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Universidade Federal do Rio de Janeiro
AGRURAS DE ESCRITOR: AS VICISSITUDES DA VIDA AUTORAL
NA OBRA DE RUBEM FONSECA
Luis Cláudio de Menezes
2008
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Universidade Federal do Rio de Janeiro
AGRURAS DE ESCRITOR: AS VICISSITUDES DA VIDA AUTORAL
NA OBRA DE RUBEM FONSECA
Luis Cláudio de Menezes
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Letras Vernáculas da Universidade
Federal do Rio de Janeiro UFRJ, como quesito para a
obtenção do título de Mestre em Letras Vernáculas
(Literatura Brasileira).
Orientador: Prof. Doutor. Wellington de Almeida Santos.
Rio de Janeiro
Agosto de 2008
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AGRURAS DE ESCRITOR: AS VICISSITUDES DA VIDA AUTORAL NA OBRA DE
RUBEM FONSECA
Luis Cláudio de Menezes
Orientador: Prof. Doutor Wellington de Almeida Santos.
Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras
Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ, como parte dos requisitos
necessários para a obtenção do título de Mestre em Letras Vernáculas (Literatura Brasileira).
Examinada por:
___________________________________________________
Presidente Prof. Doutor Wellington de Almeida Santos
___________________________________________________
Prof. Doutor Alcmeno Bastos – UFRJ
___________________________________________________
Prof. Doutor Francisco Venceslau dos Santos – UERJ
___________________________________________________
Prof. Doutor
Godofredo de Oliveira Neto – PPG Letras Vernáculas – UFRJ, Suplente
___________________________________________________
Prof. Doutor Luis Alberto Nogueira Alves – UFRJ, Suplente
Rio de Janeiro
Agosto de 2008
A Gilvan e Francisca, meus pais;
A Rosana, Giselle, Thiago e Fernando, minha irmã, meus sobrinhos e cunhado;
A Raquel, minha Musa;
A Luciano e Fábio, meus amigos.
AGRADECIMENTOS
Este trabalho não seria possível sem a preciosa orientação do professor Wellington de
Almeida Santos. Tampouco sem a bolsa oferecida pelo CAPES. Muito menos sem o apoio,
opiniões, sugestões e idéias de Luciano Lanzillotti de Menezes, Lívia Fróes, Margarethe
Cerva, Elaina Carla, Gláucia Souza, Ricardo Riso, Fernanda Barboza, Ana Regina Couto,
Maurício Martins do Carmo, Claudius Waddington, Ruth Luz, Érico Braga, Cláudia Barbeito,
Rogério Saturnino e Marcelo McCord. Agradeço ainda aos meus colegas de estudo,
companheiros de aprendizagem, aos professores, instigadores do saber, e aos funcionários do
Departamento de Pós-Graduação em Letras da UFRJ. Minha gratidão especial aos professores
Francisco Venceslau e Alcmeno Bastos pela participação na banca examinadora.
Tomar a atividade de escrever como uma profissão da vida inteira
deveria razoavelmente ser considerado uma espécie de loucura.
Friedrich Nietzsche
“Por que você se tornou escritor?”
“Gente como nós ou vira santo ou maluco, ou revolucionário ou
bandido. Como não havia verdade no êxtase nem no poder, fiquei
entre escritor e bandido.”
Rubem Fonseca
RESUMO
MENEZES, Luis Cláudio. Agruras de escritor: as vicissitudes da vida autoral na obra de
Rubem Fonseca. Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em
Letras Vernáculas (Literatura Brasileira), Faculdade de Letras, da Universidade Federal do
Rio de Janeiro UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de
Mestre em Letras, 2008.
A dissertação tem como objetivo investigar a representação da figura do escritor na
obra de Rubem Fonseca, tanto nos romances quanto nos contos, e que são marcados por uma
visão irônica do ofício das letras. Três tópicos principais serão pesquisados. O primeiro deles
será a ambivalente relação entre autor e mercado, buscando-se analisar a inserção do escritor e
da obra literária no âmbito dos meios de massa, além de se refletir sobre o papel do público-
leitor em tal contexto. O segundo se voltará para as vicissitudes da vida literária, seus altos e
baixos, júbilos e misérias, ilusões, desilusões e dilemas. Por fim, se abordará o erotismo e sua
relevância para a caracterização dos personagens e de suas histórias.
Palavras-chave:
Rubem Fonseca;
Meios de massa;
Vida literária;
Erotismo.
ABSTRACT
MENEZES, Luis Cláudio. Agruras de escritor: as vicissitudes da vida autoral na obra de
Rubem Fonseca. Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em
Letras Vernáculas (Literatura Brasileira), Faculdade de Letras, da Universidade Federal do
Rio de Janeiro UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de
Mestre em Letras, 2008.
The dissertation has as main objective to investigate the representation of the character
of the writer in Rubem Fonseca’s work, his novels and short-stories, which are marked by an
ironic perspective about literary craft. Three main topics will be researched. The first one is
the ambivalent relation between the author and the market, analyzing the insertion of the
writer and the literary work into the mass media and reflect on the role of the readers in that
context. The second one is about the vicissitudes of literary life and its ups and downs,
delights and suffers, illusions, disillusions and dilemmas. Finally, the eroticism and how
relevant that is for the characterization of the characters and his stories.
Key-words:
Rubem Fonseca;
Mass media;
Literary life;
Eroticism.
SIGLAS
AAR – “A arte de andar pelas ruas do Rio de Janeiro”
AJE – “Agruras de um jovem escritor”
AO – “Artes e ofícios”
AST – “*** (Asteriscos)”
BF – Bufo e Spallanzani
CE – “A Confraria dos Espadas”
CM – O caso Morel
CS – “Corações solitários”
DF – Diário de um fescenino
DM – O Doente Molière
GA – A grande arte
HMS – “H.M.S. Cormorant em Paranaguá”
IG – “Intestino grosso”
LT – “Labaredas nas trevas”
MMP – E do meio do mundo prostituto só amores guardei ao meu charuto
NP – “Natureza Podre ou Fanz Potocki e o mundo”
PC – “Pierrô da caverna”
RN – “Romance negro”
VEPI – Vastas emoções e pensamentos imperfeitos
SUMÁRIO
1.INTRODUÇÃO.................................................................................................................................................. 11
2.Artes e ofícios: o preço das palavras .................................................................................................................. 16
2.1.Das artes às letras........................................................................................................................................ 16
2.2.A arte da fome e a fome de arte .................................................................................................................. 16
2.3.A ambigüidade de Asteriscos e a estética visceral......................................................................................18
2.4.Dos fatos às ficções ........................................................................................................................ ............21
2.5.Ditos interditos................................................................................................................................ ............27
2.6.Escrever é contar palavras .............................................................................................................. ............31
2.7.Ocasiões e edições .......................................................................................................................... ............35
3.Labaredas nas trevas: júbilos públicos e misérias privadas................................................................................ 41
3.1.Ver e Pensar................................................................................................................................................ 41
3.2.Debalde demanda........................................................................................................................................ 42
3.3.Os artifícios de "Artes e ofícios" ................................................................................................................ 45
3.4.Agruras de um jovem e de um velho escritor..............................................................................................51
3.4.1.A distância da superfície ao fundo. ................................................................................................... 51
3.4.2.Pensamento polifásico ou vastas emoções e pensamentos imperfeitos............................................. 52
3.4.3.Mal secreto........................................................................................................................................ 57
3.5.De criadores a criaturas................................................................................................................................63
3.5.1.O manuscrito..................................................................................................................................... 64
3.5.2.O envenenamento.............................................................................................................................. 67
3.5.3.O labirinto da imaginação. ................................................................................................................ 71
4.A confraria dos espadas: Eros e Tânatos ........................................................................................................... 76
4.1. Espadas e Fesceninos................................................................................................................................ 76
4.2. Eros e Tânatos............................................................................................................................................ 78
4.3. Em busca de Sofia ..................................................................................................................................... 79
5.CONCLUSÃO.................................................................................................................................................... 85
6.REFERÊNCIAS ................................................................................................................................................. 88
1. INTRODUÇÃO
Em uma crônica intitulada O romance morreu, publicada no livro homônimo (2007),
Rubem Fonseca se questiona sobre a anunciada morte da literatura de ficção. Desde o final do
século XIX, passando por todo o século XX e pelo início deste novo século, a literatura tem
sido alvo de contínuas sentenças capitais, condenando definitivamente seu desaparecimento.
As razões de sua finitude seriam o progressivo surgimento e propagação de novas tecnologias,
como o automóvel, o cinema, o rádio, a televisão, o computador e a internet. Todos esses
recursos afastariam o blico das obras literárias, relegando à literatura de ficção um papel
praticamente irrelevante, o que significaria simplesmente o seu fim.
Todavia, como o próprio autor enfaticamente informa em sua crônica, enumerando
nomes de escritores que, mesmo a cada nova descoberta tecnológica continuaram a escrever e
publicar, a literatura seguiu e segue viva e instigante. Sendo assim, o que parece estar
acabando não é a literatura, mas sim o leitor. E Fonseca se questiona: “Poderá vir a ocorrer
esse paradoxo, o leitor acaba, mas não o escritor?” (FONSECA, 2007, p.9). A resposta dele
para esta pergunta é de que talvez os leitores acabem, mas não os escritores. Estes
continuarão, irão resistir.
“Adianta escrever, se ninguém vai ler?”, indaga o protagonista de O caso Morel
(1973), primeiro romance de Fonseca. “Adianta, sempre” (FONSECA, 1995, p.8), responde-
lhe um outro personagem, seu amigo e também escritor. Na crônica, essa insistência na
criação literária é chamada de síndrome de Camões. Diz-se que o poeta português teria,
durante um naufrágio, escolhido salvar o manuscrito de Os lusíadas em lugar de resgatar a
amada. E “para quem ler?”, pergunta Fonseca, “estávamos no século XVI e muito pouca
gente em Portugal sabia ler. Mas Camões pensou nesse punhado de leitores, era para eles que
Camões escrevia, não importava quantos fossem.” Mesmo o ofício das letras sendo repleto de
12
agruras e implicando em vicissitudes tanto na vida privada quanto na pública, os autores
seguem resistindo, escrevendo e publicando.
O objetivo desta dissertação será investigar a representação da figura do escritor na
obra de Rubem Fonseca. Dada a relevância que este tema possui em seus livros, fazendo-se
presente na maioria dos romances e em inúmeros contos, é possível destacar de que maneira
os escritores são representados e sobre o que suas histórias dizem respeito. Apesar da
variedade de abordagens, um elemento se sobressai: a perspectiva irônica que é lançada por
Fonseca sobre a vida literária, uma ironia às vezes cáustica, às vezes amarga, que busca
desmistificar um ofício, paradoxalmente, ainda muito idealizado, mas também bastante
menosprezado nos dias atuais.
A maior parte dos personagens escritores fonsequianos a serem analisados são
profissionais. Vivem do que escrevem. Há alguns diletantes, como Lima Prado e seu avô,
personagens do romance A grande arte (1983), ambos escritores frustrados. o Cobrador,
protagonista do conto publicado na coletânea homônima (1979), é poeta, ou pelo menos assim
se considera. Todavia, o que se privilegiará, na primeira parte do estudo, serão aqueles
personagens que mantêm uma relação profissional com a atividade literária.
No âmbito público, os profissionais das letras possuem uma ambivalente relação com
o mercado editorial. A base teórica adotada pelo presente estudo buscará refletir tal
ambivalência. Umberto Eco, em Apocalípticos e integrados, considera que a fórmula contida
no título de seu livro não sugeriria necessariamente “a oposição entre duas atitudes (e os dois
termos não teriam valor de substantivo), mas a predicação de adjetivos complementares”
(ECO, 2001, p.9); expressaria, na verdade, um relacionamento dialético com os novos meios
de produção cultural. Segundo ele, “colocar-se em relação dialética, ativa e consciente com os
condicionamentos da indústria cultural tornou-se para o operador de cultura o único caminho
para cumprir sua função” (ECO, 2001, p.16). Com efeito, observa-se na ficção fonsequiana
13
um posicionamento crítico, via ironia, diante dos meios de massa – como prefere nomear Eco,
em lugar de indústria cultural e de sua influência sobre o âmbito literário, especialmente
quanto ao ofício do escritor. No entanto, o autor não repudia radicalmente tal influência, pelo
contrário, amiúde utiliza-se de alguns de seus procedimentos e gêneros típicos, não
submetendo-se a eles, e sim submetendo-os – e subvertendo-os – aos seus interesses criativos.
Analisar essa dinâmica, ativa e consciente, será o objetivo do primeiro capítulo. Gustavo
Flávio, do romance Bufo e Spallanzani, (1985), e de E do meio do mundo prostituto
amores guardei ao meu charuto (1997); o anônimo escritor que concede a entrevista fictícia
contida no conto Intestino grosso, do livro Feliz ano novo (1975); além de Rufus,
protagonista de Diário de um fescenino (2003), são os personagens que melhor refletem sobre
essa situação.
Deve-se ressaltar ainda que, no elenco de personagens-escritores, encontram-se alguns
que são de lavra exclusiva de Rubem Fonseca. outros, de existência empírica, têm suas
vidas ficcionalizadas, passando de criadores a criaturas literárias. É o caso de Isaak Bábel, no
romance Vastas emoções e pensamentos imperfeitos (1988); de Álvares de Azevedo, no conto
“H.M.S. Cormorant em Paranaguá”, do livro O Cobrador; de Moliére, na novela O doente
Molière (2000); e de Joseph Conrad, autor do célebre O coração das trevas (1902) e
Stephen Crane, autor do não tão célebre, embora notável, O emblema rubro da coragem
(1897) –, em “Labaredas nas trevas”, conto presente em Romance negro e outras histórias
(1992).
Aliás, o título deste conto poderia perfeitamente simbolizar os sentimentos privados
dos personagens-escritores de Rubem Fonseca, pois é na intimidade que eles experimentam as
mais diversas emoções: alegrias, angústias, júbilos, misérias, ilusões, desapontamentos,
dilemas, altos e baixos, enfim, as vicissitudes palavra tomada aqui tanto no sentido de
mudanças quanto no de reveses da vida autoral. Como fundamentação para o estudo feito
14
no segundo capítulo, se partirá do que Célia Pedrosa chamou de estratégia da visibilidade,
caracterizado pelo intento “de resgatar o conhecimento intelectual e as palavras de seu exílio,
trazendo-as de volta ao reino da visão o olhar” (PEDROSA, 1998, p.195). Olhar
perscrutador e crítico, em que Rubem Fonseca busca não apenas fazer ver, mas também fazer
pensar sobre a vida literária, desconstruindo idealizações que se criaram sobre ela, revelando
e refletindo sobre os demasiadamente humanos anseios do solitário, e pouco solidário, ofício
da escrita.
Outro fator que se faz presente na vida e na obra desses personagens é o erotismo.
Fesceninos talvez fosse o adjetivo que melhor os definisse. Com efeito, os escritores
fonsequianos não seguem o conselho de Flaubert Foutre ton encrier” (FLAUBERT apud
FONSECA, 1985, p.8), fornique teu tinteiro, querendo significar que, segundo o autor de
Madame Bovary, o escritor deve abster-se do sexo para concentrar energias no trabalho de
escrever , ao contrário, eles fornicam com todas aquelas que se dispõem, e são muitas. Em
alguns textos, particularmente, como no conto “Pierrô da caverna”, de O cobrador, em que se
aborda a pedofilia; e em O caso Morel, em que, entre outras questões, se narra uma relação
sadomasoquista, a sexualidade dos escritores ficcionais ganha maior relevância. Contudo, na
maioria das narrativas fonsequianas, e não apenas as que têm escritores como personagens, o
sexo se faz presente, além de ser fonte das mais inesperadas vicissitudes. A análise efetuada
no capítulo baseou-se no estudo de Jean-Marie Goulemot – Esses livros que se lêem com uma
só mão (2000).
A idéia para o presente estudo surgiu da leitura do ensaio “A sabedoria do bobo da
aldeia”, contida no livro O lugar do outro (1999), de José Paulo Paes, em que se analisam os
contos do livro Romance negro. Dois outros livros, que analisam especificamente a obra
fonsequiana, foram indispensáveis para elaboração deste trabalho. Os crimes do texto: Rubem
Fonseca e a ficção contemporânea (2003), de Vera Lúcia Follain de Figueiredo, sem dúvida
15
uma das melhores exegetas, senão a melhor, do autor. E Literatura e consumo: o caso Rubem
Fonseca (2002), de Ana Cristina Coutinho Viegas, uma das mais instigantes análises sobre a
ficção de Fonseca.
Por fim, cabe ressaltar que, em uma vasta obra como a de Fonseca, marcada, em parte,
por uma representação hiper-realista da violência urbana, revelou-se também significativa
atenção para um tipo de violência (simbólica e, por vezes, também física) da qual uma figura,
paradoxalmente incluída e ao mesmo tempo marginalizada, da sociedade contemporânea
mas também de outras épocas é agente e vítima: o escritor. E que camonianamente resiste,
embora à custa de muito esforço, a todas as agruras e vicissitudes da vida autoral.
16
2. Artes e ofícios: o preço das palavras
2.1 Das artes às letras
em seus primeiros livros, Rubem Fonseca aborda de maneira irônica a relação
entre o mercado e a arte. À medida que sua obra se desenvolve o foco vai se fixar mais
especificamente sobre o ofício literário. Mas, seja qual for a atividade artística, a
perspectiva adotada para tratar desse relacionamento será sempre crítica e não raro
irreverente. Vale a pena analisar, antes de enfocar os textos que se voltam sobre o âmbito
editorial, duas narrativas curtas da fase inicial do escritor em que, essencialmente,
delimitam-se os fundamentos de seu olhar crítico sobre os meios de massa.
2.2 A arte da fome e a fome de arte
Em “Natureza-podre ou o Franz Potocki e o mundo”, contido na primeira obra do
autor, Os prisioneiros (1963), efetua-se uma releitura do conto de Kafka, “Um artista da
fome”, em que se segue, nas linhas gerais, o enredo criado pelo autor tcheco, mas com
alterações significativas de desenvolvimento. Ambas as narrativas se iniciam indicando o
atual desinteresse por seus respectivos artistas e o pretérito interesse que despertavam. D
em diante, porém, cada autor enfocará aspectos diferentes, de acordo com os meios
artísticos utilizados pelos personagens e que são essenciais para a distinção de cada
abordagem.
No conto de Kafka, o corpo do protagonista é o próprio objeto de sua arte. É em si
mesmo que se dá o espetáculo da fome, resultado de um prolongado jejum, expondo-se ao
público em uma jaula. No conto de Fonseca, os objetos artísticos são os quadros que o
personagem pinta. Para ser mais preciso, o que atrairá interesse seo estilo peculiar de
sua pintura: a Natureza-podre. Não uma Natureza-morta, em que se pintam seres e objetos
17
inanimados, e sim uma podre, em que se os pintam em decomposição. No lugar de
inanição, podridão.
Os dois autores enfocam os interesses comerciais despertados pela atividade de
seus artistas, além da ambígua relação com o público. Da parte deste, fica evidente que
sua fascinação, por um lado, é atraente, uma vez que os dois personagens não querem
abrir mão da audiência; no caso de Potocki, fruindo, em particular, as reações diante de
sua arte: “não era o dinheiro que recebia que o emocionava; ele gostava de estudar os
olhares que o comprador lançava sobre o quadro que acabara de adquirir”
1
. Por outro
lado, a desconfiança do público em relação à integral e genuína inanição do artista da
fome, colocando em xeque a veracidade de suas intenções, e a incompreensão despertada
pelas pinturas – cujo objetivo ao criá-los nem mesmo o personagem tinha certeza –,
resumindo, a lacuna de comunicação surgida entre produtor e receptor quanto ao propósito
da atividade artística acaba tornando o relacionamento difícil.
Mas é no foco da exploração comercial que as narrativas se diferenciam
profundamente. Em Kafka, o empresário doma os impulsos radicais do artista da fome,
tendo em vista a manutenção do interesse do público por um determinado período de
tempo quarenta dias para poder, repetidamente, obter lucro em diversas localidades, o
que é frustrante para o artista, pois deseja levar o jejum ao extremo, revelando assim sua
capacidade e talento ímpar. Entretanto, tal desejo se realizará quando cessar
completamente o interesse da audiência por ele.
No conto de Fonseca, as telas com a Natureza-podre tornam-se, literalmente,
objetos de consumo: “não ter um Potocki em casa, um pelo menos, passou a ser algo
deselegante, mesmo vergonhoso” (NP, p.45). Os marchands buscam tirar o máximo de
proveito financeiro do sucesso do pintor –“os quadros de Potocki eram vendidos a peso de
1
FONSECA, Rubem. “Natureza Podre ou Franz Potocki e o mundo” in Contos reunidos. São Paulo: Companhia
das Letras, 1994. Doravante, todos os excertos do autor serão referenciados no corpo do texto, de acordo com as
siglas estabelecidas na lista de obras, seguidas pelo(s) número da(s) página(s).
18
ouro. As pessoas faziam fila na porta de seu estúdio” (NP, p.44) –, comercializando os
quadros até em parcelas àqueles cujos recursos eram insuficientes para comprá-los à vista.
E está a grande diferença de perspectiva entre Kafka e Fonseca: este lança um
olhar irônico sobre o consumismo desenfreado que, após a segunda-guerra mundial,
arrebatou a sociedade capitalista, inclusive, e especialmente, no âmbito cultural. No caso
de Kafka, o foco se fixa mais na ânsia do artista em levar sua atividade rumo ao
paroxismo, embora a atração do público e, em seguida, seu desinteresse súbito, já
indiquem a volubilidade moderna em relação à cultura.
As duas narrativas seguem um caminho similar em suas conclusões. Em lugar do
jejuador, na mesma jaula se coloca uma pantera jovem que, de imediato, atrai o interesse
de todos, fascinados com sua espetacular pujança. Sai a ascética inanição e entra a
selvagem voracidade:
Nada lhe faltava. A comida, que lhe agradava, traziam-lhe sem longas cavilações
seus guardas. Nem sequer parecia lamentar a liberdade. Aquele nobre corpo, provido
de todo o necessário para rasgar o que se pusesse diante, parecia levar com ele a
própria liberdade; parecia estar escondida em qualquer canto de sua dentadura. E a
alegria de viver brotava com tão forte ardor de suas fauces, que não era fácil aos
espectadores poder fazer-lhe frente. Mas venciam o próprio temor, apertavam-se
contra a jaula e de modo algum queriam afastar-se dali. (KAFKA, s.d., p.164).
No caso de Fonseca, remove-se o painel com a natureza-podre e em seu lugar se
coloca a imagem de um cavalo “vermelho-rutilante” cujo “corpo brilhava e sua respiração,
sentia-se, era profunda, como se ele tivesse acabado de correr ou estivesse no cio” (NP, p.47).
Indicando que não mais a decomposição, a obscenidade da morte, atrai a atenção do público
o que lhes interessa agora é o espetáculo, também obsceno, da vida.
2.3 A ambigüidade de Asteriscos e a estética visceral
Em seu posfácio à edição dos contos reunidos de Fonseca, Boris Schnaiderman
analisa a presença do dialogismo em seus textos, nos quais se alternariam vozes da cultura
e da barbárie. Sobre o conto “*** (Asteriscos)”, do livro Lúcia McCartney (1967), ele
19
indica a intervenção da barbárie na esfera da cultura. Um diretor teatral leva ao extremo
de violência aquilo que Antonin Artaud propôs como teatro da crueldade. O que se
destaca nessa narrativa é a cáustica crítica do personagem-artista contra o público, os
críticos e a censura, buscando não propriamente a transgressão da linguagem
dramatúrgica, mas sim a agressão através da dramaturgia. Todavia, como afirma Boris, é
evidente a ironia do narrador, “o que torna tudo completamente ambíguo”
(SCHNAIDERMAN, 1994, p.775).
