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Unijuí: Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul
Mestrado em Educação nas Ciências
Edegar Soares de Matos
DA REPRESENTAÇÃO AO DISCURSO:
Repensando as bases da educação a partir das práticas discursivas segundo
Michel Foucault
Ijuí, Abril de 2008
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Edegar Soares de Matos
DA REPRESENTAÇÃO AO DISCURSO:
Repensando as bases da educação a partir das práticas discursivas segundo
Michel Foucault
Dissertação de Mestrado, pelo Programa de Pós-
Graduação em Educação nas Ciências da Universidade
Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul
UNIJUÍ
Prof. Dr. Ana Maria Colling
Ijuí, Abril de 2008
2
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BANCA EXAMINADORA
1._________________________
Ana Maria Colling – Orientadora
2._________________________
Elsa Maria Fonseca Falkenbbach
3._________________________
Anna Rosa Fontella Santiago
4._________________________
Vânia Dutra Azeredo
3
AGRADECIMENTOS
Em especial, agradeço, a Profª Ana Maria Colling, por seu trabalho de
orientação, e a todos(as) professores(as).
À minha mãe, familiares, companheiros(as) e amigos(as) que estiveram ligados,
direta ou indiretamente, a este trabalho.
4
RESUMO
O mote da dissertação é compreender a constituição e construção da educação
em suas bases na modernidade e pensá-la na contemporaneidade a partir das reflexões
de Michel Foucault. Os conceitos geradores são a genealogia do poder e a arqueologia
do saber, segundo a proposta de pensar foucaultiana. Foucault pensou um método de
filosofar que é contra o método definido pela modernidade; pensou bases de
pensamento contra as bases da modernidade. Mas, ao mesmo tempo, Foucault
compreendia os riscos de, nesta crítica, pensar custa este afastamento; é necessário que
se saiba o que de moderno naquilo que nos permite pensar contra a modernidade; e
é necessário que se avalie em que medida é que a nossa ação contra a modernidade não
será talvez ainda uma armadilha que a própria modernidade nos coloca e no termo da
qual ela nos espera, imóvel, em outro lugar. A partir disso, não propomos um método
de educação a partir de Foucault, ou ainda uma prática educativa, mas repensar as
bases de trabalhar as práticas educativas, dos métodos em educação. Procuramos
pensar as bases da educação em termos de discurso, em termos de linguagem, segundo
a proposta de pensamento foucaultiano das práticas discursivas. A nossa reflexão
acontece em conceitos como: resultados, formação e vida, subjetivos e objetivos,
método e processo, conteúdos e produção, universalidade e regionalização. Estes
conceitos são pensados em sua construção moderna e repensados a partir das práticas
discursivas: da representação ao discurso.
Palavras chaves: Foucault, modernidade, representação, bases da educação, práticas
discursivas, discurso, filosofia, arqueologia do saber, genealogia.
5
ABSTRACT
The aim of this paper is to understand the constitution and construction of
education along its modern basis, as well as to think about it in the contemporary time
taking as starting point the reflections of Michel Foucault. The generator concepts are
power genealogy and archaeology of knowledge, as proposed by Foucaultian thought.
Foucault has thought a method of philosophical thinking that is contrary to the basis of
modernity. But, at the same time, Foucault have understood that this line of thought
could have isolated him; so that it is necessary to know what is modern in all that
allow us to think against modernity. And it is necessary to evaluate in what measure
our actions against modernity can be, perhaps, a pitfall posed by modernity itself, or,
by hiding itself immovable waiting in another place. From this point on, we do not
offer an educational method based on Foucault ideas, or even educational or
instructional practices, but do rethink the background of educational practices and
methods in education. We intend to think the education backgrounds in terms of
discourse, language, following the discursive practices of Foucault. Our reflections do
happen on concepts such as results, character formation and life, both subjective and
objective, on methods and processes, on content and production, universal and
regional. These concepts are thought as a modern construction and rethought from the
discursive practice: from representation to discourse.
Key words: Foucault, modernity, representation, educational background, discursive
practices, discourse, philosophy, archaeology of knowledge, genealogy.
6
SUMÁRIO
RESUMO................................................................................................................. 04
ABSTRACT............................................................................................................ 05
INTRODUÇÃO ...................................................................................................... 08
I – O PROJETO MODERNO E SUA PROBLEMÁTICA...................................... 14
1.1 – O cogito como fundamentação ............................................................. 17
1.2 – A filosofia como crítica ......................................................................... 25
1.2.1 – Crítica como filosofia transcendental ....................................... 26
1.2.2 – Crítica da filosofia: a filosofia como interpretação ................... 36
II – DESCONSTRUÇÃO DA MODERNIDADE E PROPOSIÇÕES DE
PENSAMENTO ARQUEOLÓGICO E GENEALÓGICO.....................................
46
2.1 – Por uma trajetória questionadora de verdades .................................... 49
2.2 – Poder e saber........................................................................................ 54
2.2.1 – O poder disciplinar .................................................................. 56
2.2.2 – O conceito de poder ................................................................. 58
2.2.3 – O poder como disciplina .......................................................... 64
2.3 – Algumas implicações positivas da crítica foucaultiana ......................... 69
III – A EDUCAÇÃO A PARTIR DE NOVAS PRÁTICAS DISCURSIVAS ....... 74
3.1 – Educação e práticas discursivas............................................................ 77
3.2 – Repensando as bases da educação......................................................... 82
3.2.1 – Método e processo..................................................................... 85
3.2.2 – Objetivos e subjetivos............................................................... 89
3.2.3 – Resultados.................................................................................. 92
3.2.4 – Conteúdos e produção................................................................ 95
3.2.5 – Formação e vida......................................................................... 97
3.2.6 – Universalidade e regionalização................................................ 100
CONCLUSÃO ........................................................................................................ 104
BIBLIOGRAFIA .................................................................................................... 110
7
8
INTRODUÇÃO
Retomar as interpretações foucaultianas da modernidade significa interrogar as
condições dentro das quais se tornou possível a maneira moderna de pensar. A idade
moderna foi se configurando como idade da representação. Para a modernidade, “a
realidade” é algo que existe enquanto mundo sensível, contraposto pela consciência
como o ser da subjetividade, compreendida cognitivamente. O esforço, neste sentido,
dá-se em encontrar um caminho, um método seguro para a razão. Concentrando todo o
esforço na busca de um método seguro para a consciência, constituindo-se na condição
de possibilidade da representação da realidade. E o interrogar sobre as condições de
possibilidade da consciência fica além de qualquer preocupação.
Kant compreende que o pensamento cartesiano não atingiu a dimensão da
racionalidade justificadora e fundamentadora da verdadeira ciência pelo fato de
permanecer preso a um dualismo substancial do corpo e da alma. A radicalidade desse
questionamento incumbe a concretização da filosofia transcendental pensada a partir
de uma revolução copernicana na metafísica. O problema fundamental da crítica
kantiana do conhecimento dirige-se à questão das condições de possibilidade “que
legitimam o caráter de conhecimento (verdadeiro) mediante o recurso ao sujeito
transcendental” (HIGUERA, 1999, p. 13).
Nietzsche extrai as conseqüências imediatas da problemática não resolvida nas
críticas kantianas pela indeterminação da concepção da questão “o que é o homem?”,
reconhecida pelo próprio Kant como um ponto nebuloso na relação entre o
entendimento e a experiência, e entre a liberdade e a vontade. Para Nietzsche, a base
9
de qualquer juízo e valoração é a própria vida, como o limite em que não se pode mais
retroceder.
Os filósofos da vida compreendem que no sujeito das teorias kantiana e
cartesiana não corre verdadeiro sangue. Enquanto que a modernidade colocou a razão
como fundamental, negou a natureza humana, constituindo-se numa agressão contra a
própria vida. Nietzsche sugere uma antropologia que compreenda o ser humano em
sua integralidade. Negar ou extirpar algo inerente à sua natureza equivale a romper
com a própria estrutura da dinamicidade da vida.
Essa nova fundamentação possibilitou a crítica foucaultiana das bases de
pensamento da modernidade, sobretudo a partir da afirmação nietzscheneana de que o
conhecimento, a verdade e o saber são “apenas interpretações”. Foucault tira as
conseqüências desse pensamento nietzscheano numa leitura arqueológica do saber e
genealógica do poder. Ousa interrogar a possibilidade mesma da representação, não
mais colocando o problema sobre qual é o caminho mais seguro da Verdade, como era
o objetivo cartesiano, mas perguntando pelo caminho aleatório da verdade
(FOUCAULT, 1979, p. 156).
Seguindo o descentramento operado pela genealogia nietzscheana, a
arqueologia de Foucault questiona o fundamento originário que compreende a
racionalidade moderna como telos da humanidade, e que ligasse toda a história do
pensamento à salvaguarda dessa racionalidade. A arqueologia procura compreender o
enunciado na estreiteza e singularidade de seu acontecimento a fim de determinar as
condições de sua existência, mostrando que outras formas de enunciação exclui.
Pergunta pelas condições de possibilidade da existência de determinado saber, como
surgiu, a partir de que condições se criou ou foi gerado aquilo que se convencionou a
chamar de conhecimento. Por que determinado saber? Não poderia ser outro? Como
ocupa, no meio dos outros e relacionado a eles, um lugar que nenhum outro poderia
ocupar?
A partir dessas interrogações foucaultianas, não é mais possível dissolver o
acontecimento histórico em uma série continuada idealmente, conforme pretensão da
10
modernidade. Tem-se, assim, um deslocamento das grandes unidades para o fenômeno
das rupturas históricas. “Uma história que não seria expansão, mas devir; que não seria
jogo de relações, mas dinamismo interno; que não seria sistema, mas duro trabalho da
liberdade; que não seria forma, mas esforço incessante de uma consciência adquirindo
domínio de si e tentando se dominar até o mais profundo de suas condições”
(FOUCAULT, 1972, p. 22). O método arqueológico, portanto, estuda essas
descontinuidades, essas rupturas, com a finalidade de compreender a formação de
determinado saber em detrimento de outro.
O método foucaultiano não procura repor em questão as sínteses acabadas que,
no mais das vezes, admitem, antes de qualquer exame os laços cuja validade é
reconhecida desde o início. “É preciso desalojar essas formas e essas forças obscuras
pelas quais se tem o hábito de ligar entre si os discursos dos homens; é preciso
expulsá-las da sombra onde reinam”. (FOUCAULT, 1972, p. 32). Não pretende
analisar os discursos em sua profundidade, mas em suas relações com outras
instâncias, a fim de que se evidencie o modo pelo qual algo foi instituído como
verdade. O saber, assim concebido, não é a manifestação majestosamente
desenvolvida de um sujeito que pensa, que representa a “realidade” através de um
método seguro. “É, ao contrário, um conjunto em que se pode determinar a dispersão
do sujeito e que usa descontinuidade consigo mesmo. É um espaço de exterioridade
em que se desenvolve uma rede de lugares distintos” (FOUCAULT, 1972, p. 70).
Para ele, não se pode definir o discurso “nem pelos recursos a um sujeito
transcendental nem pelo recurso a uma subjetividade psicológica” (FOUCAULT,
1972, p. 70). Ao contrário de tudo isso, é analisado, em sua superficialidade, no nível
da formação discursiva. Sob as manifestações maciças e homogêneas do espírito ou
sujeitos unitários, Foucault procura destacar a incidência das interrupções. “A análise
dos enunciados se efetua, pois, sem referência a um cogito. Não coloca a questão do
que fala, que se manifesta ou se oculta no que diz” (FOUCAULT, 1972, p. 153). Situa-
se, de fato, ao nível do “diz-se”, “ao conjunto das coisas ditas, as relações, as
regularidades e as transformações que podem se observar, o domínio de que certas
11
figuras, de que certos entrecruzamentos indicam o lugar singular de um sujeito-que-
fala” (FOUCAULT, 1972, p. 153).
Assim concebido, tem-se a autonomia do discurso. O enunciado se relaciona
com outros enunciados e não com as coisas, com conceitos ou com idéias. Tampouco
pode ser referido a um sujeito que pudesse ser tomado como sua origem. O discurso,
dessa forma, não admite nenhuma soberania exterior, nem a de um sujeito que seria
sua fonte e sua origem, nem a de um mundo de coisas do qual seria uma representação
secundária. Portanto, “as ‘coisas’, os ‘estados de coisas’ ou os ‘conceitos’ que se
nomeiam não são exteriores ao discurso; são, antes, variáveis do enunciado, a rigor,
objetos discursivos”, bem como, “o sujeito é uma variável do enunciado” (LARROSA
apud. Silva, 2002, p. 66).
Questionando as totalizações estabelecidas que determinam a historicidade e a
acontecência, tomamos Foucault como locus de debate de algumas questões de base da
educação. Para compreender a inflexão do pensamento contemporâneo concretizado
por Foucault, realizaremos um debate com os primórdios da modernidade, Descartes e
Kant, que continuam, em muitos aspectos, sendo determinantes no modo de pensar
atual. Nietzsche é o interlocutor que está na situação vivida da modernidade, mas que
exige um repensar da mesma. As questões como método da educação, objetivos,
resultados, conteúdos, passam a ser repensados a partir da perspectiva de pensamento
expresso na obra de Foucault.
Foucault pensou um método de filosofar que é contra o método definido pela
modernidade; pensou base de pensamento contra as bases da modernidade; trabalhou
formas de investigação contra a investigação da ciência e da filosofia moderna;
explorou inconscientes que não são propriamente o inconsciente freudiano; pensou o
poder contra a idéia de poder como opressão; pensou a verdade contra a forma
científica de conceber a verdade; pensou o saber e o conhecimento antes e sem o
próprio método de todas as teorias do conhecimento, etc. A partir disso, não propomos
um método de educação a partir de Foucault, ou ainda uma prática educativa, mas
repensar as bases para trabalhar as práticas educativas, dos métodos em educação.
12
Nisto, propriamente, este trabalho se constitui em uma reflexão filosófica sobre a
educação: não a filosofia da educação, mas a filosofia na educação.
O sujeito na e da educação, partindo da reflexão foucaultiana, é uma
construção da compreensão do mundo histórico presente em que ele vive. O sujeito é
constituído e não mais constituinte. O conceito de construção é a superação do
conceito de representação como base das relações de saber, conhecimento, verdade,
enfim, aqui, tudo aquilo que se refere à educação. No e pelo conceito de construção
não se nega um ponto de partida e um ponto de chegada. O diferencial está na sua
compreensão de sentido, em que o ponto de partida e o ponto de chegada não são
estabelecidos como pontos arquimedeanos, determinantes de todo o processo, como se
este fosse apenas uma sombra lógica projetada dos dois. Pensar estas três questões, o
ponto de partida, o ponto de chegada e o processo, não mais em termos
representativos, vem sendo o desafio do pensamento da educação nas últimas décadas
e continuará sendo enquanto a educação for pensada como construção de compreensão
do sujeito, do mundo, da verdade e da linguagem.
A reflexão que propomos desenvolver-se-á em três capítulos. No primeiro, um
debate com pensadores da modernidade, Descartes e Kant, e com Nietzsche que tem
como situação hermenêutica o fim da modernidade. Esse debate é feito a partir de um
elemento organizador conceitual foucaultiano, com a perspectiva de compreender a
construção de conceitos da teoria do conhecimento, da razão, da subjetividade, da
verdade e da vida, que configuraram as possibilidades da contemporaneidade.
No segundo capítulo, buscamos esclarecer a leitura que Foucault faz da
modernidade e a proposição de uma nova reflexão a partir da sua crítica. A
centralidade deste capítulo esta na elaboração de um novo referencial teórico, de
Foucault, para compreender as questões fundamentais das ciências e das formas de
viver do ser humano. E dentre os conceitos analisados, está a questão da educação, no
sentido de como ela foi pensada e as possibilidades de uma nova forma de ser, de agir
e de pensar na educação. Por fim, o último capítulo trabalha o conceito de práticas
discursivas. É a partir deste conceito que se questionará as bases da educação e as
13
possibilidades de um pensar diferente sobre a mesma. Esse repensar versará sobre
alguns conceitos de base da educação, em sua estrutura e acontecência, tais como:
método e processo, objetivos e subjetivos, resultados, formação e vida, universalização
e regionalização, etc. nosso propósito é descortinar novas formas de pensar a
educação, apontando para alguns casos da construção da humanidade sem, no entanto,
propor uma nova metodologia, ou uma nova pedagogia. O texto permanecerá na
dimensão da desconstrução, do desvelamento das possibilidades de pensar a educação.
14
I – O PROJETO MODERNO E SUA PROBLEMÁTICA
A modernidade é o resultado de uma insatisfação com as formas de ser e
pensar do medievo. As questões como mundo exterior, fatos e objetos da realidade,
relação de causalidade, verdade, evidência e clareza, realidade supra-sensível e do
conhecimento, não tem uma explicação, na pré-modernidade, que satisfaça a produção
de conhecimentos e a concretização da ciência. O que está em questão é a
fundamentação e justificação dessas questões, e não simplesmente um abandono das
temáticas próprias do medievo.
A modernidade radicaliza os fundamentos das questões centrais do ser
humano no próprio mundo. Com isso, o locus de justificação e fundamentação será a
subjetividade, seja ela empírica, racional ou transcendental.
A subjetividade da modernidade é uma subjetividade constituinte. Ela é o
lugar último de todas as fundações, e, por isso, não pode ser fundada por nada. Sua
expressividade de ser é o conhecimento. Este foi a preocupação central e fundamental
da modernidade. Com a efervescência do Renascimento, onde tudo é desconstruído, e
com o destacamento do ceticismo, o importante não era encontrar um caminho para a
verdade, para o conhecimento, mas um caminho certo, para, então, construir a ciência.
Incumbia-se a indepassável exigência de descortinar as condições de possibilidade de
um saber seguro para todas as ciências.
A modernidade, nas suas origens, tem duas grandes correntes de pensamento:
racionalismo e empirismo. Cada uma procurou dar forma e fundamentação sob termos
distintos para a questão do conhecimento. Por questão de investigação,
15
centralizaremos nossa atenção no racionalismo que tem, em Descartes, seu fundador e
o pai da própria modernidade.
Para Descartes, existe uma ciência fundamental, que é expressão da unidade
da razão, entendida como a sabedoria humana. A razão é una e única mesmo que seja
aplicada a objetos diferentes
1
. Não há duvida de que falamos de distintas ciências, mas
diferenciamos somente na distinção de seus objetos, que, segundo Descartes, não
implica no uso de distintos métodos de investigação.
A afirmação de uma base sólida, o cogito, após todo o processo da dúvida
metódica, é a possibilidade de construir, de pensar, a ciência e os conhecimentos de
forma clara e evidente. Esta base é conquistada na e pela desconfiança no mundo
exterior, que foi reduzido por Descartes a uma hipótese evanescente. A base
indubitável é a consciência de si do cogito como pensamento puro. A subjetividade é
constituinte e não constituída. O conhecimento do mundo e do próprio eu vão ser
constituídos pela subjetividade pura, enquanto pensamento. O resultado do processo
do conhecimento é a representação.
Para Kant, o racionalismo cartesiano foi importante para a filosofia, mas que
não conseguiu resolver os problemas fundamentais, metafísicos, de justificação do
conhecimento em termos propriamente filosóficos, porque ainda se valeu da base
ontológica do corpo/alma e da justificação última da verdade, e, portanto, do
conhecimento em Deus. Descartes pensa que o âmbito da filosofia seja apenas aquilo
que é claro e distinto à razão, suspendendo qualquer juízo sobre a sensibilidade. Com
isso, cria divergência com outra corrente que trabalha o âmbito da filosofia na questão
da empiria. Kant procura ultrapassar essas formas de filosofia porque elas não
trabalham os limites e as condições de possibilidade da filosofia.
Para Kant, é preciso pensar a empiria e a racionalidade não em termos
antagônicos, como fazem os empiristas e os racionalistas, mas compreender aquilo que
pertence propriamente a cada uma dentro de uma teoria do conhecimento. A nova base
de pensamento é uma filosofia transcendental crítica, que pensa o encontro da razão
1
DESCARTES, René. Discurso do método. Introdução de Etiene Gilson, 1979, p. 16.
16
com a empiria, do entendimento com a sensibilidade. O conceito de transcendental é
distinto do conceito medieval e se distingue do conceito de transcendente.
Transcendental significa as condições de possibilidade a priori de pensar, de
representar, de estabelecer algo. A questão central da primeira Crítica é explicitar as
condições de possibilidade da filosofia que seja capaz de seguir o caminho seguro das
ciências matemáticas e físicas. O que está em questão é a possibilidade ou a
impossibilidade da metafísica.
Nietzsche foi um anticartesiano e um antikantiano por convicção pessoal. No
entanto, ele não pode saltar a própria sombra da sua condição histórica cultural. Ele se
situa no entremeio de dois paradigmas filosóficos, da subjetividade e da linguagem.
Para a filosofia francesa está muito claro que Nietzsche é um dos principais
promotores de superação do modo de filosofar moderno. A filosofia como crítica da
própria filosofia é comum a Kant e a Nietzsche, porém, neste último, não mais como
forma de encontrar uma nova base, transcendental, para pensar representativamente, e
sim a filosofia como apenas interpretação. Esta idéia está presente de certa forma
em Kant, quando este afirma que podemos apenas conhecer o fenômeno e não a coisa
em si.
É dos limites que o próprio Kant reconhece em sua teoria, problema
fundamental de toda representação, de permanecer um ponto obscuro entre as
categorias do entendimento e a experiência, que teria sua resolução na resposta à
questão o que é o homem?, segundo o próprio Kant, é que Nietzsche vai afirmar o seu
modo de pensar filosoficamente. A vida é o valor que não pode ser valorado porque é
a condição de toda a valoração
2
, ou seja, é a nova base para pensar e representar.
Aquilo que o homem cria e afirma de si mesmo são discursos, interpretações, que
podem se tornar gastos e requerer outros. A única base sólida é o próprio homem que
vive de diversos modos, quer procurando ser si-mesmo ou vivendo sob uma
determinação qualquer cultural ou ideológica.
2
NIETZSCHE, Friedrich. Obras incompletas, 2000, p. 275.
17
1.1 – O Cogito
3
como fundamentação
O locus cartesiano na história da filosofia é marcado por uma revolução no
modo de pensar. Esta inflexão é determinada pelo estabelecimento de um novo
fundamento para o pensamento: a subjetividade. É uma revolução paradigmática. “A
revolução copernicana no pensamento, no fim da Idade Média e no começo dos
tempos modernos, consiste na volta para subjetividade pensante” (ZILLES, apud.
MARQUES DE JESUS, 1997, p. 10). Descartes inaugura o paradigma da
subjetividade como modo determinante de fundamentação e justificação do
conhecimento e da verdade na modernidade.
Segundo Descartes, existe uma enormidade de razões para duvidar dos
pensamentos confusos e obscuros. No entanto, tratando-se de pensamentos claros e
distintos, de idéias claras e distintas, as razões que existem para duvidar são mais
fracas. Alguém pode duvidar de que exista o sol porque tal como ele aparece a mim se
de modo confuso e obscuro porque se compõe de muitas coisas misturadas: uma
forma geométrica, a distância, calor, luz; uma porção de coisas misturadas que haveria
que separar muito cuidadosamente. Também, alguém pode estar sonhando que exista o
sol, e não existir o sol. O mundo material se compõe de pensamentos obscuros e
confusos, dos quais é possível duvidar.
Para compreender esta forma de pensar, é preciso ter presente a árvore do
conhecimento que Descartes descreveu. A metafísica são as raízes; o tronco, a física; e
os galhos as outras ciências. Todo conhecimento tem uma relação estrutural. A
unidade do saber e do método se justifica na fundação que ambos devem ter na
metafísica, nas raízes. A unidade do conhecimento está na unidade da razão. Para
Descartes, esta unidade é encontrada no cogito. O cogito é a primeira verdade na
ordem do conhecimento e critério fundamental da evidência e clareza da verdade.
3
A escolha pelo conceito de cogito, conceito que não é usado mais nas Meditações, justifica-se na explicação de
Forlin (2005, p. 105): “a proposição <eu sou, eu existo>,pela sua equivalência com a formulação <ego cogito,
ergo sum> que aparece no Discurso do Método, é habitualmente chamada de cogito. Não vemos nenhum
inconveniente nisso, dado que o próprio Descartes toma indiscriminadamente uma proposição pela outra nos
esclarecimentos feitos nas Respostas às objeções”.
18
A justificação no cogito é encontrada pela dúvida metódica, que levou à
certeza fundamental: penso, logo existo. Este passou a ser o axioma básico de toda a
filosofia como um sistema de conhecimento absolutamente fundamentado.
Porém, logo em seguida, percebi que, ao mesmo tempo que eu queria
pensar que tudo era falso, fazia-se necessário que eu, que pensava,
fosse alguma coisa. E, ao notar que esta verdade: eu penso, logo
existo, era tão sólida e tão correta que as mais extravagantes
suposições dos céticos não seriam capazes de lhe causar abalo, julguei
que podia considerá-la, sem escrúpulo algum, o primeiro princípio da
filosofia que eu procurava (DESCARTES, 2000, p. 62).
Para construir qualquer conhecimento, é preciso, segundo Descartes, ter muito
claramente o método a ser empregado, porque a justificação do julgamento do
verdadeiro e do falso deve ser regulado pelo método. É imprescindível uma
regulamentação e um controle do pensamento para proceder corretamente na busca da
verdade. Para encontrar a fundamentação última é necessário ter um bom método e,
sobretudo, aplicá-lo bem.
Pois é insuficiente ter o espírito bom, o mais importante é aplicá-lo
bem. As maiores almas são capazes dos maiores vícios, como também
das maiores virtudes, e os que andam muito devagar podem avançar
bem mais, se continuarem sempre pelo caminho reto, do que aqueles
que correm e dele se afastam (DESCARTES, 2000, p. 35).
Afirmar que o cogito é a fundamentação do saber é possível quando tiver
passado pelo crivo do método, de se manifestar claro e evidente e de superar todas as
formas da dúvida. A clareza e a evidência são conceitos compreendidos
matematicamente por Descartes, que procura estender estes conceitos de razões claras
para além do âmbito da matemática. Descartes se espanta de que “sendo seus
fundamentos tão seguros e sólidos, não houvesse construído sobre eles nada de mais
elevado” (DESCARTES, 2000, p. 40). Na e pela matemática encontrava o desejo de
construir todo saber sobre alicerces sólidos, porque a certeza desta ciência consiste
“muito menos nos processos do cálculo que usam, do que na perfeita (grifo nosso)
evidência das idéias que põem em ação e na ordem segundo a qual se encadeiam”
4
.
4
DESCARTES, Discurso do Método. Introdução de Etiene Gilson. p. 7. O texto da citação é de Gilson.
19
Para Descartes, estes pensamentos obscuros e confusos do mundo dos
sentidos, que dão margem à dúvida, podem ser analisados e decompostos em seus
elementos constituintes. É possível, por exemplo, tirar do sol o calor, tirar a luz, tirar o
peso, tirar o movimento e ficar apenas com uma forma esférica. Como a matemática é
um conhecimento claro e distinto, Descartes compreende que o pensamento
geométrico da esfera é claro e distinto. A única coisa certa e segura quando se pensa a
esfera, o pensamento geométrico da esfera, é o próprio pensar da esfera, que, enquanto
pensamento, não a menor garantia de sua realidade, de sua existência. A clareza e a
evidência permitem que num pensamento boas indicações para acreditar na
realidade do objeto, mesmo que no pensamento não existe nenhuma prova de garantia
da sua existência exterior. Se não é possível tal prova, amplia-se a interrogação para o
próprio sujeito, questionando se “não me convenci também de que eu não o existia?
