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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
CENTRO DE ARTES E COMUNICAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
TEIA DE SINCRETISMO:
UMA INTRODUÇÃO À POÉTICA DOS MANGUES
Tânia Maria de Araújo Lima [Tânia-Lima]
Recife, 2007
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
CENTRO DE ARTES E COMUNICAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
TEIA DE SINCRETISMO:
UMA INTRODUÇÃO À POÉTICA DOS MANGUES
Tânia Maria de Araújo Lima [Tânia -Lima]
Tese apresentada à Banca Examinadora do Programa
de Pós-Graduação em Letras e Lingüística da
Universidade Federal de Pernambuco, como
exigência para a obtenção do título de Doutora em
Teoria da Literatura sob orientação do Prof. Dr.
Roland Walter.
UFPE – RECIFE
2007
3
Mangues-Encruzilhando-Mundos
Das Raízes da Bio-Diversidade
Diálogos-Rizomáticos:
mangue - serpente em Raul Bopp
mangue - prostíbulo em Oswald e Bandeira
terra do mangue em Joaquim Cardozo
mangue sem plumas em João Cabral
mangue & caranguejo em Chico Science
4
“AQUI O MEU PREITO DE GRATIDÃO E
AMOR
Dedicamos esta teia
ao amor que se torna família do kósmos, à dona
Janoca [nossa mãe] e à memória de seu Julica
[nosso pai-índio], que nos ensinou a andar de
silêncios e canoa;
ao Fogo que se torna lar da hýbris, a irmãos, tios,
primos e sobrinhos;
à Água que nos é hidra, semente de bíos, à
Dindinha, nossa avó-mãe, que nos relembrou suas
memórias [antes de dormir];
ao Ar que se transformou um dia em pneûma, a
Palhaço, nosso avô negro e-jazzista [tocando
trompete no céu];
à Terra que abriga phýsis onde dorme os sonhos de
nosso bisavô, cangaceiro de Lampião.
Oferecemos esta rede
Aos donos do mangue: guarás, garças, caranguejos,
pássaro [Martim pescador], siris, sururu, ostras,
lama, rio-mar, lodo, peixes;
às marisqueiras, catadores e pescadores do mangue,
aos homeríndios das Américas; aos moradores da
favela ‘Abençoada por Deus’; aos catadores de
lixo, ambientalistas;
a São Francisco de Assis [patrono da Ecologia];
aos Orixás e entidades, em especial: Exu, Nanã
Buruquê [Vovó da lama], Iemanjá [Mãe dos filhos
peixes ], Ogum, Oxossi; Oxum, Oxalá, Preto Velho
[Pai das florestas no reino da Umbanda ], Erês; à
Nossa Senhora de Guadalupe [protetora dos índios
e da América Latina]; a budistas, indus, yogas;
a Thoreau [poeta da Ecologia]; aos 60 anos da
publicação do livro ‘Poemas’, de Joaquim Cardozo;
aos 50 anos do livro ‘Morte e vida serverina’; aos
40 anos da primeira edição de ‘Homens e
Caranguejos’, de Josué de Castro; trinta anos
daqui morreram Clarice Lispector; aos 10 anos
sem Chico Science.
Agradecemos por vários motivos
Porque somos pares, coraçãomente, diversos, parecidos. Somos amantes de rios, pontes,
bichos, mar, mangue, gente, florestas. Travessia feita de ser e tempo. E porque somos,
sobretudo, humanos, somos parênteses da philía: à Lúcia Lucena e Foguinho pelo
coraçãogente’, com quem dividimos estes mangues de dentro pra fora; a Roland Walter, [nosso
orientador, a quem devemos afeição, palavras e conselhos]; a Élio, amizade dos longes, quando
o rio Parnaíba ainda carregava a memória do Piauí nos braços; à Fátima Costa [por nada e por
tudo], pela conversa inacabada, o cachorro grego, o gato tição, a música no vinil, a infinitude
heideggerniana em Água viva e outras viagens a caminho; a Derivaldo, pelos delírios iniciais
deste projeto; a Valverde e José Lira, pelas conversas inacabadas e árvores plantadas; a Amarino
Queiroz pela coorientação, cuidado e afeto com este projeto, pelas conversas sobre as diversas
Áfricas; à Solange Kate, Fátima-patolona, Hebe, Sarah Diva [onde a casa é morada de amizade;
é ação generosa; templo e carinho no morro de Santa Terezinha]; a André Monteiro, Leo
Mackellene, Fernanda Meireles, Anchieta Pinto, Walter Lacerda, Érica Zingano, Nilbio T.,
Pedro Salgueiro, Herbet Rolin, Ticiano Monteiro, Carpinejar, Manoel de Barros, por serem
poetas da nossa vida entre des/ encontros, cartas, livros, zines, revistas eletrônicas, emails; às
ternas amigas dona Anita, Auri e Fatinha [com quem dividimos a leveza dos “chorinhos”, ombro
da escuta Pixinguinha, jazz com acordeon e saxofone na lagoa de Parangaba]; à Rejane e dona
Lurdes pelo que nos fraterna em Recife; a Cleide, pelas leituras iniciais em alguns trechos deste
projeto; à Badida e seus quadros de tintas & livros; ao contista Moreira Campos [in memoria]; à
turma da Pós-Graduação em Letras desta Universidade; à Universidade Federal de Pernambuco,
ao Programa de Pós-Graduação em Letras e CAPES, por esta oportunidade de pesquisar o
manguezal; ao professor Sebastien Joachim, por ter sido terno incentivador e acima de tudo
leitor destas impressões verbais; aos professores: Clemente Coelho Júnior [Universidade Federal
Rural de Pernambuco], Artur Soffiati [Universidade Federal do Rio de Janeiro]; Francisco
Souto, [Universidade Estadual de Feira de Santana BA] pelas conversas por emails sobre
manguezais e atenções aqui reconhecidas; também à Zuleide Duarte [UEPB], Maria da Paz
Ribeiro Dantas [pesquisadora da obra de Joaquim Cardozo]; a Roberto Seidel, [Universidade
Estadual de Feira de Santana]; ao prof. Alfredo Cordiviola e Angela Prysthron[UFPE], pelas
leituras suplementares a este trabalho; a Y. Coimet, Lourival Holanda, Luzilá Ferrreira
Gonçalves e Ermelinda Ferreira, pelas leituras e poesia que nos dai hoje; ao pessoal que trabalha
na secretaria na Pós-Graduação em especial: Diva, Josaias, seu Carlos; e Bibliotecários da
UFPE; aos pesquisadores Juan Ignácio e Diego Flores pela ‘legião estrangeira’ na revisão do
p’resumo; às professoras Ivanice Montezuma e Liduina Araújo, por revisarem nosso português
tupi-crioulo; às leituras dos livros de Gaston Bachelard, Ortega y Gasset, Yara Schaeffer-
Novelli, Édouard Glissant, Greg Garrard; Edgar Morin, a Fritjof Capra, E. Said, Deleuze e
Guattari; aos sebos, xeroqueiros e livrarias; ao IBAMA, ONGs ambientais; ao pessoal do projeto
teatral ‘O cão sem plumas’ [Silvio Pinto, Camilo Cavalcante, Banda Romançal]; ao todos que
trabalharam de alguma forma para a concretização do vídeo-documentário ‘O caos sem plumas’;
também aos motoristas de ônibus que nos acompanharam nesta travessia; aos canoeiros do rio
Capibaribe em especial Renato; e a você, leitor, seja você quem for: “você não sabe o quanto
caminhei pra chegar até aqui”:
P’Resumo
Marco Zero
No princípio era o mangue. depois é que vieram os sambaquis com suas casas de ostra e
óleo de baleia. Séculos e séculos depois, os Tupinambá, os Tupi e os Guarani habitaram o
litoral do manguezal brasileiro. A que vieram os colonizadores e exploraram mangues,
índios e negros. Depois veio a modernidade com seus “avanços” e progressivamente fomos
percebendo que o desenvolvimento tecno-industrial gerava novas explorações, desintegração
e poluições. Nascemos entre mangues & caranguejos em data comum como é próprio à filha
de mãe operária. No arquipélago dos lençóis maranhenses, está um pedaço de nossa memória
silvícola. Quando nosso pai-índio nos apresentou aos mangues, passamos a conhecer a poesia
sincrética dos povos ameríndios. De lá para cá, temos escritos alguns livros de poesia falando
sobre a memória dos manguezais. Esta pesquisa é um retalho acompanhando a trajetória de
poemas feitos a partir da bio-diversidade dos mangais: uma teia de sincretismo que faz
travessia pelas encruzilhadas dos diversos tipos de mangues. Seguimos o olhar dos poetas que
se “emprenharam” em falar dos povos do rio-mar. Esses poetas trazem no falar uma movência
híbrida do idioma popular. Do modernismo ao manguebeat, os pesquisadores do mangues têm
acordado para a questão da extinção desse tipo de ecossistema. Utilizamos a metáfora dos dias
para representar os capítulos e saímos com nosso barquinho inventado pelo mangue-serpente
de Raul Bopp, pelo mangue-prostíbulo de Oswald e Bandeira, pelas terras dos mangues de
Joaquim Cardozo, pelo mangue-cão de João Cabral, pelo mangue-caranguejo de Chico
Science. Não temos um olhar uno, mas múltiplo sobre esta pesquisa. Precisamos das diversas
raízes para nos estender a outros rizomas. Necessitamos muito trocar figurinhas e dialogar
com outras ciências e artes, como a oceanografia, a física quântica, a geografia, a biologia, a
matemática, a antropologia, a sociologia, a filosofia, a ecologia, o imaginário, a música
popular brasileira, o jazz, o samba, a tropicália, o rap, o hip hop, o blues, o rock n’ roll, o
funk, a música eletrônica, o coco, o caboclinho, o pastoril, o maracatu, o desenho animado, o
circo, o cinema, o teatro, a pintura, a fotografia, o virtual. Nossa linha de pesquisa segue as
entrelinhas comparadas. E nos orientamos e nos desorientamos entre Homens e caranguejos
[1967], de Josué de Castro.
Palavras-Chave: mangue, ecologia, poesia.
P’Resumo
Marco Cero
Al princípio era el mangue. Sólo después Vinieron los Sambaquis con sus casas de ostra y
aceite de ballena. Siglos y siglos más tarde, los Tupinambá, los Tupi y los Guarani habitaron
el litoral del mangle brasileño. Hasta que vinieron los colonizadores y exploraron mangles,
indios y negros. Después llegó la modernidad con sus “avances” y progresivamente fuimos
percibiendo que el desenvolvimiento tecno-industrial generaba nuevas exploraciones,
desintegración y poluciones. Nacimos entre mangues & cangrejos en fecha común como es
propio a la hija de una madre operaria. En el archipiélago de los lençóis maranhenses, existe
un poco de nuestra memoria salvaje. Cuando nuestro pai-índio nos presentó a los mangues,
pasamos a conocer la poesía sincrética de los pueblos amerindios. Desde entonces, hemos
escrito algunos libros de poesía hablando sobre la memoria de los manglares. Este estudio es
tan solo un fragmento acompañando la trayectoria de poemas realizados a partir de la bio-
diversidad de los manglares: una tela de sincretismo que realiza una travesía por las
encrucijadas de los diversos tipos de mangues. Seguimos la visión de los poetas que se
“empreñaron” en hablar de los pueblos del río-mar, esos poetas traen en su habla una
movimiento híbrido del idioma popular. Desde el modernismo hasta el manguebeat, los
estudiosos de los mangues han despertado para la cuestión de la extinción de ese tipo de
ecosistema. Utilizamos la metáfora de los dias para representar los capítulos y salimos con
nuestro barquito inventado por el mangue-serpente de Raul Bopp, por el mangue-prostíbulo
de Oswald e Bandeira, por las tierras de los mangles de Joaquim Cardozo, por el mangue-cão
de João Cabral, por el mangue-caranguejo de Chico Science. No tenemos una única visión,
mas una múltipla mirada sobre este estudio, precisamos de las diversas raíces para
extendernos a otros rizomas. Necesitamos mucho intercambiar ideas y dialogar con otras
ciencias y artes como la oceanografía, la física cuántica, la geografía, la biología, la
matemática, la antropología, la sociología, la filosofía, la ecología, lo imaginario, la música
popular brasileña, el jazz, el samba, la tropicália, el rap, el hip hop, el blues, el rock n’ roll, el
funk, la música electrónica, el coco, el caboclinho, el pastoril, el maracatu, el dibujo animado,
el circo, el cine, el teatro, la pintura, la fotografía, lo virtual. Nuestra línea de estudio sigue las
entrelineas comparadas. Y nos orientamos y nos desorientamos entre Homens e caranguejos
[1967], de Josué de Castro.
Palabras Clave: mangue, ecología, poesía.
Abstract
Milestone Zero
In the begining was the mangrove. Only then came the sambaquis with their oyster and whale
oil houses. Centuries and centuries later, the Tupinambá, the Tupi and the Guarani dwelt on
the coast of the Brazilian mangrove. Until the moment when the colonizers arrived and
exploited mangroves, Indians and blacks. Then came modernity with its “advances” and we
were progressively realizing that the technical/industrial development created new forms of
exploitation, disintegration and pollution. We were born among mangroves & crabs in
common date as it suits the daughter of a working mother. In the archipelago of Lençóis
Maranhenses there is a piece of our sylvan memory. When our Indian-father introduced us to
the mangroves, we learned about the syncretic poetry of the American Indian peoples. From
then on we have written some poetry books about the memory of the mangroves. This
research is a shred that follows the course of poems written from the bio-diversity of the
mangroves: a web of syncretism which passes over the cross-roads of many kinds of
mangrove. We follow the look of poets who have pledged to talk about the people of the
river-sea. These poets bring in their speech a hybrid movência
1
of the popular language. From
modernism to manguebeat, the researchers of the mangroves have awoken for the matter of
extinction of such kind of ecosystem. We use the metaphor of the days to represent the
chapters and so we leave with our little boat invented by the serpent-mangrove of Raul Bopp,
by the brothel-mangrove of Oswald and Bandeira, by the mangrove lands of Joaquim
Cardozo, by the dog-mangrove of João Cabral, by the crab-mangrove of Chico Science. We
do not have a single look, but a multiple one on this research. We need multiple roots to
extend ourselves to other rhizomes. We really need to exchange words and have
conversations with other sciences and arts, such as oceanography, quantum physics,
geography, biology, mathematics, anthropology, sociology, philosophy, ecology, imaginary,
Brazilian popular music, jazz, samba, tropicália, rap, hip hop, blues, rock n’ roll, funk,
electronic music, coco, caboclinho, pastoral, maracatu, cartoons, circus, cinema, theater,
painting, photography, the virtual. Our line of research follows the compared in-between
lines. And we have oriented and disoriented ourselves amidst Homens e caranguejos [1967],
by Josué de Castro.
Key-words: mangrove, ecology, poetry.
1
The term ‘movência’ is related to the habitat of the magroves, in which we find a sort of a quick sand that
moves and that very few people notice. The mud has this process of “movência”, and so the mangrove also
follows the mud and the movement of the tides.
Sumário
Um dia uma folha que caíra batera-lhe nos cílios. Achou então Deus de uma grande delicadeza.
[CLARICE LISPCETOR]
[roteiro de navegante]
INTRODUÇÃO.................................................................................................................... 12
DIA UM
Margem Primeira - Travessia do mangue serpente
A ciência que veio da lama................................................................................................... 24
Capítulo I: O mangue, o mito............................................................................................... 24
Série: Raízes de Cobra Norato em Raul Bopp.......................................................................24
1.1 Os anti-heróis do mangue................................................................................................25
1.2 Glossário de invenções [em que não se explica alguma ou nenhuma delas]...................38
1.3 A palavra que veio do mar.............................................................................................. 45
1.4 Serpente de lama. ........................................................................................................... 55
1.5 Natureza e rusticidade..................................................................................................... 67
1.5.1 O mangue panteísta...................................................................................................... 73
1.6 Confissão das árvores [autorizada pela oceanografia].................................................... 80
DIA DOIS
Segunda Margem
Capítulo II Travessia dos Ameríndios................................................................................... 92
Série: Os homemangues ........................................................................................................92
2. Os filhos do barro...............................................................................................................93
2.1 A travessia dos homeríndios...........................................................................................100
2.2 Dizimação por subtração................................................................................................107
DIA TRÊS
Terceira Margem – Travessia dos outros lugares.
Capítulo III: Algum lugar – Lugar nenhum...........................................................................117
3. Travessia do pensar [por raízes].........................................................................................118
3.1 O caminho do não-lugar.................................................................................................. 123
DIA QUATRO
Margem Quarta - Travessia do mangue-prostíbulo
Capítulo IV Série O Canal do Mangue .................................................................................134
4. O santeiro do mangue: a ópera bufa de Oswald de Andrade............................................ 135
4.1 O mangue tentacular em Manuel Bandeira..................................................................... 147
4.2 O canal libertino.............................................................................................................. 152
DIA CINCO
Quinta Margem - Travessia da Terra do Mangue
Capítulo V - Série: Universo em uma casca de lama............................................................ 164
5 Dos geo-grafemas em Joaquim Cardozo............................................................................ 166
DIA SEIS
Sexta Margem: Travessia do Manguesertão
Capítulo VI - Série: O cão sem plumas – [teia de relações]................................................. 189
6 As plumas do mangue........................................................................................................ 190
6.1 A dança das pedras ou o devaneio das ostras neobarrocas ............................................ 199
6.2 Educação pelos mangues................................................................................................. 212
6.2.1 Raízes da oralidade....................................................................................................... 220
6.2.2 Cabral-hino: a flauta antimusical ................................................................................. 231
6.3 O ‘Indioma’ lama............................................................................................................. 239
6.3.1 A linguagem da falta..................................................................................................... 249
6.4 Dos mocambos às favelas.................................................................................................255
6.5 O recado do rio..................................................................................................................263
DIA SETE
Sétima margem: Eco Musical: Travessia do cais ao caos: Manguesciences
Capítulo VII – Série Mangues & caranguejos........................................................................275
7. Caranguejos com cérebros.................................................................................................276
7.1 Do cais à lama /da lama ao cais
2
: a travessia das Marisqueiras.......................................295
7.2 Chico Science e Baudelaire Ecos-urbanos das moderni-cidades ....................................303
7.3 Manguecidades.................................................................................................................320
7.4 Os Manguezais e Nós: Palácio dos Negros ......................................................................329
7.5 Sincretismos de sons: O Jazzmangue................................................................................330
7.6 Mangues & Maracatus .....................................................................................................343
7.7 Os tambores do mangue....................................................................................................353
CONCLUSÃO........................................................................................................................360
P’REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................................................................373
SINOPSE: Vídeo ‘O caos sem plumas’..................................................................................403
2
Termo de Francisco José Bezerra Souto, pesquisador da Universidade Estadual de Feira de Santana. In: http://
www. sbee.org.br/galer. html.
11
Introdução
Quero dizer uma palavra em favor da natureza, da liberdade e do espaço
selvagem, em contraste com uma liberdade de cultura meramente urbanas.
Quero encarar o homem como um habitante, ou parte e parcela da natureza,
e não como um membro da sociedade. Quero fazer uma declaração
extrema, que seja enfática, pois existem defensores suficientes da
civilização; o sacerdote, a junta de educação e cada um de vocês cuidará
bem disso [THOREAU, 2006: 67].
E aqui começo:
O que torna tão difícil às vezes decidir para onde vamos caminhar? Acredito que
existe um magnetismo sutil na natureza que, se cedermos inconscientemente, nos
dará a direção certa.
[THOREAU, 2006: 67]
Para descomeço: “um passo à frente e não estamos mais no mesmo lugar”, como
poesifica Chico Science & Nação Zumbi [1996]. Dois pontos à frente e estamos no meio do
caminho. Por aqui, a travessia poética anda de canoa pelo meio do mangue. “Um barco eu
inventei/ de minhoquinhas/ ele ia torto no rego” [BARROS, 1999: 16]. Acompanhamos o vai-
e-vem das marés entre mangues emaranhados de cipós, sílabas, barro e palavras. Em alguns
momentos nos aproximamos das margens dos rios e pelas escadas das raízes subimos as
cumeeiras dos mangues. Descobrimos as raízes dos mangues pelas cores do barro. A vida
utiliza-se de espantos para criar um poema. “Parece que estagiamos no limbo do ser”
[BACHELARD, 1974: 392]. Em outras nos distanciamos para ver melhor o hoje. Sem
esquecer que buscamos a interface dos mangues não apenas com a literatura ou teorias
literárias, mas com outras ciências acadêmicas e não acadêmicas.
Pegando aqui um dizer de Edgar Allan Poe [1974: 91-92; grifo nosso]: “Durante dias,
navegamos ao longo das costa, sem incidentes. Tranqüilos, todos, nos divertíamos com os
pequenos caranguejos do arquipélago de onde nos afastávamos”. Seguimos o barco de papel
no pecurso das águas, entre-marés. O mangue acompanha as marés
3
. Esse tipo de vegetação é
desarrumado com seus cabelos de algas. O rio apresenta-se como uma cama de barro habitado
pelos mangues. Nesse tipo de ecossistema, não como atingir o linear ou a linha reta. É
difícil fazer trilha no mangue; seguir o mesmo caminho. O que parece não é”. Comenta-nos,
em tom de boa conversa, Clemente Coelho Júnior, cientista do manguezal. No vai-vem da
preamar, as marés acompanham a atração gravitacional da lua e do sol. Há dois tipos de marés
que acompanham o manguezal: as de grande amplitude, que são as marés de “sizígia” também
conhecidas como “marés de lua”, ou marés de águas-vivas e as marés de amplitudes menores,
as marés de “quadraturas”.
3
As marés são causadas pela atração do Sol e da Lua. “Como o período das marés é de cerca de 12 ½ horas, as
marés altas ocorrem na maioria das localidades duas vezes por dia, dando-se um atraso de cerca de 50 minutos
a cada dia. Todas as quinzenas, quando o Sol e a Lua ‘trabalham em conjunto’, a amplitude das marés
aumenta”, como observa, no livro ‘Fundamentos de ecologia’, Eugene ODUM [2004:524].
13
Nosso pensar para entender o mangue acompanha os mecanismos de anunciação das
águas costeiras. Muitas vezes, nos dispersamos distantes das margens dos mangues. Em
outras, estávamos tão próximos, a ponto de criarmos lodos e ostras nas beira das notas de
roda-pé. Sentimo-nos sendo levado pelo remanso que percorremos para chegar até aqui. O ir e
vir do texto situa a distância e a proximidade que tivemos de penetrar nesse tipo de
ecossistema. Nossa fala vem embalada pela flutuação das marés. “Na estrada cinzenta e
desigual”, como diz um verso de Zila Mamede [2003:155]. Viajamos entre bosques de
mangais, ora muito perto, ora muito longe, fizemos dos mangues uma oração. Deitamos nosso
corpo no estuário. Plantamos nossas raízes no fundo do mar. “Juntos - o mar em nós será
caminho” [MAMEDE, 2003:153].
As marés
4
, segundo Fernandes e Peria [1995:14], “são o principal mecanismo de
penetração das águas salinas nos manguezais”. As inundações periódicas que sofrem os
manguezais fornecem substratos favoráveis ao tipo de vegetação de mangue que farão parte
desses ambientes. “Isto porque excluem plantas que não possuem mecanismos de adaptação
para suportar a presença de sal”.
Admitimos que ao desvencilharmo-nos um pouco das normas acadêmicas, o
corremos o risco da incompreensão. André Breton dizia que vanguarda é um carro em grande
disparada, atravessando a noite, sem os faróis da frente acessos, apenas os faróis traseiros.
Sem lanternas dianteiras, seguimos pelo faro dos remos as trilhas que deixam as canoas no
encontro dos rios com as marés. Remamos acompanhando o mapa dos caranguejos, em uma
teia de questões, labirinto de lama e solidão.
Acatamos que nosso método seja considerado teórico-poético. O que para alguns possa
ecoar como alógico, acrescentamos apenas que nossa arbitrariedade não é à toa. Nossos
pontos de vista são de uma pesquisadora vinda dos mangues. Não é uma tese provocativa,
também não é uma exploração de nossas origens, porque cairíamos no campo da
pessoalidade. É mais uma autodefinição indireta dos manguezais. Nossas reflexões pertencem
ao gênero que nomeamos aqui de parcial por considerar este um método neutro e válido.
Por linhas tortas, utilizamos não propriamente uma introdução, mas um intróito. Um
caminho que encontramos entre tantos para encurtar fronteiras, delimitar melhor a travessia.
4
A distância máxima de penetração da água salgada determina o limite do manguezal em direção à terra, que
pode atingir dezenas de quilômetros em direção às montanhas dos grandes rios. A amplitude de maré
determina a renovação das águas superficiais e intersticiais, levando consigo certa quantidade de oxigênio.
14
A intenção é dizer com menos palavras o que viemos fazer por aqui.
Desembrulhamos novas trajetórias para o sumário. Inovar exige desarrumações.
Nadamos entre correntezas de palavras para acompanhar o caminho das águas. Alcançamos as
águas salobras do manguezal pelo olhar de uma canoeira em travessia pelo rio. O mangue é
uma charneca de água e lama enviesado. Das margens, passamos a observar esse ecossistema
com olhos de dúvida. Pelo lado avesso do que se espera, pegamos carona para construir esta
tese nas imagens de Guimarães Rosa em ‘Terceira margem do rio’. Muitas vezes, tivemos de
recuar para não nos perdermos dentro da floresta de imagens, arquitetura de palavras.
Ampliamos a coragem dos olhos para perceber melhor outras imagens, novas pesquisas
sobre a temática pelo viés da Geografia. Acompanhamos as linhas de trabalhos sobre os
manguezais pelo enfoque da Cultura, da Oceanografia, Biologia Marinha, Ecologia.
Observamos também que ainda são escassas as pesquisas desenvolvidas sobre o manguezal.
Mas não ficamos apenas no foco acadêmico, seguimos também o olhar das catadoras de
mariscos [marisqueiras] e dos pescadores. Descobrimos um mundo de beleza que ronda a
lama, mas também igarapés soterrados entre canais submersos de miséria humana e lixo
urbano.
Acompanhamos as ‘andadas’ de caranguejos, ora em labirintos de raízes indecifráveis,
ora perto das incertezas que cobrem este tipo de ecossistema. Para alguns, antônimo de
sujeira. Para outros, sinônimo de alimento, fonte de sobrevivência de onde se retiram
mariscos, moluscos, peixes. Dentre muitos conceitos, o mangue serve como meio de vida para
a marisqueira que retira da própria lama a dignidade para sua família.
Alertamos apenas que onde, geralmente, se averigua rede de pescaria, optamos pela
terminologia teias. Por serem palavras que, de dentro das comunidades ribeirinhas, ainda se
espera, séculos, por novas oportunidades. E por ser este trabalho uma obra teórica
poeticamente inacabada. O que não invalida, nas entrelinhas, de ser um trabalho
humanamente possível de acertos e erros. Aberta a debates e questionamentos, o
pretendemos aqui uma pesquisa fechada. Pensamos que, pelo contrário, esta se abre a outros
campos de pesquisas.
Indicamos nesta caminhada que não nos desvencilhamos dos empréstimos da linguagem
informal. Somos solidários das linguagens híbridas dos povos ribeirinhos. Para nós, cada
15
palavra é um ente humano. Amamos as palavras como se ama uma pessoa. Um trato de amor
às Falavras’, que devemos a Gilberto Mendonça Teles no livro sobre modernismo e
vanguardas.
Todo tipo de crítica merece o lapidar do cuidado e do zelo. Preferimos o simples até
mesmo pela relação que mantêm os povos dos mangues com a cultura popular. Sem
justificativas, aos olhos da crítica literária, também utilizamos uma linguagem teoricamente
poética por acreditarmos que Ciência e Poesia carregam ‘afinidades eletivas’; são amantes. Os
eixos da poesia são princípios inversos aos da filosofia. O poema e o ato filosófico mantêm
diferenças entre si. Ambos são partículas de acesso ao ser. Complementam-se, coadunam-se
em direção a um mesmo rio que atravessa ‘as margens’ para acompanhar o leito do ser
humano. Em função do devir, poesia e ciência se unem à razão, à percepção, ao imaginário, à
sensação. Tanto na poesia quanto na filosofia o caminho é de transformação a partir do ato de
contestar o sono do mundo. A fala da ciência filosofa sobre hipóteses enquanto a voz do poeta
nomeia o talvez. O poema por ser irrupção é conciência da solidão. O instante do poeta e o
tempo do filosófo é de finitude solidão. Para falar como filósofo, o poeta do mangue requisita
a realidade da lama com um tipo de intimidade filosófica. A poética filosófica do manguezal
passa pela melancolia do ser que bebe a água que vem do próprio imaginário da lama. A água,
a lama, homens e caranguejos fazem travessia pelo despertar do mundo, pela criação do
mangue. O mundo carece de contadores de simples histórias.
Não somos Aristotélicas, preferimos os fragmentos à maneira Pré-socrática. Somos
mais Heraclitiana que evidenciamos nessa teia da vida onde tudo parece coberto de água. Não
atravessamos duas vezes um mesmo rio, nem a mesma rota. Esta travessia é, sim, um recorte
sincrético dos mangues. Uma teia que se entende a outras teias, outros rizomas de Deleuze e
Guattari. Uma colcha de retalho que expande a compreensão do poema-mangue à diversidade
de Édouard Glissant; mas também um tecido de uma ‘poética do espaço’ em sintonia com as
lições de Gaston Bachelard, Fritjof Capra.
Por aqui não temos certeza de muita coisa, mas desconfiamos de algumas ‘ostras’
palavras. Ostracismo, principalmente. Lembramos a fala poética do professor Lourival
Holanda, em uma aula vespertina, movida a diálogos, paixão, literatura e sociedade: “Quem
tem certeza é a ciência; a Literatura é outra coisa”.
Algumas disciplinas, como as de Roland Walter, foram peças preciosas para montarmos
16
esse mosaico teórico-literário. Onde aprendemos, com Maryse Condé e Patrick Chamoiseau a
não intentar para uma interpretação linear da memória histórica do manguezal.
Falar do mangue é usar a memória da pele ameríndia. É falar pelo avesso, embaralhado.
Agramatical. Entendemos que índios e negros tornaram-se, com a dizimação dos tempos,
desconfiados com a linguagem oficial. Onde desvios lingüísticos agramaticais,
linguagens afro-ameríndias tomando fôlego. Das certezas lineares, das grandes glórias
gramaticais da escrita, nasceram os mandamentos do que vieram colonizar os mundos.
Desconfiamos das grandes certezas, apesar de ainda sermos “pessimistas alegres”, lembrando
aqui o escritor Samuel Beckett.
Em verdade, não temos certezas a oferecer a ninguém. Apenas dúvidas e dívidas
acumuladas que atravessam as estórias das comunidades ribeirinhas. São as estórias que
recordam a memória das águas. E a poesia é o que nos acorda sobre os rumos etno-ecológicos
dos pescadores no corredor do manguezal.
Viemos de um lugar do Maranhão onde o mangue era templo sagrado de histórias afro-
indígenas. Atualmente, boas partes dessas histórias se perderam ou ficaram esquecidas na
memória de um lugar dizimado. A ilha de Igoronhon que o mar varreu, tombou do mapa,
vem-nos no vai-vem das marés. Pouco a pouco vem à lembrança uma memória repartida entre
o manguezal maranhense, piauiense, cearense, paraibano, recifense. Somos de onde
nascemos. Somos de muitos lugares, traduzindo a fala de Riobaldo em Grande sertão
veredas.
O que desses lugares em nós traça um caminhar para a poesia. O pensar da
consciência é razão. Por desconfiarmos da lógica e das leis que regem as coisas no mundo, o
lugar da memória do mangue vem-nos ainda literariamente fragmentado pela inconsciência.
Alguns romances fundadores vieram para reprimir, colonizar, excluir a fala do outro,
como suscita Édouard Glissant em sua ‘poética da diversidade’. O que podemos oferecer, em
teoria literária, para melhorar um pouco a face do mundo, se não mexermos com o
imaginário, o popular? Se o ampararmos as reticências, como poderemos afagar as
dúvidas? Se faltar a memórias das palavras, como construiremos estórias? Nossa experiência,
como teóricos de literaturas, parte de hipóteses, ou seja, ‘dos grilos’, das dúvidas. Entendemos
que as dúvidas e dívidas, as críticas e clínicas, aqui são bem-vindas.
17
Se uma gênese biológica oceanográfica para os manguezais, não vestígios de
mangue no início das margens da Literatura Brasileira. O início dos mangues é o caminho do
meio do Modernismo de 1928. Diversos caminhos de manguezal se encontram na teia
labiríntica do verso livre. Na teia, não início nem fim. Tudo é meio. O tempo é linear, mas
a vida caminha circular entre homens, mundos e mangues.
Para não nos perdemos neste labirinto de lama e raízes, subdividimos esta trajetória em
dias. Separamos as partes por margens. As margens, por travessias. Um fio condutor que
religa os capítulos aos olhos do leitor. “Tu o conheces, por certo, o frágil monstro, ó falso/
Hipócrita leitor, meu igual, meu irmão” [BAUDELAIRE, 2001: 14].
A temática do mangue foi agrupada em uma ordenação não muito linear. Favorecemos
nos capítulos iniciais um leque de informações sobre a oceanografia do manguezal.
Percebemos que para a compreensão desses ambientes não como manter uma perspectiva
de linearidade. Os mangues são desalinhados como suas raízes tortas, curvas, neobarrocas,
rizomáticas.
A sugestão, mesmo, é ler a cada dia, um pedacinho dessa travessia pelas encostas do
manguezal. Avisamos que, por enquanto, atingimos apenas o meio do caminho, ‘a sétima
margem’, uma intenção que se relaciona a outras margens para alcançar um pretensioso final
para esta travessia: o ‘Caos sem plumas’.
Ao repertoriar as margens, viajamos pelas escolas de árvores, homens e palavras em um
itinerário que atravessa compêndios e induz reflexões sobre os caminhos do universo mangue
em consonância com lições tiradas em uma casca de lama. No primeiro momento, que
denominamos ‘A travessia das origens’, pretendemos margear caminhos em direção às
origens da palavra mangue pela tradução da ‘Bio-diversidade’. Entendemos essa palavra não
apenas em diálogo com as ciências biológicas, mas em uma relação mais ampla com a etno-
ecologia, com as comunidades que abrigam os mangues, as comunidades ribeirinhas. Bio-
diversidade também tem uma relação com índios e negros metidos no solo da diversidade, da
diferença, da desigualdade social.
O termo Bio-diversidade utilizado de forma hifenizada também mantém relação
fronteiriça com a cultura, a antropologia, a sociologia, a economia, a história, a oceanografia,
a filosofia, a geografia, a literatura. Assim, em alguns momentos, utilizamos a expressão
biodiversidade sem hífen no sentido ecológico e ‘bio-diversidade’, no sentido de teia humana,
18
em consonância com o mundo. Em outros, utilizamos ‘biodiversidade’ entre aspas para
chamar mais a atenção do leitor sobre o que estamos fazendo ecologicamente com a natureza
humana.
Na encruzilhada de caminhos, pegamos nosso barquinho inventado e saímos à procura
dos mangues na poesia brasileira; vimos que o é uma tarefa tão simples como
imaginávamos, colher sobrenomes, abrigar cânones reconhecidos, mas fundamental para que
se possa, pelo viés da crítica literária, acompanhar os mangues não somente como enfoque,
mas também como motivo e sentido.
Inicialmente, a idéia era mapear os poetas dos mangues, mas à medida que
catalogávamos, verificávamos que novos nomes apareciam meio a uma lista infinda,
inacabável. Até então tínhamos apenas a consciência da riqueza do material a ser utilizado
para traçar um perfil da paisagem dos Mangues na literatura brasileira. Assim, caminhávamos
por bosques de poemas à procura de algum recorte intervalar que englobasse não apenas os
cânones da poesia, a exemplo de Raul Bopp e João Cabral, mas também de outros poetas que
ficaram do lado de fora, e que, por algum motivo ou de alguma forma, estavam ligados à
poética dos mangues.
Como ponto de partida, levamos em consideração, para realizar este projeto, o diálogo
entre os escritores da segunda fase modernista. Descentralizamos a figura de Raul Bopp e
colocamos este autor juntamente com as poéticas de Oswald de Andrade, Mário de Andrade,
Sosígenes Costa, Acrísio Mota, Sousândrade, Manuel Bandeira, Ascenso Ferreira, Joaquim
Cardozo. Nesse intervalo, entendemos cada voz de poesia como rizóforos
5
que se estendem a
outras teias de palavras. Dois passos à frente e recebemos cada poema como raízes de uma
travessia que muito nos remete aos registros de uma poética que ‘insurge’ os Mangues como
voz singular dentro da cultura brasileira.
Os poetas modernistas aqui reunidos serviram de alguma maneira como prenunciadores
para a criação do Movimento Manguebeat. Como se sabe, as aventuras experimentais dos
Modernistas de 1928 ‘invencionam’ incorporar à pesquisa formal o material popular,
5
Segundo conversa com o pesquisador Clemente Coelho Júnior: Rizóforo é raiz com função de sustentação da
árvore mangue. Caule com função de raiz sustentação da R. Mangle (mangue vermelho). Para Sugiyama
[1995:17]: “O sistema radicular do mangue vermelho é formado por rizóforos que partem do tronco e dos
ramos, formando arcos com aspecto muito característico e, ao atingirem o solo ramificam-se profusamente
permitindo melhor sustentação da planta num sedimento pouco consolidado”. Para Marie, as estruturas
reprodutivas ao amadurecerem caem como lanças, apontadas para baixo, vindo a enterrar-se na lama por
ocasião da baixamar.
19
realizando uma fusão antropofágica, abusando do tom sofisticado da arte dita popular, com
sotaque primitivo, afro-ameríndio. Assim, entre epígrafes de uma época que sofria as
conseqüências dos avanços do progresso, o velho mundo e o novo se reencontram no trânsito,
nas encruzilhadas não somente das cidades, mas também das florestas de palavras.
Interessante evocar os poetas modernistas, como preparadores dos alicerces da poética
dos mangues, pois na medida em que multiplicavam as travessias pelo solo urbano brasileiro,
não deixavam de registrar uma configuração étnico-cultural do manguezal brasileiro.
O olhar antropofágico de Bopp é o olhar urbano sobre os mangues. Para enfatizar o
canibalismo literário, Bopp escreve em 1928 no livro Cobra Norato [1998:171]: “O mangue
de cara feia vem de longe caminhando com a gente”. O poeta reinventava por ali os mangues
pelo crivo de lendas, façanhas e mitos íncolas. São mangues que ingressam na paisagem
modernista quase de forma parecida aos de Sosígenes Costa [2001: 441]
6
: “com caxinguelê e
maruim, de junto do mangue/ e perto de grauça e de filho de siri/ E os índios foram
obrigados a servir Tupã-Cavalo”.
Nos mangues de Sosígenes Costa, observa-se uma estética que atravessa uma tradição
quase esquecida, se não fosse o esforço pertinente de José Paulo Paes que, em seu regresso à
lírica de Iararana, ao firmar o poeta baiano nos estudos da épica, margeia pela sensualidade
estética de ritos os mitos afro-ameríndios.
Seguimos os remos em direção ao encanto do rio com o mar. Ancoramos nossa canoa
no quarto momento desta travessia, frente a um universo de palavras que ressuscitam
prostíbulos em uma região de canal de lama, caos e restingas baldias. Na medida em que os
poemas desse momento multiplicam as incursões andejas pelo solo brejeiro das lamosas
palafitas, o vocábulo mangue se firma de forma estigmatizada em muitos litorais do Brasil
como lugar marginalizado, local de constante invasão de moradia, ambiente insalubre de
prostituição.
No bojo de uma linguagem que se insere pelo olhar diversificado sobre os mangues
urbanos, as poesias de Carlos Drummond, Oswald de Andrade, Manuel Bandeira sugerem os
mangues como lugar de prostituição, arsenal de matéria poética, signo de ambigüidade, lugar
de exclusão.
6
Sósigenes Costa, poeta baiano da fase modernista.
20
À procura das estradas da memória, o poeta Manuel Bandeira [1974:111] lembra-nos:
“O mangue era simplesinho.” O simples exercia o papel quase popular no tratamento de uma
escrita em que o espaço mangue vai se delineando a passos tímidos, lentamente, se iniciando
como temática literária.
Ao chegarmos às margens do quinto momento, fizemos um recorte da poesia de João
Cabral em consonância com as citações das poéticas de José Alcides Pinto, Marcus Accioly,
Jaci Bezerra, Chico Science, obedecendo, na medida do possível, a uma ligação com as raízes
dos mangues nordestinos e de que forma esses autores observam essa temática: se pelo crivo
romântico ou mesmo depreciativo dos manguezais.
Na teia de relações, observamos, no poema ‘O cão sem plumas’, como e em que sentido
o vocábulo mangue em Cabral sugere o discurso a favor da natureza do que escreve: “Sabia
dos caranguejos/ de lodo e ferrugem/ Sabia da lama/ como de uma mucosa/ Devia saber dos
polvos/ Sabia seguramente da mulher febril que habita as ostras” [MELO NETO, 1994:105].
O mangue de João Cabral é um lugar enlameado que nos chega carregado de significações
sobre Recife. Assim, observa-se, pelo que se lê, um lugar de natureza particular, específico de
uma microrealidade, a geográfica. No entanto, vale observar o que por trás de uma
representação, cuja ascendência se espalha e cria um imaginário que traz o caranguejo, o mar,
o rio como representação possível, inevitável, e natural de um lugar que delineia um tipo de
vegetação do litoral dos manguezais nordestinos.
Na leitura dos mangues em O cão sem plumas’, impõe-se sublinhar o discurso dos
mangues na poesia de José Alcides Pinto [2003:85, grifo nosso]
7
. Em Os catadores de siris, o
poeta consegue reinventar uma poesia genuinamente dos mangues. Observa-se em Alcides
Pinto que o mangue sai do fundo da lama do mangue para habitar a urbanidade. Vê-se isso em
verso como este: “Assim me anuncio: poeta popular. / Espinha do arco-íris, Lama da
cidade/da cidade está: Recife de Pernambuco. De tamanco. Lama. Lama. Lama. Mangues.”
Perto disso, o poeta pernambucano Marcus Accioly se manifesta em uma linguagem
que “empresta-lhe a cor usada da própria da terra ou do preto/ que existe dentro da lama/ e
cobre seu esqueleto”. A poética de Accioly sugere um discurso a favor da natureza do que
escreve, "formando um corpo sem corpo/ Nem forma ou medida, espesso; / Por ser o corpo do
mangue/ Um corpo do lado avesso”. Observa-se que a leitura dos mangues no livro
7
José Alcides Pinto, escritor cearense da geração 45. Atualmente um dos autores mais reconhecido no Ceará.
Escreveu para mais de 50 livros. É autor de Verdes abutres da colina.
21
Nordestinados de Accioly expõe à poesia da geração 65 os vestígios de um sujeito
descentrado que revela acima de tudo a ansiedade de unir o espaço ao lugar do mítico.
Em busca da diversidade dos mangues, distante daqui, dali, de qualquer lugar, remam e
rimam os mangues do poeta Chico Science entre o primitivo e o popular, entre a sobra do
ritmo brejeiro e a sombra das fímbrias do submundo da lama, palavras cheirando à argila,
miscelânea de poemas entre caranguejos cerebrais. Em Science, o mangue é batida; é lama de
um lado, caranguejo sem cérebro de outro. A música é ciência de caranguejos, com seu
célebro que se apronta para acordar as bordas de uma cidade entranhada de ritmo e lixo.
Mangue onde o barulho se perde do verde, enquanto pedaços de paisagem humana
encaranguejam no meio de arranha-céus parasitas. Repensado o compasso da globalização,
Chico Sciense recria o lugar no contexto cultural, [inter] nacional e geográfico, também
sugere em letra de música um submundo dominado pela subjetividade estilhaçada pelo caos, à
beira dos esgotos da Capital, isso tudo em sintonia com o projeto estético de Josué de Castro.
Em diálogo com a estética de ‘Homens e caranguejos’, Chico e Zeroquatro redescobrem a
rebeldia musical do Manifesto Mangue.
Entre imagens que permeiam a poesia sincrética, Chico Sciense desvela-se com sua
escrita anfíbia com suas letras carregadas de ritmos emboladores, com suas batidas
afrociberdélicas, miscelâneas de hip hop que se desalinham em versos de aventuras
ecologicamente experimentais que, por sua vez, incorporam à pesquisa formal o material
popular. Science realiza uma fusão perfeita entre o pop e o popular, entre a cultura local e a
arte global. Assim, entre antenas de um capitalismo dizimador, o velho mundo e o novo se
encontram entre antenas parabólicas enfiada na lama: “onde o de cima sobe e o de baixo
desce”.
Às margens desses recortes dos mangues sciencianos em que tantas vozes interagem ou
se conflitam, esta pesquisa propõe trazer alguns fragmentos da literatura dos mangues em Sol
Sangüíneo, de Salgado Maranhão,
6
que em suas invenções formais mais gratuitas sugere um
diálogo textual que estabelece a escrita do lugar nos mangues do Maranhão. Poesia que ressoa
um Maranhão entre iscas de sol nordestino, entre metáforas que iluminam o corpo da língua
no ‘abrigo da terra chã’”, entre imagens que se cruzam em buscas do estado ígneo do tempo e
se confrontam à procura das origens: “E onde o que me cabe nesse mangue/ que planto flores
quando pedem sangue”.
6
Salgado Maranhão é maranhense de Timon, [fronteira com a cidade de Teresina PI], faz parte da chamada
geração 80.
22
Reconhecemos que o importante, nesta teia sincrética [introdução à poética dos
mangues], é abrigar questionamentos para o novo, oferecer condições para que se discuta
sobre a poesia dos mangues. Isso nos induz a colocar algumas questões de grande importância
para a pesquisa dos mangues na história literária. E, assim, possa-se enfim desenvolver, a
partir de novos estudos, possibilidades para se traçar um esboço aberto e inovador a respeito
de um assunto ainda pouco conhecido no meio da crítica literária, mas que se possa requisitar
mangue adentro, mundo afora, falar por raízes e palavras tortas. Da canoa, o mar corta o rio e
o mangue em dois. E com os ventos soprando para frente, vem à lembrança um verso de Jorge
de Lima [1984:546]:“E demos esse mar às travessias / e aos mapas-múndi sempre
inacabados”.
A conclusão deste trabalho está em anexo em um texto-imagem. Inserimos o vídeo-
documentário: O caos sem plumas - uma espécie de viagem ao centro dos diversos mangues.
Percorremos em seis minutos os mangues do Delta do Parnaíba à Bahia, das fotografias
antigas do Zeppelin nos mangues do Recife antigo a uma foto-memória da Avenida Mangue
no Rio de Janeiro durante a década de 1930, além da praia Del Chifre em Olinda, registramos
os mangues da Paraíba, Ceará, Sergipe, Bahia, Espírito Santo. Resta, ah-final, fazer um
convite: vamos entranhar os mundos, sejam bem-vindos a ‘uma viagem ao centro do mangue,
e de canoa:
Canoa singra as águas, silenciosamente,
Cuidadoso passa, silenciosamente, o vento
Espalha-se por cada cor o denso silêncio...
Seria apenas solidão este mágico momento.
[Ao picharem em um muro, presentearam-nos este fragmento de Thiago de Melo]
23
DIA UM
Primeira Margem
Travessia do mangue-serpente
a ciência que veio da lama
8
Capítulo I:
o mangue, o mito
série: Raízes de Cobra Norato em Raul Bopp
Ah, vai até onde o pessoal mais velho da gente contava! Que não podia nem andar
todo mundo dentro dos mangues, porque o mangue era fechado, era assim que tinha
cobra grande, não era muito visitado, então assim acumulava as coisas lá. Hoje
como tem mais a presença do homem no caso, que é tirando o caranguejo é
cortado aqui e acolá um pau do mangue e tudo, como ele vai ficando menos então,
até essas coisas assim desaparece mais. O tempo daquele aconchego! Antigamente
eu ouvia muito o pessoal mais velho contar, que tinha muita garça lá, ovo o pessoal
achava os ovos das garças e outros pássaros também não era as garças não. E
hoje, vocêainda, mais aqui e acolá que você vê uma garça, não é mais como era
antigamente. Tinha até aquelas avoante! Que quando elas voam são bem juntinhas
de bando. É difícil, hoje, não tem mais, tudo por conta da presença da destruição
que fez parte e deu no desaparecimento.
[MARIA AQUINO 52 anos Marisqueira, dez 2001].
9
8
Este termo foi colhido com o pesquisado dos mangues Francisco José Bezerra Souto, da Universidade
Estadual de Feira de Santana – BA.
9
In: CAVALCANTE, Gustava Bezerril. Mulheres do mangue: trabalho, memória e cotidiano das marisqueiras
24
a Chico Mendes
1 Os anti-heróis do mangue
As cosmologias eruditas fazem-nos esquecer que as
cosmologias ingênuas têm traços diretamente sensuais.
[BACHELARD, 2002, p. 15]
XX
[...]
Abrem-se pântanos de aninga
nas clareiras alagadas
Raízes descalças afundam-se nos charcos
Moitas garranchentas amarram o caminho
-Pressa, compadre
Temos que chegar antes da lua
Esta costa baixa pegou verão
O rio se encolheu. A água se retirou
O vento rói as margens de beiços rachados
O mangue de cara feia
vem de longe caminhando com a gente
[BOPP, 1998:171]
Neste instante um peixe desce à superfície de algum mangue poluído. Das margens, o
melhor meio de preservar a imagem é penetrá-la pelas bordas de lama e pelo viés das ações de
palavras. Resta fazermos um convite: - Vamos, então, entrar na pele elástica de Cobra
Norato. É só aprender a virar raiz ou serpente. A saga de Raul Bopp [1898 –1984] é porta-voz
da diversidade mítica em uma comunidade iluminada de histórias: a região do Pará.
Conversar com ‘Cobra Norato’ é um elogio que possibilita viagens ao mangue histórico da
antropofagia. Travessura que a poética boppiana perpassa para conhecer a filha da rainha
Luzia. No meio da travessia, os mangues aparecem de longe se arrastando feito serpente. Mas
as imagens do traçado das raízes de mangue o nos remeteriam às cobras noratos? Raízes
são cobras que andam debaixo da terra. Cortar as raízes de mangues é limar as partes de um
universo dobrado a um canto, dobrado a um meio, coberto de mangue e serpente.
Era uma vez uma floresta de palavras em uma terra fértil de mangue que se transfundia
à paisagem modernista do mundo antropofágico. Nestes, “a natureza é partes sem um todo”,
de Fortim – CE. Fortaleza: Dissertação de Mestrado em História Social, 2004, pág. 59.
25
pescando as frases guardadoras de rebanho em Caeiro [2002:234]. O começo da natureza
começa por águas, homens-raízes. “A imagem de uma árvore que crescia ao contrário, cujas
raízes, como uma leve folhagem, tremelavam nos ventos subterrâneos enquanto os ramos
enraizavam-se fortemente no céu azul” [BACHELARD, 1990: 225].
O poema boppiano apresenta-se em múltiplas faces entre um mundo natural e
sobrenatural. A mata carrega a voz da natureza na pele do mito para contar a saga de Cobra
Norato. Em uma paisagem descrita de forma primitiva, o poeta descobre uma estranha
espectralização dos manguezais da região do Pará.
“O mangue de cara feia” vem entre imagens que participam da reinvenção da natureza
pelo foco de um poeta urbano. O estranhamento ao mundo do manguezal confabula entre
passagens um certo distanciamento. Como se o autor estivesse longe e não perto dos
mangues. Olhar de quem nunca pôs os pés na lama, mas que traz na mala de viagens um
fascínio pelo universo primitivo do mangue. O olhar de Bopp sobre o manguezal ainda é de
quem vê de fora: “vem de longe se arrastando com a gente”.
Em correspondência com a lição de sonoridade das águas ou da aprendizagem
camuflada na voz mítica das coisas lodosas do pântano, Raul Bopp nos aparece dos pampas
gaúchos para construir seu ‘Cobra Norato’ entre seres anfíbios da região do Pará: “Sapos
beiçudos espiam no escuro”. Um contexto poético em que as palavras retornam a um estado
primitivo anterior à própria modernidade ao mesmo tempo em que mantém relação com a
forma da linguagem da segunda fase modernista de 1930.
Pela simbologia do mistério, o livro ‘Cobra Norato’ carrega o nome da ambigüidade:
voz de gente, pele de réptil. Em uma combinação dupla, o mito acompanha o signo da água e
da terra. No zodíaco chinês, a água é carta que decifra as águias, os escorpiões. Também rege
o signo das serpentes e sua natureza enxertada de mistérios. A água, que faz “incharem os
vermes, jorrarem as fontes”, como sentencia Bachelard [2002:15].
“Com efeito, antes de os pedreiros colocarem a primeira pedra, o astrólogo indica-lhes o
ponto dos alicerces que se situa acima da serpente que sustenta o mundo. Um mestre-de-obras
talha uma estaca e a enterra no solo, exatamente no ponto designado, a fim de fixar bem a
cabeça da serpente” [ELIADE, 2001:52].
Para Eliade [2001:52], “a serpente simboliza o Caos amorfo, o não manifestado.
26
Decapitá-lo equivale a um ato de criação, passagem do virtual e do amorfo ao formal”.
também uma relação mítica, em lendas e fábulas, do dragão com a serpente. “O dragão é
figura exemplar do Monstro marinho, da serpente primordial, símbolo das Águas cósmicas,
das trevas, da Noite e da morte numa palavra [...] de tudo o que ainda não tem forma”
[ELIADE, 2001:47].
A escolha do tema da serpente também nos remete aos manguezais. Os propágulos de
mangues assemelham-se às cobras, associadas também ao fascínio antropofágico e
primitivista de retorno aos primórdios, ventre do qual o poema boppiano é concebido e
realizado.
Quando estivemos na região amazônica, comprovamos que a lenda de Cobra Norato se
faz presente no inconsciente da memória coletiva. por ali várias traduções populares da
história de uma Cobra Grande que percorre o mangue. A fábula Honorato faz o povo das
comunidades anfíbias manter respeito pelo mistério que ronda a paisagem das águas, segundo
Câmara Cascudo
10
.
A água, elemento vital dos manguezais, é paisagem física do Belém do Pará,
“componente indispensável também do imaginário coletivo popular da região”, [OLIVEIRA,
2002:255]. Não é por menos que os mitos dessa região são de linhagem aquática.
Na prosa de Mário de Andrade, ‘Macunaíma’, faz-se presente a lenda de Boiúna ou
Cobra Norato: “Minha tribo era escrava da boiúna Capei que morava num covão em
companhia das saúvas. Sempre no tempo em que os ipês de beira-rio se amarelavam de flores
a boiúna vinha na taba escolher a cunhã virgem que ia dormir com ela na socava cheia de
esqueletos [ANDRADE, 1989:24].
10
O mito da Boiúna, mboi-una, (cobra preta), de mboia-açu (cobra grande), é o mais poderoso e complexo das
águas amazônicas, exercendo ampla influência nas populações que vivem às margens do Amazonas e de seus
afluentes. Faz parte do ciclo dos mitos d'águas, de que a cobra é um dos símbolos mais antigos e universais.
Senhora dos elementos, a Cobra-grande tinha poderes cosmogônicos, explicando a origem dos animais, aves,
peixes, o dia e a noite. Mágica, irresistível, polifórmica, aterradora, a cobra grande tem, a princípio, a forma de
uma sucuri ou uma jibóia comum. Com o tempo, adquire grande volume e abandona a floresta e vai para o rio
[...]. Martius (Viagem pelo Brasil) registrou a força assombrosa do medo que os indígenas possuíam do
monstro, com as dimensões multiplicadas pelo terror. Chamavam-se de Mãe d'água e Mãe do rio, mas as
estórias mencionavam a voracidade da Cobra-grande, arrebatando crianças e adultos que se banhavam.
Recusava-se a matar a cobra, porque então era certa a própria ruína, bem como de toda a tribo. [...] Há ocasião
em que nenhum pescador se atreve a sair para o rio à noite, pois duas vezes seguidas foi avistada a Cobra-
grande. Pelos olhos que alumiavam como tochas. Os pescadores foram perseguidos até a praia, somente
escapando porque o corpo muito grande encalhou na areia [...]. Eduardo Galvão confirma ter a Cobra-grande
se tornado navio encantado. Misabel Pedrosa diz que a Cobra-grande mora debaixo do cemitério do Pascoval,
na ilha de Marajó.
27
À beira do mangue, Bopp [1998:188-189] traz uma correlação com a prosa
macunaímica: “Esta é a entrada da casa da Boiúna // [...] // Aí o medo já me comicha a barriga
// Lá adiante/ num estirão mal-assombrado/ vai passando uma canoa carregada de esqueletos”.
Nos dois autores uma sincronia que perpassa a história dos bosques de mangues na
escritura do povo das águas. Pode-se sentir na pelica das águas que as memórias não têm
remate, vivem sagradas. É verdade que as lendas não têm fim, ou não deveriam ter. Pois,
parecendo o existir, soam de forma verdadeira. Talvez, por o terem fim, as histórias ao
serem passadas dos pais para os filhos influenciam na construção da fantasia imagética
infante.
Quando se conta histórias, a vida não se distancia da vista; o mito é relembrado; o
tempo se humaniza e as viagens ficam marcadas dentro da gente. Ao convocar o mito, Bopp
realiza uma travessia por mundos imaginados. O mito leva a um despertar da consciência.
Sem o mito, talvez não tivéssemos uma autonomia do processo criativo.
Na Ilha de Igoronhon-MA, dona Marovira nos contava, à beira do mangue, histórias
sem nem cabeça. A contadeira usava uns vestidos compridos, turbante branco amarrando
as idéias da cabeça; de asas para cima, amuletos com penas de passarinho; beiços enrolados
faziam um bemol redondo e faceiro para soletrar esquisitices. No arrastar de um par de
tamancos, soavam ritmos gigantes que subiam no toc-toc das onomatopéias. Longe, as
veredas de um mundo rendado de bichos e gente. A vista não alcançava o silêncio
testemunhar a música das palavras. A viagem era regida pela imaginação de histórias de
homens-florestas, serpentes virando mangues
11
.
No ritual de contação de histórias, saber ouvir é essencial. Na ação de ouvir, silenciar
significa aprender junto frente ao exercício de escutar a voz de outros mundos. Sem titubeio, a
voz negra, glossário de cortesia, calejada pela ladainha, tornava a contar e recortar, em terras
do mangue, histórias que o acabavam mais. Entre parênteses, aludia pontos de reticências:
11
Um dia aconteceu de uma índia, ao mergulhar nas profundezas das águas dos mangues, ficar grávida de um
boto. Dali nasceu um casal de gêmeos. Por um fio d’água, os meninos nasceram com a pele escamosa.
Temerosa, a índia foi se ater com o Pajé. O curandeiro aconselhou a mãe a entregar os filhos às águas. Ao
entrar em contato com a voz do rio, as duas crianças se transformaram em duas Cobras Grandes. A menina se
transformou em uma serpente perigosa: Maria Canina. O menino “Honorato” recebeu a bondade das forças
líquidas. Com o tempo, temeroso da perversidade da irmã, Norato resolveu matá-la. Como um rasgo, recebeu
a maldição dupla de carregar luz e trevas. Quando a Lua aparece, o mito deixa a carcaça de cobra no leito das
águas e se transforma num índio charmoso e conquistador. Quando a luz retorna, Norato volta ao fundo do rio
onde se transforma novamente em Cobra D’água, protetora dos mangues.
28
“Ahi, estão vivos até hoje”. As lembranças eram bem-vindas ao mundo da memória.
Nas ‘Seis propostas para o próximo milênio’, Calvino [2003:49] reitera que o prazer
pueril de ouvir histórias consiste igualmente na espera de repetições: “situações frases,
fórmulas. Assim como na poesia e nas canções as rimas escondem o ritmo, nas narrativas em
prosa há acontecimentos que rimam entre si”.
As histórias foram a primeira escola da arte de contar poesia. É certo que naquela época
não havia uma noção do gesto generoso de se contar história nas rodas familiares. Nascemos
metidos no meio delas. Em nossa casa, livros não havia, mas ouvíamos com olhos atentos
aquela biblioteca oral saindo da voz conselheira de dona Marovira. Voz narradora que em
suas sendas trazia, no tear de contar, umas fábulas de fazer doer à existência dos mundos de
fora.
Com sua voz de narrador, Benjamim [1974:64] chama atenção: “A experiência
transmitida oralmente é a fonte de que hauriram todos os narradores. E, entre os que
transcreveram as estórias, sobressaem aqueles cuja transcrição pouco se destaca dos relatos
orais dos muitos narradores desconhecidos”.
Seguindo as lições de Benjamim [1974: 65], vê-se que “o narrador é uma espécie de
conselheiro do seu ouvinte”. É certo, segundo o pensador, que esta expressão ‘conselheiro’,
em nossos dias, venha carregada de um sotaque antiquado. Mesmo assim afirma que isso se
porque “diminuiu muito a habilidade de transmitir oralmente, ou por escrito, alguma
experiência” [ibidem]. Para se indicar conselhos faz-se necessário saber a arte de narrar. Além
disso, aponta que para ser receptivo a um conselho é importante manter-se aberto à exposição
de uma situação.
No mundo da fantasia, narrar é sabedoria, principalmente, quando requisita da
imaginação um repensar a existência acontecida. A contação de estórias requer a missão de
transmiti-la. Algumas histórias são apagadas quando se vêem guardadas pelo esquecimento. A
atividade de contar é perseguida por aquilo que se quer compartilhar. Ao ouvir as memórias,
quem escuta também conta. E isso acontece de tal maneira que lhe será natural a maneira de
transmiti-la depois. “Assim é construída a rede que acomoda o dom de narrar e é desta forma
que ela vem se desfazendo hoje em todos os lados, depois de ter sido atada milênios, no
âmbito dos ofícios mais antigos” [BENJAMIM, 1974: 66].
29
Percebemos que as palavras de dona Marovira traziam-nos não apenas estórias sobre o
manguezal, mas um gesto generoso de conforto à vida dos povos dos mangues. Podemos
sentir na pele ameríndia da alma que as histórias em poesia vivem sagradas como lições de
sabedoria.
Interessante, pois, seria contar mais histórias, somente assim a mágica não se quebraria,
a memória seria preservada e as histórias o teriam fim. Se “quem presta atenção a uma
história, está em companhia do narrador” [BENJAMIM, 1974:75], melhor acreditar que as
lendas são eternas companheiras da poesia e que os mitos despertam no homem sensações que
lhe são desconhecidos.
Muitas histórias vivem sagradas dentro da poesia. Talvez, por não terem fim, as
histórias são passadas de uma tradição a outra. Nas contações de histórias, a memória
empresta voz ao narrador para ouvir o que a vida um dia esqueceu. Como esclarece Augusto
Massi sobre a obra de Bopp [1998: 33]: “O bom contador de histórias abafa sua voz pessoal,
reencena o vivo diálogo diante de nossos olhos”.
Em um assalto à memória, a voz da contadora carrega a oralidade dos ancestrais
africanos, e de vez em quando nos aparece para nos lembrar as lendas que agora
reencontramos pelo viés da canção popular. Das batidas do tambor ao canto, o poema é
canção carregada de ritmos. No livro ‘Manguezais’, de Schaeffer-Novelli et al [2004:23],
um poema que nos remete àquelas histórias que saíam da voz da contadeira dona Marovira:
“Vovó do mangue”
Vou lhe contar uma estória
que o Preto Velho um dia me contou
disse que ficou perdido
sentiu medo que se arrepiou...
Viu a Vovó do Mangue andando de uma perna só,
ela lhe pediu charuto, um dente de alho e um pouquinho de pó.
Era a velha rabugenta que protege o mangue
e a criação aqui: peixes, crustáceos e moluscos
de água salobra que deságua em mim...
Como em toda história,
ele tem memória e é bom pescador,
lhe ofereceu cachimbo,
Um pedaço de fumo
E aguardente em flor.
Sumiu a Vovó do Mangue, seu rosto a maré lavou,
Na noite de Lua cheia, o caminho de volta
o Preto Velho levou...[ TOTE, 2004].
12
12
In: SCHAEFFER-NOVELLI, Yara; COELHO JÚNIOR, Clemente; TOGNELLA- DE- ROSA, Mônica.
Manguezais. São Paulo: Ática, 2004, pág.24.
30
A trama desta história mitológica entrelaça-se às memórias das águas do mangue. Até
quando existiam extensões de mangue, haverá mitos da literatura popular ligados a eles. Esses
mitos também recobrem os bosques de mangues de ‘Cobra Norato’. Os mitos acompanham as
histórias de caráter mitológico. Essas histórias são muitas vezes arbitrárias, sem significado
algum, mas, apesar de tudo, reaparecem e desaparecem um pouco por toda a parte.
Não deveríamos ignorar o fundo de realidade subjacente à fantasia indígena e à ilusão
etnológica, como lembra Augé [2001:50]: “a organização do espaço e a constituição dos
lugares são, no interior de um mesmo grupo social, uma das motivações e uma das
modalidades das práticas coletivas e individuais”.
Resgatar o mito é pôr em evidência essas práticas coletivas da humanidade que se
passou in illo tempore, a narração daquilo que os deuses ou os seres divinos fizeram no
começo do tempo” [ELIADE, 2001:84]. Dizer um mito é anunciar o que se passou além das
origens. Uma vez narrado, ou melhor, revelado, o mito funda uma memória que se diz
verdadeira.
Marta Vannucci [2002: 76] confidencia que as histórias são sínteses, imagens
condensadas, “de uma longa tradição oral baseada nas observações de inúmeras pessoas que
viviam como parte de seu ecossistema e precisavam ter um bom conhecimento de seu mundo
para sobreviver”.
Algumas histórias de mangues são contadas em tom baixo, por respeito aos espíritos
protetores da natureza. As fábulas míticas permitem ao ser humano explorar com respeito o
meio ambiente e proteger o mesmo dos perigos da dizimação. Como se observa nas
exemplificações sobre os manguezais da Índia em Vannucci [2002:115], é costumeiro os
cultos às árvores em alguns manguezais. As oferendas ritualmente são oferecidas às árvores
mais velhas, que não são derrubadas, para servir como exemplo ou evidenciar a necessidade
de respeitar as ‘árvores-mãe’. “Na Tailândia, é comum ver pequenos relicários nos
manguezais próximos aos vilarejos para invocar a proteção e possivelmente o perdão dos
espíritos da floresta, perturbados pelas atividades humanas” Por ali, os bosques sagrados de
mangues, ou porção delas proposital e energicamente mantidas intactas, podem ser
encontradas, por exemplo, nas ilhas Salomão, onde os mortos são ali deixados para descansar
31
para sempre, acrescentado assim mais uma dimensão aos conceitos de árvores sagradas como
reservas da biosfera.
Em sintonia com a proteção da Bio-diversidade, os mitos são histórias que fazem o
povo do mangue manter um certo respeito por todos os seres da natureza. “De repente, alarga-
se a percepção também das sugestões e influxos gicos das vozes indecifradas, dos
elementos de uma realidade que não pode ser interpretada segundo a ótica racionalista”
[OLIVEIRA, 2002:255].
Aquele que se esmera no mangue para jogar lixo, serrar madeira, ou dinamitar o
estuário, dizimando tudo que é natureza, desse tipo a Vovó do Mangue se rebela, dificultando-
lhe o caminho de retorno a casa. Não é tão simples ou fácil encontrar a Vovó do Mangue, uma
vez que a maré apaga as marcas do andar dessa figura mitológica [SCHAEFFER-NOVELLI
et al 2004:23; grifo nosso]:
Na Bahia, existe uma entidade, a orixá Nanã, personificada por uma mulher de
idade. Vinculada à fertilidade das espécies animais que vivem associadas ao
manguezal, é a senhora da lama e das terras úmidas. É ela que protege os
caranguejos no período de reprodução estação conhecida popularmente como
suatá, andada ou carnaval - quando as fêmeas chamadas popularmente de
canduruas -, ao se acasalarem com os machos, deslocando-se lentamente pelo
substrato, em grandes grupos, ficam vulneráveis à captura pelo ser humano. Está na
prosa dos pescadores de Maragogipe, município do Recôncavo Baiano, que uma
velha toda encarquilhada pode ser encontrada caminhando vagarosamente no meio
do manguezal. Protetora dos pescadores e das marisqueiras catadora de mariscos
na lama do manguezal -, a anciã, chamada carinhosamente de vovó ou véia do
mangue, pede aos protegidos cachaça, dente de alho, fumo de corda e rapé, para se
distrair enquanto observa o vai -e -vém diário das marés.
Na Ilha do Maranhão, ouvíamos histórias dessa natureza. Alguns moradores das
comunidades ribeirinhas aconselhavam a pedir a proteção da Mãe do Mangue. Sem ela,
ficaria difícil reencontrar o caminho de volta para casa. No manguezal quem controla o solo é
a mada imaginação. Muitas vezes pode-se ficar encurralado nos manguezais devido às leis
do mar. Quando o estuário está muito cheio ou seco demais, torna-se inviável penetrar nesses
ambientes. Corre-se o risco de ficar atolados ou ilhados. Os melhores conhecedores de
história desse tipo de ecossistema são as comunidades de marisqueiras e pescadores. Em
muitos lugares da África ocidental, no ecossistema manguezal, a madeira está associada às
práticas mágicas e místicas que em geral são relatadas por mitos e simbolizam resistência e
celebram um culto ao mistério. Existem vários provérbios associados aos manguezais por
exemplo: “Aquele que não amarra sua canoa a uma estaca feita de Rhizophora é responsável
pela sua perda’ , indicando assim a resistência da madeira de Rhizophora, dura, pesada e
32
resistente ao apodrecimento” [VANNUCCI, 2002:77].
Para os povos do mangue, as crenças são sagradas. nas comunidades dos
manguezais uma mistura da espiritualidade com vários relatos de fé. O sincretismo religioso
religa os mitos do candomblé aos do cristianismo nas lendas populares. “Existe ainda São
Bartolomeu, conhecido no candomblé como Oxumaré, divindade protetora dos ambientes
onde ocorre a mistura das águas doce e salgada. Venerado por católicos e praticantes do
candomblé, o santo garante proteção às regiões estuarinas” [SCHAEFFER-NOVELLI et al,
2004:24].
No Candomblé africano, existe uma divindade da Lama, conhecida por Nanã Buruquê.
Orixá que entregou porção de lama a Oxalá. Nanã deu a matéria do começo. Oxalá modelou a
lama e criou a mulher e o homem. “Nanã Buruquê, mãe de Omulu e Oxumaré, que se
transformou em cobra para escapar do assédio de Xangô” [PRANDI, 2001: 196-197]. Nanã é
também conhecida como Vovó do Mangue. Sua imagem está associada à proteção do
ecossistema manguezal. Senhora das várzeas úmidas, Nanã protege caranguejos, mariscos e
pescadores. No período de Andada, quando os caranguejos entram no cio para se reproduzir, a
Senhora da Lama é quem aparece para espantar os caçadores de caranguejos. Segundo
Schaeffer-Novelli et al [2004:23], alguns pescadores da região de Salgado, no litoral paraense,
se sentem protegidos por entidades míticas conhecidas como Matitaperê, boiúna e mãe-do-
caranguejo, “esta última comparada à figura do Curupira. Diz-se que essas entidades se fazem
presentes, geram nas pessoas uma sensação de mal-estar físico e fazem com que aqueles que
mexerem com o mangue percam o caminho de volta para casa”.
No respeito pela oralidade, ora na pele anfíbia ora na carne mamífera, ver-se-á que o
mito de ‘Cobra Norato’ recebe outras variantes na forma de sobrenomes como a uróboro,
serpente que morde o próprio rabo. A serpente uróboro traz a simbologia do movimento e da
fixidez. Em eterno retorno, nunca para de girar em torno de si mesma. E sem sair do lugar, em
sua fome devoradora, a serpente lembra os manguezais em sua continuidade e
autofecundação. Na ilha de São Luís corre a lenda de que embaixo da ilha dorme uma grande
serpente. Comentam também que, se algum dia o rabo da cobra encontrar-se com a cabeça do
mito, toda cidade de São Luís desaparecerá do mapa.
Além de uróboro, o mito serpentário do mangue recebe outros codinomes da linguagem
popular: Cobra Grande, Joaninha, Vovó do Mangue [BA], Comadre Fulozinha [PE], Cobra
33
Preta, Boiúna, “Boia-açu”, Cobra de Óbidos, Mãe D’água, Cobra Maria, Boto, Onça Preta,
Caboclo d’Água
13
[do rio São Francisco], Cabeça de Cuia [do rio Parnaíba-PI], Oxumaré
[orixá serpentário no reino do Candomblé, cobra de dois sexos: seis meses cobra e seis meses
uma linda mulher], Cobra Missionária ou Boitatá [Rio Grande do Sul].
Em sintonia com o mosaico poético da mitologia das águas, Raul Bopp conta a história
de um homem-cobra de forma diversificada. Metendo-se na pele ambígua da mitologia, vai
ser ele também poema de alguém. Bopp utiliza, em suas imagens fabulárias, expressões que
acompanham a constituição das narrativas orais. No livro ‘Cobra Norato’, o autor convida:
“Quero contar-te uma história/ Vamos passear naquelas ilhas decotadas? / Faz de conta que há
luar” [BOPP, 1998:148]. Mais à frente, o poeta anuncia: “- Você me espere/ que depois vou le
contar uma história” (sic.) [BOPP, 1998:159]. No percurso da travessia, chega a confabular:
“Hei de lhe contar histórias/ escrever nomes na areia/ pro vento brincar de apagar” [BOPP,
1998:191]. Pelo meio do livro ‘Urucungo’, o poeta rabisca coisa do tipo: “- Mãe preta, me
conta uma história. / - Então feche os olhos filhinho: // Longe muito longe/ era uma vez o rio
Congo...” [BOPP, 1998:297]. Ao finalizar, prefere dar continuação do sonho: “Principiou
sua história” [BOPP, 1998:209]. Na abertura do livro ‘Poemas brasileiros’, o autor descreve
sem ponto e sem vírgula: “No princípio era sol sol sol” [BOPP,1998:240]. Entre acréscimo ao
livro Diabolus, Bopp [1998:293] relata imagens como esta: “Pai, / conta mais uma vez como
é que era mesmo o Brasil” (sic.).
Por essa fresta de poeta narrador, Raul Bopp propicia uma reflexão à natureza do
mundo de forma romântica, quando possibilita ao eu-poético recriar em primeira pessoa a
mágica que cobre o mistério das histórias. O poeta é o que repensa o lugar que ocupa a
natureza nas atmosferas ambientalistas. Ao oferecer, na pele mítica, modelos à ação humana,
o poeta confere à natureza do mangue não apenas um valor regional ou universal, mas um
apreço ecológico, uma significação de proteção a todos os seres da natureza. Entre lugares de
sua paisagem: “Águas assustadas se abraçam com as árvores” [BOPP, 1998:318].
Entre descrenças, alugamos a natureza por tempo indeterminado; mudou-se o universo
de posição e a couraça sobre nós mesmos. Ganhamos autoridade em alteridades. Trocamos o
13
No Poema “O Caboclo D’água”, do livro Magma, Guimarães Rosa descreve o mito: No lombo da pedra de
cachoeira clara/ as águas se ensaboam/ antes de saltar/. E embaixo, piratingas, pacus e dourados/ dão pulos
de prata, de ouro e de cobres, / querendo voltar, com medo do poço/ da quarta volta do rio/ largo, tranqüilo,
tão, chato e brilhante, deitado a meio bote/ como uma boipeva branca.// Na água parada, entre moitas de sarãs
e canaranas, / o puraquê tem pensamentos/ de dois mil volts./ À sombra dos mangues / que despetalam placas
vermelhas, / dois botos zarpan, resfolegando, / com quatro jorros, / a todo vapor [...]” [ROSA, 1997:92; grifo
nosso].
34
incerto pelo duvidoso. Não fizemos a multiplicação dos pães: cresce a miséria mundo afora.
Mesmo assim, continuamos cortando árvores para construir tanques de carcinicultura.
Poluímos o mangue e avançamos com os tanques cheios de elementos poluídos em direção ao
resto do mundo.
Na visão de cientistas do mangue, a carcinicultura tem sido uma ameaça concreta não
somente para o Brasil, “mas também para vários países da América Latina, como Honduras,
Equador, Colômbia, México, Guatemala, pois os impactos causados pela atividade põem em
risco a biodiversidade dos manguezais e do mar” [CAVALCANTE, 2004:158].
O mangue inteiro se desagrega, o universo se expande; os dias se tornam descontínuos;
e os homens desfazem-se em pedaços, como se a humanidade inteira estivesse condenada a
espatifar. O mundo transforma a cada dia o excesso de luxo em lixo ambiental. Guattari
[2004:7-8], no livro As três ecologias’, alerta que o planeta sofre um processo de intensa
mudança técnico-científica e recebe como contrapeso um desequilíbrio ambiental que, se não
for repensado com ações concretas e firmes, a vida sofrerá as conseqüências que se observam
em nossos dias, como o esquentamento do planeta e a deterioração das relações entre pessoas,
sendo gangrenada pela mídia onde “a vida conjugal e familiar se encontra freqüentemente
‘ossificada’ por uma espécie de padronização de comportamentos e as relações de vizinhanças
estão geralmente reduzidas a sua mais pobre expressão”.
Raul Bopp assinala o respeito a todos os seres da natureza, bem como aos seus mitos.
Onde mitos: histórias, lendas, poemas, árvores, bichos, tornam-se sagrados; onde não
mitos, a razão é que se torna lendária; o poder venerado; a exploração cultuada, a natureza
desfalcada. Como destaca o autor de ‘Cobra Norato’ [1998:267]: “Veja em baixo. Estão
loucos/ com essa experiência nuclear! Já não existe mistério”.
Talvez uma das funções mais importante do mito esteja em fundar modelos para todas
as atividades significativas do ser humano: educação ambiental, iguarias, relação familiar,
cultura, sexualidade etc. “Comportando-se como um ser humano plenamente responsável, o
ser humano imita os gestos exemplares dos deuses, repete as ações deles, quer se trate de uma
simples função fisiológica, como a alimentação, quer de uma atividade social, econômica,
cultural, militar” [ELIADE, 2001:87].
Em sintonia com o mistério que abriga a natureza, esclarece Unger Nancy Mangabeira
[2001:98], os seres míticos sinalizam para um mistério, um elo de equilíbrio da mãe-natureza,
35
na medida em que são entidades que o somente preservam, mas zelam pelos elementos
ambientais. “Os mitos são signos que mantêm elos ecológicos”. Na visão de Unger, os mitos
promovem mudanças profundas, quando fornecem um senso de medida aos seres humanos.
Por outro lado, alerta a estudiosa que o poder dos mitos habita apenas o inconsciente dos
povos onde a natureza mantém o mistério e o brilho, pois essas entidades são o brilho e o
mistério da Natureza. “Quando o lugar que abriga o encanto é invadido por pessoas e
máquinas que mexem muito com o lago ou com a floresta, essas forças se retiram”.
Os mitos demarcam em torno de nós uma falta que abriga as incompletudes da origem
de nossa própria natureza. O universo é nosso próprio corpo. “O cosmo é um organismo vivo
que se renova periodicamente” [ELIADE, 2001:123]. Por seus múltiplos modos de ser, o
cosmos nos diz sobre o mistério da natureza da vida. A natureza que se conta, em lendas e
fábulas, é nossa própria raiz biográfica. Talvez por isso, quando contamos histórias, cantamos
a fim de recuperar a memória perdida do mundo. “É por essa razão que o cosmos foi
imaginado sob a forma de uma árvore gigante: o modo de ser do cosmos e, sobretudo, sua
capacidade infinita de se regenerar; é expresso simbolicamente pela vida das árvores
[ELIADE, 2001:124].
São as histórias que movem os séculos, mas são os mitos que exercem a função de
fundar os elementos culturais de uma nação. Os mitos fundadores vivificam as origens, nossa
raízes, e recortam a fala de nossos primórdios. Mas também servem como instrumentos para
reforçar a opressão em torno de uma cultura imposta de cima para baixo.
Se observarmos bem o imaginário europeu, de forma superficial, transfere para as
Américas, mitos antigos, seres monstruosos, à beira do fantástico, que servem às fronteiras do
desconhecido para sugerir limites conhecidos. No universo culto e popular – os seres anfíbios,
os canibais, os gigantes, as ilhas da fantasia, as amazonas – de forma sincrética ganham outras
leituras no novo mundo. “Os monstros pertencem à noite, ao sonho noturno. Os monstros não
se organizam em um universo monstruoso. São fragmentos do universo [BACHELARD,
2006: 175].
É necessário adentrar o fascínio da linguagem imagética. O que está expresso na
imagética se pode tocar a partir do mistério que faz guarda frente ao coração do mundo.
Sabemos que quando racionalizamos o poder simbólico de um mito o empobrecemos.
A visão mitológica do mundo é que nos torna íntimos para visitar a diversidade dos
36
elementos culturais. Nessa, podemos ser bichos, pedra, plantas, astro, átomo, mangue,
qualquer coisa, desde que possamos reconhecer a natureza justa das coisas que se abre pelo
que há de inverossímil nas mitologias.
A imagem de uma árvore, a exemplo, não foi escolhida unicamente para representar o
Cosmos, mas também para exprimir a sabedoria, a juventude, a vida, a morte. Além das
árvores cósmicas, como Yggdrasil, da mitologia germânica, a história das religiões conhece
árvores da vida (Mesopotâmia), da imortalidade (Ásia, Antigo Testamento), da sabedoria
(Antigo Testamento), da juventude (Mesopotâmia, Índia, Irã)” [ELIADE, 2001:124].
O poeta expande a visão do mundo pela ótica metafórica das imagens. O poder das
metáforas se nutre de analogias para recriar os diversos mundos de fora ao conhecer os
fascinantes mundos de dentro. A poesia é o nome de uma pergunta. Todo poema é uma
espécie de intervalo entre a dúvida e o espanto. O que faz o homem atravessar o “litoral da
palavra” é a busca infinda de si e dos outros que se revelam no traço mais ilegível e inaudível
da sugestão poética. O poeta é o inaudito porque é o que inaugura o dizer do mundo: “Vozes
perdidas na lama/ Domingos vazios/ água sonhando na tina/ pátria de mato e ferrugem”
[GULLAR, 2001: 13].
No poema ou na política, os ritos, os mitos, as desavenças, as transgressões representam
a manifestação do ritmo universal. Atualmente, a imagem do mundo multiplica-se, o espaço
também; o ano transforma-se numa linearidade sem fim; os astros deixam de ser a imagem da
harmonia cósmica. Desloca-se o eixo da Terra. Perdemos o segredo do infinito poema
cósmico. O caos enrijece o homem. Deus é demitido. Inventamos novas leis que regem a
ordem dos des-mundos. Sem mitologias panteístas, fundamos a modernidade em um mundo
desprovido de mistério. Sozinhos, nem a campainha nos faz companhia. Ficamos com as
insinuações, com os ecos que elas têm, muitas vezes, com medo de alcançar as respostas que
nunca teremos: “Que me ensinavam essas aulas/ de solidão/ entre coisas da natureza/ e do
homem?” [GULLAR, 2001: 15].
Octavio Paz [1993:71] observa que por mais moderna que seja a poesia um gosto de
ancestralidade que consagra uma ligação mais profunda que a filosofia é mais antiga que a
espiritualidade. A poesia, suspensa pela mão do tempo, é atemporal. “A diferença é que agora
vivemos essa solidão não diante do cosmos como diante dos nossos vizinhos. Contudo,
sabemos, cada um em seu quarto, que estamos realmente sozinhos: fraternidade sobre o
37
vazio”.
Estampa-se a cada dia o aspecto catártico e destrutivo no planeta. Crimes ambientais
acontecem à luz de esgotos. Discussão de armamentos nucleares atravessa campos minados.
Esquentando-se a camada de ozônio, degelamos a Antártica. Ecologicamente, o planeta não
anda bem das esferas respiratórias. “Como a Terra é viva, segue-se que, como todos os seres
vivos, ela respira. Ela respira como o homem respira” [BACHELARD, 2006:173]. E se,
exalarmos o cheiro do planeta, observando a respiração de um poema: “Não era o sol de
Laplace/ nem era a ilha geográfica: / era o sol/ o sol apenas/ com cheiro de lama podre / e
cheiro de peixe e gente/ corvina serra cação” [GULLAR, 2001:14].
Com seis propostas e uma leveza em uma das mãos, Calvino [2003: 19] reavalia sua
forma de perceber o mundo e desabafa que toda vez que o mundo aparece condenado a um
peso, desperta o sonho de voar para outro espaço. O que não se trata de uma mera fuga, mas
observa que é necessário mudar de ponto de observação, que preciso considerar o mundo sob
uma outra ótica, outra lógica, outros meios de conhecimento e controle.
Entre o peso do viver e os sonhos, tocamos com as mãos o destino do mundo. E uma
nova consciência ambiental vem surgindo lentamente com seus passos lentos. O regresso a
um completo equilíbrio ambiental o dependerá de uma revolução do cosmos, mas de uma
transformação da mentalidade humana. “O que está em questão é a maneira de viver daqui em
diante sobre esse planeta, no contexto da aceleração, das mutações técnico-científicas e do
considerável crescimento demográfico” [GUATTARI, 2004: 8].
1.2 Glossário de invenções [em que se explicam algumas ou nenhuma delas]
Não vê que me lembrei que lá no norte, meu Deus!
muito longe
Na escuridão ativa da noite que caiu
Um homem pálido magro de cabelo escorrendo nos olhos
Faz pouco se deitou, está dormindo.
Esse homem é brasileiro que nem eu.
[MÁRIO DE ANDRADE, 1988]
O mangue de ‘Cobra Norato’ é primitivamente sincrético e lírico e defronta-se com um
mundo estranho que se abre em uma cosmologia. O programa de construção da natureza em
Bopp implica não apenas em mero registro de imagens, mas um tratado que está além do
38
aceno de preservação da mesma: é uma invenção antropofágica. “Deve-se, então reconhecer
que a imagem não tem nem seu princípio nem sua força no elemento visual” [BACHELARD,
2002:125]. O que é poetizado é matéria que se faz humanidade; construção de desejos,
anseios, pulsações. Enquanto significação, o mangue é um ensino, habita palavras como uma
canção que gorjeia, margeada pelos mitos da floresta:
XVII
A floresta vem caminhando
-Abra-se que eu quero entrar!
Movem-se raízes com pernas atoladas
Águas de barriga cheia
espreguiçam-se nos igapós
O charco desdentado rumina lama
Uei! Aqui vai passando um riozinho
De águas órfãos fugindo
-Ai glu-glu-glu
Não-diz-nada pra ninguém
Se o sol aparecer ele me engole
-Então mande chamar a chuva compadre
Há gritos e ecos que se escondem
aflições de falta de ar
Árvores corcundas com fome mastigam estalando
entre roncos de ventres desatufados
Chô compadre
Eu também já estou com fome
-Então deixe eu assoprar na barriga
Esta lagoa está com febre inchou. A água parou
-Ai, eu era um rio solteiro
Vinha bebendo o meu caminho
mas o mato me entupiu
Agora estou com o útero doendo ai ai
Grita sozinha
perdida dentro do mangue
uma seriquara quara quara
[BOPP, 1998:167-168; grifo nosso]
Acampamento de pássaros e cantos, o mangue é convívio de poesia. Epigrama que
congemina linhas tortas, a poesia boppiana orienta-se à procura de uma aventura amorosa,
percorrendo a travessia dos sete mundos: mar, terra, céu, fogo, ar, rio, mangue. Próximo ao
trabalho artesão, o poeta assim como o “grande narrador terá sempre suas raízes no povo, em
primeiro lugar nas camadas artesanais” [BENJAMIM, 1974:69].
Com mãos de oleiro, o poeta apanha as palavras para atingir a perfeição inacabada;
colhe-as do barro metonímico; amassa a lama alquímica; requisita a argila inaugural para
construir conchas lúdicas, objetos ao contrário. O escultor de palavras arrasta seus objetos
errantes em direção ao caminho das águas. A visualidade da lama é um convite à leitura do
poema feito sobre manguezal. “Para justificar a convicção do poeta, para justificar a
39
freqüência e o natural da imagem, deve-se integrar à imagem componentes que não se vêem”
[BACHELARD, 2002:125]. Consciente do excesso de imagem sobre o silêncio da gina, o
escritor aproxima-se das insinuações imagéticas formuladas por Pound [1990:11]: “Fanopéia.
Um lance de imagens sobre a imaginação visual (Rihaku, i.é, Li T’ai-Po e os chineses
atingiram o máximo de fanopéia, devido talvez à natureza do ideograma)”.
Em Bopp, o poema vem enxertado de uma imagética que ao defender a natureza
ultrapassa o terreno visual. A imaginação se materializa para recriar o que aparentemente não
tem lucidez no mundo. O que o poeta transfigura, ganha imagem do manguezal: “Águas de
barriga cheia/ espreguiçam-se nos igapós”. No reino da imaginação, a fotografia do mangue
desfigura-se para o olhar que veio dominar e não proteger. E convence pelos componentes
fortes e primitivos: “Movem-se raízes com pernas atoladas”.
Observa-se que, em Bopp, a natureza do mangue atinge a posse da coisa nomeada.
Como imaginar os mangues sem garças? A lama por ali o se esconde dos vestígios das
causas ambientais. “Há gritos e ecos que se escondem / aflições de falta de ar”. Chama-nos
atenção a síntese da imagem sobrepondo-se ao trabalho miúdo: “Águas de barrigas cheias”
[BOPP, 1998:167]. Para quem gosta de descrever as miudezas das descobertas naturais, até o
sol se redime ao encanto de imagens de “águas órfãos fugindo”. Esse estilo travesso de
inaugurar delírios verbais lembra em alguns momentos o falar surreal dos povos primitivos.
Percebe-se em Bopp uma precisão surreal em sua ilogicidade. Há uma falta de conexão
de um verso para outro que bebe no legado das vanguardas surrealistas e dadaístas. Essa
quebra da lógica da escritura assim como a falta de coerência das imagens referencia na
impessoalidade do poeta a presença dos tempos vanguardistas nos ritmos modernistas. Uma
espécie de renúncia à racionalidade cartesiana e às velhas regras impostas pela gramática
oficial. Vê-se um despojamento do academicismo urbano, frente a uma diversidade de falares:
o erudito, o popular, o afro, o autóctone em um ritual heterogêneo de deglutição
antropofágica. Ao acatar a diversidade constitutiva de nossa cultura, a antropofagia renova a
dicção brasileira e propõe o sincretismo de nossa fala literária.
Mário de Andrade com sua lâmina de poema-prosa segue o ritmo da fala primitiva de
‘Macunaíma’: - Deixa de ser aruá, mano! Por morrer um caranguejo o mangue não bota
luto! que diacho! desanima não que arranjo as coisas” [ANDRADE, 1989:31; grifo nosso].
Como imaginar o mangue sem lama ou caranguejo? Seria, talvez, como olhar a Lua e
40
não imaginar São Jorge com sua lança, montado no dragão. A construção imagética do
manguezal é tão importante quanto o que a imagem indica do chão: “o lugar dos objetos
abandonados, esquecidos” [BENJAMIM, 2000:99]. O escritor decifra o mangue pelo olhar
que se dirige para baixo. Como as árvores totêmicas dos primitivos, conduz-se para baixo”
[BENJAMIM, 2000:98]. O poeta vasculha as raízes até a umidade do firmamento: “Céu
muito azul/ Garcinha branca voou voou.../ Pensou que o lago era em cima”
[BOPP,1998:165].
Para encontrar retratinhos de imagens, o autor desfigura o mato virgem em tempos
acidentáreis para a selva urbana. Nesse desencontro entre o campo e a cidade, a superfície da
palavra natureza é transgressora. No poema Cobra Norato, escrito no fôlego de 33 cantos, o
escritor inicia sua saga à procura das terras do Sem-fim e termina sua poética primitiva nos
mares Sem-fim.
Para a crítica Vera Lúcia de Oliveira [2002:82-83; grifo nosso], o livro ‘Cobra Norato’,
de Bopp, é poema do “puro assombro diante da terra virgem do mangue: uma metáfora do
homem chegando a um mundo mágico e sem fim. É o Brasil que se apossa poeticamente de
sua infância, instaurando, com esse tempo perdido uma relação empática”.
A geografia inacabada do Sem-fim anda à procura da utopia perdida. Nessas terras, o
autor vai na direção das terras do mar sem fim da Amazônia, mar banhado de lama e mangue
da ilha de Marajó ou das encostas do Macapá, onde o poeta traz à tona uma insinuação que
mapeia o ambiente pelo que de transcendente: “A visagem vai se sumindo/ pras bandas de
Macapá” [BOPP, 1998:185].
O grandioso impacto dos manguezais amazônicos, com sua flora carregada de símbolos,
mitos e ritos indígenas, coroados pelo mistério que ronda aquele patrimônio, insinua-se de
imagens. Por ali, desabrocham os vesgos que o poeta faz de si, da vida, do mundo ao redor, e
conseqüentemente, do próprio verso. “A floresta vem caminhando/ Abra-se que eu quero
entrar! Movem-se raízes com pernas atoladas” [Bopp, 1998: 167-168].
Em poesia, muitas vezes, não basta apenas viajar para imaginar, se faz necessário
caminhar na direção do sentir, do extasiar, do cheirar, do tocar, do conhecer ouvindo. Em
Raul Bopp, os sentidos descem ao chão do mangue com o aguçar das palavras. Não somente
os sentidos o capazes de traduzir as lendas carregadas de cosmologias. O que no poema se
abrem são imagens de seres anfíbios. Universo de lama onde as raízes criam pernas.
41
Concheiros de pedras dançam sambaquis. Mistérios de coisas que o mangue cobriu e
arqueologia descobriu. O encanto é o que salva as imagens do mangue para receberem o que
de mais misterioso no mundo: nossa condição humana. Os cantos primitivos seguem a
intuição pelos sentidos. Poemas são canções que nos despertam para atingir a totalidade do
ser-mundo.
Na travessia, à procura da filha da rainha Luzia, ‘Cobra Norato’ encontra bosques de
mangues que participam da concreção mítica noratiana. Com esse casquilho, sinaliza-nos para
uma abertura do tempo mítico que faz seus volteios pelo passado e traz seus recortes para um
tempo real.
O poeta retoma, no poema, o passado do mangue. Desliga-se da seqüência de
acontecimentos e recria de forma cíclica o encontro com o tempo lendário. Em uma realidade
transitória, o mangue flutua entre o que passou e o que está se fazendo dentro do poema. O
início e o fim das linguagens míticas são circulares. Como diz Shelley [1987:223]: “A
linguagem original próxima a sua fonte é em si mesma o caos de um poema cíclico”.
No eterno retorno da palavra mangue, a pele híbrida do signo, ora de cobra, ora de
homem, faz-se múltipla. “A sua essência é múltipla, aliás dual, mas contemporaneamente
concentra, em si, a síntese do humano e do sobrenatural. Além disso, é anfíbio, podendo
adaptar-se tanto ao ambiente aquático como ao terrestre” [OLIVEIRA, 2002:271].
Pelas trilhas da intuição, a poética aquática de Cobra Norato faz diferença na grande
cauda imagética de águas, lama e mangue. O homem-serpente é um ser múltiplo, em
travessia, tal qual um Narciso que tem a “revelação de sua identidade e de sua dualidade, a
revelação de seus duplos poderes viris e femininos, a revelação, sobretudo, de sua realidade e
de sua idealidade em fronteiras” [BACHELARD, 2002: 25].
Na travessia entre mangues: “A imaginação é uma árvore” [BACHELARD, 1990:230].
A terra das águas é de raízes, ninho de serpente. A imagem aérea do manguezal lembra
uma cobra em travessia pela lama, em movimento pelo rio. A palavra cobra nos lembra raízes
moles que habitam o subsolo e caminham de forma escorregadia de uma maneira que o se
deixam perceber. “A palavra raiz nos ajuda a ir à raiz de todas as palavras” [BACHELARD,
1990:226].
A imagem da raiz é importante como metáfora do mangue. A representação da raiz, no
42
sentido Junguiano, corresponde com os da serpente. “A raiz é sempre descoberta. Ela é mais
sonhada do que vista. E quando descoberta surpreende” [BACHELARD, 1990:224].
Ao observarmos as raízes dos mangues, vê-se que nos lembram diversas cobras. “Basta
seguir as árvores na terra onde elas dormem, completamente enraizadas, para encontrar nos
nomes perdidos, constâncias humanas” [BACHELARD, 1990:226].
Mangues são raízes-serpentes. Cobras são raízes de lama. “As grandes serpentes fogem
debaixo da terra” [BACHELARD, 1990:241]. Em uma teia de árvores espraiadas, as raízes-
serpentes se deixam pentear pelos cabelos das águas. O mangue é um rio cuja raiz mergulha
em terreno movediço. A lama não fornece firmeza nem solidez. Para andar na lama não é
preciso imitar os caranguejos. Acocora-se como quem flutua. Acompanha-se a posição das
raízes para não se deixar enfeitiçar pelas profundezas do lamaçal. A raiz se aloja no poema do
pântano como uma serpente. “Terras da Cobra Grande/ começam atrás do pantanal” [BOPP,
1998:187].
No manguezal, produzem raízes-serpentes que lembram mapas de uma geologia que
acompanham a travessia do rio. São “raízes-aéreas que crescem, a quatro metros ou mais
acima do solo, em local onde a amplitude de ma é grande e o solo especialmente fluido. O
sistema radicular é multiforme, único e notável” [VANNUCCI, 2002:47].
As serpentes raízes de ‘Cobra Norato’ são seres em trânsito. Demarcam encontro com a
Bio-diversidade das culturas em comunhão com as raízes do mundo mitológico. No
entrelaçamento das línguas, não é uma única linguagem que é levada em conta, mas o
multilingüismo nas fronteiras movediças das falas ameríndias. O que se observam são as
identidades em construção, de homens virando serpentes; cobras parindo árvores; bosques
conduzindo rios, mangue comendo raízes desdentadas.
A sedução que um mito das águas como Cobra Norato exerce sobre nós não reside
apenas no caráter mítico que possa evidenciar o contexto, mas por sugerir o extraordinário na
rapsódia poética. Ao transfigurar a realidade do mundo anfíbio, o poeta traz à tona uma das
funções essenciais da poesia que é nos mostrar no simples cotidiano o outro lado das coisas
que nem é tanto a irrealidade, mas a possibilidade de encarar a realidade com olhos capaz de
de encontrar ainda o espanto.
Frente ao universo dessas serpentes mágicas, o mundo das raízes é fundo como um
43
pântano de mangue. “As plantas de manguezal parecem possuir um genoma especialmente
plástico” [VANNUCCI, 2002:46]. São nos bosques enraizados que acontece a mutação dos
seres em coisas. Na alquimia da lama, “a serpente mais terrestre de todas é a raiz”
[BACHELARD, 1990: 242]. Observam-se, no verso XXV de Raul Bopp, as imagens
povoadas pelas raízes da diferença: “A festa parece animada, compadre/ - Vamos virar gente
pra entrar? / - Então vamos” [BOPP, 1998:177].
A poética do mangue nasce em Raul Bopp pela radícula da ambigüidade. O que vem
multiplicado no signo do homem cobra vai além do duplo. ‘Cobra Norato’ são as raízes do
Brasil dialogando com a pluralidade latino-americana. Uma pluralidade que nos faz lembrar
de Paz [1993:56], quando diz que a poesia sempre foi a representação de uma presença na
qual se Inter-relacionam as duas metades da esfera. “Presença plural: muitas vezes, no curso
da história, mudou de rosto e de nome; contudo através de todas essas mudanças, é uma. Não
se anula na diversidade de suas aparições”.
Raul Bopp constitui a natureza num espaço rizomático infindo para os séculos, grande
para os dias. A raiz, assim como o mangue, “é, em parte, assimilada à terra, como uma
concreção viva da terra; não pode assimilar a terra a não ser fazendo-se terra”
[BACHELARD, 1990:242]. Cada resma de raízes mantém um elo com o que guardamos dos
outros mundos inventados. Pela raiz, procura-se traçar uma cadeia rizomática com a
totalidade do mangue-mundo. “Um lugar que difrata e leva à efervescência da diversidade
[GLISSANT, 2005:16].
Entre o múltiplo e o duplo, o imaginário das raízes do mangue também estabelece
relação com o onirismo, com o mundo místico, o brâmane, as figueiras indianas, os mistérios
das cartas do tarô, o budismo, o mapa astral, que se pode somatizar aos trinta e três (33)
epílogos dessa saga. No poema boppiano, a poesia é traço múltiplo que descobre o dúbio
número 33. Na matemática repetida, 33 é edição ímpar de uma soma par. A repetição do 3 no
livro ‘A linguagem secreta do tarô’, de Simon e Picard [2000:41], representa a Imperatriz que
“pode ser considerada uma criação perfeita, em relação direta com os mundos superiores”.
Também está ligado à traição de Pedro na doutrina Cristã. E está associado no mapa astral à
completude e perfeição criativa. Observa-se que a adição de 3 + 3 = 6 simboliza as seis letras
da palavra MANGUE e também nos remete ao arquétipo do arcano VI. No tarô, esta lâmina
corresponde à carta O Enamorado que representa: “Meditação, escolha, livre-arbítrio, paixão,
decisão, amizade, escolha; amar no sentido mais desinteressado e belo” [SIMON; PICARD,
44
2000:157].
Vejamos que Cobra Norato, além de ser o boto sedutor à procura amada, é o mito da
travessia do mangue, o herói das batalhas pelas terras prometidas do sem-fim. O que
experiencia a busca, o diálogo com outros povos. O herói boppiano é o moderno que se deixa
ser levado pelas tormentas e labirintos. Diferentemente do herói grego coerente e divino,
Cobra Norato é o herói moderno dividido e sem grandes poderes divinos. Norato é o mito
humanizado e desamparado. Aquele que não encontra grandes saídas para seus passos
incertos, mas que segue e se arrisca, em círculo feito uróboro, mordendo o próprio rastro. O
herói silvícola que trava, em sua antropofagia cultural, a aventura de encontrar-se ou não com
a filha da rainha Luzia, eis a essência do mistério.
Talvez caiba ao poema a profecia de tornar-se verbo para se fazer ação. Ao se exaltar a
palavra dúbia do verso, Bopp traz à tona a recordação mítica do mistério. Na liturgia dos
mitos, o mistério é mensageiro da deusa grega “Mnemna”, aquela que rememora. Por trás do
mistério das palavras, abre-se em ritos o mito popular. Na sala de aula da literatura oral,
Cobra Norato ou ‘Honorato’ é uma versão popular da literatura ameríndia
.
14
É certo que a poesia é mais ampla do que as palavras possam sugerir. O melhor conceito
que poderíamos dar à poesia boppiana seria a de conviver em harmonia com a natureza, mas
seria ingenuidade, pois essa harmonia muito se perdera. O que resta é tentar recuperar e
proteger a parte perdida do homem. Compreender a palavra é compreender de onde viemos, o
que somos enquanto habitantes de encruzilhadas e dos caminhos da história humana.
1.3 A palavra que veio do mar
Há um grande cansaço de explicar o mar
[OSWALD DE ANDRADE]
“O que é pra ser - são as palavras!” [ROSA, 1994:36]. No submundo das águas, a
representação do mangue no popular remete a valores, muitas vezes, depreciativos,
cristalizados. Valores que estão enraizados tempo afora na memória das comunidades
ribeirinhas. Há um preconceito estabelecido que associa o mangue a algo pútrido, fétido, sujo.
14
O próprio mito das cobras, que constitui o núcleo temático de Cobra Norato e que precede da Amazônia,
teria, segundo Bernd [2003a: 65], interseções com o mito da Teiniaguá, a enorme serpente que se escondia nos
subterrâneos da igreja de São Miguel, o qual teve magistral transcrição literária pelo escritor gaúcho João
Simões Lopes Neto.
45
No manguezal, foram atribuídos pelo senso-comum significados depreciativos que enfatizam
fundamentalmente o movediço, o impuro, o medo, o sombrio, o sem-valor. “Raramente, sob
esta perspectiva, é atribuído ao manguezal algum adjetivo enaltecedor e não por acaso foram
as mulheres marisqueiras que construíram seu trabalho e suas vidas nesse ambiente”
[CAVALCANTE, 2004:91].
Talvez por mero desconhecimento da riqueza ambiental desse tipo de ecossistema que
no inconsciente coletivo o mangue ainda esteja ligado a expressões depreciativas. A exemplo,
a expressão “cair no mangue”, muito utilizada nos arredores de nossa gente, representa no
imaginário nordestino “cair na lama da miséria”. Em seus estudos semânticos, o dicionarista
Costa (1976:478) no livro ‘Vocabulário pernambucano’ confirma: Estar, cair no mangue,
arruinado, perdido. O uso coloquial da frase “ganhar o mangue” simboliza também fugir
desaparecer, ocultar-se, homiziar-se.”
Em Salvador-BA, a expressão: “Tava o maior mangue” refere-se à esculhambação,
bagunça, zoeira. No Rio de Janeiro e São Paulo, a linguagem assimila o mangue como
putaria, prostituição, zona. O pejorativo veio devido à Vila Mimosa, que existiu numa área
cafetina carioca durante a década de 1930-1940, próxima ao Canal Grande do bairro Mangue.
Apesar de ter sido destruída durante a ‘Era Vargas’, o poeta compositor Chico Buarque
resgata, tempos depois, a memória do lugar no poema “Geni e o Zepelim”: “[...] de tudo que é
nego torto, do mangue, [grifo nosso] do cais do porto, ela foi namorada”. Na letra de
música, “Vai trabalhar vagabundo”, Chico reforça o estereótipo criado em torno da palavra:
“Vê se não dorme no ponto/ Reúne as economias/ Perde os três contos no conto da loteria//
Passou o domingo no mangue [grifo nosso] / Segunda-feira vazia”.
Em contexto parecido, o uso popular de “vamos ao mangue” significa em nossos dias:
vadiar, errar, brincar. também citação à palavra mangue como “a brincadeira levada a
sério” do movimento manguebeat, demarcando assim o ambiente musical, a miscelânea de
ritmos, que originou o projeto estético da geração de Chico Science e Fred Zeroquatro. Como
veremos mais à frente, manguebeat aproveitou-se do estilo sincrético de se fazer música.
Além de vegetação, ritmo musical, a palavra ‘mangue’ perpassa a exclusão social das
zonas de meretrício, como nos indica Ferreira [1986:1079-1080] em seu Novo dicionário de
língua portuguesa:
46
Mangue: s.m. fitogeog. Comunidade dominada por árvores ditas mangues. (V.
mangue) dos gêneros Rhizophoras, laguncularia e Avicennia que se localizam nos
trópicos em áreas justamarítimas sujeitas às marés. O solo é uma espécie de lama
escura e mole.[Sin.: mangal, mangrove, manguezal].2 cada uma das plantas dotadas
de raízes-escoras (V. raízes-escoras) que vegetam. 3 Brasil, gíria, zona de baixo
meretrício.
Sabemos que sempre um início para uma palavra. O começo de um verbo está
enraizado à memória de um povo. Como uma teia rizomática, que tem “formas muito diversas
desde sua extensão superficial ramificada em todos os sentidos até suas concreções em bulbos
e tubérculos” [DELEUZE; GUATTARI, 2004: 15], o mangue mantém uma relação sincrética
com a história da humanidade, pois esculpe ao longo dos séculos uma fusão com os elementos
culturais africanos, indígenas, europeus, judaicos.
A contribuição do uso dos manguezais é bem extensa, as espécies de Avicennia, a
exemplo, servem para diferentes fins medicinais em diversos lugares, sendo importante no
tratamento de lepra e diarréia e como afrodisíaco.pelo século II a.C. Agatárquides, em seu
tratado, ‘De mare Rubrum’ (o mar vermelho ou mar Eritreu, que é na verdade Oceano
Índico), menciona, segundo Vannucci [2002:128], o uso dos mangues como plantas
medicinais, sendo especialmente importante a extração de tanino (informação reiterada por
Plínio). Os árabes também criaram uma fabulosa farmacopéia a partir de muitas espécies de
árvores de mangues. Os habitantes dos manguezais produzem vermicidas e inseticidas (o
tubah malaio é largamente usado com esse fim em todo sul e sudeste da Ásia).
Ao observarmos, por exemplo, as estratégias de mariscagem, pesca, apicultura, percebe-
se a contribuição que tiveram os índios na construção dos artefatos artesanais. Como
acrescenta Sérgio Buarque de Holanda [2005:31]: “Aos índios tomaram ainda instrumento e
caça e pesca, embarcações de casca ou tronco escravado, que singravam os rios e água do
litoral”.
Em se tratando da palavra mangue a imagem do rizoma é particularmente favorável pela
heterogeneidade, desmatamento, campos conquistados, multiplicidade, diversidade, busca de
raízes e fronteiras, onde as dúvidas mudam de lugar e as indagações caminham a passos
lentos. Os mangues são raízes de um Brasil, percebido não mais como raiz única.
O Brasil, de agora, estende casebres de misérias em raízes de palafitas e, sem resolver as
questões básicas da fome, amplia novas ruelas aos desvalidos. País que sem acordar
verdadeiramente para o patrimônio de nossa Biodiversidade, recolhe os frutos advindo da
47
riqueza dos recursos naturais. “A conservação da Biodiversidade do manguezal possui uma
ressonância positiva para a vida marinha, da qual dependem milhares de famílias de
pescadores” [CAVALCANTE, 2004:91].
O mangue demarca encontro, no terreno do ‘entre-lugares’ [termo de Silviano
Santiago], pela alteridade das culturas, trazemos a coleta de países distantes em nossas formas
de convívio e em nossas idéias aculturadas, rabiscadas em carbono e papel timbrando. Em
sintonia com os mangues mantivemos tudo isso em ambiente muitas vezes selvagem, hostil.
Afro-ameríndios, somos ainda uns desterritorizalizados em nossa terra feita de lama e
caranguejos. Como assinala Holanda [2005:31], no livro ‘Raízes do Brasil’, podemos
construir, neste país, obras de referência, ao ampliarmos nosso jeito de ser com modos
sincréticos e imprevisíveis: “o certo é que todo o fruto de nosso trabalho ou de nossa preguiça
parece participar de um sistema de evolução próprio de outro clima e de outra paisagem”.
Entre legados culturais, não sabemos quem inaugurou o vocábulo mangue. A primeira
vez de uma palavra é sempre um parto solitário. Muitas palavras carregam a alma do mundo
no ventre do dicionário. Ao vasculharmos alguns verbetes, observamos não propriamente
listas de palavras, mas encruzilhadas, labirintos que serviram de exílio à palavra mangue.
Andamos em círculo à maneira dos caranguejos, viajamos ora para frente ora trás. Entre o
zigue-zague das dúvidas, seguimos andantes à procura das encostas das raízes estuarinas e
encontramos na travessia da história dos mangues os lugares mais recônditos, os esconderijos
mais camuflados. Espaços primitivos em que o substantivo Mangue se deixou esconder e
acontecer nos litorais da etimologia crioula-ameríndia.
No processo de colonização ibérica, os povos migrantes trouxeram na bagagem o
legado cultural de suas próprias tradições. Por outro lado, os povos colonizados tiveram seus
patrimônios culturais forçosamente silenciados. “O ser se encontrava dessa maneira despojado
de toda espécie de elementos de sua vida cotidiana, mas também, e, sobretudo, de sua língua”
[GLISSANT, 2005: 19].
Etimologicamente, destacando as reservas que a raiz da palavra mangue atravessa ao
adentrar o período da colonização, poucos estudos que vasculham a arqueologia desta
palavra por esse caminho. Marta Vannucci é uma dessas arqueólogas à procura das raízes e
das letras dos mangues. Para a pesquisadora, a forma corriqueira com que foi usada a palavra
mangue por Afonso de Albuquerque sugere que os portugueses já usavam o termo há bastante
48
tempo, e que esses conheciam seu significado e valor.
15
No livro ‘Vocabulário tupy guarani português’ do professor Silveira Bueno, encontra-
se a palavra: Guaparayba s. f. Mangue, árvore própria dos banhados, das bordas
marítimas: guá, baía, enseada; pará, mar; rio; yba, árvore”. Percebe-se, no idioma tupi-
guarani, uma justaposição do termo ‘gua’ que simboliza baía com o vocábulo ‘pará’ que
representa estuário e a palavra ‘yba’ que quer dizer árvore. A junção desses termos origem
à palavra guaparayba que significa árvore de mangue.
No Dizionario Portoghese-Italiano’ de Carlo Parla Greco, algumas controvérsias. Na
descrição desse dicionarista: “Mangue, terreno pantanoso, Brasile (bot.). Nome comune a
molte piante del Brasile Albero e fruto de manga”. Segundo Parla Greco, mangue é uma
planta de terreno brejeiro, mas também é planta originária da fruta manga. Contudo, uma
certa confusão ao considerar-se a fruta manga como originária dos mangues. A fruta ‘manga’,
segundo Octavio Paz, no livro ‘Vislumbres da Índia’ [1996:82], “é uma fruta vinda do tâmil
originário da Índia”. A mangueira não nasce em lamas salobras, pantanosas. Portanto, está
fora de cogitação classificar a fruta manga como originária dos manguezais. Mangue e manga
são vocábulos de raízes etimológicas diferentes. Se a palavra ‘manga’ é de origem indiana,
mangue é vocábulo de origem diaspórica.
Nas páginas do ‘Dicionário alemão-português-alemão’, de Ciro Mioranza,
encontramos, estendido no meio de nomes e sobrenomes da língua Alemã, a palavra mangue,
que quer dizer das Watt’. A palavra Watt’, além de sinônima de energia, é também
representação de lugar pantanoso, terreno baixio.
Viajamos também em línguas fora do tempo e encontramos no ‘Grande dicionário
esperanto português’, de Ismael Gomes Braga que “Manglo é mangue (nome de diversas
plantas do Brasil) mangue vermelho, mangue verdadeiro, mangueiro”.
À procura de novos vernáculos, no dicionário francês, de Burtin-Vinholes, vimos que
os mangues são conhecidos pelos franceses como ‘palétuviers’ [paletyvje].
No dicionário inglês, David B. Guaralnik acrescenta que mangue é mangrove. Nas
15
O dicionário Etimológico da Língua Portuguesa (1952) diz que mangue é palavra de origem obscura e, de
fato, ela não deriva nem do latim nem do árabe [VANNUCCI, 2002:30]. O dicionário acrescenta que a palavra
foi usada pela primeira vez por Afonso Albuquerque, em 1513, de fato localizei essa referência numa carta
escrita pelo então governador da Índia Portuguesa ao rei de Portugal.
49
raízes tropicais da semântica, o termo 'mangrove' surge pela associação com o vocábulo inglês
'grove' [bosques] que se entrelaça às raízes da palavra mangue e (ou) do vocábulo hispânico
'mangle'. Como um amálgama, a raiz da palavra mangue encontra-se desde suas origens na
(bio) diversidade das línguas, nas encruzilhadas das marés diaspóricas. Próximo às encostas
litorâneas da Espanha, o vocábulo mangle ou mangla recebe descrição para árvore dos baixios
das águas estuárias.
O vocábulo mangle teria sido usado pela primeira vez no Caribe, em 1519. Desvendar a
origem da palavra mangue tornou-se uma questão complexa, até mesmo porque tanto a
palavra mangue quanto o vocábulo mangle fazem parte de um legado diaspórico, trazido do
mar com a colonização ibérica.
.
Em outros lugares, alguns homens, como por exemplo,
Watson na Malásia e De Haan na Indonésia, tiveram melhor percepção do papel dos
manguezais na natureza e do uso que deles o homem pode fazer. De fato a palavra dada pelos
holandeses aos terrenos de mangues é floresta alagada cujo sinônimo é “vloedboschen”
[VANNUCCI, 2002:35].
Nessa travessia, à procura de uma rota ou referência sobre o uso da palavra mangue,
descobrimos as marcas das origens na Terrae Brasilis.
16
Na época da colonização, as
fronteiras das línguas apropriaram-se de outras linguagens. Alguns dialetos se apagaram no
movimento andarilho das diásporas. E foi nesse horizonte de fronteiras traduzidas e
crioulizadas que um propágulo, uma semente de mangue, brotou no solo do idioma africano.
A palavra manggi-manggi é da ngua Wolof idioma oficial do Senegal. “Com ou sem
variações de pronúncia, é comum no Senegal, Gâmbia, Casamanca e Guiné” [VANNUCCI,
2002: 34]. Frente à cultura negra e no resgate da sonoridade Afro, encontra-se na oralidade as
verdadeiras origens da linguagem dos manguezais.
Na África, a palavra mangue enxertou-se na lama e saiu mundo afora nos porões de
esquadras negreiras. Comenta-se que, acompanhando os navios, alguns propágulos levaram as
primeiras sementinhas da palavra Rhizophora [mangue vermelho] aos países colonizados.
Do continente africano, os portugueses assimilaram a palavra mangui, que partiu da
oralidade crioula para outros continentes. Com o tempo, essa palavra recebeu no código da
língua crioula o sincretismo com outras linguagens. “O que chamo de língua crioula é uma
16
O primeiro uso da palavra que pude encontrar numa carta é de Lopo-Homem-Reines (P.M.C.est. 22), datada
de 1519, na qual a palavra mamguez (ortografia antiga do plural da palavra mangue) indica uma área do golfo
dos Reys, conhecida atualmente como Angra dos Reis [VANNUCCI, 2002: 33]. A área indicada na antiga
carta ainda era um vasto manguezal até a Segunda Guerra Mundial.
50
língua cujos elementos constituintes são heterogêneos uns aos outros” [GLISSANT, 2005:24].
Do outro lado, do processo de colonização cultural, os espanhóis aprenderam com os
africanos de Guiné Bissau dois novos vocábulos: mangle ou mangli. A partir daí, veio a
origem hispânica de: mangle e manglar. Da África, o termo mangue expandiu-se pelos mares
do mundo na presença de outras culturas. A palavra mangue é crioula frente ao patrimônio
cultural do mundo afro.
É certo que não se resolve por inteiro o mistério de uma palavra, mas se fica pelo menos
com os registros dela para o resgate da memória crioula. Nesta, o mangue está entrelaçado a
um ecossistema rizomático e complexo que se enraíza a partir do rastro compósito,
heterogêneo, em relação com outras raízes: as culturas marginalizadas.
À procura de um mapeamento para as margens desconhecidas dos mangues,
percebemos que as referências históricas vão repertoriando lentamente um labirinto
embrenhado de lama e raízes de mangues que, aos poucos, se revela aos olhos dos
pesquisadores dos manguezais. À vista disso, Yara Schaeffer-Novelli [1995:7] acrescenta:
Referências sobre plantas de mangue são conhecidas desde o ano de 325 a.C. através
do relatório de general Nearco, quando acompanhou Alexandre Magno em suas
campanhas do Delta do Indo ao Golfo Pérsico, onde registrou as ocorrências de
árvores de 14 metros de altura com flores brancas, que cresciam no mar, e troncos
suportados por raízes com aspecto de candelabro. Esse aspecto característico das
raízes do mangue vermelho está, inclusive, vinculado à designação de Kandelia para
um dos grupos desses vegetais, cuja referência aparece no trabalho de Abou’l Abbas
el Nabaty, um botânico mouro que em 1230 viajou pela Arábia, Síria, Iraque,
quando chamou essas plantas de Kendela.
Em busca das origens dos manguezais, a história da humanidade vai migrando frente ao
período da colonização nas costas do mundo ocidental, história das caravelas perdidas dentro
do lamaçal dos mangues, narrativas das cartas náuticas que obliteram detalhes, mas que já
sinalizam não especificamente para a palavra, mas para o lugar de etnias.