Com efeito, ao forte sarcasmo do personagem José Henrique àquilo que considera
como domesticação e mercantilização do teatro de sua época, contrapõem-se o seu próprio
radicalismo, sua pretensão e arrogância, seu flerte com a mídia, pois boa parte da narrativa
se organiza por meio de excertos fictícios de entrevistas para a TV e jornais. Ele espinafra
a ânsia do público por entretenimento e sua estreiteza intelectual –“todo espectador teatral
é um débil mental” (AST, p.300) –, a incompreensão da crítica e dos censores “sujeitos
que têm horror à vida e à arte” (AST, p.300). Decide, então, montar o Guia de Telefones
“por ele ser uma peça (conjunto de informações sobre o mundo) da maior importância,
constantemente renovado, pós-atual, onde o contexto predomina sobre o texto e a analogia
sobre as relações de quantidade” (AST, p.298), concentrando-se na seção Endereços
devido à razões comerciais, uma vez que a encenação integral, que incluiria Assinantes e
Páginas Amarelas, demoraria seis horas. No palco vê-se o seguinte:
A luz se acende. O imenso palco está dividido em três níveis. Cada nível está
dividido em linhas verticais. Dentro de cada linha acontecem, entre outras, as
seguintes coisas: um homem nu espanca uma mulher nua com um chicote de sete
tiras, em cujas pontas estão pedaços de metal, enquanto a mulher solta gritos
horripilantes; um velho sem dentes, numa velha cozinha, coloca com mãos trêmulas
enormes pedaços de goiabada na boca, como se estivesse se matando; um homem
gordo, sentado numa privada lê o Jornal do Brasil, levanta-se, vira as nádegas para a
platéia e limpa o ânus laboriosamente com pedaços do jornal; três jovens bem
vestidas espancam furiosamente com martelos e barras de ferro um homem caído de
cujo corpo saem borbotões de sangue. No plano de cima, enquanto isso, um menino
fabrica um papagaio ou pipa, com folhas de seda verde e em seguida empina a pipa
que se engancha nos fios que saem de um poste, o menino tenta arrancar a pipa, o
fio é rompido, bate no chão com uma explosão, e o plano superior fica às escuras; no
plano médio, simultaneamente, uma medalha é colocada no peito de um general,
uma mitra na cabeça de um bispo, um bena mão de uma mãe do ano, uma caixa
20
de ferramentas é ofertada ao operário-padrão, um protetor escrotal é colocado no
atleta do ano etc. etc.
Este é apenas o prólogo. (AST, p.303).
O conto ironiza tanto a criação quanto a recepção, além da mediação artística,
seguindo a perspectiva presente em “Natureza-podre ou Franz Potocki e o mundo” e
depois nas narrativas sobre a vida literária. Aliás, em ambas as histórias há uma inclinação
pela estética do choque da parte dos protagonistas. “Intestino grosso”, como o próprio
título evidencia, vem ao encontro dessas concepções, sendo o correspondente literário
às propostas pictóricas e teatrais dos textos anteriores. As três narrativas plasmam o que se
poderia chamar de uma estética visceral. Figurada e literalmente. Afinal, consignam
elementos escatológicos e violentos, revelando a emergência do corpo, especialmente de
seus fluidos e resíduos, mas também suas mais profundas angústias e sofrimentos, que
ainda se faz – e desde o início sempre se fez – presente na obra de Fonseca.
A convergência estética dos três contos permite indicar alguns aspectos relevantes
sobre a relação entre arte e mercado. Seja qual for o meio, plástico, cênico ou escrito, o
objeto artístico converteu-se em objeto de consumo e/ou de entretenimento. Assim sendo,
há uma forte pressão por parte dos “intermediários” – “como os editores, os marchands de
tableaux, os exibidores e demais exploradores dos artistas e intelectuais” (AST, p.298),
segundo o personagem José Henrique para domar e explorar as obras artísticas, tendo
em vista atingir um público mais amplo e, claro, mais lucro.
As narrativas revelam o desconforto e a insatisfação dos artistas com esse
panorama, dando-lhes voz para que lamentem e critiquem o que se passa, notadamente em
relação ao público, alvo preferido, que se transformou, com o advento dos meios de
massa, em consumidor. Franz Potocki nada diz, sofre em silêncio com a incompreensão
de sua obra, e é através do narrador que se sabe de seu incômodo. José Henrique, por
sua vez, repete à exaustão, sarcasticamente, o desprezo nutrido pelos espectadores,
culminando na realização de sua peça, concretização desse desdém e que serve como meio
21
de agressão a eles. O personagem entrevistado em “Intestino grosso” também não poupa
críticas, no entanto é mais comedido, se comparado com o diretor teatral, embora não
menos contundente.
Seria interessante ressaltar que, em seu primeiro romance, O caso Morel (1973), o
protagonista realiza uma ponte entre as artes plásticas e a literatura, pois, o personagem,
artista plástico profissional, acusado de assassinar a amante, escreve na prisão, com
supervisão de um outro escritor, ex-policial, a narrativa do crime que o levou a ser preso.
Ao final do livro, ele demonstra um profundo ceticismo em relação à literatura, à arte e ao
papel do artista:
Não quero escrever mais. Quando era artista, eu vivia preocupado com o efeito, nas
outras pessoas, daquilo que eu fazia, preocupado em saber se ia vender, ganhar
prêmio, ser elogiado pela crítica era como se eu fosse um cachorro ensinado, um
desses animais de circo que executa os seus pobres truques para ganhar um pouco de
açúcar. Mesmo como artista de vanguarda, supostamente destrutivo, eu continuava
fazendo o que os outros queriam e esperavam que eu fizesse. Ao escrever, mudei
apenas de linguagem, continuei querendo aplauso, coroa de louros, admiração.
Medalhinhas e torrões de açúcar. Logo que fui preso eu me sentia culpado (pois não
estava preso?) e cheguei a considerar justas as torturas que sofri. Agora que quero
ser eu mesmo, não quero aprovação ou estima ou respeito, de ninguém, de nada.
(CM, p.159).
Em comum entre “Natureza podre ou Franz Potocki e o mundo”, “Intestino
grosso” e “*** (Asteriscos)” a (oni)presença da mídia, indispensável recurso
contemporâneo para a divulgação e vulgarização nos dois sentidos das obras de arte.
Não é gratuito que os meios de comunicação desempenhem um papel fundamental para o
desenvolvimento dessas narrativas.
2.4 Dos fatos às ficções
E é no âmago de um veículo de comunicação que se abordará, pela primeira vez, a
relação ambivalente entre literatura e mercado. Trata-se do conto “Corações solitários”, de
Feliz ano novo (1975). Nele se narra a experiência de um ex-repórter de polícia que é
contratado para ocupar o cargo de consultor sentimental em um jornal popular voltado
para o público feminino, intitulado Mulher. O que seria, a princípio, uma atividade
22
exclusivamente jornalística, centrada na referência factual do cotidiano, acaba por se
revelar um exercício ficcional diário, uma vez que faltam à seção de consultório
sentimental por correspondência justamente as cartas escritas pelas leitoras. Cabe ao
jornalista inventá-las e respondê-las. Para isso, adota o pseudônimo Nathanael Lessa.
Como o próprio personagem afirma, é uma dupla homenagem. Ambas repercutem
significativamente na estrutura da história. Tirando de uma os elementos básicos da trama
e da outra o modo, inicialmente, iconoclasta do personagem agir, acaba por combiná-las
de maneira original.
A primeira homenagem é feita ao norte-americano Nathanael West, autor de Miss
corações solitários (1933), inspiração manifesta para a releitura efetuada pelo conto de
Fonseca. Ambas as narrativas contam histórias similares, mas seguem caminhos diversos,
tanto de desenvolvimento quanto de conduta dos personagens
2
. Miss corações solitários é
profundamente amargo na descrição do ambiente sórdido e desesperançado dos EUA nos
anos 30 do século passado, década que ficou marcada literariamente como a da “geração
perdida” (Lost generation). O tom é sombrio e a atmosfera, pesada. Nele se acompanha o
cotidiano de um jornalista que, como conselheiro sentimental, gradativamente se angustia
com o sofrimento presente nas correspondências recebidas, a ponto de tornarem-se-lhe
insuportáveis não apenas a sua leitura, mas principalmente a composição de respostas
conformistas e otimistas. O personagem anseia por deixar essa atividade, porém, isso
ocorre, ironicamente, quando ele é assassinado pelo marido de uma consulente com a qual
se envolvera.
A segunda homenagem é a Ivan Lessa, jornalista e cronista brasileiro, um dos
fundadores de O Pasquim, irreverente jornal carioca que revolucionou a imprensa
2
Maria Luíza de Castro Polessa, em sua dissertação de mestrado, Rubem Fonseca: retratos e conversas (1986),
realiza um minucioso e instigante estudo comparativo entre os livros de Fonseca e West, cuja leitura foi
importante para este estudo, embora aqui se tenha escolhido outros aspectos do diálogo intertextual para serem
analisados.
23
nacional durante o auge da ditadura militar, do qual Rubem Fonseca chegou a ser
colaborador, publicando, inclusive, um extenso artigo sobre pornografia, em 1969, no qual
se esboçam concepções depois inseridas no conto “Intestino grosso”. Entre outras
atividades na publicação, Lessa notabilizou-se por criar um personagem, Edélsio Tavares,
que respondia com impiedosas defenestrações às – muitas –cartas dos leitores, quando não
as inventava, o que era freqüente.
Conforme se assinalou, o jornal em que o protagonista de “Corações solitários”
trabalha não recebe cartas, à significativa exceção de algumas que surgirão no decorrer da
narrativa. “Você acha que mulher da classe C escreve cartas?” (CS, p.374), é o que lhe
respondem quando procura pela correspondência. Não lhe resta alternativa senão ele
próprio redigi-las. Inicialmente, ele escreve missivas com questionamentos que se supõem
típicos de leitores de baixa-renda, adotando uma linha edelsiana para as respostas,
demolindo ilusões e clichês confortantes e conformistas, tão freqüentes nesse tipo de
atividade e que, com o tempo, se tornaria um gênero próprio, muito rentável, aliás, o de
auto-ajuda. Eis alguns exemplos das criações do personagem:
Prezado dr. Nathanael Lessa. Sou baixinha, gordinha e mida. Sempre que vou na
feira, no armazém, na quitanda, eles me passam pra trás. Me enganam no peso, no
troco, o feijão está bichado, o fubá bolorento, coisas assim. Eu costumava sofrer
muito mas agora estou resignada. Deus está de olho neles e no juízo final eles vão
pagar. Doméstica Resignada. Penha.
Resposta: Deus não está de olho em ninguém. Quem tem que se defender é você
mesma. Sugiro que você grite, ponha a boca no mundo, faça escândalo. Você não
tem nenhum parente na polícia? Bandido também serve. Te vira, gordinha. (CS,
p.375).
Prezado dr. Nathanael Lessa. Tenho vinte e cinco anos, sou datilógrafa e virgem.
Encontrei esse rapaz que disse que me ama muito. Ele trabalha no Ministério dos
Transportes e disse que quer casar comigo, mas que primeiro quer experimentar. O
que achas? Virgem Louca. Parada de Lucas.
Resposta: Olha aqui, Virgem Louca, pergunta pro cara o que ele vai fazer se não
gostar da experiência. Se ele disser que te chuta, pra ele, pois é um homem
sincero. Tu não é groselha nem ensopadinho de jiló para ser provada, mas homens
sinceros existem poucos, vale a pena tentar. Fé e pé na tábua. (CS, p.375)
24
Todavia, o editor recusa-se a publicar esse tipo de respostas: “Ah! Meu Deus! A
idéia que as pessoas fazem da classe C” (CS, p.375), exclama. Ele afirma que o público-
leitor do jornal deseja ser reconfortado, estimulado, alegrado (iludido?). “Quem gosta de
ser tratada a palavrões e pontapés são as mulheres da classe A” (CS, p.375). Relembra,
então, a máxima em que se diz que, para ter sucesso com as mulheres, devia-se tratar
ladies como putas e putas como ladies. O protagonista escreve novas cartas e respostas,
insuflando nelas tamanho otimismo e resignação, que se tornam ainda mais cômicas do
que as anteriores:
Dr. Nathanael Lessa. Meu marido morreu e me deixou uma pensão muito pequena,
mas o que me preocupa é estar só, aos cinqüenta e cinco anos de idade. Pobre, feia,
velha e morando longe, tenho medo do que me espera. Solitária de Santa Cruz.
Reposta: Grave isto no seu coração, Solitária de Santa Cruz, nem dinheiro, nem
beleza, nem mocidade, nem um bom endereço dão felicidade. Quantos jovens ricos
e belos se matam ou se perdem nos horrores do vício? A felicidade está dentro de
nós, em nossos corações. Se formos justos e bons, encontraremos a felicidade. Seja
boa, seja justa, ame o próximo como a si mesma, sorria para o tesoureiro do INPS,
quando for receber a sua pensão. (CS, p.375-376).
Querido Nathanael. Eu não posso ler o que você escreve. Minha avozinha adorada
para mim. Mas não pense que eu sou analfabeta. Eu sou é ceguinha. Minha querida
avozinha está escrevendo a carta para mim, mas as palavras são minhas. Quero
enviar uma palavra de conforto aos seus leitores, para que eles, que sofrem tanto
com pequenas desgraças, se mirem no meu espelho. Sou cega mas sou feliz, estou
em paz, com Deus e com os meus semelhantes. Felicidades para todos. Viva o Brasil
e o seu povo. Ceguinha Feliz. Estrada do Unicórnio [Endereço com o qual o editor
implica porque “soa falso”, sugerindo colocar algo como estrada do Catavento ou
congênere.] Nova Iguaçu. P.S.: Esqueci de dizer que também sou paralítica.
Resposta: Ceguinha Feliz, parabéns, por sua força moral, por sua inquebrantável
na felicidade, no bem, no povo e no Brasil. As almas daqueles que se desesperam na
adversidade deviam se nutrir do seu edificante exemplo um facho de luz nas noites
de tormenta. (CS., p.380).
Em seguida, outra atividade criativa é atribuída ao personagem: a redação de roteiros
para as fotonovelas publicadas pelo jornal. Desafiado a escrever uma trama em quinze
minutos, ele se arroga de um sólido conhecimento literário –“li todos os clássicos gregos, os
ibsens, os o’neals, os beckets, os tchekhovs, os shakespeares, as four hundread best television
plays. Era chupar uma idéia aqui, outra ali, e pronto” (CS, p.376) –, o que lhe possibilitaria
executar com facilidade o encargo. E o faz:
25
Um menino rico é roubado pelos ciganos e dado como morto. O menino cresce
pensando que é um cigano verdadeiro. Um dia ele encontra uma moça riquíssima e
os dois se apaixonam. Ela mora numa rica mansão e tem muitos automóveis. O
ciganinho mora numa carroça. As duas famílias não querem que eles se casem.
Surgem conflitos. Os milionários mandam a polícia prender os ciganos. Um dos
ciganos é morto pela polícia. Um primo rico da moça é assassinado pelos ciganos.
Mas o amor dos dois jovens apaixonados é maior do que todas essas vicissitudes.
Eles resolvem fugir, romper com as famílias. Na fuga encontram um monge piedoso
e sábio que sacramenta a união dos dois em um antigo, pitoresco e romântico
convento no meio de um bosque florido. Os dois jovens se retiram para a mara
nupcial. Eles são lindos, esbeltos, louros de olhos azuis. Tiram a roupa. Oh, diz a
moça, que cordão de ouro com medalha cravejada de brilhantes é esse que tens no
peito? Ela tem uma medalha igual! Eles são irmãos! Tu és o meu irmão
desaparecido!, grita a moça. Os dois se abraçam. (Atenção Mônica Tutsi [o
fotógrafo]: que tal um final ambíguo? Fazendo aparecer na cara dos dois um êxtase
não fraternal, hein? Posso também mudar o final e torná-lo mais sofocliano: os dois
descobrem que são irmãos depois do fato consumado; desesperada a moça pula
da janela do convento lá embaixo). (CS, p.376-77).
Entretanto, sua rocambolesca história é descartada por causa dos precários recursos de
que o fotógrafo dispõe: “onde vou arranjar a mansão rica? Os automóveis? O convento
pitoresco? O bosque florido? [...] os dois jovens louros esbeltos de olhos azuis? Nossos
artistas são todos meio para o mulato” (CS, p.377). Outro roteiro é escrito e, desta feita, com
as devidas adequações orçamentárias, produzido:
Roberto e Betty estão noivos e vão se casar. Roberto, que é muito trabalhador,
economizou dinheiro para comprar um apartamento e mobiliá-lo, com televisão em
cores, aparelho de som, geladeira, maquina de lavar roupa, enceradeira,
liquidificador, batedeira, máquina de lavar pratos, torradeira, ferro elétrico e secador
de cabelos. Betty também trabalha. Ambos são castos. O casamento é marcado. Um
amigo de Roberto, Tiago, pergunta a ele, vais casar virgem? Precisas ser iniciado
nos mistérios do sexo. Tiago, então, leva Roberto na casa da Superputa Betatron.
(Atenção, Mônica Tutsi, o nome é uma pitada de ficção científica.) quando chega
verifica que a Superputa Betatron é Betty, sua noivinha. Oh! Céus! Surpresa terrível!
Alguém dirá, talvez um porteiro, crescer é sofrer! Fim da novela. (CS, p.377.)
Surge, então, o boato de que o dramalhão foi “chupado” de um filme italiano, suspeita
que enfurece o personagem:
Canalhas, súcia de babões, porque fui repórter de polícia estão me chamando de
plagiário.
Calma, Virgínia.
Virgínia? Meu nome é Clarice Simone, eu disse. Que coisa mais idiota é essa de
pensar que as noivas dos italianos são putas? Pois, olha, eu já conheci uma noiva
daquelas sérias mesmo, era a freira de caridade, e foram ver, também era puta.
(CS, p.378).
E complementa, mais adiante, ao redigir outra fotonovela, “chupada”, dessa vez, do
Hipólito euripidiano: “Cito os clássicos apenas para mostrar o meu conhecimento. Como fui
26
repórter de policia, se não fizer isso os cretinos não me respeitam. Li milhares de livros”
(CS,
p.380). Afirmação que soa como ironia de Fonseca em relação a sua própria experiência
criativa.
O público-alvo de Mulher é posto em xeque quando um pesquisador estatístico
informa ao editor do jornal que, na verdade, são leitores da classe B, e o leitoras da classe
C, aqueles que assiduamente lêem a publicação... Ironicamente, isso vem ao encontro da
revelação que encerra o conto: a de que Peçanha, o editor, era o autor das únicas cartas
enviadas ao periódico, e que narravam os dilemas de um perturbado homossexual.
Desalentado, Peçanha diz, sem muita convicção, que tudo fora uma brincadeira, mas o
protagonista afirma que para ele tanto fazia se fora a sério ou por troça. E após garantir que o
episódio ficaria entre eles, não se comove com o suspiro do editor, “um suspiro que cortaria o
coração de qualquer outro que não fosse um ex-repórter de polícia” (CS, 385).
Trata-se, na obra de Fonseca, do primeiro profissional da escrita que, para poder
exercer seu ofício, adapta-se aos pressupostos do mercado editorial. O jornalista se
obrigado a se fazer de ficcionista, a tornar-se escrevinhador de textos que repisam clichês,
seja de cartas lamurientas e de suas respostas conformistas, seja de roteiros para fotonovelas,
verdadeiras colchas de retalhos de chavões, tornando ambígua a fronteira entre o factual, base
do jornalismo, e o ficcional, base da literatura.
Nada é o que parece. Em um jornal chamado Mulher, toda a equipe é formada por
homens, cada um tendo seu próprio pseudônimo feminino. “Aqui, ninguém, nem mesmo eu,
usa pseudônimo masculino. Meu nome é Maria de Lourdes!” (CS, p.373), esbraveja Peçanha
ao novato, que só consegue impor seu ponto de vista –“Você não acha que um nome
masculino mais credibilidade às respostas? Pai, marido, médico, sacerdote, patrão: tem
homem dizendo o que elas devem fazer” (CS, p.373) –, devido à carta de apresentação de um
parente, gerente do banco do qual o periódico é devedor. Mas, depois, até ele adotará o
27
pseudônimo feminino para escrever as fotonovelas, prestando duas outras homenagens:
Clarice Simone. Por fim, nem o público-alvo, segundo as pesquisas, é de fato composto por
mulheres da classe C, e sim por homens como o próprio editor, verdadeiro autor das
tresloucadas cartas recebidas pelo jornal. O conto é uma sátira incisiva, pois, como observa
Malcolm Silverman “engloba direitos femininos, a indústria editorial e a pesquisa de opinião
pública” (SILVERMAN, 1981, p.269), revelando que onde parecia haver fatos definitivos,
se descobrem inesperadas ficções.
2.5 Ditos interditos
Seguir fórmulas e impor padrões parecem ser características recorrentes do mercado
editorial. A busca por um sucesso de vendas, e sua conseqüente manutenção, pode implicar
em estabelecimento de formas e conteúdos, que costumam ser explorados até a exaustão,
chegando ao ponto de transformarem-se em estereótipos. Umberto Eco enumera, em
Apocalípticos e integrados, várias críticas aos meios de massa, e dentre elas, duas são
relevantes para a presente análise:
Os mass media, colocados dentro de um circuito comercial, estão sujeitos à “lei de
oferta e procura”. Dão ao público, portanto, somente o que ele quer, ou, o que é pior,
seguindo as leis de uma economia baseada no consumo e sustentada pela ação
persuasiva da publicidade, sugerem ao público o que este deve desejar. [...] Mesmo
quando difundem os produtos da cultura superior, difundem-nos nivelados e
“condensados” a fim de não provocarem nenhum esforço por parte do fruidor; o
pensamento é reduzido em “fórmulas”; os produtos da arte são antologizados e
comunicados em pequenas doses. (ECO, 2001, p.40-41).
Ser exceção a tal regra acaba ou provocando marginalidade, ou conduzindo à
adaptação, uma vez que nem todos se dispõem a arriscar a lançar produtos que se desviem dos
padrões instituídos. Podem não ser a maioria, mas existem aqueles que correm tal risco.
Editores como Gumercindo Rocha Dória, que publicou o primeiro livro de Rubem Fonseca,
além de inúmeros autores estreantes, na cada de 1960, e a equipe da Cosac & Naïfy, nos
dias de hoje, que investe em novos autores e em requintadas reedições de obras clássicas,
demonstram ter menos interesse em lucrar do que em fomentar a cultura. Novamente,
28
Umberto Eco pondera sobre os contras, mas também sobre os prós dos meios de massa,
particularmente sobre o mercado editorial:
A fabricação de livros tornou-se um fato industrial, submetido a todas as regras da
produção e do consumo; daí uma série de fenômenos negativos, como a produção de
encomenda, o consumo provocado artificialmente, o mercado sustentado com a
criação publicitária de valores fictícios. Mas a indústria editorial distingue-se da dos
de dentifrícios pelo seguinte: nela se acham inseridos homens de cultura, para os
quais o fim primeiro (nos melhores casos) não é a produção de um livro para vender,
mas sim a produção de valores para cuja difusão o livro surge como o instrumento
mais cômodo. Isso significa que, segundo uma distribuição percentual que eu não
saberia precisar, ao lado de “produtores de objetos de consumo cultural”, agem
“produtores de cultura”, que aceitam o sistema da indústria do livro para fins que
dele exorbitam. (ECO, 2001, p.50).
Mesmo assim, iniciar uma carreira literária não é tarefa fácil. Ainda mais se o
estreante procura trilhar novos caminhos, perscrutar diferentes possibilidades, que não aquelas
há muito consagradas. Em “Intestino grosso”, o protagonista relata as dificuldades pelas quais
passou, em especial, a demora para que seu primeiro livro fosse publicado. “Eles queriam que
eu escrevesse igual ao Machado de Assis, e eu não queria, e não sabia” (IG, p.461), afirma.