Com certeza, não; sem dúvida eu existia, se é que me convenci ou pensei alguma
coisa” (DESCARTES, 2000, p. 258).
A dúvida sobre o mundo sensível pode ser aplicada, e é o que faz Descartes,
sobre o próprio sujeito da dúvida. Esta dúvida pensada em termos metafísicos é o
cume do procedimento metódico: suspeitar de que existe um “Deus Maligno” que
estaria o tempo todo enganando, iludindo em todas as formas possíveis. É preciso
levar a dúvida ao extremo para que se encontre o verdadeiro solo de toda verdade e de
todo conhecimento. E, pensar que um ser poderoso estaria todo tempo enganando é a
prova mais forte da própria existência: “não há, então, dúvida alguma de que existo, se
ele me engana; e, por mais que me engane, nunca poderá fazer que eu nada seja,
enquanto eu pensar ser alguma coisa” (DESCARTES, 2000, p. 258).
A subjetividade resiste a qualquer forma de dúvida. Todo procedimento que
procura filtrar aquilo que pertence à dimensão do verossímil, que não é absolutamente
claro e evidente, atinge a subjetividade da mesma forma, porém esta dúvida radical e
universal “gera a nova certeza primeira: o cogito (MARQUES DE JESUS, 1997, p.
45). O locus desta certeza é o ponto claro e evidente de fundamentação e justificação
última, tal como Arquimedes solicitava.
20
Arquimedes, a fim de tirar o globo terrestre de seu lugar e transportá-lo
para outro, não pedia nada mais que não fosse um, ponto fixo e certo.
Portanto, terei o direito de alimentar grandes esperanças, se for bastante
feliz para encontrar apenas uma coisa que seja segura e incontestável
(DESCARTES, 2000, p. 257).
A subjetividade cartesiana é compreendida como cogito. A forma desta
subjetividade é substancialmente pensamento. No procedimento da dúvida mais geral
sobre a materialidade do mundo, levada ao extremo em que se afirma a inexistência
deste, não implica a inexistência do próprio cogito, enquanto pensamento. A existência
da dúvida supõe uma subjetividade duvidante.
Pelo fato de a dúvida ser metódica, ela é uma forma de método que não é
exterior àquilo que ela mesma põe em dúvida no seu momento mais radical e
universal. Que o mundo material, corporal, exterior pode ser negado é um fato da
dúvida metódica. A ampliação da dúvida para o próprio sujeito que coloca em dúvida
toda materialidade, revela-se como um único ato a afirmação da existência de quem
dúvida e da dúvida como uma forma de pensamento. O pensamento é a afirmação
primeira e a verdade primeira da existência. Duvidar é pensar. Pensar é existir. A
existência é afirmada pela própria dúvida sobre a existência porque “verifico aqui que
o pensamento é um atributo que me pertence; somente ele não pode ser separado de
mim” (DESCARTES, 2000, p. 261).
(...) na dúvida mesma uma afirmação inclusa, afirmação sem a qual a
dúvida não poderia existir e que não pode pôr em questão e da qual não
é possível tentar libertar-se sem com este mesmo ato recolocá-la: a
afirmação do pensamento... quanto mais extremada se torna a dúvida,
mais profunda se torna a firmação deste pensamento (LACROIX, apud.
MARQUES DE JESUS, 1997, p. 45).
Segundo Marques de Jesus (1997), a descoberta do cogito significa a conquista
de uma certeza absoluta e inabalável. Mas esta existência é uma certeza que resiste a
qualquer dúvida somente e apenas como pensamento. O pensamento é a forma de ser
da existência impossível de ser negada. O pensamento não é um atributo da existência,
mas o ser da própria existência.
21
Para Descartes, a certeza da existência como a entidade mais fundamental,
como um ponto arquimedeano, revela uma identidade de ser entre pensar e existir, pois
o próprio pensamento é uma existência. Não há, então, pensamento sem existência
nem existência sem pensamento. A acontecência de ambos é essencialmente identitária
temporalmente.
Eu sou, eu existo: isto é certo; mas por quanto tempo? Durante todo o
tempo em que eu penso; pois talvez poderia acontecer que, se eu parasse
de pensar, ao mesmo tempo pararia de ser ou de existir. Nada admito
agora que não seja obrigatoriamente verdadeiro: nada sou, então, a não
ser uma coisa que pensa, ou seja, um espírito, um entendimento ou uma
razão, que são palavras cujo significado me era anteriormente
desconhecido. Então, eu sou uma coisa verdadeira e verdadeiramente
existente, mas que coisa? o disse: uma coisa que pensa
(DESCARTES, 2000, p. 261).
Para Forlin, a dúvida metódica é uma certeza absoluta porque ela cria uma
identidade entre sujeito e objeto da própria dúvida. A dúvida é sobre o sujeito que é o
sujeito da dúvida. O sujeito é atingido na outra extremidade do procedimento de
suspeita sobre a realidade, percebendo-se como aquele que procura uma certeza a
partir de uma dúvida generalizada em que ele acabará sendo atingido para ser a própria
certeza.
Na autopercepção do sujeito que duvida, até de sua própria existência, ele se
revela também como objeto da dúvida, ou seja, “aquilo que é posto em dúvida é a
própria condição da dúvida: a possibilidade mesma da dúvida é garantida por aquilo
que ela põe em dúvida e, portanto, a própria existência da dúvida é a garantia de
existência daquilo que ela põe em dúvida” (FORLIN, 2005, p. 102-103).
O procedimento cartesiano, para encontrar o ponto arquimedeano, dá-se por
uma dúvida generalizada, submetendo todas as crenças a uma grande revisão
sistemática para encontrar, então, aquela da qual, não apenas ele, mas todos, não
consigam duvidar de que não seja certa e indubitável. Nada pode ser considerado
como certo antes que se encontre a base sólida que permite a construção do edifício do
saber, do conhecimento. Para esta revisão, algo está estabelecido para Descartes, ou
seja, as matemáticas caminham metodologicamente numa dimensão de certeza e
22
clareza. A metodologia cartesiana tem as marcas da matemática, pois procede,
primeiramente, estabelecendo os princípios fundamentais, e destes, segue derivando as
suas conseqüências, de forma análoga à derivação dos teoremas dos axiomas na
matemática. Com este projeto, Descartes não pretendeu apenas reconstruir a filosofia,
mas fornecer um fundamento racional para todas as crenças de todos os seres humanos
e para a ciência como um todo. Este fundamento é o cogito, que afirma o primado do
pensamento sobre qualquer coisa.
Tendo presente toda esta sistematização do pensamento cartesiano, aquilo que o
caracteriza é uma forma de pensar representativa. Quando se analisa a própria natureza
do cogito, se encontra uma complexidade entre os conceitos de pensamento e
realidade. O cogito é uma realidade, uma coisa, que pensa. “Então, eu sou uma coisa
verdadeira e verdadeiramente existente, mas que coisa? o disse: uma coisa que
pensa” (DESCARTES, 2000, p. 261).
A afirmação da certeza e clareza do fundamento no cogito se por uma
negação cognitiva do mundo exterior. Para o realismo, o mundo nos é dado pela
percepção, ou seja, pelos órgãos dos sentidos percebemos o mundo. Esta compreensão
é totalmente negada por Descartes. A questão, como conhecer o mundo exterior e a
própria natureza da res do cogito, no entanto, permanece. Para Descartes, a
consciência e o mundo exterior são dois reinos com autonomia própria, sem uma
dependência entre ambos, sendo que a primeira pode compreender o segundo. No
entanto, aquilo que a consciência tem imediatamente dos objetos são apenas
representações, idéias produzidas pela própria consciência.
Para Descartes, os objetos da percepção não são os objetos externos, mas
representações da consciência desses objetos. Embora as idéias possam representar o
mundo externo, no sentido de tornar presente, esta representação tem um caráter de
veracidade quando todas as determinações permanecem no âmbito da consciência.
Por fim, eis que imperceptivelmente cheguei aonde queria; porque,
por ser coisa atualmente conhecida por mim que concebemos os
corpos por intermédio da capacidade de entender que há em nós e não
por intermédio da imaginação nem dos sentidos, que não os
conhecemos pelo fato de os ver ou de tocá-los, mas apenas por
23
concebê-los por meio do pensamento, reconheço com clareza que
nada existe que me seja mais fácil conhecer do que meu espírito
(DESCARTES, 2000, p. 268).
Para Landim Filho, a representação tem como característica o conteúdo que ela
apresenta, como uma identificação daquilo que é representado. Então, quando
Descartes afirma o primado do pensamento como fundamentação, enquanto cogito,
esse pensamento é sempre pensamento de alguma coisa. É o conteúdo do pensamento,
da consciência. O próprio conceito de idéia é compreendido como aquilo que é de
forma imediata concebida pelo espírito (1992, p. 55), revelando que o conteúdo das
idéias são entidades e não um puro nada. As idéias são, então, “imagens das coisas”,
revelando o que é representado. Segundo Landim Filho, a construção cartesiana da
relação entre as idéias e aquilo que elas representam é “uma autêntica representação”:
A teoria cartesiana das idéias se inicia com uma tese que se opõe às
crenças do senso comum: os objetos imediatamente percebidos pelo
espírito não são as coisas em si, mas as próprias idéias. Estas têm uma
dupla função: tornam o sujeito consciente dos seus atos de consciência
e exibem objetos de pensamento. Toda idéia é, assim, idéia de um
objeto. O que a idéia apresenta na consciência não é uma aparência (ou
um fenômeno), mas uma coisa; o objeto da idéia “existe” como objeto
no pensamento; ele tem uma realidade objetiva. Mas esta realidade que
ele possui é a de existir como objeto: ele está, na consciência, no lugar
de outras realidades (possíveis ou atuais). Portanto, toda idéia, por ser
idéia de um objeto, visa a uma outra realidade. E isto a torna uma
autêntica representação. (LANDIM FILHO, 1992, p. 79-80)
Mas é na pergunta por quê?” da representação que se encontram algumas
questões problemáticas em Descartes. A relação entre a consciência e o mundo
exterior é determinada pelo princípio de causalidade, que Descartes, também, assim
como o conhecimento da matemática, não colocou em dúvida. Para Landim Filho, a
realidade representativa “requer, portanto, uma causa que é ou bem uma outra
realidade objetiva, ou bem uma realidade formal. As idéias que são noções primitivas
exigem causa uma realidade formal” (1992, p. 80). A representação é a forma do
conhecimento porque é preciso conceber pontes que apenas ligam a consciência e a
realidade, mas continuando dois continentes separados. Tanto o racionalismo quanto o
empirismo arroga a si que é o princípio de ligação entre estes dois mundos separados.
24
A relação entre a realidade e a consciência é afirmada em termos cognitivos
apenas pela “função representativa das idéias” (LANDIM FILHO, 1992, p. 80). Isto,
porque, para Descartes (2000, p. 264), a consciência é uma entidade que pensa, que
percebe, que sente, distintamente da realidade material que é matéria, res extensa,
concebível uma sem a outra e sem uma relação de uma para outra. Ou seja, os modos
de ser da consciência, como a sensação, o pensamento e o sentimento, não tem
nenhuma similaridade com os modos em que a matéria é, em seus estados de situação.
Esta questão não é de comum acordo entre os intérpretes cartesianos. Uns
afirmam que um problema insolúvel na teoria do conhecimento cartesiano da
relação de sujeito e objeto. Outros afirmam que Descartes resolve a problemática
dentro dos parâmetros do racionalismo. Landim Filho expressa do seguinte modo esta
indecisão:
A questão da relação entre a res cogitans e seu atributo principal o
pensamento e a questão da natureza do próprio pensamento m
suscitado célebres polêmicas entre os mais abalizados intérpretes do
cartesianismo. A primeira questão tematiza a distinção entre a
substância e o seu atributo principal: a natureza da substância (o
atributo principal) identifica-se com o ser da própria substância?
Descartes, nos Principia, afirma que a distinção entre substância e
atributo principal é uma distinção de razão. Mas isto significa que o
atributo principal exprime todo o ser da substância, ou significa apenas
que o atributo é a essência (e não o ser) da substância? A segunda
questão deve especificar a natureza do próprio pensamento:
“pensamento” deve ser definido como intelecto puro (a faculdade das
idéias claras e distintas) ou como consciência (intelecção, percepção)?
(LANDIM FILHO, 1992, p. 47).
Essa teorização dualista tem problemas quando se olha a questão do
conhecimento a partir de um ponto que não é propriamente o racionalismo nem o
empirismo. Ao afirmar que a consciência é um modo de ser de uma substância
pensante, nega de certa forma o caráter relacional da consciência entre o eu e o mundo,
da relação dela com algo que lhe seja distinto. No entanto, a afirmação da consciência
tem, em seus atos, objetos porque ela é consciência de alguma coisa, mas esses não são
outra coisa senão objetos mentais similares de si mesmas. Isso, de certa forma, coloca
25
em questão a própria representação, porque aquilo que ela representa lhe está
presente em seu ser.
Este outro locus de análise será a perspectiva kantiana, que procura explicitar
as condições de possibilidade do conhecimento num nível mais fundamental que o
racionalismo e o empirismo. Para Kant, ambos fazem parte da mesma moeda em
frente e verso. A contraposição kantiana ao empirismo está na afirmação da existência
de “fundamentos independentes da experiência e por isso um conhecimento
rigorosamente universal e necessário” (HÖFFE, 2005, p. 38). E o racionalismo, com
“relação aos objetos além de toda a experiência, a razão se mostra sem consistência.
Assim que ela se move somente no âmbito de seus próprios conceitos, incorre em
contradições” (HÖFFE, 2005, p. 39).
Kant recusa tanto o empirismo como o racionalismo; existem idéias puras
da razão mas meramente como princípios regulativos a serviço da
experiência.
No decorrer do auto-exame, a razão rejeita o racionalismo porque o
pensamento puro não é capaz de conhecer a realidade. Porém, a razão
rejeita também o empirismo. É verdade que Kant admite que todo
conhecimento começa com a experiência; mas não resulta disso, como
supõe o empirismo, que o conhecimento provenha exclusivamente da
experiência. Pelo contrário, mesmo o conhecimento empírico se mostra
impossível sem fontes independentes da experiência (HÖFFE, 2005, p.
39).
1.2 – A filosofia como crítica
A virada copernicana na filosofia, realizada por Kant, dá-se por uma crítica
da Razão sobre a própria Razão, em que o racionalismo e o empirismo são
superados em suas limitações por não atingir a experiência e de compreender que
as categorias do entendimento que provêm da experiência, respectivamente. Para
Kant, a Crítica da Razão Pura tem como meta ser um tribunal das possibilidades e
limites da própria razão. Mas esse tribunal tem como juiz a própria Razão. Kant
realiza uma crítica das filosofias precedentes e pensa a filosofia como crítica.
26
Para Nietzsche, a crítica enquanto modo de filosofar é uma suspeita sobre a
própria razão. Da mesma forma que a consciência, em Descartes, suspeitava de
toda realidade, de todo fenômeno, é preciso, no sentido forte da crítica, suspeitar da
própria consciência. Essa suspeita é realizada na dimensão da vida como um todo.
Nietzsche realiza uma crítica da filosofia e estabelece uma filosofia como apenas
interpretação.
Tomamos essas duas formas de pensamento pelo fato de significarem as
condições do auge da filosofia da modernidade com Kant e a possibilidade de
abertura de uma nova forma de pensamento, da contemporaneidade, sobretudo na
França, com Nietzsche. Essas duas formas de filosofia crítica é que pretendemos
auscultar, tendo presente a questão das bases da educação atual e a proposição de
uma nova formulação, não mais a partir do conhecimento como representação, mas
do diálogo das práticas discursivas.
1.2.1 – Crítica como filosofia transcendental
A filosofia transcendental tem seu início com Kant e com um sentido muito
preciso. O termo era corrente no medievo. Se Kant não o criou, definiu-o com um
sentido até então não existente: “denomino transcendental todo conhecimento que em
geral se ocupa não tanto com os objetos, mas com nosso modo de conhecimento de
objetos na medida em que este deve ser possível a priori” (KANT, 2000, p. 65).
A filosofia transcendental tem como centralidade o que é condição de
possibilidade. Na Crítica da Razão Pura, o tema central é responder à questão o que
posso saber? (HÖFFE, 2005, p. 35). Segundo Höffe, a filosofia transcendental é a
ciência fundamental para Kant e a que pode responder à questão das condições de
possibilidade do conhecimento. Sua delimitação diante da filosofia transcendental
medieval está na condição de ser uma filosofia crítica transcendental. Por isso, ela tem
o seu âmbito de trabalho conceitual bem delimitado:
27
Com efeito, uma vez que tal ciência teria que conter completamente
tanto o conhecimento analítico quanto o sintético a priori, no tocante
ao nosso propósito ela é de um âmbito demasiado vasto, já que só nos é
permitido impulsionar a análise na medida em que é
imprescindivelmente necessária para discernir os princípios da síntese
a priori em toda a sua extensão, a única coisa que nos interessa. Não
podemos denominá-la propriamente doutrina, mas somente crítica
transcendental, pois tem como propósito não a ampliação dos próprios
conhecimentos, mas apenas sua retificação, devendo fornecer a pedra
de toque que decide sobre o valor ou desvalor de todos os
conhecimentos a priori (KANT, 2000, p. 65).
Não pretendemos explicar a teoria do conhecimento de Kant, mas explorar o
seu desenvolvimento da questão problemática da Primeira Crítica, ou seja, de como as
categorias do entendimento determinam a experiência. O conceito que liga as
categorias e a experiência é o tempo. Esse conceito, como o que perfaz o sentido
interno, conduzir-nos-á para a questão antropológica kantiana, que é propriamente a
que interessa quanto à questão da formação-educação do homem, ponto que será o
alvo da crítica nitzscheana.
Com Kant, apesar de seu questionamento estar na dimensão epistemológica, a
questão do tempo surpreende pela sua nova compreensão. Para Kant, o tempo é o
sentido interno do eu penso (KANT, 2000). Este é propriamente o sujeito enquanto um
sujeito epistemológico. Com esta inovação, em que não vivemos mais no tempo, mas,
vivemos tempo, é que o modo de ser da filosofia rumou para aquilo que a faz ser sua
condição própria, a sua historicidade.
Todo filosofar principia sempre pelos conceitos que de alguma forma estão
compreendidos historicamente
5
. Se a temporalidade não tem sido uma questão
investigada nos termos da metafísica, essa não consegue se esquivar da condição
temporal de seu desenvolvimento. Se, como Kant afirma, somos metafísicos por
natureza, na contemporaneidade se afirma que somos no modo da temporalidade como
modo de ser mais próprio, as duas questões, metafísica e temporalidade, se encontram
5
FOUCAULT, O Sujeito e o Poder. Em A Ordem do Discurso Foucault fala de um ser/estar inserido num
discurso milenar histórico, construtor de sentidos, significados, conceitos e compreensões, que permitem a
compreensão das áreas de saber e do próprio ser humano: “Ao invés de tomar a palavra, gostaria de ser
envolvido por ela e levado além de todo começo possível”. “... no momento de falar uma voz sem nome me
precedia há muito tempo...” (FOUCAULT, 2001, p. 05).
28
imbricadas numa ontologia do ser do homem, tal como foi trabalhada pela
fenomenologia e a hermenêutica contemporânea
6
. Esse encontro, de temporalidade e
metafísica, tem sua ligação profícua, propulsora de uma transformação na filosofia,
como uma finitude da metafísica e uma metafísica da finitude, em Kant.
Da nossa parte, delimitar-nos-emos na tarefa de esclarecer o lugar que o tempo
ocupa na teoria kantiana do conhecimento, visto que ele permite e faz compreender a
articulação dos conceitos do entendimento com as intuições, da relação do pensamento
e da realidade. Pelo fato de a Crítica ter como objetivo uma refundação da metafísica,
o modo como ela é articulada, segundo nossa compreensão, tem no conceito de tempo
um dos pontos centrais do desenvolvimento de sua estrutura compreensiva. Como o
próprio Kant afirma na Estética Transcendental, a primazia do tempo, terá também
lugar central na Dedução transcendental. Mas este lugar central que está exposto sob a
idéia do esquematismo tem criado ambigüidades, e dificuldades tais que tem levado o
próprio Kant a reescrever parte de sua Crítica.
A questão primeira que emerge é o esclarecimento do lugar do tempo na
Crítica sob o holofote do em vista de que ela pretende ser uma conquista para o
entendimento humano. A localização do tempo no centro do sistema kantiano exige
que se compreenda o problema fundamental levantado por Kant. O problema está em
torno da questão do a priori que pode ser formulado de diversos modos. Quais as
possibilidades de conhecer algo prescindindo da experiência? Como as nossas
representações subjetivas puras podem estar em correspondência com os objetos?
Como o conhecimento a priori da natureza é possível? A questão primordial é
descobrir como podemos nos representar plenamente a priori, de forma independente
da experiência. A existência desses conhecimentos a priori, a matemática pura e a
física têm demonstrado, segundo Kant, algo que exige um passo adiante, que é uma
investigação de fundamentação de sua possibilidade. Com isso, percebe-se uma
diferença entre o a priori e o transcendental: “o conhecimento transcendental é uma
teoria da possibilidade do conhecimento a priori ou, em uma palavra, uma ‘teoria do a
priori’” (HÖFFE, 2005, p. 60).
6
Por autores como Husserl, Heidegger, Gadamer e Ricoeur.
29
O ponto de partida de Kant é uma problemática epistemológica. Ele, Kant,
procura explorar nossa condição de sujeitos no mundo na dimensão de nosso poder
conhecer, mais especificamente nas suas condições de possibilidades de conhecimento
a priori. Compreendemos que Kant não se limita ao problema epistemológico, mas é
somente porque este exige uma fundamentação que está para além do problema
epistemológico que a questão ontológica é de suma importância na Crítica. Como,
então, ligar o ponto de partida epistemológico com o projeto ambicioso de uma
refundação da metafísica? Qual a ligação existente entre uma crítica da razão pura e
uma fundação da metafísica como ciência? A crítica do poder da razão relativamente
ao conhecimento a priori deve fazer ruir todas as pretensões da metafísica dogmática e
instituir uma nova metafísica, entendida como ciência do sistema dos princípios a
priori da razão.
A obra que se constitui (a Crítica) tem como mote principal ser uma
propedêutica e ao mesmo tempo uma parte constitutiva desta ciência nova. No
prefácio da primeira edição, a Crítica é apresentada como uma solução da questão de
possibilidade ou de impossibilidade da metafísica em geral. A elaboração do sistema
de conhecimento que nós possuímos pela razão pura é reposta mais tarde. A Crítica
tem, portanto, primeiramente uma função negativa em relação ao sistema da razão
pura em geral, porque ela previne a razão de adentrar-se em erros, que, pela sua
disposição natural, comumente, ou seja, até a época da Crítica, tinha se embrenhado.
Não obstante a obra de Kant ser uma crítica de toda metafísica, a sua filosofia
é uma filosofia metafísica, e mais, a filosofia é metafísica, como sistema dos
conhecimentos a priori da razão, e se divide em metafísica da natureza e metafísica
dos costumes. Mas não existe uma única metafísica. O trabalho de Kant é de esclarecer
as condições em que toda metafísica é possível, com a finalidade de evitar teorias
metafísicas sem sentido. Assim, a Crítica tem a função de ser uma propedêutica de um
Organon da razão pura que contenha os princípios da mesma, sobre os quais todos os
conhecimentos a priori podem ser constituídos. Se este organon não é possível na
Crítica, ela é, então, uma preparação como um cânone da razão pura, isto é, um
conjunto de princípios a priori para um uso legítimo de certas faculdades de conhecer.
30
A justificação do a priori, enquanto um modo de conhecer, é uma necessidade
para a empreitada desejada, mas não é suficiente. A escrupulosidade kantiana está na
questão: como é possível o conhecimento sintético a priori? Esta é a questão diretriz
da Crítica (KANT, 2000, p. 65) que vai comandar a divisão da Teoria Transcendental
dos Elementos em Estética transcendental e em Lógica transcendental. O
transcendental designa a relação de nosso conhecimento à nossa faculdade de
conhecer, conhecimento concernente ao nosso modo de conhecer os objetos, enquanto
um modo de conhecer a priori.
Para Kant, “como introdução ou advertência parece necessário dizer apenas
que dois troncos do conhecimento humano que talvez brotem de uma raiz comum,
mas desconhecida a nós, a saber, sensibilidade e entendimento: pela primeira os
objetos são-nos dados, mas pelo segundo são pensados” (KANT, 2000, p. 67). É
porque existem representações a priori na sensibilidade que esta última pertence à
filosofia transcendental. É justamente porque o tempo é uma representação a priori
que encontramos em sua exposição primeira na Estética Transcendental.
Nesta primeira parte, o tempo é definido como representação a priori, como
uma forma pura da sensibilidade. É determinação desses dois conceitos, a priori e
forma, que permite extrair o sentido do conceito kantiano do tempo. O que é posto na
Estética transcendental serve de fundamento para a dedução transcendental.
Na Estética Transcendental, o tempo é definido como “forma a priori do
sentido interno”. Temos três importantes conceitos nesta definição, que, numa
explicitação por dissociação apenas para esclarecimento do conceito de tempo atrofia
o sentido no todo da definição. A compreensão dos conceitos de forma, de a priori e
de sentido interno são todos necessários para a inteligibilidade do sentido do conceito
de tempo.
Kant se utiliza de uma distinção metódica no esclarecimento do conceito de
tempo e de espaço. Esses dois conceitos, o cerne da Estética transcendental, são
compreendidos numa exposição metafísica e numa exposição transcendental. Kant
justifica inicialmente a idéia de a priori ao proceder à exposição metafísica do
31
conceito. O que ele afirma por exposição é a “representação clara (ainda que não
detalhada) daquilo que pertence a um conceito” (KANT, 2000, p. 73). Esta exposição
é metafísica quando ela contém a representação do conceito dado a priori. E a
exposição é transcendental quando ela manifesta um princípio capaz de explicar a
possibilidade de outros conhecimentos sintéticos a priori.
Para Kant, tempo e espaço estão justificados sob a definição de formas a
priori da sensibilidade. Assim, a exposição transcendental do espaço permite
compreender como a geometria é possível. E a exposição transcendental do tempo
permite compreender a possibilidade da mudança. A compreensão do tempo é
fundamental também para a inteligibilidade da física matemática e permite resolver o
problema fundamental do conhecimento da natureza. A exposição transcendental tem
como função, em relação à exposição metafísica, de apoiar a segunda, e
simultaneamente serve de prova ostensiva para a análise do conceito.
Com a exposição metafísica, Kant mostra que o “tempo não é um conceito
empírico abstraído da experiência” (2000, p. 77). Kant rejeita a tese dos investigadores
que procuram derivar o tempo dos modos de sucessão, seja ela subjetiva, como as
impressões ou idéias em Hume, seja ela objetiva. Nesta atitude, percebe-se o que é
uma questão de procedimento do todo da Crítica, a impossibilidade de uma filiação às
teorias de caráter realista ou empirista e nem do inatismo. A crítica de Kant não
enfatiza apenas uma das correntes de pensamento até então existentes da teoria do
conhecimento. O filósofo de Königsberg não visa somente Hume, mas toda a tradição
metafísica até Leibniz (HÖFFE, 2005, p. 85).
Segundo Kant, para compreender a sucessão, exige-se previamente ter a priori
o conceito de tempo. O conceito de sucessão é um conceito derivado, construído a
partir do conceito de tempo unitário, do tempo enquanto tal. A sucessão é apenas
percebida como tal em uma síntese que reúne o diverso em uma unidade. O diverso
deve ser percorrido e reunido por aquilo que existe na sucessão. Com efeito, toda
representação é singular, contida em apenas um momento. O conceito de sucessão é
produto, então, desta síntese da apreensão, síntese pura, a priori.
