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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO: MESTRADO
Área de Concentração: Fundamentos da Educação
BANALIZAÇÃO CULTURAL: ESTÉTICA E FORMAÇÃO
WESLEY LUIZ DELCONTI
MARIN
2005
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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO: MESTRADO
Área de Concentração: Fundamentos da Educação
BANALIZAÇÃO CULTURAL: ESTÉTICA E FORMAÇÃO
Dissertação apresentada por WESLEY LUIZ
DELCONTI, ao Programa de Pós-Graduação
em Educação, Área de Concentração:
Fundamentos da Educação, da Universidade
Estadual de Maringá, como um dos
requisitos para a obtenção do título de
Mestre em Educação.
Orientador(a):
Prof. Dr. : LUIZ HERMENEGILDO FABIANO
MARINGÁ
2005
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WESLEY LUIZ DELCONTI
BANALIZAÇÃO CULTURAL: ESTÉTICA E FORMAÇÃO
BANCA EXAMINADORA
Prof. Dr. Luiz Hermenegildo Fabiano (Orientador) UEM
Prof. Dr. Renato Bueno Franco – UNESP – Araraquara, Sp.
Prof. Dr. Cézar de Alencar Arnaut de Toledo UEM
28 de março de 2005.
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Os esforços empreendidos na elaboração
desde trabalho são dedicados a:
Deus, pela vida.
Eliane Rodrigues dos Santos, minha esposa.
Mateus, Natan e Pedro Henrique, meus
filhos.
Valdemiro Adão Delconti e Odete Barth,
meus pais.
Valmir S. Martins e Marli C. Martins, nossos
amigos.
5
Agradecimentos
A Luiz Hermenegildo Fabiano, orientador, que me ajudou sem restrições em
todas as etapas deste trabalho. É impossível retribuir a dedicação que me
ofereceu no decorrer desta caminhada formativa. Agradeço também pelas
decisivas contribuições na análise das obras de Kafka efetuadas neste
estudo.
A Newton Ramos de Oliveira, pela enorme contribuição no processo de
qualificação.
Aos professores do Programa de s-Graduação em Educação da UEM,
especialmente aqueles que tive oportunidade de ter maior contato: Jo
Joaquim P. Melo, Terezinha Oliveira, Guaraciaba Aparecida Tullio, Cezar de
Alencar A. de Toledo e Sonia Maria Vieira Negrão.
A Wanda Horta Lima, minha gratidão pelo incentivo ao trabalho científico e
pela força nas horas diceis.
A Marina Tereza Corillazo e Geni Barth, pelo amor e carinho.
Ao Marcos, Mara, Everson e Elizângela, meus irmãos.
A Izabel Delconte, pelo exemplo de dedicação e cuidado pela vida humana.
Por fim, quero agradecer especialmente à Eliane e Odete, pelo apoio e
paciência que dedicaram para que o trabalho fosse elaborado e concluído.
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“Tal como o homem primitivo estava
impotente frente às forças naturais, tamm
o homem moderno se encontra desarvorado
frente às forças sociais e econômicas por ele
mesmo criadas. Adora a obra de suas mãos,
curva-se aos novos ídolos, e não obstante
jura por Deus que lhe ordenou a destruição
de todos os ídolos”.
Erich Fromm
“Se o objeto externo não estiver confrontado
com o objeto interno, disso resulta um
materialismo sem freio acoplado a uma
arrogância delirante ou à uma extinção da
personalidade autônoma, o que em todo
caso é o ideal do Estado totalitário e
massificante”.
Carl G. Jung
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BANALIZAÇÃO CULTURAL: ESTÉTICA E FORMAÇÃO
Autor: Wesley Luiz Delconti
Orientador: Luiz Hermenegildo Fabiano
RESUMO
A dimensão administrada da sociedade contemporânea vista sob a ótica dos pensadores
frankfurtianos, Theodor W. Adorno e Max Horkheimer fornecem as bases desse estudo
para uma incursão nos meandros literários da obra de Franz Kafka concernentes às formas
de coerção e enfraquecimento do indivíduo no desenvolvimento e consolidação do Estado
moderno. Objetiva-se, nesse sentido, discutir o potencial educativo da obra de arte como
possibilidade de consciência social e mediação com a realidade histórica. Para tanto,
compreende-se a dimensão da obra de arte como formação cultural sob dois aspectos
fundamentais. O primeiro refere-se às assimilações mercantis da obra de arte no contexto
da Indústria Cultural confirmando a estrutura ideológica das relações sociais vigentes. O
segundo aspecto, respaldado teoricamente por Lukács e Goldmann, refere-se a um
entendimento da arte enquanto possibilidade de reflexão crítica e de mediação com a
realidade social. Tais pressupostos teóricos viabilizam um resgate da construção estética da
obra kafkiana, considerando-se a sua estruturação interna, a qual condensa conteúdos
históricos que se revelam na sua estrutura profunda. Levando-se em consideração essa
premissa é possível também vivenciar situações imprecisas da materialidade histórica que
nela estão permeadas, como as formas que a sociedade contemporânea tem assumido em
face do capitalismo tardio, num momento histórico de acentuação do Estado totalitário.
Fatores importantes da sustentação desse regime seo por uma máquina burocrática
desumana, tornando o indivíduo impotente diante de um aparato de controle administrativo
impessoal e aniquilador. Esse nível de abordagem constitui-se de um alto poder educativo
enquanto processo de consciência social e resgate do potencial estético da obra de arte,
banalizada no contexto da instria cultural. Observa-se ainda, a relevância dessa
abordagem no deslocamento dos processos estéticos como possibilidade formativa
enquanto fortalecimento do indivíduo, na perspectiva de sua autonomia e emancipação.
Palavras chave: Indústria cultural; Estética; Formação.
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CULTURAL BANALIZATION: AESTHETICS AND FORMATION
Author: Wesley Luiz Delconti
Supervisor: Luiz Hermenegildo Fabiano
ABSTRACT
The administrative dimension of the contemporary society noted under the optics of the
Frankfurt thinkers, Theodor W. Adorno and Max Horkheimer supply the bases of this
study for an incursion in the literaty intrigues of the work by Franz Kafka concerning to the
coercion forms and the individual’s weakness in the development and consolidation of the
modern State. It is aimed at, in this sense, to discuss the educational potential of the work
of art as possibility of social conscience and mediation with the historical reality. For so
much, the dimension of the work of art is understood as cultural formation under two
fundamental aspects. The first refers to the mercantile assimilations of the work of art in
the context of the Cultural Industry confirming the ideological structure of the effective
social relationships. The second aspect, backed theoretically by Lukács and Goldmann,
refers to an understanding of the art while possibility of critical reflection and of mediation
with the social reality. Such theoretical presuppositions make possible a ransom of the
aesthetic construction of the kafkian work, being considered your internal structuring,
which condenses historical contents that are revealed in your deep structure. Being taken in
consideration this premise is also possible to live imprecise situations of the historical
materiality that in her they are permeated, as the forms that the contemporary society has
been assuming in face of the late capitalism, in a historical moment of accentuation of the
totalitarian State. Important factors of sustentation of this regime feel for an inhuman
bureaucratic machine, turning the impotent individual before an apparatus of impersonal
and annihilating administrative control. This approach level is constituted of a high
educational power while process of social conscience and rescue of the aesthetic potential
of the work of art, banalized in the context of the cultural industry. It is still observed, the
relevance of that approach in the displacement of the aesthetic processes as formative
possibility while the individual’s invigoration, in the perspective of your autonomy and
emancipation.
Key words: Cultural industry, Aesthetics and Formation.
9
SUMÁRIO
1.INTRODUÇÃO.................................................................................................... 9
2. RACIONALIDADE TÉCNICA E REGRESSÃO SOCIAL................................... 18
2.1. O Advento da Sociedade Industrial................................................................ 18
2.1.1. O surgimento da cultura de massas..................................................22
2.2. Das Promessas da Razão..............................................................................27
2.3. A Cultura Industrializada.................................................................................34
2.4. A Produção de Indivíduos Semi-Formados Culturalmente.............................43
3. ARTE E POTENCIAL FORMATIVO.................................................................. 47
3.1. Arte e Autonomia Social..................................................................................47
3.1.1. Romance e sociedade.......................................................................52
3.2. Da Narrativa Tradicional à Falsa Experiência Socal.......................................56
4. A ARTE LITERÁRIA DE KAFKA........................................................................65
4.1. Notas Sobre o Autor........................................................................................66
4.1.1. Aspectos biográficos.........................................................................69
4.2. A Narrativa Kafkiana....................................................................................... 71
4.3. O Enfraquecimento do Indivíduo.....................................................................79
5. FORMAÇÃO SOCIAL E EMANCIPAÇÃO......................................................... 90
5.1. Implicações da Estética para o Processo Formativo......................................90
5.2. Estética Kafkiana e Emancipação................................................................100
6. CONCLUSÃO..................................................................................................106
REFERÊNCIAS ...................................................................................................112
10
1. INTRODUÇÃO
Pretende-se fazer uma discussão sobre alguns processos que envolvem a formação
cultural que ocorre atualmente em nossa sociedade, mais especificamente num contexto
histórico em que a arte e também os bens culturais produzidos socialmente, o reduzidos
à condição única de mercadoria.
O capitalismo pode ser concebido como um sistema econômico que se tornou
hegemônico a partir do século XIX e teve como ponto de referência a Revolução Francesa,
do século XVIII. Naquele momento a burguesia francesa tomou o poder estatal das mãos
da nobreza e do clero, representantes da classe dominante da sociedade feudal.
A burguesia começou gradativamente a partir dos séculos XV e XVI, a ser uma
classe emergente, ganhando espaço dentro da sociedade feudal, instaurando dentro da
ordem vigente da época um novo modo de produção que se incompatibilizava com a
estrutura legislativa que regia os aparelhos estatais que sustentavam a nobreza e o clero.
O novo modo de produção capitalista, clamando pelo aperfeiçoamento técnico dos
meios de produção, trouxe para o homem conseqüências, desqualificando-o e tornando-o
mero apêndice da máquina. Se na produção manufatureira o homem ainda podia ditar o
ritmo da produção, com o advento da maquinaria e da grande indústria o homem passou a
exercer um papel passivo ao perder o controle sobre o processo de trabalho. Esse processo
foi intensificado a partir do século XX, quando o controle produtivo firmado pelo
taylorismo, não provocou um controle produtivo como um adestramento do corpo para
o desempenho produtivo. O planejamento rigoroso desenvolveu toda uma burocratização
que, ao ajustar o sujeito ao processo produtivo, também o prediss a um esquema de vida
social voltado às exigências da produção.
A Revolução Industrial incentivou o conhecimento científico, porém apenas um
determinado tipo de conhecimento: aquele que possibilitasse o avanço e a reprodução da
economia industrial. Instaurou-se assim no plano do conhecimento o pragmatismo e o
utilitarismo, ou seja, o incentivo ao conhecimento canalizado para o aumento e
melhoria do processo produtivo. Isso resultou num avanço tecnológico e científico
tamanho, que nos dias de hoje experimenta-se uma sociedade regida pela máquina, em que
os elementos da administração e burocratização extrapolam a esfera produtiva e acabam
envolvendo todos os setores da vida humana (FABIANO, 1999).
11
Se o conhecimento possibilitou ao homem um domínio cada vez maior do mundo
natural, ao mesmo tempo passou a ser utilizado com objetivo ideológico de perpetuação da
sociedade burguesa, visando a exploração e a sujeição do próprio homem. A sociedade
industrial, na acepção de ADORNO (1994), além de explorar o trabalhador no próprio
ambiente produtivo, produziu um tipo de cultura em grande escala e com finalidades
adaptativas, visando preencher e administrar o seu tempo livre voltado à produção. Ao
instrumentalizar o conhecimento, essa forma de organização social não fez outra coisa
senão adaptar a cultura do espírito aos seus interesses mercantis.
Nesse ambiente social de supremacia do controle produtivo e desgaste não apenas
físico, mas também mental do trabalhador, o nível de um investimento cultural mais
consistente perdeu a função diante do pragmatismo cultural voltado à produção. Como
resposta a grande massa que se avolumava nos centros produtivos industriais, o
investimento cultural assume a função de distração e entretenimento, integrando-se como
lazer e consumo no ambiente da produção industrial que se afirmava social e
economicamente definitiva.
O que viceja desse processo é uma cultura comprometida e cúmplice com os
mecanismos ideológicos afirmativos da sociedade industrial. Ao elaborar uma crítica dos
processos culturais na atualidade faz-se necessário primeiramente algumas considerações,
ainda que superficiais, em relação ao conceito de cultura, tendo em vista que o seu
aprofundamento iria demandar uma abordagem muito além do recorte estabelecido por
esse estudo.
O conceito de cultura, segundo Ulmann, (1991, p. 309) remete à necessidade
histórica do homem de ordenar, classificar e sistematizar as coisas da natureza. Para tanto,
um sistema de símbolos transmitidos de geração a geração foi desenvolvido. Os símbolos,
representando a sistematização da natureza e do universo, assumiram uma característica
eminentemente social, pois se tornaram elo de interação entre indivíduos e gerações.
Nas considerações de Laraia (1989) a capacidade do homem de simbolização da
realidade estabelece uma diferenciação de gênero e não apenas de grau em relação aos
demais seres vivos. A cultura é uma peculiaridade do homem e isso se deve a duas
importantes propriedades, quais sejam, a possibilidade da comunicação oral e a capacidade
de transformação da natureza pela fabricação de instrumentos. Portanto, a cultura é um
processo de hominização do homem, que é resultado do meio cultural em que foi
socializado.
12
Para se compreender a noção atual de cultura, no entendimento de Cuche (1999), é
necessário uma reconstituição de sua gênese social. A evolução da palavra cultura passou
por uma série de transformações, tomando uma rie de conotações de acordo com o
momento histórico e a nação em que se deu o seu desenvolvimento. Para o autor, ela teve
sua evolução decisiva na língua francesa do século XVIII, onde se deu a formação da
sentido moderno da palavra. Os pensadores do Iluminismo conceberam a cultura como um
caráter distintivo da espécie humana. A cultura, para eles, era a soma dos saberes
acumulados e transmitidos pela humanidade, considerada como totalidade, ao longo de sua
história (...). A idéia de cultura participa do otimismo do momento, baseado na confiança
no futuro perfeito do ser humano. O progresso nasce da instrução, isto é, da cultura, cada
vez mais abrangente (CUCHE, 1999, p. 21)”.
Neste estudo, o conceito de cultura irá se aproximar mais, devido a sua
fundamentação teórica, ao conceito alemão de cultura no século XIX. Nesta caracterização
mais particularista, a cultura advém da alma de um povo. O desenvolvimento cultural tem
importância para o desenvolvimento da nação. A cultura se relaciona a um conjunto de
conquistas artísticas, intelectuais e morais que fazem parte do patrimônio de uma nação.
De acordo com Cuche:
Estas conquistas do espírito não devem ser confundidas com as
realizações técnicas, ligadas ao progresso industrial e emanadas de um
racionalismo sem alma. De maneira cada vez mais marcada ao longo do
século XIX, os autores românticos alemães oem a cultura, expressão
da alma profunda de um povo, à civilização definida a partir de então
pelo progresso material ligado ao desenvolvimento econômico e técnico
(CUCHE,1999 p. 29).
Crê-se importante ainda, complementar o conceito de cultura com a formulação de
Morin (1977), que a relaciona com a necessidade de formação subjetiva. A cultura, deste
modo, não se restringe somente a um patrimônio social exterior ao indivíduo, mas
justamente a implica decisivamente para sua constituição formativa, ou seja, seu processo
de hominização. Assim, a cultura, segundo o autor constitui-se de:
um corpo complexo de normas, símbolos, mitos e imagens que penetram
o indivíduo em sua intimidade, estruturam os instintos, orientam as
emoções. Esta penetração se efetua seguindo trocas mentais de projeção
e de identificação polarizadas nos símbolos, mitos e imagens da cultura
como nas personalidades míticas ou reais que encarnam os valores (os
ancestrais, os heróis, os deuses) (MORIN, 1977, p. 15).
13
Portanto, sem adentrar na discussão sobre o conceito de cultura, que em si
remeteria a um outro estudo, importa para o desenvolvimento deste trabalho, saber de que
forma aquilo que é consagrado enquanto cultura foi transformado como objeto de
manipulação na sociedade atual. Em razão desse recorte, como mencionado, elegeu-se
para a fundamentação do presente estudo a categoria de indústria cultural
1
, formulada por
Theodor Adorno e Max Horkheimer.
O conceito de indústria cultural parte de um contexto em que a cultura na sociedade
industrial passou, como em todas as esferas da vida social, a ser pautada essencialmente
pelo lucro, transformando-se também em mercadoria. A mercadoria refere-se aos produtos
quando o processo produtivo é organizado por meio da troca. Todo produto é propriedade
privada de agentes particulares, tem o seu valor que lhe é atribuído socialmente e pode ser
trocado por outros produtos.
A cultura sob o controle industrial e mercadológico sofreu um processo de
massificação que muito se distancia daquela que representa uma expressão das massas
populares. Oferece-se através da mídia um determinado tipo de cultura que é elaborado e
imposto de forma autoritária, através de sistemas identificatórios e imediatistas
(ADORNO, 1994).
Assim, a programação em geral oferecida pela dia, como por exemplo, a mídia
impressa, as novelas televisivas, filmes de linhagem comercial, programas de auditório,
programações musicais de sucesso induzido, enfim, todo esse aparato informativo a que se
denomina de indústria cultural, tem assumido comparativamente uma dimensão
educacional significativa na formação cultural da sociedade contemporânea.
Privilegiando o aperfeiçoamento técnico em detrimento dos conteúdos, que o
repetitivos e esvaziados de um significado emancipador, a indústria cultural preconiza uma
espécie de formação reduzida ao estereótipo e de simplificação dos valores e costumes. A
tudo conferindo um ar de identidade e linearidade, a cultura do divertimento, pelo seu
caráter autoritário, proporciona uma fuga da realidade perversa, conformando as
consciências a uma naturalização da vida social.
1
Indústria cultural - conceito definido por Theodor Adorno e Max Horkheimer. Caracteriza-se pela
apropriação dos bens culturais numa perspectiva mercantil, reduzindo os níveis de consciência crítica e de
formação social na atualidade. Na concepção dos dois autores da chamada Escola de Frankfurt, o termo
indústria cultural seria mais adequado em relação ao de cultura de massa. Esta diferenciação demarca por
sua vez, uma cultura oriunda das massas como expressão de sua identidade e uma outra criada para as
massas com o intuito de direcionar ideologicamente os seus procedimentos (HORKHEIMER & ADORNO,
1999).
14
A educação oficial, diante desse dado, se encontra num nível de precariedade muito
grande quando se depara com o poder que a mídia tem, através da fantasia e do domínio
técnico, de atingir as consciências, manipular as emoções e inculcar comportamentos
estereotipados. Nesse clima de descaracterização da cultura, a educação atual
inevitavelmente, queira ou não, deve confrontar-se, ainda que num jogo de forças
desproporcional.
A banalização da cultura reforçada pelos mecanismos da indústria cultural, produz
mesmo uma certa aversão a conteúdos culturais mais consistentes. A automatização de
comportamentos pré-dispostos ao consumo do obsoleto leva ao enfraquecimento cultural
da sociedade. Desse processo informativo de banalizão da cultura resulta a procura por
produtos de baixa exigência cultural, onde as grandes obras literárias, se não descartadas,
não são mais lidas integralmente, mas são apreendidas através de outros processos
reducionistas como por exemplo, adaptações simplificadas por novelas televisivas, filmes
de ação, enredos triviais e de pouca densidade estilística ou ainda, nos apressados e
incipientes resumos para vestibulandos.
Nesse contexto de extenso domínio e impacto da indústria cultural sobre a
formação da mentalidade contemporânea uma perda de interesse por grandes obras
literárias. De sua função de emancipação do homem, as grandes obras representam, num
primeiro momento, um grande obstáculo para uma mente treinada para somente receber
estímulos automáticos. A perspectiva limitada de conceber a cultura unicamente enquanto
diversão e entretenimento inviabiliza a busca de uma cultura mais consistente, o que em si
mesmo exige esforço perceptivo por parte do indivíduo em relação a um estrutura
gigantesca de condicionamentos.
O reconhecimento de como se dão os mecanismos de banalização da cultura e a
manipulação dos conteúdos estéticos, bem como as conseqüências para um processo
formativo responsável, tornam-se fundamental para entender certos impasses educacionais
da atualidade. Quando o elemento estético é tomado com o propósito de afirmação das
relações sociais vigentes, pautadas no consumismo e no conformismo, a obra de arte é
descaracterizada, melhor dizendo, despotencializada da sua possibilidade de estabelecer
confrontos com a estrutura de dominação social. Esse processo de banalização e
15
apropriação do estético acaba vinculando-se aos pressupostos da indústria cultural e se
determinando àquilo que Theodor Adorno denomina de semicultura.
2
A partir dessas considerações procura-se demonstrar que as grandes obras de arte,
devido ao seu potencial de consciência social, apresentam grande atualidade enquanto
questionamento das formas alienantes e consumistas da produção cultural. Pretende-se
portanto, realizar uma reflexão sobre o potencial educativo da obra de arte no processo de
formação social, tendo em vista a massificação da cultura na atualidade.
Dentre os mais significativos autores da literatura mundial, reconhecidamente
clássicos pela sua contribuição à formação cultural da humanidade, optou-se
especificamente por Franz Kafka, tanto por seu potencial estilisticamente criativo e
literário, quanto pela sua exposição lúcida dos principais dilemas e impasses do homem
em relação às forças coercitivas e autoritárias da sociedade contemporânea. Tais
conteúdos, sem descaracterizar os de outras obras de grande porte literário, fornecem
elementos que revelam o homem na sua condição histórica atual, aproximando a sua obra
das questões formativas desenvolvidas nesse trabalho.
Da obra kafkiana serão explorados alguns aspetos estruturais dos conteúdos
internos em que a não-linearidade narrativa se presta para desmoronar as bases seguras em
que os conformismos e a aceitabilidade dos fatos sociais se determinam como naturalidade
existencial. Neste aspecto, aquilo que aparece de forma coisificada no social é posto em
crise. Esses elementos acabam se constituindo de um alto poder educativo, se explorado
por tais aspectos numa perspectiva educacional que resgate a condição banalizada a que a
obra de arte foi relegada.
A arte enquanto um potencial educativo assume uma dimensão civilizatória, uma
vez que possibilita a sublimação dos níveis instintivos do ser humano. Assim considerada,
ela permitiria a humanizão através da reflexão sobre grandes questões morais e éticas
pertinentes ao gênero humano, além de amadurecer e ampliar o seu horizonte perceptivo.
Na perspectiva do desenvolvimento dessas questões, a pesquisa está estruturada em
quatro capítulos que permitiram inserir o objeto na sua contextualização histórica,
fornecendo assim elementos para melhor compreendê-lo na atualidade. No primeiro
capítulo foi realizado um percurso histórico de alguns elementos que foram decisivos na
2
Na acepção adorniana, a semicultura, opõe-se a uma formação consistente culturalmente, formação esta que
possibilita o pensamento reflexivo e com isso, a possibilidade de práticas sociais emancipatórias. Esse tipo de
cultura descaracteriza o processo civilizatório inerente ao processo de formação cultural. Sob tal perspectiva,
16
criação da indústria cultural. A indústria da cultura é compreendida como resultante da
racionalidade técnica no processo do desenvolvimento da sociedade industrial. A razão
burguesa, que posteriormente levou o nome de razão instrumental, nasceu juntamente com
a ciência moderna e com a ascensão da burguesia, sendo gradativamente colocada a
serviço de finalidades utilitárias, sobretudo a serviço da produção.
Com a Revolução Industrial, a máquina substituiu o homem no processo produtivo,
com todas as suas conseqüências para o trabalhador, enquanto ser explorado pelo capital e
enquanto desprovido de sua capacidade de realização através do trabalho. Pouco mais
tarde, foi desenvolvida na produção uma imensa racionalização, gerando um aparelho
administrativo para gerir a empresa capitalista, exercendo o controle sobre o trabalhador
através de princípios “científicos” formulados pela engenharia e pelo gerenciamento da
produção.
É nesse contexto em que o trabalhador é exaurido de suas energias corporais na
fábrica ou na empresa, que surge uma espécie de cultura com finalidade ideológica erigida
sobre o princípio da diversão: a indústria cultural. Esse conceito nos permitiu refletir sobre
a condição da obra de arte e a produção dos bens culturais na perspectiva mercantil da
sociedade industrial.
Os conceitos de razão e progresso amplamente defendidos pelo Iluminismo
(Aufklärung)
3
, transformaram-se, nas considerações de Horkheimer e Adorno (1999), com
o amadurecimento da sociedade industrial, justamente na sua antítese. Esse processo a que
se submeteu o Iluminismo a servo da economia burguesa acabou por transformá-lo num
irracionalismo, ou seja, justamente naquilo que julgava ter eliminado: o mito. Da mesma
forma, a promessa de progresso social é caracterizada pelos filósofos frankfurtianos como
a cultura pela metade (do alemão Halbbildung) inviabiliza a possibilidade do sujeito constituir-se através da
formação cultural (ADORNO, 1996).
3
O conceito de Aufklärung tem dois sentidos em alemão, um histórico localizado e datado e outro trans-
histórico. Segundo Matos (1997, p. 120) “em sentido estrito, o Iluminismo corresponde ao século XVIII (o
‘Século das Luzes’) e sua Filosofia da Ilustração, à qual se vinculam na Inglaterra John Locke, na Alemanha
Kant e na França os enciclopedistas – Diderot, Voltaire, d’Alembert, Montesquieu, Rousseau e outros,
unidos no projeto de empreender uma suma filosófica que abrange, com seus verbetes, todos os segmentos
do Saber na filosofia, na ciência, na política, nas artes”. O sentido trans-histórico de Aufklärung não se
restinge, conforme Adorno e Horkheimer, ao século XVIII mas “abrange toda a história da razão que se
engendra e se consolida como exploração da natureza exterior e dominação da natureza interior”. In:
MATOS, Olgária C. F. Filosofia a polifonia da razão: filosofia e educação. São Paulo. Scipione, 1997.
Neste trabalho, será entendido o conceito de Aufklärung da forma como em português Guido Antonio de
Almeida o diferenciou quando da tradução da Dialética do Esclarecimento, de Adorno e Horkheimer. Nesta
perspectiva a palavra Iluminismo corresponde ao conceito de Aufklärung no sentido estrito. a palavra
Esclarecimento corresponde ao sentido trans-histórico.
17
uma inevivel regressão, dado o desenvolvimento da técnica pautada na dominação:
primeiro da natureza, posteriormente da própria espécie humana.
Os novos meios (cinema, rádio e televisão), apropriados pelo sistema econômico,
apresentavam dois objetivos principais de acordo com o entendimento de Duarte (2001, p.
32). O primeiro é a estimulação e manutenção do consumo, através da propaganda
difundida em massa por esses novos meios. Visava também a compra de novos produtos, a
partir da “criação artificial de novas necessidades mediante a penetração e a quase
onipresença dos novos veículos de comunicão”.
O segundo objetivo da indústria cultural era fazer com que as pessoas aderissem
voluntariamente ao sistema de economia de mercado. Esse objetivo se concretizava pela
“manipulação planificada de conteúdos profundamente enraizados em sua economia
psíquica” (DUARTE, 2001, p. 32).
Principalmente a partir da busca desses dois objetivos, a sociedade industrial opta
por uma concepção de cultura que toma o formato de ideologia mercantilista de
sustentação de seus pressupostos. O aparato ideológico representado pela indústria cultural
apresenta uma determinada espécie de cultura comprometida com mecanismos de
adaptação e controle criados para a consolidação do ambiente industrial extensivo ao plano
mais geral da sociedade.
No segundo capítulo será discutido, a partir das considerações de Lukács e
Goldmann, o potencial educativo da obra de arte como possibilidade de consciência social
e mediação com a realidade histórica. A grande obra de arte possibilita ao indivíduo uma
formação cultural consistente. Se a indústria cultural produz a banalização dos bens
culturais e com isso um empobrecimento na formação do indivíduo, procurou-se saber
quais os benefícios que a arte pode trazer ao indivíduo no sentido dele se constituir, ou
seja, das possibilidades de emancipação diante dos ditames coercitivos que o sistema de
dominação político e ideológico o assaltam. Foram explorados também os conceitos
benjaminianos de experiência e vivência, no sentido do indivíduo ampliar seu diálogo e
interlocução com a humanidade.
No terceiro capítulo a discussão é direcionada para uma tentativa de análise da obra
de Franz Kafka, a partir dos pressupostos até aqui explanados. Dentre as mais variadas
formas de interpretação da obra de Kafka, estudos de vertentes teológicas, filosóficas,
sócio-políticas, psicanalíticas, estético-formais, a que interessou para efeito deste estudo,
foi aquela pertencente a um âmbito de análises que levam em consideração a questão da
18
desumanização burocrática, produzindo um indivíduo impotente diante de um aparato
administrativo impessoal e aniquilador.
A questão da estética, abordada no quarto capítulo, apresenta um grande potencial
para um processo formativo emancipatório. A relevância dos elementos estéticos para a
educação se dá justamente porque promovem o fortalecimento do “eu”, condição
imprescindível para o resgate da autonomia do indivíduo. Tal perspectiva, crê-se de maior
urgência ainda, num momento histórico de acentuação de um Estado totalitário que
impossibilita ao indivíduo uma formação mais consistente no sentido de posicionar-se
criticamente diante da realidade social.
19
2. RACIONALIDADE TÉCNICA E REGRESSÃO SOCIAL
2.1. O Advento da Sociedade Industrial
O advento do sistema capitalista trouxe à realidade social uma forma peculiar de
organização da produção e das relações entre os homens, baseada na propriedade privada e
na busca do lucro. O novo modo de produção não se estabeleceu como num simples passe
de mágica, mas através de um longo processo de lutas, avanços e recuos contra os
mecanismos de sustentação da ordem feudal.
a partir dos séculos XV e XVI a burguesia começou gradativamente a tornar-se
emergente, ganhando espaço dentro da sociedade feudal, instaurando dentro da mesma, um
novo modo de produção incompatível com a própria estrutura legislativa que regia os
aparelhos estatais que sustentavam a nobreza e o clero.
Neste mesmo período se deu o nascimento da ciência moderna, trazendo para a
Europa nos séculos XVI e XVII grandes mudanças nas formas de o homem conceber a si
mesmo e ao mundo. Naquele momento o homem trouxe para si a responsabilidade do seu
estar no mundo e com isso a possibilidade de interferência intencional no mundo natural e
a descoberta de suas leis.
O novo modo de produção burguês, objetivando o aumento de lucro, clamava pelo
aperfeoamento técnico dos meios de produção. Para tanto, era preciso dar liberdade ao
pleno desenvolvimento científico. A era da razão humana, preconizada pelo pensamento
iluminista, e que teve suas origens no Renascimento, prometia iluminar as trevas dos mitos
e da ignorância que permeavam a Idade Média.