Mas quem seriam eles? “Os caras que editavam os livros, os suplementos literários, os
jornalistas de letras. Eles queriam os negrinhos do pastoreio, os guaranis, os sertões da vida”,
e conclui: “Eu morava num edifício de apartamentos no centro da cidade e da janela do meu
quarto via anúncios coloridos em gás de néon e ouvia barulho de automóveis” (IG, 461).
Neste trecho, o personagem-escritor define os fundamentos que norteiam sua obra, além de
deixar claro o quanto se diferencia da tradição literária nacional. O que vai ao encontro das
concepções de seu próprio criador, Rubem Fonseca, embora tudo se realize através de um
(con)texto ficcional.
Em lugar de se filiar aos paradigmas estéticos consagrados, cujos exemplos definitivos
são os autores citados Machado, Alencar, Lopes Neto, Euclides –, busca-se uma literatura
que adote um novo referencial tanto de espaço quanto de tempo, ou seja, urbano e
contemporâneo. Implicando, também, na escolha de uma linguagem e um estilo capaz de
apreender e expressar tal visão de mundo. Brevidade, crueza e, não raro, crueldade, tornam-se
29
elementos imprescindíveis para esse tipo de escrita, que não condiz com os paradigmas
literários tradicionais. A violência do enunciado e da enunciação causa estranheza por se
inserir em um âmbito restrito usualmente ao sublime e sofisticado. O estilo é considerado,
então, vulgar, obsceno, pornográfico. Assim, não é difícil imaginar, à época, as dificuldades
para se publicar um livro que suscite juízos dessa natureza.
Outro personagem, Rufus, de Diário de um fescenino (2003), uma obra bem posterior
a “Intestino grosso”, narra a tentativa frustrada de publicar seu primeiro livro, além da severa
repreensão que recebeu por sua forma de escrever, ao deixar uma coletânea de contos com um
editor que se interessava em publicar novos autores. O manuscrito é entregue com a promessa
de que haveria uma resposta em quinze dias. Seis meses depois, o personagem volta à editora
em busca de notícias. Descobre que seu livro desapareceu. Embora o editor se recorde da
obra:
“Olha”, ele disse, “Zuleide não está achando o seu livro, mas eu me lembro
perfeitamente dele, não tem um conto em que um...”, o velho pigarreou, “um
personagem diz ao outro vá ‘prá puta que pariu?’”. “Acho que sim”, disse eu,
intrigado, será que o meu livro era o único em que alguém mandava outra pessoa
para a puta que pariu?, isso era tão raro assim? “Quais são os seus autores, os seus
contistas prediletos?”, perguntou o editor. “Tchekhov, Maupassant, Machado de
Assis...”, na verdade eu não gostava dos contos do Machado de Assis, mas como
sabia que todo mundo gostava, incluí-o na minha lista, e do Maupassant eu já não
gosto tanto. Então o editor colocou carinhosamente a mão no meu ombro e disse:
“Meu filho, você viu algum conto do Tchekhov, do Maupassant, do Machado de
Assis um personagem mandar o outro para a puta que pariu?” “Não senhor”,
respondi. “A literatura meu filho”, ele continuou, “é a mais nobre das artes e tem
como principal objetivo elevar, enriquecer e aprimorar a mente e o espírito das
pessoas. Pense nisso, quando for escrever”. (DF, p.181).
O episódio tem inspiração verídica, pois algo similar ocorrera com o próprio Rubem
Fonseca. Inclusive a perda do manuscrito
3
, além das restrições ao seu estilo, como informa
Deonísio da Silva:
3
Segundo a reportagem de Mauro Ventura: “Aos 18 anos, levou os originais de seu primeiro livro para uma
pequena editora que ficava num sobrado da Rua das Marrecas, no Centro. Quando voltou, algum tempo depois,
ouviu do editor uma lição de moral: pessoas que escrevem literatura de primeira não usam nomes feios, nem
criam esses tipos de personagens. Fonseca pediu de volta o livro, o homem disse que ia procurar e nunca mais se
achou o manuscrito. O escritor contou a um amigo: ‘O dono da editora, que era pequena e durou pouco, ficou
muito consternado, jurando que nunca havia perdido um original, e eu tentei consolá-lo, dizendo que ele não se
preocupasse, que eu escreveria outro. Demorei 20 anos para isso. Durante esse tempo, fiquei apenas lendo com
enorme furor.’” (VENTURA, 2005).
30
Em conversas que mantive com o escritor, contou-me ele as dificuldades que
encontrou para publicar suas primeiras produções, as absurdas exigências que lhe
faziam muitos editores, reclamando uma terraplanagem que erradicasse alguns
outeiros e preenchesse vales ofensivos à paisagem literária tida por padrão às
diversas épocas que procurou edição para seus contos. Outros, mais
desavergonhados, não se vexaram de recomendar-lhe alguns estilos como modelo e,
nesse caso, os autores indicados iam de José de Alencar a João Guimarães Rosa.
(SILVA, 1983. p.21).
A adequação ao discurso corrente e consagrado surge como uma imposição a alguns
personagens-escritores fonsequianos, refletindo a faceta de uma parte do mercado editorial, de
uma época pretérita, pouco tolerante com dissonâncias estilísticas, notadamente em relação à
utilização de uma linguagem sem eufemismos, e que por muito tempo foi considerada
obscena, pornográfica mesmo. Sobre isso, o personagem entrevistado em Intestino grosso” é
categórico:
“Quando os defensores da decência acusam alguma coisa de pornográfica é porque
ela descreve ou representa funções sexuais ou funções excretoras, com ou sem o uso
de nomes vulgares comumente referidos como palavrões. O ser humano, alguém
disse, ainda é afetado por tudo aquilo que o relembra inequivocamente de sua
natureza animal. Também disseram que o homem é o único animal cuja nudez
ofende os que estão em sua companhia e o único que em seus atos naturais se
esconde dos seus semelhantes.”
“E as palavras são influenciadas por isso?
“É claro. A metáfora surgiu por isso, para os nossos avós não terem de dizer – foder.
Eles dormiam com, faziam o amor (às vezes em francês), praticavam relações,
congresso sexual, conjunção carnal, coito, cópula, faziam tudo, não fodiam. [...]
Os filólogos e lingüistas também são pessoas presas ao tabu. Gostaria que algum
filólogo, um dia, escrevesse um livro intitulado: Foder” (IG, p.463).
Curiosamente, não será um filólogo, mas sim um fictício ficcionista quem “escreverá”
um livro com esse título: o personagem Gustavo Flávio, protagonista de Bufo & Spallanzani
(1986) e da novela E do meio do mundo prostituto só amores guardei ao meu charuto (1997),
na qual relata o abandono do gênero romanesco, após publicar vinte deles, passando a
escrever apenas ensaios, “um gênero que não exigia talento nem imaginação” (MMP, p.12.).
Por ironia, ao lançar o livro, os tempos eram outros, muito mais liberais, a ponto de o título
não produzir o impacto esperado:
Meu livro Foder foi um fracasso, Doutor Mandrake, quando pensei em escrever um
livro com esse título eu tinha dezoito anos, ainda não havia publicado livro algum, e
a palavra foder possuía um certo esplendor abrasivo. Era uma época em que
eufemismos parnasianos e metáforas filistinas eram empregados quando se falava de
sexo. Mas demorei trinta anos para escrever o Foder, e quando o livro surgiu, o
título parecia um arroubo de roqueiro juvenil. A palavra perdera o fausto, fora
31
despojada da sua inquietante e suntuosa escabrosidade, desgastara-se no atrito da
propagação excessiva” (MMP, p.49).
Novamente se lança um olhar sardônico sobre parte do mercado editorial, cujos
fundamentos se pautariam, supostamente, em valores morais da sociedade. Mas,
ironicamente, os valores mudam. O mercado, também. Outrora se recusavam obras que
expressassem algo considerado ofensivo através, basicamente, de uma linguagem que
empregasse termos chulos ou de referências à sexualidade e à violência –, reputando-as como
impublicáveis (inclusive pela censura, como, de fato, ocorreu com Feliz ano novo, em 1975),
pois, além disso, destoavam do que então se escrevia. Nos dias correntes, porém, a discussão,
tão acalorada décadas atrás, sobre a pertinência do uso do calão em textos literários, tornou-se
obsoleta. Assim como uma abordagem nua e crua da sexualidade e da brutalidade não
causa mais repulsa. Pelo contrário. Os ditos interditos tanto do enunciado quanto da
enunciação acabaram por perder a força de sua obscenidade, a ponto de serem corriqueiros
na literatura contemporânea, podendo-se até dizer que tenham quase se tornado regra,
inaugurando um novo, e lucrativo, filão. Segundo Walnice Nogueira Galvão, a ascensão de
um estilo sem eufemismos nas letras nacionais deve-se ao autor de A grande arte, cuja
influência seria seminal e patriarcal para as novas gerações de escritores:
Na ficção atual, marcada por diversas tendências, destaca-se Rubem Fonseca como
uma das mais ilustres vozes. Em percurso marcado por altos e baixos, tornou-se
prezado como contista e como romancista. Tendendo ao despojamento, anunciou
tanto o desprezo pela retórica quanto a vontade de depuração, vindo em boa hora
enxugar nossa prosa. Devotou-se a escrever sucinto, direto, elíptico, e como que
impôs um modelo de literatura metropolitana aos leitores que, assim afinados,
passaram a achar outro tipo de prosa indulgente, derramado, beletrista e a seus
numerosos seguidores. Essas opções passaram a ser a nica no panorama literário.
(GALVÃO, 2005, p.41).
2.6 Escrever é contar palavras
Um dos personagens que melhor reflete a (e sobre a) relação entre o escritor e o
mercado é, sem dúvida, Gustavo Flávio. Em Bufo e Spallanzani (1985), especialmente, a
questão da profissionalização do ofício literário torna-se essencial. O misterioso assassinato
32
de uma socialite e a tentativa, por fim frustrada, de escrever um novo livro desencadeiam uma
série de situações que enredam o protagonista, mesclando trama policial à reflexão literária,
entrelaçando crítica e ficção. “Em mais de um sentido o crítico é o investigador e o escritor o
criminoso. Pode-se pensar que o romance policial é a forma ficcional da crítica literária”,
afirma Ricardo Piglia (PIGLIA, 1994, p.72). No caso deste romance mas também de outros
– de Fonseca, detetive-crítico e criminoso-escritor formam uma só figura.
As observações do personagem sobre o âmbito literário espelham os valores de sua
época, fundamentados, cada vez mais, em bases monetárias. Gustavo está plenamente cônscio
desse panorama, adotando até mesmo uma postura cínica em relação a ele, cujo lema poderia
ser sintetizado na frase: “A necessidade de dinheiro, aliás, é uma grande incentivadora das
artes” (BS, p.8). Tal necessidade, pode-se dizer, não é nova no ambiente artístico, em geral,
nem no literário, em particular. Novidade, ao menos, era o surgimento de um sólido e
lucrativo mercado editorial no cenário nacional, como ocorreu na década de 1980. A nova
situação se refletiu na obra dos diferentes autores em atividade, sendo absorvido e expressado
das mais diversas maneiras, mas de forma alguma ignorado. Conforme analisa Therezinha
Barbieri:
Leio a ficção brasileira dos 80 e 90 na rede de novas relações estabelecidas a partir
do contexto da sociedade de massa. Sabendo que o comércio se move meramente
pelo valor de troca das mercadorias e os compradores valem como números que
incrementam o volume das vendas, o número de leitores potenciais não pode deixar
de freqüentar a mente do autor quando vai escrever um texto destinado à publicação.
Embora a quantidade de compradores de um livro, em si, não diga nada quanto ao
valor literário da obra, por outro lado escrever para um grande público não é em si
nenhum mal. O sucesso de público é assim um dado a mais a considerar, que não
merece nem pode ser exclusivo. (BARBIERI, 2003, p.38).
Rubem Fonseca se revela peculiar por aliar qualidade literária à popularidade. Por
isso, irônico não será apenas o fato de ser “um dos autores com livros de maior vendagem,
quem vem tematizando de modo mais explícito o mercado”, segundo Flora Süssekind
(SÜSSEKIND, 1993, p.269). Irônico também será o olhar que lançará sobre a mercantilização
da literatura.
33
Em Bufo e Spallanzani, a ironia maior estará no fato de que um escritor absolutamente
consciente da nova configuração mercantil de seu ofício, que lhe exige uma produção
prolífica, ser acometido por uma crise de esterilidade criativa, cujas causas vão sendo
paulatinamente reveladas.
De acordo com a análise exemplar de Vera Lúcia Follain de Figueiredo, da qual se
baseiam as observações seguintes, o terceiro romance de Fonseca
coloca em cena o medo da impotência criativa, [...] trazendo para o espaço ficcional
os impasses vividos pelo escritor, pressionado pelas exigências do mercado editorial
e que, ao mesmo tempo não acredita na arte pela arte como refúgio diante do
desencantamento do mundo político e social, nem tampouco na arte engajada como
instrumento para mudar esse mundo. (FIGUEIREDO, 2003, p.90-91).
As referências à arte pela arte, o pseudônimo escolhido pelo protagonista e os nomes
do casal de personagens Delamere, Delfina e Eugênio, remetem a Gustave Flaubert e a seu
romance, Madame Bovary. O autor francês teria se inspirado nos eventos ocorridos na vida
dos Delamare para escrever sua obra: o médico Eugéne, viúvo, se casara novamente com a
jovem Delphine, que tivera várias aventuras amorosas e, por fim, se suicidara
4
.
À sua maneira, Fonseca reconta essa história, propõe-se a reescrever Madame Bovary.
Para isso, são efetuados contrastes que contrapõem o comportamento de Gustave Flaubert ao
de Gustavo Flávio. O primeiro devotava uma profunda crença, praticamente religiosa, em
relação à arte – repudiando o mundo burguês e, consequentemente, o mercado –, adotava uma
conduta ascética, dedicando-se exclusiva e disciplinadamente para a criação literária,
chegando até a pregar a sublimação dos desejos em prol de uma melhor performance criativa.
O segundo, por sua vez, lhe é em tudo oposto. Hedonista, dedica-se a uma intensa vida
amorosa. Mostra-se, a principio, cético e francamente cínico quanto ao papel da arte, acatando
a mercantilização da literatura:
Para um escritor como eu, que precisava de dinheiro para sustentar o seu vício
barregão, cada maldita palavra, um oh entre cem mil vocábulos, valia algum
dinheirinho.
Escrever é cortar palavras, disse um escritor, que não devia ter amantes.
4
Sobre a influência da história dos Delamare para a obra de Flaubert conferir: LLOSA, Mário Vargas. A orgia
perpétua. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1979. p.74-75.
34
Escrever é contar palavras, quanto mais melhor, disse outro que, como eu, precisava
escrever um Bufo e Spallanzani a cada dois anos. (BS, p. 188).
Não obstante aparentar cinismo, o personagem demonstra uma postura ambivalente
em relação a sua condição de profissional das letras, tecendo comentários inesperadamente
contestadores:
O escritor deve ser essencialmente um subversivo e a sua linguagem não pode ser
nem a mistificatória do político (e do educador), nem a repressiva, do governante. A
nossa linguagem deve ser a do não-conformismo, da não-falsidade, da não-opressão.
Não queremos dar ordem ao caos, como supõem alguns teóricos. E nem mesmo
tornar o caos compreensível. Duvidamos de tudo sempre, inclusive da gica.
Escritor tem que ser cético. Tem que ser contra a moral e os bons costumes.
Propércio pode ter tido o pudor de contar certas coisas que seus olhos viram, mas
sabia que a poesia busca a sua melhor matéria nos “maus costumes” (V. Veyne). A
poesia, a arte enfim, transcende os critérios de utilidade e nocividade, até mesmo o
da compreensibilidade. Toda linguagem muito inteligível é mentirosa. (BS, p.147-
148).
O que não o impede de, logo a seguir, acrescentar que se faz tal afirmação em um dia,
nada garante que continue acreditando nela, ou em qualquer outra idéia, um mês depois. Diz
ter “a boa qualidade da incoerência” (BS, p.148).
O livro escrito pelo protagonista está atolado. Ele começara a escrevê-lo quando
conhecera a amante, porém, ao conhecê-la, sua maneira de produzir fora alterada, e confessa
que “pela primeira vez na minha vida uma relação amorosa interferiu no meu trabalho. Estar
apaixonado, ou até mesmo interessado numa mulher, sempre me estimulou muito a escrever.
[...] Mas eu passei a ficar desligado” (BS, p.55), chegando à conclusão de que, na verdade,
desde que a conhecera, nunca mais escrevera coisa alguma. Segundo Vera Lúcia, o
personagem se revela “dividido entre os paradigmas da alta cultura”, que surgem, além da
emulação com Flaubert, através de pesadelos, em que Tolstoi lhe exige que escreva, “e os
apelos do sentimentalismo romântico tão ao gosto da cultura de massa” (FIGUEIREDO,
2003, p.95), representados pela figura de Delfina. Essa divisão íntima causará sua
esterilização como ficcionista.
Crise das mais inoportunas, pois o personagem se encontrava em situação financeira
difícil: “fiquei sem um tostão, mas, como Balzac, não mudei o meu padrão de vida” (BS,
35
p.54), passando a pedir adiantamentos cada vez mais altos aos seus editores pelo livro a ser
publicado. Para piorar, seu último romance, “conquanto tenha tido uma excelente repercussão
crítica, foi um fracasso de vendas” (BS, p.54). Ele se esforça, então, para escrever a nova
obra. Inutilmente, pois o assassinato da amante, e suas conseqüências, o atingirão
profundamente.
duas vítimas fatais em Bufo e Spallanzani. Ambas são mortas pelo protagonista. A
primeira é Delfina Delamare, doente terminal de leucemia, que pede ao amante, em um gesto
de amor e misericórdia, para livrá-la do sofrimento futuro, matando-a. A segunda vítima é o
romance histórico que o personagem tentava escrever, cujo título é homônimo ao livro de
Fonseca, enfocando um cientista e suas experiências com sapos, e que lhe restituiria o
equilíbrio financeiro, mas acaba “assassinado”, via o comando Kill do computador,
definitivamente excluído pelo personagem-escritor.
Escritor-criminoso e detetive-crítico se mesclam nessa narrativa, adequadamente
chamado por Follain de romance-ensaio, que une reflexão sobre a literatura em tempos de
império da indústria cultural à intriga enigmática do romance policial, esgarçando habilmente
as fronteiras entre alta cultura e cultura de massa, entre crítica e ficção.
2.7 Ocasiões e edições
“Eu acho que isso tudo vai ajudar a vender os teus livros”, opina Minolta, amante e
confidente de Gustavo Flávio, após ele sobreviver à tortura e emasculação que lhe foi
infligida pelo marido de Delfina, Eugênio Delamare. Afirmação similar faz o editor de outro
escritor criado por Fonseca, em Diário de um fescenino (2003). “Há males que vem para
bem”, diz ele a Rufus, referindo-se ao processo pelo qual este é acusado de um crime sexual.
A reação ao comentário é de indignação: “O safado só pensa em dinheiro. Eu que me fodesse,
o importante era vender mais livros” (DF, p.187). O que, aliás, chega a ocorrer, mas não se
36
mantém: “As vendas dos meus livros melhoraram no início do escândalo e depois
despencaram como um balão apagado” (DF, p.224).
A atitude dos personagens-escritores fonsequianas são ambivalentes em relação a seus
editores. Por vezes estes são considerados oportunistas que visualizam apenas o lucro a ser
conseguido a partir de qualquer situação, inclusive, e talvez em especial, das escandalosas,
conforme reclama Rufus, acima. São freqüentemente referidos através de algumas concepções
que ecoam basicamente durante o processo criativo:
Meu editor queria que eu escrevesse outro policial como Trápola. “Não inventa, por
favor. Você tem leitores fiéis, a eles o que eles querem”, dizia o meu editor. A
coisa mais difícil para o escritor é dar o que o leitor quer, pela razão muito simples
de que o leitor não sabe o que quer, sabe o que não quer, como todo mundo; e o que
ele não quer, de fato, são coisas muito novas, diferentes do que está acostumado a
consumir. Poder-se-ia dizer que, se o leitor sabe que não quer o novo, sabe,
contrario sensu, que quer, sim, o velho, o conhecido, que lhe permite fruir, menos
ansiosamente, o texto. (BS, p.170).
Obras extensas e, por isso, de preço potencialmente mais alto, também surgem como
uma das requisições mais freqüentes:
Meu editor queria um livro grosso, o livreiro queria um livro grosso, o leitor queria
um livro grosso (um bom pretexto para comprar e não ler) as coisas grandes
impressionam, a torre Eiffel é um horror mas é grande, as pirâmides não passam de
um monte de pedra que a estupidez faraônica conseguiu empilhar, mas são grandes
(BS, p.209).
Atender às demandas do mercado editorial, tendo-se em consideração que a obra
literária também é objeto de consumo, parece ser uma agrura, embora, como afirmou Eco
anteriormente, ela não se trate de um produto qualquer. Os artistas sempre conviveram com
pressões externas para produzir suas obras, seja da parte dos ancestrais mecenas – que
também faziam suas imposições –, seja dos mecenas modernos, o público-leitor, e
consumidor, contemporâneo. Sobre a condição do autor nos dias atuais e no passado, comenta
Gustavo Flávio:
“O escritor é vítima de muitas maldições [...] mas a pior de todas é ter de ser lido.
Pior ainda, ser comprado. Ter de conciliar sua independência com o processo de
consumação. Kafka é bom porque não escrevia para ser lido. Mas por outro lado
Shakespeare é bom porque escrevia de olho no shilling que cobrava de cada
espectador. (V.Panofsky). Assim como o teatro não se salvará apenas com a
coragem de escrever peças que ninguém queira assistir, a literatura também não se
salvará apenas com a coragem de escrever outros Finnegans Wake.” (BS, p.177).
37
Como afirma Flora Süssekind, não espaço para ingenuidades na prosa de Rubem
Fonseca. A consciência das implicações do ofício literário se faz presente a cada momento
para os personagens-escritores, como se pode depreender pelos comentários acima.
Cientes de sua condição, Gustavo Flávio e Rufus, aliás, possuem semelhanças
relevantes. Não só por serem escritores, mas também por terem suas carreiras afetadas,
positiva e negativamente, pelas mulheres com que se evolvem sobre o qual se falará com
mais atenção no capítulo 4 –, além da intervenção recorrente do mercado em seus trabalhos. O
mais interessante é que os dois deixam de escrever o livro de que falam tanto em suas
narrativas. Gustavo Flávio, como já se mencionou, “mata” Bufo e Spallanzani. Rufus, por sua
vez, desiste de redigir o romance de formação que planejara, concluindo a sua narrativa com a
seguinte afirmação: Bildungsroman: que coisa mais boba.” (DF, p.253). Em lugar de
escreverem o que deles se espera, escrevem sobre o que eles esperam e sentem. E se Gustavo
Flávio “reescreve” Madame Bovary, o protagonista de Diário de um fescenino, por sua vez,
tenta escrever a sua Educação sentimental. O romance de formação de Rufus é a experiência
por ele narrada em seu diário, resultando no que se poderia chamar de seu ano de
aprendizagem o que seria outra ironia da parte do autor, pois o romance de aprendizagem,
ou de formação, canônico narra experiências de uma vida inteira de um personagem, da
infância à maturidade, e não de um ano apenas.
Outro fator que incomoda alguns dos personagens que escrevem são as dificuldades
para se conseguir publicar o primeiro livro. O poder dos editores para se escolher o que deve
e, principalmente, o que não deve ser editado, não apenas incomoda-os, como também pode
levá-los a guardar rancor e despertar desejos vingativos, quando têm seus originais recusados.
Nesse aspecto, a relação entre os personagens Clotilde Farouche e Peter Winner, de
“Romance negro”, presente na coletânea de contos homônima (1992), é singular, pois, revela,
38
com ironia, certas dissonâncias, surpreendentes, entre os interesses editoriais e os anseios dos
autores.
