Download PDF
ads:
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE LINGÜÍSTICA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SEMIÓTICA E LINGÜÍSTICA
DO DOIS AO SEM-SEGUNDO:
ÇAÌKARA E O ADVAITA-VEDÄNTA
Lilian Cristina Gulmini
Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação
em Semiótica e Lingüística geral do
Departamento de Lingüística da Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo, para a obtenção do
título de Doutor em Lingüística.
Orientador: Prof. Dr. Mário Ferreira
São Paulo
2007
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
2
A Deus, por simplesmente tudo, e aos meus mestres,
Paramahansa Yogananda e Swami Çri Yukteswar,
por todas as lições de amor e discernimento.
ads:
3
AGRADECIMENTOS
Ao meu orientador, Prof. Dr. Mário Ferreira, pelos anos de convivência e amizade e pelo zelo
(e paciência!) com que me tem ajudado a crescer em todos os sentidos.
Aos meus pais por todo o seu amor, seu apoio e confiança em mim, e pelas preces!
Ao Departamento de Lingüística da Universidade de São Paulo, pela oportunidade de
realização do curso de doutorado.
À CAPES Coordenadoria de Aperfeiçoamento do Ensino Superior, pela concessão de bolsa
de doutorado para a realização desta pesquisa durante os anos de 2003 a 2005.
Ao professor Dr. Ivã Carlos Lopes pela gentileza de me oferecer ajuda “semiótica” e pela
prontidão com que atendeu à minha solicitação de um artigo de difícil obtenção.
Aos grandes amigos Adriano Aprigliano e João Carlos Barbosa Gonçalves, pela generosidade
e apoio constantes e pelo auxílio nos empréstimos e na importação da bibliografia necessária.
Às amigas queridas que durante todo o processo de redação da tese ofereceram sua presença,
seu apoio e seus votos de confiança: Cibele Aldrovandi e Guacyra Guarani de Souza.
Finalmente, a todos os amigos que não citei nominalmente e a todos os meus alunos, pela
dedicação e pelas palavras de apoio.
4
RESUMO
GULMINI, L. C. Do dois ao sem-segundo: Çaìkara e o Advaita-vedänta. 2007. 203 f. Tese
(Doutorado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São
Paulo, São Paulo, 2007.
A tese tem por objetivo efetivar a análise e demonstração das estratégias discursivas através
das quais Çaìkara, o célebre pensador do Hinduísmo medieval (circa 788-820 d.C.), formulou
a doutrina monista do Advaita-ved
T
nta, construindo para isso um discurso dialógico com
relação às principais doutrinas dualistas e ritualísticas adversárias de seu tempo, dentre elas,
respectivamente, o S
TR
khya-Yoga-darçana e o mäàsä-darçana. A análise dos textos
sânscritos de Çaìkara dedicados a interpretar as escrituras védicas segue os pressupostos da
teoria do discurso, da semiótica de nivel fundamental e dos estudos de intertextualidade, e
radica em dois eixos: (1) o estudo da construção de um discurso monista, apesar das
exigências irredutíveis das categorias binárias às quais se curvam a linguagem e o raciocínio
humanos; e (2) o exame dos mecanismos diversos de persuasão e argumentação constantes
nos escritos do pensador, os quais constroem uma interpretação específica dos textos védicos
ao mesmo tempo em que refutam pontos de vista outrora válidos na tradição sânscrita. A
primeira parte da tese, intitulada “A revelação do Um”, apresenta uma síntese da herança
cultural que é pressuposta na leitura dos textos do pensador e uma análise semiótica da
articulação, no nível fundamental, do conceito de Absoluto ou “um-sem-segundo”, Brahman,
conforme descrito nas Upaniñad e interpretado por Çaìkara. A segunda parte, intitulada “Os
percursos do dois”, investiga as estratégias discursivas e intertextuais por meio das quais o
pensador consegue ressignificar e assimilar em sua doutrina monista o universo relativo e as
categorias binárias e ternárias afirmadas em outras doutrinas de sua herança cultural. A tese
visa a contribuir para a demonstração de que as teorias do discurso constituem instrumentos
que auxiliam a elucidar os mecanismos com os quais a linguagem verbal consegue criar e
expressar conceitos abstratos não apreensíveis no mundo dos fenômenos. O trabalho
representa também um esforço para suprir uma lacuna da bibliografia brasileira, apresentando
sob enfoque inédito fontes textuais relativos a uma vertente nuclear da cultura sânscrita.
Palavras-chave: Çaìkara; Advaita-ved
T
nta; cultura sânscrita; teoria do discurso; semiótica.
5
ABSTRACT
GULMINI, L. C. Do dois ao sem-segundo: Çaìkara e o Advaita-vedänta. 2007. 203 pages.
Thesis (Doctoral) Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São
Paulo, São Paulo, 2007.
The main purpose of this thesis is to analyse and demonstrate those discursive strategies
through which Çaìkara, the famous philosopher of medieval Hinduism (circa 788-820 a.C.),
has formulated the monistic doctrine of Advaita-vedänta, to which purpose he has elaborated
a dialogical discourse in relation to some of the main dualistic and ritualistic opposing
doctrines of his time: the Säàkhya-Yoga-darçana and the Mémäàsä-darçana, respectively.
Our analysis of the sanskrit texts in which Çaìkara interprets the vedic scriptures is based on
the theories of discourse, on the principles of the French school of Semiotics and also on
studies of intertextuality. This inedit analysis intends to: (1) analyse the inter-relation of
concepts in the fundamental level of significance that can build a monistic discourse, in spite
of those irreductible binary categories that govern human language and reasoning; (2)
examine those mechanisms of persuasion and argumentation which are constant in Çaìkara’s
writings and which help to build specific interpretations of the vedic scriptures, refuting at the
same time the points of view of other doctrines. The first part of the thesis, entitled “The
revelation of One”, gives a synthesis of the cultural heritage which is pressuposed in the
reading of Çaìkara’s writings, and afterwards makes a semiotic analysis, on the fundamental
level, of the concept of Absolute or “one-without-a-second”, Brahman, according to the way
it’s given by the Upaniñad texts and interpreted by Çaìkara. In the second part of the thesis,
entitled “Paths of the Two”, are analysed some of those discoursive and intertextual
mechanisms through which the thinker can re-signify and assimilate into his monistic doctrine
the relative universe and those binary and ternary categories according to what was postulated
by other doctrines of his cultural heritage. The thesis contributes to demonstrate that the
theories of discourse are valid instruments in the process of analysis of those mechanisms
through which verbal language can create and express abstract concepts which, at first, are not
aprehensible in the world of phenomenae. The work has also the purpose of adding to
brazilian bibliography, under an inedit approach, texts belonging to an important aspect of
sanskrit culture.
Key words: Çaìkara; Advaita-ved
T
nta; sanskrit culture; theory of discourse; semiotics.
6
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
a) Prólogo.......................................................................................................... 10
b) Autor e obra.................................................................................................. 11
c) O discurso dialógico......................................................................................
14
d) Plano da tese................................................................................................. 16
PARTE I – A REVELAÇÃO DO UM
1.1 – VENERÁVEIS VOZES DO PASSADO............................................... 19
1.1.1 – Herança ritualística, herança especulativa........................................... 19
1.1.2 – Herança “ouvida”, herança “lembrada”..............................................
28
1.2 – AS UPANIÑAD....................................................................................... 32
1.2.1 – A revelação de Brahman...................................................................... 32
1.2.2 – Trechos selecionados para análise dos comentários............................ 37
1.2.3 – Excurso: da competência......................................................................
41
1.3 – KENA-UPANIÑAD: BRAHMAN, O INDEFINÍVEL............................... 44
1.3.1 – Dialogismo e o anti-sujeito do saber..................................................... 48
1.3.2 – O sujeito absoluto..................................................................................
54
1.3.3 – Pramäëa: os limites da razão................................................................
61
1.3.4 – Brahman pela via negativa.................................................................... 68
1.3.5 – Ägama, “assim ouvimos dos antigos”: o crer e o saber........................
78
1.4 – TAITTIRÉYA-UPANIÑAD: BRAHMAN DEFINIDO................................ 87
1.4.1 – Argumentos lingüísticos........................................................................
91
1.4.2 – Sac-cid-änanda: o ser e a aparência......................................................
98
a) satyaà brahma.............................................................................................. 98
b) jïänaà brahma............................................................................................. 100
7
c) anantaà brahma........................................................................................... 103
d) sac-cid-änanda..............................................................................................
104
1.5 – MAHÄ-VÄKYA: AS QUATRO GRANDES SENTENÇAS....................
106
PARTE II – OS PERCURSOS DO DOIS
2.1 – A CISÃO DO UM EM DOIS.................................................................. 109
2.1.1 – Mäyä: a “mágica” da relatividade......................................................... 111
2.1.2 – Avidyä: “ignorância” e descontinuidade............................................... 117
2.1.3 – Adhyäsa: uma argumentação a respeito da “sobreposição”..................
125
2.2 – AS CISÕES DO UM EM TRÊS..............................................................
143
2.2.1 – O dois e o três no Säàkhya-yoga-darçana........................................... 145
2.2.2 – Os três níveis de realidade.................................................................... 159
a) vigília, sonho, sono....................................................................................... 161
b) sono profundo............................................................................................... 167
c) bädha, o “cancelamento”.............................................................................. 171
d) a quarta parte do si-mesmo........................................................................... 173
e) os três níveis de realidade............................................................................. 175
2.2.3 – Saguëa-Brahman: as tríades da manifestação......................................
178
a) Éçvara............................................................................................................ 179
b) prakåti........................................................................................................... 183
2.3 – AÇÃO E INAÇÃO: A INTEGRAÇÃO FINAL.....................................
189
CONCLUSÃO.................................................................................................
198
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.........................................................
199
8
NOTAS DE TRANSCRIÇÃO DO SÂNSCRITO E CONVENÇÕES DE TRADUÇÃO
No presente trabalho, as transcrições do sânscrito obedecem às normas estipuladas
pela Convenção de Orientalistas de Genebra de 1894, com caracteres especiais como segue:
– fonemas vocálicos alongados: ä, é, ü; Ä, ,É, Ü;
– fonemas retroflexos: å (vocálico); ö, öh, ò, òh, ë, ñ (consonantais);
– aspirada surda (visarga): ù;
– índice de nasalização (anusvära): à;
– sibilante palatal surda: ç;
– outras nasais com caracteres especiais: ï (palatal); ì (velar).
As citações em sânscrito foram todas grafadas em itálico, e os casos de säàdhi foram
aí mantidos, a fim de preservar a correção fonológica do sânscrito.
No corpo do texto em português:
– os termos sânscritos foram grafados em itálico, à exceção dos nomes próprios.
os compostos nominais foram desmembrados e apresentados sem säàdhi, com os
termos ligados por hífen (exemplo: Advaita-vedänta), à exceção dos casos de säàdhi de
vogais idênticas (crase), alongadas ou não (exemplo: paramäëu ao invés de parama-aëu).
os nomes próprios e os nomes de escolas são iniciados por maiúscula; se inseridos
em compostos nominais, apenas o primeiro termo do composto é inciado por maiúscula;
o termo Brahman como conceito de Absoluto aparece sempre em maiúscula, assim
como Éçvara;
os termos sânscritos são apresentados sob a forma de temas sem declinação, o que
significa que eventuais plurais são indicados por outros termos do vernáculo (exemplo: os
advaitin, três guëa).
Nas citações de textos de Çaìkara:
– os termos sânscritos eventualmente citados ou recuperados são grafados em itálico;
– as interpolações feitas pelo editor do texto aparecem entre colchetes, enquanto
nossas recuperações de termos sânscritos e eventuais interpolações são apresentadas entre
chaves, por oposição.
9
Nota importante:
Alguns textos de Çaìkara citados passaram por um duplo cotejo de edições. Nesses
casos, a primeira edição que aparece após a citação como referência biliográfica é sempre a
edição em que se encontra a tradução do texto para o inglês; a segunda é sempre a edição (ou
documento eletrônico) em que se encontra o original sânscrito consultado para recuperação de
termos essenciais e homogeinização, na tradução, do vocabulário “técnico” e conceitual.
10
INTRODUÇÃO
a) Prólogo
O projeto de pesquisa que originou esta tese foi uma proposta ousada, devido ao seu
ineditismo e às dificuldades previstas. A redação da tese, por sua vez, confirmou o tamanho
do desafio. Por outro lado, o estímulo para sua concretização jamais deixou de estar
igualmente presente, quer no interesse intrínseco ao tema dos discursos em análise, quer pelo
interesse suscitado pelo próprio processo de análise com suas descobertas. Igualmente
reconfortante foi saber que na Índia o pensador que aqui esmiuçamos, semioticamente,
transpôs obstáculos conceituais em nada menores, e o fez com tal mestria que até hoje é
disposto entre os grandes de sua cultura.
Traduzir Çaìkara, comentá-lo, é sempre um desafio aqui e agora, visto que suas
palavras foram dirigidas a homens de outro tempo, herdeiros de outras construções culturais,
com as quais o pensador dialogou, discutiu, polemizou. É desafio também, por outro lado,
justamente por sua imensa importância aqui e agora: pelas questões existenciais por ele
abordadas, não desconhecidas dos pensadores de nossa cultura, e pelas respostas por ele
dadas, em grande parte responsáveis pela delineação, pelos séculos vindouros à sua passagem,
de uma das mais estimadas faces do Hinduísmo. Não bastassem a atualidade de suas questões
e a importância histórica e cultural de seus escritos para a Índia, é desafio também expor o
que subjaz ao seu discurso: uma constante eulogia ao silêncio mais profundo e ao arsenal de
valores culturais várias vezes milenares que tal silêncio implica. Desafio proporcional e
complementar ao de submeter à dualidade imanente no mais profundo nível da semiose
possível à mente humana a síntese de seu discurso, o Um-sem-segundo.
Nada disso seria possível ou passível de defesa, não fosse o próprio pensador o maior
artífice da “Semiótica do Um” em sua cultura; não fossem suas palavras a melhor análise de
sua própria ntese, e sua argumentação, tão impecável exposição e defesa de sua própria
herança cultural.
Finalmente, um último desafio: analisar (e isso é traduzir) tamanho edifício cultural,
de arquitetura complexa porém exata, de forma a construir, para o leitor da cultura de
chegada, discurso aprazível, claro e sucinto, e por que não? ornado das mesmas formas
intrincadas do pensar indiano.
11
b) Autor e obra
“Quando a obra é obra-prima, é porque o autor é uma divindade.” Tal frase com que
arriscamos um ensaio de síntese soa absurda em nossa cultura de chegada, mas indica de
forma sucinta alguns traços da tradição sânscrita de que devemos tratar logo de início.
O ponto de vista tradicionalmente defendido e expresso em inúmeras obras da
literatura sânscrita é o de que a obra é mais importante do que seu autor, e de que os
conhecimentos expostos nos textos considerados válidos ou verdadeiros não constituem
criações de seus autores humanos e sim revelações de saberes atemporais que necessitam de
atualização periódica no mundo dos homens.
1
Em nosso contexto acadêmico, tal posição
cultural traduz-se numa escassez de dados biográficos acerca de autores e, eventualmente, na
dificuldade em precisar seus contextos históricos.
Um procedimento comum aos textos sânscritos e que dificulta o trabalho de
localização temporal de seus autores é a tradição de atribuir uma série de obras a um mesmo
autor consagrado do passado em virtude da afiliação ideológica ou teórica delas ao autor
considerado fundador da escola. Ora, a multiplicidade dessas obras e o arco temporal por elas
abrangido são evidentes a qualquer pesquisador, não obstante a reiteração, pela tradição, de
sua autoria única.
Ainda um outro problema: muitos autores de obras que se tornaram canônicas,
sobretudo se relativas a tradições religiosas, foram eles próprios divinizados. Temos assim um
tratado de Yoga atribuído a um certo Patañjali, e por outro lado temos um importante
comentário (Mahä-bhäñya) à gramática de Päëini também atribuído a um certo Patañjali. Diz
a tradição que se trata do mesmo Patañjali, que, além de brilhante gramático do sânscrito e
grande mestre yogin, foi também um grande médico (muito embora seu tratado de medicina,
referido em outras obras sânscritas posteriores, não tenha ele próprio chegado ao presente). Se
a multiplicidade de assuntos e distância entre as obras obriga o autor a ter vivido por vários
séculos, também não problema: afinal, no caso de Patañjali, não era esse um homem
comum, e sim uma encarnação de Çeña, o deus-serpente sobre cujo dorso repousa Viñëu, o
deus adormecido cujo sonho é o universo.
No caso de Çaìkara encontramos os mesmos problemas. A tradição das biografias
sânscritas dedicadas ao pensador situa seu nascimento no ano 2.593 do Kaliyuga, o que,
1
Dentro dessa concepção do tempo cíclico e recorrente em oposição à imutabilidade do conhecimento, tomemos
apenas este verso da Bhagavad-gétä (4.7) como ilustração:
yadä yadä hi dharmasya glänirbhavati bhärata / abhyutthänamadharmasya tadätmänaà såjämyaham //
“Sempre que um declínio no dharma {retidão}, ó Bhärata, e um aumento do adharma {erro}, então Eu me
manifesto.” (in GAMBHÉRÄNANDA, 2000a, p. 180)
12
segundo os cálculos tradicionais, recuaria a data para 509 antes de Cristo. Porém, tendo em
vista as escolas de pensamento com as quais o autor dialoga em seus escritos, a data se torna
inverossímil, que temos nesses escritos referências aos seis darçana ortodoxos dos
Hinduísmo, as quais explicitam seu caráter de escolas consolidadas e com um número
expressivo de seguidores, e também a um Budismo atuante e organizado em vários sistemas
(incluindo as escolas Yoga-cära e Madhyämika) ou seja, elementos que poderiam estar
presentes na Índia durante e após o período Gupta (c. 320-540 d.C.). Somando-se a esses
fatores algumas referências a reis, pensadores e obras mencionados em suas biografias e nos
registros dos centros monásticos de linhagem advaitin, declarados nesses textos como
contemporâneos do pensador, conclui-se que ele não pode ter vivido antes do século VII d.C.
Assim, estudos cuidadosos levados a cabo por pesquisadores indianos e ocidentais
desde o século XVIII fixaram o período em que viveu Çaìkara entre os anos de 788 e 820
d.C., e essa tem sido a datação aceita pela comunidade acadêmica internacional e também
pelos órgãos oficiais do governo indiano. Por tais razões, tal é a datação que adotamos para o
presente trabalho.
E quem foi Çaìkara? Comecemos pela resposta dada pela tradição
2
: foi ele uma
encarnação do deus Çiva, nascido sob forma humana neste ciclo temporal da terra para
dissipar as trevas da ignorância que ameaçavam ocultar a verdade dos Veda sob a confusão de
inúmeras seitas díspares, e mostrar novamente aos homens a unidade de seus ensinamentos
(não obstante sua aparente multiplicidade de textos e doutrinas) e o caminho único para que
alcançassem mokña, a liberação final do ciclo das encarnações (não obstante a aparente
multiplicidade de faces que, no mundo dos nomes e formas, näma-rüpa, tal caminho parece
possuir).
À parte a tradição, respondemos: Çaëkara foi um jovem brâmane çivaíta cujo pai,
Çivaguru, era um sacerdote yajur-vedin descendente da linhagem Taittiréya. Nascido no
Malabar, no Decão, admite-se que Çaìkara viveu apenas trinta e dois anos. Não obstante a
curta vida, por seus escritos reconhece-se nele um brilhante pensador de extraordinária
erudição. Foi herdeiro e conhecedor de toda a tradição escritural védica (o que, à sua época,
incluía os hinos mais antigos dos quatro Veda e seus anexos, os quais somam milhares de
páginas: as coletâneas Brähmaëa, Äraëyaka e Upaniñad), além do Mahä-bhärata, incluindo
2
O que chamamos de “tradição”, no caso específico da biografia de Çaìkara, é representado pelo conjunto de
textos sânscritos, em sua maioria longos poemas, compostos em louvor ao pensador, sobretudo entre os séculos
X e XVI d.C., e dedicados a relatar sua “biografia”. São conhecidos por Çaìkara-vijaya, e alguns dos mais
importantes são: Båhat-çaìkara-vijaya, de Citsukha; Präcéna-çaìkara-vijaya, de Änandagiri; Saìkñepa-çaìkara-
vijaya, de Àädhaväcärya; Çaìkara-dig-vijaya, de Mädhavavidyäraëya.
13
seu mais célebre poema, a Bhagavad-gétä. Além disso, sua erudição alcançava também o
conhecimento de pormenores das doutrinas de todas as seis escolas ou “pontos de vista”
(darçana) do Hinduísmo ortodoxo, expostas em seus tratados: Vaiçeñikha, Nyäya, Säàkhya,
Yoga, Pürva-mémäàsä (ou Mémäàsä) e Uttara-mémäàsä (ou Vedänta), e também detalhes
das doutrinas de várias escolas do Budismo indiano de seu tempo.
Segundo os textos sânscritos dedicados à biografia do pensador, Çaìkara aprendeu
sânscrito ainda nos primeiros anos de vida, e aos oito anos tornou-se asceta e discípulo de
Govinda, um renomado eremita da época que habitava uma caverna nas encostas do rio
Narbuda. Govinda, por sua vez, era discípulo de GauHapTda, autor de importantes tratados, e
provavelmente o jovem Çaìkara chegou a conviver também com esse mestre de seu mestre,
pois a influência dele se faz presente na sua obra.
De fato, como reconhece o próprio Çaìkara, GauHapTda é que foi o autor das primeiras
interpretações monistas das antigas escrituras indianas. Entretanto, os textos de GauHapTda
que nos chegaram ao presente mostram que esse pensador articula um monismo fortemente
influenciado pelas escolas e autores do Budismo Mah
T
y
T
na, com sua doutrina do Vazio, o ç
X
nya-v
T
da (Cf. DASGUPTA, 1997, p. 420-429). Apenas em Çaìkara, um brâmane ortodoxo,
teremos uma defesa da herança textual védica por meio da elaboração de um monismo em
torno do conceito de Absoluto, Brahman, como presente nas Upaniñad.
Afirma-se que o primeiro trabalho importante de Çaìkara foi o grande comentário
(bh
TL
ya) ao tratado Brahma-s
X
tra de BTdarTyaJa (circa II a.C.). Nesse comentário, a
interpretação de Çaìkara aos enunciados de BTdarTyaJa defende uma linha de pensamento
de caráter monista na compreensão e exegese dos textos considerados como escrituras
sagradas da cultura védica e porção final dos Veda (ou Vedänta), as Upani
L
ad mais antigas
(textos produzidos entre X-VI a.C.). Ainda nesse comentário, Çaìkara combate os pontos
de vista dualistas de outros sistemas desenvolvidos anteriormente pela cultura na interpretação
das mesmas escrituras, ao mesmo tempo em que traça e articula os principais elementos do
que viria a ser a escola Advaita (a-dvaita= "a-dual", "sem-segundo") ou monista do
Hinduísmo. Além do Brahma-s
X
tra-bh
TL
ya, Çaìkara também redigiu comentários à
Bhagavad-g
V
t
T
e às dez principais Upani
L
ad (Éça, Kena, Ka
F
ha, Praçna, Mu
JH
aka, M
TJHX
kya,
Aitareya, Taittir
V
ya, B
B
had-
T
ra
J
yaka e Ch
T
ndogya), e alguns tratados independentes versando
sobre aspectos mais específicos de sua doutrina, como Aparok
LT
nubhüti, Viveka-c
XHT
-ma
J
i e
14
Païc
V
-kara
J
am. Esses são, portanto, os principais textos teóricos "oficiais" de Çaìkara,
aqueles que indiscutivelmente são de sua autoria.
3
A influência deixada pela obra de Çaìkara sobre o pensamento indiano foi decisiva:
devido à sua importância e prestígio, mesmo os pensadores de escolas rivais dos séculos
seguintes foram “obrigados” a referir-se ao Advaita e às interpretações deixadas por Çaìkara,
ainda que para refutá-las, na composição de suas obras. A reforma monástica conduzida pelo
jovem asceta também redefiniu a tradição dos swamis” do Hinduísmo (sânscrito svämin)
para os séculos vindouros, até o presente. Muitos dos pensadores e místicos indianos mais
importantes dos últimos séculos, como Dasgupta, Tagore, Vivekananda, Yogananda,
Radhakrishnam e Aurobindo, são “vedantinos” advaitin. Além disso, para muitos autores a
resistência e vitalidade demonstradas pelo Hinduísmo face às influências e coerções históricas
e ideológicas sofridas pela Índia nos últimos séculos deve-se em grande parte aos efeitos da
obra “integradora” de Çaìkara. Tal é a obra que vamos abordar nestas páginas.
c) O discurso dialógico
"O analista do discurso vem, dessa forma, trazer sua
contribuição às hermenêuticas contemporâneas. Como todo
hermeneuta, ele supõe que um sentido oculto deve ser captado, o qual,
sem uma técnica apropriada, permanece inacessível. É o espaço
escolar que lhe confere autoridade e garante que os textos analisados
possuem, de fato, uma significação oculta, mesmo que um outro
analista se mostre incapaz de decifrá-la."
(MAINGUENEAU, 1993, p. 10)
Além de erudito eminente, Çaìkara também é considerado pela cultura como um santo
ao qual se atribuem muitos milagres e um homem de ação. Como monge, peregrinou várias
vezes da região de Malabar, no sul da Índia, onde nasceu, até Benares. Ao final da vida
percorreu toda a Índia, dedicando-se sobretudo às discussões filosóficas com quaisquer
representantes, dentre as diversas escolas de pensamento da Índia de sua época, que
aceitassem seu desafio.
3
também um comentário vedantino à Çvet
T
çvatara-upani
L
ad (claramente pertencente à doutrina dualista do
S
TR
khya), cuja autoria é atribuída a Çaìkara pela maioria dos estudiosos – atribuição que, porém, ainda desperta
controvérsias, por não ter sido referida nas fontes sânscritas posteriores dedicadas à consolidação de sua obra.
Acrescentemos ainda um texto recentemente descoberto e que tem sido aceito pela maioria dos estudiosos como
uma obra inédita de Çaìkara, também despertando controvérsias: trata-se de um comentário ao importante Yoga-
s
X
tra de Patañjali (séc. IV-II a.C.), o tratado fundamental do Yoga-darçana.
15
Os debates públicos em torno de temas religiosos ou filosóficos eram um traço
proeminente da cultura da Índia clássica: dois ou mais oponentes enfrentavam-se diante do
público, cada qual tentando, por meio de argumentos lógicos ou baseados nas escrituras,
defender o ponto de vista de sua escola acerca do tema proposto contra os ataques e
questionamentos dos oponentes, ao mesmo tempo em que deveria tentar derrubar os axiomas
e princípios das escolas rivais. A escola representada pelo vencedor do debate geralmente
aumentava seu prestígio e o número de seus adeptos na região onde o debate ocorrera. Ecos
desses "torneios filosóficos" repercutem em toda a literatura sânscrita dedicada à formulação
de sistemas de explicação da realidade um campo discursivo que, em nossa cultura de
chegada, podemos associar à filosofia, no sentido abrangente do termo, mas também a
especulações que nos remetem à teologia, à psicologia e às relações entre linguagem e
pensamento.
Nos comentários sânscritos dedicados aos textos canônicos de cada escola, o caráter
necessariamente dialógico dessa modalidade discursiva é evidenciado de várias formas. No
caso dos textos de Çaìkara dedicados a comentar as escrituras, um dialogismo mostrado,
representado pela reprodução, no decorrer de toda a argumentação e exposição da teoria, de
supostas questões levantadas por discípulos, bem como de objeções de oponentes, seguidas
pela formulação de respostas adequadas e consideradas capazes de provar a correção do
sistema defendido e apontar as falhas no raciocínio dos rivais, tudo redigido sob a forma de
um discurso direto "hipotético" formulado com base nas discussões que ocorriam nos debates
orais ou seja, um recurso de manipulação e de criação de efeitos de sentido de veracidade
(pois aqui se trata de um texto escrito) de que Çaìkara fez uso com muita habilidade.
No plano do discurso oral de sua época, sabemos que Çaìkara viajou por toda a Índia e
foi um debatedor formidável, capaz de vencer os argumentos opositores e angariar seguidores
por todas as regiões em que atuou. Assim estabeleceu uma influência duradoura e frutífera de
sua doutrina, o Advaita-ved
T
nta, no desenvolvimento do Hinduísmo em todos os séculos
seguintes, até o presente. Foi também esse jovem asceta que, ao reestruturar a ordem
monástica dos swamis (em sânscrito, sv
T
min) ou monges hinduístas, fundou quatro matha ou
centros monásticos de estudo de sua doutrina que existem até hoje, nos quatro cantos da Índia:
Mysore no sul, Puri no leste, Dwarka no oeste, e Badrinath, no Himalaya, ao norte. No
presente, o representante máximo da ordem monástica dos swamis é o 65º Çaìkara (numa
linhagem ou sucessão discipular que remonta ao “primeiro preceptor Çaìkara”, Ädi-
çaìkaräcärya, o "objeto" de nossa pesquisa). Tudo isso fez Çaìkara antes de desaparecer,
como contam os textos (seu corpo nunca foi encontrado), com a idade de 32 anos.
16
d) Plano da tese
Nosso propósito com esta tese é demonstrar o percurso semiótico de construção
conceitual, no discurso de Çaìkara, de um objeto de valor modal, o Brahman ou Absoluto
“sem-segundo”, e algumas das mais significativas projeções de tal conceito sobre os valores e
formulações anteriores da cultura projeções essas ressignificadas pela nova doutrina
“integradora”, o Advaita-vedänta. Nesse percurso acompanharemos as peripécias de Çaìkara
para transformar os diversos discursos de autoridade de sua herança cultural, por vezes
aparentemente contraditórios entre si, em peças de um quebra-cabeças por ele elucidado e
transformado num sistema coeso e coerente de explicação da realidade sob um ponto de vista
monista e integrador.
O número de textos atribuídos a Çaìkara, como já comentamos anteriormente, é
considerável, e inclui, além dos comentários a obras canônicas, muitos tratados independentes
e uma série de hinos devocionais a várias divindades. Selecionamos os trechos cujas análises
faremos aqui em meio a um corpus bastante extenso. O critério para a seleção dos textos nos
foi primeiramente indicado pelo próprio Çaìkara: trata-se sobretudo do conjunto de textos por
ele denominados prasthäna-traya (o “tríplice método/caminho”), o conjunto de escrituras
canônicas consideradas fundamentais ao Hinduísmo: dez dentre as Upaniñad mais antigas,
anexadas aos Veda; a Bhagavad-gétä e o tratado Brahma-sütra. No decorrer da análise,
porém, tivemos a necessidade imperiosa de recorrer à citação de alguns axiomas de um de
seus tratados independentes ou prakaraëa-grantha (“tratado de discussão”), o Viveka-cüdä-
maëi (“Jóia pura do conhecimento”), devido ao fato de que somente este trazia uma exposição
sistemática e sucinta de alguns dos “detalhes” do sistema Advaita necessários naquele
momento.
Com relação aos comentários às escrituras e ao pequeno tratado Viveka-cüdä-maëi,
existe a certeza da autoria de Çaìkara, além do fato de serem textos considerados fundadores
do sistema Advaita-vedänta, por conterem a articulação exaustiva de todos os seus principais
elementos teóricos. Como tipologia textual, nossos textos em análise, à exceção do Viveka-
cüdä-maëi, inserem-se na categoria dos “comentários” (bhäñya), uma classe extensa de textos
produzidos a partir do período clássico para elucidar, de forma escrita, saberes culturais antes
sintetizados sob forma oral nas escrituras védicas e nos textos elaborados mnemonicamente
sob a forma de sütra (enunciados concisos como fórmulas). Assim, a princípio, tal foi o
conjunto de obras selecionado para cotejamento e seleção de trechos para análise:
1 - Brahma-sütra-bhäñya (comentário ao tratado do Vedänta-darçana, o Brahma-sütra);
2 - Bhagavad-gétä-bhäñya (comentário ao célebre poema do Mahä-bhärata);
17
3 - Bhäñya (comentários) às dez seguintes Upaniñad: Éça; Aitareya; Kaöha; Kena; Taittiréya;
Praçna; Chändogya;Båhad-äraëyaka; Mäëòükya; Muëòaka.
4 – Viveka-cüdä-maëi (tratado independente com os princípios do Advaita).
O trabalho está organizado em duas partes. A primeira, intitulada “A revelação do
Um”, é dedicada à formulação do conceito de ätman/Brahman como Um absoluto, partindo
do testemunho das escrituras que constituem o “fim dos Veda(Vedänta) e passando pelos
comentários de Çaìkara aos trechos mais significativos. É claro que essa primeira parte inclui
também necessárias digressões à herança cultural de Çaìkara, para que seus pressupostos se
tornem compreensíveis no decorrer da análise. A segunda parte da tese dedica-se a analisar as
explicações dadas por Çaìkara ao mundo manifesto necessariamente percebido como dual e
também como múltiplo a partir desse Um ou Absoluto, bem como as questões intertextuais
representadas pelas discussões e debates conduzidos contra outras doutrinas e aqui
privilegiaremos sua polêmica com os ritualistas bramânicos e com as escolas “irmãs” do
Säàkhya-yoga-darçana, as quais, refutações à parte, também contribuíram com muitos de
seus elementos para a literatura canônica de algumas Upaniñad e da Bhagavad-gétä, e por isso
tiveram esses elementos eventualmente ressignificados e assimilados pelo Advaita. Intitulada
“Os percursos do dois”, essa parte da tese contém a reprodução de excertos e análise de
comentários de Çaìkara, não só das Upaniñad, como também da Bhagavad-gétä e do Brahma-
sütra, além de alguns axiomas mais sistemáticos de seu tratado, o Viveka-cüdä-maëi.
Nossa intenção ao elaborar a tese sob tal estrutura é a de primeiramente reproduzir, no
número de partes componentes e na progressão dos textos sânscritos e conteúdos que
englobam, a mesma ordem delineada pelo próprio Çaìkara em seu percurso monista:
Revelação do Um no testemunho das escrituras Justificativa intelectual do conteúdo da
revelação Análise do universo múltiplo e todos para a auto-revelação dos seres nele
inseridos Auto-revelação (sendo esse último passo parte de um percurso iniciático).
Sob a perspectiva do referencial teórico e metodológico de nossa abordagem,
aplicaremos elementos da Teoria do Discurso, sobretudo aqueles que descrevem a articulação
lógica do nível fundamental de significação (ou análise do discurso segundo os princípios da
chamada escola francesa da Semiótica), mas também apontando algumas das estratégias
discursivas presentes no nível argumentativo do texto de Çaìkara. Finalmente, aplicaremos as
noções de intertextualidade na observação das citações e referências de Çaìkara às doutrinas
do Säàkhya-yoga-darçana e ao ponto de vista teísta dos ritualistas de sua época.
18
PARTE I
A REVELAÇÃO DO UM
19
1.1– VENERÁVEIS VOZES DO PASSADO
1.1.1 – Herança ritualística, herança especulativa
A fim de melhor compreender o universo discursivo herdado por Çaìkara, em torno
do qual ele elaborará seu ponto de vista, precisamos fazer uma exposição, ainda que de forma
sucinta, do conteúdo dos textos canônicos fundamentais de sua cultura.
Os documentos mais antigos da literatura sânscrita são quatro coletâneas de hinos
ritualísticos às divindades, preces e encantamentos, compostos em torno de XX-X a.C., e
intitulados Veda (“saber revelado”): Åg-veda, Yajur-veda, Säma-veda e Atharva-veda.
Desde a época de sua composição até os tempos de Çaìkara, a classe detentora da
palavra ritual, e portanto herdeira e manipuladora exclusiva dos hinos e fórmulas ritualísticas
contidos nos quatro Veda, era a casta sacerdotal dos brähma
J
a (os “brâmanes”), termo
sânscrito secundário, derivado de brahman, que designava nesse contexto védico a palavra
ritualística do sacerdote, dotada de poder cosmológico, e portanto oposta ao falar cotidiano.
O sacerdote era, portanto, aquele que manipulava o brahman, a palavra dotada de poder
criador.
No âmbito do rito védico onde tais hinos eram enunciados, algumas características
tipológicas eram comuns. Geralmente temos um enunciador (um ou vários brähma
J
a
ritualistas), dirigindo-se quase sempre a uma divindade. A partir da enunciação de tais textos
no âmbito dos ritos védicos seqüências de procedimentos litúrgicos, cantos, recitações e
libações ao fogo em altares consagrados –, acrescentavam-se projeções simbólicas que
associavam o rito realizado à manutenção da ordem (åta) no âmbito da sociedade humana e
do cosmo. A manipulação da divindade pelo ritualista védico não provinha de uma relação
de submissão do último às divindades evocadas. Ao contrário, os sacerdotes brähmaëa
presentificavam o sagrado durante cada rito ao repetir, por meio de uma seqüência correta de
comportamentos em torno dos altares e do uso correto da linguagem, o rito primordial,
arquetípico, com o qual os deuses, ab initio, haviam inaugurado no cosmo recém-criado o
fenômeno que ali se pretendia reproduzir. Assim, os favores das divindades não provinham
de súplicas submissas; ao contrário, eram automaticamente produzidos ou obtidos por meio
da correção e exatidão na execução dos pormenores litúrgicos e na recitação dos cânticos,
como atestam estas estrofes do hino do Åg-Veda, V, 44:
20
À maneira antiga, primitiva, absoluta, atual, [ordenho] este
[deus, Indra], o primogênito [dos deuses], sentado na liteira ritual,
condutor da luz celeste. Eu [o] ordenho por meio da palavra, [para
que] se volte a favor de nosso grupo, [este deus] rápido, conquistador,
do qual tiro meu vigor. (1)
[...]
Iniciada a competição, [as palavras do poeta] avançam para o
rumor imponente dos poetas [de outrora], [palavras] entre as quais
está o teu nome [, ó Agni]. Aquele em cuja casa [a palavra] foi
deposta, ela a ele se abre graças à sua atividade. E aquele que a
conduz [como a uma esposa], ele dará [ao seu discurso] boa
forma.(8)
4
O valor principal do rito védico era o instrumento, o meio pelo qual era realizado, e
que era potencialmente virtuoso em si mesmo: a linguagem. Não qualquer linguagem, não a
fala comum, e sim a fala sagrada, imbuída de métrica, entoação e sonoridade adequadas, a
palavra saàskåta (“bem feita, bem elaborada”), acrescida de metáforas e símbolos, no plano
figurativo, considerados adequados ao contexto e capazes de promover a manipulação das
forças cósmicas. À parte as demais complexidades litúrgicas, o elemento mais relevante do
rito védico era então a linguagem.
O termo brahman aparecia nesse contexto ritualístico (circa XX-XV a.C.) como
uma das mais importantes expressões do poder suscitado pela correta recitação desses hinos.
A palavra correta era, no contexto védico, considerada como reveladora da essência das
coisas. A imposição do nome (n
T
ma-dheya) às coisas revestia de poder as palavras
resultantes: o nome, enquanto matéria concreta, engendrava as funções do objeto que
denotava. Observemos a articulação desse ponto de vista em outro trecho, agora do hino do
Åg-Veda, V, 71:
Ó Båhaspati, tal foi a gênese da palavra: os sábios, olhando à
volta, nomes deram [às coisas]. Por obra de sua devoção, revelaram-
se, [das coisas,] o cerne, o mérito, o segredo. (1)
Os sábios, purificando [o pensamento,] como à farinha, por
meio do crivo, as palavras criaram, graças à inspiração [...] (2)
Aos hinos dos Veda não era atribuída origem humana: constituíam revelações divinas
ouvidas (çruti) pelos sábios-poetas (åñi) que, pelo poder da inspiração e do “tremor” oratório,
haviam posto em movimento o poema. Observemos esses elementos em algumas estrofes do
hino do
A
g-Veda, X, 125, no qual a própria palavra fala de si:
4
Todas as traduções de hinos védicos e de textos Brähmaëa apresentadas neste capítulo são inéditas e de autoria
de Mário Ferreira.
21
Eu caminho com os Rudra, com os Vasu, eu caminho com os
Aditya e com Todos-os-deuses. Eu sustento a Varuëa e a Mitra, e a
Indra e a Agni, eu sustento os dois Açvin. (1)
Eu sou a rainha, aquela que reúne os tesouros, aquela que
confere a inteligência; entre os beneficiários do rito, a primeira. Os
deuses me depuseram em todos os lugares, eu tenho muitos
domicílios, eu estou em toda parte. (3)
Sou eu quem anuncia o que agrada aos deuses e aos homens.
Aquele a quem amo, a esse torno poderoso, dele faço um portador das
fórmulas, um ritualista, um dono do saber. (5)
Sou eu quem gera o Pai no cume deste [mundo]. Minha origem
está nas águas, no oceano. Daí me propaguei por todos os seres, e toco
o céu com o topo [de minha cabeça]. (7)
Sou eu quem sopra com o vento, apropriando-se de tudo que
vive. Para além do céu, para além da terra, tal é a minha grandeza. (8)
Esse hino sintetiza a visão védica ritualística da palavra sagrada, a palavra do rito.
Conforme essa ideologia, aquele que possui a chave interpretativa do saber poético é capaz
de enunciar palavras plenas de poder e verdade. Mas a palavra tem moradas em toda parte, o
que significa que pode se manifestar em outros falares, em outros níveis de enunciação,
muito embora sejam esses falares desprovidos do poder de brahman, da palavra ritual. Nos
dois últimos versos evidencia-se o caráter absoluto da palavra do sacerdote, revestida de
poder: ela permeia todo o cosmo conhecível, e conseqüentemente é o instrumento principal
do rito, o que permite a criação poética, o que confere ao ritualista o poder persuasivo e as
bênçãos dos deuses, e que mantém a ordem do universo.
A relevância da memorização e repetição corretas dos hinos originais dos Veda para
a eficácia do rito, habilidade para cuja obtenção jovens brähma
J
a dedicavam anos de
treinamento aos pés de um mestre, acabou por direcionar sobremaneira a ênfase aos estudos
lingüísticos empreendidos a partir de então. Dentre os seis conjuntos de textos produzidos
por essa classe sacerdotal a partir do corpus védico, e intitulados em conjunto Vedäìga
(“membros auxiliares dos Veda”), quatro abordavam aspectos lingüísticos, enquanto os
outros dois envolviam astronomia (jyoti
L
a) e cerimonialística (kalpa).
A relevância do aspecto lingüístico como estudo direcionado ao ritualista deu-se
justamente em virtude da extrema importância da palavra e da linguagem no contexto
védico; fazia-se essencial não apenas a repetição correta dos hinos quanto à pronúncia, ritmo
e entoação, como também a correta compreensão do conteúdo de suas palavras e das
múltiplas acepções de suas metáforas. Desse conhecimento por parte do ritualista dependia o
sucesso do ritual, o favorecimento dos deuses, e a passagem, realizada pelo poeta, da
22
linguagem comum dos homens para o brahman, a fala carregada de poder e verdade do
âmbito sagrado. Dessa forma, os estudos lingüísticos empreendidos a partir dessa postura
ideológica diante da linguagem constituíram-se sobre quatro saberes: a fonética e a fonologia
(çikñä , “disciplina”), a etimologia ou semântica (nirukta, lit. “explicitado”), a gramática
(vyäkaraëa) e a métrica (chandas). Esses estudos, realizados ao longo de séculos, somados
às teorias estéticas e textuais do período clássico, constituem majoritariamente o objeto de
pesquisa da historiografia da lingüística voltada às teorias da linguagem na Índia Antiga.
Por outro lado temos também, muito provavelmente a partir dos séculos X-IX a.C., o
início de um processo de reunião dos extensos comentários de autoria bramânica relativos ao
ritualismo védico e entremeados de justificativas ticas e tautológicas para os
procedimentos litúrgicos dos sacerdotes no decorrer dos ritos aos deuses. Tais textos,
compilados séculos depois sob o título coletivo de Brähmaëa, seguindo a tradição védica,
eram memorizados e transmitidos oralmente por gerações de sacerdotes aos seus aprendizes,
e assim chegaram a nós. Tais textos, por seu caráter instrutivo com relação aos
procedimentos ritualísticos e interpretativo com relação ao conteúdo, por vezes metafórico e
simbólico, dos hinos dos Veda, foram anexados a estes últimos e, com o decorrer dos
séculos, passaram a complementar as quatro coletâneas védicas mais antigas.
Verifiquemos uma amostragem do conteúdo desses textos:
O agnihotra {= rito de oferenda ao fogo, realizado
quotidianamente, no início do dia e no início da noite} é, sem dúvida
alguma, o sol, pois o sol se ergue ao comando do rito. Deveras, é por
isso que se diz: “O agnihotra é o sol.”
Quando [o ritualista] realiza o agnihotra, no crepúsculo após o
ocaso, ele diz: “Farei a oblação enquanto ele está lá, ele que é a
própria oblação!”, e quando ele realiza o agnihotra, pela manhã, antes
que o sol se levante, ele diz: “Farei a oblação enquanto ele está lá, ele
que é a própria oblação!”
Tal um embrião que se aninha no útero, o sol, quando se
levanta, instala-se no fogo; e no momento em que ele assim se torna
um embrião, todas as criaturas se tornam embriões; com efeito,
adormecidas, elas jazem como que em gestação.
E se a noite oculta o sol, é porque os embriões são, da mesma
forma, ocultados pelo ventre materno.
Quando faz a oblação à noite, quando o sol está deitado, ele o
faz em benefício do sol, que se tornou um embrião, ele o faz para dar
vida ao embrião. E porque se vida ao embrião fazendo a oblação,
os embriões na terra não precisam de alimento para viver.
E quando faz a oblação de manhã, antes que o sol se levante,
ele gera o sol, o qual se transforma em luz e, resplandescente, se
23
levanta. Pois o sol não se levantaria mais se [o ritualista] deixasse de
oferecer essa oblação; eis por que ele oferece esta oblação.
Assim como uma serpente deixa sua pele na época da muda, da
mesma forma o sol, de manhã, se liberta da noite, do mal.
E, certamente, assim como uma serpente deixa sua pele, na
época da muda, da mesma forma o ritualista se liberta do mal, ele que,
sabedor disso, realiza o agnihotra no tempo correto.
Após o nascimento do sol, as criaturas aqui na terra como que
renascem, tornando-se livres, de acordo com as regras que as regem.
(Çata-patha-brähmaëa, II, 3, 1-6)
O ano, sem qualquer vida, é o mesmo que a morte, pois o
Pai Tempo é aquele que, por meio do dia e da noite, destrói a vida dos
seres mortais, e então estes morrem; portanto, o ano é o mesmo que a
morte, e quem souber que esse ano é a morte não tem sua vida
destruída nesse ano, nem pelo dia e nem pela noite, antes da velhice,
atingindo toda a duração normal de vida.
Sem dúvida ele é o Terminador, pois é quem, pelo dia e pela
noite, atinge o fim da vida dos mortais, e então estes morrem;
portanto, ele é o Terminador, e quem conhecer esse ano, a morte, o
Terminador, não terá sua vida terminada nesse ano, nem pelo dia e
nem pela noite, antes da velhice, atingindo toda a duração normal de
vida.
Os deuses tinham medo desse Prajäpati, o ano, a morte, o
Terminador, receando que ele, pelo dia e pela noite, atingisse o final
de suas vidas.
Eles executaram estes ritos sacrificiais o Agnihotra, os
sacrifícios da Lua Nova e Lua Cheia, as oferendas das estações, o
sacrifício de animais e o sacrifício-Soma; fazendo essas oferendas eles
não conseguiram a imortalidade.
Construíram também um altar de fogo, dispondo inúmeras
pedras de encerramento, inúmeros tijolos de yajusmati, inúmeros
tijolos de lokampriëa, como alguns dispõem até hoje, dizendo: “Os
deuses fizeram assim.” Eles não conseguiram a imortalidade.
Continuaram a louvar e trabalhar, esforçando-se por conquistar
a imortalidade. Prajäpati disse-lhes então: “Vós não dispondes todas
as minhas formas, mas fazeis-me ou grande demais, ou deixais-me
defeituoso; por isso vós não vos tornais imortais.”
Eles disseram: “Dize-nos tu mesmo, então, de que modo
podemos dispor todas as tuas formas!”
Ele respondeu: “Disponde trezentas e sessenta pedras de
encerramento, trezentos e sessenta tijolos de yajusmati e trinta e seis,
outrossim; e de tijolos de lokampriëa disponde dez mil e oitocentos; e
vós estareis dispondo todas as minhas formas e vos tornareis
imortais.” E os deuses dispuseram conforme dito, e daí em diante se
tornaram imortais.
A morte disse aos deuses: “Certamente com isso todos os
homens se tornarão imortais, e que parte então será a minha?” Eles
responderam: “Doravante ninguém será imortal com o corpo; somente
quando tiveres tomado esse corpo como tua parte, aquele que deverá
24
se tornar imortal, seja pelo conhecimento ou pela obra sagrada, se
tornará imortal depois de separar-se do corpo.” Ora, quando eles
disseram “seja pelo conhecimento ou pela obra sagrada”, é o altar de
fogo que constitui o conhecimento e esse altar é a obra sagrada.
E aqueles que sabem disso, ou aqueles que fazem essa obra
sagrada, voltam à vida novamente quando morrem e, voltando à vida,
chegam à vida imortal. Mas os que não sabem disso, ou não executam
essa obra sagrada, voltam à vida novamente quando morrem, e
tornam-se o alimento da morte repetidamente.
(Çata-patha-brähmaëa, 10.4, 3)
Podemos observar nesses textos a presença constante da justificativa mítica para os
atos ritualísticos. Como discurso de autoridade, o mito auxiliava na descrição e fixação dos
pormenores dos procedimentos litúrgicos dos ritos. Ao lado de alguns hinos mais tardios do
Atharva-veda, essas instruções litúrgicas e relatos míticos constituem os mais antigos textos
em prosa de que dispomos na literatura sânscrita. E podemos notamos que tal prosa, quando
não narrativa, apresenta ainda uma argumentação circular, tautológica, auto-referente.
Coletânea didática elaborada por e para sacerdotes da tradição bramânica, o conjunto
dos textos Brähmaëa foi posteriormente distribuído entre as quatro coletâneas iniciais de
hinos védicos, possivelmente já no início do período épico-bramânico, como segunda parte do
conteúdo de cada Veda. Tecnicamente intitulada karma-käëòa (lit. “porção/divisão [dos
Veda] dos atos [ritualísticos]”), essa continuidade dos Veda recebeu ainda mais um acréscimo
ou porção final, representada pelos textos Araëyaka (lit., “florestal”) e por doze Upaniñad
(lit., “[ensinamento relativo à] aproximação”). Dessa forma, a composição final dos quatro
Veda(s), possivelmente já fixada antes do final do período épico-bramânico (circa I d.C.), e
vigente até o presente, é a que se segue:
Veda
brT
TT
ThmaJ
JJ
Ja anexo T
TT
TraJ
JJ
Jyaka anexo upaniL
LL
Lad anexa
Ag-veda
Aitareya-brähmaëa;
KauLVtaki-brähmaëa.
(p/ uso do sacerdote hotB - o
recitador)
Aitareya;
KauLVtaki
Aitareya;
KauLVtaki
Yajur-veda
(livro
branco)
Çatapatha-brähmaëa
(p/ uso do sacerdote adhvaryu –
o que faz as preces)
BBhadTraJyaka BBhad-TraJyaka
Yajur-veda
(livro negro)
TaittirVya-brähmaëa
(p/ uso do sacerdote adhvaryu –
o que faz as preces)
TaittirVya TaittirVya; KaFha;
ÇvetTçvatara;
MahT-nTrTyaJa.
25
STma-veda
PaïcaviRça-brähmaëa; alguns
textos do VedTnga;
JaiminVya-brähmaëa.
(p/ uso do sacerdote
udgTtB - o cantor)
TraJyaka-
saRhitT;
TraJyagTna-
äraëyaka.
ChTndogya;
Kena.
Atharva-
veda
Gopatha-brähmaëa. ____________
MuJHaka; Praçna
MTndXkya
Porém, ao lado do ritualismo védico, desenvolviam-se em solo indiano algumas
posturas teóricas e ideológicas contrastantes, e os primeiros documentos que registraram tais
posturas (ao menos dentre os que chegaram até o presente) são os textos intitulados em
conjunto Upani
L
ad. A composição das doze principais Upani
L
ad, produzidas por volta de
800-500 a.C., inaugura aquele que denominamos o período épico-bramânico da cultura
sânscrita.
Os textos das Upaniñad passaram a ser conhecidos na tradição sânscrita como jïäna-
käëòa (lit. “porção/divisão [dos Veda] do conhecimento/sabedoria”) por sua temática bastante
distinta da das injunções ritualísticas contidas nos textos Brähmaëa, ou karma-käëòa. Mas
foi, na verdade, uma outra denominação dada às Upaniñad a que se tornou a mais conhecida
até o presente: Vedänta (Veda + anta = “fim/porção final dos Veda”).
Em relação ao seu contexto de produção, as Upaniñad foram concebidas em meios
não-urbanos. Nas cidades e aldeias, a organização social trifuncional das classes
pertencentes ao “povo ärya e a condição subalterna dos an-ärya (“não-ärya”, os povos
autóctones e seus descendentes) eram fatores fundamentais de organização e manutenção da
ordem, assim como o ritualismo védico era fator fundamental na perpetuação ideológica. No
campo e nas florestas, núcleos organizados de forma diversa da das cidades e visando outros
objetivos, a importância da pertença étnica ou ideológica ao povo ärya foi minimizada, e o
contato com as populações autóctones, bem como as trocas culturais daí advindas,
intensificado.
Os textos das Upaniñad, em suas características comuns, refletem as peculiaridades
desse contexto. São textos dialógicos nos quais figuram um ou mais aprendizes em torno da
audição do discurso de um mestre, um sábio, um guru: alguém que possui um conhecimento
não necessariamente compartilhado pelos sacerdotes, e que podemos aqui sintetizar na
expressão “conhecimento da natureza do Absoluto”. Aquele a quem o discurso do mestre se
dirige não é mais uma divindade, como no caso da maioria dos hinos védicos, nem
26
necessariamente um estudante brâmane, como nos textos Brähmaëa. Ao contrário, pode ser
um kñatriya (guerreiro), um vaiçya (produtor), ou um çudra (um servo, an-ärya). Os critérios
para a aquisição do conhecimento veiculado pelas Upaniñad também não estão rigidamente
relacionados a qualificações de classe ou etnia, mas sobretudo a qualificações psicológicas
por parte do inquisidor. A relação mestre-discípulo, ou guru-çi
L
ya, é o paradigma sobre o
qual se constroem esses diálogos acerca de conceitos que apontam para uma ressignificação
de termos como brahman. Por essa razão, o substantivo feminino Upani
L
ad pode ser
interpretado em dois sentidos:
1. “(ensinamento) obtido pela aproximação” (upa+ni+SAD = aproximar-se, sentar-
se próximo a alguém”). Ou seja, a aproximação respeitosa do discípulo em face do mentor.
2. “(ensinamento) relativo às aproximações” entre macrocosmo e microcosmo, ou
entre Brahman e ätman, o Absoluto e o si-mesmo.
Os textos das Upaniñad, provavelmente resultantes de uma influência ideológica das
populações autóctones, colocam o poder da palavra, exaltado nos Veda, em xeque. Nesses
textos observamos que o conceito até então engendrado pelo termo brahman sofre
significativas alterações. Brahman não mais designa a palavra ritual dotada de poder
cosmogônico, e sim o substrato último da existência, inexprimível e inalcançável pelo
pensamento lógico e pela linguagem por ele articulada. Assim afirmam as Upaniñad:
De fato aquilo que é conhecido como Ak
TL
a [espaço] é
constituído de nome e forma. Aquilo que está além de ambos [nome e
forma] é Brahman; é imortal; é a Alma Universal...[...]
(Ch
T
ndogya-upani
L
ad, 8.14.1, in GAMBHÉRÄNANDA, 1997,
p. 667-668)
A visão não chega lá, nem a fala, nem a mente; não sabemos,
não compreendemos como se possa ensiná-lo.
(Kena-upani
L
ad, 1.3, in GAMBHÉRÄNANDA, 2002, p. 48)
Passagens semelhantes se repetem em outras Upani
L
ad, estabelecendo Brahman
como um conceito além da linguagem e da mente:
“Ele [o Brahman] não pode ser obtido pela fala, nem pela
mente, nem pelo olho” (Kaöha-upaniñad, 2.3.12, ibid., p. 225-226)
“Ele [o Brahman] não é percebido pelo olho, nem pela fala,
nem pelos outros sentidos, nem pela austeridade [devoção], nem pela
ação [pelos ritos].” (Muëòaka-upaniñad, 3.1.8, ibid., p. 148)
27
A teoria que se apresenta como conteúdo básico das Upani
L
ad pode assim ser
resumida:
1. O homem comum (as distinções de casta não têm aqui nenhuma relevância) é
dotado de uma espécie de “ignorância original”: desconhece sua identidade com Brahman,
ou seja, desconhece que sua essência ou espírito individual, seu “si-mesmo” (ätman), é da
natureza de Brahman, absoluto e imortal. A ignorância prende o homem à roda eterna de
nascimentos e mortes condicionados (o saàsära). A vontade, inerente a todo ser humano, de
buscar o saber, leva-o a especular acerca de Brahman, a “realidade última das coisas”, e a
buscar esse conhecimento na condição de discípulo de um mestre (um guru que tenha
alcançado Brahman);
2. Para alcançar o conhecimento de Brahman o homem precisa passar por uma
evolução cognitiva e vivencial. Para tal intento, é necessário que compreenda Brahman,
procurando, para isso, libertar-se das categorias dualistas e relativizadas do pensamento
comum, e que vivencie sua identidade com Brahman, através das práticas meditativas e
psicofísicas do Yoga.