As crônicas de fundação geralmente não foram relatos dos autóctones, na maioria das
vezes, ao contrário, os textos que integram as narrativas de viagens favorecem a fala que veio
para explorar. Ali, a memória do lugar é roubada. Os primeiros habitantes desaparecem.
Por esse caminho, pensamos por mosaico a história do mangue. Falar sobre ele é
encontrar fragmentos de uma teia de retalhos. É despertar para as identidades de lugares
silenciados. Lugares que fundam, congregam unem e separam etnias. Nesse sentido, é
51
importante descobrir as raízes biológicas, históricas, sociais, antropológicas do solo dos
manguezais porque nem sempre elas foram vistas a partir de dentro.
Na verdade, “foram os mangues os primeiros conquistadores desta terra. Foram mesmo,
em grande parte, os seus criadores. Toda esta vasta planície inundável, formada de ilhas,
penínsulas, alagados e pauis, foi, em tempos idos, uma grande fossa, uma baía em círculo,
cercada por uma cinta de colinas” [CASTRO, 2001b:11].
Josué aponta ainda que “nela vindo a desaguar, através da muralha dessas colinas dos
grandes rios Capibaribe e o Beberibe foram entulhando a fossa com materiais aluvionais:
como a terra encharcada de outras áreas distantes e trazidas na enxurrada das suas águas”.
No período das descobertas marítimas, não havia interesse em relatar ou descrever os
mangues, até mesmo porque a preocupação dos navegadores estava em descobrir e expandir
atividades ligadas à observação de novas linhas das costas marítimas, comércio com
especiarias, ouro, pau-brasil, descobertas de novas terras para diferentes fins. Como observa
Sérgio Buarque de Holanda [2005:43] no livro ‘Raízes do Brasil’: “Essa exploração dos
trópicos o se processou, em verdade, por um empreendimento metódico e racional, não
emanou de uma vontade construtora e enérgica; fez-se antes com desleixo e certo abandono”.
Somente a partir da descoberta da utilidade e qualidade dos produtos do manguezal é
que passaremos a ter historicamente as primeiras referências de pesquisa sobre a variedade da
fauna, da flora do manguezal como um todo. Com o tempo, os manguezais, além de servirem
como fonte de alimento, tornaram-se visíveis na extração de madeira para a construção de
embarcações, usos de cercas, fabricação de carvão.
Historicamente, em quase todas as costas com bosques de mangue, os povos do mar
conheciam os usos que se podiam fazer deles, de seus recursos comestíveis, de suas riquezas
medicinais entre diferentes espécies de plantas. Além dos povos do velho e do novo mundo
que habitavam os manguezais, os europeus também eram conhecedores e sabiam como
utilizar os produtos dos mangues. Muito desse conhecimento foi perdido, mas também muita
coisa foi recuperada pelos próprios colonizadores que, convivendo em companhia da natureza
tropical, tiveram que reaprender a observar a natureza dos habitantes da flora e da fauna dos
solos alagadiços.
À cata do conhecimento perdido pelas embarcações, encontramos referências históricas
52
que demarcam a presença dos mangues na América, em Schaeffer-Novelli et al [2004:22] que
em seus estudos observa a primeira descrição dos mangues da América feita pelo espanhol e
historiador Valdés [1478-1557], no livro La historia natural y general de las Índias, islas y
tierra firme del mar oceano’, pelos idos de 1526.
No século XVI, o historiador espanhol Gonçalo Fernandez de Oviedo y Valdéz, ao
chegar às ilhas do Caribe sem nunca haver conhecido um manguezal, avistou
algumas ostras fixadas aos galhos e raízes de mangue vermelho e as confundiu com
flores. Atualmente sabe-se que as larvas desses organismos chegam transportadas
nas marés altas aos galhos, troncos e raízes, onde se fixam e desenvolvem-se.
O ato de conhecer requer um olhar de ordem natural e cultural. Por toda a história do
Brasil, o olhar sobre o manguezal foi construído a partir do olhar do colonizador. Não é à toa
o imaginário de descrenças sendo lentamente construído não pelo que este detém de belo, mas
pelo que de estranho. Encontramos a primeira descrição ecológica dos manguezais
possivelmente de Ilhéus [BA] ou talvez da Capitania de São Vicente, no capítulo VIII do livro
‘Tratado da terra & histórias do Brasil’ [1576], de Pero de Magalhães de Gândavo que com
certeza não esteve em Pernambuco. “Gândavo está escrevendo para portugueses de Portugal,
não para portugueses do Brasil, seus descendentes, mestiços e indígenas” [SOFFIATI, 2002:
31]. Ao descrever os peixes-bois na capitania de São Vicente, Gândavo traz referências sobre
o uso dos manguezais:
Estes peixes pela maior parte se acham em alguns rios, ou baías desta costa,
principalmente onde algum ribeiro, ou regato se mete na água salgada são mais
certos: porque botam o focinho fora e pascem as ervas que se criam em
semelhantes partes, e também comem as folhas de umas árvores a que chamam
mangues, de que há grande quantidade ao longo dos mesmos rios. Os moradores da
terra os matam com arpões, e também em pesqueiras costumam tomar alguns
porque vêm com a enchente da maré aos tais lugares, e com a vazante se tornam a
ir para o mar donde vieram. [GÂNDAVO, 1995:89-90; grifo nosso]
O historiador português Gabriel Soares de Sousa [1540-1592] desfia, em seu ‘Tratado
descritivo do Brasil’ [1587], uma das referências mais antigas da biologia dos manguezais.
Em verdade, Gabriel Soares [1987:46], no tratado descritivo, sai da região Norte do
Amazonas, entra pelos litorais do Maranhão, Rio Grande do Norte [Búzios e Tabatinga],
Paraíba [Baía da Traição], toda a costa pernambucana; atravessa o litoral da Bahia e segue até
os mangues do Rio de Janeiro. Nesse itinerário, descrições étnicas [vista de forma
preconceituosa], mapeamento da fauna e flora, cartografias dos terrenos baixios,
possivelmente de mangues, quando o cronista adentra as costas do Maranhão. Um pouco mais
à frente, insinua imagem de mangue: “porque tudo até o Maranhão defronte da costa são
baixios”. E segue em seu itinerário marítimo pelas trilhas dos índios potiguares nas encostas
53
estuárias do Rio Grande [atual Rio Grande do Norte], onde o cronista cita os mangues em
uma referência visível aos assaltos cometidos ao pau-brasil.
Tem este rio um baixo à entrada da banda do norte, onde corre água muito à
vazante, e tem dentro algumas ilhas de mangues, pelo qual vão barcos por ele cima
quinze ou vinte léguas e vem muito longe. Esta terra do rio Grande é muito sofrível
para esse rio haver de se povoar [...] Neste rio, muito pau de tinta, onde os
franceses o vão carregar muitas vezes [SOUSA, 1987:50; grifo nosso].
Nesta travessia, chega aos mangues pernambucanos, quando declara, no capítulo XVIII,
a costa do Santo Agostinho e rio Ipojuca até o rio São Francisco:
De Maracaípe ao rio Formoso são duas léguas, o qual tem um arrecife a mar
defronte de si, que tem um boqueirão por onde entram navios da costa, o qual está
em nove graus, cuja terra é escalvada, mas bem provida de caça. Do rio Formoso ao
de Una são três léguas, o qual tem na boca uma ilha de mangues [SOUSA,
1987:60; grifo nosso].
Percebe-se que a descrição de Gabriel Soares assemelha à de um botânico. Há páginas e
mais páginas, do capítulo XVI, em que o cronista se alinha pelo litoral baiano na descrição
minuciosa de espécies de caranguejos, ostras, lagostins, mariscos búzios. A meticulosidade
em Soares não nos engana, pois muitas vezes reporta-se aos índios de forma preconceituosa.
Vale observar que a caracterização do manguezal feita pelo cronista se dá nas costas do litoral
nordestino. Interessante, também, averiguar que as denominações dos diversos tipos de
caranguejos e mariscos utilizadas pelos índios, pouco se mantêm na atualidade.
Mas ao se observar atentamente Gabriel Soares de Sousa vê-se que ele chega a
descrever os mangues, por exemplo, com a preocupação comercial de mantê-los
exclusivamente sob a tutela da exploração e utilidade. Esses tratados, formulados
selvagemente, anunciam os primeiros pré-conceitos da geografia dos manguezais. Nele, os
mangues são visto como lugares sujos, fedorentos, abomináveis. E isso se estabeleceu de
forma tão massacrante que os mangues são lembrados pela rede de palafitas escoradas nos
monturos do mundo.
Para a História, duas questões se fazem presentes, mesmo que de maneira diferenciada,
nas reflexões realizadas por estudiosos sobre a problemática ambiental: a relação homem,
cultura e natureza; e as revoluções científicas dos séculos XVI e XVII, que contribuíram para
uma visão dos recursos naturais como mercadoria inesgotável. [CAVALCANTE, 2004:150]
André Alves [2004:82] aponta que, em Guananira [atual cidade de Vitória ES],
ancorou primeira caravela portuguesa ao redor dos manguezais de Espírito Santo: “Uma vez
54
instalados, os colonizadores iniciaram o processo de ocupação dessa ilha coberta de mata
Atlântica, repleta de morros e cercada por manguezais, que eram amplamente utilizados pelos
indígenas como fonte de alimento, argila e pigmento”. Os manguezais de Vitória passaram a
ser explorado pelos portugueses como fonte de madeira e de tanino, usado para o curtume do
couro.
Mas os mangues vieram mesmo com os rios e, segundo Josué de Castro [2001b: 11-12],
com os materiais orgânicos por estes trazidos, foram os mangues laboriosamente construindo
seu próprio solo lamacento, batendo-se em luta constante contra o mar e arrecifes. Vieram
como se fossem tropas de ocupação e, ao contato com o mar, edificou-se silenciosamente e
progressivamente esta imensa baixada aluviona, cortada por inúmeros braços de água dos rios
e densamente povoada de homens e caranguejos, de gente humilde acocorados em tabas de
palafitas. A cada pedaço de chão colonizado, encontram-se as marcas das estacas dos
mangues fazendo suas pegadas no terreno lamoso da história.
1.4 Serpente de lama
Assim que um poeta escolher ser objeto,
o próprio objeto muda de ser. É promovido à condição de poético.
[BACHELARD]
O estilo de Raul Bopp resgata a dificuldade que há em se ficar de frente a um bosque de
mangue. Como tocar de perto o estranhamento de um lugar de difícil acesso à maneira da vida
vegetal? A árvore de mangue é uma ciência no mundo das metáforas. O mangue é árvore-rio.
Da lama se alimenta o húmus do rio, a medula do mundo. Como mergulhar o corpo na lama e
não sentir uma vertigem de conforto materno? Para a vida que recomeça da lama, o mangue é
origem de amor, autoconhecimento de si próprio. Para aqueles que vasculham o manguezal à
procura da tranqüilidade, mangue é encontro: “Correspondência percebida ente o ciclo das
marés e o ciclo menstrual, entre a alternância do fluxo e refluxo e o ritmo nictemeral, entre a
escansão das ondas e os batimentos cardíacos, incita à escuta cenestésicas, somatiza a busca
de si” [CORBIN, 1989:182].
A lama é substância medicinal. Na argila, o corpo mantém contato com substâncias
purificadoras. Na visão de algumas marisqueiras que trabalham diariamente catando sururus,
esse contato com a lama do manguezal possibilita uma maciez no corpo. “Para as
marisqueiras, a lama tem um sentido a mais que, segundo elas, os homens não identificam, o
55
tratamento da pele” [CAVALCANTE, 2004:64].
Casa de caramujo, morada de caranguejo, a lama é comunhão de quatro mundos: terra e
mar, rio e mangue. Matéria de onde se faz a poética do manguezal, arqueologia dos pântanos.
É desde o princípio elemento resultante da formação do mundo. Na visão poética de Schama
[1996:14]:
Para além dos barracões, areia tisnada, coberta de conchas de moluscos de cordões
de algas marinhas empoladas e negras, que se estendiam até a água cinzenta.
Quando a maré baixava, expondo uma extensão de lama cor de ferrugem, eu
caminhava quilômetros a partir da praia, testando a profundeza da vasa,
chapinhando entre caranguejos e caramujos, que fugiam às pressas, e olhando
fixamente para o ponto exato onde imaginava que o rio encontrava o mar.
Na sugestão do poeta Raul Bopp, concha é lama, representação de maternidade: “Me
atolei no útero de lama” [BOPP, 1998:158]. Neste verso, a lama é lugar onde se esconde o
reino das terras encantadas. Para encontrar os nomes perdidos, o mangue por uma necessidade
radical nomeia o mundo das imagens transfiguradas. Ninguém sabe se o corpo do mangue é
uma planta que a lama diariamente refaz para dar nome ao mistério. O mangue lembra um
corcunda que carrega nas costas raízes gigantes molhadas de árgila. “A água onde se amassa a
argila é equiparada à Água primordial; a argila que serve de base ao altar, simboliza a Terra”
[ELIADE, 2001:33].
O discurso de Raul Bopp é de um poeta urbano que vê a lama com certo nojo ou ironia.
O foco poético se posiciona como um estrangeiro à distância do manguezal. descrições
feitas pelo poeta que referenciam um certo ar de ironia: “Agarro-me aos altos caules magros”.
Na intimidade com a natureza, aparecem receios, insinuações de medo, desdém com “horror
deste pântano, elástico e podre”.
O poeta, ao se referir aos mangues, faz somente à distância do corpo, como se
observasse pela ótica citadina: “Lá adiante, o mangue” [BOPP, 1998:116]. O verso deforma
as surpresas encontradas pelo que causa estranhamento, ou como diz: “horror deste pântano”.
Uma das marcas de certa forma dos primeiros poetas que se aventuraram nos manguezais é de
medo, horror ou nojo, como se esses ambientes representassem apenas sujeiras, fedor.
Josué de Castro [2001b: 41-42], na voz do personagem João Paulo, observa: “O que
agora sente é um cheiro frio de lama podre, de terra morta em decomposição. Cheiro de
carniça da terra que deve excitar o olfato e o apetite dos urubus e dos cachorros famintos, mas
56
que deixa João Paulo entorpecido, quase nauseado”.
O que se percebe, em Josué, é o olhar do sociólogo carregado de denúncias. Visão de
quem busca justiça social, como desabafa o personagem João Paulo: “Um desejo desesperado
de arrebentar com todas as amarras que o ligam à lama do Vale do Capibaribe e às folhas
viscosas do mangue”. Uma voz que anseia por melhorar o cheiro da lama, a metáfora que
rodeia o ambiente dos mangues. Como diz Guimarães Rosa [1994:43]: “Eu sei: nojo é
invenção, do que-não há, para estorvar que se tenha dó”.
Em verdade, por mais que Bopp resgate o mangue pelo lirismo, o que não podemos
negar em sua escritura, confirma todo o legado de desconfiança frente a este ecossistema de
lama e caranguejos. Somente com os avanços dos estudos ecológicos é que se resgata o valor
dos manguezais de forma mais positiva e com menos preconceitos.
Se o poeta é retratista de um “tempo sem data”, lembrando Octavio Paz, Bopp
simboliza aquele que o mangue a partir do olhar atravessado pela urbe. Uma característica
que não se distancia da proposta antropofágica de misturas culturais. Por esse caminho, foi
celebre, ao antecipar com Oswald uma estética que servirá para a deglutição da proposta
musical do Tropicalismo e posteriormente do Movimento Manguebeat. Vejamos que, tanto o
let’s play that misturado ao desafinar o coro contente da Tropicália quanto a ‘brincadeira
levada a sério’ do Movimento Manguebeat, um sincretismo na miscelânea cultural do tom
antropofágico da contracultura com a mistura de batidas de rock e maracatu do “mangue bit”.
Tudo somado é caos e lama: roteiro afiançado pelas memórias rebeldes de Oswald feito de
barro” [BOPP, 1998].
Em Oswald de Andrade, arte e vida se misturam na deglutição do refrão antropofágico:
“A alegria é a prova dos nove”. Este lema servirá para Torquato Neto acrescentar elementos
culturais que extrapolam o texto literário. O recado antropofágico de retorno às raízes
desperta o trabalho de revisão cultural da vanguarda tropicalista de 1970. Na visão de Paulo
Andrade [2002: 77]: “A idéia de devoração veio mediatizar o clima de polarização ideológica
existente no país. O caráter múltiplo, aberto, somado ao irônico e parodístico, acabou por
atingir muitos adeptos das correntes de pensamento esquerdista”.
Na versificação oswaldiana, como na poética boppiana, tudo se relaciona. Tudo está
entrançado como uma teia; tudo vive em rede e convive da construção à destruição, do
simples ao complexo, do mutável ao imutável. Nada está acabado. Tudo se entrelaça ao
57
mundo em ‘des-construção’. No barro úmido originário, a lama é ponte intermediária entre a
água e o mangue. Assim como o barro se transforma em vaso nas mãos de um oleiro, um
pedaço de argila é símbolo de esperança nas mãos do profeta Jeremias. Ao transformar o
barro no sopro da criação, no livro Gênesis, transforma-se o “húmus” [terra fértil] em homem.
A argila traz o húmus da vida. Simbolicamente é devaneio sem fim. O homem se
perguntará, como indaga Bachelard [2002:116], indefinidamente de que lama, de que barro se
é feito. “Pois para criar sempre é preciso uma argila, uma matéria plástica, uma matéria
ambígua, onde vem unir-se a terra e a água”. Para esse filosofo, não é em vão que os
gramáticos e especialistas investigam se argila é masculino ou feminino. “Nossa doçura e
nossa solidez são contrárias, ela exige participações andróginas. A argila certa deveria ter
terra suficiente e água suficiente”.
O universo de argila é mundo disforme, inacabado. Nem é líquida nem é sólido, é
matéria híbrida. Indefinida entre a terra e a água, a lama é alquimia de mangue e sal. “União
da água e da terra a massa” [BACHELARD, 2002: 109]. Alicerce liquidificado, a lama
habita a condição do mangue. Poesia entre a terra e a lama, a água é elo fundamental das
misturas. Água e terra proporcionam a combinação da massa líquida. “A água é o primeiro
olhar do mundo” [BACHELARD, 2006: 193]. A mão que trabalha de forma alquímica
necessita da mistura do barro com a água para bem compreender a matéria que tece a
substância, a essência de uma vida. “Para o inconsciente, do homem que amassa, o esboço é o
embrião da obra, a argila é a mãe do bronze”. [BACHELARD, 2002: 14]
Na lama, o mundo é substância argilosa; água pastosa advém da terra movediça. Esse
ambiente viscoso faz do ecossistema mangue um grande interregno entre terra, água, minério
derretido, mistério dissolvido. É no terreiro de argila que o oleiro amassa o barro, transfigura
esculturas de lama. “O modelador diante de seu bloco de argila encontra a forma pela
deformação, por uma vegetação sonhadora do amorfo. O modelador é quem está mais perto
do sonho íntimo, do sonho vegetante” [BACHELARD, 2002:113].
É pela sensação de lazer que a terra de mangue vira homem: “apicum da beira dágua
está gostoso” [BOPP, 1998:174]. É pela argila encharcada de urbanidade que o mangue torna-
se lama. O lamaçal é mistura composta das fronteiras citadinas e da vivência distanciada das
águas insalubres do manguezal. A lama é, sob certos aspectos, o frescor substantivado que
umedece os mistérios da mãe natureza. A descrição do mangue é de quem atravessou cidades
58
para falar da arquitetura das florestas de mangues no Pará. No encontro das raízes culturais
entre a cidade e o campo, o poeta encontra um olhar travesso que desfigura palavras para
receber imagens de uma natureza ainda em seu estado selvagem:
“Mãe Febre”
Mãe febre bebeu os meus olhos selvagens.
E ante a este charco e esta selva de sobrancelhas espessas que me espiam,
Grita de novo no meu sangue uma nostalgia de bárbaro
Agarro-me aos altos caules magros,
Com horror deste pântano, elástico e podre.
Lá adiante, o mangue, de raízes iradas, mordendo a lama,
Dá-me a impressão de uma floresta de esqueletos.
Atrás de velhas árvores desconfiadas,
Andam salteadores cochichando, com intenções de crime.
Adoecem os horizontes...
Crescem dentro da tarde, sombras longas.
Como uma ameaça.
No hálito morno do charco,
Anda a Mãe-febre, semeando essências para delírios lúgubres.
Sinto, em silêncio, a pulsação da terra.
Dançam na minha sede, longos círculos elásticos,
Como se houvesse um grande incêndio no meu sangue
[BOPP, 1998:116; grifo nosso].
Em um simples verso, Bopp [1998:219] resume: “A paisagem enfeou-se com borrões de
fumaça”. Se o mundo como imagem a cada dia se desfalece, o poeta descobre da lama a
paisagem desgastada pela onda de destruição. Em 1928, a onda de urbanização na zona
costeira acelerava entre investimentos para acompanhar o progresso. De outro lado, nos
quadros rurais, era visível que as distâncias dividissem tantos brasis ao buscarem acompanhar
a corrida pela modernização. O país, calçando alpercatas provincianas, procurava inovação
pelas alternativas da industrialização. Um quadro que isolava as regiões Norte-Nordete do
eixo Sul-Sudeste.
Em meio a tudo isso, a poesia é busca de sentido em um mundo despovoado de sentidos
cujas lutas ambientalistas chegam de longe como ruídos atônitos. “O poeta escuta o que o
tempo diz, ainda que ele diga: nada” [PAZ, 1982:347].
Na percepção do escritor mexicano, o mundo em que vivemos desenvolve-se nas bases
de um progresso destruidor que acaba por despojar tudo que não comunga com a esfera das
leis do mercado; mundo esse que elimina a cada dia a relação dos mitos com a natureza. O
mundo como imagem evaporou-se sob a tutela do progresso. Como diz o escritor amazonense
Milton Hatoum [2006: 31]: “Muitas pessoas confundem viadutos e prédios com progresso.
59
Para mim progresso é qualidade de vida. Não vejo progresso quando metade da população
vive em favelas”.
O que acontece é que não temos mais a velha esperança de recuperar a unidade perdida.
uma espécie de consolo utópico em retomar o passado, segurá-lo do caule às raízes, à
procura até mesmo de uma parca existência “nos altos caules magros”.
O escritor sugere um repensar sobre o que temos feito ao homem e, como conseqüência,
à natureza: - “Vocês têm que afogar o homem na sombra/ A floresta é inimiga do homem. –Ai
ai! Nós somos escravas do rio” [BOPP, 1998:153]. Em sua travessia, o poeta pesca os poemas
no mangue e, pela linguagem, revela os tormentos dos que se encontram explorados pelo
sistema que aí está.
“Lá adiante o mangue”, à distância do corpo: “Dá-me uma impressão de uma floresta de
esqueletos”. Lugar das veredas primitivas; instâncias que ganham a condição de maltratado;
ambiente dos foragidos, daqueles que ganham a fome como sustento. No poema de Raul
Bopp, o mangue está ao alcance da vista, percebido pela miragem da prosopopéia: “ante este
charco e esta selva de sobrancelhas espessas que me espiam”. Sua cosmovisão se perde meio
às carcaças que materializam a idéia de um mundo espantoso de rupturas múltiplas que se
aglutinam em situações de anseios e riscos.
Segundo Oliveira [2002:263]: “Mesmo o recusando o presente, Bopp sentia a
distância profunda entre o Brasil dos grandes centros que se industrializavam rapidamente e o
Brasil que parecia perdido, em outro tempo.”
Em Raul Bopp, a estética apara o corpo de uma escrita ambiental: “Floresta estava com
fome/ formiga virou cipó” [BOPP, 1998:249]. O autor descreve traços da natureza com
imagens surgidas: “Nos quadros rurais fez um papel de sombra” [BOPP, 1998:313]. A
invenção da natureza mistura pedaços da realidade urbana com fragmentos ficcionais da
memória ruralista: “Nas áreas rurais, em noite de Lua cheia, / aparecem visagens neblineiros
de assombração/ A árvore do enforcado secou” [BOPP, 1998:310]. Para inventar, o poeta
“arrebenta os barrancos, desnivela e corrige” [BOPP, 1998:318].
O quadro da natureza do mangue é a fotografia de um país primitivo, antes das
esquadras do período da colonização ibérica. Os mangues carregam distâncias pelas mãos dos
que escrevem e revelam os olhos dos que, ao descrever, desconhecem, o que não invalida uma
60
mistura antropofágica com os recortes modernistas de 1928. Essa mistura irá acentuar o
enfoque de uma natureza primitiva com um tom marcadamente urbano e, ao mesmo tempo,
popular.
O que está em debate é a descaracterização do progresso, mas também os debates em
torno de um país sincreticamente diversificado, culturalmente explorado. O que busca a
corrente antropofágica de 1928 é nomear a identidade híbrida do país. Nesse sentido, a
poética boppiana se esmera em uma descrição de uma paisagem que bebe de várias fontes.
Essa miscelânea de imagens irá transpor os pilares de uma estética antropofágica em Oswald
de Andrade, Raul Bopp, Mário de Andrade.
Com Raul Bopp, a natureza ganha aptidão para sinestesia, até “árvores escutam” [Bopp,
1998:319]. A linguagem recebe silêncios e barulhos. Entre falar e escutar, o mangue
sentencia: “A floresta não gosta de ser interrogada” [BOPP, 1998:318].
Interrogar é experienciar dúvidas. No interregno do manguezal, um livro é escrito em
linhas curvas. Cada verso é um ponto de transmutação. O poema dos mangues acompanha a
ordem universal que traduz o mundo pela lama. Nos bosques de mangue, tudo muda porque o
todo se relaciona, se comunica com tudo. Entrançado a uma cadeia de relações, o manguezal é
poema de homens atolados no subsolo das aprendizagens tiradas da lama.
No ‘Poema da negra’, Mário de Andrade [1984:980; grifo nosso] faz menção ao raizal
de mangue na cabeleira das palavras: “A Lua chapeia os mangues/ donde sai um favor de
silêncio/ E de maré/ És uma sombra que apalpo/ que nem um cortejo de castas rainhas [...] //
Tua calma agrava o silêncio do mangue”.
Perto da engrenagem geográfica dos manguezais, fazem temer os cipós de mangue que
trazem à tona raízes da memória histórica. Raul Bopp o mangue como travessia anônima.
O espaço do andarilho que veio atravessar o mangue. O espírito nômade sem espaço fixo. O
‘homem viageiro’ cujo sentido é ‘re-ligar’ arquipélagos, desbravar fronteiras, conhecer outras
culturas. Lugar do sentido escrito pelo mito, simbolizado pelo imaginário popular como lugar
antropológico. Mangue em que se experimenta solitariamente a falta de comunhão nos
destinos humanos.
Lugar das margens, o mangue em Bopp preserva as temporalidades do lugar tais como
se apresentam no território da palavra. De fora para dentro, o poeta descreve o mangue
enquanto metáfora antropofágica. Um lugar perdido no próprio umbigo do país. De dentro
61
para fora, o mangue é assaltado pelas imagens que se imiscuem às raízes indígenas: “A água
do rio engasgou. Secou / Índio com alma hipotecada à floresta/fugiu por caminhos
escondidos” [BOPP, 1998: 244].
Nesse autor, citações da palavra mangue em dois livros: ‘Versos Antigos e Cobra
Norato’, nos quais, referência a bosque de mangue em pelo menos cinco poemas. O poeta
decifra um fio de questionamentos ao que fica por trás das imagens dos manguezais: “Andam
salteadores com intenções de crime”. Uma referência sugestiva aos assaltos cometidos aos
mangues à procura do tanino - substância retirada das cascas de mangue para tingimento de
peças de forma artesanal.
17
Encontramos, na atualidade, a casca de tanino sendo usada para amaciar e colorir
artesanalmente o couro do boi. Também ainda é bastante utilizada pelos pescadores para
“conservar os fios das redes de pesca e o tecido das velas das embarcações - canoas e
jangadas -, evitando que apodreçam pela ação de microorganismos” [SCHAEFFER-
NOVELLI et al, 2004:25]. Para os artesãos, o tanino serve para curtir panela de barro, recurso
este bastante utilizável pela paneleiras das encostas litorâneas da cidade de Vitória, no
Espírito Santo.
Em sintonia com o percurso da história do Brasil, no livro de Schaeffer-Novelli et al
[1995], encontra-se um fato por demais curioso e pouco conhecido das cartografias literárias,
que é de um registro em defesa da ecologia dos mangues na época do império do rei D.
José de Portugal que, pelos idos de 1760, regulamentou o corte e a derrubada de pés de
mangue vermelho para controle da extração de tanino. Naquela época, o tanino era bastante
conhecido dos europeus, que utilizavam as cascas de mangue para o tingimento de couro.
Muitos colonizadores buscavam as cascas de tanino nas cidades da África e da Índia. Atrás de
velhas árvores desconfiadas, entre assaltos e decretos. De acordo com os registros de Polette
[1995:58], por volta de 1704, não era permitida a doação de terras de mangues brasileiros sem
o consentimento da coroa, mas foi o rei D José quem resolveu baixar, em 10 de julho de 1760,
o primeiro decreto de proteção ambiental aos manguezais.
18
17
Uma comunidade indígena surge, vai ao seu apogeu e desaparece utilizando nada mais do que cerca de cem
objetos, os quais, perfeitamente adequados às suas funções, são essencialmente utilitários. Porém, embora
utilitários, todos esses objetos se constituem em manifestação estética. Uma panela de barro é panela
quando totalmente pintada. Se não é pintada, não é panela. Do mesmo modo, a dimensão estética está sempre
presente, ao lado da dimensão funcional, em todos os objetos, desde a uma simples cestinha até o arco, uma
flecha, uma máscara ou uma pequena peça de cerâmica. Não imagina a função desvinculada do belo. O índio é
um verdadeiro esteta e expressa sua arte em tudo o que concebe e cria [VILLAS BÔAS, 2005:139].
18
Capítulo 1 do regimento de 24 de julho de 1704: Não permitia a doação de terras aluviais (mangue), porque
pertenciam à coroa. Na época, era possível o uso por concessão real, apenas de uma pequena fímbria do
62
Alguma lição ambiental retira-se da poesia de Raul Bopp, ao se vasculhar as metáforas,
as raízes pantanosas encontram-se por demais enfermas: “Adoecem os horizontes”. Em ‘O
livro de ouro da Amazônia’, o pesquisador Meireles Filho [2004:16] adverte: “A última área
natural do planeta está sendo comida por nós”. E indica-nos algumas de suas sínteses: “O
desequilíbrio social ambiental está instalado”.
Frente a um mundo revisado pelas crenças e conceitos sobre novas formas de preservar
a natureza, observa-se nas palavras de Meireles a defesa de uma ação urgente para os
impasses ambientais. É certo que, de Francis Bacon aos dias atuais, a dizimação acelerada de
árvores é bem preocupante. A cada dia descobrem-se madeireiras contrabandeando, às
escusas do IBAMA,
19
madeira-de-lei. Para João Meireles Filho [2004; 16]: “A grande
deferência é que as decisões para a Amazônia afetam a humanidade toda. A biodiversidade, o
clima e as perdas de nações indígenas são questões planetárias e irreversíveis”.
No Brasil, comprando ou invadindo, uma grande parte dos grandes latifundiários
acredita ser proprietário não apenas de rios, mares, terras, céus, árvores, seres humanos mas
também da própria Biodiversidade, até mesmo dos ventos, do fogo, da memória, dos mitos,
da vida, de tudo que está ao alcance do lote de seus olhos. Como diz Meireles Filho
[2004:19], não se trata aqui de separar mocinhos e bandidos, trata-se simplesmente de mudar
padrões de domínio dos homens sobre os outros seres.
O que está por trás das autoridades pessoais, daquilo que as pessoas sonham para si, do
que querem de suas vidas; até mesmo a forma como comem, dormem, se relacionam,
trabalham, dizem sobre o mundo do futuro. É tudo uma questão de mudança de atitude
ambiental. Mudar culturalmente exige um romper com os padrões mais familiarizados.
Mudança exige responsabilidade, requer uma nova ação frente ao pacto social, uma
nova leitura da natureza. É importante também a defesa de uma ação urgente para os impactos
ambientais frente a um mundo embusteiro de crenças, conceitos e domínio da natureza. Cada
litoral, no caso, os terrenos da marinha. Alvará de 10 de julho de 1760 Del Rey D. José: Determina a
proteção das árvores de mangue do Brasil. Tal alvafazia ilegal a derrubada de mangues para a queima sem
utilização prévia de sua casca. O Alvará foi resultado de uma derrubada indiscriminada de árvores, para
queima, ocorrida nas Capitanias do Rio de Janeiro, Pernambuco, Santos, Paraíba, Rio Grande e Ceará. A
derrubada de árvores apenas para a queima causou um aumento no preço das cascas utilizadas para obtenção
de tanino. De acordo com o edital, havia um sentimento de que, em poucos anos, as cascas das árvores usadas
estariam totalmente escassas. O edital impôs uma pena de 50,000 mil réis de 3 meses, para a derrubada de
árvores que não tivessem sido previamente descascadas.
19
O Instituto Brasileiro do Meio-Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis exerce o papel de agente
fiscalizador para aplicação das leis protecionistas dos ecossistemas brasileiros.
63
uma de nossas ações envolve o planeta como um todo e afeta, conseqüentemente, a
humanidade inteira. O desequilíbrio entre o clima e a biodiversidade, entre a etnoecologia e o
mangue tem sido questões irreversíveis.
Em sua travessia pelos mangues do Pará, Raul Bopp encontra os manguezais da região
quase em estado virgem. Talvez por isso, muitas vezes, o olhar evoque uma lição coberta pelo
imaginário. A multiplicidade de vozes confunde-se à diversidade de espécie que habita o
pulmão do manguezal. Nos poemas boppianos, as árvores estão à mercê das leis humanas. A
natureza surge, às vezes, como espetáculo de uma geografia em chamas.
No Brasil, quase 1/5 dos bosques de mangues paraense foi dizimado. Para Fraxes
[2000:26] em sua dissertação de mestrado: homens anfíbios - etnografia de um campesinato
das águas: “A Amazônia tornou-se conhecida dos conquistadores muito lentamente, pois o
processo de exploração e incorporação do imenso território à sociedade colonial, e depois
nacional, demandou mais de quatro séculos e, na verdade, ainda não terminou”.
A Biodiversidade implica uma intrincada rede de sistemas culturais, subsistemas bio-
moleculares, ecossistemas entrançados a um labirinto de várzeas, igarapés, rios, mangues,
igapós e terra firme. Como uma teia, raízes ou rizomas, a Bio-diversidade representa a
convivência complexa dos organismos em ecossistemas. Para Fraxes [2000:44],“supõe tanto a
diversidade da área (diferentes ecossistemas), como a diversidade dentro de um ecossistema
(diferentes espécies), e ainda, a diversidade dentro da espécie (diferentes genes e códigos
genéticos)”.
O mangue paraense nasce nas várzeas de águas salobras, abrange uma área de 2,9 mil
km², estendendo-se desde a foz do Amazonas com um pote valioso de água doce em contato
com o Oceano Atlântico. Parte do rio Solimões, que corre para o interior do Estado do Pará,
sofre um período de secas que vai de julho a dezembro [CAMPOS, 2000:8]. Em 1963,
ocorreu uma seca que matou peixes e enterrou gente. Em 2005, a seca [nos rios paraenses]
desamamentou para mais de 70 mil famílias ribeirinhas entre o mês de setembro, outubro e
novembro. Uma das prováveis causas da seca está em relação com as queimadas, o abate de
árvores sem re-planejamento, a dizimação de mangues para alocar rebanhos ou carcinicultura,
o aumento do gás carbônico e, conseqüentemente, o aquecimento da camada de ozônio.
A várzea de água doce fica submersa durante uma parte do ano, enquanto a várzea de
água salobra [encontro de rio-mar] acontece apenas no período em que a maré fica cheia,
64
encharcando de água as paredes de lama. Nas terras de mangue, a maré acompanha o
movimento da Lua. “A pesca do caranguejo faz com grande dificuldade nesse dilúvio de lodo
que parece recobrir o mundo”, destaca Josué de Castro [2001b: 157].
O manguezal acompanha as fases do luar. E isso se de tal forma que os catadores de
ostras, pescadores de caranguejos e marisqueiras saem para o trabalho levando em conta o
calendário lunar. O relógio dos mangues é a maré. O tempo do mar vem com as fases do luar.
É a maré quem comanda o ciclo de trabalho das comunidades pesqueiras. Interessante
também observar que, ao contrário das outros bosques, as árvores de mangue se sustentam em
um solo bastante rico em nutrientes orgânicos em decomposição, enquanto na selva,
protegidas apenas pelas águas doces, os nutrientes do solo são escassos. Como chove bastante
na região do Pará, as águas carregam o resto de húmus que fortifica o solo. Ao se destruir a
crosta da flora, com queimadas ou desmatamentos, os raios solares penetram rapidamente no
solo, evaporando a umidade retida no chão, tornando-o pobre e desfavorável para o
nascimento de novos mangues.
“A destruição das áreas de manguezal pode provocar graves problemas, como erosão
das margens de estuários e rios da linha da costa, redução da produção pesqueira, prejuízos à
vida silvestre, declínio do ‘eco-turismo’ e perda da fonte de subsistência das populações
tradicionais” [SCHAEFFER-NOVELLI et al, 2004: 26-27].
O que ocorre nos manguezais amazonenses é o mesmo o que vem ocorrendo com o
desmatamento de mangues mundo afora. Repelidos pelos ambientalistas de forma pertinente,
os grandes patrocinadores da degradação desmontam o solo para receber o pasto, dizimam
árvores de mangues para receber prédios ou viveiros de carcinicultura, lareiras de carvão. A
construção de viveiros de camarão nas áreas do mangue é crime ambiental, “pois são
protegidas por lei.
20
Mesmo assim, os criadores têm destruído os mangues, para que sejam
construídos os tanques dos camarões” [CAVALCANTE, 2004:129].
Para Gustava Cavalcante [2004:159], nos estudos sobre os caminhos da carcinicultura
na América Latina, destaca-se como uma atividade predatória, que deixa um rastro de
destruição social e ambiental, levando-se em conta que traz a “destruição acelerada das
florestas de manguezais; desrespeito às comunidades ribeirinhas e às leis que protegem os
20
Os manguezais estão protegidos por um significativo aparato legal, podendo ser citados, entre outros, O
Código Florestal Federal (Lei 4.771/65); a resolução CONAMA 303/ 2002, cujos artigos segundo e terceiro
declaram os mangues como Áreas de Preservação Permanentes.
65
mangues; uso irresponsável dos recursos naturais; redução da pesca nas áreas próximas aos
mangues”. Em projetos dessa natureza, pouco se considera o que ele ocasiona às populações
ribeirinhas e os danos cometidos aos rios e mares. De um lado, retira-se o ganha pão dos
pescadores; de outro, após a pesca dos camarões, cada viveiro é submetido a produtos
químicos bastante poluidores de rios. São esses produtos que conservam o camarão a tempo
de chegar intacto nas mãos dos maiores importadores de camarão no mundo: Japão, Estados
Unidos e Canadá.
Mas o manguezal não é apenas ilha cercada de lama e caranguejos por todos os lados. O
mangue também é signo. Mangues são palavras. Floresta de imagens. Vocábulo estuário que
acompanha as redes dos pescadores. No mangue, texto úmido denuncia homens vivendo em
condições caranguejas. Mangues são estéticas de ‘homem-lama’ parindo poemas anfíbios.
São ecossistemas de palavras em contínua mutação, em correspondência com a metamorfose
do lamaçal. O manguezal é linguagem umedecida que se faz barro-mundo. O mangue é uma
estética rizomórfica que se enraíza ao lodo e ao ‘homem-lama. Mangues são cordas de raízes-
caranguejos que a “noite descobre/maré se levanta/ verde desfolha-se/ palmo de Lua esconde/
rio virando lama/ lama virando ferrugem” [LIMA, 2006:24].
Cada bosque de mangue é raízes de outros mangues. Não uma raiz única de
manguezal. propágulos carregados pela extensão do mar. No mangue, fragmentos de
rizóforas ora aparecem, ora desaparecem no vai-e-vem das marés. Alguns animais como o
caranguejo ucá, retrato de extinção, encharcam-se na luta bruta pela sobrevivência. Falar do
mangue é cantar os povos que habitam a cabeleira do rio-mar. Os povos do mangues:
marisqueiras, catadores, pescadores, curumins vivem inseridos dentro do universo da
linguagem popular. O que faz Bopp de genial é justamente misturar a linguagem popular e
erudita, [urbano e campesina] de forma a não privilegiar como correta ou inadequada
nenhuma dessas. Ao reafirmar o sincretismo cultural
21
das outras vozes que compõem o
poema, o poeta confirma a importância da pluralidade ou do hibridismo das linguagens.
Com uma sensualidade protecionista, o mito do mangue está enraizado à espiritualidade
da cultura popular. O poeta popular do mangue é romântico por natureza. O princípio que
norteia a arte antropofágica traz muito da estética Romântica ao se voltar para a linguagem
urbana-popular. Dentre as diferenças que distanciam os Românticos dos Modernistas, talvez
seja a hibridização da linguagem, ou seja, a mistura de vários linguajares: uso de palavras
21
Termo de Octavio Paz.
66
estrangeiras misturadas ao popular, o coloquial em tom de erudição.
Bopp, filho de alemães, talvez seja um dos raros escritores gaúchos que reinventou uma
obra poética longe do traço biográfico e que quase nada tem a ver com os temas dos pampas
de Tupaciretã, interior do Rio Grande do Sul. Até onde se sabe, Bopp quando chegou aos 16
anos, assumiu seu jeito nômade: viajou sozinho de cavalo para Uruguai e Argentina. Aos 18,
o curso de Direito foi sendo cortado pelas eternas viagens ao Brasil. A cada ano, Bopp partia
para cursar Direito, em uma Universidade diferente. Os dois primeiros anos, em Porto Alegre;
o terceiro, em 1921, no Recife; o quarto em Belém do Pará; o quinto, no Rio de Janeiro. O
sexto ano, formado, entra em 1927 para a Escola de Antropofagia do senhor Oswald de
Andrade, da qual esteticamente nunca saiu verdadeiramente, apesar de romper com Oswald
em 1929.
1.5 Natureza e rusticidade
XXI
Noite pontual
Lua cheia apontou, pororoca roncou
Vem que vem vindo como uma onda inchada
rolando e rebolando
com a água aos tombos
Vagalhões avançam pelas margens espantadas
Um pedaço de mar mudou de lugar
Somem-se ilhas menores
debaixo da onda bonjuda
arrasando a vegetação
Fica para trás o mangue
aparando o céu com braços levantados
Florestinhas se somem
Água comovida abraça-se com o mato
Estalam árvores quebradas de tripas de fora
Pororoca traz de volta a terra emigrante que fugiu de casa.
levada pela correnteza [BOPP, 1998:172; grifo nosso].
O mangue de Raul Bopp é espaço amparado pelo movimento, diferentemente de João
Cabral onde o mangue é traduzido como escultura ou arquitetura, um objeto social, uma fruta
assim como a cidade do Recife é, analogicamente, comparada a uma teia de aranha. Em Bopp,
até os bosques são ondas inchadas que levam as águas paras outras margens. Entranha, a
imagem abriga transformação dos mangais com braços levantados. As raízes boppianas estão
à mostra do mato que muda de lugar. Por ali a natureza em um mimetismo imagético está em
metamorfose com o tempo, vejamos os verbos em transição como: anda, avança, ronca, some,
arrasa, estala, muda, embala.
67
“O manguezal é um sistema jovem”, assim nos anuncia, em conversa, Clemente Coelho
Júnior. E para aqueles que nunca meteram o calcanhar na lama, talvez, inicialmente, sintam-se
como Raul Bopp: Vagalhões avançam pelas margens espantadas”. É uma experiência de
espanto àqueles que nunca penetraram na lama. Ao se adentrar no solo movediço de argila, a
sensação de frio inicial é suavizada pela paz corporal. Mas alertamos que não é um exercício
tão fácil percorrer os manguezais. Em alguns momentos, sentimos um frio na barriga. O medo
aparece e desaparece nesse tipo de travessia. Até mesmo porque nunca sabemos, ao certo, o
que vamos encontrar pela frente. Diríamos que é uma aventura, o próximo passo é sempre um
suspender-se. Uma adrenalina que sai; um escorregão que por algum momento nos torna
crianças enlameadas.
Sem dimensão para metrificar distâncias, o mangue boppiano vai ficando para trás,
apalpando o mundo com suas raízes esparramadas. Pela montagem de imagens, concebe os
mangues como lugar de atraso. Será realmente o mangue um lugar de atraso? Não seria esse o
imaginário advindo com os primeiros cronistas de viagens? Será que em nossos dias não
carregamos este pensar influenciado pela discriminação e preconceito frente ao ambiente dos
manguezais? É possível que sim. Como assinalamos os estudos sobre os manguezais é
ainda é muito recente.
O certo é que, nesse poema de Raul Bopp, os versos caminham para a descrição de
imagens entre avanços e recuos do fenômeno das pororocas. Um fenômeno que acontece na
região de manguezal do Pará. Um encontro entre o rio e o mar. Uma divisão de cor que não se
une completamente, mas se complementa como encruzilhada de águas. O que é do sal é do
mar, o que é do estuário é do manguezal. No encontro do mar com o rio, a dinâmica do
manguezal sofre a invasão das marés. Quando se anda de barco perto das pororocas, observa-
se a cor amarelada do rio no encontro com as águas do mar. Como uma grande faixa colorida,
o rio divide o mar em dois. A pororoca é um fenômeno mágico para os povos daquela região:
de um lado a água barrenta, que mais parece ouro; de outro, a água do mar quase da cor de
lodo.
A natureza do mangue se movimenta pelos pés de um andarilho: “Sigo depressa
machucando a areia” [BOPP, 1998:151]. O ritmo salteia, acompanha o movimento das
pororocas: “Pororoca traz de volta a terra emigrante que fugiu de casa” [1998:170]. A quebra
da onda sugere o verso sincopado, entre espaços, para sugerir os espaços do correr das marés:
“A água comovida abraça-se com o mato”. A palavra, em movimento harmônico, acompanha
68
a velocidade do fenômeno das pororocas: “Somem-se ilhas menores”. Adiante, um fragmento
da fala se posta a nomear as mutações que sofrem o meio-ambiente em função do fenômeno
das pororocas: “Um pedaço de mar mudou de lugar”.
A eleição da natureza ocorre também pelo minimalismo de palavras: “Somem-se ilhas
menores”. Há na poesia boppiana, “a busca de uma simbiose perfeita entre conteúdos e meios
expressivos: é a floresta que dita o seu vocabulário e sua sintaxe, é o mito que inventa a
própria linguagem. O poeta sente na Amazônia aquilo que ele chama de imposição telúrica do
ambiente” [OLIVEIRA, 2002:279].
Para Lévi-Strauss [s/d: 453]: “A linguagem amazônica gosta de superlativos”. No
poema ‘Idioma’, Bopp [1998:324] descreve a linguagem do povo das águas: “Na fala popular
da Amazônia/ depara-se com freqüência o diminutivo dos verbos: / Estarzinho/ Domezinho/
Fazer doizinho/ e outras maneiras de dizer afetivas/ que ainda não tiveram registro nos
compêndios”.
Sérgio Buarque de Holanda, em Raízes do Brasil, enfatiza que o diminutivo é a herança
africana no Brasil. O emprego do diminutivo na linguagem oral é uma espécie de conjunção
sincrética da linguagem dos quilombolas. Nossa reminiscência africana come os finais de
palavras, deglute os sinais da frase, engolem-se as vírgulas, os pontos finais. Crioulizamos a
língua tupi ou aleijamos o português dos jesuítas. Gesticulamos a língua com uma pausa
musical mais infinita, sonoramente desviada e cheia de acentos semitoantes. Para muitos, a
forma do nordestino expressar-se é mais lenta. Acreditamos que não é que sejamos mais
lentos, mas estamos sempre apreciando melhor a nossa expressão, o nosso jeito de falar
afrocurumim [neologismo nosso], de dizer com certa manha a palavra ‘mãinha’.
O sotaque diminutivo é arrastado, carrega misturas sintáticas, como descreve Mário de
Andrade [1984:934] no final do poema “O Poeta Come Amendoim”: “Brasil.../Mastigado na
gostosura quente do amendoim.../ Falado numa linguagem curumim”/ De palavras incertas
num remeleixo melado melancólico.../Saem lentas frescas trituradas pelos meus dentes bons../
Molham meu beiços que dão beijos alastrados”.
A expressão amorosa é melodia diminutiva, caracteriza-se o sincretismo brasileiro de se
comunicar pelo apego ao calor humano. Uma linguagem que busca alcançar primeiro a
emoção para depois se comunicar. Nosso expressar é plural, misturamo-nos ao silêncio
afro-indígena.
69
Não há, a exemplo, no português de Portugal, registro do diminutivo como se evidencia
no Brasil: “O gosto dos meus descasos/ O balanço das minhas cantigas amores e danças./ O
Brasil que eu sou porque é minha expressão muito engraçada,/ porque é meu jeito
pachorrento”, como descreve Mário Andrade [1984:934].
Sem desmerecer o idioma, ‘desconcertamos’ a semântica luza. Usamos e abusamos do
‘inho’ e do ‘zinho’ para demonstrar sentimentos. Nosso jeito pachorrento de ser é embalado
pelas canções de ninar, pelo dengo das memórias contadas à beira da rede de dormir. Em
verdade, utilizamos diversas linguagens para sensualizar nossa africanidade, para libertar e
levitar nossa fala mulata, ‘afrocuruminha’, como observa Sérgio Buarque de Holanda
[2005:148], no domínio da linguagem, uma tendência acentuada para o uso de expressões
diminutivas. A terminação ‘inho’, na visão de Sérgio Buarque, serve para cativar ou nos
tornar mais íntimos das pessoas ou dos objetos e para lhe dar relevo. “É a maneira de fazê-los
mais acessíveis aos sentidos e também de aproximá-los do coração”.
O diminutivo em Raul Bopp é forma amorosa, demonstra que em nossa terra brasilis:
‘Florestinhas se somem’. O que se observa comovente na linguagem de Bopp é a apropriação
de desvios semânticos, sintáticos, repetições para inverter a ordem esperada da imagem.
“Estalam árvores quebradas de tripa de fora” Também se percebe uma economia de
pontuação que Raul Bopp opta, mas não abusa. Quando a emoção da imagem aflora: os
pontos de interrogação, exclamação e reticências quase não são percebidos. Há poemas e mais
poemas em que não há presença de uma vírgula.
Com intenções de não se desviar o social dos ritmos sonoros e do que de mais
instintivo na linguagem popular, no poema ‘Idioma’, Bopp adverte: “A linguagem popular
nas suas múltiplas relações de cultura/ foi-se diferenciando da usada em livros de além-mar. /
Expressões idiomáticas, de construções acústicas, respondiam à índole musical do povo”
[BOPP, 1998:323].
Nas descrições da natureza, aparecem imagens de histórias populares dos povos
ribeirinhos: “Chia a caroeira nos tachos/ mandioca-puba pelos tipitis” [BOPP, 1998:175]. Em
Bopp, o erro não é uma falha do idioma popular; é o acerto de contas com a fala do povo do
mangue.
As descrições boppianas são verde-musgo, vêm revestidas pelas cascas da ironia. Ironia
esta que faz Bopp inventar uma linguagem traquina, mais solta, mais livre das normas, menos
70
hierárquica e mais popular para revelar o Brasil pelo foco da crítica. O cômico, em Bopp, não
representa feiúra ou defeito, mas rebeldia. O poema-piada de Oswald e a pitada de humor
sensualíssimo de Raul Bopp não se explicam de outra maneira se não como a colheita da
antropofagia. “A frase se alonga entre vírgulas e parênteses; se a cortamos com pontos, o
parágrafo se converte numa sucessão de disparos, um arquejo de afirmações entrecor-tadas e
os pedaços da serpente saltam em todas as direções” [PAZ, 1982:109].
Entre-fronteiras, são imagens de mangues em que se pode perfeitamente viajar nas
cartografias de outros mangues, outros mundos: “Os pantanais do caminho/ desbeiçavam na
lama” [BOPP, 1998:258]. São retratos em preto e branco da história de invisibilidade e
marginalidade dos povos do mangue: “O mato escondeu escravos com inscrições de chicote
no lombo” [BOPP, 1998:243]. A língua boppiana usa roupa de camaleão para esconder a
floresta dos invasores: - “Terra como é teu nome? / cortaram pau. Saiu sangue. / -Isto é
Brasil!” [BOPP, 1998: 242]. A linguagem abusa de disfarces para sugerir a natureza: “O sol
cozinhou homem/ e a geografia determinou os acontecimentos” [BOPP, 1998:243].
A gramática do mangue é voz antropofágica: “As vozes iam à frente procurando
caminho” [BOPP, 1998:241]. É o que experiencia o diverso e vai se amansar nos bosques de
ritmos: A selva carregada de vozes ia crescendo no sangue” [BOPP, 1998:204]. Na mistura
antropofágica, até a imagem troca de linguagens: “Uma árvore disse: / - Quero virar elefante, /
E saiu correndo no meio do mato” [BOPP, 1998:203]. “Chegaram rios de toda parte/ Ouço
queixas da floresta” [BOPP, 1998:258] Os mangues boppianos são lições de linguagens e
geografias: “Juntam regiões isoladas/ para abraçar o Brasil” [ibidem].
Não esqueçamos que o trabalho laborioso com Cobra Norato custou-lhe uma vida
inteira. A cada edição desse livro o verso ganhava cara nova. Foram tantas as mudanças que
Augusto Massi, ao organizar o apanhado poético desse autor, sentiu enorme dificuldade na
seleção do acervo produzido pelo autor. ‘Cobra Norato’, apesar de hoje esquecido, foi
traduzido e publicado em vários países não apenas do Ocidente, mas também do Oriente.
O silêncio entre palavras demarca a presença de um estilo boppiano, beirando às frestas
de um falar urbano que alargou as fronteiras dos quadros rurais, sem as raízes de um
regionalismo carregado pelo legado saudosista freyreano de ‘Sobrados e Mucambos’. Em
1926, Gilberto Freyre, no ‘Manifesto Regionalista do Recife’, enfatiza que a fala brasileira
tem suas raízes fincadas no regional. Na visão de Freyre, a cultura popular faz travessia por
várias regiões: de Boitatá, na região Norte, ao Pereré da região Sul, o idioma popular convoca
71
culturalmente novas leituras.
Bopp distancia-se do regionalismo folclorista, embrenha-se em resgatar não apenas o
sotaque regional do brasileiro, mas em entranhar antropofagicamente todos as espécies de
falares em sintonia com a diversidade de um país comovido pelos ideais culturais.
A linguagem boppiana ultrapassa a geografia local. É mais do meio do mundo,
umedecida pelos diversos cantares das árvores e expressões populares, entrançada aos falares
urbanos que propriamente regional [do sertão]. Em verdade, sérios embates entre os ideais
regionalistas de José Lins do Rêgo e Gilberto Freyre com a proposta modernista recifense de
Joaquim Inojosa e a corrente antropofágica de Oswald de Andrade.
22
“Ao contrário de outras correntes nacionalistas que vão se encaminhando para a
idealização de um Estado ora forte, ora integralista” [HELENA, 2003: 77], a corrente
antropofágica não procura o retrato de uma identidade fixa, única, imóvel do país, mas
‘retratos dos brasis’.
23
Nessa perspectiva, a antropofagia resgata em tom de parodia e pastiche
o que há de primitivo e ao mesmo tempo cosmopolita na cultura latino-americana.
Bopp propõe, em poesia, uma imagem quixotesca entre a fala da natureza do pântano e
a moderna urbanidade: O mangue vem de ‘cara feia’ e de algum lugar do passado. Um resgate
primitivo à natureza do Brasil barroco colonial. Também uma evidência à visão distorcida dos
mangues pelo crivo da tinta modernista, mas ao mesmo tempo uma fotografia que não foge ao
momento histórico da época. Na década de 1930, o que se via além do ‘mangue de cara feia’?
Como veremos mais à frente, alguns poetas desta fase não descreviam de forma muito
diferente. Para se ter uma idéia, na época, o melhor elogio que se fez aos mangues cariocas foi
poetizá-lo como metáfora de prostituição.
Se a poesia, como sintetiza Shelley [1987:224], “é um espelho que embeleza o que é
disforme”, a fala boppiana reivindica as origens primitivas na combinação de linguagens
plurais. O que de físico, rbaro ou metafísico aparece no poema de forma a ganhar a
expressão pelo desassimilar. Contra a coerência, o ‘geo-métrico’, o cartesiano, o poeta
antropófago retira a seiva do mangue para criar suas imagens neo-românticas pelos delírios
verbais. Como diz [SHELLEY, 1987:222]: “A linguagem do poeta é vitalmente metafórica,
isto é, acentua as relações de coisas antes não percebidas”.
22
Ver o livro A invenção do nordeste de Durval Muniz de Albuquerque. São Paulo: Cortez, 1996.
23
Expressão de Caio Prado.
72
Bopp é o que procura pelo lado avesso das imagens. Sua busca é pela união de objetos
contrários, pela junção diversificada da paisagem. Uma poética que percebe a vida, muito
além do que se apresenta como óbvio, frente às aparências reais. “Bopp entregar-se-á, com
grande entusiasmo e generosidade, à utopia antropofágica, que proclamava, entre outras
coisas, o advento de uma sociedade menos opressiva, de uma realidade renovada, sem
complexos, sem prostituição e sem penitenciária” [OLIVEIRA, 2002:249]. Em verdade, o
poeta quer ampliar a percepção do mangue, mas chega pelo lado misterioso da vida: o mito. O
que faz o poeta é surpreender as forças da natureza sem esquecer, é claro, o espírito de
humanidade.
Descobridor de um Brasil fabulário, o escritor gaúcho é testemunha de criações
sensuais, viagens a um mundo desconhecido: Aquela polpa de mato está me puxando os
olhos/ Então navegue pra , compadre” [BOPP, 1998:173]. Como um Dante que desce ao
inferno à procura de sua Beatriz, Raul Bopp vai à procura da filha da rainha Luzia e desce às
fontes primitivas de mangues de lama e palavras: “O escuro apaga as árvores/ fogo desanimou
na cozinha/ Mia um gatinho magro no terreiro/ M-i-s-é-r-i-a” [BOPP, 1998:254]. De outras
margens, o poeta capta imagens da fome, fotografias da alma embrionária de um país
miserável no assombro dos descasos políticos, nas possibilidades de mobilidade social-
econômica para os que habitam a faixa insalubre da “noite sub-humana/ da lama/ que fica/ ao
longo do dia / estendida como graxa/ por quilômetros de mangue [GULLAR, 2001: 31;
grifo nosso].
1.5.1 O mangue panteísta
Tudo, pois, que rasteja, partilha da terra.
[HERÁCLITO]
Cobra Norato, a cada troca de pele, amplia personagens, muda o figurino da linguagem,
vai às metamorfoses pastoris, raízes latinas: “Questão de conjugação. / Quod gaudeo...
citação de Ovídio)” [BOPP, 1998:286].
Na mitologia romana, a cosmologia abre as páginas do livro Metamorfoses com uma
descrição minimalista do Caos. Ovídio tece analogias, dissolve-se entre deuses-natureza e
recria da umidade a unidade. Nele, as pedras transformam-se em gente, os brutos nascem da
73
terra das águas: “Antes do mar, da Terra, e céu que os cobre/Não tinha mais que um rosto a
Natureza: /Este era o Caos, massa indigesta, rude, /E consistente num peso inerte. Das
coisas não bem juntas as discordes, /Priscas sementes em montão jaziam/ O sol não dava
claridade ao mundo” [OVÍDIO, 2004:15].
Na Antigüidade,
24
os poetas evocavam mares, terras e mares em preces e juramentos. A
água simbolizava a origem de tudo para os pré-socráticos. Na Grécia antiga, havia um certo
temor à natureza - phýsis - mundo ‘misterioso’ e extraordinário. Força criadora. Origem de
tudo e todos. “Pode-se, então, perguntar por que as divindades da vegetação ocupam um lugar
tão grande na alma primitiva. Qual é, pois, a primeira função humana dos bosques: a sombra”
[BACHELARD, 1999: 5]. Debaixo da sombra de árvores muitos poetas e filósofos
‘laboraram’ suas visões arbórea de mundo. “Penso nas folhagens-raízes que bebem ávidas, e
nas raízes, maravilhosas ramagens que vibram de prazer debaixo da terra” [BACHELARD,
1990: 225].
Assim como o mundo grego-romano mantinha uma relação de temor e espanto com o
cosmos, a poesia boppiana busca resgatar a natureza perdida, reescrevendo entre distâncias
temporais e espaciais, um acordo de intimidade com seres da natureza ao aproximar-se do que
possa conduzi-lo na recriação de imagens ora de uma aléia selvagem, ora de uma hiléia
primitiva coberta de árvores de todos os tipos. Imagens que trazem para dentro do
modernismo resíduos dos ensinamentos contidos pela temática do universo clássico: Deus
montou num trovão que se quebrou na floresta. / Árvores tinham medo que o céu caísse”
[BOPP, 1998:243].
A poética de Raul Bopp atravessa paisagens em tons campestres, influenciadas pelos
desfrutes de imagens da poesia pastoril. O termo pastoril vem de Pã, protetor do ambiente
campestre.
25
Em um prefácio ou roteiro de leitura à obra ‘Iararana’, de Sosígenes Costa, o
poeta e crítico José Paulo Paes [2001:409] descreve o deus do campo. Seguidor da mitologia
latina, Pã é mais conhecido como o Fauno da natureza. Daí a origem da palavra fauna. Na
24
Tomemos como exemplo de um topo poético a invocação à natureza. Na Ilíada, são invocados com preces e
juramentos, além dos deuses olímpicos, também a terra, o céu, e os rios. Na tragédia de Ésquilo (versos 88 e
ss.), Prometeu invoca o éter, os ventos, os rios, o mar, a terra e o Sol: ‘que vejam o quanto ele sofre, ó Deus!’
O Ájax de Sófocles dirige-se (412 e ss.) ao mar, as suas grutas e praia ou (859 e ss.) à luz, ao solo da pátria, a
suas fontes e rios - não, porém, como devoto, mas para despedir-se deles. Sófocles não se dirige às potências e
seres da natureza como a divindades, mas como entidades humanizadas [CURTIUS, 1996:136].
25
Pã, deus dos pastores, dos rebanhos e dos campos. Ele era representado como um ser híbrido de homem e
bode, de corpo peludo, com dois chifres. Habitava os montes de Arcádia, onde proferia oráculos. Além de
perito nas artes de adivinhar o futuro e curar as doenças, era dançarino e músico: inventou a flauta de sete
tubos ou sirinx.
74
mitologia clássica, foi amante de Eco e de Pítis que ao abandoná-lo foram castigadas e
transformadas: Eco em uma voz condenada à repetição e Pítis em uma árvore de pinheiro. Daí
a origem feminina da Ecologia. O vocábulo ‘Pã’, em grego, quer dizer Tudo. Embora não
fizesse parte do grupo dos grandes deuses, ‘Pã’ era mais uma divindade secundária que
costumava divertir os deuses do Olimpo com sua flauta e sua feiúra. Alguns filósofos e poetas
da Grécia antiga fizeram dele o deus representante da natureza. Certamente pela simbologia
que representa a palavra ‘Pã’: o grande Todo.
O panteísmo teve e tem muitos seguidores: do filósofo Espinosa com seu Deus sive
natura” aos poetas românticos e árcades. No Panteísmo, não outra realidade senão Deus.
Tudo é Deus. A natureza é divinizada pelo homem. A natureza é o humano. O homem é Deus.
Todos sem distinção são representações simbólicas de Deus: árvores, animais, ser humano,
via-láctea, estrelas, universo. “As pedras, os troncos, os buracos/ estão todos em nós”
[MACKELLENE, 2006: 49]. Até um pedaço de palavra é um ser-deus-árboreo. Em Portugal,
o panteísmo recebeu visita e melancolia, do poeta Cesário Verde que, ao descrever sem
árvores as muralhas urbanas, atingiu a descrença de possibilidade no mundo. Para Leyla
Perrone Moisés [2000:129]: “Cesário enveredou por um caminho que os modernistas do
século seguinte poderiam reconhecer como fértil: a poesia que capta a estranheza oculta da
banalidade e a música latente na coloquialidade”. Com seu ideal bucólico campesino, Cesário
atravessa a sonâmbula urbanidade com ‘O sentimento dum ocidental’ e estende referência à
heteronímia do mestre Alberto Caeiro, de Fernando Pessoa. [1980:154], que nos adverte sem
piedade: “Só a Natureza é divina, e ela não é divina”.
O panteísmo de Raul Bopp traz a marca das influências pastoris nas restingas de um
mangue remanescente de outras eras:os troncos sábios, enrugados numa toilette paleozóica”
[BOPP, 1998:115]. O autor de ‘Cobra Norato’ expressa em suas florestas de palavras uma
temática que, advém da tradição helênica, adentra o fugere urbem à moda dos poetas
românticos, rebela a forma do modernista, voltada para o futurismo, e assume, ao invés do
tom bucólico do pulvis et umbra sumus”, o ritmo da graça, do riso, do deboche à moda
antropofágica de 1928. “No fundo, um pedaço da selva reclama silêncio” [BOPP, 1998:115].
A natureza em Bopp é enfeitiçada pelo que há de mágico na mítica. O mangue toma, portanto,
a proa dos ventos bufônicos: “Nesse mundo indecifrado/ conhece os enigmas do mato/ que
vem do pré-tempo: / árvores com atributos mágicos” [BOPP, 1998:317]. Dentro da
reinvenção do mundo primitivo: “tenho a impressão que a selva é a grande oficina onde se
75
forjam as estrelas” [BOPP, 1998:114]. Na rota sonora dos contrastes pastoris: “Desaba a
noite, num longo alarido das coisas assustadas/ E rola a chuva pelos gorgotões. / Acordam-se,
alarmados, os Titãs que dormem junto das velhas raízes. / E a água cresce, arrastando-se
como uma enorme aranha pelo chão” [Bopp, 1998:114].
Na Antigüidade, a poesia pastoril exerceu bastante influência sobre os escritores tanto
que se tornou o nero mais conhecido depois da epopéia. Na Antigüidade clássica, Teócrito
26
depois Virgílio foram os dois poetas que mais solidificaram o gênero pastoril. A poesia
pastoril nasceu pela Sicília e Arcádia pelo século III a C. e está relacionada à temática da
natureza e do amor. Entre confluências pastoris e influências bucólicas, Bopp bebe em
Virgílio que bebe em Teócrito que por sua vez transfigura a poesia de Homero.
É certo que os poetas latinos como Virgílio invocavam suas partes, orientados pelo
princípio de quanto mais enumerassem a natureza melhor seria o texto. No livro Geórgicas,
referência aos pântanos lodosos das Índias. Na perspectiva de Marta Vannucci,
27
esta
referência pode ser empregada a qualquer bosque de mangue virgem, que nunca foram vistas
por Virgílio, mas dos quais supostamente ele ouviu falar através das descrições de
navegadores e comerciantes. “Virgílio sempre foi um observador atencioso das paisagens
naturais e levanta dois pontos importantes: um é o de que os mangues (se minha interpretação
estiver correta) são uma dádiva do deus Oceano, e a outra é sobre o grande desenvolvimento
das árvores” [VANNUCCI, 2003:187].
Apesar do seqüestro ao Barroco, no livro Formação da literatura brasileira’, Antonio
Candido [2000: 53] reconhece que na literatura três posições estéticas possíveis: “Ou a
palavra é considerada algo maior que a natureza, capaz de sobrepor-lhes as formas próprias;
ou é considerada menor que a natureza, incapaz de exprimi-la, abordando-a por tentativas
fragmentárias; ou finalmente é equivalente à natureza”.
26
Para Curtius [1996:248], Teócrito ornou sua poesia com a riqueza do verão meridional: ‘Muitos choupos e
olmos balouçam sobre nossas cabeças. Perto, corre múrmur, da gruta das ninfas, uma fonte sagrada. Os grilos,
castigados pelo Sol, estridulam sem descanso sobre ramos ensombrados; as rãs coaxam de longe em arbustos
espinhosos; cantam a cotovia e o pintassilgo, e a rola solta seus queixumes; em volta das fontes adejam as
louras abelhas. Tudo cheira ao belo verão’(VII 135 e ss). Num hino épico, o poeta conduz os discursos a uma
floresta selvagem, com árvores de todas as espécies.
27
A primeira referência que encontrei sobre os manguezais do subcontinente indiano na literatura Ocidental é
uma curiosa passagem das Geórgicas de Virgílio (70-19 a.C.) (II, 122-125), citada por outros comentaristas
posteriores (por exemplo, Sérvio, no século IV d.C. Diz ele que [...] o próprio Oceano gera floresta na Índia
[...] até o fim do mundo [...]; acrescenta, depois, que as árvores são tão altas que, embora [...] aquelas pessoas
não sejam vagarosas com a aljava, suas flechas não podem ri além do topo das árvores [VANNUCCI,
2003:187].
76
O primeiro exemplo diz respeito ao projeto literário do Barroco, o segundo faz
referência aos ideais do Romantismo; o terceiro envolve o Arcadismo. “Neste, há, portanto,
um esforço de equilíbrio, fundado no pressuposto de que as formas elaboradas pela
inteligência se regem por lei essencialmente análogas às do mundo natural” [ibidem].
Seria ilusório pensarmos que o quadro do mundo natural se resume de forma tão
simplificada. A teia rizomórfica é mais complexa. O domínio da natureza trouxe
conseqüências desastrosas advinda com o impacto do racionalismo que via a natureza como
mero objeto e recurso inesgotável. “O racionalismo e as idéias inatas misturavam-se ao
empirismo e ao sensualismo, com uma vitalidade perturbadora cuja marca sincrética vamos
encontrar na Literatura” [ibidem].
A razão contemporânea, na física de Newton, é a mesma que aparece na construção do
mundo natural apresentada por Buffon e Lineu. No século XVIII, Lineu reconheceu
cientificamente a importância dos mangues na extração de Tanino.
A física newtoniana obedece a uma lei geral: é a razão que rege todo universo. Uma
nova razão passa a legislar sobre o mundo natural por vínculo poderoso, unificador e
destruidor. “Aquilo que se chamava de preferência universo ou mundo passa a chamar-se
natureza” [CANDIDO, 2000:54].
A saga da natureza ressurge frente a um cientificismo escorado de algum modo à
Botânica e Zoologia. Amparando-se, pois, sobre o caminho da lógica, as principais correntes
do século XVIII imbricam-se de algum modo aos fenômenos naturais. “O conceito de
natureza vai englobando o instinto, o sentimento, cujas manifestações, subordinadas a
princípio, avultam a ponto de promoverem, em literatura, explosões emocionais que
desmancham de todo a clara linha da razão” [ibidem].
Pela transmutação, a linguagem boppiana bebe nos ideais de uma natureza centrada
ainda no humano como centro do universo, contudo, avança para um discurso que não reduz a
natureza ao domínio puramente humano, mas o poeta consegue isso porque reveste a voz
da natureza com uma roupagem mítica. O poema ‘Cobra Norato’ é a travessia do homem-
natura em um itinerário que vai para dentro dos mais recônditos lugares, imprimindo uma
visão de alteridade em relação aos outros mundos da natureza. “São os momentos de triunfo
do homem natural (no sentido amplo), que constitui um dos seus alvos permanentes, e cujo
conceito deve ser tomado tanto no sentido próprio, de primitivismo, quanto no figurado”
77
[CANDIDO, 2000:56].
Na fenda literária, indagamos que tipo de homem-natura é esse de Raul Bopp? Não traz
o gesto nobre do homem ‘Cândido’, de Voltaire. Nem a caricatura bucólica dos quadros
campesinos europeus dizimados pelas idéias de Francis Bacon. Muito menos o rústico Emílio,
‘artista educado pela natureza’, polido e requintado pela escola de Rousseau. O homem-natura
de Bopp é o canibal do mangue, o ser sem fronteiras, que aparece em vários lugares em
circunstâncias adversas. Um poeta que aponta para questões ambientais como reconstrução de
valores humanos e modos de processo cultural. “É um ator junto à natureza, uma verdadeira
força natural espalhada em todas as partes [...] em todos os seres”. Pegando aqui a fala de
Pelizzoli [1999:34] sobre a obra de Michel Serres.
28
O que Raul Bopp faz é mostrar as des-costuras do progresso e aquilo que possa
justificar seus fins, a partir de uma sugestão de que a natureza é vida. O fabulador de ‘Cobra
Norato’ reverencia a natureza não apenas como paisagem, mas como imagem mitificada que
se interpõe em defesa da ecologia no mundo-homem. Em ‘Cobra Norato’, observa-se que não
uma separação do homem com o mundo natural, mas uma teia harmônica na relação entre
o homem e a natureza.
Para dramatizar as questões, o poeta não esconde dos horizontes curvados as raízes do
desequilíbrio: “Raízes furavam a lama” [BOPP, 1998:171]. O autor faz avançar um diálogo
aproximando o tempo da linguagem e o homem dos seres da natureza: “Brigam raízes
famintas” [BOPP, 1998:177]. O animismo explorado é uma estratégia ecológica que celebra
as raízes como formas de símbolos humanos em nome da luta pela sobrevivência dos
mangues.
A raiz dos mangues como representação de conflito é elo de tensão entre a terra e o mar.
A exploração indevida resulta em escassez. A destruição das raízes para retirada de ostras é
uma delas. O que vem em questão em um simples verso é o retrato da natureza do homem.
Cada poema ocupa o espaço da palavra para dar voz a luta ambiental: “Cresce a área das
derrubadas/ áspera, / eriçada de tocos de árvores” [BOPP, 1998:254].
28
De saída vê-se que a tese de Serres é de fundo biocêntrico, e que quer ver na natureza um sujeito com direitos
intrínsecos. ‘A natureza condiciona a natureza humana e vice-versa’. A natureza se conduz como sujeito
(p.66). Aponta também, indiretamente, para as éticas, que não contemplaram até hoje a natureza como sujeito,
até porque estão conjugadas ao humanismo antropocêntrico; posições que têm como mote último a dominação
racional completa da natureza, culminando na dicotomia e objetificação da visão. O contrato natureza é o novo
pacto a ser estabelecido com o inimigo objetivo do homem: a natureza [PELIZZOLI, 1999:34].
78
A voz da humanidade conhece o propriamente a dor, mas o terror, contudo ainda
acredita na sua capacidade de ser bem-sucedida. Em toda parte, como alerta no livro ‘Tudo
que é sólido desmancha no ar - a aventura da modernidade’, Marshall Berman [1987:22-23]:
“graves perigos estão em toda parte e podem eclodir a qualquer momento, porém nem o
ferimento mais profundo pode deter o fluxo e refluxo de sua energia”. Vivemos tempos de
irônica e contraditória mudança. A vida se denuncia como moderna em nomes de valores
bizarros que a própria sociedade inventou. Na esperança de que as pessoas do amanhã ou do
dia depois de amanhã possam sanar as feridas e encontrar a cura para problemas que afligem a
humanidade, vivemos existencialmente períodos de extremos altos e baixos. Entre o nada e o
vazio, não há escolhas: ficamos com os dois.
Se o vazio e o nada recobrem a camada mais fina da existência, como previra
Baudelaire, Rimbaud e Mallarmé em pleno século XIX, a dor e o terror se efetivam na
sociedade moderna. “A terra agora perde o fundo” [BOPP, 1998: 150]. À procura de recobrir
o vazio, Raul Bopp [1998:140] no livro ‘Como se vai de São Paulo a Curitiba’, indica: “O
mundo contemporâneo pulsa em ritmos acelerados. / Novos fatores revelam conveniência de
outros métodos”.
Na paisagem sumida pela fumaça de descrença, Paz [1982: 95] comenta que o homem
moderno é o personagem de um livro de Eliot. Tudo lhe aparece grotesco e estranho e ele
mesmo pouco se reconhece. “É a exceção que desmente todas as analogias e
correspondências. O homem não é árvore, nem planta, nem ave. Está só em meio à criação. E
quando toca um corpo humano, não roça um céu, como queria Novalis, mas penetra numa
galeria de ecos”. Frente a uma paisagem do mangue dizimada pela desumanidade dos
homens, Bopp abusa de uma sintaxe sincopada, procura semelhanças entre objetos opostos.
Para isso, anda de reticência, ponto de interrogação, onomatopéias. O poeta une a diversidade;
adiciona isto àquilo, soma uns e outros, multiplica o muito em muitos. Tudo somado a uma
discrepância de imagens surreais, o poema descreve pequeno objetos mimetizados:
“Galhinhos fazem psiu!” [BOPP, 1998:151]. Talvez para sugerir, pelo lado singelo, o que
resta de infante nas coisas. Caules gordos brincam de afundar na lama” [BOPP, 1998:151]. Às
vezes, para lembrar a humanização da natureza: A selva está com insônia” [BOPP,
1998:150].
79
1.6 Confissão das árvores [autorizada pela oceanografia]
Esta costa baixa pegou verão
O rio se encolheu. A água se retirou
O vento rói as margens de beiços rachados
O mangue de cara feia
vem de longe caminhando com a gente
[Bopp, 1998:171. grifo nosso].
Por força das circunstâncias encontramos, neste fragmento, algumas explicações sobre a
oceanografia dos manguezais. Nossa intenção é levantar diálogos com outras ciências, mesmo
que aos olhos da teoria literária possa parecer uma ‘desnecessidade’. Para nós, o mangue é
poema heterogêneo, quando em Josué de Castro [2001b: 28]: “O sol borda as manchas
barrentas do mangue com uma franja prateada, tecida de pequenas placas luminosas”.
A inquietação de Raul Bopp nos leva a querer entender um pouco mais aos olhos de
outras ciências o que é realmente o mangue biologicamente. Como funciona esse estranho
habitat, esse terreno lamoso de difícil acesso para os homens? Como aprender a mergulhar no
mar de lama sem pensar em seus caminhos, suas encruzilhadas.
Esse tipo de ecossistema se deixa conhecer através de uma rede bio-diversa de
referências, diálogos, interdisciplinaridade, vivências étnicas, holísticas, ecológicas, poéticas.
“Mistura incerta de terra e água, povoada de estranhos seres anfíbios os homens e os
caranguejos que habitam os mangues do rio Capibaribe” [CASTRO, 2001b: 26].
A rede de mangais é ambiente híbrido em relação às culturas ao redor. Se “nem todas as
culturas abraçam a natureza com igual ardor, e as que as abraçam conhecem fases de maior ou
menor intensidade” [SCHAMA, 1996:25], o que acontece aos manguezais da Índia interfere
no ‘habitat’ das comunidades ribeirinhas da África, do Equador, enfim, do globo terrestre.
Atentamos para a biologia como travessia ecossistêmica que estabelece conexão
rizomórfica com os ambientes humanos. “Ser rizomorfo é produzir hastes e filamentos que
parecem raízes, ou melhor, ainda, que se conectem com elas penetrando no tronco, podendo
fazê-las servir a novos e estranhos usos” [DELEUZE; GUATTARI, 2004:25].
Poesia e oceanografia suscitam diálogos com a Bio-diversidade.
29
As raízes de ecologia
29
Entendemos Biodiversidade enquanto preservação ambiental. Nomeamos o termo Bio-diversidade [com
hífen] enquanto ecologia, mas também como etnoecologia, lugar de encontro de etnias, diversidade de
culturas, preservação de espécies, ecologia social.
80
se misturam ao radical da palavra preservação, cuidado, conservação. O que os ecólogos
buscam é defender a natureza do mangue enquanto etnoecologia, ou seja, lugar onde povos,
cultura e natureza se relacionam entre si. A natureza do mangue como etnoecologia não é
apenas dinâmica natural do ambientesico, mas principalmente teia humana, vivência sócio-
ambiental, expressão mitológica, ação cultural, Bio-diversidade, religação de povos.
A poesia, como uma teia da vida, abrange novos paradigmas; ‘re-liga’ o homem ao
mundo e a todos. Poeticamente, o vivemos e a ecologia lá. Estamos entrançados à web
da vida. O que possa vir a acontecer aos homens afetará a biologia e, conseqüentemente, às
outras ciências e à poesia. A natureza é composta tanto de “rochas como lembranças”
[SCHAMA, 1996:25].
A ecologia está em todos os lugares exceto em si mesma. O mangue não está fora da
história dos homens. Não é apenas vegetação, mais um universo ambiental complexo de seres
e vidas humanas. Nesse sentido, mangue é Bio-diversidade, quando extravasa as fronteiras da
biologia e compõe relação com outros tipos de linguagens científicas e não acadêmicas.
Abrange algo mais amplo como a etnoecologia. Engloba a natureza enquanto vegetação, mas
também como literatura, cultura, diversidade. A Bio-diversidade é fomento de biologia,
cultura e antropologia, mas é principalmente poesia enquanto ação de palavras. No despertar
de novas raízes, a poesia sensibiliza os homens a resgatar a cultura-vida do mundo-vivo.
A vida, percebida como uma teia de relação em travessia, uma passagem de
descobertas, mas também de diferenças e divergências que se desenrolam em meio “a um
mundo instável como o mar, domínio da vaidade e do impalpável, em cujo interior os seres
queridos e as coisas são arrastados num espaço móvel sem invólucro petrificado” [CORBIN,
1989:18].
Protegidos pelos mangues, saimos de um Maranhão onde havia uma das maiores
variedades de marés do país. No Maranhão, devido à latitude e à conformação do litoral
próximo a linha do Equador, “a variação da maré pode chegar a até 7,5 metros” [ALVES,
2004:131] Lugar onde se vivia do sal e do sol. Ao contrário de alguns lugares nordestinos,
precisávamos do manguezal para tirar o sustento de nossa gente. Quando vinha o inverno, os
safritas ficavam desembarcados; a chuva era nossa tristeza. O mangue nossa alegria. O mar
nosso deus sagrado. Até que um dia o mar levou tudo e a ilha desapareceu do mapa. O mar
sempre esteve perto de nossa gente. No dezembro, carregamos as palavras e devolvemos para
o mar. Por isso que o mar é grande, quase Mar-anhão, porque está cheio de palavras, palavras
81
feitas de sal.
Foi o mangue nossa primeira escola de poesia. A poética do manguezal é aprendizagem
quântica; símbolo de luz e areia/ alquimia do barro/ alicerces úmidos”[LIMA, 2003:21]. O
manguezal é poema de mutação surge das águas para receber as incompletudes da vida
animal, vegetal, mineral e mítica. Envolto numa poética remansosa de lama, “os mangues
vieram com os rios, e com os materiais por estes trazidos, foram os mangues laboriosamente
construindo seu próprio solo, batendo-se em luta constante contra o mar”, explana Josué de
Castro [2001b:12] nas páginas iniciais do livro Homens e caranguejos.
Nas canelas tortas dos mangues, raízes de palavras se rendem ao itinerário de rios e
mares. De lá, vieram, segundo Josué de Castro [2001b: 12-13], os mangues: “tropas de
ocupação e, ao contato com o mar, edificaram silenciosa e progressivamente esta imensa
baixada aluvional, hoje cortada por inúmeros braços de água dos rios e densamente povoada
de homens caranguejos, seus habitantes e seus adoradores”.
Viver próximo das águas e labutar no manguezal, segundo a pesquisadora Gustava
Cavalcante [2004:24] “são circunstâncias que caracterizam maneiras de pensar e de agir sob a
presença de uma natureza marcadamente importante para a construção das relações sociais
produzidas pelos povos do mar”.
Durante a maré alta, as árvores de mangue recebem o mar. Durante a maré nova, a alma
da lama aparece da cor cinza misturada com a ferrugem trazida na enxurrada das águas: “Com
os depósitos aluvionais que se foram acumulando na trama do labirinto de raízes dos mangues
e debaixo das suas copadas sombras verdes foi progressivamente subindo o nível do solo, e
alargando sua área sob a proteção desse denso engradado vegetal” [CASTRO, 2001b: 12].
Do mangue, água se encurrala nos braços do rio, raízes se entrançam nos despojos do
dia, peixes noctívagos se escondem da luz que ascende para os alicerces úmidos. Na
vegetação densa dos mangues, surgem troncos retorcidos, folhas emaranhadas, moitas
rugosas, rede de raízes perfurantes que mais parece um polvo imenso a cobrir-se de lama e
lodo. “Caranguejo nasce nela, vive dela, cresce comendo lama, engordando com as porcarias
dela, fabricando com a lama a carninha branca de suas patas e a geléia esverdeada de suas
vísceras pegajosas” [CASTRO, 2001b:26].
No meio das águas insalubres, o manguezal é lama e lodo que se imiscuem à
82
transfiguração de imagens entre arquipélagos de homens e conchas. “Bando de ostras/ em
cima das várzeas / Pedra carcomida com postura de concha/ Natureza gosma/ debaixo das
árvores” [LIMA, 2003:13]. Entre embocaduras de água e signos, amanhecer ‘des-palavra’ na
terra do homemangue. “O sol borda as manchas barrentas do mangue com uma franja
prateada, tecida de pequenas placas luminosa” [CASTRO, 2001b: 28]. No dedo de prosa, o
mangue que não é de ninguém é da maré ou do barro lenhoso que faz a telha e cobre casebres
escorados sobre estacas. Outros registravam pequenas ilhas paridas pela maré, mas ainda
nuas, sem a vestimenta dos mangues” [CASTRO, 2001b: 108]. A lama se confunde às
imagens lesmas, aos olhos dos homens-mangues que aprendiam a engatinhar e a andar com os
caranguejeiros da lama. “Afogados no lodo, ‘esses seres anfíbios habitantes da terra e da
água, meio homens e meio bichos nunca mais se podiam libertar desta crosta de lama”
[CASTRO, 2001b:10]. Quando a noite rompe, igarapés de raízes alinhavam o estuário das
metáforas tecendo colchas de sargaços e caranguejos ao redor das terras do mangue:
“Registravam pequenas coroas de lodo, espécie de feto de ilhas com seu corpo mole e liso,
ainda enlambuzando da gosma nutriente do rio” [CASTRO, 2001b:108].
O autor de Homens e caranguejos prediz na forma romanesca os caminhos que os
cientistas seguiram para acompanhar as origens dos manguezais. “Estas estranhas plantas que,
em era geológicas passadas, se tinham apoderado de toda essa área de terras” [CASTRO,
2001b:11]. Em um mundo orientado desde o princípio pelas marés, “as plantas de mangues
tiveram sua origem sobre a superfície da Terra aproximadamente 60 milhões de anos”
[SCHAEFFER-NOVELLI et al, 2004: 6]. Os primeiros registros das árvores de mangues
acontecem, segundo, Schaeffer-Novelli [idem], no Sudeste da Ásia pelos idos de 325 a.C.,
num período próximo ao “Terciário Superior”.
Algumas imagens da literatura influenciam para os avanços da ciência. O livro
'Admirável mundo novo' [1932], de Aldous Huxley, serve como exemplo de uma antevisão
científica totalitária e completamente desumanizada. O momento Naturalista mistura ficção à
teia científica. A ciência muito interfere no terreno da poesia. O poeta William Blake, no
Romantismo, reivindica novos rumos para a ciência. A revisão romântica da natureza como
um todo harmonioso leva Goethe a escrever Werther.
A visão goetheana sobre a natureza acarretou mudanças no terreno da ciência. Para
Capra [2001:36], a poética de Goethe foi tão fundamental que “levou alguns cientistas
daquele período a estender sua busca de totalidade a todo o planeta, e a ver a Terra como um
83
todo integrado ser vivo”. Não é à toa que o poeta Wordsworth [1987:180] descreverá: “As
descobertas mais remotas do químico, do botânico ou do mineralogista serão um objeto tão
apropriado à arte do poeta como quaisquer outros que possam empregar”.
Em verdade, as obras poéticas dialogam muito com as ciências da natureza. Júlio Verne
que o diga em sua ‘Viagem ao centro da terra’. Alguns cientistas consultam a ficção para
retirar verdades sobre a filosofia dos astros e estrelas. “Muitos dos principais fundadores da
física moderna não deveriam ser considerados filósofos, mas artistas” [SCHLEGEL,
1987:68]. Nessa perspectiva, a poesia traz uma contribuição essencial ao conhecimento da
existência.A forma acabada das ciências dever ser poética” [SCHLEGEL, 1987:77]. Mais à
frente. H. D. Thoreau indaga onde está a literatura que voz à natureza? Ora, Kafka,
Thoreau, Conan Doyle, Francis Ponge, trafegam em poesia sobre assuntos que
complementariam qualquer estudo bio-molecular.
O mangue vem de mais longe longe. No mapa da Oceanografia, os mangues atravessam
os trópicos de Câncer e Capricórnio, à beira do oceano Atlântico e Pacífico. “Na Europa não
existem manguezais porque esse ecossistema é tipicamente tropical. as temperaturas no
inverno são baixas demais para que as plantas de mangue se desenvolvam” [SCHAEFFER-
NOVELLI et al, 2004: 6-7]. Toda a vegetação típica do mangue necessita receber a luz do sol.
As plantas de mangues, biologicamente, são de natureza halófitas, ou seja, podem conviver
com água salgadas. Reagem de forma distinta às variações do meio ambiente como variação
de chuvas, correntes marinhas, tormentas de furacões. A onde sabemos, os fatores
geofísicos, geográficos, culturais, geológicos, antropológicos, sociais, econômicos,
ecológicos, climáticos, hidrográficos, históricos, também influem no crescimento da fauna e
da flora no manguezal. Qualquer ação por menor que seja interfere na biodiversidade como
diz um poema de Vergara sobre a onda de destruição no mangue:
“Agonia no Manguezal”
Natureza, Natureza...
As mentes insensatas
na falsa desilusão,
ainda não entenderam o sentido da criação,
pouco a pouco destroem uma beleza singular
que a natureza levou tanto tempo pra organizar,
em pouco conseguem desmantelar,
deixando o mar a bravejar,
e os rios em lágrimas a sangrar
ficando órfão o manguezal,
os frutos da santa maré
um dia vão acabar
84
não sobrarão bocas para contar
se tudo continuar...
[VERGARA & CARLINHOS DE TOTE/ Grupo Cantarolama].
30
Nos bosques de mangues, “todo ser vivo, animal ou vegetal, do menor ao maior, luta
por sua sobrevivência. Aquele que possui melhores condições e dispõe de adaptações mais
adequadas tem maiores chances de ganhar essa luta pela vida e deixar descendentes”
[SCHAEFFER-NOVELLI ET AL, 2004:12].
Nos mangues, as exceções são mais infinitas que as regras. A arqueologia da selva,
exibe-se uma mostra da Biodiversidade nas árvores caranguejas, que Josué de Castro
[2001b:12] mapea como uma estranha vegetação capaz de viver dentro de águas salgadas,
numa terra frouxa, constantemente alagada”.
O mangue, em Josué, arrasta o milagre de criar homens-caranguejos como se fosse uma
obra de um pequeno deus ou “de anjos mendigos que vêem, assombrados, proliferarem em
torno das ilhas maiores outras pequeninas, como saídas durante a noite de seu próprio ventre,
em misteriosos partos da terra que o mangue misteriosamente ajuda” [CASTRO, 2001b: 13].
Em terras encharcadas de empecilhos e paus apodrecidos, sábios de mangue fazem
estimativas, bordam a lama de dados planetários. Para os que têm olhos para preservar, o
mangue talvez fosse mais preservado se houvesse mais conscientização. Para termos uma
idéia, no início do século XX, as grandes metrópoles brasileiras mais antigas que se
alicerçaram sobre manguezais, como a exemplo: Salvador, Recife e Rio de Janeiro dizimaram
em torno de 30% de seus manguezais. Somente para a construção do porto de Suape em
Pernambuco foram destruídos em torno de 58Km de bosques de mangues. Em nossos dias, a
cidade do Recife abriga talvez 50% de seus bosques de mangues. Descendo para a região
Sudeste, segundo André Alves [2004:83]: “De 1970 a 1995, foi cortada e aterrada, em Vitória
[ES], uma área de aproximadamente 760 hectares de manguezais, quase metade da área que
existem atualmente de 1.800 hectares”.
Atualmente, os mangues do Estado do Pará e do Maranhão são locais onde a
preservação ainda se mantém sob parcos recursos. Não se sabe até quando. É certo que o uso
do recurso dos manguezais se de forma bastante artesanal e limitada. As palafitas dentro
dos mangues registram o quadro de miséria absoluta a que estão submetidos os povos
30
VERGARA & TOTE, Carlinhos de / Grupo Cantarolama. In: SCHAEFFER-NOVELLI, Yara; COELHO
JÚNIOR, Clemente; TOGNELLA- DE- ROSA, Mônica. Manguezais. São Paulo: Ática, 2004, pág. 27.
85
indígenas. O descaso social alastra uma cena visível para os que se atrevem em atravessar os
arredores dos mangues. A destruição do mangue é um acontecimento mundial que avança nos
litorais brasileiros causando alardes e ruídos. Até o momento o mapas precisos sobre o
quadro de destruição deste ecossistema. Vale alertar que muito dos número otimistas sobre a
flora dos mangues são dados comprados pelos carcinicultores que se oportunizam juntamente
com cientistas não comprometidos com a ecologia.
Embora seja o manguezal um ecossistema típico dos climas tropicais, também podemos
encontrá-lo em climas temperados, “atualmente não são encontrados manguezais na região do
Mediterrâneo, devido a mudanças climáticas que ocorreram nos últimos milhões de anos”
[YOKOYA, 1995:11]. Não existem mangues na Europa muito menos em lugares onde as
temperaturas invernais ficam baixas demais. O manguezal exige preferências quanto às
características climáticas. As temperaturas médias devem estar acima de 20 graus. São os
ecossistemas tropicais que alimentam pouco mais de dois mil anos a prática da pesca e
mariscagem.
Esculpindo o cálcio de conchas e ostras, para recuperarmos uma área de mangues
desmatados “são necessários de 20 a 40 anos, conforme as condições do ambiente”
[SCHAEFFER-NOVELLI et al, 2004:36]. Algumas árvores de mangues podem chegar a
viver de 80 a 100 anos. Mas, em nossos dias, controvérsias sobre isso. Em conversa com
Clemente Coelho Júnior, estudioso do manguezal, vimos que as árvores de mangue,
atualmente, chegam a atingir uma idade que varia de 40 anos a 80 anos. Isso acontece devido
aos avanços e recuos das mudanças marítimas, fenômenos de salinidade, zonação, marés,
sedimentos, avanço do mar; além de furacões, efeito estufa, vazamento de petróleo, bem
como destruição para construção de viveiros de carcinicultura.
31
Na sociedade da lama, percebemos o desaparecimento dos bosques de mangues, como
acontece em Galinhos - litoral do Rio Grande do Norte - em virtude da devastação que fez e
[faz] a carcinicultura dentro dos ambientes marinhos. O desaparecimento da vegetação ou sua
escassez representam o fim de diversos locais de abrigo e de fonte de alimento para os
animais que dela dependem.
Para aqueles que m os sentidos aventurados para auscultar a natureza, vê-se que o
ecossistema manguezal, aparentemente silencioso, está em compasso de ebulição e de
31
No Equador, por exemplo, a área de carcinocultura atingiu mais de 100 mil ha na década de 1980, sendo
responsável pela destruição de quase 20% das áreas de manguezal daquele país [LACERDA, 2002:203-204].
86
transformação o tempo todo. nesse tipo de ambiente uma orquestra sonora que se afina ao
vento marítimo. Não é engano acreditar que, por ali, o tempo parece mudo e estático. Mas se,
para alguns, lama é sinônimo de fedor e sujeira, para outros representam garantia de trabalho,
moradia, sobrevivência e lazer. Em Josué de Castro [2001b: 177] encontramos um relato do
mangue como atividade de lazer: “João Paulo perdera até o interesse em brincar, o tinha
vontade de empinar papagaio na beira do mangue. De jogar bola com outros meninos de sua
idade. De morcegar o bonde do Pina até a cidade”.
No Brasil, podemos dividir didaticamente, segundo Schaeffer-Novelli et al [2004:19], o
“ecossistema manguezal em zonação horizontal, formada por quatro zonas distintas – externa,
interna, apicum e de transição -, e zonação vertical. A largura das zonas varia de região para
região, devido ao desenvolvimento e à distribuição das espécies”.
O maior desenvolvimento das árvores de mangue no mundo afora tende a ocorrer
próximo à linha do Equador, onde as mais belas florestas de mangues crescem até 35 ou 40
metros, com raras exceções de árvores de até mais de 60 metros. Na visão de pesquisadores, o
desenvolvimento e o tamanho de cada bosque de mangue irá depender das condições da
composição do solo, distribuição de chuvas, amplitude de marés e salinidade em diferentes
níveis do estuário. “Assim, as águas dos manguezais em Cuba e na maioria das Ilhas do
Caribe, [...] em ilhas oceânicas onde pouco escoamento terrestre e pequeno quantidade de
material em suspensão, são diretamente influenciados pela água do mar” [VANNUCCI,
2002:58].
Assim como no Recife, “com os depósitos aluvionais que se foram acumulando na
trama do labirinto de raízes dos mangues e debaixo das suas copadas sombras verdes, foi
progressivamente subindo o nível do solo e alargando-se sua área sob a proteção desse denso
engradado vegetal” [CASTRO, 2001b:12]. Para Josué de Castro: “Não há, pois, a menor
dúvida, que toda esta terra que hoje flutua à flor das águas, na baía entulhada do Recife, foi
uma criação dos mangues”.
Brasil afora, árvores de mangues alcançam alturas mais elevadas na região amazônica,
Cabo Orange, do litoral do Amapá. No Nordeste, as mais altas árvores de mangues estão no
Maranhão. O Estado do Maranhão detém quase metade da área total de manguezais no Brasil.
Se observarmos por hectare, a maior concentração das árvores de mangues do Brasil está
localizada na região do litoral Norte e Nordeste. Desta porção, o estado do Maranhão ocupa
4.952,96, caracterizando o valor relativo de 49% sobre o total do país” [AZEVEDO, 1998:9].
87
Aos olhos da poética ecológica, as raízes servem para ancorar o corpo das plantas no
lodaçal mole e móvel. Do manguezal, saem ramificações que, “crescem eretas [geotropismo
negativo], expondo-se ao ar como autênticos paliteiros, são os chamados pneumatóforos”
[SUGIYAMA, 1995:18]. Os pneumatóforos lembram esponjas e têm uma missão importante
no processo das trocas gasosas entre a vegetação e o meio.
Na superfície da lama, árvores invertidas, raízes com “aspecto de candelabro”,
[lembrando as imagens de Oviedo], espetam o ntano, diferenciando a pintura
32
do
manguezal de outros ecossistemas. Os mangues são diversos tipos de árvores com
características próprias do ‘habitat’ estuarino. Em sincronia com a fauna e a flora, o
manguezal é mais amplo. Representa todo o ecossistema que envolve: mangue, aroma,
insetos, umidade, aves, lodo, larvas, peixes, crustáceos, moluscos, mariscos, répteis,
mamíferos etc. Diferentemente dos mangues, o manguezal é todo um ecossistema tropical a
exercer a função de mãe provedora do ambiente marinho.
Desde os avanços dos esgotos domésticos e industriais, que se comenta sobre o forte
odor que paira sobre o manguezal. O mau cheiro desse ambiente advém da sobrecarga de lixo
e de substâncias químicas dentro dos rios e ao redor da lama. Também observamos, nos locais
onde os manguezais não são preservados, um cheiro intenso de sedimentos codificados.
Mistura de iodo e sulfeto de hidrogênio [H
2
S], de onde advém um cheiro forte de enxofre [S]
que muito nos sugere ovo apodrecido.
Nos manguezais onde ainda se observa algum tipo de preservação, como os do litoral do
Pará e do Maranhão, vimos um mau cheiro de húmus envelhecido, fermentado a outros
nutrientes soltos. Uma mistura que nos remete ao iodo fermentado com enxofre; um
verdadeiro laboratório de cheiros. Nesses ambientes, o ar vem perfumado; odor de algas
marinhas. Nessa miscelânea de cheiros e odores, o manguezal é perfume que recebe o mar, o
rio, a lama, as árvores, o caranguejo, o lodo, os homens. Tudo somado é cheiro, instinto da
natureza.
Sabemos que não é a tarefa da teoria literária descrever a extensão das árvores de
mangues, mas é importante que se fomente um olhar interdisciplinar para que se venha a
compreender um pouco mais sobre a natureza primitiva dessas árvores que nascem no chão de
águas salobras e acolhem os apanhados culturais, econômicos, ecológicos, antropológicos em
32
O artista plástico Frans Post, em 1645, ao retratar o Cabo de Santo Agostinho com vista para a praia de Suape,
pinta o primeiro quadro dos mangues brasileiros. Exposto em nossos dias no Instituto Brennand, localizado no
bairro Várzea em Recife [PE].
88
uma relação bio-diversa com a poética. Vejamos que o relato ficcional de Josué de Castro
[2001b:12] se relaciona com as demais ciências: “Agarranchando-se com unhas e dentes a
este solo para sobreviver, através de um sistema de raízes que são como garras fincadas
profundamente no lodo e amparando-se, umas nas outras”. Na visão de Josué [idem], para
resistirem ao embrulho das correntezas das marés e ao sopro forte dos ventos alísios que
assanham a cabeceira verde, os mangues foram pouco a pouco “entrelaçando suas raízes e
seus braços numa amorosa promiscuidade, e foram assim consolidando a sua vida e a vida do
solo frouxo das coroas de lodo donde brotaram” [CASTRO, 2001b: 12].
uma variedade de espécies de árvores de mangues que mimeticamente se aglutinam
à superfície do movediço lamaçal. Em sintonia com o ciclo da vida vegetal, cada manguezal é
único em sua natureza litorânea de viver. Na concepção da pesquisadora Marta Vannucci
[2002:39]: “Nas Américas, as florestas de mangue são geralmente formadas por várias
espécies de florestas mistas”. Os bosques de mangues das encostas americanas são
diversificados.
Devido às condições ambientais, cada bosque de mangue é singular. Apesar de
aparentemente igual, o manguezal desenvolve-se como um ecossistema único para cada
região. Observa-se que o manguezal tem uma assinatura. Assinatura que, segundo Clemente
Coelho Júnior, é energética. Para o estudioso, floresta é a arquitetura do ecossistema. Nesse
tipo de ecossistema, praticamente todos os animais associados ao manguezal estão, de forma
direta ou indireta, sujeitos às variações diárias impostas pelas flutuações das marés. “Como as
plantas, os animais que habitam esse ecossistema possuem adaptações para filtrar a água,
evitar entrada de sal em seus sistemas” [SCHAEFFER-NOVELLI et al, 2004:17].
Algumas espécies de plantas crescem sobre os bosques de mangues: liquens
[apresentam cor marrom, amarelo-vivo, cinza-chumbo, branco rosado], musgos, orquídeas,
gravatás, bromélias, erva de passarinho, cactos, samambaias. Algumas dessas são bem
conhecidos das comunidades pesqueiras como sendo parasitas. Cientificamente, esses
hemiparasitas vegetais recebem o nome de epífitas, ou mesmo, de herbáceas.
“Diferentemente do que ocorre com os vegetais, a fauna encontrada no manguezal não é
exclusiva desse ecossistema. Os organismos que a compõem podem sobreviver em outros
habitats’ semelhantes, como estuário, restiga, costão, rochoso e praia” [SCHAEFFER-
NOVELLI et al, 2004:15]. Em ‘Homens e caranguejos’, Josué de Castro [2001b: 12] observa
algo parecido:
89
Pouco a pouco foram surgindo, dentro da baía marinha, pequenas coroas lodosas,
formadas através da precipitação e deposição dos materiais trazidos pelos rios. E foi
sobre estes bancos de solo ainda mal consolidados, mistura incerta de terra e água,
que se apressaram a proliferar os mangues.
Algumas partes do manguezal ficam submersas quase todos os dias enquanto outras
ficam de várzea apenas em determinadas épocas do ano, acompanhando a metamorfose das
marés ou dos ciclos lunares. Muito do que ocorre no ambiente mangal se pelo fato de o
terreno possuir variações em áreas onde a planície costeira sofre o declive pelas margens das
enxurradas. Assim a existência de locais ‘baixios’ sendo inundadas mais vezes pela maré
cheia e outros mais elevados sendo alagados apenas de forma esporádica. Contudo, o que se
observa é que as árvores de mangues inundadas alcançam maior desenvolvimento em
ambiente de águas calmas.
A ação do ser humano no meio ambiente tem modificado a rota da previsão ecológica.
A descrença nos mitos protetores da natureza elevou, de certa forma, o quadro de
desmatamento a conseqüente dizimação de animais. Atualmente, segundo Schaeffer-Novelli
et al [2004:16-17], espécies de animais no manguezal que, além de raras de se ver, são
consideradas como extintas: os animais escavadores [caranguejos uçá, chama-maré [chiés] e
goiamum, samanguaiás, unha-de-velho, vôngoles], os voadores [insetos e aves como,
biguatinga, guarás, garças, corujas, martins-pescadores, colhereiros, papagaio, águia, biguá],
os animais sésseis [sururus, cracas, ostras, búzios, teredos, turus], os oportunistas [mãos-
peladas, cobras, lontras, cotias, guaxinins], os arborícolas [macaco, caranguejos aratus e
marinheiro], os animais rastejadores [caramujos do mangue, lebres-do-mar, alguns poliquetas]
os natantes [baiacus, golfinho, peixe-boi, robalos, siris, tainhas, tubarão preto - que só vem ao
mangue em épocas de reprodução]. também a presença de jacarés, tigres reais de bangala,
maguaris, socó-boi, saracuras.
A humanidade tem plantado muda de árvores de mangues para conter o aquecimento do
globo terrestre “e como cinturão protetor das linhas de costa contra furacões e tsunamis”
[YOKOYA, 1995:12]. Mas também temos plantado mangues principalmente para resgatar e
devolver a sobrevivência dos habitantes das comunidades de ribeirinhas. Muitos pescadores e
marisqueiras das comunidades desfavorecidas pela dizimação dos mangues têm sofrido pela
ausência de trabalho nesses tipos ecossistemas.
90
DIA DOIS
Segunda Margem
Capítulo II
91
Travessia dos Ameríndios
Série: os homemangues
Seremos um dia o bárbaro tecnicizado.
[OSWALD DE ANDRADE]
a Darcy Riberiro
2 Os filhos do barro
33
Começa hoje a maré grande
O mar está se aprontando
para receber as águas vivas
de contrato com a lua
Vamos rumar pras bandas do Bailique
pra ver chegar a pororoca
O mangue pediu terra emprestada
pra construir aterros gosmentos
Brigam raízes famintas
33
Expressão colhida de Octavio Paz.
92
Água engomada de lama
resvala devagarinho na vasa mole
[BOPP, 1998:17; grifo nosso]
um poema de Manoel de Barros [1993:17] que diz: “Hoje eu desenho o cheiro das
árvores” [BARROS, 1993:17]. Um simples verso traz cheiros misturados entre imagens
distantes. O que tem a ver desenho com cheiros? Parece que muita coisa. Principalmente
quando o assunto é arte plástica. Desenhar cheiro é quase a mesma coisa que resenhar cores.
Talvez seja esse trabalho de todo poeta: descobrir onde estão as cores do ser debaixo das
palavras. No jogo das metáforas coloridas, tudo entra para retratar a luz, a sombra.
Em Bopp: “O mar está se aprontando/ para receber as águas vivas”. O raizal enfrenta
malabarismos. “Brigam raízes famintas” [BOPP, 1998:171]. Oscilantes em tamanho, em
mistério, as raízes carregam para o subsolo do mundo a alma de outros homens e de outros
rios. “O rio leva para a imensidão do oceano os resíduos que parecem nunca mais voltar”
[CAVALCANTE, 2004:68].
Um poema ressurge das decomposições semânticas. Em poesia, que é a voz do poeta se
não a voz de fazer re-nascimentos? A poesia de Raul Bopp, assim como a de Manoel de
Barros, é extremamente materna, carrega a primeira voz de uma palavra. Na maternidade da
poesia boppiana, observa-se “um outro mundo, no qual seres aquáticos e encantados, como a
mãe-dágua vivem e se revitalizam através da cultura e da memória” [CAVALCANTE,
2004:55]. “É forte aqui a noção de Mãe-terra, e mãe como água (acqua mater), de onde
vieram todos os seres”[PELIZZOLI, 1999:52].
O encontro do mito heróico com os seres dos bosques de mangues se no meio das
coisas que não têm mais nomes: “Ai que eu perdido/ Num fundo de mato espantado mal
acabado” [BOPP, 1998:158]. Em Raul Bopp, o poético recorta a unidade perdida da natureza.
Em seguida, assume enquanto vocábulo o mangue como múltiplo. O mangue é encantado e
compõe suas partes a partir de um centro para o qual é dificílimo encontrar um nome. “A
poesia é regida pelo duplo princípio da variedade dentro da unidade” [PAZ, 1993:12]. O poeta
moderno carrega uma teia variada de conflitos e contradições ambientais, um manto que
cobre o homem urbano desde a modernidade. Como em Baudelaire, a esta desumanização
corresponde o afastamento da natureza vegetativa” [FRIEDRICH, 1980:111].
Bopp na pele do mito de Cobra Norato faz travessia pela sugestão da proteção
ecológica. Para isso requisita bricolagem. Revisita um estilo ao gosto da vanguarda surrealista
93
de André Breton:
34
“O rio continua apressado, retardado, carregando os detritos da terra caída
na sua tarefa geológica” [BOPP, 1998:318]. Aqui a vida do rio assume um tom em
permanente transmutação. O verso mangue ganha movimento na voz sibilina da natureza. Em
meio a geologia aquática, o rio é embalado pelo ritmo veloz do progresso. O animismo ganha
adjetivos. E o que é apressado não é o rio, mas o homem na correria dos acontecimentos
modernos. Há um antropomorfismo que se estende da palavra para a corrida do momento.
Para apalpar a intimidade das coisas dos mangues, a frase caminha para alcançar as
imagens pela ‘des-invenção’: “O rio bebia a floresta” [BOPP, 1998:240]. O verso curto rompe
as normas da tradição. “Reduzido a sua forma mais simples e essencial, o poema é uma
canção” [PAZ, 1993:13]. Como se a marcação do poema estivesse com um ritmo regido não
pelo tom, mas pela cor do som: “Lá adiante o silêncio vai marchando com uma banda de
música” [BOPP, 1998:163]. O som aparece simples, mas sintaticamente partido pelo verso
miúdo que faz ressoar a voz da ruptura para recuperar a voz imbuída de natureza: “À noite o
rio te chama” [BOPP, 1998:220]. Surpresas por aqui não são bem-vindas, imagens sendo
iluminadas ad infinitum: “Chegam de longe ruídos anônimos” [BOPP, 1998:183].
A quebra da língua, o abuso de cores, a desarrumação de imagens, tudo somado compõe
a poética boppiana. O poeta insere versos singelos sobre as mudanças ocorridas na natureza.
As mudanças, como diz Pelizzoli [1999:50], “são muito difíceis de serem aceitas, desde
muito tempo!”.
A energia da palavra o garante segurança ou adaptação em um mundo marcado pela
incerteza: “Dissolvem-se rumores distantes/ num fundo de floresta anônima” [BOPP,
1998:169].
A poesia do mangue adota a natureza em movimento. A impressão poética de qualquer
objeto dentro do mangue é de uma inquietude que não se conforta dentro do mesmo. Talvez
por isso a palavra boppiana seja tão nômade, sai em busca de um lugar no mundo visionário.
Os versos contraem uma dívida com a natureza: “Charco desdentado rumina lama” [BOPP,
1998:167]. Sabendo que a mesma é impagável, sugere os reflexos de tensões dos débitos:
“Escrevem sombras longas nas areia usadas” [BOPP, 1998:166].
Os desacertos do poeta são origens de linguagem. Para construir a cor do manguezal o
34
O surrealismo tem sido visto como caudatário das duas décadas de experimentalismo estético e de
agressividade polêmica das vanguardas que o precederam. É verdade a sua dívida para com o Futurismo (a
paixão pela modernidade) e para com o Dadaísmo (criar uma antiarte e uma antiliteratura).
94
som é que escurece: “A noite encalhou com um carregamento de estrelas” [ibidem]. A
imagética possibilita um jogo harmônico de energia neutralizadora dos contrários. O verso
segue os passos do ciclo da natureza em suas permanentes mutações: “A floresta vem
caminhando/ Abra-se que eu quero entrar” [BOPP, 1998:167]. A vegetação caminha, segue a
travessia dos homens em uma interação com os fenômenos naturais e culturais do mangues.
Um estilo parecido ao de Manoel de Barros que criou arranjos para assobiar voz de sapo
ou pegar o vento com a simpatia das palavras. Com um verbete fotografou a fala dos
pássaros. Manoel de Barros é o poeta transfigurador de palavras. No livro Poemas rupestres,
o poeta do Pantanal desafina a sonoridade do idioma para receber as imagens dos mangues a
partir do chão.
Era um caranguejo muito se achante./Ele se estava idôneo para flor./Passava por
nossa casa/Sem nem olhar de lado./Parece que estava montado num coche/de
princesa./Ia bem devagar/Conforme o protocolo/A fim de receber aplausos./Muito
achante demais./Nem parou para comer goiaba./(Acho que quem anda de coche não
come /goiaba.)/Ia como se fosse tomar posse de deputado./Mas o coche quebrou/E o
caranguejo voltou a ser idôneo para/ mangue [BARROS, 2004:31; grifo nosso].
Do Pantanal, o poeta Manoel de Barros perverte a fala bugre da língua Tupi, como fez
‘Macunaíma’ ao assimilar o idioma oficial, o estrangeiro, o tupi, o africano, em uma mistura
compósita de línguas, ou seja, de um multilingüismo que Édouard Glissant aponta como
crioulização.
35
A fala torta de Manoel de Barros troca o tempo verbal da língua assimilada e se perde
meio às frases transfiguradas pelas construções que se voltam para o lado ordinário das coisas
como forma de recuperar a natureza perdida. A poética resgata a inutilidade da natureza como
superação de um sistema que escraviza, explora, dizima em nome da utilidade das coisas. A
função que cabe à poesia é pôr a objetividade das coisas de pernas para o ar. Fora da poesia,
volta-se para o ritmo da racionalidade. “Como é que se pode gostar do verdadeiro no falso?”
[ROSA, 1994:44].
Poesia é linguagem de filosofia. “A filosofia é a teoria da poesia. Ela nos mostra o que é
a poesia: o uno e o duplo” [SCHLEGEL, 1987:87]. O que um filósofo diz de forma
seqüenciada, o poeta escreve a ciência de maneira transfigurada. “Regra do mundo é muito
dividida” [ROSA, 1994:47]. Por esse caminho: “Quanto mais a poesia se torna ciência, mais
35
“A palavra ‘crioulização’, obviamente, vem do termo crioulo (a) e da realidade das línguas crioulas. E o que é
uma língua crioula? É uma língua compósita, nascida do contato entre elementos lingüísticos absolutamente
heterogêneos uns aos outros” [GLISSANT, 2005: 24].
95
se torna arte [...] Quando a razão toca ‘des-razão’, um choque elétrico. Chama-se
polêmica” [SCHLEGEL, 1987:64-65].
Sem a filosofia, o poema limita o poder de alcance da palavra que se mostra aos olhos
do poeta como coisa inacabada. Poesia é paragem indizível do entendimento. Solidão em
aberto é poema. Sem poesia, o pensador não encontra suas incompletudes. Sem filosofia, o
poeta não tem como medir as perdas, os ganhos com as palavras. Como explicar, por
exemplo, que o caranguejo “voltou a ser idôneo para/ mangue”. Ora o verso exige antes ser
entranhado que ser compreendido. O poeta livra-se dos obstáculos da compreensão, versifica
as coisas pelos desvãos da imaginação. Dos desfeitos frásicos, o poema colhe erros maduros:
“Descobri, aos 13 anos, que o que dava prazer nas leituras não era a beleza das frases, mas a
doença delas” [BARROS, 1993:87].
Jamais um idioma é em demasia simples para um poeta. Um poeta carrega todos os
idiomas do mangue. “Há que apenas saber errar bem o seu idioma” [ibidem]. A necessidade
de vocábulos incomuns transitando à beira do que não esteja totalmente gasto pela linguagem.
“Usar algumas palavras que ainda o tenham idioma” [BARROS, 1993:11]. Muito mais
importante do que está fora das regras é tornar DICIONÁRIA a face de um poema. “Seu
universo é simples, como é simples seu instrumento ainda que seja inesgotável em
melodias,” já aconselhava Schlegel [1987:81].
Na poética fabularia do manguezal, reviram-se as letras do poema pelo lado avesso:
“Raízes desdentadas mastigam lodo” [BOPP, 1998:152]. A quebra de sentido cria rodopios
amáveis: “Esta é a floresta de hálito podre/ parindo cobras” [ibidem]. Sonoramente a palavra
mangue ganha a dimensão do apelo das sinestesias: “Um cheiro de charco se esparrama/
Mexilhões estão de festa no atoleiro” [BOPP, 1998:158].
Dentro dos liames antropofágicos: “Veja que bugre pega pelos desvios, não anda em
estradas” [BARROS, 1983:87]. A fala bugre assimila a cultura do mangue. O discurso
boppiano faz coexistir um mangue onde as distâncias eco-sociais e étnicas não são
eliminadas. Pela integração com a natureza, a harmonização se firma pela diferença: “Esta
lagoa está com febre Inchou/ A água parou” [BOPP, 1998:167]. Na poesia de Raul Bopp, o
verbo está em transformação ‘cortante’, reavaliando os desacertos do mundo. A natureza
solicita o tempo todo a voz humana de Cobra Norato que assimila das culturas primitivas o
rito canibal da antropofagia. Em uma relação entre culturas é que se estrutura o canibalismo
antropofágico de 1928. A preocupação da antropofagia de Raul Bopp e Oswald de Andrade é
96
em relação à alteridade cultural. A antropofagia simboliza a colheita de linguagens poéticas
diversificadas, valorização do legado da diferença cultural. Segundo Eliade [2001:91], “o
canibalismo não é um comportamento natural do homem primitivo (não se situa, aliás, nos
níveis mais arcaicos de cultura), mas um comportamento cultural, fundado sobre a visão
religiosa da vida”.
Para Eliade, o canibalismo é um ritual que tem como objetivo uma responsabilidade do
homem no Cosmos de velar pela vida vegetal. “Ao julgar uma sociedade selvagem, é preciso
não perder de vista que mesmo os atos mais bárbaros e os comportamentos mais aberrantes
têm modelos trans-humanos, divinos” [ELIADE, 2001: 92].
Em Oswald, o colonizador é traduzido pelos olhos da cultura ameríndia: “Quando o
português chegou/ debaixo duma bruta chuva/ Vestiu o índio/ Que pena! / Fosse uma manhã
de sol / O índio tinha despido/o Português” [1991:95].
No poema boppiano, uma fome na pele sedutora do boto. Fome, estampada no
retrato de uma miséria injustificável em um mundo com um número cada vez maior de
excluídos: “- Compadre, eu já estou com fome/ Vamos pro Putirum roubar farinha?”
[BOPP, 1998:175]. No mundo de ‘Cobra Norato’, a máscara sai do mero palavreado e ganha
as vestes da sátira, da ironia, do sarcasmo, da crítica. “A ironia revela a dualidade daquilo que
parecia uno, cisão do idêntico, o outro lado da razão: quebra do princípio de identidade”
[BOPP, 1998:68].