Farouche é a editora responsável pela publicação das obras dele. Mas há muitos
segredos nessa relação. Na verdade, Peter não é quem todos, inclusive a esposa, supõem que
seja. Chama-se John Landers, assassinou e assumiu a identidade de Winner, autor recluso,
conhecido apenas pelo amante, e que, por isso, também acaba sendo morto. O impostor era
um obscuro professor de inglês na França, também ele escritor policial, cujo livro fora
recusado por diversas editoras, até mesmo a da atual mulher. A princípio, o alvo de seu plano
era ela: “O champanha e o veneno eram para matar você, Clotilde, a editora que recusara meu
livro, o de John Landers” (RN, p.713). Entretanto, ao conhecê-la, ele se apaixona e os dois se
casam. Assumindo o lugar de Winner, o protagonista, então, entrega os originais de seu novo
livro como se estes fossem os do defunto autor. Antes de entregá-los e conhecer Clotilde, ele
observa os passageiros do trem negro, escritores e críticos ligados ao gênero policial, e faz os
seguintes comentários, cheios de muita amargura e nem um pouco humildes:
Como esses cretinos e essas cretinas haviam conseguido publicar os seus livros
enquanto ele continuava um escritor inédito? A Grasset, que publicava um monte de
mediocridades, não queria publicar o seu romance. Na verdade, não havia mais
editoras independentes, todas integravam grandes conglomerados financeiros
controlados por estúpidos self made men que haviam ganho dinheiro de maneira
selvagem e inescrupulosa e encaravam o livro como uma mercadoria qualquer.
Naqueles dias, mesmo com a irresistível força do ressentimento que o dominava,
Kafka não conseguiria ser publicado, nem Poe, nem Baudelaire, nem nenhum autor
novo realmente significativo, como ele, Landers, por exemplo. (RN, p.719).
Com a publicação da obra, intitulada Romance Negro, o sucesso é imediato, tanto de
crítica quanto de público, que saúdam o surgimento de um novo Winner. Com efeito, o
personagem vai, gradativamente, se dando conta de que para conquistar o reconhecimento que
imodestamente considera merecido tem que fazê-lo através do nome do outro. Tudo o que
escrever, todos os louros que conseguir, seriam atribuídos não a ele, Landers, mas àquele de
quem tomou o lugar. Acaba se questionando: afinal, quem fora a maior vítima nessa história?
Pela primeira vez cogita da hipótese de que, ao matar Winner e apossar-se do seu
nome, na verdade ele matou Landers; deixou que Winner se apoderasse dele.
39
Winner, o grande escritor decadente, ficou mais vivo depois de morto. Landers
escreve para Winner. Quem se apoderou de quem? O vivo do morto, ou o morto do
vivo? (RN, p.724-725).
A princípio perturbada, Clotilde, não demora a tomar providências, ao saber da
verdade. Não para que esta seja revelada, mas sim para que permaneça oculta. Previne as
autoridades de que o marido anda tendo acessos de loucura, afirmando ser outro. Percebendo
a situação em que se enredara, Landers deseja livrar-se de Winner, porém, é tarde demais.
Está definitivamente preso à identidade do outro, que, aliás, era seu irmão gêmeo, de quem
fora separado ainda criança, só tomando conhecimento disso, trágica e sofoclianamente,
depois de tudo consumado. As decisões e as palavras da esposa realçam “a cilada dos
deuses” na qual caíra: “As pessoas mudam. Você mudou. Quem morreu foi John Landers.
Você é Winner, aceite isso como uma imposição do destino.” (RN, p.732).
Curiosamente, para a editora e mulher do escritor, não importa quem foi, ou
realmente é, o homem com quem vive. Para ela, ele sempre foi o escritor renomado, autor do
livro cujos originais lera no trem: “Fui para a cama com você por causa do Romance negro.
Casei-me com você por causa do Romance negro.” (RN, p. 721). Casara-se com Winner, não
com Landers. Lamenta, então, ao saber que este queimara o livro recusado, reconhecendo sua
conduta preconceituosa em relação a textos inéditos: “não devo tê-lo lido com atenção. Mas
na suposição de que Romance Negro era de Winner tive paciência para superar as estranhezas,
as rupturas, as anormalidades, os desusos, as singularidades. Me apaixonei pelo livro. E,
depois, o mesmo aconteceu com os críticos e o público.” (RN, p.721).
Recordando-se de Calvino, “quem comanda a narrativa não é voz, é o ouvido”,
Landers reconhece que Clotilde entendera o que contara de maneira pessoal e única. Entre a
verdade e a lenda, sua esposa acaba por preferir a lenda, perpetuando-a, mesmo à revelia dos
questionamentos éticos e metafísicos do marido. No fim das contas, o que interessa é a letra
impressa do texto de Winner de reconhecida fama –, não tendo importância que a voz seja,
na verdade, de outro.
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Landers/Winner é movido pela sede de reconhecimento, algo que, como escritor
anônimo e inédito, almejava, mas não alcançava. Quando finalmente o alcança, por meio de
um tortuoso plano, com conseqüências ainda mais tortuosas, vê-se frustrado, não por
consegui-lo, mas pelo quão alto lhe custou – a própria identidade:
Pensa na fama, essa puta cadela. [...] Existe uma fama legítima? Ou são todas
espúrias? Quando seu livro foi publicado com o nome de Winner pela Grasset e
recebido com aclamações, estava ele acrescentando algo à fama de Winner, ou à
dele, Landers? Quem é William Shakespeare: Francis Bacon, Christopher Marlowe
ou o zé-ninguém William Stanley? Isso interessa a alguém, a não ser a meia dúzia de
professores que não tem o que fazer? Homero existiu? Isso tem importância ou é
uma questão bizantina? Quem é Winner? Agora é ele. Enquanto for vivo isso poderá
ter alguma solerte relevância, ele poderá regozijar-se com a glória. Depois de morto,
a imortalidade? Esse ideal doentio? (RN, p.724).
A busca pela fama irá nortear outros personagens-escritores de Fonseca. Alguns a
alcançarão, outros sofrerão por não atingi-la, mas essa será apenas uma das inúmeras agruras
que o solitário, e pouco solidário, ofício da literatura lhes trará.
41
3. Labaredas nas trevas: júbilos públicos e misérias privadas
3.1. Ver e Pensar
Uma das citações mais recorrentes e relevantes na obra de Rubem Fonseca, referida,
com destaque, em pelo menos três de seus livros Vastas emoções e pensamentos
imperfeitos, E do meio do mundo prostituto amores guardei ao meu charuto e Diário de
um fescenino, onde foi integralmente traduzida pelo próprio escritor –, é a seguinte frase de
Joseph Conrad, contida no prefácio de seu livro O negro do Narciso (1897): “Minha tarefa,
que estou tentando agora realizar, é, através do poder da palavra escrita, fazer você ouvir,
fazer vosentir, é, antes de tudo, fazer vover. Isso, nada mais e é tudo” (DF, p.157).
Passagem que, conforme assinala José Paulo Paes, “vale por uma profissão de de
romancista” (PAES, 2007, p.501). Profissão de à qual se poderia perfeitamente incluir a
obra de Fonseca como um todo, tanto os romances quantos os contos.
Com efeito, a ficção fonsequiana, segundo Célia Pedrosa, é marcada por uma
estratégia de visibilidade, o que revela “uma vontade de resgatar o saber intelectual e as
palavras de seu exílio, trazendo-as de volta ao reino da experiência da visão – o olhar”
(PEDROSA, 1998, p.194-195). E é através deste olhar que se perscruta as mais diferentes
personagens, dentre elas, os escritores. Convém ressaltar, no entanto, que tal olhar não se
limita a transformar o leitor em mero espectador. Não incita apenas seus sentidos, mas
também suas idéias.
Em Vastas emoções, a frase de Conrad é mencionada pelo protagonista para o seu
amigo, Gurian. Este, por sua vez, demonstra não muito apreço pelas introduções conradianas
“O problema do Conrad foi querer explicar sua obra em prefácios longos e chatos, como
este que você citou. O artista não tem que explicar sua obra” (VEPI, p.69) –, além de externar
uma interpretação particular e instigante sobre a citação: “Conrad devia ter terminado sua
42
frase assim:... and above all to make you think [e antes de tudo, fazer você pensar]. É isto que
é tudo, realmente” (VEPI, p.69).
Ao transformar escritores em personagens de sua obra, Rubem Fonseca demonstra que
a sua tarefa é, através do poder da palavra escrita, fazer o leitor ouvir, fazê-lo sentir, e, antes
de tudo, fazê-lo ver e pensar sobre a vida autoral, sobre seus altos e baixos, dilemas,
desapontamentos, ilusões e desilusões. Através da estratégia da visibilidade, ele lança um
olhar irônico sobre o solitário ofício das letras, devassando o mínimo e o escondido,
revelando tanto os júbilos públicos quanto as misérias privadas por que passam autores
neófitos e consagrados, diletantes e profissionais, fictícios e reais.
3.2. Debalde demanda
Gustavo Flávio considera a necessidade de ser lido uma das maiores maldições dos
escritores. Atingir este objetivo será a pretensão dos personagens-autores de Rubem Fonseca.
Aliás, mais que serem lidos, ambicionam serem reconhecidos, laureados, admirados, enfim,
conquistarem a fama através da literatura. Não serão poucas as vicissitudes pelas quais
passarão para consegui-la. E haverá situações em que, apesar dos esforços, alguns
simplesmente não a conseguirão.
É o caso dos diletantes, cuja maioria ambiciona justamente deixar de sê-los. Esses
personagens merecem destaque porque revelam a agrura de ansiarem o sucesso, dedicando-se
com afinco ao ofício literário, mas sem lograrem jamais atingi-lo, o que lhes causam
profundas amarguras e frustrações. Despidos de talento, parecem ver a literatura mais como
um meio para satisfazer a vaidade do que como um fim propriamente estético. Tornam-se,
assim, o que se poderia chamar de tântalos da glória literária, padecendo de fome e sede de
sucesso, sendo, porém, sempre tolhidos de saciar esses desejos.
Em A grande arte (1985), o personagem José Joaquim de Barros Lima carrega consigo
a frustração de não ter obtido o reconhecimento que julgava merecer nas letras. De origem
43
humilde, filho de emigrantes, que se sacrificaram para oferecer-lhe uma educação
privilegiada, ele conseguira ascender socialmente graças a sua tenacidade e aptidão para a
jurisprudência. Estabelecera também ótimas relações com figuras poderosas de sua época
como, por exemplo, o Barão do Rio Branco, de quem fora amigo próximo. Por tudo isso,
parecia ser um homem realizado. Todavia, não o fora. Sem dúvida, a poesia lhe causara
grandes desapontamentos. A publicação de seu primeiro livro, apesar de contar com um
generoso prefácio de Machado de Assis, fora friamente recebido, e seus versos foram
considerados medíocres. Para piorar, na mesma época a repercussão da poesia de Castro
Alves eclipsou totalmente sua estréia. Quando se fundou a Academia Brasileira de Letras, o
sonho do personagem passou a ser o de participar dela. Acreditou que não teria dificuldades
para se eleger. Era amigo do presidente da instituição, recebera várias promessas de votos de
outros acadêmicos e até mesmo conseguira para a Academia, que então não tinha sede nem
lugar certo para suas reuniões, um local onde se instalasse. Todo esse esforço foi debalde,
pois acabou derrotado no pleito. Sentira-se traído. Amargurado, abandonou definitivamente a
literatura.
O bisneto de Barros Lima, Thales Lima Prado, não chegou a padecer de tamanhos
desgostos literários, porém, devido à decadência econômica de sua família somente
revertida quando passou a comandar um poderoso conglomerado empresarial, que servia de
fachada para atividades criminosas –, ele nunca pôde dedicar-se a sua “verdadeira vocação de
pensador, de homem de letras” (GA, p.177). Mandrake ratifica a opinião de Thales, quando
tem acesso a suas anotações, acreditando que “ele teria sido um escritor muito interessante
[...] se tivesse tido tempo, afinal, de dedicar-se a esse penoso ofício” (GA, p.181).
É interessante observar como Fonseca aborda nesse romance a frustração literária de
dois membros de uma mesma família, e que se manifestam em épocas diferentes e de
maneiras peculiares. Se o ancestral ambicionava a glória, possuindo quase tudo o que era
44
necessário para conquistá-la, exceto talento, seu descendente, por sua vez, não obstante
tivesse potencial artístico, se viu impedido, por causa de suas obrigações com o crime, de
dedicar-se integralmente às letras. Ambos, cada um a seu modo, cobiçaram a literatura, mas
esta sempre se esquivou deles. Sobre o personagem Thales, evocando o trecho em Intestino
grosso” no qual o protagonista, ao ser perguntado por que se tornara escritor, afirma que
ficara entre escritor e bandido, pode-se dizer que ele pendeu mais para a segunda do que para
a primeira atividade. Sua grande arte se revelou através do crime.
Em E do meio do mundo do mundo prostituto amores guardei ao meu charuto
(1997), um desafeto de Gustavo Flávio, chamado Reinaldo, também possuía grandes
ambições literárias, mas que, por fim, se revelaram vãs. Diferentemente do protagonista da
novela, que conquistara o sucesso de imediato:
Você quer saber por que Reinaldo me odiava? Durante os dez anos em que sumi,
após ter tido uma passagem turbulenta pela Panamericana de Seguros, antes de ser
escritor consagrado, fiz o vestibular para a faculdade de Direito, onde conheci
Reinaldo. Ele queria ser escritor, falava nisso na faculdade; participava de todos
esses concursos de contos e romances que se realizam anualmente no país, sem
nunca ser premiado. Não vou ser um advogadinho de merda, ele dizia, você você
era eu você vai ser um advogadinho de merda, eu vou ser um grande escritor. Na
verdade, o curso de Direito, com exceção das matérias de direito penal, não me
interessava, eu gostava de escrever, mas não comentava isso com ninguém. Reinaldo
publicou, às suas próprias custas, dois romances que foram ignorados pelo mundo.
lhe restou o Direito e ele, que era muito astuto, se tornou um grande advogado e
ganhou uma fortuna, mas a frustração e o rancor de ser um escritor fracassado nunca
o abandonaram. Enquanto isso publiquei o meu primeiro livro e fiquei logo famoso.
(MMP, p.42-43).
Mais adiante, Gustavo Flávio, dissertando sobre o que levaria alguém a se tornar
escritor, afirma que, dentre várias motivações:
O importante é que a vontade seja muito forte. Mas basta isso? O Reinaldo tinha
uma vontade pervicacíssima de ser escritor e no entanto seus dois livros eram uma
merda. Todos esses escritores cus-de-ferro e medíocres se caracterizam pela sua
determinação extremada. Motivação é importante, mas o aspirante precisa ter outras
virtudes. (MMP, p.62-63).
Dedicação extrema, empenho que não esmorece diante das mais árduas dificuldades
eram atributos que o personagem João, amigo de Epifânio, de “A arte de andar pelas ruas do
Rio de Janeiro”, inegável e orgulhosamente possuía. Tendo publicado um livro de poesia e
um de contos, ele dedicava seu tempo vago à redação de um extenso romance, sem se
45
descuidar de suas responsabilidades cotidianas, pois “era casado com uma mulher que sofria
dos rins, pai de um filho asmático e hospedeiro de uma sogra débil mental e mesmo assim
cumpria suas obrigações com a literatura” (AAR, p.593). Não apenas se impunha como
também professava um rígido princípio em relação ofício das letras, acreditando que “o
verdadeiro escritor não devia viver do que escrevia, era obsceno, não se podia servir à arte e
Mammon ao mesmo tempo” (AAR, p.593). Conforme assinala Renato Cordeiro Gomes, para
este personagem, “literatura era diletantismo e não profissão, retomando o mito romântico do
artista sofredor que a tudo se sacrifica em nome da arte” (GOMES, 1994, p.152). João dizia
ainda que “havia um ônus a pagar pelo ideal artístico, pobreza, embriaguez, loucura, escárnio
dos tolos, solidão, fracasso” (AAR, p.594). E a prova de que tinha razão surge quando ele
morre, “de uma doença causada pelo cansaço e pela tristeza, antes de acabar seu romance de
seiscentas páginas. Que a viúva jogou no lixo, junto com outros papéis velhos” (AAR, p.594).
O personagem não almejava necessariamente a glória, não considerava a literatura um meio
para a fama, como Reinaldo e Barros Lima, pelo contrário, via-a como um fim em si, como
um ideal a ser duramente atingido, e que, por fim, se revela inatingível. Ideal esse que, por
amarga ironia, sua esposa ignora, ao simplesmente descartar o fruto de tantos esforços do
marido. Este acreditava que a literatura não tinha preço, mas, para sua mulher, ela não tinha
nenhum valor.
Todavia, igualmente um ônus a ser pago por aqueles que conquistam a glória
literária. E que não é muito diferente daquele que se paga pelos que demandam conquistá-la.
O sucesso também será fonte de várias vicissitudes.
3.3 Os artifícios de “Artes e ofícios”
As veleidades literárias de alguns personagens-escritores fonsequianos os levam a
dedicarem-se ao penoso oficio das letras. Todo esse esforço, no entanto, acaba por redundar
em fracasso. Como em um jogo, apostam todas as fichas para ganhar o tão sonhado
46
reconhecimento, mas fatalmente acabam perdendo. Deve-se ressaltar que eles seguem
escrupulosamente as regras, empenhando-se com seriedade à criação literária. São os
verdadeiros autores das obras com as quais anseiam conquistar a fama. Todavia, quem,
ironicamente, alcance a glória literária burlando o jogo, tornando-se escritor famoso sem ter,
na verdade, escrito uma linha sequer. É o caso do protagonista do conto “Artes e ofícios”, de
O buraco na parede (1995).
Para ele, as letras são meramente um meio para conquistar prestígio, e não um fim em
si, um ideal a ser duramente conquistado. Homem de origem muito pobre, que enriqueceu
rapidamente, graças a sua astúcia para os negócios, ele guarda forte rancor por não ter sua
capacidade intelectual respeitada, pois não possui curso superior nem médio, na verdade,
tampouco o básico:
Isso tem sido uma preocupação para mim, a única que o dinheiro não solucionou. Se
você é rico e não tem diploma as pessoas acham que você é burro. Se você é pobre e
também não tem diploma as pessoas dizem ele não freqüentou a escola, não tem o
curso primário, mas aprendeu a ler sozinho os melhores autores, é um cara muito
inteligente. Diziam isso de mim, quando eu era pobre. Quando fiquei rico
começaram a espalhar que eu era uma cavalgadura, que eu comprava os livros a
metro, tudo mentira. Eu devia ter comprado um diploma de economista logo que
comecei a ganhar dinheiro. Agora não posso mais fazer isso, as pessoas saberiam,
nós os ricos somos muito vigiados. Oportunidade, eu entendo disso. (AO, p.87-88).
A narrativa, aliás, é pontuada por afirmações como esta última, variando apenas o
tópico sobre o qual ele se jacta de entender, tornando-se não um mero divertido bordão, mas
sim um verdadeiro leitmotiv. O primeiro surge ao final do parágrafo que inicia a história, e
que define a visão de mundo monetarista do personagem:
Você estraga os dentes quando é um garoto miserável, mas se depois ganha bastante
dinheiro encontra um dentista que conserta a sua arcada dentária. Isso aconteceu
comigo, implantei todos os dentes da minha boca, um prodígio de engenharia
odontológica. Estou cheio de dentes que não caem nem ficam cariados, mas quando
dou uma gargalhada na frente do espelho sinto saudade da minha boca antiga, agora
meus lábios se abrem de um modo que eu não gosto. De qualquer forma, não me
faltam dentes e posso morder com força mulheres e contra-filés. Antes eu morava
num conjunto habitacional miserável e andava de trem, espremido que nem sardinha
em lata. Hoje moro numa bela mansão num condomínio fechado na Barra, tenho
dois automóveis e dois motoristas. Eu tinha uma perna mais comprida do que a outra
e nem sabia. Andava com operárias, balconistas de lanchonetes, empregadas
domésticas, algumas analfabetas. O dinheiro me deu pernas do mesmo tamanho, me
deu uma esposa de boa família, arruinada e cheia de diplomas, me deu uma amante,
47
sem diploma mas que sabe vestir uma roupa elegante e atravessar fazendo pose o
salão de festas. Dinheiro, eu entendo disso. (AO, p.87).
O “prodígio da engenharia odontológica” retoma um elemento recorrente na obra de
Fonseca, o da “metáfora dos dentes como símbolos das diferenças sociais” (FIGUEIREDO,
2003, p.61). E que se faz presente, por exemplo, em “Intestino grosso” –“Meus livros estão
cheios de miseráveis sem dentes” (IG, p.461) –, “O cobrador” no fatídico episódio inicial –,
e em “Corações solitários” no trecho em que um rapaz é abandonado pela noiva, após
revelar-lhe não possuir um dente sequer, quando coloca sua dentadura diante dela –, entre
vários outros. O dinheiro que dera ao protagonista de “Artes e ofícios” dentes, permitindo-lhe
morder com força mulheres e contra-filés, também lhe possibilitará abocanhar prestígio
literário. Entretanto, a obra com a qual conquistará a glória será tão postiça quanto os seus
dentes.
Como sua habilidade é o comércio, decide contratar alguém para escrever-lhe um
livro, ao invés de escrevê-lo ele mesmo. Encontrar quem o faça não será tarefa difícil,
bastando folhear o jornal, um anúncio: “Seja um escritor respeitado e admirado pelos seus
amigos, seus vizinhos, sua família, sua namorada. Eu escrevo para você o livro que você
quiser. Poesias, romances, contos, ensaios, biografias. Sigilo absoluto. Cartas para
Ghostwriter” (AO, p.88). Enquanto isso, ele finge para a esposa e para a amante que vai
começar a escrever um romance. Resolve não ter contato com o escritor que estava alugando,
comunicando-se apenas via caixa postal. Prefere também aguardar os textos iniciais para
avaliar a qualidade do livro. Se fosse bom, publicava-o, caso contrário, o descartaria. A carta
que envia para encomendar a obra estabelece, de maneira contratual, o que deseja:
Ghostwriter. Li o seu anúncio. Estou interessado. Quero um romance de duzentas
páginas no mínimo, à maneira de Machado de Assis. Pago o que for preciso,
informe qual o banco e número da conta para eu depositar a primeira parcela, dez
por cento do total. Pagarei o restante em parcelas de trinta por cento, mediante a
entrega de setenta páginas, ou mais, de cada vez. Resposta para Tomás Antônio,
Caixa Postal 432 521. (AO, p.88).
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O baixo preço estipulado pelo autor de aluguel deixa o personagem em dúvida sobre a
qualidade do produto: “Dez mil reais, o preço de um Volkswagen ordinário. Meu livro ia ser
uma merda. Mas depositei dez por cento na conta do Ghostwriter” (AO, p.89). À leitura dos
primeiros capítulos do livro, intitulado O falsário, ele considera a obra um tanto confusa,
embora não mal escrita. Estranha também o estilo, que não parece com o de Machado,
conforme requisitara. Os esclarecimentos às suas dúvidas vêm na carta seguinte do
Ghostwriter:
Tomás Antônio. O falsário esforjando uma autobiografia de Machado de Assis.
Assim como você não notou, o leitor também perceberá isso quando estiver
adiantado na leitura do romance. O texto está me dando muito trabalho. Tive que
pesquisar os processos técnicos de envelhecimento de papel, estou tendo que ler
todas as biografias de Machado de Assis. A história da falsificação e a autobiografia,
apócrifa, mas que será de grande acurácia nas referências à vida de Machado,
servem de moldura uma para outra. Processo de encaixilhamento, entendeu? Vou ter
um trabalho maior do que eu pensava. Poderíamos aumentar meus honorários para
vinte mil? Ghostwriter. (AO, p.93).
Mesmo sem se impressionar com o que chama de “baboseiras teóricas” dadas pelo
escritor, o protagonista, por intuição, aceita aumentar os honorários. Três meses depois, o
livro fica pronto, resultando em um romance de seiscentas páginas, cujo resumo era o
seguinte:
O falsário, a pedido de um editor desonesto, forja um livro de memórias como se
fossem do Machado de Assis; as memórias são publicadas, todo mundo acredita que
elas são verídicas, os críticos ficam enlouquecidos, o livro vira um best-seller, não se
fala em outra coisa. Mas no fim o falsário, não se sabe se por arrependimento ou por
querer se vingar do editor, dos leitores e da crítica, denuncia a manobra, deixando
todo mundo com cara de besta. (AO, p.94).