Como podemos perceber, um grande passo cultural foi dado dos primeiros textos
ritualísticos até o universo especulativo das Upaniñad. E é a partir desses textos e de seu
conteúdo temático – não obstante a constante presença dos ritos, dos deuses e de seus
sacerdotes que Çaìkara inicia sua “missão”: a de esclarecer aos homens o fundamento e o
propósito de sua existência, com base na revelação trazida pelas escrituras do Vedänta, as
Upaniñad.
28
1.1.2 – Herança “ouvida”, herança “lembrada”
A tradição sânscrita posterior estabeleceu uma oposição fundamental entre duas
categorias de textos relativos às suas especulações:
1 – os textos de revelação, ou çruti (“o [que foi] ouvido”): aqueles textos cujo
conteúdo não é considerado obra de mentes humanas, e sim revelação, oriunda de um
substrato atemporal da existência (o sagrado), e dirigida aos sábios e videntes do passado que
ouviram (ou seja, receberam por inspiração divina) seus conteúdos e assim os expressaram, da
melhor forma possível, no plano da linguagem humana. Os Veda, compreendidos como o
conjunto de textos relacionados no quadro anterior, são çruti, e como tal sua autoridade sobre
a verdade não pode e não é contestada por nenhum hindu.
2 – os textos de compreensão/interpretação, ou småti (“o [que foi] lembrado,
memória”): esses sim são obra da reflexão de homens sábios sobre as revelações dos Veda e
sobre os ideais de conduta religiosa e social, e estabelecem as diretrizes das práticas sociais e
os cânones da herança mítico-religiosa multifacetada do Hinduísmo. Tais textos
compreendem, na tradição sânscrita:
a) os dharma-çästra, ou tratados sobre a Lei, dentre os quais o mais célebre é o
Mänava-dharma-çästra, ou código de leis de Manu;
b) os itihäsa ou relatos épicos, representados por dois grandes poemas, o Rämäyana e
o Mahä-bhärata, sendo que este último (o maior poema épico do mundo) contém a célebre
Bhagavad-gétä;
c) as coletâneas de vários volumes que compendiam os mitos, instruções de culto e
práticas populares, os Puräëa (são dezoito os principais Puräëa);
d) os manuais de culto e adoração de aspectos específicos da divindade ou ägama, os quais
correspondem aos três principais ramos do Hinduísmo: Vaiñëavägama (culto a Viñëu),
Çaivägama (culto a Çiva) e Çaktägama (culto a Devé).
e) os seis darçana ou “pontos de vista” do Hinduismo ortodoxo referidos escolas
de pensamento envolvendo cosmologia, lógica e investigações acerca da filosofia da
linguagem, dos estados de consciência do homem, e do complexo Brahman-ätman tematizado
nas Upaniñad.
À época de Çaìkara (788-820 d.C.), não apenas todo esse cânone do Hinduísmo já
estava firmemente estabelecido, como também um número expressivo de escolas de
pensamento, baseadas ou não nesse cânone, circulava por toda a Índia. Além disso o
Jainismo, tradição heterodoxa de provável origem autóctone existente até o presente, e que
29
envolve práticas psicofísicas, vegetarianismo e ascetismo, estava integrado à sociedade hindu,
como também o Budismo havia traçado sua história de surgimento, ascensão, partição em
diversas escolas e declínio em solo indiano, restando, nos tempos de Çaìkara, apenas alguns
bolsões regionais de seguidores do Budismo em território indiano. Juntamente com as escolas
devocionais dedicadas ao culto da deusa-mãe (tradição influenciada pelo movimento do
Tantrismo e mais proeminente na região das costas leste e sul da Índia) e outras dedicadas ao
culto do avatara-pastor Kåñëa personagem divino que remonta ao poema épico Mahä-
bhärata (?400 a.C.-400 d.C.) e cujo culto predomina da porção centro-norte da Índia –, o
subcontinente indiano do período imediatamente subseqüente ao clássico (cujo auge fora o
poderoso império da dinastia Gupta, de 320 a 540 d.C.) fervilhava de práticas místicas e
mágicas e seitas das mais diversas espécies, ao lado de uma ortodoxia bramânica elitista e
erudita que insistia no poder do ritualismo e das preces sânscritas védicas dos textos de
revelação, interpretando a temática instaurada pelas Upaniñad de forma a defender as ações
rituais sobre todas as demais práticas religiosas.
Possivelmente, ao lado do próprio esforço bramânico pela continuidade de sua
tradição e força ideológica, uma outra importante razão para a permanência do prestígio
inicial do ritualismo védico repousava nos próprios textos das Upaniñad. Isso porque, muito
embora fosse ali “inaugurado” um novo objeto conceitual que estava destinado a fazer história
no pensamento indiano o “par-unidade” Brahman/ätman , os textos das Upaniñad
evitavam um embate explícito com a tradição ritualística e mítica.
Por sua vez, a elaboração bramânica de idéias e procedimentos em torno do mito e do
rito, preservada e mantida por gerações de sacerdotes e condensada para a posteridade
sobretudo sob a forma da coletânea de textos Bräùmana, chegou ao tempo de Çaìkara
acrescida de tratados dedicados aos pormenores litúrgicos e representada por diversas escolas
ritualísticas e famílias sacerdotais encarregadas de sua continuidade. Na verdade, até o
presente permanecem muitos dos ritos védicos desse passado da cultura.
Lembremo-nos que essa tradição ritualística, por si só, representava então um dos seis
darçana ou “pontos de vista” acerca da realidade aceitos pelo Hinduísmo ortodoxo: o Pürva-
mémäàsä-darçana (“ponto de vista do exame inicial/anterior”), ou simplesmente Mémäàsä
(“questionamento, exame, investigação”), representado pelo tratado de exegese de autoria de
Jaimini (circa II a.C.). Os adeptos da escola Mémäàsä defendiam o antigo ritualismo
bramânico, incluindo os estudos lingüísticos do sânscrito, a correta recitação dos hinos dos
quatro Veda, os altares consagrados, as abluções ao fogo, os sacrifícios sazonais e preces aos
30
deuses e todos os demais elementos simbólicos, como sendo veículos diretos da salvação do
homem.
Por tudo isso, não obstante a distância ou até mesmo contradição conceitual
inaugurada pelas Upaniñad com relação ao termo brahman de palavra imbuída do poder
sagrado do rito a totalidade inominável, “lá onde as palavras não chegam” , a intermediação
simbólica dos ritos e preces era ainda considerada um meio completo de salvação, eficaz por
si mesmo.
Tal foi a herança e matéria-prima das construções de Çaìkara. Mas de todo esse
cenário complexo e multifacetado, representado ora pelo cânone sagrado, ora pelas escolas de
pensamento de expressão sânscrita, e finalmente por inúmeras práticas populares regionais e
tribais, o pensador tomou como seu intertexto fundamental apenas um seleto grupo de
referências.
Acima de tudo, Çaìkara privilegiou os textos por ele considerados como o ápice da
revelação divina: as Upaniñad.
5
Tais textos, cuja autoridade seria incontestável, instauraram o
objeto de valor modal de seu discurso (o par-unidade Brahman/ätman), e o cerne de sua
argumentação seria provar que sua interpretação da mensagem das Upaniñad era a correta.
Em segundo lugar, Çaìkara privilegiou a escola de pensamento dedicada a
sistematizar o conteúdo das Upaniñad: o Vedänta-darçana, representado pelo tratado
Brahma-sütra. Nesse ponto iniciou-se a polêmica, pois o tratado contava, em sua época,
com diversas interpretações divergentes. Assim, ao longo de seu trabalho, o Brahma-sütra-
bhäñya, Çaìkara combate pontos de vista de representantes dos outros cinco darçana acerca
da interpretação adequada de conceitos expressos no tratado, bem como os pontos de vista dos
adeptos do Budismo Mahäyäna e da escola Nästika (os “niilistas”).
O impacto e a influência da obra de Çaìkara dedicada a comentar o Brahma-sütra
foram tamanhos para a cultura sânscrita dos séculos posteriores que outras obras em torno do
Brahma-sütra anteriores ao pensador as quais sabemos que existiam em sua época por
referências em seus textos e em outras obras sânscritas –, simplesmente não foram
preservadas. Assim dispomos, no presente, apenas do comentário de Çaìkara e de outros
posteriores a ele, dedicados a contestar seu ponto de vista monista e instaurar outras correntes
“vedantinas” de interpretação do Brahma-sütra.
5
Por essa razão, aliás, a escola fundada por Çaìkara, o Advaita, é uma escola “vedantina”: Advaita-Vedänta, o
fim (anta) a-dual (a-dvaita) dos Veda, compreendendo-se aqui pelo termo “fim” uma dupla conotação: a espacial
(pela posição final ocupada pela coletânea das Upaniñad na organização dos quatro Veda) e a temática (pelo
fato de seu objeto de discussão ser considerado o “fim último” de todas as práticas e crenças do Hinduísmo
ortodoxo, a liberação final, o alcance da imortalidade).
31
Em terceiro lugar, finalmente, Çaìkara considerou fundamental comentar a Bhagavad-
gétä, compreendida por ele como um perfeito de “manual de instruções” para a adequada
conduta do homem no mundo – entendendo-se aqui por “adequada” a conduta que finalmente
o conduziria à liberação. E aqui também seu discurso será a dramatização do combate aos
sacerdotes ritualistas, aos adeptos da escola Säàkhya (dualistas) e aos adeptos das várias
crenças teístas devocionais de sua época. Um combate, como veremos, paradoxalmente,
seguido de assimilação parcial e, finalmente, acomodação.
Portanto, após essa exposição necessária do intertexto herdado por Çaìkara, estamos
prontos para acompanhar a articulação do conceito de Absoluto, Brahman, conforme
declarado nas Upaniñad e interpretado por Çaìkara.
32
1.2 – AS UPANIÑAD
1.2.1 – A revelação de Brahman
A visão não chega lá, nem a fala, nem a mente; não sabemos,
não compreendemos como se possa ensiná-lo.
Ele é diferente do conhecido, e também [está] acima do
desconhecido – assim ouvimos dos antigos, que nos explicaram.
Aquilo que não é dito pela fala, e por meio do qual a fala é
revelada saiba que isso é Brahman, e não aquilo que é meditado
[upäsate] como tal.
Aquilo que não é pensado pela mente, e por meio do qual a
mente é pensada – saiba que isso é Brahman, e não aquilo que é
meditado como tal.
Aquilo que não é visto pela visão, e por meio do qual a visão é
vista saiba que isso é Brahman, e não aquilo que é meditado como
tal.
Aquilo que não é ouvido pela audição, e por meio do qual a
audição é ouvida saiba que isso é Brahman, e não aquilo que é
meditado como tal.
Aquilo que não é respirado pelo alento, e por meio do qual o
alento respira saiba que isso é Brahman, e não aquilo que é
meditado como tal.
(Kena-upani
L
ad, 1.3-9, in GAMBHÉRÄNANDA, 2002, p. 48-57)
Essa passagem da Kena-upani
L
ad apresenta um dos traços característicos das
técnicas lingüísticas empregadas pelas Upani
L
ad na descrição de Brahman. O objetivo de
tais técnicas é provocar uma espécie de “curto-circuito” nas categorias e mecanismos lógicos
habituais dos quais se utiliza a linguagem e o pensamento humanos na descrição dos fatos do
mundo objetivo. É sobretudo através da negação e do paradoxo que se firma o conceito do
além-linguagem. Por essa razão, os textos das Upani
L
ad são textos misteriosóficos, alusivos,
simbólicos, somando-se a isso o fato de serem textos orais e de caráter mnemônico. Como
nos diálogos platônicos, são estruturados a partir de uma progressão de questionamentos e
esclarecimentos. Nesse processo os paradoxos e as negações funcionam como uma “escada”
intelectual, um mecanismo cognitivo através do qual o inquisidor ou discípulo é conduzido
ao limiar do conhecimento.
A vivência ou experiência pessoal do estado de Brahman, única forma de conhecê-lo
de fato, é possível através do exercício progressivo das técnicas do Yoga, mencionadas em
muitas Upaniñad. Nos textos que fazem referência às teorias e técnicas do Yoga é
apresentada uma divisão topológica entre os vários estratos da consciência, os quais
possibilitam estados mentais diferentes; o sono e o sonho tornam-se substratos importantes
33
dessa análise psíquica. O que se busca, em última instância, é um estado de consciência no
qual está ausente a distinção entre sujeito e objeto, e que portanto está além das experiências
da consciência do homem comum em vigília e em sonho, embora ao mesmo tempo constitua
o conjunto ou universo das experiências possíveis: é o samädhi.
Esse conhecimento, ó bem-amado, não é obtido pelo
argumento {tarka, discussão lógica}; [mas] é fácil compreendê-lo,
quando declarado por um preceptor. Tu perseveras na verdade. Que
possa haver para nós um outro inquisidor como tu, ó Naciketas!
(Ka
F
ha-upani
L
ad, 1.2.9; ibid., p. 141)
A vivência ou experiência cognitiva que torna o homem um conhecedor de Brahman
não é possível através dos caminhos da linguagem e do pensamento comuns, pois a
compreensão da natureza desse Absoluto envolve a destruição das categorias lógicas
habituais. No nível lingüístico das Upani
L
ad, tal tarefa é realizada através de uma série de
dicotomias e oposições, nas negações e paradoxos. A desconstrução das categorias habituais
envolve uma desconstrução da linguagem, que se realiza na neutralização dos contrários e
nos paradoxos, que constituem uma destruição das categorias semânticas pré-estabelecidas e
das relações convencionais entre significante e sinificado.
O si-mesmo (
T
tman) não nasce nem morre; não se originou de
nada, nem nada se originou dele; não-nascido, eterno, sem
degeneração, antigo como é, não é morto ainda que o corpo seja
morto. (Ka
F
ha-upani
L
ad, 1.2.18; ibid., p. 151)
Ele se move, ele não se move; está longe, está perto. Está
dentro de tudo, e está fora de tudo. (Éça-upani
L
ad, 5; ibid., p. 12)
O conhecimento desse Absoluto único, Brahman, e de seu reflexo individualizado
nos seres, o si-mesmo (ätman), pressupõe a redução das categorias duais a uma unidade
subjacente, como exemplifica esta outra passagem:
Aqueles que cultuam a ignorância {avidyä} entram em
escuridão cegadora; e em escuridão ainda maior entram aqueles que
cultuam a sabedoria {vidyä}.
Dizem que pela sabedoria um resultado diferente é adquirido;
outro resultado diferente pela ignorância. Assim ouvimos dos antigos,
que nos ensinaram.
O que conhece esses dois, sabedoria e ignorância, juntos,
alcança a imortalidade pela sabedoria, ao atravessar a morte pela
ignorância.
34
Aqueles que cultuam o imanifesto {asambhüti} entram em
escuridão cegadora; e em escuridão ainda maior [entram] os que
cultuam o manifesto {sambhüti}.
Dizem que pelo manifesto um resultado diferente é adquirido;
outro resultado diferente pelo imanifesto. Assim ouvimos dos antigos,
que nos ensinaram.
O que conhece esses dois, o manifesto {sambhüti} e a
destruição {vinäça}, juntos, alcança a imortalidade pelo manifesto, ao
atravessar a morte pela destruição. (Éça-upani
L
ad, 1.9-14; ibid., p. 19-
25)
A desconstrução à qual a linguagem e o pensamento são submetidos deriva de uma
postura bastante divergente da posição védica ritualística em relação à linguagem. De fato,
não estamos mais diante da palavra dotada de poder, da palavra plena de significação que
engendra o objeto que denota. Ao contrário, estamos diante da palavra impotente diante
daquilo que precisa descrever. Observamos nos diálogos das Upaniñad a dificuldade de, a
partir da linguagem verbal e de sua lógica intrínseca, traduzir um conceito de unidade no
qual suas próprias categorias lógicas se anulam. O paradoxo principia no fato de que a
linguagem recurso de que dispõe o homem comum para articular o saber precisa ser
empregada para se falar de Brahman, e ao mesmo tempo não deve ser empregada senão
como uma negação de si mesma, e de seu potencial revelador, com relação a esse objeto que
se caracteriza, no nivel mental, como não-objeto. A linguagem, de instrumento de
manipulação da realidade, é reduzida, em última instância, a mais uma ilusão que se finge de
realidade, e que se presta ao conhecimento das particularidades da não-realidade, da
diferença; ou seja, um instrumento de apreensão da relatividade deve ser posto a serviço da
descrição do substrato último do qual provém, o Absoluto. A parte deve se incumbir da
impossível tarefa de descrever seu Todo.
Não é verdade que, sendo assim, {em sono profundo}, ao ver,
ele não vê; ele vê; pois não perda da visão para a testemunha,
que é indestrutível; e não segundo, nenhum outro que, separado
dele, possa ver.
Não é verdade que, sendo assim, ao cheirar, ele não cheira; ele
cheira; pois não há perda do olfato para aquele que cheira, que é
indestrutível; e não há segundo, nenhum outro que, separado dele,
possa cheirar. [...]
Não é verdade que, sendo assim, ao falar, ele não fala; ele fala;
pois não há perda da fala para aquele que fala, já que é indestrutível; e
não há segundo, nenhum outro que, separado dele, possa falar.
(B
B
had-
T
ra
J
yaka-upani
L
ad, 4.3.23, 24 e 26, in
MÄDHAVÄNANDA, 1975, p. 467-468, 470-471)
35
A utilização de construções paradoxais com o propósito de sugerir algo indefinível
ou além da realidade empírica e dos sentidos não é privilégio ou monopólio dos textos das
Upani
L
ad. Trata-se de um recurso comum a outros textos (como, por exemplo, os textos
budistas) e a outras culturas. Há, por exemplo, uma passagem no Tao Te King chinês,
Aquele que pensa que sabe, não sabe. Aquele que sabe que não
sabe, sabe. Pois, neste caso, saber é não saber. E não saber é saber.
(apud CAMPBELL e MOYERS, 1995, p. 58)
a qual podemos comparar com este trecho da Kena-upani
L
ad, 2.3:
Quem não o pensa, o pensa, quem o pensa, não o conhece. Não
é conhecido por aqueles que o conhecem; é conhecido por aqueles que
não o conhecem. (in GAMBHÉRÄNANDA, 2002, p. 8)
Encontramos a utilização de construções paradoxais, talvez pela primeira vez nos
textos sânscritos, no hino do
A
g-Veda, X, 129, que assim começa: “Então, não havia o
não-ser, nem o ser - não havia reino do ar, nem céu além dele.”
6
Esse hino védico, que aliás
destoa dos demais hinos da coletânea exatamente por seu caráter especulativo, procura
explicar o que havia antes mesmo do surgimento dos deuses e da criação. Podemos
pressupor que tenha sido motivado exatamente pelas mesmas especulações que, à parte do
contexto ritualístico, proliferavam em torno dessa temática do supracognitivo, do Absoluto,
e as quais viriam a ser, nos séculos posteriores, assimiladas e integradas à construção do
Hinduísmo. O referido hino, RV, X, 129, termina com estas palavras:
Quem realmente sabe e quem pode declarar, de onde nasceu e
de onde veio essa criação? Os deuses vieram depois da produção deste
mundo. Quem sabe, portanto, de onde veio pela primeira vez?
Ele, a primeira origem desta crião, tenha formado a toda ela
ou não a tenha formado,
Cujo olho controla este mundo no céu mais alto; ele realmente
sabe, ou talvez não saiba.
O modelo paradoxal de emprego da linguagem, que se apresenta com essa finalidade
de afirmar um “algo” além das categorias lógicas habituais, firma-se portanto como forma
6
Tradução inédita de Mário Ferreira.
36
privilegiada de descrição do “novo” conceito de Brahman que se articula inicialmente nas
Upani
L
ad.
Em Çaìkara, herdeiro e instrutor dessa tradição, encontraremos, porém, o acréscimo
de séculos de tradição dialógica e dialética: nele os textos das Upaniñad deverão, sim, ser
objetos de uma “dissecação” intelectual, que o propósito do pensador será o de convencer
racionalmente seu interlocutor, por meios argumentativos, da verdade suprema revelada nas
escrituras. Isso significa sobretudo um recurso às categorias lógicas e argumentativas
próprias das escolas de pensamento da cultura sânscrita clássica no trabalho de análise e
interpretação dos textos canônicos das principais Upaniñad.
Verificaremos em breve e in loco como se o processo de análise e interpretação no
discurso de Çaìkara, acompanhando para isso os trechos selecionados dos comentários do
pensador a alguns versos das Upaniñad.
37
1.2.2 – Trechos selecionados para análise dos comentários
Reproduzimos a seguir os trechos de Upaniñad considerados de grande importância
para o Advaita-vedänta. Os comentários de Çaìkara aos dois primeiros textos serão por nós
esmiuçados em análise. Como este item da tese apresenta os textos com cuja análise nos
ocuparemos até o final desta parte do trabalho, optamos por reproduzir aqui, em “caráter
solene”, os textos originais centralizados e incluindo os versos na escrita devanägaré.
a) MåülÉÉåmÉÌlÉwÉS
MåülÉÉåmÉÌlÉwÉSMåülÉÉåmÉÌlÉwÉS
MåülÉÉåmÉÌlÉwÉSè
èè
è Kena-upaniñad
Á MåülÉåÌwÉiÉÇ mÉiÉÌiÉ mÉëåÌwÉiÉÇ qÉlÉÈ MåülÉ mÉëÉhÉÈ mÉëjÉqÉÈ mÉëæÌiÉ rÉÑ£üqÉç /
MåülÉåÌwÉiÉÉÇ uÉÉcÉÍqÉqÉÉÇ uÉSÎliÉ cɤÉÑÈ ´ÉÉå§ÉÇ Mü E SåuÉÉå rÉÑlÉÌ£ü // 1.1 //
Om. keneñitaà patati preñitaà manaù kena präëaù prathamaù praiti yuktam /
keneñitäà väcamimäà vadanti cakñuù çrotraà ka u devo yunakti // 1.1 //
1.1 – Om. Pela vontade de quem a mente voa para o objeto? Movido por quem o alento
vital, o primeiro, procede? Pela vontade de quem existe esta fala que todos falam? Quem
é o ser efulgente que dirige a visão e a audição?
´ÉÉå§ÉxrÉ ´ÉÉå§ÉÇ qÉlÉxÉÉå qÉlÉÉå rÉSè uÉÉcÉÉå Wû uÉÉcÉÇ xÉ E mÉëÉhÉxrÉ mÉëÉhÉÈ /
cɤÉÑwɶɤÉÑUÌiÉqÉÑcrÉ kÉÉåUÉÈ mÉëåirÉÉxqÉÉssÉÉåMüÉSqÉ×iÉÉ pÉuÉÎliÉ // 1.2 //
çrotrasya çrotraà manaso mano yad väco ha väcaà sa u präëasya präëaù /
cakñuñaçcakñuratimucya dhoräù pretyäsmällokädamåtä bhavanti //1. 2 //
1.2 – Ele é a audição da audição, a mente da mente, a fala da fala, o alento do alento, a
visão da visão. Os homens sábios, depois de renunciarem a este mundo, tornam-se
imortais.
lÉ iÉ§É cɤÉÑaÉïcNûÌiÉ lÉ uÉÉaaÉcNûÌiÉ lÉÉå qÉlÉÈ /
lÉ ÌuÉ©Éå lÉ ÌuÉeÉÉlÉÏqÉÉå rÉjÉæiÉSlÉÑÍvÉwrÉÉiÉç // 1.3 //
na tatra cakñurgacchati na väggacchati no manaù /
na vidmo na vijänémo yathaitadanuçiñyät // 1.3 //
1.3 – A visão não chega lá, nem a fala, nem a mente; não sabemos, não compreendemos
como se possa ensiná-lo.
AlrÉSåuÉ iÉ̲ÌSiÉÉSjÉÉå AÌuÉÌSiÉÉSÍkÉ /
CÌiÉvÉÑ´ÉÑqÉ mÉÔuÉåïwÉÉÇ rÉå lÉxiÉSèurÉÉcÉcÉͤÉUå // 1.4 //
anyadeva tadviditädatho aviditädadhi /
itiçuçruma pürvañäà ye nastadvyäcacakñére // 1.4 //
1.4 – Ele é diferente do conhecido, e também [está] acima do desconhecido – assim
ouvimos dos antigos, que nos explicaram.
38
rɲÉcÉÉÅlÉprÉÑÌSiÉÇ rÉålÉ uÉÉaÉprÉѱiÉå /
iÉSåuÉ oÉë¼ iuÉÇ ÌuÉÌ® lÉåSÇ rÉÌSSqÉÑmÉÉxÉiÉå // 1.5 //
yadväcä ‘nabhyuditaà yena vägabhyudyate /
tadeva brahma tvaà viddhi nedaà yadidamupäsate // 1.5 //
1.5 – Aquilo que não é dito pela fala, e por meio do qual a fala é revelada – saiba que isso
é Brahman, e não aquilo que é meditado como tal.
rÉlqÉlÉxÉÉ lÉ qÉlÉÑiÉå rÉålÉÉWÒûqÉïlÉÉå qÉiÉqÉç /
iÉSåuÉ oÉë¼ iuÉÇ ÌuÉÌ® lÉåSÇ rÉÌSSqÉÑmÉÉxÉiÉå // 1.6 //
yanmanasä na manute yenähurmano matam /
tadeva brahma tvaà viddhi nedaà yadidamupäsate // 1.6 //
1.6 – Aquilo que não é pensado pela mente, e por meio do qual a mente é pensada –
saiba que isso é Brahman, e não aquilo que é meditado como tal.
rÉccɤÉÑwÉÉ lÉ mÉvrÉÌiÉ rÉålÉ cɤÉÔÇÌwÉ mÉvrÉÌiÉ /
iÉSåuÉ oÉë¼ iuÉÇ ÌuÉÌ® lÉåSÇ rÉÌSSqÉÑmÉÉxÉiÉå // 1.7 //
yaccakñuñä na paçyati yena cakñüàñi paçyati /
tadeva brahma tvaà viddhi nedaà yadidamupäsate // 1.7 //
1.7 – Aquilo que não é visto pela visão, e por meio do qual a visão é vista – saiba que isso
é Brahman, e não aquilo que é meditado como tal.
rÉcNíûÉå§ÉålÉ lÉ vÉ×lÉÉåÌiÉ rÉålÉ ´ÉÉå§ÉÍqÉSÇ ´ÉÑiÉqÉç /
iÉSåuÉ oÉë¼ iuÉÇ ÌuÉÌ® lÉåSÇ rÉÌSSqÉÑmÉÉxÉiÉå // 1.8 //
yacchrotrena na çånoti yena çrotramidaà çrotam /
tadeva brahma tvaà viddhi nedaà yadidamupäsate // 1.8 //
1.8 – Aquilo que não é ouvido pela audição, e por meio do qual a audição é ouvida –
saiba que isso é Brahman, e não aquilo que é meditado como tal.
rÉimÉëÉhÉålÉ lÉ mÉëÉhÉåÌiÉ rÉålÉ mÉëÉhÉÈ mÉëhÉÏrÉiÉå /
iÉSåuÉ oÉë¼ iuÉÇ ÌuÉÌ® lÉåSÇ rÉÌSSqÉÑmÉÉxÉiÉå // 1.9 //
yatpräëena na präëoti yena präëaù praëéyate /
tadeva brahma tvaà viddhi nedaà yadidamupäsate // 1.9 //
1.9 – Aquilo que não é respirado pelo alento, e por meio do qual o alento respira – saiba
que isso é Brahman, e não aquilo que é meditado como tal.
(in GAMBHÉRÄNANDA, 2002, p. 39-57)
39
b) iÉæͨÉUÏrÉ
iÉæͨÉUÏrÉiÉæͨÉUÏrÉ
iÉæͨÉUÏrÉÉåmÉÌlÉwÉSè
ÉåmÉÌlÉwÉSèÉåmÉÌlÉwÉSè
ÉåmÉÌlÉwÉSè
Taittiréya-upaniñad
Á oÉë¼ÌuÉSÉmlÉÉåÌiÉ mÉUqÉç / iÉSåwÉÉÅorÉÑ£üÉ /
xÉirÉÇ ¥ÉÉlÉqÉlÉliÉÇ oÉë¼ // 2.1.1 //
Om brahmavidäpnoti param / tadeñä ‘byuktä /
satyaà jïänamanantaà brahma // 2.1.1 //
2.1.1 – Om! O conhecedor de Brahman alcança o mais elevado. Aqui está um verso que o
revela: Brahman é a verdade, o conhecimento e o infinito.
(ibid., p. 303)
c) NûÉlSÉåarÉÉåmÉÌlÉwÉSè
NûÉlSÉåarÉÉåmÉÌlÉwÉSèNûÉlSÉåarÉÉåmÉÌlÉwÉSè
NûÉlSÉåarÉÉåmÉÌlÉwÉSè
Chändogya-upaniñad
xÉ rÉ LwÉÉåÅÍhÉqÉæiÉSÉiqrÉÍqÉSÇ xÉuÉïÇ iÉixÉirÉÇ xÉ AÉiqÉÉ iɨuÉqÉÍxÉ µÉåiÉMåüiÉÉå CÌiÉ pÉÔrÉ LuÉ qÉÉ
pÉaÉuÉÉÎluÉ¥ÉÉmÉrÉÎiuÉÌiÉ iÉjÉÉ xÉÉåqrÉåÌiÉ WûÉåuÉÉcÉ // 6.8.7 //
sa ya eño’ëimaitadätmyamidaà sarvaà tatsatyaà sa ätmä tattvamasi çvetaketo iti bhüya eva
mä bhagavänvijïäpayanviti tathä somyeti hoväca // 6.8.7 //
6.8.7 – “Isso que é esta essência sutil, tudo isso tem Isto como si-mesmo [ätman]. Esta é a
verdade. Isto é o si-mesmo. Tu és isto, Çvetaketu.” “Possa tu, ó venerável, explicar-me
novamente.” “Que assim seja, ó de bela face.”
(in GAMBHÉRÄNANDA, 1997, p. 468)
d) oÉ×WûSÉUhrÉMüÉåmÉÌlÉwÉSè
oÉ×WûSÉUhrÉMüÉåmÉÌlÉwÉSèoÉ×WûSÉUhrÉMüÉåmÉÌlÉwÉSè
oÉ×WûSÉUhrÉMüÉåmÉÌlÉwÉSè
Båhad-äraëyaka-upaniñad
oÉë¼ uÉÉ CSqÉaÉë AÉxÉÏiÉç iÉSÉiqÉÉlÉxÉåuÉÉuÉåiÉç AWûÇ oÉë¼ÉxqÉÏÌiÉ / ixqÉɨÉixÉuÉïqÉpÉuÉiÉç iɱÉå rÉÉå
SåuÉÉlÉÉÇ mÉëirÉoÉÑkrÉiÉ xÉ LuÉ iÉSpÉuÉiÉç iÉjÉwÉÏïhÉÉûÇ iÉjÉÉ qÉlÉÑwrÉÉhÉÉûÇ iÉ®æiÉimÉvrɳÉ×ÌwÉuÉÉïqÉSåuÉÈ mÉëÌiÉmÉåSå
AWûÇ qÉlÉÑUpÉuÉÇ xÉÔrÉï¶ÉåÌiÉ / iÉÌSSqÉmrÉåiÉÉïWïû rÉ LuÉÇ uÉåS AWûÇ oÉë¼ÉxqÉÏÌiÉ xÉ CSÇ xÉuÉïÇ pÉuÉÌiÉ iÉxrÉ
Wû lÉ SåuÉɶÉlÉÉpÉÔirÉÉ DvÉiÉå AÉiqÉÉ ½åwÉÉÇ xÉ pÉuÉÌiÉ AjÉ rÉÉåÅlrÉÉÇ SåuÉiÉÉqÉÑmÉÉxiÉå
AlrÉÉåÅxÉÉuÉlrÉÉåÅWûqÉxqÉÏÌiÉ lÉ xÉ uÉåS rÉjÉÉ mÉvÉÑUåuÉÇ xÉ SåuÉÉlÉÉqÉç / rÉjÉÉ Wû uÉæ oÉWûuÉÈ mÉvÉuÉÉå qÉlÉÑwrÉÇ
pÉÑgerÉÑÈ LuÉqÉåMæüMüÈ mÉÑÂwÉÉå SåuÉÉlÉç pÉÑlÉÌ£ü / LMüÎxqɳÉåuÉ mÉvÉÉuÉÉSÏrÉqÉÉlÉåÅmÉërÉÇ pÉuÉÌiÉ ÌMüqÉÑ oÉWÒûwÉÑ
iÉxqÉÉSåwÉÉÇ iÉ³É ÌmÉërÉÇ rÉSåiÉlqÉlÉÑwrÉÉ ÌuɱÑÈ // 1.4.10 //
1.4.10 – brahma vä idamagra äsét tadätmänamevävet ahaà brahmäsméti /
tasmättatsarvamabravat tadyo yo devänäà pratyabudhyata sa eva tadabhavat tatharñéëäà
tathä manuñyäëäà taddhaitatpaçyannåñérvämadevaù pratipede ahaà manurabhavaà
süryaçceti / tadidamapyertärha ya evaà veda ahaà brahmäsméti sa idaà sarvaà bhavati
tasya ha na deväçcanäbhütyä éçate ätmä hyeñäà sa bhavati atha yo’nyäà devatämupäste
anyo’sävanyo’hamasméti na sa veda yathä paçyurevaà sa devänäm / yathä ha vai bahavaù
paçavo manuñyaà bhuïjyuù evamevaikaù puruño devän bhunakti / ekasminneva
paçävädéyamäne’priyaà bhavati kimu bahuñu tasmädeñäà tanna priyaà yadetanmanuñyä
vidyuù // 1.4.10 //
1.4.10 – Isto era de fato Brahman no princípio. Conhecia-se como “Eu sou Brahman.” E
então tornou-se tudo. E quem quer que, entre os deuses, também soubesse, tornava-se
40
Brahman; e o mesmo com os sábios e os homens. O sábio Vämadeva, enquanto sabia-se
como [sendo] Isto, disse “Eu sou Manu [o primeiro ancestral do homem], e o sol.” E até
hoje quem sabe que “Eu sou Brahman”’ torna-se tudo isso [o universo]. Até os deuses
não o sobrepujam, pois ele se torna o si-mesmo deles. Enquanto o que cultua outro deus
pensando “Ele é um, e eu sou outro”, não sabe. Este é como um animal para os deuses.
Assim como muitos animais servem os homens, assim os homens servem os deuses. Se há
angústia mesmo quando um único animal desaparece, o que se dirá de muitos animais?
Por isso os deuses não gostam que os homens saibam disso [i.e., que “Eu sou Brahman.”]
(in MÄDHAVÄNANDA, 1975, p. 100)
e) oÉ×WûSÉUhrÉMüÉåmÉÌlÉwÉSè
oÉ×WûSÉUhrÉMüÉåmÉÌlÉwÉSè oÉ×WûSÉUhrÉMüÉåmÉÌlÉwÉSè
oÉ×WûSÉUhrÉMüÉåmÉÌlÉwÉSè
Båhad-äraëyaka-upaniñad
ClSìÉå qÉÉrÉÉÍpÉÈ mÉÑÂÃmÉ DrÉiÉå / rÉÑ£üÉ ½xrÉ WûUrÉÈ vÉiÉÉ SvÉ / CÌiÉ / ArÉÇ uÉæ WûUrÉÈ / ArÉÇ uÉæ
SvÉ cÉ xÉWûx§ÉÉÍhÉ oÉWÕûÌlÉ cÉÉlÉliÉÉÌlÉ cÉ iÉSåiÉSèoÉë¼ÉmÉÔuÉïqÉlÉmÉUqÉlÉliÉUqÉoÉɽqÉç / ArÉqÉÉiqÉÉ oÉë¼
xÉuÉÉïlÉÑpÉÔÈ / CirÉlÉÑvÉÉxÉlÉqÉç // 2.5.19 //
indro mäyäbhiù pururüpa éyate / yuktä hyasya harayaù çatä daça / iti/ ayaà vai
harayaù / ayam vai daça ca sahasträni bahüni cänantäni ca
tadetadbrahmäpürvamanaparamanantaramabähyam / ayamätmä brahma
sarvänubhüù / ityanuçäsanam // 2.5.19 //
2.5.19 – Indra, através de mäyä, é percebido como muitos; a ele estão ligados dez
órgãos, cem vezes dez; ele é os órgãos; ele é dez e milhares deles, muitos e
infinitos. Brahman é sem começo nem fim, sem interior nem exterior. Este si-
mesmo [ätman] é Brahman, que a tudo percebe. Este é o ensinamento.
(ibid., p. 272)
f) LåiÉUårÉÉåmÉÌlÉwÉSè
Aitareya-upaniñad
LwÉ oÉë¼æwÉ ClSì LwÉ mÉëeÉÉmÉÌiÉUåiÉå xÉuÉåï SåuÉÉ CqÉÉÌlÉ cÉ mÉgcÉ qÉWûÉpÉç}FiÉÉÌlÉ mÉ×ÍjÉuÉÏ uÉÉrÉÑUÉMüÉ
AÉmÉÉå erÉÉåiÉÏÇwÉÏirÉåiÉÉlÉÏqÉÉÌlÉ cÉ ¤ÉÑSìÍqÉ´ÉÉhÉÏuÉ / oÉÏeÉÉlÉÏiÉUÉÍhÉ cÉåiÉUÉÍhÉ cÉÉhQûÌlÉ cÉ eÉÉÃeÉÉÌlÉ
cÉ xuÉåSeÉÉÌlÉ cÉ cÉÉåÌ°eeÉÉÌlÉ cÉɵÉÉ aÉÉuÉÈ mÉÑÂwÉÉ WûÎxiÉlÉÉå rÉÎiMüÇcÉåSÇ mÉëÉÍhÉ eÉXçaÉqÉÇ cÉ mÉiȨ́É
cÉ rÉccÉ xjÉÉuÉUÇ xÉuÉïÇ iÉimÉë¥ÉÉlÉå§ÉÇ mÉë¥ÉÉlÉå mÉëÌiÉ̸iÉÇ mÉë¥ÉÉlÉå§ÉÉå sÉÉåMüÈ mÉë¥ÉÉ mÉëÌiÉ¸É mÉë¥ÉÉlÉÇ oÉë¼ //
3.1.3 //
eña brahmaiña indra eña prajäpatrete sarve devä imäni ca païca mahäbhütäni påthivé
väyuräkäça äpo jyotéàñétyetänémäni ca kñudramiçräëéva / béjänétaräëi cetaräëi
cäëòajäni ca järüjäni ca svedajäni ca codbhijjäni cäçvä gävaù puruñä hastino
yatkiàcedaà präëi jaìgamaà ca patatri ca yacca sthävaraà sarvaà tatprajïänetram
/ prajïäne pratiñöhaà prajïänetro lokaù prajïä pratiñöhä prajïänaà brahma //3.1.3 //
3.1.3 – Isto é Brahman; é Indra, é Prajäpati; isto é todos os deuses, e todos os cinco
elementos: terra, água, espaço, ar e fogo. E isto é todos esses [seres], e os pequeninos, e
os procriadores, referidos aos pares – os que nascem de ovos, de úteros, da umidade e da
terra: cavalos, gado, homens, elefantes, e todas as criaturas que existem, as que se
movem, as que voam e as que não se movem. Todos esses são impelidos pela consciência
[prajïäna]. Todos têm a consciência como realidade, o mundo tem a consciência como
seu olho, e consciência é seu fim. Brahman é consciência.
(in GAMBHÉRÄNANDA, 2001, p. 66)
41
1.2.3 – Excurso: da competência
"A dotação de competência semântica ou manipulação
cognitiva tem todas as características do programa de competência e
deve ser entendida como um contrato fiduciário, em que o destinador,
graças a um fazer persuasivo, busca a adesão do destinatário.
Pretende fazer com que o destinatário, ao exercer o fazer
interpretativo que lhe cabe, creia ser verdadeiro o objeto apresentado,
o discurso do outro e o próprio destinador. estreita vinculação
entre a confiança e a crença, o que permite falar em contrato
fiduciário." (BARROS: 2002, 37)
Resta algo ainda a observar antes de acompanharmos os textos de Çaìkara: o fato de
que o discurso que estamos prestes a analisar não se apresenta como um discurso figurativo
caso em que situaríamos, por exemplo, as narrativas e outros discursos literários. Ao
contrário, insere-se no domínio dos discursos ditos científicos, ou ainda "discursos
programadores", no sentido de que apresenta um saber, dado como competência de um
narrador, saber esse colocado desde como objeto de valor da condição do desejável e do
eufórico, e que deve ser então transmitido ao narratário.
7
A transmissão de um saber como objeto de valor que caracteriza, por um lado, os
discursos científicos, mas por outro lado, também os discursos argumentativos e
programadores, requer, além de uma competência do narrador, também uma série de
competências cognitivas pressupostas no narratário. Nesse sentido, um discurso programador
como, por exemplo, uma receita culinária, pressupõe um narratário com o conhecimento
prévio dos ingredientes citados e dos processos (descascar, debulhar, cozinhar, escaldar,
banho-maria, forno médio, etc.) presentes na receita. Da mesma forma um discurso científico
manifesto, por exemplo, sob a forma de um texto de botânica, requer do narratário uma
competência prévia manifesta sob a forma do conhecimento da nomenclatura latina das
plantas e dos termos "técnicos" referentes às diversas partes das plantas, e de processos como
fotossíntese, etc. Em ambos os casos, a competência esperada do receptor do discurso
manifesta-se sob a forma de conhecimento, ou reconhecimento, de objetos culturais, os quais
idealmente devem fazer parte do repertório dos receptores do texto. Tais competências
necessárias para que o /fazer-saber/ seja levado a cabo com sucesso pressupõem, por sua vez,
um narratário manipulado para quem o saber inscrito no discurso constitua um objeto de
valor da ordem do desejável.
7
Sabemos que, em termos mais precisos da semiótica francesa, o que temos no texto em análise é um enunciador
debreado em actante narrador, e um enunciatário debreado em actante narratário.
42
Alguns discursos doadores de competência inserem-se mais explicitamente no
domínio argumentativo: são, ao mesmo tempo em que doadores de um saber, também
manipuladores do narratário. Nessa classe de discursos científico-argumentativos encaixam-se
praticamente todos os discursos de ordem filosófica, religioso-dogmática, e ainda outros
discursos encontrados, sobretudo, nas ciências ditas "humanas". Esse é o caso de nosso objeto
de análise, os recortes extraídos do conjunto dos discursos de Çaìkara.
No caso desses discursos argumentativos, o fato é que a predisposição à manipulação,
por parte do narratário, também pode ser compreendida como uma "pré-competência"
desejável. Essa predisposição constitui também, na maioria dos casos, uma condição cultural
"preparada" por uma série de objetos culturais prévios e que, anteriormente, trouxeram esse
narratário-aprendiz à condição de ouvinte pré-manipulado favoravelmente à aquisição ou
aceitação do saber específico a lhe ser transmitido. Em outras palavras, para que a
manipulação seja bem sucedida e a competência seja adquirida pelo destinatário do discurso,
é necessária e pressuposta a existência de um contrato fiduciário. Na condição de
manipulador, veremos que Çaìkara persuade através da sedução pelo saber; entretanto, a
instância de instauração do contrato fiduciário que lhe permite desenvolver o discurso está
ausente no texto, e esse trecho do percurso narrativo está implícito.
O fator cultural manipulador e doador de "pré-competências" implícito, tanto no
caso do narrador como do narratário, aponta para domínios de análise que nos afastam dos
dados imanentes no texto e nos remetem aos domínios do universo discursivo (cultura) e dos
campos discursivos (áreas do saber de uma dada cultura) aos quais o texto se refere. Foi, aliás,
por essa razão que nos detivemos previamente na exposição sucinta de saberes e valores
culturais os quais julgamos de fundamental conhecimento para que o leitor possa acompanhar
a argumentação de Çaìkara.
Não são apenas os fatores culturais que constituem o conjunto das competências que
tornam determinado discurso acessível ou especificamente siginificativo. Tais competências,
esperadas tanto do sujeito da enunciação quanto de seu receptor, incluem as competências
lingüísticas, discursivas, textuais, interdiscursivas e intertextuais, pragmáticas e situacionais
(cf. inventariado por FIORIN, 2002, p. 32-33). Como bem referido por GREIMAS (1976, p.
8) com relação à estruturação do discurso científico, algumas das competências apresentadas
no discurso de Çaìkara e pressupostas em seu receptor são puramente lingüísticas, e incluem,
além da competência narrativa (o saber relativo à organização sintagmática do discurso),
"uma competência 'científica' específica", derivada da primeira, e que engendra o
questionamento e a busca de respostas que caracteriza o discurso científico, e ainda:
43
[...] a competência lingüística stricto sensu, que o torna capaz
de formular questões e, coisa ainda mais notável, de formular a
questão que ele próprio [enunciatário] não propõe, mas que se supõe
ser proposta pelo enunciador, quando do discurso interior que ele
endereça a si mesmo. (ibid., p. 8)
Como poderemos notar em passagens do trecho selecionado, Çaìkara antecipa essas
questões e astutamente as utiliza como recurso argumentativo e criador de efeitos de sentido
de veracidade e de irrefutabilidade de sua doutrina. Ao longo da análise voltaremos a verificar
como isso se dá.
44
1.3 – KENA-UPANIÑAD: BRAHMAN, O INDEFINÍVEL
A seguir iniciaremos nossa análise do discurso de Çaìkara, por meio de seus
comentários aos trechos selecionados das Upaniñad que apresentamos previamente. A fim de
facilitar o entendimento do leitor, adotamos alguns procedimentos: reproduzimos
primeiramente, em negrito, o verso traduzido da Upaniñad; em seguida a tradução do
comentário de Çaìkara ao referido verso, em caracteres normais, e finalmente os eventuais
acréscimos ao longo do texto entre colchetes (se se tratar de interpolações do editor do texto)
ou entre chaves (se forem nossos os acréscimos ou a recuperação de termos sânscritos). A
separação do texto do autor em parágrafos numerados foi por nós convencionada para facilitar
o acompanhamento da análise, bem como a inserção de aspas para a recuperação dos
discursos diretos.
KENA-UPANIÑAD
1.1 Om. Pela vontade de quem a mente voa para o
objeto? Movido por quem o alento vital, o primeiro, procede? Pela
vontade de quem existe esta fala que todos falam? Quem é o ser
efulgente que dirige a visão e a audição?
1.2 Ele é a audição da audição, a mente da mente, a fala
da fala, o alento do alento, a visão da visão. Os homens sábios,
depois de renunciarem a este mundo, tornam-se imortais.
{Trecho do comentário de Çaìkara:} 1.[Objeção:] “Não está
errado afirmar que ‘ele é a audição da audição’, quando a réplica
deveria ser ‘tal e qual, com tais atributos, dirige a audição, etc.’?”
2.[Resposta:] “Não está errado, pois sua distinção não pode ser
feita de outra forma. Se o governante da audição, etc., pudesse ser
conhecido como possuidor de sua própria atividade,
independentemente das atividades dos ouvidos, etc., como no caso do
ceifeiro com sua foice, então essa afirmação seria incongruente. Mas
na verdade nenhum governante da audição, etc., imbuído de sua
própria atividade, pode ser apreendido aqui, como no caso do ceifador
e sua foice, etc. Mas ele pode ser conhecido [como existindo à parte
da audição, etc.] em virtude da necessidade lógica de atividades como
a deliberação, a volição, a determinação, etc., dessas próprias coisas
compostas, como a audição, etc., precisar ser dirigida ao benefício de
alguém. Assim como no caso de uma casa, assim também aqui: de
fato alguém fora do agregado de audição, etc., por cuja necessidade
são impelidos a audição e etc. Portanto, pelo fato de que objetos
compostos existem para a necessidade de algum outro, um governante
da audição, etc., pode ser conhecido {i.e., inferido}. Daí a réplica [da
Upaniñad], ‘ele é a audição da audição’, etc., estar apropriada.”
45
3.[Objeção:] “Novamente, o que pode haver no significado da
expressão ‘a audição da audição’, etc.? Pois assim como uma luz não
tem necessidade de outra luz, então no contexto da audição, a audição
não pode ter necessidade de outra audição.”
4.[Resposta:] “Não existe tal erro. O significado da expressão
aqui é este: a audição, a saber, é vista como capaz de revelar seu
próprio objeto. Essa habilidade da audição de revelar seu próprio
objeto é possível apenas quando a eterna o-composta e
onipenetrante luz do si-mesmo {ätman} está lá, mas não em caso
contrário. Daí a expressão ‘audição da audição’ ser justificável. Com
referência a isso há outros textos védicos: ‘É pela luz do si-mesmo que
ele se senta.’ [Båhad-äraëyaka-upaniñad 4.3.6], ‘Por sua luz tudo isso
brilha’ [Kaöha-upaniñad 2.2.15; Çvetäçvatara-upaniñad 6.14;
Muëòaka-upaniñad, 2.2.10], ‘Aceso por qual luz o sol brilha?’
[Taittiréya-brähmaëa 3.12.9.7], etc. e na Gétä ‘[Saiba que esta luz é
minha], a que está no sol e que ilumina todo o universo’ [Bhagavad-
gétä 15.12], e ‘[Assim como um sol ilumina todo o mundo], assim
aquele que reside no corpo, ó descendente de Bhärata, ilumina todo o
corpo’ [Bhagavad-gétä 13.33]. Assim também na Kaöha, ‘o eterno
entre os efêmeros, a consciência em tudo o que é consciente’ [Katha-
upaniñad 2.2.13].
5.“É uma crença comumente aceita a de que a audição, etc.,
constituem o si-mesmo de todos, e de que esses [os instrumentos dos
sentidos] são conscientes. Isso está sendo refutado aqui. Existe algo
que é conhecido pelo intelecto do homem de realização, que habita no
mais profundo recesso de tudo, e que é imutável, não submetido à
decadência, imortal, sem medo e não-nascido, e que é a audição da
audição, etc. até mesmo da audição, ou seja, a fonte de sua capacidade
de agir. Assim a resposta e o significado das palavras podem
certamente ser justificados.
6.“Da mesma forma, manasas, ‘da mente’, do instrumento
interno {antaù-karaëa}, ele é manas, a mente; porque o instrumento
interno não é capaz de realizar suas próprias funções pensar,
determinar, etc. a menos que seja iluminado pela luz da consciência.
Portanto ele é a mente da mente também. Aqui a mente e o intelecto
{buddhi} estão implicados na palavra manas [mente].”
1.3 A visão não chega lá, nem a fala, nem a mente; não
sabemos, não compreendemos como se possa ensiná-lo.
{Trecho do comentário de Çaìkara:} 7.“[...] Quando uma
palavra, expressa pelo órgão da fala, revela sua própria idéia, diz-se
que a fala chega ao objeto. Mas Brahman é o si-mesmo dessa palavra,
assim como do órgão que a pronuncia; portanto a fala não o alcança.
Assim como o fogo, que queima e ilumina, não pode queimar ou
iluminar a si próprio, da mesma forma é aqui. No mano, nem a mente.
Embora a mente pense e determine outras coisas, ela não pensa ou
determina a si mesma; pois dela, também, Brahman é o si-mesmo.
Uma coisa é objeto de cognição somente pela mente e pelos sentidos.
Como Brahman não é um objeto de percepção para esses, portanto, na
46
vidmas, não sabemos se ‘Esse Brahman é de tal tipo.’ Portanto na
vijänémas, não compreendemos; yathä, como; etat, este Brahman;
anuçiñyät, deve ser ensinado, instruído a um discípulo – este é o
significado. Pois algo que é percebido pelos sentidos pode ser
ensinado a outro através de categorias que denotem classe, qualidade e
ação. Brahman não está imbuído dessas categorias, por isso é muito
difícil convencer os discípulos acerca dele por meio da instrução. [...]
8.“[...] uma exceção [a essa impossibilidade de ensiná-lo] é
colocada no próximo verso [da Upaniñad]. É verdade que não se pode
transmitir o conhecimento acerca do mais elevado com a ajuda de
meios de conhecimento válido tais como a evidência dos sentidos;
mas o conhecimento pode ser produzido com a ajuda da autoridade
tradicional. Portanto a autoridade tradicional {ägama} é citada para
transmitir o conhecimento acerca dele.”
1.4 Ele é diferente do conhecido, e também [está] acima
do desconhecido – assim ouvimos dos antigos, que nos explicaram.
{Trecho do comentário de Çaìkara:} 9.“O conhecido é o que
está nos domínios do ato de conhecer, aquilo que é objeto do verbo
‘conhecer’. Considerando-se que tudo é conhecido em algum lugar
por alguém, tudo o que é manifesto é certamente conhecido. A idéia é
que Brahman é diferente disso. Para que não se deduza que nesse caso
ele deva ser desconhecido, o texto diz ‘acima do desconhecido’,
daquilo que se opõe ao conhecido, daquilo que consiste em ignorância
não-manifesta, e que é a semente do manifesto. O termo adhi, no
sentido de ‘acima’, significa ‘diferente’ por uma figura de linguagem,
que é sabido que qualquer coisa que exista acima de outra é
diferente daquela.
10.“Tudo o que é conhecido é limitado, mortal, e cheio de
miséria; e portanto deve ser rejeitado. Então quando se afirma que
Brahman é diferente do conhecido, isso significa afirmar que ele não
deve ser rejeitado. Da mesma forma, quando se afirma que ele é
diferente do desconhecido, significa afirmar que ele não é algo a ser
obtido. Pois é para obter um efeito que alguém diferente dele adquire
alguma outra coisa que lhe sirva como causa. E nada diferente [do
conhecedor] precisa ser adquirido para servir a qualquer propósito
distinto do conhecedor. Assim, pela afirmação de que Brahman é
diferente do conhecido e do desconhecido, o que por sua vez nega a
Brahman a condição de objeto a ser adquirido ou rejeitado, o desejo
do discípulo de conhecer Brahman objetivamente é destruído, pois
Brahman é não-diferente do si-mesmo {ätman}. Pois nada além do
próprio si-mesmo pode ser diferente do conhecido e do desconhecido.
Assim segue que o significado da sentença é de que o si-mesmo é
Brahman. E isso também procede de textos védicos como: ‘Este si-
mesmo é Brahman [Mäëòükya-upaniñad, 2; Båhad-äraëyaka-
upaniñad, 2.5.19 e 4.4.5]; ‘O si-mesmo que é intocado pelo erro’
[Chändogya-upaniñad, 8.7.1]; Brahman que é imediato e direto o
si-mesmo no interior de tudo’ [Båhad-äraëyaka-upaniñad, 3.4.1], etc.
47
11.“Dessa forma, o texto ‘Assim ouvimos dos antigos’ mostra
como, por meio de uma sucessão de preceptores e discípulos, foi
gerado o conteúdo da sentença que estabelece como Brahman este si-
mesmo de tudo, o qual é destituído de quaisquer características
distintivas, e é a luz da pura consciência. Além disso, Brahman deve
ser conhecido apenas através da instrução tradicional dos preceptores
e não por meio da argumentação, nem pelo estudo, inteligência,
grande erudição, austeridade, sacrifícios, etc.[...]
12.“Tendo sido estabelecida a idéia de que o si-mesmo é
Brahman por meio da sentença ‘Ele é diferente do conhecido e
também acima do desconhecido’, o ouvinte pode ter esta dúvida:
‘Como pode o si-mesmo ser Brahman? Pois o si-mesmo é
familarmente conhecido como aquele que deve realizar ritos e
meditação e que, estando sujeito ao nascimento e à morte, procura
alcançar os deuses liderados por Brahma {o deus criador} ou o
paraíso, para isso praticando ritos ou meditação. Portanto algum outro
ser adorável que não seja o si-mesmo, como Viñëu, Éçvara, Indra ou
Präëa, deve ser Brahman, mas não o si-mesmo, pois isso se opõe ao
senso comum. Assim como outros lógicos afirmam que o si-mesmo é
diferente do Senhor {Éçvara}, assim também os ritualistas cultuam
outros deuses dizendo, ‘Sacrifique para aquele’, ‘Sacrifique para
aquele’. Com isso seria sensato concluir que esse que é conhecido e
adorável deve ser Brahman, e o cultuador deve ser alguém diferente
desse.’ Tendo percebido esta dúvida pelos olhares ou palavras do
discípulo, o mestre diz ‘Não tenha dúvidas, pois’,”
1.5 Aquilo que não é dito pela fala, e por meio do qual a
fala é revelada saiba que isso é Brahman, e não aquilo que é
cultuado como tal.
{Trecho do comentário de Çaìkara:} 13.“[...] Saiba que o si-
mesmo apenas é o Brahman incondicionado depois de erradicar todos
os adjuntos como a fala, em virtude dos quais ocorrem expressões
empíricas com relação ao Brahman transcendental, incondicionado,
inultrapassável e equânime, tais como ‘a fala da fala’, ‘a visão da
visão’, a audição da audição’, ‘a mente da mente’, a testemunha, o
conhecedor, o controlador.”