Em sua identidade, desalojada, o poeta se multiplica em vozes alheias. No poema, o
homem se fragmenta frente às fragilidades de um sistema embrutecido. Às ordens da
modernidade, a alteridade instaura-se como identidade, da mesma forma que a paisagem do
mundo entre o múltiplo e o bizarro se torna plural. Assim, entre a pluralidade e a
correspondência analógica, as identidades e americanidades
36
estão em nossos dias em
processo, em construção.
Na aceitação da diferença, o eu-poético impessoal se reparte na voz ‘doble’ de ironias
para celebrar [mais à frente] o encontro de culturas em comunhão com o projeto estético do
36
Sem dúvida, os postulados da Antropofagia prefiguram-se como emergência do que hoje estamos chamando
de americanidade, ao preconizar uma identificação distintiva ao continente americano. O poema Cobra Norato,
de Raul Bopp (escrito em 1928 e editado em 1931), precursor da Antropofagia, ao apelar aos mitos
cosmogônicos da Amazônia, associados à renovação, e ao aderir ao imaginário mágico-sacral dos nativos da
América [...] Está fazendo prevalecer à visão de mundo autóctone e afro-americana sobre o racionalismo
europeu, Como aponta Zilá Bernd [2003a: 31].
97
Movimento Manguebeat. Em correspondência com as fronteiras musicais da palavra, Raul
Bopp não mede esforços para revelar as mordaças que dissimulam a cultura brasileira ao levar
o Brasil para dentro de outros brasis: “Ai compadre! / Tenho vontade de ouvir uma música
mole/ que se estire por dentro do sangue; / música com gosto de Lua/ e do corpo da filha da
rainha Luzia” [BOPP, 1998:160].
O poeta coisifica a natureza para nomear a humanidade do mundo. Levando-se em
conta que a linguagem indica, e a definição, por sua vez, apreende a realidade no conceito, o
autor o limita o poder de alcance da palavra, mas sugere uma abertura à diversidade lírica
do eu poético ao falar do mundo e do mangue de forma ecológica: “(...) queixas da floresta. /
Ruídos e baques estranhos. / Velhas árvores caindo/ e o fogo raspando o chão” [BOPP,
1998:258].
Se para os duvidosos não milagre poético na natureza do mangue, é possível que
Bopp faça um dentro do olho, profetizando os silêncios da mãe-natura ou mesmo batizando
os bichos com água benta dos rios. “Então a noite dissolveu sono/ e meteu a floresta num
saco” [BOPP, 1998:249]. Essas coisas, não se têm como comprovar, nem mesmo apoiando o
braço na tipóia da crítica científica. Seria como concordar que as mentiras podem ser
comprovadas. “Poesia não é para compreender, mas para incorporar/ Entender é parede:
procure ser uma árvore” [BARROS, 1982:29]. Como comprovar, por exemplo, que em
‘Cobra Norato’ [1998:162]: “Riozinho vai pra escola/ está estudando geografia”. Seria como
garantir que uma criança vai à escola e aprende geometria.
Vê-se que o verso faz conta das coisas mais simples para dar conta do processo criativo.
Sua sala de aula é a própria natureza, uma espécie de depósito de ‘inventança’ que anda
forjada para o aprendizado da educação tradicional: Vieram depois outros homens/
Mandaram buscar o metro/ para medir a paisagem/ Cobra Grande deu um peido: fium/
Arvorezinha secou” [BOPP, 1998:248]. Sem medo de ser expulso por indisciplina vocabular,
a didática poética é como um laboratório de filologia que descama as palavras até o chão da
raiz. Poesia escrita com o corpo, presa à sensualidade do entendimento: “Árvores combinaram
ficar juntas” [BOPP, 1998:244].
Em seguida, passa para o leitor uma lição vinda da filosofia popular: “– Há tantas coisas
que a gente não entende, compadre/ - O que é que haverá atrás das estrelas?” [BOPP,
1998:174]. Sobre o manto diáfano da dúvida, Bopp inaugura divagações sem precisar sair do
lugar comum: “-De onde é que vem tanta água, compadre?” [BOPP, 1998:170].
98
A vida no mangue, como observa Gustava Bezerril [2004:72], “também é um mundo
que tem seu lado desconhecido e mágico, no qual a natureza parece brincar, para encontrar
lugar nos olhos e na mente daqueles que se propõem a ver e a deixar-se levar por este
emaranhado de galhos, sentimentos e significados”.
No troca-troca de imagens, o poeta assinala as sobras enfermas da cartografia do
ambiente: “O ar perdeu o fôlego” [BOPP, 1998:158]. Aqui a imagem da falta bombeia o ar
que perde o fôlego. No território poético, dar e receber é uma relação de causa e efeito; no
campo ambiental, dar e receber o oxigênio das plantas ou mesmo do plâncton também é uma
relação de causa e efeito. Na relação lama-lodo-mangue de um determinado ambiente, como
iremos repor o plâncton no planeta, como preservaremos as culturas das comunidades
ribeirinhas que sobrevivem do manguezal? É preciso preservar o mangue de cada lugar para
que ele favoreça a sobrevivência da diversidade de espécies que sobrevivem desses
ecossistemas.
No primeiro livro de Raul Bopp, ‘Versos antigos’, escritos pelos idos de 1916 a 1930, já
se encontram vestígios dessa relação ambiental de causa e efeito, carregando imagens de
deformidades. A palavra mangue aparece apenas no poema Mãe-febre: “Agarro-me aos altos
caules magros/Com horror deste pântano, elástico e podre. /Lá adiante, o mangue, de raízes
iradas, mordendo a lama, /Dá-me a impressão de uma floresta de esqueletos” [BOPP,
1998:116; grifo nosso].
Mas em nossos dias quem se aproxima do mangue? Se não a corda bamba das palafitas,
o mundo humilde das marisqueiras que contam na lama o preço do quilo de sururu? Na corda
presa do tempo, nas vias de acesso à imaginação poética, o que se animiza no mundo se
define pelo jogo de imagens que o mangue possa sugerir.
Os poemas boppianos são quadros sobre telas, colagens do mangue, telas de uma
natureza ainda em construção: “Chegavam árvores e mais árvores/ uma delas de raízes
imensas, / mastigando o Brasil” [BOPP, 1998:248]. Os fragmentos são conduzidos pela
imagem plástica: “Quando a sombra chegou/ as árvores tinham fugido” [BOPP, 1998:249]. O
retrato dos bosques de mangues é de “uma floresta de esqueletos” O mundo ambiental que
Bopp nos apresenta vem preservado a certo ponto. Talvez não nas proporções que temos
hoje em dia. Mas com índice de desmatamento que para a época era assustador. Se
pegarmos, como exemplo, a madeira de pau-brasil, observar-se-á o quanto não somente
99
estivemos, mas ainda estamos, em toda história do Brasil, expostos às mãos do colonizador,
do explorador. Em fatias curtas do tempo, furtou-se o pau-brasil do Atlas brasileiro;
deglutimos os homeríndios como uma coisa suja, uma culpa, mas por dentro das tiragens de
lama: “princesa negra e coroada/ apodrecendo nos mangues” [GULLAR, 2001:32].
2.1 A travessia dos homeríndios
Nós herdamos a terra dos nossos pais, nós a
tomamos emprestada dos nossos filhos.
[CACIQUE SEATTLE]
No percurso do século XVI ao século XIX, o mangue vai ganhando terreno na prancha
das cartografias da histórica de Southey [1981:44]. Se no princípio não havia forma para se
nomear os mangues, com o tempo os navegadores que atravessaram as encostas marítimas
passaram a descrever os terrenos alagadiços como possíveis bosques de mangue.
Com o desenrolar do ciclo das navegações, os mangues receberam nome e endereço.
Frente a esses nomes, descobriam-se as raízes da origem entre africanos silvícolas, apesar dos
índios serem seus principais desbravadores. O litoral brasileiro foi habitado pelos índios tupi-
guarani possivelmente nos anos 400. As tribos indígenas inicialmente tiveram populações
numerosas ao longo das planícies litorâneas dos mangues, mas, com a chegada do
colonizador, a coisa mudou de figura, e passaram a adentrar mais o interior do país.
Sambaqui’, palavra de origem Tupi, que quer dizer amontoados de conchas’. Os pré-
históricos, pertencentes ao período Neolítico, habitaram o litoral dos mangues brasileiros. No
Estado de Santa Catarina, encontram-se os maiores sambaquis do mundo, espalhados ao norte
e ao sul do litoral. No ambientes aquáticos, próximos ao Rio Duna, em Imbituba [SC], os
sambaquis foram utilizados para construções de cavernas e uso cerâmico. Os homeríndios,
seis milhões de anos, foram os primeiros consumidores de ostras, moluscos, crustáceos e
peixes das zonas estuárias dos manguezais.
Em conversa com o professor Clemente Coelho Júnior, da Universidade Federal Rural
de Pernambuco, o pesquisador alerta que, ecologicamente, toda arqueologia dos manguezais
deve sinalizar os mangues não apenas como vocábulo ou espaço guardado na memória da
colonização. Para Clemente vem de muito antes o uso dos manguezais por tribos nômades
pré-históricas. O primeiro assentamento dos homeríndios litorâneos aparece em torno de
100
2.000 a 7.000 anos atrás. Esses homeríndios, homens do sambaqui, chegaram à América
vindos possivelmente da Ásia, supostamente pelo estreito de Bering. também hipóteses de
que os homeríndios foram ancestrais das tribos Guarani e Tupinambá.
Dessas comunidades, sobraram restos de conchas acumuladas que o tempo não apagou.
Geralmente, os rastros mais conhecidos dessa população desaparecida aparecem para os
arqueólogos em pedaços de cerâmicas, restos de conchas foscas, ossos humanos, pedra
lascada, advindos com as lufadas de ventos. Os homens do sambaqui deram origem a grupos
indígenas como os Botocudos, tribo extinta.
Muitas tribos logo se espalharam como os Tapuias, Tamoios, Caetés [de São Paulo ao
Maranhão], Carijós ou Guaranis [do Paraná ao Rio Grande do Sul]. As tribos mais distantes
se estenderam no sertão central. A luta pela terra, em prol da sobrevivência, levou muitos
índios a lutarem não apenas com os colonizadores, mas entre as próprias tribos. Algumas
tribos se refugiaram no manguezal não por opção, mas por sobrevivência. As tribos que
estenderam suas tabas na costa litorânea deglutiram de perto o sabor do sal na alimentação.
Distantes da aldeia, eram enterrados com peles de ostras e escamas de peixes. O uso de
cozer e comer caranguejo é habito alimentar dos indígenas. “A figura de um caranguejo faz
parte do Brasão D’Armas de São Caetano de Odivelas, um dos municípios de Salgado, no
Litoral do Pará, simbolizando a importância dos manguezais e desse crustáceo para a
economia local” [SCHAEFFER-NOVELLI et al, 2004:39].
Alguns indígenas desconheciam as leis de sobrevivência que regem os bosques de
mangues. Entre contrastes, os silvícolas do período pré-colonial utilizaram, de forma
reduzida, os manguezais, talvez pela ocupação do litoral pelos tupis-guaranis cujas culturas
ampliaram-se basicamente nas matas e interiores. Com a chegada dos escravos, oriundos dos
manguezais africanos, o uso dos bosques de mangues voltou a se intensificar, enquanto, os
mangues viraram mocambos, raízes de lama esconderam quilombolas. Muitos manguezais
serviram de refúgios revolucionários, abrigaram quilombos.
A relação dos povos afro-ameríndios com o mangue sempre foi de profunda intimidade.
Muitas tribos indígenas tiveram que brigar pelo território dos caranguejos. Algumas tribos,
nômades, saíam em busca dos mangues em nome da própria sobrevivência, pois para os
colonos, “os índios eram um gado humano, cuja natureza, mais próxima de bicho que de
gente, só recomendava à escravidão” [RIBEIRO, 2005:53].
101
O que fica de pano de fundo é que os íncolas mal se adaptavam ao processo de
escravização e já resistiam à ocupação da posse de terra, por parte do colonizador. “A imagem
negativa do autóctone que se quer inculcar, nesse momento, torna seguramente mais
aceitáveis, para as consciências dos portugueses, a expropriação do território e o etnocídio dos
índios já em curso” [OLIVEIRA, 2002:31].
Não temos uma idéia precisa do número de índios dizimados no coração do mangue.
37
O
processo de dizimação, além de brigas e guerras, também se deu pelo seqüestro de crianças
silvícolas. Os autóctones possuem um sentimento avesso à procriação. Muitas aldeias se
enfraqueceram ou se tornaram extintas por não mais manterem os mesmo laços sangüíneos
dentro da taba. Para Darcy Ribeiro [2005:144]: “Ao genocídio e ao etnocídio se formam
guerras de extermínio pela Coroa contra índios considerados hostis”.
A sabedoria silvícola há muito vem questionando ao longo da história os desmandos dos
povos colonizadores desde o primeiro contato com os manguezais brasileiros. Oswald de
Andrade questiona em sua utopia caraíba o fato de a sociedade eurocêntrica ser patriarcal.
Sabemos que os índios brasileiros construíram um ideal de comunidade sem ter noção do
poder coercitivo. E esse era um diferenciador em relação às sociedades aborígenas dos demais
países. Os índios que habitavam o mangue brasileiro buscavam uma utopia sem chefe. Entre-
nós não havia templos como se observava em relação aos índios mexicanos. Se não havia
templos, éramos vistos como sendo uns bárbaros, uns ignorantes. Vale perceber também “a
diferença com relação à colonização espanhola, quando os colonizadores chegaram e estavam
diante de Montezuma, foi então um diálogo de chefe com chefe” [SANTIAGO, 1989: 121].
A idéia de chefia entre os índios somente ocorria quando os mesmos guerreavam entre
si, mas veio, sobretudo, quando esses se viram coibidos por aquele que veio dominá-lo.
Quando Caminha chegou com aquela conversa-missiva de bom mocinho para catequizar os
“selvagens”, pensava encontrar perto da aldeia um chefe ou um general de brigada, não sabia
que “a emergência do poder coercitivo numa sociedade tupi-guarani se exatamente no
momento em que ela é agredida” [SANTIAGO, 1989: 120].
Os primeiros historiadores que mapearam os manguezais não tinham conhecimento
suficiente para falar desse ecossistema. Muitas dessas anotações subtraíam a força que tinham
37
A boa notícia que tenho é que os indios estão aumentando de número. Há trinta anos atrás, eles se reduziam a
cerca de 100 mil. Hoje se acercam para mais dos 300 mil, segundo Darcy Ribeiro [2004:13].
102
os mangues e a mitologia para o povo indígena. Os índios vivificavam os mangues de tal
forma que a natureza dos manguezais e eles eram uma só. Os aborígines prestavam tamanha
atenção ao que a natureza do mangue tinha a lhe falar. Ao darem o grito de ‘mangue à vista’,
os primeiros homeríndios empenharam-se na tentativa de preservar o manguezal, cercado de
Mata Atlântica por todos os lados.
Mas se as árvores escrevem por linhas verdes, nem sempre foi ou é assim. Muitos índios
se deixaram e [ainda se deixam] conduzir pelo ideal da exploração. Alguns, não menos éticos,
são levados pela porteira da ganância e fronteira da ignorância. E não somente venderam
terras, mas também serviram de iscas e cobaias para entregar os esconderijos dos negros
quilombolas dentro dos manguezais. Essas atitudes desleais de alguns indígenas acabaram por
elevar os desastres ecológicos, servindo aos interesses das grandes madeireiras. De Norte a
Sul deste país, índios e mais índios vendem as terras de mangues, colaborando para a onda de
desmatamento, depois se viram na condição de pedintes, estrada afora, como trapeiros.
Proteger as árvores de mangue é proteger o homem, o mundo. Para preservar a natureza
do manguezal temos que praticar um profundo respeito por todos. O respeitar passa pelo
direito e respeito a todos os entes deste planeta. Um mundo movido pelo tecnicismo e
impessoalidade desafia a corrente de irmandade e fraternidade no planeta. Os índios, assim
como os poetas, traduzem os sinais dos tempos. O primeiro, por dizimação; o segundo, por
subtração.
Para os ameríndios, as ilhas não significavam isolamento, mas relação, pois eles
navegavam de ilha em ilha, ao sabor dos acontecimentos, possuindo um sentimento
de pertença ao arquipélago e não a uma ilha isolada. O europeu desde o
desembarque nas ilhas tende a demarcar um território, a enraizar-se, em oposição à
concepção autóctone, marcada pelo nomandismo e pela relação [BERND, 2003a:
30].
A primeira utilização dos manguezais foi, sem sombra de dúvida, pelos homeríndios,
como nos alerta André Alves [2004:82], no livro ‘Argonautas do mangue’, em seus estudos
antropológicos nos mangais da baía de Vitória, no Espírito Santo. Encontra-se, segundo o
antropólogo, em uma pesquisa realizada por volta de 1968, a partir de fotografias aéreas, nas
quais se localizaram nove sambaquis no manguezal da baía de Vitória. Depois disso, novos
estudos aconteceram:
Em 1972, estudos realizados por Perota indicam, através da escavação de tios
arqueológicos, a presença de comunidades indígenas que utilizavam esses
manguezais 2 mil anos antes de Cristo. Eram provavelmente várias tribos: homens,
103
coletores e caçadores, que devem ter desenvolvido um amplo saber sobre esse
ecossistema. Uns acervos culturais, transmitidos de geração a geração, que se viu
ameaçado em 1535, quando aponta em Guananira a primeira caravela trazendo os
colonizadores portugueses.
Os ancestrais dos homens sambaquis, como os Guaranis e Tupinambás, além de
moradores dos manguezais, foram profundos conhecedores da botânica dos bosques
primitivos. Colados à terra dos mangues, a tribo Tupi-guarani capturava a retirada de
alimentos. Como menciona Gabriel Soares de Sousa [1987:66], no livro ‘Tratado descritivo
do Brasil em 1587’: “Desse riacho a Aguaboa a uma légua está o rio de Ubirapatiba, por cuja
barra podem entrar barcos e caravelões da costa com a proa a les noroeste”. A descrição se
volta para os mangues como sobrevivência: “A este rio vem o gentio Tupinambá mariscar,
por achar por aqueles arrecifes muitos polvos, lagostins e caranguejos” [ibidem].
No período colonial, os íncolas conheciam a fundo os diversos tipos de caranguejos.
Gabriel Soares registra cada uma das espécies dos crustáceos graças às informações dos
autóctones. O pintor holandês Albert Eckhout, que esteve em Pernambuco durante o período
de Maurício de Nassau, pintou um quadro intitulado: ‘Índio Tupi’ c 1637 – c 1644. Na tela de
Eckhout, associa-se a figura de um caranguejo aos povos primitivos.
Para os silvícolas, o manguezal é lugar sagrado, espaço de cura, de onde se retira
alimento medicinal. A carne das ostras, além de servir como afrodisíaco, é excelente para a
cura de problemas pulmonares, inclusive em casos de tuberculose. A casca da ostra é bastante
útil para remediar doenças nos ossos e serve também como excelente adubo para a plantação
de pés de limão.
Até onde a história nos situa, os índios freqüentavam os mangues em época de pesca,
diferentemente, a exemplo, de fugitivos que se aproveitavam dos mangues para se protegerem
das mãos da justiça. Alguns desses fugitivos acabavam morrendo nos manguezais. Muitos
negros também se aventuraram nos atoleiros de mangues como refúgio das algemas
escravocratas. Segundo mangrólogos, alguns senhores de engenho, quando encontravam os
negros fugitivos, mandavam aprisioná-los nos mangais, completamente despidos, para que
sofressem o castigo de morrerem afogados. Muitas tribos utilizaram os mangues como
possibilidade de esconderijo. Muitos morreram presos em mangues. É importante destacar
que, no período da circunavegação, os ‘argonautas dos mangues’ também utilizavam os
bosques de manguezais como quilombos.
38
38
As áreas de manguezais em litoral aberto são em geral acessíveis apenas por mar, e os pântanos podiam ser
usados também como proteção dos invasores por terra, como em Papua-Nova Guiné e outras ilhas principais
104
O manguezal, ao longo da história negra, também serviu como quilombos ou
mocambos. É possível que os senhores e feitores da senzala não soubessem penetrar nos
emaranhados das raízes de lama. Ao longo da história da humanidade, o mangue, como uma
mãe protetora, alimentou, acolheu, abrigou os filhos da lama e povos perseguidos pelo chicote
da escravidão. Entretanto, depois do período de escravidão, os negros que foram sugados pelo
mangue continuaram residindo nas margens do manguezal, por não terem condições
econômicas ou outras fontes de sobrevivência, assim como muitos índios tiveram que habitar
os mangues por terem suas terras invadidas pelo colonizador. Nas fronteiras do chão
colonizado, encontram-se as marcas das estacas dos mangues fazendo suas pegadas no terreno
da história.
É importante também situar nessa travessia que, ao longo dos tempos, os estudiosos vão
reciclando novas atribuições, outras leituras a esse meio ambiente. Não basta ver esse
ecossistema como servo do homem, fonte de alimentação para tribos indígenas, esconderijo
de piratas navegantes, ‘habitat’ de gente miserável, como se observou nas entrelinhas da fala
dos povos navegantes. “Não podemos subordinar a natureza a mero relato de colonização do
homem”, como nos faz lembrar, Keith Thomas [1996:18-19].
Dessa forma, também não podemos aceitar como natural a morte de árvores. “O
processo de destruição não pode ser quantificado, mas o dúvida de que entre 1500 e
1700 o número de árvores foi substancialmente reduzido” [THOMAS, 1996:231]. É certo que
a importância pelo mundo natural e os interesses com relação às outras espécies costumam ser
vistos como acontecimentos de nossa contemporaneidade. No entanto, “foi entre 1500 e 1800
que ocorreu uma série de mudanças na forma pela qual homens e mulheres percebiam e
classificavam o mundo natural ao redor” [ibidem].
Alguns pontos modificaram o olhar do homem sobre a natureza. “Alguns dos quais
desde muito estabelecido sobre o lugar do homem na natureza foram descartados, nesse
processo. Surgiram novas sensibilidades em relação aos animais, às plantas e à paisagem”
[THOMAS, 1996:18].
A maneira como as pessoas lidavam com a natureza, a partir do século XV, se dava por
meio daquilo que elas imaginavam sobre o próprio umbigo. A história das navegações
possibilitou a descoberta, não apenas de terras à vista e a prazo, mas as conseqüências disso
do arquipélago. Os corsários e piratas que operavam no oceano atlântico, especialmente no Caribe, conheciam
bem o valor dos manguezais como esconderijos [VANNUCCI, 2002:113].
105
foram maiores do que possamos imaginar. E por mais que se fale sobre, o temos como
imaginar o saldo de tragédias no balancete dos dominados. Sabe-se apenas que, para imperar
o que veio dominar, não respeitou o direito à diferença cultural dos povos. Segundo Thomas
[1996: 26]: “quando viajantes começaram a trazer relatos de como as religiões orientais
mantinham uma visão totalmente diferente, e como os jaínas, os budistas e os hindus
respeitavam as vidas dos animais, até mesmo dos insetos, a reação foi de desdém”.
A invasão dos colonizadores no litoral brasileiro se deu, a princípio, como domínio da
natureza. Depois, o que se é aquilo que Bosi [1998:19], em sua 'Dialética da Colonização',
chama a atenção: “A ação colonizadora reinstaura e dialetiza as três ordens: do cultivo, do
culto e da cultura”. Desafiando caminhos, o dominador visava à posse rápida de terras,
submetendo índios e negros à situação de medo, vexame, coação constante. Para extrair a
riqueza da terra do mangue, abusava-se do domínio e do controle.
Assim, entre vantagens e cobiças de bens, o ímpeto predatório e mercantil levava, no
período da colonização, ao massacre de índios e negros e [ou] à dizimação de mangues e pau-
brasil, tudo em nome da preservação econômica da matriz européia. A colônia acendia uma
espécie de barbárie ecológica e, também, populacional e isso se deu, tanto na zona do canavial
quanto nos sertões desbravados por bandeirantes. O que se presencia desse tempo são as
queimadas para a retirada da cana, a morte, ou a escravização das tribos nativas. Gilberto
Freyre fala sobre isso no livro Nordeste, no qual descreve a colonização portuguesa no Brasil
e no mundo. O açúcar laminou negros e índios.
O que tiramos de lição dessa história toda é que o branco colonizador soube, como
ninguém, tirar proveito das terras ameríndias. Assimilou a cultura das terras silvícolas para
explorar e tirar proveito, unicamente, para si próprio. Para isso, instaurou um regime de
apropriação cultural para revestir no outro a extensão de sua força [enraizada pela cor da pele
branca e pelo valor que regia o poderio do sistema econômico], como exemplo de
superioridade.
É importante considerar que a cultura, de forma bem diversificada, interfere nas
relações de domínio da natureza. A exploração dos recursos naturais ainda é bastante
referendada em cima da concepção dos recursos naturais como sendo elemento inesgotável.
Para algumas comunidades, o mangue está relacionado, cultural e historicamente, a interesses
econômicos.
106
Como diz Vannucci [2002:136]: “O homem sempre tendeu a explorar seu ambiente ao
extremo, e o século XX viu o pior disso tudo, mas não o seu início, pois essa atitude sempre
esteve presente”. Segundo Vannucci (op. cit.), há muito tempo que as populações
sobrepujaram a capacidade de suporte de seus ambientes específicos.
2.2 Dizimação por subtração?
Mas desses índios tímbiras/ nada resta, senão coisas contadas em livros.
[FERREIRA GULLAR]
A etnografia, o folclore, a arte primitiva tiveram e têm grande importância na
valorização da preservação da natureza indígena e da expressão popular. “Em linguagem oral
/ as palavras muitas vezes se deformam numa acomodação fonética / esmagada pelo peso do
beiço” [BOPP, 1998:324].
A linguagem popular extravasa as fronteiras lingüísticas, eleva o que foi perdido pelos
dialetos das camadas que habitam o território dos manguezais. Cada povo é manancial de
poesia. Desde o começo da humanidade, a poesia nasce de uma batida de tambor de um canto.
Na juventude do mundo, como observa Shelley [1987:221], “os homens dançam e cantam,
imitam os objetos naturais, observando nessas ações, como em todas as outras um certo ritmo
ou ordem”.
Quando os índios acordam a aldeia ao som de flautas, o totem permanece como poesia.
O rito indígena é melodia. Os tambores, os batuques, as batidas de memória que sonorizam o
ganzá lírico, são poesias: “negro coçou piano fez música” [BOPP, 1998:246]. A crioulização
musical ao ecoar canções em reverência aos orixás cria formas míticas de poesia. A fala, em
poesia, voz ao som reprimido dos povos do mangue. “Nas camadas baixas da fala
brasileira/ desgovernada e em formação contínua/ encontra-se uma variedade de confecções
lexicais de sabor primitivo” [BOPP, 1998:324]. Ao sotaque da voz caseira, carregam-se,
dentro dos beiços, outras maneiras de dizer que ainda não tiveram registro nos compêndios da
língua, mas no sabor da voz humana: “-Com sus pares contraro/- Volver pela dereita/ - Mudar
de posição” [BOPP, 1998:178]. Observa-se que os erros maduros do escritor não são uma
exceção, mas uma regra do idioma. O autor aproveita-se dos achados populares, pega a rota
dos desvios para se encontrar com a língua popular do manguezal: “Você me espere que
depois vou le contar uma história” [BOPP, 1998:157].
A poesia boppiana vai à procura do radical originário para encontrar-se com as raízes de
107
lama e barro da humanidade. Em busca das raízes, os silvícolas acreditam que as almas das
cobras penetram nos corpos humanos e exercem um fascínio esplendoroso sobre o destino da
natureza como um todo. O sagrado, no poema boppiano, somente se avilta para salvar Cobra
Norato dos agouros da Cobra Grande: “Pajé-pato adiante ensinou caminho errado/ - Cobra
Norato com uma moça? Foi pra Belém Foi se casar/Cobra Grande esturrou direito pra Belém.
// Deu um estremeção. Entrou no cano da Sé/ e ficou com a cabeça enfiada debaixo dos pés de
Nossa Senhora” [BOPP, 1998:190]. em Mário de Andrade, o sacro é profano em uma
correspondência burlesca com o sincretismo religioso das mandingas de candomblés às
pajelanças de terreiro de macumba de seu Macunaíma:
Era uma macumba séria e quando o santo aparecia, aparecia deveras sem nenhuma
falsidade. Tia Ciata não permitia dessas desmoralizações do zungu dela e fazia mais
de doze meses que Ogum nem Exu não apareciam no Mangue. Todos desejavam
que ogum viesse. Macunaíma queria Exu só pra se vingar de Venceslau Pietro Pietra
[ANDRADE, 1989:47; grifo nosso].
No terreiro das palavras, faíscas de mangue místico de ‘Macunaíma’ estão em
combinação com os excertos de mangue no quarto capítulo das ‘Memórias de um sargento de
milícias’.
39
Nele, o personagem Leonardo-Pataca vai ao mangue à procura da proteção das
mandingas para reaver a mão de sua amada. O mangue, descrito por Manuel Antônio de
Almeida, é o lugar do feitiço, local permeado de mitos e entidades africanas. Por outro lado, o
autor também fotografa as condições subumanas desses ambientes em pleno Romantismo.
Pelo retoque picaresco, o mangue, por ali, é desfalcado, descrito com certo ar de ironia,
quando reporta aos moradores dos alagados insalubres. Naquele tempo, acreditava-se muito
nessas coisas e uma sorte de respeito supersticioso era tributada aos que exerciam semelhante
profissão. Já se vê inesgotável mina não achavam isso os industriosos! Era só a gente do povo
que dava crédito às feitiçarias.
As escrituras trazem o sincretismo de mitos presentes na natureza do mangue. Essa
travessia acontece devido à influência dos mitos silvícolas e africanos ao redor dos
manguezais. Ao adentrarem os mangues, negros e índios, para escaparem do colonizador,
chegaram com suas culturas amordaçadas no braço das algemas. Entrançaram-se a um
39
para as bandas do mangue da cidade nova, havia, ao de um charco, uma casa coberta de palha da mais
feia aparência, cuja frente suja e testada enlameada bem denotavam que dentro o asseio não era muito grande.
[...]. Esta sinistra morada era habitada por uma personagem talhada pelo molde mais detestável; era um
caboclo velho, de cara hedionda e imunda, e coberta de farrapos.[...] Naquele tempo acreditava-se muito
nessas coisas, e uma sorte de respeito supersticioso era tributado aos que exerciam semelhante profissão. se
inesgotável mina não achavam isso os industriosos! Era a gente do povo que dava crédito às feitiçarias
[...] Leonardo decidira haver de novo e por todos os meios a posse de sua amada. [...].Entregou-se, portanto
em corpo e alma ao caboclo da casa do mangue, o mais afamado de todos os dos ofícios [ALMEIDA,
2000:24-25; grifo nosso].
108
universo de crenças culturais em um sincretismo religioso, que aproximou afinidades míticas
e práticas seletivas da mística. Essas práticas denunciam o tipo de exclusão religiosa a que
estiveram submetidos no arcabouço das senzalas. Por ali, negro não tinha alma. Índios se
catequizaram a que preço?
A revolução burguesa, como bem diz Ocatavio Paz [1982:271], propagou os direitos
humanos, contudo, massacrando-os ao mesmo tempo, em nome da propriedade privada e da
liberdade de comércio; “declarou sacrossanta a liberdade, mas submeteu-a às conveniências
do dinheiro; e afirmou a soberania dos povos e a igualdade dos homens enquanto conquistava
o resto do planeta”. E tudo ficou impune ao reconduzir o escravismo de índios e negros sob a
palmatória dos velhos impérios; ao mesmo tempo em que estabelecia na Ásia, África e
América endereço certo para o registro dos horrores sangrentos do regime colonial.
Falar sobre a natureza nos leva a repensar o mangue como lugar misterioso, espaço
abismal, sonho de existência às etnias. Da geração de Rousseau à de Raul Bopp, o poema
burilou o mundo indígena com sotaque educado de bon sauvage”. À procura dos pilares
sentimentais voltados para as raízes dos mangues, o escritor sai à cata do herói medieval meio
à paisagem escultural. O culto à natureza e a mistura da teoria com a poesia são rasgos dos
tempos românticos. “O gênero da poesia ainda estar em estado de formação, e é de fato sua
verdadeira essência, o eterno devenir, sem jamais se dar por acabado” [SCHLEGEL,
1987:56].
Pelas mãos alencarinas, o mapa do mangue é apenas paisagem, material poético de
devaneio exótico. No capítulo XXI de Iracema, um desenho pitoresco dos bosques de
manguezais, mas como mero pano de fundo:
Os viajantes estiveram em Mocoripe três sóis. Depois Martim levou seus passos
além. A esposa e o amigo tornaram à embocadura do rio cujas margens eram
alagadas e cobertas de mangue. O mar entrando por ele, formava uma bacia cheia
de água cristalina, e cavada na pedra como um camucim. [ALENCAR, 1999:71-72;
grifo nosso]
Em ‘Iracema’, o mangue é idealizado como mera paisagem, diferentemente do recorte
feito em ‘Memórias de um sargento de milícias’. Percebe-se, em Alencar, um certo
falseamento dos manguezais. Em meio ao espírito dos ideais românticos, os índios estavam
mergulhados na lama, no ambiente do manguezal: celeiro de exclusão de homens foragidos
vindos de outras nações, lugar em que os sertanejos vieram matar a sede; espaços onde negros
e índios se acamaram em redes tapuias, entre tabas de palafitas, balançando a sobrevivência
109
no sobe desce das marés. O mangue, em verdade, acompanha o mapa, não somente da zona
excludente dos países latino-americanos, mas, também, das encostas empobrecidas dos
continentes africanos, indianos, asiáticos.
Nesse sentido, o mangue é uma poética diversa em relação ao sincretismo afro-
ameríndio. Um legado que se estende, não apenas, ao livro ‘Cobra Norato’. “Tanto no poema
da Amazônia, quanto no ‘Urucungo’, poemas negristas, esse traço que no Caribe,
principalmente com Alejo Carpentier, na ficção, e Ortiz, na etnografia, de modo eficaz se
projetou constituiu na marca por muitos buscada, a partir de 22” [AVERBUCK, 1985:
XIV].
Por volta de 1927, ocorreu no Haiti o Movimento Indigenista
40
que, similar aos ideais
antropófagos de Oswald de Andrade, surge com as mesmas reivindicações da corrente
antropofágica. Um pela revolta e o segundo pela legitimação. Ambos os manifestos
instauraram uma nova etapa de um discurso fundado sobre a reconstrução de uma imagem
positiva da América e a recusa da consciência importada.
Para Darcy Ribeiro [2004:37], o século XX encontra os índios da Amazônia em
condições de vida muito semelhantes àquelas do tempo dos descimentos para as missões
religiosas e para o trabalho escravo no Brasil colonial, observando-se, ainda, que os
autóctones vivem em eterna guerra pela preservação dos territórios dos manguezais. A cada
época, os desmatamentos dos bosques de mangues, por parte dos criadores de camarão,
agrava a situação de indígenas que retiram do mangue a sobrevivência, como é caso dos
índios Tremembés e Tapebas, nas costas do litoral norte cearense.
De passagem pelo indianismo, encontramos resíduos da poética do amazonense Acrísio
Mota [1898], em diálogo antropofágico com a obra de Raul Bopp. Mota (op. cit.) que, no
final do século XIX, deu ao poema “Yara as misturas de tropos e expressões de teor
indianista:
Noite pixuna em torno se alastrava...Do igarapé a correnteza brava/Fazia tremer o
raizal do mangue//Ao da muirapara/A rígida taquara/Inda tingida no urucu do
sangue/Da última embiara/Ia no esgote da velas ygara/Ao jacumã o pescador
miranha/Vinha da piraçana/A manejar ligeiro o apucuitáva/Meu valente
apigáua!/Vem habitar comigo a mesma taba/Dormir na mesma tépida quiçáua!/ Sou
a mãi d’água te farei puranga./ Tens nos meus olhos a melhor puçanga.
A palavra ‘puçanga’, no idioma Tupi, se traduz como feitiço. O poema de Mota (op.
40
Ver Zilá Bernd. Negritude e literatura na América Latina.1987.
110
cit.) começa em uma noite ‘pixuna’ que significa em Tupi uma noite preta. Assim, uma noite
preta à beira do idioma oficial seria mera tautologia, mas na língua Tupi a noite ‘pixuna’
ganha uma sonoridade imagética que transcende o próprio mistério que habita a representação
da noite. Para os índios, a cor é símbolo de cultura. Uma noite preta difere, por exemplo, de
uma noite verde. A cada dia o céu anoitece diferente. A sonoridade da palavra ‘pixuna’ ecoa
de forma carinhosa aos encantos de sedução de Yara, sereia das águas. Nesse contexto,
‘pixuna’ sugere uma noite vermelho-escuro, em que se pode apreciar o céu despido frente à
lua-cheia amazonense que não é prateada. É um luar vermelho-escuro, quase da cor de chá, da
cor do rio, com suas águas pardacentas e quentes.
Na mitologia ameríndia, o mito de Yara entra com sua contribuição nas puçangas
lendária de Mãe d’Água, do Boto e de Cobra Norato. O mangue é uma sereia vegetal. Uma
sereia da lama. Também atravessa as fronteiras da africanidade e assemelha-se aos encantos
da rainha do mar, Iemanjá que, com seus cabelos de algas marinhas, além de protetoras das
águas, faz parte do inconsciente mítico ritualístico do candomblé. Em verdade, os mitos
alcançam a camada de sincretismo que banha a cultura popular. Para os pescadores do
mangue, o mito de Mãe D’água indica caminho para o mistério, mas também a trilha da pesca
e da proteção aos que vivem do mangue.
Vivemos em uma atmosfera de deslocamentos dos mistérios terrestres; a cada dia
perdemos a capacidade de conviver com as imprecisões do mistério que habita a natureza. E é
na manifestação da simplicidade das histórias míticas, que esse autor belinense alça vôo ao
de ‘muirapara’ (arco). No poema romântico tudo vira encanto, até mesmo uma planta rígida, a
taquara; sugere beleza. A cada fragmento do poema há um poder de sugestão que se revela no
corpo da escrita poética. “Um fragmento, semelhante a uma obra de arte em miniatura, tem de
ser totalmente isolado do mundo circundante e ser completo em si mesmo” [SCHLEGEL,
1987:60]. Em seu canto lascivo, as palavras trazem o canto isolado de uma sereia: “Vem
habitar comigo a mesma taba/ Dormir na mesma tépida quiçáua!”.
Seguindo o ritual de uma cultura primitiva, o poeta belinense pinça o verso com sons
primitivos, que rimam a métrica indianista e nos remetem ao ritmo livre de Raul Bopp: “Água
do rio engasgou. Secou. / Índio com alma hipotecada à floresta/ fugiu por caminhos
escondidos” [1998:244]. Mas Bopp, mesmo em seu compasso mítico, desmascara a ilusão
melodiosa do romantismo para pôr, às claras, a realidade dos desenganos da natureza.
111
Como se observa, tanto o poema ‘Yara’, de Acrísio Mota, como o livro ‘Iararana’, de
Sosígenes, mantêm correspondências antropológicas com a obra de Raul Bopp. Como diz um
verso de Sosígenes Costa: “– Você viu Caipora? / Não vi não. / E Romãozinho se foi
cantando: / - Eu ia pro Peso cortar de mangue ... Aquela bruxa também azulou./ O
lobisomem tomou um sumiço” [COSTA, 2001:430; grifo nosso].
Os mangues, em Sosígenes Costa, também acontecem em outro tempo que é o instante
mítico. Tempo em que se acredita em histórias de Mula-Sem-Cabeça, em que os bichos falam
como aquelas fábulas de La Fontaine. Mas, no poema de Sosígenes, o tom de denúncia
sobre o maltrato que os seres humanos dão à natureza do manguezal. O tempo de Iararana é
tempo em que a “terra brasilis” servia ao nascimento dos mitos íncolas.
Vejamos, então, mais uma presença mítica dos mangues em Sosígenes Costa [2001:441;
grifo nosso]:
E os macacos arremedaram Tupã-Cavalo/e nasceu cacau do bicho./E Jupará veio
morar no mato daqui,/no matinho da gente/só para comer o cacauzinho do povo.
E ainda por cima mandou chamar jupati./Mas jupati ficou comendo coco de
baixo/lá no Peso/com caxinguelê e maruim, de junto do mangue/ e perto de
grauçá e de filho de siri./E os índios foram obrigados a servir Tupã-Cavalo.
Tanto em Sosígenes quanto em Sousândrade, pode-se observar que, nas aldeias
indígenas, a caça, a pesca, a dança são sagradas, comungam um ritual totêmico. Assim, o
respeito ecológico se evidencia, pois a pesca é sagrada, a dança é sagrada, o mangue é
sagrado. Nas cenas mais cotidianas do universo mítico, os índios pintam corpo, dançam o
ritmo, cantam pajelanças em verdadeira celebração aos mitos vivos da memória silvícola. Ao
invocar os ritos, o poeta convida o homem a zelar pela natureza do mundo, para que, no
futuro, outros possam também celebrar o que temos de índio nesta terra ameríndia, para que
não se veja em estado de privação de terra os povos silvícolas.
Contemporâneo da colonização portuguesa, Sousândrade não ignora em sua obra os
assaltos cometidos à civilização íncola. Apesar de esquecido dos Modernistas de 1928, o
poeta maranhense Sousândrade prenuncia, de certa forma, em pleno Romantismo, as idéias
sincréticas da corrente antropofágica de Oswald e Mário de Andrade, Raul Bopp.
Com uma poesia, embrionária de cantos voltados para as expressões das raízes
românticas, fincadas na deglutição não apenas da linguagem, mas da própria cultura “Neste
vasto e magnífico estuário/ Ao sul e norte vagas oceânicas, / Mareiras brisas e o tufão
112
pampário/ Harmonias do mar guardam mecânicas” [SOUSÂNDRADE, 1984:337; grifo
nosso].
Em seu Guesa Errante, o poeta atravessa os Andes até o Amazonas, descreve a natureza
amazonense do Marajó; chega ao Maranhão, evocando os guerreiros dos poemas de
Gonçalves Dias. Sem um ordenamento muito linear, o poeta Sousândrade constrói o livro
Guesa Errante com cenas de delírios e tomadas de meditação sobre o massacre de índios
pelos espanhóis. O poema narrativo evolui dentro de uma linguagem repleta de mitos e tem
como cena principal a lenda indígena. ‘O Guesa Errante é predestinado a cumprir a moira
mística em celebração ao deus do sol, Bochica. Na lenda primitiva, Guesa seria educado em
um templo sagrado até os 10 anos de idade, quando repetiria o peregrinar do deus sol.
Depois disso, passaria por um tipo de sacrifício ritualístico. Aos 15 anos, seria
amordaçado em praça pública e morto a flechadas. Seu coração seria oferecido como
sacrifício ao Bochica, o deus sol, enquanto o sangue seria recolhido em ritual divino. Ao
terminar a cerimônia, abria-se uma nova indicação, em um ciclo correspondente
astrologicamente de 15 anos, em que uma nova criança seria raptada e sacrificada. De forma
sincopada, o autor à lenda uma leitura mítica que ultrapassa os ecos do passado e percorre
por lugares onde só se viaja adentrando a cultura.
Ao atravessar catástrofes humanas, às sombras de Pizarro, sobre as quedas dos
impérios, corrupção dos poderosos, sátira ao modelo americano, Sousândrade traz reflexão
sobre os índios de Wall Street. Vejamos como o poeta traduz em poema os índios americanos:
(Tammany entre as tribos:) / - Bisões! Águias! Ursos! Gorilas!/ Ao fundo vai
Manhattan!/Sitting-Bul! perdida,/Vendida/Ao rascal, ao rum - Arimã! [SOUSÂNDRADE,
1984:341]
Percorrendo mundos, lendas do Brasil, Europa, da África, dos países da América Latina
e Estados Unidos, Inca, Asteca, no décimo canto de Guesa se encontra uma estrutura com
os pilares do multi-culturalismo em pleno período Romântico. Tammany era uma espécie de
comunidade política autóctone americana. Nela as assembléias estatutárias recebiam nomes
como “Águia” [Nova Iorque], “Urso” [Connecticut]. No texto, a referência à “Manhattan” é
uma indicação da venda das terras indígena de Manhattan aos holandeses pelos próprios
aborígines em troca de colares. No terceiro verso, observa-se uma evocação ao chefe da aldeia
dos “Sieux”, “Sitting-Bull, que quer dizer touro sentado.
113
O livro todo se apresenta como folha de rosto de nossas origens, do massacre às
paisagens ameríndias. Sousândrade [1984:304], em sua saga poética, também traz referência
sobre a conquista dos povos Incas pelos espanhóis, presente no canto I de Guesa errante:
“Cândidos Incas! Quando campeiam/ Os heróis vencedores do inocente / Índio nu, quando
os templos s’incendeiam, / Já sem virgens, sem ouro reluzente”.
Bosi [1998:21], ao falar sobre desfalque das culturas ameríndias, coloca algo parecido,
porém assombroso sobre o genocídio dos Astecas e dos Incas e cita um exemplo, um tanto
conhecido nos meados do século XIX, quando a Argentina enfrentou a sangrenta batalha “Del
Desierto à custa de silvícolas e mestiços pagãos. “Pagava-se em moeda inglesa o par de
orelhas de índios, mas como em pouco tempo viam-se muitos indígenas com as orelhas
cortadas e ainda vivos, recorreu-se ao expediente mais eficaz de se pagar pelo par de
testículos”.
Segundo Bosi [1998:22], “Frei Bartolomeu de Las Casas, dominicano, publicou em
Sevilha a brevíssima Relacion de destruicion de los indios [1552], onde estima em 15
milhões o número de índios mortos entre 1492 e 1542”.
Na antropofagia boppiana, as raízes de índio em Cobra Norato é que são descobridoras
de poesia dos mangues. Por ali, os habitantes dos mangues trazem expressões sagradas de
uma cultura cabocla em que, ainda de forma fragmentária, confabulam ecos de protesto:
Grita de novo no meu sangue uma nostalgia de bárbaro” [BOPP, 1998:116].
41
Na seiva indígena de ‘Cobra Norato’, um resgate da cultura indígena com outra
percepção de mundo. Uma noção nostálgica de bárbaro. Visão de uma cultura insubmissa e
rebelde. O poema carrega um tom nostálgico que tem muito a ver com o mistério que cobre o
massacre de índios que vai do Brasil colonial ao dias atuais.
Todo pensamento e ação, como sinaliza Pelizzoli [1999:75], “por menor que seja, têm
ressonância dentro de uma cadeia absolutamente enredada. Mas a relação, de fato, dá-se
sempre com uma alteridade, com algo outro que o eu e o meu”. Sabemos que tanto os índios
quanto os negros, que habitaram e coabitam a periferia dos mangues, estiveram e estão
atrelados à exploração de todos os tipos, como: miséria, doenças, perseguições de policiais,
fome, desemprego, migrações forçadas, em um mundo de discriminações raciais.
41
Vale atentar para a origem dessa palavra: o Bárbaro, na Grécia antiga, era o que não tinha cidadania grega. O
que vinha de outra cidade-estado, outro pais, o estrangeiro. A exemplo: os romanos que eram tidos pelos
atenienses como povo bárbaro.
114
Também, por esse caminho, Boff [2004:127], no livro ‘Ecologia: grito da terra, grito
dos pobres’, ao repensar as crenças indígenas, acrescenta-nos que os silvícolas têm de algo de
singular e diferente do homem moderno: “sentem e vêem a natureza como parte de sua
sociedade e cultura, como prolongamento de seu corpo pessoal e social”. Para os indígenas, a
natureza é um ser vivo e não um mero objeto. A natureza fala outra voz. Resta entender sua
mensagem que é uma verdadeira ecologia-cósmica. A natureza não pertence ao homem, mas é
parte dele também de forma mítica.
Uma condição complexa que envolve identidades, fronteiras, aculturação, diversidade,
antropologia, políticas públicas. Em verdade, é mero engano pensar que os índios são seres
puros, ingênuos. ‘Macunaíma’ que o diga. O processo de aculturação levou a uma
assimilação, a um sincretismo cultural dos povos indígenas com os povos ditos ‘civilizados’.
Essa miscelânea de etnias nos faz lembrar, apenas, que nenhuma aldeia em um mundo
globalizado está intocada. No meio de uma tribo indígena, vê-se apenas que, por ali, ainda não
chegaram os manicômios, presídios, asilos de velhos, mas não sabemos por quanto tempo.
Na tribo dos índios Tapeba, no Ceará, o caranguejo que havia na aldeia desapareceu.
Com isso, houve uma migração do local de pesca dos Tapebas para os mangues dos
Tremembé. Em algumas aldeias,que se fazer um trabalho de conscientização sobre o meio
ambiente como recurso auto-sustentável. Não basta, apenas, falar que a dizimação de
mangues pode acarretar uma desertificação maior no mundo. Há que se conscientizar todos os
habitantes deste planeta sobre o modo adequado de lidar com os recursos naturais de agora
para frente. A natureza tem limites que, se não forem respeitados urgentemente, colocarão em
xeque-mate a vida presente. A onda desenfreada de consumo, as queimadas, o corte de
árvores têm muito a ver com o esquentamento da camada de ozônio e, também, com o grau de
pobreza no mundo. Vale observar que a pior erva daninha da ecologia ainda é a miséria do
pensar que ainda acredita que o mundo é para se dominar, explorar.
115
DIA TRÊS
Terceira Margem
Travessia dos outros lugares
Capítulo III
algum lugar/ lugar nenhum
O que era aquilo ao longe? Ondas de mar? No asfalto?
[MARILENE FELINTO].
~~~
A vida é cheia de passagens emendadas
[GUIMARÃES ROSA].
3.Travessia do pensar [por raízes]
O caminho das árvores/ é o destino dos homens/ (raízes nos habitam)
[LÉO MACKELLENE]
Semear em todas as direções. Em direções contrárias, os mitos são raízes de nossas
origens. Ao pensar por raízes, Raul Bopp insinua o sal na palavra. Resgata a varinha mágica
da vida primeira. Seu compasso carrega um Brasil para dentro das tendas dos mangues
íncolas. Não um distanciamento entre a voz narradora desse autor e as vozes míticas que
atravessam o poema. As raízes do mangue brotam na lama. A imagem das raízes serve a tudo
que nasce. Raízes são sementes de imagens. Elas são rizomórficas, se aglutinam em vários
sotaques, sem tornar nenhum deles superior aos demais. É necessário observar que, na poesia
boppiana, a voz múltipla aparece sem destacar a linguagem oficial como superior à fala
popular. Ao contrário, de maneira simples, com força de sobriedade, no nível das dimensões
em que se dispõem o uno e o múltiplo, interligados pelo chamado rizoma.
“No coração de uma árvore, ou no oco de uma raiz ou na axila de um galho, um novo
rizoma pode se formar” [DELEUZE; GUATTARI, 2004:24]. Isso ocorre, quando as águas
encostam o rio para o mar, as margens das raízes saem dos mangais em busca do litoral do
poema. “Nascer é nascer num lugar, ser designado à residência” [AUGÉ, 2001:52]. Mas que
palavra é essa que, para muitos, nasceu de forma tão embrenhada?
Para o poeta, todo vocábulo é múltiplo e surge caminhando para a gente, como observa
João Cabral [1994:119]: “Sempre pensava em ir/ caminho do mar/ para os bichos e rios/
nascer é caminhar” Em poesia, a palavra é resenha de imagens, sinal que contradiz a
natureza humana. No poema, um objeto feito de palavra, destina-se a conter e segregar uma
substância impalpável, rebelde a definições, chamada poesia” [PAZ 1993:77].
Mas onde se inscreve o ‘indioma’ mangue? Não há imitação, mas diferenças à parte. Os
mangues também carregam singularidades ambientais. “Vozes se dissolvem” [BOPP,
1998:165]. O mangue é substantivo simples com aspecto de primitivo. “É uma multiplicidade,
mas não sabe ainda o que o múltiplo implica, quando ele deixa de ser atribuído, quer dizer,
quando é elevado ao estado de substantivo” [DELEUZE; GUATTARI, 2004:12].
117
Repensar as raízes do mangue é percebê-las como teia de relação. “Não é próprio de um
rizoma cruzar as raízes, confundir-se às vezes com ela?” [DELEUZE; GUATTARI, 2004:22-
23]. Pensar por unidade o mangue é percebê-lo como sujeito e objeto dicotômico com início e
final. Refletir sobre o rizoma-mangue é perceber um itinerário diferente no qual não
caminho, mas dobragem de raízes, travessia de palavras, fragmento fasciculado, às margens
de um tapete ou mosaico de linguagens.
42
O rizoma é uma multiplicidade que não se encontra
preso a nenhum centramento. “Toda vez que a multiplicidade se encontra presa numa
estrutura, seu crescimento é compensado por uma redução das leis de composição”
[DELEUZE; GUATTARI, 2004:14]. Para esses pensadores: “Os abortadores de unidade são
aqui fazedores de anjos, doctores angelici, posto que eles afirmam uma unidade propriamente
angélica e superior”.
Em um universo caosmótico em que as fronteiras estão repartidas e divididas, o centro
perde seu magma. “O mundo perde seu pivô, o sujeito não pode nem mesmo mais fazer
dicotomia, mas ascende a uma mais alta unidade, de ambivalência ou sobre-determinação,
numa dimensão sempre suplementar àquela de seu objeto” [ibidem].
Não há distinção entre aquilo que o mangue fala ou representa e a maneira como é feito
artesanalmente. Não forma uma quantificação da escrita, mas pode-se definir como sendo
sempre a medida de outra coisa. Uma medida imprecisa, como destaca Ferreira Gullar
[2001:36]: “nem das fezes que a cidade/ vaza em seu corpo de peixes/ nem da miséria dos
homens escravos de outros/ que ali vivem agora / feito caranguejos”.
Fragmento sem unidade, sem linearidade, rizomático está em sintonia com múltiplos
mundos. Caminho do meio do meio-ambiente. Travessia de raízes. Mangues lembram uma
paisagem entrançada que penetra na lama para acompanhar o rio, como um caranguejo
espesso penetrando a lama. O mangue vem resgatar a voz de Homens e caranguejos em Josué
de Castro. Foi o rio quem me avisou. E era a verdade. O rio não tinha segredos para Chico.
muitos anos que ele trocava língua com o rio. Que descobrira o sentido completo do
linguajar do rio dialogando com os mangues com as jangadas, com os pescadores”
[CASTRO, 2001b: 145].
42
Para Deleuze [2004:13] do lado do objeto, segundo o método natural, pode-se sem dúvida passar diretamente
do uno ao três, quatro ou cinco, mas sempre com a condição de dispor de uma forte unidade principal, a do
pivô, que suporta as raízes secundárias. Isso não melhora nada. As relações biunívocas entre círculos
sucessivos apenas substituíram a lógica binária da dicotômica. A raiz pivotante não compreende a
multiplicidade mais do que o conseguido pela raiz dicotômica. Um opera no sujeito enquanto a outra no
objeto.
118
Se os pré-socráticos sinalizavam para a fragmentação da palavra, os teóricos
românticos da escola de Novalis tinham a fragmentação como semente do poema. A
fragmentação não é uma característica da contemporaneidade, mas, talvez, a conseqüência
alarmante de seu caminhar pela história humana. Para Schlegel [1987:51]: “Muitas das obras
dos antigos se tornaram fragmentos. Muitas das obras modernas foram escritas como
fragmentos. Não vem de agora, surgiu muito daqui com as primeiras organizações da
sociedade”.
O poder de criar analogias [completamente distanciadas], em poesia, acontece no
impasse das imagens distorcidas. Se os gregos [pré-socráticos] inventaram no fragmento a
formatação de suas idéias; os românticos, por sua vez, criaram no verso o retrato da própria
fragmentação de imagens. Com as vanguardas modernistas, o confronto de imagens
fragmentadas atingiu o que se pode chamar de exagero vanguardista. A lama, a exemplo, pode
ganhar o som da floresta em Raul Bopp. O que é aparentemente sem valor traduz-se para
construir aterros poéticos.
Octavio Paz sinaliza [1993:79] que: “desde o princípio da história propriamente dita, ou
seja, quando os homens abandonaram as aldeias do Neolítico e começaram a viver em
cidades, a coletividade original se fragmentou, dividida em classes, profissões e grupos”. Na
visão do escritor mexicano: “Até as crenças religiosas se bifurcaram: uma era a do
ceramista e outra a do teólogo, uma do escrevente e outra do escravo”. A divisão da sociedade
corresponde à diversidade das artes, das ciências e das técnicas de reprodução. No início, arte
e religiosidade, poesia e mitologias eram feitas da mesma matéria. Na medida em que cada
artesão se tornou autônomo, o conhecimento se singularizou, o mundo se fragmentou e a
pluralidade de culturas brotou sem tréguas.
Na visão do escritor mexicano, a pluralidade no seio de uma cultura significa a
coexistência de relações diferentes em minorias. Na perspectiva de Octavio Paz, a
coexistência de diversas minorias não exclui, pelo contrário, inclui a comunicação e a relação
entre os seres. “Essa rede de relações entre grupos diferentes forma um tecido impalpável,
mas real”.
Os mangues são lugares em que os antepassados construíram lições diferentes de
humanidade e que os descendentes desses ensinaram a respeitar. Ambiente significativo para
os habitantes ribeirinhos, que repovoaram a memória do lugar com estórias e mitos. Em uns
119
intervalos opostos e silenciosos, pertencentes aos lugares em que a memória foi abafada pelo
tempo e excluída das gentes, o manguezal é essencialmente a metáfora da multiplicidade. As
multiplicidades são a própria realidade e não supõem nenhuma unidade, não entram em
nenhuma totalidade e, tampouco, remetem a um sujeito. Os princípios que caracterizam as
multiplicidades concernem a seus principais elementos, que são singularidades. Para Deleuze
e Guatarri [2004:8], o modelo de realização, que é o “rizoma (por oposição ao modelo de
árvore); a seu plano de composição, que constitui platôs (zona de intensidade contínua); aos
vetores que as atravessam, e que constituem territórios e graus de desterritorialização”.
Poesia de lugares desterritorializados, o mangue é contingência de singularidade.
Esteticamente, a dança das raízes no solo movediço do manguezal nos lembra um ritornelo
que, segundo Deleuze e Guattari [2004:8-9], são “pequenas cantigas territoriais, ou o canto
dos pássaros; o grande canto da terra, quando a terra bramiu; a potente harmonia das esferas
ou a voz do cosmos”.
Lugar ‘antropológico’ de contexto singular e múltiplo, o mangue é imagem do que
fomos e somos no território da memória coletiva. Josué de Castro [2001b: 164] em ‘Homens e
Caranguejos’ indaga: “De como utilizar a lama dos mangues como trincheira de combate”, se
o manguezal espalha suas raízes pelas fronteiras do mundo inteiro? Sem resposta pronta, o
próprio Josué de Castro é quem esclarece: “E quando cresci e saí pelo mundo afora, vendo
outras paisagens, me apercebi com nova surpresa que o que eu pensava ser um fenômeno
local, um drama de meu bairro, era um drama universal” [CASTRO, 2001b: 21].
Geograficamente, de forma bastante similar, a paisagem suburbana dos mangues brasileiros se
reproduz, de forma similar aos manguezais do mundo inteiro. “Que aqueles personagens da
lama do Recife eram idênticos aos personagens de inúmeras outras áreas do mundo assoladas
pela fome” [CASTRO, 2001b: 21].
Por aqui se trata de observar quem o habitou ao longo da história. Como observa Augé
[2001: 53]: “O habitante do ‘lugar antropológico’
43
não faz história, vive na história”. O lugar
antropológico é aquele que abriga as etnias que nele vivem, labutam e que o defendem. Esses
lugares demarcam sincretismo, sinalizam para os vestígios dos povos ancestrais que
povoaram, de forma íntima, a geografia do mangue. “Como se um pedacinho de humanidade
que lhes dedica nesse lugar de oferendas e sacrifícios fossem também sua quintessência, como
43
Reservamos o termo lugar antropológico, segundo Marc Augé [2001], àquela construção concreta e simbólica
do espaço que não poderia dar conta, somente por ela das vicissitudes e contradições da vida social, mas à qual
se referem todos aqueles a quem ela designa um lugar, por mais humilde e modesto que seja.
120
se não houvesse humanidade digna desse nome a não ser no próprio lugar do culto que lhe é
consagrado” [AUGÉ, 2001:43].
Com seu eixo voltado para o mundo ao redor, o mangue, como árvore-mundo, é
singularidade e pluralidade, como rizoma. “Sabedoria das plantas: inclusive quando elas são
de raízes, sempre um fora onde elas fazem rizoma com algo com o vento, com o animal,
com o homem” [DELEUZE; GUATTARI, 2004:20].
Na visão dos dois estudiosos, acompanhar as plantas é começar por seguir círculos de
convergência ao redor de singularidades sucessivas. Em uma trama de irrupção, raízes de
planta estendem-se de nós para o outro em uma teia-rizoma que atravessa a lama, o mangue, o
homem, a diversidade do mundo. Em sintonia com essas linhas, deve-se “seguir sempre o
rizoma por ruptura, alongar, prolongar, revezar a linha de fuga, fazê-la variar, até produzir a
linha mais abstrata e tortuosa com n dimensões, com direções rompidas” [ibidem].
O valor que cabe à palavra mangue em sua própria multiplicidade de etnias, o que
equivale dizer que, num mesmo lugar, podem coexistir “elementos distintos e singulares, sem
dúvida, mas sobre os quais não se proíbe pensar nem as relações nem a identidade partilhada
que lhe confere a ocupação do lugar comum” [AUGÉ, 2001:53].
“Junta-se o rio/ a outros rios. / Juntos / todos os rios preparam sua luta/ de água parada, /
sua luta de fruta parada” [MELO NETO, 1994:113]. Não se deve perguntar a um poema o que
ele quer realmente dizer. “Uma definição de poesia pode determinar o que ela deveria ser,
não o que ela realmente é; caso contrário, a mais breve formulação seria: a poesia é tudo o que
a qualquer momento e em qualquer lugar for chamada como tal” [SCHLEGEL, 1987:55]. Às
vezes, não nos diz nada e, mesmo assim, tem muito a desdizer. A poesia é o caminho do meio.
“Escrever nada tem a ver com significar, mas com agrimensar, cartografar, mesmo que sejam
regiões ainda por vir” [DELEUZE; GUATTARI, 2004:12]. Em algumas escrituras, a palavra
desfigura a máquina-mundo com concreção e ilogicidade. “Mas a única questão, quando se
escreve, é saber com que outra máquina a máquina literária pode estar ligada, e deve ser
ligada, para funcionar” [DELEUZE; GUATTARI, 2004:12].
121
3.1 O caminho do não-lugar
Não sou de nenhum lugar, / Sou de lugar nenhum. [TITÃS]
Liga de contrastes, entre direções desencontradas e apropriações, a máquina-mangue
encontra-se presa a uma estrutura cuja recompensa é a lei de exploração. “A mesma máquina/
paciente e útil/ de uma fruta; / a mesma força; / invencível e anônima de uma fruta” [MELO
NETO, 1994:113].
Manguezais são terras palafitas de submundos que habitam caminhos de lama:
“Lameiros se emendam/ Mato amontoado derrama-se no chão” [BOPP, 1998:155]. O
manguezal é espaço provisório das minorias em terras pertencentes judicialmente à Marinha.
Josué de Castro [2001b: 107] em ‘Homens e caranguejos’ observa sociologicamente algo
parecido. “No mangue o terreno o é de ninguém. É da maré”. Cada manguezal é único e
múltiplo, semelhante e diferente como se fosse uma pessoa, “como cada um de nós era vários,
já era muita gente” [DELEUZE; GUATTARI, 2004:11].
O mangue é verso múltiplo, poema desfigurado pelo que de singular: “Tudo que
encontrei/ na minha longa descida, / [...] tudo levava um nome/ com que poder ser conhecido.
/ A não ser esta gente/ que pelos mangues habita: eles são gente apenas/ em nenhum nome
que os distinga na morte; que aqui é anônima e seguida” [MELO NETO, 1994:141].
No manguezal, os outros são gentes conhecidas e desconhecidas, convivendo juntas
rente à cumeeira feita de sucata: “Todo aquele material - folhas de coqueiros, varas de
mangues, barro amassado, caixas de querosene, folhas de zinco - tudo era amontoado em
certos lugares estratégicos das moitas dos mangues” [CASTRO, 2001b: 113]. Na casa do
mangue, os outros são etnias, minorias.
Alguns índios chamavam de ‘outros’ os Tapuias aqueles que não falavam a linguagem
tupi-guarani. No manguezal são as famílias culturais, que se definem, segundo Augé
[2001:23],“em relação a um conjunto de outros supostamente idênticos, ‘um ele’, na maioria
das vezes, resumido por um nome da etnia; o outro social”.
Os outros do mangue são meus outros eus, em conexão com os outros. “Conheço toda a
gente/ que deságua nestes alagados. / Não estão ao nível de cais, / vivem no nível da lama e
do pântano/ Gente de olho perdido/ olhando-me sempre passar” [MELO NETO, 1994:142]. O
estranhamento do mangue é de não pertencimento ao mundo. De ninguém eu era. Eu era de
122
mim” [ROSA, 1994:101]. O manguezal é o que habita o desconhecido, fronteiras de humana
gente desenraizada; pessoas que caem nos alagados e vivem uma vida a esperar o próximo:
“Passo na beira de um enchardiço/ Um plasma visguento se descostura/ e alarga as margens
debruadas de lama” [BOPP, 1998:155].
Entre a paisagem do que foi e do que será, desde o começo, como diz Guimarães Rosa
[1994:25], “eu apreciei aquela fortaleza de outro homem”. O outro é o tu, o vizinho da
esquina. O pronome indefinido que sai do território anonimato: “Chão longe/ penca de siris
vem de dentro/ caracol vive exilado/ caranguejo sinaliza/ muitos caminhos para desfazer isso/
andar de costas” [LIMA, 2003:41].
O eu perdido que percorre labirintos “não chega ao ponto em que não se diz mais ‘eu’,
mas ao ponto em que não tem qualquer importância dizer ou não dizer EU” [DELEUZE;
GUATTARI, 2004:11]. No mangue, o contrário do esperado é o outro formado de
velocidades diferentes. Não como correr para pescar o peixe. A espera faz parte da
filosofia dos manguezais. O morador do mangue tem sonhos feitos de matérias regidas pela
águas. A água é que se dá ao pescador. O peixe é presente doado pelo rio.
Nos estratos territoriais, o mangue é o rio que em todos nós. Delimita-se para a outra
foz, outras margens. O mangue anda do lado incerto como em qualquer lugar marcado pelas
fronteiras. O que choca pelas desmedidas daquilo que diverge. O concerto de vozes que
dialoga com outros ritmos e dobras da poética rizomática. “Princípio de conexão e
heterogeneidade: qualquer ponto de um rizoma pode ser conectado a qualquer outro e deve
sê-lo” [DELEUZE; GUATTARI, 2004:15]. Outros mundos imaginados em fronteiras bio-
diversas do meio ambiente rizomático onde já, “não somos mais nós mesmos. Cada um
reconhecerá os seus. Fomos ajudados, aspirados multiplicados” [DELEUZE; GUATTARI,
ibidem].
O que não se compreende, não se aceita, não se comunga, preconcebe-se como o outro
aquele que se rebela. O mistério do outro é o mito ou místico. Nas escrituras poéticas, o outro
é o demo, o inesperado, o anjo que se rebela. A alma que se faz mangue na lama; o barro que
guarda o segredo dos povos mangues; o poema mítico que se faz filho do barro nas esculturas
de palavras. “Entre a revolução e a religião, a poesia é a outra voz. Sua voz é outra porque é a
voz das paixões e das visões; é de outro mundo e é deste mundo, é antiga e é de hoje mesmo,
Antigüidade sem datas” [PAZ 1993:140]. O poema do mangue é o outro do poeta, aquele que
123
“só é capaz de ver o aproximo de Deus é em figura do outro?” [ROSA, 1994:23].
O corpo que translada para as margens do rio é o outro; a poética que sai do fundo das
águas para o mar é o mangue. Na direção da margem oposta, outro é o que completa a ilusão
da poesia. “A ilusão poética é um jogo de impressões” [SCHLEGEL, 1987:55]. O que não se
familiariza é território desconhecido; coração escurecido. O outro é o que sai do lodaçal
desconhecido para o espaço irreconhecível. O estranho é o não reconhecido como próximo ou
íntimo. O outro é o eu interior, parte abstrata de nossa subjetividade. Relva de gente, outra
identidade, outra liberdade, outra visão. É o outro que se faz unir ao estranho como amigo da
‘inventança’ ficcional: “O senhor é de fora, meu amigo, mas meu estranho” [ROSA,1994:31].
muito dos outros em nós. Buscamos nossa diferença entre iguais. E nos
reencontramos com nossos outros eus, quando comungamos nossa vida com os outros.
Somente nós somos iguais a nós próprios. “A experiência do outro enquanto Outro é fazer a
experiência do limite (próprio), do imprevisível enfim, daquilo que o pode ser tiranizado”
[UNGER, 2001: 40]. O que desperta, em nossos dias, é a relação que mantemos com os
diversos eus perdidos e repartidos. É a diferença que nos une e ao mesmo tempo nos torna
distâncias e divergências. “Por outro lado, o que é dicotomizar senão isolar e negar este outro
que ameaça o reino do um?” [UNGER, 2001:40]. A contradição, o contrário, o avesso de
qualquer coisa somos nós. “Sou o diferente de todo o mundo. Meu pai disse que eu careço de
ser diferente, muito diferente” [ROSA, 1994:74].
Entre uns e outros, marcamos nossas diferenças pela preferência de sexo, comunhão de
idades, recepções de endereços, profissão e lugares. “Ventres de florestas gritam: - enche-
me!” [BOPP, 1998:163]. Em referência a um certo número de outros, Augé [2001:23] anuncia
o “outro íntimo” que se confunde com a individualidade. Um outro que não está no cerne de
todos os sistemas de pensamento. Augé acrescenta que o outro, em sua representação,
universal, responde ao fato de que a individualidade absoluta torna-se impensável: “a
hereditariedade, a herança, a filiação, a semelhança, a influência são categorias por meio das
quais se pode apreender uma alteridade complementar e, mais ainda, constitutiva de toda
individualidade”.
Na maioria das vezes, o outro é o que resume o percurso de um lugar de uma etnia. Mas
é o outro que se institui e se legitima enquanto lugar social. Sem o outro, onde e como se
institui o território da diferença? O que o possibilita vez e voz ao outro é a exclusão. São
124
formas de violência que, em regime totalitário, remetem a um abafamento da cultura do outro.
O mangue dos outros começa na lama e termina no ser humano. “O social começa no
indivíduo” [AUGÉ, 2001:24]. Os mangues são cirandas de lama. A dialética dos manguezais
é sobrevivente de outros dialetos.
O outro, como lugar do mangue, é o que experiencia a escassez de tudo em um sistema
regido pelo signo e pelo poder ou, como alerta Roland Walter (2005): “pelo acesso negado ao
signo / à significação por relações de poder”. Diante disso, podemos sugerir que o mangue
junta o tudo ao nada, o isto ao aquilo, o algum ao nenhum, o um ao outro, os vários em um
poema. Cada poema da lama é um pequeno deus mendigo. Na poesia, o aproximo da lama é o
homem. O verso do mangue é um universo que rasteja. São estrofes viscosas entre símbolos,
imagens, sons, formas: “coagulam-se estirões visguentos/ estendidos ao sol para secar/
Enruga-se o charco/ como um ovário cansado” [BOPP, 1998:164].
A voz poética que cobre o mangue é lúgubre de uma sonoridade subterrânea. A poética
do manguezal, mesmo sendo ela mesma, é sempre outra cousa. Como raiz, o mangue é radical
estranho; transgressão verbal que brota do mais longínquo poema: “Nunca a voz de ‘aqui e
agora’, a moderna, sim a de lá, a outra, a do começo” [PAZ, 1993:140]. Como imagem, os
mangues são criaturas anfíbias atoladas no silêncio cinza dos alagadiços. São seres humanos
que nos remetem a realidades ameaçadas de histórias enterradas na lama. Em algumas
imagens ambientais, o mangue é terra envenenada que nos faz lembrar de Paz [1993:146]
quando diz: “Diante da questão da sobrevivência da espécie humana em uma terra
envenenada e desolada, a resposta não pode ser diferente. Sua influência seria direta: sugerir,
inspirar, insinuar. Não demonstrar, mas mostrar”.
Nas palafitas de água, o lugar tem escala variável banhado pela enchente. Acampamento
de lama, o mangue é o movimento das estacas. De natureza flutuante, o manguezal é
propágulos que nasce da lama. Alimenta diversos poemas, reproduz muitas espécies de
fonemas. Sobre ele, o papelão escora a sombra e a luz, protegendo das agressões do mundo.
Feitas de caixotes, casas de mangue são palafitas de índios na imersão das fronteiras
diaspóricas. Na terra das raízes aéreas, o território do manguezal é taba de resistência nos
solavancos das contradições sociais.
Ao repertoriar as questões do mangue como fronteira, itinerário de passagem, eixo do
meio, encruzilhada de gente, interseção de linhas, curvas raízes, define-se a poética da
125
diversidade entre lugares e homens enlameados. Um itinerário que pode passar
desprevenidamente, mas que constitui mesmice, diferença e diversidade com outros mangues
do mundo.
O escritor Glissant [1992:97-98] observa bem o mundo universal da mesmice cultural e
o paradigma da diversidade fragmentada. Na visão do escritor, a diversidade representa uma
tentativa da alma humana efetuar uma relação “intercultural, sem transcendência”. Enquanto a
mesmice busca a profundidade, o absoluto do ser, a diversidade retoma a proposta pré-
socrática de estar no mundo em perpétuo processo de mudança transformação. “Ele não é ser,
mas sendo e que todo sendo muda [...] Um dia vamos admitir que o somos uma entidade
absoluta, mas sim um sendo mutável” [GLISSANT, 2005: 33]. Na mesmice, a diferença é
sublimada enquanto na diversidade a diferença é singularmente aceita, a partir de elementos
heterogêneos. O que a diversidade propõe é uma poética da relação, um enraizamento de
relacionamento com o outro, com o mundo, com o cosmos. A diversidade é rizoma,
diversidade de raízes de mangues, preto, branco, vermelho. A mesmice é ilha de privilégio
para alguns, discriminação e isolamento para outros.
Para Glissant [2005:123]: “não se pode lutar - fisicamente contra as multinacionais.
(Apenas de maneira factual, quando elas se tornam visíveis, como, por exemplo, diante de
uma ameaça ecológica)... Por outro lado, também o devemos preservar nossos antigos
reflexos”.
Respeitar o outro envolve também a natureza. Transgredir a natureza é violar nossos
vários eus identitários. Abrigar diálogos sobre a cultura do mangue exige uma aprendizagem
de desconstrução, conseqüentemente, de desconfiança das raízes identitárias simples e unas.
“As culturas comportam-se como madeira verde e jamais constituem totalidades acabadas
(por ocasião extrínseca e intrínseca); e os indivíduos, tão simples quanto os imaginamos,
nunca são o suficiente para não situar em relação à ordem que lhe atribui um lugar” [AUGÉ,
2001:26].Os outros são também lugares ou o-lugares. Poetizar seguindo o manguezal é
percurso alinhavado pelo dificultoso.
Não se penetra na lama em posição ereta, curva-se o corpo para equilibrar o peso.
Derriça o corpo agachado como um dança. As árvores de mangues se assemelham às
dançarinas. As raízes lembram seres humanos em ritmo de balé. As folhas aplaudem raízes,
festejam o mundo verde. No balé do mangue, mulheres e homens se equilibram entre raízes
126
rizóforas como seus passos equilibrando-se na lama. O catador de caranguejo, a exemplo,
utiliza duas técnicas para a captura do caranguejo: a captura ‘no braço’ [o caranguejeiro enfia
o braço na lama para capturar com as mãos] ou a captura ‘no pé’. São poucos os catadores que
dominam a técnica no que somente é realizada, quando o crustáceo está a mais de um
metro de profundidade no ‘mangue mole’ e não pode ser mais localizado com o braço. é
possível a pesca dos caranguejos com os pés atolados em terras de ‘mangue mole’. É nessas
áreas que a lama do mangue é movediça e não apresenta dificuldade à perna. Se por um lado o
mangue facilita a introdução dos s no lamaçal, mas, por outro, não facilita a locomoção, o
andar nesse tipo de manguezal exige cuidado preparo físico e muita habilidade.
Os rodopios dos caranguejeiros exigem uma agilidade com o corpo na lama. Os
movimentos do dorso derriçam para frente e para trás em ziguezague rápido, a fim de
amolecer a lama ao redor, para a passagem do homem caranguejo. As mãos seguram
firmemente as árvores, a outra perna é retirada da lama e apoiada nas raízes de mangue”
[ALVES, 2004:170]. No atoleiro, o corpo valseia e declina as pernas em linha curva. O
agachar-se leva a uma troca íntima entre a natureza do homem e a natureza do mangue. Corpo
e lama chegam ao fundo; dorso e mangue atingem a superfície das raízes. “É em nós que as
árvores se enraízam em silêncio” [MACKELLENE, 2006:26].
Os catadores penetram no manguezal com bermuda e com o corpo pintado com óleo
diesel. O óleo que serve para repelir, livrar o corpo de muriçocas, maruins. Os homens
caranguejos, geralmente, usam calçados velhos, rasgados ou botas de borracha. Também
levam sacos que chegam a carregar três dúzias do material pescado. Sempre que podem, os
caranguejeiros entram no mangue como quem presta reverência, acompanham o corpo das
árvores, da lama e andam por cima das raízes como quem flutua.
Os catadores de mangues lembram uma dança contemporânea com passos enviesados
entre curvas sinuosas, balé ao contrário.
As plantas que se assemelham a pessoas dançando, de acordo com as marisqueiras,
festejam a vida e o verde. São espécies filhas de um mangue que possui um
ambiente repleto de galhos curiosamente entrelaçados e que inspiram a imaginação
e a criação, pois delineiam coisas, seres, gente, mãos, etc [CAVALCANTE,
2004:72].
Avistam-se as raízes que mais parecem encruzilhadas de linhas turvas. Estradas flutuam
sobre raízes tortas. Retrato de um mundo subtraído. Espaço que caminha para o desconhecido.
127
Mundo pintado de contrastes. Vida que não disfarça a miséria que se multiplica dentro
d’água. “Sairá o sol amanhã para os homens?” [PAZ, 1993:52].
Como saber desse habitat’ verde lodo sem sair tocado ou atolado? Como vasculhar as
paredes da geografia, atravessar o raizal lamacento, os afluentes, as margens esquecidas, as
memórias do barro, histórias de descobrimentos camuflando as veredas do tempo, caminho do
meio, lugar que a história esconde as origens. Uma travessia que não se passar. Uma
moradia sem fachada. Celeiro de urgência ecológica e emergência social. Ambiente do meio
urbano que se despoja à margem terceira dos rios. Mundo de lama navegado por homens
enraizados na arte da pesca. Mais exatamente: o mangue é um mundo de gente. Se nos retiram
os mangais, nos tiram o mundo insalubre dos troncos ‘candelabros’ iluminando mariscagem.
Local intervalar entre o rio e o mar, a terra e a lama, o mangue pertence a não-lugares,
palavra onde se cava um “fosso entre a funcionalidade cotidiana e o mito perdido” [AUGÉ,
2001:88]. Espaço onde se não se planta esperança, de forma ecologicamente saudável, como o
futuro há de brotar?
Na suja comodidade das imagens, canoa vira casca; homem é sobra de entulho.
Rodeando a lama a água consome gente anônima. Mangues são lugares sem nome, feito
caramujos, sem ruas, sem enfeites. São lugares que muitos de nós não fazemos idéia do
itinerário para se atravessar. São lugares dos poucos, minorias em que somente miúdos
sururus conseguem atravessar completamente. O mangue é uma perna de calça, esquecida na
lama. O manguezal é o longe perto. Perto do que parece, mundo onde o vento verde esteve.
O manguezal é lugar propício como ‘habitat’ natural de ostras, raízes, caranguejo e
pescadores. Mas também é não-lugar como trapiche provisório de barcos-canoas e
comodidade abismal de palafitas. Para Augé, não-lugares são travessias, lugares anônimos,
espaço andarilho, abrigo de viajantes. Seguindo por esse itinerário, a estada, e não a estadia,
sinaliza o não-lugar. São lugares de pouso, repouso, passagem. Espaço ou travessa, gueto ou
beco ou tapiches de favela, trânsito em ruela. Mangue é sem caminho. Do trapiche de lama à
pista de aeroshopings’: “[...] os pontos de trânsito e as ocupações provisórias (as cadeias de
hotéis e os terrenos invadidos, os clubes de férias, os acampamentos de refugiados, as favelas
destinadas a desempregados ou à perenidade que apodrece)” [AUGÉ, 2001:74].
Quando pensamos o lugar, imaginamos sempre em recorrência ao ventre que nos pariu.
O lugar que voltamos para lembrar de nosso antepassado. Lugar de onde se tem a origem da
128
linguagem. Lugar que se torna inquilino do poema. Lugar que rege as cordas umbilicais da
poesia onde nosso eu é sempre outro. “E o lugar em que se realiza o ato-poema é um não-
lugar” [PAZ, 1984:144]. É onde retornamos ao nosso eu infante. No lugar em que nascemos
sentimo-nos acolhidos pela saudade. As raízes do lugar fincam em nós os pilares de um
sentimento amoroso e até nacionalista. São as raízes fremosas do lar que nos fazem abraçar o
lugar que nascemos. Como descreve Guimarães Rosa [1994:187]: “Eu sou donde nasci. Sou
de outros lugares”.
São os lugares que nos fazem reconhecer como pertencentes ao cordão umbilical
familiar. São os lugares que trazem o sentimento materno de aconchego. O indivíduo quer um
lugar para ter parentes no mundo. É o lugar que nos faz enraizar e acreditar na utopia. O não-
lugar “é o contrário da utopia; ele existe e não abriga nenhuma sociedade orgânica” [AUGÉ,
2001:102].
Os não-lugares, como travessias dos manguezais, são percursos marítimos onde a canoa
prende-se às raízes de lama na crença de arvorejar. Fronteiras de desigualdade social. Terreiro
nômade, “agricultura líquida” colhida de forma indeterminada pelas incongruências da lama.
Nem sempre é bosque ou floresta, é gente enlameada arriscando coragem. O mangue, como
não-lugar, é celeiro diverso para cada pessoa que habita as necessidades. Mangue é plantação
de marisco, pescado e caranguejo. Lugar onde as relações pouco se constituem e se
recompõem. Nunca existem sob uma forma pura. É sempre complexo em um mundo
comprometido com o efêmero, o provisório, o incerto, o fétido. No mangue, lugar e não-
lugares se alinham, se complementam. Pegando a fala de Augé [2001:74], o lugar e o não-
lugar são conceitos de polaridades fugidias: “o primeiro nunca é completamente apagado e o
segundo nunca se realiza totalmente palimpsestos em que se reinscreve, sem cessar o jogo
embaralhado da identidade e da relação”.
Em luta com as marés, o manguezal é fugidio e como moradia é lugar impraticável. O
paredão existe na lama de; outra de lá. Miséria habita os dois lados da lama: dos que têm e
dos que não têm nada para dar. Lugar sem hoje, nem amanhã; na lama desvendada, encosta os
caixotes de papelão sobre árvores palafitas. Um beco verde, miséria inocentada pelo
sofrimento. Trapiche sobre lixo, não como os passantes transformarem o espaço movediço
em rua geométrica definida pelas calçadas da urbe. O corredor verde de mangues improvisa
passarelas tortas para atravessar a lama. Não são as palafitas que entulham o rio, mas o lixo
dos esgotos.
129
Os não-lugares do manguezal, geralmente, são lugares poucos freqüentados. Por ali, não
se arrisca entrar, muito observar. À distância dos olhos, são tidos como itinerários que
abrigam delinqüentes. “De certo modo, o usuário do não-lugar é sempre obrigado a provar sua
inocência” [AUGÉ, 2001:94].
As taperas de lama são fendas que carregam o peso da ‘sobre-vivência’ nos ombros.
Calejadas pelo abandono. Palafitas são lugares que pertencem ao esquecimento. “O espaço do
não-lugar não cria nem identidade singular nem relação, mas sim solidão e similitude”
[AUGÉ, 2001:95]. Resistentes residências, o-lugares de improviso, as choupanas alojam
etnias advindas de outros lugares antropológicos: sertão e tabas de índio.
O que se pode observar no mundo de hoje é que os lugares e não-lugares misturam-se
entre encruzilhadas. “A possibilidade do não-lugar nunca está ausente de qualquer lugar que
seja” [AUGÉ, 2001:98]. Lugares e não-lugares são pontos marcados pelo hífen, pelas
fronteiras das identidades em trânsito. “Lugares e não-lugares se opõem (ou se atraem), como
as palavras e noções que permitem descrevê-las” [AUGÉ, 2001:98]
Entre lugares e o-lugares, o mangue é espaço da imobilidade; lugar
desterritorializado, pensamento de mundo desenraizado. Terra banhada pela experiência da
falta de oportunidade, o mangue caminha para um outro lado: o do sertão. Manguezal,
socialmente, lembra um sertão de águas. O sertão molhado de fome pela correnteza de
mangue. O mangue é um sertão pelo avesso. A terra molhada de gente explorada. O lugar
onde a “miséria que aqui se disfarça não é apenas material: refere-se à produção poética”
[BENJAMIM, 2000:9]. Miséria que pertence aos que atravessam a cidade, ausentes de fala.
Miséria sem direção. Perdida em sua preocupação permanente. É local da metáfora movediça.
Terreno das encruzilhadas étnicas. Lugar onde a sede encarangueja e a oportunidade de
mudança social seca. Esturrica os sonhos na lama. O mangue como lugar é fragmento da
cidade.
O mangue é local que desabita a humildade para ser suburbana. Afunda miséria no rio
que não se sabe se é gente ou cisco. Manguezal é cruzamento de gente das ruas com os povos
dos rios. É o poema selvagem das margens. “A poesia dos selvagens é uma coisa narrada sem
começo, meio, nem fim” [SCHLEGEL, 1987:81]. Poema esquecido na lama, estranhado e
perdido no próprio país, sem visto ou passaporte para algum tipo de dignidade. A pobreza
ainda é o retrato mais fiel que se pode fazer dos habitantes do manguezal. A diferença entre o
mangue e o sertão é que no mangue a pesca ou a coleta de marisco é alimento. Quando o rio
130
está seco, não se esconde a raiz da lama. O mangue não se atravessa se o mar sobe ou se o
mar desce. À noite, o mar desce a roupa da praia. Das casas caneludas, a pobreza aumenta o
lugar de ‘mil e umas noites tapuias’.
Seguindo as pegadas de caranguejos, em córregos verdes, molhado de lodo, estende-se
um mosaico rizomático de raízes que mais parece serpente seguindo o rio. Água veste o chão
do charco. Nesse itinerário de caminhos de paragens pardacentas, pedaços de mangues sem
residência culturais fixas fazem o caminho do meio entre imagens que seguem pelo desvio.
Lugar que atravessa um rio a nado. Mangue anda lento e desencontrado. “Órfão de
conhecença” [ROSA, 1994:32]. Caramujo lambuzado de farrapos. Lama aloja excrementos. A
pobreza menor do mundo não é de comida, mas de fraternidade. Nos mangues, miséria e lama
se emendam mesmo. “Não são mais a expressão do desespero de um solitário ou da angustia
de uma minoria de inconformados: são opiniões populares e revelam um estado de espírito de
coletivo [PAZ, 1993: 52]”.
Em uma travessia difícil, até mesmo para os sentidos, a profundeza do mangue não se
alcança. Entre a terra e o mar, entre a lama e o rio, o mangue talvez seja uma dessa espécie
insalubre que se situa no ‘entre-lugar’ dos trópicos. Percorre-se apenas o caminho da
superfície enlameada. Os mangues são percursos de uma agricultura marítima. Seguem o
caminhar dos rios, na travessia de pescarias nômades. Não é a harmonia selvagem muito,
menos o paraíso perdido. É ausência dos que se foram; é espaço onde índio e negros
continuam a beber, mas não é mais o local no qual viveram seus antepassados.
Nesse mundo onde tudo ao redor se acaba em lama, não rota a seguir no manguezal.
As pegadas se perdem dentro das águas. Não caminho de partida nem de chegada. O que
é o meio mundo de raízes subindo e descendo o rio. Canoa onde crescem histórias
absurdas, o mangue é o meio. O brejo é lugar das travessias silenciosas. O mangue é como um
rio em travessuras que aparece e se esconde, mas reaparece em uma teia inacabada. Ao
transmudar desemboca em outras margens. No contorno das raízes, o ‘eterno retorno’ em
travessia.
Guimarães Rosa [1994:28], ao margear travessias, orienta outros caminhos: “Eu
atravesso as coisas - e no meio da travessia em minha vida não vejo! estava era entretido
na idéia dos lugares de saída e de chegada”. O que se observa é que no meio da lama, não
início nem fim. “O real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no
meio” [ROSA, 1994:46]. O que existe no manguezal resiste: a imagem de um pescador
131
jogando a rede de pesca sobre a teia dos mangues. O que se atravessa são margens. O resto:
“Assaz o senhor sabe: a gente quer passar um rio a nado, e passa; mas vai dar na outra banda e
num ponto mais embaixo, bem diverso do que primeiro se pensou” [ROSA, 1994:28].
132
QUARTO DIA
Margem Quarta
Travessia do mangue-prostíbulo
Capítulo IV
Série: O Canal do Mangue
e mais além os armazéns do cais fluvial e o vasto horizonte do rio grande da Magdalena a vinte léguas
de seu estuário. A única coisa ingrata na casa é que o sol vai mudando de janelas no transcurso do dia.
[GABRIEL GARCÍA MÁRQUEZ, 2005:10; grifo nosso]
ao bloco de carnaval : ‘LiLi nem sempre toca flauta’
4 O Santeiro do mangue: a ópera bufa de Oswald de Andrade
“Palavras do Poeta da Beira do Mangue”
Gozai piranhas!
Um corpo foi roto
E jogado em pedaços
Ao Canal das Hetaíras
Plec! Plec! Plec!
Era o cadáver
-Eu o pressenti -
Dum filho da puta
Eu o percebi seguido pela multidão
O avistei
Preso e detido
Pelo rude investigador
Anavalhado
Como um facho
Pelas negras águas fechadas
Que teriam feito dele
As noturnas baleias do Mangue
De soutien e calças?
Um cadarço de outro?
Uma boca matutina?
A chuva desfolhada?
O arfar das esferas?
[ANDRADE, 1991:37; grifo nosso].
Abaixo da linha do equador, quando a poesia lança as raízes primitivas de ‘Cobra
Norato’ [1931], o poema assume um tom maquiado urbano enquanto a prosa deglutia a fala
regionalista da geração de Gilberto Freyre, de Casa-Grande& Senzala [1931]. Antes disso,
Carlos Drummond retira da gaveta o primeiro embrulho de palavras: ‘Alguma poesia’ [1930].
Ainda preso à forma surrealista, o poeta Murilo Mendes coloca nas livrarias o primeiro livro:
‘Poemas [1930]. Atravessando o quarteirão do verso livre, Manuel Bandeira publica o livro
‘Libertinagem’ [1930] enquanto o Graf Zeppelin pousa no campo do Jiquiá’ bem próximo de
uma área de mangues, no Recife, em 22 de maio de 1930.
A anarquia paroxística do primeiro momento modernista é substituída pelo toque da
cautela formal nos flertes da poesia de 30. Nesse trâmite, Bopp segue sozinho pelo atalho de
sua cobra de vidro’
44
em uma época em que a cidade era a menina dos olhos da poesia. Não é
à toa que, também por essa época, Oswald de Andrade’ aguçado pelas idéias comunistas’
44
Termo de Sérgio Buarque de Holanda.
134
rascunha a lápis seu último livro ‘O Santeiro do Mangue’, que somente foi publicado 20 anos
depois.
O mangue, como lugar dos conflitos eco-sociais é quintal do cenário urbano. O escritor
assume o discurso do ‘entre-lugar’, dividido entre a natureza bucólica do interior e o elevador
de barro da zona carioca. Sem consolo para acompanhar os vendavais do progresso,
Drummond [2002:99] descreve: - “Que século, meu Deus! diziam os ratos./ E começavam a
roer o edifício”. Na exploração de todos os dias: “Os oceanos calaram-se muito”
[DRUMMOND, 2002:75].
Nas vidraças de palavras, a construção drummoniana recebe no ritmo, as ironias de uma
paisagem que entrelaça o campo às novidades das coisas citadinas: “Um grilo pula no ar como
foguete. / Vem da paisagem de barro úmido” [DRUMMOND, 2002:8]. À beira de uma
construção abissal da cidade, o poeta declina responsabilidades na marcha do mundo e espera
reconstruí-lo com palavras encharcadas de esperança: “Na minha rua estão cortando árvores/
botando trilhos/ construindo casas” [DRUMMOND, 2002:13]. Debaixo de árvores soterradas,
as cidades saneiam os esgotos do progresso: “A torre Eiffel alastrada de antenas como um
caranguejo” [DRUMMOND, 2002:9; grifo nosso].
Um pouco mais à frente, encontramos a temática do mangue entre cidades inventadas e
‘Sentimento do Mundo’: “Os homens célebres visitam a cidade. / Obrigatoriamente exaltam a
paisagem. / Alguns se arriscam no mangue, outros se limitam ao Pão de açúcar”
[DRUMMOND, 2002:76; grifo nosso]. A geografia tentacular do mangue vem ao longe,
distante do corpo, como pano de fundo em outro momento da poesia drummoniana: “O meu
amigo era tão/ de tal modo extraordinário, / cabia numa só carta, / esperava-me na esquina, / e
um poste depois/ ia descendo o Amazonas, /[...] na serrania mineira/ no mangue, no
seringal, / nos mais diversos brasis” [DRUMMOND, 2002:218; grifo nosso].
A avenida Mangue carioca é como várias cidades dentro da diversidade do barro. No
poema ‘A festa do Mangue’, o poeta de Itabira insinua a perspectiva de sua fala pelos
caminhos do prostíbulo. Sobre os caminhos do amor, na zona do Canal Grande, indaga o
autor mineiro: “Por que nasce o amor no mangue/ e vem coberto de limo, / assim tão úmido e
humilde, / querendo ser misturado/ às impurezas do homem? [...] Aqui se cumprem os ritos/
da cópula imemorial” [DRUMMOND, 2002:1190; grifo nosso].
Pela sensualidade do olhar das artes plásticas, o pintor Lasar Segall retrata o Mangue a
135
partir da fonte meretrícia do Canal Grande no Rio de Janeiro. Segall, em uma série de
gravuras sobre o ambiente da Vila Mimosa, revisita o Mangue pela perspectiva do traço
primitivo. O pintor suaviza os pincéis para demarcar o Mangue como território erótico, “que o
poeta comentou em crônica, evocando aquela zona pobre de prostituição do Rio que cantara
num antigo poema, pelo menos uma vez. Segall junta à face da dor do ser decaído à figura do
cacto” [ARRIGUCCI, 2000: 30].
A construção de Segall sobre o Mangue é mais ingênua que em Oswald. O traço
primitivo em arte plástica é ritmo não coeso. O retrato é imagem inacabada. A gravura
desfigurada de sentidos carrega um lirismo ambíguo: olhar grave, postura serena.
Entre Olinda e Recife, uma praia colada à cidade histórica, bem ao lado da favela
Maruim. O acesso, apesar de ser um tanto negado pelo perigo, vale à pena conferir a praia de
‘Del Chifre’, próxima a um quartel militar, vila de casas abandonadas, amparadas por
residências da Marinha, de frente para praças e coisas antigas. Praia em que os meninos m
lavar os burros para amanhecer.
Contam que, quando os maridos [marinheiros] viajavam para o mar, algumas esposas
traíam os parceiros, colocando os famosos ‘chifres’. Com o tempo, o jargão popular ganhou
as ruas e, na voz da inconsciência coletiva, a praia acabou ficando rotulada, na boca do povo,
como Del Chifre.
Símbolo de prostituição e com fama acidental de ser mais uma praia, dentre tantas, suja
ecologicamente, Del Chifre busca em nossos dias outras leituras ecossistêmicas. Em diálogo
com Clemente Coelho Júnior, o pesquisador afirma que na atualidade um projeto de
revitalização ecológica dentro da comunidade praiana de Del Chifre para resgatar uma nova
consciência junto aos moradores sobre os danos ambientais causados àquele lugar.
Em Olinda, Chico Science e seus amigos iniciaram as aventuras da arte de surfar nessa
praia. Não se sabe como isso ocorreu, até porque Del Chifre tornou-se, no atravessar dos
tempos, uma praia bastante inóspita. Rebelada para a prática do surfe, o lugar ganhou
poeticidade; chegou, inclusive, a receber homenagens da banda ‘Nação Zumbi’ em forma de
canção, Del chifre’s Beach, faixa do disco ‘Rádio Samba’. Um refrão meio afro-latino, na
decolagem de batidas do rap-repente, rock envenenado de sambas, hip hop e maracatus.
Del chifre, de alguma forma, mantém analogia com a Vila Mimosa carioca, lugar onde
136
muitos atravessaram o canal-grande para viver aventuras marginalizadas. Alguns por convite,
outros por delírio, curiosidade. O canal-grande, antigo bosques de mangue, recebeu aterro
para dar lugar aos casebres da zona de prostíbulos. Por ali, poetas declamaram em poesia o
que se escrevia na senda da vida. Vinícius de Moraes descrevia coisas do tipo: “Não ateais
fogo às vestes/ E vos lançais como tochas/ Contra esses homens de nada/ nessa terra-de-
ninguém!” [MORAES, 1986:207]. Ao musicar expressão à zona meretriz, o poeta convoca
em compasso ternário o poema ‘Balada do Mangue’. Neste, “a prostituta assume a forma da
serpente insinuante, mas numa situação de degradação física, moral, capaz de seduzir apenas
aqueles que a ela se igualam em condição” [FREITAS, 2002:56].
Muitos se atreveram a poetar sobre o fogo libertino do Bairro Mangue, Mário de
Andrade [1984: 985], no livro ‘Remate de Males’, descreveu o Mangue como alcova em que
se hospeda no corpo a experiência do verbo eroticizado: “O Mangue vai refletir os corpos
enlaçados!”. A sensualidade da palavra Mangue, em Mário de Andrade, está em relação não
somente com a errática dos corpos, mas com o imaginário erótico da zona Mangue. Em
correspondência com a nudez pervertida do manguezal, o escritor Antônio Fragra, no
romance ‘Desabrigo’, descreve as subversões do ambiente Mangue na contramão dos afetos
eletivos, dos amores vendidos. Na cama da sobrevivência ou no troca-troca de corpos, Fragra
remete-nos ao filme documentário ‘Mangue’ [1979], da cineasta Célia Rezende, que revela o
cotidiano do Mangue se prostituindo à beira do canal da cidade carioca.
Não muito distante da perspectiva de Rezende e Fragra, o escritor Marques Rebelo, ao
construir ‘Marafa’, evidencia cenas profanas e sarcásticas sobre a zona do Mangue. Sobre
Rebelo, o crítico Renato Cordeiro Gomes [1994:134] no livro ‘Todas as cidades, a cidade’,
“observa em primeiro plano ‘Marafa’ como espaço público do Mangue e das malandragens
cariocas: “Como Marafa é denominado em ‘O Espelho partido’, as ruas adjacentes, a Lapa, os
bares, as avenidas, o carnaval”. Na visão de Cordeiro, ‘Marafa’ é o cenário rebelado pelas
noções de “mobilidade (não permanência), de não-família, de prazer instrumentalizado pelo
corpo, de dispêndio, de ausência do trabalho. É o universo de Risoleta e Teixeirinha, das
prostitutas, cafetinas e cafetões, dos malandros”.
O santeiro’ oswaldiano é o mundo da zona decadente do Mangue. Por ali, alguns, mais
otimistas, esperam o milagre de um dia sair daquelas entranhas de lugar, mas aguardam a vida
como um trem de fim de linha. O universo de loucura e morte é dos mais miseráveis. Quando
uma prostituta deixa o mangue, logo o espaço é ocupado por outra meretriz. O herói bebe em
137
‘Macunaíma’ e é um malandro astucioso que quer levar proveito em tudo. Nessa ótica, como
diz Cordeiro [1994:125], “o narrador encena Teixeirinha em suas relações com os clubes
carnavalescos, as mulheres, os otários”.
Em segundo plano, o espaço doméstico espelha o sentimento de privacidade da moral,
dos valores tradicionais. O mundo da casa é marcado pelo lugar da permanência, da repressão
do corpo, da honestidade no trabalho. É o ambiente de personagens como José, donas de casa,
Sussuca, dos aposentados, do emprego miúdo, servil, que a cidade grande adota, devora,
aborta:
45
Rebelo, assim com Bandeira, o Mangue em seu cotidiano singular em um recorte
multifacetado de imagens conflitantes. O caos é reconstruído das vinhetas da cidade do Rio de
Janeiro onde coexistem estilos de vida, costumes, tradições, concepções morais, diferentes e
muitas vezes antagônicas. Para recriar as cidades dentro das cidades, Rebelo constrói, não
especificamente, ‘senzala atlântica’, como faz Oswald de Andrade, mas verdadeiras suítes
cariocas. “Nelas estampa-se claramente a partição do Rio pelos seus bairros. Pretende-se o
cronista, pelo viés da memória afetiva e cultural, depreender-lhe a personalidade própria
ameaçada pela fúria urbanística modernizadora” [CORDEIRO, 1994: 115-116].
Debaixo de raízes citadinas, o cosmopolitismo de fachada ganha uma superfície suja e
perigosa. Como diz Rebelo [2003:45], em letras maiúsculas, o mangue esteve em de
guerra. As impressões deixadas pelas primeiras leituras trazem personagens partidos,
inquietos, perdidos, incompletos, em um tipo de sobrevivência coberta de lacunas ou, quem
sabe, rasura mesmo para as oportunidades de vida. A história recolhida no romance vem de
classes indistintas. À margem do ‘Cosmopolitismo dos pobres’, a expressão é de Silviano
Santiago, o mundo da marginalidade do bairro Mangue circula entre valores de um mundo
corroído pelo poder, prostituído pelo capital:
À medida que o Rio vai passando à categoria de cidade tentacular, toma corpo um
incessante fazer-se e desfazer-se. No jogo destruir/ construir, um Rio novo molda-se
a cada instante. Nesse sentido, M. Rebelo pode dizer e ver em suas narrativas as
muitas cidades dentro da mesma cidade. Procura vê-la nun espelho partido, cujos
cacos resistem a qualquer totalização. É o processo do autor para construir possíveis
leituras do Rio que vai tornando-se ilegível. Rio-Múltiplo: a própria cidade é um
espelho partido que diversifica e faz proliferar o seu repertório de imagens
[CORDEIRO, 1994:116].
45
Lembremos que a Avenida Mangue, no Rio de Janeiro, estendeu-se e cresceu à custa da derrubada dos
mangues, ao mesmo tempo em que o próprio rei de Portugal passava um edito, com força da lei, protegendo os
mangues do Brasil. O manguezal continua sendo as duas coisas, a gata borralheira cujo trabalho ininterrupto
fornece sub-reptícios e que continua sendo mal reconhecida e muito menos agradecida, e agora é também a
bela princesa, rica e generosa, que requer cuidados especiais por causa de sua própria riqueza [VANNUCCI,
2002: 210].
138
Para Gomes [1994:129], “a visão otimista de Oswald contrasta com o pessimismo de
Rebelo”. ‘Marafa’ é uma prosa de costume, enquanto o Santeiro do mangue’, uma ópera
bufa, “um texto radicalmente demolidor, direcionado pelo traço ideológico, passa pelo crivo
da paródia, da gozação, a igreja, da burguesia, sua moral e seus privilégios” [CORDEIRO,
1994:129].
Feita sobre as bases do provincianismo, em uma época em que as raízes de brasilidade
alicerçavam os pilares da diversidade poética, a linguagem de ‘O santeiro do mangue’,
segundo Alvim [1991:17], “antecipa a um tempo, e escrita transfigurada de Nelson
Rodrigues e Dalton Trevisan”. Em verdade, o Oswald de Andrade, do primeiro livro,
‘Trilogia do exílio’, difere muito pouco daquele que faz ‘O Santeiro do Mangue’. A diferença
entre os dois se pelo enfoque. O primeiro, negociado nos bordéis caros à moda rendez-
vous”. O segundo, na região dos cabarés de um subúrbio carioca. Nesse uma “vasta zona
onde se exerce o amor vendido e proletário, o amor barato, humilhante, humilhado”, como diz
Brito [1991:12], em prefácio ao livro ‘O santeiro do mangue’.
Tendo como remate a cidade transformada em mangue obsceno, a operística oswaldiana
descreve a cama erótica e errática da zona do Canal Grande pelas “negras águas fechadas/
Que teriam feito dele/as noturnas baleias do Mangue/ De soutien e calças” [ANDRADE,
1991:37].
Em Oswald de Andrade, o Mangue aparece como lugar da rua, vem em letra miúda e
maiúscula simbolizando a condição do espaço do meretrício, zona ou avenida de prostituição,
região dos desvalidos de sorte e posição social. Uma sátira à condição miserável dos que
necessitam vender o corpo no prostíbulo para ganhar o pão da sobrevivência.
A poesia de Oswald é marcada por um violento verso iconoclástico, de reflexão
religiosa. No poema ‘O Anjo da Guarda refere teores de ironia e chacota. A personagem
heróica do poema é Eduléia, uma adolescente de 16 anos, levada à prostituição sob a
cumplicidade divina, em um momento em que o anjo da guarda se esquecera de Eduléia.
A sátira oswaldiana é totalmente descomportada e quando surge o Mangue vem em tom
picaresco: “navio humano quente/ Negreiro do Mangue” [ANDRADE, 1991:35] está mais
para o livro ‘Poesia erótica e satírica’, de Bernardo Guimarães, uma perversão pornográfica
no comprido poema ‘Elixir do pajé orgias dos duendes’. Mas o iremos entrar aqui em
139
Bernardo Guimarães porque somente sobre ele caberia uma outra tese.
Para encontrar a zona de prostíbulo, o olhar comedido perde o foco, entra o erotismo, o
‘testemunho dos sentidos’ de que fala Paz [1994:11], em sua ‘Dupla chama amor e erotismo’.
Com vinhetas incompletas, a linguagem oswaldiana desvia do esteticamente correto: “Gozai
piranhas! / Um corpo foi roto/ E jogado em pedaços/ Ao canal das Hetaíras”. Contudo vale
observar, com certa cautela, a impressão da primeira leitura, pois Oswald, neste livro, é tão
fragmentado que chega a ser mais contemporâneo que propriamente modernista. “Mas o
fragmento, em Oswald de Andrade, não apresenta nenhuma nostalgia da totalidade perdida.
Pelo contrário, o fragmento oswaldiano é assunção plena dos choques temporais e espaciais
aos quais suas personagens estão expostas” [PERRONE-MOISÉS, 2000: 209].
‘O santeiro do mangue’ se insere na sofrida inequação do desamor, onde o idioma
traduz-se pela linguagem popular: -Mi um bejo na minha testa/ -Pra quê?/ - Eu gosto/ -
Ocê brocha hoje/ - Foi o ar que deu”. Em coro, apanha palavrões; Vam fudê vam/ Vam
buchê van/ Na bunda vam” [ANDRADE,1991:23].
A sátira picante aparece escrachada aos véus da hipocrisia humana: “Eduléia a um canto
chorado do Mangue” [ANDRADE, 1991:31]. Em tom suburbano, informa: “Comunicai aos
justiçadores que existe aqui no mangue um sujeito que ama” [1991:34]. No poema, o riso
travesso sai desajeitado: “As mulheres do Mangue sorriem” [ANDRADE, 1991:25]. O ar
comediante sai da veia humorística e o “sinistro rir do Mangue” [1991:32]
A oração do mangue, em Oswald, indica diálogos com a poética de Gonçalves Dias:
“Na direção das palmeiras do Mangue/ Ó leques das palmeiras do Mangue/ Esmeraldas
noturnas/ Para os caçadores dos palmares do Mangues” [1991:40]. O grotesco surge “pelas
negras águas fechadas/ que teriam feito dele/ as noturnas baleias do Mangue” [1991:37]. A
lírica provida de expressões sentimentais: “O coração do seu Olavo mora no Mangue”
[1991:18]. O escatológico descamba para o grotesco: “Crianças ides todas para o Mangue/
tentacular” [1991:41].
O sagrado descamba para o profano:
46
“A polaca cor de merda quis berganhá/ Santo
46
A indagação entre deus / demo, santa/ puta é uma referência em Grande Sertão Veredas. Entre o apelo da
dúvida e da culpa, Riobaldo debate-se com a dualidade. De um lado: Ninhorá, amor crescido e transformado
para a emoção indizível. Pelo avesso, o sentimento de paixão por Otacília surge como outra forma de amor.
Diadorim é o amor de intimação que dura “sempremente”.
140
Antônio por uma coisa chamada mimitante/ - Sai Puta” [ANDRADE, 1991:26]. O sacrilégio
aparece sobre a pele do escárnio: “Vou fazer michê com ela... no mangue”
[ANDRADE,1991:21]. Na zona pervertida dos mangues, revela-se a desordem na movência
de valores. Em busca da radicalidade do signo, crítica em tom jocoso, bebe na carnavalização,
na paródia, para alcançar o imaginário da zona pervertida do canal grande: “Rosa/
Turbeculosa/ Maria Mágica/ Blenorrágica/ Lulu Titica/Apocalítica/ Sifilítica/ turca
Maluca/Maroca Loura/ Bentevis da Madrugada” [ANDRADE, 1991:42].
Oswald de Andrade revela o mangue-bordel pelas cordas de um poema bufônico que se
abre sem hierarquias para um mundo empobrecido sem leis, regras, tabus, estéticas: “Debalde
/ O homem foi ao bordel / A poesia ficou nua entre grades como um meridiano/ Mas tu
escalaste o missal das janelas/ E libertaste a alga da blia nas piscinas” [OSWALD,
1991:89].
A contrário de Rebelo e Bandeira que descrevem um cenário poético em hemisférios
homogêneos e distanciados, Oswald, à procura da disparidade, em sua transgressão, expõe
personagens heterogêneos convivendo num mesmo espaço da ópera bufa [do mangue] como é
o caso do: Jesus das Comidas, Eduléia, seu Olavo, o Homem da Ferramenta, os anjos, anjas,
satã, cafetões, turistas, gigolôs, michês, comissário de polícia.
‘O santeiro do mangue’ é a ópera escatológica, poema duro sobre a zona de prostituição
dentro do canal do mangue. O poema Mangue carrega tragédias e dores, com um tom de
denúncia, e se apóia em uma visão ideológica repleta de mudanças e coberta de oportunidades
sociaispara todos. Os dramas ali não são individuais, mas coletivizados, em blocos contínuos
e descontínuos. É um poema de massificação dos valores. Um grande teatro poemático. Tem
por cenário a cidade transformada numa espécie de bordel coletivo. O mangue, ali, é o amor
proletário, o amor humilde e humilhado.
A ópera-mangue de Oswald denuncia a forma subversiva como acontecem os preceitos
éticos, morais, religiosos, a partir da ótica do discriminado: “A cidade mecânica/ Pôs as
crianças rotas na roda/ Ciranda Cirandinha/ Nosso corpo vamos dar/ Aos que podem nos
pagar” [ANDRADE, 1991:41]. No mangue meretriz, a fala oswaldiana é provedora de
bacanais e orgias tentacular: “Vem beleza/ vem benzinho/ Vem mocinho/ Vem cá”
[ANDRADE, 1991:23].
Para Paz [1994: 20], a castidade assim com a libertinagem podem acontecer em planos
141
coletivos ou individuais. “Ambos se inserem na economia vital da sociedade, embora o
segundo, em seus casos mais extremos, seja uma tentativa pessoal de romper os laços sociais
e se apresente como uma libertação da condição humana”.
O santeiro do mangue’ é resumo de duas figuras emblemáticas: o asceta libertino e o
vendedor de santo na batina da devassidão. O primeiro deles se encontra em Jesus das
Comidas; o segundo, em Seu Olavo dos Santos. O trocadilho de nomes e sobrenomes místicos
sugere no poema traços e referências, em relação de oposição. Muitas vezes, em um
movimento de liberação do pecado. No meio do atoleiro de promiscuidade, o profano é
espaço para dar voz ao grotesco. “Só no Mangue/ As famias pros padre/ Por santinho/ E
santo grande/ Por isso mesmo/ Ninguém mais / Quer me comprá” [ANDRADE, 1991:25].
A libertinagem oswaldiana aparece como reflexão das formas contrárias à devoção
religiosa. “Poema libelo, com breves trechos em prosa, ateu e irreligioso, acusa a organização
social pela degradação da mulher comprada pela degradação do homem consumidor de
carinhos” [BRITO, 1991:13]. A crítica aos pilares sagrados da sociedade brasileira é colocada
em questão. “É que o amor não pode existir naquele meio. Se aparecer ‘um sujeito que ama,
logo é apontado como traidor’. [...] O indivíduo não existe. Eduléia e Deolinda são a mesma
pessoa” [BRITO, 1991:14]. A blasfêmia ganha a ares de sacrilégio, o sarcasmo teores de
chanchada. “O Cristo do alto do Corcovado urina sobre o Mangue” [ANDRADE, 1991:42].
Os pecados estabelecidos pela igreja católica são devorados, não pela lei da descrença, mas
pela necessidade de sobrevivência: As mulheres do Mangue sorriem/ - Todas temos/ Na
parede do quarto/ A Santa Ceia/ É a de Leonardo/ Todas temos/ E a Deus tememos/ Para que
não falte/ O pau/ O pau nosso de cada noite” [ANDRADE, 1991:25].
Na fusão entre o sacro e a embriaguez profana, a religiosidade vem às avessas. “O
libertino nega o mundo sobrenatural com tal veemência que seus ataques são uma
homenagem e, às vezes, uma consagração” [PAZ, 1994:24].
Na dupla face do erotismo, a zona do Mangue está inscrita como entre-lugar portuário
de desejo. Sopro que se faz discurso pela via da imaginação fálica. O Mangue carrega a duplo
sentido de bordel, diferentemente do lugar ecológico de Raul Bopp, ‘O santeiro do mangue’ é
local da diferença, ‘poética da relação’, na diversificada zona suburbana carioca.
A prostituição em ‘O santeiro do mangue’ foi e é pobreza que se alijada das
necessidades mais simples. São mulheres que o Mangue recebe para suavizar o quadro de
142
uma miséria estampada no gozo. As prostitutas do bairro Mangue são extensões das senzalas
oceânicas. Exploração que se deixou escravizar frente às leis do mercado perverso.
Inúmeras são as causas que levam ao caminho da prostituição. Dentre elas existem
causas sociais, econômicas, influência do meio familiar, desilusão amorosa, falta de
trabalho, a miséria embrionária que se faz presente, ou mesmo uma alternativa para
socorrer salários insuficientes [FREITAS, 2002:30].
Em nossos dias, o tráfico internacional de prostitutas amordaça jovens que são pagas a
preço de um prato de comida. Vendem-se sonhos em outros países que são verdadeiros
calabouços. Muitas crianças promíscuas são usadas, ou melhor, abusadas, somente para atrair
olhares do ‘prostiturismo’.
A prostituição no Brasil está atrelada, cada vez mais, ao mercado de drogas e armas.
Uma colonização explícita, não apenas, da cor exótica de traseiro mulato, mas da dignidade
humana dos habitantes dos mangues e favelas deste país.
A prostituição nas ruas do Brasil é um vasto quadro da miséria estabelecida. Legitima-
se o corpo da mulata brasileira como exótica ou prostituta. Por outro lado, a mulata brasileira
se deixa vender e ser explorada pela imagem do dinheiro fácil. Com isso, carrega o vício da
malandragem e o valor da mulher fácil mundo afora, como se fosse isso a marca de sua
identidade latino-americana.
Leva-se, mundo afora, a velha imagem dos países latinos que, frente à rede de tráfico e
turismo, rende-se ao mercado da prostituição. Não é à toa que a visão preconceituosa que
amordaça os estereótipos exóticos dos trópicos ainda serve como valor para determinar a
identidade dos povos latinos. Em verdade, “a prostituição é uma vasta rede internacional que
trafica com todas as raças e todas as idades, sem excluir, como sabemos, as crianças. [...]
Nunca se imaginou que o comércio suplantaria a filosofia libertina e que o prazer se
transformaria em um parafuso da indústria” [PAZ, 1994:143].
O Mangue, como prostíbulo, ocupa o lugar das distâncias econômico-sociais. Tão
antigo quanto as primeiras constituições de cidades, o ambiente pornográfico e o lucro sempre
foram ligados à questão comercial. “A circunstância econômica, ou seja, desemprego, salários
baixos e pobreza geral atraem as mulheres para a indústria do sexo” [FREITAS, 2002:62]. Em
nossos dias, a coisa se opera ao alcance da cultura de massa. A sexualidade transforma-se em
objeto como ferramenta da industria de prostituição. A ‘internet’ amplia as redes; a televisão
143
os canais; os veículos de mídias exportam a nudez em capas de revistas.
Até onde se conhece a prostituição, na Antigüidade, era praticada de forma artesã.
Atualmente, é reproduzida como parte essencial da cultura mídia que fomenta o grau de
consumo. A cada dia, ampliam-se espaços para os espetáculos virtuais. A exemplo, os big-
brother globais. Não alarma o crescimento desses serviços, mas sim as proporções que, na
barbárie da publicidade, ele passa a assumir de forma tão oficializada. A transgressão torna-se
rotina. “Dessa forma, o confisco do erotismo e do amor pelos poderes do dinheiro é apenas
um aspecto [...]; o outro é a evaporação de seu elemento constitutivo: a pessoa”, alerta Paz
[1994:149].
‘Entre-lugares’, o comércio da prostituição possibilita, por meio da mídia, disfarces para
a realização dos sonhos, do desejo. A velocidade em que os sonhos se multiplicam torna a
vitrine do desejo sob a tutela do poder. A servidão dos caprichos perde de vista a dimensão
eco-natural das coisas para tomar conta de uma dimensão culturalmente fabricada.
Historicamente construída, em nome do avanço dos tempos, “o que estrutura o local o é
simplesmente o que está presente na cena; a forma visível do local oculta as relações
distanciadas que determinam sua natureza” [GIDDENS, 1991:27].
O que se percebe no poema ‘Santeiro do mangue’, em sintonia com a multiplicidade dos
tempos, são os diversos desdobramentos culturais nas fronteiras do prostíbulo. O troca-troca
do corpo como mercadoria que faz do Mangue o lugar em que as sociabilidades se estendam
do comercial para o pessoal. Em condições de modernidade, o lugar se torna cada vez mais
fantasmagórico: isto é os locais são completamente penetrados e moldados em termos de
influências sociais bem distantes deles” [GIDDENS, 1991:27].
O não ter a quem obedecer, muitas vezes, cerrou polêmicas e censuras ditatoriais. Uma
década mais à frente de sua publicação o livro ‘Santeiro’, que trazia polêmicas não apenas
eróticas, mas também comunistas, foi convidado pela censura do AI-5 a sair das prateleiras,
dos circuitos das livrarias. Em 1967, ‘O santeiro do mangue’ foi novamente impedido de
circular como suplemento da Revista ‘Mirante das Artes’. Em 1971, a ditadura excluiu este
livro das obras completas de Oswald de Andrade. Pela mesma época, o ‘Rei da Vela’,
adaptado em peça teatral por José Celso Martinez, é convidado a sair de cartaz pela censura
dos generais.
