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MARIA CRISTINA RICOTTA BRUDER
A CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO NA PSICANÁLISE LACANIANA: A
SEPARAÇÃO E SEUS IMPASSES
SÃO PAULO
2005
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MARIA CRISTINA RICOTTA BRUDER
A CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO NA PSICANÁLÍSE LACANIANA: A
SEPARAÇÃO E SEUS IMPASSES
Dissertação apresentada ao Instituto de Psicologia
da Universidade de São Paulo, como parte dos
requisitos para obtenção do título de Mestre em
Psicologia.
Área de Concentração: Psicologia Clínica
Orientadora: Profª Livre-Docente Jussara Falek
Brauer
São Paulo
2005
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Bruder, M.C.R.
A constituição do sujeito na psicanálise lacaniana: a
separação e seus impasses./ Maria Cristina Ricotta Bruder.
São Paulo: s.n., 2005. – 108p.
Dissertação (mestrado) Instituto de Psicologia da
Universidade de São Paulo. Departamento de Psicologia
Clínica.
Orientadora: Jussara Falek Brauer.
1. Constituição do sujeito 2. Psicanálise
3. Alienação
4. Separação 5. Jacques Lacan I. Título.
ii
A CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO NA PSICANÁLISE LACANIANA: A
SEPARAÇÃO E SEUS IMPASSES
Maria Cristina Ricotta Bruder
Banca Examinadora
______________________________
______________________________
______________________________
Dissertação defendida e aprovada em ____/___/_____
iii
Para meus pais.
Para meu marido, Celso, pelo fundamental apoio, carinho e compreensão,
e para meus filhos, João, Camila, Ana e Pedro.
iv
AGRADECIMENTOS
A Jussara Falek Brauer, minha orientadora, que, com seu pensamento original
e criativo, abriu espaços importantes para a pesquisa e o atendimento de
pacientes tão difíceis de serem acolhidos em nosso meio, pelas oportunidades
que me proporcionou e pela leitura atenta e crítica.
Aos clientes atendidos na Clínica Psicológica Durval Marcondes e na TECER,
verdadeira motivação para a investigação .
Aos colegas de equipe, pelo companheirismo e incentivo.
Aos professores Léia Priszkulnik e Phillip Willemart, pelas valiosas
contribuições apresentadas no Exame de Qualificação.
v
Sempre digo a verdade: não toda, porque dizê-la toda não se consegue.
Dizê-la toda é impossível, materialmente: faltam palavras. É por esse
impossível, inclusive, que a verdade tem a ver com o real.
Jacques Lacan, Televisão.
vi
RESUMO
Bruder, M.C.R. A constituição do sujeito na psicanálise lacaniana: a separação
e seus impasses. São Paulo. 2005. 108 p. Dissertação (mestrado). Instituto de
Psicologia. Universidade de São Paulo.
Este trabalho consiste em uma pesquisa teórica a respeito da
constituição do sujeito no âmbito da psicanálise lacaniana.
Primeiramente, explicita-se a vertente clínica que motiva esta pesquisa.
Trata-se do atendimento de crianças com problemas graves (psicose, autismo,
deficiência mental, etc.) e suas mães, e das dificuldades encontradas num
momento privilegiado de seu tratamento, em que ocorreria a separação
estrutural entre ambas.
dois modos pelos quais se constitui o sujeito, segundo o Estádio do
Espelho e segundo a topologia da alienação e separação; ambos são
apresentados longamente nesta pesquisa.
Ao explicar a alienação, o estudo enfoca o surgimento do sujeito no
inconsciente, distinto do eu, que é essencialmente imaginário. Este surgimento
é apresentado de acordo com a leitura lacaniana do cogito ergo sum de
Descartes.
Algumas divergências entre autores a respeito da interpretação de casos
clínicos são discutidas neste trabalho, conforme seu entendimento de que tenha
ocorrido a alienação ou não.
Os impasses encontrados na clínica quando da separação são
considerados e analisados criticamente, à luz das teorias vigentes.
Palavras-chave: Constituição do sujeito, Psicanálise, Alienação, Separação,
Jacques Lacan.
vii
ABSTRACT
Bruder, M.C.R. The constitution of the subject in the lacanian
psychoanalysis: the separation and its impasses. São Paulo. 2005. 108 p.
Master thesis.
This work consists of a theoretical research about the subject constitution
in the ambit of de lacanian psychoanalysis.
At first, the clinical aspect that motivates this research is explained:
dealing with children who have serious problems (psychosis, autism, mental
disability, etc) and with their mothers, as well as facing the difficulties found in a
specific moment in their treatment, when the structural separation between
mother and child would occur.
There are two ways by which the subject constitutes itself, according to
the mirror phase and to the topology of alienation and separation; both are
carefully presented in this research.
While explaining the alienation, the study focuses on the emergence of
the subject in the unconscious, distinct from the ego, which is essencially
imaginary. This emergence is presented in accordance with the lacanian reading
of Decartes' cogito ergo sum.
Some divergences between authors concerning the interpretation of the
clinical cases are discussed in this work, according to their understanding of
there having been alienation or not.
The impasses found in the clinical treatment when the separation occurs
are considered and analysed in the light of the valid theories.
Key Words: Constitution of the subject, Psychoanalysis, Alienation,
Separation, Jaques Lacan.
viii
Folha de rosto i
Folha de aprovação ii
Dedicatória iii
Agradecimentos iv
Epígrafe v
Resumo vi
Abstract vii
SUMÁRIO viii
1. Prefácio 1
1.1 Antecedentes desta pesquisa 1
2. Introdução 5
2.1 Referências teóricas 5
2.2 Divergências na interpretação 6
2.3 Outra visão da "colagem" mãe-criança 8
2.4 Um impasse na clínica – uma questão a ser estudada 13
2.5 Alienação, separação 16
3. A alienação 21
3.1 O vel da alienação 21
3.2 Alienação: lógica e topologia 29
3.3 Descartes e a disjunção entre ser e sujeito 34
ix
4. O eu e o sujeitodo inconsciente 40
4.1 Em busca do sujeito 40
4.2 Descartes na leitura de Lacan 43
4.3 A ciência e a verdade 45
4.4O eu em Lacan 48
4.5 As “figuras” e o significante 51
4.6 O sujeito suposto saber, deposto 56
4.7 Novamente, o sujeito suposto saber 62
4.8 O eu e o [eu] 67
5. A separação 73
5.1 A lógica da separação 73
5.2 A separação e a pulsão – o comentário de Eric Laurent 78
5.3 Uma articulação com a clínica 85
5.4 A versão “clássica” da separação 86
5.4.1 A função do nome-do-pai 87
5.4.2 Uma visão crítica 92
5.5 O autismo em discussão 95
6. Considerações finais 97
7. Referências bibliográficas 104
1
1. PREFÁCIO
1.1 Antecedentes desta pesquisa
Atender uma criança e sua mãe, como parte do curso “Atendimento
Individual na Estrutura Familiar” (de 1993 a 1995, quando entrei em contacto
com o trabalho e o projeto da Profa. Dra. Jussara Falek Brauer), e acompanhar
outros atendimentos nesse curso, feitos pelos colegas e supervisionados em
grupo, bem como os dos alunos do seu curso de 1998-2000 (em que passei a
colaborar num trabalho de equipe, atuando como supervisora), foram atividades
que me proporcionaram intenso desenvolvimento nos planos clínico e teórico,
deixando, entretanto, muitas questões em aberto.
Pudemos acompanhar, assim, vários casos de crianças que
apresentavam quadros emocionais graves (algumas haviam recebido
tratamento psiquiátrico, tendo recebido diagnósticos de autismo ou psicose), e
que, geralmente, não falavam. Para atender essas crianças, foi desenvolvida
uma estratégia em que também os pais, e mais especialmente a mãe, eram
escutados pelo mesmo terapeuta. Isso foi uma decorrência da própria
atividade clínica, que mostrou a importância de incluir os pais, de não os deixar
apenas na sala de espera, o que constituiu uma inovação técnica expressiva.
Essa estratégia havia sido testada em extensa pesquisa anterior, e se
encontra descrita no livro A criança no discurso do outro. Um exercício de
psicanálise, de Jussara F. Brauer (org.). Este livro reúne os primeiros resultados
2
dessa pesquisa, e cobre o período de 1987 a 1992. Em sua introdução, a
autora esclarece:
cabia construir uma hipótese de pesquisa na qual tomaríamos
as crianças a nós trazidas em função de seus graves
problemas, como sintoma, no sentido analítico do termo, de
seus pais. Em função desta hipótese construímos uma
estratégia de trabalho na qual nosso recorte seria a família e
não mais a criança. Ofereceríamos então uma escuta analítica
individualizada à criança e a seus familiares, obedecendo ao
critério da procura espontânea, ou seja, propúnhamo-nos
agora simplesmente a ouvi-los como analistas.
Nesse trabalho, pensado como de entrevistas preliminares, tentava-se
levantar a queixa, a história familiar, os antecedentes, etc; muitas cenas se
passavam, tanto na sala de atendimento como fora dela, para serem vistas e
lidas, como um ato significante deve sê-lo, na transferência.
A ligação estreita entre mãe e criança logo saltava à vista; e,
freqüentemente, a criança aparecia como uma “causa” de sua mãe, que
peregrinava por várias instituições à procura de atendimento. Foi escutando as
mães, atendendo as crianças, que pudemos ver que havia um paralelismo entre
o que trazia a criança em sua sessão e o que a mãe dizia, como uma
pontuação feita pela criança ao discurso de sua mãe. Esta foi a base para o
estabelecimento da hipótese de uma "colagem" entre mãe e criança.
Este termo ("colagem") não constitui um conceito, e surgiu (no curso de
especialização citado) de modo aproximativo, para descrever um fato clínico
freqüente: o surgimento de um significante trazido pela criança, geralmente em
ato, em sua sessão, e seu aparecimento na fala da mãe, em sua própria
sessão, cuja pontuação levava a uma mudança devido ao surgimento de
associações e ao trabalho analítico realizado.
3
Vários casos foram atendidos na Clínica Psicológica Durval Marcondes,
do IPUSP, tomando-se o método clínico baseado na psicanálise lacaniana
como base, mas, tendo como norte a hipótese citada, desenvolvendo um
trabalho original. O objetivo do trabalho era, em termos amplos, conseguir uma
separação entre mãe e criança, atuando e intervindo sobre essa relação de tal
modo que se pudesse favorecer o aparecimento da criança em sua
subjetividade, "descolando-a" da mãe; esta estratégia visava também lidar com
a mãe, para que esta conseguisse um posicionamento diferente, que lhe
permitisse liberar a criança e retomar suas questões pessoais.
Em suma, partindo de um problema surgido na clínica dos distúrbios
graves na infância, que se mostrava como uma "colagem" entre mãe e criança,
destacou-se um conjunto de questões em torno da possibilidade de uma
separação entre ambas.
De certa forma, ainda necessidade de responder a uma pergunta
encontrada no prefácio do livro citado acima (Brauer, 1994, p. 11), escrito por
Frayze-Pereira:
Com efeito, se a criança trazida ao analista representa
o que não está sendo passível de simbolização, se ela é "o
sintoma de um Outro inicialmente encarnado pela mãe" (p.
138), e sendo a análise um trabalho com o sintoma através da
palavra, não teríamos a partir daí um sério "problema prático"?
O autor menciona alguns desses "problemas práticos", que se referem
a: o que ou a quem escutar, quais as conseqüências dessa escuta, qual o limite
desse trabalho, além da complicação inerente ao trabalho concreto com
pessoas tão perturbadas; e completa: "pode-se dizer que alguma
especificidade psicanalítica no tocante ao atendimento de crianças?" O que
motiva nossa pesquisa refere-se tanto a aspectos práticos, técnicos, do
atendimento, referente à separação pretendida, quanto à sua fundamentação
teórica.
4
várias questões a serem pesquisadas. O lugar dos pais no
atendimento psicanalítico de crianças remete a uma discussão ainda aberta no
momento atual; o fato de uma criança ser levada ao analista não deixa claro de
quem é a demanda. A própria situação da criança em nossa sociedade, que
dificulta a apreensão de uma demanda sua, própria, constitui outra questão,
bem como a existência de uma especificidade psicanalítica no que tange ao
atendimento da criança. "Criança" , por outro lado, não é um conceito
psicanalítico. É preciso estabelecer a distinção entre a criança e o infantil.
Segundo Kaufmann (1966, p. 99), apesar de todas as descobertas em torno na
primeira infância, Freud não se ocupou diretamente da psicanálise da criança,
e "isso parece indicar que, alinhada segundo a distribuição inconsciente, a
infância era para ele aquilo de que se está estruturalmente separado; infância
que aparece então para o analista como dita e produzida a posteriori,
(re)construída por um adulto no tratamento". Esta é a visão tradicional, do
tratamento analítico do adulto, na neurose; a clínica dos distúrbios graves na
infância requer mudanças técnicas, como se colocou, sendo inevitável o
surgimento de lacunas teóricas.
Das inúmeras dúvidas e dificuldades surgidas nestes atendimentos, veio
a se configurar um pólo de questões que motivaram a realização desta
pesquisa, cuja especificidade deve transparecer mais adiante, e que pretende
ser uma contribuição à compreensão e ao atendimento desse aspecto do
sofrimento humano.
5
2. INTRODUÇÃO
2.1 Referências teóricas
Trabalhando com o referencial teórico da psicanálise lacaniana, a
"colagem" mãe-criança é trabalhada no conceito de alienação, uma formulação
sobre a constituição do sujeito que o funda, que o estrutura, mas que, em
alguns casos, se petrifica, como se a alienação se eternizasse
1
.
A alienação é um momento inicial, fundamental, da constituição do
sujeito, e será objeto de um capítulo; mas ela precisa ser superada, no
processo que Lacan (1988 a) chamou de operação da separação.
A separação é o que possibilita o advento do sujeito. Este termo – sujeito
é muito difícil de definir ; de fato, é uma contribuição de Lacan, que configura
uma inovação em relação ao texto freudiano na medida em que distingue o eu,
uma construção imaginária, do sujeito do inconsciente, o sujeito do desejo. Para
Lacan, Eu e sujeito não coincidem. Para Freud (1923), o eu é das Ich, uma
instância intrapsíquica mergulhada no sistema percepção-consciência, servidor
de numerosos mestres (o isso, o supereu, a realidade exterior); não
nenhuma suposição de um sujeito. Esta diferenciação entre os termos eu e
sujeito será melhor explicitada em um capítulo mais adiante.
Ao falar da separação, no seminário 11, Lacan (1988 a) designa uma
operação lógica que funda a existência do sujeito; na clínica, o que
acompanhamos foi, a certa altura do trabalho, a separação, ou a “descolagem”
entre mãe e criança, donde o aparecimento de dois sujeitos, com questões
1
Este foi o tema de um trabalho que publicamos (Bruder, 2000) num momento anterior de nossa
reflexão acerca dessa clínica.
6
próprias. Se antes podíamos falar em um ser indiferenciado, ou na criança
como objeto, sem domínio do próprio corpo, submetido à subjetividade da mãe,
pudemos assistir em vários casos à mudança radical que fez a criança sair
desse estado, nomeado como de afânise. Essa nova situação corresponde à
separação estrutural entre criança e mãe.
Como foi dito, o termo "colagem" não se encontra entre os conceitos
lacanianos, mas se refere a uma tentativa de descrever um achado clínico. Por
analogia, mencionou-se acima a "descolagem". De fato, propõe-se aqui tomar a
"colagem" como alienação, e a "descolagem", como a separação, segundo a
teorização de Lacan (1988 a). Sabe-se que esta teorização se refere ao âmbito
da linguagem, à constituição do sujeito em sua relação ao Outro, ao advento do
sujeito num universo simbólico. Mas, como se lê em Darmon (1995),
eis que rompe com uma representação imaginária do
inconsciente como conteúdo no interior de cada um; não
diferença para o significante entre intra-subjetividade e
intersubjetividade
o que permite que se estenda a formulação sujeito-Outro para o âmbito criança-
mãe.
2.2 Divergências na interpretação
Porém, se há alienação - se, como afirma Soler (1997, p. 62),
a alienação é o destino. Nenhum sujeito falante pode
evitar a alienação. É um destino ligado à fala. Mas a separação
não é destino. A separação é algo que pode ou não estar
presente, e aqui Lacan evoca um
velle, em francês vouloir, em
7
inglês a want, um querer. Isso é muito semelhante a uma ação
pelo sujeito
vamos nos deter na consideração de que não consenso quanto a essa
proposição. Lemos, assim, em Fernandes (2000) que a alienação não é um
processo automático, ou seja, a introdução no universo da linguagem não é
uma função natural, engendrada independentemente de qualquer ação: algo
deve ser realizado para que o ser aceda à linguagem o que aponta ao lugar
do Outro primordial, o Outro real, encarnado numa presença, cuja função
conjuga o outro do semelhante e o Outro do simbólico. A autora desse trabalho
remete a Laznik-Penot em vários momentos, bem como a Jerusalinsky, em sua
argumentação de que o ingresso da criança no universo da linguagem
dependerá de que um Outro venha a dar sentido aos seus gestos e ruídos
convertendo-os numa mensagem e formulando demandas- dependendo de
que a criança esteja situada num lugar particular no universo deste Outro real,
ou, em termos freudianos, como um objeto na economia libidinal deste Outro.
Em outras palavras, coloca em suspenso que o destino é a alienação (pelo
menos, em relação ao autismo). Julgamos essa afirmação merecedora de uma
discussão, no mínimo para situar a diferença entre uma criança depender do
Outro (o que nos parece irrefutável) e poder existir, até fisicamente, sem ser
marcada pelo Outro. A esse respeito, lemos em Jerusalinsky (1984) que
a percepção da ausência da mãe se impõe com
tanta freqüência na clínica do autismo que merece ser tratada
com todo cuidado....ausência não da mãe, mas a radical
ausência do desejo materno em relação ao filho autista. De
modo que o filho não entra na equação sequer como falo
presente, mas como exclusão total de uma mãe cuja função
aparece previamente suturada. Assim (...)se registra a
ausência da função que faz o Outro (...). Acontece que o outro
circula num imaginário que deixa o filho de fora. Todo
8
significante opera, então, lançando-o ao campo do real,
deixando a criança sem marca.
O autor defende a idéia de que uma criança pode estar fora do universo
da linguagem, sem marca; pretendemos levantar argumentos para discutir essa
questão, que fica sinalizada para ser retomada mais tarde.
2.3 Outra visão da "colagem" mãe-criança
Nas “Duas Notas sobre a Criança”, Lacan (1988 b) fundamentou a
hipótese do que chamamos de "colagem" sob outro ângulo, mostrando que a
criança pode estar implicada diretamente como correlativo de um fantasma
materno. A "colagem", como foi dito, não é um conceito forjado por Lacan;
refere-se à expressão informal de um achado clínico. Em busca de
fundamentação teórica, foi feita a aproximação entre esse achado e o texto
supracitado, como, por exemplo, se encontra em Brauer (1994, p. 17, p. 74, p.
138) . Dito de outro modo, aquilo que estamos chamando de "colagem"
aparece, na formulação de Lacan (1988 b), descrito em outros termos: "O
sintoma da criança se situa de forma a corresponder ao que de sintomático
na estrutura familiar". "A articulação se reduz muito quando o sintoma que
chega a dominar tem a ver com a subjetividade da mãe. Aqui é diretamente
como correlativo de um fantasma que a criança está implicada".
Nessa articulação, a criança não pode ser (ela mesma), sua própria
existência aparece em suspenso, a serviço da causa materna.
Aqui podemos acrescentar a contribuição de Allouch (1997), que, em seu
brilhante trabalho sobre o caso Marguerite, a Aimée de Lacan, o caso como
sendo de loucura a dois. Assim, Jeanne, mãe de Marguerite, se tornou delirante
a partir da morte de sua filha mais velha, a primeira Marguerite, aos 5 anos;
grávida, provavelmente, no momento em que esta criança morre queimada num
9
horrível acidente, a mãe é tomada por sentimentos e idéias de perseguição,
atribui à vizinha acusações que mostram como ela não consegue se
responsabilizar por, eventualmente, ter culpa no acidente; em seguida, à luz
uma menina, natimorta. Em seguida concebe outra criança, segundo a
conjectura de Allouch, “para substituir a criança morta”, dando-lhe o mesmo
nome, Marguerite. É assim que Marguerite, a segunda, nasce para ocupar um
lugar pré-determinado no fantasma de sua mãe, que poderia ser escrito como:
“um voto à morte da criança”, ou, “o assassinato da criança”.
Eis um fragmento do capítulo em que Allouch (1988, p. 213) inicia uma
análise comparativa entre o relato obtido por Lacan referente à morte da
primeira Marguerite e o relato redigido por Didier , filho de Marguerite:
Lacan, portanto, transcrevia o acontecimento com
exatidão, ao notar que fora a mais velha das meninas quem
morrera. Em compensação, este evento não se deu "durante a
gestação de nossa doente", mas durante uma gestação que
resultaria numa criança natimorta (ele situa, erradamente, este
"abortamento" depois do nascimento da segunda Marguerite).
Chegaríamos a dizer que esta criança, pouco no
ventre da mãe, sofreu plenamente a ponto de ser morta, a
incidência, na mãe, da morte trágica de sua irmã mais velha?
Podemos dizer que ela não podia nascer, pois tratava-se de
substituir a criança morta, de levar o nome desta, caso seu
sexo permitisse, e isso não seria possível pela razão de que
fora "contemporânea" da criança morta? Certamente, é no
medo e no terror que tais conjecturas nos podem vir habitar; e
as introduzimos aqui para sublinhar um ponto que não se
nota à leitura da tese de Lacan (devido ao erro na data do
"abortamento").
E, depois de considerar os efeitos dessa nominação (Marguerite), o autor
continua (p. 214):
10
Recordemos aqui que a psicose de Marguerite se deveria
desencadear quando ela estava grávida pela primeira vez,
gravidez que deveria resultar no nascimento de uma criança
natimorta. Teria sido preciso, também para ela, como para sua
mãe, "matar" uma criança
in utero para aceder novamente à
maternidade?
É sugerida no texto (p. 215)
uma certa relação entre a morte de Marguerite e a
perseguição da mãe. (...) Marguerite teria sido, assim,
duplamente perseguida: pelo acontecimento que terá sido o
falecimento acidental de sua irmã mais velha, e pelo efeito
persecutório deste acontecimento sobre a mãe.
Finalizemos esses exemplos com um questionamento de Allouch:
Como se articula esta dupla perseguição com a "pulsão
de morte" à criança, como "perversão do impulso materno"? A
morte de duas crianças natimortas (a de Jeanne e a de
Marguerite) seria originária dessa pulsão de morte na mãe?
(...) Que relação liga esta pulsão à sexualidade da mãe?
Este trabalho, aqui muito resumido, evidencia que Marguerite serviu
como “causa” para sua mãe, e que permaneceu implicada no fantasma materno
(o assassinato da criança) até cometer um atentado que, segundo Allouch
(1988, p. 324) serviu como advertência a sua mãe: esta entra num quadro
abertamente delirante (eclode sua psicose) e Marguerite se cura: considerando
o atentado contra a atriz, ele escreve:
Como este atentado terá podido constituir
acontecimento na loucura de Jeanne a ponto de seu delírio vir
a "eclodir plenamente" a seu propósito? O delírio de sua filha já
era, para ela, algo de importante, como nos revelou uma
11
primeira variação do seu próprio, no momento em que
Marguerite entra na psicose. O que é introduzido, então, pelo
atentado, a ponto de provocar uma nova variação?