Ao preconizar a liberdade para o desenvolvimento da razão humana, a revolução
burguesa incentivou o conhecimento científico, porém apenas um determinado tipo de
conhecimento: aquele que possibilitasse o avanço e a reprodução da economia industrial. O
domínio do mundo material significava para a burguesia o domínio maior no mundo dos
negócios, daí o grande incentivo ao desenvolvimento de uma ciência que se constituía e se
desenvolvia prioritariamente por meio da observação e da experimentação.
Alves (1993) constata que a preocupação que marca a visão de mundo burguesa é o
domínio do mundo material. Essa obsessão permanente se revela como visão prática:
20
que focaliza qualquer coisa a partir da utilidade que possa ter em face
daquele domínio. A mesma preocupação, portanto, atravessa a ciência
burguesa. A observação e a experimentação são recursos para a
produção de conhecimentos e de instrumentos, mediações essenciais
para a intensificação do domínio do homem sobre a natureza (ALVES,
1993, p. 63 e 64).
Como o controle do mundo natural através da razão significou vantagens
comerciais para a burguesia em ascensão, esta foi privilegiando e construindo uma visão
de mundo em que a ciência tivesse uma aplicação prática, uma utilidade. Bacon (1561
1626) defendia a aplicação prática da ciência à indústria, a serviço do progresso. Para o
homem obter o domínio sobre a natureza, devia-se partir do conhecimento das leis que a
regem. Somente com o controle científico sobre a natureza o homem poderia conseguir seu
bem-estar. A ciência se afirmaria baseada numa razão com finalidade instrumentais.
A explicação da realidade também passou pelo crivo da ordenação e da
metrificação do método matemático. O todo cartesiano na busca de “idéias claras e
distintas”, com ênfase no primado da razão, não aderia ao conhecimento contemplativo
típico da mentalidade medieval, mas buscava verdades que podiam ser úteis ao homem,
para que ele tivesse o controle sobre a natureza. A realidade, a partir daquele instante,
passou a ser explicada por uma racionalidade matematizada, que deveria ser previsível,
calculada, antecipada.
A constituição do pensamento burguês atingiu seu ápice após o Iluminismo,
momento de rompimento em relação à ordem feudal. Nas últimas décadas do século XVIII
a ordem capitalista se tornaria tão vigorosa, a ponto de no plano político ocorrer a
Revolução Francesa (1789). A promessa Iluminista primava pelo desenvolvimento da
razão, que levaria os homens ao aperfeiçoamento, transformando a sociedade rumo à
felicidade. Nesse ideal era sustentado a possibilidade do homem construir o seu futuro,
através de uma ação racional sobre a sociedade a que pertence.
No entanto, no decorrer do século XVIII, na Inglaterra o mundo assistia a uma
revolução técnica, com o surgimento da máquina: a Revolução Industrial. Com o intuito de
compreender o processo de industrialização, deflagrado a partir da Revolução Industrial,
deve-se reportar ao período que a antecede, o período da produção manufatureira apontada
por Marx (1984, p. 411) como uma “criação específica do modo de produção capitalista”.
O período manufatureiro, que se estendeu do século XIII ao século XVIII,
conforme Marx (1984, p. 407) era caracterizado pela divisão do trabalho. O produtor não
mais confeccionava o objeto por inteiro, como anteriormente sua qualificação profissional
21
o habilitava. Transformando-se em trabalhador parcial integrou-se juntamente a outros
trabalhadores parciais, num trabalhador coletivo. Somente através do parcelamento de
tarefas se produzia uma mercadoria que era o produto coletivo dos trabalhadores parciais.
A força do trabalho coletivo despendida por um grupo de trabalhadores que se
dedica de forma especializada a uma tarefa parcial levou à especialização das ferramentas
que então se adaptavam às respectivas funções parcelares. O resultado desta combinação
foi a diminuição do tempo de trabalho necessário para a elaboração de um produto, o que
permitiu um grande aumento de produtividade e maior acúmulo de capital.
Entre as conseqüências trazidas ao trabalhador pelo sistema de manufatura está a
sua dependência diante do capitalista e a sua desqualificação (pois no artesanato era
exigido um longo período de aprendizado), resultando numa redução do valor de sua força
de trabalho. “Na manufatura, o enriquecimento do trabalhador coletivo e, por isso, do
capital, em forças produtivas sociais, realiza-se às custas do empobrecimento do
trabalhador em forças produtivas individuais” (MARX, 1984, p. 414).
A expansão do mercado exigia um aumento da produção, que esbarrava na
capacidade produtiva da manufatura. Com a Revolução Industrial, o trabalhador foi
superado no processo produtivo. Se na produção manufatureira o centro da produção era o
homem, no sistema fabril o centro da produção se desloca para a máquina. Houve a
substituição do homem pela máquina no processo industrial. A função do trabalhador não
era mais produzir, ainda que parcialmente, uma mercadoria, mas cuidar da máquina que
ficou encarregada da produção.
O passo seguinte da Revolução Industrial foi a substituição do homem enquanto
força motriz. Os instrumentos de trabalho, transformando-se de ferramentas manuais em
máquinas (que incorporaram essas ferramentas), passaram a ser movidos pela força de um
motor, independentemente da força humana. Uma máquina ou um motor fazia funcionar
várias máquinas-ferramenta ao mesmo tempo. Para a execução de tal tarefa aumentou-se o
tamanho do motor e o mecanismo de transmissão assumiu grandes proporções.
O trabalhador passou a exercer um papel passivo ao perder o controle sobre o
processo do trabalho. Ocorre uma adaptação ao sistema produtivo em que o ritmo do
trabalho passa a ser ditado pelo ritmo da máquina. A quantidade de produção e o tempo de
trabalho necessários para elaboração do produto fogem também do controle do
trabalhador.
22
Ao trabalhador restou a função de vigiar e corrigir o trabalho da quina que
opera, torna-se desnecessário na fábrica a contratação de homens adultos e resistentes,
porque a máquina descartou a força motriz humana. A brica também não necessitava
mais de trabalhadores especializados e hábeis, como anteriormente, pois as habilidades
requeridas, de modo geral, eram mais simples e fáceis de serem aprendidas. Esse processo
trouxe como conseqüência uma enorme desqualificação do trabalhador, que não
necessitava mais de um longo período de aprendizagem. A indústria começou a recrutar
mão de obra não qualificada, principalmente a de mulheres e crianças, pagando salários
ainda mais baixos (MARX, 1984).
A produção mecanizada, diminuindo o valor da mercadoria e aumentando o lucro
do capitalista, começou a atingir todos os setores da produção. Gradativamente a produção
industrial foi tornando-se hegemônica, substituindo os sistemas de produção anteriores, o
artesanato, o sistema doméstico e a manufatura.
Essa dinâmica instaurou no plano do conhecimento o pragmatismo e o utilitarismo,
ou seja, o incentivo ao conhecimento canalizado para o aumento e melhoria do processo
produtivo. Para tal pragmatismo não é necessário saber se o conhecimento científico é
verdadeiro ou falso. Seu foco de atenção está na descoberta de resultados práticos que se
possa chegar com a aplicação de tal lei ou teoria.
Para a razão pragmática um conhecimento será tido como verdadeiro se tiver
alguma utilidade prática e instrumental. Os conceitos e valores serão considerados
verdadeiros e éticos se puderem servir a fins humanos. O pragmatismo caracteriza-se pelo
seu aspecto utilitário, prático e funcional.
Tal perspectiva de conhecimento a serviço da produção se confunde com a própria
criação do capitalismo. Podemos dizer que é inerente a uma sociedade que se estabelece
com seus alicerces pautados na propriedade privada e no lucro. A ciência é vista
principalmente como objeto de lucro. O capital investe na ciência com vistas a um maior
domínio da natureza, que por sua vez gera mais lucro, alimentando um círculo vicioso.
A Revolução Industrial definitivamente colocou a ciência a serviço da produção, ao
buscar novas formas de energia para colocar a maquinaria em movimento. Houve um
estímulo e apoio das atividades científicas. A química (atual) irá nascer para suprir
necessidades “técnicas das indústrias têxteis relacionadas ao uso de corantes e
branqueadores, e de necessidades de siderurgia. A termodinâmica nasce em plena
23
Revolução Industrial, ligada à urgência de melhora de rendimento das máquinas a vapor
(OLIVEIRA; ALBUQUERQUE, 1981, p. 9).
A moderna sociedade industrial acirrou as contradições entre trabalhador e capital
de maneira que o século XIX seria o palco onde se assistiria as conseqüências do processo
produtivo, entre elas, as longas e extenuantes jornadas de trabalho (de dezesseis a dezoito
horas), os salários muito baixos, falta de higiene e fome crônica. Tal processo resultou
para o proletariado industrial em uma vida miserável, sem participação nas instituições
políticas.
2.1.1. O surgimento da cultura de massas
A primeira guerra mundial, iniciada em 1914, marcou uma nova fase do
capitalismo, o chamado capitalismo tardio. Essa etapa do capitalismo é caracterizada por
três aspectos: a existência de grandes conglomerados de interesses econômico e militar, a
incorporação de conquistas tecnológicas com o objetivo de otimizar o desempenho da
economia e criar uma coesão ideológica em torno das diretrizes principais do sistema de
dominação política (DUARTE, 2001, p.31).
No tocante à discussão que importa para o objeto desta pesquisa serão
desenvolvidos primeiramente alguns aspectos sobre a otimização do desempenho da
economia, que aqui serão formulados a partir dos conceitos de taylorismo e fordismo,
demonstrando como o capitalismo integrou o trabalhador ao processo produtivo em troca
de conquistas sociais. Paralelamente a esse processo, desenvolveu-se uma racionalização
da produção, gerando um aparelho administrativo para gerir a empresa capitalista e suas
relações com o restante da economia, bem como para exercer o controle sobre o
trabalhador, baseado em princípios chamados “científicos”.
Com o objetivo de aumentar a produtividade do trabalho e incrementar a
acumulação do capital, surgiram a partir do último terço do século XIX, dois novos
princípios de organização do processo de trabalho: o taylorismo e o fordismo. Buscando
técnicas de intensificação da produção, ela se inseria no processo geral de racionalização
do trabalho instaurado pela grande instria (BIHR, 1999).
24
O taylorismo baseou-se numa estrita separação entre as tarefas de concepção e de
execução, acompanhada de um parcelamento das tarefas, devendo cada operário executar
apenas alguns gestos elementares. o fordismo, partindo dos princípios tayloristas,
baseava-se na mecanização do processo de trabalho, onde “um verdadeiro sistema de
máquinas garante a unidade (a recomposição) do processo de trabalho parcelado, ditando a
cada operário seus gestos e sua cadência (sendo sempre a cadeia de montagem a forma
extrema desse princípio)” (BIRH, 1998, p. 39).
Esse sistema de racionalização do trabalho propiciado pelo taylorismo e fordismo,
tornou-se, principalmente nos EUA, a partir dos anos 20, o pioneiro na articulação entre
coerção capitalista e consentimento operário. A administração científica” iria propor uma
união de interesses entre os trabalhadores e os patrões, sendo que os primeiros teriam o que
desejavam, melhores salários, e os segundos lucrariam com a diminuição do custo da
produção.
Quando passou a assumir um compromisso com a burguesia, o proletariado fez
uma espécie de imensa barganha, renunciando à luta pela transformação comunista da
sociedade em troca da garantia de direitos. Submetendo-se à lógica e ao comando do
capital, o proletariado renunciou à luta revolucionária para tomada do poder em troca dos
benefícios que a burguesia estava disposta a lhe oferecer, garantindo sua seguridade social.
Além da sua assistência social, o proletariado passou a conquistas de outras garantias como
uma relativa estabilidade de emprego, um crescimento de seu vel de vida, uma redução
de seu tempo de trabalho e a satisfação de necessidades fundamentais como habitação,
saúde, educação, formação profissional, cultura e lazer. Em outras palavras, saiu de uma
condição de miserabilidade para se inserir inclusive como consumidor na sociedade
burguesa (BIRH, 1998, p. 37 e 38).
Se na esfera econômica o trabalhador, de certo modo, foi cooptado, o surgimento
da administração científica no trabalho ampliou a dicotomia entre a concepção e a
execução do trabalho. O processo de execução colocou todo o corpo do trabalhador a
serviço do aumento da produtividade, através da simplificação dos gestos para garantir
maior rapidez na execução das tarefas. O trabalhador deveria ser adestrado com o objetivo
de aperfeiçoamento de suas aptidões para responder com eficiência as tarefas da produção.
O adestramento do corpo foi idealizado pela concepção, que foi incrementada com
a criação de cargos para gerenciar e vigiar o desempenho produtivo, através da aplicação
de métodos científicos de pesquisa e experimento. Na concepção do trabalho, o
25
planejamento tornou-se um eficaz método para se obter e se aprimorar as diversas formas
de padronização e controle da execução do trabalho.
A intensificação do planejamento e do controle desenvolveu a burocratização. A
burocracia se estabeleceu na sociedade moderna como uma organização baseada na
racionalidade técnica, com a finalidade de obter o máximo de rendimento possível
adequando rigorosamente os meios para atingir os seus objetivos. Tendo como fim último
a obtenção da eficiência da organização, a burocracia baseava-se na previsibilidade do
comportamento humano e na padronização do desempenho dos participantes. Erich Fromm
alerta sobre as conseqüências dos princípios de eficiência produtiva e organizacional para a
formação de uma individualidade sadia:
A exigência da eficiência máxima conduz, como conseqüência, à
exigência da individualidade nima. A quina social trabalha mais
eficazmente, assim se crê, se as pessoas são reduzidas a unidades
puramente quantificáveis cujas personalidades podem ser expressas em
cartões perfurados. Essas unidades podem ser mais facilmente
administradas por regras burocráticas porque não criam dificuldades ou
provocam atrito. A fim de se atingir esse resultado, os homens devem ser
desindividualizados e ensinados a encontrar sua identidade na
companhia em vez de em si mesmos (FROMM, 1969, p. 49).
O excesso de normas e regulamentos previamente elaborados, estabelecendo as
atribuições obrigarias de cada participante na organização, inseridos numa rígida
hierarquização de cargos e funções, confere ao sistema burocrático duas questões
importantes para este trabalho: a impessoalidade nas relações e a previsibilidade do seu
funcionamento.
A burocracia
4
estendeu-se do processo industrial para a esfera do Estado (sistema
judiciário, escolar, penitenciário, hospitalar, sindical, partidário, etc...), estabelecendo-se
nas instituições modernas respaldadas nos critério de previsibilidade e possibilidade de
cálculo. Para tanto, cria mecanismos de controle micro e macro estruturais, que garantem o
4
A definição de Max Weber de dominação burocrática parece pertinente neste contexto. Para ele o ideal na
dominação burocrática: “(...) procede sine ira et studio, ou seja, sem a menor influência de motivos pessoais
e sem influências sentimentais de espécie alguma, livre de arbítrio e caprichos e, particularmente, ‘sem
consideração da pessoa’, de modo estritamente formal segundo regras racionais ou, quando elas falham,
segundo pontos de vista de conveniência ‘objetiva’. O dever de obediência está graduado numa hierarquia de
cargos, com subordinação dos inferiores aos superiores, e dispõe de um direito de queixa regulamentado. A
base do funcionamento técnico é a disciplina do serviço” . In: WEBER, Max. Max Weber. (Sociologia). São
Paulo: Ática, 1997, p. 129.
26
funcionamento da sociedade de acordo com as normas, sendo que não se pode conhecer o
“rosto do poder”, que é diluído nas hierarquias.
A impessoalidade dos participantes na busca da eficiência da organização e a frieza
dos comportamentos pré-elaborados levam a uma fragmentação do indivíduo, que além de
perder o controle sobre o processo produtivo, é impossibilitado de se expressar
emocionalmente em tal ambiente, moldando-se cada vez mais à imagem da máquina. A
despersonalização do indivíduo é compensada com a identificação da personalidade da
organização à qual pertence, seja a empresa, o partido, o sindicato, a escola e a associação
assistencialista, entre outras. A identificão com a organização conduz o sujeito a uma
passividade que o torna alvo fácil de ideologias de caráter fascista. Nas palavras de Fromm
(1967):
Se considerarmos apenas as necessidades econômicas, no que toca às
pessoas normais’, se não virmos o sofrimento inconsciente da pessoa
comum automatizada, então não conseguiremos ver o perigo que ameaça
nossa cultura em sua base humana: a presteza para aceitar qualquer
ideologia e qualquer chefe, desde que prometa agitação e ofereça uma
estrutura política e símbolos que supostamente dêem significado e ordem
à vida do indivíduo. O desespero do autômato humano é solo fértil para
os fins políticos do fascismo (FROMM, 1967, p. 213).
Depois de um dia de trabalho rotineiro, reduzido a gestos repetitivos e
esteriotipados, em que suas capacidades corporais foram sugadas ao máximo pelas cnicas
de gerenciamento da produção, o trabalhador se depara na sua casa ou no lazer, com uma
espécie de cultura veiculada amplamente pelos meios de comunicação de massa que irá se
perpetuar especialmente enquanto distração. Diante de um estresse corporal e mental,
deflagrado pelas pressões e exigências da produção, o trabalhador é facilmente conduzido
a consumir um produto cultural com a finalidade de fazê-lo apenas distrair-se, fugir de um
cotidiano desgastante oriundo do processo produtivo rotineiro e fragmentado.
A sociedade industrial, na acepção de Adorno (1994), além de explorar o
trabalhador no próprio ambiente produtivo, produziu um tipo de cultura em grande escala e
com finalidades adaptativas, visando preencher e administrar o seu tempo livre voltado à
produção. Ao instrumentalizar o conhecimento, essa forma de organização social não fez
outra coisa senão adaptar a cultura do espírito ao mercado.
Deste modo, a produção cultural na sociedade industrial passou, como em todas as
esferas da vida social, a ser pautada pelo lucro, transformando-se em mercadoria. O
conceito de mercadoria refere-se aos produtos quando o processo produtivo é organizado
27
por meio da troca. Todo produto é propriedade privada de agentes particulares, tem o seu
valor que lhe é atribuído socialmente e pode ser trocado por outros produtos.
A indústria cultural caracteriza-se pela apropriação dos bens culturais numa
perspectiva mercantil, reduzindo os níveis de consciência crítica e de formação social na
atualidade. Na acepção dos autores frankfurtianos, conforme esclarece Cohn (1994), o
termo indústria cultural seria mais adequado em relação ao de cultura de massa. Esta
diferenciação demarca por sua vez, uma cultura oriunda das massas como expressão de sua
identidade e uma outra criada para as massas com o intuito de direcionar ideologicamente
os seus procedimentos, questão que será aprofundada posteriormente.
28
2.2. Das Promessas da Razão
No estágio atual de desenvolvimento da sociedade capitalista, caracterizada por um
sofisticado processo de produção e alto índice de consumo, os bens culturais (produzidos
socialmente) assumem também a forma de mercadoria. Daí a necessidade da discussão de
alguns processos que envolvem a formação cultural na atualidade, mais especificamente
num contexto histórico em que a arte e também os bens culturais são reduzidos à condição
de mercadoria.
Esse mecanismo em que a cultura é apropriada exclusivamente com finalidades
mercantis, descaracterizando-se da sua dimensão cultural, é subsumida aos princípios da
indústria cultural. Esta, por sua vez, é resultado do predomínio da racionalidade técnica,
constituída no processo do desenvolvimento da sociedade industrial.
A lógica da sociedade industrial não se restringiu à esfera da produção e das
transformações tecnológicas. O conjunto ideológico de suporte do sistema capitalista,
como se apresenta contemporaneamente, formou-se de uma série de concepções advindas
das mais diversas esferas da vida social como a ciência, economia, política e cultura.
O conceito de instria cultural, formulado pelos filósofos da Teoria Crítica da
Sociedade
5
, Horkheimer e Adorno, como demonstrado, é compreendido através dos
desdobramentos sofridos pelo sistema capitalista nos dias atuais num momento de
predominância do capitalismo tardio. Para os filósofos da Escola de Frankfurt a razão
iluminista, que tinha como meta buscar através da razão a liberdade humana, irá
desenvolver-se intencionalmente enquanto racionalidade técnica.
Essa racionalidade pragmática, a serviço da produtividade no capitalismo, foi se
ampliando da fábrica para todas as esferas da vida social, onde o domínio capitalista foi se
perpetuando. Instaurou-se a dominação do homem pela cnica, iniciada pelo advento da
maquinaria e se estendendo socialmente através de mecanismos macro-estruturais de
imposição da ideologia do lucro. Foi nesse contexto que a indústria cultural se impôs como
um sucedâneo cultural comprometido ideologicamente.
5
No texto “Adorno e a teoria crítica da sociedade”, Gabriel Cohn esclarece que a Teoria Crítica da Sociedade
procura desenvolver o conjunto de pesquisas interdisciplinares que atuam tanto no plano da interpretação
teórico-filosófica, como também no plano da investigação empírica, onde o cerne das questões concentra-se
na crítica racional da razão burguesa. Surgiu a partir do projeto inicial desenvolvido por Max Horkheimer e
apresentado na famosa conferência de abertura da instalação da Escola de Frankfurt . Cf. COHN, Gabriel.
(org.). Theodor Adorno. (Sociologia). São Paulo: Ática , 1994.
29
Os conceitos de razão e progresso amplamente defendidos pelo Iluminismo
(Aufklärung), vão transformar-se, nas considerações de Horkheimer e Adorno (1999), com
o amadurecimento da sociedade industrial, justamente na sua antítese. Esse processo a que
se submeteu o Iluminismo a serviço da economia burguesa acabou por transformá-lo num
irracionalismo, ou seja, justamente naquilo que julgava ter eliminado: o mito. Da mesma
forma, a promessa de progresso social se caracterizada pelos filósofos frankfurtianos
como uma inevitável regressão, devido ao desenvolvimento da técnica pautada na
dominação: primeiro da natureza, posteriormente da própria espécie humana.
Em O Conceito de Esclarecimento, primeiro capítulo do livro Dialética do
Esclarecimento, publicado no ano de 1947, Horkheimer e Adorno não definem
especificamente o Iluminismo como um movimento do século XVIII, conforme foi
conceituado no capítulo anterior deste trabalho: “movimento filosófico do século XVIII
que se caracterizava pela confiança no progresso e na razão, pelo desafio à tradição e à
autoridade e pelo incentivo à liberdade de pensamento (FERREIRA, 1999, p.905).
A conceituação de “esclarecimento formulada por Horkheimer e Adorno, na
acepção de Luiz Costa Lima
6
é compreendida sob a abrangência de três fases. A primeira,
muito ampla, em que é “um projeto caracterizado pela vontade de domínio do homem,
assim como de redimir-se do temor das coisas. Como tal, o Iluminismo confunde-se com a
vontade de poder sobre a resistência da Natureza” (LIMA, 1990, p.157).
É na sua segunda fase, conforme o referido autor, que o projeto iluminista vai se
situar no movimento específico do século XVIII e recebe o nome de pensamento liberal.
Na última fase é demonstrada a degeneresncia do ideal do iluminismo liberal, no
contexto do capitalismo monopolista e do surgimento da instria cultural.
O iluminismo pré-liberal remonta ao próprio desenvolvimento da civilização. O
saber e a apreensão das leis que regem o mundo sempre estiveram a serviço do domínio do
homem sobre a natureza, muito antes da formação da sociedade capitalista. Diante das
forças indomáveis e inomináveis que o circundava, desde cedo, o homem primitivo
desenvolveu rituais mágicos
7
enquanto tentativa de dominação do incompreensível.
6
Essa afirmação encontra-se no breve comentário introdutório de Luiz Costa Lima para o texto Industria
Cultural – O Iluminismo como mistificação de massas”, de Horkheimer em parceria com Adorno. Cf.
ADORNO, Theodor W. et alii. Teoria da cultura de massa. Introdução, comentários e selão de Luiz
Costa Lima, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990.
7
O mito queria relatar, denominar, dizer a origem, mas também expor, fixar, explicar. Com o registro e a
coleção dos mitos , essa tendência reforçou-se. Muito cedo deixaram de ser um relato, para se tornarem uma
30
Na Antigüidade clássica, Platão e Aristóteles consideravam o mito como um
produto inferior ou deformado da atividade intelectual. A ele era atribuída, no máximo,
‘verossimilhança’, enquanto a ‘verdade’ pertencia aos produtos genuínos do intelecto.
(ABBAGNANO, 2000, p. 673).
Essa vontade de domínio, que se funde com a necessidade da perpetuação da
espécie, leva o homem a enxergar a natureza como um imenso inimigo que deve ser
vencido a qualquer custo, se não quiser sucumbir diante do seu poder.
No decorrer do século XVIII, o iluminismo tomou o aspecto específico do
pensamento liberal, respaldado pelo desenvolvimento da ciência moderna. Neste momento
é inaugurada a pretensa vitória do ser humano sobre as forças naturais, que passam como
nunca na história, a ser consideradas como algo separado do homem: como coisa.
a partir do século XVII a ciência moderna adquiria a capacidade de intervenção
em processos do mundo físico, através de meios teóricos. Com a Revolução Industrial,
cerca de duzentos anos depois o conhecimento se transformou em tecnologia. A iia de
tecnologia refere-se à transformação do ambiente natural, mediatizada por teorias, com
objetivos econômicos bem definidos a alcançar (OLIVEIRA; ALBUQUERQUE, 1981).
A razão, sob o domínio do liberalismo, instaurou por parte do homem um
sentimento de assenhoramento da natureza para a satisfação de seus fins. Esse domínio,
essa coisificação do mundo natural, se estendeu contudo ao domínio da própria espécie,
com a sujeição do próprio homem.
O saber que é poder não conhece nenhuma barreira, nem na escravização
da criatura, nem na complacência em face dos senhores do mundo. Do
mesmo modo que está a serviço de todos os fins da economia burguesa
na fábrica e no campo de batalha, assim também está à disposição dos
empresários, não importa sua origem (...) O que os homens querem
aprender da natureza é como empregá-la para dominar completamente a
ela e aos homens. Nada mais importa. Sem a menor consideração
consigo mesmo, o esclarecimento eliminou com seu cautério o último
resto de sua própria autoconsciência (HORKHEIMER; ADORNO, 1985,
p. 20).
O desenvolvimento de um determinado conceito de razão, orientado à finalidade
burguesa da produção, foi gradativamente deixando para trás aquelas intenções primeiras
do Iluminismo, que se pautavam ainda numa ética na qual a busca da verdade objetivava o
doutrina”. Cf. HORKHEIMER, Max & ADORNO, Theodor W. Dialética do Esclarecimento. Tradução,
Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1985.
31
alcance da igualdade e da liberdade humana. A promessa iluminista visava livrar os
homens do medo do desconhecido, através do conhecimento da natureza. Visava ainda o
aperfeoamento moral e a emancipação política, ambos obtidos por uma adequada
utilização da razão a serviço do progresso.
Entretanto, é no abandono a seus pressupostos críticos, que o Iluminismo entra em
decadência, pois renuncia a si mesmo. Nesta abordagem, a razão se enclausura num
sistema filosófico em que impera o pragmatismo, para o qual o próprio conceito de
verdade deixa de ter valor. “O que importa o é aquela satisfação que, para os homens, se
chama verdade”, mas a operation”, o procedimento eficaz” (HORKHEIMER;
ADORNO, 1985, p. 20).
Elege-se uma forma de razão em que a lógica analítica e calculadora deve ser o
elemento dominante. Tudo o que não se ajusta às medidas de calculabilidade e da utilidade
preconizados pela razão burguesa, é renegado como mito, ou na melhor das hipóteses, é
desterrado para o domínio da poesia. Devido a este proceder é que os filósofos
frankfurtianos afirmam que o iluminismo é totalitário, haja vista que classifica como
integrante do reino da não comprovação científica, tudo o que não se enquadra nos moldes
matemáticos e mercantis de apreensão da realidade.
A razão utilitarista e mecanicista se constitui a partir do julgamento de que extirpou
definitivamente com o mito, quando considera não existir na matéria nenhuma
propriedade oculta. Agora, diferentemente do mito, não existe nenhuma força mágica e
ilusória que governe a natureza. O próprio mito é reduzido unicamente a uma projeção do
homem sobre as forças naturais, ou seja, o mito se insere no universo da subjetividade
humana, bem longe dos princípios lógicos, com seus critérios objetivos de verdade.
Horkheirmer e Adorno afirmam que para o esclarecimento:
(...) o elemento básico do mito foi sempre o antropomorfismo, a projeção
do subjetivo na natureza. O sobrenatural, o espírito e os demônios seriam
as imagens especulares dos homens que se deixam amedrontar pelo
natural. Todas as figuras míticas podem se reduzir, segundo o
esclarecimento, ao mesmo denominador, a saber, ao sujeito
(HORKHEIMER; ADORNO, 1985, p.22).
Tal mecanismo desencadeia com sua forma de conhecimento um processo de
desencantamento do mundo, onde aquilo que se vem a descobrir já está anteriormente de
forma implícita descoberto. A fórmula antevê o resultado da equação. O desafio que
32
essa forma de racionalidade se impõe é principalmente o de transformar o existente
dominado em mais lucro.
No entanto, a razão iluminista, com sua promessa de destruição do mito através da
luminosidade científica - do conhecimento racional -, principalmente calcado numa visão
instrumental e matematizada do mundo, “ao combater de modo irrefletido o mito, acaba
convertendo-se ela própria em mito, sem deixar de apresentar-se como razão”, segundo
comentário de Cohn (1994, p. 15).
O mito (o sobrenatural), que se corporifica enquanto medo do homem no
enfrentamento do mundo natural, resultado da falta de conhecimento, acaba por absorver a
própria razão burguesa. Nesse aspecto, essa razão se trai ao cair justamente na armadilha
do medo. Ela teme “refletir a verdade da cumplicidade desse conceito de pensamento com
as instituições às quais se une e com as formas históricas que a produziram” (FABIANO,
1999, p. 18).
Ainda para Fabiano (1999), essas formas históricas às quais a razão iluminista
acabou por se atrelar nada mais são do que aquilo que justamente ela procura ocultar: o seu
envolvimento na produção e reprodução da ordem burguesa. Para atingir seus fins, o
projeto elegeu enquanto método privilegiado de explicão da realidade, o procedimento
matemático
8
: o número se tornou o cânone do iluminismo.
Quando, no procedimento matemático, o desconhecido se torna a
incógnita de uma equação, ele se caracterizado por isso mesmo
como algo de há muito conhecido, antes mesmo que se introduza
qualquer valor. A natureza é, antes e depois da teoria quântica, o que
dever ser apreendido matematicamente. Até mesmo aquilo que não se
deixa compreender, a indissolubilidade e a irracionalidade, é cercado
pro teoremas matemáticos (HORKHEIMER; ADORNO, 1985, p. 37).
Ao se proclamar como verdade definitiva objetivando o progresso, a razão acaba
se tornando regressão, quando a técnica, ao invés de estar a serviço do bem-estar do ser
humano, cristaliza-se como elemento que propicia sua própria dominação. A idéia
baconiana do conhecimento com o objetivo do bem-estar do homem, desencadeia um ideal
8
O significado de método matemático refere-se ao fato de que ele deve se constituir numa “mathesis
universalis”. Esta expressão remonta ao termo grego ta mathemaque quer dizer “conhecimento completo,
perfeito e inteiramente dominado pela inteligência”. A mathesis universalisrefere-se também a exigência
do método ser pautado nos elementos fundamentais de todo conhecimento matemático: a ordem e a medida.