(Kena-upaniñad e Kena-upaniñad-bhäñya, 1.1-5:
in GAMBHÉRÄNANDA, 2002, p. 39-55;
in ÇÄSTRIËÄ, 2000, p. 17-22)
48
1.3.1 - Dialogismo e o anti-sujeito do saber
"O diálogo escrito pressupõe, mais ainda do que o diálogo
efetivo, que esse ouvinte encarne o auditório universal. E tal
concepção parece justificada sobretudo quando se admite, como
Platão, que existem no homem princípios internos coercivos que o
guiam no desenvolvimento do seu pensamento." (PERELMAN e
OLBRECHTS-TYTECA: 2002, 41)
O texto em análise, uma narrativa científica, define-se como um programa narrativo ao
mesmo tempo manipulador e doador de competência, transmissor de um saber que constitui
um valor modal, o qual o sujeito do fazer cognitivo, no caso o narrador projetado no texto
como Çaìkara, pretende transmitir a um receptor "ideal". (Trataremos em breve, com a ajuda
do próprio Çaìkara, dos requisitos que definem o receptor e a recepção “ideais” para seu
discurso.) Na condição de narrativa científica, temos portanto uma transformação de um /não-
saber/ num /saber/, observada como um percurso de enunciados de estado que constroem
objetos de valor modal, ao lado de um percurso de instâncias modalizadoras de efeito
persuasivo, argumentativo.
No nível discursivo, como todo discurso voltado à construção de objetos do saber, e
portanto dito "objetivo", o texto apresenta um predomínio das características de "apagamento"
das instâncias de enunciação e de utilizão do presente atemporal ou gnômico. Entretanto,
encontramos aqui a primeira peculiaridade discursiva de Çaìkara (não propriamente sua, mas,
diga-se de passagem, herança e eco dos discursos de mesma categoria de sua cultura),
expressa por uma explicitação da estrutura bipolar de perguntas e respostas que constitui o
fazer cognitivo do teórico, e que costuma estar pressuposta e implícita nos textos científicos.
Nesse sentido, a debreagem de segundo grau que instaura no texto um interlocutário e o
transforma num diálogo direto em determinados momentos exerce um duplo papel: de um
lado, essa formulação antropomorfiza o anti-sujeito do saber, trazendo à tona um processo
cognitivo do narrador que é subjacente à narração, e de outro lado, funciona como um
elemento a mais de persuasão e criação de efeitos de sentido de invulnerabilidade e eficácia
do saber exposto diante do ataque possível dos oponentes. Com esse artifício, o discurso
científico modalizador também modaliza ao se "converter", em alguns momentos, no discurso
puramente argumentativo de uma situação oral de debate (forjando, por assim dizer, uma
instância de enunciação presente no interior de um discurso dito "objetivo"). Assim como
constatou Greimas numa circunstância de análise, podemos também aqui com ele afirmar,
49
acerca deste questionamento explicitado, que tal artefato discursivo "[...] contém assim,
modalizado pela ignorância, o objeto do saber, o tópico do discurso" (GREIMAS, 1976, p.11)
Dessa forma, numa primeira análise "global", podemos perceber que o discurso de Çaìkara
apresenta dois níveis que se alternam:
– o nível puramente expositivo ou "objetivo", caracterizado pelo uso da terceira pessoa
(despersonalização actancial), ou então pelo plural de autor (nós), e por uma série de
enunciados de estado que constroem ou definem objetos de valor;
o nível dialógico ou de debate, caracterizado por uma debreagem de segundo grau
que instaura uma relação interlocutor / interlocutário no interior do discurso.
Podemos constatar também que o segundo nível está estabelecido numa relação
hiponímica com o primeiro, que a questão polêmica que instaura a situação de debate é
resultante de um enunciado da exposição prévia, e por sua vez incita um desdobramento do
tema em subtemas. (Muito embora seja importante observar que a resposta à questão
polêmica acaba por ser a desencadeadora de uma nova exposição, e de um novo
"apagamento" da situação de interlocução em prol da exposição "objetiva" de um novo sub-
tópico.) Dessa forma, a dinâmica “exposição questão polêmica exposição” funciona
como um recurso desencadeador de novos argumentos e reafirmação dos anteriores,
contribuindo para a progressão do tema.
ainda um outro nível presente nos textos de Çaìkara que acompanharemos nesta
tese, ao lado do vel expositivo e do nível dialógico: trata-se do nível referencial,
representado pelas alusões, esparsas nos textos, a discursos de outros oponentes e de outras
escolas rivais, e de citações recorrentes sobretudo das Upaniñad e da Bhagavad-gétä, textos
considerados irrefutáveis (citações de autoridade). Temos tal exemplo no trecho:
4. [...] “Com referência a isso há outros textos védicos: ‘É pela
luz do si-mesmo que ele se senta.’ [Båhad-äraëyaka-upaniñad 4.3.6],
‘Por sua luz tudo isso brilha’ [Kaöha-upaniñad 2.2.15; Çvetäçvatara-
upaniñad. 6.14; Muëòaka-upaniñad, 2.2.10], ‘Aceso por qual luz o sol
brilha?’ [Taittiréya-brähmaëa 3.12.9.7], etc. e na Gétä ‘[Saiba que esta
luz é minha], a que está no sol e que ilumina todo o universo’
[Bhagavad-gétä 15.12], e ‘[Assim como um sol ilumina todo o
mundo], assim aquele que reside no corpo, ó descendente de Bhärata,
ilumina todo o corpo’ [Bhagavad-gétä 13.33]. Assim também na
Kaöha, o eterno entre os efêmeros, a consciência em tudo o que é
consciente’ [Katha-upaniñad 2.2.13].”
A esse respeito, lembra-nos Greimas:
50
[...] reconhece-se a referencialização como o fenômeno da
anáfora semântica: o discurso referencial “lembrado”, forma em
expansão mas ausente, é representado, no discurso que se está
construindo, por sua forma condensada e presente. (ibid., p. 21)
Aos membros de sua cultura conhecedores dos textos citados, bem como aos eruditos
familiarizados com as escrituras e com as diversas doutrinas oponentes da época ou seja,
aos ouvintes competentes ou “ideais” projetados por Çaìkara em seu discurso –, essas
citações das escrituras, bem como as referências a doutrinas oponentes, são perceptíveis até
mesmo no vocabulário utilizado e fazem parte da competência intertextual esperada do
receptor do texto. No caso desse primeiro texto que tomamos para análise, temos como
exemplo de referência intertextual a uma doutrina oponente a seguinte passagem:
6. Da mesma forma, manasas, “da mente”, do instrumento
interno {antaù-karaëa}, é manas, a mente; porque o instrumento
interno não é capaz de realizar suas próprias funções pensar,
determinar, etc. a menos que seja iluminado pela luz da consciência.
Portanto ele é a mente da mente também. Aqui a mente e o intelecto
{buddhi} estão implicados na palavra manas [mente].
Observamos que os termos apresentados em sânscrito (manas, buddhi, antaù-karaëa)
são conceitos constituintes do modelo psicológico proposto pelas doutrinas do Säàkhya e do
Yoga-darçana, os quais idealmente deveriam ser conhecidos pelos interlocutores de um
debate (ou leitores de um texto) naquela situação cultural. Esclareceremos de forma concisa,
na segunda parte deste trabalho, tal modelo psicológico e outros aspectos pertinentes dessas
famosas doutrinas dualistas a fim de melhor acompanhar as “adaptações” feitas por Çaìkara
para inserir tais saberes herdados em seu “novo” sistema.
Ainda com relação às marcas de discurso direto, salientamos que as seqüências que
simulam diálogos diretos foram marcadas pelo editor do texto com os termos “objeção” e
“resposta” entre colchetes, a fim de facilitar a leitura e a análise desses textos. No original
sânscrito, a única marca do discurso direto e das citações é o uso do termo iti, geralmente ao
final da fala ou citação feita.
Çaìkara cita com freqüência passagens dos textos Brähmaëa, das Upaniñad e da
Bhagavad-gétä, e eventualmente cita o Mahä-bhärata e alguns Puräëa. Praticamente em
nenhuma circunstância Çaìkara se ao trabalho de identificar as fontes, que o
reconhecimento de trechos de textos canônicos era também competência esperada de seus
discípulos, adversários em debate ou leitores.
51
Sem nos atermos, por enquanto, ao assunto discutido nos parágrafos 1-4 da passagem
selecionada e à escolha dos argumentos, façamos ainda algumas observações finais com
relação a tais simulações de debate, tão freqüentes nos comentários de Çaìkara.
Primeiramente, podemos compreender as objeções e questões debreadas no texto
como projeções que o narrador faz de possíveis dúvidas do narratário, e assim o recurso ao
discurso direto auxilia na construção do efeito de sentido de veracidade e mesmo de
honestidade do argumentador em deixar claros os conceitos – pois é fato previsto entre as leis
discursivas pressupostas culturalmente na Índia, além daquelas da informatividade e
exaustividade, também a "lei da troca verbal franca e honesta" (FIORIN, 2002, p. 34) no
contexto dos debates orais e dos textos elucidativos. Afinal, ainda não chegamos na
polêmica.
8
A troca honesta de informações e o respeito ao adversário não são apenas exigências
culturalmente localizadas, como também as mesmas que se cumprem em nossa cultura
quando o auditório projetado pelo discurso manipulador é considerado erudito ou "de alto
nível". Acerca disso, podemos tomar as palavras de Perelman:
[...] o valor e a qualidade de uma argumentação não pode
medir-se unicamente pelo efeito obtido: ela depende ainda, e
essencialmente, da qualidade do auditório que se consegue ganhar
através do seu discurso. [...] Tradicionalmente, na história da filosofia,
utiliza-se a idéia de razão para designar esse auditório exigente que é o
do filósofo: o apelo à razão visa esse auditório ideal que alguns
encarnam num pensamento divino e que deve antes ser considerado
como um auditório universal. (PERELMAN: 1984, 239)
Mas a questão da presença reiterada de perguntas e objeções na elaboração desses
textos dedicados a comentar obras canônicas possui ainda outras aspectos. Já havíamos nos
referido a essa instância de objeção como sendo uma "debreagem de segundo grau que
instaura no texto um interlocutário e o transforma num diálogo direto", e que "esta formulação
antropomorfiza o anti-sujeito do saber, trazendo à tona um processo cognitivo do narrador que
8
De fato, na cultura sânscrita – e isso desde os tempos mais antigos – a lei da troca verbal franca e honesta” foi
levada às últimas conseqüências: não se encontra jamais num texto dialógico sânscrito um momento de
sarcasmo, de crítica destrutiva ou desqualificadora dirigida ao adversário, ou mesmo de emprego de palavras
ofensivas; ao contrário, os oponentes em debate demonstram um profundo respeito pelas doutrinas adversárias,
respeito esse que se expressa no estudo dedicado de seus pontos de vista para que somente então possam ser
refutados. Além disso, a análise dos contextos de debate da cultura sânscrita demonstra que a busca por uma
“verdade” definitiva acerca dos temas ou conceitos propostos está sempre acima dos “egos” sectários; prova
disso é que, na maioria desses debates, o “prêmio” do vencedor é o reconhecimento, por parte do perdedor, da
superioridade da doutrina do adversário, por meio de sua juramentada (por ocasião do início do debate)
conversão à doutrina vencedora.
52
é subjacente à narração". Sabemos que o anti-sujeito corresponde, na narrativa, ao antagonista
ou oponente, e nisso temos a confirmação de Diana BARROS (1989-1990, p. 70): "O sujeito
e o anti-sujeito, como é sabido, confrontam-se na narrativa pois estão em busca dos mesmos
valores."
O valor modal do /saber ser/, um valor de ordem cognitiva (figurativizado no conceito
de Absoluto, Brahman, e em seu correspondente no indivíduo, o ätman ou si-mesmo) é de
fato procurado por ambos os interlocutores nessa situação instaurada de diálogo. Portanto
podemos identificar nesses “objetores” também personificações do anti-sujeito do saber no
próprio Çaìkara.
O conceito de anti-sujeito aparece em trabalhos de semiótica, tanto no texto citado
acima como no artigo de Greimas intitulado De la colère (GREIMAS, 1983, p. 225-246), na
análise de textos que tratam da modalização de sujeitos da narrativa pelas chamadas "paixões
complexas". Não estamos, porém, analisando personagens numa narrativa literária, e sim um
texto expositivo e argumentativo. Entretanto, é o próprio Greimas quem nos autoriza, com seu
exemplo, a utilizar o mesmo conceito de anti-sujeito como designação adequada de qualquer
antropomorfização dos obstáculos e oposições, inclusive na construção do objeto de valor
/saber/ do sujeito de um fazer cognitivo, em seu trabalho intitulado Semiótica do discurso
científico (GREIMAS, 1976, p. 21).
No discurso analisado por Greimas, o anti-sujeito aparecia como o objeto figurativo
"dificuldades enfrentadas pelo pesquisador”. Mas, no caso do texto de Çaìkara, o fato é que o
anti-sujeito ou antagonista de suas colocações é uma debreagem dele mesmo, um "tu" que se
projeta para fora do narrador, explicitando o processo reflexivo que faz parte da aquisição
cognitiva e da construção verbal de um saber. Ou seja, essa debreagem actancial é um
exemplo de "pessoa desdobrada" (cf. FIORIN, 2002, p. 103-124).
O efeito de sentido provocado num discurso iniciado como "objetivo" e "impessoal"
com a "entrada" desses atores em situação de interlocução é múltiplo: primeiramente, um
simulacro ou tentativa de "reprodução fiel" de uma instância de enunciação, a instância do
debate oral, em que opositores de fato se enfrentam e uma situação de argumentação e
polêmica em torno de um tema é instaurada. Em segundo lugar, é um recurso retórico de
continuidade dos argumentos, semelhante ao ator disfarçado na platéia que ao palhaço a
"deixa" para a próxima piada. Em terceiro lugar, pode ser considerado também, como
expressão do processo cognitivo, uma espécie de "deliberação consigo mesmo", um falar em
voz alta e uma antecipação de argumentos típicos, por exemplo, de quem se prepara para uma
defesa de tese.
53
Com relação à questão do debate oral que simula, esse tipo de debreagem e
embreagem que instaura "eus e tus" no interior de um texto expositivo, no caso específico da
cultura indiana da época de Çaìkara e de séculos anteriores, é um pressuposto cultural que
não podemos deixar de comentar. Afinal, é fato biográfico admitido que Çaìkara se dedicou a
percorrer toda a Índia engajando-se em inúmeros debates filosóficos com quaisquer
representantes, dentre as diversas escolas da Índia de sua época, que aceitassem seu desafio.
Seu intuito era vencer os debates e propagar sua interpretação dos textos canônicos como
legítima. Assim, nos comentários redigidos para os textos canônicos, o caráter
necessariamente dialógico desses discursos é evidenciado de várias formas. Existe sempre a
presença dos discursos oponentes, e não raro essa presença é evidenciada nas tentativas de
aproximar o texto escrito da oralidade do debate público. No decorrer da obra de Çaìkara
(mais especificamente dos textos bhäñya do chamado prasthäna-traya), simulacros de
instâncias de debate temático entre três, até quatro oponentes, cada um representando uma
doutrina com seu ponto de vista diferente sobre a mesma questão. Geralmente “comparecem”
aos textos de Çaìkara com assiduidade representantes do Budismo Mahäyäna, sobretudo da
escola Yogacära, e ortodoxos adeptos do Mémäàsä, Säàkhya, Vaiçeñikha ou Nyäya-darçana.
Portanto, esse processo de debreagem / embreagem que instaura interlocutores e questões
polêmicas em pontos estratégicos de uma exposição actancialmente "neutra" é, ao mesmo
tempo que uma tipologia textual característica da cultura, também um efeito de sentido de
veracidade e um simulacro da instância de enunciação, além de "ensaio" para situações
futuras e explicitação do processo do fazer cognitivo que se expressa como o "deliberar
consigo mesmo":
[...] é legítimo que quem adquiriu uma certa convicção se
empenhe em consolidá-la perante si mesmo, sobretudo perante
ataques que podem vir do exterior; é normal que ele considere todos
os argumentos suscetíveis de reforçá-la. Essas novas razões podem
intensificar a convicção, protegê-la contra certos ataques nos quais
não se pensara desde o início, precisar-lhes o alcance. (PERELMAN e
OLBRECHTS-TYTECA, 2002, p. 49)
E aqui, novamente, o conceito de anti-sujeito socorre-nos com esta observação de
Greimas:
Pois esse casal de herói e traidor, de sujeito e anti-sujeito, não
é o resultado de uma articulação categorial binária, mas de uma
pressuposição recíproca que os torna inseparáveis, sem que um deles
apareça jamais sem a presença concomitante do outro. (GREIMAS,
1983, p. 243)
54
1.3.2 – O sujeito absoluto
Retomemos um trecho de nossa Upaniñad em análise:
1.1 Om. Pela vontade de quem a mente voa para o
objeto? Movido por quem o alento vital, o primeiro, procede? Pela
vontade de quem existe esta fala que todos falam? Quem é o ser
efulgente que dirige a visão e a audição?
1.2 Ele é a audição da audição, a mente da mente, a fala
da fala, o alento do alento, a visão da visão. Os homens sábios,
depois de renunciarem a este mundo, tornam-se imortais.
{Trecho do comentário de Çaìkara:} 1.[Objeção:] “Não está
errado afirmar que ‘ele a audição da audição’, quando a réplica
deveria ser ‘tal e qual, com tais atributos, dirige a audição, etc.’?”
2.[Resposta:] “Não está errado, pois sua distinção não pode ser
feita de outra forma. Se o governante da audição, etc., pudesse ser
conhecido como possuidor de sua própria atividade,
independentemente das atividades dos ouvidos, etc., como no caso do
ceifeiro com sua foice, então essa afirmação seria incongruente. Mas
na verdade nenhum governante da audição, etc., imbuído de sua
própria atividade, pode ser apreendido aqui, como no caso do ceifador
e sua foice, etc. Mas ele pode ser conhecido [como existindo à parte
da audição, etc.] em virtude da necessidade lógica de atividades como
a deliberação, a volição, a determinação, etc., dessas próprias coisas
compostas, como a audição, etc., precisar ser dirigida ao benefício de
alguém. Assim como no caso de uma casa, assim também aqui: de
fato alguém fora do agregado de audição, etc., por cuja necessidade
são impelidos a audição e etc. Portanto, pelo fato de que objetos
compostos existem para a necessidade de algum outro, um governante
da audição, etc., pode ser conhecido {i.e., inferido}. Daí a réplica [da
Upaniñad], ‘ele é a audição da audição’, etc., estar apropriada.”
3.[Objeção:] “Novamente, o que pode haver no significado da
expressão ‘a audição da audição’, etc.? Pois assim como uma luz não
tem necessidade de outra luz, então no contexto da audição, a audição
não pode ter necessidade de outra audição.”
4.[Resposta:] “Não existe tal erro. O significado da expressão
aqui é este: a audição, a saber, é vista como capaz de revelar seu
próprio objeto. Essa habilidade da audição de revelar seu próprio
objeto é possível apenas quando a eterna o-composta e
onipenetrante luz do si-mesmo {ätman} está lá, mas não em caso
contrário. Daí a expressão ‘audição da audição’ ser justificável. Com
referência a isso há outros textos védicos: ‘É pela luz do si-mesmo que
ele se senta.’ [Båhad-äraëyaka-upaniñad 4.3.6], ‘Por sua luz tudo isso
brilha’ [Kaöha-upaniñad 2.2.15; Çvetäçvatara-upaniñad 6.14;
Muëòaka-upaniñad, 2.2.10], ‘Aceso por qual luz o sol brilha?’
[Taittiréya-brähmaëa 3.12.9.7], etc. e na Gétä ‘[Saiba que esta luz é
minha], a que está no sol e que ilumina todo o universo’ [Bhagavad-
gétä 15.12], e ‘[Assim como um sol ilumina todo o mundo], assim
aquele que reside no corpo, ó descendente de Bhärata, ilumina todo o
55
corpo’ [Bhagavad-gétä 13.33]. Assim também na Kaöha, ‘o eterno
entre os efêmeros, a consciência em tudo o que é consciente’ [Katha-
upaniñad 2.2.13].
nos referimos anteriormente, embora em outros termos, ao fato de que o discurso
interpretativo, o discurso de comentário de Çaìkara, obedece a uma hierarquia de valores de
autoridade pré-estabelecida culturalmente. Primeiramente, diante do público-alvo de tais
interpretações e comentários, existe acima de tudo o fato cultural de que os textos a serem
interpretados as Upaniñad constituem discursos de autoridade revelada, considerados
verdadeiros por virtude própria e incontestável. Por serem eles parte constituinte do campo
discursivo das escrituras sagradas, gozam como tal das premissas de recepção próprias dos
discursos da crença compreendida aqui como “ato cognitivo sobredeterminado pela
categoria modal da certeza. (GREIMAS e COURTÉS, s/d, p.91). A certeza, por sua vez,
modalidade epistêmica passível de gradões de probabilidade, assume diante da crença do
discurso religioso sua posição de maior poder eufórico: a escritura sagrada tece enunciados de
estado de certeza incontestável. (Incontestabilidade essa, por sua vez, proveniente do próprio
objeto ou tema dos textos sagrados, o qual não pode ser alcançado por meios de percepção
sensorial ou inferência lógica – ou seja, pela ciência –, repousando forçosamente na crença no
testemunho vivencial daqueles que tiveram o contato, e portanto a prova, da existência dessa
dimensão do sagrado).
Não obstante, existe em torno de tais enunciados certos um número culturalmente
variável de fazeres interpretativos que constituem verdadeiros discursos de persuasão sob a
perspectiva de seus enunciadores, e que ao mesmo tempo submetem-se forçosamente aos
julgamentos epistêmicos, eventualmente gradativos (considerados como mais ou menos
prováveis, à luz da razão e dos fatos) de seus enunciatários. A variedade de fazeres
interpretativos diante de um mesmo texto sagrado, ou seja, tido como certo e verdadeiro por
definição, é o que constrói, no seio das culturas, a variedade correspondente de seitas ou
religiões nascidas de um mesmo conjunto inicial de escrituras, porém divergentes no que
concerne às interpretações escolhidas por seus seguidores como certas e verdadeiras.
Com isso pretendemos salientar um dos traços proeminentes do discurso de Çaìkara e
dos objetivos por detrás de tal discurso. Çaìkara não pretendia fundar uma nova filosofia, um
sistema completo e racionalmente elaborado de forma a constituir um todo coeso norteado por
um método de análise dos fatos. Com o passar dos séculos, seus discípulos levaram a cabo tal
tarefa, preenchendo as lacunas “filosóficas” deixadas pelo pensador e apontadas pelas escolas
56
oponentes no longo processo dialético que constitui o pensar filosófico. Não obstante, o
propósito de Çaìkara era o de provar, via discurso, que a sua interpretação das escrituras
certas era a interpretação certa. Num tal processo, três premissas do caminho discursivo por
ele tomado são facilmente dedutíveis: por um lado, as falhas das demais interpretações
culturalmente herdadas devem ser apontadas e corrigidas; por outro lado, não razão para
que os “acertos” igualmente herdados de outras interpretações escolas de pensamento não
devam ser aproveitados no sistema presente; e finalmente, as palavras das próprias escrituras
podem ser freqüentemente tomadas em defesa da interpretação defendida, pois são elas as
citações de autoridade verdadeiramente incontestáveis. Em outras palavras: Çaìkara sabia que
se conseguisse estabelecer “seu” Vedänta (sua interpretação das Upaniñad) como verdadeiro
por força de sua argumentação e mérito das próprias escrituras, conseguiria arrebanhar quase
sem resistência todos os ortodoxos. Por que quase? A princípio, em virtude da força e
resistência das tradições estabelecidas sobretudo a tradição ritualística, que retomaremos
na segunda parte deste trabalho.
Portanto, se por um lado notamos no parágrafo 4 do trecho do comentário de Çaìkara
o recurso às escrituras como argumento de autoridade para sancionar seu fazer interpretativo,
por outro lado temos nos parágrafos anteriores o uso de outros recursos de argumentação que
podemos chamar de “lógicos”. Primeiramente, no parágrafo 2, temos o recurso da analogia
como método de esclarecimento de uma posição. As analogias do ceifador e da casa podem
ser encontradas como exemplos no Nyäya e no Säàkhya-darçana respectivamente, como
recursos argumentativos para provar a veracidade de postulados. Assim, o ceifador e sua foice
servem ao propósito de ceifar a plantão. Não obstante, o ceifador constitui também um
composto com natureza e funções distintas daquela de ceifar, ao mesmo tempo em que detém
também essa função. A analogia pretende aqui demonstrar que, da mesma forma, o detentor
da audição é, em segunda instância, algo mais que “aquele que ouve”, e engloba em si uma
série de outras funções e características completamente desvinculadas da função de “ouvinte”.
a analogia da casa aparece no Säàkhya-darçana em defesa do postulado de que “todo
composto existe em função de algo fora de si mesmo” postulado esse repetido por Çaìkara.
Assim, a existência do composto “casa” serve ao propósito de seu morador, outro composto
completamente distinto dela: por ser composta, sua existência não deve ser compreendida
como em função apenas de si mesma. Çaìkara concorda com tais premissas filosóficas, e
portanto as aproveita em seu sistema. Porém, seu desafio interpretativo ainda não está
terminado, que pretende provar que “aquele que é a audição da audição, a visão da visão,
57
etc.” não é o mesmo tipo de sujeito que o ceifador e o morador da casa, e que a audição,
visão, etc., que tal sujeito pressupõe em si não são funções comparáveis às da foice e da casa.
De fato, o tema fundamental do discurso de Çaìkara, o objeto de valor por excelência,
é Brahman, uma totalidade única que subjaz a toda diversidade, e seu reflexo no indivíduo é
ätman, o si-mesmo. Ambos que são um e o mesmo são na verdade um sujeito absoluto
um sujeito que contém em si a totalidade subjetiva e objetiva do universo.
Perguntemo-nos então: por que, em busca de um “Absoluto”, a necessária unificação
última entre sujeito e objeto recaiu sobre o sujeito? Segundo o mais poderoso argumento da
cultura, herdado e reiterado por Çaìkara, porque a existência do sujeito não pode jamais ser
aniquilada: é necessário um “eu” para que o “eu” seja negado – portanto o “eu” nunca poderá
ser negado. O processo investigativo que, por sua vez, corroborou na cultura sânscrita, em
diversas instâncias, ou a negação do mundo objetivo, ou a diminuição significativa da
relevância das experiências dos sujeitos relativos para a averiguação de sua verdade, foi o
processo empírico de investigação do “eu” levado a cabo pelas técnicas meditativas do Yoga.
O yogin chega, em última instância, à experiência de “isolamento” (kaivalya) do princípio
subjetivo: segundo o Yoga-darçana, trata-se do asaàprajïäta-samädhi: um estado de
consciência no qual todo o mundo objetivo, incluindo todos os processos do pensamento,
desaparece, e a única experiência que resta é a experiência do sujeito desprovido de objetos de
cognição
9
.
De fato, a primeira dedução lógica, semiótica, a que se pode chegar com relação a um
conceito de sujeito absoluto é a de que ele se opõe ao sujeito relativo. Ora, o sujeito relativo
se constitui por sua relação com os objetos. Portanto, o sujeito absoluto deve se constituir, por
oposição, por sua relação consigo mesmo. Uma segunda dedução acerca de tal sujeito
absoluto, ainda norteada pelas categorias semânticas de base do processo semiótico, as quais
constituem oposições (todo conceito mental humano possui o seu contrário), é a de que, se o
sujeito relativo se desdobra em forma, localização espaço-temporal, atributos, características,
funções, etc. em outras palavras, o sujeito relativo é um composto existe com relação a algo
9
Conforme Yoga-sütra, 1.18: viräma-pratyayäbhyäsa-pürvaù saàskära-çeño’nyaù, “O outro [samädhi,
o asaàprajëäta] é precedido pela disciplina sobre a cognição da cessação, e extingue impressões latentes.” (Cf.
GULMINI, 2001, inédito, p. 145).
Conforme observa Mircea Eliade: “É impossível, por exemplo, passar ao largo de uma das maiores
descobertas da Índia: a da consciência-testemunha, a consciência desembaraçada de suas estruturas
psicofisiológicas e de seu condicionamento temporal, a consciência do ‘liberado’, isto é, daquele que conseguiu
livrar-se da temporalidade e partiu em busca da verdade, da inefável liberdade. A conquista dessa liberdade
absoluta, da perfeita espontaneidade, constitui a meta de todas as filosofias e de todas as técnicas místicas
indianas, mas é principalmente pelo Yoga, por uma das suas múltiplas formas, que a Índia acredita tê-la
conquistado.” (ELIADE, 1997, p. 14)
58
fora de si mesmo –, o sujeito absoluto, por oposição, deve ser um simples, não-composto:
como tal, não pode ser definido por nenhuma caracterização ou localização espaço-temporal.
Como afirma Çaìkara no parágrafo 2, ele é a audição da audição, etc., porque “sua distinção
não pode ser feita de outra forma”.
A objeção lançada no parágrafo 3, “assim como uma luz não tem necessidade de
outra luz, então no contexto da audição, a audição não pode ter necessidade de outra audição”
serve então como “deixa” para a reiteração de que este “ele” a quem se refere a escritura não é
um sujeito relativo, um composto, e sim o sujeito absoluto, o si-mesmo, um “eu” irredutível a
“ele”. Responde então Çaìkara: “Essa habilidade da audição de revelar seu próprio objeto é
possível apenas quando a eterna não-composta e onipenetrante luz do si-mesmo [ätman] está
lá, mas não em caso contrário.”
O processo inferencial que pode levar a razão à conceituação de um sujeito absoluto é
o mesmo dos primórdios do pensar filosófico: parte da noção de causalidade e procura o
princípio, a causa primeira, de uma rie de fenômenos. Assim a audição é função de um
sujeito ouvinte, que por sua vez se constitui de uma série de processos mentais além da
audição; há, por sua vez, um sujeito que testemunha uma série de processos mentais de um
sujeito mental que, eventualmente, também ouve. Se quisermos evitar um regresso ad
infinitum, teremos que chegar a um sujeito que preside todas as funções e características da
subjetividade, sem que se limite a qualquer uma delas. Porém, tal raciocínio não leva
necessariamente a razão humana, fundamentalmente dual, à conclusão do sujeito absoluto tal
como proposto no conceito de ätman/Brahman (e que equivale à totalidade da subjetividade
mais a totalidade da objetividade). Então Çaìkara opta por inserir a citação de autoridade das
escrituras para provar, por enquanto, a veracidade do ätman. Não obstante, antecipando
argumentos contrários, prossegue:
5.“É uma crença comumente aceita a de que a audição, etc.,
constituem o si-mesmo de todos, e de que esses [os instrumentos dos
sentidos] são conscientes. Isso está sendo refutado aqui. Existe algo
que é conhecido pelo intelecto do homem de realização, que habita no
mais profundo recesso de tudo, e que é imutável, não submetido à
decadência, imortal, sem medo e não-nascido, e que é a audição da
audição, etc. até mesmo da audição, ou seja, a fonte de sua capacidade
de agir. Assim a resposta e o significado das palavras podem
certamente ser justificados.
6.“Da mesma forma, manasas, ‘da mente’, do instrumento
interno {antaù-karaëa}, ele é manas, a mente; porque o instrumento
interno não é capaz de realizar suas próprias funções pensar,
determinar, etc. a menos que seja iluminado pela luz da consciência.
59
Portanto ele é a mente da mente também. Aqui a mente e o intelecto
{buddhi} estão implicados na palavra manas [mente].”
Novamente uma referência intertextual exige que a esclareçamos para que possamos
acompanhar o raciocínio e a “crença comumente aceita” referidos nesses parágrafos.
Primeiramente, os sistemas aqui referidos são as escolas “irmãs” do Säàkhya-yoga-
darçana. Postulam essas escolas um modelo psicológico constituído, no indivíduo humano, de
intelecto (buddhi), princípio de individuação (ahaàkära), mente (manas), 5 sentidos de
conhecimento (jïänendriya) do mundo objetivo (tato, olfato, paladar, visão e audição) e 5
sentidos de ação ou reação (karmendriya) objetiva (palavra, preensão, locomoção, excreção e
gozo). A mente (manas) é por vezes considerada o décimo-primeiro sentido, na medida em
que ela é a ponte entre o mundo objetivo apreendido e interagido e o mundo do “ser interior”,
puramente psicológico, para o qual migram as informações dos sentidos e do qual provêm as
respostas que são pela mente ordenadas ao corpo. Segundo essas escolas, a mente, manas, tem
também a função de deliberação (saàkalpa), ao realizar a distinção do objeto percebido,
discriminando-o como “uma substância particular possuindo atributos específicos”. O
princípio de individuação, ahaàkära, é o que vulgarmente (não no sentido psicanalítico)
chamamos de ego”: o “eu” pessoal e intransferível. O intelecto, buddhi, é a instância mais
profunda e abrangente: envolve memória, inteligência, determinação de conceitos, e é
também responsável pelos processos subconscientes, como os sonhos, a criação e a
imaginação. O “ser interior” puramente psicológico a que nos referimos é composto então por
manas+ahaàkära+buddhi, e é denominado nessas escolas pela expressão antaù-karaëa,
literalmente, “instrumento interno”. Encontramos esta síntese extraída da literatura sânscrita
dedicada ao Säàkhya-darçana:
“Em outras palavras, a partir do material dos sentidos, a mente
[manas] cria percepções. Estas são então transferidas ao sentido de
individuação, ahaàkära, que as considera como relativas a si ou não
relativas a si. Assim “tingidas” pela equão pessoal, [as percepções]
são em seguida tomadas pelo intelecto [buddhi], que se certifica de
sua verdadeira natureza e determina a conduta [do sujeito] de acordo
[com seu discernimento]. Tal é, em síntese, o processo de cognição
dos sentidos proposto no Säàkhya-darçana. (Anotação n. 48 ao
Säàkhya-kärikä, in SINHA, 1979, p. 25)
Nem o Säàkhya, nem o Yoga, nem o Advaita-vedänta de Çaìkara concordarão em
admitir que esse “instrumento interno” corresponda ao sujeito “verdadeiro”, que permanece
60
oculto como testemunha impassível por detrás dos processos cognitivos embora haja
diferenças fundamentais entre o conceito de ätmän de Çaìkara e o conceito de puruña do
Säàkhya-yoga-darçana, conforme veremos na segunda parte deste trabalho. Por outro lado, a
“crença comumente aceita” referida por Çaìkara diz respeito aos homens comuns de seu
tempo – não aos adeptos dessas escolas – e reflete um materialismo empírico, bem como uma
semelhança com certo ponto de vista de nossa ciência moderna de que o fenômeno da
consciência é congenial ao corpo e ao cérebro, sem que haja um princípio subjetivo imaterial
por detrás do fenômeno humano. Ao reafirmar a existência de tal princípio, Çaìkara reitera
sua oposição com relação às características do “sujeito relativo” que é o homem no mundo:
ele “[...] é imutável, não submetido à decadência, imortal, sem medo e não-nascido”.
Portanto, temos até aqui uma série de categorias opositivas de base que inauguram
nosso ätman/Brahman:
SUJEITO ABSOLUTO X SUJEITO RELATIVO
- existente por si mesmo - existente por relação com
outro (objeto)
- eterno/imortal - temporal/mortal
- onipenetrante - espacialmente delimitado
- simples (não substancial) - composto
- imutável - mutável/decadente
- testemunha de todos os processos - agente ou paciente dos
processos
- ätman/Brahman (si-mesmo) - antaù-karaëa (psique)
Outras oposições ainda virão, mas por ora bastam-nos essas. Prossigamos com a
leitura do trecho selecionado.
61
1.3.3 – Pramäëa: os limites da razão
1.3 A visão não chega lá, nem a fala, nem a mente; não
sabemos, não compreendemos como se possa ensiná-lo.
{Trecho do comentário de Çaìkara:} 7.“[...] Quando uma
palavra, expressa pelo órgão da fala, revela sua própria idéia, diz-se
que a fala chega ao objeto. Mas Brahman é o si-mesmo dessa palavra,
assim como do órgão que a pronuncia; portanto a fala não o alcança.
Assim como o fogo, que queima e ilumina, não pode queimar ou
iluminar a si próprio, da mesma forma é aqui. No mano, nem a mente.
Embora a mente pense e determine outras coisas, ela não pensa ou
determina a si mesma; pois dela, também, Brahman é o si-mesmo.
Uma coisa é objeto de cognição somente pela mente e pelos sentidos.
Como Brahman não é um objeto de percepção para esses, portanto, na
vidmas, não sabemos se ‘Esse Brahman é de tal tipo.’ Portanto na
vijänémas, não compreendemos; yathä, como; etat, este Brahman;
anuçiñyät, deve ser ensinado, instruído a um discípulo – este é o
significado. Pois algo que é percebido pelos sentidos pode ser
ensinado a outro através de categorias que denotem classe, qualidade e
ação. Brahman não está imbuído dessas categorias, por isso é muito
difícil convencer os discípulos acerca dele por meio da instrução. [...]
O conceito do sujeito absoluto, aquele que existe com relação a si mesmo, aparece
figurativizado nesses argumentos de Çaìkara por meio da analogia com o fogo: a luz do fogo
permite a percepção dos objetos ao redor, e o ato de queimar revela-se também um ato
transitivo, dirigido a um objeto fora do ser do fogo. Luz e calor só podem ser atribuídos ao
fogo por sua relação com outros objetos, mas o o que o fogo é em si e para si permanece um
mistério. Assim também um conceito de sujeito absoluto, destituído da relação com qualquer
objeto e existente em si mesmo, pode ser criado por meio da linguagem mas nunca conhecido
de fato pelos meios cognitivos habituais, que o conhecimento dos sujeitos humanos que
falam e pensam, os sujeitos relativos, é sempre fatalmente reduzido à categoria da
objetividade.
Em outras palavras, a questão que se coloca aqui é a seguinte: pode o conhecimento
racional apreender o sujeito absoluto? E a resposta é não. Uma auto-análise de processos
mentais levada a cabo por um homem é, não obstante, uma análise objetiva de uma psique
complexa, de um pseudo-sujeito traduzido num composto objetivo de processos corporais,
cognitivos, emocionais, inconscientes, etc., tornado objeto de sua própria análise análise
que, em sua totalidade, é também um objeto para um sujeito que a testemunha. O sujeito
absoluto, Brahman/ätman, é definido como a essência ou o si-mesmo de todas as coisas, e
como tal oculta-se por detrás de todas as coisas e de todos os sujeitos relativos, e “assim como
62
o fogo que queima e ilumina não pode queimar ou iluminar a si próprio”, o eu daquele que
percebe não pode ser percebido por aquele que percebe, que aquele que percebe é um
composto (antaù-karaëa, um “instrumento internodotado de sentidos voltados “para fora”),
e como tal existe por relação a algo fora de si, enquanto seu si-mesmo é simples, não-
composto (não-substância de percepção), auto-existente, intransitivo. No conceito de sujeito
absoluto até mesmo a relão mais elementar da dualidade, a relação figura-fundo, aquela que
permite a qualquer cognição dos sentidos ou do pensamento definir um objeto por contraste
com o que não é o objeto, é negada.
Isso inaugura um dilema para o homem pensante: o si-mesmo, inferido em sua
condição de sujeito absoluto, não pode ser conhecido de fato pelos seus mecanismos
cognitivos habituais, ao mesmo tempo em que também não pode ser negado, já que a negação
do “eu sou” implica necessariamente na existência de um “eu sou” que faz a negação. Não
obstante, as escrituras declaram tal si-mesmo, e os adeptos das escrituras nele crêem, com
certeza. E, como se não bastasse, alguns sábios elencados pela cultura, do passado ou do
presente de Çaìkara, afirmaram ter alcançado e estar estabelecidos na condição de sujeitos
absolutos. Como tal, tais personagens alcançaram mokña (a “liberação” do ciclo das
reencarnações nos mundos), nirväëa (a iluminação), asaàprajïäta-samädhi (o mais alto grau
de realização do Yoga, a liberação), jévan-mukti (a “liberação em vida”). O próprio Çaìkara é
referido pela cultura sânscrita como um liberado, um jévan-mukta, estabelecido em Brahman.
Portanto, um acesso ao sujeito absoluto um acesso que por um lado não deve se opor à
razão, que em Çaìkara a verdade não pode se opor à experiência, mas que, por outro lado,
lhe é necessariamente distinto em natureza na mesma medida em que a experiência de
sujeito absoluto é distinta da experiência do homem comum, prisioneiro da dualidade
cognitiva sujeito-objeto.
Não obstante esses fatos culturais incontestáveis aos textos em análise, ao
acompanharmos os escritos de Çaìkara notamos que estamos diante da argumentação de um
herdeiro da razão. De fato, ele faz hábil uso da tradição do Nyäya-darçana, o sistema de
lógica e argumentação indiano, bem como das teorias do conhecimento postuladas pelo
Sämkhya-yoga-darçana. Ainda assim, para o pensador a razão com seus limites pode e deve
servir a determinados propósitos, mas jamais intrometer-se em outros.
Como verificamos, Çaìkara propõe o estabelecimento de uma oposição básica entre
o que convencionamos chamar de sujeito absoluto e o que, por implicação, denominamos
sujeito relativo. Agora podemos concluir que cada um desses sujeitos estabelecidos em
oposição no sistema Advaita possui um domínio cognitivo, digamos, um domínio de
63
realidade, específico. A fim de melhor verificar como Çaìkara distribui os meios de
conhecimento possíveis ao homem entre esses dois distintos domínios de realidade, a absoluta
e a relativa, necessitamos fazer uma pequena digressão sobre o intertexto, sob a forma de sua
herança cultural em termos de teorias do conhecimento. A princípio, Çaìkara faz uso da
mesma classificação de meios de conhecimento que aparece no tratado do Yoga-darçana, o
Yoga-sütra de Patañjali:
pratyakñänumänägamäù pramaëäni // 1.7 //
“Os conhecimentos válidos [pramäëa] são: percepção sensorial [pratyakña], inferência
[anumäna] e testemunho verbal [ägama].” (Yogasütra, in GULMINI, 2001, inédito, p. 123)
10
Nos tratados sânscritos dedicados às áreas do conhecimento, os meios considerados
válidos para o raciocínio e a argumentação aparecem reunidos sob o nome de pram
TJ
a ou
pram
T
. As diferentes escolas de pensamento na Índia bramânica e clássica discordam quanto
ao número e aos tipos de pram
TJ
a, conhecimentos válidos ou aferições justas facultadas ao
homem em seu processo racional de apreensão e interpretação da realidade que o cerca. As
escolas “irmãs” do S
TR
khya-yoga reconhecem, ambas, que apenas três maneiras de a
consciência construir um conhecimento racional e válido do mundo. As duas primeiras são a
percepção direta proporcionada pelos órgãos dos sentidos no caso do mundo físico
(pratyakña), e que acompanha o reconhecimento e determinação de um objeto em presença; a
segunda é a inferência lógica (anumäna), utilizada no caso dos conceitos abstratos e
proposições genéricas, e que possibilita a cognição de propriedades de objetos em presença e
em ausência. Essas duas formas de conhecimento da realidade aparecem referidas nesse
trecho do comentário de Çaìkara nas expressões “uma coisa é objeto de cognição somente
pela mente e pelos sentidos” e “uma coisa que é percebida pelos sentidos pode ser ensinada a
outro por meio de categorias que denotem classe, qualidade e ação”.
Ambas as formas de conhecimento válido, a percepção sensorial e a inferência, que
aliás são aquelas sobre as quais fundamentamos nosso conhecimento científico, dizem
respeito aos saberes que têm por objeto a realidade fenomênica. São saberes objetivos válidos
e capazes de determinar as propriedades de um domínio de realidade específico, a realidade
10
Optamos neste trabalho por traduzir o termo sânscrito pramäëa pela expressão “conhecimento válido”. Num
trabalho anterior (a dissertação de mestrado intitulada “O Yogasütra, de Patañjali – tradução e análise da obra, à
luz de seus fundamentos contextuais, intertextuais e lingüísticos”, ibid.), havíamos optado pela expressão
“aferição justa”. Na verdade, “aferição seria uma tradução bastante literal da raiz , “medir, avaliar, marcar”;
pramäëa seria, de fato, a “noção correta”, a “medida justa”.
64
fenomênica, composta e multifacetada, distribuída temporalmente e espacialmente e regida
por leis de causalidade: a realidade experimentada pelos sujeitos relativos. Esses meios de
conhecimento inauguram o processo de elaboração de saberes por meio do raciocínio, o que
denominamos razão. O termo sânscrito utilizado para designar o processo racional de
obtenção de saberes e formulação de hipóteses é tarka, da raiz sânscrita TARK, “conjecturar,
inferir, raciocinar, especular, argumentar”, e as premissas desse processo lógico são tratadas
pelo Nyäya-darçana. O fato é que tarka, a razão com todos os seus procedimentos, não pode
tocar nos domínios da realidade absoluta de forma igualmente eficaz, que a razão apenas
não pode possibilitar em tal domínio de realidade aquilo que possibilita no domínio
fenomênico por meio dos pramäëa ou meios de obtenção do conhecimento válido: a
experimentação, a comparação, a dedução, a verificação objetiva. Num trecho de seu
comentário ao Brahma-sütra, Çaìkara faz justamente esta observação:
Embora seja notado que a razão {tarka} tem finalidade para
alguns contextos, ainda assim no presente contexto ela não pode
possivelmente ser imune à ineficácia; pois esse assunto extremamente
sublime, o qual trata da realidade da causa do universo e conduz ao
propósito da liberação {do saàsära, o ciclo das reencarnações
condicionadas}, não pode sequer ser conjecturado sem a ajuda dos
Veda. E dissemos que não pode ser conhecido por meio da
percepção, sendo destituído de forma, etc., ou por meio da inferência,
etc., sendo destituído de bases para a inferência, etc.”
(Brahma-sütra-bhäñya, 2.1.11, in GAMBHÉRÄNANDA, 2000, p.322;
in GRETIL, 2006, Adhyaya 2, p. 15)
Passamos já muitas páginas tratando dessa realidade absoluta, a que se refere ao
sujeito não-objetivável, e embora, com isso, não a tenhamos verificado de fato, ainda assim
construímos inferências a seu respeito necessariamente sob a semiose da oposição básica
que rege o pensamento humano –, sobre as quais discursamos verbalmente. Ora, tal
construção lingüística somente é possível por meio da terceira forma de pramäëa ou
conhecimento válido, a cognição verbal ou testemunho de outro (ägama) no nosso caso,
tornamos possível o conceito abstrato de “sujeito absoluto” por meio das declarações das
Upaniñad. Examinemos, então, o que Çaìkara tem a dizer a respeito no parágrafo seguinte de
seu comentário à Kena-upaniñad:
8.“[...] uma exceção [a essa impossibilidade de ensiná-lo] é
colocada no próximo verso [da Upaniñad]. É verdade que não se pode
transmitir o conhecimento acerca do mais elevado com a ajuda de
meios de conhecimento válido tais como a evidência dos sentidos;
65
mas o conhecimento pode ser produzido com a ajuda da autoridade
tradicional. Portanto a autoridade tradicional {ägama} é citada para
transmitir o conhecimento acerca dele.”
O termo sânscrito ägama (raiz GAM, “ir”, acrescida do prefixo ä-”, que indica um
movimento na direção do sujeito = “aproximar, chegar, alcançar; obter informação,
confirmar”) traz a acepção de “aproximão, enfoque, obtenção de conhecimento” e o
significado subsidiário, nos sistemas clássicos do Hinduísmo, de “aceitação de testemunhos
de autoridade dos sábios; aceitação das escrituras”.
Com isso, Çaìkara estabelece essa forma de obtenção de conhecimento válido como a
única forma de cognição possível, nos limites da razão humana, para construir a hipótese do
sujeito absoluto, que as Upaniñad são os textos védicos que, em sua autoridade escritural,
revelam a verdade da existência de tal domínio de realidade, não cognoscível pelos meios
habituais.
É fato que ägama ou o “testemunho autoritativo” das escrituras não pode senão
sugerir à razão do homem comum, ainda que de forma convincente àquele que crê, a
existência desse outro domínio de realidade, o Absoluto, denominado Brahman e percebido
pelo sujeito absoluto ou si-mesmo (ätman), idêntico a Brahman, como “eu sou”. Portanto, “eu
sou”, a condição de ätman ou si-mesmo, não constitui mais um pramäëa: não é apreensão
sensorial, nem inferência mental, nem aceitação de um testemunho verbal que cria um
conceito mental. Não constitui apreensão objetiva de nada. Qual é a cognição ou
conhecimento referente a esse domínio de realidade? Çaìkara denomina tal percepção do si-
mesmo de aparokñänubhüti, tulo, aliás, de um de seus tratados independentes. Examinemos
o termo: aparokña = “não invisível, de percepção imeditada” e anubhüti = “percepção,
reconhecimento”: a cognição de percepção ou reconhecimento imediato, ou seja, a “percepção
ou reconhecimento não-mediado” em oposição a todos os outros conhecimentos, sempre
mediados pelos sentidos e pelo pensamento.
Então, temos até aqui a seguinte posição do pensador quanto ao papel e lugar da razão:
66
tipo de
sujeito
domínio de
realidade
instrumentos de
conhecimento
tipo de conhecimento
relativo
jagat, “mundo
fenomênico”;
dvitéya: dual
(categorias opositivas
básicas).
domínio semiótico,
sujeito-objeto
antaù-karaëa:
instrumento
interno (=indriya,
“sentidos” +
manas, “mente” +
buddhi,
“intelecto”)
pramäëa: “conhecimento
válido ou razão” (= pratyakña,
“percepção sensorial” +
anumäna, “inferência” +
ägama, “testemunho verbal”,
que pode ser sugestivo de
Brahman)
absoluto
Brahman/ätman
Absoluto/si-mesmo
advitéya: não-dual
domínio não-
semiótico, sujeito
ätman: si-mesmo
aparokñänubhüti:
“reconhecimento imediato”,
“percepção não-mediada”
A função da razão é considerada então negativa com relação à realidade: ela não é
capaz de criar os fatos e os objetos percebidos, e sua função limita-se a avaliá-los, analisá-los,
coordená-los e fazer inferências a seu respeito agindo sempre dentro dos limites de
percepções sensoriais ou constatações prévias. Como a luz do fogo, a razão remove a
escuridão da ignorância e revela os objetos existentes, mas nada revela de sua própria
essência, e nada cria na realidade dos objetos. Portanto Brahman, a realidade absoluta, o si-
mesmo de todas as coisas, pode ser conhecido por percepção direta e não-mediada
(aparokñänubhüti), não pode jamais ser pensado, “pois a verdade da razão em si, em última
instância, é diretamente percebida, e não percebida por meio de outra razão”
(MUKHYÄNANDA, 1998, p.40), pois isso levaria a um regresso ad infinitum.
Por outro lado, já mencionados que Çaìkara considera que a verdade de Brahman, por
ser verdade, não pode contradizer as evidências da experiência. Aos sujeitos relativos,
conhecedores apenas da experiência da multiplicidade e da diferença, Çaìkara argumenta que
as evidências dos sentidos, da dualidade, não podem, em si, contradizer a afirmação da
realidade do Absoluto, do um-sem-segundo, simplesmente porque constituem cognições de
realidades de natureza distinta. Diferentes tipos de cognição produzem conhecimentos de
natureza distinta sobre diferentes objetos ou aspectos objetivos da realidade. Por exemplo,
uma percepção visual não pode contestar a realidade de uma percepção auditiva,
67
simplesmente porque são cognições distintas, e como tal revelam objetos sensíveis ou
aspectos objetivos diferentes. Da mesma forma então nenhuma razão pode provar
definitivamente a existência ou não de Brahman, pois a prova definitiva da existência do
domínio do Absoluto é acessível somente pela cognição da percepção subjetiva imediata,
aparokñänubhüti.
Não obstante, enquanto a aurora de tal percepção não surge no horizonte da
experiência do indivíduo, resta-lhe crer na verdade do testemunho dos sábios e das escrituras,
ägama, ao mesmo tempo em que deve empregar ao máximo sua razão, tarka, no processo
necessário de convencer-se intelectualmente e no caso dos instrutores e debatedores como
Çaìkara, convencer os outros da verdade da existência do domínio de realidade
testemunhado pelas escrituras e pelos sábios.
ainda algumas questões a serem levantadas acerca da eficácia relativa de ägama, a
autoridade escritural, na produção do conceito do sujeito absoluto. Mas deixemos para
acompanhar isso mais à frente, quando Çaìkara, ele próprio, tocar novamente na questão do
conhecimento veiculado pela relação mestre-discípulo.
Prossigamos por ora com o trecho seguinte de seu comentário, em que Çaìkara
procura estabelecer a identidade entre Brahman, o Absoluto que está sendo descrito pela
Upaniñad, e ätman, o “si-mesmo”, o qual não foi referido explicitamente no texto da Kena-
upaniñad. A identidade de ambos, que não foi mencionada pelo texto, precisa ser
estabelecida no plano argumentativo, caso contrário o monismo da doutrina Advaita cai por
terra. Vejamos como Çaìkara logra fazê-lo no trecho selecionado.
68
1.3.4 – Brahman pela via negativa
1.4 Ele é diferente do conhecido, e também [está] acima
do desconhecido – assim ouvimos dos antigos, que nos explicaram.
9.“O conhecido é o que está nos domínios do ato de conhecer,
aquilo que é objeto do verbo ‘conhecer’. Considerando-se que tudo é
conhecido em algum lugar por alguém, tudo o que é manifesto é
certamente conhecido. A idéia é que Brahman é diferente disso. Para
que não se deduza que nesse caso ele deva ser desconhecido, o texto
diz ‘acima do desconhecido’, daquilo que se opõe ao conhecido,
daquilo que consiste em ignorância não-manifesta, e que é a semente
do manifesto. O termo adhi, no sentido de ‘acima’, significa
‘diferente’ por uma figura de linguagem, que é sabido que qualquer
coisa que exista acima de outra é diferente daquela.
Esse verso da Kena-upaniñad exemplifica uma das mais reiteradas estruturas, dentre
as utilizadas nesse gênero de textos, para a definição do conceito de Brahman, a saber, a
definição por meio de antíteses (relação entre termos contrários) e paradoxos (relação entre
termos contraditórios). Na estrutura binária do pensamento, os termos opostos ou
contraditórios não podem coexistir num dado objeto, em virtude das próprias relações
semânticas de implicação entre os termos. Assim, no par de opostos “conhecido X
desconhecido”, infere-se que o que é conhecido não é desconhecido, e vice-versa. Os termos
contraditórios que inauguram um segundo par de opostos derivados da oposição inicial, a
saber, não-conhecido X não-desconhecido, também estabelecem uma segunda relação de
contrariedade entre si, e portanto deveriam igualmente estabelecer a impossibilidade de sua
coexistência num mesmo objeto. O quadrado semiótico que esquematiza tais relações seria
assim delineado:
conhecido desconhecido
(conjunção) (disjunção)
não-desconhecido não-conhecido
(não-disjunção) (não-conjunção)
69
Além das relações de contrariedade (oposição) dos pares horizontais e de contradição
entre os pares ligados pelas setas, também existem as relações de complementaridade
(implicação) representadas pelas linhas pontilhadas verticais: assim o desconhecido seria, por
implicação, um não-conhecido, e o conhecido seria um não-desconhecido.
Tal lógica binária do nível fundamental de significação rege a quase totalidade dos
processos de percepção, significação e compreensão de mundo que temos. E tais percepções,
por sua vez, estão perfeitamente de acordo com os fenômenos observáveis no mundo físico e
psicológico: não há, a princípio, nada que seja claro e escuro, quente e frio, positivo e
negativo, vivo e morto, alegre e triste, ao mesmo tempo. Porém, quando nos voltamos para
algumas construções da arte, da literatura, da filosofia, do mito e dos dogmas de fé,
encontramos a possibilidade da coexistência dos opostos expressa por meio de construções de
paradoxos e antíteses. De fato, conhecemos a máxima de que "o mito é a coincidência dos
opostos".
Tal coincidência de opostos manifesta num texto significa, para o analista, que se está
diante da construção de um termo complexo, ou mesmo de um termo neutro. O termo
complexo se caracterizaria por uma relação de junção dos contrários (como em conhecido e
desconhecido, simultaneamente) enquanto o termo neutro seria definido pela junção dos
subcontrários (como em não-conhecido e não-desconhecido). Então deduzimos que na
definição de Brahman em exame aqui (“diferente do conhecido, e acima do desconhecido”),
Brahman é definido sob a forma de um termo neutro, produzido a partir de uma dupla
negação: não é o conhecido e não é o desconhecido.
Greimas e Courtès, no Dicionário de semiótica, classificam os termos complexos e
neutros como pertencentes à “terceira geração dos termos categoriais” no quadrado semiótico,
e observam:
Para explicar a formação de tais termos, diferentes soluções
foram propostas. Pouco propensos a acrescentar uma hipótese a mais,
consideramos que a problemática envolvida continua em aberto, à
espera de descrições mais precisas e mais abundantes. Nem por isso
nos é dado desconhecer a importância do problema: sabe-se que os
discursos sagrados, míticos, poéticos, etc. manifestam predileção
particular pela utilização de termos categoriais complexos. É uma
questão cuja solução se tornou difícil, por implicar o reconhecimento
de percursos sintáxicos assaz complexos e provavelmente
contraditórios, os quais redundam nesse gênero de formações.
