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Universidade
Estadual de Londrina
CÍNTIA PATRÍCIA ROMANHOLI
A HETEROGENEIDADE NO DISCURSO JUDICIAL:
PROCEDIMENTOS DISCURSIVOS
LONDRINA
2008
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CÍNTIA PATRÍCIA ROMANHOLI
A HETEROGENEIDADE NO DISCURSO JUDICIAL:
PROCEDIMENTOS DISCURSIVOS
Dissertação apresentada ao Curso de
Mestrado em Estudos da Linguagem, da
Universidade Estadual de Londrina, como
requisito parcial à obtenção do título de
Mestre.
Orientador: Prof. Dr. Luiz Carlos Fernandes.
LONDRINA
2008
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CÍNTIA PATRÍCIA ROMANHOLI
A HETEROGENEIDADE NO DISCURSO JUDICIAL:
PROCEDIMENTOS DISCURSIVOS
COMISSÃO EXAMINADORA
Profº Orientador Dr. Luiz Carlos Fernandes
(CCH / UEL; UNESP, 2000) –
Profª Dra. Rozane da Rosa Cachapuz (Dep.
Direito / CESA / UEL) - 1 Titular
Profª Dra. Mariângela Peccioli Galli Joanilho
(LET / CCH / UEL) - 2 Titular
Londrina, 12 de Junho de 2008.
A Jesus Cristo, Senhor da minha vida, ao meu
esposo, Anderson e aos meus filhos, João,
Pedro e Tiago, pelas horas que lhes faltei com
carinho, presença e paciência, devido a
dedicação a este trabalho.
AGRADECIMENTOS
A Deus, quem me concedeu a vida.
Ao professor Dr. Luiz Carlos Fernandes pela orientação, apoio e incentivo
dispensados durante todas as etapas desta pesquisa.
À professora Dra. Mariangela Galli Joanilho, por suas contribuições.
Ao meu esposo, Anderson, que estimulou meu interesse pelo direito e
acreditou nesse projeto.
Aos meus pais e ao meu irmão pelo amor e dedicação para com meus filhos
enquanto eu dispensava meu tempo no término deste trabalho.
À querida Sueli, por sua lealdade e dedicação todos os dias.
Aos meus amigos, pela força, ajuda e interesse em relação a esta jornada.
A todos que, de alguma forma, contribuíram para a realização deste
trabalho.
ROMANHOLI, Cíntia Patrícia. A heterogeneidade no discurso judicial:
procedimentos discursivos. 2008. 91fls. Dissertação (Mestrado em Estudos da
Linguagem) - Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2008.
RESUMO
Com base nas definições metalingüísticas propostas por Authier-Revuz (2004),
segundo as quais a linguagem é heterogênea na sua própria constituição, o
presente trabalho tem por objetivo analisar o processo de constituição da
heterogeneidade enunciativa na sentença judicial, ou seja, a presença de outras
vozes na voz do enunciador na constituição dessa modalidade do discurso jurídico.
Abordamos em nossa análise os procedimentos discursivos mais significativos
utilizados pelos magistrados, verificando os efeitos de sentido produzidos em
situações de interação como essas. As análises das sentenças mostram que apesar
do magistrado falar em nome do Estado, e procurar expressar o modo como o
Estado se posiciona em relação ao conflito que lhe é posto, ele não anula, enquanto
enunciador, suas convicções pessoais, pois deixa marcas que podem revelar seu
envolvimento ideológico e permitem identificar a presença de outras vozes que
permeiam seu discurso.
Palavras-chave: Análise do Discurso. Heterogeneidade enunciativa. Sentença
judicial.
ROMANHOLI, Cíntia Patrícia. The heterogeneous in the judicial discourse:
discursive procedures. 2008. 91fls. Dissertação (Mestrado em Estudos da
Linguagem) – Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2008.
ABSTRACT
Supported by the metalinguistics definitions proposed by Authier-Revuz (2004),
according to which the language is heterogeneous in its own constitution, this
research has the aim of analyzing the process of the constitution of the enunciating
heterogeneity in the judicial sentence, that is, the presence of other voices in the
voice of the enunciator in the constitution of this modality in the judicial discourse. In
this analysis the most significant discursive procedures used by the magistrates are
approached, being observed the effects in meaning produced in situations of
interaction as these. The sentence analyses manifest that even though the
magistrate speaks in the name of the State, and attempts to express the ground in
which the State stands in relation to the exposed conflict, he does not invalidate,
while as enunciator, his personal beliefs and marks that may reveal his ideological
involvement and allow the identification of the presence of other voices which
permeate his discourse.
Keywords: Discourse Analysis. Enunciating heterogeneity. Judicial sentence.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.........................................................................................................9
1 REFERENCIAL DE APOIO TEÓRICO.................................................................12
1.1 ANÁLISE DO DISCURSO.........................................................................................12
1.2 L
INGUAGEM E DISCURSO ......................................................................................14
1.3 I
DEOLOGIA ...........................................................................................................16
1.3.1 Ideologia em Marx...........................................................................................16
1.3.2 Ideologia em Althusser....................................................................................17
1.3.3 Ideologia em Ricoeur.......................................................................................18
1.4 I
DEOLOGIA E SUJEITO............................................................................................19
1.5 F
ORMAÇÃO DISCURSIVA E CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO ............................................23
1.6 A H
ETEROGENEIDADE ENUNCIATIVA.......................................................................25
2 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS..............................................................29
2.1 S
OBRE A COLETA E ANÁLISE DO MATERIAL .............................................................29
3 A MODALIDADE SENTENCIAL NO DISCURSO JURÍDICO ..............................31
3.1 D
EFININDO O GÊNERO JURÍDICO............................................................................31
3.2 O D
ISCURSO JURÍDICO..........................................................................................32
3.3 C
ONCEITO DE SENTENÇA JUDICIAL.........................................................................34
3.4 A M
ODALIDADE DO DISCURSO DECISÓRIO..............................................................36
3.5 R
EQUISITOS ESSENCIAIS DA SENTENÇA..................................................................40
3.6 F
UNDAMENTOS DA SENTENÇA................................................................................43
4 RITUAL E PRESSUPOSIÇÕES DA FORMAÇÃO DISCURSIVA JURÍDICA ......46
4.1 I
NTERESSE, LIDE E PRETENSÃO.............................................................................46
4.2 P
ROCESSO...........................................................................................................48
4.3. L
EGISLAÇÃO E JURISDIÇÃO...................................................................................49
4.4 O A
DVOGADO.......................................................................................................49
4.5 O S
UJEITO ENUNCIADOR DA SENTENÇA – O JUIZ...................................................51
5 ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS...................................................54
CONSIDERAÇÕES FINAIS.....................................................................................71
REFERÊNCIAS........................................................................................................75
ANEXOS..................................................................................................................79
ANEXO 1 - Sentença 1 (S1).....................................................................................80
ANEXO 2 - Sentença 2 (S2).....................................................................................82
ANEXO 3 - Sentença 3 (S3).....................................................................................85
ANEXO 4 - Sentença 4 (S4).....................................................................................87
9
INTRODUÇÃO
Recentes estudos sobre a linguagem apontaram novos horizontes
desde que a Lingüística rompeu seus limites à frase e dedicou-se a investigar o texto
em sua totalidade. Essa nova visão aponta para o estabelecimento de relação entre
linguagem, sociedade e história, com uma valorização ainda maior da relação entre
linguagem e ideologia. A linguagem, assim concebida, é resultado da ação entre
homens, meio de interação social e, portanto, não deve ser estudada fora da
sociedade. A língua é apenas uma parte do enunciado; a outra, não-verbal,
corresponde ao contexto sócio-histórico da enunciação.
Articulando-se a organização textual, o espaço do sujeito, o
momento da enunciação e a história do interlocutor, a Análise do Discurso de linha
francesa ocupa-se, sobretudo, da compreensão do processo discursivo, bem como
dos processos de constituição do sujeito discursivo. Assim, para a Análise do
Discurso, o discurso não é fechado em si mesmo nem é domínio exclusivo do
sujeito, pois sua significação é dada pelas condições de produção, considerando-se
a noção de contexto e as relações com a história.
Todo discurso filia-se a outros discursos, fazendo parte de uma rede
de sentidos, formados ao sabor da ideologia. Os sujeitos são afetados, de forma
inconsciente, por determinados sentidos e não outros; são dizeres de muitas outras
vozes que terão sentidos em novas formações discursivas.
Um indivíduo que fala da posição de juiz, por exemplo, deriva o
sentido de suas palavras da relação que elas mantêm com a formação discursiva
em que as inscreve. Quando diz que a lei deve ser cumprida, ele o faz da posição
em que todos os juízes se colocam. Não é o juiz falando, é a posição. Isso lhe dá
identidade.
O presente trabalho tem como objetivo identificar e descrever os
processos de heterogeneidade mostrada e constitutiva em textos de sentenças
judiciais, com a finalidade de revelar, na presença do outro, a expressão de vozes
que atravessam essa modalidade de discurso, procurando também entender como
esse recurso pode contribuir para denunciar o comprometimento ideológico do
sujeito enunciador, o juiz. Procuraremos descrever quais os recursos mais utilizados
que podem denunciar as diferentes vozes do discurso sentencial. Durante o
10
processo há vozes em oposição, mas uma delas prevalece na decisão final do juiz,
as demais devem se calar.
O trabalho será desenvolvido a partir da análise de quatro sentenças
judiciais que abordam duas matérias jurídicas, reintegração de posse de terra e
autorização para realização de aborto de feto anencéfalo, porém com pareceres
distintos dos magistrados.
Os operadores do direito (advogados, juízes, promotores de justiça,
procuradores públicos, delegados, cientistas, acadêmicos, exegetas, etc.) não
consideram somente a logicidade da norma jurídica no momento de sua aplicação,
mas, sobretudo, buscam considerar os aspectos sócio-históricos dos fatos
envolvidos nos processos judiciais, e ainda, na lingüística e na semântica das
composições legislativas, encontrar os recursos suficientes para a construção de
seus argumentos e de suas teses jurídicas. Portanto, ao Direito não se aplica
apenas um mero modelo silogístico de ciência. De tal forma que, como nas demais
ciências sociais, o Direito se torna efetivo por meio da comunicação, pois pressupõe
a interação de agentes, a vida em sociedade e a necessidade de regulamentação de
condutas.
Em nossa análise consideramos os processos de enunciação,
descrevendo as relações que se tecem entre o enunciado e os diferentes elementos
constitutivos do quadro enunciativo, e as marcas lingüísticas que permitem
apreender a presença de outras vozes presentes no discurso. Consideramos
também o efeito ideológico do discurso, uma vez que a formação discursiva
sentencial representa a condição para que cada elemento seja dotado de sentido.
Utilizando-se do modelo teórico-metodológico da Análise do
Discurso, esta pesquisa procura ainda contribuir com os estudos textuais
desenvolvidos pela lingüística, dissecando o discurso sentencial. Buscamos também
identificar, nos recursos utilizados pelos sujeitos enunciadores (no caso, os
magistrados), isto é, na materialidade lingüística, considerando-se o contexto
histórico-social, como se dá a produção de sentidos. Considerar-se-á também, na
análise proposta, as peculiaridades de certas marcas lingüísticas que podem indicar
a presença de outras vozes nessa modalidade discursiva.
O primeiro capítulo deste trabalho apresenta um resumo dos
principais referenciais teóricos da Análise do Discurso, que consideramos essenciais
à nossa pesquisa.
11
No segundo capítulo, relatamos como se deu a seleção do corpus
analisado e sua constitução.
No capítulo 3, aprofundamos alguns conceitos e características
relacionados ao gênero jurídico e a modalidade sentencial.
No capítulo 4, abordamos alguns princípios fundamentais
importantes do direito, pois acreditamos que sua explicitação se faz necessária para
o entendimento de nossas análises.
Por fim, no capítulo 5, abordamos os recursos mais utilizados pelos
enunciadores na construção de suas sentenças, bem como a análise dos efeitos de
sentido produzidos.
A Análise do Discurso revela-se um instrumento apropriado para
examinar a ligação entre linguagem apresentada e a ideologia subjacente. Sua
metodologia permite explicitar os processos comunicativos construídos nas
sentenças judiciais.
12
1 REFERENCIAL DE APOIO TEÓRICO
1.1 A
NÁLISE DO DISCURSO
A Análise do Discurso de perspectiva francesa, sistematizada por
Michel Pêcheux (1997) nos anos 60 e 70, analisa os processos constitutivos da
linguagem, considerando as diferentes formas de manifestação do sentido, no que
se inclui particularmente o estudo das situações em que se produz o dizer,
ocupando-se menos da interpretação do que da compreensão do processo
discursivo.
Situada no campo das ciências da Linguagem, seus estudos voltam-
se às reflexões sobre o texto e a história destacando os efeitos de sentidos
encontrados. Como centro das reflexões, leva-se em consideração, ainda, a posição
sócio-histórica dos enunciadores, articulando “o modo de organização textual,
considerando o espaço do sujeito, o momento da enunciação e a história do
interlocutor” (SYTIA, 1995, p. 21). A referência à história se justifica na perspectiva
de uma análise materialista das práticas lingüísticas inscritas num determinado
contexto sócio-político-econômico.
Conforme define Brandão (2004, p. 18), dois conceitos norteiam o
quadro teórico da Análise do Discurso: o de ideologia e o de discurso. A noção de
discurso parte das idéias de Foucault, extraídas de sua obra Arqueologia do Saber
(1969), da qual se pode extrair a expressão “formação discursiva”. Quanto à noção
de ideologia, assenta-se em conceitos de Althusser em Aparelhos Ideológicos de
Estado (2003), obra que conceitua o termo “formação ideológica”. É sob a influência
dos trabalhos desses dois teóricos que Pêcheux, estudioso da Análise do Discurso,
desenvolve seus estudos.
Para Althusser (2003), o interesse do estudo das ideologias tem
justificativa na reprodução das relações econômicas de produção. Para ele, a
questão da ideologia se faz necessária para se ter idéia do efeito do reconhecimento
“da necessidade da divisão do trabalho e do caráter natural do lugar determinado
para cada ator social na produção” (idem).
Assim, consoante o autor,
13
[...] a representação ideológica da ideologia é, ela mesma, forçada a
reconhecer que todo “sujeito” dotado de uma “consciência” e crendo
nas “idéias” que sua “consciência” lhe inspira, aceitando-as
livremente, deve “agir segundo suas idéias”, imprimindo nos atos de
sua prática material as suas próprias idéias enquanto sujeito livre
(ALTHUSSER, 2003, p. 90).
Portanto, segundo ele, pode-se afirmar que as “idéias” de um
indivíduo projetado como sujeito de discurso existem em seus atos concretos.
Althusser (2003), valendo-se da tradição materialista de Marx, que
tinha como base para suas formulações preferência por dados empíricos, defende a
tese de que as ideologias têm uma existência material na linguagem. A linguagem
se coloca, para Althusser, como uma via por meio da qual se pode depreender o
funcionamento da ideologia. Pode-se, então, entender, segundo esse referencial,
que os procedimentos de produção discursiva são regidos por formações
ideológicas, instância que determina o que será dito, a partir de uma dada condição
de produção. Dessa forma, a linguagem passa a ser estudada não somente
considerando-se seu sistema interno de funcionamento, mas também enquanto
formação ideológica, que se manifesta por meio de uma competência sócio-
ideológica.
Foucault (2004) teorizou sobre a problemática do discurso e propôs
princípios para sua análise definindo “tipos e regras de práticas discursivas que
atravessam obras individuais”. O autor faz uma análise diferencial das modalidades
discursivas, bem como o papel do sujeito criador. Sua obra “é a descrição
sistemática de um discurso-objeto” (FOUCAULT, 2004, p. 158), em que se
apresentam definições da natureza dos enunciados, de sua formação e das
regularidades próprias do discurso.
O referido autor concebe os discursos como uma dispersão, sendo
formados por elementos que não estão ligados por uma unidade. Cabe, então, à
Análise do Discurso descrever essa dispersão e estabelecer regras que sejam
capazes de reger a formação dos discursos. Essas regras podem determinar os
elementos que compõem o discurso, que são: os objetos que aparecem, coexistem
e se transformam num espaço comum discursivo; os tipos de enunciação que
atravessam o discurso; os conceitos em suas aparições e transformações em um
campo discursivo; os temas e teorias que compõem um sistema de relações entre
estratégias que dão conta de uma formação discursiva. Assim, essas regras
14
determinam uma formação discursiva e apresentam sempre um sistema de relações
entre objetos, tipos enunciativos, conceitos e estratégias. São elas que caracterizam,
portanto, a formação discursiva e possibilitam a passagem da dispersão para a
regularidade.
Para Foucault (2004), a análise de uma formação discursiva consiste
na descrição dos enunciados que a compõem. Enunciado, segundo o autor, é a
unidade elementar, básica, que forma um discurso. Portanto, de acordo com ele, o
discurso seria como uma família de enunciados pertencentes a uma mesma
formação discursiva.
Propondo um novo olhar para o sentido, o sujeito e a História, a
Análise francesa do Discurso se apóia em conceitos e métodos da Lingüística, não
com a língua fechada nela mesma, mas com o “discurso, que é um objeto sócio-
histórico em que o lingüístico intervém como pressuposto” (ORLANDI, 2003, p. 16).
Sendo estudada enquanto formação ideológica, que se manifesta através de uma
competência sócio-ideológica, permite que se reflita “sobre a maneira como a
linguagem está materializada na ideologia e como a ideologia se manifesta na
língua” (ORLANDI, 2003, p. 16). O que o sujeito diz deve ser entendido
considerando-se as condições em que ele proferiu o enunciado, pois a formação
discursiva representa a condição para que cada elemento seja dotado de um
sentido, ou seja, como o lugar da constituição do sentido.
Rocha e Deusdara (2005, p.1) apontam a constituição da Análise do
Discurso como resultado de um afastamento da idéia de um sujeito que faz
escolhas, pois, afinal, acreditam que o que interessa à Análise do Discurso:
é a descrição das vozes que ressoam, atravessam e abalam a ilusão
de unidade que se apresenta nos enunciados, denunciando as
falácias de uma ótica que priorize o ideal cartesiano de um sujeito da
razão.
1.2 L
INGUAGEM E DISCURSO
A concepção de linguagem entendida como um sistema de signos
ou sistema de regras formais, tal como concebida por Saussure, passou a ser
insuficiente a partir do momento em que estudiosos como Bakhtin (1986) apontaram
15
novas perspectivas para os estudos lingüísticos. Bakhtin antecipou as principais
orientações da lingüística moderna, especialmente nos estudos da enunciação, da
interação verbal e das relações entre linguagem, sociedade e história e entre
linguagem e ideologia.
Conciliam-se, na idéia de enunciado de Bakhtin (1986), abordagens
internas e externas da linguagem. O enunciado, concebido como matéria lingüística
e como contexto enunciativo, passa a ser o objeto dos estudos da linguagem. Assim,
segundo ele, o enunciado não pode ser isolado de seu processo de enunciação,
pois, além da materialidade lingüística, o enunciado possui um componente não-
verbal que corresponde ao contexto da enunciação.
O primeiro sentido de enunciação é o de ato produtor do enunciado.
Benveniste, diz que a enunciação é a colocação em funcionamento da língua por um
ato individual de utilização.
De acordo com Bakhtin (1986), toda enunciação é um diálogo, pois é
fruto da interação entre indivíduos socialmente organizados, e também faz parte de
um processo de comunicação ininterrupto, pressupondo outros enunciados que o
antecederam e ainda os que o sucederão. Essa compreensão de diálogo não se
restringe ao sentido estrito do termo, mas abrange toda e qualquer comunicação
verbal.
Produto da interação social, a palavra é, para Bakhtin, signo
ideológico e caracteriza-se pela plurivalência. Por isso, é o lugar privilegiado para a
manifestação concreta da ideologia, retratando diferentes formas de percepção da
realidade, de acordo com pontos de vista daqueles que a utilizam.
Assim, de acordo com Barros (1997), Bakhtin influenciou as
principais orientações teóricas dos estudos sobre o texto e o discurso desenvolvidos
nos últimos anos. Ele acreditava que a especificidade das ciências humanas estava
no fato de que seu objeto era o texto. Isto é, no homem como produtor de textos em
que se posicione em relação ao mundo.
Desta forma, o fenômeno da linguagem passou a ser compreendido
não apenas como sendo pautado na língua, como sistema ideologicamente neutro,
mas como produzido na instância discursiva, o que permite relacionar o nível
propriamente lingüístico e o extralingüístico, pois as condições sócio-históricas do
discurso não são, de modo algum, secundárias, mas constitutivas de suas
16
significações. Portanto, o ponto de articulação dos processos ideológicos e dos
fenômenos lingüísticos é o discurso.
A língua é condição de possibilidade do discurso. A linguagem
enquanto discurso é interação e um modo de produção social. Não é neutra,
inocente e nem natural, por isso o lugar privilegiado para manifestação da ideologia.
Lugar de conflito, e, portanto, de confronto ideológico. Orlandi (2003) nos adverte
que não se trata de transmissão de informação apenas, mas processos de
identificação do sujeito, de argumentação, de subjetivação, de construção da
realidade. “As relações de linguagem são relações de sujeitos e de sentidos e seus
efeitos são múltiplos e variados. Daí a definição de discurso: o discurso é efeito de
sentidos entre locutores” (ORLANDI, 2003, p. 21).
1.3 I
DEOLOGIA
O conceito de ideologia na história do pensamento recebeu várias
definições, de acordo com teorias distintas.