Cf. CHAUÍ, Marilena. Filosofia moderna. In: CHAUÍ, Marilena. Primeira Filosofia Lições Introdutórias.
o Paulo, Brasiliense, 1987, p. 77.
33
de ciência utilitarista, colocando o homem a serviço do aperfeiçoamento técnico da
produção. O pensamento lógico, conforme Fromm (1969, p. 56) “não é racional se for
meramente lógico e não for orientado pelo interesse pela vida e pela investigação do
processo total da vida em toda a sua solidez e com todas as suas contradições”.
Segundo o entendimento de Arantes (1991) o objetivo do projeto iluminista era o
de trazer ao homem a libertação do medo gerado pelo mundo da magia e do medo. Através
da razão iluminista os homens se tornariam senhores e atingiriam essa finalidade através
do desenvolvimento da ciência e da tecnologia. O homem teria o domínio sobre a ciência e
a cnica e a utilizaria ao seu favor. “Mas ao invés disso, liberto do medo mágico, o
homem tornou-se vítima de novo engodo: o progresso da dominação técnica. Esse
progresso transformou-se em poderoso instrumento utilizado pela indústria cultural para
conter o desenvolvimento da consciênci a das massas” (ARANTES, 1991, p. IX).
O desenvolvimento da ciência aplicada ao domínio da natureza e à produção
capitalista resultou, num avanço tecnológico e científico tamanho, que nos dias de hoje
experimenta-se uma sociedade regida pela máquina, com elevados patamares de
administração e burocratização envolvendo todos os setores da vida humana (FABIANO,
1999).
Entretanto, não se pode negar que os avanços tecnológicos e científicos
propiciaram ao homem maior conforto e bem-estar. A técnica em si não representa algo
nefasto, mas sim a sua apropriação dentro das determinantes sociais em que ela se encontra
envolvida atualmente. O desenvolvimento da técnica sendo canalizado e norteado para os
interesses burgueses de lucro e dominação
9
, se transforma em controle do próprio homem.
Horkheimer e Adorno (1985) demonstram que:
(...) o terreno no qual a técnica conquista seu poder sobre a sociedade é o
poder que os economicamente mais fortes exercem sobre a sociedade. A
racionalidade técnica hoje é a racionalidade da própria dominação. Ela é
o caráter compulsivo da sociedade alienada de si mesma. Os automóveis,
as bombas e o cinema mantêm coeso o todo e chega o momento em que
seu elemento nivelador mostra sua força na própria injustiça à qual
servia
10
(HORKHEIMER; ADORNO, 1985, p.114).
9
Para Weber a dominação é a probabilidade de encontrar obediência a um determinado mandato” e
“costuma apoiar-se internamente em bases jurídicas, nas quais se funda a sua ‘legitimidade’ . Cf. Weber,
Max. Max Weber (Sociologia). São Paulo: Ática, 1997, p.128).
10
“Se, em nossa época, a tendência social objetiva se encarna nas obscuras intenções subjetivas dos diretores
gerais, estas são basicamente as dos setores mais poderosos da indústria (...) A dependência em que se
encontra a mais poderosa sociedade radiofônica em face da indústria elétrica, ou a do cinema relativamente
aos bancos, caracteriza a esfera inteira, cujos setores individuais por sua vez se interpenetram numa confusa
34
Se o conhecimento técnico possibilitou ao homem um domínio cada vez maior do
mundo natural, ao mesmo tempo passou a ser utilizado com objetivo ideológico de
perpetuação da sociedade capitalista, visando a exploração e a sujeição do próprio homem.
Nesse contexto a indústria cultural é legitimada, impondo uma visão de mundo de
afirmação da ordem burguesa de maneira tão astuta, que as formas de resistência do
indivíduo transformam-se em passividade, numa concordância aparentemente livre e
espontânea para com o aparelho de dominação social. Nas palavras de LIMA (1990, p.
158) “caracteriza-se a etapa de degenerescência iluminista pela capacidade de o sistema
instituído retirar a virulência dos fatores que o negam e contestam, sem obrigatoriamente
ter de recorrer à repressão física contra o adversário”.
A apropriação dos meios de divulgação em massa (como o cinema, o rádio e a
televisão, entre outros), voltada aos interesses do sistema econômico dominante, tem como
objetivo de acordo com Duarte (2001, p. 32) “ampliar tanto quanto possível a adesão
voluntária das pessoas ao sistema de economia de mercado”.
trama econômica. Tudo está tão estreitamente justaposto que a concentração do espírito atinge um volume tal
que lhe permite passar por cima da linha de demarcação entre as diferentes firmas e setores técnicos. A
unidade implacável da indústria cultural atesta a unidade em formação da política”. Cf. HORKHEIMER,
Max & ADORNO, Theodor W. Dialética do Esclarecimento. Tradução, Guido Antonio de Almeida. Rio de
Janeiro, Jorge Zahar, 1985, p. 115-6).
35
2.3. A Cultura Industrializada
Entre o final do século XIX e o início do século XX foram criadas todas as
manifestações clássicas da indústria cultural
11
. Primeiramente, surgiu o cinema, depois o
rádio e posteriormente a televisão, por volta da cada de 50, que combinava os dois,
através da transmissão de som e imagens. O desenvolvimento tecnológico desses meios
iria contribuir para a consolidação de uma nova ordem com a entrada do capitalismo em
sua fase monopolista (DUARTE, 2001, p. 31).
Os novos meios (cinema, rádio e televisão), apropriados pelo sistema econômico,
apresentavam dois objetivos principais de acordo com o entendimento de Duarte (2001, p.
32). O primeiro é a estimulação e manutenção do consumo, através da propaganda
difundida massivamente por esses novos meios. Visava também à compra de novos
produtos, a partir da “criação artificial de novas necessidades mediante a penetração e a
quase onipresea dos novos veículos de comunicação”.
O segundo objetivo da indústria cultural era fazer com que as pessoas aderissem
voluntariamente ao sistema de economia de mercado. Esse objetivo se concretizava pela
“manipulação planificada de conteúdos profundamente enraizados em sua economia
psíquica” (DUARTE, 2001, p. 32).
Principalmente a partir da busca desses dois objetivos, a sociedade industrial optou
por uma concepção de cultura que tomou o formato de ideologia mercantilista de
sustentação de seus pressupostos. O aparato ideológico representado pela indústria cultural
apresenta uma determinada espécie de cultura comprometida com mecanismos de
adaptação e controle criados para a consolidação do ambiente industrial extensivo ao plano
mais geral da sociedade.
Discutindo Tocqueville, Horkheimer e Adorno, no texto A Indústria Cultural o
Esclarecimento como mistificação das massas, observam que nesta perspectiva a análise
feita pelo fisofo foi confirmada:
Sob o monopólio privado da cultura ‘a tirania deixa o corpo livre e vai
direto à alma. O mestre não diz mais: você pensará como eu ou
morrerás. Ele diz: você é livre de não pensar como eu: sua vida, seus
11
Além de cinema, rádio e televisão podem ser incluídos na indústria cultural o teatro, o disco, literatura
best-seller, histórias em quadrinhos, fotonovelas, fascículos, entre outros. Cf. SODRÉ, Muniz. Best-Seller : a
literatura de mercado. São Paulo: Ática, 1988, p. 24.
36
bens , tudo você há de conservar, mas de hoje em diante você será um
estrangeiro ente nós’” (HORKHEIMER; ADORNO, 1985, p. 125).
Para tanto é proposto um pacote cultural que, nivelando e banalizando os processos
de produção e veiculação de uma cultura mais consistente esteticamente, deturpa as
possibilidades da apreensão objetiva das contradições sociais. Com a desarticulação da
cultura consistente, historicamente produzida, devido a sua transformação tão somente em
mercadoria, a instria cultural oferece uma formação cultural, através dos produtos
veiculados pela mídia, que busca submeter os indivíduos à sua administração ideológica.
Dentre as características da indústria cultural, pode-se citar a harmonia que cada
setor possui entre si, configurando um aspecto de homogeneidade ao sistema. Os filmes, as
rádios, televisões, jornais e revistas, entre outros, apresentam uma manifestação estética
onde impera a semelhança, o sempre igual. A indústria de produção da cultura forja uma
excessiva padronização e planificação de seus produtos, tendo em vista a abrangência da
população que atinge. Daí o clima de semelhança entre os vários setores, criando num todo
um aparato ideológico onde as diferenças individuais são assimiladas a partir do
enquadramento do sujeito em um de seus vários níveis de consumo.
A diferença entre a marca X e a marca Y (ou a emissora X e a emissora Y) apesar
de no fundo não apresentarem praticamente diferença alguma, serve para conferir ao
consumidor um ilusório poder de escolha, sendo que aquilo que ele escolhe, de antemão
está definido pelos experts da indústria. O consumidor não é forçado a adquirir
determinado produto, mas o faz por sua própria vontade, impelido pelas técnicas refinadas
de marketing e propaganda que o atingem e o conquistam em sua esfera mais íntima: sua
economia psíquica. Toda a classificação que o consumidor venha a fazer, o esquematismo
da produção o faz antecipadamente.
Os consumidores, para a instria cultural, o classificados e organizados com a
finalidade de padronização. A própria diversidade na oferta dos produtos, que atinge a
todos numa sociedade em que tudo gira em torno do motor da troca mercantil, visa em
última insncia o enquadramento do indivíduo. Como analisam Horkheimer e Adorno
(1985, p. 116) “cada qual deve se comportar, como que espontaneamente, em
conformidade com seu level [nível], previamente caracterizado por certos sinais, e escolher
a categoria dos produtos de massa fabricada para seu tipo”.
A indústria cultural apresenta-se ao seu público e o faz acreditar nisto, como sendo
democrática. O seu discurso mistificador garante que tudo aquilo que ela oferece é
37
democrático, pois praticamente todos podem usufruir de suas mercadorias: a televisão e o
rádio são gratuitos e o ingresso para os filmes é acessível
12
. Mas não pára por aí: ela
também garante que seus produtos são feitos para atender as necessidades dos seus
clientes, ou melhor, as necessidades culturais das massas. Por este fato é que ela é aceita
praticamente sem oposição, criando um sistema de identificação entre os dominados e o
poder que os domina. Por isso, o consumidor apenas ao comprar um produto da indústria
cultural consome o sistema como um todo, pois a ideologia oficial é difundida em todos os
setores da sociedade.
Conforme menciona Adorno (1994) no texto A indústria cultural o ser humano é
encarado como objeto e não como sujeito na sua relação com os produtos da indústria
cultural:
O consumidor não é rei, como a indústria cultural gostaria de fazer crer,
ele o é o sujeito dessa indústria, mas seu objeto. O termo mass media,
que se introduziu para designar a indústria cultural, desvia, desde logo, a
ênfase para aquilo que é inofensivo. Não se trata nem das massas em
primeiro lugar, nem das técnicas de comunicação como tais, mas do
espírito que lhe é insuflado, a saber, a voz de seu senhor (ADORNO,
1994, p. 93).
Justificando seu autoritarismo a partir do desejo das massas, a indústria cultural
produz e reproduz uma banalização dos bens culturais, submetendo-os aos intentos do
consumo e da afirmação da ordem burguesa. Ao vender ao consumidor a falsa idéia de que
está sendo reconhecido e integrado socialmente, mascara o fato de que no fundo ele está
sendo “administrado na orientação dos seus desejos e atitudes” (FABIANO;
PALANGANA, 2001, p.234).
Na época em que os filósofos frankfurtianos escreveram a Dialética do
Esclarecimento, em 1947, a televisão ainda apenas começava. Eles atestam e prevêem que
a banalização da cultura iria se agravar com o surgimento da televisão e que os filmes
seriam fornecidos em domicílio, como o rádio. A televisão, síntese entre dio e cinema
“cujas possibilidades ilimitadas prometem aumentar o empobrecimento dos materiais
12
“Por cinqüenta centavos vê-se o filme de milhões de dólares; por dez recebe-se a goma de mascar por trás
da qual se encontra toda a riqueza do mundo e cuja venda serve para que esta cresça ainda mais (...) As
‘melhores orquestras’ (que não o são) são entregues grátis a domicílio”. Cf. HORKHEIMER, Max &
ADORNO, Theodor W. Dialética do Esclarecimento. Tradução, Guido Antonio de Almeida. Rio de
Janeiro, Jorge Zahar, 1985, p. 146.
38
estéticos a tal ponto que a identidade mal disfarçada dos produtos da indústria cultural
pode vir a triunfar abertamente já amanhã” (HORKHEIMER; ADORNO, 1985, p. 116).
A indústria cultural perpetua-se pela repetição, automatizando a percepção. Os
filmes como também os outros produtos culturais que o indivíduo deve conhecer são
automatizados devido à grande familiaridade existente entre eles: em todos os produtos
muita semelhança e proximidade entre os sinais e as provas de atenção requeridas. A
conseqüência deste processo de homogeneização da cultura é a diminuição do nível de
reflexão dos indivíduos, que sofrem os impactos das seqüências de sons e imagens, num
ritmo alucinante em que a própria capacidade de imaginação é atrofiada, perdendo a
espontaneidade.
Nas palavras de Horkheimer e Adorno (1985, p.119), quando discorrendo sobre as
conseqüências trazidas pelo filmes da época para a formação cultural do indivíduo:
São feitos de tal forma que sua apreensão adequada exige, é verdade,
presteza, dom de observação, conhecimentos específicos, mas também
de tal sorte que proíbem a atividade intelectual do espectador, se ele não
quiser perder os fatos que desfilam velozmente diante de seus olhos. O
esforça, contudo, está tão profundamente inculcado que não precisa ser
atualizado em cada caso para recalcar a imaginação.
Toda a indústria cultural, em suas manifestações particulares, transmite e forja uma
concepção de homem e sociedade que é pré-concebida e produzida antecipadamente.
Tudo visa a uma reprodução tamanha de sua ideologia, que toda possibilidade de uma
ampliação formativa do homem fica comprometida por seus procedimentos. Instaura-se
um clima onde a realidade artificialmente construída e demonstrada no vídeo é tida como
sendo a verdadeira, enfatizado-se aquilo que convém ao sistema ao mesmo tempo em que
suprime da programação todo questionamento sério sobre os seus pressupostos.
A necessidade de padronização dos desejos e das necessidades, que remete à
possibilidade de maior controle social e busca da eliminação do que é dissonante, confere
ao sistema um aspecto de totalitarismo. O elemento totalitário reside na busca da nivelação
das consciências, sobrepujando o particular pela idéia do geral. O particular não mais se
distingue da totalidade da qual faz parte, mas se identifica e mesmo se iguala ao geral.
A anulação da tensão entre o particular e o universal ocorre, como demonstram os
filósofos da Teoria Crítica, na lógica interna dos produtos da indústria cultural:
39
Eis por que o estilo da indústria cultural, que não tem mais de se pôr à
prova em nenhum material refratário, é ao mesmo tempo a negação do
estilo. A reconciliação do universal e do particular, da regra e da
pretensão específica do objeto, que é a única coisa que pode dar
substância ao estilo, é vazia, porque não chega mais a haver uma tensão
entre os pólos: os extremos que se tocam passaram a uma turva
identidade, o universal pode substituir o particular e vice-versa.
HORKHEIMER; ADORNO (1985, p. 122).
O indivíduo que apresenta um comportamento não condizente com os padrões
sociais (de beleza, de corpo, de status) logo é tido como persona non grata e é enquadrado
em um esteriótipo forçado que o qualifica diante dos outros de provocar a aversão ou se
tornar um elemento folclórico digno de chacotas. A divergência social torna-se, portanto,
um estigma que é conferido ao indivíduo.
A banalização dos bens culturais, tornados bens de consumo, se verifica no próprio
enfraquecimento da linguagem inerente aos seus produtos. Toda manifestação cultural
deve passar pelo crivo do linguajar socialmente aceito pela média social”. Daí o
reducionismo que se pela fixação impositiva de um “idioma da simplicidade”, tomado
inclusive enquanto critério de competência. O signo lingüístico, ferramenta histórica para o
homem denominar a si mesmo e ao seu meio é reduzido consideravelmente em sua
capacidade de representação da realidade, pois deve ser controlado pela linguagem
cotidiana.
Quanto mais a linguagem se resolve em comunicação, nas palavras de Horkheimer
e Adorno (1985, p. 153) “quanto mais as palavras se convertem de veículos substanciais do
significado em signos destituídos de qualidade, quanto maior a pureza e a transparência
com que transmitem o que se quer dizer, mais impenetráveis elas se tornam”.
A propaganda totalitária, iniciada com o nazismo, tinha o poder de em pouco tempo
determinar o próprio linguajar da população, através da repetição dos slogans próprios ao
sistema - o rádio se tornava a boca do Führer. A indústria da cultura serve-se praticamente
da mesma estratégia ao fazer a propaganda de determinada marca. A contínua repetição de
seus slogans comerciais confere ao consumidor um caráter de determinação e ordem. “A
repetição cega e rapidamente difundida de palavras designadas liga a publicidade à palavra
de ordem totalitária” (HORKHEIMER; ADORNO, 1985, p. 155).
Mas isso não se instaura somente numa propaganda específica de um produto. A
indústria cultural como um todo é propaganda. O filme, a novela, a música, transformam-
se em propaganda. O traje ou a forma de arrumar o cabelo da artista na nova novela da
40
rede Globo determina padrões de consumo. Como mencionam Horkheimer e Adorno, na
obra que vem se analisando, quando falam sobre as grandes revistas semanais americanas,
Life e Fortune. Nas revistas não distinção entre a parte redacional e os textos
publicitários. O artigo que sai da redação que deveria ter conteúdo, ocupa-se de futilidades
sobre a vida e a higiene pessoal dos astros de cinema. Os textos publicitários, que por outro
lado deveriam fazer a propaganda “em si” apresentam aspectos de objetividade e de
informação que ultrapassam em qualidade os textos da redação. Em suma, toda a revista e
por extensão toda a indústria cultural vive em torno da propaganda, seja ela
especificamente comercial, seja ela ideológica. Não é à toa que os programas televisivos de
conteúdo mais consistente são transmitidos nos horários mais inapropriados.
Determinando um clima de repetição e automatização do pensamento, a indústria
da cultura procura regular até mesmo a relação do indivíduo com o seu passado. À própria
imagem da máquina que gira em torno do seu pprio eixo, o sistema ideológico impõe ao
indivíduo a excluo do diferente, pela novidade. Tudo aquilo que é oferecido enquadra-se
dentro dos padrões de consumo.
A novidade no sistema, longe de conduzir a uma lógica de questionamento
responsável sobre suas conseqüências, se reduz à criação da mais nova mercadoria que
confere a si mesma o poder de resolução de inúmeros problemas (tudo é claro, dentro dos
mais altíssimos padrões de tecnologia, higiene e segurança). Como afirmam Horkheimer e
Adorno (1999, p.172), “só o triunfo universal do ritmo de produção e de reprodução
mecânica garante que nada mude, que nada surja que não possa ser enquadrado.
Acréscimos ao invenrio cultural experimentado, são perigosos e arriscados”. Os autores
ainda argumentam que:
A competência e a perícia são proscritas como arrogância de quem
se acha melhor do que os outros, quando a cultura distribui o
democraticamente seu privilégio a todos. Em face da trégua ideológica,
o conformismo dos compradores, assim como o descaramento da
produção que eles mantém em marcha, adquire boa consciência. Ele se
contenta com a reprodução do que é sempre o mesmo
(HORKHEIMER; ADORNO, 1985, p. 125-6).
A indústria cultural transforma os bens culturais e a própria arte em mercadoria,
que são nivelados e colocados lado a lado na vitrine juntamente com todos os outros bens
de consumo. A conseqüência inerente à lógica da mercadoria é a transformação dos bens
41
culturais em distração e divertimento
13
. O amusement, que representa todos os elementos
da indústria cultural, nega a arte esteticamente consistente aos indivíduos que se submetem
ao trabalho mecanizado. Oferece, por outro lado, ao trabalhador, o entretenimento, a pura
distração para que nos seus momentos de folga consiga aliviar a pressão de sua existência.
“O espectador não deve ter necessidade de nenhum pensamento próprio (...) toda ligação
lógica que pressuponha um esforço intelectual é escrupulosamente evitada”.
(HORKHEIMER; ADORNO, 1985, p.128).
Depois de uma jornada de trabalho repetitiva e cansativa, em que suas capacidades
corporais foram sugadas ao máximo pelas técnicas de gerenciamento da produção, o
trabalhador se depara na sua casa ou no lazer, com as técnicas da indústria da diversão a
fim de administrá-lo também nos seus momentos de folga para que esteja novamente em
condição de se submeter à sua rotina de trabalho mecanizado.
O conceito de distração remete entre outros significados ao antônimo de
concentração num determinado ponto. Vítima de um estresse corporal e mental diante das
pressões das exigências do trabalho (inclusive do perigo iminente de desemprego), o
trabalhador é facilmente conduzido a consumir um produto cultural que o faça distrair
fugir da vida cotidiana, desviar sua atenção dos problemas que inundam sua vida.
Por isso, a indústria cultural é o prolongamento da fábrica. A distração é ditada pela
repetição e pela previsibilidade, reproduzindo no plano imagético, o próprio mundo do
trabalho. Se no mundo da produção o homem muito fora substituído pela máquina, esta
o absorve também em todos os momentos de folga.
Mas, ao mesmo tempo, a mecanização atingiu um tal poderio sobre a
pessoa em seu lazer e sobre a sua felicidade, ela determina tão
profundamente a fabricação das mercadorias destinadas à diversão, que
esta pessoa o pode mais perceber outra coisa senão as cópias que
reproduzem o próprio processo de trabalho (HORKHEIMER;
ADORNO, 1985, p. 128).
Concebendo a cultura enquanto diversão o amusement efetua a fusão entre a arte
superior e a arte inferior. A arte superior é despotencializada de conteúdo, perdendo sua
13
O histórico da utilização do entretenimento para as massas remonta a primeira metade do século XIX. Nas
palavras de Sodré (1988, p. 10): “a palavra entretenimento é capital, pois define o público pico da roman-
feuilleton, produzido em massa a partir de 1830 na França (embora o gênero existisse na Inglaterra desde
1719, com a publicação do Robison Crusoe, de Daniel Defoe). Esta forma de contar histórias respondia à
necessidades do público urbano de amainar as agruras do dia-a-dia e projetar-se como herói de aventuras
insólitas”. Cf. SODRÉ, Muniz. Best-Seller : a literatura de mercado. São Paulo: Ática, 1988.
42
seriedade pela especulação do efeito. À arte inferior é conferida uma legitimidade falsa,
pois os seus elementos de resistência são domesticados. Nesse aspecto, a antítese deixa-se
conciliar, sendo que a arte leve funde-se com a arte séria. Ao fundi-las a indústria cultural
as descaracteriza.
O próprio princípio de divertimento, que é conferido à satisfação do interesse de
inumeráveis consumidores, hostiliza tudo o que pode representar mais do que o mero
divertimento. Enaltece-se o refinamento do aperfeiçoamento técnico em detrimento dos
conteúdos, que são repetitivos e esvaziados de significado. A formação cultural consistente
é reduzida ao estereótipo da simplificação dos valores e costumes. A tudo se confere a
necessidade de enquadramento, até mesmo aos movimentos de contestação do sistema, que
são assimilados e descaracterizados, perdendo seu vigor crítico. O divertimento almeja
mais do que a fuga à realidade perversa, ele busca extirpar com as formas de resistência
que possam ainda existir na realidade. Ele visa a impotência do sujeito. Horkheimer e
Adorno (1985, p. 127-8) enfatizam que o poder social:
(...) que os espectadores adoram é mais eficazmente afirmado na
omnipresença do estereótipo imposta pela cnica do que nas ideologias
rançosas pelas quais os conteúdos efêmeros devem responder (...) Como
a absorção de todas as tendências da indústria cultural na carne e no
sangue do público se realiza através do processo social inteiro, a
sobrevivência do mercado neste ramo atua favoravelmente sobre essas
tendências. A demanda ainda não foi substituída pela simples
obediência.
A indústria encara o ser humano enquanto objeto de lucro e reprodução do sistema.
Ela somente se interessa pelo indivíduo enquanto trabalhador ou consumidor. A partir do
enfoque que se apresenta, são traçadas estratégias cnicas para o domínio e a exploração
do homem. Enquanto trabalhador, ele deve vender sua força de trabalho, adaptar-se e se
submeter às normas burocráticas de produção (inclusive vestir a camisa da empresa).
Enquanto consumidor, é vendida ao homem a idéia de que é um astro, um ser que se
distingue dos demais. Confere-lhe uma idéia de poder, uma vez que adquira o produto
ideal para determinado fim: desde xampu e sabão em pó até carros e máquinas sofisticadas.
A indústria do consumo promove nos consumidores o estímulo ao desejo por seus
produtos. Abusando do erotismo, o amusement inflama no público o desejo de vivenciar as
maravilhosas imagens apresentadas, de participar do status quo do herói “bem sucedido”
da novela. No entanto, toda promessa de felicidade semelhante a uma ilha de fantasias, é
43
indefinidamente prorrogada. A indústria cultural não pode cumpri-las. Deve-se ficar
satisfeito apenas com a excitação, com o desejo de querer mais e mais... apenas consumir.
Os espetáculos da indústria cultural, com suas farsas e ilusórias promessas de eterna
satisfação promovem o consumo e auto-consumação do indivíduo devido à frustração
gerada pela privação da promessa. A promessa se torna engodo, como demonstram
Horkheimer e Adorno (1985, p. 132-3):
Oferecer-lhes algo e ao mesmo tempo privá-las disso é a mesma coisa. É
isso o que proporciona a indústria do erotismo. É justamente porque
nunca deve ter lugar, que tudo gira em torno do coito (...) O princípio
impõe que todas as necessidades lhe sejam apresentadas como podendo
ser satisfeitas pela indústria cultural, mas, por outro lado, que essas
necessidades sejam de antemão organizadas de tal sorte que ele se veja
nelas unicamente como um eterno consumidor, como objeto da indústria
cultural. Não somente ela lhe faz crer que o logro que ela oferece seria a
satisfação, mas a entender além disso que ele teria, seja como for, de
se arranjar com o que lhe é oferecido.
É nesse clima de descaracterização da cultura que a educação atual inevitavelmente,
queira ou não, deve confrontar-se. A automatizão de comportamentos pré-dispostos ao
consumo do obsoleto, leva ao enfraquecimento cultural da sociedade. Desse processo de
banalização da cultura resulta a procura por produtos de baixa exigência intelectual, onde
as grandes obras literárias, se não descartadas, não o mais lidas integralmente, mas o
apreendidas através da novela ou do filme, ou ainda nos resumos para vestibulandos. As
grandes obras representam num primeiro momento um grande obstáculo para uma mente
treinada para somente receber estímulos automáticos.
A apreensão de uma grande obra de arte exige um relacionamento ativo do sujeito
para com a obra e não simplesmente portar-se como um objeto passivo, como a indústria
cultura o encara. Esse tema será desenvolvido posteriormente.
44
1.4. A Produção de Indivíduos Semi-Formados Culturalmente
A concepção de cultura na sociedade industrial, conforme Fabiano (1999), se insere
no âmbito de um conjunto ideológico que privilegia a sustentação de um sistema social
determinado, o capitalismo. É um enunciado que revela uma cultura comprometida com os
mecanismos adaptativos e instrumentais gerados pelo desenvolvimento da sociedade
industrial.
Neste sentido, a instria cultural propõe uma espécie de cultura que é veiculada
como um pacote que nivela a informação cultural, ocultando ou mascarando a
possibilidade de apreensão objetiva das contradições sociais. Resultante desse tipo de (de)
formação cultural, o imaginário social compromete-se com os apelos veiculados pela
mídia (produtos da indústria cultural) debilitando a constituição da subjetividade que assim
se submete à administração ideologizada (FABIANO, 1999).
Todo este processo toma uma conotação ditatorial, através do controle opressivo e
da dominação. Ele é imposto, quase sem a possibilidade de resistência ou questionamento,
pois o sujeito vai gradativamente sendo minado no seu poder de compreensão objetiva da
realidade social. O sujeito vai se fragmentando de tal forma que acaba sendo atrelado às
táticas que fomentam o individualismo como sustentação do sistema social. Ele assume
como individualidade a hegemonia ideológica do pensamento dominante.
O impacto produzido no sujeito pela programação televisiva como também pela
manipulação imposta pela indústria cultural como um todo, faz com que ele passe a aceitar
como natural, o processo social de exclusão. Nas considerações de Fabiano (1999, p.27 e
28) “o mero processo identificatório dos conteúdos culturais veiculados pela indústria
cultural pauta-se por uma satisfação compensatória na busca da felicidade que é exortada”.
Outra intenção desse “pacote” (aglomerado) cultural oferecido pela mídia é abaixar
(limitar) o nível de exigência cultural do indivíduo ao nível da semicultura (Halbbildung).
Na acepção adorniana, a semicultura, opõe-se a uma formação consistente culturalmente,
formação esta que possibilita o pensamento reflexivo e com isso, a possibilidade de
práticas sociais emancipatórias. Esse tipo de cultura descaracteriza o processo civilizatório
inerente ao processo de formação cultural. O que viceja deste processo é uma concepção
de cultura como mera conformação e adaptação do sujeito à realidade. A lógica cultural
pragmática acaba “por convergir naquilo que Adorno chamou de semicultura, ou seja, a
difusão de uma produção simbólica onde predomina a dimensão instrumental voltada para
45
a adaptação e o conformismo, subjugando a dimensão emancipatória que se encontra
‘travada’, porémo desaparecida” (PUCCI, 1999, p. 58).
A semicultura (Halbbildung), opõe-se a uma formação consistente culturalmente,
representada pelo conceito de Bildung. Pucci (1999) afirma que o termo Bildung ,
traduzido como formação cultural, está relacionado ao conceito de cultura, do alemão
Kultur. Segundo o autor referido, ambos os termos seriam equivalentes:
que, enquanto Kultur tende a se aproximar das realizações humanas
objetivas, Bildung vincula-se mais às transformações decorrentes na
esfera subjetiva. Se qualquer forma, a fundamentação de ambos os
conceitos vincula-se à ascensão da classe burguesa alemã, orgulhosa de
ser a autora de produções culturais que idealizam um futuro bem
diferente daquele apoiado no elogias aos hábitos e costumes
‘civilizados’ e sustentados pela ociosa nobreza européia. O futuro
melhor seria aquele em que a formação cultural poderia ser objetivada,
de tal maneira que haveria um auto-reconhecimento do espírito, numa
miríade de manifestações culturais, a saber, a filosofia, a arte, a ciência,
a literatura e a música, entre outros (PUCCI, 1999, p.56).
Em sentido oposto a uma formação cultural consistente, a perspectiva de uma
cultura pela metade ou semicultura, inviabiliza a possibilidade do sujeito constituir-se
através da formação cultural. Esse projeto cultural alienante visa perpetuar a sociedade
burguesa. Com o nível cultural cada vez mais empobrecido o poder capitalista cria o
sujeito ideológico de que necessita para manter seus interesses econômicos.