Para responder a isso, o autor vai estudar detalhadamente a passagem
ao ato de Marguerite, o atentado contra a atriz. Mais adiante (p. 338), ele
afirma:
Atacar em Huguette ex-Duflos a puta, a mãe, terá tido a
importância de uma certa advertência, dirigida a Jeanne
Pantaine e, aliás, perfeitamente recebida por ela, como
demonstra bem o fato de seu delírio se ter declarado naquele
momento. Lacan, desde 1932, reconhecia na passagem ao ato
este valor de advertência (...).
Antes do atentado, Marguerite viveu dez anos em crise, a partir da sua
própria experiência de ter uma filha natimorta; como exposto acima, Allouch
supõe uma repetição, em que ela, identificada, colada à mãe, também mata sua
criança in utero. Estabelece seu delírio persecutório, elabora uma rede de
perseguidores, culminando na mais expressiva passagem ao ato, o atentado a
faca contra uma atriz, que, em seu delírio, a expunha e ridicularizava, além de
querer matar seu filho (que, como se saberá mais tarde, é Didier Anzieu).
Segundo a elaboração de Allouch, Marguerite teve o ato menos louco
quando cometeu o atentado, porque então adverte a mãe de que não mais
jogará seu jogo, recusa-se a viver a serviço do fantasma materno, quer ter a
sua própria existência. É quando ela começa a se separar, estruturalmente, de
sua mãe; ela rompe, em pleno delírio, com a mãe, embora dirija o ataque à
atriz.
Outro aspecto a ser aprofundado é o da “causa” materna, citada no
início, e que permanecia uma “razão” para toda uma peregrinação das mães
em busca de atendimento. Para além de uma significação mais imediata dessa
12
busca que supõe algum desejo de mudança - poderíamos fazer outra leitura
disso, ainda recorrendo a Allouch, no mesmo trabalho sobre Marguerite. Assim,
após citar uma frase em que Marguerite confessa a Lacan uma das principais
determinações de seu delírio:
Este devia ser o reinado das crianças e das mulheres.
Allouch acrescenta outra frase, de Marguerite Duras, falando, por sua
personagem que é uma mãe, a Anne Desbaredes de Moderato Contabile, que:
Se soubessem toda a felicidade que lhes desejamos, como se
isso fosse possível. Talvez fosse melhor, às vezes, que nos
separássemos deles. Não consigo fazer desta criança uma
razão para mim
. (Marguerite Duras, citado por Allouch, 1997, p.
356).
E comenta que “uma criança jamais pode constituir uma razão”: traz um
sentimento de impotência; origina-se da impossibilidade. “Quanto mais
seriamente uma mulher tentar encontrar uma razão em seu filho, mais ela se
verá desarrazoada. Este é, de modo exemplar, o caso de Jeanne.” E ainda:
“(...) essa impossibilidade do materno pode ser considerada como
estabelecida na medida em que não é escrita; ela seria somente mas este
“somente” não é pouco entrevista, observada no que manifesta de
discordância toda assimilação de uma criança a uma razão.” Marguerite lidava
com essa impossibilidade: era preciso que, enquanto filha - o que ela é
inicialmente, aparecendo psicótica no momento em que se torna mãe - se
apresentasse como mãe no mesmo lugar onde ela era filha, e onde era
obrigada a permanecer (para sua mãe, Jeanne). Por que? “Porque, para
Jeanne, ela era uma razão, uma razão ôntica, uma razão... de ser.”
13
2.4 Um impasse na clínica – uma questão a ser estudada
Mas, embora a separação seja tão importante (conforme nossa
conclusão no artigo citado, “para liberar os dois sujeitos, para que não mais
estejam escravizados em suas demandas de amor”), ela não se sem
sofrimento e dificuldades. A separação permanece, para nós, uma questão em
aberto.
Nos casos que foram atendidos nesse Projeto, chamou-me a
atenção o aparecimento, ao tempo da mencionada separação, de um
sintoma físico na mãe. Um evento particular, específico para cada uma
dessas mulheres, que falava de sua subjetividade. De certa forma, coincidia
com a entrada em análise da mãe; mas não vinha como um sintoma no sentido
analítico do termo; vinha no corpo, não simbolizado. Alguns exemplos, neste
momento, serão úteis para esclarecer nossa questão
2
.
no primeiro caso atendido segundo essa linha (na Clínica Psicológica
Durval Marcondes, segundo as diretrizes mencionadas), observa-se a
emergência de um sintoma no corpo da mãe ao longo do trabalho. Segue-se
um resumo, extraído da Tese (Brauer, 2000, p.104). Trata-se de um retorno:
após um primeiro atendimento, quando foi trazida a queixa de que a criança,
aos três anos, não falava, indicou-se psicoterapia para a mãe, por ter se
destacado a dificuldade da mãe em separar-se da criança. Esta indicação não
foi seguida; e cinco anos mais tarde, os pais retornam à Clínica. O filho havia
recebido atendimento fonoaudiológico, que lhe proporcionara sensível melhora,
mas continuava a existir um problema de fala, de troca de letras ou de sua
omissão, além da dificuldade de construção de frases. Percebe-se logo que
esta criança ocupa o lugar de "problemático"; nota-se também que a relação da
mãe com o filho continua a apresentar características de simbiose, e o menino
aparece como sintoma da mãe, falando por ela. Circulam os significantes que
2
Citados por Brauer, J (2000). Ensaios sobre a clínica dos distúrbios graves na infância. Tese
de Livre-Docência, Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo.
14
marcam a criança, e que marcam sobretudo a história relatada pela mãe.
Grávida deste filho, ela alucinava vendo "negões" em cima do telhado e do
muro de sua casa; eles se masturbavam e olhavam para ela, que supunha que
estavam observando a rotina da casa para um posterior assalto. O menino,
embora fosse inteligente, atento e curioso, fazia-se no entanto de bobo; suas
dificuldades escolares estavam ligadas a sintomas sexuais (que apareceram
claramente na hora lúdica, em que "troca" A por O). Desta vez, a indicação de
terapia foi aceita; e logo no início a mãe da criança apresentou uma inflamação
no pescoço, que ela denominou de "papo". Este fato coincide com uma
caxumba do filho. Investigou-se com ela o que este papo poderia estar
expressando. Ela começou relacionando o papo a um estado emocional de
preocupação provocado sobretudo pelo menino. (Não se encontrou causa
orgânica para este "papo"). Pretexto para as sessões, o "papo" era também
veículo de resistência: a mãe vinha por causa do "papo", faltava por causa do
"papo". Num movimento de avanços e recuos (em que a mãe, por exemplo,
constata a melhora do filho e não quer vir mais, mas tenta falar com a terapeuta
no horário do filho), o trabalho foi se desenvolvendo: ela percebe que os
problemas que sempre atribuiu ao filho eram na verdade seus. Destaca-se a
mudança por parte da mãe, a partir da qual ela se sente com recursos para
enfrentar situações em que se sente roubada, permitindo que se note uma
mudança de registro: aquilo que aparecia como real (assaltos, roubos) passa
para o imaginário (situações em que se sente roubada). A questão da
separação é trabalhada por ambos, mãe e filho, sendo interessante destacar
que, na última sessão, eles entram juntos, na sessão, e brincam de ... palavras
cruzadas. Durante o jogo, a mãe conta ao filho fatos ocorridos durante sua
gestação, especialmente as ameaças de "roubo", dele próprio, conforme a
percepção da mãe na época (na realidade, ela precisava trabalhar, e sua sogra
se ofereceu para cuidar dele, que era bebê, mas quis que a mãe desse o bebê
para ela). Foi preciso jogar palavras cruzadas para que eles pudessem se
separar, e também as palavras, que estavam como que coladas. Aquilo que foi
colocado antes na forma de alucinação (roubos, negões se masturbando no
15
telhado) surge agora no discurso, quando ela conta ao filho sua história de vida.
Cada um pode ficar com suas próprias questões: a mãe assume que não quer
tocar neste momento nas suas, a criança não está na posição de incapaz,
que tinha ao chegar.
Um segundo exemplo (também retirado de Brauer, 2000, p. 239) refere-
se a um menino que, ao chegar ao Lugar de Vida, encaminhado pela Santa
Casa de Misericórdia, tinha 7 anos e se mostrava agitado, com diagnóstico de
autismo, e era medicado, desde a idade de um ano e meio. começou a falar
aos 5 anos. A mãe relata que desde muito cedo preocupa-se com ele. O pai
achava que sua mulher exagerava, e só começou a se preocupar quando o filho
tinha 3 anos. Desde o início, aparece a problemática sexual do menino, que,
como visto no atendimento da mãe, parece ecoar as questões desta (segundo a
história levantada no atendimento, esta mãe é filha de um homem que tinha
duas famílias, não sendo casado com sua mãe, havendo esta situação marcado
a mãe de um modo importante; em resumo, a bigamia do pai era conhecida e
aceita pelas duas famílias, sendo que a família oficial aparece como destituída
de qualquer sexualidade, enquanto que a família da mãe parecia estar
impregnada dela
3
). Conforme a estratégia deste projeto, ela é atendida pela
mesma terapeuta, que a escuta e acompanha o surgimento de dores de cabeça
e no abdômen depois que ela elogia os progressos que estão sendo feitos no
trabalho com o filho. Com o tempo, vai se dizendo doente: doente da cabeça e
das pernas. uma sessão importante, em que o menino fala, trazendo sua
impulsividade, e batem à porta, avisando a terapeuta de que a mãe está
passando muito mal; ela chora de dor no abdômen. Quando se deita nos
colchões da sala de atendimento começa a falar. O filho fica quieto ao da
mãe, tem um ar preocupado. Ela está muito nervosa. Sente muita dor na altura
do ovário. Fala que tem medo de ir para o hospital e de operação. Rememora
uma operação de vesícula a que sua mãe se submeteu quando ela tinha 15
anos. Foi nesse dia que ela teve que ir buscar o pai na casa da outra mulher.
3
Outra versão deste caso pode ser lida no artigo de Reis (2000). Vide referências bibliográficas.
16
Tem medo de anestesia pois lhe dá dor de cabeça. Pergunta então à terapeuta:
"o que a gente tem dentro da gente?" Diz que tem medo de ficar louca, acha
que está ruim da cabeça. Após ouvi-la, a terapeuta leva-os ao Hospital
Universitário, onde o médico diz que é uma hérnia, coloca-a para dentro, ao que
a mãe sente alívio imediato. Depois disso os médicos não encontraram mais
nada e ela não sentiu mais dores abdominais.
A questão que pretendo estudar poderia ser formulada nos seguintes
termos: “por que a separação é vivida tão dolorosamente por tantas mulheres, a
ponto de não poder surgir em palavras, mas no real do corpo?”
2.5 Alienação, separação
Essa formulação, que articula os termos: sintoma, corpo, real,
separação- remete novamente ao seminário 11 de Lacan. Lá, encontra-se, na
topologia lacaniana, numa exposição que visa formular como se constitui o
sujeito, uma repartição que opõe o sujeito e o Outro com relação à entrada do
inconsciente. O Outro é o lugar onde se situa a cadeia do significante. O sujeito
se caracteriza por uma dependência significante ao lugar do Outro.
Pode-se resumir o processo de alienação-separação em três momentos
lógicos:
1) O sujeito é chamado
2) O sujeito se vê no outro
3) O Outro lá retorna
Esses momentos são acompanhados por uma lógica. Em plena colagem, a
lógica é a do ou-ou (ou eu, ou o outro); o sofrimento é intenso, angústia de
desaparecimento. Essa etapa em que o sujeito é chamado precisa ser
substituída por outra, em que apareça o “e” (eu e o outro) em que, além de se
ver no Outro (reconhecendo seu desejo, na conhecida fórmula de Lacan
17
pela qual o desejo do sujeito é o desejo do Outro), também o sujeito possa ver
que algo falta à mãe. Ela deseja, ela é castrada; se, no primeiro momento, o
desejo da mãe transmite ao filho o significante falo, o significante do desejo, é
no segundo momento, quando a criança percebe que a mãe é desejante,
castrada, que se instala plenamente o significante falo. Usualmente, considera-
se que, para que isso possa acontecer, é preciso que a mãe traga uma palavra
de lei, uma palavra paterna: ela terá que fazer algum movimento que permita à
criança ver que é castrada. Esta é uma descrição da instalação do significante
nome-do-pai; este processo é o da instalação da metáfora paterna. uma
torção, em que primeiro se instala o nome-do-pai, a possibilidade de castração,
a criança constata na mãe a falta, e então se precipita a instalação do falo, que
estava lá. O terceiro momento é patrocinado pelo significante nome-do-pai
um nome, que esteja no discurso da mãe, vai permitir que ela se resgate como
sujeito e que a criança se separe. Criança e mãe, duas subjetividades,
separadas, não mais uma colagem.
Mas, na questão que me tocou nesses atendimentos, a separação trazia
uma grande dor, um sintoma físico muito importante. Parece que a separação
“normal” não pôde acontecer; em outras palavras, nosso conhecimento teórico
desse processo é insuficiente para descrever o que aparece na experiência
clínica. Foram expostas duas possibilidades: uma da literatura psicanalítica, que
tem na agressividade sua solução (Marguerite), e outra de nossa clínica, onde
aparece a dor, a manifestação no corpo ; julgamos oportuno um estudo em
torno dessa problemática.
Diante dessas colocações, propõe-se um estudo da alienação num
primeiro momento, mas se configura a necessidade de analisar criticamente a
teoria da separação. Um (outro) capítulo será dedicado a isso. Entre ambos,
apresenta-se a questão da diferenciação entre o eu (moi) e o sujeito (je) do
inconsciente, cujo estudo se impôs conforme o andamento desta pesquisa. De
fato, vê-se claramente na topologia lacaniana que o “ser” e o “sujeito” são
disjuntos; mas o próprio Lacan articula suas proposições em torno ao cogito
cartesiano de modo a questionar o sujeito da ciência, ao mesmo tempo em que
18
assume a tese filosófica de que tal sujeito começou a existir com Descartes. As
semelhanças e diferenças entre Freud e Descartes, a partir da leitura de Lacan,
serão então contempladas. Para fazer este percurso, seguiremos Guy Le
Gaufey (1996).
Se alcançada uma separação entre mãe e criança, há, como afirmamos,
o aparecimento do sujeito (criança) separado da mãe; mas, do ponto de vista
desta, um corte – algo se perde (o filho/falo). O surgimento do sintoma físico
é pensado como se faltasse um elemento que permitisse a simbolização dessa
perda, pelo menos de início. Ou seja, se pensamos na separação como um
processo, deve haver um primeiro momento em que não há, à disposição da
mãe, significantes para dar conta daquilo que está vivenciando. Será então por
isso que o resultado é um sintoma no corpo ?
Essa pergunta poderia ser colocada nos termos da Psicossomática.
Entrarei um pouco nesse tema, apenas para demarcar essa relação e isolar
nossa posição. Seguindo Roudinesco (1998), a medicina psicossomática
nasceu com Hipócrates, concerne à relação direta entre corpo e espírito, e
descreve como as doenças orgânicas são provocadas por conflitos psíquicos,
em geral inconscientes. Diversas correntes de medicina psicossomática
desenvolveram-se em todo o mundo; e foi o que abriu o caminho para a
psicanálise influir na medicina, especialmente nos grandes serviços
hospitalares. A ciência moderna nasce da separação que se atribui a Descartes
entre corpo e mente, e, como escreve Schiller (2000),
pensamento e matéria foram reunificados aos
poucos, à custa do trabalho de gerações de pensadores que
lutaram pelo resgate do sujeito excluído pelos cientistas,
culminando com a psicanálise no final do século XIX. (...) O
que não pôde ser demonstrado e reproduzido em condições
empíricas e experimentais foi relegado ao campo da
especulação ou caiu no descrédito. Nesse bloco incluíram-se
as suspeitas de que o corpo pudesse estar submetido aos
19
processos psíquicos, que estes não podiam ser avaliados
segundo os métodos aplicados pelas ciências exatas.
Essa menção ao resgate do sujeito é o que, a nosso ver, configura a
questão: sem enveredar por esses (vários) caminhos teóricos, em torno da
relação corpo-mente, optamos por tratar da delicada situação que esta clínica
traz, no momento da separação, trabalhando sobre a constituição do sujeito. Ou
seja, proponho estudar a constituição do sujeito que advém frente a um Outro,
presentificado por uma mãe que o retém, que sofre, sente dor: resiste à
separação. Em outras palavras, o sintoma físico é para mim o ponto de partida
para um estudo teórico em torno da questão da separação.
Se, como disse Lacan (1988 b), a criança pode estar implicada
diretamente como correlativo de um fantasma materno, pode-se pensar que a
mãe traz seu filho “para dizer” algo de seu fantasma a criança era a
encarnação disso, era o significante encarnado. Será por isso que, ao tempo da
separação, o significante se “encarna” no corpo da mãe? Lembremos outro
aspecto apontado por Lacan no texto supracitado:
O sintoma - esse é o dado fundamental da experiência
analítica - se define, nesse contexto, como representante da
verdade. (...) A distância entre a identificação com o ideal do eu
e o papel assumido pelo desejo da mãe, quando não tem
mediação (aquela que é normalmente assegurada pela função
do pai), deixa a criança exposta a todas as capturas
fantasísticas. Ela se torna o "objeto" da mãe e não mais tem
outra função senão a de revelar a verdade desse objeto.
Verdade que "retorna" ao corpo da mãe, na separação, em nossa
hipótese. É o que nos faz pensar em "sintoma físico". É, em suma, a hipótese
de o sintoma, que estava na criança, se manifestar no corpo da mãe.
O conceito de sintoma é bem diferente na medicina e na psicanálise.
Conforme o dicionário (Ferreira, 1999, p. 1863), para a medicina, sintoma é
20
"qualquer fenômeno de caráter subjetivo provocado no organismo por uma
doença e que, descritos pelo paciente, auxiliam, em grau maior ou menor, a
estabelecer um diagnóstico". Se há doença, há diagnóstico e prescrição de uma
terapêutica para extinguir o sintoma, a doença. Há que ter em vista a precaução
apontada por Priszkulnik (2000), ao discorrer sobre a experiência clínica:
"assim, ao se pensar em diagnóstico e tratamento, não se pode esquecer a
origem médica das expressões" - e pensar no diagnóstico e no tratamento
dentro dos referenciais psicanalíticos.
Não é de ordem médica o sintoma que foi observado em nossa clínica. A
rigor, foi isso que sempre chamou a nossa atenção: não havia doença orgânica,
mas uma manifestação no corpo, que poderia ser tomada como um sintoma de
uma doença.
Para Chemama (1993, p. 203), sintoma é "fenômeno subjetivo que
constitui, para a psicanálise, não o sinal de uma doença, mas a expressão de
um conflito inconsciente". É nesse sentido que usamos o termo. Ele não deve
ser tomado como algo a extinguir, mas, ao contrário, pode estar (quase)
mostrando algo da subjetividade da mãe, no momento em que a subjetividade
da criança desponta. É uma máscara, no sentido que diz Lacan (1999 b, p.
337):
A idéia de máscara significa que o desejo se apresenta
sob uma forma ambígua, que justamente não nos permite
orientar o sujeito em relação a esse ou aquele objeto da
situação. um interesse do sujeito na situação como tal, isto
é, na relação desejante. É precisamente isso que é exprimido
pelo sintoma que aparece, e é isso que chamo de elemento de
máscara do sintoma.
É o que nos propomos investigar: a separação e seus impasses.
21
3. A ALIENAÇÃO
3.1 O vel da alienação
O tema da alienação o vel da alienação - foi tratado repetidas vezes
por Lacan, estabelecendo em termos de uma topologia as formas de conjunção
do sujeito com o Outro. A primeira versão dessa questão aparece em Posição
do Inconsciente (Lacan, 1998, p. 843) e no Seminário 11(Lacan, 1988a).
Numa exposição que visa formular como se constitui o sujeito, encontra-
se, no Seminário 11, uma repartição que opõe o sujeito e o Outro, com relação
à entrada do inconsciente. O Outro é o lugar onde se situa a cadeia do
significante. O sujeito se caracteriza por uma dependência significante ao lugar
do Outro. “O sujeito, o sujeito cartesiano, é o pressuposto do inconsciente,
como demonstramos no devido lugar. O Outro é a dimensão exigida pelo fato
de a fala se afirmar como verdade. O inconsciente é, entre eles, seu corte em
ato” (Lacan, 1998, p. 853). Encontra-se no comentário de Diana S. Rabinovich
(2000, p. 105) que “o inconsciente é o produto da união desses dois campos, o
campo do sujeito e o campo do Outro, mas sempre ficará situado do lado do
Outro, na medida em que o inconsciente é o discurso do Outro”.
Seguindo com Lacan (1998, p. 854),
Encontramos esse corte comandando as duas
operações fundamentais em que convém formular a causação
do sujeito [alienação e separação]. Operações que se ordenam
22
por uma relação circular, mas, no entanto, não-recíproca. A
primeira, a alienação, é própria do sujeito.
O sujeito nasce por ação da linguagem. Lacan (1998, p. 849) se
pergunta, em Posição do Inconsciente, sobre a diferença entre palavra e
linguagem: referindo-se aos mecanismos inconscientes, ele questiona se eles
seriam efeitos de linguagem ou de fala, e enfocando aquilo que nos coloca em
causa, ou seja, o sujeito, afirma que a alternativa se torna disjunção. Assim,
o efeito de linguagem é a causa introduzida no sujeito. Por
esse efeito, ele não é causa dele mesmo, mas traz em si o
germe da causa que o cinde. Pois sua causa é o significante
sem o qual não haveria nenhum sujeito no real.
Lacan, nesse texto (1998, p. 853), reabre o debate sobre a causa,
“fantasma impossível de exorcizar do pensamento, crítico ou não. Pois a causa
[...] perpetua a razão que subordina o sujeito ao efeito do significante”.
Como resume D. Rabinovich (2000, p. 97), “o efeito é falta, que se faz
perda para se tornar causa como objeto”. Isto será retomado mais tarde. Por
enquanto, deve ficar marcado que, seguindo no texto com Lacan, é somente
como instância do inconsciente, do inconsciente freudiano, que se apreende a
causa. E Lacan dirá também em A ciência e a verdade (1998, p. 879) que a
causa recobre o imperativo do soll Ich, o ‘eu devo’ da fórmula freudiana, que,
por inverter seu sentido, faz brotar o paradoxo de um imperativo que me
pressiona a assumir minha própria causalidade”.
A alienação e a separação, nos textos citados no início, são definidas
como operações de causação do sujeito. Em torno dessas operações, deve
aparecer com mais clareza a questão da causa que o sujeito assume.
A operação de alienação articula o campo do sujeito e o campo do Outro
o sujeito está submetido à primazia do significante, como diz Lacan (1998, p.
854):
23
Conferir essa prioridade ao significante em relação ao
sujeito é, para nós, levar em conta a experiência que Freud nos
descortinou, a de que o significante joga e ganha, por assim
dizer, antes que o sujeito constate isso, a ponto de, no jogo do
Witz, do chiste, por exemplo, ele surpreender o sujeito. Com
seu
flash, o que ele ilumina é a divisão entre o sujeito e ele
mesmo.
Falar na primazia do significante remete a uma contingência
especificamente humana: trata-se do homem como um ser falante, mergulhado
em uma cultura antes mesmo de seu nascimento; ele sofre determinações
desse sistema simbólico que é a linguagem, e ingressará nessa ordem
simbólica a partir da relação com o Outro num primeiro momento,
presentificado pela mãe que vai falar com ele, oferecendo-lhe significantes
que o constituirão.