1.3.1 Ideologia em Marx
Marx entende a ideologia como um instrumento de dominação da
classe dominante. As idéias dessa classe prevalece sobre toda a sociedade,
fazendo com que elas passem a ser idéias de todos. Para ele, a ideologia é ilusão,
abstração e inversão da realidade, pois sua função é eliminar “as contradições entre
força de produção, relações sociais e consciência, resultantes da divisão social do
trabalho material e intelectual” (BRANDÃO, 2004, p. 21).
Segundo Marx, as idéias da classe dominante ganham status de
verdades absolutas, como, por exemplo, a de que existiam raças superiores em
detrimento às inferiores que justificavam a escravidão. São verdades que justificam
e explicam a ordem social, as condições de vida do homem, as relações entre os
homens. A ideologia consiste em ocultar a essência da ordem social (falsa
17
consciência) e inverter a realidade. De que forma? Segundo ele, as idéias
dominantes são elaboradas a partir de formas fenomênicas aparente da realidade,
não apreendendo, portanto, as relações sociais mais profundas.
Assim, a ideologia pode ser entendida, segundo essa noção de
Marx, como o ponto de vista de uma classe social a respeito da realidade, ou seja, a
maneira como ela ordena, justifica e explica a ordem social. Trata-se de uma visão
de mundo, portanto.
1.3.2 Ideologia em Althusser
Althusser, partindo das idéias de Marx, defende que para garantir
sua dominação, a classe dominante “gera mecanismos de perpetuação ou de
reprodução das condições materiais, ideológicas e políticas de exploração” (apud
BRANDÃO, 2004, p. 23). Para tanto, o Estado, através de seus Aparelhos
Repressores e Ideológicos intervém, seja pela repressão ou pela ideologia, com o
objetivo de manter a classe dominada submetendo-se às relações e condições de
exploração.
Para Althusser (2003, p. 8) não é no campo das idéias que as
ideologias existem. Elas têm existência material, por isso não devem ser estudadas
enquanto idéias. Assim, segundo o autor, a ideologias precisam ser estudadas como
“conjunto de práticas materiais necessárias à reprodução das relações de
produção”.
Essas relações de produção implicam divisão de trabalho. Assim,
cada indivíduo tem seu lugar determinado na produção. “A questão da ideologia é a
questão dos mecanismos ideológicos que têm por efeito o reconhecimento da
necessidade da divisão do trabalho e do caráter natural do lugar determinado para
cada ator social na produção” (ALTHUSSER, 2003, p. 8). A sujeição é o mecanismo
ideológico que leva esse agente social a reconhecer o seu lugar, assujeitando-se a
um Sujeito absoluto. Esse mecanismo de sujeição existe num conjunto de práticas,
de rituais de instituições concretas, que possuem a unidade do efeito de sujeição
sobre os agentes sociais sob seu domínio. Essa unidade lhe é conferida pela
ideologia dominante, são os aparelhos ideológicos de Estado.
18
Em um segundo momento, não mais sob o enfoque dos aparelhos
ideológicos de Estado, Althusser (2003, p. 85) retoma seus estudos sobre ideologia
e formula duas hipóteses:
a) “a ideologia representa a relação imaginária de indivíduos com
suas reais condições de existência”. O que é representado
através da ideologia é a relação do homem com as suas
condições reais de existência. Esta relação, segundo o autor, é
imaginária do mundo real;
b) “a ideologia tem uma existência porque existe sempre num
aparelho e na sua prática ou suas práticas”. A ideologia, portanto,
se materializa nos atos concretos;
Daí, ele enuncia duas teses:
a) “só há prática através de e sob uma ideologia”;
b) “só há ideologia pelo sujeito e para o sujeito”.
Dessas duas teses, ele elabora sua tese principal: A ideologia
interpela os indivíduos enquanto sujeitos. De acordo com o autor, o sujeito é um
efeito ideológico. Trata-se de um efeito característico da ideologia,
impor (sem parecer fazê-lo, uma vez que se tratam de “evidências”)
as evidências como evidências, que não podemos deixar de
reconhecer e diante das quais, inevitável e naturalmente,
exclamamos (em voz alta, ou no “silêncio da consciência”): “é
evidente! é exatamente isso! é verdade!”. (ALTHUSSER, 2003, p.
94).
1.3.3 Ideologia em Ricoeur
Paul Ricoeur (apud BRANDÃO, 2004) analisa o conceito de
ideologia sob três instâncias.
Na primeira está relacionado com a função geral da ideologia. Para
ele, a ideologia teria como função a mediação na integração social, na coesão do
grupo. Na segunda instância, o conceito de ideologia é analisado com a função de
19
dominação, relacionado aos aspectos hierárquicos da organização social. E por fim,
na terceira, com a função de deformação. Este conceito retoma o caráter de
distorção e de dissimulação da ideologia.
Brandão (2004, p. 30), ao refletir sobre essas diferentes formas de
conceituar a ideologia, conclui que há dois modos básicos de entender a relação
linguagem-ideologia:
a) através de uma concepção ligada à tradição marxista, que
entende o fenômeno como o mecanismo que leva ao
escamoteamento da realidade social, apagando as contradições
que lhe são inerentes. Tal conceito pressupõe um discurso
ideológico que serve para legitimar o poder de uma classe social;
b) por meio de uma noção mais ampla de ideologia, que é definida
como “uma visão, uma concepção de mundo de uma
determinada comunidade social numa determinada circunstância
histórica”. Esse entendimento acarreta “uma compreensão dos
fenômenos linguagem e ideologia como noções estreitamente
vinculadas e mutuamente necessárias, uma vez que a primeira é
uma das instâncias mais significativas em que a segunda se
materializa. Nesse sentido, não há um discurso ideológico, mas
todos os discursos o são”.
1.4 I
DEOLOGIA E SUJEITO
É de interesse, para este trabalho, deixar estabelecidas algumas
relações entre ideologia e linguagem, pois esse é o foco principal de interesse em
relação a esse conceito.
Para Bakhtin (apud BARROS, 2003, p. 8), “no sistema da língua se
imprimem historicamente as marcas ideológicas do discurso”; assim, a língua não é
neutra, mas é o resultado de posicionamentos de classes sociais que utilizam a
língua de acordo com seus valores e antagonismos. A ideologia se revela, portanto,
na tensão entre o que se quer representar e as formas de linguagem que se escolhe
utilizar para fazê-lo.
20
O termo ideologia será tomado, aqui, partindo-se da perspectiva dos
fatos da linguagem, para significar “ato de escolha” e marca de intervenção do
sujeito individual em relação às estruturas discursivas e sobre práticas de sentido,
representando “uma relação imaginária dos indivíduos com sua existência, que se
concretiza materialmente em aparelhos e práticas” (MAINGUENEAU;
CHARAUDEAU, 2004, p. 267).
Entendido assim, fica claro que considerar-se-á não existir discurso
isento de ideologia, uma vez que sua elaboração pressupõe escolhas e decisões por
parte do enunciador. Decisões que incluem a interferência ainda que, muitas vezes,
indireta, de condições de produção impostas por fatores políticos, sócio-culturais,
econômicos, históricos e etc, arrolados a fatos sociais.
Fundamentando-se nas idéias de Althusser, Pêcheux (1997) enfatiza
o papel da ideologia no contexto da produção de discurso, acreditando ser ela
condição para a constituição do sujeito e dos sentidos. Não há, segundo ele,
discurso sem sujeito, como também não há sujeito sem ideologia. O sujeito se
constrói pela ideologia, sendo que o indivíduo é interpelado em sujeito pela ideologia
para que se produza o dizer.
Para Pêcheux (1997), a ideologia tem como característica a
dissimulação de sua existência no interior de seu próprio funcionamento, daí a
necessidade de uma teoria materialista do discurso, para que se pudesse trabalhar
esse efeito de evidência dos sujeitos e dos sentidos. A evidência do sentido (a que
faz com que uma palavra designe uma coisa), como explica Orlandi (2003, p. 46),
“apaga seu caráter material, isto é, faz ver como transparente aquilo que se constitui
pela remissão a um conjunto de formações discursivas que funcionam com uma
dominante”, afinal, as palavras recebem seus sentidos de formações discursivas em
suas relações. Quanto à evidência do sujeito (a de que somos sempre já sujeitos),
“apaga o fato de que o indivíduo é interpelado em sujeito pela ideologia” (ORLANDI,
2003, p. 46).
De acordo com Orlandi (2003), é a ideologia que propicia a relação
palavra/coisa, ou seja, as palavras não estão ligadas às coisas diretamente, com
sentido imanente, mas adquirem sentidos sócio-históricos, considerando o homem
na sua história e os processos e as condições de produção da linguagem.
Apropriando-se da definição de Barros (1988, p. 150), pode-se
considerar que o discurso “é uma prática social determinada por uma formação
21
ideológica e, ao mesmo tempo, lugar de elaboração de difusão da ideologia”, ou
seja, o discurso é a instância em que a materialidade ideológica se concretiza. A
posição conferida pelo Estado ao juiz no momento da prolação da sentença propicia,
pela Análise do Discurso, a avaliação de sua formação ideológica.
Através da interpelação ideológica do indivíduo em sujeito é que a
discursividade se desencadeia. No entanto, essa interpelação traz necessariamente
“o apagamento da inscrição da língua na história para que ela signifique produzindo
o efeito de evidência do sentido (o sentido-lá) e a impressão do sujeito ser a origem
do que diz” (BARROS, 1988, p. 48).
De acordo com a concepção de sujeito de Pêcheux (1997), o sujeito
é resultado de um processo sócio-histórico permeado pela influência do ideológico, o
que permite marcar e transformar o seu discurso.
Segundo Foucault (2004), para ser sujeito do que diz, o indivíduo
deve falar de uma posição que deve e pode ocupar. Esse é um conceito recorrente
na Análise do Discurso de linha francesa. O autor acredita que descrever uma
formulação enquanto enunciado consiste em determinar qual é a posição discursiva
que pode e deve ocupar todo indivíduo para ser sujeito das operações de
significação que os enunciados podem adquirir na materialidade discursiva. Por isso,
segundo ele, o discurso não é atravessado pela unicidade do sujeito, mas sim por
sua dispersão de acordo com seu posicionamento discursivo nas diversas posições
que pode ocupar ou receber quando exerce um discurso, nas descontinuidades dos
planos de onde fala.
O discurso, assim concebido, não é a manifestação, majestosamente
desenvolvida, de um sujeito que pensa, que conhece, e que o diz: é,
ao contrário, um conjunto em que podem ser determinadas a
dispersão do sujeito e sua descontinuidade em relação a si mesmo.
É um espaço de exterioridade em que se desenvolve uma rede de
lugares distintos (FOUCAULT, 2004, p. 61).
Segundo Brandão (2004, p. 59), como ser projetado num espaço e
num tempo orientado socialmente,
o sujeito situa o seu discurso em ralação aos discursos do outro.
Outro que envolve não só o seu destinatário para quem planeja,
ajusta a sua fala, mas também envolve outros discursos
historicamente já constituídos e que emergem na sua fala.
22
Trata-se de um sujeito que divide seu espaço discursivo com um
outro. Assim, através de suas palavras, outras palavras ressoam, sendo, portanto, o
discurso atravessado pelo discurso do outro.
O discurso não é, pois, a expressão da consciência, mas a
consciência é formada pelo conjunto dos discursos interiorizados pelo indivíduo ao
longo de sua vida. O homem aprende a ver o mundo pelos discursos que assimila, e
reproduz esses discursos em sua fala. As normas sociais impõem, por exemplo, até
os desejos que são ou não admissíveis.
Os estudos na área da psicanálise – descoberta do inconsciente por
Freud – serviram de fundamentos para que Authier-Revuz (2004) pudesse traçar o
perfil do sujeito da Análise do Discurso. Ele apresenta as seguintes características:
a) o sujeito é dividido, clivado, cindido. Além de sua relação com o
outro, se constitui também pela interação com o inconsciente
freudiano;
b) o sujeito é descentrado. No entanto, mantém a ilusão de ser o
centro, sendo esse o seu espaço discursivo;
c) o sujeito é efeito de linguagem. Ele é efeito de um trabalho
lingüístico.
O discurso jurídico é repleto de opções, elaborado segundo uma
contingência que, portanto, “agrega valores, impõem condutas, conduz instituições,
movimenta riquezas, opta por visões de mundo, e, portanto, sustenta uma ideologia”
(BITTAR, 2001, p. 181).
A modalidade discursiva sentença, especificamente, agrega a
interferência de um conjunto de práticas sociais e de forças políticas e econômicas.
O enunciador dessa modalidade dá sentido às suas palavras ao falar de uma
posição de juiz, de tal modo que as suas palavras são conseqüência da relação que
mantêm com a formação discursiva em que estão inseridas. Não se trata do juiz
especificamente, mas de sua posição no contexto sócio-histórico em que está
situado. E isso é o que lhe confere identidade em um determinado momento
histórico.
23
1.5 F
ORMAÇÃO DISCURSIVA E CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO
Dois conceitos fundamentais para a Análise do Discurso são os de
Formação Discursiva e o de Condições de Produção. Ambos apontam para a idéia
de que grande parte dos possíveis significados de um discurso é dada pelas
circunstâncias envolvidas em sua produção, o que inclui o contexto histórico-social,
os interlocutores, o lugar de onde falam, bem como a imagem que fazem de si, do
outro e do referente. O que o sujeito diz deve ser tributado, em boa parte, às
condições em que ele proferiu o enunciado, ou seja, às circunstâncias da
enunciação.
Dentre as definições de discurso propostas por Foucault, uma delas
relaciona-se diretamente com a Formação Discursiva: “conjunto de enunciados que
se apóia em um mesmo sistema de formação discursiva” (FOUCAULT, 2004, p.
122). A noção de Formação Discursiva foi elaborada por Michel Foucault em A
Arqueologia do Saber (2004), obra que apresenta uma descrição complexa do
método arqueológico, teoria que procura compreender o funcionamento dos
discursos que constituem as ciências humanas, tomados como um conjunto de
práticas discursivas que, ao configurar os objetos enunciados, legitimam os sujeitos
enunciadores e consolidam as estratégias dos atos discursivos.
O termo foi retomado por Michel Pêcheux (1997) como parte dos
pressupostos teóricos que apresentou na sistematização da proposta da Análise do
Discurso. Segundo Pêcheux, as palavras e expressões assumem sentidos distintos
de acordo com as posições e convicções daqueles que delas se utilizam. Assim, o
autor atribui o sentido que brota das palavras à formação discursiva na qual se
inscreve o enunciador, considerando os sentidos como não-literais. Ou seja,
segundo ele, o sentido de uma palavra, expressão ou proposição não depende
exclusivamente de sua materialidade lingüística, mas aponta para determinadas
condições ideológicas e para um certo processo sócio-histórico. A enunciação é que
determina a constituição significativa e a condição para que cada elemento seja
dotado de um sentido (CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2004).
Ao falarmos de formação discursiva, outro conceito muito próximo a
este deve ser abordado, o de formação ideológica, pois o discurso é a instância por
excelência da materialização da ideologia. Trata-se da instância discursiva que pode
24
ser definida como um conjunto de valores e preceitos que estão subordinados à
ideologia, de acordo com as posições de classe ocupadas numa dada formação
discursiva. O sentido é, portanto, determinado pelas posições ideológicos postas em
jogo no processo sócio-histórico em que as palavras são produzidas. Tudo o que se
diz tem um traço ideológico em relação a outros traços ideológicos. Todo discurso
mantém relação com outros. A evidência do sentido é um efeito ideológico que não
permite perceber a historicidade e sua construção.
Pêcheux (1997) enfatiza o papel da ideologia no contexto da
produção do discurso. Apropriando-nos da definição de Barros (1988, p. 150),
podemos considerar que o discurso “é uma prática social determinada por uma
formação ideológica e, ao mesmo tempo, lugar de elaboração e difusão da
ideologia”. Por formação ideológica entende-se:
um conjunto complexo de atitudes e representações que não são
nem individuais nem universais, mas que dizem respeito, mais ou
menos diretamente, às posições de classe em conflito umas com as
outras (PÊCHEUX, 1997, p. 166).
Uma formação ideológica admite mais de uma posição, não somente
capaz de se confrontar uma com a outra, mas também de manter entre si relações
de aliança ou dominação. Assim, elas fornecem as representações necessárias para
ver e dizer o mundo às formações discursivas e “incluem uma ou várias formações
discursivas interligadas, que determinam o que pode e deve ser dito a partir de uma
posição dada em uma conjuntura dada” (CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2004, p.
241). Cada formação discursiva, portanto, contém aquilo que é possível e também
aquilo que não é possível ser dito nos discursos dos sujeitos enunciadores,
possibilitando, dessa forma, a manifestação da ideologia.
Uma formação discursiva é derivada de interdiscursos, conforme já
discutimos anteriormente, que permitem ao sujeito enunciador abstrair o que é ou
não possível dizer em seu discurso, de acordo com uma determinada situação
discursiva. Assim, ratificando, o interdiscurso precede o discurso, pois todo discurso
é colocado em relação a outros discursos. No entanto, é importante ressaltar-se que
essas possibilidades não dizem respeito somente a uma formação discursiva, mas a
outras que se entrecruzam e possibilitam o surgimento de novos sentidos.
25
Já que mencionamos o interdiscurso, um outro conceito relevante
para o objetivo deste trabalho deve ser aqui abordado: o de memória discursiva. De
acordo com Orlandi (2003), o discurso é também dominado pela memória de outros
discursos, que fornecem ao sujeito enunciador as palavras do outro, já proferidas
anteriormente e, portanto, pode ser também tratada como interdiscurso. Assim, as
possibilidades discursivas buscadas na memória também são frutos dos discursos
anteriores, “o saber discursivo que torna possível todo dizer e que retoma sob a
forma do pré-construído, o já-dito que está na base do dizível, sustentando cada
tomada da palavra” (ORLANDI, 2003, p. 31).
Parte constitutiva da produção do discurso, a memória, segundo
Orlandi (2003), “aciona” as condições de produção, que compreendem os sujeitos e
a situação. A autora considera as condições de produção, em sentido estrito, como
parte constitutiva das circunstâncias da enunciação, ou o contexto imediato; e, em
sentido amplo, as condições de produção incluem o contexto sócio-histórico, sendo
derivadas, pois, do ideológico.
De acordo com Charaudeau e Maingueneau (2004), a noção de
condições de produção foi utilizada por Pêcheux, alicerçada na expressão marxista
“condições econômicas de produção”, apontando para as circunstâncias nas quais
um discurso é produzido, e procurando abordar tudo o que condiciona um
determinado discurso. Pêcheux apropriou-se do esquema “informacional” de
Jakobson, que coloca em cena os protagonistas do discurso e o seu referente,
vendo, nos protagonistas do discurso, não uma presença física, mas a
representação de “lugares determinados” na estrutura de uma “formação social”. As
relações entre esses lugares
não constituem comportamentos individuais, não remetem nem à
parole saussuriana nem à psicologia, mas dependem da estrutura
das formações sociais e decorrem das relações de classes, tais
como descritas pelo materialismo histórico (CHARAUDEAU;
MAINGUENEAU, 2004, p 114).
1.6 A HETEROGENEIDADE ENUNCIATIVA
As duas concepções do princípio dialógico contribuíram para análise
de textos e de discursos, em diferentes perspectivas teóricas. Assim, um outro
conceito muito próximo ao de dialogismo, também desenvolvido por Bakhtin, é o de
26
polifonia, utilizado para caracterizar um certo tipo de texto, “aquele em que se
deixam entrever muitas vozes, por oposições aos textos monofônicos, que
escondem os diálogos que os constituem” (BARROS, 2003, p. 6).
Conforme já mencionamos anteriormente, o dialogismo é princípio
constitutivo da linguagem e de todo discurso. Assim, o texto é o encontro de muitos
diálogos, cruzamento de vozes oriundas de práticas de linguagem socialmente
diversificadas; é constituído por “fios dialógicos de vozes que polemizam entre si, se
completam ou respondem umas às outras” (BARROS, 2003, p. 4). No entanto,
existem textos polifônicos e monofônicos, de acordo com as estratégias discursivas
utilizadas. É considerado um texto polifônico aquele cujas vozes se mostram, ou
algumas delas deixam-se escutar; e monofônico quando as vozes se ocultam sob a
aparência de uma única voz. Trata-se, na verdade, como já dissemos, de estratégias
discursivas com a finalidade de se criar efeitos de sentidos: afinal,os textos são
dialógicos porque resultam do embate de muitas vozes oriundas de contextos
sociais.
Entendido assim, todo discurso define sua identidade em relação ao
outro, ou seja, o sujeito situa o seu discurso em relação aos discursos do outro.
Outro que envolve além de outros discursos historicamente já constituídos, e que
emergem na sua fala, o seu destinatário para quem ajusta seu discurso. Daí a
concepção de linguagem como heterogênea, produzida por um sujeito que divide o
espaço discursivo com o outro.
A manifestação dessa heterogeneidade na materialidade lingüística
do texto foi trabalhada por Authier-Revuz (2004), no quadro teórico da Análise do
Discurso. A autora parte da idéia de que se a linguagem é heterogênea em sua
própria constituição, o discurso também é heterogêneo, afinal, a materialidade
discursiva é de natureza lingüística.
