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Patricia Leonardelli
A memória como recriação do vivido
um estudo da história do conceito de memória
aplicado às artes performativas na perspectiva do
depoimento pessoal
Tese apresentada como exigência parcial à
obtenção do título de Doutor.
Curso de Pós-graduação em Artes Cênicas,
Escola de Comunicações e Artes,
Universidade de São Paulo.
Orientador: Prof. Dr. Luiz Fernando
Ramos.
São Paulo
2008
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RESUMO
A tese A memória como recriação do vivido, um estudo da história do
conceito de memória aplicado às artes performativas na perspectiva do
depoimento pessoal pretende redimensionar o âmbito de atividade da memória
humana a partir da análise de sua dinâmica de funcionamento dentro de
diferentes processos de criação nas artes performativas, cujo produto
denominamos depoimento pessoal. Desenvolveremos a hipótese de que todo
trabalho da memória pressupõe, em maior ou menor grau, a recriação da
experiência histórica original, e que os distintos tipos de depoimento são o
resultado da combinação das forças operacionais específicas que pressionam a
memória do artista em cada vivência de criação.
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ABSTRACT
The thesis The memory as re-cration of the lived facts, a study of the
history of memory´s concept applied to the performative arts in the
perspective of the personal testimony intends to give a new measure to human
memory´s activities through the analysis of its´dynamic of work in the different
process of creation in the performative arts, whose product we use to call
personal testimony. We will sustain the hypothesis that every work of memory
demands, in a higer or lower level, the re-creation of the historical facts once
experienced, and that the distinct kinds of testimony result from the
combination of particular operational efforts, which pressure the
artists´memory in a certain way during each process of creation.
2
SUMÁRIO
RESUMO.....................................................................................................................i
ABSTRACT................................................................................................................ii
INTRODUÇÃO..........................................................................................................3
PARTE 1 A memória como atributo da mente e suas relações
com as demais faculdades humanas.............................................15
Capítulo I Do inatismo platônico à Renascença....................................................22
Capítulo II - A memória na transição para o pensamento científico
e filosófico moderno............................................................................64
Capítulo III Aspectos da Neurobiologia contemporânea: tipos de
memórias, o mapeamento cerebral como instrumento
de análise da construção, evocação, preservação e
destruição das memórias.....................................................................89
PARTE 2 Da faculdade ao fluxo: a memória como recriação
do vivido............................................................................................104
Capítulo I A mnemo-criação perceptiva em Bergson..........................................108
Capítulo II Virtual e Atual, recordações de um Corpo sem Órgãos.....................123
Capítulo III A crítica da consciência imaginativa................................................134
PARTE 3 O depoimento pessoal: a memória criadora nas
diferentes disposições dos relatos............................................146
Capítulo I Memória e fabulação no treinamento interpretativo
de Stanislavski.......................................................................................153
Capítulo II Os impulsos, ancestralidade e criação na cena-depoimento do
performer: Grotowski e o ato total.......................................................183
Capítulo III A memória nas performances de Joseph Beuys, Marina Abramovic e
Spalding Gray ......................................................................................210
CONCLUSÃO.........................................................................................................225
BIBLIOGRAFIA....................................................................................................228
3
INTRODUÇÃO
“O tempo é o mágico de todas as traições”
João Guimarães Rosa
A tese A memória como recriação do vivido, um estudo do conceito de
memória aplicado às artes performativas na perspectiva do depoimento pessoal
nasce de uma observação pessoal extensa e antiga sobre os fenômenos que
envolvem a disposição dos conteúdos históricos do performer em diferentes
processos de criação. O estatuto filosófico e estético da pós-modernidade
1
provoca
uma série de questionamentos sobre a construção do sujeito, a historicidade do
corpo, a consistência ontológica da narrativa e dos testemunhos como agregadores
culturais para formação das identidades coletivas, e outras questões subjacentes
que impelem a uma revisão profunda da forma como o homem relatou, selecionou
e organizou sua experiência ao longo dos séculos.
No campo das artes performativas, inicialmente, as novas formas
fragmentadas de disposição do discurso da cena sugeriam uma espécie de recusa à
pré-formação de sentidos e à tomada de posicionamento ideológico sobre os
materiais dispostos, efeito que logo exigiu a revisão dos resultados e a assunção da
des-estruturação como linguagem, pois, uma criação exposta em um tempo
discorrido criará representações à revelia de seu autor de qualquer forma. Negar o
movimento do tempo é fugir da responsabilidade de assumir a intencionalidade da
criação, e essa fuga ficará registrada na história da obra.
1
Para uma introdução ao pensamento sobre a pós-modernidade e suas estruturas organizacionais políticas,
sociais e culturais, ver O pós-moderno e A condição pós-moderna, de Jean-François Lyotard.
4
Partindo dessa constatação, passamos a pensar sobre o tema que interessa a
nossa arte, a arte do ator-performer, na condição pós-moderna, de onde chegamos
imediatamente na memória como ferramenta e em sua utilização na criação
performativa. Na performance, a relação do intérprete-criador com o tempo é
profundamente caótica para os padrões com os quais costumamos organizá-lo no
cotidiano. Se os processos de criação não permitem uma perspectiva cronológica do
tempo, também não se pode trabalhá-los como uma abstração de todo relativa aos
seus operadores processuais internos, inteiramente livre das arbitrariedades do
psiquismo e da consciência.
No tempo da criação, o passado irrompe como a força que recupera e revela
os subsídios pelos quais o sujeito se oferece aos estímulos do processo. Esses
materiais são a fonte de seu depoimento pessoal, são o próprio sujeito
transbordando da pele em ações, sons, palavras, e reconstruindo sua história pelas
circunstâncias da ficção. Mas onde termina a suposta verdade como experiência
originária e começa a fantasia da recriação do vivido? Quais processos permitem se
construir um relato mais mimetizado ao real e quais outros assumem a fábula
como máscara? Ou a fantasia como escudo para sublimar o irrepresentável, o
traumatizado e oculto?
Essa problemática nos pareceu encantadora desde o início, e cresceu junto
com a consciência de que sua solução demanda uma vida inteira de investigação e
observação, e a resignação de que, ao final, provavelmente, não encontraremos
respostas definitivas. Da mesma forma, em torno desta parece estar condensada
boa parte das questões sobre o trabalho do performer das quais não podemos nos
esquivar em nossa profissão. Como funcionam e se expressam os movimentos da
5
nossa história nesse adensamento orgânico chamado corpo, é a pergunta-chave. De
onde logo vêm outras igualmente complexas: por onde se desloca a imagem no
corpo-mente? Quais os fatores de reverberação? No que implica a autenticidade do
relato: na fidelidade ao testemunho da experiência ou na capacidade de recriação?
Nossa prática ofereceu algumas indicações iniciais, pois, ainda cremos que a
reflexão deve partir inicialmente da vivência. Por mais curioso que possa parecer, o
fato é que todos os processos de criação dos quais tomamos parte nos legaram uma
só intuição, a partir da qual elaboramos nosso projeto de pesquisa: a retenção é
apenas uma faceta pálida do complexo trabalho da memória.
Voltamos, então, à revisão dos principais pedagogos da arte da interpretação
e a alguns artigos com depoimentos de processo de performers strictu sensu para
verificar se haveria ali apontamentos semelhantes aos nossos, pelos quais
poderíamos começar a sistematizar uma reflexão mais consistente, e assim
sucedeu. As artes performativas, atividades de fronteira por natureza, oferecem os
registros documentais por onde se pode iniciar a revisão do conceito de memória
como retorno da experiência (e do sujeito, enquanto formado pela experiência) ao
passado, até o desligamento completo do real; e sugerir a idéia de atualização do
vivido pelo presente, pressuposto de nossa investigação.
A memória, quando trabalhada em função da construção do depoimento
pessoal, e a disposição dos conteúdos históricos do performer para a criação,
exigem um trânsito criativo, intenso e, por vezes, acelerado entre os conhecimentos
apreendidos e em apreensão, a ponto de um se misturar de tal forma ao outro que
já não se pode falar em núcleos fechados de experiência armazenada, mas em fluxo
de contaminações. Eis porque a memória como faculdade que distribui o vivido em
6
unidades factuais no tempo do movimento linear já não dá conta de explicar o
funcionamento da mente humana em situação de criação.
O substrato teórico veio naturalmente ao nosso encontro quando
determinamos o objeto de pesquisa, posto que somente pelo pensamento
contemporâneo encontraríamos interlocutores que partilhassem de nossa
perspectiva não-arborescente
2
de estudo e fornecessem o paradigma conceitual que
justificasse nossa hipótese. O depoimento pessoal é construído pela memória
criadora, e suas singularidades processuais atestam a riqueza de possibilidades que
essa função nos oferece para reinventar a existência. Somente por que temos
memória e porque ela é criadora e trabalha em conjunção com todas as demais
faculdades - ou arrisquemos mais longe, não falemos mais em faculdades, senão
em adensamentos mentais de funções em devir que criam o grande fluxo das ações
humanas - é que a arte se tornou possível.
Criar vidas que não existem, construir existências paralelas, depoimentos
pessoais fantásticos organizados e dispostos na forma de uma personagem
tradicional, ou destroçar o ego e esquizofrenicamente reparti-lo em diversas
personas com depoimentos distintos, pelos quais fala, por trás e junto, o artista-
criador (como faz lindamente Spalding Gray, em suas cenas-depoimento
dilacerantes sobre o suicídio da mãe na obra Rumstick Road), são maneiras
diferentes de organizar o depoimento. Ou mais.
2
Arborescência é um conceito-chave da terminologia deleuziana, uma forma de articular o pensamento
binária e verticalizada, à qual ele opõe o pensamento rizomático, horizontal, estruturado no plano das
multiplicidades, estratos, segmentaridades, linhas de fuga e intensidades, agenciamentos maquínicos de
diferentes tipos, etc. Para uma explicação mais completa sobre rizoma e arborescência, ver o texto
Introdução: Rizoma, in Mil Platôs 1, pp. 11-38.
7
É o próprio sujeito-artista que se desfaz e se reinventa na criação e
estruturação do depoimento a cada apresentação. Mais do que em qualquer outra
atividade humana, é o artista da cena que se põe em devir como profissão, se dilui e
se reconta infinitamente cada vez que depõe para formar sua obra. Nosso esforço, a
partir de agora, é de relacionar essa intuição que nos persegue ao estudo maior da
evolução da memória nas principais tradições filosóficas e científicas para
verificarmos se ela é algo mais que o resultado da nossa experiência particular,
quem sabe, um ponto de partida pelo qual possamos formalizar uma reflexão que
sirva de estímulo para outras abordagens sobre o tema.
Depoimento pessoal é uma expressão que se firmou já há alguns anos no
abundante quadro de terminologias técnicas que se esforçam para definir os
múltiplos mecanismos de criação do artista da cena contemporânea. A revisão que
nos propusemos a fazer acerca das atribuições da memória, amparados pela
filosofia pós-estruturalista e pelo pensamento bergsoniano, interfere diretamente
na dimensão original de tal conceito, cuja reformulação torna-se, assim, objeto
central de nossa tese.
Retomemos a definição já apresentada para depoimento pessoal: disposição
dos conteúdos históricos do performer para criação. Em outras palavras,
convencionamos chamar de depoimento pessoal à memória quando colocada a
serviço especificamente da criação artística. Ainda que, acreditamos, a natureza
criadora da memória imponha seu modus operandi a todos os setores da atividade
humana, é necessário que nos detenhamos com a atenção necessária às
particularidades que envolvem seu funcionamento em condições específicas de
8
produção artística, para que aprofundemos nosso olhar exatamente sobre as
implicações que essa natureza criadora pode trazer.
Portanto, nosso objetivo final é construir, ao longo de nosso estudo, as bases
argumentativas que sustentem um conceito de depoimento pessoal não mais
apoiado na utopia de uma historicidade pessoal impermeável, que pressupõe a
apreensão absolutamente objetiva de fatos pelos sentidos e a possibilidade do
testemunho exterior isento e estático. Se a memória não é mais tomada como o
retorno do sujeito ao passado, e sim como atualização do vivido no presente, pelas
condições do presente, então o depoimento pessoal torna-se a história pessoal
recriada e delineada pelas especificidades técnicas de cada processo de criação.
Para estruturarmos nosso pensamento de forma a conduzi-lo mais
claramente a tais conclusões, iniciaremos nosso trabalho apresentando, na
primeira parte, a evolução pela qual o conceito de memória (e, analogamente, o de
depoimento pessoal) passou desde a antigüidade até a neurobiologia
contemporânea. Esse primeiro recorte, embora pareça demasiado extenso, é
fundamental para que o leitor compreenda como o tratamento dado à memória
pelas teorias do conhecimento se transfigurou da condição de arte (tradição greco-
romana) para a de ciência (modernidade), e as implicações ontológicas daí
resultantes para o estudo da memória nos períodos subseqüentes.
É de grande importância que consideremos como o pensamento grego (mais
especificamente, aquele platônico e aristotélico, sobre os quais nos debruçaremos
com mais atenção) e latino admitia a inter-participação entre as distintas funções
da mente/alma, bem como a criação de imagens como parte da atividade
mnemônica, conduta que permanece (adaptada às condições ideológicas vigentes,
9
evidentemente) no homem medieval, mas se dilui no positivismo posterior
emergente, para ser recuperada pelas neurociências da atualidade. Embora não
tenhamos encontrado documentação e bibliografia que tratem diretamente da
criação do depoimento pessoal no período antigo e medieval (à exceção das
práticas oratórias, que relataremos no primeiro capítulo), a análise da mnemônica
clássica revela um sistema de formação de imagens que já é em si criativo, e que diz
muito sobre a própria arquitetura intelectual e a hierarquia de valores do homem
daquele tempo.
Observaremos como a atividade da memória foi compartimentada pelo
pensamento científico dos séculos XVII e XVIII, que estreitou os limites
operacionais de cada função da mente, e delimitou os âmbitos da memória
exclusivamente como retenção, e da imaginação como criação, estabelecendo uma
cisão que acompanhou boa parte do pensamento humano sobre o tema até o século
XX. Não é de se estranhar que, nesse período, o estudo da memória na criação
artística ficasse cada vez mais restrito às mnemotécnicas, e a noção de depoimento
pessoal se obscurecesse diante de um quadro teórico que não o contempla
enquanto tal.
Na segunda parte de nosso estudo, chegamos às bases filosóficas modernas
que ofereceram diretamente o substrato para desenvolvermos o conceito de
memória criadora defendido em nosso trabalho. O tempo como apresentado por
Bergson (o tempo das multiplicidades e da não-linearidade) foi o conceito-chave e
o princípio gerador para compreendermos o movimento mais provável das imagens
armazenadas pela experiência no corpo-mente. Foi pela teoria bergsoniana que,
primeiramente, tomamos contato com um pensamento que assume integralmente
10
a memória como fluxo de vivências pelo tempo, e avança muito na redefinição dos
antigos limites para os atributos criação e retenção, ponto fundamental para a
evolução de nossos argumentos rumo à formação de uma nova e potente
identidade para nosso objeto. De fato, toda definição de corpo-mente e de
deslocamento do sujeito pelo tempo que aplicaremos na tese para justificar a
memória como recriação é tomada de sua filosofia, e o diagrama do cone antecipa
tanto a idéia de atualização dos virtuais da experiência (desenvolvida
posteriormente pela cibernética) como dos materiais da memória em relação
multilateral e caótica (boca do cone), diretrizes fundamentais para redefinirmos o
âmbito de atuação da memória e apontarmos sentidos mais abrangentes para o
depoimento pessoal.
O paradigma bergsoniano para memória foi retomando e retrabalhado, mais
recentemente, pelo pensamento pós-estruturalista de Deleuze e Guattari e pela
cibernética de Pierre Lévy, por meio dos quais combina-se a novos conceitos
desenvolvidos por tais autores que qualificam o modelo e fazem avançar na
compreensão de seu funcionamento, como veremos no segundo capitulo dessa
segunda parte. A perspectiva cartográfica deleuziana de organização do “grande
plano” não mais em núcleos duros de conhecimento (ou de estruturas de qualquer
tipo), mas de adensamentos fluidos em permanente transformação e
contaminação, reverbera fortemente a idéia de tempo e de formação do sujeito e da
memória proposta por Bergson. Alinham-se, aqui, pensamentos que privilegiam a
dinâmica do tempo e das relações no tempo para formação dos estratos de saber
tanto quanto as particularidades de tais estratos, estando, estes, em permanente
reconfiguração em devir.
11
Tal visão de mundo e de disposição de suas interações como processo
dinâmico não-linear, múltiplo, simultâneo e horizontal, se alinha à abordagem da
memória como matriz interativa apresentada pela cibernética contemporânea.
Lévy utiliza a imagem de uma nuvem de virtuais de memória para ilustrar o plano
em suspensão, o conhecimento potencial simultâneo e em permanente fluxo com o
universo atualizado (presentificado). Essa co-existência dos saberes e das
experiências explicaria o fenômeno da criação, pois diferentes unidades de
informação armazenadas permanecem vivas mesmo na dimensão virtual, e se
combinam de forma inédita pelas demandas do presente. Nesse fenômeno
consistiria, exatamente, a chave para a recriação do vivido.
A idéia de uma existência virtual tão viva quanto uma existência atual,
cujas forças de atualização se conectam com as relações simultâneas do plano e são
por todas elas, direta ou indiretamente, determinadas, vai ao encontro do conceito
de memória como fluxo que desejamos desenvolver. Com a teoria da comunicação
de Lévy, encontramos o quadro terminológico específico que aprimora e, de certa
forma, condensa a análise da memória na dimensão que pretendemos apresentar; e
oferece os alicerces teóricos para sustentar a hipótese de memória criadora e de
depoimento pessoal como conjunto de virtuais atualizados pelas pressões
específicas dos processos de criação que desejamos construir nessa segunda parte
da tese.
Por fim, na terceira e última parte, chegamos à análise dos diferentes e mais
representativos tipos de depoimento que encontramos nas artes performativas
modernas. Como dissemos anteriormente, com os argumentos teóricos
apresentados na primeira e segunda partes de nosso estudo, pretendemos ter
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estruturado um conceito consistente de depoimento pessoal a partir da noção de
memória como recriação do vivido, o qual agora aplicaremos a processos de criação
cujas especificidades técnicas definem identidades heterogêneas para cada
depoimento. Desejamos, agora, aprofundar nosso olhar sobre as forças criadoras
que pressionam a memória para determinadas formas de disposição dos discursos
históricos pessoais , e que são responsáveis pela produção de um tipo de obra, e não
outra.
Para tanto, traçamos uma espécie de linha imaginária que vai da
personagem do teatro dramático até às performances autobiográficas. No primeiro
tipo de processo, a fábula determina e condiciona as circunstâncias pelas quais o
ator irá expor seus conteúdos históricos, enquanto no último, a construção total da
cena se configura num macro-depoimento pessoal estético, em que os fatos
extraídos da biografia do criador podem aparecer mais diretamente relatados
dentro da “dramaturgia do performer” específica de cada obra.
Escolhemos como artistas de referência, nesse último modelo, os performers
mais ligados à performance art strictu sensu Marina Abramovic, Joseph Beuys e
Spalding Gray. Nesse campo da performance art, trouxemos ainda uma prática
testemunhal que opera no limite entre as artes, as ciências jurídicas e aquelas
terapêuticas: o vídeo-depoimento
3
. O vídeo-depoimento, ao mesmo tempo, põe à
prova e impõe um contraponto ético à noção de memória como livre recriação da
3
O vídeo-depoimento é uma forma de relato que está na fronteira da arte, da terapia e da criminalística, como
veremos mais detalhadamente no capítulo final. Trata-se do testemunho de vítimas de violência, geralmente
genocídios e grandes guerras ou crimes de estado, para a câmera com pouca ou nenhuma mediação dos
entrevistadores. Supõe-se que seus relatos, dado à gravidade dos acontecimentos, deva ser o mais próximo
possível dos fatos vividos. Escolhemos incluir o vídeo-depoimento por ser uma prática que, ainda que tenha
seu teor artístico questionável no que diz respeito à autoralidade dos meios que definem a obra, problematiza
profundamente a memória como recriação do vivido.
13
experiência, pois trata do testemunho de vítimas de crimes contra a humanidade.
Da proximidade com o fato vivido, presente ou não em seus conteúdos, implica
uma série de conseqüências que extrapolam as questões artísticas, e dizem respeito
tanto a uma possível reparação histórica quanto aos laços culturais que agregam
determinadas coletividades e as definem (os judeus, as vítimas das ditaduras
latino-americanas da décadas de 60 e 70, etc.).
Entre os dois extremos, personagem dramático e artistas da performance
art, situamos como modelo intermediário o trabalho do performer como concebido
por Jerzy Grotowski. Sua atividade marca uma clara expansão do âmbito de
utilização do depoimento pessoal voltado para a construção da personagem para
outro que envolve a produção da cena total como o macro-depoimento “estetizado”
do artista, como verificamos de maneira mais radical nos processos dos três
últimos peformers citados.
Tamanha transição é um dos pontos mais significativos de nossa análise,
pois revela como o artista performativo contemporâneo evoluiu de um processo
pressionado por forças exteriores de definição do depoimento (a personagem e sua
vida interior e exterior, condicionada pelo dramaturgo) para a assunção de uma
cena que revela o depoimento pessoal pela composição complexa de todos seus
enunciadores. Independentemente das questões de narrativa e de identificação por
parte da audiência, a performance exige do artista uma reflexão global sobre a
maneira de construir e organizar sua exposição, e a tomada de responsabilidade
integral sobre a disposição dos materiais que compõem sua cena-depoimento. Não
se trata de sugerir hierarquias de qualquer natureza entre os depoimentos
desenvolvidos em processos dramáticos e aqueles não-dramáticos, mas de
14
exatamente valorizar a riqueza que está nas diferentes forças artísticas que
qualificam tais processos, identificando como a memória criadora opera em cada
um deles.
Ao fim, e ao cabo, desejamos ter levantado algumas questões que,
acreditamos, possam contribuir para o debate mais amplo sobre os mecanismos de
criação do artista da cena contemporânea. Pretendemos ter desenvolvido uma
argumentação que dê conta de nossa premissa de base: de que a memória não é
uma função metafísica, nem um conjunto de eventos marcados estaticamente em
nossa identidade. Ela é nossa própria identidade em transformação no tempo e no
espaço das multiplicidades. Não há arte que prescinda da memória, pois não há
arte que não tenha alguma identidade, assumida ou não. E se chamamos de
depoimento pessoal à memória estimulada especialmente para a situação de
criação artística, não signif ica que não estejamos exercitando a memória criadora
nas diversas atividades da vida cotidiana, reinventando nossa existência
diariamente, de forma mais ou menos livre, toda vez que nos relacionamos.
15
PARTE 1 A memória como atributo da mente e suas relações com as
demais faculdades humanas.
Nessa primeira parte, analisaremos de que forma a memória foi estudada
pelas principais escolas do pensamento desde Platão até a neurobiologia
contemporânea, posicionando-se, primeiro, como atributo e depois como faculdade
da mente. Observaremos, especialmente, as transformações na abordagem sobre
suas funções surgidas nas passagens dos períodos e com a inevitável substituição
dos valores culturais hegemônicos daí decorrente.
De início, vemos que a filosofia grega localiza imediatamente a memória
como arte desde a teologia arcaica, em que Mnemósine (A deusa da memória)
aparece como a mãe das musas, a quem se deveria evocar antes pedir a inspiração
específica. Gradativamente, o culto à arte da memória ultrapassa a devoção à deusa
e adquire status mais amplo na sociedade na medida em que a cultura grega
encaminha sua evolução não só voltada para as artes em geral, mas para as ciências
humanas, naturais, jurídicas e políticas. A palavra, a capacidade argumentativa, a
elaboração e memorização dos discursos diferenciam o pensador do homem
comum, e, respondendo a tal demanda, produz-se uma outra arte que pode ser
exercitada fora das práticas rituais. Nasce a arte da memória per se, conectada,
como veremos, tanto à formação direta do conhecimento verdadeiro (Platão)
quanto à capacidade de criar imagens e distribuí-las no espaço (sistema dos locais,
place-system aristotélico, etc.).
Analisaremos mais atentamente a teoria do conhecimento platônica no
capítulo que se segue, pois a função central da memória nas sínteses cognitivas é
16
uma herança iluminadora, que ficou por séculos obscurecida pelo positivismo.
Mais do que isso, seu pensamento posiciona a memór ia entre as mais altas
atividades humanas, a produção filosófica, e para além de todo reducionismo que
um estudo voltado para e rememoração pode sugerir, o que justifica uma análise
diferenciada de sua doutrina.
Entretanto, é interessante ressaltar algumas características do sistema dos
locais da memória estabelecido, muito provavelmente, por Simônides de Ceos (de
que também trataremos no capítulo seguinte) e que influenciou Aristóteles e
inúmeros outros filósofos e oradores a criarem seus sistemas nos períodos
posteriores. O sistema dos locais prevê a formação de imagens específicas para as
partes do discurso, atribuindo-se relações das mais variadas para cada trecho e
local. Veremos como essas associações são sempre criativas, e estimulam a mente a
estabelecer diferentes sentidos entre os locais imaginários e os conteúdos a serem
associados. Acreditamos que todos os sistemas de locais grego e romano antigos já
compunham em si processos de criação do discurso interior para o artista que o
exercita, pois solicitam a seleção e disposição criativas das imagens de sua memória
pessoal para construir uma trajetória discursiva completamente particular, mais ou
menos alegórica, mas sempre única. Não é forçoso reconhecer, aqui, um proto-
exercício de formação do depoimento pessoal na arte da memória, cuja obra final é
o discurso ou poema a ser enunciado.
Nesse sentido, notamos, que a tradição platônica e aristotélica divide espaço,
no estudo da memória antigo, com a corrente sofista, cuja abordagem direciona o
sistema dos locais para as mnemotécnicas mais especialmente voltadas para a
palavra, embora se utilizem para tanto, basicamente dos mesmos sistemas que os
17
filósofos aplicavam para recordar dos conteúdos objetivos do conhecimento. Esse
modelo orientará, com algumas variantes importantes, todos os principais
tratamentos destinados à mnemônica até o fim do Renascimento.
Com o advento do imperialismo romano, a teoria da memória grega,
absorvida e “latinizada”, sobrevive atrelada à oratória, fundamentalmente em três
tratados, todos baseados nos sistema dos locais clássico, mas distintos quanto à
natureza das imagens associadas: o Ad Herennium, de autor desconhecido, o De
oratore, de Cícero e o Institutio oratoria, de Quintiliano. Analisaremos ainda a
importância do De inventione ciceroneano, que, embora seja um documento mais
antigo e não direcionado especificamente para a oratória, na medida em que define
a função ética da memória como virtude da Prudência, acabou se tornando um dos
principais documentos sobre o assunto no medievo (sob o título de Primeira
Retóricaou “Retórica Antiga”, atribuída equivocadamente a outro autor).
Nesse período, a arte da memória se liga profundamente aos estudos da
retórica, mas não se restringe ao âmbito formal da mera memorização do discurso,
como uma primeira leitura pode fazer supor. O sistema greco-latino dos locais
funciona como um exercício criativo que orienta o fluxo de associações de idéias e
formação de representações no pensamento, afirmando-se muito mais como uma
cartografia ilustrada da dinâmica particular de funcionamento mental do homem
antigo em produção de conhecimento do que como simples manual de exercícios
(ainda que também possa ser tomado como tal). A abundante produção a
apresentação de textos nas diversas áreas do conhecimento impunham a criação de
diferentes imagens, e multiplicam os discursos imagéticos internos resultantes do
exercício dos sistemas de locais. Dessa forma, podemos visualizar cada mapa
18
mental de imagens e palavras associadas para memorização como pinturas de um
discurso pessoal, que se manifesta publicamente na maneira própria do orador
executar a enunciação (observaremos mais profundamente as diferentes cores
que tais processos adquirem quando nos debruçarmos sobre as imagens sugeridas
para associação pelos tratados Ad Herennium e Institutio oratoria , cuja natureza
radicalmente distinta sugere mapas mais fantásticos para um e mais miméticos
para outro, respectivamente).
Na Idade Média, a arte da memória antiga se descola gradativamente da
retórica para se inserir no campo da ética e dos estudos das moralidades, como
ademais sucede com quase todas as artes nessa transição. De fato, a oratória
desaparece aos poucos, ao passo que o Cristianismo recrudesce, ou, em outras
palavras, se transfigura estilisticamente quando deixa de ser a arte do orador
autônomo (poeta ou político) e é colocada a serviço da memorização dos sermões.
Sua sobrevivência como objeto não-herético de investigação depende de
argumentos que a localizem nos domínios das atividades virtuosas do espírito,
tarefa a que se dedicam os dominicanos Alberto Magno e Tomás de Aquino, dois
dos principais nomes da Escolástica.
Seus tratados retomam vigorosamente a teoria aristotélica para derrubar as
críticas que dissociam a memória da Prudência, porém cada autor apresenta um
quadro de defesa singular nas obras De bono e Summa Theologiae,
respectivamente. A memória participa da doutrinação como instrumento de
estímulo das virtudes pela permanente evocação das fortunas, destinadas aos fiéis,
e das terríveis danações que sofrem os hereges. Portanto, a formação das
representações das qualidades morais e do imaginário coletivo associados aos
19
valores cristãos domina a arte da memória medieval e seu estudo, que pouco
avança no sentido da criação de novos sistemas mnemônicos ou de outras
atribuições para a memória além da catequização pelas imagens. Os discursos
menmônicos estão, aqui, terrivelmente atrelados ao medo das punições e à
necessidade de salvação da alma, o que, paradoxalmente, em muito enriquece e
multiplica a beleza das imagens produzidas pela arte do período (ver toda
iconografia do grotesco e da arte gótica, com suas fantásticas alegorias).
A decadência do Cristianismo e, principalmente, o surgimento da imprensa,
que pontuam a passagem para o Renascimento, alteram profundamente o estudo
da memória como vinha se desenvolvendo desde a antigüidade. De fato, tais
eventos marcam o fim da memória como arte, com seus complexos modelos de
visualização, que se tornam obsoletos diante das facilidades propostas pelos meios
de registro mecânicos emergentes. O estudo da memória é reintegrado ao campo
da filosofia pelos neoplatonistas, numa abordagem que abre espaço para a
perspectiva moderna de análise da memória não mais ligada à oratória, como na
cultura latina, nem sob o jugo da moral, como no período medieval, mas como
função autônoma da mente/alma.
Passamos, então, a uma revisão das principais correntes científico-filosóficas
modernas que tratam propriamente da memória como faculdade do espírito, a fim
de observar como se cristalizou, ao longo de nossa história, o dualismo retenção-
reflexão (criação) no pensamento moderno a partir da já resgatada herança antiga
e medieval. René Descartes, em suas obras de referência sobre metafísica e método,
introduz a memória como faculdade, função da mente/espírito no campo das
ciências modernas. Seu âmbito de atuação, entretanto, é condicionado pelos
20
paradigmas estritos da racionalidade como atividade intelectual restrita ao centro
cortical, que estabelece com o “resto’” do corpo uma relação unidirecional de
controle autônomo. Na separação res cogitans, res extensa, a memória está
claramente limitada a seu caráter retentivo, como uma conservação incompetente
das impressões (a acepção antiga de memória, contra a qual se opõe a
reminiscência ativa de Platão), que mais confunde do que auxilia o pensamento. A
perspectiva cartesiana, ao passo que busca isolar as faculdades e delimitar suas
atividades, acaba por fundar o estatuto de tratamento da memória que exatamente
se opõe à noção de memória criadora que defendemos em nossa tese, pois atribui à
faculdade apenas a capacidade de armazenar os dados sem, no entanto, modifica-
los de alguma forma. Trata-se, pois, de uma aptidão passiva da mente.
A contra-corrente empirista, cuja representação mais contundente,
acreditamos, está na obra de David Hume, numa primeira leitura parece insistir na
memória como retenção e como faculdade inferior, submetida, desta vez, às leis
associacionistas da percepção. Observaremos, porém, como a releitura proposta
por Deleuze do pensamento humeano permite revelar, por trás do pesado projeto
empirista de hegemonia do aparelho perceptivo, novas funções mais complexas e
extensas para memória, especialmente se avançarmos na idéia da cooperação
permanente com a fantasia como uma premissa fundamental de operação das
sínteses do conhecimento.
Por fim, chegamos às ciências contemporâneas como um capítulo-adendo do
qual não podemos prescindir para a produção de uma reflexão verdadeiramente
atualizada sobre a memória e suas funções. A neurobiologia desenvolveu suas
pesquisas nos últimos cinqüenta anos em um sentido que transcende a aplicação
21
terapêutica e pode auxiliar profundamente o estudo da mente nas artes em geral,
especialmente quando busca definir os graus de contaminação e co-ação entre as
ditas faculdades da mente. Os trabalhos de Ivan Izquierdo e Antonio Damásio,
respectivamente no campo do mapeamento cerebral e do neurocognitivismo,
indicam os caminhos por onde o estudo do cérebro com as novas tecnologias de
visualização de sua atividade podem levar, no sentido de identificar e iluminar as
transformações que o corpo sofre em todo tipo de vivência
4
. Os estudos sobre
depoimento pessoa , não devem, e não podem, fechar os olhos para as descobertas
da ciência de seu tempo, cuja análise, ao longos das décadas recentes, vem se
desligando do sectarismo cartesiano para buscar uma perspectiva mais holística de
funcionamento da atividade mental.
Acreditamos que somente pela colaboração mútua entre ciência e filosofia,
em que ambas as aéreas estejam reconhecidas como produtoras igualmente
legítimas e autônomas de saber em cooperação, é que poderemos chegar a um
entendimento realmente potente e consistente da memória como fluxo e como
recriação, parte de um sujeito em eterno processo de construção e destruição, que
se desdobra pelo tempo e devém universo em relações, invariavelmente, criativas.
4
O conceito de vivência que utilizamos em nosso estudo opera na tensão entre unidade vivencial e relação
intencional discutida por Hans-Georg Gadamer em sua obra Verdade e Método I, pp 99-116. Ou seja, é
construída no choque das intencionalidades com a totalidade da vida e em seu ultrapassamento.
22
Capítulo I Do inatismo platônico à Renascença
A memória (mnêmoneuein ou memnêsthai) perpassou quase todo o período
pré-socrático atrelada à teologia grega arcaica. Mnemósine era a deusa da
lembrança e do esquecimento, e de suas vontades, seu “humor” e da capacidade de
invocação de seus devotos advinha o melhor ou pior talento na recuperação dos
fatos para cada indivíduo. Era a progenitora das musas, portanto, dela nasceram
aquelas que distribuem os talentos artísticos: em última instância, da memória
nasce a Arte. E da mitologia, devém a hipótese fundamental de nossa tese, que,
nesse sentido, rende tributo à tradição grega: não há fazer artístico que prescinda
da memória, bem como nenhuma outra operação do conhecimento. Tentaremos
provar que a arte que se pretende um recorte veloz do presente imediato,
atemporal, descolada da macro-história, apenas recusa a reflexão sistemática e
formal sobre sua condição, mas não escapa à historicidade pessoal do corpo como
adensamento fluido em devir.
O exercício do “lembrar” era de grande importância para o cidadão grego, e,
de fato, para todo grupamento humano cujas tradições são transmitidas oralmente.
Em uma época em que a escrita e os registros artísticos em geral eram restritos a
poucos, a imprensa e nenhuma outra forma de reprodução mecânica existiam,
aquele que tivesse o dom da lembrança adquiria poderes especiais diante da
coletividade: é o historiador, o poeta e, para Platão, o filósofo que acessa o mundo
perdido do conhecimento das vidas passadas. O avanço da oratória a partir de
Homero se alinha ao desenvolvimento dos estudos da mnemotécnica, que, logo
veremos, avançam rapidamente rumo à formação de uma arte da memória.
23
Encontrar mecanismos que permitissem a rememoração dos argumentos e
das idéias na hora desejada tornou-se objeto próprio de investigação, forçando um
olhar de retração de seu domínio ao âmbito do “humano para melhor apreendê-lo.
Acreditava-se que a memória natural poderia ser ampliada por meios artificiais e
nisso consistia a arte da memória de então: os métodos pelos quais os homens
poderiam deliberadamente dilatar a memória espontânea. Tais métodos se baseiam
no princípio do deslocamento da alma por imagens construídas que remetem ao
próprio trânsito do pensamento, restaurando o vivido pela reativação dos sentidos,
e, por tanto, parece mais uma arte da ação do que de sujeição às técnicas:
“Embora seja importante reconhecer que a arte clássica é
baseada em princípios mnemotécnicos eficientes, talvez seja
enganoso aplicar o rótulo ‘mnemotécnicas’ [...] As memórias
antigas eram treinadas por uma arte que refletia a arte e a
arquitetura do mundo antigo, e dependia da faculdade da intensa
memorização visual, que nós perdemos. A palavra
‘mnemotécnicas’, apesar de não estar errada como descrição da
arte da memória clássica, faz esse assunto misterioso parecer
mais simples do que é.”
5
A re-evocação projetava a obra (ou o discurso) à imortalidade através da re-
instauração não só dos conteúdos, mas de toda experiência que lhe envolveu
originalmente, fortalecendo, em última instância, além da aura/imanência do
evocado, as relações da coletividade que participou de sua criação.
A paternidade da arte da memória clássica é creditada a Simônides de Ceos
(circa 556-468 a.c.) , poeta pré-socrático cujo caso do trágico banquete de Scopas é
passagem recorrente nos estudos da memória antigos.
6
Rapidamente, a história
conta que um dia Scopas, um nobre da região da Tessália, deu um grande banquete
5
The Art of Memory, p. 4. Tradução minha. Todas as citações referentes ao livro foram livremente traduzidas
do Inglês por mim.
6
Há divergências sobre a localização real de onde teria ocorrido o banquete, se nas cortes de Farsalus ou
Crano, conforme explica Quintiliano no tratado Institutio oratoria, XI, ii, 14016. Op. cit., p. 27.
24
para muitos convidados em seu palácio, e que, a certa altura, o poeta, que
participava da festa, entoou um poema lírico ao seu anfitrião. O poema continha
também uma passagem de evocação aos deuses Castor e lux, e Scopas,
brincando, disse que faria apenas metade do pagamento a Simônides pelo trabalho,
pois a outra metade ele que cobrasse dos gêmeos sagrados aos quais ele rendera
tributo.
Minutos depois, Simônides é avisado que havia dois jovens fora do palácio
esperando para lhe falar. Ele sai, procura-os, mas não encontra ninguém. E,
enquanto está nessa busca, o teto do palácio cai matando Scopas e todos os
convidados. Nos dias que se seguem, parentes vêm de todas as partes para
identificar os mortos, mas a tarefa é impossível, pois os corpos estão deformados e
irreconhecíveis. Graças a sua mnemônica apurada, Simônides recorda exatamente
cada uma das vítimas pela localização em que estavam sentados durante a refeição,
e resolve a questão, louvando a Castor e Pólux por tão generoso pagamento.
Eis a estrutura fundamental da arte da memória a partir da qual todos
demais pensadores da antigüidade grega e latina farão suas revisões: a associação
entre locais imaginados e conteúdos a serem lembrados
7
. Tal sistema se liga a uma
abordagem creditada por Plutarco a Simônides que equaciona os procedimentos na
pintura e na poesia para encontrar seus denominadores comuns de criação: “Ele
chamava a pintura de poesia silenciosa e a poesia de pintura que fala”.
8
Simônides identificou a visão (seguida da audição) como o mais importante
atributo na hierarquia dos sentidos que fixam as informações da memória, de onde
7
Simônides foi o primeiro poeta a estabelecer pagamento para suas criações, a partir de que, provavelmente,
se instaura a relação mais emergencial e profissional com o tratamento da memória, pois a apresentação
correta dos poemas torna-se “exigência contratual” da profissão.
8
Op. cit., 28.
25
vem a semelhança entre o trabalho do poeta e do pintor na disposição dos
elementos pelo espaço visual, o último utilizando as imagens como linguagem, e o
primeiro, as palavras.
A partir dessa comparação, criou-se um sistema de arte da memória que
toma nichos espaciais visualizados mentalmente em disposições específicas como
moradias de determinados conteúdos (de discursos, de poemas, etc.) a serem
lembrados. Assim como os convidados ocupavam certos locais na sala quando o
palácio desabou, e a recordação visual de suas disposições permitiu o
reconhecimento de suas identidades, Simônides concebeu que as informaçõe s
podem ser distribuídas espacialmente na mente em unidades de espaço imaginadas
e definidas com precisão, às quais é possível associar objetos que se deseja
memorizar.
Esses locais (toppoi) devem ser criados com máxima qualidade visual, a
ponto de formarem uma verdadeira arquitetura das unidades: um edifício, uma
rua, uma palácio, enfim, uma maneira objetiva e específica de dispor na mente, da
forma mais clara possível, a estrutura e a relação entre as unidades. Tal rigor é
necessário, pois dele depende a efetividade da etapa seguinte. Para cada unidade
associam-se objetos a serem lembrados. Essa associação precisa se dar por critérios
que privilegiem a rápida identificação dos espaços com os conteúdos, e acelerem
seu reconhecimento. Os mitos antigos, linguagem do imaginário coletivo do
período, surgem como alternativa mais provável, como vemos no trecho a seguir:
Por exemplo, se Chrysippus é quem deve ser relembrado, nós o colocamos em
ouro e cavalo [...] assim funciona para nomes. Da mesma forma para as coisas:
26
para coragem, localizamos em Marte ou Aquiles, para o trabalho com metal, em
Vulcano; e para covardia, em Efeu.”
9
Estando claramente estabelecida a visualização dos espaços e as associações
com os conteúdos residentes, basta ao espírito promover um passeio imaginário
pelos locais que imediatamente viriam à mente seus moradores. Se são trechos de
um poema ou de um discurso, uma lista de nomes, outras imagens, elas surgem
quando a mente se aproxima dos toppoi específicos. Observemos que, ainda que o
processo seja o mesmo, o autor diferencia o procedimento de associação para
“coisas” e para palavras. Tal separação é questão central no embate posterior entre
Platão e os sofistas sobre a função da oratória e as possíveis hierarquias entre a
mnemotécnica para decorar discursos (palavras) e a memória como operação
filosófica superior.
A passagem acima foi extraída de um tratado anônimo intitulado Dialexis, e
que data de aproximadamente 400 a.c. Reflete mais fortemente uma apropriação
da arte de Simônides ao gosto dos sofistas, cujo sistema educacional privilegiava a
memorização por quantidade e variedade de dados que permitiram ampliar as
possibilidades estéticas do discurso. Conseqüentemente, a lembrança da palavra e
a composição formal do texto estão na base das práticas, orientação que será
fortemente combatida por Platão. Trataremos mais profundamente da memória na
teoria platônica a seguir, mas está claro que para o filósofo das idéias puras a
memória tem função muito mais complexa e determinante na construção do
conhecimento do que apenas associar palavras para a bela enunciação. Ela é a
operação que permite o contato com as formas perdidas, com o saber verdadeiro.
9
Op. cit., p. 30.
27
Eis porque, para Platão e para os demais filósofos de sua descendência, a memória
das palavras denota à memória sofista: um truque, uma técnica oratória formal e
vazia que busca efeitos de apresentação e está centrada na representação, não na
essência dos fatos. A esta, ele opõe a memória das coisas: recordação ativa e
autêntica da verdade transcendental.
Como vimos até agora, o pensamento de Simônides contém as formulações
básicas da arte da memória. Tais formulações são o reflexo das profundas
transformações por que a sociedade grega passava, cuja organização em classes
delimitava mais claramente o âmbito das atividades e sua remuneração. Para os
poetas, a passagem para a profissionalização envolve a criação de procedimentos
mais sofisticados e eficientes que definam as especificidades de sua techné:
“As invenções supostamente introduzidas por Simônides talvez
sejam os sintomas da emergência de uma sociedade mais
organizada. Os poetas, agora, têm seu espaço na economia, e a
mnemotécnica praticada no período da memória oral, antes da
escrita, precisa ser codificada em regras. Em uma época de
transições para novas formas de cultura, é normal que algum
indivíduo excepcional seja rotulado de inventor.”
10
Assim, a experiência de Simônides em tal contexto, e seus desdobramentos
no pensamento e nas artes gregas, marca o nascimento da memória como arte e
como atributo da alma. É interessante observar que o sistema inicial é
fundamentalmente descritivo: relata o movimento da alma pelo edifício das
lembranças e sua construção. Remete muito mais a uma noção de processo do que
de faculdade. Embora seja relativamente conservador ao privilegiar imagens de
caráter mimético como mais eficientes para evocação dos conteúdos dos locais (que
deveria criar uma espécie de “cena realista” memoriosa, por assim dizer, na mente
10
Op. cit., p. 29.
28
do praticante), esse primeiro modelo de sistema já exige, para seu correto
funcionamento, uma intensa atividade criadora, não só para escolher as imagens
visuais a serem memorizadas como para qualifi-las com as cores específicas que
caracterizam as construções simbólica de cada mente em particular. Relembrando
a citação sobre os paralelos entre pintura e poesia sugeridos por Simônides, fica
mais fácil apreender o sistema dos locais antigo como um método de criação
interior que combina desenho/pintura e poesia na sua concepção, e a enunciação
falada na sua expressão. À sua maneira, tal método já exige a disposição dos
conteúdos históricos do artista para elaboração das imagens a serem associadas aos
textos, mesmo que sua expressão final não se dê pelas formas, senão pelos sons.
Paralelamente à sistematização da arte da memória, Platão surge como o
primeiro grande pensador a inserir efetivamente a arte da memória na teoria geral
do conhecimento. A mnemônica platônica é a arte de cultivar a memória em
consonância com a sua teoria do conhecimento inato, problematizando o ato de
recordar para além de modelos técnic os de fixação interior e reprodução de
imagens e textos tratados até então. Na República
11
, Platão define sua teoria da
reminiscência, sugerida no exercício maiêutico do diálogo Ménon, detalhada em
11
Da mesma forma como se utiliza das alegorias do mito da caverna para ilustrar a relação entre o mundo
sensível e o mundo inteligível, Platão , no mesmo livro, conta a história do mito de Er para tratar da função da
memória e do esquecimento. Em breves palavras, o pastor Er morre, e é levado ao Hades, onde encontra
diversos heróis, amigos, artistas e parentes queridos que lá contemplam o conhecimento absoluto. Porém, Er
lá descobre que o sentido da morte é oferecer aos homens a oportunidade de renascer e, assim, se purificar em
seu retorno e na nova vida dos erros da existência anterior. Portanto, é perguntado aos mortos como gostariam
de voltar à Terra. Muitos dizem que gostariam de voltar como reis, nobres, ricos comerciantes. Outros, pedem
sabedoria e uma vida mais modesta, e partem todos de regresso ao mundo dos vivos navegando pelo rio Lethé
(esquecimento). Na viagem de volta, aqueles que foram mais gananciosos sentem muita sede, e bebem
descontroladamente a água do rio. Não sabem que essa água tem o dom de promover o esquecimento de todas
as formas belas, do conhecimento e da verdade que experimentaram no Hades, por isso voltam ainda mais
ignorantes à Terra do que quando partiram. Ao contrário, aqueles que escolheram uma vida de moderação,
não sentem tanta sede, bebem menos da água do esquecimento e retornam mais sábios à vida, reduzindo o
ciclo de morte e renascimento e antecipando seu aprendizado da verdade. Eis, em tons claríssimos, a
perspectiva do filósofo sobre as relações entre prazer do corpo e conhecimento.
29
Filebo e esclarecida na totalidade de ação dentro de seu projeto filosófico em
Fédon, em cuja base está a própria essência do conhecimento, seu acesso, seus
atributos e sua relação com o corpo. A memória se divide em duas categorias, de
natureza e função quase opostas, e que estão comprometidas com processos
antagônicos no que tange à qualidade de aprendizado do filósofo.
A primeira é a conservação de sensações. Essa memória passiva é uma
permanência dos dados da percepção sensível na alma, se cria involuntariamente e
não está envolvida no pensamento (noêsis), ao contrário. Ela alimenta a doxa
(opinião) e não a epistéme (conhecimento inteligível), pois seu conteúdo é mediado
pelo corpo e carrega todas as ilusões que caracterizam as experiências por ele
vivenciadas. Ela é quase como um resíduo na alma que surge indeterminadamente
(uma lembrança espontânea) e, não encontrando outra tarefa senão revelar a si
mesma, esgota-se tão logo se fixe outra percepção.