Na conhecida formulação de Lacan (1998, p. 854), um significante
representa um sujeito para outro significante:
Produzindo-se o significante no lugar do Outro ainda
não discernido, ele faz surgir ali o sujeito do ser que ainda não
possui a fala, mas ao preço de cristalizá-lo. O que ali havia de
pronto para falar (...) desaparece, por não ser mais que um
significante.
Essa frase, extremamente densa, propicia a base para uma reflexão.
O significante, diz Lacan, se produz no lugar do Outro: a operação de
alienação se inicia no Outro. Embora não tenha aparecido em nossa pesquisa
nenhum questionamento quanto a isso, parece haver diferença na interpretação
desse trecho. Assim, foi apontada na introdução uma divergência entre autores.
Soler (1997) afirma que a alienação é o destino, e que nenhum sujeito falante
pode evitar a alienação: é um destino ligado à fala. É preciso ressaltar sujeito
24
falante: expressão redundante, que o texto lacaniano apresenta aludindo ao ser
que não possui a fala. O significante faz surgir ali o sujeito do ser que ainda não
possui a fala: o ser poderá falar ou calar-se. O sujeito do inconsciente, isso fala,
como Lacan repetiu inúmeras vezes. (Mas, cabe adiantar o que será descrito
posteriormente, é preciso que tal sujeito se constitua, se separe).
No texto citado na introdução (Fernandes, 2000), a alienação, pelo
menos em relação ao autismo, não é vista como destino: dependeria do sentido
dado pelo Outro aos gestos e ruídos da criança, convertendo-os numa
mensagem. Dependeria também de estar situada a criança num lugar particular
deste Outro real. Em suma, não referência ao principal aspecto, o
surgimento do significante no campo do Outro; ao contrário, aparece,
subentendida, a interpretação do que faz a pessoa (mãe, cuidador) que está no
lugar do Outro, presentificando o Outro (alguém que dá sentido ou não a gestos
e ruídos; alguém que toma ou não a criança como objeto libidinal). Nesta visão,
omite-se a possibilidade de existir um sujeito dividido, em afânise: é recusada a
existência de um sujeito, ao não se lhe apresentar a oferta significante vinda do
Outro.
Harari (1990) contribui para esse debate:
O significante, a partir do campo do Outro, dá desse modo
vida e morte a um vivente sexuado, prometido a sujeito
dividido, em todo caso, mas que ainda não o é. Antes - tempo
lógico - do significante e seu impacto, contamos com uma
cria do
sapiens; essa que Lacan chama infans, o mudo, aquele
que não fala.
Não se porquê o autista estaria excluído, inexoravelmente, do
universo da linguagem apenas por não falar; tomá-lo por, tão somente, uma cria
do sapiens, destituído de qualquer possibilidade de subjetivação, este sim
parece um destino - atribuído pelo diagnóstico psiquiátrico, fenomenológico -
dos mais funestos.
25
Chama a atenção o destaque dado à ausência do desejo materno em
relação ao filho autista. Ausência? Talvez fosse mais apropriado questionar (o
que não é fácil), a determinada mãe de autista, sobre seu desejo, que pode
não ser amoroso, acolhedor, etc, - pode ser funesto.
Isto que acaba de ser exposto - um destino funesto, atribuído pelo
diagnóstico de autismo segundo essa concepção, que vem no lugar de um
desejo materno funesto - faz pensar numa atuação profissional movida pela
transferência do caso, ou seja, em um possível acting-out do analista.
Na frase de Lacan citada acima, a menção ao infans, segundo Diana
Rabinovich (2000, p. 106), deve-se a uma alusão ao S1, “um significante
isolado que não admite possibilidade de palavra, anterior a que o sujeito fale”.
Essa mesma autora comenta a impropriedade de se falar em “cristalizá-lo”
(aparece em francês “fixá-lo”, em castelhano “coagulá-lo”, em português
“cristalizá-lo”), corrigindo então a tradução, que uma referência à
fixação em seu sentido mais estritamente freudiano: “a fixação freudiana o
imobiliza nessa posição e nesse lugar” (p. 106).
O significante, ao se produzir no campo do Outro, faz surgir o sujeito de
sua significação, mas, ao mesmo tempo, o reduz a ser apenas isso – um
significante petrificando-o no mesmo instante em que o chama a funcionar
como sujeito. Isso é a afânise, momento de fechamento do inconsciente,
desaparecimento do sujeito.
E Lacan (1998, p. 855) continua:
Não é o fato de essa operação se iniciar no Outro
que a faz qualificar de alienação. Que o Outro seja para o sujeito
o lugar de sua causa significante faz explicar, aqui, a razão
por que nenhum sujeito pode ser causa de si mesmo. (...) A
alienação reside na divisão do sujeito que acabamos de designar
em sua causa.
26
Avançando na estrutura lógica, Lacan vai apresentar o vel da alienação,
derivado da reunião na lógica matemática, requerida para dar conta da
coexistência do sujeito e do Outro.
No vel alienante que tem uma qualidade, a de ser letal - se o sujeito
escolhe o ser, perde o sentido, e se escolhe o sentido, perde o ser, produz-se a
afânise; entre os dois campos, o do sujeito e o do Outro, está o sem-sentido, o
inconsciente. sempre uma perda nessa escolha (forçada). Em outras
palavras, o sujeito está condenado a só aparecer, ou, de um lado, como
sentido, produzido pelo significante, ou, do outro lado, como afânise. Como o
sentido emerge no campo do Outro, é de sua natureza ser eclipsado numa
grande parte de seu campo pelo desaparecimento do ser, induzido pela função
mesma do significante. Nesse primeiro tempo, o sujeito não fala, é incapaz de
aceder à palavra; como a fala requer a articulação de pelo menos dois
significantes, tem que haver esse apelo ao segundo significante:
Antes de (...) desaparecer como sujeito sob o significante
em que se transforma, ele não é absolutamente nada. Mas
esse nada se sustenta por seu advento, produzido agora pelo
apelo, feito no Outro, ao segundo significante (Lacan, 1998, p.
849).
O sujeito, então, se divide em S1 e S2: por isso o sujeito é efeito de
linguagem, sendo o significante sua causa material. Entende-se, assim, que
o sujeito seja, ou petrificação – identificação constitutiva – ou fading, afânise.
O sujeito "cai", como um efeito da articulação S1 - S2. De onde vem esse
S2? A última citação de Lacan menciona o "apelo, feito no Outro, ao segundo
significante". Mas não fica claro quem apela: S1? O sujeito? diferentes
conseqüências, caso se o entenda de um modo ou de outro. S1 está no
campo do Outro, e o sujeito, barrado, colocou-se sob S1; a aposta no apelo
do sujeito por um segundo significante (e não no apelo do Outro, via S1)
27
força ao elemento "interno", num movimento do sujeito. A propósito, Harari
(1990, p. 253) afirma que
não um significante, mas sim pelo menos dois. A
definição deste significante deve envolver necessariamente um
significante a mais e ainda outro elemento: o sujeito. É por isso
que os desenvolvimentos lacanianos jamais poderiam chegar a
ser confundidos com uma lingüística "objetiva", porquanto
neles está constantemente intercalada de maneira decisiva a
função do sujeito. Ao acontecido na alienação, podemos
denominá-lo como captura.
Como explica Rabinovich (2000, p. 101-102),
S1, o primeiro significante, designa o sujeito, mas não lhe
sentido nenhum, designa seu ser. O segundo significante lhe
outorga sentido e, ao fazer isso, apaga o ser, produzindo a
afânise, ou o
fading do sujeito, identificada com o recalque
primário freudiano. O S2, por isso, é denominado
representante da representação,
Vorstellungsrepräsentanz.
Lacan dois exemplos desse vel alienante (“a bolsa ou a vida”, “a
liberdade ou a morte”), para deduzir deles o citado fator letal: entra em jogo a
morte. Segundo Rabinovich (2000), trata-se de muito mais do que exemplos.
Ela cita o texto do seminário 11 (p. 201):
A bolsa ou a vida ! Se escolho a bolsa, perco as duas.
Se escolho a vida, tenho a vida sem a bolsa, isto é, uma vida
decepada. [...] Foi em Hegel que encontrei legitimamente a
justificação dessa apelação de
vel alienante. Do que se trata,
28
nele? [...] trata-se de engendrar a primeira alienação, aquela
pela qual o homem entra na via da escravidão.
A liberdade ou
a vida
! Se ele escolhe a liberdade, pronto, ele perde as duas
imediatamente se ele escolhe a vida, tem a vida amputada
da liberdade.
Rabinovich considera que é preciso levar em conta a questão de por quê
Lacan introduz a perspectiva hegeliana, em que existe certa margem de
liberdade, apesar de seu ideal do final absoluto da história: ele estaria
interessado no fator letal. Concretamente, na escolha A liberdade ou a vida!,
se o sujeito escolhe a liberdade, trata-se da liberdade de morrer. Mas chama
a atenção a seguinte frase de Lacan, no seminário 11 (p. 202),
Coisa curiosa, nas condições em que lhes dizem a
liberdade ou a morte
!, a única prova de liberdade que vocês
podem fazer nas condições que lhes indicam, é justamente a
de escolher a morte, pois aí, vocês demonstram que vocês têm
a liberdade de escolha. Nesse momento, que é também aliás
um momento hegeliano, pois é o que chamamos de Terror,
esta repartição inteiramente diferente é destinada a pôr em
evidência para vocês o que é, nesse campo, o essencial do
vel
alienante, o fator letal.
em que se destaca o deslizamento de A liberdade ou a vida! na primeira
citação, para A liberdade ou a morte!, na segunda. Isso confirma a ênfase
que Lacan quer dar ao fator letal.
Rabinovich continua seu comentário evidenciando a conexão entre a afânise
e o significante binário, citando esse importante trecho de Lacan (1988 a, p.
208):
o de que o sujeito tem que se libertar é do efeito afanísico
do significante binário e, se olharmos de perto, veremos que,
29
efetivamente, não é de outra coisa que se trata na função da
liberdade
que é fácil entender erroneamente, vendo a identificação plena com o S1 do
ser; trata-se, segundo ela (p. 109), de se liberar do sentido:
O final da análise é associado ao sem-sentido, na medida
em que o significante afanísico é correlativo à produção de
sentido. Não só cai a significação, mas também o sentido.
Antes de analisar a operação da separação, esta autora (p. 113)
resume:
O sem-sentido corresponde ao campo do Outro, produz-se no
campo do Outro e articula-se com o eclipse do sujeito. Propõe
uma forma paradoxal de liberdade: a liberdade do sem-sentido
[...] A falta na qual {Lacan} insiste desde os capítulos
anteriores, a primeira falta, a falta do sujeito, falta que se situa
no nível do “não penso”, relacionado com a constituição
pulsional, essa falta de sujeito é produto da ação do
significante. Ação do significante que libera o sujeito do sentido
para confrontá-lo com o sem-sentido.
3.2 Alienação: lógica e topologia
Esses dois exemplos de Lacan do vel alienante são comentados por
Pierre Kaufmann (1996, p. 21). Na escolha forçada que contém o fator letal,
isso ocorre porque a lógica que opera aí não é a do “ou” exclusivo, que exclui a
verdade simultânea dos dois termos da alternativa, nem a do “ou não
exclusivo”, que autoriza um ou outro termo ou os dois; trata-se de conservar (ou
30
não) o outro termo, com a instalação de uma dialética onde sempre perda.
No exemplo da bolsa ou a vida, como visto, se o sujeito escolhe a vida, fica
reduzido a uma vida desfalcada, amputada da bolsa, mas se opta pela bolsa,
perde as duas.
Lacan introduz a estrutura da escolha forçada, isto é, a de um terceiro
“ou”, que, sem ser formalizado matematicamente, existe na linguagem, como se
nos exemplos citados. Darmon (1994, p. 183) explicita novamente o fator
letal presente nesse tipo de “ou”, e acrescenta: trata-se da morte do sujeito.
Este autor evoca o conhecido exemplo freudiano (1972, p. 2511), da brincadeira
do Fort-Da, ou brincadeira do carretel, para mostrar o movimento de eclipse do
sujeito:
Nessa brincadeira do Fort-Da, a criança não faz senão
dominar sua privação com relação à mãe, assumindo,
transformando a passividade em ação. Efetivamente, o objeto
dessa privação real não pode ser senão simbólico, visto que ao
real nada falta (...). Estes fonemas
Fort-Da que lhe vêm do
Outro simbólico, lugar dos significantes em sua sincronia, a
criança os articula diacronicamente numa, diz Lacan,
provocação antecipante da ausência e da presença. Nessa
brincadeira do carretel, é a ação da criança que se torna o
objeto do desejo, e esse objeto toma corpo no par simbólico
O-
Da
. Está claro que o significante Fort-Da não apenas
representa a presença ou ausência materna, mas
verdadeiramente engendra essa ausência, pois isso que não
se encontra na origem não é o Grande Outro, é o próprio
sujeito. Antes do sujeito, logicamente o Outro, o lugar
primitivo dos significantes, entre os quais esse
Fort e esse Da,
e o objeto recortado no Outro; o sujeito não vem senão em
terceira posição, produzido pelo recorte significante. O objeto
está fundamentalmente perdido, ele escapa pelo buraco central
do toro, a criança não apreende senão a oposição, a diferença
31
significante; ou melhor, é essa diferença significante que
produz esse objeto perdido para um suposto sujeito.
Fort ou
Da, qualquer que seja a escolha, o objeto está perdido para
aquele que se envolve no jogo do significante.
Há nessa citação uma referência ao toro (“ele escapa pelo buraco central
do toro”), um suporte topológico para abordar a lógica do inconsciente. Pode-se
situar tal referência, obtida em Granon-Lafont (1990, p. 44), para quem "na
aurora do nascimento do sujeito identificação. Esta é a grande questão que
o toro e sua topologia permitem colocar em termos claros". Ou seja, o toro
constitui mais um recurso para uma aproximação teórica aos processos
inaugurais da subjetividade.
Esta autora chama a atenção para o fato de que Lacan menciona tal
figura pela primeira vez em 1953, e que até seu seminário de 1976 ele "aguça a
formalização desta questão". Lacan busca uma representação para a estrutura
- no caso, da relação entre demanda e desejo, além de uma abordagem à
identificação (que é a resposta à questão: como alguma coisa exterior torna-se
interior?), a partir de uma superfície sem margem, que delimita um exterior e
um interior com um centro "exterior". O toro seria apropriado, segundo ele, para
dar conta da identificação.
O toro pode ser construído a partir de um cilindro; "sua melhor
aproximação física é dada pela bóia ou pelo pneu" (Granon-Lafont, 1990, p. 44)
Existem dois trajetos possíveis, um seguindo um círculo meridiano (o círculo
pequeno), outro seguindo o vazio interior do toro:
As voltas (meridionais) se sucedem e se contam, elas
são idênticas , sem que, no entanto, seja possível computar
nessa contagem a volta a mais percorrida ao redor do furo
central. Aqui se encontram ilustradas a demanda e sua
repetição fundamental, repetição que se efetua no
desconhecimento daquilo que ela exprime, um desejo
32
desconhecido e, contudo, essencial. Define-se assim aquele
"um em demasia". Este círculo da longitude, esquecido, é
propriamente falando o que Lacan nomeia como o desejo. Este
percurso também deixa aparecer um aspecto fundamental do
desconhecimento do desejo que resume a importância do furo
central: a demanda, no que se repete, desenha o objeto como
faltoso (...) ele é sempre fracassado, portanto, estrutural, ligado
ao percurso da demanda e necessário à sua repetição.
O vel da alienação representa uma tentativa de formalização por Lacan
(que aplicou a fórmula da adição conforme as Leis de Boole), através de um
forçamento. De fato, Lacan inventa uma linguagem nova mas não se subordina
a um saber estabelecido (o da lógica formal como tal). Como se sabe, Lacan
desenvolveu uma escrita formal, o matema, conforme Chemama (1995, p. 130),
com
a ambição de denotar uma estrutura realmente em
causa no discurso psicanalítico (...) [que] assemelha-se às
fórmulas algébricas e formais existentes na matemática, na
lógica e nas ciências matematizadas, e, para Lacan, tratar-se-
ia do ponto de engate da psicanálise com a ciência
mas, confome Kaufmann (1996, p. 299),
O interesse que a psicanálise dedica à lógica não reside
na aspiração de encontrar uma linguagem mais precisa e mais
bem adaptada à sua própria problemática (...). A lógica do
significante, se envolve a exigência formal, não fomenta por
isso hipóteses doutrinais sobre seus fundamentos e suas
finalidades. Ela pretende explicar o equívoco, assim como
33
pretende explicar o que a ciência exclui de seu procedimento: o
Sujeito. Daí sua relação paradoxal com a lógica. Ela aprecia o
progresso formal desta, a combinatória significante, mas sem
deixar de questionar seus fundamentos.
Vemos, assim, que Lacan voltou-se para a linguagem da lógica moderna
mas a subverteu, ou melhor, serviu-se dela sem se subordinar a ela. Como
explica Nogueira (1999, p. 96),
Para tratar do Sujeito do Inconsciente era preciso
pensá-lo como variável de uma função, o que a linguagem de
Frege, revolucionando a matemática, fazia. Quer dizer, Frege
tirava a linguagem matemática de sua dependência das
referências naturais, criando símbolos para uma linguagem
artificial que desse conta do mundo das operações
matemáticas. Lacan também pensava que a linguagem artificial
das fantasias inconscientes, construída na relação analítica,
estabeleciam, não um conhecimento da realidade objetiva do
analisante, mas um saber, decorrente das articulações dos
significantes que indicavam relações simbólicas, isto é,
posições sexuadas e sociais, modo de gozar, para além do
prazer.
E Kaufmann (p. 299) acrescenta:
Mas é sobretudo a análise fregeana da proposição em
função e argumento que é inovadora e capital: não se trata
mais de referir o predicado,
via cópula, a um sujeito afirmado
como Uno e indivisível, mas sim de referir um sujeito,
doravante elemento variável, a uma função, elemento estável
mas incompleto. A função como expressão incompleta faz
apelo a um objeto argumento, capaz de completá-la, de
satisfazê-la. (...) Lacan, apoiando-se nessa distinção entre
34
função e argumento, escreverá suas fórmulas da sexuação em
que, precisamente, o sujeito é tomado em posição de
argumento numa função proposicional.
O forçamento das fórmulas booleanas permitiu que Lacan apresentasse,
em A lógica do fantasma (seminário 14, inédito), o que seria uma lógica sexual.
Ele vai expressar numa famosa frase que “não relação sexual”. Marc
Darmon (1994, p. 188) tece considerações a respeito da oposição homem-
mulher e dos impasses lógicos decorrentes; analisa a álgebra lógica de Boole e
um fragmento do caso Ernst, de Melanie Klein, para concluir que
assim, com relação à questão da escolha, a psicanálise
conduz o sujeito a encontrar o que organiza de modo oculto a
própria estrutura de escolha, ou seja, a castração e o objeto
a,
causa do desejo.
Voltaremos a esse ponto mais tarde.
3.3 Descartes e a disjunção entre ser e sujeito
Retomando, o vel da alienação condena o sujeito à divisão quando ele
aparece como sentido graças ao significante, ele se mostra em afânise em
outro lugar; o ser e o sujeito são disjuntos, não coincidência entre o “eu
penso” e o “eu sou” do Cogito ergo sum de Descartes, graças a Freud e sua
descoberta do inconsciente. A negação dessa coincidência equivale a “não
penso ou não sou”, a tradução lacaniana do Cogito cartesiano à luz do
inconsciente (isto será retomado mais adiante). vimos que esse “ou” não
existe na formulação matemática como tal, mas subjaz a toda lógica, como
reitera Darmon (1994, p. 192):
35
Aparentemente, trata-se de uma escolha exclusiva, mas
muito rapidamente, percebe-se que um lado é forçosamente
recusado, e que o lado escolhido escapa rapidamente, ou
comporta uma falta irremediável.
A descoberta do inconsciente impõe uma fórmula negativa. Esse
desenvolvimento teórico aparece no seminário 14, inédito, em que Lacan
reformula o vel alienante introduzido no seminário 11. Como explica D.
Rabinovich (2000, p. 61),
aplica-se ao vel alienante entre ser ou sentido – vel que
como tal implica necessariamente uma perda – a negação
própria da lei de dualidade lógica de De Morgan, negação que
é a chave de tudo o que é desenvolvido posteriormente.
Das operações de alienação (entre ser e sentido) e separação, Lacan
inova com essa retomada do cogito cartesiano. Com essa invenção, o cogito
transforma-se numa disjunção, cuja forma é “ou não penso ou não sou”, e
Lacan resolve alguns impasses das operações de alienação e separação.
Trata-se de uma dupla fórmula negada, que permite explorar o
funcionamento dessa disjunção a partir de três operações - alienação, verdade
e transferência com um esquema fundado matematicamente no grupo de
Klein. Novamente, vê-se aqui uma utilização, por Lacan, da lógica e da
topologia que vão além de sua significação estrita, inicial: por exemplo, Lacan
(citado por Darmon, 1994, p. 191) faz alusão ao grupo de Klein no início do
seminário 14, e no seminário seguinte, ele define o próprio quadrângulo como
um “meio grupo de Klein” (porque não reciprocidade): ele utiliza essa
formalização de um modo particular, para explorar o funcionamento do vel da
alienação.
36
Segue-se um resumo, obtido a partir das explicações de Darmon (1994,
p. 191 e seguintes) e Rabinovich (2000, p. 61 e seguintes), desse quadrângulo
criado por Lacan no seminário da Lógica do Fantasma, onde todas as
conseqüências da escolha foram exploradas sistematicamente.
A operação de reunião se produz entre conjuntos, em que Lacan tenta
expor graficamente a negação própria da lei de dualidade na lógica; essa
negação lógica interessa a Lacan explicitamente, porque permite conservar a
formalização de uma perda. A separação (que será mais explicada
posteriormente) está centrada na perda, na pergunta dirigida ao Outro: pode me
perder? Posso faltar ao Outro?
Essa idéia conservar a formalização de uma perda não era passível
de articulação nos termos do seminário 11.
Nesse ponto, Lacan retoma o cogito cartesiano (também melhor
explicado posteriormente), para chegar à conclusão de que não se pode afirmar
o ser e o pensar ao mesmo tempo; pensar e ser excluem-se mutuamente.
Como diz Rabinovich (2000, p. 64),
aplicada ao cogito, a lei de dualidade permite
transformar a relação entre pensar e ser no âmbito da teoria
psicanalítica [...] O destino dessa transformação, de agora em
diante, afasta-se de Descartes pois passa a funcionar
estritamente no campo da psicanálise e não é um comentário
"filosófico".
Assim, se um conjunto, o do pensar, é verdadeiro, o outro, o do ser, é
falso; a intersecção entre ambos implica a própria negação. Mas aqui
Rabinovich (p. 65) aponta algo sempre esquecido: que o “não” introduzido
dessa forma não afeta o ser ou o pensar em si, mas afeta o eu [je], tornando-se
a formulação afirmativa, respectivamente, um “pensar sem eu [je] e um ser sem
eu [je]”. As duas negações têm em comum o pas-je, não-eu, como diz Lacan.
37
Não se trata do eu especular, o moi. Esse je é a função que fica barrada.