Authier-Revuz (2004) distingue duas formas dessa heterogeneidade:
mostrada e constitutiva. Aquela “incide sobre manifestações explícitas, recuperáveis
a partir de uma diversidade de fontes de enunciação”, enquanto esta “aborda uma
heterogeneidade que não é marcada em superfície, as que a AD pode definir,
formulando hipóteses, através do interdiscurso, a propósito da constituição de uma
formação discursiva” (MAINGUENEAU, 1997, p. 75). Esta última forma de
heterogeneidade evidencia o dialogismo, seja pelo papel do interlocutor, seja pela
relação do discurso com outros discursos.
27
Tanto uma quanto outra são formas de se relacionar o discurso com
seu exterior. Na heterogeneidade mostrada, o outro se faz presente através de
manifestações tipologicamente marcadas, cujas fontes podem ser recuperadas. Na
constitutiva, a voz do outro não se faz marcar na superfície discursiva, portanto o
sujeito não tem conhecimento do outro, pois se imagina a única fonte de seu
discurso; já na mostrada, a unicidade discursiva é quebrada e por isso o outro é
mais facilmente identificável.
Retomando a fala alheia, o enunciador explicita ou não a sua fonte.
Por exemplo, se houver citação expressa, temos um caso de intertextualidade
explícita. É o caso do discurso relatado presente nas citações, referências, etc. Se a
citação não for expressa da fonte, temos um caso de intertextualidade implícita,
como no caso de alusões, paródias, de alguns tipos de ironia, etc. De qualquer
forma, a retomada do discurso do outro nunca é neutra, pois o enunciador as
reveste de algo novo, de acordo com sua compreensão e avaliação.
Tomando o discurso de acordo com a perspectiva de uma
heterogeneidade constitutiva, Maingueneau (1997) afirma o primado do interdiscurso
sobre o discurso, ou seja, o interdiscurso é visto como tendo precedência sobre o
discurso, querendo dizer que todo discurso é produzido a partir de outros já
constituídos, sendo resultado de relações que mantém com outros discursos
pertencentes à mesma formação discursiva. De acordo com o autor, é preciso definir
uma formação discursiva a partir de seu interdiscurso:
O interdiscurso consiste em um processo de reconfiguração
incessante no qual uma formação discursiva é levada a incorporar
elementos pré-construídos, produzidos fora dela, com eles
provocando sua redefinição e redirecionamento, suscitando,
igualmente, o chamamento de seus próprios elementos para
organizar sua repetição, mas também provocando, eventualmente, o
apagamento, o esquecimento ou mesmo a denegação de
determinados elementos (MAINGUENEAU, 1997, p. 113).
Nessa perspectiva, a definição do domínio de uma formação
discursiva se dá através da articulação de um conjunto de formulações aceitáveis,
determinando o que pode e deve ser dito. Esse limite que determina o que pode e
deve ser dito se inscreve entre diversas formações discursivas como uma fronteira
em constante deslocamento, na tentativa de excluir formulações inaceitáveis a esse
domínio. Brandão (1998) nos chama a atenção para o fato de que, embora se
28
busque delimitar o interior de uma formação discursiva, não se pode falar que a
constituição de um corpus discursivo se caracterize pela homogeneidade. Ao
contrário,
embora o esforço empreendido pelo autor seja justamente dar
coerência e uniformidade ao todo, o olhar aguçado do analista ou do
leitor crítico vai detectar ai a arquitetura das estratégias discursivas
visando eliminar as contradições resultantes desse embate que se
trava na zona fronteiriça (BRANDÃO, 1998, p. 127).
O interdiscurso de uma formação discursiva é, portanto, lugar de
formação, repetição, transformação, denegação ou esquecimento de saberes
associados a essa formação discursiva.
Maingueneau e Charaudeau (2004) definem interdiscurso em
sentido restritivo como “um espaço discursivo, um conjunto de discursos (de um
mesmo campo discursivo ou de campos distintos) que mantêm relações de
delimitação recíproca uns com os outros” e de forma ampla como o “conjunto das
unidades discursivas (que pertencem a discursos anteriores do mesmo gênero, de
discursos contemporâneos de outros gêneros etc.) com os quais um discurso
particular entra em relação implícita ou explícita” (MAINGUENEAU, 2004, p. 286).
Processo de retomada de discursos já constituídos, o interdiscurso é
fruto de um trabalho incessante de um discurso sobre outros discursos.
29
2 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
O corpus aqui analisado é composto de quatro sentenças judiciais,
que abordam os temas reintegração de posse e autorização para interrupção de
gravidez.
2.1 S
OBRE A COLETA E ANÁLISE DO MATERIAL
As sentenças que compõem esse corpus fazem parte de um
material de apoio de aulas do Curso de Especialização em Filosofia Política e
Jurídica da Universidade Estadual de Londrina.
Trata-se de uma seleção de cinco sentenças com pareceres
antagônicos que eram interpretadas para se analisarem marcas das escolas do
pensamento jurídico, como o juspositivismo e o jusnaturalismo, por exemplo. As
quatro sentenças foram escolhidas por se revelarem mais conflitantes em suas
fundamentações.
Após a coleta do material, realizamos um levantamento a fim de se
verificarem quais eram os procedimentos discursivos mais utilizados no corpus
selecionado os quais pudessem apontar para um comprometimento ideológico por
parte do magistrado em sua decisão. Desta forma, optamos, portanto, por uma
avaliação crítica dos seguintes recursos de expressão: o discurso relatado, as aspas
e a ironia.
Através destes procedimentos discursivos, que consideramos mais
recorrentes e significativos nas sentenças selecionadas, procuramos estabelecer
relações entre os contextos interior e o exterior desses discursos, com o objetivo de
identificar os comprometimentos do enunciador, o juiz, com determinados valores
ideológicos .
A determinação do número de sentenças deveu-se ao fato das
quatro serem consideradas como suficientemente representativas para se analisar,
na produção do texto jurídico, os fundamentos axiológicos e a influência valorativa
30
moral e pessoal do sujeito enunciador, apresentando indícios que podem ser
recuperados em suas operações discursivas decisórias.
As duas primeiras sentenças abordam o tema da reintegração de
posse de terra. A primeira, de 1981, da lavra do Poder Judiciário do Estado de São
Paulo, julgou procedente a ação, concedendo a referida reintegração aos
requerentes-proprietários. A segunda, de 1995, do Estado de Minas Gerais, julgou
improcedente o pedido, mantendo os invasores na posse do imóvel. Trata-se,
portanto, de duas decisões antagônicas em torno de um mesmo tema.
A justificativa para a escolha dessas sentenças está no fato de
poderem revelar o conflito pelo qual passavam os magistrados no exercício de sua
função de decidir, aspecto que transparece no próprio discurso sentencial. Isso se
dá, certamente, pelo fato de que a reforma agrária, sendo um programa social muito
polêmico e complexo, envolve discussões de causas e conseqüências que não se
restringem ao universo jurídico.
As duas sentenças seguintes dizem respeito à concessão de
autorização para interrupção de gravidez. A primeira, de 1992, foi produzida no
município de Londrina, no estado do Paraná, com julgamento favorável à
requerente; a segunda, também da mesma localidade, é de 1995 e apresenta
parecer contrário.
31
3 A MODALIDADE SENTENCIAL NO DISCURSO JURÍDICO
3.1 D
EFININDO O GÊNERO JURÍDICO
De acordo com Bakhtin (1992), o conceito de gênero discursivo
refere-se a formas típicas de enunciados que se realizam em condições e com
finalidades específicas nas distintas situações de interação social.
Maingueneau (2001, p. 69) caracteriza os gêneros de discurso
recorrendo a metáforas tomadas de três domínios: o jurídico (contrato), lúdico (jogo)
e teatral (papel). O primeiro significa afirmar que ele é “fundamentalmente
cooperativo e regido por normas”. Isto quer dizer que ele exige daqueles que dele
participam que se submetam a um certo número de regras mutuamente conhecidas.
O segundo está relacionado às interações sociais concebidas como um grande
teatro onde tudo o que se faz é “representar papéis”. Assim, cada gênero implica os
parceiros “sob a ótica de uma condição determinada e não de todas as suas
determinações possíveis”. E, por fim, quando se refere ao jogo, Maingueneau
(2001) cruza as metáforas do contrato com as do teatro, enfatizando as regras
envolvidas na participação em um gênero e sua dimensão teatral. Semelhantemente
ao jogo, um gênero implica certas regras preestabelecidas mutuamente conhecidas
e cuja transgressão põe um participante “fora do jogo”.
O autor propõe ainda uma divisão dos gêneros de discurso tomando
por invariante o lugar institucional. Se tomarmos como base o jurídico, teremos
múltiplos gêneros discursivos escritos ou orais praticados dentro deste contexto: a
petição inicial, a legislação, os depoimentos, a sentença, etc.
A sentença judicial, modalidade objeto de estudo desta pesquisa, é
uma modalidade do gênero discursivo jurídico e uma espécie de ato processual.
Caracteriza-se por ser ato exclusivo do juiz, com a finalidade de colocar fim a um
conflito entre duas partes. Assim, o magistrado assume o papel de enunciador, ou
seja, o de, alguém investido de autoridade e saber para exercer essa função, e os
co-enunciadores, o papel de partes envolvidas no litígio, que deverão acatar ou não
a decisão prolatada. Nessa interação cada um assume sua identidade a partir e no
interior desse sistema de lugares sociais.
32
3.2 O D
ISCURSO JURÍDICO
No contexto lingüístico, constata-se que as mais distintas
comunidades, através de suas práticas, hábitos, estratificações, etnias, deram
origem a um grande número de universos de discursos, dentre os quais o discurso
jurídico, responsável pelas exigências da sociedade e pela harmonização das
relações entre os cidadãos.
As práticas jurídico-textuais estruturam-se na linguagem como frutos
de manifestações sociais e produtos de uma história cultural. Assim, os conceitos
jurídicos ganham forma através da língua e, dessa forma, o Direito nos é dado a
conhecer por meio de palavras manifestadas em todos os sentidos: nas leis, nos
atos judiciais e em outras formas diversas que não dispensam a ferramenta da
linguagem para o conhecimento da matéria jurídica.
Trata-se de um discurso contextualizado, produzido no seio da vida
social, intimamente ligado aos processos sociais (BITTAR, 2001, p. 169). Por tratar-
se de um fenômeno social, conseqüentemente, não tem como característica a
imutabilidade, mas a transformação que acompanha o movimento incessante de
valores sociais e culturais.
De acordo com Maria Francisca Carneiro (2004), a Teoria Geral do
Direito, elaborada a partir da Teoria Geral da Relação Jurídica, diz que “enquanto
somos sujeitos de fato em uma dada sociedade, os contatos, interações e conflitos
próprios da vida social nos fazem, de imediato, produtores e, portanto, sujeitos de
relações jurídicas”.
O discurso jurídico não se resume apenas a discurso da norma, ou
seja, ao discurso prescritivo, legislativo, mas abriga também outras manifestações
textuais, que não apenas a normativa. De acordo com Bittar (2001,
p. 174), o
discurso jurídico
é o conjunto das produções de sentido no campo a que se pode
chamar jurídico, e abarca toda a dinâmica interna do jurídico e suas
fontes, de modo que o discurso normativo é parte dessa
generalidade, mas não qualquer parte, e sim parte substancial dela
33
É constituído de textos que possuem uma sólida base herdada do
Direito Romano no que se refere à estruturação temática e à configuração lingüística
também. Assim, a linguagem empregada em tais textos por profissionais do direito
está subordinada às convenções do passado, pois, desta forma, pretende-se regular
e estabilizar as relações sociais, facilitando o processo de recepção e interpretação
das distintas partes do texto jurídico – a rígida configuração do texto jurídico é
determinada, em última instância, por fatores pragmático-comunicativos.
Nas leis, por exemplo, a disposição do conteúdo tem como ponto de
partida seu enunciado geral, seguido dos artigos, que é a enumeração de todos os
casos possíveis que possam ser compreendidos dentro da referida lei.
Em um processo judicial também existem vários modelos. As peças
processuais dirigidas ao juízo obedecem a um modelo constituído pelo próprio
direito, que segue uma progressão lógica do conteúdo, visando a uma satisfatória
exposição e posterior compreensão da questão apresentada
1
. Primeiramente, nesta
categoria discursiva, é apresentada uma introdução onde constam o juízo, ao qual a
ação é dirigida; as partes envolvidas na demanda e as suas qualificações, como a
profissão, número de carteira de identidade; e o nome de seu representante – o
advogado. Após isso há a exposição dos fatos de forma ordenada e coerente,
seguida da fundamentação legal de direito na qual se baseia o advogado para fazer
sua solicitação, que são os pedidos finais. Esse modelo se apóia em uma forma
legalmente ordenada para se evitar variações desordenadas e, ao mesmo tempo,
proceder-se à padronização do discurso.
A decisão da demanda é dada pelo juiz encarregado de julgar a
causa. Nela, o magistrado resume o que foi exposto pelos advogados, bem como os
diversos procedimentos judiciais ocorridos no processo (como, por exemplo, a
produção de provas) e emite um parecer que seja conciso acerca da petição que
originou a demanda.
Bittar (2001, p. 177) define alguns traços que diferem o discurso
jurídico de outras práticas sociais de linguagem:
1
Art. 282 do Código de Processo Civil. A petição inicial indicará: I - o juiz ou tribunal, a que é dirigida; II - os
nomes, prenomes, estado civil, profissão, domicílio e residência do autor e do réu; III - o fato e os fundamentos
jurídicos do pedido; IV - o pedido, com as suas especificações; V - o valor da causa; VI - as provas com que o
autor pretende demonstrar a verdade dos fatos alegados; VII - o requerimento para a citação do réu.
34
a) é linguagem técnica;
b) constrói-se a partir de experiências da vida ordinária;
c) ocorre intraculturalmente;
d) possui ideologia;
e) exerce poder;
f) seu caráter é, normalmente, performativo, e sua apresentação se
faz, fundamentalmente, por meio de pressupostos lógico-
deônticos.
Dentre os traços apresentados por Bittar, abordaremos, no presente
estudo, somente o caráter ideológico dessa modalidade de discurso e sua
característica performativa, por tratar-se de um traço essencial à análise proposta.
De acordo com Bittar (2001), o discurso jurídico é ideológico porque
pressupõe decisões, e também porque dessas decisões não se podem excluir
fatores políticos, sócio-culturais, econômicos, históricos, etc..
de modo que a pretensa estrutura límpida e cristalina, desprovida de
paixões, sobretudo inspirada em ideais racionalistas não deixa de se
apresentar como movimento contínuo em dialética interação com os
fatos sociais (BITTAR, 2001, p. 181).
Conforme já mencionado no capítulo de referencial teórico, Pêcheux
(1997), em seus estudos semânticos, enfatiza o papel da ideologia no contexto da
produção de todo discurso, afirmando que este opera como instrumento de
dominação e de força no contexto discursivo. É nesse sentido que se pode referir a
uma conotação ideológica de que se reveste o discurso.
3.3 C
ONCEITO DE SENTENÇA JUDICIAL
O vocábulo sentença vem do verbo latino sentire e, de acordo com
alguns estudiosos, teria derivado de sentiendo, seu gerúndio. Daí a expressão
sententia no Direito Romano.
35
De acordo com Noronha (1995, p. 274), a origem do vocábulo nos
permite conceber que a semântica da palavra expressa “sentimento ou a
sensibilidade de quem se encontra diante de determinado fato para alcançar a
inteligência e o conteúdo desse fato”.
Para Rocco, a sentença pode ser definida como “o ato com o qual o
estado, por meio do seu agente (o juiz), aplicando a norma ao caso concreto,
declara a tutela jurídica que o direito objetivo concede a um determinado interesse”
(apud NORONHA, 1995, p. 275). Assim, a sentença é um ato do estado que se
consubstancia num ato da mente do juiz. Isto não quer dizer que a sentença seja
uma declaração de vontade por parte do juiz, mas a vontade declarada deve ser a
vontade da lei.
O Código de Processo Civil
2
define a sentença como “ato pelo qual o
juiz põe termo ao processo, decidindo ou não o mérito da causa”. Assim, há duas
modalidades de sentença: uma que decide o mérito, apreciando-o, e outra que
finaliza o processo sem analisar o mérito
3
.
Nas sentenças que decidem o mérito, também denominadas como
sentenças definitivas, o juiz acolhe ou rejeita o pedido, dá razão a uma das partes e
nega-o à outra; ou seja, ele resolve a lide, que é “o conflito suscitado pelo pedido do
autor e contestação, real ou virtual, do réu” (SANTOS, 1980, p. 9), satisfazendo,
desta forma, a obrigação jurisdicional do Estado, e pondo fim a relação processual.
Contudo, a definição de que a sentença põe fim ao processo, deve
ser considerada em sentido relativo, pois as sentenças são passíveis de serem
questionadas através de recursos, e, neste caso, aguarda-se uma decisão de
instância superior e o trânsito em julgado para o término do processo.
Na outra possibilidade, o juiz pode finalizar um processo sem a
apreciação do mérito quando faltam elementos essenciais para a formação válida da
relação processual, como, por exemplo, nos casos da qualificação das partes, os
fundamentos jurídicos do pedido, os pedidos na petição inicial, dentre outros.
Ao proferir a sentença, o magistrado finaliza sua jurisdição sobre a
causa e, de acordo com o princípio da invariabilidade da sentença, só pode corrigi-la
2
Art. 162, § 1º.
3
Conforme art. 267 do Código de Processo Civil.
36
ex officio ou a pedido do interessado, se nela houver inexatidões materiais, erros de
cálculo, etc
4
.
As sentenças são impugnáveis pelo recurso de apelação para os
tribunais. As sentenças proferidas por Tribunais denominam-se acórdãos. Já a
sentença transitada em julgado ocorre pela exaustão dos recursos ordinários e
especial, ou pelo consentimento pelo vencido à decisão que lhe seja desfavorável,
ou, ainda, pela renúncia ao direito de recorrer.
As sentenças proferidas por Tribunais denominam-se acórdãos.
Já a sentença transitada em julgado ocorre pela exaustão dos
recursos ou pelo consentimento pelo vencido à decisão que lhe seja desfavorável,
ou, ainda, pela renúncia ao direito de recorrer.
De acordo com Noronha (1995), a sentença é o resultado específico,
concreto e final da jurisdição.
Não é um puro e simples mecanismo de lógica jurídica, senão
operação humana em que o juiz não pressupõe exclusivamente a
norma preexistente, senão a valoração dos conteúdos humanos
embutidos nos fatos controvertidos, geradores do conflito posto sob a
ótica do magistrado. Decide-o este, como homem de saber, de
vontade e de autoridade, exercitando em seu mais profundo
significado os dotes de inteligência e moral de que se encontra
exornado (NORONHA, 1995, p. 34).
3.4 A MODALIDADE DO DISCURSO DECISÓRIO
Com o objetivo de situar o nosso trabalho dentro do vasto campo do
discurso jurídico, trataremos primeiramente a respeito dos aspectos discursivos da
sentença judicial para, posteriormente, tratarmos dos fundamentos axiológicos
dessa modalidade discursiva.
O discurso sentencial, conforme já dito, é uma das modalidades do
discurso jurídico que possui peculiaridades que a fazem distanciar-se do sentido
assumido pelas demais modalidades. Trata-se de um discurso que possui
4
Art. 463 - Publicada a sentença, o juiz só poderá alterá-la: (Alterado pela Lei nº 11.232/2005) I - para lhe
corrigir, de ofício ou a requerimento da parte, inexatidões materiais, ou lhe retificar erros de cálculo; II - por
meio de embargos de declaração.
37
características performativas, capaz de modificar a situação jurídica de um sujeito,
pelo fato de sua enunciação possuir um poder discursivo de elocução, derivado de
um outro discurso, o normativo. Austin (apud Pinto, 2004, p. 58) define tal fazer
enunciativo como parte da produção de enunciados performativos, ou seja, “como
aqueles que realizam ações porque são ditos”. O ato performativo requer a
capacidade de realizar ações por meio do discurso, o que se dá com a aparição de
cada discurso decisório.
Segundo Bittar (2001), o discurso decisório “torna realidade ativa e
individualizada aquilo que se encontra apenas em hipótese de dever-ser na norma”,
e isso porque o discurso normativo, de modo geral, e muito especialmente o
legislativo, é descrito com base em situações hipotéticas, abstratas e direcionadas
para um tempo futuro, quase sempre sem exemplificação, com situações concretas
existentes de fato, ou já ocorridas.
Assim, é característica do discurso legislativo seu caráter
generalizante e objetivo; portanto, a aplicação desse discurso a um caso concreto,
real, estará sempre sujeita a uma valoração subjetiva e particularizante, pois é
engendrada por meio da interpretação, conferindo ao discurso decisório o poder de
individualização do sentido abstrato dos textos normativos. A lógica jurídica
denomina de subsunção esse processo de aplicação da norma ao caso concreto.
Esse processo valorativo que o magistrado desenvolve decorre das
interpretações desenvolvidas pelas partes durante as diversas fases processuais,
por intermédio de seus advogados, especialmente pelas suas manifestações
discursivas (petições). Esses também buscam em outras fontes dicursivas
(doutrinas, jurisprudências) elementos que possam persuadir o magistrado para que
acolha as suas pretensões.
Tem-se, portanto, diante do exposto, que toda sentença judicial
pressupõe uma prática de linguagem, e que incorpora outras práticas de linguagem
jurídicas, ou seja, há uma interação de discursos jurídicos que sustentam o discurso
sentencial.