(GREIMAS E COURTÉS, s/d, p. 368)
70
De fato, são ainda escassos os estudos semióticos em torno dos mecanismos de
construção dos conceitos paradoxais e antitéticos, e em sua maioria os artigos e trabalhos
encontrados até a redação desta tese estão centrados em elementos de morfologia e sintaxe de
algumas línguas naturais, ou então em torno da análise de narrativas míticas objetos cuja
análise pode tomar caminhos bastante distintos daqueles de um texto filosófico ou conceitual
como o que temos aqui
11
. Não obstante, o próprio tema central das discussões de Çaìkara e
título do presente trabalho, “Do dois ao sem-segundo”, é parte indissociável dessa “questão
cuja solução se tornou difícil”. Não pretendemos aqui propor uma original “solução
semiótica” para a análise da formação, no nível profundo de significação, dos termos
complexos e neutros, bem porque tal monumental tarefa ainda que fôssemos capazes de
levá-la a cabo –, provocaria um desvio temático no presente trabalho, o qual pretende dedicar-
se a analisar o objeto denominado “doutrina Advaita-vedänta (conforme apresentado num
conjunto de textos) e não a metodologia de análise do objeto aplicada, denominada semiótica.
No entanto, o que consideramos relevante fazer neste trabalho é mostrar como o que já
foi deduzido em teoria semiótica de nível profundo, com relação aos termos complexos e
neutros, pode ser aplicado em nosso objeto presente. E quiçá ensaiar, ao longo destas páginas,
a apresentação de alguns possíveis caminhos para a compreensão dos termos complexos e
neutros, ao menos no discurso filosófico e teológico, conforme nos são descritos pelo nosso
próprio objeto de análise – o sistema Advaita de Çaìkara.
Acreditamos poder esclarecer mais acerca dos conceitos complexos e neutros graças
ao auxílio do próprio Çaìkara, porque ele passou pela mesma tarefa, e o estamos
acompanhando aqui: a tarefa de tomar a coincidência de opostos sugerida nas figuras
simbólicas imediatamente apreensíveis do mito e da arte, e nas frases de efeito breves e
mnemônicas, por vezes poéticas, dos textos de revelação, e expressar o mesmo conteúdo por
meio da dialética e dos argumentos longos e intrincados da razão ou seja, por meio das
categorias duais de significação presentes no pensamento. Çaìkara o fez a fim de convencer
racionalmente as mentes exigentes dos homens mais eruditos de seu tempo da existência de
uma tal instância do ser na qual os opostos deixariam de existir como tais, sem que com isso
houvesse contradição ou incompatibilidade lógica entre a instância unitária do ser e a
instância binária do estar do mundo dos fenômenos.
11
Até a conclusão do presente trabalho encontramos apenas dois textos que nos auxiliaram efetivamente na
análise da articulação do conceito de Brahman. São eles os artigos: Omnis et Totus, de Vigo BRØNDAL (1986,
p.11-18) e Le savoir et le croire, de Algirdas GREIMAS (1983, p. 115-133).
71
A princípio, a tarefa de identificação entre os opostos no eixo semântico é a de
neutralizar suas funções prévias como elementos positivos e negativos do eixo, e ao mesmo
tempo estabelecer uma categoria superior que contenha a ambos. A antítese e o paradoxo são
assim formas lingüísticas de sugestão, ao pensamento lógico/binário comum, da existência de
algo que está “acima”, ou seja, que é “diferente” da dualidade irreconciliável existente nos
fenômenos da natureza e nas inferências do pensamento usual.
Uma das questões interessantes que se colocam com relação à articulação do conceito
de Brahman, seja como neutro (“diferente do conhecido e do desconhecido”) ou como
complexo (“conhecido e desconhecido”), é que o termo assim construído é, todavia,
construído por oposição a alguma outra coisa, e portanto o conceito mental expresso
lingüisticamente permanece sempre, necessariamente, dentro das relações duais. O um, por
conter em si o dois, está acima dele ao mesmo tempo em que se lhe opõe, necessariamente,
sob o ponto de vista do dois. Aquilo que reúne em si os opostos e os neutraliza é ao mesmo
tempo uma instância superior a toda possibilidade de oposição e por isso mesmo uma
potencial oposição a todas as oposições. É como se a instância transcendental que se pretende
afirmar por meio da expressão de um termo complexo ou neutro, pela sua simples expressão,
inaugurasse uma instância superior de oposição como um de seus termos (em oposição a um
par de termos, digamos, “simples”, capazes de carregar intrinsecamente seus pares
opositivos). Ora, a intenção do Advaita é argumentar até o ponto em que possa afirmar seu
“um”, não como oposto a todos os “dois”, mas como eterna e invisível base existencial de
todos os “dois”. (E Çaìkara, plenamente ciente desses limites e armadilhas da linguagem e da
razão, sabia, por isso mesmo, o quanto teria que argumentar e quais argumentos elencar.)
Com isso chegamos a uma nova questão. É fato que o mistério de Brahman é
preferencialmente expresso nas Upaniñad como termo neutro, e não como termo complexo.
Ou seja, é preferencialmente definido por tudo o que não é (Neti, neti, exclama um sábio na
Upaniñad: “Não é isso! não é isso!”), muito mais do que pelo que é
12
. No trecho em análise,
qual seria a diferença entre dizer Brahman é o conhecido e o desconhecido” (termo
complexo) e dizer Brahman não é o conhecido e não é o desconhecido” (termo neutro)?
Parece-nos, inicialmente, que se trata sobretudo de uma diferença no efeito de sentido
produzido: o termo neutro parece evidenciar de forma mais enfática a intangibilidade do que
12
Escolhemos para nossa análise um exemplo significativo dessa construção reiterada de Brahman como neutro
(Kena-upaniñad), seguido do único exemplo que encontramos de uma definição positiva de Brahman (Taittiréya-
upaniñad).
72
está sendo designado, enquanto a opção pelo termo complexo teria enfatizado mais o seu
caráter de totalidade.
De fato, se eu afirmo que Brahman é “o conhecido e o desconhecido”, estou aí
expressando uma idéia de totalidade, uma reunião de todas as coisas que, em virtude da carga
semântica dos termos escolhidos para defini-la no nosso caso – “conhecido” e “desconhecido”
–, vai além da simples soma de todas as coisas (porque todas as coisas afirmadas como
existentes tornam-se, por isso mesmo, coisas “conhecidas”, quer por percepção, quer por
inferência, quer por imaginação ou criação mental); e o “desconhecido” incluído num tal
conceito complexo vem acrescentar à sua totalidade atualizada uma totalidade potencial,
virtualmente inesgotável.
Quando, por outro lado, escolho reunir os dois subcontrários do eixo semântico dado –
“não-conhecido” e “não-desconhecido” –, construindo com isso um termo neutro, é o efeito
de sentido de intangibilidade ou impossibilidade de definição exata ou satisfatória dessa
totalidade que vem à tona na expressão resultante. Tenho novamente uma totalidade, sem
dúvida, mas uma totalidade que não se expressa mais como junção ou combinação das partes
contrárias (junção das coisas “conhecidas” e “desconhecidas”), e sim como uma espécie de
subtração ad infinitum das partes designáveis como contrárias. É o famoso neti, neti! das
Upaniñad Não é isso! Não é isso!”: não é nada que se possa conceber, nada que possa ser
categorizado. É o TODO, mas nesse TODO não restam semelhanças com nenhuma de suas
partes. A totalidade assim expressa aponta para uma grandeza de natureza absolutamente
distinta da de quaisquer de suas partes; uma grandeza que, assim definida pela junção de duas
negações de categorias fundamentais, permanece intangível.
Em seu artigo Omnis et Totus, o lingüista dinamarquês Vigo BRØNDAL faz uma
análise das idéias de totalidade conforme expressas em algumas línguas naturais por meio do
sistema pronominal. Assim, ele encontra no latim, francês e inglês, dois tipos distintos de
totalidade expressos, respectivamente, por:
a) totus, entier, whole (TODO, TUDO: uma totalidade integral);
b) omnis, tout, all (TODOS: uma totalidade numérica).
Ao analisar ambos os conceitos de totalidade expressos pelos termos, Brøndal
comenta:
Totus, termo integral [...] exprime uma totalidade como
negação das unidades independentes. Sublinha a absorção dos
indivíduos isolados numa massa indivisível. Um todo nesse sentido é
73
conhecido como um bloco inteiro onde as partes são indiscerníveis ou
dominadas.
Omnis, termo numérico [...] designa ao contrário uma
totalidade mais matizada ou diferenciada. Exprime a reunião de
indivíduos dentro de um grupo ou comunidade. As partes
componentes são reconhecidas, por um lado, como reais [...], e por
outro lado, como formando um conjunto [...] (BRØNDAL, ibid., p.
15)
Traçando um paralelo entre as constatações acerca desses termos no latim, francês e
inglês feitas por Brøndal no campo das línguas naturais e as constatações que até aqui fizemos
acerca das construções dos termos neutros e complexos, parece-nos que a junção de contrários
que constrói um termo complexo aponta para a idéia de totalidade integral como a expressa
por totus, entier, whole, tudo/todo”. Por outro lado, a série omnis, tout, all, todos” a
totalidade numérica, o grupo ou agrupamento de elementos cuja totalidade corresponde
simplesmente à soma de suas partes integrantes e exclui todas as partes antitéticas –, seria
construída por outros enunciados de estado no interior do texto, os quais, por sua vez, não
envolveriam a coincidência ou coexistência de opostos. E finalmente é possível que a
totalidade expressa pelo termo neutro “não é isso e não é o contrário disso” –, construída
verbalmente com a junção dos subcontrários de um dado eixo semântico, não possua
equivalentes nos sistemas nominais e pronominais das línguas naturais justamente porque o
que expressa é “não-parte” do eixo semântico, é inexprimível. Isso seria uma instigante
hipótese para aferições futuras.
As constatações que aqui fizemos acerca da semiose desses termos complexos e
neutros talvez possam ser aplicadas na análise de outros os das nguas naturais, os dos
mitos, da poesia, da religião, da filosofia. Seriam eles sempre redutíveis, na análise do nível
fundamental de significação, às categorias de totalidade integral, no caso dos termos
complexos, e totalidade intangível, inexprimível, no caso dos neutros? Deixamos aqui apenas
sugestões de hipótese aos teóricos em busca de universais de análise, e prosseguimos com a
análise de nosso objeto particular, Brahman, e a articulação de sua totalidade.
Veremos na segunda parte deste trabalho como ambos, intangibilidade e totalidade
integral, são valores investidos no conceito de Brahman conforme articulado pelo sistema
Advaita de Çaìkara. Mas podemos começar desde a acompanhar seu processo de
decifragem do “enigma” Brahman no trecho de seu comentário que analisamos aqui. Assim,
temos suas palavras:
74
Para que não se deduza que nesse caso ele deva ser
desconhecido, o texto diz “acima do desconhecido”, daquilo que se
opõe ao conhecido, daquilo que consiste em ignorância não-manifesta,
e que é a semente do manifesto.
Verificamos que os termos “conhecido” e “desconhecido” recebem novos
investimentos semânticos: são eles o “manifesto” (vyäkåta) – o mundo objetivável (“objeto do
verbo conhecer”) e o “imanifesto” (“ignorância não-manifesta”, avyäkåtävidyä),
respectivamente. Porém, no momento em que toma o par de opostos expresso na Upaniñad e
lhe confere novos significados, Çaìkara acrescenta, com relação ao “desconhecido”, “[...] e
que é a semente do manifesto (vyäkåta-béja). Por implicação, então, o desconhecido é na
verdade a semente, a origem, do conhecido; ora, se um origina o outro, eles não estão mais no
mesmo nível ou eixo semântico. Ou seja, com essa simples expressão, Çaìkara desmancha”
o termo neutro, uma estrutura de junção de subcontrários de um mesmo eixo semântico,
característica dos discursos de revelação que interpreta, e estabelece em seu lugar uma
gradação hierárquica, característica do discurso racional, sistêmico. O imanifesto continua se
opondo, de certa forma, ao manifesto, e o desconhecido ao conhecido, mas eles não estão
mais no mesmo vel. É um fato notório que, enquanto um texto de revelação, inserido no
âmbito do sagrado, expressa o mistério do inexprimível, um “sistema metafísico”, ainda que
dedicado à interpretação do mesmo texto sagrado, pretende desvendá-lo, torná-lo articulável
pelo pensamento racional.
Compreender o “manifesto” como sinônimo do “conhecido” não nos é tarefa cultural
difícil. Por implicação, não teremos dificuldade em aceitar também o “desconhecido” como
“imanifesto”. Porém a expressão “ignorância o-manifesta (avyäkåtävidyä) escolhida por
Çaìkara é mais do que um oposto logicamente implicado: ela remete a uma outra oposição
culturalmente autorizada e pressuposta no Advaita, uma oposição entre sabedoria e ignorância
diferente daquela que usualmente construímos. Expliquemos.
Nosso conhecimento de mundo cotidiano leva-nos a crer que o que por nós é tido
como conhecido (“o objeto do verbo conhecer”) constitui um “saber”, e por conseqüência o
“ignorar” estaria diretamente relacionado ao desconhecido na condição de “objeto do verbo
conhecer ainda não apreendido”. Porém, sob o ponto de vista Advaita, tanto o que chamamos
de conhecido como o que chamamos de desconhecido constituem ambos apenas dois aspectos
diferentes e complementares da mesma “ignorância” (avidyä); o oposto disso, a “sabedoria”
ou “conhecimento” (vidyä), é o conhecimento de Brahman/ätman.
75
Essa eterna ignorância do sujeito relativo com relação ao si-mesmo é compreendida
como efeito de Mäyä: uma espécie de véu que oculta à consciência a percepção do si-mesmo
e ao mesmo tempo projeta, em sua tela de tempo, espaço e causalidade, as percepções duais
ou relativas. Para o Advaita, os fragmentos de percepção, dentro dos domínios do tempo e do
espaço, que formam o conjunto de conhecimentos de uma dada consciência (sujeito relativo),
constituem o “conhecido” ou “ignorância manifesta”; todos os outros conhecimentos que
ainda não fazem parte do universo cognitivo dos sujeitos relativos (quer sejam experiências
oriundas de percepções sensoriais, inferências, testemunhos verbais, criação ou imaginação)
constituirão, por sua vez, o “desconhecido” ou “ignorância não-manifesta”. O oposto dessa
ignorância do sujeito relativo será unicamente o conhecimento do sujeito absoluto ou si-
mesmo (Brahman/ätman), e nenhum outro. Essa é uma das razões pelas quais Çaìkara utiliza
a expressão “ignorância não-manifesta” para se referir ao desconhecido, e faz com que o
conhecido daí derive. Na segunda parte deste trabalho trataremos da elaboração do conceito
de Mäyä, peça-chave das articulações do Advaita, e então as observações aqui feitas serão
mais bem esclarecidas. Por ora, retomemos o argumento de Çaìkara:
10. Tudo o que é conhecido é limitado, mortal, e cheio de
miséria; e portanto deve ser rejeitado. Então quando se afirma que
Brahman é diferente do conhecido, isso significa afirmar que ele não
deve ser rejeitado.
Çaìkara ecoa as vozes de séculos de sua cultura; nada do que ele diz soaria estranho
ou novo a qualquer de seus ouvintes, nem poderia ser objeto de contestação. “O sofrimento
existe” foi a primeira das quatro nobres verdades enunciadas pelo Buddha, cerca de 1.200
anos antes de Çaìkara. “A prevenção permanente das três formas de dor é o supremo
propósito da vida” é o primeiro sütra do Säàkhya-pravacana-sütra, o principal tratado do
Säàkhya-darçana. Devido às dores causadas pelas impressões latentes e ao sofrimento
decorrente das transformações, e em face da contrariedade dos movimentos dos aspectos
fenomênicos (guëa-våtti), os sábios perspicazes podem constatar que, de fato, tudo é dor”
declara o sütra 2.15 do Yogasütra, o tratado do Yoga-darçana (cf. GULMINI, 2001, p. 203).
Esses são apenas alguns exemplos pontuais.
A constatação de que o “manifesto”, a vida do homem no mundo, é uma condição
dolorosa por ser “limitada, mortal e cheia de miséria” foi um dos principais aguilhões, na
Índia, para o desenvolvimento das escolas de pensamento, tanto quanto o foi para o
desenvolvimento religioso. Era necessário, sábio e louvável encontrar uma saída definitiva de
76
tal condição. E, desde as Upaniñad, muitos e muitos homens lograram tê-la encontrado.
Brahman, a saída segundo, entre outros, o Advaita-vedänta, é o contrário da miséria humana,
o “conhecido” é portanto ilimitado, imortal, pleno de felicidade sem fim. E por isso “não
deve ser rejeitado”. Continua Çaìkara:
Da mesma forma, quando se afirma que ele é diferente do
desconhecido, significa afirmar que ele não é algo a ser obtido. Pois é
para obter um efeito que alguém diferente dele adquire alguma outra
coisa que lhe sirva como causa. E nada diferente [do conhecedor]
precisa ser adquirido para servir a qualquer propósito distinto do
conhecedor.
O desconhecido, “ignorância não-manifesta”, pode se tornar conhecido ou manifesto,
por exemplo, por meio de um ato de criação. Assim uma paisagem jamais imaginada ou um
artefato nunca antes pensado podem vir a existir (tornarem-se manifestos) pela criação
visionária de um artista ou engenheiro, por exemplo. A manifestação ou “objeto do verbo
conhecer” pertence ao universo da dualidade, da relação sujeito-objeto, e está sempre sujeita
às leis da mainfestação ou propriedades de mäyä, a saber: tempo, espaço e causalidade. “Pois
é para obter um efeito que alguém diferente dele adquire alguma outra coisa que lhe sirva
como causa.” Porém, no caso do sujeito absoluto, Brahman/ätman, não relação sujeito-
objeto, e portanto o conhecimento de Brahman/ätman não pode ser alcançado objetivamente;
além disso, o conhecimento do si-mesmo se opõe ao “conhecido” (‘as possíveis manifestações
da “ignorância não-manifesta”) justamente por não existir dentro do domínio das relações de
tempo, espaço e causalidade (“nada diferente precisa ser adquirido para servir a qualquer
propósito distinto do conhecedor”).
10. [...] Assim, pela afirmação de que Brahman é diferente do
conhecido e do desconhecido, o que por sua vez nega a Brahman a
condição de objeto a ser adquirido ou rejeitado, o desejo do discípulo
de conhecer Brahman objetivamente é destruído, pois Brahman é não-
diferente do si-mesmo {ätman}. Pois nada além do próprio si-mesmo
pode ser diferente do conhecido e do desconhecido. Assim segue que
o significado da sentença é de que o si-mesmo é Brahman. E isso
também procede de textos védicos como: ‘Este si-mesmo é Brahman
[Mäëòükya-upaniñad, 2; Båhad-äraëyaka-upaniñad, 2.5.19 e 4.4.5];
‘O si-mesmo que é intocado pelo erro’ [Chändogya-upaniñad, 8.7.1];
Brahman que é imediato e direto o si-mesmo no interior de tudo’
[Båhad-äraëyaka-upaniñad, 3.4.1], etc.
Aqui temos a porção conclusiva dos argumentos desse trecho do comentário de
Çaìkara ao verso da Kena-upaniñad. Seu principal intuito foi o de provar que a definição
77
“negativa” de Brahman como ”é diferente do conhecido e acima do desconhecido” significa,
em última instância, dizer que Brahman é idêntico ao si-mesmo, o sujeito absoluto, e como tal
não pode ser alcançado como objeto do pensamento. (Ou seja: não posso afirmar que a
verdadeira natureza do meu “eu” seja por mim plenamente conhecida, nem desconhecida.)
Procuramos acompanhar como tal interpretação depende do estabelecimento de determinados
valores para os termos “conhecido” e “desconhecido”, sem os quais a argumentação não
poderia alcançar tal conclusão com sucesso. Não obstante, as provas conclusivas finais, no
movimento circular “revelação – argumentação revelação”, são citações de autoridade
recolhidas das próprias Upaniñad, os textos de revelação que portam o estatuto cultural de
verdade. Vejamos como Çaìkara prossegue em sua argumentação.
78
1.3.5 – Ägama, “assim ouvimos dos antigos”: o crer e o saber
11.“Dessa forma, o texto ‘Assim ouvimos dos antigos’ mostra
como, por meio de uma sucessão de preceptores e discípulos, foi
gerado o conteúdo da sentença que estabelece como Brahman este si-
mesmo de tudo, o qual é destituído de quaisquer características
distintivas, e é a luz da pura consciência. Além disso, Brahman deve
ser conhecido apenas através da instrução tradicional dos preceptores
e não por meio da argumentação, nem pelo estudo, inteligência,
grande erudição, austeridade, sacrifícios, etc.[...]
O trecho sugere-nos duas questões relevantes, que devemos analisar melhor: em
primeiro lugar, temos o fato cultural da transmissão dos saberes relativos a ägama – a
revelação das escrituras – por meio de “uma sucessão de preceptores e discípulos”; em
segundo lugar, Çaìkara novamente reitera nesse trecho a ineficácia de uma série de outros
procedimentos (“argumentação, estudo, inteligência, erudição, austeridade, sacrifícios, etc.”)
para o alcance desse saber sagrado. Comum a ambas as questões temos o tema do saber
relativo ao sujeito absoluto, Brahman/ätman, posto em oposição irreconciliável com os
demais saberes possíveis ao homem, tanto em método de obtenção como em natureza do
saber obtido. Verifiquemos então essas questões.
É fato que em nossa cultura de chegada deparamo-nos com uma oposição, digamos,
“clássica”, entre os discursos da crença e os do saber, sendo aos primeiros imediatamente
atribuído o campo discursivo da religião, e aos últimos o campo da ciência. Em outros termos,
nossa expectativa culturalmente construída é a de que podemos diferenciar sem muita
dificuldade, mediante um elenco prévio de características até certo ponto estereotipadas, os
textos “dogmáticos/mítico-religiosos” dos “racionais/histórico-filosóficos”. Assim, teríamos
inicialmente:
1 campo discursivo da “religião”: textos “dogmáticos” (privilegiam a
autoridade/verdade obtida pela citação de textos de revelação); persuadem por meio de um
/fazer-crer/; podem apresentar, no nível profundo de significação, descrição de objetos
complexos ou neutros (identidade de contrários ou sub-contrários).
2 campo discursivo da “ciência”: textos “racionais” (privilegiam a
autoridade/verdade obtida pela argumentação baseada na experimentação empírica e/ou na
lógica inferencial); persuadem por meio de um /fazer-saber/; freqüentemente apresentam, no
nível profundo de significação, a opção por um dos termos do eixo semântico, com a
conseqüente negação da validade de seu contrário.
79
A oposição não é de todo condenável, uma vez que a distinção entre uma narrativa
mítica e um ensaio filosófico nos parece bastante clara. Não obstante, propomo-nos neste
momento a questionar até que ponto nossas categorizações pré-concebidas são aplicáveis sem
reserva diante de textos da natureza dos que examinamos aqui – os textos de Çaìkara.
Em primeiro lugar, existe o fato de que, em nossa cultura, atribuímos ao discurso
mítico e religioso o estatuto do crer e o marginalizamos, colocando no pólo positivo ou
eufórico do eixo o discurso científico que não admite coincidência de opostos e atribuindo-lhe
o estatuto do saber. Num artigo publicado em 1983 no livro Du sens II, intitulado Le savoir et
le croire ("O saber e o crer"), Greimas reconhece aí a tendência cultural subjacente e observa,
entre outras coisas, que:
[...] não é apenas esta ou aquela substância do conteúdo que
determina a relação cognitiva que o sujeito mantém com ela, mas, ao
contrário, é a forma do conteúdo: assim, o exame das formas de
organização do universo cognitivo pode nos ensinar acerca das partes
que nele pertencem ao saber e ao crer.
Também, ao nos referirmos aos sistemas de crença tanto
quanto aos sistemas de conhecimento, da mesma forma que aos
processos que eles engendram ou sancionam, estaremos tratando, de
acordo com Jean-Pierre Vernant (Divination et Rationalité) de tipos
distintos de racionalidade, muito mais do que da razão excludente da
fé. (GREIMAS, 1983, p.126)
Na tipologia sugerida em seguida por Greimas, observamos que a Upaniñad e o
comentário de Çaìkara que analisamos aqui constituem, em sua cultura de origem, discursos
do saber, cujo conteúdo complexo assume lingüisticamente a forma da coincidência dos
opostos; trata-se, portanto, não de discursos míticos, e sim de uma forma de racionalidade que
Greimas classificará como "racionalidade paradigmática" (ibid., p. 126).
Com base ainda nesse artigo, podemos concluir finalmente que a distinção que
usualmente fazemos entre os discursos do crer (o relato mítico, a religião e alguns sistemas
filosóficos que justamente tratam de conceitos considerados como "não-verificáveis"
empiricamente) e os do saber (os discursos ditos "científicos") é uma falsa distinção ou,
melhor dizendo, apenas mais um efeito de veracidade criado nos discursos privilegiados em
nossa cultura –, característica apenas de uma visão de mundo e de um momento cultural
específicos. Na verdade, devemos concordar que um sujeito não pode ser persuadido a
/querer-saber/ se, por sua vez, não estiver previamente modalizado num /poder-crer/ na
80
eficácia ou importância daquele saber, e essa crença ou descrença é determinada pelos demais
discursos de sua cultura. Por outro lado, aquele que detém um /saber-fazer/ ou um /saber-ser/
pode manipular o sujeito que primeiramente /crer/ para depois realizar o percurso de
aquisição daquele /saber/. Assim o /crer/ persuade e determina o percurso da busca do /saber/,
e o /saber/ determina a sanção positiva do /crer/. No referido artigo, comenta ainda Greimas:
[...] somos obrigados a admitir a existência de uma oposição entre, por
um lado, o binarismo lógico e, por outro, a “estrutura do misto” da
filosofia pré-socrática, presente até os nossos dias como a
“coexistência dos contrários” nos estudos mitológicos. (ibid., p. 127)
A exemplo da filosofia pré-socrática na Grécia, é importante observar que, do lado da
Índia, a "estrutura do misto" é, desde as Upaniñad, um dos recursos preferidos para tratar do
objeto complexo (ou neutro!) Brahman, conceito discutido em igualmente complexas
abstrações mentais que não constituem discursos da ordem do mito: ao contrário, são
especulações de caráter filosófico. Nesse caso, a construção de um objeto complexo ou neutro
como o é Brahman/ätman é uma necessidade diante do que se pretende expressar com o
conceito: uma instância na qual toda dualidade e transitividade deixam de existir. Como já
observamos no capítulo 1.3.4 (“Brahman pela via negativa”), a totalidade incognoscível
assim conceituada Brahman é o Absoluto, nada mais existe fora dele que possa se lhe opor
ou contrastar opõe-se às demais cognições de totalidades do mundo natural e empírico, da
mesma forma que o sujeito absoluto, sem mundo objetivo, opõe-se à relação sujeito-objeto
dos sujeitos relativos.
Conseqüentemente, os métodos cognitivos empregados para o alcance desse /saber/ da
natureza de Brahman não podem ser os mesmos que permitem o acesso a qulaquer outro
/saber/ do mundo dos homens. E por essa razão a “sucessão de preceptores e discípulos”
assume, no caso da tradição sânscrita, um caráter iniciático que a distancia da relação usual
entre instrutor e aprendiz observada no processo de aquisição de qualquer outra competência
cognitiva.
O termo sânscrito guru significa, a princípio, qualquer professor ou instrutor de
qualquer área do conhecimento; o dicionário MONIER-WILLIAMS (2002, p. 359) aponta,
dentre outros, o significado de "qualquer pessoa venerável ou respeitável". Nesse sentido há o
guru de dança, de matemática, de gramática, de medicina, etc. Entretanto, paralelamente a
esse significado primário, o termo também designa um tipo muito especial de professor ou
preceptor: o mestre do conhecimento místico, do conhecimento de Brahman com essa
81
acepção, aliás, que o termo chegou a nós no Ocidente moderno). Esse é o significado que
compreenderemos aqui pelo termo guru, traduzido por “preceptor”, que Çaìkara tratou
exclusivamente desse conhecimento da ordem do sagrado, tendo sido ele mesmo um grande
guru.
A princípio, o /saber-fazer/ transmitido por um professor comum é um objeto de valor
modal capaz de produzir determinadas competências consideradas desejáveis por aquele que
se submete à instrução. Por outro lado, o mestre no conhecimento de Brahman, no caso da
tradição indiana, confere ao discípulo, não um /saber-fazer/ de ordem secular, como cozinhar,
construir uma carroça ou escrever um poema ou seja, um saber estabelecido na relação
transitiva sujeito-objeto –, e sim um /saber-ser/ de ordem ontológica, relativo às esferas
sagradas ou supra-mundanas, conforme concebidas pela cultura – Brahman, o saber do sujeito
absoluto, não-transitivo, sem objetividade. Tal saber não engendra "fazeres" capazes de
modificar objetos do mundo, mas destina-se à tarefa de modificar homens no mundo: o /saber-
ser/ que o guru confere é capaz, ao ser adquirido, de modificar de forma permanente e
irrevogável a totalidade do ser do discípulo, incluindo suas percepções do mundo ao seu
redor, e transmutando-o, inclusive, num novo guru potencial. É nesse sentido que não nos
cabe aqui falar de professores e alunos, ou de instrutores e aprendizes, que se encontram e
mantém contato durante o período de aprendizagem para depois se separarem, ao final do
percurso de aprendizado, a fim de que o professor receba novos alunos e os alunos formados
deixem o espaço escolar e exerçam no mundo suas habilidades recém-adquiridas. Estamos, ao
contrário, tratando de um saber sagrado que se revela, diante dos demais discursos do mundo,
como um saber secreto, compartilhado por um grupo fechado de "conhecedores do mistério",
e que comporta, não raro, juramentos, ritos de iniciação e uma comunidade hermética de
iniciados. Tratamos aqui, portanto, de mestres e de discípulos, cujo relacionamento recíproco,
uma vez estabelecido, jamais pode ser desfeito. O mestre ou guru, nesse caso, é
necessariamente um homem incomum: ele sabe o que os outros não sabem, o que não
vêem, compreende o segredo sagrado (o que sem parecer" para os que não são iniciados),
desvenda o mistério da vida e da morte, manipula as forças que manipulam os homens
comuns. E, não raro, é ele quem determina quem o sucederá, ou, diante dos "sinais"
manifestos em outro homem e por ele competentemente diagnosticados, assume a tarefa de
treiná-lo em seu saber peculiar e torná-lo o "homem incomum" seguinte de sua comunidade, e
o continuador da tradição.
Num nível profundo, o saber relativo ao sagrado se articula em oposição aos demais
saberes da cultura; é algo além e atemporal que se opõe em natureza às dimensões
82
cognoscíveis do espaço e do tempo mundanos; é o objeto inapreensível em oposição aos
objetos mensuráveis, o saber relativo à morte em oposição aos saberes da vida. Embora
secreta e misteriosa, a existência dessa dimensão sagrada e dos homens que a sabem é na
verdade fundamental em qualquer cultura humana (aqui compreendida como sistema
semiótico), assim como a morte (já que o homem é um animal consciente da inevitabilidade
de sua própria morte, e precisa, portanto, significá-la). A forma como cada cultura revestirá de
conteúdos e imagens esse aspecto de sua totalidade poderá diferir, mas o objeto de valor
sagrado e os homens dele encarregados sempre estarão lá.
Na Índia antiga, clássica e medieval (e de certa forma, até a contemporânea), o objeto
de valor modal que podemos definir como o saber-ser do que é eterno, sagrado e imortal foi
particularmente enfatizado, buscado, especulado, desenvolvido e privilegiado em comparação
aos outros saberes. Ao lado da reiteração de que tal saber não pode ser obtido pelos meios
cognitivos habituais do homem comum (ou seja, pelo pensamento e pela ação), os textos
sânscritos dedicados às especulações sobre tal saber, a partir das Upaniñad, afirmam que é
necessário ao discípulo obter a orientação e a iniciação por parte de um guru que o possua
(ou, melhor dizendo, alguém "transmutado" por esse /saber-ser/), que sua posse provoca
uma transformação total no ser que o possui. Brahman/ätman é a denominação dada a essa
dimensão do sagrado no contexto que analisamos aqui, o Advaita-vedänta.
O /saber-ser/ da natureza de Brahman/ätman é secreto, não porque não deva ser
conhecido pelos homens na verdade, ele constitui a natureza última de todos os homens e
sim porque não pode ser conhecido pela maioria dos homens: os homens comuns não estão
suficientemente qualificados para um tal saber, já que dispõem apenas dos recursos cognitivos
situados aquém do objeto sagrado "absoluto" e capazes de cognições apenas de objetos que se
situam em direção oposta (o manifesto exteriormente) com relação ao si-mesmo (o imanente,
interior). A mente, a percepção sensorial, a inferência lógica não podem alcançá-lo, pois
como vimos estão apoiadas numa síntese máxima que é ainda dualidade, diferenciação,
contraste ou oposição. Do papel do guru, homem incomum e incompreendido mas que a
tudo compreende, capaz, num discípulo qualificado, de produzir a transmutação cognitiva do
/saber-ser/.
O alcance e conhecimento dessa dimensão sagrada e unificadora da existência, um dos
objetos de valor mais desejáveis do universo cultural indiano, implica o mokña, a "liberação"
dos ciclos eternos do saàsära, a roda das transmigrações/ reencarnações à qual todo ser vivo
está preso até que alcance esse que é considerado o saber mais elevado de todos os mundos.
Tal é o objeto de valor supremo dos dicursos de Çaìkara, o objeto para o qual se estabelece a
83
relação guru-discípulo. Em seu tratado Viveka-cüòä-maëi (“A jóia prístina da sabedoria”),
Çaìkara observa:
O sucesso depende essencialmente de um aspirante qualificado;
tempo, lugar e outros meios são apenas elementos auxiliares. (Viveka-
cüòä-maëi, estrofe 14, in MÄDHAVÄNANDA, 2000, p. 6)
Podemos inferir que quanto mais elevado o saber desejado, maiores são os pré-
requisitos necessários para que o candidato a tal saber seja aceito pelo mestre e bem-sucedido
em seu treinamento. Por outro lado, o mestre detentor de um tal saber também apresenta
competências acima da condição do homem comum: suas competências são evidentes (já que
se trata de um /saber-ser/) e funcionam como a persuasão final ao buscador, dizendo-lhe que
finalmente ele encontrou quem possui o que deseja, um saber ou seja, uma condição de ser
idêntico aos discursos mais exaltados de sua cultura que falam da identidade com
Brahman/ätman, como esta estrofe de Çaìkara:
Eu sou verdadeiramente Brahman, o Um-sem-segundo, que é como o
céu, sutil, sem princípio nem fim, no qual todo o universo, do
indiferenciado até o corpo grosseiro, não é senão uma sombra. (ibid.,
estrofe 512, p. 190-191)
Mas... e o discípulo, o buscador de Brahman? Sem dúvida ele deve ter qualificações,
competências prévias para iniciar, com alguma chance de sucesso, essa jornada cognitiva
última rumo ao saber "incognoscível". Na verdade, se o discípulo não for suficientemente
qualificado, o guru não o aceita, e a literatura sânscrita é abundante de relatos de "testes" e
"tarefas" que o neófito deve executar para provar seu merecimento à instrução derradeira,
bem como das armadilhas cognitivas que aguardam o discípulo excessivamente confiante em
seu discernimento racional. Assim, num outro trecho de seu comentário à Kena-upaniñad,
Çaìkara observa:
Apenas o objeto cognoscível que se encontra nos domínios das
cognições {relação sujeito-objeto} pode ser minuciosamente
conhecido, assim como uma substância inflamável pode ser
consumida pelo fogo que a queima, o que não acontece com a própria
essência do fogo. O propósito estabelecido de todas as Upaniñad é que
o si-mesmo {ätman} de todo conhecedor é Brahman. [...] Pois o
conhecedor não pode ser conhecido pelo conhecedor, assim como o
fogo não pode ser queimado pelo fogo que queima; e não outro
conhecedor diferente de Brahman para quem Brahman possa ser um
[objeto] conhecível separadamente. [...] E sabe-se que, na ocasião em
84
que foi declarado por Prajäpati: “A pessoa que é percebida no olho
esse é o si-mesmo [ätman]. É imortal e sem medo esse é Brahman.”
[Chändogya-upaniñad, 8.6.4], Virocana, embora fosse filho de
Prajäpati, erudito e rei dos demônios, ainda assim, devido aos seus
defeitos naturais, compreendeu o contrário do que estava sendo
ensinado, que um objeto contrário ao ätman, isto é, o corpo, era o
ätman. Da mesma forma Indra, o rei dos deuses, não pôde
compreender quando instruído uma, duas, três vezes; somente na
quarta vez, quando seus defeitos naturais foram removidos, é que ele
pôde compreender o mesmo Brahman que já havia sido descrito desde
o início. Na vida comum também se observa que, dos vários
discípulos que ouvem um mesmo preceptor, um compreende
acuradamente, outro inacuradamente, outro compreende o contrário, e
outro ainda não compreende absolutamente nada. O que dizer então da
compreensão da verdadeira natureza do si-mesmo, a qual está além
dos sentidos? Nessa questão, de fato, todos os pensadores, quer
acreditem em sua existência ou não-existência, incorrem em erros.”
(Kena-upaniñad, 2.1, in GAMBHÉRÄNANDA, 2002, p.58-60; in
ÇÄSTRIËÄ, 2000, p. 23-25 )
Como o saber relativo a Brahman, o /saber ser/ do sujeito absoluto, não pode ser
objetivamente alcançado, a implicação disso no sistema Advaita é a negação, por parte de
Çaìkara, da possibilidade de o culto religioso tradicional, dirigido a uma divindade exterior ao
cultuador, produzir esse efeito. Então, no trecho seguinte de nossa seleção de seus
comentários à Kena-upaniñad, Çaìkara observa o mesmo “defeito cognitivo” de identificação
do si-mesmo sucessivamente com o corpo, a mente, alguma divindade exterior, etc.:
12.“Tendo sido estabelecida a idéia de que o si-mesmo é
Brahman por meio da sentença ‘Ele é diferente do conhecido e
também acima do desconhecido’, o ouvinte pode ter esta dúvida:
‘Como pode o si-mesmo ser Brahman? Pois o si-mesmo é
familarmente conhecido como aquele que deve realizar ritos e
meditação e que, estando sujeito ao nascimento e à morte, procura
alcançar os deuses liderados por Brahman {o deus criador} ou o
paraíso, para isso praticando ritos ou meditação. Portanto algum outro
ser adorável que não seja o si-mesmo, como Viñëu, Éçvara, Indra ou
Präëa, deve ser Brahman, mas não o si-mesmo, pois isso se opõe ao
senso comum. Assim como outros lógicos afirmam que o si-mesmo é
diferente do Senhor {Éçvara}, assim também os ritualistas cultuam
outros deuses dizendo, ‘Sacrifique para aquele’, ‘Sacrifique para
aquele’. Com isso seria sensato concluir que esse que é conhecido e
adorável deve ser Brahman, e o cultuador deve ser alguém diferente
desse.’ Tendo percebido esta dúvida pelos olhares ou palavras do
discípulo, o mestre diz ‘Não tenha dúvidas, pois’,”
85
1.5 Aquilo que não é dito pela fala, e por meio do qual a
fala é revelada saiba que isso é Brahman, e não aquilo que é
cultuado como tal.
13.“[...] Saiba que o si-mesmo apenas é o Brahman
incondicionado depois de erradicar todos os adjuntos como a fala, em
virtude dos quais ocorrem expressões empíricas com relação ao
Brahman transcendental, incondicionado, inultrapassável e equânime,
tais como ‘a fala da fala’, ‘a visão da visão’, a audição da audição’, ‘a
mente da mente’, a testemunha, o conhecedor, o controlador.”
Verificaremos na segunda parte deste trabalho o tratamento dado por Çaìkara aos
ritualistas por conta dessas afirmações, e o lugar conferido aos cultos às divindades pelo
Advaita. Por ora, e em caráter de informação adicional e complementar à questão do
“discípulo ideal”, reproduzimos aqui outra estrofe do tratado Viveka-cüòä-maëi, na qual
Çaìkara apresenta uma relação de pré-requisitos ou competências necessárias ao aspirante a
esse /saber-ser/ que se opõe à condição humana habitual:
O homem que discrimina entre o real e o irreal, cuja mente se desvia
do irreal, que possui calma e as demais virtudes, e que anseia pela
liberação apenas esse é considerado qualificado para buscar
Brahman. Com relação a isso, os sábios falaram de quatro meios de
sucesso; quando esses estão presentes, a devoção a Brahman é bem
sucedida; em sua ausência, fracasso. Primeiro é enumerada a
discriminação entre o real e o irreal; segue a aversão ao gozo dos
frutos das ações aqui e no além; depois vem o grupo de seis atributos;
e finalmente o anseio pela liberação. (Viveka-cüòä-maëi, estrofes 17-
19, in MÄDHAVÄNANDA, 2000, p. 6-7)
Real é viveka ou aparokñänubhüti, o “saber discriminador” ou “percepção não-
mediada” que produz a identidade com Brahman/ätman, e que se opõe a avidyä, a
“ignorância” dos saberes relativos, chamados aqui de “irreais”. Os saberes relativos
constituem então valores disfóricos e como tal devem ser objeto da aversão do discípulo, pré-
modalizado para a condição de renunciante e asceta, "pronto" para empreender a jornada final
rumo ao saber sagrado. O discípulo deve ainda possuir de antemão virtudes para a vida
contemplativa e ascética que o espera durante o processo de "transmutação" de seu ser,
resumidas no "grupo de seis atributos", os quais são descritos nos versos seguintes do tratado:
çama, "calma"; dama, "autocontrole"; titikñä, "capacidade de suportar"; çraddhä, "fé";
samädhäna, "concentração mental na meditação"; e mumukñutä, "desejo de liberação".
Vemos que não a personalidade do discípulo deve estar pré-modalizada, como também a
direção patêmica que apresenta: aversão (/não-querer-ser/) às coisas "irreais" do mundo e
86
anseio (/querer-ser/) pela revelação e identificação com Brahman/ätman, a "realidade última"
do universo.
A competência do guru funciona como persuasão ao "candidato" a discípulo, mas
também constitui a sanção final do percurso, já que descreve como o discípulo será ao final do
processo. O percurso narrativo da busca do conhecimento sagrado por meio da relação guru-
discípulo é assim circular: o discípulo, após a aquisição do objeto modal /saber-ser Brahman/,
torna-se idêntico ao guru, que por sua vez é idêntico a Brahman/ätman. Por isso as descrições
do conhecedor de Brahman são exatamente tão paradoxais quanto as descrições do próprio
Brahman, que conhecer Brahman é ser Brahman. Ao mesmo tempo, correspondem às
descrições do discípulo realizado que concluem o texto de Çaìkara. Encerremos este estudo
da Kena-upaniñad com um exemplo de como Çaìkara define essas competências, usadas tanto
para descrever um "verdadeiro" guru como para caracterizar o discípulo de posse do objeto
modal ao final do percurso, no texto Viveka-cüòä-maëi:
Satisfeito com êxtase contínuo e inesgotável, ele não se
entristece nem se exalta com os objetos sensoriais, não se apega e nem
tem aversão a eles, mas está em eterna bem-aventurança e daí obtém
seu deleite. (ibid., estrofe 536, p. 199)
Acompanhamos até aqui alguns momentos do comentário de Çaìkara à Kena-
upaniñad, e com isso pudemos estabelecer algumas das questões mais fundamentais
envolvendo a articulação do conceito de Brahman/ätman e a herança cultural do pensador
com relação ao gênero textual das Upaniñad e dos darçana.
No que segue, selecionamos uma estrofe da Taittiréya-upaniñad a qual, por contraste,
nos apresenta uma descrição “positiva” de Brahman/ätman.
87
1.4 – TAITTIRÉYA-UPANIÑAD: BRAHMAN DEFINIDO
2.1.1 – Om! O conhecedor de Brahman alcança o mais
elevado. Aqui está um verso que o revela: Brahman é a verdade, o
conhecimento e o infinito.
{Trechos do comentário de Çaìkara} 1.“[...] Procura-se
determinar: [1:] a verdadeira natureza de Brahman através da
apresentação de uma definição capaz de indicar a natureza intrínseca
desse Brahman, a qual é totalmente livre, e que foi brevemente
referida como entidade conhecível na sentença ‘O conhecedor de
Brahman alcança o mais elevado’, mas [Brahman esse] cujas
características distintivas permaneceram indeterminadas; [2:] tendo
sido mencionado o conhecimento de Brahman de forma indefinida,
procura-se agora torná-lo perceptível especificamente como não-
diferente do próprio si-mesmo [ätman]; [3:] a idéia é demonstrar que o
alcance do supremo Brahman por um conhecedor de Brahman
alcance esse mencionado como resultado da realização de Brahman
não é senão a identidade com o si-mesmo de todas as coisas, o qual é
o próprio Brahman que transcende todos os atributos mundanos. [...]
2. “A sentença satyaà jïänam anantaà brahma Brahman é
a verdade, o conhecimento e o infinito pretende dar uma definição
de Brahman. Pois as três palavras a começar de satya pretendem
distinguir Brahman, que é o substantivo {viçeñya, ‘o que é para ser
caracterizado, distinguido’}. Pelo fato de que Brahman é mencionado
como o objeto a ser conhecido, Brahman é o substantivo. Já que se
procura apresentar Brahman como o principal objeto de
conhecimento, o conhecível deve ser o substantivo. E porque os
termos estão relacionados como o substantivo e seus atributos, as
palavras a começar de satya possuem a mesma terminação de caso
{nominativo singular neutro}. Brahman, sendo definido por três
adjetivos, satya etc., é distinto dos outros substantivos. É assim, de
fato, que um objeto se torna conhecido ao ser diferenciado de outros;
por exemplo, na fala comum, um lótus particular é conhecido quando
é descrito como azul, grande, e de doce odor.”
3. [Objeção:] “Um nome pode ser distinguido apenas quando
a possibilidade de ele governar um outro adjetivo, como por
exemplo um lótus azul ou vermelho. Um adjetivo é significativo
quando muitos nomes que pertencem à mesma classe e que são
capazes de ter muitos adejtivos. Mas [um adjetivo] não pode ter
significado com relação a um único nome, onde não possibilidade
de qualquer adjetivo alternativo. um único Brahman, assim como
há um único sol; não existem outros ‘Brahmans’ {brahmäëi} dos
quais esse possa ser diferenciado, diferentemente do caso do lótus
azul.”
4. [Resposta:] “Não, não há erro aqui, que os adjetivos
também são usados como definições.”
88
5. [Objeção:] “Como?”
6. [Resposta:] “Porque os adjetivos [nesse caso] carregam
apenas um sentido definidor, e não qualificador.”
7.[Objeção:] “E qual é então a diferença entre as duas relações
aquela que existe entre a definição e a coisa definida, e aquela que
existe entre a qualidade e a coisa qualificada?”
8. “A resposta é: uma qualidade distingue um nome de objetos
de sua própria classe, enquanto uma definição o separa {demarca} de
tudo o mais, como por exemplo [a definição] äkäña, aquilo que
propicia o espaço.’ E já dissemos que a sentença [satyaà jïänam
anantaà brahma] é uma definição.
9.“Os termos satya, etc. não estão relacionados entre si {a
opção pela construção de um composto nominal, satyajïänänatam, é
que os tornaria necessariamente relacionados ou somados para o
leitor/ouvinte}, que servem a outro propósito: pretendem ser
aplicados individualmente ao substantivo. Assim, cada um dos termos
definidores está relacionado ao termo Brahman, independentemente
dos demais: satyaà brahma, jïänaà brahma, anantam brahma.
10.“Com relação ao termo satya: afirma-se que algo é satya,
verdade {satya deriva do particípio presente da raiz AS, ‘ser’;
literalmente, satya é ‘aquilo que é’}, quando esse algo não muda a
natureza que é afirmada como sua; e afirma-se que algo é falso
{anåta} quando modifica a natureza afirmada como sua. Portanto uma
coisa mutável é falsa. Como afirma o texto ‘Toda transformação tem
a palavra como sua base, e é falsa; a terra apenas é real’ [Chändogya-
upaniñad, 6.1.4] foi enfatizado que é verdadeiro o que é {sat}.
Então a expressão satyaà brahma separa Brahman das coisas
mutáveis.
11.“Disso poder-se-ia concluir que Brahman é uma causa
{karaëatva, condição de causa ou instrumento de ação, da raiz ,
‘fazer’}; e que uma causa é uma substância {vastutva, condição de
substância, da raiz VAS, ‘habitar, permanecer num local ou
condição’}, poderia ser então uma produção {vikära, produção ou
mudança de estado}, podendo assim ser não-consciente como a terra.
Por isso afirma-se que Brahman é jïäna. Jïäna significa
conhecimento, consciência. A palavra jïäna traz a noção abstrata do
verbo {JÏÄ, conhecer, saber’}; e por ser um atributo de Brahman
assim como a verdade e o infinito, o termo não indica o agente do
conhecimento. Se Brahman fosse um agente do conhecimento,
verdade e infinito não poderiam lhe ser atribuídos. Pois como agente
do conhecimento ele se tornaria mutável, etc, e como tal, como
poderia ser verdade e infinito? É infinito, de fato, aquilo que não está
separado de nada. Se ele for o agente do conhecer, tornar-se-á
limitado pelo conhecível e pelo conhecimento, e daí não poderá haver
infinitude, tal como declara a escritura: ‘O infinito é onde não se
conhece qualquer outra coisa. E o finito é onde se conhece alguma
outra coisa.’ [Chändogya-upaniñad, 7.24.1]
[...]
12. “A sentença ‘onde não se conhece qualquer outra coisa’,
etc. dedica-se inteiramente à apresentação de um traço atributivo de
89
Brahman. Reconhecendo-se o princípio bem conhecido de que o
indivíduo algo distinto de si mesmo, decorre que a natureza do
infinito é expressa na escritura ao se declarar que o infinito é aquilo
em que esse tipo de ação não existe. Assim, que a expressão
‘qualquer outra coisa’ é usada para recusar o fato conhecido da
dualidade, a sentença pretende negar a presença dessa ação no
indivíduo. E que não cisão no si-mesmo, a cognição {sujeito-
objeto} é impossível. Além disso, se o si-mesmo tivesse a condição
de objeto conhecível {vijïeyatva}, não subsistiria ninguém mais para
conhecê-lo, já que o si-mesmo já é postulado como o conhecimento.”
13. [Objeção:] “O si-mesmo pode existir simultaneamente
como o conhecedor e o conhecido.”
14. [Resposta:] “Não, isso não pode ocorrer simultaneamente
que o si-mesmo é sem partes. Um indivisível não pode ser
simultaneamente o conhecedor e o conhecido. Além disso, se o si-
mesmo pudesse ser conhecido [objetivamente] no sentido em que um
pote o é, a instrução das escrituras para seu conhecimento seria inútil.
Pois se um objeto é familiar, como um pote como exemplo, uma
instrução para seu conhecimento não pode ter sentido. E se o si-
mesmo fosse um conhecedor {agente do conhecer}, não poderia ser
infinito. Além disso, se ele tiver certos atributos diferenciadores tais
como poder ser o agente do conhecimento, não poderá logicamente
ser existência pura. E a existência pura é a verdade, de acordo com
outro texto, ‘Isso é a verdade’ [Chändogya-upaniñad, 6.8.7]. Portanto
o termo jïäna (conhecimento), tendo sido usado de forma definidora
junto com verdade e infinito, é usado para indicar a sentença jïänaà
brahma {Brahman é conhecimento}, a fim de negar [a Brahman]
qualquer relação entre nome e verbo, como aquela de agente, etc., e
também para negar-lhe a condição de não-consciência como a terra,
etc.
15. “Da expressão jïänaà brahma poder-se-ia deduzir que
Brahman é limitado, pois o conhecimento humano é finito. A fim de
evitar isso o texto declara: anantam, infinito.
16. [Objeção:] “Já que as palavras satya [verdade], etc.,
prestam-se a negar tais qualidades como não-verdade, etc., e que o
nome Brahman não se refere a uma entidade bem conhecida como o
lótus, etc., então a sentença iniciada por satya [...] não tem senão uma
não-entidade como seu referente, assim como a sentença ‘Tendo se
banhado em águas de miragem, vestindo uma coroa de flores do céu
em sua cabeça, vai o filho da mulher estéril, armado com o arco
feito com o chifre de uma lebre’.”
17. [Resposta:] “Não, porque a sentença aqui pretende ser uma
definição. E já dissemos que embora as palavras satya, etc. sejam
atributivas, seu principal propósito aqui é definir. Já que uma sentença
que expõe os atributos de um substantivo referente a algo não-
existente é inútil, e que o propósito da sentença aqui é definir, em
nossa opinião, ela não se refere a uma não-entidade. [...] Se as
palavras satya, etc. remetessem a uma não-entidade, não poderiam
logicamente distinguir seu substantivo. Mas se são significativas,
tendo o sentido de verdade, etc., podem diferenciar seu substantivo
90
Brahman de outros substantivos imbuídos de qualidades opostas. E o
termo Brahman, também, tem seu próprio significado individual {lit.
‘expansão, crescimento, desenvolvimento’, derivado da raiz BÅH,
‘expandir, crescer, aumentar’}. Entre essas palavras, a palavra ananta
torna-se um adjetivo ao negar-lhe a finitude; as palavras satya e jïäna
são adjetivos mesmo enquanto conferem seus próprios sentidos [ao
substantivo].
18. “Já que no texto ‘Desse Brahman que é o si-mesmo
[ätman], foi produzido este espaço’ [Taittiréya-upaniñad, 2.1.1], a
palavra si-mesmo [ätman] é usada com relação ao próprio Brahman,
conclui-se que Brahman é o si-mesmo do indivíduo conhecedor; e isso
é apoiado também pelo texto ‘Ele alcança este si-mesmo feito de bem-
aventurança’ [Taittiréya-upaniñad, 2.8.5], onde se mostra que
Brahman é o si-mesmo.”
(Taittiréya-upaniñad e Taittiréya-upaniñad-bhäñya,
in GAMBHÉRÄNANDA, 2002, p. 303-312;
in ÇÄSTRIËÄ, 2000, p. 280-288)
91
1.4.1 – Argumentos lingüísticos
2.1.1 – Om! O conhecedor de Brahman alcança o mais
elevado. Aqui está um verso que o revela: Brahman é a verdade, o
conhecimento e o infinito.
{Trechos do comentário de Çaìkara} 1.[...] Procura-se
determinar: [1:] a verdadeira natureza de Brahman através da
apresentação de uma definição capaz de indicar a natureza intrínseca
desse Brahman, a qual é totalmente livre, e que foi brevemente
referida como entidade conhecível na sentença ‘O conhecedor de
Brahman alcança o mais elevado’, mas [Brahman esse] cujas
características distintivas permaneceram indeterminadas; [2:] tendo
sido mencionado o conhecimento de Brahman de forma indefinida,
procura-se agora torná-lo perceptível especificamente como não-
diferente do próprio si-mesmo [ätman]; [3:] a idéia é demonstrar que o
alcance do supremo Brahman por um conhecedor de Brahman
alcance este mencionado como resultado da realização de Brahman
não é senão a identidade com o si-mesmo de todas as coisas, o qual é
o próprio Brahman que transcende todos os atributos mundanos. [...]
Até agora havíamos examinado o comentário de Çaìkara a um trecho considerado
como exemplar, dentro do campo discursivo das Upaniñad, do procedimento mais comum
para definir Brahman, ou seja, pela “via negativa” (“não é isto, não é aquilo”). Agora
deparamo-nos com uma situação oposta, extraída de um dos trechos mais importantes das
Upaniñad sob o ponto de vista do Advaita-vedänta: a definição positiva de Brahman por meio
de três atributos: “Brahman é a verdade, o conhecimento e o infinito”.
A definição apresenta, ao mesmo tempo em que uma solução sob a perpectiva da
questão fundamental, “O que é Brahman?”, também um desafio para a argumentação de
Çaìkara. Isso porque o conceito de Absoluto sem-segundo” não permite, a priori, nenhum
tipo de qualificação: se é a essência de todas as coisas, e se é uma única essência para todas as
coisas, infere-se que tal essência não pode possuir qualquer tipo de delimitação que restrinja
seu alcance com relação às coisas do mundo. Ora, um adjetivo é uma delimitação, por excluir
necessariamente de seu campo semântico o adjetivo que se lhe opõe. E não o adjetivo: um
nome e uma forma (näma-rüpa), uma posição no tempo e no espaço, uma caracterização, são
todos afinal delimitões, e não podem existir limites de qualquer espécie num conceito de
Absoluto. E temos aqui três definições: verdade, conhecimento e infinito.
Assim, por exemplo, diante da definição dada, a primeira inferência deduzida seria a
de que Brahman não é, por conseqüência, mentira, ignorância e finitude” (os opostos dos
92
atributos dados). Não obstante, tais elementos existem no mundo, e se o mundo origina-se de
Brahman, como a contradição se explica? Por outro lado, a fim de se sustentar o Um-sem-
segundo, a tríade de atributos precisa ser reduzida necessariamente ao estatuto do Um: de
alguma forma, “verdade, conhecimento e infinito”, ainda que não sejam sinônimos, precisam
ser descritos sob a forma de uma totalidade indissociável, caso contrário a defesa da unidade
estará arruinada. Finalmente, e ainda dentro do conceito de Brahman como “Absoluto, sem-
segundo”, temos a questão específica lançada pelas Upaniñad e tomada como uma das bases
fundamentais do Advaita-vedänta: a identidade entre o Absoluto, Brahman, e o “sujeito
absoluto” ou si-mesmo, ätman.