Insubordinado para a fala comportada, Oswald de Andrade revela seu Mangue-santeiro
144
pelo território da revolta, da sátira, do tom quixotesco da ironia: “Não mais o Mangue,
dizem/ Aquela nojeira! / puseram por cima do Mangue Timoschenko/ Os lustres/ Duma
avenida ilustre/ Anda depressa! / Vem nos ajudar a sair destas senzalas/ Atlânticas/ Para que
seja eterna a glória/ Dos que tombaram em defesa da liberdade/ e da Pátria/ de todos os
trabalhadores do mundo” [ANDRADE, 1991:44].
O poema ‘Santeiro do Mangue’ finda como um estrondoso canto de ópera. Do mistério
gozoso fica a utopia de uma nova sociedade em que não existem mais os reis do Mangue ou
as senzalas atlânticas. “Uma nova sociedade de vir para que a humanidade se redima”
[BRITO, 1991:14].
A Avenida Mangue do canal-grande lembra-nos as histórias que Dindinha nos contava
sobre Zé Palhaço, um trompetista de jazz que tocava em um Cassino do litoral piauiense, com
um grupo de jazzistas, durante a década de 1930, na rua Grande, da cidade do Delta do
Parnaíba, região entre-rios, banhada pelo mar e manguezais. Não durou muito a rebeldia do
jazz por ali, na década de 1920, o cassino foi destruído por ordem da prefeitura para dar lugar
a um prédio no qual, atualmente, funciona a sede da TELEMAR. Não restou nada; os
membros do grupo foram morrendo e com eles desapareceram os últimos resquícios de jazz
nos mangues parnaibanos.
Bem antes disso, nos prostíbulos de Nova Orleans, embalados pelo Jazz avant-garde e
blues country, notas de blues e saxofone saíam da zona de prostíbulos. Nas festas dos cabarés,
o swing - pop e jazz moderno rebelavam a sonoridade da música negra no território dos
manguezais. As arruaças dos jazzistas em Orleans também não duraram muito e, por volta de
1917, foram silenciadas pela Marinha norte americana. Conforme Hobsbawm [1996:63-64],
com a tomada do bairro meretrício, “alguns músicos com experiência em barcos fluviais,
subiram o Mississipi chegando até Chicago, e de foram para todas as partes dos Estados
Unidos, principalmente para Nova Yorque”.
Quem começou fazendo barulho dentro dos prostíbulos do manguezal foi o pessoal do
grupo Chico Science & Nação Zumbi. Durante a década de 1990, devido à carência de
espaços alternativos na cidade, o mangue-bit afinou os acordes no Franc’s Bar em pleno
Recife antigo. Por ali, faziam-se previsões psicodélicas na roupagem fantasmagórica do jazz -
rap na trompa africana do pop-music. O som do mangue-bit fez soar o ‘lamento negro’ da
América num grito de maracatu de lama.
145
Sem previsões, Oswald de Andrade denuncia a miséria do bairro Mangue no Rio de
Janeiro. O antigo Canal Grande ruiu. Pela década de 1940, o que era Bairro virou Barro.
Submetido ‘ao jogo moderno’ de destruição e construção, o espaço tentacular não resistiu a
pressão do Governo Vargas para transformá-lo em ‘obra pública’. Ruiu a Avenida Mangue,
canal abaixo. Com a demolição da Avenida Mangue, criou-se ‘não-lugares’. Das cinzas,
surgiram asfaltos, metrôs, ruas e avenidas com um novo nome: Avenida Getúlio Vargas. O
que era mangue virou samba-enredo, pois nesse mesmo lugar, atualmente, é onde acontece o
desfile do carnaval carioca.
A liga contra os mocambos contribuiu para apagar a memória do mangue, não apenas
no Rio de Janeiro, mas também em Recife: “por ironia da história, o Mangue que ele via
como metonímia do cadáver gangrenado que é o Brasil, e para cujo fim pedia pressa, foi
demolido, não em nome daquilo que sua ironia ferina denunciava, mas sob os auspícios do
progresso comando pelo Estado” [GOMES, 1994:130].
4.1 O mangue tentacular em Manuel Bandeira
“Mangue”
Mangue mais Veneza americana do que o Recife
Cargueiros atracados nas docas do Canal Grande
O morro do pinto morre de espanto
Passam estivadores de torso nu suando facas de ponta
Café baixo
Trapiches alfandegados
Catraias de abacaxis e de bananas
A Light fazendo crusvaldinha com resíduos de coque
Há macumbas no piche
Eh cagira mia pai
Eh cagira
E o luar é uma coisa só.
Houve tempo em que a cidade Nova era mais subúrbio do que todas as Meritis da
Baixada.
Pátria amada idolatrada de empregadinhos de repartições públicas.
Gente que vive porque é teimosa
Cartomantes da Rua Carmo Neto
Cirurgiões-dentistas com raízes gregas nas tabuletas avulsivas
O senador Eusébio e o Visconde de Itaúna já se olhavam com rancor
Por isso entre os dois
Dom João VI mandou plantar quatro renques de palmeiras – imperiais
Casinhas tão térreas onde tantas vezes meu Deus fui funcionário público casado com
mulher feia e morri de tuberculose pulmonar
Muitas palmeiras se suicidaram porque não viviam num píncaro azulado.
[BANDEIRA, 1974: 110-112]
Em Manuel Bandeira, o tema Mangue aparece no livro ‘Libertinagem’, publicado pela
146
década de 1930, edição custeada pelo poeta: algo em torno de 500 exemplares. Com poemas
marcados pela urbanidade, Bandeira descobre um Mangue não mais distante da lama social
em que este se encontrava, inserido. Até mesmo porque “a partir de 1930, constituirá até
nossos dias o contrapeso do localismo, da libertinagem intelectual, no neonaturalismo
implícito no Movimento Modernista” [CANDIDO, 1967: 138].
Do Bairro Mangue, avistava-se a geografia libertária dos cabarés pobres. Local em que
se encontrava a ambivalência da área suburbana. Lugar em que se alojaram as ruas das
gafieiras; ala boêmia e intelectual da época. Ali surgiram as mulheres do Mangue, apelido
dado às prostitutas que vendiam o corpo em nome do desajuste social e da degradação de
sobrevivência. Muitos dos prostíbulos apareceram entre lugares onde os mangues foram
aterrados. O Mangue foi, nesse sentido, a linguagem que a cidade escolheu para falar de suas
prostitutas. Mas, também, por ali a palavra Mangue, soterrada de sua beleza ecológica,
recebeu sinônimos de devassidão e miséria.
Ao enumerar o ambiente da zona do Mangue, Manuel Bandeira o faz dentro de uma
realidade terrena determinada. Percebe-se que, em sua lira, o poeta resgata das margens do
beco o que a humanidade tem a dizer ou transcender. Não é o olhar da prostituta que é levado
em conta, mas o do passante que trafega o submundo da zona meretrícia. No poema, o
Mangue é revisitado pelos olhos da rua: Cartomantes da Rua do Carmo Neto/ Cirurgiões-
dentistas com raízes gregas nas tabuletas avulsivas”.
Em Bandeira, o Mangue é lugar sagrado para esconder o fogo profano.
47
De um lado, o
Menino Jesus aparece nas ‘cheganças do Natal’. Entre o sacro e o profano, o tom popular não
abafa o discurso catequista que silenciou por muito tempo a cultura afro-brasileira. De outro,
o Mangue que se prostitui como objeto de um sistema opressor. “És mulher/ és mulher e mais
nada”. Como lugar em que se vende desejo, o mangue bandeiriano é mais descritivo que
propriamente sensual.
No equilíbrio de contrários, as imagens salteiam de um lugar para outro. A erótica desce
do poético para o chão cotidiano. Longe da subversão libertina dos prostíbulos parisienses de
Émile Zola [1880],
48
em seu romance ‘Naná’, ou da libertinagem meretrícia do cais portuário
47
A referência ao sagrado e ao profano se faz presente no poema “Balada de Santa Maria Egipcíaca”. Nesse
poema, Bandeira coloca a virgem santa entregando ao barqueiro a santidade de sua virilidade.
48
Naná surge como personagem, primeiro em L’ Assommoir. Filha de Gervaise, Naná vive naquele ambiente
de casas, outros infectos, oficinas e ruas, degradação, miséria. Nele, ela é educada para a prostituição em que
caiu. [FREITAS, 2002:11].
147
piauiense de Assis Brasil [1965]
49
em ‘Beira rio beira vida.’
Manuel Bandeira, do lado oposto, condensa a emoção, reduz a sensação, doma a
curiosidade para costurar seu Mangue a partir do espetáculo do mundo suburbano e suas
situações cotidianas: “E o luar é uma coisa só”.
O ambiente do Mangue se torna igual a todos os outros. A beleza do subúrbio é revista
pelo tom lírico do saudosismo. No livro ‘Carnaval’, um desmascaramento da inocência
erótica, de uma sedução que, bem longe de ser furtiva, é, antes de tudo, gozo físico que se
impõe, não apenas como meio de vida, mas também como anseio das mulheres da vida. O
poema ‘Vulgívaga’ quem escreve é a uma mulher prostituta intelectual “Fui de um ... Fui de
outro... Este era médico.../ Um poeta..../ Outro, nem sei mais!/ Tive em meu leito
enciclopédico/ Todas as artes liberais” [BANDEIRA,1974:55].
Ao contrário de Oswald de Andrade que toca a imaginação pela perversão erótica em
situações que descamba para o pornográfico, o mangue bandeiriano é saudosista, provida de
um recifense. Em Oswald de Andrade, o mangue é o da libido. Seu erotismo é transfigurado
pelos laços sensuais da linguagem. Trafega do popular para o coloquial ou vice-versa.
Em Oswald, os desvios vão ao encontro da disparidade de imagens que beiram no
despudor: “Ciranda Cirandinha /Tudo que temos vamos dar/ Nosso corpo nossa alma/ Tudo,
tudo vamos dar” [ANDRADE, 1991:41]. A imagem poética abriga realidades opostas. De um
lado, o mercado da prostituição no Mangue; de outro, o corpo humano ingressa na rota do
erotismo para captar dinheiro.
uma dessacralização do corpo e, conseqüentemente, dos alicerces morais que
cobrem a aura da alma. Em busca dos espaços múltiplos, heterogêneos, as sensações são antes
pensadas, a emoção presa à razão dos acontecimentos resguarda grandes embates com o
espaço da rua. Como sugere na boca do poema ‘Canção da Parada do Lucas’ no livro Lira
dos cinqüenta anos: “Ah, se o trem parasse/ Minha alma incendiada/ Pediria à noite / Dois
seios intactos/ [...] Ah, se o trem parasse/ Eu iria a aos mangues / Dormir na escureza/ Das
águas defuntas”/ Mas nada aconteceu/ senão a lembrança/ Do crime espantoso/ que o tempo
engoliu” [BANDEIRA,1974:165; grifo nosso].
49
Beira rio beira vida particulariza segundo Daniela Freitas [2002:25] aspectos da prostituição e ao fazê-lo
recupera a totalidade social, na medida em que denuncia a estruturação de uma sociedade, onde os ricos são
beneficiários de um sistema organizado para lhe servir; e aos pobres, cabe apenas a distribuição eqüitativa da
miséria, a posse do nada.
148
No âmbito dos contrastes sociais, a concretização do erotismo, a partir do ambiente do
Mangue, aparece de forma lúcida. O Mangue reaparece na curva do espaço da rua. Em
Bandeira, a rua não ganha a intimidade do quarto. A zona do Mangue, em sua extraordinária
humanidade, é vista de fora para fora. A intimidade se mostra a partir dos fatos simples que
cercam a grande cidade-grande a caminho da prostituição. Engolida pela visão da
marginalidade suburbana, a zona do Mangue, na luta pela sobrevivência, condiciona ações
miúdas nas quais não se viabilizam alternativas dignas para a vida. A precariedade das
condições materiais empurra as mulheres do mangue a sobreviverem do meio libertino. Como
diz Octavio Paz [1994:25]: “O libertino necessita sempre do outro e nisso consiste sua
condenação: depende do seu objeto e é escravo de sua vítima.”
Dentro do Canal do Mangue, os escândalos sem ontem nem amanhãs ardem entre
cortiços minúsculos. Ali entre muros apertados, separando a metrópole da província, dão-se
os contatos de ódio e de amizade. Na zona de prostituição do cais do porto,
50
as relações se
dão mais no espaço das ruelas e becos que propriamente no ambiente flagelado dos casebres.
O Bairro Mangue foi celeiro da boêmia artística, refúgio da juventude pervertida. Lugar
cortado pelas escarpas de casebres mal-amanhados, enumerados por guetos inclassificáveis,
cheirando a bebida e vômitos podres, onde pouca coisa restava além de tocar um tango
Argentino. A radiola arranhando bolachas de vinil, confundindo os chiados cariocas ao
pandeiro musical. O convívio da barulheira infernal advinha da área libertina.
Perto dali, os sentidos não demarcavam o tom da música brega ou erudita. Tocava-se de
um tudo no Bairro do Mangue. A diversidade cultural saltava do merengue às salsas latinas,
das marchinhas de carnaval às rodas de samba crioulas, ao baião. “Com choros de
cavaquinho, pandeiro e reco-reco”, como diz Manuel Bandeira no poema “Mangue”.
Quem andou afinando os acordes por foi um rapazote das bandas de Exu: Luís
Gonzaga que, para sobreviver na cidade do Rio de Janeiro, passou a tocar “em cabarés,
dancing e gafieiras do Mangue. Por executou xote; escutou “tangos, valsas, bolero, polcas,
mazurcas, toda uma série de sons dançantes de origem estrangeira” [ALBURQUERQUE
JÚNIOR.,1999:153] .
Quando ele aparecia com sua sanfona, as ruelas se animavam. A gritaria começava. No
50
Às prostitutas do cais, pelo fato de não se enquadrarem dentro do registro de normalidade moral da sociedade,
são negados direitos essenciais para uma vida digna: educação, trabalho, possibilidade de morar sem a coerção
do confinamento, liberdade de ser, assistência jurídica e de saúde. Tal carência impede-as de ocupar um lugar
mais significativo [FREITAS, 2002:49].
149
mangue, a vida não era complexa. Tudo era ‘simplesinho’. Perdia-se o corpo para ganhar o
pão que o diabo do padeiro amassou. Bairro que via de perto o gozo escultural que se passa na
pele soturna da cama com presente embrulhado em papel de bombom. Mundo mesclado de
beleza e feiúra reluzindo uma poesia difusa, entranhada de emendas e arroubos líricos. Lábios
cacófatos movidos aos deboches de proxonetas pagos com cachês do dia. “A vida que poderia
ter sido e que não foi” [BANDEIRA, 1974:107].
Em uma época em que o espírito de nacionalismo pairava sobre o Brasil, o mangue
estende sua frente para o provinciano da zona urbana. Na encruzilhada dos tempos, a
impressão que deixa os versos de Manuel Bandeira sugere a multiplicidade de um mundo que,
sem anular as diferenças, lavra a linguagem pela miragem da tradição, contraditória em si
mesma. Ao afirmar, nega; enquanto decreta a salvação, simultaneamente, decreta prisão. O
‘simplesinho’ é síntese da miséria do mundo.
O tempo reduz a mudança a uma ilusão, o passado retorna em seus recortes múltiplos,
repletos de imagens que tomam conta de lugares comuns que se inter-relacionam da história
para a geografia, da poesia para o ambiente do Mangue: “Muitas palmeiras se suicidaram
porque não viviam num / píncaro azulado”.
Bandeira é um modernista às avessas que, de forma ingênua, canta o passado e, em tom
desconfiado, olha para o presente: “E em sombria/ Pena se faz passado meu presente”
[1974:242]. É certo que, na contramão dos tempos, o mundo expandia-se na agonia de
grandes projetos que iam dos deslumbramentos das invenções modernas aos alumbramentos
das tradições. Como diz Paz [1984:25], “aquele que sabe ser pertencente a uma tradição
implicitamente já se sabe diferente dela, e esse saber leva-o, tarde ou cedo, a interrogá-la e, às
vezes, a negá-la”.
4.2 O canal libertino
Era aqui que choramingavam os primeiros choros dos carnavais cariocas.
Samba da tia Ciata
150
Cadê mais tia Ciata
Talvez em Dona Clara meu branco
Ensaiando cheganças pra o Natal
O menino Jesus – Quem sois tu?
O preto Eu sou aquele preto principá do Centro do cafange do fundo do
rebolo. Quem sois tu?
O menino Jesus - Eu sou o filho da Virge Maria.
O preto – entonces como é fio dessa senhora, obedeço.
O menino Jesus – Entonces cuma você obedece, reze
[aqui um terceto pr’esse exerço vê.
O Mangue era simplesinho
Mas as inundações dos solstícios de verão
Trouxeram para Mata-Porcos todas as uiaras da Serra da
[Carioca/Uiaras do Trapicheiro
Do Maracanã
Do rio Joana
E vieram também sereia de além-mar jogadas pela ressaca
nos aterrados da Gamboa
Hoje há transatlânticos atracados nas docas do Canal Grande
O Senador e o Visconde arranjaram capangas
Hoje se fala numa porção de ruas em que dantes ninguém acreditava
E há partidas para o Mangue
Com choros de cavaquinho, pandeiro e reco-reco
És mulher
És mulher e nada mais
oferta
Mangue mais Veneza americana do que o Recife
Meriti meretriz
Mangue enfim verdadeira Cidade Nova
Com transatlânticos atracados nas docas do Canal Grande
Linda como Juiz de Fora!
[BANDEIRA, 1974: 110-112).
Não é de se estranhar que, no meio das águas corrompidas dos mangues, entre a cidade
e a lama, o poema bandeiriano vem limpo. A palavra vem límpida. A cidade nasce das
lembranças mais cotidianas. Mesmo em tom seco, urbano, o poema possibilita uma procura
pela palavra madura, sem aquele purismo, enfiado debaixo do fogão no seu ‘porquinho-da-
índia’. Com um ritmo dissoluto, apresenta o Mangue por meio da despojada compreensão do
cotidiano.
Em Bandeira, onde se Mangue, escreve-se Veneza, onde a vista vem sonhada pela
eleição de outros lugares imaginados: “Linda como Juiz de Fora!”. Para um mundo que se
apresenta romântico pelas cortinas ou vitrais da invenção, o Mangue aparece, acima de tudo,
como mais um retrato da zona do baixo meretrício. A descrição alcança detalhes de longe. A
visão da janela da urbe estende-se para dentro da circulação ambulante do comércio
periférico: cargueiro atracado, os estivadores, café baixo, bananas, abacaxis, alfândega,
empregadinhos, transatlânticos, meretriz.
Se o futurismo italiano estimulava a pressa da velocidade, do progresso, o Mangue
151
bandeiriano encontra-se situado entre fatos expressivos da mecanização portuária: “cargueiros
atracados nas docas”. Por outro lado, liberto da curiosidade exótica, o Mangue é palavra
cotejada pela alegria. O mangue, de Manuel Bandeira, é o lugar de festa em que se encontram
e se camuflam “os tempos do Recife, do poeta e do Brasil de ontem e de hoje; e o espaço-
mulher que une os aspectos sagrado e profano, recuperando a idéia da santa (metáfora da
estrela e da rosa) e da puta (és mulher e mais nada) numa mesma personagem” [FREITAS,
2002:57].
Em Manuel Bandeira, o Mangue é “mais Veneza que Recife”. Essa analogia entre
Recife e Veneza se pela fluência das águas permeando a história da colonização nas
cidades portuárias do Brasil. O poeta, em verdade, repensa a cidade a partir das águas
européias. Para construir o poema, Bandeira demarca a cidade a partir do olhar da burguesia
eurocêntrica. A analogia que Manuel Bandeira faz entre Recife e Veneza também abre um
diálogo com o poeta Gonçalves Dias [1983:63] que quando esteve por aqui em pleno
Romantismo saudou: Recife a Veneza Americana transportada/ Boiante sobre as águas”.
Veneza pernambucana desfigurada pelo escritor Ribeiro Couto [1983:59]: “Não és Veneza,
ingênuo Recife dos rios inquietos”. Ambas as cidades são movidas pelas águas. O poeta
alagoano Jaci Bezerra [1983:43], no longo poema ‘Veneza Incendiada’, compara a cidade ao
mangue de lama e caranguejos: “Na de tua saia desbotada/ dilui Recife novamente para o
mangue”.
No universo mais comum, Manuel Bandeira carrega suas imagens sobre a cidade em
uma tensão alta: a simplicidade complexa. No poema ‘Evocação do Recife’, chega a negar a
visão estrangeirice para ficar com a visão saudosa de uma cidade que o tempo rascunhou do
passado: “Recife/ Não a Veneza americana/ [...], mas a Recife sem história sem literatura/
Recife sem mais nada/ Recife da minha infância” [1974:114].
Recife é o espaço onde se efetiva a saudade do poeta: “Ai tantas lembranças boas!
Massangana de Nabuco/ Muribara de meus pais! / Lagoas da Alagoas/ Rios de meu
Pernambuco” [1974: 186].
Recife “que os documentos antigos chamam simplesmente de ‘povo’ era um triste
burgo dos primeiros anos do século XVII que os nobres de Olinda deviam atravessar pisando
na ponta de pé, receando os alagados e os mangues”[REZENDE,1997:27].
A urbanidade chegava em Manuel Bandeira pela tradição no seu itinerário de percorrer
152
a casa da infância. Recife é, para Bandeira, como Minas Gerais é para Drummond. Em ambos
a cidade chega pela visão de outras cidades: a da memória. Se em Drummond Itabira é retrato
guardado na parede da poesia, Bandeira traz sua Recife em sua atitude humilde diante da vida.
A cidade, mesmo à distância de uma perdida alegria, se faz presente nos acontecimentos
mais banais. Uma dicção que resgata, pela memória da palavra, um retorno ao passado:
“Aurora da minha vida que os anos não trazem mais/ (...)/ Voei ao Recife, e dos longes/ Das
distâncias, aonde alcança/ a asa da cotovia” [1983:35]. Recife é registro da casa paterna:
“A casa da rua da União. / O pátio-núcleo de poesia” [1974:205].
O apelo no verso é de uma escrita saudosista que se revela. O poema, em tom
romântico, ressalta o traço biográfico fazendo voltas pela escritura: “Voei ao Recife no Cais/
Pousei da Rua da Aurora/ Aurora da minha vida/ Que os anos não trazem mais” [1974:210].
Bandeira idealizou a cidade do Recife de forma pueril como uma criança que resguarda o
tempo sem saber quando nem onde revivê-lo: “Não houve dia em que te não sentisse/ dentro
de mim/ Nos ossos, nos olhos, nos ouvidos, no sangue/, na carne/ Recife” [BANDEIRA,
1997:108].
Próximo dessa sensualidade estética, o poeta Joaquim Cardozo sai da Recife
provinciana para construir os pilares de uma escrita calculada pelo desenho da urbe, pelo traço
da arquitetura sobre a literatura. O traço de Cardozo, diferente de Bandeira, vem delineado
pela escrita geométrica, é matemática de palavras eruditas falando do mangue. O idioma
popular em Joaquim Cardozo não se encontra, salvo em alguns de seus diálogos teatrais.
À beira do idioma popular, Ascenso Ferreira retoma o mangue pelo que de exótico,
picotando versos que têm a história e o folclore como pano de fundo. Com Ascenso
[1995:116], o mangue ganha as imagens pelo ritmo dos mocambos: “Mergulham mocambos/
nos mangues molhados/ moleques mulatos/ vêm vê-lo passar”.
Em Manuel Bandeira, o Mangue aparece desenhado pelo avesso da rua Aurora:
“Capibaribe/ Capiberibe/ longe o sertãozinho de Caxangá/ banheiro de palha um dia eu vi
uma moça nuinha no banho/ fiquei parado/ o coração batendo ela se riu/foi meu primeiro
alumbramento” [1997:29].O mangue, como alumbramento, aparece sobre disfarces na palha
nua do mocambo. Visto à distância dos mocambos, mangues são prostíbulos. Josué de Castro
[2001b: 122-123] em ‘Homens e caranguejos’ cita a prostituição de Zefinha, filha da
personagem Idalina. “A negra Idalina também chegou aos mangues, escondendo-se. Não de
153
medo, mas de vergonha. Com vergonha do mundo, pelo que ocorrera com a sua filha
Zefinha”.
O alumbramento poético vai às ruas do centro ou às curvas da moça nuinha que
encontra entre banheiro de palhas, nudez dos mocambos vistos a olho nu. A pobreza inocente,
captada pela lírica, e a beleza trapeira à maneira Baudelaire. A nudez exótica, nuinha aos
olhos da memória do corpo. possível à distância do olhar daqueles que se postam no
horizonte para retirar as imagens da cidade em estado de embriaguez ou extasia.
Os equívocos enfrentados no passado são suavizados pelo distanciamento que se faz
dele. Se pudéssemos voltar, sem tanto alumbramento, à rua do passado, veríamos os desertos
vividos e retornaríamos sem tanto saudosismo. Ao longe, as imagens guardadas trazem
recortes de uma cidade que não foi assumida: “Eras um recife sem arranha-céus, / sem
comunista, / Sem Arraes, e com arroz, /Muito arroz/ De água e sal/ Recife” [1997:109].
Dos mocambos ao banheiro de palha, a visão estende-se da tradição à contradição,
como acontece no poema ‘Minha Terra’: “É hoje uma bonita cidade. // Diabo leve quem pôs
bonita a minha terra!” [BANDEIRA, 1974:196]. A tradição bandeiriana renegava o que surgia
de cosmopolita. O saudosismo, muitas vezes, esquecia as cruezas do passado: arroz que, na
infância de Manuel Bandeira, chegava fartamente até a cozinha da Casa-Grande. Algumas
vezes, desconhecia o autor os avanços do primeiro governo de Miguel Arraes distribuindo
arroz na periferia, fazendo reforma agrária no campo, atingido os interesses dos governos
populistas por alimentar os filhos do povo.
Alguns aspectos são interessantes, quando se observa a cidade descrita por Bandeira; de
um lado, a forma densa que apresenta a cidade que o viu nascer, Recife; de outro, a leveza
frente à cidade que o viu morrer, Rio de Janeiro. O poeta o Mangue do Rio de Janeiro a
partir da raiz material de sua poesia: o alumbramento com as cidades. Ao citar Veneza,
ressalta um elo com o padrão universal “numa integração progressiva de experiência literária
e espiritual, por meio da tensão entre o dado local (que se apresenta como substância da
expressão) e os moldes herdados da tradição (que se apresentam como forma de expressão)”
[CANDIDO, 1967:130].
O que tem a ver a zona miserável do Mangue com Veneza? O dilaceramento da miséria
portuária. O lixo das águas cobrindo de mau cheiro a céu aberto. De certa forma, a metáfora
bandeiriana afirma componentes europeus em nossa formação de país meretrício que, tomado
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de rebeldia, é levado à consciência entre tensões e paradoxos modernistas. Na cidade do Rio
de Janeiro, o Mangue é bairro prostíbulo; em Recife, a flora estuária é berço de palafitas.
Mangue em Veneza, meretriz do mundo.
O Mangue bandeiriano é o lado provinciano da cidade grande. Adiantado de um lado,
tem cargueiros no Canal Grande. Atrasado do outro, suas casinhas tão térreas. Entre imagens
contraditórias, o progresso se faz inevitável, por outro lado, sua limitação faz englobá-lo, de
forma irônica, com um atraso em relação ao qual ele é progresso também. “Os avançados não
abrem mão do atraso, e os atrasados, longe de serem retrógrados convictos, gostam também
de um solzinho progressista” [SCHWARZ, 1997: 15-17].
A cidade deixa de ser a cidade e passa a ser as cidades. Não é, portanto o lugar de
unidade, mas da Bio-diversidade. É o lugar múltiplo em seus rios registros. A pluralidade
de imagens se manifesta do passado para o presente. Em um espaço que se faz e desfaz
incessante em construção. “Hoje se fala numa porção de ruas em que dantes ninguém
acreditava”.
O estado de espanto poético está a serviço da visão primeira, ou melhor, da palavra
inaugural: O Mangue, sem rota fixa, é a cidade que se prostitui. A visão do prostíbulo vem do
Canal Grande onde se realizam os acordos comerciais.
Região portuária que abriga a condição de mulher-objeto. A percepção material parte de
um cotidiano simples, sem intenções revolucionárias. O enigma perpassa vidas humanas e
reflete a profunda compaixão pelos mais humildes: “Casinhas tão térreas onde tantas vezes
meu Deus fui funcionário público casado com mulher feia /e morri de tuberculose pulmonar”.
Frente à miséria social estabelecida na zona portuária, o poeta faz acordo com o ritmo
da ironia: Meriti/meretriz/ Mangue enfim verdadeira Cidade Nova. Ao enfatizar o lugar dos
prostíbulos, na zona portuária, Bandeira reitera uma crítica ao flagelo dos acordos políticos
como paisagem de fundo: “O Senador Eusébio e o Visconde de Itaúna se olhavam / com
rancor”. Na suspeita de enxergar a realidade em seus arranjos ilícitos, faz sinal para o que se
esconde debaixo das relações movidas pelo tráfico de poder e influências na zona da periferia.
“O Senador e o Visconde arranjaram capangas”.
uma presença do passado que salva do naufrágio os elementos essenciais: “Mas as
inundações dos solstícios de verão/ Trouxeram para Mata-Porcos todas as uiaras da Serra da
155
carioca”. No Mangue, o reino das incongruências impera. “Gente que vive porque é teimosa”.
Para falar sobre os problemas que descem as ladeiras do cotidiano, aproxima pessoas
convivendo o antagonismo das coisas palpáveis: “O morro do Pinto morre de espanto”.
Nos limites da tradição cultural do modernismo, o Mangue não é reproduzido, mas
construído pelo viés da cultura popular. “O que se assiste neste momento é na verdade uma
transformação cultural profunda, pois se busca adequar as mentalidades às novas exigências
de um Brasil moderno”. [ORTIZ, 2005:43]. A cultura e o nacional, por essa época, irão
traduzir a marca identidade brasileira. Com a revolução de 30, as mudanças que vinham
ocorrendo são orientadas politicamente, o Estado procurando consolidar o próprio
desenvolvimento social” [ORTIZ, 2005:40].
Gilberto Freyre pensa o mulato pelo viés da cultura. Sem descartar um certo saudosismo
pelos engenhos, a noção de raça cede à noção de cultura. Não é à toa que, em termos de prosa,
os romancistas dos sertões, das margens de rio, das cidades, das praias, dos mangues,
vincular-se-ão a um resgate das raízes da linguagem brasileira. Sérgio Buarque de Holanda e
Caio Prado esquadrinham, procuram explicações sobre o retrato do Brasil. Tanto um quanto o
outro está na “origem de uma instituição recente da sociedade brasileira, a universidade”
[ORTIZ, 2005:40].
Com o recuo dos tempos, buscava-se redefinir a cultura à luz de uma avaliação nova de
inspiração popular, ao mesmo tempo em que se analisa o drama do país. Se o romance de 30
se torna porta-voz da decadência aristocrática rural, o verso da segunda fase Modernista, por
sua vez, volta-se para a complexidade dos problemas do homem urbano.
Quando Manuel Bandeira diz: “o Mangue é simplesinho”, toma o puro pelo simples e o
‘simplesinho’ pelo complexo. Descobre, em seus pedaços, o Mangue como espaço que
emerge, não da rebeldia coletiva, mas como lugar cerzido pelo lirismo citadino. Metáfora de
um lugar composto de elementos simples, silêncio da expressão cotidiana.
O ‘Simplesinho’ é procura diminutiva, busca significativa pela simplicidade popular. O
Mangue como harmonia dos contrários. Território de exclusão. Prisão no bojo da mobilidade
social. É mais um lugar onde as aparências não enganam.
Os acontecimentos mais banais resumem uma vida sem grandes saltos. A poesia, com
vista para uma definição do Mangue como identidade nacional, busca as fronteiras sociais
156
com seus desníveis. O Brasil dos cargueiros, dos cafés, dos sentimentos patriotas, do
cotidiano envolto pelo diminutivo. O mundo revisto a partir do ‘simplesinho’. Como assinala
no poema ‘Belo Belo’, Bandeira procura pelo simples, sem ser simplório: “Quero a delícia de
poder sentir as coisas mais simples”[BANDEIRA, 1974: 172].
Esteticamente, não nos enganemos, o tom de ironia e a pitada de simplicidade
assanham, de forma sutil, o projeto literário de Manuel Bandeira. A simplicidade não é tão
simples. É fruto de uma experiência colhida pelo lento exercício de maturar, condensar as
palavras para a feitura de um poema, ou talvez, como esclarece Davi Arrigucci [2003:48], “é
o resultado de um longo e lento processo, de uma busca. Surge como efeito de operações
complexas de condensação e depuração em que entram elementos variados e heterogêneos”.
Na visão de Arrigucci [2003; 70], o simples, em Bandeira, é evocativo, carrega o
complexo. A imagem é capaz de acolher, em sua simplicidade, uma totalidade significativa. A
simples figura do boêmio penetra no texto e “vinca o discurso evocativo do poeta, fazendo
aflorar múltiplos significados à simples menção do nome. Nele mais uma vez se resume o
complexo na simplicidade”.
Pode-se dizer que a realidade desprende-se da ordem objetiva dos tempos, ganha a
subjetividade de uma realidade feita sobre fragmentos de dimensões históricas. O espaço
ganha o movimento da visão desordenada. A metáfora amplia-se no jogo de palavras.
Pegando aqui a fala de Ítalo Calvino [2003:25], em ‘Seis propostas para o próximo milênio’,
A metáfora o impõe um objeto sólido, e nem mesmo a palavra pedra chega a
tornar pesado o verso. O ritmo segue o pulsar de quem vive no âmbito do familiar
ou do conhecido. A poesia abriga uma realidade movida pelo recolhimento das
coisas menores.Um silêncio que se materializa nas pausas e cortes do verso livre
[ARRIGUCCI, 2003:71].
De modo irreal, o verso nasce da subjetividade pura, distinta de interpretação simples. O
‘simplesinho’ carrega emoção com a realidade do ambiente simples do Canal do Mangue. O
diminutivo carrega uma tensão miúda, ao dar conta das coisas transitórias, perenes, que a
realidade não dá conta de responder.
Na lira bandeiriana, passado e presente se reencontraram. Veneza e Cidade Nova,
Mangue e Recife. Na vida, sabe-se que presente e passado jamais se juntarão a não ser no
campo da lembrança. O fato de saber que nunca se encontrarão leva o poeta a escrever sobre
os dois. O presente trai as expectativas do passado. mais busca de equilíbrio que de
157
ruptura. A poesia traz como marca dos tempos modernos a descontinuidade, a contribuição da
língua estrangeira em diálogo outras linguagens, como diz Bandeira no poema ‘Mangue’: “A
Light fazendo crusvaldinha com resíduos de coque”.
O antes e o depois se excluem em uma trama contraditória e dissonante: “Houve tempo
em que a Cidade Nova era mais subúrbio do [que todas as meritis da baixada]”. A falta
possibilita o processo criativo do poeta. O poema nasce para suprir a falta que habita o criador
de versos. Todo poema é uma falta que abriga, escolhe, rapta o leitor. A poesia é tensão
permanente entre o que se foi forjando pela criação e a visibilidade de uma realidade que se
apresenta. Poesia é busca, procura de nós mesmos entre muitos de nós espalhados no mundo.
É, ao mesmo tempo, nossa procura por lugares que encontraremos dentro e fora de nós
mesmos. O que a poesia bandeiriana é sempre outra coisa: “Que importa a paisagem, a
Glória, a baía, a linha do horizonte?/ -O que eu vejo é o beco” [BANDEIRA, 1974:134].
Longe de ser um poeta fechado no claustro, Manuel Bandeira é um solitário da
multidão, preso à mistura das ruas, dos espaços e fronteiras que separam os habitantes do
centro e do subúrbio. O poeta refugia-se no beco para encontrar o universo das coisas
pequenas que o religam a encruzilhada das ruas: Cidade Nova, Canal Grande, Rua Carmo
Neto, Maracanã, rodas de samba da tia Ciata, Recife, Juiz de Fora, Veneza. Territórios
periféricos habitando a identidade do lugar. Para Arrigucci [2003:64; grifo nosso]:
A casa e o quarto; a rua e o bar: espaços permeáveis da experiência literária
modernista. A casa e a rua deixam de ser dois inimigos como eram no século XIX,
conforme expressão de Gilberto Freyre. Entre casas, quarto, ruas, e bares, entre
salões literários, prostíbulos, livrarias, cabarés, cafés-cantantes, como então havia
entre tantos espaços tão diversos de tantas cidades brasileiras se constituiu uma via
de comunicação real e efetiva por onde passou a experiência coletiva modernista.
Por isso muitos nomes ainda vibram com a intensa ressonância do que foi ali vivido:
o Franciscano, a Rua Lopes Chaves, em São Paulo; no Rio, o Lamas, o Reis, o
Amarelinho, a José Olympio, o Mangue, a Lapa, a Rua Conde de Laje.
Em sua faxina de pôr os versos na contramão dos lugares, Bandeira humaniza, não
propriamente a lama, mas a realidade sensível do cotidiano do Canal Grande. Os mundos,
outros deste mundo, como diz Octavio Paz [1994:11] em ‘A dupla chama’. Uma paisagem
descrita pelo testemunho dos vislumbres. Abrigo de surpresa, caminho para o lirismo
libertação.
O território do Mangue, em Manuel Bandeira, é múltiplo ao referenciar o samba, o
pandeiro, o reco-reco, cavaquinho, o preto, a macumba, as uiaras, sereias. De certa forma,
158
resgata da sabedoria popular laços com a cultura africana e indígena, ao mesmo tempo em que
dialoga, ainda, com o legado de outras culturas. No corte da escrita bandeiriana, observa-se a
cidade do Rio de Janeiro dialogando com os mitos do Mangue, como uiarás e sereias. Mitos
ligados às águas, versão popular de Mãe D’água, Iemanjá, Janaína, Rainha do Mar, entre
outras denominações do ori marítimo. A protetora do mar, na cama de mulher-peixe,
costuma receber, no meio do mar ou na sétima onda, presentes como oferendas. O feitiço
mítico se faz presente como retorno às origens maternas das águas. A rainha das águas, como
entidade mítica popular, é divindade de muitos amores. No território umedecido pelo desejo,
o cântico das sereias “vindas além-mar jogadas pela ressaca/ nos aterrados de Gamboa”, está
em uma fusão poderosa com a sedução da zona do Mangue. Assim como o mito primitivo
hipnotiza e leva para o fundo das águas o ser seduzido, as meretrizes, para atrair seus amantes,
são como barcos atracados nas docas, transatlânticos atracados no Canal Grande.
Onde existir Mangue haverá elementos da cultura popular ligados a eles. A história
indígena ou a “a memória coletiva africana se aproxima mais do mito, uma vez que tende a
permanecer idêntica a si mesma” [ORTIZ, 2005:33]. Segundo Renato Ortiz, a preservação
dos mitos busca re-atualizar uma memória que existiria em princípios destes tempos
imemoriais. Para Ortiz, o presente é um re-memorizar do passado. Como vimos nos mitos
protetores do litoral amazônico, a boiúna, o matintaperera, a mãe do caranguejo [ligada à
figura do curupira] vêm nos lembrar um tempo em que a natureza era além de sagrada,
preservada.
Diferentemente do Manuel Bandeira do primeiro livro: ‘Cinzas das horas’, onde a
marca pré-modernista se faz presente pelas sobras ora do eruditismo, ora da solitude
saudosista, o Bandeira de ‘Libertinagem’ se volta mais para o coloquial, se solta das amarras
do idioma para macaquear a sintaxe lusíada. A linguagem popular desenvolverá um colorido
singular. O popular, em Bandeira, ganha a face de uma erudição presa às amarras da
concordância oswaldiana [1988:38]: “Dê-me um cigarro/ Diz a gramática/ Do professor e do
aluno. E do mulato sabido/ Mas o bom negro e o bom branco/ Da nação Brasileira/ Dizem
todos os dias/ deixa disso meu camarada/ Me dá um cigarro”.
Para aproximar-se dos mitos populares do mangue, o poeta se desprende da língua
formal. No seu poema ‘Evocação do Recife’ confessa: “A vida não me chegava mais pelos
jornais nem pelos livros/ Vinha da boca do povo na ngua do povo/ Língua certa do povo/
Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil” [1974:117].
159
Em Bandeira, o mangue é daqueles que ganham a vida com o suor do gozo e que
vendem os corpos para sobreviverem na vida provinciana do Rio de Janeiro. O mangue, como
texto da cidade, cruza o lugar das metáforas perdidas. Metáforas que, em suas dobras,
traduzem a linguagem do bairro das meretrizes, onde se faz ponto de macumba à procura da
sonoridade da batida rítmica, como se observa na primeira parte do poema ‘Mangue’: “Há
macumbas no piche/ Eh cagira mia pai/ Eh cagira”.
Em sua síntese expressiva, não busca a tradução literal, mas o comentário musical. A
paisagem do Mangue é descrita como um sussurro sinfônico das cangiras de macumbas ou
sambas da tia Ciata. Descarta o vulgar. Busca a ternura. No traço meio irônico, resenha as
insignificâncias da vida. No jogo ondulante da palavra, prefere a transcendência romântica
para se dirigir ao território do corpo.
O mangue bandeiriano é construído pelo olhar da tradição. O mangue traz um discurso
saudosista. Diríamos que, diferentemente de Oswald de Andrade, entra no mangue a partir da
visão anárquica antropofágica; Manuel Bandeira, de ‘libertinagem’, calça o urbano, mas
com algumas marcações da fala popular. A fala do Mangue ecoa de longe, como quem sente
saudade das marchinhas do reduto carnavalesco da Praça 11. Na zona do Canal Grande, havia,
na época, as famosas rodas de samba e as conhecidas tias e baianas. Referência visível no
poema, quando Bandeira chega a indagar: “Sambas da tia Ciata/ Cadê mais tia Ciata”. Em
busca de alguma expressão para retratar a nacionalidade, descreve pelo olhar da rotina:
“Pátria amada idolatrada de empregadinhos de repartições públicas”.
A fala do Mangue é a voz das identidades fronteiriças da escravidão; é celeiro de uma
exclusão sangrada pela história da humanidade. O que se observa em Bandeira é o Mangue
como lugar da tradição e da diferença. Vale observar que a tradição é uma forma de
identificação de um instante até mesmo ao introduzir outras temporalidades culturais que se
deixam inventar pelo espírito de uma época.
No poema, são as identidades minoritárias que se fundem, mas encontram-se divididas e
reprimidas, quando pensamos o corpo coletivo do Mangue. Um diálogo fracionado pelo poder
colonizador, perpetuando o olhar que veio para impor e dominar. Vejamos a sugestão no
poema ‘Mangue’: “O Senador Eusébio e o Visconde Itaúna se olhavam/ com rancor. / Por
isso entre os dois/ Dom João VI mandou plantar quatro renques de palmeiras/ imperiais”.
A fala dos desfavorecidos pelo sistema aparece no resgate da língua popular, mas de
160
forma submissa. Não se estranha muito, o espaço homogêneo em que se travam os discursos,
pois quando se observa a condição, a exemplo, do negro na obra de Manuel Bandeira, vê-se o
aspecto memorialista, muitas vezes, paternalista.
Sobre a condição do olhar colonizador, o tom subserviente, pode ser determinante para
se observar em nome de quem se está falando. Para quem se está falando. Onde podemos ou
como pensamos a idéia do lugar. Como se comporta o viver do corpo. O que podemos ou não
fazer, aprender ou descontruir em nós mesmos. Como se comporta nossa forma de amar o
outro. Nessa ordem ou desordem, frente ao ato mais simples ou mais banal de nossa
liberdade, vale observar como se processa nossas “pensamentações” diante de nossa condição
histórica. “Como é que se faz para sair da ilha? / Pela ponte, pela ponte. A ponte não é de
concreto/, não é de ferro/ não é de cimento. / A ponte é até onde vai o meu pensamento”
[LENINE, 2006].
Em nossos dias, como se está falando? Do lado de quem se posiciona a linguagem ao
falar dos diversos mangues: do oprimido ou opressor? Quando pensamos em Manuel
Bandeira, há um discurso que abafa a voz dominada e em algumas situações realça o poder do
dominante: “Cadê mais tia Ciata /Talvez em Dona Clara meu branco [...] O preto entonces
como é fio dessa senhora, obedeço. / O menino Jesus Entonces cuma você obedece,
reze/aqui um terceto pr’esse exerço ”. Como não lembrar da Irene Preta/ Irene boa/ Irene
sempre de bom humor. / Imagino Irene entrando no céu: -Licença, meu branco! / E São Pedro
bonachão:- Entra Irene. Você não precisa pedir licença” [BANDEIRA, 1974:125].
Ou mesmo um Bandeira que é saudosista sutil na pele cordeira do açúcar de “um Recife
ainda do tempo em que meu avô/ materno/ Alforriava espontaneamente/ A moça preta
Tomásia, sua escrava, / Que depois foi a nossa cozinheira /Até morrer” [BANDEIRA,
1997:109].
Ler e escrever sobre os mangues é observar a imobilidade social dos negros que ficaram
silenciados às margem nas fronteiras dos manguais. O Mangue aparece como lugar úmido em
que se tomam as partes silenciadas pelo discurso dominante. A zona do Mangue lugar
migratório da última sobrevivência. É o entre-lugar das encruzilhadas étnicas. São pessoas
para quem a casa, os afetos, são coisas para os que virão depois.
Na sua travessia pelo Mangue, Bandeira compõe o mundo popular em relação com os
que são carentes de nomes: estivador, meretriz, funcionário público, cartomantes.
161
Personagens reduzidos pela profissão à procura de oportunidades, moradores da periferia.
O Mangue como fronteira é o lugar da diversidade onde se dá o cruzamento das culturas
humanas diferenciadas. Na concepção de Certeau [1994:202], “um lugar é uma ordem
segundo a qual se distribui elementos nas relações de coexistência, cuja característica
principal é a indicação de estabilidade e fixidez, mesmo quando momentâneas. É um mapa,
um quadro, um contexto”.
O Mangue, como cabaré, assim como o motel, lugar de diversão, para Marc Augé é
‘não-lugar’ uma vez que representa lugar de visitas. Lugar que serve como ponto de encontro
no retrato das satisfações sexuais.
O Mangue, em Manuel Bandeira, está inscrito como lugar portuário da zona do desejo.
Carrega a duplo sentido de fecundidade da natureza do ambiente aquático e o lugar
prostituído pela zona meretrícia no Rio de Janeiro. Onde havia o Canal do Mangue, hoje passa
o esquecimento da história. Ao se atravessar a avenida Getúlio Vargas, vê-se que, por baixo
do asfalto, há sangue de mangues negrejados.
A zona do Mangue pressupõe interpretações históricas enquanto lugar. É por esse viés,
o espaço em que se configuram relações dos subordinados. Daqueles que não fazem parte do
poder pensante, mas da grande massa dedicada à subsistência. O Bairro Mangue carioca é dos
negros, estivadores, prostitutas, sambistas, sertanejos, personagens que representam o berço
das etnias, civilização de excluídos.
A vila mimosa do mangue aparece como lugar das grandes distâncias. O lugar dos zé-
ninguéns. O habitat dos outros. Dessa perspectiva, o mangue é o lugar do resgate da
memória dos ancestrais [povos colonizados] oriundos, em grande parte, de afro-ameríndios. O
mangue é dos destituídos de falar, dos sem nada, dos sem poder. Lugar onde se instalou o
último dos quilombolas.
O poema bandeiriano sugere-nos a zona do Mangue à distância do corpo. É o mangue
do citadino que conheceu os manguezais a partir das imagens longínquas dos ‘banheiros de
palha’. O mangue que aparece como registro do álbum de família: Recife, cidade-mangue,
reconhecido mundo afora como ‘Veneza brasileira’. A fotografia dos mangues registra limites
aos valores requisitados pela tradição. Em diálogo com a natureza dos mangues cariocas,
Bandeira referencia Recife pelo traço da memória. Esse rememorar a cidade que nasceu traz
162
para o campo da consciência a possibilidade de vivências nas fronteiras do que não mais
existe: a não ser na memória.
O lugar é o espaço dos desejos perdidos. O niilismo bandeiriano carrega um grau de
leveza para falar dos acontecimentos mais simples da rua. Tudo no poema se mostra para
captar o movimento do subúrbio. O Mangue se faz presente para falar da zona meretriz.
Na cidade decantada por Manuel Bandeira, o Mangue simboliza o lugar dos
impedimentos, ‘contra-sensos’, ‘acordos morais’. Lugar em que os pés adentram o solo
movediço da tradição histórica. O espaço que se desnudou à beira das distâncias sociais, do
saudosismo passadiço e de seus ecos na modernidade. Ao redor, a cidade-mangue se mistura
às coisas velhas, confundem-se lugares, invenções modificando a rotina. Não perde a saudade
de vista, nem quando amplia a visão de futuro ou mesmo quando emprega o verso no tempo
presente. O antes e o depois religam o Mangue à memória coletiva da periferia. Em um tempo
insaciável, não existe cidade sem engano e desencontros. Os versos acenam de forma
harmoniosa à zona do Mangue pela montagem livre da sonoridade. A aliteração como marca
de uma repetição simbolizando os passes, os ritos do terreiro de macumba. O aproveitamento
rítmico elimina o excesso de ligaduras no corpo do poema. A ordenação lógica desaparece, e
cada verso surge com ‘flashes’ de uma mensagem em movimento. No labirinto de ruas, o
excesso sem fim de imagens que transitam de maneira desconexa.
Apesar de a geografia do Mangue ser vista à distância do corpo, em Bandeira, o
ambiente aparece como lugar onde a sensualidade acontece a partir dos acontecimentos mais
cotidianos das ruas. O permanente no mangue bandeiriano descamba para o provisório. A
exclusão deixa-se perceber no traço das diferenças.
Entre o discurso coloquial da urbe e a fala popular, o autor percorre códigos, trânsitos,
subúrbios. A zona tentacular do Mangue, freqüentada por escritores vanguardistas, não
existe mais tal qual à da recriação do santeiro gozoso do mangue. Mangue que se olharmos
bem nos levará aos mocambos da zona portuária recifense. Mangues prostituídos pela miséria
absoluta que rodeia os casebres de madeira de caixote das palafitas. Mangue que serve de
reflexão aos homens da terra do mangue de Joaquim Cardozo.
163
DIA CINCO
Quinta Margem
Travessia da Terra do Mangue
Capítulo V
Série: Universo em uma casca de lama
51
Quem poderia estar pronto para se perder
na vida de uma cidade senão um solitário?
[WIM WENDERS]
51
Parafraseamos o termo de Stephen Hawking.
5 Dos geo-grafemas em Joaquim Cardozo
“Terra do Mangue”
A terra do mangue é preta e morna
Mas a terra do mangue tem olhos e vê.
Vê as nuvens, o céu
Vê quando sobe a maré
Vê o progresso também
Olha os automóveis que correm no asfalto
Sente a poesia dos caminhões que passam para a aventura das
[estradas incertas e longas
....................................................................................................
As ondas do mar que vieram seguindo a noite
Desde lá de detrás dos horizontes
Estendem-se agora cansadas na areia
A sombra das árvores subiram no chão e agasalharam-se nos ramos.
Não há motivos, Margarida, para teres receios.
Olha através da porta do teu mocambo a sombra da noite imóvel:
Sob a perpétua luz das estrelas frias e impassíveis
A terra do mangue está dormindo
[CARDOZO, 1971: 28-29].
Não sei se tudo em poesia começa por imagens ou por reticências [...] “Onde as frases
não começam/ lama reboca o lodo/ água barrenta/ se oculta / é rio/ se palavra/ é mangue”
[LIMA, 2003:9]. Mangues são livros feitos de homens, árvores e raízes. “Um primeiro tipo de
livro é o livro-raiz. A árvore já é a imagem do mundo, ou a raiz é a imagem da árvore-mundo”
[DELEUZE; GUATTARI, 2004:13].
Na teia do verso, o poema de Joaquim Cardozo nasce suspenso em vírgula e resistência,
vem escoltado pela geografia das palavras. O ser do livro-mangue é a viagem pela paisagem,
como observa Josué de Castro [2001b: 177]: “O mangue agora lhe parecia apenas um espesso
e lodoso borrão de lama”. Esgremida de garças subia a tarde iniciada. “No começo era o
verbo/ depois é que veio o delírio do verbo” [BARROS, 1993:15]. O céu tinha mais
mangue que os livros. “Garças brancas voavam sobre os altos mangues”, observa o poeta
Joaquim Cardozo [1971:11] no poema “Recordações de Tramataia”.
Os mangues ainda não chamavam à atenção dos livros de poesia. Parte dos livros
escondia os mangues em algum pedaço de homem-rio: “Primeira vez/ que o sol/ a terra do
mangue/ Big-bang/ amanhecer/ abre os olhos/ natureza morta” [LIMA, 2003:8].
Livros e árvores, homens e caranguejos, vivendo quase sem raízes, quase ‘cem’
165
palavras escorrendo sobre a lama do poema: “O mangue viscoso, com suas folhas dum verde
lavrado, brilhante e polida como folhas de metal” [CASTRO, 2001b: 155]. O poema-mangue
é quase de natureza orgânica. “A futura poesia transcendente poderá chamar-se orgânica.
Assim que a tenhamos descoberto, perceberemos que todos os autênticos poetas de outrora,
sem o saber, tinham feito poesia organicamente” [SCHLEGEL, 1987:82].
Literariamente, o poeta é argonauta dos mangues ou da lama, como diz Joaquim
Cardozo [1971:22] no poema ‘Chuva de Caju’: “Lama viva, espírito do ar noturno do
mangue./ Invade a casa, molha o chão”. Em verdade, Joaquim Cardozo é o primeiro poeta
modernista a colocar o mangue inserido na grande-cidade, sem precisar prostituí-lo.
Diferentemente de Bandeira e Oswald, longe do olhar erótico, Joaquim Cardozo sugere os
mangues dentro dos avanços do progresso, dos automóveis e asfalto urbano. Enquanto Raul
Bopp alude os mangues pelos mitos primitivos, catador de metáforas caranguejas, em ‘Terra
do Mangue’, o poeta Joaquim Cardozo, tal qual um engenheiro da palavra sai à procura de
nomear a natureza do mangue a partir do traço múltiplo, sincrético, da cidade. Entre o barro e
o asfalto, a cidade vai tangendo os mangues a permanecer na lama, enquanto os mangais vão
se afastando da urbe, do chão de massapé. Entre o mangue e a cidade: duas paisagens se
intervalam. Gilberto Freyre [42:1989; grifo nosso] no livro ‘Nordeste’ descreve: “o massa
não vai ao extremo da terra de mangue, que quase não é terra, de tão melada, de tão mole e
indecisa, deixando que nela a água apodreça os matos e as raízes. Nem ao excesso do barro
tauá, nos dias de chuva capaz de engolir balduínas, de sorver comboios inteiros”.
Em Joaquim Cardozo, a paisagem urbana do mangue, desfigurada de sentido, vem
traduzida em um semblante melancólico: “A terra do mangue está dormindo”. O poeta amplia
seu diálogo relatando os projetos de dominação da natureza. Se o mangue ingenuamente
dorme, as tramas que envolvem as relações de poder acordam e os descasos sociais na área
política efetivam-se. Estabelecem um culto cego, surdo e mudo ao progresso onde “é
impossível dizer em quantas velocidades diferentes se move uma cidade” [GULLAR, 2001:
59]. Nas imagens emparedadas, a relação do seres com natureza, com as raízes da terra, com
os objetos, dizem muito da relação dos homens com a outra natureza: a do mito que se
constrói sobre o Universo. Joaquim Cardozo [1971:137] arruma um lirismo em uma
construção que assume o tom de ciência no poema ‘Visão do Último Trem Subindo ao Céu’:
“Da unidade da matéria/ em conflito/ Em busca das suas transmutações eternas/ Á procura de
ser o que é vário e variável/ De ser o que é, e de ser sem poder”. No poema ‘Serra dos
166
Órgãos’ um trecho importante a observar sobre essa relação profundamente ecológica de
Joaquim Cardozo [1971:153]:
Da vida natural se desfazendo
Se tornaram bonecos, robôs, títeres, fantoches...
E muito antes que a Terra deles prescinda,
Que a Terra recuse as suas presenças,
Os homens estarão mortos suicidas;
Muito antes que a passagem de um cometa
Faça emigrar a atmosfera,
Que o sol se tonando em estrela-nova
Atinja a órbita tererestre;
Morrerão antes aves migradoras,
Antes os peixes navegantes,
Antes das árvores, dos arbustos.
Das relvas, dos cogumelos e dos musgos;
Antes da pedra e de seus minérios.
Morrerão antes de mim.
O poeta moderno é justamente aquele que assinala uma reflexão sobre os contratempos
e paradoxos dos tempos modernos. Um questionamento que traduz a crise do mundo. Crise
que vem de ‘Krínein’, palavra grega, que quer dizer discenir, decidir. Toda crise exige uma
posição e decisão. O diálogo enfrenta um duelo acirrado entre o contemporâneo e a tradição.
Entre a ética e não-ética não há meio termo. “A miséria que criamos é um insulto à beleza das
coisas” [MACKELLENE, 2006:24]. A palavra decisão traz um refrão para o poeta modernista
que é modernizar, civilizar e urbanizar. Essas palavras farão os poetas-ecólogos revisitarem
mais à frente o mal estar causado ao ecossistema mangue. Esse mal tem muito haver com o
esquentamento da natureza do mundo-Terra. Vivemos em nossos dias uma espécie de abuso
que violenta a natureza do planeta; sofremos de virturdes ‘eco-éticas’. “As verdades se
manifestam através dos vestígios/ O espetáculo é uma mentira” [MACKELLENE, 2006: 25].
Vive-se um mau uso do sentimento-mundo como se esse fosse um elo inesgotável ou mesmo
inexplicável. O que está cercado está errado, mas quem se atreveria em dedizer que o caminho
tem espinho?
Na época de Joaquim Cardozo, as mudanças ganhavam uma nova roupagem que mexia
com a cara da cidade recifense. Se, de um lado, o progresso despertava desconfiança, de
outro, recebia aplausos. Havia uma mobilização grande incentivando a construção de casas
populares na avenida Caxangá. A erradicação dos mocambópolis causava desconfortos de
muitos sobreviventes das zonas de mangues. Alguns se negavam a deixar os casebres, pois
sabiam que, longe de seu habitat natural, seria difícil sobreviver longe da pesca de
caranguejos. Os mangues, de certa forma, como diz Josué de Castro, agem como uma mãe
167
que alimenta os filhos que dela se aproxima.
Os aterros dos mangues para a construção de avenidas como Boa Viagem também
causaram repúdio, indignação por parte de moradores mais conscientizados dos limites do
progresso. A população, como um todo, não usufruía os privilégios das reformas urbanas.
Muitos conflitos estavam interligados à luta dos desfavorecidos em busca de melhores
condições de vida e de trabalho. Nem todo discurso da modernização resgata uma qualidade
de vida daqueles que abrigam o espaço urbano. Contudo, é mais uma maneira de escamotear
as contradições, esconder os retalhos de miséria e traços de desigualdade.
Discípula da escola de engenharia urbana, a poesia de Joaquim Cardozo é povoada de
referências que assinalam para as velozes mudanças dos tempos modernistas. O poeta, longe
de um divulgador cego das vantagens do progresso, via tudo com certa desconfiança. Em
Cardozo, os mangues têm olhos e vêem, mas não se salva de enfrentar os descompassos do
progresso: “Olha os automóveis que correm no asfalto/Sente a poesia dos caminhões que
passam para a aventura das/ estradas incertas e longas”.
Há, por trás do traço geométrico desse poeta, um sinal de descrença na transcendência.
Como diz Cardozo no poema “Prelúdio e Elegia de uma Despedida” [1971:119]: “No mundo
provocando as ondas luminosas! / Eis a face sem brilho, eis a boca em silêncio/ Eis o vulto
sem forma, eis a forma em tumulto,/ Eis o pranto a escorrer dentre as fendas noturnas”.
O que se observa no poeta do Capibaribe é uma denúncia aos descaminhos do tecido
social urbano frente ao grau de frieza da existência humana: “Dentro de mim mesmo ouço a
voz de pedra/ Do meu demônio” [1971:149]. Joaquim Cardozo, talvez seja um dos poetas
modernistas que mais se aproxima dos desavisos das lições de Baudelaire, ao inverter em
poesia a crise do ser humano. Entre angústia e espantos, assinala a transformação dos homens
em coisas. Sem precisar abreviar as tragédias humanas dentro dos mangues, expõe os dramas
existenciais como um espetáculo que se anuncia: “Sou a platéia do drama dos homens:/ Seres
que conheço e conhecerei/ Desde o seu ínfimo nascer”. Uma visão de impessoalização do
sujeito lírico “como se marcássemos na argila do tempo as nossas pegadas/ como se
increvêssemos na cortiça da noite as curvas de nosso grito” [CARDOZO, 1971:120].
O traço estético de Cardozo é “poema de uma emoção reminiscentemente viageira”
[DANTAS, 2003:75]. Seu mangue é o que ainda não renunciou completamente à presença do
romantismo, à busca por uma transcendência da palavra no jogo discursivo travado em
168
primeira pessoa. Cardozo é diferente de João Cabral de Melo Neto que, sem muito rodeio,
rejeita qualquer profundeza da subjetividade e se desvia do devaneio romântico na proa do
verso. João Cabral é bem mais conceitual, vai ao encontro da lucidez cerebral, busca
experienciar a razão na construção do poema. Um poeta que prefere ser educado pela pedra,
pela escola das facas, por um cão sem plumas, a ser dominado pela verborragia sentimental.
Os objetos de Cabral são solares enquanto os de Cardozo [1971:8] em ‘A noite faz muito
tarde’, O noturno é astronômico, quase um laboratório, uma escultura folheada de escuridão,
como diz no poema ‘Olinda’: “Sábio silêncio do observatório/ Quando à noite as estrelas
passam sobre Olinda” [CARDOZO, 1971:5].
A lei do livro de Cardozo é a reflexão sensual, o uno que se torna dois. O dois que se
torna universo “destes bosques dourado onde o hermafrodita está dormindo [CARDOZO,
1971:29]. A lei do mangue é a lei do múltiplo que se faz livro-natureza. No poema de
Cardozo, o uno é o duplo que se torna raiz múltipla do cosmos: “Atmosfera de minúsculo,
origem/ Da unidade da matéria/ em conflito/ Em busca das suas transmutações eternas/ À
procura de ser o que é vario e variável./ De ser o que é, e de ser sem poder” [CARDOZO,
1971:137].
Pegando aqui a fala de Marcelo Pelizzoli [1999:52], “o cosmos será o modo da
multiplicidade na unidade, uma unidade que indica uma harmonia, uma ordem maior, num
movimento de compreensão do todo”. O uno que está no todo e o múltiplo que está em tudo.
Como sustenta Heráclito de Éfeso [1996:93]: “Um é tudo. Tudo é um. Um unindo Tudo”.
Na poesia de Cardozo, os mangues são caminhos curvos em horizontes de múltiplas
mudanças. Na sua capacidade de trabalhar as coisas que se multiplicam e de inverter as que se
tornam familiares ao olhar: “O que soma, o que anula, o que multiplica/ O que inverte, o que
corresponde, o que transita/ O que se perverte, o que se prolonga, o que se destrói/ São rajadas
vindas ainda do chão limitado e raso/ das consciências dos homens” [CARDOZO, 1971:132-
133].
O livro-mangue é a arte de preservar o manguezal pela via da corrente holística.
“Preservar não é apenas não causar danos a alguma coisa. O preservar genuíno tem uma
dimensão positiva, ativa, e acontece quando deixamos algo na paz de sua própria natureza, de
sua força originária” [UNGER, 2001: 123]. No resgate de culturas primitivas, na relação do
homem com a natureza, na preservação de rios, na conservação de animais marinhos, a
169
poética dos manguezais busca despertar valores, mobilizar fronteiras culturais, trazer
dignidade e respeito a todos os povos, principalmente, aos que sobrevivem da e na lama.
Como diz Cardozo no poema ‘Terra do Mangue’, “não motivo, Margarida, para teres
receios. / Olha atrás da porta do teu mocambo a sombra da noite imóvel”.
Compreendemos um pouco mais a questão ambiental, quando a relacionamos com a
diversidade sociocultural. Não como negar a correspondência da ética com relação às
fronteiras culturais. Afinal, como alerta o poeta da terra do mangue: “sob a perpetua luz das
estrelas frias e impassíveis/ A terra do mangue está dormindo”.
Para os teóricos românticos: o “puro começo é a poesia da natureza. O fim e o segundo
começo é a poesia da arte” [SCHLEGEL, 1987: 83]. Não há início para os mangues na poesia
brasileira. “Todo começo real é o segundo momento” [SCHLEGEL, 1987:87]. O começo do
mangue está no caminho do meio. O poema do mangue é tensão permanente entre o universo
das coisas locais e universais.
Não há, no poema de Joaquim Cardozo, traço biográfico ou sugestão que cristalize uma
emoção saudosista e conservadora como se observa no poema ‘Mangue’, do poeta Manuel
Bandeira. O que por trás dos mangues de Cardozo é o resgate do lirismo distanciando do
traço regional para descrever o mangue, não apenas como mera paisagem urbana. O poema
nomeia o mangue, mas não o privilegia. A poesia se materializa meio ao convívio com o
progresso e o poeta, o menos desconfiado, encrespa o olhar, enfatiza a objetividade,
mascarando a subjetividade. “As palavras não são apenas palavras; são rastros de fenômenos,
seres situados no tempo e no espaço, dotados de mobilidade e ação”, como observa Maria da
Paz Dantas [2003:57].
O que fica em evidência, na mobilidade do poema é miragem dos mangues
acompanhando as distâncias que a cidade impõe aos que nela habitam. O mangue de Cardozo
vai sinalizando-nos para as lacunas entre o mundo exterior e interior bem como para as
estradas de asfaltos sendo levadas pelas incertezas do progresso: “Olha os automóveis que
correm no asfalto/ Sente a poesia dos caminhões que passam para a aventura das/ estradas
incertas e longas”.
Seguindo a ótica de Maria da Paz [2003:61], o que resulta desse contato dos olhos com
o mundo exterior expõe-se às construções de Joaquim Cardozo em uma relação dinâmica com
o espaço poético. Na dinâmica que os poetas têm para alegorizar o mundo absurdo das
170
imagens, Cardozo, o poeta celebrado por Cabral com dedicatória no livro ‘O Cão sem
plumas’ [1950], é prenúncio de um mangue em ritmo veloz. Denuncia a velocidade dos
tempos em um mundo não mais estático. Seu mangue é aquele que vê, que corre na boléa dos
caminhões, que se deixa levar pelo ocaso, pelo imprevisto, por aquilo que os olhos vêem: “A
terra do mangue é preta e morna/ Mas a terra do mangue tem olhos e vê”.
Na montagem pelo fragmento, a ecologia das palavras em Joaquim Cardozo alerta: “Os
ramos de todas as árvores/ Agitados, convulsos, revoltos/ Denunciaram o assassino”
[1971:130]. A poesia traz uma ligeira marca de tonalidade ecológica, mas sem panfletismo:
“Para velar de noite o cadáver do rio” [CARDOZO, 1971:5].
Se o poema segue o tom prosaico, a fragmentação, por sua vez, é muito sutil e contribui
para a construção de versos que se aproximam de uma linguagem cósmica: “Todo o universo
é um brinquedo de criança / Entretidos com ele os sábios morrem, cansados de brincar./
Bem perto, passou de repente, um fragmento de tempo:/ Um fragmento de pretérito perfeito”
[CARDOZO, 1971:132].
Cardozo é o poeta do mangue preocupado com os avanços do progresso. Seu poema
atravessa a terra do mangue perseguindo uma fala reflexiva e irônica. Traduz ou persegue o
“sentido das coisas imperfeitas/ a volúpia da humildade” [CARDOZO, 1971:5]. Tudo nesse
poeta é ‘canto do homem marcado’, até mesmo o passo cascateando nas ladeiras de Olinda,
“sentindo a tarde vir do mar, tão doce e religiosa/ como a alma celestial de S. Francisco de
Assis” [CARDOZO, 1971:6]. O poema de Joaquim Cardozo anuncia um perdão silencioso e
humilde. Se pegarmos o termo de Fritjof Capra sobre ecologia, encontraremos em Joaquim
Cardozo um poeta defensor de uma profunda ecologia. Cada verso traz uma marca, um
despertar para o sentido da palavra, para a ação dos homens sobre as coisas do mundo. Nesse
sentido, o poeta dialoga de forma mística com o Romantismo ao anunciar “a beleza católica
de um rio” [CARDOZO, 1971:7]. O poeta trás para o plano da física a metafísica.
Os poemas cardozianos estão, pois, entrançados ao caminho da cosmologia, enlaçando
as coisas mais simples deste planeta à complexidade do mundo humano. Uma junção entre
ciência e poesia que analogicamente gera ‘des-concerto’, causa indagações nos meandros da
poética. Para Cardozo [1971:139]: “Não existe fim do universo espaço ilimitado de depois /
s - / O fim é o mesmo fim que se volta em sobre-fim”.
O nada, nos poemas de Rimbaud e Mallarmé, atinge um enfoque mais transcendente
171
metafísico, mas em Joaquim Cardozo toma conotação pelo viés da física. Na eleição da física
quântica de Cardozo, o nada não é vazio existencial: “O nada para o universo é uma seqüência
de nadas/ Até o anulamento último e primeiro” [CARDOZO, 1971:139].
Não é difícil imaginar a junção entre poesia e física. Os gregos não estavam distantes
dessa comunhão entre ciência e poesia, misturavam poesia e filosofia o tempo todo. Basta
percorrer os poemas de Parmênides, o fragmento de Heráclito, Tale de Mileto, Lucrécio. O
poeta latino Ovídio, a exemplo, tece uma mistura de caos e cosmologia em sua
‘Metamorfose’. fragmentos e mais fragmentos de Ovídio em conjunção fraterna entre
poesia e ciência. Poesia e ciência são ‘fragmentos de um discurso amoroso’.
Em Joaquim Cardozo, o fragmento é semente de poesia. Exercício da física e
experimento da lógica. O poema astronauta se deixa ser assimilado como ciência. Na
composição do poema-ciência, um verso livre nunca é livre. É livro: “São imagens de uma
dinâmica formidável em que se mistura caos, indeterminação e igualmente tensão para a
forma dentro da instabilidade” [DANTAS, 2003: 96]. Poesia e ciência são antologias do criar,
ontologias do ser. Um dueto secreto no universo da linguagem. O ser é pensando e repensado
por meio do que se passa nas transições quânticas da matéria.
Os poetas modernistas que retrataram a temática do manguezal somente lançaram suas
obras muito tempo depois: Joaquim Cardozo, Raul Bopp, Ascenso Ferreira são poetas tardios
que tiveram a recepção de suas obras fora do Modernismo de 22. O primitivismo de Bopp
não foi mais abafado devido à sua participação nos ideais antropofágicos de 1928. Joaquim
Cardozo é um caso à parte de poesia lançada fora de época. Extremamente erudito, traduziu
poemas de William Carlos Williams,
52
dominava doze-treze idiomas, inclusive o sânscrito,
chinês, russo, perdendo apenas para Guimarães Rosa que além de falar em torno de vinte
idiomas, inventou uma gramática ‘jagunçamente’ neológica em ‘Grande sertão veredas’
[1956].
Em verdade, a poesia de Joaquim Cardozo nada tem a ver com a idéia de rebeldia das
vanguardas artísticas. “Muito ao contrário, ela se queria expressão, prolongamento natural de
um complexo cultural nordestino” [DANTAS, 2003:9]. A poesia de forma ‘convexa’, não
menos dialoga,
53
com a Teoria da Relatividade Geral de Einstein e da Física Quântica de
52
Poeta que Ezra Pound tinha na conta de um dos melhores poetas americanos.
53
Ver estudo feito ao poema “Visão do Último Trem Subindo ao Céu” feito por Maria da Paz Ribeiro Dantas no
livro Joaquim Cardozo - comtemporâneo do futuro [2003] .
172
Werner Heisemberg e Fritjof Capra. A física quântica é uma teoria que nos primeiros anos do
Século XX depertou para uma teia de relações ao ultrapassar a visão clássica do átomo como
a última partícula da matéria. Para se aprofundar em um estudo das partículas elementares que
entram na composição do átomo, a física quântica de Capra sugere uma teia de relação entre o
sistema energético e a espiritualidade da matéria. A física quântica é um poema. O átomo é
rizoma. O sistema quântico é coração que vaga mundos. A rede de pescar átomo é feita de
palavras. As partículas de lama são feitas da mesma matéria que tece as estrelas ou os
caranguejos astronautas que correm como se fosse um disco voador a sobrevoar a terra do
mangue [preta e morna].
Joaquim Cardozo foi silenciosamente um rebelde. Reuniu intelectuais para a publicação
da REVISTA DO NORTE. Começou a escrever por volta de 1924 e quando fez cinqüenta
anos, os amigos mais chegados [dentre eles o poeta-editor João Cabral], selecionaram e
organizaram a poesia de Joaquim em um livro intitulado de ‘Poemas’ [1947] com prefácio
curioso de Carlos Drummond.
Mesmo estando inserido no modernismo recifense, Joaquim Cardozo prenuncia a
estética do concretismo e reinventa uma poesia à frente dos pilares da vanguarda modernista
de 1922. O poeta leva ao plano do concreto o traço visual de uma simplicidade erudita. No
caso de Joaquim Cardozo, o mangue é alvo de uma simples insinuação, mas que transcende o
jogo de imagem sem minimizar as marcas da cultura popular.
O poeta bebe na tradição, mas não de forma estática, parada no tempo. A tradição de
Cardozo traz as marcas contemporâneas da mudança, da transformação. No poema ‘O
Capataz de Salema’ descreve: “Nasci em terras de mangue/ De altos mangues canoés/ Nasci
em terras de mangue/ Onde se abraçam as marés/ Em cujas águas brinquei/ Muito siri
apanhei/ Nas malhas dos jererês” [CARDOZO, 1971:86].
Sem caminhos, a poesia do mangue será a partir da ranhura antropofágica dividida entre
a linha erudita-construtiva e o compasso oral-popular. Transitando por essas duas fronteiras é
que os poetas dos mangues pronunciarão um sotaque distraído, carregado de linguagem sobre
a terra dos homens que te olha e vê. Em prefácio escrito para o livro de Souza Barros,
Cardozo fotografa seu encontro com o cenário dos mangues:
[...] Pela primeira vez entrei em contato com um aspecto da flora pernambucana
muito diferente da zona da várzea do Capibaribe, onde nasci. Pela primeira vez, vi
pés de mangabeira, verdadeiros pequenos bosques de mangabeiras, mangues altos,
173
subindo da lama das marés, cajueiros deitados, espalhados no chão; entrei em
contato também com a fauna do nordeste, perto do mar, o terreno batido onde
vivem os guiamuns rosados e azulados e marias-farinha; zona atingida nas
grandes marés e por isso, nelas não crescem mangues. A zona de lama preta
freqüentada todos os dias pelas marés, onde nascem os mangues (somente nasce
mangue onde a maré entra e recua todos os dias) e, por fim, a parte do rio sempre
com água. Na zona dos mangues estão os carangujos e aratus, na parte sempre com
água estão os siris. Entrei em contato com os viveiros de peixes e os maruins que
às vezes, em nuvens, me atacavam [CARDOZO, 2003:41; grifo nosso].
Ecologicamente, somos água e lama, ‘homens e caranguejos’, “habitantes dos mangues,
irmão de leite dos caranguejos” [CASTRO, 2001b: 13]. Longe dos braços do mangue,
natureza se fragmenta num milhão de átomos coberto de cinza-azulado. “Cascos caos, cascos,
caos/ Imprevisibilidade de comportamento/ O leito não linear segue/ Para dentro do
Universo”, como descreve Chico Science & Nação Zumbi [1994].
A impressão do caos traz “uma roda de caranguejos encangados com fibra de junco,
rodopiando de vez em quando” [CASTRO, 2001b: 33]. No oceano de vidros, ilhas são
nuvens; flutuam como uma vara de mangue. Na fímbria do horizonte finito, cada átomo retém
a forma arredondada. À beira dos cipós, árvores se enraízam à pasta de lama; enquanto brasas
de sol bebem do mar as vigas recônditas de rios. “Rios são de água pouca, / em que a água
sempre está por um fio” [MELO NETO, 1994:121].
Canoas singram das águas remendando lugares, tangendo as cidades vizinhas. “Noite
rompe/ Natureza onde/ palavra sai dos mangues/ alinhada não se resolve/ sabe mais da lama/
no coalhador de sal” [LIMA, 2003:10]. Do altar anil, mares são florestas brancas rolando de
véu em véu à espera dos pescadores do mangue. O rio está descendo com uma carga de ilha
nas costas” [CASTRO, 2001b:140]. Pedaços de corais do mar sopram os sons metálicos das
águas com voz de peixe-boi. As pérolas aparecem, quando as ostras comungam a solidão.
Conchas são casas de crustáceos. Na pronúncia peralta das crianças, conchas são espirais de
cometas. Para um filósofo: “A concha é uma panela de bruxa em que se trama
cuidadosamente a animalidade” [BACHELARD, 1974: 426].
No fundo do oceano, polvos com suas mãos gigantes aplaudem arraias; peixes
minúsculos cavalgam cavalo-marinho. Não é preciso ter olhos infantes para perceber aves
sobrevoando a maré baixa do manguezal. Há gotas de ferro virando sucatas na lama. “Leito de
pedra abaixo/ rio menino eu saltava” [MELO NETO, 1994:119:]. Planta-se um céu de
lâmpadas em terras chãs de estrela. A Lua desencalhou um arquipélago de planetas.
Bruxuleando o homem-barro, braços ciscam o lamaçal. Movem-se os mangues com pernas
174
atoladas. Caracol enovela o eco da solidão. ritos e ecos que se escondem. Com uma vara
de pescar siris, marisqueiras cobrem-se quase completamente de argila medicinal. Do alto, o
verde é umidade do charco. “As nuvens são cabelos crescendo como rios” [MELO NETO,
1994:67].
Além do sonho da rua, o solo inacabado, mal consolidado, entulha a criação dos
mangais na forma encontrada de concha. “A árvore destila/ a terra. Gota a gota; / a terra
completa o fruto” [MELO NETO, 1994:96]. Ainda existem muitas outras palavras
54
para
nomear as diversas coreografias da terra, como: solo, chão, areia, lama, terra seca, terra mole,
lamaçal, terreno, pó, barro, húmus, areia movediça, terreiro, cascalho, pântano, terra roxa,
massapé, falésias, barro duro, campo, barro branco, sertão, pampas, terra vermelha, charco,
terreno arenoso, terra chã. “Por sobre esta paisagem lamacenta que agora vibra sob a luz
violeta dos trópicos, refletida nos grandes espelhos da água maré, perpassam sons agudos”,
como destaca Josué de Castro [2001b: 27] no livro ‘Homens e caranguejos’. Enfiados na
lama, jacarés escondem-se dos predadores que não são apenas os caçadores de pele. A cadeia
alimentar nos mangues é um cardápio que engloba uma complexidade que vai do visível ao
que está invisível debaixo da lama. “Como o rio era um cachorro, / como o mar era uma
bandeira, / aqueles mangues/ são uma enorme fruta” [MELO NETO, 1994:113].
Embora o alimento de origem animal seja abundante, diversas espécies de moluscos,
crustáceos, peixes, répteis e outros vivam em grande número nos manguezais, por ali não
existem vegetais comestíveis. Nesta placidez do charco desenrola-se, trágico e silencioso, o
ciclo do caranguejo. O ciclo da fome devorando homens e os caranguejos, todos atolados na
lama”, assinala Josué de Castro [2001b: 27].
Abrem-se as portas palafitas e a falta de saneamento, “começam a aparecer as ruelas do
mangue os seus moradores com caras cansadas e mal-dormidas”, relembra Josué de Castro
[2001b: 27]. A cadeia alimentar vai do maior para o menor: herbívoros de todos os tipos são
engolidos por carnívoros enquanto os onívoros se alimentam uns dos outros. Também “tem-se
demonstrado que os detritos de folhas dos mangais constituem para os seres aquáticos uma
das principais fontes de energia” [ODUM, 2004:551]
54
Em tupi-guarani, existem duas denominações para o solo de manguezais: itaorna, que significa solo podre ou
rocha putrefata, e membec, que onomatopoeticamente designa o lodo do manguezal. Compreende-se que os
descobridores e colonizadores europeus não estivessem interessados na lama dos manguezais, que em todos os
lugares eram considerados inúteis e até mesmo um sério obstáculo até que os portugueses começaram a usar
os solos de manguezais da costa do Konkan, em Goa (Índia), como fertilizante, segundo Vannucci [2002:66].
175
A flora e a fauna dos mangais são bastante especializadas; quando preservadas,
sobrevivem em equilíbrio com o ambiente. No litoral Norte, árvores de mangues atingem 40m
de altura. Os mangues do Nordeste são mais baixos e chegam a medir de 10 a 20m de altura.
“Entretanto, distúrbios trazidos, principalmente por ações humanas, podem desequilibrar
essas relações levando à perda de populações inteiras de fauna e flora”, como esclarece Costa
[1995:33], pesquisador dos mangues.
À vista da oceanografia, o mangue age como espectador frente à grande cadeia de
predadores, consumidores e produtores da matéria orgânica. “A matéria orgânica
fragmentos de vegetais e animais mortos aos poucos vai sendo transformada pelos animais
detritívoros em partículas cada vez menores”. Assim como as árvores absorvem o nitrogênio
por meio de uma rede de fungos, cada microrganismo se alimenta de outras espécies menores,
mas também servem de alimento para outras espécies maiores. “Os animais encontrados no
manguezal podem ser agrupados em função de seu tamanho”, segundo Leitão [1995:24]. A
cadeia alimentar também está em função do bito de vida, destacando os herbívoros que
se alimentam particularmente de nutrientes de origem vegetal.
Na maré baixa, a lama fica exposta ao sol, favorecendo o crescimento de algas que
alimentam os moluscos, vermes e crustáceos, que por sua vez irão alimentar
centenas de aves aquáticas, dentre elas guarás, espécie considerada desaparecida
das regiões Sul e Sudeste do Brasil desde a década de 50. A presença dessa ave
incentivou os pesquisadores a fazerem um levantamento da avifauna que ocorre na
região. Com o estudo, foram acumulados dados surpreendentes, como o
redescobrimento do gavião-asa-telha, a presença de águas-pescadoras vindas da
região Nordeste dos Estados Unidos e milhares de maçaricos vindos do Alasca,
Canadá e Groenlândia, durante migração anual [SCHAEFFER-NOVELLI et al,
2004:44].
No manguezal, exercem o papel de cadeia alimentar: mamíferos, anfíbios, répteis,
insetos, aves, crustáceos, peixes, moluscos. Esse tipo de ecossistema está entre os que
realizam grandes atividades de pesca nas regiões costeiras. O mangue é segurança alimentar
para muitas comunidades ribeirinhas, animais marinhos. “Servem de refúgio natural para a
reprodução e desenvolvimento (berçário) assim como local para alimentação e proteção para
crustáceos, moluscos e peixes de valor comercial” [LEITÃO, 1995:27]. Além dessas funções,
os mangais ainda contribuem para a sobrevivência de aves, abelhas, mariposas, borboletas,
fungos, liquens. Nessa perspectiva, o mangue é uma palavra masculina que possui uma
função feminina por causa de sua frutificação, do celeiro de alimento no ermo da charneca.
O mangue, segundo Schaeffer-Novelli et al [1995:7], ao se desenvolver em regiões
costeiras, “apresenta condições propícias para alimentação, proteção e reprodução de muitas
176
espécies animais, sendo considerado importante transformador de nutrientes em matéria
orgânica e gerador de bens e serviços”.
Entre ações protecionistas e descuidos ambientais, devemos observar melhor como
funciona o ecossistema dos mangais. “Deve-se evitar fatos comuns hoje em dia, como, por
exemplo, a captura de caranguejos durante sua época de reprodução, pois é justamente nessa
fase que ficam mais expostos, tornando-se presa fácil” [GRASSO; TOGNELLA, 1995:44].
Para Yokoya [1995:10], “a região Indo-Pacífica é rica em espécie, enquanto que o
Novo-Mundo é, efetivamente, mais pobre. Baseado nesse fato, alguns pesquisadores m
sugerido que o centro de origem da planta de mangue teria sido naquela região”.
Na lentidão das margens estuárias, essa teoria é, em parte sustentada, segundo Yokoya
[1995:11-12] “pelos parcos registros fósseis encontrados, sendo aceita pela maioria dos
estudiosos. Em terrenos do oceano, na Inglaterra, foram encontradas fósseis de pólen de
Nypa, uma palmeira que nos tempos atuais somente é conhecida nos manguezais do Indo-
Pacífico”.
No litoral pernambucano, a ilha de Itamaracá traz registros históricos interessantes desse
tipo de palmeira, “contribuindo para a hipótese de que tenha existido uma flora comum às
duas áreas até o Terciário, pelo menos”. Yokoya [1995:12]. Para a pesquisadora, foram
encontrados, no Caribe, registros de ocorrência de Pelliciera, outra planta de mangue que a
bem pouco tempo só era conhecida nas costas do Pacífico da América Central.
Destruir os manguais não é apenas dizimar de árvores, acabar com o verde, contribuir
com o esquentamento do planeta Terra ou desertificação mundo afora, significa cortar o
sustento de marisqueiras e pescadores que retiram diariamente alimentos que vêm do rio, do
mar e da lama. A sobrevivência desses profissionais, na colheita de crustáceos, na retirada do
pescado, na captura de moluscos, ou mesmo uso artesanal do tanino, requer o uso equilibrado,
ou como se diz na linguagem moderna, auto-sustentável desses ambientes. Como alerta
Schaeffer-Novelli et al [2004:7], os mangues estão seriamente ameaçados pela expansão
urbana, obras de engenharia, lixões, marinas, cultivo de camarão e aterro.
Atualmente, as árvores de mangue estão mais dizimadas na medida em que penetramos
nas grandes metrópoles litorâneas em decorrência da própria exploração imobiliária. “Quando
o homem induz um impacto de qualquer espécie, seja ele aterro, derramamento,
177
desmatamento ou depósito de lixo, entre outros, o bosque de mangue deixa de contribuir com
muitos de seus benefícios prestados gratuitamente” [GRASSO; TOGNELLA, 1995:46].
Mais de uma centena de produtos pode ser obtidas dos manguezais, como por
exemplo: remédios, álcool, adoçantes, óleos e tanino. E outras inúmeras
utilizações de sua área, seja para recreação, turismo, educação ambiental, apicultura
ou criação de peixes e de outras espécies marinhas. No entanto, o importante não é
somente conhecer o que os manguezais nos oferecem, mas sim entender que deles
dependem milhares de vidas e animais aquáticos e terrestres, Com a supressão de
grandes áreas desse sistema, tais organismos serão irremediavelmente condenados
a desaparecer. É um caminho muitas vezes sem volta [ibidem].
Além de servir para estudos arqueológicos, observa-se ao redor dos mangais,
descobertas importantes: em sintonia com o lamaçal, o cinza mineral [alquimia de cloreto de
sódio e carbonato] serve para a fabricação de um sabão sólido de excelente qualidade superior
a muitos importados.
Nas áreas do manguezal, as atividades socioeconômicas se desenvolvem em virtude dos
recursos, bens e serviços gerados por estes ecossistemas. “Cerca de 90% da pesca mundial
ocorre nessa região e 70% dos organismos pescados provêm de estuários ou de ecossistemas
estuarino-lagunares” [SCHAEFFER-NOVELLI et al, 2004:8].
“Segundo o pesquisador mexicano Francisco Flores-Verdugo, cada hectare de
manguezal destruído corresponde a uma perda anual de aproximadamente 770 kg de
camarões e peixes de importância comercial” [SCHAEFFER-NOVELLI et al, 2004:8].
Se o manguezal é dos ecossistemas mais produtivos economicamente, é também dos
mais sensíveis às ações destrutivas do ser humano, assim, ao plantarmos árvores de mangues,
favorecemos a conservação de um ambiente que serve, principalmente, às comunidades
ribeirinhas. São os manguezais segurança alimentar, bom lugar para apicultura, criatórios de
carcinicultura, piscicultura e outras espécies marinhas, a exemplo: os quintais de ostras [em
Santa Catarina]; além do uso artesanal do tanino, eco-turismo, prática de lazer, esportes
[futebol no apicum].
Existem as curandeiras que, empregando diferentes produtos vegetais do mangue,
fazem uso das propriedades bactericidas e adstringentes dos vegetais do mangue, na
cura de várias moléstias comuns a esse ambiente. O tanino, obtido das cascas das
árvores, serve para proteger as redes das embarcações, cujas fibras naturais tornam-
se mais resistentes aos microorganismos responsáveis pelo apodrecimento desses
materiais [GRASSO; TOGNELLA, 1995:44].
Algumas comunidades ribeirinhas conservam uma relação de dependência com os
178
recursos provenientes das zonas costeiras. “Existem povoados inteiros construídos somente
com a madeira extraída desse ecossistema, que, por sua vez, é utilizada para a construção de
casas e dos barcos e ainda serve como lenha, para cozinhar seus alimentos” [GRASSO;
TOGNELLA, 1995:43].
A destruição de mangue interfere, também, sobre os bens e serviços [diretos e indiretos]
gerados economicamente no país. “São os ecossistemas costeiros tropicais que garantem,
mais de 2.000 anos, a prática da caça, da pesca e da produção artesanal de sal pelas
populações ribeirinhas” [SCHAEFFER-NOVELLI et al, 2004:8].
O comportamento do manguezal é migratório, modifica-se pelo ciclo das entremarés. A
marisqueira que vive do mangue narra sua vida a partir dos olhos das marés. O coração da
catadora de marisco fica entre o que é recebido na lama e o que é preservado no rio. “Quando
a água bate no fundo do buraco, o guaiamum sai tonto pelo campo afora” [CASTRO, 2001b:
57]. O que move as folhas move o coração. “Quando os ventos tomam a floresta em suas
patas / o Universo se queda” [DICKINSON, 1985:63].Tudo se liga ao mundo na cadeia
ecossistêmica. “Existem alguns aspectos comuns a todas as culturas do mundo; um deles é
justificado senso de dever para com a mãe Terra” [VANNUCCI, 2002:65].
No mangue, o rio que passava por dentro da rua, agora vem calçado de farelo e fumaça:
“O rio que fazia uma volta atrás de nossa casa era a/ imagem de um vidro mole que fazia uma
volta atrás de nossa casa” [BARROS, 1993:25]. Em algum canto deste mundo, mariposas
escrevem com a cor sépala o cimo do cosmos: “Estou enraizado no centro da Terra. Meu
corpo é um caule. Espremo o caule. Uma gota poreja na cavidade da boca, vagarosa e densa,
crescendo cada vez mais. Agora, algo rosado passa pelo orifício. Agora, o raio de luz de um
olho desliza pela fresta” [WOOLF, 2004:9].
Como raio de luz, quilha corta as ondas, águas enfurecidas descem em lâminas. Árvores
de mangues acocoram os galhos despenteando a correnteza. Ali, abjeta, a natureza é uma faca,
aborta enfurecida, repartida entre mangues, mortos e maremotos, tsunamis. “A lama come o
mocambo e no mocambo tem molambo” [SCNZ, 1994]. Águas despencam na destruição.
Muros desmoronam. Globalizamos o terrorismo. Esfarela-se o concreto em guerra. Tudo se
recorta do alto. Em reflexões ao livro ‘Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da
modernidade’, Berman [1987:64] alerta: “Todas as barreiras humanas e naturais caem diante
da corrida pela produção e a construção”.
179
Segundo Berman [1987:15]:
A experiência ambiental da modernidade anula todas as fronteiras geográficas e
raciais, de classe e nacionalidade, de religião e ideologia: nesse sentido, pode-se
dizer que a modernidade une a espécie humana. Porém, é uma unidade paradoxal,
uma unidade de desunidade: ela nos despeja a todos num turbilhão de permanente
desintegração e mudança, de luta e contradição, de ambigüidade e angústia.
Nas grandes avenidas, mundo enrubescido; vitimado nos claustros da globalização, o
individualismo extremo enclausura medo, esquizofrenia, pânico. O consumo torna-se mito;
vira vício. A solidariedade se distancia. Não encontramos consolo; quando dormimos,
corremos perigo. Nós, modernos, necessitamos, a todo preço, abrir com entusiasmo o
caminho da vileza. “Uma cerveja antes do almoço é muito bom/ pra ficar pensando melhor”
[SCNZ, 1994].
Na ‘sociedade do espetáculo’, nunca estivemos tão expostos manobras das mídias. Entre
a crise é a crítica, parece vir do mundo da realidade política e social um esgotamento do dizer
e do enorme vazio que absurda o ser humano. Esse vazio massificador que é a mídia é que
parece submeter a literatura a um julgamento que a humilha em nome da história: “é a história
que critica a literatura e que empurra o poeta para um canto, colocando em seu lugar o
publicitário” [BLANCHOT, 2005:289]. Jamais estivemos tão fragilizados pelo excesso de
terror. Vivemos a força da imagem sobrepondo à da palavra. A cada segundo, criamos ídolos,
inventamos novos ícones. Não sabemos mais envelhecer; ensimesmados, somos convidados a
eternizar o Narciso ou a celebrar o mito da juventude. Como diz Fernando Pessoa [1980:259]:
“O dominó que vesti era errado. Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e
perdi-me/ Quando quis tirar a máscara, / Estava pregada à cara. Quando tirei e me vi no
espelho. / Já tinha envelhecido”.
E tudo se estranheiriza: “Como um cão tolerado pela gerência/ Por ser inofensivo”
[PESSOA, 1980: 259]. Em uma civilização em que não justificativa para a miséria
humana, colocamo-nos à prova em um mundo cuja pobreza nos serve de troféu. Terceiro
mundista de carteirinha e tudo, a fome nossa de cada dia [nos países periféricos] nos
envergonha, nos faz baixar a cabeça, nos faz temer por aqueles que estão à margem de
mangues sem emprego no achatamento das perspectivas, na humilhação das contradições
sociais. “Porque é muito mais espessa/ a vida que se desdobra em mais vida” [MELO NETO,
1994:116].
180
Em nome de uma democracia excludente, nos orgulhamos de sermos uma América
democrata, mas a ditadura continua nos morros, nas palafitas feitas de pau de mangue. A
polícia mata à queima roupa: índios, negros, bandidos, favelados, tudo em nome da ordem
democrática. Onde está a democracia econômica, se excluímos do mercado de trabalho os que
falam “pro modi”, os que não sabem manejar os signos da língua normativa, os que ganham a
vida nos pára-brisas dos sinais para não morrerem à ngua nos manguezais. Muitos
excluídos são varridos do mercado de trabalho por falta de manejos com idioma oficial. As
palavras do atual presidente americano, por exemplo, excluem direitos e respeito à diferença.
Excluem, entre tantas outras coisas, os acordos de Paz entre os povos, desarmamentos
nucleares, Tratados de kyoto. Algumas palavras carregam poderes, oprimem, amedrontam
nossas cabeças com o terror do medo. Viver é muito perigoso” [ROSA, 1994:22].
Será que vamos nos opor a esse caos ilimitado? Uma simples caneta esferográfica é
capaz de assinar um acordo de paz. Se as armas nucleares não nos trazem paz, como os
militares teimam em nos fazer acreditar em segurança? Se defendermos armamentos
nucleares, estaremos aumentando a violência e defendendo uma destruição do planeta e
conseqüentemente dos nossos manguezais. Um horrendo gesto é capaz de lançar pelo espaço
um mundo inteiro.
“Os 360 reatores nucleares que operam atualmente no mundo inteiro e as centenas de
outros em processo de instalação converteram-se numa gravíssima ameaça ao nosso bem-
estar” [CAPRA, 1982: 20]. O perigo de uma guerra atômica atormenta o mundo todo. O
perigo nuclear ronda perto da camada de ozônio. Mar despenca em fúria. Palavra coloca em
um lugar incerto do mar o caos, movendo os longos oceanos contrariados. No rosto do
mundo, suspira Augusto dos Anjos [1997:77]: “Mostra ao cosmos a face degrada!”.
Em se tratando da natureza, como falar de uma ética de preservação? Falar sobre isso
não seria referenciar uma ética que passa primeiro pela subjetividade? Ou mesmo, uma falta
de ética do sistema capitalista que explora a natureza até as últimas conseqüências e depois
massageia a questão usando um marketing de preservação do meio-ambiente? A violência ao
mundo verde não seria, apenas, mais um retrato da violência do ser humano frente às questões
de um capitalismo tardio que se encontra? “Pode um homem enriquecer a natureza com a
sua incompletude?” [BARROS, 1993:97]. É certo que o respeito à natureza passa por mim e
pelo respeito ao outro. Como sugere o poeta Manoel de Barros [1993:61]: A palavra que eu
uso me inclui nela”.
181
Na prática, essas questões o são muito simples de se responder, quando se observa
que, no Ocidente, o racionalismo antropocêntrico pregou, a todo custo, a natureza como
objeto. As conseqüências disso ainda estão cotadas dentro de um sistema econômico
globalizante que percebe a natureza como sistema inesgotável.
Os processos que a globalização impõe ao mundo são frágeis. E nossa relação com a
mãe natureza é de troca e venda. A cada dia, consolidamos o terreno da poluição e da
destruição dos manguezais. A palavra ‘Poluição’ [polluere] é derivada do Latim e significa
corromper. Na lama, o fedor não é mais alarmante que a corrupção que se espalha dentro dos
córregos de mangue em nome dabrica de fazer camarões. Comemos os camarões cinza dos
tanques sem saber que dizimamos para isso espécie rara de mangue. um empobrecimento
ainda maior das comunidades ribeirinhas. Começamos a ter problemas sérios com os estoques
pesqueiros naturais. A conseqüência disso tudo acarretará, portanto, a miséria de milhares de
famílias que sobrevivem da pesca. Um sinal de que o mar sinais de cansaço. E, como
dizem os pescadores: ‘a maré num tá pra peixes’.
Em uma civilização extinta, sem esmolas para os cegos de feira, o mundo reconta suas
migalhas para os filhos do mangue. O planeta Terra carrega vozes da alteridade: “Sigo a voz
do mundo com voz única” [LISPECTOR, 1998:44]. A voz do mundo é de cor verde. Sem o
verde, como alimentaremos o mundo? “Guardo a fome, o prato velado [...]” [CARPINEJAR,
2001:31].
Muitas cidades se desenvolveram próximo a grandes estuários e rios, segundo
Schaeffer-Novelli et al [2004:25], “principalmente pela possibilidade de pesca abundante e
pela facilidade de escoamento de suas riquezas. Margeando o leito de rios e estuários, era
possível encontrar vastos manguezais de onde se retirava o sustento para a sobrevivência de
várias comunidades de pescadores”. No encarte do cd ‘Da lama ao caos’, [1994] o texto
‘Caranguejo com Cérebro’, de Fred Zeroquatro e Chico Science, denuncia a relação cidade X
manguezais:
A planície costeira onde a cidade do Recife foi fundada é cortada por seis rios.
Após a expulsão dos holandeses no século XVII a (ex) cidademaurícia” passou a
crescer desordenadamente às custas do aterramento indiscriminado e da destruição
dos seus manguezais. Em contrapartida, o desvario irresistível de uma cínica noção
de “metrópole” do Nordeste, não tardou a revelar sua fragilidade. Bastaram
pequenas mudanças nos “ventos” da história para que os primeiros sinais de
esclerose econômica se manifestassem, no início dos anos 60. Nos últimos 30 anos
a síndrome da estagnação, aliada à permanência do mito da metrópole, tem
levado ao agravamento acelerado do quadro de miséria e caos urbano.
182
Para Leitão,
55
pesquisadora do departamento de oceanografia UFPE, na construção do
porto de Suape, a exemplo, foram desmatados 600 hectares de mangues. Com o desequilíbrio,
o rio Ipojuca teve seu curso alterado e muitas espécies de tubarão passaram a atacar os
banhistas na praia do litoral recifense. A falta de matéria orgânica no estuário levou ao
desaparecimento de várias espécies que serviam de alimento para o tubarão. Na perspectiva
da estudiosa, os mangues deveriam ser plantados para que o rio Ipojuca restabelecesse o
equilíbrio ambiental e conseqüentemente a normalidade da cadeia alimentar.
Em correspondência com esse pensar, Schaeffer-Novelli et. al [2004:44] destacam que
“nos manguezais da cidade de Cubatão, no litoral paulista, uma das regiões ambientalmente
mais degradadas do país, dois biólogos brasileiros Fábio Olmos e Robson Silva e Silva
catalogaram 146 espécies de aves 86 delas aquáticas- numa área de 50 km². Para a
pesquisadora: “Os despejos de milhares de toneladas de poluentes nos manguezais de Cubatão
podem comprometer o sistema reprodutor de aves”.
O mangue age como uma mãe; é abrigo de muitos animais que fazem travessia de
costas para o rio-mar. “Depois, / o mar invade o rio/ Quer o mar destruir o rio” [MELO
NETO, 1994:112]. O mar é uma casa que acolhe uma vasta rede de seres anfíbios que
transitam entre o rio e o mangue. Na paisagem do rio: “A menor célula do corpo do homem se
apega assim, e com essa força à palavra, - e reciprocamente”, descreve Francis Ponge
[2000:83]. No partido dos sonhos, fora, são bilhões de bocas; são bilhões de sonhos e uma
única árvore para alimentar o mundo. “Se faltar o amarelo como faremos o pão?” A pergunta
é de Pablo Neruda, mas que resposta devemos construir de agora para frente?
Na cartilha dos poetas, a principal ‘sabença’ é respeitar a diferença das cores, dos
traços, dos sons de qualquer elemento da natureza. As imagens vão passando devagar,
ajoelham-se dentro dos olhos. O mangue nos pensa: “O rio sabia daqueles homens sem
plumas” [MELO NETO, 1994:108]. O respeito à natureza cabe, portanto, no reencontro com
essa nossa outra voz que é a voz da natureza do mundo.
O ser humano é habitante de linguagens. É por meio da linguagem que organizamos
nosso pensamento e comportamento ‘ecossistêmico’. Quando digo: O mangue talvez/ fosse
mais verde/ se houvesse mais mundo” [LIMA, 2003:37], emprenho da linguagem para recriar
55
In: SCHAEFFER-NOVELLI, Yara; COELHO JÚNIOR, Clemente; TOGNELLA- DE- ROSA, Mônica.
Manguezais. São Paulo: Ática, 2004, p. 42.
183
uma canção, uma ‘eco-ação’ em um universo sem leis, “mundo à deriva, visão grotesca do
cosmo: a eternidade está sentada sobre o caos e, ao devorá-lo, devora a si mesma” [PAZ,
1984: 71].
Capra [2001: 227] observa que o mundo que todos vêem não é o mundo, mas um
mundo que criamos com os outros. Para o físico, o mundo humano inclui o mundo interior de
reflexões, intuições, pensamentações abstratas, conceitos, símbolos, representações mentais,
autopercepção, sentimentos. “Ser humano é ser dotado de consciência reflexiva: na medida
em que sabemos como sabemos, criamos a nós mesmos”.
Frente à sabedoria da natureza, deveríamos prestar reverência como sinal de respeito e
compaixão aos seres deste planeta, pois é nele que comungamos com os outros seres, com
nosso eu-sagrado, instalado por um tempo determinado nos solos terrestres, florestas
simbólicas. “A natureza é um templo onde vivos pilares/ Podem deixar ouvir vozes confusas:
e estas/ fazem o homem passar através das florestas/ De símbolos que o vêem com íntimos
olhares” [BAUDELAIRE, 2001:19].
Em alguns poetas, os passos acompanham um ritmo urbe. São escritores que deixam
seus rastros no asfalto rajado pelos ventos marinhos das causas ambientais. O poeta Ronald de
Carvalho [1984: 28-29; grifo nosso] denuncia alguns feitos: “Das mãos que perseguem a
onça, a raposa, o búfalo e a baleia, / das que lançam o touro no pampa e na coxilha,/ das que
flecham o tapir e a sucuri,/ das que varam saltos e corredeiras,/ das que secam mangues e
igapós/ das que misturam oceanos”.
Dos elevadores citadinos, o mundo se alicerça em redes, em feiras, em mangues. Há
raízes da cosmogonia nos cabelos despenteados de uma jovem punk. Há raízes de mangue nos
guetos, na cabeleira negra que vem pichada séculos pela discriminação racial. raízes de
mangues nas palavras que sobem o muro das palafitas e que favelam sobre cortiços.
mangues debaixo das zonas de prostituição do baixo meretrício. Há, nas cabeceiras de
mangues, raízes que se locomovem com o lixo maquiado de miséria. Descendo os becos
violados pelo barro, mangues no comércio ilícito de camarões e lagostas exportados em
navios cargueiros para outras cidades-mares. “A cidade se encontra prostituída/ por aqueles
que a usaram em busca de saída / ilusora de pessoas de outros lugares/ A cidade e sua fama
vai além dos mares” [SCNZ, 1994].
Inconclusos que somos para aprendizagens fechadas, aprendemos, por vocação, com
184
erros e acertos. “Somos de ontem e nada sabemos”. “Pode o papiro crescer sem lodo? Ou viça
o junco sem água?”. [Livro de JÓ, Capítulo VIII SS 9 e 11]. Aprendemos com os pais e com
os amigos que riqueza no mundo natural e liberdade ecológica nos povos, mas vivemos
períodos de descuidos ambientais: “Somos o desperdício do que estocamos. / Não
aprendemos a desaprender. / Não doamos nada, nem a palavra passamos adiante”
[CARPINEJAR, 2001: 20].
Inacabadas e aprendizes, as palavras transfiguram o que é incorporante para um poema.
A palavra escrita não deveria excluir. Mas as palavras são excludentes. “Neste papel pode teu
sal/ virar cinza” [MELO NETO, 1994:94]. Quando se atravessa uma poesia carcomida por
uma dor de rio, aprende-se a resguardar a imagem para ver em uma fala ‘multilingüe ’outros
rios. O poema que respeita a voz de um estuário é verso que se faz margem para outros
mangues, outros rios. Como diz Josué de Castro [2001b: 145]: “O rio lambia carinhosamente
com suas nguas d’água os galhos mais altos do mangue como uma vaca lambe a cabeça do
bezerro, mugindo baixinho”.
A preservação dos seres da natureza deve existir não apenas como luta para salvar o
verde, o caranguejo. “Salvar não tem unicamente o sentido de resgatar uma coisa do perigo:
salvar é restituir, ou dar condições para que ela se revele naquilo que lhe é mais próximo”
[UNGER, 2001: 123]. As plantas não nasceram apenas para suprir a existência humana. Cada
árvore tem vida própria. A natureza não é objeto de domínio, calculo e controle. Um bosque
de mangues é também estado lírico da natureza. “Salvar significa deixar ser” [UNGER, 2001:
123]. A forma verde de ser não difere da sílfide. Os colibris não arrancam os espinhos para
beber a flor. “Os espinhos são/ pra quem pensa em enganar a flor”, como canta Jorge Du
Peixe. A árvore é um ser vivo que contém outros seres vivos; muitos parasitas que
sobrevivem das sombras dos vegetais e animais dos manguezais. As árvores-raízes desfolham
o mangue.
O niilismo se biparte entre tantas descrenças. Uns prevêem a dizimação dos recursos
ambientais nos manguezais, outros a contaminação da crosta terrestre. “Alguns outros a
multiplicação da fome, outros ainda a petrificação histórica pela instauração universal de
ideocracias totalitárias, outros finalmente as chamas atômicas” [PAZ, 1993:53].
Da lírica, escorre a seiva que denuncia impacto das ruínas ambientais. Como descreve
Cardozo [1971:172-173]: “As árvores morreram/ As flores murcharam/ E as suas cores se
185
fizeram freiras/ Na clausura de um convento branco”. No mangue, a vista se fragmenta de tal
maneira que o radical se aprofunda até atingir o ventre das raízes aéreas. Não somente pelas
raízes se pode entrar no ambiente diaspórico do manguezal.
Muitos ventos são naufragados pelos manguezais. Os sargaços, por exemplo, carregam
o cheiro de iodo para as margens do mangue. O olfato rege algumas gentilezas aos percevejos.
Paredes escorregadias entregam-se ao lodo do limbo. uma espécie de grandeza em ver as
lesmas grudando-se às paredes de barro molhado. Na lombada do barro, lesmas se escondem
dos sururus. Nos mangues, as palafitas são ancoradas pelos rios. O desequilíbrio das marés
tem compaixão dos casebres. Favelas resistem diante da pobreza mundana.
Ao repensarmos o valor da biologia marinha, os mitos anfíbios são resgatados. Vem à
tona a voz da memória protetora das águas cósmicas. No palco da memória, os ecossistemas
que deixam de existir, “deixam atrás de si uma lição, com freqüência esquecida, e uma
tragédia em termos de degradação e empobrecimento do mundo no qual nossos filhos e netos
deverão sobreviver” [VANNUCCI, 2002: 12]. Parte de um eixo cosmológico, a palavra
mangue deveria ser escrita apenas no plural. A diversidade desse tipo de vegetação entende-se
entre raízes-rizomas, umbigo da terra. Nas encruzilhadas do planeta Terra, o manguezal é
território ramificado de mitos. Aos mitos não se devem explicações; aos mangues, deveríamos
ouvir mais as histórias do seres anfíbios que nasceram de dentro do ambiente das ostras.
Como se sabe, a mitologia consiste, esquematicamente, em indagar se “é na medida dos
homens ou na medida das coisas que se devem estudar os mitos. Noutras palavras, o mito é a
lembrança da ação brilhante de um herói ou a lembrança do cataclismo de um mundo?”
[BACHELARD, 2002: 158].
Vale observar que o mangue, definido pelos escritores modernistas, traz um enfoque
lírico que sustenta o poder e a exploração sobre os manguezais. Quando se toma o tom
romântico como mero recurso paisagístico, a crítica do autor modernista suaviza os reais
problemas do país. Em sua forma saudosista, a rebeldia modernista serve apenas para afirmar,
ainda mais, a onda de nacionalismo. Para isso, usa como recurso ou suporte favorito a mera
brincolagem levada em tom de seriedade, o que não deixa de ser um começo para uma série
de mudança e reflexão no caminhar da poesia brasileira.
O que veremos a seguir é justamente uma crítica ao lirismo moderno, um repensar a
subjetividade dita profunda ou mesmo a tudo o que retira do ser humano uma reflexão mais
186
racional sobre a realidade. Nessa perspectiva, João Cabral irá construir seus mangues pelo
tom da ‘antilira’. Preocupado, acima de tudo, com o social e com os rumos da palavra no
mundo contemporâneo, Cabral se volta para a forma enxuta ou geométrica de lidar com o
poema mantendo uma relação extremamente crítica e coerentemente lúcida.Um poema que se
arrulha dentro da desarrumação dos mangues e da vida.
187
DIA SEIS
Sexta Margem
Travessia do manguesertão
Capítulo VI
Série: O cão sem plumas
[a teia de relações]
E os cães se calavam
[AIMÉ CÉSAIRE]
188
a Ferreira Gullar e seu Poema Sujo
6 As plumas dos mangues
Paisagem do Capibaribe
II
Entre a paisagem
o rio fluía
como uma espada de líquido espesso.
Como um cão
humilde e espesso
Entre a paisagem
(fluía)
de homens plantados na lama;
de casas de lama
plantadas em ilhas
coaguladas na lama;
paisagem de anfíbios
de lama e lama.
Como o rio
aqueles homens
são como cães sem plumas
( um cão sem plumas
é mais
que um cão saqueado;
é mais
que um cão assassinado.
Um cão sem plumas
é quando de uma árvore sem voz
é quando de um pássaro
suas raízes no ar.
É quando a alguma coisa
roem tão fundo
até o que não tem)
[MELO NETO, 1994: 108]
O poeta Pena Filho [1983:181] no poema “Guia Prático da Cidade do Recife” observa
que tudo o que for do rio, da água, da lama, de caranguejos e de peixes “está sempre e a todo
instante/ lembrando o poeta João, / que leva o rio consigo/ como um cego leva um cão”.
Na descrição da geografia do mangue, o rio desce espesso para reinventar-se às margens
do mundo-caos. Do mangue-cão, homem e caranguejo se acostumam à existência da lama tal
qual um caramujo sujo. A realidade entre a época de João Cabral e a atualidade registra
189
diferenças assustadoras e cruéis: “A população dos mocambos de hoje se sustenta a partir das
mais diversas atividades informais, catando papelão ou latas de alumínio” [FERREIRA, 2006:
5]. Se a palafita mal se equilibra sobre a água machucada”, o mangue anda enfermo, o rio
morto. Como diz o poeta Marcus Accioly [1983:3]: “O mangue como um mar morto, / recebe
o rio e o encerra/ entre seus lábios viscosos/ e as suas ilhas de terra”.
Acompanhando o grunhido do cão sem plumas, o rio ao entrar no mar deixa de ser rio
para ser cão-mangue. O idioma mangue é manso como a língua mansa de um cão. O Mangue,
o rio e o cão são sinônimos de uma violenta explosão habitacional. O cão sem plumas traz um
aviso de exclusão nas bordas da teia da lama. A lama e o rio trazem para o imaginário do
manguezal a representação das coisas que nascem, transformam-se e morrem. Não nos
banhamos duas vezes no mesmo rio, porque o ser tem um destino de rio, de água que corre,
que morre. Se para Heráclito a água simboliza transformação e transição, para Gaston
Bachelard [2002: 49] a representação desse elemento diz algo mais: “O conto da água é o
conto humano de uma água que morre”.
Das plumas de escumas, sai o material espesso que margeia os barracos de barro. A
pluma é a forma úmida e argilosa do bioma. As plumagens são as faunas abaladas com o
desmatamento da flora. As plumas do mangue são as incertezas da morte diária no fio da
lama. “Negação e afirmação, isto e aquilo, pedras e plumas se dão simultaneamente e em
função complementária de seu oposto” [PAZ, 1982: 123]. No manguezal, a argila é alimento
que sacia a ausência de sonhos, [falta de plumas]. Argila que, segundo Bachelard [2002:14], é
“mãe do bronze”. Umidade íntima do mangue, argila é recriação dos mangues “A grandeza
progride no mundo na medida em que a intimidade se aprofunda” [Bachelard,1974: 482]. A
argila assim como as águas e os mangues são substâncias que se precisam no devaneio da
lama: “Torna-lhe as águas mais densas/ e, feito chumbo, pesadas, / sobre seu leito sem
margens, / como se fossem paradas” [ACCIOLY,1983:3].
Na expansão da consciência, espanto são as surpresas; as fagulhas que causam emoção:
‘Arte como o despertar dos sentidos’, diria Octavio Paz [1982: 129]: “As plumas leves são
pedras pesadas”. A linguagem nomeia as coisas. “Todas as grandes palavras, todas as palavras
chamadas à grandeza por um poeta, são chaves do universo, do duplo universo do Cosmo e
das profundezas da alma humana” [BACHELARD, 1974:484]
O imaginário das plumas, nos mangues, são as duas águas: dois rios olhando para as
190
plumas do mar. As plumas do mar são representações da efemeridade humana no mundo.
Para os antigos egípcios, a pluma representa o símbolo da precisão. A pluma serve de peso
num dos pratos da balança em que se pesam as almas. A pluma levíssima recebe o nome de
Maat que no signo zodiacal representa a balança. No mapa astrológico, o signo libriano
simboliza a busca do equilíbrio cósmico. O hieróglifo de Maat, segundo Ítalo Calvino
[2003:71], indica igualmente a unidade de comprimento os 33 centímetros do tijolo unitário
também o tom fundamental da flauta. Em João Cabral [1994:90]: “Quando a flauta soou/
um tempo se desdobrou /do tempo, como uma um caixa/ de dentro de outra caixa”.
A metáfora cabralina vem de uma precisão que corpo ao que é, muitas vezes, difícil
de exprimir no devaneio das plumas. Reencontramos diante das águas-plumas dormentes dos
mangues uma melancolia muito especial que tem a cor barrenta de um barro sujo. Melancolia
que desce da alma que observa a lama. “Ali não há como pôr vossa tristeza/ como a um livro/
na estante” [MELO NETO, 1994:88]. Porque é uma melancolia triste que abriga o sonho
perdido dentro do mundo. Tristeza que não apazigua a culpa do ser refugo vivendo pendurado
em latas de palafitas. Como diz um verso do poeta alagoano Jaci Bezerra [1983:41]: “O
mangue desperta com a noite”. A noite revela um mundo esquecido às sombras dos casebres
escurecidos. A nostalgia do mangue deixa os retirantes grotescamente absortos. E sem o
brilho da expressividade nos olhos, tornam seus destinos meramente ocos com seus
esqueletos sem ossos: “Ninguém se iluda/ a lama não corrompe/ A vida é que é o lance
agitado/ entre as patas dos siris, na cloaca dos mangues/ Fezes, febres. Vapor do tempo”,
assim descreve o poeta cearense José Alcides Pinto [2003:86] em seu longo poema “Os
catadores de Siris”.
Na lama perversa, os homens do manguezal, na maioria das vezes, vêem seu pedaço de
mangue como mero quintal particular sem qualquer preocupação em preservar o lugar
ambiental. No rio Capibaribe, a exemplo, desembarcam, diariamente, toneladas de poluentes.
O lixo que bóia sobre o rio lembra plumas flutuantes a se instalar debaixo das palafitas. As
plumas do mangue são gosmas ou pubas que soltam uma fedentina que sai dos canais e
esgotos.
Como um rio, os retirantes invadem as ruelas na contramão da cidade-mangue. As
plumagens do rio levam ao leito seco o peso dos bóias-frias. As plumas de João Cabral são as
plumagens do canavial. Essas plumagens dançam maracatus, bebem azougue, carregam uma
flor dentro da boca: caboclos de lança. Do canavial, as plumas carregam o povo humilhado
191
dentro dos “tremilhões”
56
de injustiças.
As metáforas das plumas também são os cabelos das algas, as perninhas peludas dos
homens caranguejos de lodo e ferrugem: “Formando um corpo sem corpo/ Nem forma ou
medida, espesso; / Por ser o corpo do mangue/ Um corpo do lado avesso” [ACCIOLY,
1983:4]. As plumas embrulham a pele humana e são grandes protetoras dos filtros solares.
Pelo avesso, as plumas do corpo humano somam-se às impressões singulares e a toda uma
teia de raízes fasciculadas. Como diz João Cabral no poema acima: “como o rio/ aquele
homens/ são como cães sem plumas”.
O universo das plumagens do mangue é um universo infinitamente metafórico “A
poesia é uma síntese natural e duradoura de imagens aparentemente artificiais”
[BACHELARD, 2002:190]. Não podemos pegar o espaço metafórico com as mãos, mas a
palavra pode. Como parte da matéria que somos, barro e homem em Cabral são matérias da
geometria curva do mangue. O poema oculta o teorema: o barro que se faz das águas de
cântaro rejuvenesce a terra de mangue. “A mão toma diretamente consciência do sucesso
progressivo da união da terra e da água” [BACHELARD, 2002:112]. A lama faz parte do
devaneio da água. O efeito da água é designado pela resistência do barro. O barro expelido da
lama jorra transfigurado e se torna jarro. “O modelador diante de seu bloco de argila encontra
a forma pela deformação, por uma vegetação sonhadora do amorfo. O modelador é quem está
mais perto do sonho intimo, do sonho vegetante” [BACHELARD, 2002:113]. Na transgressão
da arte, muda-se o barro de natureza e começa aí o animismo do que era mangue-natureza em
elemento social. “Isso porque a metáfora é o fenômeno da alma poética. É ainda um
fenômeno da natureza, uma projeção da natureza humana sobre a natureza universal”
[BACHELARD, 2002:190].
