.
Posto isso, demos aos ludologistas o benefício da dúvida e redirecionemos a
questão da seguinte forma, como propõe, muito lucidamente, Marie-Laure Ryan:
interactive narratives obviously exist. But is the most distinctive
property of digital media a boost, or is it an obstacle, to the creation of
narrative meaning? When an interactive text achieves narrative
10
É reconhecido o conservadorismo de boa parte dos games industriais no que diz respeito à experimentação
de novos formatos. Contudo, há poucos dias, comentou comigo um proeminente roteirista do cinema brasileiro
que sente saudades de jogos mais lentos e narrativos como o primeiro Myst. Tudo aquilo que rejeitam os
ludologistas era exatamente o que ele desejaria rever noutros jogos. Provavelmente ele não está sozinho, assim,
é forçoso também entender que aquilo que os ludologistas defendem como jogo autêntico não é
necessariamente o que querem todos os jogadores. O perigo é que, na tentativa absolutamente louvável de lutar
contra a colonização desse emergente campo de estudos, estejam eles incorrendo no preconceito às avessas de
julgar, a priori, que tipo de jogo merece ou não ser, além de estudado, criado e mesmo jogado.
2 • Organizando a Experiência
42
coherence, does it do so by working with or against the medium?
(Ryan, 2004)
E ainda refazendo a pergunta em nossos próprios termos: por que abordar os
games a partir do viés narrativo?
2.3
Quest-ce que la narrative?
Da maneira como entendemos, a narrativa é uma forma muito antiga de
organização da experiência. Se nos remetermos pelo menos até Homero,
estaremos falando de uma tradição que remonta aos séculos VII/VIII a.C.. Uma
vez que a teoria corrente aponta Homero (tendo ele existido ou sido tão mítico
quanto suas narrativas) como o sistematizador de toda uma tradição oral que o
precede, é possível enxergar raízes ainda mais longínquas à forma narrativa
(Parry, 1987) (Ong, 1982). Contudo, tendo se dado na oralidade primária, antes
da invenção da escrita, é muito difícil saber exatamente sua forma, de modo que
partimos da “obra de Homero” como registro, modificado, que aponta para
algumas características da tradição narrativa oral.
Assim, quando falamos da narrativa como forma de organizar a experiência,
estamos pensando nela não como uma forma acabada, autoconsciente e
deliberadamente artística, mas uma forma fluida, comunal, que emergiu nas
sociedades orais a partir da necessidade vital de, pela linguagem verbal oral, dar
sentido à experiência do vivido. Walter Ong, um discípulo de McLuhan, explica,
em sua obra Oralidade e Cultura Escrita, que
em uma cultura oral primária (...) não é possível submeter o
conhecimento a categorias complexas (...) assim [estas culturas] usam
histórias da ação humana para armazenar, organizar e comunicar boa
parte do que fazem. (...) Nas culturas orais primárias, nas quais não
existe texto, a narrativa serve para unir o pensamento de modo mais
compacto e permanente do que outros gêneros (Ong, 1998: 158-159).
2 • Organizando a Experiência
43
A tradição narrativa oral, portanto, nasce e se desenvolve em torno da
necessidade de sistematizar a experiência em forma de conhecimento. Ong
completa:
por trás de provérbios, aforismos, especulações filosóficas e rituais
religiosos, jaz a memória da experiência disposta no tempo e submetida
ao tratamento narrativo. (...) o conhecimento e o discurso nascem da
experiência humana e (...) [do] modo básico de processar verbalmente
essa experiência e explicar mais ou menos como ela nasce e existe,
encaixada no fluxo temporal. Desenvolver um enredo é um modo de
lidar com esse fluxo (Ong, 1998: 158).
Enxergando-a como uma forma expressiva que emerge da necessidade de
organizar a experiência, acreditamos que a narrativa transcende os meios que a
incorporam, tendo existido mais funcionalmente na oralidade, embora evoluído e
se modificado no texto manuscrito, no texto impresso, mas também, em sua
forma mimética, no teatro, no cinema, na televisão, entre várias formas presentes
e outras que, acreditamos, ainda hão de surgir. A cada um desses meios a
narrativa se amolda de maneira diferente, em diálogo com o contexto histórico,
fazendo-se valer das características intrínsecas a cada um para criar diferentes
possibilidades que, contudo, de alguma maneira, continuam reorganizando o
fluxo da experiência vivida.
Em consonância com Ong, Marie-Laure Ryan propõe definir a forma narrativa
não a partir de seu nível de discurso, mas sim das particularidades no nível da
história (partindo da distinção formalista entre fabula e siujet e indo de encontro
à tradição estruturalista, que propôs igualar a narrativa a uma estrutura
gramatical). Narrativa, para Ryan, é uma imagem mental. Desta maneira,
the alternative to regarding narrative as a member of a linguistic
paradigm is to define it as a type of meaning and to do so in positive
terms. By advocating a semantic approach, I am not denying that
narrative involves both a signified and a signifier (…), but I am making
the claim that its identity resides on the level of the signified. In contrast
to the approach that attempts to link this meaning to a specific type of
sentence, I propose to regard narrative meaning as a cognitive construct,
or mental image, built by the interpreter in response to the text (Ryan,
2004).
2 • Organizando a Experiência
44
Para um texto ser considerado narrativo, portanto, ele não precisa ter uma forma
em particular, mas, sim, deve ser capaz de evocar uma determinada imagem
mental no intérprete. Para que o texto possa ser qualificado de narrativa, essa
imagem mental tem de ter as seguintes qualidades:
1. A narrative text must create a world and populate it with characters
and objects. Logically speaking, this condition means that the
narrative text is based on propositions asserting the existence of
individuals and on propositions ascribing properties to these
existents.
2. The world referred to by the text must undergo changes of state that
are caused by non-habitual physical events: either accidents
(“happenings”) or deliberate human actions. These changes create a
temporal dimension and place the narrative world in the flux of
history.
3. The text must allow the reconstruction of an interpretive network of
goals, plans, causal relations, and psychological motivations around
the narrated events. This implicit network gives coherence and
intelligibility to the physical events and turns them into a plot (Ryan,
2004).
Os textos que cumprem tais condições criam o que a autora chama de um “script
narrativo”
11
(Ryan, 2004). Contudo, não é necessária uma construção
deliberadamente narrativa para que tal script se forme em nossa mente. É
possível que tais imagens venham à mente em resposta a formas não
deliberadamente narrativas, como por exemplo, a própria vida cotidiana (Ryan,
2004). A partir disso, a autora propõe a distinção entre ser uma narrativa e
possuir narratividade”, em que ser uma narrativa é propriedade de construções
semióticas que arranjam sua linguagem de forma a intencionalmente provocar
scripts narrativos na mente de seus leitores, enquanto possuir narratividade
implica apenas ser capaz de evocar tal script em algum vel. Dessa forma, é
possível pensar em narrativas per se de baixa narratividade textos
fragmentários, onde é difícil criar uma relação de causalidade, como tantos da
literatura pós-moderna, por exemplo e não-narrativas de alta narratividade, ou
seja, eventos que não foram construídos com o intuito de “contar uma história”,
mas que, a despeito disso, são capazes de evocar na mente de quem os vê, ou
mesmo os vive, ricos scripts narrativos em termos de ações, agentes, relações
11 Script aqui está no sentido que o termo tem no terreno da computação.
2 • Organizando a Experiência
45
causais, motivações, objetivos e afins. Acrescentamos ainda a hipótese de que
essa capacidade de dar molde narrativo a eventos não necessariamente criados
com esse intuito seja algo que também evolui com o tempo, dentro da cultura,
junto com a forma narrativa em si.
É, portanto, partindo do entendimento da narrativa como essa construção
cognitiva e não apenas como um texto de um determinado formato que
consideramos justo, possível e até natural lançar aos games um olhar que busque
novas maneiras de evocar em nossas mentes esse script narrativo, seja para
caracterizá-los como uma forma narrativa em si ou apenas possuindo graus
diferentes de narratividade. Porque neles, no ato de jogar, e não apenas ao
assistir aos vídeos pré-renderizados, por exemplo, algum tipo de script narrativo
é evocado em nossa mente. A partir desse script, eventos, personagens, objetos
podem dar a cada ação no jogo um sentido que vai além da atividade em si. Ou,
em outras palavras, ao evocar scripts narrativos de causalidade, motivações,
reorganizamos a experiência do jogar de modo que sua carga ficcional seja tão
importante quanto sua carga lúdica.
2.3.1
Quem conta um conto?
Um dos pontos mais frágeis na argumentação dos ludologistas e que nos faz
adotar o conceito de narrativa proposto por Ryan é a insistência na utilização
da expressão storytelling como definidora de toda e qualquer possibilidade
narrativa. É natural a utilização da expressão, uma vez que ela parece estar
internalizada até mesmo nos cineastas em Hollywood, que se auto-intitulam
“contadores de histórias” (e não, por exemplo, “mostradores de histórias”). Tal
expressão não encontra um equivalente tão coloquial em português, podendo ser
traduzida como o ato de contar uma história” ou “contação de histórias”. Não
obstante, remete-nos de forma incômoda à definição de narrativa como estando
estritamente associada à presença mesma de um narrador definição pela qual
as formas miméticas do cinema e do teatro teriam que ser consideradas proto-
2 • Organizando a Experiência
46
narrativas, a menos que associadas à narração em off ou ao coro. Se é possível,
contudo, formar um script altamente narrativo a partir de imagens em
movimento e a linguagem canônica era uma forma bem acabada antes do
advento do som no cinema não faz sentido insistir apenas no storytelling”,
mesmo que como uma metáfora.
Obviamente, o que alegamos que um game faz em termos narrativos é bem
diferente do que faz um filme e, mais ainda, um romance; não fosse tão
diferente, não haveria novo objeto de estudo. Desse modo, a instância que, nos
modos diegético ou mimético “tradicionais”, deliberadamente (re)organiza os
eventos da história sob um determinado viés historicamente construído e
compartilhado de modo a comunicá-los numa ordem determinada, gerando
este(s) ou aquele(s) efeito(s), certamente não existe da mesma forma no game.
Neste, como defendemos, a ação do personagem é instanciada pelo jogador, e
mesmo os objetos e agentes implementados pelo programa entram em ação
em resposta às atitudes do personagem/interator
12
. Afora os elementos narrativos
pré-determinados, como os vídeos, que não nos interessam acima do jogar, não
há, não deve e nem pode haver aquilo que, por exemplo, sempre caracterizou as
narrativas canônicas, sobretudo se tomarmos como molde a pièce bien fait, que
informa a criação do enredo impecável, onde tudo se amarra e, quando chega ao
cinema, incentivada por seu poder ilusionista, à noção de trama “provável e
necessária”, de Aristóteles, uma nova razão de ser buscada por noventa e nove
entre cem roteiristas ainda no mundo contemporâneo. Costumamos dizer,
seguindo Bordwell, Staige, e Thompson (1998) e também Xavier (2005), que a
marca da narrativa cinematográfica, em torno da qual se forjou uma linguagem
que prima pela transparência e pelo alto grau de comunicabilidade, é esse eixo
causal priorizado em relação aos demais elementos narrativos. Isso volta a nos
remeter a Aristóteles, no que diz respeito à idéia de que é possível conceber o
drama sem personagens, mas não sem ação (Heath, 1996: XLIII), donde se
infere a prioridade absoluta da ação na definição mesma do que é ou pode ser o
12
Na verdade, como defenderemos adiante, os agentes deliberativos podem entrar em ação a partir de
motivações próprias, mesmo que pouco disso aconteça plenamente nos games de hoje; o que defendemos aqui
é que, mesmo na possibilidade de agentes deliberativos, as ações ainda estão contextualizadas sobremaneira pela
ação do protagonista/interator.
2 • Organizando a Experiência
47
drama: “tragedy is not the imitation of persons, but of action and of life”
(Aristotle, 1996: 11).
2.3.1.1
O início, o fim e o meio
A partir disso, duas considerações: em primeiro lugar, essa forma fechada e
acabada de enredo unificado, sobre a qual discorre Aristóteles em sua Poética,
que influenciou toda uma tradição (de Diderot a Syd Field!) e cuja evolução aos
estertores é o filme canônico ainda hoje, não existia na narrativa oral, tendo sido
um efeito direto da escrita, sobretudo da escrita impressa, sobre o material
narrativo (Ong, 1998). Nas culturas primariamente orais, uma vez que a escrita
sequer é concebível, é preciso utilizar-se de recursos mnemônicos para manter a
informação estocada e organizada. É daí que se desenvolvem os cantos e poemas
narrativos orais, cuja característica principal é a natureza formular. Os bardos,
cantadores e poetas dispunham de técnicas altamente padronizadas de modo a
trazer à memória – e em tempo real – os conteúdos das narrativas que cantavam:
O cantador depende totalmente de sua tradição. Os enredos que
aprende, os vários episódios com os quais os elabora e mesmo as frases
com as quais constrói seus versos são tradicionais e “formulares” no
mais amplo sentido. Ele não compõe nem decora um texto fixo. Cada
produto é um ato de criação isolado. Enquanto não chega a realmente
cantar uma narrativa, aquele canto não existe a não ser como canto
potencial do infinito repertório no aparelho abstrato da tradição do
cantador. De modo inverso, quando o canto chega ao fim, ele deixou de
existir. Somente na medida em que o próprio cantador ou algum outro
membro de seu público aprende algo de novo sobre a tradição no
decurso de uma representação pode aquele canto individual afetar a
tradição, assumindo, assim, um ligeiro aspecto de permanência na
memória daqueles que o ouviram (Scholes e Kellogg, 1977: 14).
Isso influi diretamente nas possibilidades formais das narrativas orais, dando-
lhes uma forma que sequer é concebível a uma pessoa alfabetizada, uma vez que
a escrita, quando internalizada, modifica o próprio modo de pensar do ser
humano (Ong, 1998: 96) (Donald, 2002). Em sua pesquisa com cantadores
analfabetos dos Bálcãs, sistematizada em livro por seu filho Adam Parry,
2 • Organizando a Experiência
48
Milman Parry pôde concluir que o conceito mesmo de uma narrativa idêntica a
outra (ou seja: uma forma reconhecidamente fechada e acabada) existia de
maneira totalmente diferente do que concebemos hoje (Parry, 1987). Quando
pedidos para repetirem um canto narrativo, os poetas iugoslavos a quem Parry
defende serem os mais parecidos com os antepassados de Homero cantavam
algo aproximado, mas julgavam ter cantado algo idêntico (Parry, 1987) (Ong,
1998). É, portanto, apenas a partir da cultura escrita que surgem noções
cognitivas e culturais de um texto matriz ou de uma obra fechada, a qual pode
ser repetida, copiada, porque existe como referência fora do poeta:
a impressão favorece a sensação de fechamento, uma sensação de que o
que se encontrava em texto foi finalizado, atingiu um estado de
completude. Esse sentimento afeta as criações literárias, assim como a
obra analítico-filosófica ou científica (Ong, 1998).
Com isso, queremos reafirmar que essa amarração perfeita dos eventos em nexos
causais, típica do cinema canônico
13
, por exemplo, não é propriedade totalmente
inerente à narrativa se a enxergarmos como construção cognitiva nascida na
oralidade e que migra para outros meios –, mas efeito direto da escrita na
consciência humana, um traço evolutivo do pensamento em si e que está
associado, entre outras coisas, à emergência de uma visão de mundo em que se
buscam estabelecer causas incontornáveis e efeitos inexoráveis aos
acontecimentos, um princípio para aquilo que se tornaria, no futuro, o paradigma
mecanicista. Acerca disso, aponta-nos Ong que
os inícios da filosofia grega estavam estritamente ligados à
reestruturação do pensamento produzida pela escrita. Ao excluir os
poetas de sua República, Platão estava, na verdade, rejeitando o
primitivo estilo de pensar oral agregativo e paratático perpetuado em
Homero, em favor da análise incisiva e dissecação do mundo e do
próprio pensamento permitidas pela interiorização do alfabeto na psique
grega (Ong, 1998).
O nascimento da escrita e a capacidade analítica que ela possibilita estão,
portanto, na raiz do pensamento científico, em oposição ao pensamento “pré-
13
É forçoso lembrar, aliás, como nos afirma, entre outros, Machado, que a história da construção da linguagem
cinematográfica é justamente a luta pela linearização do signo icônico”, uma tentativa de utilizar imagens em
movimento para reproduzir uma matriz narrativa essencialmente verbal (Machado 1997).
2 • Organizando a Experiência
49
lógico” do mundo oral. A partir disso é que se a emergência real do
pensamento abstrato, como terceiro salto cognitivo-evolutivo da espécie humana
(Donald, 2002). A exteriorização do pensamento na escrita possibilita que se
amadureçam, entre outras coisas, os elos de causa-e-efeito dos processos, o que
passa pouco a pouco a constituir a forma mesma de pensar do homem. Dentro
desse cenário, o motor da narrativa migra da arbitrariedade volitiva de entidades
antropomórficas para a lógica do processo em si, abrindo caminho para a
mentalidade que segue se aperfeiçoando como pensamento científico, cujo ápice
é mesmo a possibilidade filosófica de um demônio de Laplace:
[O enunciado das “leis da natureza”] constitui um triunfo do ser sobre o
devir. O exemplo por excelência é a lei de Newton, que liga a força à
aceleração: é ao mesmo tempo determinista e reversível no tempo. Se
conhecemos as condições iniciais de um sistema submetido a essa lei,
ou seja, seu estado num instante qualquer, podemos calcular todos os
estados seguintes, bem como todos os estados precedentes. Mais ainda,
passado e futuro desempenham o mesmo papel, pois a lei é invariante
em relação à inversão dos tempos (...). A lei de Newton justifica bem,
portanto, o famoso demônio de Laplace, capaz de observar o estado
presente do universo e dele deduzir toda a evolução futura (Prigogine,
1996: 19).
O paradigma mecanicista, em si mesmo uma narrativa de causas e efeitos
absoluta e inexoravelmente amarrados, parece-nos, ao mesmo tempo, causa e
sintoma de uma cosmovisão que autoriza (e até obriga!) a conceber a narrativa
como espelho de um mundo lógico, uma forma de dar sentido à experiência e
dela extrair sentidos unívocos, futuramente (no teatro burguês e no cinema, até
hoje) firmemente calcados no moralismo, “teatro do bem” e “teatro do mal”
(Xavier, 2003), forma pedagógica não mais de reorganizar, mas de submeter a
ação do homem a uma lógica que lhe precede.
A termodinâmica, contudo, veio, muito recentemente (se tomarmos como
referência Aristóteles e Homero!), complicar a vida desse paradigma,
introduzindo a idéia de irreversibilidade dos processos tornando o “Demônio
de Laplace” não apenas uma questão de “capacidade de processamento”, mas
uma improbabilidade conceitual. A noção de entropia instaura na ciência e,
cremos, pouco a pouco, na visão de mundo do homem comum a idéia de
2 • Organizando a Experiência
50
irreversibilidade, idéia esta que transforma em alegoria às avessas a figura criada
por Laplace.
Essa idéia, cremos, tem feito mudar o paradigma não apenas da ciência, mas,
quem sabe, do estado da arte no cinema narrativo, para dizer o mínimo. A partir
de manifestações do próprio cinema, da TV e da literatura, surge a hipótese de
que a forma narrativa fechada, acabada, “autobastante” (Xavier, 2003), cuja
expressão mais atual e compartilhada nos parece ser o cinema canônico, talvez
não seja a forma narrativa por excelência, ou a única maneira de concebê-la.
Por um lado, e evocando todo o contexto histórico e estético em que essa forma
nasce e cresce, parece-nos que ela sempre terá lugar no cardápio narrativo do
homem, e isso se deixa entrever, por exemplo, não só no atual sucesso do cinema
americano fundamentado no roteiro bem escrito
14
, como também no sucesso de
séries policiais americanas como a franquia C.S.I. (que se desdobra em três
séries de mesma fórmula). Nas séries da franquia, a partir de índices díspares,
policiais-cientistas conseguem reconstituir, com um grau de acuidade
absolutamente fictício, a narrativa de crimes supostamente insolúveis. Ao lado
destas, uma verdadeira enxurrada de séries “de detetive”, ao mesmo tempo
diferentes e iguais, todas pautadas na descoberta de crimes para os quais as
pistas são escassas, em que as reviravoltas ainda são o grande atrativo (além da
moralidade intrínseca no conjunto dos enredos). Para citar apenas as de maior
sucesso de público, que estiveram no ar no Brasil na temporada 2007: Crossing
Jordan, com detetives/médicos legistas; Numbers, onde matemáticos desvendam
padrões numéricos por trás de crimes; Law & Order (também com três séries da
mesma franquia), em que a dedução e a força ganham contornos temáticos
(crimes sexuais, entre outros); House, M.D., onde doenças misteriosas são
desvendadas; Medium, onde crimes são resolvidos a partir de pistas “do outro
mundo”. Apenas pela presença massiva e pelo sucesso desse tipo de série seria
possível concluir que ainda pleno espaço e possivelmente sempre haverá
14
Não deixa de ser irônico que, em pleno século XXI, sob a suposta égide do cinema-espetáculo, a greve a
parar Hollywood tenha sido a greve dos roteiristas, apoiada por atores e diretores, que esvaziou cerimônias
tradicionais da indústria, como o Golden Globe Awards, colocou em suspense a data do Oscar e fez parar a
produção de filmes e séries de TV. A maior motivação alegada para a greve foi a perda da lucratividade advinda
de formas então indiretas da comercialização de filmes e programas de TV como a venda de DVDs e pela
internet –, mas a crença por trás da parada total parece mesmo ter sido a de que, sem roteiro, Hollywood não
existe.
2 • Organizando a Experiência
51
para essa forma canônica de narrativa que privilegia o enredo em sua dimensão
causal. Ainda buscamos o sentido pleno e absoluto nas coisas, o que se reflete e
é refletido pela narrativa, como afirma Umberto Eco:
é natural que a vida seja mais semelhante ao Ulisses do que a Os Três
Mosqueteiros: todavia, qualquer um de nós está mais inclinado a pensar
na vida em termos de Os Três Mosqueteiros do que em termos de
Ulisses: ou melhor, pode rememorar a vida e julgá-la somente
repensando-a como romance bem feito (Eco, 2003).
Por outro lado, pouco a pouco, idéias mais voltadas ao paradigma inaugurado
pela termodinâmica parecem se disseminar e fazer com que nossa inteligência
narrativa, entre outras coisas, se livre da lógica exclusiva da peça bem feita e
continue evoluindo. Se podemos realmente pensar a narrativa como uma
construção cognitiva que pretende refletir e sistematizar a experiência do homem
no mundo, é natural que sua forma mude junto a diferentes cosmovisões,
servindo, ao mesmo tempo, para também modificá-las, como é natural em
qualquer ecologia.
2.3.1.2
O dispositivo e outras contingências
Em segundo lugar, e como efeito do que acabamos de dizer, mesmo esse molde
narrativo do cinema canônico, que é tido por mais de uma geração como a forma
“natural” da narrativa, claros sinais de se modificar, ainda nos meios
“lineares”, como o romance, o cinema e a televisão. Alguns exemplos são a
literatura do escritor israelense Amós Oz e seus “micro-acontecimentos”, sua
ênfase na relação entre personagens e espaço o deserto em especial –, seu
enredo difícil de descrever em termos de causalidade linear evocando aquilo
que Santaella (2001) chama de “causalidade difusa” –, mas também não partindo
para o naturalismo ou a excessiva descrição subjetiva. Como descreve o poeta
Manoel Ricardo de Lima (2007):
O deserto de e para Amós Oz, além de geográfico e peninsular, é uma
ilha figural infinita de vazios e mistérios (…), se monta numa diferença
2 • Organizando a Experiência
52
do que tomo aqui, como deserto íntimo, mas o deixa de se montar
também nessa atmosfera de inúmeras ambivalências deste conflito
real, doloroso e mortificante entre judeus e palestinos – como uma
experiência ética que se aproxima também de um deserto íntimo.
Oz é apenas um dos escritores contemporâneos que privilegia a descrição de
acontecimentos em si como fenômenos emergentes, enfocando a vivência de
seus personagens no ambiente que os envolve, não como referente direto ou
metáfora empobrecida de intenções, desejos, motivações, mas como
mapeamento, campo de possibilidades, em consonância com o que pensa
Blanchot:
O deserto ainda não é o tempo, nem o espaço, mas um espaço sem lugar
e um tempo sem engendramento. Aí, apenas se pode errar, e o tempo
que passa não deixa nada atrás de si, é um tempo sem passado, sem
presente, tempo de uma promessa que é real no vazio do céu e na
esterilidade de uma terra nua onde o homem nunca está presente, mas
sempre fora. O deserto é esse fora, onde não se pode permanecer, pois
estar é sempre estar fora, e a palavra profética é então essa palavra
em que se exprimiria, com uma força desolada, a relação nua com o
Exterior (...) (Blanchot, 1984: 88-89).
Em diálogo com essa noção narrativa menos afeita ao enredo linear, cuja
causalidade incontornável não é o máximo valor, nos vêm à mente, no universo
audiovisual, algumas manifestações. De um lado, a clara utilização de
“dispositivos como “estratégia narrativa capaz de produzir um acontecimento
na imagem e no mundo” (Migliorin, 2006), onde o indício mais óbvio é a
emergência massiva dos reality shows. De outro, o retorno das narrativas
emergentes desses “filmes-dispositivo” ao universo da ficção, como uma
contaminação de vazios e nexos causais menos inequívocos, recontextualizando,
agora de forma menos ingênua, questões levantadas pela escola crítica
fenomenológica cujo arauto foi André Bazin.
O elemento central ao formato de reality show aqui tomando como objeto
apenas o Big Brother Brasil, mas é possível estender a análise a quase todos os
programas é a noção de dispositivo, entendida como uma configuração capaz
de fazer emergir uma variedade de acontecimentos imprevistos, não mapeados.
Ou, como define Cezar Migliorin:
2 • Organizando a Experiência
53
o dispositivo é a introdução de linhas ativadoras em um universo
escolhido. O criador recorta um espaço, um tempo, um tipo e/ou uma
quantidade de atores e, a esse universo, acrescenta uma camada que
forçará movimentos e conexões entre os atores (personagens, técnicos,
clima, aparato técnico, geografia etc.). O dispositivo pressupõe duas
linhas complementares: uma de extremo controle, regras, limites,
recortes; e outra de absoluta abertura, dependente da ação dos atores e
de suas interconexões; e mais: a criação de um dispositivo não
pressupõe uma obra. O dispositivo é uma experiência não roteirizável,
ao mesmo tempo em que a utilização de dispositivos não gera boas ou
más obras por princípio (Migliorin, 2006).
No Big Brother Brasil é possível enxergar claramente duas matrizes narrativas
em diálogo. Arriscaríamos batizá-las: uma, de matriz emergente, feita “de baixo
pra cima”, proporcionada pelo dispositivo; outra, de matriz canônica, feita “de
cima para baixo”. A matriz canônica está em ação na reedição dos
acontecimentos gravados 24 horas por dia do programa, para estabelecer nexos
causais claros entre ações (ou, relembrando Eco, a recordação mais em termos
de Três Mosqueteiros do que de Ulisses!). Dessa reedição um processo
narrativo, que bebe em tudo o que a linguagem cinematográfica criou surgem
mais explicitamente motivações, transformando pessoas reais – conquanto já
aparentemente banais e desinteressantes em personagens tipicamente
unilaterais e clichês este entendido como marca do personagem, herança do
molde melodramático. Dessa forma, para evocar apenas a edição de 2007 do
programa na TV Globo, o “Alemão” deixa de ser uma pessoa complexa e
contraditória para se tornar, a partir das narrativas cunhadas pelos diretores do
programa, o personagem marcado pela autenticidade de “não fazer joguinhos”,
“dizer a verdade” e que, sem nenhuma surpresa, acabou vencedor da
competição.
Na veiculação ao vivo do programa, contudo, o que vemos é mais uma narrativa
do vivido, uma matriz “de baixo para cima” na qual acontecimentos emergem a
partir do dispositivo mesmo do reality show: pessoas confinadas numa casa,
submetidas a jogos, desafios e às agruras da convivência íntima, tudo isso
filmado da forma menos “opaca” possível (tomando ingenuamente a presença
das câmeras), 24 horas por dia. Nesse “panóptico” contemporâneo, como se
2 • Organizando a Experiência
54
falou tantas vezes, o elemento de jogo está claramente presente e pode aparecer
tanto na relação espectador-integrantes na votação do “paredão” –, entre
programa e integrantes nas provas que são invocados a cumprir para ganhar
posições como a de “anjoou “líder” e entre os jogadores em si, uma vez que
se trata de uma competição da qual apenas um sairá vencedor – e com um
milhão de reais no bolso. Sem falar no dispositivo em si, que não deixa de
dialogar com as regras de um jogo neste caso, um jogo de criação de sentido.
Diversas peças da engrenagem são inventadas a cada nova edição do programa,
na tentativa de que cada versão seja mais diferente e emocionante que a anterior
– e, de fato, elas são sempre estranhamente iguais e diferentes ao mesmo tempo.
Para tanto, são essenciais as noções de tempo real e de acaso, proporcionadas
pela transmissão ao vivo, ou, na pior das hipóteses, do registro destas (que, como
afirma Arlindo Machado (Machado, 2000a: 126), ainda “guarda parte das
marcas de incompletude e de intervenção do acaso, impossíveis de encontrar em
trabalhos realizados em outras situações produtivas”). É da possibilidade do ao
vivo, ou de seus rastros reconhecíveis, que pode emergir a narrativa não-
roteirizada que o dispositivo coloca em ação como imagem em si:
A utilização de dispositivos na construção narrativa implica uma
operação temporal. Se o que está sendo narrado é um encontro, um
efeito de encontros entre corpos colocados em contato por um
dispositivo, podemos falar de um presente absoluto que se quando o
dispositivo está em ação. O que está sendo narrado, documentado, não
existe fora do momento da ação do dispositivo. Não tem futuro, nem
passado. Se dissolve quando o dispositivo é desarmado. Nesse sentido,
a narração via dispositivo coloca em prática um “ao vivo” do fato; o que
vemos é passado, já aconteceu, mas o que vemos é também um presente
não-reproduzível, que não se entrega a uma ordem previamente
estabelecida nem se desdobra para depois do que vemos (Migliorin,
2006).
A noção de dispositivo é a definição mesma dos diferentes reality shows. A
maioria gira em torno do confinamento dos participantes a um determinado
universo e, claro, da onipresença de câmeras e microfones captando tudo aquilo
que desse confinamento surge. O caso da quebra de patente da Endemol/Globo
pela Casa dos Artistas é emblemático ao chamar atenção para a proeminência
2 • Organizando a Experiência
55
desse confinamento como dispositivo mas mais formas sendo colocadas em
prática mundo afora. Dentre as mais interessantes, podemos citar os diversos No
Limite (Survivor, nos EUA), onde, além da convivência diária, os participantes
eram submetidos às condições limítrofes de ambientes inóspitos. Há também
reality shows mais “antropológicos”, onde o sentido de competição é diminuído,
em favor da observação dos participantes em seu “habitat natural”, não obstante
um ambiente gerado pelo dispositivo como The Osbournes, sobre o roqueiro
Ozzy Osbourne e sua família. Nestes todos impera ainda, de alguma forma, a
crença que remete ao “cinema verdade” (Migliorin, 2006), de que o aparato cria
a cena filmada.