A história, como se vê, ironicamente sintetiza, em linhas gerais, a trama do próprio
conto. Com a diferença de que, ao final, o embuste não é revelado publicamente. Não é a
primeira vez que Fonseca se utiliza do processo de encaixilhamento, inserindo uma obra
ficcional dentro de outra, fazendo uso, inclusive, de um tulo semelhante ao do livro escrito
pelo Ghostwriter. Em “Romance negro”, por exemplo, o último trabalho de Peter Winner se
chama O farsante, e embora não se faça um resumo de seu conteúdo, como em “Artes e
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ofícios”, o título do romance fictício obviamente remete a história de John Landers, o farsante
que assume o lugar de Winner.
O protagonista, já com o livro nas mãos, segue o caminho comum aos autores inéditos,
enviando sua obra para diversas editoras. Mas não se sai bem nessa primeira tentativa:
Terei seis cópias e mandei para seis editores. Apenas um respondeu, perguntando se
não podia cortar os trechos do livro que falavam da vida de Machado de Assis, que
era desnecessário e o corte não prejudicaria o livro, que seiscentas páginas era
muito, que as editoras em geral atravessavam uma fase difícil devido à crise
econômica etc. Os caras não queriam investir num tijolão de autor desconhecido.
Pretextos, eu entendo disso. (AO, p.94).
Resolve, então, pagar ele mesmo a edição. Para isso, não poupa dinheiro. “Paguei a
um cobra para escrever a orelha, minha foto para o livro foi feita pelo melhor profissional da
praça, a capa foi elaborada pelo melhor capista do país” (AO, p.94). Mil exemplares são
impressos e apenas quinhentos distribuídos. Eis o que lhe ocorre quando o livro fica pronto:
“Pensei, ao receber o primeiro exemplar com o meu nome na capa colorida, essa merda vale
tanto quanto os meus dentes implantados. Ver as coisas como elas são, eu entendo disso”
(AO, p.94-95). Livro e dentes são produtos cujos preços garantem-lhe o valor social que lhe
fora antes negado. Ambos são postiços, mas cumprem perfeitamente a função para a qual
foram adquiridos: a de serem amplamente expostos. Conforme afirma o protagonista, de que
adianta possuir tantos bens “se não for para mostrar para os outros?” (AO, p.89). Sua vaidade,
finalmente, estava satisfeita. Mas a história lhe (e nos) reserva surpresas:
Durante um mês, nada aconteceu. Mas o crítico de uma revista semanal me
descobriu, disse que eu era a maior revelação literária dos últimos anos, e os
quinhentos exemplares que estavam nas estantes dos fundos das livrarias se
esgotaram num dia. O editor publicou uma nova edição de dez mil exemplares, e
outra, e mais outra. Eu estava famoso, da noite para o dia. Dei entrevistas para todos
os jornais. Dei entrevistas na televisão. As pessoas me pediam autógrafos. Gisela [a
amante] me pediu autógrafo. Esmeralda [a secretária] me pediu autógrafo. Nos
jantares falavam do meu livro. Onde estava a cavalgadura? Vingança, eu entendo
disso. (AO, p.95).
Com o sucesso, o Ghostwriter novamente entra em contato. Descobre-se que é uma
escritora, Maria José, e que O falsário fora sua primeira encomenda. Ela requisita mais
dinheiro, com o pretexto de que precisa fazer uma cirurgia. Ele concorda em pagar a quantia
50
pedida e ainda promete repassar-lhe todo o lucro obtido pelo livro. Fechado o negócio,
oferece a ela carona. Observa que durante o trajeto:
As casas foram rareando e andávamos por uma estrada deserta e escura. Fiquei
imaginando uma maneira de solucionar as minhas perplexidades de uma vez por
todas, em caso de dúvida não hesite, é assim que se ganha dinheiro. Eu podia agarrá-
la pelo pescoço, esganá-la e jogar o corpo na praia. Mas esse não era o meu negócio.
Compra e venda, eu entendo disso. (AO, p.95).
Para que sua história pudesse ter um bom final, ele corteja, seduz e propõe a Maria
José uma parceria “amorosa”, literária e econômica. Surpresa e lisonjeada, ela, afirmando que
nunca despertara a atenção masculina, acaba aceitando. Plenamente satisfeito, o personagem
conclui assim a narrativa: “O novo livro está quase todo escrito. Ele vai ser ainda melhor do
que o primeiro. Sucesso, eu entendo disso” (AO, p.98).
A glória para o protagonista do conto é resultado não das agruras do ofício literário,
mas sim dos artifícios mercantis de que se utiliza para atingir o seu objetivo. Conforme
analisa Vera Lúcia Foullain de Figueiredo:
Em “Artes e ofícios”, um narrador cínico e calculista compra o romance escrito pela
mulher desconhecida. A partir daí, o capitalista, que entende de compra e venda,
passa a ter de administrar a relação “amorosa” que oferece à Ghostwriter para se
apoderar definitivamente de sua obra: para ele, a autora de um texto, tanto quanto o
caso amoroso, é um produto, um bem, que se adquire mediante dinheiro, ou seja,
inscreve-se no âmbito da propriedade. (FIGUEIREDO, 2003, p.60).
Quem padece, em silêncio, pois a narrativa quase não lhe voz, é Maria José, a
verdadeira autora de O falsário. Em apenas um trecho se vislumbra as vicissitudes do labor
literário: quando ela explica o processo de encaixilhamento ao protagonista, e reclama que a
escrita do romance tem-lhe dado muito trabalho, envolvendo amplas pesquisas técnicas e
biográficas, além do presumível esforço necessário para a composição de uma obra de
seiscentas páginas. Aos júbilos públicos do personagem principal contrapõem-se as misérias
privadas da escritora, que por ser ghostwriter, tornam-se, por assim dizer, evanescentes.
O ônus pago literalmente pelo protagonista de “Artes e ofícios” não é nada alto.
Muito pelo contrário, seu logro só lhe traz lucros – financeiros, literários e “amorosos”. O seu
sucesso, porém, seria fonte de vicissitudes apenas para Maria José, que de fato exerce o ofício
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das letras muito embora ela tenha aderido entusiasticamente às investidas do patrão-amante.
Se nesse conto, as agruras da vida autoral ocupem um espaço periférico, em outros textos,
elas serão as matérias-primas das narrativas.
3.4 Agruras de um jovem e de um velho escritor
3.4.1 A distância da superfície ao fundo
A glória parece ser a meta que a maior parte dos personagens-escritores de Rubem
Fonseca tanto deseja atingir. É também o combustível que os move, levando-os a se empenhar
no ofício das letras. Todavia, mais do que consumi-la, parecem ser, na verdade, por ela
consumidos. A ambição pela fama os inflama, transformando, por vezes, algumas débeis
flamas em labaredas; e estas, não raro, depois de atingirem o auge do fulgor, se vêem
rapidamente reduzidas a cinzas.
Duas narrativas, em particular, “Agruras de um jovem escritor”, de Feliz ano novo
(1975), e “Labaredas nas trevas”, de Romance negro (1992), voltam-se, cada uma de maneira
peculiar, para a busca pela glória, contrapondo, com ironia ora cáustica, ora amarga as
agruras de um aspirante às de um decano da literatura.
Convém, antes de analisar as histórias, especificar mais detalhadamente a meta por
eles almejada, e que acaba por se tornar fonte de tantas vicissitudes: a glória. De acordo com
Renato Janine Ribeiro:
Glória, honra, fama e reputação apontam o renome que tenho, a imagem que os
outros vêem em mim. A imagem, pública, assim se opõe à intenção: quando os
outros me valorizam ou depreciam pelo que de mim é visível, não importa o que eu
esteja sentindo no mais íntimo. O universo das intenções, a consciência, não pode
ser devassado pelo outro. Desta forma, a honra, a reputação, a fama se afastam do
campo propriamente moral ou ético, no qual conta, justamente, a intenção que me
move a agir. Um ato pode ser admirado, pode dar relevo social a uma pessoa, e no
entanto dever-se a motivos vis; ou o inverso.[...] Não conta a verdade, a intenção
apenas o aspecto público, fama ou infâmia. O que importa não é o que sou, é o que
pareço ser [...] As aparências não bastam, mas sem elas de nada vale a verdade
íntima. (RIBEIRO, 1987, p.107-108.)
52
Aos júbilos públicos trazidos pela glória literária pouco importa as misérias privadas
por que passam os escritores. Nas narrativas aqui em questão, no entanto, tais sentimentos se
revelam não apenas indissociáveis como também indispensáveis para as tramas.
“A ilusão”, afirma Roland Barthes, “não é mais que a distância da superfície ao fundo”
(BARTHES, 2000, p.100). No caso do personagem de “Agruras de um jovem escritor”, como
se vai ver, a fama revelará que a distância da superfície a ambição do protagonista ao
fundo seu real talento –, na verdade, não passa de uma ilusão. No entanto, essa constatação
não o impedirá de, mesmo assim, ainda ser capaz de devanear com o sucesso. Quanto ao
fictício Joseph Conrad, em “Labaredas nas trevas”, no decorrer da narrativa, tal distância irá
se desfazer completamente, levando-o a considerar os esplendores da glória literária ilusórios.
3.4.2
Pensamento polifásico ou vastas emoções e pensamentos imperfeitos
O conto “Agruras de um jovem escritor” narra os qüiproquós nos quais se envolve o
protagonista enquanto escreve, ou melhor, dita seu primeiro romance. Todavia, o que mais lhe
preocupa não é, definitivamente, o processo criativo de sua obra. É a fama literária o que
continuamente o obceca. Além disso, a namorada possessiva, porém devotada, torna-se um
grande inconveniente. Desvencilhar-se desta e conquistar aquela serão as causas de suas
agruras.
A história poderia ser definida como uma tragicomédia de erros, pois está repleta de
situações nas quais equívocos, mal-entendidos, enganos e precipitações resultam em
conseqüências cômicas, mas que se revelam, no fundo, também trágicas. É um dos textos em
que melhor se expressam o humor idiossincrático e a ironia – aqui mais cáustica que amarga –
de Rubem Fonseca, lançando um olhar implacável sobre o âmbito literário.
As confusões nas quais o protagonista – e narrador, algo freqüente não só às narrativas
em que escritores são personagens, mas também à obra fonsequiana como um todo se
envolve têm início quando ele ganha um prêmio de poesia da Academia e seu retrato é
53
publicado nos jornais. É o suficiente para que acredite que “ficaria instantaneamente famoso,
com mulheres se atirando nos meus braços. O tempo foi passando e nada disso acontecia. [...]
Minha fama durara vinte e quatro horas” (AJE, p.416). Surge, então, Lígia:
Ela entrou pelo meu apartamento adentro alvoroçada e anelante dizendo, não sabes
das dificuldades que tive de vencer para descobrir o teu endereço, oh! Meu ídolo, faz
de mim o que quiseres, e eu fiquei comovido, o mundo ignorava as minhas
realizações e surge essa moça vinda de longe para se prostrar aos meus pés. Antes
de irmos para a cama ela disse, dramaticamente, guardei o tesouro da minha pureza
e da minha juventude para ti e estou feliz. Enfim, ela não tinha para onde ir e se
instalou no meu apartamento, cozinhava para mim e costurava para fora, apesar de
ser costureira, arrumava a casa, batia à máquina o longo romance que eu estava
escrevendo, fazia as compras no supermercado com o dinheiro dela. (AJE, p.416).
O relacionamento foi considerado um bom arranjo, embora ela o obrigasse “a
trabalhar oito horas por dia no romance vai falando, dizia ela, enquanto batia
apressadamente na máquina” (AJE, p.416). Além disso, controlava-lhe a bebida, apesar de ele
dizer que todo escritor bebia, o que não a convencia, redargüindo que Machado de Assis, por
exemplo, não bebia; e que era graças aos cuidados dela que ele não se tornara um pobre e
infeliz alcoólatra. Tamanha devoção acaba sendo fonte de ciúmes, cada vez mais ameaçadores
e violentos, mas não infundados. Pego em flagrante durante uma sessão de cinema com outra
mulher, o protagonista é agredido por Lígia “ali mesmo, enquanto o filme estava passando
[...], um escândalo, levei vinte pontos na cabeça” (AJE, p.416). Exibindo-lhe as feridas, ele
argumenta que depois disso os dois não poderiam mais ficar juntos. Como resposta, ela abre a
bolsa e mostra-lhe um revólver, acrescentando: “Se me enganares com outra mulher eu te
mato” (AJE, p.416). O estratagema escolhido por ele para livrar-se da possessiva amante é
algo que, segundo afirma, “nenhum brasileiro faz, nem mesmo para salvar a própria pele”
(AJE, p.416): fingir-se de broxa. Mas seu desespero era tanto que estava disposto a “correr o
risco de passar na rua e Lígia dizer para as pessoas, me apontando, com aquele dedo grande e
ossudo, lá vai ele, premiado pela Academia mas broxa” (AJE, p.416-417). Entretanto o plano
não é bem-sucedido, pois, ao dizer que estava naquela situação, ela o leva imediatamente ao
médico, duvidando que alguém ainda tão jovem fosse impotente. Por ironia do destino, o
temor de que seu suposto problema sexual fosse relacionado com o seu “renome” se
concretiza, em parte, não como imaginara, com Lígia apontando-o nas ruas, mas através do
doutor que o atende, e que ao olhá-lo, pergunta-lhe se não fora premiado pela Academia.
A narrativa se compõe de episódios que, a princípio isolados, acabam se entrelaçando
e voltando-se contra o protagonista. “Nada temos a temer exceto as palavras”, repetidamente
se afirma em O caso Morel (1973). Em “Agruras”, o temerário jovem escritor padece com a
54
veracidade de tal vaticínio. Não apenas por suas palavras, mas também por seus atos, que não
mesuram as possíveis conseqüências, ele se enredará fatalmente na trama cujos eventos
interfere ou inventa.
O primeiro deles início ao conto e envolve um equívoco visual. Ao supor que o
encapuzado que insistentemente toca a campainha de seu apartamento é um ladrão, o
personagem, apavorado, decide reagir ameaçando-o com um facão. Descobre, então, se tratar
de uma freira, que ao vê-lo, nu e armado, foge aos gritos. Recebe, por isso, uma intimação da
polícia para depor sobre a queixa de ameaça de morte que a religiosa havia feito. Após o
episódio no cinema e da intimidação de Lígia, enquanto esta dorme, ele tenta, sorrateiramente,
se desfazer do revólver que ela lhe mostrara. Decide jogá-lo em um bueiro, mas quando vai
fazer isso um assaltante o aborda com um canivete. Aponta a arma e atira no criminoso, que
cai no chão. Volta para casa acreditando que matou o bandido mas não matou; depois o
reencontrará e este até lhe auxiliará em um momento de grande dificuldade. Coloca a arma de
volta na bolsa da namorada, que permanece dormindo, e no dia seguinte rompe a relação. Ela
se ajoelha aos seus pés e diz: “não me abandone, [...] serás explorado pelas outras mulheres,
fomos feitos um para o outro, sem mim nunca acabarás o romance, se me deixares eu me
mato, deixando uma terrível carta de despedida” (AJE, p.417). Ele pára e percebe que gia
falava “a mais absoluta verdade”, ficando em dúvida sobre “o que era melhor para um jovem
escritor, um prêmio da Academia ou uma mulher que se mata por ele, deixando uma carta de
despedida, culpando-o desse gesto de amor desesperado? Para mim o romance acabou”
(AJE, p.417), eis a sua resposta definitiva. Nem sequer imagina a exatidão de tal frase.
Lígia cumpre sua palavra e comete suicídio. Depois de ir a um bar e flertar com uma
jovem, que gostava de literatura, mas, para sua frustração, nunca tinha ouvida falar dele, volta
a casa e, acreditando que a namorada dormia, encontra um bilhete de despedida, junto ao
vidro vazio de pílulas tranqüilizantes: “José, adeus, sem ti não posso viver, não te culpo de
nada, te perdôo; queira Deus que te tornes um dia um bom escritor, mas acho difícil; eu
viveria contigo, mesmo impotente, mas também disso não tens culpa, pobre infeliz. Lígia
Castelo Branco” (AJE, p.418). Ele tenta socorrê-la, mas já é tarde demais. Enquanto aguarda a
chegada da polícia, incomodado com o teor da carta, “Impotente e mau escritor merda! O
que foi que eu fiz para ela me tratar assim?” (AJE, p.419), senta à máquina de escrever para
redigir uma outra versão:
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José, meu grande amor, adeus. Não posso obrigá-lo a me amar com o mesmo fervor
que lhe dedico. Tenho ciúmes de todas as lindas mulheres que vivem à sua volta
tentando seduzi-lo; tenho ciúmes das horas que você passa escrevendo o seu
importante romance. Oh, sim, amor da minha vida, sei que o escritor precisa de
solidão para criar, mas esta minh’alma mesquinha de mulher apaixonada não se
conforma em partilhar você com outra pessoa ou coisa. Meu querido amante, foram
momentos maravilhosos os que passamos juntos! Sinto tanto não poder ver
terminado esse livro que será sem dúvida uma obra-prima. Adeus, adeus! Queira-me
bem, lembre-se de mim, perdoa-me, ponha uma rosa na minha sepultura, no Dia de
Finados. Sua Lígia Castelo Branco. Assinei, fazendo a letra redondinha de Lígia, e
coloquei a carta na mesinha de cabeceira, depois peguei a carta que ela havia escrito,
rasguei, botei fogo nos pedacinhos, e joguei fora as cinzas no vaso de sanitário.
(AJE, p.419).
A polícia chega, efetua-se a perícia no local e o cadáver é levado. Sozinho, o
protagonista sente necessidade de afogar as goas. Vai novamente a um bar, encontra-se
com duas outras jovens, a quem, ao ser perguntado sobre o que fazia, afirma, bêbado, ser
assassino de mulheres, matando-as com “veneno, o lento veneno da indiferença” (AJE,
p.421). A repercussão do suicídio de Lígia é pífia, apenas uma breve nota sobre uma
costureira que se matara em Copacabana. Após prestar depoimento na delegacia, ele encontra
um jornalista que, enfim, vai ao encontro de suas ambições, fotografando-o várias vezes
enquanto ele dizia: “Sou escritor, premiado pela Academia, estou escrevendo um romance
definitivo, a literatura brasileira está em crise, uma grande merda, onde estão os temas de
amor e morte?” (AJE, p.422). Vai dormir ansioso pelo jornal do dia seguinte, onde tudo o que
dissera saiu com destaque, além de publicarem o seu retrato, no qual surgia:
Magro, romântico, pensativo e misterioso e embaixo a legenda aspas amor e morte
não se encontram nos livros aspas. A manchete era, Figurinista do Society se Mata
Pelo Amor de Conhecido Escritor. Lígia Castelo Branco, a bela e conhecida
figurinista da high society, matou-se ontem, após romper com seu amante, renomado
romancista brasileiro. Meu coração batia de satisfação, a carta tinha sido transcrita
na íntegra e embaixo do retrato de Lígia estava escrito aspas bela jovem se mata mas
mundo não se importa aspas. A notícia falava ainda do meu livro, mencionava
minhas palavras na delegacia, inventava uma vida elegante para Lígia, felizmente o
jornalista era mentiroso. (AJE, p.422).
Diante tal inesperado estímulo, sente-se motivado a escrever novamente. “Mas não
saía uma única palavra, uma sequer, eu olhava para o papel branco, torcia as mãos, mordia os
lábios, bufava e suspirava mas não saía nada” (AJE, p.422). Tenta reproduzir o processo que
usualmente praticava, levanta-se, dita uma frase, corre para datilografá-la, mas não certo;
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tenta redigir livremente tudo o que lhe vem à cabeça, no entanto todo esforço se revela inútil.
É então que, horrorizado, percebe tudo:
Com as mãos trêmulas e o coração gelado, apanhei as folhas datilografadas por
Lígia e li o que estava escrito e a verdade se revelou brutal e sem apelação, quem
escrevia o meu romance era Lígia, a costureira, a escrava do grande escritorzinho de
merda, não havia ali uma palavra que fosse verdadeiramente minha, ela é quem
tinha escrito tudo e aquele ia ser mesmo um grande romance e eu, o jovem
alcoólatra, nem ao menos percebera o que estava acontecendo. Deitei-me com
vontade de morrer, sim, sim, como disse aquele russo, a vida me ensinara a pensar,
mas pensar não me ensinara a viver (AJE, p.422).
Com efeito, sua particularidade está definitivamente relacionada com o tipo de
pensamento que possui, ao qual chama de polifásico. Este se caracteriza, inicialmente, pelo
surgimento de imagens insólitas relacionadas a grandes escritores da literatura universal,
como, por exemplo, Proust – “só me vinha à cabeça a imagem de Marcel Proust, de bigodinho
e flor na lapela, brandindo o guarda-chuva para as nuvens, exclamando zut!zut!zut!” (AJE,
p.417) –, ou James Joyce “na minha cabeça polifásica Joyce perguntava para a irmã dele,
pode um padre se enterrado de batina? Podem ser realizadas eleições municipais em Dublin
durante o mês de outubro?” (AJE, p.417) –, no entanto, o pensamento polifásico se revela
mesmo como veículo para os devaneios do protagonista, marcando uma profunda dissonância
entre suas vastas emoções e seus pensamentos imperfeitos. Além de distanciá-lo da realidade
imediata, fazendo com que não perceba corretamente o que ocorre ao seu redor. Exceto aquilo
que lhe diga respeito, no caso, ele próprio e a glória literária. Seu pensamento pode ser
polifásico, mas é principalmente egoísta e monomaníaco. Assim, por exemplo, ao levarem o
corpo de Lígia, ele fantasia o que poderia acontecer:
Imaginei os jornais do dia seguinte, Linda Mulher se mata por Jovem Escritor não
tenho culpa do que aconteceu, disse o Jovem e Renomado Escritor ao ser
entrevistado por esta folha, lamento muito a morte desta pobre e tresloucada
criatura, é tudo o que posso dizer a reportagem desta folha descobriu que não é a
primeira vez que uma mulher se mata de amor pelo Jovem Escritor, há dois anos, em
Minas Gerais – não, Minas Gerais não; melhor no Rio mesmo – há dois anos, no Rio
de Janeiro, uma francesa estudante de antropologia chega de pensamento
polifásico, pensei (AJE, 1994, p.420-421).
Fulminado pela revelação de que a autoria de seu romance pertencia à Lígia, ele nem
se conta de que “um homem calvo, barrocamente vestido” (AJE, p.422), entra em seu
57
apartamento, se apresenta como detetive Jacó e pede que escreva o nome da falecida em um
papel. Passado algum tempo, o policial retorna, afirmando:
Você está em maus lençóis, meu filho, a Técnica provou que a assinatura da morta
foi forjada por você e as pílulas forma compradas com uma receita em seu nome e
além disso você já quis matar uma freira sem nenhum motivo a não ser satisfazer
seu gênio violento. Protestei, violento? Eu sou uma alma gentil e doce, o senhor não
me conhece [...] Finalmente, [diz Jacó] apareceram duas garotas na delegacia que
disseram ter ouvido você dizer num bar que já havia envenenado algumas mulheres,
vamos embora meu filho. Eu posso explicar tudo, eu disse mas Jacó me cortou,
explica na delegacia, vamos embora. Peguei o livro e descemos juntos, entrei no
carro de polícia, meu pensamento polifásico romancista famoso acusado de crime
de morte – editores em fila batendo nas grades do xadrez – consagr (AJE, p.423).