Ansiar por mudança habita o coração dos homens e dos que se repovoam na lama do
mangue. Na “ecologia mental”, a relação com o social almeja construir laços de conhecimento
do ser humano consigo mesmo e com o mundo. Toda obra de arte é marcada pela relação com
a totalidade mundo. A arte do mangue tem uma missão que nasce na encruzilhada das
relações: “É preciso dizer como habitamos nosso espaço vital de acordo com todas as
dialéticas da vida, como nos enraizamos, dia a dia, num canto do mundo” [BACHELARD,
1974:358].
56
Caminhões onde se transportam a colheita da cana de açúcar para as usinas.
192
As plumas no mangue sugerem uma poética onde o espaço é posto em questão: “O
tempo do poema não mais; / seu espaço, esta pedra/ indestrutível, imóvel mesma: e ao
alcance da memória/ até o desespero, o tédio” [MELO NETO, 1994:409]. Na geometria das
plumas, a poesia contemporânea põe a liberdade no próprio corpo da linguagem. “A poesia
aparece então como um fenômeno de liberdade” [BACHELARD, 1974:348]. A palavra
repensa o ser moderno em sua razão direta no corpo da sociedade e reflete a ânsia de domínio
e exploração no mundo. “E não nos enganemos: o adversário que insulta não é
necessariamente um homem as próprias coisas nos questionam. Em compensação, em sua
experiência audaciosa, o homem brutaliza o real” [BACHELARD, 2002:167].
A metáfora do mangue lembra-nos um pássaro desplumado. “Um cão sem plumas/ é
quando de uma árvore sem voz/ É quando de um pássaro/ suas raízes no ar” [MELO NETO,
1994:108]. No mangue, árvore sem voz é pássaro sem canto. O pássaro, tal qual o habitante
do mangue, é nômade, regido pela mudança de lugar, pela situação de vôo em situação de
risco e perigo. Mas o “canto dos pássaros está entre os mais belos tipos de comunicação não
humana” [CAPRA, 2001 225].
Na batalha do homem com a modernidade, não é o mangue que começa inicialmente a
se apresentar em João Cabral, mas o rio sem plumas. O poema de Cabral sugere por trás da
fala do rio uma preocupação com as plumas dos homens. Na plumagem do manguezal, Cabral
espelha-se em uma época de grandes descrenças. O reflexo de sua defesa consistirá em
mostrar que as vozes do homem-mangue quase não são metafóricas. A linguagem é uma
realidade poética direta que os rios Capibaribe e Beberibe sonorizam com estranha fidelidade
as paisagens mudas, “que as águas ruidosas ensinam os pássaros e os homens a cantar, a falar,
a repetir, e que há, em suma, uma continuidade entre a palavra água e a palavra humana”
[BACHELARD, 2002:17].
Os donos do mangue, as águas, os guarás, o martim-pescador, as garças, as marisqueiras
são as plumagens que, por sua vez, enfeitiçam a lama. A poética do manguezal, apesar da
variedade de seus espetáculos entre água e a lama espessa, tem a garantia de uma unidade
dentro da multiplicidade. Os manguezais são ferramentas importantes no hibridismo da
linguagem poética. No vôo da poesia, a faculdade de recriar imagens da realidade determina a
simbiose entre a abstração e o concreto. Em alguns momentos, água aparece paralisada, mas
em outras se imiscui em verdadeira metamorfose com a calda da lama e o leite dos
caranguejos.
193
Em João Cabral [1994:93], a falta de plumas é a faculdade de criar imagens sem
alegorias extremas, como se observa no poema “Psicologia da Composição”:
Saio de meu poema
como quem lava as mãos.
Algumas conchas tornaram-se,
que o sol da atenção
cristalizou-se; alguma palavra
que desabrochei, como um pássaro.
Talvez alguma concha
dessas ( ou pássaro) lembre
côncava, o corpo do gesto
extinto que o ar já preencheu
talvez, como a camisa
vazia que despi.
As imagens são concebidas a partir de um tipo de realidade que ultrapassa “o sol da
atenção”. Mistura as cochas da praia aos pássaros do ar. “Onde os pássaros da noite
aprenderam os sons trêmulos, arrepiados, semelhantes à percussão de um eco subterrâneo nas
ruínas?” [BACHELARD, 2002:200]. Aliás, as únicas ferramentas dos pássaros são as plumas
a desafiar a conchas que flanam. uma inversão que aproxima o lado côncavo das conchas
ao vôo curvo dos pássaros. As conchas são cavernas de sons estranhos. Lembram ninhos de
pedras. Ao se colocar uma concha aberta a favor do vento, observa-se que sai um gorjeio
abafado de dentro. “Depois de ter observado que os pássaros marinhos não cantam,
Armand Salacrou se pergunta a que acaso se devem os cantos das nossas matas”
[BACHELARD, 2002:201].
Se a poesia traz a função de perceber com espanto as coisas do mundo, devemos definir
talvez o homem-mangue pela condição que o impede de ultrapassar a humana condição no
caos urbano ou talvez pela condição de ser pássaro com traços desplumados e
desumanizantes. A condição de pássaro-mangue leva um deslimite entre as asas e o canto. “Se
os pássaros são, na opinião de certos lingüísticos sonhadores, os primeiros fonadores que
inspiraram os homens, eles próprios imitaram as vozes da natureza” [BACHELARD,
2002:200].
A poética do mangue permite trazer uma dupla indagação: o mangue quer se ver, mas o
que vês ou escutas? O que um barulho de água descendo do rio revela à imaginação dos
pássaros? Curiosamente, o poeta Marcus Accioly [1983:5; grifo nosso] insinua: “Mas logo
que o rio encontra / de novo pedras e areias, / e escuta o mar que o convida/ com algas,
búzios, sereia/depressa vai se enxaguando, /num banho de passarinho, / e despregando a
194
metade/ do mangue pelo caminho”.
O poeta aproxima a fala mansa de um cão, a voz dócil de um mendigo, à matéria de um
pássaro e suas raízes no ar”. Pelo que de mais periférico no mangue, as raízes no ar
representam a forma como os pássaros transitam no impalpável. O poema sem plumas, sem
fantasia, é sugado pelas necessidades, pela falta, pela miséria, pela impossibilidade de saltos e
vôos dentro do quadro social do manguezal. “Entra a paisagem (fluía)/ de homens plantados
na lama”.
A fala do mangue, pelo víeis da sátira, é zombeteira, irônica, rasteira. A voz do rio-
pássaro fala o apenas dos que se aproximam da lama, mas daqueles que se afundam nela:
“As vozes líquidas do poema / convidam ao crime/ ao revólver” [MELO NETO, 1994:55].
Em sua fala líquida, o poeta medita sobre os homens desplumados vivendo por necessidade
do exercício de bandidagem. Ao centrar questionamentos ao mundo embrutecido, em tom de
fábula, um rebaixamento da condição humana à condição animalesca. Na visão de Ortega
y Gasset [1973:56]: “O pássaro e o crustáceo são formas de vida demasiado distantes da nossa
para que ao confrontarmo-nos com eles percebamos outra coisa senão diferenças avultadas,
abstratas, vagas, de tão excessivas”.
do alto, o corpo e as asas dos pássaros servem como equilíbrio para que as plumas
sejam partes vitais do vôo poético: “alguma palavra/ que desabrochei, como a um pássaro”. O
pássaro é semente de sua asa. “Talvez alguma concha /dessas (ou pássaro) lembre”. O
nomadismo dos pássaros corre contra o tempo, geralmente, ocorre para a captura de alimento
e ou em virtude das mudanças climáticas nos mangues. No CD, Afrociberdelia, de Chico
Science & Nação Zumbi [1996], encontramos uma imagem parecida à de João Cabral: “Como
um pássaro, o tempo voa/ à procura do exato momento / como o que você pode fazer fosse
agora/ com as roupas sujas de lama/ porque o barro arrodea o mundo” [CSNZ, 1996].
A forma curva com que os pássaros seguem a esfera do céu leva os mesmos a
construírem ninhos arredondados. O pássaro costuma utilizar o corpo como ferramenta de
construção dos ninhos.“É pela ação de virar-se constantemente e de recalcar as paredes de
todos os lados que ele chega a formar esse círculo” [BACHELARD, 1974:421]. A forma
como os pássaros fazem suas casas também lembra o jeito como os habitantes dos mangues
constroem suas palafitas feitas de galhos de árvores. “As árvores gritam através de seus
pássaros” [MACKELLENE, 2006:23].
195
Nas ferrugens do mangue, as raízes lembram ninhos de ssaros. Muitas palafitas são
feitas com material reciclado do próprio mangue. “As casa, os casebres, / com seus tetos de
tábuas, / onde o vento do Mangue/ Vê, sobre as águas cegas” [ACCIOLY, 1983:6]. Os
habitantes do manguezal também fazem suas casas suspensas em cima de estacas para
enfrentarem os embates da maré. De longe, as palafitas lembram ninhos suspensos sob copas
de árvores onde todos atraídos por esta terra de promissão, “vêm se aninhar naquele ninho de
lama”, como destaca Josué de Castro [2001:21] em seus Homens e caranguejos. Assim como
os mangues carregam as palafitas nos ombros e os caracóis trazem as casas às costas, os
pássaros levam os ninhos no imaginário das asas. Os moradores dos mangues são grandes
“pássaros marinhos” ao pegarmos aqui uma imagem de Josué de Castro [ 2001:113].
No manguezal, verdadeiros ninhos de papelão perdidos na cabeceira da lama reforçam à
condição de pobreza dos mangues sem plumas. Casebres de mangues são cavernas de lama ou
esconderijos de andorinhas à beira de ninhos que mais parecem cortiços. “Notemos que
poucos sonhadores de ninho que amem os ninhos de andorinhas feitos, dizem eles, de saliva e
de lama” [BACHELARD, 1974:422].
A imagem em sua simplicidade não é renegada. “E sob pássaros de teu chapéu/
desconheço a minha rua” [MELO NETO, 1994:49]. A imagem abala o discurso poético e
recria do nada o extraordinário: “Raízes de árvores/ enlaçam-me os sonhos/ no ar sem aves”
[MELO NETO, 1994:45]. Os mangues sem plumas são manguezais devastados que se
reinventam “espesso, / porque é mais espessa/ vida que se luta /cada dia, /o dia que se adquire/
cada dia/ como uma ave/ que vai cada segundo conquistando seu vôo” [MELO NETO,
1994:116; grifo nosso].
O cão sem plumas é rio desplumado, “é a liquefação da substância da terra, é a erupção
da água líquida enraizada no mais secreto de suas dobras” [BACHELARD, 2002:128]. O rio
sem plumas é a visão de um pássaro parado. O processo de concentração dos pássaros
acompanha o vento. Os pássaros cantam em linguagem estrangeira.Para alguns sábios não é
uma metáfora descabida falar da linguagem dos pássaros” [PAZ, 1982: 38]. As asas
encurvam-se para soltar o gorjeio. A forma encurvada dos pássaros é tão singular aos
mangues que implica em seu próprio ilhamento, sua fraqueza social, seu alheamento, pois
como diz o autor recifense: “de casas de lama/ plantadas em ilhas/ coaguladas na lama”
[MELO NETO, 1994:114].
196
Os mangues são ilhas solitárias, mas também geografias solidárias: “ilhas ainda não de
todo paridas. / Ilha Joana Bezerra, / do Leite, do Retiro, do Maruim/[...]/ Casas de lama negra/
plantadas por essas ilhas” [MELO NETO,1994:138]. As ilhas dos mangues interagem com
outros mangues-ilhas onde tantos mendigos habitam “abocanhando, engolindo, / e vomitando,
afinal, / crustáceos, ostras e peixes, / das goelas do lamaçal” [ACCIOLY, 1983:4]. São ilhas
interligadas à condição miserável dos guetos sujos que o mangue de forma desleixada
“seguem deixando as ilhas, / suas raízes, / seus pêlos, / levando quase a metade/ do mangue
nos seus cabelos” [ibidem]. São esses arquipélagos que nos escombros das ilhas-mangues
servem como alternativa para abrigar os homens severinos: “onde a água morta do alagado/
passa a chamar-se de marema/ e nada tem de gosma, / morna e carnal, de lesma” [MELO
NETO, 1994:97]. São ilhas de distâncias nos recortes insalubres do manguezal. Como diz o
poeta do Capibaribe: Falam para mim de ilhas/ que mesmo os sonhos/ não alcançam”
[1994:55]. O espaço telúrico e o mundo exterior são conduzidos por uma condição inviável
como se o mundo estivesse sem anteparo, como se os sonhos na ambientação dos tempos
modernos estivessem em estado sonâmbulo: “em rios invisíveis/ automóveis como peixes
cegos/ compõem minhas visões mecânicas” [1994: 46].
No mundo cabralino, a dualidade do sujeito-objeto leva em conta como matriz as
perversidades sociais. “Todas as transformações/ todos os imprevistos/ se davam sem o meu
consentimento” [MELO NETO, 1994:43]. Há uma crítica profunda das visões mecânicas
maltratando o mundo humano. De todos os atentados, o embrutecimento humano é o mais
assustador. “Como estávamos longe / muito afastados, em cada extremo da cidade” [1994:52].
Na construção de João Cabral de Melo Neto, o poema tem voz espessa, entre analogias
que se movem pela quebra das “ondas secas de outras marés: as das areias, que mais adiante/
se vão desdobrando nos mangues/ que se desdobram (quase palha)/ num capim lucas, de
limalha” [MELO NETO, 1994:240; grifo nosso]. Assim a palha levada pela limalha é
representante da insignificância do destino humano; palha que nos remete ao Kafka em “O
artista da fome”. Algumas vezes, relendo em voz alta os poemas de João Cabral, temos a
impressão de que o verso repensa entre labirintos e metamorfoses os descaminhos travados
pelo devaneio e pela lucidez cotidiana.
197
6.1 A dança das pedras ou o devaneio das ostras neobarrocas
Aquele rio
era como um cão sem plumas.
Não sabia da chuva azul,
da fonte cor-de-rosa,
da água do copo de água,
da água de cântaro,
dos peixes de água
da brisa na água
Sabia dos caranguejos
de lodo e ferrugem.
Sabia da lama
como de uma mucosa.
Devia saber dos polvos.
Sabia seguramente
da mulher febril que habita as ostras.
Aquele rio
jamais se abre aos peixes,
ao brilho,
à inquietação de faca
que há nos peixes.
Jamais se abre em peixes.
[MELO NETO, 1994:105-106].
A imagem cabralina é contra tudo o que se instaura como grandiosamente espetacular.
Em sua figuração, existe uma superação da própria sensibilidade “na torta visão de uma alma/
no pleno estertor de criar” [MELO NETO, 1994:411]. A comunicação defendida por esse
poeta não retira da palavra o poder de sacudir o leitor adormecido. Vejamos que João Cabral
diz muito com um mínimo de palavra possível. A economia de léxico, sem abusar da
tapeação, faz o leitor reconhecer: “não a forma encontrada/ como uma concha, perdida/ nos
frouxos areais/ como cabelos” [MELO NETO, 1994:95], mas também os recortes de um
molusco a acenar para o poema em seu cotidiano irreparável.
Símbolo de silêncio e retiro, o molusco é um ser - quase uma - qualidade, pegando aqui
o bivalve de Francis de Ponge [2000:83]: “dotado de uma energia possante para se fechar”. É
chave para fechar portas, mas também é morada do imaginário do mangue. Verdadeiro
santuário do mangue, o molusco habita a tranqüilidade da lama. Para quem aprecia o refúgio,
a prisão, a solidão, o ensimesmar-se na sabedoria, eis a representação fiel de um monastério:
torna-se concha. A ostra sozinha vive encurralando-se: “Dia de sol/ sem sobra de dúvida/o
caracol”, como destaca um verso da poeta curitibana Alice Ruiz [2001:88].
Ao viver embrulhado em linha espiralada, o caracol vem pintado de sal. Parece
independente do restante do mundo. Camuflado em pedras, lembra pequeninas estátuas
198
marinhas. Mas vendo-a atentamente, a fragilidade toma conta de um mundo em grau de
abandono aparente. Cada forma de concha carrega uma geometria específica. O tempo
eterniza-se na sólida lentidão como um leve fragmento espiralado. “Caramujos sempre
chegam depois. / Representa que estão chegando / da eternidade” [BARROS, 2001:53].
Os moluscos, de forma fenomenal, constroem suas conchas seguindo as lições de uma
vida transcendente. “Aliás, para uma concha viva, quantas conchas mortas! Para uma concha
habitada, quantas conchas vazias” [BACHELARD, 1974:425]. A humanidade inteira dorme
ao descanso de uma concha iluminada pelo sono profundo. Uma concha simboliza
introspecção e mutação: “O padre jesuíta Kircher afirma que, nas costas da Sicília, as conchas
de peixe, que se reduziram a pó, renascem e se reproduzem se regarmos com água salgada
esse pó” [BACHELARD, 1974:430]. O conhece a ressurreição a partir do mar íntimo, a
concha se deixa reduzir ao calcário de sal. No úmido salitre das encostas do mangue, a lesma
retorna à forma espiralada de viver num caracol. As conchas resguardam-se como uma
caixinha de segredos. “Tudo é dialética no ser que sai de uma concha” [BACHELARD
1974:426]. Na arqueologia do imaginário, o caracol causa uma certa surpresa, pois nunca
sabemos se irão sair ou não de dentro. Na maioria das vezes, quando saem do casulo, não
aparecem por inteiro, contradizem o que fica guardado na crosta de calcário. As ostras são
peixes que guardam as pedras. As conchas são pedras que andam. “Enxuta, a concha guarda o
mar/ No seu estojo” [HOLANDA, 2000]. O que vem é metade corpo, metade pedra, o rosto
híbrido fica preservado no manguezal. “De fato, o ser que sai de suas conchas nos sugere
devaneios do ser misto. Não é somente o ser ‘meio carne, meio peixe’. É o ser meio morto,
meio vivo e, nos grandes excessos, meio pedra, meio homem” [ibidem].
Vejamos então este poema de Ponge [2000:83]:
‘O Molusco’
O molusco é um ser – quase uma – qualidade. Ele não necessita
de vigamento, mas de um anteparo apenas; algo como a cor no
tubo.
Aqui a natureza renuncia à apresentação do plasma em toda a
sua forma. Mostra apenas que lhe está apegada, abrigando-o
cuidadosamente num escrínio cuja face interior é a mais bela.
Não é, pois, um simples escarro, mas uma realidade das mais
preciosas.
O molusco é dotado de uma energia possante para se fechar. A bem
dizer, não é mais que um músculo, um gonzo, uma mola e sua porta.
A mola tendo secretado a porta. Duas portas ligeiramente
199
côncavas constituem toda a sua morada.
Primeira e última morada. Reside ali até depois de sua morte.
Nada se pode fazer para retirá-lo dali vivo.
A menor célula do corpo do homem se apega assim, e com essa
força, à palavra , - e reciprocamente.
Mas, às vezes, um outro ser vem violar essa tumba, quando está
bem-feita, e nela se fixar no lugar do construtor defunto.
É o caso do paguro.
O que encontramos dessas imagens rústicas é um jogo de analogias estranhas, obscuras
de sentidos. Imagens avessas, desconhecidas, desfiguradas, mas muito próxima da
humanidade: “A menor célula do corpo do homem se apega assim, e com essa força, à
palavra, - e reciprocamente”. Poderíamos dizer que, interiormente, o ser humano é um ser
acumulável de conchas. Clarice Lispector [1998: 29; grifo nosso], no livro Água viva, ao
descrever o instante-já, indaga: “Como é que a ostra nua respira?”.
João Cabral [1994:77] indaga algo parecido: “Como um ser vivo/ pode brotar de um
chão mineral?” A ostra respira por pequenos filamentos que recebem a água e o oxigênio. Em
Água viva, a ostra respira pela metamorfose da frase. Uma simples frase respira várias
histórias sobre ostras.
57
Numa série de causos populares ora referenciando, ora sugerindo, os
moluscos retiram o véu de pedra e mostram seus corpos misteriosos. Na moral da história, a
natureza se diverte em desdizer a façanha da fábula. A história sobre moluscos se recria a
partir da exceção, dos devaneios, dos desvios, do imaginário. E se acrescentarmos novos
olhares sobre alguns costumes antigos vê-se que o lado noturno do mangue confunde-se à
substância líquida e endurecida das ostras. “Um biólogo escreve: o caracol se retrai
dissimuladamente em seu quiosque como uma menina contrariada vai chorar no seu quarto”
[BACHELARD, 1974:434]. Quanto mais se observa o bivalve mais se percebe que “foi
rolando sobre si mesmo que o caracol fabricou sua própria escada?” [ibidem]. Quantas
marisqueiras distraem-se fazendo cócegas em um caramujo a fim de levá-lo a deixar o
esconderijo. Para o poeta Manoel de Barros [2001:55]: “Caracóis/ não gosmam/ em latas”.
Se a “natureza renuncia à apresentação do plasma em toda sua forma”, como diz
Francis Ponge, sabemos que, como fósseis, as ostras são testemunhas da natureza, pois
57
Leonardo da Vinci, na fábula “A Ostra e o Caranguejo”, descreve: “Uma ostra estava apaixonada pela Lua.
Sempre que a Lua cheia brilhava no céu, ela passava horas olhando-a boquiaberta. Um caranguejo viu, de seu
posto de observação, que durante a Lua-cheia a ostra ficava completamente aberta, e decidiu comê-la. Na noite
seguinte, quando a ostra se abriu, o caranguejo colocou um pedregulho dentro da concha. A ostra,
imediatamente, tentou fechar-se, porém o pedregulho impediu-a. Isso acontece a qualquer pessoa que abra a
boca para contar seus segredos. sempre um que se põe à mercê do ouvinte indiscreto” [http: //www.
Institutohypnos.org.br/artigos/ostra.html].
200
oferecem diferentes formas para simbolizar as partes do corpo da mulher. A garça que pousa
para o mangue simboliza o quanto a lama é delicada. “Que sendo vista por quem/ conhece o
mangue, o confunda/ com as garças que o mangue tem” [ACCIOLY, 1983:5]. A nudez da
garça é consentida pela alvura. Contudo a cor branca das garças dentro da lama de pele negra
é de uma brancura ostensiva. O branco da garça é calcário; o ‘branco’ das ostras é um
labirinto com esconderijo indiscreto. A nudez das garças remete às pequenas bacias recheadas
de conchas. O mangue é sensual. No poema ‘O mercado a que os rios’, descreve a morna
cama ou “até a outra, a empantanada, / do mangue, sensual e mestiça, / que corrompe o rio na
morna/ cama de mulheres-da-vida” [MELO NETO, 1994:453; grifo nosso].
As formas das conchas se fazem geometricamente inacabadas para forjar o restante
das imagens anfíbias. “Robinet faz uma descrição da concha Bivalve de Vênus que representa
a vulva de uma mulher” [BACHELARD, 1974:430]. Na história da humanidade, as ostras
simbolizam espaços de sensualidade, eroticidades. “A própria ostra é identificada como um
dos mais poderosos estimulantes do desejo sexual” [CAVALCANTE, 2004:97]. Mas como
copula uma cocha se mora tão sozinha? A pedra é a parceira do molusco. Na teia voluta, a
fêmea devora o macho depois que copula. Devora a si mesmo. As ostras são as protagonistas
de todos os jantares eróticos registrados na literatura ou no cinema, pegando aqui uma
imagem de Isabela Allende.
O ostracismo de um molusco engravida a si mesmo? As conchas têm a forma de um
coração. Como gerar o anonimato de um mundo dentro do muro de pedra, se “brejos
amanhecem/ amarrados/ de conchas” [BARROS, 2001:52]. Na pintura renascentista, com
linhas ondulantes, Botticelli [1444-1510] retrata uma concha no quadro Nascimento de Vênus.
Talvez a própria “Afrodite saia de uma concha redonda” [Bachelard, 1974:426]. É possível
que os homens dos mangues tenham construído suas moradas imitando o interior dos
moluscos. A geometria das conchas enclausura o corpo para purificar a morada pétrea.
“Dentro dos caramujos/ silêncios/ remontados”, pegando aqui novamente a fala de Manoel
de Barros [2001:57].
As formas dos moluscos são tão numerosas que a partir do exame do universo das
conchas, a imaginação é vencida pela imensidão ou pela realidade. As conchas são curvas e
elípticas como as silhuetas espiraladas das mulheres dos mangues. Retêm as conchas uma
infinidade de volutas, dobras, cores e sabores. A concha cauri, também conhecida como
cauril ou caurim, predominante no oceano Índico e Pacífico foi no passado bastante utilizada
201
como moeda na África e na Ásia.
No ferrolho das conchas, os moluscos estão sempre em casa de mangue seja qual for os
lugares para onde o mar carregue. A casa da concha é extensão da morada do corpo. “Em
outras palavras, a concha do caracol, a casa que cresce na mesma medida de seu hóspede, é
maravilha do universo” [BACHELARD, 1974: 432]. A casa dos homens é abrigo para a
morada do universo. Ambas as casas fazem parte do corpo do mundo. A solidão da concha é
metáfora da solidão do homem.
Geralmente, os moluscos lançam os corpos babosos para frente, levando o endereço
postal sobre si mesmos. Mas nos rendemos ao lado eremita de Francis Ponge: “Ele não
necessita de vigamento, mas de um anteparo apenas; algo como a cor no tubo”. É certo que
alguns moluscos relembram um cone de pedregulhos. Na linha de um poema pongeano:
“Nada se pode fazer para retirá-lo dali vivo”. Na pintura que o mar faz do mangue “um
conjunto de oito conchas que parecem um ramo de tulipa” [BACHELARD: 433].
Das raízes, sobram dos mangues as ostras que constroem seus monturos de pedra nas
sobras de limbo e sal: “a concha que é resto / de dia de seu dia: / exato, passará pelo relógio/
como de uma faca a fio” [MELO NETO, 1994: 89]. O tamanho dos moluscos é medido pelo
relógio do dia. O resto do ser vivo habita a lâmina de pedra que é a caixa das conchas. A
imagem da beleza de uma concha remodela a fôrma geométrica e se imiscui à da forma
elíptica “de uma faca a fio”.
No dia aberto, o branco das conchas guarda o sol e os fios de sal que se soltam do mar.
A concha guarda o tempo da eternidade. O trigo vira corpo de pedra. A flor vira petra. Como
bem observa João Cabral [1994:95] a concha é: “a forma atingida/ como a ponta do novelo/
que a atenção, lenta, / desenrola” [MELO NETO, 1994:95]. A união do corpo mole com a
crosta dura faz da casa de ostras um cofre, uma janela aberta ou como diz Ponge: “A bem
dizer, não é mais que um músculo, um gonzo, uma mola e sua porta. A mola tendo secretado
a porta. Duas portas ligeiramente côncavas constituem toda a sua morada”.
Mas em Cabral [1994:88] a concha não se desembrulha: “Ali é uma terra branca/ e
ávida/ como a cal”. A concha, no mangue, é a casa do sal. “Sua mudez está assegurada/ se a
flauta seca/ será de mudo cimento/ não será búzio” [MELO NETO, 1994:89]. A pedra do
sono de porta entreaberta lembra “uma panela de bruxa”, como destaca Bachelard. Muitas
conchas são usadas de forma mística. Na ampliação da imagem: uma concha sugere as
202
grandes pias de batismo; misticamente, resgata o devaneio espiritual nos jogos de búzios,
tarôs e cartomantes. Uma concha emborcada ou convexa é um elemento carregado de
mistério. toda uma simbologia para quem joga o poder dos búzios em sintonia com os
astros. Somente na solidão de uma concha atingimos o ensimesmamento.
A palavra ensimesmar, segundo Ortega y Gasset, representa, a princípio, o grau de
sabedoria através da clausura. Um ser ensimesmado leva, na geografia dos povos antigos, a
sabedoria do autoconhecer. A forma de sair de dentro é um desafio de mínimos cuidados para
um sábio molusco. Sair exige o enfrentar o perigo. O mesmo tartarus que envolve o casco da
tartaruga é o que protege as conchas dos raios furiosos. A penumbra da concha é uma forma
de acampar a solidão de um ser em condição de exílio. A a sombra de uma concha ou de
uma árvore é símbolo de habitação. O lado penumbra das ostras traz ao mangue um estado de
ostracismo e comunhão. O movimento é sempre em direção ao que sai de sua carapaça em
direção de outros mundos. O ser que habita uma concha muda seu mundo para acolher o que
está dentro. O que está do lado de fora não é mundo, mas abismo.
A concha curva, geométrica, é casa arquitetada, caverna assombrada. Um mundo
complexo de imagens que retrata o universo estranho dos manguezais. Sem abusar das
metáforas científicas, Ponge não se intimida, estende-se e renova estranhamentos “Não é pois
um simples escarro, mas uma realidade das mais preciosas”. Quando o molusco fenece, o
paguro [caranguejo do mar] costuma se fixar na concha moribunda. Francis Ponge descreve:
“às vezes, um outro ser vem violar essa tumba, quando está bem-feita, e nela se fixar no lugar
do construtor defunto”. A concha morta torna-se casa vazia habitada pelo abandono.
“Primeira e última morada. Reside ali depois de sua morte”. A imagem de uma concha
desocupada religa-se ao “bernardo-eremita que deixa entrever sua pinça monstruosa na
embocadura do búzio soberbo que o alberga” [PONGE, 2000:127] no livro Le parti pris des
choses.
58
Em Notes pour un coquillage
59
[anotações para uma concha], Ponge [2000:125]
pincela com nitidez: “Uma concha é uma coisa pequena; mas posso desmesurá-la,
recolocando-a onde a encontro, pousada na vastidão da areia”.
O bernado-eremita de que fala Ponge é um molusco que não faz sua concha; habita as
conchas abandonadas. Costuma trocar de concha quando sente vontade. O eremita-bernardo é
58
“Quand le seigneur sort de sa demeure il fait certes moins d’impression que lorsque le bernard-l’hermite
laisse apercevoir sa monstrueuse pince à l’embouchure du superbe cornet qui l’héberge”.
59
“Un coquillage est une petite chose, mais je peux la démesurer en la replaçant je la trouve, posée sur
l’étendue du sable.”
203
um divertido amante da brincadeira de esconde-esconde. Nômade pula de concha em concha
até viajar pelo mangue inteiro. O escritor Manoel de Barros, que é contemporâneo de Francis
Ponge e João Cabral, faz do eremita um sábio. No poema “O Livro de Bernardo”, do livro
Tratado geral das grandezas do ínfimo, o poeta encontra o inexplicável: Dentro de mim/ eu
me eremito/ como os padres do ermo// Meus caminhos/ a garça / redime” [BARROS,
2001:51].
Bachelard [1974:437] compara bernado-eremita com as aves de arribação, as espécies
de ‘pássaro cuco’ que, por não saber construir ninhos, põe seus ovos no ninho dos outros. “O
cuco, dizem, quebra um ovinho no ninho aonde vai pôr o seu, depois de ver fugir o passarinho
que estava chocando. Se põem dois, quebram dois”. O cuco não conhece a arte de fazer ninho.
Tudo isso nos traz uma reflexão do próprio Bachelard [1974:434]: “Todas essas
imagens e reflexões correspondem a uma admiração pueril, superficial e dispersa; mas que
uma psicologia da imaginação deve anotar tudo. Os menores interesses preparam os grandes”.
Com uma simples imagem, marisqueiras recriam suas ostras presas nas marés dos mangues.
Ao redor de uma simples paisagem, o poeta recria e abre caminhos. Marisqueiras e poetas têm
maneiras simples de nos surpreender: carregam suas conchas, vêem a natureza como uma
imensa rede de sonhos.
Bacherlard [1974: 424], em A poética do espaço, analisa que as conchas são símbolos
tão precisos que os poetas que não sabem desenhar ficam, no ato de escrever, desprovidos de
imagens. Inquieto para registrar a sensualidade da mulher “febril que habita as ostras”, João
Cabral, ao falar sobre as ostras, aparece como se estivesse, em sua solidão de indivíduo,
reivindicando o corpo sensual da concha feminina. Na variedade das formas que todo corpo
em ostracismo retém, a natureza anuncia a mulher febril que habita as ostras em uma gota de
erotismo. O poeta mostra a concha pelo que ela tem febril na sensualidade de uma espiral
barroca.
Sabia dos caranguejos
de lodo e ferrugem.
Sabia da lama
como de uma mucosa.
Devia saber dos polvos.
Sabia seguramente
da mulher febril que habita as ostras.
O imaginário neobarroco cabralino está sempre em processo de movência com outras
204
culturas. Um bom exemplo é a precisão do traço neobarroco. “A arte do contador de histórias
crioulo é feita de derivas e ao mesmo tempo de acumulações, com a presença desse lado
barroco da frase e do período, essas distorções do discurso onde o que é inserido funciona
como uma respiração natural, essa circularidade da narrativa e essa incansável repetição do
tema” [GLISSANT, 1994:53].
Em vez de ruptura, a ponte entre o oral e o escrito manifesta-se, no discurso cabralino,
sem grandes sobressaltos, mas em verdadeiro equilíbrio estético. Nesse sentido, sua geometria
é neobarroca desmedida não pelo sentir, mas pelo pensar que pela medita e calcula. Essa
desmedida da medida vem na contramão da ambição clássica que segundo Glissant
[2005:111], é uma desmedida da medida metrificada. O barroco é a arte do traço sincrético:
“Quando o barroco atravessou os oceanos e chegou à América Latina, os anjos e as virgens
tornaram-se negros, Jesus Cristo tornou-se um índio e tudo isso rompeu o processo de
legitimidade” [GLISSANT, 2005:62]. Se a intenção clássica é o legado da harmonia do corpo
em sintonia com o recado trágico sobre a complexa profundidade da natureza do ser humano,
as artes barrocas o formas da “extensão, da proliferação, da redundância e da repetição”
[GLISSANT, 2005:112].
A cultura barroca é “contra-reforma”, é crítica ao neoclássico. Na transgressão
neoclássica, o eixo da razão é o sujeito. No poema neobarroco, o eixo da ação se sobre o
objeto. A arte barroquista evoca a metamorfose do objeto. O poeta neobarroco quer descobrir
as relações secretas entre os homens e as coisas. Se a intenção neoclássica é o equilíbrio da
linha reta, o barroco é a metáfora das linhas tortuosas, rechonchudas. Com uma estética
irregular e transgressora de normas, o barroco é poema das encruzilhadas, está na condição de
entre das vozes sincréticas.
O que os neoclássicos ou poetas árcades denunciam como mutilação da árvore da vida
campesina, a consciência dos rios nordestinos torna-se para João Cabral símbolo da luta
social. No mundo barroco, o contexto é misto, as fachadas grotescas estão em movimento.
Das esculturas crioulas de Aleijadinho aos Sermões cabalísticos de Pe Antônio Vieira
pregando a libertação de índios e negros, enfiados dentro de palhoças de mangues, no jogo de
palavras e contrastes, as conexões estéticas deslizam das transgressões para deformar ritmos
sacralizados. No livro Boca do inferno, a escritora Miranda [2006:33] descreve: “Ser poeta é
uma maldição de nossa língua”.
205
Reconhecido por muitos como um texto difícil e hermético, o poeta neobarroco requer
uma disposição aberta do leitor para superar o estranho e entender ao texto. Não buscar a
escrita fácil serviu de refúgio para poetas como Góngora a Quevedo. Em nossos dias, o
neobarroco traz labirintos derrapantes nas dobras da contemporaneidade de Lezama, Osman
Lins, Vallejo, Cortázar, Astúrias. No livro O século das luzes [1985] Carpentier aponta na
forma espiral de seus textos personagens um tanto neobarrocos. O cubano Estevão, a
exemplo, observa meticulosamente a forma espiralada de um caracol: “Contemplando um
caracol um - Estevão pensava na presença da Espiral durante milênios e milênios [...]
Olha um caracol. Um só. Te deum”.
No mosaico de linhas tortas, o céu neobarro expõe-se ao mundo através da aparência
das coisas em cores mestiças com figuras inesperadamente reais e fictícias como observamos
no búzio desigual, retorcido, de “encrespadas Conchas mil se arreia” nas Prosopopéias de
Teixeira [1984:84]. Também na tela-mundo feita de trapos imundos e de santidades sujas em
Caravaggio que, preferindo os personagens marginais, afirmava que as ruelas e os becos de
gente desprezível são as fontes verdadeiras da arte.
Nas quadras João Cabral, o rio é um personagem pintado com cores das artes plásticas.
O menor detalhe faz diferença para tela crítica. Perder um verso é perder a tela inteira. Não
está à toa a presença de outros pintores na obra de João Cabral, como: Joaquim Rego
Monteiro, Ademir Menezes, Picasso. Algumas imagens são tão inconciliáveis que a
impressão que temos é que a poesia precisa mais de tintas que propriamente de palavras: “E
que porém de um Mondrians/ num ponto se diferencia: / em que nela essa vibração, / que era
de longe impercebida, / pode abrir mão da cor acessa/ sem que um Mondrians o vibra, / e
vibrar com a textura em branco/ da pele ou da tela, sadia” [MELO NETO, 1994:295]. O poeta
nos lembra um pintor neobarroco a fundir os ideais medievos com os valores renascentistas.
Um poeta que acredita acima tudo na visualidade do poema. Nesse autor, os olhos não podem
faltar para verdadeiramente enxergar; por outro lado, necessita dos desenganos do ouvido para
receber a tintura mestiça do mundo.
Se a elipse é barrocamente uma concha”, como bem observa Affonso Romano de
Sant’Anna [2000:22-23], a concha, com sua arquitetura irregular, defeituosa, grotesca,
curvilínea, está na origem da palavra Barroca.
60
Um tanto conceitual, João Cabral traz a marca
60
Na época das grandes navegações, portugueses em comércio pela região da Índia encontram uma cidade
próxima aos manguezais chamada de BROAKTI onde se cultivava um tipo de pérola deformada, feia,
irregular. Os portugueses passaram a chamar a cidade Baroquia. Com o passar do tempo, a cidade virou
206
neobarroca, ao tratar dos mangues pela movência da dobra, da falta, do excesso. O Barroco
utiliza processos singularmente racionalizados. É uma arte que necessita das criações técnicas
geometricamente calculadas para alcançar a realidade humana e social sobre o qual enuncia e
denuncia.
O poema cabralino sugere-nos uma elipse, carrega no traço uma ausência, uma falta nos
olhos. A elipse é solar e lembra-nos também a astronomia barroca de Kepler que defendia o
sistema solar em uma forma elíptica. Em Cabral, uma curva elíptica acompanha a lama, o
mangue, o rio sem plumas. No traço curvilíneo, curvas elípticas nas paginas do livro
Paisagens com figuras [1955]: “Podeis decifrar as vilas/ constelação matemática, / que o sol
vai acendendo/ por sobre o verde de mapa” [MELO NETO, 1994:154].
Curiosamente, na modernidade, João Cabral é um exemplar poeta de escrita neobarroca.
“O Barroco retira o máximo partido, misturando o mitológico ao descritivo, o alegórico ao
realista, o narrativo ao psicológico, o guerreiro ao pastoral, o solene ao burlesco, o patético ao
satírico, o ao idílico ao dramático, sem falar da mestiçagem da linguagem” [COUTINHO,
1976:80]. O texto cabralino é montado em quadras de mestiça fala popular-erudita. As
poéticas na linha de Cabral são o exemplo da moderna tentação de aprisionar a espiral dentro
do quadrado” [SANT’ANNA, 2000:95].
O poeta recifense usa e abusa das quadras crioulas, como fez Gregório de Matos com
uma poética africana tecendo convites à eroticidade da voz satírica. O poema de Gregório
[1995:121] é convite para meter os pés na sensualidade do mangue e se perder.
Vem viver ao pé de um mangue,
e já nos veda o mangal
porque tem mais cabedal,
que Porto Rico.
Em Gregório, nada por ali está acabado culturalmente, pelo contrário, as culturas se
entrelaçam se encontram na saga de um país banhado pelo sal e pelo açúcar. Descrente da
cordialidade, Gregório de Matos resgata o ‘contra-dizer’ e inaugura os mangues com poemas
recheados de uma oralidade crioula. Como diz Zumthor [2005:80]: “a poesia oral é trazida
pela voz, a voz exerce no meio humano uma função forte, mas não idêntica em diferentes
grupos sociais”.
Barroca, reconhecida pelas suas pérolas defeituosas. O barroco vem, portanto, dos mangues tortos.
207
A voz do poema é sugestão concreta em uma série de quadras que seguem o
alinhamento das estrofes. Filosofando sobre a representação de um quadrado, os platônicos
pensavam sobre a materialização da idéia”. Nessa forma de pensar: “as figuras geométricas
são o que a filosofia chama de autênticas metáforas epistemológicas” [SANT’ANNA,
2000:25].
O quadrado representa os elementos concretos e materiais enquanto o rculo
representa mais a essência, o espírito. O quadrado é renascentista enquanto o círculo é
barroco. A figura em círculo é quieta, harmônica, mas o desenho ‘oval’ é inquieto, tortuoso. A
natureza do poema cabralino nesse sentido é geometria, parece plana, mas é curva e elíptica,
prolixas como as xilogravuras do universo barroco.
O barroco prolixo
com todo os seus tiques,
e o reto, tão correto,
direto ao que insiste,
/são linguagens que rara
mente coexistem
Só as vi na Capela
Dourada do Recife.
[MELO NETO, 1994:394; grifo nosso]
Entre a quadra e a curva, o poema de forma lacunar segue também em círculo, com
repetições diferentes, num fluxo contínuo de imagens esféricas, como se observa no livro
Paisagens com figuras: “Aqui o mar é uma montanha/ regular redonda e azul, / mais alta que
os arrecifes/ e os mangues rasos ao sul” [MELO NETO, 1994:147; grifo nosso]. Essa
artimanha, de forma simples, serve mais para sugerir ou enfatizar a vida e suas aspirais em
situação de queda, mas também em situação de revolta. Na antilírica moderna: “A geometria é
subvertida e a curva sobressai ostensivamente, serpenteando, engolindo a linha”
[SANT’ANNA, 2000:48]. A linguagem é exteriorizada pelo que falta ao redor da vida re-
tirana e o poeta busca incansavelmente subornar as curvas dos manguezais à disciplina da
quadra, das estrofes de quatro versos regulares.
Dentro da quadra da contradição, o poeta repensa valores arraigados. Para Édouard
Glissant [2005:62] toda vez que se fala em valores particulares como valores universais ao
mundo é porque se acredita ter alcançado uma profundidade. No barroco, não valores
universais, porque “todo e qualquer valor é um valor particular que será colocado em relação
com um outro valor particular e que, conseqüentemente, não existe a possibilidade de que
qualquer valor particular possa legitimamente se considerar ou se apresentar e se impor como
208
universal”. Na escrita neobarroca, uma espécie de extensão, que renuncia à condição
alienante do mundo. O resíduo neobarroco no poema cabralino resgata a relação com a
totalidade-mundo, traz uma crítica profunda às relações de opressão e desertificação no
mangue-urbano; uma extensão que se volta para o humano e o que nele de efêmero e
aparente.
Registra-se no poema cabralino uma crítica profunda ao lirismo chorão, em seu
individualismo vazio sem saída. Nele, os olhos secaram, as lágrimas emudeceram os olhos
mudos dos poemas. Em sua engenharia barroca, lágrimas não há, saudosismo muito menos.
Hölderlin, ao iniciar sua revolta contra a expressão subjetiva da lírica tradicional, prevê a
ruptura com o eu-lírico do poema. Na modernidade de Cabral, a lírica entra em crise de
existência, faltam caminhos. O poeta precisa abrir como um cego o sentido dos descaminhos.
Em João Cabral, a antilírica entra em questão, a palavra torna-se imprevisível. E dessa vez
quem está em crise é a linguagem. O mundo se torna híbrido. A palavra perde as certezas.
Desconfiamos delas, então: “Barroco alegre, de cal e ocre/ sem jogos fúnebres de morte. /
Plena luz de um sol-de-cima, / nem diz da morte, que é sua sina/ É como um altar ao ar livre/
barroco, sem seus jogos tristes” [MELO NETO, 1994:665; grifo nosso].
A poesia sem recado, enfeitada de cor local, com formas gordas, alegóricas, grotescas
em expressão, o interessa muito ao discurso lírico do poema cabralino. Sem esquecermos
que a marca do gênero lírico é a subjetividade, longe do verso de teor transcendental, Cabral
abre as portas de sua antilira para dialogar de forma mista, imparcial, objetiva. Meio a tantas
vozes, carrega a elipse barroca e suas dobras à maneira dos traços retos de Bernini e elípticos
de Borromini são extensões de rizoma: “A arquitetura como construir portas, /de abrir; ou
como construir o aberto; / construir, não como ilhar e prender, / nem construir como fechar
secretos; / construir portas abertas, em portas” [MELO NETO, 1994:345]. Com uma
versificação cortada e dicção quebrada como uma onda: “antes de ir ao mar/ onde minha fala
se perde” [MELO NETO, 1994:140].
6.2 Educação pelos mangues
Na paisagem do rio
209
difícil é saber
onde começa o rio;
onde a lama
começa do rio;
onde a terra
começa da lama;
onde o homem
onde a pele
começa da lama
onde começa o homem
naquele homem.
[MELO NETO, 1994:110].
Entre a paisagem
(fluía)
de homens plantados na lama
de casas de lama
plantadas em ilhas
coaguladas na lama
paisagem de anfíbios
de lama e lama.
[MELO NETO, 1994:108]
O manguezal, despido da cor local, sem exotismo, sem a roupagem febril das
vanguardas da primeira fase modernista, interessa e muito à versificação pessimista de João
Cabral. Nome um tanto comprido para quem faz à maneira de Graciliano Ramos regime de
palavras: “Falo somente com o que falo/ com as mesmas vinte palavras/ girando ao redor do
sol” [MELO NETO, 1994:311]. Nome em linha reta para quem faz da geografia do mangue
uma linha curva, uma dobra, uma falta. Sem deixar de lado a preocupação com a
comunicabilidade do poema, João Cabral faz travessia pelo social, comovido pela repetição
cíclica da miséria e pela presença absurda da mortandade em decorrência da fome no mundo:
“A mesma dor calada, / o mesmo soluço seco, / mesma morte de coisa/ que não apodrece mas
seca” [MELO NETO, 1994:123].
A partir da década de 1940, mais ou menos, assistiremos a uma rejeição do local,
considerado apenas “pelo pitoresco e extraliterário; e um novo anseio generalizador,
procurando fazer da expressão literária um problema de inteligência formal e de pesquisa
interior” [CANDIDO, 1967: 148]. Por essa andada, uma separação abrupta entre a
preocupação estética e a preocupação social, cuja coexistência relativamente harmoniosa
tinha assegurado o amplo movimento cultural do decênio de 30” [ibidem].
Com um tipo linguagem magra que nasce de uma carência, de uma falta, Cabral busca
não propriamente preencher um vazio, mas abrigar teias, amparar os destituídos; ser porta-voz
do que “pulsa mudo como o sangue/ e nas marés sem gesto o mangue [MELO NETO,
210
1994:438; grifo nosso]. Nessa empreitada trava uma batalha com o discurso para dar conta de
uma poesia anfíbia “entre mangues remansamente, / mil manhãs para não partir: / anda e
desanda, ainda, sempre” [MELO NETO, 1994: 386; grifo nosso].
Seu poema é eco de inclusão dessas experiências comprometidas com a finalidade
social da palavra. É a maneira que tem o poeta de reagir ao silêncio dos desamparados. Na
luta contra a negação da vida severina, volta-se para a antiode, para o antilírico, com seu
discurso reduzido, fala um pouco mansa, voz emudecida, verso serial, cortado pela escola das
facas. Com sua voz métrica de pedra, com seu traço avesso, traz para a lucidez cotidiana a
sugestão crítica de que algo está faltando no mundo e também no poema. Longe das
vanguardas modernistas de Raul Bopp que faz a pontuação desaparecer por inteiro, o poeta
recifense é fisgado pela pontuação da prosa e pelo tempo do verso: “A mim a prosa/
procurada, o conforto/ da poesia ida” [MELO NETO, 1994:76].
Na origem do dizer a obra poética nasce. Um contraponto comedido ponto por ponto e
vírgula por dúvidas e reticências. As pontuações denunciam o rumo das falas prosaicas. Em
tom de prosa realista, a fronteira entre prosa e poema se perde da literatura cabralina. Percebe-
se que esta é uma marca registrada da “Geração de 45”. Aliás, pegando aqui uma fala de Ítalo
Calvino [2003:61]: “Estou convencido de que escrever prosa em nada difere de escrever
poesia, em ambos os casos, trata-se da busca de uma expressão necessária, única, densa
concisa, memorável”.
O poema trata da fome de forma mais cerebral que experimental. A linguagem prosaica
dos manguezais é reconduzida pela queda e quebra. Nunca pelo exagero de palavras. A elipse
traz a marca do ocultamento, da quebra no final de linha. A frase de sílabas curtas serve de
reflexão para poemas longos, demarcados pela régua da elipse. na elipse um eclipse solar.
Na elipse uma dupla inscrição que é síntese e antítese. Excesso e falta sinalizam para a
síntese; repetição e diferença revelam as antíteses. Um conflito que subdivide as elipses em
duas: de um lado, a figura geométrica onde a elipse é o excesso, de outro a figura retórica
onde a elipse representa a falta. “Na geometria, a elipse é o excesso de círculos espiralados e
rampantes, que voltam reincidentemente sobre si mesmos. Na retórica, a elipse é falta,
carência, ocultamento” [SANT’ANNA, 2000: 23].
E, se olharmos de forma mais criteriosa esse lado oculto cabralino quem mais se
apresenta pelo recorte de imagens é o substantivo e não o verbo. O substantivo sugere a
coisificação da palavra e carrega o sentido da vida coisificada. O substantivo mangue é
211
concreto. Mas não vale iludir-se, pois o poeta desliza das formas concretas às abstratas,
surreais. Esse deslizamento é que torna a escrita de João muitas vezes tida como
incompreensível. O que não é, pois o poeta busca é a comunicação com o leitor. A
complexidade que envolve o projeto poético é o das encruzilhadas, pois desliza de um plano
formal objetivo para um material poético subjetivo. A abstração surreal pincela de luz e
sombra as imagens como estratégia para denunciar a linguagem fácil, massificada e tecnicista:
“Automóveis como peixes cegos/ compõem minhas visões mecânicas” [MELO NETO,
1994:43]. O que há de abstração depura-se entre os elementos mais díspares. O abstrato revela
o homem nas fronteiras da subjetivação: “Meus olhos têm telescópios/ espiando a rua/
espiando minha alma/ longe de mim mil metros” [ibidem].
João Cabral parece andar a maneira imagética de um Jorge Luís Borges. Tal qual
Borges, Cabral narra por síntese a dor calada. O escrever condensado chega sóbrio com
“olhos telescópios”. Há uma distância de mil metros que o separa de perceber os tormentos da
própria alma. Uma distância que reforça o eu-lírico perdido entre ruas e telescópios: “A
cidade toda é quadrada em paginação de jornal” [MELO NETO, 1994:230]. Uma geometria
que vai à raiz dos problemas do mundo. Um discurso poético que caminha para repensar a
realidade exterior sem alijar uma reflexão ao ser e ao excesso de ilusão no mundo moderno:
“Alguém multiplicava/ alguém tirava retratos/ nunca seria dentro de meu quarto/ onde
nenhuma evidência era provável” [1994: 44].
Como observa Araújo [1999:127]: “O poema cabralino é um andamento à prosa
desataviada, mimética e funcional: o tom discriminatório e argumentativo, as insistentes
repetições de palavras e expressões, faz sugerir restrições no vocabulário”. O verso situado
em tom prosaico concentra ainda mais a violência urbana: “Todos os atentados/ eram longe de
minha rua./ Nem mesmo pelo telefone/ me jogavam uma bomba” [MELO NETO, 1994:4].
A imagem pouco se perde da realidade. Pelo contrário centra objeto e não hesita em
denunciar o que oprime o oprimido. Cabral tem como objeto não propriamente o mangue,
mas o poema. Balançando o rabo das palavras vira-latas, frente ao mundo-cão, começa a
escrever imagens deste tipo: “Espesso/como uma maçã é espessa. Como uma maçã / é muito
mais espessa/ se o um homem a come/ do que se um homem a vê./ Como é ainda mais
espessa/ se a fome a come./ Como é ainda muito mais espessa/ se não a pode comer/ a fome
que vê” [MELO NETO,1994:115].
212
Os elos úmidos escorregam da língua muda à frase seca. O sotaque regional é misturado
ao mundo urbano. Ao mesmo tempo em que tece uma crítica à sociedade coisificada pela
onda de consumo, acolhe a presença de uma humanidade adoecida pelo desamor. Pertinente,
o poeta não renuncia à crença na esperança: “Vê a fábrica que ela mesma, /teimosamente, se
fabrica, / vê-la brotar como pouco/ em nova vida explodida; /mesmo quando é assim
pequena/ a explosão, como a ocorrida;/ mesmo quando é uma explosão/ como a de pouco,
franzina;/ mesmo quando é a explosão/ de uma vida severina” [MELO NETO, 1994:202].
O idioma lama, às margens dos mangues, contorna a ladeira das linguagens híbridas e
movediças. A lama severina não oculta o profundo. E através da elipse, Cabral corta a palavra
lama em duas para reconstruir dois caminhos sem saída para o povo sertanejo: sertão-urbe. A
movência que se faz presente do sertão para o mangue e deste para a lama “que a fábrica
que ela mesma / teimosamente se fabrica”.
A elipse traz pequenos cortes de sentido. O idioma lama encurva-se às raízes que vêm
confusamente entrançadas, quebradas pela condição de encruzilhada do mangue e pela
condição de ‘entre-lugar’ da lama que, como já vimos na primeira parte desta pesquisa, nem é
líquida e nem sólida. No livro ‘Agreste’ [1985] o poeta traz um recado dessa condição: “se
esgueirando entre as línguas secas/ que a maré entre os dedos deixa: // mas que deixa até onde
deixa: / ao onde que, ausente das letras, // está presente como mangues/ de olhos de água
cega, estanques” [MELO NETO, 1994:525; grifo nosso].
Os versos acima fazem parte do poema “Uma Evocação ao Recife” onde o poeta matura
o corte de palavras, a ausência de letras, a quebra proposital na linha da estrofe. A leitura do
mangue é elíptica, desvela sombras, revela ausência, expõe ao mundo exterior a fragilidade do
lugar pantanoso. O poema se esgueira em uma eterna luta com o vocábulo. A arte mantém-se
em uma tensão permanente: “onde começa o rio/ onde a lama”.
Em um severo questionamento com a palavra, Cabral torna-se crítico, confirma-se para
o grande público como poeta crítico. É certo que não rompe com as normas mais tradicionais
do verso, mas sua invenção rejuvenesce o mangue, o rio, os homens sem plumas, a partir da
lama. Não arriscaríamos se devêssemos que na construção de João Cabral um estilo
simplificado até mesmo porque o livro Duas águas [1956], junção de boa parte de sua obra,
perpassa múltiplas fronteiras do seu arsenal discursivo biodiverso. Sua linguagem se constrói
lacunosa, movida pela economia de termos. Uma poética da relação em consonância com a
213
totalidade-mundo.
No processo criativo cabralino, uma racionalidade excessiva tecendo a manhã, “para
que a manhã, desde uma teia nue, /se tecendo entre todos os galos” [MELO NETO,
1994:345]. Oscilando, entre catar feijão e percorrer mundos caminhos, explora duas
realidades em uma só: “seus poemas são montados lógica e racionalmente” [SANT’ANNA,
2000:95]. Em consonância com versos de pouco movimento, deixa-se levar pela dicção
compassada, pelo simples andar sofistico: “nada lhe ra os pés; (se rio maduro)/ ele assume
um andamento mais andado. / Adulto no mangue, imita o movimento” [MELO NETO,
1994:341; grifo nosso]. Sua erudição cultista traz as marcas de uma linguagem que parece
resíduo de elementos vindos de lugares diversos como Pernambuco e Servilha. Uma poeta
que fala um idioma medievo em dialeto rude. Sem comparações, Cabral declina em língua
erudita seu idioma popular. Poesia de “entre-lugares”, com traços culturais múltiplos. Em
João, a voz poética provém de vários lugares, de um eixo que anuncia uma relação do sertão
com o rio, da urbe com mangue e inversamente. O que é importante perceber é que essas
relações tanto de dentro para fora como de fora para dentro do Recife não são desfeitas, mais
diluídas, quando entra em questão da relação de cuidado entre o coletivo, a natureza, o
mundo.
“Só duas coisas conseguiram/ (des)feri-lo até a poesia:/ o Pernambuco de onde veio/ e o
aonde foi, a Andaluzia” [MELO NETO, 1994:456]. Cada poema escrito soa em outra língua,
estrangeira, exposta nas matas do dicionário mangue: “Ao tentar passar a limpo, / refazer, dar
mais decoro/ ao gago em que falo em verso/ em que tanto me rechovo” [1994:517]. Os
diversos lugares demarcam uma relação com o outro, com o mundo. A poética como uma teia
da vida é rede de relações, extensão que religa os lugares, os homens, os mangues os valores,
as culturas e os reúnem como ‘morada de linguagem’.
Vejamos o que nos diz o poeta João [1994:143; grifo nosso] nesse poema no finalzinho
do livro ‘O rio’:
Já deixando Recife
entro pelos caminhos comuns do mar:
entre barcos de longe
sábios de muito viajar;
junto dessa barcaça
que vai no rumo de Itamaracá;
lado a lado com rios
que chegam do Pina com o Jiquiá.
Ao partir em companhia
214
desta gente dos alagados
que lhe posso deixar,
que conselho, que recado?
Somente a relação
de nosso comum retirar;
só esta relação
tecida em grosso tear
No desarrumo com o viver, penetra em outras línguas, desdobra-se a teia cabralina,
seguindo a métrica de Guimarães Rosa que mede o sertão-mundo pelas fronteiras da travessia.
O mangue de João Cabral, em sua desmedida, é sertão-periférico em relação ao centro urbano,
diferente de um Chico Science & Nação Zumbi onde o mangue faz parte de uma central da
periferia. Em Chico a linguagem deliriante de sonoridade. O canto vem do próprio mangue:
“É uma cabeça equilibrada em cima do corpo/ Escutando o som das vitrolas, que vem dos
mocambos/ Entulhados à beira do Capibaribe/ na quarta pior cidade do mundo/ Recife, cidade
do mangue/ Incrustada na lama do manguezal” [CSNZ, 1994].
Em Cabral, o mocambo vem sem realejo. O realismo erudito mistura-se ao popular
enquanto o mangue enquanto nação musical é mistura ‘afrociberdelia’ em Science. Entre a
midiatização e as antenas parabólicas enfiadas na lama, o mangue zumbi está inserido no
centro-periférico do pensamento urbano, o que nos fornece uma idéia de caos-mundo. No
caos-mangue, as palafitas escoram-se nos muros excluídos na sombra dos arranha-céus. O céu
arranha o teto de lama. Sem caranguejos, as palafitas bebem os sons maracatus. Na lama do
rio, come-se o gabiru. Sem perspectiva, o mangue é senha para muita gente sem vale para
competir. Sem nada para reconduzir. Sem tetos passam a consumir a lama como lugar de
insurreição.
Sua casa tem teto
mas não tem assoalho
cai descalça no mangue
chão também escoriado.
E o morador da casa
se mistura por baixo
com a lama já mucosa:
bicho e chão penetrados
[MELO NETO, 1994:323; grifo nosso]
Grande parte das fronteiras dos manguezais urbanos é meio que centrais das periferias.
Abrigo de exclusão, tudo parece ruir do casebre periférico ao mais luxuoso prédio urbano. O
mangue do rio Capibaribe recebe atualmente em torno de 46 bocas de esgotos distribuindo o
lixo dentro dos rios. Em meio à banalização dos tempos modernos, uma miséria que se
instaura e que se torna difícil se opor a ela. Tudo parece se subornar e se subordinar ao
215
capital. “O poder, no sentido de dominação sobre os outros, é auto-afirmação excessiva. A
estrutura social na qual é exercida de maneira mais efetiva é a hierárquica. De fato, nossas
estruturas políticas, militares corporativas são hierarquicamente ordenadas” [CAPRA,
2001:28].
Quando percebemos o mundo como rede, pensamos não em hierarquias, mas em
sistemas voltados para a troca, para a relação. O poder deixa de ser burocratizado pela
hierarquia e se volta para a rede de influência onde o todo é importante. A teia passa a ser a
metáfora do centro do mangue. E como diz Capra [ibidem]: “a mudança de paradigmas inclui
dessa maneira uma mudança de organização social, uma mudança de hierarquias para redes”.
Em João Cabral, não o mangue fechado enclausurado nele mesmo, “ou será que
devemos considerar de uma vez por todas que, para preservar um lugar, precisamos preservar
aquilo que é exclusivo do lugar?” [GLISSANT, 2005:36]. O mangue cabralino não traz a
marca regional que reúne tudo o que constitui a comunidade do manguezal e renega tudo o
que não faz parte dela. Não é o lugar tipicamente desenhado pelas geografias do mangue, mas
o que se concebe é relação com o sertão e com as minorias suburbanas.
Não obstante, todas as fronteiras e lugares estão em relação com a preocupação com a
guerra-mundo. Praticar uma poética da relação com a totalidade-mundo é unir de maneira
consciente o lugar de onde a voz do poema é emitida. A voz poética que presenciamos
atualmente é de repúdio às armas atômicas, ao descontrole ambiental, à exclusão, ao
massacre, ao totalitarismo, ao preconceito racial. Ao falar do mangue, o poema cabralino não
é panfletário, nem partidário. A poesia persegue outros caminhos longe do verso engajado.
Não é esse o propósito estético, nem mesmo quando trata da questão das palafitas enfileiradas
no lamaçal. O poeta expõe a realidade dura, sem desmerecer para isso o mergulho na beleza
estética. Cabral mistura a pobreza à beleza e retira do cão sem plumas matéria para registrar a
condição mendiga “desta gente dos alagados”.
O mangue cabralino é o que está em relação com a degradação dos homens e com a
natureza em descuido humanitário. É um mangue de fronteiras abertas para críticas. Cabral
descreve de forma lógica a ilógica do caos. No fim de um mundo melancólico/ os homens
lêem jornais. / Homens indiferentes a comer laranjas/ que ardem como o sol” [MELO NETO,
1994:71]. No caos sem plumas, não há cercas,muralhas invisíveis, retalhando o caos sócio
ambiental. uma luta ambiental sobre o papel que o poeta não evita. “Há uma luta branca
216
onde corre o sangue/ de suas veias de água salgada” [1994:78]. uma pobreza que se
estatela, quando não encontra o que comer. “De maneira muito mais leiga, quando certos
ecologistas lutam em defesa de seu ideal, o que dizem eles? Dizem: ‘Se você mata o rio, se
mata a árvore, se mata o céu, se mata a terra, você mata o homem’. Ou seja, estabelecem uma
rede de relações entre o ser humano e o seu meio ambiente” [GLISSANT, 2005:37].
Importante aqui alertar que o sentido que Glissant à palavra ‘ecologista’ está em relação a
qualquer ser humano defensor da causa ambiental, diferentemente de ecólogo que é aquele
que estuda o meio ambiente, pesquisa os problemas que afetam a natureza. Por isso que a
prática das idéias entre o ecólogo e o ecologista não está muito longe de uma luta poética pela
sobrevivência do etos ecológicos.
Em João Cabral a natureza não é objeto, mas sujeito em dialogo com o todo. É vista
como explorada e co-operária de novos sentidos. A natureza é tessitura das inter-relações em
Cabral. O ‘rio sem plumas’ metaforizado é compósito e ‘simplexo’ como parte da natureza do
mangue. E se o que o ser humano mais almeja, em sua humana condição, é torna-se
simplesmente ser humano, o poema cabralino é um rio que vai ao encontro da margem
esquerda para a construção de um eu-poético em vínculo com o social. Mas pela margem
direita, o homem também é um rio perdido porque esqueceu a riqueza do que pode significar
ser um ser humano. Nesse sentido, a poética cabralina é uma estética da relação, pois
comporta uma abertura aos outros mundos em eterno perigo de diluir-se entre duas margens.
A poética da relação é perpassada pelos rastros de outros legados culturais. O mangue deixa
de ser espaço de conveniências e participa como um dos personagens do drama da relação
humana. A paisagem do mangue não é mais retrato antropofágico como se observa na poesia
de Raul Bopp. O poema cabralino é metáfora de um mangue que divide o rio em lama e caos:
“Quando o rio corta, corta-se de vez/ o discurso-rio de água que ele fazia; /cortado a água se
quebra em pedaços/ em poços de água, em água paralítica” [MELO NETO, 1994:350].
O manguezal cabralino é o lugar onde até a fixidez é mudança, onde duas águas
recebem a dimensão mutante e duradoura. O que vale observar que a crítica que esse faz é
sempre de uma relação que se deteriora uma relação em estado de abismo. O mangue é
precipício. O rio quebra na contramão “fazendo dos dedos iscas/ de pegar camarão” [MELO
NETO, 1994:198].
Se observarmos de forma criteriosa, ver-se-á que os habitantes dos mangues também
estão diretamente atingidos por um tipo de sistema que, o grave custo, confisca o labor
217
humano em nome dos avanços da técnica. Ali, todas as contradições, todas as possibilidades,
estão inscritas na multiplicidade da palavra mangue. Isso confirma de certa forma que “o ato
poético é um elemento de conhecimento do real” [GLISSANT, 2005:31]. O rio e o mangue,
mosaico de cores, lugares de cheiros e sons, são questionados em versos desta natureza:
“Aquele rio/ saltou alegre em alguma parte? / Foi canção ou fonte/ em alguma parte? Por que
então seus olhos/ vinham pintados de azul/ nos mapas?” [MELO NETO, 1994:107].
A pergunta insere o rio em uma relação ampla, que instiga o ser humano a duvidar até
mesmo do que está exposto nos livros de ciências, nos mapas, nas cartografias do rio: “Por
que seus olhos vinham pintados de azul nos mapas”, se o que há é sujeira e lixo às margens do
rio? Frente à maquina-mundo, seu olhar em ‘O cão sem plumas’ é de um ser indagador,
temeroso de respostas prontas, um ser envolvido com as questões do indivíduo que se reparte
na dor coletiva. O “azul” remete-nos também ao poeta Pena Filho [1983:179] quando diz que
no “ponto onde o mar se extingue/ e as areias se levantam/ cavaram seus alicerces/ na surda
sombra da terra/ e levantaram seus muros/ do frio sono das pedras/ Depois armaram seus
flancos: / “trintas bandeiras azuis/ plantadas no litoral./ hoje serena, flutua, metade roubada ao
mar/ metade à imaginação”. Esse fragmento de Pena Filho refere-se ao processo de
colonização em Recife.
no caminhar de João Cabral a busca por entender os dramas das relações humanas
dentro do leito dos rios sem plumas. Uma procura imensa de compreensão do outro pela
relação com o social, mas também de compreender o social pela relação com a totalidade
mundo: Posso esperar que esse oceano nos seja comum? / Um sonho é uma criação minha,
nascida de meu tempo adormecido, /ou existe nele uma participação de fora, de todo o
universo, /de sua geografia, sua história, sua poesia?” [MELO NETO, 1994:62].
6.2.1 Raízes da oralidade
Sem querer entrar no mérito da exceção, no livro O cão sem plumas’, informa-se o
narrador em primeira pessoa em apenas um momento. Isso acontece na oitava estrofe da
primeira parte, quando denuncia o tipo confessional do narrador: “E jamais o vi ferver”
[MELO NETO, 1994:106]. Bom que se relembre que O cão sem plumas’ é um poema
dividido em quatro momentos. Um poema que se estende linearmente como um rio, mas que
é curvo como as raízes do manguezal. Nos demais momentos do poema O cão sem plumas, o
narrador vem em terceira pessoa e o discurso do poeta encontra-se, portanto, onipresente.
218
Com a façanha de recuperar a voz do outro no meio do verso, amplia-se em tom ficcional a
negação do sujeito humano à beira do mundo-mangue.
Observa-se uma desumanização que, segundo Friedrich [1991], se apropria dos
estados naturais do ser humano e inverte as tutelas hierárquicas antes referenciadas entre os
homens e as coisas. Os homens se coisificam e os objetos se humanizam. O poeta se reparte
em máscara para transfigurar o eu lírico na linguagem das coisas. Cabral parte das coisas e
retorna às coisas trazendo consigo a parte humana que nelas havia invertido. Em uma
sociedade que, cada vez mais descarta sua matéria humanitária, o poeta desloca os objetos
para a superfície dos desejos. Com isso, os homens descem para o andar de baixo na escalada
dos valores. Nessa perspectiva, o ser humano perde suas referência de humanidade e cada vez
mais se faz parecer com os objetos sublimados que o circundam. Como diz Clarice Lispector
[1998: 79] no livro Água Viva: “Sou um objeto que cria outros objetos e a máquina cria a nós
todos. O mecanismo exige e exige a minha vida. Mas eu o obedeço totalmente: se tenho
que ser um objeto, que seja um objeto que grita”.
A desmontagem do sujeito subjugado pela engrenagem social aparece na construção das
relações mais distanciadas em que os responsáveis pelo desamor não aparecem. No
apagamento do eu, no trato com a impessoalidade do poema, o retrato do rio-mangue toma
mais fôlego, e as referências de ordem biográficas se despedem quase totalmente do meio do
verso. O homem se distancia do centro poema, o mundo se impessoaliza e o verso descreve
pela violência social a brutalização do mundo: “Como o rio/ aqueles homens, são como cães
sem plumas/ um cão sem plumas/ é mais/ que um cão saqueado; / é mais/ que um cão
assassinado” [MELO NETO, 1994:108].
Como diz Araújo [1999:56]: “O cão sem plumas incluía o questionamento das
condições em que o discurso pode atuar eficazmente na articulação do espaço intertextual e
real”. Uma leitura que, sem grandes efeitos, possibilita o acompanhar da reclusão dos seres
excluídos convivendo aos tropeços com os crimes sociais que a humanidade pratica em
silêncio: “Nos aeroportos sempre a mesma coisa/ se distanciam ou celefone./ No do Ibura até
mesmo/a água doida, o mangue” [MELO NETO, 1994:228; grifo nosso].
Em Cabral, o eu-lírico é porta-voz de um tipo de sujeito antilírico. O marco de
impessoalidade no mundo moderno retira do poema o eu verdadeiro. Deixamos a essência
romântica de lado para abrigar uma existência de aparência. Vive-se atualmente uma
219
existência vazia de sentido. Artificializamos o ser, conseqüentemente, banalizamos discurso
poético. E essa é a grande luta de João Cabral: reafirmar não a leitura fácil da linguagem
massificada, mas fazer as linguagens interagirem entre si: A fala complexa com a voz
popular, o discurso obscuro com o canto dos emboladores de feira, o idioma versificado com
a linguagem da prosa, o concreto com o surreal, o moderno com a tradição, tudo somado: ao
mesmo tempo em que é pouco, é longo.
O discurso, regrado pela imaginação do pouco: “de só dar a vê-lo no pouco, /no quando
em que o vê, sertão-osso” [MELO NETO, 1994:420]. Uma espécie de artista inconfessável a
cada novo poema: “Não era inconfessável que eu fizesse versos/ mas juntos nos libertávamos
a cada novo poema. / Apenas transcritos eles nunca foram meus, / e de ti nada restava para as
cidades estrepitosas” [1994:49].
Mas a grande inclusão social do poeta é descobrir o ser humano para si mesmo e
conseqüentemente da multidão. “No mangue lama ou lama mangue/ difícil dizer-se o que é”
[MELO NETO, 1994:313]. Como uma teia, a estética cabralina é uma poética da relação, pois
quer a comunicação com o humano e não a indiferença. “Em situação de poço, a água
equivale/ a uma palavra em situação dicionária: / isolada, estanque no poço dela mesma, / e
porque assim estanque estancada; / e mais: porque assim estancada, muda, / e muda porque
com nenhuma comunica” [1994:350]. A poética da relação busca o ser humano porque as
“coisas, por detrás de nós. / exigem: falemos com elas, / mesmo quando nosso discurso/ não
consiga ser falar delas. / Dizem: falar sem coisas é/ comprar o que seja sem moeda: / é sem
fundos, falar com cheques/ em líquida, informe diarréia” [1994:555]. Na poética da relação, o
ser busca a comunicação com todos e nunca a exclusão. O ser em comunhão com o mundo é
rede de relações. Mas também é principalmente o que se indigna, que se angustia, medita e
sofre frente ao descalabro da miséria coletiva brutalmente estabelecida. Nesse sentido, o saber
não é briga por poder ou avantajar-se da mera informação, mas livro de aprendizagens é
“sabença” em generosa mutação. A relação entre os seres humanos, quando se aprofunda,
gera um autoconhecimento que reluz compaixão por todos os entes do universo.
Qualquer pescador de tarrafa
arremessando a rede langue
dá a sensação que vai pescar
o mundo inteiro nesse lance
e o vôo espalmado da rede,
planando lento sobre o mangue,
senão o mundo, os alagados,
dá a mesma sensação mesmo que abrange.
Depois, pouco se vê:
220
como, ao chumbo tirante,
se transforma em profundo
o que era extenso, antes;
vê-se é como o profundo
dá pouco, de relance:
se muito, uma traíra
do imenso circunstante.
[MELO NETO, 1994:313-314; grifo nosso]
Nas páginas do livro Serial [1961], João Cabral trabalha seus poemas de forma
aparentemente circunstancial, uma crítica ao que exclui o homem e polui o mangue. Seu
poema aparentemente mais claro pulsa uma séria reflexão sobre o manancial da teia mangue.
O poeta reivindica uma relação com as comunidades ribeirinhas. Para acolher os habitantes
dos mangues, Cabral desenraiza o retirante do sertão para enraizá-lo no manguezal. Sua
palavra é “vôo espalmado da rede/ planando lento sobre o mangue”. Com uma mobilidade
que rasteja “a mansidão da coisa/ que aceita virar outra / que essa gente se atira/ aos trancos
entre as coisas” [MELO NETO, 1994:310].
Para descrever os antagonismos sociais, resgata os trapeiros da modernidade, como
forma de revelar o impacto dizimador da modernização. “Vê-se é como o profundo/ dá pouco,
de relance: / se muito, uma traíra/ do imenso circunstante”. No bojo dessas imagens, os
homens sem plumas enfrentam um diálogo conflitante entre a vida, os mangues, os
pescadores ribeirinhos. Um diálogo que insere as distâncias eco-sociais entre a cidade e o
mangue e entre os que vivem do manguezal. O manguezal cabralino é uma rede de precisão
com seus homens severinos a vagar anônimos em um caminho movediço sem retorno: “senão
o mundo, os alagados, / dá a sensação mesmo que abrange”.
No limiar das representações, mangue é símbolo da lama espessa, da vida enraizante:
“Arremessando a rede langue”. No lugar de homens, sombras de seres elípticos que
exibem nas próprias vidas o vôo espalmado da rede, / planando lento sobre o mangue”. Em
suas lições seriais, educadas pelo mangue severino, o poeta desenha homens encurvados,
andarilhos, totalmente presos a uma visão emudecida de seus próprios destinos. Homens
perdidos como um cão na luta do bem contra o mal. Cão maldito, ou demo, de que fala
Guimarães Rosa. Cão maltrapilho a andar com os urubus em ciclo. Cão silenciado como
aquela “cachorra baleia”, de Vidas secas, morrendo sem alternativa, longe de um caminho.
Cão carcomido dentro de mocambos, engolido pela fome, devorado pelo lixo. Cão preso ao
destino de sua condição sertaneja.
No livro ‘A escola das facas’, o poeta descreve uma explosão calada:
221
“Siá Maria Boca-de-Cravo”
Siá Maria Boca de Cravo,
entre o cais da Jaqueira e o rio,
passou-se a vida num mocambo
plantado num chão lama e lixo.
Negra do de onde, e desse negro
da lama com que coabitava,
tinha uma boca em carne viva,
não literal, mas cor de chaga.
Dessas mucosas reencontrei,
tantos depois, na África negra:
cravo rubro, explosão calada
que por enquanto não se expressa.
[MELO NETO,1994:449]
Em uma poética de magreza expressa, o silêncio da voz narrativa sugere analogias entre
o cais da Jaqueira, o rio, a lama, o lixo, a carne viva, a cor de explosão calada, a África negra.
Observa-se que o abandono dos habitantes dos mocambos e a diferença social ampliam-se a
cada dia. O apanhado racial se arrasta da lama para a violência nos grandes centros urbanos.
Os mocambos, por sua vez, “abrigam restos de humanos em metamorfose e logo serão parte
da andada do eu-lírico homem/caranguejo” [MELO NETO, 2004: 23]. Essa relação de seres
anônimos que sobrevivem dentro dos mocambos traduz a cidade pelo “ciclo do marisco”. No
livro ‘Geografia da fome’, Josué de Castro [2001a: 131] descreve o sururu como um alimento
de alta riqueza de proteínas e de ácido nicotínico de ferro. O ciclo do marisco é “uma
realidade social nos dias atuais, um verdadeiro formigueiro humano arrancando da lama
recifense à subsistência”. Nas marés baixas, também ocorre um fenômeno parecido em
Estados vizinhos de Pernambuco. “Em Alagoas vivem as populações pobres de extensa área
do estado o seu ciclo do sururu” [ibidem].
Na lama que alimenta séculos as ancestralidades de negros e índios, o ciclo do
caranguejo é vivenciado pelas gentes da terra do mangue que reciclam o alimento da própria
lama. A carne de caranguejo que alimenta os homens ribeirinhos transforma-se dentro de uma
cadeia cíclica em matéria orgânica que, por sua vez, abastece a lama, ajuda na sobrevivência
dos povos dos mangais. “As populações costeiras têm à sua vida tão intimamente ligada à
vida do mundo aquático, que vivem quase dentro d’água, nos deltas dos rios, nos mangues das
marés e nas margens de lagoas” [CASTRO, 2001a: 133]. Os povos das águas são também
retirantes. “Trata-se de um povo nômade, de um tipo especial de nomadismo de nômades
marinho, pastoreadores de peixe” [ibidem].
222
Em nossos dias, com a dizimação de mangues e sumiços de caranguejos, pouca
alternativa de sobrevivência para aquele que como diz o poema: cabralino “passou a vida num
mocambo/ plantado num chão de lama e lixo”. Infelizmente, os recursos alimentares a cada
dia estão escassos seja pela cena destrutiva das indústrias, seja pelos dejetos hospitalares, seja
pelos resíduos poluentes despejados diariamente em esgotos a céu aberto. O fato é que,
cotidianamente, encontra-se uma terrível ameaça de tudo quanto é animal marinho, ficando
mangues, mares e rios quase despovoados. Não se estranha na atualidade que pouco
deslocamento dos catadores de mariscos dentro manguezais. Alguns, não menos
inexpressivos, mostram-se calados, fatigados pelo caos ecológico interferindo na qualidade de
vida de homens e caranguejos. As conseqüências disso tudo trarão nos próximos 50 anos
marcas profundas dentro de todos os ecossistemas.
No poema cabralino, a atmosfera de habitantes silenciados, como Siá Maria Boca-de-
Cravo, revela uma analogia com “explosão calada”, acentuando-se aí uma resistência à
desafricanização dos mocambos. Na “explosão calada”, aglomeram-se casebres, próximos dos
sobrados, mas sem comunicação entre eles. Remete à voz dos que foram silenciados por uma
tradição de engenhos numa sentença de racismo e exclusão. Cabral pratica uma crioulização
que não se oculta no meio da linguagem. Uma concordância entre a oralidade e a escrita que
se faz presente no título do poema Siá Maria Boca-de-Cravo.
Sem omissão o poema traz pequenas inversões do idioma popular. Não é tanto a palavra
comida no final do poema, mas uma sonoridade que nos remete ao popular pelo ritmo
regional como em Ascenso Ferreira, da Luz, Patativa do Assaré. Quando João Cabral diz:
“Negra do de onde”, traz uma mensagem meio avessa, desmembrada do ritmo normal. A
expressão “negra do de onde” é emissão ao crioulismo avantajado das oralidades africanas. A
palavra mangue, como vimos, em seu dicionário múltiplo, segue o mote da memória da
África. E toda memória é lembrada pelo inconsciente, pelo fragmento. Quanta mais
crioulizada mais dispersiva, desmembrada do tom adequado. É sempre outra coisa não
esperada, justamente porque o propósito da linguagem oral é criar o imprevisível, o
circunstancial discursivamente. “A cultura oral e a cultura escrita não são o contrário uma da
outra, nem são adversativas: são parceiras, que se ajudam e se complementam” [TAVARES,
2005:99].
Na marcação cordelista, o compasso segue o ritmo do tambor; como faziam os negros e
índios em pontos de gira da cabocla Jurema ou rodas de capoeira. Um legado anterior à poesia
223
rude trovadoresca. A palavra oral bem que poderia ser ‘horal’ como referência ao canto que
nasce das horas noturnas, cantoria feita em círculo, em roda, nas calçadas, nas fachadas
interioranas de igrejas abandonadas. Em muitos quintais da memória, foram varridas do
terreiro as histórias dos povos dos mangues. Um propósito de intimidade com o mundo é
afundar o corpo nas raízes de lama à procura das cordinhas caranguejas. Os catadores seguem
o mote dos cantadores: “Entre Olinda e Luanda/ tem o mar de Portugal. / Entre Olinda e
Recife tem mangue e canavial” [CORDEIRO, 2003:46; grifo nosso].
Para encontrar a memória do mangue é preciso entranhar o eco pelo fragmentário.
Buscar no ritmo do fogo encantado, o cascabulho. A sextilha traz no poema o gracejo a toada
de lamento. No desfile de um mote, o cantador anuncia a rima mourão de sete pés trocados,
caligrafia de letras, notas de estribilho, declamados na troça do poema.
A cantoria é uma 'incelença’, ao procurar sete sílabas, usa-se fórmulas tabuadas,
afinando o acordeão pelo ‘zóis’: a matemática da fração musical, desce o cordelista pela rua
do verso a sete pés das quadras menores. Na contramão da carretilha ou na quadra oito pés o
quadrão da cantoria, sobe em tom de ‘oito baixo’ a escala da poesia subindo o varal.
Para Josué de Castro [2001b: 167], a saga dos declamadores acontece no terreno baldio
das representações populares. Nesse espaço, um desafio de desbravar um mote em
cantadores e catadores de caranguejos. “O pessoal do bairro acompanhava com atenção dois
violeiros que tocavam e cantavam. Havia um mundo de gente fazendo círculo em torno aos
cantadores: uns em pé, outros acocorados no chão, outros sentados em caixões de querosene”.
Essa mania de saltar esquinas e saltear vagões declamando versos ainda hoje se
perpetua em feiras, praças, bienais, espetáculos musicais, rodas de poesia, saraus literários,
poesia em teatros, toadas de hip hop no meio-fio da rua. Eventos em que se agenda não
propriamente o olhar, mas o ouvir para receber violas de cocho, triângulos, sanfonas, violões
de rua, tambores, guitarras, palavras cifradas, poesia cantada, voz de mamulengos.
Das cantorias, renasceram alguns cantadores desafinando estrofe e estribilho ou
elegendo voz de contraltos. Para os emboladores sopranos, a métrica reconta não o tamanho
da fala, mas a crítica, a denúncia social. Entre mi menor e maior, mistura-se o canto na
travessura do improviso. Apostam-se sinais de que a memória popular atravessa, em bom
tom, a contramão dos tempos: em folhas de flandres, microfones de rua. Ambientalista, o
cantador popular resgata o mote na teia sincrética ao manifestar as ‘pensamentações’
224
ecológicas. Constrói um tapete de raízes no trato generoso de captar as imagens da natureza
do ‘manguezá’. Nas pegadas da lama, pescador de rima caminha para apalpar as águas
correntes das marés: “O rio pede bem pouco/ Pra nos ofertar bem mais/ Que não derrubemos
árvores/ protetoras naturais/Quer cumprir sua função/ E viver em comunhão/ Entre verdes
manguezais” [PAIVA; QUEIROZ, 2004:6; grifo nosso].
No sincretismo cultural, as partituras de cordéis recebem mudanças a cada dia nas
escalas da linguagem falada. A pancada ternária sobe para a marcação quaternária em
Limeira ou Oliveira das Panelas. Da sextilha, tocamos o mourão de pés para frente e para trás,
seguindo compasso mistura de maracatu e pífanos. Em algum manguezal, repartem-se cordéis
vindos do sertão. Se luar, osvizinhos vêm sentar em frente ao mocambo do Luís para
contar e ouvir histórias. Se a noite é fresca com a de hoje, soprando um ventinho carregado do
cheiro dos sargaços, eles se acocoram em torno a uma pequena fogueira de varas de mangues”
[CASTRO, 2001b: 75].
Quando falta luz no terreiro, as cordas da lira do cantador reclamam vogais que vêm dos
quintais de lama. Na arqueologia dos sambaquis, os sons das ostras indicam de que mangues
nós viemos. Diante das quadras do poema de Rodrigues [s/d 164], “De Madapolão com
Bemtiví”, o desafio do mote é a teia que se estabelece dentro manguezais: “A maré casou com
o mangue, // O mangue casou com o cisco, / A mulher casou com o homem/, O homem com
seu serviço”.
Vejamos o quanto Vergara traz disso em suas cantoria oral.
Cordel do caranguejo Uçá
Vive num lugar chamado manguezá
Ele o caranguejo uçá
Agora sua vida eu vou contar
Espera a primavera chegar
Para de leite ficar
E o casco trocar
Só cresce assim
Dezembro chegou
No céu relampejou
É a reprodução
Anda em toda a direção
Numa verdadeira profissão
De noite e de dia são quase quatro dias
Em Janeiro tudo se repete
Chegou a época da fêmea desová
Aumentando próximo ao carnavá
Não sei se é na beira do rio ou da maré.
225
Para tudo se perpetuá
No ciclo do caranguejo uçá
Só basta o mangue restar
[VERGARA FILHO, 1994].
61
Nele, essa noção de imprevisibilidade da linguagem oral surge justamente desde um
nascimento complexo dos caranguejos em fase de andada. Cantoria que nasce frente a todas
as línguas e dialetos do mundo. Um nascer que folclórico que vem desde o começo do idioma
lama. Dessa gênese heterogênea, deu-se uma outra espécie de participação humanitária em
mangues visíveis que chamamos de aldeia-mangue ou lama-pátria.
Retomando-se a oralidade de João Cabral, reconhece-se a fala pelo traço sincrético, bem
diferente de Vergara. A fala cabralina não tem vestígios do tom coloquial; é mais centrada nos
resíduos de uma prosa de registro regional bem comportado. O cão sem plumas, O rio, Morte
e vida severina são exemplos disso. A marca dessa oralidade não é tão dispersiva, quanto
parece, centra diálogo em tom sertanejo. Ao observarmos Morte e vida severina [1956],
veremos que nas quadras a voz popular atravessa tensões, mas nunca por oposições ao
discurso narrativo. São personagens em de desigualdade social que semanticamente
falando deslindam o fio de seu lugar, de suas origens. O mangue de Severino está presente na
própria voz crioula que constitui um elo intenso do drama humano que se desenrola nos
mocambos. Mas há pouca evidência disso em verso desta natureza: “Isso significa que o autor
propõe uma crioulização e a camufla”, pegando aqui uma expressão de Glissant [1994:65]. E
é bom lembrar disso, pois pouca gente se conta dessa presença crioula na poesia cabralina.
Diferentemente, a exemplo, de um Chico Science, cuja crioulidade é proclamada e caminha
deslanchada em uma intenção de manifesto na mistura de maracatu atômico, embolando o
dub poetry [o rap] ao samba-jazz no fragmento rock-pop.
Não se estranha essa falta de tom na linguagem biodiversa de Cabral. A palavra tem
outra função mais concreta, “não literal, mas cor de chaga”. E o texto segue pontuado pelas
marcas da crioulidade, como se observa na expressão utilizada: tantos depois”. E assim
caminha pautando vários termos que são resíduos de uma expressão crioula. Diz, por
exemplo, que “passou a vida num mocambo”. O termo “num”, que em nossos dias é
coloquial, à época era tido como expressão advinda do sincretismo afro.
Longe de enquadrá-lo como um sociologista ascético ou um estruturalista esteta, o poeta
61
In: ALVES, André. Os argonautas do mangue. São Paulo: Unicamp, 2004, p. 128.
226
envolvido com as causas humanas. Seu poema é eco da voz emudecida, da fala oprimida.
Seus personagens são seres que habitam as margens dos mocambos. Seus mangues são
mocambos espremidos onde o choque e a paz maquiada frente à ‘explosão calada’.
Édouard Glissant [2005:36] diz que: “O lugar de onde emitimos a fala, de onde emitimos o
texto, de onde emitimos a voz, de onde emitimos o grito, esse lugar é imenso”. No poema
“África & Poesia”, do livro Agreste [1985], observa-se que em João Cabral [1994:565]
aparece a voz da resistência, voz da África “está nos gritos como em Senhor: / ambas se
vestem de molambos, / de madapolão ou tussor,// para exclamar-se de uma África,/ de uma
arqueologia sem restos,/ que a história branca e cabras negras/ apuraram num puro deserto”.
Até onde se sabe, o poder da poesia cabralina deve também muito à sonoridade rítmica
da mãe África. Há poemas dedicados ao Senegal, à Guiné Bissau, ao Mali e suas revoltas, aos
griots, a Dacar, à África. Esse lugar João Cabral conheceu quando morou no solo africano e
pôde conhecer de perto a realidade de um povo morrendo à mingua. É certo que em João não
é tanto a linguagem sincrética e revolucionária como se observa em Chico Science e
Zeroquatro, mas não como negar que a base de argumentação e comprometimento do
poema cabralino tem suas amarras com os ideais rítmicos da fala popular.
-Foi por ela que a maré
fez parar seu motor:
a lama ficou coberta
e o mau-cheiro não voou.
-E a alfazema do sargaço,
ácida, desinfetante,
veio varrer nossas ruas
enviadas do mar distante.
-E a língua seca de esponja
que tem o vento terral
veio enxugar a umidade
do encharcado lamaçal.
[MELO NETO, 1994:196].
Para o leitor, de uma forma geral, a poesia popular está ligada à palavra folclore. E isso
vem de longe, quando somente nos interessávamos pela poesia escrita, livresca, deixando aos
etnólogos ou estudiosos de folclore a missão de pesquisar a oralidade. As raízes da poesia oral
não m a ver com esse folclore que se atualmente: mera fraude turística ou eleitoreira
como sublimação bairrista do regional. Existe uma fala oral difundida nas mídias que é a
oralidade da banalização. Mas existem outras que são memorialistas, que bebem nas raízes
profundas dos mitos populares, sejam esses orientais ou ocidentais. As verdadeiras raízes dos
mangues nascem no idioma popular. É de que surge o som do mangue. Essas raízes falam
em idioma lama. São raízes de cocos, samba, jazz, aboios, rap, maracatus, emboladas, que
227
permutam entre si as mais diversas manifestações culturas.
As culturas do manguezal m os pés negros plantados dentro do lamaçal: Empresta-
lhes a cor usada/ Própria da terra ou do preto/ Que existe dentro da lama/ e cobre seu
esqueleto” [Accioly, 1983:3]. Na pele da lama, culturas ressurgem no cenário do mundo-lama
em diálogo e relação com outras linguagens como o teatro popular, as artes plásticas, as
esculturas de lama recolhidas nas argilas redondas de Ana das Carrancas em Petrolina [PE] ao
o barro miudinho do ‘Mestre Vitalino’ em Caruaru.
O oral-popular nasce dos mitos guardados pela camada do inconsciente. São ritos
resgatados pela memória abafada do inconsciente coletivo. Estão sempre sendo postos em
questão pela tradição e pela contemporaneidade. A voz da oralidade acompanha as mudanças
e seus contextos históricos. Recebe nova modelagem e, de forma sincrética, alcança as
culturas pela voz da alteridade. É pelas raízes culturais que a matéria poética cabralina revela-
se: “Sentados na roda morta/ de um carro de boi, sem janta/ ouviam o folheto guenzo, / a seu
leitor semelhante, / com as peripécias do espanto” [MELO NETO, 1994:447].
Se para os escritores, as narrativas orais têm a ver com a repetição e as distorções do
discurso da voz, a origem da poesia oral tem a ver com as conotações de histórias contadas
em verossímil sincretismo de mudança. Nesse contexto, as palavras são “religação de
saberes”, vestígios provisórios de outras vozes musicalmente repletas de sabedoria.
Na verdade, o que a palavra erudito’ designa é uma tendência, no seio de uma
cultura comum, à satisfação de necessidades isoladas da globalidade vivida, à
instauração de condutas autônomas, exprimíveis numa linguagem consciente de seu
fim e móvel em relação a elas; popular, a tendência a alto grau de funcionalidade das
formas no interior de costumes ancorados na experiência cotidiana com desígnios
coletivos e em linguagem relativamente cristalizados [ZUMTHOR, 1993:119].
Saber falar é saber que sabemos nos comunicar. Sabemos que podemos comungar a
intimidade da humana humanidade em nós. Falar de fato é agir. Não existe o verbo errado,
mas inadequação de signos. Muitas vezes a palavra silencia ou é silenciada, mas a voz do
corpo é a expressão mais sagrada. Falar com o corpo faz um pequeno eco criar sons para
terem algum sentido. A voz abre caminhos para os que estão por nascer. O sotaque popular é
som heterogêneo que habita as passagens remendadas das diversas redes de palavras
misturadas. Escutar os verdadeiros contadores é observa os cantadores reverberar o canto
popular. “Falar é existir de modo absoluto para o outro” [FANON, 1983:17].
O que João Cabral traz para o campo da linguagem popular é uma movência do discurso
228
escrito com o não-escrito e isso se observa na fala de O rio [1954], Morte e Vida Severina,
[1956] e o Auto do Frade [1984]. São tonalidades distintas, que trazem, indiscutivelmente, ao
mesmo tempo, as marcas da diversidade para a teia cultural moderna. Pegando aqui a fala de
Zumthor [1993:117], “nenhuma cultura se em bloco, toda cultura comporta uma
heterogeneidade”.
Frente ao tradicionalismo saudosista da linguagem popular, parada no tempo, morrendo
à mingua e celebrando os senhores de engenho, como bem observa Durval Muniz, no livro
Invenção Nordeste, esse tipo de cultura popular não resiste mais no pleno exercício de seu
valor original. Debaixo do grande trator expansionista do progresso, desapareceram ou
ficaram reduzidas a todas as formas de conveniência. No livro Da foz à nascente: o recado do
rio, Unger Nancy Mangabeira [2001:17] observa que a cultura popular é forma de
sociabilidade, modo de se relacionar com a natureza de maneira mais consciente e
conseqüentemente mais cuidadosa.
São as culturas que o testemunho da força de criativa que se efetuou e se realiza no
desenvolvimento dos povos, tanto em meio a conjunturas sociais e políticas determinadas
quanto ao modo de interagirem com a terra onde habitam e o vigor da natureza daquele
lugar”. Falar sobre direitos humanos é também falar sobre luz elétrica, saneamento, educação,
saúde, endereço certo às comunidades que habitam o coração dos mocambos. Resgata-se com
isso o sonho de criar humanidade para quem nada tem. “É através do homem que a Sociedade
chega ao ser”, alerta Fanon [1983:12].
6.2.2 Cabral-hino: a flauta antimusical
Mestre monótono e mudo,
que ensinaste ao antipoeta
(além de à música ser surdo)?
Nada de métrica larga/
gilbertiana, de seu ritmo;
nem lhe ensinaste a dicção
do verso Cardozo, e liso.
[MELO NETO, 1994:443]
Não é de estranhar que no primeiro livro ‘Pedra do Sono’ [1942], dialoga João Cabral
com a crítica prosaica de Carlos Drummond e, não menos influenciado, publica Os três mal-
amados [1943]. Envolvendo-se, nas dobras da maquete urbana de Joaquim Cardozo e da
expedição surreal de Murilo Mendes, escreve ‘O engenheiro’ [1945] e ‘Psicologia da
229
composição’ [1947]. Por essa época apenas encontramos vestígios dos mangues como rastro
ou resíduo nos respectivos livros: ‘Os três mal amados’ [1943], ‘O cão sem plumas’ [1950],
‘O rio’ [1953], ‘Paisagens com figuras’ [1955], ‘Morte e vida severina’ [1956], ‘Quaderna’
[1956], ‘Serial’ [1959], ‘Educação pela pedra’ [1965], ‘Museu de tudo’ [1974], ‘A escola das
facas’ [1980], ‘Agreste’ [1985], ‘Sevilha Andando’ [1990].
O primeiro João Cabral da fase mais surrealista em ‘Pedra do sono’ [1942] caminha
para o mais realista em ‘O cão sem plumas’[1950], até alcançar o terceiro momento em
‘Morte e vida severina’ [1956] que é a fase mais popular do mangue e também do teatral.
Reconhecido pelo que de prosaico no poema, escreve em tom impessoal, apesar de o eu-
lírico aparecer pouco como linguagem crítica. Esse efeito estará presente em quase toda sua
obra. No livro ‘Os três mal-amados’, uma releitura teatral do poema “Quadrilha”, de Carlos
Drummond de Andrade, o personagem Joaquim descreve de forma romântica o manguezal,
porém com um sotaque requisitado pela preocupação ambiental: “O amor comeu meu Estado
e minha cidade. Drenou a água morta dos mangues, aboliu a maré. Comeu os mangues
crespos e de folhas duras, comeu o verde ácido das plantas de cana cobrindo os morros
regulares” [MELO NETO, 1994:63; grifo nosso]. Em tom intratextual, imagens parecidas
com estas na primeira parte do livro ‘Cão sem plumas’ [1994:106] quando poeta reescreve:
“Abre-se em mangues/ de folhas duras e crespos / como um negro”.
O poema “Paisagem do Capibaribe” traz uma descrição do mangue como corpo de lama
silencioso: “O que vive/ incomoda de vida/ o silêncio, o sono, o corpo/ que sonhou cortar-se/
roupas de nuvens/ o que vive choca” [MELO NETO, 1994:114]. Ou como diz em outra
passagem do poema ‘Paisagem do Capibaribe II’: “Em silêncio se dá: / em capas de terra
negra/ em botinas ou luvas de terra negra/ para o ou a mão/ que mergulha” [1994:106]. O
silencio contido é sua forma de dizer o a uma realidade imutável: “com que hoje a gente
daqui/ diz em silêncio seu não” [MELO NETO, 1994:149].
O discurso do mangue denuncia a condição social dos alagados: “O rio carrega sua
fecundidade pobre, / grávido de terra negra” [MELO NETO, 1994:106]. O rio, grávido de
mangues, é ponte onde se atravessam os dramas dos ribeirinhos que m salvar na lama o
leite escasso dos de caranguejos. O manguezal para a cidade é monturo que oferece
camaradagem, como atesta Castro [1992:260]: “Dá tudo, casa e comida: mocambo e
caranguejo”. O mangue, como espaço de carência, serve de casa e quintal nas encruzilhadas
do bairro Pina, Brasília Teimosa, Afogados, ilha de: Deus, Joana Bezerra, do Retiro, do
230
Maruim, Leite e Coelhos, Santo Amaro. De um canto a outro, a cidade mendiga “com o corpo
descoberto indiferente ao frio e aos mosquitos que zumbem por entre folhas gordas dos
mangues” [CASTRO, 1992: 258]. Destruindo os restos de manguezais, a cidade segue em
caos desarmônico: “Como se o mangue trouxesse/ o rio que sempre o traz/ Ou o rio, à frente,
seguisse/ O mangue que segue atrás” [ACCIOLY, 1983:4].
Celeiro de exclusão e dizimação com suas usinas fabricando queimadas em períodos de
colheitas, matando as veias dos rios, enquanto alicerça novas injustiças debaixo de canais e
asfaltos, a perspectiva de melhoria dentro das palafitas é ínfima. um grande corredor de
favelização que não tem mais como retirar o próprio sustento do manguezal, “é que ele anda
sempre/ morto de fome e de sede, / comendo até as raízes/ da sua flora mais verde” [ibidem].
O manguezal cabralino é o mangue canino, o mangue vira-lata de rabo seco. O mangue
da violência social que acompanha a travessia do rio avesso, da margem espessa, do ser
anônimo vivendo à mercê da lama. No livro A educação pela pedra [1966] sua antilira ganha
um tom lânguido: “Ela se move com o andamento da água/(...)/daqueles rios do litoral do
Nordeste /que os geógrafos chamam ‘rios fracos.’/Lânguidos; que se deixam pelo mangue/ a
um banco de areia do mar de chegada; /vegetais; de água espaço e sem tempo/ sem o cabo
porque o tempo a arrasta” [MELO NETO, 1994:341; grifo nosso].
Sobreviver do mangue é uma tarefa repassada de mãe para filho. Encarar o meio
insalubre da lama é uma missão somente àqueles que sabem habitar a profundeza do
manguezal. Vê-se que por ali o som dos pescadores se dispersa nas fachadas de lama em um
tom estranho ensurdecedor. As folhas das árvores farfalham o tom surdo para o mangue. E o
poeta soube como ninguém captar a palavra antimusical de um mundo calejado pela condição
de miserável. Mundo alarmado por um alto-falante dos folhetos migrantes, das músicas
preditas dos feirantes. Recria uma espécie de antilira que beneficia a metamorfose de rias
linguagens em um só: erudito-popular, narrativo-versificado, oral-escrito, cordel-medievo,
geometria-surrealista, abstrato-concretista. A fala que desliza reforça a temática do mangue
pela oralidade medieval, pelo tom moderno, pelo eco pastoril, pelo rima servilhana, o tom
suburbano, a métrica seca do sertão. “E a língua seca de esponja/ que tem o vento terral/ veio
enxugar a umidade/ do encharcado lamaçal” [MELO NETO, 1994:196].
As diversas maneiras com que constrói versos fazem desse poeta um multiplicador de
sons não apenas regionais, mas universais. Depois dele talvez se tenha notícia dessa façanha
na Tropicália, de Torquato Neto, em 1970, ou mais à frente na década de 1990 em Chico
231
Science e Nação Zumbi, abusando daquilo que João Cabral sempre negou ou ignorou em
poesia: a partitura musical. Contudoo podemos negar que o poetao soube esconder esse
falsete nem dele mesmo. No poema “Homenagem a Picasso” revela: “O esquadro disfarça a
elipse / que os homens não querem ver. / Não há música aparentemente nos violinos fechados
41./ Apenas nos recortes dos jornais diários/ acenam para mim como juízo final” [MELO
NETO, 1994:53].
No que tange ao fenômeno antimusical, o ouvido vem mouco, o musical é trovadoresco,
carrega contrapontos na voz de soprano e acata várias Arias da arte musical como: flauta,
violinos, clarinetes, pianos: “Mas nos países sem palavras/ os generais incendeiam pianos/ dos
pianos heróicos nascem florestas/ e outros lamentos são gritados/ para as janelas acesas/ que
guardam antigos remorsos” [MELO NETO, 1994:812].
O pouco que de melodia vem retratada em sinfonias surreais: “E do retrato nasciam
duas flores/ (dois olhos dois seios dois clarinetes) / que em certas horas do dia/ cresciam
prodigiosamente” [MELO NETO, 1994:44-45]. A palavra é des-cantada pela redondilha de
sete notas musicais. O poeta de Morte e vida severina procura a música que não o faça
dormir, mas acordar. Em seu poema ‘Ainda El Cante Flamenco’: “É a música desejada/ como
o que não adormece: / o mais contrário do embalo/ e do canto emoliente. / Na Andaluzia esse
canto/ insonífero se atende: a contrapelo, esfolado, / arrepiando a alma e do dente” [MELO
NETO, 1994: 388].
Não simplificação na musicalidade cabralina, mas complexidade de imagens o que
não invalida a riqueza da construção imagética e isso se deve tanto ao que vem assinalado
pelo recurso da prosa, como pela recorrência estilizante dos caracteres modernos, misturando-
se aos tons provincianos e ao mesmo tempo aos ecos concretistas dos irmãos Campos, mas
também mantém diálogo com o surrealismo de André Breton.
Essa rede de estilos na poética cabralina se faz porta-voz de múltiplos contrastes sócio e
ambiental. Evidencia, portanto, relações arcaicas, que não estão desaparecidas, e relações
bárbaras, ao mesmo tempo, modernas: “onde as estradas são geométricas/ e a terra não precisa
limpa/ e é maternal o vulto/ obsedo das usinas” [MELO NETO, 1994:229]. Sem deixar de
aproveitar a contribuição da engenharia teatral ou mesmo da sátira e da comédia para dar
conta de seus mangues, o poeta pernambucano revisa a monótona cadência da ladainha e
pelas permutações do vocábulo: “apalpa-as com todos os dez / mil dedos da linguagem”
232
[MELO NETO, 1994:298].
Na repetição da quadra popular, a geometria do mangue vem desplumada pelo que
de avesso no traço discursivo. Entrecortado pela dissonância, o enredo dos manguezais
aparece em estado de privação e negação de sua própria natureza. O mangue sem música de
Cabral insere-se na quebra da melodia do verso frente aos grandes barulhos urbanos. Mas sem
abrir mão totalmente dos resíduos líricos, o poeta não reivindica apenas a antimusicalidade
em questão, mas a carência dela, como retrato do decadentismo musical contemporâneo. Isso
se observa em Nietzsche, quando o filósofo de Zaratustra retrata a decadência da
musicalidade de Richard Wagner. Em João Cabral [1994:340], a reflexão antimusical do
verso faz-se presente principalmente entre fragmentos do poema “Fazer o Seco, Fazer o
Úmido”, quando se observa imagem como esta:
A gente de uma capital entre mangues,
gente de pavio e de alma encharcada,
se acolhe sob uma música tão resseca
que vai ao timbre de punhal, navalha.
Talvez o metal sem húmus dessa música,
ácido elétrico, pedernal de isqueiro
lhe dê uma chispa capaz de tocar fogo
na molhada alma pavio, molhada mesmo.
A gente de uma Caatinga entre secas,
entre datas de seca e seca entre datas
se acolhe sob uma música tão líquida
que bem poderia executar-se com água
Talvez as gotas úmidas dessa música
que a gente dali faz chover violas,
umedeçam, e senão com a água da água
com a conveniência da água, langorosa.
Na geografia da antilira, o poema ganha a cotação sofisticada da fala popular. O que não
deixa de ser intervalar, uma vez que grande parte da fala do manguezal está entranhada nas
raízes do idioma popular. Em ‘O cão sem plumas’, aparentemente, não vestígios da
oralidade popular, mas se observamos o ritmo, veremos um compasso com expressão dos
trovadores medievos. Em ‘Quaderna’ [1959], a palavra desmistifica a sonoridade melódica
para resgatar opacidade das raízes antimusicais: “Se diz a palo seco/ o cante sem guitarras; / o
canta sem; o cante/ o cante sem mais nada” [MELO NETO, 1994:247]. A palavra
‘antimúsica’ é matriz de um vocábulo em rendição concreta do seco: “não o de aceitar o seco/
por resignadamente, / mas de empregar o seco/ porque é mais contundente [MELO NETO,
1994:251]. Em seu vocabulário aberto, a sonoridade é derivada do som barítono: “A palo
seco é o cante/ de grito mais extremo: / tem de subir mais alto/ que onde sobe o silêncio”
233
[MELO NETO, 1994:249].
O diálogo crítico frente à estética musical faz da poesia de João Cabral uma expressão
longe do exagero melódico. Entre o visual e a melodia, Cabral fica com o amusical. Sua
oposição ao verso melódico, afasta-o da musicalidade do Romantismo. Na busca de uma
mudez musical, o poeta resgata o contraponto das colcheias de tom “grave”. A partitura
musical hora marca o ritmo ternário, ora quaternário. A sinfonia do verso barroco é exercício
de polifonia. Ópera para os olhos. Teatro para a voz em Morte e vida Severina’. A música
barroca está como diz Sant’Anna [2000:23] à maneira das estruturas da música de Bach, “em
que um tema é lançado por uma voz ou instrumento e logo recuperado, contraposto,
desenvolvido por outras vozes e instrumentos”. um princípio que explora a mistura de
traços e dialogismo na arte. A ópera castrada que borda o canto com o próprio sangue. A cara
da morte que traz “o deus e o diabo na terra do sol”, pegando aqui o termo de Glauber Rocha.
Sem negar a diversificação, o semitom das semicolcheias, em diálogo polifônico, traz
para a voz poética uma percussão cortada pela batida quebrada de pouco registro sonoro. A
medida curta de cada verso faz com que o som da palavra quebre as demais em uma série
orquestral. A batida do verso lembra uma percussão seguindo a partitura de um tambor. E por
incrível que pareça: “a percussão na idade média triunfava” [ZUMTHOR, 2005]. A negação
da melodia em Cabral não deixa de ter um fundo musical avesso, como se observa na
musicalidade de ‘Morte e Vida Severina’ nos arranjos de Chico Buarque de Holanda.
Por outro lado, no vídeo documentário, de Kátia Mesel, “Recife de Dentro Para Fora”
[1997], uma musicalidade excessiva que pouco tem a ver com o projeto estético desse
autor. O poema cabralino como queria este autor é para ser lido em voz baixa e úmida. Longe
disso, o vídeo exalta um texto musicalmente excessivo na voz de cantadores como Geraldo
Azevedo, Elba e Ramalho. Não se escuta direito o que diz a voz melodiosa de Elba
Ramalho, muito menos o som mamulengo de Ramalho. momentos em que a música
rouba a cena do poema. O jogo rápido de imagens não acompanha o tom do poema, o que
contradiz a leitura serial de alguns versos. O excesso de imagens fragmentadas desfigura os
versos centrados do autor. Um filme sobre o poeta do Capibaribe deveria ser mudo,
explorando apenas o silêncio denso das imagens.
Nunca se diz que a lentidão da palavra em Cabral é uma crítica profunda à pressa dos
tempos modernos. O compasso lento está na contramão da corrida contemporânea. No
sossego de um ensaio contrapontístico, o livro ‘Psicologia da Composição’ [1947] traz no
234
poema ‘Anfion em Tebas’ uma marcação curiosa: “A flauta eu a joguei/ aos peixes surdos/-
mudos do mar” [MELO NETO, 1994: 92; grifo nosso]. O verso na antilira é música silente do
mar. Ao renunciar ao instrumento musical, o coral das palavras dentro do mangue não fere a
partitura rítmica. Sem diapasão de maestro, o poeta desvia-se da incapacidade fonética para
falar do mangue com um trovador. A flauta cabralina é toante, mesmo sem ser cantante, cria
silêncio no meio do verso. O compasso antimusical de que trata tem a ver com a palavra em
estado embrionário, em estado etimológico que reflete sobre a própria condição de palavra
seca, líquida: “Em situação de poço, a água equivale/ a uma palavra em situação dicionária: /
isolada, estanque no poço dela mesma, / e porque assim estanque, estancada; /e mais: porque
assim estancanda, muda /, e muda porque com nenhuma comunica” [MELO NETO,
1994:350-351].
A palavra ‘amusical’ existe na relação com o poema contemporâneo muitas vezes
conceitual e de enxuta sonoridade. O outro lado sonoro da palavra antimusical é de música
sonora nordestina. Entre a urbe e o sertão, o mangue carrega uma teia de relações com a
cartilha modernista e com os ritmos emboladores da zona da mata. A rima é cantante. A
métrica destoante, o verso cheio de gerúndio. A arritmia do som cabralino retira o excesso de
gerúndio. Com isso enaltece o tom pela dissonância cercada de ecos no meio das coisas
concretas, muitas vezes, desumanizadas.
O poeta está em perpétuo processo de mudança com a escrita, porque a escrita
acompanha a voz do anima. “Ele não é ser, mas sendo e que como todo sendo, muda”
[GLISSANT, 2005:33]. Sua escrita é filha da tradição modernista com a traição da moderna.
Poesia que se socorre em alguns momentos da forma evasiva de Paul Vallery e Mallarmé
onde “poesia intransitiva, / sem mira e pontaria: / sua luta com a ngua acaba/ dizendo que a
língua diz nada” [MELO NETO, 1994:397]. Poesia que classificamos como verdadeiros
prosoemas [mistura de prosa e poema]. Os prosoemas são retalhos de epigramas [poemas
curtos] em uma extensão encadeada e ininterrupta de estrofes longas e contínuas. É possível
desmembrar as estrofes em pequenas quadras, mas isolá-las do contexto cultural jamais. Por
esse caminho, o poema é para ser lido como uma prosa em linha reta, vizinha do verso de sete
e oito sílabas. “Um típico romance ibérico é uma história contada em versos de sete sílabas
(ou mais raramente cinco). Podemos ter uma rima única que se repete nos versos pares ou
podemos usar diferentes rimas, dispostas sem regularidade. [...] Não existem estrofes com
número obrigatório de linhas” [TAVARES, 2005:75]. Em Cabral, o percurso segue numa
direção que se aproxima da literatura oral. Vê-se que a relação com os romances de corda, de
235
certa forma, nunca foi negada pelo mesmo:
Você aqui reencontrará
as mesmas coisas e loisas
que me fazem escrever
tanto e de tão poucas coisas:
o pouco-verso de oito sílabas
(em linha vizinha à prosa)
que raro tem oito sílabas,
pois metrifica a sua volta;
a perdida rima toante
que apaga o verso e não soa,
que o faz andar pé no chão
pelos aceitos da prosa
[MELO NETO, 1994:517]
O metapoema acima traz resíduo da língua popular. Um diálogo explícito com as
tradições mais antigas dos cegos de feira e suas recitações circunstanciais. O poema é
trabalhado na hora consoante do instante. Sem alijar os resquícios de domínio e de poder que
todo vocábulo contém, Cabral repensa o poder da palavra. Toda palavra se origina no humano
e se manifesta como fagulha da manifestação social. Se olharmos mais atentamente para trás,
veremos que os medievos [espanhóis], a exemplo, tinham a palavra “prosa” na conta de hino,
música, ou poema. Daí as trovas cantadoras com versos de canto toante de cinco, sete, oito
sílabas no poema. A teia da antimusicalidade não se distancia de uma escuta poética com os
trovadores da idade média. “Pois metrifica a sua volta a perdida rima toante”. Na antilira
musical o verso trovador está refeito de um eco de cordel metonímico: “em linha vizinha da
prosa”. O poeta eleva o som das metonímias que o faz andar no chão pelos aceitos da
prosa”. Na toada metonímica, uma palavra é parte da outra, assim como a lama é parte do
manguezal e o caranguejo é parte da lama, a antimúsica é parte do universo.
“O que o canavial ensina ao mar /: a elocução horizontal de seu verso; / a geórgica de
cordel, ininterrupta, / narrada em voz e silêncio paralelos” [MELO NETO, 1994:340; grifo
nosso]. Admitir que o texto cabralino carrega tantas marcas é precisar que dialogue com os
emboladores dos engenhos onde conviveu na infância, mas também com o discurso afro
descendente quando viveu também com as culturas híbridas de Recife. Pegando aqui a voz de
Zumthor [1993:75], “não se pode negar o papel de recitadores e contadores na formação da
linguagem poética e sistema de versificação”. Para Zumthor, todo discurso é ão física e
psiquicamente social.
Dar ou atribuir a João Cabral duas estéticas é o mesmo que afirmar que a marca da
236
oralidade na sua poesia é menor que a erudição. Até onde se sabe, pelo século XII, a escrita
era a forma de saber mais elevado. A partir do século XIII, a relação se inverte e a voz passa a
ser a transmissão viva da sabedoria. Mas, se olharmos mais para trás, veremos que a cultura
africana é totalmente oral, assim como, a musicalidade indígena que com suas cinco notas
musicais trazem um ritmo variado que rompe o modelo da escala clássica de sete notas.
Encontramos o crítico Cristovão Tezza [2003:58] citando uma frase de T.S. Eliot que
diz muito sobre a musicalidade do poema: “a poesia começa, ouso dizer, com um selvagem
batendo um tambor na selva, e ela retém essa relação de percussão e ritmo”. Essa frase nos
remete ao livro ‘A outra voz’, de Octavio Paz, quando diz que a poesia nasce dos cantos
primitivos. Nessa percussão de palavras, a músicalidade poética traz uma sonoridade
heterogênea, linguagem sincrética, melodias híbridas. Som reciclado em mi menor. Os
elementos musicais mais díspares são colocados na presença um do outro, produzindo não
somente imagens, mas sonoridades inesperadas. Nessas instâncias sonoras, nesses choques de
imagens, todas as contradições estão inscritas para simbolizar a encruzilhada de som e
silêncio no caminho da música-mangue. E é na eleição do sincretismo que nasce a teia da
criação que denominamos popularmente de canto. Parodiando aqui uma frase de Nietzsche:
“sem música o mangue seria um erro”.
6.3 O ‘Indioma’ lama
Como ser as coisas senão sendo-as.
[JORGE DE LIMA]
Ao testemunhar a falta de alternativas, o poeta alcança a problemática social do mangue
pelo desvio, que não é nem fuga nem renúncia, mas ofuscamento da utopia. De dentro para
fora, a lama recebe a forma do caos mangue, de toda forma de violência que se escancarou no
mundo depois da Segunda Grande Guerra Mundial. A guerra denuncia o centralismo de poder
nas mãos de líderes psicopatas, mas também referencia principalmente o grau de fragilidade
em que se encontra a humanidade centrando na razão sua forma de saber: no saber como
poder.
62
Não muito longe de perceber isso, Cabral denuncia em sua linguagem fria a condição
moderna do homem do pós-guerra. Nesse meio tempo, nascem homens sem plumas que se
62
Ver livro Vigiar e Punir e Microfísica do poder , de Michel Foucault.
237
comportam como peças de um tablado teatral brechtniano. Personagens que, desfigurados,
vivenciando uma existência medíocre, ao revelarem-se como seres angustiados e perdidos,
vasculham a face decadente dos dramas humanos. Como diz Adorno [1991:64] “Eu o
procuraria desculpar a frase: escrever-se lírica depois de Ausschwitz é bárbaro”.
A grafia do idioma lamangue divide o lastro visual ora pela falta, ora pela morte, ora
pela vida. Muito embora no livro A escola das facas [1980] o poeta evoque no subsolo dos
mangues urbanos a doença como colapso social:
Falam da inspeção de Saúde
que (como a Alfândega racista
defende o mar mil-nacional
de água mulata) em nada fia.
Para ela, os rios estão doentes
e os força a longas quarentenas
porque vieram pelos mangues,
em demorada convivência,
com essa gente contagiosa
dos mocambos dos alagados:
laboratório que cultiva
vírus de tudo no seu caldo.
Depois humilde esperar, voltam,
tenham ou não tido a boa sorte
de vender, infiltrar sua água
com a lama e o lixo de que sofre.