32
Ora, é da imaginação o efeito do entendimento sobre a sensibilidade, que
procede esta síntese, compreendendo, assim, que o tempo do qual a forma ou a
essência é a sucessão, é uma criação do espírito humano. “O tempo não é algo que
subsista por si mesmo ou que adere às coisas como determinação objetiva e que, por
conseguinte, restaria ao se abstrair de todas as condições subjetivas da intuição das
mesmas” (KANT, 2000, p. 78). A originalidade de Kant não consiste na afirmação da
subjetividade do tempo, mas no fato de que compreende o tempo como uma forma a
priori.
Com essa argumentação, chegamos à questão antropológica kantiana. Como
definir a natureza humana, a parte humana da natureza, ou a parte da natureza que é
humana? E nesta seqüência, a questão de como definir o ser humano, a parte do ser
que é humana ou a parte humana do ser? Ou, ainda, da existência humana, a parte
humana da existência ou a parte da existência que é humana? Como justificar
teoricamente estas questões que se põem de formas antinômicas, que remetem à
questão central: que é o homem? Questionamento que recebeu as mais diversas
respostas durante a história do pensamento filosófico. A própria centralidade da
questão justifica a incessante busca pela sua definição nas diversas formas dadas à
antropologia. Apesar da antropologia não ser a fundamentação das grandes disciplinas
filosóficas como a lógica, a ontologia, a teodicéia, a teoria do conhecimento,
sempre, explícita ou implicitamente, nestas uma compreensão do homem.
As definições tradicionais da questão “que é o homem?”, com distinções
peculiares em cada teoria, ligam-se à estrutura dual de corpo e alma: o homem como
um animal racional. Ele é catalogado em uma espécie animal com uma diferença
específica, a racionalidade. O homem é tematizado no mesmo nível dos outros entes
(animais, objetos), tornando-o num predicado da natureza. O humano é apenas um
atributo de uma parte, enquanto ente, da natureza. Tanto o atributo de animal-corpo
quanto o de racional-alma provêm de fora: da animalidade, proveniente da idéia de
natureza corpórea e física, o que iguala o homem aos felinos,...; da racionalidade,
como uma luz de providência divina, como uma ajuda, iluminação que justifica a
racionalidade como possibilidade de conhecimento.
33
Com Kant, o conceito de natureza humana recebe uma acepção distinta do até
então conceito metafísico substancialista. Esta nuance se de forma ambivalente.
Primeiramente, é tornar inviável a definição de natureza humana pelas ciências
empírico-matemáticas e pela metafísica tradicional, isto é, a conseqüência da via
crítica encetada por Kant em relação ao conhecimento.
Kant não pretende limitar-se ao empirismo de Hume, mas não cair no que se
constituiu o idealismo do tipo hegeliano da dialética. Além da experiência não
conhecimento, apenas o limite. Desta forma, critica o empirismo e o racionalismo.
Marca o limite do cognoscível pelas categorias da sensibilidade e do entendimento. É
o sujeito transcendental como estrutura categorial que está na base de todo
conhecimento. Este sujeito é uma estrutura composta por categorias do objeto. Ele não
abre campo para pensar o homem em seu ser.
Desta posição crítica, a antropologia alguns passos na inauguração de um
campo específico propriamente seu. Para Kant, o “’mundo da vida’ humano não se
deixa reduzir à totalidade sem realidade do ‘mundo do entendimento’ nem à realidade
sem totalidade do ‘mundo dos sentidos’: também ele e justamente ele, esse mundo da
vida, aspira à teoria filosófica” (STEIN, 2001, p. 04). Neste ponto reside todo o
enigma da antropologia. Se pretendermos construir uma antropologia da totalidade
humana, caímos numa metafísica; uma antropologia parcial é cair num infinito
inacabamento teórico sobre o homem ao modo das ciências empírico-matemáticas.
Como pensar o “mundo da vida” humano, uma vez que ele deve ser pensado
filosoficamente? Se não se tem acesso nem pela metafísica tradicional nem pelas
ciências naturais, para Kant pode ser pensado “‘por simples experiência e a
avaliação de certas ‘fontes’ e ‘materiais auxiliares da antropologia’” (STEIN, 2001, p.
04).
Kant pensa a antropologia de um ponto de vista pragmático. A pergunta
central passa a ser: o que o homem, “como ser que age livremente, faz de si mesmo ou
pode fazer e deve fazer” (KANT apud. STEIN, 2001, p. 05). Ela enraíza-se no modo
34
de ser prático do homem. Não parte de uma concepção previamente definida como
alma e corpo. Ele é compreendido no horizonte do mundo vivido pragmaticamente.
Se em Kant abertura para um novo modo de pensar a antropologia, se
impõe por sua vez uma limitação. As possibilidades da antropologia se estabelecem
apenas no horizonte de uma antroponômica
7
. Para Kant, a natureza humana não pode
ser conhecida. Todo juízo sobre o ser humano é um juízo moral prático ou teórico.
Para Kant, o conceito de natureza humana é antinômico. A natureza é o dado na
experiência; pertence ao reino da causalidade. o humano está no reino da liberdade.
Ela torna-se uma derivação do campo prático. Assim, analisa-se apenas a essência do
ser humano e sacrifica tudo o que há de existencial no humano.
Kant não responde a pergunta “o que é o homem?”. Isto porque, segundo
Stein, o homem faz parte do universo da “coisa em si”. Da não resolução desta questão
decorrem as lacunas das duas críticas, da Razão Pura e da Razão Prática. Como as
categorias transcendentais são as condições do conhecimento empírico e como a lei
moral é determinante de uma vontade? Este “como” é o homem
8
. O “como”, tanto das
categorias do entendimento, que é o transcendental do conhecimento empírico, quanto
da lei moral, que é razão determinante da vontade livre, permanece inteiramente não
explicitado:
No tocante aos fenômenos e à sua mera forma, este esquematismo do
nosso entendimento é uma arte oculta nas profundezas da alma
humana cujo verdadeiro manejo dificilmente arrebataremos algum dia
à natureza, de modo a poder apresentá-la sem véu. (KANT, 2000, p.
146)
Pois o modo como uma lei pode ser por si e imediatamente
fundamento determinante da vontade (o que com efeito é o essencial
de toda a moralidade) é um problema insolúvel para a razão humana e
idêntico à <questão>: como é possível uma vontade livre (KANT,
2002, p. 116-117).
7
Em vez de antropo-logia, uma antropo-nomia. Ela está ligada à filosofia prática. No campo da filosofia, falar
sobre o homem é estabelecer o modo como ele se relaciona com os outros e com a natureza. Kant enfatiza uma
simbiose da antropologia com as ciências particulares.
8
Cf. STEIN – Argumentação e racionalidade, 2001.
35
Concomitantemente com a abertura de novas possibilidades para a
antropologia filosófica, Kant colocou-a num nível pigméico. Para Stein, Kant vetou
para toda filosofia prática “interesses independentes”; tornou supérflua a antropologia;
concebeu a antropologia como uma “segunda inquilina” da filosofia prática. A
antropologia poder-se-ia pensar apenas no mundo da coisa em si. Permanece, então, de
certa forma, apenas como um postulado. É justamente a questão antropológica que está
na base das três perguntas que Kant respondeu nas Críticas: - o que posso saber? o
que devo fazer? - em que posso crer? É pela resposta do que é o homem? a não
necessidade de realizar os saltos aludidos.
A questão central, “o que é o homem?”, não respondida por Kant, receberá
destaque central na filosofia contemporânea. Nietzsche é um pensador que
impulsionou o debate sobre o homem na contemporaneidade, extraindo as
conseqüências da problemática não resolvida nas críticas, reconhecida pelo próprio
Kant como um ponto nebuloso na relação entre o entendimento e a experiência, e entre
a liberdade e a vontade.
Para Nietzsche, a base de qualquer juízo e valoração é a própria vida. A vida é
o limite em que não se pode mais retroceder. Os filósofos da vida compreendem que
no sujeito das teorias kantiana e cartesiana não corre verdadeiro sangue. Enquanto que
a modernidade colocou a razão como fundamental e central, negou uma parte da
natureza humana, constituindo-se numa agressão contra a própria vida. Nietzsche
propõe uma antropologia que compreenda o ser humano em sua integralidade. Negar
ou extirpar algo inerente à sua natureza equivale a romper com a própria estrutura da
dinamicidade da vida.
1.2.2 – Crítica da filosofia: a filosofia como interpretação
A filosofia de Nietzsche é caracterizada por uma série de críticas, que tem como
finalidade mostrar que o solo firme que os pensadores da modernidade, que o
precederam, não é tão firme como eles afirmam. Estas críticas são direcionadas aos
36
mais diversos âmbitos da sociedade estruturada de forma moderna e medieval, na e
pela Igreja. Dentre as mais variadas temáticas por ele desenvolvidas, há uma que, além
de ser fundamental em seu projeto filosófico, dela decorrem uma ampla variedade de
outras questões. Trata-se da problemática do apolíneo e do dionisíaco.
Para Nietzsche, não se trata de afirmar um negando o outro, porque o ser
humano vive os dois, interpretando e reinterpretando suas múltiplas relações em seu
mundo vivido, de maneira apolínea ou dionisíaca, mas não mais que interpretar. A
crítica à moralidade e ao cristianismo resume toda a crítica de Nietzsche porque elas
são as expressões, também, de uma racionalidade universalista, fundamental,
necessária e determinante da vida do homem em seu todo.
A confrontação entre o apolíneo o dionisíaco é um marco da filosofia em sua
história sob diversas facetas. Na Grécia, “o ‘mundo-verdade’ está ao alcance do
homem sábio, do homem religioso, do homem virtuoso é nele que tais homens
vivem, são eles esse mundo. esta a forma mais antiga de uma idéia relativamente
inteligente, simples e convincente. Perífrase da proposição: ‘Eu, Platão, sou a
verdade’)” (NIETZSCHE, 1973, p. 37). Para Foucault:
O primeiro parágrafo de Humano Demasiadamente Humano coloca
frente a frente a origem miraculosa (Wunder-Ursprung) que a
metafísica procura e as análises de uma filosofia histórica utilizando
de uma maneira irônica e depreciativa. Em que, por exemplo, consiste
esse fundamento originário (Ursprung) da moral que se procura deste
Platão? (FOUCAULT, 1979, p. 16).
Para Nietzsche, ao longo da história da humanidade, a vida, segundo a
concepção dionisíaca, foi tratada com desprezo por algumas correntes de pensamento,
baseadas numa moral que centraliza a razão em detrimento da vida fisiológica. A
aversão com a qual se tratava a vida, Nietzsche concebia como uma anormalidade.
Não é possível, dizia ele, que as pessoas tenham tal compreensão de vida. “Os sábios
de todos os tempos têm sempre dito o mesmo da vida: não vale nada (...) deve haver
alguma coisa que está doente” (NIETZSCHE, 1973, p. 19). Para Nietzsche, os maiores
37
sábios da história são decadentes. Em O Problema de Sócrates
9
, critica o excesso de
valor atribuído à racionalidade, de modo que, devido a isso, adotam atitudes negativas
face à vida. Nesse caso, os sábios acreditam que se faz necessário aniquilar e reprimir
tudo o que diz respeito à corporeidade. Afirmam que o homem é essencialmente razão
e a equacionam com virtude e felicidade.
O problema de Sócrates, segundo Nietzsche, consiste em ele querer encontrar
um meio de fazer com que a racionalidade se impusesse sobre os instintos, uma vez
que os concebia como anárquicos. Sócrates acreditava que era necessário evitar que
estes não viessem a dominar o ser humano. Os instintos querem arvorar-se em tiranos;
torna-se necessário inventar um contratirano que lhe leve a melhor... .
Essa compreensão de Sócrates transformou a própria razão em tirana. Na
tentativa de libertar o ser humano do caos, tudo o que diz respeito aos ‘apetites
obscuros’ foi considerado como um mal, de modo que ouvir seus clamores implicava
em degeneração. Para Dutra Azeredo (2003, p. 218), a vida, nesta forma de pensar,
deve estar em conformação com a metafísica, determinada por uma conceituação que
tem como instância de julgamento o plano supra-sensível.
Nietzsche declara guerra contra essa maneira de pensar. Acredita que isso é
enganar-se a si mesmo, uma vez que estão a negar algo constituinte da natureza
humana. Mas como é possível negar algo que se constitui em substrato antropológico?
Para Nietzsche, isso é uma forma de degeneração, a decadência. “Os juízos emitidos
sobre a vida, as apreciações da vida, sejam elas a favor ou contra a vida, não podem
ser nunca consideradas como uma verdade absoluta: têm o valor de sintomas, (...)
é uma estupidez considerar tais juízos como valores absolutos” (NIETZSCHE, 1973,
p. 19).
Tem-se, então, como resultante, o estabelecimento de ideais supremos.
de se atingir a verdade, o ser, o Deus e, por fim, talvez, se obter a
felicidade. Necessariamente, a busca de ideais estabelecidos, ideais
supremos, implica a negação de sua construção e, com isso, a negação
do homem como criador. Igualmente, quando se atribui ao além um
valor superior, nega-se a existência, nega-se a plenitude da vida, a
efetividade, a própria vontade de potência. Mas tomando-se isso como
9
Para Nietzsche, Sócrates é o modelo apolíneo.
38
um sintoma, a análise dele nos remete justamente a uma vida
degenerada, a um tipo doente, a uma vontade negativa que, por isso,
precisa de ideais para, de um lado, sobreviver manutenção de um
tipo de vontade decadente e, de outro, vencer tornar os fortes
fracos, fazendo do ideal um meio (DUTRA AZEREDO, 2003, p. 218-
219).
O apolíneo, na cristandade, é sobremaneira fortalecido de tal forma que “o
‘mundo-verdade’, por ora inacessível, mas ao qual se tem acesso o homem sábio, o
homem religioso, o homem virtuoso (‘para o pecador que faz penitência’). (Progresso
da idéia: torna-se mais astuta, mais insidiosa, mas incompreensível torna-se mulher,
torna-se cristã...)” (NIETZSCHE, 1973, p. 37).
Esse pensamento degenerado ganhou força na Idade Média. Com, praticamente,
todo o pensamento voltado para a tentativa de buscar um elemento último que viesse a
definir o comportamento do ser humano em sua relação para com os demais na
sociedade, a idéia socrática ganhou força e vigor. Máximas passaram a ser
estabelecidas com o intuito de nortear a ação do indivíduo. Essas máximas eram vistas
como dotadas de um valor incondicional. Por isso, jamais poderiam ser questionadas.
Tratava-se, pois, de uma moral estática, definida, absoluta.
Diante dessa perspectiva, é que gira a crítica e uma nova proposição de leitura
realizada por Nietzsche. Sua metodologia de compreensão da questão dos valores é
conquistada por uma genealogia dos valores.
Fazer a genealogia dos valores, da moral, do ascetismo, do
conhecimento não será, portanto, partir em busca de sua “origem”,
negligenciando como inacessíveis todos os episódios da história; será,
ao contrário, se demorar nas meticulosidades e nos acasos dos
começos; prestar uma atenção escrupulosa à sua derrisória maldade;
esperar vê-los surgir, máscaras enfim retiradas, com o rosto do outro;
não ter pudor de procurá-las onde elas estão, escavando os basfond.
(...) É preciso saber reconhecer os acontecimentos da história, seus
abalos, suas surpresas as vacilantes vitórias, as derrotas mal dirigidas,
que dão conta dos ativismos e das hereditariedades (FOUCAULT,
1979, p. 19).
Quando algo é isolado do seu contexto histórico, a coisa isolada fica enaltecida;
não se compreende mais seu alcance, limita-se a mumificá-la (NIETZSCHE, 1973, p.
39
29). Trata-se, aqui, da petrificação de ideais, a partir dos quais se definem as normas
que deverão reger a conduta do ser humano. A racionalidade é produtora de valores e
de conhecimentos concebidos como absolutos
10
, com a finalidade de subtrair-se as
possibilidades de questionamentos e da dúvida. Tais absolutos, cultivados como
ídolos, estão profundamente arraigados na mente das pessoas, de modo que para
arrebatá-los, o é possível a ‘marteladas’. É como se eles estivessem congelados. E,
de fato, não é fácil mudar de mentalidade quando um determinado valor possui uma
tradição milenar e com raízes profundas.
É inegável o fato de que até Nietzsche a civilização tenha adquirido uma
bagagem de conhecimentos significativa. Esses, repassados de geração em geração,
representavam valores fundamentais para a sociedade da época. Esses valores
buscavam contemplar o ser humano, respondendo às suas necessidades básicas e
fundamentais, satisfazendo seus anseios e expectativas também no sentido de uma
sociedade harmonicamente organizada era o ideal a ser atingido. A religião, mais
que as próprias ciências, sentia-se incumbida dessa responsabilidade.
Diante disto, a religião se sentia no compromisso de dar uma resposta às
inquietudes do ser humano frente às dificuldades da vida e principalmente frente à
realidade da morte. Criou-se, então, um mundo de ilusões, o qual veio a servir de ideal
a ser conquistado. Este mundo, tomado como verdadeiro, uma vez que é nele que
acontecem todas as realizações do ser humano, passou a ser a razão de ser e estar no
mundo atual. Este último, o mundo da realidade, foi concebido como fictício e,
portanto, desprovido de valor. Passou-se a viver em função deste ‘outro’ mundo – o da
verdade criado segundo as expectativas do ser humano. O ‘mundo verdade’ é um
acréscimo da mentira (NIETZSCHE, 1973, p. 31).
Para Nietzsche, o fato de se criar no imaginário um outro mundo, real e
verdadeiro, é uma tentativa de vingar-se da vida real. Cria-se uma outra que seja
melhor para fugir da realidade que é vista neuroticamente como algo negativo. Não se
trata de resolver os problemas escapando da realidade. É preciso enfrentá-la como ela
10
“A idéia e a necessidade de um fundamento absoluto perpassa os pensadores, mormente os da modernidade,
enquanto condicionante para compreender e sustentar o conhecer, o ser e o agir” (DUTRA AZEREDO, 2003, p.
7).
40
de fato é, sem rejeitar aquilo que é natural e espontâneo no ser humano. O aspecto
dionisíaco é uma constatação antropológica que não pode ser negada, uma vez que se
queira vida plenamente realizada. Fizera-se da realidade uma ‘aparência’; um mundo
completamente forjado, o da essência, apresentava-se como a realidade (NIETZSCHE,
1973, p. 10).
A crítica de Nietzsche sugere um retorno à revalorização da realidade. Viver em
vista de uma ilusão constitui um grave equívoco. Por isso, pela boca de seu
personagem Zaratustra, ele invoca: permanecei fiéis à terra. Que o vosso amor
generoso, que a vossa inteligência estejam a serviço do sentido da terra. Não os deixeis
voar para longe e ir bater as asas contra as muralhas da eternidade. E, mais adiante,
pede que se traga de volta a virtude perdida, devolvendo-a ao corpo, para que ali ela
possa frutificar e dar um verdadeiro sentido, um sentido realmente humano.
Para Nietzsche, a preocupação primordial está na constatação de que a
humanidade não vive sua condição de acontecência histórica. Mas de uma forma
histórica em que a própria faculdade de esquecer tivesse a mesma dimensão da
consciência da história a qual o homem pertence. Essa compreensão contraria uma
simples historicização da própria razão, em que esta última ainda continuaria sendo o
centro, como uma ciência da própria história
11
da razão, tendo todas as questões
históricas voltadas para a sua estrutura consciencial. Esse processo, segundo
Nietzsche, é aquele em que “um homem que quisesse sempre sentir apenas
historicamente seria semelhante àquele que forçasse a abster-se de dormir, ou o animal
que tivesse de sobreviver apenas de ruminação e ruminação sempre repetida”
(NIETZSCHE, 2000, p. 273).
A história pensada como ciência pura e tornada soberana seria uma
espécie de encerramento balanço da vida para a humanidade. A
cultura histórica, pelo contrário, é algo salutar e que promete
futuro em decorrência de um poderoso e novo fluxo da vida, por
exemplo, de uma civilização vindo a ser, portanto somente quando é
11
Terceiro uso da história: o sacrifício do sujeito de conhecimento. Aparentemente, ou melhor, segundo a
máscara que ela usa, a consciência histórica é neutra, despojada de toda paixão, apenas obstinada como a
verdade. Mas se ela se interroga e se de uma maneira mais geral interroga toda consciência científica em sua
história, ela descobre, então, as forças e transformações da vontade de saber que é instinto, paixão, obstinação
inquiridora, refinamento cruel, maldade (FOUCAULT, 1979, p. 35).
41
dominada conduzida por uma força superior e não é ela mesma que
domina e conduz (NIETZSCHE, 2000, p. 275).
Esse aspecto da história é ocultado pela moralidade cristã e pela racionalidade
científica. Para Nietzsche, a moralidade precisa ser pensada a partir da antropologia. A
antropologia como uma interpretação da vida em sua acontecência, e a moralidade
como algo que seria a abertura para a concretização da vida, segundo esta constante
interpretação e reinterpretação. Essa é a definidora das normas de conduta, isto é, do
modo de ser consigo e com os demais. É necessário, sim, para viver em comunidade,
uma ciência normativa do comportamento. Isso porque, enquanto o animal é dotado de
um instinto suficientemente normativo, no homem o instinto é desordenado, não sendo
por si próprio o suficiente para conduzir o ser humano à plena realização. Mas esse
‘conduzir’ não significa uma imposição sobre, ou seja, um ato repressivo, mas um
coordenar em vista de o ser humano realizar-se a partir daquilo que ele de fato é.
Negar algo inerente a sua natureza humana constitui-se numa agressão contra a própria
vida.
Esse é o problema que Nietzsche detecta na moral tradicional. Todos os antigos
juízos morais tinham por objetivo a obnubilação das paixões, do dionisíaco. Mas,
sabe-se, essas é que dinamizam a vida do ser humano, não apresentam uma visão
estática da vida, da verdade, do conhecimento, da razão. Essas são metáforas análogas
a moedas que perdem seu valor, ganhando outros significados de valor.
O que é a verdade, portanto? Um batalhão móvel de metáforas,
metonímias, antropomorfismos, enfim, uma soma de relações
humanas, que foram enfatizadas poética e retoricamente, transpostas,
enfeitadas, e que, após longo uso, parecem a um povo sólidas,
canônicas e obrigatórias: as verdades são ilusões, das quais se
esqueceu que o são, metáforas que se tornaram gastas e sem força
sensível, moedas que perderam sua efígie e agora entram em
consideração como metal, não mais como moedas (NIETZSCHE,
2000, p. 57).
Dessa forma, a diferença do homem para o animal está na “aptidão de
liquefazer a metáfora intuitiva em um esquema, portanto de dissolver uma imagem em
42
um conceito” (NIETZSCHE, 2000, p. 57). A afirmação e a justificação de conceitos,
de juízos, que tenham um caráter fundamental, último, é a desconsideração desse
processo interpretativo, e que não é nada além disso, um processo que é apenas
interpretação. Processo que, quando esquecida sua dimensão própria, leva o ser
humano a acreditar que sabe “algo das coisas mesmas, se falamos de árvores, cores,
neve e flores, no entanto não possuímos nada mais do que metáforas das coisas, que de
nenhum modo correspondem às entidades de origem” (NIETZSCHE, 2000, p. 56).
Dutra Azeredo explica que esta dimensão de apenas interpretações é central
para compreender a questão da moral em Nietzsche porque nela é que se revela o
embate daquilo que ele propõe e daquilo que ele critica. Segundo a autora, a
modernidade esquece o caráter interpretativo das justificações de origem, tornando-as
absolutas.
A análise nietzschiana centra-se na interpretação, pois não existem
fatos morais, apenas interpretações que são tomados pela tradição
como fatos. Alias, neste nível, o estudo filológico realizado pelo autor
mostra a diversidade de interpretações manifestas na mudança de
significação dos signos, uma vez que cada signo é uma interpretação
introduzida (DUTRA AZEREDO, 2003, p. 8)
Com esta compreensão da racionalidade humana dá-se destaque à condição
humana de ser sobremaneira ação, dinamicidade, equivocidade. Em nome da
racionalidade, entretanto, buscou-se reprimir esta sua dinamicidade para mais
facilmente controlá-lo. E o recurso utilizado para isso foi o medo, uma vez que, como
o próprio filósofo afirma, o temor é o pai da moral. É preciso ser destemido para
enfrentar esta visão dogmática daqueles que vivem sob o peso da tradição e, por isso,
incapazes de se libertarem de seus grilhões.
Libertar-se e promover a libertação: eis o objetivo do filósofo. Naturalmente,
não foi compreendido, tampouco aceito dentro de uma cultura ocidental marcada pela
cristandade. Essa tinha sacramentalizado o poder, de modo que o ser humano apenas
se limitava a cumprir as normas por ela ditadas. Dentro deste sistema, o mais ético e,
conseqüentemente, melhor aceito, era aquele que melhor cumpria a lei moral,
43
independente de sua realização enquanto pessoa humana. Quem não aceitava esse
jugo, era tido como não-ético, pois o homem livre é não-ético, porque em tudo quer
depender de si e não de uma tradição.
Nisto consistia a cultura da cristandade ocidental européia que Nietzsche tanto
criticou. Esta impunha uma moral heterônoma, isto é, uma autoridade exterior como
critério de moralidade, tirando qualquer capacidade humana de inventividade de sua
própria situação de vida. Tal moral, indiferente ao substrato antropológico da
dinamicidade, buscava refrear sua espontaneidade, uma vez que esta rompe e extrapola
com a estrutura de poder que espera do ser humano um comportamento pré-
determinado. Eis o crime provocado. Segundo Nietzsche, atacar a paixão em suas
raízes equivale a atacar a vida nas suas raízes.
Essa corruptibilidade da vida está no tomar partido por um erro fundamental.
“O ‘mundo-verdade’uma idéia quenão serve para nada – uma idéia que se tornou
inútil e supérflua, por conseqüência, uma idéia que foi refutada: suprimamo-la!”
(NIETZSCHE, 1973, p. 38). Toda a moral existente até então, o autor considerou
como antinatural, pois é contra os instintos vitais do ser humano e contra a idéia de
historicidade da vida, em que a própria moral pode se tornar uma moeda gasta.
Para Nietzsche, esses instintos, porém, não foram extirpados, pois se trata de
uma dimensão antropológica. Extingui-los significaria aniquilar o próprio ser humano.
Mas impedidos de se manifestarem devido à repressão sofrida pela moral heterônoma,
o homem foi obrigado a sofrer um profundo drama, um suplício devido ao rompimento
de seu passado natural. Daí a conclusão de Nietzsche de que todos os meios que até
agora têm sido empregados a fim de tornar a humanidade mais moral eram
profundamente imorais.
Tendo visto que esta moral se manifesta contrária à natureza humana, está
evidente o fato de que toda moral só poderá ser definida a partir de um
reconhecimento do ser humano em sua originalidade. Todo naturalismo na moral (...)
tem de ser dominado pelo instinto da vida.
44
A proposta do autor sugere uma antropologia que compreenda o ser humano em
sua integralidade. O ser humano busca vida realizada. E a realização não pode se dar
com prescrições que o artificializam. Negar ou extirpar algo inerente à sua natureza
equivale a romper com a própria estrutura da dinamicidade da vida. Trata-se de uma
prática nociva à mesma.
