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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS
Programa de Mestrado em Psicologia
ALCOOLISMO E DROGADIÇÃO A PARTIR DE UM GRUPO DE AJUDA MÚTUA:
SUBJETIVIDADE, POLÍTICA E ENGAJAMENTO EM NOVAS PRÁTICAS DE
SOBRIEDADE.
Jairo Stacanelli Barros
Belo Horizonte
2008
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Jairo Stacanelli Barros
ALCOOLISMO E DROGADIÇÃO A PARTIR DE UM GRUPO DE AJUDA MÚTUA:
SUBJETIVIDADE, POLÍTICA E ENGAJAMENTO EM NOVAS PRÁTICAS DE
SOBRIEDADE.
Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado
em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de
Minas Gerais, como requisito para obtenção do título
de Mestre em Psicologia.
Orientador: João Leite Ferreira Neto
Linha de Pesquisa: Intervenções Clínicas e Sociais
Belo Horizonte
2008
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FICHA CATALOGRÁFICA
Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
Barros, Jairo Stacanelli
B277a Alcoolismo e drogadição a partir de um grupo de ajuda mútua:
subjetividade, política e engajamento em novas práticas de sobriedade /
Jairo Stacanelli Barros. - Belo Horizonte, 2008.
189 f.
Orientador: João Leite Ferreira Neto
Dissertação (mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas
Gerais, Programa de Pós-Graduação em Psicologia.
Bibliografia.
1. Alcoolismo 2. Drogas - Abuso. 3. Grupos de ajuda mútua 4.
Subjetividade . I. Ferreira Neto, João Leite. II. Pontifícia Universidade
Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Psicologia.
III. Título.
CDU: 613.81
Jairo Stacanelli Barros
Alcoolismo e drogadição a partir de um grupo de ajuda mútua:
subjetividade, política e engajamento em novas práticas de sobriedade.
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Psicologia da Pontifícia Universidade
Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção do tulo de Mestre em
Psicologia.
Belo Horizonte, agosto de 2008.
________________________________________________________
João Leite Ferreira Neto (Orientador) – PUC Minas
________________________________________________________
Cláudia Lins Cardoso – UFMG
________________________________________________________
Luciana Kind do Nascimento – PUC Minas
Primeiro foi preciso te esperar.
Depois, uma luta longa pra te ter.
Agora, mesmo nos vendo muito pouco, é curtir e aprender a cada segundo contigo.
Você é o meu maior sentido.
Este trabalho é pra ti.
Pra ti, Davi.
Filhote lindo e bolão que tanto amo.
AGRADECIMENTOS
Primeiramente, agradeço ao meu orientador João Leite Ferreira Neto. Seu apoio,
principalmente quanto à tolerância de tempo em virtude de vários acontecimentos, seu conselho,
as diversas cores que marcaram a matriz deste texto, o convite para participação em importante
projeto de pesquisa... pontos que garantiram equilíbrio a este trabalho. A ti, João, meu abraço de
muito obrigado.
Ao professor William Castilho Pereira, cujas aulas e textos me foram convite e
apresentação aos autores que constituem o pilar deste texto.
À professora Cláudia Lins Cardoso, cuja distância me desperta saudade.
A Nívia Nicácio Stacanelli Barros, educadora maior, empreendedora do mais belo projeto
de saúde pública do município de Contagem, a Pastoral da Saúde Nossa Senhora do Rosário
cria sua e irmã minha, cenário para as descobertas e encontros deste trabalho. Orientadora
corajosa de minha prática clínica no Grupo de Apoio a Dependentes Químicos ‘Família Caná’,
desta Pastoral, iniciada quando eu ainda estava na metade do curso de graduação em Psicologia,
na Universidade Federal de Minas Gerais. Mãe, você é minha mestra!
A cada um dos membros do Grupo ‘Família Caná’, com quem estive durante estes sete
anos, todos eles, mesmo aqueles que aqui não menciono. Dona Lourdes, Dona Naná, Patrícia e
(meu pequeno afilhado) Igor, Adilson e Cida, Rose e Renato, Devalmir e Márcia, Maria de
Fátima, Cida e Luís Henrique, nio, Joãozinho, Marquinhos, Senhor Geci, Carlos Pretinho,
Marcelo (in memorian), Henrique e Gleiciano, Carlos e Patrícia, Senhor Roberto Abreu e Dona
Nilza, Senhor Melquíades e Dona Socorro, Senhor Ildeu e Maria do Carmo, Dona Romilda,
Alexandra, Carolina Malta, Juliana Mitre, Marlene Santos, Roberta e Lucas. Espero ter
contribuído com minha escuta e, nesse texto, com uma fonte para soluções possíveis.
Ao meu amigo, Senhor Rubens Rocha de Sá, o maior abraço de agradecimento desta
página. Com sua lucidez, aprendi tudo que sei sobre dependência química; com a falta dela, vi o
quanto ainda precisamos estudar juntos. E permanecermos vigilantes!
Pai, Kinha, Nita e toda a minha torcida em Oliveira/MG: obrigado, amo muito vocês.
Jairinho Stacanelli Barros, fevereiro de 2008.
O Rancho da Goiabada
“Os bóias-frias
quando tomam umas biritas
sonham
com bife-a-cavalo, batata-frita e a sobremesa
é goiabada cascão com muito queijo
depois café, cigarro e um beijo
de uma mulata
chamada Leonor ou Dagmar.”
João Bosco e Aldir Blanc, 1978.
RESUMO
O presente trabalho se põe a investigar a procura por apoio e o engajamento em um grupo
de ajuda mútua a dependentes químicos e seus familiares, por parte de usuários crônicos de
álcool e drogas, no município de Contagem/MG, região metropolitana de Belo Horizonte/MG.
Buscou-se levantar e analisar os motivos diversos que levam usuários crônicos de substâncias de
abuso a freqüentarem reuniões e partilharem de dispositivos do grupo, em busca de cessar os
problemas advindos do alcoolismo e da toxicomania, transitando por um novo território
existencial em sobriedade. O quadro teórico que serviu de fundamentação para a análise
desenvolvida foi buscado nas proposições filosóficas de Gilles Deleuze, Félix Guattari e Michel
Foucault. Como método optou-se pela cartografia dos processos de subjetivação envolvidos no
entrelaçamento com o discurso do grupo de apoio pesquisado, tanto dos indivíduos entrevistados,
quanto do pesquisador, que coordenava as reuniões deste e nele fazia observação participante. No
desenvolvimento da cartografia, a coleta de dados foi feita de forma que não se perdesse a
dimensão dinâmica, e sempre em formação, do campo de pesquisa; buscaram-se documentos que
remetem à sua organização disciplinar (atas e listas de presença de reuniões, documentos de sua
fundação, panfletos explicativos), assim como depoimentos de antigos membros e coordenadores
fundadores; foram realizadas entrevistas individuais em profundidade, com um grupo de cinco
membros; e foram feitas transcrições de trechos de reuniões, quando de seu acontecimento no
grupo pesquisado. Ao fazê-lo, buscou-se penetrar, junto aos indivíduos da pesquisa, no relato de
vivências junto ao álcool e às drogas; bem como sua entrada no grupo a percepção que tinham
do grupo, de si e da situação que viviam –, a fim de buscarem novas práticas de si em sobriedade.
Os dados colhidos indicaram o caráter cinético e paradoxal desse movimento de procura e
engajamento no discurso do grupo de ajuda tua, sendo a estrutura disciplinar e seus fatores
terapêuticos alguns dos responsáveis por nova organização dos hábitos e do comportamento,
reforçando posturas abstinentes. Avaliou-se a implicação das políticas públicas para controle e
entendimento da problemática do álcool e das drogas, quanto às suas origens e aplicabilidade
prática. Esse conjunto de elementos, grupo, engajamento, práticas de si e políticas públicas,
engendram potenciais transformações no âmbito da produção de subjetividades.
PALAVRAS-CHAVE: grupos de ajuda mútua, processos de subjetivação, alcoolismo,
drogadição, cartografia.
ABSTRACT
This work investigates the search for support and commitment in a self helping group to
addicted in alcohol and drugs and their relatives, by alcohol and drug abusers, in the city of
Contagem/MG, in the region of Belo Horizonte/MG. It intended to look for and analyse the
diverse motivation these abusers had which made them take part in self helping groups’ meetings
and share these groups’ dispositions, willing to cease the problems connected to alcoholism and
drug addiction, transiting through a new and sober existence ground. The theories which served
as basis for the developed analysis were taken from the philosophical propositions of Gilles
Deleuze, lix Guattari and Michel Foucault. As the method, the option was for the cartographic
of the subjectivation processes, involved with the self helping group’s discourse, from the point
of view of the interviewed individuals and researcher, who has been coordinating its sections,
while doing participative observation. In the development of this cartography, data collection was
made in a manner that the dynamical instance of the group, always to be made, was not lost; it
looked for notes which evokes the group’s disciplinary organization (name lists, documents of its
foundation, explanatory leaflets), as well as the speech of old members and coordinators, five in-
depth individual interviews with selected group members, and the transcription of some extracts
from the group’s meetings, while they were made in it. Doing so, this work intended to penetrate
the livings along with the alcohol and drugs of abuse, by the individuals involved with this
research; as well as the entrance in the researched self helping group the perceptions they had
had of the group, of themselves and the situation they were living in –, with the intention of
finding new practices of themselves in sobriety. The collected data pointed the non-static and
paradoxical characteristics of the movement of looking for and being committed with the self
helping group’s discourse, whose disciplinary structures and therapeutic facts are one of the
responsible items for the new habit and behavioural organization, reinforcing abstinent postures
of living. The implication of public policies, to control and understand the problems of alcohol
and drugs, are evaluated, as well as their origins and practical applicability. Terms group,
commitment, practices of oneself and policies which engender potential changing in the ambit
of subjectivity production.
KEY WORDS: self helping groups, subjectivation processes, alcoholism, drug addiction,
cartography.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO.........................................................................................................................11
1.1 Compondo motivações para desenvolvimento de um trabalho......................................... 12
1.2 Antevendo um percurso.........................................................................................................15
2 CONSIDERAÇÕES METODOLÓGICAS: NOTAS PARA UMA CARTOGRAFIA
POSSÍVEL....................................................................................................................................18
2.1 A escalada de um problema. Reconhec ê-lo? Como?...........................................................18
2.2 Em tempo para definições......................................................................................................21
2.3 Ao leitor: um convite, uma escada e uma entrada...............................................................25
2.4 Considerações Metodológicas................................................................................................28
2.4.1 Afinal, onde se quer chegar..................................................................................................30
2.5 O emaranhamento, a organização e uma pergunta mais enxuta: lançando as primeiras
amarras para entrada no campo da pesquisa......................................................................31
2.6 A busca por antigos fragmentos e guias: delimitações arqueológicas da cartografia......34
2.7 Uma dimensão particular: trabalhando fragmentos que refletem o Grupo.....................36
2.7.1 Características da amostra...................................................................................................37
2.7.2 Critérios para seleção do grupo amostral............................................................................38
2.8 Informações colhidas junto ao grupo amostral....................................................................41
2.8.1 Os membros usuários de substâncias ilícitas.......................................................................41
2.8.1.1 Edilberto.............................................................................................................................41
2.8.1.2 Márcio.................................................................................................................................43
2.8.2 Os membros usuários de álcool............................................................................................44
2.8.2.1 Bento...................................................................................................................................46
2.8.2.2 Sandra.................................................................................................................................51
2.8.2.3 Lucas..............................................................................................................................….53
2.9 O tratamento e a análise do material.....................................................................................57
3 EXPLORANDO UM CAMPO DE TRABALHO...................................................................61
3.1 Um olhar para o objeto e a escolha de uma forma para descrevê-lo: convergências
possíveis..................................................................................................................................61
3.2 Processos de subjetivação e grupos com dependentes químicos........................................62
3.2.1 Aplicações de natureza teórica à prática do “Família Caná” de Contagem/MG
pesquisado.............................................................................................................................65
3.3 Enfim, onde se foi parar.........................................................................................................67
3.3.1 As primeiras abordagens da Associação ao tema da pesquisa...........................................69
3.4 A entrada no Grupo de Apoio Família Caná em Contagem/MG......................................74
3.5 A disposição do Grupo Família Caná em Contagem/MG e a construção do problema de
pesquisa....................................................................................................................................78
3.5.1 A dinâmica das reuniões do grupo de pesquisa....................................................................81
3.5.2 A entrada no grupo de familiares..........................................................................................89
3.5.3 A dimensão religiosa no grupo de pesquisa: o sagrado e o político.....................................96
4 O GRUPO EM SI E UMA LEITURA DOS GRUPOS COMO UM TODO......................103
4.1 Delimitando um tempo: das drogas, de contexto atual e dos desafios às práticas
clínicas....................................................................................................................................103
4.2 Os grupos como uma das possíveis respostas: o que se esconde por debaixo das pontas
do iceberg de resistência.......................................................................................................110
4.3 Um vetor de busca e resgate: os caminhos que levam aos grupos de ajuda mútua........115
4.3.1 A entrada no ambiente dos grupos de ajuda mútua..........................................................115
4.4 Os grupos de ajuda mútua como um todo..........................................................................120
4.4.1 Percurso e crítica: bases históricas e aplicações práticas contemporâneas.....................120
4.4.2 A inserção do grupo de apoio pesquisado nesse percurso histórico.................................124
4.5 A influência de Alcoólicos anônimos, e demais grupos de ajuda mútua, na prática do
grupo de apoio pesquisado.........................................................................................................126
4.5.1 Convite a uma análise crítica: o grupo se desconstrói, depois se reinventa.....................129
4.6 Fatores terapêuticos das práticas de grupo no “Família Caná” de Contagem/MG.......132
4.7 O grupo pesquisado em si: aplicações em novas práticas de vida e de sobriedade........140
5 O CONTEXTO QUE PRODUZ O CENÁRIO DOS GRUPOS DE AJUDA MÚTUA
PARA DEPENDENTES QUÍMICOS: DEFINIÇÕES, ATUALIDADES E DIRETRIZES
POLÍTICAS............................................................................................................................147
5.1 Uma breve pedagogia do problema....................................................................................147
5.2 O problema traduzido em dados.........................................................................................152
5.3 Traduzindo dados em políticas............................................................................................159
5.3.1 O modelo político atual e seus fundamentos: impactos no cotidiano das pessoas e reflexos
práticos no cenário dinâmico das drogas..........................................................................159
5.3.2 Apontamentos sobre a política anti-drogas no Brasil: reprodução negativa de um modelo,
porém com a entrada de um elemento inovador – o Programa de Redução de Danos....162
5.3.3 Apontamentos sobre políticas públicas contra o abuso de álcool no Brasil.....................165
5.4 Diretrizes políticas e implicações ao objeto de pesquisa...................................................169
5.4.1 Efeitos contraditórios: tamanho do problema x abordagem efetiva do problema...........173
6. CONCLUSÃO……………………………………………………………………………….179
REFERENCIAS.........................................................................................................................183
“Todos os fenômenos importantes da atualidade
envolvem dimensões do desejo e da subjetividade.”
Félix Guattari e Suely Rolnik, 2005.
11
1 INTRODUÇÃO
Em qualquer canto de morro, um verso sôfrego...
“Chega aí, de menor.” Colé, parcerage?“Tô com uma parada aqui. Vai nessa?” Eu
não, que não sei que quisso faz. Outra coisa, cansadão que voltando do trampo. E amanhã
tem prova do primeiro bimestre.“Aí, malandragem, quandé que te dei idéia errada? Nós é mano
desde pequeno, truta.” Não, vou ficar de boa, é que mãe tá sozinha em casa e me disse que
não é pra ficar dando idéia pra tu. E esses chegado seu... tudo maconheiro.“Que maconheiro
que nada, não encho a cara daquela safada de bala porque é sua mãe.” Olha como tu fala!“Te
idéia, isso aqui é do bom, te relaxa, te clareia o pensamento. E hoje é de grátis!” bom
então, sangue, um trago desse bagulho aí. Firmeza, agora puxa como se você tivesse
soltando um papagaio no céu.” Ah.” “Num te falei que o barato era da hora?” Pode crer.
“Menino, onde tava?” Dando um rolé, coroa.“Desde o dia que vochegou atrasado você
tá estranho...” “Enche o saco não, porra.” “Que história é essa de largar a escola agora, só porque
você já tomou bomba e não é nem o fim do ano. Também, não concentra e nem estuda.” Já falei
pra não encher o saco!“E de onde vem esse tênis, que desde o início do ano nem com a feira
você me ajuda mais?” “Aí, fi, te idéia, tu tá cheirando pa carai. Num dá pra ficar filando
não, zim. Tu vai ter que pagar pelo bagulho também. Correr o vapor com o movimento,
ligado?” “Sou o soldado Fulano, boa tarde. A senhora é a mãe do Ciclano?” “Sim, senhor.” “O
menor foi apreendido, está na DP e precisa de acompanhamento.” “Deus do céu, meu filho!”
“Deus o que Ciclana? Esse vagabundo precisa é de couro!” “Mãe, pai, preciso de ajuda.
Em um canto asfaltado, com voz ressequida...
“Boa noite, doutor Beltrano.” “Como vão todos?” “É um menino, como pensaste?” “Sim.
Beltrano Júnior! Uma honra.” “Mas que notícia animadora, doutor Beltrano. Merece um brinde,
pedirei que nos tragam o melhor uísque e uma caixa reservada de bons charutos Havana.” “De
que estás a brincar, Beltraninho?De lorde, mamãe, estes gravetos são deliciosos cubanos e
nesta cuia está o escocês mais envelhecido da adega.“Ah, estes meninos...” “Beltraninho?”
Sim, pai.“Já estás a ficar um homem, rala a barba no rosto e oitavada a voz na garganta. Junte-
se a nós e tome apenas um golinho desta bebida.” “Como cresceu este rapaz, me lembro que
12
tomávamos este mesmo uísque quando de seu nascimento.” “Parabéns pela formatura, Beltrano
Júnior.” Um brinde. “Parabéns pela promoção, doutor Beltrano Júnior.” Um brinde.
“Parabéns pelo casamento, Júnior, que bela esposa essa Fulana. Nos dará belos netos.” Um
brinde.Papai, eis Beltrano Neto.“Um brinde.” “Vais sair para beber, mas seu pai nem...”
Não me enche, Fulana.“Outra vez, Beltrano.” Outro uísque, não me enche.“Desculpe-nos,
Beltrano Júnior, mas não são mais necessários os seus serviços nesta firma.” “Aqui nesse bar não
tem uísque fiado, doutor.” “Senhor, documento e habilitação?” Eihn?“Pinga serve?” Para a
casa dos pais? “Já não agüentava mais tanta humilhação tendo que dividir a casa com um
bêbado, mamãe. E a cama, então...” “O diagnóstico é sério, senhor Beltrano. Graves danos ao
esôfago e ao gado, o que explica seu intenso mal-estar.” Cheguei até aqui porque preciso
muito de ajuda.
Onde se tentará um encontro...
Boa noite, meu nome é Beltrano Júnior.” “Sou Fulana, esposa de Beltrano.” Me chamo
Ciclano, tenho 17 anos.“Sou Beltrano Neto, também tenho 17 anos, e vim acompanhar meu
pai.” “Sou mãe de Ciclano, e estou perdida.” “Eu sou o pai desse malandro aí.” “Sou o policial
Fulano.” “Sejam todos bem-vindos a este Grupo.”
Na vida real, essas pessoas têm nomes, endereços e sentimentos verdadeiros. O que
também m em comum são suas várias histórias, de paixão e de execração, em contato com o
álcool e as diversas drogas.
Essas histórias estarão próximas de nós pelas próximas horas.
1.1 Compondo motivações para o desenvolvimento de um trabalho.
O acaso, a curiosidade, a busca por um sentido (até então ausente na graduação), a
demanda por formação e a inserção em um contexto determinado de pesquisa compuseram a
motivação para a realização dessa pesquisa. No ambiente que lhe serve de cenário, campo para
coleta de dados e estudo de instrumentos teóricos, se passaram sete anos de crescimento,
13
aprendizado e muitos, muitos questionamentos.
Álcool, drogas, entorpecentes, substâncias psicotrópicas... não importa a aplicação da
terminologia, neste movimento introdutório. Se nos dispuséssemos a folhear os jornais do dia,
nas bancas próximas de nossas residências, dependendo dos objetivos da publicação (umas muito
mais, outras menos), veríamos a presença e a citação massivas do tema.
Na maior ferramenta de buscas da Internet, quando solicitado o verbete droga,
simplesmente, tem-se referência a aproximadamente 58 milhões e 800 mil sites
1
, tamanha
atenção e paixão que este assunto desperta. Para a expressão álcool a mesma ferramenta acusava
em torno de 31 milhões e 500 mil sites, o que não diminui os impactos, na sociedade, das
conseqüências de seu consumo abusivo. Drogas e bebidas alcoólicas (essas, muito mais)
representam um grave problema de saúde pública na atualidade.
Neste plano, muitas vezes equivocado e sensacionalista, as drogas e o álcool adquirem
vida e animação próprias. Sob esta ótica, ambos precedem as pessoas que deles fazem uso,
tornando-se equivocadamente o foco de políticas públicas até então ineficazes e um desafio às
práticas clínicas. Na verdade, quem confere movimento às substâncias que entorpecem são as
pessoas que delas fazem uso, que se acidentam no trânsito quando embriagadas, que as traficam
em um complexo mercado clandestino, que legislam sobre quais serão liberadas e quais serão
combatidas, bem como quem será preso ou não quando abordados em posse delas.
Pessoas! São as pessoas que este texto estuda. As drogas e o álcool, apesar dessa
impressão do contrário, são substâncias inertes e inanimadas. São as pessoas que lhes conferem
movimento; são também as pessoas que com elas constroem as referidas histórias de paixão e
execração. Postura congruente com a diretriz governamental mais importante para álcool e drogas
no Brasil, que diz:
A percepção distorcida da realidade do uso de álcool e outras drogas promove a
disseminação de uma cultura de combate a substâncias que são inertes por natureza,
fazendo que o indivíduo e o seu meio de convívio fiquem aparentemente relegados a um
plano menos importante. Isto por vezes é confirmado pela multiplicidade de propostas e
abordagens preventivas/terapêuticas consideravelmente ineficazes, por vezes
reforçadoras da própria situação de uso abusivo e/ou dependência. (BRASIL, Ministério
da Saúde, 2004, p. 8).
1
www.google.com.br, acesso em 16 de maio de 2008.
14
O objetivo desta pesquisa é falar desses indivíduos, presentes não só nos textos da
introdução: usuários de vários os tipos, dos familiares que os acompanham, do policial, dos
políticos, do grupo de apoio que supostamente procuraram, ou de nós mesmos atravessados
como também somos por este fenômeno. Os fatores que vinculam cada um a essas diversas
substâncias, assim como o seu nível de envolvimento, se direto ou indireto, permearão a escrita
deste texto.
A vivência pessoal do fenômeno do álcool e das drogas, lícitas ou não, é complexa. Junto
dela, sofrem dos indivíduos mais próximos aos convivas mais distantes. Em meio à desordem
causada pela ingestão regular e massiva dessas substâncias, não o funcionamento da
consciência se altera: são comprometidas as finanças, o corpo, a integridade, a moral, as
expectativas para todas as idades.
Tanto no nível micro – em casa ou no trabalho, lidando com privações, mentiras e
constrangimentos quanto no macro, no nível das cidades, arcam todos com o rateio estatal dos
custos indiretos da irresponsabilidade (de um desconhecido motorista bêbado, por exemplo).
Os fatos observados, ao longo dos sete anos de trabalho com dependentes químicos e seus
familiares, compõem os pilares dessa pesquisa. São eles que nos aproximam de um discurso que
busca, no cerne dos relatos colhidos, os motivos que levaram indivíduos, envolvidos no consumo
abusivo de uma enorme gama de substâncias, a buscarem apoio em um grupo de ajuda mútua
específico.
Tentando encontrar como finalidade, uma “prática de si” e uma política para a sobriedade,
em meio a um ambiente agenciador de uma nova prática e de novo discurso, os entrevistados
dessa pesquisa refazem suas histórias em contato com o álcool e com as diversas drogas. Uma
prática de si e uma fala nova que os distanciariam dos efeitos perniciosos do consumo e do
tráfico, e os aproximariam de um domínio de si e dos apetites (por mais drogas, por mais álcool,
por manutenção do consumo) que poderiam arrebatá-los (FOUCAULT, 2004).
Compondo para todos dependentes, familiares, coordenador de grupos e pesquisador
nestes mesmos grupos – um sempre novo desafio.
15
1.2 Antevendo um percurso.
O objetivo central desse texto se coloca na investigação das práticas de um grupo de ajuda
mútua no apoio a dependentes de álcool e drogas. A entrada destes no grupo, o que motivou tal
entrada, suas posturas de engajamento, a percepção que têm do grupo quando da primeira
procura, a percepção que constroem de si quando de sua permanência, a sobriedade alcançada
ponto-a-ponto, quando de mais duradoura estada. As vivências em contato com as substâncias de
abuso (prazerosas e problemáticas), bem como aquelas que exigem dos indivíduos reflexão e
abstinência (cobranças diversas, a saúde debilitada, o sentido de vida perdido), possuem suas
particularidades. O estabelecimento de uma possível cartografia destas particularidades compõe a
motivação e a pertinência dessa pesquisa.
Em um primeiro momento, considerações metodológicas para construção desta
cartografia serão feitas. Falar-se-á da escalada do problema do álcool e das drogas na vida dos
indivíduos que freqüentam o grupo pesquisado e a essencial necessidade de reconhecer que se
passa (ou muito tempo se passou) dos limites, quanto ao hábito de beber e consumir
entorpecentes. Estabelecer-se-ão critérios para definição de dependência química, importantes
para se delimitar o grupo amostral e o que se entende por abuso de álcool e de substâncias
psicotrópicas diversas seus efeitos no organismo, na convivência com os demais e no aparelho
psíquico. Falar-se-á também de nuanças próprias da investigação que compôs esse texto:
elementos discursivos e não-discursivos; elementos do grupo que remetem a uma dimensão mais
ampla da realidade que o circunscreve; fragmentos do grupo que refletem sua natureza peculiar; o
emaranhamento do pesquisador (também coordenador das reuniões) do grupo de pesquisa, entre
outras.
A exploração do campo de trabalho se dará quando da congruência, entre a forma de se
ver e de se pensar o grupo de ajuda mútua pesquisado, e a forma que aqui se escolheu para
descrevê-lo. Nessa seção, os processos de subjetivação que permeiam os grupos serão
considerados aplicações de natureza teórica, para entendimento da prática do grupo de apoio
pesquisado. Sua história, a construção do problema de pesquisa, a prática de oito anos no grupo,
sua disposição atualmente, a descrição de sua dinâmica, da importância dos familiares no
16
processo e uma pertinente análise de sua dimensão religiosa (fé e política) serão delimitadas.
Descrito o grupo em si características que lhe são próprias se partirá para a descrição
dos grupos de ajuda mútua como um todo. Delimitar-se-á um tempo – de contexto, das drogas, do
álcool e dos desafios contemporâneos às práticas clínicas que corrobora seu surgimento, mas
que lhe impõe diversos impedimentos; os grupos de ajuda mútua como uma resposta possível aos
problemas da drogadição e do alcoolismo; a montagem de um percurso histórico e crítico que
localiza a origem das práticas de grupo; a influência de Alcoólicos Anônimos; os fatores
terapêuticos das práticas de grupo; bem como a análise da influência de estruturas disciplinares
do grupo que auxiliam, paradoxalmente, na liberação de linhas duras do hábito compulsivo e sem
sentido de se consumir álcool e drogas, para se assumir uma nova prática de si e de sobriedade,
ocupando um território existencial novo, a ser explorado.
Por fim, será feita uma análise de implicação das diretrizes políticas e do tema de pesquisa
no intuito de expor a forma com que se pensa e legisla o problema do álcool e das drogas e os
impactos na vida de seus usuários crônicos. Expor-se-á uma divisão das diversas substâncias
quanto aos seus efeitos; a posição do Estado frente sua produção, comércio e consumo; os efeitos
macrossociais, e os pormenorizados, da atual abordagem legal para o álcool e as drogas; a origem
e a eficácia deste modelo; assim como apontamentos das políticas públicas brasileiras
apropriadas, em grande parte, deste mesmo modelo – frente ao tema de pesquisa.
17
“Escrever é cartografar...
criação de territórios, estética da provisoriedade,
constituição de planos de existência, onde sujeito e objeto advêm.”
Regina Benevides de Barros, 1994.
18
2 CONSIDERAÇÕES METODOLÓGICAS: NOTAS PARA UMA CARTOGRAFIA
POSSÍVEL.
2.1 A escalada de um problema. Reconhecê-lo? Como?
“(...) é preciso rachar as palavras ou as frases
para delas extrair os enunciados.”
Gilles Deleuze, 1992.
Este trabalho tratará de um processo particular de reconhecimento. Sua tarefa será de
analisar um estado misto, um agenciamento (DELEUZE, 1992), conceito definido como um
“entre” coletivo, que convida a conexões, à mediação. Um agenciamento trabalha fluxos
semióticos, materiais e sociais, caracterizando-se por um permanente devir (GUATTARI, 1981).
Um agenciamento liberta o sujeito da individuação e o lança, por desterritorialização, a instâncias
coletivas.
Não se pretenderá remontar a pontos mesmos definir simplesmente os grupos, pedir
para que dependentes somente falem de seu contato com as substâncias de abuso –, “mas seguir e
desemaranhar as linhas: uma cartografia” (DELEUZE, 1992, p. 109); pegar-se-ão “as coisas onde
elas crescem, pelo meio: rachar as coisas, rachar as palavras.” (DELEUZE, 1992, p. 109).
Quais motivações levam indivíduos, envoltos com o problema das drogas, a procurarem
tal espaço (e tantos outros desta mesma ordem)? Por quais vivências passam essas pessoas, e seus
familiares, até que busquem ajuda nesse espaço? O trabalho ameaçado (quando não, perdido), o
convívio social prejudicado, o corpo debilitado pela longa administração de substâncias de abuso,
o envolvimento com a Lei (do Estado e a paralela, imposta pelo tráfico) são propulsores da
primeira procura por um grupo de ajuda mútua? Qual a implicação destes fatores no engajamento
dos usuários crônicos em seus matizes? Que configuração toma o grupo e a vida pessoal de seus
membros, com a tessitura de seu discurso? As respostas colhidas, junto aos sujeitos da pesquisa,
foram exploradas ao longo da construção do presente trabalho. Analisá-las compõe o maior
19
objetivo desse texto.
Em suas várias nuanças, na vida de um dependente, reconhecer-se que se usa
abusivamente álcool e drogas pode ser um impulso inicial para a entrada em uma nova prática. O
também novo discurso, componente dessa nova prática, se colocaria a discutir soluções para
usuários crônicos de bebidas alcoólicas e de entorpecentes.
Vê-se que esse processo é motivado por diversas ordens. Se caracteriza pelo momento em
que uma pessoa, após longo histórico de contato com álcool e substâncias psicotrópicas, é
convidada a adentrar um espaço que se propõe a discutir políticas (pessoais e coletivas) para o
enfrentamento de seu abuso. Espaço este encontrado na figura dos grupos de ajuda mútua
associações de pessoas, cujo envolvimento particular na vivência de um tema as impele a
buscarem soluções possíveis na partilha de relatos e histórias de vida em conjunto.
O grupo de ajuda mútua, que serve a esse texto de campo para uma observação
participante, é o Grupo de Apoio “Família Caná” de Contagem/MG, vinculado à Pastoral da
Saúde Nossa Senhora do Rosário, situada próxima ao centro deste importante município da
região metropolitana de Belo Horizonte. Fundado e, ainda hoje, coordenado por psicólogos
voluntários, acolhe dependentes químicos em recuperação e seus familiares, se propondo a tecer
um discurso de sobriedade.
Antes de chegarem ao campo de exploração da pesquisa, e ao específico setting grupal de
que ela trata, usuários crônicos e seus familiares percorrem um caminho determinado, em contato
com as diversas substâncias que alteram a consciência. O primeiro contato com o álcool e as
drogas, ilícitas ou não, se dá, em geral, na adolescência. O meio para este primeiro contato pode
ser um grupo de conhecidos, onde um dos indivíduos já é iniciado, salvo que este já não
demonstre (no corpo magro e no discurso estereotipado) as marcas do consumo abusivo. A
motivação se de forma diversa: para se ter maior aceitação neste mesmo grupo, por simples
curiosidade, na busca por um prazer inédito, na sedução de desafiar a norma e o proibido, no
intuito de se obter novas experiências de tempo e de consciência.
À escalada do consumo abusivo, e aos efeitos perniciosos do mesmo, leva-se tempo. Dar-
se conta de que se passa (ou já há muito tempo se passou) dos limites é movimento pessoal e
complexo, passível de investigação. Histórias produzidas neste estágio de envolvimento, limítrofe
da busca por um artifício que informações e esclarecimentos foram colhidas para a escrita e o
20
embasamento desse texto.
Tornar-se usuário crônico de álcool e drogas é estar, direta ou indiretamente, na mira do
aparato de vigilância do Estado tanto para os usuários de substâncias ilegais, quanto para
motoristas que abusam do álcool e pegam os volantes (segundo recente endurecimento das
políticas que coíbem tal combinação). Para os usuários de substâncias de comércio ilegal,
também o é, de alguma forma, estar na mira da justiça paralela, e seu sistema de cobrança cruel,
imposta pelo tráfico. Diariamente, o noticiário policial é abastecido de casos, onde o abuso de
drogas, ilícitas ou não, expõe indivíduos a situações passíveis de penalização e de
constrangimento apreensões de grandes carregamentos de entorpecentes, quadrilhas
desmanteladas, acidentes de trânsito fatais causados por condutores embriagados, entre outros.
Não se trata aqui de vitimizar o usuário de substâncias que alteram o funcionamento da
percepção e do sistema nervoso, nem mesmo expô-lo aos seus próprios gatilhos, às suas próprias
armadilhas. Também não se trata, como coloca Rodrigues (2004), de glorificar um
(...) um modo de produção de sujeitos nos quais a ordem se preserva, fazendo do
subversivo e do drogado
2
figuras emblemáticas da temida ameaça ao ‘corpo orgânico’
da nação. (RODRIGUES, 2004. p. 130)
No entanto, os débitos e as conseqüências do consumo abusivo, se não punidos
sumariamente, distanciam os indivíduos envolvidos com o álcool e com as drogas daquilo que se
considera uma norma o estudo, o trabalho honesto, uma posição social, a dedicação à família
(qualquer que seja seu modelo), entre outras características – e os aproximam da marginalidade.
Assim como a sociedade em geral (a parcela dos cidadãos que é de algum modo atendida
pelas instituições formais da sociedade) define o que é comportamento aceitável e
comportamento aberrante, os grupos de traficantes que se tornaram poderosos impõem à
comunidade o seu próprio código, definindo que forma de violência é permitida e quem
pode praticá-la. (LEEDS, 2002, p. 243)
Tornar-se usuário crônico de álcool e drogas é também ser alvo de um olhar que segrega e
não acolhe, que afasta entes queridos que com ele não compartilham o hábito compulsivo e
crônico de fazer uso de uma substância entorpecente. Muitas vezes, sem nem mesmo se dar conta
disso, o indivíduo se isola em sua atitude dissidente. Cada vez mais envolvidos e dependentes,
2
Grifos da autora (mantidos).
21
muitos usuários crônicos, que se mantêm neste status, retroalimentam sua motivação por um
constante novo consumo.
Ser usuário crônico de drogas é figurar nas saturadas estatísticas dos órgãos
reguladores. Um deles, o Escritório para Drogas e Crime da Organização das Nações Unidas
(2005), principal fonte para diretrizes políticas e ações práticas nos países membros, estima que
existam em torno de 200 milhões de usuários de drogas ilícitas em todo mundo. O mesmo órgão
coloca que 30% da população faz uso regular de derivados do tabaco.
Quanto ao álcool, o maior expoente, estima-se que mais da metade da população mundial
o utiliza com freqüência. Seu consumo em demasia acarreta problemas de saúde e segurança
públicas, eventos danosos ao convívio social e dispendiosos aos cofres públicos.
Neste montante, também se incluem os usuários de medicamentos que conduzem a algum
tipo de efeito psicoativo substâncias produzidas em massa pela indústria farmacêutica, com
aval das autoridades sanitárias, e (pseudo) controladas pelos receituários psiquiátricos.
A vivência das reações psicológicas e fisiológicas, provocadas no organismo, a partir da
ingestão de algumas dessas substâncias, constituirá algo a ser fundamentalmente buscado, para os
iniciados e expostos a determinado tempo de abuso. Mesmo em detrimento dos possíveis efeitos
negativos advindos do consumo prolongado complicações no campo afetivo, familiar, laboral,
financeiro e eventualmente criminal indivíduos constroem um repertório de busca por prazer e
desalentada frustração com as drogas.
2.2 Em tempo para definições.
“Se você não constituir uma superfície de inscrição,
o não-oculto permanecerá não-visível.”
Gilles Deleuze, 1992.
Desde o nascimento, todo ser humano se relaciona com objetos, substâncias, situações e
pessoas. Cada instância desta torna-se particular e, muitas delas, indispensáveis para seu bem-
22
estar, para o seu equilíbrio e para sua auto-estima. Não à-toa, os seres humanos tentam, ao longo
da vida, se cercar de indivíduos e cenários que lhe conferem prazer e sentido.
No entanto, para muitos, a dependência de alguns destes settings coloca em xeque a saúde
do corpo e do convívio próximos tanto da degradação física progressiva, quanto do
financiamento de instituições corrompidas. Ao contrário do sentido prezado pela maioria,
baseado em valores morais e sociais prescritos, hábitos insalubres – como o consumo em demasia
de determinadas substâncias – podem ser adquiridos.
Originalmente o conceito de cio estava vinculado em sua quase totalidade à
dependência química, ao álcool ou a drogas de vários tipos. Uma vez incorporada pela
medicina, a idéia foi definida como uma patologia física: o vício neste sentido refere-se a
um estado do organismo. (GIDDENS, 1993, p. 83).
Para a Organização Mundial de Saúde (1993), dependência química trata-se de uma gama
de fenômenos fisiológicos, comportamentais e cognitivos, nos quais “o uso de uma substância ou
uma classe de substância alcança prioridade muito maior para um determinado indivíduo que
outros comportamentos que antes tinham valor” (ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE,
1993, item F10). Ou seja, fala-se de dependência quando adquire-se,
um padrão de uso de substância psicoativa que causa dano à saúde. O dano pode ser
físico (como nos casos de hepatite decorrente de auto-administração de drogas
injetáveis) ou mental (p. ex., episódios de transtorno depressivo secundário a um grande
consumo de álcool). (ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE, 1993, item F10).
Fala-se de dependência física quando uma substância de abuso, introduzida no organismo
continuamente, muda de maneira intensa o seu funcionamento homeostático. Dosagens, cada vez
mais altas, levam a conseqüente maior resistência e às dificuldades em se reproduzir o mesmo
efeito entorpecente. A noção de dependência química física se vincula à noção de tolerância – um
processo de adaptação do organismo a determinada droga e, conseqüentemente, o progressivo
enfraquecimento de seus efeitos.
Também se constata a instalação da dependência, mediante a falta de administração ou
ingestão da substância de abuso. Abstinente recente, o dependente apresenta um conjunto de
sintomas físicos aparentes, denominados “síndrome de abstinência”, cujo exemplo proeminente é
o delirium tremens, em pacientes alcoólicos crônicos, privados da bebida. Tolerância e sintomas
23
de abstinência são motivadores de novo consumo, inclusive em maior dosagem.
Coordenador: Como era o seu padrão de consumo? O quanto você bebia nesta época?
Sandra
3
: Não tinha limite. Enquanto tinha bebida, eu bebia.
Coordenador: Você era resistente?
Sandra: Eu era, era resistente, mas tinha dia que eu bebia o dia inteiro, chegava o final da
noite e eu não dava conta. Chegava na segunda-feira, eu me lembro mais da segunda-
feira. Chegava o final de semana, eu bebia muito. Bebia durante a semana, mas bebia
pouco. No final de semana, eu bebia muito, quando chegava a segunda-feira eu não era
ninguém. Então, eu não queria isto para a minha vida. Eu escutei a minha família
falando, mas quem tinha que ter conseqüência disso era eu, quem passava mal era eu,
quem não conseguia comer era eu. (Sandra, 39 anos, dependente alcoólica).
4
O fragmento de depoimento acima salienta a escalada das substâncias de abuso, no corpo
do indivíduo que as administra, de forma contínua e em quantidades cada vez maiores. Adquirida
gradativa resistência ao entorpecente, e as duras conseqüências de sua ingestão, cargas mais
elevadas serão necessárias para se atingir a embriaguez, o torpor e a excitação. Ainda não se fala
do que motiva algumas pessoas, em meio a determinadas situações sociais ou mesmo eventuais
alterações de humor, a tentarem se comportar com desenvoltura apenas quando sob efeito dos
elementos psicotrópicos.
A necessidade imperiosa de repetir o uso da droga, motivado pela sensação
experimentada de seus efeitos, se inscreve como o maior sintoma da dependência psicológica das
substâncias de abuso instância de difícil combate, quando da acolhida de um usuário crônico,
em um grupo de apoio para dependentes químicos.
Giddens (1993) alerta, quanto às definições de dependência, que
Tal conceito, no entanto, esconde o fato de que o vício está expresso no comportamento
compulsivo. Mesmo no caso da dependência química, o vício é medido de facto
5
em
termos das conseqüências do hábito para o controle de se abandonar aquele vício.
(GIDDENS, 1993, p. 83).
Sem a ingestão regular do entorpecente, o indivíduo não apresentará os sintomas físicos
da abstinência, como descritos: tremores, mal-estar, entre outros. No entanto, carecerá de
estímulo, de coragem para enfrentar situações de conflito, sofrerá psicologicamente, relatará
3
Os nomes aqui apresentados são fictícios, preservando a identidade dos entrevistados.
4
Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada no consultório particular do pesquisador, no centro de
Contagem/MG, em 27/02/2008.
5
Grifo do autor.
24
sensação de desamparo, insegurança, ansiedade, angústia, dores de origem psicossomática e
desânimo.
A dinâmica psicofarmacológica de cada substância psicotrópica, legal ou ilegal, bem
como as reações do organismo, dizem da propensão à instalação de cada tipo de dependência, ou
as duas (física e psicológica), simultaneamente.
Não se resumindo à inserção estatística ou da definição dos órgãos de saúde, o processo
de tornar-se usuário crônico de drogas adquire cada vez mais complexidade na atualidade.
Avança-se na ingestão de cargas ainda maiores, no experimentar de outros tipos de substâncias.
Neste avanço, com a ingestão cada vez mais freqüente, expõe-se aos diversos agenciamentos
implicados na compra e na fuga do aparato de vigilância do Estado, aumentando grandemente as
chances de ser apreendido pelo mesmo.
Estratégias são inventadas para ludibriar familiares e outros indivíduos próximos, para se
ter mais consumo, para se eliminar situações de convívio social (anteriormente freqüentadas)
onde o entorpecente não estará tão facilmente disponível. Paradoxalmente, na busca por
sensações satisfatórias, de intenso prazer, usuários crônicos de drogas mentem, se endividam, se
corrompem. Refém do prazer, do torpor e da excitação, dados por fim unicamente pelo
entorpecente, com a fuga de realidade e pela restrição de contatos sociais de sobriedade, os
problemas pessoais e as cobranças de diversas ordens se agravarão e se acumularão. Viver e
manter o consumo será uma constante vivência de risco, um desafio.
Sandra: Eu tava perdendo a coisa que para mim é mais importante hoje, que é a minha
família. Eu já tinha perdido o meu pai. Eu estava na luta para melhorar. Ele até achou
que eu estava na droga, e eu não estava. E eu já tinha optado por buscar uma terapia.
Meu trabalho inclusive já estava prejudicado. Por exemplo, segunda-feira, eu não
trabalhava legal. Aí, eu fiquei sabendo que a reunião era aqui na São Gonçalo. Fui lá,
não era mais. Aí eu comecei a freqüentar o Grupo no Rosário.
Coordenador: O que estava acontecendo na época, para que o pessoal dissesse que não
estava agüentando mais, e dissesse para você procurar ajuda?
Sandra: Eu bebia muito, ficava chata. Corria risco, porque eu pegava o carro e saía.
Tinha dias que eu pegava o carro e não lembrava como eu chegava em casa. Graças a
Deus, nada aconteceu por causa do carro e do álcool.
Coordenador: Pequenas batidas já aconteceram?
Sandra: Pequenas já. Aliás, teve uma que eu estava em Sabará, peguei o carro da Rosa
(irmã, também freqüentadora do Grupo de familiares), peguei o carro emprestado, bati
ele voltando de Sabará. Eu bati no túnel, então assim, eu perdia a responsabilidade. Eu
bebia e não sabia das coisas. Cheguei até a levar pessoas para a minha casa que não
tinham nada a ver. (Sandra, 39 anos, dependente alcoólica).
6
6
Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada no consultório particular do pesquisador, no centro de
Contagem/MG, em 27/02/2008.
25
Caminha-se pela, então, pelo túnel fechado da alteração de consciência. A viagem começa
com velocidade branda, em companhia de alguns, mas com o tempo e a prática, expõe o
indivíduo a diversas intempéries, complicações e percalços.
2.3 Ao leitor: um convite, uma escada e uma entrada.
“Jamais interprete, experimente...”
Gilles Deleuze, 1992,
Aos poucos, o visual da estrada anteriormente descrita não encantará mais. Algumas
vezes é estranho se dar conta do cansaço, do desgaste e do dispêndio de recursos e, mesmo assim,
não parar. Reconhece-se que algo não vai bem, quando da falta da substância entorpecente e de
todas as outras faltas inerentes. Já não mais é possível, pelos retrovisores, ver o local de trabalho,
a família saudosa à espera em casa. Logo adiante, a neblina de e fumaça não permitirá aos
olhos enxergarem os sonhos e o destino, até então muito próximos. Uma promoção no trabalho, a
casa própria, a infância dos filhos, a confiança dos pais, do cônjuge... Vários são os obstáculos
criados, mas muitos insistem em escalar trilhas de mais e novas formas de consumo. Esta subida
é a descida ao fundo do poço.
Expostos às dificuldades da viagem, e na solidão de um caminho tortuoso, equipes de
busca e resgate podem ser colocadas a trabalho. Uns percebem que devem parar ou reduzir a
freqüência de uso, alguns ainda resistem.
Nesse instante, uns primeiros convites são feitos para que se visitem lugares que o
próximos do cenário deste estudo – grupos de ajuda mútua para dependentes químicos e para seus
familiares.
Coordenador: Naquele dia, da salinha (onde o entrevistado foi colocado, quando
chegou embriagado no trabalho), você achou que ia ser mandado embora?
Lucas: Eu não pensei não.
26
Coordenador: Você tava “ruim” o bastante para nem pensar nisso?
Lucas: Eu nem pensava. A Carol (esposa e colega de trabalho do entrevistado, nome
fictício) mesmo falava, “Lucas, você vai ser mandado embora! Você vai jogar seu tempo
de serviço todo fora...”. Eu acho que se eles não gostassem tanto do meu serviço, eles
tinham me mandado embora. Foi tanto que eu cheguei pra eles e falei que eu precisava
de uma hora. Aí, eles falaram que uma vez por semana eles podiam arrumar pra mim.
Até que foi um dia que me falaram que não tinha jeito de me liberar mais, foi onde que
eu voltei a faltar um pouco mais do Grupo.
Coordenador: Naquela primeira vez, o cara técnico de segurança. Ele conhecia o
Grupo, ou você que conhecia?
Lucas: Foi a Carol. A Carol que conhecia.
Coordenador: Aí, quando o cara, o técnico de segurança falou que iria com você, como
funcionou?
Lucas: Ele falou, “você topa ir?”, eu falei “claro, eu to querendo um apoio. Eu quero
parar. falei, não vou beber mais. Mas eu tenho que ter um apoio para eu segurar a
onda.”.
Coordenador: Ele se prontificou a ir com você?
Lucas: “Eu vou te levar lá!” Ele pegou o carro da firma e me levou, isso no primeiro dia.
Chegou o outro dia, e eu já tinha pedido um horário na firma que eu podia ir.
Coordenador: O que significou pra você, ele ter pego o carro da firma, ta junto contigo
e ter ido lá te levar, cara?
Lucas: Isso pra mim foi uma ajuda, não foi? Ele estava me ajudando, um apoio que
eles me deram... Aí, que eu tinha que fazer, eu tinha que valorizar isso. Para vover, eu
parei de beber, graças a essa força. A própria firma mudou o horário pra mim. (Lucas, 42
anos, dependente alcoólico).
7
São postas à frente do usuário uma decisão, uma escada e a entrada para um espaço. As
salas onde funciona o grupo de ajuda mútua “Família Caná”, que compõe o campo de exploração
desta pesquisa, são antecedidas pelo imenso salão paroquial da Igreja de Nossa Senhora do
Rosário, no subúrbio de Contagem/MG. Neste lugar, que leva às escadas das salas, também
acontecem atividades reflexivas pessoais, sobre o contato com os entorpecentes e o que se deu
deste, na vida dos membros participantes.
O grupo, que semanalmente é montado por pessoas que percorrem este espaço, detém
características específicas, a serem exploradas pelo texto deste trabalho. No grupo, há um
movimento, de pessoas e de palavras, que se inicia com o reconhecimento das implicações da
atitude dissidente de se consumir drogas abusivamente.
Observou-se na pesquisa, que a entrada neste espaço e o engajamento em seu discurso
podem abrir ao indivíduo um território para novas identificações. O usuário crônico de
entorpecentes, ali acolhido e engajado, pode assumir um novo conjunto de valores. Propósito que
lhe será oferecido por elementos que se constituirão de suma importância no grupo seu
7
Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada no consultório particular do pesquisador, no centro de
Contagem/MG, em 29/02/2008.
27
discurso, sua fala, sua linguagem não-dita, suas diretrizes, seu ensinamento, suas muitas arestas,
suas falhas e todo o seu encantamento.
Os elementos acima descritos constituem o tema desta pesquisa. No subir das escadas,
que levam às salas onde ocorrem as reuniões do Grupo de Apoio “Família Caná” de
Contagem/MG, está toda a matéria bruta deste texto. Escadas que são caras aos sujeitos da
pesquisa representada nesta cartografia.
O que pensam familiares e dependentes, quando decidem subir cada um de seus degraus?
O movimento de atitude na busca pela sobriedade, pela procura ao Grupo e à possibilidade de
nele engajar-se, possui seus vários determinantes. Na descrição possível destes determinantes
estão elementos que desencadeiam identificações na participação de usuários crônicos e no
discurso produzido por estes, no Grupo de Apoio pesquisado. A implicação de todas estas
instâncias, seus desafios e seus benefícios, na vida dos membros participantes, comporão o
material a ser discorrido nesta dissertação.
Assentados em círculo, em salas amplas, sobreviventes da longa viagem de exploração da
consciência, e os membros de suas várias frentes de resgate, discutem sobre substâncias de abuso
que alteram o pensamento. As pessoas, os sons e o silêncio produzidos nesta sala são tecelões de
histórias, e modificarão potencialmente as vidas dos indivíduos neste processo imbricados.
Este texto é um relato a partir deste espaço.
2.4 Considerações metodológicas.
“Encontrei hoje em ruas, separadamente, dois amigos meus
que se haviam zangado um com o outro. Cada um me
contou uma narrativa de por que haviam se zangado.
Cada um me disse a verdade. Cada um me contou as
suas razões. Ambos tinham razão. Ambos tinham toda
28
a razão. Não era que um via uma coisa e o outro outra,
ou que um via um lado das coisas e o outro um lado
diferente. Não: cada um via as coisas exatamente
como se haviam passado, cada um as via com um
critério idêntico ao do outro, mas cada um via
uma coisa diferente, e cada um, portanto, tinha razão.
Fiquei confuso desta dupla existência da verdade.”
Fernando Pessoa, 1999.