[MELO NETO, 1994:453; grifo nosso]
Na da ausência de sonho dentro dos mangues do Capibaribe, a palavra nasce pronta para
o ato cirúrgico como exalta em um poema dedicado à poeta Marianne Moore. “Com a mão
direita ela as penetra, / com lápis bisturi, / e com eles compõe, / de volta, o verso cicatriz”
[MELO NETO, 1994: 297]. Em virtude do agravamento de uma crise interna, advinda da
própria crise histórica da poesia, o poeta costura o verso, usando bisturi: “Não tem bisturi
reto/mas um que ramificasse” [MELO NETO, 1994: 298]. Como sua planta de engenheiro ou
sua sala de cirurgião, o poema sugere mais do que imaginamos o que é contraditório e
supérfluo no mundo. Longe da questão nacional no verso modernista, Cabral interessa-se pelo
que de social na palavra que denominamos o ‘indioma lama’, mistura de palavras
movediças que derriçam de um estilo minguado para sugerir o movimento de privação dos
que abrigam a fome na lama. O indioma lama é metáfora charneca dos que habitam os rios e
se comunicam entre silêncios e reticências. Os silêncios desses povos registram o estado de
privação. O indioma lama são as necessidades mais primitivas que ainda passam os povos dos
238
mangues e do mundo.
O envolvimento de João Cabral com o Comunismo levou Getúlio Vargas a demiti-lo do
cargo que ocupava no Consulado em Barcelona. Ao retornar ao Brasil, o poeta,
desempregado, escreve o livro O rio [1953], uma espécie de soco no estômago no que se
refere à relação de trabalho arcaico nas usinas, urinando dentro dos rios, ou mesmo das
relações falidas dentro da cidade mendiga. Cidade que, para nascer, deglute os restos de
mangues; devora lentamente aqueles que chegam e dela não mais conseguem sair. A cidade,
como urbanidade, é miscelânea de várias cidades em transformações sucessivas. “Por seu
arranjo arquitetônico, pela tonalidade própria de cada uma de suas ruas, o Recife é
desconcertante, como unidade urbana impossível mesmo de se caracterizar”, pegando aqui a
fala Josué de Castro [1992: 255]. Esgrimida abaixo da linha do mar, a cidade do Recife
deságua pelos rios e multiplica-se de forma desordenada entre o que de heterogêneo e
plural.
É importante acrescentar que parte do poema O rio é mimetizado na carapaça de um
cão. Parte das coisas para chegar até o ser humano e não ao contrário. No poema “Paisagem
do Capibaribe II”, o homem-mangue, o rio-homem, o barro-cão, imiscuem-se, camuflam-se,
às margens corroídas da lama. Por ali, duas imagens se metamorfoseiam em uma só. O poeta
parte das coisas temidas para associar o traço visível em estado de espanto: “choca com o que
vive. / Viver/ é ir entre o que vive” [MELO NETO, 1994:114]. O verso acata o que está
socialmente imóvel, descreve os elementos do rio em estado rastejante ou como diz de “coisa
espessa”. Sem sair da espessa miséria, a lama é adotada pelo homem-rio. O mangue parado
como um cão morto aparece estagnado. No manguezal, o peso da vida carrega sem coragem
um cemitério de fome e morte.
No despertar da falta de plumas dentro dos mangues, o poeta exprime as plumas pelo
que de menos. As plumas do poema requisitam as flores mesmo dentro do entulho:
“Explica a flor pelo estrume” [BACHELARD, 1974: 350]. Não muito distante dessa imagem,
explica-se a flor pelas fezes. No poema “Antiode”, do livro Psicologia da Composição [1947]
o autor descreve: “Poesia, te escrevia/flor! Conhecendo / que és fezes. Fezes/como qualquer”
[MELO NETO, 1994:98].
A flor e a fezes: dois extremos de uma experiência que inquieta e ao mesmo tempo
ultrapassa de maneira sensível os dramas humanos. As flores e as fezes são apenas
239
transformações da matéria orgânica em lama.“Para uma flor, nascer perto das ondas é
verdadeiramente voltar-se ao narcisismo natural, ao misticismo úmido, humilde, tranqüilo”
[BACHELARD, 2002:28]. Na brevidade das flores, tanta beleza que se arvora no mangue.
Na China, por exemplo, a flor de lótus nasce lama. Podemos dizer que uma flor nascendo
dentro do mangue é fruto que margeia a luz da forma anfíbia do viver. Nascer na lama é outra
beleza de florescer. Outra esfera do morrer. Nascer e morrer é a forma que a natureza
encontra de caminhar. E o deseqüilíbrio disso é que toma o fôlego dos ambientalistas em
nossa época.
No poema ‘Antiode’, o poeta ao objeto a função de elementar e ao homem a missão
crua de ser sugado pelas necessidades. Os homens e as coisas, as flores e as fezes estão em
de igualdade. Na descoberta das coisas mais elementares, em uma crítica ferrenha ao silêncio
dos que estão às margens, descobre a importância do menos em conjunção com aqueles que
estão sobre-vivendo na condição ínfima do mínimo.
O mangue em seu destino histórico esmaga o homem e o apavora. São mangues mortos
“que o coveiro descrevia: / caixão macio de lama/ mortalha macia e líquida” [MELO NETO,
1994:192]. Mangues dos habitantes da lama que resistem à condição marginal em que se
encontram: Seu José, mestre carpina,/ e quando é fundo o perau? Quando a força que
morreu/ nem tem onde se enterrar, / por que o puxão das águas/ não é melhor se entregar?
[1994:194]. Se o mangue é o lugar onde a vida comporta a condição de morte, Charles Darvin
[1992: 166; grifo nosso], quando esteve em Olinda em 1836, chegou a comparar os mangues
com um cemitério:
O canal pelo qual fomos e voltamos de Olinda ladeava-se de mangle que surgia
como floresta em miniatura, das margens lamacentas e gordurosas. O verde
brilhante desses arbustos sempre me fez lembrar ao mato viçoso de um cemitério;
ambos se nutrem das exalações pútridas; um fala da morte que passou, outro,
amiúde, da morte que virá.
Apesar do ar de espanto que se faz presente na fala de Darvin é no cemitério onde
aparentemente tudo se mostra imóvel e, ao mesmo tempo, com um tipo de ebulição que a
‘origem da espécie’ humana vive em alquímica decomposição. Se olharmos bem o viver do
mangue, veremos que é parecido a um cemitério, uma vez que a matéria orgânica trabalha
secretamente em eterna metamorfose e ebulição. No mangue, a pobreza está sempre estanque
ao redor do que se apresenta socialmente imóvel. Não há portas de saídas no mangue. O poeta
240
Manuel Bandeira revendo seus entulhos falava de um bicho-homem. “Aquele bicho, meu
deus, era o homem”. Todo escritor como bem observa Bachelard [1974:384], “sabe
instintivamente que todas as agressões, que venham do homem ou do mundo, são
animalescas”. Se olharmos bem, quanto mais as contradições se aguçam de forma animalesca,
mais se eleva, em João Cabral [1994:198], o tom diferencial da sua veia crítica: “depois,
aprenderá com/ outras espécies de bichos: / com os porcos nos monturos/ com os cachorros
no lixo”.
No livrinho Morte e vida severina’, o mangue é alternativa que resta como abrigo e
residência aos que vagueiam como bicho sem lugar para morar. Diante da lama, homem e
mangue são engolidos uns pelos outros. Enquanto o ser humano é desumanizado pelo caos
sem plumas, o mangue é desossado pelo caos ambiental-urbano. Duas realidades que se
engendram em uma só: excesso de progresso de um lado, de outro lado: desajuste do meio e
escassez ambiental: “-Minha pobreza tal é/ eu não trago presente grande/ trago para a mãe
caranguejos/ pescados por esses mangues; / mamando leite de lama/ conservará nosso
sangue” [MELO NETO, 1994:196-197; grifo nosso].
Por mais simples que seja uma agressão, seja essa advinda por via indireta, ditatorial,
camuflada, premeditada, social, subjetiva, racista, terrorista, questões ambientais, qualquer
uma dessas revela-se em nome do poder. Como percebe Adorno [1970:159]: “através da
dominação do dominante, a arte revê profundamente a dominação da natureza”. De forma
espantosa, a palavra cabralina põe a natureza do mangue em estado de emergência, como se
faz exprimir nas imagens de ‘Morte e vida severina’ [1994:197]: “Minha pobreza tal é/ que
não tenho presente melhor: / trago papel de jornal/ para lhe servir de cobertor; / cobrindo-se
assim de letras”.
Resgatando ainda mais os laços com o social, o livro O rio’ nasce de forma serial com
verso narrativo criado de maneira tão densa quanto O cão sem plumas’. A importância do
poema ‘O rio’ será vital para que João escreva ‘Morte e vida Severina’ - uma junção do livro
‘O cão sem plumas’ com o livro O rio. Nesse livro como em todos os outros do autor não há o
herói do mangue como vimos em ‘Cobra Norato’, de Raul Bopp. O mangue cabralino é
desposado de heróis e anti-heróis. São personagens que não têm lugar certo, são deslocados,
não têm nenhuma função, não exercem profissão. Vivem como uma ostra solta dentro da
engrenagem econômica e social dos mangues. São seres arruinados, jogados ao acaso da
própria sorte.
241
Nos livros: ‘O cão sem plumas’, ‘O rio’ e ‘Morte e Vida severina’, o que são
personagens secundários a mendigar com suas plumas recicladas de papel entulho. Esses
personagens secundários não encontram saída histórica para seus mangues perdidos. Em João,
é permitido fazer qualquer papel menos o do usineiro ou do senhor de engenho. “Se daqui se
visse seu homem, / homem mesmo pareceria: /mas ele é o primeiro/ que a distância eneblina”
[MELO NETO, 1994: 230]. Por outro lado, a economia de termos não silencia,
implicitamente, também ironiza a própria situação doentia da política ditatorial fascista da
época. Como observa João Cabral [1994:812]: “A poesia circula livremente entre os
bloqueios. / Os grandes poemas são compostos em Morse. / Sobre o espaço e o tempo
abolidos/ generais sonham planos definitivos/ entretanto forças e formas brancas/ pousaram
nos alto-falantes das trincheiras”.
Vale lembrar que depois da Segunda Grande Guerra Mundial, enquanto o mundo se
recompõe, a urbanização no litoral brasileiro toma mais fôlego. A densa industrialização
prometida pela ‘Era Vargas espalha-se e contaminam os braços de rios sem plumas, as
canelas espinhosas dos mocambos dentro dos mangues. Os impactos ambientais e a destruição
dos manguezais se intensificam com a invasão imobiliária na orla marítima. Para cada prédio
construído, uma raiz de mangue é destruída. No êxodo dos retirantes, o mangue espalha
dificuldade de entrar e sair. Sem emprego, sertanejo caminha de mangue em mangue se
encontrar alternativa de vida. À curva do litoral: “Nem se lembram mais do mangue/ podre,
virgem, vegetal, / onde os homens são sem sonhos, / como qualquer mineral” [PENA FILHO,
1983:183].
Não podemos esquecer que, ao atravessamos as turbulências dos escombros de 1945, as
cinzas de destruição espalharam crença de automutilação do mundo contemporâneo. A
ameaça de destruição do planeta resgatou o olhar do poeta para a dizimação extensiva nos
dias atuais. Por outro lado, descobriram-se, em 1945, novas manifestações de abrigar a paz no
planeta Terra. A paz como símbolo também de proteção a todos os seres da natureza. Surgia
por ali a corrente holístico-revolucionária. Essa corrente surgiu no início do século XX, sendo
orientada pelo pensamento das idéias psicológicas. Contudo se firmará a partir da década 50,
sendo inspirada pelas idéias budistas de Alan Walts e pela a literatura de Carlos Castañeda.
Também foi influenciada pelos movimentos revolucionários de 1968 que eclodem em todo o
mundo na contramão da contracultura.
A crise ambiental resgatará uma nova forma de enxergar a vida não apenas pela
242
retomada das questões afro-ameríndias das Américas, mas também pelo apreço às outras
formas alternativas de encarar a vida no planeta. “Esta seria basicamente um resgate, que
remete a modelos primitivos em mais originais, do Eldorado cada vez mais perdido do
humano, diante de um mundo tecnificado, materialista e egocentrado” [PELIZZOLI,
1999:26].
A preocupação com o meio-ambiente surge com os movimentos feministas, de causa
libertária na década de 1960. O despertar da ecologia, deep ecology, começa nas lutas por um
mundo menos desigual socialmente e numa revisão do modelo de humanidade. “Essa antiga
associação entre mulher e natureza liga a história das mulheres com a história do meio-
ambiente, e é a fonte de um parentesco natural entre feminismo e ecologia” [CAPRA,
2001:27].
Devido aos fortes impactos políticos e socioambientais, a luta por um mundo verde está
imbricada também ao direito pelo uso de camisinhas e anticoncepcional além do protesto
destacado ao patriarcalismo autoritário e sua discriminação aos valores do mundo fêmeo.
Nesse tripé, os movimentos feministas pregam a liberdade de expressão, o amor livre, um
mundo sem preconceito racial e sexual, a luta pelas minorias, a defesa a todos os seres da
natureza. “Da indignação de distintos grupos de amantes da vida, projetaram-se idéias
ambientalistas que impulsionaram seus primeiros passos rumo à paz mundial, através de
mobilizações pacifistas antinucleares” [CAVALCANTE, 2004:151].
Capra [2001:25] distingue a diversidade de teia ecológica. A primeira delas: a
antropocêntrica, centrada no humano, isolada da natureza, mais conhecida como ecologia
rasa. “Ela vê os seres humanos como situados acima ou fora da natureza, como fonte de todos
os valores, e atribui apenas um valor instrumental, ou de uso, à natureza”. A Segunda: a
ecologia profunda que da ordem mais espiritual e religiosa. No Brasil, a exemplo, Leonardo
Boff é um dos defensores de uma ecologia profunda, espiritualizada. Fundamenta-se na
disciplina e responsabilidade para com o mundo inteiro e reconhece a importância de todos os
seres vivos como fundamentalmente interligados à teia da vida e aos seres humanos como
parte do cosmos.
Em ‘A teia da vida, Capra destaca ainda a terceira ecologia, voltada, por sua vez, para o
social. Nessa, “o patriarcado, o imperialismo, o capitalismo e o racismo são exemplos de
dominação exploradora e antiecológica” [CAPRA, 2001:26]. Nas diversas escolas de ecologia
243
social, vários grupos marxistas e anarquistas, que utilizam conceitos sociológicos para
observar os diferentes padrões de dominação na sociedade. Em seus estudos, o físico observa
a quarta teia: o ecofeminismo cuja análise cultural de muitas facetas do patriarcado e das
ligações entre feminismo e ecologia vai muito além do arcabouço da ecologia social:
O movimento ecofeminista percebeu, de cara, a dominação patriarcal de mulheres por
homens. O lado servil e comportado das mulheres servia como protótipo de todas as formas
de dominação e exploração seja essa: hierárquica ou capitalista. De certa forma, os
ecofeministas mostraram o quanto da exploração da natureza, em particular, tem caminhado
de mãos dadas com a questão de gênero. Conseqüentemente, os ecofeministas vêem o
conhecimento vivencial feminino como uma das fontes principais de uma visão ecológica da
realidade [CAPRA, 2001: 27].
Devemos concordar que é um aprendizado novo pesquisar a Bio-diversidade dos
mangues pela ecocrítica. Os problemas ecológicos antes de serem problemas científicos são
problemas culturais. No livro ‘As três ecologias’, Guattari demarcar a ecologia mental. A
subjetividade e o psiquismo entram em cena. A disputa pelo poder entra em questionamento e
talvez seja que o bicho pega. Quem abrirá mão do excesso de poder em nome de um
homem mais saudável, de um mundo mais fraterno, eis a questão, o desafio deste milênio que
começa? Somente um caminhar para a ética política possibilitará uma revolução entre as três
ecologias: a mental, a ambiental e a social. “Essa revolução deverá concernir, portanto, não só
às relações de forças visíveis em grande escala, mas também aos domínios moleculares de
sensibilidade, de inteligência e de desejo” [GUATTARI, 2004:9].
Para o crítico Alfredo Bosi [1998:22]: “Hoje poderíamos dizer: o gado expulsa o
posseiro, a soja, o retirante, a cana o morador. O projeto expansionista durante a década de 70
e 80 foi e continua sendo uma reatualização em nada menos cruenta do que foram as
incursões militares econômicas dos tempos coloniais”.
Coincidentemente, a partir da contracultura, a sobrevivência dos povos dos mangues
diminuiu de forma considerável. Mas o começo de uma conscientização sobre a dizimação
alarmante de manguezais, bem como a baixa estimativa de vida dos habitantes da flora e
fauna amazonense, aflorou com mais evidência na mídia brasileira a partir dos anos oitenta. A
morte de Chico Mendes, a união dos indígenas em prol do meio-ambiente, os reclames dos
seringueiros por lutas de terras, despertou na humanidade preocupações sobre as
244
conseqüências ambientais mundo afora.
Ecologicamente, os cientistas somente despertaram para os mangues a partir da década
de 70. O fundamento da ecologia dos manguezais surgiu, em 1972, com Eugene Odum em
seus estudos sobre os mangues da Flórida. De até aqui se observa o conhecimento rico
sobre a ecologia dos mangais chegando até nós. Reina nas palafitas [feitas com cipozal do
próprio mangue] a experiência da falta e da incerteza. “A sociedade dos mangues é uma
sociedade impregnada entre estas duas estruturas esmagantes. É uma sociedade que,
“comprimida pelas duas outras, escorre como uma lama social”, como esclarece Josué de
Castro [2001b:14]. Falta tudo: principalmente dignidade de vida. Algumas comunidades
ribeirinhas ainda dependem em grande parte dos mangues para retirar o fruto da subsistência.
“Nas comunidades de Salobo, Pará, por exemplo, a população utiliza-se quase que
exclusivamente de recursos do manguezal, principalmente caranguejos e Teredo spp, um
molusco que escava túneis dentro do tronco das árvores de mangue” [LACERDA, 2002:202].
É necessário recobrir o respeito pelo mundo não apenas pela casca da razão, pois, além
do logos’, a poesia capta sinais inaudíveis para ouvir “os eco-lógicos”. O respeito à natureza
do mundo passa pelo homem e deveria vir carregado de cuidados e de responsabilidade ética.
Quando despertamos o respeito pelos outros, a nossa ação frente ao mundo da natureza
deveria vir embalada de compaixão por todos os entes deste planeta. Por isso, quando
respeitamos, o respeitamos verdadeiramente apenas um índio, mas uma aldeia inteira, o
universo por inteiro.
O respeito modifica a expressão dos homens no mundo. O respeito à natureza do
mangue tem relação com a alteridade: “O indivíduo vive no todo e o todo no indivíduo”
[SCHLEGEL, 1987:80]. Não podemos estar presos ao autoritarismo de um sistema
destruidor. Sem respeito, o que resta à humanidade, senão valorizar o poder, o domínio sobre
os outros seres? Respeitar vem de Respicere [Latim], que quer dizer saber olhar.
“Solidariedade que mantém o ‘dis-tinto’, que prioriza o Outro em relação ao mesmo”
[PELIZZOLI, 1999:31].
Aprender com, olhar com, compreender com, conviver com, “como sua raiz latina
con-scire (conhecer juntos) poderia indicar, consciência é essencialmente um fenômeno
social” [CAPRA, 2001:227]. Ter compaixão pelos seres, com nossa outra parte desconhecida
é uma ação que possibilita um passo à frente para sairmos do eco-ego. “Pensa-se aqui cada
245
indivíduo como um mundo, mesmo que marcado por ab initio pela referência radical ao
Outro” [PELIZZOLI, 1999:31]. Nesse viés como ainda aponta Pelizzoli [1999:312]: “a
natureza também deve alcançar este grau admirativo antes que reificador ou
homogeneizante”. Acreditamos, em verdade, que não haverá saída às questões ecológicas se
não ocorrer um despertar de consciência da humanidade como um todo. “É a relação da
subjetividade com sua exterioridade - seja ela social, animal, vegetal, cósmica que se
encontra assim comprometida numa espécie de movimento geral de implosão e infantilização
regressiva” [GUATTARI, 2004:8]. Compreender a natureza além do que se mostra visível a
um poema, vê-la como casa, oikos, ambiente vivo próprio da terra e dos povos. Quando um
pequeno rio como o Capibaribe morre, até mesmo as comunidades menos fraternas sabem, à
sua maneira, que um pedacinho do mundo desaparece junto.
Para sanar uma espécie de chaga que paira sobre o homem do pós-guerra, o poeta age
comocirurgião da palavra” ou como diz Deleuze [2004:14] em ‘Crítica e clínica’: “A saúde
como literatura , como escrita, consiste em inventar um povo que falta”. Para retirar o excesso
de doença no mundo, a palavra impõe limites à degradação dos fenômenos eco-sociais. “O
que eu procuro/ é a cura// Minha poesia é para encontrar a saída/ as estrelas desistiram de nós”
[MACKELLENE, 2006: 37]. Talvez por isso que o escritor não seja o doente frágil, mas antes
o médico que cuida de conhecer a si mesmo a fim de conhecer melhor o mundo
exterior.“Amar o mangue e o rio, todavia/ antes salvar os bichos afogados/ no rosto de areia e
maresia”, como declama o poeta Jaci Bezerra [1983:43]. Cuidar do mundo exige uma
compaixão na relação homens-natureza. É preciso, pois, como diz Rilke [1997:86], ajudar a
doença a seguir seu curso. Para fazer o homem e o mundo é preciso reaprender a arte de
amar: “Em ti amar o mangue, embora enfermo”, pegando aqui a fala do poeta Jaci Bezerra
[1983:42].
escritores que mesmo distanciados estão profundamente ligados ao ecossistema pelo
que de concha em cada palavra. A poeta Emily Dinckinson,
63
a exemplo, mesmo
enclausurada por uma doença, um dia descreveu: “Eu nunca vi um mangue, / Eu nunca vi o
mar – / Mas conheço um arbusto e sei a forma/ Que a onda há de tomar”.
O poeta “é a antena de uma raça” não porque à frente dos outros a doença que paira
63
Agradecemos esta tradução ao amigo José Lira no texto “As Américas e o Brasil na geografia imaginária de
Emily Dickinson”. In: Imagens Literárias na literatura / Sônia Lúcia Ramalho de Farias e João Denys Araújo
Leite organizadores. Recife: Programa de Pós-Graduação em Letras da UFPE, 2005, pág. 68.
246
sobre a humanidade, mas por descrever os verdadeiros sintomas de uma época. “O mundo é
um conjunto dos sintomas cuja doença se confunde com o homem” [DELEUZE, 2004: 13].
Em verdade, escritor toca nas máscaras das doenças humanas e vai a fundo sem saber em qual
delas se escondem seus aspectos aparentes, verdadeiros ou doentios. “Mas em todas as
moléstias dias em que o médico apenas pode esperar” [RILKE, 1997:86]. Na mais fina
camada que cobre o mundo enfermo: “possa o homem aceitar um dia com mais modéstia este
enigma de que a terra está cheia mesmo nas coisas ínfimas; possa o homem transportá-lo e
sentir como é pesado” [ibidem]. E se nas regiões mais profundas da alma humana tudo é
regido pelas leis do universo, “juventude, poesia e barbárie não são inimigas: no olhar do
bárbaro inocência, no do jovem, apetite de vida, e no do poeta assombro” [PAZ.
1996:18].
O mundo é feito de penumbras e claridades onde as formas mais irregulares trazem
visões da arte para dentro do homem: “O homem é os homens. Cada um de é diferente. E,
no entanto, todos somos idênticos” [PAZ, 1996:29]. Vivemos entre o esquecimento e restos
de memórias. Em um tempo para de linear, carregamos nossa vida cíclica que se ensombra
na impessoalidade e fragilidade do poeta. “Tenho no meu quarto manequins corcundas/ onde
me reproduzo/ e me contemplo em silêncio” [MELO NETO, 1994:44].
6.3.1 A linguagem da falta
“Pão ou aço?” [JOSUÉ DE CASTRO]
João Cabral havia se decidido parar de escrever, quando leu em uma matéria
jornalística que havia mais gente morrendo de fome em Pernambuco que propriamente na
Índia. As palavras ficaram a lhe assaltar os sentidos e a vontade de escrever retornou a alma.
Sem abusar do silêncio miúdo, Cabral escreve sobre a situação do homem sem plumas,
convivendo em uma condição de compulsória miséria dentro dos manguezais do Capibaribe.
“Escapam às carências dessa natureza, pela obtenção de proteínas completas no seu regime,
os habitantes das praias que vivem à beira-mar ou à beira de mangues”, como descreve Castro
[2001a130] em ‘Geografia da fome’. A pobreza que afeta aos moradores da lama do
Capibaribe é a mesma que habita a periferia dos mangues de qualquer parte do globo terrestre.
“O ser mais ameaçado da natureza hoje é o pobre”. Assim assinala Leonardo Boff, [2004:14]
247
no livro Ecologia: grito da terra, grito dos pobres. Se na atualidade, 46 milhões de brasileiros
vivem na linha da pobreza, no resto do planeta Terra: um bilhão de pessoas vivem em miséria
absoluta enquanto seis milhões morem anualmente de fome.
Nesse princípio de século XXI, os recursos da flora e da fauna ambiental, a cada dia, se
apresentam mais escassos. Em face dessa calamidade, muito que se diz que o
relacionamento entre o homem e o mangue encontra-se praticamente abortado. Como diz
Ortega y Gasset [1973:49] no livro O homem e a gente: “Não há alma coletiva. A sociedade, a
coletividade é a grande desalmada”.
A fome está desde as origens do homem como parte das necessidades mais vitais da
humanidade. No manguezal, a fome transgressora é sempre do repatriado que chegou ao
último degrau das margens. O poema é quem conduz à situação limite dos habitantes das
margens. Mas o limite, muitas vezes, não ultrapassa a linha de passividade. O menor gesto
reflete o caos das coisas. E o que está na posição de incoerência vive suspenso para receber
novas catástrofes. Guiado pelo caos, o mangue Severino é dos que moram na corda bamba do
precipício, dos que resistem frente às tentativas de demolição; dos que morrem sem sair da
faixa de perigo, dos que não mais se alimentam do caldo morno de caranguejos. “E mais
surpreendente/ ainda é sua cultura: / medra não do que come/ porém do que jejua” [MELO
NETO, 1994:207].
Pelo exercício da falta e da fome, o mangue cabralino é questionado de forma realista.
Aos olhos do poema, são minerais os mangues, os rios, as plumas, as frutas, os homens, todos
em verdadeiro estado de coisificação. Carrega o mangue a contenção de uma ode mineral,
carrega a condição de fruta que serve de alimento para quem vive do pescado. O mangue
cabralino em 1945 já nos aparece bastante enfermo:
Mas antes de ir ao mar
o rio se detém
em mangues de água parada.
Junta-se o rio
a outros rios
numa laguna, em pântanos
onde, fria, a vida ferve.
Junta-se o rio
a outros rios.
Juntos,
todos os rios
248
preparam sua luta
de água parada,
sua luta
de fruta parada.
(Como o rio era um cachorro,
como o mar era uma bandeira,
aqueles mangues
são uma enorme fruta
[MELO NETO, 1994:112-113; grifos nosso].
Como se observa no poema anfíbio pede-se ao leitor para tomar a imagem não como
objeto, mas perceber-lhe como imobilidade de uma realidade movida unicamente pelas
necessidades da águas. Redesenhando a imobilidade social, uma reflexão do mangue, do
homem, do rio, como elementos estagnados, que “preparam sua luta/ de água parada, /sua
luta/ de fruta parada” [MELO NETO, 1994:113]. O poeta repensa a realidade desfalcada pela
estratégia da repetição e o poema, ao renovar-se constantemente, é figura de linguagem. O rio
e o cão se repetem, confunde-se pelo processo de animização do rio cachorro: “O rio ora
lembrava/ a língua mansa de um cão” [1994:105]. Em Cabral, a forma sugere em versos a
preocupação lúcida com o social. O social é o ser. O poeta torna-se sábio ao equilibrar-se no
caos da urbe. O mangue desequilibra-se no caos. A sugestão da vida severina está na
desordem exterior: “cidade”, “chuva azul”, “aquoso pano sujo”, “rua”, “rio”, peixes”,
“facas”, “olhos de um cão”. No fluxo de imagens, nada se perde meio a rigidez das falas que
mais parecem facas, “qual uma faca íntima/ ou faca de uso interno, / habitando num corpo/
como o próprio esqueleto” [MELO NETO, 1994:205].
Servindo de mote para Josué de Castro e Chico Science, o cão sem plumas agacha-se
dentro de canais amontoados de lixo e gente severina. Os severinos estendem seus mocambos
à beira do leito do rio que como diz Castro [2001b: 133]: “O Capibaribe desce roncando e
espumando como uma cobra no cio”. Em Recife é difícil muitas vezes, dizer onde começa o
mangue e onde termina o rio: “Na paisagem do rio/ difícil é saber onde começa o rio; / onde a
lama/ começa do rio; onde a terra começa da lama” [MELO NETO, 1994:110]. Os contrastes
denunciadores, em sua fisionomia de cinta de pedra,o regidos por acidentes geográficos e
históricos que renegam a uma condição cada vez mais indigna os habitantes dos rios: “um rio
precisa de muito fio de água/ para refazer o fio antigo que o fez” [1994:351].
O poeta submete a unidade das imagens à pluralidade do real. A invenção do mangue
como uma fruta acontece logo depois da comparação entre o mar e a bandeira: “Como o rio
era um cachorro/ como o mar era uma bandeira”. Dos mangues são tiradas as frutas que
alimentam os homens-mangues desnutridos do Nordeste. Com essa postura, os menos
249
favorecidos fazem dos mangues uma ‘fruta’ como diz o poeta. uma mão dupla que traz à
tona a palavra mangue em similaridade com a palavra fruta. Existe uma outra estratégia
comparativa importante entre os mangues e as mangas [fruta], apesar de serem palavras
advindas de raízes distintas, como observamos na primeira parte desta pesquisa, alguns
dicionaristas, desconhecendo a origem do vocábulo mangues, teimam em recolocar a raiz
desta palavra interligada à fruta manga.
Nos livros de leitura mais teatral como os livros, ‘Os três mal amados’, ‘Psicologia da
composição’, ‘O cão sem plumas’, ‘O rio’, ‘Morte e vida severina’, ‘Dois parlamentos’,
‘Serial’, ‘Auto do frade’, ‘Uma faca sol lamina’, ‘Crime na Calle Relator’ a fome do poema
vale pelo todo, o verso retira das estrofes seu próprio alimento. O sopro do poema nasce da
fome de dizer. O poema é voz de transformação social e dentro de uma infinidade de imagens
sacia a fome dos homens-mundos. Por mais que se desmembre o parágrafo temos sempre o
poema solicitando uma leitura entre desenvolvimento e preservação do ser humano. Como
diz Gastão de Holanda [1983:88]: “Se a fome recorrer ao mangue/ a pena é mil alqueires de
caranguejos”.
Nos tempos modernos, opta-se pela deterioração do ser humano e da natureza em favor
do desenvolvimento. Estamos virando destruidores em potencial alarmantes. O rio não tem
como se defender dos venenos que saem dos esgotos; o mangue não tem como se proteger das
náuseas e vômitos das fábricas de criar camarões. É bom que se repita que o homem se
considera como um ser que está sobre as coisas, vivenciando as coisas e raramente está junto
com as coisas do mundo. “O próprio mundo artefato da tecnificação das relações gera uma
subjetividade coletiva assentada sobre o poder; o status, a aparência é uma precária
comunicação com os outros” [BOFF, 2004:21]. Geralmente deixamos os tumores da natureza
por conta dos órgãos de fiscalização do meio ambiente.
A teia de sincretismo é religação de saberes, não é um saber de objetos de
conhecimento, mas de relação entre objetos de conhecimento” [BOFF, 2004:17]. Se uma
violência contra a natureza é porque dentro do ser humano há arquétipos guardados que levam
a agressão do homem consigo e com o mundo natural. o podemos desfacelar a totalidade
de compreensão da vida por um todo, apesar de toda a onda de fragmentação do homem
contemporâneo. E sem querer saltar fora dela, entrar cada vez mais porque somente dentro da
vida é possível recuperar não apenas o mistério perdido, mas o elo da relação entre o homem
e o mundo, entre o mangue e os caranguejos.
250
Ao pensar o humano, a ecologia centra sérios questionamentos sobre o poder, o
paradigma do desenvolvimento de uma economia sempre crescente para uma minoria
privilegiada. Pensar uma ecologia social é reivindicar uma ecologia das relações humanas sem
fome, sem assistencialismo meramente eleitoreiro, sem defasagem da escola pública, sem
distanciamento para uma saúde pública de qualidade. Não como desvincular o cuidado
com o ser humano sem pensar as condições do seu meio ambiente e a politicagem ao redor.
Na medida da relação homem-mangue, a leitura dos manguezais em João Cabral vem
numa teia de idéias bastante centradas e não há como recorrer às entrelinhas como se costuma
fazer com a maioria dos textos poéticos: ‘Agreste’, ‘Museu de tudo’, ‘A escola das facas’,
‘Quaderna’, ‘O engenheiro’, ‘Pedra do sono’, ‘Sevilha andando’. A escrita geralmente volta-
se, em processo analógico, para as partes de cada verso com uma síntese apurada, resgatando
o que há de miserável nos dramas coletivos. No resgate das possibilidades para expor o drama
coletivo, o mangue não é meio de exclusão, mas abrigo para a repensar os caminhos da
humanidade. Na visão de Susana Vernieri é por meio de uma estratégia comparativa do “mar/
bandeira” que serão os mangues uma enorme fruta e dela serão tiradas as gotas para o
combate da fome dentro e fora das palafitas.
Em João Cabral, a tensão entre o que aparenta o mundo exterior e a dura realidade das
coisas se constrói a partir da relação com outro, pela teia de independência pegando aqui
Fritjof Capra [2001: 23] quando diz que tudo é rede de relação e nada existe ou resiste fora
delas. Na visão de Capra, somente será possível estabilizar a população, quando a miséria for
reduzida em âmbito mundial. A extinção da flora e fauna numa escala massiva continuará
enquanto o hemisfério terrestre estiver sob o comando de um consumo desacelerado e de
enormes dívidas. “A escassez dos recursos e a degradação do meio ambiente combinam-se
com populações em rápida expansão o que leva ao colapso das comunidades locais”.
O rio de forma isomórfica vira um cão indefeso. Na proximidade com o impossível,
em nossos dias um reconhecimento de que é necessária uma profunda mudança no
pensamento humanitário para que se possa resgatar a dignidades dos que vivem
anonimamente “sem nenhum nome que o distinga da morte”. O anonimato de vidas humanas
corroídas pela falta de comida. No desafio da realidade, o excesso de sofrimento real, como
observa Adorno [1991:64] não se permite esquecer. O excedente de miseráveis perambulando
sem rumo requisita da própria arte uma maneira de dizer que reflita a dor dos desvalidos. Para
Adorno: “Não quase outro lugar em que o sofrimento encontre sua própria voz, o consolo,
251
sem que este o atraiçoe imediatamente”.
Tudo o que encontrei
na minha longa descida,
montanhas, povoados
caieiras, viveiros, olarias
mesmo esses pés de cana
que tão iguais me pareciam,
tudo levava um nome
com que poder ser conhecido.
A não ser esta gente
que pelos mangues habita:
eles são gente apenas
sem nenhum nome que os distinga;
que os distinga da morte
que aqui é anônima e seguida.
São como ondas de mar
uma só onda, e sucessiva
[MELO NETO, 1994:14; grifos nossos].
Os homem e mangues cabralinos são convertidos à negatividade de uma condição
movida pela precisão, pelo estado de alerta do homem-canino. Na antropomorfização do rio
em ‘cão sem plumas’ e do rio em homem duas características que se repartem em eterna
luta de resistência anônima: o latido dos cães e o grunhido de fome dos homens sem plumas.
Em busca de outra existência menos severa, o homem-cão estabelece um grupo de
equivalência com o rio, com a lama, com o mangue, rejeitando assim a indiferença que o
reduz ao nada. O cão é o amigo aquele que protege, o animalzinho provido de afeto e
dedicação ao ente humano. Falar do cão também é falar do animal nômade, o gato de rua à
procura da liberdade; o cão anônimo que vaga sem endereço certo à procura de sua tribo Mas
também o cão é o que tem fúria como todo bicho que se na condição de esfomeado e
agredido. É nesse tipo de cão que João Cabral se espelha para construir seu rio sem plumas. O
cão é o rio poluído, o rio é o cão violentado.
Os personagens cabralinos vêm desprovidos de nomes. Diferentemente do poema
narrativo de Raul Bopp, em que Cobra Norato tem como professor de geografia o próprio rio.
Em João Cabral os homens anônimos aprendem com o mar lições de geometria: “O mar e sua
carne /vidrada, de estátua, / seu silêncio alcançado/ à custa de sempre dizer/ a mesma coisa, /
o mar e seu tão puro/ professor de geometria” [MELO NETO, 1994:112]. Nos arredores da
quadra versificada, o poeta, ao remeter-se para as coisas do mundo, volta-se para a voz coxa
do poema “que a poesia não é de dentro, / que é como casa, que é de fora;/ que embora se viva
de dentro/ se de construir, que é uma coisa/ que quem faz/ faz para fazer-se/ muleta para a
perna coxa”[ MELO NETO, 1994:558].
252
Ao contrário de Raul Bopp que faz suas serpentes virarem mangue antropofagicamente,
João Cabral transforma O cão sem plumas em uma fábula do rio Capibaribe. “O que distingue
de outros rios, / os recifenses rios-mangues?” [MELO NETO, 1994:453; grifo nosso]. Se
observarmos a décima estrofe de “Paisagem do Capibaribe I”, Cabral [1994:106] aproxima
seu rio-mangue de uma cobra: “Como às vezes/ passa com os cães/ parecia o rio estagnar-se. /
Suas águas fluíam então/ mais densas e mornas; / fluíam com as ondas/ densas e mornas de
uma cobra”.
Com o olhar aliado ao rio sem plumas, o poeta busca a expressão ativa da comunicação
do mar com o rio: “Lá o mar entra fundo no rio/ e em passos de rio, corredios, / derrama-se
em todos os tanques/ por onde a salmoura dos mangues [MELO NETO, 1994:236; grifo
nosso]. Sem descuidar das metáforas, a palavra evita a banalização do sentido de panfletagem
ecológica. Esta umedecida beleza natural, quando poluída pelos homens, não provoca
reflexão? “Dessa forma, por meio da linguagem, “acaba o mangue por vencer o mar,
englobá-lo em um parêntese que contém retos do que estava contido noutro parêntese”
[VERNIERI, 1999:126; grifo nosso]. Para Vernieri [ibidem]: “Será depois da ameaça do
silenciamento total do mar e da lição de purificação da linguagem também tirada do mesmo
mar que João Cabral encontrará, no mangue parado, a matéria mínima para compor a fala”.
Em verdade, o que está parado não é a estruturação da linguagem cujo artifício serve para dar
conta do social, do peso da vida que atormenta a consciência e que está, como diz Calvino
[2003: 19], “em toda forma de opressão, na intricada rede de contrições públicas e privadas e
que acaba por aprisionar em suas malhas cada vez mais cerradas”.
6.4 Dos mocambos às favelas
-Todo o céu e a terra
lhe cantam um louvor
e cada casa se torna
num mocambo sedutor.
-Cada casebre se torna
no mocambo modelar
que tanto celebram os
sociólogos do lugar.
-E a banda de maruins
que toda noite se ouvia
por causa dele, esta noite,
creio que não irradia.
-E este rio de água cega,
ou baça, de comer terra,
que jamais espelha o céu,
253
hoje enfeitou-se de estrelas.
[MELO NETO, 1994:196].
O discurso cabralino ao tecer as dores humanas se integra ao discurso coletivo. O
mangue severino é o retirante nômade, sábio da tradição oral. A voz repente do mangue é a
alteridade. O retirante é o andarilho que sai do sertão para cair nos morros ou no limbo. A
metafísica do mangue cabralino é a comunhão do limbo com o espesso: “Com peixes e
cavalos sonâmbulos/ pintas a obscura metafísica/ do limbo. / Cavalos e peixes guerreiros/
fauna dentro da terra a nossos pés/ crianças mortas que nos seguem/ dos sonhos” [MELO
NETO, 1994:54].
O manguezal desenraizado é lugar das encruzilhadas movediças. Como a lama, a
encruzilhada é limo. “O limo é a poeira da água, como a cinza é a poeira do fogo”
[BACHELARD, 2002:114]. O limo é o elemento que recicla a matéria orgânica dentro do
manguezal. Limbo vem da palavra limbus que em Latim que dizer orla. No limbo é onde
acontece a movência cultural. É onde “os cabelos da gente/ que apodrece na lama negra/
geram folhas de mangue/ que são folhas duras e grosseiras” [MELO NETO, 1994:136; grifo
nosso]. No livro O rio, estende-se no chão de injustiças o cheiro triste de lama. Às margens do
limbo, seguem os mangues lutando contra a corrente, seguindo por onde: “todos caminham/
com aquele ar descalço de negros; /por que todos descem tão triste / arrastando lama e
silêncio” [MELO NETO, 1994:128].
No livro O cão sem plumas [1950] uma reflexão parecida sobre a difusão da miséria
e suas expressões culturais mais fortes: “Abre-se em flores/ pobres e negras/ como negros/
abre-se numa flora/ suja e mais mendiga/ como são mendigos negros/ Abre-se em mangues/
de folhas duras e crespos/ como um negro” [MELO NETO, 1994:106; grifo nosso]. O
mangue, dentro da cidade, abre-se em flores pobres e negras em múltiplos contrastes onde o
homem e o mundo estão presos, de alguma forma, à condição do lucro. O mendigo, o que não
vingou, é o que não saiu das margens e está preso à lama. O que não pertence ao mundo das
negociações, não produz lucros ao mercado, está sucumbido pelo funil compressor. Nesse
funil, um sistema que dizima o que não lhe agrada.
Se “em caso de negra miséria, restava o calçamento das ruas”, lembrando Patrick
Chamoiseau [1993:110], o mangue-cidade traz mendigos negros entre marcas e manchas
divergentes do preconceito racial. Nos mangais, uma diversidade de formas e legados
étnicos. “Poesia primitiva de negros e mestiços fazendo xangô e dançando samba”. Uma
254
espécie de fisionomia africana, como destaca Castro [1992:256].
Durante a escravidão, segundo Gilberto Freyre, em Sobrados e mocambos, a casa-
grande ficava no alto do morro. Os barracos de palhas espalhavam-se aos pés das colinas ou à
beira de rios, praias e mangues. Com a “abolição da escravatura”, os mocambos subiram o
morro enquanto a casa-grande desceu do patriarcalismo para receber o avançar das usinas. Por
essa época, o mar era sinônimo de sujeira. Muitos depósitos de fezes eram jogados nas costas
das praias pernambucanas. A praia representava o que chamamos hoje de lixão. Algumas
serviam como cemitério de negros. Na praia também ficava espalhada a miséria dos
mocambos. As costas do mar representavam impurezas. Historicamente, somente no começo
do século XX é que a situação da orla da praia de Boa Viagem começa a ganhar as primeiras
casas de veraneio. Havia na época a intenção de modernização do país. Criava-se a Liga
Social Contra os Mocambos.
64
Acreditava-se na destruição dos mocambópolis. E na
construção de vilas operárias como alternativa para a população ribeirinha. Somente a partir
da década de 1960 é que a ação política nas favelas busca a urbanização das mesmas e não
sua demolição. O movimento em defesa de ‘Brasília Teimosa, a exemplo, serviu de modelo
para muitas outras ocupações em solos próximo a Pernambuco, como a invasão de casebres
feita pelos moradores da favela “Brasília de Palha” em João Pessoa [PB].
O problema dos mocambos vem de longe, muito antes do Brasil se engajar
decididamente no caminho da modernização.A partir dos anos 20, a imprensa recifense
noticia, de forma reiterada, a proliferação dos mocambos nos arredores úmidos da cidade e as
deploráveis condições de risco e de desabamento. A situação piorou de tal maneira que deu
origem a algumas experiências: a construção da vila operária em Caxangá foi só uma delas.
Em 1939, havia em Recife cerca de 45.000 mocambos onde viviam 165.000
mocambeiros. Segundo Alberto Sousa, [2003:25], o total das habitações e dos habitantes do
Recife nessa época era de “um pouco mais de 70.000 moradias e por volta de 342.000
moradores”. Portanto, podemos concluir que 65% das habitações de Recife eram mocambos e
64
Mocambo - origem africana do idioma quimbundo; quer dizer quilombo; e também é nome de uma baía de
Moçambique. Segundo [Sousa, 2003:14] em “1657 havia em Portugal um bairro habitado por negros,
conhecido por mocambo”. Em Pernambuco, a palavra perdeu a referencia étnica e passou a ser utilizada como
barraco, casebre de sapê feito com palha e barro escondia-se atrás das moitas, morros e mangues. Inicialmente
nos pés de morros, depois da alforria da escravidão os casebres acamparam sobre os morros. Até a década de
60 utilizava-se ainda o termo mocambo, aos poucos, substituído por favela. Muitos mangues serviram de
tijupás, mocambos, mucambos e quilombos. Os negros aprofundaram o estilo das ocas indígenas feitas com
matérias aproveitadas da paisagem, ajustadas às folhas do vento. Folhas de coqueiros, bambu, cipós, barro,
casca de ostra. Gilberto Freyre em Sobrados & mocambos comenta que as primeiras casas brasileiras foram
feitas com cascas de ostras misturadas com óleo de baleia.
255
que abrigavam 48% da população da cidade. Somente entre 1939 e 1945 uma estimava de
que 13.355 mocambos foram demolidos.
Em Homens e caranguejos, Josué de Castro [2001b: 109], traz uma referência de como
os moradores de Aldeia Teimosa construíram na marra as palafitas dentro de manguezais. A
Aldeia Teimosa de que fala o sociólogo diz respeito ao bairro de Afogados, lugar periférico
de palafitas em terras encharcadas de promessa. Lugar perseguido pelas atrocidades
governamentais.
Apenas para poupar os seus nervos fracos, encarregavam os policiais de torcerem o
pescoço dos moradores do mangue, para ajudá-los a morrer de fome. Vieram então os fiscais
da lei e interditaram a construção de novos mocambos. Os fiscais fincavam marcos de
madeira no chão e avisavam que, daquela marca para diante, ninguém podia mais construir,
faziam ameaças terríveis ao povo. Que se o povo dali teimasse em levantar novos mocambos
tudo seria derrubado. O bairro inteiro seria incendiado. Mas os mocambos continuaram a
prosperar e, pois isso mesmo, o bairro tomou o nome de Aldeia Teimosa. Teimavam em
existir e em crescer contra a vontade e contra as ordens do governo. No peito e na marra,
como diziam em sua linguagem de gíria.
No livro de Josué de Castro, denúncias da relação de destruição dos mocambópolis
pelo poder público, o que expõem as dissonâncias das políticas públicas no Estado até mesmo
para resolver os problemas graves das comunidades insalubres. A forma como eram tratados
pelo Governo fazia dos habitantes da lama uma terra por onde qualquer trator podia atravessar
a fim de dar lugar ao grande projeto de crescimento urbano. Os mocambos no meio do
mangue simbolizavam justamente a pedra no sapato. Acreditava-se que era preciso derrubar
os mocambos como forma de limpar os entulhos, sem resolver os reais problemas das
comunidades carentes.
Como não lembrar do eterno retorno dos habitantes de Brasília Teimosa que viu,
inserida no bairro Pina, do Recife, por volta de 1938, alguns invasores chegarem ao local e
serem rapidamente expulsos? Os hectares de Brasília Teimosa tinham sido comprados dos
herdeiros do Visconde de Livramento pelo governo do Estado. O terreno serviria para
construir um parque de combustível, mas, no carnaval de 1958, ganhou outra serventia.
Naquele ano, iniciavam as obras do aterro, quando se deu novamente outra invasão, agora
com 300 famílias. Depois de inúmeras tentativas de expulsão e destruição, os casebres
256
teimosamente resistiram à ação do Estado. Com o passar do tempo, os moradores começaram
a batizar o bairro com o nome de “Brasília Teimosa” em virtude da inauguração da então
Capital do país.
Em Julho de 2006, o Jornal do Comércio contabiliza na Grande Recife uma estimativa
de 1.501 milhão de habitantes. Seguindo dados atuais do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística - IBGE, 40% da população recifense habitam em torno de 490 assentamentos.
Desses, onze comunidades encontra-se em áreas risco à beira de mangues. Em Pernambuco há
270 quilômetros quadrados de área de manguezais. Somente em Recife, conta-se com uma
pequena faixa de 6 quilômetros quadrados de mangais espalhados entre os 220 quilômetros
quadrados da área urbana. Observa-se, com certa dúvida, que entre 1940 e 2006 parte da
vegetação nativa de mangues foi dizimada em torno de 50%, uma vez que não se teve um
quadro estatístico que descrevesse a medida desse ecossistema no começo do século XX. Se o
aterro em parceria com a grande expansão imobiliária foi um dos principais vetores do caos
ambiental, a cidade aflora à vista das vagas: “mil sovacões aos mangues soterrando/ e esguias
construções sustando o céu”, observa o poeta olindense Olímpio Bonald Neto [1983: 45].
Entre dados alarmantes, as favelas espalham-se como formigas. “Sem qualquer controle
ou fiscalização dos órgãos competentes, palafitas seguem se multiplicando nas imediações do
Parque dos Manguezais em Boa Viagem” [FERREIRA, 2006:4]. Alguns estudos subdividem-
nas em dois grupos: as do morro e as de planície. As favelas do morro são amplas, crescem
em proporções estrondosas pela possibilidade que elasm de se desenvolverem sem maiores
dificuldades pelas colinas. Contudo trazem como desvantagens o tipo de acesso e os perigos
de deslizamentos durante o inverno: “Os mocambos do Mangue/ Nas águas insalubres/ São
como as primitivas/ Habitações palustres// Quando a maré-do-rio/ No Mangue se derrama, /
As águas apodrecem/ As construções de lama” [ACCIOLY, 1983:6].
Num caminho de barro e lama, as favelas de planície são, em número, mais reduzidas
que as do morro. Alguns barracos são bastante pequenos, minúsculos: um quadro miúdo vira
quarto cozinha e banheiro. As casas do mangues são frágeis caixotes e “apresentam-se como
incrustações no interior do tecido urbano convencional; outros, ao contrário, são
suficientemente extensos para constituírem bairros perfeitamente individualizados, como
Brasília Teimosa” [SOUSA, 2003:37].
As favelas da planície se caracterizam também por um outro tipo de diversidade: a de
257
natureza morfológica. Assim, elas podem tanto constituir alinhamentos de habitações
acompanhando linhas férreas e margens de corpos d’água, como exibir a configuração de
arquipélagos compostos de pequenos núcleos de edificações inseridos no tecido urbano
normal, ou, ainda, ser simplesmente um conjunto de ruas e quadras de desenho convencional.
No que concerne ao traçado interior, algumas delas são marcadas por uma forte organicidade,
gerada por becos estreitos e ruelas tortas que definem grosseiramente quadras de forma
irregular (Santo Amaro, por exemplo) [SOUSA, 2003:37].
Esses tipos de favelas, situados bem próximas da malha urbana, estão infiltrados em
terrenos baldios, insalubres, muitas vezes, beirando às encostas dos manguezais,
invariavelmente, sujeitos às inundações durante o período das chuvas. “Do outro lado, a alta
concentração de suas edificações no terreno (normalmente pequenas casas térreas), que
origens a fortes densidades, por vezes superiores a 300 habitantes por hectare isso num
único plano de área construída” [SOUSA, 2003:38].
Pensava-se que construindo vilas operárias ou mesmo destruindo as raízes dos
mocambos resolver-se-ia o problema da miséria. “As ocupações irregulares cravadas nos
manguezais do Recife confirmam que a miséria resiste à paisagem das décadas” [FERREIRA,
2006:4]. A prefeitura de João Paulo tem retirado de forma impiedosa os moradores dos
manguezais de dentro da faixa de risco. Como se a retirada de palafitas da área de perigo
resolvesse o problema. Acreditamos que esse tipo de assistencialismo desfocaliza as questões
ambientais. O problema é remediado, no entanto, questões sérias continuam circundando os
habitantes dos mangues problema: invasão imobiliária, aterramento para construção de
viveiro de camarão, poluição em decorrência dos esgotos industriais, morte do rio, fim da
pesca e da geração de trabalho. Essas questões estão longe de serem resolvidas, pois o foco
não está nas raízes dos verdadeiros problemas urbanos.
Em 2002, a prefeitura de João Paulo começou a monitorar por satélite o ecossistema e
com isso observar as habitações irregulares sobre a vegetação do Parque dos Manguezais. Na
fala do ambientalista Mauro Buarque, as comunidades situadas o traçado do Projeto Via
Mangue serão recolocadas à medida que o plano vai sendo posto em prática. Entre pesquisas e
fiscalizações da prefeitura, diariamente no Recife duas equipes de agentes ambientais
realizando vigilância nas 26 zonas especificas de proteção ambiental [zepas].
É apenas um trabalho de vigilância. A desocupação das áreas é possível com
ordem judicial ou em respeito à determinação do Ministério Público. É o caso da
258
Comunidade Irmã Doroty Stang, alvo de mandando de reintegração de posse desde
2005. Nas favelas do Coque e do Papelão, na Ilha Joana Bezerra, por exemplo, o
quadro de miséria é o mesmo. Não previsão para a retirada dos barrancos que
interferem no bioma e também para a recuperação do manguezal [FERREIRA,
2006:5].
A vegetação de palafitas que brota na lama da Ilha de Deus, a exemplo, tem raízes de
mangue que alimentam e se expande pelo subsolo das estruturas sociais mais fragilizadas.
Retiram-se os moradores das suas favelas, mas em que local ambientá-los? Não seria outro
massacre? No vídeo “Quando a maré encher”,
65
os filhos dos filhos dos homens e caranguejos
saem da lama à procura do pão do dia retirado no calor do mangue. O pão do mangue mantém
o pai, o filho, e o espírito, de forma “digna”. É pelo direito a um espaço na vida do mangue
que esses brigam. A rinha pela terra e pelos casebres representa uma forma de rebelar-se para
mudar o destino dos “meninos caranguejos/ Abrindo os olhos grandes/ Através das janelas/
De folhas e de flandres” [ACCIOLY, 1983:6].
A favelização dentro do mangue é resultante do feudalismo agrário que oprimiu e
explorou séculos negros, índios e sertanejos. Povos que, excluídos de uma vida digna,
preferiram a fedentina dos mangues ao calor da “lavoura arcaica” dos senhores de engenhos,
das casas-grandes & senzalas.
Nos “entre-lugares” da lama, o mangue-cão não espera ser postergado nem plantado,
muito menos destroçado, mas dignificado. A luta de marisqueiras e de pescadores, a exemplo,
é uma demonstração de que a bravura continua no território de lama e caos. Nos mangues,
catadores e marisqueiras mobilizam as comunidades ribeirinhas ao redimensionarem a
tradição do ciclo dos caranguejos, ao resgatarem a sustentabilidade do meio ambiente, ao
manterem a força no combate a fome, a dizimação, a demolição. Segundo levantamento da
Fundação Joaquim Nabuco - FUNDAJ e dados da Agência Pernambucana de Meio Ambiente
e Recursos Hídricos [CPRH], o Canal de Santa Cruz,
66
responsável por quase 54,4 % da
produção pesqueira do Estado de Pernambuco sofreu nestes últimos 17 anos uma diminuição
enorme de seus manguezais. De 1988 para cá, dos 3.508 hectares de mangues, desmatou-se
algo em torno de 435 hectares, restando apenas 3.073 hectares de área de mangais.
Abismo de lama, descaso de gente empobrecida, o mangue cabralino é o lugar onde a
misérias de negros mendigos de “folhas duras e crespos” ancora-se às novas tragédias.
65
Ver vídeo documentário “Quando a Maré Encher” que enfoca a condição dos moradores e marisqueiras da
Ilha de Deus.
66
O Canal de Santa Cruz engloba a pesca nos municípios de Goiânia, Itapissuma, Itamaracá e Igarassu.
259
Vivendo entre barrancos em condições de comiseração, os manguezais interpõem-se para
abrigar os que estão em busca de algum território na luta histórica. Dizer mangues é dizer:
“negros saídos da liberdade e entrados na vida em tal canto de terra” [CHAMOISEAU,
1993:120]. Dizer manguezal é dizer irmão da tua raça afro-ameríndia.
Quintal de fome, o mocambo serviu de quilombos para muitos negros que não se
curvaram à miséria das senzalas atlânticas. Era preferível morrer livres nos cortiços a se
deixar domar pelo chicote da escravidão. O mangue representa, nesse sentido, o lugar secreto
dos revoltosos quilombolas. Nesse local, firmam-se as raízes, o lodo, a lama, os caranguejos
como armas de defesa dos quilombos, levando-se em conta que os portugueses não
conheciam o solo movediço do manguezal.
Frente a uma humanidade que encarangueja sabe Deus para onde, os mangues com suas
raízes anfíbias embrenham-se numa teia de pobreza. Ao descrever sobre os mendigos negros
inseridos dentro dos conflitos que abriga o território do manguezal, o autor de O cão sem
plumas revela e reforça a dificuldade de sobrevivência dos negros agachados em penhascos
instáveis, lugar permeado de gente que está às margens de oportunidades. Amontoados em
barracos insalubres, à sombra dos olhos dos ficais da prefeitura, os habitantes dos mangues
enfrentam humilhações sendo despejados em ruas sem saídas. Os negros mendigos de João
Cabral são negros curvos, negros capoeiras, negros indignados. Mas o que entra em questão
em Cabral é a fúria e não grito. O grito, ver-se-á mais à frente nos mangues atômicos de
Chico Science: “Porque no rio tem pato comendo lama [...] E a lama come mocambo e no
mocambo tem molambo/ E o molambo já voou, caiu lá no calçamento bem no sol do meio dia
/ O carro passou por cima e o molambo fico lá” [CSNZ,1994].
6.5 O recado do rio
“Falam as duas ciganas que havia aparecido com os vizinhos”
[...]
260
Vou dizer todas as coisas
que desde já posso ver
na vida desse menino
acabado de nascer:
aprenderá a engatinhar
por aí, com aratus,
aprenderá a caminhar
na lama, com os goiamuns,
e a correr o ensinarão
os anfíbios caranguejos,
pelos que será anfíbio
como a gente daqui mesmo.
Cedo aprenderá a caçar:
primeiro com as galinhas,
que é catando pelo chão
tudo o que cheira a comida;
depois aprenderá com
outras espécies de bichos:
com os porcos nos monturos,
com os cachorros no lixo.
Vejo-os, uns anos mais tarde,
na ilha do Maruim,
vestido negro de lama,
voltar de pescar siris;
e vejo-o ainda maior
pelo imenso lamarão
fazendo dos dedos iscas
para pescar camarão.
[MELO NETO, 1994:198]
O eco da escrita social em João Cabral aparece fortemente demarcado pelo exercício da
falta que migra de fora para dentro e de dentro para fora da cidade do Recife. Movidos pela
mudança e entusiasmados em fugir de um destino fatídico, milhares de severinos chegam às
grandes metrópoles atraídos pela utopia oferecida pela cidade-grande: “Todos chamam pelo
futuro. E o futuro vem, mesmo quando se enganam, quando são infecundos e cegos os seus
amplexos” [RILKE, 1997:59]. Reverenciando os que sobrevivem da ilusão, o capitalismo
amplia seus espaços de controle e a metrópole é apenas mais um deles. Nenhuma região
humana é tão opulenta em convenções como esta. Lanchas, bóias, cintos de salvação ... a
sociedade, neste caso, oferece todos os meios de libertação” [RILKE, 1997:75].
Entre muralhas de concreto, redes de shopping são erguidas sobre mangues, a exemplo,
o shopping Recife em Pernambuco e Iguatemi na cidade de Fortaleza [CE]. Inserida em uma
cultura que se aproveita do sonho e da realidade, a cidade do Recife se divide em várias
cidades. Algumas delas se alimentam de aeroportos, shoppings, centros comerciais, como se
referencia no livro Quaderna [1994:228]: “O aeroporto onde o mar e mangues, / onde o
mareiro/ e a maresia. / Mas ar condicionado, / mas enlatada brisa”.
Na grande metrópole de mangues, favorecem-se as culturas dos teatros, cinemas,
261
música, artes plásticas, dança:A bailarina feita/ de borracha e pássaro/ dança no pavimento/
anterior do sonho” [MELO NETO, 1994:68]. Embora boa parte das cidades grandes seja
indiferente aos habitantes anônimos dos subúrbios, dos “homens plantados na lama/ da casa
de lama/ plantados em ilhas” [MELO NETO, 1994:108], o poeta é amparado por cidades
invisíveis, onde a solidão é sua companhia mais sagrada. “Eu caminhava as ruas de uma
grande cidade/ os acontecimentos nunca me encontravam. / Em vão dobrava as esquinas/ lia
os jornais/ Todos os lugares do crime estavam tomados” [MELO NETO, 1994:813].
Para esse autor: “O ato do poema é um ato íntimo e solitário que se passa sem
testemunha” [MELO NETO, 1994:733]. Frente ao poema-mundo, “quase tudo que é grave é
difícil; e tudo é grave” [RILKE, 1997:57]. O poeta descreve a condição dos que se arrastam
sem ter sequer o que procurar, catando papelão sem nada encontrar, abafados pela desordem
da “magra cidade de rolha, / onde homens ossudos/ onde pontes, sobrados ossudos/ (vão
todos/ vestidos de brim)/ secam até sua mais funda caliça” [MELO NETO, 1994:109].
Entre desastres sociais e ambientais, uma parte da cidade é abandonada dentro de asilos
com abonos públicos: “Ele tinha algo, então, / da estagnação de um louco. / Algo de
estagnação/ do hospital, da penitenciária, dos asilos, da vida suja e abafada (de roupa suja e
abafada) por onde se veio arrastando” [MELO NETO, 1994:107].
O poeta também observa a cidade-mangue a partir do litoral urbano: “a praia de pesca
do Pina / achei em Sevilha (a Barreta)” [MELO NETO, 1994:454]. Nesse, os mangues
aparecem como uma espécie de recado da geografia social entre o rio-mar, mas também é
comparado à baía de Dublin - uma menção que dialoga com a cidade de James Joyce:
“Contemplo a maré baixa/ nos mangues de Tijipió/ lembro a baía de Dublin/ que aqui me
lembrou” [MELO NETO, 1994:164; grifo nosso].
No contraste de imagens que se intensificam: “Homem e rio se humanizam no
mangue”, como declara Benedito Nunes [1971:68; grifo nosso]. Mangue e homem se
adensam entre problemas que precisam ser revisto como parte de uma crise profunda. “Ela
deriva do fato de que a maioria de nós, em especial nossas grandes instituições sociais,
concorde com os conceitos de uma visão de mundo obsoleta, uma percepção da realidade
inadequada” [CAPRA, 1994:23].
A crise que atravessa o planeta Terra é uma crise que não é somente de perspectiva, mas
de caráter ambiental, social, ético, moral, político, econômico, filosófico. É uma crise mais
262
ampla que não se encontra nomenclatura, pois envolve praticamente as relações humanas em
um grau profundo de suas necessidades orgânicas trazendo como conseqüências o processo de
desumanização. “Assim, foi perturbada a simplicidade destas necessidades orgânicas, assim,
foram desvirtuadas todas as funções simples e profundas pelas quais a existência se renova”
[RILKE, 1997:58].
A falta de alternativas que atinge a vida e seu mistério é um dos sinais de que o tempo
vive seu momento de embrutecimento. Desacreditados de ação solidária, busca-se alternativa
para os impasses atuais, mas vem sempre à tona uma questão de teor humanitário que bate na
mesma tecla: como acalentaremos os seres humanos a investirem em uma relação mais
saudável consigo mesmo, com os outros e conseqüentemente com o mundo?
Em busca de outra perspectiva para a vida nos manguezais temos de nos deparar com
uma questão que poderíamos colocar aqui como eco dos grandes problemas sociais que
atingem o ser humano. Um assunto que tropeça em um quadro alarmante de exclusão não
apenas no mangue, mas no planeta como um todo. O que significa para todos nós lidarmos
com homens e gentes com histórico de desnutrição, falta de abrigo, transporte, educação,
saneamento e saúde digna? O que podemos fazer para amparar um pouco essas pessoas que
sobrevivem do lixo dos mangues? Questões como essas se colocam com sérios impasses
dentro do ecossistema mangue. Muitas vezes questões sem saídas. De outro lado, o que seria
os povos dos mangues senão teia de relações, veia de suas condições culturais, psíquicas,
anímicas e também poéticas? Como a sociedade encontrará respostas sadias para melhorar a
condição de vida dos habitantes desse planeta, subjugados de sua natureza como mera
ferramenta utilitária? Como bem observa Unger Mangabeira [2001: 28]:
Assim cria-se a ilusão de que, embora existam desigualdades sociais evidentes
demais para serem escamoteadas, todos os homens têm igual poderio sobre a
natureza. Todos, até os mais subjugados, têm o poder de subjugar as forças da
natureza. Assim, o desequilíbrio ecológico e a planetarização de uma sociedade
que, desenvolvendo-se sob a ideologia do individualismo e da pretensa igualdade
de todos, caminha hoje para uma tecnocracia totalitária, são aspectos de um mesmo
fenômeno.
Para compreender melhor o universo dos mangues, vimos que João Cabral repensa o
mangue enquanto palavra, não puramente de salvação, porque essa não é a finalidade da
poesia, mas como sugestão de um acordar de consciências. À procura de um novo olhar sobre
o mundo, o escritor revisa a conduta do coletivo através do indivíduo. Por essa trilha, verifica-
se que o poeta do Capibaribe conduz uma reflexão sobre a forma como a humanidade se
263
relaciona com o real e conseqüentemente com os filhos dos mangues.
Fizemos uma espécie de travessia pelos mangues cabralinos e encontramos em seus
silêncios um olhar sobre o manguezal, não especificamente de estranhamento, como vimos
em Raul Bopp, mais uma profunda crítica ao sujeito moderno. Em João Cabral, o mangue,
longe de ser o guardador do Capibaribe, é antes um servo que se oferece como alimento para
sanar a fome de homens mangues.
No livro ‘O rio’ [1954], apesar de todo enfoque lírico do narrador em primeira pessoa, o
poeta não se furta de mostrar que a dignidade humana está nas próprias mãos dos homens.
Mas também não se omite de demonstrar que o poema, ao alcançar a linguagem do
humilhado, enfatiza o grau de subserviência e enrijecimento dos homens sobreviventes na
grande cidade. Cabral requisita uma teia de linguagens como se precisasse de várias
testemunhas para mostrar a grave situação da consciência mutilada dos habitantes dos
mangues: “Conheço toda a gente/ que deságua nestes alagados. /Não estão no nível do cais, /
vivem no nível da lama e do pântano. /Gente de olho perdido /olhando-me sempre passar
/como se eu fosse trem/ ou carro de viajar” [MELO NETO, 1994:142].
Em seus poemas, a sugestão a respeito dos mangues aparece como um duro recado à
sociedade e seus conflitos de ordem econômica, social, cultural. O mangue surge como teia da
vida, como elo que se relaciona em seu destino histórico com os homens do Capibaribe -
homens enraizados por um mangue que esmaga o brejeiro, mas, principalmente, o sertanejo
que se na condição de desenraizado. O sertanejo, como observa Josué de Castro, “sempre
se sentiu superior ao brejeiro, tachando-o de preguiçoso, pela pequena capacidade de trabalho
que ele demonstra”. Sabemos que isso não passa de mera especulação da classe dominante
como se observa em José Américo de Almeida e sua ‘Bagaceira’ ou de quem detém e quer
legitimar o poder do “sertanejo fortediscurso positivista, pegando aqui a fala de Euclides da
Cunha em seus sertões. Em verdade, a fatigada lentidão, diz Castro [2001b: 127], não é mal
de uma raça, é um sinal de fome. Escapam aos sinais dessa fome os sobreviventes dos
mangues, dos deltas, dos rios e lagunas que retiram com relativa escassez os alimentos no
litoral nordestino. Por ali pobreza, miséria, desemprego, mas sempre o mangue, de
onde se retira a sobrevivência alimentícia da fauna aquática. Lugar onde ainda não se morre
inteiramente de fome, mas espaço onde a miséria se estatela sem saída.
O êxodo de retirantes que deixam suas terras à procura de oportunidade nos grandes
264
centros é reflexo de grandes necessidades. Desde o começo do mundo, que o êxodo
acompanha o ser humano. Alguns movidos pela fome, outros pela guerra, pela colonização,
pela religião, outros por asilo político em épocas ditatoriais. Com as mochilas nas costas, os
seres humanos tornaram-se nômades em busca de sanar as necessidades mais vitais: a fome.
Em nome dos antagonismos sociais, a relação entre humanos assume proporções de
uma verdadeira colisão, de uma batalha velada. Por isso vive o homem moderno uma espécie
de desenraizamento de seus próprios sonhos e anseios. Diante de si e da falta de espaço nos
grandes centros urbanos, o ser moderno sofre um conflito permanente com a carência,
sobretudo, de contato fraterno. Na engrenagem do poema, o poeta é a voz que se expressa a
partir do olhar da cidade para os alagados. É o homem da urbe que fala sobre a condição do
mangue urbano. Sabemos que a condição dos ribeirinhos é preocupante uma vez que esses
sobrevivem unicamente da lama. “Ameaçados em suas fontes vitais essas populações
testemunham um modo de ser e relacionar-se com a natureza que tem sido objeto das duras
investidas das dinâmicas de um desenvolvimento desertificador e desenraizador”, como alerta
Unge Nancy Mangabeira [2001:16], pesquisadora do rio São Francisco: “os processos sociais
e culturais que ali se passam não deixam de ser, neste sentido, evidências de uma luta pela
sobrevivência de um etos ecológico”.
O mangue serverino, aos olhos da poesia cabralina, é uma crítica não camuflada às
conseqüências sobre o excesso de ilusão de um lado e de razão de outro. João Cabral, em seu
comedimento geométrico, busca justamente o equilíbrio entre a ilusão e a razão. Se o saber
ainda age em nome da razão, a racionalidade transita com facilidade como forma de domínio
e poder. Com isso, afetam-se os vestígios de diálogo entre os homens e o mundo. A
informação pela mera informação impera enquanto a transcendência mítica anuncia-se a
qualquer sombra de mistério. Instaura-se o mito da razão e sobre os pilares desse ainda
estamos algemados. Não quem não o veja trafegar livremente como um deus controlando
os passos do mercado. “Quando uma borboleta bate as asas na Bolsa de Tóquio, acontecem
catástrofes ecológicas na Bolsa de Londres ou de Paris” [GLISSANT, 1994:59].
Esse deus do mercado, segundo Kurtz [1995: 5], não aceita nenhum outro deus além de
si mesmo e admite apenas aquilo que se submete ao seu redor. Sob o entendimento do
conforto e da segurança, a construção da sociedade humana dá-se a partir da exploração do
homem e do alijamento da própria expressão natural. A técnica deixa de ser uma forma de
transparência um lugar que revela a humanidade - para tornar-se cada vez mais uma prática
265
de aterramento dos sentimentos. À medida que o homem planeja suas necessidades sobre a
natureza, a mesma passa a existir apenas como objeto de uso. Nesse processo de objetificação
do mundo, reduz-se pela técnica o ser humano que, voltado exclusivamente para o lucro,
acaba por abstrair o traço mais natural da humanidade: a sociabilidade fraterna. O estado de
angústia deixa de ser uma reflexão do ser em sua plenitude. E a todo o momento somos
chamados a nos desconhecer para reinarmos em uma alienação massificada. Resta a própria
incapacidade de angustiar-se frente a grandes espetáculos, montados quase sempre como um
convite à fuga, à banalização, ao minuto de fama.
Na antilira cabralina, a linguagem vem movida pela angústia, mas uma angústia criativa
que se opõe à onda de pessimismo em todas esferas da sociedade. Uma angústia que não foge
ao retrato da dor, mas que encara as feridas como forma de superação: “Difícil é saber/ se
aquele homem/ não está/ mais aquém do homem; / não está mais aquém do homem, / ao
menos capaz de roer/ os ossos do ofício” [MELO NETO, 1994:110]. Desconfiado para os
efeitos transcendentes, emocionais ou melodiosas na linha do verso, o poeta não busca “aquilo
que poderia correr o risco de vir a ser um exercício de comiseração, marcado pela exaltação
da subjetividade”, como faz entender João Alexandre Barbosa [1998:62], mas ao contrário se
deixar resgatar pela objetividade própria da narrativa.
A crítica do sujeito moderno, em João Cabral, se faz presente pela crítica que o poeta
faz ao processo da criação estética. O verso, ao se recusar em ocupar o espaço das verdades
subjetivas, volta-se para outra profundidade, ressaltando principalmente o corte que separou o
ser humano de suas necessidades essenciais. O homem ocidental, sob o domínio meramente
das leis do mercado, busca segurança não apenas pelo conhecimento da realidade, mas pelo
mero desejo de explorar e dominar. À proporção que o ser humano se deixa levar unicamente
pelas necessidades externas, o ser deixa de ser um lugar de revelação das subjetividades para
se tornar cada vez mais um mero produto revelado pelo que de aparente. Instala-se então
um diálogo de conveniências entre os homens coisificados. O ser humano passa então a ser
governado pela alegoria do supérfluo. E a “conquista do supérfluo produz uma excitação
espiritual maior que a conquista do necessário. O homem é uma criação do desejo, não uma
criação da necessidade” [BACHELARD, 1999: 25].
Nas grandes instâncias do entendimento humano, o discurso cabralino vem preenchido
pela indignação que, de certa forma, não modifica a ordem das coisas, mas movimenta uma
reflexão sobre a vida e ao estar-se alheio à mesma. Sem fazer disso panfleto, clichês, em
266
Notas de literatura, Adorno [1991:52] observa que “a falta de ira, de agressividade social, são
críticas comuns aos chamados textos abstratos feitos inclusive por alguns avançados”. A
linguagem em tom de confissão distancia quase completamente o sujeito lírico das mensagens
poéticas. Como diz Adorno [1991: 66]: “todos se horrorizam com elas, e, no entanto, ninguém
pode negar que as peças e romances excêntricos tratam daquilo que todos sabem, e sobre que
ninguém quer falar”.
Na travessia do livro O rio essa característica, da crise do sujeito, avança em direção ao
livro Morte e Vida Severina onde a servidão frente aos problemas sociais arrasta os retirantes
para a demissão do próprio sujeito nos mangues da urbanidade. Observa-se a deformação
dos seres dês-politizados, enrijecidos, na dureza urbana. O homem se embrutecido e não
mais se dispõe a degelar em parte alguma de sua alma. A busca da superação de tal caminho
assinala uma reflexão sobre a realidade enquanto valor dessacralizado, enquanto sistema
dominador de organização. O mundo divide-se entre o explorador de um lado ampliando o
quadro de exploração e, do outro, o esfomeado devorado pelas máquinas de trabalho.
Ao refletir o sentido dessacralizante do mundo, João Cabral desconfia do que significa
ser um objeto para o sujeito humano. O que é se colocar na condição de objeto? Sua opção
pela palavra concreta não seria também uma visão petrificada do ser humano? Sua poética
não seria uma tentativa de suprir a lacuna expedida pelo excesso de racionalidade?
Utilizando-se de uma linguagem excessivamente racional e de um pensamento dedutivo
experimental, uma critica explícita à própria racionalidade do mundo e à exclusão de tudo
que não esteja a serviço da razão. Seu processo de criação manifesta uma descrença nos
homens, mas acena para um dialogo completivo entre os homens e as coisas. O poeta não
recua à aprendizagem de compreender o ser humano. E traz à tona uma crítica ferrenha sobre
a lucidez humana: “Tanta Lucidez vertigem. / Faz perder na realidade. / perder
dentro de si mesmo/ sem contrapé, é uma voragem” [MELO NETO, 1994:556]. Uma
composição que permuta valores com a voragem da realidade exterior. Uma viagem em que
“os olhos ainda estão muito lúcidos” [MELO NETO, 1994:43].
Mas não nos enganemos, a crítica desse poeta vai mais além, quando aprofunda o grau
da barbárie no mundo e expõe na forma do verso que os objetos são humanizados para
referenciar o peso que essesm sobre a sociedade. A coisa inverteu-se de tal maneira que, se
a princípio passamos dos mitos-deuses para os homens, agora se supera a desumanização dos
homens humanizando os próprios objetos. Na sociedade atual, são os objetos que são
267
mitificados. Os homens tornaram-se meros receptáculos da sociedade espetacular, como
observa Guy Debord [1997] no livro A sociedade do espetáculo.
O mangue cabralino sinaliza para a crise que atravessa o mundo com seus vínculos
sociais totalmente rompidos. A causa dessa corrosão vem de longe; as conseqüências são os
desertos crescendo no coração do mundo. Tudo isso exprime em João Cabral um eco
experimental na linguagem que revela a carência de humanismo dentro dos subsolos da alma
humana. A resistência da vida está no social que toda palavra carrega. Através da 'pouquidão'
das palavras, o poeta reflete o que está sendo negado em nome do poder e do domínio sobre
todas as coisas. A falta de condição que em muitos é, do outro lado, excesso para poucos:
“É quando a alguma coisa/ roem tão fundo/ até o que não tem” [MELO NETO, 1994:108].
Sem ‘meias palavras’, o cão que nos faz ver o rio é o mesmo que nos ensina a resgatar
um outro valor à humanidade, a buscar uma nova fraternidade. Nesse contexto, a palavra
clama atenção, tal como um mendigo a angariar esmola na porta da consciência. A caminho
da indiferença, da apatia, da desmobilização, do desinteresse de sentido, avançamos. não
sabemos em que avançamos. O que é menor ganha amplitudes maiores. O mundo regido pelas
esferas do interesse desnivela valores. O vazio no corpo da palavra se aclara. A fala vem
pouca, o verso insaciável, não muito diferente dos personagens, em Processo de
burocratização, como se observa na genialidade de Franz Kafka.
Diante da miséria de sentimentos e pobreza de relações fraternas, João Cabral sugere,
em um mundo completamente racionalizado pela técnica ou pelo alarmante vazio, as
exageradas formas que o capitalista possui na hora de dizimar. Sobre isso fala a cartomante de
‘Morte e vida severina’ ao tecer previsões dentro do manguezal:
Enxergo daqui a planura
que é a vida do homem de ofício,
bem mais sadia que os mangues,
tenha embora precipícios.
Não o vejo dentro dos mangues,
vejo-o dentro de uma fábrica;
se está negro não é lama,
é graxa de sua máquina,
coisa mais limpa que a lama,
do pescador de maré
que vemos aqui, vestido
de lama da cara ao pé.
[MELO NETO, 1994:199; grifo nosso]
Encontra-se no autor de ‘O Cão sem plumas’ uma crítica à sociedade burguesa com
seus açúcares, sua riqueza à custa da exploração dos trabalhadores que perambulam à mingua
268
na mina do canavial. Uma fome que vai sendo arrastada pelo que de negação e de
referências sobre a falta de alternativas. Uma teia de fome que come a alma dos homens e dos
mangues. Os homens sem plumas são seres sem sobrenomes que aparecem e desaparecem
sem nomes como buscava Graciliano Ramos na construção de seus personagens anônimos. O
enfoque volta-se quase sempre para os objetos desfigurados, para as figuras exteriores, para a
contenção de palavras que referencia, entre outras coisas, a fome no mundo.
O engatinhar de palavras é para o mundo mudo de fora, não esqueçamos que o que está
por trás é o homem e suas teias, a poética como relação humana que nos diz muito a respeito
das características e dos padrões culturais de organização humana que reproduziram dentro da
atual e antiga crise social. No foco da ecologia social, busca-se entender o modo de vida da
sociedade e sua orientação para o crescimento material. A ecologia social questiona a
concepção industrial e cientificista do mundo atual e questiona nossa ação e nossa submissão
frente a alguns paradigmas que precisam ser mudados urgentemente. Busca-se um novo
paradigma para a ecologia profunda em sintonia com a relação ambiental e cultural dos povos.
“O novo paradigma pode ser chamado de uma visão holística de mundo, que concebe o
mundo como um todo integrado, e não como partes dissociadas” [CAPRA, 2001:25].
Como uma teia da qual todos nós somos responsáveis e ninguém está isento, João
Cabral [1994: 345] reconhece a interdependência de tudo com tudo e de todos com todos. Em
um sentido mais amplo, tecer o amanhã com teias mais fraternas, pois como diz:
Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisa sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outros; de um outro galo
que apanhe o grito que um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de um sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.
Nesse poema ‘Tecendo Amanhã’, a visão aparece mais concentrada no social da palavra
enquanto extensão do espírito coletivo. “Ser humano é existir na linguagem” [CAPRA,
2001:227]. Como uma rede de humanidade, o poema é tecido ponto por ponto, e tudo por ali
se relaciona. Os tecidos de uma língua se alinhavam às outras, sem que, no entanto, nenhuma
palavra se apague. Ponto a ponto tece o amanhã sem que o canto do menor dos galos renuncie
a apresentar-se. Em cada canto, como diz um dito popular, “uma andorinha só não faz verão”,
mas as vozes quando se reúnem ecoam um canto capaz de fazer a utopia humana amanhecer.
269
O tecer dos galos é aquilo que nós criamos e evoluímos em relação amigável com
outros seres. Na medida em que nos relacionamos com nossa humana condição, passamos a
reconhecer melhor os outros e passamos a criar vínculos de intimidade com o mundo. “Na
medida em que sabemos como sabemos, criamos a nós mesmos” [CAPRA, 2001:227].
Nenhum galo essolto nesse tear de palavra. Nada ali é por acaso. “O menor acontecimento
desenrola-se como um destino, e o próprio destino se desdobra como um tecido, amplo e
admirável, em que cada fio, conduzido por mão infinitamente suave, é preso e mantido por
cem outros” [RILKE, 1997:49-50].
Os galos são vozes humanas a tecer o amanhã. Os galos aparecem em relação com
outros galos. Cada galo é porta-voz da teia da vida. Entender uma poética da relação é
reacender a chama da convivência humana. Diríamos que a poética cabralina está em grande
correspondência com as esferas sociais não apenas da sociedade mas com todos os elementos
que habitam este planeta. “Junta-se o rio/ a outros rios. /Juntos, / todos os rios/ preparam sua
luta de água parada, de luta parada” [MELO NETO, 1994: 113].
Nesse poeta, a teia não se divide, mas se reparte entre o individuo e o coletivo: “A
aranha passa a vida/ tecendo cortinados/ com o fio que fia/ de seu cuspe privado/ Jamais para
velar-se:/ e por isso são ralos./ Para enredar os outros/ é que usa os enredados” [MELO
NETO, 1994:322-3233]. Fio a fio, compreende-se a unidade e a diversidade como rede de
relações sistêmicas. A voz de todos é captada como possibilidade de trocas por um mundo
mais sadio. “Entender a interdependência ecológica significa entender relações. Isto
determina as mudanças de percepção que são características do pensamento sistêmico –das
partes para o todo, de objetos para relações, de conteúdo para padrão” [CAPRA, 2001:232].
Na teia do mundo, de forma cíclica, possibilidades de unir e reunir vozes para não
cantarem de forma linear. A comunidade humana envolve laços que dependem do
comportamento de muitos outros laços que formam a grande teia da vida. A voz do galo é um
convite à comunhão. As vozes buscam em uma corrente alcançarem as outras vozes. Uma
invocação à necessidade de despertar relações entre os seres humanos. Uma crítica indireta à
sobrecarga de impessoalização no mundo moderno. Regido exclusivamente pelo mercado, o
homem não é senão objeto entre as coisas. Um pedaço de papel para uso da máquina
burocrática. Talvez graças ao fato de possuir razão tem o ser humano: “o papel essencial e
preeminente: o de racionar as demais coisas e o mundo, o de pensar o que são e o de iluminar
no mundo o que é a verdade sobre o mundo, graças à palavra que diz, que declara ou revela a
270
verdade das coisas” [BACHELARD, 1973:99].
O homem, desconhecedor de si mesmo, torna-se indiferente aos laços de relações
humanitárias. De certa forma, o poeta nos convida a refletir o homem que vive em conflito
consigo mesmo e com o mundo exterior. O que entra em questão para se pensar uma saída?
Onde buscar uma alternativa em que a voz coletiva possa alcançar outra maneira de
experienciar o mundo, diferentemente desse que está? Qual o caminho? “Precisamos
encontrar saída onde não tem porta” assim diz um lavrador do Ceará, citado por Unger [2001:
154].
O que podemos eleger como uma questão fundamental para se trabalhar o social se não
resolvermos urgentemente o problema ambiental da fome? O que significa ser 'ser humano'
frente a uma realidade que está espessa para muitos sem-teto, sem coisa alguma?. Como
resgatar uma nova utopia para o homem em um mundo carente de fraternidade? Nenhuma
solução pronta acontece de cima para baixo. Se o sistema capitalista prega a qualquer custo
novas formas de competir, expandir, dominar, do outro lado, volta-se para a conservação, a
cooperação, a relação. Não perspectiva de solução: nem sociológica, nem política,
econômica, nem ecológica, se não abrimos mão pelo menos um pouco do excesso de poder
nas mãos de poucos.
“A teia da vida é uma rede flexível e sempre flutuante. Quanto mais variáveis forem
mantidas flutuando, mais dinâmico será o sistema, maior será a sua flexibilidade e maior será
sua capacidade para se adaptar às condições mutáveis” [CAPRA, 2001:234]. Em processo de
mutação, não respostas prontas, toda saída deve ser construída a partir de um impacto de
mudança comprometida com as partes envolvidas. Enquanto não acalentarmos o anímico, a
consciência, o intelecto, o psíquico, como pontos de flexibilidade, haverá sempre uma tensão
na voz desesperançosa dos dados ambientais. Porque se olharmos bem é na falta de
flexibilidade que se manifesta as guerras humanas, a dizimação, no resto do mundo. E em
uma época de tamanha decadência, ficamos por enquanto com esta citação de Ortega y Gasset
[1973: 65]:
A história nos conta inumeráveis retrocessos, decadências e degenerações. Mas não
foi dito que não sejam possíveis retrocessos muito mais radicais do que todos os
conhecidos, inclusive o mais radical de todos: a total volatização do homem como
homem e seu taciturno reingresso na escala animal na plena definitiva alteração. A
sorte da cultura, o destino do homem depende de que no fundo de nosso ser
mantenhamos sempre vivaz esta dramática consciência e, como um contraponto
271
murmurante em nossas entranhas, sintamos bem que para nós é segura a
insegurança.
Se não tivermos dado um verdadeiro salto no abrir mão do poder e do domínio sobre o
mundo, se não tivermos trabalhado as questões subjetivas de forma mais flexíveis, a relação
com o ambiental estará cada vez mais próxima de um colapso terrestre. “Nos ecossistemas, o
papel da diversidade está estreitamente ligado com a estrutura de rede do sistema”, como
observa Capra [2001:235]. Para a física quântica, a teia da vida deve estar em sintonia com
uma rede de relações humanas das mais diferentes. “Diversidade significa muitas relações
diferentes, muitas abordagens diferentes do mesmo problema. Uma comunidade diversificada
é uma comunidade elástica, capaz de se adaptar a situações mutáveis” [CAPRA, 2001:235].
Sem um pensar mais voltado para a diversidade do ecossistema mangue, capaz de se adaptar a
situações de mudanças, nada se construirá de concreto em nossa relação ambiental com os
diversos tipos de ecossistema. Sem isso, continuaremos a perpetuar massacres e catástrofes
cada vez mais generalizados. Mas se catástrofe pode ser renunciada, o extraordinário não seria
a solução e não a barbárie.
272
DIA SETE
Sétima Margem
Do cais ao caos: Manguesciences
Capítulo 7
Série: Mangues & Caranguejos
Entre as múltiplas virtudes de Chuang-Tsê estava a
habilidade para desenhar. O rei pediu que desenhasse
um caranguejo [grifo nosso]. Chuang-Tsê disse que
para fazê-lo precisaria de cinco anos e uma casa com
doze empregados. Passados cinco anos, não havia
sequer começado o desenho. ‘Preciso de outro cinco
anos’, disse Chuang-Tsê. O rei concordou. Ao
completar o décimo ano. Chuang – Tsê pegou o pincel
e num instante, com um único gesto, desenhou um
caranguejo, o mais perfeito caranguejo que jamais se
viu [ÍTALO CALVINO].
273
a Cícero, pescador do mar
7 Caranguejos com Cérebros
“Antene-se”
É só uma cabeça equilibrada em cima do corpo
Escutando o som das vitrolas, que vem dos mocambos
Entulhados à beira do Capibaribe
Na quarta pior cidade do mundo
Recife cidade do mangue
Incrustada na lama dos manguezais
Onde estão os homens caranguejos
Minha corda costuma sair de andada
No meio da rua, em cima de pontes
É só uma cabeça equilibrada em cima do corpo
Procurando antenar boas vibrações
Procurando antenar boa diversão
Sou, sou, sou mangueboy.
Recife cidade mangue
Onde a lama é insurreição
Onde estão os homens caranguejos
Minha corda costuma sair de andada
No meio da rua, em cima de pontes
É só equilibrar sua cabeça em cima do corpo
Procure antenar boas vibrações
Procura antenar boa diversão
Sou, sou, sou Mangueboy!
[CSNZ, 1996]
No ciclo das estações caranguejas, a repetição das marés ultrapassa o que parece rotina.
O repetir, transformar continuamente o desconhecido em conhecido. “Tudo zoa/ tudo arrulha/
para dentro do imprevisto” [MARANHÃO, 2002:47]. A repetição nos mangues é fertilidade
poética. Repetindo construímos teia de relações imprevisíveis. “Todo mangue fervilha duma
vida que saía do lodo e que se arrastava no limo. Guaiamu, caranguejos, siris, aratus, guarás,
mãos-no-olho enxameavam nas buraqueiras profundas”, como escreve o cearense Gustavo
Barroso [1979: 22], em pleno século XIX, para a Padaria Espiritual.
67
Do início da literatura, até aqui, podemos observar que muita coisa mudou nos
67
No Ceará do final do século XIX, houve o movimento dos ‘Padeiros’ que ganhava a praça do Ferreira em
Fortaleza com o fascículo O Pão, polvilhado no forno à lenha da “Padaria Espiritual”. O fascículo de poesia
circulava em tom de crítica política comunista e panfletária. O Pão da arte ganhava ruas, praça e trens. Como
um cordel que salta de trem em trem partia-se da urbe para o sertão. O Pão, com estatuto e tudo, repleto de
manifesto e ritual, antecipava as façanhas do Movimento Modernista de 22. O fascículo O Pão fornecia em
verso quente uma crítica ferrenha aos caminhos da modernidade no mundo. Entre alguns padeiros-mor
destacaram-se: Rodolfo Teófilo [criador da fórmula saborosa da Cajuína], Adolfo Caminha [autor de A
normalista], Araripe Júnior [teórico que se contrapôs às teorias de mestiçagem de Sílvio Romero], Capistrano
de Abreu [poeta e historiador], Gustavo Barroso [autor de Praias e várzeas].
274
manguezais. Em Raul Bopp, embebido pela linha da antropofagia, vimos um mangue-
serpente mitificado na pele elástica de Cobra Norato. Em Bopp, a poesia trancreve a dupla
voz na pluralidade de sentidos. A poesia é serpente que devora o próprio rabo. Poesia e
filosofia acabam em mito. “Se a serpente modernista pudesse ser do éden moderno, espaço,
tempo e cosmo poderiam reordenar-se” [BERMAN, 198:30]. O problema dos mangues
modernistas é que os poetas ficaram ensombrados em encontrar uma identidade para o Brasil
em um momento político em que a força do nacionalismo imperava mundo afora. Em
verdade, a reclamada modernização do Brasil na época foi uma violência não apenas social,
mas também militar. O pior é que a modernização desenfreada estava não apenas no programa
da direita varguista, mas também na planilha do intelectual “comunista”. Entre contraste e
contradição, por outro lado, os poetas da antropofagia que estiveram à frente do tempo
modernista perceberem logo de início que a idéia de desenvolvimento era cega aos valores
culturais das comunidades afro-ameríndias. Essas comunidades eram vistas como meras
figuras preguiçosas e selvagens. O que acabou por criar um imaginário terrorista que não se
interessou em perceber o que esses povos “primitivos” carregavam na fala das mais diversas
culturas. Denunciar tudo isso é também “investir contra o silêncio que o oprimido
economicamente ficou reduzido, perdendo os direitos trabalhistas e de reivindicação de
classe” [SANTIAGO, 1989:17].
Um pouco mais para adiante, o poeta Joaquim Cardozo avança em direção a questões
sobre o manguezal que sinalizam para a construção de uma metáfora de fundo engenhoso e
geométrico. Descendo às margens do Capibaribe, João Cabral, em sua lucidez cotidiana, elege
no trato com a linguagem poética dos mangues um acordo profundo com a linguagem popular
em consonância com o traço erudito. As plumas do mangues em Cabral são como as fábricas
da vida onde cada vez mais se fabrica a miséria Severina. O poeta do cão sem plumas oferece
aos povos do mangue pouca alternativa. Talvez a mais singela dela seja um suposto retorno
como eco de suborno.
Mas com Chico Science parece que a coisa se estatela no meio das encruzilhadas das
ruas e dos guetos musicais. O manguebeat é, de certa forma, um canto alternativo para
reafirmar um valor afirmativo dos manguezais. Mesmo falando da miséria, a música aponta
para a alegria como “prova dos nove”. Franciscanamente, Chico sugere pela canção o valor de
quem nada tem e oferece aos mais desvalidos a possibilidade de um alcance mais amplo a
partir do resgate da auto-estima do povo negro. Nesse sentido, o mangue scienceano
275
referencia como valor estético a oralidade musical que nada mais é que uma espécie de
metáfora da antropofagia afro americana. É certo que o Movimento Manguebeat nos preceitos
mais românticos bebe na antropofagia de 1928 que tinha como material de poesia o princípio
básico de que a antropofagia unia socialmente, economicamente, filosoficamente. Por
outro lado, não podemos esquecer que o “Manifesto Caranguejo com Cérebros” que foi
escrito por Fred Zeroquatro em 1992 traz um diálogo incisivo com a linguagem antropofágica
dos poetas tropicalistas. Se atentarmos para a brincadeira levada a sério do pessoal do
manguebeat, tem-se a impressão de que a alegre prova dos nove oswaldiana é embalada pelas
conquistas musicais das guitarras desfiguradas de 1970. O “coro dos contentes” irá sugerir ao
manguebeat a fusão dos tambores de maracatus com a guitarra elétrica. Sincretismo com
outros códigos inclusive com o experimento jazzístico e com a extensão desse na atualidade,
como: o samba, o rap, o hip hop, o funk, a música eletrônica, a capoeira etc.
Da macrobiótica à noite de meu bem: de James Joyce a Darcy Ribeiro, de Paul Singer a
Haroldo de Campos, de Leminski a Bashô, de Antônio Risério a Waly Salomão, de Ligia
Clarck as instalações de Bruscky, tudo segura a onda do mundo e um poeta nunca se cala. Um
bom verso nunca se omite de dizer o que tem para ser dito. A nota desafinada que sai de um
bemol de palavras ou de uma gaita salta para dentro da vida. É bom que se diga que a poesia
de rua anda nua e de mão dadas com os filhos da lama. Poesia é canal de lucidez viva; é
atalho de rebeldia acesa. O escre/ ver /viver. O ‘escrevivendo’ de um Jomard Muniz de Brito.
E apesar de tudo e de um mundo maluco e doente, poesia, vive-se nela, morre-se por ela,
finge-se por ela. No devaneio do poeta, nunca se trai a realidade de um poema. A realidade do
poeta é o poema. O poeta que trai seu poema em defesa da vaidade é um infeliz. Devemos
manter os olhos bem acesos para andar por com nossa cabeça insubornável. A palavra
capitalismo nunca brinca em serviço. Andar contra a corrente pode ser uma alternativa para o
mundo. “Nossa pátria será o tumulo do capitalismo” [COUTO: 2003: 27]. Bater papo com
arranha-céu pode ser o fim da modernidade, mas pode ser o início da linguagem dos
grafiteiros. Prestar atenção no que diz o mercado é um grave risco de enlouquecimento. Não
devemos ter medo de viver nesta violência-época tão veloz. Não sabemos abraçar o rio: “o rio
está sujo peneirado pelos sentimentos” [COUTO, 2003: 19]. Mesmo cientes de que o viver
mantém um pacto com o perigoso, “é preciso tentar viver não apenas para sobreviver, mas
também para viver. Viver poeticamente é viver por viver” [MORIN, 171]. Enquanto houver
música haverá poetas dentro dos mangues-mundos propagando mudanças sociais. “O social
consiste em ações ou comportamentos humanos. É um fato da vida humana” [ORTEGA y
276
GASSET, 1973: 45]
Absorvendo os ritmos africanos, o movimento manguebeat transfigura o pulsar musical
dos enredos de maracatus ao sinalizar diálogos maravilhosos com os recursos mega-fônicos
da música eletrônica. Em sintonia com o aparelho tecnológico, amplia-se com-fusão notas
eletrônicas; requisita-se dialetos variados a ritmos bem heterogêneos. Já não importa criar um
ritmo ou uma identidade brasileira para o país como bem almejava o nacionalismo
antropofágico de Oswald e Bopp. Também não interessava aos mangueboys estender uma
leitura identitária à cultura do país como pretendia a turma da Tropicália. A turma da
antropofagia oswaldiana e os meninos da tropicália foram movimentos advindos da classe
burguesa enquanto o manguebeat foi uma expressão da classe popular. O pessoal do mangue
atingiu, em verdade, diferentes esferas sociais advindos não apenas de Peixinhos, mas do Alto
do do Pinho e Candeias. Como diz Marc Augé [2001: 45], no livro Não-lugares, as
origens de qualquer grupo “são muitas vezes diversas, mas é a identidade do lugar que o
funda, congrega e une”. Com o manguebeat, a coisa não foi diferente, pois se arrumou por
outros sentidos e lugares ao embaralhar as batidas de alfaias frente ao legado cultural
pernambucano. Sem descuidar dos detalhes das parabólicas antenadas com o rosto do mundo,
o som se transformou em mangue como porta-voz também de contestação social. Nesse
sentido, não é mais a cultura brasileira que entra em questão, como se observou com a
Tropicália, mas a diversidade cultural pernambucana. Daí o mote contemporâneo: De
Pernambuco para o mundo. O manguebeat ocupa, assim, os vários lugares da cultura, mas se
reconhece pertencente à cultura local de Pernambuco. De Peixinhos para o mundo, o canto do
manguebeat é gorjeio que saiu da periferia de Olinda, para habitar as paradas da Word Music.
Como diz o poeta manguebeat, em uma primeira divulgação da festa Black-Planet no espaço
Oásis em Olinda: “É nossa responsabilidade resgatar os ritmos da região e incrementá-los
junto com a visão mundial que se tem. Eu fui alem” [TELES, 2003: 9].
Na deglutição que faz o movimento mangue entra também outras linguagens e ritmos
em consonância com a cultura “glocal” contemporânea. Enquanto os tropicalistas, ao
misturarem expressões coloquiais a ritmos estrangeiros, dedilhavam notas de MPB para
alcançar o rock’n roll, o manguebeat usa o batuque das notas do berimbau eletrônico para
transgredir a música popular brasileira.
O que traz de inovador o “Manifesto Caranguejos com Cérebros”? Diríamos que
simplesmente traduz também a linguagem da bio-diversidade do mundo atual. O manifesto
277
carrega pluralismos de idéias que traduzem um diálogo humorado com os Homens e
caranguejo, de Josué de Castro. No “caranguejos comrebros”, o manguebeat encarangueja
cânticos celebrados aos tambores africanos, mas também traduz um mote e tanto do homem-
caranguejo sendo transubstanciado em caranguejo humano. Uma metáfora que assemelha a
condição humana sobrevivente da lama aos caranguejos do mangue, enfiados em toca,
verdadeiros buracos-negros. A metáfora de Josué de Castro encarangueja os homens vivendo
como caranguejo enquanto a poética do manguebeat revisa a cadeia circular de homens ainda
vivendo como caranguejos em meio às parabólicas enfiadas na lama. Os “caranguejos com
cérebros”, do manguebeat, são também caranguejos brincantes que traduzem os caranguejos
espaciais antenados com a energia da cibernética. São homens antenados com o “futuro do
presente” e com as conseqüências da modernização na periferia da América-mangue.
Vale observar outros caminhos e perceber também que o duplo signo homens e
caranguejos de Josué de Castro trazem um sobrenome poético que servirá para a rapazeada
do manguebeat elaborar seus “caranguejos com cérebros”. É importante não desconfiar do
tom de brincadeira da moçada do mangue e levar essa questão dos “caranguejos com cérebro”
com um pouco mais de ironia. O riso é metáfora de provocação. Há uma sátira ambígua que
engana os olhos do leitor. Ambigüidade essa que remete à celebração da desconfiança ou
mesmo da inteligência ou quem sabe do excesso de razão em detrimento à teia de emoção e
sentimentos? Se, de um lado, observa-se a conservação dos nomes no plural, do outro lado, a
palavra “homens” desaparece do meio da metáfora e em seu lugar surgem ‘os caranguejos
com cérebros’. O símbolo do cérebro é colocado de forma adjetivada. um diálogo
corrosivo com o mimetismo kafkaniano: o homem-barata que se transforma em ser-
caranguejo. Uma metáfora filosófica que denuncia a condição subumana e desumanizadora da
sociedade contemporânea.
Seguindo a proposta dos integrantes desse movimento, para reumanizar o presente,
devemos primeiro: “modernizar o passado/é uma evolução musical” [CSNZ, 1994].
Reumanizar leva a uma ruptura com todo o legado de miséria e exploração humana, mas leva
também a uma reformulação de todo um sistema que mata e dizima em nome do lucro. Uma
cadeia cíclica que precisa mais do que nunca ser repensada. Dos ‘homens e caranguejos’ de
Josué de Castro aos “caranguejos com cérebros” do movimento manguebeat, a condição do
homemangue tem se agravado ainda mais com a dificuldade de retirar alimentos em rios cada
vez mais poluídos. Por outro lado, nos locais menos poluídos, os viveiros de camarão e a
exploração imobiliária impera como outro agravante. Seguindo os passos primitivos dos
278
caranguejos, pouca coisa mudou, muita coisa piorou na paisagem dos mangues. Nas questões
mais essenciais, a humanidade tem caminhado para trás. No largorculo dos dias, a fome no
mundo ainda faz parte das preocupações dos ecólogos do Século XXI.
Na terceira parte do ‘manifesto caranguejos com cérebro’, no encarte do cd ‘Da lama ao
caos’ [1994], denuncia-se o diálogo antiecológico da cidade em relação aos manguezais.
Zeroquatro e Chico antecipam, ali, não apenas o projeto sincrético musical, mas também uma
preocupação com os problemas eco-ambientais:
“Mangue a cena”
Emergência! Um choque rápido ou o Recife morre de infarto! Não é preciso ser
médico pra saber que a maneira mais simples de parar o coração de um sujeito é
obstruir as suas veias. O modo mais rápido também de enfartar e esvaziar a alma de
uma cidade como o Recife é matar seus rios e aterrar seus estuários. O que fazer
para não afundar na depressão crônica que paralisa os cidadãos? Como devolver o
ânimo deslobotomizar e recarregar as baterias da cidade? Simples! Basta injetar um
pouco de energia na lama e estimular o que ainda resta de fertilidade nas veias de
Recife. Em meados de 91, começou a ser gerado e articulado, em vários pontos da
cidade, um núcleo de pesquisa e produção de idéias pop. O objetivo é engendrar um
circuito energético, capaz de conectar as boas vibrações dos mangues com a rede
mundial de circulação de conceitos pop, imagem símbolo: uma antena parabólica
enfiada na lama.
Se para os mangueboys, o objetivo principal era injetar um pouco de energia na lama, a
metáfora é apropriada para se pensar a lama como ponte entre a cidade e o mangue. Energia
capaz de proporcionar mudanças na mente das pessoas. Lama capaz de compartilhar a
sobrevivência dos que moram e vivem do manguezal. A energia das antenas parabólicas
subdivide duas situações intrigantes: de um lado, o mangue antenado com o mundo
globalizante, de outro, a questão local reproduzindo os efeitos colaterais da esclerose
econômica via consumo. A metáfora da parabólica enfiada na lama é uma metáfora irônica
que brinca também com essa onda toda de tecnicismo da civilização contemporânea.
Em Josué de Castro, personagens como Chico e João Paulo estão predestinados, em um
país eternamente colonizado como o Brasil, a repetir a triste sina passada secularmente de pai
para filho.
A impressão que eu tinha, era que os habitantes dos mangues homens e
caranguejos nascidos à beira do rio a medida que iam crescendo, iam cada vez se
atolando mais na lama. Parecia que a vegetação densa dos mangues, com seus
troncos retorcidos, com o emaranhado de seus galhos rugosos e com a densa rede de
suas raízes perfurantes os tinha agarrado definitivamente como um polvo, enfiando
tentáculos invisíveis por dentro de sua carne, por todos os buracos de sua pele: pelos
olhos, pela boca, pelos ouvidos [CASTRO, 2001b: 11].
279
No país de homens e caranguejos, o índice de desmatamento aumentou
assustadoramente, mas por outro lado, o índice de recomposição dos mangais sofreu, a duras
penas, uma intensa luta pelo reflorestamento de bosques de mangais. Em levantamento feito
recente entre 2004 e 2005, na Universidade Federal da Paraíba, pelo biólogo Helder Farias de
Araújo [2007:5], mais de 100 tipos de espécies de aves habitando o coração do mangue.
No entanto constata o biólogo que o desmatamento do mangue, embora proibido por lei
federal, é a principal ameaça ao bioma. O maior problema que se apresenta é o resultado da
expansão imobiliária e de fazendas de camarão.
Se antes havia um olhar mais preconceituoso sobre essa vegetação, aos poucos, novos
estudiosos se aventuram em estudar esse bioma de forma mais consciente observando nos
detalhes a importância que cada espécie representa. Lentamente, a luta em defesa dos
mangues vem ganhando forte visibilidade inter[nacional]. Alguns poetas se tornam expoentes
na forma de observar os manguezais, entre a barbárie e a esperança. Um sentimento de
indignação alinha a caneta de escritores por novas mudanças no coração humano. Somos,
como estudiosos dos manguezais, uns pessimistas alegres, mas não deixamos teimosamente
de acreditar na humanidade de nosso povo, mesmo que se “imbiricicam caranguejos/ de lá pra
cá/ palafitas balançam daqui pra lá/ em terras movediças encharcadas de promessas” [LIMA,
2003:43].
Os filhos da lama são uma nação de seres enlameados, fraternalmente interligados à
classe dos destituídos. Se a lama dos manguezais, sob a imposição excludente do poder
econômico, acolheu, ao longo da história, uma parcela considerável de seres expulsos pelo
latifúndio das secas, Josué de Castro que, nasceu entre os mangues do Recife, percorreu de
forma interdisciplinar a diversidade do território da lama, recriando o mangue a partir dos
olhos dos moradores do manguezal. “Como se fossem gigantes com o corpo fabricado com
grandes blocos de barro retirados do próprio mangue. Formados ali mesmo na lama como se
formam e se criam os caranguejos na fermentação do charco” [CASTRO, 2001b: 43]. Entre o
legado da lama social e a fome estabelecida quase canonizada, Josué de Castro,
68
no livro
68
Os mangues do Recife são o paraíso do caranguejo. Se a terra foi feita para o homem, com tudo para bem
servi-lo, o mangue foi feito, especialmente, para o caranguejo. Tudo foi feito, especialmente, para o
caranguejo. Tudo é, ou foi, ou está para ser, caranguejo, inclusive a lama e o homem que vive nela. A lama
misturada com urina, excremento e outros resíduos que a maré traz. Quando ainda não é o caranguejo, vai ser.
O caranguejo nasce nela, vive nela, cresce comendo lama, engordando com as porcarias dela, fabricando com
a lama a carninha branca de suas patas e a geléia esverdeada de suas vísceras pegajosas. Por outro lado, o povo
vive de pegar caranguejo, chupar-lhe as patas, comer e lamber os seus cascos até que fiquem limpos como um
copo e com sua carne feita de lama fazer a carne de seu corpo e de seus filhos. São duzentos mil indivíduos,
duzentos mil cidadãos feitos de carne de caranguejo. O que o organismo rejeita volta como detrito para a lama
do mangue para virar caranguejo outra vez. Nessa aparente placidez do charco, desenrola-se, trágico e
280
Homens e caranguejos, defende a metáfora do ciclo do caranguejo comendo lama e gente. Em
Josué de Castro, homens-caranguejos fazem parte da cadeia cíclica de repetição da miséria.
Sabemos que couberam aos homens caranguejeiros a geografia da fome, por outro lado, a
quem se pode responsabilizar por essa geografia de miséria em que se podem pesar os aterros
inumeráveis realizados ao longo de quatro séculos de exploração desse ecossistema, se não o
poder econômico? Poder que, muitas vezes, deseja apagar os indícios de revolta e indignação
que ainda teimam em se reproduzir dentro dos mangues.
O mangue é filho da cultura e à proporção que os mangues crescem no texto de Josué
observa-se um sinal niilista, também, de que o capitalismo sobre esse tipo de vegetação
enlanguesce as esferas de exploração, conforme o ritmo da fome e da maré. Se para a
comunidade de pescadores, é durante a preamar que as redes de pescar pegam as últimas
safras miúdas de pescado devido à própria extinção do animal marinho, “o barulho do
chumbo da tarrafa batendo nas águas do rio lembra o barulho da chuva caindo nos telhados”,
descreve Castro [2001b: 128].
Se, em nossos dias, a cena é outra: os mariscos se reproduzem no fundo das vigas de
ostras enquanto peixes são dizimados pelo aroma dos esgotos, o desencanto da retirada de
alimento dentro do lamaçal do mangue se prenunciava em Josué de Castro [idem]: “Chico
recolhe a rede de malhas apertadas e dela retira meia dúzia de piabas que a rede colhera.
raramente aparece um peixinho mais graúdo um bagre, uma cioba, um camurim”. Como
indica os pescadores de mangue: “Nosso patrão é a maré, primeiramente a maré”. Para
algumas marisqueiras, durante o período das chuvas, quando o nível de água doce sobe,
muitos cachos de ostras morrem devido à diminuição de sal na água. [BEZERRIL, 2004].
Os caranguejos, de uma forma geral, apresentam-se com dez perninhas cabeludas sendo
duas delas bem maiores. As presas ou garras são também chamadas de puãs, patas, pinças,
presas. No caranguejo macho, as patolas gigantes servem como objeto fálico para atrair e
seduzir o desejo das fêmeas. Comenta-se que na Índia houve um tempo em se revendiam
apenas as patas dos caranguejos para exportação. Com o passar do tempo, houve um
desequilíbrio tão grande no manguezal que as fêmeas não procuravam mais os parceiros para
se acasalarem. Constatou-se que as fêmeas não desejavam os machos desprovidos das patolas
maiores.
silencioso, o ciclo do caranguejo. O ciclo da fome devorando os homens e os caranguejos, todos atolados na
lama [CASTRO, 2001b: 26-27].
281
Os crustáceos machos são maiores em tamanho que as fêmeas. O caranguejo uçá, a
exemplo, pode crescer um pouco mais de 10 cm [largura]. São os crustáceos machos que
possuem as patas de tamanho maiores, além de trazerem as perninhas cabeludas, seu abdômen
[cavidade que se encontra no centro do peito] é mais fino e estreito. Nas fêmeas, a cavidade
abdominal é mais larga e bastante arredondada, lembram a vulva de uma mulher. Algumas
dessas espécies são encontradas no “Atlântico Ocidental, Florida, golfo do México, América
Central, Antilhas, oeste da América do Sul, Guianas e Brasil, do Pará a Santa Catarina”.
[SCHAEFFER-NOVELLI et al, 2004: 30].
A pressão pela caça dos caranguejos tem sido assustadora. O habito de comer
caranguejos se estendeu de forma tão intensa com a expansão do turismo no mundo litorâneo
que milhares de crustáceos estão sendo capturados antes de atingirem o tamanho considerado
apropriado para o consumo que é acima de 6 cm. Como assinalava o poeta da Beat
Generation Allen Ginsberg [2000: 33], cada vez mais “digerem os caranguejos do fundo
lodoso do rio Bovery”. Uma dizimação que alarma os catadores e afeta a vida e o cotidiano
das marisqueiras. Nas comunidades ribeirinhas, observamos uma lista de críticas ambientais
se aglutinando. Conhecedora dos problemas que atingem o manguezal, marisqueira é porta-
voz desse tipo de bioma.
As marisqueiras formam um coro de denúncias que se estende a outros lugares rodeados
de mangues. Nesse coro, um refrão dos ecólogos: os caranguejos estão sumindo do meio do
mangue e os manguezais desaparecendo do planeta Terra. E, se continuar do jeito que está,
provavelmente, daqui a vinte anos não se tenha mais notícias de alguns tipos de crustáceos
nos mangues. O ciclo de vida dos crustáceos torna-se menor a cada ano que passa. A disputa
pela captura de caranguejos na faixa litorânea brasileira está cada vez mais intensa. Em
Pernambuco, o crustáceo vem sendo freqüentemente capturado tanto para fins comerciais,
bem como para o consumo local.
De acordo com Knuckey (1996), várias espécies de caranguejos que são exploradas
comercialmente, apresentam um amplo de manejo que inclui o tamanho legal
mínimo de captura, o que garante à população atingir a maturidade, permitindo que
esses animais possam se reproduzir pelo menos uma vez . Esse exemplo pode ser
observado em Ucides Cordatus no litoral nordestino, onde as fêmeas o totalmente
protegidas e os machos podem ser explorados comercialmente a partir do tamanho
mínimo de captura de 45 mm de largura da Carapaça, determinado pela portaria do
IBAMA no 1.208 de 22 de novembro de 1989, da exploração comercial (IVO &
GESTEIRA, 1999: 10).
282
Para termos uma idéia, o caranguejo goiamum, consumido na grande Recife, vem de
Espírito Santo e Rio de Janeiro. Nas costas do litoral cearense, não mais caranguejos para
consumo. E todo crustáceo consumido em Fortaleza, a exemplo, vem dos municípios de
Carnaubeiras, Araioses, Tutóia, Conceição no Maranhão.
O compositor Gilberto Gil [1997] regravou, no cd Quanta, a música de Gordurinha,
autor da melodia “Vendedor de Caranguejo”, uma espécie de reflexão sobre a situação
marginal dos vendedores de crustáceo:
Caranguejo Uçá/ Caranguejo Ucá/ Apanho ele na lama/ E boto no meu caçuá/Tem
caranguejo/ Tem gordo guaiamu/ Cada corda de dez/ Eu dou mais um/Eu dou mais
um/ Eu dou mais um/ Cada corda de dez/ Eu dou mais um/ Eu perdi a mocidade /
Com os pés sujos de lama/ Eu fiquei analfabeto/ Eu fiquei analfabeto/ Mas meus
filho criou fama/ Pelo gosto dos meninos/ Pelo gosto da mulher/ Eu já ia descansar/
Não sujava mais os pé/ Os bichinhos tão criado/ Satisfiz o meu desejo/ Eu podia
descansar/ Mas continuo vendendo caranguejo.
A todos aqueles que sobrevivem da lama, a coisa se resume entre fronteiras de escala
local e global. Quanto mais observamos os problemas gritantes do manguezal, mais somos
levados a perceber que eles não podem ser entendidos de forma isolada. Retomamos o mundo
como teia rizomática, ou seja, rede que enlaça o todo e as partes. “São problemas sistêmicos,
o que significa que estão interligados e são interdependentes” [CAPRA, 1996:23].
A exemplo do que estamos falando, a extinção da fauna e da flora mangue se estenderá
em uma proporção alarmante, enquanto no hemisfério terrestre estivermos ainda sob a tutela
de problemas de ordem econômica, ou mesmo sob a dependência do fardo grandioso de
dívidas públicas. “A escassez de recursos e a degradação do meio ambiente combinam-se com
populações em rápida expansão, o que leva ao colapso das comunidades locais e a violência
étnica e tribal que se tornou a característica mais importante da era pós-guerra fria” [idem].
Em verdade, a crise ecológica é uma crise de percepção. O que a população afora
desconhece é que caranguejos, como: ‘uçá’, ‘aratu’, ‘goiamum’, ‘siriaçu’, ‘maria-farinha,’
‘chiés’, ‘caranguejo-marinheiro’, exercem importância na ciclagem dos nutrientes do
manguezal, ao fazerem um certo controle da remineralização de detritos; além de
comandarem a exportação de folhas de mangues para dentro das galerias por meio de seu
hábito alimentar e da estratégia de cavar covas.
Para se mudar o quadro de dizimação da natureza ambiental, que se transformar
padrões e pensamentos para de estabelecidos. O que não é uma coisa tão simples e fácil,
mas devemos a todo custo requisitar, por exemplo, novos modelos de comunidades
283
ambientais sustentáveis que estejam de acordo com soluções sociais, culturais. “Uma
sociedade sustentável é aquela que satisfaz suas necessidades sem diminuir as perspectivas
das gerações futuras” [CAPRA, 1996:24].
A expansão de consciência requer mudança, não apenas de percepção, mas de valores.
A antiecologia envolve uma moral e engloba uma crise de dominação, competição, ânsia de
poder. Se o que é saudável apresenta-se como modelo ecossistêmico em equilíbrio dinâmico e
conservado, o que é ruim atrai hierarquias, novos desequilíbrios, medo, pânico, doenças
físicas, psíquicas, ambientais.
A estrutura ideal para rever esse tipo de poder não é a hierarquia, mas a rede de relações
em que todos são importantes na teia da vida. O que está em questão, de agora para frente,
não é o antropocentrismo [o homem como centro], mas o ecocentrismo [cuidado e proteção a
todos os seres]. Cada organismo é membro importante da rede que tece o cosmos. É uma
visão de mundo que reconhece o valor inerente da vida não-humana” [CAPRA, 1996:28].
Uma visão ecologicamente profunda percebe-se responsável por todo e qualquer ser
deste planeta; comunga com uma visão de mundo mais holística; concebe o universo como
um grande lar [oikos] interligando mundos como um rizoma. A ecologia não é o estudo de
partes fragmentadas, dissociadas. “A percepção ecológica profunda reconhece a
interdependência fundamental de todos os fenômenos, e o fato de que, enquanto indivíduos e
sociedades, estamos todos encaixados nos processos cíclicos da natureza” [CAPRA, 1996:25].
Como vimos no início deste trabalho, no manguezal, as raízes são exemplos de rede,
teia, rizoma. São as ‘raízes áreas’ que simbolizam essa interconexão do estuário com a maré.
Essas raízes descem das copas arbóreas para fincar seus fios na lama. Ao descer a lama, os
fios se transformam, sofrem decomposição, viram matérias orgânicas. Em uma metamorfose
contínua, flora recolhe a fauna, sol reflete sal, lua revela marisqueiras, lama interliga matéria
orgânica. Como diz Chico Science & Nação Zumbi [1996] “Este corpo de lama que tu / é
apenas a imagem que soul /este corpo de lama que tu vê/ é apenas a imagem que é tu/ que o
sol não seque os pensamentos/, mas a chuva mude os sentimentos”.
Vimos, também, que o lamaçal de terra movediça não é apenas habitat de caranguejo,
mas uma constelação rica de minérios, sais, nitrogênio, oxigênio e matérias orgânicas que
servem de nutrientes para outros seres vivos. No mangue: “Ostras, sururus, mapés e vôngoles,
entre outros animais, alimentam-se do plâncton, aproveitando a maior quantidade de material
284
em suspensão” [SCHAEFFER-NOVELLI et al, 2004:38].