Entendido, então, como uma prática de linguagem, o discurso
decisório é um texto de alta complexidade, pois, de acordo com Bittar (2001, p. 270)
individualiza a norma na qual se baseia, além de se construir na base
de embates textuais, provas, documentos, narrativas, de modo que,
além de receber essas práticas textuais imersas no seio do
procedimento, também age no sentido de combater argumentos,
38
narrar fatos, reestruturar o valor das provas, examinar e avaliar
documentos, interpretar normas, convencer, impor-se racionalmente
pelos seus fundamentos.
Assim, a sentença judicial é, por excelência, um discurso de síntese
e individualização, formulado a partir da proposta textual legislativa e de um universo
de “particularidades que se encontram dentro do procedimento e das evocações da
situação concreta examinada sub judice” (BITTAR, 2001, p.271).
No entanto, embora a linguagem jurídico-processual seja
predominantemente escrita, não significa que não estejam presentes nos autos de
um procedimento ou do processo linguagens não verbais, como a fotografia, o
fonograma, a cópia cinematográfica. A utilização de tais signos visa a reproduzir
com mais fidelidade os sentidos do ocorrido, o que poderia não ser tão bem
representado pela linguagem escrita, uma vez que estão sujeitas às limitações da
língua e do usuário dela, o que poderia ocasionar, assim, efeitos de sentidos muito
distintos daqueles idealizados por seus enunciadores.
O discurso sentencial caracteriza-se pelo seu caráter racional, cuja
questão é um dubium conflito, ou seja, são
questões que permitem mais de uma resposta e que pressupõem
uma compreensão preliminar e provisória, em virtude da qual algo
aparece como uma alternativa dúbia que deve ser levada a sério e
para a qual se procura uma solução (FERRAZ JUNIOR., 1997, p.
77).
Não há, portanto, como conceber a sentença como um ato
mecânico, impensado. Ela é fruto da inteligência do magistrado, que usa de sua
faculdade intelectiva e de seus conhecimentos jurídicos para decidir quem tem
razão.
Enquanto sujeito enunciador do discurso, o juiz é a autoridade
administrativa autorizado a “falar” por decisões. Cabe, portanto, ao juiz estudar os
processos do pensamento lógico, que se manifestam por meio da expressão
material do pensamento que é a linguagem. Segundo Azevedo (1981),
esse tipo de pensamento ordenado e lógico, conseqüência de toda
uma técnica jurídica, manifesta-se principalmente no momento da
aplicação da norma (quando acontece a passagem da norma
abstrata para a relação concreta), concretizando-se através de uma
39
linguagem caracterizada como de estilo técnico (AZEVEDO, 1981, p.
38).
Essa linguagem lógica é uma das manifestações da linguagem
forense, que é baseada em argumentos, expressão verbal do raciocínio e busca da
razão no pensamento em movimento.
Sob o ponto de vista da situação comunicativa discursiva, Ferraz
Junior (1997, p. 73) define o discurso judicial como oportunidade para a conjunção
de diversos partícipes, cujo sentido é “a representação da busca de uma decisão, de
acordo com certa regras”. Assim, podemos identificar os componentes básicos da
situação discursiva sentencial: os emissores, que são aqueles que decidem; os
receptores, ou destinatários da decisão; e o objeto do discurso. O autor destaca o
fato de que os emissores da decisão devem procurar afastar os caracteres
peculiares da sua personalidade, na medida em que a decisão buscada não deve
resultar senão de normas e de fatos. Ao contrário, os receptores imiscuem sua
própria personalidade nas suas ações, pois a decisão será, para eles, uma premissa
do seu comportamento pessoal. Assim, conforme alude Ferraz Jr., o discurso dos
emissores deve expressar “uma certa ‘objetividade’, no sentido de que eles ‘falam o
direito’; o dos receptores, uma certa ‘subjetividade’, no sentido de que eles ‘falam os
fatos’” (FERRAZ JUNIOR, 1997, p 74).
Situando-nos nessa perspectiva discursiva, buscamos em
Maingueneau (2004, p. 96) sua proposta para uma análise dessa cena enunciativa.
O autor propõe a análise em três cenas distintas:
a) a cena englobante é aquela que atribui um estatuto pragmático
ao tipo de discurso a que pertence um texto. Quando se recebe
um panfleto, deve-se ser capaz de determinar se ele pertence ao
tipo de discurso religioso, político, publicitário...; dito de outra
forma, em qual cena englobante é necessário se colocar para
interpretá-lo, a que título (como sujeito de direito, consumidor
etc.) ele interpela seu leitor;
b) a cena genérica é definida pelos gêneros do discurso
particulares. Cada gênero do discurso implica, com efeito, uma
cena específica: papéis para seus parceiros, circunstâncias (em
40
particular um modo de inscrição no espaço e no tempo), um
suporte material, um modo de circulação, uma finalidade etc;
c) a cenografia não é imposta pelo tipo ou pelo gênero de discurso,
mas instituída pelo próprio discurso.
O autor explica que nem todos os gêneros de discurso são
suscetíveis de suscitar uma cenografia, os que mais recorrem a cenografias são
aqueles que visam a agir sobre o destinatário, a modificar suas convicções,
atribuindo a seu destinatário uma identidade em uma cena de fala.
O sujeito enunciador da modalidade sentencial se submete às
coerções das cenas englobante e genérica ao enunciar. No entanto, encontra no
espaço da cenografia a liberdade de que precisa para tomar a palavra de maneira
única e consolidar-se como sujeito do discurso. Portanto, esta instância de
subjetividade enunciativa possui duas faces, segundo Maingueneau (1997, p. 33),
por um lado, ela constitui o sujeito em sujeito de seu discurso, por
outro, ela o assujeita. Se ela submete o enunciador a suas regras,
ela igualmente o legitima, atribuindo-lhe a autoridade vinculada
institucionalmente a este lugar.
Assim, ao assumir a palavra, o magistrado assume o lugar que
enuncia. Ele designa-se juiz por sua inscrição em um espaço social organizado, um
sistema de relações jurídico-administrativas abstratas, configurando a cena
enunciativa dentro de um espaço de enunciação regido e organizado por regras
próprias.
3.5 R
EQUISITOS ESSENCIAIS DA SENTENÇA
De acordo com o Código de Processo Civil, em seu art. 458, incisos
I a III, a sentença judicial possui uma estrutura formal que é divida em três partes:
relatório, fundamentação e decisão, sem as quais sua validade e eficácia são
prejudicadas. Também possui uma estrutura lógica, que decorre de
41
posição doutrinária já sedimentada nos tempos, de que a sentença
deve produzir-se sob a forma de um silogismo, em que a premissa
maior se constitui da norma jurídica material aplicável à hipótese
litigiosa; a premissa menor é formada pelos fatos da demanda; e,
finalmente, o dispositivo ou conclusão, onde se expressa o resultado
do juízo lógico (NORONHA, 1995, p. 74).
É pelo relatório que o magistrado narra, sinteticamente, os fatos e a
seqüência dos atos que se sucederam desde o início do processo até a decisão
final. Segundo este princípio, o juiz, analisando as petições dos advogados,
identifica quais são as reivindicações de cada parte e qual é o ponto controvertido da
demanda, que caracteriza o conflito levado à resolução. Essa narrativa é sintética e
constatativa. Não há qualquer emissão de juízo de valor por parte do magistrado.
Não obstante, o juiz pode elencar no relatório quais são os argumentos lançados
pelas partes, bem como a razão de seus pedidos, que serão efetivamente avaliados
na segunda etapa da sentença, a fundamentação.
É no relatório que o juiz procura “detectar as condições recíprocas
do autor/réu, atentando para os fundamentos das pretensões das partes” (SYTIA,
1995, p 38), articulando, portanto, a formação discursiva e a formação ideológica,
instituindo-se o discurso jurídico sob os princípios legais e aplicando-os segundo as
necessidades sociais.
O relatório é também a oportunidade para o enunciador avaliar o
aspecto formal do processo, ou seja, se o procedimento previsto pelo ordenamento
jurídico foi respeitado, ou se existem nulidades, ou seja, o desrespeito às normas
que estabelecem os requisitos mínimos para o processamento das ações. Muitas
vezes, o mérito da causa nem é discutido na sentença porque o juiz verifica, durante
o relatório, que o processo está falho, por ter deixado de observar determinada
exigência legal, como por exemplo, a publicação de um edital para dar publicidade
de um ato processual.
Também sob as condições de produção do discurso está a
fundamentação, que é a exposição dos fundamentos que, de fato e de direito,
sustentam a posição final do magistrado em relação ao mérito da causa.
O magistrado fundamenta sua decisão “sob os princípios de ordem
pública através do processamento dos princípios de ordem judicial, a fim de manter
o equilíbrio social” (SYTIA, 1995, p. 39). É o momento em que o magistrado torna
vivo o texto legal, buscando trazer à realidade a vontade pretérita do legislador.
42
Assim, sendo a fundamentação a razão da decisão do juiz, toda a
carga axiológica da sentença judicial será encontrada nessa fase da decisão. Pela
fundamentação, transparece a ideologia do discurso sentencial. Nesse ponto,
elegendo os componentes jurídicos, sociais, políticos, econômicos, etc., e
relacionando-os de maneira pertinente com as normas legais que regem a matéria
em discussão, o juiz determina sua posição em relação ao mérito da causa, julgando
procedente ou improcedente o pedido (ou os pedidos) formulado (ou formulados)
pelo autor.
O último ato da sentença é denominado “decisão”. Nesse momento
do discurso o juiz vai:
atentar para a formação ideológica que subjaz à fundamentação da
sentença, bem como aos princípios de ordem pública que alicerçarão
a sua decisão. Usará de seu poder de controle-dominação para a
extinção do conflito (SYTIA, 1995, p. 40).
A decisão é o capítulo final da sentença, a terceira e última parte.
Nesse momento o juiz vai concluir o raciocínio reafirmando definitivamente as bases
axiológicas da decisão. Não sem razão, essa última etapa da sentença inicia-se,
amiúde, com as expressões: “em face do exposto, julgo procedente...”, ou “assim,
julgo improcedente...”, ou ainda, “dessa forma, julgo...“. Ou seja, é como se
dissesse: “Baseado nos argumentos da fundamentação, assim decido:”.
A pessoalidade, marcada pelo verbo da primeira pessoa reflete a
autoridade e a identidade do juiz. Reenfocando Pêcheux (1997), nesse momento o
magistrado dá sentido às suas palavras ao falar de sua posição como autoridade
estatal, como Estado-juiz; as suas palavras têm relação, sem dúvida, com a
formação discursiva em que está inserido. A sua identidade, definida no momento da
decisão, é a síntese maior da ideologia revelada na fundamentação.
Conforme alude Gomes (1995, p. 24), o modo como fará uso de
seus poderes na condução do processo e na interpretação das leis, “dependerá de
sua opção por um ou várias correntes de interpretação”, deixando claro que,
portanto, a neutralidade axiológica não existe, pois, ao sentenciar, o magistrado,
ainda que inconscientemente, opta por determinada hierarquia de valores e impõe,
de modo decisório, o seu juízo de valor sobre determinada relação jurídica.
43
3.6 O
S FUNDAMENTOS DA SENTENÇA
É dever do magistrado demonstrar as razões de seu convencimento,
a respeito de uma determinada lide, sob pena de ter sua decisão anulada.
5
Diferentemente dos jurados de um tribunal do júri, os juízes não prolatam suas
sentenças apenas baseados em uma íntima convicção, mas em um convencimento
demonstrável, fundamentado nas provas incluídas no processo durante as fases que
antecederam a sentença.
O princípio fundamental da motivação das decisões judiciais é a
“exteriorização das razões de decidir, o revelar do prisma pelo qual o Poder
Judiciário interpretou a lei e os fatos da causa” (PORTANOVA, 2003, p. 248).
Assim sendo, entende-se que as normas jurídicas não possuem
significação própria, se consideradas isoladamente. De acordo com Sérgio Nojiri
(2000, p. 17), “o verdadeiro significado de cada uma delas só pode ser desvendado
a partir da correlação hermenêutica que se fizer com outras normas do mesmo
sistema”.
Nojiri (2000) chama a atenção para a existência de outro aspecto do
direito que está intrinsecamente relacionado com a interpretação legal: o axiológico.
É que o autor entende o direito como um objeto cultural e, portanto, constituído
segundo um conjunto de valores. Assim, segundo Paulo de Barros Carvalho (apud
NOJIRI, 2000)
quem se dispuser a conhecer o direito positivo não pode aproximar-
se dele na condição de sujeito puro, despojado de atitudes
axiológicas, como se estivesse perante um objeto da natureza. A
neutralidade ideológica impediria, desde o início, a compreensão do
sentido das normas, tolhendo a investigação. [...] o homem é
demasiado humano para contemplar as realidades, sem tomar
posição, sem decidir-se positiva ou negativamente, num estado de
adiáfora purificação e neutralidade ante o dever-ser de um dado ser
que é inseparável do homem (CARVALHO apud NOJIRI, 2000, p.
21).
5
De acordo com o artigo 93, inciso IX da Constituição Federal: “todos os julgamentos dos órgãos do Poder
Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei, se o
interesse público o exigir, limitar a presença em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou
somente a estes;”
44
De acordo com o autor, seria impossível compreender uma norma se não fosse
possível extrair o juízo valorativo que a torna sustentável.
A motivação da sentença é uma exigência que visa não só a defesa
do cidadão contra o arbítrio do juiz, mas constitui também “garantia para o Estado,
pois interessa a este que sua vontade superior seja exatamente aplicada e que se
administre corretamente a justiça” (FRAGOSO, 2006, p. 2). Além disso, o próprio juiz
protege-se, atendendo a obrigação de motivar sua sentença contra a suspeita de
arbitrariedade, de parcialidade ou de outra injustiça. A sentença não é, portanto, um
ato autoritário do juiz, mas um juízo lógico com o objetivo de promover a justiça.
Nesse sentido, argüi Antônio Scarance Fernandes (2000, p. 119):
Evoluiu a forma de se analisar a garantia da motivação das decisões.
Antes, entendia-se que se tratava de garantia técnica do processo,
com objetivos endoprocessuais: proporcionar às partes
conhecimento da fundamentação para poder impugnar a decisão;
permitir que os órgãos judiciários de segundo grau pudessem
examinar a legalidade e a justiça da decisão. Agora, fala-se em
garantia de ordem política, em garantia da própria jurisdição. Os
destinatários da motivação não são mais somente as partes e os
juízes de segundo grau, mas também a comunidade que, com a
motivação, tem condições de verificar se o juiz, e por conseqüência a
própria Justiça, decide com imparcialidade e com conhecimento de
causa. É através da motivação que se avalia o exercício da atividade
jurisdicional. Ainda, às partes interessa verificar na motivação se as
suas razões foram objeto de exame pelo juiz. A este também importa
a motivação, pois, através dela, evidencia a sua atuação imparcial e
justa.
É importante ressaltar-se que não basta apenas constar as fontes de
motivação na sentença. Em sua decisão, o magistrado deve ser coerente em seu
raciocínio lógico-jurídico, interpretando as normas hipotéticas e generalizantes como
premissas normativas, que devem ser relacionadas com os fatos concretos, de
acordo com as provas produzidas no processo.
Ou seja, o juiz deve referenciar os elementos probatórios, presentes
nos autos, que justificam cada uma de suas conclusões a respeito dos fatos,
relacionando-os diretamente com as normas jurídicas expostas pelas partes, que
julgam aplicáveis ao caso. Assim, a sentença deverá considerar sobre todas as
teses e argumentos utilizados pelas partes em suas petições.
45
Portanto, a cada razão que o influenciou a decidir em um
determinado sentido, o magistrado deve apresentar a lei referente à matéria em
questão.
46
4 RITUAL E PRESSUPOSIÇÕES DA FORMAÇÃO DISCURSIVA JURÍDICA
Abordaremos neste capítulo alguns princípios fundamentais
importantes do Direito. Essa explicitação é necessária para que não fiquem
obscuros, em termos de entendimento e incorporação à análise, alguns dos termos-
chave utilizados neste trabalho.
4.1 I
NTERESSE, LIDE E PRETENSÃO
Ao viver em comunidade o homem desenvolveu também
necessidades coletivas, e depende de bens para a satisfação dessas necessidades.
A relação entre o homem e os bens produzidos é apreciada segundo as
necessidades do grupo social, e se chama interesse. Caso duas ou mais pessoas
tenham interesse pelo mesmo bem, que a uma somente possa satisfazer, ter-se-á,
então, um conflito de interesses. É exigível, portanto, uma fórmula para resolver o
conflito.
Como primeira solução para desfazer um conflito, surge a violência,
marcada pelo predomínio da força. Mas, como resposta, apresentam-se três
alternativas que podem permitir soluções pacíficas:
a) Os antagonistas se conformam em limitar o seu interesse,
inclusive renunciando-o. É a solução moral, concebível numa sociedade
espiritualmente muito desenvolvida e, assim mesmo, de modo excepcional;
b) ou, um temendo a força do outro, ambos se entendem e
convencionam a composição do conflito: solução contratual, em que os interessados
podem, eventualmente, abrirem mão de parcelas de seus interesses;
c) ou, ainda, temendo-se reciprocamente, confiam a uma terceira
pessoa a função de resolver o desencontro dos seus interesses: solução arbitral,
baseada no respeito à força do árbitro.
47
No entanto, essas soluções não são estáveis nem definitivas, pois
não são capazes de acabarem com o conflito, pois a violência pode reavivar o
dissídio; a solução moral está mais relacionada ao equilíbrio do espírito e este está
sempre sujeito a variações; e as soluções fundadas no temor também se sustentam
apenas enquanto perdurar a relação de medo entre a autoridade e o subordinado.
Uma vez estabelecido o acordo ou acatada a decisão do árbitro, desaparecendo o
temor entre os conflitantes, o conflito retornará, inclusive em relação ao próprio
árbitro.
O conflito físico promove a desordem social, por isso uma sociedade
organizada deve apropriar-se de meios para extingui-lo de modo definitivo e também
para preveni-los na generalidade dos casos, assegurando, assim, a paz e a ordem
social.
O direito é um instrumento de ordem, que consiste no sistema
normativo de regras de conduta. A ordem jurídica previne e dirime os conflitos de
interesses, e a condição de sua existência é a obediência às normas que a
estabelecem.
Regulando as relações humanas, visando a assegurar a ordem
jurídica, o direito tutela diversas categorias de interesses, das mais simples às mais
complexas, cada vez mais numerosas à medida que os homens e as sociedades se
aperfeiçoam. Consiste a tutela jurídica na formulação de regras gerais e abstratas,
abrangentes de determinada ou determinadas categorias de interesses. Por outras
palavras, o direito, através de normas gerais e abstratas, se, por um lado prescreve
a conduta das pessoas diante de um interesse, por outro, prevendo a possibilidade
de ocorrerem certas hipóteses conflitantes de interesses, prescreve as
conseqüências que destas resultam.
Tem-se, assim, o chamado direito objetivo, o sistema de normas
cujo objetivo é prescrever a conduta dos indivíduos na sociedade através de ordens,
ou mandamentos, diretrizes ou preceitos dispositivos. Assim, a lei tem a função de
disciplinar e regular as atitudes dos indivíduos em face dos seus interesses, e,
conseqüentemente, a solução de conflitos relacionados a estes. A essa relação de
interesses regulados pelo direito dá-se o nome de relação jurídica.
Pela subordinação dos sujeitos às ordens abstratas da lei que os
regula, é que os conflitos de interesses são resolvidos. Porém, não é raro as partes
conflitantes não acolherem de forma espontânea seus interesses de acordo com a
48
regulamentação jurídica; é então que o conflito pode gerar um desejo de um dos
sujeitos de exigir a subordinação do interesse do outro ao próprio: a essa atitude dá-
se o nome de pretensão. Neste caso, o sujeito oposto pode conformar-se com a
subordinação, assumindo uma postura pacífica, ou resistir à pretensão daquele a
essa subordinação, dinamizando o conflito e configurando um litígio ou, o que
tecnicamente o direito denomina “lide”, isto é, o conflito de interesses qualificado por
uma pretensão resistida.
4.2 P
ROCESSO
Compor a lide é resolver o conflito de acordo com a ordem jurídica,
reestabelecendo-a, e a lei que regula um conflito é uma norma geral e abstrata que
se manifesta em um caso concreto.
O instrumento que a sociedade escolheu para aplicar a lei ao caso
concreto é o processo, que consiste em uma série de atos coordenados, que visam
à prolação de uma sentença final, ato pelo qual o juiz põe termo ao processo. Esses
atos se sucedem coordenadamente em função uns dos outros e sua disposição
obedece a princípios e a normas legais, que regulam o processo, disciplinam as
atividades dos sujeitos interessados, do órgão jurisdicional e seus auxiliares.
É chamado direito processual esse complexo de normas e princípios
que regem todo esse trabalho de mediação do Estado-juiz entre os sujeitos
processuais, isto é, da posição de cada um deles no processo. O processo, então, é
o meio pelo qual a jurisdição opera, e sua instauração é indispensável para que a
justiça seja feita mediante a atuação da vontade concreta da lei.