A prática clínica que fundamenta esta pesquisa se deu nas dependências da Pastoral da
Saúde Nossa Senhora do Rosário em Contagem/MG, primeiramente na Igreja Matriz de São
Gonçalo, no centro do município, e atualmente na Igreja Nossa Senhora do Rosário, no bairro
Alvorada. Nos sete anos de trabalho comunitário, completados em 2008, deu-se o devir do
estudante de graduação de Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais, em pesquisador
no programa de mestrado em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
Nas salas desta Pastoral, também aconteceu o que, para Vasconcelos (2003), se configura
como a “análise da implicação do autor com seu tema e com seu texto” de pesquisa
(VASCONCELOS, 2003. p.12): a relação do coordenador do grupo de dependentes químicos,
com o pesquisador no grupo que é palco para as reflexões e observações da pesquisa. Dessa
relação, elementos consideráveis emergiriam, uma vez que são vicissitudes do emaranhamento do
pesquisador com seu objeto de pesquisa pontos cegos, idealização, dificuldades na análise
crítica, entre outros.
O que se interessa investigar, com a pesquisa que este texto representa, são os fatores que
conduzem usuários crônicos de drogas a buscarem apoio em um grupo de ajuda mútua. Estes
fatores terão influência no engajamento dos dependentes entrevistados, pessoas que se encontram
um tempo determinado em sobriedade, com participação freqüente nas reuniões do grupo
pesquisado.
Falar-se-á de pessoas, da relação delas consigo próprias, com os outros membros e
dispositivos do grupo. Documentos, atas de reuniões, publicações e apostilas produzidas pela
Associação a qual o grupo pertence, fragmentos transcritos de reuniões gravadas em áudio,
conversas com fundadores e figuras importantes na montagem do grupo compuseram o material
29
empírico dessa pesquisa.
No entanto, a dimensão mais explorada foi a reflexão que selecionados usuários crônicos
de álcool e drogas, ingressos no grupo, constroem de si e da situação em que vivem. Em
separado, três dependentes alcoólicos e dois dependentes de drogas ilícitas foram entrevistados.
Eram eles quatro homens e uma mulher, todos membros freqüentes do Grupo de Apoio Família
Caná de Contagem/MG durante o ano anterior ao de início da pesquisa. Como o grupo recebe
dependentes de diversos tipos de substâncias, não observando separar (por exemplo) alcoolistas
de fumantes ou de drogaditos, optou-se pela montagem de um grupo amostral congruente com
essa realidade das reuniões.
Na leitura deste texto, encontrar-se-ão depoimentos provenientes de reuniões transcritas
do Grupo, falas que lhe servirão na composição de seu cenário. Colhidos nos últimos quatro anos,
reforçam a pertinência do tema de pesquisa, bem como tentam expor suas nuanças e
particularidades. O discurso dos familiares dos dependentes no Grupo, que muito deles sabem,
mas que não seriam entrevistados para a pesquisa em separado, é exposto justamente nestes
fragmentos de reuniões pontos que compõem direta ou tangencialmente as histórias partilhadas
nas entrevistas.
A fim de abandonar o consumo danoso de álcool e drogas, eventos e identificações devem
se arranjar de forma tal, que uma nova perspectiva de si e de sua condição, possibilitem ao
usuário crônico de drogas romper determinadas resistências. O reconhecimento do hábito danoso,
das complicações e restrições advindas do consumo abusivo, é um dos primeiros obstáculos a
serem superados.
A partir da primeira entrada no grupo de ajuda mútua, da busca por engajar-se em seu
discurso, das críticas que o Grupo desperta, tenta-se encontrar novo sentido e singularidade para a
vida. Movimentos que possuem características próprias.
2.4.1 Afinal, onde se quer chegar.
Na tentativa de se delinear alguns destes movimentos, assim podem ser descritos os
30
objetivos deste estudo:
1) Avaliar a percepção que os participantes do grupo de apoio pesquisado constroem de si
e da situação em que vivem, a partir da exposição a pessoas desconhecidas, às linhas duras que
compõem o discurso do grupo e às políticas em busca da sobriedade, nele sempre propostas.
2) Investigar a introdução dos dispositivos grupais um novo discurso, novas
identificações, políticas para busca e manutenção da sobriedade, regras disciplinares, a dimensão
religiosa – e o impacto destes nos processos de subjetivação.
3) Analisar o processo de procura e engajamento por usuários crônicos de drogas em um
grupo de ajuda mútua, identificando seus fatores determinantes. Analisar, qual a natureza dos
eventos que desencadeiam a primeira busca por um grupo desta ordem indicação de familiares,
agentes de saúde ou de polícia, a degradação física resultante do uso abusivo e continuado de
drogas, situações conflitantes no trabalho e na família, transgressão às leis, a medida subjetiva da
vontade de ser ajudado, entre outros – e suas influências na continuidade do processo de busca da
abstinência citado.
4) Investigar, não a partir da fala dos membros pesquisados, mas também dos registros
formais e documentais do grupo
8
, posturas associadas a este engajamento fatores como
assiduidade e freqüência, coesão e propensão a recaídas –, se e quanto estes auxiliam no
complexo processo de se manter abstêmio.
Para redizer o problema, pretendeu-se penetrar no relato dos sujeitos pesquisados e
partilhar deles. Da síntese, do embasamento teórico, à escrita deste texto, se objetivou obter
esclarecimentos sobre o reconhecimento do consumo abusivo, sobre o aprendizado e a aquisição
de uma nova rotina de vida (novas práticas de si) que preza pontual e diariamente a sobriedade
instâncias peculiares e características do grupo amostral pesquisado.
2.5 O emaranhamento, a organização, uma pergunta mais enxuta: lançando as primeiras
amarras para entrada no campo da pesquisa.
8
Listas de presença, atas e gravações transcritas de reuniões.
31
Clinicar, no início do trabalho no Grupo de Apoio “Família Caná” em Contagem/MG,
significava estar perto de um potencial objeto de pesquisa. A proximidade com os membros do
Grupo e a confiança mútua, que entre nós se estabelecia, faziam engrandecer o projeto. Ao passo
que o trabalho se solidificava, surgiam também várias encruzilhadas práticas e teóricas.
Pesquisar no Grupo de Apoio que se coordenava, antes mesmo do embrião dessa escrita,
tentando encontrar-lhe direções, foi estar mais perto desse potencial objeto. Embora de forma
abrangente e equivocada, pretendia-se englobar todos os pontos de conflito do Grupo em um
único trabalho científico seus matizes, questionamentos, relatos, sucessos e fracassos. Para
Turato (2003), “partir megalomaniacamente a querer contemplar o maior número possível de
assuntos abordados no discurso de entrevistados” (TURATO, 2003, p. 445) constitui uma
advertência para pesquisadores frente a um objeto que os impulsiona e fascina.
Aprofundava-me nos conceitos sobre abordagem grupal da dependência e nas notícias da
mídia de massa sobre o assunto. Debrucei-me, por diversas vezes, sobre os relatórios e as
anotações que fazia, sobre as fitas que gravava e transcrevia; compartilhava as histórias que os
participantes traziam sobre as diversas drogas que esses consumiam. Alegrava-me quando um
emprego era mantido ou resgatado; quando laços matrimoniais frágeis se fortaleciam; quando me
convidavam para o batizado de um filho. Surgiam questões quando via que, para muitos recém-
chegados, aquele discurso não funcionava, entediava, entristecia, aborrecia, criticava, segregava,
disciplinava em demasia; quando muitos detestavam estar ali; ou quando outros muitos, mesmo
produtores de belas falas nas reuniões (algumas delas aqui transcritas), viam-se novamente em
recaída, em intensa retomada de consumo. Era preciso produzir algo com tão valioso material,
mas cuja produção se adequaria ao formato que se espera de uma escrita científica.
No entanto, como não perder a dinâmica e complexidade, que se observava do objeto, no
referido campo de pesquisa?
Segundo nos alerta Alvito (2002),
uma armadilha na famosa frase de Clifford Geertz: ‘os antropólogos não estudam as
aldeias (...), eles estudam nas aldeias’. Como costuma ocorrer com sentenças
exaustivamente citadas, acaba-se por perder de vista, o contexto em que foram
pronunciadas pela primeira vez. (ALVITO, 2002, p. 181).
A produção desse texto se deu ao longo de sete anos de intenso trabalho e observação
32
participante com e no ínterim de um grupo de ajuda mútua, que se dispunha a acolher alcoolistas,
dependentes e familiares de dependentes químicos e alcoolistas. Nesse, foram captadas falas no
momento em que eram produzidas no Grupo. Impressões foram construídas dessas produções,
tanto pelo pesquisador que as colhia, quanto pelo coordenador de grupos que no grupo fazia sua
pesquisa. O contexto, na medida em que era explorado, cada vez mais se vinculava a um
processo, e não um objeto a ser simplesmente representado (KASTRUP, 2007).
A atenção do pesquisador flutuou também pela atenção do coordenador de grupos que,
ainda hoje, ouve e partilha dos relatos dos entrevistados, investigando-os e estando com eles
particularmente emaranhado.
Neste emaranhamento com o campo empírico também se reconhece a produção de
embaraços. Neles se incluíram todos os desafios do fazer essa pesquisa, em meio a uma prática
clínica (de se estar perto), que pudesse produzir um texto científico com fidedignidade e
relevância, mas que não perdesse a peculiaridade do objeto que se descrevia. Igualmente
desafiador foi identificar o estranhamento frente a algo que, por muito tempo, se fazia.
Quando da entrada no campo de pesquisa, o existia um projeto de pesquisa pré-
formulado. Havia, sim, questionamentos que impulsionavam uma escrita e muito, muito trabalho
a ser feito. Realizava-se, então, uma observação participante (BECKER, 1999, p.118), onde o
Grupo era pensado como um estudo de caso.
O estudo de caso geralmente tem um propósito duplo. Por um lado, tenta chegar a uma
compreensão abrangente do grupo em estudo: quem são seus membros? Quais são suas
modalidades de atividade e interação recorrentes e estáveis? Como elas se relacionam
umas com as outras e como o grupo está relacionado com o resto do mundo? Ao mesmo
tempo, o estudo de caso também tenta desenvolver declarações teóricas mais gerais
sobre regularidades do processo e estrutura sociais. (BECKER, 1999, p. 118).
Como expõe o mesmo Becker (1999), “é utópico supor que se pode ver, descrever e
descobrir a relevância teórica de tudo(BECKER, 1999, p. 119) quando do estudo de caso em
uma organização ou comunidade. Foi no contato com as pessoas e seus dizeres sobre o tema da
pesquisa, que as balizas desta escrita foram surgindo. Na prática psi que se fazia, ao longo do
tempo e das reuniões no Grupo de Apoio pesquisado, se adquiria segurança para selecionar
pontos pertinentes de uma futura pesquisa, assim como propriedade para se questionar alguns de
seus pressupostos.
33
Uma vez inserido em um programa de pós-graduação e pesquisa, com o foco mais enxuto,
partia-se com um novo olhar para o campo de pesquisa. Mais centrado, era preciso colher os
elementos para a produção desta escrita. O método utilizado para então reconhecer, tatear e
coletar dados no campo de pesquisa se aproximava, como assim define Kastrup (2007), de
cartográfico.
A cartografia é um método formulado por G. Deleuze e F. Guattari (1995) que visa
acompanhar um processo, e não representar um objeto. Em linhas gerais, trata-se sempre
de investigar um processo de produção. (...) Não se busca estabelecer um caminho linear
para atingir um fim. A cartografia é sempre um método ad hoc. Todavia, sua construção
caso a caso não impede que se procure estabelecer algumas pistas que têm em vista
descrever, discutir e, sobretudo, coletivizar a experiência do cartógrafo. (KASTRUP,
2007, p.15).
Tinha-se “(...) uma atitude de concentração pelo problema no problema” (KASTRUP,
2007, p.18), o que não eliminava por completo a intermediação do saber anterior e das
inclinações pessoais” (KASTRUP, 2007, p.18), mas que fazia crescer o desejo de produção de
um texto que captasse o movimento grupal que se via, sem se eliminar sua dinâmica e
complexidade.
Nessa perspectiva,
A atitude investigativa do cartógrafo seria mais adequadamente formulada como um
“vamos ver o que está acontecendo”, pois o que está em jogo é acompanhar um
processo, e não representar um objeto. (KASTRUP, 2007, p.20).
Postura que se aliava à do observador participante, que se mantinha inserido na vida
daquela comunidade, e que, para Becker (1999),
(...) repara nos tipos de pessoas que interagem umas com as outras, o conteúdo e as
conseqüências da interação, e como ela é discutida e avaliada pelos participantes. Ele
(observador) tenta registrar este material tão completamente quanto possível por meio de
relatos detalhados de ações, mapas de localização de pessoas enquanto atuam e, é claro,
transcrições literais das conversações. (BECKER, 1999, p. 120).
Instrumentos de coleta de dados foram utilizados no intuito de que pudessem captar, nas
suas diversas dimensões, as impressões e arestas que ao objeto eram caras: as motivações que
levariam usuários crônicos de drogas (lícitas ou ilícitas) a um grupo de ajuda mútua específico; a
34
implicação desses motivos na assiduidade e engajamento de alguns membros do grupo
(selecionados para entrevistas em separado); o discurso produzido por estes acerca do grupo; bem
como o impacto das diretrizes e aprendizagem, produzidas no Família Caná” de Contagem/MG,
na vida e na sobriedade que buscavam.
2.6 A busca por antigos fragmentos e guias: delimitações arqueológicas da cartografia.
Os dados acerca do histórico do “Família Caná” de Contagem/MG foram colhidos
diretamente junto a duas figuras importantes de sua origem. Primeiramente, a psicóloga Nívia
Nicácio Stacanelli Barros
9
, fundadora da Pastoral da Saúde Nossa Senhora do Rosário, a qual o
Grupo se vincula, e também coordenadora das primeiras reuniões do grupo. Nas salas onde
ocorrem essas reuniões, foi realizada entrevista em profundidade, sem um questionário
formalizado, onde depoimento sobre a motivação e os modelos utilizados na formação do Grupo
foi colhido.
Orientado no que disserta Becker (1999),
O observador também verificará que é útil coletar documentos e estatísticas (minutas de
reuniões, relatórios anuais, recortes de jornal) gerados pela comunidade ou organização.
Eles podem proporcionar um histórico útil, documentação necessária das condições de
ação para um grupo (como um conjunto de regras codificadas) ou um registro
conveniente de eventos e análises (...). (BECKER, 1999, p. 122).
Documentos, atas de reuniões antigas, folhetos distribuídos quando do curso para
formação de voluntários, correspondências entre a psicóloga e antigos dependentes membros do
Grupo, fichas de cadastramento de indivíduos que buscavam ajuda na Pastoral referente a
problemas com álcool e drogas e que vieram a participar das primeiras reuniões, panfletos
utilizados para divulgação do Grupo, peças artesanais produzidas por dois membros do Grupo
quando estes se encontravam internados na Fazenda de Caná, diversas fotografias, entre outros
objetos, foram recebidos e analisados.
9
Nome verdadeiro, segundo consta termo de consentimento livre e esclarecido, assinado e autorizado pela
entrevistada.
35
Trazendo também sua porção de materiais relativos ao Grupo a camiseta que os
voluntários receberam durante o curso de formação, os panfletos e uma agenda bíblica –, na
mesma sala onde ocorrem as reuniões, foi recebida Dona Lourdes Ferreira
10
. Dona Lourdes,
como já exposto em sessões anteriores, é participante como voluntária do Grupo desde sua
primeira reunião. Junto dela, também durante uma entrevista em profundidade, informações
sobre a origem do Grupo de Apoio “Família Caná” de Contagem/MG foram coletadas. Ambas as
entrevistas foram gravadas em áudio, embora não integralmente transcritas. As fitas se encontram
com o pesquisador, bem como os registros documentais coletados junto às entrevistadas.
As informações relativas à Associação Família Caná, instituição de referência no
acolhimento a dependentes químicos e seus familiares em Belo Horizonte, foram coletadas em
três visitas à sede da Associação no bairro Padre Eustáquio, região oeste de Belo Horizonte/MG.
Respectivamente, três foram os entrevistados em profundidade, também sem um esquema gido
de perguntas escritas, previamente elaboradas, em forma de um questionário: Zilton Alves
Moreira, freqüentador dos primeiros grupos para dependentes e hoje coordenador de grupos para
familiares e de prevenção, bem como dos processos financeiros na Associação Família Caná;
Dona Maria da Conceição Toledo, atual vice-presidente da Associação; e Padre Oswaldo
Gonçalves, fundador e mentor da Família Caná no bairro Padre Eustáquio
11
. Nestas entrevistas,
anotações e panfletos foram colhidos.
A dinâmica das reuniões, do burburinho inicial à prática plena e à despedida, foi captada
diretamente pelo pesquisador no Grupo em que é coordenador, durante os últimos sete anos. Os
fragmentos de reuniões foram colhidos ao longo deste tempo em especial durante o ano de
2004 em fitas cassete de áudio, arquivadas pelo pesquisador. O conteúdo manifesto nessas
reuniões gravadas foi transcrito, tornando-se documentos de texto eletrônico, arquivados pelo
pesquisador ao longo do tempo, e que serviram inúmeras vezes como componentes desse texto.
Para todas as reuniões gravadas, todos os participantes eram comunicados e era-lhes pedido
consentimento. Um projeto de pesquisa já era incipiente nessa época – jovem embrião deste texto
e dele os participantes foram comunicados. O aparelho gravador de áudio ficava sobre uma
bancada, dentro da sala onde as reuniões acontecem, portanto não oculto, sendo manuseado de
forma que os participantes soubessem de sua existência. Em nenhuma dessas reuniões gravadas
10
Nome verdadeiro, segundo consta termo de consentimento livre e esclarecido, assinado e autorizado pela
entrevistada.
11
Nomes verdadeiros, autorizados pelos participantes da pesquisa.
36
houve rejeição por parte dos participantes quanto à presença do aparelho na sala, mesmo embora
esses ainda desconhecessem o que seria realmente feito. Neste texto, inclusive por essa última
razão, optou-se por ocultar o nome verdadeiro dos participantes, preservando-lhes a identidade.
As informações captadas nessas reuniões dizem da dinâmica do Grupo e não são uma descrição
pormenorizada, ou de juízo de valor, dos membros que ali estavam.
2.7 Uma dimensão particular: trabalhando fragmentos que refletem o Grupo.
Certos elementos conduziriam a uma montagem de mapas que fosse congruente com o
objeto de pesquisa. Esses foram organizados de forma tal, que o processo de produção do
discurso e de subjetividade no grupo fosse captado em muito de seu movimento e complexidade,
e não de todo engessado. O que se interessava investigar era dinâmico: os fatores que conduzem
usuários de drogas a buscarem auxílio em um grupo de ajuda mútua, a influência desses fatores
no engajamento no grupo e a percepção que constroem de si e da situação em que vivem. Falar-
se-ia, portanto, de pessoas envolvidas com substâncias psicotrópicas, da relação delas consigo
próprias, com os outros membros do grupo e alguns de seus dispositivos.
Na montagem desses mapas, levou-se em conta que,
O observador não se limita à observação apenas. Ele pode também entrevistar membros
do grupo, seja isoladamente ou em grupos. No primeiro caso, ele pode examinar as
origens sociais e as experiências anteriores de um participante, assim como suas opiniões
particulares sobre questões correntes. (BECKER, 1999, p. 122).
Para que fosse explorada, portanto, ainda mais profundamente a dimensão particular do
objeto de pesquisa, cinco pessoas do Grupo ‘Família Caná’ Contagem foram selecionadas.
Segundo Becker (1999), “a diferença entre a opinião particular e a comunicação pública pode
oferecer indicações importantes das normas do grupo.” (BECKER, 1999, p. 122).
Esses indivíduos constituiriam amostra capaz de refletir potencialmente os fenômenos a
serem estudados: boa dicção, conhecimento sobre o Grupo, proveniente de aproximadamente um
ano de participação, bem como sobriedade nos últimos oito meses, considerando os quatro
37
primeiros meses de inserção como os mais propensos a recaídas e falta de coesão. A escolha,
então, não se deu de forma aleatória.
2.7.1 Características da amostra.
Os efeitos negativos do abuso de drogas podem levar a vivências de extrema intensidade.
Estas são passíveis de captação a partir de sua descrição e de seu entendimento, junto a
dependentes químicos que se põem a escrever ou falar delas.
Vou até uma porta onde uma enfermeira me espera. Ao passar por ela, noto que tenta
não encostar em mim, e sou trazido do feliz embotamento de memórias paquidérmicas à
realidade de quem eu sou. Um alcoólatra, um viciado, um criminoso. Perdi os quatro
dentes da frente. Tenho um rasgo no rosto, fechado por 41 pontos. Meu nariz está
quebrado e meus olhos, roxos e inchados. Vim com um acompanhante porque sou
paciente de um Centro de Tratamento para Dependentes de Álcool e Drogas. Uso um
casaco emprestado porque não tenho um casaco. Trago duas velhas bolas de tênis porque
estou proibido de tomar anestesia e analgésicos. Sou um alcoólatra. Um viciado. Um
criminoso. É o que sou, e não censuro a enfermeira por não querer encostar em mim. Se
eu não fosse eu, não ia querer encostar em mim. (FREY, 2003, p. 67).
As pessoas entrevistadas eram muito mais do que isso. As histórias que traziam
convidavam ao toque, ao debruçar, à acolhida, ao entendimento.
O microcosmo grupal composto pelos cinco membros selecionados, se consistia de dois
usuários crônicos de drogas ilícitas e três usuários crônicos de bebidas alcoólicas. Essa divisão é
proporcional àquela encontrada atualmente no Grupo, onde os mesmos não são separados em
reuniões distintas de um lado usuários de álcool, tabaco e medicamentos, de outro
(marginalizados) os usuários de entorpecentes ilícitos. Dependentes de drogas ilícitas e
dependentes de substâncias liberadas ou controladas pelo governo são acolhidos no mesmo
espaço físico e de tempo, dentro do Grupo de Apoio “Família Caná”, em Contagem.
A disposição deste grupo, ao longo dos oito anos de sua história, determina a razão da
inclusão de usuários de álcool e drogas em um mesmo espaço fato que também se reflete na
construção dessa pesquisa e de seu texto. Durante seu tempo de existência, não mais do que dois
psicólogos se colocaram como voluntários coordenadores da única reunião semanal que acontece.
38
Não mais do que dez casos são acompanhados simultaneamente – em geral um dependente e dois
familiares acompanhantes. Cada psicólogo fica a cargo de orientar as discussões que acontecem
no grupo. Em uma sala se reúnem os dependentes e em outra seus familiares. A proposta do
grupo uma de suas mais latentes linhas duras é a abstinência pontual, observada diariamente,
com participação e acolhida semanal nas reuniões. Políticas para manutenção da sobriedade serão
expostas nessas reuniões, a serem desempenhadas e trabalhadas ao longo da semana, reforçando a
ausência do contato com a substância de abuso que levou o usuário à dependência. Importando os
diversos efeitos da substância no organismo apenas
12
, mas não seu status legal de
comercialização (se liberado ou combatido pelo aparato de vigilância do Estado), os usuários no
grupo iniciados serão convidados à completa interrupção de sua ingestão. No mesmo espaço,
portanto, partilhando de um mesmo objetivo a abstinência alcoolistas e drogaditos tecem e
revisam suas histórias. Refletindo essa realidade do grupo, alcoolismo e drogadição são
abordados nesse trabalho.
2.7.2 Critérios para seleção do grupo amostral.
É sabido que as diferentes características psicofarmacológicas das substâncias que alteram
a consciência e os sentidos, sendo legais ou ilícitas, provocam reações também diferenciadas no
organismo, e dizem da possibilidade e do grau de instalação dos sintomas físicos e psicológicos
da dependência. Apesar de se envolverem com as substâncias de forma diferenciada – artimanhas
são necessárias para se consumir em demasia uma ou outra classe de substâncias acredita-se
que ambos os grupos de usuários
13
partilham (e padecem) de muitos elementos comuns. Passíveis
de discussão em uma abordagem grupal e dinâmica, esses fatores não são abordados de forma
diferenciada (ou excludente ao grupo de drogaditos) nas reuniões do “Família Caná” de
Contagem.
Os caracteres que definem cada tipo de substância e, sobretudo, a forma com que o Estado
observa o seu movimento (de comércio e de consumo) não implica diferenças de acolhimento no
12
Álcool e drogas produzem efeitos diversos, que refletem na dinâmica de consumo dos indivíduos que compõem o
grupo – portanto precisam ser explicitados e trabalhados.
13
De álcool e de drogas ilícitas.
39
Grupo de Apoio Família Caná” de Contagem/MG. A política de controle e vigilância
governamental, aqui a ser exposta, define as diretrizes e práticas de abordagem das drogas e das
pessoas que com elas se envolvem. No entanto, essas pessoas são recebidas no Grupo em função
de seus relatos de prazer e sofrimento produzidos a partir do contato com ambas as variedades de
drogas (lícitas ou não), e não selecionadas pelo tipo de envolvimento.
Na seleção dos indivíduos que comporiam a amostra, critérios de definição foram
utilizados. Como exposto, dependência química trata-se de um conjunto de sintomas
fisiológicos, comportamentais e cognitivos, nos quais “o uso de uma substância ou uma classe de
substância alcança prioridade muito maior para um determinado indivíduo que outros
comportamentos que antes tinham valor” (ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE, 1993,
item F10). Adquirido um padrão de uso de substância psicoativa que causa dano à saúde, pode
ser este físico e/ou mental. (ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE, 1993). Tem-se
dependência física e psicológica, ou ambas simultaneamente.
Da época da primeira procura todos os cinco indivíduos selecionados se encaixavam nesse
perfil de usuários moderados e/ou pesados de drogas (utilizando drogas semanalmente e/ou
diariamente no mês em questão da primeira procura), com uso prejudicial (de padrão elevado do
consumo), danoso à saúde da mente e do corpo. Os usuários de substâncias ilegais faziam
consumo (sobretudo) de maconha, cocaína e crack; os usuários de substâncias lícitas consumiam
tabaco, cerveja e destilados.
Ambos os usuários de substâncias ilegais, até o momento em que procuraram o Grupo de
Apoio, residiam e eram naturais de bairros de classe baixa e média-baixa do município de
Contagem/MG. O mais jovem possui 25 anos, enquanto o mais velho 35. Com empregos
diferenciados, o mais novo trabalha com manutenção de micro-computadores, o mais velho é
empresário do ramo de móveis planejados. Todos os dois entrevistados buscaram ajuda nas
reuniões do grupo mencionado, durante o primeiro semestre de 2006. Os momentos para coleta
de dados, através de entrevistas em profundidade, ocorreram direta e individualmente,
primeiramente no consultório particular do pesquisador, com o dependente mais velho, e na sala
onde ocorrem as reuniões com o mais novo. Estas duas conversas foram gravadas em áudio,
transcritas para documento de texto eletrônico e se encontram sob os cuidados do pesquisador.
40
Os três usuários de substância liberada têm
14
no álcool interessante manter a
perspectiva do tempo presente, uma vez que a busca por abstinência é pontual e um processo
sempre a ser iniciado), o grande motivador da procura por ajuda no Grupo de Apoio “Família
Caná” de Contagem/MG. Foram eles dois homens, Lucas e Bento, 42 anos e 50 anos de idade,
respectivamente; bem como Sandra
15
, alcoolista em recuperação de 39 anos. Embora
consentissem a participação na pesquisa, sendo recebidos em separado para entrevistas em
profundidade no consultório particular do pesquisador, optou-se pela adoção de nomes fictícios
para evitar-lhes a exposição e preservar-lhes a identidade. Signatários de termo livre de
esclarecimento sobre a pesquisa, tiveram seus depoimentos colhidos em áudio, cujos dizeres
foram transcritos para documentos eletrônicos de texto, também sob os cuidados do pesquisador.
O produto da observação direta dos sujeitos da pesquisa no Grupo, a coleta dos dados
diretamente com esses sujeitos, por meio das entrevistas em profundidade, suas falas e seus
momentos de silêncio reflexivo suscitaram pontos relevantes, que visavam apreender e
aprofundar o ponto de vista dos entrevistados.
2.8 Informações colhidas junto ao grupo amostral.
2.8.1 Os membros usuários de substâncias ilícitas.
Os fatores que motivam usuários crônicos de álcool e drogas, a buscarem grupos de ajuda
mútua, para discussão dos problemas advindos de seu consumo abusivo, estiveram no cerne dessa
14
Grifo nosso.
41
pesquisa. Na observação participante, junto ao trabalho no grupo pesquisado, assumiu-se que os
problemas relativos ao consumo abusivo das diversas substâncias psicotrópicas cessam quando
de uma postura duradoura de abstinência. Esta, no grupo, poderá ser conseguida pontualmente,
quando do atravessamento de suas diretrizes – o emaranhamento com as linhas rígidas dos
ditames disciplinares do grupo, seus fatores terapêuticos, suas práticas – e na construção mediada
de seu discurso.
2.8.1.1 Edilberto.
Os membros pesquisados do grupo, pormenorizadamente, que faziam uso de drogas
ilícitas, vieram às suas respectivas primeiras reuniões motivados por razões (sobretudo)
familiares e de trabalho. No entanto, a chegada ao grupo se deu de forma bastante diversa.
O membro mais jovem voltava de nove meses de internação em uma fazenda de
recuperação para dependentes químicos e buscava, no grupo, um espaço para acolhimento,
proteção e discussão de políticas pessoais que auxiliassem na manutenção pontual de sua
sobriedade. A procura pela fazenda de recuperação, antes mesmo da tentativa de parada em um
grupo de ajuda mútua ou outra estratégia que não a internação –, se deu em função de grande
dificuldade em lidar com a proximidade de uma “boca-de-fumo” perto de sua casa e a falta de
sentido aparente, para um ambiente que lhe cobrava produtividade e sobriedade. O Grupo de
Apoio “Família Caná” de Contagem/MG era o grupo de ajuda mútua mais próximo de sua
residência e seria, durante a semana, o primeiro a ser procurado pelo jovem dependente em
recuperação. Ao longo da mesma, outros dois grupos seriam também freqüentados o “Família
Caná” do bairro Eldorado, coordenado pelos voluntários Paulo e Teles, às noites de quarta-feira;
bem como o “Família Caná” do Barreiro, nas noites de sábado, coordenado pelo psicólogo
Cláudio Martins.
Achava que quando eu saísse da Fazenda eu estaria forte, que todas as portas estariam
abertas para mim. Achava que eu ia arrumar um emprego rapidão, uma namorada, que ia
ganhar meu dinheiro e ajudar na minha casa... Aos poucos vi que o mundo aqui fora não
era nada disso não. Na verdade isso era tudo que eu sempre quis e nunca tinha
15
Nomes fictícios.
42
conseguido conquistar. , me afundava na droga. Hoje os grupos me fortalecem. Fico
mais forte quando eu venho. Arrumei um emprego melhor agora. (Edilberto, 25 anos,
membro do grupo de dependentes).
16
Desde o início do ano de 2008, Edilberto
17
vem reduzindo as participações no Família
Caná” de Contagem/MG, em função do trabalho, freqüentando as reuniões mensalmente, quando
tem oportunidade de sair do trabalho mais cedo. O grupo de ajuda mútua, em que se faz membro
mais assíduo, é o Família Caná” do Barreiro cujos encontros acontecem aos sábados. Desde
sua saída da Fazenda “Recanto de Caná”, na qual esteve internado por nove meses, buscando
ajuda nos diversos grupos que freqüenta, o jovem não relata episódios de recaída. Fissura a
gente tem sim, e muita. Parece que a vontade de usar não vai me deixar nunca!” (Edilberto, 25
anos, membro do grupo de dependentes)
18
. Edilberto é recebido com extremo carinho no
“Família Caná” de Contagem/MG por parte das mães que freqüentam o grupo de familiares.
Geralmente, quando chega, se iniciou a reunião, e ele está atrasado. No rosto dessas senhoras
vê-se acolhimento esperança instilada em virtude de um testemunho de sucesso. Essa posição
de acolhida, sem dúvida, lhe reforça para mais uma semana de pontual abstinência. No entanto,
também lhe coloca a necessidade de organizar-se, não somente em função de expectativas de si,
mas do olhar de aceitação e da expectativa dos outros.
No segundo semestre de 2008, inicia cursinho preparatório para o vestibular, e está
namorando.
2.8.1.2 Márcio.
Márcio
19
, 35 anos, usuário de cocaína e crack, apresentou motivações familiares e
concernentes ao trabalho, quando de seu primeiro ingresso. Sua esposa o acompanhava e dizia, o
tempo todo, das dificuldades na condução do casamento e dos negócios que dividiam. Seu padrão
de consumo era elevado noites inteiras em claro, sozinho, fazendo uso de entorpecentes em
16
Dados da entrevista. Pesquisa de campo realizada na Pastoral da Saúde Nossa Senhora do Rosário, no bairro
Alvorada em Contagem/MG, em 10/03/2008.
17
Nome fictício.
18
Dados da entrevista. Pesquisa de campo realizada na Pastoral da Saúde Nossa Senhora do Rosário, no bairro
Alvorada em Contagem/MG, em 10/03/2008.
43
quartos de motéis, ou nos acostamentos do Anel Rodoviário de Belo Horizonte/MG. No entanto,
a freqüência de consumo era episódica – nos três meses anteriores à primeira procura pelo grupo,
segundo ele, consumia drogas duas vezes por semana, em média.
Em um primeiro momento da reunião, onde ainda estão todos juntos (familiares e
dependentes) se mostrou envergonhado e muito tímido. Apenas a esposa falava. Dizia como
havia sabido do grupo, o quanto ela não agüentava mais, as noites em claro sozinha em casa
enquanto o marido sumia, o filho que gostaria de ter e a idade que já avançava... Um corolário de
problemas em função da dependência do marido, que não o orientava quanto ao verdadeiro
sentido de estar ali, e o diminuía. Em conversa informal com outra psicóloga voluntária, que
coordenava os trabalhos no grupo dos familiares naquele dia, ao ver o marido sair, a mulher se
calou, participando muito pouco da reunião do grupo de familiares.
Apenas quando da separação dependentes em uma sala, familiares em outra que
Márcio tomou a palavra com propriedade. Disse ser usuário de crack desde os 19 anos de idade,
nessa época, com padrão de consumo muito ligado ao entretenimento usava quando de uma
festa, um show, ou algum outro evento. No ano anterior à busca pelo grupo que o problema havia
se agravado. Vinha de um outro relacionamento, longo, em que teve três filhos. A ex-esposa
cobrava-lhe muito – tanto financeiramente quanto presencialmente – na vida das crianças, que ele
percebia estarem sendo negligenciadas. A atual esposa pouco interagia com os filhos, quando das
visitas quinzenais, o que lhe deixava bastante dividido. Aos poucos, não só as necessidades
visíveis das crianças (que, segundo ele, estavam sempre doentes, com roupas mal cuidadas, com
hábitos alimentares ruins), a ex-esposa demandava mais recursos judicialmente. Para não ver
ainda mais ameaçada as finanças, uma vez que a pensão que dava, ele acredita, era suficiente,
resolveu seguir o conselho do pai, passando toda documentação da micro-empresa de móveis que
tinha para este. A figura do pai, como haviam combinado, não se configurou como alguém que
assinava os cheques e os documentos da empresa, apenas. Sua presença no trabalho era cada vez
mais constante, iniciando relação de atrito com a atual esposa (que com Márcio trabalha),
exigindo dele inúmeras explicações sobre trâmites, até então, resolvidos exclusivamente por ele.
A vida, aos poucos, se resumia a cobranças – diretas: do pai, da esposa, da ex-esposa, dos
clientes; e veladas: dos filhos, cada vez mais distantes e visivelmente carentes de maior cuidado e
19
Nome fictício.
44
atenção. As noites em claro eram tentativas de busca por solidão e intenso prazer. Silêncio frente
aos discursos constantes de demanda, torpor e excitação frente à miséria que se vivia.
A busca pelo grupo se deu logo quando de uma noite onde usou uma carga de
entorpecente maior, chegando em casa ainda sob o efeito da droga. Em um quarto, deitado,
tentava se recuperar, enquanto a atual esposa chamava seus pais por telefone. Um momento que
poderia ser de oferta de ajuda, uma tentativa (mesmo que difícil) de resgate e entendimento, se
configurou como uma vivência de extrema vergonha e mais questionamentos.
No grupo, apenas quando separados, passou a se expor mais. Segundo relata, diminuiu a
carga e a freqüência do uso de drogas. No entanto, ainda relata episódios de recaída (bimestrais,
segundo ele). Desde o primeiro semestre de 2008, vem também reduzindo a freqüência às
reuniões, em virtude do curso preparatório para o vestibular iniciado neste mesmo ano. Os
negócios que (novamente) passaram ao seu controle, a revisão (em comum acordo com a ex-
esposa) da pensão alimentícia dos filhos, bem como o desejo de cursar Arquitetura na
universidade, foram vitórias, segundo ele, de sentido, em virtude da redução na carga de
entorpecentes consumida. A esposa, que continua a cobrar-lhe mais tempo, passa por tratamento
para engravidar, em respeitada clínica especializada, e não freqüenta mais as reuniões do Grupo.
Márcio recebe acompanhamento psicoterápico individual semanal.
2.8.2 Os membros usuários de álcool.
20
Dados do I Levantamento Nacional sobre Padrões de Consumo de Álcool na População
Brasileira, realizado pela Secretaria Nacional Anti-drogas (s/d [b]), corroboram o que se observa
no contexto do grupo de ajuda mútua pesquisado.
Segundo resultados deste levantamento, 52% da população brasileira faz uso de álcool (e,
outras drogas, eventualmente), com freqüência. Desses, 23% declararam que o fazem com algum
tipo de envolvimento em problemas. Para o levantamento, os problemas se agrupam em sociais,
legais, familiares, de trabalho e relativos à saúde do corpo, decorrentes do próprio hábito de beber
em abundância.
20
Todos apresentados com nomes fictícios.
45
Dados, do grupo de homens entrevistados, mostram que a porção de etilistas-problema é
maior do que aqueles que se declaram abstinentes! O grupo de mulheres acusou índice de 11% de
indivíduos que bebem com algum tipo de problema.
Gráfico 4: Beber e problemas.
Fonte: Secretaria Nacional Anti-drogas, s/d (b).
Para o mesmo I Levantamento (BRASIL, Secretaria Nacional Anti-drogas, s/d [b]),
dividiu-se a natureza dos problemas em cinco tipos de prevalência: social, trabalho, família,
físico e legal.
Gráfico 5: Prevalência de problemas.
Fonte: Secretaria Nacional Anti-drogas, s/d (b).
46
A pesquisa pormenorizada, com cinco membros do Grupo de Apoio “Família Caná”
Contagem/MG, entrevistados, individualmente e em profundidade, apontou que não fora apenas
um ponto isolado o motivador da primeira procura pelas reuniões. A problemática dos membros
pesquisados se dava em função de um complexo arranjo de problemas, transitando do aspecto
social ao aspecto físico
21
.
2.8.2.1 Bento.
A preocupação, que gerou a procura inicial de Bento, por um grupo de ajuda mútua (não o
pesquisado, mas o “Família Caná” do Bairro Eldorado), era com a saúde.
Coordenador: Senhor Bento, o que fez o senhor chegar até os grupos?
Bento: O que aconteceu foi o seguinte. Quando eu comecei a ter aquelas crises, o tal do
diabetes, da glicose, que eu apagava em qualquer lugar... Eu tava andando, achava que
tava normal e, de repente, a vista ficava escurecendo, escurecendo, eu ia bambeando...
Aí, quando começou a acontecer isso, minha família começou a preocupar. Então
começaram a falar de ajuda (...). (Senhor Bento, alcoolista, membro do grupo de
dependentes, 50 anos).
22
Nessa época o padrão de consumo havia se elevado.
Bento: O meu padrão de consumo aumentou porque eu não tinha mais a
responsabilidade com o trabalho. O que me segurava era o trabalho, porque eu não podia
chegar lá com uma ressaca brava, eu não podia beber durante o serviço. Então aquilo me
freava. (...) Aí, quando eu aposentei realmente, e saí da empresa, ah, eu me senti como se
eu tivesse um passarinho saído da gaiola. Eu achei que tinha cumprido o meu
compromisso (...). Eu pensava “amanhã, eu não tenho que levantar cedo, eu não tenho
compromisso com o emprego...”. E pronto, aí começou.
Coordenador: É possível medir, em litros, como o consumo era?
Bento: Cerveja era pouco, muito pouco. Cerveja eu bebia quando era solteiro, quando
tinha uma festa. (...) Eu gostava da cachaça, da bebida forte. Era a cachaça, gim, rum,
conhaque, mas mais a cachaça.
21
Nenhum usuário crônico de álcool e drogas, membro do grupo e entrevistado em separado, acusou problemas de
caráter legal. Apenas um – o eletricitário Lucas (nome fictício) – havia descumprido uma importante regra de seu
ambiente de trabalho, tendo ido, embriagado, operar máquinas para fabricação e testagem de medidores de energia
elétrica.
22
Dados da entrevista. Pesquisa de campo realizada nas dependências da Pastoral da Saúde Nossa Senhora do
Rosário, no consultório particular do pesquisador, em Contagem/MG, em 12/03/2008.
47
Coordenador: O senhor tinha uma idéia de quanto, antes de procurar o grupo do
Eldorado?
Bento: Olha, eu acho que dava mais de uma garrafa (600ml) de cachaça por dia. (...)
Fora a cerveja para ficar no boteco, fazendo a vista com uma cervejinha, mas olhava
para o dono do bar e pedia para por mais uma (sinaliza com as mãos). A cerveja era o
veículo (de aceitação) para eu estar ali, naquele local. (Senhor Bento, alcoolista, membro
do grupo de dependentes, 50 anos).
23
Mesmo com o reconhecimento dos claros sinais de dependência do álcool instalados,
elevava-se o padrão de consumo, utilizava-se o álcool como phármacon para as mazelas da vida
e para os desafios do dia-a-dia.
Coordenador: Senhor Bento, por que tanto (consumo)?
Bento: Não sei, o organismo pedia! (Resposta dada de prontidão, sem intervalo entre o
fim da pergunta).
Coordenador: De que forma o organismo pedia? O senhor sentia um tremor?
Bento: (Novamente, resposta muito rápida). Me dava vontade. Me dava vontade de
beber. Bebida me fazia falta. A bebida me fazia mais falta do que um almoço. Eu era
capaz de ficar um dia sem almoçar, mas não era capaz de ficar um dia sem beber.
Coordenador: Por que? A sensação era física? A sensação da bebida era ruim e o
senhor precisava beber para aliviar? Ou era para ter prazer?
Bento: Eram as duas coisas. (Pausa) Eram as duas coisas. (Pausa novamente) Eram as
duas coisas. (Olhar cabisbaixo) Eu levantava tremendo, então para estabilizar aquilo,
aquela tremedeira, era a primeira. Depois vinha um antes do almoço. eu dava uma
dormida. Me levantava, tomava um banho e ia direto pro boteco. Ali eu ficava até o
início da noite, e voltava para casa alcoolizado. Porque, eu digo, eu não gostava de ficar
embriagado. Eu ficava alcoolizado. Se tinha um rádio para arrumar (ele pega o aparelho,
que grava a entrevista), e eu tinha um parafuso para apertar, a chave de fenda não
entrava, porque eu tava tremendo... “vou ali tomar uma que eu melhoro”. Tinha alguma
coisa que me dava dificuldade, vou ali tomar uma que eu resolvo”. (Senhor Bento,
alcoolista, membro do grupo de dependentes, 50 anos).
24
As cobranças para que se tratasse partiam muito mais do seu núcleo familiar do que de si
próprio. Os filhos, a esposa e as irmãs (muito presentes) cercavam Bento de preocupações e
cuidados. No entanto, também apresentavam resistência quanto à procura pelo grupo de
familiares. Posturas de controle, repreensões e distância afetiva eram os comportamentos mais
impostos.
O membro entrevistado reconhecia certa necessidade de parada, mas observava
dificuldade.
23
Dados da entrevista. Pesquisa de campo realizada nas dependências da Pastoral da Saúde Nossa Senhora do
Rosário, no consultório particular do pesquisador, em Contagem/MG, em 12/03/2008.
24
Dados da entrevista. Pesquisa de campo realizada nas dependências da Pastoral da Saúde Nossa Senhora do
Rosário, no consultório particular do pesquisador, em Contagem/MG, em 12/03/2008.
48
Coordenador: Tinha consciência disso (da necessidade de parada)? Tinha consciência
de que o físico ficava debilitado, que o convívio em casa ficava debilitado?
Bento: Eu te digo que tinha (...). Porque eu tinha consciência que tava prejudicando, que
tava me fazendo mal, mas eu não procurava, não me esforçava tanto para parar e
continuava bebendo. A bebida era mais forte do que eu! Quando eu tava mais ou menos
sóbrio, ou brio, eu via a besteira que eu tava fazendo. Eu pensava que uma hora eu
podia apagar e não voltar mais. Mas a compulsão começava a caminhar de lado comigo,
e eu insistia no mal que tava me fazendo. (...) Quando eu saía, eu falava “vou tomar uma
só, eu não posso continuar bebendo desse jeito”. a compulsão era brava, era uma, era
duas, era três... (Longa pausa) Eu sabia, eu tinha certeza, no Grupo eles falavam, eu
via o depoimento de diversos, que perderam tudo, que isso, que aquilo... cada um
contava um caso mais trágico, e eu ouvindo aquilo, e entendendo aquilo, e não me
servia. Não me fazia, eu não me ligava com aquilo o. Eu achava que eu estava longe
daquilo, que eles tivessem exagerando talvez, um pouco. E não parava mesmo! (Senhor
Bento, alcoolista, membro do grupo de dependentes, 50 anos).
25
No grupo de apoio procurado (o “Família Caná” do Bairro Eldorado) e no atendimento
psicoterápico individual que recebia na Pastoral da Saúde Nossa Senhora do Rosário (instituição
anterior ao grupo de apoio pesquisado), Bento foi aconselhado a procurar uma fazenda de
recuperação. Resistente, em um primeiro momento, ingressou na “Fazenda de Caná” próximo das
festas de fim de ano, em 2000.
Bento: Eu não queria assumir o tratamento. Depois, eu mesmo, fui analisando,
analisando, vendo que cada vez mais eu ficava , complicando a minha vida, foi
quando eu cheguei naquela “gente, se eu não internar, eu o consigo parar.” Aquilo
ficou martelando na minha cabeça. Eu não dava conta de não passar na frente de um bar,
sem não entrar e não beber. Lá na fazenda, sem ter a bebida, eu vou desacostumar desse
hábito. Eu vou passar mal uns dias, fissura uns dias, mas no decorrer do tempo... e é
um lugar especializado para se cuidar dessas coisas... Eu lá, e cumprindo um processo,
com em Deus... Eu toda vida fui muito responsável com as coisas que eu pego. Eu
assumiria esse processo com toda a seriedade e responsabilidade possível. Eu ainda adiei
dar a notícia para a minha família mais uma semana. Depois chegou um ponto que eu
falei “gente, o tem outra alternativa, eu vou me internar mesmo!” As pessoas também
forçaram, que só o internamento iria me ajudar. (O discurso é exemplo do
comportamento relutante e ambíguo dessa época.) Então aquilo foi entrando na minha
cabeça, que essa seria a única condição de eu me abster do álcool. Aqui fora eu tinha
facilidade de encontrar a bebida, o que era um problema e que, lá na fazenda, longe da
bebida, eu ia me acostumar a viver (pausa) sóbrio. E assim eu fiz.
Coordenador: Como foi despedir de todos? Quando a porta da fazenda fechou, como foi
despedir de todos?
Bento: (Longa pausa) Muito triste, muito contrariado. Porque eu fui contrariado! Eu não
queria ir. Eu fui mesmo como último recurso.
Coordenador: O senhor chegou a pensar em desistir?
Bento: Não! (...) Foi chato, ter que despedir dos meus filhos. Foi chato! De cara, eu teria
que ficar seis meses sem vir aqui. Embora eu soubesse que a minha família poderia ir lá
me ver. Me despedi deles um pouco envergonhado. (Fala severa consigo próprio) Um
pai de família ter que se internar por conta de cachaça?! Eu me senti mais baixo que uma
25
Dados da entrevista. Pesquisa de campo realizada nas dependências da Pastoral da Saúde Nossa Senhora do
Rosário, no consultório particular do pesquisador, em Contagem/MG, em 12/03/2008.
49
Gillette deitada. (Gesticula com os dedos, testa franzida) Mas tinha que encarar (...). Até
nem sei todos que me levaram lá.
Coordenador: Qual o primeiro impacto da Fazenda, quando o senhor chegou lá?
Bento: A conversa foi pouca, todo mundo assim meio fechado. Todo mundo foi calado.
(...) lá os coordenadores falaram. Eles falaram como funcionava, a disciplina. nós
tomamos um cada noite. Ah, antes teve uma busca, minuciosa. Minuciosa. Na sacola,
na roupa da gente. eles encontravam drogas. Tinha gente lá que engolia até bucha de
maconha, para no outro dia retirar das fezes e usar. (Neste momento, Bento faz um rosto
de asco, não com o teor do que contava, mas pelo fato de estar no meio dessas
pessoas, e ter que ali conviver pelos próximos nove meses) Entravam com cocaína. Vou
te falar uma coisa... Fizemos uma oração e depois, nos quartos “vocês vão dormir aqui”.
Beliche. (Pausa, testa franzida, o que descrevia o envergonhava) Aí, pronto. Agora era
ficar firme, porque esse era o único recurso. (Senhor Bento, alcoolista, membro do grupo
de dependentes, 50 anos).
26
A chegada no grupo de ajuda mútua pesquisado se deu quando do processo de retorno da
internação de nove meses na fazenda. Em geral, programas de recuperação re-inserem seus
pacientes quando da proximidade do fim de um processo. Na Fazenda de Caná, onde Bento
estava, aos seis meses de internação, o paciente é convidado a ficar uma semana em casa e a
freqüentar reuniões em grupos de ajuda mútua reconhecidos pela Fazenda, para poder voltar. No
final do sétimo, oitavo e nono meses – antes da cerimônia de encerramento e despedida –
acontece o mesmo.
Durante os seis anos que seguiram sua entrada no “Família Caná” de Contagem/MG,
Bento manteve-se abstêmio. Construiu, em torno de si e das práticas do grupo, um discurso
maduro. Era reconhecido pelas pessoas do grupo. Antes do início das reuniões, quando chegava
mais cedo, Bento era sempre interpelado por outros membros, por familiares de alcoolistas. Sua
freqüência era plena, faltando a pouquíssimas reuniões no período como se constata na
observação participante do pesquisador, nas listas de presença do grupo e nos eventos vinculados
à Pastoral da Saúde, a qual pertence o Grupo. Em 2003, assim definia sua participação e seu
engajamento:
A convivência é uma necessidade do homem, não é. Eu encaro da seguinte forma, o
grupo é da maior importância para dar continuidade à minha sobriedade. Porque vindo
aqui (a entrevista foi feita na sala, onde a reunião acontece, todas as noites de segunda-
feira) é como se estivesse tomando um remédio. E como um doente crônico, toda
segunda-feira é dia de tomar o meu remedinho. E vim, sim, ter a satisfação de mostrar
para o grupo que o grupo funcionou para mim. É um sinal de gratidão ao que esta
“Família Caná” fez por mim, o que a doutora Nívia (coordenadora da Pastoral da Saúde
e fundadora do Grupo “Família Caná” em Contagem, além de terapeuta quando antes da
26
Dados da entrevista. Pesquisa de campo realizada nas dependências da Pastoral da Saúde Nossa Senhora do
Rosário, no consultório particular do pesquisador, em Contagem/MG, em 12/03/2008.
50
internação na Fazenda de tratamento) fez por mim. Eu me sinto feliz, satisfeito, por
demonstrar este sentimento. E venho para dar testemunho a outros que estão em cima
do muro, ‘se eu vou para a fazenda, se não vou’, e que o grupo funciona. Venho muito
por isto, e isto me reforça. E cada vez que venho aqui, que ouço estes casos, que elaboro
as coisas que aparecem no grupo para serem vividas, pessoas buscando ajuda, isto me
reforça. Porque muitas vezes pessoas que chegam aqui procurando ajuda, o problema era
semelhante, ou igual ao meu. Outros maiores que o meu, outros menores, então isto tudo
me reforça para não voltar. A dar continuidade, continuar valorizando a minha vida, a
minha auto-estima, gostar de mim mesmo - porque eu não gostava de mim, e hoje eu
gosto, penso duas vezes antes de fazer determinadas coisas. (Senhor Bento, alcoolista,
membro do grupo de dependentes, 50 anos).