O que pode acontecer a uma comunidade de caranguejo acarreta mudança em todo o
mangue e, conseqüentemente, ao ser humano. Se o manguezal é a casa dos crustáceos, é
natural acreditar, comumente, que os caranguejos são sujos porque comem lama. O que não é
comprovado pelos catadores e pesquisadores anfíbios. Em conversa com marisqueiras, vê-se
que o caranguejo uçá [Ucides cordatus], não come lama, mesmo estando enlameado, mantém
o hábito de limpeza. “Durante a baixa-mar, aproveita para limpar a toca e organizar a
bagunça. Durante as suas andanças, não costuma ir muito longe. Captura folhas de mangues
caídas que estejam próximas à toca. Aliás, folhas são seus alimentos preferidos”
[SCHAEFFER-NOVELLI et Al, 2004:30].
Nas pranchas fotográficas da antropologia, Alves [2004:124], ao catalogar os crustáceos
de Vitória-ES, confirma que os caranguejos uçás se alimentam de folhas das árvores do
mangue que caem na lama. Alves observa ainda que “ao serem armazenadas nas tocas, as
folhas são atacadas por fungos, entrando em processo de decomposição e transformando-se
numa pasta recoberta de fungos”. Provavelmente, os caranguejos se abastecem não de folhas,
mas de algum tipo de proteínas liberadas pelos fungos.
Na perspectiva das marisqueiras, observa-se que o hábito alimentar do caranguejo uçá é
bastante vegetariano, além de alimentar-se das folhas amarelecidas de mangues, os crustáceos
consomem também casquilhos de conchas e minúsculos fragmentos de ostras. Na cidade do
Recife, os caranguejos guaiamus, geralmente, são cevados em cativeiros para o consumo. “É
uma variedade de caranguejo que não gosta de lama, que não vive dentro da lama como
outros caranguejos. Vive no seco, nas terras enxutas das margens dos rios” [CASTRO, 2001b:
52].
São os caranguejos guaiamus, os mais alternativos na forma como consomem
alimentos. Comem de um tudo: frutas, milho, pão, azeite de dendê, cuscuz, comida caseira
etc. As espécies de siris [Callinectes sapidus], por sua vez, são bastante carnívoras e
costumam, inclusive, comer os corpos dos seres humanos afogados nos rios, como observa
Josué de Castro [2001b: 185]: “Mergulhou e apareceu arrastando, para a margem do rio, o
corpo pesado de um homem com o peito varado de bala, a cara inchada, os beiços comidos
pelos siris”.
Na rede da oceanografia, alguns crustáceos trazem enfoques bem diferentes um dos
285
outros. O caranguejo ‘aratu’ [Goniopsis Cruentata], a exemplo, costuma esconder-se nos
galhos das árvores de mangue; não cava buraco na lama; quando a maré desce, costuma
buscar alimentos. Vale observar que o hábito de escalar as copas de mangues serve não
para resgatar alimentos, mas também para escapar dos predadores.Em nossos dias, a carne do
aratu é comercializada a preço de ouro em diversos restaurantes do mundo-mangue. Esse tipo
de crustáceo é bastante valioso ecologicamente e também disputado nos diversos sabores e
cardápios das iguarias nordestinas. Para os povos dos mangues, esse tipo de caranguejo
contém fontes protéicas das mais ricas e importantes, além de ser imprescindível na
manutenção dos manguezais, quando oxigena o sedimento. Os apreciadores da moqueca de
aratu, mal sabem que para cada quilo desse crustáceo se faz necessária a captura de pelo
menos 100 aratus.
69
Conforme de Moura [2001:4-5]:
De locomoção rápida, possui uma dieta alimentar que inclui vegetais, detritos e
outros animais, que podem ser de espécies diferentes ou da mesma. Leme (1995)
afirma ser G. cruentata um grande predador da área de manguezais, observando-o
predando um indivíduo da mesma espécie e o caranguejo Aratus pisonii, fato esta
também observado por Díaz & Conde (1989). Mckee (1995) cita-os como exímios
predadores de propágulos das espécies Rizophora mangle (Linnaeus), Avicennia
germinans (Linnaeus) e Laguncularia racemosa (Gaertn) em manguezais na região
de Belize (América Central).
O caranguejo ‘goiamum [Cardisoma guanhumi] vive distante da lama. Ao expor uma
carapaça fosca azulada, é mais conhecido popularmente como “Guiamum”. O caranguejo
guaiamu, na poesia de Josué de Castro [2001b: 52], tem o casco e os olhos azuis [...], uma
raça de caranguejo bem-nascido, bem criado, bem nutrido”. Devido à cor azul, acredita o
autor de Homens e caranguejos’ que esse tipo de caranguejo carrega nas veias um sangue
azul. Em algumas comunidades ribeirinhas, o goiamum é reconhecido como caranguejo em
fase de extinção, pois é difícil de ser encontrado. Guaiamu é um caranguejo de raça
ariana”, observa o sociólogo Josué de Castro [2001b: 52] na fala do personagem Padre
Aristides.
Escondidos, em algum buraco de areia, vivem completamente exilados os últimos
vestígios da espécie de caranguejo ‘Maria-farinha’. É uma espécie quase extinta e bastante
69
Atualmente, duas portarias federais que protegem a captura de caranguejos. A primeira delas é a de
número 34, elaborada em junho de 2003. Nela, fico estabelecido a proibição da captura de caranguejos fêmeas
nos períodos do mês de dezembro a maio e nos ‘dias de andada’, quando os caranguejos deixam as galerias
para se reproduzirem. A segunda portaria estabelece proibições na captura de crustáceos que tiverem carapaça
menor que 6cm. Nessa portaria, também fica proibido o uso de redes na captura ou outro utensílio que não seja
de uso manual.
286
pequena; tem corpo miúdo, um olhar esperto que serve para denunciar o perigo à vista ou a
prazo. Também é conhecido, na Florida, como o caranguejo ‘Toupeira Emerita’, “um dos
mais notáveis, é capaz de recuando, se afundar na areia em poucos segundos. Estes animais
alimentam-se estendendo as antenas plumosas por cima da areia e recolhendo o plâncton
trazido pela água quando a maré sobe” [ODUM, 2004:539].
Os caranguejos do tipo á são bichinhos esquisitos, lembram muito uma aranha
gigante, cujas patas parecem tesouras de cortar gramado. “Caranguejos iguais a eles mesmos
desde a pré-história, através de mortes e nascimento, pareceriam bestas ameaçadoras se
fossem do tamanho de um homem”, assim destaca a escritora Clarice Lispector [1998: 14-15]
nas páginas de seu livro Água viva. Alguns caranguejos trazem na carapaça um brilho de sal e
de sol. A cor tende para um amarelo bronzeado quase ‘amarelo manga’.
70
Esse tipo de
crustáceo anda na lama como quem corre de muleta. Cavam pequenos buracos, constroem
galerias com metragem aproximada de 0,1 cm de diâmetro e profundidade que vai de 0,6 a 1,5
cm. Fazem, com isso, a aeração do lamaçal, fornecendo a renovação dos nutrientes das
profundezas da lama, facilitando a circulação da água e, também, fornecendo a proteção a
microorganismos. O caranguejo é vigia do manguezal e vivem antenados com seus faróis
acesos a qualquer vestígio de agressão ao mangue. Muitos desses crustáceos contribuem
também com suas carapaças que servem como elemento medicinal para a diminuição do
colesterol.
Nos mapas astrológicos, o zodíaco também abriga o caranguejo uçá, simbolizado pelo
signo de Câncer na quarta casa solar. Das águas profundas, o signo do caranguejo rege
aqueles que nascem entre 21 de junho a 21 de julho. O diálogo entre o caranguejo uçá e a
astrologia tem muito a ver com os mitos da Grécia. Contam os gregos, que Héracles era filho
de Zeus com Alcmena [esposa de um militar tebano]. Quando Hera soube da traição de Zeus,
jogou sobre Héracles toda sua fúria. Intencionada a destruí-lo, fez de um tudo para eliminar o
pequeno herói. Certo dia, Hera lançou sobre ele um grandioso ataque de loucura que o fez
assassinar a própria família. Como castigo pelo crime cometido, Héracles foi trabalhar para
Euristeu que, seguindo as ordens de Hera, obrigou racles a concretizar doze impossíveis
missões. Uma delas estabelecia contato com Hidra, animal de várias cabeças que habitava a
lama movediça dos mangues de Lerna. Para dispersar ainda mais o filho de Zeus, Hera enviou
um caranguejo imenso para atacá-lo, mas Héracles reagiu ao ataque e acabou vencendo a
70
Termo recolhido do filme pernambucano “Amarelo Manga”.
287
batalha com o crustáceo. Em dupla homenagem pelo reconhecimento dos trabalhos a ela
oferecidos, Hera introduziu a imagem do caranguejo no firmamento e inseriu Hidra em uma
constelação nas proximidades de Câncer: formada por seis estrelas e localizado no
hemisfério norte, Câncer compõe 88 constelações” [MELO FILHO, 2003].
Descendo das raízes, alguns caranguejos gostam de sair da toca, ‘quando a noite cai’.
Desconfiados, costumam deixar as galerias em momentos que se sentem menos ameaçados de
serem capturados. Quando acuados, por algum predador, costumam fugir em disparada para
dentro dos buracos de lama. “Passado o susto, retorna à sua atividade. Porém se o perigo
persistir, ergue-se sobre as pernas e estica suas grandes e fortes garras na tentativa de se
defender” [SCHAEFFER-NOVELLI et al, 2004:30].
O IBAMA tem controlado o consumo de caranguejos durante a fase de acasalamento e
reprodução da espécie. A fiscalização e proibição à caça predatória da espécie fêmea
acontecem entre os meses [que contém a letra “R”] que vai do final de dezembro a abril na
chamada “Fase da Andada”,
71
época em que a fêmea entra em período fértil.
A fase em que o caranguejo fica de “Andada” ocorre na primeira lua de janeiro. É
evocada, aproximadamente uma semana antes, pelos machos que começam a espumar. Esses
produzem uma espuma branca que sai pela boca e escorre até a abertura dos buracos na lama.
O cheiro dessa espuma lembra o cheiro do caranguejo cozido. “Quando o caranguejo está para
andar o mangue solta um cheiro muito bom” comentam as marisqueiras envaidecidas. Entre
dúvida e hipóteses, quem defenda que o cheiro do caranguejo no cio seja um tipo de
“feronômio” cuja função é de estimular o acasalamento. No dia da lua grande, os caranguejos
abandonam as tocas e vagam pelo mangue por quase cinco dias em verdadeira andada. Nos
primeiros dias, desfilam as fêmeas; nos três últimos os machos que saem à caça embriagados
pela mistura do cheiro do mangue com a energia da lua. Nesse período, o caranguejo
apaixonado perde o instinto de direção e de defesa. Em muitas situações, invadem, até
mesmo, as casas das pessoas que vivem ao redor do manguezal. Josué de Castro fala sobre os
caranguejos, na fase de andada, invadindo sua casa em Madalena no incio do livro Homens e
caranguejos.
Andar em um bosque de mangais durante a ‘fase de andada’ não é uma tarefa que se
71
O grupo Nação Zumbi [1994], no começo da letra de música “Risoflora”, destaca a Fase de Andada de
maneira romântica: “Eu sou um caranguejo/ e estou de / andada Só / por sua / causa, só/ por você, só por/ você
/ E quando estou contigo/ eu quero gostar/ E quando estou um pouco mais junto eu/ quero te amar [...]”.
288
defenda. Primeiramente porque o manguezal durante a ‘fase de andada’ fica grávido; vira uma
espécie de maternidade anfíbia. Debaixo d’água, os mangues consagram o tempo a fazer
erotismo. Se olharmos bem, lama e água traduzem, aos olhos de Bachelard, um visgo de
sensualidade e sexualidade na encruzilhada do imaginário. O beijo molhado das marés
encanta a lama. À noite, corre um vento frio que desce a nuca das árvores que, segundo Josué
de Castro [2001b: 155], chega:
A esfregar seus galhos, uns nos outros, com infinita volúpia. A atolar suas grossas
raízes, com gozo, na lama garanhonha do fundo do rio. Chico afirmava ter mesmo
escutado, certas noites, o bailado nupcial dos mangues no fundo das águas, e o
estalar de seus caules membrudos gozando na carne da lama viscosa. Era um
trepidar violento de amor que terminava num orgasmo final, derramando as
sementes do mangue na água cheia, para fecundar as novas terras que surgiriam na
certa do ventre das águas.
À primeira vista, observam-se os caranguejos saindo meio embriagados sem rumo à
procura das parceiras. Muitos catadores se beneficiam desse momento para capturar as
fêmeas. O IBAMA aconselha a caçar apenas o macho durante este período, mas muitos
catadores ignoram as leis do mangue. “À beira do charco, acocora-se na lama e olha os
caranguejos imóveis feitos bois ruminando ao campo” [CASTRO, 2001b: 39]. A espuma
lembra muito bolhas de sabão. “Cada fêmea libera de 200 mil a 800 mil larvas sempre dentro
d’água” [ALVES, 2004:125]. Por essa época, o caranguejo fica fragilizado à procura de
alguma fêmea.
Pouco se sabe sobre a desova dessa espécie. O que é certo é que as fêmeas,
conhecidas popularmente como candurua, condurua ou condessa, depositam e
carregam os ovos aderidos às cerdas los do abdômen, até a eclosão. Alguns
dizem que as fêmeas, também conhecidas por ‘bacoas’ ou ‘tampudas’ quando estão
de ‘tufa’ ovadas - , escavam suas tocas entre as ‘gaiteiras’ risófora do mangue
vermelho - e ficam até a desova. É o que contam os pescadores do estado de
Sergipe [SHAEFFER-NOVELLI et al, 2004:31].
Após o período de fertilização, os caranguejos entram na fase de se tapar
72
que vai do
mês de maio ao mês de agosto. Nessa etapa, costumam fazer galerias mais profundas para
guardar alimentos [folhas de mangue]. Durante essa fase, o crustáceo enche as galerias de
folhas e tapam com lama, abrindo apenas um pequeníssimo furo para circular a respiração.
Nesse período, o caranguejo pouco se locomove; “acumula energia em forma de gordura, que
posteriormente será utilizado no processo de ecdise ou muda” [ALVES, 2004:126]. Quando o
alimento armazenado finda, eles saem do buraco, carregam mais folhas e retornam para o
72
Um antigo comprador relatou-me certa vez que os melhores meses para se comer esse crustáceo são aqueles
que não tem a letra R, ou seja, maio, junho, julho, agosto, pois nesses meses o caranguejo está mais gordo. O
caranguejo ‘sema’, como é chamado pelos caranguejeiros nesse período, é o mais difícil de capturar e o mais
gostoso de comer [ALVES, 2004:126].
289
esconderijo como um ritual de meditação antropofágica a se preparar para ficar de leite.
73
Depois é esperar a troca do casco
74
que acontece pelos meses de setembro, outubro e
novembro.
No final de agosto ou início de setembro, acontece uma espécie de andada fora de
época, quando uma grande quantidade de caranguejos abandona as tocas no interior
do mangue e migra em direção do ‘sapá’- área de transição entre o mangue e a terra
firme. Nesse local, eles vão cavar novas tocas e passar os próximos meses, até o
momento em que trocam de casco e crescem. No mês de setembro, os caranguejos
começam a ‘ficar de leite’. O leite é uma substância branca, leitosa, produzida pelo
organismo do caranguejo no período que acontece a troca de casco (ecdise). Esse
líquido fica entre o casco velho e o novo que começa a se formar [ALVES,
2004:126].
Assim como as fases das marés seguem o ciclo da lua, a vida dos caranguejos segue as
fases lunáticas. A cada etapa do ano, “existe uma estreita ligação entre o ciclo de vida dos
caranguejos e o ritmo de vida dos caranguejeiros.“Os caranguejeiros calculam que um
caranguejo leva cerca de sete anos para ficar grande” [ALVES, 2004:127].
Nas profundezas dos mangues, alguns caranguejeiros desinformados esperam pelo ciclo
das marés baixas para estender as ‘redinhas’, armadilhas feitas com sacos plásticos. Essas
redinhas são proibidas pelo IBAMA, pois os fios ‘desequilibram’ o meio ambiente. Em
muitas situações, os caranguejeiros esquecem de retornar ao manguezal para retirarem as
redinhas. Quando isso acontece, a maldade se amplia dentro do bioma, pois os crustáceos
acabam morrendo sufocados agachados entre os fios feitos com saco plástico. As
comunidades ribeirinhas reclamam muito dessa prática ilegal de captura de caranguejos.
Para a colheita na lama, mulheres se vestem de mariscos. Marisqueiras atolam o corpo
de lama, deslizam dentro d’água ou por cima das raízes grossas à procura de ‘Ucides’
75
verdadeiros Ulisses da lama. O cuidado com as facas afiadas das ostras é sempre outro
desafio. Os cortes causados pelas folhas de ostras são tão profundos que demora uma lua
inteira para sarar. As ostras levam nove meses para crescer. As marisqueiras, conhecedoras
desses ambientes, são conhecedoras de ostras, sabem que as conchas são bastante sensíveis às
agressões do meio ambiente.
73
Segundo os catadores de crustáceos, o ‘caranguejo de leite’ não deve ser comido, pois poderá causar diarréia
e, no caso de mulheres grávidas, seqüelas no bebê. [ALVES, op.cit].
74
O caranguejo fica no fundo do buraco, abre-se ma fenda na parte posterior da carapaça e, lentamente, o
caranguejo começa a sair. Neste momento, o caranguejo está totalmente mole, coberto por uma fina camada de
membrana como se fosse uma gelatina. O seu corpo absorve água e incha. O casco novo começa a endurecer
e, após 12 a 18 horas, o animal está com a nova carapaça endurecida [ALVES, 2004:127].
75
Referência ao nome científico do caranguejo uçá [Ucides Cordatus].
290
Para Schaeffer-Novelli et al [2004:25]: “Boa parte das proteínas das populações
ribeirinhas, como os caiçaras, vem dos manguezais. Durante a maré baixa, mulheres e
crianças saem à cata de mariscos, que vivem enterrados na lama, e de ostras, que ficam
fixadas aos rizóforos do mangue-vermelho”. O ouro da lama são ostras e maricos. Perto da
memória do rio, algumas das ‘sabenças’ que os povos da lama conhecem, antes daqui, nos
esconderijos dos sambaquis, entre teias de ostras, a tribo dos Tupinambás costumava associar
os caranguejos ao Deus da fertilidade. “Embora não saibam os homens explicar como o
mangue realiza este milagre de criar a terra como se fosse um deus” [CASTRO, 2001b: 13].
Em Chico Science & Nação Zumbi [1994] o caranguejo retoma a metáfora da miséria
estarrecida:
O sol queimou a lama do rio
Eu vi um xié andando devagar
Eu vi um aratu pra lá e pra cá
Vi um caranguejo andando pro sul
Saiu do mangue, virou gabiru
Oh Josué, eu nunca vi tamanha desgraça.
Vejamos que nas letras de um Chico Science a forma de enxergar o homem do
manguezal é diferente de Josué de Castro que via na secura da lama as conseqüências da seca
nordestina. Josué de Castro vê na própria lama o legado de dizimação de uma nova espécie: o
homem-gabiru. Entre o dizer e o nomear, o poeta registra as transformações ocorridas na
cidade do Recife e o aparecimento de um novo morador de ruas sendo devorado pela fome de
comida e de expressão. A lama vai ganhando outros sentidos e mesmo longe de uma nova
consciência ambiental surge o homem gabiru saindo dos buracos dos mangues para habitar as
tocas dos morros. O homem gabiru sai dos mangues para morrer nos morros.
Em Josué de Castro, o homem gabiru encontra-se privado de seu alimento essencial: a
dignidade de ser ‘ser-humano’. Como um grande rato enfurecido, o homem gabiru traz no
rosto a cicatriz da cidade-mangue. São corpos que trazem um semblante calejado pela
indiferença. Corpos agressivos e desconfiados que andam pela cidade com uma pelugem
escurecida pelo sol e que come quando restos. O homem-gabiru de que fala Josué de
Castro e Chico Science encontra-se inserido diante de um sistema que não está nem um pouco
interessado em resgatar. Corpo-mendigo, que anda sempre esfarelando os detritos da vida em
uma procura intensa por latas e depósitos de lixo.
“Ratos são rizomas. As tocas o são como todas as suas funções de habitat, de provisão,
291
de deslocamento, de evasão, de ruptura” [Deleuze; Guarttari, 2004: 15]. Ao sair da toca, os
ratos saem com seus corpos que simboliza o retrato mais cruel da mais desumana
humanidade. “Há rizoma quando os ratos deslizam uns sobre os outros” [idem]. São rizomas-
ratos virando bicho na imundice do aterro. Os homens-gabirus comem, em última instância,
barro e detrito para saciar a fome. Os gabirus são corpos esquálidos e miseráveis que
atravessam os sinais à espera do “bolsa família” na celeuma das ruas. São velozes ratazanas
que, a qualquer descuido, roubam a cena do imprevisível, para barganhar alguns trocados dos
que flanam descontraídos, esbanjando-se em bolsas de ‘neo-valores’. “Posso sair daqui pra
me desorganizar/ Posso sair daqui pra me organizar/ Da lama ao caos/ do caos à lama/ Um
homem roubado nunca se engana” [CSNZ, 1994].
Os homens gabiru de Josué de Castro e de Chico Science são bilontras de uma grande
teia subterrânea de pobreza mesmo. Não é brincadeira o que toda essa gente passa e vive. São
homens gatunos que trazem no corpo um tipo vida abortada antes mesmo de nascer. São
aqueles sem cidadania, sem futuro próximo. São homens-lixo de uma cidade-mangue que se
animalizou. São homens endurecidos, morando com ratos como se fossem gabirus nos
esgotos urbanos. São pequenas cobaias de um sistema que furta para chegar ao menor lugar.
São homens da rua eternamente perseguidos pela policia. São réus reincidentes que se
assemelham às cadeias de assaltos, farejando novos crimes, no meio da fedentina dos
presídios. São homens-ratos comparados aos dejetos que se espalham entre caixotes de lama e
paredões de esgotos. Em verdade, o homem-gabiru é metáfora que simboliza a condição
alarmante e desumana dos homens caranguejos no tempo contemporâneo.
Se houve uma mudança quantitativa, na passagem da metáfora original homem-
caranguejo para a nova metáfora homem-gabiru, o mesmo não se verificou no
âmbito qualitativo, ambas as espécies constituem exemplos de homens particulares,
vinculados à reprodução da vida cotidiana [MELO FILHO, 2003].
Os olhares de Josué de Castro e Chico Science não suavizam o enfoque crítico, pelo
contrário, reforçam a metáfora pela hipérbole para observar de perto a condição dos povos dos
mangues. Em verdade, ver o manguezal como lugar de fedor, é observar o quanto de lixo
debaixo das palafitas que também contribuem com o descaso de uma enxurrada de problemas
sendo jogados dentro dos rios. Problemas, em grande parte, varridos para debaixo do tapete.
A ecologia lida com uma questão principalmente cultural. A visão sobre os mangues tem
mudado a maneira de encarar a natureza do mundo. “Por falta de conhecimento do seu valor
ecológico e de sua potencialidade como produtor de alimento, tem sido sistematicamente
destruído e o homem se transformou no principal agente causador dos impactos ambientais”
292
[SILVA, 2003:5].
conexões que os seres do mangue estabelecem dentro da natureza que os mantêm
protegidos e interligadas às leis do meio ambiente. Do outro lado, existem determinados tipos
de fungos [exophiala] que matam lentamente o caranguejo uçá. Além desses fungos,
também poluentes indústrias, contaminação de petróleo que invadem os mangues e dizimam
comunidades inteiras de seres vivos. Muitos caranguejos, como vimos, morrem também
devido, principalmente, à sobrecarga de elementos químicos liberados pelos viveiros de
carcinicultura.
A preocupação que podemos ter com os caranguejos não se limita, apenas, em aprender
sobre o local onde os mesmos vivem, mas compreender de que forma homens e caranguejos
estão encaixados no ambiente natural, social, cultural, econômico de um mundo globalizado.
Desconfiar dos olhares indisciplinados, perante as questões ecológicas, é uma característica de
nossa época [repleta de barbárie por todos os lados]. Entre a desconstrução da afetividade, o
olhar urbano carrega na expressão o exercício da desconfiança e a celebração da esperteza.
Cada vez mais “há muitos meninos correndo em mangues distantes/[...]/ esse mangue de
longe que tu vê/ é apenas a imagem que é tu” [CSNZ, 1996].
7.1 Do cais à lama da lama ao cais:
76
a travessia das Marisqueiras
Caranguejo não é peixe
Caranguejo peixe é
Caranguejo só é peixe
Na enchente da maré. [FOLCLORE POPULAR]
A imensa porta do mangue convida poetas, mulheres catadoras e pescadores a entrar no
portal da lama. “Espaço, minério, chama/ dormiram nos teus abismos/ que esqueceram flor e
missa/ no mangue, gerando escasso/ a pedra que planta o deus”, escreve a poetiza paraibana
Rejane Sobreira [1999:17; grifo nosso] no livro ‘Aranha de breu’.
“Há mulheres que se pintam de caulim/ nas costas do marfim/ para um deus louvar/ Eu
também me pinto para o luar em mim/ a prata derramar.”
77
mulheres que se pintam de
76
Termo de Francisco José Bezerra Souto, pesquisador da Universidade Estadual de Feira de Santana. In: http://
www. sbee.org.br/galer. html.
77
Letra de Vânia Borges, no cd Pérolas aos povos [1999], da compositora Rita Ribeiro, Maranhense que
trabalha misturando ritmos de reggae, coco, merengue, carimbó, salsa, bolero, forró, pop às batidas de bumba-
293
lama para mariscar as esquinas líquidas cobertas de ostras e poesia. Essas mulheres ostras
vêem os rios como parte do próprio corpo, teia de encontros, bênção de deuses, como diz um
poemeto de Luísa Leite [2002: s/p]: “placentas assentadas/ nas crateras despovoadas/ carrega
o mar/ todas as mães do mundo/ no ventre de deus”.
E, dentro do mangues, o discurso feminino é reescrito com a própria memória do corpo.
A mulher vai à luta em busca da identidade feminina, liderando movimentos ecológicos. A
importância da rebeldia de Leila Dinis pousando para a fotografia enquanto um grupo de
feministas queima sutiãs em praça pública, ainda é referência importante para uma parte da
história da mulher brasileira. Com isso, dava-se margem a uma narradora que, por muito
tempo, foi destituída de falar e poder. O ecofeminismo surge para denunciar a natureza
patriarcal de um sistema que camufla o lado opressivo da sociedade civil. Em busca de um
traço feminino, questões como ecologia, aborto, anticoncepcionais e sexo com camisinha,
vêm à tona. A aids muda o tabu, o preconceito. Voz passiva encontra caso oblíquo. A mulher
deixa o tanque e o fogão para defender a natureza do mangue. Sabe o que é isso, ser
marisqueira, ser dona de casa, mãe, esposa, mulher, líder comunitária? Quantos desafios e
tarefas a mulher que cata mariscos possui. Se marisqueiras ganham mais espaço na ecologia
dos manguezais, muitas escritoras brasileiras também passaram a ganhar mais espaço na fala
da poesia. Uma estante que, em nossos dias de pós-alguma coisa, arrumam-se de muitas falas,
jeitos, sotaques, como: Conceição Evaristo, Helena Kolody, Isabela Allende, Marysé Condé,
Marguerite Duras e Youcenar, Toni Morrison, Elisa Lucinda, Sônia Coutinho, Adélia Prado,
Zulmira Tavares aos Rios turvos de Luzilá Ferreira Gonçalves. Dentre uma bibliografia
extensa, em algum lugar do subúrbio, a poesia contemporânea diz muito a que veio e abre
espaços para os novos caminhos da palavra na série de cartão-postal ou zines. Uma estante de
expectadoras, atrizes e narradoras de uma estética híbrida que privilegia uma escrita do ponto
de vista das minorias. Em suas ‘Escrituras híbridas’, Bernd [1998,47] insere que a literatura
pós anos 60, pós-moderna, extrapola os limites formais e conteudísticos tradicionais. A
fronteira entre gênero é rompida. O gênero híbrido, a exemplo, que incorpora desde gêneros
considerados não literários até códigos de outras áreas de expressão, é reinstalado dentro das
obras de arte. Contextos e discursos múltiplos são inventados na tentativa de por meio deles,
reconstruir o passado, o presente.
Às margens da minoria, as marcas de exclusão se fazem presentes em diferentes
meu-boi.
294
recortes de identidades, de culturas excludentes. Segundo Júlia Kristeva, a partir da revolução
feminista, vozes da minoria vieram a público. Nas tascas sociais da palavra, o vazio é
percebido, a lacuna se alija, a fragmentação se formaliza. De ‘faxineiras da história’,
passamos a deixar nossa marca na família, amigos, amantes e bio-diversidade-de-mundos-
mangues.
Maré alta, maré baixa
caranguejos pra valer,
em cima do verde mangue
uma cidade a nascer
[ANDREATA, 2004:81; grifo nosso]
Essas mulheres-Poetas carregam suas ostras sobre o breu da lama que o mangue
luminoso/ transborda siris e luas/ na testa do pescador. / E as mulheres que estão nuas/ quando
nascem respiram/ os barcos que andam sem rumo/ na maré feita de dor” [SOBREIRA,
1999:20; grifo nosso]. O mangue não reduz a fala de poetas que com suas líricas transformam
o manguezal em estrada e canções. “As casas estavam mortas/ quando o mangue estremeceu/
e dentro da noite surgiram tantas mãos e feiticeiras/ que a floresta adormeceu” [SOBREIRA,
1999: 21; grifo nosso]. O lirismo não se perde dentro do mangue e, o que poderia ser um
trabalho dificultoso para as mulheres mariscos, ganha terreno no território da escritura.
Sou pontes, sou granito, sou letreiros,
Sou mangues, sou barcaças, sou cantigas
Desenhando petróleo na torrente.
Sou o rio que compõe os seus barqueiros
Dos soluços da margem que ora cantiga
Gera flores e lama indiferente.
[ZILA MAMEDE, 1983:115-116; grifo nosso].
Para as mulheres do mangue, que lidam com um ritmo de atividade inconstante, seus
recursos são os pés e as mãos. Seus conhecimentos são trazidos pelo manguezal. Mariscar é
uma missão que retira ferramentas do próprio corpo; é recriar as flores da própria lama e gerar
filhos-poemas na voz das mulheres dos mangues: “Jangadeiro é peixe verde/ no mangue que o
comeu/ e as conchas [grifos nossos] formam correntes/ pensando que anoiteceu”
[SOBREIRA, 1999:24].
Como todas as profissões associadas à marginalidade, exclusão social, contradições
econômicas, a prática da mariscagem tem recebido, ultimamente, a atenção principal dos
estudiosos do manguezal. Os órgãos de pesquisa ambiental têm escutado as comunidades de
marisqueiras e catadores simplesmente para entender melhor os problemas que regem o
295
ambiente costeiro.
78
“É, antigamente a gente não dizia que era mulher marisqueira, ninguém nem tinha esse
negócio, todo mundo tirava os seus mariscos, pescava, mas não diziam que era mulher
marisqueira, nem que era mulher pescadora” [Gorete – 42 anos, Marisqueira, jan. 2002].
79
Na percepção de Diegues [2000, 79-80], historicamente, as diversas formas de
utilização da natureza, sobretudo, nos países subdesenvolvidos requerem pesquisas mais
demoradas sobre as relações desses países com os recursos naturais. Levando-se em conta que
nesses lugares as comunidades silvícolas e camponesas estão interligadas, muitas vezes, aos
interesses da sociedade urbano e industrial. Para Diegues [idem] grande parte da flora e fauna
tropical ainda não foi destruída pela invasão capitalista, por ser ainda habitada por
comunidades bem diferentes das sociedades industrializadas, ou seja, por “sociedade
extrativista, ribeirinhos, grupos e nações indígenas. Muitas delas ainda não foram totalmente
incorporadas à lógica do lucro e do mercado, organizando parcela considerável de sua
produção em torno da auto-subsistência”.
Se antes não se demarcava um dia de trabalho apenas pelo dinheiro, mas pelo roteiro da
lua ou pelos ponteiros da maré, agora, a possibilidade de se retirar alguma recompensa do que
oferece a lama torna-se possível, contanto que o respeito à natureza seja mantido e o uso do
meio ambiente, auto-sustentável e não devastado.
A terra da lama acolhe sem piedade a luta de mulheres-mariscos que vivem em diálogo
constante com as leis da natureza, “margem adentro / aruá fecha o brejo/ floresta se
decompõe/ rio se descostura / mangue-vermelho/ mancha pau brasil” [LIMA, 2003:59]. Para
retirar das raízes o sustento, pela coleta de crustáceos e mariscos catadores e caranguejeiros,
tornam-se grandes defensores do meio ambiente. Antes se retiravam as ostras cortando as
raízes dos mangues. Muitos desses mangues, ao terem as raízes cortadas, não sobreviveram.
Atualmente, existem as criações de ostras que, além de ser de fácil remanejo, a coleta é,
ecologicamente, mais saudável. Alguns depoimentos são colocados pela fala das
necessidades: “Cheguei em 58, acabei de criar meus filhos aqui. Pra de comer pros meu
filho, tinha que ir pros mangue. Nesse tempo era isolado, não tinha comércio não. E nessas
78
Na praia de Fortim-CE, uma comunidade de ribeirinhos chegou a eleger, nas últimas eleições, a marisqueira
Luzirene [Lelete], 42 anos, para vereadora, visando defender a ecologia e as comunidades que sobrevivem do
mar.
79
In: CAVALCANTE, Gustava Bezerril. Mulheres do mangue: trabalho, memória e cotidiano das
marisqueiras de Fortim – CE. Fortaleza: Dissertação de Mestrado, em História Social, 2004, pág 48.
296
eras, eu sempre trabalhava nos mangue!” [Sebastiana, 72 anos, marisqueiras, abril de 2003].
80
O trabalho no manguezal exige ‘re-ligação’ de saberes e afetos, valores, trocas afetivas.
Mundo de gente em luta por dias melhores. Mariscar faz parte da cultura dos povos
ribeirinhos, que conhecem da frente para trás a alma da lama. Uma atividade que ainda é vista
com certo nojo ou desdém por aqueles que não conhecem o valor afetivo e comercial de uma
profissão, que retira da lama os ovos de ouro. Com o suor do corpo enlameado, a labuta das
marisqueiras se dentro do lamaçal, por um trabalho que se volta, principalmente, para a
conservação do manguezal. Para Schaeffer-Novelli et al [idem]: “As marisqueiras, como são
chamadas, levam para o manguezal uma muda extra de roupa para voltar para casa. ‘Isso
mudou’, conta o secretário. Agora elas andam orgulhosas com suas roupas sujas de lama”.
Ao longo da travessia histórica do mangue, as marisqueiras utilizaram a atividade de
catar marisco como alternativa para manter a família. Não faz muito tempo que o comércio de
ostras despertou o sabor da mesa comercial. Com ele, observam-se mudanças no mundo
ambiental e transformação nas catadoras com relação às leis da maré. O que era apenas
atividade feita na brincadeira passou a representar trabalho ecologicamente sério dentro do
ecossistema mangues. Para muitos, mariscar é símbolo de sustentação, teia de sonhos em
construção, saídas para faltas de alternativas, luta para sair do estado de pobreza em que se
encontram muitos dos que penetram na lama dos mangues.
[...] As coisas começaram a mudar; a gente começou a conseguir aposentadoria de
marisqueira, começamos a atualizar os documentos que antes eram atrasados desde
1990, os pescadores se organizaram mesmo, todo mundo com seus documentos, aí
veio uma luta pelo seguro desemprego e a gente conseguiu, o seguro desemprego
dos pescadores, não só aqui nesta praia; mas em todas as outras praias. [Maria do
Aquino, Marisqueira, 52 anos, dez. de 2001].
81
Para Castro [2001b: 13-14] essa sociedade que, economicamente, também é anfíbia,
pois vegeta nas margens ou bordas de duas estruturas econômicas que a História, até hoje, não
costurou um mesmo tecido: a estrutura agrária feudal e a estrutura capitalista. Estruturas que
persistem no Nordeste do Brasil, lado a lado, sem se fundirem, sem se integrarem num mesmo
tipo de civilização. A civilização de homens-mariscos persiste de forma mais emblemática em
nossos dias:
80
In: CAVALCANTE, Gustava Bezerril. Mulheres do mangue: trabalho, memória e cotidiano das
marisqueiras de Fortim – CE. Fortaleza: Dissertação de Mestrado em História Social, 2004, 199 pág 81.
81
In: CAVALCANTE, Gustava Bezerril. Mulheres do mangue: trabalho, memória e cotidiano das
marisqueiras de Fortim – CE. Fortaleza: Dissertação de Mestrado em História Social, 2004, 199 pág. 122.
297
As catadoras de mariscos também exercem o papel de protetoras das zonas
costeiras dos mangais. Muito do que se sabe sobre esse ecossistema deve-se à
contribuição dessa gente. Sem o conhecimento dessas mulheres do mangue, entrar e
sair dos mangais torna-se quase impossível. Graças à sabedoria das comunidades
ribeirinhas passamos a enxergar o mangue como: fonte artesanal, beleza,
alimentação, lazer, moradia, local de pesca, lugar de vida marinha, ambiente
medicinal, viveiros de carcinicultura e aquicultura, piscicultura, além de servir para
criatórios de abelhas, ostra, depósito de lixo para alguns, raízes de etnias para outros.
“As raízes, verdadeiras mãos que saem da terra, da lama e se lançam ao ar, como
pedissem algo, talvez pela luz do sol, talvez pela continuidade da vida, também
fazem parte do contexto do manguezal, pois compõem os espaços, preenchendo e
sustentando a vida [CAVALCANTE, 2004:55].
Graças ao papel da educação ambiental desenvolvida por marisqueiras, entidades
governamentais e não governamentais comprometidas com questões socioambientais bem
como ao auxílio do IBAMA nas zonas costeiras juntamente com pescadores,
82
se desperta
para a problemática de que a exploração indevida resulta em escassez da natureza e extinção
de espécies: “Você vai lá tira as ostras, mas você não corta a raiz, então você tá tirando e você
tá conservando” [Maria Aquino, Marisqueira].
83
Longe do olhar dos povos dos mangues, a costa marítima é explorada sem critérios. O
trabalho das marisqueiras é importante por representar uma proteção à história individual e
coletiva dos manguezais. Lentamente, vendida a carcinicultores ou a grandes empresários da
rede turística com o aval de políticos, sem a rede de denúncias e controle das comunidades
ribeirinhas, a orla do mar talvez estivesse em situação de total descontrole ambiental. As
conseqüências disso são alarmantes: marisqueiras e pescadores sendo expulsos dos locais dos
quais retiram sustento e trabalho para darem lugar a uma cadeia de grandiosas redes hoteleiras
no litoral do Brasil. Mas nem tudo está perdido. “Afinal, se é atribuído um valor à natureza,
com certeza um caminho aberto para o desenvolvimento de ações que apontem para sua
conservação” [CAVALCANTE, 2004:89].
O manguezal é vida para as marisqueiras e caranguejeiros. O mar é atividade para o
exercício físico de pescadores. O que não invalida, mundo afora, existirem algumas mulheres
pescadoras. As catadoras de mariscos não compreendem a natureza apenas como fonte da
qual retiram suas conchas de sobrevivência. Para as mulheres que vivem na [e da] lama, a
82
Em Fortim, os homens não se autodenominam marisqueiras, preferem ser conhecidos como catadores de
caranguejos. Nem mesmo depois da conquista da aposentadoria e de toda a projeção que o grupo de
marisqueiras passou a ter, os homens que também trabalham no mangue procuraram se afirmar dessa forma
[idem 86].
83
In: CAVALCANTE, Gustava Bezerril. Mulheres do mangue: trabalho, memória e cotidiano das
marisqueiras de Fortim – CE. Fortaleza: Dissertação de Mestrado, em História Social, 2004, p. 74.
298
condição humana não está dissociada do meio cultural e social dos mangues. “Como
poderiam, então, as mulheres estar à margem da história das comunidades litorâneas, se as
mesmas inspiram esta relação de correspondência simbólica com a natureza, assim como
também contribuem efetivamente para a continuidade da vida no litoral?” [CAVALCANTE,
2004:31].
O mar e o mangue são, muitas vezes, explorados de forma bastante destrutiva pelo
sistema capitalista. A cata de crustáceos e moluscos não deve apenas atender às leis das cifras
comerciais, mas às leis ambientais do manguezal. As leis do mercado nos têm levado a tratar
o meio ambiente como parte separada do ser humano, injustamente, para explorá-lo em
benefício próprio. Enquanto isso, o mangue vai arrastando-se, acachapando-se como os aratus
sempre para dentro dos galhos rugosos. “Homem-guaiamu / pele de argila/ atola a alma na
lama/ desliza de leve o pé/ corpo parece porco/ sabe onde fica/ buraco-negro/ nicho de
caranguejo” [LIMA, 2003:40]. Lama vai fiando-se nos afogados como a carapaça do
caranguejo uçá tapados na beira da água. “A crença segundo a qual todos esses fragmentos
em nós mesmos, no nosso meio ambiente e na nossa sociedade são realmente separados,
alienou-nos da natureza e de nossos companheiros humanos, e, dessa maneira, nos diminui”,
alerta Capra [1996:230]. Como resgatar nossa humanidade, de agora para frente, se não
recuperarmos nossa poética da relação”, ou descobrirmos a teia da vida e experimentarmos
viver mais felizes em conexão com a natureza do mundo e do homem, sem discriminação a
nenhum ser, seja esse verde amarelo ou azul. Necessitamos nos tornar ‘ecologicamente
alfabetizados’. “Ser ecologicamente alfabetizado, ou eco-alfabetizado, significa entender os
princípios de organização das comunidades ecológicas (ecossistemas) e usar esses princípios
para criar comunidades humanas sustentáveis” [CAPRA, 1996:231]. O órgão público
responsável pelos mangues, o IBAMA, busca alternativas viáveis, juntamente com as
comunidades de catadores e marisqueiras para a conservação do ecossistema mangue e
sobrevivência das comunidades ribeirinhas. “Para tanto, os povos do mar precisam se fazer
ouvir e também precisam desenvolver ações que os favoreçam” [CAVALCANTE, 2004:168].
A função de pescadoras do mangue, de forma lenta, ganha novos olhares,
principalmente, quando os valores ecológicos entram em questão. Atualmente, as
comunidades ribeirinhas fazem do manguezal, não apenas, local de trabalho; agrega-se tudo
isso às lições ambientais que esperam por mais reconhecimento e por leis mais severas que
possam punir aqueles que desrespeitam o meio ambiente. “Aqui, a lição para as comunidades
humanas é obvia. Um dos principais desacordos entre a economia e a ecologia deriva do fato
299
de que a natureza é cíclica, enquanto que nossos sistemas industriais são lineares” [CAPRA,
1996:232]. Para conseguirmos um meio ambiente sustentado ecologicamente, precisamos
recuperar os padrões cíclicos ‘ecos-sistêmicos’ e replantar novos paradigmas à atividade
política, econômica, comercial. O fotógráfo André Alves [2004:145-146], em suas pranchas
de mangue, chega a observar os lucros e assaltos cometidos nesses ecossistemas:
Se calcularmos que, de dezembro a maio, somente no município de Vitória - ES,
cerca de 85 pessoas capturem uma média de 25 dúzias de caranguejos por semana, e
no restante do ano, cerca de quarenta pessoas capturem doze dúzias por semana,
teremos um total de 53.440 dúzias de caranguejos capturados por ano, somente pelos
caranguejeiros do município. Tomando como média de preço da dúzia de R$ 5,00,
chegamos a uma renda anual de R$ 267. 200,00 para o grupo [...]. Se for incluída
nesse calculo, além da produção de caranguejos, a de siri, camarão, peixes, ostras,
sururus etc., provavelmente chegaremos, em uma área de 18 km² , a uma cifra de
mais de um milhão de dólares, ou seja, 55 mil dólares/ ano por quilômetro quadrado.
Essa é uma atividade superior à de muitas culturas agrícolas.
Não mais para aceitar o corporativismo de economista tratando como bens gratuitos
não somente o “ar, a água e o solo”, mas também a delicada rede de relações sociais que é
afetada pela expansão capitalista. Como sintetiza Capra [1996:233]: “os lucros privados estão
sendo obtidos com os custos públicos em detrimento do meio ambiente e da qualidade geral
da vida, e às expensas das gerações futuras”. Para o autor de O ponto de mutação, o mercado
nos fornece a informação de forma equivocada. “Há uma falta de realimentação, e a
alfabetização ecológica básica nos ensina que esse sistema não é sustentável” [idem].
Nos mangues, o espanto se estatela, se estabelece, porque o rio quando não leva, a
carcinicultura retira o trabalho de famílias inteiras que retiram da lama o pirão feito com caldo
de sururus. Celeiro lodoso em tensão permanente que acolhe a travessia do sertão para o
mangue ou do mangue para o sertão bem como recebe os passos de Moleque Ricardo’
84
fugindo da seca para comer ao menos o pão comunista na lama úmida, o ecossistema
manguezal torna-se cada vez mais preocupante.
No lamaçal, sertão vira mangue; manguezais transformam-se em homens e
caranguejos. Dentro do celeiro de lodo, engatinham os sururus enlambuzados pela garapa de
rapadura que desce do canavaial para os rios. Mangue vai arrastando-se, com os aratus para
dentro dos galhos da extinção. Lama vai fiando-se nos afogados como a carapaça do
caranguejo uçá tapados na charneca de água: “Grave/ é / crasear/ o ar” [LIMA, 2003: 55].
84
Ver Moleque Ricardo de José Lins do Rêgo e a relação do personagem Ricardo que saiu das fazendas de
engenho do interior para cair nos arredores do manguezal recifense. Observar o movimento dos padeiros na
Revolução de 30 e o governo de Epitácio Pessoa no remate da luta armada esquerdista que têm como desfecho
um fim injustificado em Fernando de Noronha.
300
7.2 Chico Science e Baudelaire: Ecos-urbanos das moderni-cidades
“MANGUETOWN”
Estou enfiado na lama
é um bairro sujo
onde os urubus têm casas
e eu não tenho asas
mas, estou aqui em minha casa
onde os urubus têm asas
vou pintando, segurando a parede do
mangue do meu quintal
manguetown
andando por entre becos
andando em coletivos
ninguém foge ao cheiro sujo
da lama da manguetown
andando por entre os becos
andando em coletivos
ninguém foge à vida suja dos dias da
manguetown
esta noite sairei
vou beber com meus amigos
e com as asas que os urubus me deram
ao dia
eu voarei por toda a periferia
vou sonhando com a mulher
que talvez eu possa encontrar
e ela também vai andar
na lama de meu quintal
manguetown
andando...
[CSNZ, 1996]
Stuart Hall, em seu livro ‘Da diáspora’ [2003], nos alerta que, desde que o mundo
criou asas e delimitou sua geografia nas cidades, as identidades têm se modificado pelos
mundos com vestígios que se encontram nas cascas da alteridade. Ao se observar a
encruzilhada de mangues, em Chico Science, percebe-se que as imagens dialogam com a
poesia de Charles Baudelaire.Vale lembrar que o título original do livro Flores do mal, de
Baudelaire, era inicialmente Limbo. O poeta da modernidade consegue ver no deserto das
metrópoles, o só a decadência do homem, mas a revisão de uma ecológica-mental.
Baudelaire é o primeiro poeta da modernidade a inserir em verso a questão do emblema
geográfico das cidades. “E a pedra, o cimento, em que se assenta a fábrica do universo é a
consciência” [PAZ, 1982: 267]. Ao flanar, entre diversos retratos da cidade parisiense, redige
um quadro valioso sobre a presença do lugar na modernidade perdida. O escritor celebra a
301
cidade como espetáculo de seres solitários e encontra nas ruas a pintura mais íntima do que
de pior na decadência urbana: a profunda falta de humanismo entre a espécie humana.
Cidade formigante, e que ao sonho se aviva, /Em que o fantasma ao sol nos agarra
o pescoço! O mistério por tudo é seiva que deriva/ Nos estreitos canais do potente
colosso, / No entanto, uma manhã em que na rua feia/ As casas a que névoa
emprestava brancor,/ Simulavam dois cais de um rio em plena cheia/E em que,
decoração como a da alma do ator./ Suja e amarela bruma enchia todo o espaço, Eu
ia, os nervos meus com heróicas tensões, E discutindo com meu espírito lasso,/ Pela
viela a vibrar dos graves carroções. De repente um ancião de pobres sacolas/
Imitavam a cor de um céu a tempestear,/ A cujo aspecto só choveriam esmolas,/ Se
não fosse o rancor que ardia em seu olhar [BAUDELAIRE, 2001:101-102].
Baudelaire evidencia a humanidade no sentido mais social do termo e encena no verso
as mazelas da condição humana, vivendo em profunda dicotomia cultural e contradição
existencial. Como diz Berman [1987: 17]: “Todos se colocam, freqüentemente, em
contradição consigo mesmos e tudo é absurdo, mas nada é chocante, porque todos se
acostumam a tudo”. Em ‘Flores do mal’, Baudelaire é o andarilho que, ao circular sem rumo
no meio da multidão, estabelece domicílio nas ruas das cidades, convictas da própria salvação
no mito do progresso. “O progresso se transformou no mito da cidade [GARCÍA MÁRQUEZ,
2005:44]. De qualquer modo, “o progresso não está assegurado automaticamente por
nenhuma lei da história. O devir não é necessariamente desenvolvimento. O futuro chama-se
incerteza”, assim observa Edgar Morin [2005:78].
Na dialética contemporânea, os cientistas denunciam a todo instante o grande abismo
destruidor, sentenciando a voz líquida do planeta mangue ao silêncio, mas quem escuta essas
vozes? Vivemos uma espécie de vingança de gaia, girando com todo vapor na direção de um
grande colapso ecológico. Sob a superfície aparentemente movediça da lama, deixamos
morrer rios, mangues, oceanos. E não nos cansamos de repetir, juntamente com outras vozes:
É preciso salvar os mangues! Quem sabe repetindo e repetindo outras pessoas possam
também, um dia, repetir com a gente: “No choro da gemedeira / no mangue ficará presa / [...] /
minha canção derradeira” [OLIVEIRA, 1987: 87].
Sob o signo da contradição, começa a partir de Baudelaire a preocupação de se tratar a
natureza das cidades como espaço criado a partir do movimento do homem em trânsito. Esse
cidadão tornar-se-á, cada vez mais, em sintonia com as fronteiras desiguais da urbe. E começa
na modernidade de Chico Science a preocupação de perceber amanguetown” pela fronteiras
desiguais das necessidades. Na musicalidade líquida do manguebeat, novas expressões
302
transformam terreiros de mangues em arranha-céu. O mangue-mundo, em Chico Science, se
encontra a partir dos muros que dividem a cidade-mangue em duas: “Borboletas se equilibram
no espaço/ um muro velho em minha face /uma cadeira flutua num espiral/ flores em minha
camisa numa tarde no bairro/ enquanto caminho nas ruas da cidade” [CSNZ, 1996].
Tanto Baudelaire quanto Science tateiam as palavras híbridas seja para falar dos
trapeiros do mundo suburbano seja para retratar a condição dos trapeiros dos mangues
periféricos. Paris e “Manguetown” comportam tanto a unidade, quanto à multiplicidade
desenvolvimentista. A fala da cidade-mangue se petrificar em slogans e “sofre assim a mesma
sorte da arte popular, convertida em artefato industrial, e a do próprio homem, que de pessoa
se transforma em massa” [PAZ, 1982:51]. O sentido que oferecemos à palavra
desenvolvimento contém resquícios e conseqüências de um subdesenvolvimento estampado
nas letras musicais dos mangueboys. Para que ocorra o desenvolvimento de poucos, faz-se
surgir uma grandiosa parcela de subdesenvolvimento para muitos recortados de arame,
envoltos pelo paredão de barro e silêncio. “E suspende o assalto, / mangue sobre mangue, / à
cidade anfíbia” [DIAS, 2003: 61]. O progresso-cidade é um degrau que faz subir o primeiro e
faz cair o penúltimo na torpeza da lama. Em Science, a cidade-mangue torna-se parte de um
abandono em que a corrida pelo desenvolvimento desacelerado acarreta e acelera novas
destruições ambientais. “E ninguém foge à vida suja dos dias da manguetown”.
Assim como todo processo de criação poética comporta um exercício meditativo de
solidão, o problema do desenvolvimento, como diz Edgar Morin [2005:70], “depara-se
diretamente com o problema cultural/ civilizacional e o problema ecológico”. Em verdade, é
preciso lançar fora a noção subdesenvolvida do desenvolvimento, que faz de todo o
crescimento tecnológico-industrial uma espécie de receita de remédio, ou bula. O erro está em
acreditar que o desenvolvimento é a única alternativa antropo-social para este planeta
mangue. O que fizemos e fazemos senão transformar as diversas fases do capitalismo em
regras de desenvolvimento. Na realidade, lidamos com essas regras como se fossem nossas
únicas e últimas alternativas. Nesse sentido, como renunciar também, em nossos dias, a idéia
mitológica e profética de um progresso irresistível que cresce em direção ao infinito? Segundo
Morin [2005:149]: “Nossa civilização está doente da velocidade”. Mas, se a pressa renega o
ato de refletir o mundo atual, não estaria a civilização, com seu modelo resguardado de
desenvolvimento, ela própria doente de subdesenvolvimento? Vejamos que, em pleno século
XIX, Baudelaire profetiza algo não muito diferente dos dias atuais:
303
O mundo vai acabar... Não digo que será reduzido à desordem bufonesca das
repúblicas da América do Sul ou que talvez volte à selvageria... Não: a mecânica
nos terá americanizado tanto e o progresso terá atrofiado tão completamente nossas
faculdades espirituais que nada, nem sequer as quimeras sanguinárias dos utopistas,
poderá se comparar com esses excelentes resultados. A ruína universal, contudo (ou
progresso universal: pouco me importa o nome), não se manifestará nas instituições
políticas e sim no aviltamento das almas [BAUDELAIRE, 1996:69].
O que aconteceu desde os trapeiros de Baudelaire aos mocambos de Chico Science, se
não uma releitura da palavra modernidade? Falar de ‘modernidade’ em Baudelaire é falar,
ecologicamente, dos antagonismos que pairam sobre os problemas locais e planetários. É
suscitar diálogos híbridos que ultrapassam a fronteira local e global. Paradoxos e contradições
à parte, o tempo presente amplia um conhecimento mais especializado sobre os manguezais,
coisa que há um século atrás não se cogitava, mas também proporciona uma espécie de fratura
ainda maior no dorso das questões ambientais. Como conseqüência, está em trânsito o
movimento de ‘eterno retorno’ do processo de destruição e reconstrução dos recursos naturais.
Precisamos, como escritores, fragmentar mais ainda nossa forma de lidar com o discurso
colonizador e perceber os diversos códigos da ‘manguetown’, pois há, em cada canto de onde
se observa a história dos mangues, um ângulo, uma história diferente: “Que a polícia mata
gente inocente / E quem era inocente hoje virou bandido/ Pra poder comer um pedaço de
pão todo/fodido/ Banditismo por pura maldade banditismo/por necessidade/Banditismo por
questão de classe” [CSNZ, 1996].
Repensar o desenvolvimento da ‘manguetown’ é rever, não apenas, a ecologia urbana, a
geografia, a sociologia, a antropologia, mas também um apanhado de linguagens que aparece
e desaparece no cotidiano de encruzilhadas e traduções culturais. Precisamos das memórias
ancestrais que se reinventam modernamente, memórias que falam pela voz da alma dos povos
dos mangues, dos morros e das favelas. A partir de um pluri-discurso das minorias, é que
podemos entender os discursos híbridos da ‘cidade-mangue’. Compreendendo as memórias
re-partidas dos mangues, é que entendemos os discursos que se camuflam em nome da ordem
estabelecida, em nome do hegemônico, do homogêneo, do dominador. Talvez por isso que,
precisamos recuperar os valores culturais que se desintegram rotineiramente dos desacordos
ecológicos, mas necessitamos, para isso, resgatar, antes, o modo de ver os mangues por uma
ecologia cultural, não apenas pelo legado da violência periférica em que estão submetidos
desde as cartas coloniais de Gândavo, mas ressuscitar uma arte que possa resgatar novas
alternativas para que a dignidade possa se manifestar de forma mais harmoniosa às margens
304
dos manguezais. Dignidade esta que possibilite modificar o quadro alarmante de favelização
dos países colonizados em uma América periférica.
O assombro das favelas, metidas nos corredores dos manguezais, é desnorteador. Sem a
capacidade de chorar e mesmo de se espantar, perdemos a possibilidade de perceber de perto
o que torna real e irreal nos contornos da ‘manguetown’? A indiferença é que fere e mata as
diversas comunidades humanas. Sem se perceber, ao certo, o que se manifesta nas diversas
linguagens pluri-étnicas dos guetos da ‘manguetown’, como podemos rever esses lugares
como extensão de uma poética das ruas?
É Macaxeira, Imbiribeira, Bom Pastor, é o/ Ibura, Ipsep, Torreão, Casa Amarela,/
Boa Viagem, Genipapo, Bonifácio, Santo / Amaro, Madalena, Boa Vista,/ Dois
irmãos, é o Cais do Porto, é Caxangá,/ é Brasilit, Beberibe, CDU/ Capibaribe e o
Centrão/ Rios pontes e overdrives - impressionante/ esculturas de lama/ mangue,
mangue, mangue, mangue,/ mangue,mangue, mangue [CSNZ,1994].
Mas, para se falar dos discursos pluri-étnicos dos manguezais, necessitamos ‘en-
globalizar’ os espaços suburbanos entre pontes e ‘overdrives’ da cidade-mangue. As pontes
são teias que interligam os seres humanos às outras fronteiras excluídas da ‘manguetown’.
Mas é nas ruelas de palafitas que acontece as encruzilhadas de gente que transitam, se
encontram e se reconhecem sem estranhamentos frente a todos os emblemas que circundam o
mundo-mangue. Esses problemas são de ordens trans-nacionais, pois não estão mais soltos e
divorciados entre si, mas formam uma grande teia de emblemas que ultrapassam as fronteiras
do regional e do nacional. Tornaram-se, em verdade, problemas de ordem planetária. “Assim,
para o melhor e para o pior, cada um de nós, rico ou pobre, traz em si, sem saber, o planeta
inteiro. A mundialização é ao mesmo tempo evidente, subconsciente e onipresente” [MORIN,
2005:35-36].
Quando se fala de um lugar como os mangues, os olhos se voltam agora para o que é de
ordem global e local. Vivemos verdadeiros fóruns sociais que vão da economia doméstica às
tecnologias-industriais; das questões étnicas à ética; das questões de gêneros e sexualidade às
ecologias-cibernéticas: “O brotar da consciência ecológica acentuou a busca do natural em
todos os domínios, a começar pela alimentação” [MORIN, 2005:86]. Mas vivemos, não duas
faces de uma mesma moeda, mas de várias. Se, de um lado, comemos gado, dizimamos
florestas para criarmos pasto; do outro lado, se comemos soja, derrubamos cerrados e
matamos rios. São questões ‘pluralmente’ complexas nas zonas mais sísmicas do globo
terrestre. Contudo, “a modernidade era e continua sendo um complexo civilizacional animado
por um dinamismo otimista” [MORIN, 2005:77].
305
Entre o desabrochar do otimismo e da física quântica, necessitamos resgatar uma cultura
planetária comum a todos os seres deste planeta: uma ecológica social. Longe de um
conhecimento mais aprofundado de ‘quem somos nós’ e do que fazemos para pilotar melhor a
nave Terra, a cada dia ganhamos novas pitadas de niilismo para não esquecermos o
destempero de novos problemas dentro de mangues. Olhamos de longe aos que vivem
diariamente à beira da miséria arroxeados de palafitas, mas não nos perguntamos sobre como
se comporta a nossa miséria existencial. “A luta entre as forças de integração e as de
desintegração não se situa apenas nas relações entre sociedade, nações, etnias, religiões, situa-
se também no interior de cada sociedade, de cada indivíduo” [MORIN, 2005:97].
uma miséria social que sai de dentro dos mangues em direção aos esgotos e viadutos
das cidades, mas também uma miséria subjetiva que salta dos prédios para os hospitais
psiquiátricos e se prolifera nas colunas sociais. Miséria essa que faz comunidades inteiras
fugirem dos grandes desastres ambientais enquanto novas comunidades correm às cegas em
buscas de novos bestialismos. “A diversão moderna mantém o vazio que ela quer evitar”
[MORIN, 2005:84]. Contudo, como ultrapassar, no cenário contemporâneo, a fronteira do
extraordinário em uma cultura de massificação e desagregação social do ente humano? Como
resgataremos os valores de simplicidade, se estamos, o tempo todo, à procura do que de
mais extraordinário?
Quão inadequados são, portanto, os rótulos, as generalizações e as asserções
culturais. Em algum nível, por exemplo, as paixões primitivas e o sofisticado know-
how convergem de maneira que dão à mentira uma fronteira fortificada não apenas
entre o Ocidente e o “Islã”, mas também entre o passado e o presente, nós e eles,
sem falar dos próprios conceitos de identidade e nacionalidade sobre os quais
infindável desacordo e debate. Uma decisão unilateral feita para fixar limites na
areia, para fazer cruzadas, para opor ao mal delas a nossa bondade, para extirpar o
terrorismo e, no vocabulário niilista de Paul Wolfowitz, para acabar com nações
inteiras, não torna mais cil visualizar essas supostas identidades; pelo contrário,
mostra como é mais simples fazer declarações belicosas, com o propósito de
mobilizar paixões coletivas, do que refletir, examinar, identificar aquilo com que
estamos lidando na verdade, a interligação de inúmeras vidas, as ‘nossas’, assim
como as ‘deles’ [SAID, 2003: 45].
Frente à internacionalização do mundo cotidiano: “O Ocidente oferece ao Islã as coisas
boas de fora, porque a vida que chegou ao Islã não veio de dentro” [SAID, 2003:17].
‘Eletrodomesticamos’ uma civilização inteira e automatizamos aldeias de indivíduos que
perdem de vista expressões de solidariedades em nome da aquisição de novas
informatizações: “Computadores fazem arte /Artistas fazem dinheiro / Computadores
avançam /Artista pegam carona / Cientistas criam o novo” [CSNZ, 1994]. Enquanto isso, o
homemangue à beira de mangues não participa dessa pequena teia de conforto e consumo
306
onde quer se sonhe com o mal estar da civilização’. Na falta de uma refeição cotidiana,
poucos sabem que os reflexos de um mercado mundial que dirigem as cotações das bolsas de
valores chegam a influenciar na matéria-prima que o manguezal produz. Também poucos
sabem que foram expulsos de suas respectivas aldeias de lama devido às regras de um
mercado financeiro que atua de forma elitista em circuito planetário completamente fechado.
Expulso da sua terra, o homemangue sai da caatinga para a ‘manguetown’ aspirando ao
bem estar da civilização. Come as sobras das marmitas descartáveis, dorme sobre folhas de
flandres e mangues; veste roupas sujas com inscrições rasgadas, à noite dança funk, rap e hip
hop no balanço da música de seus antepassados. Em um rculo de interferências, esse
homemangue é herdeiro dos mocambos, dos escravos e senzalas atlânticas. Esse homem da
‘manguetown’ se lançado em um turbilhão de informações massificadoras que, dentro de
uma violência silenciada, chega a gritar como testemunho ou desabafo: “Há um tempo atrás
se falava de bandido/ um tempo atrás se falava de solução/ um tempo atrás se falava
em progresso/ Há um tempo atrás que eu via televisão” [CSNZ, 1994].
A diferenciação dos valores culturais entre a modernidade de Baudelaire e Chico
Science requer uma leitura o apenas da questão moral, da rebelião social, da cultura
televisiva, das distrações turísticas, do dispersar das certezas, da celebração da diferença, pois
o que está em jogo agora é o fortalecimento da globalização e da homogeneização cultural.
Isso só é possível graças ao aquecimento desordenado das mídias, bem como da ampliação da
banda larga, ou mesmo da difusão de novas ilusões possibilitando o alcance da pirataria e
reprodução de DVD, CD, MP4, vídeo e outros. O pensamento em rede fornece na
modernidade de Chico Science & Nação Zumbi a justaposição das mais diversas raízes
culturais. Mas se a globalização se amplia em uma grande teia, o lado mais humanitário do
mundo global despenca nostalgias. E para o quede mais hediondo: “há embriões de ação e
de pensamento planetários, mas com enormes atrasos e paralisias sob o efeito dos localismos
e provincianismos” [MORIN, 2005:42].
O crescimento da cidade-mangue renasce a custo sobre-humano. O indivíduo ganha as
fronteiras do anonimato ou do anônimo-mato, enquanto o poeta canta para os mudos-becos
que passam no quintal da manguetown: “andando pelo mundo de todas as cidades/ andar com
meus amigos/ sem ser incomodado / andar com as meninas de eletricidade” [CSNZ, 1996].
Na modernidade de Chico Science & Nação Zumbi, um romantismo “andando às avessas
por entre os becos/ andando em coletivos/ ninguém foge à vida suja dos dias da
307
manguetown”. Longe de um João Cabral, a linguagem scienceana se despreocupa da erudição
para atingir as massas. A poesia, da mesma forma que se rebela musicalmente, se revolta
também em bom tom popular para a balada romântica do jazzmangue. “Vou sonhando com a
mulher/ que talvez eu possa encontrar”. O poeta exprime com-paixão por todos aqueles que
sobrevivem dentro da “manguetown”, até mesmo quando espera a mulher amada.
O amor é tributo de uma possibilidade, de uma cócega duvidosa, do mistério de um
simples talvez, pois o amor como diz Giddens é inviável à modernidade. A dúvida comanda o
sentir do pensar moderno. “O coração sensível gosta de valores frágeis” [BACHELARD,
1989:14]. Em uma frágil e rebelde contradição, o amor, em Chico Science, é desencontro
como partilhamento dos encantos amorosos. A condição do ser vem sugerida na aliança dos
contrários. Nesse sentido, o desencontro amoroso vem romantizado e erotizado pela fala
múltipla das mais diversas etnias. São encontros suavizados que longe das interdições se
exaltam no corpo da precariedade, como se observa em versos desta natureza: “e ela também
vai andar/ na lama do meu quintal/ manguetown/ andando”.
O cantor das multidões denuncia a mangue-cidade como presença do que lhe é negado.
A ‘manguetown’, na medida em que se amplia, modifica a relação do homem flanando em
becos, em coletivos, em pequenos flertes como este: “é um bairro sujo/ onde os urubus têm
asa”. Na modernidade perdida de Science, corrompe-se a possibilidade de profundeza nas
relações humanas que se tornam cruas e vazias frente ao grande mangue periférico. Mas o
poeta é o que ‘rexiste’ e convida o mangue-amigo a recriar o telúrico a partir do próprio
quintal global: “Vou pintando, segurando a parede do mangue do meu quintal”. Comovido
pela contradição humana, Chico pinta o moderno na tinta do fragmento e avança com suas
parabólicas enfiadas na lama em direção ao chão mundano, “andando por entre becos/
andando em coletivos”. À procura de algum sentido para o caos do presente, Science tece
arranjos aos mangues latino-americanos que se apresentam a um passo da
‘supermodernidade’. São mangues da diversidade, carregados de sonoridade por dentro das
lições dos grandes centros, mas também em diálogo com os recursos sonoros da zona da mata
e os trânsitos mais periféricos. Mangues excludentes de uma modernidade inerentemente
globalizante” [GIDDENS, 1991:69].
En-globralizadas em mangues locais, as cidades contemporâneas nos dizem o que
devemos ser, pensar e fazer. Comungando com as antenas enfiadas na lama, a cidade risoflora
acelera os acordos entre o trágico e o tráfico no círculo do eterno risco. A mangue-cidade,
308
com seus esqueletos na janela e carne seca na favela, abriga muitas cidades que vão sem
plumas e sem documentos nas aglomerações dos subúrbios. Cidades feitas de mangues e
crimes:
Besouro moderno, Ezequiel/ candeeiro, cela preta/ labareda azulão/ Arvoredo,
quina-quina, bananeira,/ sabonete/ catingueira, limoeiro, lamparina, mergulhão,
corisco!/ Voltas seca, jararaca, cajarana, viriato/ Giritana, moita brava, Meia Noite/
Zabelê/ quando degolaram minha cabeça/passei mais de dois segundos vendo o
meu corpo tremendo/ e não sabia o que fazer/ morrer, viver, morrer, viver ! [CSNZ,
1996].
Os mangues, mais do que nunca, estão vivendo as conseqüências de uma modernidade
perdida. Se a modernidade de Baudelaire é a de uma floresta de símbolos, a cidade-mangue de
Chico Science se repete e se encontra em qualquer lugar do mundo. E se reencontramos
resíduos das ‘flores do mal’, de Baudelaire, debaixo da lama do Capibaribe é porque
vestígios das ‘flores do mangues’ por toda uma América de sol e mar. É só olhar em volta das
entrelinhas dos versos de Chico Science, flâneur do Movimento Manguebeat, voyageur da
periferia de peixinhos: “Vinham cinco molequeiros em cima do caminhão/ pararam na igreja/
conheceram uns irmãos/ pediram pão para comer/ com um copo de café /um ficou roubando a
missa/ e quatro deram no pé/ chila, relé, domilindró...” [CSNZ, 1996].
Chico configura as imagens de uma cidade-mangue interagindo e fazendo-se comunicar
em verdadeira sintonia com a violência social do mundo contemporâneo. Se, pelo ângulo da
rua, a modernidade baudelaireana se define pela estética principalmente da negação: “Penso
na negra, a tísica e a doente; / a buscar os pés na lama e olhar tão bravio/ de sua África sobre o
coqueiral ausente/ atrás do muro, imenso de nevoeiro e do frio” [BAUDELAIRE, 2001:101].
Na poesia de um Chico Science declamam-se trocadilhos às margens da urbani-cidade dos
manguezais, “enfiados na lama/ é um bairro sujo/ onde os urubus têm casas”. Se Baudelaire é
o herói da modernidade tardia, Chico é o anti-herói da contemporaneidade perdida. Science é
extemporâneo dos versos de Baudelaire, mas de uma contemporaneidade que vem sem
espaços para tréguas, sem rumor de saída. Uma contemporaneidade cujo desabafo chega a ter
uns ecos de protesto rente às alternativas do momento. Em Chico Science, a cidade-mangue é
mais emblemática e fragmentária: “Ninguém foge à vida suja dos dias da/ manguetown”.
A revolução tecnológica destruiu conceitos e formas de organização das cidades-
mangues. E continuamos avançando, “cegos em nossa empreitada tecnológica/ até
descobrirmos que o lugar em que estávamos é o lugar de onde jamais deveríamos ter saído”
[MACKELLENE, 2006: 35]. Criamos um monstro que acabou por nos engolir. E o que é
309
pior: não sabemos viver sem ele e com ele. Preso às palafitas, o homem do mangue pouco
faz uso da cidade, pelo contrário, encontra-se enclausurado à manipulação das antenas enfiada
na lama dos manguezais. Se, por um lado, a tecnologia trouxe à ‘manguetown’ uma crise de
valores e conceitos, ocasionou-lhe, também, uma mobilidade diaspórica jamais prevista. O
reflexo disso, em nossos dias, aponta para a construção de um novo olhar sobre a
contemporaneidade nessas cidades mangues. Inserido em ‘não-lugares’, o homemangue
não se prende a um emprego muito menos a um local para os sonhos, pois o lugar é a raiz
onde se constrói a idéia de discurso.
Em cima dos vestígios da palavra, a ‘poética de Science’ atravessa pontes, caminha
entre discursos que ora se popularizam ora se estrangeirizam via Embratel. Em meio à
exploração mercadológica e aos comandos da força do capitalismo, a cidade-mangue continua
prosperando a favor de uma elite ‘enriquecida’: “No meio da esperteza internacional, / a
cidade até que não está tão mal./ E a situação sempre mais ou menos/ Sempre uns com mais e
outros com menos” [CSNZ,1994].
A ‘manguetown’, em Chico, pode ser o Recife, mas pode ser qualquer cidade do
mundo. A ‘manguetown’ é o mangue símbolo de fertilidade e contradição. A “Veneza
brasileira” é uma das mais violentas cidades brasileiras, somente em 2006 mais de 300
mulheres foram assassinadas no Estado de Pernambuco. É no centro da cidade-mangue que as
dificuldades para se porem em perdem a própria noção de civilidade. Como se observa na
lições de Josué de Castro, onde fome os instintos de sobrevivência perdem a razão e a
fronteira de comprensão. Chico Science, em verdade, denuncia as ruínas de geografia trapeira
dos mangues ao assinalar confrontos e diferenças étnicas. O poeta da cena Mangue referencia
o quadro alarmante de exclusão social que demarca as fronteiras da cidade-mangue. Na corda
bamba dos precipícios desumanos, entre rimas e ruínas, o cantor afrociberdélico fotografa na
paisagem das ruas de mangues as alterações eco-ambientais que prevalecem nos corredores de
bairros e mocambos: “E a lama come mocambo e no mocambo tem molambo/ E o molambo
já voou, caiu lá no calçamento bem no sol do meio dia/ O carro passou por cima e o molambo
ficou/ Molambo eu/ molambo tu” [CSNZ, 1994].
Em uma versificação repleta de mangue-cidades, o eu poético scienceano busca no
labirinto da urbe uma possível reflexão sobre a fratura do sujeito vivendo entre molambos e
mocambos. Nesse sentido, o eu-poético é definidor de uma eterna reconstrução de identidades
para a manguetown. A cidade-mangue, em Chico Science, é captada pelo olhar móvel que, ao
310
interrogar, se perde em meio ao excesso de trânsitos e fronteiras dentro e fora dos mangues:
“Por quefronteiras nos jardins da razão/ No caminho é que sea praia melhor pra/ ficar”
[CSNZ, 1994].
A ‘manguetown’, com sua densidade populacional, traz uma discussão permanente no
meio da ecologia urbana. Como pensar numa cidade como Recife se não repensarmos o
excesso de gente nas ruas, a desaceleração de favelas enquanto o caos das indústrias acelera a
emissão de gases poluentes? “Recife é cidade de inúmeros contrastes, onde a miséria social se
contrapõe à exuberância da chamada cultura popular, e onde o conservadorismo das elites é
permanentemente posto em cheque pela história e resitência de sua passagem” [QUEIROZ,
2002: 41]. A cada dia, se observa sem Recife um fluxo exorbitante de carros sendo colocados
em um trânsito caótico. Futuramente, não saberemos mais onde despejar tanta sucata e tanto
pneu velho. Repensar a região metropolitana é falar em nossos dias das cidades compactas.
As cidades compactas revisam as distâncias que se tornam menores e a dependência de
transportes públicos que se tornam cada vez mais acirrados e, em muitos, lugares bem
escassos. No planejamento das cidades compactas, está em voga a redução da emissão de
poluentes, assim como todo um repensar sobre a transformação dos bosques de mangues em
área urbana.
Levando em consideração os ecólogos no Brasil, para os quais a ecologia urbana ainda
não repercutiu muito, do outro lado do mundo, em algumas cidades mais antigas do
continente ocidental, que sofreram, na própria pele, as conseqüências dos desastres ambientais
movidos, em grande parte, pelas práticas danosas causadas ao ecossistema, refletem-se na
atualidade umas preocupações em virtude da compactação das cidades. Essas cidades
percebem uma nova estratégia para a redução dos grandes impactos ecológicos ocasionados
pelos exageros do progresso urbano.
Em matéria ao jornal O Povo [CE], Angeloto [2006], ecólogo das cidades, observa: “na
Inglaterra, por exemplo, leis que determinam que 60% do desenvolvimento urbano das
cidades devem ocorrer dentro de seus próprios limites”. Mas a ecologia urbana não é, apenas,
uma questão de leis judiciais, passa principalmente por um prisma cultural e político de
nossas ões. Muitas vezes, quanto mais compacto é o espaço urbano, mais insatisfeito está
seu morador. O tipo de relação que o ser humano mantém com a natureza bem como com seu
próximo não é essencialmente diferente daquela que esse mantém com seu automóvel, seu
celular, not-book. “Ninguém tem fé, mas todos criam ilusões. Só que as ilusões se evaporam e
311
nada resta então, a não ser vazio: niilismo e grosseria” [PAZ, 1982: 271].
Entre uma casa e um apartamento, muitos preferem um carro particular. E tudo se torna
mais prático com um tipo de locomoção mais rápida. Mal se sabe que se todos nós tivéssemos
uma locomoção própria não haveria mais espaço no planeta Terra para transitar gente. Por
outro lado, pouco se comenta que os recursos fósseis, para sustentar tantos carros, têm dias
contados. O ideal não seria o Estado valorizar os transportes públicos, colocando mais ônibus
nas ruas?
Levando-se em conta que as grandes cidades e seus trânsitos infernais engarrafam ainda
mais no deslocamento das multidões, nas cidades compactas, a publicidade é muito intensa
em cima da divulgação dos veículos particulares. Não é relevante, deixar de perceber que
alguns têm preferido morar em locais estrategicamente próximos aos grandes centros
metropolitanos. Consumidores de produtos orgânicos, muitos dos que se consideram
vegetarianos têm fugido do caos urbano em busca de uma qualidade de vida em regiões mais
interioranas, porém uma outra questão se apresenta em grande evidência em nossos dias:
como esses moradores fugirão aos impactos ambientais, se ainda são dependentes de outro
grande poluente: o automóvel? Não deveríamos responsabilizar a nós todos pelas
conseqüências ambientais urbanas? Numa situação talvez próxima de algum modelo mais
prático, “a taxação desse modelo urbanístico poderia ser utilizada para obras nas periferias
habitadas por aqueles que não estão fugindo da cidade compacta, ao revés anseiam poder
usufruir serviços urbanos que sempre lhe foram negados” [ibidem].
Vejamos que na composição de Fábio Trummer da banda EDDIE [2006], Roger Man e
Bernado Chopinho, encontramos um exemplo bem claro de como se comporta o interior da
periferia em uma grande-cidade-grade:
Fui na rua pra brigar
Procurar o que fazer
Fui na rua cheirar cola
Arrumar o que comer
Fui na rua jogar bola ver os carro correr
Tomar banho de canal. Quando a maré encher
Quando a maré encher
Quando a maré encher
Tomar banho de canal
Quando a maré encher. É pedra que apóia tábua
Madeira que apóia telha
Saco plástico, prego, papelão
Amarra saco, cava buraco, barraco
Moradia popular em propagação Cachorro, gato, galinha, bicho de
312
E a população real
Convive em harmonia normal
Faz parte do dia-a-dia
Banheiro, cama, cozinha no chão
Esperança, fé em Deus, ilusão Quando a maré encher
Quando a maré encher
Tomar banho de canal
Quando a maré encher.
Repensando qual o lugar da cidade contemporânea, o cantor do mangue se expressa
como transfigurador da ‘manguetown’. Se as conseqüências do progresso são, em nossos dias,
cada vez mais alarmantes ecologicamente, alternam-se no coração suburbano dos mangues
movimentos e mais movimentos em defesa da natureza dos manguezais. De igual modo,
reivindica-se sobre a forma de viver e de produzir na sociedade atual. Entre os versos
scienceanos ensaiam-se os contrastes citadinos: “Quanto mais miséria tem, mais urubu
ameaça” [CSNZ, 1994]. Se, de um lado, o que é caótico é reordenado no movimento
arquitetônico das avenidas iluminadas para a passagem do pedestre, do outro lado, ruelas se
estreitam na roleta dos sem passagens: “Peguei o balaio, fui na feira roubar tomate/ e cebola/
minha véia deixa a cenoura aqui” [ibidem]. Perto de becos e mangues, vendedores de
caranguejos encontram na confusão das ruas os sons dos mangues: [...]/ Oi sobe o
morro/ladeira, córrego, / beco, favela/ A polícia atrás deles e eles no rabo dela. // Acontece
hoje/ acontecia no sertão/ quando um bando de macaco perseguia Lampião [CSNZ,1994].
Nas raízes da cidade risoflora, o poeta do mangue recorta as lições de Josué de Castro:
“E com o bucho mais cheio comecei a pensar/ Que eu me organizando posso me
desorganizar” [CSNZ, 1994]. Entre associação com versos des-rimados, o poeta caranguejo
volta-se para o presente sem deixar de visitar o passado e sem deixar de revisitar um mundo
que se favorece da alienação: “Orgulho, a arrogância, a glória/ Enche a imaginação de
domínio” [CSNZ, 1994]. Em suas notas musicais, Chico Science manifesta suas ‘inventanças’
como forma de protestar sobre a ‘manguetown’:
A engenharia cai sobre as pedras/ um curupira tem seu tênis importado/ o
conseguimos acompanhar o motor da história/ mas somos batizados pelo batuque e
apreciamos agricultura celeste/ mas enquanto o mundo explode/ nós dormimos no
silêncio do bairro/ fechando os olhos e mordendo os lábios/ sinto vontade de fazer
muita coisa [CSNZ, 10996].
A grande cidade-mangue cresce além do que suporta o peso de suas ‘esculturas de
lama’. Para atravessar o caos da ‘manguetown’, o ser humano necessita adaptar-se aos
movimentos do caos metropolitano e aprender o, apenas, a pôr-se a salvo dele, mas a estar
313
na retaguarda.Ao que tudo indica, algumas das mais importantes variedades de sentimentos
humanos vão ganhando novas cores à medida que as quinas vão sendo criadas”
[BERMAN, 1987:25]. Um passo para trás e o homemangue descobre que ele mesmo é uma
espécie de ‘caos-mundo’que, na modernidade de Chico Science, consiste nos perigos infinitos
em que vivem os homens-palafitas. “Todas as barreiras humanas e naturais caem diante da
corrida pela produção e a construção” [BERMAN, 1987: 64]. A lógica do poder é a lógica do
mercado. E “tornar-se medíocre é a única moralidade que faz sentido” [BERMAN, 1987: 22].
A relação do indivíduo com a sociedade é semibárbara. Para viver, exige um eterno combate
com a zona de perigo. Entre a época de Chico Science e a de Charles Baudelaire encontra-se,
sobretudo, uma mudança profunda na prespectiva de vida e uma grande efervescência do lado
imaginativo. As linguagens imagéticas de Chico Science, como diz Moisés Neto [2000:110]:
“reproduzem o burburinho de uma feira imensa e parecem roteiros para videoclips
assimilando como animação o frenesi urbano”. Na inscrição scienceana, como flâneur do
‘Mangue’, inserem-se novas leituras de reivenção do cotidiano na manguetown. “A
experiência do flâneur que perambulava nas metrópoles do início XX não é mais possível.
Agora é como se as grandes cidades tivessem se convertido em um videoclip”
[HERSCHMANN, 2000:223].
Na teia das identidades coletivas, modifica-se a própria concepção existencial entre o eu
e o mundo. Com isso, entra no ar a grande teia-mangue interligada virtualmente às redes de
mundos e outros mangues lugares. A “manguetown”, celebrada na fala de Chico Science, está
ligada a uma espécie de antena cultural na qual o mundo periférico é conclamado. A luta do
poeta-mangue com o mundo é uma luta de metáforas. As metáforas de forma lenta ou
inesperada sugerem mudanças inéditas no ser. O sujeito na modernidade scienceana sente
uma necessidade infinita de repertoriar a ‘manguetown’ juntamente com aqueles que estão em
torno de uma socialização: “não conseguimos acompanhar o motor da história /mas somos
batizados pelo batuque” [SCNZ, 1996].
Na contemporaneidade do mundo, vive-se uma espécie de caos-mangue em que a
cultura, a sociedade, a ecologia, despertam para o pensar a pátria terrestre como uma grande
teia híbrida. E se hoje somos seis bilhões de humanos, está previsto para o ano 2050 algo em
torno de dez bilhões de seres. De certa forma, viver com o outro se confronta, agora, com uma
nova possibilidade de sermos outros.Somos todos juntos uma miscigenação/ e não podemos
fugir da nossa etnia” [CSNZ, 1996]. Em pleno advento do Século XXI, a relação do
314
homemangue com a ‘manguetown’ necessita sobre múltiplos aspectos revolucionar a leitura
do social que aí está onde “as balas já não mais atendem ao gatilho” [SCNZ, 1994].
A ‘manguetown’ sinaliza poucas saídas para as fronteiras periféricas, e são justamente
essas que estão sendo violentadas pela ordem social em que estão inseridas: cidades x favelas.
E as complexidades se avolumam, nelas existem dois lugares: a cidade e as ilhas. Em sua
travessia à beira do caos-mangue, a poesia scienceana elucida as inúmeras situações dos
problemas de incomunicabilidade entre os homens e seus diversos mundos. A poesia revela,
nesse sentido, um mergulho na condição humana localizada na extemporaneidade cultural. É
a poesia que decanta os sofrimentos humanos submetidos à crueldade do momento histórico.
Em Chico Science, o poeta, o povo, a arte, os intelectuais, se confundem. Estão todos
presentes em uma múltipla figura que é a miscegenação cultural: “É o povo na arte/ é arte no
povo” [SCNZ, 1996].
Convivendo entre encruzilhadas de culturas, o poeta é nômade de si mesmo e faz parte
das diversas ilhas que o cercam. Mas em todas elas se reconhece como pertencente a apenas
uma delas: a da periferia. Em sintonia com este pensar, Edward Said [2003:29] defende que,
“de modo geral, é verdadeiro que em todas as culturas os escritores tenham um lugar
separado, talvez até mesmo mais honroso, do que os intelectuais”. Intelectualmente, sabemos
mais sobre o que se passa nas discordantes notícias sobre o Oriente Médio e, muito menos,
sobre o que se passa com nosso vizinho ao lado. Tempos de proximidades desconhecidas e
indiferentes. Das parabólicas enfiadas na modernidade, o que deveria ser motivo de estímulo é
também sinal de discrença. “O homem produtor está subordinado ao homem consumidor”
[MORIN, 2005:84]. O espírito de ‘novas humanidades’ desenvolve vaidades e dissolve as
relações de solidariedade que se via até bem pouco tempo atrás. Conseqüentemente, o sujeito
da ‘manguetown’ se torna o indivíduo que pode “ser simultaneamente autônomo e atomizado,
rei e objeto, soberano de suas máquinas e manipulado/ dominado por aquilo que domina”
[MORIN, 2005:85].
A criatividade poética de um Chico Science é uma sublime capacidade de irreverência
musical e, por mais absurdo que se perceba o mundo, talvez, o momento atual seja o mais
criativo e comunicativo da história da humanidade. E tudo se camufla de novidade, mas nada
é novo no velho mangue. Busca-se liberar as vozes da alteridade silenciadas pelas agressões
sociais, raciais, sexuais, religiosas etc. A efervescência dessas híbridas correntes alinhava, de
alguma forma, o excesso de razão e centralismo de um poder unificador nas esferas mais
315
simples e mais complexas da sociedade.
Para repensar as questões eco-sociais, os escritores deveriam fazer mais música popular
e subirem mais em palcos para declamarem entre performances o resto de ideais e utopias que
lhes restam. A música desempenha, na partitura da vida, a missão de “testemunha silenciosa
da desumanidade que nos cerca” [SAID, 2003:40-41]. O papel do músico ou do intelectual,
nesse sentido, é, antes de qualquer coisa, o de apresentar leituras alternativas e perspectivas
da história outras que aquelas oferecidas pelos representantes da memória oficial e da
identidade nacional que tendem a trabalhar em termos de falsas unidades, da manipulação
de representações distorcidas” [SAID, 2003:39]. O papel do intelectual, o que é senão o de
imprimir ecologicamente uma prática das idéias. Aliás, é preciso democratizar a leitura nas
comunidades periféricas. Segundo dados do IBGE [BRASIL, 2006], dos 183 milhões de
brasileiros, apenas 45 milhões desses lêem, ou seja, aproximadamente 137 milhões não lêem.
1500 livrarias no país, ou seja, apenas 10% dessas espalhadas nos grandes centros
urbanos. Em 90% dos municípios brasileiros não livrarias. Quando se busca a não-palavra
para entender esses números, ‘ o olho e o espírito’ vêm à tona pelo eco do social. “A realidade
é um clichê do qual escapamos pela metáfora” [MORIN, 2005:91]. Viver a favor da teia da
vida, “deve sempre ser possível discernir os elementos de uma disputa ou tensão ou
problemas próximos de nós, que pode ser dialeticamente elucidado, e também sentir que
outras pessoas têm um interesse semelhante e trabalhar num projeto conjunto” [SAID,
2003:38].
Poesia é saltar do papel para a imagin-ação. Precisamos des/ burocratizar nossa ação
para que coisas funcionem a favor e não contra o humano. Necessitamos falar mais em
público; formar corrente de pensamento em rede; fazer, quem sabe, mais palestras sobre a
relação entre a cultura e a ecologia. Acionar novos paradigmas para reinventar nossa prática
diária em uma ecologia da ação: “cores unidas e alegria/ nada de errado com nossa etnia”
[CSNZ, 1996]. A ecologia da ação requer como princípio primeiro: o despertar do
pensamento como teia. Vivendo em rede, pensamos em teias. Na teia, nada está de fora, tudo
está incluso. O que acontece a uma pessoa reflete sobre os demais. Nessa prática, toda ação é
uma teia circular que, uma vez iniciada, entra num jogo de interações e responsabilidades. “A
responsabilidade de você tocar o seu pandeiro/ É a responsabilidade de você manter-se
inteiro/ Por isso chegou a hora dessa roda começar” [CSNZ, 1994].
Na moderni-cidade dos espaços, a teia ecológica pode ser desviada de seus fins iniciais
316
e chegar a atingir um resultado contrário ao esperado. “Para pensar localizadamente, é preciso
pensar globalmente, como para pensar globalmente é preciso pensar localizadamente”
[MORIN, 2004:25]. Culturalmente, nós somos ramificações históricas da evolução terrestre.
Participamos de uma identidade local e cósmica. “Pela primeira vez na história, o ser humano
pode reconhecer a condição humana de seu enraizamento e de seu desenraizamento”
[MORIN, 2004:37].
A ação ecológica salta das teorias para uma prática de vida mais compatível e por uma
qualidade de vida dos seres com ‘todo-o-mundo’. O princípio básico de uma ecologia da ação
deveria observar que toda conseqüência última do agir é imprevisível. E vivemos a
imprevisibilidade em todas as fronteiras, como diz Édouard Glissant em sua poética da
diversidade’. Viver o imprevisível é abrir mão do domínio que execra nossos próximos. A
forma como lidamos em casa com nossa esposa, maridos e filhos é expressão de poder de
nosso eu. Devemos reaprender a dividir espaços e a não sufocarmos nossos outros com nossa
própria compreensão de mundo. “Em nosso empenho de tiranizar o real, esquecemo-nos de
que não somos sujeitos e sim ‘sendo’, parte integrante de um real em constante mutação”
[UNGER, 2001: 42]. Nosso poder começa a partir da nossa vida privada e se estende ao
mundo natural. Quando passamos a desaprender nossos fantasmas, culpas e arquétipos,
começamos a vigiar esse diabinho de rabo preso que vem à tona quando menos esperamos:
nossa inconsciência.
Em verdade, assumir nossa humanidade é, portanto, “afirmar nossa amizade co-operária
com o próprio ritmo da vida, seus riscos, suas perdas, sua provisoriedade” [UNGER, 2001:
42]. É preciso atentar que a sublimação da diferença não é em si garantia nenhuma da
preservação da liberdade. A fala da unidade não necessariamente é tirânica. Mas muitos
tiranos fazem da unicidade um pensamento patológico, uma idéia fixa. A grave crise não é
porque deletamos rios e mangues, mas principalmente porque dizimamos a cada dia a humana
condição de nos tornarmos seres livres em nossa ‘radical solidão’. Uma pergunta dever-se-ia
fazer a cada dia: “Como se comporta sua solidão?” [BACHELARD, 1979: 56].
7.3 Manguecidades
O sol nasce e ilumina as pedras evoluídas
Que crescem com a força de pedreiros
Suicidas
Cavaleiros circulam vigiando as pessoas
317
Não importa se são ruins, nem importa se são boas
E a cidade se apresenta centro das ambições
Para mendigos ou ricos e outras armações
Coletivos, automóveis, motos e metrôs
Trabalhadores, patrões, policiais, camelôs
A cidade não para , a cidade só cresce
O de cima sobe e o de baixo desce
A cidade se encontra prostituída
Por aqueles que a usaram em busca de saída
Ilusora de pessoas e outros lugares
A cidade e sua fama vai além dos mares
No meio da esperteza internacional.
A cidade até que não está tão mal
E a situação sempre mais ou menos
Sempre uns com mais e outros com menos
A cidade não pára, a cidade só cresce
O de cima sobre e o debaixo desce
Eu vou fazer uma embolada, um samba
Um maracatu
Tudo bem envenenado, bom pra mim e bom
Pra tu
Pra gente sair da lama e enfrentar os urubu
Num dia de sol recife acordou
Com a mesma fedentina do dia anterior [CSNZ, 1994].
É nos sinais das manguecidades que a dispersão vagueia sem destino. Antes, habitavam-
se as ruas como lugar de encontros. Hoje, a rua do mangue representa o lugar dos pequenos
furtos e dos aterramentos urbanos. É na rua que a sensibilidade se depura para os homens
comuns que são poetas e se vêem dentro de mangues e, ao mesmo tempo, tão fora deles.
Ciente disso, o cantor faz um pacto com as abstrações da vida e estabelece domicílio em
vários dialetos. Como queria Baudelaire ou como fez muito bem Chico Science, quando não
havia mais endereço certo nem condições culturais para reverenciar o novo, resolveu meter-se
dentro das raízes da musicalidade da cidade grande. Inserida no tempo, a
‘Contemporaneidade’ ajusta as cartas do baralho para errar a sorte dos que nasceram à
margem de cidades - sobreviventes de ‘mangues e caranguejos’. Entre o não-lugar e o abismo
do ‘entre-lugar’ dos manguezais, o que é um pluri-discurso sobre o local-global. O
discurso local do mangue vem sendo colocado em questão pelas relações pluri-étnicas:
“Índios, brancos e mestiços/ nada de errado em seus princípios/ o seu lugar e o meu são
iguais/ corre nas veias sem parar” [CSNZ, 1996].
O crescimento desordenado e mal estruturado da manguecidade acarreta, em nossos
dias, novas possibilidades de se repensar o tempo e o espaço de seus habitantes. Entre a lama
e o mocambo, índios, negros e mestiços vivem uma espécie de miséria milenar passada de
forma circular de geração à geração. Um legado que vai das algemas da escravidão aos
318
paredões separando homens e caranguejos’. Se antes havia a vigília sobre negros e índios
amparando-se nos açoites do ‘capitão do mato’, atualmente as condições são outras,
evidentemente, mas não esqueçamos que sob a eterna vigília de policiais. “Cavaleiros
circulam vigiando as pessoas / Não importa se são ruins, nem importa se/ são boas”.
Nos becos ralos das palafitas, os povos afro-ameríndios vivem ainda de forma bem
‘primitiva’ frente ao aparelhamento tecnológico do mundo moderno. quem observe, como
Chico Science, que este tempo é o momento em que os espaços, as fronteiras estão cada vez
mais na berlinda da questão: “Por aqueles que a usaram em busca de saída/ Ilusora de pessoas
e outros lugares/ A cidade e sua fama vai além dos mares”. Em Science, a cidade-mangue se
encontra envenenada em suas artérias de lama, em seus rios amarelos, em seus escombros e
aterros: “Tudo bem envenenado, / bom para mim e bom/ pra tu/ Pra gente sair da lama e
enfrentar os urubus”. Nesse abismo de venenos e poluentes, Recife acorda “com a mesma
fedentina do dia anterior”.
A situação sempre aperta para quem tem menos. “Sempre uns com mais e outros com
menos” quem negue qualquer definição para a cidade-mangue, mas Chico Science apenas
sugere: “E a cidade se apresenta centro das ambições / Para mendigos ou ricos e outras
armações”. E para aqueles que se aventuram em nomear nosso tempo a partir do ‘local da
cultura’, a sociedade de consumo altera profundamente as relações sociais em uma época em
que as identidades culturais estão sendo deslocadas entre a tradição da tradução à ruptura.
Nas investigações em torno dos discursos contemporâneos, abrimos um parêntese aqui
para nos aproximar de alguns autores que nos possibilitem uma compreensão sobre o
momento presente. Em crítica literária, o termo ‘Pós–moderno’ se divide em uma teia de
‘contradições’. “A nossa modernidade pós-moderna é, então, distinta das dos países centrais,
mas podemos afirmar que a nossa posição também se alterou na periferia”, assim observa
Seidel [2001:136]. No livro, As conseqüências da modernidade’, o sociólogo Giddens
reforça a idéia de que tudo é modernidade desde o spleen de Baudelaire aos nossos dias. Para
Antoine Compagnon, se o moderno é o atual e o presente também; o que significa o prefixo
‘pós’, não seria contraditório se falar de um tempo depois do presente?
Em ‘O homem desenraizado’, Todorov afirma-nos que o indivíduo da pós-modernidade
é aquele que não pode se adequar, na íntegra, ao lugar do agora, nem retornar ao lugar de suas
raízes. Nessa indecisão de identidades em trânsitos, ressurge um novo despertar pela cultura
local que, em pleno impacto global, vive em xeque-mate pela homogeneização do poderio da
319
cultura norte-americana, hoje predominante no mercado mundial. No entanto, o que se
desperta de favorável em nossos dias é, justamente, o florescimento das culturas dos que estão
à margem. Chegou a vez das vozes das alteridades se colocarem em questão. Nesse limiar, as
culturas das minorias vêm a perturbar o panorama dos estabelecimentos de uma cultura
universal e homogênea.
Pensar o manguebeat a partir da diversidade étnica é pensar a condição de seus
habitantes sem endereços certos, passantes de algum lugar que lhe algum tipo de alforria.
Em termos mais gerais, sabemos que a literatura do manguebeat assimila a revolução de uma
nova geração de poetas da beat generation, como: Ginsberg, Kerouac, Barthelme,
Rausenherberg, dentre outros. Esses poetas saíam com suas mochilas nas costas, declamando
versos jazzísticos à beira de estradas e rodagens contra o sistema, pregando letras de cunho
meditativo, zem budista, com uma proposta filosófica em defesa da paz no mundo. Depois da
geração beat generation, a cultura popular e a cultura de massa reacenderam as chamas das
variadas linguagens de rua. Entra no ar a novidade das gírias e dos palavrões. A noção dos
‘ismos’ vanguardistas acaba por se esgotar e o novo se torna tradição e vazio de sentido.
Inseridos na tradição da ruptura, podemos abreviar que o manguebeat dialoga com as
releituras da cultura popular e, de certa forma, busca assimilar as lições da antropofagia
musical.
De para cá, o mundo nunca mais foi o mesmo: crise energética em 1973; descoberta
das formas de trabalho informal na África; colapso nos caixas de câmbios da bolsa; liberação
dos mercados financeiros; reunião do grupo G-7; enxurrada de problemas advindos com a
Guerra Fria; descoberta da mídia como recurso para expandir os discuros totalitários nas
Américas. Mas também com a mídia, despertavam-se novas interações, novas linguagens,
novas identidades em trânsito, culturas de encruzilhadas. E a partir dos movimentos
revolucionários de 1968, surgia uma efervescência de movimentos exigindo mudanças no
quadro social da América Latina. A partir daí, abríamos a porta das culturas para serem
revistadas pelo contexto das minorias, como diz Chico Science no seu poema: “O sol nasce e
ilumina as pedras evoluídas/ que crescem com a força dos pedreiros/ suicidas”.
Para Linda Hutcheon [1991:25]: os anos 60 prepararam o background dos anos pós-
modernos, pois foram decisivos no “desenvolvimento de um conceito diferente sobre a
possível função da arte, um conceito que iria contestar a visão arnoldiana humanística com
sua tendenciosidade potencialmente elitista relacionada com as classes". Em suas formas
320
múltiplas, a diversidade do mangue ganha novos olhares na luneta dos pesquisadores. No
Brasil era proibido proibir, enquanto Chico Buarque lança seu primeiro livro solo: ‘Fazenda
modelo’. Em um contexto multifacetado, o Brasil mostra sua cara com uma super 8 na mão e
uma idéia de Glauber Rocha na cabeça. Surgia o cinema novo, assistimos à ‘Terra em transe’.
Em uma época de exílio político, Paulo Freire palestrava sobre ‘A pedagogia do oprimido’
enquanto Silviano Santiago [1989:18], ‘Nas malhas da letra’, enfatizava que a partir de 64 a
literatura denunciou que “os donos do poder no Brasil têm olhos e ouvidos reais, boca e nariz
como qualquer um, mãos injustas e, sobretudo, inteligência para se manter indefinidamente
assentados na direção do país”.
Vem à tona uma nova maneira de enxergar o homem no mundo urbano. Fomos
abandonados com perguntas para as quais não nos apareceram respostas. Vivemos uma época
de homens colonizando o mundo da genética, transformando bichos em clones. Alteramos a
genética dos alimentos para os ‘transgênicos’, mas a os alimentos mais ‘orgânicos’
aparecem com um teor baixo ou alto de agrotóxicos: “A natureza parece sofrer de mau
olhado” [COUTO, 2003: 28]. Entre bombas atômicas, armas nucleares, alguns cientistas
parecem trabalham contra e não a favor da natureza do homem.
Em meio à predominância do vazio existencial, o que demarca o discurso pós-
modernista na cena Mangue é justamente o seu discurso plural, advindo com o aparecimento
das relações mercadológicas no mundo da globalização. As mudanças no mercado global
levaram os homens a percorrer novas cidades, novos empregos, novas oportunidades. Essas
migrações deixaram como saldo o quadro das identidades deslocadas. Nesse deslocamento, as
fronteiras entre casa e mangue se confundem, se estranham. A esfera do privado e do público
tornam-se parte de um labirinto cuja visão é tão dividida quanto desnorteadora.
Nesse contexto, a estrangeirização de línguas e culturas interpenetram e se modificam
entre si. Tempo-espaço se ampliam além das fronteiras do lugar. Nas passarelas de espera:
“Cada aeroporto é um nome no papel”, como diz uma música de Cazuza [2000]. Entre
partidas e chegadas, identidades estão sendo traduzidas em línguas híbridas, perdidas no
‘entre-lugar’. "Todos nós originamos e falamos a partir de algum lugar: somos localizados e
neste sentido até os mais modernos carregam traços de etnia" [HALL: 2003:83]. A cada novo
país, o som se estrangeiriza, a voz soa artificialmente esquisita como um sotaque gago que se
denuncia onde quer que esteja. A voz estrangeira carrega sempre uma cicatriz vocabular que a
impede de ser legítima e pura. Estamos em vias de nos tornarmos estrangeiros num planeta
321
mais do que nunca plural e mais do que nunca heterogêneo, convivendo em meio a uma
híbrida comunicação multicolorida dos povos dos mangues.
O texto pós-moderno de Science, pegando aqui a fala de Linda Hutcheon [1991], é
descentrado, cético, galhofeiro, polimorfo, autoconsciente, um texto que Júlia Kristeva chama
de escrita como experiência dos limites da linguagem, da subjetividade, da identidade, da
sexualidade. Contudo, o que se observa na contemporaneidade é "um esvaziamento do sentido
da linguagem, o texto ainda comunica e não existe uma perda de na realidade externa
significante, mas uma perda de fé em nossa capacidade de conhecer essa realidade, de sermos
aptos a representá-la com a linguagem" [HUTCHEON 1991:17].
É a partir dos deslocamentos é que se pode observar a importância do despertar do
sincretismo cultural no mundo das relações diaspóricas. Com isso, novos laços vêm sendo re-
visitados em plena mundialização de culturas que se entrelaçam em posições ambivalentes, de
dentro para fora e de fora para dentro. Em uma movimentação intensa nas fronteiras das
comunidades migradas, carrega-se, entre divergências e convergências, um alto grau de
heterogeneidade cultural para o mundo moderno. “Eu nasci na rua/ eu sou todos”, diz um
verso de Aurora Moralis.
Em verdade, essas comunidades migrantes trazem as marcas da diásporaem sua
própria constituição - sua interação vertical e suas tradições de origem coexistem como
vínculos laterais estabelecidos com outras comunidades de interesse, práticas e aspirações
reais ou simbólicas" [HALL, 2003: 83]. Como se observa neste poema scienceano:
um passo à frente
e você não está mais no mesmo lugar
eu só quero andar
nas ruas de peixinhos
andar pelo Brasil
ou em qualquer cidade
andando pelo mundo
Sem ter “sociedade
[CSNZ, 1996].
Os discursos em trânsito são a marca registrada na cena Mangue. O sincretismo é o
termo que mais alcança uma interpretação mais aproximada do experimento musical do
manguebeat. A estética do Mangue encontra-se inserida no fluido cultural de uma teia de
sincretismo que sofre a influência da região Nordeste e a dialoga com outras culturas
inclusive a da região Sudeste bem como a anglo-americana. O poeta do mangue traz à tona
322
imagens de uma manguecidade que repercute questões singulares em meio da complexidade
de seus problemas. O bairro de Peixinhos, a exemplo, está ligado ao Brasil, mas antenado
com a linguagem do mundo computadorizado.
No mosaico da linguagem de Chico Science, o texto mangue vem tecido em cima de
outros textos. O manguebeat não é um discurso solo, mas um disco coletivo. O discurso-
mangue se agrega em tribos e bandos, como indica o poeta afrociberdélico: “Eu caminho
como aquele grupo de caranguejos/ ouvindo a música dos trovões” [SCNZ, 1996]. Na teia
musical do manguebeat compartilha-se a cultura da voz. A poesia cantada vem repleta de
cortes, recortes, picotes e piparotes em tom de sátira e deboche. Em um registro contínuo de
montagem e desmontagem, o discurso scienceano, muitas vezes, apresenta-se emaranhado
entre pista e atalho, perdido em um labirinto, que não é o da solidão, mas da reinvenção
musical. Entre sons e sentidos, tudo se consome, tudo se canibaliza em Chico Science. A voz
musical desse poeta afro-brasileiro embrenha o som do mangue-ameríndio, desmontando a
linguagem do idioma oficial para assumir as metáforas minorias de becos e favelas.
No simulacro da imagem da rua, a poesia do manguebeat sugere o quanto o mundo
contemporâneo anda digitalizado. Em uma época de vidas fabricadas, a intertextualidade se
fortifica nos capítulos dos versos cantados. O próprio termo intertextualidade "pode
perfeitamente ser muito limitado para descrever o processo, talvez a interdiscursividade seja
um termo mais preciso para as formas coletivas de discurso das quais o pós-moderno se
alimenta parodicamente" [HUTCHEON, 1991:170]. Ou mesmo uma espécie de escritura da
escritura de que fala Silviano Santiago. Uma junção de história sobre uma História, sem
precisar ter um fio muito sistemático. Como se não houvesse mais possibilidade para o
coerente se mostrar, mas de recriar o mundo a partir de ícones e figuras. Sobre isso, Ortega &
Gasset acrescentam que o mundo atual é uma arte de figuras, não de aventuras - uma arte que
não narra o mundo, mas o cria. E cria com ironia, com paródia, com pastiche, com sarcasmo.
Eis um paradoxo que acompanha o maravilhoso mundo novo dos manguezais “onde até o
molambo é boa peça de pano para se costurar miséria” [SCNZ, 1994].
Nas paredes da escritura scienceana, observa-se que a poesia ‘contemporânea’ reflete o
signo, a realidade em detrimento da forma. Com isso, o narrador do poema passa a ser vários
ao mesmo tempo. De forma fragmentada, muitos estão dentro de um único versículo; alguns
são difíceis de perceber; e em diversas situações, torna-se múltiplo para se saber, demais para
se ver, confuso para se compreender. uma abertura bem maior às conhecidas para-
323
literaturas, para as subcategorias de romance, para as biografias de cunho popular e,
principalmente, para o lado eclético de uma linguagem repleta de gírias e clichês. Vê-se isso
tanto na poesia quanto no romance. A fragmentação vem revelar que a noção do ‘eu’ como
uma entidade sólida e coerente, torna-se, a cada dia, impraticável e vulnerável. Então
escrever é o modo de quem tem a palavra como isca: a palavra pescando o que não é palavra.
Quando essa não-palavra - a entrelinha - morde a isca, alguma coisa se escreveu”
[LISPECTOR, 1998: 20].
Na modernidade scienceana, de se colocar a necessidade de observá-la além dos
limites da fragmentação. No labirinto das páginas declamadas, histórias dissonantes,
fragmentos de um discurso cujo encontro entre o ‘eu’ e a cidade-mangue se dá com o fortuito,
com o efêmero, com o esquizofrênico, com o delirante, com o psicodélico: “Não enscosta em
mim que hoje eu não tô/ pra conversa/ Seus olhos estão em brasa/ Fumaçando! Fumaçando!
Fuma/ çando/ Fumaça!” [SCNZ, 1994].
Pelas margens de cá, entre rasuras e riscos, a cidade é um sanatório que exprime uma
apatia generalizada muitas vezes advinda de uma perspectiva ‘doente’. Na correria de
coletivos, uma legião de desempregados sobrevive nas filas de uma subcondição
desagregadora. “O medo origem ao mal/ o homem coletivo sente necessidade de lutar”
[SCNZ, 1994]. Fora da lama, a cidade se enraíza de gentes advindas, não apenas de uma única
cidade, mas advindas com bagagens de vários continentes da linguagem. Nesse somatório,
diversos tipos de identidades estão em construção enquanto outras são postas em questões,
sempre renovadas, em uma permuta para lá de estável na teia de sincretismo. Se o sujeito pós-
moderno é incoerente, a linguagem desse sujeito referencia "uma prática social, um
instrumento para manipulação e controle, tanto quanto para a outra expressão humana",
segundo Hutcheon [1991:237]. Em meio a esse controle de indivíduos e manipulação do
sujeito, construímos o discurso cultural dos povos dos mangues, reconstruímos comunidades
e identidades imaginadas, desconstruímos o discurso narrativo em um serial de histórias que
representam laços partilhados de poder em uma realidade étnica ‘pluri-discursiva’.
Bem atrás, Silviano Santiago, em sua Literatura dos trópicos’, nos convidava a
liberarmo-nos da imagem de uma América subserviente, neocolonialista, carnavalesca e
ingênua. É certo que estamos cada vez mais presos a um país com indício das amarras de
neocolonizado. Onde está a nação brasileira? Onde está a soberania, a democracia? Enquanto
acreditarmos que somos subservientes no campo da linguagem, continuaremos subservientes
324
no campo do poder. É preciso ir quebrando os padrões de uma linguagem que oprime o
excluído e se põe em defesa do opressor. É necessário ir quebrando os conceitos de arte
universal, para dar voz à arte suburbana das periferias. Nos manguezais, o ser do mangue vive
uma maneira de ser-mangue. O ser do mangue vive propriamente uma maneira de ser que é
uma maneira alegre de sobrevivência. Há um colorido que salta das palafitas que pouca gente
consegue ver. também um sorriso e uma generosidade que impressiona aos que dele se
aventuram em conhecer.
O Manguebeat é movimento que fala a partir dos diversos discursos da periferia. Chico
Science e Jorge Du Peixe reconduzem a voz da poesia pelo despojamento e sincretismo de
linguagens coloquiais que transitam musicalmente pelo beco da reivindicação social, sem
versificar em tom planfetário. Em Chico Science, a gíria grafita muros, risca o arranha-céu do
tecido urbano. O poeta das parabólicas enfiadas na lama depura a sensibilidade dos rtimos
para mapear o entorno da cidade-mangue que se fragiliza de um lado e se marginaliza do
outro. É na central dos magues da periferia que a convivência torna o olhar mais familiarizado
de rotina para assumir as relações pelo que elas apresentam de diferença. Periferia em que as
ruelas estão cheias de gente e onde os casebres, em sua forma de cubículo, não comportam a
todos. O morador de periferia se organiza no subúrbio e é andarilho aberto das vielas que
assume uma infinidade de códigos das ruas: “aí meu velho/ abotoa o paletó/ não deixa o
queixo cair/ e segura o rojão/ [...] chila, relé, domilindró” [SCNZ, 1996].
À margem da sociedade, esse morador se reconhece dentro e fora do mangue de
palafitas. E é também esse morador de palafitas que se organiza em grupos de emboladas, de
rap, de funk, de breaks, de metaleiros, de graviteiros rockeiros para reivindicar, à sua maneira,
o reconhecimento de uma cultura, muitas vezes, tida como “marginal”. Para Hall [2003:45],
"essas minorias não são efetivamente restritas aos guetos; elas não permanecem por muito
tempo como enclaves. Elas engajam uma cultura dominante em uma frente mais ampla.
Pertencem, de fato, a um movimento transnacional e suas conexões são múltiplas e laterais".
É no interior das comunidades vitimadas socialmente, no intercâmbio cultural de valores
conflituosos ou amistosos, que as identidades são repertoriadas da periferia da cidade-mangue
para outros centros periféricos. Esses grupos marginalizados socialmente estão em busca de
mostrar à esfera pública a natureza do seu pertencimento, também estão à procura de flanar
culturalmente com outros povos. Em meio à tamanha pobreza econômica, em meio à tamanha
falta de oportunidade, em meio ao legado de sua dispersa resistência, as culturas dos povos
325
mangues resitem em meio à cultura imperialista do neocolonizador. Se há poucas alternativas,
socialmente falando, para toda essa gente, por outro lado, inicia-se, em nossos dias, um canal
de abertura para o diálogo de processos mais amplos entre o jogo da diferença e da
semelhança.
Ao mesmo tempo em que os manejos locais e globais se enraízam no meio de nós, a
contemporaneidade e seus discursos estão em todos os lugares. Os lugares ampliam novas
estratégias de necessidade e subjetivação. O singular e o coletivo fornecem novos postos de
elaboração em um simples fato de definir a sociedade atual. E se é impossível saber o que vai
acontecer no mundo com relação à natureza do mangue, necessitamos fomentar na sociedade
um princípio de precaução aos desastres sócio-ambientais, assim como um princípio de
responsabilidade para com o presente e com o futuro do presente. Pois o futuro ainda é visto
como uma espécie de filme de terror, “algo que nos amedronta e nos amedronta exatamente
porque está nos conduzindo a uma catástrofe nuclear que está no presente. E para essa
catástrofe nuclear e outras advindas da ação moderna que nos chamam atenção os
movimentos ecologistas” [SANTIAGO, 1989: 99; grifo nosso].
Vivemos um mundo cujo princípio de privação de boa parte dos seres humanos legitima
a ordem do dia. Entre os custos e benefícios sofridos pelos manguezais podemos apenas
afirmar que os desastres foram bem maiores do que supomos ou mesmo imaginamos. Muito
difícil encontrar saídas parciais em um mundo à beira da barbárie, pois vivemos em um
mundo cujo sistema deixa de satisfazer a fome dos seres humanos para satisfazer a sede dos
automóveis.
Ainda nos resta uma pergunta que fazemos para o anoitecer: Por onde começar primeiro:
pelo mar, pela terra, pelo ar, pelos mangues, pelos rios ou pelos homens? Sabemos que a luta
dos ecólogos não é, necessariamente, uma luta contra o sistema do capitalismo. É uma luta
que envolve o-mundo-todo-como-uma-grande-rede-sistêmica, pois é uma teia de sincretismo
ambiental. A questão da luta ecológica é uma luta eminentemente social, pois é uma luta que
resgata o princípio de utopia no mundo e no jazzmangue.
7.4 Os Manguezais e Nós: Palácio dos Negros
326
Partimos do palácio dos negros; antes de nosso avô negro e tios negros, jazzistas
morrerem nos cassinos da rua grande à beira do rio Parnaíba. Por onde havia poucos
contrapontos, os guetos ralos rinhavam a falta de saídas. O que era espaço de jazz virou
contraltos, quando o coração de nosso avô [tocador de trompete] parou de vez. Morreu de
nada. Coração soprou. Nossa avó que ficou grávida de 21 filhos criou-se entre 14. No lastimar
da sina, disse antes de enterrar o corpo de nosso avô: - “de como se cuidar para viver dessa
dor servida e como se viver desse som agudo, dessa cor sem jazz, dessa ausência de festa,
dessa pixinguinha tristeza, se eu fosse ao menos, não seria melhor que ter ficado tão sem?”
Nunca se abafaram os bemóis na memória do subsolo. Nossa avó desconversou e nunca mais
dormiu. Lavou, passou, engomou, mas ‘sempremente’ soletrava uma ausência de música. Na
ladainha do canto, intimava-se com outros conchegos. Meu avô, pelo visto, não saiu de dentro
dela. A música jazzista nunca mais parou de tocar o coração de nossa avó.
O trompete se encantou dependurado como um acervo sem vida. Enlutou-se depois.
Nossa mãe, pra fugir da chagas, acabou se indo escapar no Maranhão fazendo fogueira com o
sal da ilha e por si aluou ao se casar com nosso pai-índio – homem ferreiro – que só falava em
Tupi com nossa gente. Coisa de vinte palavras, pouco menos, talvez. A voz grave pouco sabia
de risos. Pregava-nos uns silêncios com cheiro de vestir prefume. Pra costumar nossa prosa,
sentia-se que aquilo era sabença de ser índio: usar corais no pescoço: fazia notas para os
pássaros. A taba criava limbo de fazer sentimento. Seo aparecia peixe, o trapiche escondia
do anzol. Nosso pai raiava sem peixes. Trazia desenredos de nossa mãe [na cozinha]
esperando o fogo sem chegar o mar. Fazia-se de silêncios: - “Quietos, sua mãe vem”!
Nossa mãe dava medo na expressão que não se pode nem aqui contar os nomes.
Havia-se na ilha uma mania que nosso pai-índio tinha de criar objetos com ferrugem.
Nosso pai reciclava os ferros, criava o som que depois dormia por trás da oficina de catar
blues. Começou, de início, o trabalho raspando as ostras, depois a doença do ferro: a ferrugem
dos homens. A crosta da ostra sarou nosso pai de ilhar-se ainda mais. Gostava de contar
arquipélagos. Palavra que nunca existia no dicionário da ilha de Igoronhon. Um dia construiu
um barco quadrado, tecido pelo ferro. Pôs os sentidos dentro do mangue e saiu à procura das
mulheres de água doce. Quando aparecia era para acolher o sal da ferrugem. Nossa mãe
resmungava o raparigamento: -“ Onde nunca se viu?”. Ele se riu, depois dormiu! Cavou o mar
até entrar navio. E se foi pra oficina fazer boi-bumbá com notas de jazz. Pouco se atrevia a se
cantar muito, gostava mais dos guinchos, varrendo folhas de lama. Quando descobria o
327
domingo, punha a família nos lençóis e dentro, o barco quadrado. Parava-se no marítimo um
fedor de prefumes de água doce! Só vendo a rumação.
As águas doces são os olhos de nosso pai: dois silêncios, nenhuma palavra a mais. Um
dia soletrou pra nossa mãe que tudo aquilo: céu, mangue, rio, barco, ferro, família, ilhas, seria
mesmo sua religião? Nossa mãe desconversou o livro razão. Falar traz conseqüências para o
que se dizia: desentortava o rumo. Nosso pai-índio nunca entrou em igreja. No terreiro dos
Gunguns se benzia. Tomava passe e posse. Batia-se coco-de-roda pra depois se dançar queto e
umbanda. Foi assim que aprendemos a construir religião: dançando umbanda e queto. Todos
juntos. Na segunda-feira, nosso pai-índio levava a família pra benzer o rio, abrir os pontos.