Definindo-se a opção da alienação como “ou ‘não penso’ ou ‘não sou’”, se há,
como visto, um “pensar sem eu” e um “ser sem eu”, pode-se introduzir o
conjunto vazio que é igualado ao sujeito. Os dois conjuntos, pensamento e ser,
implicam esse conjunto vazio implícito em todo conjunto, sobre o qual recai a
negação “que Lacan identifica com o sujeito como je, esse je que toma de
Descartes, je esvaziado de todos os preconceitos, no qual culmina o cogito” .
Como ressalta Rabinovich (2000),
a chave dessa operação é que o “não” que recai
sobre o je do ser ou do pensar se aplica ao sujeito da
enunciação e não ao sujeito do enunciado. Tudo o que tem a
ver com a negação, no nível do enunciado, inscreve-se na
categoria do desconhecimento do eu. Essa negação não é
pensável com a categoria de moi, com a categoria do
especular, e implica que não há nem um “ser do eu”, nem um
“pensamento do eu”. Formulação freqüente nos Escritos, em
que se afirma a inexistência do sujeito do inconsciente, a
ausência no inconsciente de um eu [je] que afirma
4
.
Na opção alienante “ou não sou ou não penso”, se há um vel excludente,
o “não penso” é a primeira direção para o sujeito; nela, a escolha forçada é
pelo “não penso”. O “não sou”, como visto, é um não que incide sobre o eu:
esse não-eu corresponde ao isso freudiano. Esse não-eu, em termos da
topologia, situa-se na intersecção entre os conjuntos “não penso” e “não
sou”: no lugar onde Lacan situa o objeto a, no seminário 11. Ressalta-se,
assim, logicamente, que o objeto a é absolutamente excludente a respeito de
qualquer eu [je]: o objeto a não admite nenhum eu.
4
Rabinovich, op. cit., p. 66. A autora remete aos Escritos, de J. Lacan, sem especificar uma
citação.
38
Outra dedução importante é que, do lado da opção alienante do “não
penso”, pode-se definir o não-eu como a. Trata-se do non-moi em francês,
aquele da oposição dentro-fora, interior-exterior. Note-se que sempre se faz
confusão entre essa distinção dentro-fora e esse não-eu, moi, com o je
gramatical, com o je como shifter. O eu que enuncia, o eu da enunciação,
não é o eu do enunciado, quer dizer, o shifter que, no enunciado, o designa.
Mas se, como foi dito pouco, esse não-eu corresponde ao isso, o que se
conclui é que existe um “ser sem eu”, sujeito acéfalo da pulsão. Com a
precisão trazida por Rabinovich (2000, p. 68),
esse sujeito, que nos capítulos do Seminário 11
dedicados à pulsão é definido como um sujeito acéfalo, sem je,
no Seminário 14 ordena-se em termos do isso. Entretanto, não
é o isso concebido biologicamente, mas o isso concebido como
a operação da própria constituição pulsional .
Com tal equiparação (isso sem je/constituição pulsional) é possível
comparar a alienação com o recalque primário, que Freud articula com a
pulsão. Esse “não-eu”, em torno do qual gira a pulsão, é um ser sem eu [je],
disjunto do pensar.
A escolha “eu não penso” não faz surgir um “eu sou”: o sujeito se eclipsa
rapidamente, e esse lugar do “eu não penso” é ocupado pelo eu (moi, em
termos lacanianos), pelo imaginário. Na busca do ser, uma identificação
imaginária. O sujeito, na descrição de Lajonquière (1994, p. 63)
(...) escorrega na fenda que se articula no ato mesmo
da enunciação (...), (ele) pulsa no instante em que uma falta-
em-ser se enuncia como Eu para devir alienado na ordem
dos enunciados.
39
Do outro lado, o “eu não sou” do dito espirituoso por exemplo não faz
surgir um “eu penso”, mas um não-senso que deixa cair um resto, o objeto a.
No primeiro caso, surge um isso; no segundo, um não-senso onde habita o
pensamento inconsciente.
O ser não se reduz ao pensar; a psicanálise reintroduz um outro sujeito
para não cair num formalismo uma cadeia de significantes, estrutura sem
sujeito. O sujeito da psicanálise tem o dilema: “penso onde não sou, logo sou
onde não penso”, ou , mais ainda, “não sou, onde sou o joguete de meu
pensamento; penso no que sou, onde não penso pensar” (Lacan, 1998, p.
521).
A linguagem faz o sujeito existir “fora de si” : como diz Lajonquière (1994,
p. 63)
o sujeito não sabe quem é, e por isso mesmo fala com
outros, na tentativa de achar a resposta, na tentativa de que
ele, ou alguém, profira, no dizer, uma representação que o
represente sem perda. Uma representação que coincida com o
representado, isto é, que costure a fenda que o desgarra, e
que a psicanálise chama
desejo (de ser).
40
4. O EU E O SUJEITO DO INCONSCIENTE: CONSIDERAÇÕES SOBRE O
COGITO CARTESIANO À LUZ DA PSICANÁLISE
4.1 Em busca do sujeito
Neste capítulo, pretende-se tecer considerações a respeito da tradução
lacaniana (isto é, à luz do inconsciente) do cogito cartesiano.
O interesse desse estudo reside em sua articulação com a clínica
lacaniana da psicose na infância. Trata-se de tentar uma aproximação a uma
questão, oriunda da experiência clínica com crianças portadoras de graves
problemas emocionais, tidas como psicóticas, autistas, ou deficientes, e que se
apresentam, geralmente, numa ligação extremamente forte e indiferenciada
com a mãe. Interessa pontuar que, se o trabalho analítico possibilita a sua
separação, e o surgimento de dois sujeitos – a mãe e a criança, cada qual visto
em sua subjetividade - esse processo implica na questão da constituição do
sujeito como tal. De que sujeito se trata?
Utilizando a teoria lacaniana, como visto, chega-se a uma noção
topológica, pela qual a criança o sujeito que deve advir - se relaciona com a
mãe (situada no lugar do Outro). Essa relação, em seu início, é alienada. A
alienação é constitutiva, ela funda o ser; mas todo o impasse desse modo de
existência reside em sua cristalização. De fato, é preciso superar a alienação e
chegar à separação.
41
A alienação é, portanto, uma articulação entre o campo do sujeito e o
campo do Outro. O Outro é o lugar onde se situa a cadeia significante. O sujeito
se caracteriza por uma dependência significante ao lugar do Outro.
O ser humano é um ser de linguagem; ele sofre determinações desse
sistema simbólico. E sua entrada nesse sistema necessita passar por essa
relação com o Outro materno, que vai falar e oferecer os significantes que o
constituirão. Citando Lacan (1998, p.854):
Produzindo-se o significante no lugar do Outro ainda
não discernido, ele faz surgir ali o sujeito do ser que ainda não
possui a fala, mas ao preço de cristalizá-lo .
No campo do sujeito, encontra-se também o ser; no campo do Outro, os
significantes. Figurando-se esses dois campos como dois círculos, seria
possível estabelecer uma intersecção entre eles, onde habita o sem-sentido, o
inconsciente. Segundo Lacan, se o sujeito se submete a um significante
oferecido pelo Outro, ele está fazendo uma escolha pelo sentido (dado pelo
Outro), que o condena a perder o ser; e se escolhe o ser, perde o sentido. Mas
é importante destacar o fato de que se trata de uma escolha forçada e
inevitável: não é possível ingressar no mundo do símbolo, ou seja, vir a possuir
a fala, sem essa primeira alienação no sentido dado pelo Outro.
Isto é a afânise, o desaparecimento do sujeito; ou o sujeito aparece de
um lado como sentido, produzido pelo significante, ou aparece do outro lado
como afânise. Como o sentido emerge no campo do Outro, é de sua natureza
ser eclipsado numa grande parte de seu campo pelo desaparecimento do ser,
induzido pelo significante.
A afânise possui um fator letal: é o fato de o sujeito poder se dissolver no
Outro, desaparecer enquanto sujeito. É letal a entrada do ser humano na via de
uma escravidão, se permanecer alienado no Outro; é letal para a sobrevivência
simbólica do sujeito, para a possibilidade do surgimento de seu desejo.
42
Vê-se claramente que o ser e o sujeito são disjuntos. Mas não foi assim
para Descartes, em seu procedimento em que, partindo da dúvida hiperbólica,
concluiu pelo estabelecimento da dúvida como única certeza possível, no
célebre Cogito ergo sum.
Para Lacan
5
, não é verdade que “penso, logo sou”. Ao contrário, graças
a Freud e sua descoberta do inconsciente, “ou não penso, ou não sou”.
A descoberta do inconsciente impõe essa fórmula negativa na medida
em que as formações do inconsciente – lapso, esquecimento, ato falho, sonho –
não comportam um sujeito capaz de acompanhar suas representações e se
assegurar da continuidade de seu ser. Trata-se de uma escolha forçada (pelo
não penso), pois, conforme Darmon (1994, p. 192)
quando eu disse a você “minhas felicidades” no lugar de
“minhas condolências”, eu não o pensava certamente; assim o
sujeito se assegura da continuidade de seu “ser”; como nós o
vemos, essa certeza não se apóia senão sobre o imaginário, é
uma vertente da alienação. O processo psicanalítico consiste,
ao contrário, em efetuar a outra escolha: nessa palavra que me
escapou, se manifesta o inconsciente, ou seja, um lugar onde
eu não sou.
A escolha “eu não penso” não faz surgir um “eu sou”: o sujeito se eclipsa
rapidamente, e esse lugar do “eu não penso” é ocupado pelo eu (moi, no
termo consagrado por Lacan na referência ao eu imaginário). Na busca do
ser, uma identificação imaginária. Do outro lado, o “eu não sou” do
dito espirituoso por exemplo não faz surgir um “eu penso”, mas um não-
senso que deixa cair um resto, o objeto a. No primeiro caso, surge um isso;
no segundo, um não-senso onde habita o pensamento inconsciente.
5
Esta formulação foi sendo elaborada ao longo de vários seminários; pode-se encontrar um
exemplo no Seminário 14 A lógica do fantasma- na sessão de 18 de janeiro de 1967: “[...] a
partir do qual designo o fundamento de toda operação lógica, a saber, a escolha oferecida do
ou não penso ou não sou como sendo o sentido verdadeiro do cogito cartesiano.” Este
seminário, inédito, encontra-se em versão eletrônica (CD rom).
43
Na clínica dos distúrbios graves da infância, encontram-se crianças que
não se diferenciaram de suas mães, que se mostram completamente alienadas,
e só após um determinado trabalho, que incide na estrutura familiar, pode
ocorrer alguma separação e aparecer um sujeito, onde antes havia um ser em
afânise. È este sujeito que pensa que se vai postular teoricamente, seguindo o
curso de sua constituição ao longo da obra de Lacan.
4.2 Descartes na leitura de Lacan
A primeira menção de Lacan a René Descartes ocorre em 1946, quando,
em Bonneval, ele responde a Henri Ey, segundo relatório publicado nos
Escritos - A Causalidade psíquica), criticando a ortodoxia cartesiana que não
lhe agrada, segundo refere Guy Le Gaufey (1996)
6
, que considera que “para
Lacan não basta ser dualista para ser bom cartesiano, e portanto... Descartes
não é aquilo que se crê”, serão necessários vários anos, em que Lacan se
concentrou no retorno a Freud, para que se possa falar de um “retorno a
Descartes” lacaniano.
Gaufey opina que o debate de Lacan com Descartes usual, como ele
diz, em solo francês, quando se discutem fundamentos permanece difícil de
acompanhar, mesmo que provavelmente continuasse a inquietá-lo. O
importante é marcar que Lacan pretendia retornar a Descartes, mas com Freud.
Trata-se de ler com o escrito, procedimento que se revelará fundamental em
Lacan.
Esse cuidado (de ler com o escrito) pode ser notado numa dupla atitude
de Lacan: uma rejeição massiva da “tradição filosófica oriunda do cogito” (como
se pode constatar, por exemplo, em O estádio do espelho como formador da
6
Esse trabalho de Guy Le Gaufey será nosso eixo, neste momento em que seguimos o
percurso de Lacan em torno do cogito cartesiano.
44
função do eu, quando ele fala (p. 96) de sua concepção da “função do eu na
experiência que dele nos a psicanálise. Experiência sobre a qual convém
dizer que nos opõe a qualquer filosofia oriunda diretamente do cogito”), e ao
mesmo tempo uma retomada do cogito, apreendido como tentativa de promover
o “je”, que Lacan considera o próprio eixo do trabalho freudiano. Se no Estádio
do Espelho ainda não está clara a distinção entre o moi e o je, a existência de
um “sujeito absoluto” no estilo hegeliano é rejeitada, e parece não existir
articulação alguma entre este sujeito e a psicanálise. Em compensação, desde
o seminário 2 por exemplo, Lacan volta a falar do cogito, não tal como
Descartes e a tradição cartesiana no-lo legaram (sujeito reflexivo, transparente
a si mesmo no fenômeno da consciência), mas a um cogito que mantinha uma
real opacidade.
O tempo seguinte da instauração do sujeito traz plenamente Descartes
no texto de Lacan (1988, p.496): em A Instância da letra no inconsciente ou a
razão desde Freud (de 1957), ao falar do significante a partir de Saussure,
Lacan menciona ter confundido, no algoritmo S/s, esse lugar do s com o lugar
do sujeito. Imediatamente após ele diz:
É na função do sujeito, assim introduzida, que devemos
deter-nos agora, pois ela está no ponto crucial de nosso
problema.
Penso, logo existo (cogito ergo sum) [...] (p. 519).
Mas o cogito é acrescido de algo:
Cogito ergo sum ubi cogito, ibi sum
que é uma proposição de Lacan, e que Gaufey traduz:
Lá onde eu penso: “eu penso logo eu sou”, lá eu sou.
45
Lacan introduz a espacialização na ordem do pensamento, correção
decisiva (“é claro que isso me limita a estar em meu ser na medida em
que penso que sou (estou) em meu pensamento”) que, a respeito desse
cogito, Lacan propõe voltar “a arma da metonímia” e da metáfora, nas quais “jaz
o fulcro da conversão freudiana” : é quando surge essa separação completa, no
sentido daquela espacialização, na apresentação latina: “penso onde não sou,
logo sou onde não penso”. A introdução do inconsciente freudiano, retomado
aqui pelo jogo da metáfora e da metonímia, implica essa inversão completa que
lá onde há pensamento (inconsciente), “eu” (je) não estou, e lá onde está o “eu”
(je) (na enunciação), isso não pensa mais. Donde a retificação a que Lacan
(1998, p. 521) conclui sobre isto: “O que cumpre dizer é eu não sou lá onde sou
joguete de meu pensamento; penso naquilo que sou onde não penso
pensar”.
Segundo Gaufey, o acesso ao cogito não é portanto direto, mas clivado.
Esse cogito e seu sujeito estão no mesmo nível que a psicanálise, e deve nos
liberar o acesso ao universo de Freud, mas, por outro lado, o ser não se infere,
nem se conjuntamente ao pensamento. Ser e pensamento são disjuntos.
Lacan irá, então, reinterpretar esse cogito, transformando-o de modo a que o eu
(je) que resultará disso seja muito diferente daquele a que Descartes chegou,
esse que se toma por uma coisa que pensa, uma res cogitans.
4.3 A ciência e a verdade
Com este título, Lacan apresenta a aula de abertura do seminário
realizado em 1965-1966, sobre o objeto da psicanálise. De saída, ele menciona
uma estrutura que considera o estado de fenda do sujeito, tal como pode ser
situado na prática psicanalítica, pelo simples reconhecimento do inconsciente; e
critica o estágio em que se encontra a epistemologia, que, a seu ver, não teria
explicado plenamente a fundação da ciência no sentido moderno. A posição da
46
ciência, justificada segundo Lacan por “uma radical mudança de estilo no
tempo de seu progresso”, traz uma modificação radical em nossa posição de
sujeito no duplo sentido: de que ela é inaugural nesta e de que a ciência a
reforça cada vez mais.
Vê-se aqui uma argumentação de Lacan (1988, p. 870) referente à
vocação de ciência da psicanálise, em que, sem esgotar o assunto, ele explicita
seu
fio condutor: um certo momento do sujeito que
considero ser um correlato essencial da ciência, um momento
historicamente definido, (...): o que foi inaugurado por
Descartes e que é chamado
cogito. Este correlato, como
momento, é o desfilamento de um rechaço de todo saber, mas
por isso pretende fundar para o sujeito um certo ancoramento
no ser, o qual sustentamos constituir o sujeito da ciência em
sua definição, devendo este termo ser tomado no sentido de
porta estreita.
Por que rechaço de todo saber? Porque o procedimento de Descartes, a
chamada dúvida hiperbólica, consiste nisso, no estabelecimento da dúvida
como única certeza possível. Ela culmina na conclusão cogito ergo sum ou,
como diz Lacan, no rechaço do saber, aquele da escolástica, que fica em
suspenso, e num certo ancoramento do sujeito no ser.
Lembremos que o procedimento cartesiano coloca o cogito com seu
sujeito assegurado de ser pelo único fato de que ele pensa. Conforme Gaufey
(p. 26), “eis um sujeito voltado à sua atividade de pensamento - e
exclusivamente a ela como nunca antes nenhum saber tinha ousado
apresentá-lo”.
Mas o sujeito dessa certeza progride por meio do ego e seus
pensamentos, segundo um método que combate o privilégio dado pelo senso
comum às idéias ditas “adventícias”, aquelas que vêm de objetos exteriores ao
47
eu: assim, na terceira Meditação (De Deus; que ele existe), Descartes (2000, p.
72) prova a existência de Deus, por ser a única idéia que não pode vir de si
mesmo (é inata):
Pelo nome Deus entendo uma substância infinita,
eterna, imutável, independente, onisciente, onipotente, e pela
qual eu mesmo, e todas as outras coisas que existem (se é
verdade que coisas que existem) foram criadas e
produzidas.(...) É preciso necessariamente concluir de tudo
que disse anteriormente que Deus existe; pois, ainda que a
idéia da substância esteja em mim, pelo próprio fato de eu ser
uma substância, eu não teria, contudo, a idéia de uma
substância infinita, eu que sou um ser finito, se ela não tivesse
sido posta em mim por alguma substância que fosse
verdadeiramente infinita
.
Assim, Deus é a causa necessária de sua idéia. E porque o “valor
representativo” dessa idéia é nulo, o saber que ela nos proporciona é certo.
É importante ressaltar que o procedimento de Descartes é, do ponto de
vista epistemológico, o inverso da posição de Aristóteles; simplificadamente,
pode-se dizer que em Aristóteles a prioridade é concedida à coisa existente,
cuja presença, assegurada pelos sentidos, não era colocada em dúvida, e cujas
propriedades deviam ser abstraídas pelo espírito, de um modo essencialmente
classificatório. A “coisa existente” é o subjectum de que se vai estabelecer os
predicados que convêm ou não. Trata-se de um saber, classificatório, das
coisas. Já em Descartes, é o inverso: em vez de visar um saber que não possui
a menor unidade (conforme à diversidade das coisas), Descartes (citado por
Gaufey, p. 31) aspira a
um tirano na ordem do saber, um que, deixando de lado
o infernal empilhamento de opiniões justas e falsas que se
ensina nas escolas, insuflaria ao saber a vir a unicidade que é
48
a sua. Se se que o saber seja outra coisa que o
empilhamento de opiniões verossímeis, é preciso que se
encontre seu princípio, não no ser indefinidamente
diversificado das coisas, mas na unidade do sujeito que, de
golpe, o inventa antes que o descobre.
É esse sujeito que Lacan evoca, ao postular o sujeito do inconsciente
como sendo aquele que sabe.
Se a psicanálise tem vocação de ciência, é impensável, diz Lacan, que o
inconsciente pudesse ser descoberto antes do nascimento da ciência no século
XVII; foi o cientificismo de Freud que o conduziu à criação da psicanálise, que
carrega dele sua marca essencial. Mas,
dizer que o sujeito sobre quem operamos em
psicanálise pode ser o sujeito da ciência talvez passe por
um paradoxo. (...) Por nossa posição de sujeito, sempre somos
responsáveis (...) A posição do psicanalista não deixa
escapatória (...). Toda tentativa (...) de encarnar ainda mais o
sujeito é errância (...) como também encarná-lo no homem.
Lacan (1998, p. 873) afirma que não há ciência do homem porque o homem da
ciência não existe, mas apenas seu sujeito. Um único sujeito é aceito na
psicanálise, aquele que pode constituí-la científica.
Estas proposições carregam um paradoxo, que deve agora ser
analisado.
4.4 O eu em Lacan
No seminário 2 (1954-1955), vêem-se muitas referências de Lacan
(1992 a) ao cogito cartesiano. Acompanhando sua discussão sobre o eu, surge
49
a pergunta: será que o eu sempre existiu, desde toda a eternidade? E se
percebe que, assim como quando se pensa na origem da linguagem,
não podemos mais deixar de pensar sem este registro do eu
que adquirimos no decurso da história, mesmo que lidemos
com rastros da especulação do homem sobre si mesmo em
épocas em que este registro, como tal, ainda não tinha sido
promovido (p. 12).
A consideração da dificuldade de abrir mão dessa noção do eu, e de
pensar que ela não seja eterna, conduz a tentar apreender essa noção do eu
em seu estado nascente. Pode-se dizer que houve uma elaboração filosófica tal
que chegou a uma noção cada vez mais puramente formal do eu, afastando a
idéia de que o eu fosse substância (que implicaria na noção religiosa de alma).
Do mesmo modo que Copérnico introduziu a noção de que a Terra não
era o centro do universo, e sim o sol, ou seja, retirou a Terra desse lugar de
centro, igualmente, com Freud, houve o descentramento da noção do eu: a
descoberta freudiana mostra que o inconsciente “escapa totalmente a este
círculo de certezas no qual o homem se reconhece como um eu” (Lacan, 1992
a, p. 15).
Freud partira da idéia de que aquilo que é da ordem do eu é também da
ordem da consciência; com o avanço da sua obra, Freud confessa que não
pode situar a consciência, o [eu] é distinto do eu
7
. O sujeito não se confunde
com o indivíduo, a pessoa. O sujeito está descentrado com relação ao
indivíduo.
O sujeito do inconsciente é o sujeito por excelência, e se distingue do eu,
função imaginária, que pode ser consciente.
7
Distinguimos assim os pronomes da língua francesa, “je” e moi”, sendo o primeiro o sujeito
do inconsciente, e o segundo, a função imaginária, seguindo assim a convenção estabelecida
nas Notas do Tradutor da edição brasileira desse seminário (livro 2) citado acima. Ver nota 1,
na página 408.
50
E é isso que Lacan à margem da intuição cartesiana. A um bom
leitor, chamaria a atenção o enigma do Deus enganador, que reintegra,
segundo Lacan, aquilo que sofrera rejeição. Veja-se esse exemplo de engano,
logro, engodo: até o amor-próprio é enganador, inautêntico, como mostrava La
Rochefoucauld, contemporâneo de Descartes, ao salientar que “até mesmo
nossas atividades aparentemente mais desinteressadas são feitas para cuidar
da glória, até mesmo o amor-paixão ou o mais secreto exercício da virtude”
(Lacan, 1992, p. 17) : um hedonismo próprio ao ego –o eu, moi- , que é
justamente o que nos engoda. Situado na tradição dos moralistas, esse tipo de
concepção abre uma perspectiva chamada de verdade, e mostra o embaraço
que sempre se percebeu no comportamento como tal a verdade está alhures,
e Freud dirá onde ela está. É, parece, o que Descartes intuía ao falar do Deus
enganador.