27
Os anos de 2007 e 2008 (em sua primeira metade) foram marcados por episódios graves
de recaída. Em março de 2007, foi levado, pela família, a um ambulatório psiquiátrico. Estava
muito machucado, em virtude de uma queda alcoolizado, e não estava lúcido. Na instituição ficou
por um mês. Convidado com insistência por membros do grupo, voltou a freqüentar reuniões em
maio do mesmo ano dizia se sentir muito envergonhado. Em outubro do mesmo ano, outro
episódio de recaída, como nova internação em hospital psiquiátrico por vinte dias. Reluta
novamente em voltar ao grupo, mas aceita atendimento psicoterápico individual. O retorno ao
grupo se dá em dezembro de 2007, porém com faltas.
No início de 2008, com o retorno das atividades do “Família Caná” de Contagem/MG em
meados de janeiro, Bento se mostra mais freqüente, participante. Em abril de 2008, novo episódio
de recaída muito parecido com o primeiro do ano anterior –, apresentando escoriações em
função de queda embriagado, descontrole dos níveis de glicose no sangue, perda de lucidez com
desmaios. Relata intensa crise conjugal, falta de sentido de vida, vontade de largar o emprego que
conseguiu após a aposentadoria e comprar uma pequena porção de terra, para começar uma
fazenda.
No início do segundo semestre de 2008, ainda se mantinha afastado das reuniões, porém
com retorno ao atendimento psicoterápico individual, oferecido pela Pastoral.
2.8.2.2 Sandra.
27
Dados da entrevista. Pesquisa de campo realizada nas dependências da Pastoral da Saúde Nossa Senhora do
Rosário, no bairro Alvorada, em Contagem/MG, em 15/10/2003.
51
Sandra é a filha mais jovem de uma numerosa família de prósperos comerciantes do
município de Contagem/MG. Sua procura pelo grupo de ajuda mútua pesquisado se deu,
exclusivamente, segundo seu relato, por problemas familiares, em decorrência do consumo
abusivo de álcool. Nas festas e reuniões de família, em que o álcool se mostrava disponível,
Sandra abusava. Tinha o comportamento considerado bastante inconveniente, por familiares e
amigos, quando embriagada. Recebia convites de uma irmã, para que conhecesse o “Família
Caná” de Contagem/MG, lia a respeito de grupos de ajuda mútua na cidade, lembrava-se das
reuniões de Alcoólicos Anônimos que o pai freqüentava, mas não se iniciava em nenhum deles.
Quando de uma festa na casa da mãe, tendo consumido muito álcool, alterou bastante seu
comportamento, assumindo postura agressiva e vexatória, especialmente com relação a dois
sobrinhos que são donos do supermercado onde a alcoolista trabalha. A situação, repleta de
constrangimentos, fez com que alguns membros da família a repreendessem rispidamente. Entre
estes membros estava a irmã mais velha, que insistia no convite para ingresso no grupo. Na
segunda-feira seguinte, Sandra se prontificou.
Em sua primeira reunião, ficou em silêncio durante boa parte, tanto quando nos grupos
(de dependentes e familiares) unidos, quanto de sua separação. Retornou ao grupo na semana
seguinte, mais confiante. Interpelou outros membros em especial, senhor Bento e, via-se,
sentia mais à vontade quando dos grupos de familiares e dependentes reunidos. Com o tempo,
convidava outros membros de sua família para que visitassem o grupo sua mãe, mesmo idosa,
chegou a participar de duas reuniões o que, para Sandra, foi motivo de extrema recompensa e
orgulho. As irmãs (inclusive a que havia feito o convite) chegaram a participar, em algum
momento, de seu processo de engajamento no discurso do grupo. Sempre que alguém de sua
família estava presente, se mostrava mais participante. “Não gosto quando o grupo (dependentes
e familiares) separa”, dizia.
Em um primeiro momento, percebia-se que o grupo funcionava como uma prestação de
contas familiar. Havia muito receio, quanto ao que fazia e dizia, e à aceitação de si própria e de
seu grupo familiar. Perguntada sobre submissão quanto aos ditames do grupo, respondeu,
Coordenador: Como assumir a responsabilidade da sobriedade no Grupo? (...) É como
se fosse uma imposição, o Grupo te impõe a ficar sóbria?
Sandra: Não, acho que não é como imposição não. Porque se fosse imposição eu não
faria, e como é que a gente recai? Não é? Porque você escuta aquilo ali, e tem hora que
você não conta. Mas aí, você escutando todo dia, toda segunda-feira, você procura
52
pelo menos não fazer. Porque várias vezes que eu tive recaídas, eu não tive coragem de
te contar. Então, o que é? É a mentira, você está mentindo.
Coordenador: Como se você tivesse se protegendo daquele grupo que preza a
sobriedade?
Sandra: Se eu falar que eu recaí, com certeza vai gerar... ah, tem que ter um limite.
Coordenador: Aquele discurso vai te recriminar?
Sandra: Vai me recriminar, assim, na frente de outras pessoas.
Coordenador: Como você acha que isso vai acontecer?
Sandra: Como assim?
Coordenador: Por exemplo, se o senhor Bento voltar (a beber) na próxima segunda-
feira, você acha que o Grupo vai recriminar?
Sandra: Não é recriminar, (...) vai falar com ele que ele ta errado.
Coordenador: E se ele souber que está errado, e o Grupo nem precisar falar muita
coisa?
Sandra: Aí, eu acho melhor. Eu acho assim. Tem certas coisas que é o verdadeiro tapa de
luvas. Você acha que uma pessoa vai fazer uma coisa e ela faz outra. Você acha que ela
vai te xingar e, de repente, ela age como se nada tivesse acontecido. Então, tem hora, que
vale também. (Sandra, 39 anos, dependente alcoólica).
28
Durante seu processo, reconhece episódios de recaída. Reconhece também o suporte dado
pelo grupo, bem como a necessidade de estar sóbria. Apesar dos familiares não freqüentarem o
grupo com a assiduidade inicial, Sandra ainda vincula aceitação própria com aceitação de seu
núcleo familiar, em especial seus patrões-sobrinhos.
Coordenador: Em que o Grupo funciona pra você?
Sandra: Ah, como uma ajuda. Como uma ajuda, no meu dia-a-dia. Eu saber que tenho
que estar lá na segunda-feira. E que eu tenho que estar bem na segunda-feira! Então, no
final de semana, eu procuro fazer coisas que não vai (sic) me deixar mal na segunda-
feira.
Coordenador: Ainda bate uma certa fissura pela bebida?
Sandra: Bate. Já tem dois anos que to lá, mas bate.
Coordenador: Como é esta fissura?
Sandra: É quando você ta em um lugar, e tem cerveja, e vontade de beber. Então,
assim, é isso que eu procuro mais fazer, é ficar mais perto da minha família.
Coordenador: Você já tentou fazer isso “socialmente”, tomar uma ou duas latinhas?
Sandra: Já.
Coordenador: E deu certo?
Sandra: As vezes sim, as vezes não. (...) Você fala assim “eu vou beber uma gota”. Na
maioria das vezes eu consegui. Neste tempo, umas três ou quatro vezes que eu não
consegui.
Coordenador: O Grupo ajudou para isso?
Sandra: Com certeza! Muito, com certeza. Porque se não tivesse ajudado, eu não estaria
indo. Porque eu não sou uma pessoa que fica dando murro em ponta de faca não. Se eu
não gostar, eu não fico ali não. E várias vezes eu tive a oportunidade de ter coisas que
são importantes para mim também, para fazer, e eu não dar conta de deixar de ir. É uma
28
Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada no consultório particular do pesquisador, no centro de
Contagem/MG, em 27/02/2008.
53
vez por semana só, e eu vou segunda-feira, e na terça eu faço outra coisa. (Sandra, 39
anos, dependente alcoólica).
29
Sandra ainda se mantém freqüente, com raras faltas. Seu discurso amadurece,
principalmente quando estão reunidos apenas os membros dependentes. Em suas participações, se
mostra preocupada com os membros mais jovens – na grande maioria, usuários de drogas ilícitas.
2.8.2.3 Lucas.
Lucas – eletricitário e usuário de altas quantidades de álcool (quando da primeira procura)
– transita por movimento triparte ao se ingressar no grupo: chega, primeiro, por uma demanda do
trabalho; permanece freqüente às reuniões, mesmo em meio a crises com sua esposa, de que
deveria se manter abstêmio para recuperar o casamento; reconhece que a tarefa de manter-se
sóbrio não é feita em nome ou motivada por ninguém, engajando-se no discurso do grupo com
muito mais autenticidade.
Coordenador: Qual desses dois pontos era mais complicado – família ou trabalho – que
a bebida atrapalhava?
Lucas: Atrapalhava a família, a gente brigava, a Carol (esposa) não gostava. Tinha
também os meninos. E tinha o problema do choque (no trabalho com medidores de
energia), pois é. Tanto que foi aquele menino, o técnico de segurança, que me levou lá
no Grupo.
Coordenador: Foi ele quem te pediu para ficar na salinha (quando foi pego embriagado
no trabalho)?
Lucas: Foi não, foi o chefe mesmo. Só que aí ele chegou e conversou comigo. Eu era um
cara muito bom de serviço, eu era muito esforçado no serviço, comigo não parava o
serviço. Aí, ele conversou comigo. Foi quando o técnico de segurança falou comigo,
“Oh, Lucas, você quer ir?”
Coordenador: Naquele dia lá da salinha, você achou que ia ser mandado embora?
Lucas: Eu não pensei não. (Lucas, 42 anos, dependente alcoólico).
30
Sua chegada, no “Família Caná” de Contagem/MG, se junto ao técnico de segurança
do trabalho, que fiscalizava seu turno. Este, preocupado com grave falta cometida por Lucas, o
conduziria – com o veículo da própria empresa pelas próximas três reuniões, a fim de ajudá-lo.
29
Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada no consultório particular do pesquisador, no centro de
Contagem/MG, em 27/02/2008.
54
Na semana anterior, Lucas havia se apresentado embriagado ao trabalho, oferecendo perigo a si
próprio e a seus colegas.
Coordenador: Como você acha que ele (o chefe) te tratou nesse dia?
Lucas: Ele me mandou ficar quieto. “Oh, Lucas, você fica naquela sala ali”. A gente tem
uma salinha lá separada, na manutenção. “Olha, você vai pra e fica quieto. A hora que
você melhorar, você...”
Coordenador: Você acha que os seus colegas perceberam?
Lucas: Perceberam. Aí eu tive apoio, pra mim foi a pior época.
Coordenador: Era perigoso estar embriagado ali?
Lucas: Era, porque eu trabalho na área de manutenção. Trabalho com eletricidade. Você
pega uma eletricidade de 220, 110 volts, chega vez que até 380 a gente pega. Eu tomei
um choque esta semana. Uma cerca elétrica, o que, ela te solta. Se você tomar um
choque desse na manutenção? Você vai ficar agarrado. (Lucas, 42 anos, dependente
alcoólico).
31
Com o tempo, era visível o progresso de Lucas no grupo dos dependentes. Cada vez mais,
assumia sua responsabilidade, na condução de seu processo de abstinência. No grupo dos
dependentes, separado, se mostrava disponível para responder e fazer perguntas aos membros
mais experientes – novamente, em especial, senhor Bento. Interagia pouco com os membros mais
jovens – usuários de drogas ilícitas, na maioria – mas respondia-lhes, prontamente, caso o
interpelassem. Seu discurso amadurecia, sua freqüência aumentava e não apresentava relatos de
recaídas. Três meses depois de seu ingresso, sem faltar às reuniões, assim colocava sua
participação e a importância do conteúdo que se discutia:
Lucas: a primeira vez que eu participei desta reunião eu fiquei um pouco sacudido. A
minha meta de parar de beber começou, de verdade, naquele dia que eu passei a ver
que o que eu bebia, na quantidade que eu bebia era algo anormal. O meu negócio,
Ronaldo (aconselhando outro membro), era a bebida, e eu vi que eu estava abusando.
Foi aqui que eu tive o apoio dos coordenadores e dessa turma... já fazem três meses,
nada de bebida e controlando a minha vontade de beber. Eu estava bebendo demais, a
última vez que eu bebi bebida alcoólica foi em Dezembro, no Natal passado. Eu decidi
parar então. Havia cobranças pesadas em casa e no trabalho. Aqui no grupo, e comigo
mesmo, eu encontrei uma força. (Lucas, 42 anos, dependente alcoólico).
32
30
Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada no consultório particular do pesquisador, no centro de
Contagem/MG, em 29/02/2008.
31
Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada no consultório particular do pesquisador, no centro de
Contagem/MG, em 29/02/2008.
32
Fragmento de reunião. Pesquisa de campo realizada no Grupo de Apoio Família Caná de Contagem/MG, em
12/06/2004.
55
No entanto, a desconfiança da esposa inibia sua participação, quando do grupo todo
reunido. Tímido, de respostas curtas, Lucas se comportava discretamente quando nesse momento
comum. No grupo dos familiares, ficavam o técnico de segurança do trabalho (que o acompanhou
por mais três vezes), sua esposa e um de seus filhos. Mesmo tentando oferecer apoio, prezando
pela verdade em sua fala, as colocações de Carol (sua esposa) expunham, demasiadamente,
conteúdos pessoais e indiscretos do membro no grupo.
Coordenador: você fuma menos hoje, depois destes meses em abstinência de álcool?
Lucas: até que não! E quero também parar com o cigarro... Eu comprei um pacote de
cigarro, ele já está acabando, eu...
Carol: risos.
Lucas: eu quero parar de fumar assim que este pacote de cigarros acabar.
Carol: risos.
Coordenador: qual será a dificuldade desta nova empreitada Lucas.. Qual vai ser a
dificuldade em parar de fumar?
Lucas: quando este pacote acabar, ah... eu quero dar um fim nisto. Se eu não conseguir
eu vou ter que me esforçar e procurar outras formas de parar.
Coordenador: Carol, a dificuldade do Lucas está estampada na sua risada?
Carol: eu não sei. Parar de fumar, para o objetivo que busco concretizar aqui, é o de
menos. Já passei, com a bebida, coisas piores. Mas as conseqüências do fumo dele estão
cada dia piorando.
Coordenador: em que sentido?
Carol: tosse, ele tosse direto, não deixa ninguém dormir. O cheiro ruim de cigarro...
outro ponto, não vou falar porque não é... fica chato.
Coordenador: tudo bem. (quando se esperava que não diria o que achava “chato”,
interpela).
Carol: atrapalha muito, é, o desempenho sexual... tudo, tudo, tudo atrapalha. (viu-se que
neste instante Lucas ficou extremamente constrangido com os comentários da mulher).
A tosse é incessante, uma tosse seca, se que não é problema pulmonar nem nada, é o
cigarro mesmo! Ao meu ver está atrapalhando muita coisa. Ele anda muito cansado, está
péssimo! Mas como eu te disse, passei por momentos piores... (Carol, 39 anos, esposa
de alcoolista, membro do grupo de familiares).
33
O desafio de buscar uma prática de si em sobriedade não era abalado pelas crises
conjugais, bastante freqüentes. A construção de seu discurso se dava na responsabilização de si
próprio. Apoiado ou não, motivado para usar álcool novamente ou não, Lucas refletia sobre seu
hábito de consumo crônico, se apegava aos benefícios práticos da abstinência e se punha a viver
sem a substância de abuso, como fonte única de prazer e sentido.
Coordenador: Por que usava tanto, cara?
33
Fragmento de reunião. Pesquisa de campo realizada no Grupo de Apoio Família Caná de Contagem/MG, em
12/06/2004.
56
Lucas: Não passava na minha cabeça o porqeu bebia. Eu levantava de manhã cedo e
ia pro bar. Chegava no bar, encontrava os colega e ficava batendo papo e tomando.
Chegava pra almoçar e já tava alterado, porque tinha que pegar serviço às três horas.
Coordenador: Nessa época você trabalhava até que horas?
Lucas: Eu trabalhava de três (da tarde) às onze e meia (da noite). (...) Quando era fim de
semana tinha vez que eu já ia pro boteco, largava serviço e ia pro boteco já.
Coordenador: (Hoje) você se protege de ir ao bar(...)?
Lucas: Não, não paro de ir por causa disso não. Já to com a consciência melhor.
Coordenador: Já há quanto tempo (de abstinência)?
Lucas: Já são quatro anos.
Coordenador: De onde vem essa força de vontade?
Lucas: Eu, pra mim, sou um vitorioso. Chegar pra mim, parar de beber, parar de fumar.
fumei um maço e meio de cigarro por dia, e parei. Ta bebendo do jeito que tava
bebendo... Já cheguei a beber um litro de pinga, chegar tarde e ficar bebendo. Tomava
uma pinguinha e vinha duas, chegava e eu tinha bebido o litro. E eu não ficava tonto
não, porque chegava a tarde eu tinha que ir pro trabalho. (Lucas, 42 anos, dependente
alcoólico).
34
Se as cobranças eram cada vez mais freqüentes e, muitas vezes, contraditórias –, Lucas
exercia sua força de vontade como resposta, motivado e resistente. Parou de fumar
definitivamente, voltou aos estudos e recebeu da empresa um curso de aperfeiçoamento. Sua
troca de turno o impossibilita de freqüentar o grupo pesquisado com a assiduidade dos primeiros
quatro anos. No entanto, se mantém abstêmio de álcool e cigarro, se juntando mensalmente às
reuniões.
Coordenador: Lucas, como lidar com as cobranças todas..?
Carol: eu?! Eu não cobro isto dele, eu o quero uma pessoa com saúde e mais feliz...
Lucas: olha Jairo, eu quando parar quero parar por mim mesmo. Se a hora certa chegar
eu vou parar por mim mesmo e não pela cobrança dela.
Carol: mas me incomoda! Incomoda as pessoas que estão por perto e não fumam...
Lucas: mas se eu parar será por mim mesmo. Não acredito nesta de ter que diminuir para
parar. Ou para por conta dela. tentei diminuir e não consegui nunca para de fumar,
inclusive me cansei da frustração e da falta de estímulo em me manter sem cigarro. Ou
eu paro ou eu continuo fumando a mesma quantidade. (Lucas, 42 anos, dependente
alcoólico).
35
2.9 O tratamento e a análise do material.
34
Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada no consultório particular do pesquisador, no centro de
Contagem/MG, em 29/02/2008.
35
Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada no consultório particular do pesquisador, no centro de
Contagem/MG, em 29/02/2008.
57
O vasto material empírico colhido foi o relato das pessoas da pesquisa, focado nas
estratégias pessoais que os levaram a buscar grupos de ajuda mútua, a reconhecerem sua
condição de dependentes e se engajarem no processo de abstinência proposto. Esse material
empírico junta-se à documentação coletada ao longo da pesquisa, ao conjunto de obras
contempladas na bibliografia e, em especial, aos parâmetros e diretrizes governamentais sobre
álcool e drogas no Brasil, bem como aos assustadores números do United Nations Office for
Drug and Crime
36
(2005), acerca do movimentado comércio internacional de drogas ilícitas e do
consumo de álcool no mundo.
Para se redizer o problema, considerando fecunda a realidade que o produzia, pretendeu-
se penetrar no relato dos sujeitos e partilhar deles, nos fragmentos de reunião e nas entrevistas.
Da coleta desses relatos e de sua síntese, do embasamento teórico a esse texto, objetivou-se
esclarecer fenômenos de reconhecimento e mudança, instâncias peculiares e características do
grupo amostral da pesquisa.
Os procedimentos aqui descritos adquirem consistência metodológica interna no fato
dessa pesquisa ter se iniciado em meio a um trabalho clínico-social desafiador. No início, havia
muita demanda por aprofundamento, com aplicada reflexão e leitura. Ao longo do tempo,
enxutos os questionamentos, o trabalho de observação participante adquiriu corpo, as perguntas e
o olhar do pesquisador tomaram forma.
Na releitura crítica do material colhido exposta, muitas vezes, junto aos fragmentos de
reunião ou trechos de entrevistas acoplados ao texto da pesquisa pensou-se em avançar “para
além do estágio meramente descritivo, passando para o necessário intuito de fazerem-se as
chamadas inferências” (TURATO, 2003, p. 443). Aos “achados mudos” (TURATO, 2003, p.
443), dados brutos sem o devido trabalho analítico, caberia discussão e interpretação por parte do
pesquisador. Trabalho esse que seria feito sob as balizas de uma análise do conteúdo manifesto
pelos participantes da pesquisa.
Tanto as citações literais das falas dos sujeitos redacionalmente colocadas pelo
pesquisador qualitativista junto à apresentação das categorizações, como as eventuais
ilustrações dos achados quantitativos (...) servem para dar vida ao texto do trabalho
científico. (TURATO, 2003, p. 444).
36
Escritório para Drogas e Crime das Nações Unidas, em seus relatórios anuais sobre o problema, em especial o
documento produzido no ano de 2005.
58
Ao contrário da maioria dos pesquisadores brasileiros, que usam as referências de Bardin
(2002) para o tema da análise de conteúdo, Turato (2003) utiliza Britten (2004 apud Turato,
2003) no intuito de orientar quanto a esta modalidade de tratamento e análise de material, colhido
durante pesquisas.
Primeiramente, ao que se tinha às mãos para ser tratado reuniões transcritas, entrevistas
individuais (com pessoas que remetiam ao histórico do Grupo e um grupo de dependentes
selecionados), bem como material gráfico e documental produzido no Grupo era preciso uma
leitura que impregnasse ainda mais o pesquisador de sentido e conteúdo. Haveria algo impensado
em meio aos dados, fatores novos em meio a uma antiga prática psi.
Uma tarefa dessa ordem não se contentaria apenas com o conteúdo explícito. Mensagens
implícitas (como a imagem que constroem os dependentes de si, quando das entrevistas),
dimensões contraditórias (como hipóteses que são refutadas) e temas sistematicamente
silenciados (TURATO, 2003), foram também levados em conta. Era preciso ressaltar o que
saltava às transcrições aparentemente: as pausas silenciosas, as expressões faciais quando da
proclamação da fala, os gestos e posturas, os diversos engasgos.
Para o mesmo Turato (2003), “toda pesquisa existe à medida que uma mente humana a
elabora como um todo” (TURATO, 2003, p. 446). Explorado o material coletado, com análise e
codificação (entrevistas em separado, fragmentos de reunião, produções textuais e documentos),
pretendeu-se transformar dados brutos em dados trabalhados. O objetivo era “permitir a
compreensão da fala dos sujeitos” (TURATO, 2003, p. 446), bem como aquilo que os
circundava.
Na categorização dos dados, dois critérios foram considerados: “o de repetição e o de
relevância dos pontos constantes no discurso dos entrevistados” (TURATO, 2003, p. 446) e do
material gráfico coletado. O último deles, o de relevância, foi preponderante na montagem desse
texto, uma vez “que, na ótica do pesquisador, constitui-se de uma fala rica em conteúdo a
confirmar ou refutar hipóteses iniciais de investigação” (TURATO, 2003, p. 446). Confirma-se a
função seletiva do olhar do pesquisador, congruente com o do coordenador de grupos que, no
campo de pesquisa, atuava e observava como participante.
“Faltou luz, mas era dia.
59
O sol invadiu a sala.
Fez da TV um espelho, refletindo o que a gente esquecia.
Faltou luz, mas era dia...”
O que sobrou do céu - O Rappa, 2001.
60
“Por que não teria direito de falar da medicina sem ser médico, já que falo dela como um cão?
Por que razão não falar da droga sem ser drogado, se falo dela como um passarinho?
E por que eu não inventaria um discurso sobre alguma coisa, ainda que esse discurso seja
totalmente irreal e artificial, sem que me peçam meus títulos para tal?
A droga às vezes faz delirar, por que eu não haveria de delirar sobre a droga?”
Gilles Deleuze, 1992.
61
3 EXPLORANDO UM CAMPO DE TRABALHO.
3.1 Um olhar para o objeto e a escolha de uma forma para descrevê-lo: congruências
possíveis.
Viver e escrever sobre a vida não são movimentos simples. Na aceitação do que está
posto, facilmente ao alcance dos olhos, não se inscreve toda a verdade, nem simplesmente em sua
mera reprodução. Segundo Deleuze e Guattari (1995), mesmo sob clareza de explicação, afetos e
afetamentos compõem uma gica própria, distante da lógica da causalidade, apreendida
aparentemente apenas pelos sentidos.
Os fragmentos de vidas posteriormente entremeados por diversos meros, citações e
pela instituição do discurso científico foram compartilhados (não friamente “coletados”) em
reuniões de grupo no campo de trabalho. Os elementos deste foram apreendidos a partir de um
olhar participante. Tais fragmentos descrevem histórias que não serão compactadas em conceitos
estáticos ou puramente “representativos”, com toda carga que este termo representa. Pois, a partir
da leitura do presente referencial bibliográfico,
(...) a expressão teórica não mais se interpõe entre o objeto social e a práxis. O objeto
social (aqui, o grupo) é colocado em condições de tomar a palavra, sem ter que recorrer
a instâncias representativas para exprimir-se. (GUATTARI, 1981. p. 177)
Um conceito é uma entidade carregada de virtualidade, característica definida por Deleuze
e Guattari (1995), como força em potência que acompanha encontros possíveis. Movimento que
se dá na inserção de múltiplos rizomas.
Um rizoma (assim como um conceito) não começa nem conclui, ele se encontra sempre
no meio, entre as coisas, inter-ser, intermezzo. A árvore é filiação, mas o rizoma é
aliança, unicamente aliança. A árvore impõe o verbo “ser”, mas o rizoma tem como
tecido a conjunção “e... e... e...” (DELEUZE & GUATTARI, 1995, p. 37).
Pensar para estes autores é se propor a inventar (não do nada, mas de elementos
62
potenciais) algumas cartografias possíveis. Ao conceito não caberia uma atitude de obediência.
Da mesma forma que a análise a partir da vivência do objeto deste estudo não conduz à
totalização, ao estabelecimento formal de uma teoria geral sobre estes grupos.
Não se terá a pretensão de
Liberar a vida dos modelos exteriores e transcendentes, que a querem estável e
cristalizada, plenitude da identidade e da representação, do mesmo. (...) (Nem) será
afirmá-la em toda sua multiplicidade, na sua potência maior de movimento e de
novidade. (DELEUZE & GUATTARI, 1995, p. 30).
Os tópicos aqui apreendidos substâncias de abuso, dependência química, grupos de
ajuda mútua e a implicação de seus fatores terapêuticos – serão expostos, a fim de serem
trabalhados por outros leitores. O grupo estudado influencia e é influenciado por seus membros; o
contexto social que o produz também nele atua; a relação que os indivíduos passam a ter com as
substâncias de abuso, com outros membros do grupo e com eles mesmos, a todo tempo se
modifica.
3.2 Processos de subjetivação e grupos com dependentes químicos.
Pela lente da imanência, é possível observar e, portanto, descrever com mais
propriedade um mundo composto por instâncias molares (rígidas), moleculares (fluidas) e suas
emaranhadas linhas de fuga.
A subjetividade, também por este ponto de vista, não remete a sujeitos individuais – mas a
acontecimentos, situações e configurações sociais. Seus processos de subjetivação são sempre
coletivos, e conduzem à construção de um novo território existencial. A subjetividade como o
mundo – também possui suas linhas rígidas (de identidade, de moldes), suas linhas fluidas (que se
lançam a novos encontros, a novos territórios de atuação ou ao próprio nada) e suas linhas de
fuga.
“Indivíduos ou grupos, somos feitos de linhas, e tais linhas são de natureza bem diversa.”
(DELEUZE; PARNET, 1998, p. 145). Essas linhas não pontos ou pontuações determinados
atuam, de maneira diferenciada e concomitante, nos processos de subjetivação que se
desencadeiam frente a diversos encontros ao longo da vida. Seu mecanismo de atuação se dá, ora
63
de maneira reprodutiva, “quando privilegia subjetividades cristalizadas, mas também por linhas
capazes de resistirem ao modo reprodutivo dominante, indicando que essas linhas são
coexistentes e estão sempre misturadas” (GONÇALVES, 2007, p. 37). Essas linhas atuam sobre
as pessoas intensamente e permanentemente.
As linhas duras, ou molares, caracterizam definições de natureza binária (de sexo:
homem-mulher, de classe social: pobre-rico, dentre outras); sempre classificam os sujeitos,
codificando-os e suas formas de atuação (“o” alcoólico pico, “o” usuário crônico de drogas, “a”
mãe de dependente químico, “a” droga, “oálcool de abuso, etc.). “Em suma, todas as espécies
de segmentos bem determinados, em todas as espécies de direções, que nos recortem em todos os
sentidos, pacotes de linhas (duras) segmentarizadas.” (DELEUZE; PARNET, 1998, p. 145). Nas
práticas e segmentos enrijecidos de si, de usuários crônicos de álcool e drogas, bem como de seus
familiares, várias linhas duras. Essas linhas rígidas, no grupo, se colocam em suas diversas
figuras disciplinares assiduidade, freqüência, pontualidade, a presença do “coordenador” e dos
“membros” –, nas distinções que pessoalmente fazem os membros o membro mais
experiente, “omais propenso a recaídas, dentre outros e, sobretudo, no segmento que se faz
entre “usuário crônico” que passa a “dependente químico ingresso em um grupo”, e tudo que
prescritamente se espera dessa transição e desse movimento.
As linhas flexíveis, ou moleculares, possibilitam tais movimentos de impacto
(afetamentos) na subjetividade. Atuando em zonas de indeterminação e questionamento, as linhas
flexíveis – coexistentes às linhas duras – aparecem especialmente quando da entrada em um novo
agenciamento
37
. “Elas traçam pequenas modificações, fazem desvios, delineiam quedas ou
impulsos (...); elas dirigem até mesmo processos irreversíveis. (...) Por isso são tão penosas as
histórias de famílias (...).” (DELEUZE; PARNET, 1998, p. 145). As linhas flexíveis, mais do que
a um outro segmento, dizem respeito a “fluxos moleculares (...), devires, micro-devires”
(DELEUZE; PARNET, 1998, p. 145), instâncias que virão a ser e que não estarão prontas.
As linhas de fuga, por sua vez, convergem em processos que arrastam para o novo
(território existencial, prática de si) e para a demolição (desterritorialização) do velho, do que foi
molar e rígido. As linhas de fuga, estas ainda mais estranhas, nos fazem percorrer através dos
demais segmentos, “mas também através de nossos limiares, em direção a uma destinação
desconhecida, não previsível, não preexistente”. (DELEUZE; PARNET, 1998, p. 146).
37
Um novo dispositivo de mediação coletiva.
64
Em todo caso, as três linhas são imanentes, tomadas umas nas outras. Temos tantas
linhas emaranhadas quanto na mão. Somos complicados de modo diferente da mão. O
que chamamos por nomes diversos esquizoanálise, micro-política, pragmática,
diagramatismo, rizomática, cartografia não tem outro objeto do que o estudo dessas
linhas, em grupos ou indivíduos. (DELEUZE; PARNET, 1998, p. 146).
Via um agenciamento coletivo (um possível encontro em um grupo de ajuda mútua, por
exemplo), linhas duras, que se cristalizaram frente a algum tipo de sofrimento (do contato com as
drogas; da convivência com um dependentes), possibilitam a existência de linhas flexíveis
coexistentes (nelas mesmas inscritas), frente a um novo afetamento (uma reunião no referido
grupo de ajuda mútua do exemplo). O estranhamento, característico dessas linhas flexíveis, frente
ao novo ambiente que se adentra, faz com que o território gido (as reclamações e lamúrias, o
sofrimento e o isolamento, o traço identitário e estigmatizado) de então perca sua consistência.
Os elementos que atravessarão o sujeito, nesse processo de inserção em algo novo, o conduzirão
à desterritorialização (característico das linhas de fuga) e à abertura em um possível novo campo
de atuação e pensamento.
Do “cosmos” (das rígidas linhas de atuação e de identidade, frente ao sofrimento) para o
“caos” (do movimento frente ao novo, do estranhamento e da abertura para novos campos
possíveis), constrói-se um novo território existencial que também se tornará gido (singular),
que logo se tornará maleável (por atuação de várias forças, algumas externas, outras inscritas nele
mesmo) e se colocará a ocupar outro lugar, ou mesmo um lugar por ser ainda criado
(GUATTARI, 1992).
São as linhas e segmentos diversos que atravessam, alisam, formam calos, limitam e
desterritorializam os sujeitos e os grupos, conferindo-lhes movimento, intensamente. Essa escrita
tentará não desapontar essa especial propriedade do tema de pesquisa a cinética observada
permanentemente quando da montagem das reuniões e das reorganizações pessoais dos membros
de um grupo de ajuda mútua.
65
3.2.1 Aplicações dessa natureza teórica à prática do “Família Caná” de Contagem/MG
pesquisado.
O grupo de apoio, aqui considerado em suas características peculiares, é um instrumento
de mediação entre indivíduos usuários de álcool e drogas e uma sociedade, que preza a
sobriedade e deles a cobram, mas que comporta uma relação ambígua com as substâncias de
abuso, muitas vezes, estimulando (ou possibilitando) seu consumo. O grupo é um espaço
complexo e dinâmico, que influencia e é influenciado por seus membros e por suas instituições
circundantes. O grupo e todas estas instâncias interdependentes constituem modos de
subjetivação próprios, que se atravessam mutuamente. Seria pretensiosa e arrogante, a escrita de
um conceito representativo dessas instâncias, que lhe descreve simplesmente as suas linhas duras.
Os indivíduos pesquisados são os mestres de suas próprias histórias. Este texto se propõe a
costurar algumas delas, junto ao cenário atual e a aplicações de ordem teórica.
Quem se submete, reproduz simplesmente. Quem se inventa em novos agenciamentos, se
liberta – tanto para o avançar de um discurso superficial e puramente descritivo, quanto para uma
vida singularizada e sem drogas. A forma de se construir este texto não foi diferente da forma de
se pensar o grupo de apoio pesquisado, considerando seu potencial sempre criador (de um
movimento pró e anti Grupo), bem como as linhas rígidas que englobam ambas as tarefas
escrever e pensar sobre o Grupo.
No grupo de apoio, se situar não é se submeter ao que é dito e estabelecido no grupo.
Algumas linhas duras, como em qualquer outra dimensão humana, são essenciais tais quais
pontualidade, respeito e assiduidade. Essas linhas duras remetem a segmentos bem determinados,
em todas as espécies de direções, que recortam o grupo em todos os sentidos, servindo-lhe de
base e sustentação gida. Reproduzir um discurso sem crítica, a copiar uma política
simplesmente, ou minando a própria história em busca de aceitação ou aprovação, não constituem
pontos para benfeitorias.
Estar possivelmente melhor no grupo significa tentar utilizar os afetamentos passados em
contato com a droga, aprendendo com eles, deixando-se também atravessar por novos
agenciamentos e identificações, que formam apropriadamente o grupo.
66
Engajamento que não significa submissão inquestionável a quaisquer ditames, nem
aceitação, ou mesmo modelagem de identidades. Engajamento, com autenticidade e potência,
também se dá na crítica e na desconstrução pessoal das tessituras particulares do grupo um
movimento implosivo que sempre se reinventa. Uma intensa busca por sentido.
Coordenador: e para o senhor, o que faz sentido? O que faz o senhor a acordar e lavar
o seu rosto... o que faz sentido para o senhor viver hoje, senhor Luciano?
Luciano: acho que a minha vida junto do álcool não me pertence, a vontade sem ele me
pertence. Minha obrigação é zelar por mim mesmo, zelar por mim mesmo! Se eu não
gostar de mim, não tem como o meu filho gostar de mim não...
Coordenador: é um bom sentido para a vida, esse de zelar por si mesmo!
Luciano: Ontem vi uma frase curtinha “Se vonão mudar, nada mudará”. Se eu não
mudar (silenciosa expressão de interrogação das mãos e do rosto), fica difícil, não fica?
(Luciano, 56 anos, dependente alcoólico).
38
O objeto deste trabalho atravessa a entrada em um grupo de apoio para dependentes
químicos e alcoolistas. Elementos desta entrada podem assim ser descritos: a percepção que essas
pessoas constroem do grupo, até mesmo antes de o conhecerem; a motivação para estarem ali
pela primeira vez; o interesse para, aos poucos, estarem ali com pontualidade e maior freqüência;
assim como as implicações desencadeadas pelos dispositivos intrínsecos ao grupo (seu discurso, a
identificação com outros membros, a instilação de esperança nele possibilitada, entre outros), que
conduzem a políticas pessoais para a sobriedade.
O movimento acima descrito, feito pelos usuários crônicos de entorpecentes entrevistados,
no grupo de apoio pesquisado, é vetor carregado de fatores subjetivos. Assim como o movimento
do pesquisador que, junto deles, colheu relatos e fragmentos de vida, observando-os e partilhando
conjuntamente de suas histórias, durante os últimos sete anos.
Na escrita deste texto, foi interessante manter entreabertas, as portas do grupo pesquisado
tamanha a complexidade da tarefa de falar sobre o que encerram esses vestíbulos. Descrever o
que se vivencia neste espaço não de maneira lógica, representativa, causal ou abstrata é
tentativa de juntar palavras, que remetem a uma realidade significante. O sentido aparente no
texto que é produto da observação e escrita desse pesquisador constitui figura parcial de toda
a multiplicidade (impossível da apreensão por inteiro) da realidade que se vive no grupo. A
escrita deste texto, que trata do que se vive em um grupo, se faz por fragmentos selecionados de
uma totalidade, a partir de alguém que a vivencia. A meta é atingir, na construção deste texto, a
67
vivência do entrevistado sobre sua entrada e engajamento no grupo de apoio pesquisado pontos
que são realmente caros a este trabalho.
3.3 Enfim, onde se foi parar.
“É preciso restabelecer o sonho. Não a esperança. O sonho!
Sonhar com uma vida diferente, com novas maneiras de viver e de pensar.”
Luis Fuganti, 1990.
A Associação Família Caná é uma entidade sem fins lucrativos, vinculada ao Conselho
Estadual de Entorpecentes, com sede no bairro Padre Eustáquio, região oeste de Belo
Horizonte/MG, e oito filiais espalhadas por sua região metropolitana. Sua presidência está hoje, no
primeiro semestre de 2008, a cargo de José Wagner Leão, eleito conforme estatuto.
É em uma destas unidades, o Grupo Família Caná de Contagem/MG, que se dá esta pesquisa.
Para melhor entender o contexto de sua criação, ponto precioso na compreensão do campo de
pesquisa, é preciso vasculhar os seus primórdios.
Seus antecedentes remontam ao ano de 1967, quando o padre Oswaldo Gonçalves, fundou
um embrionário grupo chamado Prodes
39
, reunindo jovens da região oeste da capital, para realizar
atividades de encontro e acolhida, de conhecimento e espiritualidade. Padre Oswaldo se tornaria
figura de referência, quando se trata de mobilização social e familiar em Belo Horizonte, sendo
ainda hoje, um pilar de liderança na Associação Família Caná, no bairro Padre Eustáquio.
No ano de 1971, com o crescimento e os bons frutos do Prodes, seus jovens membros
demandam a entrada de seus pais nos movimentos do grupo. Já que se experimentavam as mudanças
na organização e disposição familiares, bem como as de ordem institucional e social, a serem
descritas nas próximas unidades. O movimento inquieto e a produção crescente no Prodes eram
termômetro do irreversível movimento que se configurava. Na possibilidade de, não abraçar os
38
Fragmento de reunião. Pesquisa de campo realizada no Grupo de Apoio Família Caná de Contagem/MG, em
01/03/2004.
39
Do latim, “Você é útil”.
68
jovens (a quem o grupo se destinava), mas também seus pais e familiares mais velhos com
propriedade, viu-se possibilidade de entendimento e apaziguamento de vários conflitos. Neste
mesmo ano, o efervescente movimento juvenil, a dedicação e aplicação de seu fundador fizeram
com que um imóvel no bairro Padre Eustáquio fosse adquirido.
Enquanto a política nacional, repressiva aos movimentos sociais, se fortalecia, um espaço de
acolhida se consolidava.
No fim da primeira metade da década de 1970, realizar-se-ia o primeiro encontro de casais da
entidade. Nesses encontros, eram realizadas reuniões semanais e, espaçadamente, atividades nos
finais de semana. Os objetivos desses encontros partiam da demanda observada pelos filhos, jovens
engajados no Prodes, e visavam ajudar os casais na solução de problemas conjugais, para alcance
de harmonia entre os cônjuges e do melhor diálogo entre ambos. Pontos que, para os envolvidos no
processo, possivelmente refletiriam na boa educação dos filhos, na criação de atividades de escuta e
reflexão dentro de casa.
Em 1977, iniciou-se a construção do prédio no bairro Padre Eustáquio, que é parte da sede da
Associação até hoje. A primeira casa serviria como cenário para os encontros e as reuniões dos
casais, dos jovens, e, posteriormente, para os dependentes químicos e seus familiares. Sua
inauguração foi no ano de 1979.
No ano de 1982, houve o reconhecimento jurídico da entidade, recebendo o nome atual de
Associação Família Ca. Este foi inspirado no capítulo 2 do Evangelho de João, que narra a
presença de Jesus em uma cerimônia de casamento. Nesta passagem bíblica, Cristo realiza seu
primeiro milagre: a transformação de água em bom vinho. À primeira leitura, parece incongruente
remeter este texto ao nome e ao propósito de acolhida da dependência química (em especial do
alcoolismo), em um grupo de ajuda mútua. No entanto, o carregamento de sentido desta escolha se
na vivência do sagrado, que é inerente ao próprio grupo Família Caná, e está implícito no texto
que inspira seu nome.
No terceiro dia, houve um casamento em Caná da Galiléia e a mãe de Jesus estava lá. Jesus
foi convidado para o casamento e os discípulos também. Ora, não havia mais vinho, pois o
vinho do casamento tinha-se acabado. Então a mãe de Jesus lhe disse: “Eles não têm mais
vinho”. Respondeu-lhe Jesus: “Que queres de mim, mulher? Minha hora ainda não chegou”.
Sua mãe disse aos serventes: Fazei tudo que ele vos disser”. Havia ali seis talhas de pedra
para a purificação dos judeus, cada uma contendo de duas a três medidas. Jesus lhes disse;
“Enchei as talhas de água”. Eles a encheram até à borda. Então lhes disse: “Tirai agora e
levai ao mestre-sala”. Eles levaram. Quando o mestre-sala provou a água transformada em
69
vinho ele não sabia de onde vinha, mas o sabiam os serventes que haviam retirado água
chamou o noivo e lhe disse: “Todo homem serve primeiro o vinho bom e, quando os
convidados estão embriagados serve o inferior. Tu guardaste o vinho bom até agora!”
Esse princípio dos sinais, Jesus o fez em Caná da Galiléia e manifestou a sua glória e os
discípulos creram nele. (João 2, 1-12).
Família Caná, esta nomeação oferece todo um sentido ao propósito da Associação: ajudar as
famílias em sua estruturação, oferecendo-lhes algo novo e melhor, através de um dispositivo
específico, de aliança e renovação, de um discurso religioso peculiar. A curiosidade do aspecto
“etílico” do milagre que nome à Associação se inscreve no fato desse ter sido o primeiro dos
milagres atribuídos a Jesus, um sinal de aliança entre Aquele que o enviara e os homens, bem como
de maturidade Daquele que fora enviado.
3.3.1 As primeiras abordagens da Associação ao tema da pesquisa.
Em 1979, evidenciavam-se os primeiros conflitos advindos do consumo abusivo de
entorpecentes, por parte de alguns membros. Através do já consolidado trabalho com jovens e casais
e do conhecimento que se produzia desses grupos, percebiam-se claramente os danos causados pelo
abuso de álcool e drogas, em algumas das famílias assistidas.
Mostrando-se como um grave problema, reator de atrito em vários domicílios, o abuso de
substâncias psicotrópicas exigia empreendimentos possíveis de serem feitos para obtenção de certo
alívio. Com muita coragem, mas sem a devida experiência necessária, iniciou-se a montagem de
grupos para dependentes e seus familiares, com objetivo de ajudá-los na prevenção e na recuperação
do uso abusivo de drogas.
O Grupo (para dependentes) nasce com desconfiança para parte dos líderes vinculados aos
movimentos de casais. Ninguém queria seus filhos convivendo com uma gente dessas.
Acreditavam que o tratamento de drogados não era de responsabilidade do Padre Oswaldo.
Eles o acreditavam que precisavam disto. (Dona Maria da Conceição Silva Toledo,
freqüentadora dos primeiros grupos para familiares de dependentes, hoje vice-presidente da
Associação Família Caná).
40
40
Dados da entrevista. Pesquisa de campo realizada na sede da Associação Família Caná, no bairro Padre Eustáquio
em Belo Horizonte/MG, em 20/07/2007.
70
Nesse mesmo ano, cinco dependentes foram acolhidos no prédio da sede da Associação, no
bairro Padre Eustáquio. A experiência fracassou, mas o ideal permaneceu.
Motivado a oferecer um então maior suporte à comunidade, o fundador padre Oswaldo iria a
Campinas/SP, em 1985, conhecer a obra de padre Haroldo Rahm clérigo que trazia, da tradição
americana de montagem de grupos de ajuda mútua, iniciativas para acolhida e tratamento a
dependentes químicos e a seus familiares.
Padre Haroldo Rahm é conhecido orientador de instituições para recuperação de dependentes
no interior de São Paulo. Sua postura de abordagem familiar, e aos próprios dependentes, não se
mostra sisuda e conservadora. O site do Instituto, que leva o nome de Padre Rahm em
Campinas/SP
41
, é exemplo disto. Americano, o jesuíta ocupa posto de coordenador no Instituto,
sendo mostrado sorridente, em uma posição de iogue, assentado com as pernas flexionadas
obliquamente.
A religião é enunciado intrínseco ao trabalho nos grupos de ajuda mútua vinculados à
Associação Família Caná. Quando assimilado de forma adequada e contextualizada, não imposto ou
doutrinário, o senso religioso pode se constituir num ponto positivo para dependentes e seus
familiares, bem como importante aspecto a ser compreendido ao longo da pesquisa.
Em 1986, conseguiu-se, com a ajuda da Congregação dos Sagrados Corações, adquirir um
imóvel rural para a construção da Fazenda de Caná, no município mineiro de Ribeirão das Neves.
A primeira sede da Fazenda, em 1987, era uma pequena casa, com sala, cozinha e dois
quartos. Foi quando se iniciou a primeira comunidade de internos. Eram oito jovens e um
coordenador, tendo seu hábito dissidente de se consumir drogas em demasia, mudados pelo trabalho
exigente e por um novo sentido de vida.
Hoje, são de noventa a cento e vinte internos, distribuídos em amplas instalações, existindo
profissionais de saúde e assistência social que desenvolvem trabalhos específicos, bem como
coordenadores e demais funcionários. Palestras, reuniões em grupo, atendimento individual,
aconselhamento espiritual, entre outros, são serviços oferecidos aos internos. São eles próprios que
tomam conta da limpeza, do cultivo da horta, do cuidado com a floricultura, das oficinas de
artesanato, cujos produtos são para subsistência dos grupos ou para comercialização na central
atacadista de Belo Horizonte (a CEASA), bem como nas reuniões da Associação Família Caná, em
41
www.padreharoldo.org.br, acesso em 19 de fevereiro de 2008.
71
sua sede no bairro Padre Eustáquio. O trabalho conta com doações e contribuições variadas,
inclusive de familiares e dos internos.
As benfeitorias físicas são visíveis
42
, quando são comparados os traços das primeiras
construções ao que se tem hoje. Projetos autônomos e filantrópicos como este sem vínculo com o
Estado ou com a lucratividade tornam a dura realidade da vivência de problemas complexos em
algo mais brando e humanamente possível.
No entanto, não é na estrutura predial que se encontram as maiores mudanças, a partir das
primeiras iniciativas de padre Oswaldo, na formação da Associação Família Caná, no bairro Padre
Eustáquio. É na forma com que se abordam dependentes e familiares nos grupos, que se faz a
expertise que confere à Associação, um lugar de destaque no cenário das instituições destinadas a
acolher usuários de entorpecentes, na região metropolitana de Belo Horizonte. Nessa forma cintilam
a disposição dos grupos e a vinculação do familiar no processo.
Até a primeira metade da década de 1980, não se havia atentado para o valor e as
potencialidades do envolvimento familiar no trato com os dependentes. A abordagem dos mesmos,
apesar de ter sido iniciada a partir de demandas familiares, não imbricava tanto os entes próximos no
processo de busca por sobriedade. Com o tempo, viu-se a necessidade de também oferecer ajuda
direta às famílias dos dependentes assistidos, para que a família também se movimentasse em
direção a uma organização renovadora.
Como coordenadora do movimento de casais, anterior aos grupos de apoio a dependentes
químicos, dona Maria da Conceição Toledo a simpaticíssima dona Lilia, hoje vice-presidente da
Associação deu testemunho das complicações no convívio com o filho mais jovem, então usuário
crônico de maconha e álcool. Estabelecia-se, então, um forte elo de sustentação.
Dona Lilia foi instrumento de passagem de uma outra mensagem. (Zilton Alves Moreira,
freqüentador dos primeiros grupos para dependentes ele mesmo um alcoolista em
recuperação –, hoje coordenador de grupos familiares e de prevenção, bem como de
processos financeiros na Associação Família Caná).
43
Eu estava na fila para um presente divino. O grupo despertava no dependente um sentimento
de solidariedade, de resgate de si mesmo, e da possibilidade de serem vistos com outros
42
Visitas foram realizadas à sede e à Fazenda de Caná, durante o trabalho de coleta de material para a pesquisa.
43
Dados da entrevista. Pesquisa de campo realizada na sede da Associação Família Caná, no bairro Padre Eustáquio
em Belo Horizonte/MG, em 19/07/2007.
72
olhos. Os dependentes no grupo se redescobrem. (Dona Maria da Conceição Silva Toledo,
vice-presidente da Associação Família Caná).
44
Em 1991, os grupos para usuários e seus familiares já haviam se estruturado.
Nesta época o grupo era encarado como uma oportunidade do indivíduo esvaziar sua lata de
lixo, catarse, desabafo. (Zilton Alves Moreira, coordenador de grupos na Associação
Família Caná).
45
Um pouco antes, a expoente escalada do tráfico fazia aumentar a oferta de uma gama de
substâncias entorpecentes. Com maior carga disponível de entorpecentes, também crescia a
demanda por tratamento de seu uso abusivo
46
. O contingente de indivíduos que procuravam ajuda
nos grupos da Associação Família Caná era proporcional à função tráfico-consumo-demanda por
tratamento, que exponencialmente crescia.
Constatado o crescimento do número de pessoas que procuravam grupos ajuda, foi
necessário repensar a organização e disposição logística dos mesmos quanto ao espaço, ao tempo e à
efetividade do processo de tratamento. Inicialmente, no “Família Caná” do bairro Padre Eustáquio,
as reuniões aconteciam semanalmente, sempre às terças-feiras. Logo, as reuniões passariam a
acontecer nas terças e também às quartas. Um ano depois, aconteceriam, como hoje, em três
reuniões semanais, com temas e público-alvo determinado: sempre nas terças, quartas e também às
quintas-feiras.
Nestas, falava-se do tempo em contato com o álcool e com as drogas, das vivências com o
familiar dependente e de estratégias para manter-se abstêmio. Porém, em função do tempo e da
disposição inicial dos participantes nos grupos, pouca interação acontecia. Acredita-se que o modelo
utilizado era mais de um agrupamento de depoimentos, do que o de encorajamento e enfrentamento
na relação de interdependência dos membros no grupo.
44
Dados da entrevista. Pesquisa de campo realizada na sede da Associação Família Caná, no bairro Padre Eustáquio
em Belo Horizonte/MG, em 20/07/2007.
45
Dados da entrevista. Pesquisa de campo realizada na sede da Associação Família Caná, no bairro Padre Eustáquio
em Belo Horizonte/MG, em 19/07/2007.
46
A droga que mais demanda serviços de tratamento a usuários crônicos nas Américas e no Caribe é a cocaína. Com
sua maior produção e influxo, é possível estabelecer comparação com a também crescente procura por ajuda em
algum tipo de serviço de saúde, no início da década de 1990, por cocainômanos crônicos.
73
“Todo mundo tem que ficar junto”, dizia o Padre Oswaldo. Neste ponto acreditava-se que o
grupo era aquilo.
(Zilton Alves Moreira, coordenador de grupos na Associação Família
Caná).
47
Aos poucos, ficava impossível a condução pertinente em busca da sobriedade e dos
objetivos iniciais do grupo. Fazia necessária uma reorganização, que garantiria,
(...) desenvolver a auto-estima e a espiritualidade. Dizer ao dependente, “você não é e eu
não sou qualquer porcaria”. “Somos pessoas e capazes!” (Dona Maria da Conceição
Silva Toledo, vice-presidente da Associação Família Caná).