A lide é estabelecida entre dois sujeitos que possuem interesses
contrários, o demandante e o demandado, e a função de extingui-la com justiça terá
de ser atribuída a um terceiro sujeito, o Estado. Desinteressado e imparcial, uma de
suas funções consiste em assegurar a ordem jurídica e compor as lides ocorrentes
através da atuação da lei. Assim, sua função é promover a justiça, ou seja, exercer a
função jurisdicional, exercida caso a caso em face do caso concreto pela aplicação
da lei ao caso. Essa função ele exerce “por autoridade própria, soberana,
independentemente da voluntária submissão das partes” (CINTRA; GRINOVER;
49
DINAMARCO, 1994, p. 276). Isso porque, de acordo com o direito moderno, o
demandado é integrado no processo através da citação, independentemente de sua
vontade.
O Estado visa, portanto, à pacificação social, alternativa para evitar e
solucionar conflitos agressivos entre pessoas.
4.3 L
EGISLAÇÃO E JURISDIÇÃO
O Estado regula as relações intersubjetivas através de duas ordens
de atividades: com a legislação e com a jurisdição. Aquela estabelece as normas
que devem reger as mais variadas relações, ditando o que é ou não lícito, atribuindo
direitos, poderes, faculdades, obrigações; “são normas de caráter genérico e
abstrato, ditadas aprioristicamente, sem destinação particular a nenhuma pessoa e a
nenhuma situação concreta” (CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO, 1994, p. 38). São
modelos de condutas devidamente acompanhados dos efeitos que seguirão caso
haja a ocorrência de fatos que se adaptem às disposições. Com a jurisdição, o
Estado se encarrega de fazer valer as normas legais em caso de conflito entre
pessoas “declarando, segundo o modelo contido nelas, qual é o preceito pertinente
ao caso concreto e desenvolvendo medidas para que esse preceito seja realmente
efetivado” (CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO, 1994, p. 38). Assim, a função da
jurisdição é a de assegurar a prevalência do direito positivo do país.
Legislando ou realizando atos de jurisdição, o Estado exerce seu
poder com o objetivo da pacificação social, e nessa perspectiva o processo lhe serve
de instrumento para atingir a contento essa condição.
4.4 O A
DVOGADO
A Constituição, em seu art. 133, declara que “o advogado é
indispensável à administração da justiça”. Os litigantes do processo devem ser
representados em juízo por esses profissionais que, com conhecimento do direito e
50
estranhos ao conflito, possuem “condições psicológicas e intelectuais” de colaborar
para que o processo cumpra sua função de eliminar conflitos com a realização da
justiça. De acordo com Cintra, Grinover e Dinamarco (1994, p. 296) “a serenidade e
os conhecimentos técnicos são as razões que legitimam a participação do advogado
na defesa das partes”.
Foi na Grécia Antiga, aproximadamente no Século IV a.C. que surgiu
a figura de uma pessoa especializada em elaborar discursos com o objetivo de
persuadir jurados. Nos pomposos tribunais atenienses, como o Areópago e o
Tribunal de Heliaia, os cidadãos gregos em litígios judiciais discursavam suas teses
pessoalmente, em autodefesa. Contudo, para os menos retóricos, havia opção de se
valer dos serviços de profissionais que redigiam os discursos dos litigantes. Eram os
logógrafos, que cobravam pela elaboração dos textos, mas não realizam as defesas,
apenas redigiam os discursos para que fossem lidos pelos próprios litigantes.
Essa função, entretanto, acabou se desenvolvendo, tempos depois,
no Império Romano, quando surgiu a figura do profissional que ficava ao lado do
litigante e promovia a defesa do cliente, recebendo remuneração para tanto. Daí o
nome advogado, que significa o que foi chamado, ou aquele que fala ao lado, ou
ainda, aquele que fala por outra pessoa.
Quer-se dizer, com isso, que o advogado é mensageiro e
representante jurídico da vontade dos cidadãos. Em atividade
judicial, representa, funciona como intermediário de uma pretensão
diante das instituições às quais se dirige ou perante as quais postula;
em atividade extrajudicial, aconselha e assessora, previne (BITTAR,
2002, p. 387).
A partir do Século XIV, na França, a advocacia passou a ser
regulamentada. Mas, com a legalização do processo e a instituição de
procedimentos judiciais que obedeciam a normas previamente estabelecidas por
Códigos, no Século XIX, houve a necessidade da indispensável participação de um
profissional na defesa de interesses em juízo. A busca de uma sentença, de uma
providência do Estado para se resolver conflitos, profissionalizou também a função
do advogado, tornando-o, como nos refere a própria Constituição Federal,
indispensável à administração da justiça. A tal ponto que, salvo em raras exceções
(como nos juizados especiais, por exemplo), hoje, no Brasil, não se pode ingressar
com ações judiciais sem que seja através de um advogado.
51
Hoje o papel do advogado extrapola os limites da litigância judicial. A
complexidade das regulamentações exige, constantemente, e cada vez mais do
cidadão, a busca de orientação jurídica para tomar decisões. Contudo, a marca da
atuação profissional do advogado, continua sendo, como na Grécia antiga, a defesa
que faz dos interesses de seu cliente no processo judicial. Ao advogado é autorizada
uma atuação absolutamente parcial, em favor e em defesa dos interesses em
conflito.
A função de seu discurso é a de convencer o magistrado, por isso
em seu texto (convencionalmente denominado petição), o interdiscurso é recorrente,
especialmente com a inserção de outras decisões de tribunais superiores
relacionadas à matéria em discussão (jurisprudência). Assim também como é
rotineira a manifestação de outros estudiosos sobre o direito ou a interpretação que
se pretende atribuir a determinado texto legal (doutrina). Cabe a cada advogado
enriquecer o seu discurso com outras vozes, acudindo sempre aos interesses do
cliente, abusando da subjetividade, da parcialidade, desenvolvendo-a segundo a
causa em questão, e muitas vezes, observando as convicções do próprio julgador do
processo, já que o advogado pode, ao longo do percurso processual, manifestar-se
em várias ocasiões, calibrando o seu texto de acordo com o entendimento que o
magistrado tem acerca da forma de aplicação do direito em casos semelhantes.
Como na Grécia Antiga ou no Império Romano, o discurso dos advogados tem
apenas um objetivo: convencer o julgador.
4.5 O S
UJEITO ENUNCIADOR DA SENTENÇA – O JUIZ
A atuação do juiz em um processo é muito importante, afinal é de
sua incumbência a orientação que põe fim a um determinado conflito.
Em qualquer sociedade a figura de um juiz sempre foi essencial,
indispensável, quer seja representada pelo chefe de uma tribo, por um sacerdote, ou
um rei. Nas diferentes formas de organização social, o juiz sempre foi o detentor de
poder para solucionar conflitos intersubjetivos inerentes ao convívio social. Após a
constituição dos Estados modernos, o magistrado passou a prestar serviços à
52
sociedade na condição de órgão estatal, com a finalidade de resolver as demandas
daqueles que buscam a tutela jurisdicional do Estado, nos termos da lei.
Sendo a sociedade regida por valores “que permitem ao homem ver
sentido em sua existência e em cada um de seus atos” (GOMES, 1995, p. 22), o juiz
basela-se nos valores por ela cultuados, para atuar como um deliberador em defesa
desses axiomas. São valores de natureza política, religiosa, social, morais, jurídicas,
éticas e etc. Portanto, o magistrado deve ser um profundo conhecedor dos valores
que vigem na sociedade em que está inserido, para julgar e aplicar as normas
jurídicas por ele interpretadas com sensibilidade e racionalidade, ou seja, “fazer das
normas jurídicas por ele interpretadas e aplicadas um verdadeiro instrumento de
justiça e pacificação, utilizando para tanto, corretamente, os poderes que o próprio
ornamento lhe confere” (GOMES, 1995, p. 24).
Conforme já dissemos anteriormente, são três os sujeitos da relação
jurídico-processual: Estado, demandante (aquele que deduz em juízo uma
pretensão) e demandado (aquele que em face de quem aquela pretensão é
deduzida). O Estado-juiz representa a condição de sujeito exercente do poder
(jurisdição), e as partes figuram nessa relação situação de sujeição ao juiz (CINTRA;
GRINOVER; DINAMARCO, 1994, p. 284). Assim, o juiz não participa do jogo de
interesses contrapostos, mas sua função é a de comandar a atividade processual,
distinguindo-se das partes por ser desinteressado e, conseqüentemente, imparcial.
É importante frisar que o juiz está no processo na condição de órgão
do Estado, ou seja, ele é um agente através do qual o Estado realiza atos no
processo. Portanto, o Estado é assim personificado no juiz, que deve posicionar-se
sempre de forma imparcial diante de um conflito.
A função jurisdicional certamente é vital ao Estado, como princípio
de ordem social, e é exercida pelo juiz respaldado em um ordenamento jurídico
6
. E o
juiz, quando prolata uma sentença, decidindo uma demanda, emite o parecer do
Estado acerca do caso apresentado. No processo, o magistrado não discursa em
nome próprio, mas como porta-voz do Estado (GOMES, 1995). A linguagem
utilizada por ele é a expressão da vontade do Estado.
6
Conjunto de normas e princípios adotados pelo Estado para reger as relações entre as pessoas na sociedade em
que este figura como a principal instituição política, de onde emanam as leis a serem por todos respeitadas
(GOMES, 1995, p. 27)
53
A sentença, como se viu, é a declaração da norma jurídica abstrata
aplicável ao caso concreto, isto é, a tutela jurídica que a lei concede a um
determinado interesse.
Além do dever de sentenciar, cabe ainda ao juiz a condução do
processo segundo a ordem legal estabelecida,
propiciando às partes todas as oportunidades de participação a que
têm direito e dialogando amplamente com elas mediante despachos
e decisões tão prontas quanto possível e motivação das decisões em
geral (CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO, 1994, p. 293).
O juiz julga apenas as causas que lhe são distribuídas, segundo as
normas prévias e gerais de competência e de organização judiciária, não sendo
possível escolher as causas que vai julgar. Os efeitos de sua decisão são
circunscritos àqueles que expuseram suas razões em Juízo, provando e debatendo
o Direito e os fatos, no entanto, “aos litigantes, em processo judicial ou
administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla
defesa, com os meios e recursos a ela inerentes” (Constituição Federal, art. 5º - LV).
Porém, ao contrário do que possa se imaginar, o magistrado,
quando transmite ao intérprete, pela sentença, o modo como o Estado se posiciona
em relação ao conflito que lhe é posto, não anula suas convicções pessoais.
Segundo Gomes,
ainda que o magistrado não faça uma opção consciente por uma
determinada hierarquia de valores, ao exercer o poder, estará
optando e impondo de modo decisório o seu juízo de valor sobre
determinada relação jurídica. O modo como fará uso de seus
poderes na condução do processo e na interpretação das leis,
dependerá de sua opção por uma ou várias correntes de
interpretação, oriundas das múltiplas escolas hermenêuticas
conhecidas. Portanto, a neutralidade axiológica nada mais é do que
um mito a ser definitivamente extirpado do plano jurídico e
especificamente do espaço de atuação do poder jurisdicional,
porquanto ao sentenciar, seja acolhendo ou rejeitando o pedido, o
juiz estará valorando fatos à luz de princípios e normas do
ordenamento jurídico vigente (GOMES, 1995, p. 24).
É importante ressaltar que o juiz não cria direito novo, mas julga
segundo a lei. Sua função é a de aplicar o direito. Na falta de lei escrita, o juiz deve
decidir a demanda com base na eqüidade e nos princípios gerais de direito,
recorrendo à analogia, aos costumes e aos princípios gerais de direito.
54
5 ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS
Passaremos, a partir desse ponto, a identificar e analisar os
procedimentos enunciativos mais significativos utilizados pelos magistrados em suas
decisões. Tais procedimentos podem revelar as diversas vozes que perpassam suas
sentenças.
Conforme já mencionado anteriormente, nosso corpus é composto
de 4 sentenças judiciais, classificados como S1, S2, S3 e S4. As duas primeiras, S1
e S2, são relativas a reintegração de posse de terra tomadas por grupo de
invasores, e as S3 e S4 dizem respeito a pedidos de interrupção de gravidez de
fetos anencéfalos.
A primeira sentença, S1, foi prolatada em 1981, ano que integra o
período do processo de transição do Regime Militar para o de vigência da ordem
democrática no Brasil
7
. O Presidente da República a que se refere o juiz é João
Batista Figueiredo, empossado em 1979 e cujo governo contribuiu para a
consolidação da abertura política, e do regime político de salvaguarda de direitos
fundamentais, individuais e sociais. A sentença tem parecer favorável ao DNER, que
pede a retirada dos invasores.
A segunda (S2), de 1995, já conta com um histórico de
desenvolvimento democrático, com o amadurecimento, por parte dos juristas, dos
estudos dos princípios constitucionais sociais que passaram a integrar a nova ordem
a partir de 1988. A decisão tem parecer desfavorável ao órgão estatal e ainda há
recomendação de cuidados para a segurança dos invasores no local do
acampamento junto a rodovia.
De 1992, a terceira sentença (S3) se refere a um caso de pedido de
autorização para interromper o curso de uma gravidez cujo feto era desprovido de
cérebro. A sentença tem parecer positivo ao pedido da requerente, pois entende o
juiz que o aborto neste caso não seria ilicitude.
Com parecer desfavorável ao pedido da requerente, S4 é de 1995.
O direito a vida é destacado pelo magistrado como o mais sublime dentre os direitos
naturais, assim ele não encontra amparo jurídico nem moral para deferir o pedido.
7
Período de tempo iniciado em meados da década de 70 e finalizado no ano de 1988, com a promulgação da
atual Constituição Federal.
55
Os textos têm início com a narração dos fatos do processo para
formar o primeiro requisito da sentença, o relatório, pelo qual “o juiz procura detectar
as condições recíprocas do autor/réu, atentando para os fundamentos das
pretensões das partes” (SITYA, 1995, p. 38).
Assim é que o sujeito enunciador da S1, desde o início do seu
relatório, manifesta a sua incerteza quanto à mera aplicação da lei ao caso concreto.
“No caso presente, as cousas não são tão fáceis assim”, afirma o referido
enunciador, revelando a dificuldade que encontra em fazer valer o ditame legal, que
impõe a reintegração da posse da terra aos proprietários. Registra sua preocupação
em relação à situação miserável dos posseiros, sobre os quais não faz nenhuma
consideração crítica incisiva, mas, ao final, faz prevalecer a lei, sem deixar de revelar
o conflito ideológico pessoal dividido entre a realização de justiça social ou o
legalismo da norma.
Entre os recursos utilizados para demonstrar as diferentes vozes
presentes no discurso sentencial, estão as diferentes formas dos discursos direto e
indireto, que se constituem manifestações mais clássicas da heterogeneidade
enunciativa.
O primeiro tem como finalidade a produção do efeito de sentido de
verdade, e se caracteriza, de acordo com Maingueneau (1997, p. 85), “pela aparição
de um segundo ‘locutor’ no enunciado atribuído a um primeiro ‘locutor’”; enquanto o
segundo, por sua vez, é utilizado, em geral, com a finalidade de analisar as palavras
e o modo de dizer do outro.
Partindo-se da formação discursiva sentencial, constatou-se que
ambos enunciadores de S1 e S2, já no início de seus textos, antes de formalizarem
o relatório, recorrem, através do discurso direto, ao interdiscurso religioso e literário,
respectivamente.
A citação de A oração de um juiz, em S1, revela consonância por
parte do enunciador às idéias e conflitos daquele que desempenha o mesmo ofício
do magistrado. É importante destacar também que o próprio exercício de criar
“orações” para as classes profissionais, ocupacionais, segmentos sociais, etc, é uma
prática muito comum em nossa sociedade, que tem base clerical. Amiúde, as
pessoas enxergam em Deus justiça e soberania em todas as coisas. As preces
dirigidas a Ele têm, portanto, um caráter cultural, e expressam as queixas e as
ansiedades daquele que roga àquele Ser supremo.
56
Há outro fragmento do texto da S1 em que enunciador mobiliza o
discurso religioso: “A conveniência e oportunidade de tal decisão, contudo, é
atribuição exclusiva do Sr. Presidente da República, o que não me impede de rogar
a Deus seja tomada tal providência política antes da execução desta minha
decisão”. Neste trecho, o autor novamente recorre à supremacia de Deus, rogando
uma intervenção a favor dos “invasores”.
Em S2, o enunciador também evoca o discurso religioso, mas sob
um outro enfoque, citando a Campanha da Fraternidade promovida pela igreja
católica no presente ano, cujo tema foi “Eras Tu, Senhor”, com enfoque na situação
dos excluídos. Tal fragmento retrata um momento histórico vivido pelo sujeito
enunciador e que se constitui parte das condições de produção e de sua formação
discursiva. O sujeito discursivo marca, portanto, o seu lugar e o seu tempo e essa
articulação relaciona-se com o sujeito ideológico, pois o seu discurso é um recorte
das representações de um tempo histórico e de um espaço social.
A citação do fragmento da obra literária A Bagaceira, no início de S2,
de Joaquim Américo de Almeida, um romance caracterizado pelo excesso de análise
sociológica, consegue retratar, de forma fictícia, o drama pelo qual passavam os
réus envolvidos no processo. Trata-se de uma obra de 1928, baseada no êxodo da
seca de 1889, mas que por tratar da realidade dos retirantes nordestinos, se revela
bastante atual.
Em um outro momento, também em S2, o discurso relatado direto é
o recurso utilizado para fazer falar a voz de um jurista alemão, pioneiro na defesa da
concepção do direito como produto social (séc. XIX). Trata-se de um discurso já
perpetuado no meio jurídico, o que representa, portanto, uma autoridade que
protege a asserção. Novamente, o enunciador faz aparecer um segundo enunciador
em seu enunciado mencionando suas palavras e criando um efeito de autenticidade
e adesão às suas palavras.
Sem utilizar nenhuma marca visível de citação, mas constituindo
dados recuperáveis por meio do interdiscurso, os sujeitos mobilizam o já dito e se
revelam sujeitos ideológicos, conhecedores das necessidades sociais e que têm por
objetivo atender aos fins sociais a que a norma se dirige. Ocorre, apenas, que a
finalidade social prevista na norma não é a mesma compartilhada entre os
enunciadores da S1 e da S2. Conforme já considerado adrede, a interpretação sobre
uma determinada norma será distinta quando realizada por dois intérpretes, se
57
levada em conta a diversidade de suas experiências pessoais. Não obstante, cada
posição não deve ser considerada plenamente suficiente em si mesma para a
justificação de pareceres jurídicos, pois as normas não reivindicam interpretação
única, sendo decorrentes, entre outros, de posicionamentos ideológicos do analista.
Vale lembrar, para entender melhor as considerações acima, que,
segundo Althusser (2003), a ideologia representa a relação imaginária dos
indivíduos com suas condições reais de existência, ou seja, o que se encontra na
ideologia são as condições de existência dos homens, de seu mundo real.
Uma vez que a legislação penal não contempla o aborto por
indicação eugênica, e porque essa modalidade de interrupção da gestação não pode
ser enquadrada no artigo 128, inciso II do Código Penal, a decisão em S3 é baseada
no interdiscurso médico-científico, ético e na jurisprudência.
Em sua primeira referência, fala a voz do interdiscurso da medicina,
como argumento de autoridade para definir consistentemente a anomalia que
vitimara o feto, a anencefalia. Percebe-se que essa referência da literatura médica
traz uma definição da doença de forma bem objetiva, sem traçar considerações
éticas a respeito dessa falha do desenvolvimento físico do feto.
Já a segunda referência, também um discurso médico-científico,
aborda a anomalia de forma mais subjetiva, pois, ao definir anencefalia, apóia-se em
aspectos éticos relacionados à vida do feto.
Em ambos os casos, o recurso utilizado é o discurso relatado direto.
As citações são postas entre aspas e marcam sua alteridade, manifestada pela
“ruptura sintática entre o discurso que cita e o discurso citado” (MAINGUENEAU,
1997, p. 89). Assim, o enunciador faz aparecer, através de sua própria “voz”, um
segundo enunciador, reproduzindo fielmente suas palavras tal como foram “ditas”.
Pretende-se com o uso desse recurso lingüístico a aproximação daquele discurso,
criando com ele uma relação de resignação ao que se está dizendo, sem, no
entanto, ter a necessidade de assumir a responsabilidade por isto.
Tanto o interdiscurso como as posições do sujeito constituem a
exterioridade e são externos à língua. A relação entre as enunciações dá-se na
interdiscursividade e essas enunciações se encontram a partir das posições do
sujeito. O funcionamento da língua é afetado pela exterioridade e constitui a
argumentação.
58
Conforme foi dito, a ausência de uma lei que regula o caso em
questão força o juiz a buscar uma autoridade que lhe ofereça argumentos sólidos
para fundamentar sua decisão, e esse discurso foi buscado em uma formação
discursiva externa, ou seja, em um outro campo discursivo. Pode-se perceber um
“apagamento” por parte do sujeito enunciador diante de um discurso que não faz
parte de sua formação discursiva. Embora o assunto esteja relacionado ao caso em
questão, a citação não faz parte do campo jurídico.
A prática do aborto é consentida na legislação penal para salvar a
vida da gestante (raríssimo, hodiernamente, se considerado os avanços medicinais)
ou diante de uma gravidez gerada por estupro. Tratam-se, portanto, de duas formas
de exclusão de ilicitude desse delito: a indicação médica e a indicação sentimental.
A vida é um bem protegido pela Constituição, e sua preservação serve de base para
todos os artigos, parágrafos, incisos e alíneas, elementos de um dispositivo legal.