A outra é a reminiscência (anamnese), atividade de recordar, que para
Platão, não é outra coisa senão aprender
12
. A recordação é um movimento
voluntário, que deve ser cultivado pelo filósofo por meio da boulêsis (vontade,
aspiração racional), pois nela consiste o acesso ao conhecimento verdadeiro que,
conforme observamos no mito de Er, reside no mundo dos mortos e era acessível
aos homens antes da vida terrestre, quando ainda estavam livres dos desejos e da
escravidão do corpo
13
.
12
“Aprender, diz ele, não é outra coisa senão recordar”. Cebes citando Sócrates. Fédon, p.99.
13
“Por conseguinte, volto a repetir, de duas uma: ou nascemos com o conhecimento das idéias e este é um
conhecimento que para todos nós dura uma vida inteira ou então, depois do nascimento, aqueles de quem
dizemos que se instruem nada mais fazem do que recordar-se, e neste caso a instrução seria uma
reminiscência.”. Ibid. p.104.
30
É através da recordação que a alma toma contato não com o mundo dos
deuses diretamente, mas com o pré-natal da humanidade, onde estão as formas
que representam o conhecimento absoluto, às quais as almas imortais estavam
conectadas antes de nascerem. A recordação, portanto, está na base do inatismo
platônico como o operador que afasta a alma da crença no mundo sensível e na
mutabilidade das coisas, e que a re-encaminha e preserva dos meandros instáveis
da percepção
14
para aproximá-la do conhecimento considerado real. Em última
instância, a recordação, ou reminiscência, aproxima o homem de um conhecimento
de que ele já dispôs
15
, ou que em algum momento conteve em si, e que é apagado
pela má orientação do sujeito em sua relação com o saber.
Em Ménon, é celebre a passagem em que o filósofo, por meio de perguntas e
respostas direcionadas, leva o escravo inculto a resolver um difícil teorema de
geometria apenas pela solução de perguntas estratégicas por ele propostas na
sequência correta, comprovando a hipótese de que o acesso às idéias verdadeiras é
possível até mesmo a um analfabeto mediante uma atitude filosófica apropriada. A
teoria da reminiscência, ali, está sugerida poeticamente, mas não esclarecida como
no diálogo seguinte.
Em Filebo, Platão insere a memória como um dos elementos centrais de sua
lógica argumentativa a favor do raciocínio no embate entre os hedonistas Filebo e
Plotarco contra Sócrates pelo primado do prazer ou do conhecimento como
princípios mais vantajosos para a vida de todos os seres. Além de situar mais
14
Há de se considerar, nesse contexto, o valor que Platão confere à associação de imagens como fomentadora
da recordação, fenômeno somente possível pela percepção, uma vez que todos os exemplos de recordação que
ele apresenta no diálogo partem de informações obtidas pela experiência sensorial. Cf. Ibid. pp. 101-105.
15
“Saber, com efeito, consiste nisso depois de haver adquirido o conhecimento de alguma coisa, dispor dele e
não mais perdê-lo. Aliás, o que denominamos ‘esquecimento’ não é, por acaso, o abandono de um
conhecimento?”. Cf. Ibid. p. 104.
31
especificamente a função de memória no quadro conceitual de sua metafísica, da
forma com o já a apresentamos, Platão define para essa uma outra qualidade de
grande importância em sua teoria do conhecimento, particularmente no que se
refere à doutrina de geração dos opostos: é através dela que a alma se coloca em
movimento para preencher os vazios do corpo e do espírito, para levar o homem
aos seus objetos de desejo e satisfazer seus impulsos.
Com esse argumento, ele comprova sua hipótese de que os prazeres
verdadeiros nascem da alma, uma vez que a memória está entre os seus domínios, e
não do corpo, cujos desejos defendidos pelos hedonistas são resultados de
percepções enganosas. Os impulsos, verdadeiros ou falsos, conduzem sempre à
busca pelo contrário para se atingir a saciedade, e é pela memória que se
determinam todos os registros de cheio e de vazio, das sensações em si e de seus
opostos.
Finalmente, em Fédon, a memória está completamente inserida na análise
sobre o destino das almas, na existência da vida após a morte bem como da vida
antes do nascimento (justificada pela geração dos opostos) e no reconhecimento
definitivo da filosofia como a preparação do homem para o desligamento do corpo.
Esse desligamento, certamente, está como o ápice de uma caminhada do indivíduo
rumo ao conhecimento verdadeiro. A deterioração e falência do corpo é o abandono
sábio que a natureza oferece ao homem de tudo que lhe é precário e que lhe
permite construir uma visão igualmente precária do Universo.
Nesse processo, o homem que exercitou a ato de recordar estará melhor
preparado para a morte, pois está mais íntimo dos conteúdos verdadeiros. Em vida,
guiou-se na busca pelo real e pelo belo, e não pela satisfação dos sentidos, e através
32
dos desejos corretos elaborou as perguntas apropriadas a um sábio e desenvolveu o
raciocínio sobre o real, o que, em última instância, lhe transmuta gradativamente
de alma-em-corpo para idéia pura. Sob essa perspectiva, a passagem para a morte e
para o transcendente ideal não é dolorosa, pois o homem neste estado já está
naturalmente se encaminhando para o mundo dos mortos. Em Fédon, por tanto, é
possível observar mais definitivamente como a memória atua na trajetória de
ascensão às formas.
Não é exagerado afirmar que a metafísica platônica estabelece algumas
diretrizes que são definitivas para as futuras reflexões sobre a memória e suas
funções. A saber:
a) A divisão da memória em categorias conforme a natureza de seu funcionamento
(no caso, conservação de sensações para memória passiva, a que Platão de fato
denominava memória, e reminiscência para memória ativa).
b) A memória como faculdade em relação com as demais aptidões da alma.
c) A atividade mnemônica como processo fundamental dentro de uma teoria do
conhecimento.
São conclusões que fundam a primeira base filosófica para se pensar a arte
da memória como processo intrínseco à formação do sujeito, superando
definitivamente a herança da mnemotécnica como puro exercício de retórica. De
fato, o que exige revisão é o conceito de oratória que aplicamos. Para Platão, o
orador mnemônico é, em última instância o verdadeiro filósofo: relator do
conhecimento real adquirido pela recordação. A este, se opõe o orador sofista que,
pintando em cores grosseiras, utiliza as técnicas de memorização decorativamente
33
para adornar as formas do discurso ao invés de direcioná-las para a busca dos
conteúdos do saber verdadeiro.
A memória como operação de acesso ao conhecimento inato, proposta por
Platão, é um primeiro paradigma a partir do qual os demais filósofos terão
substrato para refletir sobre as relações entre o que se define por recordar e reter e
as demais atribuições da alma com o corpo nos séculos seguintes.
A distinção entre os dois tipos de memória continua em Aristóteles
16
, que,
seguindo a orientação do mestre, estudará a faculdade em relação com as demais
funções em sua teoria do pensamento. O tratado De Memória et Reminiscentia era,
originalmente, uma apêndice do De Anima, e, por tanto, é parte de seu estudo
sobre a formação do pensamento no corpo e na alma, em que a percepção aparece
como eixo de construção do conhecimento.
Como Platão já antecipara em sua teoria sobre a memória dos sentidos,
Aristóteles compreende que a formação da memória se dá por uma série de
impressões, marcas de um acontecimento delimitado e apreendido pelo aparato
sensorial que se registram na alma como um quadro. Tal quadro remete tanto ao
objeto (ou situação) que ele representa quando à imagem em si, e ainda, que não
sejam a mesma coisa (o acontecimento original e o seu símbolo mnemônico) são
ambos conteúdos da memória. Ou seja, a marca contém tanto a imagem de
representação quanto o objeto representado. Porém, para Aristóteles, quando a
imagem é a cópia e semelhança do objeto representado, ela é uma imagem que
produz conhecimento, um eikôn, não porque abre uma conexão com o absoluto
16
Sorabji in Aristotle on Memory utiliza os termos remembering e recollection para diferenciar a memória e a
recordação (reminiscência) na teoria de Aristóteles.
34
transcendental, mas porque promove o resgate de uma informação percebida. As
imagens percebidas pela experiência dos sentidos não significam o desvio no
aprendizado das formas, mas exatamente o contrário: são a verdadeira fonte de
saber.
Aristóteles compreende que esses processos de registro são de natureza
física tanto no caso das reminiscências quanto da conservação de sensações, e não
apenas operações da mente e da alma (como de resto pressupõe toda construção do
saber em sua teoria). As imagens são tentativas da alma de apreender o sensível, e
essa operação é imprescindível para a formação das idéias.
17
A construção da representação é uma etapa importante na teoria da
memória de Aristóteles, pois explica a importância da percepção no processo. As
imagens sensoriais, às quais ele chama de aisthêmata, não são as imagens da
memória. As aisthêmata são marcas impressas na alma, que produzem a posteriori
as imagens da memória. Essa passagem se dá pela ação da imaginação que plasma
e relaciona os conteúdos da percepção. As aisthêmatas não produzem
conhecimento por si, são imagens fixadas isoladamente pelos cinco sentidos, cada
um trabalhado de forma autônoma. É a imaginação que faz a mediação entre a
percepção e o conhecimento quando trabalha simbolicamente as aisthêmatas
preparando-as para as operações superiores do conhecimento. As imagens da
memória nem sempre se referem diretamente ao objeto percebido, mas podem se
referir à própria imagem percebida erroneamente (o que justificaria as imagens
irreconhecíveis ou sem sentido imediato, além dos sonhos).
17
Ao contrário de Platão, para quem o conhecimento poderia ser produzido mediante a organização dialética
das idéias, com pouca ou nenhuma participação das imagens, Aristóteles argumenta que um número muito
reduzido de idéias pode ser articulado sem a experiência sensível, por isso a necessidade de se criar imagens
como registro dessas experiências.
35
A memória retentiva é passiva e comum a outros animais, enquanto a
recordação é uma dedução, um silogismo possível, portanto, somente ao homem. É
uma dedução porque pressupõe a consciência de que o evento já foi vivenciado e
propõe uma espécie de busca (ativa, voluntária) da imagem de referência através de
associações. Ambas, são, para Aristóteles, criadas por movimentos da alma em
relação ao habitat: diferentes movimentos criam memórias de diferentes
naturezas. Estabelece-se, aqui, uma distinção que irá percorrer o estudo da
memória (e também, da imaginação) até a modernidade no que diz respeito à
clareza de representação das imagens. No pensamento aristotélico, o eikôn é a
imagem que produz conhecimento, aquela que imediatamente identificamos com o
material referenciado, enquanto as outras são como impressões confusas ou
parciais do percebido (phantasmas, as imagens em geral).
É surpreendente o salto que representa a teoria da memória de Aristóteles
quando redefine o status da percepção e da imaginação na cooperação das
faculdades para produção de conhecimento. Sua perspectiva sobre a importância
do aparato sensível e fabulador para a formação das idéias permitiu que
desenhasse (em seus termos e com a tecnologia de sua época) um modelo de
funcionamento anatômico que já pressupõe a existência de canais aferentes e
eferentes de percepção que se comunicam com um centro; e a criação como
operação que permite fundir ou dissolver os conteúdos da percepção e atribuir-lhes
(ou descobrir-lhes) novos sentidos:
“O De memoria et reminiscentia é um apêndice do De anima
que abre com uma citação dessa obra: ‘como foi dito
anteriormente em meu tratado De anima sobre a imaginação,
não é possível nem mesmo pensar sem uma imagem mental.’ A
memória, ele continua, pertence à mesma parte da alma que a
36
imaginação, é uma coleção de imagens mentais oriundas das
impressões dos sentidos mas com um elemento adicional, que as
imagens mentais da memória não vêm de uma percepção das
coisas do presente, mas do passado. A memória, nesses termos,
como impressão dos sentidos, não é peculiar apenas ao homem
os animais também a possuem. Todavia, a faculdade intelectual
se manifesta pelo trabalho da memória sobre as imagens
armazenadas da percepção dos sentidos.”
18
A qualidade do armazenamento das imagens, curiosamente, é relacionada
por Aristóteles ao temperamento e à idade do indivíduo. A melhor idade da
memória seria nem muito jovem nem muito velho, já que, em ambos extremos da
vida do homem, sua fisiologia está disposta em condições inadequadas para a
fixação das impressões:
“...o muito jovem e o muito velho têm memórias pobres, pois
estão em estado de fluxo, o jovem por causa de seu crescimento,
o velho por causa de sua decadência. Por motivo semelhante,
nem o muito rápido nem o muito lento parecem ter boa
memória, o primeiro, por que é mais úmido do que deveria ser e
o último, mais duro; no primeiro, a imagem não permanece, no
segundo, não se imprime.”
19
Notemos que também aqui estão intuídos conceitos desenvolvidos muito
recentemente sobre fluxo de informações e níveis de armazenamento das imagens,
e sobre a formação da memória como um processo que depende das condições
totais dos corpos e suas particularidades.
No campo da mnemotécnica, Aristóteles cita em seu tratado da memória
como mais eficiente o place-system (place = lugar, topoi). O place-system adapta a
arte da memória como já estruturada no modelo de Simônides para o contexto
específico de uma rua. Associa m-se as informações como se estivessem em uma
rua cheia de casas diferentes. Primeiro, é preciso visualizar com clareza e sem risco
18
The Art of Memory, p. 33.
19
Op. cit., p. 33.
37
de alteração cada uma das casas. Depois, colocam-se palavras-chave ou trechos de
um discurso em cada uma das casas conforme a ordem em que se criou o percurso
pela rua. Então, conectam-se a imagem dos locais às palavras ou trechos, e, à
medida que o orador imagina percorrer os locais, aparecem na memória os trechos
do discurso que estão relacionados a cada casa.
Em linhas gerais, podemos observar que pelo menos três pressupostos
fundamentais para o estudo da memória criadora nos foram herdados dos
pensamentos platônico e aristotélico. São eles:
1) A distinção entre memória retentiva e reminiscência (recordação).
2) O contraste entre o caráter passivo e natural da memória retentiva e o
caráter voluntário e ativo da recordação, que a aproxima do silogismo
apodíctico.
3) As bases físicas da memória como movimento na alma.
4) O corpo como agente condicionante da formação das imagens
5) A cooperação entre as faculdades na produção do conhecimento intelectual.
Esses princípios chegam através de registros esparsos e fragmentados nas
transfusões para o pensamento subseqüente. A abordagem filosófica da arte da
memória é assimilada pelos estudos da oratória latina com ênfase nos princípios
instrumentais da mnemotécnica, especialmente no sistema dos toppoi de
Simônides e no place-system de Aristóteles, mas sem negligenciar a natureza
criadora intrínseca a tais métodos, como observamos nos três principais tratados
sobre o assunto do período: o Ad Herennium, o De oratore e o Institutio oratoria.
38
O Ad Herennium é o único documento sobre a arte da memória
inteiramente completo que sobreviveu da antigüidade grega e latina. Foi escrito por
um professor de retórica, cujo nome não se descobriu
20
, entre 86 e 82 a.c., e
possivelmente se endereçasse aos seus alunos da disciplina, dada a disposição dos
conteúdos e a concisão da linguagem utilizada. O autor analisa as cinco partes da
retórica (inventio, dispositio, elocutio, memoria, pronunciatio) e define a memória
como atributo fundamental do bom orador, cujo trecho referente ele inicia
distinguindo a memória natural da artificial.
A memória natural é aquela que foi colocada na alma no nascimento, junto
com o pensamento e as demais faculdades. A memória artificial é aquela que é
fortalecida pelo treinamento. Ou seja, toda memória artificial não é outra senão a
memória natural de cada indivíduo potencializada pelos exercícios mnemônicos, de
onde se conclui que todo homem, por mais jovem, velho ou inábil que seja, pode
melhorar sua memória pela aplicação da mnemotécnica.
No Ad Herennium, a arte da memória está claramente apresentada como
escrita interior (do poeta ou do aluno que utilizar o sistema) articulada pela
formação e navegação entre os simulacros. Sua construção é minuciosamente
detalhada, com atenção especial para a qualidade de visualização dos loci (toppoi),
os locais criados artificialmente pela imaginação em que os conhecimentos se
alojarão, que representam, em última instância, os significantes imaginários do
proto-semiólogo antigo.
20
Uma corrente de pesquisadores credita ao próprio Simônides ou a algum de seus alunos romanos a autoria
do Ad Herennium, tamanha a semelhança entre sua arte da memória e esta apresentada no tratado.
39
Os loci não devem ser muito parecidos e nem colocados muito próximos uns
dos outros no diagrama das imagens para evitar confusões na hora da associação.
Assim como nas descrições gregas, o autor se utiliza da metáfora dos tabletes de
cera para conotar os loci, cujo registro na mente deve ser mais forte do que os
conteúdos que lhes ocupam. Um loci criado adequadamente permanece na
memória mesmo quando esgotada sua utilidade imediata, e pode ser re-utilizado
para armazenar outras informações quando necessário.
Cada local deve funcionar como unidade autônoma dentro do movimento
dos discursos, permitindo que o criador se mova de um loci para outro em ordens
diferentes conforme a natureza associativa do que se deseja evocar. Quanto mais
materiais se queira lembrar, mais loci precisam ser formados, e o autor sugere que
a cada cinco unidades se estabeleça uma marca que oriente a localização (algum
símbolo para cinco marcado no quinto loci, outra imagem referente a dez no
décimo, e assim sucessivamente). Notemos que esse sistema, embora trabalhe com
a ordem linear da progressão numérica, prevê o deslocamento da mente em
diversos sentidos pelo desenho dos locais, o que sugere não tanto uma seqüência,
mas um mapa horizontal de possibilidades de conexão entre os nichos.
A princípio, os critérios de associação entre as imagens dos loci e seus
conteúdos parecem seguir as indicações anteriores, que buscam as analogias mais
fáceis e imediatas. Para os loci, imagens de locais reais: salas, prédios, esquinas,
construções, etc. Porém, na medida em que se atribuem qualidades aos locais,
abrem-se maiores possibilidades de ligação com os conteúdos, ou seja, os
conteúdos podem exatamente qualificar os loci, e facilitar sua associação, é o que
nos diz o autor do Ad Herennium.
40
De um modo geral, eles não devem ser muito grandes para não ocupar
espaço demais na mente e desequilibrar o mapa; nem pequenos demais para não
criar um excesso de micro-unidades de difícil visualização.
A descrição dos loci vai ainda mais longe, e define que eles não devem ser
nem muito brilhantes, para não ofuscarem as imagens neles contidas, nem muito
escuros para não ocultá-las. É mais útil que seus intervalos sejam de distância
moderada, pois: “assim como o olho externo, o olho da mente é menos poderoso
quando você se move para um objeto cuja vista está muito perto ou muito
longe.”
21
Ao final da descrição sobre a construção dos loci, o autor nos surpreende
com um apontamento a mais em relação ao método grego tradicional. Caso não se
consiga visualiza lugares conhecidos para o loci, pode-se criar lugares fictícios,
contanto que eles sejam potentes para fixação na mente.
Se compreendermos a mnemotécnica do Ad Herennium como uma teoria da
articulação das idéias e da formação do pensamento via construção da linguagem,
notamos que a possibilidade de criação de loci fictícios abre caminho para uma
multiplicidade de associações que supera os critérios de velocidade e denotação
demandados pela oratória, e pressiona novamente o estudo da memória como arte
para além da mnemotécnica retórica. Notaremos, mais adiante, no pensamento de
Cícero, os desdobramentos de tal questão.
O estudo da memória no tratado contém alguns indicadores peculiares da
formação do homem antigo, que se revelam na maneira curiosa como o método foi
estruturado. É difícil para o homem contemporâneo imaginar a prática de um
sistema que exige o trabalho tão exaustivo sobre a visualização dos elementos.
21
Op. cit., p. 8.
41
Chama a atenção o enorme valor que a visão tinha no período, que, no sistema, se
manifesta pela definição extremamente rigorosa das qualidades dos loci.
Sob esse aspecto, o autor estabelece, ainda, claramente, a diferença entre a
memória para as coisas e a memória para as palavras. A memória das coisas se
utiliza mais livremente das associações conforme foram apresentadas até aqui, pois
as coisas são exatamente os assuntos/conteúdos do discurso. A memória das
palavras prevê a visualização de um loci para cada palavra, e o movimento mais
dinâmico entre eles, além da possibilidade de se estabelecer a associação com o loci
pelas referências sonoras. Outro recurso seria construir os loci seguindo o modelo
da taquigrafia, como uma unidade para cada símbolo, prática que o autor
desaprova. De fato, ele não reconhece a mesma aplicabilidade nem valor nas duas
memórias, pois a segunda é consideravelmente mais trabalhosa e especializada,
ainda mais se imaginarmos o tamanho dos discursos do período. A memória das
coisas é mais útil, e por ela a outra pode também ser aprimorada sem a necessidade
de treinamento tão específico. Na antigüidade latina, a primeira foi denominada de
memoria rerum, e a última, de memoria verborum.
O Ad Herennium é o mais importante documento sobre a arte da memória
que nos chegou dos antigos. Toda ciência e filosofia subseqüente irão basear-se em
seus apontamentos sobre a cartografia da memória, memorização de coisas e
palavras e associação para daí avançar. Grande parte de sua importância, como já
vimos, reside no rigor com que o autor conduz sua análise, que extravasa a
problemática específica da mnemotécnica para investigar a formação das imagens
da mente, questão que envolve e estimula uma reflexão mais ampla sobre as
complexidades na formação do pensamento. Mas não só: nesse tratado, pela
42
primeira vez se esclarecem, no pensamento antigo, as demandas criativas do
sistema dos locais.
O espírito se movimenta pelos loci não apenas para memorizar trechos de
um discurso, mas para conectar blocos de conhecimento dos quais ele precisa
dispor, e para isso, desenvolve critérios particulares de associação. Alguns
obedecem aos cânones do imaginário coletivo, mas o método não restringe a
navegação a associações de tal natureza. Pelo contrário, o autor indica que até
mesmo locais fictícios podem ser criados, contanto que imprimam com potência o
loci na mente. Portanto, não é exagerado afirmar que a viagem da alma pelos
“locais da memória” não é um processo meramente associativo, mas criativo. Ou
melhor, a associação é, em si, um processo de criação de sentidos.
Notemos como o autor avança nessa abordagem quando trata das
qualidades inatas do memorável e desenvolve uma linha de argumentação que não
está na arte da memória tradicional grega, reforçando a hipótese da composição
criativa dos loci e de suas imagens residentes:
“Agora, a natureza mesmo nos ensina o que fazer. Se vemos no
nosso dia-a-dia coisas que são insignificantes, comuns e banais,
nós geralmente não conseguimos nos lembrar delas, por que a
mente não foi comovida por algo novo e interessante. Mas, se
vemos algo inferior, desonroso, não -usual, grande, inacreditável
ou ridículo, nós nos lembraremos facilmente por muito tempo.
Da mesma forma, esquecemos das coisas que estão
imediatamente diante de nosso olhos, enquanto lembramos
melhor de incidentes da nossa infância. Isso não se dá por outro
motivo senão que as coisas comuns escorregam facilmente da
memória, enquanto aquelas mais impactantes e novas
permanecem mais tempo na mente. [...] Se selecionamos
imagens que não são muito vagas e comuns, mas ativas
(imagine agentes), se atribuímos a elas uma beleza excepcional
ou uma feiúra singular [...] ou atribuímos certos efeitos cômicos
a suas imagens, por isso, também, lembraremos delas mais
prontamente.
22
22
Ad Herennium in op. cit., p. 10. Grifos meus.
43
As imagine agentes são exatamente as imagens trabalhadas pela
imaginação
23
(figments) para adquirirem características mais fortes, e assim se
imprimirem com mais eficiência na memória. Estas são as imagens potentes para a
memorização, e não quaisquer imagens recolhidas da percepção cotidiana. Não são
imagens comuns apreendidas da natureza pelos sentidos, são imagens
transfiguradas pela criação.
O autor ressalta o caráter ativo de tal operação, que consiste exatamente na
criação de algo novo sobre uma imagem banal para diferenciá-la. Esse processo
demanda encontrar para tais imagens qualidades que as descolem da condição
cotidiana: deformá-las, transformá-las, colori-las, aumentá-las, diminuí-las, enfim,
“artificializá-las” criativamente pela atribuição de qualidades completamente
dissociadas ou pela dilatação ou redução daquelas já existentes. Chegamos ao
ponto em que, verdadeiramente, a memória se assume como arte.
Eis por onde o Ad Herennium acrescenta algo fundamental à mnemotécnica
grega que lhe serviu de base. O sistema dos locais da memória admite, ou mais,
exige a criação das imagine agente, e tal produção não resulta apenas da
associação na concepção clássica (denotativa), mas da criação sobre as imagens
cotidianas. Por isso é uma arte, e não uma mnemotécnica instrumental, ou, mesmo
quando serve de instrumento da oratória, tem, intrínseca à sua natureza
processual, a criação.
À mesma época do Ad Herennium, Cícero concebia seu De inventione. Nesse
tratado, ele não acrescenta muito às bases técnicas da arte da memória, mas
estabelece conexões entre memória artificial e virtude que influenciarão
23
Lembremos que desde Aristóteles a imaginação e a memória pertencem à mesma parte da alma.
44
profundamente a filosofia da memória no período seguinte. Ao final do De
inventione (que se refere exclusivamente ao estudo da primeira parte da retórica,
inventio), Cícero define as quatro partes da virtude: a prudência, a justiça, a
fortaleza e a temperança, cada uma se subdividindo em outras virtudes derivadas e
contíguas. A memória aparece como uma das forças virtuosas subjacentes à
prudência:
“Prudência é o conhecimento do que é bom, do que é ruim, e do
que não é nem bom nem ruim. Suas partes são: a memória, a
inteligência e a providência (memória, intelligentia,
providentia). Memória é a faculdade pela qual a mente recorda o
que aconteceu. Inteligência é a faculdade pela qual verificamos o
que existe. Providência é a faculdade pela qual prevemos que
alguma coisa vai acontecer antes que ela ocorra.”
24
Trinta aos mais tarde, quando escreve o De oratore, os princípios da
mnemotécnica do Ad Herennium já estão amplamente difundidos e formam a base
do ensino nas escolas de oratória latinas. Evidentemente, eles já foram assimilados
pelo maior orador do período que, na sua obra mais significativa para o estudo da
ars memorativa, retoma rapidamente a análise das imagine agentes conforme já
apresentada no Ad Herennium e utiliza uma nova terminologia para definir o jogo
das impressões: a máscara. O Ad Herennium está como o principal sistema criativo
de formação de imagens da época, que transforma as apresentações dos oradores e
em verdadeiros acontecimentos artísticos, dada a riqueza de sua expressão.
Como orador, está claro que, dentro do estudo da mnemônica, interessava a
Cícero, particularmente, também a memória das palavras e os procedimentos
específicos para seu aprimoramento. Não há divergência sobre os princípios
24
Op. cit., p. 20.
45
apresentados no tratado anterior e sobre a função da arte da memória nos estudos
da oratória, e Cícero vai ao encontro do autor do Ad Herennium quando logo
reconhece que a memória das coisas trabalha a mente de maneira mais abrangente,
e que a memória das palavras exige uma multiplicidade exaustiva de combinações e
de associações com os loci às vezes conflitantes. Em De oratore, Cícero,
permanecendo fiel ao sistema dos locais do Ad Herennium, posiciona a arte da
memória criadora do sistema dos locais como um dos atributos essenciais da ars
oratoria no quadro geral da cultura latina emergente, inaugurando uma fusão de
campos que irá marcar toda tradição de estudo da memória até o fim do medievo.
Para caracterizar as representações que se articulam na composição dos
lugares e na ocupação das imagens, ele apresenta o termo máscaras: “... a
memória das coisas é uma propriedade especial do orador e nós podemos
imprimi-las nas nossas mentes por um arranjo habilidoso de diversas máscaras
(singulis personis) que as representam, assim que podemos compreender as
idéias pelos sentidos das imagens e a sua ordem pelos sentidos dos locais.”
25
A noção de máscara é a princípio muito interessante, e poderia indicar uma
revisão da teoria que contemplasse mais profundamente os processos afetivos na
dinâmica de associação dos loci. Mas essa abordagem não é assumida nem
desenvolvida pelo autor, apenas sugerida pelo uso de uma nova expressão.
Um século após a apresentação do De oratore, é produzido o terceiro cânone
da arte da memória da antigüidade, o Institutio oratoria, de autoria do então
principal professor de retórica do Império Romano no século I a.c.: Quintiliano. Na
obra, Quintiliano revisa o De oratore ciceroneano para apresentar uma crítica, ora
25
Op. cit. p. 18.
46
concessiva, ora feroz , da memória artificial, e indica que os princípios de sua arte
da memória já tinham oponentes entre os pedagogos e filósofos da época. Contra a
divisão da oratória em cinco partes definida por Cícero, Quintiliano propunha uma
divisão em três partes, em que memoria e actio (ação) seriam atributos dados pela
natureza, não pela arte.
No Institutio oratoria, a análise que Quintiliano desenvolve sobre a
construção dos loci deixa de lado a abordagem imaginativa e criativa do Ad
Herennium e do De oratore para buscar na própria percepção os critérios de
associação. Para nosso estudo, revela uma corrente conservadora dentre os
estudiosos da mnemônica no que diz respeito à natureza criadora de tal função,
assumida e desenvolvida no Ad Herennium.
Para ele, o sistema dos locais da memória funciona não por que precisemos
atribuir sentidos imaginários para cada loci fictício, forçando relações entre os
sentidos dos trechos do discurso ou das palavras e as imagens dos locais
construídos. Ele é útil simplesmente porque quando vamos a um lugar qualquer e
depois o visitamos novamente, naturalmente vem à mente não apenas a aparência
do local e seus detalhes como também as emoções que experimentamos em cada
passagem pelo lugar:
“O sucesso de Simônides parece fazer emergir a observação de
que é de ajuda para a memória se locais forem marcados na
mente, fato que qualquer um pode comprovar da experiência.
Quando voltamos a um local depois de uma considerável
ausência, nós não apenas reconhecemos o próprio lugar, mas
lembramos de coisas que fizemos ali, pessoas que encontramos lá
e até mesmo pensamentos que passaram pela nossa cabeça
quando estivemos lá antes. Assim, como na maioria dos casos, a
arte se origina da experiência.”
26
26
Intitutio oratoria in Op. cit., p. 22.
47
Eis a faculdade que, para o orador de Roma, opera efetivamente sobre a
memória: a percepção. A associação entre os locais e os conteúdos a serem
memorizados deve se dar da maneira mais natural possível, conforme acontece
imediatamente na vida quando estamos em algum lugar. Para ilustrar a
abordagem, ele cita o exemplo da arma e da âncora como locais para guardar parte
de um poema ou discurso que trate da guerra e da navegação.
Sobre a disposição das imagens, Quintiliano parece preferir o método
arquitetônico de Aristóteles ao sistema cartográfico e alegórico do Ad Herennium,
e sugere a formação de um edifício como melhor disposição dos loci. Esse edifício
pode ser enriquecido com salas, corredores, quadros, estátuas e demais objetos que
funcionem como modelos imagéticos para representações diversas, e assim
multiplicar e facilitar as associações. A precisão na visualização dos locais também
e retificada pelo autor, pois a maior definição das imagens na mente as re-
aproxima da experiência da qual se originaram, e torna o processo mais eficiente.
Nesse sentido, a arte da memória de Quintiliano difere diametralmente
daquela de Cícero e do Ad Herennium em um aspecto pedagógico de grande
importância: o tratamento das imagens memoráveis. Se para os primeiros, as
imagens que se fixam na memória são exatamente as imagines agentes, a figura
dilatada, deformada, trabalhada pela imaginação para se distinguir das imagens
cotidianas, a mnemônica de Quintiliano atesta precisamente o oposto: as imagens
da percepção são mais rapidamente identificáveis e memoráveis, ainda que se
possa utilizar das imagens criativas em alguns casos específicos.
O processo de associação de conteúdos de vivência e locais já acontece na
experiência diária, e uma arte da memória que se pretenda eficiente deve
48
estabelecer seus princípios cnicos a partir dessa dinâmica natural. A natureza já
ofereceu o modelo por onde o processo mnemônico se realiza, e não é necessário
que se criem procedimentos artificiais fantasiosos para acelerá-lo, a menos que
partam do trabalho sobre a memória na forma como ela opera naturalmente na
experiência, é o que nos afirma o autor em sua perspectiva racionalista.
Eis porque sua crítica mais feroz recai sobre o uso da mnemotécnica para
fixação de palavras. A memória artificial para coisas pode até ser uma ferramenta
para decorar a disposição espacial dos objetos em todo tipo de atividade da vida
útil, e para tanto ele dá o exemplo dos leiloeiros que depois de encerrados os lances
precisam conferir quais materiais venderam e para quem. Mas para as palavras, a
associação com imagens mostra-se um recurso limitado.
Os argumentos de Quintiliano são consistentes quando levantam a
problemática do fluxo das idéias. Não parece tão trabalhoso estabelecer um loci
para cada palavra, mas quando temos trechos de palavras associados em um
discurso que tem sentido específico, como criar locais para cada uma delas, sendo
que algumas sequer sugerem representação visual possível, como as conjunções?
Lembremos que nosso autor não privilegia a imaginação, e restringe as imagens
aos conteúdos da percepção, ou seja, às imagens mais idênticas àquelas da
natureza, diminuindo consideravelmente as possibilidades de representação:
Como podemos esperar que nossas palavras encontrem o fluxo de conexão do
discurso se temos que olhar para trás em formas separadas para cada palavra
individualmente?”
27
27
Op. cit., p. 24.
49
Como alternativa, o orador sugere um sistema mais simples e racional para
memorização das palavras. Ele toma a técnica dos tabletes de cera como
ferramenta principal para criar uma arte da memória mais próxima do que
atualmente chamamos “decorar”
28
. Os discursos são marcados mais fortemente
com alguma imagem associada do pensamento nas passagens de difícil
memorização, mas a maior parte da obra deve ser lembrada “de coração”, ou seja,
decorada após intensa leitura e repetição.
É possível utilizar um loci para essas passagens, mas é mais eficiente
associar aos loci o próprio trecho do discurso como foi concebido, partindo da
visualização do texto, das linhas das palavras, e não da criação de uma série de
referências que criam uma cadeia muito extensa de associações. Mais produtivo
ainda, e nisso consiste efetivamente o método do orador romano, é memorizar o
próprio texto diretamente na mente, suas páginas, sua escrita, da maneira como a
experiência o definiu, pontuando-se com imagens exteriores apenas os momentos
mais fugidios. Em última instância, o bom orador é aquele que apreende o texto
instintivamente, pelo coração e alma: as vias da natureza, e não depende de
“truques” para realizar seu trabalho.
O método de Quintiliano é o contraponto racionalista ao sistema
imaginativo anterior da arte da memória. Se a tradição grega exige a separação
entre as imagens da percepção e as imagens da memória para explicar como o
conhecimento sensível se transforma para efetuar as operações da mente, o
pensamento de Quintiliano parte da representação da natureza sintetizada pelas
28
O duplo sentido da expressão como chegou até nós reforça exatamente a natureza extrínseca, pouco criativa
e “decorativa” que a arte da memória adquire quando trabalhada nesses termos.
50
imagens da percepção para encontrar os mecanismo mais imediatos de construção
de sentidos na associação necessária para se re-evocar os conteúdos. A abstração
criativa das imagines agentes lugar à impressão direta e mimética dos
materiais: as páginas do texto, suas linhas, as particularidades da escrita, etc. Aqui,
a linguagem das pinturas mentais e do depoimento de imagens, necessário para o
sucesso da aplicação do sistema na mente, adquire tons mais realistas e miméticos.
Estes são as chamadas três fontes originais da arte da memória que
ultrapassam a antigüidade e formam o cânone do estudo da mnemônica como
chega à Idade Média. Se em certos momentos tratamos da mnemônica como arte
da memória, termo que, já esclarecemos, é realmente mais apropriado, e em outros
resgatamos a noção mais simplista a que remete a expressão mnemotécnica é
porque desde a metafísica platônica até a apropriação de tal arte pela oratória
latina, seu âmbito ontológico se diluiu; e, com Quintiliano, o peso da
instrumentalização impõe-lhe novas fronteiras e atribuições, mais adequadas à arte
oratória emergente.
A passagem para o pensamento medieval marca um novo tratamento da
memória na formação do espírito, agora atrelado profundamente às questões da
moralidade do indivíduo conforme os ditames do Cristianismo. Lembremos que
desde o De inventione, a memória está como um ramo da Prudência, que pela
doutrina cristã medieval emergente deixa de ser uma parte da virtude para se
elevar como uma das quatro virtudes cardeais (as outras partes também ganham
tratamento de virtudes autônomas, e não mais um “pedaço” da uma virtude maior
abstrata). Esse detalhe é importante se compreendermos que nele se revela o
crescente movimento de construção dos dogmas do pensamento medieval, pelos
51
quais, mais tarde, seriam possíveis julgar todos os comportamento do período, a
devoção, a heresia, os crimes, etc.
O principal relato sobre esse período intermediário está nas Confissões de
Santo Agostinho, em que o autor narra sua trajetória de conversão. Nele, se
misturam as imagens dos sentidos e as imagines agentes mantendo-se a premissa
da distorção como base para estabelecer o memorável: “Eu ando pelos campos e
palácios espaçosos da memória, onde estão os tesouros de inumeráveis imagens,
trazidas de todo tipo de coisas percebidas pelos sentidos. Elas estão marcadas,
além do que pensamos, tanto ao aumentarmos quanto ao diminuirmos, ou
variando em qualquer outra maneira que tenham aparecido a nossos sentidos
[...].
29
O cristianismo agostiniano é de forte influência platônica, o que determina
uma localização particular para a memória na doutrina das virtudes. Quando trata
a faculdade como manifestação de inteligência divina, ele vê nas imagens
memoráveis a fonte do saber verdadeiro, porém não ligado a uma existência
anterior do indivíduo, conforme a teoria Platônica, o que seria inconcebível para o
pensamento cristão, mas como a expressão mesma do Uno que permanece em
todos os homens enquanto sua criação. Em outras palavras, a memória é o
conhecimento inato que parte de Deus e descende aos homens no instante de seu
nascimento para que por ela possam desenvolver as virtudes do espírito. Tamanho
é seu papel no encaminhamento correto da atividade espiritual, que ele a situa
como um dos três poderes da alma, cujos outros dois são o entendimento e a
vontade, e que juntos são a imagem da santíssima trindade no homem.
29
Confissões, X, 8 in op. cit., p. 46
52
Essa abordagem tem como desdobramento natural uma utilização da
memória como caminho para se encontrar a Deus, ou seja, o divino enquanto
entidade e estatuto moral e transcendente é o conteúdo absoluto a que todas as
imagens da memória devem denotar. Eis de onde vem a onipresente representação
dos vícios e virtudes pelas artes plásticas do período. O homem medieval será
forçado a buscar incessantemente representações para as qualidades ou desvios
morais de sua época, pois a salvação do espírito mediante uma memória virtuosa
tornava-se questão de vida ou morte.
Santo Agostinho morre no auge das invasões bárbaras que marcaram a
derrocada do Império Romano. A apropriação da arte da memória pela doutrina
cristã que marca sua obra ocorre simultaneamente à intensa divulgação do Ad
Herennium por todos os principais círculos de oradores cristãos e pagãos do já
esfacelado império. A arte da memória sobrevive à hecatombe cultural em grande
parte dado à preservação do antigo sistema educacional das sete artes liberais
(retórica, gramática, dialética, aritmética, geometria, música e astronomia), que
chega ao medievo como o paradigma institucional de educação do cidadão.
Entretanto, as origens de cada tratado específico, e mesmo seus conteúdos,
acabam por confundir-se ao longo dos anos pela intensa e indiscriminada
disseminação que marca as transfusões culturais do período. A tal ponto que o mais
importante documento da retórica medieval é uma suposta Primeira e Segunda
Retórica (ou Velha e Nova Retórica), de autoria de Túlio que, mais tarde, se
descobriria tratar-se respectivamente do De inventione e do Ad Herennium. Tal
fonte será a principal base de informações para toda reflexão sobre o assunto na
escolástica, paralelo ao obscurecimento do modelo de Quintiliano.
53
De toda forma, essa virada moralizante marca uma nova etapa no estudo da
arte da memória, a que a pesquisadora Frances Yates classifica como a
transformação medieval da arte clássica. O tratamento da memória direciona-se
para as questões da salvação e da danação da alma, e põe-se a serviço de encontrar
as imagens que ilustrem os mistérios da fé e da heresia. Ou seja, migra
gradativamente da retórica para a ética. No âmbito das técnicas, o sistema dos
locais perdia popularidade para a memorização pela repetição da escrita, que
alimentava uma abordagem mística da fixação dos conteúdos, (ao gosto de
Quintiliano e sua memorização ‘de coração’, paradoxalmente) e acentuava a noção
agostiniana de memória como manifestação do criador. O pensamento medieval
nasce dessa tensão entre uma idéia de memória como inspiração divina (e,
portanto, natural, impossível de ser tocada pelos artifícios das mnemotécnicas) e o
legado pedagógico fantasioso do Ad Herennium, agora apresentado como Segunda
Retórica de Túlio.
Será entre os dominicanos que a escolástica produzirá os filósofos mais
expressivos sobre a arte da memória. Seu pensamento irrompe de uma intensa
retomada da teoria antiga como resposta à corrente revisionista mais dura que
dissociava a memória da Prudência para relacioná-la aos atributos inferiores da
alma. Assim, boa parte dos estudos dominicanos consistirá em encontrar as
explicações metafísicas que justifiquem a natureza da memória como parte da
Prudência, e num sentido mais amplo, ainda como mecanismo para o exercício das
virtudes.
Alberto Magno e Tomás de Aquino são os nomes mais significativos nesse
sentido. Alberto Magnos produziu seu tratado De bono especificamente para o
54
estudo das quatro virtudes cardeais. No capítulo sobre a Prudência, ele responde
aos principais argumentos que atestam o não-pertencimento da memória a tal
virtude, os quais são:
1) A memória pertence à esfera sensitiva do espírito, enquanto a Prudência
pertence à parte racional.
2) A memória como lembrança de impressões passadas não é um hábito, e a
Prudência é um hábito.
O autor recorre a Aristóteles para encontrar suas justificativas: conforme o
filósofo, a reminiscência é a parte racional da memória, e é esta que pertence à
virtude, da mesma forma como pode se tornar um hábito, pois permite recordar
experiências do passado e sugerir atitudes prudentes para o presente e uma visão
prudente para o futuro. A memória como reminiscência gera aprendizado, e,
portanto, é parte do cultivo da Prudência, e sua técnica deve ser estimulada.
Estabelecendo uma ponte curiosa de Aristóteles com o Ad Herennium, vai mais
além e sugere que a reminiscência é a própria memória artificial, diferentemente da
memória comum, domínio da parte sensitiva da alma.
Essa distinção é marcante na teoria da memória de Magno, que contrasta
com a orientação hegemônica sobre os lugares da memória do período. A poesia e a
fantasia foram delegadas aos graus mais baixos da atividade humana pelo rigor
racionalista e pelo puritanismo da escolástica, de onde se conclui a ousadia do
autor ao sugerir as imagines agentes como as imagens do conhecimento na
memória. Os sistemas mais aceitos eram aqueles que se utilizavam de imagens
55
mais próximas do real para a construção dos loci, o que, de fato, Magno parece a
princípio também concordar.
Mas, quando funde as imagens artificiais conforme o modelo da Segunda
Retórica (o Ad Herennium) com as imagens de conhecimento da reminiscência
aristotélica, cria um paradoxo de difícil aceitação para a tradição filosófica de seu
tempo, pois admite que ainda que as imagens que denotam ao real sensível
(propria) representem melhor seu objeto, as metáforas (metaforica)
movimentam a alma de maneira a auxiliar melhor a memória.”
30
Assim, as
metaforicas, outrora imagines agentes, os produtos específicos da memória
criadora, são os elementos naturalmente mais adequados para se chegar às
proprias.
Para sustentar sua hipótese, Magno não poderia recorrer a outro senão a
Aristóteles pra explicar como as impressões são transformadas de sensu communi
até se tornarem memoria em diversos níveis de desmaterialização. Os fatos passam
pelas sucessivas faculdades pertencentes à parte sensitiva da alma até atingirem o
intelecto, sem perder totalmente suas qualidades corporais, mas alterando sua
imagem, até restarem como reminiscência no espírito. Eis por onde se justificam ao
mesmo tempo a existência virtuosa das imagine agentes/metaforica e a
necessidade igualmente virtuosa de uma arte da memória a serviço da Prudência.
O tratado de Alberto Magno busca compreender o funcionamento da
memória preservando os conhecimentos que chegaram dos antigos em uma época
em que todo estudo estava fortemente cerceado e coagido pelo patrulhamento
moral do Estado Clerical. Sua devoção a Aristóteles e a seu conhecimento baseado
30
Op. cit., p. 65.
56
na observação da natureza protege, mesmo sem essa intenção, a arte da memória
da perseguição ideológica e cultural que rondava todo atributo relacionado ao
corpo, de onde a associação com a Prudência surge mesmo como um escudo contra
seu banimento para o âmbito dos vícios do corpo. A defesa da fantasia não era
pouco em uma época em que as únicas representações legítimas denotavam ao Céu
e ao Inferno, e deveriam ilustrar/alertar sobre os destinos do homem que se dirige
por um caminho ou por outro.
A memória não sobreviveria enquanto arte se não se adequasse às exigências
da doutrinação cristã. A busca por representações no medievo tratava
fundamentalmente de encontrar imagens para os vícios e virtudes e para as figuras
da Bíblia que se imprimissem de tal forma nos espíritos a ponto de não deixar
nenhuma dúvida sobre os terrores da danação para os pecadores e da glória para os
fiéis. De onde Magno traz o conceito de intentione para a memória, ou seja, cada
imagem memorável carrega não apenas a representação do objeto, mas as emoções
e sensações afetivas que objeto é capaz de gerar. Cada imagem é parte de um
vocabulário sutil para catequização e doutrinação pela memorização dos dogmas e
das punições que advém de seu desrespeito.
O outro grande tratado medieval que relaciona a memória à Prudência é o
Summa Theologiae , de São Tomás de Aquino. Como Alberto Magno, ele também se
ampara na teoria aristotélica para explicar a participação da memória na Prudência
(estabelecida há tantos séculos por Cícero), cuja defesa é, em última instância, uma
resistência do conhecimento frente à máquina teológica através da apropriação
moderada de certos conceitos. Entender a memória pela ótica do Cristianismo,
57
nesse contexto, permitiu com que ela continuasse existindo, de alguma forma,
como objeto de estudo dos escolásticos.
Não há atividade intelectual sem a formação das phantasmata. A imagem é
a representação corporal das coisas em si, é a percepção do individual. A partir da
percepção dos individuais é possível extrair o universal, e, assim, chegar ao
entendimento. Nesse processo, ao contrário do primeiro pensador, ele não procura
na reminiscência a justificativa para tal conexão.
Para Aquino, as imagens que melhor se fixam na memória são exatamente
as mais brutas e próximas da percepção sensível. Os critérios de associação e sua
eficiência dizem respeito aos graus de ordem e não de fantasia da memória, numa
abordagem mais racionalista do que aquela de seu colega dominicano. A memória
é arte da Prudência não porque é reminiscência e, portanto, parte da racionalidade
humana. Ao contrário, Aquino afirma que a memória pertence à parte sensitiva da
alma, mas a Prudência, quando se utiliza da análise dos individuais para extrair o
universal, contém em si muito da parte sensitiva da alma, e a memória é uma
dessas partes. Da mesma forma, a Prudência, também tem inicialmente uma
dimensão natural que pode ser dilatada pelo exercício da virtude, assim como a
memória. Ambas podem ser ampliadas artificialmente. E, seu último argumento,
semelhante a Magno: se a Prudência se utiliza da experiência para prever e alterar
o futuro, da mesma forma procede a memória. Não há nada que contradiga a
memória como virtude.
Quanto ao tipo de imagem, Aquino apresenta um paradoxo curioso.