48
Era preciso dividir os grupos para fazê-los operar de forma coesa, porém independentes
de uma estrutura radicular, que abarcava todos em um mesmo espaço. Foram então mapeadas as
características que emergiam destes grupos e criados dispositivos para melhor organizá-los.
Membros com tempo de sobriedade maior, dependentes que retornavam da Fazenda de Caná,
dependentes que viriam a se internar nela, familiares de dependentes internos, familiares de
dependentes resistentes à procura por ajuda, usuários que faziam a primeira visita ao grupo,
familiares que fariam a primeira visita ao dependente na Fazenda... foram estabelecidos galhos de
um mesmo rizoma, células interdependentes que se interligavam, com maior coesão e
autenticidade, oferecendo mais oportunidades de participação entre membros.
Dividiam-se os grupos, abriam-se novas possibilidades de identificação.
A política proclamada pelo grupo é constituída toda semana pelos participantes. Os
exemplos dos outros alertam, os coordenadores orientam. A construção do discurso do
grupo é feita com a participação de todos e, mesmo que de certa forma imposta pelo
grupo, também é vista como construída por eles mesmos. Eu digo (aos dependentes e
seus familiares) você não veio buscar uma saída para as drogas. Aqui se oferece uma
nova forma de se viver. (Padre Oswaldo Gonçalves, fundador e mais importante líder da
Associação Família Caná).
49
Adquirido dinamismo em si próprios, os grupos de ajuda mútua, fundados no seio da sede
da Associação Família Caná, no bairro Padre Eustáquio, ganharam terreno e tentáculos pela
região metropolitana de Belo Horizonte.
47
Dados da entrevista. Pesquisa de campo realizada na sede da Associação Família Caná, no bairro Padre Eustáquio
em Belo Horizonte/MG, em 19/07/2007.
48
Dados da entrevista. Pesquisa de campo realizada na sede da Associação Família Caná, no bairro Padre Eustáquio
em Belo Horizonte/MG, em 20/07/2007.
49
Dados da entrevista. Pesquisa de campo realizada na sede da Associação Família Caná, no bairro Padre Eustáquio
em Belo Horizonte/MG, em 26/07/2007.
74
Nesta expansão, nasce o trabalho que motivou os questionamentos desta pesquisa o
“Família Caná” de Contagem/MG. Os sete anos de experiência, nele realizados, servem de palco
e substrato a essa escrita.
3.4 A entrada no Grupo de Apoio Família Caná, em Contagem/MG.
“Quando o amor toma conta das pessoas,
há total redimensionamento das relações humanas
e da maneira de encarar os problemas.
‘Vida sim, drogas não!’.”
Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – Campanha da Fraternidade, 2001.
A chegada do Grupo de Apoio Família Caná em Contagem/MG é comprovação de um
dos ramos da frutífera iniciativa de Padre Oswaldo Gonçalves, no bairro Padre Eustáquio.
Contagem é um dos principais municípios da região metropolitana de Belo Horizonte. Com forte
vocação operária, são as atividades industrial e comercial os carros-chefe de sua economia. Como
outros grandes centros urbanos pós-modernos, ocupados por um fluído contingente populacional,
também se encontra em Contagem um vigoroso movimento de oferta e demanda por
entorpecentes, legais e ilegais.
A história do Grupo de Apoio Família Caná de Contagem remete à montagem de uma
instituição filantrópica de saúde, a qual o Grupo ainda está vinculado primeiramente um núcleo
de psicólogas voluntárias, para depois uma instituição estruturada e mais abrangente.
Em 1995, se oferecia atendimento psicológico gratuito às comunidades do entorno da
Matriz de São Gonçalo, centro da cidade. Em uma iniciativa voluntária de psicólogas clínicas da
cidade, lideradas por via Nicácio Stacanelli Barros, fundou-se o primeiro núcleo social de
psicologia da cidade. No ano seguinte, com a adesão de outros profissionais de saúde ao projeto –
fortemente motivados por sua fundadora –, médicos, enfermeiros, entidades de classe, políticos,
profissionais liberais, lideranças comunitárias, e uma dezena de agentes pastorais voluntários
75
fundariam uma entidade civil organizada, sem fins lucrativos, com registro na Secretaria de
Saúde Municipal: a Pastoral da Saúde Nossa do Rosário.
Mantendo a assistência psicológica gratuita e de qualidade como sua grande referência, a
Pastoral se confirmaria como um dos mais belos projetos de saúde voltado para as comunidades
carentes do centro do município de Contagem.
O primeiro atendimento a usuário crônico de substância psicotrópica, pela clínica
psicológica da Pastoral, se deu em março de 1999
50
. Dependentes alcoólicos, vinculados ou não
às lideranças paroquiais da Matriz de São Gonçalo, desafiavam a prática clínica instituída neste
espaço. Vivenciava-se, com esses pacientes, toda sorte de sentimentos a alegria em vê-los por
certo tempo sóbrios, a expectativa da sessão seguinte (esta ou não em abstinência) e o
desamparo frustrante de recaídas em seqüência.
Nesse mesmo ano, cresce o número de atendimentos na Pastoral, onde havia atrelado
algum tipo de envolvimento com substância entorpecente. Juntos desses atendimentos, seus
desafios inerentes. O índice de engajamento dos pacientes era baixo, dos familiares quase
inexistente, ocorrendo desistências, indisciplina quanto à freqüência das consultas e elevados
índices de recaídas. No início do ano 2000, essa modalidade de clínica alcançava uma dezena
de pacientes, demandando dos clínicos envolvidos (médicos e psicólogos, na maioria)
conhecimento e prática para obtenção de resultados e melhor entendimento da problemática.
Em dez de julho de 2000, profissionais de saúde vinculados à Pastoral e leigos voluntários
se encontrariam na Associação Família Caná para um curso, com os também profissionais de
saúde e voluntários da sede no bairro Padre Eustáquio. A busca pela Associação foi uma resposta
ao conjunto de desafios (e seus inerentes fracassos) frente ao quadro de pacientes que aumentava.
A escolha pela Associação Família Caná se deu pela reputação da mesma junto à Arquidiocese de
Belo Horizonte, por seu conjunto de ideais e pelos vínculos em comum mantidos. Após quatro
encontros (10, 17, 24 e 31 de julho de 2000), didáticos e de reflexão, iniciou-se o Grupo de Apoio
Família Caná de Contagem.
Em primeiro de agosto de 2000, primeira segunda-feira seguinte aos quatro módulos do
curso, às 19 horas 30 minutos, iniciava-se a primeira reunião do Grupo de Apoio Família Caná de
50
Dados da entrevista. Pesquisa de campo realizada na Pastoral da Saúde Nossa Senhora do Rosário, no bairro
Alvorada em Contagem/MG, em 11/02/2008, com dona Lourdes Ferreira e Nívia Nicácio Stacanelli Barros. Na
ocasião foram levantados e entregues ao pesquisador as apostilas, anotações e as primeiras listas de presença das
reuniões do Grupo (dados que este texto confere o caráter de documentais, tamanha sua relevância).
76
Contagem. As famílias e os dependentes, que haviam recebido atendimento clínico individual,
comporiam as duas salas onde, pela primeira vez, se discutiria a temática das drogas, no ambiente
que é muito caro a este trabalho. Coordenava a reunião, a psicóloga via Nicácio Stacanelli
Barros, e teriam como membros quatro dependentes alcoolistas homens, adultos, com
profissões diversas, um deles ainda hoje membro assíduo do Grupo e um dependente de drogas
ilícitas (cocaína e maconha, predominantemente a segunda), também adulto. Com o tempo, a
prevalência do número de usuários de drogas ilícitas aumentou. Como familiares acompanhantes
estavam oito mulheres adultas (duas delas acompanhantes de membros alcoolistas e uma
acompanhando o marido dependente das substâncias ilícitas). Assim como estava Dona Lourdes
Ferreira, cujo carinho e sensibilidade convidaria à primeira reflexão sobre a leitura do Evangelho
no Grupo, algo que ainda hoje é feito.
Em fevereiro de 2008, o Grupo de Apoio Família Caná de Contagem listava em torno de
dez famílias assistidas, compondo um universo de quinze a vinte familiares e de cinco a dez
dependentes por reunião. Por se tratar de um Grupo livre, uma de suas mais peculiares
características é o sazonal número de participantes ilustrando movimentos de dependentes e
familiares que vão pela primeira vez, se identificam ou não com as diretrizes do grupo, alcançam
o propósito buscado, retornam para fortalecê-lo e para dar aos outros um verdadeiro testemunho.
A porta de entrada do grupo, suas normas e suas diretrizes são aspectos rígidos e
disciplinares de sua dinâmica. Os horários de início e término, as falas dos membros mais velhos,
o respeitar de atenção para com o discurso do outro, o compromisso com a sobriedade (pelo
menos às vésperas das reuniões) são elementos “duros” que têm impacto tanto no recém-chegado
quanto na continuidade e no engajamento dos já ingressos. A manutenção e o respeito a essas
linhas duras são constituintes do grupo, tentando garantir-lhe sustentação e a razão de ser de seu
empreendimento. Por diversas vezes, essas balizas foram motivadoras de aversão e asco para
muitos dependentes, que questionaram sua presença no grupo, ou a sua incompatibilidade,
comparado ao momento em que viviam.
A solidez e a continuidade do Grupo de Apoio, fruto também da manutenção de suas
estrias disciplinares e linhas “duras”, foram conquistadas no ano seguinte ao de sua implantação.
O ano de 2001 seria muito especial às abordagens terapêuticas e temáticas da dependência
química, no formato que até aqui se descreve – grupos com dependentes e seus familiares,
77
reunidos periodicamente com orientação profissional ou leiga (em geral um usuário em
abstinência), dentro de settings específicos, como os salões paroquiais das igrejas.
Nesse ano de 2001, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) elegeu, como
título de sua Campanha da Fraternidade
51
, o tema “Vida sim, drogas o” (CONFERÊNCIA
NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL, 2001, p. 3). Com ampla divulgação e penetração no
discurso e na mídia católicos de todo o país, foi discutido exaustivamente o tema das drogas nas
comunidades, não apenas em um plano doutrinário, mas também em seus matizes mais
complexos.
(...) a Campanha da Fraternidade está voltada para o grave problema das drogas, que
vem afetando dramaticamente milhares de pessoas, famílias e muitos setores sociais. O
assunto está em seqüência às CFs anteriores, particularmente a de 1997, “Cristo, liberta
de todas as prisões”, a de 1983, “Fraternidade sim, violência não”, e a de 2000, que
versou sobre a dignidade humana, a paz e projetou um novo milênio sem exclusões. O
lema “Vida sim, drogas não” obviamente mantém a relação profunda das Cfs anteriores
com as estruturas políticas, econômicas e sociais de nosso país. (CONFERÊNCIA
NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL, 2001, p. 7).
Com um texto mobilizador, as diretrizes da Campanha da Fraternidade de 2001
motivaram vários freqüentadores dos movimentos pastorais do centro do município de Contagem
a questionarem seu próprio envolvimento com as drogas, bem como o de seus familiares. Viu-se
um grande contingente de pessoas que passariam a solicitar, e cada vez mais buscar, os serviços
da Pastoral da Saúde, voltados ao tratamento do uso abusivo de drogas, em grupos de ajuda
mútua para o tema.
O agir da Campanha da fraternidade de 2001 se situa no amplo campo da área da saúde,
que por sua vez revela uma sociedade seriamente enferma. Desejamos ações que visem a
saúde integral das pessoas, que é “resultante das condições de alimentação, habitação,
educação, renda, meio ambiente, trabalho, transporte, lazer, liberdade, acesso e posse da
terra e aos serviços de saúde”
52
, e, também, acesso ao direito de receber orientações
específicas de valores como ética, cidadania, sentido da vida, solidariedade.
(CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL, 2001, p. 65).
Estavam lançadas as bases para a efetiva instalação do trabalho que este texto se propõe a
investigar. Nos grupos que o Família Caná Contagem formava, cristalizavam-se algumas certezas
51
Mobilização católica de grande abrangência nacional, que ocorre todos os anos, desde 1964, em torno de um tema.
Comunidades em todo Brasil são convidadas, durante a quaresma, a refletir sobre os tópicos da Campanha
polêmicos, muitas vezes – com discussões no âmbito das paróquias, na fala dos ministros eucarísticos e sacerdotes.
78
– a de que o motivo para a busca inicial de ajuda seria preponderante no engajamento do
dependente, por exemplo – bem como surgiriam vários outros questionamentos.
3.5 A disposição do Grupo Família Ca Contagem e a construção do problema de
pesquisa.
“Militar é agir.
Pouco importam as palavras, o que interessa são os atos.
É fácil falar (...).”
Félix Guattari, 1981.
Em reuniões semanais, mantidas todas as segundas-feiras, dependentes e seus familiares
falam e ouvem sobre problemas e soluções atrelados ao uso abusivo de entorpecentes. Nas duas
horas de encontro, acontece a costura de histórias que compõem este texto. Nesta produção
discursiva, do grupo e da pesquisa, observam-se vivências particulares, muitas vezes traumáticas,
da maioria dos dados aqui apresentados.
O processo rumo à sobriedade, com participação no Grupo, implica todo esforço (de
disciplina, de trabalho, de sentido) em não mais utilizar as substâncias de abuso, observando a
proposta pontual e diária de não mais ingeri-las. Esta proposta é tomada de uma das influências
na formação do Grupo de Apoio Família Caná de Contagem/MG: a tradição dos doze passos dos
Grupos de Alcoólicos Anônimos.
53
A sobriedade, enquanto meta, é sustentada por participação
autêntica e acolhida no Grupo, bem como o seguimento (e pertinente questionamento) de
algumas de suas metas e políticas.
Primeiro passo (a ser seguido pelo ingresso na tradição de Alcoólicos Anônimos):
admitimos que somos impotentes perante as drogas/o álcool e que nhamos perdido o
controle de nossas vidas. Segundo passo: viemos acreditar que um Poder Superior a nós
mesmos poderia nos devolver a sanidade. (…) Quarto passo: fizemos um minucioso e
52
O texto da CNBB faz menção à 8
a
Conferência Nacional de Saúde (1986), que foi assumida pela Constituição
Brasileira de 1988.
53
À frente serão expostos elementos que definem e embasam a atuação dos grupos de ajuda mútua quanto à temática
do alcoolismo e da dependência.
79
destemido inventário moral sobre nós mesmos. (…) Décimo passo: continuamos
fazendo o inventário pessoal e quando estávamos errados, nós o admitíamos
prontamente. Décimo primeiro passo: procuramos, através da prece e meditação,
melhorar nosso contato consciente com Deus, na forma em que o concebíamos, rogamos
apenas o conhecimento de sua vontade em relação a nós e forças para realizar essa
vontade. Décimo segundo passo:tendo experimentado um despertar espiritual graças a
esses passos, procuramos transmitir esta mensagem aos drogaditos/alcoolistas e praticar
esses princípios em todas as nossas atividades. (MARTINS, 2000, p. 2-15).
Neste, o exercício de disciplina é sempre reforçado por outros membros na recompensa
dada com palmas quando se diz do tempo em abstinência, com a escuta mais atenta de um relato,
com a conquista de olhares fixos para algo de que se fala e/ou se descreve.
Para que o Grupo se constitua como tal, fruto de inserção coesa e freqüente, é necessário
que usuários crônicos de drogas procurem, elaborem e se deixem atravessar por uma nova prática
e discurso. Atitude crítica, frente a um problema complexo, que possui suas particularidades. Os
fatores que motivam a busca e o engajamento destas pessoas no Grupo têm papel preponderante
na montagem dos processos grupais e, por conseqüência, impacto nos modos de subjetivação a
serem processados. Identificações e produção de sentido se engendram processualmente, no
agenciamento criador que se torna o Grupo.
Os comportamentos individuais e coletivos são regidos por múltiplos fatores. Alguns são
de ordem racional ou parecem ser como, por exemplo, os que podem tratar em
termos de relação de forças (...). Outros, ao contrário, parecem depender principalmente
de motivações passionais, sendo difícil decifrar suas finalidades e podendo, às vezes,
conduzir os indivíduos e os grupos implicados a agir contrariamente aos seus interesses
manifestos. (GUATTARI, 1981, p. 165).
A identificação com o grupo pode também vir da necessidade de pertencimento a alguma
instituição, a alguma forma de vínculo, e não da real razão abstinência com participação e
aprendizagem – para estarem ali em conjunto. Como observa Frey (2003), em depoimento
pessoal,
No palco, um cara da minha idade começa a contar sua história. Ele bebia cerveja e
fumava maconha quando garoto e ficou brio aos 14 anos. Entrou para os AA,
encontrou o Poder Superior, que mudou sua vida. Passou a tirar A no colégio e entrou
para Harvard. (...) Não me identifico com esse homem de jeito nenhum. (...) Desconfio
que, se não tivesse encontrado os Doze Passos, teria entrado para s Testemunhas de
Jeová, ou para a Igreja Pentecostal (...) ou para o Grupo de Redenção Ufológica.
Desconfio que sua entrada nos AA o tenha nada a ver com cerva, erva ou com
qualquer tipo de dependência, mas com uma necessidade desesperada de pertencer a
algum grupo. (FREY, 2003, p. 107)
80
A inserção em um grupo de ajuda mútua, e a esperança nele instilada, podem inverter as
características de fragilidade frente ao problema, ou posturas de extrema resistência frente à
necessidade de se entender as dimensões reais dos problemas. Não se faz, em um primeiro
momento, com que o indivíduo se encontre, singularizado e com sentido pleno, no total comando
de seus próprios atos. Mas que sua “(...) fragilidade a ser revelada, a ser demonstrada pela prova
de forças” (GUATTARI, 1981, p. 12) com o exercício discursivo de aprendizado no grupo,
possibilite-o encontrar uma nova prática, mais sóbria e consciente. Pontos que contribuem para
um fortalecimento, mesmo que muitas vezes por vias indiretas, transversais como a
necessidade, a todo custo, de estabelecer e manter certas relações de vínculo e pertencimento.
Coordenador: O que você imaginava que o Grupo poderia fazer por você?
Sandra: (Pausa silenciosa). É o que faz hoje, sabe. Você chega lá, você escuta histórias
de pessoas. Você ouve aquilo e você vai aprendendo. Você vai vendo que realmente é
isso que eu faço. Que isso incomoda mesmo, que incomoda a sua família. Que incomoda
outras pessoas também. Incomoda mais a família, porque você passa mais tempo com
ela. Eu acho que sempre melhora. Você vai escutando aquilo e vai melhorando. (Sandra,
39 anos, dependente alcoólica).
54
Assim como se observa fortalecimento para os usuários, também são observados
benefícios para o grupo de familiares, na lida com seus usuários de álcool e drogas. Face à
ignorância no trato com indivíduos em tão alto grau de problemas, surgem complicações e atritos
de diversas ordens. Amparados por um discurso, onde encontram possíveis similaridades entre os
membros, muitos pais, mães, irmãos, esposas, filhos e amigos não se portam mais
exclusivamente com padecimento.
Coordenador: você é uma das pessoas que freqüentam este grupo desde sua fundação.
O que você aprendeu nestes anos todos de reunião e partilha?
Zélia: Hoje eu estou mais fortalecida! Não vou falar que sou uma pessoa feliz, mas eu
acho que se eu não estivesse freqüentando aqui eu tinha feito besteira... cheguei a
pensar em me suicidar. (Zélia, 52 anos, mãe de dependente químico).
55
Nesse discurso produzido no Grupo, em especial pelos indivíduos ingressos com mais
tempo, observa-se que os familiares não atuam mais frente à solidão da vivência de um problema
54
Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada no consultório particular do pesquisador, no centro de
Contagem/MG, em 27/02/2008.
81
complexo. O relato acontecerá entre pares, com pessoas que também passaram por situações
semelhantes. A busca será, também para os familiares, a de desenvolvimento de uma nova
prática.
A priori, os fatores que unem usuários crônicos de álcool e drogas, assim como seus
familiares, em um grupo de ajuda mútua, ocorrem em função da bebida e das diversas substâncias
de abuso. Aos poucos, outras necessidades (como as relações de pertencimento) surgirão e, junto
delas, o fortalecimento do vínculo. No entanto, é na distância da prática de consumo e
comportamento, que os trouxera e mantivera ali, que muitos usuários e familiares de usuários se
tornarão outra coisa, que não isso. No grupo, usuário crônico se sentará com usuário crônico,
familiar com familiar, o que não garante a razão de ser enquanto grupo. Na tentativa de se
descobrir do que se deve separar, o que se deve transpor, o que se deve atravessar para, então,
pensar a si mesmo em uma nova prática! – em que se inscreverá toda a potência de seu trabalho.
O que aconteceu com seu rosto?
Eu me machuquei.
Você machucou a si mesmo?
Mais ou menos.
Por que você fez isso?
Não foi de propósito. É o preço por levar essa vida.
A avó sorri e toca meu rosto gentilmente com a mão livre.
Espero que esteja deixando essa vida, James.
Sorrio, apreciando o calor de sua mão.
Vamos ver.
Ela assente com a cabeça. Seus olhos e sua mão entendem minhas palavras, viram e
sentiram esse tipo de estrago antes. Não me julgam nem me rebaixam. Apenas torcem.
Foi um prazer conhecê-lo.
Igualmente. (FREY, 2003. p. 130).
Amizade, respeito e dignidade serão alguns dos benefícios.
3.5.1 A dinâmica das reuniões do grupo de pesquisa.
55
Fragmento de reunião. Pesquisa de campo realizada no Grupo de Apoio Família Caná de Contagem/MG, em
08/03/2004.
82
A acolhida de cada reunião do Grupo de Apoio Família Caná de Contagem se em uma
sala ampla da Pastoral da Saúde, como foi dito, na Igreja Nossa Senhora do Rosário, no bairro
Alvorada, sempre às dezenove e trinta horas.
Por volta das sete horas da noite, começam a chegar alguns dependentes e familiares.
Nestes trinta minutos que antecedem as formalidades iniciais da reunião, vê-se também o
funcionamento do Grupo, verdadeiramente. Os temas e levantamentos da reunião anterior são
recapitulados, dependentes e familiares muito tempo ausentes são lembrados, são trocados
casos e experiências sobre a vida ao longo do contato com os entorpecentes, são ouvidas histórias
sobre alguém querido que os usa/usou drogas cronicamente. Essa conversa inicial é de suma
importância para o funcionamento do grupo, pois nela ainda não paira muitas de suas linhas duras
– a pontualidade, o respeito com silêncio àquele único que fala, o temor tácito de ser repreendido.
pouca possibilidade do re-endosso passivo de diretrizes e modelos passados durante a
formalização das reuniões, a conversa flui mais solta, mais leve, menos planejada de certa forma,
e ingênua. Não controle de presença, de conteúdo do falado ou do vivido, não se assina ou
tem-se que explicar nada, o discurso é tecido em meio à descontração. O que se diz é belo,
autêntico e inalienável.
A respeito desse momento desterritorializado, Frey (2003) aponta em depoimento pessoal,
quando de sua estada em um grupo de ajuda mútua na tradição americana de fazê-los cujo
arranjo se assemelha aos Grupos de Alcoólicos Anônimos.
Pela primeira vez que cheguei aqui, e parece que estou aqui desde sempre faz 50 anos
desde sempre, todos na Unidade sorriem e todos parecem felizes. Os homens riem,
conversam e interagem uns com os outros. Nada do que eles estão falando e nada do que
estão rindo tem a ver com a dependência ou alcoolismo ou perda do emprego ou da
família. Os homens circulam quebrando as barreiras dos grupinhos em que nos
congregamos, as pequenas facções que existem na Unidade, (...). Nossos passados
deixaram de existir, nossos futuros o apenas um distante temor. Nossa raiva e nosso
ódio, nosso fracasso e nossa vergonha, nosso remorso e nosso horror e a humilhação
com que todos convivemos foram esquecidos. (...) Somos homens nos divertindo
comendo (...). Também quero comer, mas assistir a essa cena é lindo. Lindo. (FREY,
2003, p. 375).
Às sete e trinta da noite, o burburinho da conversa inicial dá lugar a um silêncio inquieto.
Rostos se procuram de forma velada, olham para os pulsos avisando o horário, a necessidade do
início. Assentados, familiares e dependentes reunidos em uma mesma sala, todos são convidados
83
a ficar de por Dona Lourdes voluntária desde o primeiro curso de formação de agentes
pastorais, na Associação Família Caná do bairro Padre Eustáquio, e presente desde a primeira
reunião do Família Caná de Contagem, no dia sete de agosto de 2000. Carinhosamente, ela
escolherá um membro para ler o Evangelho do dia, texto pesquisado e preparado com cuidado na
agenda bíblica, que sempre carrega consigo. Todos ouvirão a leitura de pé, alguns com os olhos
fechados, outros concentrados em quem lê, uns ainda estarão dispersos. Assentados, novamente,
ouvem comentários livres sobre a leitura, iniciados por Dona Lourdes, cuja palavra é passada a
qualquer membro que se sentir à vontade.
Este movimento inicial do Grupo, com duração de dez a quinze minutos, é com
desenvoltura desempenhado pelos membros antigos. É possível perceber o vínculo que alguns
membros possuem com a linha dura do movimento ritual assentar-se, acolher quem chega,
silenciar-se, ouvir o Evangelho e novamente se assentar para ouvir os comentários. Este sentido
de vínculo, de rito, é a garantia para muitos de mais uma semana se passou sem contato com os
entorpecentes que motivaram, depois de um longo e tortuoso tempo de contato, a primeira busca
ao Grupo. Por outro lado, também é possível perceber o embaraço de alguns novatos,
comportando-se por imitação, com olhar atento, na tentativa de se prever e copiar o movimento
de algum membro iniciado.
Já são sete e quarenta, os membros que chegam pela primeira vez se encontram inquietos,
falta-lhes repertório de como se portar frente a tantas pessoas diferentes. O motivo que os traz ao
Grupo, também não lhes é muito agradável. Ainda não tem o entrosamento, já observado entre os
membros, nos minutos iniciais que antecederam a reunião, falta-lhes aparato de linguagem ou
controle emocional para o relato de um complexo momento de suas vidas.
Até então, muitos dos novos ingressos não sabem o que ali encontrariam. Na análise
seguinte, feita a partir de depoimentos de dois membros do “Família Caná” de Contagem/MG,
selecionados para entrevistas individuais, encontram-se dois interessantes movimentos:
1) Um hábito, originalmente prazeroso, conduziu a uma vivência de preocupação e
sofrimento. Portanto, será preciso fazer algo. Freqüentar um grupo de ajuda mútua para tratar de
algo que se negava com resistência, em especial longe da substância de abuso (e os efeitos de sua
abstinência), se mostra como uma tarefa complexa e de difícil empreendimento. Na primeira
reunião, potencialmente, antes da dignidade e do reconhecimento de possibilidade de novas
84
práticas de si, vive-se uma nova sensação causada pelas substâncias de abuso: o fracasso pessoal
e a exclusão, sem mesmo a utilização delas.
Coordenador: Então, senhor Bento, quando veio a necessidade de dizer para o senhor
mesmo que teria de parar?
Senhor Bento: Aconteceu um problema que eu não sei... me contaram que tive um grave
problema dentro de casa. Tinha quebrado muita coisa, naquele estado de nervo, não me
reconhecendo... um amigo próximo me perguntou se eu queria parar de beber. E eu
supliquei, do alto da minha resistência que era tudo que eu queria mas a muito tempo
não conseguia. Me convidou para uma reunião, dizendo que eu iria agradar, assistir...
no Pilar (Grupo de AA, em Contagem), eu gostei da reunião, nunca imaginei que aquele
lugar era assim. Para mim alcoólatra era cara que estava na sarjeta, quase um marginal,
um al-co-ó-la-tra. Nunca passou pela minha cabeça de ir lá, achava até que aquilo
manchava a pessoa perante a sociedade, um ponto uma nota negativa na sua
personalidade. (Senhor Bento, alcoolista, membro do grupo de dependentes, 50 anos).
56
2) De outro lado, a tentativa de encontrar, entre possíveis iguais, o norte perdido. O
potencial criador do grupo pode ser benéfico elemento, reconhecido mesmo antes de sua entrada.
O trecho abaixo, colhido junto a uma freqüentadora assídua do Grupo de Apoio “Família Caná”,
se configura como um elemento novo e de estranhamento
57
. Depoimento que reforça a idéia de
que instituições para a recuperação de alcoolistas e dependentes químicos, não são marginais e
excludentes para todos.
Coordenador: Que tipo de pessoa você achava que iria encontrar no Grupo? Quem era
o alcoólatra e o dependente que voiria encontrar lá? Descreva a sua idéia dessas
pessoas. O senhor Bento fala que achava que iria encontrar só moribundo, gente
barbada, suja...
Sandra: Eu pensava que iria encontrar pessoas como eu. Eu achava que iria encontrar
pessoas como eu, que precisavam de ajuda como eu. Pessoas normais. Porque vofica
desse jeito quando você bebe, quando você usando. você fica mesmo. Várias vezes
as minhas irmãs falaram comigo “eu vou te filmar!”, e não precisa. Assim, claro que
você tem uma idéia porque elas falam, não foram só elas que falaram comigo. Muitos
amigos, que assim, eu transformo. E, numa boa, eu vejo pessoas que usam que realmente
ficam transformadas mesmo. Se você vai num lugar desse, é porque eu acho que você tá
sóbrio. (Sandra, 39 anos, dependente alcoólica).
58
Postura reforçada pelo depoimento de Dona Lourdes Ferreira, voluntária desde a primeira
reunião do “Família Caná” de Contagem/MG.
56
Dados da entrevista. Pesquisa de campo realizada nas dependências da Pastoral da Saúde Nossa Senhora do
Rosário, no bairro Alvorada, em Contagem/MG, em 15/10/2003.
57
Do pesquisador inclusive.
85
Lourdes: ela (a leitura do Evangelho do dia
59
) chama a atenção nossa, não é?! Para que
não julgue ninguém, e antes que levante os olhos para atirar a primeira pedra pode ser
que nós mesmos estamos precisando de uma pedreira. Então, eu acho que o julgamento
não cabe a nenhum de s não. Esta passagem é muito forte e bonita, quantas são as
pessoas que julgam os outros que usam drogas? Por que não acordam? Vamos olhar para
trás e saber quais também são as nossas falhas, como amigos e familiares destes
dependentes. Não cabe a nós julgar. A Palavra vem para nos ensinar.
Coordenador: a senhora, hoje em dia, quando passa frente a um dependente, quer seja
aqui no Grupo ou a um bêbado na rua, olha para esta pessoa de maneira diferente?
Lourdes: acredito que passo frente a estas pessoas e as vejo aqui próxima do que toda
vida pensei. (Há uma pausa, os olhos se fecham) Tenho muita pena, mas os enxergo
como seres humanos, como pessoas que sofrem, e como a gente
60
. (Lourdes Ferreira, 65
anos, voluntária no Grupo de Apoio).
61
Casas de recuperação, fazendas de internação ou mesmo (os mais acessíveis) grupos de
ajuda mútua para dependentes químicos podem ter o seu potencial de tratamento e acolhida
reconhecidos, antes mesmo da primeira busca. No entanto, é ressaltada a necessidade de reflexão
consciente da real necessidade de se parar o consumo, fruto de uma ética e de um cuidado de si,
para que o trabalho nessas instituições tenha seus objetivos primordiais atendidos.
Dadas as boas-vindas, pede-se que cada um diga os nomes e os motivos que os trouxeram
até ali. Reforça-se o vínculo, olha-se nos olhos, tenta-se quebrar-lhes o movimento resistente
inicial, o seco gelo.
O aprendizado de diretrizes para a manutenção da sobriedade, de políticas pessoais e de
apoio ao grupo familiar, acontece de forma diferenciada, para o grupo de usuários e para o grupo
dos familiares. Tomando “consciência da sua força irresistível face à fragilidade do inimigo”
(GUATTARI, 1981, p. 12), dependentes vêem possibilidades de se manterem resistentes ao novo
consumo, com participação e discussão das diretrizes propostas pelo grupo; assim como seus
familiares encontram resistência para atuarem com equilíbrio frente às complicações do uso
abusivo, por partes de um de seus amados membros.
Na tentativa de consolidar tal aprendizado, a acolhida, a reflexão inicial e o recebimento
aos novos visitantes antecedem um importante momento de corte para ambos, dependentes e
familiares. Ao longo dos próximos sessenta minutos da reunião, o grupo será separado. Na
mesma sala que estavam, maior e mais ampla, ficarão os familiares (pois, geralmente, se
58
Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada no consultório particular do pesquisador, no centro de
Contagem/MG, em 27/02/2008.
59
Evangelho de Mateus, capítulo sete, versículos de um a cinco – parábola que faz refletir sobre a atitude de julgar
os outros.
60
Grifo nosso.
86
encontram em maior número). Na sala menor, ao lado
62
, mas não menos aconchegante, se
sentarão os dependentes.
É possível perceber, nos rostos dos recém-chegados, a estranha reação causada por esta
divisão expressões, muitas vezes, de surpresa e de desamparo. A separação se dá,
primeiramente, por uma configuração de tempo, no intuito de melhor aproveitá-lo, bem como
para aprofundar o relato de dependentes e familiares de maneira diferenciada, assim como
preservar os aspectos intrínsecos a um determinado grupo à sua exclusiva problemática.
Em ambientes separados, cada membro tentará crescer com os tópicos que concernem
diferentemente aos tipos de vivências e problemas experimentados, no trato com as substâncias
de abuso. Durante uma hora, mesmo identificando algumas resistências, como um silêncio
intermitente, timidez, dificuldades de organização sucinta da fala
63
, dependentes e familiares
terão suas resistências e conteúdos trabalhados.
O que está em questão agora, é o trabalho da verdade e do desejo por toda parte onde
pinte encanação, inibição e sufoco. Os grupelhos de fato e de direito, as comunas, os
bandos, tudo que pinta (...) tem de levar um trabalho analítico sobre isso mesmo tanto
quanto um trabalho político fora. Senão eles correm o risco sempre o risco de sucumbir
naquela espécie de mania de hegemonia, mania de grandeza que faz com que alguns
sonhem em alto e bom som (...). (GUATTARI, 1981. p. 16).
Nesse ponto, há o risco de supervalorização dos elementos que atravessam por completo a
dinâmica do grupo: a postura do coordenador e um possível comportamento de soberba, a
confiança obediente e inquestionável em muitos de seus ditames, a idealização das linhas “duras”
do grupo suas normas e diretrizes aceitas sem um pessoal movimento de apropriação e
questionamento, sua mania de grandeza inerente.
O prosseguimento da reunião se dará com uma revisão da semana que passou. São
relatados, caso estes tenham ocorrido, os episódios onde os entorpecentes estiveram próximos e
os indivíduos fraquejaram, ou mesmo quando a opção de não mais ingeri-los vacilou, com o
possível relato de algumas recaídas. Fala-se também da cidade, de política, de futebol, de algum
fato relativo ao consumo de álcool e drogas – em geral noticiado na mídia de massa.
61
Fragmento de reunião. Pesquisa de campo realizada no Grupo de Apoio Família Caná de Contagem/MG, em
19/06/2004.
62
Local onde funciona o consultório para atendimento psicoterápico da Pastoral da Saúde, principalmente de
crianças, devido à presença de um grande armário com brinquedos.
63
Elementos observáveis quando da análise e transcrição das reuniões gravadas em áudio.
87
O tecido discursivo que se segue, no Grupo dos dependentes, é composto por uma intensa
vivência verbal da substância de abuso
64
, e não no seu contato direto ou consumo. É possível
ouvir relatos bem humorados da época em que o consumo ainda não havia se configurado como
algo pernicioso.
Contagem era um lugar que não tinha praticamente diversão, um cinema velho, a praça
com o “footing” (risadas) onde paquerávamos as meninas e um bar grande, com uma
daquelas mesas enormes de “sinucão”. Lá (o bar) era, praticamente, podemos dizer, uma
das únicas diversões. No Natal, a tradição de tomar champagne, já desde pequeno
gostava. Nas festinhas esporádicas, uma cerveja, uma cuba-libre, você sabe como é...
Depois, ficando mais velho e mais experiente, ou quem sabe até mais bobo, já começava
outra turma, não tinha a polícia observando ou os donos de bar com receio de vender...
então, ah! Com dezoito anos, a cara de crescido com um pito na mão e uma cerveja do
lado. Tomava uma cerveja... fazia parte da masculinidade. (Senhor Bento, alcoolista,
membro do grupo de dependentes, 50 anos).
65
A progressão para a instalação da dependência é constatada nos relatos.
A princípio e durante muito tempo eu considerava aquilo como diversão. Era a primeira
das diversões. Com o tempo, qualquer divertimento que eu tivesse programado era
aquilo. O álcool fazia parte, era um acompanhante inseparável das minhas noites...
Quando me ofereciam caem alguma visita, chegava até a achar que era desfeita. A
garrafa de bebida em cima da mesa completava de alegria aquele dia. (Senhor Bento,
alcoolista, membro do grupo de dependentes, 50 anos).
66
Aos poucos, a temática negativa que circunda o abuso aparece. Rostos se inclinam para
cima e para baixo, como em sinal de consentimento. Os relatos dos dependentes,
independentemente da idade ou do entorpecente em questão, são bastante similares, afirmam e
desembocam nos buracos-negros criados pelas linhas-de-fuga da dependência. Contam, por
exemplo, de experiências em outros centros, antes de buscarem apoio no Família Caná
Contagem, das motivações e dos percalços em contato com as substâncias de abuso.
Coordenador: Como você chegou até o Grupo?
Lucas: Olha, Jairo, eu cheguei até o Grupo porque minha vida estava alterada pela
bebida. Eu procurei lá força, e encontrei. Muita gente procura o AA, foi lá (no Grupo
“Família Caná” de Contagem/MG) que eu encontrei.
Coordenador: O que você vivia naquela época, que te fez chegar até o Grupo?
64
Sendo o álcool predominante.
65
Dados da entrevista. Pesquisa de campo realizada nas dependências da Pastoral da Saúde Nossa Senhora do
Rosário, no bairro Alvorada, em Contagem/MG, em 15/10/2003.
66
Dados da entrevista. Pesquisa de campo realizada nas dependências da Pastoral da Saúde Nossa Senhora do
Rosário, no bairro Alvorada, em Contagem/MG, em 15/10/2003.
88
Lucas: (pausa silenciosa). Viver? Naquela época, eu acho que eu não vivia, não.
Coordenador: Como é que é?
Lucas: Eu vivia pra beber! Era do boteco para o serviço. Tanto é que a família tava
ficando abandonada. Foi na hora que eu cheguei num ponto de tomar a decisão de parar.
Coordenador: Como era o seu padrão de consumo na época? Você bebia quanto,
quantas vezes por semana?
Lucas: Jairo, eu vou falar com você viu, eu já cheguei a gastar demais. Chegava um fim
de semana, um domingo, eu levava cinqüenta reais para um boteco, era num tapa. Eu
gastava quase cem reais por quinzena de boteco. (Lucas, 42 anos, dependente
alcoólico).
67
Vontade de parar, cobranças de diversas ordens, eventos de recaídas, são pontos
elaborados e repetidos pelos dependentes durante as reuniões. A função do Grupo é ressaltada,
em especial, quando um dos membros se encontra vergonhoso pelo fato de ter novamente usado.
A acolhida no Grupo deve se dar, como sua razão de ser,
(...) da melhor maneira possível. Veio gente me procurar, para conversar comigo...
contando as próprias experiências de recaída. Inclusive quando voltei a chutar o balde,
não tinha mais sossego de beber, receando que eles (outros membros) iriam aparecer na
porta do bar e me julgar. Que bobagem, no grupo a função de cada um é acolher com seu
próprio relato e convidar os outros. Ficava no canto do bar, com medo, aquela coisa de
alcoólatra... Reingressava, mas cada vez com o espaço de tempo menor, não teve jeito, a
obsessão falava mais alto. A minha fraqueza foi bem maior, a recaída é barra. (Senhor
Bento, alcoolista, membro do grupo de dependentes, 50 anos).
68
Afirma-se o caráter importante do Grupo na manutenção da sobriedade.
A convivência é uma necessidade do homem, não é? (...) o grupo é da maior importância
para dar continuidade à minha sobriedade. Eu venho, tenho a satisfação de mostrar para
o grupo que o grupo funcionou para mim. É um sinal de gratidão ao que esta Família
Caná fez por mim, o que a doutora Nívia fez por mim. Então eu me sinto feliz, satisfeito,
por demonstrar este sentimento. E venho para dar testemunho a outros que estão em
cima do muro (...) E cada vez que venho aqui, que ouço estes casos, que elaboro as
coisas que aparecem no grupo para serem vividas, pessoas buscando ajuda, isto me
reforça. Porque muitas vezes pessoas que chegam aqui procurando ajuda, o problema era
semelhante, ou igual ao meu. Outros maiores que o meu, outros menores, então isto tudo
me reforça para voltar. A dar continuidade, continuar valorizando a minha vida, a minha
auto-estima, gostar de mim mesmo - porque eu não gostava de mim, e hoje eu gosto,
penso duas vezes antes de fazer determinadas coisas. Gosto do grupo, eu chego aqui e o
grupo está cheio... Que vontade que eu tenho de ver isto aqui lotado toda vida, o pelo
fato de pessoas estarem precisando de ajuda, porque sei que muita gente precisa, não
falta, não tem lugar que cabe, Mineirão seria o lugar ideal para colocar todo este povo.
67
Dados da entrevista. Pesquisa de campo realizada no consultório particular do pesquisador, no centro de
Contagem/MG, em 29/02/2008.
68
Dados da entrevista. Pesquisa de campo realizada nas dependências da Pastoral da Saúde Nossa Senhora do
Rosário, no bairro Alvorada, em Contagem/MG, em 15/10/2003.
89
Eu queria que o grupo pudesse ficar cada vez mais forte, sinceramente é isto que eu
desejo. (Senhor Bento, alcoolista, membro do grupo de dependentes, 50 anos)
69
.
3.5.2 A entrada no grupo de familiares.
O atendimento em grupo, a familiares de usuários de um serviço de saúde, remonta às
duas primeiras décadas do último culo, com Adler e colaboradores, na Áustria (BECHELLI;
SANTOS, 2004). Em 1921, o Centro de Aconselhamento para Pais e Filhos de Viena formava
grupos que tratavam pacientes e, concomitantemente, suas famílias. Para Bechelli e Santos
(2004), em pesquisa sobre o histórico das práticas grupais e de seus fatores terapêuticos,
Os psicólogos adlerianos desenvolveram abordagem de grupo considerando o homem
um ser social. Sendo assim, o dispositivo grupal oferece oportunidade de reproduzir as
mesmas condições presentes na origem da personalidade. (BECHELLI; SANTOS, 2004,
p. 5).
Também para Minayo e Schenker (2004), “o funcionamento do indivíduo está
reciprocamente interconectado ao dos outros indivíduos que compõem o seu primeiro contexto
relacional: a família.”(MINAYO; SCHENKER, 2004, p. 7). Para ambas autoras, a drogadição se
mostra como um conjunto de comportamentos desajustados que refletem problemas do sistema
familiar como um todo. (MINAYO; SCHENKER, 2004). Em levantamento bibliográfico
anterior, Minayo e Schenker (2003) ressaltam que
A família tem um papel importante na criação de condições relacionadas tanto ao uso
abusivo de drogas pelo adolescente quanto aos fatores de proteção, funcionando
igualmente como antídoto, quando o uso de drogas já estiver instalado. (MINAYO,
SCHENKER, 2003, p. 4)
A lida do grupo dos familiares, com as drogas e o álcool de seus entes, remete a uma série
de dificuldades. Observou-se que, no grupo de ajuda mútua pesquisado, freqüentemente,
familiares são agredidos, têm suas finanças violadas, são manipulados pelas ameaças dos
69
Dados da entrevista. Pesquisa de campo realizada nas dependências da Pastoral da Saúde Nossa Senhora do
Rosário, no bairro Alvorada, em Contagem/MG, em 15/10/2003.
90
próprios usuários, dos órgãos de vigilância do Estado e da justiça paralela do tráfico dívidas e
cobranças, atentados contra a vida, retiradas de bens e posses de casa, dentre outros.
Deles escutam muitas mentiras, além de terem o equilíbrio emocional questionado. Assim
descreve, um dependente em recuperação, as relações com os outros que o amam:
Dê-me algo de bom, eu o destruo. Ame-me, e eu te destruirei. Nunca me senti merecedor
de nada na vida. Nunca senti que era digno do espaço doente que ocupo. Esse sentimento
permeou tudo que fiz, vi ou com quem me envolvi na vida, e infectou todo
relacionamento que tive com todos que já conheci. Não entendo. Não entendo porque ele
existe. Odeio-o como odeio a mim mesmo e, por algum motivo, a presença de meus pais
sempre o agravou. Estão tentando me amar, mas sempre tornaram o sentimento bem
pior. (FREY, 2003, p. 252).
No entanto, a maioria dos familiares, que acompanha dependentes no grupo, vivencia os
problemas das drogas e do álcool de forma indireta e transversal, uma vez que não utilizam
quaisquer substâncias de abuso!
Geralmente os adictos e os usuários abusivos não mantêm uma família ou nunca
formaram uma e têm dificuldade em sustentar as estruturas familiares funcionando. Isso
se deve a sua grande dificuldade na regulação das relações e dos afetos. Os especialistas
costumam dizer que os adictos substituíram o relacionar-se com pessoas por um
relacionar-se com a substância de abuso. (MINAYO; SCHENKER, 2004, p. 5)
Usuários crônicos, com o efeito dessas substâncias de abuso, têm os sentidos maculados,
não se dando muitas vezes conta de sua atitude dissidente quando do uso. Os familiares, absortos
do entorpecente, vivem com o dependente exclusivamente as conseqüências perniciosas do
consumo continuado: a ausência (física e de consciência), o convívio conflitante, o cheiro e o
gosto desagradáveis, os hábitos de higiene e de cuidados pessoais que se esvaem, as cobranças
que se acumulam, a derrocada do sonho, das expectativas (para com os filhos, o marido, o amigo)
que não poderão ser postas em prática pelo sentido perdido.
Luciano: Esposa de alcoólatra fica doida! ela falou ficou contando uma história
que a intenção dela era matar o marido dela com um machado...matar o marido com um
machado, vê se pode!
Coordenador: e o que vem ao senhor ao ouvir isto, senhor Luciano?
Luciano: A intenção dela era matar, procurou o rapaz em um lugar e não achou, foi na
firma e não achou, ele estava sumido já fazia seis dias... até que um irmão dele falou
“Oh, você vai para casa, vai cuidar de seus filhos, porque eu fui dar conselhos a ele e ele
disse que eu já era um homem casado e deveria cuidar da minha família, porque da dele
ele cuidava”. Então, disse ela, que quando chegou em casa, ainda com intenção de partir
91
o marido com um machado, disse ela que viu um traste... um traste de gente deitado em
cima do sofá! Todo arreganhado com o estômago pregado nas costelas de tão magro... e
perguntou “Eu vou matar quem?! Eu vou matar quem está morto?! Ele estava
morto...!” Disse ela que pôs o machado de lado e foi esquentar uma lata de água para
tentar cuidar daquele que ela queria matar, mas que estava estirado no sofá... E que já
tinha morrido! (Luciano, 56 anos, dependente alcoólico).
70
O primeiro resgate, para o familiar, se na conscientização de que se viveu por muito
tempo aspectos que são intrínsecos à vida do dependente que este assiste. Como muitos usuários
chegam ao Grupo relatando a dignidade e os limites individuais perdidos, assim também o fazem
os familiares dos dependentes. As escolhas destes, acredita o familiar não iniciado, serem
passíveis de interferência – a rotina alterada pelo consumo, a proteção exagerada, o envolvimento
com o aparato policial caso o dependente se depare com algum tipo de infração, ou seja,
tentativas de controle ineficazes que visam à modificação do comportamento do outro,
simplesmente. Aos poucos, a vida do familiar, da mesma forma que a vida do dependente, passa
a ser de vigília sem singularidade e criação de expectativas negativas.
Lourdes: Nós mulheres?... Nós temos o privilégio da maternidade! Ser mãe é ter um
dom especial para cuidar dos filhos, do marido. Mas que sofre também, que também
acaba ficando doente também. Acho que não dei bem a resposta que você perguntou,
ainda... (Lourdes Ferreira, 65 anos, voluntária no Grupo de Apoio).
Coordenador: Você jogou, dona Lourdes, a semente para que eu perguntasse à Zélia,
que também é mãe, justamente o que é ser mãe de dependente químico?
Zélia: Boa noite, Família. Não é fácil, é complicado! Dói na alma... Dói porque você
seu filho se destruindo. que hoje não tanto mais, de uns tempos para cá, graças a
Deus, graças ao Grupo, hoje eu posso até falar disto. Antes doía mais porque eu não
conseguia nem mesmo falar, antigamente eu só chorava. Eu deixei de viver a minha para
viver a vida dele, cada tombo que ele levava, acontecia de também me jogar no chão...
você vê seu filho drogado, você sofre muito! Hoje, muitas coisas que ele faz, eu vejo que
são prejudiciais para ele. Eu já mostrei o caminho, que ele tem que seguir para sair desta,
e ele ainda está dentro do negócio. Pelo menos hoje eu voltei a viver minha vida! (Zélia,
52 anos, mãe de dependente químico).
71
A solidão de viver inteiramente o problema do filho dependente é um relato constante,
observável junto à participação de mães no Grupo de Apoio Família Caná Contagem”. Imersas
em um problema sobre o qual sabem muito pouco além do sofrimento de vivenciá-lo, juntamente
às informações descontextualizadas veiculadas na mídia e conversas com pessoas próximas, estas
mulheres se vêem frente ao fracasso de uma maternidade sonhada tranqüila.
70
Fragmento de reunião. Pesquisa de campo realizada no Grupo de Apoio Família Caná de Contagem/MG, em
01/03/2004.
92
Ela (a mãe) vasculhou minhas coisas e leu minhas cartas para saber o que eu fazia e
assim poder me controlar. Tentar me obrigar a dizer o que tinha no saco (de maconha,
achado em um casaco) quando ela já sabia era uma forma de controle. Quando caiu
depois de me chutar, não ficou transtornada porque não conseguiu me acertar, mas
porque percebeu que, naquela altura, eu já estava fora de controle. (FREY, 2003, p. 297).
São comuns no relato de mães, esposas, amigas cenas que acompanham muitos casos
de abuso de entorpecentes por jovens, e que esfacelam as expectativas positivas naturalmente
criadas por estas relações. Os estudos de Minayo e Schenker (2004),
mostram que os distúrbios no uso de drogas psicoativas estão associados ao uso de
drogas pelos adolescentes com baixa auto-estima, sintomas depressivos, eventos de vida
estressantes, baixa coesão familiar e ligação com amigos que consomem drogas.
(MINAYO; SCHENKER, 2004, p. 4).
Na maternidade, no casamento, na amizade, tem-se vivência de intensos conflitos
envolvimento com traficantes, problemas com a polícia, sumiço de objetos de dentro de casa,
endividamento, chegada do filho embriagado em casa, abandono da escola, desinteresse pelo
trabalho e pelos estudos - que vão, todos, de encontro ao ideal de filho e maternidade comumente
pregado. aqui, também, uma questão de gênero colocada. O grupo de familiares é, em sua
maioria, composto por mulheres – mães, esposas, amigas – desses dependentes.
Familiares participam ativamente da dependência de seus filhos, maridos, sobrinhos e
tentam apaziguar suas conseqüências negativas. No entanto, a maioria não compartilha do
consumo exagerado, com o prazer que as drogas dão ao dependente, e que delas este fica refém.
As mentiras, construídas pelos dependentes, são também vividas pelos familiares, perpetuando
um nocivo ciclo de convivência.
Coordenador: como lidar com as mentiras dele, por exemplo?
Zélia: se ele fala dezenove palavras dezoito e meio são falsas. Eu não confio nele mais!
Coordenador: demorou para “cair esta ficha”?
Zélia: o tempo nem importa muito não, no fundo a gente sabe que não é verdade, a gente
é que não quer acreditar... Tenho que me sacudir todo dia para que possa por o no
chão. (Zélia, 52 anos, mãe de dependente químico).
72
71
Fragmento de reunião. Pesquisa de campo realizada no Grupo de Apoio Família Caná de Contagem/MG, em
08/03/2004.
72
Fragmento de reunião. Pesquisa de campo realizada no Grupo de Apoio Família Caná de Contagem/MG, em
08/03/2004.