A banalização cultural tem a intenção de limitar o nível de exigência cultural do
indivíduo. Na acepção adorniana, “a formação cultural agora se converte em uma
semiformação socializada, na onipresença do espírito alienado, que, segundo sua gênese e
seu sentido, não antecede à formação cultural, mas a sucede. Deste modo, tudo fica
aprisionado nas malhas da socialização(ADORNO, 1996, p. 389). Com isso o processo
de semiformação cultural inviabiliza o exercício do pensamento reflexivo, bem como
desestimula práticas sociais emancipatórias. Esse tipo de cultura descaracteriza o processo
civilizatório inerente ao processo de formação cultural.
Ao nivelar e banalizar os processos de produção e veiculação de uma cultura mais
consistente, a indústria cultural deturpa as possibilidades da apreensão objetiva das
contradições sociais. A desarticulação da cultura consistente, historicamente produzida,
compromete a formação cultural, que passa a buscar a submissão dos indivíduos a uma
administração ideológica. O pensamento reflexivo é possibilitado por uma verdadeira
formação cultural, decorrente de um contexto educacional crítico e responsável. Educar,
46
nesta perspectiva, é possibilitar ao indivíduo a percepção dos pilares que sustentam a
estrutura social. Essa concepção de educação leva o indivíduo a compreender as
determinantes que estão constituindo e determinando a atual forma de sociedade.
Uma formação cultural elaborada e crítica, é totalmente descartada no processo da
semiformação cultural. Esta milita contra a primeira, impossibilitando iniciativas ou
estratégias de emancipação humana, pois visa a um conformismo diante dos fatos dados,
compreendidos como naturais e não historicamente produzidos.
A programação em geral oferecida pela mídia, como por exemplo, a mídia
impressa, as novelas televisivas, filmes de linhagem comercial, programas de auditório,
programações musicais de sucesso induzido, enfim, todo esse aparato da indústria
cultural, tem assumido uma dimensão pedagógica significativa na formação cultural da
sociedade contemporânea. A escola, diante desse dado, se encontra num nível de
precariedade muito grande quando comparada ao poder que a mídia tem de atingir as
consciências, manipular as emoções e inculcar comportamentos estereotipados, através da
fantasia e do domínio técnico.
Nesse clima de reducionismo cultural, a educação atual confronta-se com a
indústria da cultura num jogo de forças desproporcional. O processo de semi-culturação
abaixa os níveis de exigência intelectual solicitados, levando mesmo a uma certa aversão a
conteúdos culturais mais consistentes.
É nesse contexto de extenso domínio e impacto da indústria cultural sobre a
formação da mentalidade contemporânea, que uma perda de interesse por grandes obras
literárias. Essa é a simples questão que se pretende discutir - o por que na atualidade existe
um desprestígio consensual em relação às obras de arte consistentes, mais especificamente
sobre a literatura , dita clássica
14
.
De sua função de emancipação do homem, como será abordado no próximo
capítulo, as grandes obras literárias representam num primeiro momento um grande
obstáculo para uma mente treinada para somente receber estímulos automáticos. O
conceito de cultura enquanto diversão e entretenimento se incompatibiliza com a busca de
apreeno de uma cultura consistente, o que em si mesmo exige esforço e rompimento por
parte do indivíduo em relação a um estrutura gigantesca de condicionamentos.
14
Esse termo não se refere ao período da história denominado Antiguidade Clássica. Os “romances
clássicos” remetem, no contexto deste estudo, aos romances de artistas verdadeiramente significativos ou de
nio universal.
47
A apreensão de uma grande obra de arte exige um relacionamento ativo do sujeito
para com a obra, instigando-o a uma superação de uma passividade condicionada pelos
produtos da indústria cultural. Importa então discutir o porquê no processo de formação
cultural, e na escola, locus privilegiado de apreensão dos conteúdos culturais
historicamente produzidos, a leitura dos romances clássicos perdeu o valor.
Na sociedade industrial onde tempo é dinheiro, contraditoriamente, as pessoas são
afetadas por inúmeras atividades para se obter o básico para o seu bem estar, nãotempo
para as coisas ditas espirituais. O prestígio das programações televisivas que conferem
importância especial aos fatos políticos (despotencializados de consciência política) e
esportivos, acompanham em proporção o desprestígio por uma arte de consistência
estética. Procurar compreender esse processo, ajuda na discussão de formas de reverter tal
quadro, pelo menos se chamar atenção ao problema.
Numa proposta de formação anterior (por exemplo, na década de 70) os alunos do
que se chama hoje de ensino médio gozavam de boa apreciação dos clássicos literários e
filosóficos. Mas esse processo escolar foi substituindo a leitura dos clássicos pelos livros
didáticos e pelas apostilas preparatórias dos cursinhos pré-vestibulares. O aspecto
pragmático de tal educação visa direcionar o aluno com o intuito de atingir a finalidade de
passar no vestibular ou ingressar num curso técnico, não oferecendo-lhe uma formação
cultural mais profunda. Opta-se pela quantidade em detrimento da qualidade.
Por sua vez, a arte enquanto potencial educativo assume uma dimensão
civilizatória, uma vez que possibilita a sublimação dos níveis instintivos do ser humano.
Assim considerada, ela permitiria a humanização através da reflexão sobre grandes
questões morais e éticas pertinentes ao gênero humano, além de amadurecer e ampliar o
seu horizonte perceptivo.
Esses elementos permitem afirmar que a obras de artistas verdadeiramente
significativos se distanciam muito daquilo que Adorno conceituou como semicultura. Mas
ao contrário, engendram em si mesmo, elementos para uma formação educativa crítica.
Educa, porque questiona o imediatismo determinado pela indústria cultural que confirma a
realidade da forma como ela é dada aparentemente.
48
3. ARTE E POTENCIAL FORMATIVO
3.1. Arte e Autonomia Social
A grande obra de arte
15
possibilita ao indivíduo uma formação cultural consistente.
Se a instria cultural produz a banalização dos bens culturais e com isso um
empobrecimento na formação do indivíduo, procura-se saber agora quais os benefícios que
a arte pode trazer ao indivíduo no sentido dele se constituir, ou seja, das possibilidades de
emancipação diante dos ditames coercitivos que o sistema político e ideológico de
dominação o assaltam.
Lukács (1992), no texto A arte como autoconsciência do desenvolvimento da
humanidade
16
, apresenta alguns elementos que justificam a eficácia que há nas grandes
obras de arte. A vivência propiciada pela apreensão da grande obra de arte provoca no
sujeito um enriquecimento da sua personalidade. No entanto, o se deve confundir tal
afirmação, qual seja, o enriquecimento da personalidade, com aquela formulada pelo
individualismo burguês que menospreza o contexto social, no qual é forjada a
personalidade, circunscrevendo-se a busca de transformação à esfera do sujeito (LUKÁCS,
1992).
É justamente a possibilidade de questionamento do individualismo que a grande
obra de arte possibilita, pois, através delas os homens podem reviver o presente e o
passado da humanidade, bem como as perspectivas que apontam para o seu futuro.
Contudo, essa vivência não se dá como algo exterior ao homem, enquanto apenas um
conhecimento ou uma informação mecânica “e sim como algo essencial para a própria
vida, como momento importante para a própria existência individual” (LUKÁCS, 1992, p.
196).
15
Goldmann (1973, p. 36) define desta forma uma grande obra de arte literária: “Toda grande obra literária
(...) comporta uma visão de mundo unitária que organiza seu universo. Para que essa obra seja
verdadeiramente grande, é necessário entretanto poder encontrar nela também uma tomada de consciência
dos outros valores recusados e mesmo reprimidos pela visão que constitui a unidade da obra mesma e dos
sacrifícios humanos que implica a recusa e a repressão desses valores”. In: GOLDMANN, Lucien. Crítica e
dogmatismo na cultura moderna. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1973.
16
Este fragmento integra o último capítulo do livro Introdução a uma estética marxista, que Lukács concluiu
em 1956. In: LUKÁCS, Georg. Georg Lukács: sociologia. Organizado por José Paulo Netto. São Paulo,
Ática, 1992.
49
Outro aspecto apontado pelo autor é que as obras de arte ampliam e aprofundam a
individualidade cotidiana imediata do leitor. A distância entre o universo do espectador e
aquele representado na obra - diferenças em relação a espaço, tempo, cultura de
determinada nação ou classe - leva ao indivíduo esse enriquecimento. A arte realmente
grande permite o enriquecimento do “eu” .
Ele experimenta realidades que, de outro modo, na plenitude oferecida
pela época, ser-lhe-iam inacessíveis; suas concepções sobre o homem,
sobre suas possibilidades reais positivas ou negativas, ampliam-se em
proporções inesperadas; mundos que lhe são distantes no espaço e no
tempo, na história e nas relações de classe, revelam-se-lhe na dialética
interna daquelas forças cujo jogo exterior oferece-lhe a experiência de
algo que lhe é bastante estranho, mas que ao mesmo tempo pode ser
posto em relação com a sua própria vida pessoal, com a sua própria
intimidade (LUKÁCS, 1992, p.197).
O fortalecimento do “eu” torna-se portanto, um elemento fundamental para o
fortalecimento da autonomia do indivíduo, num contexto onde o totalitarismo tem
fragmentado o sujeito, impedindo-o de constituir-se. A formação e a afirmação de um ego
bem estruturado permite ao sujeito diferenciar-se do todo social. Enquanto particularidade,
porta-se conscientemente em relação ao todo, de forma dialética, posicionando-se
criticamente diante da realidade.
Ao acentuar o caráter social da personalidade humana, Lukács (1992) confere a
esse “enriquecimento da individualidade” uma contrapartida ao individualismo, que o
indivíduo é entendido a partir da sua experiência “que faz de si mesmo na ampla riqueza de
sua vida na sociedade”. O conteúdo da obra artística levaria o sujeito à tomada de
consciência da sua “existência como parte e momento do desenvolvimento da humanidade,
como seu compêndio concentrado” (LUKÁCS, 1992, p. 197).
No entanto, essa eficácia humanista da arte que permite ao indivíduo o acesso à
sua humanidade não ocorre na receptividade direta da obra de arte. O autor referido
menciona que a eficácia da arte consiste no “antes” de no “depois” da apreciação da obra.
O “antes” refere-se ao fato de que o sujeito que aprecia a obra de arte, não a
apreende desprovido de idéias, enquanto uma tábula rasa, mas a partir de uma série de
experiências anteriores vividas no bojo das relões sociais historicamente determinadas.
Essas experiências precedentes operam no sujeito durante a fruição estética. Já o “depois”
50
refere-se ao resultado da luta entre as experiências passadas e as novas impressões
provocadas pela arte.
A eficácia da grande arte consiste precisamente no fato de que o novo, o
original, o significativo obtém a vitória sobre as velhas experiências do
sujeito receptivo. Justamente aqui se manifesta aquela ampliação e
aquele aprofundamento das experiências que é causado pelo mundo
representado na obra (LUKÁCS, 1992, p. 199).
Assim, um dos aspectos que caracterizam uma obra clássica é justamente a
possibilidade de inovação, de trazer um elemento original e significativo para aquele que
participa da fruição estética. Como visto, é justamente o oposto que ocorre em relação
aos produtos da instria cultural que apresentam aversão aquilo que é original, inovador.
O sucedâneo e o estereótipo que impera na cultura industrializada coloca
obstáculos à reflexão crítica, já que a constante repetição neles apresentados, a tudo
confere um ar de identidade e linearidade. Os seus mecanismos impõem-se no sentido de
uma nivelação, alinhamento, enquadramento dos produtos ofertados pelo amusement,
mutilando as diversas formas de cultura, sejam elas clássicas ou de origem popular. Nas
palavras de Horkheimer & Adorno (1985, p.123):
Ao invés de se expor a esse fracasso, no qual o estilo da grande
obra de arte sempre se negou, a obra medíocre sempre se ateve à
semelhança com outras, isto é, ao sucedâneo da identidade. A
indústria cultural acaba por colocar a imitação como algo de
absoluto. Reduzida ao estilo, ela trai seu segred, a obediência à
hierarquia social.
Outro aspecto que a obra de arte (o reflexo estético) propicia segundo Lukács é o
despertar e a elevação da auto-consciência humana, que não está separada de forma hostil
do mundo exterior “mas antes significa uma relação mais rica e mais profunda de um
mundo externo concebido com riqueza e profundidade, ao homem enquanto membro da
sociedade, da classe, da nação, enquanto microcosmo auto consciente no macrocosmo do
desenvolvimento da humanidade” (LUKÁCS, 1992, p.201).
Se Lukács, como afirmado anteriormente, justifica a importância da obra de arte
ressaltando que ela possibilita ao homem a auto-consciência, Horkheimer e Adorno (1985)
dizem que a arte sob o domínio da indústria produz a “auto-consumação do indivíduo”. A
indústria cultural não nega a importância da arte para o homem, mas também não revela o
51
seu segredo íntimo de que aquilo que ela vende já não pode mais ser considerado cultura,
mas cultura pela metade (do alemão Halbbildung). A semi-cultura prejudica e mesmo
impede o processo de auto-consciência.
Da mesma forma que através da mais-valia o capitalista se apropria de parte do
salário do trabalhador, normalmente da sua força física, a semicultura, seria uma espécie
de mais-valia cultural, ainda que metaforicamente: através do processo de semicultura a
sociedade industrial rouba a essência cultural do trabalhador, sob a justificativa de lhe
apresentar um conteúdo cultural condizente com o seu nível de apreeno da realidade.
São desarticuladas as possibilidades culturais de trazer ao indivíduo uma auto-consciência,
restando-lhe apenas a cultura enquanto diversão e entretenimento.
Esse procedimento representa uma negação da herança histórico-cultural da
humanidade, que é uma “ponte” através da qual o homem pode entender a si mesmo
enquanto ser histórico e social. o somente que pertence à sociedade, mas que com sua
práxis a faz do processo de auto-consciência provocado pela obra artística, como nos
demonstrou Lukács.
A indústria cultural impede a auto-consciência ao descaracterizar a palavra, ao
despotencializar o falar, lançando palavras a ouvidos que desaprenderam de ouvir, a
sentidos que não sabem mais sentir, devido aos condicionamentos por ela imprimidos.
Neste aspecto, a obra de arte é descaracterizada, melhor dizendo, despotencializada da sua
possibilidade de estabelecer confrontos com a estrutura de dominação social. Esse
processo de banalização e apropriação do estético acaba vinculando-se aos pressupostos da
indústria cultural, naquilo em que ela é travestida: de inocente e inofensiva.
Divertir-se significa estar de acordo. Isso só é possível se isso se isola do
processo social em seu todo, se idiotiza e abandona desde o início a
pretensão inescapável de toda obra, mesmo da mais insignificante, de
refletir em sua limitação o todo. Divertir significa sempre: não ter que
pensar nisso, esquecer o sofrimento amesmo onde ele é mostrado. A
impotência é a sua própria base. É na verdade fuga, mas não, como
afirma, uma fuga da realidade ruim, mas da última idéia de resistência
que essa realidade ainda deixa subsistir (HORKHEIMER; ADORNO,
1985, p.135).
A mídia opera o feitiço no consumidor com a maestria que o mágico de renome
internacional, diante dos olhos atentos do público e das câmeras, consegue se livrar das
correntes que o prendem até o pescoço. O feitiço é a manipulação do outro com
52
determinada finalidade. O feiticeiro primitivo fazia os seus rituais místicos com a intenção
de controle do mundo natural, com todas as suas forças invisíveis e destrutíveis. A mídia
exerce o feitiço contemporâneo, intencional e premeditado, servindo-se de uma poderosa
aparelhagem tecnológica com o intuito de controlar as massas.
A obra de arte e especificamente o romance, que será objeto de reflexão neste
estudo, desenvolvem no indivíduo, de acordo com Goldmann (1973) o espírito crítico. A
unidade e a coerência existentes na criação literária ajudam o indivíduo na tomada de
consciência da coletividade, através da apreensão da sociedade e dos problemas
enfrentados pelos grupos que a constituem. Compreender a realidade na qual se insere, e
também estão inseridos os “outros”, leva à busca de outros modelos de os homens se
organizarem e se relacionarem socialmente.
Nas palavras de Goldmann (1973, p. 36) um dos principais aspectos que
caracterizam uma obra literária é a sua função crítica,:
(...) elemento pelo qual ela indica não somente as aspirações atuais de
um grupo social privilegiado, mas também a esperança de ultrapassar um
dia essas aspirações em favor de uma ordem mais vasta e ainda mais
humana (...) É necessário ir mais longe, estudar concretamente esta
riqueza e ressaltar o que a obra literária afirma como sacrifício,
necessário sem dúvida à ordem que ela representa e que reconhece como
válida, mas que, entretanto, continua sendo sacrifício e limitação. É, no
fundo, o que nessa obra se liga à necessidade do espírito crítico e por
isso mesmo indica a possibilidade e a esperança de um futuro que
ultrapassará a ordem que ela defende atualmente.
Com foi visto, se a instria cultural visa a conformação do indivíduo ao sistema
dominante, o obra literária (a artística em geral) possibilita a esperança de novas
aspirações, que não as aspirações de um grupo de privilegiados ou como diz Adorno, os
supremos dirigentes.
53
3.1.1. Romance e sociedade
A criação literária na concepção de Goldmann (1979) não se constitui de algo
metafísico, mas está intimamente relacionada à vida econômica e social. Para o autor, uma
abordagem sociológica da literatura deve justamente apontar as relações entre a criação
literária e a vida social
A peculiaridade do indivíduo escritor de uma grande obra literária reside no fato
dele possuir uma liberdade muito maior do que a do indivíduo comum. Sua relação com o
todo social é mais mediatizada e complexa, e sua obra possui uma lógica interna de maior
autonomia.
Ao ressaltar a importância das características individuais do escritor, Goldmann
(1979) observa que sua enorme capacidade de captar e expressar os sentimentos
individuais são fundamentais para a constituição de uma obra literária, mas o principal
consiste na sua genialidade de captar uma determinada “visão de mundo”. O verdadeiro
escritor consegue pensar e sentir uma visão de mundo” de forma profunda e a expressar
no plano conceitual ou sensível.
De acordo com Goldmann (1979), a “visão de mundonão é um fato individual,
mas sim social. Ela representa um “ponto de vista coerente e unitário sobre o conjunto da
realidade” (p. 73). Normalmente a “visão de mundo” de um indivíduo, mesmo que tenha
uma certa coerência é fragmentada, pois é constituída a partir de uma série de influências
recebidas do seu meio. Já a obra literária, como afirma Goldmann (1979, p. 75), consegue
fazer uma síntese coerente da realidade social, pois ela é a expressão de uma visão de
mundo, de uma maneira de ver e de sentir um universo concreto de seres e de coisas e o
escritor é um homem que encontra uma forma adequada para criar e expressar este
universo”. Ainda de acordo com o autor:
(...) quanto mais for a obra expressão de um pensador ou de um escritor
de gênio, mais ela se compreende por si mesma, sem que o historiador
tenha necessidade de recorrer à biografia ou às intenções de seu criador.
A mais poderosa personalidade é aquela que se identifica melhor com a
vida do espírito, isto é, com as forças essenciais da consciência social no
que ela tem de ativo e criador (GOLDMANN, 1979, p. 77).
54
Não se trata de uma concepção na qual o escritor transfere conscientemente um
conteúdo teórico (político, filosófico) para uma forma artística. Para o autor “toda vitória
das intenções conscientes será fatal à obra, cujo valor estético dependerá da medida em que
expresse, malgrado e contra as intenções e as convicções conscientes de seu autor, a
maneira pela qual ele sente e vê, realmente, os seus personagens” (GOLDMANN, 1979,
p.75 e 76).
Assim, o escritor consegue expressar o essencial da vida social não a partir do seu
conhecimento e de suas inteões. E nesse aspecto a análise da biografia, embora seja
muito importante para a explicação de uma obra de arte, não é o fundamental. Devido ao
caráter de unidade e coerência interna, quanto mais a obra é importante, mais ela tem vida
própria e se compreende por si mesma, podendo ser explicada diretamente pela alise do
pensamento das diferentes classes sociais.
O romance, ao expressar uma “visão de mundo”, reflete o todo social no qual foi
talhado. Por isso que para Goldmann (1967), seguindo as pegadas de Lukács, o romance é
a expressão típica da sociedade burguesa, onde o hei romanesco recebe o nome de “hei
problemático”. O romance nesse aspecto se estabelece a partir de uma investigação
degradada, que seria uma pesquisa de valores aunticos
17
numa sociedade degradada.
Goldmann (1967) afirma que o romance é a expressão no plano da literatura da
vida cotidiana na sociedade burguesa, baseada na produção mercantil. Para o autor citado
há uma homologia entre a forma literária do romance e a forma como os homens se
relacionam com os bens em geral. Nesse sentido, o desaparecimento do individualismo em
virtude da nova realidade econômica do início do século XX - a substituição da economia
de livre concorrência por uma economia de cartéis e de monopólios - , irefletir em uma
transformação paralela na vida romanesca: “a dissolução progressiva e o desaparecimento
do personagem individual, do herói” (p. 23 e 24).
Essa fase de ausência de herói no romance foi marcada por Kafka e se estendeu ao
novo romance contemporâneo (as vanguardas literárias). Esse novo período no mundo
17
Os valores autênticos são entendidos como sendo aqueles valores que estão presentes no romance e que
organizam de modo implícito o conjunto de seu universo, sendo esses valores específicos de cada romance. A
especificidade do romance se verifica pela ruptura radical entre o herói e o mundo, ambos de natureza
degradadas, “devem engendrar, simultaneamente, uma oposição constitutiva, fundamento dessa ruptura
insuperável, e uma comunidade suficiente para permitir a existência de uma forma épica” (GOLDMANN,
1967, p. 9).
55
romanesco “caracteriza-se pelo abandono de toda e qualquer tentativa para substituir o
herói problemático e a biografia individual por outra realidade e pelo esforço para escrever
o romance da ausência de sujeito, da não-existência de toda a busca que progride”
(GOLDMANN, 1967, p. 24).
No entanto Lucs, no texto Franz Kafka ou Thomas Mann ?, enaltece o realismo
crítico representado por Thomas Mann e critica a literatura de vanguarda, estabelecendo
Kafka (ainda que lhe ressalte inúmeras qualidades literárias) como seu precursor. Lukács
afirma que a capacidade do escritor de criar personagens individuais que são os tipos
duradouros está relacionada a presença de uma “imagem de mundo concreta e dinâmica,
isto é, que inclua a sociedade e a história” (LUCS, 1969, p. 93).
Na literatura de vanguarda
18
, conforme Lukács (1969), é conferido à realidade
objetiva o que o passa de uma visão subjetiva do mundo, sendo o seu princípio de
representação “o mundo concebido como a alegoria de um nada transcendente” ( p.86). Ou
ainda, a vanguarda literária, pretenderia descobrir através de experiências vividas
puramente subjetivas, sem qualquer crítica, e de maneira imediata, a própria essência da
realidade efetiva” (p. 83).
A ausência de tipos duradouros reflete numa falta de perspectiva na obra artística
de vanguarda, sendo que o conceito de “perspectiva” é justamente o elemento que
possibilita ao artista uma intencionalidade que o permite passar da sua essência subjetiva
interna à essência objetiva da realidade social. A ausência de “perspectiva” em face de uma
imagem do mundo objetivada no caos, no sentimento de perdição, no desespero e na
angústia, tende para uma deformação da realidade, que ao perder o seu caráter de
historicidade, revela-se refratária aos princípios do socialismo.
Se para Lukács, o romance de engajamento político tem a função de emancipação
do proletariado, na perspectiva do partido, a questão de fundo desse estudo não trata da
especificidade dessa contenda, de maior interesse para áreas como as da Teoria da
18
Com o objetivo de contextualizar a questão em discussão na época, remete-se a um trecho do prefácio de
Carlos Nelson Coutinho para livro de Lukács Realismo Crítico Hoje. “Sua apaixonada defesa de Thomas
Mann, do mais autêntico continuador da herança humanista e realista na literatura ocidental do século XX, é
tão somente o coroamento de sua longa batalha anterior por um realismo crítico ‘verdadeiro como a vida’,
capaz de elevar a autoconsciência do homem e de desmistificar as ideologias decadentes e anti-humanistas de
certa literatura burguesa contemporânea. Esta batalha estética liga-se, de certo modo, a uma longa batalha
política e ideológica, travada por Lukács desde 1929, ano em que apresenta as suas famosas Teses de Blum:
a batalha por uma ‘frente popular’ na cultura, por uma aliança de todas as forças progressistas, democráticas
56
Literatura ou da Crítica de arte, no que concerne à função social das obras de arte. O
enfoque pretendido nesse trabalho busca apenas um cotejamento teórico para apreender
certas conexões entre a literatura romanceada e o processo de conhecimento da história.
Portanto, para além da posição lukacsiana sobre a situação da arte de vanguarda e a obra de
Franz Kafka crê-se que o romance de Kafka revelou-se fundamental para a compreensão
das relações entre indivíduo e a dimensão totalitária e coercitiva que a sociedade
contemporânea passou a vivenciar.
A estruturação interna de sua obra, como desenvolvido no terceiro capítulo desse
trabalho, condensa conteúdos históricos pelos quais um Estado impositivo e autoritário se
configura e se naturaliza pela sutiliza com que controla e administra a vida social. Neste
aspecto enfatiza-se o processo de enfraquecimento do indivíduo contemporâneo diante de
um aparato de controle administrativo impessoal e aniquilador representado pela máquina
burocrática. Para o recorte estabelecidos nesse estudo, a narrativa kafkiana apresenta na
sua própria estrutura não-linear e fragmentária, a própria condição de fragilização do
indivíduo na atualidade. A abordagem que se pretendeu nesse trabalho toma esses aspectos
da estruturação interna da narrativa kafkiana, na medida em que nelas se pode apreender
níveis da realidade social ampliando o processo de formação crítica em termos sociais mais
amplos.
e socialistas, no combate à reação e à decadência”. In: LUKÁCS, Georg. Realismo crítico hoje. Brasília,
Coordenada-Editora de Brasília, 1969.
57
3.2. Da Narrativa Tradicional à Falsa Experiência Social
Walter Benjamin, em O Narrador – Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov,
aborda a questão do fim da narração tradicional advinda no processo de secularização
burguesa. O declínio da narração traz em si mesmo um empobrecimento da experiência do
indivíduo, pelo fato de sua crescente incapacidade de contar. Nesse aspecto, o conceito de
experiência para o autor é entendido no sentido pleno da noção de Erfahrung.
A Erfahrung, em Benjamin, denomina aquela experiência típica das comunidades
artesanais de produção pré-industrial e pré-capitalista - era aquilo que as pessoas mais
velhas transmitiam para as mais novas de geração em geração, através de provérbios,
histórias e narrativas de países estrangeiros, numa época em que a idade da pessoa
representava maior autoridade em termos de experiência de vida.
A experiência constituía-se, como relata Gagnebin (1994, p.66), dos elementos de
temporalidade e continuidade, pelo fato de apresentar uma temporalidade comum a várias
gerações, e também uma continuidade que se amparava numa tradição que era transmitida
de pai para filho, e assim por diante. Porém a transmissão da experiência não se reduzia a
um rol de saberes acumulados, mas sim de máximas que eram ouvidas e praticadas
enquanto conduta moral de determinado grupo. Assim, essa prática habitual das
comunidades artesanais promovia uma integração da coletividade numa experiência
comum.
O elemento da tradição nessas comunidades, não se restringe somente a uma ordem
religiosa ou poética, :
(...) mas desemboca, necessariamente, numa prática comum; as histórias
do narrador tradicional o são simplesmente ouvidas ou lidas, pom
escutadas e seguidas; elas acarretam uma verdadeira formação (Bildung),
válida para todos os indivíduos de uma mesma coletividade. Essa
orientação prática (“O Narrador”, IV) se perdeu e explica nossa habitual
des-orientação (Rat-losigkeit), isto é, nossa incapacidade em dar e
receber um verdadeiro conselho (GAGNEBIN, 1994, p. 66).
A fonte da verdadeira transmissão da experiência não se restringia somente ao peso
da autoridade em função do maior acúmulo de anos de vida e sabedoria do ancião. Na
narrativa tradicional o que estava em jogo principalmente era a autoridade que o homem se
revestia na hora da sua morte. As palavras do ancião no leito, próximo à morte, tomavam a
58
conotação transcendental de algo que estaria entre este mundo terreno e aquele mundo
após a morte, viagem esta que ele estava na eminência de realizar.
Nas palavras de Benjamin (1994, p. 206), é no momento da morte que o saber e a
sabedoria do homem “e sobretudo sua existência vivida e é dessa substância que são
feitas as histórias assumem pela primeira vez uma forma transmissível (...) conferindo a
tudo o que lhe diz respeito aquela autoridade que mesmo um pobre-diabo possui ao morrer
para os vivos em seu redor”.
A forma de o homem encarar a morte, como também a temporalidade e a
continuidade, típicas das sociedades artesanais, entram em choque com a concepção de
tempo na sociedade industrial, caracterizada pela fragmentação do trabalho em cadeia. O
próprio ritmo do trabalho artesanal se pautava num tempo mais global, onde se tinha
tempo para contar. A modernidade impõe uma forma de percepção temporal em que a
busca do novo conduz a uma mudança brusca na experiência tradicional do tempo.
Ao romper com a forma tradicional de narrar, a modernidade, com sua procura
frenética do novo, traz um aspecto de transitoriedade àquela percepção temporal estável,
que resultava de todo um processo de continuidade na qual a narrativa tradicional se
perpetuava nas gerações seguintes e assim por diante. Na modernidade, a sociedade
cristaliza-se sobre o princípio da troca, cujo consumo da mercadoria requer a todo instante
a busca incessante do novo. O próprio processo prevê a efemeridade da mercadoria.
O resultado dessa nova forma de organização do trabalho, é que o papel do
narrador tradicional foi acometido de um desprestígio consensual. Benjamin (1994, p.114),
no início do artigo denominado Experiência e Pobreza, indaga: “Quem encontra ainda
pessoas que saibam contar hisrias como elas devem ser contadas? Que moribundos
dizem hoje palavras tão duráveis que possam ser transmitidas como um anel, de geração
em geração? Quem é ajudado, hoje, por um provérbio oportuno?”.
No mundo capitalista moderno, a dimensão de experiência (Erfahrung) se
enfraquece, perdendo assim o referencial de coletividade e passando a se caracterizar como
vivência individual e particular. A frieza e o anonimato se estabelecem enquanto
comportamentos típicos da nova sociedade, erigida sobre a divisão do trabalho capitalista.
O sentido de vivência coletiva pré-capitalista, que se manifestava enquanto a transmissão
de uma sabedoria importante para a coletividade, se perde em detrimento dos valores
individuais e privados, representados pelo conceito benjaminiano de Erlebniz
(GAGNEBIN, 1994).
59
A noção de Erlebniz (vivência), é oriunda de um contexto de afirmação do
indivíduo num momento de desagregação e de esfacelamento do social, ou seja, da
vivência coletiva. Para o homem burgs, o importante é a experiência vivida de forma
individual, característica do indivíduo solitário.