Quem outorga direito à razão para que ela possa postular valores de modo a
definir uma moral que vise alterar a natureza humana? A moral tradicional sempre
buscou um elemento último que definisse a conduta humana. Ou seja, ela foi vista
como parte constituinte e inerente ao ser humano. O filósofo, porém, questiona este
dado incondicional. Para ele, nada de verdadeiro em si. Trata-se de convenções,
puramente convenções. Não existem fatos morais em si. A moral é apenas uma
interpretação moral dos fenômenos.
O fato de colocar o ser humano contra si mesmo não significa o seu
melhoramento, mas, sim, um ato de perversão, uma vez que passa a negar sua própria
natureza. Daí sua conclusão de que os meios morais utilizados para melhorar o ser
humano foram todos profundamente imorais do ponto de vista de uma correta
antropologia.
Na última fase de sua crítica filosófica, Nietzsche apela para uma
transvaloração de todos os valores. “Abolimos, pois o ‘mundo-verdade’: que mundo
nos resta então? Talvez o mundo das aparências?... Não! Abolimos conjuntamente o
mundo-verdade e o mundo das aparências!”. É chegado, portanto, o momento de
reverter esta situação de agressão para com a vida. É hora de libertar o ser humano dos
ídolos que, por tanto tempo, mantiveram os homens aprisionados, iludidos por falsas
ilusões. É o momento do grande esclarecimento, “meio-dia; hora da sombra mais
curta; fim do erro mais longo; ponto culminante da humanidade” (NIETZSCHE, 1973,
p. 39).
Este é o momento em que todos irão perceber o longo período em que reinava
uma verdade inexistente, uma ilusão prepotente. Nada disso permanece, pois caíram as
máscaras e se percebeu que nada para além da realidade. Pobres ídolos! não
45
existem, diz o autor. Ou melhor, o iluminar do grande ‘meio-dia’ mostrou que sequer
existiram algum dia de uma forma distinta de “interpretações introduzidas”.
A verdade, a universalidade, a essência, o ser e Deus são
interpretações introduzidas pelo homem no mundo, convenções que
referendaram um modo de ser, que viabilizam uma dada existência.
de se resgatar os símbolos, tomando-os como interpretações
essenciais, e excluindo, assim, a validade incondicional de uma
construção que impõe ao ser, ao conhecer e ao agir um fundamento
absoluto (DUTRA AZEREDO, 2003, p. 9).
Esses fundamentos absolutos, compreendidos igualmente como verdades
absolutas, constituem-se em metáforas que se tornam gastas. O pensamento de
Foucault é uma efetivação desta interpretação da história por Nietzsche. Isto, porque as
verdades da modernidade e seus fundamentos não têm o mesmo valor de verdade e de
sentido na obra de Foucault.
46
II – DESCONSTRUÇÃO DA MODERNIDADE E PROPOSIÇÕES DE
PENSAMENTO ARQUEOLÓGICO E GENEALÓGICO
Ao propor a discussão filosófica em torno da crítica foucaultiana dos saberes
modernos, a relação entre os conceitos verdade, discurso, poder e saber requer ser bem
precisada. Inaugurando uma forma de pensamento denominado arqueologia do saber,
Foucault afirma ser a verdade produto de uma constituição histórica, uma criação
humana, resultado de interesses sociais específicos. É justamente a compreensão de
verdade como criação histórica que faz do pensamento de Foucault uma verdadeira
crítica aos saberes modernos, assentados na crença de poder chegar à verdade absoluta.
Para tal, utilizando-se do método arqueológico, Foucault procura mostrar quais são as
condições de possibilidade da existência de determinado discurso formador de uma
determinada verdade.
Retomar a interpretação foucaultiana da modernidade filosófica significa
interrogar as condições que tornaram possível a maneira moderna de pensar.
Distanciando-se radicalmente da maneira tradicional de se fazer história, Foucault abre
três grandes frentes de pensamento que são “a arqueologia do saber, a genealogia do
poder e a constituição de processos de subjetivação” (CARDOSO, apud. VEIGA
NETO, 2004, p. 187).
Foucault é tributário de uma herança teórica que vem contestando um certo tipo
de história proveniente da racionalidade historicista moderna. Seu método
47
arqueológico
12
não analisa os blocos fechados e os períodos estanques da história da
humanidade, não traça linearidades, não se contenta com grandes causalidades. Ocupa-
se com a arqueologia do saber, isto é, com o método que não procura encontrar a
essência, mas as condições de possibilidade dos discursos.
Não é fácil estabelecer o estatuto das continuidades para a história em
geral. Menos ainda, sem dúvida, para a história do pensamento.
Pretende-se traçar uma divisória? Todo limite não é mais talvez que
um corte arbitrário num conjunto indefinidamente móvel. Pretende-se
demarcar um período? Tem-se porém o direito de estabelecer, em
dois pontos do tempo, rupturas simétricas, para fazer aparecer entre
elas um sistema contínuo e unitário? A partir de que, então, ele se
constituiria e a partir de que, em seguida, se desvaneceria e se
deslocaria? A que regime poderiam obedecer ao mesmo tempo sua
existência e seu desaparecimento? Se ele tem em si seu princípio de
coerência, donde viria o elemento estranho capaz de recusá-lo? Como
pode um pensamento esquivar-se de outra coisa que ele próprio? Que
quer dizer, de um modo geral: não mais poder pensar um
pensamento? É inaugurar um pensamento novo? (FOUCAULT, 1979,
p. 64).
Nesta afirmação de Foucault, percebem-se os traços fundamentais da episteme
construída por ele. A idade moderna é configurada como idade da representação. A
verdade habita o universo transparente das idéias. Todo esforço, neste sentido, dá-se
em encontrar um caminho seguro para a razão, bem expresso nos títulos das clássicas
obras cartesianas “Discurso do Método” e “Regras para a Direção do Espírito”. A nova
disposição epistêmica
13
, contudo, incorporando a historicidade, o condicionamento, a
finitude, leva a perder a ilusão do fundamento absoluto do conhecimento. No dizer de
Higuera,
na L’archéologie du savoir obra em que Foucault sistematiza o
“projeto comum” de suas obras anteriores, elucidando o procedimento
que estas colocavam em jogo é possível entender que o sentido do
“discurso do método” foucualtiano é, em grande medida, oposto ao
Discours de la méthode de Descartes: em L’archéologie du savoir
encontramos um projeto de análises dos saberes que se situa fora à
margem do marco epistemológico que exemplarmente a obra
cartesiana definiu. (HIGUERA, 1999, p. 21. Nossa tradução).
12
“Se pode ser considerada um método, a arqueologia caracteriza-se pela variação constante de seus princípios,
pela permanente redefinição de seus objetivos, pela mudança no sistema de argumentação que a legitima ou
justifica” (MACHADO, Roberto, 1982, p. 57).
13
Conjunto de relações que ligam diferentes tipos de discursos em uma época.
48
Nas concepções modernas, “a realidade” é algo que existe no mundo, e a
consciência dos sujeitos, com um devido método, vai descobrir e nomear de forma a
obter uma suposta perfeita representação dessa realidade. Com Foucault, a “verdade”
ou a “realidade” não são mais do que construções discursivas resultantes de epistemes
situadas e datadas. Não realidade intrinsecamente verdadeira, pois os enunciados,
tomados como verdades, são construídos discursivamente em regimes ditados por
relações de poder. Quando algo é descrito, explicado em uma narrativa ou discurso,
tem-se a linguagem produzindo “realidade”. Essa concepção, portanto, dissipa a noção
corrente de representação como simples correspondência a uma “realidade
verdadeira”.
Isso significa que, com Foucault, a crítica não vai mais se exercer “na
investigação das estruturas formais que têm valor universal”, como em Kant. Vai
agora se dar “como pesquisa histórica através dos acontecimentos que nos levaram a
nos constituir e reconhecer como sujeitos do que fazemos, pensamos e dizemos”. Não
se trata unicamente de se ocupar com o desenrolar das representações. O olhar
foucaultiano tem como locus o pensamento de Nietzsche que procura desmistificar a
universalidade propagada pela moral, pela religião e pela filosofia, que “remete à
singularidade como dimensão imperante, remete a postulação a um pathos, ao pathos
da distancia, da diferença que a partir de si cria valores, impões sentidos” (DUTRA
AZEREDO, 2003, p. 9).
O objetivo da arqueologia não é o de tornar possível uma metafísica, como era
o objetivo da crítica kantiana, mas de mostrar a contingência dos saberes modernos,
tomados com valor de verdade, isto é, ousa interrogar a possibilidade mesma da
representação. Justamente na própria positividade do saber, o ser humano cognoscente,
por estar envolvido numa linguagem, percebe-se como um ser finito.
É preciso repor em questão essas sínteses acabadas, esses
agrupamentos que, no mais das vezes, admite-se antes de qualquer
exame, esses laços cuja validade é reconhecida desde o início; é
preciso desalojar essas formas e essas forças obscuras pelas quais se
tem o hábito de ligar entre si os discursos dos homens; é preciso
expulsá-las da sombra onde reinam (FOUCAULT, 1972, p. 32).
49
O problema fundamental da crítica kantiana do conhecimento dirige-se à
questão tradicional em termos de garantia, quer dizer, das condições “que legitimam o
caráter de conhecimento (verdadeiro) mediante o recurso ao sujeito transcendental”
(HIGUERA, 1999, p. 13. Nossa tradução). Em Foucault, ter-se-á um crítico
arqueológico, cuja base não é o conhecimento, mas a existência efetiva da linguagem.
A crítica procura mostrar de que maneira a realidade se constitui historicamente,
desembocando, dessa forma, em uma ontologia histórica, tendo como pressuposto a
inexistência de uma realidade em si mesma. “A ordem arqueológica não é nem a das
sistematicidades, nem a das sucessões cronológicas” (FOUCAULT, 1972, p. 64).
Trata-se, portanto, do desenvolvimento de um pensamento cuja função é
problematizar.
2.1 – Por uma trajetória questionadora de verdades
A arqueologia foucaultiana se opõe à pesquisa da origem primeira, da origem
metafísica, da origem teleológica. A arqueologia pergunta pelas condições de
possibilidade da existência de algo, como a verdade surgiu, a partir de que condições
foram criadas ou geradas aquilo que se convencionou a chamar de conhecimento.
Concepção que tem ressonâncias nietzscheanas, que afirma que a verdade é uma
construção discursiva que pode se tornar uma moeda gasta, extirpando a idéia de uma
origem metafísica que seria um ponto arquimedeano.
A história ensina também a rir das solenidades da origem. A alta
origem é o “exagero metafísico que reaparece na concepção de que no
começo de todas as coisas se encontra o que de mais precioso e de
mais essencial”: gosta-se de acreditar que as coisas em seu início se
encontravam em estado de perfeição; que elas sairiam brilhantes das
mãos do criador, ou na luz sem sombra da primeira manhã
(FOUCAULT, 1979, p. 18).
Por isso mesmo, não é mais possível de dissolver o acontecimento histórico em
uma série continuada idealmente, conforme pretensão da modernidade. “A história não
50
descobrirá uma identidade esquecida, sempre pronta a renascer, mas um sistema
complexo de elementos múltiplos, distintos, e que nenhum poder de síntese domina”.
(FOUCAULT, 1990, p. 34). Portanto, “o que é contingente é algo que vai muito além
das idéias ou das representações” (LARROSA apud. SILVA, 2002, p. 41).
Na medida em que não é buscada e requerida a origem primeira, a arqueologia
procura trabalhar as descontinuidades históricas. Tem-se, assim, um deslocamento das
grandes unidades para o fenômeno das rupturas históricas. “O problema não é mais da
tradição e do rastro, mas do recorte e do limite; não é mais o do fundamento que se
perpetua e sim o das transformações que valem como o fundar e renovar das
fundações” (FOUCAULT, 1972, p. 12).
Quando Foucault fala em descontinuidades, apresenta uma noção de história
feita de rupturas e descontinuidades. As verdades são constituídas e construídas por
meio de descontinuidades históricas. O método arqueológico, portanto, estuda essas
descontinuidades com a finalidade de compreender a formação de determinado saber
em detrimento de outro, podendo ser aplicado a uma forma de interpretação da própria
modernidade, entrecruzando-se com uma genealogia da mesma.
É verdade que a filosofia, ao menos a partir de Descartes, sempre
esteve ligada no Ocidente ao problema do conhecimento. Não se
escapa disso. Quem se pretender filósofo e não se colocar a questão “o
que é o conhecimento?” ou “o que é a verdade”, em que sentido se
poderia dizer que é um filósofo? E mesmo que eu diga que não sou
filósofo, se for da verdade que me ocupo, eu sou apesar de tudo
filósofo. A partir de Nietzsche esta questão se transformou. Não mais:
qual é o caminho mais seguro da Verdade?, mas qual foi o caminho
aleatório da verdade? Era esta a questão de Nietzsche e é também a
questão de Husserl em A Crise das Ciências Européias. (...) Qual é
sua história, quais são os seus efeitos, como isso se entrelaça com as
relações de poder? (FOUCAULT, 1979, p.).
Fica evidente, neste sentido, a influência nietzscheana no trabalho filosófico de
Foucault. Há, com ele, a denúncia das instituições de verdades como valor e como
algo fixo, absoluto e transcendente. Essa crítica aos conceitos de essência e de
natureza metafísica, iniciada com Nietzsche e vigente nos filósofos ditos pós-
modernos, é também levada a efeito por Foucault. Para além da afirmação de verdades
51
estabelecidas, Foucault resgata a indeterminação, as constantes rupturas. Por isso
mesmo, ao analisar as descontinuidades históricas, a arqueologia
14
não analisa os
grandes blocos concretos e fechados, não estuda as macroestruturas, mas alem destas
as microestruturas, as “microfísicas do poder”, que constituem o todo de uma época
(FOUCAULT, 1990).
Foucault, enquanto arqueólogo do saber, como grande parte dos filósofos
contemporâneos, é antimetafísico, antifundacionista, anti-humanista, não com um
propósito anárquico ou simplesmente desconstrucionista, mas procurando desnudar os
jogos de verdade pelos quais cada época arma e faz valer certos saberes. A
preocupação está voltada às condições de existência dos saberes (a priori histórico), à
busca das condições de emergência dos saberes, e não das suas condições
transcendentais.
A arqueologia põe em questão o que do ponto de vista da crítica moderna – a de
Kant parecia incriticável, o próprio conhecimento. O saber não pertence à ordem do
conhecimento, da verdade do sujeito. Pertence à ordem da história, é um produto
histórico, resultado de um jogo de forças.
A arqueologia, como investigação histórica e crítica, se ocupa das
condições de existência dos saberes, o que Foucault chama de a
priori histórico”. Esta expressão tem algo de estranho, possui “um
efeito detonante”, como Foucault mesmo reconhece. Parece unir em
um mesmo conceito elementos pertencentes a domínios heterogêneos.
(...) Que o a priori seja histórico tem como implicação de que as
condições buscadas não são universais, quer dizer, não são mais gerais
que o condicionado (são tão históricos como este) (HIGUERA, 1999,
p. 8).
O método arqueológico neutraliza a questão da verdade e questiona a
capacidade “plenipotenciária” da razão em chegar à verdade primeira. Tomada como
produto histórico, a verdade deixa de ser representação da realidade (Bildung) e passa
a ser entendida em meio a efeitos de poder que a possibilitam e a condicionam. A
14
“A arqueologia é uma história descontinuista. Mas descontinuidade que ela estabelece é bastante diferente da
ruptura epistemológica. Não diz respeito a uma ciência e menos ainda a um único conceito. É muito mais vasta:
tem extensão da própria episteme, atinge o conjunto dos saberes de determinada época” (MACHADO, 1981, p.
156).
52
arqueologia “é uma análise do discurso, das formações discursivas, que pretende
determinar as regras de formação dos objetos, das modalidades enunciativas, dos
conceitos e dos temas e teorias” (MACHADO, 1982, p.177). “Não procuramos, pois,
passar do texto ao pensamento, da conversa ao silêncio, do exterior ao interior, da
dispersão espacial ao puro recolhimento do instante, da multiplicidade superficial à
unidade profunda. Permanecemos na dimensão do discurso” (FOUCAULT, 1972, p.
95).
A preocupação foucaultiana está voltada para a superficialidade do discurso
enquanto sua formação. Estudar o discurso em sua superficialidade significa analisá-lo
enquanto prática que obedece a regras para sua formação. Perguntando-se pelo que
unidade aos discursos a ponto de se instituírem como verdades, Foucault levanta
quatro hipóteses e logo em seguida as rejeita: o que dá unidade ao discurso é o objeto a
que refere; a sua forma; os conceitos utilizados; e os temas trabalhados. Feita uma
análise, contudo, as quatro hipóteses são rejeitadas devido à descontinuidade das
mesmas: variam conforme o tempo, o local, as instituições, etc.
Foucault afirma que a unidade do discurso é dada pela sua dispersão, sua
descontinuidade, sua ruptura. O que unidade aos discursos são as regras de
formação, isto é, aquilo que possibilita sua permanência apesar da descontinuidade.
Para Foucault, a questão principal da discursividade da verdade está naquilo que rege
os enunciados e a forma como estes se regem entre si para constituir um conjunto de
proposições aceitáveis cientificamente e, conseqüentemente, susceptíveis de serem
verificadas ou infirmadas por procedimentos científicos” (FOUCAULT, 1979, p. 4).
Uma vez caracterizado de que são as regras de formação que dão regularidade
ao discurso, é necessário evitar a busca por uma ordem sucessiva, uma estrutura
fechada. Trata-se de evitar as identidades impostas com valor de verdade e realizar um
estudo arqueológico dessas regras de formação. Os objetos, conceitos, temas e estilos
dos discursos estão em constantes transformações, o que permanece contínuo são as
formações discursivas. Levando em conta essas descontinuidades, o discurso não mais
53
se apresenta como verdade fixa, absoluta e valorativa, mas como sendo gerada,
produzida, colocada em prática conforme interesses específicos.
O método arqueológico de Foucault não pretende analisar os discursos em sua
profundidade, mas em suas relações com outras instâncias, a fim de que se evidencie o
modo pelo qual algo foi instituído como verdade. Em outras palavras, trata-se de fazer
um estudo histórico dos discursos “que não os enterre na profundidade comum de um
solo originário, mas que desenvolva o nexo das regularidades que regem sua
dispersão” (FOUCAULT, 1972, p. 54). Neste sentido, o discurso não é analisado
enquanto formação lingüística, isto é, enquanto relação das palavras com as coisas, da
representação com as coisas. Também não é analisado enquanto resultado de uma
atividade racional de um sujeito que pensa e formula conceitos e saberes. Ao contrário
de tudo isso, é analisado em sua superficialidade: no nível da formação discursiva.
Foucault, analisando os discursos, desvincula “os laços aparentemente tão fortes
das palavras e das coisas” (FOUCAULT, 1972, p. 64). O discurso “não é uma estreita
superfície de contato, ou de confronto, entre uma realidade e uma língua, o
intrincamento entre um léxico e uma experiência” (FOUCAULT, 1972, p. 64). É antes
uma prática que forma os objetos enunciados do que a mera representação de um
objeto por uma palavra. Não interessa na análise foucaultiana, contudo, o sentido de
um discurso, próprio da tradição hermenêutica. Sua preocupação também não está
voltada para as regras dos enunciados. Interessa o discurso enquanto prática capaz de
produzir determinado saber e não outro. A principal busca desse método é
compreender as condições histórico-sociais que possibilitaram a irrupção de
acontecimento discursivo, “como apareceu um determinado enunciado, e não outro em
seu lugar” (FOUCAULT, 1972, p. 39).
Segundo Eizirik, a arqueologia em Foucault “se funda na prática histórica; é um
método forjado para lidar com problemas específicos colocados pela história do
pensamento, que se origina primariamente das lutas concretas para a compreensão
histórica” (EIZIRIK, 2002, p. 32). Para a autora, é esta condição que leva a
compreender o enunciado no âmbito e singularidade da situação em que se encontra,
54
revelando as condições que o constituíram, as linhas de sua formalidade e a relação
com outros enunciados diversos tanto em correlação quanto de exclusão.
O discurso, neste sentido, “não é a manifestação majestosamente desenvolvida,
de um sujeito que pensa, que conhece e que diz: é, ao contrário, um conjunto em que
se podem determinar a dispersão do sujeito e sua descontinuidade consigo mesmo”
(FOUCAULT, 1972, p. 70). Sob as manifestações maciças e homogêneas do espírito
ou sujeitos unitários, Foucault procura destacar a incidência das interrupções. “Poder-
se-ia dizer, jogando um pouco com as palavras, que a história, em nossos dias, se volta
para a arqueologia, para a descrição intrínseca do monumento” (FOUCAULT, 1972, p.
14), na medida em que se começa “pensar a diferença, em descrever os afastamentos e
as dispersões, em dissociar a forma tranqüilizadora do idêntico” (FOUCAULT, 1972,
p. 20).
Assim concebido, tem-se a autonomia do discurso. O enunciado se relaciona
com outros enunciados e não com as coisas, com conceitos ou com idéias. Tampouco
pode ser referido a um sujeito que pudesse ser tomado como sua origem. O discurso,
dessa forma, não admite nenhuma soberania exterior, nem a de um sujeito que seria
sua fonte e sua origem, nem a de um mundo de coisas do qual seria uma representação
secundária. Portanto, “as ‘coisas’, os ‘estados de coisas’ ou os ‘conceitos’ que se
nomeiam não são exteriores ao discurso; são, antes, variáveis do enunciado, a rigor,
objetos discursivos”, bem como, “o sujeito é uma variável do enunciado” (LARROSA
apud. SILVA, 2002, p. 66).
2.2 – Poder e saber
O pensamento de Michel Foucault se situa, sobretudo, na contrapartida das
concepções do pensamento moderno sobre o saber e o poder. Essa tradição, oriunda
fundamentalmente de Descartes, com diversos desdobramentos em Kant e Hegel, seus
maiores expoentes, não tem mais uma aceitabilidade de justificação das relações
societais pelos pensadores contemporâneos. O pensamento de Foucault, antes de
55
propor uma série de princípios e normas a serem seguidos, questiona todo e qualquer
conhecimento estruturado e solidificado pela humanidade a partir de uma arqueologia
do saber e uma genealogia do poder.
A genealogia seria, portanto, com relação ao projeto de uma
inscrição dos saberes na hierarquia de poderes próprios à ciência, um
empreendimento para libertar da sujeição os saberes históricos, isto é,
torná-los capazes de oposição e de luta contra a coerção de um
discurso teórico, unitário, formal e científico. A reativação dos
saberes locais menores, diria Deleuze contra a hierarquização
científica do conhecimento e seus efeitos intrínsecos de poder, eis o
projeto destas genealogias desordenadas e fragmentárias
(FOUCAULT, 1979, p. 172).
Com o pensamento de Descartes e a partir dele, foram elaborados uma série de
conceitos e crenças tomados como fundamentais, justificados numa teoria da verdade
como certeza clara e evidente. Dentre as mais variadas tematizações, os seguintes
conceitos permanecem na base do pensamento moderno: fragmentação dos saberes,
crença na racionalidade absoluta, método explicativo, possibilidade de se chegar a um
conhecimento certo, apodítico, indubitável, crença do poder da razão, do progresso, do
sujeito autônomo e consciente, dicotomia da relação sujeito-objeto, dentre outros.
A elaboração das teorias do conhecimento na modernidade é o solo de
justificação da cientificização da grande parte das áreas do conhecimento em termos
de saber universal
15
. O rápido avanço e a condição de ser o termômetro da verdade,
pela ciência, compreendem-se pela identificação de seus conceitos estarem
circunscritos numa teoria do objeto. É uma teoria da representação. Tanto o objeto
quanto o próprio homem podem ser isolados como um objeto capaz de ser
representado
16
.
15
“A verdade/constatação, na forma do conhecimento talvez não passe de um caso particular da verdade/prova
na forma do acontecimento; acontecimento que se produz como podendo ser de direito repetido sempre e em
toda parte, ritual de produção que toma corpo numa instrumentação e num método a todos acessíveis e
uniformemente eficaz; saída que aponta um objeto permanente de conhecimento e que qualifica um sujeito
universal de conhecimento. É esta forma singular de produção da verdade que pouco a pouco foi recobrindo as
outras formas de produção da verdade e que, ou pelos menos, impôs sua forma como universal” (FOUCAULT,
1979, p. 116).
16
FOUCAULT – Microfísica do Poder – Introdução, p. IX.
56
É justamente esta questão que a contemporaneidade procura desconstruir,
porque é preciso conhecer a situação histórica que está na base de uma conceituação e
da situação histórica do presente para saber aquilo que é analisado e do lugar em que é
analisado. Dessa forma, ele coloca em dúvida a suposição de uma consciência
soberana, destacando a provisoriedade e a instabilidade de todo discurso, defendendo
uma perspectiva que sempre vincula o saber ao poder.
Foucault trabalha a questão que era prática de Freud e Nietzsche,
considerados como mestres da suspeita, duvidando não apenas da existência das coisas
como fez Descartes, mas duvidando da própria consciência, suspeitando de toda e
qualquer pretensão de um conhecimento absoluto, seguro indubitavelmente, de se
chegar a uma instância de verdade como certeza clara e evidente. A proposição
foucaultiana é que todo conhecimento é uma construção.
Foucault não nega a racionalidade das diversas áreas do conhecimento. O que
está em questão são sua fundamentação e sua instauração nas relações entre os homens
e destes com a natureza. As relações não são relações apenas de racionalidade, mas de
poder. O próprio exercício da racionalidade em suas diversas prerrogativas é um
exercício de poder, que é endereçado a outros homens, nações, instituições, à natureza,
etc.
O poder não tem um caráter negativo apenas. Essa caracterização é uma
confusão da dimensão do poder nas relações humanas. O poder permeia as questões da
verdade, do saber e da formação do ser humano enquanto sujeito. “O indivíduo é uma
produção do poder e do saber” (FOUCAULT, 1996, p. 19).
2.2.1 – O poder disciplinar
Não encontramos nenhum livro de Foucault que trabalhe exclusivamente o
poder. No entanto, pode-se afirmar que este assunto permeia toda a sua obra, com as
mais variadas formas, cruzando as análises históricas, suas reflexões sobre a questão
57
do saber e, sobretudo, na vivência da intelectualidade tal como a compreendia e as
questões que dizem respeito à formação do sujeito.
Segundo Machado, na introdução à Microfísica do Poder,
Não existe em Foucault uma teoria geral do poder. O que significa
dizer que suas análises não consideram o poder como uma realidade
que possua uma natureza, uma essência que ele procuraria definir por
usas características universais. Não existe algo unitário e global
chamado poder, mas unicamente formas díspares, heterogêneas, em
constante transformação. O poder não é um objeto natural, uma coisa;
é uma prática social e, como tal, constituída historicamente
(FOUCAULT, 1979, p. XI).
A institucionalização do saber pela modernidade e determinada como um dos
pilares da ordem da sociedade é uma materialização do poder. As instituições
sobrevivem na e pela materialização do poder. O poder se torna uma prática de
disciplina que comanda as relações societais.
As instituições modernas se materializam e ordenam a sociedade pela
disciplina, como uma forma de produzir subjetividades. na época clássica, onde o
poder do soberano busca sua sobrevivência numa prática magnânima, consiste em
produzir uma interioridade, dobrando o corpo sobre si mesmo, para conquistar um
poder mais duradouro. A institucionalização da disciplina tem como meta concretizar
aptidões, atitudes, rotinas e habilidades necessárias para a ordem da sociedade. Cria-se
assim uma sociedade disciplinada, controlando minuciosamente a estrutura do poder
em suas diversas formas.