93
A matemática da participante traduz a confusão e os mecanismos de proteção que se
desenrolam, em uma situação como esta.
É comum, antes da primeira procura por grupos de apoio, os familiares se trancarem em
seu próprio sofrimento, acreditarem que seu problema e fracasso são únicos muito semelhante
ao movimento dos dependentes. Dessas pessoas, os familiares passam a ter vergonha, se sentem
impedidos do convívio social, se achando estigmatizados. Lembremos do fragmento que ilustra
este movimento resistente:
Para mim alcoólatra era cara que estava na sarjeta, quase um marginal, um al-co-ó-la-tra.
Nunca passou pela minha cabeça de ir lá (no antigo Grupo de Alcoólicos Anônimos de
Contagem/MG), achava até que aquilo manchava a pessoa perante a sociedade, um
ponto uma nota negativa na sua personalidade. (Senhor Bento, alcoolista, membro do
grupo de dependentes, 50 anos).
73
Imobilizados, até a chegada no Grupo, os membros do grupo familiar não têm impelida a
procura por entendimento, aprendizado e tentativa de solução. Como os dependentes,
inconseqüentes quando do uso crônico, tomam atitudes precipitadas, agridem verbal e
fisicamente posturas que, após aprendizado de diretrizes no Grupo, passam a perceber como
equivocadas.
O sentimento de fracasso é presente no relato dos familiares. As crises dos dependentes se
tornam cada vez mais constantes, com o aumento das cargas e da complexidade de substâncias de
consumo. Agravam-se as ameaças (dos traficantes, da polícia, de si mesmos), as conseqüências
físicas do uso prolongado de drogas pesadas se tornam mais visíveis, assim como as tentativas
frustradas de parada serão sempre motivo para mais desânimo. As intensas crises de abstinência
no ambiente de convivência familiar (tremores, quebradeira, alucinações), e a total incapacidade
de lidar com os próprios sentimentos conduzem, para um completo caos existencial, mulheres e
homens responsáveis por seus respectivos usuários crônicos.
Em geral, familiares buscam apoio quando um dos problemas descritos se manifestou
de forma grosseira encaminhamentos dos Conselhos Tutelares, pelos juízes dos Tribunais de
Justiça, pelas autoridades policiais, pelo serviço de assistência social das prefeituras, pela
indicação de membros freqüentes do Grupo que, na abertura de espaço para uma conversa
franca, convidam estas senhoras e estes senhores para o convívio e a partilha de experiências.
94
A acolhida dos familiares no Grupo é, em muitos casos, mais fácil do que a dos próprios
dependentes, fruto de identificações e instâncias peculiares. Os benefícios das primeiras reuniões
são também facilmente visíveis. Engajadas em um relato que diz muito dos problemas, vividos na
solidão da casa esfacelada, estas pessoas se fortalecem, se encontram com iguais, aprendem sobre
a droga que seus filhos e amados consomem. No Grupo, sobretudo, os familiares entendem como
se constrói o processo de abstinência e a possibilidade de ajuda destes no seu processo de
aquisição.
No entanto, não haverá aprendizado maior e mais especial para os membros do grupo de
familiares que o importante e essencial distanciamento do consumo abusivo e dissidente de seus
dependentes. instâncias na vida pessoal dos familiares que devem ser valorizadas e
resgatadas, já que se perdem – como demonstram os dados colhidos na pesquisa na tentativa de
se controlar (e viver) a vida de seus amados, de seus filhos. Abrem-se os olhos para as soluções
de vários problemas, que lhes eram próximas há muito tempo, mas não sabiam.
Minayo e Schenker (2004), após extensa pesquisa bibliográfica sobre práticas grupais e
atendimento familiar de aditos assim concluem,
Mede-se, em geral, a eficácia de uma intervenção pelo engajamento, retenção e
modificação do comportamento relacionado ao problema. Estudos empíricos sustentam a
idéia de que as abordagens de família são, de uma forma geral, mais bem sucedidas do
que outras, para engajar clientes relutantes, sobretudo na retenção dos sujeitos no
tratamento de abuso de drogas. As pesquisas oferecem algum suporte de confiança na
terapia de família para adultos adictos, além de corroborarem seu uso para tratamento de
adolescentes. (MINAYO; SCHENKER, 2004, p. 8).
Zélia
74
, mãe de dependente químico, com histórico de consumo iniciado ainda no começo
da adolescência e que, até data de coleta deste fragmento, se encontrava consumindo. O
comportamento de Heitor, seu filho, motivava a procura semanal e assídua ao Grupo.
Zélia: tinha que estar acompanhando todos os passos dele, hoje faço um esforço para
estar me libertando. Ainda tenho pesadelos horríveis, em que ele tinha sido assassinado,
acordando em pânico, com as mãos na cabeça (ela representa com suas mãos e a
expressão do rosto)...
Coordenador: o que vem neste desespero, Zélia?
Zélia: vê-lo, no sonho, na missa de sétimo dia dele... Ele trocando tiro com bandido.
73
Dados da entrevista. Pesquisa de campo realizada nas dependências da Pastoral da Saúde Nossa Senhora do
Rosário, no bairro Alvorada, em Contagem/MG, em 15/10/2003.
74
Nome fictício, que preserva a identidade da entrevistada. O mesmo se dá para o nome de seu filho.
95
Coordenador: como colocado por dona Lourdes no início da reunião, mãe é ter uma
ligação forte com os filhos, algo que vem juntamente com a da maternidade, suas
representações de singularidade, afeto, acolhida... Você acredita ter perdido isto?
Zélia: ser mãe é ter uma ligação muito forte com uma pessoa, realmente! Nós que somos
mães de dependentes estamos sempre procurando onde nós erramos... Mas aí, hoje, eu
faço uma análise: eu tenho outros dois filhos, mais novos do que ele, que são com
relação a este problema totalmente diferentes. Ele se perdeu, e foi o único! Quando ele
diz “eu fui o mais fraco”, eu pergunto se não está na hora dele acordar. A resposta
dele é que é tarde demais...
O
consumo dele já está em um padrão muito exagerado,
elevado mesmo. Quinta-feira ele chegou muito tonto, muito louco mesmo, com as
calças molhadas. Foi chegando e deitando. Primeiramente agradeço por ele ter chegado
vivo, ou pelo menos ter chegado. Vivo de verdade é outra história! (Zélia, 52 anos, mãe
de dependente químico).
75
As personagens e as histórias, mostradas neste movimento introdutório, são exemplos de
uma complexa modalidade de sofrimento psíquico contemporâneo: a dependência química, em
muitas de suas facetas. A vergonha, as mentiras, o sofrimento do familiar de um dependente
químico, a convivência e o processo grupal como fatores terapêuticos, a acolhida no grupo, os
problemas causados pela dependência, a escalada da droga na vida do indivíduo e a modificação
(poupando o termo degradação) causada em seu corpo e em seu meio social seriam subtítulos
atribuídos
76
para cada um dos fragmentos de reunião ou entrevistas citados nas últimas oito
páginas.
Retratos de vida que contam tristemente a ampla ramificação de um problema, que
constatam a pertinência do tema e do pesquisar sobre dependência química. Esses relatos e o
estabelecimento de uma possível cartografia do problema do álcool e das drogas na atualidade,
reforçam o fazer algo (pessoal, bem perto de nós, e político, mais abrangente) para que
dependentes químicos e seus familiares tenham mais dignidade. Para assim, também, oferecer um
possível esboço de rotas e linhas de fuga. Vetores que possam se entrecruzar, despertando
práticas de si, dentro e fora dos grupos.
A idéia central da literatura sobre tratamento em instituições é de que a família diluída
desengajada dentro de um processo social mais amplo precisa reaver a função de regular
sua vida relacional. Nutrir um processo familiar significa auxiliar a criança
negligenciada a ser ouvida e respondida por seus pais, reforçando as relações primárias
e, não, criar um ambiente asséptico (...), onde os conflitos familiares são evitados e não
resolvidos. (MINAYO; SCHENKER, 2004, p. 11).
75
Fragmento de reunião. Pesquisa de campo realizada no Grupo de Apoio Família Caná de Contagem/MG, em
08/03/2004.
76
Pela professora doutora Cláudia Lins, na leitura e análise desse texto quando para o exame de qualificação.
96
Esse movimento pode conduzir pessoas a se encontrarem consigo próprias, com os outros
que as acompanham no grupo ou as circundam no dia-a-dia, sem a mácula de consciência, e que
também resgate a sobriedade e a humanidade de ambos (familiar e dependente), perdidas ao
longo do tempo. Afinal, “a mudança em um de nós, provoca reverberação em todo o sistema.”
(MINAYO; SCHENKER, 2004, p. 12).
3.5.3 A dimensão religiosa no grupo de pesquisa: o sagrado e o político.
“O Sagrado é algo que nos atrai de maneira arrebatadora.”
José Paulo Giovanetti, 1999.
A realização das reuniões do “Família Caná” de Contagem/MG em um salão paroquial,
bem como seu vínculo de fundação e formação em uma instituição religiosa tradicional, dão
especial dimensão à vivência de crença e de religiosidade no grupo. Nele, o sagrado é objeto de
valorização absoluta, misteriosa e intocável (GIOVANETTI, 1999), que transcende a vivência
dos membros iniciados.
Em um lugar destes, se muito a fé. Chegam pessoas de todas as crenças, pessoas que
não são batizadas, que nunca participaram de movimentos sociais. Por ser uma casa de
oração, grande parte do tempo se convida à oração. Então a pessoa que chega aos poucos
vai acordando. (Pausa). Uma pessoa que nunca foi a uma igreja, nunca viu ninguém
rezar. (Mãos no rosto). Mas que dificuldade para fazer um adulto rezar uma Ave Maria!.
(Expressão mais branda) E de repente, pela força da oração, está vivendo melhor,
agarrado à Palavra mais do que a gente que acha que sabe de alguma coisa. Os primeiros
trinta dias são de trancos e barrancos, quando sessenta dias você fica impressionado.
Substitui um vazio, o buraco de dentro, sabe, pela religião. (Luciano, 56 anos,
dependente alcoólico).
77
Para melhor compreender essa dinâmica, levar-se-á em conta que espiritualidade e
religião influenciam o Grupo, enquanto duas dimensões distintas: espiritualidade e instituição da
prática religiosa.
97
1) Espiritualidade, para Mahfoud e Massimi (1999) se define na
(...) exigência de significado da vida e de todas as coisas, expressa-se em perguntas
sobre o porquê da realidade e da existência humana: qual o sentido da minha vida? O
que é a realidade que me envolve? Por que existo? Qual é o meu destino? E do mundo,
da história? Qual a utilidade do meu existir? Perguntas que emergem no cotidiano do
homem comum, que remetem continuamente a novas perguntas sobre o sentido de tudo,
e que inalienáveis esperam uma resposta que seja totalizante, pedem contato com
algo fundante da experiência de si, das coisas, do mundo. (MAHAFOUD; MASSIMI,
1999, p. 11).
2) Enquanto que religião, para Roehe (2004), diz mais respeito a um conjunto de
(...) entidades sociais ou instituições caracterizadas por crenças e práticas específicas,
normas para quem deseja se tornar um integrante e modos de organização social (...).
Sendo assim, pode-se dizer que a religião é a formalização social da espiritualidade.
(ROEHE, 2004, p. 401).
Para Roehe (2004), a influência positiva da prática religiosa acontece não se o indivíduo é
religioso, mas como este demonstra sua religiosidade.
“Numa visão geral, os efeitos positivos da religião são bem mais freqüentes que os
negativos. (...) A experiência religiosa compensa dificuldades vitais de tal modo que a
pessoa pode atingir um nível de ‘ajustamento’ além do que seria esperado.” (ROEHE,
2004, p. 401).
Pesquisar a espiritualidade no grupo pode oferecer subsídios para entendimento de como
esta pode promover um “melhor relacionamento interpessoal na família, na comunidade e na
própria Igreja” (ROEHE, 2004, p. 401), além do estabelecimento de um importante diálogo
questionador de si próprio. Em um trabalho que preza o conscientizar-se, o discurso religioso
pode reforçar o aspecto positivo da última citação. É fundamental o entendimento da natureza de
um hábito danoso e compulsivo o de se consumir álcool ou outras substâncias psicotrópicas de
abuso para a tentativa de se assumir uma nova prática de si, que conduz à abstinência pontual
com freqüência e engajamento nas reuniões de grupo.
A prática religiosa é fundamento essencial no processo de montagem do grupo; orienta
para o silêncio, para a comunhão, para a reflexão particular e para o entendimento de uma série
de valores. É importante avaliar que, por trás desses ganhos prescritos, também se inscrevem
77
Fragmento de reunião. Pesquisa de campo realizada no Grupo de Apoio Família Caná de Contagem/MG, em
98
inúmeras dificuldades de adaptação e aceitação, dos referidos aspectos religiosos, no
engajamento e na construção do discurso do grupo, por parte de alguns indivíduos. Insistir na
submissão a uma prática religiosa determinada, inquestionavelmente terapêutica e curativa, seria,
portanto, um erro. Segundo aponta Frey (2003), quando de resistência à modalidade religiosa do
discurso e da prática dos grupos de ajuda mútua,
É muita enrolação sobre o Poder Superior (referência a demonstrações de espiritualidade
na tradição de Alcoólicos Anônimos). Não existe nenhum Poder Superior e nenhum
Deus responsável pelo que faço, pelo que fiz ou por quem eu sou. Não existe Poder
Superior nem Deus que possa me curar. (...) Quero um drinque. Quero 50 drinques.
Quero um cachimbo e uma pedra. Quero uma carreira bem gorda de metanfetamina,
quero dez ácidos, um tubo de cola industrial. Alguém que me um frasco de
comprimidos, um pouco de maconha misturada com PCP. Alguma coisa. Qualquer
coisa. (FREY, 2003, p. 80).
Quando a espiritualidade se traduz em um determinado conjunto de práticas e regras
religiosas, tem-se a tessitura de um discurso que estabelece o que é certo e o que é errado. Junto a
esse estabelecimento de regras, se constroem ritos e conhecimento sobre oração, imagem de
Deus, culpa, pecado, salvação, sexo, poder e até sobre o dinheiro (MORANO, 2003). A inserção
do “Família Caná” Contagem no contexto católico, por exemplo, faz uso de reflexões próprias do
discurso cristão, como veículos que incitam à discussão como a vivência imediata do prazer e
do corpo, muitas vezes rechaçada pela cristandade.
Especialmente quando se trata da vida e de seus dilemas existenciais – como a finitude, as
recompensas a serem adquiridas em função do que se viveu, entre outros – as estrias disciplinares
do discurso moral determinam crenças em “‘verdades existenciais’ que garantem equilíbrio
pessoal, independente de sua validade ‘objetiva’”(ROEHE, 2004, p. 402). Essas “verdades
existenciais”, e também seu temor, orientam o comportamento de muitos.
Coordenador: hoje você quer parar mais por quê?
Ronaldo: eu não quero ser um derrotado não! Eu quero ser um vencedor.
Coordenador: para romper a força do hábito, a química da dependência e todos os seus
significados, é preciso ser vencedor de si mesmo.
Ronaldo: depois de tantos anos fumando, não! Chega uma hora em que eu tenho que
mudar, tenho que provar para Deus e para todos que eu sou mais eu! Ou mais a droga,
não é? (Ronaldo, 45 anos, fumante, membro do grupo de dependentes).
78
01/03/2004.
99
Para Roehe (2004), essa dimensão do senso e da prática religiosa auxilia as pessoas
quanto ao enfrentamento de situações de conflito e estresse. Quando aplicada em um ambiente,
como o dos grupos de ajuda mútua para dependentes e seus familiares, também possuidores de
seus ditames do que é certo ou errado, indivíduos iniciados têm substrato para decidir de acordo
com o que é prescrito.
A religião, ao propor maneiras de se compreenderem os acontecimentos, influencia
diretamente as avaliações e atitudes de seus adeptos frente ao estressor. Uma pessoa
pode, por exemplo, interpretar o evento estressor como sendo um castigo de Deus e, por
isso, aumentar a freqüência de suas orações. A religião atua também preventivamente,
uma vez que atividades que podem gerar estresse, como uso de drogas, tornam-se menos
prováveis na vida de alguém religiosamente comprometido. (ROEHE, 2004, p. 402).
Essa atitude pode contribuir para o abrandar de angústias e conflitos, frente à indefinição
do que fazer ou qual caminho seguir. No entanto, uma postura de aceitação incondicional dos
ditames religiosos de determinado grupo pode ser contraproducente, não levando os recém-
ingressados a posturas de enfrentamento de si verdadeiras algo que se observou, em alguns
membros do grupo
79
, quando da pesquisa.
No trato com dependentes químicos, em um grupo de ajuda mútua, que se vê atravessado
por algum tipo de prática religiosa, também se observam posturas de resistência e rechaço.
Pacientes (aditos e alcoolistas) podem sobreviver uma semana, um mês e no melhor dos
casos um ano (em abstinência), mas, sem o apoio necessário, todos voltam a usar e a
maioria morre. É realmente isso que você quer?
Prefiro isso a passar a vida sentado em porões de Igreja ouvindo pessoas
choramingando, reclamando, se lamentando. Para mim, isso não é produtividade nem
progresso. É a substituição de um vício por outro, e se é para ser viciado em alguma
coisa, então que seja em algo que eu gosto. (FREY, 2003, p. 223)
A autenticidade da prática religiosa é concomitante com a capacidade e o nível de
envolvimento do dependente (ou mesmo do familiar) com o desenvolvimento de uma prática de
si que percebe o hábito dissonante da norma (de se consumir álcool e drogas em demasia) e que o
conduz a uma vida mais próxima da sobriedade e do equilíbrio.
Acreditar que o grupo pode lhe fazer algo também é uma demonstração de fé, no grupo
mesmo e em si próprio. Utilizar-se desta (diferente da religiosa), em um modo de
78
Fragmento de reunião. Pesquisa de campo realizada no Grupo de Apoio Família Caná de Contagem/MG, em
19/06/2004.
100
tratamento, pode ser terapeuticamente efetivo, uma vez que se vê em alta a expectativa do
membro ingresso de se obter algum tipo de auxílio. Reconhecida, também na prática e no
discurso de outros membros, vê-se instilada a esperança.
Espiritualidade e política da instituição religiosa se misturam ao longo dos oito anos de
existência do grupo pesquisado. Visto isoladamente, o mesmo é uma organização de pessoas em
torno de um tema específico, que é apoiado por uma Arquidiocese (a de Belo Horizonte/MG),
que permite e incentiva mobilizações de ordem popular semelhante.
As motivações para tal estímulo são discutidas com desconfiança por Morano (2003),
uma vez que,
A Igreja, com intenções muito discutíveis de competir com outros poderes, parece
empenhada em se fazer notar como um corpo social importante no conjunto da
sociedade. Ao mesmo tempo se observa uma inequívoca tendência de trazer de volta ao
rebanho todo sujeito ou pequeno grupo que não esteja perfeitamente sob controle.
(MORANO, 2003, p. 302).
A reflexão sobre a inserção de um grupo de ajuda mútua para dependentes químicos e
seus familiares, nesse contexto, merece atenção especial. O vínculo com a Arquidiocese também
se com o desenvolvimento de valores, nesse mesmo grupo, que não sejam incongruentes com
os valores e ditames do contexto prescrito pela Igreja. A formação do grupo como tal, sua
constituição semanal e seu movimento de adequação serão instâncias atravessadas pelo discurso
institucional que o circunscreve, influenciando-o e modelando-o. O vetor de resposta do grupo,
nessa mútua relação de poder, exige dele uma organização determinada, para que esse tenha um
fôlego próprio e que não se sucumba a uma obediente cópia de diretrizes e ritos. Ao longo da
pesquisa, não se observou tal instância.
No grupo, indivíduos de diferentes instituições religiosas em especial, membros de
Igrejas Evangélicas de orientação Pentecostal, localizadas no entorno do centro do município de
Contagem/MG são recebidos junto aos paroquianos da Igreja Nossa Senhora do Rosário, cujo
salão recebe semanalmente as reuniões. A expressão de terá, no grupo, muito mais, uma
“inquestionável dimensão comunitária” (MORANO, 2003, p. 303), ecumênica por natureza, do
que uma prática restritamente católica. A religiosidade no grupo terá, especificamente, essa
forma.
79
Indivíduos que recaíram com brevidade, após o primeiro ingresso no grupo estudado.
101
A escolha, de qual passagem do Evangelho será lida no início das reuniões, não é
determinada livremente pelos membros do grupo. Respeita-se a recomendação do calendário
litúrgico, publicado em periódicos pelas editoras de comunicação católica. Esses trechos bíblicos
são sempre trazidos por Dona Lourdes Ferreira, presente desde a primeira reunião, e cuja
responsabilidade pela leitura, ao longo do tempo, foi-lhe respeitosamente dada. No entanto, a
interpretação de cada membro, que escuta as passagens bíblicas, mesmo não sendo por eles
escolhida, acontecerá de forma livre, compatível com seu entendimento e com a expressão
pessoal de sua prática religiosa.
Desse ponto de vista, é possível afirmar que a dinâmica social que ressaltou a
importância e o valor dos pequenos grupos constitui também um ‘sinal dos tempos’, que
o homem que crê deve acolher como instrumento para potencializar aquilo em que
sempre acreditou: que sua fé no Senhor Jesus é uma que vive com os outros num
clima de participação e de co-responsabilidade. (MORANO, 2003, p. 303).
A espiritualidade, que se observou no grupo pesquisado, ao longo dos sete anos de
trabalho e inserção do pesquisador, não se como um vetor de resgate dos desgarrados de uma
prática de obediente e inquestionável. Os benefícios das discussões de caráter religioso
acontecem no grupo uma vez que a religião oferece, a muitos dos iniciados em seu discurso,
meios e fins para se atingir um bem-estar transcendente prescrito. A freqüência, com que o
discurso religioso aparece nas reuniões de um grupo de ajuda mútua, reforça esse fato.
A espiritualidade é um elemento chave nesses tratamentos. Pede-se aos participantes que
aceitem, com humildade, o fato de terem perdido a batalha do controle sobre as drogas e
se rendam ao Poder Superior. (MINAYO; SCHENKER, 2004, p. 6).
Ao final de cada reunião, acontece mais do que um simples ritual de fé; há um instante de
convite à reflexão individual para o resto da semana. De pé, de mãos dadas, todos os membros
presentes (alcoolistas, dependentes e familiares) se dão as mãos e proclamam a Oração da
Serenidade, amplamente conhecida no meio dos grupos de ajuda mútua para usuários de álcool e
drogas. Nesse momento, a fé é instrumento de orientação e reflexão para todos os membros.
Concedei-nos, Senhor, a serenidade. Para aceitar as coisas que eu não posso modificar.
Coragem para modificar aquelas que eu posso. E sabedoria para distinguir uma coisa das
outras.
80
80
Fragmento de reunião. Pesquisa de campo realizada no “Família Caná” de Contagem/MG.
102
“Os anéis de uma serpente são ainda mais complicados do que o buraco de uma toupeira.”
Gilles Deleuze, 1992.
103
4 O GRUPO DE AJUDA MÚTUA PESQUISADO: INSCRIÇÕES DE CONTEXTO, DE
RESPOSTAS E DE DELIMITAÇÕES DOS GRUPOS COMO UM TODO.
4.1 Delimitando um tempo: das drogas, de contexto atual e dos desafios às práticas clínicas.
“É preciso pegar as coisas para extrair delas as visibilidades.
E a visibilidade de uma época é o regime de luz, de cintilações, os reflexos, os clarões
que se produzem no contato da luz com as coisas.”
Gilles Deleuze, 1992.
Não a dinâmica macrossocial das drogas e do álcool tráfico massificado para as
ilícitas, altos níveis de consumo para ambas, propagandas apelativas das bebidas, entre outros
influi na dimensão particular de sua vivência. Outras delimitações atuais de contexto alimentam e
corroboram a problemática do abuso de substâncias que oferecem prazer e algum tipo de
alteração da consciência.
“Os ideais sociais modificam-se com uma velocidade tal que as teorizações sobre os
fenômenos sociais rapidamente se tornam obsoletas.” (CONTE, 1997, p. 250). Tais substâncias
são aditivos essenciais para muitos indivíduos, em um presente mutante e exigente de
particularidades (de sucesso no trabalho, na academia, na afetividade, na virilidade, na plena
felicidade dos vídeos comerciais, etc).
No final do século XX, neste nosso tempo, um tempo mítico, somos todos quimeras,
híbridos teóricos e fabricados de máquina e organismo; somos, em suma, ciborgues.
O ciborgue é nossa ontologia; ele determina nossa política. O ciborgue é uma imagem
condensada tanto da imaginação quanto da realidade material: esses dois centros,
conjugados, estruturam qualquer possibilidade de transformação histórica.
(HARAWAY, 2000, p. 41).
Elementos de ordem inovadora têm se incorporado ao modus vivendi atual. A aceleração e
a constante atualização dos avanços tecnológicos, a velocidade com que as informações são
compartilhadas, as novas formas de produção industrial e os padrões intensos de estímulo ao
consumo, o estresse, a presença de um novo movimento do capital (mais fluido e especulativo
104
como as diversas formas de relacionamento humano), o considerável crescimento demográfico e
os desafios de suprimento para tanta gente (comida, energia, emprego, espaço...), entre outros
pontos, que põem em questão “a maneira de se viver daqui em diante sobre este planeta”
(GUATTARI, 1991, p. 8).
Esse contexto atravessa as pessoas da amostra de pesquisa, e o local onde elas foram
encontradas: o grupo de ajuda mútua, na cidade de Contagem/MG, região carente de uma grande
metrópole brasileira e os outros planos sucessivamente. Seus membros, em meio a um estado
generalizado de consumo de álcool e drogas, têm nessas substâncias o suporte possível para o
convívio em um cotidiano pleno de velozes complexidades e exigências.
O planeta Terra vive um período de intensas transformações técnico-científicas, em
contrapartida das quais engendram-se fenômenos de desequilíbrios ecológicos que, se
não forem remediados, no limite, ameaçam a vida em sua superfície. Paralelamente a
tais perturbações, os modos de vida humanos individuais e coletivos evoluem no sentido
de uma progressiva deterioração. As redes de parentesco tendem a ser reduzir ao
mínimo, a vida doméstica vem sendo gangrenada pelo consumo da mídia, a vida
conjugal e familiar se encontra freqüentemente ‘ossificada’ por uma espécie de
padronização dos comportamentos, as relações de vizinhança estão geralmente reduzidas
a sua mais pobre expressão... (GUATTARI, 1991, p. 7 e 8).
Não a introdução de novos aparatos de ordem tecnológica, e de novos arranjos nas
interações sociais, que modificaram as formas de se relacionar com os outros e com o meio na
atualidade. Esse movimento de ordem inovadora também influencia na relação das pessoas com
as diversas substâncias psicotrópicas de abuso existentes.
Mudanças na vivência das diversas instituições que nos moldam a família, a escola, a
fábrica, o Exército, o Estado, e (eventualmente) os hospitais e as prisões – foram, neste contexto,
substancialmente engendradas. As novas configurações dessas instituições implicaram um novo
arranjo de seus membros, a montagem de um novo repertório de ações.
Como ressalta Kehl (2003), com relação à primeira instituição de vínculo a família, e
seus muitos atravessamentos (um novo modelo de constituição, uma nova vivência da
sexualidade de seus membros, suas atividades laborais, dentre outros) –, grita-se por estabilidade
e sustentação, em uma realidade a todo tempo mutante.
(...) ‘eu queria tanto ter uma família normal!...’ Adolescentes filhos de pais separados
ressentem-se da ausência do pai (ou da e) no lar. Mulheres sozinhas queixam-se de
que não conseguiram constituir famílias, e mulheres separadas acusam-se de não terem
105
sido capazes de conservar as suas. Homens divorciados perseguem uma segunda chance
de formar uma família. Mães solteiras morrem de culpa porque não deram aos filhos
uma ‘verdadeira família’. E os jovens solteiros depositam grandes esperanças na
possibilidade de constituir famílias diferentes isto é, melhores daquelas de onde
vieram. (KEHL, 2003, p. 163).
Modificações dessa ordem, em instituições constitutivas (como a família, na citação assim
descrita) tiveram impacto nos novos arranjos sociais e nos processos de subjetivação. Minayo e
Schenker (2003) observam que,
(...) os pais, ou figuras substitutas, m dificuldade em passar normas e limites para seus
filhos. pouca habilidade para criá-los e educá-los, advindo d uma qualidade de
vínculos familiares. Em relação aos jovens isso se manifesta na falta de assertividade e
na ambigüidade com relação às leis e normas. Observa-se primeiro na conduta da
criança e, posteriormente, do adolescente, que os limites do que lhes é concedido estão
esgarçados, havendo grande prejuízo para a sua formação e sérias conseqüências para a
vida em família e em sociedade. (MINAYO; SCHENKER, 2004, p. 8).
Observa-se que, a partir da segunda metade do último século, a dinâmica das regras
disciplinares das instituições (não só da família) sofreu intenso câmbio. Definidas por seus muros
e por seus ditames de regras e condutas, estas instituições mediavam as relações entre os
indivíduos e o meio social, “exercendo sobre os primeiros uma disciplina que moldava corpos
dóceis e subjetividades submetidas a marcos definidos” (GONDAR, 2003, p.82).
Meio século atrás, na década de 1960 essa época lendária de liberdade sexual e livre
acesso às drogas –, jovens radicais imbuídos de seriedade tomavam como alvo as
instituições, especialmente s grandes corporações e os governos inflados, que por seu
tamanho, sua complexidade e sua rigidez pareciam prender os indivíduos numa tenaz de
ferro. (SENNETT, 2006, p. 11).
Para Foucault, segundo Deleuze (1992, p. 219), nos meios de confinamento exemplares
da sociedade de controle, sobretudo na figura das fábricas, o projeto ideal era concentrar pessoas
e meios de produção, distribuí-los de forma organizada no espaço e ordená-los apropriadamente
quanto ao tempo. Estes espaços de confinamento, constituídos como corpos totalizados, levavam
“suas forças internas a um ponto de equilíbrio” (DELEUZE, 1992, p. 221); sendo o ponto mais
alto possível, a razão de ser da instituição (a produção para a fábrica, por exemplo), e o mais
baixo, a recompensa direta por parte de seus membros (o salário, também como exemplo). Havia
pouco espaço para entropias, como as dos toxicômanos e deprimidos de hoje.
106
Nesse sentido, o mesmo homem que padecia de sofrimento no ambiente disciplinar, e que
se relacionava com um fora que lhe era bastante superior, se submetia a uma lei e uma hierarquia
muito fortes, tendo seu corpo docilizado pelas disciplinas (GONDAR, 2003). Vivendo neste
pátio, cercado por muros e por regras de convivência muito bem definidas, esperava-se que uma
burocracia disciplinar lhe fosse aplicada, para tratá-lo e descrevê-lo. Construído a partir da
“lógica vigente nas sociedades disciplinares” (GONDAR, 2003, p.82), este indivíduo seria
classificado, dominado, vigiado, domesticado e (eventualmente) punido, em um espaço estriado.
No entanto,
Quando as instituições já não proporcionam um contexto (de segurança) e longo prazo, o
indivíduo pode ser obrigado a improvisar a narrativa de sua própria vida, e mesmo a se
virar sem um sentimento constante de si mesmo. (SENNETT, 2006, p. 13).
Junto à entrada em novo tempo, a relação da subjetividade com sua exterioridade se
modificada. A disciplina das instituições, cujas forças internas convergiam para um ponto
determinado de equilíbrio, não mais ditaria o molde dos corpos daqueles que as perpassam. A
partir de um movimento geral de implosão dos muros – receptáculos figurativos das regras
institucionais se constata a entrada de uma nova forma de se produzir subjetividades. Tal fato
não se pela ineficácia das gicas disciplinares, mas pelo desmoronamento de seu antigo
modelo, substituído agora por um que atravessa todos os corpos e espaços sociais. A sociedade
disciplinar que dá lugar a uma sociedade de controle (DELEUZE, 1992).
O ‘espaço estriado’ das instituições da sociedade disciplinar lugar ao ‘espaço liso’ da
sociedade de controle (...). Enquanto a sociedade disciplinar forjava moldagens fixas,
distintas, a sociedade de controle funciona por redes flexíveis moduláveis. (HARDT
apud GONDAR, 2003, p. 82).
Atuar neste espaço se tornaria, ao mesmo tempo que desafiador e criativo, um constante
exercício de autonomia. O sujeito, ao contrário da tradição filosófica clássica, não mais seria
encontrado como uma entidade pronta, atrelado a uma “suposta natureza humana” (GUATTARI
& ROLNIK, 2005, p. 33). Seu constituir-se seria agora um processo, atravessado por um sem
número de influências, um sem número de discursos. Processos de subjetivação, que a partir de
então, produziriam sobre os sujeitos, não da forma estanque com entrada nos arcabouços
107
institucionais e suas estruturas disciplinares, mas fabricando, modelando, recebendo,
influenciando, sendo modificados, fazendo consumir e sendo consumidos. Inclusive com (ou sob
efeito de) diversas drogas existentes, não fazendo mais parte de uma cultura de resistência ou
novos canais de experimentação da consciência, e sim parte de uma vivência sem sentido ou
singularidade.
Tudo leva a crer que a criação individual e coletiva se encontraria em alta, pois muitas
são as cartografias de forças que pedem novas maneiras de viver, numerosos recursos
para criá-las e incontáveis os mundos possíveis. (ROLNIK, 1997. p. 19-20)
Fatores diversos seriam responsabilizados pelos processos de subjetivação, não estando
centralizados em agentes individuais. Para Guattari e Rolnik (2005), estes fatores implicariam o
funcionamento de inúmeras máquinas de expressão tanto de ordem extra-individual,
abrangentes como os flutuantes mercados econômicos (sendo difícil o escape de sua
volatilidade); bem como de máquinas de expressão infra-pessoais, particularizadas como a
expressão de afeto e de sensibilidade.
De um lado estão a economia, o meio social, as tecnologias, os ícones fabricados e
destruídos, a ecologia (dos homens e do meio-ambiente) e a potência atravessadora dos veículos
midiáticos. Do outro, a percepção, a sensibilidade, o afeto, o desejo, os valores (quando muito)
aprendidos em casa, os modos de verbalização, o esquema corporal. Instâncias que, na atualidade
e no novo modelo de sociedade de controle, co-existem e se influenciam continuamente e em
concomitância.
As conexões múltiplas dessas diferentes instâncias, ou mesmo a desconexão e suas
impossibilidades, podem dizer,
(...) assim, de uma mudança na maneira pela qual o poder marca o espaço, seja ele
público ou privado, seja político e/ou subjetivo. Diluindo-se os muros institucionais,
instaura-se um modo de vida no qual existem cada vez menos distinções entre o dentro e
o fora, entre o natural e o social, o público e o privado, o eu e o Outro. (GONDAR,
2003, p. 82)
A questão do dentro e do fora, do público e do privado, dentre outros dualismos, está no
cerne deste debate. Pois, segundo Gondar (2003), as sociedades de controle, ao contrário da
disciplinares, não demarcam um centro territorial de poder, não determinam suas bases fixas
108
(“Isto não pode!”, “Aqui não!” – diriam as mães da disciplinaridade), não propondo
(...) a administração de entidades híbridas, com a pretensão de incorporar toda
diversidade no interior de suas fronteiras, expandindo-as até o momento em que a
própria idéia de fronteira se torne desnecessária. (GONDAR, 2003, p. 83)
Na ausência deste baluarte controlador, antes existente na instituição fechada e
disciplinadora, que está a eficiência do modelo da sociedade de controle. Como o território é liso
e sem rugosidades, eliminando possíveis espaços para criação de heteronomias variadas, as
diferenças são postas de lado, abarcando todo o potencial das diversas subjetividades
constituintes (GONDAR, 2003, p. 83). Tudo se encontra em uma complexa Matrix.
Sem marcações ou fronteiras, sem afrontamento direto ou conflito, as subjetividades
deslizam sem resistência. O controle “se exerce em todos os lugares e em nenhum deles. Não há
lugar definido para uma instância subjetiva ou para um Outro que a ela se contraponha
(GONDAR, 2003, p. 83).
Estamos falando, neste caso, de formas inteiramente novas de subjetividade. Estamos
falando seriamente sobre mundos em mutação que nunca existiram antes, neste planeta.
E o se trata simplesmente de idéias, trata-se de uma nova carne. (HARAWAY, 2000.
p. 25)
Algo semelhante pode ser observado no caso das drogas. A vivência do fenômeno global
e da dimensão de ordem macrossocial destas, pode ser vista como inaptidão pessoal ao constante
e complexo movimento de instituição do controle, que dita uma nova ordem na organização da
produção de bens e serviços, bem como nas formas de se relacionar humanas. Esse novo modus
vivendi globalizado produz a exposição dos indivíduos à cultura das diversas substâncias de
abuso.
(...) é que a mesma globalização que intensifica as misturas e pulveriza as identidades
implica também na produção de kits de perfis-padrão de acordo com cada órbita de
mercado, para serem consumidos pelas subjetividades, independente de contexto
geográfico, nacional, cultural, etc. (ROLNIK, 1997. p. 20)
Com o tempo, ao longo de exposição crônica e prolongada às substâncias psicoativas, o
consumo adquire padrões uniformes e indiferenciados. Não se há, com a entrada neste patamar,
109
um propósito claro para se utilizar as substâncias de abuso, pois também já não se sentido de
vida, ou consciência da mesma para se criticar, justificando um novo uso. Os calos de resistência
que poderiam ter sido a droga o prazer para os sentidos do corpo em meio a uma realidade
sofrida, a vivência de risco da contravenção, o torpor para a consciência em meio a um ambiente
de estresse, o ânimo para a letargia, entre tantos adquirem proporções conflitantes que, por
motivação não mais explícita, se retro-alimentam internamente.
Então,
Como opor-se, resistir a esta presença que tudo abarca e fagocita? Como afirmar um
território subjetivo singular, capaz de criar seus próprios obstáculos a uma generalidade
impessoal, quando essa generalidade o pode ser apreendida em lugar nenhum? Como
afirmar um espaço íntimo quando não há um fora? (GONDAR, 2003, p. 83).
Sendo assim, um novo discurso disciplinar e político, para ser ouvido e compartilhado, se
faz necessário.
O impasse com o qual nos deparamos hoje reside justamente neste ponto: se o Império é
um espaço liso no qual deslizam subjetividades sem resistência, nós nos vemos em uma
situação sem saída, pois se não existe qualquer rugosidade ou atrito em um deslizamento
infinito, onde encontrar o ponto de apoio para exercer o trabalho subjetivo? Cabe
perguntar, todavia, se não possibilidade de forjar, com relação ao controle, outras
formas de resistência, distintas, evidentemente, daquelas que impunham obstáculos à
lógica disciplinar. (GONDAR, 2003, p. 84).
As respostas se encontram nas formas particulares de se fazer obstáculo à universalidade,
que singularizam modalidades subjetivas. Um usuário crônico de entorpecentes, mesmo refém de
sua compulsão e pelos problemas deles advindos, que adentra um espaço onde conviverá
espontaneamente entre pares, potencialmente sua dignidade reconhecida. Centros que não
serão imunes totalmente ao movimento do controle liso que tudo cobre, nem a sua entrada
condicionada exclusivamente à obediência aos postulados de seu discurso, mas que deixariam
expostas novas pontas de resistência e de produção de subjetividade.
4.2 Os grupos como uma das possíveis respostas: o que se esconde por debaixo das pontas
do iceberg de resistência.
110
“Não é fugir, você próprio, ‘pessoalmente’, dar o fora, se mandar,
mas afugentar, fazer fugir, fazer vazar,
como se fura um cano, um abscesso.
Félix Guattari, 1981.
Viu-se, até agora, que não é possível pensar a toxicomania apenas em sua dimensão molar
algo de um segmento gido, que apenas codifica, que se coloca estática nos dados e gráficos
dos diversos órgãos reguladores internacionais. À drogadição e ao alcoolismo, tem-se proposto
um modelo político excludente e ineficaz. É preciso se considerar o movimento humano, que é
complexo e dinâmico, para com as substâncias abuso, que são naturalmente inertes. Considerar,
quando da escrita de leis e aplicabilidade de diretrizes, elementos que conduzem à educação e à
saúde das populações envolvidas, e não somente sua vigília.
Em cada caso de dependência química existe um passo inicial, voluntarista, em busca do
prazer, e uma especial forma de se reagir ao tempo atual e suas resultantes. As substâncias de
abuso são para o usuário como resposta a alguma miséria, individual ou social. Ou mesmo como
um fluído catalisador para o entretenimento.
Senhor Bento: A princípio e durante muito tempo eu considerava aquilo (o álcool no bar)
como diversão. Era a primeira das diversões. Com o tempo, qualquer divertimento que eu
tivesse programado era aquilo. O álcool fazia parte, era um acompanhante inseparável das
minhas noites... Quando me ofereciam café em alguma visita, chegava até a achar que era
desfeita. A garrafa de bebida em cima da mesa completava de alegria aquele dia.
Coordenador: Incomodava pensar que, somente com bebida, o dia ou a noite ficavam
agradáveis para o senhor? No sentido de que a companhia que não lhe oferecia bebia não
era bem vinda?
Senhor Bento: Não, sabe que nunca pensei nisso. Achava completamente natural a bebida e
uma desfeita não me oferecerem.
Coordenador: Quanto tempo demorou, quando o senhor se deu conta de que o consumo
começava a ficar exagerado. Realmente se dar conta de que a bebida era o combustível
para qualquer atividade de diversão, de conversa, de encontrar com outras pessoas...?
Senhor Bento: Demorou ainda muito. Me controlava ainda em situações como na casa
da minha esposa, dos pais, mas era sair dali e a primeira coisa era o buteco. Me casei e
mudei um pouco o hábito. Fui entrando aos poucos na turma do gole... alguns amigos.
Quando fui ver estava no meio deles. Com o tempo passei a tomar cada vez mais
sozinho, me dava insatisfação ter que chegar tarde em casa, abandonei aquela coisa da
saideira, tomava muito e sozinho para voltar pra casa mais cedo. (Senhor Bento,
alcoolista, membro do grupo de dependentes, 50 anos).
81
81
Dados da entrevista. Pesquisa de campo realizada nas dependências da Pastoral da Saúde Nossa Senhora do
Rosário, no bairro Alvorada, em Contagem/MG, em 15/10/2003.
111
Conjugadas ao hábito dissidente de consumi-las de maneira crônica, em demasia, estas
substâncias constituem para alguns, comportamento de resistência a um ambiente que preza uma
vivência alterada (acelerada) de tempo, sem foco, dor ou sentido aparente, extremamente difusa.
As sensações são algo constantemente buscado, uma vez que o prazer não provém de substrato
duradouro (uma conquista, um feito) e, principalmente, porque esse prazer passa rapidamente.
Segundo o depoimento de Frey (2003),
garrafas de destilados e vinho por toda parte, e, na mesa à minha frente, uma enorme
pilha de cocaína branca e um imenso saco de crack amarelo. também um isqueiro,
um cachimbo, um tubo de cola e uma lata aberta cheia de gasolina. (...) Quando pego
uma garrafa, algo dentro de mim me manda parar, diz que é errado, que não posso mais,
que estou me matando. Pego a garrafa assim mesmo, levo-a à boca e dou um demorado
gole, que queima minha boca, minha garganta, meu estômago. Por um instante fugaz,
sinto-me pleno. A dor que levava comigo desaparece. Sinto-me confortável e tranqüilo,
confiante e seguro, calmo e contido. Sinto-me bem. Puta merda, como eu me sinto bem.
Dou outro gole. Não bate. Pego outra garrafa, dou um gole maior. Não bate. Pego uma
garrafa depois da outra, dou um gole após o outro, nada funciona. Em vez de me sentir
melhor, sinto-me cada vez pior. Tudo que eu sentia que era bom se tornou ruim, e isso
foi se ampliando além de qualquer ponto de referência ou compreensão. (FREY, 2003, p.
51).
O ambiente e o tempo atuais nos remetem a dois vetores. De um lado, a prescrição de
um modo de vida atarefado, inconstante, individualizado, criativo, hedonista e viril, nas relações
com as pessoas, na produção e no consumo dos diversos objetos de desejo. De outro, parte do
repertório natural de humores humanos, como a inadequação, a reflexão silenciosa, a elaboração
do tempo sem parcimônia, a estranheza, a velhice no rosto aparente, e a impotência (em todo e
qualquer sentido) – instâncias desencorajadas sumariamente.
A partir destes fatores, se constata que
O imperativo de agir a qualquer preço, aliado a uma precariedade de referências
subjetivas, são os elementos fundamentais na produção do homem contemporâneo,
caracterizando igualmente suas patologias. Patologias inevitáveis, tratando-se de um
imperativo cujo cumprimento satisfatório é impossível: o indivíduo dificilmente se sente
à altura da performance que lhe é exigida. (...) a depressão e a adicção são os nomes
dados ao incontrolável, quando se trata de tomar iniciativa de agir. O homem deficitário
e o homem compulsivo são as duas faces desse Janus. (GONDAR, 2003, p. 85).
Uma vez sem qualidades, “uma figura humana genérica, cujas características o
singularizam com relação a uma forma universal” (GONDAR, 2003, p. 84), este homem não
112
singularizado é maciçamente convidado a agir por conta própria, sem o apoio referencial
subjetivo oferecido pelo socius.
No caso do usuário crônico de drogas, a complexidade assumida ao longo da exposição às
substâncias de abuso, os padrões danosos de consumo e a instalação do hábito compulsivo
adquirem níveis extremos de falta de sentido. Como constata Frey (2003), mesmo em meio a toda
sorte de problemas (físicos, sociais e legais), ainda há o questionamento pessoal quanto ao
sentido de se interromper por completo o consumo de drogas.
Quando começou a usar drogas e álcool?
Comecei a beber aos dez anos e a usar drogas aos 12.
E quando começou a pegar pesado?
Aos 15 anos, eu bebia todos os dias. Aos 18, eu bebia e usava drogas todos os dias.
Ficou muito mais pesado depois.
Você tem apagamentos?
Todos os dias.
Há quanto tempo isso acontece?
Há quatro ou cinco anos.
Sente náuseas?
Todos os dias.
Com que freqüência?
Quando acordo, quando tomo o primeiro drinque, quando faço a primeira refeição e mais
algumas vezes depois.
Quantas vezes?
De três a sete.
Desde quando isso acontece?
Há quatro ou cinco anos.
Pensa em suicídio?
Penso.
Já tentou?
Não.
Já foi preso?
Já.
Quantas vezes?
Doze ou 13.
Por que motivo?
Por todo motivo de merda.
Por exemplo?
Posse de drogas, posse com finalidade de tráfico, três vezes por dirigir embriagado,
alguns casos de vandalismo e destruição de propriedade, agressão, agressão à mão
armada, desacato à autoridade, beber em público, perturbação da ordem pública. Deve
ter mais, mas não lembro direito.
Continua enquadrado em alguns desses artigos?
Na maioria.
Você quer ficar sóbrio?
Acho que sim.
Acha?
Acho.
Isso significa que quer?
Significa que vou pensar.
113
Está disposto a fazer o que for preciso.
Não sei. (FREY, 2003, p. 34).
Vive-se, quando das práticas de consumo exagerado, também em meio a um extremo
desamparo. A falta de sentido que se instala, frente ao hábito crônico que não é abandonado, faz
com que nada mais (nem mesmo os modelos de abordagem terapêutica) se justifique.
Luciano: Em pouco tempo o rapaz expôs seu problema, muito acanhado, e eu disse que
conhecia tal problema. A maior preocupação do indivíduo era em saber se do fato
de ser olhado transparecia seu problema, sua preocupação em saber como eu poderia
entender seu problema. É o dependente que não vê, não toma banho, sai fedendo e a
gente não vê... a gente mente muito, e os outros vêem. Nunca me humilhei para comprar
um remédio para meu filho, um mantimento... por causa de cachaça me humilhei
demais, já menti demais.
Coordenador: conseguir sair da própria mentira e da própria prisão é se conhecer e se
encontrar verdadeiramente. O que é ser um alcoólatra hoje, senhor Luciano?
Luciano: sofrimento, doença, morte... morte física, morte espiritual.
Coordenador: como o alcoólatra na ativa lida com o físico dele? O trato com seu
próprio corpo?
Luciano: Eu estou mal. Se eu tomar uma, eu melhoro.
Coordenador: e com o espiritual?
Luciano: isso aí vai para o espaço.
Cooordenador: hoje, senhor Luciano, como o senhor lida com o corpo do senhor?
Luciano: Eu tenho me cuidado bem, tenho me alimentado bem. Tomo banho nas horas
certas, bem verdade, sou vaidoso, gosto de pentear meu cabelo. Gosto de ser
comunicativo com as pessoas, enquanto muitas vezes cheguei a uma situação em que eu
queria esquecer. Uma vida de mentira, contrariedades, tudo, antes eu vivia de quê? Não
tinha nada que me desse graça, ia tocando... (Luciano, 56 anos, dependente alcoólico).
82
A partir de então, problemas inerentes ao consumo abusivo apenas retro-alimentarão a
necessidade de nova ingestão: as dependências física e psicológica já instaladas, a possível
ingestão diferenciada de entorpecentes, aumentando-lhes a variedade, com cargas e freqüência
cada vez maiores, possíveis conflitos com o aparato de vigilância do Estado, a marginalidade da
compra e do porte destas drogas, o envolvimento em possíveis transgressões acidentes de
trânsito, agressões, invasões quando embriagado –, a descrença dos familiares e nas relações de
trabalho, entre outras.
Próximo da delinqüência, o toxicômano responde prontamente ao imperativo
CONSUMA! (CONTE, 1997).
82
Fragmento de reunião. Pesquisa de campo realizada no Grupo de Apoio Família Caná de Contagem/MG, em
01/03/2004.
114
Eu chego mais perto. Mais e mais perto. Minha necessidade de me drogar cresceu
exponencialmente. Cresceu a ponto de não ser mais um pensamento, cresceu a ponto de
esvaziar meus pensamentos. Restou um instinto básico. Arranje algo. Sacie. Arranje
algo. Sacie. (FREY, 2003, p. 90).
A fissura, que todos relatam nas entrevistas de pesquisa, é a necessidade imperiosa de
realizar o ato. Essa fissura, “frente à angústia do desejo que emerge no buraco vazio ocupado pela
droga” (CONTE, 1997, p.253), é acompanhada pela busca de um outro objeto real que ocupe sua
vivência de privação e falta a crise de abstinência física, a crise de ausência de sentido de vida.
Se o delinqüente é o seu ato, e alguns tocam os limites da delinqüência na busca do objeto-
entorpecente que lhes falta, o toxicômano (passa a ser), a droga que consome” (CONTE, 1997,
p.253).
Sendo assim,
(...) o indivíduo se põe a serviço de uma lei que não lhe permite fazer obstáculo à
universalidade, ou seja, que não leva em conta sua possibilidade de singularização.
Desse modo, ele é impelido a agir para além de seu próprio desejo, o que termina por
conduzi-lo a práticas autodestrutivas como demonstram exemplarmente as
compulsões. (GONDAR, 2003. p. 86)
4.3 Um vetor de busca e resgate: os caminhos que levam aos grupos de ajuda mútua.
Tornar-se dependente químico, portanto, seria algo construído no ínterim de inúmeras
vivências ao longo da vida, e não no contato direto e voluntário com os entorpecentes. As
complicações que se somam, junto a essas vivências, conduzem ao estereotipado repertório de
comportamentos do usuário crônico mentira, endividamento, menos-valia, marginalidade,
desemprego, abandono, entre outros mas, sobretudo, à falta de referência a qualquer discurso
em que se possa engajar: o familiar, o laboral, o político, o de cidadania, ou o de si próprio.
Reconhecer a própria condição de dependente é também uma idéia construída,
especialmente percebida na iminência da necessidade de busca por mudança. Os familiares, os
agentes de saúde, ou a própria polícia serão portadores de um importante discurso de alerta,
muitas vezes, um ultimato mesmo aos dependentes. A degradação física resultante do uso
115
abusivo e continuado das diversas substâncias, as situações conflitantes no trabalho, a medida
subjetiva da vontade de ser ajudado, entre outros, são eventos decisivos, que podem influenciar
nas estratégias a serem tomadas, rumo a uma solução palpável dos problemas.