O radical da palavra com o qual a narrativa se encerra indica a consagração tão
almejada pelo protagonista, meta que se deseja atingir seja através da fama ou, como parece
ser o caso aqui, da infâmia. Trata-se de um termo incompleto, semelhante ao que o jovem
escritor de fato representa: alguém ainda em busca de completude, mas que ironicamente
parece fadado à condição de eterna lacuna. Um autor de pouco talento para a literatura, mas
que, mesmo assim, ainda alimenta ilusões de alcançar os esplendores da glória.
3.4.3 Mal secreto
Em “Labaredas nas trevas”, de Romance negro (1992), quando a história se inicia, seu
protagonista, o escritor Joseph Conrad (1857-1924), já é um autor renomado, e no decorrer da
narrativa a glória faz aumentar, chegando ao ponto de ele poder afirmar, a certa altura,
corretamente, aliás, que é “reconhecido como o maior escritor vivo da ngua inglesa” (LT,
p.631). Mas algo oculto no coração de suas trevas, um mal secreto, que percorre todo o
conto, sendo fonte de agruras que o atormentam intimamente por anos a fio e que o
perseguem até o fim de seus dias.
O texto de Fonseca tem como subtítulo “fragmentos do diário secreto de Teodor
Nalecz Korzeniowski”, indicando o nome verdadeiro de seu personagem principal e a suposta
origem do que em seguida se lerá. Estruturado em forma de entradas de um diário, a narrativa
acompanha os supostamente turbulentos sentimentos de Conrad em relação a outro escritor e
a seu trabalho, o norte-americano Stephen Crane, falecido ainda jovem (1871-1900). De fato,
58
ambos os autores se conheceram e travaram estreito contato, embora brevemente, o que serve
de base verídica para o surgimento da narrativa. No entanto, as afirmações anotadas pelo
narrador são ficcionais, conquanto estejam habilmente entretecidas a escritos genuínos do
autor de Nostromo. O resultado é uma trama onde os fatos são sutilmente manipulados a
serviço dos interesses da ficção.
Na primeira entrada do diário, define-se o pensamento de Conrad quanto a Crane: ao
saber de sua morte, registra que “uma inesperada felicidade tomou conta de mim o resto do
dia” (LT, p.628). Não obstante, confessa em seguida que sempre fora um melancólico,
rememorando o fato de ter sido a vida inteira um exilado, “do meu país e da minha língua”
(LT, p.628). Contribuíram para esse estado de espírito padecimentos amorosos do passado e
até uma tentativa de suicídio na juventude. Seja como for, para esse melancólico o dia da
morte de Crane é um dia feliz.
Recorda-se, então, como tomara conhecimento da existência do jovem escritor: lendo
o seu romance O emblema rubro da coragem (1895), que lhe causara profunda impressão:
Como um sujeito com uma idade tão ridícula (Crane tinha vinte e três anos ao
escrever o livro) conseguira fazer uma obra tão perfeita? Nela havia a tragédia pura,
não como nos gregos, uma capricho dos deuses, mas como uma criação exclusiva
dos homens. Ali estava tudo o que me interessava: o fracasso, o medo, a solidão, o
desgosto, a corrupção, a covardia, o horror. O horror. O livro era tão bom, pensei,
que certamente não seria reconhecido, nem pelos críticos, nem público por
ninguém. Era mais um grande autor que morreria desconhecido. (LT, p.629).
Ao raiar do dia senta-se para escrever o seu novo livro, afirmando que “estava
dominado por uma exaltação a euforia dos descobridores, a urgência dos ladrões e não
sentia fome nem cansaço. Não sei quantos dias fiquei trancado, sentado naquela mesa,
escrevendo compulsivamente” (LT, p.629).
Ao contrário do que esperava, Crane será reconhecido tanto pela crítica – cujos
hiperbólicos elogios o protagonista ressaltará quanto pelo público. As comparações entre o
seu quarto romance, O negro do Narciso (1897), o livro escrito no período em que fora
dominado pela exaltação, e O emblema rubro da coragem não demoram a surgir, causando-
59
lhe profundo pesar. A crítica que indicava a influência do jovem escritor norte-americano
sobre o livro de Conrad é verídica, foi escrita por W.L. Courtney para o jornal Daily
Telegraph, quando do lançamento da obra conradiana, como se faz referência no conto,
embora a peremptória afirmação “entre o original e a cópia, eu prefiro o original”, não conste
no trecho citado em Joseph Conrad: a critical biography, de Jocelyn Baines. Infelizmente não
se teve acesso ao texto integral da resenha, mas tal afirmação, levando-se em consideração o
teor dos excertos, se não foi de fato efetuada, impressão de que poderia ter sido feita.
Baines escreve que a comparação entre os livros de Crane e Conrad deve ter irritado este
último, pois ele sem dúvida estava convencido de que seu livro era de longe uma obra mais
substancial que a do outro. Entretanto, reconhece ser bem possível que a leitura de O emblema
rubro da coragem tenha dado ímpeto a Conrad adotar um tema semelhante
5
(BAINES, 1960,
p.205). Ou, conforme as palavras do crítico W.L. Coutney, o autor de O negro do Narciso
escolhera Crane como exemplo e “estava determinado a fazer pelo mar e o marinheiro o que
seu predecessor fizera pela guerra e os combatentes”
6
(BAINES, 1960, p.205).
Na entrada seguinte do diário, o personagem relê, embevecido, as críticas positivas
sobre Lord Jim (1900), que também fora bem recebido pelo público. Uma breve remissão a
Crane em uma das resenhas é o suficiente para perturbá-lo. Nova comparação surge em uma
análise de Tufão (1902). Conrad desabafa:
Tenho certeza de que ninguém, no mundo inteiro, crítico ou leitor, dirá hoje que eu,
algum dia, fui influenciado por Crane. Mesmo assim, sinto um aperto no peito,
como se tivesse no coração uma ferida não cicatrizada. Como pode um morto
assombrar assim a minha vida? (LT, p.630).
O trecho acima parece sintetizar a essência da narrativa. Com efeito, o talento do autor
precocemente falecido é uma assombração que fustiga intimamente o narrador. Além disso,
indicia o propósito do verdadeiro autor dessas linhas, não Conrad, claro, mas Fonseca. É ele o
5
Tradução livre do original: “This must have galled Conrad because he was undoubtedly convinced that The
Nigger was a far more substancial piece of work than The Red Badge […] but it is quite possible that Conrad’s
reading of The Red Badge gave him the impetus to undertake a similar subject”.
6
Tradução livre do original: “Mr. Joseph Conrad has chosen Mr. Stephen Crane for his example, and has
determined to do for the sea and the sailor what his predecessor had done for war and warriors”.
60
leitor/crítico que na obra do escritor anglo-polonês a influência de Crane, algo
empiricamente até possível, como acima se sugeriu, e que serviria de fundamento suficiente
para se imaginar uma angústia da influência, parecendo evocar o conceito de Harold Bloom.
No entanto, o conto parece dar mais relevância aos sentimentos privados do personagem, cuja
admiração inicial não demora a transformar-se em profunda inveja, mal secreto assim
definido por Renato Mezan:
A inveja tem parentesco com o desejo, a agressividade, a astúcia e a sagacidade, o
roubo e a rapina; algo nela que tem a ver com os olhos; seu objeto é
indeterminado, variando do “qualquer coisa” ao “tudo”; ela não é um sentimento
simples, mas envolve algo como uma oscilação entre a distância e a coincidência,
bem como fatores ligados à intensidade, à rapidez, ao involuntário; remete a um
certo conflito, do qual resulta essa impressão de movimento esboçado e inconcluso.
[...] A inveja se alegra com a dor de outrem, e a realização de seus propósitos
tampouco a deixa feliz ao dilacerar os felizes, ela dilacera a si própria. [...] A
inveja contém desejo, mas não se reduz a ele; o desejo de privar outrem de sua
felicidade é nela mais decisivo do que o de obter a posse da coisa invejada.
(MEZAN, 1987, p.119-125)
Este sentimento perpassa toda a trama, mas não é sequer mencionado. A inveja
dificilmente é externada abertamente, permanece oculta nas trevas, consumindo-se
secretamente como ardentes labaredas. No caso do protagonista, passada a “euforia dos
descobridores” e a “urgência dos ladrões”, além da inesperada satisfação com a notícia do
falecimento do êmulo, restará ainda o contentamento ocasionado pelas oportunidades para se
denegrir o legado do invejado, tentando mantê-lo esquecido. Em 1919, é pedido a Conrad que
escreva um artigo sobre Crane:
Eis o que escrevi: “Como todo mundo, li The red badge of courage quando foi
publicado. Mas à medida que eu virava as páginas desse pequeno livro que
conseguira, naquele momento, uma recepção tão barulhenta, eu estava interessado
na personalidade do jovem escritor, tão festejado pela imprensa por sua juventude e
outros atributos não literários. Sua morte prematura pode ter sido uma grande perda
para os seus amigos, mas não para a literatura. Creio que ele deu tudo o que tinha
que dar nos livros que escreveu; e que procurou ser sincero ao descrever suas
impressões. Fui vê-lo na clínica em que estava para se curar, mas um simples olhar
bastou para me dizer que aquela era uma esperança vã. As últimas palavras que
soprou para mim foram ‘estou cansado’. Ao sair, parei à porta, para olhá-lo
novamente, e notei que ele havia virado a cabeça no travesseiro e olhava
pensativamente as velas de um barco que deslizava lentamente pela moldura da
janela, como uma sombra indistinta contra o céu cinzento. Aqueles que leram suas
pequenas narrativas Horses e The boat sabem que ele amava os cavalos e o mar. E
sua passagem nesta terra foi como a de um cavaleiro veloz na madrugada de um dia
fadado a ser curto e sem sol”.
61
O senhor Thompson do Mercury, perguntou-me se eu não havia sido muito
rigoroso no meu julgamento de Crane. Disse a ele que, ao contrário, eu fora até
excessivamente generoso ao perder meu tempo escrevendo sobre um autor
medíocre.
Há coisas que não se perdoam, nem mesmo aos inocentes. (LT, p.632).
A longa citação se justifica por ser verdadeira. Conrad de fato redigiu as palavras que
estão entre aspas no excerto acima. Todavia, há trechos reveladores e significativos que foram
omitidos, alterando profundamente o sentido do texto original. Intitulado “Stephen Crane a
note without dates” e contida no livro Notes on life and letters (1920), o artigo anteriormente
publicado no The London Mercury, sofreu a apropriação e montagem astuta por parte de
Fonseca, que mescla frases e parágrafos – por exemplo, parte do primeiro parágrafo original é
logo seguido, no conto, por uma frase presente no sétimo, daí para fragmentos do oitavo e
nono parágrafos –, efetuando a reordenação em favor de seus objetivos ficcionais. Dessa
forma, à aparentemente dura afirmação, “Sua morte prematura pode ter sido uma grande
perda para os seus amigos, mas não para a literatura. Creio que ele deu tudo o que tinha a dar
nos poucos livros que escreveu”, é seguida pelas seguintes considerações:
Que eu não seja mal entendido: a perda foi grande, mas foi a perda do prazer que sua
arte poderia dar, não a perda de qualquer possível revelação posterior. Da parte dele,
quem poderá dizer o quanto ganhou ou perdeu por sair o cedo deste mundo dos
vivos, ao qual ele saberia como colocar diante de nós em termos de sua própria visão
artística?
7
(CONRAD, 1949, p. 50-51).
O comentário altera completamente o sentido das frases anteriores no conto. Não se
trata se uma observação severa sobre um autor medíocre, mas sim o reconhecimento dos
méritos de alguém cujo talento se revelou plenamente ainda na juventude. Não se perdeu um
escritor cujo potencial viria a se concretizar; sua literatura havia atingido todas as
potencialidades. O Joseph Conrad empírico admirava Crane, fora seu amigo próximo,
enquanto este viveu na Inglaterra, mas, segundo sua opinião, tinha consciência das limitações
7
Tradução livre do original: “Let me not be misunderstood: the loss was great, but it was the loss of the delight
his art could give, not the loss of any further possible revelation. As to himself, who can say how much he
gained or lost by quitting so early this world of the living, which he knew how to set before us in the terms of his
own artistic vision?”
62
do trabalho do autor norte-americano. Em cartas a amigos, faz as seguintes afirmações sobre
Crane:
Seu olhar é muito individual e sua expressão me satisfaz artisticamente. Ele
certamente é o impressionista e seu temperamento é curiosamente singular. Seu
pensamento é conciso, coeso, nunca muito profundo embora não raro
surpreendente. Ele é o único impressionista e unicamente um impressionista... Eu
não poderia explicar por que ele me decepciona por que meu entusiasmo declina
assim que fecho o livro. [...] O homem o exterior de muitas coisas e o interior de
algumas
8
. (BAINES, 1960, p.205).
Voltando à ficção, Fonseca consegue, por sua vez, atingir o objetivo oposto ao
mencionado na última frase acima, ou seja, sem deixar de perceber o exterior, apreende o
interior de muitas coisas. Por exemplo, as vicissitudes da vida autoral, padecidos por diversos
de seus personagens, e aqui, em particular, o sofrido ocaso de alguém que dedicou a vida
inteira às letras:
A consciência da verdade contida no aforismo de Chaucer, “the lyf so short, the craft
so long to lerne”[A vida tão breve, o ofício tão demorado para se aprender] , em vez
de dissuadir-me, deu-me ainda mais forças para dedicar-me obsessivamente ao
aprendizado do mais solitário dos ofícios. Mas exauri-me nessa tarefa horrenda.
Escrever foi a mais agoniante de todas as lutas que enfrentei. Ninguém pagou mais
caro do que eu pelas linhas que escreveu. Ah, os esplendores ilusórios da glória!
(LT, p.632).
À beira da morte, o Conrad fictício se acerca da lareira para jogar sobre as brasas o
diário no qual expurgou toda a inveja e rancor que o talento de Crane – alguém que conseguiu
ainda tão jovem o domínio técnico que ele levou uma vida inteira para atingir – lhe causavam.
Logo as labaredas que destruirão os registros de seus tormentos, de seus males secretos, irão
se amainar e se converterão, assim como a vaidade do agonizante autor, meramente em
cinzas.
8
Tradução livre de: “His eye is very individual and his expression satisfies me artistically. He certainly is the
impressionist and his temperament is curiously unique. His thought is concise, connect, never very deep yet
often startling. He is the only impressionist and only an impressionist… I could not explain why he disappoints
me – why my enthusiasm withers as soon as I close the book. […] The man sees the outside of many things and
the inside of some”.
63
3.5 De criadores a criaturas
Joseph Conrad não é o único autor empírico
9
a se tornar matéria-prima para a ficção
de Rubem Fonseca. O escritor russo Isaak Bábel, no romance Vastas emoções e pensamentos
imperfeitos (1989), o comediógrafo francês Jean-Baptiste Poquelin, mais conhecido como
Molière, na novela O doente Molière (2000), e o poeta brasileiro Álvares de Azevedo, no
conto “H.M.S. Cormorant em Paranaguá”, contido no livro O Cobrador (1979), são outros
exemplos de criadores literários que se converteram em criaturas ficcionais. Ou, conforme
distingue Ana Cristina Coutinho Viegas em seu estudo, “o personagem-escritor se transforma
no escritor-personagem” (VIEGAS, 2002, p.33). Todavia, a abordagem a ser aplicada nessas
narrativas em que famosos escritores são personagens seguirá basicamente dois caminhos. No
primeiro, se enfocará preferencialmente a vida e a obra do autor-personagem, transformando-
o não apenas no protagonista, mas também no narrador da trama. É assim que ocorre em
“Labaredas nas trevas e em “H.M.S. Cormorant em Paranaguá”. No segundo tipo de
abordagem, o escritor-personagem ocupa um papel secundário, no entanto é o catalisador da
história ou um dos catalisadores –, pois, a partir de algo ligado a sua obra ou vida, ou a
ambas, a narrativa se desencadeará. É o caso de Vastas emoções e pensamentos imperfeitos e
de O doente Molière.
Serão analisados inicialmente os do segundo caso, uma vez que tanto Bábel quanto
Molière, tendo ambos a vida pessoal e a obra literária ricas de agruras e vicissitudes, poderiam
render, apenas neste aspecto, nas mãos de Fonseca, notáveis narrativas, como as de Conrad e
Azevedo. Contudo, a opção por tomá-los como catalisadores de seus livros resulta, por sua
vez, em narrativas não menos notáveis.
9
Utilizam-se aqui os conceitos de Umberto Eco que distinguem autor-empírico de autor-modelo (ECO, 1999,
p.21).
64
3.5.1 O manuscrito
O enredo de Vastas emoções e pensamentos imperfeitos gira em torno de dois eixos
centrais: o primeiro é policial, envolvendo o contrabando de pedras preciosas; o segundo,
literário, referente à descoberta do manuscrito de um romance supostamente perdido de Isaak
Bábel (1894-1941). O anônimo protagonista se envolvido no primeiro eixo da trama por
acaso. Uma mulher desconhecida, que estava sendo perseguida, entrega-lhe um envelope e
desaparece, descobrindo-se depois que fora assassinada. Dentro do envelope havia inúmeras
pedras de alto valor. De posse delas, não demora para que ele seja também perseguido,
particularmente por um soturno homem de capa. Entrementes, sendo diretor de cinema,
recebe o convite para dirigir a adaptação de um dos livros de contos de Bábel, A Cavalaria
vermelha, a ser produzida na Alemanha. Diante o assédio cada vez mais ameaçador dos
verdadeiros donos das pedras, ele decide ir a Berlim então Ocidental –, para livrar-se dos
seus perseguidores, além de negociar a realização do filme, passando a se interessar
profundamente pela obra do escritor russo. No entanto, ao chegar lá, descobre que o interesse
do produtor que o contratou é, na verdade, usá-lo como intermediário para adquirir o
manuscrito inédito de Bábel, que não fora destruído, como se afirmava, e ficara arquivado em
uma biblioteca de Moscou, sendo surrupiado e indo cair nas mãos de um diplomata soviético,
interessado em vendê-lo. Como se vê, ao policial e literário acrescenta-se, então, o suspense
típico dos livros de espionagem, ou a paródia deles. Segundo Wilson Martins:
Rubem Fonseca escreveu propositalmente a paródia daquela literatura “empolgante”
de espiões e policiais de capa impermeável, de agentes internacionais tão
enigmáticos quanto poderosos, de desenvolvimentos surpreendentes e acasos
providenciais. Nesse tipo de literatura, a inverossimilhança deve ser verossímil, o
que Rubem Fonseca obtém com a segurança dos grandes mestres. (MARTINS,
1996, p.346).
65
A paródia efetuada por Fonseca ao gênero policial e, particularmente, ao de
espionagem
10
torna-se evidente na conclusão da história, surpreendendo por subverter as
usuais expectativas dos leitores para com esse tipo de literatura. Dessa forma, após um tenso
encontro com o portador do manuscrito, cercado de suspense, dentro da antiga Alemanha
Oriental, o protagonista se apossa do livro, foge de volta ao Brasil, ignorando o produtor que
o contratara, mas acaba seqüestrado, ao chegar, pelos contrabandistas, antes que seu amigo e
literato russo Boris Gurian possa traduzir o texto. Sendo levado ao interior de Minas Gerais, o
homem soturno de capa que o perseguia chamado Alcobaça –, conta-lhe o porquê de estar
envolvido com o contrabando de pedras preciosas: devido a uma misteriosa doença, à qual
nenhuma terapêutica surtia efeito, descobrira que a ingestão do de diamantes pulverizados
o curaria, não poderia interromper o tratamento conhecido como Litoterapia –, precisaria
continuamente ingerir diamantes de alta qualidade, para manter-se vivo. Ele acrescenta:
“Depois de algum tempo gastei toda a fortuna da família. me restou esta casa,
perdida no meio de lugar nenhum, como dizem os americanos”, continuou
Alcobaça. “Um dia, meu fornecedor de pedras preciosas, após se recusar a ceder-me
mais uma que fosse, se eu não pagasse antes o que lhe devia, sugeriu-me que
fizesse contrabando para ele. Aceitei a proposta. Eu contrabandeava as pedras e ele
me pagava com diamantes incolores, uma coisa parecida com o que acontece com
alguns toxicômanos, que trabalham para traficantes recebendo drogas em
pagamento. No princípio eu mesmo levava as pedras comigo para o exterior. Depois
tive a idéia de contrabandear as pedras nas fantasias carnavalescas. Necessito de
uma quantidade cada vez maior de para manter-me vivo. Preciso daqueles rubis,
safiras, esmeraldas que a Gorda [a mulher desconhecida que fora assassinada] me
roubou e que estão com você, para pagar ao meu fornecedor. É a minha vida que
está em jogo, entendeu? Eu tenho ainda um diamante, uma pedra de grande pureza e
inexcedível beleza, uma herança da família, mas não quero destruir, farei isto em
último caso” (VEPI, p.214).
Inesperadamente, a fazenda onde estavam é invadida por um bando, que mata
Alcobaça e seus comparsas, poupando, porém, a vida do diretor de cinema. Livre, ele retorna
ao Rio de Janeiro e outra surpresa o aguarda. O manuscrito não era de Bábel:
10
Sobre o romance de espionagem, José Paulo Paes comenta: “Tanto o espião quanto o agente de contra-
espionagem [...] estão sempre a serviço de uma potência em guerra declarada ou virtual com outra e são por ela
estipendiados. A radicalização ideológica conseqüente à Guerra Fria faz aumentar a tendência maniqueísta do
romance de espionagem, onde tudo é lícito na luta entre o Bem (nosso) e o Mal (deles), muito embora comecem
a surgir tentativas de superar o maniqueísmo por via de uma visão as mais das vezes niilistas das ideologias e
dos que as servem profissionalmente” (PAES, 1990, p.22-23).
66
Gurian disse que o livro era de um escritor iniciante, A. Kuliakov, uma amigo de
Bábel, mais jovem do que ele, e que provavelmente teria entregue o livro a Bábel
para que este lhe desse uma opinião de escritor consagrado. No fim do livro havia a
assinatura de Kulikov e um bilhete em que pedia a “opinião do grande mestre autor
da Cavalaria Vermelha”. (VEPI, p.254).
Antes, descobrira que Maurício, um amigo seu que trabalhava com pedras preciosas e
lhe comprara algumas para que pudesse viajar à Europa, estava envolvido tanto no
contrabando quanto nos assassinatos de Alcobaça e da mulher que deixara as pedras em seu
apartamento. Obcecado com um diamante chamado “Florentino” o diamante que o enfermo
recebera de herança –, o joalheiro confessa que o executara porque a pedra preciosa acabaria
sendo pulverizada, acrescentando: “Ninguém pode destruir uma obra-prima da Natureza para
salvar sua própria pele nojenta” (VEPI, p.253). Como arremate do livro, o protagonista
entrega as pedras à costureira de um carnavalesco que conhecera amigo da mulher que
morrera no início da trama, também ela carnavalesca –, mas sem mencionar o quão valiosas
eram e que acaba misturando-as a outras sem valor nenhum.
Ao contrário dos típicos motivos que movimentam os enredos das tramas policiais
cobiça, vingança etc. e das de espionagem amplos jogos de intrigas internacionais, como
os da Guerra Fria, que estava nos seus estertores quando da publicação do livro –, Fonseca
subverte clichês ao encaminhar seu romance rumo a um desenlace surpreendente, embora não
pelos motivos corriqueiros nesses tipos de narrativas. A insólita razão que transforma
Alcobaça em criminoso, dando origem a toda as complicações policiais, além da intriga
internacional, causando todo o suspense e os percalços de parte da história, para se conseguir
o manuscrito de Bábel, que por fim se revela apócrifo, e também as instigantes reflexões
sobre a correlação entre cinema e literatura, demonstram a grande arte do romancista que é
Rubem Fonseca.