Seguindo toda tradição do Ad Herennium, ele admite que memorizamos mais
facilmente as imagens que não se assemelham diretamente ao real, e sim aquelas
58
que possuem alguma distorção. Mas, ao mesmo tempo, como já dissemos, importa
de Aristóteles a hipótese de que o espírito fixa melhor as imagens mais “brutas”, ou
seja, mais próximas do sensível, enquanto as imagens mais sutis e espirituais
escapam da alma. De onde ele sugere que se criem “similitudes corporais” para as
imagens a fim de aproximá-las do sensível. Esses locais assemelhados ao real
devem ser organizados com rigorosa disposição conforme os critérios de
distanciamento e disposição do place-system aristotélico, pois de tal ordem
depende a qualidade de associação.
Vemos, então, que o sistema dos locais antigo sofre algumas alterações
bastante profundas pelo pensamento escolástico em seu esforço de moralização,
adquirindo um caráter eminentemente místico e de devoção apesar de recorrer
insistentemente a Aristóteles. A releitura da teoria aristotélica está de tal forma
contaminada pelas demandas ideológicas da doutrina cristã que se deve pensar
menos em termos de um verdadeiro embate filosófico do passado e presente sobre
a memória e mais na urgência em se encontrar argumentos que respondam às
possíveis heresias sobre o assunto. De toda forma, é como parte da Prudência,
lembrança do bem e do mal que fornece exemplos para o comportamento correto
baseado no cultivo das virtudes e no afastamento dos vícios pela fé, que a memória
é absorvida pela rigorosa ética do Cristianismo medieval.
A transformação medieval da arte clássica, a que Yates se referiu, representa
não somente um reposicionamento da memória quanto ao âmbito de estudo, mas
uma revisão também de sua utilização como arte (a serviço de que[m]). Se na
oratória antiga os recursos mnemotécnicos estavam a disposição do orador e do
poeta, na passagem para a Idade Média a voz que enuncia fala invariavelmente em
59
louvor ao Deus cristão e a seu estatuto moral. Portanto, a oratória se transmuta
basicamente na arte de memorizar sermões, e deve movimentar o espírito para
mais perto do criador. Eis porque ela só pode sobreviver como ramo da Prudência,
porque se for dissociada da virtude e se tornar uma faculdade amoral, poderá
facilmente servir aos vícios, e, portanto, sua existência e seu estudo serão
inaceitáveis.
A natureza das “coisas” que devem ser memorizadas pelos padres para seus
sermões diz respeito exatamente aos artigos da fé, com grande ênfase nos efeitos
que sofre aquele que não segue seus preceitos, bem como nas recompensas dadas
ao fiel. A herança de Tomás de Aquino nesse sentido é enorme. Sua premissa de
que tudo que é sutil e espiritual escapa mais facilmente à alma e de que os locais
das imagens necessitam muito mais de ordem do que de imaginação é elevada à
máxima, e torna a busca por similitudes corporais uma característica fundamental
da mnemotécnica dos sermões e da pregação do período.
Entretanto, essa procura por similitudes não resulta numa arte da memória
mimética, como poderia se supor, mas exatamente o oposto: acentua o caráter
subjetivo das imagens criadas, especialmente por que estas têm como função
ilustrar as virtudes, os vícios e suas conseqüências. Em seu livro, Yates sugere uma
conexão muito interessante e certamente pertinente, embora não tenha sido
sistematicamente estudada, entre essa orientação do filósofo-orador escolástico e a
enorme quantidade de representações humanas e semi-humanas para as virtudes e
vícios presentes na arte gótica. As imagens góticas são essencialmente alegóricas,
contém algo de humano, mas também de animal, distorcido, “enfeiado”, ou
excessivamente embelezado. Representam invariavelmente qualidades abstratas:
60
os vícios ou as virtudes, os santos ou imagens de sábios, o céu, o inferno, o
purgatório. São elas possíveis expressões artísticas das imagine agentes do Ad
Herennium, das metaforicas de Magno?
Objetivamente, o avanço da escolástica marca a disseminação da arte da
memória para além do âmbito das escolas, e, a partir do século XII, a
mnemotécnica revista por Tomás de Aquino é assumida como instrumento de
catequização, possível de ser experimentada por qualquer fiel em seu exercício da
fé. Paralelamente, toda arte do período está alicerçada na mesma forma de
representação das imagens utilizada pela arte da memória medieval, e torna
impossível não se pensar na evolução da estética e da arte da memória em
cooperação mesmo em um período que não privilegia tais associações. Pode a arte
da memória, repleta de símbolos de pulsões, explicar o gosto pelo grotesco do
homem medieval?
Yates cita as pinturas de Giotto e as descrições de Dante para o céu e o
inferno como possíveis expressões pictóricas das imagines agentes da memória, e
inúmeros outros quadros e afrescos como possíveis exemplos em que as figuras
representadas estão, na verdade, compondo diferentes mapas de loci. É uma idéia
instigante, que mereceria um estudo mais detalhado a respeito, e se comprovada,
oferece uma perspectiva verdadeiramente reveladora e inovadora sobre a arte do
período.
O advento da imprensa altera profundamente o desenvolvimento da arte da
memória. Exteriormente, pois se multiplicam e disseminam com muito mais
intensidade os tratados e todo tipo de reflexão a seu respeito. Internamente, e de
forma mais crucial, porque torna questionável a função da memorização diante da
61
reprodutibilidade mecânica. O primeiro tratado impresso sobre a memória é um
esquema bastante semelhante aos círculos do céu, inferno e purgatório de Dante
que apresenta uma série de esferas do universo em projeção transcendental como
sistema de memória dos vícios e virtudes. Chamava-se Oratoriae artis epitome, de
autoria de Jacobus Publicius, impresso em Veneza, em 1482.
O segundo texto impresso tornou seu criador muito mais famoso do que
Publicius. Phoenix, sive artificiosa memoria, de Pietro de Ravenna foi lançado em
1491, e tornou-se o mais popular escrito sobre mnemotécnica da época, em parte
graças à abordagem mais prática e didaticamente eficiente de seu autor.
Fortemente influenciado pelo Institutio oratoria de Quintiliano, Pietro de Ravenna
propunha um sistema de locais baseado na visualização real dos locais, e no
preenchimento dos conteúdos na medida em que o orador passa por estes. É
preciso realizar o processo por três ou quatro vezes, e depois, basta recordar o
passeio para que as imagens das coisas e dos discursos relacionados a cada loci
apareçam.
Porém, cabe aos dominicanos continuar na Renascença com a divulgação e
investigação sobre a arte da memória iniciada séculos atrás por seus colegas
Alberto Magno e Tomás de Aquino. Dois nomes marcam o estudo da arte da
memória no período, cujas obras respectivamente abrem e fecham o século XVI: o
alemão Johannes Romberch e o fiorentino Cosmas Rosselius.
Congestorium artificiose memoriae, de Romberch, foi publicado em 1520, e
se divide em quatro partes: a introdução, primeiro capítulo sobre os locais das
imagens (ficta loca), segundo capítulo sobre as imagens em si e a quarta parte
apresenta um esboço de seu sistema da memória. De fato, Roberch apresenta três
62
modelos de sistemas. O primeiro utiliza o cosmos como mapa de locais num
diagrama semelhante àquele de Publicius, em que cada ficta loca diz respeito a um
lugar (céu, purgatório, inferno, nove ordens de anjos, estrelas, etc.) e deve ser
ocupado por uma imagem referente a tal lugar.
O segundo modelo usa os símbolos do zodíaco como referência para uma
memorização mais rápida dos locais, já que as imagens que representam os signos
são amplamente conhecidas
31
. Para multiplicar os locais de tal sistema, ele sugere a
inclusão das constelações celestes como possíveis mapas, se, no entanto, explicar
como se associam os conteúdos a cada estrela.
E, por fim, o sistema mais comum, e muito parecido com aquele de
Quintiliano e de Pietro de Ravenna, que sugere a memorização de lugares reais
como residência dos conteúdos. Os objetos devem ser associados com cada parte da
locação ou das locações visitadas de forma simples e denotativa. Uma curiosidade é
que, nesse modelo que parte dos lugares reais visitados, adverte-se que não se deve
escolher como loci um local que esteja fora do alcance do orador no instante da
memorização.
Em 1579, Rosselius lança seu Thesaurus artificiosae memoriae, um sistema
de forte teor dantesco, cujo diagrama divide o inferno em onze locais que formam o
mapa de seu modelo. No centro está um poço cercado de degraus que se referem
aos tipos de pecados conforme o grau de heresia. O paraíso tem no centro o trono
de Cristo cercado de jóias, cujos lances em descendência distribui a hierarquia dos
homens virtuosos: santos, virgens, patriarcas, sábios, etc. É o último tratado cristão
31
Romberch foi, muito provavelmente, influenciado pelo diagrama zodiacal de Metrodorus de Scepsis, antigo
poeta grego cuja capacidade de memorização tornou-lhe uma lenda entre os estudiosos da arte da memória, e
que trabalhava a memória artificial por um sistema de locais de sua autoria, baseado nas imagens da
Astrologia.
63
de impacto numa cultura que avançava rapidamente rumo ao cientificismo, e que
já não sustentava mais a coerção dos dogmas teológicos.
A derrocada do cristianismo, o avanço do humanismo e o advento da
impressão atestam o fim da arte da memória como a conhecida até então.
Evidentemente, ela participa de toda revolução das idéias que surge no período, e
cujo apogeu se dará no Iluminismo. Com a evolução dos registros mecânicos, todos
os sistemas complexos para memorização por lugares, com imagens sensoriais ou
abstratas, locais verdadeiros ou fictícios, tornam-se obsoletos. A arte da memória
sobrevive na Renascença apenas como assimilada pelo neoplatonismo, e retorna a
sua função dentro das teorias mais amplas do pensamento. É por esse caminho,
não mais como arte da oratória ou da ética, mas como processo de conhecimento
em si que a memória chegará à filosofia moderna.
64
Capítulo II A memória na transição para o pensamento científico e filosófico
moderno.
A separação entre as verdades da fé e as verdades da razão que marca a
transição da Escolástica tardia para a Renascença representa, para o estudo da
memória, um giro de perspectiva radical no que diz respeito ao seu lugar e função
no novo projeto de humano que se criava. O desdobramento mais determinante,
nesse sentido, e que irá reverberar no pensamento moderno, diz respeito à
conseqüente primazia da razão sobre a fé no que tange à legitimidade do
conhecimento. As verdades da razão, apoiadas pelas ciências exatas e humanas,
tornavam-se mais consistentes que as verdades da fé.
Há, aqui, um salto considerável que necessita ser esclarecido para
dimensionarmos as transformações pelas quais sofre o tratamento da memória no
Renascimento e na modernidade. O cientificismo da Renascença apenas apontava
as transformações no modus cogitare que seriam radicalizadas pelos pesquisadores
modernos. Nesse primeiro período, o pensamento científico apenas inicia a
caminhada em direção à forma de produzir e lidar com o conhecimento orientada
para a especialização, baseada em pesquisas quantitativas e qualitativas e que
busca verticalizar o olhar sobre as atividades humanas para destrinchar as
especificidades de cada processo orgânico característica da modernidade. Os
mistérios do corpo são a grande fronteira a ser “iluminada” pelo saber, e o aparato
de observação, medição e investigação científicos aparecem como as ferramentas
mais eficientes para realizar semelhante tarefa.
65
A medida que tal perspectiva avança e se potencializa, o ideal do polímato
renascentista, do homem que realiza diversas tarefas e, ainda que seja estudado
com as luzes anatomistas da razão científica, é analisado como uma máquina cujas
estruturas trabalham simultaneamente e conjuntamente, vai sendo naturalmente
substituído por uma homem de funções específicas e especializadas: o homem
moderno. Tal passagem transfigura completamente o estudo da memória, e de sua
aplicação no campo das artes.
No capítulo anterior, vimos como se formou, no período antigo, o
tratamento da memória como arte de criação e articulação de imagens;
inicialmente, pelo sistema dos locais grego, que servia para a mnemo-criação de
quaisquer conteúdos, e foi plenamente absorvido e pela ars oratoria romana.
Depois, analisamos como essa tradição sobreviveu às pressões culturais e
ideológicas da Idade Média atrelada à Prudência, cujas linhas de força direcionam
sua dinâmica de formação de imagens para o fantástico, o grotesco e a busca pelo
sublime, estética de um imaginário coletivo assustado que ecoa em uma arte
igualmente fantástica e visualmente impressionante.
Com o avanço do pensamento científico, o foco de interesse migra
gradativamente das implicações transcendentais da memória para atingir a
dimensão física que envolve sua produção, como, de resto, sucede com os demais
processos de funcionamento humano. A memória precisava ter seu âmbito de
atuação enquanto faculdade arborescente claramente definido, separado,
delimitado e esclarecido na nova anatomia de funções do ser racional, e, nessa
partilha executada pela ciência dos primeiros anos da era moderna, coube-lhe,
basicamente, a responsabilidade pela retenção.
66
Duas diferentes “respostas” a essa problemática sobre os limites da memória
e sua relação com a razão e a percepção surgem nas duas principais correntes do
pensamento moderno emergente: o racionalismo e o empirismo. Em ambas, mas
em cada uma à sua maneira, a memória estará, num primeiro momento, como um
resíduo da realidade no espírito, uma faculdade menor que, pela existência do
esquecimento, revela sua fragilidade para preservar as informações da percepção.
Notemos que a memória nas ciências modernas dos primeiros anos, e na filosofia a
elas atrelada, assume o antigo conceito de memória retentiva grego estabelecido
por Platão, ignorando, no entanto, sua outra definição muito mais importante em
sua teoria e mais avançada no esforço de dar conta das complexas associações de
funções que participam das sínteses mnemônicas: a reminiscência.
O fenômeno da criação é um ainda mistério tanto para o racionalismo como
para o empirismo. É necessário nomear outra faculdade, mais abstrata, misteriosa
e afastada da percepção que justifique e credite a “confusa” atividade criadora: a
imaginação. Estando a imaginação como a faculdade relativa à criação e a memória
como faculdade “retentora” por natureza, com seus limites e atributos bem fixados,
solucionariam-se as questões acerca tanto da invenção como da participação do
corpo e da mente em tais processos. Porém, o desenvolvimento das artes vem
mostrar que nem sempre estas operam no limite da loucura, e vêm questionar o
papel da percepção na fantasia.
O depoimento pessoal no início da modernidade flutua nessa problemática
que envolve memória e criação. A imaginação surge como a faculdade que isola a
memória das dinâmicas de criação, mas, ao mesmo tempo, não tem sua
operacionalidade satisfatoriamente destrinchada por nenhuma das duas correntes
67
científico-filosófica que apontamos (provavelmente, porque um olhar mais
aprofundado sobre seus atributos impusesse a revisão do âmbito de participação da
memória para além da retenção).
Por outro lado, é do embate entre as faculdades como fixadas nesse período,
e nas limitações teóricas daí decorrentes, que pudemos evoluir rumo a uma
abordagem convergente para os estudos da memória, da percepção, da criação e da
cognição. As funções são, sim, heterogêneas, e nisso tais cientistas não se
enganaram. As linhas de força culturais do período pressionavam para a
especialização como caminho mais provável para se aprender mais profundamente
tais funções da mente, da qual, atualmente, já podemos nos libertar para buscar
uma visão mais completa dos deslocamentos internos e externos do homem na
construção dos saberes.
Nesse sentido, podemos dizer que a natureza criadora da memória não
deixou de contra-pressionar as atribuições a ela destinadas pelo pensamento
moderno, abalando a noção de imaginação e percepção como faculdades isoladas.
De fato, é a memória como criação que exatamente mistura os elementos das duas
funções através de suas combinações. Não é de se estranhar que tantos artistas
tenham sido enquadrados como doentes mentais nesse período, já que seus
depoimentos pessoais provocam profundamente o rígido estatuto moderno da
mente especializada. Suas biografias fornecem os relatos mais contundentes sobe a
inadequação de sua arte ao pensamento vigente, em grande parte, exatamente pela
liberdade em misturar fatos “da vida” com recriações fantásticas.
68
Em seu Discurso sobre o Método, Descartes cita a memória em apenas um
pequeno trecho da Quinta Parte
32
, logo após o minucioso discorrer sobre o
funcionamento do coração, da circulação e da anatomia dos órgãos internos nos
animais. Essa passagem é particularmente importante, pois, embora esteja
deslocada do capítulo específico sobre a metafísica
33
, contém seus principais
argumentos organicistas sobre os movimentos da alma na formação dos espíritos
animais, que, em suas palavras, funciona como um vento muito sutil (...) ou
melhor, uma chama muito pura e viva
34
emanada do coração para o cérebro e
que de lá chega aos músculos através dos nervos para realizar o movimentos.
A memória é apresentada em sua natureza retentiva, sem que se assuma
mais detalhadamente o grau de conexão com a percepção, por meio do qual
poderíamos afirmar ou não a retomada da perspectiva da falibilidade da lembrança
como resultante da fragilidade dos sentidos (corpo). Essa dúvida se esclarece em
seu tratado sobre as idéias, Meditações Metafísicas
35
, onde a participação da
memória na produção das idéias fictícias não deixa margem a especulações
36
. A
memória está situada como função periférica na gênese do entendimento, uma
persistência das sensações que reside entre os saberes menos complexos, e cuja
função na aquisição do conhecimento verdadeiro é pertinente se submetida ao
método, às operações da intuição intelectual.
No racionalismo cartesiano, sabemos da retomada cientificista do princípio
escolástico que entende o corpo como moradia da alma, porém com relações de
32
Intitulada “Ordem das Questões de Física”.
33
A Quarta Parte: “Razões que provam a existência de Deus e da alma humana ou fundamentos da
Metafísica”.
34
Op. Cit., p. 100.
35
Por extenso, Meditaciones Metafísicas con objeciones y respuestas.
36
Ainda que, como veremos mais adiante, ela tenha um papel importante na verificação do experimentado.
69
identificação muito mais intensas do que de um simples comandar-obedecer. A
influência do cristianismo ainda reverbera num mecanicismo temeroso, que ao
mesmo tempo separa para efeito de pesquisa e reúne num contrato moral os
estudos da fé e da razão para radicalizar o pragmatismo do poder divino sobre o
homem pela exaltação da racionalidade. As relações entre as partes superiores e
inferiores dos seres justificam a autonomia e indissolubilidade da alma e a
dependência e divisibilidade do corpo, concentradas na máxima Cogito ergo
Sum
37
.
A abordagem de Descartes sobre seus inúmeros experimentos em anatomia
realizados no exílio, que poderiam lançar luz sobre a real cooperação entre os
atributos da mente e os órgãos, se orienta para afirmar a hegemonia do núcleo
cortical como organizador do pensar e cápsula da alma, que controla e direciona a
atividade subjacente da res estensa. Nisso consiste boa parte da anatomia
cartesiana: mapear e explicar a natureza dos movimentos que conectam os
sistemas internos ao espírito (via cérebro), procedimento que está na base de
criação do método e em sua aplicação no estudo da alma e da verdade.
Uma vez que somente na razão consiste a existência da alma (e, em última
instância do ser humano verdadeiramente compreendido
38
), o método concentra
quatro regras para verificar a irrefutabilidade dos fatos e daí sua metamorfose em
conhecimento real, a saber:
37
A expressão é comumente reconhecida por “Penso, logo existo”. Porém, se remetermos à semântica
original de “existir” como ex sistere, estar situado fora, parece-nos mais coerente ao pensamento do filósofo a
tradução “Penso, logo sou.” (algo ou alguma substância que mora dentro de [o corpo]). Na segunda meditação
(“Meditacion Segunda, De la naturaleza del espíritu humano; y que es más fácil de conocer que el cuerpo”) ,
Descartes reafirma o cogito em outra ordem para delimitação do humano: “[...] se estou persuadido de algo,
ou meramente, se penso algo, é por que sou.”. Op. Cit. p. 24. Tradução minha.
38
Os animais, evidentemente, não estão incluídos entre os seres animados a priori no discurso do método.
Entretanto, Descartes, posteriormente, define a existência de uma “alma vegetante ou sensitiva” para explicar
o comportamento sofisticado de certos animais e de doentes mentais.
70
a) Regra da evidência: jamais aceitar como verdadeira alguma informação que não
“conhecesse à evidência
39
. Em outras palavras, que não tenha se apresentado
primeiro integralmente e incontestavelmente aos sentidos e à memória , que
combina e atualiza as informações para afirmar ou negar seus conteúdos. Eis
porque acreditamos que a percepção e a memória, ao contrário do que o filósofo
insiste em fazer crer, não são funções suprimidas em termos absolutos da
intelecção no método, pois elas estão entre as sínteses menores e primárias (a que
Descartes chama “corpos, inteligências e naturezas imperfeitas”
40
) que preparam
os materiais que serão verificados pela a razão. Ao procedimento operacional
criado para sistematizar essa investigação sobre a veracidade do apreendido quanto
a sua forma e conteúdo, causas e fontes, Descartes denominou dúvida metódica.
b) Regra da divisão (anatomia/taxidermia
41
): os problemas e dificuldades mais
complexos que envolvem o conhecimento da realidade devem ser decompostos em
parcelas mais simples tantas vezes quanto forem necessárias para sua resolução,
estando cada nova parte suscetível à análise pela dúvida metódica.
c) Regra da ordem: os pensamentos devem ser distribuídos mentalmente em
ordem de complexidade conforme o assunto e o grau de reflexão envolvido. Os
conteúdos acessados pela percepção sensível estão entre os mais elementares, pois
se situam no campo da observação e da impressão e não demandam sínteses
39
Discurso sobre o Método. p.40.
40
Op. Cit., p. 71. Em outra passagem ainda mais significativa da Meditacion Sexta (e última) De la existência
de las cosas materiales, y de la distinción real del alma y el cuerpo, Descartes situa com ênfase o papel da
memória numa etapa de pré-verificação sensível dos fatos que distingue os estados de sono e vigília: “[...] Y
no debo de modo algún dudar acerca de la verdad de esas cosas que, si, trás recurrir a todos mis sentidos, a
mi memoria y a mi entendimiento para examinarlas, ninguna de esas facultades me dice nada que repugne a
las demás. Pues, no siendo Dios falaz, se siegue necesariamente que no me engaña de eso”. pp. 74-75.
41
Parêntese meus.
71
abstratas. No outro extremo, as operações matemáticas e todas atividades que
envolvem o trabalho sobre a re-elaboração das formas estão entre os mais elevados.
d) Regra da enumeração: cada novo conhecimento exige a revisão completa das
etapas que o produziram, a observação dos resultados em cada momento e a
retomada dos procedimentos que o definiram, a fim de que o modelo metodológico
em si, e não somente os conteúdos resultantes de sua aplicação, possa ser tomado
como novo saber e reutilizado na medição e análise de outras experiências.
Da mesma forma, como negativo das leis, os erros que envolvem o
encaminhamento da razão para definir a verdade se aglutinam em duas atitudes
que Descartes classifica como “infantis”, preconceitos enraizados na infância:
a) Precipitação: tendência em emitir juízos precoces, superficiais, imediatos sobre
determinada questão antes da verificação racional (e aqui, a memória, junto com a
imaginação, a que Descartes faz referências bem mais consistentes, e a percepção
entra como os principais agentes de engodo).
b) Prevenção: submissão do espírito ao pensamento do outro, cristalização de
conhecimentos socialmente afirmados por costumes, não por verificação,
preconceitos, superstições, ilusões sustentadas pelo imaginário das sociedades.
O discurso do método, acima resumido, revela-nos que as idéias inatas são o
único porto seguro, o reconhecimento do conteúdo divino descendente que se
manifesta a todo o instante na razão, e cujo entendimento nunca é errôneo quando
apreendido pelo processo apropriado. Todo equívoco na revelação do verdadeiro
não poderá vir da falsidade das idéias naturais, pois são divinas e, portanto, sempre
reais, mas de algum “ruído” nas etapas de investigação dos fatos. Diante desse
dogma primeiro, Descartes divide as idéias humanas em três categorias:
72
a) As idéias adventícias: idéias vindas de fora, das sensações, percepções e
lembranças; as idéias da experiência e da lembrança das experiências com
materiais externos. Produzem opiniões quase sempre enganosas (a doxa grega),
especialmente quando não participam do raciocínio e da intuição, uma vez que está
claro que a verdade está na razão do ser pensante, e não nos objetos como
percebidos. Deduz-se que a lembrança acaba incorporada ao manto de imprecisão
e desconfiança que ronda toda vivência da extensão na teoria. A memória coordena
os materiais que geram as percepções enganosas com a mesma eficiência com que
registra e combina as impressões verdadeiras.
b) As idéias fictícias: as idéias, imagens, figuras fantásticas que criamos em nossa
imaginação em sono ou vigília. Aqui, a memória aparece assumidamente como
fonte de enganação, uma vez que é através de seus conteúdos que o espírito acessa
as informações experimentadas e imprimidas do real para recombiná-las,
completá-las anarquicamente na imaginação, criando objetos irreais. A memória é
levada ao limite da imaginação, suas funções se misturam, e se acentua o
antagonismo com a intelecção.
c) As idéias inatas: idéias colocadas por Deus no espírito humano e que estão na
base do inatismo cartesiano como as únicas que denotam a verdade, a partir das
quais é possível julgar a verdade ou a falsidade das outras. São inteiramente
racionais e acessíveis pela intuição. A memória não participa de sua formação, pois
é compreendida como acervo de impressões oriundas do aparato sensorial, e não
das formas intelectuais. Não existe uma recordação para esses conhecimentos,
como existia na doutrina platônica, mas sim uma fé consciente.
73
Aqui, há de observar com atenção o papel da imaginação, uma vez que a
proximidade de conceitos permite extrair algumas observações importantes para a
noção de memória. Descartes classifica a imaginação como uma peculiar tensão
de ânimo
42
, por meio da qual o ser pode admitir a propriedade do corpo pelo
espírito. Está claro que o espírito não precisa do corpo para se definir em nenhum
aspecto. Intelecção e imaginação são operações completamente autônomas, das
quais, enquanto a primeira configura o ser em si, a segunda sequer atinge sua
essência. Porém a imaginação existe
43
, e está próxima do ser; e se existe na acepção
de verdadeiro como algo comprovado pela razão, não pode ser ao mesmo tempo
falso como não pertencente à criação divina. A imaginação, pois, é a função que
permite ao espírito conceber o corpo. É através da força imaginativa que o ser
consegue olhar o seu interior e formar imagens para as coisas corpóreas. É a
capacidade interior de elaborar impressões sobre o corpo tomado como
exterioridade.
Esse aspecto nos parece bastante significativo para o entendimento da
memória também, pois relaciona as duas faculdades à capacidade de interpretação
do homem sobre o corpo. Não nos interessa tanto, aqui, o âmbito das relações
orgânicas, mas aquele da formação de imagens e das múltiplas associações e
criações de sentido entre os materiais, fenômeno que dentro da metafísica
cartesiana se afirma negativamente como engodo da racionalidade, mas que
também pode ser compreendido como um adensamento de tudo que denota ao
corporal e escapa à razão strictu sensu, a ser estudado pelas filosofias posteriores.
42
Meditaciones Metafísicas.... p. 62.
43
Como ex sistere, ver nota 14.
74
Está claro que a memória está localizada no projeto filosófico cartesiano,
como mais uma das aptidões humanas submetidas à racionalidade. O racionalismo
delega à memória uma função infinitamente mais frágil do que o inatismo
platônico original, pois apaga a categoria da recordação ativa e resume a função
apenas à lembrança involuntária. Nesse contexto, é evidente que sua natureza
fugidia não se alinha à noção de verdade como coisa mensurável, possível de ser
selecionada, decomposta, formulada, analisada e remontada, e o crivo da
imperfeição, de uma inteligência menor surge como única solução metafísica para
explicar a existência da lembrança: as partes imperfeitas do homem que justificam
sua necessidade de Deus e sua submissão a Ele.
De fato, como antecipamos no início do capítulo, verificamos que, no
método, todos os demais atributos da alma funcionam positivamente apenas
quando empenhados em função da racionalidade, e, quando isolados, se voltam
para a ilusão dos sentidos. A racionalidade não conduz ao mundo das formas, como
em Platão, cuja perspectiva ainda permitia desdobramentos mais complexos nesse
trânsito, ela é a manifestação incontestável do Divino no ser humano, e através dela
nos definimos enquanto espécie em relação aos demais animais.
A razão, ainda que se alimente das operações inferiores, é potente por si e
em si, a ponto do próprio corpo se tornar dispensável e figurativamente “externo
ao ser. O cérebro é o centro do funcionamento, a partir do qual emanam as
informações para a extensão, que, por meio dos sentidos, capta novas informações
do ambiente externo que deixam impressões no corpo, e através da circulação até o
coração são bombeadas novamente para o cérebro. Os erros surgidos na
75
formulação do conhecimento quase sempre advém de distúrbios e desvios
experimentados em algum estágio de tal processo.
A herança racionalista de Descartes define em muito a neurobiologia como
disciplina arborescente na dimensão que a reconhecemos até a atualidade. Apenas
muito recentemente em nossa história a medicina cogitou ampliar o conceito de
mente para além das atividades do sistema nervoso central, e questionar a
perspectiva taxidermista de classificar o corpo em partes superiores e inferiores
conforme a noção arbitrária de conhecimento como razão pura, como veremos no
capítulo seguinte.
A memória está condicionada a uma espécie de almoxarifado do passado,
um conjunto obscuro e indefinido de sensações e idéias de sensações imprimidas
na alma pela percepção, e cujo acesso não é possível por um movimento próprio
organizado pelo espírito, mas pelo controle da racionalidade e a seu serviço.
Em uma perspectiva diametralmente oposta no que tange aos princípios e
processos que orientam as conexões corpo-espírito e suas faculdades, verificamos
que pelo empirismo se reafirmará a restrição de âmbito de trabalho da memória
(como registro passivo do presente em evocação espontânea) equivalente à que
observamos no racionalismo. Tomemos como modelo para análise da memória no
associacionismo o tratado de David Hume, reformulado e republicado com o título
Investigação acerca do entendimento humano
44
.
44
Em 1739, Hume lança, logo após concluir seus estudos superiores, os dois primeiros livros do Tratado da
Natureza Humana: “Of the Understanding” (Do entendimento), e “Of the Passions” (Das Paixões), e no ano
seguinte o terceiro, “Of Morals” (Da Moral). A frieza com que público e comunidade científica recebem suas
publicações força uma revisão em sua estrutura, de modo que apenas em 1758 o filósofo relançará os dois
primeiros tomos transformados sob o título de Investigação acerca do entendimento humano. É pelos
conteúdos dessa obra que resgatamos e analisamos o pensamento primário do autor.
76
Escolhemos esse autor primeiramente porque, acreditamos, seus estudos
condensam, radicalizam e potencializam os sentidos que as relações e funções
humanas adquirem dentro da tradição empirista. E, principalmente, por que sua
obra foi retomada e comentada por Deleuze em um estudo contemporâneo sobre a
subjetivação do espírito que proporcionou reflexões e conclusões determinantes
para definir a premissa de memória criadora que sustenta a hipótese fundamental
de nossa tese.
A leitura primeira da obra de Hume, a partir da qual logo iremos avançar,
aponta a experiência como fonte de todo o conhecimento. A experiência é a coleção
de impressões que o ser humano adquire ao longo de sua existência e que permite
com que ele formule suas idéias orientado por princípios específicos de associação.
Tais princípios são a semelhança, a contigüidade e a causalidade, que
explicaremos mais detalhadamente a seguir. As idéias, porém, não são produtos da
razão pura, mas percepções da natureza semelhante às impressões, entretanto,
dotadas de força e vivacidade
45
mais opacas. As idéias, pois, são impressões
enfraquecidas. Como são impressões ainda mais frágeis os raciocínios abstratos
que se debruçam sobre a geometria, aritmética e demais ramos da matemática, as
intuições intelectuais em geral. Somente pela vivência dos sentidos é que as demais
operações do entendimento podem ser construídas, e sem a verificação do dado na
impressão original nenhum conhecimento é real.
O princípio da semelhança se manifesta quando um objeto ou idéia remete
mimeticamente a outra idéia de objeto. Para a contigüidade, objetos e idéias se
associam analogamente a outros de forma que seja possível agrupá-los em função
45
Op. Cit., p.16.
77
de uma identidade qualquer sem, contudo, definir que sua natureza seja
absolutamente idêntica. E, por fim, a causalidade, da qual derivam as relações de
causa e efeito entre objetos e idéias, objetos e eventos e idéias e eventos. É da
observação mais aprofundada desse último, e mais importante, princípio que se
estabelece a síntese primeira do entendimento empírico: o hábito.
Falamos em síntese porque Hume não classifica o hábito como uma
categoria de pensamento, e sim como um sentimento que o ser humano apreende
mediante a identificação sensível de certa uniformidade no comportamento de
objetos e fenômenos. Essa uniformidade não segue preceitos apriorísticos. Quando
um mesmo objeto é seguido por um mesmo evento podemos imaginar que existe
uma conexão necessária entre eles, uma conexão que está dada na experiência e
qualificada por ela. Somente pela combinação das percepções é que podemos
levantar todas as variáveis que atuam sobre os fenômenos e definem um ou outro
padrão peculiar de conexão (que, conforme Hume, se enquadrará inevitavelmente
em um dos três princípios da associação de idéias e, mais comumente, na relação
de causa e efeito).
O hábito, por tanto, permite com que identifiquemos padrões relacionais
pela percepção de objetos e eventos apresentados imediatamente aos sentidos. De
sua aplicação devém a segunda grande operação do entendimento empírico: a
capacidade de inferir.
A inferência é a produção de percepções não-imediatas a partir dos dados da
percepção imediata sistematizados no hábito. É o poder de extravasar a própria
experiência sensível sem abandoná-la, pela projeção das relações entre objetos que
não estão naquele instante disponíveis aos sentidos. Não se trata exatamente de
78
uma abstração, pois nenhum movimento em direção ao real pode acontecer sem a
presença permanente das impressões simples que originam a cadeia de percepções
mais complexas.
Não há metafísica, não há transcendência, pois todos os processos dizem
respeito às relações naturais de causa e efeito entre os fenômenos/objetos e
objeto/idéias, e à capacidade humana de perceber as particularidades das
conexões. Inferir é a possibilidade de desdobrar experiências não no nível da
representação, mas da observação do possível pela análise de seus graus de
probabilidade.
Portanto, a inferência é a reflexão e produção de conhecimento pela prática,
espaço em que a experiência ultrapassa definitivamente a repetição para atingir a
criação. Ela promove o que Hume chama de crença
46
, o conhecimento pela
experiência, que se opõe à certeza, o conhecimento pela intuição. A crença é o
sentimento de verdade acerca de um fato adquirido por meio da experiência após
todas etapas de superação das probabilidades
47
.
Aqui, a imaginação adquire a função agregadora dos saberes e de suas
maquinações. A percepção em si não permite a reflexão sobre a própria percepção,
senão sobre seus objetos e sua dinâmica reguladora. É preciso outra faculdade mais
“líquida” que permeie os conteúdos da percepção e suas sínteses com as qualidades
circunstanciais que definem os sujeitos em si: os afetos e as paixões. E essa
faculdade é a imaginação. Notamos certa semelhança com a teoria Aristotélica de
onde as imagens da percepção precisam ser transformadas, plasmadas por uma
46
Crença, aqui, adquire sentido oposto à doxa grega, já esclarecida no capítulo anterior.
47
Hume define, para tanto, duas classes de raciocínios: os raciocínios demonstrativos, que se referem às
relações de idéias; e os raciocínios morais, que dizem respeito às questões de fato e de existência. Op. Cit.
p.39.
79
série de operações mentais até se tornarem imagens aproveitáveis ao intelecto. E a
influência direta sobre a fenomenologia moderna, que atribui à fantasia
exatamente essa mesma função.
A imaginação representa a grande força criadora do corpo-espírito no
empirismo de Hume. Em seu âmbito, as informações da percepção se combinam às
particularidades das paixões para re-configurar os sentidos possíveis nas relações
de causa e efeitos entre objetos e idéias, idéias e idéias, etc. Se os princípios de
associação definem a forma do entendimento, são as paixões e os afetos que
qualificam seus conteúdos pelas recombinações imaginativas.
De fato, ao contrário do que uma primeira leitura do tratado pode sugerir, o
homem não se define como resultado de uma cadeia correta de raciocínios
perceptivos, mas como processo de eterna verificação e re-contaminação das
percepções (organizadas em regras sob os três princípios) pela potência fantasiosa
da imaginação. Por isso, Hume propõe a co-aplicação sistemática de regras
extensivas e regras corretivas quando se busca delimitar o entendimento: a
própria natureza da produção do conhecimento pressupõe, contém e é contida pela
força anárquica da imaginação.
É curioso que a memória tenha atribuição tão secundária em um projeto
filosófico que na impressão o seu pilar metodológico, mas é o que sucede. Como
podemos ver pelos comentários do autor nas páginas 15 e 16
48
do livro:
“Cada um admitirá prontamente que há uma diferença
considerável entre as percepções do espírito quando uma pessoa
sente a dor do calor excessivo ou o prazer do calor moderado, e
quando depois recorda em sua memória
49
esta sensação, ou a
48
Seção II, Da Origem das Idéias.
49
Grifo meu.
80
antecipa pela imaginação. Estas faculdades podem copiar ou
imitar as percepções dos sentidos, porém nunca podem alcançar
integralmente a força e a vivacidade da sensação original. O
máximo que podemos dizer delas, mesmo quando atuam com
seu maior vigor, é que representam seu objeto de um modo tão
vivo que quase podemos dizer que o vemos ou que o sentimos.
Mas, a menos que o espírito esteja perturbado pela doença ou
loucura, nunca chegam a tal grau de vivacidade que não seja
possível discernir as percepções dos objetos. Todas as cores da
poesia, apesar de esplêndidas, nunca podem pintar os objetos
naturais de tal modo que tome a descrição pela paisagem real. O
pensamento mais vivo é sempre inferior à sensação
mais embaçada.”
50
A memória novamente está como o borrão do vivido. Ela não participa do
movimento criador da imaginação, que pela sucessão de associações pode operar
mesmo sem esta. Se a força do registro está no centro do pensamento empirista, a
memória não aparece como o provável agente principal de cooperação da
percepção, para evocar as impressões não-imediatas e produzir as idéias e as
percepções complexas, a que Hume denomina impressões de reflexão
51
. As
imagens mnemônicas subsistem como uma espécie de fantasma do objeto no
espírito, compreendidas apenas em suas propriedades retentivas e, ainda assim,
desfiguradas como impressões pálidas e incompetentes.
Entretanto, há de se ter um pouco de persistência para ir além do discurso
extensivo do autor e entrever em suas considerações “subjacentes” uma possível
perspectiva mais positiva para a atividade mnemônica na dinâmica das sínteses
perceptivas. Essa brecha pode ser encontrada em suas observações sobre o
movimento das impressões passadas e presentes para organização do hábito.
50
Grifo meu.
51
As impressões de reflexão qualificam o espírito, são os efeitos da ação dos princípios gerando associações
com significados específicos e, portanto, atos cognoscíveis de teor específico que definem o espírito pelas
suas particularidades. Assim, se as impressões de sensação dão origem ao espírito, são as impressões de
reflexão, o movimento de sujeição das sensações aos princípios de associação, à imaginação criadora e sua
correção que o singularizam.
81
Em algumas passagens importantes de sua Investigação, Hume situa a
memória como o lugar para onde a percepção deve se deslocar a fim de esclarecer e
confrontar os dados presentes com as impressões antigas. A memória tem seu
status, por assim dizer, melhor considerado, e surge como o acervo de dados
passados, que permite a presença das impressões, das idéias e dos raciocínios sobre
estas no espírito para além da aparição aos sentidos. Em última instância, é a
memória que torna a inferência possível pela preservação dos materiais que se
multiplicam como referências de aprendizado na percepção. Como podemos
observar no trecho que se segue:
“Pela história, conhecemos os eventos de épocas passadas;
todavia, devemos prosseguir consultando os livros que contém
esses ensinamentos e, a partir daí, remontar nossas inferências
de um testemunho a outro até chegar às testemunhas oculares e
aos espectadores desses eventos remotos. Numa palavra, se não
partirmos de um fato presente à memória ou aos sentidos, nossos
raciocínios serão puramente hipotéticos; e seja qual for o modo
como estes elos particulares estejam ligados entre si, toda a
cadeia de inferência não teria nada que lhe servisse de apoio e
jamais por meio dela poderíamos chegar ao conhecimento de
uma existência real.”
52
Eis a memória situada pelo autor em uma posição que nos parece mais
coerente à lógica de colaboração entre as faculdades própria de sua teoria do
conhecimento. O homem não se dá apenas pela percepção, é o que Hume acaba de
nos dizer. A experiência pode ser a fonte de todo conhecimento, mas ela não esgota
o processo nas sínteses presentes. O espírito ultrapassa o vivido: infere e inventa o
que está além dela, e por esse processo se faz sujeito.
Encontramos no primeiro livro de Gilles Deleuze Empirismo e Subjetividade
Ensaio sobre a Natureza Humana Segundo Hume uma releitura do Tratado que
52
Op.Cit., p. 47.
82
parte dessa observação final para sustentar a hipótese do ultrapassamento do dado
como movimento de subjetivação que iluminou profundamente nossa noção de
memória criadora. Recuemos um pouco para uma questão empírica
necessariamente anterior: como o sujeito se constitui no dado? E, conscientes de
que não há relação exterior à experiência: como na experiência se constitui um
sujeito capaz de ultrapassá-la?
Primeiramente, esclareçamos o que Deleuze considera como dado:
[...] o fluxo do sensível, uma coleção de impressões de imagens,
um conjunto de percepções. É o conjunto do que aparece, o ser
igual á aparência, é o movimento, a mudança sem identidade
nem lei. Falar-se-á de imaginação, de espírito, designando assim
não uma faculdade, não um princípio de organização, mas um tal
conjunto, uma tal coleção. O empirismo parte dessa experiência
de uma coleção, de uma sucessão movimentada de percepções
distintas. Ele parte dela, na medida em que são distintas, na
mediada em que são independentes. Com efeito, seu princípio,
isto é, o princípio constitutivo que dá um estatuto à experiência,
não é de modo algum aquele segundo o qual ‘toda idéia deriva de
uma impressão’, cujo sentido é apenas regulador, mas é, isto sim,
aquele segundo o qual ‘tudo o que é separável é discernível e tudo
o que é discernível é diferente’.”
53
A experiência é o movimento de idéias reconhecidamente separadas, e que,
em suas existências diferenciadas, carregam o potencial de associação que define
cada percepção. Ou ainda: toda percepção é uma substância, e cada parte
distinta de uma percepção é uma substância distinta.
54
”. Logo, é antinômico
imaginar que o dado possa em si aparecer aos sentidos e ultrapassar a si próprio,
ou contenha a priori os direcionamentos que condicionariam essa ultrapassagem.
Já vimos anteriormente que é na sistematização e combinação criativa da
coleção de impressões que a imaginação diferencia sua função. A imaginação
53
Op. Cit. p. 95.Impossível não reconhecer nessa passagem a fundamentação imediata que Deleuze identifica
no empirismo para sustentar o princípio de diferenciação como o concebe em sua própria teoria.
54
Hume apud Deleuze. Op. Cit. p. 96.
83
combina os “princípios da associação” (semelhança, contigüidade e causalidade)
aos “princípios da paix ão” (a afetividade como individuação) para particularizar o
processo de constituição do sujeito no espírito
55
. Em outras palavras:
“A associação de idéias não explica que seja, sobretudo, esta a
(idéia) a ser evocada e não aquela. Desse ponto de vista, deve-se
também definir a relação como ‘essa circunstância particular
pela qual julgamos bom comparar duas idéias mesmo quando
essas se acham unidas arbitrariamente na imaginação [...] O
que dá à relação sua razão suficiente é a circunstância. [...]
Quando Freud e Bergson mostram que a associaç ão de idéias
explica apenas o superficial em nós, o formalismo da consciência,
eles querem dizer, essencialmente, que somente a afetividade
pode justificar o conteúdo singular, o profundo, o particular [...]
Tudo se passa como se os princípios de associação dessem ao
sujeito sua forma necessária, ao passo que os princípios da
paixão dão-lhe seu conteúdo singular.”
56
Esses são os movimentos da subjetivação do espírito prático/empírico, que
primeiro se apóia no esquematismo das regras propostas pelos princípios da
associação para logo ultrapassá-lo pelas sínteses da inferência e da imaginação, que
por sua vez não funciona completamente livre, senão orientada pelos princípios da
associação. Todo processo, permeado pelas circunstâncias da afetividade. Sua
finalidade intencional se dá pela dualidade entre os termos e as relações, de que se
conclui: como o sujeito se constitui no dado? Sendo o dado o produto dos poderes
da Natureza, sendo o sujeito o produto dos princípios da natureza humana
57
”, e
no reconhecimento de que não há regras apriorísticas que expliquem as
especificidades da cada conexão.
55
Os princípios da associação, que são responsáveis pela produção das impressões reflexivas e que
promovem o entendimento, e os princípios da paixão, que são o domínio da afetividade, compõem os
princípios da natureza humana.
56
Op.Cit. pp. 116-117.
57
Op. Cit. p. 122.
84
Portanto, está claro que o sujeito é a irrupção de um processo no espírito nos
termos que já foram descritos, em que a imaginação organiza criativamente os
conteúdos informativos e afetivos. Notemos a passagem:
“Com efeito, o empirismo é uma filosofia da imaginação, não
uma filosofia dos sentidos. Sabemos que a questão: como o
sujeito se constitui no dado? Significa: como a imaginação devém
uma faculdade? Segundo Hume, a imaginação devém uma
faculdade quando, sob o efeito de princípios, se constitui uma lei
de reprodução de representações, uma síntese da reprodução.
58
E mais adiante: a memória, os sentidos e o entendimento estão todos
fundados sobre a imaginação.
59
”. Observamos que, ao passo que se profunda e se
esclarece o pensamento deleuziano sobre as questões empiristas, torna-se
incoerente insistir no caráter passivo da memória diante do poder da percepção e
da imaginação e da atividade-hábito. Vimos que sem a memória, a inferência só
consegue se voltar para as impressões “muito vivas” que, não sendo estas
experimentadas no instante presente, não podem ser outras que não aquelas
“avivadas” pela memória, seja ela mais recente ou mais antiga
60
. Se o local das
impressões é o corpo, o seu espaço sutil de agregação é exatamente a memória, a
capacidade de preservar as impressões de um corpo que não cessa de ser impresso
jamais, e cujas demais operações não sucedem linearmente, mas simultaneamente
a esse fluxo.
Se o corpo e suas impressões movem-se permanentemente no tempo e
espaço, então não é possível falar de impressão sem ligar intimamente o conceito à
memória, a menos que se pressuponha uma capacidade de percepção atemporal ou
58
Op. Cit., p. 124.
59
Op.Cit., p. 143.
60
Sabemos que, muitas vezes, os conteúdos mais remotos podem ser mais claros sensorialmente para o
indivíduo do que os registros recentes, como geralmente ocorre nos casos de senilidade.
85
que se atribua à percepção ou a qualquer outra faculdade o poder de evocar
impressões passadas, o que não é o caso. A impressão mais viva ou a mais fraca já
não pertencem mais ao presente utópico, já são registro, já são história no corpo.
Em um trecho muito esclarecedor, Deleuze fala de uma nova concepção de
tempo promovida pelo hábito. Vejamos:
“Considerado no modo de aparição de suas percepções, o espírito
era essencialmente sucessão, tempo. Agora, falar de um sujeito é
falar de uma duração, de um costume, de um hábito, de uma
expectativa [...] O hábito é a raiz constitutiva do sujeito, e em sua
raiz, o sujeito é a síntese do tempo, a síntese do presente e do
passado em vista do porvir.
61
O tempo imaginado pelo hábito não é mais uma sucessão aleatória de
eventos, é um movimento refletido, “refletível”, no qual o futuro pode ser projetado
pelos conteúdos da experiência. É tremendamente forços o isolar a memória da
formação do hábito, como na passagem seguinte:
o tempo era estrutura do espírito; agora, o sujeito se apresenta
como síntese do tempo. E para compreender o sentido dessa
transformação, é preciso assinalar que, por si mesmo, o esrito
comportava a memória no sentido que Hume dá a essa palavra:
distinguiam-se na coleção das percepções, segundo os graus de
vivacidade, as impressões dos sentidos, as idéias da memória e as
idéias da imaginação, A memória era a reaparição da impressão
sob forma de uma idéia ainda viva. Mas, justamente por si
mesma, ela não operava síntese alguma no tempo; ela não
ultrapassava a estrutura ela encontrava seu papel essencial na
reprodução das diferentes estruturas do dado. É o hábito, ao
contrário, que vai apresentar-se como uma síntese, e o hábito
remete ao sujeito. A lembrança era um antigo presente, não um
passado. Devemos chamar passado não simplesmente aquilo que
foi, mas aquilo que determina, que atua, que compele, que pesa
de uma certa maneira. Nesse sentido, o hábito é para a memória
o que o sujeito é para o espírito, mas, além disso, e mais ainda,
ele prescinde facilmente dessa dimensão do espírito que se
chama memória; o hábito não tem necessidade de memória.