A consciência nos ilude, a despeito de esta consciência apreender a si
mesma, de modo transparente, e, numa reflexão imediata, permitir ao sujeito
apreender a si mesmo numa experiência qualquer. Lacan propõe cortar o
górdio da consciência – abandonar o problema sem tê-lo resolvido – declarando
que a consciência se produz sempre que uma superfície possa produzir uma
imagem. Trata-se de um ilusório ...objetivo. E tal apreensão do eu, centrada
numa experiência de consciência, nos cativa, mas é preciso desprendermo-nos
disso para ter acesso à concepção lacaniana do sujeito “a fim de permitir-lhes
apreender, enfim, onde está, para Freud, a realidade do sujeito. No
inconsciente, excluído do sistema do eu, o sujeito fala” (Lacan, 1992 a, p. 80).
Entre o sujeito do inconsciente e a organização do eu há diferença
radical e uma oposição: o eu nos diz muita coisa pela via da Verneinung, da
denegação. Mas isto não explica qual é a relação entre os dois sistemas. Eles
não são apenas um o inverso do outro, de forma que a análise do eu fosse a
análise do inconsciente ao avesso; e isto se deve ao fato da insistência, da
repetição: aquilo que Freud introduziu como o Além do princípio do prazer.
Uma questão, a esta altura, fica em aberto, a saber,
51
qual é a natureza do princípio que regula o que está em
causa, isto é o sujeito? Será que ele é algo? Ou bem será que
ele não pode ser nem nomeado, nem apreendido, mas apenas
estruturado? (Lacan, 1992, p. 85)
Essa questão remete diretamente ao ser (“será que ele é algo?”)
4.5 As “figuras” e o significante
O ser é inerente ao sujeito? Foi isto que Descartes formulou, e que a
filosofia tenta ultrapassar; e é o que, no Seminário 9, Lacan vai escolher
como um primeiro passo no estudo da Identificação. Segundo Gaufey, trata-
se de uma “virada” adotada por Lacan em 1961, em que ele retoma desde a
primeira sessão os problemas postos pelo cogito. Novamente, então, Lacan
condena, nessa sessão (de 15 de novembro de 1961), aquela formulação
cartesiana: ele diz que nada suporta a idéia tradicional filosófica de um
sujeito, a não ser a existência do significante e de seus efeitos.
Para entender essa noção, segundo a leitura de Gaufey, seria preciso
aprofundar a análise da obra de Descartes, chegando a situar o que, nas
Regras para a direção do espírito, ele constitui como “figuras” . Segue-se um
resumo dessa apresentação de Gaufey.
Descartes promove a unicidade do saber ancorado na unicidade do
sujeito, um saber inventado que parte do fato de uma dessemelhança radical
entre o que o espírito concebe e a coisa mesma; ele tenta pensar
rigorosamente os termos dessa dessemelhança, para manter a
inteligibilidade. Aquilo que nós percebemos na sensação , que são
propriedades relativas à extensão, suscetíveis de serem enumeradas, em
outras palavras, o que, da coisa a conhecer, se oferece à representação, se
chama figura, considerada não somente como concreção de propriedades
mínimas da coisa a conhecer, mas também como fabricada a partir de
52
elementos figurativos não sensíveis, objetos eleitos do entendimento, numa
espécie de álgebra. Quanto à dificuldade referente às sensações “que não
oferecem com que passar diretamente da sensação da coisa à percepção da
figura”, lá onde a percepção não encontra figura, Descartes toma essa figura
como cifra; e essa cifragem x denotando um valor desconhecido permite
considerar uma relação com outros valores, ou seja outras cifragens, outras
figuras, constituindo assim um saber consistente e unitário onde as figuras
encontram seu campo de aplicação sendo duplamente demarcadas: de um
lado pelo sensível, que lhe escapa absolutamente, de outro pelas relações
que elas engendram. Além disso, a figura é reconhecida na dupla
propriedade de poder cifrar o ininteligível, o sensível puro numa operação de
transcrição, mas igualmente de poder a todo momento cifrar o inteligível, a
saber outras figuras, numa operação que depende agora da transliteração. A
figura é sempre fundamentalmente dessemelhante da coisa que ela denota.
Para garantir a verdade dessas operações, Descartes reenvia ao modelo da
linguagem naquilo que, no signo lingüístico, se acham reunidas coisas
dessemelhantes mas, vista a força de sua ligação, esse dessemelhante não
impede a passagem do sentido: “[...] as palavras, não tendo nenhuma
semelhança com as coisas que significam, não deixam de no-lo fazer
conceber [...].” Uma tal teoria da linguagem pode intervir para regrar a
percepção, regida pela dessemelhança, ao preço de um desarranjo ao qual
Descartes se arrisca e segundo o qual a própria Natureza teria procedido ao
inverso das vias que seguimos para torná-la inteligível, isto é, figurando-a.
Partindo ela própria de figuras inteligíveis, ela as teria, se se pode dizer,
mergulhado no sensível ao ponto de que nós não poderemos reencontrá-las:
ao inverso do procedimento humano da figuração, uma (des)figuração.
Citando Descartes:
Por que a Natureza não poderia também ter estabelecido certo
sinal que nos fizesse ter o sentimento da luz, ainda que esse
sinal não tenha nada em si que seja semelhante a esse
sentimento? E não é assim que ela estabeleceu os risos e as
53
lágrimas para nos fazer ler a alegria e a tristeza sobre a face
dos homens?
8
Houve, então, em primeiro lugar, figuras, uma inteligibilidade primeira
que se perdeu no sensível pelo fato do ato mesmo da Criação, uma
inteligibilidade que se (des)figurou, e da qual não é preciso crer que é isso
que nós re-encontramos em nossas figuras. Do ponto de vista do ego,
segue-se que:
-ele nada pode saber do sensível: pois não tem a ver senão com
pensamentos. Impõe-se entre o sensível e o ego a tela das figuras. “O
sensível nos coloca problemas, mas nós não podemos esperar resolvê-los se
não os metemos em equações, portanto se nós ciframos os dados sensíveis
para os homogeneizar e poder assim submetê-los ao cálculo;
-o ego só pode lidar - sem duvidar de sua existência - com figuras, cifragem;
-mas o “mundo”, a realidade das coisas exteriores, se torna o mais
problemático. Sem acesso direto, resta o indireto: Deus. Cartesianamente
falando, se Deus operou a codificação que fez passar das figuras primeiras
ao sensível (pela (des)figuração), é fundamental que ele não possa ser
confundido com as figuras, daí se segue que o Deus todo-poderoso,
impenetrável e incompreensível que ordenou o sensível por figuras, deve
escapar absolutamente a nossa racionalidade para responder corretamente
a sua função de fundador do código assegurando a junção entre figura e
sensível.
Eis a leitura de Gaufey (p. 177): para apreciar a pertinência dessa noção
lacaniana (pela qual se relaciona a idéia tradicional filosófica do sujeito com o
significante), seria preciso ver as figuras de Descartes como equivalendo
8
Esta citação de Descartes, feita por Gaufey, remete à publicação das Oeuvres philosophiques,
Garnier, Paris, 1967, Ed. De F. Alquié, tomo II, p.316. A tradução é nossa.
54
à nomeação moderna de “significante” no sentido lacaniano na
medida em que, longe de representar o mundo de maneira
mimética, elas se encontram cortadas, de maneira constitutiva,
de seu eventual referente. É preciso, na ordem das
Meditações, que o Deus enganador possa ser afastado, é
preciso que, passada a dúvida, a iluminação venha tornar certa
a existência do Deus para que, desse fato último, as figuras
que o ego (e apenas ele) se deu representem alguma coisa, e
não nada [...]. Mas se se atém resolutamente apenas ao fim da
meditação, e mesmo um pouco antes de seu fim, antes que
o ego se tome por uma coisa que pensa- então as figuras que
sustentam o “eu penso” não são ainda figuras de nada. Esse
tempo, de uma espécie de autonomia da ordem das figuras,
que Descartes não tinha certamente os meios de sustentar em
sua época, é o que Lacan vai procurar isolar daqui em diante
ao máximo.
Equiparar o significante lacaniano à figura concebida por Descartes: essa
leitura de Gaufey restaura uma linha de elaboração do pensamento humano
e, de certa forma, traz homogeneidade ao corpo teórico da psicanálise
lacaniana; assim como Freud não dispunha da teoria saussuriana, e falou do
significante sem nomeá-lo, vê-se agora que o próprio Descartes não
dispunha, similarmente, dos meios para falar com precisão do... significante.
Essa manobra – tomar a contribuição de um autor, a seu modo, e, a bem
dizer, subvertendo-o é reiterada em Lacan: assim como Saussure, outros
autores foram lidos por Lacan, e tiveram alguma idéia retomada de um modo
peculiar: é o caso de lógicos, de matemáticos, de vários filósofos, nessa
manobra de “ler com o escrito” mencionada mais acima.
Nem sempre, porém, Lacan reconhece esse seu procedimento, e chega
mesmo a dizer que não pretende tomar uma idéia transformando-a, como se
55
pode ler na seqüência daquela sessão do seminário A Identificação, de 15 de
novembro de 1961:
É claro que não se trata absolutamente de pretender
ultrapassar Descartes, mas antes de tirar o máximo de efeito
da utilização dos impasses dos quais ele nos conota o fundo.
Lacan diz, logo em seguida, que “lembrem o que pretendo tirar daí para o
bem do meu próprio discurso”. E ele critica o texto de Descartes: Em “penso,
logo sou”, objeta, “penso” não é um pensamento. É uma fórmula na chegada de
um longo processo de pensamento, e é um pensamento de um pensador o
que não é exigível para que falemos de pensamento. Um pensamento não
exige que se pense no pensamento. “Para nós particularmente, o pensamento
começa no inconsciente”, diz Lacan nessa mesma sessão do seminário 9.
Seguindo Gaufey, que cita essa mesma sessão, “esse ‘eu penso’ , poderia
acontecer que fosse uma palavra que se revelasse inteiramente insuficiente
para sustentar qualquer coisa que pudéssemos finalmente situar desta
presença: ‘sou’. É justamente o que pretendo”.
Essa crítica de Lacan, segundo Gaufey, se baseia no fato de que o sujeito
cartesiano está numa relação necessária às figuras que ele se dá e pelas quais
ele “pensa”. Descartes não poderia pensar com as “maneiras” lacanianas da
letra...
Aqui a operação se precisa, e, classicamente, por uma nova nominação.
Antes, porém, Lacan faz uma longa circunvolução; essa palavra, “penso”,
para Lacan, não necessariamente bastaria para sustentar alguma coisa da
presença do “sou”; “penso” não é mais sustentável, logicamente, que o “minto”,
o paradoxo do mentiroso, formado em torno da frase de Epimênides de
Gnossa, citado por Joel Dör (1995, p. 58):
Se é verdade que todos os cretenses são mentirosos, o
que advém dessa proposição de Epimênides : ‘eu minto’- a
56
fórmula é verdadeira ou não? A racionalidade habitual da
lógica não permite responder. Ao articular ‘eu minto’,
Epimênides enuncia uma frase verdadeira, que é cretense.
Portanto, de uma só vez, ele não mente. Mas, entretanto,
deve-se convir que ele mente ainda assim, pois que, ao dizê-lo,
afirma o contrário.
Joel Dor refere a análise que Lacan faz desse paradoxo ao consenso
lógico sintetizado por Canthor em 1899 a propósito da noção de conjunto de
todos os conjuntos que não são membros de si mesmos e formalizado em torno
de teorema da teoria dos conjuntos sobre a potência dos conjuntos; e considera
que Lacan confiou nessa argumentação lógica, trazendo esse paradoxo à
razão, à luz da experiência do inconsciente. Ele cita (Dor, 1995, p. 61) :
É muito fácil demonstrar esta pretensa dificuldade
lógica e mostrar que a pretensa dificuldade onde repousa esse
julgamento deve-se a isto: o julgamento que ele comporta não
pode basear-se em seu próprio enunciado, é um colapso: é
sobre a ausência de distinção de dois planos, pelo fato de que
a ênfase cai sobre o próprio ‘eu minto’ sem que dele se
distinga, que surge essa pseudodificuldade; isso para lhes
dizer que, na falta dessa distinção, não se trata de uma
verdadeira proposição.
4.6 O sujeito suposto saber, deposto
Seguindo com Gaufey, se o cogito cartesiano não vale mais para a
psicanálise, agora saberemos porquê, citando Lacan nessa primeira sessão do
Seminário 9:
[...] aqui trago uma fórmula que é aquela sobre a qual seremos
conduzidos a retomar nas próximas vezes, é esta: o de que se
57
trata e como isto nos é dado, que somos psicanalistas, é
subverter radicalmente, tornar impossível esse preconceito, o
mais radical, e contudo é o preconceito que é o verdadeiro
suporte de todo esse desenvolvimento da filosofia, do qual se
pode dizer que está no limite que nossa experiência
ultrapassou, o limite além do qual começa a possibilidade do
inconsciente é que jamais houve, na corrente filosófica que
se desenvolveu a partir das investigações cartesianas ditas do
cogito, jamais houve senão um único sujeito que fixarei, para
terminar, sob esta forma: o sujeito suposto saber. É preciso
que vigiem esta fórmula da repercussão especial que, de
alguma forma, traz consigo sua ironia, sua questão [...].
Agora Lacan nomeia aquilo que designa algo inaceitável, que teria sido
ultrapassado pela análise, esse sujeito suposto saber, que nos acostumamos a
ouvir de outra forma. A crítica passa pela função desse sujeito suposto saber
que, na fenomenologia, especialmente a hegeliana, conduziria ao saber
absoluto. Lacan refuta este saber absoluto, colocando uma
moção de desconfiança de atribuir este suposto saber a quem
quer que seja, nem a supor (subjicere) nenhum sujeito ao
saber. O saber é inter-subjetivo, o que não significa que seja o
saber de todos, nem que seja o saber do Outro [...] E essencial
mantê-lo como tal: o Outro não é um sujeito, é um lugar ao
qual nos esforçamos, diz Aristóteles, em transferir o saber do
sujeito. [...] há, se posso dizer, emoção em função de uma
suposição indevida, a saber que o Outro saiba que há um
saber absoluto, mas o Outro sabe disso ainda menos que ele,
pela boa razão, justamente, que ele não é um sujeito. O Outro
é o depósito dos representantes representativos desta
suposição de saber, e é isto que chamamos inconsciente
enquanto que o sujeito perdeu-se a si mesmo nesta suposição
de saber.
58
Trata-se, diz Gaufey, de uma proscrição: na sessão seguinte desse
seminário 9, Lacan afirma que é preciso prescindir do sujeito suposto saber; e
evoca a seguir algumas sessões do seminário 6 (do Desejo e sua
interpretação), realizado três anos antes, que procuravam valorizar
esse sujeito que é o nosso, esse sujeito que eu gostaria hoje
de interrogar por vocês a propósito do percurso cartesiano, [...]
é o mesmo que neste primeiro trimestre (de 1958) eu disse que
não o podíamos pesquisar além do que é feito neste sonho
exemplar que o articula inteirinho em torno da frase: ‘ele não
sabia que ele estava morto’.
É porque ele nos faz visar esse lugar onde o sujeito não pode saber (por
excelência, aquele de sua morte) que o apelo do sujeito-suposto-saber apela
por si condenação e proscrição. E Lacan fala então do impasse, até mesmo
da impossibilidade do ‘eu penso logo eu sou’.
Uma vez afastado esse sujeito suposto saber, permanecem dois modos de
articular a “vacilação fundamental” introduzida pela dúvida metódica e
hiperbólica.
Lacan encontra na psicologia de Brentano (ele a cita na sessão de 22 de
novembro) a articulação de que
o ser não poderia se apreender como pensamento
senão de um modo alternante. É numa sucessão de tempos
alternantes que ele pensa, que sua memória se apropria de
sua realidade pensante sem que em nenhum instante possa se
juntar este pensamento em sua própria certeza.
Outra articulação apontada por Lacan, e mais próxima da reflexão
cartesiana, é no sentido de se perceber o caráter evanescente deste eu, e que
o verdadeiro sentido do primeiro percurso cartesiano é de se articular como um
59
“‘eu penso e eu não sou’. Que fique claro que é por parar de pensar que posso
entrever que eu seja simplesmente”.
O ponto em que Lacan quer chegar com isso, segundo Gaufey (p. 180),
reside nisso que ele enuncia em 22 de novembro de 1961:
O que encontramos no limite da experiência cartesiana
como tal do sujeito evanescente, é a necessidade desta
garantia, do traço de estrutura o mais simples, do traço único,
se ouso dizer, absolutamente despersonalizado, não somente
de todo conteúdo subjetivo, mas mesmo de toda variação que
ultrapasse esse único traço, deste traço que é um por ser o
traço único.
Em outras palavras, Lacan (1988a, p. 135), trabalhando neste seminário
sobre a identificação, toma a bateria significante confrontada a esse traço único
para discernir o sujeito, estabelecendo uma precisão muito importante: a de
não tomar esse eu do cogito pelo homúnculo que,
muito tempo, é representado cada vez que se quer fazer
psicologia (...), o ponto dito, hoje em dia, de síntese. (...) Ao
contrário, em nosso vocabulário próprio, simbolizamos por $ o
sujeito, no que constituído como segundo em relação ao
significante. Para ilustrar isto, eu lhes lembrarei que a coisa
pode ser representada da maneira mais simples pelo traço
unário. O primeiro significante é o entalhe, com o qual se
marca, por exemplo, que o sujeito matou
um animal, mediante
o quê, ele não se embrulhará em sua memória quando tiver
matado mais dez. (...) é a partir desse traço unário que ele os
contará (...) O traço unário, o próprio sujeito a ele se refere, e
de começo ele se marca como tatuagem, o primeiro dos
60
significantes. Quando esse significante, esse um, é instituído
a conta é
um um. É ao nível, não do um, mas do um um, ao
nível da conta, que o sujeito tem que se situar como tal. Com o
que os dois uns, já, se distinguem. Assim se marca a primeira
esquize que faz com que o sujeito como tal se distinga do
signo em relação ao qual, de começo, pôde constituir-se como
sujeito. Eu lhes ensino então a se guardarem de confundir a
função do $ com a imagem do objeto a, na medida em que é
assim que o sujeito, este, se vê, redobrado – se vê como
constituído pela imagem refletida, momentânea, precária, da
dominação, se imagina homem apenas pelo que se imagina.
Na prática analítica, referir o sujeito em relação à realidade, tal
como a supomos nos constituindo, e não em relação ao
significante, vem a cair na degradação da constituição
psicológica do sujeito.
Conforme Gaufey, trata-se do auge da interrogação lacaniana sobre o
um :
a fundação do um que constitui esse traço não é tomada em
nenhuma parte senão em sua unicidade: como tal não se pode
dizer dele outra coisa senão que ele é o que tem de comum
todo significante de ser antes de tudo constituído como traço,
de ter este traço por suporte
aquela que se exprime mais tarde na divisão unário/uniano. Lacan tem então,
apenas o unário, para ele decisivo, e sua tradução do freudiano einziger Zug
da segunda identificação, que ele vai dispor nas sessões seguintes desse
seminário sobre a Identificação com todo o tema dos entalhes no osso de rena.
Se o sujeito-suposto-saber exclui o uniano, o sujeito do saber absoluto, é o
unário que vem como resultado do cogito.
61
Gaufey (p. 180) argumenta que o cogito não traz um sujeito eternizado
em sua res cogitans, e sim esse unário “absolutamente despersonalizado”,
esse traço que não envia a nada no mundo e que encontra,
nessa ausência brutal de envio mundano, sua capacidade
fundacional ao não representar então mais nada senão... o
sujeito .
Tem-se, então, que o unário representa o sujeito. E que conflito entre
duas acepções do termo sujeito: uma que faz dele o auge da pirâmide
representativa, que cai por terra com a proscrição de Lacan com essa apelação
do sujeito-suposto-saber, e outra que o reduz ao traço mínimo por onde possa
haver figura (e portanto representação, apreensão simbólica do mundo), e que
vai permitir a Lacan definir o sujeito como “representado por um significante
para outro significante”. Nessa segunda sessão do seminário 9, Lacan (1961,
citado por Gaufey, p. 181) conclui apontando a substituição da vertente idealista
desse sujeito da tradição clássica por uma função de idealização – que repousa
sobre a necessidade estrutural articulada sob a forma do ideal do eu
enquanto que
é a partir deste ponto, não mítico, mas perfeitamente
concreto de identificação inaugural do sujeito ao significante
radical, não do um plotiniano, mas do traço único como tal, que
toda a perspectiva do sujeito como não sabendo pode se
desenrolar de um modo rigoroso.
Gaufey (p. 182) destaca como é notável que nesse momento 1961
Lacan
tenha podido nomear o que lhe era preciso rejeitar do cogito
cartesiano e da tradição filosófica que se vale disso, a saber
62
esse sujeito-suposto-saber, e que ele tenha podido dizer, como
jamais anteriormente, o sujeito que anos ele promovia
eristicamente contra certos desvios pós-freudianos”, depurando
o cogito do seu ranço hegeliano (de sujeito votado a um saber
absoluto) e abrindo a possibilidade de uma leitura que pudesse
unir a letra freudiana ao sujeito que ela condiciona.
4.7 Novamente, o sujeito-suposto-saber
O sujeito-suposto-saber, proscrito em 1961, reaparece no final do
seminário 11, em 1964, sobre os Fundamentos da Psicanálise. Tratando da
transferência, um dos quatro conceitos fundamentais juntamente com o
inconsciente, a repetição e a pulsão, Lacan precisa a articulação entre o sujeito
(tal como definido após 1961, como representado por um significante para um
outro), e o Outro entendido como o “tesouro dos significantes”. Sem mencionar
Descartes, Lacan introduz as duas operações que regulam as relações do
sujeito e do Outro, a alienação e a separação; ele representa essas operações
com a ajuda de dois círculos de Euler se interseccionando. Num desses
círculos, ele coloca o ser (e o sujeito), no segundo o sentido (e o Outro). Para
Gaufey, o par ser e sentido é tão pouco familiar a Lacan (1988 a, citado por
Gaufey, p. 183) que ele se acha obrigado a dizer:
[...] termos que eu não adianto sem relutância, e não
sem lhes rogar que não se precipitem em carregá-los demais
desses sentidos que os fariam cair numa pressa da qual
convém que, no avanço de tal discurso, nós nos guardemos.
Esses termos, para Gaufey, estão para propiciar a retomada de
Descartes: a alienação e a separação.
A alienação articula o ser e o sentido com uma escolha forçada, o que
Lacan toma como o funcionamento regular do sujeito: quando o sujeito aparece
63
em algum lugar como sentido, em outro lugar ele se manifesta como fading,
como desaparecimento.
Esta operação de alienação requer, em relação aos círculos de Euler, a
subestrutura da reunião, para pensar a coexistência do sujeito e do Outro.
a separação aparece representada pela intersecção, pelos elementos
que pertenceriam ao mesmo tempo aos dois conjuntos, o lugar onde se
juntariam o sujeito e o Outro, o ser e o sentido. Aqui Gaufey aponta que se
pode pressentir a retomada do cogito cartesiano, mas desta vez expurgado de
sua propensão hegeliana rejeitada em 1961, na medida em que “esse sujeito
‘afanísico’ [...] não poderia se manter pura e simplesmente na acumulação
progressiva do saber”, ou seja, não é um sujeito que conhece e acumula
representações da realidade, como se dirá do eu, moi.