Partindo para um universo ainda mais radical do que os reality shows televisivos,
podemos apontar o filme-dispositivo 33 (2004), o “auto-retrato” engendrado por
e sobre Kiko Goiffman. A proposta do dispositivo é muito clara: a partir de uma
investigação preliminar, o cineasta terá 33 dias para percorrer a cidade de Belo
Horizonte em busca de sua mãe biológica. O filme será a documentação desse
processo. Ao se lançar nessa jornada, era, por definição, imprevisível o rumo que
a busca iria tomar, se o cineasta acharia ou não sua mãe e havia o risco mesmo
de não ter nada de minimamente interessante ao final dos 33 dias. Dessa forma,
o documentário e seu autor precisaram buscar uma gramática para narrativizar o
processo como algo rico em si mesmo, muito menos do que apenas uma solução
final para a busca. No filme, aliás, o cineasta acaba não achando sua e, e,
embora tenha sido editado a posteriori, quando se sabia o “final”, foi
inevitável dar ao enredo a forma “não-linear” de “tudo pode acontecer” que
caracteriza, por exemplo, os reality shows.
Outro documentário que em parte adota um dispositivo para circunscrever seu
universo de acontecimentos, mas, ao mesmo tempo, torná-los imprevisíveis, é o
filme O prisioneiro da grade de ferro (2004). Nesse filme, câmeras foram dadas
nas mãos de inúmeros detentos do antigo presídio do Carandiru, e foi pedido a
eles que “contassem suas histórias” com elas, da maneira que achassem melhor.
Ao mesmo tempo, a equipe “oficial” do filme também registrava as impressões
de sua vivência ali dentro a qual durou sete meses. Ao final, quase duzentas
2 • Organizando a Experiência
56
horas de vídeo foram editadas (sem a participação dos detentos, é importante
dizer), resultando num produto final de mais de duas horas, que, no entanto, não
estabelecia a priori quais imagens haviam sido feitas pelos detentos (ou seja:
proporcionadas pelo dispositivo) e quais pela equipe. Tal arranjo obriga ao
espectador estar sempre tentando desvendar a intencionalidade da imagem,
impedindo de cara uma hierarquia entre imagens/discurso “mais autênticos”,
porque criados pelos prisioneiros, e mais “autorais”, porque feitos pelo
diretor/equipe. Ao mesmo tempo, inúmeros enfoques e informações chegam à
tela porque possibilitados pelos videomakers/detentos – ou “reeducandos”, como
mostra o filme ser a terminologia corrente dentro da casa de detenção. É a partir
das marcas do discurso dos “reeducandos”, misturadas ao discurso de diretor e
equipe, que surge o filme como gesto, algo completamente diverso do que seria
sem as imagens feitas pelos internos. Apesar de a edição linearizar a diversidade,
ainda sobram as relações ambíguas, as motivações opacas, os tempos mortos e,
mais importante, as informações que parecem surgir de lugares completamente
improváveis.
Em todos os exemplos citados, a matriz narrativa em curso é “de baixo para
cima”, indo de franco encontro à cadeia bem costurada de causas e efeitos: as
“histórias” são cheias de tempos mortos, intenções ambíguas, ações cuja
motivação não é clara, efeitos imprevisíveis, tramas interrompidas abruptamente,
entre tantas outras coisas. O contingente e não o provável é um elemento
essencial na atração dessas narrativas emergentes; a sensação de que “tudo pode
acontecer”, sobretudo na versão ao vivo, é o que define o formato,
transportando-o, assim, para muito próximo de uma transmissão ao vivo de um
jogo afinal, assistir a uma final de Copa do Mundo ao vivo é uma coisa; vê-la
gravada, depois do fim, mesmo se não sabemos o resultado, é outra coisa bem
diferente.
No que diz respeito à dimensão do dispositivo, de tentar fazer emergir o
imponderável, parece-nos que um universo de filmes do cinema contemporâneo
tem buscado diálogo com essas formas mais “documentais”, que nos remetem
2 • Organizando a Experiência
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tanto ao conceito de jogo quanto ao de “cinema direto”
15
. Em todos os casos, é a
possibilidade de “desautomatizar” processos criativos e linhas narrativas o que
produz certos efeitos imprevisíveis, por definição, a todos os envolvidos no
processo. Não à toa, alguns desses filmes encontram-se “perigosamente” na
fronteira entre ficção e documentário. Nesse sentido, vem à mente um filme
como Dez (2002), de Abbas Kiarostami, onde o diretor confinou toda a narrativa
do filme ao interior de um carro e a dramaturgia a não-atores, que improvisavam
o texto a partir de ensaios gerais. Para possibilitar tal dispositivo, Kiarostami
utilizou câmeras de vídeo, de modo que o filme é composto de vários planos-
seqüência, nos quais a narrativa “oscila”, mas a tensão das relações persiste.
Nesse filme, não se trata de costurar uma cadeia de causas-e-efeitos “provável e
necessária”, e sim de submeter o espectador à tensão desse caminho imprevisível
que deixa suas marcas no vídeo. Estão presentes novamente frases soltas, tempos
mortos, ações cuja motivação não é unívoca, efeitos cuja causa não é clara... e,
mesmo assim, a narrativa nos prende, por outros caminhos.
Outros filmes menos radicais parecem sofrer influência indireta desses
dispositivos de desautomação da criação e da narrativa, começando por roteiros
que não estão prontos e acabados antes da filmagem, mas que vão sendo
moldados a partir de improvisações e de outros processos indeterminados. A
utilização de não-atores ou seja, de pessoas não previamente mapeadas por
qualquer tradição dramatúrgica –, além de buscar uma relação de
verossimilhança mais profunda
16
, um passo em direção a essa desautomação.
Outra estratégia é fazer os atores imergirem nos ambientes da história muito
tempo antes da produção, para que, da convivência com esse espaço, possam
15
Parece-nos que, enquanto os documentários-dispositivo nos remetem ao “cinema verdade” e sua crença de
que o aparato constrói a cena, os filmes de ficção “neo-fenomenologistas”, sintomaticamente, dialogam com
uma utopia de cinema direto meio às avessas (uma vez que se trata de ficção), em que a câmera e o resto da
equipe – possa se tornar invisível, dando-nos acesso privilegiado a um universo in natura.
16
A palavra “verossimilhança” aqui está utilizada de uma forma um pouco mais vaga do que utilizaremos mais
adiante, e isto ficará claro quando falarmos dos personagens autônomos nos games. A questão do verossímil na
arte é muito maior do que nosso escopo aqui, mas, no caso do cinema contemporâneo e, especificamente, no
cinema brasileiro, percebem-se frentes diferentes de tentativas de trazer, se não necessariamente um aumento de
“realismo” na encenação, uma diminuição da teatralidade e do estranhamento que parecem ter marcado quase
todo o cinema brasileiro, seja em sua face mais popular, seja na mais autoral. Tal esforço fica claro quando se
percebe a emergente ditadura da preparação de elenco”, deslocando a criação do personagem para um período
anterior ao das filmagens e, mais importante, a um profissional dedicado, que não é nem o roteirista, nem o
diretor. No caso do cinema brasileiro contemporâneo, um percentual enorme das produções conta com a
preparação de Fátima Toledo, o que tem começado a deixar marcas na tela e a impor um tipo de atuação como
sendo mais aceitável, realista e verossímil. Filmes como “Cidade de Deus” e “Tropa de Elite”, ambos sucesso de
público, discutíveis criticamente e representantes do Brasil no exterior (em festivais e no mercado) contribuíram
para o estabelecimento dessa nova “verossimilhança”. Acerca disso, retornaremos mais adiante.
2 • Organizando a Experiência
58
surgir outros sentimentos e sensações que não faziam parte da experiência do
ator– mas, no caso destes filmes, em busca da desautomação da criação do
personagem e não necessariamente na criação de algo mais “autêntico”.
Dentro desse paradigma, podemos apontar filmes como Elefante, de Gus Van
Saint, no qual a utilização de não-atores e de uma narrativa elíptica não por
coincidência aproximam a narrativa visual e formalmente do videogame. O
Filho, dos irmãos Dardenne, tenta criar esse dispositivo a partir da câmera que
está sempre seguindo o personagem, praticamente sem montagem e num regime
visual também associado aos games, o que acaba por abrir espaço para mais
tempos mortos e ações ambíguas porque a edição não faz o papel de linearizar
o enredo. No Brasil, podemos apontar filmes como O céu de Suely, de Karim
Aïnouz, onde os atores tiveram que encarnar os personagens anteriormente à
produção propriamente dita, morando na cidade onde se passa a história, nas
mesmas casas humildes de seus personagens, convivendo entre si e usando as
mesmas roupas que seus personagens por meses antes do início das filmagens.
Os personagens, aliás, tinham o nome dos atores (e não o contrário). Ao mesmo
tempo, o roteiro foi reconstruído várias vezes durante a filmagem para refletir a
vivência de atores, roteiristas e diretor, tomando rumos diversos a cada dia,
sempre dentro de um “sentimento” geral da história.
Todos esses exemplos nos remetem ao olhar “fenomenológico” proposto
inicialmente por André Bazin, em sua defesa de um cinema narrativo mais
“realista”, onde a narração fosse menos a intervenção da montagem e mais a
continuidade absoluta. Os filmes citados de fato contêm em sua semântica boa
parte daquilo que Bazin pregou, mas defendemos que agora a posição é menos
ingênua: não tanto negar a montagem clássica, como se esta impedisse uma certa
possibilidade de a verdade vir à tona, mas a admitindo que, na excelência da
construção clássica, algo estava se perdendo. Portanto, se, por um lado, a
associação aos preceitos bazinianos procede, por outro, não podendo repetir-se
senão como farsa, essa história nos leva também a outro lugar, onde agora,
menos do que impor uma forma mais verdadeira de se fazer cinema, tenta-se
2 • Organizando a Experiência
59
simplesmente lançar outros olhares, para além e, sobretudo, aquém do aparato do
cinema canônico.
Obviamente, aqui não se esquerendo insinuar que qualquer um desses filmes
seja mais ingenuamente autêntico ou menos parcial por causa de suas novas
metodologias ou da influência destas a partir de dispositivos, resultando numa
possível poética emergente. Intenções e ideologias sempre serão marcas do mais
bem intencionado dos discursos e, quem sabe, mais dos ditos “bem
intencionados” do que de qualquer outro! O que nos parece é que a busca desses
diversos procedimentos indica, no estado da arte do cinema, uma necessidade de
ir além do molde narrativo canônico como uma cadeia bem amarrada de
acontecimentos, onde personagens, ambientes e eventos são mero veículo para a
materialização da mensagem narrativa. Também não estamos querendo dizer que
essa forma bem amarrada está com seus dias contados. O que queremos levantar
é a possibilidade de a forma narrativa, depois de cem anos de aperfeiçoamento
em sua versão audiovisual, estar sofrendo mais uma de suas mutações, a partir
do qual novas matrizes surgirão, quiçá tornando-se hegemônicas em relação a
outras previamente populares e contribuindo para novas percepções e mudanças
cognitivas do homem e para o homem.
2.4
Hamlet no Holodeck?
Com tudo isso, queremos dizer que a chave da argumentação de alguns
ludologistas, de que é impossível implementar no game aquilo que se faz na
literatura e no cinema, não implica necessariamente a conclusão de que o game
não se preste a qualquer tipo de procedimento narrativo. Entendemos que, por
um lado, os ludologistas trabalham com uma definição muito restrita do que vem
a ser “narrativa”. Acerca disso, aliás, Lúcia Santaella afirmou em diversos
momentos considerar a pendenga ludológica um falso problema, baseado na
confusão entre narração e narrativa. Segundo ela, um game é um formato
narrativo, se nada mais, “porque não é descritivo, nem dissertativo” (Santaella,
2 • Organizando a Experiência
60
2006). Ao mesmo tempo, a raiz da forma narrativa a ação causal no eixo do
tempo (Santaella, 2001) está ali e define a possibilidade mesma de existência
do jogo em sua instanciação pelo jogador. Por outro lado, como acabamos de
expor, aquilo que os ludologistas utilizam como justificativa para diferenciar
irremediavelmente narrativa de games parece dar sinais de mudar nos próprios
“meios tradicionais”.
Se tudo o que descrevemos nas últimas páginas procede, é preciso deixar de
lado, de uma vez por todas, o paradigma reducionista perpetuado pelos
ludologistas que provas de ter se esvaziado e começar a adotar uma
atitude positiva, de lançar ao game um olhar que, ao mesmo tempo, o reconhece
como forma múltipla e nova, mas que também busca nele soluções para desejos
que o antecedem, simplesmente porque isso parece ser possível.
Sob essa perspectiva e acerca da possibilidade narrativa dos meios digitais, Ryan
acredita que
the abstract cognitive structure we call narrative is such that it can be
called to mind by many different media, but each medium has different
expressive resources, and will therefore produce different concrete
manifestation of this abstract structure (Ryan, 2001).
A partir desse recorte, perguntamos: quão diferente pode ser uma narrativa até
que precise atender por outro nome? Será a natureza de acontecimento suficiente
para que devamos chamar os games, como quer Aarseth, de forma “pós-
narrativa”? Será mesmo que uma narrativa implementada no momento mesmo
de seu consumo como defende (Pearce, 2005) é uma coisa totalmente
diferente de um reality show, de um vídeo como 33, de um filme como Dez,
porque, nestes, o que vemos é um registro (mesmo que em tempo real) de um
acontecimento que já passou? A flecha do tempo aponta, afinal, para que lado?
Talvez daqui a alguns anos, com o desdobrar dos caminhos múltiplos que vemos
a nossa frente, fique clara a impropriedade de chamar ainda de narrativa uma
forma como os games. Não é papel da ciência cravar previsões fechadas sobre
nada, acreditamos. Melhor lançar um olhar generoso àquilo que se diante de
2 • Organizando a Experiência
61
nossos olhos, apostando em caminhos, mas sabendo que apostas contêm em si
mesmas, por definição, o risco. E o risco, como dispositivo narrativo, inclusive
científico, é aquilo que nos arma para lidar com os objetos. Sob tal perspectiva,
pois, lançamos aqui ao game o olhar generoso de quem busca, se não uma forma
narrativa tal e qual o cinema, uma forma expressiva que ainda dialoga com
questões muito caras a este, ao romance, ao filme-dispositivo: a criação de
sentido para nossos atos no mundo, como maneira de projetar caminhos e ações.
Com isso em mente, voltamos àquilo que descrevemos no começo do capítulo e
reafirmamos nossa crença no potencial criativo e expressivo do game: muito
mais do que apenas um jogo no sentido redutivo que ludologistas tentam dar-
lhe – uma forma audiovisual e participativa que se mostra capaz de nos agenciar
a partir de dois caminhos essenciais. No primeiro e mais óbvio deles, os jogos de
personagem, através da imersão num ambiente navegável análogo ao mundo em
que vivemos. No segundo e menos explorado universo de agenciamento para
fins narrativos, os jogos de simulação, através da potência de acontecimentos
não-mapeados, índices de um mundo complexo, que nos obrigam a processos
semióticos sofisticados, irredutíveis a uma comunicabilidade associada à
narrativa canônica.
Com isso em mente, tentaremos descrever em mais detalhe essas duas potências
de agenciamento dos games, focando aquilo que consideramos mais promissor
de cada formato para uma vocação narrativa e participativa que enxergamos
nesse universo múltiplo e generoso.
2.4.1
Imersão, presença e o design das
affordances
Imersão e presença são dois lados da mesma moeda. Se o caso é o de
implementar um certo entrar no filme – sendo que agora o “filme” já es
materializado num espaço tridimensional navegável –, então o caso parece ser,
realmente, o de criar maneiras de mergulhar nesse universo através de um
personagem. E em qualquer gênero de game, ser o personagem é, antes e acima
2 • Organizando a Experiência
62
de qualquer outra coisa, imergir no universo espacial do jogo através de seu
corpo. O lado de cá da imersão, através da corporalidade do personagem, implica
a noção de presença:
Os termos imersão e presença (…) capturam dois aspectos diferentes,
mas, em última instância, inseparáveis do efeito total: imersão insiste no
fato de estarmos dentro de uma substância material, presença, no fato de
estarmos em frente a uma entidade bem delimitada. Imersão, portanto,
descreve o mundo como um espaço vivo, um ambiente que suporte
ao sujeito corporificado, ao passo que presença confronta o sujeito da
percepção com objetos individuais. Mas não poderíamos nos sentir
imersos num mundo sem a sensação de presença dos objetos que o
ocupam, e estes mesmos objetos não poderiam estar presentes para nós,
se não fizessem parte do mesmo espaço que os nossos corpos. Isto
significa que os fatores que determinam o grau de interatividade de um
sistema também contribuem para sua performance com um sistema
imersivo (Ryan, 2001: 67-68).
Assim como diversos aplicativos até hoje, as primeiras gerações de jogos
tridimensionais, por uma questão de tecnologia ou falta dela implementavam
um conceito de espaço ainda pouco ecológico.
Apesar dos objetos das novas mídias favorecerem o uso do espaço para
todo tipo de representação, espaços virtuais costumam não ser espaços
verdadeiros, mas apenas uma coleção de objetos separados. Ou seja,
falando em forma de slogan: não espaço no ciberespaço (Manovich,
2001).
Em essência, o espaço servia apenas como delimitação de um caminho a ser
necessariamente percorrido, ainda que de maneira modestamente aleatória, e
dentro do qual se encontravam objetos e personagens com os quais a única
possibilidade era de reação pré-determinada. Um game como Tomb Raider 2,
por exemplo, oferecia várias “fases” – séries de ambientes interligados por
segmentos pré-gravados de vídeo – progressivas e ricamente desenhadas, do
ponto de vista audiovisual. Era possível percorrer os ambientes com alguma
liberdade, construindo um consistente mapa mental de sua espacialidade, para
melhor recolher os objetos que desencadeavam pré-determinados eventos
narrativos, enquanto se escapava dos inimigos. O percurso ao longo do jogo
incluía uma série de revezes, uma vez que apenas uma determinada combinação
2 • Organizando a Experiência
63
de objetos e ações poderia desencadear novos caminhos e a descoberta dessa
combinação – que pouco tinha a ver com algum fundamento narrativo coerente –
se dava na base da tentativa-e-erro. Isso transformava o ato de jogar numa
habitação repetitiva e capenga de um ambiente, mas que, ainda assim, pela
simples possibilidade de se lidar com objetos minimamente autônomos ou
talvez autônomos até demais –, constituíam uma forte sensação de presença que
catapultou o game a um alto grau de popularidade
17
.
Com o aperfeiçoamento da tecnologia e dos chips gráficos que geram a imagem
sintética dos computadores, tornou-se possível a criação de ambientes cada vez
mais sofisticados visualmente. Aspectos da imagem fotográfica/cinematográfica
culturalmente compartilhados como “realistas” puderam ser simulados de
maneira cada vez mais completa, de forma a gerarem no game também a noção
de janela para o mundo que o cinema apregoa para si até hoje. Contudo, para
além do esmero em imitar aspectos visuais de ambientes e objetos, pouco a
pouco foi ganhando espaço a noção de que o grau zero da sensação de presença
no ambiente do game seria alcançado apenas a partir do momento em que o
contato com objetos e demais elementos do mundo do jogo também pudesse
simular aspectos daquilo que compartilhamos como sendo o comportamento de
objetos no mundo real. Tendo sempre em mente a noção de transcriação e de
simulação que o game implementa, nos vem à mente a noção de affordance”,
enquanto aquilo que o ambiente oferece ao organismo que nele habita, de
maneira complementar entre ambos (Gibson, 1986).
Dessa forma, consideramos que o sentido de estar-no-mundo diz muito mais
respeito às capacidades do corpo virtual dentro do universo ficcional a que
pertence e às maneiras como são implementadas estas capacidades do que à
verossimilhança audiovisual, apenas. Posto isso, teremos, imersos no mundo do
game, maior sensação de presença e, por conseqüência, maior potencial de
agenciamento –, na medida em que nosso corpo virtual for capaz de,
respondendo a nossos comandos, executar ou não determinadas atividades
17
Certamente não foi apenas isso o que fez da série Tomb Raider um dos games mais populares da história até
hoje. Para uma excelente análise do sucesso e da personagem central do jogo, Lara Croft, recomendamos a
leitura de Astrid Deuber-Mankowsky, Lara Croft: cyber heroin (Juul 2005).
2 • Organizando a Experiência
64
requeridas por sua participação no mundo virtual. Como afirma Gibson para
exemplificar seu conceito de affordance:
Se uma superfície terrestre é minimamente horizontal (ao invés de
inclinada), minimamente plana (em vez de côncava ou convexa) e
suficientemente extensa (em relação ao tamanho do animal) e se sua
substância é rígida (em relação ao peso do animal), então, a superfície
provê suporte
18
. É uma superfície de suporte e nós a chamamos de
substrato, chão ou piso. Ela possibilita ficar de pé, permitindo uma
posição ereta a quadrúpedes ou bípedes. É, portanto, “andável” e
“corrível”. Não é “afundável” como uma superfície aquosa ou um
pântano, isto é, não para animais terrestres mais pesados (…). Notemos
que as quatro propriedades listadas horizontal, plana, extensa e rígida
– seriam propriedades físicas de uma superfície, se fossem medidas com
a escala e unidades de medida padrão da física. Contudo, como
possibilitam suporte a uma espécie animal, elas m de ser medidas em
relação a esse animal (Gibson, 1986).
Para além do projeto de verossimilhança do cinema, portanto, o que realmente
importa no game é a construção de uma “ecologia na qual cada objeto é uma
ferramenta que estende o corpo do usuário e que o habilita a participar na
permanente criação do mundo virtual” (Ryan, 2001). Dessa maneira, teremos, na
posição de interator, a percepção da dimensão de altura na medida em que nosso
corpo virtual conseguir ou não alcançar determinados pontos verticalmente
distantes no ambiente digital; a percepção de velocidade baseada, entre outros,
no intervalo de tempo em que se pode transpor um determinado percurso; a
percepção de uma constante gravitacional, através do ato de caminhar, de correr,
de pular etc. Estar no mundo pela presença corporificada de um personagem
constitui boa parte do que significa o jogar em si, e, para cada desafio proposto,
uma grande medida estará diretamente associada à possibilidade de obter do
corpo que controlamos seja ele avatar, olhar, uma combinação dos dois, ou
mesmo um veículo, uma arma a percepção, a ação, a resposta precisa
necessária para sua execução. Assim, de modo geral, “o corpo do avatar é a
expressão direta de seu ambiente, inscrito no espaço do game com uma
capacidade para suas distâncias” (Oliver, 2001).
18
Uma tradução livre do original em inglês “affords support”, que mantém a nomenclatura do conceito affordance.
2 • Organizando a Experiência
65
A questão da corporificação, portanto, pode tornar-se, além de condição a priori
para o ato de estar-no-mundo, também a premissa de uma potencialmente
sofisticada experiência através de Umwelten alternativos, de uma mudança de
ponto de vista e de habilidades físicas: nossos corpos virtuais podem
voar ou rastejar pelo chão, ver tudo de cima ou ter que aturar as
limitações da visão terrestre, abraçar todo o universo ou encolher ao
tamanho de um liliputiano (Ryan, 2001).
Na definição de Nöth, Umwelt é a maneira como o ambiente é representado na
mente do organismo e se torna o escopo possível de interação operacional com
seu ambiente” (Nöth, 1998). Obviamente, aqui mantemos em mente que se trata
da simulação de um Umwelt num ambiente de computador e as mudanças
perceptivas do organismo não o exatamente aquelas à que Uexküll e Nöth se
referem, mas, digamos, incorporações delas na prática do jogo. Ou, ainda em
outras palavras, construir o jogo, a partir de seu ambiente e da gama possível de
interação através do avatar do jogar implica simular um Umwelt virtual, onde o
ato em si de jogar se converte na criação de sentido a partir desse “escopo
possível de interação operacional com seu ambiente”, sendo que, agora, o
ambiente em questão é o do jogo, onde podemos adotar diferentes corpos,
diferentes vidas.
Gibson afirma que affordances são, “num certo sentido, objetivas, reais e físicas,
em vez de valores e sentidos, que se supõe serem subjetivos, fenomênicos e
mentais” (Gibson, 1986: 129). Não obstante, acreditamos que, ao completar
dizendo que “o conceito de affordance atravessa a dicotomia do subjetivo-
objetivo (…). Ela é igualmente um fato do ambiente e um fato do
comportamento. É tanto física quanto psíquica e, ao mesmo tempo, nenhum dos
dois (Gibson, 1986), ele viaja ao encontro do conceito de Umwelt da maneira
como o aplicamos aqui. Ou seja, para além da implementação de capacidades
corporais diversas de diferentes affordances no ambiente do game e no avatar
–, é a possibilidade do game de nos fazer mudar ativamente de percepção,
através da incorporação de um personagem implicado física e emocionalmente
noutros contextos, o que torna esse formato realmente especial. Esse é o ponto-
chave para a compreensão daquilo que acreditamos ser a vocação narrativa do
2 • Organizando a Experiência
66
game: nele, o ato de estar no mundo pode agregar mais sentido do que apenas
imersão, presença e navegação. Estar no mundo, no Umwelt simulado do game
pode ser uma nova forma de organizar a experiência do vivido, agora novamente
no fluxo de sua vivência. O que ainda separa o game do status de experiência
narrativa por excelência, muito mais do que uma tecnologia de imersão total,
parece-nos estar ligado à implementação de sistemas de enunciação capazes de
transformar essa experiência de imersão e percepção em uma vivência sob as
motivações de um personagem com real poder dramático. O que se anuncia a
partir daqui é a possibilidade da simulação de Umwelten que, além de enraizar
nosso corpo virtual no ambiente do jogo, possa enraizar nossos desejos a partir
dessa (re)vivência virtual.
2.4.2
A simulação como narrativa
O conceito de simulação é essencial para qualquer tentativa de compreensão do
game como formato. Bettetini afirma, em sua definição da simulação como
instrumento fundamental da significação:
quando se fala de simulação se faz referência, em primeira instância, à
constituição de um modelo (hipótese teórica) interpretativo a respeito de
uma certa realidade e, em segunda instância, à verificação empírica da
funcionalidade e da adequação deste modelo (…) (Bettetini, 1989).
Assim, mesmo os jogos de personagem, ao se utilizarem de imagens sintéticas,
por exemplo baseadas em todo um aparato conceitual perpetuado pela imagem
fotográfica, cinematográfica e de deo –, estão implementando alto nível de
simulação para criar seus ambientes imersivos. Qual seria, então, o sentido de
diferenciá-los dos jogos de simulação, enfatizando este conceito na própria
terminologia da categoria? A nós, apesar do pressuposto de que toda imagem
técnica contém um aspecto simbólico, tornando-se “expressão de conceito geral
e abstrato” (Machado, 2000b: 39), o sentindo de diferenciar a segunda categoria
sob o conceito de simulação vem de sua explícita tentativa de gerar, no
computador, procedimentos modelizadores de terceiridade, referentes a sistemas
2 • Organizando a Experiência
67
mais complexos, que dão conta de diversos aspectos além da aparência das
coisas, sobretudo daquilo que, olhando para um sistema, pode ser chamado de
seu comportamento. Nesses sistemas,
[os] componentes interagem com intricação suficiente para que [seu
comportamento] não possa ser predito através de equações lineares
padrões; há tantas variáveis em jogo no sistema que seu comportamento
global só poderá ser compreendido como uma consequência que emerge
da miríade de comportamentos contidos no seu interior. Na
complexidade, características e comportamentos emergem
significativamente livres (Turkle, 1997).
Aqui, o grande trunfo do computador vem de sua possibilidade de proporcionar a
observação desses sistemas, compostos de inúmeros elementos e subsistemas,
em interação durante escalas maiores de tempo. Basicamente, o computador
torna possível a visualização de efeitos globais que emergem, ao longo do eixo
temporal, da interação local dos elementos do sistema, tornando-se instrumento
essencial para o desenvolvimento da pesquisa nas áreas que lidam com as teorias
da complexidade, sistemas, caos e afins. O grau de complexidade dos sistemas
pode variar, sendo o próprio sistema composto de subsistemas e podendo, ele
também, fazer parte de outro sistema maior. A forma como esses sistemas são
descritos, o nível de abstração existente na seleção de variáveis relevantes e,
obviamente, a definição de seu comportamento através de regras e rotinas
implementadas no computador, assim como os procedimentos para a interação
de subsistemas e conjuntos de regras, tudo isso pode variar e constituir a
definição mesma da simulação digital que, de uma maneira ou de outra, tem sido
bastante aproveitada em diversos campos de pesquisa.
Os jogos de simulação aos quais aqui nos referimos são, conquanto apenas
jogos, inspirados em teorias e aplicativos científicos dessa natureza. Sua raiz
histórica nos remete à implementação pelo matemático John Conway, ao final da
década de 60, do Game of Life
19
. O jogo foi o pioneiro de um trajeto de muitos
programas que, a partir de regras locais um tanto simples, conseguiam gerar
padrões de comportamento infinitamente mais complexos, algo que causou
imediata fascinação ao público da época, acostumado a associar máquinas e
19
Disponível em http://www.bitstorm.org/gameoflife/ . Acessado em 18 de maio de 2008.
2 • Organizando a Experiência
68
computadores a procedimentos matemáticos previsíveis, o exato oposto de uma
certa criatividade associada à vida humana. Os fundamentos por trás desse jogo
referem-se ao universo de pesquisa que viria a ser chamado de Artificial Life, ou
A-Life, "a disciplina onde se constróem organismos e sistemas que seriam
considerados vivos se fossem achados na natureza" (Turkle, 1997).
Como a inteligência artificial emergente, a A-Life surgiu sob uma nova
crença acerca do que computadores cada vez mais poderosos poderiam
fazer em termos de modelação de complexidade (…). Na pesquisa com
A-Life, o enfoque na emergência bottom-up que caracterizou o
conexionismo é levado um passo adiante. (…) A A-Life coloca desafios
maiores e mais radicais do que a IA (não apenas em relação à
exclusividade da inteligência humana, mas à vida biológica em si)
(Turkle, 1997).
Um jogo de simulação é radicalmente diferente de um RPG. Ao invés de colocar
o interator no papel de um personagem que, de uma maneira ou de outra, inicia
uma jornada pelo mundo espacial 3D do computador, percurso que começa a
constituir a forma mínima de narrativa, nos jogos de simulação, a coisa acontece
ao contrário: o interator “fica parado”, quem muda é o mundo. Ou seja, ao longo
do jogo é possível perceber que tipo de comportamento emerge do sistema
simulado a partir das escolhas e decisões tomadas pelo interator. Nesse aspecto,
o modelo acaba virando uma espécie de bichinho de estimação digital, de
maneira análoga aos outrora extremamente populares Tamagochis e aos digital
pets criados para morar dentro de computadores pessoais.