Na presente sentença, o pedido da requerente é atendido e o aborto
é autorizado porque a formação discursiva a qual o magistrado pertence não
considera o feto anencéfalo um ser “vivo”, e que, portanto, sua remoção não se
caracterizaria um crime. O lugar desse sujeito enunciador é então o do discurso
excepcional, no sentido de ser incomum, que não está na lei em si, mas na posição
da qual se interpreta a lei e que a faz significar. Essa posição não é expressa, mas
significada pelo interdiscurso.
Percebe-se que o enunciador comunga da mesma opinião do autor
do segundo artigo: “não há razão para deixar de afirmar que, no primeiro caso, a
vida que subsiste não é, propriamente falando, uma vida humana, a vida de um ser
humano destinado a chegar a ser (ou já) pessoa humana”. É evidente também a
sua adesão ao discurso do Desembargador paulista, que defende o aborto eugênico
com “valiosas conclusões”, que excluem o propósito de “melhorar a raça, ou evitar
que o ser em gestação venha a nascer cego, aleijado ou mentalmente débil”. Assim,
ele robustece seu próprio discurso recortando as palavras do outro e integrando-as
às suas, através do discurso indireto.
Em S4, o autor da sentença traz no início de sua fundamentação,
uma própria definição do que entende por vida: “o mais elevado bem existente na
face da terra”. A partir dessa definição o enunciador busca, em outras fontes,
possíveis sentidos para a questão que envolve a pretensão da requerente. Em seu
“sentido amplo”, o autor recorre ao interdiscurso enciclopédico para o conceito de
59
vida e o complementa utilizando-se da definição do dicionário da língua portuguesa,
cuja autoria é de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira.
As duas definições, transcritas através do discurso direto,
complementam de forma bem objetiva, característica própria desses gêneros, a
definição de vida exposta pelo magistrado, que a definiu de modo mais subjetivo.
Para Pêcheux (1997), a noção de sujeito é determinada pelo lugar de onde se fala,
ou seja, ele fala do interior de uma formação discursiva, regulada por uma formação
ideológica. Portanto essa subjetividade é assujeitada às coerções da formação
discursiva e ideológica.
O autor ainda se vale do discurso direto, em um outro momento,
como um argumento jurídico para justificar sua idéia de supremacia do
jusnaturalismo sobre o juspositivismo. A voz evocada agora é de um jurista cuja obra
trata justamente de ressaltar a valoração moral concernente a natureza humana
como razão de julgamento. Filiado convictamente a uma “visão dualista do direito”,
que consiste em procurar identificar sempre 2 teorias explicativas de um mesmo
instituto
8
ou mesmo do Direito, o autor deixa transparecer uma marca ideológica de
seu posicionamento, relacionando sua convicção a uma determinada corrente de
pensamento. É assim que o enunciador constrói o seu discurso: negociando e
harmonizando as diferentes vozes que atravessam a sua fala em busca da unidade
e coerência.
O magistrado revela-se adepto, essencialmente, a uma corrente de
pensamento jurídico, que é o Direito Natural, cuja essência independe de variações
do ordenamento da vida social que se originam no Estado. Conforme explica o
próprio magistrado, trata-se de um direito que antecede e sujeita o direito positivo,
doutrina que reduz a justiça à validade das regras jurídicas. Ou seja, para esta
doutrina uma norma é justa somente se for válida, enquanto para um jusnaturalista
uma norma não é válida se não é justa.
Paulo Nader (2004, p. 366) define o jusnaturalismo como
a corrente de pensamento que reúne todas as idéias que surgiram,
no correr da história, em torno do Direito Natural, sob diferentes
orientações [...] é a idéia do Direito perfeito e por isso deve servir de
modelo para o legislador. É o Direito ideal, mas ideal não no sentido
utópico, mas um ideal alcançável.
8
Instituto Jurídico é a reunião de normas jurídicas afins, que rege um tipo de relação social ou interesse e que se
identifica pelo fim que procura realizar. Enquanto a ordem jurídica dispõe sobre a generalidade das relações
sociais, o instituto se fixa apenas em um tipo de relação ou de interesse (NADER, 2004, p. 82).
60
A adesão a esta corrente, remete a uma formação discursiva que
compreende que o homem é capaz de estabelecer o que é justo e o que é injusto,
de modo universalmente válido, através da observação da natureza humana, ou a
expressão da vontade divina, na razão.
De acordo com Nader (2004, p. 365),
o motivo fundamental que canaliza o pensamento ao Direito Natural
é a permanente aspiração de justiça que acompanha o homem. Este,
em todos os tempos e lugares, não se satisfaz apenas com a ordem
jurídica institucionalizada.
Assim, podemos inferir que o enunciador busca em sua própria
concepção de justiça, e de acordo com sua visão sobre a ordem natural das coisas,
encontrar a verdade e legitimidade de sua decisão, uma vez que não existe uma
norma específica acerca de casos como o que está sendo avaliado. A verdade é
representada pelo sujeito que lhe confere sentido através de seu discurso.
O enunciador chama a atenção de seu interlocutor para o fato dos
princípios naturais serem muito próximos aos valores assumidos pelo cristianismo,
no entanto, observa que os princípios do homem sempre existiram, trata-se de algo
inato ao ser humano, são valores indeléveis, que não mudam de acordo com as
circunstâncias.
Pode-se perceber nessa avaliação que faz sobre as relações entre
jusnaturalismo e cristianismo uma forma de separar Direito de fé, ou seja, os
princípios valorativos do homem não são decorrentes da religião, mas da própria
natureza do homem, que antecedem a esta. São esses os valores que fundamentam
o Direito Natural, ainda que coincidam com os do cristianismo. Podemos perceber
também que o enunciador se antecipa a uma possível crítica por parte de seu
interlocutor quanto a relação de seus argumentos com o discurso religioso cristão.
Assim, ele ajusta seu dizer a seus objetivos e “regula a argumentação, de tal forma
que o sujeito dirá de um modo, ou de outro, segundo o efeito que pensa produzir em
seu ouvinte” (ORLANDI, 2003, p. 39).
O direito à vida é destacado pelo enunciador de S4 como o mais
sublime dentre os direitos naturais. Dele decorrem as proibições e sanções penais
na esfera do direito positivo. Mas e quanto ao início da vida? Para o juiz, o
61
entendimento do papa, expresso em uma encíclica, é suficiente para sustentar seu
posicionamento: a vida tem início no momento da concepção.
Supremo líder espiritual da religião Católica, o papa tem autoridade
religiosa para seus fiéis. Seus pronunciamentos solenes a respeito da fé e da moral
não apresentam possibilidade de erro, de acordo com o dogma da “Infalibilidade
Papal”, observável na importância que o enunciador demonstra, através de seu
discurso, ao conceito proferido pelo sumo pontífice.
De acordo com a análise feita por Althusser (2003, p. 99) sobre a
ideologia religiosa cristã (o que também pode ser reproduzida para outros campos,
como a ideologia moral, jurídica, política, estética, etc), podemos dizer que a
ideologia religiosa cristã interpela os indivíduos para transformá-los em sujeitos,
livres para obedecer ou não ao apelo que são as ordens de Deus, o Sujeito por
excelência. O autor afirma que o discurso religioso é aquele que fala a voz de Deus.
A voz de Deus é materializada através do discurso de seus representantes na terra,
como o padre, pastor, papa (como na sentença em questão). Assim, os sujeitos
expressam sua submissão ao Sujeito através de seus atos, reconhecendo seus
lugares de sujeito que precisam obedecer às ordens do Sujeito
9
. Os sujeitos,
portanto, se constituem pela sua sujeição.
Assim, a contribuição da doutrina cristã na construção de valores do
magistrado pode ser claramente revelada neste e em outros trechos dessa
sentença, como é o caso do parágrafo em que ele defende a preservação do feto
até que a natureza “(criada por Deus, segundo
cremos)” lhe dê condições para
manter-se vivo. Podemos perceber que neste trecho o autor se projeta como 1ª
pessoa do plural no lugar da 1ª do singular para afirmar sua crença em Deus como
criador da natureza, o que poderia ser interpretado com duplo sentido: o primeiro
seria o de incluir o enunciatário no enunciador e obrigá-lo a assumir o texto com ele,
um homem que crê em Deus e atribui a ele a criação da natureza, uma vez que
nossa sociedade é tão interpelada pelo discurso religioso cristão; o segundo sentido
seria o de evitar dar realce à sua subjetividade, diluindo-a no nós. Uma outra
possibilidade de sentido seria a de ressaltar o seu lugar institucional, afinal o juiz fala
em nome do Estado, ainda que laico.
9
É importante ressaltar que em cada ideologia o lugar do Sujeito é ocupado por entidades abstratas, como por
exemplo, Deus, a humanidade, o capital, a nação.
62
Há outro momento em que o magistrado faz referência ao
interdiscurso religioso, que é quando eleva a vida a uma condição de dádiva de
Deus: “a vida é um dom de Deus”, e “intangível é o valor presente na vida humana”.
Não há, portanto, segundo crê, regra jurídica e nem moral capaz de autorizá-lo a
atender a pretensão da requerente, afinal, conforme citação direta que faz de um
texto também parte de uma formação discursiva católica,
Dalla cellula iniziale fino allá gloria di Dio, la vita umana ci é apparsa
nella sua costante grandezza, purtroppo ignorata o ridotta o negata
da componenti sempre piú estese della nostra cultura, a livello
teórico, giuridico e di costume.”
10
Através dessa referência ao interdiscurso religioso, que expressa o
ponto de vista de uma classe social a respeito da realidade, pode-se inferir que para
o juiz não há uma lei jurídica, moral, ou mesmo um costume social que possa ser
mais importante ou elevado do que a natureza divina e o valor atribuído por ela à
vida humana. De acordo com o entendimento do magistrado, é a partir da existência
da vida humana que os valores jurídicos e morais vão se definindo.
O juiz, em seu lugar específico de sujeito processual, constrói um
discurso baseado em informações e impressões que obteve acerca do caso, através
dos autos e a partir de suas convicções, oriundas de diversas fontes a respeito do
que considera certo ou errado, ou seja, das vozes de seu interdiscurso. Nesse
momento, o contexto histórico-social, o lugar institucional de onde fala o magistrado,
os interlocutores, a imagem que faz de si, do outro e do referente, compõem-se na
instância verbal de produção do discurso. As palavras desse discurso adquirem
efeitos de sentido com base em formações discursivas limítrofes – efeito da ordem
do interdiscurso – o que disponibiliza dizeres que afetam o modo como o sujeito
significa nesse contexto discursivo. Assim, tudo o que é consenso a respeito de
aborto ou invasão por sem terra, todos os dizeres relacionados aos valores morais,
vigentes na época, as considerações sobre o crime de interromper uma gravidez ou
a questão agrária em si, estão, de certo modo, significando nesse discurso. São
sentidos já ditos por alguém, em algum lugar e em outros momentos, os quais, ainda
que muito distantes, intervêm produzindo um efeito sobre a decisão do magistrado.
10
Trecho extraído de uma citação em S4: “Desde a célula inicial até a glória de Deus, a vida humana nos aparece
em sua constante grandeza, infelizmente ignorada ou reduzida ou negada por componentes sempre mais
difundidos em nossa cultura, em nível teórico, jurídico e dos costumes” (LUIGI LOMBARDI VALLAURI In:
La vita umana: uma meraviglia, I.S.U. Universitá Cattolica, Milano, Itália).
63
Como forma de marcar sua alteridade, os enunciados relatados em
discurso direto são postos entre aspas; assim, é clara a manifestação da ruptura
sintática entre o discurso que cita e o discurso citado. Já na palavra entre aspas,
esta ruptura não existe, pois a expressão aspeada é usada e mencionada ao mesmo
tempo, sem interrupções no fio discursivo.
As palavras aspeadas são atribuídas a um outro espaço discursivo,
cuja responsabilidade o locutor não deseja assumir. As aspas, segundo
Maingueneau (1997, p. 66) “designam a linha de demarcação que uma formação
discursiva estabelece entre ela e seu ‘exterior’”. Assim, um discurso mantém à
distância aquilo que ele coloca fora de seu próprio espaço. Uma formação discursiva
se dá entre esses limites, um discurso totalmente entre aspas, do qual nada é
assumido, e um discurso sem aspas que pretende não estabelecer relação com o
exterior.
A estas operações de distanciamento, várias podem ser as funções
atribuídas ao uso das aspas: aspas de diferenciação, destinadas a mostrar que o
enunciador se coloca além destes enunciados, irredutível às palavras empregadas;
aspas de condescendência; aspas pedagógicas, na vulgarização científica; aspas de
proteção, para indicar que a palavra utilizada é apenas aproximativa; aspas de
ênfase, etc.
De acordo com Maingueneau (2004, p. 66),
Colocando as palavras entre aspas, o enunciador contenta-se, com
efeito, em atrair a atenção do receptor sobre o fato de ele empregar
precisamente essas palavras que coloca entre aspas; ele as
sublinha, deixando ao receptor o cuidado de compreender porque
chama sua atenção, porque abre assim uma falha no seu próprio
discurso. Em contexto, as aspas podem, portanto, tomar
significações muito variadas.
Fora de contexto, não é possível interpretar a colocação das aspas,
é preciso reconstruir a significação da operação da qual as aspas são o vestígio.
Não estamos falando em “intenção” do autor, mas que as aspas estão relacionadas
ao conjunto do movimento da enunciação e à formação discursiva na qual ele se
inscreve. Conduzido pelo sujeito enunciador do discurso, as aspas devem ser
decifradas por um destinatário. Aquele deve oferecer a este uma certa imagem de si
mesmo e da posição de locutor que assume através destas aspas.
64
Nas sentenças analisadas, podemos identificar várias funções
atribuídas ao uso das aspas.
Em S2, o uso de aspas é bastante recorrente. O enunciador procura
colocar entre aspas termos retirados da própria petição inicial, cuja autoria é do
DNER, que pede a reintegração da posse da terra. No trecho em que se utiliza do
termo “os réus são indigentes”, o magistrado faz menção de que o fato de serem
indigentes, ou seja, de não poderem suprir suas próprias necessidades, é
reconhecido pelo próprio DNER. Assim, o uso das aspas, neste caso, se justifica
pelo sentido condescendente que o enunciador quis atribuir àquelas palavras, já
fundamentando e justificando sua iminente decisão.
O enunciador procura se manter à distância quando retira da petição
o argumento de que o município foge à responsabilidade “por falta de recursos e
meios de acomodação”. Afinal, de quem seria então a responsabilidade? Ao marcar
o termo “invasores”, o enunciador também marca seu distanciamento do termo
assinalando a inadequação do seu uso na formação discursiva em que se constitui
como sujeito, uma vez que não os vê como invasores de fato, pois entende não se
tratarem estes de “homens comuns”, que, no caso,
tendo outras opções de vida e de moradia diante de si, prefere
assenhorear-se do que não é dele, por esperteza, conveniência, ou
qualquer outro motivo que mereça a censura da lei e, sobretudo,
repugne a consciência e o sentido do justo que os seres da mesma
espécie possuem.
Assim, os “invasores” são o que o sujeito enunciador considera como os “párias da
sociedade (hoje chamados de excluídos, ontem de descamisados), resultado do
perverso modelo econômico adotado pelo país”.
O enunciador também procura dar ênfase às suas escolhas lexicais
não somente através das aspas, mas sublinhando os termos considerados por ele
adequados. Assim, ao utilizar
excluídos no lugar de “invasores”, mostra a oposição
semântica entre um termo e outro: excluídos, está mais relacionado à recusa, à
rejeição, à incompatibilidade, enquanto que invasores, assume um sentido mais
pejorativo, de ação sob força bruta, de agressão, de ilegalidade. Além disso, o termo
“excluídos” está relacionado ao interdiscurso religioso da igreja Católica, mais
especificamente à Campanha da Fraternidade do ano em que a sentença foi
proferida, cujo tema era: “Eras Tu, Senhor?”, destacado pelo próprio magistrado.
65
Por fim, cita, de modo direto, os objetivos fundamentais da
Constituição Federal através de seus artigos, incorporando as palavras do texto
legal diretamente às suas, enfatizando-as e delegando-as ao co-enunciador a tarefa
de compreender o motivo pelo qual chama sua atenção:
Ou seja, enquanto não construir - ou pelo menos esboçar - "uma
sociedade livre, justa e solidária" (CF, artigo 3º, I), erradicando "a
pobreza e a marginalização" (n. III), promovendo "a dignidade da
pessoa humana" (artigo 1º, III), assegurando "a todos existência
digna, conforme os ditames da Justiça Social" (artigo 170),
emprestando à propriedade sua "função social" (art. 5º, XXIII, e 170,
III), dando à família, base da sociedade, "especial proteção" (art.
226), e colocando a criança e o adolescente "a salvo de toda forma
de negligência, discriminação, exploração, violência, maldade e
opressão" (art. 227), enquanto não fizer isso, elevando os
marginalizados à condição de cidadãos comuns, pessoas normais,
aptas a exercerem sua cidadania, o Estado não tem autoridade para
deles exigir - diretamente ou pelo braço da Justiça - o reto
cumprimento da lei.
Ao prolatar a conclusão da sentença, expressando quem ganhou a
causa e qual a providência que o Estado dará, o enunciador confere legitimidade à
sua decisão ao citar a Declaração Universal dos Direitos Humanos "todo ser humano
tem direito a um nível de vida adequado, que lhe assegure, assim como à sua
família, a saúde e o bem estar e, em especial, a alimentação, o vestuário e a
moradia".
O uso das aspas marca a presença de alteridade do discurso
midiático em S1. Assim, as palavras da mídia não se confundem com as do
enunciador da sentença “invasão da Fazenda Itupu” é manchete de todos os jornais
[..] Isso é o que afirma enfaticamente toda a imprensa desta capital [...] eis que
afirmam os jornais [...] ora chamados invasores [...].
Em S2 as aspas são utilizadas para grafar o interdiscurso irônico,
além das citações.
O enunciador, pela ironia, desconstrói os valores estabelecidos pela
sociedade como verdadeiros. Segundo Maingueneau (1997, p. 77), na ironia o
locutor “assume as palavras, mas não o ponto de vista que elas representam”.
Assim, quando se refere aos réus como “invasores”, o juiz prolator da S2 denuncia
que não os vê na condição de esbulhadores do patrimônio alheio, e o faz
expressamente registrando que o uso das aspas é proposital. Igualmente, quando
66
suscita que estas pessoas “habitam” as pontes, viadutos e até os esgotos de nossas
cidades, vale-se do mesmo recurso.
A ironia constitui-se em um procedimento enunciativo relacionado à
heterogeneidade mostrada, porém não marcada. No entanto, o distanciamento
causado pela ironia pode ser também marcado por índices lingüísticos, gestuais ou
situcionais. Sua ausência, entretanto, explica as dificuldades encontradas na
identificação desse fenômeno lingüístico, tornando necessária a diversificação dos
meios utilizados para o seu reconhecimento, como é o caso do uso das aspas, ponto
de exclamação, reticências. Na ausência destas marcas lingüísticas fica a cargo do
co-enunciador considerar o contexto para, a partir dele, recuperar os elementos
contraditórios.
O ponto de exclamação e interrogação, por exemplo, caracterizam o
discurso irônico em S2, quando o enunciador relaciona o interdiscurso literário e
jurídico e argumenta:
“Isto não é ficção. É um processo. Não estou lendo Graciliano
Ramos, José Lins do Rego ou José do Patrocínio. Os personagens
existem de fato. E incomodam muita gente, embora deles nem se
saiba direito o nome. É Valdico, José Maria, Gilmar, João Leite (João
Leite???). Só isso para identificá-los. Mais nada. Profissão, estado
civil (CPC, art. 282, II) para quê, se
indigentes já é qualificação
bastante?”.
A ironia se caracteriza, neste ponto, ao relacionar a literatura social
com o direito, crítica que fica demonstrada quando se refere ao artigo 282 do Código
de Processo Civil, que exige a qualificação das partes de um processo (autor e réu)
na petição inicial, identificando-se profissão, estado civil, endereço, etc. Pergunta o
juiz: identificar “para quê?”. Não são todos indigentes?
Ao construir um enunciado irônico, o enunciador encontra formas de
chamar a atenção de seu enunciatário para o seu discurso, buscando sua adesão. O
conteúdo desse discurso é marcado pelos valores do enunciador e pela participação
de seu enunciatário.
Noutro ponto, o juiz é irônico ao citar a argumentação do próprio
Estado que insiste em proteger a vida dos invasores, sujeitos a atropelamentos.
“Grande opção!”, ressalta o enunciador, emitindo o seu juízo de valor pela decisão
do Estado de expulsar para proteger. Igualmente, em outra passagem da sentença o
magistrado não se contém: “Daí, esta brilhante solução: aplicar a lei”. Neste caso,
67
especificamente, levando em consideração as opções ideológicas do sujeito
enunciador, verifica-se o seu paradoxal posicionamento arredio quanto ao exercício
da própria função de aplicador da lei. Logo em seguida, explicita quais os motivos
que o levam a não atender ao comando imperativo de reintegração. São estas
razões que refletem toda a carga axiológica atribuída à norma pelo juiz e sua
interpretação social, constituindo indicativo da formação ideológica do enunciador.
Em S3 as aspas são utilizadas com a finalidade de marcar as
citações diretas. Com este recurso o enunciador cria um efeito de sentido, aos olhos
do interlocutor, de imparcialidade, marcando a presença do outro com as palavras
atribuídas a um outro espaço discursivo e cuja responsabilidade o locutor não
deseja assumir.