Para Lacan (1988 a, p. 210), nesse momento de sua elaboração teórica,
é preciso afastar o que ele nomeia de “logro hegeliano” :
É necessário que aqui eu indique de onde procede o logro
hegeliano. Ele está incluído no encaminhamento do
eu penso
cartesiano, onde lhes designei o ponto inaugural que introduz,
na história, em nossa experiência, em nossa necessidade, o
vel da alienação, e que nos impede para sempre de
desconhecê-lo. É no encaminhamento cartesiano que o
vel é
tomado pela primeira vez como constituinte da dialética do
sujeito, desde então ineliminável em seu fundamento radical.
Lacan irá se deter um pouco na articulação de alguns traços dessa
referência, para caracterizar a experiência da transferência. Ele cita uma frase
de Descartes (1988 a, p. 210), para mostrar que ele procura a certeza mas
que não se trata da visada do saber:
Tenho, diz ele, extremo desejo de aprender a distinguir o
verdadeiro do falso
sublinhem desejo para ver claro no
64
quê? em minhas ações, e caminhar com segurança nesta
vida.
O próprio Descartes, conforme diz Lacan, sublinha a importância da sua
biografia para a comunicação do seu método, pelo qual ele partiu com o desejo
de aprender a distinguir o verdadeiro do falso, para ver claro em suas ações – é
um exemplo particular: ele não pretende, ainda segundo Lacan, refutar saberes
incertos, ser cético. Lacan (1988 a, p. 212) julga, a propósito, que o ceticismo é
uma ética, é algo que não conhecemos mais, “talvez em razão dessa passagem
achada por Descartes e que conduz a procura do caminho da certeza a esse
ponto mesmo do vel da alienação, para o qual uma saída a via do
desejo”.
Nesse caminho, diz Lacan (1988 a, p. 212), Descartes acaba por operar
uma singular separação: ele faz algo concernente
ao campo, que ele não nomeia, onde erram todos esses
saberes de que ele disse que convinha colocá-los numa
suspensão radical. Ele põe o campo desses saberes no nível
desse sujeito mais vasto, o sujeito suposto saber, Deus.
Nesse momento de sua argumentação, Lacan lembra, para não perder
de vista o campo de nossa experiência, que o sujeito suposto saber, na análise,
é o analista. Será preciso examinar esse paralelismo que é sugerido. Para isso,
também é preciso explicitar algo sobre o que garante a verdade.
Precisamente, esse Deus absolutamente separado, esse ser infinito,
detém o valor de verdade do saber que o ego recolhe: as verdades eternas são
eternas porque Deus as quer assim, e, se dois e dois são quatro, é porque
Deus quer.
Colocado o valor do saber em Deus, Lacan o põe então em paralelo com
a articulação da transferência, tal como havia exposto no seu comentário do
65
Banquete de Platão, na sessão seguinte do seminário 11 (1988 a, p. 219), em
que ele diz:
O momento essencial, inicial, ao qual se deve reportar a
questão que temos que nos colocar, da ação do analista, é
aquele em que é dito que Sócrates jamais pretendeu nada
saber, senão o que diz respeito a
Eros, quer dizer, ao desejo
[...] Platão, só por isso, [...] não pôde fazer mais que nos
indicar, da maneira mais precisa, o lugar da transferência.
Desde que haja em algum lugar o sujeito suposto saber que
eu abreviei hoje no alto do quadro por S.s.S. -
transferência.
Proscrito em 1961, retorna então, segundo Gaufey (p. 185) isto que
exprime a transferência,
a suposição da existência de um sujeito no lugar do Outro. O
S.s.S. é o Outro em posição de sujeito, ou seja exatamente o
que Lacan pôde denunciar desde que ele se despojou de toda
intersubjetividade. Desde que o sujeito (dito “barrado") é
definido por um significante para
um outro, é excluído que o
Outro (tesouro dos significantes) seja sujeito... fora desta
suposição que põe em obra essa possibilidade na
transferência.
Este autor também considera que Lacan teve de excluir num primeiro
tempo um tal sujeito-suposto-saber tido como ‘logro hegeliano’ consecutivo ao
cogito cartesiano pelas mesmas razões que o fizeram reintroduzir tal sujeito
como afim à estrutura da transferência em psicanálise. Em suma, enquanto
Lacan construía a noção de sujeito ligado ao significante, o Outro foi sendo, ao
longo dos seminários, cada vez mais despersonalizado, até não ter mais a seus
66
olhos a qualidade de sujeito senão em ligação apenas ao fenômeno da
transferência.
“O analista”, diz Lacan no seminário 11 (p. 221), “mantém esse lugar, no
que ele é o objeto da transferência. A experiência nos prova que o sujeito,
quando entra em análise, está longe de lhe dar esse lugar”. Ele pede que
deixemos de lado a hipótese cartesiana de que o psicanalista seja enganador,
admitindo que possa ser enganado. E Lacan pergunta: “Aquele que pode ser
enganado, não deveria estar a fortiori sob a suspeita de poder, muito
simplesmente, enganar-se?” e conclui mostrando que em torno deste
enganar-se gira um ponto que ele quer marcar, pelo qual o analista recebe o
crédito de uma certa infalibilidade, a atribuição de intenções às vezes a
propósito de um gesto casual. Lacan questiona: de que é que se trata nessa
confiança depositada no analista?
Depois de considerar o desejo do analista, de querer o bem, Lacan (p.
222) chega a dizer : não querer desejar é querer não desejar – e que
o sujeito sabe que não querer desejar tem em si algo tão
irrefutável quanto essa banda de Moebius que não tem avesso,
isto é, que ao percorrê-la se retornará matematicamente à
superfície que supostamente a duplicaria. É nesse ponto de
encontro que o analista é esperado. Enquanto o analista é
suposto saber, ele é suposto também partir ao encontro do
desejo inconsciente. É por isso que eu digo [...] que o desejo é
o eixo [...] que há por trás do que se formula primeiro, no
discurso do paciente, como demanda, isto é, a transferência.
O eixo [...] é o desejo do analista, que eu designo aqui como
uma função essencial. [...] O desejo do homem é o desejo do
Outro.
Isto reproduz o elemento de alienação: um ponto em que o desejo do
sujeito jamais pode reconhecer-se, e como mostra a experiência analítica, “é de
67
ver funcionar toda uma cadeia no nível do desejo do Outro que o desejo do
sujeito se constitui”.
O cogito voltará a ser trabalhado por Lacan nos anos seguintes, mas ele
não recoloca em questão o crédito dessa virada de 1964, em que se instala
uma noção do Outro como sujeito-suposto-saber que é aceito em razão da
transferência e de seu acento de embuste, que ficou indicado acima.
Conforme Gaufey, daí em diante aparecem duas acepções do sujeito:
-um sujeito vacilante, evanescente, afanísico, que não perdura que ele
não é concebido senão como representado por um significante para um outro, e
que é rigorosamente “separado” do Outro no qual ele se aliena não podendo
ser senão pelo fato de sua representação significante: $;
-e um sujeito fixo, inquebrantável, lugar de todo saber, pelo qual os
significantes representam alguma coisa (e portanto formam signos se juntando,
daí, aos significados), e que encontra no lugar do Outro: S.s.S., sujeito-suposto-
saber.
4.8 O eu e o [eu]
Estas colocações permitem fazer uma leitura mais precisa da diferença entre
o eu e o [eu], ou seja, referir o eu (‘moi’, em francês) a um sistema ligado à
percepção-consciência (embora possa ter partes inconscientes, ou pré-
conscientes) e essencialmente voltado à apropriação representativa da
realidade, pela consciência, e referir o [eu] (em francês, ‘je’) a este sujeito do
inconsciente, o sujeito da enunciação, do qual se vê Lacan destacar o momento
inaugural no pensamento ocidental a partir da reflexão de Descartes. Trata-se
da novidade da introdução de uma possibilidade de subjetivação, de uma virada
no modo de pensamento que, desde a antiguidade, mirava a coisa a ser
representada, conhecida, e não o ser que simboliza e se apropria da realidade.
68
E é só no século 20 que Lacan poderá retomar a descoberta de Freud e,
à luz dos desenvolvimentos de várias disciplinas (em especial a lingüística, a
antropologia estrutural, a lógica, a topologia e a filosofia de seu tempo),
destacar, dada a primazia do significante, o processo analítico como a
investigação do sujeito do inconsciente, e mostrar que isso fala.
Deve-se destacar que, na língua francesa, existem dois pronomes je e
moi - para designar o eu, e que essa duplicidade se presta a nomear essa
diferenciação, feita por Lacan, entre o eu e o sujeito do inconsciente, que não
coincidem, como visto; e levar em conta que essa questão permaneceu não
esclarecida em Freud.
Contudo, como se pode constatar pelo título original do trabalho sobre o
estádio do espelho: "Le stade du muroir comme formateur de la fonction du Je
5
telle qu'elle nous est révélée dans l'expérience psychanalytique", é de se notar
que Lacan indica o je, nesse texto, e não moi, nesse momento em que está
apresentando um trabalho teórico básico para o estudo da constituição do
sujeito; e que ele não separava, nesse momento, o eu, como instância
imaginária, do [eu], sujeito do inconsciente (para seguir com a convenção
aceita, vide nota 3, na p. 39, e reiterada na tradução brasileira dos Escritos, em
1998), pelo menos não desde o início de sua obra.
Para esclarecer esse tema, convém recuar na história novamente. Em
um texto chamado De nossos antecedentes, Lacan (1998, p. 71) menciona a
produção do "estádio do espelho" e relata, em uma nota de rodapé, que "foi no
congresso de Marienbad (31 de julho de 1936) que teve lugar esse primeiro
pivô de nossa intervenção na teoria psicanalítica". Esses Antecedentes contêm
uma espécie de advertência:
Sucede a nossos alunos enganarem-se em nossos escritos,
por encontrarem "já presente" aquilo a que depois nos levou
nosso ensino. Não será o bastante que o que ali se encontra
5
o grifo é nosso.
69
não lhe tenha bloqueado o caminho? Que se possa ver, no que
aqui se desenha de uma referência à linguagem, o fruto da
única imprudência que nunca nos enganou: a de não nos
fiarmos a nada senão à experiência do sujeito que é a matéria
única do trabalho analítico.
De certa forma, aqui se passa o contrário: tenta-se verificar se o sujeito
do inconsciente "já estava lá", ou seja, se Lacan já pensava no sujeito do
inconsciente nesse momento, inicial, de sua teorização ("esse primeiro pivô de
nossa intervenção...").
A seguinte citação desse texto de Lacan (1998, p. 97) sobre o estádio do
espelho contribui para esclarecer a questão:
Basta compreender o estádio do espelho como uma
identificação
, no sentido pleno que a análise atribui a esse
termo, ou seja, a transformação produzida no sujeito quando
ele assume uma imagem (...) A assunção jubilatória de sua
imagem especular por esse ser ainda mergulhado na
impotência motora e na dependência da amamentação que é o
filhote do homem nesse estágio de
infans parecer-nos-á pois
manifestar, numa situação exemplar, a matriz simbólica em
que o [
eu] se precipita numa forma primordial, antes de se
objetivar na dialética da identificação com o outro e antes que a
linguagem lhe restitua, no universal, sua função de sujeito.
Essa forma, aliás, mais deveria ser designada por
[eu]-ideal, se
quiséssemos reintroduzi-la num registro conhecido, no sentido
em que ela será também a origem das identificações
secundárias, (...). Mas o ponto importante é que essa forma
situa a instância do eu, desde antes de sua determinação
social, numa linha de ficção, para sempre irredutível para o
indivíduo isolado - ou melhor, que se unirá assintoticamente
ao devir do sujeito, qualquer que seja o sucesso das sínteses
70
dialéticas pelas quais ele tenha que resolver, na condição de
[eu], sua discordância de sua própria realidade.
Encontra-se acima exemplificada a não-separação entre o eu e o [eu]:
Lacan fala em uma matriz simbólica e numa forma primordial associada à
instância do eu. Mas cumpre notar que é à formação do Je que o autor se
refere, e que, ao estabelecer os Escritos, publicados em 1966, esse título é
mantido.
Esse trecho também traz a possibilidade de entender como, ao se
estruturar o imaginário, ao mesmo tempo se estrutura o simbólico. O tradutor
para o espanhol desse texto dos Escritos do qual dispomos da versão
eletrônica esclarece, a propósito, que Lacan se aterá, a partir desse texto, à
tradução do Idealich freudiano por eu-ideal, conceitualizando-o de acordo com
sua bipartição - moi, eu como construção imaginária; je, eu como posição
simbólica do sujeito.
Retomando a advertência citada acima, o que se no "texto-pivô"
lacaniano é, pode-se dizer, um "já estava tudo junto", sendo que a
continuação da obra, como se sabe, não apenas não bloqueia como vai abrir o
caminho que reconduz a psicanálise a seu fio ("a experiência do sujeito que é a
matéria única do trabalho analítico"), aquele promovido pela releitura lacaniana
da obra de Freud.
Darmon (1994, p. 188) retoma a distinção que Lacan estabelece entre o
sujeito do enunciado e o sujeito da enunciação, e mostra que, se em Descartes
o “eu penso” implica o “eu sou”, não como uma verdadeira
implicação lógica com relação à qual vimos as particularidades,
mas por uma espécie de coincidência, de superposição de dois
círculos: o círculo do sujeito do enunciado do “eu penso”, e o
do sujeito da enunciação que é visado no “eu sou”. Lacan
71
observa, en passant, que o “eu penso” é na verdade um puro
non-sens, ele substitui, na verdade, o ato que o precede, ou
seja, a colocação em dúvida, a abrasão de todo o saber. A
descoberta de Freud nos mostra que não uma tal
coincidência. Lacan traduz então a fórmula de Descartes por:
“eu penso onde não sou, portanto, eu sou onde não penso”, ou
ainda, “eu não sou, onde sou joguete do meu pensamento;
penso naquilo que sou lá onde não penso pensar".
Nessas novas fórmulas, fica bem evidente o descentramento revelado
pela psicanálise.
É o que foi apontado mais acima (“é assim que o sujeito, este, se vê,
redobrado se como constituído pela imagem refletida, momentânea,
precária, da dominação, se imagina homem apenas pelo que se imagina”):
“quando o sujeito crê poder se designar a si mesmo em seu enunciado, ele
permanece tão inapreensível quanto na imagem do espelho” (Darmon, p. 189).
Pode-se agora retomar as colocações iniciais, relendo-as com o que foi
exposto: “produzindo-se o significante no lugar do Outro ainda não discernido,
ele faz surgir ali o sujeito do ser que ainda não possui a fala, mas ao preço de
cristalizá-lo [...]” É a afânise; e mais: se o sujeito escolhe o ser, perde o sentido,
e se escolhe o sentido, perde o ser, produz-se a afânise; entre os dois campos,
o do sujeito e o do Outro, está o sem-sentido, o inconsciente”.
O Outro é o tesouro dos significantes; o Outro-mãe (ou seja, a mãe
presentificando o lugar do Outro) fala com o bebê, emprestando-lhe um
significante que o marcará, o traço unário. Nesta constituição de um sujeito, é
inevitável uma primeira alienação, esta, que põe um sujeito sob um significante
materno. Ele faz surgir ali o sujeito do ser que ainda não possui a fala... mas ao
preço de cristalizá-lo. O ser do sujeito está ali sob o sentido. A escolha forçada
que Lacan descreve reside no fato de que, se escolhemos o ser, o sujeito
desaparece, ele nos escapa, cai no não-senso o inconsciente. Ou não penso,
72
ou não sou...Escolhemos o sentido, desaparece o sujeito, é a afânise. Nas
formações do inconsciente vemos a incapacidade do sujeito de acompanhar
suas representações e se assegurar da continuidade de seu ‘ser’: na escolha
forçada pelo ‘não penso’ – o que aparece é uma certeza imaginária, alienada.
A psicanálise permitirá a experiência de se fazer a outra escolha: na palavra
que escapou, no sonho, no ato falho, no esquecimento, manifesta-se o
inconsciente, um lugar onde ‘eu não sou’.
73
5. A SEPARAÇÃO
5.1 A lógica da separação
Até aqui, ficou estabelecida a primeira operação de constituição do
sujeito, a alienação, que condena o sujeito a aparecer numa divisão : se ele
aparece como sentido produzido pelo significante (e ele cai no inconsciente,
no lugar da surpresa, do tropeço), ele perde o ser, porque aparece do outro
lado como afânise. Esse vel da alienação se suporta pela forma lógica da
reunião, em que, operando-se qualquer escolha, resulta um nem um, nem
outro; sempre alguma perda. Ao falar da alienação, Lacan (1988 a, p. 201)
uma explicação muito importante sobre a interpretação: na análise, ela “não
visa tanto o sentido quanto reduzir os significantes a seu não-senso, para que
possamos reencontrar os determinantes de toda a conduta do sujeito”.
Voltaremos a esse ponto mais tarde.
Esse ou alienante, do tipo da escolha forçada, foi encontrado por Lacan
em Hegel, que traz a primeira alienação, “aquela pela qual o homem entra na
via da escravidão”. Isto ajuda a destacar a função letal da alienação. Trata-se
de um momento hegeliano, a escolha da morte – no Terror.
Logo depois de mencionar isso, Lacan (1988 a, p. 202) explica a
segunda operação, a separação, “que termina a circularidade da relação do
sujeito ao Outro, mas aí se demonstra uma torção essencial”.
74
A separação, segundo tempo dessa operação, é explicada em termos
lógicos pela subestrutura da intersecção dos dois conjuntos (que representam o
campo do sujeito e o campo do Outro), e que contém os elementos comuns a
ambos; como foi dito antes, nesse lugar se juntariam o sujeito e o Outro, o
ser e o sentido. Lacan (1988 a, p. 202) avisa que é essencial definir essa
segunda operação, “porque é que vamos ver despontar o campo da
transferência” .
A intersecção entre o sujeito e o Outro surge do recobrimento de duas
faltas. Uma falta é aquela que o sujeito encontra no Outro e que, conforme
teoriza Lacan, é próprio da estrutura do significante: nos intervalos do discurso
do Outro, nesse intervalo cortando os significantes, desliza o desejo, está
aquilo que antes Lacan ressaltava como a metonímia, o que faz o sujeito
apreender algo do desejo do Outro. E o sujeito responde a essa captura com a
falta, anterior, de seu próprio desaparecimento: como foi visto, ao se
submeter ao sentido dado pelo Outro o sujeito desaparece, entra em afânise.
Uma falta recobre a outra, diz Lacan. No final, cai um resto, o objeto a.
No esquema dos mecanismos originais da alienação, um primeiro
acasalamento significante que Lacan (1988 a, p. 207) chama de
Vorstellungsrepräsentanz, representante da representação,
que nos permite conceber que o sujeito aparece primeiro no
Outro, no que o primeiro significante, o significante unário, surge
no campo do Outro, e no que ele representa o sujeito, para um
outro significante, o qual outro significante tem por efeito a
afânise do sujeito.
(Donde a divisão do sujeito já explicada).
então, se assim podemos dizer, questão de vida e de morte
entre o significante unário e o sujeito enquanto significante
75
binário, causa de seu desaparecimento. O
Vorstellungsrepräsentanz é o significante binário.
Essa operação de separação permite que o sujeito encontre um espaço
entre os significantes onde
vige o desejo oferecido ao balizamento do sujeito na experiência
do discurso do Outro, do primeiro Outro com o qual ele tem que
lidar, ponhamos, para ilustrá-lo, a mãe, no caso. É no que seu
desejo está para além ou para aquém do que ela diz, do que ela
intima, do que ela faz surgir como sentido, é no que seu desejo é
desconhecido, é nesse ponto de falta que se constitui o desejo
do sujeito. O sujeito [...] retorna então ao ponto inicial, que é o de
sua falta como tal, da falta de sua afânise (p. 207).
Em suma, como explica Rabinovich (2000, p.125), do lado da escolha
forçada da alienação está a falta do sujeito, vinculada ao significante afanísico
(que obtura o que o significante pode dar de “ser” ao sujeito, o S1, que fica
oculto, unterdrück, por ação do S2). Essa falta que o S1 instaura é recuperada
com a falta do sujeito como objeto para o Outro. Trata-se de duas faltas: a falta
produzida pela perda de ser intrínseca à alienação , e a falta com que o sujeito
joga, experimentando a reação do Outro à sua ausência – o primeiro objeto que
ele propõe é a sua própria falta: pode ele me perder? A fantasia de sua morte,
de seu desaparecimento, é o primeiro objeto que o sujeito tem a pôr nessa
dialética, e ele o põe, com efeito - diz Lacan no Seminário 11 (1988 a, p. 203).
Essa explicação de Lacan apresenta a oscilação permanente que se verifica no
analisante entre alienação e separação, como uma alternância sempre
renovada.
Harari (1990, p. 250) enfatiza, a esse respeito, que essa pergunta ("pode
ele me perder?"), dirigida afirmativamente ao outro ("poderias perder-me"),
76
pode ser traduzida como um "te faço falta", escutado
polissemicamente. Nada melhor para isso que fechar-se,
precaver-se, pretendendo, assim, não dar lugar ao Outro.
Nesta separação aparece, invocadamente, a "função da
liberdade". Liberdade fantasmática, que denota o intento de
desembaraçar-se do efeito afanísico.
Este autor expõe uma conseqüência clínica importante do uso dessa
noção de separação "em direta relação com um quadro inédito, difícil e
expandido como o da anorexia mental - (...): a remissão clínica é imediata, e
fecunda" (Harari, 1990, p. 251). Ele cita um aspecto de que Lacan (1988 a, p.
202) fala a partir da palavra separação, uma espécie de jogo de palavras: em
latim, separare, que escandida se torna se parare, em francês, se parer (vestir-
se, pôr-se em guarda - este último sentido estaria presente no 'precaver-se', na
citação acima); também do latim, se parere remete a parir-se, engendrar-se,
"coisa que não devemos confundir com auto-engendramento, com a pretensão
do sujeito enquanto causa sui", e conclui: "apesar de que a determinação se
situa no campo do Outro, é possível um 'engendrar-se' relativamente à
separação".
E é nesse sentido - um 'engendrar-se' - que a separação promove algum
acesso à liberdade. Trata-se de uma função limitada da liberdade, mas que
deve ser marcada pelo que mostra de uma ação do sujeito em prol da
separação.
A relação da separação com a cadeia significante é bem explicada por
Harari (1990, p. 254), destacando que no intervalo entre S1 e S2 tem lugar um
ataque à cadeia, que é o lugar onde irrompe o sujeito para conseguir ali a
separação, "a qual não implica ficar fora da cadeia, senão fazer um lugar nela".
Esta é uma noção importante, porque insere o sujeito no discurso:
aqui não há nenhuma dimensão fora do discurso, o que
é próprio da psicose. O estar fora da cadeia é algo relativo,
77
algo dependente daquele significante que denominamos
Nome-do-Pai; assim, na psicose, seu não comparecimento
condiciona tal "fora". Aqui a questão é outra: consiste em se
fazer um lugar (...) A função da liberdade adquire, como pode
ver-se, em se fazer esse lugar na cadeia.
Uma referência importante, lembrada neste ponto por Harari, diz respeito
à interpretação analítica, que também funciona segundo este ataque ao par
significante no ponto débil do intervalo - porque, se é lá que surgiu o sujeito, é lá
que se encontra o desejo do Outro. Essa referência tem derivações importantes
para o uso da interpretação na análise.
Para chegar a compreendê-las, será preciso deter-se na questão da
metáfora. Seguiremos Harari (1990), em sua análise da discussão entre Lacan
e Laplanche, por sua incidência na questão da interpretação.