62
61
Op.Cit., p. 103.
62
Op. Cit., p. 105.
86
A sentença que encerra o parágrafo acima, nos parece, surpreendentemente,
contradiz o pensamento desenvolvido até então, e soa não apenas forçosa, mas
sofismática, em um sentido que só se explica pela insistência em se preservar a
essência do empirismo pela manutenção de uma hierarquia de faculdades já
irremediavelmente abalada pela própria evolução de pensamento do autor. Falar
em impressão “mais ou menos viva” nada mais é do que de falar da memória em
termos fugidios, e aí está a questão-chave pra re-posicionar o memória de forma
mais coerente na teoria.
Atribuiu-se à impressão uma atividade que extravasa o seu âmbito. Como
explicamos anteriormente, se pudéssemos isolar o instante presente da
experiência, não seria pela memória que as sensações se imprimiriam nos sentidos,
mas pela própria vivência dos sentidos naquele específico recorte temporal-
espacial. Porém, tal fenômeno não é efetivamente possível, e a impressão de agora
já é memória de impressão. Reconhecendo isso, conclui-se que a maior parte de
nossa “coleção de impressões” está fixada pela memória, e a formação do hábito
realmente não nos parece possível sem a recuperação de experiências passadas (e
não de um antigo presente, como afirma Deleuze, sugerindo uma antinomia
ilusória de valor entre fatos mais ou menos marcantes).
Reorganizadas as atribuições, acreditamos que a memória está no centro
tanto da formação do hábito como nas sínteses criativas da imaginação. No hábito,
por todos os argumentos que já apresentamos, mas que também justificam sua
participação na imaginação. Não é possível se criar novos sentidos sem que existam
registros de objetos e relações sobre os quais refletir. Se compreendermos a
memória como o âmbito das impressões no corpo mediante ação do tempo, então
87
ela alimenta todos os demais movimentos, supera a evocação, desdobra-se em
devir percepção, devir imaginação, devir criação.
De fato, ao arriscar que o empirismo de Hume é uma filosofia da
imaginação, e não dos sentidos, Deleuze assume uma abordagem transformadora
sobre os limites entre o que definimos tradicionalmente como faculdades
humanas, e que nos parece mais adequado para compreendermos o corpo
expressivo em seu funcionamento multidisciplinar. Ele extrapola o empirismo
original para apontar um modelo de sujeito que se não se constitui mais como
essência metafísica que mora em um corpo que percebe.
Essa cisão entre corpo e alma originou todas as diversas polaridades na
distribuição dos âmbitos de atuação dos processos que participam da criação
humana na história da filosofia, e que propõem a existência de nichos físicos ou
metafísicos fictícios para o que chamamos “sujeito”. Em determinada tradição, a
razão pertence ao domínio do espírito, enquanto a percepção e a memória estão
ligadas somente à extensão. O indivíduo se dá por uma racionalidade intuitiva e
abstrata espiritual-cerebral autônoma aos processos corporais. Em outra, as
impressões e a percepção produzem o entendimento pela vivência dos sentidos. O
sujeito se forma pelas operações do corpo em progressões de complexidade a partir
de um mesmo processo multiplicado pela imaginação. O espírito está em algum
lugar mal resolvido, já que, aqui, a metafísica foi exterminada pela lógica
operacional da associação.
Deleuze retoma o caminho anti-transcendentalista de Hume para
desenvolver uma noção de sujeito como processo físico (não apenas fisiológico) de
ultrapassamento de seus próprios extratos de saber, em que o conhecimento é
88
problematizado para muito além do embate inatismo/empirismo. O sujeito se
define não mais como essência/conteúdo em formação (seja este inato ou
adquirido) que está aqui ou ali, mais ligado a esta ou àquela faculdade; mas como
movimento, devir, fluxo de vivência, retenção e ultrapassamento do retido na
simultânea multiplicidade de operações das quais participa e às quais organiza e
atualiza para se construir. Em última instância, pois, a ultrapassagem não se refere
somente ao dado, mas aos limites das faculdades tomadas em uma perspectiva
arborescente. Nesses termos, encontramos a definição de sujeito que nos é útil e
aplicável ao estudo da criação artística.
89
Capítulo III Aspectos da Neurobiologia contemporânea: tipos de memórias, o
mapeamento cerebral como instrumento de análise da construção,
evocação, preservação e destruição das memórias.
A partir da segunda metade do século passado, é possível afirmar, sem
receio, que a neurobiologia realizou sua revolução copernicana particular com a
criação de tecnologias inéditas de mapeamento cerebral. Evidentemente, esse
“levante” está relacionado à descoberta da dupla hélice do ácido
desoxirribonucléico (o DNA) em 1953, que produziu a medicina quântica e
introduziu a perspectiva geneticista a todas as demais áreas das ciências médicas e
comportamentais. Cresciam, então, outras duas disciplinas igualmente
fundamentais para o estudo da memória: a bioquímica e a biologia molecular, mas
sua utilização em pesquisas sobre as funções do sistema nervoso só aconteceria
mais de uma década mais tarde.
Com o desenvolvimento dos novos aparelhos e técnicas de visualização da
atividade cortical e subcortical, os clássicos experimentos baseados na observação
externa dos comportamentos e nas medições por eletrodos ou termo-ativação
puderam ser substituídos (ou, melhor dizendo, combinados) a procedimentos
infinitamente mais precisos, através dos quais se tornou possível delimitar mais
claramente a intensidade das sinapses para cada região conforme o tipo de
atividade cerebral em exercício.
Esse mapeamento iluminou profundamente o estudo da formação das
memórias e das cadeias associativas envolvidas nas suas sínteses. De fato, foi a
partir desse período que uma série de preceitos da medicina anterior puderam ser
derrubados (como a imobilidade dos neurônios) ou confirmados.
90
Lembremos, antes, do pioneiro da atividade: Ivan Pavlov
63
(1849-1936), o
fundador da moderna biologia da memória. Pavlov foi o primeiro a perceber que a
aquisição da memória não é um processo monolítico, tanto em termos de
experiência sensível quanto de registro neurológico. Ele foi um dos primeiros
cientistas modernos a sugerir que a memória não funciona como faculdade estrita e
una, mas pensou em “memórias” como construções sinápticas que acontecem em
regiões diferentes do córtex conforme a permanência e intensidade de cada
registro.
Lamentavelmente, Pavlov não tinha, em seu tempo, o aparato tecnológico
necessário para aprofundar suas intuições, que provavelmente alavancaria suas
pesquisas do restrito domínio dos reflexos e condicionamentos para um
entendimento mais amplo das funções que envolvem a formação desses reflexos.
Acreditava, como a maioria dos psicólogos experimentais da época, que os
comportamentos poderiam ser explicados por simples seqüências de reflexos,
portanto, em sua doutrina, não havia a necessidade de postular algo que permitisse
a fixação das modificações destes em circuitos neuronais através de processos
moleculares. Talvez isso explique porque, em sua vasta obra, Pavlov faça tão poucas
referências diretas à memória enquanto função específica
64
.
O mapeamento cerebral parte de uma série de procedimentos que utilizam
principalmente a eletro-definição para configurar quais seções do cérebro entram
em atividade mais intensa em determinada situação hormonal e/ou neuro-
63
Com Vladimir Brekhterev, Pavolv foi o maior pesquisador da reflexologia na Rússia do século XX. Seu
trabalho sofreu intensas críticas desde o surgimento da psicanálise moderna, mas é inegável a contribuição de
seus estudos sobre condicionamento, associação e categorias de reflexo para a neurologia atual.
64
Pavlov também fez uma descoberta imprescindível para o entendimento da memória em relação aos demais
estados de ânimo: a de que o ser humano grava melhor e tem menos tendência a esquecer a memórias de alto
conteúdo emocional, às quais ele chamava de “biologicamente significativas”.
91
humoral. A abordagem ganhou força a partir dos anos 60 e 70, com o
aprimoramento das máquinas de tomografia computadorizada e eletro-
encefalograma, e a possibilidade de visualização por termo-coloração da
intensidade de trabalho em cada setor do cérebro. Tais máquinas foram projetadas
como parte de toda uma corrida da engenharia neuro-cibernética mundial no
sentido de aprimorar a microscopia para desvendar os mistérios das ciências
biomoleculares, cujo objetivo maior seria a decodificação total do genoma humano.
Por isso, em alguns momentos de nossa tese, faremos referência a cientistas de
diferentes países sobre a autoria de uma ou outra descoberta, pois suas
investigações correram simultaneamente e pode ser arriscado atribuir a
paternidade exclusiva de uma descoberta a apenas um pesquisador em particular.
Dentre os novos experimentos referidos, devemos destacar, pelo menos, dois
processos eletrofisiológicos descobertos e descritos já na década de 1970 pelos
pesquisadores Timothy Bliss e Graham Collingridge (de Londres), Uwe Frey e
Klaus Reymann (da Escola de Matthies), Aryeh Routtenberg (de Chicago) e Eric
Kandel (de Nova York): a potenciação de longa duração e a depressão de longa
duração
65
. Por meio desses processos, foi possível, pela primeira vez, medir e
documentar a organização bioquímico-fisiológica do cérebro em atividade de
fixação de registros não por alguns minutos apenas, mas por horas, semana e até
meses. Assim, toda noção de amplitude da capacidade mnemônica cerebral teve de
65
A potenciação consiste no persistente aumento das respostas dos neurônios à estimulação breve e repetitiva
de um axônio ou grupo de axônios que fazem sinapses com elas. A depressão é a inibição perene de uma
determinada resposta sináptica em conseqüência da repetida estimulação de uma via aferente (que leva
alguma informação ao cérebro). Toda uma série de comportamentos antecipada por Pavlov encontram aqui a
sustentação neuroquímica que lhes faltava.
92
ser revista, e teve início uma nova classificação das “memórias” conforme sua
duração e região de processamento. Vamos descrevê-las.
A memória de trabalho é um mecanismo extremamente fugaz de fixação,
dura apenas alguns segundos, no máximo minutos, e não produz arquivos. Ela
serve para “dar um panorama” das informações, combinando-as com extrema
velocidade e fornecendo os dados iniciais que contextualizam a situação e definem
se vale à pena ou não sintetizar uma nova memória sobre o material aferido.
Também é chamada de memória imediata, e depende fundamentalmente da
atividade elétrica do córtex pré-frontal (localizado na frente da área motora)
66
e da
porção mais anterior do lobo frontal, necessitando de poucas alterações
bioquímicas para ser ativada. A perda de informações da memória de trabalho é
considerável, e é perfeitamente natural que seja assim, uma vez que a natureza de
sua atividade consiste em realizar um levantamento exaustivo e imediato de
combinações de dados para serem eliminados conforme as necessidades do
indivíduo diante da situação. Por tanto, essas perdas não podem ser consideradas
como um esquecimento real, já que estão programadas e previstas na hierarquia de
funções do sistema nervoso central.
Essa memória, ainda que pareça “rasa”, é muito importante para a saúde
mental, pois funciona como uma “gerenciadora da realidade”, coordenando a
atuação das demais memórias subjacentes. Através dela, a informação permanece
“viva” até ser incorporada pelos outros sistemas mnemônicos (através do córtex
entorrinal) ou descartada pela mente. Também vem da memória de trabalho a
66
Em casos de lesões em neurônios pré-frontais, a memória de trabalho também cessa. Por isso, é comum
pacientes com lesões acidentais nessa região passarem a desenvolver comportamentos paranóicos, ou crises
esquizofrênicas.
93
capacidade do cérebro em identificar rapidamente situações de risco, e reagir a elas
com eficiência. A memória de trabalho, no entanto, não deixa traços neuroquímicos
ou comportamentais.
As memórias que produzem arquivos, ou seja, aquelas que registram fatos,
eventos ou conhecimentos são chamadas memórias declarativas (por que nós
podemos declarar que existem e relatar como as adquirimos). Entre elas, aquelas
que se referem a eventos aos quais assistimos, ou dos quais participamos recebem
o nome de episódicas (ou autobiográficas); e aquelas que envolvem conhecimentos
gerais são denominadas semânticas.
Existem, ainda, as memórias procedurais (ou memórias de procedimentos),
que estão envolvidas com as habilidades ou capacidades motoras de cada
indivíduo, e com o que costumamos chamar de “hábitos”. É forçoso classificá-la
como declarativas, uma vez que não sabemos exatamente descrever todo processo
que envolve a execução física de um trabalho, como andar de bicicleta, por
exemplo. Mas não há complicação no instante de execução da tarefa: a seqüência
de mecanismos necessários é prontamente resgatada e acionada.
Alguns autores modernos
67
dividem as memórias entre explícitas e
implícitas. As memórias que adquirimos sem perceber são tidas como implícitas, e
aquelas adquiridas com plena intervenção da consciência, são explícitas. A
memória procedural, geralmente, é implícita, enquanto a semântica quase sempre
é explícita. Essa classificação, no entanto, não é totalmente aceita, dado a flutuação
entre os campos que caracteriza os processos de aprendizado em geral. É mais
67
J. M. Danion, T. Meulemans, F. Kauffmann-Müller, H. Vermaat. Intact implicit learning in
schizophrenia. American Journal of Psychiatry, 158, pp 944-948, 2001.
94
comum acreditar que as informações se processam geralmente na tensão entre tais
limites.
Tanto as memórias episódicas como as semânticas necessitam de uma boa
memória de trabalho para se construírem, e, por tanto, de um bom funcionamento
do córtex pré-frontal. As principais estruturas nervosas que participam de seu
funcionamento são duas áreas intercomunicadas do lobo temporal: o hipocampo e
o córtex entorrinal. Essas regiões trabalham associadas entre si, e em comunicação
com outras áreas do córtex, como o córtex cingulado e o córtex parietal.
A modulação das memórias declarativas, porém, acontece principalmente
em outra região, situada na área basolateral do núcleo amigdalino (ou amígdala) e
nas grandes regiões controladoras dos estados de ânimo (os grandes responsáveis
pela saúde das memórias): a substância negra, o lócus cereulus, os núcleos de Rafe
e o núcleo basal de Meynert. Os axônios dessas últimas duas regiões atingem o
hipocampo, a amígdala, e os córtices entorrinal, cingulado e parietal, e são
responsáveis pela liberação dos neurotransmissores dopamina, noradrenalina,
serotonina e acetilcolina. Assim, podemos perceber que as memórias declarativas
estão mais sujeitas aos estados neuro-humorais.
Existe um tipo de memória que não se encaixa exatamente em nenhuma das
categorias anteriores, que é a capacidade de evocar informações por meio de
“dicas”, fragmentos de imagens, palavras, gestos ou sensações. É conhecida como
priming, expressão para a qual não existe uma tradução apropriada em português.
A existência do priming comprova que muitas memórias declarativas ou
procedurais são adquiridas originalmente de duas maneiras paralelas: uma
envolvendo um conjunto relativamente grande de estímulos, e outro utilizando
95
apenas “pedaços” desses conjuntos. É um tipo de memória que se processa
essencialmente na região neocortical, além do córtex pré-frontal e das áreas
associativas. É comprovado que pacientes com lesões corticais profundas
apresentam deficiência desse tipo de memória, e necessitam de mais fragmentos do
que o normal para evocar uma informação.
As memórias também podem ser classificadas pelo tempo que duram. As
memórias declarativas de longa duração levam muito tempo para serem
consolidadas. Nas primeiras horas após sua aquisição, estão suscetíveis à
interferência de inúmeros fatores: traumatismos, drogas ou mesmo outras
memórias. A exposição a um ambiente novo dentro da primeira hora de aquisição,
por exemplo, pode deturpar seriamente ou até cancelar a formação definitiva de
uma memória de longa duração, o mesmo ocorrendo mediante uma batida ou um
choque.
Convencionou-se chamar de memória de curta duração à memória que
dura poucas horas, exatamente o tempo necessário para que a memória de longa
duração comece a se consolidar. Por quase um século, se discutiu se a memória de
curta duração era mesmo uma categoria mnemônica própria ou uma fase inicial da
memória de longa duração. Atualmente, já se sabe que a primeira hipótese é a
correta, pois ainda que a memória de curta duração utilize as mesmas estruturas
nervosas que a de longa duração, seus mecanismos neuroquímicos são distintos e
particulares. Outra característica peculiar é que a memória de curta duração, ao
contrário da de longa, é bastante resistente aos agentes que afetam a consolidação
das informações.
96
Por fim, há as memórias que duram muitos meses ou anos, conhecidas por
memórias remotas. Tais memórias são geralmente resistentes por estarem
associadas a emoções intensas (“biologicamente significativas”, como Pavlov
preferia). Isso explica porque é tão comum idosos lembrarem mais claramente de
eventos da juventude do que do passado recente.
Podemos, portanto, concluir que as áreas responsáveis pela construção e
evocação da maior parte das memórias são o hipocampo e o córtex circundante do
lobo temporal. O hipocampo é uma área filogeneticamente antiga do córtex
temporal e que tem várias funções. A principal é produzir e evocar memórias, ou
induzir o resto do córtex cerebral a fazer o mesmo (partindo das regiões vizinhas a
ele). A região imediatamente mais próxima, e, portanto, de importância crescente
na formação das memórias, é o córtex localizado abaixo do hipocampo no lobo
temporal, denominado de entorrineal. Ele se interliga por meio de um considerável
volume de fibras nervosas tanto às demais regiões do córtex cerebral como ao
núcleo amigdalino, também localizado no lobo temporal, e gerenciador das
substâncias que desencadeiam e controlam as emoções. Dessa forma, o córtex
entorrineal possui conexões de ida e volta com o resto do córtex, o hipocampo e o
núcleo amigdalino, e promove o fluxo necessário entre imagens sensoriais novas,
armazenadas e entre estados de ânimo específico para a construção de cada
registro.
Os mecanismos bioquímicos envolvidos nas sínteses realizadas por essas
estruturas para formação e evocação da memória são bastante individualizados e já
estão devidamente rastreados. Na formação das memórias pelo hipocampo,
participam a expressão gênica, a síntese protéica e várias vias metabólicas
97
vinculadas. Conforme o tipo de memória, tais processos bioquímicos são
necessários também na amígdala basolateral e em várias outras localizações do
córtex cerebral. Na expressão das memórias (lembrança, evocação) atuam algumas
dessas vias bioquímicas, mas não há ativação gênica nem síntese protéica. Da
mesma forma, a memória de curta duração não requer síntese protéica nem
expressão gênica, mas utiliza diversas vias metabólicas geralmente distintas
daquelas utilizadas pela memória de longa duração. Sua formação acontece em
alguns segundos ou minutos a partir das informações da memória de trabalho, e
sua atividade molecular é bem mais simples do que aquela envolvida no
processamento de memória de longa duração. Ela funciona, quase exclusivamente,
nas áreas restritas ao hipocampo e ao córtex entorrineal.
A aquisição das memórias é um fenômeno que envolve tantas variáveis que
justifica a impossibilidade de uma experiência ser igual para dois indivíduos. Em
primeiro lugar, temos a peculiaridades do aparato sensorial de cada um. Cada
corpo é único, e daí advém sua zona de contato com o mundo e a intensidade e
natureza das informações aferidas e eferidas pelo seu organismo. Cada experiência
e “lida” pelo sistema nervoso periférico e conduzida ao sistema nervoso central
para ser traduzida em um hiper-complexo código de substâncias químicas,
responsáveis pela produção dos registros e pela forma como os classificamos.
Nesses processos, muitas das memórias são adquiridas por meio da
associação de um estímulo com outro estímulo, ou de um estímulo com uma
resposta. Novamente voltamos a Pavlov, que, já no século passado, observou que a
resposta mais comum dos animais a um estímulo ou a um conjunto de estímulos
novos (não dolorosos) era uma reação de orientação, que ele chamou reação de “o
98
que é isso?”. A repetição do estímulo leva á supressão gradual da reação de
orientação, ao que chamamos habituação. Essa é a forma mais simples de
aprendizado e de construção da memória, que surge a medida em que a reação
imediata pode ser suprimida dada a identificação do estímulo.
Pavlov estabeleceu, ainda, que nos aprendizados associativos, se um
estímulo novo é equiparado a outro de significado biológico semelhante (dor,
prazer, etc.), a resposta ao primeiro pode mudar, e ficar condicionada ao segundo.
Assim, os estímulos neutros cuja resposta muda por sua associação com outros
passam a ser chamados estímulos condicionados, e a resposta nova a esse estímulo,
resposta condicionada. Aqueles estímulos que permanecem “fiéis” a suas respostas
são chamados estímulos incondicionados, e suas repostas, por conseguinte,
respostas incondicionadas.
Toda ligação entre um estímulo e uma resposta é denominada de reflexo.
Pavlov foi o grande teórico da aprendizagem associativa do século passado, quando
documentou esse modus operandi cerebral através de incontáveis experiências
com várias espécies animais além das cobaias tradicionais. A apresentação de uma
resposta condicionada a um estímulo neutro, que a princípio não a produzia,
chama-se reflexo condicionado. Podemos afirmar, portanto, que todo aprendizado
associativo se baseia na construção de reflexos condicionados, de uma forma ou de
outra.
E, certamente, tão importante quanto a faculdade do registro é a faculdade
do esquecimento. O esquecimento é um fenômeno que desempenha papel
adaptativo na estruturação a mente. Não há dúvida de que esquecemos a grande
maioria do material experimentado. Ele é o mecanismo que nos permite selecionar
99
as informações que devem realmente participar do processo de consolidação, e em
que nível. Mas ele também pode se apresentar como conseqüência de um trauma
de qualquer natureza, e ser uma reação da psiquê humana a um impacto maior do
que sua estrutura afetiva pode suportar. De toda forma, é uma das mais eficientes
defesas do cérebro contra a sobrecarga, tanto no que se refere à quantidade de
informação, quanto à sua qualidade. Essa forma de esquecimento, provocada por
traumas psicológicos, também é denominada repressão.
Essas são, basicamente, as categorias adotadas para tratar da memória na
neurociência contemporânea. Os mecanismos que explicam sua formação estão
cada vez mais claros para a Medicina, e a contribuição de tais descobertas para
todas as áreas do aprendizado são incalculáveis. Por meio da potenciação e da
depressão de longa duração, por exemplo, já é possível, há mais de uma década,
monitorar não só as áreas, mas uma grande quantidade dos receptores,
neurotransmissores e neuromoduladores envolvidos na consolidação da memória
de longa duração. E seria impossível não destacar a revolução que representou para
o diagnóstico de imagem a Ressonância Magnética Nuclear, técnica que permite
medir a ativação metabólica de uma ou outra região do cérebro quando o indivíduo
está formando ou recordando memórias de um ou outro tipo, relativas a uma
situação em que não mais se encontra.
Essas técnicas, contudo, ainda não são capazes de identificar quais passos
metabólicos são modificados, nem detalhar o funcionamento das áreas que
participam de diversas atividades mentais, como o córtex pré-frontal, por exemplo.
E eis um dos grandes problemas de sua aplicação imediata ao aprendizado das
100
Artes: não permitem definir o tipo de reação que o indivíduo irá manifestar
mediante determinado estímulo.
Antes de entrarmos especificamente na questão das Artes, há ainda que se
ressaltar as restrições na utilização do mapeamento cerebral como técnica de
aplicação direta no estudo da linguagem, que interessa a nossa área de
investigação. Uma pesquisa exemplar conduzida pela Profa. Lêda Tomich nos
Estados Unidos utilizou uma ferramenta de ponta, a Ressonância Magnética
Funcional, para medir a intensidade e a localização da atividade cerebral durante a
execução da tarefa de identificar os pontos principais na leitura de um texto. Ela
utilizou oito alunos de graduação da Universidade de Carnegie Mellon, e usou
como estímulo experimental doze parágrafos de textos da língua inglesa, língua
nativa dos alunos.
Para realizar sua pesquisa, a professora fez um levantamento das
publicações já existentes sobre o tema, e o resultado foi um número razoável de
estudos sobre a leitura de uma palavra, pouquíssimo estudos sobre a leitura de uma
oração completa e quase nenhum sobre a compreensão de textos. E mesmo o
resultado de sua pesquisa apontou dados que dizem muito mais respeito às
neuropatologias dos alunos do que ao ensino da leitura ou da fala.
Encontramos, portanto, dois problemas cruciais que limitam a aplicação
direta das novas descobertas da neurociência da mente ao ensino. O primeiro diz
respeito à pouca utilização dessas técnicas para fins que não sejam de diagnóstico e
tratamento de doenças ou lesões. Portanto, a ponte que une as descobertas
realizadas até hoje na área às práticas da cena é longa, e abre espaço para todo o
tipo de especulação conforme a hipótese a ser defendida. O segundo, e talvez mais
101
complexo, consiste na incapacidade de se prever que tipo de reação o indivíduo
apresentará diante de cada categoria de estímulo cerebral.
Saber a área do cérebro que está em atividade em cada situação permite
definir uma tendência de comportamento, mas não as ações que serão praticadas
nesse estado. Uma pessoa com baixa dosagem de serotonina pode tanto chorar
desesperadamente por horas quanto pegar uma arma e matar alguém. E, nas artes
performáticas, como sabemos, interessa a ação física da cena.
Seria possível até mesmo uma experiência de monitoramento com eletrodos
de um performer em seu processo de criação. Com a tecnologia atual, seria
perfeitamente viável. Poderia-se documentar cada etapa de trabalho e definir quais
áreas estariam envolvidas em cada instante. Mas qual seria a contrapartida
pedagógica de tais descobertas? Primeiramente, esse mapa seria restrito
exclusivamente ao processo daquele performer naquele trabalho específico, não
constituindo material de estudo reaproveitável para mais ninguém. E, de toda
forma, saber quais áreas do cérebro participam de um estágio de criação não é de
grande valia nem mesmo para o performer reproduzir os passos, uma vez que essa
informação sozinha não permite alavancar os estados internos desejados. Em
outras palavras: conhecer o mapa cerebral de cada imagem não ajuda a resgatá-la,
nem mesmo a produzir novas informações emocionais ou sensoriais.
O exercício da memória para a criação do performer é infinitamente mais
complexo do que o mapeamento cerebral puro pode conceber. Não estamos
tratando de diagnosticar doenças ou falhas que ocupam lugares específicos da
mente. Estamos trabalhando com linguagens que nem mesmo podem ser
102
classificadas ou compreendidas pela lingüística strictu sensu, para as quais não há
certo ou errado.
Para estimular determinado estado psíquico, não basta saber em qual área
do cérebro ele se desenvolve. O aprendizado das experiências é um fenômeno vivo,
que interfere permanentemente na construção das memórias, seja para evocar ou
para apagar informações. Não há neuroquímica que produza um resultado se o
indivíduo não tem um repertório diversificado de experiências emocionais e uma
capacidade criativa que lhe permita simular as experiências que não provou. É de
uma psiquê rica em informações e permeável à estimulação artística que poderá
emergir o material para a performance, independentemente de quais regiões
cerebrais estarão envolvidas.
Diante de tais considerações, o que justifica o estudo da neurocognição
moderna para o trabalho do performer? Acreditamos, no esclarecimento que as
novas tecnologias podem trazer sobre a construção de um relato, especialmente no
que diz respeito ao trauma e a repressão, além da iluminação científica acerca da
real cooperação entre as faculdades mediante a observação das zonas cerebrais que
entram em atividade no trabalho criativo, o que não é pouco.
O trauma é por princípio uma vivência cuja intensidade trouxe um
sofrimento maior do que o aparelho psíquico poderia suportar. Diante do fato
traumatizante, ocorre um bloqueio de informações relacionadas à vivência, que
pode ser imediato ou pode se construir ao longo dos anos (como no caso de presos
expostos a sessões de torturas periódicas que entram em surto só de ouvir o
caminhar de alguém calçando botas).
103
A sucessão de traumas pode levar a um esquecimento crônico e patológico
de momentos importantes da história do indivíduo, sem os quais se compromete a
própria formação de sua identidade. Pessoas que sofreram experiências
traumáticas na infância incorrem involuntariamente ao esquecimento como
mecanismo de defesa em situações que seriam minimamente estressantes para um
indivíduo sem traumas, o que nos revela que o exercício da lembrança é por si só
um sofrimento insuportável para o traumatizado.
O mapeamento cerebral e as tomografias e ressonâncias magnética e nuclear
permitem identificar quais áreas do cérebro estão comprometidas com o trauma e
com o esquecimento em geral. A partir dessa identificação, torna-se mais fácil
definir o tipo de tratamento químico para cada indivíduo, além das terapias de
apoio (que, sozinhas, nem sempre resolvem casos mais avançados). Tais exames
revelam também a ausência ou excesso de substância químicas envolvidas nesses
processos, o que permite a aplicação correta dos remédios contra-balanceadores.
Nesse âmbito, de curar as patologias mais profundas relacionadas à
memória, é que encontramos a ponte imediata e comprovadamente possível de ser
estabelecida entre a neurobiologia moderna e a criação do performer, sem
corrermos o risco de especulações pseudo-deterministas. Se o esquecimento é o
principal destruidor de nossos relatos, e a memória, a matriz de toda a criação, a
neuroquímica moderna pode objetivamente resgatar repertórios e libertar canais
mnemônicos que antes de conduzirem à produção artística, reintegram a saúde
mental do indivíduo, e o colocam em melhor disposição para a criação.
104
PARTE 2 Da faculdade ao fluxo: a memória como recriação do vivido
Iniciamos nosso trabalho introduzindo ao leitor uma genealogia, tão
sintética quanto possível, do estudo da memória em algumas das mais
representativas tradições do pensamento humano desde a antigüidade até a era
moderna. Pretendemos, com tal apresentação, esclarecer como chegamos ao
estatuto ontológico da atividade mnemônica assumido pelas ciências e pela
filosofia na contemporaneidade, e, ao mesmo tempo, revelar que a problemática
envolvendo a polaridade retenção/criação é tão antiga quanto a filosofia clássica.
Tal problemática não poderia ser resumida em linhas gerais na nossa tese, pois
abarca precisamente o conjunto de questões que dizem respeito à formação do
conceito de depoimento pessoal que desejamos construir.
Até então, portanto, observamos como a memória foi analisada e
posicionada pelo pensamento humano até a modernidade: uma função de atributos
claramente delimitados, a faculdade da retenção (ainda que, como já vimos
anteriormente, a teoria humeana abra espaço para revisões mais arrojadas nesse
sentido, como aquela empreendida por Deleuze e resgatada no segundo capítulo da
primeira parte). O depoimento pessoal é um enigma de difícil solução para tais
teorias, pois demanda a combinação de conteúdos da memória, da percepção e da
imaginação em operações que tensionam as fronteiras de ação estabelecidas para
delimitar as faculdades arborescentes. O substrato teórico que permite sua
explicação só surgiria no final da era moderna, mais especificamente, na filosofia
do século XX, em que os limites entre as artes, a psicologia e a filosofia foram
irreversivelmente colocados à prova.
105
A partir das considerações sobre tempo e movimento de subjetivação no
tempo propostas por Henri Bergson, nos aproximamos da base filosófica que
efetivamente sustenta e justifica a hipótese de nossa tese. Na teoria bergsoniana, a
memória está formalmente assumida como criação, cuja perspectiva supera tanto a
abordagem retentiva que marca o pensamento moderno emergente, como a teoria
da reminiscência no inatismo platônico e as especulações racionalistas e
empiristas. A memória é levada à fronteira da percepção e da imaginação pela
observação da ação no tempo e de nossa relativa compreensão sobre este, até que
seus limites funcionais sejam revistos por outros critérios externos às suas
atribuições.
A atividade mnemônica se dá na sua prolongação com o presente, dada na
experiência atual. Em parte, ela consiste em todos os conteúdos detalhadamente
registrados, armazenados pelos sentidos e selecionados pelos afetos: a memória em
sua acepção clássica, como persistência do vivido. Mas ela também é criação
quando se coloca em atividade para responder às necessidades do presente,
oferecendo combinações de impressões como sínteses mais ou menos prováveis
para a solução das questões.
Veremos como esse processo constitui a gênese da noção de memória não
mais como evocação do passado fenomenológico, passível de todas as imprecisões
que implicam em registrar algo que não está mais apresentado aos sentidos (a
retenção), mas como recriação permanente do vivido em circuitos permeáveis. Ou
seja, podemos afirmar que, pela teoria bergsoniana, o estudo da memória encontra
uma nova e consistente perspectiva que permite contemplar a natureza ativa e
criadora da memória sem que precisemos creditar aos outros domínios da mente
106
tal atividade. Mais do que isso, abre espaço para que pensemos a cooperação entre
as faculdades em tal nível de interação que torna o próprio conceito de faculdade
enquanto reduto operacional da mente obsoleto. Reconhecer a natureza criadora
da memória significa admitir que a afetividade e a intelecção se combinam no
trabalho sobre o tempo; é assumir o ser como intuitivamente criativo na maneira
de administrar seus conhecimentos, e é esse olhar que Bergson nos oferece.
Ainda é possível, no entanto, identificar, em suas reflexões, não a ruptura,
mas a superação em continuidade das tradições anteriores de estudo da memória
pela preservação da premissa dualista, problematizada em um nível mais complexo
do que nos pensamentos apresentados até então. Diferentemente do que
identificamos na atitude filosófica pós-estruturalista e na teoria da comunicação
cibernética, cujo paradigma conceitual oferece os subsídios por meios dos quais
amadurecemos a noção de memória não mais como faculdade, mas como fluxo.
Deleuze, Guattari, Éric Alliez e Pierre Lévy retomam as premissas
bergsonianas para pensar a memória nos termos de presença e não-presença, e na
simultaneidade dos fenômenos para além do todo dualismo, no campo das
multiplicidades e das suspensões ativas. A existência e seus eventos são tomados na
perspectiva multidimensional e não-transcendental, em que matéria e potência são
instâncias paralelas de uma mesma entidade em devir. O universo não está mais
disposto em termos de experiência e transcendência, aqui/agora e além, mas como
plano de consistência das multiplicidades concomitantes que forma o mapa fluido
de estratos e rizomas.
Essa nova cartografia filosófica impõe uma revisão completa não só dos
conteúdos que atribuímos aos conceitos, mas igualmente das formas que tais
107
conceitos adquirem quando se privilegia a flutuabilidade da relação sobre a
concretude da significação. O tempo e o espaço ganham novos sentidos pela
dinâmica das relações rizomáticas do plano. Tudo que reconhecemos como
essência ou estrutura são adensamentos temporários de ordens diversas,
compreendidos na transitoriedade do devir. Os seres não são indivíduos, mas um
conjunto de estratos móveis em conexão intensa com outros conjuntos de estratos,
criando uma grande rede de inteligências afetivas, orgânicas, morais, moleculares.
etc. A memória, o corpo e todas as faculdades humanas compreendidas até então
são redefinidas pela complexidade das relações do fluxo, em que virtual e atual
surgem como operadores substitutivos para a polaridade corpo-espírito.
Apresentamos, pois, o quadro teórico pelo qual fundamentamos a natureza
criadora e processual da memória. O depoimento pessoal encontra a abordagem
que efetivamente contempla a complexidade e multidisciplinariedade que envolve
sua formação. Veremos que o depoimento é exatamente a memória criadora
atualizada pelas forças naguais e tonais espeficas de cada processo criativo. A
qualidade do depoimento, sua expressão cênica, sua disposição global enquanto
obra, estão absolutamente comprometidas com a maneira como os virtuais de
memória são pressionados para a atualização em cada processo.
Os agenciamentos que envolvem a criação de uma personagem são pouco
semelhantes àqueles que produzem uma performance como Ritmo O, de Marina
Abramovic, ou à exposição de um testemunho em vídeo-depoimento, criações que
desejam suprimir a fábula de seus relatos. Os diferentes processos conduzem a
maneiras particulares do pelas quais o performer expõe sua história pessoal, e
atestam, precisamente, a enorme capacidade criadora que a memória nos oferece.
108
Capítulo I - A mnemo-criação perceptiva em Bergson
Dentre os filósofos modernos, destacamos Henri Bergson do capítulo
anterior basicamente por que, em sua obra, a memória não é um apêndice da teoria
do conhecimento em suas possíveis relações, mas um objeto qualificado para
observação per se a partir de cujo estudo se pode construir outra perspectiva
verdadeiramente inovadora acerca das relações corpo-espírito além das que já
vimos até aqui. De fato, será com Bergson e sua revisão sobre as fronteiras dos
atributos das faculdades e sua relação com a extensão que o conceito de memória
criadora que desejamos construir para compreendermos o funcionamento do
corpo-memória na performance ganhará fôlego e sustentação. No pensamento
bergsoniano, os limites entre percepção e memória, e entre memória e imaginação
se desfiguram e derrubam a idéia de pureza das funções arborescentes à luz de uma
abordagem dos processos não mais por concepções exteriores a respeito de seus
locais e funções, mas pela manipulação de vetores internos aos conceitos, tais como
tempo, espaço e corporalidade.
Em sua principal obra de referência sobre o tema, Matéria e Memória,
Bergson inicia o primeiro capítulo, a análise da seleção das imagens, endossando a
conclusão com que encerramos nossas reflexões sobre o empirismo no capítulo
anterior:
“Na verdade, não há percepção que não esteja impregnada de
lembranças. Aos dados imediatos e presentes de nossos sentidos,
misturamos milhares de detalhes de nossa experiência passada.
Na maioria das vezes, estas lembranças deslocam nossas
percepções reais, das quais não retemos mais do que algumas
indicações, simples “signos” destinados a nos trazer à memória
antigas imagens.”
68
68
Op. Cit., p. 30.
109
Partamos, pois, de uma contribuição fundamental de Bergson ao
associacionismo de Hume: o papel da consciência. A consciência está no cerne da
passagem do objeto puramente existente a um objeto percebido e transformado em
representação. É por esta que escolhemos da totalidade de ações percebidas
aquelas que podem ser representadas, fenômeno que, se por um lado amplia em
muito a noção do “percebido” (não mais uma imagem fotográfica, mas uma
multiplicidade de imagens sensoriais para cada qualidade do vivido
69
), por outro
estabelece um critério de seleção que qualifica a atividade perceptiva. Representar
é, portanto, qualificar subjetivamente o percebido. Em outras palavras:
“Isso equivale a dizer que há para as imagens uma diferença de
grau, e não de natureza entre ser e ser conscientemente
percebidas. A realidade da matéria consiste na totalidade de seus
elementos e de suas ações de todo o tipo. Nossa representação da
matéria é a medida de nossa possível ação sobre os corpos; ela
resulta da eliminação daquilo que não interessa a nossas
necessidades e, de maneira mais geral, nossas funções. Num
certo sentido, poderíamos dizer que a percepção de um ponto
material inconsciente qualquer em sua instantaneidade, é
infinitamente mais vasta e mais completa que a nossa, já que esse
ponto recolhe e transmite ações de todos os pontos do mundo
material enquanto nossa consciência só atinge algumas partes
por alguns lados. A consciência, no caso da percepção exterior,
consiste precisamente nessa escolha.”
70
Essa noção de representação como síntese seletiva (e não apreensão
passiva/generalizada-generalizante) da experiência abre novos caminhos para se
pensar o papel dos afetos. Em Bergson, não é na imaginação enquanto nicho de
operação isolado que serão recombinados os elementos da
69
“Mas como não ver que a fotografia, se fotografia existe, já foi obtida, já foi tirada no próprio interior das
coisas e de todos os pontos do espaço? Nenhuma metafísica, nenhuma física pode mesmo furtar-se a essa
conclusão. Componha-se o universo com átomos: em cada um deles faz-se sentir, em qualidade e em
quantidade, variáveis conforme a distância, as ações exercidas por todos os átomos da matéria. Com centros
de força: as linhas de força emitidas em todos os sentidos por todos os centros dirigem a cada centro as
influências do mundo material inteiro. Com as mônadas: cada mônada, como o queria Leibniz, é o espelho do
universo”. Op. Cit., p. 36.
70
Op. Cit., pp. 35-36.
110
percepção/entendimento com os conteúdos afetivos. A percepção é cada vez menos
um aprendizado “puro”, do quais podem se extrair informações sobre a forma de
impressão objetiva. Os próprios sentidos, a extensão, o corpo reverbera o afeto e
atua já no instante mesmo da vincia dos sentidos. Como vemos a seguir:
“Mas esperamos precisamente mostrar que os acidentes
individuais estão enxertados nessa percepção impessoal, que essa
percepção está na própria base do nosso conhecimento das
coisas, e que por havê-la desconhecido, por não a ter distinguido
daquilo que a memória acresce ou suprime nela, que se fez da
percepção inteira uma espécie de visão interior e subjetiva, que
só se diferenciaria da lembrança por sua maior intensidade.
71
A percepção é naturalmente lacunar. Se somos incapazes de apreender o
todo do universo na efemeridade do “presente” dividido nas unidades arbitrárias
quaisquer que consideremos, e por isso nos valemos da consciência para escolher
afetivamente o que e o como perceber, então se faz essencial uma outra qualidade
do ser que permita preencher essas lacunas da percepção presente com o passado
vivido: a memória. Ela cria uma endosmose com a percepção pela incisão da
consciência, ocupa os espaços das impressões presentes com outros registros
afetivos-informativos, cria uma terceira potência criadora em devir
72
.
Bergson define duas estratégias para essa combinação. A primeira se dá
quando as lembranças contaminam imediatamente o presente, formando-lhe uma
espécie de “fundo de percepção imediata.”
73
A segunda é quando a memória opera
uma pressão sobre todas as impressões passadas e dela extrai uma evocação que se
71
Op. Cit., pp. 30-31.
72
“O papel teórico da consciência, na percepção exterior, dizíamos nós, seria o de ligar entre si, pelo fio
contínuo da memória, visões instantâneas do real. Mas, na verdade, não há jamais instantâneo para nós.
Naquilo que chamamos por esse nome, existe já um trabalho de nossa memória e, conseqüentemente, de
nossa consciência, que prolonga uns nos outros, de maneira a captá-los numa intuição relativamente simples,
momentos tão numerosos quanto os de um tempo infinitamente divisível.”. Op. Cit. p. 73.
73
Op. Cit. p. 31.
111
irrompe sob a forma de evento ou de subjetividade acerca do vivido
74
. Em ambas,
notamos que a separação das categorias tornou-se uma medida muito mais de
direito do que de fato, pois na dinâmica das sínteses mnemo-perceptivas já não é
mais possível distinguir com clareza os produtos do presente e do passado, da
informação e da afecção
75
, tudo é recriação do vivido: “A verdade é que a afecção
não é a matéria-prima de que é feita a percepção, é antes a impureza que aí se
mistura.”
76
(entendendo como já estando nessa mistura também a memória).
Memória e percepção tornam-se movimentos do ser em conhecimento. O
corpo é a fronteira entre passado e futuro, e o passado pressiona o presente pelas
condições do presente, de onde Bergson conclui que o passado sobrevive no corpo
(como delimitação espacial do presente) de duas maneiras: em mecanismos
motores e em lembranças independentes. O corpo é o limite que presentifica. Mas,
paradoxalmente, ilustra pelos dispositivos de sua memória, o deslocamento no
tempo:
“Mas já agora podemos falar do corpo como de um limite
movente entre o futuro e o passado, como de uma extremidade
móvel que nosso passado estenderia a todo momento em nosso
futuro. Enquanto meu corpo, considerado no instante único, é
apenas um condutor que se interpõe entre os objetos que o
influenciam e os objetos sobre os quais age, por outro lado,
colocado no tempo que flui ele está sempre situado no tempo
preciso onde meu passado vem expirar numa ação.”
77
74
A percepção, aqui, está muito mais ligada aos estímulos que cada núcleo percebido propõe ao espírito e que
provocam um movimento de projeção, de contra-atuação do espírito sobre o externo, do que aos fatos ou
eventos por si. Como vemos adiante: “Quantos forem os fios que vão da periferia ao centro, tantos serão os
pontos do espaço capazes de solicitar minha vontade e de colocar, por assim dizer, uma questão elementar à
minha atividade motora: cada questão colocada é justamente o que chamamos percepção.” Op. Cit. p. 44.
75
Como veremos no capítulo seguinte, dependendo da atividade artística desenvolvida, os compromissos
históricos cobrarão um maior ou menos rigor na depuração dos conteúdos informativos, como no caso da
literatura de testemunho.
76
Op. Cit. p. 60.
77
Op. Cit. pp. 84-85.
112
Assim, o reconhecimento se dá ora automaticamente, ora pelo esforço do
espírito, mas em ambos como processo do ser inteiro, e não de faculdades isoladas
que operam enquanto outras repousam. Isso seria inconcebível já que no
desencadear das vivências se forma imediatamente a teia de cooperação da criação
mnemo-perceptiva em devir:
“Contudo, um leve esforço de atenção revelar-me-ia que não há
afeto, não há representação ou volição que não se modifique a
todo instante; se um estado de alma deixasse de variar, sua
duração deixaria de fluir [...] a verdade é que mudamos sem
cessar e que o próprio estado já é mudança [...] cada um deles
(pontos de atenção pelos quais percebemos a vida) não é senão o
ponto mais bem iluminado de uma zona movente que
compreende tudo o que sentimos, pensamos, queremos, tudo o
que somos, enfim, num determinado momento. É essa zona
inteira que, na verdade, constitui nosso estado. Mas de estados
assim definidos, pode-se dizer que são elementos distintos.
Continuam-se uns aos outros num escoamento sem fim.”
78
O sujeito é uma zona de estados diferenciados, mas que se contaminam,
invadem, retro-alimentam, derivam, devém, sem, contudo, perder necessariamente
sua individualidade original. Uma nova abordagem a respeito da ação do tempo é
fundamental para se compreender essa perspectiva e seu efeito na produção da
memória complexa proposta pelo filósofo.
Bergson divide a memória em duas categorias autônomas segundo critérios
de atividade e passividade que nos remetem novamente à Platão, mas com outros
nexos funcionais. Uma qualidade se refere à retenção como já a apresentamos, ou
seja, à capacidade de armazenar todos os eventos e objetos apreendidos com todas
suas particularidades
79
formando um grande histórico pessoal das percepções já
78
Memória e Vida, I. A Duração e o Método. a) Natureza da Duração. 1. A duração como experiência
psicológica, pp 2-3.
79
É interessante observar que as pesquisas sobre lesões cerebrais à sua época levaram Bergson a formular
conclusões bastante particulares sobre o fenômeno do esquecimento. Para ele, tratava-se invariavelmente da
danificação não das memórias em si, mas da capacidade de associar as imagens-lembrança ao presente, como
113
problematizadas pelas implicações dos afetos. São as imagens-lembranças, as quais
nos acompanham permanentemente, mas só vêm ao nosso auxílio em situações
involuntárias, por conexões misteriosas com o presente. Tais lembranças estão
localizadas na ordem do tempo em que foram fixadas e, portanto, estão “intactas”
protegidas pelos conteúdos históricos que a cercam: “A lembrança espontânea é
imediatamente perfeita; o tempo não pode acrescentar nada à sua imagem sem
desnaturá-la, ela conservará para a memória seu lugar e sua data.”
80
Mas há uma outra classe de memória que encontra em seu trabalho no
tempo a diferenciação com a evocação espontânea, e a lança ao campo das sínteses
de conhecimento propriamente ditas. É a memória de percepções que se
prolongam com mais potência nas ações presentes pela afirmação de sua
funcionalidade no presente, a que Bergson denomina reconhecimento. O
reconhecimento é uma memória motora, da ação, que atualiza impressões para
resolver o presente, oferecendo ao sujeito novas sínteses de pensamento a partir do
vivido, permitindo que se criem soluções pela produção de novos conteúdos na
tensão com as problemáticas atuais. Uma memória que imagina, enquanto a
primeira apenas repete:
[...] mas uma memória profundamente diferente da primeira (a
retentiva), sempre voltada para a ação, assentada no presente e
considerando apenas o futuro. Esta só reteve do passado os
movimentos inteligentemente coordenados que representam seu
esforço acumulado; ela reencontra esses esforços passados não
em imagens-lembrança que os recordam, mas na ordem rigorosa
e no caráter sistemático com que os movimentos atuais se
efetuam. A bem da verdade, ela já não nos representa o nosso
passado, ela o encena; e, se ela merece ainda o nome de memória
já não é porque conserve imagens antigas, mas porque prolonga
seu efeito útil até o momento presente. Dessas duas memórias,
uma falha no caminho da percepção, mas não nos conteúdos em si. Vemos no capítulo anterior que o
mapeamento cerebral nos revela realidades outras sobre esse assunto.