O sujeito discursivo da sentença judicial fala a partir de um
determinado lugar e de um determinado tempo; portanto, seu discurso é entremeado
por representações sócio-históricas, que são expressas através da projeção de
outros discursos já constituídos, ou seja, na sua fala outras vozes falam também. A
do cientista, neste caso (S3), é o maior ponto de apoio para o juiz defender seu
posicionamento.
É interessante destacar que em nenhum momento o enunciador faz
referência ao interdiscurso religioso acerca do aborto eugênico. É sabido de todos a
forte influência da religião católica em nossa cultura, e seu posicionamento acerca
do caso é a insistência em contrapor os direitos do feto aos direitos da mulher.
De acordo com Orlandi (1995), existem duas formas de silêncio: 1º)
o silêncio fundador, que é o silêncio existente nas palavras, “que as atravessa, que
significa o não-dito e que dá um espaço de recuo significante, produzindo as
condições para significar”; 2º) política do silêncio, que se divide em silêncio
constitutivo, que indica que para dizer “é preciso não dizer, [...] todo dizer apaga
necessariamente outras palavras produzindo um silêncio sobre os outros sentidos” e
silêncio local, ou censura, “que remete propriamente à interdição: apagamento de
sentidos possíveis, mas proibidos, aquele que é proibido dizer em uma certa
conjuntura”. De acordo com a autora o silêncio não fala, ele significa, sua forma
material é constituída “pela/na discursividade, forma em que se inscrevem os efeitos
da articulação língua/história, acontecimento do significante no sujeito”, o que nos
permite inferir que o sujeito (juiz) é um espaço de significação constituído
68
historicamente, que reproduz o que pode ser dito e silencia o que não pode ser dito
em uma dada formação discursiva.
Na sentença em análise pode-se perceber que o sujeito apaga
sentidos através do silenciamento da voz do interdiscurso religioso. Não o
abordando, e reproduzindo apenas considerações convenientes à sua formação
discursiva, ele evidencia o seu distanciamento com argumentos somente de
natureza empírica. Foge, assim, da transcendência, preferindo a imanência.
Nas duas primeiras sentenças é forte o apelo político para a solução
do conflito. Em S2, a voz política pode ser facilmente identificada no discurso da
fundamentação. Quando se refere aos invasores como “párias” da sociedade, reputa
essa condição ao “perverso modelo econômico adotado pelo país”, criticando a
política econômica neoliberal adotada pelo governo de então (1995), que se
destacou pela estagnação da economia (e conseqüentemente do desenvolvimento
do país) e pela elevação das taxas de juros, em prol do controle da inflação e da
mantença do valor nominal da moeda. O enunciador de S1 mobiliza o discurso
político em três oportunidades para embasar sua decisão. Imputando a
responsabilidade pela solução do conflito ao Governo Federal, busca retirar de si a
pesada carga de estar decidindo a vida de centenas de pessoas. Registra, em um
primeiro momento, que “a única solução viável, parece-me, não é jurídica, mas sim
política e sua execução só pode ser feita pelo Governo Federal” e, em segundo, que
a única medida de ordem social viável no momento (naquele momento) “seria a
política, cabendo sua execução ao Governo Federal, através da desapropriação da
área e a transferência aos atuais detentores”. Ainda, escreve que “a conveniência e
oportunidade de tal decisão, contudo, é atribuição exclusiva do sr. Presidente da
República ...”.
Em todas as sentenças analisadas o enunciado dos relatórios se
instaura a partir de um ele narrando fatos de um tempo de então, e no espaço do .
Os enunciadores se utilizam da 3ª pessoa do discurso e, sinteticamente, narram os
fatos e acontecimentos que se sucederam desde o início do processo. O emprego
da debreagem enunciva, referente ao enunciado, cria um efeito de distanciamento, e
tem como pretensão conotar neutralidade, imparcialidade e objetividade.
Partindo para suas fundamentações, os enunciadores procuram
fazê-las também em 3ª pessoa, no entanto, somente em S4 o enunciador
permanece em seu uso até o fim, nas demais os enunciadores projetam-se também
69
em 1ª pessoa deixando de lado a suposta isenção a qualquer uma das partes
construída no relatório.
Em S3, a primeira marca de pessoa discursiva que aparece no texto
sentencial é a 1ª pessoa do plural – item 3 da fundamentação – “a simples idéia de
se negar vida a um ser em gestação, por apresentar deformidades graves,
repugna-
nos a todos”. O uso do plural majestático faz com o que o eu seja amplificado,
incluindo, assim, o enunciatário no enunciador, obrigando-o por este a assumir o
texto com ele (FIORIN, 1996).
Esta é a única vez que o enunciador faz uso dessa pessoa
enunciativa, nos demais parágrafos ele faz uso da 3ª pessoa no lugar da primeira do
singular. É possível percebermos a neutralização da 1ª pessoa do singular também
quando o magistrado faz uso de formas indeterminadas em lugar da 1ª pessoa do
singular:
não se está admitindo a indicação eugênica com o propósito de
melhorar a raça, ou evitar que o ser em gestação venha a nascer
cego, aleijado ou mentalmente débil”.
Busca-se evitar o nascimento de um feto cientificamente sem vida,
inteiramente desprovido de cérebro e incapaz de existir por si só”.
“Posto isso, nesta vertência, não tenha dúvida em considerar o
aborto eugênico causa excludente de ilicitude – por isso o
autoriza.
A forma indeterminada significa “eu”, afinal é o juiz quem tem
autoridade para decidir o mérito da causa, no entanto, procura apresentar-se como
papel social, despedido, aparentemente, de qualquer subjetividade em sua prática
profissional, por isso projeta-se no discurso de forma mais objetiva possível.
Fiorin (1996, p. 48) diz que a embreagem actancial “é o efeito de
retorno à enunciação produzido pela neutralização de oposições no interior da
categoria de pessoa”. Tal mecanismo produz efeitos de sentidos com o objetivo de
persuadir o interlocutor a respeito da verdade construída pelo enunciador.
Em S1 o enunciador faz também uso da 3ª pessoa do singular no
lugar da primeira, referindo-se a si próprio como o “o Juiz”, “ele”, “sua”, “-lo”, “ao
Juiz”. Novamente o efeito de sentido criado é a neutralização da 1ª pessoa e de sua
70
subjetividade, com o uso de um substantivo (papel social, o juiz) e de pronomes
pessoais e possessivos.
Em S2, o enunciador se posiciona em 1ª pessoa do singular em toda
sua fundamentação. A subjetividade é marcada pelos usos dos pronomes pessoais
“eu”, “nos” e pelos verbos em 1ª pessoa “repito”, “estou”, “estou”, etc..
71
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com o objetivo de fazer uma análise do processo discursivo e dos
processos de constituição do sujeito discursivo, elegemos a Análise do Discurso
para tratar a questão da heterogeneidade enunciativa, conceito que atribui um papel
privilegiado à presença de discursos atribuíveis a outras fontes enunciativas.
Para dar início à nossa análise, abordamos a concepção de discurso
de Bakhtin, que influenciou as principais orientações teóricas dos estudos sobre o
texto e o discurso desenvolvidos nos últimos anos. De acordo com Bakhtin (1986),
toda enunciação é um diálogo, pois é fruto da interação entre indivíduos socialmente
organizados, e também faz parte de um processo de comunicação ininterrupto,
pressupondo outros enunciados que o antecederam. Abordamos também as idéias
de Foucault (2004) acerca de discurso. Para o autor, o discurso é um espaço menos
caracterizado por regularidades do que por dispersão. Assim, o que caracteriza a
unidade do discurso são as relações entre objetos, estilos, temáticas, teorias e
conceitos. Abordamos ainda a análise diferencial das modalidades discursivas que o
referido autor faz, bem como suas considerações acerca do papel do sujeito,
entendido como um produtor descentrado, que se desdobra em muitos assumindo
diferentes estatutos.
Por entendermos o discurso como lugar privilegiado para a
manifestação da ideologia, destacamos tal conceito no entendimento de Marx,
Althusser e Ricoeur estabelecendo as relações entre ideologia e linguagem.
Conforme observado, o termo foi tomado, partindo-se da perspectiva dos fatos da
linguagem, para significar ato de escolha e marca de intervenção do sujeito
individual em relação às estruturas discursivas e sobre práticas de sentido. Desta
forma, salientamos não existir discurso isento de ideologia, uma vez que sua
elaboração pressupõe escolhas e decisões por parte do enunciador. Decisões,
conforme vimos, que sofrem interferência de condições de produção impostas por
fatores sócio-históricos.
O discurso da modalidade decisória, corpus escolhido para análise
deste trabalho, caracteriza-se por conter “a suma decisória e o mandamento final da
sentença, traduzindo-se em poucas e técnicas palavras a decisão tomada
judicialmente e as condições operacionais para sua efetivação” (BITTAR, 2001, p.
357). Faz parte da sentença judicial a conjuntura de fatos envolvidos. Estes são
72
submetidos à apreciação e representam ocorrências vividas, sentidas e, sobretudo,
interpretadas por diversos sujeitos.
Apropriando-nos da noção de lugares sociais, aplicamos seus
conceitos ao estudo das sentenças judiciais, pois, no interior da estrutura dos
processos judiciais, há um lugar específico para cada sujeito processual, ou seja, o
advogado, a testemunha, o cartorário, o juiz, etc. Cada lugar é individualmente
marcado por traços diferenciais que permitem designar os limites que destinador e
destinatário atribuem a si mesmos e ao outro no discurso. O juiz, por exemplo, fala
de um lugar em que suas palavras têm uma autoridade determinada, e, baseado em
uma relação hierárquica, sustentada no poder que esse lugar lhe confere o cargo,
assegura para sua fala mais autoridade que as demais em um processo, pois, no
momento em que sentencia, simula manifestar a vontade do próprio Estado.
Confirma-se, aqui, portanto, que o lugar de onde fala o sujeito determina as relações
de força no discurso.
Abordamos também dois conceitos essenciais à nossa análise que
são o de formação discursiva e condições de produção. As condições de produção
de um texto são o sujeito, a situação e a memória. Em sentido estrito, elas são as
circunstâncias da enunciação, ou seja, o contexto imediato. Em termos amplos,
incluem o contexto sócio-histórico e ideológico. Assim, é necessário remeter o
sentido e suas condições de produção e estabelecer as relações que mantém com
sua memória, bem como remetê-lo a sua formação discursiva, que determina o que
pode e o que deve ser dito a partir de uma certa região da formação social, a partir
de um certo contexto sócio-histórico. A sentença judicial tem, portanto, como
condições de produção, a aplicação do direito de acordo com as necessidades
sociais e, como princípio ideológico, a manutenção da harmonia social e a extinção
do conflito. Daí se depreende a formação discursiva em que se encontra a sentença
judicial.
Baseada na relação entre formações discursivas no espaço do
interdiscurso, a análise traçada até aqui procurou tornar explícita a variedade de
discursos presentes nos textos sentenciais e que se centralizam na voz do
enunciador, refletindo sobre as marcas ideológicas dos sujeitos que enunciam uma
sentença.
Constatou-se a mobilização dos discursos religioso, literário,
midiático, político e obviamente o jurídico, criando-se um cenário plúrimo, variado,
73
multifacetado, de vozes que sustentam o dizer do juiz, revelando as formações
discursivas que constituem sua identidade. A sentença, ato pelo qual o juiz põe
termo ao processo, congrega não apenas os fatos e as normas que foram
apresentados pelas partes processuais, mas, sobretudo, os valores que o juiz, a
partir de sua própria experiência e formação intelectual, destaca como supremos
para aplicar ao caso concreto. Assim, pelo discurso sentencial, é possível avaliar a
forma como o enunciador se posiciona, como sujeito e na condição de órgão estatal,
em relação a um conflito social que lhe é apresentado. A linguagem do magistrado,
em última instância, é a linguagem do Estado, sem que, com isso, exista uma
desvinculação das condições de produção do juiz enquanto indivíduo atrelado a
suas convicções pessoais.
Como pôde ser observado, a ocorrência do discurso direto e indireto
na enunciação das decisões foi muito recorrente. O discurso direto tem como
principal objetivo a produção de efeito de sentido de verdade, porque através dele o
interlocutor pode “ouvir” com integridade o discurso citado. O discurso indireto foi
utilizado para analisar as palavras e o modo de dizer dos outros, e seu uso se deu
basicamente com o propósito de distanciar-se das responsabilidades do discurso do
outro. Conforme nos elucida Maingueneau (1997), quando o sujeito enuncia a partir
de um lugar definido, ele não cita quem deseja, como deseja, em função de seus
objetivos conscientes, do público visado, etc., mas as imposições ligadas a este
lugar discursivo é que regulam essa citação.
Outro recurso lingüístico utilizado pelos enunciadores para demarcar
a voz do outro no texto foram as aspas. Conforme verificamos nas análises, os
enunciados ou palavras entre aspas marcam sua alteridade, fato manifestado pela
própria ruptura sintática entre o discurso/palavra que cita e o citado. Nas sentenças
esses mecanismos foram utilizados para destacar palavras ou expressões alheias
com o objetivo de não confundi-las com as suas, seja por não julgá-las apropriadas
a sua formação discursiva ou por considerá-las apenas muito próximas em relação
ao que se pretende dizer.
Por fim, a ironia também foi um procedimento lingüístico utilizado
que criou efeitos de sentidos ambíguos e críticos. Através das aspas, ponto de
exclamação, interrogação e o próprio contexto, a ironia consiste em dizer uma coisa
para significar uma outra, configura-se como uma voz que expressa um ponto de
vista insustentável. É uma voz diferente da do locutor, é a subversão entre o que é
74
assumido e o que não é assumido por este. Nas sentenças analisadas a ironia torna
evidente um juízo de valor, assumiu-se as palavras, mas não o ponto de vista que
elas representavam.
O sujeito discursivo da sentença judicial fala a partir de um
determinado lugar e tempo; portanto, conforme já mencionado, seu discurso sofre
interferências sócio-históricas, que são expressas através da projeção de outros
discursos já constituídos, ou seja, na sua fala outras vozes falam também, como, em
nossa análise, a de outros magistrados, de juristas, de escritores, de jornalistas, etc.
Observou-se, então, que a manifestação dessa heterogeneidade é perceptível na
própria superfície discursiva da sentença e revela a própria natureza da linguagem:
a sua heterogeneidade constitutiva. Através de formas marcadas, que podem ser
explícitas, como no discurso direto e indireto, através das aspas, ou implícitas, como
é o caso da alusão e da tão explorada ironia, como foi o caso da S2, o sujeito
discursivo situa o seu discurso em relação aos discursos do outro.
O Direito, como propõe a maioria dos juristas, é uma ciência que se
constrói pela agregação de fatores sociais, políticos, econômicos, etc. E assim, ao
mesmo tempo em que influencia, é também influenciado por estes fatores. A
linguagem sentencial é um valoroso objeto de pesquisa interdisciplinar e uma fonte
inesgotável de estudo, especialmente, enquanto objeto de estudo da Análise do
Discurso.
75
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78
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SILVA, De Plácido E. Vocabulário jurídico. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1982. v.
1-2.
SYTIA, Celestina V. Moraes. A lingüística textual e a análise do discurso: uma
abordagem interdisciplinar. Frederico Westphalen: URI, 1995.
79
ANEXOS
80
ANEXO 1
Sentença 1 (S1)
Vistos, etc.
Este caso demonstra como, na verdade, difícil e espinhosa é a missão do
Juiz. A responsabilidade de seu cargo é de tal ordem que levou um grande
magistrado de Santa Catarina, o dr. João Alfredo Medeiros Vieira, a desabafar em
sua página, de inexcedível beleza, por ele intitulada de “A Oração de um Juiz”:
“Senhor, Quão pesado e terrível é o fardo que puseste nos meus ombros. O
meu veredicto pode transformar a pobreza em abastança e a riqueza em miséria. Da
minha decisão depende o destino de muitas vidas. Sábios e ignorantes, ricos e
pobres, homens e mulheres, os nascituros, as crianças, os jovens, os loucos e os
moribundos, todos estão sujeitos, desde o nascimento até a morte, à Lei que eu
represento e à Justiça que eu simbolizo”.
Da minha decisão nesta lide, grandes e graves conseqüências de ordem
social podem resultar. Um órgão da Administração Federal pretende retomar, a
cerca de três mil posseiros, segundo os jornais, a posse do imóvel de sua
propriedade. A lei lhe é francamente favorável. O possuidor tem o direito de ser
reintegrado na posse em caso de esculho, diz o Código de Processo Civil em seu
artigo 926, devendo o Juiz, em estando devidamente instruída a petição inicial,
deferir, sem ouvir os réus, a reintegração liminar da posse, completa o artigo 928.
No caso presente, as cousas não são tão fáceis assim. Embora deva o Juiz,
primacialmente, aplicar e fazer aplicar a lei, não pode ele ficar alheio à realidade
social. Fazer justiça segundo o direito é a sua constitucional função, mas deve ele,
também e sobretudo, fazê-lo segundo sua consciência.
A petição inicial está devidamente instruída e a chamada “invasão da
Fazenda Itupu” é manchete de todos os jornais. O deferimento da reintegração
liminar ocasionará, por certo, entreveros, de resultados imprevisíveis, entre os
chamados invasores e as autoridades que forem incumbidas de cumprir a ordem.
Isso é o que afirma enfaticamente toda a imprensa desta capital. Deixar de deferir a
medida liminar, que tem absoluto apoio na lei, seria gerar, ao seu lado, duas ordens
de conseqüências: - por primeiro, incentivada estaria a tomada de outras
propriedades e a solução, pela força, dos problemas sociais; por segundo, maiores
problemas seriam trazidos aos atuais ocupantes da área em questão, já que, em
lhes sendo desfavorável a solução final da lide, a reintegração do autor na posse os
encontraria já estabilizados no imóvel, eis que, afirmam os jornais, é sua intenção
iniciar de imediato a construção de suas casas no imóvel.
A única solução viável, parecem-me, não é jurídica, mas sim política e sua
execução só pode ser feita pelo Governo Federal, através da desapropriação da
área para sua transferência aos atuais detentores. Embora caiba ao Juiz, enquanto
Magistrado, aplicar a lei e ela é desfavorável aos ora chamados invasores, pode e
deve ele, enquanto cidadão, sugerir medidas de ordem social. E a única viável no
81
momento, parece-me, seria a política, cabendo sua execução ao Governo Federal,
através da desapropriação da área e sua transferência aos atuais detentores. A
conveniência e oportunidade de tal decisão, contudo, é a atribuição exclusiva do sr.
Presidente da República, o que não me impede de rogar a Deus seja tomada tal
providência política antes da execução desta minha decisão.
Isto posto, levando-se em conta estarem satisfeitos os requisitos legais,
concedo a reintegração liminar de posse em favor do autor, expedindo-se o
necessário mandado, nos termos do artigo 928 do Código de Processo Civil.
Autorizo a requisição da força necessária à execução desta ordem e
recomendo aos agentes da lei o máximo de prudência e cautela no seu
cumprimento.
São Paulo, 09 de setembro de 1981.
Sebastião de Oliveira Lima
Juiz Federal
82
ANEXO 2
Sentença 2 (S2)
Vistos, etc.
"Não tinham pressa em chegar, porque não sabiam aonde iam.
Expulsos do seu paraíso por espadas de fogo,
iam, ao acaso, em descaminhos, no arrastão dos maus fados.
Não tinham sexo, nem idade, nem condição humana.
Eram os retirantes. Nada mais."
(José Américo de Almeida, em "A Bagaceira")
Várias famílias (aproximadamente 300 - fls. 10) invadiram uma faixa de
domínio ao lado da Rodovia BR 116, na altura do km 405,3, lá construindo barracos
de plástico preto, alguns de adobe, e agora o DNER quer expulsá-los do local.
"Os réus são indigentes", reconhece a autarquia, que pede reintegração
liminar na posse do imóvel.
E aqui estou eu, com o destino de centenas de miseráveis nas mãos. São os
excluídos, de que nos fala a Campanha da Fraternidade deste ano.
Repito, isto não é ficção. É um processo. Não estou lendo Graciliano Ramos,
José Lins do Rego ou José do Patrocínio.
Os personagens existem de fato. E incomodam muita gente, embora deles
nem se saiba direito o nome. É Valdico, José Maria, Gilmar, João Leite (João Leite
???). Só isso para identificá-los. Mais nada. Profissão, estado civil (CPC, artigo 282,
II) para quê, se indigentes já é qualificação bastante?
Ora, é muita inocência do DNER se pensa que eu vou desalojar este pessoal,
com a ajuda da polícia, de seu moquiços, em nome de uma mal arrevesada
segurança nas vias públicas. O autor esclarece que quer proteger a vida dos
próprios invasores, sujeitos a atropelamento.
Grande opção! Livra-os da morte sob as rodas de uma carreta e arroja-os
para a morte sob o relento e as forças da natureza.
Não seria pelo menos mais digno - e menos falaz - deixar que eles mesmos
escolhessem a maneira de morrer, já que não lhes foi dado optar pela forma de
vida?
O Município foge à responsabilidade "por falta de recursos e meios de
acomodações" (fls. 16 v).
Daí, esta brilhante solução: aplicar a lei.
Só que, quando a lei regula as ações possessórias, mandando defenestrar os
invasores (artigos 920 e seguintes do CPC), ela - COMO TODA LEI - tem em mira o
83
homem comum, o cidadão médio, que, no caso, tendo outras opções de vida e de
moradia diante de si, prefere assenhorear-se do que não é dele, por esperteza,
conveniência, ou qualquer outro motivo que mereça a censura da lei e, sobretudo,
repugne a consciência e o sentido do justo que os seres da mesma espécie
possuem.