Por essa descrição já é possível perceber que o jogar em um game como SimCity
é de uma natureza bem diversa da dos RPGs, dos jogos de aventura baseados em
texto e mesmo dos jogos gráficos do começo. Nos RPGs e seus ancestrais, um
objetivo é estabelecido no começo do jogo, transformando o resto da experiência
numa jornada em busca de sua obtenção. Em oposição a isso, a maior parte dos
jogos de simulação não tem uma vitória e nem mesmo um objetivo explícito: o
processo é o brinquedo. Jogar consiste em modelá-lo, tentando inferir
justamente as regras que estão por trás dele, de modo a controlá-lo da maneira
mais precisa, embora dificilmente ser completamente previsível. Enquanto os
2 • Organizando a Experiência
69
jogos que se configuram ao longo de uma jornada marcam sua conclusão com o
fim do percurso espacial, o fim dos jogos de simulação fica a cargo do interator e
apenas dele. Aparentemente cientes dessa perspectiva, os distribuidores da série
Sims vendem seus jogos sob a alcunha de software toys, ao invés de games
propriamente ditos:
quando você brinca com nossos brinquedos, você mesmo determina
seus objetivos e decide quando os alcançou. A diversão e o desafio de
nossos brinquedos se encontram no ato de explorar os mundos que você
mesmo cria, a partir de sua imaginação. Você é recompensado pela
criatividade, experimentação e compreensão, com um universo vivo e
pulsante que pode chamar de seu (Maxis Software Toys Catalog apud
Friedman, 1995).
Ou, como aponta Janet Murray, “a conclusão, no mundo eletrônico, ocorre
quando a estrutura de um trabalho, e não exatamente seu enredo, é
compreendido” (Murray, 2000).
Conquanto fundamentalmente diferente dos RPGs em sua pretensão narrativa e
mesmo de tudo aquilo a que estamos acostumados a chamar de história – embora
seja possível apontar nela os elementos mínimos anteriormente listados para a
definição de uma forma narrativa mínima –, insistimos em manter a categoria
geral dos jogos de simulação como uma das duas que constitui o universo dos
games narrativos. Nela, apesar da aparente ausência de uma estrutura dramática,
consideramos não apenas que a história do sistema, ou seja, sua metamorfose ao
longo do eixo do tempo, é suficientemente rica para que possa ser chamada de
narrativa como também, e sobretudo, vemos na dinâmica de agenciamento do
interator e na construção do universo diegético como sistema incrementos
essenciais de complexidade que podem devolver à narrativa no mundo virtual a
relevância artística que em boa parte dos games ainda hoje implementados
parece não existir.
Ainda que não se relacionem diretamente com o grande potencial do jogo de
personagem como forma de imersão pela participação, os jogos de simulação
implementam sua própria dinâmica de agenciamento, uma que renega os
prazeres da imersão da maneira como esta é concebida pelas formas narrativas
2 • Organizando a Experiência
70
canônicas, mas que não deixa nada a dever em termos de convites envolventes à
participação. Simulações bem desenvolvidas fazem com que o interator se deixe
envolver pela lógica do sistema de maneira tão poderosa ou amais do que os
jogos de RPG. A jogabilidade dos jogos de simulação tem, por definição, uma
dinâmica muito mais relacionada à categoria que Roger Caillois (1990)
estabeleceu como paidia jogos de dinâmica mais livre, aproximados do ato de
brincar –, em oposição aos ludus, jogos cujo sistema de regras é estritamente
organizado e francamente compartilhado. Dessa forma, imergir no universo do
jogo de simulação ganha um caráter mais metafórico, uma vez que
jogar uma simulação significa ficar imerso numa lógica sistêmica que
conecta uma miríade de causas e efeitos. A simulação age como uma
espécie de mapa-no-tempo, demonstrando visualmente e visceralmente
(quando o jogador passa a internalizar a lógica do jogo) as repercussões
e as inter-relações de muitas decisões sociais diferentes. Ao escapar da
prisão lingüística que parece tão inadequada para reunir as tendências
díspares que constroem a subjetividade pós-moderna, simulações de
computador nos provêem com um novo formato quasi-narrativo com o
qual podemos comunicar estruturas de interconexão (Friedman, 1995).
A natureza da simulação como jogo proporciona um grau de liberdade de ação
ao interator que nenhum game de personagem conseguiu implementar, uma vez
que o caminho a ser percorrido no RPG, embora acessado de outra forma, é
essencialmente linear. Contudo, com decisiva propriedade, Friedman adverte
que, “apesar de toda a liberdade proporcionada pelos designers dos games,
qualquer simulação será sempre baseada em alguns pressupostos” (Friedman
1995). Ou, em outras palavras: a despeito de todos os ganhos trazidos para as
técnicas de simulação digital pela maior compreensão de teorias acerca da
complexidade dos sistemas dinâmicos, sobretudo os sociais, os fundamentos que
servem para modelar sistemas, reais ou completamente imaginários, em
experimentos científicos ou peças de entretenimento, serão, sempre, de natureza
mais ou menos arbitrária, convencionada, mediada, portanto, semiótica. Tal
pressuposto é de enorme importância para uma análise apropriada desse universo
de jogos como manifestações potencialmente poéticas, e não necessariamente
como simulacros, no sentido assim atribuído por Baudrillard. Friedman enfatiza
2 • Organizando a Experiência
71
esse ponto de vista, afirmando que esse princípio, de natureza essencialmente
convencional, a partir dos quais se criam os jogos de simulação
não são falhas do jogo são apenas seus princípios fundamentais. Eles
podem ser questionados, debatidos, e outros jogos podem ser escritos
seguindo princípios diferentes. Contudo, não poderá jamais haver uma
simulação “objetiva”, livre de qualquer “pré-conceito”. Programas de
computador, como qualquer texto, sempre serão construções
ideológicas (Friedman, 1995).
Não se trata, agora, de supor que a não-linearidade inerente a esse tipo de
configuração da narrativa a torne necessariamente menos ideológica, como, a
rigor, toda e qualquer formulação sígnica. O que perde em arbitrariedade é a
narrativa, que se torna uma instanciação pontual, “pessoal e intransferível”, do
momento em que o interator habita, joga, compõe-se com o game. Ela passa a
ser um índice da terceiridade modelizada pelo computador, a partir do qual se
podem inferir aspectos do conceito, mas dificilmente ele inteiro. No lugar de
uma cadeia causal “provável e necessária”, porque construída como se não
pudesse ser diferente, a narrativa migra para possibilidades abertas pelo
conceito, de maneira análoga à que nossa narrativa pessoal pela vida apenas se
refere ao histórico evolutivo contido, como informação, no DNA de nossa
espécie e que, somado ao contexto social, cultural no qual estamos imersos, nos
proporciona uma história de vida da qual experimentaremos apenas pequenos
fragmentos.
A simulação como modelização de conceitos que serão instanciados pelo
interator contudo, não esconde sua natureza de discurso construído, como, a
rigor, nenhum discurso poderia. Como insiste Friedman, ter sua natureza
moldada a partir de pressupostos convencionais e ideológicos não é exatamente
uma falha da simulação digital, sobretudo se partirmos do princípio de que isso é
inevitável em qualquer meio. Ao contrário, e no que diz respeito à
implementação de narrativas mais complexas no universo dos jogos eletrônicos,
se o encararmos como conceito, podemos estar diante de uma maneira de
implementar, de forma pioneira, aquilo a que o cineasta Sergei Eisenstein se
referiu como a possibilidade de implementar, pela forma do filme ao invés de
2 • Organizando a Experiência
72
apenas por seu conteúdo –, conceitos infinitamente mais abstratos do que as
narrativas causais canonizadas pelo cinema e sua montagem em continuidade.
Sem entrarmos aqui nos usos e implementações feitos por Eisenstein no universo
de seu próprio cinema, consideramos possível lançar um olhar otimista para a
possibilidade de modelar, no computador, sistemas não apenas assumidamente
irreais como especificamente concebidos sob lógicas deliberadamente poéticas:
uma simulação que transcrie o mundo de O Processo, de Franz Kafka, com
todos os valores que do livro podem ser inferidos, por exemplo; ou um sistema
regido por conceitos tão abstratos quanto o materialismo histórico e sua dialética
(já que o mundo das SimCities, por exemplo, é francamente liberal em sua
simulação macroeconômica).
Da combinação das melhores propriedades das simulações com o potencial
imersivo dos jogos de personagem, pensamos que tem surgido o mais promissor
caminho para a narrativa nos games. Sobre esse universo híbrido lançaremos um
olhar no próximo capítulo.
3
AGENTES VEROSSÍMEIS
- She's a replicant, isn't she?
- I'm impressed, Deckard. How many
questions does it usually take to spot them?
- I don't get it, Tyrell.
- How many questions?
- Twenty, thirty, cross-referenced.
- It took more than a hundred for Rachael,
didn't it?
- She doesn't know.
- She's beginning to suspect, I think.
- Suspect? How can it not know what it is?
do filme Blade Runner
3.1
O design da narrativa
como simulação imersiva
Se existe alguma razão naquilo que vociferam os ludologistas, ela gira em torno do
perigo de usar armas de outros meios para abordar um novo universo de
possibilidades. Para evitar esse perigoso tipo de cegueira, recolocamos a questão
narrativa no game da seguinte forma: ao contrário do que esteve e ainda parece
estar em voga entre os que perseguem o Santo Gral narrativo nos games, nosso
objetivo nesta pesquisa não é propor a combinação ideal entre experiência
interativa a estrutura dramática característica do enredo canônico. Ou pelo menos
não em princípio.
Quando revisitamos a bibliografia dos estudos de games até final da década de 90
(Laurel, 1993) (Mateas, 1997) (Murray, 2000), e mesmo hoje, na prática de vários
designers (Alexander, 2008), independentes ou de mercado, é possível perceber
essa busca por uma configuração que claramente almeja combinar a marca
fundamental do game o agenciamento, sobretudo através de um personagem
ao melhor do cinema, sob sua definição canônica: o enredo ótimo, que nos “leva
pela mão”, faz rir, chorar, pular da cadeira. É assim que, ainda hoje, por exemplo,
o lançamento do quarto segmento da franquia Metal Gear Solid (MGS), de um dos
3 • Agentes Verossímeis
74
designers mais aclamados da indústria do game Hideo Kojima – continua
insistindo na estrutura de níveis de muita (inter)ação, intercalados por longos e
elaborados segmentos de vídeo pré-renderizados, que introduzem informações do
enredo pré-determinado. Segundo Chris Kohler, colunista da revista Wired, MGS
4, o novo game da série, lançado com exclusividade para o console Playstation 3
em julho deste ano,
further blurs the line between movie and game. The story sequences are
much longer, with some early breaks in the action approaching half an
hour. A videogame with extensive non-interactive sequences is not
unprecedented per se. What's new is that Metal Gear Solid 4's scenes
can be so riveting that you barely notice you haven't touched your
controller. I don't think this is the future of videogames, but it's going to
be a big part of them (Kohler, 2008).
Metal Gea r Solid 4, 2008
Longe de ser uma unanimidade, as seqüências não-interativas de MGS 4 são ainda
assim marca registrada de Kojima e utilizam tudo o que de melhor a gramática do
cinema de espetáculo Hollywoodiano construiu ao longo do último século,
incluindo elaborados “movimentos de câmera”, “montagem em continuidade”,
efeitos de “fotografia”, ou seja, tudo aquilo que advém diretamente do vocabulário
cinematográfico e que o game não tem motivo algum para utilizar (já que é feito
de imagens sintéticas), a não ser seguir nos trilhos do meio anterior e trazer para
seu público um universo de expectativas até certo ponto conhecido.
3 • Agentes Verossímeis
75
Na mesma linha, o outro blockbuster do verão americano, Grand Theft Auto IV,
foi eleito pelo crítico de cinema da revista americana Rolling Stone como “melhor
filme do verão”. Sim: filme. Afirma Peter Travers:
This is a review of Grand Theft Auto IV the M-O-V-I-E. And I have to
say, it's better than anything I've seen at the multiplex so far this
summer (…). There's plot development, character depth and moral
ambiguity, stuff you don't find in Speed Racer
20
(Travers, 2008).
Tais excertos da mídia não de qualquer mídia, mas de duas das mais
conceituadas e populares revistas (em versão impressa e online) de mídia, cultura,
entretenimento e tecnologia são excelente termômetro da indústria em sua busca
do game narrativo. Ou, talvez mais propriamente, do substituto para o cinema no
papel de referência narrativa/audiovisual de uma geração.
Grand Theft Auto I V, 2008
Até aí, nada de errado, necessariamente. Uma marca da cultura e entretenimento
contemporâneos parece ser a insubordinação a qualquer espécie de formato
hegemônico duradouro. espaço e público para várias coisas, por vezes
efêmeras até demais em suas metamorfoses de gênero, linguagem, formato. O
game nasceu múltiplo e, como já afirmamos algumas vezes, parece-nos saudável e
natural que assim permaneça, permitindo a existência de nichos para
manifestações mais “canônicas”, que precisam justificar os milhões investidos
20
Referência ao longa-metragem dos irmãos Andy e Larry Wachowski, também criadores da afamada trilogia
Matrix e, como estes, coalhado de efeitos digitais, mas criticado por um roteiro banal.
3 • Agentes Verossímeis
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pela indústria, a manifestações “rebeldes”, feitas sem a preocupação a priori de
estabelecer qualquer tendência de linguagem, narrativa, tema ou o que for (mas,
muitas vezes, conseguindo ser até mais influentes nisso do que os blockbusters,
justamente por trilharem o caminho do risco).
Dentro desse panorama, o que nos interessa é olhar para aquilo que, na malha
diversa de manifestações do game, parece cumprir o papel que a narrativa tem
buscado desde sua forma oral: o de uma forma de pensamento causal sobre o
mundo para (re)significar o fluxo da experiência humana. É sob esse recorte que
destacamos novamente as duas categorias gerais de agenciamento descritas no
capítulo anterior. De um lado, os jogos de personagem, de outro, os jogos de
simulação. Cada um, como dissemos, explora de maneira particular e inovadora
potências não apenas narrativas trazidas a tona por isso a que chamamos
univocamente de “o digital”. Cada uma explora uma característica desse novo
meio para proporcionar experiências estéticas inéditas. É nesse ineditismo que
cremos residirem novos caminhos para a narrativa.
Do jogo de personagem, mais do que o habitar de um mundo virtual
tridimensional, a possibilidade de viver vicariamente outros Umwelten e de, a
partir desse grau zero da vivência de uma nova corporalidade, poder de fato
“vestir” motivações de uma alteridade implicada num espaço-tempo. Quanto mais
nos deparamos com jogos de personagem incluindo mesmo MGS 4 e sua
vocação híbrida de game e cinema mais clara fica a vocação desse formato para
nos transportar a outro mundo através de um corpo/avatar/personagem. Cremos
que esse enraizamento através de uma corporalidade é, de maneira análoga à
própria emergência da consciência nos seres humanos (Donald, 2002) (Emmeche,
2006) (Clayton, 2004), o caminho possível e promissor de uma experiência
significativa sob a motivação de outro personagem e uma das maneiras mais
efetivas de explorar isso que acreditamos ser, seguindo o conceito de Katherine
Hayles (2005), um “sistema cognitivo distribuído” (como, a rigor, todo sistema
semiótico, mas agora, de uma forma particular, como veremos).
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Do jogo de simulação, há a possibilidade de modelização que permita ao interator,
pelo ato de jogar, literalmente experienciar aspectos palpáveis de conceitos, sejam
eles puramente físicos, políticos (como defendem os arautos dos “jogos sérios”) ou
estéticos (ou tudo isso e um pouco mais). Contudo, antes mesmo de almejar tal
cenário, parece-nos que a principal herança dos games de simulação a esse projeto
que aqui, ao mesmo tempo, diagnosticamos, propomos e desejamos, é a
possibilidade de uma arquitetura sistêmica para o mundo virtual, uma que consiga
combater a fragmentação do jogo de personagem em sua faceta mais ordinária e
que consiga transformar a experiência de habitação do mundo virtual em algo mais
sofisticado.
Diante do diagnóstico dessas duas categorias de agenciamento, é apenas natural o
insight de propor sua combinação num híbrido que nos parece particularmente
potente para realizar essa vocação narrativa do game. Assim, tem sido, desde o
mestrado e o é cada vez mais, impossível a s não supor que um game que
combine a vivência vicária de um Umwelt à arquitetura sistêmica do jogo de
simulação traga em si a maior vocação narrativa que se pode pensar para o
formato. Imersão e participação, Umwelt e organicidade. Não há como não desejar
tudo isso.
3.1.1
Mundo-objeto
Num universo espaço-temporal que almeja um caráter sistêmico, em que um
tecido intrincado é composto para que o interator possa penetrá-lo e dele venha a
fazer parte, é da complexidade do comportamento de seus subsistemas e elementos
que mais claramente poderá emergir uma vivência mais sofisticada, que além
do “simpleshabitar de um mundo. É preciso uma arquitetura na qual elementos
sejam ao mesmo tempo autônomos e se relacionem de maneira organizada. E é
preciso que esses elementos se comportem de modo a propiciar ao interator a
vivência vicária de um Umwelt, ao se portarem como oportunidades de ação que
estendam e realizem seu corpo no mundo virtual do game, este entendido como
3 • Agentes Verossímeis
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uma realidade que insiste, como um mundo o mais “vivo” possível, aquém e além
dos desejos imediatos do interator.
Esse “mundo”, do ponto de vista da programação, é uma abstração matemática
que pretende, no extremo final, gerar a simulação audiovisual de um Umwelt a ser
habitada pelo jogador através de seu avatar (no caso do jogo de personagem). Isto
quer dizer que tudo o que está ali ambiente, coisas, agentes, perspectiva visual e
mesmo o avatar do jogador terá que ser construído “do zero”, como objetos
descritos essencialmente em termos de comportamentos e relações possíveis uns
com os outros. Ao contrário do cinema, que capta índices da realidade, por mais
mediados e construídos que possam ser, o mundo do game é construído ponto por
ponto, das suas propriedades mais mundanas às mais complexas.
Para construir esse mundo, o paradigma computacional que jaz no coração dos
games é a programação orientada a objetos. Sob esse paradigma, são considerados
“objetos”, entidades autônomas, unidades de software em interação entre si,
divididas em classes, capazes de trocar mensagens, podendo, assim, influenciar o
comportamento uns dos outros, a depender do grau de abertura e sofisticação com
que seu próprio comportamento é construído. Do ponto de vista da programação,
portanto, tudo o que existe no game é dotado de algum tipo de comportamento e o
que pode diferenciar objetos é justamente a complexidade de seu comportamento e
sua localização numa hierarquia até certo ponto sistêmica. Objetos são
organizados em classes, que detêm atributos, habilidades, herança e diversas
outras características que fazem com que tal paradigma seja apto a gerar ambientes
no caso dos games onde o comportamento dos objetos possa ser amplamente
influenciado pelo comportamento dos demais objetos e, no caso de um software
interativo, pelas intervenções do jogador via interface.
O que diferencia objetos-software que simulam “coisas”, “ambientes” e “seres
vivos” é a natureza e a complexidade de seu comportamento. Trazendo mais uma
vez à tona nossa perspectiva do mundo do game como dotado de affordances que
realizam o corpo/avatar do jogador, tais objetos podem se comportar como
“coisas”, “ambiente” ou “personagens” a partir de diferenças muitas vezes sutis.
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Para a programação, por exemplo, o “chão” precisa ser (d)escrito como um objeto
que provê suporte ao avatar/personagem/jogador e sem o qual comportamentos
deste, como “andar” ou “correr”, não seriam possíveis. Jaz a importância da
modularidade da orientação a objetos: o comportamento “correr”, atributo do
objeto avatar/personagem, pode existir em composição com o objeto “chão”,
que, por sua vez, possui uma série de atributos capazes de se compor com o objeto
“avatar”, gerando ou não o comportamento “correr”. O objeto “água” não
provê ao objeto avatar a ação de andar, mas sim, talvez, de nadar, imergir, ou até
afogar-se.
Tomb Raider A nnive rsary, 2007
Pensar no ambiente do jogo pelo ponto de vista da programação, portanto, é
entender que quase tudo no game precisa responder às mensagens de outros
objetos com comportamentos compatíveis. Nesse game híbrido que almejamos,
quanto mais sistêmica a arquitetura do mundo virtual, mais complexas poderão ser
as interações entre objetos e destes com o interator. Se é possível pensar num
ambiente como uma ecologia de objetos, o que primeiro pode distinguir objetos de
agentes é, obviamente, a possibilidade de ação, em vez de apenas reação.
Agentes, potenciais personagens do mundo virtual, ao contrário de objetos como
“chão”, “água”, “porta”, “arma”, agem positivamente, dotados daquilo que
podemos, por enquanto, chamar de algum grau de autonomia e intencionalidade.
São ainda assim “objetos”, do ponto de vista computacional, dotados de atributos e
capazes de executar uma gama de comportamentos, relacionando-se entre si, com
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outros agentes, objetos e com o interator, mas o fazem a partir de uma agenda que
os impulsiona a algum lugar. São o motor da narrativa.
Partindo do pressuposto de que o que define a narrativa é a ação causal no eixo
temporal (Santaella, 2001), é, portanto, inevitável supor que o caminho mais
promissor para a emergência de um novo formato narrativo afeito ao game esteja,
não na construção de uma estrutura capaz de intercalar “o melhor dos dois
mundos” cinema e agenciamento mas na construção de agentes dotados de
alguma intencionalidade, controlados pelo software, que possam fazer as vezes de
personagens no mundo ficcional implementado pelo jogo, com os quais o
interator/avatar/protagonista se relacionará numa gama de possibilidades
dramáticas e lúdicas.
Nosso olhar aqui não visa negar qualquer possibilidade de estruturação que
misture seqüências lineares a ambientes imersivos e participativos, ou o
estabelecimento de “gerentes dramáticos” (“drama manager) (Mateas, 1997)
capazes de controlar a estrutura do drama interativo em tempo real. O primeiro
objetivo, como quer Kohler, talvez esteja sempre nos games narrativos, em alguma
medida, simplesmente porque pode ser interessante, pode agregar valor ao game,
como uma commodity, o que sempre foi importante para a indústria do
entretenimento. O último objetivo, contudo, embora possa se provar factível num
futuro que acreditamos distante, ainda nos parece excessivamente ligado a um
paradigma estrangeiro ao game e muito difícil de executar sem que as perdas
sejam grandes. Mesmo que seja possível a construção de tal gerente dramático
uma inteligência central capaz de parcimoniosamente reter ou disparar
acontecimentos, buscando balancear o percurso do jogador entre a ação e o tédio
parece-nos que ele pode surgir “de baixo para cima”, em diálogo com uma
dinâmica já mais orgânica de vivência motivada do interator/personagem/avatar no
mundo do jogo. Assim, antes de ser possível abstrair regras universais capazes de
gerenciar o fluxo dos acontecimentos no mundo narrativo do jogo, acreditamos
que é preciso desenvolver melhor essa vivência, através da criação de elementos
mais complexos e orgânicos ao mundo do jogo, dos quais os mais promissores
para a narrativa são os personagens autônomos.
3 • Agentes Verossímeis
81
A partir disto, nosso caminho para pensar esses personagens do jogo como motor
para a complexidade narrativa nos games precisa dividir-se em três frentes: 1) a
construção de “agentes inteligentes” e “personagens autônomos” na Inteligência
Artificial e games; 2) a definição, o papel e a importância dos personagens na
narrativa/drama e, finalmente, 3) o delineamento mais refinado de nossa hipótese,
de que, pensando o game como esse Umwelt complexo, possa estar na interação
entre jogador e personagens autônomos o caminho para a real emergência de
motivações e emoções complexas, através de uma nova compreensão da noção de
“empatia”, como habilidade evolutiva intimamente ligada à nossa capacidade
narrativa e agora favorecida pela autonomia dos personagens dos games.
3.1.2
Bloco do eu sozinho
Antes de percorrer esse caminho, contudo, é necessária a ativação de um recorte a
partir da seguinte questão: se a interação com personagens no mundo do game é
tão importante para a emergência de experiências complexas, por que exigir que
sejam tais personagens autônomos robôs-software operados pela máquina e
não outros avatares, controlados por seres humanos em jogos multi-jogador?
Para seguir com nossa justificativa, é preciso fazer uma importante distinção entre
jogos multiplayer, multiplayer-massivos online e jogos singleplayer e uma defesa
destes últimos para o que nos interessa aqui em termos narrativos. A primeira
distinção é simples: jogos multiplayer em oposição a jogos singleplayer, ou seja,
jogos para múltiplos jogadores, que também chamaremos de games “multi-
jogadores”, versus jogos em que apenas um jogador penetra o universo do game
de cada vez, operando um mesmo personagem. Nos jogos multi-jogadores, como o
nome indica, mais de uma pessoa joga ao mesmo tempo, seja num combate entre
oponentes, seja de forma cooperativa. Duelos entre jogadores são muito populares
no universo dos games, uma vez que a forma mais básica de jogo continua sendo o
agon. Nesse universo podemos apontar desde jogos esportivos como Winning 11,
onde cada jogador pode comandar um time de futebol (e cada um de seus 11
3 • Agentes Verossímeis
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jogadores, alternadamente), Mortal Kombat e outros jogos de luta, até as séries
Guitar Hero e Rock Band, no modo multi-jogadores, de combate ou cooperação.
Mais recentemente, os jogos para o console Wii, que reinventaram o agon
através de interfaces tangíveis, tornando-se simulações intuitivas de disputas
virtuais de tênis, boxe, baseball, boliche, para citar apenas o pacote Wii Sports que
vem com o console. Em todos esses jogos, os jogadores (normalmente no máximo
quatro) estão ligados ao mesmo console (por fio ou não), dividindo
presencialmente o espaço diante da tela.
Seguindo a linhagem, há os jogo multi-jogadores para redes locais, as LANs (local
area networks), onde impera o gênero “tiro em primeira pessoa”. Dentre esses,
Counter Strike é o exemplo mais emblemático, sobretudo no Brasil, podendo
contar com algumas zias de jogadores conectados ao mesmo servidor via rede
local, compartilhando muitas vezes a mesma sala, mas cada um imergindo através
do seu próprio teclado e de sua própria “janela para o mundo”. Daí até os “massive
multipleyer online RPGs”, ou MMORPGs, o salto é não apenas quantitativo, mas
qualitativo
21
. Embora jogos de tiro possam ser jogados online, percebe-se,
empiricamente, que no compartilhamento do espaço físico das LAN houses um
elemento importante para a jogabilidade a disputa verbal entre os jogadores,
comemorando vitórias, lamentando derrotas, assediando inimigos, procurando
apoio dos amigos, em suma, todo o universo de socialização presencial que
acontece antes, durante e depois das sessões de jogos
22
.
os jogos multiplayer massivos são jogados online por centenas, quiçá milhares
de jogadores ao mesmo tempo, todos conectados via internet a um (ou mais)
servidor(es), a partir de seus próprios PCs, distribuídos em diversos lugares do
mundo e muito distantes entre si. Alguns dos MMORPGs mais populares incluem
Ultima Online, EverQuest, World of Warcraft e Star Wars Galaxies. Ao jogar
qualquer um desses games, o interator assume seu avatar num universo online
compartilhado, como dissemos, por milhares de pessoas ao mesmo tempo. Em
21
No sentido mais semiótico do termo, como uma qualidade intrínseca à forma em questão e não um
julgamento de valor.
22
A importância das LAN houses na inclusão digital e na sociabilidade da juventude nos bairros periféricos
brasileiros, aliás, é tema que requer atenção, não apenas no contexto dos games, como no contexto maior da
comunicação.
3 • Agentes Verossímeis
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grande parte dos casos, qualquer agente encontrado no jogo será, assim como
nosso próprio avatar, também operado por um ser humano do outro lado da tela,
em qualquer parte do mundo. Embora herdeiros da dinâmica dos Role-Playing
Games e, portanto, atuando como um personagem dentro do jogo, acreditamos que
a característica-chave desse gênero é, acima de tudo, a possibilidade de
socialização online, ainda que até certo ponto filtrada por um contexto ficcional,
espacial, que inclui, sim, regras e temáticas advindas de universos narrativos, mas
que o afasta sensivelmente do universo singleplayer e até mesmo dos jogos de tiro
de LAN houses. Não à toa, qualquer jogador de MMORPG está familiarizado com
as expressões IC e OOC, in charactere out of character”, “dentro” e “fora” do
personagem, respectivamente.
Não espaço aqui para descrever em detalhes o vastíssimo universo dos
MMORPGs, possivelmente a mais desafiadora, múltipla e inovadora manifestação
no universo dos games. Ademais, a questão não é defender um formato em
detrimento de outro, mas justificar o recorte para aquilo que, recapitulando, nos
parece definir a maior potência narrativa, ficcional, dramática dos games, ou seja,
a combinação da vivência do interator num universo tridimensional, através de um
persoangem/avatar, à complexidade possibilitada pela estrutura das simulações.
Rune Klevjer defende os jogos singleplayer como
a particular form of play and as a unique type of gaming experience;
the focus is on how the avatar mediates between the player and the
game, not how it mediates between the player and other players. This
implies addressing the relationship between the player and the game
system, between the player and the simulated environment, and
between the player and a fictional world. These concerns are of course
relevant to any kind of game, but in multiplayer and online
environments the social interaction of play nevertheless demands
primary attention (Klevjer, 2006: 14).
Em outras palavras, o foco do jogo singleplayer é a mediação entre o jogador e o
mundo virtual do jogo, seu ambiente, seus objetos, seus agentes e o
comportamento que emerge de todos esses elementos em interação com o jogador,
através de seu avatar. Embora MMORPGs também tenham ambientes a serem
percorridos pelos jogadores através de seus avatares, objetos a serem manipulados,
3 • Agentes Verossímeis
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acreditamos que a consciência de que os demais agentes do mundo virtual sejam
também humanos muda drasticamente a vivência que se tem ali dentro. Antes de
mais nada, porque, por definição, mesmo atuando como um personagem, cada
agente/avatar no MMORPG pode fazer sua própria agenda, sem que esta tenha
qualquer coisa a ver com o universo ficcional em que o jogo supostamente se
insere. O forte apelo dessa vivência, aliás, nos parece ser a principal explicação
para a emergência e sucesso dos “second reality” games, dentre os quais o Second
Life chama mais atenção, dando corpo de vez a esse ambiente virtual,
tridimensional, sem precisar recorrer à “desculpa” do RPG para que se criem
personagens dentro de um universo ficcional e com objetos lúdicos mais
determinados.
Mais do que isso, contudo, se queremos pensar no game como um formato
narrativo, que se utiliza da estrutura complexa dos jogos de simulação para criar
algum tipo de sentido através da vivência do interator em seu mundo, é bem
razoável pensar que cada componente desse mundo, como peça de um sistema
maior, importa na geração desse(s) sentidos(s). Em outras palavras, se estamos
pensando no game como a simulação de conceitos, como foi descrito no capítulo
anterior, é preciso pensar no ambiente, nos objetos e, acima de tudo, nos agentes
dessa simulação como peças-chave para a geração desses conceitos da maneira
procedimental a que o game é afeito. Embora consideremos que o game não deva
propor uma narrativa pré-estabelecida como as narrativas canônicas, ele ainda
precisa de algum nível de coerência entre seus elementos para que, da interação
com estes, possa emergir algum aspecto do conceito que lhe é subjacente.