Lacan (1988 a) critica a redução da fórmula da metáfora efetuada por
Laplanche
9
. Harari (1990, p. 262), após explicar a fórmula que aparece na
Instância da Letra... (lendo-a: "a função do significante consiste em poder situar
substitutivamente um significante sobre outro significante" ; "o significante
aceita um atravessamento da barra, uma transposição, na geração da
significação"), estabelece a condição para que a metáfora não fracasse: "a
substituição deve ser suficientemente feliz para que se possa captar aquilo
substituído por parte do substituto". Ele completa mostrando a relação entre a
metáfora paterna - a substituição do Nome-do-Pai ao Desejo da Mãe - e aquilo
que Freud assentava ao explicar a passagem da mãe ao pai no caso da
sexualidade feminina. Mas, para Lacan, essa operação não se restringe à
mulher. Na sua formalização, Lacan usa frações aritméticas, colocando sob a
forma de proporção os termos envolvidos. Por ser tratado como produto, a
disposição obtida anula o Desejo da Mãe, restando uma fração que tem o
Nome-do-Pai no numerador e o significado ao sujeito no denominador. Esta é a
9
Laplanche, J.-Leclaire, S., "El inconsciente: un estudio psicoanalítico", in H. Ey (Comp.), El
inconsciente (Colóquio de Bonnevak
), México, Siglo XXI, 1970, p. 122 (referência dada pelo
autor).
78
metáfora paterna: o Nome-do-Pai o que outorga significado ao sujeito, o que
será fálico".
A visão lacaniana da sexualidade modifica a postulação freudiana; Lacan
não deixa de conservar a idéia de castração, mas a idéia de que o significado
ao sujeito será fálico não se manteve, conclusão que se tira do fato de que,
para Lacan, A mulher não existe, mas sim uma posição feminina, que é não-
toda fálica: ela participa do interesse fálico. O que se nota, então, é que, como
ressalta Harari (1990, p 267), o intuito de Lacan com sua fórmula da metáfora
paterna foi explicar o eclipse, a queda do Desejo da Mãe em virtude de sua
substituição pelo Nome-do-Pai, nessa elaboração dos anos cinqüenta. Lacan
continuou seu percurso e chegou às fórmulas da sexuação, onde não se
toma mais a sexualidade como uma conquista do desenvolvimento calcado no
aparato anatômico articulado a padrões impregnados de valores patriarcais,
como, a despeito da riqueza inegável, era a concepção de Freud.
5.2 A separação e a pulsão – o comentário de Éric Laurent
Encontra-se num trabalho de Éric Laurent (in Feldstein et al, 1997, p. 31)
uma explicação dessas operações, alienação e separação, em que ele
considera que, ao introduzi-las, Lacan está substituindo o ponto de vista dito
dinâmico por um ponto de vista topológico, e que esse par de opostos vem no
lugar do antigo par metáfora-metonímia. Ele ressalta que essa substituição
facilitou a compreensão do tratamento analítico em termos de alienação e
separação, e a fase final da análise, o final da experiência, em termos de
separação.
É. Laurent retoma a questão das duas faltas que se recobrem, utilizando
as fórmulas que Jacques-Alain Miller ofereceu em seu próprio comentário
10
, por
10
Conferência dada por ele em Caracas em 1980 (Ornicar? 28, 1984).
79
serem mais simples e mais acuradas, e explica que a primeira falta se refere ao
fato de que o sujeito não pode ser inteiramente representado no Outro: sempre
um resto, que define sexualmente o sujeito, mas não se pode apresentar
todo o sujeito. Isso se liga ao caráter parcial das pulsões, que introduz uma
falta. Ele mostra uma figura, semelhante àquela de Lacan utilizando os círculos
de Euler, representando a relação entre o sujeito e o Outro, cada um em um
campo, mas esclarecendo que no campo do sujeito se o sujeito barrado ($),
na lúnula de intersecção, S1 (o significante unário), e no campo do Outro, uma
flecha aponta S2 (que representa a cadeia significante). Em outras palavras,
algo sempre falta, o sujeito é barrado da completude que se imaginaria se
pudesse estar unido ao objeto da pulsão: e nesse momento, alienado, supõe
seu desejo como aquele significante oferecido pelo Outro.
A segunda falta, continua Laurent, não aparece em qualquer gráfico ou
formalização que mostre a separação. Ele cita novamente aquela conferência
de Miller, que formaliza o Outro de modo abreviado como S1S2, o que
remete ao significante binário. Quanto ao resto, ele está tanto dentro do sujeito
quanto dentro do Outro. Laurent propõe uma figura que utiliza os dois círculos,
estando o $ no campo do sujeito, o objeto a naquela lúnula e os dois
significantes no outro campo, o do Outro. A falta do sujeito pode então ser
definida de dois modos. Na alienação, ao se identificar com um significante, o
sujeito ($) é representado por um significante para um outro (S1S2).
Neste ponto surge este interessante exemplo, que é corrente na clínica:
Por exemplo, um “menino mau” é representado como um
“menino mau” em relação ao ideal de sua mãe. Logo, “menino
mau” (ou qualquer outra identificação que serviu, num tempo,
como significante-mestre) funciona para o sujeito como uma
linha mestra durante toda a vida deste. Ele é definido como tal
e se comporta como tal. No próprio momento em que o sujeito
se identifica com esse significante, fica petrificado. É definido
80
como se estivesse morto, ou como se lhe faltasse a parte viva
de seu ser que contém seu gozo.
Vê-se o sujeito alienado, petrificado nessa alienação. E Laurent
continua, mostrando o segundo modo de definir a falta do sujeito: é o objeto -
oral, anal, escópico ou invocatório em jogo na fantasia que proporciona gozo
a um ser sexuado definido como um “menino mau”.
Ele conclui destacando que temos uma falta (S1 na primeira figura) aqui
e outra falta ali (a na segunda figura). S1 define um sujeito necessariamente
deixando de fora uma parte dele (um “menino mau” é também outras coisas); a,
a segunda falta, deriva do fato de que o gozo é somente parcial.
Esses dois operadores, alienação e separação, mapeiam, nesse
momento da teorização de Lacan, o percurso analítico. Aqui Laurent (in
Feldstein et al, 1997, p. 38) as implicações para o manejo da interpretação,
que foram destacadas mais acima (no primeiro parágrafo deste capítulo, p. 60),
citando Lacan:
Como conseqüência da alienação, a interpretação não tem de
modo algum sua última instância no fato de nos fornecer as
significações da via onde caminha o psíquico que temos diante
de nós. Esta importância é apenas o prelúdio. A interpretação
não visa tanto o sentido, mas a reduzir os significantes a seu
não-senso, para que possamos encontrar os determinantes de
toda a conduta do sujeito.
Após essa observação, Lacan (1988 a, p. 201) pede que se reporte à
contribuição de Leclaire no congresso de Bonneval. Laurent traz um resumo
desse trabalho, a respeito de um paciente chamado Philippe, que tinha
sintomas obsessivos, especialmente com unicórnios (licorne, em francês). Ele
era o pobre Philippe (pauvre Philippe) para sua mãe, que o embalava falando
esse som. Na análise, ele chega a notar que o unicórnio representava o falo
81
materno, e que o paciente se recusava a aceitar a castração materna. No sonho
central de sua análise, aparece uma ligação com essa obsessão que se podia
escrever como: Poôr (d)J’e-Li (Poordjeli), incluindo “pobre Philippe”, o “je” (eu)
do sujeito, e “li” de Philippe, Licorne e lit (cama). “Tudo isso podia ser incluído
numa espécie de cadeia, absurda em sua justaposição, mas que era a cadeia
dos significantes-mestres na vida de Philippe”. Lacan chama a atenção para o
fato de que Leclaire isolou a seqüência de licorne justamente enquanto cadeia
de significantes, em seu caráter irredutível e insensato. Mas, se Leclaire
encerra assim o processo interpretativo, para Lacan isso é apenas o prelúdio, já
que ainda é preciso analisar como pode o paciente se definir pelo
remanescente da operação fálica, e não pelo falo: isto é, pelo objeto a.
percorrido o labirinto das identificações, resta conduzir o sujeito através dos
seus modos de gozo, as maneiras pelas quais ele transforma o ser amado em
objeto; e Laurent finaliza este artigo mostrando que se tem que aprender na
própria análise que ninguém é representado por seu amor, é sempre preciso
encontrar a outra falta sempre se trata do mesmo resto - ou seja, existe um
limite, existem apenas representações parciais, e isso vai lembrar o sujeito do
gozo que experimentou em suas demandas, daquilo que não está diretamente
ligado à necessidade: “aparentemente, não se precisa do olhar ou da voz do
Outro, mas ainda assim deseja-se isso mais do que se possa pensar”.
Retomaremos mais tarde essa referência ao olhar e à voz do Outro,
deixando apontado que Lacan diz também que “é o reconhecimento da pulsão
que permite construir, com mais certeza, o funcionamento dito por mim de
divisão do sujeito, ou de alienação, [...] (pulsão que) foi reconhecida nisso que
[...] encontramos um certo tipo de objetos que não podem servir para nada: são
os objetos a, os seios, as fezes, o olhar, a voz. É nesse termo novo que vige a
dialética do sujeito enquanto sujeito do inconsciente” (Lacan, 1988 a, p.228).
Éric Laurent apresenta num segundo texto (Feldstein et al, p. 42) mais
esclarecimentos quanto à união do sujeito com o Outro; há uma perda, como
visto, ficando o sujeito petrificado por um significante-mestre e perdendo uma
82
parte de seu ser. Isto que constitui a alienação – o fato da identificação do
sujeito a algo, já que ele não tem identidade – encobre a questão da definição
do sujeito no nível das pulsões, ou seja, em termos de seu gozo em relação ao
Outro.
Segundo Laurent, a alienação seria o que Freud destaca como o objeto
(de gozo) perdido: e o sujeito seria o objeto do gozo do Outro real (usualmente,
a mãe). Trata-se, aqui, de uma articulação complexa: o sujeito começa a viver
no lugar do objeto a (e temos numerosos exemplos clínicos que o confirmam,
como o citado pouco, do pobre Philippe), tem que se identificar com aquela
parte perdida e ingressar na cadeia significante. Ou seja, submeter-se ao
significante oferecido pelo Outro materno. Mas isso implica também em se
identificar com um objeto que será definido posteriormente:
aquilo que ele foi, como tal, no desejo do Outro, não apenas
no nível simbólico do desejo, mas como substância real
envolvida no gozo. Ele só pode recuperá-lo ou identificá-lo
dentro do desenvolvimento da cadeia de significantes.
Nesse tema, Laurent está discutindo a falsa idéia de que a interpretação
está aberta a qualquer sentido, sob o pretexto de que se trata da ligação de
um significante a outro, como Laplanche erroneamente assumira, autorizado
por alguma coisa na obra de Lacan. Ao falar logicamente, a alienação vem
antes da separação. Mas, na análise, a separação vem antes; se Lacan diz que
a interpretação não está aberta a qualquer sentido, ele indica que se deve
referir o verdadeiro sentido daquilo que o analisando diz ao interior da cadeia
significante, e este sentido deve ser o produto ou resto do primeiro encontro
entre o sujeito e o Outro (das Erlebnis em termos freudianos, o lugar do gozo).
Laurent destaca que para Lacan o efeito da interpretação é isolar no sujeito um
coração, um Kern, como diria Freud, de não-senso.
Aqui Laurent situa esse Kern em Freud especialmente na expressão der
Kern unseres Wesens (o centro de nosso ser), termo adotado por Lacan que
83
descreve o Kern do sujeito como um significante isolado em seu sentido mais
profundo separado do sentido, o significante binário, representando qualquer
coisa que faça sentido, separando assim na cadeia dos significantes aquilo que
permanece no nível do não-senso: o significante-mestre, S1. Isto é importante
para marcar algo que Lacan formulou reiteradamente: as identificações básicas
não têm nenhum sentido, apenas são. Pode-se explorar os sentidos que elas
têm, mas não se pode negligenciar o fato de que, no final, elas não fazem
sentido.
Encontra-se em Harari (1990, p. 264) mais um esclarecimento a esse
respeito, mostrando como Laplanche complicou a fórmula da metáfora,
utilizando uma notação em forma de fração com quatro extratos, de modo a
justapor dois significantes naquilo que é inconsciente. Assim, esta divisão (a
fração citada) representando uma articulação qualquer, uma prisão de dois
significantes, origem à dedução de que a interpretação está aberta a todos
os sentidos: havendo no inconsciente ligação absolutamente arbitrária entre
significantes, "diga o analista o que diga, 'tocará' a cadeia daquilo que é
inconsciente, de tal modo que a interpretação pertinente pode consistir em dizer
qualquer coisa". E aqui Harari comenta (p. 265) que isto pode provocar efeitos
("há suficientes formas de eficácia imaginária"), tanto nocivos quanto
favoráveis, sem que se saiba o que ocorreu. E conclui (p. 266):
uma coisa é interpretar o significante se se pensa, com
um mínimo de rigor, que nos regemos segundo as leis da
metáfora e metonímia, e outra coisa é supor que se interpreta o
significante de acordo com uma brincadeira insensata com as
palavras, o qual em nada corresponde ao ensino que nos
convoca.
Ao que acrescentaríamos: e, outra coisa ainda pior é haver interpolação
de sentido, prevalecendo-se o analista do que Harari chama "influxo
transferencial", com seu efeito "hipnótico".
84
O comentário de Harari a respeito dessa fórmula da metáfora modificada
por Laplanche explicita sua principal conseqüência: ela inverte a posição
lacaniana, de que a linguagem é condição do inconsciente, e assume que
aquilo que é inconsciente é condição da linguagem. Disso deriva um modo de
pensar a linguagem, em termos da psicologia evolutiva, e já não mais no campo
da psicanálise. Segundo Harari (1990, p. 267), "A partir da psicanálise, este é o
desafio lançado ao ignorar a metáfora paterna: a concepção da linguagem
como um repertório a adquirir, como uma atitude baseada em uma enteléquia
preexistente".
Outra contribuição de Harari (1990, p. 269) que convém citar aqui refere-
se a uma "formalização muito simples da interpretação por meio da escrita
invertida do célebre algoritmo saussuriano". Se na relação de significação se
formula S/s, "a respeito da interpretação, a proposta consiste em sua inversão".
Disso resulta s/S, significado sobre significante, que serve como um pilar no
embasamento dos diagramas que Lacan (1988 a, p. 236)
11
a propósito da
interpretação:
a interpretação é uma significação que não é não
importa qual. Ela vem aqui no lugar do
s, e reverte a relação
que faz com que o significante tenha por efeito, na linguagem,
o significado. Ela tem por efeito fazer surgir um significante
irredutível. É preciso interpretar no nível do
s, que não é aberto
a todos os sentidos, que não pode ser não importa o quê, que
é uma significação, apenas aproximada, sem dúvida. O que
está é rico e complexo quando se trata do inconsciente do
sujeito, e destinado a fazer surgir elementos significantes
irredutíveis,
non-sensical, feitos de não-senso.
11
Harari (1990, p. 269) dá, nesse ponto, a referência bibliográfica desses dois diagramas,
situando-os na edição em castelhano do seminário 11, pp. 242 e 255 na primeira edição, e 245
e 258 na segunda. Não temos a referência correspondente em português, mas consideramos
possível que um desses diagramas esteja na p. 237 da versão em português (Lacan, 1988 a).
85
Lacan mostra, aqui, que a interpretação não deve faltar, para propiciar
que o sujeito veja, para além dessa significação, a qual significante - não-senso,
irredutível, traumático - ele está, como sujeito, assujeitado.
Lacan, pois, introduz o sujeito, assujeitado a um significante - isto que
constitui a alienação - , mas não deixa de mostrar sua relutância por se referir
ao ser e ao sentido; e ao fazê-lo, adianta que no próximo seminário seu
discurso versará sobre as posições subjetivas do ser (Lacan, 1988 a, p. 233):
"pois que nada se centra convenientemente senão a partir da posição do
sujeito".
5.3 Uma articulação com a clínica
Na hipótese que norteia este trabalho, a criança se encontra alienada no
desejo da mãe, isto é, submetida a um significante que a condena a não ser,
que o sujeito do inconsciente é petrificado, como se viu, no momento em que
escolhe o sentido dado pelo Outro (mãe). Segundo Lacan (1988 a, p. 197), “aí
está a pulsação temporal em que institui-se o que é a característica da partida
do inconsciente como tal – o fechamento”.
Ao postular a separação, vai-se encontrar o outro tempo dessa lógica. No
tempo da afânise, momento de fechamento do inconsciente, o sujeito é
chamado ao Outro, petrifica-se, como visto, na medida em que incorre na
identificação constitutiva; neste momento deve ser mencionado o papel da
pulsão invocante, na voz que chama o sujeito. O desejo da mãe convoca o
sujeito. Com a separação, vislumbra-se o momento de abertura do
inconsciente, onde se o corte nos significantes - o sujeito a si mesmo
aparecer no campo do Outro, seu desejo é o desejo do Outro; trata-se de
falicizar a criança. Destaca-se aqui a importância do olhar. Finalmente o Outro
retorna... Ou seja, um acabamento da noção de Outro, e passa a ser
possível o surgimento do “e”, sujeito e Outro. O que define o sujeito e permite
que ele saia da alienação ou seja, que se separe é aquilo que lhe falta, que
86
constitui o seu desejo. Para que haja a falta, o sujeito vai ser operado por dois
significantes, possibilitando, com a separação, que caia um objeto inexistente e
alucinado, a (objeto pequeno a). É, então, pela função do objeto a que o sujeito
se separa, deixa de estar ligado à vacilação e à indeterminação do ser ao
sentido que constitui o essencial da alienação. A separação é a busca da parte
perdida do ser. O objeto a aparece então como aquilo que singulariza o sujeito,
pois conota a especificidade de seu desejo.
Esta é a maneira esperada, segundo a teoria, para ocorrer a separação.
Entretanto, em muitos casos atendidos, a separação traz um impasse. Uma
possibilidade lógica é supor que não esse chamado ao sujeito com a voz.
Trata-se de um significante, digamos, “emudecido”
12
. Será que se trata, então,
de uma falha na transmissão do S1? A investir nessa hipótese, tem-se uma
falha que impede que ocorra a separação como tal, com sua conseqüência,
também lógica, a saber, o não-acabamento da noção de Outro. A "colagem"
ficaria, assim, explicada.
5.4 A versão “clássica” da separação
Como visto, Lacan fala, no seminário 11, de alienação e separação
estritamente em termos de topologia; não neste momento nenhuma
referência ao significante Nome-do-Pai, ou à metáfora paterna. Porém, de
alguma maneira, estabeleceu-se uma versão mais “tradicional” desse processo,
que postula que, tendo havido a instalação de um primeiro significante que
representa o desejo da mãe, e que, por isso, é chamado “falo” é preciso que
se instale um segundo significante, que possibilite a separação pelo surgimento
de um espaço entre ambos: é no intervalo entre os significantes que surge o
12
Ver Brauer (2003). Esta noção é comentada mais abaixo (p.95 e p. 102).
87
sujeito. Esse segundo significante é o “Nome-do-Pai”. Com este significante,
instala-se, segundo essa versão, a metáfora paterna.
Vai-se apresentar tal elaboração, seguida de sua crítica.
5.4.1 A função do Nome-do-Pai
Se a alienação descarta, de algum modo, o ser do sujeito, numa lógica
do ”ou” (ou o ser ou o sentido, ou o sujeito ou o Outro) mas vai com isso fundá-
lo dentro da ordem simbólica, a separação vai dar origem ao ser, ao possibilitar
um “e” (sujeito e Outro, criança e mãe). Como explica Fink (1998, p. 76),
a separação implica uma situação na qual tanto o sujeito
quanto o Outro estão excluídos. O ser do sujeito deve então
vir, de certa forma, de fora, de alguma coisa outra que não o
sujeito e o Outro, algo que não é exatamente nem um nem
outro.
Para que isso ocorra, é preciso haver a coincidência de duas faltas. O
Outro, então, está barrado: algo lhe falta. E disso decorre a tentativa do
sujeito de preencher a falta do Outro materno, com sua própria falta a ser.
Nessa articulação complexa entre o sujeito e o Outro, encarnado na mãe,
em plena alienação, tem-se que postular que a criança, esse ser alienado, foi
posto nesse lugar para ser o falo da mãe. O sujeito crê ser o falo, mas, de fato,
não é. É apenas um significante, que “equivocadamente” a mãe oferece ao
filho; isso a faz sentir-se completa. Se o filho vem suturar uma falta na mãe,
falta que ela pode viver em vários níveis, e que se chama privação, no real (a
falta do pênis), frustração, no imaginário (a sensação de que algo falta, o
imaginário do corpo), e castração, no simbólico (pelo fato de sermos falantes)
88
presume-se que a mulher entra no Édipo para resolver a castração. Porém,
permanecer na alienação é letal, como foi dito. Algo deve acontecer para dar
um regramento a esse gozo que une mãe e filho mantendo-os colados, nessa
relação mortífera. E esse algo tem a ver com a figura do pai, que virá para
inscrever a lei no desejo, para tirar a mulher dessa situação que a embaraça
com uma privação ilusória, que ela não é mais faltante que o homem, e com
isso possibilitando a simbolização dessa falta.
Para que ocorra a separação (estrutural) entre mãe e criança, é preciso
que a mãe fale, pronuncie uma palavra de lei, uma palavra ”paterna”, mostre à
criança que é castrada, ou seja, que algo lhe falta: a mãe é desejante.
Utilizando um modelo de família nuclear, ocidental, é ao pai que cabe essa
função de atuar junto à mãe, devido ao seu desejo, que é o que a mãe deseja,
enquanto mulher que é, que era antes de se tornar mãe; a criança não é tudo
para ela, e é o pai que tem o que a mãe deseja. A criança, alienada, se divide
(sou ou não sou o que a mãe deseja?), como visto, seu ser (o falo) alternando-
se ao não ser, não existir como sujeito; com a introdução desse terceiro termo
pelo pai, que vai substituir o desejo da mãe por um nome, haverá um
significante (falo) colocado sob a barra, no algoritmo da metáfora, o que
corresponde propriamente à formula da metáfora paterna. Isso vai permitir que
a criança se separe da mãe, que esse nome é um significante que atua de
modo a neutralizar o desejo do Outro, com toda a sua carga letal vista. É
importante explicitar que o Nome-do-Pai não corresponde necessariamente ao
nome do pai biológico, e nem mesmo ao nome próprio, como Fink (1998, p. 79)
mostra, recorrendo ao exemplo citado por Lacan no seminário 4:
o único significante que é capaz de desempenhar uma
função paterna no caso do ‘pequeno Hans’ de Freud é o
significante ‘cavalo’. Nesse caso, ‘cavalo’ é claramente
um
nome do pai, mas com certeza não é seu nome ‘próprio’. Ele
substitui o pai de Hans, que é incapaz de desempenhar uma
89
função paterna porque é incapaz de separar seu filho de sua
esposa.
Fink destaca que a função paterna neutraliza o perigoso desejo do Outro,
que ameaça tragar a criança. Ele cita um trecho do seminário 17 (Lacan, 1992
b, p. 105) que considera notável, em que Lacan critica a noção do Édipo mas
aprova que os psicanalistas embarquem na questão do papel da mãe:
O papel da mãe é o desejo da mãe. É capital. O desejo da mãe
não é algo que se possa suportar assim, que lhes seja
indiferente. Carreia sempre estragos. Um grande crocodilo em
cuja boca vocês estão a mãe é isso. Não se sabe o que lhe
pode dar na telha, de estalo fechar sua bocarra. O desejo da
mãe é isso.[...] um rolo, de pedra, é claro, que está em
potência, no nível da bocarra, e isso retém, isso emperra. É o
que se chama falo. É o rolo que os põe a salvo se, de repente,
aquilo se fecha.