Gagnebin (1994) ressalta que o conceito de vivência (Erlebniz) tem como aspecto
essencial a valorização dos bens privados, nos quais o indivíduo burguês procura deixar e
buscar sua marca (seus rastros). Essa busca, de sua ppria identidade, torna-se uma forma
de afirmação de si mesmo em um mundo estranho a ele, onde não consegue mais se
encontrar. É um enfrentamento a um mundo que o despersonificou. Como demonstra a
própria autora:
Essa interiorização psicológica é acompanhada por uma interiorização
especificamente espacial: a arquitetura começa a valorizar, justamente o
interior”. A casa particular torna-se uma espécie de refúgio contra um
mundo exterior hostil e anônimo. O indivíduo burguês, que sofre de uma
espécie de despersonalização generalizada, tenta remediar este mal por
uma apropriação pessoal e personalizada redobrada de tudo o que lhe
pertence no privado: suas experiências inefáveis (Erlebnissse), seus
sentimentos, sua mulher, seus filhos, sua casa e seus objetos pessoais
(GAGNEBIN, 1994, p. 68).
A perspectiva de Benjamin visa, no entanto, não somente a lamentação de um
passado nostálgico, mas a busca de uma nova forma de narrativa baseada na reconstrução
da Erfharung. Se, por um lado, ocorre a impossibilidade da narrativa tradicional centrada
no artesanato, na sociedade moderna, como ficou demonstrado, uma recusa deliberada
de se contentar com a privaticidade da experiência vivida individual. Segundo a análise de
Gagnebin (1994), observa-se que Benjamin elege como necessidade, o resgate da figura do
narrador na atualidade. Ao narrador moderno caberia a incumbência de possibilitar uma
outra forma de narrativa que não tivesse o conceito de Erlebniz como primazia.
Uma forma de narrativa, baseada na prioridade do Erlebniz, é a informação
jornalística. Benjamin a encara como um dos instrumentos importantes para a consolidação
da burguesia. Essa forma de comunicação iexercer uma influência decisiva no desgaste
da forma épica, cuja estranheza em relação à ela, provoca inclusive a crise no romance.
Na narrativa tradicional o saber era envolvido de uma autoridade, cuja validade não
tinha que ser controlada pela experiência. A autoridade do saber residia no fato de ele vir
de longe, seja no sentido de ser oriundo de terras longínquas e estranhas, seja no sentido
temporal, em relação à tradição.
60
A informação, ao contrário, deve ser passível de uma verificação imediata e ao
mesmo tempo ser compreensível em si mesma. Se nos relatos da narrativa tradicional
encontraram-se referências freqüentes ao elemento miraculoso, na informação é
indispensável que esses elementos deixem lugar para o que é plausível. A informação se
incompatibiliza com a narrativa, dBenjamin atribuir à informação a responsabilidade
pelo declínio da narrativa (BENJAMIN, 1994, p. 202 e 203).
Outro aspecto importante é que a informação estabelece, ou mesmo dita, o tom da
verdade para o leitor ao trazer a explicação pronta e acabada. Assim, ela rouba ao sujeito
a possibilidade de uma mediação em relação ao objeto apreciado. O sujeito não necessita
de realizar uma interferência ativa no processo de elucidação e compreensão do fato, mas
deve contentar-se com a mera imediaticidade da realidade que se impõe sobre ele.
Cada manhã recebemos notícias de todo o mundo. E, no entanto, somos
pobres em histórias surpreendentes. A razão é que os fatos já nos
chegam acompanhados de explicações. Em outras palavras: quase nada
do que acontece está a serviço da narrativa, e quase tudo está a serviço
da informação. Metade da arte narrativa está em evitar explicações (....)
O extraordinário e o miraculoso são narrados com a maior exatidão, mas
o contexto psicológico da ação não é imposto ao leitor. Ele é livre para
interpretar a história como quiser, e com isso o episódio narrado atinge
uma amplitude que não existe na informação (BENJAMIN, 1994, p.
203).
Para ilustrar a força criadora contida na narrativa tradicional, Benjamin traz como
exemplo um relato encontrado no capítulo XIV do terceiro livro de Herótodo denominado
Histórias. De forma resumida o relato aborda o rei egípcio Psammenit quando foi
derrotado e reduzido ao cativeiro pelo rei persa Cambises. O rei persa, como de costume
resolveu humilhar seu cativo. Fez com que Psammenit ficasse na rua onde passaria o
cortejo triunfal dos persas. Neste cortejo, a filha do rei egípcio deveria ser exposta à
condição de criada, buscando água com um jarro num poço. Ao assistirem a cena, todos os
egípcios se lamentavam diante de tamanha humilhação, mas o rei egípcio ficou silencioso e
imóvel, com os olhos voltados para o chão. Em seguida passou o seu filho caminhando no
cortejo para ser executado. Mesmo diante de uma cena tão cruel continuou imóvel, como
anteriormente. Porém, ao ver na fila dos cativos, um velho miserável, que fora um dos seus
servidores, mostrou-se profundamente desesperado golpeando a cabeça com os punhos
(BENJAMIN, 1994, p. 203).
61
Esse relato exemplifica bem, conforme Benjamin, o que é a verdadeira narrativa. O
autor alude a uma resposta dada por Montaigne sobre o que teria ocasionado o desespero
do rei egípcio justamente ao reconhecer seu servidor. Para Montaigne o rei estava tão
cheio de tristeza, que uma gota a mais bastaria para derrubar as comportas. Benjamin
afirma que é a explicação de Montaigne e faz uma provocação arriscando mais três
explicações diferentes. Mas o que ele menciona como fundamental é o fato do relato de
Hetodo não explicar nada, terminando-o de forma abrupta. Essa é a capacidade da
narrativa, de deixar o espaço para mesmo após milênios suscitar espanto e novas reflexões.
Ela conserva suas forças e mesmo com a passagem do tempo, ainda é capaz de se
desenvolver.
Diferente é a informação que não permite ao sujeito interagir com ela de forma
criativa e reflexiva. O dado informacional já vem como algo pronto e acabado, não
necessitando haver mediação com a realidade histórica. O fato é dado, resta ao sujeito
submeter-se a ele. “A informação tem valor no momento em que é nova. Ela vive
nesse momento, precisa entregar-se inteiramente a ele e sem perda de tempo tem que se
explicar nele (BENJAMIN, 1994, p. 204).
Quanto mais a linguagem se resolve em comunicação, mais ela perde sua riqueza
de mediação com a realidade histórica. Nas palavras de Horkheimer e Adorno (1985, p.
153):
quanto mais completamente a linguagem se absorve na comunicação,
quanto mais as palavras se convertem de veículos substanciais do
significado em signos destituídos de qualidade, quanto maior a pureza e
transparência com que transmitem o que se quer dizer, mais
impenetráveis elas se tornam.
Dado o empobrecimento da informação jornalística em termos de um processo de
formação significativo e mesmo do romance clássico burguês devido ao seu rompimento
com a coletividade é que Benjamin busca uma afirmação do narrador na atualidade
baseado nos princípios da Erfahung. Almejar uma nova forma de organização social está
para o autor, intimamente relacionado à tarefa do narrador moderno de se propor a uma
forma de narrativa que rompa com àquela fundamentada no individualismo burguês
representada pela noção do Erlebniz.
Aquilo que é denunciado por Benjamin a respeito da informação jornalística era um
dado presente nos primórdios da formação da indústria cultural. Com a invenção, no
62
início do século XX, do rádio, do cinema e pouco mais tarde a televisão, como já abordado
no segundo capítulo, esse depauperamento da experiência é elevado à máxima potência
através dos seus estímulos audiovisuais, sobrecarregados de informações, impossibilitando
ao sujeito a vivência de uma experiência ppria.
Assim, um dos aspectos que caracteriza uma obra de arte é justamente a
possibilidade de inovação, de trazer um elemento original e significativo para aquele que
participa da fruição estética. Como visto, é justamente o oposto que ocorre em relação
aos produtos da instria cultural que apresentam aversão aquilo que é original, inovador.
Na cultura servil ao mercado o que vinga é justamente o sucedâneo e o esteriótipo
que são inculcados nas massas através de intensa repetição. O que caracteriza a obra de
arte medíocre privilegiada na indústria cultural é que ela é mera imitação e se assemelha às
outras obras do mesmo nível. Ao conferir a tudo um ar de identidade e linearidade, ela
coloca obstáculos à reflexão. Os produtos da indústria cultural se caracterizam pela
escassez de signos estéticos que exijam do indivíduo novas formas de mediação com a
realidade. O que vinga nessa proposta de cultura é a imediatez presente no dado
informacional inculcado pela mídia, fornecendo ao indivíduo uma formação reducionista e
simplificadora que visa o conformismo.
O sujeito, diante do aparato da indústria cultural, deve receber passivamente os
estímulos que lhe são impostos. Impedido de realizar um movimento próprio de seu
intelecto, ele aceita o que o todo social lhe confere enquanto verdade última, passando a
vivenciar um comando alheio.
A propaganda totalitária, iniciada com o nazismo, tinha o poder de em pouco tempo
determinar o próprio linguajar da população, através da repetição dos slogans próprios ao
sistema. A prontidão para execução de ordens exteriores demonstra claramente o nível de
desestruturação do sujeito na contemporaneidade, e representa, de acordo com as análises
de Adorno e Horkheimer, um dos elementos mais importantes para a fomentação do nazi-
facismo. (FABIANO, 1999).
Se as narrativas tradicionais, como afirma Fabiano (1999), propiciavam uma
experiência coletiva cuja vivência integrava o indivíduo à comunidade, o oposto ocorre na
indústria cultural, que ao propor uma forma de experiência homogeneizante conduz o
indivíduo a uma falsa vivência social. As narrativas presentes na mídia favorecem
justamente um isolamento do indivíduo, impossibilitando uma formação na qual ele se
insira no grupo social buscando uma contribuição para a vida da coletividade. Como
63
afirma o referido autor, “são, antes, utilizações estratégicas como um exercício de
servilidade a um princípio ideológico que delas se vale para um processo de coerção
coletiva subliminar” (FABIANO, 1999, p. 163).
Daí a urgência de narrativas que tornem possível a inserção do indivíduo na
coletividade, levando-o à consciência de que é sujeito da história, que sua ação intencional
é fundamental para a busca de uma nova organização da sociedade. Nesse aspecto, a obra
de arte, considerando-se a perspectiva lukacsiana, tem uma posição privilegiada, porque,
através da fruição estética, viabiliza ao indivíduo formas de auto-consciência.
A partir deste eixo de análise pode-se verificar o potencial estético da obra de arte
enquanto possibilidade de consciência social. Se a indústria cultural constitui-se em um
elemento importante para a produção e reprodução de uma falsa experiência, a obra de arte
pode ser explorada no sentido de o sujeito vivenciar uma experiência com a sua realidade
histórica.
Assim, com sua riqueza e alto teor de consciência social, a obra de arte, enquanto
mediação com a sociedade e sua hisria, possibilita ao indivíduo atingir a verdade social
nela presente, ocultada pelos sutis mecanismos da indústria cultural. Fabiano (1999) expõe
a importância que a arte tem para a formação do sujeito ao ressaltar a necessidade de:
Um resgate da experiência coletiva (Erfahrung) vivenciada, cultivada
por um elo que integra a comunidade numa ação compartilhada, mantida
pela verdadeira formação (Bildung) que orienta a memória (consciência)
no seu aspecto épico. É na experiência dessa narrativa que a arte,
enquanto exercício extremado de alteridade {(ex) pressão}
{comunicação}, acolhe a vivência reduzida ao particular e individual
(Erlebnis), vigente no mundo capitalista, revertendo-se numa
experiência comunitária. A mesmo porque a exacerbação do mundo
burguês pelo individualismo e pelo privado é apenas uma atitude
compensatória de mascarar aquilo que a própria sociedade capitalista
destrói: a constituição do sujeito (FABIANO, 1999, p. 168).
Através da vivência que o indivíduo consegue através da literatura, ele vai
ganhando uma nova experiência, que é o diálogo e a interlocução com a humanidade.
Assim, justifica-se porque determinadas formas narrativas responsáveis e conseqüentes,
como o romance, são excluídas pela indústria cultural. O que se põe em jogo pela indústria
da cultura não se baseia somente na busca do lucro, mas na imposição ideológica de
formas narrativas que apresentam grande nível de linearidade e conformidade com os
valores de sustentação da sociedade burguesa.
64
E é a isso que a grande obra de arte não se curva ela denuncia, ainda que de
forma indireta, através de sua estética não-linear, toda uma construção artificial de uma
linearidade afirmativa. Nesse sentido, a vivência da obra de arte possibilita ao indivíduo
um estranhamento em relação à ordem estabelecida. Ao diferenciar-se do sistema
homogêneo e totalizante que o envolve, pode compreender os mecanismos de opressão que
sustentam essa forma de organização social.
Em seu artigo O artista como lugar-tenente, Adorno demonstra o aspecto crítico da
arte, para uma formação que vise a busca da autonomia do sujeito. Essa formação não deve
se render aos mecanismos facilitadores da indústria cultural, que, ao oferecerem uma
cultura dita acessível às massas, não oferecem mais do que um engodo cultural.
La obra de arte, que exige lo sumo, tanto de la propia lógica y de la
propia concordancia cuanto de la concentración del que la recibe, es para
Valerymbolo del sujeto dueño y consciente de sí mismo, de aquel que
no capitula. No casualmente cita con entusiasmo una declaración de
Degas contra la resignacn. Su obra entera es toda ella una protesta
contra la mortal tentación de hacerse las cosas fáciles renunciando a la
felicidad total y a la verdad entera. Mejor perecer en lo imposible. (...)
Pero ese arte encarna la resistencia contra la presión indecible que el
mero ente ejerce sobre lo humano. Ese arte está en representación de
aquello que podríamos ser. No atontarse, no dejarse engañar, no
colaborar: tales son los modos de comportamiento social que se
decantan en la obra de Valery, la obra que se niega a jugar el juego del
falso humanismo, del acuerdo social con la degradación del hombre
(ADORNO, 1984, p. 217 e 218).
A indústria cultural, ao apresentar um volume informacional enorme, normalmente
oculta determinadas narrativas que possibilitam um amadurecimento do educando para
uma coletividade autêntica. Ao contrário, ela favorece ao sujeito a vivência de uma falsa
experiência social quando confere às suas imagens a imposição de uma veracidade
inquestionável. É tamanha a realidade de suas imagens, que dificulta ao indivíduo o
discernimento de que aquilo que ela apresenta é uma realidade construída de acordo com
os interesses dominantes.
Não é de estranhar que na indústria cultural haja uma depreciação de narrativas que
apresentam a possibilidade de fomentar um processo de formação mais conseqüente. As
obras de arte representam algo não interessante ao sistema, pois contém elementos que
podem possibilitar uma formação educativa com viés crítico. Seu componente formador
65
aponta para uma educação crítica porque questiona o imediatismo determinado pela
indústria cultural que confirma a realidade da forma como ela é dada aparentemente.
A partir dessas considerações, crê-se na importância de estruturas literárias de peso,
que apresentam grande atualidade enquanto questionamento dessas formas alienantes e
consumistas da produção cultural. Somente a título de exemplificação e guardando as
diferenças de linha literária, pode-se citar Dostoiévski, Proust e Zola, entre outros.
A escolha específica de Kafka, se dá pelo seu verdadeiro potencial criativo e
literário, na exposição lúcida dos principais dilemas e impasses do homem em relação às
forças coercitivas e autoritárias da sociedade contemporânea, fornecendo elementos que o
revelam na sua condição histórica atual.
É importante e imprescindível mencionar ainda aspectos estruturais na elaboração
da obra kafkiana em que o processo de não-linearidade narrativa se presta a desmoronar
bases seguras dos conformismos em relação aos níveis da percepção autômata do leitor no
domínio da compreensão das determinações sociais que permeiam a obra. Os
descompassos e truncamentos que ocorrem em virtude da quebra de linearidade permitem
níveis de deslocamento da percepção do leitor para fatos sociais determinados como
naturalidade existencial. Neste aspecto, aquilo que aparece de forma coisificada no social é
posto em crise. Esses elementos acabam se constituindo de um alto poder educativo, se
explorado por tais aspectos numa perspectiva educacional que resgate a condição
banalizada a que a obra de arte foi relegada atualmente.
A literatura kafkiana, portanto, engendra em si mesmo, em sua ppria lógica
estética, elementos que podem possibilitar uma formação educativa crítica, porque
questiona o imediatismo determinado pela indústria cultural. Nesse sentido ela apresenta
grande atualidade enquanto questionamento das formas alienantes e consumistas que a
sociedade industrial se utiliza na produção e veiculação da cultura, contribuindo para o
indivíduo compreender o processo de coisificação e massificação da formação cultural da
sociedade industrial.
66
4. A ARTE LITERÁRIA DE KAFKA
Observação de Kafka a Janouch
“Essa gente é tão consciente de si mesma,
tão segura de si mesma e tão bem-humorada!
São os donos da rua e acreditam-se donos do mundo.
No entanto, eles se enganam.
Logo atrás já avançam os secretários, os burocratas,
os políticos profissionais, todos os sules modernos
que se preparam para tomar o poder (...)
A revolução se evapora,
resta apenas o lodo de uma nova burocracia.
os guilhões da humanidade torturada
são feitos de papéis de ministérios”
19
.
19
Observação de Kafka numa conversa com Gustav Janouch no instante do desfile de uma manifestação
operária com cartazes e faixas. In: LÖWY, Michel. Redenção e utopia: o judaísmo libertário na Europa
Central: um estudo de afinidade eletiva. Tradução Paulo Neves. São Paulo, Companhia das Letras, 1989.
67
4.1. Notas Sobre o Autor
Antes de adentrar em alguns aspectos da biografia de Kafka, será contextualizado
brevemente o horizonte intelectual da Europa Central, permeado pela cultura judaico-
alefinal do século XIX e início do século XX. Crê-se na importância da peculiaridade
deste período para a constituição da obra de Kafka, não no sentido de explicá-la, mas de
levantar alguns elementos que possam contribuir para o próprio entendimento da temática
por ele desenvolvida.
Conforme o estudo de Michel Löwy Redenção e utopia: o judaísmo libertário na
Europa Central, entre os anos de 1879 e 1914 houve na Alemanha um grande
desenvolvimento do capitalismo e uma industrialização acelerada, que a transformou de
país semi-feudal em uma das maiores potências industriais do mundo. Semelhante
processo ocorre também na Áustria-Hungria. A ascensão rápida do capitalismo com a
grande produção industrial baseada nos princípios científicos e técnicos, como também nos
valores mercantis, produziu na intelectualidade tradicional, uma reação “romântica
anticapitalista” (LÖWY, 1989).
O romantismo
20
anticapitalista é caracterizado pela crítica da civilização industrial
burguesa, buscando um retorno aos valores sociais, culturais, éticos ou religiosos pré-
capitalistas. Essa visão de mundo proposta por escritores, poetas, filósofos e historiadores,
faz uma oposição entre os termos Kultur e Zivilization. O primeiro refere-se a valores
éticos, religiosos ou estéticos. O segundo é relacionado ao progresso econômico e técnico,
calcado na busca do lucro e da acumulação material. O romantismo anticapitalista “deve
ser considerado antes de tudo como uma tentativa nostálgica e desesperada de
reecantamento do mundo, de que uma das dimenes essenciais era o retorno à religião, o
renascimento das múltiplas formas de espiritualidade religiosa” (LÖWY, 1989, p. 32).
Dando seqüência à análise desenvolvida por Löwy (1989), com o surto capitalista
na Europa Central, houve o estabelecimento de uma burguesia judaica, formando uma
grande e média burguesia que se inseriu nos negócios, no comércio, na indústria e nos
bancos. Com o seu enriquecimento, essa classe média judaica passou a assimilar-se e
integrar-se na nação germânica. Apesar da segurança econômica e da igualdade de direitos
civis, os judeus eram excluídos da administração, do Exército, da magistratura e do
magistério.
68
Partindo da lógica da assimilação cultural e desejando uma ascensão na escala
social, a burguesia judaica enviava seus filhos à universidade. Esse processo de
escolarização ocorreria de forma maciça a partir do final do século XIX e no início do
século XX formava-se uma intelectualidade judaica
21
da qual Franz Kafka fazia parte. Essa
intelectualidade ou parte significativa dela, foi atraída pela corrente dominante presente na
Europa Central que era o romantismo anticapitalista.
Disso resultará uma recusa da carreira de negócios paterna, uma revolta
contra o meio familiar burguês e a aspiração intensa a um “modo de vida
intelectual”. È nesse momento que se produz a ruptura entre gerações de
que falam tantos intelectuais judeus em suas autobiografias, o
rompimento dos jovens antiburgueses amigos da Kultur, da
espiritualidade, da religião e da arte, com seus pais empresários,
comerciantes ou banqueiros, liberais moderados, indiferentes em matéria
religiosa e bons patriotas alemães (LÖWY, 1989, p.35).
Um exemplo típico dessa ruptura de gerações é a Carta ao meu pai que Kafka
escreveu no ano de 1919. Ali é demonstrada sua difícil e conflituosa relação com seu pai,
próspero comerciante, descrito por ele como autoritário e avesso às artes. O pai se
desiludiu com o filho, pois como único filho homem, queria-o dando continuidade à sua
empresa. O filho atribuia suas próprias fraquezas ao autoritarismo de seu pai.
No entanto, para o intelectual judeu da geração romântica dos anos 1880, havia
uma incompatibilidade entre a suas raízes históricas (judaísmo) e os ideais apregoados por
essa corrente, que tipificava enquanto nostalgia do passado suas referências nacionais,
baseadas na ancestralidade germânica, na aristocracia medieval e no cristianismo
protestante ou católico.
Ao intelectual judeu, excluído do processo, coube um retorno à sua própria cultura,
nacionalidade ou religião ancestral. Ou ainda, aderir a uma utopia romântico-
revolucionária de caráter universal. O que caracterizou esse momento foi “a redescoberta
da religião judaica e a simpatia ou indefinição com utopias revolucionárias, sobretudo
libertárias, profundamente carregadas de nostalgia do passado (LÖWY, 1989, p.37).
20
Não se refere aqui ao romantismo enquanto estilo literário.
21
Essa geração era formada de personalidades que exerceram grande influência no panorama cultural e
filofico do século XX. Entre eles pode-se citar Martin Buber (1878), Franz Kafka (1883), Ernst Bloch
(1885), György Lukács (1885), Franz Rosenzweig (1886), Walter Benjamin (1892), Ernst Toller (1893),
Gershom Scholem (1897), Erich Fromm (1900) e Leo Löwenthal (1900).
69
Para negar a identificação e assimilação da cultura germânica, que seus pais (os
empresários, comerciantes) haviam aderido, a religião foi a única especificidade que restou
ao intelectual judeu. Daí se explica um retorno às fontes da religiosidade como a tradição
religiosa judaica, a mística da Cabala, o hassidismo e o messianismo. Os intelectuais
judeus voltaram-se para isso. Kafka, por exemplo, foi atraído pela cultura ídiche dos
judeus orientais, pelo sionismo romântico-cultural e elaborou planos de uma vida rural na
Palestina.
Os aspectos relacionados à religiosidade judaica que permeiam os textos de muitos
destes intelectuais judeus, entre eles Kafka e Benjamin, são a busca de uma identidade
num meio social que os marginalizava, e os expunha a um desenraizamento cultural e
religioso. O interessante nos estudos de LÖWY (1989) é a constatação de que, ao mesmo
tempo em que esses intelectuais se voltavam para a religiosidade judaica, aderiam também
às utopias libertárias típicas deste período. O autoritarismo e o militarismo do Estado
imperial alemão estimulou nessa intelectualidade um anti-autoritarismo libertário,
“principalmente após 1914, quando ele passa a ser visto como um Moloch
22
ávido de
sacrifícios humanos” (LÖWY, 1989, p. 40).
É o conjunto dessas condições econômicas e sociais, políticas e culturais
que permitiu, num momento histórico determinado, no seio de uma
geração precisa de intelectuais judeus da Europa central, que a
correspondência entre messianismo judaico e utopia libertária se
tornasse dinâmica e se transformasse numa relação de afinidade eletiva.
(...) Nesse contexto particular é que se tece a rede complexa de vínculos
entre romantismo anticapitalista, renascimento religioso judaico,
messianismo, revolta cultural anti-burguesa e anti-Estado, utopia
revolucionária, anarquismo, socialismo (LÖWY, 1989, p. 40).
A delimitação desses traços culturais a respeito da influência dos intelectuais
judeus na sociedade alemã torna-se importante para esse estudo, enquanto pano de fundo
para uma análise da obra kafkiana, para extrair de seu conteúdo literário a dimensão de
impotência a que o indivíduo foi reduzido a partir da constituição prepotente do Estado na
contemporaneidade.
22
Moloch ou Moloque era o deus supremo dos amonitas, também chamado de Milcon e de Malcã. Seu culto
incluía o sacrifício de crianças (Levítico 20. 2-5). Conforme Bíblia Sagrada: Nova tradução na linguagem de
hoje. Barueri, SP. Sociedade Bíblica do Brasil, 2000.
70
4.1.1. Aspectos biográficos
No que tange à biografia de Kafka, é o suficiente situar alguns instantes
importantes de sua vida e composição de sua obra. Não se pretende, no entanto, com isso,
remontar a uma análise de cunho psicológico da referida obra, que buscaria no drama
pessoal do autor, sobretudo suas experiências traumáticas da infância, a explicação de sua
obra. Explicações que enfatizam os aspectos da biografia fazem muitas vezes uma análise
na qual a obra de Kafka seria um reflexo direto de seus conflitos com seu pai ou suas
decepções amorosas com o rompimento de três noivados.
Mais interessante nos parece, seguindo pegadas de Goldmann (1979), levar em
consideração a obra artística em si, para dapontar as possíveis relações entre a criação
literária e a vida social, como se propõe a sociologia da literatura. Se o escritor consegue
expressar o essencial da vida social não a partir do seu conhecimento e de suas intenções, a
análise da biografia, embora seja muito importante para a explicação de uma obra de arte,
não é a sua parte fundamental. Pois, “quanto mais for a obra expressão de um pensador ou
de um escritor de gênio, mais ela se compreende por si mesma, sem que o historiador
tenha necessidade de recorrer à biografia ou às intenções de seu criador” (GOLDMANN,
1979, p. 77).
Franz Kafka nasceu em Praga, no dia 03 de julho de 1883. Filho de um próspero
comerciante, Hermann Kafka e de Julie Löwy Kafka, viveu num ambiente familiar
dominado pela figura do pai, sentindo desde cedo problemas de solidão
23
. Suas três irmãs,
Elli, Valli e Ottla nasceram entre os anos de 1889 e 1892. Seus dois irmãos morreram na
infância, antes do seu nascimento.
Terminou a escola secundária em 1900 e em 1906, com vinte e três anos formou-se
em direito na Universidade de Praga. Não exerceu a profissão, mas fez estágio de um ano
no Tribunal, onde teve contato com a burocracia da administração austríaca. Não seguiu a
carreira de advogado. Em 1908 começou a trabalhar como funcionário numa corretora de
seguros semi-estatal como inspetor de acidentes de trabalho. Dali só saiu em 1922, quando
se aposentou.
23
Guimarães (2001, p. 119) afirma que a sensação de isolamento sentida por Kafka advinha de sua origem
judaica – uma raça oprimida. Também os tchecos faziam parte de uma minoria desprezada dentro do Império
Austríaco. Portanto, “era membro de uma minoria desprezada dentro de outra minoria também desprezada”.
71
Conheceu a berlinense Felice Bauer em 1912 com quem foi noivo por duas vezes,
mantendo com ela uma volumosa correspondência. Noivou-se também em 1919 com Julie
Wohryzek, noivado que durou pouco.
Dedicou-se à literatura, onde se destacou como um dos maiores escritores de seu
tempo, muito embora esse reconhecimento só tenha vindo após sua morte. Em vida
publicou somente as obras: A metamorfose, O veredicto, Na colônia penal e Um dico
rural.
No ano de 1924, no dia 3 de junho, Kafka morreu de uma tuberculose que lhe
atacou o pulmão e a laringe, passando os últimos anos de sua vida em um sanatório
próximo a Viena. Quando morreu, sua obra era reconhecida por Walter Benjamin, Bertolt
Brecht e Thomas Mann, por exemplo.
Apesar de não ter sido aclamado em vida pelos editores e pelo público, a obra de
Kafka se cristalizou como uma das mais importantes e complexas do século XX. Exerceu
influência nos movimentos artísticos como o surrealismo e o teatro do absurdo, além do
Existencialismo.
Apesar do testamento que pedia para toda sua obra ser queimada, Max Brod, seu
amigo, não cumpriu o pedido, o que resultou no resgate de uma série de obras que o
mundo viria a conhecer, algumas delas inacabadas. Dentre essas obras, tem-se: O
processo, O castelo, Carta ao pai, Um artista da fome, A construção, Contemplação, O
Foguista, Narrativas do Espólio e o Desaparecido (América).
Existem diversas opiniões que atribuem à obra de Kafka um tom profético em
relação ao “horror emblemático” de Auschiwitz, sobretudo pelos textos Na colônia penal e
O processo. Em 1942 sua irmã Ottla morreu em Auschiwitz e as outras duas irmãs foram
mortas também em campos de concentração.
72
4.2. A Narrativa Kafkiana
24
Se a vida de Franz Kafka foi acometida de um pessimismo irreversível, embora a
constatação seja importante para desvendar certos impasses e enigmas de sua obra, dada a
especificidade deste trabalho, esse fato interessa mais apropriadamente como pano de
fundo na ambientação peculiar das suas narrativas. A pretensão neste momento, segundo a
temática proposta por este estudo é a de buscar na estrutura interna da construção de suas
obras, elementos que permitam descortinar não o mal-estar do indivíduo Kafka, mas o
mal-estar vivenciado pelos personagens de suas obras. Isso implica numa compreensão
mais aguçada da complexa situação do indivíduo envolvido por redes de um controle
difuso que debilita a sua capacidade de reação na sociedade atual.
Ao ler as obras de Kafka, é inevitável ao leitor a sensação de incômodo, de um
certo desconforto em relação aos aspectos afirmativos de uma cultura homogeneizadora,
tão comuns na sociedade contemporânea. Os seus personagens estão submersos numa
trama de redundância, parecendo que todas as possibilidades de ação estão de antemão
fadadas ao fracasso. Num capítulo inacabado do romance O Processo lê-se: “as
experiências mais infelizes não o ensinavam, o que não conseguia em dez tentativas ele
acreditava poder impor na décima primeira, embora tudo ocorresse invariavelmente em seu
prejuízo” (KAFKA, 1998, p. 232).
Um dos aspectos responsáveis pelo clima de angústia causado no leitor, é o fato do
autor não apresentar soluções, aliás, Kafka não apresenta solução alguma do fato de
sua obra constituir-se em um enigma praticamente indecifrável, o que motivou as mais
variadas formas de interpretação, entre elas, estudos de vertentes teológicas, filosóficas,
sócio-políticas, psicanalíticas e estético-formais.
Adorno (1998) chamou Kafka de parabolista da impenetrabilidade, pois sua obra
“(...) é uma arte de parábolas para as quais a chave foi roubada; e mesmo quem buscasse
fazer justamente dessa perda a chave seria induzido ao erro, na medida em que confundiria
24
O termo “kafkiano” neste trabalho terá o significado literal: referência à obra de Franz Kafka.o deve ser
confundido com a expressão “kafkiano” de uso popular que, conforme COSTA (1983) provavelmente
começou a ser difundida depois da Segunda Guerra Mundial: “Com as feridas abertas – e coincidindo com a
‘descoberta e a projeção crescente do obra do autor - a Europa não encontrava melhor palavra para
classificar o ‘absurdoda realidade à sua volta numa tentativa de ‘organizar’ mentalmente o caos exposto do
lado de fora. A palavra nascia portanto, para adjetivar ... o próprio real, para destacar um aspecto da realidade
que parecia insólito aos homens, pouco compreensível e também para que as consciências ingênuas se
defendessem de uma percepção mais ampla deste real”. COSTA, Flávio Moreira. Franz Kafka. São Paulo,
Brasiliense, 1983, p. 58).