Esses três desafios foram enfrentados por Çaìkara. Exploraremos nesta primeira parte
do trabalho como Çaìkara dá conta do segundo e do terceiro desafio: a definição de Brahman
e sua identidade com o ätman. Abordaremos o desdobramento do Brahman-essência-una em
mundo-manifestação-dual na segunda parte do trabalho, onde verificaremos os elementos
centrais de sustentação (os operadores gicos do desdobramento) da doutrina do Advaita-
vedänta.
Vejamos agora como Çaìkara seleciona seus argumentos:
2. “A sentença satyaà jïänam anantaà brahma Brahman é
a verdade, o conhecimento e o infinito pretende dar uma definição
de Brahman. Pois as três palavras a começar de satya pretendem
distinguir Brahman, que é o substantivo {viçeñya, ‘o que é para ser
caracterizado, distinguido’}. Pelo fato de que Brahman é mencionado
como o objeto a ser conhecido, Brahman é o substantivo. Já que se
procura apresentar Brahman como o principal objeto de
conhecimento, o conhecível deve ser o substantivo. E porque os
termos estão relacionados como o substantivo e seus atributos, as
palavras a começar de satya possuem a mesma terminação de caso
{nominativo singular neutro}. Brahman, sendo definido por três
adjetivos, satya etc., é distinto dos outros substantivos. É assim, de
fato, de um objeto se torna conhecido ao ser diferenciado de outros;
por exemplo, na fala comum, um lótus particular é conhecido quando
é descrito como azul, grande, e de doce odor.”
3. [Objeção:] “Um nome pode ser distinguido apenas quando
a possibilidade de o mesmo governar um outro adjetivo, como por
exemplo um lótus azul ou vermelho. Um adjetivo é significativo
quando muitos nomes que pertencem à mesma classe e que são
capazes de ter muitos adejtivos. Mas [um adjetivo] não pode ter
significado com relação a um único nome, onde não possibilidade
de qualquer adjetivo alternativo. um único Brahman, assim como
há um único sol; não existem outros ‘Brahmans’ {brahmäëi} dos
quais esse possa ser diferenciado, diferentemente do caso do lótus
azul.”
93
4. [Resposta:] “Não, não há erro aqui, que os adjetivos
também são usados como definições.”
5. [Objeção:] “Como?”
6. [Resposta:] “Porque os adjetivos [nesse caso] carregam
apenas um sentido definidor, e não qualificador.”
7.[Objeção:] “E qual é então a diferença entre as duas relações
aquela que existe entre a definição e a coisa definida, e aquela que
existe entre a qualidade e a coisa qualificada?”
8. “A resposta é: uma qualidade distingue um nome de objetos
de sua própria classe, enquanto uma definição o separa {demarca} de
tudo o mais, como por exemplo [a definição] äkäña, aquilo que
propicia o espaço.’ E já dissemos que a sentença [satyaà jïänam
anantaà brahma] é uma definição.”
Em primeiro lugar, reiteramos aqui um dos traços mais característicos da
argumentação de Çaìkara (traço esse, aliás, pertinente a todo o conjunto de textos sânscritos
que se prestam à interpretação de tratados e obras canônicas), a saber: a debreagem actancial
que instaura no texto um interlocutário e o transforma num diálogo direto (simulacro das
instâncias orais de debate típicas da cultura na época). Como já tratamos em maiores detalhes
dessa questão específica no capítulo 1.3.1, Dialogismo e o anti-sujeito do saber”,
prosseguimos com a análise da argumentação.
O desafio primeiro enfrentado aqui foi o de não permitir que as três qualificações
dadas a Brahman comprometessem a unidade-totalidade do conceito. Mas, subsidiária a essa
questão primordial, há uma outra, não menos importante: o fato de que uma definição positiva
de Brahman, qualquer que seja, transforma-o imediatamente em objeto de conhecimento, e a
objetivização de Brahman opõe-se conceitualmente a sua designação primeira de “sujeito
absoluto” (sujeito não-semiótico, sujeito cuja existência não se define pela relação sujeito-
objeto). Por outro lado, o dilema reside justamente no fato de que para uma construção mental
do conceito, uma produção do reino da linguagem articulada, a objetivização é procedimento
inevitável.
Ciente do impasse, Çaìkara opta por assumir a objetivização na expressão lingüística
de Brahman: “Pelo fato de que Brahman é mencionado como o objeto a ser conhecido,
Brahman é o substantivo. Já que se procura apresentar Brahman como o principal objeto de
conhecimento, o conhecível deve ser o substantivo.
As fronteiras entre substantivo e adjetivo, na língua sânscrita, não são claramente
demarcadas: substantivos e adjetivos são intercambiáveis e assumem suas posições como tais
no nível sintático, determinados pelas relações no interior da frase. A análise gramatical
sânscrita e alguns dos termos cunhados pelos gramáticos para designar substantivo e adjetivo
94
refletem essa mobilidade da língua, pois algumas denominações são baseadas nos papéis
sintáticos assumidos pelos termos. Assim, o substantivo é denominado viçeñya, “o que deve
ser distinguido, qualificado, diferenciado”, e o adjetivo (assim como o advérbio) pode ser
designado pelo termo viçeñaëa, “o que distingue: discriminador, especificador, qualificador,
particularizador”. (Na verdade, o termo sânscrito normalmente usado para designar o adjetivo
é guëa, “qualidade”; mas aqui o uso de viçeñaëa é um recurso proposital de Çaìkara para
apoiar sua argumentação, como esclareceremos logo abaixo). Dessa forma, o termo definidor
e o termo definido não possuem tal distinção, a priori, no nível morfológico: um mesmo
termo sânscrito pode ser definidor (adjetivo) numa frase e definido (substantivo) numa outra.
Assim, no interior da sentença nominal satyaà jïänam anantaà brahma, todos os
termos estão em relação de identidade porque se encontram declinados no mesmo caso,
gênero e número: nominativo singular neutro. Além disso, não marcas distintivas, no nível
morfológico, de suas funções sintáticas: os quatro termos são, a princípio, quatro substantivos
neutros. Algumas das possibilidades de interpretação da frase incluem as alternativas:
Brahman é a verdade, o conhecimento e o infinito”, “A verdade é o conhecimento, o infinito
e Brahman”, “O conhecimento é a verdade, o infinito e Brahman”, “O infinito é Brahman, o
conhecimento e a verdade” e finalmente, “Brahman é a verdade [que] é o conhecimento [que]
é o infinito.”
É claro que a preferência de ordenação sintática manifestada pelos usuários da língua
sugere que o último termo seja o determinado (substantivo), e os que lhe antecedem sejam os
determinantes (adjetivos). Não obstante, a ordem sintática de uma língua flexiva como o
sânscrito é relativamente livre e não serve, sozinha, como parâmetro seguro de
tradução/interpretação da sentença, ainda que seja uma sentença nominal.
Assim o esclarecimento, por parte do interpretador da sentença (no caso, Çaìkara), de
qual será o termo determinado (viçeñya) e de quais serão os determinantes (viçeñaëa) é, ao
contrário do que sugere a leitura da tradução para o português, não uma redundância, mas um
fator fundamental. E Çaìkara determina então, com base sobretudo na frase anterior da
Upanad, “O conhecedor de Brahman alcança o mais elevado”, que Brahman é o objeto da
definição (o conhecível) na frase seguinte e os outros três termos, “verdade, conhecimento e
infinito”, assumem portanto uma função adjetiva.
Isso feito, prossegue: Brahman, sendo definido por três adjetivos, satya etc., é
distinto dos outros substantivos. É assim, de fato, que um objeto se torna conhecido ao ser
diferenciado de outros...”
95
A objeção levantada, Mas [um adjetivo] não pode ter significado com relação a um
único nome, onde não possibilidade de qualquer adjetivo alternativo. um único
Brahman, assim como um único sol; não existem outros Brahmans dos quais esse possa
ser diferenciado [...], serve na verdade como uma “deixa” para o argumento central desse
trecho do comentário de Çaìkara: a reiteração do fato de que Brahman, ainda que objetivado
para ser lingüisticamente expresso (definido), permanece na condição de não poder ser
qualificado, já que toda qualidade é um limite.
É graças à fala do “anti-sujeito do saber” que Çaìkara pode estabelecer a distinção
entre o termo adjetivo cuja função é qualificar e o adjetivo cuja função é definir.
A perspicaz diferenciação das funções adjetivas feita por Çaìkara estabelece uma
oposição entre essas funções. A oposição, em sânscrito, está nos termos viçeñaëa
(“diferenciador”) e guëa (“qualidade, característica, atributo”, termo usualmente utilizado
para designar, em gramática, a função adjetiva). Aparentemente sinônimos, os termos são
postos aqui em oposição funcional. Assim, na expressão “o lótus azul”, “azul” é um guëa, um
adjetivo qualificador, cuja função é tomar um elemento de uma classe comum e lhe conferir
uma identidade singular por caracterização e contraste: é o lótus azul, e não o lótus vermelho,
nem o branco. Já na expressão “o elemento äkäña (o primeiro dos cinco elementos – seguido
de ar, fogo, água e terra –, tidos como formadores de todas as coisas materiais segundo várias
escolas sânscritas), äkäña (lit. “espaço, atmosfera”; eventualmente traduzido por “éter”,
embora a definição sânscrita não corresponda exatamente à ocidental) é um viçeñaëa, um
adjetivo definidor que especifica o termo “elemento”, mas não um guëa, um qualificador,
que se assume que só existe um único elemento äkäña permeando todo o universo.
Brahman, embora único, é então triplamente definido como “verdade, conhecimento e
infinito”, e a definição, ao contrário de delimitá-lo por três atributos, é utilizada argutamente
por Çaìkara como recurso argumentativo para reforçar seu caráter de objeto conceitual único,
sem igual. Assim o propósito inicial de defender a unidade de Brahman permanece
assegurado, por enquanto. Mas os argumentos “lingüísticos” na interpretação da Upaniñad
prosseguem:
9. Os termos satya, etc. não estão relacionados entre si {a
opção pela construção de um composto nominal, satyajïänänatam, é
que os tornaria necessariamente relacionados ou somados para o
leitor/ouvinte}, que servem a outro propósito: pretendem ser
aplicados individualmente ao substantivo. Assim, cada um dos termos
definidores está relacionado ao termo Brahman, independentemente
dos demais: satyaà brahma, jïänaà brahma, anantam brahma.
96
Aqui Çaìkara aplica uma propriedade “distributiva” propiciada pela frase nominal
sânscrita satyaà jïänam anantaà brahma. Ao mesmo tempo, aproveita para tomar como
recurso argumentativo, a fim de defender sua interpretação, a escolha feita pelo texto da
Upaniñad para exprimir o conteúdo “Brahman é a verdade, o conhecimento e o infinito” sob a
forma de uma construção em que todos os termos estão individualmente declinados, em
detrimento de outras opções oferecidas pela língua para a expressão do mesmo conteúdo sob a
forma de composições nominais.
O recurso à composição nominal estava presente nas construções dos textos das
Upaniñad, e viria a ser amplamente utilizado no sânscrito clássico; com tal recurso os temas
são aglutinados sem declinação, na seqüência preferencial “determinante-determinado”, e
apenas o último termo da composição recebe a declinação de caso e número que lhe confere a
função sintática no interior da sentença. A composição assim resultante no plano da expressão
tem sempre uma única referência no plano do conteúdo.
Assim, a sentença satyaà jïänam anantaà brahma poderia ser expressa com eficácia
de duas outras formas, e cada uma dessas formas traria consigo sugestões peculiares de
sentido: a) satya-jïänänantaà brahma (onde os três elementos aglutinados tornam-se com
isso uma única referência composta, a qual por sua vez determina a Brahman ou é posta em
identidade com ele; tal opção deixaria claro ao leitor que Brahman é o viçeñya, “o que é para
ser diferenciado”, da frase, e a declinação singular do composto também deixaria claro que os
três atributos deveriam ser compreendidos, não como somados pela conjunção “e”, e sim
como uma unidade tríplice de partes indissociáveis); b) satya-jïänänanta-brahma (um único
composto de quatro elementos, no qual apenas a “ordem” dos elementos pode sugerir que o
último é o determinado, mas que não obstante permanece como expressão de um único
referente complexo).
Não há propósito em se discutir a “intenção do autor do texto” da Upaniñad (discussão
que permanece fora do âmbito de uma análise lingüística e semiótica) ao preferir declinar
cada um dos termos da sentença separadamente. Mas o fato é que Çaìkara encontra na opção
de construção da frase um formidável argumento para desenvolver sua análise conceitual de
Brahman. E com isso, obriga-nos a acompanhá-lo. Assim afirma que os termos viçeñaëa,
definidores”, por terem sido individualmente “separados” por declinações, o foram porque
“pretendem ser aplicados individualmente ao substantivo”, Brahman. Com isso, Çaìkara
desmembra a sentença da Upaniñad em três sentenças menores:
a) satyaà brahma: “Brahman [é] a verdade”;
97
b) jïänaà brahma: Brahman [é] o conhecimento”;
c) anantaà brahma: Brahman [é] o infinito”.
Cada uma dessas sentenças será analisada individualmente e também colocada em
relação com as demais, que o que se pretende ao final da análise é manter uma totalidade-
unidade no conceito de Brahman. O conjunto do processo argumentativo pretende defender os
postulados iniciais de Çaìkara de que Brahman é um, sem-segundo, não delimitável e não
qualificável, e idêntico ao si-mesmo (ätman)”. Vejamos como ele o faz.
98
1.4.2 – Sac-cid-änanda: o ser e a aparência
a) satyaà brahma
10. Com relação ao termo satya: afirma-se que algo é satya,
verdade {satya deriva do particípio presente da raiz AS, ‘ser’;
literalmente, satya é ‘aquilo que é’}, quando esse algo não muda a
natureza que é afirmada como sua; e afirma-se que algo é falso
{anåta} quando modifica a natureza afirmada como sua. Portanto uma
coisa mutável é falsa. Como afirma o texto ‘Toda a transformação tem
a palavra como sua base, e é falsa; a terra apenas é real’ [Chändogya-
upaniñad, 6.1.4] foi enfatizado que é verdadeiro o que é {sat}.
Então a expressão satyaà brahma separa Brahman das coisas
mutáveis.
O quadro das modalidades veredictórias apresentado por Greimas e Courtès no
Dicionário de Semiótica (GREIMAS e COURTÈS, s/d, p. 488) é articulado a partir dos
esquemas da imanência (ser e não-ser) X manifestação (parecer e não-parecer), e gera quatro
modalidades a partir de suas combinações:
verdade
ser parecer
segredo mentira
não-parecer não-ser
falsidade
Assim, se tomarmos algumas das deduções extraídas do quadro, teremos que o
verdadeiro é definido pelo que “é e parece”, e seu contrário, o falso, pelo que “não é e não
parece”. A mentira seria o que “parece, mas não é”, e o que “é, mas não parece” seria um
segredo. Por outro lado, subsidiário à sua própria herança cultural, Çaìkara assim define a
verdade e seu oposto, a falsidade:
99
satyam iti yad-rüpeëa yan-niçcitaà tad-rüpaà na vyabhicarati sat-
satyam/ yad-rüpeëa yan-niçcitaà tad-rüpaà vyabhicarad anåtam
ityucyate / ato vikäro ‘nåtaà. (cf. original sânscrito in ÇÄSTRIËÄ,
2000, p. 283)
[...] afirma-se que algo é satya, verdade {satya deriva do particípio
presente da raiz AS, ‘ser’; literalmente, satya é ‘aquilo que é’}, quando
esse algo não muda a natureza que é afirmada como sua {sat}; e
afirma-se que algo é falso {anåta} quando modifica a natureza
afirmada como sua. Portanto uma coisa mutável é falsa.
Podemos projetar as oposições e os termos sânscritos escolhidos para representar essas
oposições, em Çaìkara, sobre o quadrado inicial das modalidades veredictórias proposto por
Greimas. Os termos sânscritos escolhidos são: satya = verdade/verdadeiro (termo derivado de
sat, particípio presente da raiz AS, “ser”); anåta = falsidade/falso (an-åta: åta, particípio
passado da raiz Å, na acepção de “correto, apropriado, ordenado, verdadeiro”, acrescido do
prefixo de negação an-); sat = corresponderia à instância do ser, imanência (em concordância,
o termo sânscrito é o particípio presente da raiz AS, “ser”); vikära = corresponderia à
instância do “parecer”, manifestação (o termo sânscrito designa “mudança, transformação”,
da raiz vi-KÅ: “transformar, alterar, mudar; mover; produzir, desenvolver”).
Em primeiro lugar, verificamos que as definições de verdadeiro e falso não são
formadas a partir de combinações, positivas ou negativas, entre imanência e manifestação (ser
e parecer X não-ser e não-parecer, respectivamente, para verdadeiro e falso), como no quadro
da teoria semiótica. Ao contrário, as próprias categorias de imanência e manifestação são
projetadas diretamente sobre o eixo semântico verdadeiro X falso, e como conseqüência
temos:
verdadeiro (satya) X falso (anåta)
imanência / sat (ser) X manifestação / vikära (mudar)
Notemos o fato importante de que a diferença semântica entre “parecer” e “mudar”,
termos utilizados por Greimas e Çaìkara, respectivamente, não nos deve causar estranheza,
que não estamos tratando de veredicções de mesmo nível ao observarmos o quadrado das
modalidades veredictórias, em Semiótica, e as determinações de verdadeiro e falso atribuídas
a Brahman, ao mundo e aos sujeitos do mundo por Çaìkara. No primeiro caso, os esquemas
100
do parecer/não-parecer e ser/não-ser são utilizados em análise lingüística “sem que tais
denominações impliquem, por isso, uma tomada de posição ontológica” (GREIMAS: s/d, p.
269). No caso do Advaita-vedänta segundo Çaìkara, ao contrário, o que temos é exatamente
uma tomada de posição ontológica com relação à questão da imanência X manifestação,
que o que se pretende determinar é justamente uma teoria do ser “concebido como tendo uma
natureza comum que é inerente a todos e a cada um dos seres” (cf. definição de “ontologia
em FERREIRA, 2001, p. 1447).
É por essa razão, aliás, que os eixos assim homologados traduzem de forma
esquemática um dos fundamentos do raciocínio do Advaita-vedänta: o de que a verdade é
imutável, e toda mudança ou manifestação é falsidade. Como veremos em breve, a possível
distância semântica entre “mudança” e “aparência” será anulada no Advaita, que identifica
justamente a manifestação universal como sendo da ordem da aparência. Portanto se
Brahman, o “ser” [sat] sob seu aspecto imanente e imutável, é verdade [satya], por
implicação o “ser” manifesto [vikära], em constante mutação, pode ser falsidade [anåta].
Em outras palavras: sob o ponto de vista do sujeito absoluto, os sujeitos relativos e todo o
universo que os circunda são falsos, porque as aparências são consideradas composições
multifacetadas e portanto necessariamente mutáveis, porque existem sobredeterminadas
por tempo, espaço e causalidade, e porque se apóiam na manifestação, na relação sujeito-
objeto, para afirmar sua condição de ser. Por isso também seria pertinente acrescentar aos
eixos projetados de imanência X manifestação, sat X vikära, as oposições “unidade X
dualidade” e “Brahman X universo fenomênico”.
Como dissemos, o termo sânscrito vikära designa “mudança, transformação”, mas
também “produção”, que a raiz vi-KÅ inclui em seu campo semântico as acepções
“transformar, alterar, mudar; mover; produzir, desenvolver”. E o termo vikära na acepção de
“produção” é usado no sistema Säàkhya, rival do Advaita, para designar cada um dos 23
desdobramentos da “causa primordial” que formam os elementos constituintes do universo
objetivo e subjetivo. Ciente disso, então, Çaìkara observa:
b) jïänaà brahma
11. Disso poder-se-ia concluir que Brahman é uma causa
{karaëatva, condição de causa ou instrumento de ação, da raiz ,
“fazer”}; e que uma causa é uma substância {vastutva, condição de
substância, da raiz VAS, “habitar, permanecer num local ou
condição”}, poderia ser então uma produção {vikära, produção ou
mudança de estado”}, podendo assim ser não-consciente como a terra.
Por isso afirma-se que Brahman é jïäna. Jïäna significa
101
conhecimento, consciência. A palavra jïäna traz a noção abstrata do
verbo {JÏÄ, conhecer, saber”}; e por ser um atributo de Brahman
assim como a verdade e o infinito, o termo não indica o agente do
conhecimento. Se Brahman fosse um agente do conhecimento,
verdade e infinito não poderiam lhe ser atribuídos. Pois como agente
do conhecimento ele se tornaria mutável, etc, e como tal, como
poderia ser verdade e infinito? É infinito, de fato, aquilo que não está
separado de nada. Se ele for o agente do conhecer, tornar-se-á
limitado pelo conhecível e pelo conhecimento, e daí não poderá haver
infinitude, tal como declara a escritura: “O infinito é onde não se
conhece qualquer outra coisa. E o finito é onde se conhece alguma
outra coisa.” [Chändogya-upaniñad, 7.24.1]
Assim como para o Säàkhya, também para o Advaita-vedänta o universo material e os
seres manifestos que o habitam, denominados jéva (derivado da raiz JÉV, “viver”, o termo é
utilizado para denominar os seres dotados de complexidade psicológica ou “sujeitos
relativos”, em oposição ao ätman, princípio do ser ou “sujeito absoluto”), estão condicionados
a uma lei de causalidade intrínseca ao próprio universo fenomênico. Por outro lado, a relação
causa-efeito não existe em Brahman. A manifestação-aparência-universo opõe-se à
imanência-ser-Brahman.
A existência em Brahman é identificada à inteligência, à consciência de si; em
contrapartida, a existência fenomênica, dos seres humanos aos grãos de areia, sofre gradativa
perda de consciência, até chegar à não-consciência de si, característica dos objetos materiais.
Portanto, não basta definir Brahman como existência, que a existência sem consciência,
sem testemunho, não existe. A totalidade absoluta que é Brahman é, portanto, sinônimo de
conhecimento ou consciência absolutos.
Novamente, Çaìkara faz questão de enfatizar o fato de que tal consciência ou
conhecimento não faz do si-mesmo/Brahman um conhecedor, no sentido da relação sujeito-
objeto pressuposta em todo ato humano de conhecimento, pois isso seria uma limitação, e
Brahman é infinito. O agente do conhecimento pressupõe um objeto do conhecimento fora de
si, com o qual estabelece uma relação de conhecimento (lembrando que para a grande maioria
das escolas de pensamento da Índia todos os processos psicológicos e inclusive a própria
mente são considerados objetos e não o verdadeiro sujeito, que por detrás desses processos
apenas os testemunha). Mas não resta nada fora do si-mesmo/Brahman que possa ser
conhecido, já que o si-mesmo é “um-sem-segundo”, portanto Brahman/ätman é conhecimento
infinito, não-dual e não relacional, como observa então Çaìkara:
102
12. “A sentença ‘onde não se conhece qualquer outra coisa’,
etc. dedica-se inteiramente à apresentação de um traço atributivo de
Brahman. Reconhecendo-se o princípio bem conhecido de que o
indivíduo algo distinto de si mesmo, decorre que a natureza do
infinito é expressa na escritura ao se declarar que o infinito é aquilo
em que esse tipo de ação não existe. Assim, que a expressão
‘qualquer outra coisa’ é usada para recusar o fato conhecido da
dualidade, a sentença pretende negar a presença dessa ação no
indivíduo. E que não cisão no si-mesmo, a cognição {sujeito-
objeto} é impossível. Além disso, se o si-mesmo tivesse a condição
de objeto conhecível {vijïeyatva}, não subsistiria ninguém mais para
conhecê-lo, já que o si-mesmo já é postulado como o conhecimento.”
13. [Objeção:] “O si-mesmo pode existir simultaneamente
como o conhecedor e o conhecido.”
14. [Resposta:] “Não, isso não pode ocorrer simultaneamente
que o si-mesmo é sem partes. Um indivisível não pode ser
simultaneamente o conhecedor e o conhecido. Além disso, se o si-
mesmo pudesse ser conhecido [objetivamente] no sentido em que um
pote o é, a instrução das escrituras para seu conhecimento seria inútil.
Pois se um objeto é familiar, como um pote como exemplo, uma
instrução para seu conhecimento não pode ter sentido. E se o si-
mesmo fosse um conhecedor {agente do conhecer}, não poderia ser
infinito. Além disso, se ele tiver certos atributos diferenciadores tais
como poder ser o agente do conhecimento, não poderá logicamente
ser existência pura. E a existência pura é a verdade, de acordo com
outro texto, ‘Isso é a verdade’ [Chändogya-upaniñad, 6.8.7]. Portanto
o termo jïäna (conhecimento), tendo sido usado de forma definidora
junto com verdade e infinito, é usado para indicar a sentença jïänaà
brahma {Brahman é conhecimento}, a fim de negar [a Brahman]
qualquer relação entre nome e verbo, como aquela de agente, etc., e
também para negar-lhe a condição de não-consciência como a terra,
etc.”
Temos aqui uma questão fundamental, que se coloca na frase “Um indivisível não
pode ser simultaneamente o conhecedor e o conhecido.” Com essa frase, Çaìkara recusa a
Brahman a atribuição de um tipo de totalidade que é compreendido como a união dos
contrários, e que constrói semioticamente os objetos complexos. Brahman não é a reunião do
mundo objetivo com o subjetivo, do dentro com o fora, do “eu” com o “tu”/“isso”; é uma
outra instância de existência onisciente, diante da qual os opostos que fundam toda dualidade
simplesmente não existem mais como opostos.
103
c) anantaà brahma
15. “Da expressão jïänaà brahma poder-se-ia deduzir que
Brahman é limitado, pois o conhecimento humano é finito. A fim de
evitar isso o texto declara: anantam, infinito.
16. [Objeção:] “Já que as palavras satya [verdade], etc.,
prestam-se a negar tais qualidades como não-verdade, etc., e que o
nome Brahman não se refere a uma entidade bem conhecida como o
lótus, etc., então a sentença iniciada por satya [...] não tem senão uma
não-entidade como seu referente, assim como a sentença ‘Tendo se
banhado em águas de miragem, vestindo uma coroa de flores do céu
em sua cabeça, vai o filho da mulher estéril, armado com o arco
feito com o chifre de uma lebre’.”
17. [Resposta:] “Não, porque a sentença aqui pretende ser uma
definição. E já dissemos que embora as palavras satya, etc. sejam
atributivas, seu principal propósito aqui é definir. Já que uma sentença
que expõe os atributos de um substantivo referente a algo não-
existente é inútil, e que o propósito da sentença aqui é definir, em
nossa opinião, ela não se refere a uma não-entidade. [...] Se as
palavras satya, etc. remetessem a uma não-entidade, não poderiam
logicamente distinguir seu substantivo. Mas se são significativas,
tendo o sentido de verdade, etc., podem diferenciar seu substantivo
Brahman de outros substantivos imbuídos de qualidades opostas. E o
termo Brahman, também, tem seu próprio significado individual {lit.
‘expansão, crescimento, desenvolvimento’, derivado da raiz BÅH,
‘expandir, crescer, aumentar’}. Entre essas palavras, a palavra ananta
torna-se um adjetivo ao negar-lhe a finitude; as palavras satya e jïäna
são adjetivos mesmo enquanto conferem seus próprios sentidos [ao
substantivo].
18. “Já que no texto ‘Desse Brahman que é o si-mesmo
[ätman], foi produzido este espaço’ [Taittiréya-upaniñad, 2.1.1], a
palavra si-mesmo [ätman] é usada com relação ao próprio Brahman,
conclui-se que Brahman é o si-mesmo do indivíduo conhecedor; e isso
é apoiado também pelo texto ‘Ele alcança este si-mesmo feito de bem-
aventurança’ [Taittiréya-upaniñad, 2.8.5], onde se mostra que
Brahman é o si-mesmo.”
O anti-sujeito aqui figurativizado como opositor lança a questão: se Brahman, que é
idêntico ao si-mesmo, não é, porém, conhecido e nem pode ser conhecido da forma como nós,
humanos, podemos conhecer, então talvez ele não exista. Talvez seja apenas uma construção
lingüística redutível ao absurdo, como “o filho de uma mulher estéril”, o “chifre de uma
lebre”, etc.
O primeiro argumento elencado por Çaìkara é bastante simples: se está sendo
definido, é porque existe; as escrituras não definiriam o inexistente. O segundo argumento
recorre à etimologia do termo Brahman para lhe conferir o estatuto de existente. Finalmente, a
104
identidade entre Brahman e o si-mesmo é estabelecida também por força das citações de
autoridade, no caso, de trechos da mesma Upaniñad que está sendo comentada.
d) sac-cid-änanda
Como podemos notar, o propósito de Çaìkara nessa argumentação é estabelecer uma
identidade indissociável não entre Brahman e as três definições dadas verdade,
conhecimento e infinito – como também entre cada uma dessas definições. Assim a verdade é
conhecimento, e conhecimento é infinito. Como Brahman é idêntico ao si-mesmo, define-se
então a real natureza do si-mesmo de cada indivíduo como verdade, conhecimento e infinito.
Essa definição de Brahman dada pela Taittiréya-upaniñad tornou-se fundamental para
o Advaita. Foi a partir desta sentença satyaà jïänam anantaà brahma que Çaìkara
elaborou a única definição positiva de Brahman admitida pelo Advaita: Brahman é sat, cit e
änanda = sac-cid-änanda
13
.
Sat, “ser, existência”, é o correlato da definição satya, “verdade”, dada pela Upaniñad,
e pretende conferir a Brahman/ätman o estatuto de princípio unitário e ontológico do universo
e dos seres: existente, absoluto, homogêneo, infinito, imutável, imortal, etc. Cit, um nome-raiz
que designa tanto “consciência” como “ser ciente de”, foi o termo escolhido pelos advaitin
(adeptos do Advaita) em substituição ao termo inicial jïäna, “conhecimento”. Ao identificar o
sujeito absoluto com o puro conhecimento e com a pura consciência, o advaitin pretende
indicar o caráter eternamente auto-luminoso da consciência do si-mesmo a consciência
como fenômeno sempre existente e sempre consciente de sua existência e sua oposição ao
caráter dual, e portanto de conhecimento limitado, da consciência fenomênica ou psique
humana, a qual se denominará buddhi (“intelecto”), citta (“pensamento, consciência”),
caitanya (idem) ou ainda antaù-karaëa (“instrumento interno”), denominações herdadas das
Upaniñad e dos sistemas Säàkhya-yoga.
Por último, o termo änanda, “gozo, êxtase, transe, bem-aventurança, prazer sem fim”,
foi preferido pelos discípulos de Çaìkara em substituição ao anterior ananta, “infinito”, por
traduzir de forma mais completa o caráter eternamente auto-satisfeito do si-mesmo que é
consciência/inteligência eterna, infinita, absoluta.
O si-mesmo, como testemunha do processos cognitivos do sujeito relativo, não pode
ser negado: é o “eu” do “eu”. Não obstante, o si-mesmo também não pode ser conhecido
13
As alterações fonológicas que ocorrem com a junção dos termos são conseqüência do fenômeno do saàdhi,
um conjunto de regras eufônicas para ajuste ” sonoro nos limites dos morfemas característico do sânscrito.
105
pelos instrumentos mentais de conhecimento, pois estes não o alcançam. Apenas uma
percepção imediata do si-mesmo, em si mesmo, pode trazer a revelação do sujeito absoluto.
Assim se reafirma que o ser ou si-mesmo (ätman) de cada sujeito relativo é
eternamente existente, auto-consciente e auto-satisfeito. O sujeito relativo, por sua vez, não
pode ser senão parcialmente existente (dentro de limites específicos de tempo e espaço),
parcialmente consciente e parcialmente satisfeito. Não obstante, a fração de existência,
consciência e gozo do sujeito relativo não é uma parte quantitativa do TODO que é Brahman,
ou seu si-mesmo (como uma fração de um bolo pode ser uma parte quantitativa com relação à
totalidade do bolo), pois entre o relativo e o absoluto, para o advaitin, não existe solução de
continuidade. Como vimos pouco, Çaìkara recusa a soma das partes (a totalidade
numérica), ou ainda mesmo a fusão de contrários (a totalidade do objeto complexo), como
caminho do relativo ou dual para o alcance de Brahman. A totalidade do manifesto não
corresponde à totalidade que é Brahman. O conhecimento que é Brahman não é a soma de
todos os conhecimentos e consciências relativos, é outra coisa. Não obstante, e
paradoxalmente, é essa outra coisa a eterna base de sustentação (adhiñöhäna) de todas as
coisas manifestas.
Estamos prestes a entrar na segunda parte deste trabalho, na qual verificaremos as
respostas dadas e os mecanismos descritos, através dos quais Çaìkara pretende elucidar essas
questões complexas que apenas esboçamos aqui. Porém, antes disso, finalizemos esta
primeira parte do trabalho acompanhando quatro outras passagens das Upaniñad que
assumiram extraordinária importância para o Advaita-vedänta.
106
1.5 – MAHÄ-VÄKYA: AS QUATRO GRANDES SENTENÇAS
“Isso que é essa essência sutil, tudo isso tem Isto como si-
mesmo [ätman]. Essa é a verdade. Isto é o si-mesmo. Tu és isto,
Çvetaketu. “Possa tu, ó venerável, explicar-me novamente.” “Que
assim seja, ó de bela face.” (Chändogya-upaniñad, 6.8.7, in
GAMBHÉRÄNANDA, 1997, p. 468)
Isso era de fato Brahman no princípio. Conhecia-se como Eu
sou Brahman.” E então tornou-se tudo. E quem quer que, entre os
deuses, também soubesse, tornava-se Brahman; e o mesmo com os
sábios e os homens. O sábio Vämadeva, enquanto sabia-se como
[sendo] Isto, disse “Eu sou Manu [o primeiro ancestral do homem], e
o sol.” E até hoje quem sabe que “Eu sou Brahmantorna-se tudo isso
[o universo]. Até os deuses não o sobrepujam, pois ele se torna o si-
mesmo deles. Enquanto o que cultua outro deus pensando “Ele é um, e
eu sou outro”, não sabe. Esse é como um animal para os deuses.
Assim como muitos animais servem a um homem, assim os homens
servem aos deuses. Se há angústia mesmo quando um único animal
desaparece, o que se dirá de muitos animais? Por isso os deuses não
gostam que os homens saibam disso {i.e., que “Eu sou Brahman.”}
(Båhad-äraëyaka-upaniñad, 1.4.10, in MÄDHAVÄNANDA, 1975, p.
100)
Indra, através de mäyä, é percebido como muitos; a ele estão
ligados dez órgãos, cem vezes dez; ele é os órgãos; ele é dez e
milhares deles, muitos e infinitos. Brahman é sem começo nem fim,
sem interior nem exterior. Este si-mesmo [ätman] é Brahman, que a
tudo percebe. Esse é o ensinamento. (Båhad-äraëyaka-upaniñad,
2.5.19, ibid., p. 280]
Isto é Brahman; é Indra, é Prajäpati; isto é todos os deuses, e
todos os cinco elementos: terra, água, espaço, ar e fogo. E isto é todos
esses [seres], e os pequeninos, e os procriadores, referidos aos pares
os que nascem de ovos, de úteros, da umidade e da terra: cavalos,
gado, homens, elefantes, e todas as criaturas que existem, as que se
movem, as que voam e as que não se movem. Todos esses são
impelidos pela consciência {prajïäna}. Todos têm a consciência
como realidade, o mundo tem a consciência como seu olho, e
consciência é seu fim. Brahman é consciência. (Aitareya-upaniñad,
3.1.3, in GAMBHÉRÄNANDA, 2002, p. 66)
Consideremos as quatro sentenças extraídas dessas quatro passagens das Upaniñad:
a) tat tvam asi – “Tu és Isto”
b) ahaà brahmäsmi – Eu sou Brahman
c) ayam ätmä brahma – Este si-mesmo [ätman] [é] Brahman
d) prajïänaà brahma – Brahman [é] consciência”
107
Essas quatro sentenças são conhecidas na tradição do Advaita-vedänta como os quatro
mahä-väkya (“grandes sentenças”), frases que, segundo se afirma, constituem a essência dos
ensinamentos de Çaìkara. Como tais, são utilizadas como recursos meditativos (afirmações)
durante o treinamento dos jovens discípulos advaitin dedicados à prática do jïäna-yoga
(“yoga do conhecimento”), método de treinamento mental (na verdade, de
descondicionamento mental) para o alcance da percepção de Brahman.
As passagens contêm alguns elementos que estamos prestes a tratar sob a óptica do
Advaita, na segunda parte do trabalho, tais como o conceito de mäyä e o papel e “lugar” de
Deus no sistema. (Aliás, segundo Çaìkara, Éçvara, o “Senhor”, aparece em duas dessas
passagens figurativizado nas personagens de Indra, soberano dos deuses, e de Prajäpati,
literalmente o “senhor das criaturas”, uma personificação dos tempos védicos do deus
criador.) Por essa razão, alguns dos comentários feitos por Çaìkara às passagens aqui citadas
só serão tratados mais à frente, no momento adequado.
A segunda parte deste trabalho, intitulada “Os percursos do Dois”, é dedicada à
exploração dos elementos operadores que, no Advaita, justificam e procuram dar sentido e
razão à “passagem” descrita do Um ao Dois, o que equivale dizer, do imanente ao manifesto,
do ser-em-si-mesmo às relações sujeito-objeto. Em conseqüência, trataremos também do
lugar e papel que Çaìkara atribui às principais tradições e escolas de sua época, alguns de seus
pontos de discordância, e sobretudo sua intenção integradora.
108
PARTE II
OS PERCURSOS DO DOIS
109
2.1 – A CISÃO DO UM EM DOIS
Tratamos até aqui do estabelecimento do conceito de Brahman/ätman como absoluto,
“um-sem-segundo” e, ao mesmo tempo, como sujeito absoluto ou si-mesmo. Mas a tarefa
exegética e integradora do Hinduísmo a que Çaìkara se propôs incluía uma série de outros
desafios, que podemos sintetizar nos seguintes tópicos:
1 Ele teria de coordenar todas as passagens das escrituras acerca da natureza não-
dual de Brahman, muitas das quais lhe negam todos os atributos dualistas, com um grande
número de outras passagens nas mesmas escrituras nas quais se encontra uma descrição
pessoal e positiva desse mesmo Absoluto como sendo um ser supremo, o “Senhor” (Éçvara),
capaz de manifestar ou “emanar” e governar todo o universo e suas criaturas, no plano
relativo. Como conciliar o Brahman neutro, impessoal, com um Deus pessoal; o si-mesmo
intransitivo com um “Tu” divino a quem o devoto se dirige em prece?
2 Çaìkara teria de levar em consideração tanto a transcendência como a imanência
de Brahman. Em outros termos: teria de considerar as afirmações escriturais de que todo o
universo fenomênico e todos os seres são originados dessa realidade absoluta, Brahman, sem
que isso jamais afete a natureza de Brahman, e ao mesmo tempo provar que Brahman, como
si-mesmo, é a realidade mais imediata, permanente e fundamental de todos os seres, sempre e
durante toda a existência fenomênica;
3 – Çaëkara teria ainda de conciliar a afirmação de Brahman/ätman como inalcançável
pelos processos mentais e pelas ações humanas com todos os princípios reguladores da vida
social, ética e religiosa de seu tempo. Não seria possível invalidar totalmente as práticas
ritualísticas dos sacerdotes e o exercício da vida virtuosa pelo comum dos homens, que as
escrituras que constituíam discurso de autoridade continham também essas injunções
comportamentais;
4 Finalmente: o que fazer com as escolas rivais, que também pretendiam ser
interpretações corretas das mesmas escrituras, e que inclusive em alguns casos, devido à sua
antigüidade (sobretudo no caso do Säàkhya e do Yoga), tinham seus elementos conceituais
referidos nas próprias escrituras? Seria necessário encontrar as supostas “falhas” e os
“acertos” no raciocínio de todas elas para lograr reinterpretá-las, à luz do Advaita, e acomodá-
las de alguma forma no sistema.
Acompanharemos aqui a articulação das principais soluções encontradas por Çaìkara
para essas questões. (No que concerne à contestação das escolas rivais, trataremos apenas da
polêmica travada por Çaìkara com os ritualistas e com os antigos e muitíssimo respeitados
110
dualistas representantes do Säàkhya-yoga-darçana). Novamente, nossa análise será norteada
pelos princípios da teoria do discurso que dão conta do nível fundamental de significação,
pois deverão ser encontrados os articuladores lógicos capazes de dar sentido à coexistência
dessas oposições básicas entre Absoluto e relativo, si-mesmo e Deus personificado, inação
(condição do “liberto”, daquele que existe na condição de “Eu sou Brahman”) e ação (ritos,
devoção teísta, conduta virtuosa, vida mundana).
Para começar nossa investigação, observemos logo de início que Çaìkara percebeu
claramente essas oposições, e constatou que as duas ordens de realidade de que deveria tratar,
o Brahman/ätman transcendente e o universo dual e empírico (governado pela dicotomia
básica sujeito-objeto), por estarem em diferentes planos e pertencerem a diferentes ordens da
existência, sendo uma absoluta e outra relativa, não poderiam ser integradas completamente
sob qualquer um dos planos. O conhecimento acerca dessas duas realidades teria de ser
revisto de forma distinta, cindido sob dois pontos de vista:
1 O ponto de vista da realidade/existência sob a perspectiva da percepção-revelação
imediata (aparokñänubhüti) do Absoluto, Brahman/ätman (do qual tratamos na primeira parte
deste trabalho);
2 O ponto de vista da realidade/existência sob a perspectiva das percepções duais
fenomênicas (pramäëa) do homem comum, em que existem sujeitos relativos (jéva), um
universo objetivo (jagat) e um Deus pessoal (Éçvara) o ponto de vista de que doravante
trataremos.
Ainda com base em trechos das escrituras que constituem o “fim dos Veda” ou
Vedänta (as Upaniñad), mas agora também acrescentando à sua análise o conteúdo do já então
popular e célebre texto da Bhagavad-gétä e do tratado do Vedänta-darçana (circa II d.C.), o
Brahma-sütra, Çaìkara tomou desse grande corpus o termo mäyä e o articulou como a
verdadeira “chave comutadora” que opera a transição do absoluto para o relativo, do um-sem-
segundo para a dualidade e multiplicidade dos fenômenos. A articulação adequada do
conceito de mäyä é portanto de fundamental importância para sustentar a coerência de todo o
sistema do Advaita-vedänta e, para aproveitar uma analogia do próprio Çaìkara, é tão
impossível tratar de Brahman sem tratar de mäyä quanto é impossível tratar do fogo sem
considerar seu calor, sua luz e seu poder de queimar. Iniciemos, então, a segunda parte desta
jornada pela necessária compreensão do conceito de mäyä.
111
2.1.1 – Mäyä: a “mágica” da relatividade
O substantivo feminino sânscrito mäyä é derivado da raiz (“medir, marcar”, mas
também “construir” e “mostrar, exibir”) e tem as acepções de “arte, poder; ilusão, irrealidade,
fraude, mágica, truque; miragem, aparição”. O termo aparece esporadicamente em algumas
Upaniñad e de forma mais constante na Bhagavad-gétä, onde é identificado ao poder da
divindade de projetar os mundos e os seres. Verifiquemos como o termo é articulado em três
exemplos:
Indra, através de mäyä, é percebido como muitos; a ele estão
ligados dez órgãos, cem vezes dez; ele é os órgãos; ele é dez e
milhares deles, muitos e infinitos. Brahman é sem começo nem fim,
sem interior nem exterior. Esse si-mesmo [ätman] é Brahman, que a
tudo percebe. Esse é o ensinamento.” (Båhad-äraëyaka-upaniñad,
2.5.19, in MÄDHAVÄNANDA, 1975, p. 280)
Embora eu seja não-nascido {ajaù}, de essência imutável
{avyaya-ätmä}, o Senhor de todas as coisas {bhutänäm éçvaro}, ao
comandar minha matriz fenomênica {prakåti}, eu me desenvolvo
{sambhavämi, lit., “eu nasço, eu surjo”} através de minha própria
mäyä {ätmä-mä}. (Bhagavad-gétä, 4.6, in GAMBHÉRÄNANDA,
2000, p. 179)
Estando encoberto por minha yoga-mäyä, eu não me torno
manifesto para todos. Esse mundo tolo {müdha, “estupefato, perplexo,
confuso; tolo, indolente”} não me conhece, eu que sou não-nascido e
imutável. (Bhagavad-gétä, 7.25, ibid., p. 33)
No primeiro exemplo, extraído de uma das mais antigas Upaniñad, temos a figura de
Indra, soberano dos deuses e divindade proeminente do período védico, identificado à própria
manifestação dos seres do universo. Sua “multiplicação” em órgãos de percepção e ação é
tomada como símile da multiplicação do si-mesmo, ätman, num conjunto de instrumentos
psíquicos ativos e necessários para a relação com o mundo dos fenômenos. A “multiplicação”
que figurativiza a passagem do absoluto para o relativo é instrumentalizada, nessa Upaniñad,
por meio de mäyä, uma “mágica” ou “ilusão”. É a mágica que faz com que esse único ser
pareça “muitos”. Ele, que a tudo percebe, multiplica-se magicamente numa miríade de
instrumentos de percepção limitada, condicionada. Isso significa que o plano da
multiplicidade, por ser originado na condição de mágica, necessariamente parece ser, mas em
essência não é.
112
Retomemos o quadrado semiótico das modalidades veredictórias proposto por
GREIMAS e COURTÈS (s/d, p. 488):
verdade
ser parecer
segredo mentira
não-parecer não-ser
falsidade
Segundo as categorias propostas, o que parece mas não é é uma mentira. Isso significa
que denominar o operador da multiplicidade fenomênica de mäyä, “mágica, ilusão, aparição”,
é propor que a multiplicidade o é, em essência, real, ou seja, que a manifestação não
compartilha do mesmo nível de realidade da imanência. A manifestação como “aparição” ou
“aparência” aqui se opõe de forma irreconciliável com o que oculta ou disfarça, a imanência.
nos exemplos seguintes, extraídos ambos da Bhagavad-gétä, temos o discurso em
primeira pessoa no qual a própria divindade (no caso Viñëu “encarnado” como Kåñëa) fala de
si. Esse simples fato – a personificação da divindade como manifestação, e portanto como um
“eu” que se dirige a um “tu” falando de um “ele”, o “mundo tolo” – aponta para uma mudança
significativa nas articulações do conceito de Brahman como sujeito absoluto.
De fato, o sujeito absoluto a princípio não conversa, porque nessa instância do ser, por
definição, não existe um tu, nem um ele, nem linguagem. Mas a Bhagavad-gétä coloca um
Deus único como o autor da mágica do universo, e por isso Çaìkara dirá que o Deus único é
Brahman personificado, o que, em si, é a primeira mágica de Brahman. Assim comenta
Çaìkara, parafraseando Kåñëa:
Por eu estar encoberto por minha yoga-mäyä, o mundo não me
conhece. Essa yoga-mäyä, por me pertencer, não obstrui o
conhecimento que tenho de mim, eu que sou o Senhor {Éçvara}, assim
como a mágica de qualquer gico não encobre seu conhecimento.”
(Bhagavad-gétä-bhäñya, 7.25, in GAMBHÉRÄNANDA, 2000a, p.335;
in GOYANDAKÄ, s/d, p. 207)
113
Çaìkara define o uso do termo yoga neste verso da Bhagavad-gétä: Yoga aqui
significa reunião, combinação dos três guëa (ibid., p.334). Trata-se de uma referência à
escola do Säàkhya, cujas premissas são amplamente referidas na Bhagavad-gétä. Segundo
essa escola, tudo o que é fenomênico provém de uma única causa ou matriz original, prakåti,
composta por três guëa ou princípios: sattva (princípio de revelão), rajas (princípio de
ação/movimento) e tamas (princípio de inação/inércia). Assim, a expressão yoga-mäyä seria
uma referência ao caráter composto e dinâmico de tudo o que é fenomênico. (Voltaremos a
tratar da questão em maiores detalhes no capítulo dedicado à polêmica com o Säàkhya.)
Retomando a questão dos dois níveis de realidade, podemos compreender essa
dicotomia da seguinte forma: sob o ponto de vista de Brahman, não existe universo real nem
outras criaturas reais. existe o próprio Brahman, que é “verdade/existência” (satya/sat), o
que por sua vez é “conhecimento/consciência” (jïäna/cit) e “infinito/gozo” (ananta/änanda),
em si-mesmo (ätman), por si-mesmo, eternamente imperturbável, sem absolutamente
nenhuma necessidade de universo. Porém, sob o ponto de vista do universo, dos seres
fenomênicos inseridos no tempo e no espaço, Brahman não é percebido como o é em
essência: o espetáculo da manifestação, da multiplicidade, é o que é percebido em lugar do
ser. Portanto, para os sujeitos relativos, Brahman como fonte e base do universo é
necessariamente uma divindade suprema, um tu por cuja graça rogam os seres (com todos os
atributos de poder, criação, manutenção, destruição e eterna soberania e compaixão que
caracterizam a divindade suprema em todo sistema teísta) e ao mesmo tempo a substância do
próprio universo, a sua objetividade (com todos os atributos de causalidade, temporalidade e
espacialidade que caracterizam os fenômenos).
Assim, sob o ponto de vista do absoluto, Brahman percebe-se como o Absoluto
nirguëa (nir-guëa, “sem atributos, sem qualificações, sem características”), e sob o ponto de
vista do relativo, Brahman percebe-se e é percebido como o Absoluto saguëa (sa-guëa, “com
atributos, qualificações, características”), ou seja, um ser supremo que gera, contém, sustém e
reabsorve em si todos os seres e todas as coisas, no tempo e no espaço. Assim, observa
Çaìkara:
[...] Brahman é conhecido sob dois aspectos: um está imbuído
do adjunto limitante {upädhi} formado pelas diversidades do
universo, que são modificações de nome e forma, e o outro é
destituído de todos os fatores condicionantes e oposto ao primeiro. Há
muitos textos como o que se segue, os quais, ao fazerem uma divisão
entre conhecimento e ignorância, mostram de mil maneiras esses dois
aspectos de Brahman: “Porque parece existir a dualidade, então vê-se
114
algo [...] Mas quando, para o conhecedor de Brahman, tudo tornou-se
o si-mesmo, então o que pode haver para ser visto, e por meio de quê
[de qual instrumento de visão]?” [citação da Båhad-äraëyaka-
upaniñad, 4.5.15]
(Brahma-sütra-bhäñya, 1.1.12, in GAMBHÉRÄNANDA,
2000, p. 62; in GRETIL, 2006, Adhyaya 1, p. 29-30)
Um fato interessantíssimo que constatamos no Advaita é que, sob uma análise mais
acurada, percebemos que temos na verdade três instâncias a partir da “cisão do um em dois”.
Expliquemos. Na primeira parte deste trabalho tratamos da instância do Um absoluto,
considerada por Çaìkara como a instância da verdade, e que doravante podemos chamar de
nirguëa-Brahman ou absoluto não-qualificado (atenção: não-qualificado não significa não-
definido, como vimos pelo conceito de sac-cid-änanda). Verificamos também que a verdade
em que consiste esse Brahman não se define como a mesma verdade descrita semioticamente
como a identidade entre o ser e o parecer, ou entre a imanência e a manifestação, justamente
porque tal verdade, por ser absoluta e ontológica, não permite a aparência ou manifestação: a
verdade de Brahman seria, então, apenas o ser; o parecer seria completamente falso,
destituído de existência. Agora, estamos diante da explicação de Çaìkara acerca da
permanência do ser durante a manifestação, ou seja, o Absoluto, não mais apenas em si-
mesmo, mas sendo o si-mesmo face ao relativo, ao parecer. A partir do momento em que traz
à consideração o lado relativamente verdadeiro de Brahman como manifestação, denominado
mäyä e saguëa-Brahman, o Advaita torna-se, digamos, “semiótico”, no sentido de que está
sujeito necessariamente à dualidade da relação sujeito-objeto. Por isso, saguëa-Brahman,
embora ainda verdadeiro, é de uma verdade relativa, dicotomizada pelas instâncias do ser e
do parecer, como todas as nossas verdades humanas. Para entender saguëa-Brahman, o “um
cindido” ou, melhor dizendo, o “um relativo”, tornam-se válidas as combinatórias entre ser e
parecer que estabelecem aquelas categorias de verdade, falsidade, segredo e mentira segundo
Greimas.
Mais do que isso, nosso recém-nascido “dois” ou “segundo” é duplo, obviamente,
como tudo o que existe semioticamente. Sua definição depende da direção do ponto de vista.
Assim, dentro do sistema Advaita, temos que para nós, os sujeitos relativos, a instância do ser
absoluto manifesto ou saguëa-Brahman (a totalidade inteligente e inteligível do universo, o
si-mesmo de todas as coisas com relação a todas as coisas que contém) é, mas não parece: ou
seja, sua totalidade é segredo, está oculta à nossa percepção usual. Por outro lado, sob o ponto
de vista desse mesmo Absoluto manifesto (a divindade onisciente e onipresente ou si-mesmo
de todas as coisas), a instância da relatividade (dualidade e multiplicidade) parece, porque é
115
testemunhada, mas não é: ou seja, é mentira, é destituída de realidade ontológica, é apenas
“mágica, ilusão, miragem”, mäyä. Estamos diante de uma verdadeira “semiótica da
ilusão/mentira” para explicar o mundo.
Mas não é isso: a questão mais fundamental é que saguëa-Brahman o plano
relativo em sua totalidade é mäyä, “ilusão, mágica”, mas trata-se de uma mentira apenas
sob o ponto de vista do próprio saguëa-Brahman (o mágico, o ilusionista), e de uma falsidade
ou inexistência apenas sob o ponto de vista de nirguëa-Brahman (o sujeito absoluto em si,
intransitivo). Sob o ponto de vista dos sujeitos relativos (os espectadores da mágica), o
universo não é uma “ilusão”, não é irreal, não é mentira, e não pode ser tratado como tal. A
mágica é um efeito de ilusão apenas para o mágico que a domina; para o auditório, a mágica é
vivenciada como real, apesar de inexplicável em sua totalidade. Aquele espectador que
desvenda o “truque” ou seja, o “conhecedor de Brahman–, embora continue assitindo à
mágica, já não é mais afetado por ela. Para ele, apenas, a mágica se torna mentira de fato.
Uma anedota acerca de Çaìkara bem conhecida na Índia ilustra de forma magistral a
dificuldade de apreensão adequada do conceito de mäyä e de suas implicações por parte dos
discípulos do Advaita – e sobretudo por parte dos oponentes do Advaita. A anedota, recontada
por Heinrich Zimmer, merece ser reproduzida aqui:
O rei da nossa narrativa, discípulo do filósofo Çaìkara, era um
homem lúcido e realista que não podia deixar de ter em boa conta a
sua estirpe e augusta personalidade. Quando seu mestre lhe disse que
considerasse todas as coisas – inclusive o exercício do poder e o
usufruto dos deleites reais como sendo nada mais do que reflexos
(puramente fenomênicos) da essência transcendental do Eu, presente
tanto nele quanto em todas as coisas, o rei mostrou-se relutante. E,
quando o mestre acrescentou que esse único Eu parecia-lhe múltiplo
devido à força da ilusão de sua inata ignorância, o rei resolveu testar
seu guru para ver se era, de fato, capaz de agir como uma pessoa
absolutamente desapegada.
Assim, no dia seguinte, quando o filósofo se dirigia ao palácio
por uma daquelas majestosas avenidas a fim de continuar instruindo o
rei, foi solto em sua direção um enorme elefante enlouquecido por
queimaduras. Çaìkara virou-se e fugiu logo que percebeu o perigo e,
quando o animal estava quase sobre ele, o mestre desapareceu. Ao ser
encontrado, Çaìkara estava no topo de uma alta palmeira, na qual
havia subido com uma destreza própria mais dos marinheiros que dos
intelectuais. O elefante foi apanhado, acorrentado e conduzido de
volta aos estábulos, e o grande Çaìkara, transpirando por todos os
poros, apareceu ao seu discípulo.
O rei, educadamente, desculpou-se com o mestre de sabedoria
pelo infeliz e quase desastroso incidente; mal podendo esconder um
116
sorriso perguntou, com fingida seriedade, o porquê de o venerável
mestre ter recorrido à fuga física, uma vez que ele estava ciente de que
o elefante era de caráter puramente ilusório e fenomênico.
Respondeu o sábio:
De fato, a pura verdade é que o elefante é irreal. Não
obstante, tu e eu somos tão irreais quanto o elefante. Somente a tua
ignorância, anuviando a verdade com esse espetáculo de fenomenismo
irreal, fez com que visses meu eu fenomênico subir numa árvore
irreal. (ZIMMER, 1991, p.26-27)
Uma palavra utilizada nessa anedota nos é de suma importância: “ignorância”.
Havíamos visto que as definições de Brahman eram “verdade, conhecimento e infinito”. Por
oposição, não nos é difícil conceber que mäyä, enquanto princípio de relatividade ou
dualidade, será compreendida pelo Advaita como “mentira, ignorância e limitação”. vimos
em que sentido mäyä é mentira, “ilusão, mágica”. Vejamos agora um dos sinônimos
preferidos de Çaìkara para sob a perspectiva de sua ação sobre os seres relativos:
avidyä, ignorância”.