80
Matéria e Memória, pp. 90-91.
114
das quais uma imagina e a outra repete, a segunda pode
substituir a primeira e freqüentemente até dar a ilusão dela.”
81
Chegamos à essência do conceito de memória como criação, para além de
todas as atribuições que os projetos filosóficos revistos até agora podem sugerir.
Evidentemente, devemos muito a eles, em particular aos pensamentos platônico e
empirista que nos legaram a idéia de recordação/ação e de sujeito físico
respectivamente, entre outras questões. Porém, é pela reflexão de Bergson que as
faculdades são avaliadas por novos critérios operacionais a partir dos quais é
possível encontrar limites e sentidos que extravasam suas funções inicialmente
definidas.
A utopia do presente é substituída pela consciência do fluxo efêmero e
potente do universo, condensação do Cosmos (numa perspectiva leibniziana) em
unidades de percepção, multiplicidade do representado e do não-representável. A
memória torna-se a percepção no tempo, mas também a criação nesse tempo pelas
necessidades do presente, exigindo o afeto como escolha, necessariamente.
“Portanto, é em vão que se tratam as imagens-lembranças e
idéias como coisas acabadas, às quais se atribui a seguir um lugar
em centros problemáticos. Por mais que se disfarce a hipótese
sobre uma linguagem tomada de empréstimo à anatomia e à
fisiologia, ela não é mais que a concepção associacionista da vida
do espírito; leva em conta apenas a tendência constante da
inteligência discursiva a separar todo progresso em fases e a
solidificar em seguida essas fases em coisas; e, como ela nasceu,
a priori, de uma espécie de preconceito metafísico, não consegue
81
Op. Cit. p. 89. Essa é uma divisão “pura” que Bergson logo admitirá como circunstancial. Existe uma série
de estados intermediários entre os tipos de memória que definem relações específicas do cérebro com o corpo.
Não nos estenderemos demais sobre as classificações de tais estados (como o déja vu e o decorar) para não
nos desviarmos da noção de criação que é a chave da aplicação do pensamento bergsoniano em nosso estudo.
Entretanto, cabe distinguir um importante aspecto: as imagens-lembrança são a base informativa do
reconhecimento atento (pois também pode existir um reconhecimento desatento, cujas etapas de operação não
são verificadas pela consciência ), alimentado-o com os conteúdos preservados. Para maiores detalhes sobre a
conexão entre as memórias, ver capítulo 2, Do Reconhecimento das Imagens, III. Passagem gradual das
lembranças aos movimentos. O reconhecimento e a atenção. Matéria e Memória; e também o capítulo II. A
memória ou os graus coexistentes de duração, em Memória e Vida.
115
nem acompanhar o movimento da consciência nem simplificar a
explicação dos fatos.”
82
Aqui, encontramos a base da memória como recriação do vivido. Uma
recriação que se dá não pelo deslocamento do sujeito para o passado, mas pelo
prolongamento ativo do passado no presente pelas demandas desse presente. Se o
corpo é o limite do tempo e do espaço, a criação mnemônica é a dilatação possível e
o re-posicionamento permanente de tais vetores pelo confronto da experiência
atual com a experiência vivida, tomando “experiência” não mais na acepção de
Hume, mas como a “zona” a que Bergson remete na citação transcrita
anteriormente.
Portanto, a diferença entre memória retentiva (imagem-lembrança) e
memória ativa (reconhecimento, síntese criadora) está também no local em que tal
processo se efetua, o que nos abre caminho para pensar a atualização e a
virtualizão como novos condutores do real, como faremos no capítulo seguinte.
Por ora, é suficiente retomarmos que a memória só pode ser criadora em função
das exigências do presente, e que mesmo essa idéia de presente é inapreensível
como instante, senão enquanto movimento no espaço. Esclarecida a premissa,
expliquemos mais detalhadamente o trânsito das informações.
Há um aspecto sobre a percepção em Bergson que, em certa medida, é
tributário da perspectiva empirista clássica. A percepção não é só a apreensão
(representativa ou não) aferente do exterior, mas a reflexão eferente da imagem
sintetizada, na complexidade de operações já descrita, no corpo, e daí pra o
entorno. Em outras palavras: é também a volta da imagem subjetivada à extensão e
82
Matéria e Memória, p. 145.
116
ao espaço externo. É essa percepção que atua que permite compreendermos os
movimentos do corpo-espírito pelo tempo como a teoria nos propõe, e que sustenta
a proposta da memória como criação.
A experiência presente é a estimulação permanente do ser pelo exterior em
todos os âmbitos possíveis. Perceber já é devolver ao meio as respostas possíveis e,
acima de tudo, preferíveis a tais provocações sob a forma de novas provocações.
Imprimir pressupõe marcar, invadir, desterritorializar o sujeito e receber as
contrapartidas da invasão, que são as contra-invasões ao ambiente externo.
Portanto, a percepção não pode mais ser apenas impressão do mundo no corpo-
espírito, mas contra-impressão do corpo-espírito no mundo. Um movimento de
recepção e reflexão no tempo e no espaço que transfigura as fronteiras entre sujeito
e meio, entre corpo físico como presentificação e ser-no-fluxo pelas percepções
reflexivas. Sujeito em devir e exterior em devir pelas particularidades da
experiência e pelas escolhas que formam a memória ativa.
O reconhecimento atento, aquele que pode ser compreendido
verdadeiramente como uma operação de síntese, pois implica na identificação
consciente das imagens-lembranças relacionadas e na tomada de posição sobre os
fatos que constroem a memória, cria um circuito de associações em que o objeto vai
se revelando cada vez mais profundamente à medida que a memória lhe preenche
pela dinâmica de evocações. Lembremos que cada objeto (ou evento) é uma
questão que provoca a memória, exige respostas às suas “incompletudes”, às suas
dubiedades, às suas lacunas: ao não-dado no dado.
Para Bergson, esse espaço onde reside a memória não é uma linha de
passado, mas um caldeirão em fluxo. Cada “questão”, como agora a entendemos,
117
pressiona o todo da memória, sem que haja alguma linearidade arbitrária
apriorística de seleção, de onde nasce a imagem do cone de Bergson.
No cone, a parte mais aberta se direciona ao espaço da memória que não
está no corpo (pois também esse é uma imagem), mas que passa por ele, e abarca
todos os seus conteúdos. Este vai afunilando ate encontrar um ponto específico do
presente, que chamaremos P, representado por um plano. Vemos que o gráfico do
trânsito não é uma linha em que as imagens se organizam umas atrás das outras,
mas um grande universo de imagens misturadas que é internamente pressionado
até que de lá se expresse algum material e não outro
83
.
Essas lembranças, porém, se relacionam de forma particular dentro do cone.
Considerando uma imagem como um segmento AB que vai de uma lateral a outra
da figura, temos diversos segmentos com qualidades diferentes conforme a
proximidade ou afastamento em relação ao vértice de pressão do presente. Esses
novos segmentos, que seriam A’ B’, A”B”, sucessivamente, estão cada vez mais
afastados do corpo físico (as experiências motoras e sensoriais) e,
conseqüentemente, da imagem AB original. São recriações do vivido por meios de
novas combinações da memória a partir dos conteúdos da experiência sensório-
motora vivenciada no ponto P, os desdobramentos da ação da memória criadora.
Retoma-se a perspectiva associacionista, mas com critérios mais claros sobre
a seleção dos materiais. É evidente que todas as percepções se relacionam por
similaridade, contigüidade, causa e efeito, ou seu negativo, e que daí nasce a
capacidade do espírito de estabelecer generalizações e abstrair diferenças. Mas são
83
“O erro constante do associacionismo é substituir essa continuidade do devir, que é a realidade viva, por
uma multiplicidade descontínua de elementos inertes e justapostos.”. Op. Cit., p. 157.
118
as necessidades do presente que definem seus objetos e solicitações, mediados e
interpretados pelos afetos.
Nesse processo, o turbilhão do cone se movimenta simultaneamente em dois
sentidos. Um deles forma o grande giro das imagens entre si, em que todo o
universo de conteúdos mnemônicos se dispõe para resolver a questão levantada em
P. Em outro, as associações se contraem sobre si, imagem sobre imagem, de um
âmbito mais especulativo, livre da percepção e distante (a boca do cone) até
retornar ao presente P, mais próximo da percepção em si, da atividade sensório-
motora que delimita o real pela apreensão do dado. Tal fenômeno se cria para
apresentar, dentre os conteúdos possíveis, aqueles mais funcionais:
“Tudo se passa, portanto, como se nossas lembranças fossem
repetidas um número indefinido de vezes nessas milhares e
milhares de reduções possíveis de nossa vida passada. Elas
adquirem uma forma mais banal quando a memória se contrai,
mais pessoal quando se dilata, e deste modo participam de uma
quantidade ilimitada de sistematizações diferentes.”
84
(figura 1) (figura 2)
84
Op. Cit., p. 198.
119
Pelo gráfico do cone, podemos visualizar como a memória navega entre o
que tomaríamos inicialmente como categorias antípodas no mapa do entendimento
humano: a percepção pura e a imaginação criadora. Bergson nos oferece uma
estrutura que ilustra e justifica um entendimento da memória como deslocamento,
tanto no tempo do corpo como no espaço das faculdades humanas, em “graus de
comprometimento” com alguma veracidade histórica da experiência concreta pela
proximidade ou afastamento da questão P, elaborada no plano do presente.
É a urgência da questão presente que provoca o movimento e indica a
necessidade de contração das vivências memorizadas para produzir uma resposta,
mas os pormenores da subjetividade que determinam as soluções não podem ser
dissecados, são criados no turbilhão. A questão P, de fato, muitas vezes demanda
um deslocamento radical para a boca do cone em busca de soluções mais
complexas, que envolvem memórias mais remotas ou abstratas, cujas sínteses a
percepção imediata não dá conta de solucionar.
O estudo sobre a natureza e o funcionamento da memória como devir
criação oferece uma alternativa conceitual a um pensamento que nos parece
utópico a respeito da existência de faculdades isoladas no espírito, estando umas
ligadas exclusivamente ao concreto da experiência sensorial e outras à abstração da
fantasia. É mais plausível que a experiência se dê em planos de aproximação e
distanciamento do presente, e que o ser humano tenha desenvolvido diferentes
mecanismos psico-físicos para lidar com o volume de conhecimento como nos é
apresentado na complexidade do movimento temporal-espacial, aos quais
convencionamos denominar faculdades:
“Seria colocarmo-nos na duraç ão pura, cujo decorrer é contínuo,
e onde passamos, por gradações insensíveis, de um estado a
120
outro: continuidade realmente vivida, mas artificialmente
decomposta para a maior comodidade do conhecimento usual.”
85
Nessa perspectiva, corpo é a imagem que delimita e conforma o espírito, em
outras palavras, que o torna presente. Tal delimitação se dá objetivada pelas
circunstâncias do presente. Daí que todas as atribuições do espírito passam pelo
corpo, e uma hierarquia entre estas não é mais possível. Há ainda o dualismo, em
que o corpo seleciona as representações e as lembranças (mas não as armazena),
mas não gera estados intelectuais diretamente, porém é um dualismo que já não
fixa incontestavelmente as funções e privilegia a ação, a consciência da associação
como o estar em fluxo pressionado pelas necessidades do plano, o contato que
provoca as identidades.
Os processos humanos são, pois, abordados pela ação do tempo, espaço e
corporalidade. Vemos que as sensações são os atributos que fixamos, que
destacamos e extraímos da volatilidade dos acontecimento e aos quais retornamos
como referência para qualificarmos as coisas. Os movimentos são a percepção no
espaço, sempre divisíveis, sempre em ação. O fato é que, no fluxo das vivências, os
movimentos carregam as sensações e às apresentam à consciência como
fenômenos também dinâmicos, de onde se conclui que todos os movimentos não
são tanto os transportes dos objetos, mas de nossos estados no tempo-espaço.
O ser-em-fluxo tem uma subjetividade líquida, que se constrói na chave da
consciência sobre o devir, sobre a justaposição da fixação qualitativa das sensações
com a intangibilidade quantitativa do movimento:
“Em suma, não há outra escolha: se nossa crença num substrato
mais ou menos homogêneo das qualidades sensíveis é correta, só
85
Op. Cit., p. 217.
121
pode ser mediante um ato que nos faria captar ou adivinhar na
própria qualidade algo que ultrapassa nossa sensação, como se
essa sensação estivesse carregada de detalhes suspeitados e não
percebidos. Sua objetividade, ou seja, o que ela tem a mais do
que oferece, consistirá precisamente, então, tal como havíamos
sugerido, na imensa multiplicidade dos movimentos que ela
executa, de certo modo, no interior de sua crisálida.”
86
Pelo movimento, estabelecemos quantidades, unidades de durações,
intervalos. Pelas sensações, definimos aquilo que ultrapassa, reaparece e se
reafirma no movimento. Perceber significa imobilizar
87
Juntos, eles conduzem o
sujeito pelo conhecimento no tempo e no espaço. Não é uma essência que se
desloca, é o ser em si, já que esse deslocamento é condicionado e contido pelo
corpo, de cuja experiência desencadeiam as operações sutis. As particularidades na
percepção e organização de tais eventos caracterizam os sujeitos em devir, e a
memória é a sistematização subjetiva dessas duas forças.
A memória reúne os objetos separados pela percepção e funda uma nova
consciência de sujeito. Pela memória criadora, os espaços são revistos, os objetos e
conceitos recriados, completados com outros sentidos, conectados em outras
relações. O próprio limite físico se dilata pela criação de espaços numa dimensão
que nasce da comunicação dos corpos para logo superá-la:
“Mas a separação entre a coisa e o seu ambiente não pode ser
absolutamente definida; passa-se por gradações insensíveis, de
uma a outro: a estrita solidariedade que liga todos os objetos do
universo material, a perpetuidade de suas ações e reações
recíprocas, demonstra suficientemente que eles não têm os
limites precisos que lhes atribuímos [...] Pois bem, ao mesmo
tempo em que nossa percepção atual e, por assim dizer,
instantânea efetua essa divisão do material em objetos
independentes, nossa memória solidifica em qualidades sensíveis
o escoamento contínuo das coisas. Ela prolonga o passado no
presente, porque nossa ação irá dispor do futuro na medida exata
86
Op. Cit., p. 240.
87
Op. Cit., p. 244.
1
22
em que nossa percepção, aumentada pela memória, tiver
condensado o passado.”
88
A memória define o ser na construção ativa do sujeito cognoscente pelo
tempo. A percepção ativa/reflexiva transforma o corpo pela desterritorialização
(invasão/contra-invasão) sobre o espaço. A memória sobre a percepção estabelece
novos nexos entre as unidades objetivas escolhidas pela percepção, e, assim,
redefine a identidade do vivido em função de sua afetividade. Não são mais apenas
as faculdades que tem suas fronteiras abaladas, mas é o sujeito que se faz fluxo no
pensamento bergsoniano.
Bergson antecipa todo um entendimento do humano que substitui os
antagonismos entre as funções, em especial aquele que se referiu por séculos à
razão-imaginação, pela cooperação do ser em devir conhecimento. E se alguns
pontos de sua teoria ainda permanecem condicionados ao dualismo corpo-espírito,
que intimida um olhar mais expandido sobre a noção de corpo, aqui, apenas
indicado, a revolução que operou na perspectiva de abordagem dos processos não
deixa dúvida de que se funda uma nova etapa do estudo da memória, e se encontra
uma ferramenta potente para compreender a arte.
88
Op Cit., p. 247.
123
Capítulo II Virtual e atual, recordações de um Corpo sem Órgãos
Analisamos no capítulo anterior de que forma o pensamento bergsoniano
corpo à abordagem dos processos mnemônicos numa perspectiva trans-disciplinar
que introduz o conceito de memória criadora a partir da observação do fenômeno
como movimento e circunscrição do sujeito no tempo e espaço. Vimos que a
memória não é o deslocamento para o passado, mas a re-criação do vivido no
presente pelas condições do presente. Esse conceito é retomado e radicalizado pelo
pós-estruturalismo, em que toda noção de essência, de delimitação do espírito pelo
corpo que ainda existia até Bergson será substituída pelos cânones do corpo sem
órgãos e do devir como síntese temporal-espacial.
No projeto pós-estruturalista, a dilatação dos termos que era sugerida e
apontada pela teoria da memória de Bergson, mas que encontrava, no dualismo,
seus limites epistemológicos, avança no entendimento do ser como fluxo. Corpo e
alma são parte da dinâmica dos processos que organizam/desorganizam o
universo, eles não sofrem mudanças, eles são mudança (como já antecipava
Bergson).
A estabilidade da matéria e de certas estruturas morais, intelectuais, afetivas
que permite com que intuamos nosso corpo e identifiquemos um conjunto
metafísico que nos individualiza não são produtos de uma natureza em si
teleológica, porém o resultado de agenciamentos que produzem adensamentos com
certas especificidades, mas que seguem em transformação. Os seres são
compreendidos, em última instância, como estratos orgânicos, históricos,
intelectuais, afetivos e morais em relação rizomática. Matéria e potência são
124
instâncias com graus de pressão diferentes do mesmo fluxo que, pela variação na
velocidade do movimento das partículas, cria e dissolve as formas de vida e de ser
em vida.
Ilustremos a imagem de Corpo sem Órgãos como revista por Deleuze: “O
CsO faz passar intensidades, ele as produz e as distribui em um spatium ele
mesmo intensivo, não extenso. Ele não é espaço e não está no espaço, é matéria
que ocupará o espaço em tal ou qual grau grau que corresponde às intensidades
produzidas [...] Matéria igual a energia.”
89
Corpos sem Órgãos, originalmente, foi uma metáfora criada por Antonin
Artaud para expor e protestar contra a opressão embutida em todas as formas de
atribuições de função, em toda ordem que delimita atividades, em todo órgão; não
mais somente no âmbito das representações fisiológicas, mas também das relações
de poder. O CsO como aplicado por Deleuze e Guattari não é um conceito que está
nas coisas, mas uma prática pela qual podemos compreender a construção do que
reconhecemos como ser, e, em nosso estudo, do que chamamos até aqui de
memória: “o CsO não se opõe aos órgãos, mas a essa organizações dos órgãos que
se chama organismo.”
90
Como vimos, aqui, o homem é, no pensamento deleuziano, o fluxo das
intensidades. As intensidades movimentam os seres para determinadas zonas
conforme a ordem dos desejos, projetam-lhes ao contato com o que também lhe
procura para agenciar interesses, necessidades. Cria uma zona de instabilidade:
desterritorializa e reconfigura os estratos. É pela potência dos desejos que os seres
89
28 de novembro de 1947 Como criar para si um Corpo sem Órgãos. In Mil Platôs Capitalismo e
Esquizofrenia, Vol. 3. p. 13.
90
Op. Cit. p. 21.
125
se deslocam, e estabelecem os agenciamentos que os definem em determinado
recorte temporal-espacial:
“O prazer é a afecção de uma pessoa ou de um sujeito, é o único
meio para uma pessoa ‘se encontrar’ no processo de desejo que o
transborda. Os prazeres, mesmo os mais artificiais, são
reterritorializações [...] trata-se de criar um Corpo sem Órgãos ali
onde as intensidades passem e façam com que não haja mais
nem eu nem outro, isto não em nome de uma generalidade mais
alta, de uma maior extensão, mas em virtudes de singularidades
que não podem mais ser consideradas pessoais, intensidades que
não podem mais se chamadas de extensivas.”
91
Retomando a análise que apresentamos no segundo capítulo da parte
anterior, a subjetivação proposta por Deleuze em sua releitura do associacionismo
de Hume consiste no ultrapassamento do dado pela inferência e na capacidade de
se criar novas soluções e entendimentos para o vivido pelas sínteses depuradas da
imaginação. Vemos agora que tais movimentos se organizam em função da
potência do desejo, que direciona o fluxo e seleciona os agenciamentos conforme
seus critérios e necessidades. Desloca o ser para um devir específico, e não outro.
Nesse momento, cabe esclarecer mais detalhadamente a noção de fluxo
deleuziana, ou, melhor dizendo, como se desenha o mapa do fluxo. Deleuze toma
emprestado dois conceitos do livro de Carlos Castañeda Histórias de Poder para
ilustrar a cooperação necessária entre uma força que comprime (saberes, matéria,
etc) e outra que deriva e expande: o tonal e o nagual.
“O tonal parece ter uma extensão disparatada: ele é o organismo,
e também tudo que é organizado e organizador; mas ele é ainda a
significância, tudo que é significante e significado, tudo que é
suscetível à interpretação, à explicação, tudo que é
memorizável sob a forma de algo que lembra outra
coisa; enfim, ele é o Eu, o sujeito, a pessoa individual,
social ou histórica e todos os sentimentos
correspondentes.”
92
91
Op. Cit., p 18.
92
Op. Cit., pp., 24-25. Grifos meus.
126
O tonal é a força que estreita a relação entre as partículas até a formação dos
estratos, que pressiona as velocidades do fluxo para formar conjunções específicas
de afectos
93
, de matéria, de saber, em suma, de todas as atualizações que definem
esse sujeito que ultrapassa e devém. Em outras palavras, é toda força que orienta e
se refere aos estratos, determinando o deslocamento e as particularidades de sua
formação. O nagual é a outra força formadora complementar, que pressiona os
estratos para o fluxo rizomático e movimenta os devires. Também esse movimento
tem na base os desejos que se criam e se assumem, pelos quais os estratos se
conectam em uma identidade que já não é individual, mas processual, identidade
de seres condensados em estratos e já desterritorializados em devir.
Um primeiro olhar pode nos fazer crer que a memória estaria apenas nos
estratos, se estes pudessem ser extraídos como categorias isoladas no tempo e no
espaço, mas sabemos que o pensamento deleuziano não permite nem sustenta essa
possibilidade. Se os estratos de saber, de afeto e de representação definem a
subjetividade dos seres, essa subjetividade já está em devir nos desejos da força
nagual, se prolonga imediatamente por agenciamentos a outros estratos que têm
suas memórias particulares em processo. Chegamos, em última instância, a uma
noção de macro-memória construída no e pelo fluxo dos agenciamentos e pelos
estratos em devir.
Quando falamos de desterritorialização nos referimos a um fenômeno que
demanda o afrouxamento de ligações entre partículas e sua conseqüente expansão
no espaço para se religar a outras partículas. Logo, trata-se de um processo físico,
ou que tem uma dimensão física da qual parte para atingir outras instâncias.
93
Afecto como poder de afetar.
127
Exemplo: para mudar minha opinião sobre algo eu preciso vivenciar pelo corpo
uma experiência que me coloque em um devir criação sobre o já vivido, e mesmo as
sínteses abstratas pressupõe um movimento em nível molecular do estrato
orgânico cérebro.
De fato, não podemos mais falar de movimento sem envolver as duas
instâncias do fluxo: a matéria e a energia. A memória do sujeito que ultrapassa, a
memória em devir, opera na dinâmica tonal e nagual simultaneamente, em que o
corpo não pode mais ser compreendido apenas na dimensão da matéria. Cria-se
uma grande memória dos estratos em devir, em que o corpo não é um mediador do
espírito, nem o espírito o proprietário da matéria.
O que percebemos como matéria são adensamentos orgânicos com
qualidades em constante transformação pelas relações rizomáticas no grande
deslocamento espaço-temporal não-teleológico do plano de consistência. A
dinâmica das transições moleculares entre as duas instâncias do ser não é
excêntrica ao plano e aos seus agenciamentos. Não há transcendência, portanto,
não há corpo como matéria estática nem espírito como essência que escapa.
Vemos que a memória é a criação não mais de um sujeito que percebe, mas
de um sujeito que supera a percepção, deriva, devém e é invadido. Ele não se dá
apenas nas condensações dos estratos que o definem num recorte no tempo e no
espaço, mas nas projeções extra-corporais, nas fronteiras diluídas, nos
agenciamentos assumidos pela intensidade dos desejos. Aqui a noção de memória
coletiva atinge o trans-humano: é da memória de um sistema que estamos
tratando.
128
Para melhor entendermos no que consiste essa noção de memória como
parte do sistema de estratos e agenciamentos, mas também como potência em
devir, falemos de dois conceitos-chave da filosofia de Deleuze e da cibernética de
Pierre Lévy, os quais redefinem um terceiro, a realidade: atual e virtual. “Virtual”
tem sua origem semântica no latim medieval virtualis, que deriva de virtus, força,
potência, e, na Escolástica, significaria não só o que está em potência, mas o que
necessariamente não se manifesta em ato.
Deleuze propõe um outro sentido para o virtual pela revisão precisamente
dessa última atribuição, ou seja, o virtual é a potência que deseja ser ato, deseja a
atualização. O virtual é o possível constituído em suspensão, mas não um possível
como fenômeno estático, e sim um complexo problemático [...] que chama um
processo de resolução: a atualização.”
94
É realidade latente, consistente,
organizada, autônoma, devinda, que aguarda pela efetivação das relações que lhe
transportem da suspensão para atualização. Assim, o virtual não se opõe ao real,
mas ao atual. Ele contém o real na névoa problemática de tensões e tendências que
lhe identificam, mas cuja resolução não está contida aprioristicamente nessa névoa.
Esse é um ponto fundamental das relações de atualização, e que as
distinguem da realização: elas são sempre criadoras. O virtual, a potência em
desejo, contém e oferece as possibilidades de relação para definir o real, mas as
formas de atualização não são dadas estruturalmente pela possibilidade. Cada
estrato (e, já vimos, os seres humanos são um conjunto de estratos agenciados
entre si e em relação rizomática) carrega suas virtualidades e organiza sua
94
Op. Cit., 16.
129
identidade precisamente na maneira como as atualiza e como recria novos virtuais.
Às palavras de Lévy:
Por um lado, a entidade carrega e produz suas virtualidades,
um acontecimento, por exemplo, reorganiza uma problemática
anterior e é suscetível de receber interpretações variadas. Por
outro lado, o virtual constitui a entidade: as virtualidades
inerentes a um ser, sua problemática, o nó de tensões, de
coerções e de projetos que o anima, as questões que o movem,
são uma parte essencial de sua determinação. [...] A atualização
aparece, então, como a solução de um problema, uma solução
que não estava contida previamente no enunciado. A atualização
é criação , invenção de uma forma a partir de uma configuração
dinâmica de forças e de finalidades. Acontece, então, algo mais
que a dotação da realidade a um possível ou que uma escolha
entre um conjunto predeterminado: uma produção de qualidades
novas: uma transformaç ão das idéias, um verdadeiro devir que
alimenta de volta o virtual. [...] O real assemelha-se ao possível,
em troca; o atual em nada se assemelha ao virtual: responde-
lhe
95
Portanto, realizar é uma atividade essencialmente distinta de atualizar:
enquanto a primeira adere ao provável para instaurar estados pré-definidos, a
segunda cria soluções para todo tipo de questão pelo trabalho sobre o virtual como
multiplicidade em suspensão. Porém essa solução manifesta, que é a atualização,
gera novas questões, indica ou sugere outras saídas da rede, propõe outras
situações que recolocam a entidade em devir, em suma, cria virtualizações.
E, aqui, novamente: virtualizar não significa desrealizar, pois não se trata
somente da diluição do real em possibilidades imanentes. A passagem do atual
para o virtual é um processo também de natureza criadora, irreversível,
indeterminado e não-dado, que não remete a jogos de probabilidade e demanda a
invenção como síntese das questões/desejos em potência.
A questão da memória é problematizada ontologicamente em um grau que
extrapola as teorias que abordamos até então, pois a localização das entidades não
95
Op. Cit., pp. 16-17.
130
se dá mais em uma linha de tempo unilateral (ou no máximo, bilateral) em que o
cosmos se divide entre o planeta e a transcendência e as criações progridem por
sucessão de relações binárias (o princípio do terceiro excluído na teoria da razão
clássica). Todas as operações se constroem no plano e pelos múltiplos
agenciamentos das entidades em devir, cuja organização forma um mapa fluído de
platôs e rizomas que, levado às últimas conseqüências, se junta à física quântica
para justificar uma existência simultaneamente virtual e atual dos seres:
“A filosofia é a teoria das multiplicidades. Toda multiplicidade
implica elementos atuais e elementos virtuais. Não há objeto
puramente atual. [...] Com efeito, como mostrava Bergson, a
lembrança não é uma imagem atual que se formaria após o
objeto percebido, mas a imagem virtual que coexiste com a
percepção atual do objeto. A lembrança é a imagem virtual
contemporânea ao objeto atual, seu duplo, sua imagem no
espelho [...] Não é mais uma singularização, mas uma
individuação como processo, o atual e seu virtual.”
96
Entre a lembrança e a percepção está a intensidade do recorte temporal, a
utopia do presente da maneira como desejemos delimitá-lo, como já vimos em
Bergson. Mas lembrar não é apenas perceber no tempo expandido, há ainda outra
diferença de natureza processual. Se a atualização e a virtualização são atividades
criadoras, vemos a chave para um entendimento da memória como criação num
sentido ainda mais amplo.
A memória não é somente o vivido trazido do passado para responder às
necessidades presentes. Ela não se revela exclusivamente pelo que reconhecemos
atualizado, pelo que está instaurado pela urgência da ação. Ela forma um espaço
que contém tudo que se adensa na entidade, resiste, e que se coloca em um devir de
criação, mas abarca igualmente os seus duplos virtuais simultâneos. A criação tem
96
O Atual e o Virtual, Gilles Deleuze, in Deleuze Filosofia Virtual, pp. 49-53-54.
131
suas próprias razões que não se submetem às regras de funcionalidade das
demandas do presente. A memória é entendida no próprio âmbito das potências
como virtuais (e não possibilidades) e das atualizações como sínteses (e não
derivações quantitativas do provável), ou seja, na forma como já as apresentamos:
em relações inventivas. Atual e virtual inseparáveis e coexistentes no tempo:
“Mas em todos os casos, a distinção entre o virtual e o atual
corresponde à cisão mais fundamental do Tempo, quando ele
avança diferenciando-se segundo duas grandes vias: fazer passar
o presente e conservar o passado. O presente é um dado variável
medido por um tempo contínuo, isto é, por um suposto
movimento em uma única direção: o presente passa na medida
em que esse tempo se esgota. É o presente que passa que define o
atual.”
97
Atualização e virtualização como movimentos criadores são os vetores que
qualificam de forma mais complexa o entendimento do ser em construção
cognoscente no tempo e no espaço. A individuação se dá exatamente nesse trânsito
criativo, nas particularidades que o definem, nas escolhas, nos desejos, na
afirmação ou negação de tendências, em suma, em tudo que resiste e se impõe na
atualidade das relações.
O ultrapassamento está no reconhecimento do virtual como parte do real, do
existente, e não como resíduo metafísico do que não se confirmou. Na consciência
de que cada atualizão é apenas uma face detectável das questões impostas pela
potência processual dos virtuais, uma resposta ao possível que se circunda
simultaneamente da névoa de virtuais que emanam de seu adensamento, e a
problematizam.
Uma noção de sujeito só pode ser tomada como: instâncias mais ou menos
diluídas, e que por isso encontram alguma diferenciação, dentro do mapa
97
Op. Cit., pp. 54-55.
132
rizomático. Os movimentos de atualização e virtualização não são homogêneos,
mas radicalmente o oposto; e são suas particularidades no tempo e no plano que
podem indicar uma possível subjetivação em rede. Esta se faz na construção dos
estratos, pela ação das forças tonais, mas logo pelo ultrapassamento dos estratos de
percepção, de memória, de afetos pelas forças naguais.
A memória é o resultado da ação das forças de individuação em nível atual e
virtual simultaneamente e em devir. O âmbito da atualização nos permite
reconhecer o indivíduo/objeto do plano como presença, enquanto a virtualização
configura a existência do mesmo indivíduo na não-presença, sendo ambas
dimensões do ser real. O atual se desgasta para se reinventar no virtual e inserir
melhor o ser na inteligência global do plano
Sua função e local estão absorvidos pelo fluxo e seus princípios de operação:
a memória é resistência no estrato, mas já é imediatamente criação no tempo
múltiplo do ser virtual/atual, que se extingue e se recria alternando aspectos sem
abandonar a rede. Corpo e mente não são máquinas isoladas com estatutos e
atributos naturalmente específicos. São dimensões do ser que se definem conforme
a velocidade das forças e a intensidade dos desejos, que qualificam os
agenciamentos e direcionam os devires.
Portanto, o pensamento cibernético e pós-estruturalista representa a
superação definitiva das faculdades como delimitação apriorística dos processos
que promovem o conhecimento e envolvem a experiência. O entendimento da
memória como atributo, seja da instância que for e com a natureza que tenha,
assim como todas as demais funções humanas apreendidas pelo pensamento
arborescente, é digerido pela lógica maior de funcionamento do ser em devir, da
133
mente expandida, da mente em rede. As relações entre as entidades, e seus
movimentos no espaço e no plano, tornam-se os verdadeiros eixos para uma
abordagem do ser em construção, e redefinem em outros níveis a ontologia da
memória como criação.
O depoimento pessoal é a memória pressionada pelas forças de criação, o
conjunto de atualizões produzido pelos agenciamentos específicos de cada
processo. Nesse quadro de referência, está, de certa forma, superada a
problemática da responsabilidade histórica do depoimento, uma vez que toda
atualização já pressupõe em si uma relação de criação. Diferentes estratos
qualificam a identidade do depoimento, e geram cenas cujas diferenças estéticas
estão baseadas exatamente nas distintas formas de organizar o depoimento, como
veremos na terceira parte da tese.
Tributamos, pois, a tais pensadores, a base filosófica que nos permitiu
alicerçar uma reflexão mais consistente sobre a premissa da memória criadora,
cuja dinâmica se insere, de fato, na lógica maior de relações que gerenciam a vida
dos seres.
134
Capítulo III A crítica da consciência imaginativa
Chegamos aqui a um ponto em que se torna necessário submetermos nosso
pensamento ao exame das disciplinas cuja crítica lhe diz respeito, para daí
verificarmos sua efetiva aplicabilidade nos termos como o dispomos. Buscamos na
fenomenologia a interlocução potente para tanto não só porque alguns dos filósofos
a ela associados já iniciaram essa crítica (Sartre, especificamente, em sua
metafísica ingênua da imagem), mas por que, aqui, o conceito de imaginação
remete a uma noção de processo essencialmente distinta da que apresentamos, e
em um sentido que afeta profundamente a memória sem, no entanto, assumir seu
comprometimento com a revisão das funções (pela forma como a imaginação é
isolada arbitrariamente das consciências perceptiva e memoriosa: a retenção e a
rememoração em Husserl).
A crítica sartreana incide sobre praticamente todas as filosofias que partem
de uma perspectiva atomista da imagem. Todas as correntes de pensamento que
tratam a imagem como um objeto produzido pelas faculdades, cujos conteúdos são
de natureza variável e, portanto, se relacionariam às atividades de uma ou outra
função. Em outras palavras, toda noção de imagem como impressão.
O primeiro ataque recai sobre Descartes, cujo projeto racionalista, na
medida em que ainda precisava dar conta da problemática antiga e medieval da
dupla existência (material e espiritual) dos seres e justificar a hierarquia das
instâncias, cinde radicalmente as atividades mecânicas das atividades do
pensamento, situando o corpo exclusivamente como motor das primeiras:
“A imagem é uma coisa corporal, é o produto da ação dos corpos
exteriores sobre o nosso próprio corpo por intermédio dos
135
sentidos e dos nervos. Matéria e consciência excluindo-se uma à
outra, a imagem, na medida em que é desenhada materialmente
e alguma parte do cérebro, não poderia ser animada de
consciênc ia, ela é um objeto tanto quanto os obje tos exteriores. É
exatamente o limite da exterioridade. A imaginação ou o
conhecimento da imagem vem do entendimento; e o
entendimento aplicado à impressão material produzida no
cérebro, que nos dá uma consciência de imagem.”
98
A imagem é uma unidade de comunicação da percepção cuja verificação dos
conteúdos não pode ser realizada em si, já que o processo é o mesmo para todo tipo
de imagem, senão pelas operações da mente. Nesse sentido, ela se aproxima de
uma noção de ilusão, de aparência, de engano derivada da fragilidade do aparato
sensorial. Essa etapa do processo será revista pelas escolas imediatamente
seguintes, sem, no entanto, que se transforme a noção de imagem como impressão.
O associacionismo de Leibniz representa, nesse sentido, um pensamento
intermediário entre o racionalismo cartesiano e o empirismo de Hume no
tratamento da imagem. A imagem é um signo, mas um signo elaborado não só pela
excelência analítica da razão pura, nem pelas marcas dos objetos externos em um
corpo pretensamente ignorante, mas por ambos; já que o corpo se apresenta
sempre à alma para realização de seus processos e aí encontra sua inteligência. A
imagem é um signo cuja relação com seu objeto é variável, da onde se afirma a
existência de imagens de todo tipo: umas mais claras, outras mais confusas,
conforme a qualidade de denotação. As idéias seriam as imagens mais elaboradas,
que evoluem da confusão de imagens que se apreendem simultaneamente. Entre
imagem e idéia, portanto, não há exatamente uma diferença de natureza, mas de
qualidade de expressão. Ambas são, ainda, unidades do processo.
98
A Imaginação, p. 39.
136
A crítica maior recai verdadeiramente sobre o associacionismo de Hume,
que, conforme Sarte, levaria ao limite a abordagem da imagem enquanto coisa,
como um utilitário das faculdades, mais ativamente, da percepção:
“Enquanto Leibniz, para resolver a oposição cartesiana imagem,
pensamento, tende a desfigurar a imagem como tal o empirismo
de Hume se esforça, ao contrário, por reduzir todo o pensamento
a um sistema e imagens. Ele toma de empréstimo ao
cartesianismo sua descrição do mundo mecânico da imaginação
e, isolando esse mundo, por baixo do terreno fisiológico no qual
ele mergulhava e pelo alto do entendimento, faz dele o único
terreno sobre o qual o espírito humano se move realmente. Não
há no espírito nada mais do que impressões e cópias dessas
impressões que são as idéias e que se conservam no espírito por
uma espécie de inércia, idéias e impressões não diferem em
natureza, o que implica que a percepção não se distingue a si
mesma da imagem.
99
Para Sarte, a grande questão é o tratamento da imagem como objeto
externo, como unidade impessoal, signo de percebido, ou signo da idéia, na razão;
que, no máximo, encontra nos sentidos de seus conteúdos a conexão com a
subjetividade. Esse pressuposto é radical para o empirismo. A imagem é vista como
algo natural, como uma construção da percepção, quando para o filósofo existem
implicações, por assim dizer, ônticas
100
, anteriores que não foram sequer
tangenciadas.
E, por fim
101
, a crítica, bastante importante para nossa tese, do bergsonismo.
Para Sarte, na medida em que elevou o mundo e todos seus objetos à categoria de
imagem, Bergson instaurou uma consciência supra-subjetiva, cujas relações com as
99
Op. Cit., p. 41.
100
E não ontológicas, no sentido Heideggeriano.
101
Com exceção de Leibniz, resumimos as ponderações de Sarte às tradições que resgatamos para nosso
estudo, a fim de não prolongar desnecessariamente suas progressões sobre as incongruências dos outros
pensamentos que tratam a imagem sob a mesma orientação. Ainda foram objeto de sua crítica a psicologia
sintética, o associacionismo de Taine e mesmo a fenomenologia de Husserl em alguns aspectos. De fato, das
cento e seis páginas do texto sobre a imaginação, as cem primeiras se dedicam exclusivamente à revisão de
seus antecessores, e, como veremos, apenas nas cinco páginas finais Sartre irá sugerir um projeto de imagem
como consciência que não se desenvolve.
137
imagens não se constroem mais sob a particularidades da consciência, que produz
representações específicas, mas como um grande movimento em que a própria
criação das imagens já não dependeria das qualidades de seus correlatos: é um
processo exterior:
“Bergson considera negligenciável essa característica essencial do
fato da consciência que é a de aparecer precisamente como
consciente; e, por ter confundido o mundo com a consciência,
tomada como uma qualidade quase substancial, também reduz a
consciência psicológica a não ser mais do que uma espécie de
epifenômeno, do qual pode se descrever a aparição, mas que não
se explica. Em particular, como pode essa consciência
inconsciente e impessoal tornar-se uma consciência consciente
de um sujeito individual? E, como, tornando-se “presentes” as
imagens virtualmente representadas, envolvem subitamente a
existência de um Eu ?”
102
E ainda, sobre a crítica da memória:
“Mas, se a consciência é definida por Bergson de uma forma
vitalista, como uma atualidade resultante da atitude corporal, ela
representa também, para ele a margem que separa a ação do ser
atuante, o poder de escapar ao presente e ao corpo, a memória.
De onde sua segunda orientação da teoria das imagens: a
lembrança não é consciente apenas como presente, mas também
como passado.”
103
Vemos, portanto, que a crítica sartreana reclama da localização da
imaginação nas teorias do conhecimento aqui citadas em termos muito
semelhantes aos quais Edmund Husserl reclamou das psicologias que se
debruçavam sobre os conteúdos da consciência sem verificar antes se a própria
consciência não teria sua estruturas geradoras inatas, apriorísticas,
transcendentais. Está em jogo a função da principal consciência fenomenológica: a
consciência imaginativa.
102
Op.Cit., p. 55.
103
Op. Cit., p. 58.
138
A imaginação fenomenológica é a capacidade da consciência de fazer surgir
objetos imaginários, que permite com que nos relacionemos tanto com o ausente
quanto com o inexistente. Diferentemente da percepção, que oferece fragmentos do
objeto, a imaginação cria objetos e eventos inteiros, seja pela fabulação que gera a
fantasia, pelo preenchimento das lacunas do percebido ou pela analogia com outras
imagens. Eis que a imagem é algo completamente diferente do objeto, que pode ou
não guardar alguma identidade (do grego análogon: proporção, existência de algo
comum em coisas que permite que haja alguma relação entre elas apesar das
diferenças).
A imaginação é, assim, a consciência criadora maior na metafísica
fenomenológica, pois através dela a consciência encontra seu sentido: construir as
significações, afirmar o mundo como tal na produção dos sentidos, sentidos esses
que são atribuídos por um sujeito que se estrutura na consciência transcendental e
por meio dela descreve as experiências como atividades de conhecimento. A
imagem como objeto representaria, em última instância, um desvio estrutural nas
atribuições do ser consciente: a consciência seria tomada como objeto, reduzida às
coisas às quais representa, quando deveria ela mesma gerar seus conteúdos pela
atuação do sujeito dado pelas estruturas da consciência transcendental, e não o
contrário. A imagem não é o seu objeto, não é seu significado, seu conteúdo. Essa é
a mesma diferença que levou Husserl a separar a fenomenologia da psicologia, a
última se ocupando do estudo dos objetos e a primeira das estruturas do
psiquismo.
A imaginação é o processo de construção do sentido, a doação do sentido, a
aplicação criativa da consciência do sujeito na invenção e definição das coisas. É a
139
subjetivação em ação: “Ela não pode entrar na corrente da consciência a não ser
que ela própria seja síntese, e não elementos. Não há, não poderia haver imagens
na consciência. A imagem é um ato, e não uma coisa. A imagem é consciência de
alguma coisa.”
104
A questão de Sartre em muito se assemelha àquela que motivou Deleuze a
rever a obra de Hume: como do dado devém um sujeito? Ou, nesse caso, como da
ação devém um sujeito? Não haverá respostas possíveis enquanto a consciência for
tomada como categoria apriorística de determinação do ser que prescinde tanto da
psicologia como âmbito de estudo e delimitação do individual quanto dos objetos
em si provedores de experiência. A consciência fenomenológica surge como uma
esfera do ser que pensa as coisas de maneira ao mesmo tempo autônoma aos
objetos transcendentais e completamente desinteressada dos aspectos afetivos, e
condiciona as operações humanas aos esquematismos da consciência em ação.
Os desdobramentos de tal paradoxo no que tange ao estudo da memória e,
especificamente, quando esse estudo se encaminha para construção de um conceito
de memória como criação, estão mais flagrantes na principal obra de Husserl sobre
a consciência no tempo. Em seu tratado Lições para uma Fenomenologia da
Consciência Interna do Tempo, o termo memória aparece poucas vezes, ao
contrário da consciência retencional, termo cunhado para explicar a consciência do
passado. A consciência retencional não é a recordação em si dos eventos
“percepcionados”, mas a consciência de que existe uma dimensão abstrata do
tempo à qual denominamos passado. Esclareçamos os conceitos:
“Se denominamos ‘sentido’ um dado fenomenológico que,
através da apreensão, nos torna conscientes de algo objetivo
104
Op. Cit., p., 106.
140
como dado em carne e osso (Leibhaft), a que chamamos então
objetivamente ‘percepcionado’, assim temos nós que distinguir
também, no mesmo sentido, entre um temporal ‘sentido’ e um
temporal ‘percepcionado’. O último significa o tempo objetivo.
Contudo, o primeiro não é ele próprio tempo objetivo (ou posição
no tempo objetivo), mas antes o dado fenomenológico através da
apercepção empírica do qual se constitui a referência ao tempo
objetivo. Os dados temporais, ou, se quiser, os signos temporais
não são os próprios tempora. O tempo objetivo pertence à
conexão da objetividade da experiência.”
105
Husserl fala de dois tipos de experenciar: o inautêntico (uneigentlich) e o
autêntico (eigentlich), sendo que o último se refere à experiência fenomenológica,
ou seja, a experiência intuitiva das atividades da consciência pura no tempo. Tal
atividade em nada se relaciona com o psiquismo. Vejamos:
“A percepção psicológica, que apreende as vivências como
estados psíquicos de pessoas empíricas, de sujeitos psicofísicos,
entre elas estabelece conexões, sejam elas puramente psíquicas
ou psicofísicas, e persegue as leis naturais do devir, do formar-se
e transformar-se das vivências psíquicas, esta apercepção
psicológica é totalmente outra que a fenomenológica. Nós não
dispomos as vivênc ias em nenhuma realidade. Com a realidade,
temos nós de lidar apenas enquanto ela é uma realidade visada,
representada, intuída, conceptualmente pensada. Relativamente
ao problema do tempo, isto quer dizer: interessam-nos as
vivências do tempo. Que elas próprias, objetivamente, estejam
temporalmente determinadas, que elas se incluam no mundo das
coisas e dos sujeitos psíquicos e neste tenham a sua posição, a
sua eficiência, o seu ser empírico e a sua gênese, isso não nos
move, disso nada sabemos.”
106
A instauração da consciência fenomenológica é uma solução ao dualismo
mente e corpo que dilui a memória como faculdade, mas não esclarece seu processo
enquanto fluxo, nem sua função criadora, sequer indicada por uma possível
aproximação com a imaginação. Interessa ao autor “esclarecer o a priori do tempo
explorando a consciência do tempo, trazer à luz sua constituição essencial e pôr
em relevo os eventuais conteúdos de apreensão e caracteres de acto
105
Lições para uma Fenomenologia da Consciência Interna do Tempo, p. 40.
106
Op. cit., p. 42.
141
especificamente pertencentes ao tempo, aos quais pertencem essencialmente as
leis a priori do tempo.”
107
O “a priori do tempo” citado não é o tempo objetivo, que
é uma abstração, mas é definido pela intencionalidade da consciência sobre o
tempo, a partir de que todas as relações entre passado, presente e futuro se
estabelecem.
O tempo de Husserl é o tempo da linearidade cronológica, em que o vivido se
encaminha para o passado como local distante, cada vez mais inacessível à
consciência, oposto ao tempo da multiplicidade e do trânsito de planos de Deleuze
e Lévy, em que passado e presente fluem permanentemente pela dinâmica de
atualizações e virtualizações. O tempo está fixo como uma série infinita
bidimensional, de relação assimétrica e transitiva, em que dois tempos não podem
existir simultaneamente: é preciso que haja claramente um instante anterior e
outro posterior.