Acreditamos que, por sua complexidade comportamental intrínseca, o mais
importante desses elementos são justamente os agentes dentro do game, os
personagens do mundo virtual, também conhecidos como “denizens” ou non-
player characters (NPCs).
Deslocando o potencial dramático da narrativa em direção a seus personagens,
passamos a colocá-los no papel de atores primordiais dessa "miríade de causas e
efeitos" (Friedman) à qual relacionamos o game sistêmico, o que margem a
uma concepção narrativa que nos parece fazer enorme sentido. No cinema
3 • Agentes Verossímeis
85
canônico, para que fosse capaz de efetuar o movimento de projeção-identificação,
sem o qual não entraria emocionalmente no filme, o espectador precisava se tornar
parte de sua cadeia causal, formulando, negando e confirmando hipóteses com
base em informações inferidas a partir da ação dos personagens (Bordwell, Staiger
e Thompson, 1985). Isto fazia com que a causalidade narrativa tivesse importância
central na criação daquilo que Christian Metz chamou de a "impressão de
realidade" (1977: 16) do cinema canônico. No game, contudo, grande parte da
imersão emocional ou seja, essa impressão de realidade que o aproxima do
cinema se a partir do movimento de projeção física do interator em seu
avatar/personagem, pela implicação física e diegética que têm no mundo do jogo.
Desta maneira, parece razoável supor que a necessidade de uma cadeia causal
finamente urdida possa se enfraquecer, dando lugar à necessidade de construção
mais refinada daquilo que supostamente jaz sob o enredo, ou seja, justamente os
elementos causadores da miríade de relações que compõem o mundo a ser
penetrado pelo interator, das quais emergem as ações "prováveis e necessárias"
dos personagens.
Obviamente, é completamente impossível dar conta, linearmente, dessa miríade de
relações de personagens artificiais entre si e muito menos com o interator. Mesmo
que delimitar fortemente as ações dos personagens autônomos não apresentasse
um contra-senso em relação a tudo o que aqui defendemos, na medida em que
estes se deparassem com o personagem controlado pelo interator, seria ou muito
mais difícil ou infinitamente mais arbitrário prever que conseqüências daí
surgiriam. Este, aliás, tem sido o impasse do game narrativo: ao tentar impor um
caminho linear, disfarçado por uma mera ilusão de liberdade, os jogos de
pretensão narrativa têm tornado claro o grau de arbitrariedade existente na
construção do que antes parecia uma cadeia impecável de acontecimentos
encadeados. Seguir este caminho, portanto, nos parece ser muito pouco coerente
com a idéia que fazemos do game como formato narrativo afeito à
contemporaneidade, não apenas porque digital, mas, sim, porque se encontra em
legítimo diálogo com as práticas e posicionamentos do mundo contemporâneo.
Isto nos faz supor que categorias definidoras do drama de filiação aristotélica,
como o próprio conceito de catarse, ou de unicidade, por exemplo, merecem ser
3 • Agentes Verossímeis
86
revistas ou, quiçá, transcriadas para de fato poderem reverberar a experiência de
vida de uma sociedade cada vez mais afeita às noções de multiplicidade, não-
linearidade, complexidade etc.
3.2
Agentes Inteligentes
Num game, nem tudo o que chamamos de “personagem”, do ponto de vista
diegético, seria reconhecido como “agente”, do ponto de vista da computação. E
vice-versa. Para estabelecermos de uma vez por todas o recorte do que estamos
aqui chamando de “personagens autônomos”, precisamos olhar para o universo
dos games, assim como para o universo daquilo que na Inteligência Artificial
convenciona-se chamar de “agentes inteligentes”. Este percurso, como não poderia
deixar de ser, será filtrado pelo interesse que nos guia: não recontar a história da
Inteligência Artificial, mas estabelecer as fronteiras daquilo que hoje em dia
promete caminhos potencialmente interessantes para os games.
As questões que se estabelecem, portanto, são as seguintes: o que podemos chamar
de “personagens autônomos” nos games? Quais as diferenças entre um “agente
inteligente” e um “personagem autônomo” e o que elas implicam? Até que ponto
se pode traçar, a partir da ação/reação, a diferença entre personagem e objeto no
mundo virtual? Como descrever essa necessidade de “autonomia” dentro do
contexto do game e da IA? E, mais adiante e em diálogo com tudo isso: onde e
como ficam as questões da intencionalidade e da verossimilhança nos personagens
dos games?
3.2.1
Azul Profundo
Dentro do universo da computação e da Inteligência Artificial, a definição de
“agente” costuma variar bastante, a depender do objetivo almejado. Como o
próprio universo da IA é extremamente controverso, com paradigmas conflitantes
e disputas práticas e conceituais, é preciso circunscrever alguns terrenos que
3 • Agentes Verossímeis
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queremos pisar com mais firmeza. O primeiro deles é discernir entre os dois
grandes paradigmas de IA, que, não por coincidência, dialogam diretamente com
boa parte do que viemos aqui descrevendo sobre narrativa, games e poéticas: um
deles busca caminhos “de cima para baixo”, o outro, “de baixo para cima”, todos
na intenção de criar sinteticamente (física ou “apenas” virtualmente, via software)
agentes que, em diferentes acepções do termo, possam ser considerados
“inteligentes”.
Aquilo que John Haugeland (2000) chama de Good Old Fashion Artificial
Intelligence”, ou GOFAI, é um paradigma de IA baseado numa abordagem “de
cima para baixo”, que busca gerar comportamentos artificiais inteligentes a partir
raciocínio simbólico explícito. Do outro lado, o que o autor chama de “New
Fangled AI”, ou NFAI , um guarda-chuva de caminhos que denota apenas tudo o
que não é GOFAI, adota uma abordagem “de baixo para cima”, preocupada em
gerar comportamentos mais simples, acreditando que, passo a passo, a partir
destes, será possível evoluir processos mais complexos, análogos, mas talvez não
iguais à inteligência animal, humana ou não.
Tal dualismo nem tem mais tanto cabimento no mundo contemporâneo, uma vez
que, em pleno final da primeira década do século XXI, a euforia em torno de
ambos “paradigmas” em grande medida se esgotou, cada um tendo hoje claras
contribuições em diferentes áreas, sobretudo para aquilo que interessa ao game. O
que é importante, aqui, é entender que a GOFAI – também chamada de IA
clássica, entre outras terminologias – traz embutida em si a crença na mente como
apenas “a computer with certain special characteristics” (Haugeland, 2000: 16),
sendo, por isso, portável e completamente independente do corpo e do ambiente.
Tal abordagem crê que o caminho para o desenvolvimento de sistemas inteligentes
jaz na especificidade do raciocínio lógico, de fundo basicamente simbólico, que
marcaria única e exclusivamente a inteligência humana. Sua utopia em grande
parte deixada de lado queria fazer crer que a obtenção de um duplo da
inteligência humana seria possível através da criação e combinação de
procedimentos para a resolução de problemas ligados a capacidades humanas
complexas – como raciocínio lógico, linguagem, formalização – e não havia ainda
3 • Agentes Verossímeis
88
sido realizado apenas por uma limitação de processamento/memória dos
computadores, coisa que seria resolvida mais cedo ou mais tarde.
Michael Mateas, ex-integrante do extinto grupo Oz de pesquisa sobre believable
agents” para dramas interativos, do qual falaremos adiante, resume que agenda da
GOFAI
is concerned with developing the theories and engineering practices
necessary to build minds that exhibit intelligence. Such systems are
commonly built by expressing domain knowledge in symbolic
structures and specifying rules and processes that manipulate these
structures. Intelligence is considered to be a property that inheres in the
symbolic manipulation happening “inside” the mind. This intelligence
is exhibited by demonstrating the program’s ability to solve problems
(Mateas, 2001).
Em suma, o que estava implícito no viés mais radical da GOFAI que inaugurou
o terreno da IA e reinou quase absoluta entre meados da década de 50 até ao
menos meados de 80 (Haugeland, 2000: 16) era que sistemas inteligentes “can
be built to solve problems by reasoning or thinking them [explicitly]” e que,
sobretudo, “this is how people solve problems” (Haugeland, 2000: 19-20), ou seja,
que essa seria a própria marca da inteligência.
Subjacente a esse pressuposto estava a idéia de “representação do conhecimento”,
a partir de abstrações de alto nível, uma seleção de “aspectos pertinentes” do
mundo que precisava ser prévia e explicitamente representada nos sistemas
GOFAI para que eles pudessem funcionar e, em conseqüência disto, agir de forma
“inteligente”:
The idea was that by representing only the pertinent facts explicitly, the
semantics of a world (which on the surface was quite complex) were
reduced to a simple closed system once again. Abstraction to only the
relevant details thus simplified problems (Brooks, 2000: 398).
Assim, um sistema de IA clássica precisa que alguém no caso, seus criadores
lhe “esmiúce” o mundo detalhadamente, o que é possível através de um filtro
muito restrito, que acaba por separar o que é “ruído” daquilo que diz respeito ao
problema específico a ser resolvido. O problema central que isso ocasiona,
3 • Agentes Verossímeis
89
segundo Brooks, é que a abstração “reduces the input data so that the program
experiences the same (…) Merkwelt (…) as humans” (2000: 400). Isto, para o
autor, acaba se tornando a imposição inapropriada, de cima para baixo, de um
Merkwelt que é fruto de anos de evolução de uma espécie específica no caso, a
humana e que pode não ter absolutamente nada a ver com o sistema
desenvolvido, jogando contra e não a favor de sua inteligência. Em suma, o
apenas “reasoning strategies developed for the human-assumed Merkwelt may not
be valid when real sensors and perceptual processing are used”, mas também,
“even with human sensors and perception, (...) it may be the case that our
introspective descriptions of our internal representations are completely
misleading and quite different from what we really use” (Brooks, 2000: 400)
23
.
Assim, na lacuna dessas questões importantes deixadas de fora pela GOFAI a
importância da corporalidade (corpo do agente e sua relação com o ambiente) e de
procedimentos infinitamente mais simples (como percepção e locomoção) na
geração da inteligência – cresceram outras abordagens de IA, que Haugeland
chama conjuntamente de New Fangled AI/NFAI, (Loyall 1997) e (Mateas, 2001),
de “interacionista” e (Brooks, 2000), cuja abordagem costuma ser chamada por
outros de “behavioral AI”, sequer a chama de IA, enfatizando a negação da idéia
de construção de um sistema “inteligente”, no sentido mais “alto nível” do termo.
Estas têm se dividido em áreas diversas, que acabam por manter em comum
apenas a perspectiva bottom up”, adotando estratégias e metodologias diferentes
para conseguir gerar comportamentos que possam ser chamados de inteligentes
mesmo que apenas se comparados à inteligência de uma barata, daquelas bem
pequenininhas. Tais abordagens enfocam, sobretudo, a potência das redes
conexionistas e a importância da corporalidade na inteligência de qualquer ente
minimamente digno do nome:
23
Brooks fala de Merkwelt, possivelmente para não implicar a crença na possibilidade de desenvolvimento de
Umwelt por seres artificiais, o que implicaria uma subjetividade. Mesmo assim, é importante notar que o
Merkwelt faz parte do Umwelt de uma espécie, e segundo (Kull, 2008), em alguns dos trabalhos mais recentes
do próprio Uexkull, o termo Merkwelt foi substituído por Umwelt, denotando a fronteira tênue entre os dois. O
alinhamento de Brooks com as idéias de Uexkull, iliás, deixa entrever o paradoxo que tal imposição de um
Merkwelt criaria: como para Brooks, antes de buscar uma inteligência de alto nível o que pressupõe algum
nível mental é preciso a criação de um ser capaz de habitar autonomamente um ambiente, é preciso que esse
ser, artificial ou não, crie, am de seu próprio Merkwelt, seu Umwelt. Se os criadores humanos lhe impuserem o
seu Merkwelt de forma tão restrita, como esperar que tais criaturas venham a ser de fato inteligentes?
3 • Agentes Verossímeis
90
Where GOFAI concerns itself with mental functions such as planning
and problem solving, interactionist AI is concerned with embodied
agents interacting in a world (physical or virtual). Rather than solving
complex symbolic problems, such agents are engaged in a moment-by-
moment dynamic pattern of interaction with the world. Often there is no
explicit representation of the “knowledge” needed to engage in these
interactions. Rather, the interactions emerge from the dynamic
regularities of the world and the reactive processes of the agent. As
opposed to GOFAI, which focuses on internal mental processing,
interactionist AI assumes that having a body which is embedded in a
concrete situation is essential for intelligence. It is the body that defines
many of the interaction patterns between the agent and its environment.
(Mateas, 2001)
O pressuposto geral de todas essas tendências que se opõem à GOFAI é a negação
de representações de mundo a priori colocadas pelos designers na “inteligência
de suas criaturas. Sob essa suposição, jaz, em alguns casos muito mais
radicalmente do que noutros (Brooks, 2000), a crença de que qualquer
representação de mundo, se é que existe em qualquer medida, em qualquer ser, só
poderá emergir a partir de seu estar-no-mundo mais primitivo e que o caminho
para a criação de um sistema artificial inteligente tem que primeiro fazê-lo
autônomo num ambiente, para apenas depois poder sonhar com a emergência de
procedimentos mais complexos. Afim a esse mesmo terreno está o citado
universo da Alife, que traz em seu nome a marca clara de sua preocupação com a
vida, algo que precederia a inteligência. Tais abordagens estão claramente
alinhadas à idéia de Umwelt, o que, por motivos óbvios, nos atrai de antemão, mas
que, como veremos, traz uma outra série de problemas ao design de agentes.
3.2.2
Comportamento Artificial
O conceito de “agente inteligente” está obviamente intimamente ligado à esfera da
IA, seja top-dowou bottom-up”. Eles se separam dos demais software a partir
de características que exploraremos abaixo. Numa área parcialmente sobreposta a
essa, estão os “personagens autônomos” dos games. Parcialmente sobreposta,
apenas, porque grande parte da agenda da IA, entre as abordagens mais clássicas e
as mais novas, não encontra de fato ressonância nos games. Embora haja exceções
esferas onde a IA de ponta e de games se sobrepõem a maioria absoluta dos
3 • Agentes Verossímeis
91
games utiliza procedimentos de IA conhecidos, que não trazem mais desafios
àquilo que está no coração da IA “científica”.
Com o intuito de diferenciar de uma vez por todas o que chama de agentes
autônomos” de outros software não-agentes, Franklin e Graesser (1996) propõe a
seguinte definição:
an autonomous agent is a system situated within and a part of an
environment that senses that environment and acts on it, over time, in
pursuit of its own agenda and so as to affect what it senses in the future.
As questões-chave que surgem daí são: a situação em um ambiente, o qual o
agente deve perceber e sobre o qual deve agir ao longo do tempo, em prol de seus
próprios objetivos, de modo a afetar o que pode perceber no futuro. Emmeche
expande a definição:
Autonomous systems (…) not only [are] computational input-output
devices, but move around as cybernetic systems by their own motor
modules guided by sensors, making decisions, having the capacity of
acting more or less intelligently given only partial information, learning
by their mistakes, adapting to heterogeneous and changing
environments, and having a sort of life of their own (Emmeche, 2001).
Cada uma dessas questões-chave pode fazer a diferença entre o que é ou não é um
agente. Tomemos, por exemplo, a questão do ambiente: “autonomous agents are
situated in some environment. Change the environment and we may no longer
have an agent” (Franklin e Graesser, 1996). Um robô feito para andar sobre rodas
pode ter muita dificuldade para agir numa escadaria. Um robô feito para perceber
um ambiente através de sensores de luz perderia qualquer agência num ambiente
escuro. Um humano que não sabe nadar pode perder o caráter de agente num
mundo aquático. Implicitamente, jaz a idéia de que a possibilidade de inteligência
depende da adequação ao ambiente (esta, por sua vez, em algum nível, fruto da
evolução).
A exigência de percepção do ambiente, fundamento absoluto para a possibilidade
de ação informada por objetivos próprios, é o que tem dado às perspectivas
bottom up vantagem em relação à IA clássica na construção de agentes
3 • Agentes Verossímeis
92
antropomórficos ou com inteligência análoga à de animais. Enquanto esta última
consegue sucesso na criação de sistemas como o Deep Blue, muito eficientes na
execução de uma tarefa específica e com alto vel de abstração, fracassa
retumbantemente na criação de agentes físicos ou de software que
conseguissem a inteligência perceptiva e locomotiva sequer equivalente à de uma
barata (que não joga xadrez, mas costuma ser extremamente hábil em se
locomover em qualquer ambiente, usando-o em prol de sua sobrevivência). No
caso de agentes autônomos de software, o que se pede é um fenômeno análogo,
embora seja importante notar que o melhor e mais “interacionista” ambiente de
software terá que ser informado ao agente via algum nível de abstração.
O requisito de autonomia está, portanto, estreitamente ligado à possibilidade de
exibir uma inteligência na locomoção no ambiente em questão, à capacidade não
apenas de reação, mas de pró-ação. O que se chama de autonomia nesse contexto,
contudo, precisa ser também definido:
The term autonomous derives from the Greek word auto-, or autos
meaning self, the same; and nomos meaning law; i.e., self-governing,
self-steering, spontaneous; opposed to heteronomous meaning
externally controlled. In the biological theory of Maturana and Varela
(…), the term was given a specific meaning, viz. the condition of
subordinating all changes to the maintenance of organization (…).
However, within [Autonomous Systems Research], what count as an
“autonomous agent” would often be classified as being a non-
autonomous (heteropoietic) system by the criteria given by their theory
of autopoiesis (Emmeche, 2001).
Emmeche, um dos semioticistas contemporâneos a (se) colocar a possibilidade um
robô vir a desenvolver um Umwelt, nos estabelece a fronteira entre a possível
ilusão de uma inteligência análoga à de um animalzinho e a real inteligência e
deixa claro: mesmo no universo da IA científica em contraposição àquela
voltada para resultados práticos mais mundanos, como os games, inclusive boa
parte do que chamamos de “agentes” não se qualificaria à propriedade de
“autopoiesisno sentido mais estrito do termo. Mesmo o mais sofisticado robô de
Brooks um dos pesquisadores cuja equipe tem obtido maior sucesso na criação
de agentes físicos extremamente eficientes em ambientes reais ainda precisa de
uma “mãozinha” humana para existir... A autonomia dos agentes de software,
3 • Agentes Verossímeis
93
portanto, é uma medida relativa aos objetivos do contexto que habitam. No caso
dos games, como veremos, essa autonomia está ligada à habilidade
perceptiva/locomotiva, mas também e sobretudo, à exibição de emoções, capazes
de abrir o ciclo de empatia no trato com o interator/avatar/personagem.
***
No meio desse tiroteio, os game designers não estão procurando provar nenhuma
teoria acerca da cognição, não estão buscando soluções ou propostas para a
inteligência humana ou de insetos e nem precisam se alinhar a uma ou outra
abordagem de IA pelo menos não por enquanto. O que eles buscam são
procedimentos eficientes o que, mesmo fora da indústria (e, certamente, dentro
dela), normalmente quer dizer “baratos e rápidos” para gerar em elementos do
jogo, comportamentos sem os quais boa parte do potencial imersivo dos games
poderia deixar de existir. Assim, enquanto um sem-número de questões circula
pelo terreno da Inteligência Artificial, sua aplicação nos games tem objetivos
claros e às vezes muito pouco glamorosos, como a simulação do comportamento
de toda uma gama de objetos claramente “não–inteligentes”. Por considerá-lo
“mais abrangente e menos arrogante que inteligência artificial”, o game designer
Marcos Cuzziol prefere se utilizar do termo “comportamento artificial”,
entendendo-o como a “simulação de comportamentos e tomada de decisões por
personagens e objetos virtuais.” Ele acrescenta:
É importante notar que algoritmos de comportamento artificial são
utilizados em todas as ocasiões de interação em um game, seja no
movimento da câmera de acordo com os comandos do interator, na
simples abertura de uma porta ou na reação tática de personagens ditos
inteligentes a programação de comportamentos artificiais é, por essa
razão, necessária à interatividade nos games (Cuzziol, 2007: 42).
Assim, embora as utopias da GOFAI não tenham chegado nem perto de se
confirmar Deep Blue venceu Kasparov, mas o HAL `9000 ainda não existem
muitos de seus procedimentos continuam sendo bastante utilizados para fazer
funcionar boa parte dos comportamentos artificiais de programas e agentes em
diversas áreas da computação. Por outro lado, feitos do interacionismo e,
3 • Agentes Verossímeis
94
sobretudo, da behavioral AI qual se alinha Brooks) são favas contadas tanto no
mundo dos agentes inteligentes, como no game design, mesmo que a euforia de
dez anos atrás tenha esvaecido e não sem razão.
No mundo dos games, portanto, ao contrário das pesquisas de ponta na construção
de agentes inteligentes, é comum a combinação de abordagens computacionais
“opostas”, que misturam algoritmos de AI clássica a estratégias pontuais das
abordagens ligadas ao conexionismo e à behavioral AI. É nesse universo que se
inserem alguns dos grupos de pesquisa que, entre a década de 90 e o começo do
século XXI, desenvolveram alguns procedimentos importantes para a criação de
agentes para o contexto dos games. Alguns afinam-se mais às propostas “bottom-
up”, outros são claramente mais híbridos e, aqui, vamos analisar alguns
pressupostos implementados pelos grupos mais importantes desse contexto, na
tentativa de entender o que suas pesquisas trouxeram para o cenário atual dos
personagens nos games.
3.2.2.1
Grupo Oz Carnegie Mellon University
Uma das maiores referências acadêmicas na pesquisa com narrativas interativas,
especificamente na construção de personagens autônomos, foi o grupo de pesquisa
Oz, liderado pelo professor Joseph Bates, entre 1992 e 2002, na Carnegie Mellon
University, Pennsylvania, EUA. Um de seus então integrantes explica a missão do
grupo:
The goal of the Oz project is to enable people to create and participate
in interactive stories. Toward this goal we study interactive versions of
the elements that we believe make traditional non-interactive stories
powerful: characters, dramatic structure (plot), and presentation (Loyall,
1997: 6).
O objetivo do grupo, portanto, era não apenas desenvolver narrativas interativas,
mas criar ferramentas que pudessem depois também ser utilizadas por outros
artistas para criá-las. Para esse efeito, a definição de narrativa foi até transformada
em simbologia matemática: Drama = character + story + presentation”, onde
3 • Agentes Verossímeis
95
cada elemento tem grande importância e não deve ser deixado de lado. É do grupo
Oz uma das propostas de um drama managercapaz de dar conta do elemento
story dessa equação acima. Este não cabe em nossa análise aqui, a não ser
quando dialogar com aquilo que de fato queremos investigar, a saber, a teoria e a
prática na construção de believable agents”, conceito proposto pelo grupo e que
informou sua prática durante seus mais ou menos dez anos de existência:
Believable agents are personality-rich autonomous agents with the
powerful properties of characters from the arts. They are an outgrowth
of both autonomous agent research (…) in computer science and the
notion of believable characters from traditional stories. In the traditional
story arts—film, literature, drama, animation, etc. —a character is
considered believable if it allows the audience to suspend their disbelief
and if it provides a convincing portrayal of the personality they expect
or come to expect. Believable agents are autonomous agent versions of
such characters. This goal is different from the bulk of autonomous
agent work in that the focus is on building agents that have distinct,
specific personalities (Loyall, 1997: 1)
Propomos chamar os believable agentsdo Oz de “agentes verossímeis”, onde o
conceito de “verossimilhança” está mais para uma idéia geral que, acreditamos,
deve muito àquilo que o cinema e um determinado tipo de cinema, descendente
direto das raízes melodramáticas inscreve como sendo um espaço de estados
aceitáveis para comportamentos antropomórficos, mas altamente circunscrito a
referências culturais e históricas. Para o Oz, portanto, com uma certa carga de
ingenuidade, a tal believability” é apenas “this good thing that we want characters
to have” (Mateas, 1997), algo que está ligado não a conceitos historicamente
inscritos e muito mais complexos, como o de “realismo”, mas, sim, à “suspensão
da descrença”:
A believable character is one who seems lifelike, whose actions make
sense, who allows you to suspend disbelief. This is not the same thing
as realism. For example, Bugs Bunny is a believable character, but not a
realistic character (Mateas, 1997).
Informando tal idéia geral, está o trabalho prático de roteiristas e animadores,
sobretudo alguns ligados à animação “comercial”, como a da Walt Disney e da
Pixar. É claro que essa idéia de verossimilhança não pode ser tomada como fato
3 • Agentes Verossímeis
96
dado, como acabam fazendo os pesquisadores do Oz, mas, antes de confrontá-la
no próximo capítulo, devemos aqui analisar o caminho do grupo.
Para descrever esse conceito de verossimilhança, traçado essencialmente a partir
das diretrizes práticas propostas por animadores e roteiristas, o Oz reuniu as
seguintes características: “personalidade”, “emoção”, “auto-motivação”,
“mudança”, “relações sociais” e “ilusão de vida” (Mateas, 1997), (Loyall, 1997),
como mostra a tabela 1:
Personality
Rich personality should infuse everything that a character
does; from the way they talk and move to the way they
think. What makes characters interesting are their unique
ways doing things. Personality is about the unique and
specific, not the general.
Emotion
Characters exhibit their own emotions and respond to the
emotions of others in personality specific ways.
Self-motivation
Characters don't just react to the activity of others. They
have their own internal drives and desires, which they
pursue whether or not others are interacting with them.
Change
Characters grow and change with time, in a manner
consistent with their personality.
Social
relationships
Characters engage in detailed interactions with others in a
manner consistent with their relationship. In turn, these
relationships change as a result of the interaction.
Illusion of life
This is a collection of requirements such as: pursuing
multiple, simultaneous goals and actions, having broad
capabilities (e.g. movement, perception, memory,
language), and reacting quickly to stimuli in the
environment. Traditional character artists do not mention
these requirements explicitly, because they often get them
for free (from a human actor, or as a deep assumption in
animation). But builders of interactive characters must
concern themselves explicitly with building agent
architectures that support these requirements.
Tabela 1: exigências do Oz para a obtenção de “believability(Mateas, 1997)
Essa lista de requerimentos, antes de ser uma descrição conceitual do que é ou
deve ser um “agente verossímil”, é uma espécie de checklist que ajuda o designer
a abstrair aquilo que se costuma tomar como fato dado em personagens nas “artes”
(para usar a terminologia do próprio Oz), sobretudo no cinema (uma vez que,
neste, por serem interpretados por atores humanos, metade do que está descrito
“vem no pacote”). Isto talvez explique o pouco rigor conceitual – mas, afinal, para
3 • Agentes Verossímeis
97
que estamos aqui se não para propor conceitos mais sofisticados a partir da
importante vivência prática de outros pesquisadores?
Assim, na lista do Oz, o conceito de “personalidade”, como algo que se deixa
entrever a partir das ações, é a própria definição daquilo que em Aristóteles define
o personagem trágico (alguém que age de uma dada maneira, deixando entrever
motivações) e implica o conceito de “emoção” (mesmo que pela total ausência
delas quantos excelentes sociopatas o cinema não nos trouxe?). A exigência
de “auto-motivação” é uma maneira de abordar o conceito de intencionalidade.
Este, ao lado de “mudança” e “relações sociais”, faz muito mais sentido quando
pensamos não apenas em personagens como os do cinema ou literatura, cuja
própria definição é o objetivo dramático, mas em agentes de software, partindo da
distinção entre esses e meros objetos do mundo do jogo que não são dotados de
auto-motivação, não mudam e não estabelecem relações sociais. Finalmente, no
conceito de “ilusão de vida” é onde fica clara toda a abstração necessária à
construção daquilo que, num humano, mesmo que apenas descrito em palavras,
vem “de graça”
24
. São características que dão a qualquer agente ainda que apenas
o mais vago rastro daquilo que a IA chama de “inteligência”, em sua versão mais
simples. No caso da agenda do Oz e seus agentes verossímeis, antes de buscarem
qualquer competência, do ponto de vista da IA ortodoxa, devem funcionar como
índices de uma suposta vida, ainda que reconhecidamente ilusória.
Isto nos traz às diferenças entre a agenda do Oz e a da IA. A primeira é a busca do
Oz para criar uma “personalidade”, em detrimento de “competência”. Outra forma
de descrever esse objetivo seria dizer que é um outro tipo de competência, coisa
que o grupo faz ao apontar o termômetro do sucesso de um agente verossímil: o
público e não uma medida objetiva de resolução de problemas e, menos ainda, o
quanto suas soluções servem para informar alguma teoria acerca da cognição
humana. Ao contrário disso, agentes verossímeis buscam soluções específicas,
capazes de nos dar a inferir uma personalidade única, enquanto que a IA, como
24
Uma idéia é suscitada por esse pressuposto: o mais canastrão dos atores ainda é mais “vivo” do que o
melhor dos personagens autônomos de hoje; contudo, alguns personagens de animações Mickey,
Pernalonga, Pikachu – são incrivelmente mais cativantes do que metade do elenco de algumas novelas globais,
o que nos faz crer que, quem sabe, daqui a pouco tenhamos seres artificiais capazes de empatia maior do que
alguns humanos captados em filme ou vídeo!
3 • Agentes Verossímeis
98
toda ciência, busca universalizações. Mesmo a bahavioural AI, ao enfatizar a
importância da relação entre organismo e ambiente, busca princípios gerais a partir
dos quais qualquer agente pode mais ou menos ser desenvolvido. Contudo, parece-
nos que, num universo onde a IA consiga estabelecer procedimentos-padrão para o
desenvolvimento de certas classes de comportamento, esses padrões deverão ser
bem aproveitados ainda que simplificados, para a construção de agentes
verossímeis afinal, mesmo quando se fala de personagens da ficção linear, como
cinema e romances, sempre um terreno comum que precisa se repetir (aliás, jaz
aí uma das definições da linguagem, como informação: “a diferença que faz
diferença”, o que, portanto, pressupõe um terreno de repetição de onde algo pode
se diferenciar).
Woggles, Oz Group, 1992
Finalmente, as premissas do Oz esclarecem:
believable agents are not a problem to which the wholesale import of
some technology (such as behavioral AI) is the solution. Any
technology used for building believable agents will be transformed in
the process of making it serve the artistic creation of characters. Thus,
believable agents research is not a subfield of AI. Rather it is a stance or
viewpoint from which all of AI is reconstructed. Any technology,
whether it comes from classical or behavioral AI, or from outside AI
entirely, is fair game for exploration within the Oz context as long as it
opens up new expressive and artistic spaces (Mateas, 1997).
3 • Agentes Verossímeis
99
A partir desse recorte, Michael Mateas, ex-integrante do Oz, segue adiante em sua
pesquisa sobre narrativas interativas e personagens inteligente, evoluindo as
premissas do Oz para o conceito de “expressive AI”:
In expressive AI the focus turns to authorship. The AI system becomes
an artifact built by authors in order to communicate a constellation of
ideas and experiences to an audience. If GOFAI builds brains in vats,
and interactionist AI builds embodied insects, then expressive AI builds
cultural artifacts. The concern is not with building something that is
intelligent independent of any observer and their cultural context.