117
2.1.2 – Avidyä: “Ignorância” e descontinuidade
Observemos primeiramente alguns trechos dos escritos de Çaìkara acerca da oposição
“conhecimento de Brahman” X “ignorância de Brahman(= conhecimento de mundo), para
que em seguida possamos esboçar uma análise:
1 – Muëòaka-upaniñad
tasmai sa hoväca / dve vidye veditavye iti ha sma
yadbhramavido vadanti parä caiväparä ca // 1.1.4 //
1.1.4 - A este, ele disse: “Há dois tipos de conhecimento
para se saber, o superior {parä} e o inferior {aparä}, dizem os
conhecedores dos Veda.”
{Trecho do comentário de Çaìkara:} O conhecimento inferior
é, de fato, ignorância. Ele tem de ser erradicado, que nada é
conhecido em realidade ao se conhecerem os objetos da ignorância.
taträparä ågvedaù yajurvedaù sämavedo ‘tharvavedaù çikñä
kalpo vyäkaraëaà niruktaà chando jyotiñamiti / atha parä yayä
tadakñaram adhigamyate // 1.1.5 //
1.1.5 - Desses, o inferior consiste no Åg-veda, Yajur-veda,
Säma-veda, Atharva-veda, fonética, ritualística, gramática,
etimologia, métrica e astrologia. E o superior é aquele pelo qual se
alcança o imperecível.
{Trecho do comentário de Çaìkara:} “[...] de fato, o alcance do
conhecimento superior consiste meramente na remoção da ignorância,
e nada mais.”
[Objeção:] “Nesse caso, o conhecimento superior está fora dos
Veda; então como pode ser o conhecimento superior e o meio de
liberação? [...] Além disso, as Upaniñad estarão excluídas dos Veda. E
se forem incluídas, então será ilógico distingui-las dizendo ‘esse é o
conhecimento superior’, etc.
[Resposta:] “Não, que pelo termo ‘conhecimento’ {vidyä}
está implicada a realizão/revelação daquilo que é conhecido. O que
se pretende dizer primordialmente pela expressão ‘conhecimento
superior’ nesse contexto é o conhecimento do imperecível que é
tratado apenas pelas Upaniñad e não o mero conjunto de palavras
encontrado nas Upaniñad. Mas pelo termo Veda o que se pretende
designar é um conjunto de palavras. O conhecimento de Brahman é
distintamente referido e denominado ‘conhecimento superior’ porque,
mesmo após o conhecimento do conjunto de palavras {que o
descrevem nas Upaniñad}, a percepção do imperecível não é possível
sem que haja o esforço de aproximar-se de um mestre, etc., bem como
o desapego.
“Ainda com relação à questão das injunções, são encontrados
certos atos como a realização do Agnihotra {rito de sacrifício ao
fogo}, os quais devem ser efetuados após a compreensão do
significado do texto [...] Contrariamente a isso, não resta mais nenhum
118
ato a ser realizado no domínio do conhecimento superior, onde todas
as ações cessam simultaneamente à compreensão do significado das
sentenças, que nada mais restará a ser feito então, exceto a
permanência no conhecimento apontado pelas palavras.”
(Muëòaka-upaniñad-bhäñya, 1.1.4 e 1.1.5, in GAMBHÉRÄNANDA,
2001, p. 79-82; in ÇÄSTRIËÄ, 2000, p. 144-145)
2 – Kaöha-upaniñad
eña sarveñu bhüteñu güòho ‘tmä na prakäçate / dåçate
tvagryayä buddhyä sükñmayä sükñmadarçibhiù // 1.3.12 //
1.3.12 Oculto em todas as coisas, o si-mesmo {ätman} não
aparece. Mas pelos que vêem as coisas sutis, ele é visto através do
intelecto {buddhi} afiado {agrya, “ponta, agulha; afiado como uma
ponta”}.
{Trecho do comentário de Çaìkara:} [...] ele está encoberto
pela ilusão da ignorância {avidyä-mäyä}. [...] Quão insondável,
inescrutável e variegada é essa , a ponto de toda criatura, embora
idêntica ao supremo si-mesmo {paramätman} e assim instruída, não
ser capaz de apreender o fato de que “Eu sou o supremo si-mesmo” e,
mesmo sem ser instruída, ser capaz de aceitar como seu si-mesmo
tudo o que não é o si-mesmo, como o agregado do corpo e dos
sentidos, etc., e nutrir a idéia de que “Eu sou o filho de fulano”, etc.,
embora tudo isso não passe de objetos de percepção como potes! De
fato, é por estar iludido por mäyä que todo homem tem que
transmigrar repetidamente. Há um verso a esse respeito: “Estando
encoberto por minha yoga-mäyä, eu não me torno manifesto para
todos.” [Bhagavad-gétä, 7.25] (Kaöha-upaniñad-bhäñya, 1.3.12, in
GAMBHÉRÄNANDA, 2001, p. 171-172; in ÇÄSTRIËÄ, 2000, p. 82-
83]
Nesses trechos selecionados é possível verificar a oposição traçada por Çaìkara entre
o conhecimento do si-mesmo e o conhecimento do mundo. O conhecimento inferior (aparä-
vidyä) ou conhecimento do que é manifesto, do universo relativo, envolve necessariamente a
relação dual sujeito-objeto, e é portanto resultante de um processo “pensante” que envolve um
sujeito conhecedor (pramäta), um objeto de conhecimento (prameya, um “conhecível”) e um
meio de conhecimento (pramäëa). Sob a perspectiva desse conhecimento, mesmo as
escrituras não passam de um “mero conjunto de palavras.” o conhecimento superior (parä-
vidyä) consiste exclusivamente no conhecimento do si-mesmo não-dual, ätman/Brahman. Tal
conhecimento é um reconhecimento, uma espécie de percepção direta ou revelação, e, como
já vimos, é também designado pelas expressões aparokñänubhüti ou viveka.
Diante do conhecimento do si-mesmo, os demais saberes mediados pelos sentidos e
pelo pensamento, e portanto objetiváveis, são considerados “ignorância”, avidyä, e se lhe
119
opõem como a luz se opõe às trevas ou o dentro se opõe ao fora (“[...] embora tudo isso não
passe de objetos de percepção como potes!”). Mas, se apenas estabelecermos essas oposições
entre ätman/Brahman e mäyä, poderemos com isso concluir que o Advaita, na verdade, não
passa de um dualismo Brahman X mäyä mal disfarçado, e com isso teremos compreendido
mal a posição de Çaìkara.
O não-dualismo se mantém pelo postulado de que Brahman, como princípio
ontológico, é a base e o suporte (adhiñöhäna) de tudo o que existe manifesto, ou seja, de mäyä.
Dessa forma, mäyä não é tida como algo distinto de Brahman, mas como o próprio Brahman
visto de forma “equivocada” pelos seres “esquecidos” de sua verdadeira natureza.
Mäyä, “ilusão”, é para o Advaita um sinônimo de avidyä, “ignorância”: ou seja, as
múltiplas formas do universo, bem como a multiplicidade dos seres ou sujeitos relativos que
com essas formas interagem, são “falhas cognitivas”, não são reais perante a realidade
homogênea e indistinta do ser. As oposições que compreendemos entre conhecimento
superior” e “conhecimento inferior”, Brahman e mäyä, não são oposições entre categorias
contrárias num eixo semântico, e sim oposições na direção do ponto de vista sobre uma
mesma realidade ou categoria única. Para elucidar essa questão, Çaìkara recorre a duas
ilustrações simples baseadas na “semiótica do erro ou ilusão” (teremos a oportunidade, nos
próximos capítulos, de mostrar exemplos dessas ilustrações em trechos de seus textos).
Na primeira imagem, temos um homem que, no escuro, confunde uma corda com uma
serpente. Enquanto o erro persistir, todos os sentimentos suscitados pela visão da serpente
serão reais para esse homem: medo, apreensão, impulso para desviar-se do caminho, etc.
Mesmo depois que o homem perceber que se tratava de uma corda, a lembrança de todos os
sentimentos envolvidos na experiência da visão da serpente ainda persistirá por algum tempo,
muito embora o homem já não seja mais vítima desses sentimentos, porque sabe que não e
nunca houve perigo real. Na segunda ilustração, um homem confunde um pedaço de
madrepérola com uma peça de prata, e por isso avidamente aproxima-se do valioso objeto
apenas para constatar, diante de um exame mais acurado, que se trata de um simples pedaço
de madrepérola. Em ambos os casos, o que temos pode ser considerado uma mentira ou
“ilusão” (de que tratamos no capítulo anterior), mas também é um erro ou “conhecimento
incorreto” (mithyä-jïäna). Assim, a percepção de Brahman como mäyä, do si-mesmo como
sujeito relativo (o que, para o si-mesmo, é objeto), é um erro de percepção por parte dos
sujeitos relativos, e é esse erro que é denominado avidyä.
Representemos esquematicamente o que dissemos até aqui: primeiramente, somos
levados a constatar uma oposição clara entre categorias de natureza distinta, como segue:
120
Brahman X
mäyä
conhecimento superior (parä-vidyä)
X
conhecimento inferior (aparä-vidyä) ou
ignorância (avidyä)
“Eu sou o supremo si-mesmo” X “Eu sou o corpo, o filho de fulano, etc.”
percepção imediata ou realização
(aparokñänubhüti ou viveka)
X
conhecimento mediado ou objetivo
(pramäëa): percepção sensorial,
inferência e cognição verbal
(“o mero conjunto de palavras”)
Essas oposições são as que nos levariam a crer que estamos diante de um sistema
dualista. Porém, observemos o esquema seguinte:
Brahman (Absoluto)
nirguëa-Brahman
(Absoluto “impessoal”) - imanente
saguëa-Brahman
(Absoluto “personificado”) - manifesto
- intransitivo (existe em si-mesmo); - relacional (existe com relação a algo);
- sat (princípio do ser: “o que é”) - satya (verdade; “o que é e parece)
- “Eu sou o supremo si-mesmo
{paramätman}”
- “Eu sou não-nascido {ajaù}, de essência
imutável {avyaya-ätmä}, o Senhor de todas
as coisas {bhutänäm éçvaro}”
avidyä-mäyä
“Véu” que “encobre” a verdade;
mentira / ilusão / erro cognitivo
“Estando encoberto por minha yoga-mäyä, eu não me torno
manifesto para todos. Esse mundo tolo não me conhece.”
universo (jagat) ser relativo (jéva)
prameya, objeto conhecível pramäta: sujeito conhecedor
(“o mero conjunto de palavras”) (“Eu sou o corpo, o filho de fulano, etc.”)
121
Observemos que a “cisão” de Brahman em dois aspectos não foi indicada por flechas:
pretendemos com isso mostrar que os dois aspectos “cindidos” não representam uma
hierarquia derivada do primeiro elemento, e sim o próprio primeiro elemento observado,
como exigem as categorias lógicas humanas, sob dois aspectos complementares de uma
mesma totalidade que pode ser definida de outra forma se o for pela via negativa que
constrói o objeto neutro: “não é isso e não é o contrário disso”. Assim como foi representada,
essa totalidade é uma identidade entre imanência e manifestação.
A mudança de estado ou “passagem” da totalidade absoluta para a dualidade e
multiplicidade do relativo é operada por um elemento-chave ou “sujeito operador” (em
semiótica), denominado pelo Advaita de avidyä, mäyä ou avidyä-mäyä: “ignorância, ilusão,
erro”. É o “véu” da ignorância que projeta a multiplicidade dos fenômenos, os quais estão
todos contidos nos limites de tempo, espaço e causalidade (delimitações que não atingem o
princípio do ser, a “base”, adhiñöhäna, presente em todos os desdobramentos). As flechas
estão todas dirigidas para baixo, representando a “descida” do Absoluto às hierarquias
inferiores do que é extremamente limitado e de existência relativa. Assim, o ponto de vista de
Brahman como totalidade do que pode ser manifestado (ou saguëa-Brahman, o Brahman
personificado) é o ponto de vista do mágico ou ilusionista: ele é o dono do espetáculo, o
Senhor (Éçvara) de todas as formas de ilusão, que por sua vez não passam de projeções suas.
Abaixo do véu da ilusão, os seres e o universo “irreais” que ele “projeta” de si desconhecem
que suas formas são ilusórias por desconhecerem a identidade de seu ser com o ser do
mágico.
Se invertermos a posição das flechas, inverteremos com isso a posição do ponto de
vista: nesse caso, a recuperação ou re-conhecimento da identidade imanente entre o si-mesmo
dos seres relativos e o supremo si-mesmo poderá ser efetivada pela “remoção da
ignorância”, a “barreira” que separa o Absoluto do relativo, sob o ponto de vista do relativo.
Mäyä é, portanto, a “chave-comutadora”. De cima para baixo, no diagrama, temos:
sob o ponto de vista de nirguëa-Brahman ou sujeito absoluto, o universo e as criaturas são
falsidade: não são e não parecem; sob o ponto de vista de saguëa-Brahman ou “Absoluto
manifesto” (o Senhor), o universo e as criaturas são mentira: parecem, mas não são. De baixo
para cima, temos: sob o ponto de vista das criaturas (seres relativos) modalizadas pela crença,
o Absoluto manifesto ou Senhor é segredo: é, mas não parece (ou não aparece); sob o ponto
de vista das criaturas modalizadas pela dúvida ou pela descrença, o Absoluto manifesto ou
Senhor é falsidade: não é, e não parece (ou não é, porque não aparece). E para todas as
criaturas, o universo e suas existências relativas são verdade: são, e parecem.
122
Finalmente, sob o ponto de vista do Advaita, a verdade é que os seres relativos estão
modalizados pelo erro e pela ignorância (/não saber ser/), o que provoca uma inversão em
suas percepções da realidade: o que percebem como verdade é uma mentira, o que percebem
como falsidade é a verdade, o que percebem como segredo é apenas um /não saber/; e
portanto a grande missão das criaturas, segundo o Advaita, é realizar, dentro do relativo, o
percurso de aquisição do objeto de valor modal /saber ser/ (o conhecimento de que “Eu sou
Brahman“) que opera sua mudança de estado do relativo para o Absoluto. E esse percurso de
aquisição é na verdade um “percurso de privação”, pois o /saber ser/ não precisa ser
adquirido, já que é imanente; é o /não saber ser/, a ignorância, que precisa ser removido.
Quando se afirma que tudo o que existe tem como base e fundamento a consciência ou
conhecimento (o si-mesmo), a ignorância passa a ser uma limitação “não-natural” à
consciência. De fato, a ignorância, avidyä, compreendida como erro de percepção, é
destituída de realidade ontológica tanto quanto um sonho, que deixa de ser real no momento
em que o indivíduo acorda. Assim é definida avidyä-mäyä: real enquanto percebida como tal,
mas inexistente como categoria de realidade (“ilusória”) quando Brahman é “des-coberto”.
Aliás, o termo “des-cobrimento” é perfeito para ser usado com relação à percepção do
si-mesmo que anula a realidade relativa de mäyä, já que a ignorância é uma “cobertura” sobre
o conhecimento do si-mesmo, que é imanente. Como um véu, avidyä-mäyä encobre a
percepção da verdadeira natureza da realidade. Em outras palavras: para o Advaita, nenhum
conhecimento é em realidade produzido pelos seres, já que todo conhecimento existe desde
sempre na consciência do sujeito absoluto que é o fundamento existencial de todos os seres.
“Adquirir” algum conhecimento é simplesmente fazer um rasgo no véu de avidyä-mäyä e
“des-cobrir” um detalhe do que sempre existiu na consciência. É por essa razão que Çaìkara
observa que o alcance do conhecimento superior consiste meramente na remoção da
ignorância, e nada mais”.
A complexa questão da “realidade irreal” do universo, segundo o Advaita, é
brilhantemente discutida por S. Dasgupta nestes termos:
Mäyä ou ilusão não é nenhuma entidade real, é apenas um
falso conhecimento (avidyä) que produz uma aparência, a qual se
extingue quando a realidade é apreendida e descoberta. Mäyä ou
avidyä possui uma existência aparente apenas enquanto durar, mas, no
momento em que a verdade for conhecida, ela será dissolvida. Não se
trata de uma entidade real com cuja associação um mundo-aparência
real foi trazido a uma existência permanente, pois ela apenas possui
existência enquanto estivermos iludidos por ela (prätétika-sattä).
123
Mäyä é portanto uma categoria que frustra a divisão lógica ordinária
entre existência e não-existência, bem como o princípio do meio
excluído. Pois não se pode dizer que mäyä é”, nem que “não é”
(tattvänyatväbhyäm anirvacanéyä). E não se pode dizer que uma tal
categoria lógica não exista, pois todos os nossos sonhos e cognições
ilusórias demonstram-nos tal existência. Tais sonhos e cognições
existem enquanto são percebidos, mas não existem que não
possuem outra existência independente além de sua percepção. Se
[mäyä] possui qualquer função criadora, tal função é tão ilusória
quanto sua própria natureza, pois a criação apenas durará enquanto
durar o erro. Brahman, a verdade, não é de forma alguma maculado
ou afetado pela associação com mäyä, pois não pode haver associação
do real com o vazio, mäyä, o ilusório. Não é uma associação real, mas
uma mera aparência. (DASGUPTA, 2004, p. 442).
A percepção do universo por uma determinada consciência, ou o “cancelamento”
(bädha) da realidade de tal percepção pela percepção ou “conhecimento superior” do si-
mesmo, é, para o sujeito relativo e sob seu ponto de vista, uma operação “no tempo”. O
“mundo-aparência” que é avidyä-mäyä existe e é real (sat) apenas enquanto é percebido; no
instante em que o absoluto que é Brahman, sem-segundo, percebe-se refletido como ätman ou
si-mesmo no indivíduo, para esse indivíduo o mundo imediatamente deixa de existir como
real (é “descoberto” como a-sat, “não-existente”, como uma miragem ou um truque de
ilusionismo) e prova nunca ter existido de fato exceto como um equívoco de percepção, um
sonho do qual se acordou. E o tempo dentro do qual o “des-cobrimento” ocorre também é
mäyä. Assim como a ignorância é um golpe de interrupção, encobrimento” ou
descontinuidade de uma realidade que é definida como da natureza do puro conhecimento,
assim também o tempo e o espaço, que são mäyä, constituem um golpe de interrupção ou
descontinuidade numa realidade que é definida como “infinito”, ananta.
Então temos mäyä, o princípio de dualidade ou relatividade, como o princípio
inaugurador de uma aparente descontinuidade ou limitação do continuum, um-sem-segundo,
de existência/verdade, consciência/conhecimento e prazer/infinito (satyaà jïänam anantam,
sac-cid-änanda) que é ätman/Brahman. Tal descontinuidade manifesta-se sob a forma de
tempo, espaço e causalidade ou seja, existência e conhecimento condicionados,
relativizados, limitados.
Mas a descontinuidade não existe apenas no âmbito da manifestação que constitui o
mundo-aparência com seus sujeitos relativos. Na verdade, o Advaita afirma uma
descontinuidade também entre a manifestação e a imanência, ou entre o mundo-aparência que
é mäyä e sua base ontológica, Brahman. Ambos se opõem e ao mesmo tempo são a mesma
124
coisa, embora mäyä e nirguëa-Brahman jamais se toquem, como os dois lados de uma
moeda.
Como vimos, mäyä se torna “irreal” diante do sujeito absoluto ou Brahman, ao
passo que diante das experiências propiciadas no palco do tempo, do espaço e da causalidade,
o mundo-aparência é absolutamente real para os seres nele, ou por ele, envolvidos. Além
disso, mäyä é um conceito complexo também na medida em que não pode jamais ser
declarada como absolutamente irreal, que mäyä está contida em Brahman. Não obstante, o
que se deduz é que é menos real do que Brahman, que em última instância, na
experiência do ser iluminado ou liberto, tudo o que subsiste é o si-mesmo, e o mundo-objeto-
aparência “perde o efeito”, como um truque ilusionista desvendado, e finalmente desaparece.
Como constatamos no diagrama deste capítulo, entre o si-mesmo Brahman e o
universo projetado em mäyä, ou entre existência/imanência e manifestação/aparência, existe
uma hierarquização baseada em graus ou níveis de realidade que torna descontínua a
existência ou realidade que é definida como única. Verificamos também neste capítulo o
“sujeito operador” ou chave-comutadora da passagem entre os níveis relativo e Absoluto:
avidyä-mäyä. Nos próximos capítulos acompanharemos a conceituação dos dois
“instrumentos operadores” que, na consciência, efetuam a passagem de um nível de percepção
de realidade a outro: a “sobreposição” (adhyäsa) ou passagem do Absoluto para o relativo, e o
“cancelamento” (bädha), ou “retorno” do relativo ao Absoluto.
125
2.1.3 – Adhyäsa: uma argumentação a respeito da “sobreposição”
O raciocínio dialético é considerado paralelo ao raciocínio
analítico, mas trata do verossímil em vez de tratar de proposições
necessárias. (PERELMAN e OLBRECHTS-TYTECA, 2002, p.5)
Tratamos no capítulo anterior da questão da descontinuidade entre o Absoluto e o
relativo segundo o Advaita, reiterando o fato de que a percepção do relativo é definida no
sistema como um “erro de percepção” ou “ignorância”.
Tal concepção não foi uma criação totalmente inédita de Çaìkara, e sim a elaboração
teórica de uma solução não conflitante para o conteúdo de muitos dos textos das Upaniñad
uma solução, aliás, brilhante. E se retomarmos o conjunto das doze principais Upaniñad,
teremos não apenas a reiteração da afirmação da natureza da realidade como sinônimo de
“consciência” (como muitos dos exemplos que apresentamos aqui), como também a
apresentação de modelos descritivos da psique mais ou menos coincidentes nesses textos.
Além disso, várias Upaniñad dedicam-se a investigar a natureza dos fenômenos com base nas
percepções da consciência do homem comum, para então chegar a proposições de níveis ou
graus de realidade a partir do princípio ontológico que todas afirmam, o ätman/Brahman.
Assim, por exemplo, aquela que é considerada pelo Advaita como uma das mais
importantes Upaniñad, a Mäëòükya-upaniñad, faz uma análise progressiva dos níveis de
consciência do homem com base em quatro etapas ou experiências: a consciência em vigília,
o sonho, o sono profundo (sem sonhos) e o “quarto” estado, o qual corresponderia finalmente
à consciência absoluta do si-mesmo. Por essa razão o Advaita, ecoando sua herança
intertextual, define o que é a realidade e hierarquiza os níveis de realidade sob a perspectiva
da experiência da consciência. E por essa razão também encontraremos no Advaita não
apenas uma hierarquia descontínua entre o absoluto e o relativo, mas também um novo nível
hierárquico descontínuo dentro do relativo, do qual trataremos no capítulo intitulado Os três
níveis de realidade e bädha, o “cancelamento”.
Por enquanto vamos nos dedicar a analisar um conceito fundamental para se
compreender como ocorre o processo de hierarquizão e descontinuidade entre Absoluto e
relativo segundo Çaìkara: a “sobreposição” (adhyäsa). Selecionamos para análise um texto
extenso (o qual dividimos em 9 parágrafos) e que é considerado um dos textos mais
importantes de Çaìkara: o preâmbulo introdutório ao seu comentário ao Brahma-sütra, o
tratado do Vedänta-darçana de Bädaräyaëa.
126
Vamos aproveitar este capítulo e o fato de, após tantas introduções teóricas
necessárias, finalmente podermos acompanhar um texto genuinamente representativo do
estilo de Çaìkara como debatedor –, não apenas para tratar do conceito de sobreposição, como
também para observar in loco o uso dos recursos argumentativos pelo pensador. Iniciemos
então.
1 - É fato estabelecido que o objeto {viñaya, lit. “campo
cognitivo, domínio”} e o sujeito {viñayin, lit. detentor do domínio},
os quais constituem o conteúdo dos conceitos de “tu” e “eu”
respectivamente, e que são por natureza tão contrários quanto a
escuridão e a luz, não podem logicamente possuir nenhuma
identidade, e portanto segue-se que suas propriedades {dharma}
também não têm nenhuma identidade. Portanto, a sobreposição
{adhy
T
sa} do objeto que é referido pelo conceito “tu” e de suas
propriedades sobre o sujeito, o qual é consciente por natureza {cit} e
referido pelo conceito de “eu”, deveria ser impossível, e igualmente a
sobreposição do sujeito e de suas propriedades sobre o objeto deveria
ser impossível. Não obstante, devido a uma ausência de discriminação
entre essas duas categorias que são absolutamente distintas bem como
entre suas propriedades, existe a continuidade de um comportamento
humano habitual baseado na auto-identificação, e que se expressa sob
a forma de “eu sou isto” ou “isto é meu”. Esse comportamento tem
como causa uma ignorância {avidy
T
} irreal, e o homem a ele recorre
ao confundir a realidade com a irrealidade, como resultado da
sobreposição das coisas próprias ou de seus atributos, umas sobre as
outras. (Brahma-sütra-bhäñya, introdução, in GAMBHÉRÄNANDA,
2000b, p.1; in RENOU, 1951, p.1-2)
Esse primeiro parágrafo da introdução de Çaìkara contém a ntese temática da
discussão que se seguirá. Os demais parágrafos acrescentam dados secundários e têm,
indubitavelmente, um imenso poder argumentativo, mas o teorema fundamental discutido no
texto, o núcleo temático, inclusive sob seu aspecto lógico-conceptual e modal, está aqui.
No nível descritivo, podemos observar que a proposição do problema que será
discutido pelo texto inicia-se com base numa série de enunciados de estado que constroem
uma oposição básica entre categorias semânticas (pares de opostos), as quais são identificadas
por objetos figurativos. Assim, temos três oposições básicas, dadas como “de natureza
contrária”: objeto X sujeito = tu X eu = escuridão X luz, sendo que a terceira categoria de
opostos, escuridão X luz, é um símile ou comparação utilizado a título ilustrativo, ao passo
que as duas anteriores são apresentadas como sendo de fato correspondentes, no plano da
realidade.
127
sabemos que, no Advaita, à categoria de “objeto, tu” (dualidade sujeito/ objeto)
corresponde a aparência, e à categoria oposta de “sujeito, eu” (sujeito absoluto) corresponde a
essência/imanência, e sabemos também que essas duas categorias, imanência e aparência ou
ser e parecer, atribuídas respectivamente a Brahman e mäyä, são consideradas “de natureza
distinta” ou “descontínuas”, como a verdade e a mentira, o real e o ilusório. Pois bem, o que
Çaìkara faz é justamente analisar a combinação entre essas categorias de natureza distinta – o
que aparentemente, segundo o Advaita, é o que acontece no mundo. Assim, propõe que no
universo das relações duais ou domínio de mäyä, o “erro cognitivo” (mithyä-jïäna) ou
“ignorância” (avidyä) dos sujeitos relativos – erro esse que os impede de perceberem o mundo
em lugar de seu si-mesmo absoluto, ätman consiste em unificar, identificar ou confundir o
universo objetivo com o si-mesmo e vice-versa. O termo proposto para designar essa
identificação é “sobreposição”, adhyäsa. De forma esquemática, temos então em princípio as
seguintes oposições, conforme organizadas em quadrados semióticos:
a) Oposições iniciais:
essência X aparência
S
1a
(sujeito) S
2a
(objeto)
não-aparência X não-essência
(não-objeto) ñ-S
2a
(não-sujeito) ñ-S
1a
128
b) Oposições projetadas sobre as inciais, a partir de sua combinatória:
separação / distinção S
1b
X unificação / identificação S
2b
(entre sujXobj, essênciaXaparência) (entre sujXobj, essênciaXaparência)
não-unificação / não-identificação X não-separação / não-distinção
(entre sujXobj, essênciaXaparência) ñ-S
2b
(entre sujXobj, essênciaXaparência) ñ-S
1b
A partir dessas combinatórias, então, Çaìkara projeta um terceiro conjunto de
modalidades compreendidas em teoria do discurso como “modalidades aléticas”, dadas a
seguir:
c) Modalidades aléticas:
necessidade (dever-ser) S
1c
X impossibilidade (dever-não-ser) S
2c
possibilidade (não-dever-não-ser) ñ-S
2c
X contingência (não-dever-ser) ñ-S
1c
Assim, no "jogo das restrições semióticas" (para utilizar uma expressão de GREIMAS
e RASTIER, 1975, 126) realizado nesse discurso, são inicialmente estabelecidas por Çaìkara
as seguintes combinações entre os quadrados semióticos a, b e c:
1) Brahman, a imanência ou sujeito absoluto (S
1a
), deve ser (S
1c
) da natureza da
distinção ou separação entre sujeito e objeto, imanência e aparência (S
1b
): ou seja, a distinção
129
ou separação entre ambos é necessária para que se conha a imanência. Essa é, de fato, a
primeira afirmação de Çaìkara:
É fato estabelecido que o objeto e o sujeito, os quais
constituem o conteúdo dos conceitos de “tu” e “eu” respectivamente, e
que são por natureza o contrários quanto a escuridão e a luz, não
podem logicamente possuir nenhuma identidade, e portanto segue-se
que suas propriedades também não têm nenhuma identidade.
2) Por oposição, o mundo ou manifestação de mäyä, a dualidade sujeito/objeto ou
aparência (S
2a
) deve ser (S
1c
) da natureza da unificação ou identificação entre sujeito e objeto,
imanência e aparência (S
2b
); ou seja, a unificação ou identificação entre ambos é necessária
para que se conheça a aparência.
Porém um problema conceitual no Advaita que não permite que essa identificação
entre sujeito absoluto e mundo objetivo seja aceita como “lógica” sem ressalvas. O problema
é justamente o fato de que o Advaita não é dual, e portanto não aceita a fundação de uma
dicotomia ou oposição real entre as categorias do ser e do parecer. Como verificamos em
capítulos anteriores, a única maneira encontrada para “ajustar” a cisão de Brahman em
nirguëa (absoluto imanente/trancendente) e saguëa (absoluto manifesto como a totalidade do
universo e dos seres) foi o sacrifício do caráter de verdade absoluta ou “realidade final” a essa
totalidade manifesta em proveito da realidade transcendente ou imanente porém não aparente
(“secreta”) do si-mesmo oculto por essa mesma totalidade, o ätman/Brahman. Em outras
palavras: a identificação entre sujeito e objeto e aqui, pela categoria de “identificação” ou
“unificação” devemos compreender o estabelecimento de relações entre ambos e a
apropriação de objetos por parte dos sujeitos, ou seja, a existência de “sujeitos semióticos”
14
– só é possível ao Advaita como realidade “provisória” ou relativa, a qual, diante do si-mesmo
ou sujeito absoluto, se revela uma irrealidade, uma ilusão, uma mentira, um erro cognitivo.
A ressalva conceitual do Advaita altera a modalidade alética ou de probabilidade
projetada sobre a identificação sujeito-objeto, de dever ser para dever não ser. Devido à
natureza do si-mesmo definido como sujeito absoluto ou não-semiótico, a princípio toda e
14
Pois é fato consensual que, no nível da compreensão humana, "[...] o sujeito não existe nem
semântica nem semioticamente se não for determinado pela relação transitiva com um objeto". (BARROS, 2002,
30)
130
qualquer relação ou combinação entre o si-mesmo e qualquer coisa torna-se impossível. Essa
é a segunda observação de Çaìkara:
Portanto, a sobreposição do objeto que é referido pelo conceito
“tu” e de suas propriedades sobre o sujeito, o qual é consciente por
natureza {cit} e referido pelo conceito de “eu”, deveria ser impossível,
e igualmente a sobreposição do sujeito e de suas propriedades sobre o
objeto deveria ser impossível.
No entanto, a identificação sujeito-objeto existe e é a base de todas as relações
cognitivas dos seres no mundo, e por isso não pode ser negada. Por isso, da mesma forma que
o mundo relativo não foi negado mas foi relegado à condição de “ilusório” (sob a perspectiva
do si-mesmo), assim também as relações que precisam ser admitidas no mundo de mäyä serão
instrumentalizadas por um fenômeno de “erro cognitivo” ou “percepção ilusória” denominado
“sobreposição”. Em teoria do discurso, diríamos que a “ignorância” (avidyä) que permite que
exista o fenômeno da sobreposição ou combinação/relação entre sujeito e objeto é o
verdadeiro “sujeito operador” capaz de realizar o “milagre” de tornar o impossível, possível.
Assim o mundo-aparência torna-se algo possível, mas não necessário. Ou seja: com a ação do
"sujeito operador" figurativizado como ignorância, ocorre uma transformação nas oposições
estáveis (as propostas nas combinações 1 e 2), e a impossibilidade da identificação sujeito-
objeto é neutralizada pelo objeto figurativo sobreposição, produzindo a projeção de um
contraditório como condição dessa identificação:
3) O mundo ou manifestação de yä, a dualidade sujeito/objeto ou aparência (S
2a
)
não deve não ser (ñ-S
2c
) da natureza da unificação ou identificação entre sujeito e objeto,
imanência e aparência (S
2b
); ou seja, a unificação ou identificação entre ambos torna-se uma
possibilidade para que se conheça a aparência. Então, finalmente, Çaìkara passa da
possibilidade criada pela ignorância e seu processo de sobreposição para a necessidade ou
dever ser das relações do mundo-aparência:
Não obstante, devido a uma ausência de discriminação entre
essas duas categorias que são absolutamente distintas bem como entre
suas propriedades, existe a continuidade de um comportamento
humano habitual baseado na auto-identificação, e que se expressa sob
a forma de “eu sou isto” ou “isto é meu”. Esse comportamento tem
como causa uma ignorância {avidy
T
} irreal, e o homem a ele recorre
ao confundir a realidade com a irrealidade, como resultado da
sobreposição das coisas próprias ou de seus atributos, umas sobre as
outras.
131
A sobreposição sucessiva de realidades objetivas sobre a auto-identificação do "eu"
subjetivo cria o mundo aparente. Tudo isso é considerado o "não-si-mesmo" (an-ätman); tudo
o que pode ser, portanto, testemunhado como condição ou processo de um "eu", ainda não é
da ordem do sujeito absoluto ou si-mesmo.
O texto trabalha, portanto, com modalidades veredictórias (aquelas que tratam
justamente da questão ser X parecer, o cerne da discussão proposta no texto). Porém, para
"encaixar" a modalizão veredictória num discurso fundamentado num objeto complexo,
temos de propor um novo quadrado semiótico da modalidade veredictória, que poderíamos
aqui denominar "a modalidade veredictória da realidade absoluta, no sistema de valores de
Çaìkara", e que assim se expressa:
S
1
S
2
Ser / Imanência Parecer / Manifestação
Verdade Mentira
("eu", sujeito, si-mesmo)
15
("tu", objeto, sobreposição)
ñ-S
2
ñ-S
1
Não parecer / Não manifestação Não ser / não imanência
Segredo Falsidade
(não-sobreposição / não-objeto) (não-eu, não-sujeito)
Ao encontrarmos esse quadrado semiótico, encontramos também o nível
fundamental deste e de muitos outros discursos de Çaìkara; a oposição entre Imanência e
Manifestação. O percurso realizado aqui é de S
2
ñ-S
2
S
1
. Ou seja: Çaìkara argumenta
pela via negativa. Dedica-se a explorar a natureza do valor disfórico, a sobreposição que
provoca a manifestação de todos os fenômenos ("a fonte de todo mal", cf. parágrafo 9), para
15
Os termos entre parênteses nesse eixo indicam os objetos figurativos correspondentes, encontrados no texto.
132
negar seu estatuto de realidade (o que é um conhecimento secreto) e chegar à verdade
conceptual da Imanência, ocultada por detrás das sobreposições, o objeto figurativo si-mesmo,
o valor eufórico que pretende veicular.
É interessante notar que esse percurso via negativa, além de corresponder a um
modelo previsto na teoria semiótica, deixa transparecer um outro fato não menos
significativo: o de que o elemento não-abordado do quadrado semiótico, ñ-S
1
, ou seja, o "não-
eu, não sujeito, não-ser, não-imanência", é justamente o elemento impossível na lógica do
Advaita.
Compreendidos os níveis fundamental e narrativo desse discurso, trataremos agora de
examinar os elementos mais próximos da manifestação discursiva, e que dizem respeito ao
nível discursivo.Verifiquemos então esse mesmo parágrafo de Çaìkara sob seu aspecto
argumentativo.
Primeiramente, percebemos aqui uma diferenciação tipológica entre a noção de "texto
introdutório a um tratado” que possuímos em nossa cultura de chegada e aquela que se opera
no plano cultural da Índia clássica e que se reflete no texto em análise. Diferentemente da
convenção de nossa cultura, percebemos que Çaìkara é um introdutor que não se introduz. O
discurso de introdução não narra o processo do fazer cognitivo, o qual gera a obra de
comentário que se segue, porém inicia-se, ex abrupto, com uma proposição-problema e um
micro-debate ou argüição que traz em si a defesa de um dos pontos cardinais dentre os que
serão defendidos no restante da obra.
O primeiro parágrafo é portanto um conjunto de enunciados de estado "impessoais"
que sugere o discurso objetivo e a construção de um objeto de valor, com o apagamento das
marcas de enunciação. Mas a primeira frase já traz uma modalização ao iniciar-se pela
expressão fato estabelecido que", reforçada por outra expressão, "não podem logicamente
possuir nenhuma identidade". Ambas as expressões criam o efeito de sentido de veracidade
através da modalidade epistêmica da certeza, projetada sobre um fato que deve ser da ordem
do saber comum. Sob o ponto de vista argumentativo, temos aqui, desde o início, um apelo
"retórico" à concordância do auditório (entendido aqui como o leitor ou actante narratário
pressuposto no texto escrito) através do argumento do consenso ou senso comum. A essas
modalizações epistêmicas iniciais segue-se, no período seguinte:
[...] a sobreposição {adhy
T
sa} do objeto que é referido pelo
conceito “tu” e de suas propriedades sobre o sujeito, o qual é
133
consciente por natureza {cit} e referido pelo conceito de “eu”, deveria
ser impossível, e igualmente a sobreposição do sujeito e de suas
propriedades sobre o objeto deveria ser impossível.
As expressões grifadas têm o efeito de sentido de diminuir a certeza da asserção, e
intencionalmente fazem com que a modalidade alética da impossibilidade passe por uma
gradação e seja, na verdade, substituída pela modalidade da possibilidade; a modalidade
epistêmica da certeza torna-se uma dúvida. Esse recurso abre caminho à contestação da
impossibilidade, o que de fato ocorre no período seguinte, com a instauração de um sujeito
operador, a "ausência de discriminação", mais à frente denominada "ignorância", capaz de
realizar essa transformação e totalizar o percurso da impossibilidade à possibilidade ou
ocorrência factual da sobreposição. Finalmente, na última frase do parágrafo, tem-se uma
síntese daquela que é a proposição fundadora do debate ou argumentação que se seguirá.
Não obstante, devido a uma ausência de discriminação entre
essas duas categorias que são absolutamente distintas bem como entre
suas propriedades, existe a continuidade de um comportamento
humano habitual baseado na auto-identificação, e que se expressa sob
a forma de “eu sou isto” ou “isto é meu”. Esse comportamento tem
como causa uma ignorância {avidy
T
} irreal, e o homem a ele recorre
ao confundir a realidade com a irrealidade, como resultado da
sobreposição das coisas próprias ou de seus atributos, umas sobre as
outras.
Notemos aqui mais um par de opostos ou categorias semânticas instalado: real X
irreal. Assim como indicaria o senso comum, percebemos que também dentro desse sistema
de valores o irreal é disfórico – embora aqui o “irreal” seja a "sobreposição", a "ignorância" e,
por extensão, o "comportamento humano habitual". O eufórico, seu contrário e portanto o
termo defendido no discurso, ainda não é conceituado. Note-se a bela correlação estabelecida
entre as duas sobreposições possíveis, através do exemplo mais típico do "comportamento
humano habitual":
"eu sou isto" = sobreposição da natureza do sujeito sobre o objeto;
"isto é meu" = sobreposição da natureza do objeto sobre o sujeito.
Notemos também que a proposição-tema a ser discutida pelo texto parte do "fato
estabelecido" do senso comum para argumentar e defender algo que, na verdade, se opõe a
todo senso comum: a afirmação de que o fundamento da experiência humana habitual é a
irrealidade. Sob o ponto de vista das técnicas de argumentação, essa asserção, dada através de
uma argumentação que estabelece uma relação causal (a ignorância é a causa da sobreposição,
134
assim como a sobreposição é a causa da confusão entre essência ou sujeito e aparência ou
objeto), já coloca a conclusão que será sustentada por todo o texto.
Examinemos agora o parágrafo seguinte:
2 - Se se pergunta “O que é isso que se denomina
sobreposição?”, a resposta é: “É uma percepção, semelhante em
natureza à memória, que surge numa base ou objeto diferente como
resultado de alguma experiência passada.” Com relação a isso, alguns
afirmam que consiste na sobreposição dos atributos de um objeto
sobre outro. Mas outros defendem que sempre que ocorre uma
sobreposição sobre algo, o que em evidência é apenas uma
confusão que surge da ausência de discriminação entre os dois
objetos. Outros ainda afirmam que a sobreposição de qualquer coisa
sobre qualquer outro substrato consiste em imaginar alguns atributos
opostos sobre aquela base primeira. Entretanto, sob quaisquer pontos
de vista, não há diferença no que concerne à constatação de um objeto
como algum outro objeto. E, de acordo com isso, nós constatamos na
experiência comum que a madrepérola pode parecer prata, e uma
única lua pode parecer duas.
(Brahma-sütra-bhäñya, introdução, in GAMBHÉRÄNANDA, 2000b,
p.2-3; in RENOU, 1951, p.2)
Çaìkara aqui define o conceito de sobreposição. “Sobreposição” nada mais é que a
síntese, num único termo, do processo cognitivo do erro e da ilusão. Quando uma corda é
tomada erroneamente por uma serpente, o que temos é a sobreposição da cognição de
“serpente” (“uma percepção, semelhante em natureza à memória, que surge numa base ou
objeto diferente como resultado de alguma experiência passada”) sobre o objeto “corda”.
Quando, num deserto, alguém em miragem um lago, o que ocorre é a sobreposição da
cognição passada de “lago” sobre o objeto que em realidade é “deserto”. O mesmo se nos
casos da madrepérola confundida com a prata e da lua que parece duas (pela pressão de um
dedo, por uma doença ou deficiência ocular, pela embriaguez, etc.). Em nenhum caso a
sobreposição tem o poder de alterar a natureza do objeto percebido, e seu efeito permanece
apenas enquanto perdurar a cognição errônea. Assim também a sobreposição das noções de
“eu sou isto” e “isto é meu” sobre o si-mesmo (sem atributos e sem relações com objetos) não
tem o poder de alterar a natureza de sujeito absoluto do si-mesmo, embora a mesma
sobreposição uma ignorância com relação à natureza real do si-mesmo possa perdurar
indefinidamente, enquanto não houver o “conhecimento discriminador” capaz de anulá-la.
Observemos agora os traços argumentativos do parágrafo. A pergunta é apenas uma
projeção que o narrador faz de uma possível dúvida do narratário, e o recurso ao discurso
direto pequena debreagem de segundo grau e embreagem seguinte) auxilia na construção
135
do efeito de sentido de veracidade e mesmo de honestidade do argumentador em deixar claros
os conceitos pois, como dissemos em outra parte deste trabalho, é fato previsto entre as
leis discursivas pressupostas culturalmente na Índia, além daquelas da informatividade e
exaustividade, também a "lei da troca verbal franca e honesta" (FIORIN, 2002, p. 34) no
contexto dos debates orais e dos textos elucidativos.
Também é importante ressaltar aqui o papel argumentativo da definição, já que o
discurso de Çaìkara está repleto delas, e a definição de "sobreposição" é o primeiro exemplo
nesse texto. Percebemos que a definição de Çaìkara é acompanhada das definições de
discursos oponentes, e então um "balanço" é feito e uma síntese é daí extraída. Como observa
Perelman, "a definição não será, nesse caso, nem evidente nem arbitrária, mas apresentar-se-á
como uma norma que nos esforçamos por impor ao auditório." (PERELMAN, 1984, p. 248)
As definições oponentes são dadas sob a forma de uma citação indireta, uma síntese de
informações de nível referencial: "Com relação a isso, alguns afirmam que [...] Mas outros
defendem que [...] Outros ainda afirmam que [...]".
Essa sucessão de referências sintéticas a discursos de outros, todas com diferentes
conceituações do objeto figurativo "sobreposição", pode ser recuperada, pois a cada uma
dessas definições corresponde uma diferente conceituação de “cognição errônea” segundo as
principais escolas de pensamento da herança cultural de Çaìkara. Assim, temos:
“[...] alguns afirmam que consiste na sobreposição dos atributos de um objeto sobre
outro.”posição do Nyäya-darçana;
“[...] outros defendem que sempre que ocorre uma sobreposição sobre algo, o que
em evidência é apenas uma confusão que surge da ausência de discriminação entre os dois
objetos.”posição do Mémäàsä-darçana;
“[...] Outros ainda afirmam que a sobreposição de qualquer coisa sobre qualquer outro
substrato consiste em imaginar alguns atributos opostos sobre aquela base primeira.”
posição dos çünyavädin, adeptos do Budismo da escola Mädhyamika.
Essas são informações adicionais (apud RENOU, 1951, p. 2). Interessam-nos aqui
sobretudo as intenções de sentido marcadas no texto por essas citações "sintéticas". Trata-se
de um discurso indireto com a intenção de avaliar o conteúdo do discurso de outrem, e que
portanto apresenta um resumo, quase como comentário, sem compromisso com a exata
expressão dos possíveis discursos articuladores deste conteúdo. Como a intenção da
referência não é aqui a da instauração de uma polêmica, e sim apenas a de tomar elementos
comuns a todas as citações e desses elementos extrair a confirmação de sua própria definição,
a síntese livre é benvinda, e a citação do outro é mais um argumento em favor de si mesmo:
136
Esse alguém toma, pois, o discurso referencial e exerce sobre
ele seu fazer interpretativo, cujos resultados constituem nova
modalização do discurso considerado. (GREIMAS, 1976, p. 27)
No parágrafo seguinte teremos a primeira manifestação de oposição ao discurso do
narrador sob a forma da debreagem actancial que instaura o anti-sujeito do saber, o “objetor”,
traço característico da argumentação, não de Çaìkara, como de toda a tradição sânscrita
clássica dos textos de comentaristas de tratados. Vejamos:
3 - [Objeção:] “Mas como pode haver qualquer sobreposição
de qualquer objeto ou de quaisquer atributos sobre o si-mesmo
{
T
tman}, o qual se opõe ao não-si-mesmo {an-
T
tman} e jamais pode
ser um objeto? Pois qualquer ser humano faz a sobreposição de
algo sobre aquilo que lhe é percebido defronte; e tu mesmo afirmas
que o si-mesmo se opõe ao não-si-mesmo e não pode ser referido
objetivamente pelo conceito 'tu'.”
4 [Resposta:] “O si-mesmo não está absolutamente além de
qualquer apreensão, que é apreendido pelo conteúdo do conceito
'eu'; e também porque o si-mesmo, oposto ao não-si-mesmo, é bem
conhecido no mundo como uma entidade imediatamente percebida e
auto-reveladora. Nem existe nenhuma regra que estabeleça que algo
deva ser sobreposto somente sobre outro algo que lhe seja diretamente
perceptível através dos sentidos, pois as crianças sobrepõem as idéias
de concavidade da superfície e de sujeira sobre o céu, que não é um
objeto desta percepção sensorial. Portanto não nada de impossível
na sobreposição do não-si-mesmo sobre o si-mesmo que se lhe opõe.
(Brahma-sütra-bhäñya, introdução, in GAMBHÉRÄNANDA, 2000b,
p.3; in RENOU, 1951, p. 3)
Ensaiemos uma paráfrase da objeção: "as definições de sobreposição dizem respeito a
falhas de cognição, ou seja, a constatação de um objeto como algum outro objeto, mas se o si-
mesmo não pode jamais ser objeto de uma cognição, como pode haver falha na sua
percepção?" Sob o ponto de vista argumentativo, o que o oponente faz é colocar o adversário
em contradição com sua própria proposição inicial, e a contradição, se não resolvida,
acarretará na refutação, ou da lei de passagem que permite a proposição do primeiro parágrafo
(a ligação causal ignorância sobreposição identificação sujeito/objeto), ou da conclusão
de Çaìkara acerca da natureza do sujeito e da realidade. O oponente realiza uma retorsão do
argumento de Çaìkara:
A retorsão, que chamavam na Idade Média de redarguitio
elenchica, constitui o uso mais célebre da autofagia: é um argumento
137
que tende a mostrar que o ato empregado para atacar uma regra é
incompatível com o princípio que sustenta esse ataque. A retorsão
costuma ser utilizada, desde Aristóteles, para defender a existência
dos princípios primeiros. (PERELMAN e OLBRECHTS-TYTECA,
2002, p. 231)
Çaìkara encontra uma falha no raciocínio do oponente: muito embora o si-mesmo não
possa ser objeto de cognição, a cognição continua sendo objeto do si-mesmo como sua
cognição de “eu”; como a sobreposição é uma falha cognitiva, continua sendo possível. E
Çaìkara aproveita a deixa para lançar mais uma lei de passagem para defender sua conclusão,
um novo enunciado de estado ("Nem existe nenhuma regra que estabeleça que algo deva ser
sobreposto somente sobre outro algo que lhe seja diretamente perceptível através dos
sentidos"), defendida por uma ilustração ou comparação com um fato da experiência comum.
Feita a defesa, prossegue:
5 - Essa sobreposição do não-si-mesmo sobre o si-mesmo é
definida pelos sábios como ignorância {avidy
T
}. E a confirmação da
natureza da verdadeira entidade, através da retirada dos objetos que
lhe foram sobrepostos, é denominada conhecimento discriminador
{vidy
T
}. Dessa forma, conclui-se que sempre que ocorre a
sobreposição de uma coisa sobre outra, a sede original da
sobreposição não é jamais afetada, nem pelos méritos e nem pelos
deméritos dos objetos que lhe foram sobrepostos. Todas as formas de
comportamento mundano {vyavahära} ou védico que se associam aos
meios válidos de conhecimento {pramäëa} e aos objetos de
conhecimento{prameya}começam tendo por base essa sobreposição
mútua entre o si-mesmo e o não-si-mesmo, conhecida como
ignorância; e assim também todas as escrituras que tratam de
injunções, proibições, ou da liberação {mok
L
a}.
(Brahma-sütra-bhäñya, introdução, in GAMBHÉRÄNANDA, 2000b,
p. 3-4; in RENOU, 1951, p. 3-4)
O dêitico "dessa forma" aponta, não para as definições imediatamente anteriores de
ignorância e conhecimento discriminador, e sim para as colocações do parágrafo anterior, que
argumentam para reafirmar a falha cognitiva na percepção do si-mesmo. A dedução que se
segue sobre as formas de comportamento mundano é uma extensão da proposição do primeiro
parágrafo resumida na expressão "comportamento humano habitual". Çaìkara reafirma assim
sua dedução de que toda forma de conhecimento humano é ignorância e irrealidade diante do
conhecimento da realidade do si-mesmo. Mesmo as palavras das escrituras, na sua condição
de “conjuntos de palavras”, não passam elas próprias de objetos, sobreposições de conceitos
sobre o si-mesmo, e portanto não têm o poder de anular os efeitos da ignorância dos seres
138
relativos com relação à verdade de ätman/Brahman. As palavras servem apenas para suscitar
o interesse dos sujeitos relativos pela instância última do ser, revelando sua existência por
meio de testemunhos. A liberação de fato, mokña, pode ser alcançada pela percepção
imediata do si-mesmo, o qual por sua vez, embora eternamente presente nos seres (“O si-
mesmo não está absolutamente além de qualquer apreensão, que é apreendido pelo
conteúdo do conceito 'eu'; e também porque o si-mesmo, oposto ao não-si-mesmo, é bem
conhecido no mundo como uma entidade imediatamente percebida e auto-reveladora”), nunca
é percebido devido à presença constante de um sem-número de sobreposições e percepções
objetivas que precisam ser “removidas”.
Nos parágrafos seguintes, uma nova objeção é dada em discurso direto e respondida
por Çaìkara, lembrando-nos de que a situação de interlocução "retornou":
6 - [Objeção:] “Mas como podem os meios válidos de
conhecimento, tais como a percepção direta e as escrituras, ter como
sua sede um perceptor que está assim sujeito à ignorância?”
7 - "A resposta é: que um homem sem auto-identificação
com um corpo, mente, sentidos, etc. não poderia ser um perceptor, e
portanto nessa condição os meios de conhecimento não lhe poderiam
ser de utilidade; e que a percepção e as outras atividades de um
homem não são possíveis sem sua identificação com os sentidos, etc.;
e já que os sentidos não podem funcionar sem que tenham um corpo
como base; e que é impossível o engajamento em qualquer
atividade por um corpo se esse corpo não tiver um si-mesmo
sobreposto sobre ele; e já que um si-mesmo dissociado não pode se
tornar um perceptor, e o faz quando existem todas essas mútuas
sobreposições; e, finalmente, que os meios de conhecimento não
podem operar a menos que exista uma perceptibilidade [...] Por todas
essas razões segue-se que os meios de conhecimento, tais como a
percepção direta e as escrituras, devem obrigatoriamente ter um
homem como sua sede, o qual, por sua vez, consiste de ignorância.”
8 - "Ainda com relação a isso, não existe diferença entre um homem e
um animal. Assim como os animais fogem de um som que não lhes
parece favorável quando seus ouvidos entram em contato com ele, e
assim como movem-se na direção do som que lhes soa favorável; e
assim como, ao perceberem um homem caminhando em sua direção
com um bastão, pensam 'Esse deseja me ferir' e fogem, e aproximam-
se ao perceberem um homem que avança trazendo-lhes alimento,
assim também os homens, ainda que sábios, são repelidos pela
presença de pessoas ferozes e fortes, com olhares cruéis e
empunhando espadas, e assim também são atraídos por homens de
natureza oposta. Portanto o comportamento dos homens com relação
aos meios e objetos de conhecimento é similar àquele dos animais. E é
um fato de consenso que os animais também usam seus meios de
percepção, etc., sem que possuam o conhecimento discriminador. A
partir dessa comparação pode-se chegar à conclusão de que, ao menos
139
no que concerne ao comportamento empírico, o uso dos meios de
percepção pelos sábios é semelhante ao dos animais. É claro, também
é fato que um homem que age inteligentemente não adquire a
competência para os deveres escriturais a menos que tenha também
um conhecimento da relação que existe entre o si-mesmo e o próximo
mundo. Ainda assim, o conhecimento da realidade absoluta que é o si-
mesmo, o Vedänta, não é um pré-requisito para tal competência; pois
a realidade absoluta não tem relevância aqui, e se opõe a tal
competência, que está além da fome e da sede, livre das
diferenciações como br
T
hma
J
a, k
L
atriya, etc., e não é sujeita ao
nascimento e à morte. E as escrituras, que são funcionais antes do
alvorecer do verdadeiro conhecimento do si-mesmo, não podem
transgredir os limites de sua interdependência com relação aos
homens sujeitos à ignorância. Para ilustrar esse ponto: uma injunção
escritural como 'um br
T
hma
J
a deverá realizar um sacrifício' somente
poderá ser eficaz se tiver como sua base vários tipos de sobreposição,
como casta, idade, etapa da vida, condição, etc. E afirmamos que a
sobreposição é a cognição de uma coisa como alguma outra coisa.
Assim também, conforme a esposa, os filhos ou outros parentes de um
homem estejam saudáveis e com todos os membros de seus corpos
intactos, ou conforme estejam adoecidos ou sofram da perda de algum
de seus membros físicos, esse homem poderá pensar 'Eu mesmo me
sinto saudável', ou 'Eu mesmo me sinto doente'; dessa forma esse
homem sobrepõe características externas sobre o si-mesmo. Da
mesma forma, o homem sobrepõe-se a características do corpo físico
quando pensa 'eu sou gordo', 'eu sou magro', 'eu sou belo', 'eu vou', 'eu
fico'. Assim também são sobrepostos os atributos dos sentidos e dos
órgãos dos sentidos quando se afirma 'sou tolo', 'perdi um olho', 'sou
um eunuco', 'sou surdo' ou 'sou cego'. Similarmente ocorre a
sobreposição sobre o si-mesmo das características do instrumento
interno {antaù-karaëa}, tais como desejo, vontade, dúvida,
perseverança, etc. Da mesma forma, ocorre primeiramente uma
sobreposição do órgão interno, imbuído da função do ego
{ahaàkära}, sobre o si-mesmo, que é na verdade a testemunha de
todas as manifestações daquele instrumento; então, pelo processo
oposto, ocorre a sobreposição do si-mesmo sobre o instrumento
interno, etc. – si-mesmo esse que na verdade é a testemunha de tudo e
se opõe ao não-si-mesmo.” (Brahma-sütra-bhäñya, introdução, in
GAMBHÉRÄNANDA, 2000b, p. 4-6; in RENOU, 1951, p. 4-5)
Por um lado, podemos pensar que o sistema de valores desse oponente ou anti-sujeito
não está ainda modalizado pelos valores "estranhos" de Çaìkara, que subvertem, ou invertem,
as noções de realidade e conhecimento. Para o oponente, uma contradição insolúvel na
associação que é feita, de que "o conhecimento do mundo existe para o ignorante." Como
pode o ignorante conhecer? Por outro lado, essa é quase uma "pergunta retórica" para
Çaìkara, daquelas que são feitas apenas para dar ao argumentador ou orador a chance de falar
140
mais de seu ponto de vista. A pergunta incita uma longa exposição, que continua até a
conclusão do texto, e da qual comentaremos apenas os elementos mais significativos.