O exercício mais concreto do poder é a disciplina, tornando os indivíduos
objetos e instrumentos de sua existência. Onde poder disciplinar é
um poder que, em vez de se apropriar e de retirar, tem como função
maior “adestrar”; ou sem dúvida adestrar para retirar e se apropriar
ainda mais e melhor. Ele não amarra as forças para reduzi-las; procura
ligá-las para multiplicá-las e utilizá-las num todo. Em vez de dobrar
uniformemente e por massa tudo o que lhe está submetido, separa,
analisa, diferencia, leva seus processos de decomposição até às
singularidades necessárias e suficientes. “Adestra” as multidões
confusas, móveis, inúteis de corpos e forças para uma multiplicidade
de elementos individuais pequenas células separadas, autonomias
58
orgânicas, identidades e continuidades genéticas, segmentos
combinatórios. A disciplina “fabrica” indivíduos; ela é a técnica
específica de um poder que toma os indivíduos ao mesmo tempo
como objetos e instrumentos de seu exercício (FOUCAULT, 1998, p.
143).
A mudança na forma de exercício do poder, em que ele consiste em vigiar ao
invés de punir, inaugurando uma sociedade que tem nas próprias ciências humanas a
instauração da disciplina, torna-se cada vez mais invisível o próprio exercício do
poder. Pelo fato do poder operante ter segundo Foucault, esta materialidade do poder
tem como finalidade produzir subjetividades vigiadas sem ter consciência desta
condição.
A naturalização da disciplina pela norma tem no corpo a sua centralidade.
Normalizar a disciplina é criar as condições de uma “interdisciplinaridade” entre as
instituições. Ela põe em relação à escola, a fábrica, etc., traçando um diagrama, um
plano sobre os seus distintos dispositivos. Em cada uma são produzidas subjetividades
diferentes, como alunos, operários, mas em todas é a disciplina que os organiza.
É sob este viés que se descobre uma nova possibilidade de compreender o
homem. Dentro destas relações de instituição disciplinadas, para Foucault, os seres
humanos se tornam sujeitos. Não é a única forma. No entanto, é uma forma
privilegiada quando se busca compreender as relações entre as culturas, a relação entre
os seres humanos tendo em conta a disparidade socioeconômica, e da relação entre o
homem e a natureza.
2.2.2 – O conceito de poder
A questão do poder se tornou um conceito que faz parte da antropologia e da
sociologia quando esta leva em consideração as relações sociais, culturais e
econômicas das diferentes camadas da sociedade. Foucault se tornou um clássico da
questão do poder, com uma análise política do poder
17
, não limitada ao aparato do
17
Foucault mostra que não antinomia entre poder e saber, destacando como o poder político trama com o
saber, fazendo nascer efeitos de verdade nas relações como se estabelecem jogos de verdade fazem de um
discurso e de uma prática o lugar de poder (práticas disciplinares, biopolítica).
59
estado, mas que tem repercussão sobre as reflexões no âmbito das políticas
governamentais e do social. O poder se exerce informalmente como uma força que
atinge outras forças na dimensão formal da estrutura da sociedade. Nisso consiste a
análise microfísica do poder porque ele não tem propriamente uma forma, mas é
constituído por relação de forças.
Para Foucault, o poder tem sua origem na relação social como uma genealogia e
uma topografia, porque, em cada forma de sociedade, cada dimensão do social é
afetada pelo poder, mesmo que implicitamente ou invisivelmente, mas é exercício e
“ninguém é, propriamente falando, seu titular; e, no entanto, ele sempre se exerce em
determinada direção, com uns de um lado e outros do outro; não se sabe ao certo quem
o detém; mas se sabe quem não o possui” (FOUCAULT, 1996, p. 75). Nisso constitui
sua característica enigmática, “ao mesmo tempo visível e invisível, presente e oculta,
investida em toda parte” (FOUCAULT, idem).
Segundo Foucault, seu discurso se esclarece a partir dos discursos não políticos
porque se trata de um pensamento que circunda as microrelações, desde sua
interioridade até suas expressões cotidianas, como um fenômeno imanente à
sociedade, como algo impossível de desvincular de toda sociedade. Esta propriedade
de toda sociedade deveria, então, ser conhecida em seus meandros, revelando sobre
quais se funda o poder. Esta condição é possível quando o poder for levado às suas
últimas conseqüências, o que pode ser enunciado através de um desocultamento dos
processos do poder. Descobrir o dar-se do poder é concebê-lo não como uma entidade.
Onde o poder
não é algo que se detém como uma coisa, como uma propriedade, que
se possui ou não. Não existe de um lado os que têm o poder e de
outro, aqueles que se encontram dele alijados. Rigorosamente falando,
o poder não existe; existem sim práticas ou relações de poder. O que
significa dizer que o poder é algo que se exerce, que se efetua, que
funciona. E que funciona como uma maquinaria, como uma máquina
social que não está situada em um lugar privilegiado ou exclusivo,
mas se dissemina por toda a estrutura social. Não é um objeto, uma
coisa, mas uma relação (FOUCAULT, 1996, p. 115).
60
O lugar de nascimento do poder é a mesma sociedade que será o local sobre a
qual é possível analisá-lo. O poder circunscreve tudo, afetando o todo da realidade da
sociedade. Sua enigmaticidade requer uma exegese do poder como símbolo e
conjuntamente dos procedimentos simbólicos do poder. Ele se estende desde a
realidade até a simbolização. Assim, ele é uma particularidade da existência do homem
porque ele se manifesta em qualquer expressão humana: nas relações de trabalho, no
mundo da ciência, da cultura, da sexualidade, da arte e no próprio discurso.
O caráter construtivo do conhecimento das sociedades cria seu consenso sobre a
verdade como aquela que é tomada como plausível e certa. Para Foucault, é preciso
estar atento às verdades proclamadas porque elas estão profundamente ligadas a
sistemas de poder. A justificação da verdade está relacionada com a idéia de poder que
ela própria procura expressar. Não verdades desligadas da questão da verdade. E
não há verdade que não esteja imbuída da questão do poder.
A verdade é deste mundo; ela é produzida nele graças a múltiplas
coerções e nele produz efeitos regulamentados de poder. Cada
sociedade tem seu regime de verdade, sua “política geral” de verdade:
isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como os
enunciados verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que permitem
distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira como se
sanciona uns e outros; as técnicas e os procedimentos que são
valorizados para a obtenção da verdade; o estatuto daqueles que têm o
encargo de dizer o que funciona como verdadeiro (FOUCAULT,
1996, p. 12).
Para Foucault, de modo algum é necessário libertar a verdade da questão do
poder, porque ela mesma é poder. Aquilo que é exigido é desfazer as formas de poder
das hegemonias exercidas formalmente como verdades que funcionam como
repressões da condição de uma comunidade sobre outra. É a única condição em que a
verdade deve ser desvinculada do poder. Para Foucault, a verdade é “um conjunto de
procedimentos regulados para a produção, a lei, a repartição, a circulação e o
funcionamento dos enunciados” (FOUCAULT, 1996, p. 14). O poder é a efetivação da
verdade através de seus sistemas que a apóiam e pelos efeitos que são induzidos e
produzidos.
61
Esta extensão do poder, que se exerce no nível da imanência das
formas como uma relação de forças não tem um sentido apenas
negativo. O exercício do poder pode ser uma repressão. Explicar o
poder por uma decisão política ou por uma determinada camada social
não explicita o exercício concreto do poder em detalhes, com sua
especificidade e suas técnicas. Para Foucault, a noção de “repressão é
totalmente inadequada para dar conta do que existe justamente de
produtor no poder. Quando se define os efeitos do poder pela
repressão, tem-se uma concepção puramente jurídica deste mesmo
poder; identifica-se o poder a uma lei que diz não” (FOUCAULT,
1996, p. 07).
O locus de partida das análises de Foucault está na busca do rompimento com
as teorias jurídicas do poder. Essa atitude requer um rompimento com todo o aparato
teórico que foi produzido pela filosofia política da modernidade, de todas as
concepções teóricas de estado que procuram justificar a forma de governar numa
espécie de contratualismo. Para isso, o primeiro passo é pensar o poder fora das
dimensões do Estado e das suas instituições. Com essa decisão, caminha a
contrariedade ao marxismo, de pensar o poder a partir do conceito de dominação e,
ainda mais, se a ela não for dada uma conotação positiva, que é uma das
especificidades do poder.
O fundamental na questão do poder em Foucault é a perspectiva positiva que o
mesmo apresenta. O seu exercício, como repressão
18
, sempre foi preponderante, mas
sempre com uma unilateralidade conceitual. O poder compreendido como uma relação
de forças, como o informal das relações de saber e de instituições, tem como
características: “incitar, induzir, desviar, tornar fácil ou difícil, limitar e ampliar, tornar
mais ou menos provável” (EIZIRIK, 2002, p. 66). O poder é formador de saber,
produtor de coisas e de discursos, uma “rede produtiva” (FOUCAULT, 1998, p. 119)
que atravessa toda a dimensão da sociabilidade.
18
“Ora, me parece que a noção de repressão é totalmente inadequada para dar conta do que existe justamente de
produtor no poder. Quando se define os efeitos pela repressão, tem-se uma concepção puramente jurídica deste
mesmo poder; identifica-se o poder a uma lei que diz não. O fundamental seria a força da proibição. Ora, creio
ser esta uma noção negativa, estreita e esquelética do poder que curiosamente todo mundo aceitou. Se o poder
fosse somente repressivo, se não fizesse outra coisa a não ser dizer não você acredita que se seria obedecido? O
que faz com que o poder se mantenha e que seja aceito é simplesmente que ele não pesa como uma força que
diz não, mas que de fato ele permeia, produz coisas, induz ao prazer, forma saber, produz discurso”
(FOUCAULT, 1979, p. 8).
62
A compreensão da dimensão produtiva do poder requer a rejeição daquilo que
Foucault chama de “hipótese repressiva” do poder. Também, dar destaque à relação
entre o poder e saber em qualquer sistema de pensamento e forma de sociedade. Para
Machado,
O fundamental da análise é que saber e poder se implicam
mutuamente: não relação de poder ser constituição de um campo
de saber, como também, reciprocamente, todo saber constitui novas
relações de poder. Todo ponto de exercício do poder é, ao mesmo
tempo, um lugar de formação de saber (In. FOUCAULT, 1979, p.
XXI).
O afastamento da hipótese repressiva significa um giro na compreensão do
poder porque uma analítica do poder ocupa o lugar de uma teoria do poder. A
possibilidade dessa analítica, que tem como questão própria a definição dos domínios
das relações de poder, como relações de força, e os instrumentos que possibilitam sua
análise, está na superação das concepções jurídicas que representam o Estado em sua
soberania.
Um aspecto positivo pode ser encontrado na construção da cidadania, por
exemplo. Não se trata de considerar o poder como uma forma de dominação absoluta
de um indivíduo sobre outro, de uma classe sobre outra, nem de considerá-lo como
algo que é dividido entre os que o possuem e os que não o possuem, dos que o detêm
exclusivamente e os que apenas o suportam.
O poder possui uma dinâmica de construção da cidadania na perspectiva de que
responsabiliza as pessoas, torna-as responsáveis por aquilo que produzem em termos
sociais; pela abertura de possibilidades permite visualizar instâncias de identidades,
construção de espaços sociais micros que recuperam a vitalidade social. O poder é
construtor de cidadania porque constrói cidadãos. Essa é uma verdade do exercer-se do
poder que “aparece aos nossos olhos uma verdade que seria riqueza, fecundidade,
força doce e insidiosamente universal. E ignoramos, em contrapartida, a vontade de
verdade, como prodigiosa maquinaria a excluir” (FOUCAULT, 1996, p. 20).
63
O caráter positivo do poder não permite pensar uma sociedade melhor a partir
de uma utopia. A análise do poder não tem como meta resolver os problemas sociais
da sociedade atual. No entanto, permite vislumbrar uma perspectiva de reflexão que
tenha reflexo direto na dimensão política e econômica.
Para Foucault, o poder é permeado de estratégias e de interesses. Ele distingue o
poder dos mecanismos de poder, a verdade dos efeitos da verdade. Vislumbramos uma
exegese sobre o poder em todos seus planos e em especial do plano psicológico, do
simbólico e também do social. Trata-se de uma problematização crítica bem construída
em torno do funcionamento do poder, do “como” se exerce o poder desde seu centro
até as suas ramificações, ou seja, em todo o âmbito da condição humana. Numa
perspectiva quanto à consideração da condição humana, positiva ou negativa, para
Foucault, o homem nunca pode escapar do poder e de suas efetivações.
Na obra Vigiar e Punir (1998), o poder é destrinçado a partir do esclarecimento
histórico da loucura durante o medievo e a forma como as conclusões são gestadas
sobre ela pela elite da ordem racional. A enfermidade é institucionalizada através dos
centros de tratamento psiquiátricos, onde são recolhidos grande parte dos afetados,
incluindo indigentes marginais porque desestruturam a ordem societal imperante. Esse
período é marcado pela criminalização do poder da razão sobre um status de
ordenação racional. Esse marco é que condiciona a suspeita da impregnação do poder
de um discurso ou de uma racionalidade, compreendidos como verdadeiros, sobre
outras formas discursivas, sobre outros grupos, outros âmbitos. Percebe-se que é uma
produção histórica da realidade movida por interesses erigidos em detrimento de
outros.
A loucura, a delinqüência, a irracionalidade, ou mesmo a marginalidade em
amplo sentido, são verdades silenciosas e discursos em potencial de ser expressos, e
que são elevados por Foucault a uma dimensão imanente de um questionamento
epistemológico. A razão, por sua vez, não ocupará o lugar do irracional. Isso seria
novamente uma inversão polarizada. A incumbência está numa recriação do conceito
de razão. E esclarece esta nova compreensão na descrição do “intelectual”:
64
Parece-me que o que se deve levar em consideração no intelectual não
é, portanto, “o portador de valores universais”; ele é alguém que
ocupa uma posição específica, mas cuja especificidade está ligada às
funções gerais do dispositivo de verdade em nossas sociedades. Em
outras palavras, o intelectual tem uma tripla especificidade: a
especificidade de sua posição de classe; a especificidade de suas
condições de vida e de trabalho, ligadas à sua condição de intelectual;
finalmente, a especificidade da política de verdade nas sociedades
contemporâneas (FOUCAULT, 1996, p. 13).
A importância da análise foucaultiana do poder está na dimensão de pensá-lo
criticamente. Encontramos novamente o secreto poder do leitor sobre o texto, do
cidadão sobre a sociedade, estruturada pelas relações formais e relações de forças, e do
indivíduo sobre a própria determinação da sexualidade. Através da análise das diversas
formas de acesso da palavra ao discurso, é posta com relevância a controvertida
vontade de verdade do Ocidente e de suas estruturas de sociedade, cuja solidificação
está nas instituições. Com Foucault, a marginalidade é compreendida como uma forma
de manifestar o irracional, o ilógico, o obscuro dos modelos culturais, políticos,
ecológicos.
2.2.3 – O poder como disciplina
A questão do poder sofre transformações profundas nos séculos XVII e XVIII.
A questão mais importante, e é a que interessa aqui, da transformação está na
substituição do poder soberano pelo poder disciplinar. A sociedade torna-se
disciplinar. Foi o crescimento das instituições mantenedoras da disciplina que firmou
este novo tipo de organização societal em termos de dominação.
Diversamente do poder soberano, que se centrava na pessoa do rei, a disciplina
é uma forma de poder que se individualiza nos sujeitos, exercida pelas escolas, pelas
fábricas, pelas prisões. O poder disciplinar não se detém como coisa alguma e não se
transfere como uma espécie de propriedade, mas adestra para, então, retirar e mesmo
se apropriar ainda mais veemente. É um novo modo de poder.
Este novo mecanismo de poder apóia-se mais nos corpos e seus atos
do que na terra e seus produtos. É um mecanismo que permite extrair
65
dos corpos tempo e trabalho mais do que bens e riqueza. É um tipo de
poder que se exerce continuamente através da vigilância e não
descontinuamente por meio de taxas e obrigações distribuídas no
tempo; que supõe mais um sistema minucioso de coerções materiais
do que a existência física de um soberano. Finalmente, ele se apóia no
princípio, que representa uma nova economia do poder, segundo o
qual se deve propiciar simultaneamente o crescimento das forças
dominadas e o aumento da força e da eficácia de que as domina
(FOUCAULT, 1996, p. 187-188).
Uma nova cultura principia com o poder sendo exercitado pela disciplina. A
dimensão social que envolve esta nova estratégia revela-o como uma agente cultural.
O elemento cultural preponderante é a maior utilidade dos sujeitos, aumentando suas
habilidades e aptidões que levará ao aumento da lucratividade dos produtores. Não
apenas o crescimento econômico sobressai, mas um fortalecimento das forças sociais
que atinge até a educação, o ensino e a moralidade pública.
As relações na sociedade são organizadas sem uma centralização lógica do
poder e mesmo de sua visibilidade materializada. O poder está em toda a parte ao
mesmo tempo de modo invisível porque os corpos dos sujeitos se comportam segundo
um poder que os comanda sem ter uma representação. Quanto mais invisível for o
poder, na e pela disciplina, tanto melhor ele funciona. Esta técnica do poder que se
exerce sobre o corpo dos outros é definido não “para que façam o que se quer, mas
para que operem como se quer, com as técnicas, segundo a rapidez e a eficácia que se
determina. A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos dóceis”
(FOUCAULT, 1998, p. 119).
A instauração da disciplina como mantenedora do poder teve, além da
multiplicação das instituições, segundo Foucault, um crescimento de dispositivos
disciplinadores. A disciplina, “uma anatomia política do detalhe”, é uma técnica
específica do exercício do poder que comporta um conjunto de instrumentos e
procedimentos. A disciplina é um modo de tornar cada vez mais úteis os indivíduos
sobre os quais ela exerce poder. “Em uma palavra: ela dissocia o poder do corpo; faz
dele por um lado uma ‘aptidão’, uma ‘capacidade’ que ela procura aumentar; e inverte
66
por outro lado à energia, a potência que poderia resultar disso, e faz dela uma relação
de sujeição estrita” (FOUCAULT, 1998, p. 119).
O crescimento da produtividade em toda a sua diversidade é a especificidade
mais própria da disciplina. Para Foucault, a disciplina tem como objetivos centrais o
exercício do poder menos custoso, a intensificação das ramificações do poder na maior
escala possível e tornar útil e dócil os indivíduos. A questão da docilidade revela uma
multiplicidade de “aparelhos de saber” e de uma diversidade de formas de
conhecimentos que circulam pelas veias do exercício do poder. Dessa forma, a
disciplina extrapola as dimensões do direito. A disciplina não é a lei em prática.
As disciplinas são portadoras de um discurso que não pode ser o do
direito; o discurso da disciplina é alheio ao da lei e da regra enquanto
efeito da vontade soberana. As disciplinas veicularão um discurso que
será o da regra, não da regra jurídica derivada da soberania, mas o da
regra “natural”, quer dizer, da norma; definirão um código que não
será o da lei mas o da normalização; referir-se-ão a um horizonte
teórico que não pode ser de maneira alguma o edifício do direito mas
o domínio das ciências humanas; a sua jurisprudência será um saber
clínico (FOUCAULT, 1996, p. 189).
Os dispositivos disciplinares são três. Primeiramente, tem-se o “olhar
hierárquico” que consiste na mais abrangente idéia da vigilância. Para Foucault, a
vigilância é a peça mais importante da estrutura do poder disciplinar. Ela passa a
ocupar o lugar da punição da sociedade de poder soberano. Sua função é descentralizar
o poder de apenas alguns indivíduos, mas contribui para a individualização dos
sujeitos submetidos ao poder, colocando cada indivíduo em seu lugar, distribuídos em
espaços, todos eles preenchidos.
A “tática disciplinar”, então, “permite ao mesmo tempo a caracterização do
indivíduo como indivíduo, e a colocação em ordem de uma multiplicidade dada”. Ela é
a condição primeira para o controle e o uso de um conjunto de elementos distintos: a
base para uma microfísica de um poder que poderíamos chamar de “celular”
(FOUCAULT, 1998, p. 127).
67
O específico da vigilância como dispositivo é tornar invisível o poder em seu
exercício. Esse efeito é concretizado quando os submetidos ao poder da disciplina
sabem que estão sendo vigiados tanto em ato quanto em termos de potencialidade.
Com a potencialidade da vigilância, ela conquista um caráter de estar sempre presente,
criando uma submissão real a partir de um dispositivo que nem sempre é real. Esse
modo não real do poder é a conseqüência de um olhar oniabrangente, que sempre e
em todos os lugares.
E se é verdade que sua organização piramidal lhe um “chefe”, é o
aparelho inteiro que produz “poder” e distribui os indivíduos nesse
campo permanente e contínuo. O que permite ao poder disciplinar ser
absolutamente indiscreto, pois está em toda a parte e sempre alerta,
pois em princípio não deixa nenhuma parte às escuras e controla
continuamente os mesmos que estão encarregados de controlar; e
absolutamente “discreto”, pois funciona permanentemente e em
grande parte em silêncio (FOUCAULT, 1998, p. 148).
Pela vigilância, a disciplina se torna em um sistema de relações interligadas,
sem ter um centro único e um chefe propriamente no topo da pirâmide. O poder se
organiza como uma máquina, organizado de forma piramidal, mas sempre relacional
em forma de rede. “A disciplina faz ‘funcionar’ um poder relacional que se auto-
sustenta por seus próprios mecanismos e substitui o brilho das manifestações pelo jogo
ininterrupto dos olhares calculados” (FOUCAULT, 1998, p. 148). O resultado do
exercício da disciplina pela vigilância é o crescimento de saber e de produtividade dos
sujeitos.
A “sanção normalizadora” é o segundo dispositivo disciplinar. Mesmo que não
mais a punição do poder soberano, existe na disciplina um mecanismo de
penalização, distinto do punir. O que caracteriza a sanção é ser um instrumento de
correção dos desvios. A função primordial é a normalização das condutas segundo as
regras disciplinares. A sanção é a incumbência do exercício da conduta disciplinar.
Promover, gratificar ou rebaixar e degradar são os pólos conseqüentes do pequeno
mecanismo de penalidade do poder disciplinar.
Para Foucault, a punição no regime do poder disciplinar
68
não visa nem a expiação, nem mesmo exatamente a repressão. Põe em
funcionamento cinco operações bem distintas: relacionar os atos, os
desempenhos, os comportamentos singulares a um conjunto, que é ao
mesmo tempo campo de comparação, espaço de diferenciação e
princípio de uma regra a seguir. Diferenciar os indivíduos em relação
uns aos outros e em função dessa regra de conjunto que se deve
funcionar como base mínima, como média a respeitar ou como o
ótimo de que se deve chegar perto. Medir em termos quantitativos e
hierarquizar em termos de valor as capacidades, o nível, a “natureza”
dos indivíduos. Fazer funcionar, através dessa medida “valorizadora”,
a coação de uma conformidade a realizar. Enfim traçar o limite que
definirá a diferença em relação a todas as diferenças, a fronteira
externa do anormal (a “classe vergonhosa” da Escola Militar). A
penalidade perpétua que atravessa todos os pontos e controla todos os
instantes das instituições disciplinares compara, diferencia,
hierarquiza, homogeniza, exclui. Em uma palavra, ela normaliza
(FOUCAULT, 1998, p. 152-153).
O terceiro dispositivo é o “exame”. Ele não consiste simplesmente em mais um
dispositivo, além dos dois apresentados, mas é, sobretudo, uma articulação entre a
“vigilância hierárquica” e a “sanção normalizadora”. No exame, os sujeitos são
dispostos como objetos que são analisados e comparados para qualificar, classificar e,
dependendo do caso, punir (FOUCAULT, 1998, p. 154). A condição de objetos é
produto da relação conjugada de visibilidade dos sujeitos e da invisibilidade do poder
disciplinar.
O exame é a coroação da relação de exercício e efeito do poder porque ele “está
no centro dos processos que constituem o indivíduo como efeito e objeto do poder,
como efeito e objeto do saber” (FOUCAULT, 1998, p. 160). O exame é o resultado da
soma entre a sujeição ao poder disciplinar e à objetivação. O exame não tem como
meta a eliminação, mas o controle pontual dos sujeitos.
Para Foucault, com o exame o poder disciplinar chega à sua expressão de um
exercício constante, seguro e mantenedor da estrutura das relações de força. O poder
age, transforma e guia o caminho dos sujeitos relacionados nas sociedades. Mas é o
exame que esconde todo esse poderio, escondendo suas marcas que regem o espaço
organizado segundo a imposição do próprio poder. Nesse jogo de dominação e
sujeição, de visibilidade e invisibilidade na concretização organizada dos objetos, o
“exame vale como cerimônia dessa objetivação” (FOUCAULT, 1998, p. 156).
69
É ele que, combinando vigilância hierárquica e sanção normalizadora,
realiza as grandes funções disciplinares de repartição e classificação,
de extração máxima das forças e do tempo, de acumulação genética
contínua, de composição ótima das aptidões. Portanto, de fabricação
da individualidade celular, orgânica, genética e combinatória. Com ele
se ritualizam aquelas disciplinas que se pode caracterizar com uma
palavra dizendo que é uma das modalidades de poder para o qual a
diferença individual é pertinente (FOUCAULT, 1998, p. 160).
2.3 – Implicações da desconstrução foucaultiana
A análise dos acontecimentos discursivos que aponta as condições de aparição e
as correlações dos discursos pode levar a algumas interrogações. Uma sociedade
sustentada na crença de um sujeito de conhecimento autoconsciente, livre, senhor de
seus atos, de uma ciência como padrão para o estabelecimento de verdades acima de
qualquer suspeita, porque mantêm objetividade e neutralidade, o pensamento
questionador de idéias assentadas, de Foucault, poderia levar ao niilismo
19
ou, por
outro lado, ele próprio ser negado como sendo simplesmente um anárquico de idéias
estabelecidas. Mas é realmente possível concordar com perspectivas que defendem
que a não adoção de normas ou critérios invariáveis para a verdade, como fez
Foucault, conduza ao niilismo?
O pensamento foucaultiano, com inspiração e ressonância nietzscheana, evita
o recurso às finalizações. O que existe são apenas interpretações e, portanto, somente
um critério supra-histórico poderia afirmar a superioridade de uma interpretação. Esta
posição, contudo, antes de niilista, é desafiadora e produtora de possibilidades. Uma
posição que toma a produção de conhecimentos, não como simples avanço em direção
a uma verdade última, é condição de possibilidade de emergência de novos saberes.
Para além das garantias a que se está habituado, surge um “terreno ainda não
controlado e na direção de um final que não é fácil prever” (FOUCAULT, 1972, p.
52). Sendo o conhecimento um produto humano e histórico, portanto produzido,
reflexões questionadoras de verdades estabelecidas, procurando trazer à superfície
arranjos históricos que possibilitaram que determinado saber valesse, são produtoras
19
O niilismo aqui é entendido como perspectivismo total, sem possibilidade de afirmação alguma.
70
de novos saberes. A história não é o acúmulo de saber, como um resultado que
permanece fixado, datado, daquilo que foi produzido e pensado. Ela é, sobretudo,
nossa condição de ser em relação ao produzir e ao conhecer. Ela existe porque somos
históricos, e não o contrário.
Santin, falando sobre a corporeidade, destaca esta questão da historicidade no
e pelo discurso como elemento organizador no pensamento de Foucault, sobretudo em
A Ordem do Discurso:
O desejo foucaultiano ... nos garantem retomar a teia de significações
que as palavras, corpo e corporeidade, teceram ao longo de nossa
história antropológica. Esta retomada não garante apenas a
restauração do discurso do passado, mas oferece condições para
entender a inauguração de um novo discurso(grifo nosso) (SANTIN,
nº 29, v.1, 1986, p. 9).