73
a tese abstrata da obra de Kafka, a obscuridade da existência, com o seu teor. Cada frase
diz:interprete-me’; e nenhuma frase tolera a interpretação (ADORNO, 1998, p. 241).
A narrativa kafkiana produz no leitor uma não-identificação e um estranhamento
para com a própria obra de arte. Kafka não procura agradar o leitor, mas nega
insistentemente toda uma realidade afirmativa, inserindo-se num grupo de artistas de seu
tempo, que apesar de parecerem incompreensíveis, apreendem os mecanismos mais sutis
de poder da estrutura social de sua época. No caso de Franz Kafka, constata-se as
sensações provocadas pela estruturação interna de suas obras, cujas sutilezas do aparato
coercitivo autoritário do clima nazista, já se rascunhavam na sociedade em que vivia.
Um dos pressupostos mais importantes de Kafka é que a relação
contemplativa entre o leitor e o texto é radicalmente perturbada. Os
seus textos são dispostos de maneira a não manter uma distância
constante com sua vítima, mas sim excitar de tal forma os seus
sentimentos que ela deve temer que o narrado venha em sua direção,
assim como as locomotivas avançam sobre o público na técnica
tridimensional do cinema mais recente. Essa proximidade física
agressiva interrompe o costume do leitor de se identificar com as
figuras do romance (ADORNO, 1998, p. 241).
Contrariamente às narrativas típicas da indústria cultural, em Kafka a apreensão
do enredo é truncada e complexa para manter uma tensão constante no leitor que,
rompendo com uma leitura comprometida ideologicamente, é remetido a outras esferas
de compreeno que vão além dos fatos narrados. Nessas narrativas, não se exige do
leitor muito mais do que se ater a uma série de informações dentro de uma seqüência
lógica dos fatos. Mas essas narrativas, ao mesmo tempo em que trazem ao leitor, não se
pode negar, uma amplião de conhecimentos sobre determinadas realidades, não
instauram uma situação de conflito que possibilitem um maior aprofundamento. Neste
sentido, o clima de angústia vivenciado na leitura da obra kafkiana, pode remeter o leitor
diante das situações conflitantes e enigmáticas, a uma maior percepção e compreensão
das angústias que ele vivencia no seu contexto social. o é por mera coincidência que
os produtos da indústria cultural pautam-se justamente na diversão e na distração,
procurando evitar a todo custo a vivência da angústia.
No primeiro capítulo de O Processo, que trata da detenção de Josef K., todo o
clima de teatralidade demonstrada no decorrer do episódio, possivelmente como ele
mesmo desconfia, não parece passar de uma brincadeira combinada pelos seus colegas de
74
trabalho. A porta de seu quarto é assaltada por dois homens de modo inesperado, numa
manhã como qualquer outra, quando K. recebe a notícia de que ele está detido, sem a
apresentação de qualquer justificativa. “Que tipo de pessoas eram aquelas? Do que elas
falavam? A que autoridade pertenciam? K. ainda vivia num Estado de Direito, reinava a
paz em toda parte, todas as leis estavam em vigor, quem ousava cair de assalto sobre ele na
sua casa?” (KAFKA, 2003a, p. 10).
“O senhor ainda vai perceber como tudo isso é verdade”, diz um dos guardas. No
entanto, dali a pouco surge um inspetor apenas para lhe comunicar formalmente que ele
havia sido detido, muito embora estivesse livre para exercer suas funções no trabalho. E,
para facilitar o seu retorno ao banco em que trabalhava, e de modo que seu atraso nem
fosse notado, trazendo qualquer transtorno ao ritmo natural da instituição, fora colocado à
sua disposição três funcionários subalternos de K. para acompanhá-lo até sua chegada ao
banco.
Essas situações típicas da estética kafkiana, podem deixar no leitor, diante das
cenas e diálogos patéticos, a sensação de que tudo aquilo em que K. se envolve não deve
realmente passar de um mal entendido que será esclarecido no decorrer dos capítulos
posteriores. Ledo engano. Ao invés de um esclarecimento, como era de se esperar, K. vai
se envolvendo em situações que vão obscurecer sua condição a cada novo passo. o há
ninguém com quem K. possa contar e a cada pergunta sobre o seu processo as respostas
são sempre evasivas. Todas as pessoas que ele aborda em busca de uma pista ou
esclarecimento do fato, assumem um nível de impessoalidade, conduzindo-o cada vez mais
às profundezas de um imenso labirinto.
No segundo capítulo, através de um telefonema algm comunica a Josef K. que o
primeiro inquérito, bem como os outros, ocorrerão aos domingos. É marcado o local da
audiência embora com muita imprecisão, pois pode ser dentro de qualquer apartamento
de um bairro pobre de grande extensão e vários andares. Nem ao menos foi-lhe
comunicado o horário. Ao comparecer ao primeiro inquérito, K. deduz que seja às nove
horas, horário em que normalmente tem início o trabalho do judiciário. Vai até o local
determinado correndo, pois não quer aceitar qualquer ajuda alheia. Em meio a um grande
prédio, começa pelo primeiro andar a perguntar por um tal carpinteiro Lanz, como pretexto
para olhar dentro dos apartamentos, procurando o local da audiência.
Apesar do texto literalmente remeter a aspectos da realidade, a sensação trazida ao
leitor é que tudo não passa de um sonho que o procurador Josef K. está tendo. Semelhante
75
recurso ocorre com as obras A Metamorfose e O Castelo, entre outras. A todo instante a
obra kafkiana explora uma dimensão de ambigüidade entre o que é irreal e a probabilidade
de ser real. Pois, conforme Carone (1986) “o fascínio e a novidade da escrita kafkiana
deriva exatamente da colisão entre o pormenor realista, beneficiado pela posição recuada
do narrador, e a fantasmagoria narrada, momento em que esta adquire, em termos
ficcionais, a credibilidade do real”.
A membrana ou a fronteira que separa esse jogo é que torna impossível para o
leitor apreender apenas o enredo da obra deixando-o intrigado. Esse processo desmonta a
percepção embotada de nossa época exigindo do leitor outras esferas de compreensão, não
da obra em si, mas do mal estar que ela provoca. Isto remete o indivíduo para uma
percepção mais aguçada dos conteúdos sociais e políticos semelhantes que, no correr da
obra vão se juntando, não de forma linear, instigando uma reflexão mais contundente e
vivenciada dos absurdos de tais acontecimentos. O mal-estar do leitor nos impasses,
abismos e absurdos de uma gica que o se resolve, remete essa vivência para uma
espécie de estranhamento pela qual nomeia ou estranha a sua condição.
No decorrer dos episódios do romance, tudo parece conspirar contra o procurador
K. A impressão é a de que a lei e seus executores começam a cercá-lo por todos os lados.
Num quarto de despejo do próprio Banco os guardas que ele denuncia são surrados por um
espancador ligado à justiça; o pintor Titorelli possui um posto hereditário, ainda que o
oficial, ligado ao tribunal. O próprio padre que profere a K. no penúltimo capítulo a
parábola Diante da lei, identifica-se como capelão do presídio. Mesmo em situações nas
quais efetivamente não exista nada de fato concreto contra ele, sua própria mente se imbui
de se apegar à idéia de perseguição.
Desconcertante, talvez esta seja a palavra correta. Os fatos inusitados, os mais
simples possíveis, levam o leitor a todo instante ao inesperado, sobretudo diante de
situações que aparentemente teriam uma continuidade lógica. A estrutura interna da obra
de Kafka não escamoteia o absurdo dos acontecimentos. Ela os traduz num conglomerado
de sensações que inserem a “serenidade alienante” do leitor no interior desses absurdos. O
leitor entra numa teia de estranhamentos que intriga as suas emoções e sentimentos diante
dos impasses que tais absurdos instauram na sua interioridade. Ele é instigado o tempo
todo a vivenciar o inaceitável e o improvel numa situação contingencial absurda. O
marasmo e a inércia, provocados por inúmeras tentativas frustradas de reação em meio a
um controle difuso e definitivo, permeiam a esfera de suas vivências cotidianas. O
76
desconforto gerado pelo descompasso de uma narrativa truncada, muitas vezes
aparentemente linear, remete o leitor para uma sensão de insignificância e abandono
tendo que construir um fio narrativo pelo qual é levado a tomar parte da trama.
Ao leitor não o dadas explicações dos fatos inusitados que ocorrem, tornando-se
ele mesmo interessado em denunciar uma trama dissimulada que se oculta e, por vezes, se
apresenta como natural e lógica. Intrigado, o leitor também não se conforma e, no
desconforto das situões não resolvidas, envereda pelas lacunas do texto buscando
nomear nos seus conteúdos internos a compreensão dos limites que envolvem a trama. De
certa forma, narrativas desse porte provocam e ampliam a percepção do leitor deixando-o
mais predisposto a reconhecer nos conteúdos sociais, os limites aí contidos como forma de
controle e opressão.
As argumentações sólidas a princípio encontradas no romance O Processo,
segundo Carone (2003), vão gradativamente perdendo a credibilidade, não oferecendo ao
leitor uma alternativa plausível. Os elementos convencionais da prática jurídica, como
inquérito, cartórios e escritório de advocaciao:
postos em questão através de detalhes que, no conjunto, descrevem uma
linha ascendente de autodescdito e inverossimilhança: o inquérito, por
exemplo, tem lugar no quarto dos fundos de uma casa de cômodos
miserável, os cartórios estão instalados em mansardas infectas, o
advogado recebe clientes na cama etc.. (CARONE, 2003, p. 252).
Apesar das situações absurdas encontradas na obra de Kafka em A Metamorfose,
por exemplo, Gregor Samsa se transforma em inseto gigante aquilo que parece absurdo
nada mais é do que um aspecto da realidade que se apresenta ao leitor que não a reconhece
na sua condição de verdade. O elemento absurdo pode servir para chocar o leitor,
sobretudo porque está habituado a uma determinada narrativa planificada, pautada na
repetição dos mesmos clichês do início ao fim. O roubo do clice do enredo facilitados
se, por um lado, desampara a acomodação do leitor por identificações conciliadoras, por
outro, oferece a possibilidade de ampliar o seu horizonte perceptivo. A cumplicidade do
leitor, neste caso, exige dele uma espécie de distanciamento das narrativas coisificadas que
afirmam e legitimam estruturas de coerção social e de opressão.
Modesto Carone refere-se a esse aspecto de Kafka quando aborda a questão de se
manter o leitor em dúvida em relação àquilo que é apreendido na fruição da obra. Nas suas
palavras:
77
Um exame superficial desta sentença
25
mostra que são conhecidas de
todos as regras sintáticas e as palavras que, através delas, se ordenam e
objetivam seu conteúdo. Mas para quem continua lendo a história o
sentido da ação que se segue o é nem confirmado, nem revogado: é
simplesmente posto em dúvida. Dito de outro modo, o que de início está
formulado de maneira válida, como conseqüência de uma tese (detenção
por presumível calúnia), acaba se tornando algo totalmente incerto
(CARONE, 2003, p. 252).
Em Kafka, a margem de possibilidades interpretativas diante das dúvidas
apresentadas em cada nova situação constitui um recurso de grande riqueza para a obra.
Determinada situação pode ser isso ou aquilo, ou ainda isso e aquilo, ou nem isso nem
aquilo. E quem sabe se tal questão não passasse de um breve pensamento na mente do
herói que ele tratou de não mais se ater? Kafka pode simplesmente passar para novas
digressões sem ao menos dar a menor satisfação sobre aquele determinado assunto que fica
em suspenso. É como se a personagem tivesse um lapso de memória ou ficasse num estado
de inconsciência passageira. Sua narrativa avança dentro de uma lógica convincente e
realista, mas, na contramão do texto, os próprios elementos afirmativos são a todo instante
colocados em dúvida, trazendo ao leitor algo desconcertante.
A narrativa kafkiana se diferencia da narrativa proposta pela instria cultural, que
não permite ao sujeito interagir com ela de forma criativa e reflexiva, uma vez que o dado
informacional vem como algo pronto e acabado. Ditando o tom da verdade
inquestionável para o leitor, a instria cultural deixa ao sujeito poucas possibilidades de
mediação em relação ao objeto apreciado. O sujeito não necessita realizar uma
interferência ativa no processo de elucidação e compreensão dos fatos narrados, mas deve
contentar-se com a mera imediaticidade da realidade que se impõe sobre ele.
Uma leitura conseente de Kafka, entretanto, instiga uma apreciação ativa e não
passiva de sua obra. Essa apreciação ativa confere ao leitor uma co-participação na obra,
exigindo uma interpretação pessoal na tentativa de decifrar seus enigmas. A riqueza desse
viés interpretativo conduz o sujeito a estabelecer uma relação de mediação com a realidade
social na qual se insere. Ao fortalecer a inseão do individual numa experiência de
compreensão dos mecanismos de controle social, a intrincada narrativa kafkiana possibilita
ao leitor um olhar mais consciente de tais mecanismos. A constatação de Adorno (1994, p.
25
A sentença a que Modesto Carone se refere é a frase inicial do romance “O Processo”: “Alguém
certamente havia caluniado Josef K. pois uma manhã ele foi detido sem ter feito mal algum”. KAFKA,
Franz. O processo. Rio de Janeiro: O Globo; São Paulo: Folha de S. Paulo, 2003 a. - tradução e posfácio
Modesto Carone.
78
35) de que, “na pressão do geral predominante sobre toda a particularidade, os indivíduos e
as instituições individuais tendem a desintegrar o particular e o individual juntamente com
sua capacidade de resistência”, reforça a importância da narrativa kafkiana em
contraposição aos discursos de afirmação ideológica na atualidade.
A obra de Kafka representa, nesse sentido uma crítica contundente às formas de
como o discurso oficial da sociedade industrial se cristaliza. Isso é demonstrado na
narrativa kafkiana através de uma o linearidade textual, que apresenta uma ruptura em
relação a padronização de comportamentos, imposta pela indústria cultural. Essa ruptura
com a dimensão linear e previsível típica da ideologia industrial, no entendimento de
Fabiano (1999), é vista como fortalecimento do fator estético das obras de arte como
resistência aos artificialismos culturais disseminados pela indústria cultural.
A não-linearidade inerente às obras de arte põe em evidência crísica a
perspectiva unidimensional que caracteriza a racionalidade administrada
vigente no contexto da sociedade industrial. Derivam desse fato o
controle e a apropriação ideológica dos conteúdos estéticos, que, assim,
empobrecem a formação cultural da sociedade como um todo.
(FABIANO, 1999, p.12).
A literatura de Kafka não é de fácil consumo, sobretudo para um imaginário social
habituado a níveis cada vez mais baixos de exigência cultural. Basta verificar os conteúdos
midiáticos que diariamente bombardeiam a opinião pública. De maneira geral, análises
incipientes, apelos medíocres e miudezas culturais compõem a mídia impressa, as novelas
televisivas, filmes de linhagem comercial, programas de auditório, programações musicais
de sucesso induzido que se somam à avalanche de uma literatura trivial e repetitiva que se
espalha suprindo as lacunas de um projeto formativo mais conseqüente. Que se acrescente
a esses recursos culturais regressivos, a desvalorização e a banalização que tem ocorrido
no processo educacional contemporâneo, das obras de arte e, mais especificamente, das
obras de arte literárias de peso estilístico essenciais à uma formação social autônoma.
Para uma sensibilidade submetida ao processo de massificação cultural, sem dúvida
a obra kafkiana, crê-se, causa ainda maior dificuldade e estranheza. No entanto, à revelia
da tendência cultural alienante, as narrativas kafkianas conseguem gerar um mal-estar
provocado por suas sinuosas desmontagens da percepção treinada a receber estímulos
automatizados, gerando uma sensação de desconforto e insatisfação.
Em Kafka, contrariamente à trivialidade discursiva alienante, percebe-se uma trama
literária (como em outros autores de grande valor estético) que possibilita ao leitor um
79
mergulho nos labirintos e abismos da existência humana, levando-o não à conformação,
mas ao conflito com a realidade da forma como se apresenta. Evidentemente, esse
processo não se dá por atitudes viciadas num enredo facilitado que conduz apenas a
apreeno da “estória”, excluindo da percepção do leitor, entretanto, as mediações com a
sua realidade histórica.
80
4.3. O Enfraquecimento do Indivíduo
A obra de Kafka, considerando-se a sua estruturação interna, como foi observado,
condensa conteúdos históricos que se revelam na sua estrutura profunda. Levando-se em
consideração essa premissa, adentrar a obra kafkiana na sua densidade estética,
aparentemente difusa e truncada, é possível também vivenciar situações imprecisas da
materialidade histórica que nela estão permeadas. Um fator importante que se associa a
essa questão é constituído pelas formas que a sociedade contemporânea tem assumido em
face do capitalismo tardio, num momento histórico de acentuação do Estado totalitário.
Fatores importantes da sustentação desse regime se dão por uma máquina burocrática
desumana, tornando o indivíduo impotente diante de um aparato de controle administrativo
impessoal e aniquilador.
Tanto em O processo como nO castelo, as personagens são assaltadas por uma
organização social que prima pela burocratização. Como afirma Carone (2003, p. 248),
“processo, lei, aparelho judiciário e burocrático são motivos que atravessam a obra de
Kafka”. O procurador Josef K. em O processo, está entretecido nas malhas do sistema
judiciário, expiando uma culpa que lhe foi atribuída arbitrariamente. No romance O
castelo, o agrimensor K., procurando valer o seu direito ao emprego de agrimensor, chega
a um lugar distante onde a possibilidade do referido emprego é colocada constantemente
em dúvida, forçando-o a se deparar com a máquina administrativa, representada pelo
poderoso e inatingível castelo.
Essa organização burocrática a que se refere Kafka em suas obras, o se restringe
apenas ao sistema judiciário, mas estende-se a toda uma burocracia de Estado, com sua
autoridade administrativa e impessoal. Em ambos os romances citados, é estabelecido um
contexto narrativo no qual o indivíduo se encontra preso às amarras de uma organização
social que sobrevive e se mantém alimentada exclusivamente por uma estrutura
administrativa da qual ninguém escapa ao controle.
O anseio mais angustiante de Josef K. em O processo é se defender de uma
acusação imputada contra ele, da qual nem ele mesmo sabe o motivo. Se a partir desta
lógica que inaugura o romance, o procurador intenta uma reação contra a injustiça do
sistema – ele acredita mesmo se safar do processo ileso no decorrer dos episódios, diante
do esgotamento de suas forças, ele acaba por se submeter ao processo, assumindo
gradativamente a culpa que lhe é imputada. De acordo com Löwy (1989) é a imagem da
81
servilidade à autoridade, representada pela figura de um cão, que é invocada por Kafka
para demonstrar a vergonha que Josef K. sentiu no momento de sua execução ao final do
romance, por ter cedido sem resistência a seus carrascos.
Pode-se pensar, que justamente por Josef K. apresentar uma reação em relação às
injustiças do poder estabelecido, o ódio violento do próprio poder volta-se contra ele, pois
enquanto força totalizadora do social, não tolera aquilo que é dissonante. Daí o possível
motivo do extermínio do procurador bancário. Esse ódio ao poder não se restringe somente
às classes superiores, mas sim a todos aqueles que se conformam com a sua condição de
submissão, servindo não aos seus interesses próprios, mas aos interesses do sistema como
um todo.
Através da dimensão alegórica as personagens principais de Kafka tornam-se
insignificantes diante da organização prepotente de um Estado poderoso, totalitário que se
sobrepõe de tal forma sobre o indivíduo a ponto de extinguir a sua vontade própria e a sua
capacidade de reação. Isto constitui-se num elemento de bastante riqueza estética na obra
de Kafka, pois pode levar o leitor a perceber as formas e os mecanismos utilizado pelo
Estado no sentido de coisificar as consciências obstruindo assim as possibilidades de
desenvolvimento na sociedade de indivíduos autônomos. Esse totalitarismo, no entanto, é
preciso ser entendido como fator da defesa do Estado submetido aos interesses capitalistas.
Como visto no primeiro capítulo deste trabalho, uma das características da
burocracia moderna é o caráter de impessoalidade dos participantes na busca da eficiência
da organização. A frieza dos comportamentos pré-elaborados impossibilita o indivíduo de
se expressar emocionalmente, moldando-o cada vez mais à imagem do cargo que
representa na organização.
A organização burocrática apresentada por Kafka tanto em O processo quanto em
O castelo em última instância pode ser influenciada em seus níveis inferiores. Os níveis
superiores são totalmente inacessíveis, o que pode representar a onipresença do Estado
moderno, que não tem cara. Ninguém consegue ter acesso aos níveis superiores. Se os
níveis inferiores ainda são passíveis de influências pessoais e negociatas, os níveis
superiores se revestem de uma engrenagem racional que os mantém praticamente
dissociados da sociedade, para assim exercerem com mais eficácia sua dominação.
Por exemplo, numa longa passagem de O castelo, quando Olga conta para K. sobre
as tentativas frustradas de seu irmão Barnabás de trabalhar para o Castelo, é mostrado ao
leitor, através dos efeitos psicológicos provocados pela narrativa, a vivência das entranhas
82
de uma organização que se oculta atrás dos protocolos administrativos, impondo uma
barreira praticamente inacessível para aqueles que tentam chegar até ela.
Então nos perguntamos: é realmente serviço do Castelo que Barnabás
está fazendo? É certo que ele entra nos escritórios, mas esses escritórios
fazem parte real do Castelo? E mesmo que haja escritórios de verdade
no Castelo, são esses os escritórios em que Barnabás tem permissão para
entrar? Ele é admitido em certas salas, mas o apenas uma parte do
todo, pois barreiras por trás das quais há mais salas. Não que ele
esteja realmente proibido de ultrapassar a barreira, mas não tem
oportunidade de passar por elas, uma vez que tenha encontrado os seus
superiores e depois de atendido tenha sido dispensado. Além disso, todo
mundo é observado, pelo menos acreditamos. E mesmo que ele fosse
mais adiante, que vantagem teria não tendo obrigações oficiais para
levar, passando a ser um mero intruso? (KAFKA, 2003 b, 249 - 50).
Ainda sobre as formas, atrás das quais o poder se oculta, é interessante destacar o
personagem Klamm, que representa a alta autoridade do Castelo. Ele é um chefe poderoso
que exerce sobre a gente da aldeia uma verdadeira mística, mistura de temor e adoração.
Representante do poder inacessível e apesar de manter contato com a aldeia, quando vai
numa estalagem chamada Herrenhof, ninguém nunca conseguiu falar com ele
pessoalmente. A própria descrição da sua feição é confusa, sendo que um diz ser de uma
forma, outro de outra.
O Estado moderno, que oculta seu rosto, apresenta níveis de organização e controle
que atingem o indivíduo até mesmo na sua esfera privada. É sintomático que os inquéritos
do procurador Josef K. ocorram aos domingos e que os funcionários dos cartórios fiquem
quase ininterruptamente nos cartórios e também durmam (KAFKA, 2003 a, p. 69). O
mesmo ocorre no início de O castelo quando Schwarzer liga tarde da noite para o castelo
para perguntar se havia sido contratado um agrimensor. E eles não eram remissos nas
providências: o escritório central tinha um serviço noturno” (KAFKA, 2003 b, p.11). A
necessidade de controle total sobre a vida humana se ime como modo operante de uma
maquinaria burocrática que não descansa nem descuida dos interesses que resguarda.
Os funcionários são representados por Kafka como sujos e decadentes, sempre com
uma atitude de servilidade para com uma engrenagem corrupta e autoritária. Pode-se dizer
que são também responsáveis pela sua sustentação, uma vez que aceitam as ordens
exteriores passivamente. A imundície dos ambientes e das personagens exploradas
esteticamente por Kafka, remete à compreensão da imundície de suas próprias
personalidades e relacionamentos. Enquanto executores das normas, sejam elas as mais
83
absurdas e terríveis, os funcionários ao mesmo tempo também esboçam atitudes rfidas
de sobrepujação em relação aos outros funcionários da hierarquia ou às pessoas da
comunidade. Como afirma Benjamin, em Kafka “a imundície é de tal modo um atributo
dos funcionários que eles podem ser vistos como gigantescos parasitas. Isso não se refere,
naturalmente, às relações econômicas, mas às forças da razão e da humanidade, que
permitem a esses indivíduos sobreviver (BENJAMIN, 1994, p. 139).
A imundície dos ambientes e dos funcionários kafkianos pode representar também
o desapego do indivíduo para consigo mesmo para se dedicar exclusivamente ao sistema,
na perspectiva de salvaguardar as normas burocráticas, assegurando assim a ordem
estabelecida. A burocracia, assim, é a alma que mantém animada a organização do sistema
por uma ordenação racional e previsível da vida social. Ao manter a ordem e os interesses
do Estado, a burocracia destrói a ordem interna do sujeito, tornando-o frágil e
impossibilitado de reação. Em suma, se prima por uma organização das relações sociais na
qual os interesses do Estado estão acima dos interesses do indivíduo, instaurando o caos no
sujeito.
Dada a peculiaridade do nexo narrativo em Kafka, suas personagens se apresentam
num limite extremo de fragmentação e solvência perante o aparelho burocrático e
totalitário que determina e organiza ao seu intento suas existências. Essa característica é
muito bem representada pelo prepotente aparelho judiciário anônimo em O processo, pela
intransponível hierarquia burocrática de O castelo, ou na condição de insignificância
humana reduzida à condição de inseto em A metamorfose. A imagem que se tem do
indivíduo em meio a tais circunstâncias de controle constante, é a de um indivíduo
aprisionado por um sistema que não lhe confere possibilidade de saída da situação em que
se encontra.
Numa passagem de O processo, Josef K. entra por um corredor dos cartórios e se
depara com um ambiente escuro, de ar sufocante e pesado, com pessoas debilitadas
apresentando aspecto de grande sofrimento e à espera de serem atendidas. Mesmo
parecendo pertencer a uma classe superior, apresentavam-se mal vestidas. Ao atravessar o
corredor, Josef K. parece bastante confiante, mas o consegue avançar muitos passos e,
como se tivesse adentrando num lamaçal de sujeira, é tomado de um grande mal estar
devido à sensação de opressão que o lugar lhe causava.
O ambiente burocrático com seu ar pestilento parece sugar as forças de K. a ponto
dele ter que ser carregado de volta pelo corredor por dois funcionários do cartório. Se na
84
sua vinda K. era senhor de si, agora na volta ele estava entregue aos dois, se eles o
largassem, cairia como uma bua” (Id, ibid p. 71). K. somente recuperou repentinamente
suas forças quando foi retirado do ambiente e respirou ar fresco.
As situações apresentadas demonstram, em termos alegóricos, o clima dissimulado
das diversas formas de controle social que administram tanto a vida pública quanto a vida
privada na atualidade. Os impasses e indignações vividos pelos personagens nas
circunstâncias do plano ficcional o transubstanciações em nível estético de uma
realidade social vivenciada sem o crivo da reflexão sobre os seus efeitos. A vida moderna,
cada vez mais torna-se cativa de um aparato burocrático que rege o enquadramento social
segundo as determinações de um Estado que está a serviço dos interesses do mercado.
O indivíduo, na contemporaneidade, torna-se impotente diante do aglomerado de
solicitações burocráticas que administra a sua existência social num mundo em que a
noção dos seus próprios direitos se confunde em meio a tantas exigências e regulamentos.
As tentativas de acesso às autoridades para fazer valer seus supostos direitos e
reivindicações, ficam diluídas e se perdem diante dos aparatos burocráticos pelos quais a
maquinaria do controle se resguarda. Um comentário do sociólogo Maurício Tragtenberg
(1962) sobre a situação do agrimensor às voltas com a obscura trama burocrática em torno
da efetivação do seu contrato de trabalho em O castelo, demonstra o distanciamento das
instâncias do poder constituído enquanto representação dos seus interesses. Embora o
comentário seja da obra, a relação entre indivíduo e as tramitações burocráticas pelas quais
uma organização de Estado se mantém, aparecem de forma evidente.
O que agravara a luta entre o herói e o Castelo, foi o fato deste não lhe
dar combate, oferecendo-lhe uma resistência passiva. Desesperante e
esgotadora. K. é “vividopelo Castelo e as coisas se sucedem com pré-
determinação absoluta. A essa vivência deve-se o fato da vida do
agrimensor desenvolver-se ligada a um equívoco fatal: o erro consiste
em crer que se está lutando para chegar ao Castelo, quando não se faz
outra coisa na realidade, do que permanecer nas mediações
(TRAGTENBERG, 1962, p. 13 e 14).
Se é possível depreender, pelo comentário de Tragtemberg, que as tentativas do
agrimensor para chegar ao interior do Castelo o avançam além das suas mediações, isto
não significa apenas que o agrimensor se distancie de seu intento. A constatação,
entretanto, não está incorreta uma vez que a estrutura da obra mantém esse clima obsessivo
e hesitante até ao final. Não obstante, a impessoalidade administrativa nas instâncias do
85
poder dela se vale para afastar os recursos contrários à legitimação dos seus interesses, e
este fato é constatável na relação entre o Castelo e o agrimensor.
Esse esquema cada vez mais, na contemporaneidade, tem fortalecido estruturas de
um poder prepotente, ancorado num Estado cúmplice que administra os seus comandos e
domínios no usufruto da fragmentação e solvência do indivíduo. As narrativas kafkianas
são alegorias aguçadas desse processo, truncando a compreensão imediata e embotada do
leitor, para exigir dele uma percepção mais profunda e consciente dos mecanismos
complexos pelos quais estruturas de poder se instalam e permanecem. Sem vida, essa
questão remete ao que se poderia considerar, no caso de Kafka, de grande genialidade,
qual seja, aspectos da construção interna de sua obra. Um dos fatores que marcam e
diferenciam essa característica é a quebra da linearidade no enredo que desgoverna não
apenas as intenções das suas personagens, mas a própria apreensão linear e, por vezes,
displicente do leitor. O domínio do entendimento comum do leitor, é assim arremessado
para o domínio de outras instâncias da realidade que ele vivencia sem conseguir nomeá-la.
Uma interessante observação de Adorno demonstra o quanto a estruturação sutil da
linguagem de Kafka, naquilo em que ela se apresenta como desamparo e desesperança, é
transcrição cifrada da lei infame e sórdida do representado como resistência. Diz Adorno
(1998, p. 250): “Se a obra de Kafka conhece a esperança, ela está antes em seus extremos
do que nas fases mais moderadas: na capacidade de resistir a uma situação extrema,
transformando-a em linguagem”.
É importante e oportuno demonstrar esse recurso recuperando o eixo narrativo de O
castelo. Um agrimensor é contratado para trabalhar para um Castelo. Após uma viagem
extenuante sob forte nevasca e mau tempo chega às adjacências do Castelo tarde da noite.