Não se trata de adotar uma instância disciplinar plena, próxima dos moldes da estrutura
social anterior as sociedades disciplinares, que docilizavam e impunham estrias de conduta e
discurso. No intuito de se oferecer amparo à decisão pela abstinência é preciso mais que a oferta
de inquestionáveis comandos: é preciso conduzir o sujeito à reflexão, à crítica, à consciência do
aspecto danoso do próprio hábito e, porventura, a uma nova prática de si em sobriedade. Visível o
comportamento dissonante, o usuário crônico faria de seu engajamento em novo espaço e em
novo discurso – o do grupo de ajuda mútua –, uma possibilidade para esse resgate de sobriedade.
A entrada em um contexto propício e a montagem de um aparato pessoal (de muros
disciplinares próprios, de sentido e de proteção nesse contexto) dizem do necessário e singular
movimento do usuário que revê sua história em contato com o álcool e com as drogas. Nele
inserido, poder-se-á questionar seu emaranhamento com essas substâncias, e se propor à
formação de novas práticas de liberdade. A inserção em um ambiente que se coloca ao resgate,
que exercita a capacidade de olhar para si próprio, para sua própria conduta pessoal e a dos outros
em comunidade, junto a ditames rígidos de ordem disciplinar e uma instância criadora de novos
padrões de comportamento, valores pessoais e o de dignidade devem ser elevados.
4.3.1 A entrada no ambiente dos grupos de ajuda mútua.
Os diversos grupos de apoio (ou de ajuda mútua) podem se configurar como esses espaços
de resistência ao movimento homogeneizador que se tornam o agenciamento álcool-e-droga, e a
relação do usuário com as pessoas, as instituições e os bens de consumo.
Com seu discurso e potencialidades terapêuticas, esses grupos fazem obstáculos à
universalidade do consumo, constituindo calos frente ao alisamento do circuito social atual (que o
consumo dessas substâncias estimula), bem como a oferta de singularidade a carentes
modalidades subjetivas. Nesses grupos, potencialmente, serão construídas teias de
116
relacionamentos com sentido específico: novas identificações, respaldo para encontro da
dignidade e da possibilidade de sobriedade, perdidas ao longo do contato com o álcool e com as
diversas drogas.
Coordenador: O que você imaginava que o Grupo poderia fazer por você?
Sandra: (Pausa silenciosa). É o que faz hoje, sabe. Você chega lá, você escuta histórias
de pessoas. Você ouve aquilo e você vai aprendendo. Você vai vendo que realmente é
isso que eu faço. Que isso incomoda mesmo, que incomoda a sua família. Que incomoda
outras pessoas também. Incomoda mais a família, porque você passa mais tempo com
ela. Eu acho que sempre melhora. Você vai escutando aquilo e vai melhorando. (Sandra,
39 anos, dependente alcoólica).
83
Os grupos de ajuda mútua também possuem, via de regra, seu arranjo disciplinar
determinado, linhas duras essenciais para manutenção de qualquer corpo ou espaço. Na inserção
de novos membros, inclusive em seu arranjo disciplinar, se reconhece uma possibilidade de
criação de projetos singulares e, com esses, de uma vivência mais saudável e possível, no que
tange à distância das substâncias de abuso. Aprender-se-á a ouvir, a respeitar limites (de si e do
convívio), a acolher e a se resgatar.
Balizas discursivas e de identificação nortearão o percurso dos aditos em recuperação.
Oferecer-se-á um novo conjunto de rotas nas quais, a falta do entorpecente ou a vivência de seu
consumo (indisciplinada e sem sentido) poderão ser recompensadas com o reconhecimento da
dignidade e de sua singularidade.
A oferta de uma organização disciplinar particular pode promover, paradoxalmente, a
singularização de indivíduos. Usuários crônicos de álcool e drogas, antes da entrada no
agenciamento que se constitui o grupo, têm rígidas as linhas de um comportamento errante junto
à obtenção e ao consumo das substâncias de abuso. Essas linhas rígidas (relativas ao território
existencial do consumo abusivo) sofrerão ação, quando imersas no novo conjunto de regras que
compõe as reuniões dos grupos, do conjunto de linhas flexíveis que indicarão desvios, quedas e
novos impulsos (DELEUZE; PARNET, 1998). Esse movimento poderá ser penoso, mas se
seguirá pela atuação de uma terceira ordem de linhas (as de fuga), que os conduzirá
potencialmente a uma destinação desconhecida, a um novo repertório de posturas e
comportamentos (ao menos diferente do território existencial do consumo abusivo).
117
Nas linhas de fuga, por mais destrutivo (ou paradoxal) que seja o gesto pelo qual ela se
expressa, pode-se entrever um componente de singularização: o que chamamos de
lampejo de subjetivação ou lampejo desejante. (GONDAR, 2003. p. 89).
Para Frey (2003), em depoimento pessoal quando de sua inscrição em um grupo de ajuda
mútua, as tarefas e ditames disciplinares no grupo, “por mais idiotas e servis” (FREY, 2003, p.
332) que fossem, permitiam-lhe (usuário crônico de entorpecentes em recuperação) que fosse,
“ainda que durante poucos minutos por dia, (viver) como as outras pessoas.” (FREY, 2003, p.
332). Para isso, ele e os demais membros de seu grupo cumpriam as tarefas. “Não porque nos
mandam fazer, que a maioria de nós passou a vida fazendo tudo menos o que nos mandavam
fazer, mas porque as tarefas fazem com que sintamos pessoas normais. Pessoas normais têm
tarefas.” (FREY, 2003, p. 332).
A rigidez da rotina de uma pessoa “normal” (segmento gido, descrito por Frey [2003]),
pode ser transformada (desterritorializada) por uma substância psicotrópica qualquer, tanto pela
ação de processos e linhas de subjetividade, quanto pelo próprio efeito desta substância. Com
longo histórico de abuso, essa linha de fuga se enrijece, pronta a ser novamente emaranhada por
linhas flexíveis diversas em especial frente ao agenciamento coletivo, que vem a se tornar o
grupo. Assim, a organização disciplinar típica deste rígida também em sua constituição de
linhas – vem corroborar propensão para que se assuma um novo conjunto de valores e práticas de
si próprio.
Todos nós começamos normais. Todos começamos como seres humanos produtivos,
com potencial para fazer quase tudo que quiséssemos, mas, em algum ponto do caminho
de nossa vida, nós nos perdemos. (...) Todos aqui (neste grupo de onde fala), homens e
mulheres, viciados em crack ou bêbados ou junkies, ricos ou pobres, pretos ou brancos,
daríamos tudo que jamais tivemos e tudo que jamais teremos para sermos normais.
Coisas como uma luta, a luta boba, estúpida, logo esquecida, nos essa oportunidade.
(FREY, 2003, p. 97).
É interessante perceber como normas e regras disciplinares gidas
84
, ou mesmo idiotas e
servis, conduzem a novos territórios existenciais (de potencial sobriedade). Esse movimento é
resposta a um modo de vida desterritorializado de normas e regras, como as que compõem a
dinâmica dos grupos. Endurecidos em suas rígidas linhas de consumo abusivo e sem sentido,
83
Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada no consultório particular do pesquisador, no centro de
Contagem/MG, em 27/02/2008.
84
Horários para se começar a reunião, o respeito aos ditames do grupo, um fala enquanto os outros obrigatoriamente
escutam.
118
usuários crônicos de drogas e álcool encontram flexibilidade paradoxal no substrato seguro que
se torna o grupo. Nele, sob o efeito do embate entre esses dois tipos de linhas (molares e
moleculares), dependentes e alcoolistas estarão prontos a rumar para um desconhecido estrato,
atravessados por uma terceira ordem de linha (as de fuga).
Um grupo, desta forma, é tecelão de uma nova rede de agenciamentos.
Um agenciamento é precisamente este crescimento das dimensões numa multiplicidade
que muda necessariamente de natureza (a do consumo excessivo de álcool e drogas,
inclusive) à medida que ela aumenta suas conexões. (DELEUZE & GUATTARI, 1995,
p.17)
O reconhecimento da condição de usuário crônico é facilitado, com a inserção em um
ambiente propício, para a multiplicidade de conexões que vem a ser o grupo. Com participação e
engajamento neste, outros pontos poderão ser vivenciados de forma mais clara. Como a noção da
própria carga abusiva de consumo, a necessidade de buscá-lo, o vislumbrar da dignidade perdida,
a esperança instilada com escuta e atenção recíprocas de um relato, o treinamento e o
conhecimento que orientam e previnem recaídas, entre outros fatores.
Coordenador: Você chegou a tentar parar antes, sozinho?
Lucas: Eu tentei e fiquei seis meses parado. Mas voltei mesmo porque eu não tive
força para parar. Eu não tive a opinião mesmo de parar.
Coordenador: Depois que você entrou pro Grupo, você teve recaída?
Lucas: Não!
Coordenador: Teve vontade de beber?
Lucas: (pausa) Depois que eu entrei pro Grupo eu não tive vontade de beber. Sabe aquilo
“to com vontade e vou experimentar”. Hoje em dia tem colega, assim para não falar
amigo, e aí chegou esse cara com um copo de cerveja e me mostrou assim “isso aqui que
é bom!”. “É bom pra você, pra mim não é não!”.
Coordenador: Lucas, dentro do Grupo, ficar sóbrio, não vou dizer que é uma regra, mas
é algo que todo Grupo preza. Às vezes essa idéia de sobriedade funciona como uma
ordem pro membro? Ele pára de beber em função dessa aceitação do Grupo? E não
volta a beber para se sentir acolhido ali?
Lucas: Eu acho que não. O apoio que eu tenho lá não me manda não. Aquele lugar tem
que dar uma força, um apoio pra gente pra mudar. Se eu disser que a gente vai chegar lá
e o Grupo vai falar que vai mudar, não vai! O cara tem que ter a coragem dele mesmo, o
Grupo força! Eu acho que sozinho, ele não consegue, mas depende da força que ele
tem. Se eu, por exemplo dissesse que eu não ia parar, eu não tinha parado. Se eu ficasse
internado, não ficava mais que uma semana.
Coordenador: Você acha que o Grupo oferece espaço, para o indivíduo criticar o
próprio Grupo?
Lucas: Ele oferece. (Lucas, 42 anos, dependente alcoólico).
85
119
O indivíduo nos grupos diferentemente do sistema de internação em instituições de
tratamento (fazendas ou clínicas psiquiátricas) se mantém em contato com as substâncias de
abuso dispersas pela cidade. Porém, a presença das drogas e do álcool, no consumo cotidiano
demasiado, é substituída pela presença na prática discursiva de recusá-los pontualmente e na
escuta semanal de relatos envolvendo seus problemas. Sem a máscara de consciência oferecida
pelo apagamento ou a sensação de agitação vinda do consumo seria possível criticar e perceber
a escalada dos infortúnios provenientes das substâncias de abuso. Prática que exige um arranjo
disciplinar próprio.
Coordenador: Como assumir a responsabilidade da sobriedade no Grupo? Quando
você é membro ali dentro, você faz parte daquela conversa toda ali. E aos poucos você
percebe que aquela cervejinha que você tomava de vez em quando vai contra os
princípios daquele discurso que é assumido no Grupo. Como é pensar a sobriedade
desse jeito? É como se fosse uma imposição, o Grupo te impõe a ficar sóbria?
Sandra: Não, acho que não é como imposição não. Porque se fosse imposição eu não
faria, e como é que a gente recai? Não é? Porque você escuta aquilo ali, e tem hora que
você não conta. Mas aí, você escutando todo dia, toda segunda-feira, você procura
pelo menos não fazer. Porque várias vezes que eu tive recaídas, eu não tive coragem de
te contar. Então, o que é? É a mentira, você está mentindo. (Sandra 39 anos, dependente
alcoólica).
86
A sobriedade, como um bem a ser preservado, também impõe desafios, a partir da
inserção e participação no Grupo. Acolher tais desafios é garantir que o Grupo não funcione
como cópia e colagem de falas e posturas, abrindo espaço para que o usuário crônico se sinta
capaz de criticar e se mostrar verdadeiramente, em meio a seu discurso e à construção de uma
nova postura.
85
Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada no consultório particular do pesquisador, no centro de
Contagem/MG, em 29/02/2008.
86
Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada no consultório particular do pesquisador, no centro de
Contagem/MG, em 27/02/2008.
120
4.4 Os grupos de ajuda mútua como um todo.
4.4.1 Percurso e crítica: bases históricas e aplicações práticas contemporâneas.
“Não há grupo em si, antecedente à prática que o institui;
só existem grupos
87
, e estes não são entidades,
mas modos sócio-históricos de funcionamento.”
Heliana de Barros Conde Rodrigues, 2004.
A palavra grupo se vincula à “denominação italiana gruppo, usada para indicar conjuntos
humanos conforme representados em quadros renascentistas, especialmente os que tratam de
temas religiosos” (RODRIGUES, 2004, p. 155). Para este trabalho, apenas o vínculo da palavra
se dará em um plano único. Os grupos são entidades complexas, cuja história remete a construtos
de origem e destino diversos.
Barros (2007) e Rodrigues (2004), ao escreverem sobre grupos, concluem pela
impossibilidade de recorrência a uma entrada única sobre os mesmos. Os grupos não são objetos
constituídos a priori, sobre os quais se aplicam teorias, simplesmente. Para Rodrigues (2004),
mais especificamente, a teorização da dinâmica de grupo e das relações humanas (tanto das
práticas quanto na academia) se põe frente a determinados problemas. O conjunto desses desafios
Sugere a existência de um objeto dado “o” grupo –, que possuiria movimentos
previamente identificáveis por parte de um saber, presumidamente científico – uma
“dinâmica –, aos quais se agregariam, na forma de uma enigmática conjunção “e”,
aparentemente óbvias “relações” ditas “humanas” levando-nos a pensar que o antes
abstrato “grupo” e sua nobre “dinâmica” nada mais seriam, talvez, do que nossas tão
conhecidas, embora freqüentemente subjugadas assustadoras, “relação entre homens”.
(RODRIGUES, 2004, p. 113).
Apoiado na leitura de um percurso histórico e crítico sobre os grupos, feito por Rodrigues
(2004), tentou-se localizar as bases de uma prática grupal, próxima das fontes que hoje orientam
o grupo de ajuda mútua pesquisado. Em sua construção, Rodrigues (2004) extrapola o sobrevôo
87
Grifos da autora (mantidos).
121
descritivo básico, que tentaria demarcar com personagens e fatos, possíveis soluções para essa
tarefa. Na busca, não apenas pela enumeração da ordem dos fatos, objetivou-se também encontrar
as influências de saberes e práticas não-especifistas produzidas não somente nos meios
assépticos acadêmicos que extrapolasse os dizeres dos manuais que pouco as contemplam, mas
que atravessam sobremaneira a prática grupal pesquisada.
Não bastaria, para o presente trabalho, apenas mencionar as iniciativas de J. H. Pratt e
suas classes (ou sessões) coletivas para tuberculosos, em um dispensário na cidade de Boston, no
início do século passado, como precursoras das práticas de grupo.
Pratt trabalhava como clínico geral, no Ambulatório do Massachussetts General Hospital
(Boston). Em julho de 1905 iniciou programa de assistência a doentes de tuberculose,
incapazes de arcar com os custos de internação. Reunia-os uma vez por semana, em
grupos de 15 a 20 membros, no ximo 25, para que fosse possível estabelecer maior
contato com os pacientes
(3)
. Além dos cuidados clínicos, orientava-os a adotar atitudes
positivas em relação às suas condições, enfatizando a necessidade de manter a confiança
e a esperança. O reconhecimento de que não eram os únicos a sofrer, aparentemente,
contribuía para certa sensação de melhora. (BECHELLI; SANTOS, 2004, p. 3).
Os bons resultados do trabalho de Pratt – brevidade do processo de cura; utilização
sistemática e deliberada de emoções coletivas, para uma finalidade terapêutica; utilização de um
sistema de recompensas e promoções; dentre outros –, por si só, não explicam a eleição de seu
nome como “autor originário” (RODRIGUES, 2004, p. 135), na bibliografia. Sabe-se do
pioneirismo de suas publicações, mas negligencia-se a influência americana na produção de
ciência, do fato de seu texto se beneficiar do prestígio do discurso médico ou do grave status
“epidemiológico da tuberculose no início do século” (RODRIGUES, 2004, p. 135).
88
Para a
mesma autora, a descrição pura e a-histórica de fatos e personagens, sem crítica ou
contextualização mais profunda, ocupa grande espaço no estudo e no ensino das abordagens
grupais no campo da Psicologia.
Em um plano simplesmente descritivo, vale citar que confere a J. Moreno, nos anos 30, a
criação da expressão “psicoterapia de grupo” (RODRIGUES, 2004, p. 119). Em torno de sua
inventiva técnica, o psicodrama que se originou do estudo e da atuação de expressões teatrais
improvisadas –, formou-se a primeira sociedade oficial de grupoterapia. Para Moreno, segundo
Bechelli e Santos (2004),
122
grande parte da psico e sociopatologia poderia ser atribuída ao desenvolvimento
insuficiente da espontaneidade e que seria possível obter benefício terapêutico por
intermédio da representação, isto é, na vivência ativa e estruturada de situações psíquicas
conflituosas, o que levaria o indivíduo a descobrir as implicações dos eventos na própria
vida. (BECHELLI; SANTOS, 2004, p. 5).
Diante do mesmo impasse, o de traçar um percurso histórico-crítico, apressados
historiadores das práticas de grupo poderiam tentar resolver
facilmente esta questão mediante um simples argumento: o título oficial (dinâmica de
grupo) identifica as práticas grupais a um modelo teórico específico as formulações de
Kurt Lewin na década de 40, no contexto americano –, acoplado à valorização
emprestada aos grupos por formas de gestão empresarial que criticam o “esquecimento
taylorista do “fator humano” – a “teoria das relações humanas” surgida, ainda no
contexto americano, nos anos 20. Discussão banal, portanto (...). (RODRIGUES, 2004,
p. 113).
Ou recorrer, a-historicamente, a outros fatores que delimitem um contexto de formação
dessas práticas. A menção aos grupos operativos de Pichon Rivière, no Hospício de las Mercedes
em Buenos Aires; a Análise Institucional na França, que “jamais foi ‘técnica de grupo’”
(RODRIGUES, 2004, p. 124), mas que pôs em cena a dinâmica das instituições, anteriormente
não contemplada pela psicossociologia; os estudos de Lapassade (1989), densamente enraizados,
sobre burocracia e gestão; os modelos de Gregório Baremblitt; dentre outros autores e
movimentos; “nada disso parece ser tão importante, afinal, para a nossa formação enquanto
grupalistas (menos ainda, suponho, enquanto psicólogos!).” (RODRIGUES, 2004, p. 124).
Em lugar de tentar afirmar o que os grupos são, o que podem ou o que devem fazer, o
panorama histórico em pauta nos brinda com aquilo que certos modos de apreensão os
fazem ser, poder ou fazer. (RODRIGUES, 2004, p. 154).
Um fato caro às práticas de grupo, e também a esse percurso histórico, foi o conjunto de
conseqüências acarretado pela Segunda Guerra Mundial. Para Bechelli e Santos (2004), o maior
conflito armado do último século acarretou
88
Se um psicólogo formado, ou um adito em recuperação, reunisse um grupo de alcoolistas crônicos em torno de um
grupo, no fim do século XIX e início do XX, publicando localmente os métodos e eventuais benefícios dessa
montagem, receberiam eles tais créditos?
123
(...) grande mudança social quanto à procura de um profissional em decorrência de
problemas emocionais. Até a cada de 30, se fosse necessário procurar alguém com
esta finalidade, a escolha recaía preferencialmente no padre, pastor ou rabino e não no
"alienista" (psiquiatra) ou no psicanalista. Ir a um profissional de saúde mental era
considerado confissão de fracasso pessoal, vergonha para a família e um estigma.
Entretanto, os traumas decorrentes da guerra, tanto em civis quanto em militares,
mudaram esse conceito. Passou a haver maior demanda de assistência psicológica em
um universo com escasso número de psicoterapeutas. Em conseqüência, houve grande
impulso à psicoterapia de grupo que passou a ser considerada como importante recurso
terapêutico e dezenas de trabalhos foram desenvolvidos e publicados, relatando o
resultado dentro deste contexto de crise. (BECHELLI; SANTOS, 2004, p. 6).
Também merecem destaque, as novas posturas no campo da saúde mental, “originadas a
partir dos movimentos de reforma psiquiátrica que visavam a reintegração social do paciente.”
(GUANAES; JAPUR, 2001, p. 2).
A redução do número de internações em hospitais psiquiátricos e a criação de políticas
orientando novas formas de atendimento para essa população, como a expansão dos
hospitais-dia e dos atendimentos ambulatoriais nos centros de saúde, vieram a
transformar o atendimento em grupo no principal recurso terapêutico nesses contextos.
(GUANAES; JAPUR, 2001, p. 2)
Na intenção de construir de um texto, que remonta às bases históricas do trabalho com
grupos, e as aplica na realidade dos grupos de ajuda mútua, é necessário também considerar a
porção de saberes e técnicas nascidos “no seio de movimentos históricos-sociais contestatórios,
como os formulados em campos de ação não facilmente incorporáveis às práticas ‘psi’ instituídas
certas filosofias, pensamentos políticos, artísticos etc.”. (RODRIGUES, 2004, p. 118). Essas
são as referidas técnicas não-especifistas.
Para Bechelli e Santos (2004), a mobilização popular que se converte em práticas de
grupo, portanto passível de inserção nesse percurso histórico, se dá sobremaneira nas últimas três
décadas. Permeadas pelas técnicas não-especifistas, essas inúmeras organizações se formam
espontaneamente, com alguns milhões de membros em todo o mundo, compartilhando problemas
psicológicos ou condições médicas semelhantes, reunindo-se para trocar informações e oferecer
apoio mútuo (BECHELLI; SANTOS, 2004).
Essas associações, colocadas na figura dos grupos de ajuda mútua, auxiliam tanto o
próprio doente quanto seus familiares e amigos, e são dirigidas por eles mesmos, sem ser
necessária a presença de especialistas no assunto. Tal fato decorre, possivelmente, da redução do
124
papel e insuficiência dos serviços públicos de saúde mental e das instituições sociais. Esses
grupos de ajuda mútua “acabam proporcionando importante recurso a milhões de pessoas, como
sistema alternativo de tratamento” (BECHELLI; SANTOS, 2004, p. 9).
4.4.2 A inserção do grupo de apoio pesquisado nesse percurso histórico.
Para Bechelli e Santos (2004), assim pode ser resumido o embrião das práticas de grupo,
na Europa e nos Estados Unidos, ainda no início do século XX:
Pratt e Moreno foram os precursores da psicoterapia de grupo, tendo participado de sua
evolução durante toda a vida. Seu emprego em psiquiatria passou a ser crescente a partir
da cada de 20, particularmente em pacientes internados. Inicialmente, termos diversos
foram empregados para classificá-la: tratamento em massa, aula ou instrução em massa e
terapia coletiva. O método evoluiu de aula para interação e a abordagem de reeducação
para conceitos psicanalíticos. Gradualmente, a estrutura do grupo passou a ser definida
em relação a: número de participantes, freqüência e duração da sessão e do tratamento,
grupos homogêneo e heterogêneo, admissão ou não de novos participantes, emprego
concomitante de psicoterapia individual, regras e preparo do paciente. (BECHELLI;
SANTOS, 2004, p. 7).
O grupo de apoio pesquisado pode remontar a um modelo médico de atendimento,
próximo do de Pratt noções de saúde e doença pré-estipuladas, presença de um coordenador
detentor de um saber técnico-especializado
89
, orientação para uma “cura”, regras disciplinares
constituintes e norteadoras, convivência que estimula a instilação de esperança, a catarse, etc.
Como salientado no percurso histórico anterior, que de forma crítica abarcou influências
de técnicas não-especifistas, o grupo de apoio pesquisado também busca inspiração em
movimentos sociais e populares como os movimentos assistenciais e políticos vinculados à
Igreja, à esquerda ou aos tradicionais grupos de ajuda mútua, como os Alcoólicos Anônimos.
Para Rodrigues (2004), em leitura de Grinberg, Langer e Rodrigué (1976), os Alcoólicos
Anônimos, como certo exemplo de grupos de auto-ajuda, são vinculados a um modelo de
psicoterapia pelo grupo. Em relatos catárticos, observados no grupo pesquisado, as emoções
coletivas são estimuladas e utilizadas assim como fez Pratt , sem muitas vezes, a deliberada
89
Na figura de coordenador, espera-se não ocupar esse lugar de suposto-saber, na condução das reuniões do Grupo.
125
intenção de fazê-las analisadas pelos próprios participantes. O silêncio e os olhares, que acolhem
a fala e o choro do outro, têm reflexão pessoal despertada.
Práticas pelo grupo, no grupo e de grupo e as implicações dessas diversas preposições
que mediam a relação do todo-grupal com seus membros são dimensões analisadas por
Rodrigues (2004), também a partir da leitura de Grinberg, Langer e Rodrigué (1976). No
primeiro modelo (pelo grupo) se usam, deliberadamente, as emoções coletivas dos indivíduos
dispersos no grupo. No segundo, orientado fortemente por construtos psicanalíticos, introduz-se a
interpretação em situações coletivas. Todavia, o destinatário da interpretação permanece sendo
um indivíduo que tem, no grupo trabalhadas suas questões e conflitos. O terceiro modelo, por sua
vez, considera “o grupo como fenômeno central e como ponto de partida para a formulação de
qualquer interpretação” (RODRIGUES, 2004, p. 152). Embora avance, quanto à questão de
conceber o grupo como uma instância maior e mais complexa do que a soma simples e direta de
seus membros, o terceiro modelo se arrisca “a apreender uma nova ‘individualidade’, agora
grupal!” (RODRIGUES, 2004, p. 152). No cerne dessa discussão de modelos, estão as múltiplas
possibilidades de análise dos vetores indivíduos-grupo e grupo-indivíduos.
Na prática grupal do “Família Caná” de Contagem/MG, instância pesquisada e trabalhada,
se preza a concepção do grupo enquanto “totalidade – realidade diferente do somatório de
individualidades” (RODRIGUES, 2004, p. 152), que “exige formas específicas e originais de
intervenção” (RODRIGUES, 2004, p. 152). Se essas balizas nos aproximam do terceiro modelo,
também não se nega que eventos da ordem dos dois primeiros ocorrem com bastante freqüência.
Não se trata de adoção de um modelo fragmentado, ou de colagem de inúmeras teorias.
Preza-se, no grupo pesquisado, sua auto-invenção e gestão permanentemente. Acredita-se, como
em Rodrigues (2004), “que a adoção de qualquer dos modelos apresentados (...) conduzirá
inexoravelmente a compreensões da grupalidade e a intervenções sobre a mesma, submetidas às
restrições determinadas pela partição do mundo imposta” (RODRIGUES, 2004, p. 155) pela
escolha de quaisquer modelos. Tem-se a intenção (e a possibilidade) da montagem de um grupo
que se auto-gere e que se inventa, embora, concomitantemente, “fabricar-se” um grupo, um logos
e uma tecnocracia ao lhe impor (e ver aceito por seus membros) um determinado manejo.
126
4.5 A influência de Alcoólicos Anônimos e demais grupos de ajuda mútua, na prática do
grupo pesquisado.
“(...) nenhuma associação de homens e mulheres teve, em tempo algum,
uma necessidade mais premente de contínua eficiência e permanente união.
Nós, alcoólicos,
percebemos que precisamos trabalhar conjuntamente e permanecer unidos,
do contrário a maioria de nós acabará por morrer,
cada um sozinho em seu canto.”
Alcoólicos Anônimos, 2004.
Para Bechelli e Santos (2004), em levantamento histórico e bibliográfico das psicoterapias
de grupo, localizam-se na década de 20 do último século, as primeiras experiências de práticas de
grupos no atendimento à saúde de pacientes alcoólicos. Na Áustria e na ssia, psiquiatras
empregavam o que denominavam Terapia Coletiva no tratamento desses indivíduos e outros,
portadores de determinados: transtorno obsessivo-compulsivo, retardo mental e desajustes
sexuais (BECHELLI; SANTOS, 2004).
Cinco anos mais tarde, com Metzl, também no leste europeu, desenvolveu-se método
específico de aconselhamento em grupo para alcoólatras. Bechelli e Santos (2004), em leitura de
Dreikurs (1959), referem “que muitos dos princípios adotados anos depois nos Alcoólicos
Anônimos, pioneiro entre os grupos de auto-ajuda, podem ser encontrados no sistema de trabalho
de Metzl.” (BECHELLI; SANTOS, 2004, p. 5).
Estes princípios são descritos por Minayo e Schenker (2004) da seguinte forma,
Os Alcoólicos Anônimos (AA) e os Narcóticos Anônimos (NA) concebem a adicção
como uma doença progressiva e crônica, caracterizada pela negação e pela perda de
controle. A ideologia dos 12 passos prega que a recuperação é possível através do
reconhecimento individual de que as drogas são um problema e da admissão da falta de
controle sobre seu uso. (MINAYO; SCHENKER, 2004, p. 6).
Fato reforçado pela publicação mais importante de Alcoólicos Anônimos (2004) onde,
O único requisito para se tornar membro é o sincero desejo de parar de beber. Não
127
estamos ligados a qualquer crença, seita ou organização religiosa em particular, nem nos
opomos a qualquer uma delas. Simplesmente desejamos ser úteis àqueles que sofrem.
(ALCOÓLICOS ANÔNIMOS, 2004, p. 12)
Os membros do mais tradicional grupo de ajuda mútua se descrevem como recuperandos
permanentemente de uma “irremediável condição mental e física” (ALCOÓLICOS
ANÔNIMOS, 2004, p. 11). Acreditam que o relato compartilhado de experiências pessoais, que
conduziram à pontual sobriedade (fragmento de tempo de não mais que um dia), pode oferecer
ajuda a outro alcoólico. Acreditam, também, que o alcoolismo é uma grave doença (embora, para
muitos, incompreendida). E, ademais, têm a certeza de que sua maneira de viver é benéfica para
todos a priori.
Na introdução à primeira edição do “Grande Livro”
90
de Alcoólicos Anônimos, tem-se
importante ressalva. Os primeiros membros (“somos mais de cem homens e mulheres que nos
recuperamos” [ALCOÓLICOS ANÔNIMOS, 2004, p. 11]) ressaltam o fato de permanecerem
“anônimos” não pelo fato do alcoolismo ser um vetor de exclusão social e de vivência particular
de menos valia, necessitando que lhes fossem resguardadas as identidades. O caráter “anônimo”
nasce mais por serem estes indivíduos incapazes de se dedicar integralmente a todos que, por
ventura, procurariam neles ajuda.
É importante permanecermos anônimos porque somos, atualmente, muito poucos para
atender o enorme mero de pedidos pessoais que possa resultar dessa publicação. Por
sermos, na maioria, profissionais liberais ou homens de negócios, não poderíamos, em
tal eventualidade, continuar a nos dedicar a nossas ocupações. (ALCOÓLICOS
ANÔNIMOS, 2004, p. 11).
A associação de Alcoólicos Anônimos foi fundada em 1935, em Akron, no Estado de
Ohio, nordeste dos Estados Unidos. Milhões de casos de eficácia expandiram sua ideologia por
mais de 114 países
91
, contando com um número aproximado de 48 mil grupos espalhados por
todo mundo (GAMBARINI, 1997). Segundo pesquisa junto à Associação Mineira de Alcoólicos
90
Em 1939, mesmo fora impresso em papel muito grosso, que lhe dava muito volume, daí tal apelido em países de
língua inglesa. O livro “Alcoólicos Anônimos” no Brasil também possui o seu – “Livro Azul” – devido à cor de sua
capa. (ALCOÓLICOS ANÔNIMOS, 2004). A edição pesquisada, em língua portuguesa, possui pouco mais de 220
páginas.
91
Inclusive o Brasil, que recebeu seu primeiro Grupo de AA no Rio de Janeiro, em 05 de setembro de 1945. O
mesmo era composto por americanos em sobriedade, a serviço no Brasil. (BRASIL, Secretaria Nacional Anti-drogas,
s/d [a]).
128
Anônimos
92
(2008), são 108 os grupos de AA espalhados na região metropolitana de Belo
Horizonte/MG, sendo o primeiro Grupo montado em 08 de dezembro de 1952 (BRASIL,
Secretaria Nacional Anti-drogas, s/d [a]).
O desafio de manter-se em abstinência para alcoolistas crônicos não está somente em
suportar, física e psicologicamente, as crises da falta de álcool no organismo tremores, delírio,
irritação, compulsão, entre outros sintomas. Da mesma forma, também não está em ignorar um
possível julgamento pejorativo e excludente por parte dos demais convivas. “Alcoolistas são
pacientes que necessitam se abster do álcool numa sociedade que estimula seu consumo”
(RAMOS; BERTOLOTE, 1997, p. 200).
Seres humanos precisam ocasionalmente de momentos de fuga da sua existência costumeira.
Alguns escalam montanhas, outros entram para monastérios, outros ficam completamente
bêbados e alguns usam drogas. Não nada de natural em estar sóbrio. (VERGARA, 2002,
p. 50).
Também é desafio dos aditos e alcoolistas em recuperação, em ambientes como os de grupos
de ajuda mútua, vencerem as resistências o que mostra que os AA não são facilmente aceitos por
todos, pelo contrário. Frey (2003), em um depoimento dessa modalidade de resistência, coloca seu
ponto de vista inicial sobre grupos de ajuda mútua, nos moldes da tradição de AA, da seguinte
forma.
Pego um grosso e surrado livro azul. Não tem capa nem título, só ummbolo na frente, um
triângulo dentro de um círculo. (...) Chama-se O grande livro dos alcoólicos anônimos, e o
símbolo na frente é o mbolo da sobriedade. Nunca o li, nem sequer me dei ao trabalho de
abri-lo. Quando alguém o dava para mim, eu o jogava na sarjeta ou metia no fundo da lata
de lixo mais próxima. Fui a Reuniões dos AA, que me deixaram indiferente. Para mim, é
uma filosofia de substituição. Substituição de um vício por outro. Substituição de uma
substância química por Deus e as reuniões. (...) Não existe reunião em que toda choradeira,
reclamações e censuras do mundo possam fazer com que eu me sinta melhor. (FREY, 2003,
p. 80).
A tradição de AA ensina que convém reunir alcoolistas e aditos em grupos homogêneos
nosograficamente, uma vez identificado o triplo vetor de dificuldades compulsão, aceitação
social e resistência. O objetivo de reuni-los, em um mesmo espaço, ocorre afim de que fatores
terapêuticos de ordem determinada auxiliem no processo de reconhecimento de sua própria
condição, assim como os oriente ao resgate de sobriedade da dignidade.
92
www.aamg.org.br, acesso em 12/03/2008.
129
4.5.1 Convite a uma análise mais crítica: o grupo até se descontrói, depois se reinventa.
No reconhecimento, por parte do sujeito, do estado patológico de seu hábito de consumir
álcool (e, eventualmente, outras drogas) está o convite (e o desafio) de entrada em tão importante
associação de pessoas para ajuda mútua. Na convivência e com os relatos entre iguais, respeitando
um “programa” pessoal de abstinência fragmentos pontuais de tempo (“só por hoje!”) espera-se
oferecer substrato de resgate aos dependentes. Na definição de uma estratégia para mudança, o
grande achado dos AA foi ver a cura como fundo inteiriço de um longo processo de mudança. Nesse
processo, a figura fragmentada do dia-a-dia, sem o primeiro gole, funcionará como o vetor de
mudança.
Quanto a isto, Peña-Alfaro (1993), em estudo sobre a mecânica dos grupos de AA afirma que
(...) convém fazer uma distinção entre tratamento AA e a cura do alcoolismo. Os AA
insistem em afirmar que não curaram o alcoolismo, apenas pararam de beber e que, se um
deles beber um gole que seja, retornará à dependência. De forma que o tratamento’ diz
respeito apenas à recuperação do alcoólico, a conseguir a abstinência renunciando a bebida.
Portanto, o alcoolismo não é curado: o processo da doença alcoólica e suspenso. (PEÑA-
ALFARO, 1993, pag.25)
Ponciano Ribeiro (1994) coloca, quando de estudo sobre os processos grupais, esse fator de
“cura” como algo que se funde no conceito de mudança. Os AA não se intitulam grupos de
psicoterapia, no entanto a orientação para uma norma (vida com saúde e distante do álcool e das
drogas) é atravessada por fatores terapêuticos específicos quando da convivência em grupo.
O arranjo terapêutico desses fatores está diretamente ligado ao conceito de mudança
proposto, no ambiente do grupo de ajuda mútua. “Na realidade, psicoterapia (como qualquer outra
prática, de um grupo de ajuda mútua, de si, etc.) diz pouco no sentido de cura, mas diz muito no
sentido de mudança, ou seja, mais do que à cura, psicoterapia (ou outra prática) diz respeito à
mudança e às necessidades (dos indivíduos e dos grupos que as procuram).” (RIBEIRO, 1993, pag.
39).
Mas em que medida, uma prática clínica, que engloba as práticas de grupo e vice-versa –,
130
está a serviço da dominação (do coordenador dos grupos, dos patrões das empresas, dos detentores
do capital dos planos de saúde, dos legisladores, dos gestores do serviço público de saúde), e até
onde ela pode “contribuir para construção de autonomia e liberdade” (FERREIRA NETO, 2007, p.
178) para aqueles que dela fazem parte?
Resistente, em depoimento pessoal, assim dialoga Frey (2003) com um coordenador sobre
esse ponto:
Estávamos examinando seu plano pós-tratamento.
E que tal?
Se você o seguir, vai te fazer muito bem. Devia olhar com mais cuidado.
Por quê?
Tem mais coisas aí dentro do que você pensa.
Só vi coisas relacionadas aos AA.
Isso porque estamos recomendando que você freqüente os AA.
Achei que já tivéssemos encerrado essa merda de assunto.
(...) não vai se manter sóbrio sem os AA.
Por que acha isso?
Porque é a única coisa que funciona.
Pode ser a única coisa que funciona para vocês, mas não vai funcionar para mim.
Por quê?
Não acredito nos Doze Passos, não acredito em Deus e em nenhuma forma de Poder
Superior. Eu me recuso a entregar minha vida e minha vontade ao que quer que seja, e muito
menos a algo que não acredito.
Então, o que você vai fazer?
Vou viver minha vida. Vou aceitar as coisas como são e enfrentar os problemas quando
aparecerem. Quando álcool ou drogas ou ambos estiverem diante de mim, tomarei a decisão
de não usá-los. Não vou passar a vida com medo de álcool e drogas e não vou gastar meu
tempo conversando com pessoas que passam a vida com medo de álcool e drogas. Não vou
depender de nada a não ser de mim mesmo.
É a receita do desastre.
Eu rio dele.
As chances de alguém com sua história de abuso de álcool e drogas se manter sóbrio sem
uma quantidade enorme de apoio, com os AA e com terapia, seja terapia individual ou em
grupo, são de uma para um milhão. Na melhor das hipóteses.
Essas estatísticas não me assustam.
De uma para um milhão, James.
É uma chance em um milhão o fato de eu estar aqui agora. Uma em um milhão não me
assusta. (FREY, 2003, p. 410).
O conceito de “artes da existência” de Foucault (1984), vai na direção do depoimento.
Colocando o processo de mudança, proposto nos grupos de ajuda mútua, como algo que ultrapassa o
campo das práticas clínicas, as “artes da existência” se referem a todo um amplo conjunto de
práticas psicossociais (FERREIRA NETO, 2007) como as dos grupos de ajuda mútua inclusive,
bem como as familiares, as laborais, as educacionais, as filosóficas, entre outras. Para desenvolver
131
tal conceito, Foucault (1984) “mostra-se cético em relação ao potencial liberador (exclusivo) das
práticas clínicas, ainda que admita que (estas) possam manter ‘certa autonomia’”
93
(FERREIRA
NETO, 2007, p.177).
Para Foucault, segundo Ferreira Neto (2007), as práticas clínicas (médicas, psicológicas,
psicanalíticas) bem como as pedagógicas e até as filosóficas pertenceriam a um mesmo campo
das “artes da existência” ou das “técnicas de si” (FERREIRA NETO, 2007, p. 178). Dispostas no
conjunto das extensamente variáveis “tecnologias de si” (FERREIRA NETO, 2007, p. 182), as
“artes da existência”, como práticas psicossociais técnicas como as psicoterapias, ou populares
como os grupos de ajuda mútua de alcoólicos anônimos –, possuem “efeitos significativos em
indivíduos e comunidades” (FERREIRA NETO, 2007, p. 182).
Estas não se confundem com o que livre-arbítrio de um sujeito em particular o põe a fazer.
Essas práticas (de si) são exercidas num contexto comunitário e institucional (FERREIRA NETO,
2007). A mudança se proposta na clínica, ou em qualquer outra prática disciplinar de
assujeitamento, simplesmente condirá apenas à “produção de um modo de subjetivação
disciplinado, assujeitado” (FERREIRA NETO, 2007, 181), via reconhecimento de uma determinada
condição de si próprio – usuário crônico de álcool e drogas, dependente químico em recuperação em
um grupo ou instituição ou familiar de qualquer um deles. As “artes da existência” dizem,
Na verdade, o que mais importa não é o conhecimento de si mesmo, mas a invenção de si
mesmo, a ruptura com uma subjetivação identitária em função de uma subjetivação que
desprende-se de si mesma” e cria um devir outro. (FERREIRA NETO, 2007, p. 181).
Essa discussão se faz importante, uma vez que o grupo trabalha instâncias libertadoras e
dominadoras na natureza de sua montagem e constituição. Nele, o silêncio é abolido, dependentes e
familiares falam sobre suas vivências junto ao consumo abusivo de álcool e de entorpecentes. No
grupo, também se faz com que se “fossem desativadas as instâncias de condenação moral”
(FERREIRA NETO, 2007, p. 178) presentes no trato dos dependentes com a lei e os demais
membros da sociedade entre iguais, essa instância condenatória se abranda e não os segrega. Por
outro lado, uma posição subserviente aos ditames do grupo ou à sua potencial capacidade de
acolhimento e asilo, não comporão pontos para que se transite a um território existencial autêntico
de sobriedade. Mesmo cessando os problemas provenientes do contato com o álcool e as diversas
93
As discussões sobre as relações de poder estão no cerne da obra de Michel Foucault, assim como na sua produção
e entendimento sobre subjetividade e processos de subjetivação.
132
substâncias de abuso, o sujeito permanece atado ao grupo como condição única para se prolongar
seu processo de abstinência. Nesse caso, o grupo se mostra como detentor exclusivo dos poderes que
mantêm seus membros longe das drogas e do álcool; somente através dele, usuários crônicos dessas
diversas substâncias se constituiriam como sujeitos abstinentes. “Alienações que curam”
(FERREIRA NETO, 2007, p. 178) não é o que se espera deles.
No entanto, é interessante e paradoxal ressaltar a influência da disciplina (linhas duras)
dos grupos como ora “práticas disciplinares de sujeição, ora essas mesmas práticas como
portadoras de uma virtual liberação e invenção de outras modalidades de subjetivação.”
(FERREIRA NETO, 2007, p. 178).
4.6 Fatores terapêuticos das práticas de grupo no “Família Caná” de Contagem/MG.
Nos trabalhos de Pratt, no início do último século, é possível reconhecer o potencial
terapêutico dos grupos. Esses “fatores podem ser considerados como mediadores da mudança
terapêutica” (GUANAES; JAPUR, 2001, p. 3). Para Bechelli e Santos (2004), Pratt utilizava
(…) a reunião para transmitir, simultaneamente, instruções e conselhos, e oferecer apoio
a grupo de pacientes que apresentava problemas, sintomas e doenças semelhantes. A
oportunidade de compartilhar experiências de condições análogas era um dos fatores
importantes, além do efeito benéfico que um paciente exercia sobre outro quando
apresentava melhora. Em suas aulas, como Pratt as denominava, processavam-se o que
atualmente conhecemos por fatores terapêuticos: universalidade, aceitação e instilação
de esperança. (BECHELLI; SANTOS, 2004, p. 3).
Guanaes e Japur (2001), analisando a obra de Vinogradov e Yalom (1992), dissertam que
“a presença dos fatores terapêuticos nos diversos grupos existentes pode variar em função de
algumas forças modificadoras, como o tipo de grupo e as diferenças individuais entre os
participantes.” (GUANAES; JAPUR, 2001, p. 8). Essa compreensão coloca membros e eventuais
coordenadores de grupos frente a possibilidades e limites dos mesmos.
A atuação de fatores terapêuticos, como mediadores de mudança, se nas trocas
interativas potencializadas pelo arranjo determinado dos grupos. Nele, os membros reproduzem
133
os papéis que ocupam no dia-a-dia de suas relações e seus sentimentos quanto ao tema das
reuniões. O espaço que, possibilita a atuação desses fatores, ajudao indivíduo em sua tomada
de consciência como ser social.
Para Guanaes e Japur (2001), em revisão bibliográfica sobre os fatores terapêuticos dos
grupos, a noção de que esses influem no “tratamento psicoterápico existe com base na assunção
de que é possível classificar os elementos benéficos da psicoterapia.” (GUANAES, JAPUR,
2001, p. 3)
Nessa perspectiva, fator terapêutico é entendido como um elemento da terapia de grupo
que contribui para melhorar a condição de um paciente e que pode resultar tanto das
ações do terapeuta quanto dos demais participantes ou do próprio paciente. (GUANAES;
JAPUR, 2001, p. 3).
Yalom (1992) apresenta, empiricamente, uma lista de 11 fatores na psicoterapia de grupo.
São eles, na ordem colocada pelos autores Vinogradov e Yalom (1992):
1) Instilação de Esperança: “Grupos tais como os Alcoolistas Anônimos (...), usam o
depoimento de ex-alcoolistas ou aditos recuperados para inspirarem esperança nos novos
membros” (VINOGRADOV; YALOM, 1992, p. 17). Neste fator, o membro “experimenta um
otimismo quanto a seu progresso a partir do tratamento na terapia de grupo” (GUANAES;
JAPUR, 2001, p. 7).
Coordenador: Como você chegou até o Grupo?
Lucas: Olha, Jairo, eu cheguei até o Grupo porque minha vida estava alterada pela
bebida. Eu procurei lá força, e encontrei. Muita gente procura o AA, foi lá que eu
encontrei.
Coordenador: O que você vivia naquela época, que te fez chegar até o Grupo?
Lucas: Naquela época, eu acho que eu não vivia, não.
Coordenador: Como é que é?
Lucas: Eu vivia pra beber! Era do boteco para o serviço. Tanto é que a família tava
ficando abandonada. Foi na hora que eu cheguei num ponto de tomar a decisão de parar.
Eu tive apoio de muita gente lá, de você, do sr. Bento, daquela senhora da reza... a dona
Lourdes, outras pessoas, aí foi onde eu cheguei. A Carol me deu apoio, pra gente chegar
lá. (Lucas, 42 anos, dependente alcoólico).
94
Muitas vezes, o ambiente de um grupo de ajuda mútua se mostra carregado de
pessimismo. Até chegarem ao mesmo, familiares e dependentes viram-se imersos em uma série
134
de problemas causados pelo consumo abusivo de álcool e dos diversos entorpecentes. Tentativas
de parada também são relatadas, bem como eventuais fracassos destas. Sabe-se que as diretrizes
aprendidas no grupo terão de ser atuadas com vigor ao longo da semana, o que, junto ao longo
histórico de contato com as substâncias de abuso, não se mostrará tarefa fácil. E que muitos se
perderão nesse caminho. Instilar esperança é essencial fator terapêutico para o início do processo.
O clima na sala é sombrio. As palavras genética, doença, incurável e índice de sucesso
de quinze por cento pairam no ar como veneno radiativo. Todos olham ao redor. Todos
olham uns para os outros. (...) Damos as mãos. Apertamos mais forte do que ontem.
Tentamos extrair esperança uns dos outros, firmar um laço na esperança de que isso
mude a realidade. Mas não muda. Oitenta e cinco por cento de nós estão fodidos.
(FREY, 2003, p. 292).
2) Universalidade: onde se inverte a sensação de isolamento, imensa quando se trata de
alcoolismo e dependência química, bem como do convívio familiar com alguém acometido. As
oportunidades de “intercâmbio social franco e honesto” (VINOGRADOV; YALOM, 1992, p.
18), em um grupo como o pesquisado, experimenta-se alívio pelo pertencimento.
Coordenador: Se a gente pensar, Lucas, como acontece para o cara que chega no
Grupo com um problema? Escutar o problema do outro ajuda a solucionar o problema
dele, ou é mais um problema para ele?
Lucas: Vai ajudar sim pra ele.
Coordenador: Vochegou a comparar um problema do outro, “nossa, o problema
dele é muito maior que o meu!”?
Lucas: Então, eu pensava, se eu tava ruim, tinha mais gente pior do que eu. Vose
lembra do senhor Luciano. Pois é, o senhor Luciano tinha um problema bem maior que o
meu. Ele já tinha ido pro AA, já participou de fazenda... Eu, graças a Deus, se precisasse
eu ia, mas eu não... Se a situação tava ruim, tinha gente pior do que eu. Eu fazia para me
fortalecer. (Lucas, 42 anos, dependente alcoólico).
95
3) Oferecimento de Informações: instrução didática e aconselhamento se unem para
esclarecer pontos específicos levantados nas reuniões. Em encontros do “Família Caná” de
Contagem/MG, lança-se mão deste recurso com freqüência em especial no grupo de familiares
uma vez que o conhecimento dos efeitos das diversas substâncias de abuso no organismo
contribui para maior discernimento frente ao problema.
94
Dados da entrevista. Pesquisa de campo realizada no consultório particular do pesquisador, no centro de
Contagem/MG, em 29/02/2008.
95
Dados da entrevista. Pesquisa de campo realizada no consultório particular do pesquisador, no centro de
Contagem/MG, em 29/02/2008.
135
Quando imersos em um grupo de ajuda mútua, coordenadores ou dependentes com maior
tempo de participação, freqüentemente, se põem a explicar importantes fatores que conduziriam a
um bom aproveitamento das reuniões e afastariam dependentes e familiares de conseqüências
indesejadas. Assim descreve Frey (2003), uma das sessões de instrução em um grupo de ajuda
mútua nos Estados Unidos,
Ela (ex-alcoólica, coordenadora do grupo em questão) fala dos aspectos ambientais da
doença (anteriormente havia dito Dependência=Doença. Alcoolismo=Doença). O
ambiente familiar, a influência de amigos, a disponibilidade de álcool e drogas, o fator
estresse, a confiança e a aceitação das substâncias químicas por parte da sociedade e seu
uso nas funções do dia-a-dia. Ela fala sobre o controle do ambiente e seu efeito sobre
alguém que tem a forma ativa da doença. Ela diz que eliminar acionadores, que são os
fatores ambientais que podem causar uma recaída, tais como garrafas de vinho em casa
ou amigos que abusam de substâncias, é importante para manter um programa de
recuperação saudável. (FREY, 2003, p. 290).
4) Altruísmo: nele o indivíduo “mostra-se sensível às dificuldades, aos problemas, aos
limites de outro membro do grupo, sentindo desejo de ajudá-lo ou efetivamente fazendo algo para
ajudá-lo no contexto do grupo” (GUANAES; JAPUR, 2001, p. 7). Para recém-ingressados,
imersos em “ruminações acerca de suas próprias tragédias psicológicas” (VINOGRADOV;
YALOM, 1992, p. 20), sentir-se útil para alguém é um dos fatores das práticas de grupo mais
importantes para elevação de auto-estima.
Coordenador: aquela costura de histórias que acontece ali, Sandra, como funciona? O
indivíduo presta atenção (...), fica com medo de chegar no ponto onde o outro indivíduo
chegou, fica tocado pela história que um familiar conta, e imagina a tristeza que ele fez
para a casa dele...
Sandra: Acho que um pouquinho de tudo, não é? Vovai vendo o que a pessoa vai
fazendo, acho que tudo. (Sandra, 39 anos, dependente alcoólica).
96
5) Desenvolvimento de Técnicas de Socialização: variável quanto às diversas
configurações dos grupos (formatos e propósitos), este fator terapêutico remete à aquisição de
habilidades sociais básicas. No grupo de ajuda mútua pesquisado, é preponderante saber ouvir o
relato do outro, observando momento propício para interlocuções. Técnicas de dramatização,
citadas por Vinogradov e Yalom (1992) como as mais freqüentes, não são no grupo de pesquisa,
utilizadas. Nele, os membros ingressos “aprendem acerca do comportamento mal-adaptado a
partir do feedback honesto que oferecem uns aos outros” (VINOGRADOV; YALOM, 1992, p.