As inúmeras agruras vividas pelo escritor russo são breve e paulatinamente
mencionadas, não sendo muito desenvolvidas, ocupando espaço periférico, não obstante
essencial, para a narrativa. O protagonista afirma, a certa altura, que “nenhum episódio da
67
vida de Bábel, nem sua morte” (VEPI, p.110) teria importância comparável à do romance que
supostamente deixara inédito. Plessner, o rico produtor cinematográfico alemão, obcecado
pelo manuscrito de Isaak bel, concorda e faz um comentário que, aliás, pode ser estendida
ao sentido deste romance como um todo, sintetizando talvez os seus propósitos quanto à
representação da figura do escritor e suas opções ficcionais: “É verdade”, diz ele. “A obra é
mais importante que o homem” (VEPI, p.111).
2.5.2 O envenenamento
Publicado como integrante da coleção “Literatura ou morte”, da editora Companhia
das Letras, em que se encomendou a vários autores uma narrativa policial que tivesse algum
escritor famoso em sua trama, O doente Molière (2000) revela desde o título o autor escolhido
por Rubem Fonseca para sua novela. Nela, o comediógrafo francês é vítima fatal de um
envenenamento, segundo sussurra, antes de falecer, a seu amigo, e narrador da história, o
Marquês Anônimo.
O ponto de partida é verídico. Durante a apresentação de sua última peça,
ironicamente intitulada O doente imaginário (1673), Molière passa mal e morre logo em
seguida, no dia dezessete de fevereiro de 1673. Já os desdobramentos da narrativa, embora
fictícios, apontam para possibilidades muito interessantes. As críticas implacáveis que
plasmou em suas comédias se direcionavam a tão distintos nos dois sentidos setores da
sociedade francesa de sua época que, levando-se em conta as polêmicas que causaram, as
reprovações que provocaram, as proibições que sofreram, além das acusações, calúnias e
injúrias que despertaram, não seria nem um pouco inimaginável que Jean-Baptiste tivesse
mesmo sido envenenado por algum de seus inúmeros inimigos. Do clero aos burgueses, das
damas eruditas aos médicos, dos nobres aos membros da classe artística, enfim, suspeitos do
suposto crime não faltariam.
68
Decidido a descobrir o assassino do amigo, o narrador um escritor frustrado cujas
tentativas de composição teatral foram rechaçadas tanto por Molière quanto por Racine, de
quem também era amigo inicia a investigação do crime visitando os ambientes freqüentados
por aqueles que eram achincalhados nas peças do comediógrafo. Começa pelos salões das
“preciosas”, por Molière, em uma de suas mais famosas peças, chamadas de ridículas:
Afirmavam os defensores das preciosas que elas realizavam um trabalho importante
de estímulo às artes, que amavam as letras e o bom gosto, e censurar alguém por
esse motivo, da maneira que Molière fizera, era uma vileza. O próprio Molière,
prevendo a objeção que ocorreria, advertiu, num artifício retórico, que as
“verdadeiras preciosas” não deviam se ofender, ele retratava na peça as “ridículas”
que as imitavam. (DM, p.57).
Os próximos possíveis suspeitos tinham motivos de sobra para querer vingança.
Tratavam-se dos dissimulados que assumiam aparências cândidas e devotas, sendo
representadas pela figura de Tartufo, que segundo as palavras do Marquês anônimo era: “um
charlatão, um libertino, um hipócrita que com suas tiradas santimônias retrata a beatice, o
fanatismo e a intolerância que preponderam no meio religioso” (DM, p.70). A peça Tartufo
(1664), inicialmente proibida, fora depois liberada pelo Rei Luís XIV, patrocinador da trupe
de Jean-Baptiste, e que, em conflito com o poder clerical, apreciara as alterações realizadas na
nova versão do texto, francamente subservientes à sua figura.
Com Don Juan (1665) o autor francês incomodara profundamente os puritanos de sua
época. “Assim, não foi surpresa a mobilização de moralistas de todos os cantos, clérigos,
médicos, beatos, burgueses bem ou mal casados, para conseguir a proibição da peça” (DM,
p.83). E que, aliás, nunca mais fora encenada enquanto o autor viveu. O narrador comenta:
D.Juan como Tartufo, é uma peça sobre a hipocrisia. Na verdade, somos todos
hipócritas, e a falsa devoção é uma das formas mais comuns. Levamos uma vida
corrupta e egoísta, membros da nobreza, da burguesia, da magistratura, do clero, das
profissões, do comércio, até mesmo os camponeses, mas não deixamos de praticar a
nossa religião, de confessar, com falsa contrição, os nossos pecados, para depois
poder praticá-los, em segredo, novamente. (DM, p.83-84)
.
Por último, havia os médicos, a quem Molière impiedosamente satirizava em várias de
suas peças, reprochando-lhes a falta de escrúpulos e incompetência. Em O amor médico
69
(1665), surgem cinco médicos charlatães para tratar de uma jovem, que se finge de doente,
para evitar um pretendente imposto pelo pai. Tais personagens seriam inspirados em alguns
dos mais famosos doutores da França da época. E dentre eles estava, inclusive, o médico do
Rei, d’Aquin. Diante do ódio despertado pela poderosa e influente classe médica ao perceber-
se representada nos palcos, o Marquês Anônimo se questiona: “Por que não um médico? Eles
são responsáveis por tantas mortes que mais uma não pesaria em suas consciências” (DM,
p.90).
E a suspeita, no desenlace da novela, se revela acertada. O médico do Rei fora o
mandante do assassinato, mas quem executara a ação fora alguém muito próximo ao escritor –
sua empregada, chamada La Forest. Ela recebera uma alta quantia de dinheiro para envenenar
Molière, além de ser tranqüilizada por quem a aliciou a nada temer, pois ninguém, segundo
d’Aquin, se interessaria “pela morte de um autor de farsas ordinárias” (DM, p.138),
acrescentando também a cumplicidade de outros médicos afamados do país, que estavam
profundamente interessados no assassínio. O narrador, ao descobrir a intriga, faz as seguintes
considerações: “Os médicos eram sem dúvida os mandantes do envenenamento de Molière.
Mas como prender e condenar os doutores mais importantes de Paris sem aumentar mais o
escândalo que o rei queira abafar? E de qualquer forma, a morte de um comediante não era
tão importante assim”. (DM, p.139).
O crime é esclarecido a partir da prisão de Madame Voisin, célebre por produzir filtros
de amor, feitiços e venenos os mais variados, que confessara ter vendido para a empregada de
Molière o veneno que o matara. La Forest acaba sendo, então, presa, condenada e esquecida
em uma masmorra qualquer.
Dois elementos da narrativa chamam a atenção. O primeiro se refere, novamente, à
maneira subversiva como Fonseca maneja o gênero policial. Se, no geral, ele segue aqui as
regras clássicas das tramas de detetive crime enigmático, investigação e descoberta do
70
criminoso –, é no detalhe que se percebe a sua ironia, ao inserir, intencionalmente, em sua
novela um dos mais conhecidos chavões sobre os possíveis culpados de assassinatos nos
romances policiais. No caso, quem matou não foi nem o mordomo, mas uma reles serviçal...
11
Constatação que decepciona o Marquês: “Quem envenenara Molière fora La Forest, a
empregada dele. Não consegui esconder meu desapontamento, a assassina ser uma cozinheira
tirava a paixão, a grandeza, até mesmo o horror que aquele crime devia conter. Um homem
como Molière merecia ter como assassino o próprio rei.” (DM, p.134).
O segundo elemento surge a partir da escolha do escritor francês como tema para sua
novela policial e direciona-se não necessariamente para uma possível influência de Molière
sobre Rubem Fonseca, mas permite estabelecer entre ambos um paralelo quanto ao que se
refere à postura dos dois em relação à sociedade, levando-se em conta, claro, as devidas
diferenças. Tanto um quanto o outro foram perseguidos, mas também consagrados, pela
sociedade na qual estavam inseridos, às quais criticaram profundamente em suas obras. Eles
poderiam ser considerados “moralistas”, não no sentido usual do termo, o de defensor ranheta
e não raro hipócrita, como Tartufo de valores supostamente adequados à conduta alheia,
mas sim no do moralista francês do século XVII – como François de La Rochefoucauld e Jean
de La Bruyère –, que, na verdade, pretende revelar “a dramatização dos verdadeiros
problemas humanos, sociais e políticos de uma sociedade, dramatização esta que acaba por
deixar a descoberto o esqueleto da natureza humana, das relações sociais e da dominação
política”, conforme define Silviano Santiago em “Errata” (SANTIAGO, 1982, p.57),
analisando a obra de Fonseca, mas que bem poderia se aplicar à obra de Molière
12
.
11
Na verdade, a origem do clicestá nas vinte regras enunciadas por Van Dinne, das quais a de número onze
assevera: “O autor nunca deve escolher o criminoso entre o pessoal doméstico, tais como criado, lacaio, crupiê,
cozinheiro ou outros. nisso uma objeção de princípio, pois é uma solução fácil demais. O culpado deve se
alguém que valha a pena” (BOILEAU-NARCEJAC, 1991, p.39).
12
Sobre o autor francês, escreve Otto Maria Carpeaux: “O moralismo de Molière nas ‘altas comédias’ não difere
da psicologia típica dos moralistes’, nos quais também podia aprender o elemento essencial da sua arte: criação
de caracteres, de personagens completas.” (CARPEAUX, 1980, p.767).
71
Mais uma vez, no entanto, o escritor-personagem ganha uma função secundária, sendo
o catalisador da narrativa, cuja presença se revela mais a partir de sua ausência. O que,
todavia, não tira nem um pouco os méritos da novela, pelo contrário, demonstra, uma vez
mais, a exímio talento do autor para escrever suas histórias. Em uma resenha sobre o livro,
Wilson Martins comenta:
Tendo feito com exemplar aplicação escolar a lição de casa, Rubem Fonseca
demonstra haver lido a biblioteca essencial sobre a matéria, escrevendo uma
pequena história cortesiana francesa no século XVII, na qual, por paradoxo, Molière
comparece como figurante secundário e efêmero numa peça movimentada e
surpreendente, participante apagado, fazendo apenas uma pequena ponta, como se
diz no vocabulário de teatro. E in extremis, se assim me posso exprimir, porque
aparece para morrer. [...] Molière, doente real, morreu enquanto representava o papel
de doente imaginário, o que parece uma cena inventada por ele mesmo. (MARTINS,
2005, p.118-119).
3.5.3 O labirinto da imaginação
Se o Joseph Conrad (re)criado por Rubem Fonseca era assombrado pelo espectro do
talento juvenil de Stephen Crane, o Álvares de Azevedo do conto “H.M.S. Cormorant em
Paranaguá”, de O Cobrador (1979), será rondado não só pelo fantasma do poeta inglês
George Gordon Byron, mas também pelos seus próprios fantasmas íntimos. Nesta narrativa,
um aspecto diferencial em relação ao conto “Labaredas nas trevas”. Se em ambas se faz
uso da técnica do pasticho, adotando-se os estilos de cada escritor, além de se incorporar, via
apropriação, excertos de suas obras, inserindo-as em novo texto e contexto, o que produz uma
significativa alteração de sentido, no caso do conto a ser aqui analisado, o questionamento
com que se inicia a narrativa – “Quem sou?” (HMS, p.573) – ganha amplos desdobramentos.
Não duvidas de que a trama remete à vida e obra de Manuel Antônio Álvares de
Azevedo, grande nome do romantismo brasileiro, falecido antes de completar vinte e um
anos, mas deixando, apesar de tão jovem, um inestimável legado poético. A princípio, a
interrogação inicial do conto se dirige ao poeta-personagem, que se refletido no espelho,
vestido de mulher remissão a um episódio no qual ele teria trajado tais vestimentas para
ultrajar um pretendente de sua irmã, Luísa, por quem nutria intensa (quiçá incestuosa,
72
segundo a narrativa) afeição –, oscilante entre a companhia de uma prostituta, Teresa, e de
Luísa. É quando surge o fantasma de Byron, com quem estabelece um diálogo ora sardônico,
ora tenso. De acordo com João Luiz Lafetá, em sua concisa e precisa análise:
É neste nível que a pergunta inicial ganha mais intensidade. Quem é o rapazola
brasileiro diante do lorde inglês que, do alto da força de seu Império, de suas
Aventuras, de sua Poesia, olha com indiferença complacente aquele filho indeciso
de um país de escravos, que tenta imitá-lo o tempo todo? Colocados face a face, o
autor de Lira dos vinte anos e o autor de Child Harold conversam sobre a vida e a
morte, o amor e a literatura e sobre política. O centro do conto, que no começo
parecia fixado sobre a personalidade íntima de Álvares de Azevedo (amor e medo),
desloca-se com firmeza para outro ponto e põe em relevo uma dimensão mais geral:
a relação do poeta com seu país. O incidente do navio inglês Cormorant, que em
1850 invadira o porto de Paranaguá e apresara dois navios negreiros de bandeira
brasileira, é o episódio que permite a Rubem Fonseca o deslocamento da questão
básica. (LAFETÁ, 2004, p.196).
O incidente exalta o patriotismo daqueles que se encontram na taverna para onde vão
Byron, Teresa e o protagonista. Este se junta aos que defendem a soberania brasileira,
afrontada pelos ingleses, conclamando discursos inflamados contra a Inglaterra, afirmando
que “a Pátria ao Bretão ajoelhou-se, beijou-lhe os pés, no lodo mergulhou-se. Eles a
prostituíram! Malditos!” (HMS, p.580). Diante tamanha demonstração de brio patriótico
ofendido, Byron mofa, dizendo que se trata de uma soberania de traficantes de escravos. A
discussão recrudesce quando Azevedo afirma que o povo brasileiro é explorado em nome do
Comércio e da Indústria, que os trabalhadores se vêem mergulhados na pobreza, sendo
chamados de turba, de uma besta de muitas cabeças que devem ser cortadas, e que seria esta a
solução dos detentores do poder para o problema da existência de um povo explorado e
desesperado. Ao que refuta o poeta inglês: “Tu falas dos brancos, diz Byron, e os negros?
Enfim, quem sou eu para falar sobre isto, se aqui estou, [...] esquecendo o meu povo e sendo
esquecido por ele” (HMS, p.580). Resposta que leva Álvares de Azevedo a se questionar:
O povo esquecerá, a nós poetas? Depois de rolarem as cabeças, depois de
passar o odor de sangue derramado e da carne carbonizada, de serem esquecidos o
tropel e os gritos, voltaremos a ser necessários?
Byron de ombros, olhando o papel à sua frente. Uma cortesã chamou
minha letra de garranchos de uma lavadeira... Byron é apenas um scribbler, e eu um
poeta alienado, e aqui estamos nós, vis-à-vis, esquecidas nossas diferenças, diluídas
as condescendências de um e os rancores de outro. Byron não precisa de mim, nem a
Inglaterra do Brasil, ele é o meu paragon e o Brasil uma colônia da pérfida Albion.
Ser fraco custa um preço alto, chego às vezes a pensar que o inglês é uma língua
73
mais bonita do que a nossa. Cormorant invadiu Paranaguá porque Byron, Keats,
Shelley invadiram antes a minha mente. A colonização se faz em nome de Deus, da
Lógica, da Razão, da Estética e da Civilização. Os imperialistas levam o nosso ouro
e corrompem a nossa alma. Byron e Schomberg [Comandante do Cormorant] eram
iguais – a Poesia e o Canhão a serviço da Dominação.
Nonsense, diz Byron e desaparece. (HMS, p.580-581).
O conflito privado, a influência literária inglesa sobre o poeta brasileiro, soma-se ao
conflito público, a influência político-econômica bretã sobre o país. A angústia da influência
irmana-se com o colonialismo. A identidade individual equipara-se à identidade nacional. A
discussão extrapola limites históricos, pois tem ressonância ainda nos dias atuais,
curiosamente mantendo a língua inglesa como o idioma da nação dominadora, embora esta
não mais seja a Inglaterra imperialista do século XIX, mas o “imperialismo” norte-americano
contemporâneo. Sobre a questão, Lafetá comenta:
A maneira de colocar o problema, encontrada por Rubem Fonseca é fascinante
porque consegue conciliar o exame da personalidade íntima e da face pública, dos
amores e da política. Ao que põe em jogo a função da poesia, toca tanto na
identidade pessoal do poeta como no seu papel social, sendo abrangente assim,
afasta a dicotomia entre indivíduo e sociedade, pois mostra-nos os dois lados como
devem ser vistos, isto é, solidariamente unidos, interdependentes. (LAFETÁ, 2004,
p.197-198)
O crítico considera curioso que Fonseca tenha escolhido Álvares de Azevedo como
protagonista do conto, considerado o “intimista”, acusado em seu tempo de imitar os autores
estrangeiros, pouco contribuindo para a formação da literatura nacional. “Um poeta que não
cedia aos apelos da realidade”, segundo as palavras de Maria Luiza Castro Polessa, “um poeta
que transferia para a ficção um espaço onde poderia caber a vida” (POLESSA, 1986, p.80).
Entretanto, ainda de acordo com Maria Luiza:
Neste conto [...], revela-se a importância de Álvares de Azevedo, porém sob uma
perspectiva crítica. Seguidor de modelos e ele mesmo um modelo, reforça um
processo de dependência cultural, o que não quer dizer que não tenha méritos
literários. O que Rubem Fonseca rejeita é a sujeição a modismos que fatalmente
refletem uma realidade que não corresponde àquela vivida pelo autor. Entre viver o
imaginário e expressar imaginariamente a vida, a opção do contista é muito clara.
(POLESSA, 1986, p.83).
Lafetá, por sua vez, acredita que a escolha de Azevedo como personagem ocorreu por
ser preciso um verdadeiro poeta, “no espírito de quem as contradições se cruzassem com
74
força, para delinear este pequeno quadro poderoso, de dúvidas e hesitações, que mostrassem a
condição de nosso escritor” (LAFETÁ, 2004, p.198). E complementa que, no desenlace da
narrativa, ao focalizar a morte do protagonista, “muda a cronologia, deslocando as
contradições para o presente. Quem se debate diante da miséria, no meio do imperialismo e da
escravidão, não é o moço romântico, mas o pobre narrador” (Idem).
Com efeito, em certos momentos da narrativa, especialmente ao final, surgem breves
ocorrências que, vistas em retrospecto, parecem problematizar a relação entre o narrador e a
matéria narrada. A primeira ocorrência surge no nono parágrafo, quando se repete a pergunta
inicial, que, aliás, ecoa o episódio de um dos contos de Noite na taverna, “Bertram”, onde se
efetua a mesma pergunta, à qual, no entanto, Azevedo somente conseguiu, em vida, adequar-
se à primeira das três caracterizações da resposta: “Quem eu sou? Fui um poeta aos vinte
anos, um libertino aos trinta sou um vagabundo sem pátria e sem crenças aos quarenta”
(AZEVEDO, 1998, p.36). Embora tudo ainda sugira que o narrador seja, de fato, Álvares,
agonizante no hospital, às voltas com típicos anseios ultra-românticos, sutilmente se indicia a
possível dissociação entre a voz que narra daquilo que se está narrando:
Quem sou eu? O Dr. Bustamante no Hospital tem respostas: um poeta que apenas
tem para provar seu valor o aplauso dos estudantes e dos bêbados. Mas pro inferno
Bustamante, tenho o talento que apregôo, sou quem eu penso que sou [Grifo nosso]
e ainda terei tempo de alcançar a glória e morrer cedo, como Byron, aos trinta e seis,
gritando coragem, entre espasmos de dor, calafrios, sezões, delírios; como Shelley,
trinta anos; Keats, vinte e seis. A vida, diz Bustamante, é apenas um círculo de
funções que resiste à morte, e minha doença resulta menos dos bacilos do que uma
condição patológica a que seus colegas alemães denominam Wille zur Krankheit.
(HMS, p.573-574).
A segunda ocorrência surge quando o protagonista ensina a irmã, Luísa, a dançar, e
revela que os limites entre memória, invenção e imaginação são tênues para o narrador:
Ficamos na posição de dançarinos, o schottisch tara tata tata tata Busta tata
tatamante, o hospital, a freira com terço na mão. O que estás esperando, sonhas de
olhos abertos? [Grifo nosso] Danço, tara tata tata tata a invenção vem da
imaginação e a imaginação é um labirinto em que o difícil não é a saída, é a entrada.
(HMS, p.574).
75
A terceira e última se no desfecho do conto, enquanto o personagem agoniza,
colocando em xeque a identidade do narrador:
Bustamante diz que Byron era incestuoso, fanfarrão, pederasta, sedutor de mulheres,
que o Cormorant foi embora, que eu o sou Álvares de Azevedo [Grifo nosso], que
o schottisch virou chorinho, que tudo mudou, outros navios de guerra, novos
escravos, outros poetas, minha vida se esvai, chamai meu pai. (HMS, p.584)
Quem, afinal, narra “H.M.S. Cormorant em Paranaguá”? O próprio Álvares de
Azevedo, em seu leito de morte, entrelaçando memória e invenção? Ou será um outro
personagem, Manoel, jovem poeta enfermo, que revive episódios de sua vida, referenciando-
se e ao mesmo tempo apropriando-se da biografia do autor de Macário, como sugere Maria
Luiza Polessa (POLESSA, 1986, p.69)? Seja como e quem for, Rubem Fonseca, ao
adentrar o labirinto da imaginação, estabelece neste conto uma instigante dinâmica entre o
papel individual e social do escritor, enfocando o passado literário nacional, mas sem excluir
de sua reflexão o presente.
76
4. A Confraria dos Espadas: Eros e Tânatos
4.1. Espadas e Fesceninos
Em “A confraria dos Espadas”, presente na coletânea de contos homônima (1998),
narra-se a fundação de uma irmandade de homens que conseguiram descobrir um meio de
atingir o prazer sexual sem que o líquido seminal seja expelido. Trata-se do que chamam de
Múltiplo Orgasmo Sem Ejaculação, ou MOSE, conseguido através de elaborados e penosos
exercícios físicos e espirituais” (CE, p.126). A história é narrada por um dos participantes, um
poeta, que conta, inicialmente, as discussões sobre o nome mais adequado para a Confraria.
São sugeridos títulos desde Confraria da Boa cama “descartado por parecer uma associação
de dorminhocos” (CE, p.124) até Confraria dos Apreciadores da Beleza Feminina,
considerado longo demais, além de reducionista e esteticista, pois eles não se viam como
estetas, o que lhes interessava era o sexo: “Nossa Confraria era de Fodedores” (CE, p.124).
Acabam adotando o nome de Espada, um termo de origem popular que simboliza virilidade e
poder fálico. “Espada fura e agride”, comenta o narrador, que não apreciava o título,
argumentando que “assim é o pênis tal como o vêem, erroneamente, bandidos e ignorantes em
geral.” (CE, p.124). Escolhida a denominação, revela-se, em seguida, a filosofia da
irmandade: “Como membro da Confraria dos Espadas eu acreditava, e acredito ainda, que a
cópula é a única coisa que importa para o ser humano. Foder é viver, o existe mais nada,
como os poetas sabem muito bem.” (CE, p.125). Afirmação esta que remete ao poema de T.S.
Eliot, “Sweeney Agonista” “Nascer, copular e morrer./ nada mais, nada mais [Tradução
Ivan Junqueira]” (ELIOT, 1981, p.152), e que é recorrentemente citado na obra fonsequiana.
Os personagens-escritores do autor poderiam perfeitamente se incluir nessa Confraria,
tamanha é a dedicação deles à atividade erótica. E também por parecerem acreditar que, além
do sexo – e talvez da literatura –, não há mais nada. Fesceninos, licenciosos, lúbricos,
mulherengos, eis alguns adjetivos que lhes são atribuídos e aos quais realmente fazem jus.
77
No entanto, da mesma forma que a sexualidade é fonte de prazeres, será também de agruras.
Devido ao priapismo que lhes é característico, irão se envolver em situações complexas e
perigosas, cujas conseqüências podem ser surpreendentes e até fatais.