Primeiramente, a repetição da expressão " que" que antecede cada argumento no
sétimo parágrafo, e que aos argumentos a aparência de serem absolutamente consensuais e
compartilhados pelo interlocutário. De fato, um fundo de verdade nisso, pois os processos
cognitivos resumidos são referências a saberes prévios constituídos por outros discursos da
cultura. A conclusão apresenta também uma modalização na direção do efeito de sentido de
irrefutabilidade: a expressão "os meios de conhecimento [...] devem obrigatoriamente"
remete-nos à modalidade epistêmica da certeza, como também à modalidade alética da
necessidade (/dever ser/).
O oitavo parágrafo contém um longo argumento, fundamentado, na verdade, sobre
uma relação metonímica. Ele é inaugurado com o enunciado de estado (ou proposição, sob o
ponto de vista argumentativo): "[...] não existe diferença entre um homem e um animal". A
analogia que se segue (um tipo de argumento "que funda a estrutura do real", segundo
PERELMAN, 1984, p. 258-260) demonstra que a proposição "chocante" deve ser
complementada por "no que concerne ao comportamento empírico", bem como "o uso dos
meios de percepção"; nesse sentido, evidentemente, não diferença entre o homem e o
animal. Como vemos, essa é um argumentação por ligação metonímica: é apenas uma parte
do comportamento do homem que é comparável ao do animal. Essa argumentação tem por
objetivo demonstrar, com o exemplo da analogia, que a situação do homem é de absoluta
ignorância. Mas Çaìkara, antecipando aqui uma possível objeção à parte do homem que
difere do animal, trata também de comentá-la interessante que aqui ele não se utiliza da
debreagem de segundo grau que instaura o interlocutário; possivelmente isso se devido ao
fato de ele não considerar seu raciocínio concluído nesse ponto):
É claro, também é fato que um homem que age
inteligentemente não adquire a competência para os deveres
escriturais a menos que tenha também um conhecimento da relação
que existe entre o si-mesmo e o próximo mundo. Ainda assim, o
conhecimento da realidade absoluta que é o si-mesmo, o Vedänta, não
é um pré-requisito para tal competência; pois a realidade absoluta não
tem relevância aqui, e se opõe a tal competência, já que está além da
fome e da sede, livre das diferenciações como br
T
hma
J
a, k
L
atriya,
etc., e não é sujeita ao nascimento e à morte. E as escrituras, que são
funcionais antes do alvorecer do verdadeiro conhecimento do si-
mesmo, não podem transgredir os limites de sua interdependência com
relação aos homens sujeitos à ignorância.
141
As expressões claro" e fato que", como já vimos, apelam para o senso comum, e
dessa forma criam efeitos de sentido de verdade. Também o senso comum da cultura ortodoxa
é invocado quando é dado como fato que o homem que age inteligentemente é aquele que
segue as escrituras (as injunções comportamentais e religiosas da sociedade).
Ideologicamente, Çaìkara está de acordo com a ortodoxia bramânica e com seus valores. Mas,
ao mesmo tempo, tenta colocar seu objeto de valor e o tema de sua discussão acima dos
demais valores ideológicos e sociais. Não relação direta entre o conhecimento da
"realidade absoluta" e os conhecimentos mundanos, humanos. Um não pressupõe o outro. As
escrituras são certas, úteis e importantes: mas não vêm ao caso quando a questão é o si-
mesmo. Assim, a “relação entre o si-mesmo e o próximo mundo” referida por Çaìkara é
apenas a obtenção de condições mais aprazíveis de existência relativa pelos seres, neste
mundo físico ou nos mundos celestias, conforme o peso dos ritos e deméritos de seus atos
e pensamentos, e portanto diz respeito à continuidade das relações condicionadas dos seres
relativos em mäyä, e não à “descoberta” do sujeito absoluto.
Num movimento circular, Çaìkara dirige-se para o desfecho de seu discurso
retomando os pontos cruciais: a noção de sobreposição, sua causa, e o propósito de seu
discurso. A noção de sobreposição é belamente exemplificada num movimento de
interiorização e sutilização de sua presença no homem: assim, a começar pelo corpo físico,
passando pelos cinco sentidos, pela mente e pensamentos, pelo ego ou personalidade
individual que os contém tudo é um processo de sobreposição que vai do mais grosseiro e
complexo ao mais sutil e único. Os termos sânscritos escolhidos para definir esses diferentes
elementos que compõem a entidade complexa que é o homem, como antah-kara
J
a,
aha
R
k
T
ra, etc., são também referências intertextuais a outras escolas anteriores que os
conceituam, sobretudo ao Säàkhya, e demonstram a concordância de Çaìkara com esses
princípios. (Teremos a oportunidade de explorar a doutrina do Säàkhya num dos próximos
capítulos.) Çaìkara conclui então:
9 - É dessa forma que prossegue essa sobreposição que não
tem princípio nem fim, mas que flui eternamente; e é essa
sobreposição que aparece como o universo manifesto e sua apreensão,
que engendra a ão e a experiência, e que é percebida por todos os
seres. Para erradicar essa fonte de todo mal, e para adquirir o
conhecimento da unidade do si-mesmo, inicia-se a discussão do fim
de todas as Upaniñad {Vedänta}. Demonstraremos nessa discussão a
natureza real do ser encarnado {çäréraka-mémäàsä}, o que é o
propósito de todas as Upaniñad. (Brahma-sütra-bhäñya, introdução, in
GAMBHÉRÄNANDA, 2000b, p. 6; in RENOU, 1951, p. 5-6)
142
A expressão "para erradicar essa fonte de todo mal, e para adquirir o conhecimento da
unidade do si-mesmo" contém ao mesmo tempo o final do percurso fundamental de
significação e o valor positivo do eixo axiológico projetado no objeto figurativo
"conhecimento da unidade do si-mesmo", um objeto modal da ordem do /saber ser/. Como
vimos, o percurso fundamental de significação nesse texto é uma argumentação pela via
negativa, baseada na trajetória S
2
não-S
2
S
1
dentro das categorias que expusemos
anteriormente nos quadrados semióticos do nível profundo. Em outras palavras:
S
2
: ponto de partida: Çaìkara parte do fato constatado no mundo-aparência:
parecer/manifestação/mentira (o mundo “parece, mas não é”) /sobreposição (relação sujeito-
objeto);
não-S
2
: a discussão estabelece a probabilidade do contrário: não-parecer/não-
manifestação/segredo (o que “não parece, mas é”)/não-sobreposição (não-relação dual);
S
1
: Çaìkara procura provar o valor eufórico implicado pelo contrário ou negação do
mundo-aparência, ou seja, a afirmação de: ser/imanência/verdade (o que “é e parece”) /”eu”,
sujeito absoluto, si-mesmo.
Finalmente, a conclusão retoma exatamente a proposição do primeiro parágrafo, num
movimento circular, ao mesmo tempo em que já introduz o comentário ao tratado Brahma-
s
X
tra que se seguirá.
Acompanhamos até aqui, incluindo neste capítulo uma análise mais acurada do
discurso do pensador, a grande “semiótica da ilusão e do erro” em que consiste a cisão do
um em dois” no Advaita. Prosseguiremos com a exposição do Advaita através de excertos de
textos de Çaìkara, observando agora como o pensador incorpora sua herança intertextual na
análise das outras coisas do mundo. Ou seja: agora que cindimos o um em dois ainda que o
dois seja menos real que o um –, vamos observar o nascimento do três.
143
2.2 – AS CISÕES DO UM EM TRÊS
Passamos agora para um segundo momento da análise do Advaita, a saber, sua
explicação para o multifacetado mundo dos fenômenos. Çaìkara contava com uma vasta
herança cultural, e na medida do possível procurou “encaixar” o maior número de elementos
herdados em sua doutrina.
dois focos de análise da realidade que foram predominantes na tradição sânscrita
ortodoxa. Por um lado, temos a análise das Upaniñad, centrada na experiência de realidade
dos sujeitos ou consciências. Partindo do princípio de que o fundamento de todas as coisas
deveria ser da natureza da consciência e do conhecimento (ätman/ Brahman), as Upaniñad
cedo desenvolveram teorias de formação da psique e das funções da mente humana, e as
privilegiaram em sua abordagem. Por outro lado existiam também teorias de formação da
realidade objetiva: escolas como o Vaiçeñika-darçana, com sua teoria de combinação dos
átomos (paramäëu) dos elementos em moléculas para formar as várias substâncias físicas, ou
o Säàkhya-darçana com sua enumeração de vinte e cinco princípios (tattva) geradores do
mundo físico e psicológico (os quais incluíam os mesmos cinco elementos), eram
existentes e atuantes na época das Upaniñad, e no período clássico os representantes dessas
teorias elaborariam tratados e textos de exegese e teriam um grande número de adeptos.
As “escolhas” de Çaìkara para explicar o mundo recaíram, sem dúvida, sobre o que
havia sido mencionado nas principais Upaniñad, que seu único intuito era apresentar a
interpretação “correta” desses textos, os quais constituíam a revelação ou “fim dos Veda
(Vedänta), e portanto detinham autoridade e verdade inquestionáveis. Mas é claro que em seu
percurso de interpretação e argumentação, que incluiu também o tratado do Vedänta-darçana
(o Brahma-sütra) e o texto da Bhagavad-gétä, Çaìkara acabou por fazer referências a todas as
outras escolas, quer para refutá-las, quer para assimilar alguns de seus elementos e
ressignificá-los, a fim de torná-los adequados aos pressupostos do Advaita.
Com base nos textos das Upaniñad e da Bhagavad-gétä, examinaremos a seguir duas
importantes “explicações de mundo” da rica herança intertextual de Çaìkara: em primeiro
lugar, uma análise de níveis de realidade conforme as experiências da consciência em vigília,
sonho e sono profundo; em segundo lugar, uma análise da psique conforme a descrição do
Säàkhya, o que inclui uma visão dos fenômenos (inclusive os psicológicos) como sendo
originados pela combinação de três propriedades ou aspectos fenomênicos (guëa): sattva,
rajas e tamas. Coincidentemente, portanto, temos duas tríades para descrever as experiências
da consciência relativa num universo a princípio percebido como dual ou bipolar (com
144
sujeitos e objetos). A essas duas tríades herdadas de sua tradição cultural, Çaìkara
acrescentará uma terceira, ao afirmar que a manifestação de mäyä, em sua relativa realidade, é
necessariamente vivenciada pelos seres como cindida em três aspectos igualmente
indissociáveis: Éçvara, jagat e jéva (Deus, o mundo e as criaturas). E é justamente no
estabelecimento dessa terceira tríade que Çaìkara conseguirá finalmente integrar todas as
demais manifestações de sua multifacetada cultura e torná-las relativamente válidas, ainda
que “hierarquicamente inferiores” à verdade última do Um-sem-segundo.
Com base na constatação dessas tríades elaboramos um roteiro para melhor observá-
las. Primeiramente, precisamos fazer uma pausa em nosso percurso Advaita, para sintetizar os
principais elementos do darçana ou “ponto de vista” do Säàkhya, compartilhado com poucos
acréscimos pelo Yoga-darçana, que essas duas escolas dualistas serão, por um lado,
contestadas, e por outro, ressignificadas e “acomodadas” por Çaìkara em sua explicação do
mundo. Em seguida, contando com essas premissas intertextuais, poderemos acompanhar a
articulação das tríades conforme aparecem nos textos comentados por Çaìkaraos três níveis
de realidade afirmados pelas Upaniñad e as tríades da manifestação de mäyä como universo,
citadas na Bhagavad-gétä e no Brahma-sütra –, juntamente com as polêmicas inevitáveis de
Çaìkara com os equívocos” dos pontos de vista do Säàkhya e dos ritualistas. Com isso
completaremos nossa investigação de mäyä ou saguëa-Brahman, segundo o Advaita.
145
2.2.1 – O dois e o três no Säàkhya-yoga-darçana
Neste capítulo um excurso necessário neste ponto do percurso de compreensão do
Advaita –, faremos uma revisão dos elementos fundamentais da escola do Säàkhya-yoga-
darçana, para que possamos contar com essas informações na leitura e análise dos textos
canônicos e comentários do Advaita que se seguirão.
Antes de iniciarmos, convém explicitar o fato de que em nossa dissertação de
mestrado, intitulada Tradução comentada do Yogasütra, de Patañjalitradução e análise da
obra, à luz de seus fundamentos contextuais, intertextuais e lingüísticos (GULMINI, inédita,
2001), realizamos uma extensa análise e exposição dos dois darçana tratados neste capítulo,
com extenso recurso às fontes originais e tradução, para o português, entre outros, de mais de
uma centena de sütra do principal tratado do Säàkhya-darçana, o Säàkhya-pravacana-sütra,
juntamente com os comentários sânscritos de Aniruddha e Vijïäna Bhikñu. A síntese do
sistema apresentada neste capítulo (bem como algumas das principais relações entre Säàkhya
e Yoga) está fundamentada nesse trabalho prévio. Também os sütra recuperados de originais
sânscritos dessas duas escolas constam, na íntegra, na referida dissertação de mestrado.
Podemos iniciar nossa apresentação do Säàkhya pelo estudo das relações entre causa e
efeito, uma das bases para a linha de raciocínio e para as conclusões aduzidas pela escola. O
Säàkhya postula uma “teoria da causação” conhecida, na tradição sânscrita, como sat-kärya-
siddhänta ou sat-kärya-väda a doutrina (väda) do efeito (kärya) [pré-]existente (sat) –, ou
ainda pariëäma-vädaa doutrina (väda) das transformações (pariëäma).
Primeiramente, o Säàkhya observa que as transformações observadas no mundo dos
fenômenos ocorrem de acordo com uma relação causal e não aleatória. A natureza dos efeitos,
por sua vez, não pode ser absolutamente distinta da de suas causas: por exemplo, o leite pode
se transformar em manteiga, mas a água não, mesmo que passe pelo mesmo processo. Ou
seja, a causa principal que produz o efeito "manteiga" está contida, de forma não-manifesta,
no leite; se essa causa não existisse, o efeito "manteiga" não poderia se manifestar. A
produção de um efeito, segundo esse ponto de vista, é portanto apenas tornar manifesto o que
antes estava latente, de forma potencial, na causa. E a causa, por sua vez, é considerada
apenas como o estado potencial, imanifesto, de um efeito. Isso leva o Säàkhya a concluir que
todo efeito ou transformação é apenas uma manifestação do que era pré-existente em sua
causa.
O Säàkhya faz ainda a distinção entre dois tipos de causa: as causas “materiais”
(upadäna), ou seja, as que participam da constituição do efeito (no caso do exemplo, o leite),
146
e as causas eficientes ou instrumentais (nimitta), incluíndo instrumentos, agentes e
condições da transformação (no exemplo, o batedor, o recipiente e o ato de bater o leite, os
quais em conjunto propiciam a manifestação da manteiga). Tempo e espaço são considerados
causas universais, por estarem pressupostos em toda e qualquer transformação.
Em ntese, temos então que, para o Säàkhya, todo o universo é produto de uma
reação em cadeia, de um constante movimento e transformação de causas e efeitos, a partir de
uma única grande “causa primordial”, ela mesma não-causada (o “ponto final” de uma
reabsorção dos efeitos em suas causas, ou retorno à condição latente ou potencial, não-
manifesta, de tudo o que existe, caso fosse possível “voltar no tempo” até o princípio da
causação do universo). Por outro lado, o fato de o sistema constatar que todo efeito é
meramente uma transformação de sua causa leva-o a concluir que nada de novo acontece no
universo, e que o que existe é indestrutível: “destruição” é apenas um sinônimo de
“reabsorção” na causa potencial ou estado de não-manifestação do efeito.
A “causa primordial” de todas as coisas é denominada pradhäna ou prakåti, uma
espécie de “matriz fenomênica”, e é caracterizada como avyakta, “imanifesta”. Essa fonte
imanifesta e inesgotável jamais pode ser conhecida, mas sua existência é inferida pelos seus
efeitos. Esses, por sua vez, constituem o mundo fenomênico, o “vísivel” ou “testemunhável”
(dåñöa), ou “manifesto” (vyakta), que será descrito pelo sistema. Por implicação, deduz-se que
as personalidades individuais dos seres, com suas memórias, pensamentos, inteligência,
emoções, tendências, etc., bem como todas as suas ações (karman), são parte do “manifesto”,
da cadeia de causas e efeitos fenomênicos.
Em oposição a tudo isso (o universo dos objetos e suas relações causais e
condicionadas), o Säàkhya estabelecerá uma segunda categoria ou princípio fundamental, o
“ser”, o “conhecedor” do mundo, a “testemunha” (drañöå) ou “ser incondicionado” (puruña).
Temos aqui, então, dois princípios (tattva) antagônicos cuja conjunção é dada como
fundação do universo: o ser incondicionado e a grande causa imanifesta das transformações
fenomênicas condicionadas. O primeiro, puruña, é definido como um princípio consciente,
eterno, auto-existente, enquanto o segundo, pradhäna ou prakåti, a causa fenomênica, embora
igualmente eterna e inesgotável, é não-inteligente, não-consciente. O Säàkhya concebe que a
causa fenomênica é única, mas que existe um número infinito de seres incondicionados ou
puruña – posição que, aliás, foi motivo de ataques de várias outras escolas indianas.
Até aqui temos várias diferenças com relação ao Advaita. Primeiramente, o fato de o
Säàkhya ser um sistema dualista: é a conjunção de dois princípios eternos de natureza
absolutamente distinta que produz o universo e os seres nele inseridos. Assim os objetos
147
materiais não são considerados como necessariamente fundamentados num si-mesmo
onipresente; são simplesmente objetos materiais. Apenas os seres vivos (deuses e demônios,
humanos, animais e plantas) são dotados de um si-mesmo, puruña, um princípio inteligente
cuja auto-existência, em conjunção com o princípio material, é capaz de produzir “corpos”
psíquicos e eventualmente físicos que desempenham seus papéis condicionados na “história”
universal. Em segundo lugar, não existe apenas um único si-mesmo onipenetrante,
“magicamente” multifacetado em todos os objetos e seres relativos, como postula o Advaita, e
sim um número infinito deles. Para o Säàkhya, cada criatura fenomênica é um aglomerado de
“substâncias” físicas e psíquicas tornadas aparentemente “conscientes” pela luz auto-existente
e auto-consciente de um puruña; e muito embora todos os puruña sejam idênticos, isto é,
eternos, imortais, sem atributos, não-compostos, etc., todos estão eternamente separados uns
dos outros. Em terceiro lugar, devido ao fato de pradhäna ou “causa material” ser tão real e
existente quanto o princípio do ser, isso significa que para o adepto do Säàkhya o universo
fenomênico é absoluta e incontestavelmente “real”, e jamais poderá ser constatado como
“ilusório”. O iluminado ou liberto do Säàkhya não se torna por isso um com uma totalidade
absoluta; ao contrário, ele se liberta da causalidade e dos fenômenos, desvincula-se do
universo onde os outros seres experimentam suas existências fenomênicas, mas apenas para
permanecer em eterno “isolamento” (kaivalya) com relação a todos os fenômenos e aos
demais puruña, quer sejam esses igualmente libertos ou aprisionados na causalidade dos
fenômenos materiais.
Como vimos, a “matriz fenomênica” (prakåti ou pradhäna) é caracterizada como
possuindo em si, de forma latente e não-manifesta, todas as manifestações possíveis do
universo e das experiências dos seres nele inseridos; portanto, concebe-se que a natureza
essencial dessa causa primordial é composta, assim como seus efeitos, e deve corresponder,
em composição, a uma síntese dos aspectos básicos comuns a todas as manifestações. E esses
aspectos ou propriedades fenomênicas (guëa) que participam de todos os efeitos, por sua vez,
pelo fato de constituírem a própria composição da causa primeira do universo, são
considerados como eternamente indissociáveis. Segundo o Säàkhya, são ts:
1 - guëa sattva, “intelegibilidade”: aspecto fenomênico da luminosidade, da
percepção; aquilo que permite a manifestação do fenômeno perante a percepção da
consciência, e que torna o universo testemunhável, inteligível; no mundo subjetivo,
predomina no domínio do intelecto ou inteligência fenomênica dos seres relativos;
2 - guëa rajas, “agitação”: aspecto fenomênico do movimento, da ação, da mutação;
aquilo que permite o desdobramento de qualquer causa em efeito, o que preside a toda
148
transformação fenomênica; no mundo subjetivo, corresponde à emotividade, à excitação e à
atividade dos seres com relação aos fenômenos;
3 - guëa tamas, “inércia obscura”: aspecto fenomênico que se opõe ao movimento de
rajas pela inação, estagnação, limitação, densidade; no mundo subjetivo, opõe-se também à
intelegibilidade de sattva pelo obscurecimento ou limitação da percepção, da inteligência e da
atividade dos seres.
Essa teoria dos guëa, conforme exposta no àkhya, é uma classificação tripartida
considerada como inerente a tudo o que existe, e é portanto estendida a todas as coisas
oriundas da “causa primordial” (ou seja, tudo menos os seres incondicionados ou puruña, os
quais constituem o segundo princípio, antagônico a prakåti). Como tal, a teoria dos três guëa
ou aspectos fenomênicos é incessantemente aplicada na análise dos fenômenos, e aparece
referida em toda a extensão da Bhagavad-gétä, onde é tomada como justificativa para a
divisão trifuncional da sociedade, e para a identificação do guëa predominante em
determinadas dietas alimentares, formas de culto e tipos de personalidade.
O Säàkhya argumenta, então, que uma causa única pode gerar um universo
diversificado, desde que seja composta pela interação dos aspectos fundamentais de todos os
fenômenos, seus efeitos. Vejamos agora seus argumentos para explicar a interação possível
entre esse único princípio fenomênico e o número infinito de princípios do ser.
Segundo o Säàkhya, a conjunção entre os seres incondicionados, plenos em si-
mesmos, e o tornar-se (o fenômeno no tempo e no espaço) só existe sob o ponto de vista do
que é fenômeno, ou seja, dos seres relativos, produtos da conjunção. Sob o ponto de vista de
cada puruña ou princípio do ser (ou “ser incondicionado”), não existe e nunca existiu
nenhuma conjunção. Em todas as criaturas do universo, os princípios do ser que lhes
conferem existências inteligentes permanecem sempre, em sua natureza, como meras
testemunhas indiferentes, existindo por detrás de “corpos psíquicos” criados pela matriz
fenomênica, e cujas ações e reações no plano da causalidade não podem jamais afetá-los. Mas
a mera presença luminosa de um número infinito desses seres incondicionados incita todo o
jogo da criação, preservão e destruição dos mundos, pois eles são as testemunhas para as
quais o espetáculo do universo se desdobra.
Nos textos do Säàkhya, a relação entre prakåti e puruña, ou entre matriz fenomênica e
ser incondicionado, por analogia, é comparada à influência que um ímã imóvel exerce sobre
as partículas de ferro ao seu redor. Embora todas as manifestações fenomênicas sejam
suscitadas unicamente pela presença dos princípios do ser, todas elas não passam de objetos
149
para cada ser, e cada ser não passa de uma consciência-testemunha das experiências. Cada ser,
um ímã, em realidade não participa da natureza fenomênica em eterna mutação das
“partículas” ao seu redor; ele não é composto, não está sujeito a transformações e dissoluções,
não é jamais aprisionado” por relações de causa e efeito e, ao contrário do inesgotável
movimento gerador do tempo e do espaço e de todas as formas de manifestação, está
absolutamente imóvel, imutável, eternamente o mesmo. Verifiquemos esse raciocínio in loco,
acompanhando alguns sütra comentados do tratado Säàkhya-pravacana-sütra:
drañöåtvädyätmanaù karaëatvam indriyänäm // 2.29 //
2.29 A condição de testemunha pertence ao si-mesmo; a
condição de instrumento pertence às faculdades de interação.
{comentário de VijñTna BhikLu:} [...] porque aqui o sentido dos
termos “condição de testemunha” etc. não é outro que não esse:
pertence ao ser incondicionado {puruña} causar o desempenho das
funções de ver, etc. {pelas faculdades psíquicas e sensorias} pela sua
mera proximidade, como no caso de um ímã. Pois, assim como um
imperador, mesmo sem operar ativamente, torna-se um guerreiro
através de seu instrumento, o exército, em virtude de incitá-lo à ação
simplesmente pelas suas ordens, assim também o ser incondicionado,
embora imutável, através do instrumento do olho, e dos demais, torna-
se o que vê, fala, pensa, etc., em virtude de incitar esses instrumentos
à ação simplesmente pela sua proximidade. Isso é denominado
“conjunção” {sa
R
yoga}, como no caso de um ímã. (in BABA, 1979,
p. 259-260)
na nitya-çuddha-buddha-mukta-svabhäsya tad-yogas tad-
yogädåte // 1.19 //
1.19 Sem a conjunção {da matriz fenomênica}, não pode
haver conjunção de aprisionamento {no ser incondicionado}, que
é, por natureza, eterno, puro, iluminado e livre.
{Comentário de VijñTna BhikLu:} Portanto, sem a conjunção
da matriz fenomênica {na forma de intelecto, buddhi}, a conjunção do
ser incondicionado com o aprisionamento não existe. Na verdade, é
essa conjunção que constitui o aprisionamento. Essa afirmação
oblíqua, feita por duas negativas, foi assim feita com o propósito de
sublinhar o caráter sombrio, adventício ou sobreposto do
aprisionamento. [...] Pois o movimento {ação do instrumento interno
ou “corpo psíquico”} é a causa material da dor, etc. Por conseguinte,
como no caso da chama de uma vela, a destruição da dor, do desejo, e
de outros produtos dos movimentos torna-se possível somente com o
aumento da possibilidade de destruir o movimento com sua cessação
por instantes {produzida pelos processos de controle mental do Yoga}.
Portanto, a inexistência do aprisionamento é resultado da disjunção
com a matriz fenomênica. O aprisionamento é meramente extrínseco
{aupädhika, constituído pela sobreposição de “adjuntos”, upädhi}, ou
acidental, ou reflexivo, mas não é natural nem instrumental.
150
[...] Da mesma forma, o exato sentido desse sütra {do
Säàkhya} já foi declarado no Yoga-sütra: drañöå-dåçyayoù saàyogo
heya-hetuù // 2.17 // - “a causa do que deve ser evitado {o sofrimento
humano} é a conjunção entre a testemunha e o testemunhável.”
[...] Aqui o termo sa
R
yoga, conjunção, denota simples ou
exclusivamente uma forma particular de conjunção da matriz
fenomênica, reduzida à forma de buddhi, intelectos ou inteligências
individuais, conjunção essa que é designada de outra forma como
“nascimento”. Em seu comentário ao Yoga-s
X
tra, o ilustre VyTsa
explicou o termo nesse sentido. Além do mais, é somente em virtude
da função do intelecto como upädhi, adjunto limitante sobreposto, que
a conjunção da dor tem lugar no ser incondicionado. (ibid., p. 37-41)
Como vemos, para que o princípio do ser possa parecer sujeito das experiências e
relações fenomênicas, o Säàkhya deduz que a causa primordial “cria” um aparato psíquico
constituído pelos três guëa para cada puruña, o qual, como um espelho, reflete a luz do ser e
portanto parece possuir consciência própria. Sob o ponto de vista desse aparato psíquico,
fenomênico, o universo e sua história nele passam a existir e continuarão a existir enquanto
houver a “conjunção” entre o ser incondicionado e a “vidacomo ser relativo no mundo dos
fenômenos. Vejamos, então, como a descrição fenomenológica do Säàkhya explica a
formação desse “aparato psíquico”.
A partir do primeiro movimento do guëa rajas, a “agitação” considerado o ativador
de qualquer transformação –, a potência fenomênica que é pradhäna/prakåti começa a se
desdobrar em manifestações. Cada princípio (tattva) que se manifesta é resultado de uma
combinação de proporções específicas entre os três aspectos fenomênicos indissociáveis
intelegibilidade, agitação e inércia –, e por sua vez será a causa do desdobramento do
princípio seguinte.
Com isso o Säàkhya enumera vinte e ts tattva ou “princípios reais” a partir dos
quais a causa primordial, em sucessivas combinações de seus três aspectos fenomênicos, deu
origem ao universo manifesto. Cada princípio real que "emerge" da causa potencial ou
imanifesta é assim denominado por trazer à tona "algo inédito" no plano fenomênico, que até
então não havia sido manifestado. O Säàkhya considera que, após esses 23 princípios ou
grandes causas, nenhuma outra causa inédita surgiu no universo, e todas as transformações
subseqüentes são efeitos produzidos apenas por combinações entre esses mesmos 23
princípios. Aos 23 princípios manifestos somam-se a própria matriz fenomênica imanifesta
(pradhäna/prakåti) e o princípio do ser ou puruña, e então temos os 25 princípios ou tattva
enumerados pelo Säàkhya clássico.
151
O Yoga, teísta e empírico, acrescentará, pelo testemunho da experiência dos yogin, um
vigésimo sexto princípio real, o Senhor (Éçvara, um puruña “especial”, diferente de todos os
demais pelo fato de jamais ter sido afetado pela "dança" fenomênica, e a cujo auxílio o yogin
pode recorrer para alcançar o samädhi). Esse parece ser o único ponto de discordância entre
as duas escolas “irmãs”, pois os adeptos do Säàkhya recusaram-se a admitir a certeza da
existência de uma divindade, o Senhor, primeiramente por ela não poder ser logicamente
comprovada pela inferência ou raciocínio intelectual, e, ademais, por defenderem que a
explicação racional do universo dada pelo Säàkhya não necessitava da figura de uma
divindade para ser válida:
muktabaddhayor anyataräbhävanna tat-siddhiù // 1.93 //
1.93 Essa comprovação {da existência do Senhor} não é
possível, porque ele não poderia ser liberto, nem aprisionado, nem
qualquer outra coisa.
{Comentário de Aniruddha:} O Senhor é liberto ou
aprisionado? Se ele for aprisionado, não pode ser o Senhor, devido à
conjunção de méritos e deméritos. Se ele for liberto, não pode ser
agente, em virtude da ausência de cognições particulares e do desejo
de agir e de se empenhar. Portanto a existência do Senhor está acima
de comprovação. Se, novamente, tu afirmares que o teu Senhor é de
diferente descrição, então, por não haver exemplo {isto é, nada que
possa ser comparado ou contrastado com ele}, ele será algo
extremamente extraordinário.
ubhayathäpy asat-karatvam // 1.94 //
1.94 – De qualquer forma ele seria também inativo.
{Comentário de VijñTna BhikLu:} Se ele fosse livre, seria
dessemelhante à tarefa da criação, etc., pois ele não possuiria
abhimäna, “auto-conceito” ou “auto-afirmação”; a vontade de ser, a
vontade de fazer, os desejos, etc. E, novamente, se ele fosse
aprisionado, estaria sob o jugo da ilusão e, assim, igualmente
dessemelhante à tarefa da criação. Tal é o sentido. (ibid., p. 143-144)
neçvarädhiñöite phalaniñpattiù karmaëä tat-siddheù // 5.2 //
5.2 Não está no que é regido pelo Senhor o resultado dos
frutos {as conseqüências dos atos}, porque a comprovação desses
se dá através das ações {karman}.
{Comentário de Aniruddha:}Se o Senhor fosse um criador
independente, ele teria criado mesmo sem {o trabalho das} ações.
16
Se
se afirma que ele cria tendo as ações como auxiliares [...] então
deixemos que as ações sejam a causa, qual a necessidade de um
Senhor? Nem poderia um auxiliar obstruir o poder do principal
agente, pois nesse caso haveria uma contradição na sua
16
Mas esse não é o caso, pois, segundo o sistema, as ações das consciências relativas é que determinam os rumos
fenomênicos.
152
independência. Além do mais, observa-se que a atividade deriva de
motivos egoístas e altruístas. Nenhum motivo egoísta poderia
pertencer ao Senhor. E caso seus motivos fossem altruístas, por ele ser
compassivo, não haveria justificativa para uma criação que é cheia de
dor. Também não nenhuma atividade que seja puramente altruísta,
porque tal atividade procede de um desejo egoísta de ganho, mesmo
que se trate de fazer bem aos outros, etc. Portanto, deixemos que a
ação {karman} apenas seja a causa do mundo. (ibid., p. 389)
tivemos a oportunidade de verificar que, contrariamente à posição do Säàkhya, o
Advaita não só postula a existência do Senhor, como também o identifica a saguëa-Brahman,
ou totalidade (onisciente, sem “ignorância”) do manifesto. Como voltaremos ainda a tratar do
conceito de Éçvara ou “Senhor”, segundo o Advaita, no capítulo intitulado “Saguëa-Brahman:
as tríades da manifestação”, voltemos por ora à nossa síntese do Säàkhya-yoga-darçana.
Segundo o modelo proposto pelo Säàkhya, a causa primordial ou matriz fenomênica
caracteriza-se pelo equilíbrio perfeito entre seus três aspectos constituintes, os guëa, e nesse
estado ela é imanifesta. A presença, porém, do número infinito de puruña ou si-mesmos, ab
initio, causa a agitação do guëa rajas e precipita, numa reação em cadeia, o desdobramento
dos fenômenos. O primeiro tattva ou princípio a surgir do “desequilíbrio” da causa primordial
é mahat (o “grande”), assim denominado por ser a primeira grande causa manifesta
(lembremos que a causa primordial é, ela própria, uma potência imanifesta). Mahat
caracteriza-se pela total predominância do aspecto fenomênico da intelegibilidade (guëa
sattva), aspecto da manifestação, da iluminação, da perceptibilidade. Mahat é a essência
inteligível do universo, e corresponde, no “universo” psicológico ou subjetivo dos seres
relativos, ao termo buddhi, “intelecto”: a luz do conhecimento, o intelecto puro, a
“perceptibilidade” que se estende a todos os domínios fenomênicos.
Buddhi, que é Mahat manifesto como intelecto individualizado, é a inteligência criada
pela matriz fenomênica para que a luz consciente do eternamente desapegado princípio do ser
seja refletida ou “reproduzida”, como num espelho; e é através do “espelho” do intelecto ou
inteligência que a cognição dos fenômenos torna-se possível. Através de buddhi é que puruña,
em verdade eternamente desapegado e indiferente, parece ser o agente consciente das
experiências da existência. E é também a partir do surgimento dessa essência inteligível e
intelectiva – que são possíveis e justificáveis os demais desdobramentos de prakåti.
O segundo princípio real (ou “princípio constituinte do real”) ou tattva a surgir, como
efeito ou conseqüência de buddhi, é ahaàkära (aham = eu”; = “fazer”): “o que faz o
eu”, o “princípio de individuação”. Ou seja, a partir da existência de uma essência inteligível
153
e inteligente, surge a distinção entre sujeito conhecedor e objeto conhecido. Ahaàkära é essa
distinção entre sujeito e objeto. Como todo efeito, representa uma manifestação limitada e
limitante em relação à sua causa, pois se buddhi ou “intelecto” é a capacidade de percepção de
todo o conhecimento possível no plano fenomênico, ahaàkära "cria" o sujeito relativo
(aquele a quem as coisas se referem), um sujeito que experimenta o conhecimento do objeto
como algo exterior a si, e de cuja natureza não participa.
O surgimento do princípio de individuação, ahaàkära, é considerado como uma
espécie de “nascimento da ignorância”, pois a distinção entre sujeito e objeto produz a
limitação de todo o conhecimento possível. Além disso, a discriminação entre o que é
imperecível (o ser eterno e imutável, puruña) e o que é manifesto, fenomênico, mutável, e
portanto sujeito ao sofrimento e à destruição (os “corpos psíquicos” das criaturas, os efeitos
de prakåti trazidos à manifestação) discriminação essa que é realizada no grande princípio
do intelecto ou inteligência, buddhi-tattva –, torna-se impossível depois da cisão entre sujeito
e objeto nascida com o princípio de individuação, ahaàkära.
Em conseqüência, tanto o Säàkhya como o Yoga assumem que o “eu” individual,
produto dessa cisão, aquele que afirma “sinto dor, sinto alegria, penso, durmo, sofro, vivo,
morro”, é apenas um composto fenomênico: não corresponde ao verdadeiro e oculto princípio
do ser, o “eu” verdadeiro, puruña, inatingível por essas experiências. Tomar o não-eu ou não-
si-mesmo por eu é avidyä, “ignorância”. Essa ignorância “prende” a consciência nos domínios
de dvandva, a esfera fenomênica e condicionada dos pares de opostos (prazer e dor, vida e
morte, bem e mal, etc.), onde o ser é aparentemente “aprisionado” na cadeia causal dos
renascimentos, dos desdobramentos fenomênicos, identificando-se com determinados
atributos, e acreditando ser o agente das transformações que a ele se apresentam.
Segundo essas escolas assistimos, após o surgimento do princípio de individuação,
ahaàkära, a uma bifurcação dos desdobramentos, conforme sejam relativos ao sujeito ou ao
objeto. Os princípios subjetivos, aqueles que se desdobram no universo psicológico do ser
relativo, possuem a predominância do aspecto fenomênico da “intelegibilidade”, o guëa
sattva, associado à manifestação das percepções. Os princípios objetivos, aqueles que se
referem ao universo exterior percebido pelo sujeito, possuem a predominância do aspecto da
inércia, o guëa tamas, relativo à estagnação, ao repouso e à densidade (à “materialização” do
que era sutil). O guëa rajas, “agitação”, é o incitador de cada desdobramento ou
transformação.
Com relação aos fenômenos objetivos, nos quais predomina tamas, o Säàkhya
enumera, após ahaàkära, o desdobramento de dez tattva ou princípios reais:
154
Cinco tanmätra ou “potências sutis”, que são cinco delimitões ou atributos da
substância sutil (a substância do “plano mental” ou “plano das idéias”): sonoro, tangível,
visível, sápido e olfativo;
Cinco bhüta ou “elementos”, vistos como contrapartes “densas” (que se tornarão
“matéria” no mundo físico) dos atributos da substância sutil: éter (“veículo” da potência
sonora), ar (da potência tátil), fogo (da potência visível), água (da potência sápida) e terra (da
potência olfativa).
Com relação a isso temos um interessante sütra comentado do Säàkhya-pravacana-
sütra:
aviçeñäd viçeñärambhaù // 3.1 //
3.1 Dos indiferenciados originam-se os diferenciados.
{Comentário de VijñTna BhikLu:} Aquilo em que não existem
diferenciações na forma de calma, ferocidade e embotamento, isso é o
indiferenciado, as essências sutis dos elementos, denominadas as
cinco “potências sutis” {os cinco tanmätra: as qualidades sonora,
tangível, visível, sápida e olfativa}, meros “algos” ou suas aferições.
Desses são originados os grosseiros cinco elementos {os cinco bh
X
ta:
éter, ar, fogo, água e terra}, que são por sua vez os diferenciados, por
possuírem distinções na forma de calmo, etc. Tal é o sentido. Porque é
somente nos elementos grosseiros que o caráter de ter o prazer, etc.
como essência, na forma da calma, etc., pode ser manifesto em maior
ou menor grau. Isso não acontece nas potências sutis, porque sua
manifestação na consciência dos yogin {a consciência equânime do
samädhi} dá-se apenas na única forma da calma. (ibid., p. 278)
No desdobramento subjetivo onde predomina o guëa sattva, ou seja, no plano
psicológico dos seres relativos, temos, após ahaàkära, onze indriya ou “faculdades de
interação”:
– Cinco jïänendriya (“faculdades ou órgãos de conhecimento”): as faculdades através
das quais o sujeito (o “corpo psíquico” ou “sujeito fenomênico”) percebe sua realidade
objetiva. Nada mais são que os cinco sentidos: a visão, a audição, o tato, o olfato e a gustação
(ou paladar). Esses sentidos são considerados presentes no "corpo sutil" ou psíquico dos seres
(sükñma-çäréra), razão pela qual se explica como podem ser percebidos também em sonhos;
no "corpo grosseiro” ou físico (sthüla-çäréra) que lhes serve de sede neste mundo,
correspondem aos olhos, ouvidos, pele, nariz e língua, respectivamente. Essas cinco
faculdades de conhecimento ou jïänendriya (visão, audição, tato, olfato e paladar) são
também consideradas graha, ou “faculdades de apreensão” dos fenômenos. Possuem relação
direta com as cinco potências sutis dos fenômenos ou tanmätra (visível, sonoro, tangível,
olfativo e sápido), que por sua vez são atigraha, “atributos do que é apreendido”.
155
Cinco karmendriya (“faculdades de ação”): se, por um lado, o sujeito ou “corpo
psíquico” possui meios através dos quais apreende e distingue os objetos fenomênicos, por
outro lado possui meios de interagir com esses objetos, pois somente dessa forma sua
identificação com a realidade que o circunda é completa. As cinco faculdades de ação são: a
palavra, a preensão, a locomoção, a excreção e o gozo. Essas possuem também seus
respectivos correspondentes no corpo físico: a garganta (a voz), as mãos, os pés, o ânus e o
órgão sexual.
O décimo primeiro indriya ou “faculdade de interação” do sujeito fenomênico é
manas, a “mente”. Manas é considerado o receptor de todas as percepções vindas do mundo
objetivo e coordenador de todas as respostas desse sujeito com relação aos fenômenos
percebidos. Sobre tal indriya, afirma um tratado antigo do Säàkhya:
27 Entre as faculdades de interação [indriya], a mente
[manas] possui a natureza de ambas [as de conhecimento e as de
ação]. É deliberativa, e é ao mesmo tempo uma faculdade de
interação. A diferenciação [das faculdades de interação] deve-se às
transformações dos aspectos fenomênicos [guëa], e são suas
expansões exteriores [em direção aos objetos dos sentidos].
(Säàkhya-kärikä, 27; aprox. séc. II d.C.; in SINHA, 1979, p. 25.).
Com o auxílio dos comentadores do tratado, podemos recuperar as características de
manas sintetizadas nesse sütra. Manas ou a “mente” está presente tanto na cognição quanto
na ação, e não pode haver cognição ou ação sem sua cooperação. Por essa razão manas
adquire os atributos das outras faculdades de interação quando age em conjunção com elas.
Sua função distintiva é saàkalpa ou “deliberação”: dentre todos os onze indriya (a mente, as
cinco faculdades de conhecimento e as cinco de ação), é manas que realiza a distinção do
objeto percebido, discriminando-o como “uma substância particular possuindo atributos
específicos.” Afirma o comentador:
Em outras palavras, a partir do material dos sentidos, a mente
{manas} cria percepções. Estas são então transferidas ao sentido de
individuação, ahaàkära, que as considera como relativas a si ou não
relativas a si. Assim “tingidas” pela equação pessoal, {as percepções}
são em seguida tomadas pelo intelecto {buddhi}, que se certifica de
sua verdadeira natureza e determina a conduta {do sujeito} de acordo
{com seu discernimento}. Tal é, em síntese, o processo de cognição
dos sentidos proposto no Säàkhya-darçana. (ibid., p. 25)
156
Verificamos que manas, a décima primeira faculdade de interação, é uma espécie de
ponte de ligação entre o mundo objetivo ou exterior e as operações subjetivas do intelecto e
da individuação, provenientes por sua vez das percepções coletadas por manas. O conjunto
inteiramente subjetivo, formado por manas, ahaàkära e buddhi, ou mente, princípio de
individuação e intelecto, é o que é chamado pelo Säàkhya de antaù-karaëa, o “instrumento
interno” ou individualidade subjetiva, e ainda liìga-çäréra ou sükñma-çäréra, o "corpo sutil".
No tratado do Yoga-darçana (o Yoga-sütra, de Pataïjali, circa II a.C.), esse modelo
psicológico será denominado citta, "consciência relativa ou fenomênica”, e nele serão
realizadas as práticas de “descondicionamento” da escola, as quais visam alcançar o samädhi
ou percepção do ser incondicionado. Isso porque o corpo psicológico é o que permanece
existindo com as impressões específicas provocadas pelo contato com a realidade objetiva,
acumuladas no intelecto na forma de tendências, as quais, por sua vez, agirão como causas de
repetição das experiências e da continuidade das encarnações fenomênicas. Oculto para além
desse agregado psicológico é que repousa o ser incondicionado, iluminando sua existência. O
propósito do Yoga será então dirigir essa consciência fenomênica, por meio de uma série de
práticas psicofísicas, a um processo gradativo de “desidentificação” com os desdobramentos
fenomênicos e “re-identificação” com o princípio do ser, puruña, eternamente livre e pleno
em si-mesmo, que ilumina sua existência relativa. O último grau de samädhi do Yoga
corresponderá então à “liberação” (mokña) definitiva do princípio do ser.
O modelo de consciência que encontramos no Säàkhya-yoga-darçana já estava
sistematizado na época das primeiras Upaniñad (circa VIII a.C), como prova esta passagem
da Kaöha-upaniñad com sua metáfora da carruagem:
Kaöha-upaniñad
ätmänaà rathinaà viddhi çaréraà rathameva tu /
våddhià tu särathià viddhi manaù pragrahameva ca // 1.3.3 //
1.3.3 - Saiba que o si-mesmo {ätman} está sentado na
carruagem; o corpo {çaréra} é a carruagem, o intelecto {buddhi} é
o cocheiro e a mente {manas} são as rédeas.
indriyäëi hayänähuviñayäà steñu gocarän /
ätmendriyamanoyuktaà bhoktetyähurmanoñiëaà // 1.3.4 //
1.3.4 - Os sentidos {indriya} são os cavalos, os objetos dos
sentidos são seus caminhos. Quando o si-mesmo está unido ao
corpo, aos sentidos e à mente {manas}, os sábios o denominam o
“experimentador” {bhoktå}.
yastvaviçänavänbhavatyayuktena manaso sadä /
tasyendriyäëyavaçyäni dåñöäçvä iva säratheù // 1.3.5 //
157
1.3.5 - Aquele cuja mente {as rédeas} nunca está sob
controle tem os seus sentidos difíceis de domar como os cavalos
rebeldes de um cocheiro, e se torna sem discernimento.
yastu viçänavänbhavati yuktena manaso sadä /
tasyendriyäëi vaçyäni sadaçvä iva säratheù // 1.3.6 //
1.3.6. - Mas aquele que tem discernimento e cuja mente
está sempre sob controle, tem os seus sentidos firmemente
dominados, como os bons cavalos de um cocheiro.”
(Kaöha-upaniñad, 1.3.3-6 , in GAMBHÉRÄNANDA, 2002, p. 163-
165)
Como podemos perceber, elementos comuns entre o Säàkhya e o Advaita, como
por exemplo a descrição do princípio do ser ou si-mesmo e o reconhecimento de que os
processos fenomênicos são “sobreposições” do “não-ser” sobre o ser; por outro lado,
também elementos conflitantes, como a própria dualidade irredutível de princípios
primordiais segundo o Säàkhya, seu postulado do número infinito de si-mesmos e sua
contestação acerca da existência do Senhor.
Quanto aos termos utilizados para designar o princípio do ser, as Upaniñad recorrem
mais ao termo ätman do que ao termo puruña, embora o uso pareça indiscriminado. Os
textos específicos da escola do Säàkhya-darçana preferem o termo puruña, enquanto o
tratado do Yoga-darçana apresenta ambos os termos e parece utilizá-los também
indiscriminadamente. Para Çaìkara, puruña e ätman serão sempre compreendidos como
sinônimos, embora ele prefira utilizar o termo ätman em seus textos.
Quanto às diferentes teorias com relação ao princípio fundador ou princípios
fundadores – da existência, a grande maioria das Upaniñad tende ao pensamento monista com
a afirmação do absoluto Brahman. Não obstante, as tipologias comuns ao Säàkhya e ao Yoga
quando se trata de descrever o desdobramento dos fenômenos lá estão, e portanto não
poderiam jamais ter sido negligenciadas ou completamente refutadas por Çaìkara devido à
sua própria presença no seio das incontestáveis escrituras sagradas.
Em síntese, o influente sistema do Säàkhya apresenta então uma leitura do universo
como fenômeno suscitado pela conjunção de dois princípios eternos e antagônicos, e o
universo assim manifesto é compreendido como composto por uma tríade inseparável de
aspectos fenomênicos ou guëa. Como veremos, Çaìkara recusará veementemente o postulado
do “casal primordial” puruña-prakåti, mas aceitará praticamente sem ressalvas todos os outros
23 princípios da manifestação, e inclusive sua composição fundamental de três guëa,
reinterpretando o que for necessário para tornar adequado ao Advaita. Além disso o vigésimo-
sexto princípio acrescentado pelo Yoga-darçana, Éçvara ou “o Senhor”, terá um papel
158
fundamental no Advaita assim como o teve no texto da Bhagavad-gétä. Como teremos a
oportunidade de acompanhar a questão de Éçvara nos próximos capítulos, encerramos por ora
nosso excurso apresentando um quadro sinótico dos 25 tattva do Säàkhya clássico:
Sequência dos 25 princípios reais (tattva), segundo o Säàkhya
conjunção
24 - PRINCÍPIO NÃO-
CONSCIENTE
Prakåti ou pradhäna
ou avyakta (imanifesto)
composto (sattva, rajas, tamas)
25 - PRINCÍPIO
CONSCIENTE
Puruña
não-composto
23 - Mahat / buddhi
(O "Grande": intelecto ou
inteligência)
(predomínio de sattva)
22 - Ahaàkära
(princípio de individuação, que
provoca a cisão sujeito-objeto)
predomínio de sattva
(“iluminação”, intelegibilidade):
mundo subjetivo (11 faculdades de interação):
predomínio de tamas
(“obscuridade”, inércia):
mundo objetivo
5 faculdades
sensoriais
jïänendriya
5 faculdades
de ação
(karmendriya)
5 potências
sutis
(tanmätra)
5 elementos
(bhüta)
20 - audição
(ouvido)
15 - palavra
(voz)
10 - sonoro
(çabda)
9 - Éter
(äkäça)
19 - tato
(pele)
14 - preensão
(mãos)
8 - tangível
(sparça)
7 - Ar
(väyu)
18 - visão
(olhos)
13 -
locomoção
(pés)
6 - visível
(rüpa)
5 - Fogo
(tejas)
17 - gustação
(língua)
12 - excreção
(ânus)
4 - sápido
(rasa)
3 - Água
(äp)
21 - Mente
(manas)
16 - olfato
(nariz)
11 - gozo
(sexo)
2 - olfativo
(gandha)
1 - Terra
(påthivé)
159
2.2.2 – Os três níveis de realidade
Esses tratamentos hierárquicos da consciência podem parecer
as tentativas rústicas de um antigo cosmologista ou talvez de um
cientista primitivo para relacionar diversos fenômenos e uma
variedade de experiências sob um princípio explanatório unificador.
No pensamento grego antigo, por exemplo, Anaximenes tentou dar
conta dos elementos e de tudo o que existe ao explicar que a fonte
original e princípio (archê) de todas as coisas era o ar. [...]
Entretanto, tratar essas hierarquias das Upaniñad dessa forma seria
perder seu significado essencial e, de fato, seu verdadeiro valor. Pois
o significado dessas hierarquias da consciência é que o fundamento
essencial, imutável e inteligente da existência é a fonte da própria
experiência subjetiva. Em outras palavras, pode-se descobrir a
natureza da existência ao se analisar a própria existência como
manifesta na experiência. Um sábio das Upaniñad teria ficado
chocado ao saber quanto tempo levou até que os antigos filósofos
gregos produzissem de fato uma teoria de realidade que incluísse a
mente e a experiência subjetiva. (INDICH, 2000, p. 14)
Acompanhamos anteriormente a forma como Çaìkara utiliza um conceito, o de
adhyäsa, “sobreposição”, para instrumentalizar os efeitos de avidyä, o “véu” de ignorância de
mäyä, sobre os seres. Recorrendo ao fenômeno da sobreposição, definida como “uma
percepção, semelhante em natureza à memória, que surge numa base ou objeto diferente como
resultado de alguma experiência passada” ou seja, uma definição de erro cognitivo” ou
“ausência de discriminação”–, Çaìkara logra explicar como o si-mesmo, o sujeito absoluto,
veio a se identificar com o espetáculo “mágico” dos nomes e formas (näma-rüpa) de que
consiste a manifestação, erroneamente acrescentando à sua subjetividade ontológica
características de uma objetividade tida como menos real.
Quando e como a primeira sobreposição ocorreu não é explicado pelo Advaita, que
considera a questão como sendo da ordem das questões de resposta impossível e, em última
instância, irrelevante; “no princípio de tudo” é a única resposta dada, a única possível, diante
do mistério indefinível que é mäyä. Porém, uma vez iniciado, o erro cognitivo de sobrepor a
objetividade ou manifestação sobre o sujeito e o sujeito sobre os objetos da manifestação
prosseguiu como uma reação em cadeia, produzindo a falsa identificação do si-mesmo com
tudo o que não é o si-mesmo.
Cada objeto manifesto em mäyä que é sobreposto sobre a natureza do si-mesmo ou
seja, todo o universo manifesto, já que para o Advaita a única categoria ontológica é o si-
mesmo é denominado upädhi. O termo sânscrito deriva da raiz prefixada upa-ä-DHÄ,
160
“colocar sobre, vestir, revestir”, e designa, entre outras coisas, “aquilo que é posto em lugar
de outra coisa, substituto; qualquer coisa que possa ser tomada por outra ou que tenha seu
nome ou aparência; aparência, ilusão, disfarce” (MONIER-WILLIAMS, 2002, p. 213). A
maioria dos estudiosos contemporâneos do Advaita (como por exemplo
GAMBHÉRÄNANDA, cujas edições utilizamos neste trabalho) têm traduzido
conceitualmente o termo upädhi por “adjunto” ou “adjunto limitante” (limiting adjunct), e
preferimos segui-los aqui. Tal conceito de “adjunto limitante” leva a própria totalidade
manifesta que constitui saguëa-Brahman a ser compreendida por Çaìkara como o primeiro
upädhi ou elemento sobreposto sobre o Absoluto originalmente “não-qualificado” e portanto
indeterminado, nirguëa-Brahman.
17
Podemos inferir que, assim como um operador capaz de fazer a passagem do
absoluto ao relativo, a “ignorância”, causando sobreposições desses adjuntos limitantes sobre
a natureza onipenetrante do si-mesmo, assim também deve haver por meio do operador
contrário, o “conhecimento discriminador”, a possibilidade de uma “des-sobreposição”, uma
remoção desses adjuntos limitantes, e conseqüentemente um processo inverso através do qual
seja possível efetuar o “retorno” ao conhecimento do si-mesmo. No Advaita, a “des-
sobreposição” é denominada apaväda, “negação, refutação” (dos adjuntos limitantes), e o
processo meditativo através do qual se alcança o conhecimento do si-mesmo, jïäna-yoga
(“Yoga do conhecimento”), inclui, no percurso de descondicionamento mental, além do
aspecto de negação/refutação dos processos físicos e mentais como si-mesmo, também o
aspecto positivo de reafirmação do si-mesmo como Absoluto por meio das quatro “grandes
sentenças” (mahä-väkya) extraídas das Upaniñad (cf. capítulo 1.5 deste trabalho): ahaà
brahmäsmi, tat tvam asi, ayam ätmä brahma e prajïänaà brahma (“Eu sou Brahman”, “Tu
és Isso”, “Esse si-mesmo é Brahman” e “Brahman é consciência”, respectivamente).
Porém, o fato é que estabelecer a oposição básica entre si-mesmo e mundo manifesto
não encerrou as questões de que o Advaita deveria dar conta, bem porque o próprio conteúdo
dos textos canônicos do Vedänta apontava para uma série de descrições de etapas e
hierarquias de níveis de realidade dentro do próprio universo projetado por mäyä.
17
É verdade que o Säàkhya já utilizava os termos “sobreposição” (adhyäsa) e “adjunto” (upädhi) para explicar
cada novo “revestimento” ou princípio real (tattva) criado pela matriz fenomênica para formar o “corpo
psíquico” do ser relativo. Porém, a diferença é que para o Säàkhya a “sobreposição” era propiciada pelo
acréscimo de adjuntos “reais”, que o mundo dos fenômenos é considerado absolutamente “real” pelo
Säàkhya. Apenas o Advaita identificará essas sobreposições de adjuntos limitantes sobre o si-mesmo como
“erros cognitivos” de natureza ilusória. Ou seja, a definição de “sobreposição” dada pelo Advaita não é válida
para o Säàkhya, já que o Säàkhya admite a ignorância do si-mesmo e a necessidade de um processo para a
remoção dessa ignorância, mas não admite um caráter ilusório e irreal para o corpo psíquico que é produto e sede
dessa ignorância.
161
a) vigília-sonho-sono
Dessas descrições, uma das mais importantes e fecundas para o Advaita, e que
pretendemos acompanhar neste capítulo, é encontrada no curto texto (16 versos) da
Mäëòükya-upaniñad, do qual reproduzimos apenas os versos mais essenciais para nossa
análise, juntamente com alguns trechos do comentário de Çaìkara:
Mäëòükya-upaniñad
sarvaà hyetad brahmäyamätmä brahma so ‘yamätmä catuñpät
// 2 //
2 Tudo isso é de fato Brahman. Esse si-mesmo é
Brahman. O si-mesmo, tal como é, possui quatro partes.
jägaritasthäno bahiñprajïaù saptäìga ekonaviàçatimukhaù
sthülabhug-vaiçvänaraù prathamaù pädaù // 3 //
3 – A primeira parte é Vaiçvänara; sua sede é a vigília
{jagarita, “relativo a jagat, o mundo”}; sua consciência é exterior
{bahiñ-prajïaù}; tem sete membros e dezenove bocas, e goza das
coisas densas {sthüla, “grosso, massivo, denso, material”}.