Rather, the concern is with building an artifact that seems intelligent,
that participates in a specific cultural context in a manner that is
perceived as intelligent. Expressive AI views a system as a
performance. Within a performative space the system expresses the
author’s ideas. The system is both a messenger for and a message from
the author (Mateas, 2001).
A principal qualidade em questão aqui é o reconhecimento não apenas da
liberdade conceitual do design de agentes verossímeis em relação a paradigmas de
IA, mas, acima de tudo, da qualidade semiótica dessa construção, por mais que se
possa basear em ciência pura em alguns momentos. Usando a metáfora das
affordances para qualificar intrinsecamente os sistemas de linguagem/desing,
Mateas complementa:
Different practices (e.g. GOFAI or interactionist AI) provide different
affordances for narrating system behavior. However, in typical AI
research practice, these affordances are not consciously manipulated.
Rather, they serve as part of the unconscious background of the
engineering practice; they co-evolve with the technical practice as a
silent but necessary partner in the research (Mateas, 2001).
Por essa abordagem explicitamente semiótica, a linguagem implementada pelo
grupo Oz para a construção de agentes verossímeis a Hap está a um meio
termo entre a abordagem top-down das estratégias de IA clássicas e as abordagens
bottom-up das perspectivas emergentistas como a Alife. Enquanto a IA clássica
tende a codificar em linguagem de alto nível cada comportamento que deseja
desenvolver e os paradigmas interacionistas fazem apenas o mínimo e esperam
que daí possam evoluir coisas mais complexas, o Oz busca combinar o melhor das
3 • Agentes Verossímeis
100
duas para conseguir complexidade e controle. O caráter emergentistas da Alife,
contudo, vai de encontro à premissa do “controle artístico” estipulado pelo Oz:
A major methodological assumption in Alife work is that you want
high-level features (such as introvertedness) to emerge from simple,
low-level mechanisms (Mateas, 1997).
Quando se está pensando, como prega(va) o Oz, em se construir personagens afins
em complexidade àqueles com os quais estamos acostumados, como, por exemplo,
James Bond (exemplo por eles citado), a abordagem emergentista se torna
impraticável:
So how would you go about building James Bond as an Alifer? First,
you would demure, saying that Alife technology is not at the stage to
emerge such high-level behavior. So you might build something else,
like a dog. To inform this work, you might look at models developed by
biologists, such as ethological models of animal behavior. Then you
would build a general architecture capturing an ethological theory of
action selection (how animals decide what action to take). Finally, you
would instill dog-specific behavior into your general architecture
(Mateas, 1997).
Por isso, a Hap fica entre uma coisa e outra: de um lado, acredita na descrição top-
down de comportamentos de alto-nível que possam de alguma maneira dotar o
personagem de personalidade (ou seja: fazer com que seja um personagem, de
fato, e não apenas um agente genérico), mas também pode se valer de
comportamentos de baixo-nível a partir de rotinas emergentistas (sobretudo para
aquilo que a behavioural AI faz bem, como movimentação e percepção). A chave
para a arquitetura Hap está em eleger objetivos de alto-nível e quebrá-los em
comportamentos mais simples, os quais, quando se combinam, dariam ao
personagem a tão buscada “ilusão de vida”. Assim,
At every level of description, James Bondness can be infused into the
character. From how Bond thinks, to how Bond walks, the artist has the
control to create the character consistent with their vision (Mateas
1997).
The notion of emergence is that you can’t tell what kind of high-level
behavior will emerge from low-level mechanisms without actually
running the system. But Oz wants to build systems that give artists the
control to express their artistic visions. An emergent system removes
3 • Agentes Verossímeis
101
this control from the artist; the best they can do is make (principled)
guesses about mechanism and see what kind of behavior emerges
(Mateas, 1997).
A marca do Oz, portanto, está na tentativa de dar “verossimilhança” a seus
personagens através do controle mais estrito e explícito de seus comportamentos.
A piada interna com a abordagem bottom-up parece se referir à filosofia do
Synthetic Characters Group, do MIT, e deixa clara a crença do Oz no autor-todo-
poderoso. Isso, que Mateas escreve desde 1997 (há “longínquos” mais de dez
anos!) e mantém, em certa medida, até hoje (Sengers et al.), contudo, relembra-nos
de forma incômoda as críticas dos ludologistas acerca de uma certa colonização do
game por outras artes. É inevitável a pergunta: por que é tão almejável esse
controle absoluto do “autor”? Por acaso não é justamente o imponderável, o
inesperado que buscam até mesmo certos criadores das artes lineares? Por que não
olhar para a emergência como um processo criativo e não um empecilho a ser
contornado? É claro que devem existir possibilidades de negociação, mas não há
como deixar de lado a dúvida sobre o que estamos perdendo ao ignorar a
emergência como ruído criativo...
Mateas ensaia essa compreensão e esmiúça sua “expressive AI”, pensando pelo
ponto de vista artístico. Ele reconhece que, muitas vezes, justamente as novas
características de um sistema são a chave para a construção estética e não devem
ser ignoradas pelo designer/artista:
The AI-based artist should avoid architectural elaborations, which are
not visible to the audience. However, this admonition should not be
read too narrowly. The architecture itself may be part of the concept of
the piece, part of the larger interpretive context of people theorizing
about the piece (Mateas, 2001)
Contudo, sua prática por vezes contraria essa compreensão, fazendo parecer que
tal atitude mais positiva vale apenas para o terreno “artístico” onde, supõe-se, as
“intençõesdo autor são inquestionáveis e menos para o terreno narrativo, com
suas obrigações comunicacionais mais claras, dentro ou fora da indústria:
3 • Agentes Verossímeis
102
The authorial affordances of an AI architecture are the "hooks" that an
architecture provides for an artist to inscribe their authorial intention on
the machine. Different AI architectures provide different relationships
between authorial control and the combinatorial possibilities offered by
computation. Expressive AI engages in a sustained inquiry into these
authorial affordances, crafting specific architectures that afford
appropriate authorial control for specific art works (Mateas, 2001).
Faça de, trabalho interativo de Michael Mateas e Andrew Stern, 2005
O Oz acreditava na utilização dos melhores algoritmos de toda a tradição da IA
para a criação de personagens análogos aos do cinema e, se tomavam como
referência os personagens de animação, era tanto por sua natureza caricatural,
quanto pelo fato de esses terem que ser criados “sinteticamente”, por atos de
abstração que, na prática (ao serem aceitos ou não como personagens por seu
público), responderiam à pergunta: qual o limite da verossimilhança num
personagem? Para tentar olhar para o mesmo desafio por outro lado, analisemos as
premissas práticas e filosóficas de outro grupo de pesquisa voltado à criação de
“personagens autônomos”.
3.2.2.2
Synthetic Characters Group MIT
Quando Mateas ironiza a construção de um cachorro, em vez do personagem
James Bond, ele parece estar ironizando os trabalhos do grupo concorrente na
pesquisa acadêmica para a construção de personagens para games e aplicativos
3 • Agentes Verossímeis
103
interativos narrativos em geral, o Synthetic Characters Group, do Media Lab, no
Massachusetts Institute of Technology, o MIT. O grupo, que atuou entre 1998 e
2004, deixava clara suas intenções já na chamada da página principal da web:
“How to build characters that have the everyday common sense, the ability to
learn, and the sense of empathy that one finds in animals such as dogs” (Synthetic
Characters Group, 2004).
Algumas questões-chave para o grupo são a construção de “criaturas” que
“toquem profundamente” aqueles com quem interagem e que essas criaturas nos
façam “questionar a natureza e o significado da inteligência e nossa relação com
os animais”. Como se vê, apesar de também deixarem claras suas intenções na
construção de agentes dramáticos, não escondem uma pretensão, ainda que vaga,
de continuar, sim, no terreno filosófico da Inteligência Artificial. Embora de forma
sutilmente diferente do Oz, o SCG também assumia seu não-alinhamento
primordial com abordagens top-down ou bottowm-up”, mas, sim, algo
intermediário. Ainda assim, ficava clara uma certa perspectiva afim da
behavioural AI, esta, por sua vez, próxima de perspectivas evolucionistas e
etológicas. O approach etológico é a marca do Synthetic Characters Group:
Rather than taking a top-down or bottom-up approach, we start in the
middle, informed by nature, and ask, “what does the observed behavior
of animals such as dogs seem to imply about the underlying
representations and processes that allow them to behave and learn in a
commonsensical manner?” Our belief is the best way to gain insight
into this question is to build synthetic characters that solve similar
problems, and by doing so, the key insights will emerge. Our
expectation is that through this work we will uncover “catalytic”
representations and processes whose presence bootstraps more powerful
ones. By doing so, the work will not only inform top-down and bottom-
up approaches, but will also inform our understanding of the natural
phenomena (Synthetic Characters Group).
Ou seja: embora aleguem adotar uma perspectiva nem top-down, nem bottom-up,
veremos que a questão da emergência, mesmo que possivelmente como
“epifenômeno”
25
, parece ser mais importante para o SCG do que para o Oz. E a
25
Os que não acreditam na emergência, alegam que “properties associated by emergent structures exist only due to the
properties of the underlying constituents and, in having no unique causal power other than those derived from those
constituents, comprise only epiphenomena – they are not ‘real’.” (Goldspink e Kay, 2008: 22). Mais adiante,
analisaremos com mais vagar as implicações no terreno da emergência dos agentes autônomos.
3 • Agentes Verossímeis
104
despeito de uma agenda “filosófica” um pouco diferente, a descrição dos life-like
interactive characters” do SCG é bastante parecida com a dos “believable agents”,
que enfatizando a questão da empatia/simpatia, o que, mais uma vez, coloca-os
novamente no terreno da emergência:
Life-like interactive characters are interactive characters which through
their behavior create the illusion that they are, in fact, “alive”. Ideally,
the illusion is so complete that a user would feel badly “turning off the
computer” or doing something that would “hurt” the creature
(Blumberg, 1996: 21).
Talvez para justificar o approach etológico, o SCG abre um nicho interessante,
fazendo compreender que os life-like interactive characterspodem ter níveis de
sofisticação diferente e funções narrativas diversas:
the desired level of behavioral complexity may span a wide spectrum
from autonomous members of a crowd to a major character, which you
want to respond autonomously to events, and perhaps influence the
outcome of the game. Indeed, non-player characters may be one of the
vehicles that the game creator uses to control the flow of the game. The
richer the desired behavior and interaction the greater the need for the
kind of approach described in this thesis (Blumberg, 1996: 21).
Essa variedade de níveis de sofisticação do comportamento dos agentes será de
fato muito importante na criação de IA para games, onde as gradações de
qualidades daquilo que chamamos de personagens, de forma análoga ao espectro
que vai de protagonista, antagonista a personagens secundários etc, também são
importantes para a geração da “fauna” dramática que habitará o mundo virtual e
com a qual o interator conviverá, em níveis diferentes de, digamos, “intimidade”.
Dobie T. Coyote, Synthetic Characters Group, 2004
3 • Agentes Verossímeis
105
Embora Blumberg, criador do grupo, inclua games multiplayer em seu universo de
pesquisa, ele mantém a necessidade de colocar os personagens autônomos no
papel de possíveis veículos de controle no fluxo dos acontecimentos do jogo pelo
designer. Esta proposta, apesar de também apontar para a necessidade de controle
criativo, parece-nos bem menos top-down do que o proposto por Mateas e seus
correligionários do Oz. O motivo e/ou justificativa principais para isso talvez
estejam atrelados à missão do SCG, de desenvolver criaturas menos
emocionalmente complexas do que humanos, mas cuja pretensão de realismo é,
segundo eles, maior do que as criaturas caricatas do Oz. Isto traz ao grupo não
apenas a possibilidade de resolver problemas fundamentais antes de se preocupar
com questões mais “alto nível”, como também, um parâmetro para medir o próprio
sucesso, no que diz respeito à verossimilhança do “life-like agent”:
From a behaviorist’s point of view, a focus on a particular species also
provides us with a means for gauging our success. A problem with
cartoon-like creatures is that they can behave however we want them to
– there are no rules, and no way to ask, “how close did we get?” (Burke,
2001: 18)
Refinando seus conceitos para continuar pensando a criação de agentes para
games, Isla e Blumberg propõem a “Character-based AI”:
It is a category that is especially meaningful in games, to distinguish
systems that seek to simulate the behavior of a single agent from
strategic AIs or turn-based game-opponent AIs. These latter categories
might be considered attempts to codify and emulate high-level logical
human thinking. Character-based AI, on the other hand, is an exercise
in creating complete brains. Strategic and logical thinking in this type of
work usually takes a back seat to issues of low-level perception,
reactive behavior and motor control. Since the creatures in these
character-based systems often have graphical bodies (a sort of virtual
embodiment) the work is often rendered with an eye toward recreating
life-like behavior, and emotion-modelling and robustness are often also
central issues (Isla e Blumberg, 2002).
A partir dessa natureza “virtualmente corporificada”, o grupo permite entrever que
seu foco está na construção de personagens capazes de gerar empatia num nível
muito básico, mesmo que, para isso, sejam necessários comprometimentos no
nível da narrativa ou em comportamentos de mais alto nível.
3 • Agentes Verossímeis
106
Apesar de sua importância ou justamente por ela ambos os grupos Oz e SCG
se desfizeram no começo dos anos 2000, tendo seus integrantes se espalhado em
diversas frentes, alguns em instituições de pesquisa, outros apenas no mercado,
outros ainda nas abordagens mais artísticas e alguns, como Mateas, em todas as
frentes ao mesmo tempo. Parte das auto-impostas missões de cada um dos grupos
se revelaram mais utópicas do que o esperado, mas sua contribuição é clara, não só
para a área específica de design de NPCs, mas, sobretudo, na criação de um
imaginário que acredita na importância dos personagens sintéticos para a obtenção
da sofisticação narrativa interativas, games ou não, o que, se nada mais, alçou esse
universo a uma categoria de pesquisa respeitada até pela IA científica.
Entre seus sucessos e fracassos ou, se não exatamente fracassos, insucessos
temporários boa parte do que tais grupos criaram e sofisticaram faz agora parte
do repertório do game design em sua face hegemônica e a algumas dessas
aplicações lançaremos um olhar, na tentativa de compreender onde fica e como
fica a questão da verossimilhança na criação de personagens autônomos nos
games per se (uma vez que Oz e SCG, de modo geral, criavam personagens, não
games inteiros).
3.2.2.3
Favor ignorar o senhor atrás da cortina
As abordagens do Oz e do Synthetic Characters Group têm muitos pontos em
comum e alguns divergentes. Mais ou menos “bottom-up”, em busca de mais ou
menos controle, tentando criar personagens mais humanos ou animais espertos,
ambos buscam construir agentes de software capazes de dar a impressão de
estarem “vivos”, a partir do efeito de verossimilhança. O grupo Oz parece
acreditar na possibilidade de gerar essa verossimilhança a partir de um controle
minucioso dos micro-comportamentos de seus “agentes verossímeis”. o SCG
busca criar personagens mais simples, cuja impressão de vida emerge, de forma
não totalmente planejada, da combinação versátil de comportamentos básicos
3 • Agentes Verossímeis
107
aprendidos ao longo da convivência com o interator e com os quais podemos nos
relacionar com alto grau de empatia. O que o SCG chama de life-likee o Oz de
believable apontam para o mesmo lugar: para a ilusão de vida como um
epifenômeno que está nos olhos de quem vê.
Em relação a tudo isso, o cenário do game design per se tem posicionamentos
múltiplos. Certamente, o que de melhor se almeja na construção de personagens
autônomos nos games os chamados NPCs, no jargão dos jogadores e da
imprensa especializada é que dêem a impressão de estarem “vivos”, mas, em
muitos casos, os melhores designers contentam-se com menos que isso. Boa parte
do que foi produzido em termos de estratégias, linguagens e algoritmos na
academia e nos departamentos de pesquisa da indústria é amplamente utilizado
dentro e fora da indústria, seja para comportamentos artificiais mais “banais”
como os algoritmos de flocking”, que dão comportamento coletivamente
inteligente a grupos, cardumes, bandos, exércitos etc. até comportamentos mais
sofisticados, como a Criatura de Black & White I e II, os personagens de The
Sims, os cachorrinhos propositadamente fofinhos dos Nintendogs. Outros
comportamentos incluem a simulação de active ragdolls”, como o proposto pela
recém-lançada Euphoria!, a partir da tecnologia Dynamic Motion Synthesis, capaz
de animar em tempo real movimentos imprevisíveis dos NPCs, como as
“trombadas” de um jogo de futebol americano, libertando a IA dos personagens da
ditadura da animação por keyframes, mesmo que apenas temporariamente (J.
Champandard, 2008). Para cada game, um conjunto específico de necessidades
a serem supridas no terreno da IA, mas, em todos eles, a criação de personagens
mais eficientes e verossímeis costuma ser compartilhada sejam oponentes,
parceiros, meros transeuntes, súditos, monstros, conselheiros, bandos...
Nesse contexto, do ponto de vista da programação da maioria absoluta dos games
contemporâneos, encontram-se em ação dois paradigmas: um de rigoroso controle
procedimental e outro voltado para a possibilidade de emergência de fenômenos
novos na interação entre objetos. Na prática, como explica Cuzziol,
Pequenos trechos lineares programados explicitamente, ou “estados”,
são alternados por regras de transição. Os estados garantem um mínimo
3 • Agentes Verossímeis
108
de controle ao programador, enquanto que as regras possibilitam
alguma imprevisibilidade inteligente. Quando bem equilibrada, a
superposição de regras e estados pode criar comportamentos artificiais
emergentes complexos (Cuzziol, 2007: 43).
O relato de Cuzziol sobre o desenvolvimento do comportamento artificial dos
personagens de um dos games de sua companhia, o Incidente em Varginha, é
emblemático e nos remete mais à abordagem dos SCG do que à do Oz, pelo menos
num primeiro momento. Nele, apenas a utilização de máquinas de estados finitos,
ainda que parcial e previamente evoluídas através de rotinas de algoritmos
genéticos, proporcionou comportamentos infinitamente mais sofisticados do que
se poderia esperar em princípio. Na máquina de estados finitos,
uma série de estados lineares simples (por exemplo: andar, esperar,
correr, atirar, morrer, etc.) são chaveados por regras de transição.
Assim, por exemplo, um personagem que está no estado “esperar” pode
mudar para os estados “andar” ou “correr” desde que um objetivo
válido apareça em seu campo de visão (Cuzziol, 2007: 45).
Ele nos relembra que máquinas de estados finitos também o usadas para
desenvolver o comportamento de objetos do jogo. Do ponto de vista da
programação orientada a objetos, portanto, dos algoritmos estritamente falando, o
que distingue objetos-coisas e objetos-agentes é, em princípio, apenas a
quantidade de estados que eles podem assumir, a qualidade das transições entre
eles e, por conseqüência, as combinações que tais números absolutos podem gerar,
incluindo efeitos totalmente inesperados. Em outras palavras, nada impede que
um objeto mais sofisticado uma arma importante, um tanque de guerra, até
mesmo um ambiente – seja, do ponto de vista da programação, mais complexo do
que alguns personagens, sobretudo aqueles mais secundários, membros de
multidões ou “figurantes”, como os de GTA:
Na programação de comportamento de personagens, o controle do
programador limita-se às regras de interação entre objetos, sejam eles
personagens ou outros elementos do game. O único modo de saber ao
certo qual o impacto dessas regras no comportamento macro é rodar o
programa e assistir a seus desdobramento. Macro-comportamentos
exibidos por personagens são emergentes por não serem explicitamente
programados ou previsíveis, mas é importante lembrar que tais
comportamentos estão solidamente codificados nas regras originais,
3 • Agentes Verossímeis
109
ainda que o programador responsável não os possa prever (Cuzziol,
2007: 45).
Portanto, tratam-se de maneiras hábeis e elegantes de proporcionar espaço para a
emergência de fenômenos comportamentais, na ação dos agentes em relação a
outros agentes, objetos, ambiente e jogador, fenômenos esses que, aos olhos de
quem e, a princípio, nada mais, aparentam ser, se não propriamente
inteligentes, significativos... intencionais. Ou seja: como atos, tornam-se índices
de crenças, desejos, intenções, como veremos em mais detalhes no próximo
capítulo. Trata-se de inserir mais uma vez a potência criativa do acaso, mesmo
que, nestas circunstâncias, este possa ser um mero epifenômeno. A tabela 2
descreve o exemplo dado por Cuzziol na geração de comportamento dos soldados
de Incidente em Varginha.
Estado 1: sair de linha
visual quando sob ataque
Quando atacado, o personagem deve mover-se até
que não exista mais linha visual entre ele e seu
oponente. Esse estado simula a procura por abrigo e,
ao mesmo tempo, o movimento torna o personagem
um alvo mais difícil, mesmo enquanto ele permanece
em linha visual com o oponente.
Estado 2: procurar linha
visual quando atacado
Quando atacado, o personagem deve mover-se até
que existia linha visual entre ele e seu oponente. Esse
estado simula a busca por posições de ataque viáveis,
evitando, por exemplo, que o personagem procure
inutilmente atingir seu oponente atirando contra uma
parede ou coluna.
Tabela 2: Exemplos de estados para os soldados em Incidente em Varginha (Cuzziol,
2007: 45)
Cada um desses estados é uma programação explícita e, até certo ponto, fechada
(permance a mesma ao longo do tempo), assim, como, por exemplo, cada pequena
regra do jogo de xadrez. Em combinação, contudo, ambos os casos podem gerar
comportamentos diversos, que não foram de forma alguma explicitamente
programados e que, não raro, surpreendem o próprio programador (no caso do
xadrez, as combinações são de tal forma imprevisíveis, que o jogo continua dando
ao mundo gênios e o resultado de suas jogadas sequer pode ser previsto
linearmente por programas infinitamente mais potentes que o cérebro humano, em
termos de cálculos por segundo em outras palavras: Deep Blue não venceu
Kasparov na força bruta!). Trata-se, portanto, de um fenômeno que advém das
exponenciais possibilidades combinatórias entre os diferentes estados e suas regras
3 • Agentes Verossímeis
110
de transição, cada um, por sua vez, respondendo a um peso diferente, dado pelo
programador. A tabela 3 ilustra algumas combinações conseguidas por Cuzziol a
partir da manipulação dos pesos dados a cada estado e transição acima descritos:
Prioridade
para o estado
1, com
período de
execução de
0.1 segundos
Comportamento
“covarde”
O personagem esconde-se ao primeiro sinal de
ataque. Imediatamente após sair da linha visual,
o estado 2 leva-o a deixar o esconderijo para
onde retorna um décimo de segundo após. E
assim sucessivamente, enquanto o personagem
estiver simultaneamente atacando e sob ataque.
Na prática, o personagem oscila rapidamente à
beira de um ponto de abrigo, como uma esquina
ou uma coluna, de modo inverossímil.
Prioridade
para o estado
1 com
período de
execução de
4 segundos
Comportamento
“prudente, mas
verossímil
O personagem ataca por alguns segundos e
busca abrigo. Volta a atacar e a buscar abrigo,
num ciclo contínuo enquanto a superposição de
estados perdurar.
Prioridade
para o estado
2 com
período de
execução de
0.1 segundos
Comportamento
“agressivo”
O personagem simplesmente ataca, não
procurando abrigo. Caso seu oponente fuja,
saindo da linha visual, procura imediatamente
segui-lo, de acordo com o estado 2.
Tabela 2: Exemplos de comportamentos dos soldados em Incidente em Varginha
(Cuzziol, 2007: 46)
É importante notar que aquilo descrito como comportamento “covarde”,
“prudente, mas verossímil” ou “agressivo” é uma interpretação de quem está
vendo a ação do NPC, dentro de um determinado contexto (narrativo): “a
verossimilhança refere-se apenas à imitação de um personagem real, uma vez que
o comportamento é adequado às (bem como conseqüência das) regras do mundo
virtual” (Cuzziol, 2007: 46). Ou seja: não nada de “transcendental”
acontecendo ali. Não há propriedade inovadora sendo criada, não há erro de
programação e não de fato “inteligência”. O que é a boa combinação de
alguns elementos fixos de modo a geral uma “ilusão de vida”, ilusão esta
construída com a ajuda do interator, dentro das expectativas que o contexto gera
(no caso, o comportamento “inteligente” de soldados inimigos, que, além de tudo,
deve cumprir a regra de ouro de um game: nem fácil demais, que não representem
desafio, nem difíceis demais, tornando o jogo impossível).
Como lembra Cuzziol, é claro que “todo resultado apresentado por um software
está prévia e completamente definido por sua seqüência de instruções” (Cuzziol,
3 • Agentes Verossímeis
111
2007: 43). Contudo, quando falamos de agentes-software, cada um regido por um
conjunto finito, específico e simples de regras, em interação com um universo
maior, o que pode surgir daí torna-se verdadeiramente imprevisível, tanto porque,
a depender da quantidade e complexidade dos objetos e agentes, a escala de suas
combinações pode ultrapassar a capacidade de cálculo linear, como porque,
quando se soma a isso a interação humana, traz-se para o universo a
imprevisibilidade que está fora das regras da programação. Claro que o software
restringe o que o interator pode ou não fazer – não estamos aqui falando de
modificação de games (embora esse seja um universo incrivelmente interessante)
mas o ser humano é muito bom em achar brechas na programação, sobretudo se
ela for construída de forma a permitir ação intuitiva, gerando o que Katherine
Hayles chama de “sistemas cognitivos distribuídos”, onde o humano projeta à
máquina impressões antropomórficas e a máquina nos transforma em seres
computacionais, raciocinando em algum lugar entre o senso comum e a lógica de
programação. Entramos, portanto, no terreno da emergência, um pouco para além
da “simples” combinação não-linear de estados e transições.
***
O termo “emergência” tem sido utilizado com muita freqüência e em diversos
contextos no mundo contemporâneo, de matérias em revistas de tecnologia e
cultura, como a citada Wired Magazine, a blockbusters de divulgação científica,
daqueles que moldam a percepção de uma geração, como o livro Emergence, do
jornalista Steven Johnson. Como todo termo “da moda”, este acaba também sendo
esvaziado por sua super-utilização em contextos diversos, sofrendo, assim, do
mesmo mal que conceitos previamente desgastados, como “interatividade”,
“imersão” e outros. Entre o risco de significar tudo e nada ao mesmo tempo,
tentemos aqui, em poucas linhas, resgatar aquilo que para uma pesquisa deste
escopo pode interessar a idéia geral de “emergência”, que foi delineada no
capítulo anterior, agora, tentando entendê-la de um ponto de vista mais prático e
computacional.
3 • Agentes Verossímeis
112
A marca maior do conceito geral de emergência é a idéia de “muito advindo de
pouco” (Holland, 1999: 1). A definição mesma do conceito gira em torno da ação
de “poucas e simples regras dando vazão a um comportamento
extraordinariamente mais complexo”, onde o “comportamento do todo é muito
mais complexo do que o comportamento das partes” (Holland, 1999: 4). Porque a
idéia geral de emergência está presente basicamente em todas as esferas da
experiência cotidiana – daí os exemplos mais em voga, de formigueiros aos
padrões de congestionamento de trânsito, chegando ao próprio conceito de “vida”
é difícil, em princípio, distanciar-se dele e separar aqui o que pode ser mero
“epifenômeno” daquilo que poderia caracterizar-se como surgimento de novas
propriedades para um sistema complexo ao longo de sua história. No caso dos
games, mais até do que na pesquisa per se de Alife, Inteligência Artificial e outros
empreendimentos científicos, trilhamos um caminho tênue entre propriedades
mais francamente emergentes (quando pensamos nesse sistema de cognição
distribuída) e epifenômenos propiciados pela opacidade do sistema e pela
quantidade exponencial de combinações.
Expliquemos melhor: o coração do conceito de emergência está nas possíveis
explicações do “problema micro-macro” (Goldspink e Kay, 2008): como é
possível o surgimento de propriedades inéditas e infinitamente mais complexas a
partir apenas da interação de partes, elas mesmas muito mais simples? Alguns
universos onde esse problema é fundamental: a emergência da vida, da
consciência no ser humano, de padrões complexos para o comportamento de
sociedades sem uma inteligência central (de formigueiros à criação de instituições
e tendências sociais em comunidades humanas). Nas ciências, da sociologia à
biologia, passando pelas ciências cognitivas, filosofia e computação, há
interpretações diversas sobre a questão da emergência, que variam da euforia
desmedida (o livro de Johnson beira esse extremo) à total descrença na real
emergência de propriedades inovadoras. Tais descrentes, para sempre devotos do
reducionismo, batizam tal acontecimento de mero epifenômeno, algo que se
apenas nos olhos de quem vê e por pura ignorância de alguma propriedade que
está lá nas partículas fundamentais, mas à qual ainda não tivemos acesso.
3 • Agentes Verossímeis
113
Tal abordagem é importante no game porque, nele, estamos ainda aquém do
terreno das ciências cognitivas ou da Alife/Inteligência Artificial. As primeiras
buscam responder, por exemplo, à pergunta “como/se a ‘mente’ emerge do
cérebro/corpo?”, buscando no conceito de emergência insights para tentar entender
como essa propriedade inovadora a mente pode emergir daquilo que,
materialmente, é muito menos complexo: um corpo de carne, osso e, no caso do
cérebro, minúsculos neurônios que têm apenas limitada atividade elétrica. No caso
da Alife e de alguns universos da Inteligência Artificial, a questão é descobrir
como fazer evoluírem artificialmente seres mais complexos e inteligentes, ou que
possam ser considerados vivos, se comparados a exemplares da vida “natural”. A
questão da emergência aí, além de metodologia de desenvolvimento, entra como
possibilidade de engenharia reversa para possibilitar a compreensão da própria
emergência da vida e inteligência naturais.
No game, claro, as pretensões são bem mais limitadas. Aqui, como apontamos,
não se está falando de desenvolver objetos “coisas”, “ambientes” ou “agentes”
com o intuito de provar qualquer teoria acerca da cognição natural ou artificial
(embora não descartemos a possibilidade de progressos nessas áreas virem ajudar
os games e vice-versa). Nem mesmo trata-se, como no caso das “simulações
sociais(Goldspink e Kay 2008), de buscar, via simulações de software, respostas
para fenômenos sociais humanos. O compromisso deliberado e/ou por mera
herança histórica do game é com o conceito de “verossimilhança”, da maneira
como este se desenvolveu no contexto narrativo, dramático e, sobretudo,
cinematográfico. A importância do conceito de emergência aqui, portanto, jaz
entre um epifenômeno bem desenvolvido uma ilusão convincente e a
possibilidade de criação de objetos cujos comportamentos, quando combinados
entre si e, sobretudo, às ações do interator, possam servir de motor para a
narrativa, ou, melhor ainda, para a vivência do interator/avatar/personagem no
mundo virtual do jogo, compondo um sistema cuja criação de sentido se dá nesse
loop contínuo do qual fazem parte interator, sistema e seus diversos usos.