Hesitante em seguir até o Castelo, visto que, nem mesmo se podia avistá-lo encoberto pela
névoa densa, procura por alojamento numa estalagem ainda acordada e, aparentemente
aquecida, no vilarejo mergulhado em neve. Embora o senhorio, um tanto desconcertado
com a inesperada chegada do agrimensor não pudesse oferecer-lhe um quarto, deixa-o
dormir num saco de palha no bar. Cansado que estava, não resistiu e logo pegou no sono.
Pouco tempo depois, é acordado por um jovem bem trajado que se apresenta cortesmente
como o filho do castelão. A partir desse momento, começa a ocorrer uma série de situações
estranhas que a princípio, parece um mal-entendido, apenas. O filho do castelão estranhara
a sua presença ali, sem passar pelo Castelo ou obter a permissão do conde. Uma vez que
não tinha permissão do castelo que justificasse a sua presença ali, o filho do castelão
86
advertiu-o de que deveria retirar-se imediatamente. O agrimensor retruca tal decisão
solicitando que se consiga uma licença do conde, no que é contestado em função do
adiantado da hora. O jovem filho do castelão decide esclarecer o equívoco através de um
telefonema cuja resposta parecia demonstrar que o Castelo o havia reconhecido como
agrimensor. O fato é que, nos dias que se sucedem, toda iniciativa do agrimensor na
tentativa de chegar ao Castelo não se efetiva por um ou outro empecilho que se impõe. Ao
indignar-se, alguém procura dissuadi-lo da intenção. As demais outras tentativas também
são frustradas e intensifica-se a intenção de demovê-lo da insistência. Os dias vão se
passando e, quanto mais o agrimensor tenta fazer contato, inclusive com funcionários do
próprio Castelo, obtém sempre uma resposta difusa como se nada constasse entre os
setores responsáveis ou livros contábeis sobre a possível contratação de um agrimensor
pelo Castelo. Em meio a uma série de acontecimentos, ora nada consta ou é explicado, ora
aparece algo ou alguém que pode esclarecer ou demonstrar se tal probabilidade está sendo
discutida por funcionários do alto escalão. Indignado e pasmo, o agrimensor procura
contato com pessoas que m algum acesso ao Castelo ou que tenha contatos com
funcionários dos setores administrativos ou seus chefes imediatos. Nenhuma resposta
satisfatória é obtida, nenhum encaminhamento da sua situação é vislumbrado.
O enredo segue nessas tentativas constantes, perpassando por uma série de
envolvimentos que preenchem o cotidiano do agrimensor, ainda assim, às voltas com as
tentativas de conseguir esclarecer o ocorrido com a sua contratação. Nesse meio tempo ele
se envolve com Frieda, amante de um alto funcionário do Castelo, tenta obter informações,
tenta chantagens, encontros com subordinados e autoridades e mais se vê envolvido numa
trama burocrática e administrativa sem fim, que exclui cada vez mais a possibilidade de
esclarecimento. O marasmo de um relacionamento amoroso e a difusa possibilidade do
agrimensor encontrar uma resposta plausível para o seu caso constituem um enredo que se
arrasta em meio a um vilarejo castigado por neve constante e personagens estranhos e
rudes.
A aparente linearidade inicial do enredo se quebra justamente no momento em que
uma certa ambigüidade entre gica e absurdo se entrelaça. O que parece um suposto
equívoco determina uma não-linearidade no eixo narrativo em que a situação do enredo
cada vez mais envolve o leitor num desconforto que ultrapassa as sensações vividas pela
personagem central. Ocorre nesse momento uma espécie de armadilha estratégica utilizada
por Kafka que desloca a percepção do enredo numa estrutura que não é mais a da obra em
87
si, mas as implicações e os impasses para o enredo da própria existência do leitor. A não-
linearidade é fundamental para criar esse efeito. É nesse sentido que ela rompe com a
rede de discursos alienantes que envolvem o indivíduo e o desvia da compreensão dos
mecanismos de controle social pelos quais os mecanismos de coisificação de sua
consciência se reproduzem.
As sensações vividas pelo agrimensor nas mediações frustradas com as instâncias
burocráticas de uma forma de poder constituído, a indignação, as investidas estratégicas e
a concessão forçada estabelecem uma relação de contigüidade entre a ficção e os veios de
consciência do universo do leitor. A tensão constante de uma situação que não se resolve e
a fragmentação do foco narrativo, pelos hiatos e lacunas que não se explicam, ausentando
uma solução facilitada, inserem o leitor num espaço de sua ppria existência para
localizar nas suas vivências os mecanismos de controle e de coerção.
Por essa quebra da linearidade é que se torna possível perceber o salto alegórico da
obra para a dimensão social de um Estado prepotente que se organiza pelos interesses que
o constituem em função do controle que exerce na desorganização e esfacelamento do
indivíduo. Esse enfraquecimento do indivíduo na construção de sua identidade torna-se um
fator importante de obstrução da possibilidade de uma subjetividade forte constituir-se de
forma emancipada.
O desenvolvimento da sociedade tecnológica não só determinou um padrão de
sujeito como instrumento de produção como também impotencializou a perspectiva de sua
sobrevivência. As volumosas exigências das esferas administrativas e burocráticas para o
desempenho eficiente desse modo de organização social estabeleceram uma concepção de
sujeito identificado apenas por um conjunto de regras pelo qual ele é reconhecido ou
descartado. Um certo distanciamento conseqüente desse processo oculta na sua
racionalidade administrativa o senso de valor atribuído à ação humana e a visão
objetificada da noção de sujeito, pela qual a falência da identidade humana cada vez mais
se intensifica. A racionalidade instrumental que norteia a sociedade tecnológica se
corporifica assim, não apenas enquanto um referencial de progresso técnico, social e
humano, a sua dinâmica produtiva passa também a se estabelecer enquanto instância de
poder que através da ordenação burocrática e administrativa organiza a legitimação dos
seus interesses econômicos.
Essa objetificação do ser humano, que se torna supérfluo diante do aparato
administrativo, paira o tempo todo nas situações de impasse e clima sufocante vivenciados
88
pelas narrativas tortuosas da obra de Kafka. No entendimento de Adorno (1998) a sua obra
traduz um momento que lateja na consciência do indivíduo a condição de insignificância a
que a individualidade humana fora reduzida pelo traço autoritário e coercitivo ainda
exercido pela forma do poder existente.
Quem parece supérfluo não o os poderosos, mas os heróis impotentes;
nenhum deles presta um serviço socialmente útil. (...) Esses heróis
rastejam por entre propriedades muito tempo amortizadas, que lhes
concedem existência apenas como esmola, na medida em que
sobrevivem além da conta. O deslocamento é moldado segundo o
costume ideológico que glorifica a reprodução da vida como um ato de
graça dos ‘empregadores’, que dispõem sobre ela. Ele descreve um todo
no qual aqueles que a sociedade aprisiona, e que a sustentam, tornam-se
supérfluos (ADORNO, 1998, p. 252).
Esse processo é recorrente tanto no caso do agrimensor de O castelo quanto nas
demais narrativas kafkianas. Compreender, portanto, apenas o autoritarismo judiciário
sobre Josef K. em O processo, não diz muito nem diferencia tanto a genialidade de Kafka
nesse aspecto. A forma com a qual ele traduz e cria as situações do infortúnio judiciário
sobre alguém que se sente inocente é que é a questão. O fato de Kafka criar a situação de
um processo sobre alguém ileso de culpa pode ainda estar no plano linear de mero
equívoco da justiça. No entanto, os mecanismos narrativos carregados de estranhamentos,
na forma de reação da personagem e da reação do poder legal é que dão as pistas de outras
instâncias significativas pelas quais o leitor tropeça e acaba indo de encontro a si mesmo,
para compreender não apenas o dado pelo enredo da obra, mas a sua própria condição no
mundo real.
A resolução do desequilíbrio inicial num possível ou diferente nível de equilíbrio
final, o exigida pelo espírito do entretenimento consumista atual não é, portanto, o que
caracteriza o enredo da obra de Kafka. Em Anotações sobre Kafka, Adorno comenta que:
“Um dos pressupostos mais importantes de Kafka é que a relação contemplativa entre o
leitor e o texto é radicalmente perturbada” (1998, p. 241). Na avaliação de Adorno: “O
leitor deveria se relacionar com Kafka da mesma forma como Kafka se relaciona com o
sonho, ou seja, deveria se fixar nos pontos cegos e nos detalhes incomensuráveis e
intransparentes” (1998. p. 243). Essas observações o fundamentais para se entender uma
das queses centrais que diferencia a obra de Kafka das banalizações estéticas veiculadas
por narrativas triviais de ajuste ideológico da sensibilidade humana atualmente. Para
89
Adorno, é na demolição que reside justamente a força de Kafka: “diante do sofrimento
incomensurável, ele derruba a fachada acolhedora, cada vez mais submetida ao controle
racional” (1998, p. 247). A monotonia, o marasmo, a esperança de que mais adiante algo
se encaminhe e se resolva, decepciona o leitor que tenta a qualquer custo uma saída, às
vezes até mesmo de uma solidariedade egoísta para com a personagem vitimada, tentando
em vão salvar-se, ele próprio, da angústia em que se meteu. Ambos sucumbem nessa
intenção, na mesma impotência, fatal e inexorável.
Em Anotações..., a constatação de Adorno (1998, p. 251) também não alivia nem
conforta: “Em sua obra, tudo se dirige a um instante crucial, onde os homens tomam
consciência de que não são eles mesmos, são coisas”. Por mais terrível que possa parecer,
não se trata de uma apologia do desamparo e resignação diante do inevitável. Trata-se de
um momento de consciência profunda entre o indivíduo e as condições em que são
exercidas as relações de poder sobre ele. Uma consciência, segundo Adorno, em que a
gênese social do indivíduo é revelada ao final como o poder que o extermina. A obra de
Kafka, como bem observa, é uma tentativa de absorver essa absurdidade:
o nada de insano em sua prosa [...]. Cada frase traz a marca de um
espírito seguro de si, mas também foi anteriormente arrancada da zona
de loucura na qual todo conhecimento deve se aventurar para se tornar
de fato conhecimento, principalmente em uma era na qual o sadio bom
senso apenas contribui para reforçar o ofuscamento universal. O
princípio hermético desempenha, entre outras, a função de uma medida
de proteção contra a loucura que avança. Isso significa, contudo, a
própria coletivização desse princípio (ADORNO, 1998, p. 249).
O clima de impasse e de um enredo sinuoso que perpassa lugares e ambientes
sombrios, com situações difusas que não se resolvem irritam o leitor que anseia por
alguma solução plausível. Todavia, está justamente nessa negativa da intenção almejada
pelo leitor o veio de consciência que a obra instiga. A fuga do leitor, estabelecida por
alguma resolução nas circunstâncias em que o enredo foi construído seria a sua própria
ruína, à medida que nela residiria o falso, o engodo, o consolável diante das condições de
reificação e aniquilamento do indivíduo. Adorno (1998, p. 249) afirma que “a gênese
social do indivíduo revela-se no final como o poder que o aniquila. A obra de Kafka é uma
tentativa de absorver isso”. Portanto, as condições e circunstâncias nas quais as
personagens de sua obra estão envolvidas, não podem encontrar saída desse todo em que
90
se inserem. A saída, a possibilidade de resolução do conflito, seria a própria afirmação de
um sistema social parasitário e a forma como se organiza.
É justamente na negação constante do olhar viciado ou conciliador do leitor que a
obra instiga o seu olhar para uma estrutura social parasitária que oprime e exclui a própria
condição de existência do indivíduo. A resolução do conflito nas circunstâncias em que o
poder esconstituído na estrutura da obra estaria apenas reforçando níveis de afirmação
ideológica na estrutura de poder que a obra nega. A não resolução do conflito que se
estende pesadamente pelo marasmo, no andar lento da obra, é o elemento pelo qual se
revela de maneira cifrada, um Estado que autoritariamente se resguarda na ocultação dos
interesses de classe que o compõem. Nos limites dessa negação é que se vislumbra a
possibilidade de estabelecer a consciência como negação das determinantes de reificação e
insignificância do indivíduo em sociedade.
Kafka não muda o mundo, muda o enfoque pelo qual o leitor pode enxergar o
mundo. Isso traz alguma esperança, ainda que não se tenha esperança alguma após a leitura
de uma obra de Kafka. Talvez, resta desta desesperança apenas um contato mais íntimo do
indivíduo com as suas fragilidades na realidade contemporânea. Se uma obra de arte chega
a esse ponto é possível entender porque, no desenvolvimento da sociedade capitalista,
acabou por desenvolver-se uma cultura banalizada, como forma de anestesiar as
possibilidades de consciência que uma cultura mais consistente poderia desenvolver para a
constituição de sujeitos emancipados.
.
91
5. FORMAÇÃO SOCIAL E EMANCIPAÇÃO
5.1. Implicações da Estética para o Processo Formativo
Não se pode descartar as questões levantadas nos capítulos anteriores sobre os
efeitos da indústria cultural nos processos educativos atuais, sem levar em conta o contexto
histórico em que eles estão inseridos. As grandes reformulações educacionais propostas
desde a década de 60 e 70, com a Reforma Universitária Lei 5.540/68 e a LDB Lei de
Diretrizes e Bases da Educação, Lei 5.692/71, desembocam nas políticas públicas do
Brasil a partir do início da década de 90. O agravamento das crises educacionais no país, a
interferência e a intesificação desse conjunto informativo massificado nas questões
educacionais devem ser tratados numa conjuntura que se leve em conta o ajuste neoliberal,
de desmonte do Estado e estabelecimento do Estado-mínimo (privatização de empresas
estatais e serviços blicos e interferência mínima do poder público sobre os
empreendimentos privados), que tem gerado uma gica de exclusão sem precedentes. A
adoção dessas políticas públicas, baseadas no ideário neoliberal e seguindo uma série de
ditames impostos pelas instituições financeiras internacionais (FMI, Banco Mundial, BID),
tem refletido no campo educacional, tanto no escamoteamento de investimento público em
Educação, como em processos camuflados de privatização (FRIGOTTO, 1994).
A negligência do poder público para com a área educacional não é algo recente. No
entanto, o que tem caracterizado o momento atual é um retrocesso ainda maior. Ao invés
do aumento de oferta, em quantidade e qualidade de educação pública, evidencia-se um
movimento contrário: maior precariedade de investimentos e o Estado repassando para o
âmbito da sociedade civil a responsabilidade que é de sua competência executar.
O Estado, enquanto gestor dos recursos públicos, tem negligenciado suas ações no
sentido de garantir um processo formativo responsável. Os deveres constitucionais de
fornecer ao cidadão o acesso à educação, saúde, moradia e qualidade de vida, não têm sido
cumpridos, recaindo sobre a área social a precariedade dessa forma de poder estatal. Por
outro lado, enquanto mantenedor dos interesses burgueses, esse Estado se apresenta com
bastante eficiência no sentido de manter a ordem existente, seja através de mecanismos
mais sutis de manipulação ideológica, seja através, se preciso for, do uso da força policial.
92
Tendo em vista a massificão e mercantilização dos produtos culturais levados a
cabo pela indústria cultural, a educação formal deve se ater a esses processos que têm se
constituído como grande influência para a formação na atualidade, ainda que sejam na
direção de uma formação regressiva (PUCCI, 1999, p. 116).
Os produtos veiculados pela indústria cultural, como já visto, têm determinado uma
série de informações direcionadas a fixar padrões de comportamento. Sendo assim, todo
um modo de conceber o mundo a partir da sua ideologia da diversão e da facilidade, pelos
seus atrativos mais imediatistas, acaba sobrepondo-se a uma realidade escolar que, na sua
precariedade formativa atual, também absorve os seus conteúdos. Ainda que a escola
possua uma boa estrutura, fica evidente a discrepância entre as suas possibilidades de
interferência pedagógica e o intenso bombardeio midiático conformando os sentidos
humanos aos inevitáveis reducionismos culturais da indústria cultural. Concorda-se com a
análise de Pucci (2004, p. 6) ao afirmar que:
o aluno que ingressa à sala de aula assistente assíduo das novelas ou
dos inúmeros programas de canais alternativos, navegador expert das
infindáveis ondas da Internet, freentador habituê das cativantes
conversações dos chats perde o encantamento com o ensino formal,
vê a escola como um local desestimulante, anacrônico.
Como mencionado na parte inicial desse estudo, por mais que se diferencie nos
seus canais de mensagem como a televisão, o cinema, o rádio, a internet, revistas, sica,
etc., a indústria da cultura a tudo impõe um caráter de massificação pela dimensão
mercadológica que imprime aos bens culturais. Seus mais diferentes setores apresentam
uma harmonia entre si, configurando a sua função de estabelecer homogeneidade ao
sistema. A padronização, redundância e previsibilidade, resultantes dessa perspectiva de
homogeneização, determinam um empobrecimento cultural, abaixando o nível de
exigência cultural a ponto de comprometer processos formativos mais conseqüentes.
Por outro lado, a própria educação, influenciada pela indústria cultural, muitas
vezes absorvendo seus conteúdos aparentemente motivantes, acaba também
descaracterizando uma de suas funções específicas, qual seja, a busca pela formação de
sujeitos emancipados. No entanto, esses processos formativos regressivos não o
resultado de determinantes exclusivas do advento da indústria cultural, mas remontam ao
séc. XVIII, momento histórico a partir do qual a produção industrial capitalista se
estabelece enquanto hegemônica.
93
A divisão do trabalho e o incremento da maquinaria, e posteriormente o avanço
tecnológico acabaram desencadeando processos de desestruturação na constituição do
sujeito contemporâneo. Todo esse processo industrial e seu impacto na cultura, têm
formado um homem preso às amarras de uma razão instrumental pela qual se objetifica a
serviço do aperfeiçoamento técnico da produção.
Se na produção manufatureira o homem ainda podia ditar o ritmo da produção, com
o advento da Revolução Industrial o homem passou a exercer um papel passivo ao perder o
controle sobre o processo de trabalho. O esquema do controle produtivo firmado pelo
taylorismo, a partir do século XX, ao intensificar esse processo, provocou um controle
produtivo com o adestramento do corpo para o desempenho produtivo. O planejamento
rigoroso desenvolve toda uma burocratização que, ao ajustar o sujeito ao processo
produtivo, também o predispõe a um esquema de vida social voltado às exigências da
produção.
Diante dessa forma de organização social da produção, o indivíduo passa a assumir
gestos repetitivos e estereotipados, que reduzem suas capacidades mentais, voltadas
especificamente para o gerenciamento da produção. Nesse ambiente social de supremacia
do controle produtivo e desgaste não apenas físico, mas também mental do trabalhador, o
nível de um investimento cultural mais consistente perde a função diante do pragmatismo
cultural voltado à produção. Como resposta a grande massa que se avolumava nos centros
produtivos industriais, o investimento cultural assume a função de distração e
entretenimento, integrando-se como lazer e consumo no ambiente da produção industrial
que se afirmava social e economicamente definitiva.
Não se pode negar, entretanto, os avanços tecnológicos e científicos
proporcionados pela Revolução Industrial. O desenvolvimento técnico em si o
representa algo nefasto para a sociedade, mas trata-se de questionar a forma de sua
apropriação segundo os interesses sociais que a determinam. Se o conhecimento técnico
possibilitou ao homem um domínio cada vez maior do mundo natural, ao mesmo tempo,
passou a ser utilizado com objetivo ideológico de perpetuação da sociedade capitalista,
visando a exploração e a sujeição do próprio homem. É nesse contexto que a indústria
cultural é legitimada impondo uma visão de mundo de afirmação da ordem burguesa. Os
seus mecanismos se dão de maneira o astuta, que as formas de resistência do indivíduo
transformam-se em passividade, numa concordância aparentemente livre e espontânea para
com o aparelho de dominação social.
94
Ao transformar os bens culturais e a própria arte, nivelados à condição de
mercadoria no mesmo plano dos demais bens de consumo, a indústria cultural cede aos
interesses econômicos que a determinam e deles se torna cúmplice. A conseqüência
inerente à gica desse processo é a transformação dos bens culturais em distração e
divertimento, consumidos e descartáveis no mesmo plano da gica da mercadoria pela
qual a totalidade do sistema econômico se reproduz. De acordo com o entendimento de
Fabiano (2002, p. 232) “essa idolatria de uma diversão inconseqüente têm gerado, no
entanto, um sujeito obtuso e bem integrado a um meio social que o domina de tal forma
que ele nem mesmo se dá conta do esvaziamento que sofre pela inundação dos meios
informativos que recebe”.
A forma como a indústria cultural, inevitavelmente ime o seu conjunto de
valores através dos apelos mais sutis que faz no imaginário social e revela a sua
cumplicidade ideológica com os mecanismos autoritários da sociedade administrada,
segundo avaliação de Horkheimer e Adorno (1985). Na sua acepção, os conteúdos de uma
sociedade administrada revelam, pelo seu caráter manipulador, traços de um totalitarismo
que destroem os processos sociais que fortalecem uma individualidade pela qual o sujeito
se constitui.
Todo esse processo toma uma conotação ditatorial, através do controle opressivo e
da dominação. Ele é imposto, quase sem a possibilidade de resistência ou questionamento,
pois o sujeito vai gradativamente sendo minado no seu poder de compreensão objetiva da
realidade social. Fragilizado por tal processo de fragmentação de sua identidade, o sujeito
acaba assumindo atitudes individualistas que vão de encontro aos interesses mais amplos
da concepção de propriedade privada, dominante no pensamento burguês.
Compensatoriamente, esse individualismo preenche uma individualidade manipulada e
frágil que aprisiona o sujeito moderno na rede ideológica pela qual a hegemonia do
pensamento burguês busca se impor.
Privilegiando o aperfeiçoamento técnico em detrimento dos conteúdos, que são
repetitivos e esvaziados de um significado emancipador, a indústria cultural preconiza uma
espécie de formação reduzida ao estereótipo da simplificação dos valores e costumes. A
tudo conferindo um ar de identidade e linearidade, a cultura do divertimento, pela sua
cumplicidade ideológica de caráter autoritário, mais do que proporcionar uma espécie de
fuga da realidade perversa ela conforma as consciências, reorienta focos de resistência ou
de atitudes dissonantes, naturalizando a vida social.
95
A partir da recuperação dessas considerações sobre os conteúdos ideológicos que
permeiam o conceito de indústria cultural, discutido no segundo catulo, o trajeto torna-se
fundamental para discutir-se as suas implicações no processo formativo da sociedade atual.
A educação, nesse sentido, deve levar em consideração o alto impacto produzido
por todo esse processo de massificação sobre a consciência dos indivíduos. Devido à
automatização de comportamentos pré-dispostos ao consumo do obsoleto, sem
desconsiderar outros fatores historicamente produzidos, os conteúdos culturais veiculados
pela indústria cultural, exercem um papel significativo no enfraquecimento cultural da
sociedade. Se a cultura no seu sentido mais autêntico pode ser concebida como processo
civilizador do homem em sociedade, essa perspectiva de enfraquecimento cultural merece
uma compreensão mais contundente. Dele resultam práticas anti-sociais como ausência de
reflexão sobre a repetição do horror emblemático, tão temido por Adorno e representado
pelas forças nazistas que produziram Auschwitz, por exemplo.
A banalização da cultura e o consumismo estético, tão comuns na mentalidade
pragmática atual, tem reduzido cada vez mais os níveis de exigência cultural descartando
obras de peso artístico fundamentais para a formação emancipada de uma sociedade. Se a
banalização dos bens culturais é intensificada pelos mecanismos da indústria cultural, isso
tem refletido de forma bastante intensa no imaginário social resultando num
empobrecimento cada vez maior da formação do indivíduo.
As obras de arte, tendo em vista suas possibilidades de ofertar ao indivíduo uma
formação cultural consistente, assumem um potencial significativo, tanto na educação
formal quanto na formação social em geral, à medida que contém acentuados princípios de
uma cultura com viés emancipador para o homem. Nas considerações de Lukács e
Goldmann, exploradas no segundo capítulo, ficou demonstrado que uma das peculiaridades
das obras de arte é proporcionar ao indivíduo um contraponto em relação as suas
experiências anteriores. Nesse aspecto elas representam algo realmente inovador que
interfere de forma qualitativa, possibilitando ao indivíduo um enriquecimento de sua visão
de mundo a partir de uma nova síntese original e significativa. A riqueza da obra de arte
reside, portanto, no fato de que ela não se reduz a mera imitação ou reducionismos
adaptativos típicos da indústria cultural. Na simplificação dos recursos estéticos, como
narrativas mais lineares e previsíveis de maior trânsito mercadológico, encontradas nas
obras literárias massificadas, dificilmente novos desafios perceptivos serão vivenciados.
96
Nas obras de arte de menor consisncia ou nas adaptações e sucedâneos de obras
esteticamente significativas, não há exigência de um processo reflexivo, uma vez que o
indivíduo é levado a absorver passivamente um vel de mensagem mais reduzido e de
consumo rápido. O plano dessas obras está mais voltado para o deleite, o entretenimento e
a posse mais imediata de sua carga significativa que, no caso, é também facilitada. O dado
previsível que caracteriza esse tipo de estética, voltada para a grande massa automatiza os
sentidos do indivíduo para a cópia e o sempre igual, questão fundamental para o
pensamento frankfurtiano que atribui a esse princípio o caráter autoritário da indústria
cultural. Diferenciados do comprometimento ideológico, os elementos que constituem
uma obra de arte esteticamente mais conseqüente causam estranheza à percepção
comprometida ideologicamente e dessa forma desafiam os sentidos automatizados. Ao
receber signos ocos, empobrecidos esteticamente, o indivíduo empobrece também os níveis
de mediação com a sua realidade, reduzindo a percepção crítica de sua condição no mundo
social.
Ao perder o dado da compreensão objetiva da realidade social, no
embotamento dos sentidos está justamente a perda do elo pelo qual o
indivíduo se liga à experiência histórica onde se faz consciência e ato.
(...) Em tais circunstâncias ausenta-se a necessidade de explicar ou
compreender os fatos e acontecimentos no seu contexto histórico e sob
quais interesses se manifestam enquanto realidade social. Reina com
supremacia absoluta a mera identificação das sensações e sentimentos
administrados e o que diverte e distrai uma vida inteiramente voltada
para a autopreservação da vida cotidiana que a isso se resume
(FABIANO, 2002, p.235).
Esse processo de banalização do elemento estético fortalece uma determinada
concepção de formação que conduz o indivíduo a habituar-se a uma passividade em
relação aos elementos da realidade. Debilitado na sua capacidade crítica de reação aos
valores que recebe, o indivíduo reduz sua capacidade de intervenção política no mundo
social. Desse processo resulta uma formação regressiva que reafirma processos de
fragmentação do sujeito, conduzindo-o à uma submissão ao poder social estabelecido.
Diante de circunstâncias nas quais o sujeito não tem autonomia de decisão, uma certa
tendência à obediência cega acaba alimentando o espaço social de uma coletividade
autoritária. Essa questão é constatada por Pucci (1999, p. 118) quando menciona o impacto
dos processos de semiculturação sobre o indivíduo, subjugando-o e condenando-o a um
97
estado de servilidade. “Ao invés de sermos apenas tutelados
26
pelas ordens advindas das
instituições religiosas, atualmente submetemo-nos preponderantemente aos comandos dos
produtos semiculturais, veiculados pela pseudodemocratização da produção simbólica”.
Vale lembrar que atitudes de conformismo, segundo Adorno, contribuíram para
criar as condições sociais que resultaram no horror efetivado em Auschwitz. O
frankfurtiano alerta para a responsabilidade da educação como reflexão contundente para
evitar a repetição da barbárie representada por Auschwitz. Adorno reforça o argumento de
que: É precisamente a disposição de aderir ao poder e, externamente, submeter-se como
norma àquilo que é mais forte, à mentalidade dos algozes, que jamais deverá ressurgir”
(1994, p. 37).
Se para Goldmann, (1979), a criação literária está relacionada à realidade histórica
na qual é produzida, sem dúvida, os seus procedimentos estéticos possibilitam ao indivíduo
novos trajetos de acesso à sua herança histórica e cultural. Compreendendo mais a si
mesmo e a sociedade em que vive, o indivíduo também amplia a consciência de uma
coletividade e dos problemas enfrentados pelos grupos que dela fazem parte. Essa
compreensão mais ampla da realidade permite ao indivíduo enriquecer a sua
individualidade ao interagir de forma crítica no mundo. Pela dimensão da alteridade
inerente às grandes obras de arte, esse processo redimensiona visões de mundo do
indivíduo em relação aos individualismos e interesses do pragmatismo econômico da
atualidade. Num rumo oposto às simplificações culturais estabelecidas pela indústria
cultural, isto é, a conformação do indivíduo ao semelhante, à cópia, ao idêntico, as obras de
arte dinamizam os sentidos e a percepção para questionar a perspectiva autoritária que
perpassa a massificação cultural.
Não é por mera coincincia que as grandes obras literárias foram sendo aos
poucos, deixadas de lado, no contexto de um extenso domínio e impacto da indústria
cultural. Uma dimensão cultural mais elaborada e crítica é subtraída pelo processo de
semiformação cultural disseminado de forma abrangente em conseqüência do modelo de
organização produtiva da sociedade industrial. Essa perspectiva de semiformação cultural
acaba por excluir do seu universo de facilidades informativas, obras de arte que não se
26
“A tutelagem a que Kant era radicalmente contra, quando sustentou a importância de que o homem
abandonasse sua condição de menoridade, fazendo uso público da razão, na sociedade capitalista
contemporânea adquire outras cores. Mas é justamente dentro dessa tradição kantiana de defesa do
Aufklärung que Adorno explicita o seu entendimento do que significa educação como emancipação: ‘De um
certo modo, emancipação significa o mesmo que conscientização, racionalidade’”. PUCCI, Bruno & Outros.
Adorno: o poder educativo do pensamento crítico. Petrópolis, Vozes, 1999, p. 118).
98
enquadram às normas do mercado. No entanto, os apelos comerciais da indústria da cultura
paralelamente à busca do lucro, visam uma imposição ideológica de formas narrativas que
apresentam grande nível de linearidade e conformidade com os valores de sustentação da
sociedade burguesa daí seu componente eminentemente ideológico.
A grande obra de arte não se reduz a um conceito de cultura vendável
27
, que se
afirma enquanto diversão e entretenimento, pois conduz o indivíduo muito além da mera
superficialidade dos fatos. Não que as grandes obras sejam proibidas, mas sob a
justificativa de que são de teor muito complexo para as massas, a indústria cultural trata de
negá-las, apresentando em seu lugar um produto cultural de conteúdo acessível aos seus
níveis de apreensão. Fabiano (2002) comenta que a banalização da cultura tem como
conseqüência um entorpecimento e regressão dos sentidos.
A vida reduzida a esse pragmatismo imediatista rompe com a
possibilidade de o indivíduo experienciar criativamente o investimento
sobre si mesmo e sobre o mundo. Daí uma certa aversão ao processo de
mediação que toda dimensão cultural mais séria demanda. Na medida
em que essa mediação é evitada ou nem mesmo exercida, os níveis de
percepção não se educam, os sentidos se entorpecem e a taxa de
exigência interna do indivíduo torna-se reduzida e quase nula
(FABIANO, 2002, p. 232 e 233).