Na medida que se coloca em dúvida a pretensa da consciência e do sujeito
soberano em chegar a uma verdade última, ao desenvolvimento do qual a humanidade
como um todo estaria voltada, como pensar novas relações discursivas? Sem dúvida, é
difícil pensar para além do contexto do predomínio da razão. O cultivo da razão tem
sido um dos principais objetivos dos saberes modernos. Mas, num contexto em que
sua universalidade é colocada em questão, é impossível deixar de repensá-la. Pensar
uma nova perspectiva é possibilidade de abertura à criação e interpretação humana,
pois “atrás do sistema acabado, o que descobre a análise das formações não é, ardente,
a própria vida, a vida ainda não capturada; é uma espessura imensa de
sistematicidades, um conjunto cerrado de relações múltiplas” (FOUCAULT, 1972, p.
94).
Na perspectiva foucaultiana, a própria noção de razão é encarada como produto
de uma construção histórica. O desenvolvimento pensante e racional, como um
objetivo abstrato, deixa de levar em conta o caráter relacional, contextual e histórico
do conhecimento, compreendendo sua justificação num “a priori histórico”.
A arqueologia não neutraliza inteiramente a questão da verdade; não
parte dela como critério de avaliação do passado da ciência, mas
71
procura defini-la no interior do próprio saber da época estudada, para
estabelecer as condições de possibilidade dos discursos enquanto
saberes e não suas condições de validade, como faz a epistemologia.
Independente da ciência e de sua atualidade, é a própria época que
define os seus critérios epistêmicos de verdade cujo fundamento é o a
priori histórico (MACHADO, 1981, p. 157).
O conceito dea priori histórico” é central para compreender o pensamento de
Foucault. Aquilo que poderia simplesmente ser compreendido com um criticismo de
superfície e, até mesmo, uma forma de niilismo, tem neste conceito um referencial
teórico daquilo que afirmamos como elemento organizador. A função do a priori
tem o mesmo sentido que em Kant, porém não tem o mesmo sentido e o mesmo
caráter qualitativo de uma universalidade pura e necessária justificada na subjetividade
do eu penso. Foucault, com o a priori, procura “assinalar o elemento básico,
fundamental a partir de que a episteme é condição de possibilidade dos saberes de
determinada época” (MACHADO, 2001, p. 150).
Com o conceito de a priori, não universaliza um único elemento organizador
para todas as épocas, porque ele é compreendido sempre como histórico. Cada época
contém seu a priori histórico como condição de revelar em profundidade os elementos
de saber, poder, de ciências, em suma, das relações daquilo que foi construído nas
diversas áreas e dimensões da sociedade em seu todo. Da mesma forma que não
uma similitude do conceito a priori com o kantiano, o conceito de “histórico” não é o
do historicismo pela sua condição a priorica. Segundo Machado, “o termo a priori
pretende assinalar em que sentido a analise arqueológica se realiza ao nível da
profundidade” (2001, p. 150).
Houve, sem dúvida, nessa região que chamamos a vida, muitas outras
pesquisas além dos esforços de classificação, muitas outras análises
além daquelas das identidades e das diferenças. Todas, porém,
repousavam numa espécie de a priori histórico que as autorizava em
sua dispersão, em seus projetos singulares e divergentes, que tornava
igualmente possíveis todos os debates de opiniões de que eles eram o
lugar. Esse a priori não é constituído por um equipamento de
problemas constantes que os fenômenos concretos não cessariam de
apresentar como enigmas à curiosidade dos homens; tampouco é
formado por um certo estado de conhecimentos, sedimentado no curso
das idades precedentes... (FOUCAULT, 1999, p. 218)
72
A concepção dinâmica do conhecimento por sua historicidade, que prefere
sempre recomeçar na dimensão do pensar, a dar a seu saber valor de verdade absoluta,
vem se destacando como a perspectiva mais viável numa época que questiona
rigorosamente o caráter absoluto da razão. Por isso mesmo, “fazer aparecer em sua
pureza o espaço em que se desenvolvem os acontecimentos discursivos não é tentar
restabelecê-lo em um isolamento que nada poderia superar; não é fechá-lo em si
mesmo; é tornar-se livre para descrever nele e fora dele jogos de relações”
(FOUCAULT, 1972, p. 41).
Em Foucault, a filosofia da consciência, firmemente assentada na suposição de
uma consciência humana que seria a fonte de todo o significado, é deslocada em favor
de uma visão que coloca em seu lugar o discurso. A autonomia do sujeito
plenipotenciário cede lugar a um mundo anteriormente constituído. Nesse movimento,
a consciência e o sujeito deixam de ser determinantes, fixos, estáveis, bem
estabelecidos.
Com o descentramento, o sujeito torna-se uma dimensão do questionável e não
mais uma fundação da pesquisa, tomado como inquestionável. Do mesmo modo, a
linguagem é redefinida. Não mais vista como veículo neutro e transparente da
representação da realidade, a linguagem é compreendida como um movimento em
constante fluxo. Nesse sentido, são questionadas todas as perspectivas que tendem a
fixar o discurso. Isso constitui a genealogia foucaultiana que é “uma forma histórica
que conta da constituição dos saberes, dos discursos, dos domínios de objeto, etc.,
sem ter que se referir a um sujeito, seja ele transcendente com relação ao campo de
acontecimentos, seja perseguindo sua identidade vazia ao longo da história”
(FOUCAULT, 1979, p.7).
Essa perspectiva crítica de Foucault não significa niilismo sem um lugar de
onde se critica, nem falta de compromisso ou responsabilidade. Talvez, ao contrário,
sugere o aumento da responsabilidade, na medida em que muitas posições deixam de
ter um ponto fixo e estável, constantemente submetidas à crítica e à dúvida. Trata-se
73
de não mais buscar uma situação de não poder, totalmente isenta de contaminação
ideológica, a fim de que se torne viável pensar uma perspectiva que vincule saber e
poder. Resultar-se-á, assim, numa alternativa mais modesta, não mais baseada no
conceito de conhecimento como representação da realidade não afetada pelo poder,
mas sustentada no conceito de conhecimento como impregnado de poder e
internamente constituído de realidade.
Dessa forma, o próprio papel do intelectual é transformado, em que não
é mais o de se colocar “um pouco na frente ou um pouco do lado” para
dizer a muda verdade de todos; é antes o de lutar contra as formas de
poder exatamente onde ele é, ao mesmo tempo, o objeto e o
instrumento: na ordem do saber, da “verdade”, da “consciência”, do
discurso (FOUCAULT, 1979, p. 71).
Esta compreensão entra em conflito, em paradoxo com todos os avanços da
ciência que afirma que
“nem tudo é verdadeiro; mas em todo lugar e a todo momento existe
um verdade a ser dita e a ser vista, uma verdade talvez adormecida,
mas que no entanto está somente à espera de nosso olhar para
aparecer, à espera de nossa mão para ser desvelada. A nós cabe achar
a boa perspectiva, o ângulo correto, os instrumentos necessários, pois
de qualquer maneira ela está presente aqui e em todo lugar”
(FOUCAULT, 1979, p. 113).
Com isso, estamos num diálogo que começa e recomeça constantemente. E uma
nova compreensão, um novo discurso, uma nova verdade se constrói, revelando que
são constituídos e constituintes ao mesmo tempo na relação que acontece o mundo na
e com a humanidade.
74
III – A EDUCAÇÃO A PARTIR DE PRÁTICAS DISCURSIVAS
Pensar de forma moderna é pensar a partir de centralidades, como pontos
arquimedeanos, que permitem refletir sobre a totalidade do a ser pensado. Isso se
pela fundamentação num cogito cartesiano, num eu transcendental kantiano, num
espírito absoluto hegeliano e, até mesmo, num super-homem nietzscheano
20
. Trabalhar
com um centro, com um ponto de partida, no sentido moderno, é produzir, também,
periferias. Nos conceitos de saber, poder, verdade, sujeito, da forma como trabalhados
por Foucault, não uma centralidade determinante que engloba uma vasta gama de
conceitos, conteúdos, idéias, que estariam ao entorno. Na tematização da loucura, por
exemplo, percebe-se não apenas a desconstrução dos grandes centros conceituais de
pensamento, mas a descentralização da sociedade, da política, do conhecimento e da
antropologia em sua integralidade em conceitos como de corpo, mente, existência,
formação e educação, ora tematizados por esta pesquisa. Aliás, ele mostra como se
produziram as periferias.
Inspirar-se em Foucault não tem como finalidade encontrar um modelo teórico
para compreender o ser humano em seus modos de ser e agir, mas descobrir novas
formas e novas possibilidades de pensar as manifestações de ser do homem. Neste
sentido, ser foucaultiano, se é possível, não é repeti-lo, mas explorar e manifestar
aquilo que permanece na condição do possível a partir de suas reflexões. Pensar,
repensar o pensado para poder pensar o novo, o diferente, o ainda não pensado torna
20
O super-homem, contudo, não tem o mesmo sentido dos outros centros. Foucault, apesar de aceitar o modo de
pensar nietzscheano, não aceita a idéia do super-homem como um horizonte a ser alcançado.
75
a obra de Foucault um pensamento em constituição e uma reflexão sobre a própria
constituição quando se torna constituída.
Procurar compreender a obra de Foucault se revela como um processo que não
a considera como algo acabado, como um grande número de páginas, constituindo um
arquivo dado à posteridade. Essa interpretação tem suas condições de possibilidade na
própria forma como ele conduziu sua vida e sua obra. Ele “reservou-se o direito de
partir sempre para algo novo e diferente. Mudou com freqüência de idéia e enveredou
por novos caminhos. Fez disso uma virtude e até uma obrigação. Pretendia não deixar
como legado uma doutrina, um método ou uma escola de pensamento” (RAJCHMAN,
1987, p. 07).
Se com Foucault se torna visível a impossibilidade de sistematizar idéias, de
definir um corpo de saberes fechados e aplicáveis em fins diversos, revela-se como
tarefa fundamental recomeçar constantemente na dimensão do pensar,
problematizando as nossas práticas e teorias ao invés de tornar inócuo a dimensão da
reflexão por não atingir um resultado conceitual acabado. Somente poderíamos falar
de um método foucaultiano ou de uma teoria foucaultiana, entendendo de forma bem
diversa, os termos em questão, do que convencionalmente se entende por método. O
“método”, numa perspectiva foucaultiana, é um caminho que se segue num
“questionamento permanente”, sem ser um protótipo de pensamento; é sempre as
possibilidades do possível
21
num “infindável questionamento da experiência
constituída” (RAJCHMAN, 1987, p. 12).
Esta liberdade criativa de reflexão sobre o ser humano tem propiciado tantas
pesquisas sobre Foucault nas mais variadas áreas de conhecimento e sob os mais
variados holofotes possíveis. Mas dessa possibilidade não afirma que com Foucault é
possível pensar tudo, ou que qualquer forma foucaultiana de pensamento é viável em
todas as áreas de conhecimento. Essa forma de pensar seria a formação de um legado,
de uma escola de pensamento. Seria, sobretudo, inverter as expressões de pensamento
21
Isso porque o modo de compreensão desse conceito de possível é compreendido em termos de um a priori
histórico, que é “aquilo que, numa dada época, recorta na experiência um campo de saber possível, define o
modo de ser dos objetos que ai aparecem, arma o olhar cotidiano de poderes teóricos e define as condições em
que se pode sustentar sobre as coisas um discurso reconhecido como verdadeiro” (FOUCAULT, 1999, p. 219)
76
de Foucault que tem uma dimensão de desconstrução, tornando-as em formas
constituintes de realidades, de saberes, de experiências. Ele é, acima de tudo,
desestabilizador do que estabilizador.
Dessa perspectiva, não mais categorias essenciais e centralizadoras ou idéias
nas quais se encontram portos de ancoragem, lugares de repouso para os
pesquisadores. Mas descontinuidades que nos interpelam a ver e pensar a diferença, os
afastamentos, as dispersões, sem ter medo de pensar “o outro no tempo do nosso
próprio pensamento” (FOUCAULT, 2002, p. 20).
A tarefa principal talvez seja de levantar temas que, por reincidentes na
contemporaneidade, convocam uma reflexão filosófica, mostrando qual o modo de
existência que caracteriza aqueles enunciados, os quais desde sempre foram investidos
diretamente de práticas discursivas. Por isso mesmo, da pergunta quem fala?,
multiplicam-se tantas outras: Qual o status do enunciador? Qual seu lugar
institucional? Como se constitui seu papel socialmente? Como se relaciona com os
poderes? Não se deslocam as centralidades, as fundamentações centralizadoras, mas se
descarta a dimensão de centros de pensamento e periferias a serem superadas ou
renegadas.
Aquilo que pode ser a riqueza aberta pelas reflexões de Foucault é ao mesmo
tempo o seu perigo. Como pensar a partir dele uma determinada questão? uma
instância que permite refletir sobre as distintas interpretações que são feitas do
pensamento foucaultiano? Dessa forma, participamos da complexidade e ambigüidade
de pensar a partir de Foucault, constatada por Bourdieu: “nada é mais perigoso que
reduzir uma filosofia, principalmente tão sutil, complexa e perversa, a uma fórmula de
manual” (In. VEIGA-NETO, 2004, p. 07).
Nesse horizonte de compreensão nos situamos para pensar a educação a partir
de Foucault. Delimitar-nos-emos à questão das práticas discursivas como referencial
conceitual de questionamento e de proposições para a educação. Nossa reflexão versa
sobre as bases da educação a partir das práticas discursivas pensadas por Foucault.
77
3.1 – Educação e práticas discursivas
Não questão da educação que não seja uma questão que diz respeito à
linguagem. A forma como se ensina, a aprendizagem, os conteúdos, enfim aquilo que
envolve as relações educativas acontece na dimensão da linguagem. Pensar a educação
a partir das práticas discursivas é pensá-la em sua dimensão mais específica e própria
de ser.
Quando se fala em questão de linguagem, pergunta-se como a realidade pode
ser expressa, dizível, sem ser uma teoria do conhecimento. Permanece a questão da
forma e do conteúdo na relação de significante e significado, podendo ser
compreendido em termos de enunciado e objeto da enunciação. Deleuze explica essa
relação, em Foucault, da seguinte forma:
Foucault considera cada vez mais que seus livros precedentes não
destacam suficientemente o primado dos regimes de enunciado sobre
as formas do ver ou do perceber. É a sua reação contra a
fenomenologia. Mas, para ele, o primado dos enunciados jamais
impedirá a irredutibilidade histórica do visível, pelo contrário. O
enunciado tem porque o visível tem suas próprias leis e uma
autonomia que o põe em relação com o dominante com a autonomia
do enunciado. É porque o enunciado tem primado que o visível lhe
opõe sua forma própria, que se deixará determinar sem se reduzir
(DELEUZE, 2005, p. 59).
Para Foucault, o discurso não está subjugado nem à subjetividade nem à
objetividade das coisas. Primeiramente na dimensão de relação entre linguagem e
mundo, com a virada lingüística na filosofia, compreendida como virada
paradigmática, a supressão da teoria do conhecimento não suprimiu a relação entre o
dizer e o dito, entre o objeto e o enunciado. E nessa relação várias formas de
compreender, mesmo tomando como base a linguagem.
Mesmo após um século de reflexões não como afirmar a existência de uma
solução comum sobre a concepção de linguagem com relação ao mundo, aos objetos.
Distintamente da hermenêutica, que mantém um princípio de realidade, Foucault não
78
trabalha o discurso como uma expressão acerca de um objeto. Não um conceito
para cada objeto. Essa compreensão apenas revelaria uma nova teoria do
conhecimento com outro ponto de partida. A relação primeira que se na ordem do
discurso não está para com a realidade, os objetos, mas para com os próprios
enunciados. Dessa forma, os objetos, os estados de coisas e conceitos de objetos são
formas de ser do próprio discurso, compreendidos como “objetos discursivos”.
Essa compreensão não permite que, em termos arqueológicos, seja trabalhado
cada discurso como constituindo um modo próprio de relação com a realidade objetiva
ou subjetiva, ou seja ela qual for, de um modo específico. A análise arqueológica é
uma análise dos discursos a partir do a priori histórico sem ser uma história dos
discursos de cada área do saber que produz um discurso. Foucault rejeita o
enquadramento tradicional dos discursos em categorias discursivas.
Antes de tudo é importante assinalar que os discursos são abordagens
em um nível anterior à sua classificação em tipos. A analise é feita
sem respeitar a distinção entre tipos discursivos, sem obedecer as
tradicionais distribuições dos discursos em ciência, poesia, romance,
filosofia, etc., sendo assim capaz de dar conta do que se diz em todos
esses domínios sem se sentir limitada por essas divisões. Isso é
possível, segundo Foucault, porque os discursos quando interrogados
pela arqueologia se mostram em um nível mais baixo, mais elementar,
mais fundamental, sendo passiveis, assim, de uma neutralidade
enquanto simplesmente discursos (MACHADO, 2001, p. 161).
Segundo Larrosa, a questão da linguagem na sua relação com os objetos, em
Foucault, não revela uma duplicidade lingüística nem uma duplicidade de
objetividades de expressões, como se a realidade e a linguagem se constituíssem em
dois mundos fechados em si mesmos.
É o discurso, em suma, quem constitui um domínio de objetos como
seu correlato. É nesse sentido que haveria, em Foucault, uma primazia
do discurso sobre o visível. O visível não é a base do dizível, ele
depende, antes, do discurso (embora não se possa reduzi-lo ao
discurso). O discurso, que tem seu próprio modo de existência, sua
própria lógica, suas próprias regras, suas próprias determinações, faz
ver, encaixa com o visível e o solidifica ou o dilui, concentra-o ou
dispersa-o (In. SILVA, 2002, p. 66).
79
A questão de relação do discurso com o sujeito do discurso não é menos
problemática porque, se pensada em termos de sujeito e linguagem, ela apenas se
constitui em outra dimensão da relação entre linguagem e objeto. uma forma de
pensar que propõe uma instância de consciência crítica, de sujeitos esclarecidos pelo
diálogo, como é o caso das teorias da crítica das ideologias
22
. Pensando a partir de
Foucault, não é possível estabelecer essa de pensamento porque, mesmo tomando a
linguagem como paradigma de reflexão, ainda supõe uma autoridade do sujeito diante
da linguagem como alguém capaz de tomar consciência sobre as ideologias na
linguagem.
Para Foucault, o situar-se na dimensão da linguagem, da discursividade, não
significa que uma possibilidade de tal comunidade ideal de fala comunicação. Da
mesma forma que não realidade do mundo soberana em relação ao discurso, não
um sujeito soberano do discurso. O sujeito seja ele em sua individualidade ou de uma
comunidade de comunicação não é a origem, o lugar de fundação do discurso, pois não
há um sujeito originário do discurso.
Larrosa apresenta a mesma argumentação de relação entre sujeito e discurso
daquela entre discurso e objeto. O sujeito está sob a sujeição do discurso.
O discurso, nessa perspectiva, não remete a nenhum sujeito, a nenhum
eu pessoal ou coletivo que o tornaria possível. O que ocorre, antes, é
que para cada enunciado existem posicionamentos de sujeito. O
sujeito é uma variável do enunciado. E são esses posicionamentos,
essas posições discursivas, as que literalmente constroem o sujeito, na
mesma operação em que lhe atribuem um lugar discursivo (In.
SILVA, 2002, p. 66).
Foucault analisa os discursos enquanto práticas formadoras dos objetos em
forma de enunciados, mas não como representação das coisas pelas palavras, nem o
sentido do enunciado numa perspectiva hermenêutica. Interessa o discurso enquanto
prática capaz de produzir determinado saber e, por isso, busca compreender as
condições histórico-sociais, políticas, psicológicas e filosóficas que possibilitaram a
22
É o debate empreendido pela Escola de Frankfurt.
80
irrupção de acontecimentos discursivos, isto é, pergunta “como apareceu um
determinado enunciado, e não outro em seu lugar” (FOUCAULT, 1972, p. 39).
A prática discursiva é entendida por Foucault como “um conjunto de regras
anônimas, históricas, sempre determinadas no espaço e no tempo, que definiram, em
uma dada época e para uma determinada área social, econômica, geográfica ou
lingüística, as condições de exercício da função enunciativa” (FOUCAULT, 1979, p.
13). enunciação a partir de uma prática discursiva circunscrita em determinado
tempo e lugar. Conforme exemplo oferecido por Foucault na Arqueologia do saber, as
letras, tais como estão dispostas numa máquina de escrever, não se constituem em um
enunciado. A mesma disposição, contudo, transcrita para um manual de datilografia é
um enunciado. Neste último caso se têm regras estabelecidas segundo uma prática
discursiva, isto é, formam parte de um conjunto de atos de discursos que tem sentido.
Os enunciados atravessam objetos, conceitos, sujeitos e técnicas. Da mesma
forma que não o sujeito, entendido na categoria de autor, de um discurso, mas
diversas posições situadas do sujeito, o sentido também não é dado de forma a priori,
porque palavras adquirem sentido no interior de uma formação discursiva, isto é, no
jogo de relações com outras palavras, expressões ou construções desta mesma
formação.
O discurso é compreendido enquanto prática que obedece a regras e não como
um documento, como signo de outra coisa, como elemento que deveria ser
transparente. Os discursos sofrem deslocamentos e transformações, e sua trajetória
constitui a história de seus diversos campos de constituição e de validade, as
sucessivas regras de uso nos diferentes meios teóricos em que foi elaborado. A história
é no e pelo saber que se compreende discursivamente e não-discursivamente.
apenas práticas, ou positividades, constitutivas do saber: Práticas
discursivas de enunciados, práticas não-discursivas de visibilidades.
Mas essas práticas existem sempre sob os limiares arqueológicos cujas
repartições móveis constituem as diferenças entre extratos. Esse é o
positivismo, ou pragmatismo, de Foucault; nunca houve problema
quanto às relações entre ciência e a literatura, o imaginário e o
científico ou o sabido e o vivido, porque a concepção do saber
impregnava e mobilizava todos os limiares transformando-os em
81
variáveis do extrato enquanto formação histórica (DELEUZE, 2005,
p. 61).
O discurso entendido como práticas discursivas não pode mais ser considerado
como categoria essencial e ideal, como depósito seguro de conhecimentos claros e
distintos. O que são descontinuidades, rupturas, contextos de produção e
constituição que interpelam ao pesquisador pensar o outro, o diferente no tempo
presente de nosso pensamento.
As perguntas que resultam dessa compreensão complexa são amplas e se
voltam definitivamente para a área da educação. Como o professor poderá transmitir
aos alunos um pacote fechado de conhecimentos, ignorando lugares e tempos de
constituição dos saberes? Ainda podemos falar em objetividade, resultados,
transmissão, mediação e universalidade? Tomar o pensamento foucaultiano para
repensar as bases da educação, não significa fazer nem se pode fazer dele um cavalo
de Tróia, capaz de colocar abaixo todos os obstáculos e dificuldades do campo
educacional. A análise das práticas discursivas no campo da educação permite antes
compreender as diferentes
conformações históricas das práticas discursivas e de suas instituições.
Desvendando as relações de poder no âmbito das práticas educativas,
podemos investir na criação de novas relações, de novas
possibilidades de ser de construção subjetiva, não necessariamente
moldadas pelos cânones instituídos (In. RAGO e VEIGA-NETO,
2006, p. 258).
Pensar a educação enquanto prática discursiva revela, também, como um
procedimento de sujeição de discursos. Considerar a educação enquanto prática
discursiva significa, então, incorporar elementos pré-construídos, produzidos, ligados
com outras formações discursivas. Por maior que seja a banalidade dos assuntos
tratados em emissoras de televisão, por exemplo, sempre haverá um especialista a dar
aval: médico, nutricionista, preparador físico, psicólogo, cientista, todos falam e
assinam a verdade dos fatos. Nisso se constitui o discurso da mídia. Da mesma forma,
a educação está marcada, circunscrita por oposições, distâncias e lutas sociais, como
82
um discurso marcado e constituído por um determinado tempo presente e que também
tem seus “avalizadores”.
Sabe-se que a educação, embora seja, de direito, o instrumento graças
o qual todo indivíduo, em uma sociedade como a nossa, pode ter
acesso a qualquer tipo de discurso, segue em sua distribuição, no que
permite e no que impede, as linhas que estão marcadas pelas
distâncias, pelas oposições e lutas sociais. Todo sistema de educação é
uma maneira política de manter ou de modificar a apropriação dos
discursos, com os saberes e os poderes que eles trazem consigo.
(FOUCAULT, 1996, p. 43-44).
3.2 – Repensando as bases da educação
As problematizações que envolvem a questão da educação não se tornam
inteligíveis apenas nas reflexões das ciências humanas, mas com a explicitação dos
pressupostos filosóficos, ou seja, as bases de fundamentação e justificação de modelos
de educação. Interpretamos Foucault como interrogador das experiências, dos saberes,
das estruturas, das doutrinas e disciplinas constituídas em suas bases. É uma
interpretação filosófica interpretação das bases, como uma compreensão de filosofia
na educação. Esse questionamento nos aproxima de intérpretes de Foucault que não
procuram propor um novo método a partir do próprio Foucault, o que seria uma
filosofia da educação.
Para analisar a educação a partir da perspectiva foucaultiana, recusamos as
explicações unívocas, as fáceis conclusões, a busca incessante do sentido último das
coisas. O trabalho dar-se-á, assim, na trama mesma do discurso, no nível mesmo da
existência das palavras, das coisas ditas, desprendendo-se da noção de discurso como
soma de signos, com significantes que referem determinados conteúdos unívocos e
representáveis, como se no seu interior o sujeito auto-suficiente pudesse encontrar a
verdade pura. Destaca-se a força da constituição sobre a forma, de caráter moderno,
sob a qual se pensou o homem dentro dessa sob a forma de uma obcecação pela
ordem. Na própria educação, a forma e a ordem são produtos das forças que se
produzem nas relações que se estabelecem.
83
Eis o princípio geral de Foucault: toda forma é um composto de
relações de forças. Estando dadas as forças, perguntar-se-á então
primeiramente com que forças de fora elas entram em relação e, em
seguida, qual a forma resultante. Considerem-se forças no homem:
força de imaginar, de recordar, de conceber, de querer... Objetar-se-á
que tais forças supõem, já, o homem; mas não é verdade, como forma.
As forças, no homem, supõem apenas lugares, pontos de aplicação;
uma região do existente... Trata-se de saber com quais outras forças as
forças no homem entram em relação, numa ou noutra formação
histórica, e que forma resulta desse composto de forças (DELEUZE,
2005, p. 132).
Se tiradas conseqüências da abordagem foucaultiana para a área da educação,
diversas compreensões educacionais acabam perdendo sua sustentação ou, ao menos,
revelam-se como problemáticas. Diferentes psicologias da educação acabam perdendo
o sono tranqüilizante do sonho moderno na medida em que a tarefa educacional se
configura muito mais próxima ao trabalho do detetive que, em intricadas e confusas
pistas, precisa ordenar, classificar, perguntar mais uma vez e, quando pensa ter
chegado ao termo, dá-se conta uma vez mais que foi realizada apenas mais uma
leitura, mais uma interpretação entre tantas outras explorações possíveis.
Pensar as bases da educação a partir das práticas discursivas significa, entre
outras coisas, questionar fundamentalmente duas inércias fortemente encasteladas no
campo pedagógico. A primeira é uma forte dependência de um modo de pensamento
antropológico. Trata-se de uma crença arraigada de que é uma “idéia de homem” e um
projeto de “realização humana” que fundamenta a compreensão de educação e o
planejamento das práticas educativas. A segunda, é o ocultamento da própria
pedagogia como constituinte, isto é, como produtora de pessoas, e a crença arraigada
de que as práticas educativas são meras mediadoras, onde se dispõem de recursos
metodológicos eficientes para o bom desenvolvimento dos indivíduos, desde que
sigam as linhas do eficiente método de condução do espírito.