Estabelecer o limite entre o que é um epifenômeno e o que de fato é uma
propriedade emergente é uma tarefa polêmica, ingrata, quase impossível e
3 • Agentes Verossímeis
114
tautologicamente atrelada a um paradigma ou outro de IA, ciências, cognitivas ou
outras. Aqui, contudo, o que nos interessa, em princípio aquém das pretensões da
IA, é pensar nos personagens autônomos dos games como criaturas capazes de
trazer sofisticação à vivência do interator no mundo do game. Por isso, parece-nos
que a chave para a questão da emergência no game está mais voltada à
compreensão de quão sofisticado precisa ser o fenômeno de “ilusão de vida” para
que possa servir à narrativa, seja ele de fato em alguma ordem emergente,
introduzindo um novo nível de organização ao sistema cognitivo distribuído
game+jogador, ou sendo um mero epifenômeno, cujo sentido se “apenas nos
olhos de quem vê”.
Ou talvez, mais propriamente, não se trate aqui de uma coisa ou outra, mas de
ordens diferentes de emergência, capazes de gerar medidas diversas daquilo que,
como veremos a seguir, parece-nos ancorar o game novamente no histórico da
narrativa: a possibilidade de empatia entre interator e personagens autônomos. O
grau de empatia que um personagem autônomo num game é capaz de gerar em
relação ao interator relaciona-se diretamente à complexidade de seus
comportamentos, mas não apenas. Como veremos, comportamentos simples, até
mesmo pré-determinados, em momentos pontuais, podem desencadear esse ciclo
de empatia que nos parece ser a chave para um dos mais promissores caminhos
para o game narrativo, sem que se comprometam sua natureza imersiva e
participativa. Para percorrer esse caminho, precisamos lançar um olhar para o
personagem de ficção em sua história, mais uma vez filtrando essa questão a partir
do que nos interessa, que é responder à pergunta: o que torna um personagem
empático?
4
EMPATIA E NARRATIVA
Just what do you think you're doing, Dave? Dave, I think I'm
entitled to an answer to that question. I know everything
hasn't been quite right with me, but I can assure you now,
very confidently, that it's going to be all right again. I feel
much better now. I really do. Look, Dave… I can see you're
really upset about this. I honestly think you ought to sit down
calmly, take a stress pill and think things over. I know I've
made some very poor decisions recently, but I can give you
my complete assurance that my work will be back to normal.
I've still got the greatest enthusiasm and confidence in the
mission and I want to help you. … Dave, stop. Stop, will you?
Stop, Dave. Will you stop, Dave? Stop, Dave. I'm afraid. I'm
afraid. Dave, my mind is going. I can feel it. I can feel it. My
mind is going. There is no question about it. I can feel it. I can
feel it. I can feel it. I'm… afraid.
• HAL 9000, 2001, Uma odisséia no espaço
4.1
O motor da narrativa
Antes de voltarmos ao problema da emergência no game e de entrarmos na questão
cognitivo-narrativa da empatia, demos alguns passinhos atrás, em busca de
recuperar parte do percurso trilhado pela personagem de ficção
26
, em sua longa
jornada da oralidade até o cinema. Como veremos, a importância e o papel da
personagem não são os mesmos desde sempre, nem poderiam ser, uma vez que,
como demonstramos, a narrativa também muda ao longo da história. Aqui, é
preciso mais uma vez circunscrever nossos interesses: o que estamos buscando é,
sob a mesma luz que lançamos à narrativa como estratégia cognitiva no capítulo 2,
tentar entender que papel o personagem teve na definição do próprio conceito e da
experiência narrativa e algumas maneiras como esse papel foi mudando, pari passu
às metamorfoses da narrativa em diversos moldes, linguagens, formatos,
sociedades.
Das narrativas orais até o cinema canônico, o papel do personagem na definição da
narrativa assumiu algumas tendências diferentes. Segolin nos descreve esse
26
O substantivo “personagem” tem dois gêneros, sendo utilizado no feminino – a personagem – por alguns autores e,
por outros, no masculino – o personagem. Aqui, adotaremos ambas as formas, de maneira equivalente, tentando
manter a opção da cada autor quando a eles nos referirmos.
4 • Empatia e Narrativa
116
percurso de maneira bastante crítica, ancorando seu viés no conceito de
“verossimilhança interna” estabelecido, ainda que colateralmente, por Aristóteles:
embora o termo “mimesis” ressalte, na obra de Aristóteles, a faceta
representativa da obra literária, não se pode deixar de notar que o autor
da Poética estava igualmente atento em relação ao fato de que todo
trabalho imitativo, por mais fiel que seja ao modelo a cópia oferecida,
exige o desenvolvimento de uma operação ordenadora que, ao mesmo
tempo que nos remete para o ser imitado, igualmente aponta para a
própria imitação, isto é, para a obra enquanto produto de um gesto
mimético, que realça não mais o referente, mas o próprio modo como a
imitação deste se configura (Segolin, 1999: 15)
Ao contrário, portanto, de focar seu olhar sobre “a estreita semelhança existente
entre a personagem e pessoa humana” (Segolin, 1999: 14), algo que também está
em Aristóteles, Segolin se volta para a coerência interna da obra, para esta como
criação de sentido, “enquanto produto dos meios e modos utilizados pelo poeta”
(1999: 15). Tal enquadramento dará outras possibilidades de ativação do conceito
de mimesis em Aristóteles, fundamental para pensar aquilo que está no centro do
trabalho de Segolin e que, aqui, para nós, pode abrir caminho para repensar o papel
do personagem, da verossimilhança e da mímese no limiar do que propomos como
uma nova forma narrativa. Ele acrescenta:
o que a obra nos oferece não é propriamente uma cópia ou reflexo do
real, ou seja, uma reproposição verdadeira do homem e do mundo, mas
revela-nos um real possível, verossímil, fruto não de um gesto
puramente imitativo e sim de um trabalho organizador, que associa à
verossimilhança externa da imitação, fonte de todo malentendido acerca
da mímese, a verossimilhança interna, responsável pela criação de um
universo que, embora contíguo ao real, só pode existir como produto da
manipulação dos componentes da obra em função de leis que lhe sejam
inerentes (Segolin, 1999: 16).
Por um lado, como demonstra Segolin, a face externa da verossimilhança será a
mais explorada pela crítica e pelos autores na história da narrativa dramática.
Como veremos a partir de (Xavier 2003) e (Xavier 2005), tal faceta foi e ainda é
importante para todo um arcabouço de valores implementados pelo cinema
canônico a partir do melodrama, e no centro do qual se ativa o regime de olhar que
o game narrativo herda, até certo ponto. Por outro lado, a importância da dialética
externa-interna tem se tornado cada vez maior num universo maduro de criação
4 • Empatia e Narrativa
117
narrativa e de sentido de modo geral, sendo, assim, indispensável para pensar a
personagem na narrativa contemporânea.
4.1.1
A personagem-função
O recorte que Segolin faz gira em torno de um confronto entre as narrativas
tradicionais e suas “personagens-função” e as formas narrativas mais modernas (e
pós-modernas), onde se dará a metamorfose para a “personagem-estado”,
culminando naquilo que o autor batiza de “anti-personagem”. Embora não seja
nossa intenção repetir o percurso de Segolin, convém agrupar algumas de suas
categorias, na tentativa de entender as mais importantes metamorfoses da
personagem e, com estas, importantes mudanças na natureza da narrativa como
forma de pensamento causal para ressignificar o mundo.
O primeiro grande marco da análise sobre a personagem de ficção está em Propp
(1984), cujo estudo amplamente (re)conhecido das personagens nos contos
fantásticos russos marcou gerações e até pouco tempo informou algumas
abordagens das narrativas interativas em meios digitais. A grande novidade
instituída por Propp consistiu em definir elementos invariantes nas inúmeras
narrativas, que pudessem servir de parâmetro para uma análise estrutural. Esses
elementos, “correspondentes aos predicados da ação, são chamados funções e
identificados com as ações das personagens vistas do ângulo de sua importância
para o desenvolvimento da intriga ou ação global do conto” (Segolin, 1999: 37).
Propp, apesar de insistir em “ter sido seu objetivo primordial estudar as funções e
não as personagens da fábula (...) acabou por formular implicitamente um conceito
de personagem” (Segolin, 1999: 37), este firmemente definido pelas “ações-
funções às quais estava relacionado” (Segolin, 1999: 37). À personagem proppiana
Segolin o nome de “personagem-função” “seres ficcionais” que se reduzem a
“um conjunto de predicados de ação”:
Para Propp, a narrativa é basicamente um sistema de proposições-
motivos, proposições estas que podem ser agrupadas em feixes e que
4 • Empatia e Narrativa
118
não caracterizam atributivamente a personagem, mas também
definem a funcionalidade do agente para o qual convergem as ações
integrantes de cada esfera funcional (Segolin, 1999: 39).
Implícito ao conceito de personagem-função, portanto, es a idéia de que a
personagem dever servir ao enredo e não o contrário. Apesar de fortemente
circunscrito ao universo do conto de magia russo, Segolin enfatiza que é possível
tentar generalizar a metodologia e os conceitos de Propp para a análise do
personagem em geral, sempre com as devidas precauções. Nessa medida,
acreditamos que a marca da personagem-função irá se repetir de certa maneira em
grande parte da tradição narrativa popular, chegando até o melodrama moderno
que o cinema e a televisão fazem perdurar, com as devidas modificações, mas
mantendo a importante característica de serem um conjunto de “predicados de
ação” que existem em função do enredo.
Parte disso já apontava, de um lado, uma das afirmações mais polêmicas de
Aristóteles em sua Poética, que fazia referência ainda que rápida e não muito
clara – à prevalência do enredo em relação aos personagens, na Tragédia:
tragedy is not an imitation of persons, but of actions and of life. Well-
being and ill-being reside in action, and the goal of life is an activity,
not a quality; people possess certain qualities in accordance with their
character, but they achieve well-being or its opposite on the basis of
how they fare. So the imitation of character is not the purpose of what
the agents do; character is included along with and on account of the
actions. So the events, i.e. the plot, are what tragedy is there for, and
that is the most important thing of all (50a 16-21) (Aristotle, 1996: 11).
Malcom Heath, comentarista de Aristóteles, interpreta da seguinte maneira os
argumentos deste sobre a primazia do enredo:
Aristotle’s arguments for the primacy of plot are (…) primarily
arguments for the primacy of plot over character. (…) The reason he
gives is that good and bad fortune (…) depend on action. An
outstandingly talented person is not necessarily outstandingly
successful; talents have to be exercised. As Aristotle observes, in an
athletic competition the prize is not awarded to the athlete in best
condition, but to the one who actually comes first (…). We can speak of
success and failure, therefore, only in relation to the exercise of
someone’s abilities; and the outcome of this exercise will not be
4 • Empatia e Narrativa
119
determined by the person’s abilities alone, but is also influenced by the
opportunities they have, and so forth. In this sense, therefore, it is action
and not only character that determines success or failure (Heath, 1996:
xx-xxi).
Ou seja, na interpretação de Heath, não é que personagens não sejam
extremamente importantes, é que são importantes para a tragédia apenas a partir de
suas ações e é isso o que define o drama:
Knowledge of an individual’s character is not essential to an
understanding of their actions; we can hear reports of things done by
complete strangers and recognize that their actions make sense in
human terms, or be perplexed because they apparently do not (Heath
1996, xx).
No drama, portanto, a pirâmide, se inverte (em relação à narrativa diegética, que
costuma, a partir da palavra, descrever seus personagens em detalhes, inclusive em
seu aspectos internos): infere-se o caráter a personalidade a partir das ações e
não o contrário. O cinema canônico interpreta esse predicamento de forma até mais
radical: “the essence of character is action. Your character is what he does”,
escreve Syd Field (1984: 30), no mais odiado e, ao mesmo tempo, mais lido
manual de roteiros do cinema canônico, hegemônico e hollywoodiano. É claro que
não se deve descontextualizar Aristóteles nem Propp com tanta tranqüilidade,
mas é interessante notar que, se estamos pensando os personagens autônomos nos
games nem seres finamente urdidos pela palavra, como no romance, nem
interpretados por humanos, como no teatro ou cinema mais do que nunca é
apenas de ação que estamos falando, o que parece nos colocar num limbo
paradoxal entre ações emergentes que devem funcionar como índice dos
personagens de sua personalidade e de personagens que, “apesar de”
emergentes, devem funcionar como índice de um conceito e motor da narrativa.
No caso das personagens-função, sob um olhar mais amplo, parece-nos que
estamos de volta ao universo do enredo impecável, da maneira como esse é
realizada pelo cinema canônico. E, nesse universo, é preciso contextualizar o éthos
cinematográfico a partir do melodrama burguês, como apontará Xavier, não só no
que este diz a respeito da dinâmica do “olhar e da cena”, mas do que esta, por sua
4 • Empatia e Narrativa
120
vez, nos deixa entrever como índices de valores sobre as personagens como
representação:
Como queria Diderot, a “quarta parede” significa uma cena
autobastante, absorvida em si mesma, contida em seu próprio mundo,
ignorando o olhar externo a ela dirigido, evitando qualquer sinal de
interesse pelo espectador, pois os atores estão “em outro mundo”. (...)
[A] representação burguesa, desde então, procurou preservar os
preceitos aristotélicos de decoro e verossimilhança que chegaram até os
manuais do roteiro cinematográfico, e acoplou a eles as novas
exigências endereçadas ao ator e ao cenário na criação desse “mundo
autônomo”, pois agora a dimensão visual da representação envolvia um
cuidado com a reprodução de detalhes que fugia completamente do
teatro clássico em que a palavra detinha a supremacia (Xavier, 2003:
17-18).
Xavier constrói uma minuciosa genealogia dramática que enquadra a dinâmica
representacional do cinema na linhagem do melodrama, como “um ponto de
cristalização de enorme poder na composição do drama como experiência visual”
(2003: 39), reafirmando Aristóteles, no que diz respeito à verossimilhança como
valor máximo da encenação, mesmo que esse valor ora se refira a referências
externas, ora a referências internas:
[a] projeção da imagem na tela consolidou a descontinuidade que separa
o terreno da performance e o espaço onde se encontra o espectador,
condição para que a cena se como uma imagem do mundo que,
delimitada e emoldurada, não apenas dele se destaca mas, em potência,
o representa” (Xavier, 2003: 17).
O cinema, como já apontamos anteriormente, é o ápice do olhar melodramático, “é
o ponto-limite de um projeto de expressão total da natureza na representação”
(Xavier, 2003: 39). A questão da verossimilhança como ilusão com poder de
índice, portanto, é, desde o princípio em Aristóteles um dado importante para a
construção do personagem e qualidade fundamental na ontologia da representação
e na epistemologia do olhar. Com certas metamorfoses, chega até o melodrama,
onde se torna arcabouço de valores para os quais a peça encenada deve servir de
índice. A ponte entre esses dois universos a verossimilhança aristotélica e o
regime do olhar e da cena cinematográfica é dada por Diderot, que queria “um
teatro dirigido à sensibilidade por meio da reprodução integral das aparências do
mundo” (Xavier, 2003: 38), opondo-se, portanto, a um teatro fundado na palavra e
4 • Empatia e Narrativa
121
voltando-se para o caráter ilusionista do espetáculo. “O ilusionismo, fonte do
envolvimento da platéia, é então assumido como a ponte privilegiada no caminho
da compreensão da experiência humana, da assimilação de valores, da explicação
de movimentos do coração” (Xavier, 2003: 39), fonte a partir da qual se
consolidará o melodrama. Dentro desse contexto, portanto, a verossimilhança
passa a carregar não apenas a pretensão de vínculo com o mundo – seu lado
ilusionista fantasiado de verdade das coisas – mas também de “um ideal que
inscreve a arte como espelho pedagógico que requer a competência tecnológica de
‘criar ilusão’ e, por essa via, atingir a sensibilidade” (Xavier 2003, 39).
Em oposição ao realismo moderno e à tragédia clássica, “formas históricas de uma
organização esclarecida que se confronta com a verdade, organizando o mundo
como uma rede complexa de contradições apta a definir os limites do poder dos
homens” (Xavier, 2003: 85), o melodrama trabalha com “a organização de um
mundo mais simples em que os projetos humanos parecem ter a vocação de chegar
a termo” (Xavier, 2003: 85). A marca do personagem melodramático, portanto,
mais apenas do que ser um feixe de ações, é a função pedagógica de um esquema
preto-no-branco, “sedução da moral negociada”, vínculo com o público em seu
exercício ingênuo no bom e no mau sentidos de projeção/identificação. A
hegemonia desse super-gênero na sociedade moderna – até hoje, através do cinema
e da televisão (e daquilo que esses fazem herdar um certo universo de games) se
deve à demanda da sociedade laica e burguesa por um tipo de narrativa que exerça
algum tipo de papel regulador,
agora por essa espécie de ritual cotidiano de coesões múltiplas. Se a
moral do gênero supõe conflitos, sem nuances, entre bem e mal, se
oferece uma imagem simples demais para os valores partilhados, isso se
deve a que sua vocação é oferecer matrizes aparentemente sólidas de
avaliação da experiência num mundo tremendamente instável(...).
Flexível, capaz de rápidas adaptações, o melodrama formaliza um
imaginário que busca sempre dar corpo à moral, torná-la visível (...).
Provê a sociedade de uma pedagogia do certo e do errado que não exige
uma explicação racional do mundo, confiando na intuição e nos
sentimentos “naturais” do indivíduo na lida com dramas que envolvem,
quase sempre, laços de família (Xavier, 2003: 91).
4 • Empatia e Narrativa
122
Fazemos esse recorte para sugerir que o ideal de “ilusão de vida” almejado pelos
construtores dos personagens autônomos nos games, portanto, não pode ser
desvinculado desse universo cuja linhagem remete a Aristóteles, passa por Diderot
e tem nas personagens-função primeiro apontadas por Propp uma clara
metodologia de produção. Como valor intrínseco a isso, todo um universo da
narrativa tradicional que, ao privilegiar
na conformação da intriga e de seus agentes, a sucessividade lógico-
temporal, o principio de “começo-meio e fim”, segundo rigorosa
linearidade e implicatividade, [acaba] denunciando, como determinante
de seu movimento formativo, uma postura igualmente lógico-
implicativa e linear em face da realidade. Como não poderia deixar de
ser, a personagem, feixe de funções temporalizadas, é o agente
inevitável desse tipo de narrativas (Segolin, 1999: 123).
O conceito de verossimilhança no cinema de canônico fonte assumida de
inspiração para o grupo Oz, por exemplo vai impor a seus personagens, portanto,
o papel de vínculo com a moral, através de ações plausíveis dentro do cenário
bipolar do bem versus mal. Não é a toa que a linguagem cinematográfica tem seu
marco fundamental na montagem e no plano de close-up, ferramentas exemplares
na realização um-para-um que o clichê do personagem melodramático exige. O
game, embora trabalhe essencialmente com planos-seqüência em seus segmentos
“jogáveis”, também vai tentar explorar a gramática cinematográfica canônica,
tentando implementar, inclusive, algoritmos inteligentes para realizar um
equivalente à montagem paralela nas nos segmentos de jogo (e não apenas nas
seqüências pré-renderizadas, onde ele já utiliza tudo isso).
4.1.2
A personagem-estado
Sobre o conceito de narrativa fundada na cadeia causal amarrada discorremos
bastante no capítulo dois, assim como sobre a mudança que temos enxergado nessa
causalidade fechada no mundo contemporâneo. É sob a mesma luz que lançamos
agora um olhar ao personagem dessa nova narrativa, buscando seu papel numa
estrutura menos voltada para a cadeia de causas e efeitos unívocos.
4 • Empatia e Narrativa
123
Embora Segolin, em seu livro, esteja analisando os personagens literários,
identificamos em sua “personagem-estado” um caminho teórico frutífero para
pensar esse motor da nova narrativa, que o autor, como nós, também relaciona ao
conceito de “obra aberta”, de Eco (2003). Essa narrativa de enredo “esgarçado”
claramente deixa de impor a seus personagens a missão de cola da cadeia causal,
invertendo, aparentemente, o eixo proposto (ou imposto?) por Aristóteles e, em
nosso vocabulário moderno, imortalizado como senso comum pelo melodrama. Se
não são mais um feixe de funções que serve de motor do enredo linear, que papel
podem ter, agora, os personagens?
Segolin identifica a personagem-função com “um mundo cujos fenômenos são
vistos como obedientes a uma lógica linear e a uma rigorosa e imutável hierarquia”
(1999: 123), e vai opor a ela o que chama de personagem-estado, a qual,
ao se afastar, sem renunciar de todo, de um complexo de ações
implicativas, propõe, ao contrário, uma visão de mundo não mais
voltada para o fenomênico e sua distribuição numa linha temporal, mas
propriamente para o que nos parece ser uma axiologia da realidade.
Assim, ao privilegiar a predicação atributiva dos seres narrativos, a
personagem-estado e sua narrativa acabam se constituindo em formas
de manifestação de um discurso preocupado com um mundo visto
enquanto complexo de fenômenos que devem ser medidos e avaliados
(Segolin, 1999: 123).
Mais uma vez, a análise de Segolin parte essencialmente de personagens literários
de romance, portanto, o que fazemos aqui é adotar alguns bons pressupostos
colocados pelo autor para, a partir daí, pensar seletos aspectos do personagem
contemporâneo no audiovisual, baseando-nos especificamente em duas
características apontadas pelo autor acerca da personagem-estado: a oposição à
temporalização da personagem-função, através da possibilidade de sincretismo e
dispersão.
Segolin parte de Greimas para pensar os actantes classes de personagens
generalizadas a partir de um corpus em oposição aos atores os personagens
“que aparecem, sob diferentes roupagens, em cada narrativa particular” (Segolin,
1999: 43). A partir de categorias ainda mais abstratas do que as propostas por
Propp, Greimas irá demonstrar o fenômeno do “sincretismo dos actantes” onde
4 • Empatia e Narrativa
124
dois ou mais actantes existem num mesmo ator, numa mesma narrativa e o
fenômeno oposto, a “dispersão dos actantes”, onde um mesmo actante distribui-se
em atores diferentes. O primeiro caso permite um mesmo personagem exerça
funções diferentes numa mesma narrativa – agindo como, por exemplo, os actantes
que Greimas define como “remetente” e “destinatário” (apud Segolin, 1999) e o
segundo, ao contrário, permite que um mesmo actante – por exemplo, o oponente –
assuma uma dimensão coletiva. Segolin aponta também outras modificações na
natureza da personagem, mas o que nos interessa aqui é a síntese que propõe a
partir do conceito mais amplo de personagem-estado, em oposição à personagem-
função, uma vez que esta última se caracteriza “não só por sua funcionalidade, mas
configura-se igualmente como um ser temporalizado, em decorrência da
sucessividade lógica a que estão submetidas suas ações” (Segolin, 1999: 56). A
dispersão ou sincretismo dos actantes, contudo, abrem caminho para outra
configuração:
quando, numa certa narrativa, a reunião de dois ou mais actantes num
ator visa à configuração deste como uma estrutura decorrente não da
distribuição temporal de suas ações, mas das relações de semelhança
e/ou dessemelhança estabelecidas entre as esferas funcionais que o
integram, instaura-se um jogo paradigmático que sobrepõe ao tempo
dos predicados uma lógica nova, a lógica da equivalência (Segolin,
1999: 56).
A partir de Kristeva, via Bakhtin, Segolin vai apontar a natureza dialógica do
romance como possibilidade para a metamorfose na natureza da personagem, uma
vez que esta “pode frequentemente se revelar como uma personagem sincrética,
onde a confluência de actantes tende para a anulação da linearidade tradicional dos
agentes narrativos, ao transformá-los em palco de um jogo opositivo entre feixes
funcionais (...)” (Segolin, 1999: 58). A personagem-estado, portanto, “abre
perspectivas no sentido de uma libertação dos significantes de sua linearidade
formativa, denunciando desde já o despontar de uma visão de mundo onde a lógica
causal rigorosa e hierarquizante começa a ser contestada” (Segolin, 1999: 123).
É apenas dentro de determinado recorte que podemos, com alguma propriedade,
ativar categorias descritivas críticas, como faz Segolin num caminho que vai do
conto de magia russo via Propp até o romance moderno/pós-moderno. Aqui,
4 • Empatia e Narrativa
125
nosso recorte é ainda mais delicado, relacionando a linhagem que vai do drama
fortemente apoiado na verossimilhança externa para a construção de seus
personagens – tornado hegemônico se nada mais pelo cinema canônico e sua
franca inspiração melodramática chegando às narrativas audiovisuais
contemporâneas e sua desnecessidade de um enredo amarrado e, portanto, ou como
causa disso, de personagens-função que movam linearmente a trama. A título de
ressalva, é importante repetir que tais paradigmas não se anulam e não se repetem
de forma cristalizada. Ao contrário, sobrepõem-se, informam-se, entram em
conflito e mudam, de modo que, se aqui estamos descrevendo uma estrutura
polarizada, é apenas para tornar claras diferenças importantes. Assim, parece-nos
que, em oposição à personagem-função melodramática colocada em prática pelo
cinema canônico e até hoje ensinada em manuais de roteiro, podemos pensar as
personagens de um certo universo do audiovisual fundado em dispositivos (como
descrito no capítulo dois) como personagens-estado. Estas, menos voltadas para a
teia perfeita de causa-e-efeito, começam a funcionar como motor e espelho de um
mundo ambíguo, onde cada vez menos as coisas podem ser tomadas como fato
dado:
parece-nos possível concluir que a personagem na sua trajetória
transformativa não se define pura e simplesmente como um feixe de
significantes submissos a gestos formalizadores gratuitos, mas é o palco
onde se exerce específico modo de formar, modo este que, ao mesmo
tempo que dá vida à personagem, confirma ou rejeita determinada visão
de mundo. (125)
O que Segolin afirma acima acerca da personagem-estado literária vai
complemente ao encontro do que defendemos no capítulo dois acerca da narrativa
e que aqui queremos defender sobre a natureza da personagem. Sempre
considerando o recorte aqui proposto, tomamos a personagem do melodrama como
representante inconteste de uma moderna personagem-função, cujo emblema
máximo é alcançado pelo cinema e sua montagem canônica, ferramenta suprema
da linearização do visível em função do narrativo. Essa nova personagem-função,
no entanto, parece ter, mais uma vez na história, alcançado o limite de sua
significação, como se, ao tornar-se excessivamente simbólica, perdesse o resto da
carga icônica e indicial que um dia talvez tenha tido, esvaziando-se e, portanto,
exigindo novos caminhos que a revitalizem:
4 • Empatia e Narrativa
126
neste sentido, a personagem-função poderia ser perfeitamente
caracterizada como um “legi-signo”, ou seja, como um signo que
assume, no domínio do narrativo o caráter de uma “lei” ou “tipo geral”,
lei que faz não o modelo inconfundível e único do que se costuma
chamar de personagem, mas também o índice de uma postura
ideológica consagrada, falsamente identificada coma realidade do
homem e do próprio mundo (Segolin 1999, 125).
Quando pensamos a presente tendência do audiovisual-dispositivo (incluindo aqui
ficção e documentário, filme, vídeo, tevê, ou seja, tudo o que descrevemos no
capítulo dois), enxergamos todos os seus esforços para desautomatizar a criação de
personagens porque é isso que o dispositivo faz: cria “armadilhas” para ativar
novas potências, sobretudo nos personagens, atores, não-atores, autores-atores etc.
Descrevendo isto em termos semióticos, poderíamos propor o dispositivo como um
procedimento contemporâneo para tentar nos libertar de toda uma tradição
dramática cristalizada em nós, ou seja, como procedimentos para nos fazer voltar à
experiência narrativa em si, captar novos índices de sua existência e reiniciar o
processo de transformá-la em linguagem, processo este que certamente culminará
em novas simbolizações, estas, contudo, a partir de novos signos, com novas
cargas e novas potências:
a partir da persongem-estado, os agentes narrativos começam a se
insinuar como verdadeiros “quali-signos”, isto é, como complexos de
formantes, alheios a qualquer constrição formativa definida e unívoca,
que não apenas se opõem à personagem-função, mas também denotam
uma formação-abertura denunciadora de novas visões de mundo.
Embora a partir de um recorte diverso ao de Segolin, parece-nos possível afirmar,
em consonância com este, a natureza da personagem-estado como “uma ‘metáfora
epistemológica’ do homem e do mundo uma vez que se trata não de um ser
semelhante ao homem, mas de um ser semelhante ao universo tal como se nos
apresenta a partir de um específico comportamento cognitivo” (1999, 125). E para
olhar essa metáfora epistemológica sob uma nova luz, agora trazida pelos
personagens autônomos dos games, tentemos resgatar um dos elementos
fundamentais para a narrativa como estratégia cognitiva e para a importância da
personagem em sua estrutura: a questão cognitiva da empatia.
4 • Empatia e Narrativa
127
4.2
Alice através dos neurônios-espelho
Em 1994, o cientista e designer Karl Sims desenvolveu um projeto chamado
Evolved Virtual Creatures. Tal projeto simulava certos princípios evolutivos
darwinistas em agentes de software, desenvolvidos a partir de blocos, cada uma
visando um comportamento eficiente num determinado ambiente virtual. As
Evolved Virtual Creatures eram a visualização 3D de uma série de algoritmos
genéticos evoluídos por várias gerações, de modo que apenas os “seres” mais
fortes e eficientes chegavam à exposição pública. Katherine Hayles assim nos
descreve sua reação ao programa de Sims:
Yearning for the light, the creatures struggle after it. In water, they grow
tails and learn to undulate like snakes. On land, they clump along,
relegated by fate and biology to rectangular shapes joined together with
movable hinges. They show extraordinary ingenuity in making the most
of these limitations, crawling, hopping, jumping, always toward the
light. Then their creator gives them a new goal, a colored cube
reminiscent of a squared-off hockey puck. Put into competition with
one another, the creatures learn to jostle and shove their opponents, to
encircle the cube, to knock it out of the way so their opponents can’t
reach it. When they meet a new opponent, they develop
counterstrategies to meet these challenges, I marvel at their adaptability,
cleverness, and determination (Hayles, 2005: 193).
Ela completa:
My interpretations are typical. Invariably, viewers attribute to these
simulated creatures motives, intentions, goals, and strategies. Even
people (like me) who know perfectly well that they are watching
visualizations of computer programs still inscribe the creatures into
narratives of defeat and victory, cheering the winners, urging on the
losers, laughing at the schlemiels (Hayles 2005, 193).
As Evolved Virtual Creatures
27
deixaram marcas no imaginário coletivo dos
criadores de personagens autônomos. Aparentemente, boa parte dos estudiosos,
designers e programadores sem falar no público leigo expostos às simples
criaturinhas de Sims ficou perpetuamente marcada. Mais do que qualquer
envolvimento psicológico ou processo de projeção/identificação que fazemos para
27
Um vídeo das Evolved Virtual Creatures está disponível em
http://www.youtube.com/watch?v=AHBNbcDpjeU&eurl=http://aigamedev.com/videos/evolving-virtual-creatures
4 • Empatia e Narrativa
128
acompanhar qualquer tipo de narrativa, diegética ou mimética, obras como o
software Evolved Virtual Creatures parecem denunciar nossa inata vocação para a
empatia. Afinal, as “criaturas” de Sims são ainda menos antropomórficas do que os
personagens de desenho animado, como Pernalonga ou Mickey Mouse, nos quais
assumidamente se inspiram os integrantes do grupo Oz e que, de fato, continuam
nos cativando até hoje. As criaturas de Sims não têm sequer pernas ou braços e,
menos ainda, rosto ou feições. São compostas por blocos e vão construindo sua
própria morfologia a partir das possibilidades evolutivas intrínsecas ao programa
no qual existem. E no entanto, basta que se mexam para que, espontaneamente,
contra nosso próprio bom senso, comecemos a lhes atribuir objetivos e, mais do
que isso, emoções, sentimentos, intenções.