136
21). Para este fator terapêutico é importante ressaltar a interação entre grupos geracionais e de
gênero que se formam no grupo de pesquisa. Em geral, o grupo de familiares é composto por
mulheres, mães ou esposas de alcoolistas e dependentes químicos. As palavras que trocam entre
si implicam em reflexões pessoais, que podem desembocar em revisão de postura e modificação
de comportamento. No grupo de dependentes, os usuários de drogas ilícitas são, na quase
totalidade, indivíduos muito jovens (que ainda não completaram 25 anos), enquanto que os
alcoolistas são adultos mais maduros (a maioria acima dos 45 anos de idade). O discurso que
tecem entre si mostra o espanto frente ao breve período de exposição às substâncias de abuso dos
usuários de drogas ilícitas, comparado ao tempo de consumo demasiado dos usuários de álcool
os problemas acumulados de ambos, o envolvimento dos jovens com a criminalidade, a
dificuldade de parar frente ao estímulo para o consumo por parte do grupo de alcoolistas.
6) Comportamento Imitativo: membros de um grupo se beneficiam da observação das
práticas (atitudes e discurso) de outros membros, quer por aprendizagem, quer por substituição. O
vínculo com membros mais experientes (suas práticas e discurso) e o vínculo com o coordenador
do grupo são elementos importantes para este fator terapêutico. Da mesma forma que os
inúmeros exemplos negativos relatados no grupo, como as tentativas de parada e as freqüentes
recaídas, e suas inúmeras conseqüências.
Me convidou para uma reunião, dizendo que eu iria agradar, assistir... no Pilar (Grupo de
AA em Contagem), eu gostei da reunião, nunca imaginei que aquele lugar era assim. (...) Mas
gostei e tinha tanta vontade de parar que no mesmo dia me ingressei, aceitando a filosofia, não
falhava de reunião nenhuma. Até que comecei a fraquejar depois de um bom tempo de
abstinência, achava as reuniões enfadonhas, repetitivas, e comecei a desanimar e a ficar fraco.
Tinha parado por tanto tempo, uma pessoa que bebia todo dia, o tudo que eu bebia. Quis fazer
como o São Tomé, ver para crer, era o convite para o primeiro gole, aquele que desencadeia
todos os outros. E me percebi na recaída. Faltei à reunião decidido a tomar uma só, tomei três,
cheguei em casa e me esposa percebeu o cheiro de bebida. Falou comigo o tanto que estava
alegre, quase chorando, e eu voltei no AA. Olha caí, quero me levantar... (Senhor Bento,
alcoolista, membro do grupo de dependentes, 50 anos).
97
7) Catarse: a ação deste fator se quando é valorizada a liberação de sentimentos
positivos ou negativos, a fim de que se sinta certa medida de alívio (GUANAES; JAPUR, 2001).
A “ventilação de emoções” (VINOGRADOV; YALOM, 1992, p. 22), pura e simplesmente, não
96
Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada no consultório particular do pesquisador, no centro de
Contagem/MG, em 27/02/2008.
97
Dados da entrevista. Pesquisa de campo realizada nas dependências da Pastoral da Saúde Nossa Senhora do
Rosário, no bairro Alvorada, em Contagem/MG, em 15/10/2003.
137
conduz a mudanças duradouras para os participantes de um grupo. Junto ao alívio proporcionado
por um relato catártico é preciso avaliar a capacidade do grupo de acolher e refletir sobre o que é
dito. “Ser capaz de expressar emoções fortes e profundas e ainda assim ser aceito pelos outros,
levanta dúvidas quanto à crença íntima do indivíduo de que é basicamente repugnante,
inaceitável ou incapaz de ser amado”.
8) Reedição Corretiva do Grupo Familiar Primário: no grupo, são reproduzidas
interações que remetem ao grupo familiar original. Membros alcoolistas mais velhos, como
exposto, podem acolher com espanto e carinho o relato de jovens usuários de drogas ilícitas, e
tomar para si uma atitude paternal de aconselhamento; da mesma forma que estes jovens podem
rechaçar tal postura de conselhos. No grupo são expostos padrões de comportamento que
reeditam vivências no grupo familiar primário (VINOGRADOV; YALOM, 1992).
9) Fatores Existenciais: em grupos, alguns dilemas existenciais humanos tais como a
finitude, o isolamento, a liberdade e a falta de significado são pensados de maneira particular.
No grupo de apoio pesquisado devido ao tema e à localização das reuniões – discussões quanto
ao sentido da vida em sobriedade, da vida em contato com as drogas, da busca por prazer intenso
(mas que conduz a apagamentos e ameaças à integridade), da vivência de religiosidade são
engendradas de forma a possibilitar reconhecimento e reflexão quanto aos limites do indivíduo e ,
também, da própria prática do grupo
No curso da terapia, os membros começam a perceber que existe um limite para a
orientação e apoio que podem receber dos outros. Podem vir a descobrir que os maiores
responsáveis pela autonomia do grupo e pela condução de suas vidas são eles próprios.
Aprendem que, embora se possa estar próximo a outros, existe, ainda assim, uma solidão
inerente à existência que não pode ser evitada. (VINOGRADOV; YALOM, 1992, p. 24).
Com freqüência às reuniões é possível identificar relatos que remetem a reflexões
existenciais desta ordem, que oferecem aos demais membros aprendizado junto a este fator
terapêutico.
Coordenador: o senhor já viu seu pequeno?
Luciano: Já! Cheguei na quinta-feira, no sábado nós o buscamos. Ele ficou o sábado
todinho com a gente, só ele. Dormiu comigo, no domingo saímos. Fiquei com ele a tarde
toda. Deixei o garoto dormindo em casa... ele fala “olha o pai meu”.
Coordenador: o que o senhor vai fazer por este pequeno agora, senhor Luciano?
Luciano: o que eu puder! O que eu puder...
Coordenador: o que de mais bonito o senhor pode fazer por ele?
138
Luciano: é o que ele mais quer: a minha pessoa. Para ele faz sentido eu chegar e vê-lo,
menos de três anos de idade, para ele faz sentido o meu colo, a minha amizade.
Coordenador: e para o senhor, o que faz sentido? O que faz o senhor a acordar e lavar
o seu rosto... o que faz sentido para o senhor viver hoje, senhor Luciano?
Luciano: a minha vida não me pertence, a vontade me pertence. Minha obrigação é zelar
por mim mesmo, zelar por mim mesmo! Se eu não gostar de mim, não tem como o meu
filho gostar de mim não...
Coordenador: é um bom sentido para a vida zelar por si mesmo!
Luciano: Ontem vi uma frase curtinha “Se vonão mudar, nada mudará”. Se eu não
mudar... fica difícil, não é? (Luciano, 56 anos, dependente alcoólico).
98
10) Coesão do Grupo: para Vinogradov e Yalom (1992), este é um dos aspectos mais
complexos e integrais de um grupo que se mostra eficaz quanto à discussão de determinado tema,
estando seus membros mais ou menos inclinados a expressar e a explorar suas construções
pessoais. “A coesão refere-se à atração que os membros do grupo m entre si e pelo próprio
grupo.” (VINOGRADOV; YALOM, 1992, p. 25).
Em um grupo de dependentes químicos, alcoolistas e seus familiares é possível identificar
discurso congruente com vivências de isolamento e inadequação, causadas por longo histórico de
contato com as substâncias de abuso. Os membros do grupo de dependentes, quando da primeira
procura, não mais se sentem necessários, integrados e participativos em outros grupos de
convivência (família, trabalho, escola), que o os grupos onde obtêm álcool e drogas sem
restrição. Os familiares, frente às dificuldades impostas pelo hábito dos indivíduos que
acompanham, se vêem impotentes e envoltos em isolamento. A “vigorosa e eficaz experiência”
(VINOGRADOV; YALOM, 1992, p. 25), em um grupo que discute tais questões, poderá ser
curativa, em si mesma, quando os mesmos sujeitos da impossibilidade virem-se capazes de
compreender sua condição e rumarem para uma revisão de conduta. Em um grupo coeso, tem-se
reconhecida sua capacidade de ajudar o outro e a si próprio.
E cada vez que venho aqui, que ouço estes casos, que elaboro as coisas que aparecem no
grupo para serem vividas, pessoas buscando ajuda, isto me reforça. Porque muitas vezes
pessoas que chegam aqui procurando ajuda, o problema era semelhante, ou igual ao
meu. Outros maiores que o meu, outros menores, então isto tudo me reforça para não
voltar. A dar continuidade, continuar valorizando a minha vida, a minha auto-estima,
gostar de mim mesmo - porque eu não gostava de mim, e hoje eu gosto, penso duas
vezes antes de fazer determinadas coisas. Então o grupo me traz este conforto, digamos
assim, como que se estivesse acabando o combustível aqui (aponta para o peito), você
pega e renova o combustível. Eu preciso muito de freqüência ao grupo, que é para mim
muito importante. Eu mostro para mim que aqui funciona, para os outros que estar em
grupo funciona. Mostro para aqueles que querem, que realmente querem, que podem
98
Fragmento de reunião. Pesquisa de campo realizada no Grupo de Apoio Família Caná de Contagem/MG, em
01/03/2004.
139
mudar, porque aqui também não se faz milagre. Gosto do grupo, chego aqui o grupo
cheio... eh, que vontade que eu tenho de ver isto aqui lotado toda vida, não pelo fato de
pessoas simplesmente estarem precisando de ajuda, porque sei que muita gente precisa,
não falta, não tem lugar que cabe, Mineirão seria o lugar ideal para colocar todo este
povo. Eu queria que o grupo pudesse ficar cada vez mais forte, sinceramente é isto que
eu desejo. (Senhor Bento, alcoolista, membro do grupo de dependentes, 50 anos).
99
11) Aprendizagem Interpessoal: nela, o indivíduo ingressado “reconhece ter aprendido
algo de valor para si pela observação de outro membro do grupo” (GUANAES; JAPUR, 2001, p.
6). Lucas, alcoolista membro do grupo de dependentes, entrevistado em separado, oferece
importante relato para ilustração deste fator:
Coordenador: O que você achava que o Grupo podia fazer por você?
Lucas: Eu pensava muitas coisas. Igual, a Carol falava, a Carol sempre falava comigo.
“Ah, vamo na Igreja”, e tudo. Eu pensava que na Igreja, um padre, ele iria falar com
você. Eu pensava, Deus, achava só que era isso. Depois eu vi que era bem diferente,
você sobe e acontece aquilo tudo, a dona Patrícia faz a oração dela, o senhor Bento... é
diferente
100
.
Coordenador: Voacha que existe uma solidariedade entre cada um dos dependentes
ali? Por exemplo, na hora que se separam familiares de dependentes, você acha que
existe uma solidariedade entre os dependentes? Um respeita o outro, a história do
outro...?
Lucas: Ah, eu acho que sim. Aquele dia que separou, eu, você e o senhor Bento. Eu vi
que ele já tinha, que ele já estava bebendo, porque eu... Você viu, ele ficou meio
ressabiado, mais de lado. Eu pensei pra mim “o senhor Bento voltou a beber”. Ele
voltou, e na época ele já tinha voltado, não é?
Coordenador: É.
Lucas: Então, ele tava com medo de falar as coisas. Pra você ver, quando ele tava forte
ainda, ele falou que não era, mas ele era forte, bem forte.
Coordenador: Como você podia ajudar um cara como ele?
Uai, conversar com ele. Ele me ajudou muito no meu problema! Ele me deu a maior
força, então eu tenho que dar força para ele também. Conversar com ele, falar sobre
como é. Mas saber também, ele foi internado uma vez, na Fazenda, e agora recair
como essa. (Lucas, 42 anos, dependente alcoólico).
101
Em geral, esses fatores terapêuticos são facilitados uma vez que
(...) grupos com participantes sofrendo da mesma condição facilitam a identificação, a
revelação de particularidades e intimidades, o oferecimento de apoio ao semelhante, o
desenvolvimento de objetivo comum, e a resolução das dificuldades e dos desafios que
se assemelham. Ao mesmo tempo, reduz o isolamento social e possível estigma,
associado, dependendo da gravidade da doença, ao padecimento que a própria pessoa se
impõe. (BECHELLI; SANTOS, 2004, p. 9).
99
Dados da entrevista. Pesquisa de campo realizada nas dependências da Pastoral da Saúde Nossa Senhora do
Rosário, no bairro Alvorada, em Contagem/MG, em 15/10/2003.
100
Todos nomes fictícios.
101
Dados da entrevista. Pesquisa de campo realizada no consultório particular do pesquisador, no centro de
Contagem/MG, em 29/02/2008.
140
No caso dos grupos de ajuda mútua, tem-se otimização desses fatores terapêuticos o
que, para Bechelli e Santos (2004), contribui enormemente para o seu sucesso. Segundo esses
autores, “universalidade, altruísmo, a instilação de esperança e o apoio mútuo, o que reforça o
pressuposto de que cada membro do grupo é agente de sua própria mudança” (BECHELLI;
SANTOS, p. 9). O Grupo de Apoio “Família Caná” de Contagem/MG, ao longo dessa pesquisa,
oferece substratos que reforçam tal posicionamento.
4.7 O grupo pesquisado em si: aplicações em novas práticas de vida e de sobriedade.
A montagem de um setting, da ordem do grupo “Família Caná” de Contagem/MG,
implica em
(...) um questionamento radical dos movimentos de massa decididos centralizadamente e
que fazem funcionar indivíduos serializados. O que se torna essencial é conectar uma
multiplicidade de desejos moleculares, conexão esta que pode desembocar em efeitos
“bola de neve”, em provas de força em grande escala. (GUATTARI, 1981. p. 177)
O grupo, que serve de campo à pesquisa, se aproxima ora da definição de um grupo
“sujeito”, ora da de um grupo “assujeitado”
102
. Definição, não modelo, uma vez que o grupo
“sujeito” não é estático, e sim episódico, pois se em um processo contínuo e perene.
“Assujeitado”, por existirem regras anteriores à entrada em sua prática e discurso.
O grupo “sujeito” tem por característica a transversalidade, a linha de fuga, a transgressão
e a subversão. Segundo Guattari (1981), este grupo “sujeito”, na medida do possível, gerencia sua
relação com as determinações externas, bem como a sua própria lei interna. Neste, a liderança é
fluida. Na falta inerente de algo instância própria de todas as pessoas e grupos o fundante no
grupo é o desejo, um movimento autêntico (mas não neurótico) de preenchê-lo. Para que o grupo
“sujeito” ocorra são precisos dispositivos – conjunto de elementos heterogêneos, componentes de
certa estratégia que não se organizam burocraticamente, como organogramas de empresas. O
grupo “sujeito” é vida, por natureza, lugar para emergência de novos processos de subjetivação.
102
Lembrando que essas categorias descrevem processos, não essências.
141
Comparados, grupo “sujeito” e seu vetor contraposto, o grupo “assujeitado”, tem-se um
conjunto determinado de diferenças. A noção de grupo “assujeitado”, diz de um grupo que tende
a ser manipulado por todos os determinantes externos, da mesma forma que a produção de seu
discurso é dominada por sua própria lei (superegóica) interna (GUATTARI, 1981. p. 83). No
grupo “assujeitado”, a liderança se dá de forma patriarcal, edipiana, sufocadamente presa a um
líder (ou a vários deles). Seu efeito sobre as subjetividades é particular, uniformizante e coeso,
ligado à produção de identidades (de seres idênticos). O grupo “assujeitado” é produto de sua
instituição, de sua organização, de sua função prescrita, da reprodução e de seus atravessamentos.
Pois o grupo “assujeitado” possui,
(...) todo um sistema de demanda que perpetua a dependência inconsciente em relação a
seu sistema de produção (...). O resultado deste trabalho é a produção em série de um
indivíduo que será o mais despreparado possível para enfrentar as provas importantes de
sua vida. (...) Ele foi, de certo modo, fragilizado, vulnerabilizado, ele está prontinho para
se agarrar a todas as merdas institucionais organizadas para o acolher: a escola, a
hierarquia, o exército, o aprendizado da fidelidade, da submissão, da modéstia, do gosto
pelo trabalho, pela família, pela pátria, pelo sindicato, sem falar do resto... (GUATTARI,
1981. p. 13)
O grupo é um dispositivo, uma máquina de guerra, possibilidade de agenciamento
constante para entidades e indivíduos carentes de singularidade, usuários crônicos de
entorpecentes inclusive. Gonçalves (2007) lembra que o termo “máquina” se difere do conceito
de máquina, objeto da mecânica. Em Guattari (1981), este conceito é utilizado para descrever a
“capacidade das máquinas de conectar-se umas às outras fazendo aparecer novas linhas de
potencialidades” (GONÇALVES, 2007, p. 27). Essas máquinas – técnicas, teóricas, sociais,
estéticas funcionam por agenciamentos e não isoladamente. Os grupos possuem dimensões
maquínicas, uma vez que são capazes de
provocar agenciamentos e estabelecer conexões que possibilitam às pessoas re-
singularizar-se. Contudo, de se considerar que a produção maquínica da
subjetividade, pode operar tanto para reprodução, fixando identidades, quanto podem
agir como agenciamento coletivo de enunciação, que conduzem para o novo.
(GONÇALVES, 2007, p. 27).
Os processos de subjetivação, no espaço que se constitui o grupo, não estão ligados à
idéia restrita de sujeito individual, que nele se encerra. Para Gonçalves (2007), a subjetividade
142
passou por mudanças extremas e,
Diante de tanta alteração, (...) extrapolou seu suporte egóico e identitário para ser vista
por uma perspectiva de transversalidade, por um processo complexo e heterogêneo que
não designa uma “coisa em si” de caráter imutável. (GONÇALVES, 2007, p. 23).
Subjetividades, nesse sentido, não passam e não terminam nas instâncias individuais.
Os teóricos sociais têm escrito inúmeros obituários da imagem do ser humano que
animou nossas filosofias e nossas éticas por tanto tempo: o sujeito universal, estável,
unificado, totalizado, individualizado, interiorizado. (ROSE, 2001. p.139).
O que nele se espera é também definição de uma de suas direções a noção de
empoderamento – onde há,
aumento do poder e autonomia pessoal e coletiva de indivíduos e grupos sociais nas
relações interpessoais e institucionais, principalmente daqueles submetidos a relações de
opressão, dominação e discriminação social. (VASCONCELOS, 2003. p. 20)
O grupo se faz como um agenciamento, como um “‘entre coletivo que convida à
conexão, à mediação, que trabalha todos os fluxos semióticos, materiais e sociais, caracterizando-
se por um constante e intermitente devir. O grupo, enquanto agenciamento, liberta o sujeito da
individuação (doente mental catatônico, freiras conversas, religiosos fanáticos e os usuários
crônicos de drogas, em níveis elevados de consumo) e o lança, por desterritorialização, em
direção ao coletivo (luta anti-manocomial, reformas diversas, flexibilização, abstinência com
participação em grupos).
Coordenador: Dentro do Grupo você acha que se aplica uma noção de solidariedade
entre os membros?
Sandra: Acho que sim.
Coordenador: Como essa solidariedade atua? Não sei se você percebeu. Quando a
pessoa chega lá pela primeira vez, parece que só ela sofre deste problema.
Sandra: A gente acha que sim, como em todas as coisas. Eu tava comentando isso com
uma pessoa ontem, a gente sempre quando ta com algum problema, você acha que o seu
problema é o maior, você não olha pra trás. E quando você escuta essas coisas, você
vê que tem problemas maiores que o seu. E que, assim, o seu problema é tão pequeno. O
meu problema é muito pequeno diante do que ouço lá.
Coordenador: Ajuda saber que o problema de um é menor que o problema do outro?
Sandra: Ajuda. Eu acho que ajuda sim, do meu ponto de vista, por exemplo. Aí, eu quero
melhor mais e mais para ta ajudando outras pessoas como a Dona Patrícia (mãe de uma
dependente química, cujo discurso é agressivo em excesso, frente às dificuldades que
143
passa com a filha). Então, para ajudar eu tenho que estar bem. Eu não posso estar no
vício. (Sandra, 39 anos, dependente alcoólica).
103
Na família, na escola, no trabalho, em um estádio de futebol, ou em um grupo de apoio a
dependentes químicos, existe um processo de subjetivação coletivo que extrapola a instância
individual.
Nessa mesma acepção, está a noção de subjetividade para Deleuze e Guattari, uma
subjetividade que não remete só a indivíduos, mas a acontecimentos, a situações, a
configurações sociais. Uma subjetividade que é produzida por instâncias individuais,
mas também por instâncias coletivas que comportam dimensões incorporais e invisíveis.
(GONÇALVES, 2007, p. 34)
Os indivíduos que nas instituições se inserem se modificam pela marca do coletivo, mas
passam a compô-la, também nela imprimindo seu traço particularizado. A ligação dos humanos a
outros objetos e práticas, multiplicidades e forças, constituem, para Rose (2001), os efeitos da
interioridade psicológica juntamente com uma gama inteira de capacidades e outras relações.
São estas variadas relações que produzem o sujeito como um agenciamento; elas
próprias fazem emergir todos os fenômenos por meio dos quais, em seus próprios
tempos, os seres humanos se relacionam consigo próprios (...). Uma melhor forma de ver
os sujeitos é como ‘agenciamentos’ que metamorfoseiam ou mudam suas propriedades à
medida que expandem suas conexões: eles não ‘são’ nada mais e nada menos que as
cambiantes conexões com as quais eles estão associados. (DELEUZE & GUATTARI,
1995, p. 16-37).
No grupo, estas relações se dão com a fala e a escuta de seus membros, na linguagem
sinestésica exposta ou discretamente implícita, com a leitura de textos que no grupo é proposta,
no olhar de um membro para com outro, assim como no silêncio que, por várias vezes, entrecorta
todas estas instâncias. Instâncias formadas e formadoras de pessoas, que se configuram como
baluartes para entendimento do problema do abuso de drogas e, quando possível, aquisição de
uma vida (que critica e preza uma prática de si e também o grupo) em sobriedade.
O fruir da riqueza da atualidade depende de as subjetividades enfrentarem os vazios de
sentido provocados pelas dissoluções das figuras em que se reconhecem a cada
momento. assim poderão investir a rica densidade de universos que as povoam, de
modo a pensar o impensável e inventar possibilidades de vida. (ROLNIK, 1997. p. 24).
103
Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada no consultório particular do pesquisador, no centro de
144
Quanto à performance dessa formação discursiva, não caberia aqui idealizar “um
monótono desfilar de acusações de ‘mitificação’, ‘engano’ e ‘ideologização’ dos agentes”
(RODRIGUES, 2004, p. 133) do grupo pelos seus saberes prescritos, aguardando uma reviravolta
de seu quadro de consumo abusivo capaz de conduzi-los, pobres de juízo e iludidos, a uma vitória
que copia modelos de uma verdade pré-estabelecida. Consigo próprios, para praticarem a
liberdade que lhes é proposta no Grupo, dependentes devem se ocupar de si próprios, com
trabalho e disciplina pessoais.
Lutarei comigo, meu coração, minha vontade, meu ser, minha canção, lutarei comigo.
Posso ganhar, posso perder. Não importa. O que importa é como lutarei. Não Deus e
não nada parecido com um Poder Superior (nessa hora). Lutarei comigo. Sozinho.
Lutarei comigo. (FREY, 2003, p. 231).
Como para os gregos, em Foucault (2004), “cuidar de si, ao mesmo tempo para se
conhecer (...) e para se formar, superar-se a si mesmo, para dominar em si os apetites que
poderiam arrebatá-lo” (FOUCAULT, 2004, pág. 268). No Grupo, assim se preza ao longo de sua
fundação, “a ética como prática racional da liberdade girou em torno desse imperativo
fundamental: ‘cuida-te de ti mesmo’” (FOUCAULT, 2004, pág. 268).
“Permito-me sentir, sentir completamente, e os sentimentos trazem fluxos de imagens e
pensamentos lineares e lúcidos, e eles atravessam, perpassam minha mente.
Atravessam e perpassam minha mente.
Não consigo parar. Não tem fim. Não consigo parar.
Dor.
Sarjeta.
Padre. Foda-se Deus. Ela. Foda-se ela.
Cachimbo. Isqueiro. Garrafa.
Não consigo parar.
Dor.
Agüente.
Ódio. Ódio assassino. Incontrolável. Ódio.
Pecados imperdoáveis. Lugares de onde não há retorno. Danos irreparáveis.
Chore.
Lute.
Mãe.
Pai.
Irmão.
Contagem/MG, em 27/02/2008.
145
Chore.
Lute.
Viva.
Isqueiro. Cachimbo. Garrafa.
Náusea. Náusea. Náusea.
Melhore.
Impossível.
Fique.
Impossível.
Foda-se Deus. Foda-se ela. Foda-se você.
Fique.
Viva.
Lute.
Chore.
Decisão. Decisão. Decisão.
Enfrente.
Agüente. Agüente.
Decisão.
O fluxo de pensamentos é claro e lúcido, e me atravessam e me perpassam, me atravessam e me
perpassam, se encontram e se perdem esvazio-me esqueço e aí surge algo algo algo que eu mal
conheço, calma perfeita. Clareza. Serenidade. Paz. Minhas compulsões se foram. Meu coração
bate lento e firme. Tudo que sei e sou e vi senti fiz passado presente passado agora então antes
agora vi senti fiz sofri senti se concentra em algo além das palavras além além além e está
falando e diz.
Fique.
Lute.
Viva.
Agüente.
Chore.
Chore.
Chore.”
James Frey, 2003.
146
“Os principais limites observados pela não priorização, por parte do MS, de uma política
de saúde integral dirigida ao consumidor de álcool e outras drogas, podem ser percebidos a
partir do impacto econômico e social que tem recaído para o Sistema Único de Saúde, seja
por seus custos diretos, seja pela impossibilidade de resposta de outras pastas
governamentais voltadas para um efeito positivo sobre a redução do consumo de drogas;
isto também ocorre no que se refere ao resgate do usuário do ponto de vista da saúde (e
não tão-somente moralista ou legalista), e em estratégias de comunicação que reforçam o
senso comum de que todo consumidor é marginal e perigoso para a sociedade.”
Brasil, Ministério da Saúde, 2004.
147
5 O CONTEXTO QUE PRODUZ O CENÁRIO DOS GRUPOS DE AJUDA MÚTUA
PARA DEPENDENTES QUÍMICOS: DEFINIÇÕES, ATUALIDADES E DIRETRIZES
POLÍTICAS.
5.1 Uma breve pedagogia do problema.
Os humanos são seres inquietos. E não falamos deles quando estão com sede ou com
fome, apenas. Invenções e artifícios são utilizados para saciar muitas de suas vontades. Próteses
são criadas, assim como muitas de suas necessidades.
Enquanto subo a escada, a fome a fissura começam a me subjugar. Minhas mãos
tremem, meu coração acelera, sinto-me nervoso, ansioso, irritado. Olho para a comida.
Não vejo, ouço ou sinto mais nada. Cada segundo demora uma hora, cada passo, uma
maratona. Quero quero quero. Combustível. Agora mesmo, já. Eu mataria se alguém
levasse a comida embora, mataria se alguém tentasse me impedir de chegar até ela.
Fissura fissura fissura fissura fissura. (FREY, 2003, p. 100).
Insatisfeitos com a fala próxima, recurso essencial para a passagem de informação, para a
propagação da cultura entre pares, criaram a comunicação de longa distância. Decerto, tinham a
idéia de aproximar, mas não pensaram eles que apenas a informação se aproximaria. Na
atualidade, se está cada vez mais distante. Também interferiram na sexualidade. A reprodução de
espécie, pura e simples, escondia prazeres recreacionais. Revistas, livros, fotos, mangás, animes,
Viagra, perguntas em jornais, internet, chicotinhos... uma gama de artefatos sexuais está
constantemente sendo criada. Objetos de consumo que remetem a um fetichismo, bem como um
certo de despreparo.
Insatisfeitos com o que a natureza lhes dera para comer, cru como a realidade,
desenvolveram a culinária. Sentidos inatos, como o aroma e o paladar, importantes recursos de
sobrevivência para distinção de substâncias, passaram a ser potencialmente estimulados. Em
torno dos sentidos (da visão, inclusive), institui-se inclusive a montagem de pseudo-rituais
como os de degustação de um bom vinho, de preparação de um bom corte de carne.
Interferiria-se na percepção, portanto, com o intuito principal de se sentir prazer.
148
Não basta ao homem ver, sentir e experimentar o mundo assim como ele é, como os
sentidos que ele possui o colocam. O homem sempre quis mais. Descobriu que alguns elementos
naturais traziam uma nova configuração para a consciência, depois criou muitos outros e os
potencializou. Elementos, ingeridos voluntariamente, que maculam seus sentidos - cores onde
não se tinha, calor onde havia frio, excitação onde havia desânimo, tesão para a frigidez, torpor
onde havia tensão. A insatisfação e a inquietude humanas são como portas de entrada para o
consumo (eventual ou abusivo) de drogas.
Essas substâncias, cujas origens remetem à busca por sensações novas, impossíveis de se
ter ou brandas demais sem o seu estímulo, seriam vinculadas a uma vivência do sagrado e, hoje, a
uma especial vivência de tempo acelerado. Com o tempo, e a conseqüente evolução do preparo
destas substâncias, muitos iniciados teriam mais que sensações alteradas, no trato com as drogas.
Junto delas viria um corolário de complicações. Problemas que emergiriam das conseqüências de
seu uso desregrado.
Não há nada de desviante ou incomum em intoxicar-se. Pode-se considerar
(...) esse comportamento padrão na espécie humana. Há quem diga que os seres humanos
precisam de substâncias psicoativas, usar drogas pode ser considerada uma das
necessidades básicas do ser humano, uma motivação “biologicamente inevitável”. Nosso
sistema nervoso (...) responde às substâncias psicoativas da mesma maneira que reage a
comida, bebida, sexo e sono. (VERGARA, 2003, p. 28)
“Sobriedade absoluta não é um estado humano natural” (DAVENPORT-HINES, 2001, p.
ix). Para Deleuze (s/d), quando se trata de drogas e seu consumo,
“ora se invocam prazeres difíceis de descrever e que já supõem a droga; ora se invocam,
ao contrário, as causalidades muito gerais e extrínsecas (considerações sociológicas,
problemas de comunicação e de incomunicabilidade, situação dos jovens etc.)”
(DELEUZE, s/d, p. 63)
.
Descrever o fenômeno do abuso de drogas passa também por descrever a pessoalidade da
reação das drogas no corpo daqueles que as usam. Embora, “(...) as alucinações, as falsas
percepções, as baforadas paranóicas, a longa listas das dependências é muito conhecida, ainda
que renovada pelos drogados, que se tomam por experimentadores, cavaleiros do mundo
moderno ou doadores universais da consciência.” (DELEUZE, s/d, p. 63), algumas definições
149
se fazem necessárias.
Estas substâncias, artifícios de alguns “toxicômanos de identidades” (ROLNIK, 1997. p.
19) são
(...) fabricadas pela indústria farmacológica (...): produtos do narcotráfico, que
proporcionam miragens de onipotência ou de uma velocidade compatível com as
exigências do mercado; fórmulas da psiquiatria biológica, que nos fazem crer que essa
turbulência não passa de uma disfunção hormonal ou neurológica; e, para incrementar o
coquetel, miraculosas vitaminas prometendo uma saúde ilimitada, vacinada contra o
stress e a finitude. Evidentemente não está sendo posto em questão aqui o benefício que
trazem tais avanços da indústria farmacológica, mas apenas seu uso como droga que
sustenta a ilusão de identidade. (ROLNIK, 1997. p. 21-22)
Drogas são engolidas, fumadas, injetadas, inaladas ou absorvidas pela pele e pelas
mucosas. Embora desemboquem em políticas equivocadas, “órgãos reguladores e midiáticos
tendem a dizer que as drogas possuem características coletivamente semelhantes”
(DAVENPORT-HINES, 2001, p. ix), seus efeitos e categorias variam bastante, incluindo seu
poder de entorpecer e a sua capacidade.
Consultados bancos de dados diversos, incluindo fontes bibliográficas de cil acesso
(publicações como jornais e revistas de grande circulação), vê-se que não há consenso quanto ao
estabelecimento de uma definição coerente para os diversos entorpecentes ou sua classificação
em grupos coesos. Assumir um ponto de vista, que também define o que é ou não droga, acontece
desde a primeira década do século XX. Esta definição faz parte de um estratégico jogo de poder,
imposto unilateralmente nos últimos cem anos, por um discurso criticável e segregador.
Segundo o site do órgão regulador do governo dos Estados Unidos
104
para o assunto, o
UNITED STATES DRUG ENFORCEMENT ADMINISTRATION (2006) este, a maior
influência político-econômica na produção de diretrizes e políticas para o combate ao abuso de
drogas, junto à Organização das Nações Unidas –, três são os tipos de substâncias de abuso:
1) As depressoras do sistema nervoso central (ou narcóticas) que agem como
sedativos, oferecendo relaxamento, alívio da ansiedade e do estresse, cujo uso contínuo conduz à
dependência física e psicológica, e cuja falta (uma vez instalada a dependência) leva a sérias
crises de abstinência; 2) agentes que ativam, potencializam e aumentam a atividade do sistema
nervoso central, ou estimulantes – nos quais se incluem os moderadores de apetite (estimulantes,
da classe das anfetaminas), as metanfetaminas, o ecstasy, o tabaco, a cafeína, a cocaína e seus
150
derivados, cujo uso leva à sensação de euforia, taquicardia, dilatação pupilar e elevação da
pressão arterial, bem como agitação e agressividade; e 3) as alucinógenas cujas propriedades
produzem profunda confusão sensorial, como distorção visual, euforia, relaxamento, alucinações,
paranóia e depressão (DRUG ENFORCEMENT ADMINISTRATION, 2006, p. 10).
Para Davenport-Hines (2001), outras duas categorias podem ser incluídas. 4) a das drogas
hipnóticascujos efeitos levam ao sono e ao torpor, incluindo medicamentos de amplo uso pela
população no fim do século XX, como os barbitúricos e os benzodiazepínicos; e 5) as
inebriantes produzidas a partir de sínteses químicas de elementos voláteis, como o
clorofórmio, a benzina e os diversos solventes.
A atividade destas rias substâncias, no organismo de quem as administra, somente foi
melhor entendida ao longo das três últimas décadas. Sabe-se que células nervosas são a fonte da
atividade neural no cérebro. A transmissão de sinais entre estas minúsculas entidades envolve
neurotransmissores, pulsos elétricos e reações químicas. Neurotransmissores excitam ou inibem a
atividade celular cerebral, e são reconhecidos por receptores específicos, por proteínas especiais
localizadas nas membranas celulares. Quantidades naturais destes neurotransmissores são
injetadas, continuamente ou frente a situações especiais. Adrenalina para momentos de pânico e
fuga, serotonina para satisfação, dopamina para eventos de prazer são alguns possíveis
exemplos. No entanto, a administração de diferentes substâncias, alheias ao equilíbrio natural do
corpo, conduz à liberação, à captação ou demora na recaptação destes neurotransmissores.
Explicação que, no entanto, não esgota as dúvidas para com o mecanismo de intoxicação das
diversas drogas, nem o controverso fascínio que elas despertam.
Como afirmam Davenport-Hines (2001), Vergara (2003) e o próprio Drug Enforcement
Administration americano (2006), cocaína e anfetamina conduzem a sensações de prazer por
causarem nos neurotransmissores a liberação de noradrenalina e dopamina. Opiáceos, por sua
vez, atuando em três frentes de receptores, bloqueiam a sensação de dor e interferem na
percepção sensorial.
A obtenção desta vivência alterada de consciência implicará em todo um conjunto de
fatores, de organização social e da montagem de um sistema econômico paralelo. Para a oferta e
o consumo de substâncias de abuso ilegais será necessário recorrer aos pontos de venda
clandestinos das mesmas. Nestes, se compromete uma massa de indivíduos, que se envolvida
104
Drug Enforcement Administration, www.dea.gov.
151
nas atividades de beneficiamento e distribuição dos produtos do tráfico. As populações
marginalizadas dos centros urbanos, que oferecem as drogas nesse varejo traficante, são
igualmente prejudicadas. A organização necessária, para o desempenho da atividade ilegal e para
o consumo contíguo de alguns de seus membros, implicará riscos, perdas, disputas territoriais e
ainda mais exclusão nas comunidades.
Como, no tráfico, as atividades ilegais têm o caráter de negócio contínuo, que flui por
meios de relações interpessoais baseadas no segredo, na confiança sempre posta à prova,
no conhecimento das pessoas e nos acordos tácitos estabelecidos entre elas, o conceito
de rede se aplica ao fluxo hierárquico e às relações interpessoais que implicam relações
não grupais ou institucionais, corporativas e fechadas, e sim a relações abertas no tempo
e no espaço, vinculando inúmeras pessoas através de contatos de diversos tipos que vão
se multiplicando pelos intermediários. (ZALUAR, 2002, p. 210).
O álcool, substância de abuso, cujos danos e a prevalência, nos grupos de ajuda mútua, se
fazem exponenciais, não enfrenta marginalidade e clandestinidade em sua venda e consumo,
diretamente. As restrições são sabidas proibição de venda a menores, próximo das rodovias,
entre outras – da mesma forma que são conhecidas as suas violações. Droga liberada, cujo
consumo é socialmente estimulado, flagela indivíduo e meio social circundante quando da
instalação de um padrão de consumo abusivo.
A descrição biológica e de modelos sociais avança, na tentativa de melhor explicar a
atuação das substâncias de abuso no organismo humano e sua escalada nos meios de convivência
social. No entanto, o vácuo deixado pela falta de entendimento das paixões despertadas pelo
álcool e pelas drogas (na busca de se consumi-los ou na sua execração) se mostra desafiador e
convidativo, tamanho o montante de pessoas que com elas se envolvem. Sentimentos que passam
pelo entusiasmo da primeira experiência de uma substância ilícita, pelo primeiro porre, até as
mais complexas valas de podridão como a corrupção, a violência, a segregação e a morte
relatados pelos dependentes nesta pesquisa.
Drogas são freqüentemente o recurso de pessoas que estão entediadas, tristes, nervosas –
ou seja, parte do repertório de humores e necessidades humanos. Pessoas usam drogas
para se retratarem frente a um ambiente de brutalidade, ou como forma de abrandar a
culpa e a ansiedade, ou como um truque para envergonhar os mais velhos. Opiáceos
podem oferecer uma forma de se reinventar como um ser superior, distante e sem pena
de nada (...). Tomados juntos, estimulantes, alucinógenos, tranqüilizantes e analgésicos
oferecem cada extremo de busca por amor e de desejo de morte, de abertura e
fechamento, de reconstrução de si e demolição, de energia exterior e implosão interior,
152
da busca pelo destino contra uma tentativa de se suspender o futuro. (DAVENPORT-
HINES, 2001, p. x).
“(...) o que se passa” (DELEUZE, s/d, p. 66) com aqueles cuja existência se mostra como
um inimigo implacável? “Os drogados não se serviriam da ascensão de um novo sistema de
desejo-percepção em proveito próprio e chantagem?” (DELEUZE, s/d, p. 66). Questionamentos
diversos que surgem, e não se esgotam, frente à descrição puramente biológica do fenômeno.
É como um movimento ‘curvo’. O drogado fabrica suas linhas de fuga ativas. Mas essas
linhas se enrolam, se põem a girar nos buracos negros, cada drogado tem seu buraco,
grupo ou indivíduo, como um caracol. (DELEUZE, s/d, p.65).
Constata-se que as drogas são profundamente cheias de incongruências e contradições.
Não em um plano político, corroborado por dados e estatísticas, que se inserem suas
ramificações perniciosas tráfico, acidentes de trânsito, disseminação de doenças por
compartilhamento de seringas contaminadas, entre outras. A interface que se seguirá, entre um
problema de saúde pública, e o campo político para seu controle e entendimento, busca discutir
os impasses gerados e os desafios à prática clínica psicológica contemporânea.
5.2 O problema traduzido em dados.
“O poder do dinheiro:
o bem-estar da população sempre foi o motivo alegado para a decisão de proibir e criminalizar
o uso de algumas drogas, e manter outras controladas ou liberadas.
Mas, por trás deste argumento inatacável, havia muitos milhões de dólares.”
Rodrigo Vergara, 2003.
Mitsubishis, 007s, Doves, New Yorkers, Califórnia Sunrises, M&Ms, Dennis o
Pimentinha, Rhubarb e Custards, Bolas de Neve, Borboletas Azuis, McDonalds,
Flatiners, Shamrocks, Gansos, Engolidos, Turbos, Quatro Fases, Refrescantes, Corações
Apaixonados, Riddlers, Elefantes Rosas estes são alguns dos nomes comerciais de
Ecstasy disponíveis no mercado ilegal de drogas inglês, no começo do século XXI. Os
ingredientes de cada pequena pílula variam de acordo com sua cor, tamanho ou
pictograma estampado. A diversidade de “marcasdemonstra o vigor do negócio e o
153
dinamismo do mercado.
105
(DAVENPORT-HINES, 2001, p. ix)
Números alarmantes giram em torno do uso de drogas na atualidade. Segundo o Escritório
da Organização das Nações Unidas para Drogas e Crime (2005),
TABELA 1
Extensão do uso de drogas (prevalência anual) estimada em 2003 e 2004
Fonte: UNITED NATIONS OFFICE FOR DRUG AND CRIME, 2005.
Como o dado acima constata, estima-se que 200 milhões de pessoas (ou 5% da população
mundial entre 15 e 64 anos de idade) fizeram uso de drogas ilícitas pelo menos uma vez, nos doze
meses anteriores à realização da pesquisa. Comparado ao levantamento anterior, também do
Escritório para Drogas e Crime da ONU (2004), um aumento de 15 milhões de pessoas no
número de usuários, configurando um vetor ascendente e preocupante.
Quando se trata da diversificação dos quatro maiores mercados (maconha, estimulantes
anfetamínicos, cocaína e opiáceos), o mero de usuários de maconha é soberano, girando, em
todo o mundo, na casa das 160 milhões de pessoas ou 4% da população entre 15 e 64 anos.
Estimativas do número de usuários de estimulantes anfetamínicos – 26 milhões de pessoas
usando anfetaminas e oito milhões usando ecstasy. O número de usuários de opiáceos estima-se
ter subido ligeiramente para em torno de dezesseis milhões de pessoas (das quais onze milhões
abusam de heroína), refletindo principalmente os níveis crescentes de abuso de opiáceos na Ásia.
O número de usuários de cocaína perto de quatorze milhões de pessoas também cresceu
ligeiramente.
106
(UNITED NATIONS OFFICE FOR DRUG AND CRIME, 2005, p. 23)
Os meros aqui apresentados são todos utilizados como norte pelos órgãos reguladores
nacionais e internacionais. As políticas propostas por estas instituições, a partir da leitura destes
dados, não se têm configurado como positivas para abrandar os impactos massivos das drogas nas
105
Tradução nossa.
106
Tradução nossa.
154
sociedades (uma vez considerado o tamanho de seu disparate). Nem mesmo as estratégias das
instituições salutares.
Para o objeto desta pesquisa, a quantificação do problema vem corroborar dois pontos
importantes. 1)Reconhecer que a necessidade de cessar o consumo das substâncias de abuso, com
abstinência pontual e diária, juntamente com freqüência e engajamento em um grupo de ajuda
mútua para dependentes, fica dificultada ao extremo em meio ao consumo massificado e à oferta
indiscriminada das substâncias de abuso. Para usuários crônicos de drogas, lícitas ou ilícitas, a
falta de sentido e a oferta abundante configuram significativas barreiras na identificação de
posturas que contribuem para instalação de um processo de sobriedade, bem como a sua
manutenção duradoura. 2) A opção dos órgãos reguladores supracitados pela política de armas
e não pela educação e conscientização das populações –, no combate aos impactos gerados por
estes dados, afasta ainda mais os usuários e seus familiares dos possíveis centros de recuperação.
O caráter nosológico, que define a dependência como transtorno psiquiátrico, portanto
passível e necessário de intervenção por parte do Estado e das autoridades sanitárias não
aproxima usuários de medidas sanitárias. De nenhuma forma também o farão, a política das
autoridades policiais e das instituições de confinamento, que definem estes mesmos usuários
como criminosos a serem encarcerados ou como contraventores da lei, a serem marginalizados.
No Brasil, citada por Vergara (2003), a Comissão Parlamentar de Inquérito sobre o
Narcotráfico apurou, entre o fiasco da inoperância que nada modificou, que em torno de 200.000
brasileiros são empregados pelo grande círculo beneficiador e vendedor do tráfico de drogas. O
Exército Brasileiro possuía, em 2001 (data da divulgação do dado anterior), um quadro efetivo de
190.000 pessoas. Uma política excludente e cerceadora de direitos, que preconiza a guerra ao
tráfico e não a conscientização da população e dos usuários, vivencia o contraste numérico
quando das subidas aos morros e investidas aos pontos de receptação e tráfico. Mesmo se ainda
fosse tirado o contingente administrativo dos quartéis, e chamados os oficiais da reserva, pondo-
lhes fuzis nas mãos, o número do efetivo, frente ao número de indivíduos envolvidos no tráfico,
seria deficitário.
Sem contar com a proteção oferecida pelo Estado, tanto pela escolha de política e prática
ineficientes, quanto pela dimensão que tomou o problema, a sociedade civil desamparada tenta se
sentir protegida. Sem se dar conta de que o montante de dinheiro que financia o tráfico sai do
155
bolso dos usuários nela inscritos e marginalizados, a sociedade esboça tentativas de organização e
desprendimento de ainda maiores quantias financeiras. Estima-se que 4% do Produto Interno
Bruto do Estado do Rio de Janeiro, região do país mais noticiada com relação aos aspectos
perniciosos do consumo e do tráfico de drogas, se destina ao gasto privado com algum
dispositivo de segurança
107
. Trancados e vigiados em seu próprio território, por um circuito de
câmeras e de regras, vive-se um novo e atual modelo de clausura.
Segundo a Secretaria Nacional Anti-Drogas, principal órgão do Poder Executivo
brasileiro, vinculado ao Ministério da Justiça (e não ao da Saúde ou da Educação), citada por
Vergara (2003), reporta que o número de consumidores de drogas ilegais no Brasil também
cresceu. Em 1987, 3% dos jovens brasileiros entre 10 e 19 anos consumiam drogas ilícitas, dez
anos mais tarde, para esta mesma faixa da população, já se tinha o percentual de 7,6 usuários para
cada grupo de 100 jovens.
Quanto ao consumo de álcool, a mesma Secretaria Nacional Anti-drogas (s/d [b]) reporta
que, na faixa etária de 18 a 24 anos, apenas 38% da população se declara abstinente; na faixa
etária de 25 a 34 anos, esse número vai a 42%, embora eleve para 24% a porção de indivíduos
que fazem uso freqüente de bebidas alcoólicas (na faixa etária anterior esse número fica em
22%). Para este levantamento da SENAD (s/d [b]), entre 18 e 34 anos, 4% da população
brasileira declara consumir álcool com muita freqüência (padrões danosos de consumo). Entre
adultos, na população brasileira, 9% são considerados etilistas pesados. Desses, 23% bebem com
vínculo a algum tipo de problema segundo o levantamento da SENAD, relativos ao “trabalho,
social, família, físico e legal”, sendo os problemas físicos os mais prevalentes, seguidos pelos
familiares (Secretaria Nacional Anti-drogas, s/d [b], p. 20).
Gomes (2007), em apuração junto à Organização Mundial de Saúde, reporta que o
número de mortes, envolvendo problemas decorrentes do uso do álcool, gira em torno de 1
milhão e 800 mil indivíduos em todo mundo, anualmente.
O Peso global dos problemas de saúde relacionados ao consumo de álcool atingiu em
2000 o valor equivalente a 4.0% de toda a morbidade e mortalidade ocorrida no planeta
naquele ano, indicando uma tendência de ascensão, levando-se em conta o valor
estimado para 1990 (3.5%). No Brasil - o consumo de álcool: um fator determinante de
mais de 10% de toda a morbidade e mortalidade ocorrida no país. A OMS calcula que,
em 2002, o custo total relacionado ao consumo nocivo de álcool pode ter chegado a US$
107
Notícia obtida em reportagem do Jornal da Cultura da Fundação Padre Anchieta, exibido em 18/02/2008.
156
665 bilhões, o que equivaleria a 2% do Produto Interno Bruto (PIB) mundial. (GOMES,
2007, p. 11-12).
Não importando linhas fronteiriças, estas substâncias abarcam significativas porções da
população de jovens e adultos, nas atividades de cultivo de matéria prima, processamento, tráfico
(das ilegais) e, sobremaneira, em seu consumo. Nesta cadeia, a circulação das substâncias
alimenta atividades criminosas (quando ilegais), privando e afastando seus usuários compulsivos
das atividades produtivas. O consumo crônico, de ambos os tipos de substâncias, distanciará essa
porção da população do convívio familiar e social de maneira saudável, do bem-estar físico e
psicológico. Interrogações às práticas clínicas serão impostas, bem como ao desenvolvimento de
políticas públicas eficazes, para sua prevenção e para o seu tratamento.
Vergara (2003), em levantamento junto à Organização Mundial do Comércio, estima em
mais de 900 bilhões de lares o movimento de compra e venda de entorpecentes, legalizados e
ilícitos em todo planeta. Um comércio inter-fronteiras gigantesco, que se acredita representar
15% de todo volume internacional de negócios.
Somente,
O negócio internacional de drogas ilícitas gera 430 bilhões de dólares anualmente (...). O
que representa 8% de todo comércio internacional. É próximo da mesma percentagem da
indústria do turismo e do petróleo separadamente. Até agora muitas das principais
substâncias deste negócio ilícito têm sido usadas por milhares de anos para tratar a dor
do corpo ou o estresse mental bem como para dar prazer.
108
(DAVENPORT-HINES,
2001, p. ix).
As cifras deste montante seduzem classes sociais e recrutam milhões de indivíduos. Para
as substâncias cujo comércio é liberado ou monitorado pelo poder dos Estados, vê-se a irrisória
contribuição de impostos. Dados que se aplicam de um plano macro-internacional aos bairros e
vilas das regiões metropolitanas.
Frente aos gastos com tratamento, encarceramento e a cobertura dos danos ao patrimônio
público por indivíduos envolvidos com entorpecentes, é ínfima a quantia recolhida aos cofres dos
governos. Não se trata aqui, apenas da violência direta gerada pelo tráfico de entorpecentes
ilegais, nas favelas dos grandes centros urbanos. No Brasil, mais de 25.000 indivíduos morrem
nas vias de rolamento, envolvidos em acidentes, cuja causa principal é o consumo excessivo de
157
álcool, por parte de motoristas ao volante e a irresponsabilidade de motociclistas, ciclistas e
pedestres.
23% de todas as mortes violentas registradas no Brasil em 2006 foram de homens de 15
a 24 anos, segundo o IBGE. Das 104.582 pessoas mortas violentamente, sobretudo em
homicídios e acidentes, 23.890 eram jovens do sexo masculino. (ZALUAR, 2008. p. 10).
Como mostram os números do Modelo Estimado do Mercado de Drogas Ilícitas do
Escritório para Drogas e Crime da ONU (2005), a estimada soma de 430 bilhões de lares se
divide em meros 12 bilhões de dólares no nível dos produtores de matéria prima, em torno de 94
bilhões de dólares para os grandes atravessadores do atacado internacional e na cifra significativa
de 320 bilhões para o preço final varejista do tráfico. Cadeia que é alimentada pelos fatores
negativos, adjacentes ao consumo de drogas.
Um quilograma de heroína no Paquistão custava, em média, 2720 dólares em 2000. O
mesmo quilograma podia ser vendido, em média, por 129.380 dólares nos Estados
Unidos. Um quilo de pasta base de coca na Colômbia custa em torno de 950 dólares. Seu
preço nos Estados Unidos, em 1997, era aproximadamente 25.000 dólares, com um
preço para venda nas ruas de 20 a 90 dólares por grama de cocaína processada.
109
(DAVENPORT-HINES, 2001, p. xiii).
Quando se comparam as cifras de mercados de entorpecentes legais na economia dos
países, tem-se outra amostra de seus danos e de seu disparate. O número de usuários de drogas
ilícitas, em todo mundo,
se mantém significativamente abaixo do mero de pessoas usando substâncias
psicoativas lícitas (em torno de 30% da população em geral usa tabaco e por volta da
metade usa álcool). (UNITED NATIONS OFFICE FOR DRUG AND CRIME, 2005, p.