Para a reflexão das bases da educação em sua estrutura de ser, que
questionamos desde a introdução, como a questão orientadora de interpretação da
modernidade e sua extensão na contemporaneidade, tomaremos alguns conceitos, não
da didática geral, nem de grades curriculares, nem das relações praticadas dentro da
84
sala de aula e da escola, mas conceitos que condicionam esses e que compreendem o
sentido desses. Também, não afirmamos que os conceitos considerados compreendem
os conceitos fundamentais da educação, mas conceitos que revelam os pressupostos
filosóficos, sociológicos, psicológicos e políticos. Eles se constituem numa
possibilidade de manifestar a modernidade presente na educação atual e a forma de
debate com Foucault, abrindo novas possibilidades e iniciativas de construção de
formas de ser, agir e pensar a educação em suas particularidades.
Parafraseando Foucault em relação a Hegel, na Ordem do discurso
23
, podemos
dizer na perspectiva de um debate com a modernidade sobre a educação, isto: para que
escapemos realmente à modernidade, é necessário que se aprecie o que nos custa este
afastamento; é necessário que se saiba até onde insidiosamente, talvez, ela se
aproximou de nós; é necessário que se saiba o que de moderno naquilo que nos
permite pensar contra a modernidade; e é necessário que se avalie em que medida é
que a nossa ação contra a modernidade não será talvez ainda uma armadilha que a
própria modernidade nos coloca e no termo da qual ela nos espera, imóvel, em outro
lugar.
Osório Marques leva esta relação de pertença e distância no âmago da própria
atestação de crise da modernidade. Quando se fala em uma nova época, em
contemporaneidade, supõe-se que a precedente não consegue mais responder às
questões de um outro presente. Nesta perspectiva, permanece um ponto escuro na
compreensão do presente em que se está inserido porque não se tem claro e distinto se
somos contemporâneos em totalidade ou ainda temos traços da modernidade, que tanto
é questionada. Osório Marques afirma o seguinte da crise da modernidade:
Não é uma crise da modernidade em vários setores, é a crise da
própria modernidade em seu âmago, em seu conteúdo, não em suas
formas externas. Aceita-se a modernização, isto é, os efeitos externos
da modernidade, mas a modernidade, ela mesma em seu cerne, como
forma da razão humana, como o próprio exercício da razão, isto está
em crise. Estão em crise os fundamentos da razão, as condições da
possibilidade do conhecimento (OSORIO MARQUES,1992, p. 52)
23
“Mas escapar realmente de Hegel supõe apreciar exatamente o quanto nos custa separar-se dele; supõe saber
até onde Hegel, insidiosamente, talvez, aproximou-se de nós; supõe saber, naquilo que nos permite pensar contra
Hegel, o que ainda é hegeliano; e medir em que nosso recurso contra ele é ainda, talvez, um ardil que ele nos
opõe, ao termo do qual nos espera, imóvel e em outro lugar” (FOUCAULT, 1996, p. 72-73).
85
Compreender o seu presente é, sempre, o grande desafio do ser humano. Essa
idéia aparece claramente numa perspectiva daquilo que se compreende como ontologia
do presente em Foucault, sobretudo na leitura que faz de Kant enquanto intérprete do
iluminismo.
Referindo-me ao texto de Kant, eu me pergunto senão podemos
pretender que a modernidade seja mais que um período da história,
uma atitude. Com atitude quero dizer um modo de se relacionar com a
atualidade; uma escolha voluntária, feita por alguns; enfim um modo
de pensar e de sentir, também uma maneira de agir e de proceder que
ao mesmo tempo marca um pertencimento e uma tarefa. Um pouco,
sem dúvida, como o que os gregos chamavam éthos.
Conseqüentemente, mais que distinguir o ‘período moderno’ das
épocas ‘pré’ ou ‘pós-moderno’, creio que seria melhor analisar de que
maneira a atitude de modernidade a partir do momento em que ela se
constitui, se encontra em luta com atitudes de contra modernidade
(FOUCAULT apud GONGRA e KOHAN, 2006, p. 95).
3.2.1 – Método e processo
Nas obras de História da Filosofia se apresenta a modernidade constituída a
partir da insatisfação em relação às explicações de questões fundamentais elaboradas
pela Idade Média. A modernidade tem, por isso, como preocupação central, a
fundamentação e a justificação dessas questões no sentido de alcançar o estatuto de
ciência. O importante é encontrar um caminho certo para a verdade, para o
conhecimento, para, então, construir a ciência. Encontrar as condições de possibilidade
de um saber seguro para todas as ciências se apresentava como a exigência por
excelência.
A educação foi pensada e organizada a partir dessas convicções fundamentais
elaboradas pela modernidade. O cultivo da razão tem se apresentado como um dos
principais objetivos da educação escolar. Educação e produção de racionalidade
praticamente se confundem. A razão é entendida como sendo universalidade abstrata,
colocada acima de qualquer contexto, contingência e, portanto, é reta e inflexível,
desde que acompanhada de um método significativo.
86
O pensamento foucaultiano problematiza precisamente esta noção universal e
abstrata da razão, com conseqüências precisas na área da educação e, em especial,
sobre as questões de método. Foucault não mais compreende de forma moderna a
definição do conhecimento como claro e distinto, desde que seja utilizado um eficiente
método investigativo. É, no e pelo processo que vai se constituindo o conhecimento, a
aprendizagem. A ação pedagógica, neste sentido, não se encontra colocada do lado de
fora do processo, como instância neutra e eficaz, mas é também vulnerável ao caráter
particular e histórico de todo conhecimento.
A subjetividade da modernidade é uma subjetividade constituinte, é o lugar
último de todas as fundações. Foucault, por sua vez, afirma a “dispersão do sujeito”,
isto é, o envolvimento dos sujeitos no processo de construção de mundo, de formações
discursivas, de subjetividade e de sociedade em que está inserido. Fala-se de algum
lugar concreto, determinado, histórico, particular, que jamais permanece idêntico. O
discurso, antes de ser somente constituição da representação da realidade ou do lugar,
é, ao mesmo tempo, constituinte de realidade, dos sujeitos e de todas as formas de
práticas discursivas.
Enuncio individualmente, de forma concreta, constituindo-me
provisoriamente um, ambicionando jamais cindir-me, porém a cada
fala minha, posiciono-me distintamente, porque estou falando ora de
um lugar, ora de outro, e neste lugar, interditos, lutas, modos de
existir, dentro dos quais me situo, deixando-me ser falado e, ao
mesmo tempo, afirmando de alguma forma minha integridade
(FISCHER, 1995, p. 20).
Se levarmos em conta a questão dos métodos, como processos em que a
educação acontece de uma forma, percebe-se que a ão pedagógica não se
compreende de forma alguma como uma prática e uma ação de caráter neutro. Ela é
um processo que se dentro de uma formação discursiva num espaço e tempo
presente. Está marcada de forma radical pelo projeto de acontecência do momento
histórico no decorrer da ação pedagógica. Por isso, o querer e o poder fazer
pedagógico não estão isentos de opções teóricas filosóficas, políticas e científicas, que
87
ultrapassam a relação de um profissional burocrata com um aprendiz receptor,
revelando uma formação de um modo de ser de sociedade e de sujeito.
Não apenas afirmamos uma idéia de processo como substituto da idéia de
método, mas, a partir de Foucault, a própria idéia de processo se mostra como um
conceito a ser repensado. Em momentos de planejamentos pedagógicos de um período
escolar não se define ou não se compreende previamente a idéia de processo como
algo no qual os alunos devem se inserir ou devem entrar. Por mais que se pense num
processo constantemente aberto, mais na condição do possível, distinguindo-se da
idéia de método, ele é pensado em termos de exercício e de prática construído na e
pela aprendizagem no todo do corpo da escola que são os alunos, professores,
funcionários, prédios, livros, banheiros, pais, amantes, etc.
Esta compreensão de uma nova atitude pedagógica que vai contra todas formas
de didáticas como técnicas, expressa aquilo que José Ternes propõe “como exercício
mesmo do pensamento”. Isso
exige uma espécie de engajamento, um Beruf, que não é dado de fora
pela lei, pela metodologia, pela burocracia. Não se trata de fazer
funcionar uma máquina, como resultados previsíveis. E se ainda se
puder usar esta palavra máquina, somente no sentido deleuziano,
máquina de guerra. Algo como gênio nietzscheano, a tentação de
Santo Antão, a de Bosch, o pacto com o diabo de Fausto, o fio de
Ariadne perdido, invenção traquina de Foucault. (...) Um ponto de
apoio, pelo menos? Com Foucault, e o campo de discursividade por
ele aberto, talvez a solidão, o descaminho, a imprudência do conhecer
e do ensinar (In. GONDRA e KOHN, 2006, p. 103).
Tomando como base a idéia de Foucault, acerca da sujeição do sujeito ao
discurso, deslocam-se as possibilidades de reflexão de uma instância de consciência
crítica para um encontrar-se no caminho de compreensão em que se está inserido. Com
isso, a idéia de método, mesmo na educação, cai por terra, porque não “existe o
caminho, nem mesmo um lugar aonde chegar e que possa ser dado antecipadamente.
Isso não significa que não se chegue a muitos lugares; o problema é que tais lugares
não estão lá (...) para serem alcançados ou nos esperar” (VEIGA-NETO, 2004, p. 18).
88
A perspectiva educacional aqui proposta poderá ser muito significativa desde
que não se limite a educação sob o ponto de vista de sua estrutura interna, atenta
apenas às questões da coerência, do rigor lógico, das suas proposições e do seu método
de verificação, mas se estende à análise do contexto da produção das teorias através do
estudo dos aspectos históricos, sociológicos, psicológicos e filosóficos que a
condicionam. Nesse sentido, o lugar de partida da educação em seu processo, ao invés
de método, é o próprio mundo vivido do presente, mas “uma partida que não anuncia
de antemão o ponto de chegada, que permita que o pensamento aconteça livremente e
não o circunscreva em cânones pré-definidos” (RAGO e VEIGA-NETO, 2006, p.
255).
O determinante na compreensão educacional ainda de caráter moderno é a
relação entre o professor-sujeito do discurso e o aluno-objeto do discurso, mesmo que
a centralidade do processo de aprendizagem não está mais no professor, mas no aluno,
porque no essencial a escola ainda é o instrumental e o lugar em que os alunos
procuram se formar. Este esquema tem acompanhado o planejamento educacional,
consolidando-se em suas mais variadas dimensões de ensino em nossos dias. Na
tentativa de superação desse esquema, têm sido elaborado muitas teorias educacionais,
que procuram fazer da educação uma comunidade ideal de linguagem como um lugar
comum entre professor e aluno, cada um na sua condição.
Se essas questões forem pensadas a partir da perspectiva foucaultiana, por
mais que se pense e se discuta a necessária aproximação entre educador e educando,
haverá sempre uma relação de poder entre os dois, sem que se consiga estabelecer uma
relação perfeita de comunicação e entendimento entre ambos.
A atitude mais prudente, numa perspectiva educacional com ressonâncias
foucaultianas, é trabalhar na trama mesma do discurso, sabendo que este é constituído
por relações de poder. O saber na e pela linguagem não é prescindível de expressões
de poder que correm, que cortam, que cruzam, nas relações de diálogos sobre as quais
o saber vive e re-vive.
89
3.2.2 – Objetivos e subjetivos
Nesse ponto, situar-nos-emos em contradição com o projeto que escrevemos
para esta dissertação. Neste escrito, em quase sua totalidade critica toda a idéia de
objetividade pensada pela modernidade, contradiz os elementos do projeto onde se
estabelecem os objetivos. Os objetivos de um projeto procuram esclarecer aquilo
que vai ser pesquisado, o ponto de partida e o ponto de chegada, revelando um
caráter de objetividade que tem em conta iia de objeto como o resultado de um
procedimento, um método de conhecimento.
A queso que se coloca é: se a modernidade que está na base dessa forma de
elaboração, e seu paradigma é o da subjetividade, não deveria ser subjetivo geral e
subjetivos específicos? Não propomos, de forma alguma, uma mudança dos
conceitos, substituindo uns pelos outros. Apenas os interrogamos, porque a
substituição apenas revelaria a mesma coisa, e nada mudaria. Por que a
subjetividade moderna é uma subjetividade objetiva e a objetividade é subjetiva:
subjetividade objetiva ou objetividade subjetiva?
Outra queso de contradição se na apresentação e na defesa de uma
dissertão como esta. Aquilo que ela procura mostrar não está em sintonia com
uma banca de defesa, com um processo de avalião, com períodos estáticos de
aulas e de elaboração, enfim com a estrutura ditica do pós-graduão em ciências
humanas. Nesta perspectiva, Foucault escreve na Ordem do Discurso como um
elemento paradoxal: entre o desejo e a instituição.
O desejo diz: Eu, eu não queria ter de entrar nesta ordem arriscada
do discurso; o queria ter de me haver com o que tem de
caterico e decisivo; gostaria que fosse ao meu redor como uma
transparência calma, profunda, indefinidamente aberta, em que os
outros respondessem à minha expectativa, e de onde as verdades se
elevassem, uma a uma; eu não teria seo de me deixar levar, nela
e por ela, como um destroço feliz. E a instituição responde: “Vo
o tem por que temer começar; estamos todos aí para lhe mostra
que o discurso es na ordem das leis; que há muito tempo se cuida
de sua aparição; que lhe foi preparado um lugar que o honra mas o
desarma; e que, se lhe ocorre ter algum poder, é de s, de s,
que ele lhe advém” (FOUCAULT, 1996, p. 7)
90
Olhando-se nessas perspectivas, vai se mostrando que a modernidade ainda
está muito presente na ptica científica e educativa. As vozes que se levantam
estão apenas, neste como de minio, a ter vez e voz ativa. Todo esse aparato
teórico da ciência moderna, sobretudo das teorias do conhecimento, determinou a
educação como um todo. Ainda hoje, na elaboração de projetos, se fala de objetivo
geral, de objetivos específicos, demonstrando a clareza e a compreensão daquilo
que se pretende investigar pelo caráter da objetividade.
A educação o conseguiu, mesmo com tanta vulnerabilidade, das mais
diferentes formas, trabalhar com uma não-objetividade, em seus métodos, em seus
objetivos e em suas motivações subjetivos. Ela não consegue permanecer no jogo
das acontecências sem uma determinão prévia e posterior que se tornem certezas
objetivas com as quais seja possível julgar, refletir, questionar e agir. Para Silvio
Gallo, essa ascese constante para um nível de certeza e objetividade como
determinante de toda a estrutura da educão o suas próprias ervas daninhas”:
Nesta área de saber grassam duas ervas daninhas, que atrapalham o
pensamento e mesmo o impedem: a primeira espécie é a das
certezas prontas dos dogmatismos de toda ordem, que crêem numa
verdade revelada, seja por um deus, pela natureza ou pela história,
como no caso das visões religiosas, dos positivismos, de certos
marxismos. A segunda espécie é a das certezas prontas das
“novidades que são anunciadas a cada ano, e que propõem uma
“nova visão”, uma nova verdade que substituirá aquela dos
dogmatismos, tornando-se ela mesma um novo dogmatismo (In.
RAGO e VEIGA-NETO, 2006, p. 254).
Uma prática educacional de cunho moderno está enraizada na atenção à
eficácia, aos comportamentos objetivos e aos princípios de aprendizagem que tratam o
conhecimento como algo a ser consumido e as escolas como meros instrumentais,
destinadas a passar para os alunos um conjunto de conhecimentos capazes de habilitar
o sujeito para a vida em sociedade. Partir de uma perspectiva foucaultiana, contudo,
significa repensar a crença de se chegar a conhecimentos estáveis, objetivos e seguros
mediados pelas ocultas práticas educativas. Esta perspectiva se aproximaria daquilo
que Alfredo Veiga-Neto expressou da seguinte forma:
91
Fugir a uma tradição. Neste caso, fugir à minha própria tradição...
Fugir àquilo que, em minha forma de escrever, tem sido mais
tradicional (...) Como deixar um pouco de lado a sempre torturante
lapidação que me acompanha, na constante preocupão com uma
estrutura textual lógica e gramaticalmente rigorosa? E no âmbito
daquilo que se costuma chamar de conteúdo: saberei escrever sem
me preocupar tanto com o rigor das tecnicidades daquilo que
escreve e com os mapas e amarrões conceituais dos temas que
abordo? (In. GONDRA e KOHAN, 1996, p. 79).
Acreditar na estabilidade e linearidade do conhecimento é acreditar que a
própria linguagem é estável e segura, suposição que não faz sentido na perspectiva
foucaultiana.
Os discursos, portanto, não têm princípios de unidade. E daí surge a
idéia de analisá-los como um dispersão. A dita unidade de um
discurso, como uma ciência, por exemplo, unidade procurada ao nível
do objeto, do tipo de enunciação, dos conceitos básicos e dos temas, é
na realidade uma dispersão dos elementos (MACHADO, 1981, p.
162).
Pensamos que seria possível, a partir do pensamento foucaultiano, elaborar
projetos em que não se falaria de conceitos objetivos, mas sim subjetivos como
processos de subjetivação, não modernos, que demonstram a contingência e a
provisoriedade de toda e qualquer pesquisa. Talvez seria mais realista uma perspectiva
que aceita a possibilidade de se chegar ao não objetivo. Suspeitamos que a
objetividade tão requerida esquece do envolvimento do sujeito na produção do
conhecimento, podendo este ser completamente diferente na medida em que outros
sujeitos o produzissem. Este envolvimento tem sua manifestação primordial na relação
da linguagem com o pré-conceitual, em que a unidade de sentido da linguagem tem
suas raízes na dispersão lingüística de sua constituição.
92
3.2.3 – Resultados
O pensamento educacional tem como marca fundamental uma compreensão que
privilegia, sobretudo, os resultados objetivos da aprendizagem, com direcionamentos
significativos na busca de uma consciência humana libertada e emancipada. Essa
posição recebeu destaque no humanismo tradicional através da suposição de uma
essência humana que necessita ser desenvolvida, potencialmente capaz de ser atingida,
uma vez que tal desenvolvimento é próprio da natureza humana. É parte essencial
também dos fundamentos de várias psicologias da educação, tais como as humanistas
e as desenvolvimentistas. Não escapam também dessa tradição as chamadas
pedagogias críticas, com suas ênfases na conscientização crítica.
Essa maneira de conceber a educação é a conseqüência direta do iluminismo
24
,
de uma sociedade esclarecida racionalmente, baseada na antropologia moderna que
concebia uma natureza humana única e universal. Descartes inicia seu Discurso do
Método evidenciando esta universalização da natureza humana pelo conceito de razão:
O bom senso é a coisa do mundo melhor partilhada, pois cada qual
pensa estar tão bem provida dele, que mesmo os que são mais difíceis
de contentar em qualquer outra coisa não costumam desejar tê-lo mais
do que o têm. E não é verossímil que todos se enganem a tal respeito;
mas isso antes testemunha que o poder de bem julgar e distinguir o
verdadeiro do falso, que é propriamente o que se denomina o bom
senso ou a razão, é naturalmente igual em todos os homens
(DESCARTES, 2000, p. 29).
Essa racionalidade universal como essência da subjetividade, para ser bem
conduzida, precisa de um bom método
25
. O método se torna a forma de alcançar
conhecimentos capazes de cientificidade. E a forma de julgamento sobre a
conformidade de evidência e certeza dos conhecimentos tem sua condição na questão
do resultado. O ponto de partida e o processo do método dependem do pressuposto
ontológico que se estabelece e que se verifica no resultado, na condição de seu alcance
ou não alcance daquilo que uma investigação procurou dar conta.
24
A questão da crítica se torna central em Kant, e no Iluminismo em geral como o ideal de toda formação da
consciência crítica, revelando também a crítica “do conhecimento e da educação que têm sua base nos ideais
iluministas” (PETERS, 2001, p. 53).
25
Cf. supra 1.1 O Cogito como fundamentação.
93
A questão do resultado aparece de forma paradigmática em Kant. No Prefácio
da segunda edição da Crítica da Razão Pura, a idéia de resultado aparece como um
divisor de águas na metafísica. Essa forma de conhecimento ainda não ultrapassou a
etapa de um mero tatear que volta constantemente a pontos de origem sem produzir
conhecimentos seguros que possam servir de base para as investigações nas ciências.
A clareza sobre o resultado é tal que se torna o princípio de estabelecimento de uma
nova proposição conceitual para a teoria do conhecimento e da metafísica.
Se a elaboração dos conhecimentos pertencentes ao domínio da razão
segue ou não o caminho seguro de uma ciência, isso deixa-se julgar
logo a partir do resultado. Quando após muito preparar-se e equipar-se
esta elaboração cai em dificuldades tão logo se acerca do seu fim ou
se, para alcançá-lo, precisa freqüentemente voltar atrás e tomar outro
caminho; (...); então se pode estar sempre convicto de que tal estudo
acha-se ainda bem longe de ter tomado o caminho seguro de uma
ciência, constituindo-se antes um simples tatear (KANT, 2000, p. 35).
A modernidade é elaborada e compreendida como uso metódico da razão para
se chegar ao termo do caminho sem passar por outras veredas que não levam a
resultado algum. A organização da educação na e pela escola tem a questão do
resultado como uma das bases orientadoras e até mesmo normativa de seu
planejamento e replanejamento em termos de atividades. A organização das séries e
anos letivos é determinada pelo resultado, na condição de que este é a instância de
poder que permite uma ascese ou a permanência na mesma série por mais de um ano.
Isso sem levar em conta que em escolas particulares a demissão ou permanência dos
professores depende totalmente dos resultados de sua ação pedagógica.
Essa compreensão que aparece no nível das relações práticas entre professores,
alunos, coordenações pedagógicas, instituições, tem como base a questão do resultado
como justificadora do método, da teoria do conhecimento e da ciência que orientam as
áreas de conhecimento que formam a grade curricular. A mesma questão é pensada em
nível da realização e promoção humana dos estudantes como um processo que levaria
a uma consciência crítica, esclarecida, autônoma e uma auto-realização em termos de
sucesso pessoal. Dessa compreensão, resultam variadas teorias educacionais baseadas
94
“na noção de que o conhecimento e o saber constituem fonte de libertação,
esclarecimento e autonomia” (SILVA, 1995, p. 250).
Para Foucault, na Microfísica do Poder, a verdade é sempre uma verdade desse
mundo. E o mundo não é nada mais do que a relação de formações discursivas e não-
discursivas. A verdade, então, não é uma instância fora desse jogo de relações. O
resultado do método, de um planejamento, de uma forma de conhecimento, enquanto
uma verdade, será produto de uma formação discursiva e de uma verdade não
enraizada em um solo ontológico estabelecido e dado previamente.
O discurso não pode ser constituído inexorável e inflexivelmente. Pelo
processo, nas práticas discursivas, o próprio resultado torna-se provisório pela
transformação do próprio ponto de partida, compreendidos no e pelo próprio
processo
26
. Na modernidade, o ponto de partida e o resultado estão previamente
estabelecidos e dados independentemente do processo. Com Foucault, o processo é
que manifesta o ponto de partida e o resultado. A partir disso, na educação o resultado
é vulnerável à própria caminhada da ação pedagógica que vai se concretizando.
Defenestrando o resultado como uma entidade e, conseqüentemente, o próprio
ponto de partida, não instância de julgamento que permita avaliar a negatividade ou
alcance do resultado que de forma moderna ainda se estabelece de forma a priori.
Todo processo de educação chega a algum resultado, mas o sentido desse conceito
não pode ser pensado em termos de modernidade porque a vida e a acontecência do
mundo não são levados em conta. O resultado vai se manifestando na acontecência da
própria vida que mescla escola, trabalho, família, desejos, cultura, questões
financeiras, políticas, deficiências físicas, psicológicas, etc.
A variabilidade e a flexibilidade de perceber o alcance do resultado não se
limita aos conceitos avaliativos expostos em um currículo. Um bom resultado na
escola não significa a garantia de bons resultados em tudo aquilo que está na dimensão
do agir e do ser do mesmo indivíduo. Aquilo que se tem como “bons resultados” na
26
“Gostaria de me insinuar sub-repticiamente no discurso que devo pronunciar hoje, e nos que deverei
pronunciar aqui, talvez durante anos. Ao invés de tomar a palavra, gostaria de ser envolvido por ela e levado
bem além de todo começo possível” (FOUCAULT, 1996, p. 5).
95
perspectiva institucional não é necessariamente a condição de “bons resultados” em
termos práticos de vivência no todo das relações da sociedade, sobretudo, na questão
do trabalho. Com esta idéia, entramos na questão da formação e da vida.
3.2.4 – Conteúdos e produção
Na dimensão da educação humana, emancipação e consciência crítica
representam a idéia de resultado conforme Kant e a modernidade pensaram. A
emancipação foi compreendida como uma dimensão humana alienada pelas
vicissitudes históricas, convertida em tarefa de apropriação por parte do ser humano,
sendo a educação metódica o modelo, por excelência, que permite chegar à própria
essência perdida ou camuflada pelas ideologias. “As análises de Foucault do nexo
poder-saber levantam dúvidas sobre a possibilidade ou desejabilidade de dar algum dia
uma resposta final à questão: que práticas e discursos pedagógicos são libertadores?”
(GORE, in. SILVA, 1995, p. 17). Mesmo utilizando-se do método cartesiano ou de
outros tantos que são constantemente elaborados pelas mais variadas ciências da
educação, o resultado dos estudos e investigações estarão sempre permeados de poder
e de desejos que não permitem a ascese a um resultado racional e científico.
O discurso, em Foucault, não é um instrumento neutro e transparente de
representação da realidade. A forma como nomeamos o mundo não é o reflexo de uma
realidade representável, mas é produção, constituição da realidade. Essa compreensão
lingüística tem implicações marcantes no campo educacional e em sua análise. Como
em qualquer outro campo social, para usar uma expressão própria de Foucault,
também a educação é possível graças a categorias discursivas. Costumeiramente, essas
categorias são tomadas como resultado de um processo lógico racional de
representação da realidade, elaborado por sujeitos também racionais que fazem uso de
um razoável método. Tendemos, entretanto, a esquecer que essas categorias, conceitos,
possibilitam ou restringem aquilo que podemos pensar, sentir, dizer ou fazer. E que
outras categorias seriam condições de possibilidade de pensar de forma diferente o que
comumente pensamos.
96
Dessa perspectiva, a idéia de sujeito da educação é transformada. Seu modo de
ser não é pensado como uma entidade que pode e precisa ser preenchida por um
conhecimento que ainda lhe está fora ou distante. Cai a concepção de uma comunidade
de conhecimento na qual os alunos devem ser introduzidos segundo a objetividade e a
verdade do próprio conhecimento sem levar em conta a verdade sobre si mesmo do
aluno e seu conhecimento na forma de aprendizagem.
O sujeito pedagógico ou, se quisermos, a produção pedagógica do
sujeito, não é analisada apenas do ponto de vista da “objetivação”,
mas também e fundamentalmente do ponto de vista da “subjetivação”.
Isto é, do ponto de vista de como as práticas pedagógicas constituem e
medeiam certas relações determinadas da pessoa consigo mesma.
Aqui os sujeitos não são posicionados como objetos silenciosos, mas
como sujeitos falantes; não como objetos examinados, mas como
sujeitos confessantes; não em relação a uma verdade sobre os mesmos
que lhes é imposta de fora, mas em relação a uma verdade sobre si
mesmos que eles mesmos devem contribuir ativamente para produzir.