Na organização e representação dos tempos, as faculdades cooperam de uma
maneira a novamente sugerir a função da memória apenas como retentiva. A
percepção inaugura os pontos 0 das vivências no tempo. Mas ela é responsável
somente por apreender o ‘sentido’ e apresentá-lo à consciência como
percepcionado. Conforme Husserl, se trabalhasse isoladamente, a percepção
disporia das vivências como uma série de eventos isolados em eterno presente até
se apagarem por um esquecimento alienado. É a consciência do tempo e de suas
qualidades apriorísticas que permite que se estabela o estatuto de
reconhecimento do tempo em si, anterior aos eventos que o preenchem, a partir de
107
Op. cit., p. 43.
142
cujas regras se pode apreendê-los como pontos que se movimentam do presente
rumo ao passado e em relação de sucessão no sentido contrário.
Nesse processo, a fantasia ocupa um papel fundamental, que muito se
relaciona com a memória criadora, ainda que não tenha sido assim desenvolvida
pelo autor. É a imaginação que transmuta o ‘sentido’ e cria novas representões
para esse, representações que exatamente atestam a ação do tempo sobre o vivido.
É pela transformação oriunda das operações da fantasia que os fatos passados são
definidos enquanto tais, diferentemente dos conteúdos da percepção que estão
presentes:
É, por conseguinte, uma lei universal que, a cada representação
dada, se ligue por natureza, uma cadeia contínua de
representações, da qual cada uma reproduz o conteúdo da
procedente, mas de tal maneira que ela fixe sempre à nova um
momento do passado. Assim, a fantasia mostra-se aqui, de um
modo peculiar, produtiva. Trata-se aqui do único caso onde ela
cria um momento de representações verdadeiramente novo, a
saber, o momento do tempo. Assim, descobrimos no campo da
fantasia a origem das representações do tempo.
108
À conexão intencional entre as imagens dadas no presente e aquelas
transformadas pelo tempo, denominou-se, pelo quadro conceitual da
fenomenologia, de associação originária. A associação originária é a relação por
onde se reconhece não só a ação do tempo, mas a duração dos objetos
transcendentais como percepcionados e a própria duração da percepção de tais
objetos, cuja tendência é invariavelmente o afastamento da consciência rumo a um
passado obscuro, um ponto extremo e distante na linha do tempo:
“Da extensão decorrida, dizemos que está consciente nas
retenções e, na verdade, que as partes ou fases não nitidamente
delimitáveis da duração, que ficam mais próximas do ponto-
108
Op. cit., p. 46. Lembremos que a imaginação como atividade criadora que plasma as informações sensíveis
em novas imagens a serem utilizadas pela mente é uma idéia que vem desde Aristóteles, e está claramente
sistematizada desde o Ad Herennium, como vimos na primeira parte de nosso estudo.
143
agora atual, estão conscientes com uma clareza decrescente; as
mais afastadas, as fases do passado que ficam mais para trás,
estão conscientes de um modo indefinido (unklar), vazio. E é do
mesmo modo depois do decurso da duração total: segundo a sua
distância relativamente ao agora atual, tem o que ainda se
encontra mais próximo dele, eventualmente, uma pequena
clareza, o todo desaparece na obscuridade, numa consciência
retencional vazia, e desaparece por fim totalmente (se se pode
dizer isto ). Assim que a retenção termina. [...] Ao se mover para o
passado, o objeto temporal contrai-se e torna-se com isso, ao
mesmo tempo, obscuro.”
109
Essa noção de passado como algo que contrai as vivências até destruí-las é
diametralmente oposta ao cone de Bergson, que utilizamos desde o início dessa
parte do estudo para ilustrar a memória como criação. Na memória linear, ou
consciência memoriosa fenomenológica, os conteúdos vividos não se acumulam
para formar a macro experiência particular do indivíduo. Eles se diluem, são
transitórios, “passam” pelo sujeito fenomenológico, entidade cuja construção está
alicerçada na atividade da consciência intencional como força imanente, que regula
e define as experiências a partir de uma essência apriorística que lhe garante a
autenticidade, e por tanto, não permite uma transformação profunda que altere tal
essência.
A memória é algo próximo da consciência retencional, a consciência que
trabalha sobre as regras apriorísticas específicas do tempo linear, às quais já
apresentamos anteriormente. Recordar é deslocar a consciência rumo ao passado,
exatamente o oposto da memória de Deleuze e Lévy que se atualiza no presente
pelas condições do presente. A associação originária, conceito que poderia
aproximar os dois pensamentos modernos tão importantes a respeito da memória,
embora sugira a idéia de fluxo e alteração das imagens em função da associação,
109
Op. cit., p. 59.
144
permanece com sua seta apontada somente em um dos sentidos: do passado para o
presente, que estabelece relações arbitrárias entre o vivido e o agora.
A memória criadora não é possível sob o jugo da consciência intencional. A
consciência memoriosa linear apresentada pela fenomenologia de Husserl não
poderia deixar de ser abordada em nossa tese, pois resume uma noção de memória
que, acreditamos, ainda é bastante referenciada pelo senso comum: uma ida ao
passado pela linha do tempo. O tempo linear dispõe os fatos vividos em movimento
de desaparecimento no tempo, especialmente se considerarmos as informações da
memória pelos critérios da percepção.
O que pretendemos construir é um conceito de memória distinto que opera
no fluxo vivo das multiplicidades, e que reanima permanentemente o vivido pelas
experiências presentes, e cujo comprometimento com as imagens da percepção já
está resolvido pela aceitação da própria natureza do processo: a memória é em si
cooperada da imaginação, elas não operam sozinhas, e tudo que podemos inferir
para nos mantermos mais fiéis às especificidades de seu funcionamento é que
podemos falar em graus de mimetismo das imagens memoráveis com a experiência
anterior à recordação, mas nunca em uma memória puramente empírica, cuja
transfiguração é necessariamente um sinal de equívoco ou esquecimento.
Husserl tem razão quando afirma que algo não pode existir
simultaneamente no passado e no presente da mesma forma, a partir de que esboça
uma promissora hipótese para utilização e re-posicionamento da atividade criadora
em seu pensamento. Mas a imposição de uma consciência-sujeito reguladora mina
a possibilidade de se avançar sobre a diversidade de atividades da mente
expandida, já que todas elas acabam condicionadas às regras da intencionalidade.
145
Atualmente, já sabemos que a consciência humana tem sua formação
dinâmica, e está em processo até a morte; não é dada por estruturas
transcendentais nem inteiramente pela experiência, mas por ambas. O embate
entre empirismo e inatismo como apresentado até a modernidade está realmente
desgastado. Se o homem nasce como um estrato orgânico organizado de uma
forma, e não de outra, é certo que alguns caminhos de aprendizado estão indicados.
Mas a cada dia nos surpreendemos com adaptações e usos impensáveis para nossos
corpos que criam linhas de fuga para o determinismo organicista de nossas
estruturas inatas, e diluem nossos adensamentos orgânicos, psíquicos, físicos,
propondo outros territórios visíveis e invisíveis pelos quais podemos nos desdobrar
e movimentar entre o que somos, fomos e podemos ser. A memória é o relato dos
processos de desterritorialização e re-adensamento de nossa mente expandida.
146
PARTE 3 Depoimento pessoal e memória como recriação do vivido na
performance
“Seria muito difícil construir uma linha clara entre os “personagens” miméticos do
drama tradicional e as autênticas “identidades alternadas” da performance
autobiográfica. É, provavelmente, mais seguro pensar em um contínuo prolongamento
da performance de material autobiográfico real rumo às fantasias autobiográficas
improvisadas (...)”
Marvin Carlson
110
Chegamos, por fim, aos nossos “estudos de caso” propriamente ditos.
Analisaremos alguns processos que contém formas díspares e representativas no
que tange à construção do depoimento pessoal no quadro geral das artes
performativas para neles melhor observarmos como atuam a forças de atualização
responsáveis pela produção de obras esteticamente tão distintas, mas igualmente
genuínas quanto à autenticidade do depoimento. Escolhemos quatro ativ idades que
consideramos emblemáticas para nosso estudo, pois sua configuração permite
estabelecer uma espécie de linha de extremos no que diz respeito ao desejo de
expressão mediada pela fábula, ou por sua mais completa supressão.
Se é possível, para efeito de estudo, organizar os processos criativos dessa
forma, arriscamos situar a interpretação do ator strictu sensu e a performance
autobiográfica como processos pressionados por forças antipódicas de criação. O
primeiro tem no centro uma ficção assumida desde sua gênese como tal, criada por
um corpo-depoente (o autor) e recriada por outros corpos-depoentes em relação
rizomática (o ator e os “espectadores”, conforme a teoria teatral nos ensina, fora
todos os demais estratos da cena). O último transforma a cena inteira em um
110
in Performing the Self.
147
grande espaço de exposição da memória através da criação de linguagens
singulares, que se explicam no fluxo e na lógica interna da própria cena-
depoimento que é cada performance. Nessas obras, cada artista relacionado
encontrou vetores específicos de trabalho da memória cujos desdobramentos são
de grande importância para nosso estudo, como veremos no terceiro capítulo.
A personagem dramática nasce pela confluência inicial de três forças
criadoras: o ator, o dramaturgo e o diretor (trata-se do modelo mais simples e
tradicional de agenciamento para criação teatral). O ator tem na personagem pré-
concebida pelo escritor o suporte por onde irá expor sua memória e elaborar seu
depoimento pessoal fabuloso, que, em última instância, é a própria personagem,
sua vida interior e exterior, em devir.
As características da personagem direcionam a investigação pessoal do ator
para encontrar as referências da memória que mais se adéquam à criação desse
outro ser fictício, pelo qual o ator e o autor falam. Tais referências podem
aproximá-lo ou afastá-lo das representações do cotidiano, mas não têm outra fonte
senão a memória criadora do intérprete. Porém, existe uma terceira força criadora,
que é o diretor, que problematiza o processo, já que suas determinações quase
sempre transformam as estruturas elaboradas inicialmente pelo ator na
aproximação com o texto.
Portanto, podemos estabelecer diferentes estágios de construção de
depoimento pessoal-personagem dramática. Primeiro, o dramaturgo atualiza
determinados virtuais de sua memória criadora (tendo como “ponto de partida” os
mais variados estímulos) para descrever e dar voz a outros seres mais ou menos
fantásticos e organizar suas ações no texto.
148
Na fase seguinte, o ator aproxima-se desse estrato ficcional, que direcionará
seu fluxo criativo mnemônico para circunstâncias dramáticas determinadas pelo
autor (as circunstâncias dadas de Stansilavski), promovendo uma seleção de
materiais que é exatamente a qualificação dos virtuais de memória do ator
pressionados pelas condições do texto. O ator “doa” sua memória criadora, e os
conteúdos aos quais ela conduz, para animar toda vida interior e exterior de um ser
que ganhará corpo somente pela ativação dessa memória. A personagem é como
um anteparo, um álibi para que o intérprete possa viver plenamente sua vida
recriada. E, por fim (ou conjuntamente), o diretor entra com suas próprias
impressões sobre os materiais, que, muitas vezes dizem respeito ao projeto estético
“exterior” da cena, e não obedecem às associações entre ator e texto.
Essa seqüência serve apenas como um diagrama básico das principais forças
que atuam sobre a formação do depoimento pessoal no processo de criação do ator.
Sabemos que o trabalho dramático pode partir de agenciamentos muito mais
complexos de estimulação da memória, e que as relações entre os materiais nem
sempre seguem um padrão lógico na dinâmica de associação. Uma cor, um jogo,
um som, um alimento, podem constituir estratos altamente estimulantes por cujos
agenciamentos o intérprete acessa informações que não estão indicadas no texto,
nem nas orientações do diretor, mas que obedecem às intuições pessoais sobre a
personagem ligadas ao repertório mais íntimo do ator.
A cena teatral é um grande discurso que combina os materiais de ator,
diretor e autor (no mínimo). Nela, a responsabilidade pelo que se apresenta é
dividida entre os participantes, e o ator contribui mais diretamente com a
disposição do seu depoimento no âmbito da criação da personagem, e da realização
149
das ações condizentes com a sua trajetória conforme orientação do diretor. Não
queremos dizer, com isso, que ator não interfira na macro-configuração da peça,
mas quando nos referimos ao seu depoimento pessoal, sua autonomia de criação
geralmente se concentra no meticuloso exercício de composição dos gestos, da voz,
da figura e da vida emocional da personagem para, a partir desta, atingir os outros
elementos da cena. Esse ponto nos parece de grande importância na caracterização
deste depoimento pessoal específico, o depoimento da personagem dramática, com
o qual iremos agora compara outros casos.
Antes de chegar ao depoimento na performance, selecionamos um tipo de
experiência intermediária que revela como a construção do depoimento pode
expandir da criação do papel para a disposição geral da cena. Referimo-nos aos
processos criativos dos performers orientados por Jerzy Grotowski nas diferentes
fases de suas atividades.
O trabalho de Grotowski busca desenvolver um performer que tem na
qualidade energética e plástica das ações físicas o caminho para atingir estados
espirituais mais elevados, rumo a uma memória que, acreditava ele, ser
possivelmente recuperada pela re-instauração do ritual teatral. A trajetória artística
do diretor passou por diferentes estágios, pelos quais o trabalho sobre a memória
mudou radicalmente, como vermos mais detalhadamente no capitulo dois dessa
parte. No entanto, podemos afirmar, sem exagero, que o objetivo maior de sua
busca foi precisamente atingir a “grande e genuína alma” da humanidade
escondida por trás das máscaras individuais cotidianas através do acesso a essa
memória coletiva, perdida pelas armadilhas do ego, e que justificava a
150
sobrevivência do teatro como ritual laico, e que permite, mais do que qualquer
outro ritual, tal instante de revelação.
O depoimento pessoal, agora, exige a autoridade e responsabilidade sobre
toda criação, já que os textos e demais enunciadores são orquestrados pelo
performer. Internamente, cabe, ainda, a esse artista, buscar os agenciamentos que
o auxiliem na pesquisa pelo estado psicofísico que conduz ao desnudamento, à
retirada de máscaras e à vivência pura das ões, por meio de cuja exposição o
performer atinge o espectador e, juntos, mergulham na memória remota que um
dia foi comum a toda nossa raça (e que contém os laços simbólicos e afetivos que
nos unem enquanto tal).
Dentro do quadro de referência da performance, os dois tipos de
depoimento pessoal apresentados até agora, a personagem dramática e os
processos de Grotowski, se enquadram no conjunto de atitudes performativas que
Richard Schechner denominou “restored behaviour”. Restored behaviour (ipsis
literis, “comportamento restaurado”) tem sido traduzido quase invariavelmente,
inclusive por outros pedagogos das artes performativas, como restauração de
comportamento. Porém, a tradução literal mesma permite outro sentido que nos
parece mais adequado ao pensamento que estamos desenvolvendo: reconstrução
de comportamento (pelo trabalho da memória criadora e da produção do
depoimento pessoal).
Como veremos, mesmo em trabalhos cujo objetivo seja apresentar, com a
máxima fidelidade, a ilusão de uma entidade histórica (a personagem), a memória
não age como evocação do passado objetivado em unidades de impressão para
realização da criação presente. Trata-se, antes, da atualização de virtuais múltiplos
151
pelas forças específicas da criação, nesse caso, forças que buscam o histórico pela
ficção. Portanto, o surgimento da personagem, assim como de qualquer tipo de
depoimento pessoal, é sempre uma síntese possível que responde ao turbilhão de
informações, impressões, emoções em potência (o cone de Bergson), estimuladas
pelo presente: o estatuto específico de cada processo criativo.
Nos casos seguintes, escolhemos alguns criadores cuja ação não se vale da
personagem como mediadora para disposição dos conteúdos da memória, e denota
mais especificamente ao âmbito da performance conforme definido pela teoria
formalista. Ou seja, como atividade própria do pós-moderno e cuja identificação se
, também, pelas características gerais de produção do período: destruição da
essência/personagem, suas competências e do corpo como sujeito; dissolução de
fronteiras em todos os níveis de articulação do discurso (e, portanto, do próprio
discurso: a descrença e o fim das metanarrativas, marco fundador da atitude pós-
moderna, conforme Lyotard em A Condição Pós-moderna), ruptura entre
significante e significado e provocação de toda semiótica apriorística, etc
111
.
Falamos dos performers Marina Abramovic, Joseph Beuys e Spalding Gray.
Abramovic, Beuys e Gray desenvolveram e vem desenvolvendo processos
peculiares de construção do depoimento e utilização do corpo depoente em suas
criações, em que os relatos da infância e do passado, em geral, surgem como
substratos não-mediados para construção da cena. Observaremos a relação de cada
performer com seus materiais, os níveis de fábula e supressão em algumas obras
importantes de suas trajetórias artísticas, para daí apreendermos as especificidades
de cada caso. Nesses processos, a cena funciona inteiramente como um fluxo
111
Ver FÉRAL, Josette. Performance and Teatricality: The Subject Demystified.
152
memorioso articulado por uma série de enunciadores organizados pelo criador, que
geralmente se esvaziam quando reproduzidos em contexto extra-performance, e é
forçoso tentar estabelecer procedimentos integralmente comuns de exercício da
memória entre todos os artistas.
Como um pequeno apêndice dentro das questões da performance,
trataremos do depoimento pessoal que se pretende testemunho direto da
experiência: o vídeo-depoimento. O vídeo-depoimento é um tipo de relato que
floresceu no pós-guerra que se serve da reprodução mecânica para trazer ao debate
as questões acerca da midiatização do testemunho e das implicações éticas que
envolvem uma forma de criação que opera na delicada fronteira da moralidade
histórica, dos traumas, dos crimes e das reparações. Esse é um ponto
especialmente interessante e, de fato, nevrálgico para nossa discussão, já que o
compromisso com a possível “verdade” dos fatos históricos, aqui, adquire
dimensões de vida e morte para os artistas depoentes e demais personagens do
testemunho.
Pretendemos, assim, ter escolhido, entre tantas distintas manifestações,
alguns processos que representam satisfatoriamente a diversidade de construção
de depoimentos pessoais que identificamos na atualidade. Verificaremos
qualitativamente as forças específicas que atuam sobre cada processo, e como a
memória opera seu jogo criativo em resposta a tais conduções.
153
Capítulo I - Memória e fabulação no treinamento interpretativo de Stanislavski.
Começaremos analisando a manifestação mais antiga e cujos procedimentos
de trabalho estão melhor sistematizados dentre os estudos de caso escolhidos: o
trabalho do ator. Tomaremos como referência de método interpretativo o sistema
criado e desenvolvido por Konstantin Alexêiev Stanislavski (1863-1938) e seus
assessores nos quase quarenta anos de trabalho frente ao Teatro de Arte de Moscou
(TAM, fundado por Stanislavski em 1898 com seu colega Vladimir Nemiróvitch-
Dantchenko). Também reconhecemos como treinamento interpretativo os demais
estudos orientados diretamente pelos princípios técnicos de Stanislavski, mas que
se desenvolveram autonomamente mesmo após sua morte (tais como as pesquisas
de Eugênio Kusnet no Brasil e de Richard Boleslavski nos Estados Unidos).
O sistema interpretativo permanece como paradigma para o trabalho do ator
no teatro dramático, seja para alinhamento ou confronto a respeito da
funcionalidade de suas técnicas. No que tange à pesquisa da memória aplicada à
criação performática, Stanislavski introduziu à sua época uma pedagogia
verdadeiramente transformadora para reconstrução do comportamento histórico
que redefiniu o status e os atributos do ator, e que é melhor compreendida se
resgatadas as circunstâncias artísticas que envolveram sua criação.
Voltemos, então, aos primórdios do aprendizado de Stanislavski, cuja
conjuntura revelava o completo desgaste da tradição do ator intuitivo. Às suas
palavras na biografia Minha Vida na Arte:
“Eles (os professores) nos informavam de uma maneira hábil e muito
visível o que um papel e uma peça deveriam ser isto acerca do resultado
154
final de um trabalho mas silenciavam quanto ao modo de alcançar tais
resultados, quanto ao método criativo a ser usado a fim de aproximar-se
da meta desejada [...] Não havia regras básicas nem sistematização. Os
expedientes práticos não eram verificados pela pesquisa científica. Eu me
sentia como uma espécie de massa com a qual estavam cozendo papéis de
um gosto e aspecto definidos”.
Sua crítica antecipava a crescente insatisfação do público que levaria o teatro
russo (e também europeu) à crise do final do século XIX. Stanislavski percebeu que
toda uma “escola” estava ruindo diante da falta de procedimentos de trabalho que
tirassem o artista de jugo de seu carisma (ou da falta dele) e de seus atrativos
pessoais que caracterizavam as atuações do melodrama e dos vaudevilles.
O teatro revela os agenciamentos hegemônicos de seu tempo. Estamos
tratando de um período (metade final do século XVIII) em que a arte do ator se
desenvolvia fundamentalmente nos Teatros Imperiais. Ainda que a produção dos
teatros provinciais (administrados pelos poderes públicos locais), particulares
(geralmente mantidos pela alta aristocracia rural, que seguia a mesma lógica de
gerenciamento da aristocracia urbana) ou de grupos amadores não pudesse mais
ser ignorada, o grande volume de fomento estava invariavelmente concentrado na
subvenção oferecida pela nobreza. Destinava-se às atividades desenvolvidas em
seus órgãos culturais: os Teatros Imperiais de Moscou e São Petersburgo, o Teatro
da Corte do Hermitage e as salas sustentadas diretamente por algum nobre-
mecenas em particular.
Visando a apresentação de textos que melhor divertissem e entretivessem os
nobres, as montagens recorriam quase sempre a autores franceses especialistas
tanto nos vaudevilles e em todo tipo de comédia de situação, como nos
155
melodramas. Tais gêneros se baseiam em “tipos”, para os quais a mobilidade de
representação é consideravelmente circunscrita.
As mnemo-técnicas eram precárias, muito inferiores àquelas utilizadas pela
Oratória e Retórica antigas. Pois, se para os poetas (e, de fato, para todo cidadão
antigo) era fundamental a memorização dos conteúdos de cada parte do discurso
(ver o place-system apresentado no primeiro capítulo), e dos próprios relatos
pessoais de toda natureza para afirmação das identidades pessoais, coletivas ou
artísticas, em tais gêneros modernos a disposição dos recursos buscava o impacto
emocional sobre o público, independentemente das palavras.
Os atores costumavam receber suas falas poucas horas antes de entrar em
cena, já que eram especializados no papel, e o ponto era recurso muito utilizado.
Por isso a idéia de “sucesso” ou “fracasso” de uma performance estarem tão
condicionados aos talentos pessoais do ator muito mais do que a sua capacidade de
transformação. Pensando o trabalho de tais artistas à luz do conceito de
performatividade, o “sucesso” ou “fracasso” (“felicitous” ou “infelicitous”, como nos
apresenta John Austin
112
) de sua atividade diz respeito muito mais ao âmbito da
efetividade da ação performativa do que à primeira instância emblemática de uma
ação de tal natureza: a elaboração da declaração, em uma cisão que beira a
cabotinagem.
Ao fim do século XIX e início do século XX, a conjuntura político-econômica
russa passa por modificações que redefinem o diagrama entre poder público e
produção artística e permitem o surgimento de nov as experiências, O teatro passa a
receber o apoio mais interessado dos administradores provinciais, funcionários
112
Ver sub-capítulo Speech Act Theory, em Performance a critical introduction, p. 61.
156
públicos e da nobreza “intermediária”, uma classe média nacionalista que cresce e
se fortalece rapidamente, identificada com obras que tratem de temáticas
nacionais. O apreço por conteúdos dessa natureza produziu um público mais
permanente para escritores que se dispusessem a seguir a tradição russa de crítica
e sátira de costumes e figuras sociais, e concretizassem a transição para uma
literatura livre das transfusões neoclássicas européias.
Dois nomes se destacam nessa transição para uma literatura dramática
genuinamente nacional: Vladislav Alexândrovitch Ózerov (1770-1816) e Ivan Krilov
(1768-1844). Foi através de um olhar “simples” e mais sóbrio sobre a sociedade que
Krilov introduziu um estilo de contar histórias que influenciaria o movimento que
conheceríamos mais tarde como Realismo na literatura russa, de cujo diálogo com
Stanislavski fez nascer a pedagogia interpretativa.
Entre os dramaturgos que beberam da fonte realista de Krilov, destacam-se
Aleksandr Pissarev (1803-1828), Vassili Kapnist (1795-1829), Nikolai Khmelnítzki
(1789-1840) e, em especial, Aleksander Griboiêdov (1795-1840). A produção de
Griboiêdov delimita o início de um novo momento na história da dramaturgia
russa sob muitos aspectos. Com suas obras, o realismo extravasa definitivamente o
campo da Literatura para influenciar diretamente a criação do ator. Suas
personagens são defendidas por grandes atores de várias gerações russas, como
Aleksândr Lênski, Vassili Karatínguin, Mikhail Schchépkin e, posteriormente,
Konstantin Stanislavski e Vassíli Katchálov. Às palavras do professor Jacó
Guinsbourg:
“Tchátzki (personagem de sua obra mais popular A Desgraça de ter
Espírito), a jovem inteligência brilhante (que talvez afirme demasiado
esta qualidade), é o protótipo do intelectual russo cujos talentos e
desprendimento idealista são desperdiçados sem empenho objetivo,
157
inaugurando a série dos “homens supérfluos” , que receberá nas
transcrições de Turgêniev, Gontchárov no seu famoso Oblomov, Tchekov,
entre outros, personificações sócio-psicológicas marcantes na literatura
romanesca e teatral da Rússia”.
113
Paralelamente ao desenvolvimento da dramaturgia realista, o aumento da
classe média urbana
114
produziu um fenômeno que tornou a cena teatral russa
bastante paradoxal com a popularização ainda mais acentuada dos vaudevilles e do
melodrama francês. Sob esse embate de gêneros, ergueram-se as duas correntes de
tratamento da atuação no final do século XIX, e que terminariam com a hegemonia
do realismo no século XX pelas pesquisas do Teatro de Arte de Moscou. De um lado
estavam os remanescentes de tradição melodramática, de outro (ou em resposta a),
estavam os atores
115
de linhagem mais realista, cuja técnica incipiente ainda não
compreendia os mecanismos necessários para se atingir a reconstrução de
comportamento no nível desejado.
Do Teatro Máli veio o principal nome da atuação realista pré-Stanislavski.
Mikhail Schchépkin implantou no teatro uma série de práticas para eliminar a
herança melodramática no trabalho do ator e permitir a composição mais próxima
da figura humana natural: limpeza de gestos e controle racional da voz, que
resultava em uma interpretação tranqüila e transparente (especialmente quando
comparada às explosivas figuras melodramáticas). Não tardou para que o estilo
Schchépkin passasse a se confundir com a própria “figura típica do cidadão russo”,
e, seus trabalhos, a serem considerados pelo público como a encarnação da “alma
113
Stanislávski, Méierhold & Cia. p. 277.
114
Algumas alterações ocorridas na conjuntura sócio-política russa na segunda metade do século XIX
repercutiram fortemente na formação de publico dos teatros, que se diversificou significativamente. Talvez a
mais importante tenha sido a abolição da servidão no campo, instituída por Alexandre II, que provocou
intenso êxodo rural para as grandes e médias cidades.
115
É impossível não resgatar o sublime material de estímulo para a criação do ator realista encontrado nas
obras de Nikolai Gogol (1809-1852), especialmente em seu Revizor (O Inspetor Geral, peça de 1836).
158
russa”. Seu estilo exerceu grande influência em Stanislavski nos primeiros anos.
Entretanto, até aqui, ainda não podemos falar em uma reflexão pedagógica formal,
na formação de um corpo metodológico que ultrapassasse a experiência da cena
específica e induzisse técnicas úteis ao ator realista em geral.
A evolução do realismo, em permanente tensão com o melodrama, é a tônica
que orienta e justifica a criação do método interpretativo de Stanislavski conforme
o apresentaremos, e será sempre nesse diálogo com a dramaturgia que se
construirão as bases de seu sistema.
Em 1897, Stanislavski, então um ator amador, mas já com 34 anos e certa
experiência em vaudevilles e operetas conhece Vladimir Nemiróvitch-Dantchenko.
Esse encontro marcaria o início de uma colaboração que resultaria na criação, um
ano depois, do mais importante centro de investigações sobre o ator no ocidente do
século passado.
O TAM nasce com a perspectiva de que a renovação do teatro moderno se
daria pela criação de um novo ator. O intérprete está no centro da criação, e para
que exista um novo teatro alinhado com o seu tempo, é necessário criar técnicas de
formação de um ator que exprimam o homem de seu tempo. É evidente que a
solução para esse impasse não se daria nas escolas dos Teatros Imperiais, as únicas
com estrutura humana e material condizente para realizar tal tarefa. Se foi pelo
conservadorismo dos Teatros Imperiais que se sufocou a pesquisa de novas
técnicas e se congelou os repertórios para adequá-los ao gosto da nobreza, somente
um teatro escola de cunho radicalmente investigativo poderia se lançar em tal
empreitada.
159
A orientação pedagógica do TAM já nasce comprometida com o realismo de
forte teor psicológico. Eis porque nosso esforço em re-contextualizar os eventos
históricos e artísticos anteriores à formação do TAM. O repúdio às convenções
defendido por Stanislavski representava um posicionamento não contra a
teatralidade da cena, mas contra uma “teatralidade” que na época era sinônimo de
clicheria, de um código gestual desgastado e fixado no efeito emocional sobre o
espectador. Paradoxalmente, hoje, a cena realista carrega o estigma da teatralidade
quase como um fardo, uma espécie de clichê canônico da modernidade no quadro
pós-moderno das artes performativas.
Os primeiros anos de atividade não trouxeram revelações muito
contundentes sobre possíveis direcionamentos de trabalho. As personagens eram
quase que “implantadas já praticamente prontas nos alunos, e traziam consigo
muitas das velhas e indesejáveis convenções. É quando toma parte das atividades
do TAM o médico e escritor Anton Pavlovitch Tchekov que as pesquisas ganham
fôlego e identidade. Descendente da tradição de Gógol e Turguêniev, Tchekov
reteve dos seus antecessores tanto o talento satírico e a percepção aguçada dos
tipos e relações sociais da época, como a habilidade para integrar-se à dinâmica de
criação de atores e diretores.
Alimentadas pela dramaturgia de Tchekov, as investigações do TAM se
desenvolveram enormemente no sentido de desvendar as implicações na
construção da verdade cênica. A verdade como reflexo da essência atravessou o
iluminismo, o romantismo e chegou com força nas primeiras décadas da
modernidade, e está na base da noção da performance como comunhão. A
verdade/essência se apresenta, geralmente, como o domínio do humano por trás
160
das individualidades, o que unifica a experiência e remete ora aos conscientes e
imaginários coletivos, ora a questões comuns da humanidade, ora ainda às catarses
que a exposição de um sujeito pode promover por seus atos performativos. Aqui,
ela surge amparada pela psicanálise emergente, reflexologia e pela psicologia
experimental do início do século para orientar um projeto de ator que alinhasse a
construção artificial com a vida natural pelo entendimento e reprodução dos
processos psico-físicos que determinam seu funcionamento à luz das teorias
citadas.
As personagens tchekovianas têm uma vida interior de fato muito mais
complexa em termos de construção psicológica como estímulo para o ator. Tais
figuras não poderiam ser incorporadas com os recursos convencionais de então,
porque demandavam a representação de estados psíquicas delicados, nuances sutis
que exigiam do ator um estudo prévio do comportamento humano cotidiano, e do
seu próprio, em especial, para poder recriá-las
116
.
Inicialmente, os exercícios consistiam, basicamente, em tentativas de
desconstrução do corpo “convencional” através do relaxamento físico (externo) e
da imobilidade, a fim de se exercitar somente a atividade interior do aluno. Esse
princípio conduziria a etapa inicial de suas investigações: a supressão do
movimento inexpressivo e a observação dos processos internos que conduzem à
verdade da cena. O corpo é o ponto de observação: suas tensões físicas são a
imagem corporal das tensões psíquicas que deformam o ator interna e
116
Há de se perguntar se já não existe, desde o começo das pesquisas de Stanislavski, uma busca pelo
“desnudamento” e pela “auto-revelação” do ator tão almejada e defendida por Grotowski meio século mais
tarde, e em que termos. Retomaremos essa discussão à frente.
161
externamente em certos padrões, e precisam ser suavizados antes de se construir os
novos padrões fictícios de comportamento que caracterizam a personagem:
- O objetivo de nossa arte não só criar ‘a vida do espírito
humano’ mas também transmiti-lo externamente de forma
artística - corrigiu Tórtsov -. Por isso o ator não deve somente
viver internamente o papel, senão também encarnar o que tenha
experimentado. Observe que a dependência da atuação externa
em relação à vivência é particularmente íntima em nossa
orientação artística. Para refletir uma mais delicada e completa
vida subconsciente, tem que contar com um aparato corpóreo e
vocal excepcio nalmente sensível e preparada à perfeição. A voz e
o corpo devem expressar do modo mais útil, direta e
instantaneamente, os sentimentos internos mais delicados, quase
inacessíveis.”
117
Com os resultados positivos das primeiras experiências, Stanislavski (que
passou a contar com a valiosa colaboração de ex-alunos como Leopold Sulerjítzki)
percebeu quais faculdades da mente humana estão mais diretamente envolvidas na
criação do ator e, portanto, mereceriam a formulação de estímulos específicos,
entre as quais destacam-se imediatamente a memória e a imaginação. Lembremos
o quanto seria forçoso exigir de Stanislavski um pensamento não arborescente
sobre o bio-funcionamento afetivo num período em que a psicanálise e a psicologia
experimental (em especial as obras de Théodule Armand Ribot Les Maladies de la
Volonté, Psychologie de l’attention e, principalmente, Les maladies de la memoire,
que influenciou reconhecidamente Stanisalvski) apareciam como as disciplinas
mais “abertas” a compreender os comportamentos humanos para além das
questões morais; e a medicina ainda determinava rigorosamente o âmbito das
patologias mentais.
117
El Trabajo de Actor sobre si mismo el trabajo sobre si mismo em el proceso creador de las vivencias. I
DILETANTISMO. p. 63. Traduções minhas para todas as citações.
162
O estudo da memória começava a preparar o campo de investigação que
encontraria mais tarde em Bergson e Foucault sua expressão mais radical.
Portanto, a questão fundamental, ainda aqui, consistia em desvendar os canais de
acesso aos conteúdos vivenciados que permitissem sua apresentação e
transformação a fim de se reconstruir um comportamento igual ao comportamento
da personagem.
Nesse processo, a memória e a imaginação estão na base do sistema. As
técnicas se orientam no sentido de criar um acervo de experiências emocionais e de
encontrar os operadores que permitam uma fabulação tão eficiente para o ator que
ele consiga se projetar inteiramente nas situações da personagem. Essa etapa das
pesquisas foi denominada Linha das Forças Motivas. Analisemos as diretrizes
técnicas que a compõem
O primeiro princípio, como já foi adiantado, se refere ao relaxamento
muscular. Stanislavski observou que um corpo excessivamente contraído carrega
uma expressividade que nem sempre está adequada à realidade emocional da
personagem. Não é um corpo disponível para a manifestação transparente das
respostas emocionais, pois os núcleos de tensão bloqueiam as ações naturais que
vem como resposta aos diferentes estados internos. Em suma, é um corpo que já
carrega uma “tensão expressiva” de grande teor informativo, e que impede a
expressão das oscilações mais sutis no diagrama dramático das personagens.
Tais tensões são registros de memórias musculares, rastros de traumas
físicos ou psíquicos que se concentram em determinadas regiões mais sensíveis ou
expostas à sobrecarga de “informação” (ou de esforço, que promove as hiper-
tensões musculares). Na perspectiva acertada de Stanislavski, esse excesso de
163
tensão é também um excesso de informação armazenado sob a forma de memória
muscular.
Para aprimorar o controle das tensões, eram indicados não somente
exercícios de alongamento realizados em aula, mas o desenvolvimento do
denominado mecanismo controlador. O controlador nada mais é do que a
vigilância constante e consciente em todas as situações cotidianas sobre o
aparecimento de novas tensões e a capacidade de induzir voluntariamente a
descontração dos músculos atacados. Essa prática envolve um treino sutil e perene
e deve acompanhar o ator por toda vida, pois somente o treino em aula não é
suficiente para descondicionar um corpo que acumula tantas tensões excessivas ao
longo do dia.
Já em sua primeira etapa das investigações, tantas vezes acusada de
promover exclusivamente a instrumentalização dos processos internos do ator,
Stanislavski parte do corpo para criação dos exercícios e pensa o âmbito físico do
homem como reflexo da memória e de sua vida psíquica. Sua abordagem,
aparentemente psicologizante, foi a primeira a pensar sistematicamente no teatro
as relações e formações dos corpos pela influência do vivido que permanece, e o
levou a estudar, antes da reconstrução de comportamento que cria a personagem,
os processos psico-sicos do comportamento cotidiano e seus possíveis
descondicionantes, tomando o ator como cobaia para uma pesquisa que é, em si,
trans-teatral.
O conceito seguinte diz respeito à atenção na cena. A concentração de
atenção é a capacidade do ator de focalizar sua atenção e empenho para um único
objetivo: atingir e vivenciar o sentimento da personagem. Em adequado estado de
164
concentração, o intérprete consegue encontrar a medida emocional que cada
situação ficcional solicita, e se insere naturalmente nesse contexto fabuloso sem
precisar forjar expressões.
A concentração não é um estado passivo, que isola o atuador do ambiente
criando um mundo de delírio particular. É precisamente o contrário. Ela se dá pela
concentração do ator não na busca metafísica do estado, mas pela realização
prática das pequenas e grandes ações que a personagem deve cumprir em cena.
Voltando sua atenção para os objetos de trabalho, o ator naturalmente se esquece
do público e abandona qualquer impulso de representar para ele, forjando
expressões excessivas: o segredo parece ser bastante simples: para se esquecer
da platéia, tem que se interessar pelo que existe na cena..”
118
O resultado de seu aprimoramento é a capacidade de preservar o estado
mesmo nas situações externas mais dispersivas. Em outras palavras, a
concentração consiste em conseguir sustentar o direcionamento do fluxo da
performance para as circunstâncias dramáticas com o mínimo de esforço possível.
Os círculos de atenção compõem uma técnica complementar à concentração
e servem para facilitá-la. Eles abrangem as áreas de interação do ator com o
ambiente e podem ser pequenos, médios ou grandes conforme a proximidade do
intérprete em relação aos objetos que os compõem. Eles exercitam, em um
primeiro momento, a percepção do todo da cena, mas com a finalidade de situar o
ator em seu universo fictício particular, para que ele consiga erguer em torno de si
a quarta parede e experimente a solidão em público: ser observado sem sofrer
influência da audiência ou de outros incidentes (nesse sentido, as técnicas dos
118
Op. Cit., p. 124.
165
círculos de atenção e da solidão em público se opõem diametralmente àquelas de
jogo experimentadas nas linguagens farsescas e melodramáticas).
A quarta parede é um recurso de delimitação de fluxo típica do teatro
ilusionista, que se baseia na convenção de que o público está assistindo a uma
performance que acontece diante dele, e não para ele, portanto, não requer (e, de
fato, não deseja) a participação direta da audiência. Ela trabalha para acentuar a
relação de exposição psico-física do intérprete como suporte do discurso, que
enuncia seu depoimento memorioso e fabuloso em nome de um terceiro (a
personagem, que fala pelo autor) em um jogo de distanciamentos que
paradoxalmente busca a recriação de uma cena o mais próxima possível da
realidade cotidiana.
Para seguirmos na descrição da primeira etapa do sistema de Stanislavski,
convém que expliquemos quais são as Forças Motivas que dão nome ao processo.
São três: o sentimento, a mente e a vontade. No método, o sentimento é o maior
dos mestres, porém reside numa esfera do aparelho psíquico que não está sujeita à
evocação e utilização imediata dos materiais para fins expressivos. Portanto, ele
deve ser “despertado” pelas duas outras forças motivadoras: a mente (concebida
aqui como intelecto, faculdade da razão) e a vontade. Em seu método, Stanislavski
pretendeu sempre atingir indiretamente os sentimentos/emoções, para evitar
clichês de expressão. O caminho é mental no sentido de revelar ao ator a lógica de
conduta da personagem e levantar as emoções provavelmente envolvidas em seus
movimentos pra daí, indiretamente, conduzir o ator à incorporação desse
comportamento: “dessa forma, as lembranças do que se tenha vivido surgem
166
refletidas sobre a base de relação indissolúvel entre o físico e o psíquico no
processo de criação.
119
Trataremos, a partir de agora, dos operadores do sistema que solicitam
diretamente o trabalho sobre as memórias por parte do ator, e que estão
comprometidos mais profundamente com a dinâmica de fabulação necessária para
promover o alinhamento comportamental com as personagens: a memória emotiva
e a memória das sensações.
A memória das emoções é um conceito que Stanislavski desenvolve a partir
da idéia de “memória afetiva” de Ribot
120
, porém buscando para efeito de
investigação teatral uma aproximação entre a ação e a lembrança que não existe a
princípio na teoria experimental. Stanisalvski conecta intimamente o trabalho da
memória das emoções àquele da memória das sensações e a uma possível
“memória motriz’, que já era intuída desde o início das pesquisas, mas que só foi
verdadeiramente identificada e incorporada no Método das Ações Físicas. A
memória das emoções é a capacidade de todo ser humano de concentrar e
apresentar registros afetivos ligados a determinadas situações, situações que
estabelecem conexões absolutamente singulares com as emoções, e cuja
singularidade define o universo mnemo-afetivo do ator.
Tais emoções nascem antes de uma memória das sensações, da vivência do
que é apreendido pelos sentidos e reconhecido em padrões de percepção para daí
se desdobrar em referenciais emocionais. Stanislavski insiste nessa questão: a
119
Comentários de Salomon Merener, in op. cit., p. 233.
120
Partindo das conclusões de Ribot sobre a presença de uma memória afetiva do homem, Stanislavski
investigou o papel desta na criação artística. Desenvolveu e aprofundou as conclusões teóricas e substituiu
seu termo “memória afetiva” pelo conceito mais completo e exato “memória das emoções”. Comentários de
Salomón Merener, in op. cit., p. 222.
167
memória das sensações é autônoma, pode tanto se encerar na evocação da sensação
quanto provocar a memória das emoções, e sugere que é mais comum a atualização
da memória das emoções pela pressão das sensações (ou de suas memórias) do que
por movimentos abstratos da mente:
“Precisamente essa memória que te ajuda a repetir todas as
sensações conhecidas, vividas anteriormente, aquelas que
experimentou durante os passeios a Moskvin, e com a morte de
seu amigo, é a memória emotiva. Assim como sua memória
visual faz reviver diante da sua visão interior um objeto
esquecido muit0 tempo, um lugar ou uma pessoa, a memória
emotiva pode fazer reviver emoções experimentadas. Parecia que
elas haviam se apagado de todo, mas, de repente, alguma
sugestão, uma idéia ou uma figura conhecida faz com que as
emoções te dominem, às vezes, com mais força do que nunca,
outras, mais debilmente; em outras ocasiões, são iguais às da
primeira vez, e em outras, têm um aspecto diferente. .
121
E sobre uma hierarquia dos sentidos:
“Não obstante, às vezes falarei dos cinco sentidos paralelamente
à memória emotiva. Resulta mais conveniente. É necessário, e
como isso faz muito falta ao artista quando está atuando, a
lembrança das sensações dos sentidos? Para responder, tomemos
cada uma elas separadamente. De nossos sentidos, a visão é o
que capta mais diretamente as impressões. Também a audição é
extremamente sensível. Por isso, é mais fácil trabalhar nossa
sensibilidade através do olho e do ouvido.
122
Notamos que a memória das emoções remete tanto à idéia de um acervo
técnico quanto de um processo cujas demandas estão diretamente relacionadas
com o presente. Stanislavski aponta a relação sensorial como base para evocação,
cujos materiais são o ponto de partida para o trabalho da imaginação.
121
Op. Cit., p. 224.
122
Op. cit., 225.
168
Duas são as ferramentas imaginativas complementares para auxiliar o
intérprete a afinar a sensibilidade e a disponibilidade em compreender e criar a
lógica de funcionamento da personagem: o “se” mágico e as circunstâncias dadas.
O se mágico” é o mecanismo de estimulação da imaginação e memória
criadora que induz o ator a se inserir em uma existência ficcional (muitas vezes,
bastante distinta da sua). Conforme explica Stanislavski: “Deve-se perguntar: ‘se
tudo isso fôsse real, de que forma eu reagiria? O que eu faria? [...] E, então,
normal e naturalmente [...] este se funciona como uma alavanca que lhe permite
alcançar um mundo de criatividade
123
. Se o estímulo se completa
satisfatoriamente, o ator consegue estabelecer uma cadeia de associações que o
situam verdadeiramente na situação fantástica, ou imaginar conexões afetivas
análogas que a preencham, e, assim, criar uma rede de referências emocionais
semelhante à fábula que é vivida com a mesma potência como se fôsse real.
Por isso Stanislavski ressalta permanentemente a qualidade de observador
de um bom ator. Um intérprete deve estar sempre atento não somente às figuras
humanas que o cercam, a suas relações e comportamentos (embora essas sejam as
fontes mais diretas de material para suas composições), mas à toda diversidade de
seres que habitam as paisagens, às cores, aos cheiros, à musicalidade dos diversos
sotaques, às formas das plantas. Todas essas imagens sensoriais formam o material
de trabalho para a memória e a imaginação, e é a diversidade de registros
mnemônicos que define a qualidade da criação do ator nesse sistema: a qualidade
de sua memória emotiva .
123
Manual do Ator, pp. 125-126.
169
Nem sempre um sentimento é acessado imediatamente ou pela simples
leitura do texto. Stanislavski defende que esse é o mais intangível dos mestres. Por
isso são necessários exercícios específicos que, através das forças da mente e da
vontade, permitam transformar informações do repertório pessoal que aproximem
o ator da situação fabulosa. (pode ser um cheiro, uma cor, um som, não
necessariamente uma palavra). Como foi dito anteriormente, não existem regras
que conectem a situação dramática com as emoções, por isso, os materiais de
estimulação podem ser diversos.
Da mesma forma, a imaginação funciona como o grande motor para
completar as lacunas mais ou menos claras da memória, aproximando as duas
faculdades em um nível que, como já vimos, não pode ser distinguido e medido
quando o processo criativo se inicia. Um ator que tem a observação, a memória e a
imaginação pouco desenvolvidas não consegue nem criar nem apreender
conscientemente o repertório. Para esse ator, o trabalho com o “se mágico” é mais
difícil, pois não se tem controle sobre os materiais armazenados.
As circunstâncias dadas remetem ao enredo da peça, e englobam todas as
informações sobre a trajetória da personagem na trama (aspectos espaciais,
históricos, tipo de relação que se estabelece com as demais personagens, etc.).
Comporta também a situações “externas” ao pequeno círculo de atenção do ator:
encenação, direção, cenário, sonoplastia, figurinos, adereço e objetos de cena. Em
suma, é o conjunto completo de circunstâncias vivenciadas pelo ator para realizar o
trabalho interpretativo.
Esse operador delimita ainda mais o caminho da fabulação para o ator. As
informações que compõe as circunstâncias dadas formam o mapa em que a
170
memória e a imaginação do intérprete serão estimuladas: a personagem “x” vive na
época “y”, veste-se com tais roupas, odeia ou ama tais outras personagens por esse
ou aquele motivo e utiliza esses ou aqueles objetos para tais finalidades. Se o “se
mágico” permite a transposição orgânica do ator para determinado contexto, as
circunstâncias dadas definem detalhadamente esse contexto.
Nesse sentido, é fundamental avaliar a participação de Tchekov na
organização do sistema. Foi crucial a contribuição do dramaturgo para o êxito dos
exercícios do “se mágico e das circunstâncias dadas, já que vem do texto o
conteúdo ficcional que permitirá ao ator conhecer os elementos da nova realidade
em que deverá se inserir. Dentro do método, somente uma dramaturgia que
explorasse com profundidade os sentimentos humanos, suas contradições e
embates, poderia estimular a produção de técnicas complexas de interpretação.
Entretanto, de nada adiantará utilizar tais técnicas e ter um vasto repertório
de imagens e de emoções dilatadas se os exercícios não resultarem em um
sentimento de verdade e em uma fé cênica para o ator a respeito da vida da
personagem. Esse mergulho orgânico na alma humana, por meio das ferramentas
citadas, deveria ser tão profundo que, acreditava Stanislavski, por si só motivaria o
ator a incorporar o papel independente de suportes externos. Assim, uma faca
assassina poderia ser de papelão, castelos podem ser apenas cavaletes e escadas se
tornam muralhas aos olhos de um ator com a fé cênica necessária. A utopia da cena
humanista/naturalista concretizaria a grande comunhão entre homens do palco e
da platéia e restituiria a função maior da arte teatral que foi destruída pelos teatros
“cabotinos” ao longo do século XIX.