23)
Segundo Marcello, jornalista de O Estado de São Paulo, em apuração junto à FIAD
(Fundação para o Incentivo à Pesquisa em Álcool e Drogas), citado por Vergara (2003), os custos
diretos e indiretos do consumo de álcool no Brasil equivalem a 5,4% do Produto Interno Bruto,
que mais de 30% dos leitos hospitalares, 40% das consultas médico-psiquiátricas, 75% dos
acidentes automobilísticos fatais e 39% das ocorrências policiais estão associados ao consumo
108
Tradução nossa.
109
Tradução nossa.
158
abusivo de álcool. Na produção e comercialização, a indústria das bebidas contribui com menos
da metade destes 5,4% gastos: nada modestos 2,4%, de todas as riquezas produzidas no Brasil.
Frente à legalidade e à liberação na venda desta substância, contribuintes e Estado que arcam
com as conseqüências de seu uso.
Em pesquisa encomendada pelo Governo Federal (BRASIL, Ministério da Saúde, 2004),
constatam-se números expressivos do impacto do consumo de álcool na sociedade, e suas
implicações com mortes violentas. Essa
(...) mostra em seus resultados preliminares que 53% do total dos pacientes atendidos
por acidentes de trânsito, no Ambulatório de Emergência do Hospital das Clínicas/SP,
em período determinado, estavam com índices de alcoolemia em seus exames de sangue
superiores aos permitidos pelo Código de Trânsito Brasileiro, sendo a maioria pacientes
do sexo masculino, com idades entre 15 e 29 anos. A deseconomia relacionada a estes
agravos faz que o SUS gaste aproximadamente R$ 1.000.000,00 dos recursos do tesouro
nacional e do Seguro Obrigatório de Danos Pessoais por Veículos Automotores
Terrestres/DPVAT, com internações e tratamentos (dados do IPEA e do MS); a
mortalidade chega a 30 mil óbitos/ano, cerca de 28%, das mortes por todas as causas
externas. Das análises em vítimas fatais/IML/SP, o nível de alcoolemia encontrado
chega a 96,8%. (BRASIL, Ministério da Saúde, 2004, p. 15).
Somados a um sem número de agenciamentos, informações equivocadas, propagandas
apelativas, em uma sociedade particularmente individualista e hedonista, indivíduos constroem
histórias de prazer e frustração com as drogas. A exposição deste disparate de cifras não reflete
diretamente a vivência pessoal e conflituosa de cada centavo, gasto ou lucrado, no contato com as
diversas substâncias entorpecentes.
Não é difícil perceber, para aqueles que trabalham com alcoólatras ou drogados ou
comedores compulsivos ou anoréxicos –, o quanto se insurge em seus atos uma espécie
de transgressão branca, isto é, uma tentativa de se furtar às injunções sociais, familiares
e/ou políticas em sentido amplo, por meio de um vetor destrutivo que retorna sobre o
próprio indivíduo. (GONDAR, 2003. p. 89)
A relevância no estudo da dependência química se inscreve no grave problema de saúde
pública que se tornou o abuso de drogas na atualidade. Para não dizer mais ainda, de um traço da
cultura para as drogas, cada vez menos marginal na pós-modernidade. Pontos que este trabalho se
propõe a investigar.
159
5.3 Traduzindo dados em políticas.
5.3.1 O modelo político atual e seus fundamentos: impactos no cotidiano das pessoas e reflexos
práticos no cenário dinâmico das drogas.
“Every kind of addiction is bad,
no matter whether the drug be alcohol, morphine or idealism.”
110
Carl Gustav Jung apud Richard Davenport-Hines, 2001
Para se combater o comércio ilegal de entorpecentes, ou mesmo para se estabelecer certo
controle, um país, os Estados Unidos da América, clamou para si a liderança desde o início do
século XX. Era o embrião da implantação de um modelo com arestas e incongruências.
Como constata Vergara (2003),
A política de drogas que vigora hoje no mundo todo, com a criminalização do uso de
algumas delas, foi inventada e imposta ao mundo no começo do século XX pelos
Estados Unidos, em uma história que mistura puritanismo e interesses políticos. Até
então, punir com cadeia o usuário de uma droga regulada era extravagância de países
exóticos, como o Brasil e a China, e de algumas cidades e Estados americanos de
tradição puritana. (VERGARA, 2003, p. 44).
Os fundamentos desse modelo de abordagem das drogas possuem uma explicação
histórica. A dimensão repressora, importante no entendimento dos impactos de sua adoção, nasce
em função de uma,
(...) vitória dos Estados Unidos em um conflito contra a Espanha, em 1898. A conquista
trouxe um problema: o que fazer com o comércio de ópio nas Ilhas Filipinas, onde a
Espanha por muito tempo manteve o monopólio na venda da droga? (...) o assunto seria
discutido por uma comissão do Departamento de Guerra. Um dos comissários, no
entanto, era um famoso líder religioso e se disse ultrajado com a idéia de os americanos
venderem ópio. A comissão achou que esse era um assunto internacional e o presidente
110
“Todo tipo de vício é mal, não importa se a droga for o álcool, a morfina ou o idealismo.” (Tradução nossa).
160
Roosevelt convocou uma conferência mundial, em Xangai, em 1909. Era o início da
política internacional americana sobre as drogas. (VERGARA, 2003, p. 46).
A legislação proibicionista americana controle e combate às drogas, baseados na total
rendição dos comerciantes e abstinência incondicional de seus usuários tem dado o tom e o
modelo para os acordos e os regulamentos internacionais
111
, que refletem no cotidiano de todos
os indivíduos submetidos. Documentos que conduzem o maior volume de recursos estatais para o
combate ostensivo ao consumo através da eliminação do tráfico e da repressão, e não para o
desenvolvimento de políticas públicas cujo tratamento de usuários e a educação de ainda não-
usuários se dá como um norte.
Para Davenport-Hines (2001),
A abordagem americana pode ser resumida como rendição inquestionável de traficantes,
negociantes, adictos e usuários recreacionais eventuais. Tal rendição ainda não ocorreu.
As políticas de proibição americanas têm falhado, falharam de novo e ainda continuam a
falhar. Apesar de sua falta de sucesso, a US Drug Enforcement Administration tem
convencido governos em todo mundo de que tem conhecimento incomparável. Seguidas
administrações de Washington têm convencido Estados Europeus para que adotem estas
falidas táticas, e as impuseram aos países do Terceiro Mundo.
112
(DAVENPORT-
HINES, 2001, p. xii).
Após um culo da clamada liderança, já no fim do século XX, custava aos Estados
Unidos 8,6 bilhões de dólares para encarcerar quem violasse as leis relacionadas ao consumo e ao
tráfico de drogas (Davenport-Hines, 2001, p. xiii), sem tratá-los com a devida atenção necessária
– psicoterapia, psiquiatria, assistência social e jurídica, formação profissional, dentre outros
fatores –, indispensável a tão complexo problema. Fatores que não deixaram a nação mais
poderosa, econômica e politicamente do mundo, livre também da liderança no consumo de
drogas ilícitas e de substâncias psicoativas (pseudo) controladas pelos receituários psiquiátricos.
Como constata Vergara (2003), embora o gasto federal americano no combate ao uso e ao
tráfico somasse 1,65 bilhões de dólares em 1982 e (pulasse enormemente para) 17,7 bilhões de
dólares em 1999, metade dos adolescentes americanos experimentavam drogas ilegais antes que
se formassem no (equivalente ao) Ensino Médio. Esse crescente consumo americano, cujos
impactos são visivelmente danosos, não refletiram na mudança de foco e abordagem quanto ao
111
No próprio Tratado de Versalhes, inclusive, se “reservara uma cláusula sobre drogas” (VERGARA, 2003, p. 45),
pela interferência americana.
112
Tradução nossa.
161
estabelecimento de políticas públicas mais eficazes. Não impedindo também que, em 2005, 44%
de todo mercado ilegal de drogas girasse em torno de si, como constatado no gráfico a seguir.
Gráfico 1: Divisão regional do mercado mundial de drogas ilícitas (em bilhões de dólares)
Fonte: United Nations Office for Drug and Crime, 2005
Nem que “331 dólares per capita fossem gastos com drogas por sua população, ou 1,1%
de todo seu Produto Interno Bruto destinado a seu consumo” (United Nations Office for Drug and
Crime, 2005, p.134), também constatados pelos números abaixo.
Gráfico 2: Gasto per capita com drogas ilícitas (em dólares/ano)
Fonte: Modelo Estimado do Mercado de Drogas Ilícitas do Escritório para Drogas e Crime da ONU, 2005
162
Gráfico 3: Gasto com entorpecentes ilícitos (em % do Produto Interno Bruto)
Fonte: Modelo Estimado do Mercado de Drogas Ilícitas do Escritório para Drogas e Crime da ONU, 2005
5.3.2 Apontamentos sobre a política anti-drogas no Brasil.
“Há inúmeras maneiras de abordar as questões do desejo no campo social.
Pode-se, pura e simplesmente, ignorá-las ou reduzi-las a alternativas políticas simplificadas.
Pode-se, também, procurar apreender suas mutações, seus deslocamentos
e as novas possibilidades que abre para uma ação revolucionária.”
Félix Guattari, 1981.
Na atualidade, com a prerrogativa de satisfação direta, a substância psicotrópica oferece
uma gama de reações antagônicas, de prazer para os sentidos do corpo do usuário, a um extremo
de sentimentos de aversão para os que com ele convivem. Atingindo amplo alcance e
complexidade, seu movimento ultrapassa os portões das escolas e dos domicílios, sobe e desce
morros e condomínios, atravessando por completo os centros urbanos, chegando a um padrão
determinado de consumo, onde nem as prerrogativas mais simples para o uso busca por prazer,
fuga de consciência e de uma realidade conflituosa ou o abrandar dos sintomas da abstinência
se justificam.
O que no Brasil não é diferente. Segundo aponta Acselrad (2003),
Os tabus que cercam a experiência de uso de drogas tornam difícil uma solução para os
problemas contemporâneos dela decorrentes. O caráter passional com que é tratada
dificulta sua melhor compreensão. A generalização do uso de drogas é uma tendência
mundialmente reconhecida. A precocidade de iniciação, sinalizada pelo Centro
163
Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas CEBRID
113
em seus estudos
realizados desde 1987, demonstra a urgência e o desafio de uma política de drogas
democrática. (ACSELRAD in GARCIA et al, 2003, 179).
A montagem de um texto oficial, que define uma política nacional anti-drogas data-se de
recentes 1998 (BRASIL, 1998). Por outro lado, a prática anti-drogas brasileira se fundamenta na
Lei 6.368, de 1976, desenvolvida em meio ao Regime Militar, cujas características repressoras e
persecutórias são bem conhecidas.
Este documento ainda vigora e, evidentemente, opta pela criminalização das condutas de
uso, produção e comércio das substâncias classificadas como ilícitas. Como tem sido exposto
neste texto, tal postura marginaliza o usuário de entorpecentes, inclusive o de substâncias
liberadas ou controladas pelo Estado. Quando se dificulta a capacidade do indivíduo reconhecer
sua atitude dissidente, em função de um esperado e pejorativo julgamento social, aproximando-o
da condição de criminoso e não de um possível beneficiário de medidas educativas e salutares, se
distancia o passo fundamental e voluntário em busca da sobriedade.
Ainda segundo Acselrad, esta lei expressa, de forma direta, a interferência exacerbada do
Estado na legislação do espaço da vida privada dos indivíduos, determinando que a
(...) todo cidadão é instado o dever de colaborar no combate ao uso e tráfico de
substâncias ilícitas; estimula-se subliminarmente a delação; embora o uso das drogas
ilícitas seja considerado uma doença, o ‘tratamento prescrito’ é a perda da liberdade;
embora a pena seja maior para os casos de tráfico, não se explicita a quantidade da droga
que poderia distinguir o uso pessoal, diferenciando o usuário, em oposição ao primeiro.
(ACSELRAD in GARCIA et al, 2003, 183).
Apenas em 2006, na gestão do Presidente Luís Inácio Lula da Silva, foi criado um
Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas o SISNAD. Desta vez, vinculou-se a
responsabilidade por seu decreto à Presidência da República, na figura da Subchefia para
Assuntos Jurídicos (não de saúde ou educação) da Casa Civil. Esta lei,
institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas - Sisnad; prescreve
medidas para prevenção do uso indevido, atenção e re-inserção social de usuários e
dependentes de drogas; estabelece normas para repressão à produção não autorizada e ao
tráfico ilícito de drogas e define crimes. (BRASIL. Presidência da República. Casa Civil.
Subchefia para Assuntos Jurídicos. 2006, Art. 1
o
)
113
Ligado à Universidade Federal Paulista (VERGARA, 2003, p. 120).
164
Ao SISNAD cabe,
articular, integrar, organizar e coordenar as atividades relacionadas com a prevenção do
uso indevido, a atenção e a re-inserção social de usuários e dependentes de drogas; a
repressão da produção não autorizada e do tráfico ilícito de drogas. (BRASIL.
Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. 2006, Art.
3
o
).
Junto ao claro texto da Lei que institui o SISNAD estão pontos de avanço. É reconhecida
a necessidade da inclusão social do cidadão envolvido com o problema, tanto aquele que se
expõe ao consumo quanto aquele que se envolvido nas atividades de processamento e tráfico.
Ambas as situações consumo e tráfico são passíveis de intervenção por parte do Estado,
quando este oferece aparato educacional e de saúde pertinentes ao primeiro (e não apenas
vigilância policial), bem como emprego e possibilidades de geração de renda ao segundo (escape
à marginalidade, quando do envolvimento com o comércio da droga). Fazer com que indivíduos
se tornem “menos vulneráveis a assumir comportamentos de risco para o uso indevido de drogas,
seu tráfico ilícito e outros comportamentos correlacionados” (BRASIL, 2006.), é o primeiro
objetivo descrito na Lei que cria o SISNAD.
Mesmo quando o fato é legislar sobre a vida privada, são assim descritos os dois
primeiros princípios deste Sistema Nacional de Políticas públicas sobre Drogas, contemplando
positivamente,
I - o respeito aos direitos fundamentais da pessoa humana, especialmente quanto à sua
autonomia e à sua liberdade; (e) II - o respeito à diversidade e às especificidades
populacionais existentes; (BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia
para Assuntos Jurídicos. 2006, Art. 4
o
)
Aspectos positivos deste modelo incluem, em suas diretrizes de tratamento, menção à
necessidade de re-inserção social, familiar e ocupacional dos indivíduos envolvidos com
entorpecentes ilícitos ou liberados pelo governo bem como as especificidades sociais que
criam tempo e ambiente favoráveis para o agravamento de tal problema. Assumir estas diferenças
é contribuir para o desenvolvimento de um programa de prevenção ao abuso de entorpecentes
mais eficaz, especialmente no que tange aos problemas adjacentes ao consumo pernicioso.
Vista com bons olhos, a proposta de Redução de Danos encontra espaço no discurso de
165
grande parte da sociedade civil organizada brasileira, convidada a participar dos debates
antecedentes à publicação desta Política Nacional Antidrogas. Inicialmente, esta foi considerada
uma alternativa para prevenção de doenças como a hepatite B e C e a AIDS nas populações
usuárias de drogas injetáveis, principalmente na região próxima ao porto de Santos, no Estado de
São Paulo. Críticos, principalmente de setores mais conservadores da sociedade e da classe
política, alvejam os programas de Redução de Danos, por considerarem que os mesmos incitam o
consumo simplesmente, e não a responsabilidade para com estes. No cerne dos programas de
redução de danos está justamente o contrário, uma vez que o usuário não é rechaçado por sua
condição nem entregue à própria sorte, com a exposição a vários fatores de risco atrelados a seu
padrão (mesmo assim criticável) de consumo.
Programas de redução de danos vão de encontro às propostas políticas tradicionais de
caráter repressivo. Enquanto estas pregam a rendição dos envolvidos nas atividades de
processamento e tráfico, bem como a abstinência completa de usuários crônicos ou eventuais
eventos que se observa não ocorrerem tão facilmente reduzir os danos significa atenuar o
impacto negativo do consumo abusivo, partindo do princípio de que nem todos conseguem
chegar à abstinência plena.
Em suma, mesmo observados avanços, confirma-se uma dualidade, já que
(...) o texto oficial da Política Nacional Antidrogas, PNAD, que, por um lado, acolhe a
diferença e a proposta de Redução de Danos (...), ao mesmo tempo mantém, em sua
essência, a resposta repressiva de eliminação do flagelo, de erradicação do uso das
drogas ilícitas”. (ACSELRAD in GARCIA et al, 2003, 187).
5.3.3 Apontamentos sobre políticas públicas contra o abuso de álcool, no Brasil.
Segundo o I Levantamento sobre Consumo de Álcool na População Brasileira, feito pela
SENAD (s/d [b]), consome-se muito álcool no país, em um padrão danoso à saúde dos etilistas e
ao convívio social de quem os circunda. No entanto, a análise de alguns documentos, publicados
pela Secretaria Nacional Anti-drogas do Brasil, mostra-nos que uma política pública, que pensa e
legisla eficazmente, sobre o consumo de álcool, ainda está por ser feita. O que não ocorre em
166
material produzido pelo Ministério da Saúde (2004).
A resolução que norteia o desenvolvimento de políticas públicas para o álcool no mundo
foi estabelecida pela Assembléia Mundial da Saúde 58.26, da Organização Mundial da Saúde
(BRASIL, Secretaria Nacional Anti-drogas, 2005). Esta coloca, “urgente, a necessidade dos
estados membros desenvolverem, implementarem e avaliarem estratégias eficazes e programas
para redução das conseqüências negativas sociais e da saúde do uso nocivo do álcool” (BRASIL,
Secretaria Nacional Anti-drogas, 2005, p. 1).
A I Conferência Pan-Americana de Políticas Públicas sobre o Álcool, sediada na capital
federal em novembro de 2005, também organizada pela SENAD (2005), conferiu ao álcool o alto
posto de “ser o fator de risco mais importante para a carga de doenças nas Américas” (BRASIL,
Secretaria Nacional Anti-drogas, 2005, p. 1). Na “Declaração de Brasília de Políticas Públicas
sobre Álcool”, texto oficial produzido por esta Conferência, ressalta-se que o álcool,
causa morte prematura, doença e incapacidade; (..) causa mortes violentas, lesões
intencionais e não-intencionais, particularmente entre jovens; (...) também causa óbito,
incapacidade e danos sociais para outras pessoas além dos próprios bebedores; (...)
interage com a pobreza na produção de ainda maiores conseqüências para aqueles que
não têm acesso aos recursos básicos de saúde e sustento. (BRASIL, Secretaria Nacional
Anti-drogas, 2005, p. 2)
Apontamentos dessa Conferência recomendam que
Prevenir e reduzir os danos relacionados ao consumo de álcool sejam considerados uma
prioridade de saúde pública para ações por parte de todos os países da região das
Américas. Estratégias regionais e nacionais sejam desenvolvidas, incorporando um
elenco culturalmente apropriado de políticas baseadas em evidências, a fim de reduzir os
danos relacionados consumo do álcool.
(...)
Áreas prioritárias de ação incluem: ocasiões
quando se bebe excessivamente, o consumo geral da população, mulheres (inclusive
mulheres grávidas), populações indígenas, jovens, outras populações vulneráveis,
violência, lesões intencionais e não intencionais, consumo de álcool por menores de
idade e transtornos relacionados ao uso de álcool. (BRASIL, Secretaria Nacional Anti-
drogas, 2005, p. 3).
A diretriz governamental, que melhor orienta políticas públicas de assistência à população
envolvida com o consumo abusivo de álcool, esem importante texto do Ministério da Saúde
(não da Secretaria Nacional Anti-drogas, vinculada a gabinetes de segurança institucional da
Casa Civil e do Ministério da Justiça). Ao estabelecer esta diretriz, que conduz as ações e as
167
metas na constituição de práticas governamentais, o Ministério da Saúde (2004) declara ter tido
em mente a perspectiva transversalizadora que permite a apreensão do fenômeno
contemporâneo do uso abusivo/dependência de álcool e outras drogas de modo
integrado, e diversificado em ofertas terapêuticas, preventivas, reabilitadoras, educativas
e promotoras da saúde. (BRASIL, Ministério da Saúde, 2004, p. 6).
Em “A Política do Ministério da Saúde para Atenção Integral a Usuários de Álcool e
outras Drogas” (BRASIL, Ministério da Saúde, 2004), tem-se um avanço qualitativo nos
pressupostos e na abordagem do texto da lei.
Nela, especificidades como a exclusão social histórica e contínua de partes da
população são levadas em conta. Para atender igualmente o direito de cada cidadão, a “Política”
do Ministério da Saúde (2004) assume a “necessidade da reversão de modelos assistenciais, de
modo a contemplar as reais necessidades da população” (BRASIL, Ministério da Saúde, 2004, p.
6). A lógica desta reversão está nas experiências e conquistas de um novo modelo – mais humano
e justo – de se tratar os diversos transtornos mentais. Para os articuladores dessa diretriz
Historicamente, a questão do uso abusivo e/ou dependência de álcool e outras drogas
tem sido abordada por uma ótica predominantemente psiquiátrica ou médica. As
implicações sociais, psicológicas, econômicas e políticas são evidentes, e devem ser
consideradas na compreensão global do problema. Cabe ainda destacar que o tema vem
sendo associado à criminalidade e práticas anti-sociais e à oferta de "tratamentos"
inspirados em modelos de exclusão/separação dos usuários do convívio social.
(BRASIL, Ministério da Saúde, 2004, p. 8).
Compartilhando desta fonte, dignidade e qualidade de vida se tornam metas, para todos os
envolvidos com o texto político.
Uma ação política eficaz pode reduzir o nível de problemas relacionados ao consumo de
álcool e outras drogas que são vivenciados por uma sociedade, evitando que se assista de
forma passiva ao fluxo e refluxo de tal problemática. Consideramos que nada assume um
caráter inevitável, e que, ao contrário, quando se constroem políticas públicas
comprometidas com a promoção, prevenção e tratamento, na perspectiva da integração
social e produção da autonomia das pessoas, o sofrimento decorrente deste consumo
tende a diminuir em escala expressiva. (BRASIL, Ministério da Saúde, 2004, p. 6).
Ao considerar a existência de arestas e especificidades, ao propor a mediação e a
construção de uma prática que reduz os problemas advindos do consumo da substância de abuso,
168
e não a imposição de uma diretriz pronta ou um modelo inquestionável de abstinência e
sobriedade, é que se observa o maior salto qualitativo dessa política.
No vácuo de propostas concretas, e na ausência do estabelecimento de uma clara
política de saúde voltada para este segmento, surgiram no Brasil diversas "alternativas
de atenção" de caráter total, fechado e tendo como único objetivo a ser alcançado a
abstinência
114
. Cabe ressaltar, entretanto, que a sociedade atual coloca à nossa
disposição uma extensa gama de políticas potenciais, e a sua inventividade e alcance
estão em um processo de expansão contínua, sendo então possíveis outras formas de
produzir novas perspectivas de vida para aqueles que sofrem devido ao consumo de
álcool e drogas. Tal produção não ocorre somente pelo estabelecimento de leis, planos
ou propostas, e sim pela sua implementação e exercício no cotidiano dos serviços,
práticas e instituições, com definição sistematizada de responsabilidades para cada esfera
governamental. (BRASIL, Ministério da Saúde, 2004, p. 8).
No primeiro semestre de 2008, a política nacional para redução dos danos do consumo
excessivo de álcool tem discutido com a sociedade a implicação das campanhas publicitárias,
veiculadas na mídia de massa. Sabe-se do impacto dessas campanhas no consumo de bebidas
alcoólicas. No entanto, a conivência dos legisladores, com os grandes veículos de rádio, editoriais
e de televisão, permite sua veiculação em horários inoportunos, amparada apenas na graduação
alcoólica dessas bebidas.
A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (2006), em consulta pública sobre o tema,
“prevê que para efeitos de normatização são consideradas bebidas alcoólicas bebidas potáveis
com teor alcoólico superior a 13 graus Gay Lussac
115
” (BRASIL, Agência Nacional de Vigilância
Sanitária, 2006, p. 5). Esta consulta determinaria que as bebidas consideradas alcoólicas
poderiam ser veiculadas apenas entre 21 horas e 6 horas, sem vincula-las a eventos esportivos,
desempenho saudável de atividades, celebrações, condução de veículos, imagens ou idéias que
conduzam a um maior êxito ou desempenho sexual.
Cerveja, destilados leves e bebidas do tipo “ice”, portanto, têm seus nomes e logotipos
publicados amplamente, junto a programas esportivos e de entretenimento, com mensagens
apelativas que ligam o consumo dessas à alegria e ao bem-estar. O que a política atual, para o
controle desses veículos midiáticos, ignora é o fato do consumo intenso dessas substâncias (em
cargas elevadas e freqüentes) ser o vetor de muitos dos problemas relatados anteriormente.
114
Grifo nosso.
115
Unidade de medida de teor alcoólico.
169
Segundo o I Levantamento sobre Consumo de Álcool na População Brasileira, feito pela
SENAD (s/d [b]), 92% da população dizem da necessidade de aumentar os programas de
prevenção ao abuso do álcool, 92% entendem que o aumento de programas de tratamento do
alcoolismo no Brasil seria benéfico, 86% concordam com o aumento do volume de campanhas
que alertam para o risco do consumo de álcool, 56% concordam com o aumento da carga de
impostos aplicados às bebidas, 89% dos entrevistados concordam que deveria haver mais
controle e esforço dos estabelecimentos para que não forneçam bebida a clientes alcoolizados.
5.4 Diretrizes políticas e implicações ao objeto de pesquisa.
Excitar-se, ou entrar em estado de torpor, com próteses químicas, se tornou prática usual e
massificada, deixando de ser de toda rebelde e original, restrita a um grupo de jovens ou a
isolados rituais xamanistas. O uso de drogas, legais ou ilícitas, se vincula a atividades de toda
ordem: recreativas, comemorativas, de fuga da realidade, de aumento da concentração ou da
atividade física, de uma outra vivência do tempo (acelerada ou com torpor) para uma classe
ilimitada de indivíduos.
Com a queda dos muros institucionais da Modernidade (a família, a escola, a fábrica, os
hospícios e as prisões), entrou-se em um período onde o controle é ditado sem estrias. Lugares
que até então moldavam o repertório de comportamento das pessoas – sabia-se comportar frente a
uma figura de autoridade ou alguma norma – perderam, de certa forma, parte dessa capacidade. A
entrada em um mundo onde o controle é ditado fluida e dissimuladamente, presente em todo
canto com câmeras e uma outra ordem de vigias. Os indivíduos são arremessados em um sem
número de possibilidades de constituição e expressão da vida. Tendo em vista esse fato, observa-
se um complexo impacto na produção de subjetividades atualmente e, conseqüentemente, nas
atuais formas de sofrimento psíquico (GONDAR, 2003). As toxicomanias inclusive.
Não seria estranho se, em meio a um problema de proporções e rizomas tão abrangentes,
fosse possível encontrar uma atitude que conduzisse à consciência crítica de um padrão de
consumo danoso e abusivo. Indivíduos que, convidados a cuidarem de si e daqueles que os
170
circundam, tivessem os olhos abertos para os efeitos negativos de um hábito constantemente
repetido. No trabalho com essas pessoas estariam envolvidos educadores, psicólogos, médicos,
assistentes sociais, terapeutas ocupacionais, jornalistas, agentes comunitários e sociais engajados,
todos sendo ferramentas de uma prática que prezasse a tomada de consciência. No entanto, o que
se observa é “a eclosão da maior epidemia de uso ilegal de drogas desde o início do século,
principalmente de cocaína” (VERGARA, 2003, p. 54).
A produção, o processamento, o consumo e o tráfico são abordados, com quase nula
distinção, por um modelo político excludente, que criminaliza simplesmente e não conscientiza
os indivíduos envolvidos. A aplicação prática desse modelo, na vida cotidiana de usuários
crônicos de entorpecentes, e de seus familiares, tem impacto profundamente danoso. Tal postura
não produz espaço para reconhecimento da atitude de se consumir abusivamente entorpecentes,
legais ou ilícitos. Com um comportamento dissonante, são freqüentes as reclamações do cônjuge,
dos filhos, as indicações dos centros médicos, ou as ameaças por demissão no emprego. Se
reconhecer-se dependente significa, muitas vezes, figurar perante a Lei como um criminoso,
como um marginal perante a sociedade, usuários crônicos terão dificultada a capacidade de
reconhecer a própria atitude dissidente.
Não importa a classe ou a carga do entorpecente utilizado, sendo este legal ou ilegal.
Reprimir com violência (física ou de discurso), sem aproximar o indivíduo de sua singularidade,
não conduzirá a uma possível abertura, onde ele se questiona e tende a se movimentar em busca
da sobriedade.A distância da sobriedade é proporcional aos enormes gastos estatais com um
modelo político proibitivo, focado no combate lico às instâncias de consumo. A repressão, o
encarceramento e a vigilância do traficante e do usuário dão o tom da postura, e não o das
possíveis campanhas de conscientização e tratamento. Distantes dos centros especializados de
acolhida estão muitos, marginalizados por um sistema que preza o combate policial armado, até
então ineficaz. Uma vez que os centros varejistas de compra e venda de toda sorte de substância
não são eliminados, indivíduos continuam tendo acesso às drogas de abuso, às rotas de fuga de
existências atribuladas e sem sentido aparente.
Embora a produção, o comércio e o consumo de drogas possuam números massificados,
grande porção de usuários de substâncias psicoativas se encontra à margem das políticas de bem-
estar do Estado. Por outro lado, muitos dos que padecem dos efeitos nocivos da ingestão abusiva
171
de drogas recebem desse mesmo Estado (e, portanto, da maioria que o sustenta com contribuições
e impostos) exagerados gastos com tratamento médico, policiamento, julgamento e
encarceramento, dispensáveis se pensarmos a ausência de tal volume de consumo. Quando
falamos sobre gastos e efeitos nocivos, incluímos usuários de substâncias legais e ilegais –
mesmo sabendo que as primeiras contribuem (mesmo que irrisoriamente) com o fisco.
As políticas públicas legislam tanto sobre o caráter das diversas substâncias que alteram o
funcionamento da consciência, quanto sobre as pessoas que as movimentam e consomem. Essas
políticas, mesmo permeadas de arestas, fundamentarão as diretrizes práticas que refletirão no
cotidiano das pessoas e na fluidez de seu arranjo. No entanto, os fatos e eventos históricos que
fundamentam as políticas públicas anti-drogas não são, muitas vezes, congruentes com o
movimento humano, complexo e dinâmico, de abordagem dessas substâncias. A eficácia dessas
políticas está sempre posta em xeque, constantemente expondo seus conflitos.
A experiência do uso de drogas envolve uma série de dimensões que vão da
neuroquímica à jurídico-política, refletindo-se na vida dos indivíduos, dos grupos, nos
bairros, nas cidades e nos Estados. A influência do comércio mundial, dos circuitos
financeiros, das leis de mercado é notória. No entanto, as políticas de drogas não
expressam esta complexidade. (ACSELRAD in GARCIA et al, 2003, p. 179).
Políticas públicas, produzidas a partir dessa reflexão da complexidade dos fatos, trariam
benefícios para a saúde do corpo e da mente daqueles que a elas seriam submetidos. Atualmente,
a base e o foco das mesmas acontecem no ostensivo combate, no nível de repressão ao consumo.
Característica que possui um louvável propósito eliminar o problema das drogas, eliminando
concomitantemente o acesso aos pólos produtores e comerciais, assim pensando em eliminar o
consumo. Porém, no intuito de atingi-lo, grandes somas são gastas junto ao aparato vigilante do
Estado, e pouco nas dimensões terapêuticas e educadoras. Não se conscientiza o usuário sobre
seu hábito, sobre o cuidado que este pode ter de si. Pelo contrário, uma abordagem sob esse
molde excludente, combativo e proibicionista, reprime o usuário com cassetetes e tiros, vigia-o
no cárcere, persegue-o e retira-o de seu convívio.
A vivência desse modelo excludente produz no usuário crônico um sentimento de menos-
valia pungente, independente do status legal que possui a substância de abuso.
Coordenador: longe do Grupo, hoje, o que é o alcoolismo para o senhor, senhor
172
Luciano
116
?
Luciano: (longa pausa emocionada) é uma coisa que não se vê. Voltar hoje a beber, é
sofrer duas vezes. A e sofre, o filho sofre, a esposa sofre, a sociedade sofre, todos
sofrem muito, com o alcoolismo. Mas a gente que é alcoólatra sofre também, e muito!
Sofre muita humilhação, muita humilhação! E muitas vezes não se vê. (Luciano, 56
anos, dependente alcoólico).
117
Não se nega a necessidade da repressão no nível do pré-consumo das drogas, ou seja,
quando do combate ao tráfico e aos grandes cartéis produtores. Porém, a imposição de um
modelo que preza exponencialmente essa prática aglomera no combate bélico e ostensivo, grande
parte da carga de recursos e esforços para se reduzir o consumo das substâncias de abuso.
Sabe-se que, para combater o movimento fluido das drogas, no nível da produção e do
tráfico, é preciso ferir substancialmente os carregamentos que abastecem os grandes centros
consumidores. O que dificilmente acontece. Grandes quadrilhas, “só começam a ter sua força
econômica abalada quando se apreende mais de 30% da droga que elas comercializam. No Brasil,
o cálculo é de que a polícia capture apenas 10%” (FRANÇA, 2007. p. 52).
Um projeto anti-drogas verdadeiro englobaria uma teia complexa de profissionais e
instâncias. Por exemplo, indivíduos que não têm amplo acesso a projetos de educação para
prevenção do envolvimento com as drogas, uma vez que os recursos destinados a este fim são
limitados, são vistos como frágeis alvos do consumo inconseqüente. Usuários crônicos, muitas
vezes carentes de instituições que ofereçam aprendizado para a identificação de situações que
conduziriam às recaídas, ou simples acolhimento, têm complicada a iniciativa pessoal de parada.
Jovens, captados para as atividades criminosas do tráfico, têm a juventude e a integridade
comprometidas em meio à exclusão social e à marginalidade.
A linha que separa porte e tráfico de drogas é bastante sutil e, em ambos os casos,
marginaliza, os indivíduos envolvidos. Colocam-se ambos em um mesmo patamar, mais
próximos do aparato de vigilância do Estado, do que de centros especializados de acolhimento e
ajuda. É na falta de oportunidades educacionais e laborais, por exemplo, que indivíduos se
envolvem com as atividades de processamento e venda de entorpecentes. É na constatação da
figura de identificação criminosa, da instância de segregação e marginalidade, que usuários
encontram dificuldade para reconhecimento do comportamento dissonante da norma, ao se
116
Nome fictício, utilizado para proteger a identidade do membro do Grupo entrevistado e, porque não, do pejorativo
julgamento social por parte de qualquer um que se envolva nesta leitura.
117
Fragmento de reunião. Pesquisa de campo realizada no Grupo de Apoio Família Caná de Contagem/MG, em
01/03/2004.
173
consumir demasiadamente toda sorte de entorpecentes. Para essa prática política, os danos para as
pessoas e para a convivência social, no nível do pós-consumo, são aparentemente renegados.
Oferecendo oportunidades para desenvolvimento de habilidades, em meio a atividades
pertinentes e de sentido aparente, usuários e indivíduos envolvidos com as atividades de
comércio e tráfico poderiam ter resgatada sua dignidade.
5.4.1 Efeitos contraditórios: tamanho do problema x abordagem efetiva do problema.
Como a política atual admite a abstinência, restam duas alternativas para arrancar
usuários do vício: encarcerá-los ou submetê-los a tratamento. Mas, como se percebe, esta
política é desafinada. Contrariando a gica, a maioria dos países concentrou seus gastos
públicos no combate e praticamente abandonou algumas estratégias promissoras. Basta
olhar para onde vai o dinheiro que o governo americano coloca no combate às drogas
para perceber a má distribuição dos gastos: de cada 100 dólares, 68 pagam policiais para
perseguir traficantes dentro e fora do país. Dos 32 dólares restantes, 20 são gastos para
prender e processar usuários. As campanhas educativas recebem 12 dólares.
(VERGARA, 2003, p. 60 e 61).
As substâncias ilícitas de maior abuso, constatado pela prevalência na demanda por
tratamento do Escritório para Drogas e Crime da ONU, são os opiáceos, seguidos pela cocaína.
Na Europa e na Ásia, derivados do ópio principalmente a heroína constituíam 62% de toda
demanda por tratamento em 2003. Na América do Sul e no Brasil, a demanda por tratamento, em
função de consumo de substância ilícita, se liga aos derivados da cocaína nas figuras do
processado e das pedras de crack. Na África, a demanda por tratamento se prevalentemente
frente ao consumo de maconha. Quando se trata de substâncias psicotrópicas liberadas, para o
álcool se destina a maior porção desta demanda.
Segundo o UNITED NATIONS OFFICE FOR DRUG AND CRIME
118
(2005), em
abrangente e competente levantamento
119
, a prevalência de consumo de determinadas
substâncias, em cada parte do mundo, dita as características da demanda por abordagem
terapêutica, para aqueles que delas abusam.
118
UNODC, Escritório para Drogas e Crime da Organização das Nações Unidas.
119
World Drug Report, importante documento sobre o status quo da produção, beneficiamento, distribuição e
consumo de substâncias psicotrópicas ilícitas nos países membros.
174
Mapa 1: Drogas e a prevalência de consumo, constatadas pela demanda por tratamento em 2003.
Fonte: UNITED NATIONS OFFICE FOR DRUG AND CRIME, 2005.
Facilmente se constata a necessidade urgente de uma política efetiva que se proponha a
frear os altos níveis de consumo e, conseqüentemente, os gastos no tratamento destes indivíduos
por parte dos Estados e dos serviços suplementares de saúde. O discurso dominante da política
proibicionista e excludente americana, criticado, insiste na rendição de usuários e traficantes,
atuando mais nas frentes de combate e encarceramento do que nos bancos de escola e nas clínicas
de recuperação.
A ciência do tamanho exorbitante do problema, do alcance amplamente disseminado do
consumo e do tráfico de drogas, não conduziu a uma figura (de discurso ou de proposta política)
que ajudasse usuários crônicos e seus familiares na invenção e manutenção de práticas de
sobriedade.
Enquanto bilhões são gastos no combate, observa-se um crescimento anual da área
cultivada de papoula, coca e maconha nos países pobres. Segundo a ONU (2005), o Afeganistão
teve aumento em sua área cultivada para produção de opiáceos em torno de 64%, entre os anos de
2003 e 2004. Assim também ocorre nos países andinos, sendo crescente a área destinada à
175
produção de cocaína.
120
Com o crescimento de hectares destinados ao plantio de matéria prima, constata-se que a
demanda por consumo também cresce. E com isso, uma reação em cadeia. Se a diretriz política
dominante não funciona, constata-se a necessidade de sério debate para revisão de sua
aplicabilidade e discurso. A ineficiência dos Estados, juntamente com os índices ascendentes do
consumo, nos aponta um prognóstico nebuloso.
No entanto, a incongruência inerente ao problema das drogas não impõe interrogações
apenas às políticas estatais. Segundo Deleuze (s/d) e Gondar (2003), as práticas clínicas também
são postas em xeque, tanto pela inadequação de pressupostos terapêuticos ao contexto do abuso
de entorpecentes, quanto às mudanças moleculares de contexto que produzem este
comportamento dissidente.
O fracasso da psicanálise com relação aos fenômenos da droga mostra muito bem que,
no caso da droga, trata-se de uma causalidade inteiramente diversa. Contudo, minha
questão é: pode-se conceber uma causalidade específica da droga, e em quais direções?
Por exemplo, na droga haveria alguma coisa de muito particular; é que o desejo
investiria diretamente o sistema-percepção. Isso seria, pois, totalmente diferente.
(DELEUZE, s/d, p. 64).
Como se fosse preciso um aditivo, ou uma prótese química, para se acompanhar as
mudanças rápidas de um tempo, “o desejo entra diretamente na percepção, investe diretamente a
percepção” (DELEUZE, s/d, p.64). A droga mudou o problema da percepção, inclusive para os
não-drogados, que impôs um papel da percepção, “uma solicitação da percepção nos sistemas
sociais atuais” (DELEUZE, s/d, p.64) prótese sensorial que se acopla à consciência, em virtude
da necessidade de muitos, para se adaptar à organização de um tempo acelerado, atarefado e
difuso.
Por percepção, é preciso entender as percepções internas, não menos que as externas,
principalmente as noções de espaço-tempo. As distinções entre espécies de drogas são
secundárias, interiores a este sistema. (...) todas as drogas dizem respeito às velocidades,
às modificações de velocidade, aos limiares de percepção, às formas e aos movimentos,
às micropercepções, à percepção tornando-se molecular, aos tempos sobre-humanos ou
sub-humanos etc. (DELEUZE, s/d, p. 64).
Não é possível imaginar uma toxicomania sem um passo voluntário em busca do prazer
direto. A droga é resposta a alguma miséria, individual ou social. Mas é, ao mesmo tempo, uma
120
Peru e Bolívia têm um aumento anual de 17% de sua área de coca cultivada.
176
forma de resistência e “um modo contemporâneo de resistir ao assujeitamento” (GONDAR,
2003. p.89) a um ambiente que preza uma vivência acelerada e atarefada (como um filme de ação
ou a gica de um video clip). Espaço e tempo atuais que são imperativos do consumo e de
padrões individualizados, que prezam o prazer e a virilidade, o belo e a jovialidade, em
detrimento (se não, impossibilidade) da inadequação frente às mudanças, ao imperativo do
consumo desenfreado de bens e de relações com as pessoas, da distância de uma reflexão
silenciosa, da vivência de auto-suficiência e da simplicidade.
No entanto, com o tempo e a contínua exposição ao entorpecente, seu padrão de consumo
adquire níveis extremos onde nada mais, nem mesmo o prazer a ser obtido, justifica seu uso.
Relatos de todos os usuários de drogas em recuperação pesquisados incluíam justificativas para o
início de seu consumo a entrada em um determinado grupo, a timidez, a afirmação da
maioridade, busca por um instante de relaxamento ou criatividade, entre outras
121
que
desembocam em um padrão de utilização final niilista, onde o imperativo do consumo se esgota
em si mesmo, simplesmente. Em sua ontogenia, nada mais importa senão o usar, mesmo quando
não se há motivo aparente, apenas o saciar da dependência instalada.
Coordenador: Como era o seu padrão de consumo na época da procura pelo Grupo?
Você bebia quanto, quantas vezes por semana?
Lucas: (...) eu vou te falar, eu cheguei a gastar demais. Chegava um fim de semana,
um domingo, eu levava cinqüenta reais para um boteco, era num tapa. Eu gastava quase
cem reais por quinzena de boteco.
Coordenador: Era todo dia?
Lucas: tava virando todo dia. tava virando por causa do horário que eu passei (a
trabalhar). Eu ficava a manhã todinha à toa, pegava serviço três horas da tarde, eu saía
do serviço todo dia e tomava uma cerveja, uma pinga. Então já tava chegando quase todo
dia.
Coordenador: Você chegou a trabalhar embriagado já?
Lucas: Já. Eu cheguei um dia que o meu chefe conversou comigo, “Lucas, eu sei que
você ta alterado”. ele falou comigo, “você fica num canto lá, e espera melhorar para
você voltar a trabalhar”.
Coordenador: Como é que era estar “alterado”, você estava grogue...?
Lucas: Não, eu o tava... Eu tava sob efeito da bebida. Eu não tava assim de cair, não.
Ah, eu tava alterado sim. (Lucas, 42 anos, dependente alcoólico).
122
Não se esgotarão as fontes de problemas, nem a oferta e a procura pelas diversas
substâncias, nem mesmo as tentativas de explicação para o seu uso. Neste instante se apresenta a
121
Dados das entrevistas. Pesquisa de campo realizada em Belo Horizonte/MG e Contagem/MG, nos anos de 2004,
2006, 2007 e 2008.
122
Dados da entrevista. Pesquisa de campo realizada no consultório particular do pesquisador, no centro de
Contagem/MG, em 29/02/2008.
177
necessidade e também o objeto desta pesquisa de um movimento de identificação e um
substrato moral, aos quais o usuário crônico de álcool e drogas possa se vincular e manter, no
intuito de abandonar a própria atitude dissidente, com aquisição de novas práticas.
Junto ao consumo massificado e injustificável, problemas de diversas ordens vão
ocorrendo e se acumulando, nos vários âmbitos da convivência dos indivíduos. Convidadas por
alguém, encaminhadas pelos serviços de saúde, obrigadas pelo aparato de vigilância do Estado,
ou mesmo cientes da real precisão de serem ajudadas, essas pessoas podem ser convidadas a
instituições que se propõem à discussão de soluções dignas e palpáveis. Grupos de ajuda mútua
podem oferecer escapes autênticos, uma saída para o consumo abusivo de álcool e de drogas,
onde engajamento e participação preconizam a permanência em sobriedade.
As conturbadas narrativas pessoais construídas no espaço das cidades e no tempo atual,
especialmente aquelas que se dão em meio ao consumo exacerbado de elementos que alteram a
consciência, são revividas nestes grupos de ajuda mútua para dependentes. Estas constituem os
maiores exemplos de incongruências e contradições das drogas aqui descritas; bem como
compõem possíveis amarras para os autores deste discurso grupal de apoio, que buscam lucidez e
amparo, longe dos problemas advindos de seu uso danoso e abusivo.
178
“(...) a tentativa de modificar o que se pensa e mesmo o que se é (...),
é conseguir pensar algo que não seja o que se pensava antes.”
Michel Foucault, 2004.
179
6 CONCLUSÃO
“Um viciado é um viciado.
Não importa que o viciado seja branco, preto, amarelo ou verde, rico ou pobre ou qualquer tom
intermediário, a mais famosa ou a mais desconhecida pessoa do planeta.
Não importa que a dependência seja de drogas, álcool, crime, sexo, compras, comida, jogo,
televisão ou dos Flintstones.
A vida do dependente é sempre a mesma.
Não há emoção, nem glamour, nem diversão.
Não há bons momentos, nem alegria, nem felicidade.
Não há futuro nem saída.
Há apenas uma obsessão.
Uma obsessão devoradora, onipresente, avassaladora.
E fazer pouco dela, ou gabar-se dela ou banhar-se em sua falsa glória não tem nada a ver com a
verdade, e isso é tudo que importa, a verdade.”
James Frey, 2003.
O argumento que finaliza esse texto se na afirmação e na análise final de alguns
pressupostos, a serem retomados sinteticamente. O objetivo central deste trabalho consistiu em
levantar e analisar as motivações que levam usuários crônicos de drogas a procurar e,
eventualmente, se engajar, em um grupo de ajuda mútua para dependentes químicos e para seus
familiares. A entrada destas pessoas, no grupo de ajuda mútua pesquisado, se em meio a
inúmeras vivências, tanto da busca por prazer com o álcool e as drogas, quanto dos problemas
advindos de seu consumo abusivo.
Cooptados para o alcoolismo e a drogadição, indivíduos adquirem um conjunto de
complicadores, que se acumula ao longo do tempo. A saúde física se degrada, a do convívio
social se esvai. Problemas de natureza legal surgem, eventualmente. Em atividades exigentes de
concentração e persistência, dificilmente, se progride, entre outros fatores. Na pesquisa,
comprovou-se que o hábito compulsivo de se consumir substâncias de abuso, por longo espaço de
tempo, leva sempre a algum tipo de problema.
180
No entanto, mesmo constatada a problemática, são necessários alguns veículos de suporte.
Somente um desejo intenso e exclusivo de parada no uso das substâncias de abuso, por parte dos
indivíduos, não configurará em prática abstinente plena. Ao longo do percurso dessa pesquisa,
viu-se que a interrupção pura e simples do hábito compulsivo de se consumir álcool e drogas não
se liga somente à escolha pela abstinência. As formas diversas de dependência se configuram
como padrões de comportamento, cujas pessoas envolvidas acham muito difícil ou mesmo
impossível – de se parar apenas pelo poder de uma vontade própria. A utilização do álcool, ou de
qualquer outra substância de abuso, produz a liberação de uma tensão, cujo convite a novo uso se
mantém persistente. Nessa pesquisa, o suporte estudado, que busca orientar essas novas práticas
de sobriedade, foi a inserção de dependentes e seus familiares, em um grupo de ajuda mútua
determinado.
Quando da entrada neste grupo, diversos fatores se põem a modificar o arranjo de linhas e
os estratos de vida dos usuários crônicos, fazendo-os deslocar por novos territórios existenciais.
As relações estabelecidas com as práticas do grupo e com as pessoas que o compõem estarão no
cerne deste movimento. Seus fatores terapêuticos, seu arranjo disciplinar, seu discurso, a tessitura
de relatos que nele se constrói, a identificação com determinados membros, uma possível re-
edição do grupo familiar originário, o resgate de dignidade, entre outros, serão alguns dos
dispositivos balizadores. A composição e a vivência, destes dispositivos do grupo, permitirão que
usuários crônicos de álcool e drogas repensem seus hábitos dissidentes de consumo e,
potencialmente, passem a compor novas práticas de si, em pontual e vigilante sobriedade.
A aquisição do corolário de problemas, comumente atribuídos ao uso abusivo de álcool e
entorpecentes, também não garante a inserção de indivíduos nos dispositivos de suporte-grupos
de ajuda mútua. Na pesquisa, se observou, que mesmo ainda desconhecidos pelo sujeito, estes
espaços são reconhecidos marginalmente, como se seus freqüentadores não passassem de figuras
derrotadas pelo próprio vício algo que usuários crônicos, na maioria das vezes, relutam em
admitir.
A hipótese inicial era de que todos os dependentes pesquisados pensariam o grupo desta
forma, marginal e excludente, antes de realmente conhecê-lo. Tal ponto configuraria um quadro
importante de resistência e dificuldade de se reconhecer que o hábito de consumo das substâncias
de abuso atingira patamares danosos a si próprio e aos convivas mais próximos. Ao longo das
181
entrevistas, do trabalho de observação e coordenação das reuniões, viu-se que o grupo não se
configura negativamente a todos, possuindo instâncias que potencialmente conduzem ao
equilíbrio e ao repensar de uma prática dissonante, mesmo antes de se ingressar no mesmo.
Admitir, que o hábito de beber e de usar drogas não mais se vincula a uma situação social
comumente aceitável, de encontro com os amigos e familiares, em algum tipo de atividade de
entretenimento, mas que, pelo contrário, se configura como um desejo imperioso de se consumir
cada vez mais estas substâncias, em doses e combinações cada vez mais altas, em que o resultado
(no corpo e no convívio com outras pessoas) são apagamentos freqüentes, mal-estar e acúmulo
exponencial de problemas, ainda é passo preponderante para delinear novas práticas de si em
sobriedade.
Inserido em um grupo de ajuda mútua específico para o tema, usuários crônicos de drogas
têm a possibilidade de partilhar de elementos que lhes darão amparo, resgate de dignidade, de
auto-estima, e que, definitivamente, lhes reduzirão as sensações de desamparo e solidão. Os
fatores terapêuticos citados – cada um deles – terão papel preponderante nessas figuras de
resgate, oferecendo, diretamente, recursos e benefícios possíveis àqueles que se deixam
atravessar pelo discurso e por outras práticas do grupo. No entanto, o que se observou na
pesquisa, paradoxal e interessantemente, foi o entrelaçamento entre muitos usuários crônicos
submetidos ao discurso e às outras práticas do grupo, em uma seqüência de reuniões com os
ditames disciplinares e rígidos de suas proposições. Ocupantes de um espaço, para a maioria das
pessoas, errante e desequilibrado (repleto de indisciplina, descontrole, problemas e falta de
sentido), estes dependentes têm sua prática de consumo como algo bastante enrijecido,
naturalmente difíceis de aquisição de maleabilidade. Com a entrada no grupo, com o
atravessamento de linhas fluidas (moleculares), segmentos rígidos se põem a pulsar, em um novo
e fugidio movimento. Delimita-se um espaço e um novo conjunto de práticas de si, com potencial
e esperada sobriedade.
O grupo será, verdadeiramente, de ajuda mútua, quando os elementos trazidos por cada
um de seus membros não isoladamente por seu coordenador, ou por um freqüentador cujo
discurso remete à admiração, ou a belas frases prontas forem acolhidos em sua plena
especificidade e em todas as suas possibilidades. Quando uma lágrima de alegria ou de tristeza
(apenas uma, não quase duas centenas de páginas), quando um sorriso for resgatado fazendo
182
mover uma engrenagem danificada por tanta quantidade de outros fluidos que não a felicidade – e
alguns se porem uma sincera escuta, terá, o grupo todo, a grandeza de sentido que traz o seu
nome.
183
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