No domingo, nossa mãe celebrava as sobras de hóstia da igreja. Nosso pai não entrava
naquela de jesuítas. E se fincava de fora, girando os mundos sem caminhos. Nossa lembrança
esquecia nome de nosso pai. Muito sempre o barco quebrava, nossa mãe rinhava: -já é tarde
de agora, homem de deus, para se avexar o mangue? Caminhava de banda com o rio. Pegava
a pedra do sal para abençoar os espíritos. Bem naquele meio de águas, rezávamos pra que o
barco nunca levantasse do remo. Nosso pai-índio só desaparecia quando a maré ficava grande,
quase semicolcheia. Longe não se avistava mais vida. Alguma memória o mangue trazia.
Nossas memórias falavam um ‘indioma lama’. Aos poucos, do outro lado da ilha, surgia o
palácio dos negros, comido de jazz e ferrugem.
ao Abril pro Rock:
7.5 Sincretismo Acústico: O Jazzmangue
eu vim com a Nação Zumbi
ao seu ouvido falar
quero ver a poeira subir
e muita fumaça no ar
cheguei com meu universo
e aterrisso no seu pensamento
trago as luzes nos postes nos olhos
rios e pontes no coração
Pernambuco embaixo dos pés
E, minha mente na imensidão.
[CSNZ, 1996].
Enquanto ação de palavras, o poema é canto e transformação do pensar humano.
“Poesia é um modo de conhecimento”, como observa Ortega y Gasset [1973: 119]. A poesia
sobrevive, não de informações, mas nasce, talvez, daão que se manifesta da alma. Poesia é
328
mais antiga que a prosa. Como diz Jorge Luís Borges [2002:7]: “parece que o homem canta
antes de falar”. O poeta quando canta, mesmo sem saber, sugere o social da alma. Sobre as
asas da imaginação, há coisas que são intocáveis na ação do dizer, porque, em verdade, poesia
é a primeira ação do dizer. Na origem do dizer, a poesia renasce. A maneira de vê trans-forma
a norma. A arte do dizer está intencionada com a poesia por ser a arte de nomear as coisas
sagradas. O dizer é filosófico, mas o nomear comanda cada palavra a ser dita. O dizer pode
esperar um pouco, mas o nomear é ação urgente. A filosofia é casa de poesia. Poemar é
filosofar. Parmênides, a exemplo, foi um dos primeiros filósofos a expor suas idéias
filosóficas em versos. Sem filosofia o poema é incompleto; sem poesia o filósofo é inacabado.
A filosofia é a teoria da poesia, pegando aqui Schlegel. Atrás da ação do poema, mora o poeta
amigo da phýsis. A poesia começa onde pára o filósofo. É na arte que o filósofo encontra-se
com a dúbia reflexão da existência. A arte é um tipo de citação primordial para o filósofo. Nos
poemas, estão os achados verbais da filosofia. “A citação é uma das mais antigas artes
judaicas” [SELIGMANN-SILVA, 1999: 202].
Se olharmos bem para poeta, encontraremos a sombra do filosófico e vice-versa: “A
peça de teatro não foi um meio eficaz que Sartre encontrou para explicar pontos teóricos de
sua filosofia?” [SANTIAGO, 1989: 31]. Sem poesia não teoria. Um poeta não é apenas
sensação e raciocínio, mas luz do imaginário: “O devaneio poético é devaneio cósmico”
[BACHELARD, 2006: 13]. Na hora do processo criativo, o poema exige muito da teoria;
aliás, a teoria ajuda os ecólogos, mas é ferramenta fundante para um criador de-versos-
mundos. “Os eixos da poesia e da ciência são a princípio inversos. Tudo o que a filosofia
pode esperar é tornar a poesia e a ciência complementares, uni-las como dois contrários bem-
feitos” [BACHELARD, 1999:2]. Na hora H, na hora da bomba explodir, o poeta está à
procura do que faz parte de sua humanidade enquanto comunidade com outros povos. Um
poeta convida à inclusão social mesmo falando de pedras. Aleijadinho trabalhava em pedras
como se fossem papiros de Deus. Toda oração é um poema. Na índia, os códigos sagrados,
‘Os Dharmasutras’, são escritos em versos. Muitas vezes, a escritura é para um escritor a
própria salvação da existência. Escrever, para o cantor de poemas, é exercício de existir e de
resistência, pois escrever poesia é tornar o imaginário o devaneio do poeta. Quando pensamos
na palavra canto, lembramos do anima que é a memória do mundo imaginado. Pela canção, o
poema é metáfora de si mesmo.
Comungando música e palavras, a fala outra existência à canção-mundo. Toda
palavra consumidora de idéias recria ‘pensamentações’. Cantar é mover o instante de uma
329
peça sonora em seu momento de improvisação. Pela canção, a música é metáfora dos
instrumentos. “Na Provença, os poetas compunham a música de seus poemas” [PAZ, 1982:
340]. Esse talvez tenha sido um dos poucos momentos em que a poesia tornou-se musical sem
alijar a palavra. Ao se reunir música e palavra, uma tendência do poema fundir as palavras
aos sons instrumentais. É certo que separamos por muito tempo indevidamente palavra e
música. A música é a matemática dos sentidos. O computador compõe música de ouvido.
“Graças aos novos meios de reprodução sonora da palavra, a voz e o ouvido recuperam seu
antigo lugar” [PAZ, 1982:341]. Em nossos dias, retomam-se via internet, via cinema, via
perfomance digital, a união do poema com a música popular global. Esse diálogo é mais um
acordo com os acordes. O cantor decanta para fazer a voz contracenar ou ganhar a expressão
do dizível. O cantor volta a ouvir o caos-mundo. No canto, surge o primeiro poema do
mangue-mundo. Cada canto busca a teia sincrética dos infinitos arranjos que compõem a
corda do som. A poesia sonora do mangue faz o som vibrar as batidas elétricas nas
encruzilhadas do dizer. A metáfora musical do manguebeat remete aos griots que tocam
vários instrumentos de cordas, como: tantã, cora, guitarra etc. “São cantores maravilhosos,
transmissores, preservadores da música antiga” [QUEIROZ, 2002:18].
A poesia elétrica de Chico Science não existe apenas no limite do canto, do verbo, do
gesto, da dança, do instrumental, da música e da expressão ou reação do público, mas também
das palmas, dos mungangos, das vaias, dos bis, dos assovios, dos aplausos, dos palavrões, dos
cacoetes e outros. O confeite poético é tanto mais teatral quanto melhor ecoa a voz do cantor
do manguezal. Ao vivo, o poeta do manguebeat e a platéia são partes de um enredo
perfomático - expressivo e direto. A voz de Chico Science é como uma máscara que o cantor
do mangue veste. O ouvinte quando entra no convite teatral da performance scienceana
participa, de algum modo, daquilo que emite o cantador ou os instrumentistas. “Estabelece-se
uma reciprocidade de relações entre o interprete, o texto, o ouvinte, o que provoca, num jogo
comum, a interação de cada um desses três elementos com os outros dois” [ZUMTHOR,
2005: 93].
Cantar em público exige uma teia de relação entre quem fala e quem ouve. A voz, nesse
sentido, é inegavelmente social. A teia do mangue em Chico Science é tecida pela voz
ancestral afro-ameríndia que é a voz das diversas Américas colonizadas. Na teia da memória,
a voz de Chico traz a cantiga mais antiga que é o som negro, uma espécie de romance
cantado. No acompanhamento instrumental dos sons, o corpo do cantor é instrumento que se
faz presente no mundo afro. Em Science, cada cantiga é voz grave e também memória
330
inventada. O canto do mangue é um estribilho que envolve a totalidade mundo. Ao falar do
mangue-mundo, o poeta faz surgir a voz sincrética do enraizamento cultural. Falar margeia
diversos discursos que referenciam de onde está falando o cantor. Como diz Zumthor
[2005:175] “Falar significa, no Quebec, um enraizamento. A boca, os órgãos fonatórios do ser
humano, dão passagem à seiva que remonta de raízes longínquas, mas sem a qual,
provavelmente, morreriam os ramos”.
A voz de Chico Science emana do rosto para encenar o canto da voz ancestral
afrociberdélica. Sabemos que, sem o corpo, a voz emudece o canto, porque o momento do
poema cantado é o tempo do ritual do corpo. O som sai do canto do corpo. Sem o canto, a voz
do cantor emudece o cântico negro. O músico é Orpheu de seus poemas. “A música da poesia
é a voz da linguagem” [PAZ, 1982:343]. É na hora do canto que a voz do poeta vive a
corporalidade do mangue-mundo. A fala do poema expande o tempo do corpo sobre a canção
mangue em direção ao mundo. No canto, o corpo é extensão dos limites, nos ‘deslimites’,
lembrando aqui Zeca Baleiro [2002]: “uma canção é uma canção/ um uivo na noite deste
mundo cão”. O poeta é o uivo na antena de uma raça. A nota solitária que estribilha o som do
mundo-multidão. Pelo ruído da quimera, Chico Science realiza em sua metaleira funk o traço
do poema performático. Para viver o verso performance, abusa do exibicionismo, um traço
tipicamente da cultura africana. Sua poesia sonora causa efeitos temporais, mas também
funcionais que são justamente suas críticas incisivas sobre as mais diversas coações sociais.
Ao cantar, Chico faz a voz do mangue falar a partir de si mesmo.
A canção scienceana reata a teia de mangues aos tambores do mundo. No baticum dos
tambores do manguebeat, o grito representa a fúria da natureza humana. “O poema acolhe o
grito, os farrapos vocabulares, a palavra gangrenada, o murmúrio, o ruído, e o sem-sentido”
[PAZ, 1982: 344]. O grito é símbolo de revolta, protesto, expressão de nossa maior liberdade
que é a dignidade. Sabemos que o grito é uma manifestação do ser que extrapola as fronteira
do humano. As parteiras sabiam que o grito é a expressão mais antiga da primeira voz. O
grito, segundo Zumthor [2005:161], é uma espécie de vocema’. O grito é o tom grave do
poema. No ‘vocema’, a ordem do grito amplia as reivindicações da voz do poema. O grito
performático do manguebeat é carregado de reivindicações sociais para os povos dos
mangues. Na canção de Chico Science, o barulho de dentro comporta alternativas ou formas
de saída para os povos do mangue. Para denunciar os problemas e conflitos do manguezal, o
poeta recria sua canção colorida a partir da imprevisibilidade dos ecos-musicais: a diversidade
de sons.
331
Cascos, Cascos, Cascos
Multicoloridos, célebros, multicoloridos.
Sintonizam, emitem, longe
Cascos, cascos, cascos
Multicoloridos, homens, multicoloridos.
Andam, sentem, amam
Acima, embaixo do mundo
Cascos, caos, cascos, caos
Imprevisibilidade de comportamento
O leito não-linear segue
Pra dentro do universo
Música quântica? [CSNZ, 1994; grifo nosso].
O som do manguebeat é como um sopro cuja voz ancestral toca por frações de segundo
o instante imprevisível da vida. Nesse sentido, “a poesia é descoberta e domínio do sopro”
[ZUMTHOR, 2005 155], mas também canta a imprevisibilidade de comportamentos. O sopro
é a fagulha da arte, em dado momento, como observa bem Glissant [2005:166], “o próprio
sopro que respiramos, que serve para nós nos expressarmos, se transforma”. O som é o arqué
imprevisível de um ‘soprano’, de um barítono. Pela canção, alcança-se a nota mais profunda
do ser humano: suas raízes. Quando surge o sopro de uma canção, o poeta mostra o quanto
tudo no mundo é instável, perene e transitório. Pelo canto, o poeta tem sede de música e fome
de origens e palavras: “Eu vim com a Nação Zumbi / ao seu ouvido falar/ quero ver a poeira
subir/ e muita fumaça no ar”.
Chico carrega o tom da voz ancestral para recompor o nome das coisas no mangue. É
certo que temos perdido, cotidianamente, a voz ancestral dos povos dos mangues, assim como
pequenas e simples ‘estórias’ que eram contadas e cantadas por homens e marisqueiras.
Vimos, em nossos dias, que a alfabetização, a exemplo, traz ganhos na tradução de signos da
linguagem escrita, mas também acarreta a morte das estórias orais. O canto é, por sua vez,
portador da memória viva nas mais diversas tradições culturais. Como alerta Morin
[2005:105]: A alfabetização arrogante que considera os portadores de culturas orais não
como tais, mas somente como analfabetos, agrava o subdesenvolvimento moral e psíquico das
favelas”.
O som do manguebeat requisita, a partir da socialização dos corredores culturais de
favelas e becos, uma nova proposta musical para a ‘manguetown’:
Modernizar o passado
É uma evolução musical
Cadê as notas que estavam aqui
Não preciso delas!
Basta deixar tudo soando bem aos ouvidos
332
O medo dá origem ao mal
O homem coletivo sente necessidade de lutar
O orgulho, a arrogância, a glória
Enche a imaginação de domínio
São demônios os que destroem o poder
Bravio da humanidade [CSNZ, 1994].
Modernizando o passado da América-Mangue, o poeta não forja a realidade, pelo
contrário, luta para demarcar aquilo que o circunda através da música-escritura. Escritura que
se constrói entre fragmentos, colagens, refrões críticos, caos urbano. Por esse des-caminho, a
poesia melopéia do manguebeat recria, não apenas, mais uma porta que se abre como
resposta, mas novas brechas para se compreender um pouco mais as conseqüências de uma
modernidade tardia, aquém daqui, além dos mangues. Em verdade, podemos interligar o
nascimento do Movimento Mangue ao surgimento dos fenômenos das culturas glocais, como:
“as trocas transnacionais proporcionadas pela configuração da indústria cultural e o
movimento de afirmação das culturas locais” [VICENTE, 2005:108]. Convivendo em meio a
uma verdadeira efervescência de ritmos culturais na metrópole recifense, o grupo ‘Nação
Zumbi’ vem com a seguinte inscrição de ‘modernizar o passado’. Modernizar o passado é
revolucionar a estética de um presente, que durante a década de 1980, não ultrapassava o
saudosismo ‘armorial’, esse em busca da monarquia perdida renova diálogos com o império
medievo. Repensando a cultura local, o manguebeat voz à diversidade dos ritmos afro-
ameríndios, mas também do aproveitamento dos ritmos afro-caribenhos, ritmos anglo-
americanos e ritmos orientais. Nesse diálogo com a estrangeiridade Chico retoma a proposta
antropofágica oswaldiana e torquatiana. Ambos os autores defendem o sincretismo das raízes
culturais em diálogo com as fronteiras da hibridização.
Na fusão das misturas culturais, as palavras em Chico Science salteiam dos ritmos
afrociberdélicos para reciclar o velho e redimensionar luminosidade para o novo. E é a partir
do novo que se reivindica um tipo de sonoridade cada vez mais em diálogo com a
ancestralidade africana, mas também em sintonia com a contemporaneidade da música
eletrônica. Chico convoca então o sincretismo de sons para construir a partitura do mangue,
pois como diz: “Baixa deixar tudo soando aos ouvidos”.
A partitura dos manguezais é uma ebulição permanente frente à tradição da ruptura. O
velho som e o novo tom se reencontram e se reconhecem. Entre um deboche e outro o poeta
arrisca ‘ironismos’ desta natureza: “Ca as notas que estavam aqui/ não preciso delas”. É
evolução musical fundir o ontem com o hoje. Uma estética crioula que resgata a sonoridade
333
afro-descendente, mas que tambémo deixa de fora uma leitura dos ritmos orientais árabes,
como se observa na música instrumental “Samidarish”.
A modernidade de Chico Science é heterogênea como um eco-sonoro feito para os
olhos e ouvidos. O som do mangue é transfiguração de tambores e toadas de riffs, misturados
aos metais aquecidos das guitarras elétricas do soul e do funk. Uma ‘sinfonia’ de sons
diversamente hetero-gêmeos. Como um CD em movimento, a modernidade do Manguebeat é
pop como um hip hop. No release de uma banda de rock, a expressividade scienceana deglute
todos os ritmos antropofagicamente; mistura os sons incompatíveis às diferenças culturais.
Não muito distante de um Alceu Valença que já misturava o rock udigrudi ao som do baião,
numa espécie de forrock que assimila Jackson do Pandeiro a Luís Gonzaga, Chico amplia os
ritmos do mangue pelos sons das alfaias e guitarras distorcidas. Subindo as ladeiras de Olinda,
Chico Science vai além desembrulhando o jazz, o funk, o rap, o break ao Maracatu de Baque
Solto. Descendo a ladeira, Alceu funde o Frevo ao Coco, a MPB ao Maracatu de Baque
Virado. “Ao contrário dos mangueboys, no entanto, a turma udigrudi dos anos 70 não se
preocupou em cerzir uma cena local através de manifestos ou trajes com os quais fossem
identificados” [TELES, 2000: 163].
O manguebeat se identifica com tendências e ‘procedências variadas’, recicla Candeias
à segunda etapa de Rio Doce, bairro periférico de Olinda, com uma legião de hip hop no Alto
do do Pinho. Usa igualmente os elementos locais que montados numa antena
parabólica de bits e chips, não se limitando ao que fazia sucesso fora, porém absorvendo
informações mais do que se pensa possível numa região atrasada” [TELES, 2003: 33-34].
Antes dos mangueboys, havia o ciclo do canavial, mesclando o rock ao tradicional.
Alceu Valença e ‘Quinteto Violado’ eram o som de Pernambuco enquanto Belchior, Fagner,
Ednardo e Teti representavam, nas paradas do sucesso, o pessoal do Ceará”. Ednardo com
seu “Pavão Misterioso” antecipava também, na década de 1970, a batida lenta do maracatu
cearense à MPB. Pouca gente lembra, em nossos dias, da mistura de sons de Ednardo com
uma batida lenta de maracatu, recortando o ritmo sincopado da MPB. O tom melancólico da
percussão de Ednardo resgata uma leitura diferente para o maracatu do sertão cearense. Em
verdade, o maracatu do Ceará traz uma batida, lentamente, sinistra e é tão melancólico quanto
o estribilho dos primeiros bluesman ou o refrão dos jazzman tocando em féretros. Com direito
a the end, o ‘Pavão Misterioso’ virou tema da novela ‘Saramandaia’ e ficou esquecido para o
resto do público.
334
Por essa época, também estava fundado o próprio desvairismo musical na ‘Geléia
geral’, de Torquato Neto. O Tropicalismo de Tom Zé, Itamar Assumpção, Jards Macalé e os
doces bárbaros possibilitavam novíssimos arranjos e experimentos à partitura da música
popular brasileira. Aos nossos pés, a poesia marginal de Ana Cristina César, Francisco Alvin
e Regis Bonvicino se urbanizava em simetria com um signo para de coloquial. A letra do
Maracatu Atômico de Jorge Mautner saía da gaveta, segurando o porta estandarte da música
eletrônica.
A filósofa das teias Orides Fontela rabisca as primeiras folhas de poemas de seu
livrinho Trevos’. Entre ‘Caprichos e relaxos’: “Não discuto com o destino, tudo que pintar,
eu assino”, assim dizia Paulo Leminski, que em seu poema-piada, também fazia olarias de
palavras: “o barro/ toma a forma/ que você quiser// você nem sabe/ estar fazendo apenas/ o
que o barro quer”. Em uma Teresina de cajuína cristalina’, Torquato Neto, o anjo torto do
tropicalismo, estocava versos de teor bufão: “O Piauí está ficando cada vez mais perto.
Socorro!” Se uma boa causa jamais salva um bom poeta, quando Torquato suicidou-se,
asfixiado com gás de cozinha, queixava-se para um bilhete “Para mim, chega!”.
Do berimbau despojado de Ednardo e Alceu Valença ao maracatu elétrico de Chico
Science, não mistério em se descobrir que nada de novo paira no ar da modernidade, em
verdade, tudo se soma a uma confusão de parodias e prosas antenando-se com a diversidade
dos mil-tons. Enquanto Alceu Valença, montado em um ‘cavalo de pau’ privilegia o
romantismo estético de sua ‘manga rosa’, Chico Science reivindica a revolução musical,
usando para isso os mangues vermelhos ou raízes de risoflora.
Entre as mangas e os mangues, Chico Science reorganiza o olhar sobre o presente
antenado com a realidade dos mocambos e dos molambos. E observa isso a partir de Recife,
uma cidade-mangue na qual grande parte da população vive em morros ou à beira de
mangues, o emprego informal é o principal ganha pão de boa parte da população do
manguezal e a condição de crianças flanando pelas ruas ainda é assustadora se não a mais
alarmante do país. Um retrato que reforça questões importantes em meio a um aumento
abusivo da riqueza dividido de forma tão desigual, como decanta o poeta do Movimento
Manguebeat: “ih to liquidado/ o pivete pensou/ conheceu uns amiguinhos/ e com ele se
mandou/ ai meu velho / abotoa o paletó/ não deixe o queixo cair/ e segura o rojão/ vinha cinco
molequeiro em cima do caminhão” [CSNZ, 1996].
335
Experimentando os sons desafinados na banda ‘Orla Orbe’, Chico em 1981 exercita seu
primeiro arranjo musical embalando-se na sonoridade dos ritmos da banda ‘Loustral’ nome
inspirado nos quadrinhos do artista francês Jacques Loustral. Pelos idos dos anos 80 e início
dos anos 90, descobre os elementos do soul, do funk, do hip hop, do rap. Com o rap,
descobria-se um tipo de música que fora descoberto inicialmente pelo Dj Kool Herc, um
músico jamaicano que, em vigem pelo do Sul da África e América Central, encontrou em
meio aos cantos orais dos negros alguns ritmos de reggae. Esses ritmos chegaram tempos
depois ao resto do mundo com outras síncopes e estrondos de protestos. Metido entre o rap e
hip hop, Chico Science no início dos anos de 90 faz contato com os ritmos musicais do grupo
Lamento Negro uma banda que fundia o samba-reggae à batida do maracatu em sintonia
com grooves, loops e sample. Dessa mistura de sons de reggae com maracatu certeiro, a
banda Lamento Negro mescla o funk psicodélico da época da Loustral à alquimia
antropofágica da musicalidade das alfaias aos versos-improvisos de cantoria, “registrado na
embolada e no rap à percussão de boca conhecida dentro da cultura hip hop, como beatbox”
[QUEIROZ, 2002:19].
No entanto, não é nada bom esquecer que foram Lenine e Lula Queiroga os primeiros
músicos a usarem as alfaias de maracatu no palco. Para abrirem o lançamento do LP ‘Baque
Solto’ em 1983 no Canecão [RJ], Lenine e Queiroga prenunciavam os ritmos de Pernambuco,
mal sabiam eles que dez anos depois dali a cena Manguebeat teria um efeito mais global. Vale
destacar que bem antes disso, na tresloucada década de 70, Ismael Semente, o baterista do
grupo Ave Sangria trazia o baque do maracatu para a linguagem da bateria de uma banda de
rock. Mas como nada está solto na teia da vida, durante a alquímica cada de 90, a música
pop e as bandas de rock, influenciadas pelos ritmos dos anos 70 e 80 retomam com mais
ousadia a partitura musical fazendo incursões pela cultura popular em travessia com as
culturas de massa. Nesse universo alquímico, o Movimento Manguebeat registra em seu
circuito energético ‘afrociberdélico’ uma conexão da cena musical pernambucana em diálogo
com a rede mundial da música pop. Ao referenciar o CD Afrociberdelia, Chico Science
destaca que o termo vem da África como ponto de revisão da psicodelia, do maracatu, da
cibernética: “Afrociberdelia é um comportamento, é um estado de espírito, é uma ficção, é a
continuação de Da Lama ao Caos. Afrociberdelia é tudo isso” [TELES, 2000: 312].
A metáfora musical dos mangueboys acaba por extrapolar os limites do que se vinha
fazendo até então na capital do frevo. As metáforas verbais como diz Moisés Neto [2004:69]
336
não são mais sutis, mas ditas de forma violenta e dançante. Na colagem de caos e lama, o que
de mais extraordinário não deixa de fora o banal. “Tudo num clima de heterogeneidade,
numa linguagem que atingia as massas e a intelectualidade” [idem, 39].
Em verdade, Chico Science transfigura o caos emblemático da cidade-mangue ora em
som de brincadeira, ora em tom de ‘brincaleira’. Soando tudo em crítica. “Enquanto as bandas
‘pop cabeça’ procuravam uma saída para a Veneza Brasileira que logo rebatizaram de ‘Cidade
Mangue’ (os metaleiros a tratavam como O Esgoto), os alienados heard-bangers, ou
abreviando, bangers, iam ocupando espaços” [TELES, 2000:240].
Entre mangues e soparias, as turmas dos ‘caranguejos com cérebros’ ouviam de um
tudo passando por punk rock, funk, rap, metaleiros, hardcore, new wave, gótico, pós-punk e
outros, mas as leituras musicais não deixavam de fora o som ‘fio maravilha’de Jorge Bem Jor,
Bob Marley, James Brown, Mestre Salutiano, Caju e Castanha, Selma do Coco, os Lps de
Fellini à paixão musical por Afrikaa Bambaataa, o magnetismo sonoro de Black Sabbarth,
The Cash, Yellow Man, o jazz de John Coltrane, Cole Porter, Charles Mingus, Charlie Parker,
o som de Public Enemy, Durutti Column, Lee Perry, Ira, Sepultura, Racionais, The Cure, Doy
Division, A Certain Ratio, The Smith, Kurtis Blow e George Clinton.
Um longa metragem de influências musicais que tritura outras linguagens em conexão
com os filmes de ficção científica à estética do ‘cinema novo’ de Glauber Rocha. Nesse
intercâmbio cultural, a periferia passa a ser vista a partir do foco das camadas populares e
surgem experiências e participações em trihas sonoras de filmes que fazem a parte da
chamada cena mangue, como: ‘Baile Perfumado’ [1997], ‘O Rap do Pequeno Príncipe contra
as Almas Sebosas’ [2000], ‘Amarelo Manga’ [2003], ‘O Mundo é uma Cabeça’ [2004],
passando por ‘Aspirinas e Urubus’ [2005], ‘Quando a Maré Encher’ [2006], Céu de Suely
[2006].
As imagens do cinema auxiliam o pessoal do manguebeat em suas leituras à literatura
de Josué de Castro, William Carlos Williams, Cummings, somando também as coisas que se
inventa no alto do do Pinho como: o roots reggae que envolve o barulho da banda Nanica
Papaya; o BU [Bond of Union], eletrificando as guitarras atômicas; bandas como
Matalanamão que recicla os sons anarcopunk; ou mesmo de bandas como Devotos do Ódio
que em ‘Alto Falante’ tritura o rock ao punk em estilo Candyall Ghetto Square em uma
espécie de letramento musical, um tanto estranho. No morro de Casa Amarela, o grupo Faces
337
do Subúrbio embala pela rádio comunitária uma mistura de rap com embolada ao descrever
uma crítica severa, em bom tom de ironia, a um sistema que se diz ‘democrático’: “Homens
fardados, eu não sei/ se julgam os tais/ os donos da razão/ homens fardados eu não sei não/
Insistem em fazer justiça com as próprias mãos”.
Se o primeiro solo ocorreu nos fundos da academia Arte Viva, porém foi no princípio
de 1991, no bairro Casa Caiada, em Olinda, no espaço Oásis, que Chico Science ainda do
Lamento Negro
85
exercitava a alquimia de notas de raggamuffin e embolada com soul-jazz.
“O impacto dessa criação somada às inovações musicais e carisma dos seus lideres acertou
em cheio no desejo de diversos segmentos de Pernambuco: grupos ecológicos, ONGs, bandas
de diversos gêneros, estilistas, artistas plásticos etc” [VICENTE, 2005:97].
Poeta travesso, com sua brincadeira levada com seriedade, Chico Science lembra um
pouco o soul-jazz-funk feito à moda James Brown. O poeta do Harlem, inventor do funk,
James Brown com sua guitarra de fazer acordar o teatro Apollo traz uma dança performance
que serviu de inspiração cool também para o ritmo de Mick Jagger, Michael Jackson, Chico
Science. O termo funk tem uma origem curiosa, significa sujeira, fedor. Ao nascer
aproximadamente entre a década de 50-60, esse estilo musical torna-se adepto do sincretismo
musical e retoma as raízes mais primitivas do blues, do jazz e do gospel. No funk, retoma-se
também a partitura mais simples, com arranjos que se voltam para ritmos da ancestralidade
negra.
No funk, as execuções são dedilhadas por um tipo de tom mais emocional. Além de
James Brown, o baterista Arte Blakey e o pianista Horace Silver se tornaram pioneiro do funk
que, por sua vez, servirão mais à frente para influenciar o hard bop nas notas do saxofonista
John Coltrane, assim como ao happening de improviso de John Cage e aos solos
instrumentais de Charlie Parker, Miles Davis, Charles Mingus e Gillespie.
Vale lembrar que Fred Zeroquatro se dizia influenciado, inicialmente, por Coltrane,
enquanto Chico Science, abusando do cabelo e estilo perfomático à moda break-boys. O
próprio termo mangue-boys remete um pouco aos break-boys. Em suas cenas de perfomances
“os break- boys giravam movimentos ‘quebrados’ que denunciavam a situação dos mutilados
de guerra e a robotização da sociedade, ou que sugeriam a ação dos helicópteros em combate
85
O grupo “Lamento Negro” surgiu em Chão de Estrela, como parte do Darué Malungo, que em Iorubá quer
dizer companheiro de luta. É também um dos vários centros de resistência da luta negra existente em
Pernambuco. “Como tal, a música que faziam seus integrantes tinha um caráter não apenas lúdico, mas
também didático e religioso” [TELES, 2000: 266-267].
338
através dos giros de acabeça sobre o chão, com as pernas abertas e erguidas para o alto”
[QUEIROZ, 2002: 29].
Com seu compasso bastante funkeado, Science recita um laboratório musical, em
sintonia com as leituras sonoras de Afrikaa Bambaataa que foi, segundo Queiroz [2002: 24],
uma espécie de guru jamaicano do hip hop durante os anos 60 e um dos primeiros a fazer uso
do termo. No break, como no hip hop, o escritor é termo que ganha a rua. O escritor é aquele
que grafita. O muro é um livro para um pichador. Em meio à alquimia sonora, os sons
scienceanos se encontram para de-cantar tudo em ritmos, em mangues:
Maracatu psicodélico
Capoeira da pesada
Bumba meu rádio
Berimbau elétrico
Frevo samba e cores [CSNZ, 1996].
Despojado para criar o rebuscado, rebate as toada de samba-reggae, como assinala
Science em entrevista: “Pego o coco de roda, maracatu e junto com minha formação musical.
Como queria chamar de ritmo, batizei o troço de mangue” [TELES, 2000: 329]. Na percussão
do batuque atômico, Chico passa para o tambor o som do soul fundido tudo a ritmos-sons-
poesia-imagens. Se o fundamental é não perder o batuque, a música de Chico Science
movimenta três grandes tambores e é tão intercalada de síncopes quanto a batida da música
tocada pelos negros do jazz. Pioneira até na gaiatice, o jeito meio clown, meio palhaço, de
Science é uma mistura de jazzmangue, pois lembra as performances dos espetáculos
jazzísticos. Longe da seriedade de um Miles Davis que, muitas vezes, não se furtava a um
jogo de cena, Chico Science está mais para a popularidade de um Basquiat ou de um Louis
Armstrong ou mesmo para o jazz & poetry de um Langston Hughes
86
, ou para a sonoridade
multi rapentista de um Zeca Baleiro. Na batida rítmica de um Baleiro [1998] retoma-se a
lição tropicalista X antropofágica em versos desta natureza: “Poesia não tem dono/ Alegria
não tem grife”.
Todo legado africano de arte resulta de um aspecto de funcionalidade poética. Frente ao
legado africano, a arte não é diferente da vida, pois representa um aspecto de maior
funcionalidade cultural e de conscientização social. Nesse sentido, o legado da arte afro-
descendente é inseparável da natureza. A música negra scienceana traz teclados tonais,
86
Pesquisado pelo poeta piauiense Élio Ferreira em sua tese sobre memória e identidades culturais [2006] nesta
Universidade.
339
percussões violentas em meio a guitarras jazzísticas distorcidas. Os acordes africanos do
manguebeat são verdadeiras imitações dos sons da natureza ambiental do mangue. Vejamos aí
que a música instrumental ‘Coco Dub’ traz uma sonoridade rica ao traduzir em acordes os
diversos ecos dos mangues. O efeito final disso tudo é pura mimese dos sons de pássaros,
gongos de florestas, grunhido de bichos, insetos, timbres de conchas. Na música scienceana,
todas as artes e acordes estão sincreticamente fundidos a um conceito amplo de
funcionalidade musical. O som do mangue é o que reivindica, abusando da criatividade e
brincadeiras levadas a sério pela perfomance e representação.
Quando se observam as canções de ninar africana, percebemos que foram criadas com o
objetivo utilitário para auxiliar na educação das crianças. Na África, a música compõe uma
relação mais ampla com os rituais, porque a música envolve uma mistura sincrética de canto
religioso, dança, mímica e outras formas de representação culturais que se somam e se
complementam nos rituais das festas populares. Conforme acrescenta Calado [1990: 71]:
“compondo um todo dinâmico, onde os ritmos, as melodias, o gestual, o dramático, vozes
humanas e instrumentos interpenetravam-se, a música africana viveu durante séculos, sendo
criada dentro da estrutura de uma complexa e rica representação”.
Em meio à musicalidade afro-descendente, a poesia do manguebeat tem uma missão
funcional, uma vez que exerce um papel diretamente ligado à vida cotidiana. No amanho da
cultura africana, o belo da arte se justifica como expressão interligada às coisas mais simples
do cotidiano. Para o jazzista afro-americano, o desafinar faz parte do show. O legado cultural
afro-descendente, no aspecto funcional, se distingue da cultura européia na qual o estético
demarca o compasso artístico de uma forma para lá de erudita.
Para termos uma idéia, na música erudita o grau de improviso é reduzido ao mínimo,
pois na orquestra filarmônica os músicos tocam em sintonia, seguindo a partitura musical ao
da letra. Retirando os pontos de fugas, na música clássica, a exemplo de um Vivaldi, o
maestro retoma a peça sinfônica pela afinação musical de todos os instrumentistas, enquanto
na musicalidade africana a preocupação se volta para a performance musical individual
mesmo tocando em dueto ou quarteto. Assim um astro como Chet Baker ou, em um sentido
mais poético, do improvisar da voz, o ecoar de um jazz melancólico no semblante da
charmosa “Billie Holiday que conscientemente cantava como se estivesse tocando um
instrumento e de preferência, o sax tenor de Lester Young” [CALADO, 1990: 71].
O tom desafinado, em New Orleans, faz parte da amarração rítmica porque tudo é
340
encenação brincante no espetáculo de improviso jazzista. “Enquanto a música erudita passou
séculos até romper com o sistema tonal, através do dodecafonismo, no início do século, o jazz
em praticamente sessenta anos, chega ao free, que na década de 1960 rompe com o tonalismo
e as estruturas tradicionais anteriores” [CALADO, 1990: 40]. Esse diálogo acontece também
devido ao processo de colonização e, principalmente, ao período da escravidão quando muitos
negros, ao terem seus instrumentos de percussão violentados pelos senhores da casa grande,
necessitaram reinventar e adequar as escalas musicais africanas aos instrumentos e partituras
da cultura ocidental. Tocava-se violão como se fosse um tambor. Essa batida ritmica do
violão fez nascer o blues, o jazz, o samba, soul. A junção ou permutação dos cantos do
candomblé à cadência dos cânticos gregorianos, gospel ou mesmo protestante, levou a música
negra a resenhar uma tonalidade sincrética bem particular.
Por outro lado, se o jazz se volta para o concerto de improviso, o funk, o rap, hip hop,
soul, o manguebeat, também, porque, em verdade, todo o legado ancestral da voz afro-
descendente não deixa de afinar seus tambores com o ritmo dos ssaros e das emboladas. O
rap é uma espécie de transgressão do jazz e da embolada. Todo esse legado, o manguebeat
aproveitou e aproveita muito bem traduzindo a batida do improviso pela fala poética do bilro
do maracatu que saiu da nuvem negra do temporal/ todo quadro-negro é todo negro, é todo
negro/ e eu escrevo seu nome nele só pra/ demonstrar o meu apego/ o bico do beija flor, beija-
flor, beija-flor/ e toda fauna flora grita de amor” [CSNZ, 1996].
7.6 Mangues & Maracatus
aos caboclinhos
“O Cidadão do Mundo”
a estrovenga girou
passou perto do meu pescoço
corcoveei, corcoveei
não sou nem um besta seu moço
a cena parecia fria
antes da festa começar
ma logo a estrovenga surgia
rolando veloz pelo ar
eu pulei, eu pulei
corri no coice macio
só queria matar a fome
no canavial na beira do rio
jurei, jurei
vou pegar aquele capitão
341
vou juntar a minha nação
na terra do maracatu
Dona Ginga, Zumbi, Veludinho
segura o baque do mestre Salu
eu vi, eu vi
a minha boneca vudu
subir e descer no pescoço
na hora da coroação
me desculpe, senhor me desculpe,
mas esta aqui é a minha nação
Darué Malungo, Nação Zumbi
é o zum sum zum da capital
só tem caranguejo esperto
saindo desse manguezal
eu pulei, eu pulei
corri no coice macio
encontrei o cidadão do mundo
no canavial na beira do rio
Josué!
eu corri saí no tombo
[...] [CSNZ, 1996].
Ao utilizar o chapéu tosco, os óculos de todos os tipos, os tênis e bermudas coloridas, o
visual performático de Chico Science traz um diálogo incisivo com os Caboclos de Lança do
Maracatu Rural. Essas indumentárias todas de Science constituem um instrumento importante
no imaginário da música popular eletrônica da Cena Mangue. Os adereços scienceanos
também lembram os exageros alegóricos dos músicos da Tropicália, mas também remetem
aos hipsters, grupos de negros do underground, que adotavam roupas coloridas e falavam um
idioleto estranho conclamando as drogas e ou bebidas. Os hipsters eram “adeptos das últimas
inovações do jazz, ao contrário dos squares, quadrados ou caretas” [CALADO, 1990: 154].
Os hipsters, de certa forma, legaram também a forma do improviso na mistura do rap
com hip hop da cena Mangue. Os poetas do Manguebeat foram hipsters ao misturarem o
colorido das roupas ao maracatu elétrico. A musicalidade sincrética do Movimento
Manguebeat transforma a poesia cantada em espetáculo de performance.
87
A voz do mangue,
em Chico, é extensão dos ritmos do maracatu rural, mas Science não segue esses ritmos à
risca, embrulha, mistura, desdobra suas batidas em uma marcação de improvisos.
Reconhecidos apenas pela mídia local, “no limiar dos anos 80 e 90”, os grupos de
maracatuzeiro passaram a ganhar maior evidência graças ao trabalho de mestre Salu. É certo
que, pela expansão das batidas do maracatu psicodélico da cena Manguebeat, esses folguedos
passaram a receber novas referências e mestre-cerimônias mundo afora. Contudo, é sempre
bom lembrar que essa manifestação cultural vem de muito longe.
87
As idéias de performance, rap, hip hop, vêm sendo estudadas por Amarino Queiroz, pesquisador da “oralitura
africana”, com quem aprendemos e muito devemos o despertar da palavra falada.
342
Em verdade, a composição cultural do Maracatu Rural não é tão simples quanto parece.
Esse fenômeno, culturalmente, é simbolizado pelo desfile de uma corte real, baianas, caboclos
de pena [tuxaus], caboclos de lança além dos personagens catirina, mateus, cavalo-marinho,
caçador de bastião e a burrinha que fazem parte de uma fusão com outros folguedos, como:
bumba-meu-boi, pastoril, folia de reisado, caboclinhos, a embolada, o aboio. Esses folguedos
também estão interligados, desde o princípio, a uma teia de sincretismo com os mitos
africanos, ameríndios, europeus, cristãos, árabes. No festejo do maracatu, um sincronismo
que religa a umbanda ao catolicismo, o candomblé aos mitos e folguedos da cultura popular,
como, o cavalo-marinho que, em suas encenações na Zona da Mata Norte de Pernambuco,
teatraliza poesia em sincronia musical com o som da rabeca, a rabeb vinda com os árabes. O
som da rabeca prenuncia, para o cavalo-marinho, os versos de improvisos, seguidos por um
tipo de dança meio sincopada.
O Maracatu Rural
88
traz um diálogo profundo como figura principal dos “Caboclos de
Lança”. Esses “lanceiros” da Zona da Mata têm a mesma representatividade popular do
personagem Mateus do bumba meu boi. Referenciado como interligado aos antigos
quilombolas, os caboclos lanceiros trazem um surrão nas costas uma espécie de armação
com chocalho e carregam também uma lança adornada com fitas coloridas. Esses caboclos
de lança e maracatu talvez sejam descendentes dos quilombolas existentes no século passado
nas proximidades de Goiana [PE].
Os ‘Caboclos de Lança’ aparecem, geralmente, vestindo uma indumentária valiosa em
formato de bata, bordada com um tipo de pontilhado figurativo, seguindo um mosaico de
linhas abstratas, tudo feito à mão e coberto com lantejoulas. Geralmente, as mulheres quando
em processo de menstruação ficam impossibilitadas de participar do cortejo. Comentam que
para conseguir carregar a indumetária que pesa em média trinta quilos, os Caboclos de Lança
realizam um verdadeiro ritual de purificação dos brincantes. Para receber as entidades
espirituais, os Caboclos de Lança fazem abstinência sexual, tomam banhos de ervas, bebem
88
O surgimento do Maracatu Rural situa-se ainda sobre hipótese e discordância, sem data aproximativa, alguns
cogitam que pelo século XVIII, outros pelo século XIX e XX. O Maracatu de Baque Solto ou Rural passa a se
situar pelo morro de Casa Amarela ainda pela década de 30 devido à migração dos bóias-frias para a capital de
Pernambuco. No entanto, sofreu resistência por parte da Federação Carnavalesca que somente reconhecia o
Maracatu de Baque Virado como modelo único de maracatu. Até a década de 30, a palavra maracatu era tida
como sinônimo de baque virado. O baque virado ou maracatu nação tem sua origem ligada ao século XVIII e
está inserido na zona urbana da cidade do Recife. A origem desse tipo de mararatu remonta “ao Auto dos
Congos, misto de ato religioso e encenação dramática que ocorria diante das igrejas às quais os escravos
podiam ter acesso na cidade” [QUEIROZ, 2002: 62]. Mas também estão diretamente ligados “às nações
africanas que mantiveram no Recife culto ao candomblé e em sua origem à Irmandade de Nossa Senhora do
Rosário, esses maracatus eram aceitos pela comunidade carnavalesca e estimulados pelos folcloristas”
[VICENTE, 2005: 33-34].
343
azougue, uma bebida feita com cachaça e pólvora. No sincretismo afro-descendente, esses
lanceiros de Ogum são, no catolicismo, os guerreiros de São Jorge. O caráter espiritual desse
‘samba de matuto’ também dialoga com um tipo de símbolo bastante utilizado pelos
catimbozeiros que é a calunga - a bruxinha - ou a ‘boneca vudu’.
A expressão vudu remete ao termo voodoo ligado à origem da teatralidade dos rituais
afro-americanos e também formas musicais do jazz. Os praticantes do voodoo desembarcaram
na América em navios negreiros provenientes da África, do Haiti e da Martinica. Mas a
prática do voodoo não era legalizada na América por ser reconhecida como magia negra e
assim ficou, por muito tempo, impedida de desembarcar nas cidades americanas. É certo que
o que caracteriza o voodoo é o ato da possessão. Nesse tipo de ritual, a força espiritual se
manifesta como um ritual de feitiço e a forma como se realiza indica um grau teatral
ritualístico. O ritual do vodoo, de alguma forma, está ligado ao ritual do caboclo de lança para
receber o samba de maracatu com uma flor dentro da boca: a comadre fulozinha.
No samba de maracatu, os Oguns de Lança trazem os resquícios ainda dos repentistas
medievos: o romance de improviso das emboladas, dos aboios. Os aboios são cantos de
trabalhos rurais, principalmente da região Norte, Nordeste, sertão de Minas Gerais. O canto
dos aboios, ao varrer o gado para o pasto, improvisa verdadeiros ‘mantras’ rítmicos e
melódicos sobre notas de vogais como: Á á, á,á, à [vá], Ê ê ê ê [boi], Ô, ô, ô. Esses sons de
improvisos servirão para que a ladainha na voz do cancioneiro popular receba a toada do
pastoril. “O aboio praticado no Nordeste brasileiro também vai encontrar suas origens na
tradição oral dos povos árabes” [QUEIROZ, 2002:59].
Os versos repentistas dos emboladores e aboios servirão para a prática de improviso dos
maracatuzeiros. A toada de improviso é declamada pelo mestre do maracatu durante a
apresentação do folguedo. Os versos de improvisos são anunciados pelo silvo de um apito
realizado pelo mestre do maracatu que, após a perfomance das palavras de improvisos, é
correspondido pela batucada dos tambores de maracatus. É pelo baque dos instrumentos que
se a marcação da dama-de-buquê, tuxaus, lanceiros e caboclinhos. Depois da marcação do
ritmo sambador, um silvo breve novamente aparece e tudo recomeça no ritual do cortejo: “Na
base do improviso, cada mestre em seu tom, quem quiser que leve uma pisa de rima”
[AMORIM, 2000:83].
Todas essas improvisações dos maracatuzeiros, geralmente, são feitas na forma de
344
versos de agradecimento pela acolhida anfitriã da cidade que recebe o folguedo ou mesmo
como gesto de gratidão pelos organizadores do evento ou para celebrar as qualidades do
próprio maracatuzeiro. “No período que antecede o carnaval, os mestres se encontram em
sambadas para afinar o improviso, realizando desafios. As partes dos versos são repetidas por
algumas baianas com voz aguda” [VICENTE, 2005:28].
O Maracatu de Baque Solto ou Rural traz um figurino ostentoso que durante décadas
acolheu transformações importantes. Essas mudanças estão relacionadas às transformações
advindas com a tecnologia. A década de 1980 ainda estava pelo meio, quando se trocaram as
miçangas, o vidrilho pesado e caro pelas lantejoulas, que além de mais econômicas, levam
menos tempo para costurar. Por outro lado, as batas de dois metros aumentaram
consideravelmente de tamanho, saltando para cinco metros. Entre algumas modificações, a
mudança de alguns símbolos se deu de forma imposta pela Federação Carnavalesca. Um
exemplo é a introdução da ‘corte real’ no Maracatu Rural que, apesar da resistência por parte
dos maracatuzeiros, passou a predominar no final da segunda metade do século XX.
Quando se analisaram as transformações ocorridas no Maracatu de Baque Solto, vimos
que, em pouco tempo, o caboclo de lança substituiu o chapéu de palha do Mateus por uma
vasta cabeleira colorida de celofane que de longe lembram as palmas do canavial. Durante o
período do carnaval, saem no meio da multidão estendendo a mão, pedindo uma espécie de
auxílio, para ajudar nas despesas de um figurino que chega a custar em média três mil reais.
Em busca de algum tipo de reconhecimento, os desfiles de maracatus tornaram-se, com o
decorrer dos tempos, um grande espetáculo de cores e mutações. “A cultura urbana exigiu
uma revisão do espaço da mulher no Maracatu, inserindo-a principalmente na corte e no
baianal, papel antes ocupado por homens que usavam saias” [VICENTE, 2005: 32-33]. Um
pouco parecido ao maracatu cearense no qual são os homens que se vestem de baianas e
pintam o rosto e o corpo com uma tinta de cor preta. O mascarar-se de preto para dançar o
maracatu altera a voz dos brincantes. Teatralmente, a máscara modifica o tom da voz.
Na ancestralidade afro-descendente, a máscara traz a missão de deformar a voz uma vez
que exerce a função de dissimular a expressão da personalidade e, conseqüentemente, da
sonoridade da voz. “Tocar o instrumento é de uma certa forma vestir a primeira máscara”
[CALADO, 1990: 53]. Cada instrumento exerce um papel que se assemelha ao do ser
mascarado. A máscara, assim como a roupa colorida, o chapéu de coco, o tênis, o gesto dos
maracatuzeiros faz parte da performance de Chico Science. Esse poeta, ao unir o corpo à
345
cenografia, mistura os gestos aos instrumentos musicais e acaba por registrar outros
elementos que fazem parte da Cena Mangue: as caretas, o tique gozador, o cavanhaque, a
alegria brincalhona, a voz negra com tonalidade grave do mangue. Em Science, voz e corpo
estão interligados a uma performance, a um musical de palavras e maracatus.
A atitude de poeta performance está bem próxima da representação de um jazzman que
agrega ornamentos, mas também ousadia para ultrapassar a voz do passado. Chico Science
anuncia, com delírio, novos caminhos para a música brasileira, mas é a partir de uma
antropofagia cultural com os adereços musicais norte-americanos e com a carnavalização
medieval que harmoniza os ritmos populares para integrar a roupagem da música mangue.
Nessa mistura sincrética os sons derivados do jazz, como o blues, as roda de samba, o soul
são carnavalizados pela turma do Mangueboys.
O bluesman surgiu depois da abolição da escravatura com a melancolia dos negros
solitários nos guetos ralos. O blues e o jazz é um fenômeno coletivo; mas é também uma
grave reflexão sobre a condição de abandono do indivíduo negro vagando sem rumo pelas
ruas. E isso acontece devido à própria condição de miséria em que foram deixados os negros
durante e depois da abolição da escravatura. No blues rural cantavam os bluesman com seus
banjos ou violão para uma platéia miúda enquanto no blues clássicos predominava o canto da
mulher afro-americana como Bessie Smith uma espécie de Clementina de Jesus, que
trabalhava de dia como doméstica e à noite era acompanhada por uma faustosa voz rouca,
entre percussões e violões afinados. Smith era capaz de fazer mover platéias bem maiores e
serviu, mais à frente, para influenciar outras grandes cantoras de blues como: a lendária Janis
Joplin, Nina Simone ou mesmo a gaita de blues de Angela Roro, do lamento in frevo de Gal
Costa, à voz rubra de Cássia Eller à toada de sons em Daúde, Virgínia Rodrigues, ao samba
pop de Martinália às fusões experimentais de funk com play back de Sandra de Sá, da
‘macumba-tecno’ da maranhense Rita Ribeiro ao rock-funk em Fernadinha Abreu.
Considerado por muitos como manifestação cultural em transição, o blues serviu de
base para esse teatro popular da música negra que é o jazz ou mesmo para a pintura do
minstrel. Se “não havia jazz na África, muito menos seria possível o surgimento dessa música
nos EUA, sem a participação essencial do negro” [CALADO, 1990: 65], o jazz nasce da
dança, do swing, que é tão sensual quanto à ‘ingenuidade alegre’ do manguebeat. O som do
mangue agrega notas de jazz-blues-soul principalmente nas baladas de cunho mais romântico.
346
O Movimento Mangue nasce do sopro de um tambor de maracatu, mas principalmente,
de uma brincadeira levada a sério. Quando se pensa no minstrel jazzista, com sua tez pintada
de preto, imitando os trejeitos musicais dos negros norte-americanos, vem sempre à tona a
figura de um Chico Science uma espécie de cantor-espetáculo do Movimento Mangue.
Como um verdadeiro minstrel da época contemporânea, Science preparou e propagou o
terreiro musical da cena Mangue versificando maracatus.
Em Pernambuco, os maracatus são variantes das Cambindas
89
; atualmente, os
homossexuais também se incorporaram a novos papéis femininos tanto na ala das baianas
quanto na ala da corte. Uma outra mudança registrada na contemporaneidade diz respeito à
apresentação do verso improvisado: “atualmente, os integrantes dançam ao som da orquestra e
param quando os instrumentos se calam para ouvir os improvisos, voltando a dançar em
seguida” [VICENTE, 2005:32]. Antes, o ritual funcionava um pouco diferente, o mestre do
maracatu introduzia os versos de improviso que eram respondidos pela ala das baianas e ou
pelo bloco dos percussionistas. Devido ao próprio barulho do chocalho, o caboclo de lança
não apenas cantava, mas também dançava com sua lança de fitas, seguindo a marcação da
variedade de ritmos miscigenados, como samba, coco, frevo, baião.
Na modernidade de Chico Science: “fortalece-se a idéia de que o crescimento do
maracatu é fruto de agentes exteriores, de uma política surgida apenas na década de 1990.
Novamente, a história popular é contada lendariamente, sem história” [VICENTE, 2005:136].
Do final da década de 1980 à atualidade, os grupos de maracatuzeiro ganham novas
visibilidades pelo apoio da mídia. Esse apoio da indústria midiática retira o maracatu da
condição marginal e de exclusão e lança-o em outra realidade social, cultural e,
principalmente, econômica. Com todas as modificações sofridas em virtude da tecnologia, o
maracatu permuta-se, recria-se de forma sincrética, com outras linguagens como forma de
firmar um pedaço da memória local da manguetown’. Isso, evidentemente, não lhe confere
nenhum status hiperbólico, nenhuma vantagem quanto a sua função cultural, mas cria
responsabilidades sociais frente aos que aqui estão e aos que virão um dia a nascer neste
mundo.
Se na modernidade scienceana encontra-se o desenraizamento de homemangues
percorrendo ‘entre-lugares’, em busca da terra prometida, é porque nesse contexto, a cultura
89
Cambindas, segundo Câmara Cascudo, é uma modalidade de ancestralidade africana em que, sob o
acompanhamento de uma batucada de percursionista, os homens travestidos de baianas dançam e cantam com
o rosto todo pintado.
347
popular ganha nova tradução, reinventando novas tradições pela via mangue. Somente por
meio de uma visão idealizada pelo enfoque romântico-modernista é que se teve um olhar puro
e ingênuo sobre a cultura popular do mangue. Em nossos dias, as distorções e contatos com a
civilização moderna reciclam e transgridem a cultura popular e acendem o pensar de que nas
fronteiras culturais nada está morto, parado no tempo. Em verdade, a coisa se entre
misturas possíveis de mudanças e trocas.
Se o asfalto é meu amigo.../ deixar que os fatos sejam fatos naturalmente/ sem que
sejam forjados para acontecer/ deixar que os olhos vejam pequenos detalhes
lentamente/ deixar que as coisas que lhe circundam/ estejam sempre inertes/ como
móveis inofensivos/ para lhe servir quando for preciso/ e nunca lhe causar danos
morais, físicos ou psicológicos [CSNZ, 1996].
É certo que não uma cultura popular pura, e seria uma ingenuidade nossa acreditar
nisso. Afinal, a cada dia as lições midiáticas de massificação cultural se acentuam. Mas se as
mídias aceleram o processo massificação cultura, por outro lado, elas também acabam por
levar dignidade a quem sobrevive da arte popular. A miséria que passava e passa o caboclo de
lança agora pode ter outros caminhos. Muitos saíram da condição de anonimato para ganhar o
mundo. E se isso é muito pouco para alguns, para outros chega a ser uma salvação. Tom
Jobim é que costumava brincar dizendo em tom de bossa nova que a melhor saída para o
músico brasileiro era o galeão.
Do mais simples artesão que expõe anualmente em feiras de artesanato ao mais simples
folguedo popular, observam-se sérias transformações que se modificam para agradar a
indústria do entretenimento. Nesse viés, é o mercado quem legitima a cartilha dos enredos
culturais. É certo que a cultura popular não está desaparecendo de nosso meio devido ao
processo de modernização, como acreditam os mais barristas, pelo contrário, tem recebido
mais evidência e reconhecimento ao recriar alternativas e espaços minoritários, ameaçados
pela proposta globalizante.
Esse acelerado crescimento das culturas tradicionais se deve, também, ao aparecimento
de um ‘diálogo’ mais dinâmico entre o discurso hegemônico e a reorganização social dos
grupos marginalizados via Ongs. A cultura popular longe de uma tradição imutável, introduz,
como invenção, expressões culturais em eterna mutação de valores. Na articulação dessas
transformações, estão as diferenças culturais em verdadeira disputa por mais espaço e
legitimidade na sociedade pós-moderna. Canclini [1998: 215] assinala que o crescimento da
cultura popular emerge pelo fortalecimento dos laços híbridos entre as minorias étnicas e
348
locais e também devido à impossibilidade de incorporar toda a população à produção
industrial urbana. Na visão de Canclini, frente ao processo de modernização do mundo
contemporâneo não é muito fácil identificar o que é mais hegemônico e o que é mais popular.
Dependemos sempre de um olhar que perceba a natureza econômica e ideológica da produção
cultural. Se, de um lado, existe um arsenal de pesquisas assinalando sobre os interesse
intrínseco dos setores hegemônicos em facilitar ou estimular a onda de modernização, de
outro lado, existe um certo folclore em torno da cultura popular que a condena a um atraso e a
um bairrismo que se arraiga a tradições, muitas vezes, fechadas, levando-a a se manter ainda
mais à margem do discurso dominador.
Ainda segundo Canclini (op. cit.), esse discurso legitima e limita a compreensão da
cultura popular referenciada, em muitos casos, como subalterna e parada no tempo. É certo
que, muitas vezes, exalta-se o popular como cristalizado ou como parte da memória ancestral
da escravidão, como se as contradições que lhe deram origem ainda não marcassem as
contradições sociais e a onda de racismo tão presente em nosso tempo. Ou, como se o simples
fato de se valorizar as tradições populares conseguisse apagar a desigualdade social e o
espaço periférico ainda reservado ao folguedo e seus integrantes no cenário cultural e
econômico” [VICENTE, 2005:137].
Do outro lado, observamos que a ecologia é uma teia interligada à cultura dos povos.
Quando se fala que idiomas inteiros estão morrendo e que as culturas ribeirinhas dos
pescadores estão sendo apagada, estamos falando, também, de uma ecologia cultural. Na
ecologia cultural, percebemos que o turismo cultural, nas proximidades do carnaval em
Olinda, também revela seus processos ecológicos. Assim, quando vários grupos de turista
resolvem aprender, rapidamente, a batida do maracatu com a finalidade exclusiva de sair no
meio do cortejo dos blocos carnavalescos, cria-se, com isso, em fração de segundos novas
alternativas de consumo para o turista. De certa forma, fazemos do cortejo dos maracatus um
mero produto cultural para a indústria de entretenimento. No final do evento, entre uma
sessão e outra de fotos, leva-se para casa o registro fotográfico de nossa memória ancestral
enquanto o caboclo de lança retorna para sua vida no canavial, juntando os últimos trocados
para reviver a próxima fantasia.
Todo esse processo da indústria cultural, em consonância com o ser contemporâneo,
está em uma teia de sincretismo com os objetos mais artesanais do mangue, mas está também
em uma relação direta com o hibridismo cultural, a cultura de massa, o turismo cultural e as
349
alteridades em trânsitos. Nas esferas da globalização, nada está imune e tudo parece se
permutar em encruzilhadas culturais via mídia. “Quem não na mídia/ na mirdica”
[LIMA, 2001:68]. Nunca a mídia teve tanto poder para determinar os percuros do eco-
histórico. Para Edward Said [2003:121], devemos culpar a nós mesmos, acima de tudo,
porque nem nossas lideranças políticas nem nossos intelectuais muito menos o meio artístico
parecem ter percebido de que até mesmo um levante “anticolonial corajoso não pode se
explicar sozinho e o que nós e outros (árabes) consideramos como nosso direito de resistência
pode ser apresentado pela máquina de propaganda Israel como terrorismo ou violência sem
princípios”.
A cor local ganha nova margem frente à diversidade da cor global midiática. “No
entanto, mesmo entre artistas, o que se deseja identificar como universal e regional pode ser
bem diferente e até oposto” [VICENTE, 2005: 110]. Ao diminuirmos as distâncias locais
pelo rus das janelas virtuais, homogeneizamos culturas inteiras em nome de um tipo de
padronização das formas artísticas e tudo isso ocorre para se atender a demanda do público
consumidor. Transformamos uma simples feira artesã em tenda de espetáculo para o exótico
ou para proporcionar status à ‘rustiqueza’.
Esse tipo de produção mantém formas relativamente exclusivas graças à sobrevivência
de oficinas artesanais, ou seja, de ilhas culturais e também de outras formas de recriação local
como as músicas regionais e eventos de entretenimentos suburbanos. “No consumo, os setores
populares estariam sempre no final do processo, como destinatários, espectadores obrigados a
reproduzir o ciclo do capital e a ideologia dos dominadores” [CANCLINI, 1998: 205].
“Se caminhássemos todos rumo ao ‘todo-o-mundo com o mesmo passo, seria o regime
militar, e o ‘todo-o-mundo’ seria uma uniformidade cansativa e tediante” [GLISSANT,
2005:165]. Temos responsabilidades novas que possibilitam exercícios novos ou ‘novos
paradigmas’, que são novas maneiras de viver sincreticamente interligando-se a tudo e a todos
como uma teia, um rizoma. Em verdade é preciso que haja mudanças, muitas vezes, entre
avanços e retrocessos. Essas transformações, esses abalos sísmicos, as desarmonias e
harmonias, são também importantes para se perceber o que se passa no corpo mundo e,
principalmente, o que precisa ser revisado na humanidade, mas é também importante para se
rever e perceber as diversas falas rítmicas presentes nos mangues-mundos.
350
7. 7 Os tambores do mangue
aos Tambores de Crioula
Lembro quase tudo que sei
e organizo as idéias
lembro que esqueci de tudo
mas eu escuto samba
e você samba de que lado
de que lado você samba
de que lado, de que lado
de que lado, de que lado
você vai sambar [CSNZ, 1996].
Os tambores e ritmos que fazem as batidas irregulares de Chico Science trazem uma
seqüência harmônica com o cavaquinho de Fred Zeroquatro. Ambos os poetas estão ligados à
memória ancestral afro repassada de geração a geração. Em Chico Science os sentimentos
dispensam a força das palavras mais importante e as letras cantam um ritmo que embala, em
tom de breaks, o samba, o rock. Na impressão cênica, Chico Science pressiona os lábios
grossos, abusa da batucada dos tambores e faz crescer o brilho dos confetes na escala de uma
nota aguda. Os tambores não silenciosos de Science também se espelham no atabaque de
Naná Vasconcelos cuja batida do ganzá [origem silvícola], na sonoridade dos acordes mais
simples, faz ruflar os sons guturais da mazurca. Entre vários tipos de escalas, quando as
guitarras elétricas do manguebeat se fundem aos tambores dos maracatus, as notas da
heterogeneidade cultural se manifestam na cultura afro-brasileira.
A nova música eletrônica e o velho som do tambor se decantam na palheta dos
instrumentos de cordas. O tambor é o elo desinibidor da memória negra. “Há tambores em
todo o mundo marcando a pulsação de mil espécies musicais, mas a maneira como os negros
africanos batem os seus, alternando tensão e relaxamento é que deu ao jazz o ritmo sincopado
que o distingue dos demais” [CALADO, 1990: 21]. Sabemos que quando faltava o tambor no
terreiro, os negros batiam palmas e sincopavam a batida dos pés como forma de protesto. Essa
artimanha de tocar usando o próprio corpo como instrumento levou os negros a assimilarem,
também, a instrumentalização dos conceitos estéticos da cultura ocidental. Contudo, o povo
negro afro-descendente assimilou os elementos da musicalidade européia improvisando à sua
maneira os traços mais importantes da memória africana. No continente africano, os tambores
podem representar a fala humana. Um tambor pode substituir a voz assim como a música
pode substituir a fala. “Isto é possível porque a linguagem de muitas tribos africanas é tonal, o
que acaba aproximando sua fala da música” [CALADO, 1990: 69].
351
Nas mais antigas comunidades africanas, quem não tem espiritualidade avançada e se
arrisca em bater um santo tambor tribal pode ser condenado à morte. Mas os tambores que
fazem sambar Chico Science são os do sincretismo afro-brasileiro. Chico modificou a escala
das batidas, redimensionou os acordes e no fundo da memória afro-ameríndia guardou
tesouros em diálogo com a mãe África que jamais se esquivou em dizer. Em verdade, Science
fez soar os clarins, endereçou ao ritmo mangue às mais diversas famílias dos instrumentos de
sopro e percussão. No samba scienceano, encontram-se referências que dialogam com o
maxixe, o samba dos candomblés, xaxado, samba macumbeiro [umbanda], samba de partido
alto, sambas raiados, lundus, merengues, mazurca, baião, toadas, capoeira, chulas, umbigadas,
carnaval, frevo, chorinhos, modinhas, somando as cordas elétricas do rock.
Enquanto a modinha se volta para o piano e o chorinho para as cordas e instrumentos
feitos com madeiras de lei, como: flauta, violão cavaquinho, o samba, por sua vez, é cultivado
no Brasil pelas camadas baixas dos morros cariocas e criado a partir da junção de elementos
da cultura afro-descendentes. Com os instrumentos de percussão africana, o samba surge
como dança do candomblé juntamente na batida de tambores, tamborim, atabaques, surdos,
marimbas, cangas, ganzá, bombos e outros instrumentos, como o pandeiro
90
. O samba tem um
no voodoo, no batucajé, dança sagrada do candomblé e o outro no jazz. Na música
popular brasileira, o samba tem origens remotas, lá para trás, entre o século XVIII ou XIX.
Nos terreiros de Luanda, a palavra Samba vem de Semba que significa umbigada,
pagode, arrasta e outras. No Brasil, o prenúncio do semba não é muito preciso, fala-se em
1916, mas essa data reporta-se ao primeiro uso da palavra samba na imprensa, ou seja, muito
provavelmente o Semba vinha sendo utilizado pelas camadas populares da Bahia ou Rio de
Janeiro. Na cidade carioca, o samba nasce com as tias do morro, ou seja, quando as baianas
deixam a Bahia para se instalarem nas favelas da cidade maravilhosa.
Nessa travessia cultural, levam consigo as manifestações religiosas do candomblé.
Essas baianas eram reconhecidas pelos sambistas como tias e foram essas titias que
fomentaram todo o processo de construção do samba brasileiro. A tia Ciata de que fala
Manuel Bandeira no poema ‘Mangue’ é, talvez, a mais reverenciada por fazer parte de uma
90
Durante a idade média, os menestréis e cantadores se acompanhavam com a viola e a rabeca sofrendo
iinfluência dos mejards árabes que introduziram o alaúde na península ibérica nos oito séculos em que a
dominavam. Outros usaram o pandeiro para acompanhar a sua poesia, pois estava ligada intimamente à música.
O pandeiro foi uma evolução do adufe, também introduzido ali pelos mouros.
352
tradição musical do Canal do Mangue em diálogo com o ritual dos tambores do candomblé.
Contudo, vale lembrar que a origem do samba não pode ser atribuída às tias, muito pouco,
deve ser remetida a um determinado cantor ou compositor, mas se deve ao “próprio carnaval
onde as várias formas precedentes foram colocadas em contato pela massa nos cordões e
blocos” [CALADO, 1009:225].
Entre o semba, a modinha e o choro, o samba-funk de Chico Science se liga à tradição
do sincretismo afro-brasileiro em comunhão com as leituras híbridas do catolicismo, do
espiritismo e dos caboclinhos ameríndios. Como diz Naná Vasconcelos, em entrevista a Teles
[2003:16]: “Chico foi moderno nas tradições. Pegou uma coisa tradicional e tratou com o que
havia de mais moderno no momento”. O manguebeat, assim como o ecossistema mangue, se
embrenha constantemente nas raízes da cultura popular. A Afrociberdelia é invenção que
trabalha com vários ritmos ficcionais à beira do idioma popular. A música mangue é outra
forma de contar histórias. Nômade de misturas, o som do manguebeat mistura o rap ao
repente e faz do hip hop um eco de emboladas. O samba de batida solta e o maracatu elétrico
fazem do manguebeat uma mistura de poesia popular-moderna.
Em Chico Science, o som do maracatu psicodélico ecoa dos ritmos mais rurais aos mais
urbanos. Science envenena o maracatu com as guitarras em tom de soul-jazz, fazendo novos
experimentos com a música eletrônica juntamente com o rap e hip hop. As batidas do
maracatu elétrico de Chico Science são distorcidas pelas pancadas binárias, ternárias,
quaternárias. O tambor, acompanhado da sonoridade eletrônica, ganha tradução e tradição de
outros ritmos, avulta-se o pan-dan-dan-dan-dan! Ou o pa-da-da-da-da-da! O tambor é a voz
dos símbolos mais antigos dos povos afro-ameríndios. No quilombo, o tambor tinha muitas
finalidades, uma delas estava ligada a questão mística do candomblé, mas também havia
outras relacionadas à emissão de mensagens para os quilombos vizinhos. O tambor era o
poeta da tribo. Sem o tambor não havia como se manter comunicação com as entidades
místicas. Na África: “Um pensamento ou uma mensagem são transmitidos, sem a necessidade
de usar a voz para emitir palavras; estas podem ser pronunciadas pelos tambores” [CALADO,
1990: 70].
Cada batida sinaliza uma expressão, um código secreto. Ao batermos um tambor com
intervalos iguais o ritmo também vem em um tempo homogêneo. Em uma representação
gráfica, poderíamos utilizar a linha ou o traço: [- /- /- /-/ -/ -/ -/ -]. Por outro lado, se ocorre
uma alteração do ritmo o tempo também muda e o traço vem mais heterogêneo: [-/--/ --/ -/
353
--/ --/-]. Dependendo da linguagem da comunidade, o som do tambor ganha de quatro a oito
diferentes tipos de tons e semitons. Na altura quaternária da batida, o som ganha outros
sentidos no toque duplo em pausa binária de um: baba-baba-baba-baba. E dependendo da
batida forte ou leve, longa ou breve, o baticum poderá representar também quatro coisas
distintas. O famoso tun-tum-tum-tum-tum-tum ou dundundundundun reproduz a voz negra de
um tambor falante. Esse tipo de batida chega a ecoar notas intensas de uma oitava alta ou
mais baixa. A batida exercida pelo baticum dos dois braços exerce uma pressão muito grande
sobre o couro do tambor. “A intensidade rítmica dependerá da rapidez com que os golpes
caiam sobre o couro do tambor [...]. As variações dependerão também das combinações entre
batidas e intervalos” [PAZ, 1982:68]. Cada batida ecoa de dentro para fora e de fora para
dentro dependendo da altura e da elevação do tom e da afinação que poderá se escutada a
quilômetros de distâncias. É preciso ter um ouvido musical muito apurado para se
compreender a partitura de um tambor. Não é tão simples decifrar os códigos, as alturas, os
timbres, pois nos diversos ritmos de um tambor a procura está sempre pela outra voz, a fala da
africana.
A libertação da cultura africana é revigorada pela liberação da musicalidade ancestral
nos bemóis poéticos de Chico Science. O projeto estético do movimento Manguebeat situa-se
em uma proposta musical de valorizar a cultura local em consonância com as alteridades
culturais mais esquecidas. A modernidade scienceana é uma modernidade eminentemente de
teias musicais; é certo que de Pixinguinha aos dias atuais o som experimenta as diversas
zoadas da balada musical. O som do mangue aparece na partitura afrocibedérlica de Chico
Science mais como porta-voz da cultura recifense que propriamente como metáfora da cultura
brasileira. A música local es em relação ao som global. Há uma relação íntima entre a
música e a natureza do mangue que o discurso poético preservou entre afinidade eletiva. Nas
bachianas de Villas Lobo, as próprias ruas são páginas musicais repletas de partituras
endereçadas a um trenzinho caipira para lá de nacionalista.
A poesia sciencena, ao misturar samba com maracatu, inaugura no caos moderno o
movimento das notas mangues-musicais em verdadeira encruzilhada sincrética de rap e hip
hop combinando tudo ao ritmo circular das cirandas. Se valer como síntese, é o próprio Chico
Science quem descreve seus tambores emboladores.
Quando eu era bem mais novo, lá pelos doze anos, dançava ciranda. A ciranda veio
do interior, da Zona da Mata para o litoral. Meus pais tinha uma ciranda ... então eu
dancei ciranda na praia, no bairro, e vi os maracatus também. Assisti na minha
infância aos maracatus fazendo o acorda-povo que acontece na época do São João,
354
sempre lá pela meia-noite. As pessoas saem cantando: ‘Acorda povo/ Acorda povo/
que o galo cantou/ São João acordou’. Então eu vi todas essas coisas que nos
ensinam como folclore, como uma manifestação passada, mas que não é bem
dessa maneira que você tem que ver. Existem ritmos ali que pode aprender a tocar
porque é da sua terra, é do Brasil, é uma coisa que você entende é a sua língua.
Nesse tempo a gente consumia a música estrangeira também nos bailes da periferia
... Acontece que os maracatus estão esquecidos, a ciranda quase ninguém mais vê, a
embolada, os caras ficam nas praças, mas é pra pegar uma grana. O coco ainda tem
também, mas está desaparecendo. Então o que a gente pretende é mostrar uma coisa
nova a partir disso. Se a gente for tocar maracatu do jeito que ele é, a galera vai
pegar no nosso pé. Então a idéia básica do manguebeat é colocar uma parabólica na
lama e entrar em contato com todos os elementos que você tem para fazer uma
música universal. Isso faz com que as pessoas futuramente olhem para os ritmo
como ele era antes [TELES, 2000: 277].
O sincretismo cultural da música popular brasileira atravessa o samba da tia Ciata e salta
do piano de Radamés Gnatalli a Ernesto Nazaré passando por Chiquinha Gonzaga, Dalva de
Oliveira, Erivelto Martins, Dolores Duran ao gracejo de notas dissonantes em o Espia
[primeiro grupo de jazz de Porto Alegre] ou até mesmo ao jazz-band sertanejo de Capiba à
Bossa Novíssima com escalas maiores de jazz em Elis Regina às minuciosas batidas do
berimbau de Baden Powell, ou mesmo ao “Samba de Uma Nota Só” de Vinicius, João
Gilberto, Tom Jobim, Nara Leão, dentre uma lista enorme e infinda de compositores jazz-
bossa-novista que alargarão mais à frente o olhar híbrido da Tropicália. Em nossos dias, a
música popular brasileira se expande em sua alquimia musical, misturando as bruxarias
complexas na partitura de um Hermeto Pascoal às escalas mais incompletas de um Egberto
Gismonti.
A poesia do manguebeat resgata ritmos e sonoridades em que se pode sentir o batuque
do maracatu de baque solto. O canto do mangue é demarcado pela antropofagia dos folguedos
populares. Servindo como travessia musical, o Movimento Manguebeat é parte de uma teia
que oferece voz sonora para a mudança de mundos. A exemplo disso, as sonoridades eco-
musicais de: DJ Dolores, Devotos do Ódio, Clube, Comadre Fulozinha, Banda Eddie, Lula
Queiroga, Otto, Silveiro Pessoa, Cordel do Fogo Encantado, Mestre Ambrósio, Cascabulho,
Faces do Subúrbio, Paulo Francis Vai pro Céu, Bom Sucesso Samba Clube, Jorge Cabeleira,
Academia do Medo, Câmbio Negro, que dentre outros, são alternativas musicais que
permitem situar a condição do apanhado de grupos, bandas e solos da cena Manguebeat.
Não é à toa que Chico e Zeroquatro injetaram energia nova nas artérias culturais da
manguetown’. Lembramos apenas que a tradição não é desvalorizada pelo movimento
mangue, mas traduzida como renovação, pois leva as raízes culturais africanas como
reinvenção da modernidade perdida. Pound em seu ‘Abc da literatura’ fala que poucos são os
355
poetas inventores; Chico Science inventa a poética do mangue, o sob a legenda de criar o
novo do nada, mas em uma reinvenção que modifica as cordas do passado para alcançar as
notas do presente. Pelo tom sincrético vindo dos manguezais, sem se prender a um
passadismo medieval, o Manguebeat inventa sonhos e utopias à beira do quintal do mangue,
bebendo nas escolas anteriores e nas contemporâneas. Os artistas do Manguebeat vão
respaldar as práticas e expressões populares, dando a elas legitimidade perante os meios de
comunicação e o restante da sociedade” [VICENTE, 2005:135]. Nesse caminho, atingem
diversas posturas perante o popular ao assumirem o sincretismo cultural, misturando as toadas
de coco, e emboladas, samba-reggae, funk-rock e jazz-zumbi, frevo-elétrico às rodas de
ciranda e capoeira, fundindo tudo à batida da estrovenga do maracatu elétrico.
Nessa breve travessia panorâmica, alcançamos em nossa contemporaneidade a cena
Manguebeat sinalizando para outras fronteiras musicais em trânsito como a fusão dos
meninos do Mombojó [da cena Pós-Mangue] aos sons experimentais de um Benjamim
Taubkin, Cidadão Instigado, Tribo de Jah, Pedro Luís e suas ‘paredes’, Isaar, Ronei Jorge e os
Ladrões de Bicicleta, Marcelo D2, as notas tucupira de um grupo como Mawaca ou mesmo de
um Coco de Mazuca, banda Mula Manca [composta com “os carinhas” que fazem o grupo
Seu Jorge]. Todos esses sons agregam novas antenas na parabólica da Word Music que chega
aos nossos dias em verdadeira antropofagia musical como a lenda jamaicana do músico como
Lee Perry [ou Scratch] com seus 70 e poucos anos, ensaiando o túnel do reggae com o dub e o
western espaguete’. Atravessamos a nova moda do hip hop de um M V Bill, Nega Giza, e
Comunidade da Rima [CE], passando pelas batidas cubanas de um Orisha ou do rock
argentino de um Los Alamos, ou mesmo do blues-samba na fala ‘Cru’de Seu Jorge, curtindo a
guitarra tocada como se fosse um álbum eletrônico ou teclado zen no dedilhar jazzista de um
guitarrista como Stanley Jordan [reencotrado dia desses tocando no meio da rua].
Como se observa, todos esses grupos musicais alternativos assumem funções
oposicionistas em atividades como a de dizer de maneira sincrética suas raízes marginalizadas
em frente de um sistema para lá de estabelecido. Esses grupos procuram criar teias de relações
“inter-retro-ações entre cada fenômeno e seu contexto, as relações de reciprocidade todo/
partes: como uma modificação local repercute sobre o todo, como uma modificação do todo
repercute sobre as partes” [MORIN, 2005:25]. O que resta para dizer conduz alguns silêncios
que vai a caminho do todo para o limiar da não-palavra. Temos de beber o mar primeiro, abrir
as águas do mangue pelo meio. “O mar de dentro é mais bonito que o mar de fora” [Cícero
356
pescador]. O ritmo do mangue se põe no compasso do mar; o ritmo do mar é o próprio arrulho
de que é feito o viver. “Mas viver significa ter de ser fora de mim, no abstrato fora que é a
circunstância ou mundo: é ter de, querendo ou não, enfrentar-me e chocar-me,
constantemente, incessantemente com quanto integra esse mundo: minerais, plantas, animais,
os outros homens. Não há remédio” [ORTEGA y GASSET, 1973: 86].
Esta teia de palavras, para nós, é uma espécie de resgate de solidariedade da diversidade
eco-cultural, o apenas, dos povos dos mangues, mas de todos que habitam Todo-o-Planeta
Terra. E por aqui ficamos, pelo menos por enquanto: “todo o resto é relação: abertura e
relatividade” [GLISSANT, 2005: 127]. De todas as coisas que nos sobraram foi o mangue que
nos coloriu de vivência e coragem para chegarmos até aqui. Mangues entortados, avessos, ao
contrário, do jeito que nossos olhos um dia conheceram, como se deu de primeiro,
enlameando as raízes de lama e cordas de ‘homens-aratus’. O mangue é um nascer; um
morrer no rio-mar. “Morreu o mar que foi” [ROSA, 1994: 381]. O rexistir da alma do mangue
é o ‘marisco’. Assim, essa teia de sincretismo fica pelo meio, pois não sabíamos, nem direito,
que nome chamar: “É o que eu digo se for ... Existe é o homem humano. Travessia. [idem,
385].
Há que se começar outra vez...
“De helicóptero: os manguezais de esgotos negros/ e garças brancas, / os morros/ de
parcas palmas de palmeiras/ e muito capim-colonião”. Este fragmento a quem interessa possa
é do poeta Waly Salomão [2001: 67; grifo nosso].
357
Conclusão
O Fim e o Princípio
91
Este mundo é inconcluso/ Além, há continuação./
Invisível como a música/ Evidente como o som
[EMILY DICKINSON]
~
No início está meu fim.../
No meu fim está meu início.
[T. S. ELIOT]
91
Título recolhido do filme de Eduardo Coutinho.
358
São as palavras que nos finalizam
[...] alguém partia com os pássaros
[JOÃO CABRAL]
O que falta dizer se tudo o que aqui está exposto sobre os mangues, de uma forma ou de
outra, foi o mar quem trouxe. Se nos mostramos pacientes com as palavras é porque a
felicidade de escrever um projeto dessa natureza nos proporciona dores e alegria. Se olharmos
para trás, perceberemos que as pessoas, os rios, as raízes, as cidades, foram teias de
sincretismo. Mas foram as humanidades que nos conduziram ao mangue. Um trabalho que
brotou bem antes de sairmos da ilha de Igoronhon nos lençóis maranhenses.
O desejo de pararmos bem aqui mesmo onde estamos, chegou à finitude de um
momento. E nos resta essa vontade de prosseguir, de reviver os mangues em outros lugares,
outras fronteiras. Novas ocasiões virão para discutirmos esta temática e acreditamos que serão
bem-vindas! O que o futuro reserva aos manguezais não sabemos. A pergunta que nos
fazemos agora é: terá esta pesquisa algum leitor? Saltará das prateleiras, das bibliotecas para a
vida? Também não sabemos? Tomara que tenha um destino um pouco feliz: a continuidade.
Se este texto encontrar curiosos, também valeu! Antes de navegar, é preciso inteirar-se aos
mangais. O mangue acompanha a curva solitária de um planeta desajustado ecologicamente.
Sabemos que este trabalho, por enquanto, fica por aqui. Poderíamos ter feito outro
trajeto. Mil caminhos chegarão aos mesmos lugares. Todos os caminhos um caminho. “Onde
quer que o homem ponha os pés, pisa sempre cem caminhos” [ORTEGA y GASSET, 1973:
84]. Ficarão pontos a serem recobertos ou lacunas que escaparão pelas entrelinhas. Observar
que nosso ‘indioma lama’ às vezes ajuda, outras não. Mas nossa forma de lidar com a vida e
com a linguagem é essa: andar por desvios em teias de sincretismo. Isso é que nos mantêm
inquietos. Temos limites, deslimites e respeitamos nossa linguagem de barro.
A repetição também é acolhida, mas pode ser recolhida. Nossa forma de lidar com a
repetição é ‘doação de estilo’. E repetimos, nos re-pedimos, nos despedimos com frases à
moda de Édouard Glissant [2005:41], afinal, situamos a repetição como uma das formas de
359
conhecimento do mundo metrificado: “é repetindo que começamos a ver os indícios de uma
novidade que começa a aparecer. Para mim, os lugares comuns não são idéias preconcebidas,
mas sim, literalmente, lugares onde um pensamento do mundo encontra um pensamento do
mundo”.
Também ficamos com essa vontade de retomarmos depois, quem sabe, aos mangues de
Gabriel Soares e o Gândavo de forma mais minuciosa. Também resta esse desejo [escondido a
quatro chaves] de prosseguir as lições de Darcy Ribeiro e voltar aos mangues pelos
homeríndios, os sambaquis. O que fizemos da vida se não abrirmos caminhos para que os
outros possam também passar com sua beleza? As portas dos manguezais estão sempre
abertas. Entretanto, fica mais para frente uma teia de estudo entre os romances de Patrick
Chamoiseau, Maryse Condé e Josué de Castro.
Percebemos que os escritores dos mangues seriam ingênuos se o dessem conta da
importância da oralidade nas literaturas feitas a partir do olhar dos povos dos mangues. Pelas
idas e vindas de 1992, o escritor da Martinica, Patrick Chamoiseau, publicava na França uma
das sagas mais importantes para os contemporâneos, não apenas da Martinica, mas também
das comunidades mangrólogas das Américas. Em verdade, os mangues são encruzilhadas
frente à construção das identidades das Américas. É só percorremos as encostas do estuário de
lama e mangue, como nos faz perceber o autor de Texaco: “O haitiano redigia uma de suas
catas costumeiras, desta vez, ornamentadas com as seguintes citações: sim qual dos dois é o
mais profundo, o mais impenetrável: o oceano ou o coração humano? Bondade teu nome é
homem” [CHAMOISEAU, 1993:26].
Se não se deve responder a todas as perguntas, o melhor talvez é definir as margens
esquerdas dos rios e segui-las pelo remanso do atalho. É certo que o mar ensombra o coração
dos homens e alimenta os vestígios da palavra mangue. Se a poesia abre caminhos a todos os
idiomas, os dialetos e os idioletos são bem convidativos não apenas à casa da escritura, mas
aos quintais da oralitura. Afinal, “a fala é um conjunto de seres vivos, movidos por ritmos
semelhantes aos que regem os astros e as plantas” [PAZ, 1982: 62].
Cotidianamente, abrimos os jornais e nos deparamos com os franceses e americanos
metidos até o pescoço em desafetos com a diversidade étnica. Devemos observar
cuidadosamente que boa parte disso estende-se em uma série de manifestações contra o
racismo. Em contextos culturais divergentes, o preconceito, por ali e por aqui, torna-se
360
incabível e chega a soar destoante em pleno Século XXI. Imaginar que “o negro antilhano era
tanto mais branco, isto é, estará mais próximo do homem verdadeiro, na medida que adotar a
língua francesa” [FANON, 1983:18], tornar-se-ia inacreditável se não fosse o resto do mundo
agir de forma parecida.
O que vem à tona, em nossa contemporaneidade, são os caminhos tortuosos pelos quais
passou e ainda passa a crioulidade, mundo afora. As conseqüências disso, em um universo
colonizador movido pelos desmantelos da desigualdade social, desrespeito à diferença cultural
e indiferença à questão ecológica ainda são terrivelmente assustadoras. Quanto mais o
colonizador estiver longe de seu clã interiorano, mais rapidamente absorverá os valores
culturais da cidade grande. “Na França se diz falar como um livro. Na Martinica: falar como
um branco” [FANON, 1983:20]. O negro que morou em Paris durante algum tempo, retorna
transformado. “Geneticamente falando, diremos que seu fenótipo sofreu uma transformação
definitiva absoluta” [FANON, 1983:19].
Em Chamoiseau, recomenda-se uma poética crioula pela tessitura das escrituras
híbridas. “É preciso lutar contra a escrita, ela transforma em indecência o indizível da
palavra” esclarece um dos inúmeros narradores de ‘Texaco’. Todas as histórias começam a
falar de dentro da palavra falada. “Falar é poder usar uma certa sintaxe, possuir a morfologia
de uma outra língua, mas é, sobretudo, assumir uma cultura, suportar o peso de uma
civilização” [FANON, 1983:17].
Saber falar é saber que sabemos. Falar é um saber que exige sabores. E sabemos que
quando sabemos podemos comungar a intimidade do humano em nós. Falar de fato é agir
socialmente. “Adorno ao dizer, como eu também o faria, que uma das marcas que distinguem
a modernidade está em como, num nível profundo, a estética e o social devem ser mantidos
num estado de tensão irreconciliáveis”, assim falava Said [2003:30].
Falar traz sempre conseqüências quando se está contra o estabelecido. Calar o faz o
eco criar alteridade. “E quando voz, / é a cicatriz que canta” [MARANHÃO, 2002:34].
Calar é estar doente dos olhos, do ouvido e da boca. “Falar é existir de modo absoluto para o
outro” [FANON,1983:17]. A voz abre caminhos até mesmo para os que não nasceram ainda.
“Quando os lugares sagrados/ forem tocados a noite virá” [MARANHÃO, 2002:107]. O
sotaque é som polifônico que habita as paisagens remendadas das diversas redes de palavras
entre-lugares. “A linguagem falada está mais próxima da poesia que da prosa” [PAZ, 1982:
361
25]. Escutar o contador é ouvir o canto ancestral da voz sincrética do idioma popular. “O
idioma não é obra dos sábios, mas dos pescadores” [Borges, 2002: 117].
No livro ‘Cultura e política’, E. Said [2003:34] analisa:
Responder à pergunta de por que é que os indivíduos e grupos preferem escrever e
falar no lugar do silêncio equivale a especificar com o que os escritores e
intelectuais se confrontam na esfera pública. A existência de indivíduos ou grupos
em busca de justiça social e igualdade econômica e que entendem, na formulação
de Amartya Sem, que a liberdade deve incluir o direito a uma larga gama de
escolhas que tragam o desenvolvimento cultural, político, intelectual e econômico –
de fato leva a um desejo de articulação e não de silêncio.
Em nossa modernidade, silenciamos a contação de histórias populares. Salvo engano e
muito raramente em eventos de feiras de livros, bienais ou mesmo em alguns miúdos
momentos em sala de aula. Retiramos da família o papel de contadora de memórias. Muitos
contadores estão esquecidos ou mortos. Não sabemos mais apreciar o silêncio que se esconde
por trás do encanto das histórias populares. “A palavra não é falar. Você tem que se lutar aqui.
Inclusive, se aquilombar. Escrever a palavra? Não. Mas reatar o fio da vida”
[CHAMOISEAU, 1993:262].
Como vimos no início desta pesquisa, o manguezal é uma palavra crioula de origem
africana, uma espécie de permissão da geografia antropofágica. Raízes dessa palavra
enraízam-se e desenraizam-se na lama social. Salteiam de um quadro preocupante e
estabelecido. Refletem a não ultrapassagem das raízes [sociais e econômicas] do manguezal.
No livro ‘Crossing the mangrove’, a escritora de Guadalupe, Maryse Condé [1995:158]
observa que é impossível atravessar o mangue: You don’t cross a mangrove. You’d spike
yourself on the roots of the mangrove trees. You’d be sucked down and suffocated by the
brackish mud”. Com um certo peso no falar, em tom reflexivo, a personagem Vilma reflete
que as raízes do mangues espetariam o ser humano e a lama salobra a sugaria, sufocando-a.
Na conferência ‘Literatura Comparada, Diferenças e Fronteiras de Identidades
Culturais’ - proferida na livraria Cultura de Recife, em novembro de 2004, Roland Walter
[UFPE] observa:
Como ecossistema incorporativo, os manguezais constituem um espaço de trânsito
composto de um sem-número de lugares (e tipos) de troca onde processos de
enraizamento e desenraizamento temporários se alimentam mutuamente. No
mangue existem limites enquanto categorias permeáveis que contêm e soltam: um
processo pelo qual a diferença enquanto separação entre o interior e exterior é
suplementada pela diversidade enquanto relação.
362
Cada raizal de mangue é uma fronteira que se interliga a outros rizomas e teias da bio -
diversidade. Não se atravessa o mangue realmente. As raízes espetariam, a lama movediça
atolaria, a água encharcaria. O mangue é o lugar da encruzilhada, da diversidade étnica. O
espaço fétido aonde se vai e vem; é também aquele de onde nunca se sai. Os que habitam o
manguezal sabem que a lama é lugar de prisão social. Um território no qual os seres
permanecem atolados ao lodo do rio. A lama é lugar quilombola das diásporas negras. Nos
mangues, negros e índios travaram encruzilhadas-travessias. “Espaço de transito”, como diz
Roland Walter (2005), o mangue é também contramão, pois da mesma maneira que nega,
afirma o lugar como passagens e travessias. “Dizem que houve almas Caraíbas surgindo dos
pântanos, e de outros sofrimentos que os assassinos esquecem” [CHAMOISEAU, 1993:159].
Mas para aqueles que habitam os manguezais em eterna luta por algum lugar na história, dizer
mangue é dizer: “negros saídos da liberdade e entrados na vida em tal canto de terra”
[CHAMOISEAU, 1993:120]. Dizer manguezal é dizer “Mãe África”, mas é também se
perceber como irmão dos povos ameríndios.
Frente a uma humanidade que encarangueja, sabe deus para onde, os mangues com suas
raízes anfíbias embrenham-se numa pobreza, muitas vezes, sem saída. Ao descrever sobre o
bairro Texaco, lugar esse inserido nos conflitos que habitam o território do manguezal,
Chamoiseau revela na saga memorialista a dificuldade de sobrevivência dos negros agachados
em penhascos instáveis; lugar permeado de gente que está às margens de oportunidades.
Amontoados em barrancos insalubres, à sombra dos olhos dos barris da companhia
petrolífera, os habitantes dos mangues enfrentam humilhações de todo tipo e são despejados
antiecologicamente em ruas sem saídas.
Subitamente compreendi que Texaco não era o que os ocidentais chamam de
favela, mas um manguezal, um manguezal urbano. A primeira vista o manguezal
parece hostil às vidas. É difícil admitir que, em suas angústias de raízes, de sombras
espumosas, de águas paradas, o manguezal possa ser um tal berço de vida para os
caranguejos, os peixes, as lagostas, o ecossistema marinho. Não parece pertencer à
terra nem ao mar, um pouco como Texaco, não é cidade nem campo. No entanto, a
cidade se fortalece bebendo no manguezal urbano de Texaco, como no de outros
bairros, exatamente como o mar se povoa por essa língua vital que o une à química
dos manguezais. Os manguezais precisam da carícia regular das ondas; Texaco
precisa, para seu pleno desenvolvimento e sua função de renascimento, que a
cidade o acaricie, quer dizer: o considere [CHAMOISEAU, 1993:234-235; grifo
nosso].
Como uma rede tecida pelo fragmento, o livro ‘Texaco’ é uma ilha de petróleo rodeada
de miséria humana por todos os lados. Se não é favela, seu outro nome é indiferença social.
Mas vale observar que ‘Texaco’ não fica apenas nisso, por ali, o mangue é um canal que
363
abriga mundos de sem-teto, gente sem ter onde cair morto, mas em busca de algumas
identidades para suas vidas, mesmo que em terras abismais para um ser humano se achar em
um desfiladeiro de uma companhia de petróleo. Quanta ironia unir a pobre gente dos mangues
aos parcos recursos fósseis do mundo: o outro negro do capitalismo mundano. Curiosamente,
segundo alguns cientistas e ecólogos, possivelmente daqui a quarenta anos não haverá mais
petróleo no mundo.
O manguezal se repovoa não apenas pelas necessidades. O mangue habita um território
de luta ambiental, como a luta dos ecólogos em defesa dos manguezais [diariamente invadido
pelo abuso do poder e descaso dos grandes empresários do setor imobiliário]. Também é
extensão de coragem, luta e resistência; representa luz a uma ruma de tábuas empilhadas,
abrigando as gentes da lama. “Em Texaco de baixo, à beira de mangues, víamos o rio estender
em ntano até o unir-se ao mar” [CHAMOISEAU, 1993:184]. Nos mangues, as raízes
servem, às vezes, de trincas, fendas, trilhas para os barracos de madeira, mas servem, também,
como ponte que liga a lama ao rio. São os mangues que acolhem a exclusão social e
demarcam com uma linha divisória o mundo urbano entre dois muros: de um lado,
miseráveis, de outro lado, explorados. O que é, para alguns, lugar repugnante, pode
representar, sem sombra de dúvida, tábua de salvação para muitos indigentes.
Na comunhão das raízes de lama, tornam-se os mangues um lugar salobro de
contradições. Perto dos casebres de ripas-palafitas, “uma silhueta de ossos, examinando a
ribanceira sonolenta debaixo da ponte, os nossos barracos-pernaltas no manguezal viscoso, os
últimos caminhões da antiga companhia e depois as encostas galgadas por nossos casebres de
patas” [CHAMOISEAU, 1993:27].
Atravessando a memória de demolição dos manguezais, a história circularmente se
repete ao lembrarmos a época totalitarista de Getúlio Vargas e sua ‘liga contra os mocambos’.
A história está cheia de desfechos que, apesar de bem silenciados, pipocam e se rebelam em
lutas sangrentas. Em nossos dias, o crime é banalizado. O cientista antiecológico se deixa
levar pelas sobras dos empresários que compram terras e dizimam o resto de vida nos
mangues. Não longe daqui, uma guerra é travada diariamente entre ribeirinhos e
carcinicultores. “Enquanto todo mundo espera a cura do mal/ E a loucura finge que isso tudo
é normal/ Eu finjo ter paciência/ O mundo vai girando cada vez mais veloz/ A gente espera do
mundo, e o mundo espera de nós/ um pouco mais de paciência” [LENINE, 1999]. Essa luta
requer, acima de tudo, seres insubornáveis. Antes eles vinham com suas “armas, agora eles
364
vêm com seus dólares” parcelados à vista ou a prazo. A pergunta que se faz é como ter um
radicalismo de ação ambiental se ninguém quer deixar seu posto de conforto? Os
insubornáveis e “perigosos ao sistema” são aqueles que não se deixam dominar frente às
pressões políticas. São esses que fazem da diferença ambiental um novo sentido e motivo.
Frente aos casebres de estacas, como mudar a fisionomia dos habitantes dos mangues
abandonados à mercê do acaso e do próprio destino? As terras dos mangues acompanham a
lembrança dos mocambos. Cada barraco fincado dentro dos mangues compõe uma mistura
das sobras “made in isso”, “made in aquilo”.
A cidade, da mesma forma que dá, aperta os laços dos manguezais. A demolição dos
mangues nasce de um combate de olhos entre a cidade e a ambição dos aproveitadores. Na
seiva da folhagem, a cidade é um abalo sinistro que, da mesma forma que afaga, nega. Cidade
possível de sonhos, contudo, por trás dos grandes holofotes, o que se vê é abandono. Do outro
lado da cidade, as margens redescobrem a lama. Por ali, “onde os dedos dos pés não tem cor
de lama” [CHAMOISEAU, 1993:39], aqueles que nada têm arriscam a última esperança na
teia dos mangues.
As personagens mulheres do livro ‘Texaco’ como: Marie-Sophie, Idoménée, Ninon,
Oselia, Maria-Clémence, Vovó Lavadeira, Adrienne Carmélite Lapidaille são personagens
fortes, mulheres que carregam a herança matriarca africana. Lembram às mulheres de
Tejucopapo no século XVII que, ao enfrentarem os soldados holandeses, impediram a
conquista das terras pernambucanas, recheando a batalha de Tejucopapo com o suor de
braveza e caldo de pimenta. Essa batalha ainda se estende até os dias atuais na crosta da pele
fina das marisqueiras que, para sustentarem os filhos com leite de caranguejo, necessitam
catar mariscos na lama de Carne de Vaca.
A escritora Marilene Felinto, no romance ‘As mulheres de Tijucopapo’, descreve a luta
de Rísia, uma personagem nordestina-paulistana que, ao desafiar normas, preconceitos raciais,
pobreza, desavenças e culpas, abre espaços na teia de contradições para uma nova luta
política: a da sobrevivência da mulher sertaneja em um terreno enlameado pelas sobras de
machismo e do poder. Em sua travessia pelos mangues, Rísia sem endereço certo e sem saber
onde fincar seu lugar nas fronteiras das identidades vive despudoradamente sua agressividade
entre palavrões e clichês. Entre o sertão e a cidade, Rísia, sem porto de chegada e sem ponto
de partida, transita as encruzilhadas de um mundo cada vez mais nas esferas do entre-lugar.
Uma personagem em trânsito que desliza entre a cultura local e global.
365
A teia dos mangues é um lugar mais largo que interliga mais diferença que
supostamente imaginamos. “Isso aqui é um sonho sem lama” [CHAMOISEAU, 1993:110].
Uma pequena ponte liga o manguezal às fronteiras de uma história fragmentada que atravessa
um mosaico de memórias entre a história da escravidão e as conseqüências disso na
atualidade. Ecologicamente, podemos, é certo, aprender muito com os povos dos mangues. Se
não levarmos a sério a ‘lição de taipa’ desses povos das águas, estaremos condenados a repetir
os erros seculares de uma história de dizimação e exclusão.
Não temos saídas a oferecer, talvez um pouco mais de espantos, dúvidas, inquietações,
angústias e poemas. “Quem deverá revelar e elucidar as disputas, desafiar e ter esperanças de
vencer o silêncio imposto e a quietude conformada do poder?” [SAID, 2003:30]. Acreditamos
que o adjetivo perverso é o mais aproximado para descrever as conseqüências antiecológicas
no homem da atualidade, mas acreditamos também que cabe a todos nós fornecermos
respostas que o poder econômico e político, ao longo da história, não pode e não quer nos dar.
O previsível e o conhecido somente interessam ao sistema capitalista. “Pois o mundo às vezes
teme/ que a palavra se apoeme” [MARANHÃO, 2002:101]. A imprevisibilidade de
comportamento e o enfrentar o desconhecido não interessa ao mercado financeiro. O
“neoliberalismo aprisionou o mundo com suas garras, com graves conseqüências para a
democracia e o meio ambiente, conseqüências que não podem ser subestimadas nem deixadas
de lado” [SAID, 2003:88].
O mercado não deve ser nosso patrão, muito menos, nosso regulador. Não somos
servidores de novas burocracias sendo reinventadas a cada dia, mesmo que as mídias do
mundo inteiro afirmem o contrário. O desejo de lucrar sempre, de sair sempre ganhando,
domina, atualmente, as esferas públicas e privadas. As universidades, os hospitais, os templos
religiosos não fogem à regra. “A degradação do meio ambiente e a pauperização de grandes
porções da Ásia, África e América Latina o chamado Sul são menos importantes que os
lucros das corporações” [SAID, 2003:91]. Há muitos poucos para contestar o projeto
neoliberal aterrorizador. Tudo é falsificado e massificadoramente imposto de cima para baixo.
Apesar da grande onda dos discursos virtuais, na prática e na íntegra, pouco se sabe da
convivência íntima de viver verdadeiramente entre grupos. “Há incêndios na raiz/ do gesto. /
Vestígios de pólvora nas palavras” [MARANHÃO, 2002:34].
Aceitamos as diferenças nas reuniões do livro ‘Ata’, mas onde outros rumos/ aos que
no tecido ousem/ roer o fio de prumo/ dos que de coisas se cozem?” [MARANHÃO,
366
2002:35]. Do outro lado dos corredores, afugentamos das salas de aula os seminários que não
nos dizem interesse. “Sob um raio de suspense. / Nem tudo o que é nosso nos pertence”
[MARANHÃO, 2002:37]. Podemos observar claramente isso nas distâncias que se fazem
entre os lingüísticos e os estudiosos da literatura. Cada um fica na sua tribo, como se a teia de
relação não interessasse ou interagisse entre si. “Muitas pessoas tem uma árvore plantada na
cabeça, mas o próprio cérebro é muito mais uma erva daninha do que uma árvore”
[DELEUZE; GUATTARI, 2004: 22]. Cada departamento se individualiza em um núcleo
de estudos. “O intelectual dever saber o que seu saber recalca” [SANTIAGO, 1989: 36].
O que Edgar Morin propõe no livro ‘Cabeça bem feita’ é, justamente, o contrário. Para
Morin, o importante é a teia, a rede de relação entre as diversas áreas do conhecimento. Não
cabe mais o pensamento ilhado, mas a religação de saberes. O que conta holisticamente são as
teias de relações, as teias de interdisciplinaridade religando da física quântica à literatura, da
geografia à matemática, da cabala à economia. Guimarães Rosa precisava da cabala e da
numerologia para criar seus contos sagaranas. Aos profissionais de Letras, deixamos esta teia
de palavras. “Um rizoma não começa nem conclui, ele se encontra no meio entre as coisas,
inter-ser, intermezzo [DELEUZE; GUATTARI, 2004: 37]. Como pesquisadores, precisamos
estar abertos para receber novos paradigmas para a vida acadêmica. “A crítica das aberrações
políticas e morais do socialismo contemporâneo deve começar pela crítica de nossas
aberrações intelectuais” [PAZ, 1984: 193].
Se não começarmos a fazer pontes com outras ciências, estaremos condenados à
podridão de idéias dentro dos muros da universidade. Estaremos cheios de informações, é
certo, mas mortos para uma nova humanização. Precisamos rever, o apenas, a grade
curricular, mas a grade de interação dos departamentos entre si. Em que o pessoal da
oceanografia poderia contribuir com os estudos da lingüística? Por que os seminários não são
em rede com outros centros e departamentos? Onde o ponto de mutação? Lembrando aqui
Fritjof Capra.
Na teia da vida, o que interessa não é tanto o discurso dominante em defesa da luta
individual para ganhar o mercado. O que fizemos com nossa humanidade durante todo o
caminhar do capitalismo dominante? Ganhamos o mercado e perdemos qualidades de vida.
“O principal propósito desse discurso dominante é fazer com que a lógica cruel do lucro e do
poder político se torne um estado normal de coisas” [SAID, 2003:35]. O coletivo está
desaparecendo do meio do mundo. Cada vez mais, as pessoas estão sofrendo as conseqüências
367
da escassez de serviço voltado para o social. A cada dia, novos governos entregam aos setores
privados obrigações de caráter coletivo. O terceiro setor tem crescido à custa da miséria
alheia, mas sem ele o que seria dessa gente? “Quanto mais sofrimento social poderemos
tolerar antes que a própria necessidade de mudança cause a mudança?” [SAID, 2003:91].
Quantas mudanças ainda estão por vir, se continuarmos repetindo as leis de um sistema
centrado na teoria do lucro?
O que podemos oferecer são teias de sincretismo. “Hoje a poesia não pode ser
destruição e sim busca de sentido” [PAZ, 1982: 345]. Precisamos da teia humana para
conviver em um mundo com mais espírito de coletividade. O que será desse mundo,
ecologicamente, se não aprendermos a conviver em teia com uma visão mais holística e mais
fraterna de civilização? Não temos respostas prontas. “Não comportas/ nem caminhos/ não
saaras/ nem vienas/ em tudo rinhas/ e arestas/ de flores/ e esquifes” [MARANHÃO,
2002:31]. A humanidade deve criar suas próprias respostas, mas sem as tutelas do poder
opressor e dizimador.
Na idéia-fragmento do poeta americano Cummings, texto e território dizem quase a
mesma coisa. A pátria ilimitada de todo poeta é ele próprio. Quando um poeta falsifica seu
país de origem comete a pior das heresias, pois comete um suicídio com a palavra e consigo
mesmo. Todo ser humano sincero consigo mesmo torna-se um poeta imortal. E conclui
Cummings: O artista é um bárbaro, pois todas as bombas atômicas de todos os antiartistas
jamais poderão civilizar a imortalidade.
Sabemos que a obra mais fértil que se possa fazer para si mesmo e para os demais
humanos não é tanto contribuir para a alteração do mundo, como diz Ortega y Gasset [1973:
73-74], mas aproveitar para fazer da vida uma poesia. Talvez o mais importante é fazer o que
os outros agora não podem: ensismermar-se um pouco. Ensimesmar não é individualizar-se,
mas autoconhecer-se. Criar relações. Saber doar. Pois se agora, ali onde é possível, não se
criar um tesouro de novos projetos humanos isto é, de idéias, pouco podemos confiar no
futuro. “Essa abertura é por sua vez solidária da capacidade humana de maravilhar-se, de
encantar-se, de acolher a presença do extraordinário no ordinário” [UNGER, 2001: 71].
Por enquanto, este projeto fica pelo meio do caminho dos mangues. O fim é um início.
Todo início já é uma inscrição conclusiva. O caminho do meio é teia de sincretismo. Digamos
que é também outra espécie de confraternização entre poesia e ciência. Fizemos da ciência
368
uma poesia porque acreditamos imensamente no poema como conhecimento de mundos.
“Penso que podemos escrever poemas que são ensaios, ensaios que são romances, romances
que são poemas” [GLISSANT, 2005:146]. Percebemos que muito das idéias de Glissant
em sua introdução à poética da diversidade nas teias da física quântica de Fritjof Capra.
Temos poemas-ciências à vista dos povos do manguezal. “Não temos o direito de fazer
qualquer coisa com as palavras, mas devemos nos servir dela com amor e respeito”
[ZUMTHOR, 2005:57]. Devemos lutar humanamente com erros e acertos por um mundo
melhor. “Não se espere coisa maior. Dou o que tenho; que outros capazes de fazer mais,
façam o seu mais, como eu faço o meu menos” [ORTEGA y GASSET, 1973: 76]. Tivemos
aqui apenas alguma coragem de ousar equivocar-nos. “Confessar que nos enganamos é prestar
uma homenagem mais notória à perspicácia de nosso espírito. É reviver nossa cultura,
reforçá-la, iluminá-la com luzes convergentes” [BACHELARD, 1999: 147]. E se aprendemos
muito com nossos erros, agradecemos aos povos do mangue por nos ensinar vida adentro. São
os erros que nos humanizam. Somos deles [erros] eternos devedores. Vivê-lo é uma
bênção. O que aqui vivemos [dentro e fora dos mangues] está no calor das horas dedicadas a
este trabalho. Passamos quatro anos pensando em mangues, vivendo em mangues, falando em
mangues. Temos que nos despedir, por enquanto, da palavra Mangue. “Esta era a história que
me sussurrava o rio com a linguagem doce de suas águas passando assustadas pelo mar de
cinza do sertão, caudalosas pelo mar verde dos canaviais infindáveis e remansosas pelo mar
de lama dos mangues até cair nos braços do mar de mar” [CASTRO, 2001b: 16].
A escrita em nós se demora muito a se ir. Cortamos muito, mas quando olhamos: o
corte é, muitas vezes, para mais, outras vezes para menos. As palavras viciam e são viciadoras
de ideologias e conceitos enraizados. São performáticas as palavras, pois têm vidas próprias.
E isso nos fez levar esta tese no tempo delas, palavras. São elas que nos dizem como e quando
terminar. Sabemos que a hora se aproxima, mas precisamos aprontar primeiro a alma, para
depois deixar as palavras se irem. Se não, elas nunca nos deixarão em paz. É preciso
conscientizar o corpo de que as palavras terão outros caminhos. Afinal, passamos quatro anos
fazendo travessura com as palavras andantes. As anotações desse caderno de mangues
precisam, antes, se despedir de nossos vários eus espalhados no meio desta teia de
sincretismo. Assim, vamos seguindo lentamente e pedindo às palavras que ajudem os homens
a melhorar o mundo. Nós passamos por este mundo uma única vez e devemos muito aos
passarinhos. “Cingidos a meu vôo inacabado/ o hoje é minha largura” [MARANHÃO,
2002:48]. Deixamos ninhos de lama no meio deste caminho. Nenhuma frase aqui é primeira.
369
Toda palavra é nômade. E o mangue é andarilho, acompanha-nos muito antes da ilha de
Igoronhon [que o mar varreu da lembrança]. O mangue é que sobrou de nossa história.
Somente os mangues vêm nos visitar entoando a força da memória. Igoronhon - ilha repleta
de mangues - perdida dos mapas - chegar não se pode - partir nos cais da lembrança.
Atualmente, em seu lugar, foram construídos viveiros de camarão. Sua população ribeirinha
foi quase totalmente destruída pela década de 1990.
A teia de sincretismo [uma introdução á poética dos mangues] é, portanto, um caminhar
pela história dos mangues e memórias de outras gentes do mangue que o mar levou daqui..
“Eu ficava horas e horas imóvel sentado no cais, ouvindo a história do rio, fitando as suas
águas correrem como se fosse uma fita de cinema” [CASTRO 2001b: 16].
Como uma fita de cinema com direito a conversas e ou debates no final, esta conclusão
vem em forma de vídeo-documentário. Foi necessária uma teia de idéias para concretizá-la.
Uma máquina fotográfica nas mãos e uma antena parabólica enfiada na cabeça. Um trabalho
desta natureza é possível se feito a três ou quatro mãos. O vídeo ambiental ‘O caos sem
plumas’ segue um roteiro desorientador para dentro do centro do mangue. Na desarrumação
das fotografias, buscamos para esta pesquisa um fio de aproximação com o leito linear dos
rios. As águas apareciam de outros caminhos: “Riacho sem início, sem fim, que rói suas duas
margens e adquire velocidade no meio” [DELEUZE; GUATTARI, 2004: 37]. E Se os
“abismos são navegáveis a barquinhos de papel”, como dizia o mestre Guimarães Rosa, para
nós, povos dos mangues: “embaixo das marquises / rio passa desarrumado/ direção contrária/
pontuação canhota/ entra sem ponto/ sai sem vírgulas/ canoa deixa o livro” [LIMA, 2003:67].
Mesmo que o caminho pareça difícil, ele não deve ser abandonado. Se qualquer um
de nós for eliminado, dez outros devem tomar seu lugar. Essa é a marca genuína de
nossa luta, e nem a censura nem a simples cumplicidade covarde pode impedir seu
êxito.
[EDWARD W. SAID]
370
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Esta é a sua biblioteca, mas o seu gabinete está lá fora.
[THOREAU]
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Da gaveta: bolachas discográficas
... por que livrar-se do que amontoa, como em todas as casas, no fundo da gaveta? [...] Além do mais, o que
obviamente não presta sempre me interessou muito. Gosto de um modo carinhoso do inacabado, do malfeito,
daquilo que desajeitadamente tenta um pequeno vôo e cai sem graça no chão.
[CLARICE LISPECTOR]
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RODRIGUES, Virgínia. Sol negro. Rio de Janeiro, Natasha Records, 1997. Compact Disc
Áudio 1 CD, Resmaterizado em Digital.
RIBEIRO, Rita. Pérolas aos povos. Rio de Janeiro: MZA MUSIC, 1999. Compact Disc.
Digital Áudio.1 CD. Resmaterizado em Digital.
______. Comigo. Rio de Janeiro: Wea, 2001. Compact Disc. Digital Áudio. 1 CD.
Resmaterizado em Digital.
______. Tecnomacumba. Rio de Janeiro: Biscoito Fino, 2006. Compact Disc. Digital Áudio. 1
CD. Resmaterizado em Digital.
RORO, Angela. Blues do Arranco. In: RORO, Angela. nos resta viver. São Paulo:
Polygram, 1996. Digital stereo, CD.
ROSA, Noel. História Musical de Noel. Caucaia CE: Alpha Records, s/d. Digital stereo, 2
CD.
ROSA, Virgínia. Batuque. Manaus: Movies Plays, 1997. Digital stereo, CD.
ROSSI, Reginaldo. Um tributo. Recife: Mangrove, 2000. Compact Disc. Digital Áudio, 1 CD
Resmaterizado em Digital. Gravação em som.
SÁ, Sandra de. Momentos que marcam demais. Manaus: WEA, 2000. Digital stereo, CD.
SIMONE, Nina. O melhor de Nina Simone. São Paulo: Memo Music, s/d. 1 disco laser.
Gravação de som.
THE BEATLES. 1. São Paulo: EMI, 2000. Compact Disc. Digital Áudio, 1 CD
Resmaterizado em Digital.
TITÃS. Acústico. Manaus: WEA, 1997. Digital stereo, CD.
TOURE, Ali Farka; COODER, Ry. Talking Timbuktu. São Paulo: Paradoxx Music, 1997.
Digital stereo, CD.
VELOSO, Caetano; MAUTNER, Jorge. Eu não peço desculpas. São Paulo: Universal Music,
2002. Digital stereo, CD.
VELOSO, Caetano; Gilberto Gil. Tropicália 2. São Paulo: Polygram, 2004. Compact Disco. 2
CDs.
VALENÇA, Alceu. Maracatus, batuques e ladeiras. São Paulo: BMG, 1995. Compact Disc.
Digital Áudio, 1 CD Resmaterizado em Digital.
______. Sol e chuva. São Paulo: Som Livre, 1997. Compact Disc. Digital Áudio, 1 CD
Resmaterizado em Digital.
398
Vídeopoemas Consultados
O poema recebe a sombra das mãos/o equipamento de cinema mais antigo.
[JOAN BROSSA]
ALENCAR, Alexandre. De malungo pra malungo. Recife: Luni; Daniele Hoover, 1999.
Documentário. 1 cassete [40min]: Beta Digital/ 16mm, son., color.
ARRUDA, Ana. Ecos do mangue: Recife: Ana Arruda e Equipe, 2006. Documentário. 20
min. Beta Digital, son color.
ASSIS, Cláudio. Amarelo manga. Recife/ Rio de Janeiro: Olhos de Cão Produções/ Rio
filmes, 2003. 100 min. Filme Digital, son., color.
______. Baixio das bestas. Rio de Janeiro/ Recife: Olhos de Cão Produções/ Riofilmes 2006.
90 min. Filme Digital, son., color
CALDAS, Paulo; LÍRIO, Ferreira. Baile Perfumado. Recife/ Rio de Janeiro: Rio Filmes,
1997. 1 cassete [93 min]: Beta Digital, son., color.
CALDAS, Paulo; LUNA, Marcelo. O rap do pequeno principe contra as almas sebosas.
Recife/ Rio de Janeiro: Raccord Produções/ Rio Filme, 2000. 75 min. Filme Digital, son.,
color.
COUTINHO, Eduardo. O fim e o princípio. Rio de Janeiro/ Paraíba: Riofilmes, 2006.
Documentário. 110 min. Filme Digital, son., color.
FERREIRA, Lírio; LACERDA, Hilton. Cartola música para os olhos. Rio de Janeiro:
Raccord/ Globo filme, 2006. 85 min. Filme Digital, son., color.
GOMES, Marcelo; ASSIS, Cláudio; PONTUAL, Adelina. O alto do José do Pindo é do
Caralho. Recife: Rec Produtores, 2006. Documentário. 13m:31s. Filme Digital, son., color.
______. Samydarsh: os artistas da rua. Recife: Rec Produtores, 2006. Documetário. 2m: 11s.
Filme Digital, son., color.
GOMES, Marcelo; CALDAS, Paulo. Aspirinas e Urubus. Recife: Imovision, 2005. 90 min.
399
Digital em DVD, son, color.
MALTA, Oscar. Quando a maré encher. Recife: Fundação Joaquim Nabuco, 2006.
Documentário. 30 min. Filme Digital, son., color.
MENDONÇA, Filho kléber. Enjaulado. Recife: Kléber Mendonça Filho, 1997. 1 cassete,
son., color.
MESEL, Kátia. Recife de dentro para fora. Recife: Kátia Mesel, 1997. Documentário. 15m.
Filme em fita VHS, son., color.
QUEIROZ, Bidu; BARROSO, Cláudio. O mundo é uma cabeça. Recife: S/ L, 2004.
Documentário. 17 min. Digital, son., color.
SVERIAN, Pedro. Carnaval inesquecível na cidade alta. Recife: Pedro Sverian, 2006.
Documentário. 6m: 43s. Filme Digital, son., color.
KARIM, Aïnouz. u de Suely. Ceará/Rio de Janeiro: Videofilmes, 2006. Filme Digital. 88
minutos, son., color.
ZACCA; MARTIN, Horácio. Fim de semana especial Chico Science. S/L: MTV, 2000. 1
cassete [80 min], son., color.
400
Sinopse
Vídeo-Documentário
O CAOS SEM PLUMAS
O vídeo-documentário O Caos Sem Plumas em sua travessia inicial pela memória dos
mangues brasileiros registra o Zeppelin nos manguezais do Recife durante a década de
30-40 adentrando os mangues prostíbulos do Rio de Janeiro pelos desenhos de Lasar
Segall. As imagens remam pela maré dos mangues nordestinos sugerindo a onda de
desmatamento desse ecossistema. Ao margear a paisagem da favela “Abençoada por
Deus”, à beira do Rio Capibaribe no Recife, a câmera fotográfica adentra os mangues do
Delta do Parnaíba [PI], Tutóia [MA], Itaparica [BA], Galinhos [RN], mangues de
Sabiaguaba e vendedores ambulantes em Fortaleza [CE], Jequiá da Praia [SE], mangues
de Jacumã e Baía da Traição [PB] até as paneleiras capixabas [ES]. E tudo segue
manguezal afora ao ritmo-maracatu de “Côco Dub”, de Chico Science & Nação Zumbi.
O CD do vídeo documentário “O Caos Sem Plumas” está anexado ao final deste
trabalho. [Dedicamos este vídeo-conclusão à memória de Edward W Said]
DIREÇÃO E PRODUÇÃO: Lúcia Lucena: luklua@yahoo.com.br
Pesquisa: Tânia Lima
Revisão de fotografia: Fátima B. Costa.
Realização Mangues&Letras: [email protected]
PS: por favor, desliguem os celulares!
401
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