171
O sistema de Stanislavski já reconhecia, desde sua gênese, que uma
construção “humanizada” da personagem precisa acontecer em etapas que
permitam identificar seus graus de individuação, e não como um bloco monotípico.
O despertar dos processos internos é apenas o início da estruturação do material
expressivo, cujo tratamento mais requintado será dado pela segmentação das
unidades e pelo esclarecimento dos objetivos da personagem.
A prática para determinar as unidades consiste em recortar os momentos
dramáticos em cada cena a fim de analisar mais atentamente as sutilezas das
micro-situações (as unidades em si). A intenção é recortar os instantes dramáticos
da personagem, romper para fim de estudo a linha contínua que define sua
existência como entidade viva para se observar os detalhes que explicam seu
comportamento em cada etapa da narrativa, e, assim, compreender melhor o
movimento de sua trajetória. Acima de tudo, é pelas unidades que se pode
reconhecer a memória da personagem.
A análise das unidades permite ao intérprete encontrar os objetivos que
amparam suas ações e justificam sua presença em cena. Cada unidade tem seus
objetivos menores, que relacionam os instantes específicos na vida da personagem.
Mas a concatenação psicológica dos objetivos menores conduz a uma linha de
comportamento maior que existe até na mais medíocre das figuras dramáticas: o
superobjetivo. Embora não constitua exatamente uma técnica de treinamento, o
princípio do superobjetivo resume a coerência interna da personagem, e orienta
toda a linha direta de ação. Em poucas palavras, concentra a essência final de
construção da personagem a que toda a linha da forças motivas se propõe.
172
Completando os elementos constitutivos da vida interior estão a comunhão
(estado de conexão e comunicação sensorial/verbal do ator consigo mesmo e com o
ambiente) a adaptação (os mecanismos internos e externos de que os atores se
valem para adequarem-se às relações pessoais e com os objetos na cena) e a
imaginação, o mais fundamental de todos os requisitos para se trabalhar o método.
Os elementos constitutivos da vida interior formam o quadro técnico pelo
qual Stanislavski estruturou a primeira fase de seu treinamento interpretativo. Esse
período é marcado até a morte de Tchekov, que redirecionou profundamente o
andamento da pesquisas do TAM.
Em 1918, Stanislavski desenvolve um projeto que seria de grande
contribuição para a consolidação da etapa seguinte de suas pesquisas Trata-se do
Estúdio de Ópera do Bolshoi. O trabalho de interpretação com os cantores, a partir
da estrutura rítmica das partituras musicais, despertou para a importância do
ritmo interno na criação da personagem, e produziu o conceito de ação rítmica.
Stanislavski reconheceu, no avanço de suas investigações, que uma limitação
fundamental encontrada em seu sistema consistia na fixação e recuperação dos
materiais expressivos. Por mais eficiente que fossem os exercícios, a manifestação
de um estado interno muitas vezes encontrava formas irrepetíveis no corpo, o que
se tornava um problema para trabalho do ator que precisa apresentar a mesma
performance inúmeras vezes durante uma temporada. Por tanto, o eixo de
abordagem precisaria se deslocar para o material que pode ser codificado: a ação
física, e não mais os estados internos.
Evidentemente, o approach sobre a criação das ações físicas seguiria os
preceitos já desenvolvidos pelos estudos até então, ou seja, toda ação física é
173
coerente ao comportamento psicológico: uma ação psico-física alinhada à lógica
interna de funcionamento da personagem. Portanto, esse redirecionamento da
pesquisas não significa de modo algum uma ruptura com a fase anterior. Ele é um
passo adiante na sistematização dos procedimentos que pressupõe um domínio
avançado dos exercícios da Linha das Forças Motivas, base de toda a atitude viva
do ator.
Essa fase ulterior ficou conhecida como Método das Ações Físicas, e foi
interrompida com a morte do pesquisador. Os exercícios visavam a direcionar a
concentração do ator sobre o como fazer, sobre a qualidade e o ritmo na realizão
das ações. Observou-se que a repetição de uma mesma ação, com intensidades
diferentes, altera não somente as referências pessoais acessadas da memória
emotiva pelo “se mágico”, como pode sugerir novas configurações para todos
demais elementos da vida interior.
Tal constatação é muito importante, pois revela que a execução
aparentemente mecânica de um movimento quando realizada com consciência e
concentração, pode resgatar as circunstâncias dadas e restaurar o seu sentido, e
que não somente os processos internos conduzem à ação. Em termos estritamente
científicos, as pesquisas de Stanislavski anteciparam a idéia de um fluxo de
memória em que a vias aferentes e eferentes tem a mesma importância, ou seja, o
aparato motor e sensorial é tão determinante no processo de criação das memórias
quanto o centro nervoso, pois desse primeiro vêm os estímulos que desencadeiam
as associações de registros do cérebro. E essas associações não seguem
necessariamente uma ordem lógica de solicitação-resposta, antes pelo contrário.
Entretanto, compreendemos que não existia uma neurologia suficientemente
174
desenvolvida e direcionada para o esclarecimento dessas relações no início do
século passado.
Nos últimos anos de suas atividades, as ações físicas adquiriram
considerável autonomia em relação ao texto escrito, se comparado às pesquisas dos
primeiros anos. Em sua montagem inacabada de O Tartufo (interrompida pelo seu
falecimento), Stanislavski trabalhou as partituras físicas praticamente sem o texto,
partindo apenas da idéia geral de cada ator sobre o conteúdo e o desenvolvimento
da cena.
Primeiro, se apresentava o esquema de ações, para depois entrar o texto, um
processo inverso àquele experimentado na etapa da Linha das Forças Motivas. O
quadro de conceitos foi modificado por uma perspectiva mais processual, em que
se fundem as forças motivas vontade-sentimento em um vetor dinâmico de criação,
orientado pela atividade mental. O entendimento de organicidade se encaminha
mais para a resolução da ação psicofísica do que para o macro-conjunto de
implicações que alimentam os processos interiores.
Talvez seja necessário que se dê alguma atenção à noção de organicidade.
Para Stanislavski tratava-se de encontrar uma pedagogia para a reconstrução em
cena da condição humana mais simples e natural, que conforme o diretor, escapa
ao ator no instante em que se convenciona a entrada em cena. Seguindo essa
concepção, o corpo-mente orgânico desenvolve-se quando o corpo responde a
todas as exigências feitas pela mente de uma maneira que não é nem redundante,
nem negligente, nem incoerente. Para Stanislavski, a organicidade no palco não era
análoga, mas igual à organicidade na vida; e poderia ser construída pelo
175
alinhamento, este sim, construído por analogias, entre o comportamento cênico e o
comportamento natural.
O treinamento interpretativo traz à berlinda algumas das questões
fundamentais sobre utilização da memória criadora e construção do depoimento
pessoal no campo da performance. De fato, a interpretação acabou se afirmando na
teoria da performance contemporânea, como a raiz comportamental da
performance moderna, pela qual se aglutinam e se revelam as características
essenciais do que hoje chamamos de teatralidade, e que, pela crítica formalista, se
oporia ao estatuto da performance como arte do pós-moderno:
“Teatralidade é algo que ela (Féral) vê como devotado à
representação, à narração, ao fechamento e à construção de
sujeitos em um espaço físico e psicológico, o reino das estruturas
codificadas, ou o que Kristeva chama de simbólico. Féral opõe
diretamente a performance a atividades desse tipo, elas desfazem
e desconstróem competências, códigos e estruturas do teatral.
Apesar de começarem por materiais do teatro códigos, corpos
vistos como sujeitos, ações e objetos envolvendo um sentido em
sua representação elas quebram os sentidos e as relações
representacionais para permitir o livre fluxo da experiência e do
desejo.”
124
Primeiramente, temos como base de criação a noção de um sujeito como
essência psico-física de reprodução. Considerando-se todo esforço de
recontextualização histórica que tentamos apresentar, não é necessário pontuar
novamente a que tipo de atuação Stansilavski se opunha e de quais ferramentas
científicas dispunha para justificar seu retorno ao comportamento cotidiano na
busca por novos sentidos para a vida cênica.
O ator pré-stanislavskiano encontrava-se no limite da reprodução estilística
e da falta de um pensamento sistemático sobre os procedimentos de criação que
124
Carlson apud Féral, Performance a critical introduction., p.151.
176
possibilitasse a profissionalização para além do trabalho sobre os talentos pessoais.
Com suas técnicas, a reconstrução de comportamento tornou-se um processo, mais
do que criativo, pedagógico, que revelou possibilidades de transformação e mimese
corporal em níveis até então operados muito mais por intuição do que
propriamente por uma técnica organizada.
O sujeito como essência psicofísica surge como resposta ao tipo, se
aceitarmos a afirmação de Féral de que, ainda aqui, o objeto/obra pronta é o mais
importante, pois estaríamos tratando de arte moderna por excelência. O ator é o
sujeito que empresta seu corpo depoente para a criação do autor e todos os
exercícios de seu método se orientam, em última instância, para movimentar o
devir-personagem. Analisemos com mais atenção as relações-chave que envolvem
o processo interpretativo.
O texto dramático é um estrato orgânico impregnado das memórias do
escritor, um depoimento pessoal do autor que toma a narrativa como pretexto para
delimitar o vértice-presente de seu cone da memória, e caracterizar as forças que
atuam sobre sua criação. A fábula tem como ponto central a complexidade psico-
física das personagens, suas relações, transformações, em suma, toda trajetória
humana e histórica, que pressiona a memória do autor para formação de um certo
tipo de texto, de estética, de personagem e não outro.
A dramaturgia é a livre atualização dos virtuais pelas circunstâncias da
fábula e de suas regras internas presentes de potenciação. Portanto, é uma
recriação assumida enquanto tal de figuras ficcionais oriundas da memória do
autor combinadas criativamente em devir. Não é um rememorar imagens do
passado, mas recombinar seus virtuais que tenham poder de relação com as
177
necessidades presentificadas do processo, suas memórias em rizoma com as
intuições e impressões acerca da criação, que ganharão forma no espaço pelo corpo
do intérprete.
O ator é o corpo depoente que no método interpretativo pretende se
apresentar como o meio de revelação da personagem. Falamos, utilizando ainda a
terminologia do período, de uma essência que coloca seu aparato físico e psíquico
em trabalho para produzir a expressão de outra essência. Todo sistema de
Stanislavski reúne técnicas para conseguir alinhar os comportamentos das duas
essências, em outras palavras, das duas máquinas poéticas, e promover uma
atualização mimética dos virtuais que identificam a personagem pra o ator.
Por isso a criação de exercícios tão específicos para a construção dessa
“verdade interior”. As unidades, os objetivos, além dos operadores principais,
existem para definir com o máximo rigor os limites da história para a qual o ator
irá “emprestar” suas emoções. Elas direcionam o fluxo para as circunstâncias dadas
e, assim, vão condicionando cada vez mais as respostas da memória às
particularidades da narrativa, até que se delineie um perfil específico de criação
conformada às forças do “se mágico”, das circunstâncias, dos objetivos, e
superobjetivo, etc.
Mesmo partindo de um pensamento que pretende conduzir um sujeito
fenomenológico ao encontro de outra entidade fenomenológica, todo método
stanislavskiano não é nada mais do que o desejo de se colocar em devir, um devir
que, ainda que atualizado por coordenadas rigorosas de criação, tensiona a noção
de essência apresentada de início. O texto dramático deseja ser corpo do
ator/tradutor/traidor. A memória do ator deseja ser através da personagem/corpo
178
do autor e pelo corpo do intérprete (só assim ela pode ser nesse processo). É na
afetação mútua de todas essas forças, na confluência dos desejos e em seu
ultrapassamento que surge a personagem/depoimento, síntese de depoimentos em
devir, fluxo de corpos depoentes em relação rizomática com os demais corpos da
performance.
O que Stanislavski inclina, à princípio, mais ao âmbito da imaginação, e que
constitui a diretriz mais importante do método, a fabulação, é de fato uma função
precisa da memória como recriação do vivido e da imaginação juntas quando
tomadas como processo de cooperação rizomática e não mais como faculdades
arborescentes. Quando pede para um ator se perguntar o que faria se estivesse em
tal situação, Stanislavski é ilustrativo. Ele não sugere um retorno ao passado, nem
uma evocação da experiência, pois muitas vezes o ator não vivenciou nem de perto
a circunstância indicada.
Mais do que isso, ele sabe que o vivido ontem não voltará para auxiliar o ator
hoje nem mesmo se mente e vontade estiverem no máximo de concentração.
Vejamos essa bela passagem em que o autor toma literalmente a memória como
recriação:
O mesmo sucede no arquivo de nossa memória. Também nesse
existem armários e subdivisões. Algumas são mais acessíveis que
outras. Como recuperar as pérolas das lembranças emotivas que
fulguram por um momento como meteoros para desaparecer em
seguida? Quando aparecem e nos iluminam [...] agradecemos a
Apolo por ter nos enviado tais visões; mas não sonhemos em
fazer retornar o sentimento desaparecido para sempre. Amanhã,
haverá alguma outra recordação. Mas não esperemos pelo ontem,
e demos graças pelo dia de hoje. Somente quando receber
adequadamente as recordações que ressurgem, o espírito
responderá com renovada energia às partes do papel que
deixaram de emocioná-lo devido à repetição constante. Nos
entusiasmaremos, e talvez, então, apareça a inspiração. Mas , não
pense em perseguir a antiga pérola, que não voltará jamais, como
o ontem, ou a alegria da infância, ou o primeiro amor. Procure
179
criar cada vez uma inspiração nova e fresca para o presente. Não
importa que seja mais frágil que a de ontem: pertence ao dia de
hoje.
125
Chegamos ao ponto chave do estudo da memória no método interpretativo
em nossa tese. A noção de memória em Stanislavski não é, e não pode ser pela
natureza de seu sistema, uma memória de evocação. Toda pedagogia
stanislavskiana se baseia na ação, mesmo no período inicial em que as pesquisas se
concentram na delimitação dos operadores psíquicos, abordagem da qual derivam
os conceitos de memória das sensações, memória das emoções e imaginação.
A observação dos comportamentos psico-físicos do ator logo revelou os
limites de reprodução da performance como a principal questão a ser pensada em
termos de uma atuação viva ou mecânica. Tais limitações têm como origem
exatamente a natureza fugidia e ineficiente da memória quando compreendida
somente como resgate histórico.
A memória das emoções é o operador que representa precisamente esse
dilema: é preciso alimentar o repertório de viv ências que se traduzem em imagens
e sensações, e paradoxalmente aceitar que eles não se apresentam à nossa
disposição pela força da vontade direta. A solução que Stanisalvski nos apresenta:
aceitar a potência inata da memória e os produtos que ela nos oferece pela sua
natureza criadora, e não restauradora e conformada às ordens racionais. Trabalhar
a memória como ferramenta analógica, como fundida à imaginação em sua força
criadora, cujas combinações não se submetem a lógicas comportamentais ou
históricas apriorísticas e nem podem ser coagidas a agenciamentos de causa e
125
El Trabajo de Actor sobre si mismo el trabajo sobre si mismo em el proceso creador de las vivencias, p.
231.
180
efeito, busca e encontro, etc. Por isso todo caminho de estimulação é indireto, pois
um caminho de acesso direto à memória das emoções pressuporia relações de
realização e não de atualização (criadoras), como já vimos anteriormente.
Nesse sentido, ainda, Stanislavski pontua em toda descrição de seu método a
crescente valoração da relação objetiva do ator com os elementos da cena como
base para recriação da vida cênica. Ela denota ao princípio da atenção e a todas as
técnicas que dilatam a percepção, mas se estende também ao trabalho sobre as
memórias. É da relação presente com os demais corpos da cena que surge a
“inspiração” a que o pedagogo se refere para recuperar o frescor da performance.
Stanislavski intuiu que a personagem, mesmo já construída, “fechada” como obra
pretensamente pronta, acúmulo de depoimentos organizados, respira e vive de
fato quando o ator aceita o fluxo mnemônico e reconstrói sua identidade a cada
apresentação no devir da mnemo-criação e dos agenciamentos com os demais
estratos da performance.
Ele exige exatamente que se assuma a criação, ou, em outras palavras, a
memória como criação, como parte já da imaginação, a face líquida pela qual o
estrato personagem se desterritorializa em ator-lembrança, ator-fábula, ator-
percepção. Não interessa se a situação “x” foi de fato vivenciada ou não pelo
intérprete, ou algo semelhante, etc. A força não está na identificação pela
capacidade de relembrar algo semelhante e estimulante à situação dramática. A
chave está na capacidade de identificação com a criação que é a personagem, pela
atuação da memória das emoções e sensações e da imaginação como
complementares, e em acreditar com tanta verdade nessa criação que, por essa fé
cênica, ela se torna real. Acreditar na fábula como se fosse real, pela depuração dos
181
elementos da narrativa que qualificam a personagem, eis a ética do método
interpretativo que promoveu a criação de todas suas ferramentas.
O depoimento pessoal do ator é o produto da pressão sobre o ponto P
/personagem de uma memória das emoções (e das sensações) que se desloca
dentro de um turbilhão. A fábula funciona como um pretexto afetivo para o ator
potencializar seus desejos e se colocar em zona com todo domínio em devir da
personagem, que conforma os desejos às circunstâncias cada vez mais definidas
pelo texto. Mas as linhas de fuga são inevitáveis, e por isso os mesmos papéis são
apresentados de formas tão distintas ao longo dos séculos mesmo em orientações
estéticas idênticas. A memória é atualização e virtualização, não segue regras de
probabilidade para evocação: cada memória é um fluxo de criação com relações
singulares. Stanislvaski intuiu tais considerações imediatamente em seu rigoroso
trabalho sobre os corpos depoentes, às quais respondeu brilhantemente com o
instrumental de que dispunha em sua época. Sua pesquisa, que inicia e acaba no
corpo, jamais o conduzira a teorias interpretativas transcendentais
Cada corpo depoente é um estrato em relações rizomáticas fluidas, mas
heterogêneas. Os agenciamentos são irrepetíveis, as forças de pressão
imensuráveis, todo processo é absolutamente particular, e aí encontramos uma
noção de pessoalidade líquida que pode de fato contribuir para compreendermos as
especificidades que envolvem a criação mesmo em processos que se pretendem
fechados.
Após tantas considerações, acreditamos que seja o caso de repensarmos em
que medida Stanislavski propôs um trabalho do ator que na personagem uma
obra fechada. A evolução de sua trajetória pedagógica, a transformação pelas quais
182
passou seu método, a enorme intuição sobre os desdobramentos possíveis para as
técnicas criadas e a atitude pessoal do pesquisador em seus registros parece
apontar exatamente um interesse maior pelo processo e o temor de que a
sistematização pudesse conduzir ao engessamento da pesquisa. Se a cena realista
aparentemente concentra os cânones da teatralidade e da modernidade para o bem
ou para o mal, o pensamento de Stanislavski sobre o trabalho do ator corre por
outras regiões, e chega à atualidade com fôlego para um diálogo absolutamente
potente com os criadores pós-modernos.
183
Capítulo II Os impulsos, ancestralidade e criação na cena-depoimento do
performer: Grotowski e o ato total.
Jerzy Grotowski (1933-1999) foi, provavelmente o maior pedagogo das artes
do ator da segunda metade do século passado. Partindo dos relatos de Stanislavski
e Vassili Toporkov sobre os processos de criação que se utilizaram do Método das
Ações Físicas, associado à teoria dos jogos teatrais, à psicologia e etnologia do pós-
guerra e as tradições de representação orientais, indígenas e africanas, desenvolveu
uma longa investigação sobre o trabalho do performer voltada para a essência
técnica da atuação:
“Criei-me com o método de Stanislavski; seu estudo persistente,
sua renovação sistemática dos métodos de observação e seu
relacionamento dialético com seu próprio trabalho anterior
fizeram dele meu ideal pessoal. Stanislavski investigou os
problemas metodológicos fundamentais. Nossas soluções,
contudo, diferem profundamente das suas; por vezes, atingimos
conclusões opostas [... ] o mais importante para os meus
objetivos: exercícios de ritmo, de Dullin, investigações das
reações introversivas e extroversivas de Delsarte, trabalho de
Stanislavski sobre as ‘ações físicas’, treinamento biomecânico de
Meyerhold, a síntese de Vakhtângov. Também especialmente
estimulantes para mim foram as técnicas do teatro oriental,
especialmente a Ópera de Pequim, o Kathakali indiano e o Nô
japonês.”
126
Sua abordagem parte da idéia de que a instrumentalização não se dá pelo
acúmulo de conhecimentos e virtudes expressivas, senão o contrário, pelo
despojamento de tudo que impede o fluxo dos impulsos internos e sua
manifestação no corpo, a verdadeira fonte de expressividade cênica. Veremos como
essa premissa pedagógica levou a construção do depoimento pessoal à supressão da
personagem e estabeleceu regras particulares para sua organização em cada etapa
de suas atividades.
126
Em Busca de um Teatro Pobre, p. 14.
184
As investigações de Grotowski iniciam formalmente em 1959, primeiro no
pequeno Teatr 13 Rzedow (Teatro das 13 Fileiras), em Opole, seguindo após sua
transferência para a cidade de Wroclaw (Polônia, sua terra natal), onde se
estabelece o Teatro-Laboratório em condições mais estáveis de produção. Décadas
mais tarde, após um período morando nos Estados Unidos, Grotowski se mudaria
para a pequena cidade de Pontedera, na Itália, onde cria, com um de seus
discípulos norte-americanos, Thomas Richards, o Centro para a Experimentação
do Trabalho do Ator (Workcenter) de Pontedera. Ali, ele trabalhou até a sua morte,
e pôde desenvolver os experimentos ulteriores que produziram a derradeira etapa
de sua trajetória de investigação, em que a identidade do teatro se revela,
paradoxalmente, pela recusa dos estatutos que a princípio definem a comunicação
teatral.
Como sucedeu com Stanislavski, cada fase representa o aprofundamento do
olhar que parte do trabalho do ator para determinar as demais semioses da cena,
com a diferença de que, em Grotowski, a própria noção de teatro muda
radicalmente pelos desdobramentos das experiências. Em seu artigo Da
companhia teatral à arte como veículo, o pedagogo situa as etapas inicial e final
como extremos de uma mesma busca pedagógica que pretende encontrar o
verdadeiro sentido para o teatro como espaço de vida que se afirma pela negação de
seu oposto, o jogo degradado das máscara cotidianas: representamos tão
completamente na vida que, para fazer teatro, bastaria cessar a
representação.”
127
E ainda:
Tais indícios nos levam a pensar, e o cremos sem despropósitos,
que talvez Grotowski buscasse no teatro muito mais uma forma
127
O Teatro Laboratório de Jerzy Grotowski 1959-1969. p. 1.
185
de vida que se poderia qualificar de autêntica ou de íntegra
do que uma realização dramática tradicional. Pois a primeira
constatação que enuncia em ‘Em Busca de um Teatro Pobre’ diz
que o ritmo de vida da civilização moderna se caracteriza
justamente pelos atos demasiadamente medidos, por tensões,
por um sentimento de predestinação e morte, pelo desejo de
ocultar os verdadeiros motivos pessoais e assumir, ao contrário,
uma variedade de papéis e de máscaras Ou seja, na vida
corriqueira, já somo atores. E o que oferece o teatro em
contrapartida? Para aquele que sai do papel trivial da vida para
consagrar-se ao papel reservado da cena, a arte dramática
permite dedicar-se a motivos mais elevados, autoriza a retirada
das máscaras sociais e torna possível uma ação completa, qual
seja, a de uma união física e espiritual.”
128
A primeira fase de trabalho recebeu do próprio diretor, no mesmo artigo, a
classificação de arte como representação (ou teatro dos espetáculos) e acontece
tanto na ocupação de Opole quanto em Wroclaw. Tem essa denominação porque o
eixo da montagem dos materiais está na percepção do espectador e nos efeitos que
se deseja oferecer ao público. Toda arte do espetáculo ou que se pretende
espetacular, para Grotowski, parte dessa abordagem:
“Normalmente, no teatro (bem dizer, no teatro dos espetáculos,
na ‘arte como representação’, se trabalha a visão que aparece na
percepção do espectador. Se todos os elementos do espetáculo
estão elaborados e perfeitamente montados (a montagem),
aparecerá na percepção do espectador um efeito, uma visão, uma
história; de certa maneira, o espetáculo aparece não no cenário,
mas na percepção do espectador. Esta é a particularidade da ‘arte
como representação’.”
129
Foi o período das encenações históricas
130
do Teatro-laboratório, que
revelaram à comunidade artística internacional as premissas artísticas e
pedagógicas do que o autor polonês Ludwik Flaszen classifica como o pensamento
do “arqueo” ou “paleo” Grotowski: o proto-estatuto do performer e da cena
128
Miranda in op. cit., pp. 1-2.
129
De la compañia Teatral a El arte como vehículo, p.158. Traduções minhas para todas as citações.
130
Para uma introdução à teatrografia de Grotowski, ver O Teatro Laboratório de Jerzy Grotowski 1959-
1969.
186
desenvolvido na fase dos espetáculos. Tais obras continham os pilares de seu
método: a transformação radical na forma de pensar a relação com o público (fim
da quarta parede e questionamento sobre a necessidade e função dos espaços que
separam atores e público, que produz o “participáculo”, posteriormente
abandonado na fase da arte como veículo) e a substituição da interpretação pelo
Ato integral; pilares que se representam nos binômios ator-espectador e corpo-voz.
O ator-espectador é a expressão que Grotowski encontrou para definir a
terceira entidade que nasce do encontro performático que o espetáculo
proporciona, uma macro consciência global reflexiva que, na fenomenologia
mística inicial do pedagogo se traduz num essencialismo transcendental, mas que
no quadro de referência que viemos utilizando pode se definir mais complexamente
como o agenciamento entre estrato-público e estrato-espetáculo em rizoma no
tempo poético do encontro. Essa terceira identidade se construiu de maneiras
diferentes conforme as dinâmicas de interação entre público e atores ao longo da
trajetória de suas investigações. Voltaremos a essa questão fundamental com mais
atenção adiante.
No período dos espetáculos, o performer aparece como o ator não-
representante, livre-depoente, de forte presença física, que se insere no fluxo de
imagens e intuições pela potenciação dos estados subconscientes levada ao limite
da linguagem, e que é melhor representado na figura de Ryzsárd Cieslak, principal
colaborador de Grotowski na época. Cieslak permaneceu com Grotowki em quase
toda sua carreira, e vivenciou a evolução dos experimentos que configuraram as
bases dos treinamentos técnico, plástico, vocal e energético.
187
Grotowski parte da máxima contracultural de que o corpo do homem
moderno é podado” por práticas de educação coibitivas e coercitivas e máscaras
sociais deformadoras. Funciona muito aquém de suas potencialidades expressivas,
e nessa negação de si mesmo se encaminha cada vez mais para a morte. A esse
sujeito em devir morte pela pressão das forças conservadoras que organizam o
cotidiano, Grotowski denomina o “eu apreendido”, cuja função do artista de teatro
é “superar e desmentir.”
131
O conceito de impulso interior vem da análise freudiana, retomada por Jung
em sua teoria do inconsciente, mas que sugere a Grotowski sua própria revisão do
conceito a serviço da criação performática, que ele re-denomina morfema: o
morfema são as informações genuínas e expressivas de nossa estrutura psíquica
que vêm mais diretamente do subconsciente e driblam o filtro auto-crítico e
castrador do superego para atingir o exterior. São informações/sensações pré-
lingüísticas, que compõem o material profundo e autêntico do depoimento pessoal
do performer. Porém, tais informações já são corpo, se apresentam imediatamente
à atualização da matéria quando se agenciam a um estrato orgânico humano livre
de condicionamentos, em zona com os impulsos:
“Nosso método não é dedutivo, não se baseia em uma coleção de
habilidades. Tudo está concentrado no amadurecimento do ator,
que é expresso por uma tensão levada ao extremo, por um
completo despojamento, pelo desnudamento do que há de mais
íntimo tudo isto sem o menor traço de egoísmo ou de auto-
satisfação. O ator faz uma total doação de si mesmo. Esta é uma
técnica de “transe”, de integração de todos os poderes corporais e
psíquicos do ator, os quais emergem do mais íntimo do seu ser e
do seu instinto, explodindo numa espécie de “transiluminação”.
Não educamos um ator, em nosso teatro, ensinando -lhe alguma
coisa: tentamos eliminar a resistência de seu organismo a este
processo psíquico. O resultado é a eliminação do lapso de tempo
entre impulso interior e relação exterior, de modo que o impulso
131
De Mistério a Mistério: algumas observações em abertura, in op. cit., p. 26.
188
se torna já uma reação exterior. Impulso e ação são
concomitantes: o corpo se desvanece, queima e o espectador
assiste a uma série de impulsos visíveis. Nosso caminho é uma
via negativa
132
, não uma coleção de técnicas, se sim uma
erradicação de bloqueios.”
133
Notemos que, mesmo que se tome como eixo de montagem a percepção do
espectador, a encenação forma-se pela disposição dos materiais do performer, que,
nesse caso, se apresentam no limite da linguagem. Reconhece-se, desde já, a
indicação do princípio que, como veremos adiante, conduziu à etapa ulterior de sua
trajetória, classificada por Peter Brook como arte como veículo: os materiais
pessoais do performer como centro da macro-criação e a gradativa assunção da
montagem pelo próprio performer e para sua percepção, que redefine os privilégios
na criação do depoimento.
Como vimos no trecho acima, o performer de Grotowski atua em um
paradoxo de presença e ausência bastante singular. Ele é a presença física absoluta
e potente que comanda os fluxos do espetáculo pela intensa ativação energética, o
ator dilatado, ágil, apto a encontrar direcionamentos imediatos aos devires
orgânicos e psíquicos da cena. Porém, seu objetivo final parece ser o de se tornar
invisível como indivíduo, ausência enquanto sujeito material e caminho pelo qual
os impulsos dançam na carne e fluidificam o “eu apreendido”-ator e o “eu
apreendido-público, numa síntese que não se sustenta mais por um pensamento
essencialista:
132
A via negativa, ou caminho negativo, é um dogma que Grotowski toma emprestado da teologia apofática
cristã para transformar em princípio de orientação prático e ético. “Esse caminho em direção à Causa de
Todas as Coisas exige o progressivo abandono de tudo aquilo que é conhecível e conhecido, junto com os
instrumentos comuns do conhecimento, como, por exemplo, a linguagem discursiva. Aqui, se avança através
da negação e do princípio da ignorância.” De Mistério a Mistério: algumas observações em abertura, in op.
cit., p. 30.
133
Em Busca de um Teatro Pobre, pp. 14-15.
189
“É como se Grotowski fugisse do si mesmo definível: procurava o
ator que não fosse ator, a atuação que não fosse atuação, o
ensinamento que fosse desaprender. [...] Na caça ao Mistério do
Vivente (‘corrente de vida’ é um dos seus termos ‘técnicos’),
mudava as modalidades de trabalho e procurava as palavras que
denominassem mais fielmente possível a fluida tangibilidade da
experiência. O Grotowski prático é um homem em perene
perseguição das palavras...”
134
A atuação, no sentido da autonomia de criação, caminha para a superação
radical do ator tradicional, cujo depoimento se constrói a serviço do terceiro e
condicionado aos discursos dramáticos e estéticos do dramaturgo e do diretor. A
personagem não ocupa o espaço de uma essência ficcional que serve como
estímulo, pretexto e álibi para a exposição do depoimento do autor, do diretor e do
ator, mas o performer tem status para assumir seu depoimento/fluxo como
linguagem pessoal, cuja sistematização não obedece à semiótica do espectador. O
corpo cotidiano psicologizado e fenomenológico, delimitação material do sujeito
como essência coagida e contida pelo superego, se destrói pela hiperativação e
desaparece em relação rizomática com os estratos específicos da macro-criação
pela orientação do diretor.
Nesse processo, Grotowski repensou a rotina de trabalho do performer em
termos verdadeiramente revolucionários dentro do quadro histórico de
procedimentos do teatro ocidental moderno, criando o primeiro sistema com
consistência pedagógica suficiente para se apresentar como alternativa àquele de
Stanislavski. Mesmo que ao final de suas atividades, o pedagogo duvidasse , e em
parte, negasse, alguns apontamentos fundamentais sobre a eficácia do treinamento
no período de ocupação do Teatro Laboratório, acreditamos que são contribuições
irreversíveis ao quadro evolutivo das práticas do performer moderno e pós-
134
De Mistério a Mistério: algumas observações em abertura, in op. cit., p. 19.
190
moderno, e que seu resgate não pode ser ignorado na análise do pensamento do
diretor.
O treinamento é a rotina de atividades pelas quais o performer pesquisa e
organiza o trabalho sobre seus morfemas, em outra palavras, encontra a técnica
pessoal que serve de caminho para o ultrapassamento do eu apreendido. O
caminho para tanto que persistiu no método foi a busca da alteração energética. O
treinamento energético toma a exaustão física como via para a derrubada das
fronteiras da atividade consciente e libertação dos impulsos pela destruição dos
limites da carne. A “combustão da matéria cotidiana” deseja colocar o performer
em zona com estados não cotidianos, não-apreendidos, para reaplicarmos a
terminologia do autor, já que, pelos pensamentos arborescentes que influenciam
Grotowski, a corrente criadora como interioridade se movimenta sempre no
trânsito entre as instâncias da consciência e da subconsciência. Os atores repetem
estruturas de movimento e de ações em que se alternam passagens pelo chão,
saltos, acrobacias, até que todo movimento p-codificado se transformasse em
uma dança particular, iluminada pelas imagens interiores acessadas.
Detenhamo-nos, novamente, na problemática do paradoxo do performer.
Como já esclarecemos, todos os procedimentos de treinamento e criação
pretendem aparentemente conduzir a um mergulho cada vez mais vertical no
repertório subconsciente, e permitir a atualização das memórias para além das
questões da dramaturgia, revelando os impulsos mais interiores. Mas essa
verticalização provoca imediatamente uma contra-força complementar horizontal.
Em que termos? O desnudamento do ator se apresenta como a qualidade
performativa que revelaria a humanidade por trás das particularidades do sujeito e
191
movimentaria os fluxos para a comunhão reflexiva e afetiva entre os participantes
da performance. O performer mergulha cada vez mais na sua “essência” para
encontrar os impulsos que remetem ao imaginário e à memória comuns, uma
essência coletiva e ancestral. Notemos a questão da ancestralidade que é cara
Grotowski e revela sua noção última de memória criadora:
“Um dos acessos à via criativa consiste em descobrir em si
mesmo uma corporeidade antiga à qual se está unido por uma
relação ancestral forte. Então, você não se encontra na
personagem, nem na não-personagem. A partir dos detalhes, se
pode descobrir em si o outro o a, a mãe. Uma foto, uma
recordação amarrotada, o eco longínquo de uma tonalidade vocal
permite reconstruir uma corporeidade. No começo, a
corporeidade de alguém conhecido, e, depois mais longe, a
corporeidade do desconhecido, do ancestral. É verídica ou não?
Talvez não é como tenha sido, senão como poderia ter sido.
Pode-se chegar a um passado muito distante, como se a memória
despertasses. é um fenômenos de reminiscência, como se
lembrasse ao performer do ritual primário. Cada vez que
descubro algo, tenho a sensação de que é isso que recordo. As
descobertas estão atrás de nós, e é necessário fazermos uma
viagem pra trás para chegarmos até elas.
135
Ipsis literis, Grotowski sugere que o caminho da revelação do trans-
individual se dá menos como criação e mais como partida rumo ao passado oculto
pelos comportamentos do homem moderno. A memória coletiva é sugerida como
memória arqueológica, categoria transcendental, identidade coletiva perdida em
algum ponto na passagem para o comportamento civilizado.
A criação, a auto-revelação, é o encontro com as imagens que compõem o
imaginário e a memória comuns. Ela consiste, a princípio, no trabalho sobre o
performer como essência individual que se coloca em zona pela destruição das
pessoalidades da carne rumo à macro essência das interioridades coletivas em
suspensão. Nesse “sacrifício” do sujeito, se utiliza de um jogo de distanciamentos
135
El performer, p. 155.
192
em que treina simultaneamente o mergulho nessa investigação e o olhar exterior
para seleção de materiais, que Grotowski ilustra com a metáfora de um pássaro que
bica e outro que olha, ou o Eu-Eu.
“Para nutrir a vida do Eu -Eu, o performer deve desenvolver não
um organismo-massa, organismo de músculos, atlético, mas um
organismo-canal, através do qual as forças circulam. O performer
deve trabalhar uma estrutura precisa. Fazendo esforço, porque a
persistência e o respeito aos detalhes são o rigor que permite
fazer presente o Eu-Eu. As coisas a fazer devem ser exatas. Don´t
improvise, please!
136
Esse binômio surge na etapa da arte como veículo, quando Grotowski se
concentra mais nos mecanismos que permitem ao performer realizar a seleção dos
materiais e criar a action do que em levar ao público suas experiências. Porém, a
supressão do encontro não exime a problemática por ele levantada em anos de
investigação, nem apaga a contradição entre a metafísica do sujeito-essência
expandido e a utopia do inconsciente coletivo como categoria transcendental
arqueológica. O sujeito-essência-performer é o desejo de se tornar coletividade. Seu
trabalho, como já vimos insistentemente, nada mais é que o esforço em diluir a
essência/indivíduo original (organismo-massa) para criação de um organismo-
canal.
O “mergulho vertical” na “interioridade” do sujeito visa, em última instância,
seu ultrapassamento em direção à grande identidade coletiva, uma espécie de
“devir humanidade” ao mesmo tempo romântico e iluminista, em que o resgate da
ancestralidade coletiva restauraria os laços de afetividade e consciência que nos
unem numa macro-essência reflexiva. Nesse contexto, parece uma antinomia
imaginar que, sendo o próprio performer fluxo dos impulsos e desejo de destruição
136
Op. cit., p. 155.
193
e reconstrução dos adensamentos rumo a uma consciência mais evoluída, a
memória, a imaginação e a ação permaneçam como categorias perdidas em algum
espaço misterioso da mente.
Também elas são fluidas, não podem ser tomadas como estruturas ingênuas
e arcaicas cristalizadas, que remetem ao tempo em que o homem era mais
“humano”. Se a função da performance como ritual de comunhão é aqui
radicalizada, é preciso que se tome a tradição das relações humanas como
atualização do vivido em criação permanente no tempo, que se assuma a
complexidade de tais relações que hora se estreitam ora se estendem, e que por
essas diferenciações definem a existência da humanidade para além das
individuações. Tal antinomia, Grotowski reconhece e indica a correção no
desenvolver de suas pesquisas:
“A convergência entre a minha definição teatral-doméstica do
arquétipo e a teoria dos arquétipos de Jung é muito imprecisa;
uso a palavra “arquétipo” em um sentido restrito, sem o
background filosófico junguiano, não presumo a
incognoscibilidade do arquétipo nem que ele exista fora da
história. Etc. O termo “inconsciente coletivo” não
significa nesse caso (diferentemente da escola de Jung)
alguma psique superindividual, mas funciona como
uma metáfora operacional; trata-se da possibilidade de
influir sobre a esfera consciente da vida humana em
escala coletiva. [...] Então, levamos o arquétipo do
“inconsciente coletivo para a consciência coletiva, o tornamos
laico, o utilizamos como modelo-metáfora da situação do
homem. Atribuímos-lhe uma função cognitiva, ou mesmo
talvez uma função do livre pensamento.”
137
Ainda que mantenha a noção de uma consciência coletiva transcendental,
Grotowski reverte a função de inconsciente coletivo como operador de
transformações das consciências individuais, e não como um espaço de
137
A Possibilidade do Teatro, in O Teatro de Jerzy Grotowski 1959-1969, pp. 51-52. Grifos meus.
194
contemplação da atividade subconsciente dos sujeitos em suspensão. Essa
perspectiva altera completamente a ontologia da criação no método, e contempla
muito mais o caráter processual que envolve a formação das relações e seus
produtos no “participáculo”. O inconsciente não é uma esfera de afetação, mas um
agente pulsante que sintetiza as transformações humanas em escala trans-
individual. Ele não é somente alterado pelo ritual teatral, mas retro-alimenta as
consciências participantes em rizoma, desdobrando no tempo o fluxo do processo e
problematizando-o.
O arquétipo, outro termo caro e de importância central no tratamento da
memória no sistema, também se reconfigura distintamente da teoria junguiana
pelas demandas do método. Grotowski chama “dialética da derrisão e da
apoteose”
138
a essa espécie de antropofagia do conceito que é executada para dar
conta dos efeitos da criação:
“Destilar do texto dramático ou plasmar sobre sua base o
arquétipo, isto é, o símbolo, o mito, o motivo, a imagem radicada
na tradição de uma dada comunidade nacional, cultural e
semelhantes, que tenha mantido valor como espécie de metáfora,
de modelo do destino humano, da situação do homem (...) A
“dialética da derrisão e da apoteose tira o arquétipo do
inconsciente coletivo dos dois ensembles para a consciência
coletiva (superação da magia, da esfera da sombra, da laicização
do arquétipo, sua utilização como modelo-metáfora da condição
humana).”
139
Lembremos a passagem final do texto Farsa Misterium
140
: “a forma não
funciona aqui como um fim em si, nem como um meio de “expressão” ou para
ilustrar algo. A forma a sua estrutura, a sua variabilidade, o seu jogo de
138
A expressão foi forjada pelo crítico teatral Tadeusz Kudlínski para caracterizar a forma de tratamento do
texto em função do trabalho com os performers nos processos de Grotowski.
139
Op. cit., pp. 50 e 60.
140
In O Teatro de Jerzy Grotowski 1959-1969, p 46.
195
opostos (em uma única palavra, todos os aspectos tangíveis e técnicos da
teatralidade de que se falou) é um peculiar ato de conhecimento”. Para
Grotowski, o encontro teatral é a situação que autoriza e movimenta a produção de
conhecimento em âmbito mais livre e intenso por excelência, o espaço em que os
homens podem expor o que realmente são e pensam.
O espetáculo não é formalização apriorística fechada, mas a organização
inicial dos impulsos do ensemble atores e dos discursos dos demais artistas
criadores para colocar em devir a audiência, e pelo fluxo de tais agenciamentos
construir as formas fluidas do que ainda persiste como “espetáculo”, mas que, de
fato, é processo de formação de conhecimento em adensamentos singulares e em
devir. O arquétipo como categoria transcendental ultrapassa sua função referencial
para também tornar-se um operador na criação dos conhecimentos intelectuais,
sensoriais, afetivos que se criam pelo encontro. Na “dialética da derrisão e da
apoteose”, a transformação da natureza do conceito e a produção de conhecimento
resultante de sua operação se dão criticamente, pela intensidade com que as
imagens arquetípicas trabalham nas consciências quando provocadas. A memória
passa da representação à ação, como princípio criador de novos pensares no ritual
laico do jogo teatral:
“‘A dialética da derrisão e da apoteose’, atacando o arquétipo, faz
vibrar toda cadeia de tabus, de convenções e de valores
consagrados. Desse modo forma-se a cintilação do espetáculo: a
roda de profanações, os estados sucessivos (ou os níveis) das
contradições, as sucessivas e recíprocas antíteses, a sucessiva
anulação dos tabus... que faz emergir na realidade um novo tabu
(à rebours); e de novo a anulação...”
141
141
A Possibilidade do Teatro, in op. cit., p. 59.
196
Como vemos, mesmo que se aceitasse inquestionavelmente as matrizes
epistemológicas iniciais de Grotowski, o que, de fato, ele mesmo, como grande
pedagogo não incorre no erro de fazer, o próprio andamento de suas pesquisas irá
produzir um pensamento que demanda conceitos mais complexos para sua
apreensão, cujo aperfeiçoamento terminológico Grotowski não se furta jamais em
empreender. Forças horizontais pressionam o processo a uma cartografia, impõem
dinâmicas horizontais de relação: o desdobramento ulterior do mergulho é, ainda
aqui, a comunicação, o colocar em devir a audiência para o encontro com seus
valores primeiros. O morfema não é evento, nem representação histórica,
é exatamente a memória como criação no fluxo, seja no treinamento ou
no encontro:
“O subscrito está de acordo com aqueles que considerem que a
especificidade do espetáculo como obra de arte seja:
a) o contato vivo, imediato entre o espectador e o ator,
b) o ato coletivo; atores e espectadores como uma só coletividade,
conjuntamente ativa, participante e interativa,
c) a ausência de uma forma fixada (impressa, em fita, sobre outro
material); o devir no contato entre espectador e ator.”
142
Por isso a insistência no trabalho sobre seqüências rigorosamente
codificadas de ação e o repúdio à improvisação de ações livres
143
, a busca pela
linguagem de impulsos do performer:
Não se fala aqui de dança. Mas ela está presente na entrelinhas.
E está presente algo que, um certo tempo, seguindo
Stanislavski chamava-se de partitura do ator. No início, era a
partitura de signos corporais e vocais, composta artificialmente.
Depois, a partitura das “reações” fixadas, dos “pontos de
contato”, enfim, a reproduzível corrente de impulsos visíveis. A
142
Op. cit., p. 49. Grifos meus.
143
De onde se desenvolve o conceito de gesto significativo, a menor unidade de expressão no método, e que
se opõe ao gesto comum,
197
organicidade em estado puro que é a zona intermediária entre o
que é corporal e espiritual. O santo Graal de Grotowski. [...] O ato
do ator compõe-se das reações vivas do seu organismo, da
“corrente dos impulsos visíveis” no corpo. Todavia, para que esse
processo orgânico não se desvie no caos, é necessária a estrutura
que o canalize, a partitura composta do movimento e do som.”
144
A desterritorialização pela crença do macro-sujeito líquido, ancestral, feito
das memórias e das ações coletivas, que surge pelos agenciamentos afetivos e
memoriosos promovidos pelo fluxo da performance é a tônica de uma possível
semiótica autônoma do performer, mas que, como veremos na evolução das
experiências rumo à etapa da arte como veículo, tende a isolar cada vez mais o
instante de criação. O movimento das pesquisas pressiona o recorte essencialista
ao limite do fenômeno da criação, e paradoxalmente, esse pretenso isolamento
meditativo rumo às tradições funciona como um microscópio que amplia as
qualidades do ator.
A noção de performer como a presença que potencializa o fluxo criador (para
virar ausência) é um legado extremamente importante intuído por Grotowski, e
que transcende as questões da autoralidade do discurso para discutir o peformer
como máquina de criação e os termos que negociam a preparação do artista na
performance moderna e pós-moderna. Para o pedagogo, a instrumentalização
estava na base do processo, cujas técnicas não são exteriores ao homem, mas
exatamente o oposto: se revelam à medida que o sujeito se despe de suas
individualidades e, pelos devires a suas experiências mais ocultas, se ultrapassa
rumo a uma macro-consciência afetiva e reflexiva global no agenciamento com o
público.
144
De Mistério a Mistério: algumas observações em abertura, in op. cit, pp. 27e 30.
198
O procedimento complementar ao treinamento energético, o treinamento
técnico, busca uma adequação dos materiais livremente criados nos exercícios
energéticos aos apontamentos dramáticos, porém não de forma alinhada, como no
sistema interpretativo tradicional. Às palavras de Grotowski: “buscamos algo do
qual temos uma idéia inicial, um certo conceito. Se buscarmos com intensidade e
consciência, talvez não o encontremos, mas algo diferente vai aparecer, que
talvez possa reorientar completamente todo o trabalho.”
145
E, novamente, sobre a memória para o Ato:
“Tomemos o Príncipe (O Príncipe Constante) interpretado por Riszárd
Ciesak no Teatro-Laboratório. No trabalho do papel, antes de se
encontrar com seus partners de espetáculo, durante meses e meses o ator
trabalhou somente comigo. Nada em seu trabalho estava ligado ao
martírio que no drama de Caldéron/Slowacki é o tema da personagem do
Príncipe constante. Toda a torrente de vida do ator estava ligada a uma
recordação feliz, às ações pertencentes a essa recordação precisa de sua
vida, às menores ações e impulsos físicos e vocais desse momento
rememorado. Foi um momento de sua vida relativamente curto [...] O
tempo amoroso de sua adolescência [...] Foi como se esse adolescente
rememorado se libertasse com seu corpo de seu mesmo corpo, como se
ele se libertasse, passo a passo, do peso do corpo, de todo seu aspecto
doloroso. Através da multiplicidade de detalhes, de todos os pequenos
impulsos e ações ligados a esse momento de sua vida, o ator encontrou o
fluxo do texto de Calderón/Slowacki.”