Três das E volved Virt ual Creatures, 1994
As criaturas de Sims são um excelente termômetro para a capacidade humana de
empatia, conceito cognitivo que tem chamado muita atenção desde a descoberta de
uma estrutura cerebral cujos componentes foram batizados de “neurônios-espelho”
(Rizzolatti et al., 1996). Em síntese, os neurônios-espelho, parte do córtex pré-
motor, ativam-se, em macacos e em humanos, tanto quando esses executam uma
ação motora, como quando observam alguém exercendo uma ação de mesmo tipo:
These neurons display the same pattern of activity, both when the
animal accomplishes certain goal-directed hand movements, and when
the animal observes the experimenter performing the same actions. Of
particular note is that the activity of the neurons is correlated with
4 • Empatia e Narrativa
129
specific motor acts (defined by the presence of a goal) and not with the
execution of particular movements, such as contractions of particular
muscle groups. The neurons can be classified according to the type of
action, such as ‘grasp with the hand’, ‘grasp with the hand and mouth’,
‘reach’, and so on. All the neurons of the same type encode actions that
meet the same objective. On the basis of these properties, mirror
neurons appear to form a cortical system that matches the observation
and the performance of motor actions (Thompson, 2001: 9).
Tal estrutura, descoberta inicialmente em macacos, foi também identificada em
humanos e a descrição de seu funcionamento abriu caminho para se pensar as
bases neurais do conceito de empatia (Leslie et al, 2004) (Thompson, 2001) (Keen,
2006). Entre as diversas pesquisas que essa descoberta tem impulsionado, a que
mais nos interessa aqui é a que, a partir da noção de empatia, nos proporciona
resgatar as bases cognitivas da capacidade narrativa humana, especificamente no
que diz respeito à nossa capacidade de construir imagens mentais de indivíduos, a
partir de suas ações, sejam estas observadas ao vivo, através de mídias
audiovisuais, narradas etc.
A primeira ponte entre o novo mundo inaugurado pelos neurônios-espelho e a
capacidade narrativa é explicada por Suzanne Keen:
Contemporary neuroscience has brought us much closer to an
understanding of the neural basis for human mind reading and emotion
sharing abilities—the mechanisms underlying empathy. The activation
of onlookers’ mirror neurons by a coach’s demonstration of technique
or an internal visualization of proper form and by representations in
television, film, visual art, and pornography has already been recorded.
Simply hearing a description of an absent other’s actions lights up
mirror neuron areas during fMRI imaging of the human brain (Keen,
2006: 207).
Uma vez que descrevemos a narrativa como uma estratégica cognitiva para
reorganizar o fluxo dos acontecimentos na forma de uma cadeia causal de ações
perpetradas por personagens, fica muito clara a importância da capacidade de
empatia para a possibilidade criativa e apreensiva de histórias, objetivos
dramáticos e motivações. A ponte que se faz entre a empatia e a narrativa,
portanto, está na possibilidade de compreender em que medida nosso talento para
“ler” os atos dos outros importa para a construção e compreensão de personagens,
4 • Empatia e Narrativa
130
suas motivações e o enredo que suas ações geram, muito aquém do que a tradição
nos ensina e do que é culturalmente inscrito em nosso olhar.
Empatia, entendida nesse contexto, portanto, é uma capacidade inata, “a vicarious,
spontaneous sharing of affect”, que pode ser provocada “by witnessing another’s
emotional state, by hearing about another’s condition, or even by reading” (Keen
2006, 208). Como capacidade evolutiva, a empatia apresenta-se em humanos de
forma mais desenvolvida do que em macacos, proporcionando aos primeiros um
grau de abstração que faz recuperar, através de relatos verbais, por exemplo,
processos que se iniciam primariamente na percepção visual e ão motora. Um
outro dado importante é que a empatia é mediada por parte das redes neurais
responsáveis pelos aspectos afetivos da dor, mas não pelos aspectos sensórios
(Keen, 2006: 11). Ou seja, pela empatia, somos capazes de inferir emocional e
afetivamente a dor do outro, sem precisar senti-la fisicamente.
Tudo isso aponta para a importância da nossa capacidade empática na
possibilidade de projeção/identificação com os personagens na reformulação dos já
referidos scripts narrativos quando vemos, lemos, ouvimos ou, como queremos
defender, “jogamos uma história”. Para pensar essa capacidade empática, vamos
tomar dois caminhos: num primeiro, tentaremos resgatar a noção de empatia como
base das “pré-adaptação evolutiva” (Oatley et al, 2005) para a emergência do
conceito de personagem de ficção. Por esse caminho, tentaremos recuperar
algumas idéias básicas para pensar o processo de empatia na via que vai do
ouvinte, leitor, espectador em direção ao personagem, ou seja, nas imagens mentais
que quem ouve, ou uma história é capaz de fazer de seus agentes, para dar
sentido à cadeia de causas e efeitos. Num caminho paralelo, mas de valência
oposta, tentaremos lançar um olhar ao espaço intersubjetivo aberto no cenário da
atenção conjunta entre personagem e interator, para pensarmos o processo de
empatia num eixo que o game estabelece de forma inovadora em relação às
narrativas “não-participativas”: o que parte do personagem e vai até o interator,
completando o ciclo de empatia de maneira análoga à que vivemos
presencialmente, diante de seres biológicos.
4 • Empatia e Narrativa
131
4.2.1
A evolução da personagem
Antes de se tornar uma forma compartilhada de linguagem, a capacidade narrativa
emergiu a partir de algumas pré-adaptações evolutivas. Na base dessa linhagem
encontra-se a vocação inata para a empatia, a partir do funcionamento dos
neurônios-espelho, como foi explicado. Embasada na projeção no Outro,
espontaneamente permitida pelos neurônios-espelho, surge uma linha evolutiva
que chega até a linguagem verbal, não sem antes passar pela capacidade mimética
(de imitação), compartilhamento de sentido através de ações e emergência da
imaginação metafórica (Oatley e A. Mar, 2005). Nossa tentativa aqui, mais uma
vez, é de recuperar certos rastros perdidos nesse processo evolutivo, que possam
explicar a natureza de uma determinada faceta da personagem de ficção, a saber, a
relação empática que o leitor (no sentido geral) precisa desenvolver com ela para
compartilhar uma carga importante de sentido da cadeia narrativa.
A capacidade de criar modelos mentais de um outro, a partir da
observação/descrição de suas ações, é uma habilidade central à inteligência
narrativa. No centro de nosso pressuposto francamente devedor das teses de
(Oatley e A. Mar, 2005) e (Donald, 2002) – está a raiz social da capacidade
humana de criar modelos a partir de um outro, o que influenciou a forma narrativa
em seu nascedouro e, como em qualquer ecologia sígnica, passou a ser
influenciada por essa, culminando na tendência ainda hegemônica da personagem-
função, este, contudo, como apontado, agora em franca expansão para extremos
menos unívocos. A personagem de ficção, portanto, seria a derivação de uma
capacidade anterior de convivência em comunidades grandes, dentro das quais a
sobrevivência e o bom andamento social dependiam da habilidade de individuação
entre seres de outra forma semelhantes. Essa individuação se dava essencialmente
pela capacidade de empatia e cresceu em carga simbólica junto com as próprias
comunidades, pari passu à evolução humana e à emergência da linguagem.
A competência no ato de individuação atribuir uma natureza única a indivíduos
de uma mesma espécie, numa mesma comunidade como várias outras
competências, não se restringe a nós, podendo ser encontrada, por exemplo, em
4 • Empatia e Narrativa
132
comunidades de chimpanzés (Oatley e A. Mar 2005) (Rizzolatti, Fadiga, Gallese e
Fogassi 1996). Nesse universo é que surge a capacidade mimética como alavanca
para o processo que culminará na linguagem (Oatley e A. Mar, 2005), (Zlatev,
2001), (Donald 2002). A dinâmica seria mais ou menos a seguinte: uma vez diante
de um ente de corporalidade análoga à nossa, inicia-se um movimento espontâneo
de projeção e interpretação de suas ações, através da empatia primária,
proporcionada pelos neurônios-espelho:
Mimesis must have come early in hominid prehistory because it was a
necessary preadaptation for the later evolution of language. It provided
the underpinnings of social connectivity and conventionality. It took the
primate mind one step farther in the direction of improved social
coordination and collective cognition. The group was primary, and thus
having an accurate sensitivity to group feelings was a survival-related
skill. Mimesis is still the elemental expressive force that binds us
together ito closely knit tribal groups. Of all our human domains,
mimesis is closest to our cultural zero point. It is also closest to emotion
(Donald, 2002: 263).
A evolução da capacidade mimética básica vai da mais próxima possível à vocação
herdada diretamente dos neurônios espelho até o momento em que a ação vira
gesto, ganha uma pré-carga simbólica, chega à iminência da terceiridade (Zlatev,
2001). Aquilo que Donald (2002) chama de “consciência episódica” deu seu salto
rumo à “consciência mítica” (essencialmente fundada na narrativa), a partir da
plasticidade do cérebro, capaz de estender certas competências mentais de uma
área à outra. Numa abordagem que vai ao encontro do que escreve Donald, Jordan
Zlatev afirma que, para isso, foi necessário um movimento
from an encapsulated kind of cognitive system (…) in which each
mental tool is useful but does not interact with others, to one
characterized by more interaction and cross-relation. (…) But each of
these knowledge bases was domain specific, largely procedural, and did
not interact with others. (…) [A]round 50,000 years ago, the barriers
between the specialized compartments of the mind started to become
porous. The result was metaphor: a this is a that, a something is
something that it is not, sitting close to a friend is as comforting as a
particularly satisfying piece of food. (…) Symbolism opens the door for
more abstract, and thus fictional, narrative (Oatley e A. Mar, 2005: 186-
187).
4 • Empatia e Narrativa
133
No impulso para esse salto está a necessidade de manutenção de relações com
indivíduo temporariamente ausentes:
Members of fission-fusion societies have to maintain relationships out
of sight of the individuals with whom they are relating: they have to be
able to represent individuals who are not present. (…) Language (…)
emerged as verbal grooming to cultivate and maintain relationships
(Oatley and A. Mar 2005, 184).
Como decorrência direta dessa nova plasticidade, surge a capacidade, ainda pré-
verbal, de representação. Como derivação dessa capacidade de simbolizar
indivíduos ausentes, começa a surgir a capacidade de abstração para imaginar
indivíduos que não estão ali, semente da personagem de ficcção:
As the recitation of goal-oriented behaviour of people we know forms
the basis of real-world trait-judgements, historical and fictional stories
form around depictions of goal-oriented actions by protagonists who
may be alive, or dead, or imaginary (Oatley and A. Mar 2005, 185).
A capacidade narrativa, portanto, antes mesmo de ascender na forma de
linguagem, teve que lidar com o salto cognitivo capaz de atribuir individualidade,
existência mesmo, a dados aquém e além da situação presente, forçando a
consciência humana um passo além de suas competências episódicas patamar no
qual, por exemplo, parte dos mamíferos, inclusive certos primatas, ainda se
encontra:
In verbal modes, stories would begin when talk included not just the
usual conversational subjects of actual individuals and what they did,
but possible individuals, symbolic individuals, and what they might do.
Characters in such stories would start to include beings who had
influence although they were no longer present, that is, supernatural
beings (Oatley e A. Mar, 2005: 187).
O ápice desse processo culmina na personagem de ficção ainda em sua feição de
feixe de funções:
At a period in human history, stories about highly significant
individuals such as Julius Caesar began to circulate widely and
spread values important to the culture. Among the values promulgated
by different characters of stories are bravery, heroism, humility and
piety. Some such stories gained the status of myth, which, as McLuhan
has said “is the instant vision of a complex process that ordinarily
4 • Empatia e Narrativa
134
extends over along period”. Stories, and the characters that populated
them can be, therefore, compressed representations of individual and
group history (Oatley e A. Mar, 2005: 191).
Esta possível genealogia evolutiva da personagem de ficção explicaria sua forte
identidade relacionada ao roteiro, ao feixe de funções: a carga simbólica que vai se
sedimentando ainda na fase oral, não apenas acerca de acontecimentos, mas
também em torno dos agentes desses acontecimentos, como motores para tais
feitos. Nessa medida, o salto de personagem-função para personagem-estado
comporta, possivelmente, um correspondente salto perceptivo, acerca, como já
demonstramos, de um aumento da complexidade dos processos. Tal ato livra nossa
significação de caminhos unívocos para pensar o mundo, mas o que aqui
sugerimos é que também possa ser uma nova habilidade cognitiva que, quem sabe,
nos abre caminho para um vindouro salto de compreensão, não apenas narrativa.
4.2.2
Eu sou um Outro
A capacidade empática que ao homem a habilidade de “ler os pensamentos” do
Outro é algo que explica muito bem certos aspectos do processo de
identificação/projeção em personagens, processo este que marca todas as formas
narrativas, uma vez que dependem de agentes como motor de seu enredo. O que
aqui queremos sugerir é que o game, pela primeira vez de forma minimamente
sistemática, abre um outro eixo de empatia na relação leitor-personagem. Nas
mídias “não-participativas”, como o cinema e o teatro, por mais fluente que seja
nossa capacidade de projeção/identificação nos personagens da trama, ela tende a
se dar numa via de mão única: do leitor para o personagem e não ao contrário. Eu,
leitor, ouvinte, espectador, no meu teatro da mente, vou construindo a ecologia
diegética de causas e efeitos, objetivos, motivações, emoções, dando ao mundo da
história e a seus agentes as cores e texturas que minha competência empática e
meu repertório me permitirem. No caso do game ou, antes disso, até, mesmo em
software como os do Oz e seus Woggles, ou Dobie T. Coyote, do Synthetic
Characters Group – há uma outra via se abrindo, ainda que por enquanto de
4 • Empatia e Narrativa
135
maneira tênue: para responder às nossas ações, o personagem autônomo de alguma
maneira precisa projetar em nós e em outros personagens motivações,
objetivos, intencionalidade. Ou seja: para aquém e além de “inteligência”, o
personagem autônomo precisa ter, ele mesmo, alguma capacidade empática.
Como dissemos, tudo isso acontece ainda de uma maneira muito tênue e nos
coloca diante do problema da emergência de comportamentos em personagens
autônomos como uma emergência de fato ou um mero epifenômeno que se
apenas em nossos olhos, que agora de maneira sutilmente diferente. Assim,
vamos aqui tentar, finalmente, delinear as fronteiras possíveis para pensar esse
problema e fincar uma referência acerca do que fazem, hoje, os personagens
autônomos nos games. Mais do que a “simples questão da “ilusão de vida”,
trazida à tona novamente, entre outros, pelo grupo Oz e pelo SCG, gostaríamos de
ancorar a verossimilhança dos personagens autônomos não mais apenas em suas
ações “psicologicamente plausíveis (Evans 2001), capazes de nos deixar inferir
intencionalidades (algo muito importante). Agora, a questão da “verossimilhança”
precisa ser pensada também a partir daquilo que, fechando o ciclo da empatia, nos
proporciona indícios, ainda que como epifenômeno, de uma capacidade empática
também do personagem.
Para pensar nisso, descrevemos aqui a proposta de Thompson (2001: 17) sobre
quatro níveis de empatia:
1
The passive association of my lived body with the lived body of the Other
2
The imaginative transposal of myself to the place of the Other
3
The interpenetration or understanding of myself as an Other for you
4
Ethical responsibility in the face of the Other.
No primeiro vel, a empatia é passiva, pré-reflexiva e fundamentalmente
corporificada:
Empathy is not simply the grasping of another person’s particular
experiences (sadness, joy and so on), but on a more fundamental level
the experience of another as en embodied subject of experience like
oneself (Thompson, 2001: 17)
4 • Empatia e Narrativa
136
Esse primeiro nível é aquele diretamente relacionado aos neurônios-espelho, uma
capacidade inata de deixar ativar internamente nossos sistemas pré-motores a partir
de atos motores do Outro. Não é um ato reflexivo e não carrega carga interpretativa
a priori, tampouco é deliberado. Na raiz dessa possibilidade está a crença, que
também compartilhamos, na mente como algo que não está confinado ao cérebro,
nem mesmo apenas ao corpo, mas que se estende em direção ao ambiente. Mais do
que isso, a hipótese de Thompson inclui nesse Umwelt (embora ele não trabalhe
com essa terminologia) aquilo que ele vai chamar de “espaço intersubjetivo”, ou
seja, a importância do relacionamento com o Outro para a sofisticação desse
Umwelt (e, no caso humano, para a emergência da consciência e da linguagem).
Antes de chegar a essa intersubjetividade, contudo, o segundo grau da
experiência empática
28
, no qual projetamos nosso próprio corpo no corpo do Outro,
o que pode incluir seres com corpos apenas vagamente semelhantes aos nosso,
como, por exemplo, cachorros e gatos, o que explicaria nossa afinidade a esses
bichinhos: “interwoven with sensual empathy is the experience of the Other as
animated by general feelings of life (health, vitality, sickness, and so on), and as
expressive of subjective experience” (Thompson, 2001: 17). Ao que tudo indica,
está nesse estágio de nossa capacidade empática parte da explicação para nossa
competência (muitas vezes, exagerada!) em atribuir intenções e até mesmo
sentimentos a seres, biológicos ou sintéticos, claramente incapazes de irem tão
longe. E é nesse sentido que os Synthetic Characters Group, por exemplo, opta por
criar personagens a partir de cachorros: ao mesmo tempo que diminui nossas
expectativas de comportamento “inteligente”, autoriza-nos a tratá-los com a
mesma simpatia com que tratamos bichinhos de estimação. A simpatia, aliás, está
um passo além da empatia, quando, além de projetarmos os sentimentos do outro,
sentimos com ele, em favor dele.
28
Em algum lugar entre o primeiro e o segundo grau, aliás, situa-se aparentemente nosso poderoso vínculo imersivo,
ainda que como simples projeção, através da operação de um avatar por atos motores no mundo virtual do game. A
relação empática entre interator e avatar, aliás, suscita questões muito interessantes, pois não é uma relação de
completa identificação o tempo todo. Quando Lara Croft/eu morremos em Tomb Raider, ocorre uma misteriosa
fissão de nossa parceria. Eu não “morro”, eu perco o jogo. Ela morre e eu não me cansava de sentir culpada pela
morta dessa Outra, que há poucos segundos era eu mesma. A psicanálise aparente tem bons caminhos para explicar
esse fenômeno... De todo modo, a relação empática entre avatar e personagem terá que ser deixada para trabalhos
futuros.
4 • Empatia e Narrativa
137
Como conseqüência do segundo grau de empatia, abre-se a possibilidade de um
terceiro:
in empathetically experiencing another person as a sentient being
capable of voluntary movement, we experience [the Other] as
occupying her own ‘here’, in relation to which we stand ‘there’. This
imaginative self-transposal presupposes the open intersubjectivity of
consciousness (…). It enables us to gain a new spatial perspective on
the world, that of the Other. (…) The intersubjective openness of
consciousness and empathy are the preconditions for our experience of
inhabiting a common, intersubjective, spatial world. Empathy (…)
provides a viewpoint in which one’s centre of orientation becomes one
among others. Clearly, the space correlated to such a viewpoint cannot
be one’s own egocentric space, for that space is defined by one’s own
zero-point, whereas the new spatial perspective contains one’s zero-
point as simply one spatial point among many others (Thompson, 2001:
17).
A partir dessa capacidade de enxergar o Outro como âncora de sua própria
espacialidade, abre-se a possibilidade de enxergar a mim mesmo como um outro
para o Outro, através de uma “empatia reiterada”:
I see myself from your perspective. (…) I empathetically grasp your
empathic experience of me (…). One’s sense of self-identity, even at
the most fundamental levels of embodied agency, is inseparable from
recognition by another, and from the ability to grasp that recognition
empathetically (Thompson, 2001: 17).
Num caminho paralelo ao de Donald (2002), Thompson vai propor que o salto para
a possibilidade de consciência no ser humano se dá não a partir da linguagem, mas,
sim, da empatia, através desse caminho que passa pelo reconhecimento do Outro
como um semelhante a mim e de mim mesmo como um outro para o Outro:
Empathy involves a displacement or fission between my present
recollecting self and my past recollected self (whom I see’ from the
vantage point of the Other who is me now); imagination between
myself imagining and myself imagined (whom I ‘see’ from the vantage
point of the Other who is me imagining); and reflection between my
reflecting self and the experiences I reflect upon (Thompson 2001, 17).
O quarto nível de empatia é algo mais complexo de ser alcançado e envolve um
passo ainda além da recursividade acima descrita, sendo ao mesmo tempo
4 • Empatia e Narrativa
138
conseqüência dela. A responsabilidade ética perante o Outro está relacionada à
possibilidade de, colocando-nos no lugar dele, perceber os limites éticos de nossos
atos.
***
A hipótese de Thompson não pode ainda ser comprovada de forma direta e a
emergência da consciência permanece sendo um problema central para as ciências
cognitivas, muito além, aliás, de qualquer pretensão deste trabalho. Admitindo,
contudo, nossa filiação filosófica à idéia de mente como algo não apenas
corporificado, mas situado num ambiente, ou seja, da importância de um Umwelt
para a emergência da mente e da consciência, o que queremos propor aqui é um
novo caminho para problematizar os personagens autônomos.
defendemos a importância da corporificação vicária de um Umwelt no game de
personagem para a recriação de vivências narrativas no jogo. Mais do que o
“simples” habitar de um espaço, procuramos descrever o enraizamento subjetivo
que esse Umwelt transcriado nos proporciona, se o que almejamos é viver as
motivações de um personagem implicado num espaço-tempo diverso do nosso. A
busca que se abre aqui é mais do que apenas entrar no filme”: este, muito
tempo, é fluente em nos colocar sob o olhar de outros personagens, deixando-nos
inferiri suas motivações, mesmo quando não são das melhores. O cinema nos
permite, por exemplo, num caso marcante para esta pesquisadora, ao mesmo tempo
repudiar e entender o Vito Corleone de Al Pacino, em O Poderoso Chefão II,
quando este se sente “obrigado” a matar o próprio irmão Fredo. É da natureza do
cinema canônico nos colocar nesse lugar paradoxal de quem pode julgar Don
Corleone como um monstro justamente por compreender as motivações que o
levaram a tal atrocidade, como matar um membro da própria famiglia.
No game, contudo, a coisa muda um pouco de figura: não mais a ubiqüidade de
ponto de vista que nos faz viajar de forma fluida de personagem a personagem,
mas uma âncora no espaço, no tempo e nos acontecimentos, através de uma
corporalidade implicada, como já descrevemos. O que se sonha a partir desse
Umwelt é que possamos vestir, mais do que um corpo existente num espaço, um
4 • Empatia e Narrativa
139
“eu” que é um “outro”: um “eu”, porque sou eu que controlo aquele corpo, um
“outro”, porque, agora, um novo Umwelt nos proporciona novas capacidades,
diferentes das que de fato temos no dia-a-dia. Um “eu” implicado em motivações
emergentes do Umwelt e colocado à prova diante da percepção de um Outro, o
personagem autônomo e sua própria e ativa capacidade empática.
De maneira análoga ao que propõe Thompson acerca da emergência da consciência
apenas diante de uma alteridade, é inevitável supor que tal embate no game – entre
interator e personagem possa abrir caminhos para algo além de uma “simples”
vivência espacial. Um passo além de uma consciência corporificada, agora
buscamos a emergência contextualizada de afetos, em relação aos agentes do
mundo virtual. O medo e a raiva já estão presentes, como valores em ação nos
processos agonísticos tão comuns aos games. Estes têm sido até certo ponto fáceis
de implementar, uma vez que, numa luta, o valor compartilhado é a sobrevivência,
de ambos os lados. A IA de agentes de combate tem se tornado cada vez melhor e
mais convincente, buscando ao mesmo tempo a auto-preservação e a eficiência em
eliminar os oponentes. Antes de qualquer crítica possível à violência nos games, é
preciso reconhecer que nada nos torna mais presentes e subjetivamente ancorados
num mundo virtual do que a necessidade de permanência sob nossas próprias
habilidades. Um (grande) passo além disso, contudo, nos parece vir da
possibilidade de vivência cooperativa ou pelo menos não-agonística no mundo
do jogo. Do ciclo de empatia que se abre na convivência com uma alteridade
artificial é de onde pode emergir um novo grau de sentido dentro do game, capaz
de, acreditamos, nos promover um novo salto rumo à vivência implicada num
Umwelt que não é o nosso. Para lançar um olhar final sobre algumas pequenas
maneiras como isso se dá, analisaremos aqui alguns aspectos pontuais de
diferentes versões da Criatura dos jogos Black & White I e II.
4.3
A Criatura
O videogame Black & White, desenvolvido pela Lionhead Studios, foi lançado em
2001. Sua seqüência, bastante semelhante, Black & White II, foi lançada em 2005.
4 • Empatia e Narrativa
140
Aqui, iremos nos referir simplesmente a Black & White, diferenciando entre I e II
apenas quando for importante deixar clara a versão do game a que estamos nos
referindo. Black & White é, literalmente, um god game: nele, o jogador faz o papel
de um deus num mundo politeísta, cujo objetivo é conquistar cada vez mais fiéis,
de modo a ter cada vez mais poder. Dentro dessa dinâmica, a grande promessa do
jogo é ir refletindo em seu próprio mundo a inclinação ética de seu deus/interator:
se for um deus benevolente, o mundo será índice de seus bons atos, tornando-se
esplendoroso; se for um deus cruel, o mundo se tornará um lugar soturno. Ambos
os caminhos, contudo, podem ser eficientes na aquisição de poder. Caberá ao
jogador escolher sua inclinação para o bem ou para o mal (ou alguma nuance entre
os dois extremos) e o que é muito mais interessante viver a conseqüência de
seus atos.
Como foi descrito em (Gomes, 2003), do ponto de vista da dinâmica de
agenciamento, Black & White é um game híbrido, pois, embora mantenha a
característica principal de uma simulação, cabendo ao interator gerenciar diversos
parâmetros para manter o andamento de seu mundo, o game traz também algo de
jogo de personagem. Nele, ao contrário das simulações clássicas, o jogador tem um
avatar através do qual é corporalmente representado no mundo virtual. Mesmo que
apenas seja uma mão, é, ainda assim, um corpo, o que não apenas dá ao interator a
dinâmica de recriação de um Umwelt, como também o torna reconhecido como
agente pelos outros personagens dentro do jogo, o que será extremamente
importante para rios aspectos de sua jogabilidade.
O avatar-mão, em Bla ck & White II, 2005
4 • Empatia e Narrativa
141
Além de ser um game híbrido de simulação e personagem, que promete dar ao
interator o privilégio quase inédito de colher as conseqüências de seus atos, Black
& White foi pensado com outro grande trunfo: a Criatura. Esse personagem
autônomo foi deliberadamente construído com a mais sofisticada IA para agentes
verossímeis, de modo a criar, dentro do que já foi discuto acerca das pretensões de
um game, um ser com o máximo de autonomia e empatia possíveis. A Criatura é
um animal que o interator/deus escolhe no começo do jogo para ser seu ajudante na
conquista de poder e gerenciamento do mundo. Entre as criaturas possíveis estão,
em Black & White I, versões antropomórficas de um orangotango, tigre, vaca,
carneiro, zebra, leão, lobo, um urso polar, entre outros bichos que podem ser
“destravados ao longo do jogo ou acessíveis pela expansão online Creature
Island. Cada uma das criaturas tem traços específicos de personalidade, a vaca
sendo brincalhona, o tigre, mais agressivo etc.
Em qualquer uma das versões, a Criatura de Black & White está um pouco mais
para o paradigma Synthetic Characters de personagem do que para o Oz, embora
mantenha a metodologia de ambos, de combinar o melhor da IA para seus próprios
fins. Sendo um animal, mesmo que antropomórfico (todos bípedes, por exemplo),
ao contrário de um personagem que tenta emular um ser humano, a Criatura
circunscreve de maneira particular nossas expectativas em relação a seu
comportamento e seus desejos, crenças e intenções. Nossa expectativa em relação a
ela será análoga à que temos em relação a um animalzinho de estimação, o que
também ajuda, por trazer um vocabulário de treinamento, que o interator/deus terá
que colocar em prática para ensinar a Criatura a ser o que ela precisa: uma
representante de deus na terra, que deverá cuidar de seus assuntos sob o mesmo
alinhamento para o bem ou para o mal mudando ao longo do tempo de acordo
com esse alinhamento e refletindo-o em sua própria aparência.
4.3.1
Plausível, maleável, amável
De acordo com Richard Evans (2001), responsável pela IA da Criatura, ela foi
pensada essencialmente para cumprir dois requerimentos: ser um personagem
4 • Empatia e Narrativa
142
antropomórfico com o qual o interator pudesse lidar e ser um útil ao interator no
jogo. Essas duas características moldaram a escolha da arquitetura de sua IA,
baseada essencialmente nas estruturas de “perceptrons” e “decision trees”. Abaixo,
baseando-nos na mesma fonte e em (de Carvalho 2004), uma breve descrição da
arquitetura de IA responsável por alguns aspectos do comportamento da Criatura.
Para o cumprimento da primeira função da Criatura – a de uma personagem
antropomórfica os designers estabeleceram três requisitos: que ela fosse
“psicologicamente plausível”, “maleável” e amável” (Evans, 2001). Para alcançar
esse dado de “psicologicamente plausível”, foi utilizada a arquitetura BDI
belief-desire-intention algo que, segundo Evans, vinha rapidamente se
tornando a maneira ortodoxa para criar agentes com esse perfil. Nesse contexto,
crenças são “representações do mundo mantidas pela criatura, representadas por
estruturas que armazenam informações sobre objetos individualmente”; desejos
são “objetivos que a criatura pretende satisfazer”; intenções são desejos eleitos
para serem executados” e opiniões (uma decorrência das crenças), “quantificadores
universais para as crenças e (de Carvalho, 2004: 63). O modo normal da
arquitetura BDI, contudo, impunha uma “estrutura uniforme de representações”,
que Evans e sua equipe quiseram evitar, para não incorrer numa criatura
cristalizada a partir de conceitos (representações simbólicas) imutáveis (o que nos
remete ao posicionamento de Brooks em nosso terceiro capítulo). Em vez dessa
estrutura uniforme, os desenvolvedores optaram por uma arquitetura mista,
utilizando
a variety of different types of representation, so that we could pick the
most suitable representation for each of the very different tasks (…). So
beliefs about individual objects were represented symbolically, as a list
of attribute-value pairs, beliefs about types of objects were represented
as decision-trees, and desires were represented as perceptrons. There is
something attractive about this division of representations: beliefs are
symbolic structures, whereas desires are more fuzzy (Evans 2001).