(LARROSA apud TADEU DA SILVA, 2002, p. 54).
Revela-se como questionável a perspectiva educacional que apresenta o
professor como aquele que diz aos outros o que devem fazer. Com que direito poderia
fazer isso? Seu trabalho não é de modelar a vontade dos outros, mas antes de
reinterrogar as evidências, os postulados dados como acabados. Com Foucault, são
sacudidos antigos hábitos, as maneiras modernas de fazer e de pensar, dissipadas as
familiaridades aceitas, retomadas a medida das regras e das instituições e a partir desta
problematização repensadas as bases da educação.
A educação moderna tem se apresentado como a detentora de um pacote
fechado de conteúdos representados pelo sujeito auto-suficiente, senhor de si mesmo.
Foucault, através do conceito de regime de verdade como uma tecnologia do eu, incita
a sermos mais humildes em nossas justificações pedagógicas, reconhecendo que existe
um grande trabalho de desconstrução a ser realizado. Com suas contestações de
verdade e asserções de inocência de todos os discursos educacionais, a abordagem
mais prudente a ser levada a termo é perguntar pelas condições de possibilidade de
determinado saber, mostrar que outras formas de conhecimento são relegados ao
esquecimento. Que outros saberes coexistem?
97
A pedagogia não pode ser vista como um espaço neutro ou não-
problemático de desenvolvimento ou de mediação, como um mero
espaço de possibilidades para o desenvolvimento ou a melhoria do
autoconhecimento, da auto-estima, da autonomia, da autoconfiança,
do autocontrole, da auto-regulação, etc., mas como produzindo formas
de experiência de si nas quais os indivíduos podem se tornar sujeitos
de um modo particular (LARROSA, in. SILVA, 1995, p. 57).
Para Foucault, tudo é prática. O discurso ultrapassa a mera significação, a
simples referência às coisas, mas existe para além, apresenta regularidades intrínsecas
a si mesmo, através das quais se impõe aos indivíduos. O discurso seria constitutivo da
realidade e produziria, com o poder, inúmeros saberes. Trata-se de um conceito de
discurso que constitui uma trama que ultrapassa o meramente lingüístico, capaz de
constituir realidades e subjetividades. Descrever um enunciado, neste sentido, é dar-se
conta dessas especialidades, é apreendê-lo como acontecimento, como algo que
irrompe num certo tempo, num certo lugar, pois pertencem a uma formação discursiva.
A prática discursiva não se confunde com a expressão de idéias, pensamentos ou
formulações de frases. Exercer uma prática discursiva significa falar segundo
determinadas regras, com tempo e espaço.
3.2.5 – Formação e vida
A questão de base que se coloca é sobre a relação que se estabelece entre os
sujeitos e destes com a realidade como um todo. A modernidade tem como
pressuposto a noção de sujeito como apenas constituinte de realidade, capaz de
desenvolver de forma natural sua autoconsciência, de representar o mundo tal como
ele propriamente é. Bastaria de um método adequado para o sujeito desenvolver, de
forma natural, sua autoconsciência, para este recuperar a verdade de sua consciência
de si. Com Foucault, torna-se necessário repensar esses pressupostos educacionais.
Esse repensar, contudo, não pode se dar de forma independente das práticas
educacionais. Pois é no próprio discurso, no seu âmago, na articulação complexa dos
discursos e das práticas, que o sujeito é constituído.
98
"Nesse sentido, Foucault chama a atenção para a necessidade de reconsiderar
alguns de nossos pressupostos sobre a escolarização e de olhar de forma renovada e
mais atenta para as micropráticas do poder nas instituições educacionais” (GORE, in.
SILVA, 1995, p. 12). De um sujeito capaz de ser constituinte com a ajuda de um bom
método ou de um mestre com a capacidade de transmitir a realidade representada, há a
necessidade de reconsiderar uma compreensão mais abrangente, que envolve o caráter
relacional, contextual e histórico das relações humanas. É no interior dos contextos,
com data e lugar determinados, que vai se desenvolvendo o sujeito. E quando é
colocado o desafio de, em primeiro lugar, compreender quem somos, perguntando
como poderíamos ter sido constituídos diferentes ou, até mesmo, que contextos
históricos nos constituíram assim, então somos conduzidos a repensar alguns dos
pressupostos da educação moderna.
A própria experiência de si não é senão o resultado de um complexo
processo histórico de fabricação no qual se entrecruzam os discursos
que definem a verdade do sujeito, as práticas que regulam seu
comportamento e as formas de subjetividade nas quais se constitui sua
própria interioridade. (...). E esse ser próprio sempre se produz com
relação a certas problematizações e no interior de certas práticas.
(LARROSA, in. SILVA, 1995, p. 43).
A educação está orientada por uma tecnologia capaz de fornecer os
instrumentos para o sujeito poder viver, da melhor forma possível, seus desejos na
sociedade. Esse protótipo de formação não está co-implicado naquilo que se e
acontece no cotidiano prático das pessoas porque a sua concretização conduziria a uma
sociedade realizada em termos de desejos, anseios e sonhos, algo que não se verifica,
num primeiro olhar, sobre a dimensão econômica tão díspar entre classes.
O conceito idealístico de um resultado sempre posto como horizonte futuro não
está em conexão com as condições particulares e peculiares das pessoas nem com seus
desejos. A pedagogia não seria propriamente constituinte do ser humano, mas suas
práticas seriam meras “mediadoras”, onde se dispõem de métodos adequados para o
verdadeiro desenvolvimento dos sujeitos, como fica bem expresso no depoimento
abaixo de um educando:
99
As escolas deveriam ensinar você a se realizar, mas não o fazem. Elas
te ensinam a ser um livro. É fácil tornar-se um livro, mas tornar-se
você mesmo é preciso que você tenha várias opções e seja ajudado a
avaliar estas opções. Você tem que aprender isso, do contrário não
estará preparado para o mundo lá fora (GIROUX, 1997, p. 125).
A compreensão da prática pedagógica como espaço institucionalizado de
desenvolvimento da natureza humana autoconsciente, dona de si mesma, com
Foucault, passa a ser entendida como espaço de produção. As práticas pedagógicas
deixam de ser tomadas tão-somente como espaço de possibilidades, delimitado e
organizado para que as pessoas possam se desenvolver ou recuperar as formas de
relação consigo mesmas, e passa a ser em si mesmo um espaço de produção.
As práticas educacionais são marcadas por um processo contínuo de reflexão
sobre a educação, sobre a relação entre os diversos agentes, relação que exige ser
continuamente revisada e reelaborada. É aqui o ponto de situação, de trabalho que a
escola necessita constantemente retomar. Uma postura educacional que valoriza a
compreensão e o mundo vivido dos sujeitos envolvidos é, no mínimo, expressão de
valorização contextual, situacional dos sujeitos constituintes e constituídos, ao mesmo
tempo.
O que somos, ou melhor ainda, o sentido de quem somos, depende das
histórias que contamos e das que contamos a nós mesmos. Em
particular, das construções narrativas nas quais cada um de nós é, ao
mesmo tempo, o autor, o narrador e o personagem principal
(LARROSA, Jorge. in. TADEU DA SILVA, 1995, p. 48).
O conceito de formação dos educadores é compreendido na perspectiva de uma
realização socializadora do conhecimento. Essa formação não é apenas uma
informação repassada dos formadores para formandos e desses, depois, para outros
formandos, alunos. Não apenas a situação de mundo, de educadores e educandos,
encontra-se presente nas práticas educativas, mas o próprio saber, que é sempre
histórico, situado, construído, constitui-se a base do mundo vivido dos sujeitos
envolvidos.
100
Sempre se afirma que a escola tem um papel fundamental para o todo da
sociedade. Mas esse papel está delimitado a uma parcela da população. Uma das
questões que poderiam reafirmar peremptoriamente este papel é criando ligações entre
o período escolar e o pós-escolar. Nessa relação, ligar-se-ia a formação com a vida
para além da própria formação escolar. Não apenas formação para uma condição de
vida, mas uma formação para e com uma vida em formação.
Se a educação permanente não significa aumento dos anos de escolaridade e se
a rapidez com que se operam as mudanças nos mais diversos campos da cultura torna
rapidamente obsoletos os conhecimentos adquiridos, como planejar a educação de
maneira que, reduzindo-se o número de anos de escolaridade, assegure ao educando a
capacidade de ele aprender de maneira a dirigir a sua própria aprendizagem,
recorrendo aos mais diversos meios disponíveis? A escola não pode ser apenas uma
parte da vida, mas ser pensada a partir da vida da escola a escola como a vida em toda
a sua dimensão espacial e temporal.
3.2.6 – Universalidade e regionalização
Hodiernamente, a educação o se compreende a partir de uma representão
ordenada que progrida de forma linear, segundo princípios pedagógicos,
estabelecida por uma coordenação. A educão é mais que uma tarefa complicada
que poderia ser enquadrada na metodologia corrente, proveniente da modernidade,
de uma fragmentação de conhecimentos, por uma decomposição que poderia
solucionar os problemas particulares e peculiares que se apresentam e afetam o
todo da educação. o há como justificar e fundamentar a educação numa
concepção universal de método, de conceitos, de propostas, de modo de ser, de
objetivos, etc. Os conceitos de arbitrariedade e contingência têm alcançado destacado
interesse nas pesquisas pedagógicas, manifestando uma outra forma de compreensão
que não é padronizado universalmente.
Todas as minhas análises são contra a idéia de necessidades
universais na existência humana. Elas mostram a arbitrariedade das
101
instituições e mostram quais espaços de liberdade podemos ainda
desfrutar e como muitas mudanças podem ainda ser feitas
(FOUCAULT, apud. GORE, in. SILVA, 1995, p. 17).
A universalidade na contemporaneidade não tem o caráter moderno, se é que
ainda ela existe como um conceito que pode ser pensado no campo teórico-prático. A
constante formação dos professores, e uma formação que está direcionada para setores,
regiões, revela a fragmentação do saber também na regionalização cultural, nas
constantes mudanças e na impossibilidade de uma verdade compreendida na dimensão
sincrônica e diacrônica.
A contemporaneidade ainda está por se fazer. Ela nos envolve. E por isso não
podemos afirmar aquilo que ela é. Uma das formas é dizer aquilo que a atualidade se
distingue da modernidade. A contemporaneidade é construção que a humanidade ainda
não conseguiu definir. Talvez, essa seja sua característica mais própria.
Talvez tudo que possamos dizer com algum grau de segurança é o
que o pós-moderno não é. Certamente não é um termo que designa
uma teoria sistemática ou uma filosofia compreensiva. Nem se refere
a um sistema de idéias ou conceitos no sentido convencional; nem é
uma palavra que denota um movimento social ou cultural unificado.
Tudo o que podemos dizer é que ele é complexo e multiforme, que
resiste a uma explanação redutiva e simplista (EDWARDS, in.
VEIGA-NETO, p. 21).
Não se trata de partir de uma teoria prévia que explique toda a nossa relação
com o mundo, mas de reconhecer a impossibilidade de existir uma perspectiva
privilegiada, com uma metanarrativa capaz de representar o que costumamos
denominar a “realidade do mundo”. As doutrinas subjacentes ao pensamento
pedagógico moderno estão à espera de uma desconstrução que possa revelar seu
caráter não transcendente, mas construído e, por isso, arbitrário.
Este trabalho de desconstrução, que foi aberto por vários pensadores
contemporâneos, manifesta uma complexidade da acontecência da vida e de suas
compreensões no campo da educação. Aqueles que estão sendo inseridos na
compreensão do saber pelo processo de formação adquirem uma compreensão distinta
102
de seres de uma “tabula rasa” que passa a ser preenchida, formando o cidadão
formado, educado. Esta complexidade é o reflexo de uma auscultação da pluralidade
do mundo vivido que não mais é um objeto de conhecimento. O grande desafio
contemporâneo educacional é priorizar este particular, sem uma homogeneização de
caráter universalista. Segundo José de Oliveira, ainda o educador é incumbido deste
papel de homogeneização:
... a escola lhe confere a tarefa de homogeneizar o trabalho
pedagógico, cumprindo o programa que lhe é dado no tempo que lhe é
determinado. Por essa razão o educador geralmente aposta no repasse
das definições cristalizadas, dos conhecimentos bem definidos, dando
pouca um nenhuma atenção aos questionamentos (afinal saberes
que se chocam com determinadas crenças, valores que se opõem a
valores) feitos pelos alunos (JOSÉ DE OLIVEIRA, 2001, p. 18)
Segundo José de Oliveira (2001), o que está em questão é a redução do espaço
de diálogo entre toda a diversidade de expressões e saberes presentes na escola por
uma homogeneização que se afirma como a verdade daquilo que é ensinado e deve ser
ensinado. A escola, que tem raízes modernas, toma para si a posição promotora e
veiculadora de conhecimentos verdadeiros por esse caráter universal sob a forma do
homogêneo. Daí vem a famosa questão que Nietzsche também coloca: o que é a
verdade? Será que na escola não se um profundo jogo de metáforas justificadas
num acordo compreensivo, mas que é negado pela homogeneização?
As reflexões foucaultianas têm como elemento primordial afastar-se do modo
moderno de conceber a verdade e o conhecimento e não apenas da forma como a
subjetividade se justifica e é justificante. Na compreensão de José de Oliveira, as
formas de a escola trabalhar a questão da diversidade e dos projetos pedagógicos por
uma homogeneização revela a constatação de Osório Marques (1986) de que ainda se
aceitam as bordas externas da modernidade. Mas contra esses resquícios, algumas
vozes se levantam para propor a forma de ser e proceder da educação, colocando,
sobretudo, diálogo nos diversos saberes, o que “significaria ouvir os argumentos do
outro examinar suas razões, repensar as próprias razões e delas extrair elementos que
103
pudessem reduzir o hiato existente entre as visões de mundo postas em conflito”
(JOSÉ DE OLIVEIRA, 2001, p. 18).
Repensar as bases da educação a partir do pensamento de Foucault vem se
constituindo em uma, entre tantas outras, importantes possibilidades do pensar e fazer
pedagógico atual. Com isso, não estamos afirmando o pensamento de Foucault como a
nova alternativa, muito menos como o novo método pedagógico. Queremos afirmar,
com ele a importância de repensar as bases da educação nas suas dimensões de
resultado, de ensino, de método, de conteúdo, de objetividade, homogeneização,
realização humana, etc., muitas vezes compreendidas como prontas e acabadas.
Acreditamos que a prática educativa é muito mais possibilidade de pensamento, de
análise crítica daquilo que comumente se aceita como o conhecimento, como sendo a
verdade última das coisas.
Em termos de interrogação, pode ser assim formulado: antes de ensinar ou
transmitir aos alunos uma série de conteúdos, conhecimentos, saberes, não seria mais
pedagógico formação/vida numa perspectiva foucaultiana, compreender,
perguntar, interrogar pelas condições que possibilitaram a emergência de determinado
saber e não de outro em seu lugar? Essas indagações, contudo, não teriam como
finalidade chegar a conhecimentos “claros e distintos”, isentas de poder, mas em
condições de pensar o diferente como possível. Isso conduz a novas compreensões da
questão da universalidade e do particular na educação que vai se estabelecendo com as
pessoas individuais, com as comunidades e com a cultura de um mundo epocal em que
se está inserido.
104
CONCLUSÃO
Tendo presente a questão de pensamento em termos foucaultianos, convém
perguntar pelo sentido e pelas possibilidades de uma conclusão. É preciso concluir?
Por que concluir? Quando concluir? Como concluir? Nessa perspectiva pretendemos
concluir este trabalho, mas com um novo sentido para o conceito de conclusão,
distinto daquela que a própria educação apresenta.
Quando pensamos em conclusão, pressupõe-se, imprescindivelmente, um
princípio, um começo. Dessa forma, entra em questão o sentido de princípio, de
começo? Esse questionamento revela um paradoxo entre a estrutura de um texto
segundo os requisitos de uma instituição e o desejo de enunciar de forma não-
canônica, não-institucional.
Essa questão o próprio Foucault experiencia
27
, expresso assim no discurso
inaugural da cátedra que assumiu no lugar de Jean Hypolite:
Gostaria de me insinuar sub-repeticiamente no discurso que
devo pronunciar hoje, e nos que deverei pronunciar aqui
talvez durante anos. Ao invés de tomar a palavra, gostaria de
ser envolvido por ela e levado bem além de todo começo
possível. Gostaria de perceber que no momento de falar uma
voz sem nome me precedia muito tempo: bastaria, então,
que eu encadeasse, prosseguisse a frase, me alojasse, sem ser
percebido, em seus interstícios, como se ela me houvesse dado
um sinal, mantendo-se, por um instante, suspensa. Não
haveria, portanto, começo; (FOUCAULT, 2001, p. 5).
O que está em questão é a idéia de começo como convencionalmente se
compreende. O começo que se questiona é da concepção que o compreende como um
lugar, um ponto, sem precedente algum, excluindo toda questão histórica, seja ela
compreendida arqueológica ou genealogicamente. No texto A Ordem do Discurso está
27
Esta passagem já foi citada em partes, mas aqui a retomamos num outro sentido possível de reflexão que ela
abre.
105
manifesto um retraimento às questões de um ponto de partida do qual pudesse ser
justificado o pensamento, o ser e o agir. Foucault revela a ambigüidade da relação que
se estabelece entre a acontecência da vida, em sua historicidade e dinamicidade, com a
formalização e organização institucional da escola, da universidade.
Tendo presente este debate, em termos de reflexão, enfatizamos a questão do
processo de acontecência da educação, destacando a vida, as ações e pensamentos que
não estão determinados pela homogeneização justificada por uma verdade cristalizada.
Junto com Foucault, tem-se em Nietzsche, uma espécie de guardião, que nos previne
de recair em proposições educativas que são questionadas como tendo bordas da
modernidade. Justamente por não se mostrar claramente onde é que começam, onde
principiam, nossos pensamentos, nossas ações, nossos modos de viver, que esta
conclusão finca pé na questão de não concluir.
As análises arqueológicas e genealógicas têm como função destacar a
historicidade na formação dos saberes, das ciências e os modos como elas se
relacionam no todo da sociedade. E um elemento destacado é a vigoração do poder
como constitutivo nas relações em que o saber vai se estabelecendo. Foucault insiste
incisivamente que a constituição das ciências é, primordialmente, histórico, mas que,
por questão de objetividade, tendem a desconsiderar sua historicidade inerente. Essa
negação, construída pela modernidade, tem como finalidade a comprovação da
universalidade, da objetividade, do método, do ponto de partida e do resultado atingido
de forma clara e evidente, como uma forma segura de avanço no saber pela ciência.
Esse é o lugar determinante da educação que ainda retém elementos em suas
práticas. Foi contra essa forma de organização e efetivação de educação que este texto
versou, refazendo alguns passos que vai da modernidade até as propostas de reflexão
de Foucault e que se produziram sobre ele. Nosso debate versou sobre as bases da
educação, numa perspectiva filosófica, de uma filosofia na educação. Aquilo que se
chegou é a compreensão de um esquecimento ou anulação das próprias justificações
dos elementos fundamentais da modernidade. O saber moderno e sua estruturação
procedeu por uma atitude de matematização da realidade, da acontecência da vida,
algo que é possível, mas que, em nosso entender, partindo de Foucault, não pode ser
absolutizado. E o próprio acesso à vida, à historia e às relações diversas do pensar, do
106
ser e do agir humano não pode ser homogeneizado por uma atitude científica e
matemática, revelando sua forma de ser humano.
A desconstrução das reflexões de Foucault procura mostrar o modo como o
sujeito é constituído na e pelas instituições, mas também pela não oficialidade de
relações que vão acontecendo à margem da organização estrutural societal. Nesse jogo
de relações é que a verdade, os conhecimentos e leis não são compreendidas em sua
universalidade e necessidade moderna. Nietzsche afirma que a vida é muito mais que
tudo isso, e, também, que essa estruturação não é determinante de modo total na
construção da vida dos sujeitos. É esse “a mais” que tem se manifestado em larga
escala na contemporaneidade, como expressões do diferente, da diferença, não mais
em sintonia com a identidade, que é a base de compreensão moderna.
Nossa reflexão procura compreender que esse jogo de relações vai criando um
novo jogo de verdades e de conhecimentos, formando um novo modo de vida de
caráter próprio. Como a educação é uma dimensão fundamental na construção dos
modos de ser e viver das comunidades, ela está numa condição de ambigüidade porque
o que está movendo é esse jogo da diversidade numa relação com aquilo que a
constituiu por meio da escola, que é um produto da modernidade.
Foucault é um pensador que teve como modos de pensar a arqueologia e a
genealogia, numa perspectiva de filósofo e historiador, mas sempre motivado por uma
ontologia do presente. Retomando de Kant, O que é o Iluminismo?, uma insistência na
busca de compreensão de seu presente, procurando saber de que forma fomos
construídos, constituídos. É nessa relação entre aquilo presente, atualidade, e sua
formação na e pela história, torna-se possível compreender a educação atual e sua
construção histórica.
A partir disso, é possível pensar em contribuições para a educação que Veiga-
Neto agrupa em três eixos:
Penso que, nesse âmbito, pode-se agrupar as contribuições de
Foucault em três eixos. Num deles, estão os seus estudos acerca do
poder disciplinar, incluídos os dispositivos de vigilância e controle
em funcionamento na escola moderna; isso vale tanto para a educação
de crianças pequenas quanto para a educação de jovens e adultos,
tanto para a educação Infantil quanto para o ensino universitário. No
outro eixo, estão as contribuições de Foucault no campo que se
107
costuma denominar Razão Política. As suas formulações sobre o
biopoder e a biopolítica têm sido da maior importância para
compreendermos os processos pelos quais se estabeleceram e se
mantêm — o Estado moderno, o liberalismo, a lógica capitalista. Tudo
isso adquire hoje ainda mais importância, quando a ênfase na
disciplina está se deslocando para a ênfase no controle e quando o
modelo imperialista de dominação e exploração está dando lugar a
esse novo modelo que Antonio Negri e Michael Hardt denominam
modelo imperial. E, no terceiro eixo, coloco as contribuições de
Foucault no campo da constituição do sujeito moderno através das
práticas de si mesmo, isso é e para usar a própria expressão do
filósofo —, como um sujeito da ética. Vêm sendo muito numerosas e
interessantes as investigações que têm descrito e mostrado práticas
escolares seja na educação infantil, seja no ensino universitário
que operam no sentido de nos constituírem como sujeitos cujas
identidades são cada vez mais descentradas, instáveis, mutantes. Aqui,
lembro Raul Seixas; com suas antenas sensíveis, o artista criou,
mais de duas décadas, a excelente expressão “metamorfoses
ambulantes” (VEIGA-NETO, 2006, p. 5).
Essa retomada da modernidade, num debate com contemporaneidade, teve
como finalidade as possibilidades de uma priorização de elementos que estão à base da
forma moderna de conceber, como nos embates entre subjetivo/objetivo,
universalização/regionalização, formação/vida, conteúdos/produção, resultados,
método/processo, e outros conceitos, no sentido de uma não-cristalização como
determinante, mas numa acontecência de “metamorfose ambulante”. O que
procuramos apresentar não foi uma nova proposta pedagógica, mas refletir as
possibilidades de repensar e de propor novas formas pedagógicas de conduzir a
educação. Compreendemos que essas possibilidades podem ser concretizadas no
momento em que for situado aquilo que é o elemento organizador das justificações e
fundamentações que regem uma forma de ser, de pensar e de agir, aqui, a educação.
Uma das questões que permanece em aberto, como novas possibilidades de
pensar com Foucault e a partir dele, é o que fazer com a instituição, o que fazer com a
formalização de discursos, como este, também em relação aos desejos, tal como ele
apresenta de forma embativa no texto A Ordem do Discurso? Como é possível que a
instituição e a formalização, podem ser veículos de proposição daquilo que foi
refletido neste texto e que vai contra elas em quase sua totalidade? De que forma é
possível uma institucionalização contemporânea, como formadora de sujeitos,
108
formadora de saberes em consonância com a manifestação da pluralidade e
diversidade de ser e pensar em toda a sua complexidade dispersiva contemporânea?
Essas questões permanecem em aberto, como questões de limites, mas que
evidenciam que aquilo que é debatido já não pode permanecer o mesmo.
Pela pesquisa, abriu-se para nós um novo horizonte de trabalho como padre. A
lexio divina é o material que circunscreve, de modo primordial, nossas atividades. E,
justamente, neste constante trabalho exegético, pensamos a possibilidade de aplicação
de Foucault: a exegese comandada pela proposta de desconstrução. Mas, com o
mesmo foco, versando sobre a educação e formação cristã. Foucaultianamente, como
surgiu e se construiu o que podemos chamar de o protótipo de cristão? O nosso desafio
é trabalhar as questões da teologia, tendo presente as interrogações e críticas
nietzscheanas na direção da arqueologia e genealogia foucaultiana. Acreditamos que
pensar a teologia em termos contemporâneos é trabalhá-la sob o crivo da arqueologia e
da genealogia para compreender a formação daquilo que é o mundo de conceitos,
sentidos e significados que são a base do mundo ocidental e do qual fazemos parte, e
daquilo que ainda nos identifica como cristão.
A teologia não pode ignorar essa ascese da lucidez para a qual nos convidam as
teorias críticas, tenham elas sua origem na psicanálise, na crítica marxista das
ideologias ou nas diferentes formas do método genealógico, na esteira de Nietzsche ou
de M. Foucault. Uma teologia responsável não pode permanecer numa soberba
ignorância diante do deslocamento verificado pela crítica de Foucault.
Compreendemos que neste choque se concretiza o fazer teológico contemporâneo, isto
é, a passagem da teologia como saber constituído para a teologia como constituição,
como construção.
Além dessa nova perspectiva do fazer teológico como uma prática de formação
da subjetividade, a questão da formação nas comunidades terapêuticas, que
coordenamos, torna-se reveladora de uma importante reflexão do fazer pedagógico. A
retomada diária de todo o processo, de mais um dia sem álcool, é a afirmação de uma
não universalização e uma não institucionalização de um processo educativo. Os
109
conceitos de diversidade e pluralidade, amplamente discutidos nas novas propostas de
educação sugeridas em nosso país, são formas de ser das relações que vão sendo
construídas nas comunidades terapêuticas. A subjetividade dos internos precisa ser
desconstruídas para que uma forma de vida sem álcool possa se manifestar. A partir de
Foucault, de que forma seria possível inserir este debate dentro da educação como um
todo, e não apenas como uma forma de educação especial e totalmente particular?
Com mesmo destaque a educação das pessoas com deficiências, estaria em
condições de ser pensada dentro dos padrões de uma formação que teria o humano em
sua centralidade, independente de sua forma de expressão e de ser, normal ou
anormal? Esse questionamento é possível a partir de um repensar as bases, em que os
conceitos de universalidade, necessidade, objetividade, e outros que debatemos acima,
construídos na modernidade, são colocados em questão.
Mas, sentados ou não em frente à escola, à educação como um todo, os motivos
e as questões que se abrem se multiplicam. A mesma questão, o mesmo tema, então,
sob um ângulo diferente torna possível cada vez um estudo mais vivo, mais pleno de
interesses. Podemos ficar nesta mesma posição, com inclinações para a direita ou para
esquerda, durante meses, anos, e a variedade não se esgotaria nem mesmo numa
intensa ocupação. É a dimensão da acontecência da própria construção em que a
educação insere e está inserida. Mas essa parcialidade não significa uma
unilateralidade centralizadora ou exclusivista. A reflexão precisa estar sempre em
estado de nascença em e sobre onde ela já se situa. Não há ser humano sem educação e
nem educação sem ser humano. Constituinte e constituído se encontram na e pela
construção de um-em-outro de ambos.
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