Fink usa essa passagem para mostrar que “a linguagem protege a
criança de uma situação dual potencialmente perigosa, e a forma como isso se
dá é através da substituição do desejo da mãe por um nome”.
A função paterna leva à assimilação ou instalação de um nome que não
é, de início, um significante plenamente desenvolvido, uma vez que não é
deslocável, segundo Fink. Seria constituído, então, um algoritmo tal como
Nome-do-pai
Desejo da mãe
Nesse esquema, supõe-se que o desejo da mãe é pelo pai, razão pela
qual seu nome desempenha essa função paterna protetora através da
nomeação do desejo do Outro materno. Um nome, segundo Saul Kripke citado
por Fink, é um designador rígido: designa sempre a mesma coisa. É um tipo
90
extraordinário de significante, um significante “primordial”. Para que um nome
que ocupa o lugar do desejo do Outro materno passe a funcionar como um
significante “plenamente desenvolvido”, ele deve
tornar-se deslocável, ocupando uma posição significante
que pode incluir uma série de significantes diferentes com o
passar do tempo. Isso exige uma “separação adicional” [...] que
permite que Lacan se refira ao elemento simbólico ativo na
função paterna de formas variadas: como o nome-do-pai (
le
nom du père),
o não do pai (le non du père) ou proibição, o falo
(como significante do desejo), e o
significante do desejo do
Outro, S (A barrado).
É o que permite que “cavalo”, no exemplo dado pouco acima, seja um
nome do pai: houve deslocamento, ou, conforme Lacan, metonímia.
A partir desse momento, o algoritmo da metáfora paterna seria:
Significante
Desejo da mãe
Essa substituição, subentendida pela metáfora paterna, é possível
pela linguagem; depois que o segundo significante, S2, for instalado (de início o
Nome-do-Pai, e depois mais amplamente o significante do desejo do Outro) é
retroativamente simbolizado o desejo da mãe, transformado em um primeiro
significante, S1. Pode-se escrever então
S2
S1
onde S2 é um significante que transforma o desejo da mãe em significante ao
quebrar a unidade mãe-criança através da linguagem. Essa metáfora (o fato de
91
haver um significante sob a barra, no algoritmo) resulta no advento do sujeito,
não apenas em potencial, “mero marcador de lugar no simbólico”, como diz
Fink, mas um sujeito desejante. Este autor defende a idéia de que todo efeito
metafórico é um efeito de subjetividade, e vice-versa: “não existe metáfora sem
participação subjetiva, e não subjetivação sem metaforização”. (Fink, 1998,
p. 94)
Com a separação, a criança é, de certo modo, expulsa do Outro materno.
Cada um pode, então, assumir sua parte faltante, ao nível simbólico. O Outro é
barrado, não é pleno; tesouro do significante, falta sempre um significante que
conta do ser do sujeito, que o represente sem perda. O sujeito é dividido,
evanescente, e, incorpóreo, surge no intervalo entre S1 e S2, na enunciação
de um desejo ou de algo do inconsciente, no mesmo movimento que deixa cair
o objeto a, causa do desejo.
Esse é um momento lógico, postulado teoricamente, e não observável,
no sentido, como diz Fink (1998, p. 81), de ser “muito difícil isolar em qualquer
momento cronológico específico da história de um indivíduo e que
provavelmente exige muitos desses momentos para acontecer, cada momento
se construindo sobre os outros anteriores” .
Este autor também destaca que esse é um momento fundamental na
metapsicologia de Lacan, em que surgem todos os elementos cruciais de sua
álgebra – S1, S2, $ e a – no processo que ele resume:
Ao se instalar o S2, o S1 é determinado retroativamente, o $ é
precipitado e o desejo do Outro assume um novo papel: aquele
do objeto
a. (Fink, 1988, p. 82)
A maneira como Fink apresenta o processo de separação difere dos
outros autores: para ele, o segundo significante, S2, entra em cena no momento
em que se processa a separação. para os autores estudados anteriormente,
e mesmo no texto de Lacan, o S2 é um significante afanísico, isto é, em
essência alienante.
92
Também se notam diferenças no modo como os autores falam da
separação enquanto resultado de duas faltas que se recobrem: a leitura de
Laurent do seminário 11 leva-o a enfatizar as pulsões que surgem no sujeito.
5.4.2 Uma visão crítica
Essa teoria da separação, que se pode chamar de clássica em nosso
meio, se por um lado encontra respaldo na doutrina lacaniana, principalmente
no seu início, por outro lado não oferece uma solução para certos casos; é
como se houvesse outras “versões” da constituição subjetiva, outras
possibilidades de compreender sua estruturação. Além disso, ela aparece
ainda marcada por um viés conservador, paternalista. Sabe-se, por exemplo,
que Freud, em sua teoria edipiana da sexualidade feminina, desconsiderou todo
o campo das relações arcaicas com a mãe, por atribuir ao pai a supremacia na
família.
Lacan supera essa incidência tendenciosa, como se viu, ao estabelecer a
distinção castração imaginária/castração simbólica.
No seminário 5, Lacan (1999) desenvolve, em seus termos, o que seria o
Complexo de Édipo, em três tempos; nesse momento, sua leitura apresenta
vários pontos em que se o pode considerar freudiano, apesar de estar
introduzindo elementos próprios, como o grafo do desejo. É nessa altura da
teoria lacaniana que é dada ênfase à função paterna. Mesmo assim, "já estava
lá", um tanto quanto velado, o grão da contribuição que será a sua, original,
quando fala que "o fim passivo exige a existência de um Outro do qual o sujeito
se faz objeto, o que corresponde à relação primitiva da criança com a mãe"
(vide p.24). Ou seja, aparece aqui uma análise segundo a posição do sujeito.
No texto "Posição do Inconsciente", de 1960, e no seminário 11, de 1964,
a constituição do sujeito é apresentada em termos de uma topologia. A essa
altura, ele não se refere ao Nome-do-Pai, ou à metáfora paterna, para falar da
constituição subjetiva. De fato, toda a formulação que expusemos em torno da
93
alienação e da separação não passa pela metáfora paterna, no texto ou na fala
de Lacan. No entanto, viu-se em outros autores essa aproximação, como se
não fosse possível desprender-se da visão patriarcal, aquela proposta por
Freud - o pai da psicanálise...
Esta teorização deve ser repensada. Voltando a uma colocação anterior
de Fink, que aponta como a linguagem protege a criança de uma situação dual
potencialmente perigosa, ocorre que, nos casos clínicos visados por nós, a
situação dual é efetivamente perigosa, e não potencialmente apenas. Além
disso, em Lacan uma crítica da noção do Édipo tal como ela foi tomada
pelos psicanalistas; e o mesmo se pode dizer da noção de metáfora paterna, ou
da hipótese da forclusão do Nome-do-Pai como causa da psicose, tomada
pelos lacanianos de modo exclusivo. A propósito disso, serve de advertência o
que diz Jacques-Alain Miller (1996, p. 176):
Com efeito, o ensino de Lacan sobre a psicose não se limita de
modo algum à tese da foraclusão do Nome-do-Pai que foi
transformada nessa banalidade que todos conhecem.
Por exemplo, lê-se em Fink (1998, p. 78) que
Segundo Lacan, a psicose resulta do fracasso por parte da
criança de assimilar um significante “primordial” que
estruturaria de outro modo o universo simbólico dela. Esse
fracasso deixa a criança sem âncora na linguagem, sem uma
bússola que a oriente. Uma criança psicótica pode muito bem
assimilar a linguagem, mas não pode vir a ser na linguagem da
mesma forma que uma criança neurótica. Carecendo desse
fundamental ponto de ancoragem, o restante dos significantes
assimilados estão condenados a navegar à deriva. Esse
significante primordial é instalado através da operação do que
Lacan chama de metáfora paterna ou função paterna.
94
Esta visão (aqui chamada “clássica”) prioriza o simbólico, e cristaliza a
interpretação da forclusão do Nome-do-Pai que então reapareceria no real.
Transparece um enfoque que pode ser considerado distorcido, em que parece
ser “melhor” o simbólico e “pior” o real, e que não leva em conta, no ensino de
Lacan, que as três instâncias real, imaginário e simbólico têm o mesmo
valor enquanto consistências que se nodulam.
O sujeito dividido, alienado entre o ser e o sentido, quer ser tudo para o
Outro, e preencher, como foi dito antes, a falta do Outro materno, com sua
própria falta. A criança deseja ser o falo, esse é o desejo da mãe. Mas isso é
irrealizável; no entanto, é freqüente, na clínica dos distúrbios graves da infância,
justamente essa superposição muito problemática entre ambas as faltas o
que chamamos de colagem.
Se uma mãe permanece colada ao filho, numa relação dual, sem
intermediação, ela evita deparar-se com a questão da castração. De certa
forma, o sintoma físico, observado nas mães em um certo momento do trabalho
analítico, responde a esse “buraco” criado pela separação, e que ela não queria
ver. O que gera um impasse é a mãe não conseguir abrir mão do filho nesse
lugar de objeto, mas o que se entrevê é que assim ela não se depara com a
própria questão em torno da castração. É quando a mãe percebe que pode
perder novamente, para sempre, o falo, que surge, a nosso ver, o sintoma, a
dor.
Não se trata de negar que a função paterna desempenhe um papel
importante na constituição subjetiva, principalmente se se considera uma
estruturação neurótica, e sim de afirmar a existência de outro processo que,
do ponto de vista de uma lógica, deve ser anterior que incidiria de um modo
especial nos casos mais graves.
Parece claro que em Lacan haveria outras leituras possíveis da crise
psicótica. Persiste, contudo, a idéia de que se pode atuar por meio da
linguagem também nesses casos, já que se trata de uma questão significante.
95
5.5 O autismo em discussão
É o momento, agora, de retomar a idéia, colocada na introdução, de que,
no autismo, a ausência do desejo materno (ou seja, ausência de falicização da
criança, ausência de um olhar desejante) a exclui totalmente do universo da
linguagem. Colocando esta hipótese nos termos estudados até aqui, seria como
se a mãe não oferecesse nenhum significante sob o qual o sujeito (criança)
pudesse se colocar, impedindo a alienação de acontecer. A alegação é, então,
de que o significante lança a criança ao campo do real, deixando-a sem marca.
Porém, aqui também cabe a crítica da valorização do simbólico em
detrimento do real, como se houvesse uma espécie de hierarquia nas
consistências. Ora, impõe-se pensar na possibilidade de uma transmissão em
ato, ou seja, uma transmissão em que é silenciado o significante. Essa
mudança de perspectiva contempla, justamente, algo que fica subentendido
naquela alegação: a ausência do desejo materno como uma falha. Essa
ausência é discutível, como já se apontou. Se for possível ampliar a visão
desse campo entre criança e mãe, para poder ler o traço que insiste em tentar
se escrever, e que vem em ato, há uma chance de reconhecer uma inscrição do
significante. Como explica Brauer (2003, p. 165),
(...) nessas crianças havia, sim, o traço, um traço mudo
do lado da mãe,
sob censura, colocado de uma forma tal que
não poderia ser lido pela criança, por ser, como afirma Lacan,
da ordem de
um discurso sem palavra, mas, repetimos, um
discurso mudo do lado da mãe, em conseqüência da censura,
portanto neurótico. Desta forma, embora evidente o olhar cheio
de desejo, intrusivo mesmo, dessas mães sobre nossos
pacientes, calava a voz que deveria nomear o traço, fazendo
96
sua inscrição na criança. Em nossa clínica isso se passa de
uma tal forma a colocar empecilho ao processo de transmissão
em que se constitui a relação mãe/filho.
A transmissão do significante, função materna, pode ser perturbada, e
se encontrar em ato. Em outras palavras, alienação, mas tão maciça que
não se nenhuma fenda, nenhuma possibilidade de intervir nessa colagem
com vistas a ler o significante emudecido. É isso, a nosso ver, que configura a
dificuldade no atendimento desses pacientes tão graves, o qual implica numa
escuta paradoxal, que a criança não fala e a mãe atua. Como diz Lacan
13
no
seminário inédito A angústia, "atuar é arrancar à angústia sua certeza. (...)
Atuar é operar uma transferência de angústia".
13
Na versão eletrônica (CD rom) da obra de Lacan (seminários e escritos).
97
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Terminado este percurso teórico, constata-se que a constituição do
sujeito, conforme a psicanálise lacaniana, pode ser entendida segundo duas
vertentes: a que enfoca o processo de alienação / separação, e a do estádio do
espelho.
O estádio do espelho como formador da função do [eu] (Je) explicita o
fato de que o ser humano, o infans, assume jubilosamente sua imagem
especular, e manifesta como o [eu] se precipita numa forma - dita primordial.
Inserido como está num universo de linguagem, chega a habitá-lo
como ser falante a partir da sua sujeição ao significante oriundo do campo do
Outro; torna-se sujeito o ser que era livre, ao mesmo tempo em que se abre a
possibilidade de objetivação numa imagem unificada para o ser que se via
despedaçado.
Essa simultaneidade merece ser enfatizada, considerando-se que o
texto de Lacan, originalmente apresentado em 1936, foi tomado como um
modelo apenas para a constituição do imaginário: o eu em sua face de
identificação a uma imagem. Passou pouco percebido o fato de que o simbólico
também se constituía então, ou melhor, era assim "subjetivado".
Foi apenas em 1964 que Lacan apresentou a outra vertente, topológica,
da constituição do sujeito.
Viu-se que Lacan, com a análise do cogito segundo a psicanálise,
refutou o sujeito suposto saber, pois este, segundo a fenomenologia
(especialmente a hegeliana), conduziria ao saber absoluto; proscrito em 1961,
98
ele reaparece em 1964, não surpreendendo, portanto, a retomada de
Descartes logo após a introdução das duas operações estudadas, a alienação e
a separação. A lógica dessas operações foi explicada, e agora se pode articular
tal lógica com essa preocupação de Lacan: o funcionamento regular do sujeito
alienado divide-o entre o ser e o sentido, e a separação daria o lugar da
intersecção entre ser e sentido; mas aqui não mais o risco de surgir um
sujeito absoluto, porque "esse sujeito afanísico não poderia se manter pura e
simplesmente na acumulação progressiva do saber".
O que Lacan (1988 a, p. 210) faz, ao visar o cogito cartesiano, é
descobrir o vel da alienação no "eu penso" - como se leu, no
encaminhamento cartesiano que o vel é tomado pela primeira vez como
constituinte da dialética do sujeito" , e foi esse o ponto de origem do "logro
hegeliano": por não conceber o inconsciente, a filosofia hegeliana propunha um
sujeito votado a um saber absoluto.
Segundo Gaufey (1996, p. 209), Lacan preconizava em 1949 (quando
da comunicação do Estádio do Espelho) um "método de redução simbólica"
que o levaria, mais tarde, a reduzir o Outro ao conjunto vazio, único modo de
expurgar o Outro de um sujeito. Descartes recorre a Deus para lhe remeter o
valor do saber do eu (valor de verdade, como visto), esse Deus absolutamente
separado: Lacan o articula com a transferência, a suposição da existência de
um sujeito no lugar do Outro. Se o sujeito é definido por um significante para um
outro, é excluído que o Outro como tesouro dos significantes seja sujeito fora
dessa suposição de saber que é o próprio fenômeno da transferência.
Repetindo, com Lacan (1988 a, p. 220), "Desde que haja em algum lugar o
sujeito suposto saber (...) há transferência".
Trata-se de saber sobre o desejo. O analista mantém esse lugar, que
representa o lugar do sujeito suposto saber na cultura: "Freud explica". Esse
crédito de saber é atribuído ao analista. E, por isso, ele terá o desejo de partir
ao encontro do desejo inconsciente. É isso que mostra a fórmula lacaniana de
que o desejo do homem é o desejo do Outro. Isso explica também que, na
análise, a separação vem antes: para se instalar a transferência, se supõe
99
um saber no Outro, separado. Mas será preciso percorrer os caminhos do
significante e ingressar na via da alienação, renovadamente.
Porém, se esta teorização pode dar conta da constituição do sujeito,
importa conferir o porquê do aparecimento tão hegemônico, nos diversos
autores, da consideração da metáfora paterna, quando se trata da separação.
Lacan insistiu reiteradamente sobre o fato de que a necessidade não
pode ser satisfeita no ser humano senão passando à demanda, o que implica
movimentar a cadeia significante, ou seja, articular a demanda com os
significantes que, como se (Lacan, 1998, p. 695), limitarão a liberdade do
sujeito:
é a descoberta de Freud que confere à oposição entre
significante e significado o alcance efetivo em que convém
entendê-la, ou seja, que o significante tem função ativa na
determinação dos efeitos em que o significável aparece como
sofrendo sua marca, tornando-se, através dessa paixão,
significado. Essa paixão do significante, por conseguinte, torna-
se uma nova dimensão da condição humana, na medida em
que não somente o homem fala, mas em que, no homem e
através do homem, isso fala, em que sua natureza torna-se
tecida por efeitos onde se encontra a estrutura da linguagem
em cuja matéria ele se transforma, e em que por isso ressoa
nele, para-além de tudo o que a psicologia das idéias pôde
conceber, a relação da palavra.
Para conceber as conseqüências da descoberta do inconsciente, explica
Lacan (1998, p. 696),
trata-se de encontrar, nas leis que regem essa outra
cena (...) que Freud, a propósito dos sonhos, designa como a
do inconsciente, os efeitos que se descobrem no nível da
cadeia de elementos materialmente instáveis que constitui a
100
linguagem: efeitos determinados pelo duplo jogo da
combinação e da substituição no significante, segundo as duas
vertentes geradoras de significado constituídas pela metonímia
e pela metáfora; efeitos determinantes para a instituição do
sujeito. Nessa experiência aparece uma topologia, no sentido
matemático do termo, sem a qual logo nos apercebemos de
que é impossível sequer notar a estrutura de um sintoma, no
sentido analítico do termo.
Repetindo: efeitos determinantes para a instituição do sujeito. Esse é um
tempo inicial da teorização, em que Lacan fez a inversão do signo linguístico
saussuriano, dando a primazia ao significante, como se sabe.
O Nome-do-Pai é um significante introduzido por Lacan no seminário As
psicoses, a propósito do caso Schreber. Ao fazê-lo, Lacan (citado por Porge,
1998, p. 35)
realiza uma operação que vai marcar por longos anos o
destino deste significante na teoria analítica. Com efeito, a
importância que Lacan reconhece no significante Nome-do-Pai
está ligada à sua falta no caso de Schreber. Uma falta que
Lacan nomeia de foraclusão, traduzindo
Verwerfung (...).
Este significante permanecerá ligado associativamente à foraclusão e à
psicose, como se destacou anteriormente, apesar das retificações que Lacan
introduziu mais tarde.
No seminário seguinte, A relação de objeto, "assiste-se a um reviramento
do lugar respectivo dado ao termo Nome-do-Pai e ao ternário pai simbólico,
imaginário, real" (Porge, 1998, p. 35). Neste seminário, Lacan destaca a função
paterna, e não recorre ao significante Nome-do-Pai.
Não cabe no escopo deste trabalho o levantamento da história
desse significante, ou mesmo das conseqüências das crises políticas e
institucionais que culminaram com a interrupção do seminário sobre Os nomes
101
do pai; porém, essas são questões que marcaram nossa apreensão da teoria e
da prática psicanalíticas. Essas colocações visam a demonstrar que o
significante Nome-do-Pai, a função paterna, a metáfora paterna, são
contribuições teóricas de Lacan importantes e que tiveram seu sentido, mas
que não respondem totalmente à experiência que a clínica proporciona,
especialmente esta que nos ocupa, com seus impasses a respeito da
separação.
Assim, nem é o caso de ignorar essa parte da teoria, considerá-la
superada, nem de permanecer estacionado numa visão peculiar. A propósito,
lembre-se uma das crises institucionais que Lacan viveu , segundo Porge
(1998, p. 32) :
ele é a ponta de lança da cisão da SPP, que à luz a
SFP, em junho de 1953. Aparentemente as razões disso não
são explicitamente teóricas, elas dizem respeito à criação e ao
funcionamento de um Instituto de Psicanálise, muito
medicalizado e que, de acordo com Lacan, dava um lugar
muito proeminente aos notáveis.
Essa crise pode nos sugerir uma via de saída desses impasses. Sem
ignorar a metáfora paterna no que ela pode ter de fecundo, mas sem se perder
no aspecto medicalizado apontado por Lacan, pensemos, como faz Harari, que
a separação trabalha com os dados providos pelo muro
da linguagem, para fazer nele uma fenda. Romper algo nessa
parede que se levanta diante do sujeito e produz o efeito
afanísico. Desse modo, todo ato criador ligado à metáfora e,
portanto, à separação, deve possuir, como condição
necessária, a capacidade de subversão, de ataque à cadeia
significante, logo, logicamente, de haver-se alienado em, e por,
ela.
102
Finalizamos, porém, sem responder totalmente à questão que nos
colocou na via dessa pesquisa: por que a separação é vivida tão dolorosamente
por tantas mães, a ponto de não poder surgir em palavras, mas no real do
corpo? A constituição do sujeito impõe uma alienação deste ao S1 que aparece
no campo do Outro, no caso, presentificado pela mãe; chegamos a concluir que
não há motivos para não esperar que isso se dê, e a constatar que, justamente,
lidamos com crianças inibidas, cuja subjetividade não se manifesta, como em
afânise. O que cria impasse é a separação: é como se houvesse um início de
separação, que faria a criança se "descolar" e, ao deixar de ser o sintoma da
mãe, traria a esta o enfrentamento de uma verdade que não é passível de ser
verbalizada, pelo menos de início; a mãe ficaria sem saber como lidar com seu
ser.
Transparece, assim, uma questão que não pode ser resolvida
genericamente, segundo as teorias conhecidas: a criança é alienada no Outro
materno, e a mãe é alienada no filho (naquilo que pode aparecer de sua
subjetividade). Em cada caso, esses elementos se compõem diferentemente, e
uma "solução" pode advir no tratamento, particular, que traga à luz o
significante (mal) transmitido naquele caso específico.
Isto porque uma resposta que a teoria da constituição do sujeito não
refere-se à possibilidade - que assumimos em nível de hipótese - de que haja
falha na transmissão do S1. Emudecido, estaria ele a caminho de aparecer no
campo do Outro? Se se pensa que o significante não simbolizado pode estar no
real, não se poderia supor que esse S1 esteja em ato?
Essas são algumas perguntas a nos motivar nos caminhos da
investigação.
Ficamos, por enquanto, com o destaque dado por Lacan à interpretação.
Encontramos, no seminário 24, numa sessão, cujo nome se pode traduzir como
"Para um significante novo: II. a variedade do sintoma" , de 19 de abril de 1977,
uma inspiração:
103
Estar eventualmente inspirado por algo da ordem da
poesia para intervir enquanto psicanalista? Isto é precisamente
aquilo para o qual é necessário orientá-los, (...). A metáfora, a
metonímia não têm alcance para a interpretação senão
enquanto que são capazes de fazer função de outra coisa,
para o qual se unem estreitamente o som e o sentido. É
enquanto que uma interpretação justa extingue um sintoma
que a verdade se especifica por ser poética.
Possa esta reflexão abrir espaço para que se pense nos impasses da
clínica, na dor, no sintoma, como parte da experiência do ser, não
necessariamente a ser tratado, curado, medicalizado, mas acolhido no
panorama da cultura.
104
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