146
Eis a chave da questão: o método de Grotowski nos propõe novos vetores de
atualização da memória distintos daqueles característicos do sistema
interpretativo. Ao contrário do que sucede com o ator tradicional, a memória do
performer não é pressionada a encontrar as recriações do vivido análogas aos
eventos e comportamentos da personagem. A situação dramática, mediante esse
tipo de treinamento, serve como um estímulo livre para o contato com os impulsos
145
De la compañia Teatral a El arte como vehículo.
146
Idem, ibidem, p. 9.
199
criados não só pelo estudo do texto, mas por uma combinação deste com exercícios
energéticos e técnicos específicos, que permitem o trabalho sobre conteúdos
aparentemente dissonantes aos temas da peça, mas cujos sentidos são construídos
pela linguagem dos impulsos estruturada em ações físicas precisas.
As ações físicas são a atualização veloz das criações mnemônicas, e possuem
uma lógica discursiva e uma poética singulares, comprometidas com o fluxo criador
do performer e seus agenciamentos processuais . Os morfemas são as unidades
expressivas da memória atualizadas no Ato, o corpo está no limite da matéria e da
memória, é corpo-depoimento, corpo-vida = corpo-memória. O Método das Ações
Físicas de Stanislavski encontra suas respostas no corpo-memória de Grotowski:
“Nosso corpo inteiro é uma grande memória e em nosso “corpo-
memória” criam-se pontos de partida. [...] Pensa-se que a
memória seja algo de independente do resto do corpo. Na
verdade, ao menos para os atores, é um pouco diferente. O corpo
não tem memória, ele é memória. O que devem fazer é
desbloquear o “corpo-memória”. [...] O “corpo-vida” ou “corpo-
memória” determina o que fazer em relação a certas experiências
ou ciclos de experiências de nossa vida [...] O corpo-memória: a
totalidade do nosso ser. Mas quando dizemos “a totalidade do
nosso ser”, começamos a imergir, não na potencialidade, mas nas
recordações, nas regiões da nostalgia. Eis porque talvez seja mais
exato dizer corpo-vida.”
O trecho acima foi extraído do texto Exercícios”, publicado no suplemento
número 6 da revista Action cuturelle du sud est em 1971 e apresentado pela
primeira vez em um encontro com estagiários estrangeiros no Teatro Laboratório
em 1969. O conceito de corpo-memória que Grotowski nos apresenta nesse artigo
significa a superação de todas as antinomias que o dualismo transcendentalista
implicava no tratamento da memória como matriz dos morfemas até então, e é um
passo definitivo no esclarecimento de suas funções no método.
200
Na velocidade dos morfemas, memória é matéria, e ultrapassamento da
matéria. O corpo-vida é o corpo animado pela manifestação das memórias, os
impulsos, que, em última instância, não representam, mas são o sujeito verdadeiro
que se revela, o eu não-apreendido libertado. Essa manifestação autêntica do
sujeito é o Ato, o desnudamento completo, o mostrar-se por inteiro pela exposição
imediata do corpo-memória nas unidades dos morfemas mediante estruturas
rigorosas de ações (partituras) que canalizam o fluxo e identificam os depoimentos.
A dança da memória no corpo presente não tem começo nem fim, forma
toda existência do homem enquanto ser criador, seja artista ou não. Mas o artista
pode sistematizar o olhar sobre as particularidades da dança, que, em última
análise, é o observar a si mesmo enquanto ser em formação no tempo de criação e
expressão das memórias. A essa dança criadora do corpo-memória, Grotowski
chama “acrobacia orgânica”:
“Gradualmente, chegamos àquela que chamamos de “acrobacia
orgânica”, ditada por certas regiões do “corpo-memória”, por
certas intuições do corpo-vida. Cada um gera o seu modo e é
aceito pelos outros do modo deles.
147
Como crianças que
procuram o modo de serem livres, de se liberarem dos limites do
espaço e da gravidade. [...] Mas não finjamos ser crianças, porque
não o somos. Porém, é possível reencontrar fontes análogas ou,
talvez, até as mesmas fontes dentro de nós, podemos procurar
aquela “acrobacia orgânica” (que não é acrobacia) que é
individual e se refere a necessidades luminosas e vivas; isto é
possível se não começamos ainda a morrer, pouco a pouco,
renunciando ao desafio de nossa natureza.”
148
Voltemos, ainda, à distinção entre “corpo-memória” e corpo-vida que
Grotowski apresenta no final da citação anterior. Corpo-vida é uma correção de
“corpo-memória” no sentido de combater uma possível “nostalgia” atribuída ao
147
A acrobacia orgânica como linguagem do performer.
148
Exercícios, in O Teatro Laboratório de Jerzy Grotowski 1959 1999, p. 178
201
termo e que não condiz com a dinâmica de atualização dos morfemas. Ora, essa
nostalgia está ligada exatamente à noção de memória como “ida ao passado”, como
resgate arqueológico de emoções, sensações, vivências, eventos fixados em algum
ponto do passado na historiografia do sujeito. Compreende-se a necessidade de
esclarecimento que Grotowski empreende nesse sentido: o corpo-memória é
presente, é recriação do vivido nas circunstâncias do Ato, é fluxo para-racional em
criação, e não deslocamento rumo às lembranças.
Grotowski nos oferece o corpo-vida como alternativa que dá conta de sua
demanda terminológica imediata, mas cuja verdadeira resolução exige a revisão do
conceito de memória. O corpo-vida é corpo-memória sem necessidade de maiores
explicações, pois memória é atualização e virtualização como processos criadores, e
o corpo é adensamento em devir que revela as singularidades de tal processo pela
dança dos impulsos.
Em sua terminologia particular, que, evidentemente, ressoa o pensamento
da modernidade, Grotowski intui, antecipa e indica os pontos principais da teoria
do performer pós-moderno, sujeito em devir, corpo-memória em atualização e
virtualização, dança das consciências. A construção do depoimento se liberta da
ficção e se volta para a revelação direta, sem máscaras, sem as mediações fabulosas
da interpretação, e aí está a total crueldade do sistema. O depoimento pessoal de
Grotowski não permite álibis, não oferece anteparos, exige a assunção integral de
seus conteúdos e forma. É, na melhor das definições, talhada pelo próprio
pedagogo: uma confissão. Em Grotowski, depoimento pessoal = dança
confessional.
202
Ao diretor, ou espectador de profissão, cabe precisamente auxiliar o
performer a desvelar a potência poética de sua dança confessional, e organizá-la
como linguagem autônoma. Mas, em última instância, são as lógicas específicas
que se criam pela atividade do “corpo-memória” que conduzem todo processo, e
exigem a libertação das sintaxes da cena que privilegiam a semiótica do espectador.
É essa provocação que Grotowski propõe quando eleva o performer ao status de
principal motor de linhas de fuga poéticas da cena pela crescente autonomia na
produção dos depoimentos, e destrói a idéia de espetáculostrictu sensu.
A qualidade do encontro é a base de todo encaminhamento das
investigações, e o período dos “participáculos” avança a um limite insustentável
para os objetivos de Grotowski nesse sentido. Em seu artigo Teatro e Ritual,
Grotowski relata os desvios do processo, cuja face mais contraditória diz respeito
ao fortalecimento das máscaras cotidianas por arremedos de interpretações-clichê,
quando na participação dos espectadores como atores, revelava-se um caminho
diametralmente oposto ao que se pretendia:
“Mas nas reações dos espectadores, quando agiam como co-
atores, até mesmo liberando de si alguma espontaneidade, havia
muito do velho teatro, velho não no sentido de velho-radicado,
mas no sentido de teatro dos clichês, do estereótipo, da
espontaneidade banal; apesar da estrutura do espetáculo, que
possivelmente banal não era e que como penso podia, em
certos casos, ser de inspiração.
149
A participação do espectador diretamente como ator foi um recurso muito
usado nos espetáculos como exercício para supressão da divisão ator-espectador
tradicional. A busca pela re-organização das funções se transforma e surge em
outros termos na etapa seguinte de suas pesquisas: o teatro da participação ou
149
Teatro e Ritual, in op. cit., p. 122.
203
para-teatro, mas cuja problemática já estava antecipada nas experiências de
desterritorialização dos ensembles no “participáculo”.
No para-teatro, o estudo específico sobre a atuação cede espaço à noção de
revelação coletiva: a busca pelo Ato construído ativamente no ritual laico ator-
espectador. A participação ativa do público é tomada como o princípio para sua
exposição, cujas limitações se revelariam pela própria estrutura do processo:
“Quais foram as conclusões? Nos primeiros anos, quando um
grupo trabalhava a fundo sobre isso, por meses e meses, e
quando em seguida se uniam de fora só alguns novos
participantes, aconteciam coisas no limite do milagre. Porém,
quando depois, à luz dessas experiências, fizemos outras versões
visando incluir mais participantes ou quando o grupo de base
não tinha passado antes por um longo período de trabalho
intrépido certos elementos funcionavam, mas o conjunto
decaía bastante facilmente em uma sopa emotiva entre as
pessoas, ou em uma espécie de animação”
150
O aparente “fracasso” do para-teatro é riquíssimo, pois, se por um lado
constitui um processo criativo dinâmico e particular que tem valor em si (sabe-se lá
quão interessante poderia ter sido essa “sopa emotiva” a que Grotowski se refere
conforme os critérios de enquadramento), por outro revela uma consideração de
enorme importância para se apreender as complexidades da relação ator-
espectador: o testemunho como atividade criadora do público.
A princípio, a não-participação ativa do público nos espetáculos, delimitada
pela separação palco-platéia, era vista com o peso da indesejada herança dos
teatros nobres e burgueses, cuja hierarquia na disposição dos ensembles reproduz e
legitima a ordem social vigente. Eis porque a persistência em levar ao limite a
diluição de qualquer divisão que remetesse a tais organizações e a procura por
150
Da la companhia teatral à arte como vehículo, pp. 230-231.
204
novas relações da cena. Pela lógica do método, um caminho eficiente para tanto
seria oferecer ao público técnicas de autopenetração e revelação semelhantes
àquelas vivenciadas pelos performers, pois, por associação, os resultados deveriam
ser análogos. A divisão do texto com o público e sua participação como co-atores, a
proximidade entre atores e público e toda forma de interação que tirasse os
espectadores de sua condição passiva era, então, a maneira aparentemente mais
provável para estimular o desnudamento, o Ato coletivo.
Mas, como vimos, os produtos de tais experiências, para Grotowski, acabam
por reafirmar exatamente o contrário do desejado: a restauração de novas
máscaras e atitudes-clichês e o fluxo desordenado. Porém, indicam uma descoberta
preciosa: a vocação do espectador. Essa vocação é o testemunho. A participação
ativa exige inevitavelmente do público a vestimenta da máscara do ator com toda a
precariedade de sua condição de amador, à qual ele não responde, muitas vezes,
não por não se dispor ao Ato, mas pelas exigências próprias do tipo de relação que
se impõem. É algo interessante no sentido de investigação improvisacional, mas
que se contrapõe à orientação técnica e aos intuitos mais elementares do método
estabelecidos até então.
É pelas particularidades do testemunho que o espectador consegue
efetivamente se revelar e criar, em outras palavras, construir sua identidade no
tempo do devir-ato ou devir-espetáculo:
“Quando, por exemplo, queremos dar ao espectador a
possibilidade de uma participação emotiva, direta, mas emotiva,
isso é, a possibilidade de identificar-se com alguém que traz a
responsabilidade da tragédia que se está desenvolvendo, então é
preciso afastar os espectadores dos atores, não obstante aquilo
que aparentemente poderíamos pensar. O espectador afastado no
espaço, colocado na situação daquele que, como observador, não
é sequer aceito, que permanece unicamente na posição de
observador, é realmente capaz de co-participar emotivamente,
205
uma vez que no fim das contas, pode reencontrar em si a original
vocação do espectador. É preciso perguntar em que consiste
aquela vocação do espectador, assim como pode-se perguntar
qual é a vocação do ator.
151
O poder de criação do espectador se dá no espaço da relação testemunhal
com a cena, que é recolhida, mas não contemplativa. É no espaço das micro-
interações sutis onde ele encontra sua potência de participação, que não exige do
espectador a brusca colocação de nenhuma outra máscara que o aprisione, que lhe
force uma expressão para a qual ele não está preparado.
Observar e guardar, eis o binômio operacional de criação da testemunha.
Respicio, a palavra latina que indica o respeito ao observado, que se dá exatamente
pela não intromissão física. Recolhimento como sinal de respeito ao testemunhado
e como caminho para a reflexão e forma de participação, e não como alienação da
experiência:
“A testemunha não é quem enfia por toda a parte o nariz, quem
se esforça para ficar o mais próximo possível, ou por intrometer-
se nas ações dos outros. A testemunha mantém-se levemente à
parte, não quer se misturar, deseja estar consciente, ver o que
acontece do início ao fim, e guarda na memória; a imagem dos
eventos deveria permanecer dentro dela [... ] eis a função da
verdadeira testemunha, não se intrometer com o próprio mísero
papel, com aquela importuna demonstração “eu também”, mas
ser testemunha ou seja, não esquecer, não esquecer, custe o
que custar.”
152
O depoimento das testemunhas implica na memorização do depoimento-
confissão dos performers, e a cena ganha o status de grande tribunal em que se
expõem e se avaliam os crimes morais da humanidade. O julgamento/cena é a
dança macroscópica e microscópica das memórias reveladas e testemunhadas, que
se constrói na simbiose entre a verdade da exposição e a sutileza recolhida da
151
Teatro e Ritual, in op. cit., p. 122.
152
Op. cit., p. 123.
206
observação. Essa é a máscara que carrega em si o potencial de autodestruição: a
meta-máscara natural do espectador como espectador, com todas as micro-ações e
micro-percepções orgânicas de tal função.
Tal constatação é definitiva para encaminhar a nova orientação que as
investigações de Grotowski assumem a partir de então. Se o teatro é o ritual laico,
então as bases desse ritual estão nas ações do performer e na participação cada vez
mais delicada do espectador. A fé nessa premissa leva Grotowski à fronteira do
estatuto das artes performativas, cuja derradeira conseqüência é seu desinteresse
pelo teatro em si. Essa etapa das investigações cujos produtos e interesses não
partem mais das relações ator-espectador ficou conhecida como arte como veículo.
Antes, porém, de entrarmos no trabalho sobre a memória nessa fase, houve
uma pesquisa de outra natureza que a antecedeu e indicou o caminho que seria
acolhido: o teatro das fontes. No teatro das fontes, os performers assumem o
isolamento como procedimento de investigação das diferentes técnicas tradicionais
e suas reverberações nos corpos. Retoma-se a pesquisa (de forma mais solitária)
sobre as tradições de representação já tratadas desde o início da criação do método
e os efeitos que tais técnicas exercem sobre cada ator, sobre suas memórias, sua
percepção; individualmente, e na relação com o ambiente. Essa fase foi
interrompida com a partida de Grotowski para os Estados Unidos, mas estabelece o
modus operandi e as bases de estudo que irão orientar as atividades no período
seguinte.
Na arte como veículo, a sede da montagem está no ator, ou, em melhor
definição, no atuador, já que não mais se representa um papel a não ser o de si
mesmo desnudado. O atuador é o fazedor, o performer ipsis literis, aquele que
207
encontra nas ações e por elas os sentidos para sua organização. Não existe
comprometimentos nem demandas exteriores a esse processo, não há semiótica,
pois se suprimiu o testemunho do espectador. O trabalho radicalmente vertical
sobre as memórias pessoais do performer, a crença na força expressiva das
tradições e busca pelas manifestações de tais técnicas tradicionais nos corpos
tornam-se o eixo da investigação. Eis porque, como dissemos anteriormente, aqui,
Grotowski estreita ao máximo o recorte fenomenológico do encontro para detectar
seus elementos mais essenciais, o que ele próprio classifica como “objetividade do
ritual”.
A memória como criação está aqui a serviço de uma prática que segue
princípios éticos e técnicos bastante específicos de produção, que tomam as
práticas ancestrais como modelo de exploração.
Os exercícios se utilizam exatamente de relatos orais e cantos rituais para
“verticalizar” as técnicas exteriores. Essa transfusão se dá na passagem da
percepção das melodias do som para a compreensão de suas qualidades vibratórias,
e a partir de então pesquisar como tais forças atuam sobre os impulsos. As
qualidades vibratórias são, para Grotowski, como registros de impulsos antigos
fixados em unidades fonéticas, cujo discurso energético subjacente à palavra é
exatamente o ponto central de interesse das pesquisas. Os cantos são, assim, como
conjuntos de técnicas transmitidos oralmente, pois cada fonema é um operador
que atua sobre o performer liberando morfemas específicos, uma comunicação
energética entre impulsos do passado (os cantos) e do presente (os morfemas).
Esse trabalho que parte das qualidades de vibração musicais para estudar
suas respostas na criação dos morfemas produz partituras orgânicas muito pessoais
208
e precisas, a que Grotowski chamou action. Cada action é uma estrutura
performativa autônoma que é resultado de um processo individualizado de
investigação: não há trocas entre actions ou quaisquer práticas que facilitem a
semiotização das criações. Nesse sentido, nem mais é possível falar de uma
linguagem do performer, a não ser do performer para si mesmo dentro do binômio
Eu-eu.
A seleção das ações que se organizam na action não se dá de forma racional.
A racionalidade ordena ações para criação da linguagem, em um caminho oposto
ao das Actions. Awarness é o termo que define a consciência sensível pela qual o
performer escolhe e ordena as unidades de sua estrutura, operacionalizada pela
dinâmica de identificação e distanciamento do Eu-eu.
É delicado tratarmos do depoimento pessoal nessa etapa de trabalho de
Grotowski em que está latente o desejo da não-comunicação, pelo menos nos
termos da performatividade. Não há dúvidas de que esse giro radical de perspectiva
se move pela sede incansável de chegar cada vez mais fundo na alma humana e
atingir os depoimentos mais essenciais e protegidos.
A negação da fábula pronta não significa a afirmação do resgate histórico,
mas reafirma a criação como método de comunicação entre gerações e como tônica
da produção artística presente. Na arte como veículo, a tradição se comunica ao
presente como criação, a atualização dos cantos rituais; e é recriada pelo performer
na liberação de seus morfemas advindos da pesquisa com os cantos.
O trabalho sobre os cantos é a busca física pelas memórias ancestrais
guardadas nas unidades de comunicação mais vivas e pulsantes, pois construídas
pela linguagem da energia vibracional sonora: os fonemas. É a tentativa de
209
encontrar, pela voz como memória energética atualizada dos antigos, os seus
impulsos ancestrais, e conectá-los com os corpos-memória contemporâneos e seus
morfemas singulares. Esse processo não deriva em linguagens, e nem esse parece
ser o interesse do pedagogo. Suas motivações para conduzir por tanto tempo um
pesquisa sobre a memória nesses termos? Objetivamente, Grotowski nos indica a
contigüidade com o teatro e o desejo em desenvolver seu próprio método das ações
físicas
153
. Mais longe, não podemos avançar, pois seu pensamento não permite
especulações.
Desse ponto de vista, concluímos que, na arte como veículo, Grotowski
encontra, finalmente, os mecanismos mais apropriados para investigar o que, de
fato, sempre foi o objetivo maior de sua procura: o grande depoimento memorioso
da humanidade.
153
Ver At Work with Grotowski on Phisical Actions.
210
Capítulo III A memória nas performances de Joseph Beuys, Marina Abramovic e
Spalding Gray.
Chegamos aos últimos estudos de caso levantados em nossa seleção que,
como já vimos, ruma gradativamente de um depoimento pessoal mediado pela
fábula (a personagem dramática) para a busca de um expressão cada vez mais
autônoma dos conteúdos históricos do performer como responsável pela
composição global da cena. Analisaremos, aqui, três exemplos de artistas da
peformance art cujo tratamento da memória destaca-se na maneira muito
autêntica de orientar os processos criativos e organizar o discurso cênico
decorrente: Joseph Beuys, Spalding Gray e Marina Abramovic.
Joseph Beuys é um artista que, sem dúvida, ocupa posição central na
evolução de uma nova arte em que o performer possa se colocar como depoente
direto da cena. Para definir sua atividade, cunhou o termo aktion, que se diferencia
do happening e da performance por fixar seu centro expressivo mais na ação do
atuador-depoente do que no evento total ou no desempenho espetacular. Portanto,
ainda que seu trabalho tenha se afirmado como exemplo de criatividade e
autenticidade dentro da performance art, suas apresentações são mais fiéis ao
pensamento de seu criador quando respondem à denominação aktions ao invés de
performances.
A atividade artística de Beuys, nos primeiros anos, estava ligada mais
diretamente às artes plásticas, especificamente à produção de desenhos e gravuras.
O amadurecimento de tais experiências permitiu ultrapassar o suporte inicial e
investigar as relações espaciais que desenvolvera no papel nas estruturas
211
tridimensionais da matéria, de onde nasce seu intrigante conjunto de canto
(Fettecke) e cadeira de gordura (Fettstuhl).
Antes de entrarmos especificamente na construção do depoimento pessoal
revelado pelas aktions, analisemos outro aspecto importante no que tange à
utilização da memória criadora na obra de Beuys: a relação com os materiais. Entre
1942 e 1943, quando ainda era um estudante recém formado em sua cidade natal,
Cleves, na Alemanha, e muito antes de consolidar sua carreira como artista
internacional, Beuys serviu ao exército alemão na segunda guerra. Conforme seu
relato autobiográfico, por ocasião de um ataque aéreo sobre a península da
Criméia, seu caça foi bombardeado e caiu no gelo, um acidente que lhe causou
sérios ferimentos e resultou na morte instantânea de seu co-piloto. Beuys ficou
preso no gelo, e foi resgatado por pastores tártaros que o imantaram com gordura
animal para tentar curá-lo dos ferimentos e re-estabilizar sua temperatura interna
até a chegada das tropas de resgate alemãs.
O teor de veracidade de tal relato não nos é possível restaurar. Mas o fato é
que Beuys transformou a gordura em um dos principais signos de seu vocabulário
plástico, ao qual logo incorporou o feltro como outro isolante igualmente
expressivo para suas composições. Assim, o material gordura se desloca de sua
história pessoal para gerar novos significados dentro da combinação de elementos
que determina o discurso de suas obras. Em Fettshull, ela deforma o assento da
cadeira para brincar tanto com a funcionalidade que pré-atribuímos aos objetos
quanto com a temperatura do corpo e as transformações daí decorrentes na
manutenção da energia e, conseqüentemente, da vida. Já em Fettecke, o canto da
sala interditado pela gordura geometricamente disposta faz lembrar tudo que é
212
deixado de lado e se acumula negativamente no corpo e na mente, e questiona a
escravidão ao acúmulo e ao apego característica do homem moderno ocidental.
A identificação de Beuys com os materiais isolantes pode ter nascido tanto
de um possível trauma de guerra quanto da sua imaginação. Não é possível
determinar com absoluta fidelidade a fonte, e, ao final, nesse caso, o mistério em
nada interfere na potência da criação. A força de seu depoimento não está tanto na
história original, mas na capacidade de atualizar os virtuais formados em torno
dessa experiência original em outras condições de criação, que permitem atribui-
lhes novos sentidos completamente diferentes daqueles relacionados a tal
experiência.
Assim, o feltro, que ele afirma também ter sido utilizado pelos tártaros para
lhe salvar, ressurge com novos significados na mega escultura BRAZILIAN FOND
(FOND V) (apresentada na XV Bienal Internacional de São Paulo, que dedicou uma
sala exclusiva para o artista) e, principalmente, na aktion Coyote I like America
and America likes me. A escultura é composta por quatro enormes cilindros em
formato de manta de feltro cobertos por placas de cobre. Sua imagem remete aos
cilindros sagrados do budismo, mas a textura do feltro, ao mesmo tempo
aconchegante e agressiva ao toque, produz sensações confusas para quem toca.
Desejaria ele, aqui, relatar esteticamente sua sensação estando doente e envolto
pelo feltro no gelo da Criméia ou estimular o público produzir suas próprias
associações diante de algo que protege, mas isola do mundo exterior?
Em Coyote... , Beuys usa o feltro sobre si para isolá-lo de todo contato físico
com os Estados Unidos que não esteja previsto na estrutura da obra. Isso significa
desembarcar do avião, vindo da Alemanha, já envolto pelo casulo de feltro (sem
213
sequer por os pés em solo norte-americano), e ser encaminhado em uma
ambulância sob uma maca até a René Block Gallery, em New York, para só ali,
dentro do cercado que demarca o ambiente que ele dividirá por uma semana com
um coyote selvagem, pisar no chão.
A aktion consiste exatamente em, durante esta semana de contato diante do
público, o artista buscar interações com o animal e uma comunicação sutil que
permita a co-existência de ambos. Para tanto, alguns materiais estão dispostos,
entre estes, o cobertor de feltro com que Beuys chegou à galeria e 50 edições do
periódico The Wall Street Journal. O cobertor foi destruído pelo coyote em uma
das primeiras tentativas de interação, mas a experiência terminou com ambas as
espécies vivas. Ao final da semana, tendo concluído a aktion, Beuys novamente se
envolve em um cobertor de feltro, sobe na maca e, numa ambulância, é levado ao
aeroporto Kennedy de volta à Alemanha sem estabelecer qualquer outro contato
com a “América” além da vivência com o animal (a quem ele apelidou de “Little
Joe”) .
Essa experiência é apresentada por Beuys como uma tentativa de mergulho
na América pré-colonizada, domínio dos animais selvagens e dos “pele-vermelhas”.
O artista buscou a experiência direta com os derradeiros habitantes desse mundo
em desaparecimento, sem fábula, sem mediação de quaisquer outros elementos
que não aqueles que contribuem para expressar a intencionalidade do discurso (a
manipulação do The Wall Street Journal, principal guia de economia dos Estados
Unidos, adquire evidente sentido político nesse contexto). É o homem-artista
Joseph Beuys que se coloca em devir coyote pelo agenciamento com o animal,
214
numa relação estética, evidentemente, mas o mais protegida possível de agentes
exteriores e outros materiais que não estejam relacionados com o processo.
Outra importante aktion que parte de imagens diretamente extraídas da
memória de Beuys para recriar novos sentidos mediante a combinação com
enunciadores específicos é Iphigenia/Titus andronicus (apresentada na German
Academy of Dramatic Arts, em Franfurt, entre 29 de maio e 7 de junho de 1969).
Aqui, o artista divide a cena com um cavalo branco que descansa amarrado ao
fundo da sala junto a um monte de feno. Em procedimento semelhante ao realizado
com o coyote, Beuys irá propor, diante do público, uma série de tentativas de
comunicação sonoras com animal, valendo-se tanto de instrumentos musicais
quanto de sua própria voz microfonada, além de efeitos eletrônicos gravados. Entre
os estímulos, está o texto shakespeareano Titus Andronicus e a Iphigenia de
Goethe, que ele recita não interpretando as personagens, mas apenas lendo
normalmente.
Os animais são outros símbolos-chave da linguagem do artista. Em sua
aktion anterior, intitulada “Como se explica quadros a uma lebre morta” (Wie
man dem toten Hasen die Bilder eklärt, levada a público em 1965, na Schemella
Gallery, em Düsseldorf), Beuys, com a cabeça coberta de mel e com uma folha de
ouro no topo, carregava no colo uma lebre morta por uma exposição, explicando-
lhe o sentido de cada obra.
Podemos dizer que esses símbolos extraídos da memória criadora, e que se
repetem, são imagens especialmente potentes para elaboração do depoimento
pessoal. Eles funcionam como um vocabulário particular que remete às vivências
que resistiram ao fluxo criativo da memória, e, se ressurgem com intensidade, é
215
porque deixaram impressões profundas na formação do artista. No caso das obras
de Beuys, observamos claramente como as unidades mnemônicas do performer
podem ser aplicadas diretamente à criação da cena (sem a mediação de narrativas
ou de personagens pré-formados, como sucede em seus processos) quando retirada
do contexto histórico da experiência original e recombinada criativamente com
outros materiais, produzindo uma ação mais complexa, cujos sentidos são mais
abrangentes que aquela dramática.
No mesmo caminho, mas orientada por interesses artísticos distintos,
aparece a produção da artista plástica e performer iugoslava Marina Abramovic. A
obra de Abramovic pode ser dividida, para efeitos de análise, em dois períodos:
quando a artista trabalhava com o namorado, o performer Ulay, e após a sua
separação. Porém, notemos que as obras resultantes do trabalho com Ulay
trazem algumas das questões centrais para sua pesquisa, especialmente no que diz
respeito ao tratamento e direcionamento da memória criadora, e que mais
diretamente interessam a nossa tese, entre as quais figuram as dimensões do
tempo e os estados alterados do corpo e da percepção.
Sua busca por experiências de limite, nesse sentido, fez com que o casal
empreendesse verdadeiras temporadas de preparação psicofísica em locais
específicos para cada performance. Assim, para a obra Nightsea Crossing (1984)
foram necessários seis meses vivendo entre tribos aborígenes da Austrália, sob o
calor médio de 50º, para se atingir o estado de auto-controle e suspensão que,
conforme a artista, permite instaurar a permeabilidade sutil que marca a
comunicação silenciosa entre artistas e público na performance. Como melhor
explica o pesquisador Nick Kaye em seu artigo Ritualismo e Renovação
216
Reconsiderando a Imagem do Xamã
154
: “para Abramovic e Ulay, seguindo essa
experiência, é a função e o efeito do seu ato, mais do que a presença dos símbolos,
o aspecto mais importante da peça”.
Nightsea Crossing é composta por um mesmo ambiente que abriga
performers e espectadores, estando estes separados daqueles por uma corda de
veludo. Em frente às cadeiras para o público, Marina e Ulay estão elegantemente
vestidos e sentados nos extremos de uma enorme mesa de jantar. No cenário,
figuram alguns símbolos de nobreza como hastes de ouro, uma jarra de água gelada
com folhas de ouro e o símbolo da suástica invertido bem no meio da parede
central. Em suas posições, os performers não realizam ação alguma, mas
constroem exatamente esse estado de consciência experimentado pelas vivências
no deserto.
No mesmo caminho, A Casa com Vista para o Mar é um exercício de
resultado estético bastante diferente de Nightsea Crossing (é uma performance-
solo mais recente, quando sua parceria com Ulay já se esgotara), mas que dá
continuidade a essa linha de investigação da artista. Na obra, Abramovic viveu por
doze dias (de 15 a 26 de novembro de 2002) num ambiente projetado por ela
própria para uma exposição diária de cerca de nove horas (a apresentação poderia
ser vista pelo público diariamente das 9h às 18h). O espaço era comporto por três
módulos suspensos presos na parede ao fundo da galeria: à esquerda de quem vê,
um módulo comporta um chuveiro e um vaso sanitário; no meio, outro com uma
cadeira, uma mesa e um metrônomo, e à direita, uma cama de madeira sem
154
Ritualism and Renewal Reconsidering the Image of the Shaman, in Performance, p. 38. Tradução
minha.
217
colchão com um travesseiro de pedra e uma pia. Durante toda duração da
performance, a artista permanecia em jejum.
Nesse trabalho, Abramovic questiona tanto os limites energéticos e
expressivos do corpo, e suas dimensões não exploradas pelo homem quando
restrito ao estado/comportamento cotidiano, quanto o papel da organização do
tempo na programação e efetivação das atividades pela mente, que ela
problematiza quando exige de si a exposição pública dos rituais mais pueris e
orgânicos. Às suas palavras: “essa performance nasce de meu desejo de ver se é
possível usar a simples disciplina diária, regras e restrições para me purificar.
Posso transformar meu campo de energia? É possível para este campo de energia
transformar o campo de energia do público e do espaço?
155
O desejo por uma possível comunicação energética é um dos fatores mais
determinantes para caraterizar o depoimento pessoal de Abramovic. Embora em
sua carreira, o leque temático de suas obras seja bastante amplo (para o Brasil, ela
criou uma performance chamada Departure, baseada em imagens de garimpeiros -
com quem Abramovic trabalhou por cerca de três meses como preparação - em que
a artista buscava um diálogo silencioso com um paredão de ametistas), nos
debruçaremos sobre essa condição, bem como sobre sua oferta do corpo como
fronteira última de interação, característica igualmente marcante de suas criações.
Abramovic se utiliza da dilatação do tempo para reconfigurar os padrões de
funcionamento da mente, que, conforme a artista, organiza todas suas ações em
funções de um modelo de tempo já assimilado no subconsciente. Quando propõe
novas formas de simplesmente “existir” publicamente em um tempo reestruturado
155
In A Casa com Vista para o Mar de Marina Abramovic entrevista a Ana Bernstein. p. 132.
218
pela criação em suas obras, o que pode parecer inação” contém, de fato, todo um
delicado e, às vezes, doloroso processo de estar-em-vida que nasce diante do
espectador. Conforme ela relata:
“O elemento tempo é muito importante para mim, porque eu
programo minha mente para um certo tempo (...) Houve um
momento muito difícil mentalmente, e outro muito difícil
fisicamente. Fisicamente, foi extremamente difícil o dia em que a
galeria ficou aberta das 9h à meia-noite, o que significa 15horas.
Muitas pessoas dormiram em galerias no passado, mas elas não
tinham que interagir com o público. Eu digo que estou dormindo
na galeria, mas, na verdade, eu nunca dormi.”
156
A maneira como Abramovic constrói suas cenas-depoimento conduz a
pesquisa sobre a memória para zonas verdadeiramente desconhecidas. Não que os
outros processos até aqui analisados também não o façam, evidentemente o fazem
quando promovem a atualização dos virtuais da memória em operações criadoras
sob as condições específicas que caracterizam cada processo. Mas não é arriscado
afirmarmos que Abramovic avança, nesse sentido, quando trabalha exatamente
sobre os efeitos da re-sistematização do tempo nos rituais orgânicos que definem o
funcionamento corporal, e induz seu organismo a outros estados de consciência e a
agenciamentos que estabelecem novos níveis de percepção. A busca por um diálogo
silencioso de energia com os materiais e com o público é questão recorrente em sua
obra, e aponta quão cara é, para a artista, a necessidade de descobrir novas
dimensões para o espectro sensorial e expressivo humano.
Essa procura, em suas criações, nem sempre se dá pela via do recolhimento e
da auto-observação. Em certas obras, Abramovic propõe a ação violenta sobre o
corpo como reflexão sobre seus limites, sobre a relação do sujeito com este e sobre
as relações de poder inter-pessoais. Na performance Light/Dark (1977), Ulay e a
156
Op. cit., p. 135.
219
artista se posicionavam um frente ao outro, nus, e se estapeavam violentamente no
rosto por três horas. Premissa que chega realmente ao limite com Ritmo O.
Ritmo O é um trabalho solo de Marina em que a artista oferece 72 objetos
diferentes para que o público utilize no seu corpo da maneira que desejar. Entre
eles, está um machado, uma gilette, um chicote, uma arma, uma bala, álcool e
fósforos. Ao propor jogos de interação tão arriscados e estruturar um depoimento
pessoal que prescinde da auto-preservação, Abramovic radicaliza a busca por novos
limites de existência para além das implicações orgânicas do corpo material. Sua
atitude performativa parece dizer: “eu estou (ou quero estar) além disso, portanto,
posso (podem) dispor desse estrato como quiser (em).”
O depoimento pessoal de Abramovic, pois, ilumina com novas questões o
trabalho do performer. A memória criadora opera por um adensamento orgânico
que se coloca permanentemente em condições de funcionamento instáveis para, a
partir daí, encontrar, exatamente, novas formas de viver. Quando toma o trabalho
sobre o tempo numa perspectiva de recriação e de experimentação, Abramovic
mergulha em um campo profundamente instigante de investigação da memória
criadora e das relações do ser com seus conteúdos em estados diferenciados de bio-
funcionamento. Seus relatos, nesse sentido, baseados em experiência tão singulares
e radicais, acrescentam informações preciosas ao estudo de depoimento pessoal, e
que só são acessíveis quando os artistas assumem o risco de se colocar no limite da
vivência, e depois conseguem voltar para nos contar seus resultados.
O terceiro processo escolhido é o trabalho do performer Spalding Gray, cuja
disposição do depoimento está entre as mais variadas e interessantes no quadro de
produções da performance do século passado. Em suas obras, Gray experimentou
220
as possibilidades expressivas que a construção e combinação de diferentes
personas e personagens representando vozes distintas no desenvolver da ação
podem revelar. Com isso, apontou formas inusitadas de projeção do depoimento do
performer dentro do macro-depoimento pessoal que é a performance em si, e que
permitem a multiplicação de sentidos na medida em que provocam as relações do
artista com as alteridades criadas.
Sua obra é tão rica, nesse sentido, que nos obrigou a escolher certos
processos em detrimento de outros, para que o volume de conteúdo a ser analisado
não ficasse excessivamente pesado e dificultasse a análise de sua produção. Por
tanto, selecionamos as performances Sakonnet Point, Rumstick Road e Nayatt
School, levadas a público pelo Performance Group
157
na Performing Garage em
New York em 1975. Esses trabalhos foram reunidos novamente em 1978, e
reapresentados com o título Three Pieces in Rhode Island.
Os três títulos da peças foram retirados de lugares reais da infância de Gray,
respectivamente, uma pequena cidade de veraneio, a rua da casa em que Gray viveu
quando criança (66 Rumstick Road) e uma escola. Tal informação antecipa que
estaremos diante de um mergulho, mais ou menos integral, do artista na história de
seu passado, mas recontada pela nova lógica assumidamente criadora que
determina a identidade de seu depoimento.
Sakonnet Point é dividida em seis seqüências: o avião, a criança, a casa, o
leque, o cobertor e o lençol. É a única das três peças que não teve o cenário criado
especialmente para sua apresentação. Sua disposição se vale de uma minuciosa
157
Além de Gray e de Elizabeth Le Compte, idealizadores do projeto, o Performance Group era formado por
Ron Vawter, Libby Howles, Bruce Porter, Bruce Rayvid e Gabrielle Lansner.
221
coreografia de ações, gestos, objetos e sons (mas sem diálogos) no espaço para
trazer impressões da infância de Gray sobre o mundo adulto na pretensa diversão
que uma viagem de férias, a princípio, anuncia. Porém, essa ambientação, e todas
as impressões de lazer que ela sugere, são tensionadas pela articulação de outros
elementos, cujo efeito em cena evocam a violência e a incompreensão que uma
criança pode sentir quando confrontada com certos aspectos dolorosos da
realidade adulta (a ação do chicote de arame, a imagem da atriz babando leite, etc.)
O depoimento pessoal de Gray aparece mais diretamente em duas figuras, o
próprio artista e um menino que tenta se enforcar no início da apresentação, e é
supostamente “salvo” pelo artista adulto representando a si mesmo. As figuras
femininas remetem à mãe de Gray (uma mulher que percorrre o espaço carregando
uma casa de brinquedo, e depois toma um banho de papel picado como se estivesse
num chuveiro uma típica imagem da intimidade familiar: o filho que espia a mãe
se lavar), vítima de sérios problemas mentais que a levaram ao suicídio, e cuja
perda será o tema da segunda performance da trilogia.
Em Rumstick Road, Gray trata do delicadíssimo tema da morte da mãe,
Betty Gray, ocorrida durante uma viagem do artista em 29 de julho de 1967. Para
elaborar esteticamente essa perda, o performer se valeu de diversas fontes na
composição de seu depoimento: entrevistas, carta, slides, etc. Outras vozes foram
convocadas para comentar o acontecido: o pai de Gray, Alice Mason, uma velha
vizinha da família, Dorothy Spadling Wood, avó de Gray, além de cartas da própria
Beth falando de seu estado e de suas perspectiv as.
Na maior parte da apresentação, Gray se expõe diretamente, mas se utiliza
das outras vozes para compor seu discurso maior de incompreensão diante da
222
tragédia pessoal. Ao final da performance, Gray atravessa o espaço e tira um
telefone que está em cena do gancho. Reproduz o diálogo com o Dr. Henry
Bradford, psiquiatra que cuidou de sua mãe antes do suicídio. O performer fala no
presente, mas a voz do doutor é uma gravação que reproduz suas falas anteriores. É
o artista brincando de contar sua história, representando a si mesmo, ou
resgatando, de fato, uma experiência real?
Por fim, Nayatt School, uma performance profundamente irônica que usa a
metáfora da escola indicada no título para representar um ambiente indefinido que
denota ora uma instituição blica (com seus funcionários engravatados e
entediados) ora uma escola mesmo, e ora, ainda, um palco aberto para a
mediocridade humana (como a ação do dentista traído por sua mulher que se vinga
no paciente). É a peça que mais explora as trocas de papéis e o trânsito entre o
depoimento do performer e das personagens, promovendo um desfile de tipos que
não são exatamente personagens dramáticos strictu sensu, mas tão pouco são os
performers falando por si: há algum grau de mediação da fábula que se revela na
utilização de adereços, figurinos e vozes espeficas para cada figura.
O estudo das três peças de Rhode Island é suficiente para revelar um artista
cuja experiência desdobrou a noção de depoimento pessoal. Gray se valeu do relato
direto, da personagem, do depoimento de terceiros, da projeção de sua identidade
histórica em outras figuras (o menino de Sakonnet Point), do depoimento gravado
em diversos suportes, enfim, a lista é enorme. Pelas criações de Gray, a
autenticidade do depoimento pessoal se legitima definitivamente não pelo
compromisso com os conteúdos históricos, mas pela capacidade de recriação do
vivido cujo produto é a cena-depoimento, a performance. O depoimento pessoal
223
encontra, aqui, sua mais completa expressão como fruto da memória criadora,
abandonando definitivamente qualquer resquício de um projeto de memória que
pretendesse restituir integralmente uma experiência já vivida.
Entretanto, existe outra dimensão do depoimento pessoal, extra-artística,
que introduz uma série de questões consistentes ao nosso debate e da qual não
podemos nos esquivar. O vídeo-depoimento é uma forma de registro que surgiu no
pós-guerra, e é produto de um período que o pesquisador Márcio SeligmannSilva
define como a época das catástrofes
158
. Trata-se de um relato direto para a câmera
de vítimas de crimes de estado, cujos conteúdos têm grande implicação histórica
tanto para apuração dos fatos e possível condenação dos envolvidos, quanto para
fortalecer os laços entre as vítimas, como se observou principalmente na
comunidade judaica.
Tal depoimento opera em uma delicada chave de lembrança e criação. Se,
por um lado, a recuperação mais fiel possível da experiência original é urgente, por
outro, não é possível suprimir a natureza criativa da ação mnemônica que
exatamente qualifica o vídeo-depoimento como fronteiriço à arte, ainda que a
criação, aqui, não seja assumida, nem de fato, desejada. Todo testemunho contém a
criação, e carrega em si a possibilidade do “engano”: (...) o testemunho tem
sempre parte com a possibilidade ao menos da ficção, do perjúrio e da mentira,
afirma Derrida. Eliminada essa possibilidade, nenhum testemunho seria possível
e, de todo modo, não terá mais sentido do testemunho
159
.
158
Memória, História, Literatura O testemunho na era das catástrofes, p. 377.
159
Op. cit., p. 378.
224
A memória criadora enfrenta, na problemática rigorosa imposta pelo vídeo-
depoimento, suas limitações ontológicas mais contundentes, para as quais a arte
não oferece solução. Resta, talvez, aceitar que, ao assumirmos a memória como
recriação do vivido, possamos encontrar o caminho mais eficiente para tentar
extrair os aspectos fantasiosos dos relatos, quando necessário, como nessa caso.
225
CONCLUSÃO
Nossa pesquisa iniciou-se por uma intuição oriunda da prática, e por tal
caminho desejaríamos concluí-la. Os casos analisados na última parte da tese,
ainda que emblemáticos no que diz respeito às singularidades na elaboração do
depoimento, são exemplos extraídos arbitrariamente para fins de estudo de um
mapa de diversidades que a cada dia surpreende a cena pós-moderna com novas
manifestações. Interessaria-nos muito que nossa análise e as bases teóricas aqui
desenvolvidas avançassem e atingissem a produção de outros criadores, já que essa
prática é a fonte que alimenta todo legítimo estudo das artes performativas, e para
onde a nossa própria prática deve, se tivermos sucesso, confluir.
Pretendemos ter apresentado uma reflexão sobre a memória que permita
um novo olhar sob suas atribuições, e que por meio deste, se reterritorializem
todas as demais funções. Desejamos que nossa perspectiva sobre a cooperação
global dos atributos do ser para a criação traga alguma luz à complexidade das
operações humanas em estado de criação. De fato, o que defendemos com nossa
apologia da memória criadora é que o ser humano se movimenta de forma
naturalmente criativa para a resolução de suas questões, e a memória é a
capacidade de combinar o vivido de antes com a vivência de agora, que, efêmera,
é vivido.
Tal caminho para o entendimento dos processos da mente nos parece
irreversível no quadro de referência contemporâneo. A velocidade das relações na
pós-modernidade leva ao limite a antiga noção de tempo como sucessão apenas.
Precipitaram-se alguns pensadores quando consideraram que tal velocidade
226
decretaria o fim da história como a conhecemos, mas não exageraram quando
exigiram do filósofo atual uma revisão profunda dos termos de apreensão e
organização dessa mesma história à luz das multiplicidades e simultaneidades que
sempre incidiram sobre os deslocamentos energéticos dos processos vivos, e que
agora não podem mais ser ignoradas mesmo nas atividades mais simples do
cotidiano.
O artista performativo sempre esteve mais próximo que qualquer outro do
tempo não cronológico. Se é possível se encontrar uma medida libertadora do
tempo na experiência, então a experiência pós-moderna deve estar alerta para o
trânsito entre o visível e o invisível, pois o presente já é memória no exato
momento de sua manifestação. O depoimento é a assunção consciente dos
conteúdos-formas do discurso artístico, ao qual todo artista maduro não se furta de
atender.
Admitir a memória como recriação do vivido não deve sugerir uma
complacência irresponsável com a apuração dos fatos históricos, mas exatamente o
oposto. Admitindo-se que sua natureza está intrinsicamente ligada à imaginação,
ou antes, que a própria memória trabalha com a recriação e não com a reprodução
da percepção (para o que Aristóteles nos já nos alertava há dois milênios passados),
é possível abordar o testemunho em sua instância volátil, fluida, que não permite
trazer de volta o passado, mas que pode (e em alguns casos, como já vimos, deve)
encontrar suas maneiras de recriar mimeticamente as experiências.
Falar de memória como fluxo é tirar o sujeito de sua posição de essência,
legitimada por todo pensamento antigo até a modernidade. Essa mudança não é
confortável, mas é irreversível: não somos uma entidade em processo, somos o
227
próprio processo, estratos múltiplos e multidimensionais em devir dançando na
cartografia energética do universo. A memória é a pequena parte de consciência
sobre os adensamentos que nos definem que resiste a essa dança, e permite com
que nos reconheçamos, ainda e fugazmente, como “nós”.
O depoimento pessoal é maneira particular que o homem encontrou para
brincar com a dança da memória e direcionar a construção dos estratos. Usando a
personagem, multiplicando-se em alteridades por vezes antagônicas, mergulhando
nas forças do imaginário coletivo, não importa qual seja o modelo de estimulação e
pressão, ele é em si uma criação artificial, e aí está a brincadeira.
Se a vida nos oferece naturalmente as forças que direcionam e qualificam as
vivências, pela sua apreensão formamos a memória e por meio dela nos
subjetivamos, então o depoimento pessoal é a maneira como forjamos artifícios
circunstancias para nos reinventarmos pela arte, para transbordarmos as forças
cotidianas de delimitação do vivido e encontrarmos novos “álibis” para expressão
no caldeirão das ficções. Somos memória, ou melhor, a memória é a arte que
permite com que nos reconheçamos. Mas somos igualmente criação de nós
mesmos quando desejamos recordar algo que passou e ao qual estamos apegados
porque é uma marca que nos identifica.
Somos, enfim, a tentativa de adensamento perene, o esforço de resistência
ao inefável movimento do plano, que sucumbe, e nessa submissão se ultrapassa e
sobrevive. Como criação e como criador, criativamente.
228
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