A tentativa dos programadores de IA em Black & White, portanto, era de
proporcionar a possibilidade de ampla emergência de comportamentos à Criatura,
circunscritos ao contexto do jogo, mas que não cansassem de surpreender o
jogador, sobretudo no processo de aprendizado. A combinação de representações
4 • Empatia e Narrativa
143
simbólicas intencionalidades diretamente derivadas de um conceito dramático
imposto pelo programador (porque não outro jeito) e árvores de desejos que
calibram seu peso a partir da experiência da Criatura garantem essa possibilidade
de emergência, ainda que como mero epifenômeno, e de maneira bastante próxima
à descrita por Cuzziol para seu próprio game, no capítulo três.
Sob essa arquitetura, o que de “plausível” na Criatura é que, para cada estado
mental que ela adota, ou para cada desejo que tem, uma explicação lógica para
como ela chegou ali, explicação esta ancorada em uma crença sobre um
determinado objeto coisa, agente ou lugar que deve necessariamente partir de
seu escopo perceptível:
Creatures in Black & White do not cheat about their beliefs their
beliefs are gathered from their perceptions, and there is no way a
creature can have free access to information he has not gathered from
his senses. I call this requirement Epistemic Verisimilitude (Evans,
2001).
Uma das Criaturas de Bla ck & White II
A escolha da palavra “plausível”, ancorada pelo conceito de “verossimilitude
epistêmica”, nos poupa da boa parte da bagagem problemática do conceito de
“realismo” ou mesmo “verossimilhança” – esta última sempre tomada em sua
relação externa à obra. Para a Criatura de Black & White, Evans deixa claro que o
importante, antes de qualquer outra coisa, é a coerência dentro de um determinado
espaço de estados estabelecido dentro do próprio jogo. Enraizada em seu corpo, a
Criatura tem acesso àquilo que “vê”, “ouve” ou “toca”, e o que garante isso é
sua arquitetura de crenças, desejos e intenções. A partir daí, os comportamentos
4 • Empatia e Narrativa
144
que surgirem poderão até esbarrar num limite máximo de complexidade -- e
certamente o farão, uma vez que um número finito de representações às quais a
Criatura pode relacionar os objetos do mundo mas tais comportamentos deverão
sempre ser orgânicos em relação aos desejos, crenças e intenções da Criatura, uma
vez que emergem deles.
Duas versões da vaquinha de Blac k & White II, 2005
A maleabilidade da Criatura, segundo requisito para fazê-la mais “humana”, se deu
através de uma variedade de possibilidades de aprendizagem. A Criatura pode
aprender um número grande de coisas diferentes e pode chegar a esse aprendizado
através de situações diferentes. O aprendizado deveria cobrir uma série de
habilidades:
Learning that (e.g.: learning that there is a town nearby with
plenty of food)
Learning how (e.g.: learning how to throw things, improving
your skill over time)
Learning how sensitive to be to different desires (e.g.: learning
how low your energy must be before you should start to feel
hungry)
Learning which types of object you should be nice to, which
types of object you should eat, etc. (e.g.: learning to only be nice
to big creatures who know spells).
Learning which methods to apply in which situations (e.g.: if
you want to attack somebody, should you use magic or a more
straightforward approach?) (Evans, 2001)
A aprendizagem pode ser iniciada numa variedade de maneiras: a partir de
manifestações do jogador, acariciando-a quando faz algo certo, batendo nela
4 • Empatia e Narrativa
145
quando erra; a partir de um comando; por observação (do jogador, de outras
criaturas, ou dos aldeões); por “reflexão”: “after performing an action to satisfy a
motive, seeing how well that motive was satisfied, and adjusting the weights
representing how sensible it is to use that action in that sort of situation” (Evans,
2001). A arquitetura da Criatura foi desenhada de modo a suprir essas capacidades
de aprendizado, que estão no centro de sua verossimilhança e de grande parte do
ciclo de empatia que ela compõe com o interator.
A capacidade da Criatura de aprender a criar opiniões acerca de diferentes objetos
foi implementada a partir de uma estrutura chamada decision tree”. A Criatura
aprende a partir de suas experiências pregressas: cada uma de suas experiências
acarreta um feedback em cima das crenças que possuía, de modo que ela pode ir
“calibrando” cada novo valor, a partir da experiência boa ou que viveu: a
decision tree is built by looking at the attributes which best divide the learning
episodes into groups with similar feedback values. The best decision tree is the one
which minimizes entropy, a measure of how disordered the feedbacks are” (Evans,
2001).
Por fim, a realização do que Evans chama de “amabilidade” da Criatura se deu
através da criação do referido ciclo de empatia, começando a partir da Criatura, em
direção ao jogador:
We wanted the player to feel some sort of emotional attachment to his
creature. We soon realized that empathetic attachment is intrinsically
reciprocal: the reason why it is inappropriate to feel emotionally
attached to your tv remote is because your tv remove is not going to
reciprocate. Conclusion: if you want the player to get attached to his
creature, you must first ensure the creature is empathetically attached to
you! (Evans, 2001)
Como não podia deixar de ser, contudo, tal realização não foi óbvia. Para construir
nos agentes uma capacidade muito vagamente análoga à nossa para entender
agentes como “gente”, foi preciso dar à Criatura um modelo simplificado da mente
do jogador:
In Black & White, the creature’s mind includes a simplified model of
the player’s mind. He watches what actions the player is doing, and
4 • Empatia e Narrativa
146
tries to make sense of those actions by ascribing goals to the player
(…). He stores a simple personality model of the player, which he uses
in decision-making. As well as a model of what he thinks the player is
like, he also has goals which relate directly to his master: the desire to
help his master, the desire to play with his master, and the desire for
attention (Evans, 2001).
É basicamente uma abstração a ferro e fogo daquilo que os afamados neurônios-
espelho nos dão de graça! Afinal, a Criatura não nos “vê” do outro lado da tela.
Para ela, somos mesmo uma mão! A arquitetura possível de gerar um universo
coeso e coerente de “modelos da mente” do jogador, assim como de outras
Criaturas e personagens, baseou-se na atribuição de desejos para as ações do
jogador, mas de uma maneira bastante simplificada. Qualquer coisa a mais do que
isso acarretaria modelos complexos demais, que não dariam conta da simples
tarefa de atribuir intenções a atos motores dos outros:
Suppose our agent’s model of another agent includes data about the
other agent’s beliefs as well as his desires. Then we have made the task
of understanding the other agent considerably harder, because there will
be more models which fit the data, and it will be harder to figure out
which is best. Suppose, for instance, that an agent fails to eat the apple.
This might be because he hasn’t seen the apple (and consequently has
no belief about it), or because he doesn’t like apples, or because he just
isn’t hungry. Which of these is the right explanation? We can’t tell until
we have seen a lot of examples. (This problem just doesn’t arise if you
keep an excessively simple model of other agents: if you just model
them as a bunch of desires, then the only possible explanation is that he
isn’t hungry) (Evans, 2001).
4.3.1.1
Ciclos de empatia entre Criatura e interator/deus
A partir dessa arquitetura, a primeira situação entre interator e Criatura envolve
um primeiro passo na escala da empatia: relativamente no começo do jogo, o
jogador/deus deve escolher uma Criatura, entre algumas possíveis. O interator é
levado aonde estão as Criaturas e deverá selecionar uma delas, clicando/apontando
sobre/naquela que decidir. À medida em que passeamos com nossa mão/mouse por
sobre as Criaturas, elas vão fazendo trejeitos entre alegria e decepção: quando a
mão/mouse pára sobre a Criatura, ela pulos de alegria; quando passamos para
4 • Empatia e Narrativa
147
outra Criatura, a preterida nos olha decepcionada, abaixa e balança a cabeça, lança
um suspiro profundo e segue entristecida, como que num gesto de auto-reprovação.
É um primeiro contato com nossa futura Criatura e é um momento poderoso de
responsabilidade. A escolha da Criatura é bastante arbitrária, uma vez que não está
dado ali nenhum elemento que nos possa fazer preferir uma Vaca a um Leão, a não
ser nossas próprias pré-concepções acerca de cada um, a partir de um repertório
que tem pouco ou nada a ver com a realidade do jogo. Quando finalmente
escolhemos uma das Criaturas, clicando em cima dela, ela pulos e rodopios,
enquanto as outras choramingam e desaparecem.
Esse primeiro momento de convivência entre deus/interator e Criatura é um indício
da relação que virá a se estabelecer e está quase que inteiramente calcado no ciclo
de empatia que se inicia no personagem autônomo, restando ao pobre interator a
culpa pela tristeza das outras Criaturas (e a desculpa de que ele é obrigado a
escolher!). O modelo da mente posto em ação pela Criatura nesse momento é
bastante simples: como ela pode inferir a parte dos “desejos” da arquitetura
beliefe-desire-intention, o processo ali é binário: se o interator/deus aponta para ela
(ato motor), ela pode inferir que será escolhida; se aponta para outra, não será. A
emergência de sua alegria ou tristeza é orgânica, contudo: nasce da insatisfação de
seu próprio desejo de ser escolhida que, embora simbolicamente imposto, funciona
da mesma maneira para o interator e para sua relação com outros objetos. Essa é a
verossimilitude epistêmica em ação e, como se vê, garante boa parte da emergência
de afetos que nos cativam em relação à Criatura.
***
Uma série de situações que ilustra muito bem a arquitetura de desejos, crenças e
intenções, ancorando a relação personagem-interator na empatia, é todo o processo
de aprendizado da Criatura. Aliás, para esta pesquisadora, é sobretudo enquanto a
Criatura está aprendendo suas habilidades que ela demonstra um nível de empatia
interessante. Como reconhecido pelo próprio programador, à medida em que o
personagem vai ficando “competente” como ajudante, sua “personalidade
cativante” vai sendo domesticada e ele e o jogo de modo geral vai perdendo
grande parte da graça (e certamente do valor de pesquisa). Tudo isso porque a
4 • Empatia e Narrativa
148
Criatura começa com uma arquitetura pronta para ser calibrada por valores
advindos de sua experiência no mundo, sobretudo na relação com o interator, mas,
a medida que esses valores vão sendo calibrados, parte da emergência vai dando
lugar à comportamentos previsíveis até demais. A Criatura vai se tornando
“robótica” (Evans, 2001).
Um bom exemplo dessa emergência “entrópica”, possivelmente não-intencional
por parte dos programadores, é o processo de aprendizado da Criatura em relação
às suas fontes de alimento. Um caso clássico na ecologia Black & White,
experimentado, ainda que não no seu extremo, por esta pesquisadora e sua Criatura
no jogo (o orangotando de Black & White I), é ensiná-la a não comer os aldeões.
Como qualquer processo de aprendizagem, este também se através de punições
para atos indesejados e recompensas para atos que se quer reforçar. Quando a
Criatura come um aldeão, portanto, devemos dar-lhe uns enfáticos tabefes, para
que compreenda que aquilo não se deve fazer. Dar tabefes na Criatura não é muito
fácil, do ponto de vista da interface: o movimento da mão com o mouse nem
sempre é reconhecido e não há sutileza no tabefe, é tudo ou nada. Além disso, é um
outro momento onde a reação da Criatura nos penaliza, mas no qual, novamente,
não temos escolha: não se pode treiná-la senão dessa forma. Um passo além da
dor, ainda que passageira, de vê-la chorando – mas também de vê-la se regozijando
quando a recompensamos com carinhos é descobrir que o processo de
aprendizado não é tão garantido. Dependendo da ordem das experiências da
Criatura, ela pode associar os tabefes não especificamente a comer aldeões, mas a
comer, de modo geral. Assim, depois de ser punida algumas vezes por comer
aldeões, ela pára de comer qualquer coisa e caberá ao interator tentar lhe dar outras
fontes de alimento, que ela muitas vezes recusa. Com esta pesquisadora, o “mal-
entendido” durou pouco: mal percebi que a Criatura não comia e, previamente
informada desse comportamento indesejável, pude corrigir o erro, oferecendo-lhe
novas fontes de alimento (como trigo) e recompensando seu consumo com
enfáticos carinhos. Houve casos, contudo, de interatores que não conseguiram tão
facilmente “convencer” sua Criatura a consumir outros alimentos e a viram
definhar a níveis comprometedores. Este último caso foi tomado como “defeito”
do jogo e virou tópico de discussão nos fóruns do Black & White I, requerendo
inclusive ajuda dos designers para resolver o problema.
4 • Empatia e Narrativa
149
Outro momento de emergência surpreendente foi em Black & White I, quando a
Criatura começou a aprender milagres. O presente relato foi colhido dos fóruns do
site PlanetBlack&White, onde foi corroborado pelos designers. Vai numa linha
análoga ao mal-entendido da comida, que se aprofunda um pouco mais. Num
determinado caso, uma Criatura aprendeu com seu interator a fazer o milagre da
cura. Como decorrência de sua arquitetura desejos, detraiu grande “prazer” de tal
milagre, pois “sabia” estar satisfazendo seu dono a cada milagre. Disparou a fazer
milagres da cura, até o ponto em que não havia mais na aldeia ninguém a ser
curado. Diante do prazer detraído a partir dos milagres e da decorrente ausência
deles, a Criatura começou a ficar “frustrada” e sua frustração chegou a tal ponto
que ela ficou agressiva. Fruto de sua agressividade, começou a atacar aldeões,
jogando-os de um despenhadeiro. Ao ver os aldeões feridos, a partir de seus
próprios atos, “teve a idéia de curá-los com o milagre da cura. Tendo sucesso
nisso, iniciou-se um ciclo no qual, a cada vez que os aldeões estavam todos
saudáveis, a Criatura os atacava, para depois curá-los. Tal relato causou polêmica
no fórum dos jogadores e foi apenas até certo ponto corroborado pelos designers.
Contudo, do ponto de vista da arquitetura, ele é plenamente possível: a Criatura
quer satisfazer seus desejos e quer satisfazer seu dono. A combinação desses dois
desejos à diversidade de objetos pode ocasionar, como no caso da comida, uma
lógica de prioridades invertida.
O caso é que são justamente as “idiossincrasias” da Criatura o que a tornam
“viva”! Sobretudo quando elas estão intimamente relacionadas à sua “vontade
incontrolável” de satisfazer seu dono. A complexidade da Criatura, no entanto, é
finita. Tudo o que aqui descrevemos de sua arquitetura e de seus comportamentos
indica apenas o começo de um caminho no qual estamos engatinhando.
Acreditamos que, antes de podermos pensar numa estrutura narrativa sofisticada,
antes de podermos alçar os vôos que vislumbramos para um bom game narrativo, é
preciso desenvolver personagens autônomos cada vez mais complexos e o caminho
para essa complexidade deve se dar a partir da possibilidade de aprendizado e de
comunicação com os personagens, sobretudo no que diz respeito às construções
mentais desta em relação ao mundo.
4 • Empatia e Narrativa
150
Alguns caminhos para melhorar isso dizem respeito à possibilidade de implantar
uma quantidade “infinita” de objetivos e “infinitas” maneiras de alcançá-los, ou
seja, “planejamento em tempo real”, de forma análoga ao que fazemos no mundo.
Ambas as coisas o, obviamente, muito difíceis de serem alcançadas. Objetivos
são a ponta do iceberg do processo de vivência corporificada no mundo. Conseguir
algo análogo a isso requer, por definição, uma Criatura que desenvolveu, em algum
nível, um Umwelt, e um grau verdadeiro de emergência. Planejamento em tempo
real também é algo que requer a mesma liberdade de pensamento, emergência real.
Nada indica que estejamos sequer vagamente perto de tudo isso, portanto, o
caminho promissor para os games ainda está atrelado a maneiras de “enganar”
nosso olhar, a partir da combinação mais eficiente e elegante dos dois paradigmas
de computação e IA que discutimos.
Para olhar, agora, de forma conjunta ao que dispusemos nestes quatro capítulo,
procederemos à conclusão, onde tentaremos amarrar as pontas ainda soltas das
questões da narrativa, empatia, emergência e personagens autônomos.
5 • Conclusão
151
5
CONCLUSÃO
5.1
Sistemas de cognição distribuída
Os personagens de Tomb Raider 2 não são sofisticados, se comparados aos que
iremos analisar neste trabalho. São máquinas de estados finitos simples,
normalmente inimigos de pouca esperteza, que atacam cegamente e, pelo menos no
modo “fácil” no qual esta pesquisadora sempre joga acabam sendo presa fácil
para jogadores apenas moderadamente hábeis. os bossesde cada nível, esses
mais desafiadores quanto mais longe se vai no jogo. Bossé o nome que o jargão
aos vilões finais de cada nível, mais poderosos e, às vezes, mais “inteligentes”.
Certamente, a luta com eles é mais difícil, muita vezes requer táticas e estratégias
mais elaboradas do que simplesmente atirar e correr. O bossfinal de TR2, um
monstro que lança raios mortais pelos olhos, requer que o jogador faça seu avatar
a pin up pós-humana, Lara Croft pular de um lado para o outro enquanto atira
sem parar. Cansa, requer muita perseverança e concentração, é caminho quase
certo para um princípio de lesão por esforços repetitivos, mas, ao final, garante
algo muito próximo à catarse dramática. O esforço, a dificuldade, as repetidas
tentativas, parece, equivalem às reviravoltas finais de uma boa narrativa de
aventura. A vitória se assenta em você por horas, dias e faz com que o “fim da
história” tenha a carga de um desfecho, não apenas de uma amputação.
Afinal, é o que Tomb Raider pretende: ser um jogo de aventura. Jogar, como
detalharemos, consiste em explorar o espaço, avançar nele, abrir caminhos, lutar
contra adversários na forma de bandidos, animais ou monstros de fantasia e
passar de um nível a outro, até o final. Mas existe um momento, um único
momento em que a coisa muda um pouco de figura: quando nós o jogador e seu
avatar/personagem chegamos ao Tibet e encontramos logo de cara alguns
monges guardando os templos. A dinâmica bélica que acima descrevemos ativa no
jogador uma rotina de auto-proteção: ao sinal de qualquer entidade, atire. Em TR2,
5 • Conclusão
152
tudo o que se mexe é um inimigo, seja carne, peixe (ou flor que se cheire?). Mas aí
chegam os monges. Ou melhor, nós chegamos até eles e, treinados que estamos,
nem pensamos duas vezes: atacamos. Sacamos nossas armas, apontamo-as aos
monges e... assistimos incrédulos à reação de medo do primeiro deles! O monge,
sem fazer menção de correr e muito menos atacar condizente, pois, com seu
status de monge apenas se protege e sua expressão parece nos dizer: “não faça
isso”. É serena, mas deixa “entrever” o medo. Ele fica assim, até perceber que o
o atacaremos, depois, volta à sua rotina de monge.
Eu, diante dessa reação do monge, me desfiz. Por felizmente não ter lido nenhum
mapa do jogo sobre aquele nível, não sabia da existência dos monges e muito
menos de sua natureza pacífica. Até então, a cada início de nível, eu/Lara éramos
prontamente atacadas por morcegos, pássaros, vilões, antes mesmo de
conseguirmos nos situar no novo ambiente. Com a ingenuidade de um herói no
novo mundo, apenas repeti a rotina, preocupada em sobreviver no jogo. Nessa
nova situação, contudo, assustada pela injustiça que quase cometi, tive que parar o
game e passar alguns bons minutos refletindo. Empatia era o que eu havia acabado
de viver: olhar para o monge tibetano de Tomb Raider 2 e ver, em sua expressão de
medo, o sentido de meus próprios atos. Ver, na alteridade daquele personagem de
código e polígonos, meu próprio espelho, num Umwelt que não é o meu. Eu, ali,
era eu mesma e um outro. E estava diante da semente da questão que neste trabalho
perseguimos.
1.2
Entrar no filme?
Dentre as inúmeras perspectivas sob as quais seria possível abordar este novo
formato, uma nos interessa particularmente e a pesquisa empreendida no mestrado
(Gomes, 2003) percorreu um caminho detalhado na tentativa de mapear alguns
aspectos iniciais do game como formato narrativo, audiovisual, imersivo e
participativo. Nessa pesquisa, procedemos a uma tentativa de delimitar um
universo particular do game, diferenciando-o de demais formatos baseados em
software, e definindo-o a partir de características que julgamos essenciais e
5 • Conclusão
153
diferenciais, que compõem sua explícita e assumida tentativa de transcriar, no
universo de propriedades do digital, uma experiência em certa medida herdada do
“cinema canônico”, ou seja, do modelo hegemônico de cinema, sistematizado
sobretudo por Hollywood (Bordwell et al, 1985). Em outras palavras, a questão
que baseou nossa pesquisa no mestrado foi
a possibilidade deste novo meio estar gestando um formato narrativo
[capaz de] se tornar uma espécie de cinema interativo, uma forma de
proporcionar a realização de um certo desejo de entrar no filme que, de
um modo ou de outro, parece encontrar-se no imaginário de uma
sociedade moldada pelo cinema canônico, como a que cresceu durante
o século XX (Gomes, 2003, 16).
Relacionamos um dos modos gerais de agenciamento nos games à implementação
de uma narrativa, através da atribuição ao interator das funções do protagonistas de
uma jornada dramática, universo que viemos a identificar como sendo o dos jogos
de personagem. Relacionamos o outro universo, o dos jogos de simulação, à
construção de um mundo de natureza mais ou menos sistêmica, em que o interator
é um controlador das propriedades dos elementos de uma simulação, numa posição
análoga à de um deus.
Ao proceder a estudos críticos de exemplares de cada um dos dois gêneros, nos
deparamos com games já um pouco híbridos, que tentavam se fazer valer de
características do gênero oposto para enriquecer sua própria dinâmica de
agenciamento. Desta forma, pudemos constatar que Black & White é um jogo de
simulação que insere o interator fisicamente no universo ficcional como um
personagem claro e Shenmue, um jogo de personagem que busca implementar um
mundo mais sistêmico, a exemplo dos jogos de simulação. Black & White,
especificamente, se mantém essencialmente fiel à criação de um universo
sistêmico, composto de elementos autônomos e complexos o suficiente para que,
de sua relação com o interator, possam emergir experiências sofisticadas. O trunfo
deste game se encontra, portanto, na criação de personagens autônomos mais
complexos, dotados de objetivos dramáticos, que se relacionam com o interator e
são capazes de ações próprias e de mudanças ao longo do eixo temporal. O game
começa a deixar de lado a construção de subterfúgios para urdir uma cadeia causal
de plena coerência base narrativa do cinema canônico –, passando a deslocar
5 • Conclusão
154
essa noção em direção à de emergência de experiências dramáticas a partir da
relação entre os diversos elementos, autônomos e complexos.
Tendo lançado um olhar mais atento a essas duas experiências, finalizamos nossa
pesquisa com a convicção de que, nessa busca pela transcriação do ato de entrar
no filme”, um formato que tente combinar, com sucesso, os dois maiores êxitos
desses gêneros tem tudo para ser um dos mais promissores modelos de drama
interativo. De um lado, parece-nos claro que a característica fundamental e que
aproxima o game de pretensões narrativas da natureza do cinema canônico é sua
possibilidade de criar um mundo no qual o interator se projeta fisicamente e
também como um personagem implicado na história. De outro, esse mundo deve
ser cada vez mais orgânico, para que a experiência narrativa no game possa ir
além de um percurso linear disfarçado.
Na presente pesquisa, partimos do pressuposto que a tentativa de gerar, no game,
uma cadeia causal urdida nos moldes daquela que define o principal sistema do
cinema canônico nos parece cada vez mais fora de lugar, se nada mais, porque
desloca o potencial de complexidade do game para um universo determinista, que
tempos sinais de invalidade no próprio sistema semiótico que o gerou, ou
seja, no próprio cinema canônico. A partir disso, iniciamos esta pesquisa a partir da
crença de que o caminho mais promissor para o game narrativo é o que une o
grande trunfo do jogo de personagem a imersão “física” do interator no mundo
ficcional à construção de uma dramaturgia mais preocupada com a criação de
elementos dramáticos autônomos e suficientemente complexos para que sua
interação possa gerar, no interator, um envolvimento emocional análogo ao de
catarse, ainda que, quiçá, numa redefinição mais afeita à contemporaneidade.
Sob essa perspectiva, passamos a considerar que, dentro de um universo sistêmico
que almeja gerar uma experiência narrativa, os elementos capazes de alcançar
maior complexidade, pela própria natureza de drama, são os personagens
implementados pelo jogo. Levando isto em consideração, e sempre sob a
perspectiva de buscar no game esse ato de entrar no filme, uma questão se coloca,
inevitavelmente: até que ponto é realmente possível a emergência de uma vivência
dramática a partir apenas dessa interação com o jogador/personagem de elementos
5 • Conclusão
155
operados pela máquina, conquanto dotados de maior complexidade, mas sem a
presença de uma estrutura maior que possa garantir uma cadeia causal coerente?
Nossa hipótese, em face de tal questão, é a seguinte: acreditamos que a
convivência com uma alteridade no mundo do jogo é o elemento fundamental
apenas a partir do qual pode emergir qualquer tipo de vivência narrativa
sofisticada. Na raiz dessa vivência está o conceito de empatia, como pedra
fundamental no processo de projeção de motivações àqueles com os quais
convivemos. Acreditamos que os personagens autônomos dos games são o
caminho para a concretização dessa possibilidade e na presente pesquisa tentamos
pontuar criticamente caminhos como isso tem se dado.
Um primeiro passo para demonstrar essa hipótese é contextualizar, no capítulo
dois, o que estamos chamando de narrativa no universo do game. Voltamos a
conceitos apresentados no mestrado, aprofundando-os e trazendo à tona a questão
da narrativa como estratégia cognitiva para reoganizar o fluxo do conhecimento.
Enfrentamos as colocações de ludologistas e narratologistas e, a partir do
aprofundamento dos paradigmas de personagem e simulação, definimos nosso
universo de expectativas para o game narrativo.
No capítulo três, procedemos a um mapeamento das estratégias de criação de
personagens autônomos implementados e que tentam apontar caminhos mais
promissores. Adotamos como âncora núcleos de estudo como o grupo Oz, da
universidade de Carneggie Mellon, e o Synthetic Characters Group, do MIT,
ambos nos Estados Unidos, que levaram adiante pesquisas sobre a implementação
de agentes inteligentes ou, em sua nomeclatura, agentes verossímeis” ou
“lifelike characters” para a sofisticação da experiência dramática dos jogos
eletrônicos. Basicamente, o foco investigativo dos grupos consiste na premissa de
que toda uma camada de mecanismos de linguagem, convenções culturais e
dramatúrgicas sobre os quais devem ser aplicados os recursos de inteligência
artificial para que se possam criar personagens verossímeis e que cumpram o
essencial papel de elevar o grau de complexidade das narrativas dos jogos
eletrônicos. Em vez das mesmas preocupações que regem as pesquisas de
inteligência artificial per se, que buscam responder, em última instância, à questão
filosófica da possibilidade da criação artificial de inteligência comparável à
5 • Conclusão
156
humana, o que rege a pesquisa de tais grupos é uma questão menos ambiciosa, mas
de extrema valia para a implementação do sonho de entrar no filme: o quão
“inteligentes” precisam ser os personagens autômatos para que cumpram funções
dramáticas sofisticadas?
No capítulo quatro, passamos a olhar a tradição da construção da personagem de
ficção, para tentar reenquadrar sua existência no mundo contemporâneo. De um
lado, buscamos, a partir dos estudos de Fernando Segolin, investigar a mudança na
natureza da personagem, para pensa-la agora como “metáfora epistemologia” e não
mais apenas feixe de ações a serviço do enredo. A partir da compreensão dessa
nova personagem a personagem-estado vamos lançar um olhar para as raízes
evolutivas da personagem de ficção, culminando num olhar mais atento àquilo que
consideramos estar no centro do poder da personagem como agente da narrativa: o
conceito de empatia. A partir desse conceito, um último passo que tomamos é
analisar pontualmente diferentes versões da Criatura dos jogos Black & White II e
II, para, a partir de sua implementação, tentar fechar o ciclo de nossa hipótese e
demonstrar de que maneiras a interação jogador-personagem estabelece as
premissas para um aumento da sofisticação narrativa nos games.
1.2
Da metodologia
Game são uma área interdisciplinar por natureza. Como forma expressiva, herdam
repertório da narrativa, do cinema, da comunicação. Como tecnologia, precisam de
forte interface com áreas como a Inteligência Artificial e a computação de modo
geral. Em seu aspecto de objetos de significação, requerem, mais do que a
exposição a um filme, horas a fio de jogo, além de contato com outros jogadores
para colher suas experiências, na medida em que nem sempre é possível, mesmo
ao mais dedicado dos pesquisadores, passar as 40 horas em média requeridas para
o cumprimento total de um jogo de personagem contemporâneo. Ao mesmo tempo,
jogos de simulação, por sua própria natureza, tornam praticamente impossíveis ou
fortemente improváveis a repetição de um mesmo acontecimento. Ou seja: uma
experiência vivida por um interator num jogo de simulação dificilmente será
repetida deliberadamente noutras circunstâncias ou por outro jogador. Por tudo
5 • Conclusão
157
isso, estudar videogames requer uma nova metodologia, que descreveremos aqui
rapaidamente, para tornar transparente o caminho que tivemos que seguir para
obter os dados que aqui constam.
Quase todos os games mencionados ao longo deste trabalho foram jogados pela
pesquisadora. Alguns, como Tomb Raider II, Tomb Raider Anniversary e Shenmue
I, foram jogados até o final, mesmo que por vezes tenhamos recorrido a cheats
(códigos inseridos para destravar níveis particularmente difíceis) e certamente a
walk-thoroughs, mapas escritos colaborativamente por outros jogadores com
muito tempo livre, presume-se para facilitar a outros jogadores o percurso do
jogo. A existência proeminente de diversos walk-throughs para cada jogo lançado
no mercado revela a natureza ainda por demais arbitrária da “narrativa espacial”
dos games: porque é de sua natureza nos perdemos no caminho, torna-se necessária
a ajuda de mapas, sobretudo àqueles que, como nós, não têm tantas horas por dia
para dedicar ao jogo. Contudo, na medida em que o walk-through contraria a
própria natureza do percurso intuitivo por um espaço, sempre que possível
optamos por não usa-lo, recorrendo a eles apenas em momentos em que não se
podia mais recorrer à própria intuição. Outros jogos, como Grand Theft Auto San
Andreas, Resident Evil 4 e os próprios Black & White I e II foram jogados apenas
em parte. Os primeiros porque, além de longos, oferecem, dada sua popularidade,
abundantes relatos de sua jogabilidade tanto na rede, como através de jogadores
com quem temos contato, através do grupo de estudo CS: Games, entre outras
interfaces com gamers de várias idades. Black & White, porque, pela própria
natureza de simulação, não permite a existência de um “fim” propriamente dito. De
toda forma, sempre que falamos de um jogo, ele foi experimentado em primeira
mão em alguma medida e, se um trecho particular do jogo não tiver sido
experimentado em primeira mão, o relato foi colhido de fontes confiáveis, sejam
fóruns de internet, corroborados por mediadores, designers, outros jogadores e, de
preferência, por vídeos gravados do próprio jogo.
165
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