A educação, diante do empobrecimento cognitivo e cultural da população escolar
que atende, acaba por reproduzir essa lógica da indústria cultural, quando preconiza a
necessidade de se “facilitar” o aprendizado para o aluno. Através da ideologia da
facilitação aquilo que é simplista e corriqueiro torna-se não somente o ponto de partida,
mas também o ponto de chegada do processo educativo. Em outras palavras, o que se quer
chamar a atenção é para o comprometimento cada vez maior da educação com uma cultura
descomprometida de seu objetivo primeiro que deveria ser a formação do indivíduo crítico.
Nesse sentido, crê-se que as grandes obras de arte são um componente fundamental
para verdadeira formação cultural que aponte para o desenvolvimento de um pensamento
27
Diferentemente da perspectiva mercantil que se atribuiu aos bens culturais tomados apenas enquanto
diversão e entretenimento, a obra de arte não se reduz a essa dimensão de cultura venvel. Por sua
autonomia relativa em relação ao mercado, ela ultrapassa esse limite conduzindo o indivíduo muito além da
superficialidade dos fatos. Não se trata de afirmar, porém, que as grandes obras de arte não tenham um valor
de venda. O seu caráter de venda não determina, todavia, o seu conteúdo interno que destoa dos interesses
meramente comerciais. Em função dessa relativa autonomia, e dessa recusa à condição de mercadoria, as
grandes obras ficam de certa forma distanciadas do grande público. Sob a justificativa de que são de teor
muito complexo para as massas, a indústria cultural trata de negá-las, apresentando em seu lugar um produto
cultural de conteúdo acessível aos seus níveis de apreensão.
99
reflexivo, num contexto educacional crítico e responsável. O processo de formação, nesta
perspectiva, visa possibilitar ao indivíduo a percepção das formas como a estrutura social
se organiza e se sustenta. Ao compreender as determinantes da organização social, o
indivíduo consegue compreender melhor as instâncias de poder que o dominam. Neste
aspecto, uma educação estética do indivíduo, levando-se em conta as grandes obras de arte
e a sua interpretação crítica, constitui um caráter formativo privilegiado e de fundamental
importância na atualidade.
Narrativas literárias consistentes, como Proust, Dostoiévski, Machado de Assis,
entre outros, trazem ao indivíduo uma vivência significativa que possibilita novas
experiências, aprofundando o seu diálogo e interlocução com a humanidade. Mais do que
mera constatação a respeito de sua realidade social, a literatura pode conduzir o leitor,
através da vivência propiciada pela fruição estética, a um verdadeiro estranhamento em
relação ao poder estabelecido. O estranhamento permite ao indivíduo romper com uma
atitude identificatória e conformista em relação às formas de poder dominantes. Ao
conseguir se afirmar como elemento que se diferencia de um todo social administrado,
pautado por intensa homogeneização, o sujeito fortalece sua individualidade. Com isso,
amplia sua compreensão a respeito dos mecanismos sociais que o oprimem e sustentam a
sociedade da forma com ela se perpetua.
A educação deve atentar para essas formas narrativas, pois elas possibilitam um
amadurecimento do educando para uma coletividade autêntica. Ao fomentar um processo
de formação mais conseqüente, a educação pode favorecer ao sujeito um questionamento
do imediatismo determinado pelos processos produtivos e culturais que confirmam a
realidade da forma como se apresenta aparentemente. A ampliação de vivências através de
signos estéticos qualitativos, propiciados pelas narrativas literárias, torna possível ao
indivíduo novas formas de mediação com a realidade, contrapondo-se assim a mera
imediaticidade dos fatos narrados pelos apelos comerciais da instria cultural.
As grandes obras de arte são um componente importante para o processo formativo
atual e devem ser objetos de reflexão por aqueles comprometidos por uma educação que se
queira de qualidade. A relevância dos elementos estéticos para a educação se dá justamente
porque promovem o fortalecimento do eu”, condição imprescinvel para o resgate da
autonomia do indivíduo. Tal perspectiva, crê-se de maior urgência ainda, num momento
histórico de acentuação de um Estado totalitário que impossibilita ao indivíduo uma
formação mais consistente no sentido de posicionar-se criticamente diante da realidade
100
social. A estética, assim, constitui-se de um grande potencial para um processo formativo
emancipario, justamente porque possibilita ao sujeito reconhecer-se enquanto sujeito,
num contexto em que a dimensão totalitária da sociedade administrada tende a aniquilá-lo
pela condição instrumental que a ele confere.
101
5.2. Estética Kafkiana e Emancipação
A partir do exposto no tópico anterior, faz-se necessário especificar algumas das
implicações referentes à obra de Franz Kafka que tomamos para discutir o seu potencial
formativo, voltado para um processo de emancipação social.
Uma educação que visa a emancipação, segundo Adorno, deve ter a função de
resistência ao status quo. Se a sociedade impõe um todo coercitivo sobre o indivíduo,
resta-lhe a capacidade de resistir. Uma vez que os aparatos de dominação visam em última
instância a produção de indivíduos ajustados e conformados ao modelo social vigente, cabe
à educação fazer uma crítica desse modelo social “que potencialmente carrega dentro de si
o retorno da barbárie” (PUCCI, 1999, p. 119).
Num contexto em que a semicultura ganha força hegemônica confrontando-se a
uma educação mais consistente, o que se verifica é a obstrução da constituição de uma
individualidade mais fortalecida, processo que deflagra um convívio social patológico,
prestes a explodir em um irracionalismo generalizado. O combate ao irracionalismo deve
ser feito através do esclarecimento (Aufklärung) enquanto reflexão crítica diante da
realidade posta. Portanto, é necessária uma contemporização do potencial crítico do
esclarecimento em oposição a um racionalismo que, objetivando o progresso, acabou se
transformando em regressão, quando a técnica cristalizou-se como elemento que propicia a
dominação do pprio homem.
A educação, se não tem o poder de mudar tais circunstâncias, pode exercer uma
ação no plano da construção de subjetividades mais fortalecidas com o intuito de que seja
evitada a repetição da barbárie, como teme Adorno. Para o pensador frankfurtiano, “a
única verdadeira força contra o princípio de Auschwitz seria a autonomia, se é que posso
utilizar a expressão de Kant; a força para a reflexão, para a autodeterminação, para a não-
participação” (ADORNO, 1994, p. 37).
A fragmentação da individualidade que vem ocorrendo desde os princípios da
modernidade, acentuada com o advento da Revolução Industrial, tem-se intensificado nas
diferentes formas de controle na atualidade. As narrativas de Kafka, sem dúvida, remetem
o leitor para esse universo de controle através dos quais o sujeito se dilui nos
distanciamentos que o poder do Estado exerce sobre a representação dos seus interesses.
Em termos formativos elas aguçam a percepção do leitor, cujos sentidos se tornam mais
102
predispostos para a compreensão dos mecanismos sociais da fragmentação de sua
individualidade.
Esteticamente mais consistente, esse tipo de narrativa demonstra a sua força
enquanto potencial formativo a ser explorado numa perspectiva educacional. Por suas
características, elas oferecem um contraponto crítico importante aos elementos culturais
reducionistas que se impõem através da indústria cultural. Tendo em vista que a educação,
como observa Adorno (1994, p. 35), “só teria sentido como educação para a auto-reflexão
crítica”, um aprofundamento interpretativo da narrativa kafkiana apresenta grande
atualidade para situar mais criticamente a reflexão do indivíduo em relação a realidade que
o cerca.
Uma das características da obra de Kafka, como mencionado, é o conjunto de
situações que conduzem o leitor a uma sensação de angústia e, talvez, de desamparo. Pode-
se argumentar que o clima pessimista de sua obra devido às situações obscuras e sem saída,
pouco tem a contribuir para um processo de formação, uma vez que não conduz o leitor
para um caminho tranilo, mas ao contrário, desorienta o seu trajeto. A sua narrativa
justamente adquire valor formativo por essa forma de negação determinada em relação à
dimensão afirmativa e integradora que atualmente conforma os sentidos e a percepção.
Trata-se de uma narrativa em que há um rompimento com a dimensão linear
através da qual o leitor mantém um certo domínio dos fatos narrados. A sua leitura exige
do leitor um aprofundamento na busca de compreensão das situações enigmáticas
presentes na trama entrecortada. O clima de obscuridade e a falta de saídas do contexto
sufocante criado pelos recursos narrativos, permite ao leitor, através da fruição estética,
uma vivência mais concreta desses elementos, ampliando assim os seus próprios recursos
perceptivos.
Ao causar no leitor um clima de estranhamento e desamparo, esse processo traz em
si mesmo a possibilidade de um estranhamento do indivíduo em relação a um ambiente
social cuja nica é a praticidade das ações com finalidades instrumentais. A busca por
soluções imediatistas norteadas por uma perspectiva pragmática resultante do ambiente
produtivo industrial reflete-se no plano de uma cultura instrumental, consumida de forma
rápida e sem reflexão. Portanto, o estranhamento causado esteticamente tem a função de
remeter a percepção do leitor a um estranhamento em relação à sociedade em que está
inserido, ampliando a sua compreensão do mundo.
103
Essa possibilidade do leitor perceber as formas de domínio do todo social sobre sua
existência não é, todavia, evidenciada de forma superficial, enquanto mera constatação
racional do existente. Ao contrário, Kafka conduz o leitor aos porões obscuros da máquina
burocrática do poder e o deixa lá, sem saída, trancafiado numa situação limite. Mas, é
nesse processo que ele confisca a percepção imediatista, comprometida ideologicamente
do leitor, fazendo-o sentir de forma angustiante, a bem dizer, na própria pele, estruturas
sociais que debilitam uma constituição mais humana do sujeito. O leitor é, o tempo todo,
levado a vivenciar a sensação de se sentir como um simples objeto, um joguete nas mãos
do aparato burocrático ou da autoridade legal e constituída, que parece brincar de forma
cruel com a sua existência. A partir dessas sensações provocadas pela obra o sujeito é
instigado a experienciar no plano da linguagem, conteúdos das normas sociais
internalizados, ampliando a possibilidade de nomear os processos de objetificação da
subjetividade a serviço de um modelo produtivo.
Fica demonstrada dessa forma, a estratégia que Kafka utiliza para deslocar a
percepção do enredo numa estrutura que não é mais a da obra em si, mas as implicações e
os impasses para o enredo da ppria existência do leitor. A não linearidade é
fundamental para criar esse efeito. Isso a dimensão formativa de sua obra e a sua
necessidade no ambiente educacional. A demolição que ela exerce sobre um enredo
facilitado redimensiona discursos alienantes e afirmativos pelos quais a coisificação de sua
consciência se reproduzem.
No entanto, ao se tratar da importância de narrativas literárias esteticamente mais
consistentes para um ambiente formativo, deve-se levar em conta as barreiras existentes.
Um dos desafios mais importantes para a educação deve ser a criação de situações que
oportunizem aos educandos a capacidade de adquirir experiência através do aprendizado,
em virtude da inaptidão que os homens têm apresentado em relação à experiência na
realidade social vigente. Os homens, de modo geral, “não são mais aptos à experiência,
mas interpõem entre si mesmos e aquilo a ser experimentado aquela camada estereotipada
que é preciso se opor” (ADORNO, 1995, p. 148 e 149). Para Wolfgang Leo Maar (1995) a
importância que Adorno atribui ao conceito de experiência prende-se ao fato que d
resulta o processo dialético de mediação pelo qual o sujeito se forma em sua objetividade.
Para o autor, experiência no sentido benjaminiano de Erfahrung, deve ser apreendido mais
além dos limites do experimento das ciências naturais. Esclarece ainda o autor que o termo
deve se reportar a Hegel e sua ‘ciência da experiência da consciência’, pois, a experiência
104
“é um processo auto-reflexivo, em que a relação com o objeto forma a mediação pela qual
se forma o sujeito em sua ‘objetividade’. Neste sentido, a experiência seria dialética,
basicamente um processo de mediação” (MAAR, 1995, p. 24).
Dentre as mais diversas formas de experiência, a que leve em consideração o alto
teor educativo que contém a obra artística é fundamental para uma reorientação de sentido
de práticas pedagógicas comprometidas com a emancipação do indivíduo. Quanto mais a
educação e os pressupostos que a orientam se estabelecerem enquanto algo previsível e
calculável, pautadas na transmissão de conhecimentos de forma mecanizada, mais a
educação estará reproduzindo a lógica do sistema como um todo. A necessidade de buscar
o rendimento do aluno, tem priorizado um rendimento voltado para um nível estatístico
dos investimentos econômicos e não propriamente humanos. Ao desconsiderar os aspectos
relacionados ao rendimento pessoal do aluno, sua finalidade é a de adaptá-lo à busca do
rendimento na esfera produtiva. E mesmo a o buscada conscientização do educando”,
evidenciada nas matrizes curriculares, fica comprometida se não ultrapassar o âmbito do
palavrório formalista. Uma conscientização que enfatiza apenas a importância de se lutar
pelos direitos do cidadão perde o poder de resistência quando os mecanismos que
justamente impedem a efetivação desses direitos ficam ocultados. “A desconfiança
adorniana se baseia numa sociedade que promete, mas não cumpre, pois não se luta contra
os conteúdos das promessas burguesas e, sim, contra a ilusão de que elas se encontram
efetivadas”. (PUCCI, 1999, p. 64).
O educador deve estar ciente de que um trabalho pedagógico que busque a
conscientização nos dias atuais se tornou uma tarefa complexa e custosa diante dos
mecanismos sociais de embotamento dos sentidos humanos. Daí a necessidade da
exploração dos mais diversos canais que consigam de alguma forma causar fraturas em um
olhar embotado que reproduz relações de dominação social. O interesse despertado por
atividades relacionadas às diferentes formas de expressão artística, como por exemplo, a
pintura, a escultura, o teatro e a dança, a literatura, a música, conduz a sensibilidade
humana para ações que vislumbram um esboço de reação aos estereótipos culturais
impostos pelo alastramento gigantesco da indústria cultural. Um contato mais íntimo com
as obras de arte, desde as séries iniciais de escolarização, pode estimular um olhar diferente
em relação às mesmas. Para Marcuse (1986) a experiência com a arte possibilita a
autonomia ao ampliar os sentidos humanos:
105
A arte abre uma dimensão inacessível a outra experiência, uma
dimensão em que os seres humanos, a natureza e as coisas deixam de se
submeter à lei do princípio da realidade estabelecida. Sujeitos e objectos
encontram a aparência dessa autonomia que lhes é negada na sua
sociedade. O encontro com a verdade da arte acontece na linguagem e
imagens distanciadoras, que tornam perceptível, visível e audível o
que não é ou ainda não é percebido, dito e ouvido na vida diária
(MARCUSE,1986, p. 78).
De maneira geral, a arte e a interpretação crítica das suas implicações sociais são
fontes de experiência com alto valor formativo pelo caráter de reflexão que traduzem. A
busca de situações que provoquem novas experiências está intimamente relacionada a uma
formação crítica. Ao trazer o elemento inusitado, ao conferir ao leitor inúmeros recursos
interpretativos, ao negar soluções imediatas e conciliadoras, segundo o que se discutiu em
relação à narrativa kafkiana, os conteúdos estéticos constituem experiências educacionais
significativas. Becker, no debate com Adorno denominado Educação para quê?
28
assim
se posiciona:
(...) esta aptidão à experiência constitui propriamente um pressuposto
para o aumento do vel de reflexão. Sem aptidão à experiência não
existe propriamente um vel qualificado de reflexão (...) e antes de tudo
a educação para a experiência é idêntica à educação para a imaginação.
(ADORNO, 1995, 150 e 151).
A utilização de narrativas literárias esteticamente consistentes num contexto
educativo responsável pode, portanto, conduzir o indivíduo a novas experiências que
propiciem um aumento de sua capacidade de fazer mediações em relação à sua realidade.
A educação, neste aspecto, estaria contribuindo para o indivíduo fortalecer-se frente aos
apelos culturais consumistas que o conformam à estrutura de dominação social. Processos
como este, ao ampliar a consciência crítica do sujeito, possibilitam-lhe diferenciar-se e
questionar a opinião geral tomada como verdade de existência. A própria dimensão
totalitária das imposições sociais são criticamente elaboradas proporcionando ao indivíduo
níveis de autonomia em relação ao ambiente social que o cerca. A conformação social na
sua perspectiva ideológica de ocultar as contradições sociais, através dessa percepção mais
crítica, passa a ser compreendida como construída historicamente e que por isso mesmo, é
passível de transformação. A mediação entre as obras de arte e os processos históricos,
28
Debate na Rádio de Hessen entre Theodor Adorno e Hellmut Becker; transmitido em 26 de setembro de
1966; publicado em Neue Sammlung, janeiro/fevereiro de 1967.
106
como se observou na perspectiva de Goldmann e Lukács são fundamentais para o
desenvolvimento dessa consciência sobre os mecanismos das transformações históricas.
É evidente que esse processo de conscientização é algo muito complexo e o deve
ser compreendido de forma mecanicista, sendo imposto como uma modelagem das pessoas
a partir do exterior (Adorno, 1995). A própria intenção educacional nesse sentido de
amoldar as pessoas, já contém em si mesma componentes fascistas. Talvez, caiba à
educação a tarefa humilde de articular processos de consciência sobre a constituição de
valores e atitudes que se determinam como regressivos em relação a possibilidade de
avanços na sociedade.
107
6. CONCLUSÃO
As questões levantadas por este trabalho em relação à indústria cultural, no plano
formativo da sociedade em geral, permitem constatar que a massificação da cultura tem
criado um ambiente propício à proliferação de estereótipos culturais, conformando o
imaginário social a um nível regressivo. O aspecto regressivo da forma de como a
concepção de progresso social reduzido aos avanços tecnológicos em si, não leva em conta
a desumanização de um sistema que prima pelo aperfeiçoamento produtivo em detrimento
do ser humano. Se o desenvolvimento tecnológico trouxe benefícios para o bem estar do
homem, ao se submeter aos interesses burgueses, culminou no desenvolvimento de uma
racionalidade instrumental, com amplos patamares de administração e controle da vida
humana. O resultado desse esquema, na contemporaneidade é o fortalecimento de um
Estado prepotente e autoritário que prosperou de maneira proporcional a uma
desestruturação do indivíduo.
Nesse contexto de massificação da cultura procurou-se demonstrar a importância
dos recursos estéticos para os processos formativos. A dimensão estética, a partir dos
pressupostos afirmados neste trabalho, tendo em vista suas possibilidades de consciência
social, revela sua importância para questões ligadas ao processo da formação cultural
relacionadas à educação na atualidade. O advento da sociedade industrial e as novas
conquistas tecnológicas trouxeram grandes avanços para o bem-estar do homem. No
entanto, o pragmatismo econômico resultante desse processo de desenvolvimento reduziu
a formação cultural da sociedade a uma perspectiva de adaptação do indivíduo a esse
modelo de sociedade. O descompasso entre a noção de progresso tecnológico e regressão
social remete às implicações da indústria cultural e os conteúdos formativos que foram
discutidas neste estudo. A disseminação desse tipo de cultura na sociedade como um todo
e, especialmente no interior da instituição escolar, segundo o comprometimento ideológico
que a caracteriza, requer uma reflexão sobre os seus efeitos em termos da formação social.
A função adaptativa e de ajuste ideológico desse tipo de cultura ao sistema produtivo tem
reduzido as possibilidades emancipatórias que a cultura enquanto esclarecimento
(Alfklärung) exerce na sociedade. A dimensão consumista que acabou por transformar esse
sistema de massificação cultural numa perspectiva meramente mercadológica deve ser
objeto de questionamento e reflexão crítica por parte da educação e educadores. À medida
108
que ela descaracteriza não somente um princípio educativo humanista, ela também
contribui para legitimar processos sociais de desumanização em nome dos princípios de
eficiência e produção máximas exigidos pela sociedade industrial. A educação não pode
deixar de refletir e fazer refletir que a formulação do conhecimento, sem negar a sua
dimensão prática e tecnológica, deve estar a serviço do homem e da sociedade. O estado
atual de fragmentação da subjetividade humana submetida aos interesses econômicos do
sistema produtivo vigente é, cada vez mais, alimentado pelas limitações da indústria
cultural. A ausência de reflexão crítica estabelecida pelos conteúdos dessa cultura
administrada reflete, portanto, os conteúdos autoritários na forma como administra e
submete a vontade humana aos interesses econômicos que representa. Como se pôde
constatar, esses elementos contribuem para o enfraquecimento do sujeito à medida que se
opõem ao esclarecimento (Aufklärung), reforçando condições sociais regressivas que
emperram possibilidades de sua autonomia.
Outra questão a ser tratada diz respeito à polêmica relação entre ensino oficial e
transformação social. Ainda que se situe essas questões num plano mais geral do atual
estágio da sociedade capitalista, entendendo-se que a instituição escolar não escapa desse
contexto que também a determina, essa compreensão não deve ser entendida de forma
conformista e derradeira. É conhecido o argumento de que não cabe à educação formal ou
à escola, assumir a tarefa que normalmente lhe é atribuída, a de transformar a sociedade. O
argumento é verdadeiro e justifica-se a reação dos educadores quanto a essa tarefa
impossível e politicamente oportunista de valorizar a escola pelo discurso de sua função,
acobertando um Estado negligente na ausência de projetos educacionais efetivos.
A educação, como se apresenta atualmente, ao contrário de uma função
emanciparia, tem um forte componente de adaptação social. Enquanto máquina
burocrática do Estado, o sistema educacional acaba por interiorizar mecanismos de coerção
para adaptar o indivíduo aos seus interesses. Nesse aspecto parece ingenuidade esperar
exclusivamente do sistema oficial de ensino as saídas para uma situação que ele mesmo
contribui para sustentar. É importante questionar os limites de uma formação
emanciparia no interior do sistema escolar atual, mesmo entendendo-se que não se
restringe à escola a responsabilidade de corrigir ou impedir as conseqüências danosas
produzidas por esse modo de produção social em que ela se insere. No entanto, também
deve ser questionada a premissa que afirma que não há o que fazer diante das sufocantes
malhas da dominação social a não ser esperar a mudança do regime produtivo para que se
109
efetive as mudanças na escola. Respeitadas as devidas justificativas e o entendimento de
que a escola não se desvincula do contexto social e histórico em que está inserida, essa
compreensão não deve determinar-se como resignação diante da dinâmica dos fatos em
que esse contexto se dá. Há no interior da escola, possibilidades e recursos pedagógicos
pelos quais se podem estabelecer um estranhamento em relação à forma hegemônica que
historicamente esse modo de produzir a vida se constituiu. Ao se compreender que o modo
dos homens produzirem a vida contém em si uma dinâmica pela qual também se
reproduzem socialmente, esta dinâmica permite uma fenda através da qual a ação escolar
pode efetivar-se, não como redenção, mas somada a outros elementos sociais que integram
formas de contraposição ao modo de reprodução social estabelecido.
Dentro dos seus limites de atuação, a escola pode incentivar o interesse por práticas
culturais que amadureçam formas de intervenção política na sociedade, podendo viabilizar
saberes como possibilidade de reação ao conceito de progresso como regressão social. Um
projeto educacional que almeje a busca da autonomia do indivíduo tem razão de ser
enquanto busca de superação das condições objetivas do presente - da superação da
sociedade conforme ela se constitui neste momento histórico. Como foi demonstrado, se a
autonomia amplia as possibilidades de reflexão do indivíduo, a reflexão tem sentido para a
superação das condições sociais que o reproduzidas justamente pela ausência de
reflexão. A reflexão sobre as condições ideológicas e a sua interferência no processo
formativo da sociedade atual torna-se necessária para uma reflexão sobre os mecanismos
do Estado e o seu respectivo comprometimento com as forças econômicas que legitimam
condições desumanas nesse modelo de organização social.
Questionar projetos educacionais incipientes que têm cada vez mais enfraquecido
os aspectos formativos na sociedade atual torna-se um fator de reação importante para
ativar problemas pedagógicos em relação aos seus limites. A interferência da indústria
cultural no interior da escola, por exemplo, não pode deixar de ser mencionado à medida
que tal interferência tem resultado em práticas pedagógicas comprometidas com os limites
de reflexão que são pprios desse tipo de cultura. Especificando-se a questão levantada
por esse trabalho, autores e obras literárias clássicas, ou interpretações críticas de obras de
arte em geral, relevantes para o amadurecimento político da sociedade não têm sido ou são
explorados de maneira deficiente no processo educacional. Mesmo porque, trata-se de
observar também a formação de professores em relação a isto, a noção teórica e crítica que
110
eles têm sobre os conteúdos que definem a produção cultural entendida como indústria
cultural.
Deve ser observada ainda, a resistência assimilativa que os alunos trazem para o
interior da escola, habituados a um entendimento facilitado pela produção cultural de
massa. Relacionado a essa questão está o fato de que na sociedade atual a imagem de alto
impacto se sobrepôs como meio de informação. A apreensão imediata de mensagens
determina uma perda considerável de mediação que, normalmente, uma forma de
expressão artística exige. O nível de previsibilidade contido nas mensagens exploradas
pela indústria cultural, como ficou entendido, reduzem os níveis de reflexão crítica em
função do próprio caráter de mercadoria que constituem a sua estrutura interna. De certa
forma, os condicionamentos desse tipo de formação externa à escola acabam também
interferindo no seu interior. Desafios que exigem uma percepção mais aguçada dos
problemas humanos e sociais, ou que não tenham uma finalidade imediata e utilitária de
fácil acesso mental vem sofrendo uma drástica redução no plano escolar. Não somente a
leitura, mas a reflexão crítica numa perspectiva filosófica, a interpretação crítica sobre a
dimensão histórica das obras de arte, cada vez mais foram perdendo o interesse no
contexto do ensino oficial.
Ao vingar a hegemonia de uma cultura banalizada, esse processo reduz as
possibilidades de uma formação cultural incidir na constituição de sujeitos emancipados.
Se a indústria cultural banaliza a cultura pelos mecanismos de redução dos seus conteúdos,
se prestando com isso à dominação, faz-se necessário entender, por outra via, que a obra de
arte constitui-se num importante meio pedagógico para a autonomia. Como se observou, as
obras de arte propiciam ao sujeito mobilidade reflexiva aumentando o nível de consciência
ao diminuir sua ingenuidade perceptiva.
A obra de Kafka utilizada nesse estudo, a exemplo de outras obras de arte
significativas, permitiu demonstrar de que maneira se pode estabelecer relações com os
conteúdos hisricos que estão condensados na sua estrutura profunda. Suas narrativas, em
termos formativos possibilitam ampliar a percepção do leitor no reconhecimento dos
conteúdos sociais de controle e opressão que permeiam sua existência social. Com uma
compreensão mais aguçada da sua complexa situação, o indivíduo pode reconhecer
mecanismos sutis que debilitam sua capacidade de reação na sociedade atual. Os
elementos internos da obra kafkiana, se contextualizados a partir de uma leitura crítica
podem remeter o indivíduo a uma percepção mais aguçada da realidade objetiva ocultada
111
pelos recursos ideológicos. O absurdo, o hesitante e difuso, o tenso e o sombrio, o
marasmo, o inadimissível e o irritante, o tedioso, o duvidoso, a trama, o equívoco, o
patético, o insuportável e o imundo são elementos da realidade externa. Kafka os
transforma em linguagem densa e devolve essa realidade mal digerida pela consciência
humana obrigando-a a vivê-la com todo o desconforto que ela nos causa. o provocadas
situações que remetem as sensações do leitor a experienciar conteúdos internos que não
são nomeados para assim nomeá-los enquanto experiência e possibilidade de superação
dessas vivências.
Tendo em vista os aspectos formativos da estética literária para uma educação
emancipadora, como demonstrado, é importante essa reflexão num momento em que os
estímulos visuais da indústria cultural ganham cada vez mais espaço e força na sociedade.
A indução para mensagens mais fáceis a um entendimento imediato transmitida pelos
meios de comunicação, tendem ao pensamento afirmativo, conduzindo à uma ausência do
pensamento reflexivo no processo educativo. O indivíduo, minado em sua capacidade de
seleção de conteúdos, absorve e aceita uma cultura vista apenas como entretenimento e
distração. A perda de mediação com a realidade histórica criam no indivíduo um ambiente
propício para a aceitação e para o conformismo em relação à realidade presente.
Por fim, outro aspecto que merece atenção é o fato de que os processos formativos
da sociedade, não o exclusivos da educação formal. Os efeitos danosos que os elementos
da semiformação cultural (Halbbildung) têm exercido no imaginário social devem ser
objeto de atenção das diversas instâncias em que o poder público e a sociedade civil se
encontram organizados. Os resultados culturais devastadores dessa massificação cultural,
visivelmente constatados no interior da instituição escolar nos seus diversos níveis,
demonstram a necessidade de uma reflexão sobre os seus mecanismos de operação. Uma
reflexão ou pressão urgente sobre a postura negligente do Estado em relação à condição
dos processos formativos da sociedade atual, sem dúvida não deve ser descartada. Torna-
se fundamental, no entanto, repensar junto aos educadores a exigência de ações
educacionais que possam consolidar a formação de sujeitos fortalecidos e autônomos, face
aos autoritarismos e desmandos econômicos que excluem a sua possibilidade de
existência.
As implicações do processo da semiformação (Halbbildung) e sua intrincada
relação com a reprodução da barbárie, ou como se possa denominar, formas de
autoritarismo ainda remanescentes na vida social, devem ser vistas sob esse enfoque da
112
repetição do horror representado por Auschwitz, conforme o temor de Adorno. As
considerações de Leo Maar (1995), atualizam essa intrincada relação entre os processos de
semiformação e barbárie:
Auschwitz faz parte de um processo social objetivo de uma regressão
associada ao progresso, um progresso de coisificação que impede a
experiência formativa, substituindo-se por uma reflexão afirmativa,
autoconservadora, da situação vigente. Auschwitz não representa apenas
(!) o genocídio num campo de extermínio, mas simboliza a tragédia da
formação na sociedade capitalista. A ‘semiformaçãoobscurece, mas ao
mesmo tempo convence (MAAR, 1995, p. 22 e 23).
A educação, se não tem o poder de mudar a generalização de aspectos regressivos
de uma cultura pautada na semiformação pode contribuir para a construção de
subjetividades mais fortalecidas. A autonomia do indivíduo para o exercício da reflexão e
autodeterminação torna-se tarefa de grande importância num momento histórico em que a
tragédia da formação no contexto da sociedade capitalista contribui para que o horror
emblemático representado por Auschwitz se repita.
Ao final de seu artigo, Educação após Auschwitz, Adorno lembra de um episódio
em que Walter Benjamin, durante o seu exílio em Paris, perguntou-lhe se na Alemanha
ainda havia algozes em número suficiente para se submeterem às ordens nazistas. Adorno
esclarece que a pergunta tinha razão de ser devido ao fato de que as pessoas que executam
os assassinatos, ao contrário dos assassinos de escrivaninha e ideólogos, agem
contrariamente aos seus próprios interesses, pois cometem assassinato contra si próprios. A
partir desta consideração, Adorno (1995) afirma que através de medidas educativas é muito
difícil evitar que os assassinos de escrivaninha voltem a surgir. Mas, como ainda
argumenta o autor, ”que existem pessoas que embaixo, como servos, portanto, praticam
atos que se destinam a perpetuar a sua própria servidão e se despem de toda a dignidade
humana; que continuem existindo Bogers e Kaduks, contra isso se pode fazer alguma
coisa, pela educação, pelo esclarecimento.
.
113
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