Mas este não é o caso no presente processo. Não estamos diante de pessoas
comuns, que tivessem recebido do Poder Público razoáveis oportunidades de
trabalho e de sobrevivência digna (v. fotografias).
Não. Os "invasores" (propositadamente entre aspas) definitivamente não são
pessoas comuns, como não são milhares de outras que "habitam" as pontes
viadutos e até redes de esgoto de nossas cidades. São párias da sociedade (hoje
chamados excluídos, ontem de descamisados), resultado do perverso modelo
econômico adotado pelo país.
Contra este exército de excluídos, o Estado (aqui, através do DNER) não
pode exigir a rigorosa aplicação da lei (no caso, reintegração de posse), enquanto
ele próprio - o Estado - não se desincumbir, pelo menos razoavelmente, da tarefa
que lhe reservou a Lei Maior.
Ou seja, enquanto não construir - ou pelo menos esboçar - "uma sociedade
livre, justa e solidária" (CF, artigo 3º, I), erradicando "a pobreza e a marginalização"
(n. III), promovendo "a dignidade da pessoa humana" (artigo 1º, III), assegurando "a
todos existência digna, conforme os ditames da Justiça Social" (artigo 170),
emprestando à propriedade sua "função social" (art. 5º, XXIII, e 170, III), dando à
família, base da sociedade, "especial proteção" (art. 226), e colocando a criança e o
adolescente "a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração,
violência, maldade e opressão" (art. 227), enquanto não fizer isso, elevando os
marginalizados à condição de cidadãos comuns, pessoas normais, aptas a
exercerem sua cidadania, o Estado não tem autoridade para deles exigir -
diretamente ou pelo braço da Justiça - o reto cumprimento da lei.
Num dos braços a Justiça empunha a espada, é verdade, o que serviu de
estímulo a que o Estado viesse hoje a pedir a reintegração. Só que, no outro, ela
sustenta a balança, em que pesa o direito. E as duas - lembrou RUDOLF VON
IHERING há mais de 200 anos - hão de trabalhar em harmonia:
"A espada sem a balança é força brutal; a balança sem a espada é a
impotência do direito. Uma não pode avançar sem a outra, nem haverá ordem
jurídica perfeita sem que a energia com que a justiça aplica a espada seja igual à
habilidade com que maneja a balança".
Não é demais observar que o compromisso do Estado para com o cidadão
funda-se em princípios, que têm matriz constitucional. Verdadeiros dogmas, de cuja
fiel observância dependem a eficácia e a exigibilidade das leis menores.
Se assim é - vou repetir o raciocínio - enquanto o Estado não cumprir a sua
parte (e não é por falta de tributos que deixará de fazê-lo), dando ao cidadão
84
condições de cumprir a lei, feita para o homem comum, não pode de forma alguma
exigir que ela seja observada, muito menos pelo homem "incomum".
Mais do que deslealdade, trata-se de pretensão moral e juridicamente
impossível, a conduzir - quando feita perante o Judiciário - ao indeferimento da
inicial e extinção do processo, o que ora decreto nos moldes dos artigos 267, I e VI;
295, I, e parágrafo único, III, do Código de Processo Civil, atento à recomendação
do artigo 5º da LICCB e olhos postos no artigo 25 da Declaração Universal dos
Direitos do Homem, que proclama:
"Todo ser humano tem direito a um nível de vida adequado, que lhe assegure,
assim como à sua família, a saúde e o bem estar e, em especial, a alimentação, o
vestuário e a moradia".
Quanto ao risco de acidentes na área, parece-me oportuno que o DNER
sinalize convenientemente a rodovia, nas imediações. Devendo ainda exercer um
policiamento preventivo a fim de evitar novas "invasões".
P. R. I.
Belo Horizonte, 03 de março de 1995.
ANTONIO FRANCISCO PEREIRA
Juiz Federal da 8ª Vara
85
ANEXO 3
Sentença 3 (S3)
Vistos, etc.
1.- FULANA DE TAL, qualificada nos autos, requer autorização judicial para
interromper sua gravidez, posto que exames ultrassonográficos e clínicos, levados a
efeito por Junta Médica, diagnosticaram feto anencéfalo. A continuidade da gestação
acarretaria riscos à vida da Requerente e a sobrevivência extra-uterina do feto seria
inviável.
2.- O ilustrado Promotor de Justiça manifestou as indagações de fls. 11/12,
visando a estabelecer juízo de certeza acerca do diagnóstico relatado.
É a síntese. Decido.
3.- o aborto por indicação eugênica não está contemplado em nossa
legislação penal. A simples idéia de se negar vida a um ser em gestação, por
apresentar deformidades graves, repugna-nos a todos.
A Ciência Médica, entretanto, tem evoluído de tal forma no plano do
diagnóstico pré-natal, que enfermidades graves, capazes de colocar em risco a vida
da mãe e que inviabilizam por completo a existência do feto, são detectadas com
razoável antecedência. Médicos e juristas, nos últimos tempos, têm proposto
interpretação mais razoável a essas exceções, excluídas das indicações legais para
o aborto.
Em artigo profundo e interessantíssimo (in RJTJESP-Lex 132/9), o
Desembargador ALBERTO SILVA FRANCO aborda o tema, oferecendo-nos
valiosas conclusões, ora utilizadas nesta decisão.
4.- Dentre as anomalias que podem atingir o feto, encontra-se a anencefalia,
consistente em “malformação congênita, por defeito do fechamento do tubo neural,
caracterizada pela falta total ou parcial do encéfalo. É geneticamente condicionada
por herança multifatorial” (in ZACHARIAS, Manif e Elias. Dicionário de Medicina
Legal, EDUCA, 1988, p. 28).
5.- PATRICK VERSPIEREN (in “Diagnostico prenatal y aborto selectivo.
Reflexion etica”, in “La Vida Humana, Origen y Desarrollo”, pág. 178, Universidad
Pontifícia Comillas, Madrid, 1989 - apud SILVA FRANCO, loc.cit., p. 25), ao abordar
esses desvios no desenvolvimento que se manifestam durante a embriogênese,
refere-se à anencefalia:
“um caso que merece especial atenção é o da anencefalia, que
consiste na ausência no feto dos dois hemisférios cerebrais.
Não corresponde exatamente, no plano médico, à ‘morte
cerebral’. O sinal inequívoco desta, admite-se hoje, reside na
verificação da ausência de função total e definitivamente do
tronco cerebral. Pois bem, este está presente nos fetos
86
anencéfalos e permite, em alguns casos, uma sobrevivência de
alguns dias, fora do claustro materno. Antropologicamente
falando, as duas situações são, sem embargo, similares: a
ausência de hesmiférios cerebrais, no primeiro caso, e sua
afetação definitiva, no segundo, suprime para sempre o suporte
indispensável para toda forma de consciência e de relação com
o outro. No segundo caso, reconhece-se a morte da pessoa.
Não há razão para deixar de afirmar que, no primeiro caso, a
vida que subsiste não é propriamente falando, uma vida
humana, a vida de um ser humana destinado a chegar a ser
(ou já) pessoa humana.”
Aqui - ainda na esteira do ilustrado Desembargador paulista - não se está
admitindo a indicação eugênica com o propósito de melhorar a raça, ou evitar que o
ser em gestação venha a nascer cego, aleijado ou mentalmente débil.
Busca-se evitar o nascimento de um feto cientificamente sem vida,
inteiramente desprovido de cérebro e incapaz de existir por si só.
6.- POSTO ISSO, nesta vertência, não tenha dúvida em considerar o aborto
eugênico causa excludente de ilicitude - por isso o autoriza.
Já devidamente permitido pela gestante e seu marido (fls. 9), deverá ser
realizado por médico, preferencialmente em Hospital credenciado pela
Administração Pública - no máximo até a 22a. semana a contar da nidificação do
ovo.
Sem custas.
P.R.I.
Londrina, 19 de dezembro de 1992.
Miguel Kfouri Neto
Juiz de Direito Substituto.
87
ANEXO 4
Sentença 4 (S4)
Vistos, etc.
Vistos e examinados estes autos de Pedido de Interrupção de Gravidez, sob
no. 54/95, em que é Requerente Sicrana de Tal.
Sicrana de Tal, brasileira, solteira, secretária, por advogado constituído,
requer expedição de alvará judicial autorizando a interrupção de gravidez, ou seja,
autorização para que seja extraído de seu útero o feto nele presente, em
decorrência de gestação de “aproximadamente 26 semanas”, colocando-se,
assim, pelos meios técnicos disponíveis em instituição médica pública, fim à
aludida gravidez, sem que tal ato venha a trazer conseqüências penais à
Requerente, o qual na expressão da postulante “pode ser considerado como
aborto necessário, capitulado no art. 128 do Código Penal”.
Argumenta a Suplicante que o embrião que se encontra em seu ventre é
anancéfalo (sic.), considerado “inviável”, porque absolutamente incompatível com
vida-extra uterina, consoante declaração médica acatada pelo Conselho de Ética do
Hospital Universitário Regional do Norte do Paraná. Frisa ainda que “o que se
pretende é evitar o nascimento de um feto desprovido de cérebro e, por
conseqüência, incapaz de existir”.
Instruiu o pedido com declaração médica, laudo ecográfico e parecer da
Comissão de Ética do Hospital Universitário Regional do Norte do Paraná (fls. 10 a
15).
O Ministério Público manifestou-se à fls. 17 a 21, exarando parecer favorável
à pretensão da Requerente, entendendo esta como configurador do denominado
“aborto eugênico”, o qual, no entender do digníssimo Dr. Promotor de Justiça “in
casu”, “se enquadra entre as descriminantes supralegais, admitidas tanto pela
doutrina, quanto pela jurisprudência, já que as normas que excluem a
antijuridicidade são não-incriminadoras” (fl. 19), acentuando o Ilustre Representante
do Ministério Público ser admissível ampliar as causas de exclusão de ilicitude
alusivas ao aborto, previstas no art. 128, do Código Penal, já que tal ampliação se
faz “in bonam partem”. Argumenta também que “não se trata de negar-se a vida a
um ser dotado de deficiências físicas e mentais, o que sob todos os aspectos seria
extremamente reprovável. Trata-se, isso sim, de interromper-se uma gravidez cujo
feto não sobreviverá fora do ventre materno”.
É O RELATÓRIO. DECIDO:
A conclusão de um raciocínio depende das premissas das quais se parte. Daí
as diversidades de entendimento a respeito de qualquer tema, motivadas pelas
divergências de premissas.
A pretensão da Requerente envolve o mais elevado bem existente na face da
terra: a vida. Sem esta nada faz sentido ao homem. E o que é a vida, em seu
88
sentido amplo? “é a propriedade dos seres que possuem um princípio animador
interno pelo qual todas as partes conspiram para a conservação e desenvolvimento
do todo” (Pequena Enciclopédia de Moral e Civismo, Fename, p. 675). Animar
significa infundir alma, movimentos, atividades, como atributos da vida. Dentre os
múltiplos significados da palavra vida, AURÉLIO BUARQUE DE HOLANDA
FERREIRA registra por primeiro o seguinte: “conjunto de propriedades e qualidades
graças às quais animais e plantas, ao contrário dos organismos mortos ou da
matéria bruta, se mantêm em contínua atividade, manifestada em funções orgânicas
tais como o metabolismo, o crescimento, a reação a estímulos, a adaptação ao
meio, a reprodução, e outras; existência”.
Em face do contido no laudo ecográfico de fls. 12 e as fotografias que o
acompanham, constata-se cientificamente a óbvia e irrefutável verdade: o feto
presente no útero da requerente é um ser humano vivo. E humano, porque gerado
pela união de espermatozóide de homem e óvulo de mulher. A demonstração de
que está vivo decorre da atividade orgânica nele evidenciada. Vê-se que está já
bastante desenvolvido, com forma humana, o que significa que seu organismo ainda
em formação mantém-se em contínua atividade, está crescendo, movimenta-se. O
laudo ecográfico destaca: “movimentos ativo do feto presentes”. Encontra-se
também adaptado ao meio (útero materno), o qual lhe possibilita, no presente
estágio, continuar a viver, a existir. Seu coração apresenta “batimentos cardíacos
rítmicos”, seu tronco e membros visualizados, apresentam “aspecto normal”.
A anomalia constatada configura, segundo o mesmo laudo, “anencefalia” em
razão da “ausência de calota craniana e parênquima cerebral”.
Pois bem, diante de tais premissas, pergunta-se: Há amparo jurídico para se
atender a pretensão da Requerente? Não. Entende este Juízo, que apesar dos
argumentos em contrário (originários de diferentes premissas não aceitas na
presente decisão), à luz de uma visão dualista do direito, cuja corrente este Juiz se
filia convictamente, concomitante ao direito positivo existe um direito natural,
superior ao primeiro.
Assim, consoante ensina YLVES JOSÉ DE MIRANDA GUIMARÃES: “a lei
natural, ainda que não seja uma lei escrita, tem ela seu fundamento no ser e na
inteligência, não em uma vontade arbitrária, muito menos em um poder voluntarista.
Tem como princípio próximo a natureza mesma do ser humano. É um juízo da razão
indicativo da razão, concernente à conformidade da ação moral à natureza humana,
indicando o que é bom, o que deve ser feito” (in Direito Natural, Visão Metafísica e
Antropológica, Forense Universitária, 1991, p. 183).
Embora haja muita coincidência entre vários princípios de direito natural e os
valores assumidos pelo Cristianismo, a percepção do direito natural antecede este,
“seus princípios valem e valerão para todos os tempos enquanto houver a existência
humana, como exigência da racionalidade do homem. A história registra fatos, como
a condenação à morte de crianças não adaptáveis à vida ou a dos anciões. Tais
fatos apenas provam que o conhecimento dos seus preceitos nem sempre se deu,
mas não que os mesmos não existissem, fruto daquela exigência” (Ob. cit., p. 220).
O mesmo autor, segundo o raciocínio do Apóstolo Paulo, assevera: “Pela
circunstância de estar o Direito Natural ínsito no coração e na consciência dos
89
homens, sendo os seus princípios evidentes ao seu entendimento, é indelével, não
podendo ser dos mesmos apagados frente a todas as circunstâncias” (ob. cit. p.
221).
Dentre os direitos naturais, destaca-se em primeiro plano o direito à vida.
Onde existe esta, deve ser ela defendida de todas as formas necessárias à sua
salvaguarda. Daí decorrem as proibições penais de ofensa à vida humana, na esfera
do direito positivo, e a excludente de criminalidade para quem mata em legítima
defesa.
E quando tem início a vida humana? A partir da concepção, responde a
encíclica papal Gaudium et Spes, segundo a qual “a vida desde a sua concepção
deve ser salvaguardada com o máximo cuidado”, afastando-se se assim toda e
qualquer tese materialista, fruto de um pragmatismo desumano e pagão, segundo o
qual a pessoa humana somente passaria a existir após o nascimento com vida.
Portanto, se o feto presente no ventre da Requerente está vivo, (e está
conforme provam os autos) deve ele ser preservado de todas as maneiras em sua
existência, enquanto a natureza (criada por Deus, segundo cremos) continuar a dar-
lhe as condições necessárias, para manter-se vivo, sendo abominável tanto pela
ótica do Direito quanto pela Moral e Religião Cristã, qualquer intervenção para
obstar a continuidade de tal vida humana.
A afirmação da Requerente, segundo a qual, o feto é um ser que em razão de
sua anomalia, é “incapaz de existir”, não corresponde a verdade. Ele já existe como
um ser humano vivo. O que se prevê é a provável impossibilidade de sua
sobrevivência por muito tempo após o nascimento. Nem se sabe se poderá
sobreviver por alguns instantes ou quanto tempo durará quando vier a nascer. A
palavra inviável, adotada na declaração médica, indica o contrário de viável, termo
este que significa “duradouro”. Afirma-se, pois, que a vida do atual embrião não será
duradoura, quando este nascer, porém, não se sabe que duração terá esta. No
entanto nem cabe indagar de tal durabilidade. Esta é variável para cada ser humano.
O que importa é respeitar a vida humana já existente no embrião que a Requerente
pretende ver extirpado de seu seio. Plenamente compreensível o abalo psicológico
da Requerente ao constatar a grave anomalia que aquele apresenta. Quadro
doloroso, sem dúvida. No entanto, esta dor psicológica não justifica que para
amenizá-la, se autorize a morte do indefeso ser humano em desenvolvimento, no
útero materno. Isso seria brutal, injusto, à luz dos princípios supra considerados. A
interrupção da gravidez pretendida, significa a extirpação provocada da vida que
pulsa naquele organismo em formação. Seria um feticídio
11
, amparado em alvará
judicial.
11
“Tradicionalmente o delito de aborto - que o código penal argentino não define normativamente - se conceitua,
no ponto de vista jurídico, como a ação de matar ou destruir o feto. São pressupostos materiais indefectíveis do
aborto - aponta NÚÑEZ -: a existência de uma gravidez sua morte como resultado dos meios abortivos
utilizados para tanto. Por isso CARRARA definia este delito como feticídio. Mas no conceito técnico penal,
‘existe feto desde a concepção do novo ser no seio materno, e não só a partir do fim do período embrionário,
que dura até fins do 3º mês da gravidez”. (cf. com ZANNONI, Eduardo A. Inseminación artificial y
fecundación extrauterina: proyecciones jurídicas. Buenos Ayres, Astrea, 1978, p. 92).
90
Foi em respeito à vida que o Direito penal pátrio não considerou como
excludente de antijuridicidade o denominado “aborto eugenésico”.
A tal respeito diz MAGALHÃES NORONHA, referindo-se à lei penal brasileira:
“Não admite ela a cessação da gestação, no caso de possível deformidade da
criatura que está para nascer, e convenhamos que a autorização, nesse caso, não
deixaria de ser perigosa. Por identidade de razão, deveria ela ser estendida a outras
hipóteses (p. ex., doença infecciosa da gestante) que podem produzir
conseqüências danosas para o feto. A admissibilidade se tornaria ampla e por isso
mesmo perigosa: acabaria por degenerar, tornando a exceção regra.” E adiante
acrescenta: “Como quer que seja, todo ser nascido de mulher, possua a forma que
possuir, é humano, é homem, é sujeito de direito e tem personalidade. A doutrina do
Direito Romano, que negava capacidade jurídica aos que “contra formam humani
generis, converso more procreantur” não seria hoje tolerável” (Direito Penal, 2º vol.,
11a. ed., p. 64).
Cabe frisar que o fato de estar em voga na sociedade contemporânea uma
mentalidade a favor da morte, não justifica esquecer que a vida é um dom de Deus.
Mister se faz opor-se à cultura da morte (v.g. destaque aos filmes e livros que
exibem propositadamente terríveis cenas de violência), a cultura da vida, consoante
lembra LUIGI LOMBARDI VALUARI, ao afirmar: “Dalla cellula iniziale fino alla gloria
di Dio, la vita umana ci è apparsa nella sua costante grandezza, purtroppo ignorata o
ridotta o negata da componenti sempre piú estese della nostra cultura, a livello
teorico, giuridico e di costume” (desde a célula inicial até à glória de Deus, a vida
humana nos aparece em sua constante grandeza, infelizmente ignorada ou reduzida
ou negada por componentes sempre mais difundidos em nossa cultura, em nível
teórico, jurídico e dos costumes) (in La vita umana: una meraviglia, I.S.U. Universitá
Cattolica, Milano, Itália).
Assim, intangível é o valor presente na vida humana. Em razão desta a
pessoa humana passa a existir e torna-se o valor fonte dos demais valores jurídicos,
consoante ensina MIGUEL REALE, “cujo significado transcende o processo
histórico, através do qual a espécie toma consciência de sua dignidade ética”
(Lições Preliminares de Direito, 19a. ed., p. 309). Por isso, não há regra jurídica e
nem moral capaz de autorizar este Juiz a atender a pretensão da Requerente, em
que pesem os entendimentos em contrário, alcançados, talvez, a partir de diferentes
premissas rejeitadas pela consciência formada à luz da visão dualista do direito
(direito positivo e direito natural) e dos princípios cristãos alusivos à preservação da
vida. Finalmente, cabe assinalar que o direito de nascer é decorrência do direito à
vida. Assim, o embrião presente no ventre da Requerente tem garantido jurídica e
moralmente o direito de nascer e de viver até quando lhe for naturalmente possível,
não sendo lícita e nem justa qualquer intervenção humana para abreviar-lhe a
existência.
Ainda segundo o filósofo HEIDEGGER, “a expressão ‘sou’ se conecta a
‘junto’; eu sou diz por sua vez: em moro, me detenho junto... ao mundo, como
alguma coisa que, deste ou daquele modo, me é familiar ... ‘eu sou’ significa morar
junto a...” (in Ser e Tempo).
Assim, o embrião que se encontra no ventre da Requerente é alguém que
“existe junto dela”, mora em seu útero, nele permanece como alguém se encontra
91
em seu “habitat” natural, que lhe é familiar e por isso vive naturalmente e de lá só
deverá sair também pelo processo natural do nascimento.
PELO EXPOSTO, INDEFIRO o pedido formulado inicialmente, por falta de
amparo jurídico e moral para deferi-lo.
REGISTRE-SE, INTIMEM-SE, OBSERVE-SE O SEGREDO DE JUSTIÇA.
Londrina, 24 de abril de 1995.
Sergio Alves Gomes - Juiz de Direito