No caso de “A Confraria dos Espadas”, as conseqüências do gozo sem ejaculação não
são funestas, mas inesperadas. Ironicamente, as (supostas) beneficiárias, embora inicialmente
apreciem os resultados da nova técnica, acabam insatisfeitas por sentirem falta do sêmen
como marca da consumação do coito. Para piorar, os confrades se empenharam tanto nos
exercícios do MOSE que não conseguem mais, mesmo que queiram, ejacular. “Acho que
me tornei um monstro”, diz um deles, chegando à conclusão de que os ganhos trazidos pelo
orgasmo sem esperma resultaram em perdas irreparáveis para suas vidas amorosas:
Continuamos tendo uma mulher à nossa espera, mas essa mulher tem de ser trocada
constantemente, antes de descobrir que somos diferentes, estranhos, capazes de
gozar com infinita energia sem derramamento de sêmen. Não podemos nos
apaixonar, pois nossas relações são efêmeras. (CE, p.128).
Algo similar ocorre com os outros personagens-escritores fonsequianos. Muito embora
eles possam se apaixonar, e estão sempre se apaixonando, suas relações são efêmeras.
Envolvem-se com inúmeras mulheres, quase sempre com várias simultaneamente, mas o
envolvimento se limita à conjunção carnal. Segundo Vera Lúcia Follain de Figueiredo:
Na ficção de Rubem Fonseca, o individualismo exacerbado cria um abismo entre os
personagens que, desprovidos de qualquer referencial transcendente, enredados num
profundo narcisismo, acabam por concluir que, “entre o nascimento e a morte, o
amor, o amor de orgasmos e órgãos existe” [CM, p.105] [...] Evidentemente que o
amor a que os personagens se referem nada tem a ver com o ideal romântico do
amor. Trata-se do gozo do corpo através de relações efêmeras, porque o sexo acaba
se configurando como a única espécie de troca possível entre as pessoas “virou
comunicação”, como dirá o personagem do romance Bufo e Spallanzani. O corpo
funciona, então, como lugar de resistência às abstrações que dessubstancializam o
mundo ao nosso redor, constituindo-se no último reduto de materialidade e, nesse
sentido, na atividade sexual, desde que não seja virtual ou realizada com uma boneca
inflável, residiria a última possibilidade de interação entre os indivíduos.
(FIGUEIREDO, 2003, p.116).
Fornicar é viver, diz o narrador-poeta de “A Confraria dos Espadas”, complementando
que, além disso, não mais nada. No poema de Eliot, inspiração para tal idéia, o ciclo da
existência humana é composto por apenas três elementos: nascimento, cópula e morte. Estes
78
dois últimos se entrelaçarão na maioria das histórias em que escritores se tornam personagens
de Rubem Fonseca. O amor, de orgasmos, e a morte, muitas vezes violenta, serão
praticamente indissociáveis em suas narrativas.
4.2 Eros e Tânatos
Como afirma o personagem de “Intestino grosso”: “sempre achei que uma boa história
tem que terminar com alguém morto.” (IG, p.460). Se afirmação fosse “sempre achei que uma
boa história de amor tem que terminar com alguém morto”, seria também deveras adequada.
De acordo com Ana Cristina Coutinho Viegas: “amar e escrever, assim como matar,
constituem palavras fundamentais na obra de Rubem Fonseca e representam três ofícios
realizados com refinamento pelos narradores de modo geral” (VIEGAS, 2002, p.38). Uma
breve retrospectiva dos enredos das histórias fonsequianas protagonizadas por escritores é o
suficiente para se perceber a recorrência do tema do amor e morte.
Em “Agruras de um jovem escritor”, Lígia comete suicídio, após ser abandonada pelo
narrador, que logo se enreda em suas próprias artimanhas ao falsificar o breve e implacável
bilhete de despedida deixado por ela, reescrevendo-o para obliterar as restrições a ele feitas,
sonhando, com isso, alcançar finalmente a fama. No entanto, acaba sendo preso sob a
acusação de tê-la assassinado, sendo a principal prova do crime justamente o bilhete
falsificado que fizera. em “H.M.S. Cormorant em Paranaguá”, amor e morte ganham
matizes típicos do Romantismo coetâneo ao seu personagem principal: Álvares de Azevedo.
O amor, físico, é fonte de medo. A morte, todavia se revela atraente, levando-o a ansiar por
um óbito precoce, que por fim se realiza.
No caso de Bufo e Spallanzani, o assassinato cometido por Gustavo Flávio, que matara
a amante, Delfina a pedido dela –, acometida por uma doença incurável, demonstra como
um homicídio pode ser considerado um ato não meramente criminoso, mas uma ação de
piedade e até mesmo de amor. Na novela E do meio do mundo prostituto amores guardei
79
ao meu charuto, também protagonizado por Gustavo Flávio, o ciúme doentio de Luíza, sua
nova companheira, ocasiona a morte de várias mulheres com as quais ele se envolvera, além
do suicídio da própria, que atira no infiel parceiro – que sobrevive –, antes de se matar.
Em Diário de um fescenino, Rufus se envolve simultaneamente com duas mulheres,
mãe e filha. Quando a verdade vem à tona, Virna, a mãe, que apreciava certa brutalidade
durante o sexo, rompe com o namorado e o acusa formalmente de estupro, alegando que as
feridas em seu corpo foram feitas sob coação, e não como de fato ocorrera, ou seja, a pedido
dela. Para agravar a situação, ela mata um ex-amante, que a extorquia, com a arma de Rufus.
Ele acaba sendo preso supostamente acusado como assassino e estuprador. conseguindo
ser libertado graças ao empenho de seu advogado, que desembaralha a trama na qual seu
cliente se enredara.
Não se pretende aqui, como talvez possa sugerir o título desta seção, efetuar uma
análise psicanalítica sobre a freqüência com que o tema do amor e morte se apresenta na obra
fonsequiana, embora tal interpretação pudesse ser bem instigante. Busca-se apenas ressaltar
neste estudo a relevância que o amor carnal e a morte possuem para a representação da
figura do escritor nos livros de Rubem Fonseca.
Um caso em particular entrelaça erotismo e morte de maneira sutil e singular. Em
“Pierrô da caverna”, de O Cobrador (1979), os caminhos do desejo seguem desvios
complexos e ambíguos, abordando-se um caso de pedofilia. Fonseca constrói o conto
repelindo qualquer moralismo, evidenciando, assim, mais uma vez, sua habilidade narrativa
no tratamento de um tema tão polêmico.
4.3 Em busca de Sofia
O narrador e protagonista de “O Pierrô da caverna” é um escritor de meia-idade,
recém-separado da esposa, com quem mantêm poucos e desagradáveis contatos. Está
envolvido com uma mulher casada, que o visita esporadicamente. Ele vive isolado em um
80
apartamento, sua caverna, ocupando seu tempo entre leituras e a escrita de novos trabalhos
ficcionais. Até conhecer, se apaixonar e se tornar amante de uma menina de doze anos, sua
vizinha, Sofia.
O conto se estrutura como um monólogo em fluxo-contínuo, sem paragrafação,
representando a oralidade do narrador, que registra em um gravador os acontecimentos por
que passa. Solitário, melancólico, mas também altivo, o protagonista, nas linhas iniciais da
narrativa, demonstra não temer os apelos do desejo: “Existem pessoas que não se entregam à
paixão, sua apatia as leva a escolher uma vida de rotina, onde vegetam como abacaxis numa
estufa, como dizia meu pai. Quanto a mim, o que me mantém vivo é o risco iminente da
paixão e seus coadjuvantes, amor, ódio, gozo, misericórdia.” (PC, p.477).
Ambos se conhecem em breves encontros pelos corredores do edifício onde moram.
Ele fica fascinado com a pulseira que a menina usava no tornozelo e tenta balbuciar algumas
perguntais banais sobre o cotidiano dela. Um dia, Sofia, inesperadamente bate à sua porta,
afirmando que sempre quisera conhecer o apartamento dele, e entra: “Tudo aconteceu
rapidamente, sem eu perceber bem de maneira gica e lúcida a transação que ocorreu, como
se eu estivesse fortemente dopado, e de fato eu estava, pela assombrosa proximidade dela.
Depois ela se retirou, levando discos e livros.” (PC, p.480).
No decorrer da trama, o personagem menciona vários casos de pedofilia e as reações
que causaram. Diz que em Londres organizou-se uma associação de pedófilos e que seus
membros foram agredidos “por uma multidão de cidadãos irados, mulheres na maioria” (PC,
p.477). Relata mais dois outros casos. O primeiro ocorrido em uma favela brasileira, na qual
um carpinteiro, que possuía boa reputação na comunidade, é linchado por ter se envolvido
com uma criança: “Se ele tivesse feito isso com a irmã de Lucinha, que tem doze anos, acho
que o pessoal não batia nele, mas a Lucinha tem oito aninhos” (PC, p.480), diz um dos que
testemunharam o linchamento. O segundo caso é sobre um homem em Israel que foi
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condenado à prisão por ter mantido relações sexuais com uma menina de doze anos. “Na
verdade os juízes deram como provada sua alegação de que fora seduzido por ela. Não
consegui fugir a tão vulcânica paixão, ele havia dito” (PC, p.480).
Tampouco o protagonista parece conseguir, ou mesmo querer, evitar tal paixão,
conforme ele próprio dissera anteriormente: o risco é que o mantém vivo. Ele evoca, ainda,
episódios famosos de pedofilia no âmbito artístico, em especial no literário:
A arte está cheia de meninas virando a cabeça de homens maduros, a de Malle, a de
Nabokov, a de Kierkegaard, a de Dostoievski. Dostoievski seduziu uma menina de
menos de doze anos e contou para Turgueniev, que não lhe deu importância. Sua
culpa está projetada no Svidrigailov, de Crime e castigo, e em Stravogin, de Os
Possessos, ambos pedófilos violadores. Cena do Diário de um sedutor: a menina
desce da carruagem e deixa um pedaço da perna e eu, Kierkegaard, me apaixono
avassaladoramente. (PC, p.482).
Dentre as citações acima, uma das mais famosas abordagens sobre pedofilia é a de
Vladmir Nabokov. No entanto, o paralelo entre o romance do escritor russo e o conto de
Fonseca revela que ambos possuem em comum basicamente o tema. O registro de Nabokov é
não raro satírico, especialmente quanto aos costumes da sociedade norte-americana dos anos
1950, sob os quais lança um olhar devastador. Humbert Humbert e Lolita representam, de
forma geral, os típicos casais da ficção nabokoviana: a do homem emocionalmente instável,
um tanto tolo, eventualmente um intelectual exilado como, por exemplo, Pnin, protagonista
do romance homônimo (1953); ou ingênuos, como Franz e Dreyer, de Rei, Dama e Valete
(1929), e Albino, de Riso na escuridão (1938). Eles se apaixonam arrebatadoramente por
mulheres do tipo femme-fatale, um tanto vulgares e muito ambiciosas, como o são,
respectivamente, Liza, Martha e Margot, que os manipulam descaradamente, conduzindo-os
amiúde ao desastre. Lolita (1955), a grosso modo, segue essas diretivas, tornando-se, porém,
mais complexa e ambígua por causa da pedofilia. Afirmar que Dolores Haze seduziu o
padrasto seria temerário, pois o relacionamento entre ambos revela nuances sutis demais para
definições categóricas. Entre eles parece haver um jogo de manipulações mútuas, ficando
difícil mesmo discernir quem está manipulando quem; quem é o sedutor e quem o seduzido.
82
Aliás, um comentário de Nabokov sobre a natureza de seu livro serve como instigante
reflexão também para o erotismo presente na obra de Fonseca. “Certas técnicas usadas no
início de Lolita (por exemplo, o diário de Humbert) levaram alguns de meus primeiros
leitores a crer erroneamente que se tratava de uma sucessão de episódios eróticos, cada vez
mais intensos”, diz Vladmir, acrescentando que “quando eles cessaram, os leitores pararam
também, sentindo-se entediados e decepcionados” (NABOKOV, 1998, p.352). O escritor
russo disserta, ainda, sobre literatura erótica e/ou licenciosa do passado e a pornografia
contemporânea (demonstrando uma concepção muito similar à de Rubem, como se verá mais
abaixo):
Se é verdade que na Europa de antanho, e até o século XVIII (os melhores exemplos
vêm da França, a libidinagem propositada não era incompatível com lampejos de
comédia, com uma sátira vigorosa ou mesmo com a verve de um bom poeta num
momento de devaneio lúbrico, também é verdade que o termo pornografia hoje em
dia está associado à mediocridade ao comercialismo e a certas regras estritas de
narração. A obscenidade precisa estar acasalada com a banalidade porque todo
prazer estético deve ceder lugar à simples estimulação sexual, para agir diretamente
sobre o paciente. [...] Assim, nas obras pornográficas, a ação tem de limitar-se à
cópula de lugares-comuns. O estilo deve consistir necessariamente em uma
alternância de cenas sexuais. (NABOKOV, 1998, p.352).
É freqüente, ou melhor, era freqüente considerar a ficção fonsequiana pornográfica.
Tanto que chegou a ser censurada durante a ditadura. Quando perguntado se era um escritor
pornográfico, o personagem de “Intestino grosso” responde: “Sou. Os meus livros estão
cheios de miseráveis sem dentes” (IG, p.461) revelando que a verdadeira obscenidade não é
sexual, mas sim social. Um pouco mais adiante, define-se melhor o conceito, segundo ele, de
pornografia:
A maioria dos livros considerados pornográficos se caracteriza por uma série
sucessiva de cenas eróticas cujo objetivo é estimular psicologicamente o leitor um
afrodisíaco retórico. São evitados todos os elementos que possam distrair o leitor do
envolvimento unidimensional a que ele é submetido. São livros de grande
simplicidade estrutural, com enredo circunscrito às transações eróticas dos
personagens. As tramas tendem a ser basicamente idênticas em todos eles, há apenas
diferenças de grau na escatologia e na perversão. (IG, p.465).
83
E conclui dizendo que a própria complexidade de seus livros os exclui dessa categoria.
Com efeito, embora entremeada de erotismo, a obra de Fonseca não pode ser considerada
como meramente pornográfica. De acordo com Jean-Marie Goulemot:
O gestual sexual é, pois, condição necessária, mas não suficiente. A pornografia é
uma estratégia de escrita. Ou antes, para que o texto pornográfico cumpra sua
função, que é a de provocar o desejo de gozo em seu leitor, ele deve empregar uma
estratégia de escritura que esteja em condições de produzir este resultado e
unicamente este. (GOULEMOT, 2000, p.100).
Ora, as ficções de Rubem não pretendem atingir tais objetivos, não almejam provocar
meramente o desejo de gozo nos leitores. Tampouco apresentam estruturas narrativas
simplórias, muito pelo contrário. Suas descrições eróticas ou relatam fria e distanciadamente
os atos como, por exemplo, no conto “O campeonato”, de Feliz ano novo (1979), uma
espécie de ficção científica, em que o sexo vira uma reles atividade competitiva, desprovida
de prazer, tornando-se algo parecido com o turfe – ou se aproximam do lirismo. Por exemplo,
o primeiro enlace entre o narrador e Sofia:
Eu sabia que ia ser naquele dia, senti-me dominado por espectrais alucinações, como
os santos, e minha boca estava seca, meu Deus, ela tinha apenas doze anos, seu
hálito ardente entrou pelas minhas narinas e extasiado vi o seu corpo se revelar, os
pequenos seios redondos, a barriga enxuta por onde um fino fio de cabelos negros
descia, até encontrar o púbis espesso de escuros los que me engolfou como um
poço, um abismo noturno de gozo e volúpia. Depois Sofia perguntou se o sangue no
lençol era dela. E perguntou também se o orgasmo era uma espécie de agonia.
Parecia que tudo havia sido um sonho, meu corpo todo formigava, dormente, e
minha cabeça parecia ter explodido em miríades de ínfimas partículas que pairavam
no ar como um gás denso e então entendi o que o poeta chinês queria dizer ao
afirmar que a mente é ampla nuvem flutuando. (PC, p.485).
Em “Pierrô da caverna”, comparando-se com Lolita, levando-se em conta o que diz o
narrador, aparentemente, quem toma a iniciativa do relacionamento é a menina. Mas fazer tal
afirmação, em um caso como esse, talvez fosse simplista demais. Seja como for, estabelece-se
a relação, mas surge um contratempo uma gravidez inesperada. Interromper a gestação se
torna urgente. E aqui se insere a morte nesta história de amor. Do ciclo eliotiano
nascimento, cópula e morte –, faz-se necessário que a última impeça o primeiro. Difícil será
convencer o médico a realizar a operação:
Quantos anos ela tem?, perguntou ele, com aspereza. Dezesseis. Ele riu, os lábios
grossos úmidos brilhantes puxados para baixo e disse num tom peremptório: ela não
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tem dezesseis anos. Se tivesse o senhor operaria?, perguntei. Talvez, ele disse. [...]
Se ela tivesse dezesseis anos os riscos para a saúde da paciente seriam menores e ele
não queria meter-se em confusões operando uma menina de onze anos. Ela tem doze
anos, corrigi, involuntariamente. E o senhor com essa cara pierrotesca querendo me
fazer de trouxa, disse ele rindo. Ela tem uma saúde de ferro, eu disse, revelando o
doesto, envergonhado. Ele continuou rindo, balançando a imensa barriga, um riso
baixo e musical. Boris Godunov. [...] Nós não podemos ter esse filho, doutor, eu
disse humilde. Boris parou de rir e encostou o rosto no meu. [...] Por que não usou
pílula, diafragma, camisinha, diu, coitus interruptus? Fazem besteira e depois vêm
correndo para . [...] Não podemos ter esse filho, repeti, desanimado. Boris
perguntou minha idade e quando eu disse notei que ele me olhou com mais simpatia.
Mesmo assim não abandonou o eu estilo injurioso: mais pra do que pra cá, hein?
Eu amo esta menina. Ah, o amor, o amor, sentenciou Boris. Tudo tem um ônus um
preço, um imposto, uma carga, um gravame. [...] Vexame, ele entoou, há sempre um
vexame à nossa espera. Mas o senhor tem sorte, farei esta loucura, deve ser a sua
cara de parvo que me comove. (PC, p.489).
No fim do conto, aliviado por ter eliminado os delicados inconvenientes de seu enlace
amoroso com Sofia Eu amava Sofia, eu amava Sofia. Eu amo Sofia!” (PC, p.485) –, o
protagonista, melancólico, pierrotesco, retorna, com Sofia, à sua caverna e ao seu penoso
ofício, afirmando: “Nada mudou, nada vai mudar” (PC, p.490).
Em sua análise da narrativa, Luiz Costa Lima efetua uma leitura alegórica da trama,
considerando que o tema e o protagonista do conto representariam a situação atual do escritor
e sua relação com a vida, que lhe serve de matéria para ficção:
O personagem é um escritor que vive trancado em seu apartamento. Como diz a
garota de 12 anos, não sabe assim o que se passa lá fora. Não desprezaria as amantes
adultas e não se apaixonaria pela menina exatamente porque tem assim a impressão
de aproximar-se da vida que lhe escapa? Não seria portanto o conto a alegoria,
menos do estado da velhice, que do estado do escritor, que pretende estimular em si
a paixão pela matéria? Logo no início de sua narração, ele declara: “o que me
mantém vivo é o risco iminente da paixão e seus coadjuvantes, amor, ódio, gozo,
misericórdia”. [...] Seus instrumentos de trabalho são o risco da paixão e o gravador
a tiracolo. Talvez o escritor, não apenas o aqui aludido, seja uma espécie de
perverso: o mundo lhe importa, como dizia Sartre, para que se converta em tinta
impressa em páginas coladas”. (LIMA, Luiz Costa, 1981, p.156).
Tentar aproximar-se da vida que escapa, partir em busca de Sofia, manter-se vivo
através do risco da paixão para depois fazer disso tudo literatura. Eis talvez algo comum aos
personagens-escritores de Fonseca o mundo, suas agruras e vicissitudes: o amor (carnal), a
morte, a glória, o fracasso, os júbilos, as misérias, enfim, a própria literatura, lhes interessa
para que se convertam em tinta impressa nas páginas dos livros.
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5. Conclusão
O objetivo deste trabalho foi analisar a representação da figura do escritor na obra de
Rubem Fonseca. Inicialmente, investigou-se a relação dos personagens-artistas pintores,
dramaturgos e escritores com os meios de massa, e que é marcada por uma ambivalente e
irônica perspectiva, voltada não para o público e os intermediários da produção artística,
mas também para o posicionamento, não raro radical, dos próprios artistas.
No que concerne à profissionalização do ofício das letras, a perspectiva por parte de
alguns personagens é também ambígua. Em alguns casos, se percebe uma postura cínica com
relação ao mercado editorial, como no caso do escritor Gustavo Flávio, embora, por vezes, ele
efetue considerações inesperadamente contestadoras sobre sua atividade. Em outras situações,
os personagens se vêem em dificuldades para iniciar a carreira literária, entrando em conflito
com os interesses de algumas editoras, que não desejam investir em novos autores e propostas
estéticas, não obstante haver as que se empenham para fomentar o ambiente cultural através
justamente da publicação de estreantes. Há, ainda, casos em que a ânsia de ser reconhecido
implica em estratagemas arriscados e trágicos para certos personagens, como ocorre com o
protagonista de “Romance negro”, que alcança a glória, mas acaba, por isso, obliterando a
própria identidade e se vê preso à de um outro.
A busca pela fama será a ambição maior de muitos dos personagens-escritores, e
também dos escritores-personagens, fonsequianos. Sejam os diletantes, que vêem na literatura
mais um meio para atingir notoriedade do que um fim estético em si redundando
freqüentemente em fracasso pela falta de talento. Sejam os que, em contrapartida, mesmo sem
talento, compram os serviços de terceiros para, ironicamente, tornarem-se autores respeitados,
sem terem sequer escrito uma linha caso do protagonista de “Artes e ofícios”. Sejam os
profissionais, que labutam com afinco para conquistar o sucesso, embora, ao final de uma
vida inteira dedicada às letras, lamentam os desgastes e agruras de seu ofício, considerando,
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enfim, a glória como uma ilusão, caso do Joseph Conrad fictício criado por Fonseca.
Personagem que, além do mais, é assombrado pela inveja do talento de um jovem e finado
autor, Stephen Crane.
Fonseca, muitas vezes, transforma a vida e obra de certos autores em matéria para sua
ficção, como no caso do autor de O coração das trevas. A abordagem desses escritores-
personagens seguirá basicamente dois caminhos. No primeiro, o autor ocupa um papel
secundário na trama, embora essencial para o seu desenvolvimento, tornando-se verdadeiros
catalisadores da narrativa. No segundo caminho, os escritores são não apenas protagonistas,
mas também narradores. Isáak Bábel em Vastas emoções e pensamentos imperfeitos e
Molière em O doente Molière são os representantes do primeiro caso. o supracitado
Conrad e o poeta romântico brasileiro Álvares de Azevedo se incluem no segundo. Este
último, aliás, no conto que protagoniza –“H.M.S. Cormorant em Paranaguá”– promove uma
instigante reflexão sobre as correlações entre política e literatura, questionando a identidade
individual e social do poeta perante a vida privada e pública.
Os personagens do autor podem ser considerados fesceninos, pois a dedicação que
devotam à atividade erótica é tão intensa que são raras as narrativas em que o sexo não ocupe
um papel relevante. Viver para eles é fornicar e escrever. Percebeu-se ainda que na maioria
de suas histórias o amor carnal é praticamente indissociável da morte. E que alguns deles
não temem vivenciar os riscos da paixão, envolvendo-se, às vezes, em relações complexas e
interditas, como, por exemplo, o protagonista de “Pierrô da caverna”. Analisou-se também
que a obra fonsequiana, muitas vezes acusada de pornográfica, não se inclui neste tipo de
gênero, por causa de sua sofisticação estrutural e estilística. Ao contrário dos livros
pornográficos, que se lêem com uma mão, os livros fonsequianos, por seu turno, são
daqueles que se lêem com ambas.
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Enfim, pode-se afirmar que Fonseca observa com muita ironia, ora cáustica, ora
amarga, a vida autoral, tão cheia de ambições e vaidades, de ilusões e desilusões, agruras e
vicissitudes. Retomando a idéia da síndrome de Camões, seus personagens-escritores, mesmo
com tantos percalços, resistem e persistem em seu solitário e penoso ofício.
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