{Trecho do comentário de Çaìkara:} A idéia é de que a
consciência parece relacionar-se com objetos exteriores, devido à
ignorância. Ele tem sete membros. Para complementar a imagem do
sacrifício do Agnihotra descrito em ‘O céu é a cabeça de Vaiçvänara;
o sol é o olho, o ar é a força vital, o espaço é o tronco, a água é a
bexiga, e a terra são seus pés’ [cf. Chändogya-upaniñad, 5.18.2], o
fogo Ähavanéya foi afirmado como sua boca [ibid.]. [...] possui
dezenove bocas: os sentidos de percepção e de ão {os dez indriya},
as forças vitais {os cinco präëa ou alentos vitais segundo o Yoga}, a
mente, o intelecto, o princípio de individuação e o conteúdo mental
{manas, ahaàkära, buddhi e citta, esse último termo encontrado
apenas no Yoga-darçana}. Essas são as bocas [...], os portais das
experiências.
[Objeção:] “O tópico sob discussão é o si-mesmo referido em
‘Esse si-mesmo é Brahman’, descrito como possuindo quatro partes.
Como pode ser que céu, etc. sejam apresentados como sua cabeça,
etc.?
[Resposta:] “Isso não é incongruente, que a intenção é
demonstrar que todo o universo fenomênico, incluindo o mundo dos
deuses, na forma desse si-mesmo, constitui uma das suas quatro
partes. Se a apresentação é assim feita, a não-dualidade fica
estabelecida, pois a remoção do universo fenomênico inteiro revelará
o si-mesmo que existe em todos os seres, e todos os seres serão vistos
como existentes no si-mesmo. [...] Caso contrário, será percebido
apenas um si-mesmo circunscrito pelo próprio corpo {isto é,
delimitado pela individualidade de cada ser relativo}, como pretendem
os [adeptos] do Säàkhya e outros. E nesse caso a afirmação das
Upaniñad de que ele é não-dual não serä estabelecida, e não haverä
diferença com relação à filosofia dos [adeptos do] Säàkhya e outros.”
162
[Mäëòükya-upaniñad, 2-3, in GAMBHÉRÄNANDA, 2001, p. 175-
178; in ÇÄSTRIËÄ, 2000, p. 178-180]
Notamos o diálogo com o Säàkhya e com o Yoga-darçana que aparece nesse
comentário. Podemos observar que Çaìkara incorpora toda a descrição do desdobramento
dos fenômenos conforme tradicionalmente veiculada pelo Säàkhya e aceita pelo Yoga. O
conflito surge apenas com relação ao par de princípios fundadores antagônicos e o
redutíveis à unidade afirmados pelas duas escolas.
Em oposição a essas escolas, Çaìkara interpretará o termo puruña, quando esse for o
termo utilizado na Upaniñad (o que é o caso, por exemplo, da Kaöha-upaniñad), como
simplesmente um sinônimo de ätman, e recusará veementemente a multiplicidade de si-
mesmos independentes, tal como defende o Säàkhya: a remoção do universo fenomênico
inteiro revelará o si-mesmo que existe em todos os seres, e todos os seres serão vistos como
existentes no si-mesmo. [...] Caso contrário, será percebido apenas um si-mesmo circunscrito
pelo próprio corpo, como prentendem os [adeptos] do Säàkhya e outros. E nesse caso a
afirmação das Upaniñad de que ele é não-dual o será estabelecida, e não haverá diferença
com relação à filosofia do Säàkhya e outros”. De fato, para Çaìkara existe apenas um si-
mesmo, que é ätman/Brahman (cf. “O significado desse verso é que o mundo tem apenas um
si-mesmo que é onipenetrante, e que não existe pluralidade de si-mesmos.” [Kaöha-upaniñad-
bhäñya, 2.2.2, in GAMBHÉRÄNANDA, 2002, p. 199])
Para manter a não-dualidade, Çaìkara precisa também reiterar o fato de que a
“consciência exterior” que aparece na expressão da Upaniñad (bahiñ-prajïaù) e o mundo
físico (jagat) cuja experiência engendra (jagarita) não são exteriores” no sentido literal do
termo, que não existe nada “exterior” ao si-mesmo, mas que a consciência parece
relacionar-se com objetos exteriores, devido à ignorância”. Isso não é de difícil compreensão
para nós, já que sabemos de antemão que, para o Advaita, a “ignorância” é o sujeito operador
que projeta a “ilusão” das relações duais ou relações entre sujeitos e objetos no mundo
fenomênico. Assim, o que é “consciência exterior” ou voltada para fora a primeira parte do
si-mesmo, segundo a Upaniñad constitui uma percepção “ilusória” do relativo: todo o
universo está contido, em verdade, no si-mesmo, sob a forma de uma cognição, em última
instância, ilusória.
Ora, um único si-mesmo para todo o universo e todos os seres relativos é o contrário
do que postula o Säàkhya. Mas, como auxiliar em sua tarefa “anti-Säàkhya”, Çaìkara terá o
163
fato de que não nenhuma afirmação categórica acerca da multiplicidade de si-mesmos que
possa ser encontrada em nenhuma das dez Upaniñad por ele comentadas.
com relação ao princípio fenomênico independente e não-consciente afirmado pelo
Säàkhya (prakåti ou pradhäna), esse será interpretado por Çaìkara como simplesmente um
sinônimo de mäyä, e é óbvio que nessa condição ele lhe negará o caráter de “inconsciência
ontológica” assim como o de realidade independente da realidade da consciência. E ele
precisará fazê-lo se quiser “[...] demonstrar que todo o universo fenomênico, incluindo o
mundo dos deuses, na forma desse si-mesmo, constitui uma das suas quatro partes”. Façamos
uma breve digressão apenas para acompanhar, em excertos do comentário de Çaìkara a dois
versos da Chändogya-upaniñad, exemplos dessa polêmica com o Säàkhya e da postura do
Advaita:
Chändogya-upaniñad
tadaikñata bahu syäà prajäyeyeti tattejo ‘såjata tatteja aikñata bahu
syäà prajäyeyeti tadapo ‘såjata tasmädyatra kvaca çocati svedati
puruñastejasa eva tadadhyäpo jäyante // 6.2.3 //
6.2.3 Então essa [sat, existência] viu [aikñata]: “Que eu me torne
muitos. Que eu nasça.” E essa criou o fogo. E o fogo viu: “Que eu
me torne muitos. Que eu nasça.” Esse criou a água. Por isso,
sempre que uma pessoa sofre ou perspira, isso vem de fato do
fogo. A água nasce do fogo.
{Trechos do comentário de Çaìkara:} “Disso segue que a causa do
mundo não é pradhäna como pensado pelo Säàkhya, pois eles
assumem que pradhäna é inconsciente. Mas essa existência {sat} é
consciente por ser afirmada como o agente da visualização. Como
essa existência visualizou? [...] ‘Que eu nasça’, como a terra
assumindo a forma de potes, ou a corda assumindo a forma de cobras,
etc., conforme imaginados pelo intelecto {buddhi}.”
[Objeção:] “Nesse caso o que quer que perceba ou seja percebido é
irreal, como a corda percebida como cobra, etc.”
[Resposta:] “Não. Já que a própria existência é o que é percebido por
meio da dualidade de diferentes formas, então não existe não-
existência de coisa alguma. [...] Todas as palavras e coisas que são
referidas com a idéia de serem diferentes da existência são apenas a
existência, assim como no mundo uma corda é referida como uma
cobra, sob a idéia de que se trata de uma cobra [...] Mas assim como a
palavra e a idéia de cobra cessam para quem possui o conhecimento
discriminador acerca da corda [...] assim também palavras e idéias
com relação a todas as transformações {i.e., os fenômenos} cessam
para os que têm o conhecimento discriminador da existência.”
äpa ekñanta bahvyaù syäma prajäyemahéti annamasåjanta
tasmädyatra kvaca varñati tadeva bhüyiñöhamannaà bhavatyadbhya
eva tadadhyannädyaà jäyate // 6.2.4 //
164
6.2.4 – Essa água viu: “Que nos tornemos muitas. Que nasçamos.”
E essas criaram o alimento. Por isso, sempre que chove, o
alimento se torna abundante. De fato, o alimento nasce da água.
{Trechos do comentário de Çaìkara:} [Objeção de um representante
do Säàkhya:] “Pode ser inferido mesmo no caso da existência {sat}
que ela é não-consciente, que é uma causa como a terra, etc. E se a
existência, que é não-consciente como pradhäna, existe para servir ao
propósito do consciente {puruña}, e que é a produtora de efeitos
numa sucessão bem definida de tempo e ordem, então se pode inferir
que a existência aparentemente viu, e que a visualização nesse caso é
em sentido secundário {i.e., figurativo}.”
[Resposta:] “Não, porque essa Upaniñad refere-se à existência como o
si-mesmo na passagem ‘Isso é a verdade, isso é o si-mesmo’ [6.14.3].
[...] Tudo se torna conhecido quando a existência única é conhecida,
porque tudo é não-diferente da existência; e também porque há a
asserção da não-dualidade. [...] Portanto, já que a interpretação da
Upaniñad baseia-se na autoridade escritural [...] conclui-se que a causa
do mundo é inteligente {imbuída de consciência}.” (Chändogya-
upaniñad-bhäsya, 6.2.3-4, in GAMBHÉRÄNANDA, 1997, p. 422-
428; in ÇÄSTRIËÄ, 2000, p. 509-511)
Com esse comentário percebemos claramente o “mistério” ou complexidade do
conceito de mäyä: embora o universo dos fenômenos (palavras e idéias) seja ilusório, ele não
pode ser afirmado como absolutamente irreal, que está fundamentado em Brahman, que é
existência (“tudo é não-diferente da existência”, o fenômeno é essencialmente não-diferente
do ser). Por outro lado, também não é absolutamente real como o universo fenomênico
concebido pelo Säàkhya: “material”, “não-consciente”, oposto ao princípio do ser.
Em contrapartida à discordância entre Säàkhya e Advaita com relação aos princípios
fundamentais, existe também uma “apropriação”, por parte do Advaita, das classificações do
Säàkhya-yoga-darçana com relação ao modelo psicológico. Retornando de nossa digressão,
observemos o modelo psicológico “de orientação Säàkhya referido por Çaìkara em sua
interpretação da Mäëòükya-upaniñad.
Como vimos no capítulo anterior, no Säàkhya clássico temos apenas três elementos
constituintes de antaù-karaëa: manas, buddhi e ahaàkära. O termo citta, por sua vez,
aparece apenas no tratado do Yoga-darçana, o Yoga-sütra de Pataïjali, no mais célebre dos
sütra, aquele que define Yoga:
yogaç citta-våtti-norodhaù //1.2 //
1.2 – Yoga é a cessação dos movimentos/agitações de citta.
18
18
Em nossa dissertação de mestrado (inédita; GULMINI: 2001, p. 107), optamos por traduzir citta nesse sütra
por “consciência”, por compreendermos que, no contexto do Yoga-sütra, o termo (particípio passado da raiz CIT,
165
Para Çaìkara, citta é interpretado como o conteúdo total (impressões, lembranças, etc.)
das operações psíquicas, à parte dos próprios “órgãos” ou “faculdades psíquicas” em si
(manas, ahaàkära e buddhi) – o que o leva a incluir o termo citta do Yoga como um “quarto”
elemento “contável” no modelo psicológico que assimilou das escolas àkhya-yoga. Assim,
com quatro instrumentos puramente psíquicos, dez órgãos de percepção e interação e cinco
energias ou alentos vitais (os cinco präëa ou “alentos vitais” classicamente conhecidos pelo
Säàkhya-yoga-darçana: präëa, apäna, samäna, udäna e vyäna), Çaìkara conta as dezenove
“bocas” da consciência em vigília.
Voltemos à Upaniñad para observar a descrição das outras “partes” do si-mesmo:
svapnasthäno ‘ntaù prajïaù saptäìga ekonaviàçatimukhaù
praviviktabhuk-taijaso dvitéyaù pädaù // 4 //
4 - A segunda parte é Taijasa; sua sede é o sonho {svapna};
sua consciência é interior {antaù-prajïaù}; tem sete membros e
dezenove bocas, e goza das coisas sutis {sükñma, “sutil, mínimo,
intangível”}.
[Trecho do comentário de Çaìkara:] “[...] A consciência do
estado de vigília, embora seja apenas um estado de manifestação
mental {avabhäsa-mänä, ‘a mente que brilha, manifesta-se, aparece’},
é associada a muitos meios, e parece absorta em objetos exteriores, e
assim deixa na mente as impressões correspondentes. Sob o impulso
da ignorância, desejo e ações passadas, essa mente, imbuída das
impressões como um pedaço de tela pintada, faz sua aparição [no
estado de sonho] assim como na vigília, mas sem meios exteriores.
[...] A mente é interior com relação aos sentidos. E aquele cuja
consciência, em sonho, assume as formas das impressões nessa mente,
tem a consciência interior {antaù prajïaù}. Ele é chamado Taijasa
[‘luminoso’] porque se torna a testemunha da cognição desprovida de
objetos que aparece apenas como luminosa.[...] e por isso o gozo é
sutil.”
yatra supto na kaïcana käm kämayate na kaïcana
svaptnaà paçyati tat suñuptam / suñuptasthäna ekébhütaù
prajïänaghana evänandamayo hyänandabhük cetomukhaù
präjïaståtéyaù pädaù // 5 //
5 É sono profundo [sem sonhos] o estado em que o
adormecido não deseja nada desejável nem nenhum sonho. A
terceira parte é Präjïa {correlato de prajïa, ‘consciência’}; sua
sede é o sono profundo, em que tudo é indiferenciado, uma massa
de consciência {prajïäna-ghana} de fato, feita de êxtase {änanda,
“ser ciente de”) englobava os “movimentos” ou operações da totalidade psíquica do indivíduo, ou antaù-karaëa.
Se o traduzíssemos para o presente trabalho, teríamos de adotar algo como a expressão “consciência
fenomênica” ou ainda “psique”, que estamos aqui usando o termo “consciência como sinônimo da
consciência do sujeito absoluto no Advaita.
166
‘gozo, êxtase, bem-aventurança’}, e que goza do êxtase; sua
{única} boca é consciência {cetomukha}.
[Trechos do comentário de Çaìkara:] “[...] que o sono, que
consiste na não percepção da realidade, está igualmente presente nos
três estados, o sono profundo está sendo diferenciado dos outros dois
[pela expressão ‘o adormecido não deseja nada desejável’]. [...]
afirma-se que ele é indiferenciado {ekébhüta} porque toda dualidade
que é diversificada nos outros dois estados e que não passa de
modificações da mente torna-se indistinta nesse estado sem perder
suas características, assim como o dia e todo o mundo fenomênico
tornam-se indiscerníveis sob o manto da escuridão noturna. [...] Esse
estado chama-se uma “massa de consciência”, já que é caracterizado
pela ausência de discriminação. [...] Pelo uso da palavra eva, ‘de fato’,
segue-se que não há mais nada separado da consciência. E ele é
änanda-maya, ‘feito de êxtase’, porque sua alegria abundante é
causada pela ausência do sofrimento envolvido no esforço da mente,
brilhando sob a forma de objetos e de seu experimentador; mas ele
não é o próprio êxtase em si, porque sua alegria não é absoluta. [...]
Ele é chamado präjïa, consciência por excelência’, que apenas
nele existe o conhecimento do passado e do futuro de todas as coisas.
Ainda que em sono profundo, ele é chamado präjïa {relativo ao
consciente} porque [...] apenas ele está imbuído das características
peculiares da massa de consciência de fato, enquanto os outros dois
[estados anteriores] possuíam também conhecimento diversificado.”
eña sarveçvara eña sarvajïa eño ‘ntaryämyeña yoniù sarvasya
prabhaväpyayai hi bhütänäm // 6 //
6 – Esse é o senhor de tudo, o onisciente, o governante
interior, a fonte de tudo; ele é realmente a origem e dissolução de
todos os seres.
[Mäëòükya-upaniñad, 4-6, in GAMBHÉRÄNANDA: 2001, p. 179-
184; in ÇÄSTRIËÄ, 2000, p. 180-182]
Temos aqui, até o momento, uma tríade representada por três níveis de consciência: a
consciência do estado de vigília, do sono com sonhos e do sono profundo. A Upaniñad trata
de apresentar os três níveis numa gradação que vai do mais físico e fenomênico, a consciência
do estado de vigília que percebe as coisas do mundo, ao mais sutil e indiferenciado,
estabelecido pela consciência adormecida” em sono profundo, uma “massa de consciência”
que não possui mais “membros e bocas” para experimentar diversidades em sua existência
(não mais possui “conhecimento diversificado”) à exceção de uma “boca” ou experiência, a
de ser consciente (cetomukha). O texto sugere a interpretação de que, na gradação que vai da
vigília ao sono profundo, conforme as experiências da consciência vão se tornando cada vez
mais sutis, a consciência vai se aproximando de sua essência ou “estado próprio”, com o
apagamento das experiências diversificadas provocadas pelos estímulos sensoriais das
percepções do corpo com relação aos objetos do mundo físico à simples “lembrança” das
167
mesmas pela mente, o que constitui o estado de sonho (com sete membros e dezenove bocas
“sutis” ou contrapartes puramente mentais dos sentidos e órgãos de ação), até enfim o
momento em que nada mais é percebido como existente à exceção da própria consciência. O
sono profundo – ou seja, a não percepção de fenômenos – seria até então o grau mais elevado
de proximidade da experiência do indivíduo com a realidade ontológica do princípio do ser:
“Esse é o senhor de tudo, o onisciente, o governante interior, a fonte de tudo; ele é realmente a
origem e dissolução de todos os seres.”
Neste ponto observamos que, tanto para o universo das Upaniñad como para todos os
outros seis darçana desenvolvidos no Hinduísmo ortodoxo, nunca foi aceita uma negação da
existência da consciência nos casos de “inconsciência” representados pelo sono profundo,
desmaio, etc. Os principais argumentos para a defesa da permanência da consciência como
entidade existente nesses estados de “apagamento” cognitivo são os seguintes: 1) o indivíduo,
após acordar de um sono profundo, é capaz de identificar impressões daquele estado de
aparente “inconsciência”, tais como “dormi bem, sinto-me repousado” ou “desmaiei e sinto-
me agora com o corpo pesado e inerte”; ora, se não restasse nenhum princípio de consciência
nesses estados, a reminiscência seria impossível; 2) se a consciência é dada como princípio
existente, não é admissível que ela deixe de existir sequer por um intervalo, como durante o
sono profundo ou desmaio, para depois voltar a existir; de acordo com a categoria de
“verdade”, tal como a exploramos na primeira parte deste trabalho, algo que é (sat), não pode
nunca deixar de ser, e o que não é (a-sat) não pode nunca “surgir” numa existência temporária
e depois voltar à não-existência. Esses dois principais argumentos aparecem na literatura do
Säàkhya-yoga-darçana, e com eles concorda Çaìkara e praticamente toda a tradição sânscrita
do Hinduísmo, a qual, desde as Upaniñad, jamais negou à consciência um fundamento
ontológico.
19
b) Sono profundo
Voltando à nossa questão, temos aqui um problema: a terceira parte do si-mesmo é
praticamente análoga à condição do si-mesmo como sujeito absoluto, à exceção do fato de
que o “apagamento” ou aparente “não-testemunho” da consciência nesse estado é contrário à
definição do si-mesmo como onisciente, onipenetrante (“Ele é chamado präjïa, consciência
19
Contrariamente a esse ponto de vista temos, por exemplo, o discurso de algumas escolas heterodoxas,
como as principais escolas budistas, as quais postulam o an-ätman (não-si-mesmo) em lugar do ätman, ou seja, a
inexistência de um princípio contínuo de consciência, ou a çunyatä, a “vacuidade”, o “zero” ou o “não-número”,
em lugar do Um absoluto (Brahman), do dois irredutível ou do múltiplo, conforme seja o caso das diversas
escolas ortodoxas do Hinduísmo.
168
por excelência’, que apenas nele existe o conhecimento do passado e do futuro de todas as
coisas.”) e como testemunha do próprio gozo eterno (“Ele é änanda-maya, ‘feito de êxtase’,
porque sua alegria abundante é causada pela ausência do sofrimento envolvido no esforço da
mente, brilhando sob a forma de objetos e seu experimentador.”). Qual seria a resposta para o
problema?
Segundo a tradição sânscrita, sobretudo aquela representada pelas diversas escolas do
Yoga, o estado de sono profundo sem sonhos (isto é, sem as percepções sensoriais constantes
da vigília e sem a atividade mental igualmente constante do sonho) é o mais próximo que um
homem comum consegue chegar sem o treinamento de intensa concentração mental das
disciplinas meditativas do Yoga da experiência do samädhi a experiência da consciência
desvinculada de fatores condicionantes e atividades em direção aos objetos do mundo físico
ou mental, ou seja, o êxtase ou “transe” do yogin, a “revelação” do sujeito absoluto. Assim, o
problema do homem comum é que ele não consegue chegar consciente a esse estado de
plenitude, e por isso não o vivencia de fato, e conseqüentemente não produz lembranças ou
impressões mentais da experiência (saàskära) de plenitude e gozo, e finalmente por isso,
numa espécie de “círculo vicioso da ignorância do si-mesmo”, não é capaz de reproduzir a
experiência. Çaìkara concorda com todas essas premissas. De fato, a terceira parte do si-
mesmo constitui, das três apresentadas até o momento, a mais próxima de “sua morada” ou
natureza real. Não obstante, por ainda ser essa uma experiência “inconsciente”, Çaìkara não
lhe confere o estatuto de experiência da realidade última ou sujeito absoluto: ao contrário,
lembra que “o sono, que consiste na não percepção da realidade, está igualmente presente nos
três estados”. Ou seja, os três níveis de consciência e de realidade experimentada por eles
estão ainda dentro dos domínios da ignorância ou da consciência coberta pelo “véu de mäyä”.
Se retomamos o conteúdo do texto da Upaniñad, somos levados a interpretar que o
sonho é considerado mais sutil, e portanto mais “próximo” da realidade que é a consciência
do si-mesmo, do que o estado de vigília, assim como o sono profundo é ainda mais sutil e
mais próximo do si-mesmo do que o sonho. Mas... será que Çaìkara concordará integralmente
com essa gradação, ou será que fará gradações diferentes? Qual é, afinal, dentro da tríade de
mäyä, vigília-sonho-sono profundo, o critério para se estabelecer o mais real e o menos real,
segundo o Advaita? Façamos um intervalo em nossa leitura e análise da Mäëòükya-upaniñad
para acompanhar dois versos de outro texto, a Båhad-äraëyaka-upaniñad, em que o mesmo
assunto é abordado, e vejamos a posição de Çaìkara mais bem esclarecida em trechos de seu
comentário:
169
Båhad-äraëyaka-upaniñad
tadyathä mahämatsya ubhe küle ‘nusaàcarati pürvaà
cäparaà ca / evameväyaà puruña etävubhävantävanusaàcarati
svapnäntaà ca buddhäntaà ca // 4.3.18 //
4.3.18 – Assim como um grande peixe move-se entre as
duas margens [de um rio], leste e oeste, assim também este ser
{puruña} move-se entre os dois estados, o desperto e o de sonho.”
{Trecho do comentário de Çaìkara:} “[...] O ponto a ser
ilustrado é o seguinte: o corpo e os órgãos [dos sentidos], que são
formas da morte, junto com suas causas estimulantes, o desejo e a
ação, são os atributos do não-si-mesmo, e o si-mesmo é distinto deles.
Tudo isso já foi exaustivamente explicado.
“Nos versos anteriores o auto-luminoso si-mesmo, ätman, que
é distinto do corpo e dos sentidos, foi declarado como isento de desejo
e de ação, pois ele se move alternadamente nos três estados. Desejo e
ação não lhe pertencem: sua existência relativa deve-se aos adjuntos
limitantes {upädhi}, e é sobreposta pela ignorância [...] Porém, os três
estados de vigília, sonho e sono profundo foram descritos
separadamente [...] Por exemplo: foi demonstrado que no estado de
vigília o si-mesmo parece ligado ao apego e à ação, ao corpo e aos
sentidos, em virtude da ignorância; no estado de sonho o si-mesmo é
percebido como ligado ao desejo, porém livre das formas da morte
{i.e., ação sobre os objetos do mundo}; e no estado de sono profundo
ele está perfeitamente sereno e desapegado, sendo esse desapego um
traço adicional. Se considerarmos todas essas passagens em conjunto,
o significado resultante é que o si-mesmo é por natureza eterno, livre,
iluminado e puro. [...]”
tadyathäsminnäkäçe çyeno suparëo viparipatya çräntaù
saàhatya pakñau saàlayäyaiva dhriyate / evameväyaà puruña etasmä
antäya dhävati yatra supto na kaàcana kämaà kämayate / na
kaàcana svapnaà paçyati // 4.3.19 //
4.3.19 Assim como uma águia ou falcão voando nós céus
se cansa e, esticando suas asas, ruma para seu ninho, assim
também esse ser {puruña} corre para esse estado onde, caindo no
sono, ele não tem mais desejos nem vê sonhos.
{Trecho do comentário de Çaìkara:} “[...] A experiência do
estado de vigília também é considerada pela escritura como um sonho;
por isso é dito ‘nem vê sonhos’. [...] Assim como o pássaro do
exemplo vai para seu ninho para remover a fadiga de seu vôo, assim o
ser relativo {jéva}, ligado aos resultados das ações realizadas pelo
contato com o corpo e com os sentidos nos estados de vigília e sonho,
cansa-se e, para remover essa fadiga, vai para seu próprio ninho e
morada, ou seja, seu próprio si-mesmo, distinto de todos os atributos
relativos e destituído de todos os esforços causados pela ação e seus
resultados.” (Båhad-äraëyaka-upaniñad-bhäñya, 4.3.18-19, in
MÄDHAVÄNANDA, 1975, p. 454-456; in ÇÄSTRIËÄ, 2000, p.
887-888]
170
Escolhemos reproduzir também o comentário de Çaìkara à Båhad-äraëyaka-upaniñad
porque aqui finalmente temos elementos textuais para demonstrar a alteração sutil e decisiva
que Çaìkara aplicou àquela gradação primeira entre vigília, sonho e sono profundo.
Verifiquemos então o critério por ele utilizado para estabelecer o que, em termos de
experiência da consciência, pode ser considerado mais ou menos real.
Em primeiro lugar, Çaìkara demonstra que a “passagem” da vigília para o sonho
representa, para a consciência, uma “perda” ou “cancelamento” dos efeitos de alguns dos
adjuntos limitantes (upädhi) da primeira condição (vigília). Assim, se a experiência da
consciência em vigília é um fenômeno que engloba “corpo e órgãos dos sentidos”, “desejo e
ação”, em contrapartida no mundo dos sonhos “o si-mesmo é percebido como ligado ao
desejo, porém livre das formas da morte”, ou seja, sem a percepção do corpo e dos sentidos, e
sem as ações (karman) que, realizadas no mundo físico, aprisionam o ser relativo à fruição de
suas conseqüências (ou seja, que produzem o saàsära ou a continuidade das transmigrações,
e que são por isso referidas como “formas da morte”). Não obstante, restam ainda intactos o
desejo e as lembranças sensoriais, os quais produzem os sonhos. Esses desaparecem
igualmente no vel seguinte, o do sono profundo, e o que resta intacto durante todo esse
processo de “decantação” é o princípio do ser ou si-mesmo. Assim, a conclusão advinda do
“cancelamento” dos adjuntos limitantes é que o que resta ao final, o si-mesmo desprovido de
atributos e relações, é “por natureza eterno, livre, iluminado e puro”, porque é isso o que
resta e portanto isso é admitido como permanente em todos os níveis de consciência.
Nesse sentido apenas, e dentro da tríade até agora apresentada, o sono sem sonhos constituirá,
com relação ao si-mesmo, “seu próprio ninho e morada, ou seja, seu próprio si-mesmo,
distinto de todos os atributos relativos e destituído de todos os esforços causados pela ação e
seus resultados”.
Não obstante, para Çaìkara essa “massa indiferenciada de consciência” (prajïäna-
ghana) do sono sem sonhos ainda não é a realidade absoluta de nirguëa-Brahman e
corresponde apenas, no plano da manifestação, à experiência da totalidade relativa, da própria
“ignorância fundamental”, avidyä, que possibilita e inaugura o universo fenomênico, ou seja,
à própria mäyä em sua totalidade indescritível. A “inconsciência” do sono profundo é então a
experiência integral, pela consciência, da escuridão do véu de mäyä que projeta o mundo dos
nomes e formas. E em comparação com essa imensidão indiferenciada da experiência do sono
profundo, “a experiência do estado de vigília também é considerada pela escritura como um
sonho”. Afinal, diante da tríade da manifestação “ilusória” dos fenômenos, o ser
171
verdadeiramente “desperto” pode ser o contrário de tudo isso, ou seja, o sujeito absoluto
aquele que será descrito como a “quarta parte” do si-mesmo pela Upaniñad, em breve.
c) bädha, o “cancelamento”
O processo de “cancelamento” das sobreposições de adjuntos limitantes que
“confinam” a consciência nas experiências dos fenômenos em vigília, sonho e sono profundo,
e dessas três experiências com relação à experiência do sujeito absoluto, é tomado por
Çaìkara como critério para estabelecer, de acordo com essas experiências das consciências
dos seres relativos, gradações de veis de realidade no plano da manifestação. O termo
sânscrito utilizado para designar esse “cancelamento” de níveis de realidade “não definitivos”
é bädha, da raiz BÄDH, “resistir, opor; anular, invalidar, remover.” Nos sistemas de lógica e
inferência da tradição sânscrita, bädha designa a “suspensão ou anulação de uma regra;
contradição, objeção, redução ao absurdo, exclusão de um princípio ou proposição por uma
prova superior” (cf. MONIER-WILLIAMS, 2002, p. 727-728). O termo, conforme utilizado
no Advaita, tem sido traduzido para o inglês pelos estudiosos contemporâneos do Advaita por
“sublation”. Como não temos a intenção de cunhar aqui um novo termo no vernáculo em
tradução direta do inglês (o que resultaria em algo como “sublação”), preferimos a tradução
mais literal do sânscrito, “cancelamento”.
Transferindo o termo da lógica para a análise advaitin da realidade como experiência
consciente, teremos aí a proposição de três níveis de realidade: a realidade do sonho, a
realidade da vigília e a realidade do si-mesmo. O sono profundo será considerado como um
indicativo da realidade absoluta do si-mesmo, porém ainda “preso” aos domínios da
experiência da “ignorância” em mäyä.
Na utilização do processo cognitivo do “cancelamento” para determinar níveis de
realidade de acordo com a experiência consciente, percebemos o mesmo princípio de
descontinuidade entre os níveis relativos que havíamos observado entre o relativo e o
absoluto. Assim como, em lógica, o “cancelamento” ou suspensão de uma dada proposição
por meio de uma prova que a contradiz provoca a anulação completa de seu efeito anterior de
veracidade, assim também o “cancelamento”, bädha, por exemplo, de uma experiência de
sonho pela experiência de vigília, é uma prova de que a experiência de sonho é menos real do
que aquela da vigília. Por outro lado, o “cancelamento” das experiências de sonho e de vigília
pela experiência unificadora e aprazível do sono profundo revela, para o Advaita, que diante
dessa última experiência, as duas anteriores são menos reais na medida em que se constituem
172
de um número maior de upädhi, “adjuntos limitantes”, sobrepostos à natureza única do si-
mesmo.
Assim bädha ou “cancelamento” é um dos critérios para a investigação de verdade /
realidade do Advaita. Em última instância, a mais real das experiências é aquela que não pode
ser “cancelada” por nenhuma outra. E essa, segundo o Advaita, é a experiência do sujeito
absoluto a experiência do “eu sou” –, a única capaz de “cancelar” a percepção do mundo
fenomênico (a consciência do estado de vigília) como real, e a única que não pode ser
“cancelada” por nenhuma outra experiência.
Notamos que o “cancelamento” que se processa entre esses níveis de experiência da
consciência é análogo à idéia de “descontinuidade” entre o relativo e o absoluto que
exploramos na primeira parte deste trabalho. E, da mesma forma que na argumentação e na
lógica, aqui também o “cancelamento” é uma prova do “erro cognitivo” contido na
proposição anterior – no caso, na proposição de realidade experimentada pela consciência.
Vale lembrar que a descontinuidade entre os níveis relativos de realidade conforme
experimentados pela consciência (vigília, sonho e sono profundo) obedece ao mesmo critério
estabelecido para determinar ou negar a realidade relativa e a absoluta, a saber: somente o
“despertar” de um nível pode provar sua irrealidade. Ou seja, o “cancelamento” de um nível
de realidade se com a passagem da consciência para a experiência de outro nível mais
real; enquanto a consciência permanecer num mesmo nível, o “cancelamento” de sua
realidade não pode ser confirmado. Por exemplo: no decorrer de um sonho, a consciência o
vivencia como real: se o indivíduo prova um delicioso manjar e depois é perseguido por
animais ferozes, enquanto estiver sonhando tanto o sabor e o deleite do manjar quanto o medo
e a fuga da perseguição serão reais. Somente o despertar poderá “cancelar” a ilusão de
realidade do sonho. Da mesma forma, todas as experiências do ser relativo em vigília e todas
as suas relações com os fenômenos serão incontestavelmente reais enquanto ele compartilhar
da consciência de vigília.
Porém, mais uma questão se coloca aqui: é fato que o sonho, durante o sonho, cancela
a realidade da vigília, tanto quanto a vigília, durante a vigília, cancela a realidade do sonho.
Para evitar essa tautologia é necessário compreender que o “cancelamento” só pode ser
aplicado como critério de hierarquização de níveis de realidade, como pretende o Advaita, se
não nos esquecermos do próprio critério de verdade/realidade do sistema, a saber: é real o que
permanece, e é verdadeiro o que não muda. Lembremo-nos, para isso, das relações
estabelecidas entre verdade e imanência, mentira e aparência/transformação.
173
Somente dentro dessas premissas e critérios podemos compreender a inversão
produzida por Çaìkara na ordem da tríade sugerida pela Mäëòükya-upaniñad: o fato de que,
para Çaìkara, o estado de vigília, embora menos sutil, é indubitavelmente mais real que o
estado de sonho, que um camponês que adormece e sonha que é rei por uma noite, ao
acordar necessariamente retorna à condição de camponês, e a essa condição retornará todas as
manhãs, não importa com o que sonhe. A observação da maior permanência da realidade do
mundo da consciência em vigília sobre aquela do mundo dos sonhos prova seu maior grau de
realidade, que dentro dos valores estabelecidos no sistema, verdade (satya) é “o que é”
(sat), e o que é, permanece.
A realidade do plano de vigília é tão pungente que, ainda que “cancelada” pelo
indivíduo durante uma noite de sono profundo (lembremo-nos que o sono profundo, dos três
níveis relativos, é o mais próximo da “morada” do si-mesmo), ainda assim não permanecerá
“cancelada” ao despertar, justamente pelo fato de o sono profundo não ser experimentado
conscientemente como a vigília. Se o fosse, essa seria, segundo o Advaita, a experiência
derradeira necessária ao ser relativo para “lembrar-se” de sua condição de sujeito absoluto e
daí obter o “cancelamento” definitivo da “ilusão” ou efeito de veracidade e realidade do
mundo fenomênico. Mas, nesse caso, essa não seria uma experiência de sono profundo,
envolvida que é pela “escuridão” de avidyä, mas ao contrário uma experiência do sujeito
absoluto, a “luz” do si-mesmo.
d) a quarta parte do si-mesmo
Até agora acompanhamos uma tríade de experiências da consciência – vigília, sonho e
sono profundo –, que é na verdade um conjunto de níveis de realidade dentro dos domínios da
realidade relativa de mäyä. Examinemos agora a “quarta parte do si-mesmo” conforme
declarada pela Mäëòükya-upaniñad, bem como o comentário de Çaìkara.
Mäëòükya-upaniñad
{Trechos do comentário de Çaìkara introduzindo o próximo
verso:} A quarta parte precisa agora ser apresentada. [...] Já que
{turéya, a quarta parte do si-mesmo} é destituída de qualquer
característica que possibilite o uso de palavras, ela não é descritível
por palavras; e portanto busca-se descrevê-la apenas pela negação de
atributos.”
[Objeção:] “Nesse caso é um mero vazio.”
[Resposta:] “Não, pois uma ilusão irreal não pode subsistir sem
um substrato; pois a ilusão da prata, da cobra, do ser humano, da
miragem, etc. não poderiam ser imaginados como existentes à parte do
174
substrato da madrepérola, da corda, do tronco da árvore, do deserto,
etc.”
[Objeção:] “Nesse caso, como um pote, etc. que contém água,
etc. é denotado por palavras, assim também turéya [a quarta parte]
deveria ser designada por palavras {positivas}, e não por negações,
que é o substrato de todas as ilusões como präëa, etc.”
[Resposta:] “Não, porque a ilusão de präëa, etc. é irreal assim
como a prata, etc. o são com relação à madrepérola, etc. Pois uma
relação entre o real e o irreal não permite uma correta representação
verbal, que a própria relação é insubstancial. Diferentemente de
uma vaca, por exemplo, o si-mesmo, em sua própria realidade, não é
objeto de nenhuma outra forma de conhecimento, pois o si-mesmo
está livre de todos os adjuntos limitantes {upädhi}. Diferentemente de
uma vaca, etc., ele não pertence a nenhuma classe; isso porque, em
virtude de ser um-sem-segundo, ele está livre de todos os atributos
genéricos e específicos. E também não está imbuído de atividade,
como um fogão, etc., que é destituído de toda ação. E também não
está imbuído de nenhuma qualidade, como a cor azul, etc., porque é
livre de qualidades. Portanto ele torna impossível toda descrição
verbal.”
[Objeção:] “Nesse caso, [o si-mesmo] não serve a nenhum
propósito útil, assim como o chifre de uma lebre, etc.”
[Resposta:] “Não; porque quando turéya é percebido como o
si-mesmo, isso leva à cessação de todo esforço pelo não-si-mesmo,
assim como a ânsia pela prata cessa ao se reconhecer a madrepérola.
De fato, é impossível que existam tais defeitos como ignorância,
desejo, etc., após a percepção/realização de turéya como o si-mesmo.
Nem nenhuma razão para que turéya, o si-mesmo, não seja
conhecido, bem porque todas as Upaniñad levam a essa conclusão [...]
Assim esse si-mesmo que é a suprema realidade {päramärthika}, mas
que possui falsas aparências, foi mencionado como imbuído de quatro
partes. Sua forma irreal foi tratada, a qual consiste numa criação da
ignorância que é análoga à cobra sobreposta à corda, e que consiste de
três partes [...] Agora, no texto que inicia com näntaù prajïam, ‘não
é consciência interior’, a Upaniñad trata do supremo estado real, não-
causal, comparável à corda, etc., por meio da negação dos três estados
anteriores, comparáveis à cobra, etc.”
anäntaù prajïaà na bahiñ-prajïaà nobhayataù prajïaà na
prajïäna-ghanaà na prajïaà näprajïam / adåñtam avyavahäryam
agrähyam alakñaëam acintyam avyapadeçyam ekätma-pratyayasäraà
prapaïcopaçamaà cäntaà çivam advaitaà caturthaà manyante sa
ätmä sa vijïeyaù // 7 //
7 Não é consciência interior, não é consciência exterior,
não é consciência de ambos, nem uma massa de consciência, nem
inconsciência. Não é das relações empíricas {a-vyavahärya, “não
praticável, não associável, não-transitivo”, de vy-ava-HÅ, ter
intercurso, encontrar-se, comportar-se, relacionar-se”}, é
inapreensível {pelos sentidos ou pela mente}; não pode ser
inferido, é impensável, indescritível; sua única prova é o domínio
175
do si-mesmo; nele todo fenômeno cessa; é imutável, auspicioso
{çivam}, não-dual {advaitam}. Esse é o si-mesmo, esse deve ser
conhecido.
(Mäëòükya-upaniñad-bhäñya, 6-7 in GAMBHÉRÄNANDA, 2001, p.
197-200; in ÇÄSTRIËÄ, 2000, p.182-185)
A maioria das questões abordadas por Çaìkara nesse comentário introdutório ao verso
7 da Upaniñad são reiterações de questões que abordamos na primeira parte desse trabalho.
Temos aqui, por exemplo, a impossibilidade de a linguagem exprimir a natureza do Absoluto
e a preferência pela via negativa e pela construção dos termos neutros (“não é isso nem o
contrário disso”) para tratar da natureza intangível de Brahman. Podemos destacar também
uma premissa fundamental do raciocínio de Çaìkara no argumento “uma ilusão irreal o
pode subsistir sem um substrato [i.e., que seja real]”. Em última instância, essa é sua premissa
para afirmar a consciência-testemunha do si-mesmo, que é identificada à consciência do
próprio Absoluto e à existência (sat), como fundamento (substrato real) de tudo o que existe.
Finalmente temos a “radical descontinuidade” entre a realidade relativa, com sua
tríade vigília-sonho-sono profundo, e a realidade absoluta do si-mesmo, reiterada na
expressão “a Upaniñad trata do supremo estado real, não-causal, comparável à corda, etc., por
meio da negação dos três estados anteriores, comparáveis à cobra, etc.” E podemos de fato
constatar, por essa mesma expressão, que “descontinuidade” é uma outra forma de dizer que o
Advaita afirma o Um-sem-segundo explicando todo “segundo” como uma “semiose do erro
cognitivo” ou “ilusionismo”.
e) os três níveis de realidade
Com base no conteúdo da Mäëòükya-upaniñad teremos a sistematização, pelo Advaita,
de três níveis de realidade:
1 prätibhäsika-satta (“existência ilusória”) a consciência em sonho (ou em
alucinações), a qual possui como base unicamente um conjunto de memórias de percepções e
de experiências passadas; é percebida como real apenas por uma consciência relativa, num
momento específico;
2 vyävahärika-satta (“existência prática”) a consciência em vigília, a realidade
empírica, tal qual manifesta no universo fenomênico, e que constitui a base de todas as
relações, pensamentos e atividades dos seres relativos;
176
3 – päramärthika-satta (”existência relativa à mais elevada realidade”) – a consciência
não-dual do si-mesmo, além de toda linguagem, conforme vivenciada na condição de sujeito
absoluto e referida nas escrituras.
Esses níveis, embora hierarquicamente organizados conforme o grau crescente de
realidade que apresentam, podem também ser considerados, sob um determinado ponto de
vista, descontínuos entre si, no sentido de que o segundo nível cancela a realidade do
primeiro, e o terceiro cancela a realidade do segundo, sem que a realidade do nível
subseqüente possa jamais ser “cancelada” pela experiência do nível anterior. Percebemos
também que essa progressão no “cancelamento” dos níveis de realidade não é compreendida
pelo Advaita como uma “aquisição” de conhecimento, e sim como uma progressiva
“eliminação” dos adjuntos limitantes gerados pela “ignorância” e uma conseqüente
“revelação” progressiva da onisciência e plenitude do si-mesmo.
Em defesa do ponto de vista da descontinuidade entre os níveis de consciência, mesmo
entre aqueles do domínio relativo, aduzimos aqui uma observação de William Indich:
Abstraindo mais um passo nessa discussão acerca da distinção
feita pelo Advaita entre os níveis de consciência, fica claro que a
teoria da radical descontinuidade ontológica serve para distinguir a
visão hierárquica de realidade do Advaita de todos os outros sistemas
hierárquicos de pensamento. Pois as outras hierarquias repousam na
ordenação quantitativa de certas qualidades compartilhadas ou
comuns, enquanto a hierarquia de Çaìkara é baseada precisamente na
proposição de que nenhuma qualidade comum pode ser encontrada
por cujos termos as diferentes ordens possam ser quantificadas ou
relacionadas. (INDICH, 2000, p. 17)
Esse ponto de vista também pode ser questionado, ou, melhor dizendo, relativizado. É
verdade que o “cancelamento” de um nível de realidade pelo outro implica necessariamente
na negação da verdade das percepções dovel anterior. Não obstante,o é possível afirmar
que não haja nenhum substrato comum entre os dois níveis do plano relativo. Notamos, por
exemplo, que entre os traços atribuídos por Çaìkara à consciência em vigília e aqueles
atribuídos à consciência em sonho (portanto entre os níveis 1 e 2 de realidade enumerados
acima), um desses traços apresenta uma continuidade, a saber, a presença do desejo. Isso sem
contar a presença das percepções visuais, táteis, auditivas, etc., ainda que sob a forma de
construções mentais com base em reminiscências de experiências em vigília. Á parte a
presença continuada desses upädhi ou adjuntos limitantes entre os níveis 1 e 2, a qual
contradiz a proposição de Indich de que “nenhuma qualidade comum pode ser encontrada por
177
cujos termos as diferentes ordens possam ser quantificadas ou relacionadas”, a
descontinuidade permanece, de fato, como traço distintivo dessas hierarquias do Advaita, se
tomarmos a totalidade da experiência de um nível de realidade com relação ao outro e
aplicarmos o critério do “cancelamento”.
Vamos agora ao capítulo seguinte, onde acompanharemos mais de perto o diálogo
entre Advaita, Säàkhya e Bhagavad-gétä à luz das tríades que, segundo o Advaita, compõem a
manifestação de saguëa-Brahman.
178
2.2.3 – Saguëa-Brahman: as tríades da manifestação
Como vimos, segundo o Säàkhya, ao lado do princípio do ser (puruña) existe
também um princípio de manifestação fenomênica (prakåti ou pradhäna) não-inteligente e,
em sua condição de causa primordial do universo, eternamente imanifesto (avyakta), embora
potencialmente “gerador” de todos os fenômenos. Prakåti é definida como composta por três
propriedades fenomênicas indissociáveis ou guëa, as quais participam igualmente da
composição de todos os seus efeitos: sattva, rajas e tamas. A presença da terminologia e das
teorias do Säàkhya nos textos canônicos comentados por Çaìkara exigiu do pensador,
conseqüentemente, uma releitura desses princípios sob a óptica do Advaita.
Ao mesmo tempo, Çaìkara também tinha de dar conta do conteúdo da Bhagavad-gétä,
um texto que concilia as concepções de Brahman/ätman das Upaniñad com as classificações
do Säàkhya e as diversas práticas do Yoga – incluindo aí práticas devocionais e ritualísticas –,
além de uma série de injunções sociais e morais pertencentes aos valores da cultura, tudo isso
sob a voz de um Deus pessoal que as enuncia.
A fim de observar como ele logrou transformar esse conjunto heterogêneo de
elementos num sistema coerente e subserviente ao postulado central do “Um-sem-segundo”
escolhemos, para orientar os diversos tópicos deste capítulo, excertos de um tratado
independente (prakaraëa-grantha) do pensador, intitulado Viveka-cüòä-maëi, no qual em
poucos versos ele resume de forma sistemática suas “adaptações”. O texto inicialmente
apresentado nos servirá de guia básico de abordagem, e a cada estrofe acrescentaremos, no
decorrer da análise, excertos de comentários de Çaìkara a outros textos do prasthana-traya.
Verifiquemos inicialmente como Çaìkara “incorpora”, no Advaita, o postulado da
matriz fenomênica com seus três aspectos ou propriedades, os guëa, lado a lado com o
postulado do Brahman personificado:
Viveka-cüòä-maëi
avyaktanämné parameçaçaktir anädyavidyä triguëätmakä parä /
käryänumeyä sudhiyaiva mäyä yayä jagat-sarvabhidaà prasüyate //
108 A ignorância {avidyä} ou mäyä, imanifesta {avyakta},
é o poder do supremo Senhor {parameça-çakti}. Ela não tem
princípio, é formada pelos três aspectos fenomênicos {guëa} e é
superior aos efeitos. Deve ser inferida por uma inteligência clara
pelos seus efeitos, pois é por essa mäyä que todo o universo é
projetado.
sannäpyasannäpyubhayätmikä no bhinnäpy abhinnäpy ubhayätmikä
no/
179
saìgäpy anasaìgä hyubhayätmikä no mahäd bhütä ‘nirvacanéya-rüpä
// 109 //
109 Ela não é existente, nem não-existente, nem ambos;
nem a mesma, nem diferente, nem ambos; nem composta de
partes, nem indivisível, nem ambos; é magnífica e indizível.
çuddhädvaya brahmavibodhanäçyä sarpa-bhramo rajju-vivekato
yathä /
rajastamaù sattvamiti prasiddhä guëästadéyäù prathitaiù svakäryaiù//
110 Ela pode ser destruída pela percepção do puro
Brahman, um-sem-segundo, assim como a idéia errônea da cobra
é removida pela discriminação da corda. Ela possui três guëa,
sattva, rajas e tamas, nomeados pelos seus efeitos.
vikñepaçakté rajasaù kriyätmikä yataù pravåttiù prasåtä puräëé /
rägädayo ‘syäù prabhavanti nityaà duùkhädayo ye manaso vikäräù //
111 Rajas tem o poder de projeção {vikñepa-çakti}, é da
natureza da atividade, donde o primeiro fluxo de atividade
emanou. Produções mentais como apego e tristeza dele se
originam.
eñä ‘våtirnäma tamoguëasya çaktiryayä vastvavabhäsato ‘nyathä /
saiñä nidänaà puruñasya saàsåtervikñepaçakteù pravaëasya hetuù //
113 Tamas tem o poder de ocultamento {ävåti} que faz as
coisas parecerem distintas do que são. É a causa das repetidas
transmigrações dos homens e inicia a ação do poder de projeção.
(Viveka-cüòä-maëi, 108-111 e 113, in MÄDHAVÄNANDA, 2000, p.
39-41)
a) Éçvara
avyaktanämné parameçaçaktir anädyavidyä triguëätmakä parä /
käryänumeyä sudhiyaiva mäyä yayä jagat-sarvabhidaà prasüyate //
108 A ignorância {avidyä} ou mäyä, imanifesta {avyakta},
é o poder do supremo Senhor {parameça-çakti}. Ela não tem
princípio, é formada pelos três aspectos fenomênicos {guëa} e é
superior aos efeitos. Deve ser inferida por uma inteligência clara
pelos seus efeitos, pois é por essa mäyä que todo o universo é
projetado.
Nessa estrofe do Viveka-cüòä-maëi notamos uma diferença crucial entre a matriz
fenomênica descrita por Çaìkara e aquela proposta pelo Säàkhya: a presença, no Advaita, de
um ser divino “responsável” pela sua existência, o “supremo Senhor”, parameça (parama-
Éça), também eventualmente referido no Advaita pelo mesmo termo escolhido pelo Yoga-
darçana (escola na qual ele é considerado o “vigésimo-sexto tattva ou princípio”): Éçvara, o
Senhor.
Na escola do Säàkhya, como já vimos, a existência de uma divindade à parte do
número infinito de princípios do ser é negada. Já na escola do Yoga-darçana, Éçvara é aceito,
180
porém sua definição, conforme o tratado Yoga-sütra (baseado nos pressupostos do Säàkhya),
é assim elaborada:
kleçakarmavipäkäçayair aparämåñöaù puruñaviçeña éçvaraù
cc
1.24
cc
1.24 - O Senhor é um ser incondicionado diferente dos outros, por
ser intocado pelo depósito das aflições, das ações e da maturação
de seus frutos. (in GULMINI, 2001, p. 156)
Ou seja, esse Senhor existe à parte, eternamente separado de todos os outros seres
incondicionados, embora lhes seja idêntico em natureza. Ele pode ajudar o yogin que recorrer
ao seu auxílio por meio da meditação adequada, e ele o fará em virtude de uma espécie de
“afinidade de natureza”, permanecendo, não obstante, eternamente distinto mesmo dos outros
seres “libertos” da manifestação e imersos em si-mesmos.
Por outro lado, Deus ou o “Senhor” é considerado no Advaita como um sinônimo do
próprio saguëa-Brahman. Vimos que, em seu aspecto de Absoluto indizível, Brahman é
também referido como nirguëa-Brahman ou “Absoluto sem qualificação, sem atributo”, e
esse nirguëa-Brahman é preferencialmente expresso por meio da definição de um objeto
neutro: “não é isso, não é o contrário disso”. Esse é de fato o Absoluto sob o ponto de vista de
si mesmo. Não obstante, o Absoluto conforme percebido ou concebido sob a óptica do
relativo ou manifesto ou seja, uma totalidade expressa como saguëa-Brahman ou Brahman
“qualificado” é, para o Advaita, manifesto necessariamente como uma tríade: Éçvara, jagat
e jéva – Deus, o universo e as criaturas (ou seres relativos).
A tríade é tida como indissociável: onde existe manifesto um Deus,
necessariamente um universo e criaturas; onde existe um universo, necessariamente um
Deus e criaturas; onde existem criaturas, necessariamente um Deus e um universo. A
necessidade de coexistência dos três provém da relação que tem forçosamente de ser
estabelecida no plano da aparência ou manifestação, para que a manifestação seja
reconhecida como existente. É interessante notar que, além do pressuposto semiótico da
relação bipolar ou relação sujeito-objeto característica de qualquer conhecimento que
possamos conceber (ou seja, grosso modo, universo objetivo e criaturas subjetivas), o Advaita
propõe a inter-relação de uma tríade fundamental nesse mesmo universo da manifestação. E a
tríade proposta, já que estamos num sistema que procura a todo custo a afirmação da unidade,
é também concebida como uma unidade, o que vale dizer que, para o Advaita, Deus é a
essência do universo e é a essência das criaturas (ou seja, ele é o ätman/Brahman manifesto),
181
e todas as construções recíprocas entre os três são verdadeiras. A unidade assim percebida
como tríade é saguëa-Brahman.
Como já vimos, a totalidade da manifestação é denominada mäyä, ou seja, sob o ponto
de vista do Absoluto não-qualificado ou nirguëa-Brahman, é apenas uma “mágica” ou
“ilusão”. Nessa tríade manifesta que é mäyä, temos porém um elemento que predomina sobre
os outros dois: assim o universo aparente e a aparente multiplicidade de criaturas são na
verdade concebidos como uma projeção “natural” do “poder” (çakti) desse Deus, assim como
o calor e o poder de queimar são projeções “naturais” do fogo. Embora fogo, calor e ardor
(poder de queimar) formem uma tríade inseparável, o fogo é o elemento central, ao passo que
o calor e o poder de queimar são suas “emanações”, somente percebidas como tal pelo que
está fora do ser do fogo. Assim também o “Senhor” apenas, Éçvara, é saguëa-Brahman: jagat
(o universo) e os jéva (seres relativos) são apenas suas projeções, “emanações” de seu poder
que, sob a óptica da “ignorância”, são percebidos como “aparências” multiformes. Por isso
afirma Çaìkara que “A ignorância ou mäyä, imanifesta, é o poder do supremo Senhor [...] é
por essa mäyä que todo o universo é projetado”.
Temos então que Çaìkara assimila parcialmente o conceito de “matriz fenomênica”
(prakåti) oriundo do Säàkhya: naquilo em que o assimila, ele o identifica com avidyä-mäyä, e
dessa forma atribui a mäyä a característica de ser constituída pelos três aspectos fenomênicos
de sattva, rajas e tamas e de precipitar os fenômenos na mesma ordem em que são descritos
pelo Säàkhya-yoga-darçana. Nesse sentido, podemos dizer que Çaìkara toma o termo prakåti
como um sinônimo de avidyä-mäyä, e, na direção oposta, “enriquece” seu postulado acerca da
“mágica” do universo e de suas criaturas (“ignorâncias” com relação ao si-mesmo) com
detalhes de sua manifestação.
Não obstante, no Advaita não é mais a “conjunção” entre essa potência geradora de
fenômenos e o princípio do ser que se torna a causa da manifestação do universo e das
criaturas: em primeiro lugar, porque não mais dois princípios ontológicos para que se
estabeleça uma relação de conjunção entre eles, já que tudo é Brahman, existência” (sat); e
em segundo lugar, porque a manifestação passa a ser apenas uma “emanação natural” do
grande Absoluto, Brahman, que, diante do espetáculo da própria “emanação”, torna-se, por
assim dizer, um Deus supremo (saguëa-Brahman, Éçvara) diante de um universo que não
passa de “calor e ardor” de seu próprio poder (çakti). Tomando as imagens do ímã com as
partículas (Säàkhya) e do fogo com seu calor e ardor (Advaita), a diferença entre as
concepções de “surgimento” do universo fica muito clara: em ambas, ao centro, o princípio do
ser; mas na primeira, ao seu redor, uma dança que lhe é eternamente estranha; na segunda,
182
uma projeção que por esse centro é gerada, que lhe é indistinta, e que eternamente lhe
pertence.
Com essas concepções, Çaìkara “passeia” confortavelmente por estes versos da
Bhagavad-gétä:
idaà çaréraà kaunteya kñetramityabhidhéyate /
etadyo vetti taà prähuù kñetrajïa iti tadvidaù // 13.1 //
13.1 Ó filho de Kun, esse corpo é referido como o
“campo” {kñetra}. Os que sabem isso denominam aquele que é
consciente dele como o “conhecedor do campo” {kñetrajïa}.
kñetrajïaà cäpi mäà viddhi sarvakñetreñu bhärata /
kñetrakñetrajïayorjïänaà yattajjïänaà mataà mama // 13.2 //
13.2 E, Ó Bhärata, conheça-Me como o conhecedor do
campo em todos os campos. Em Minha opinião, o conhecimento é
esse conhecimento do campo e do conhecedor do campo.
(Bhagavad-gétä, 13.1-2, in GAMBHÉRÄNANDA, 2000a, p. 495-496 )
E comenta:
Dois aspectos do Senhor {Éçvara} foram rapidamente
mencionados no sétimo capítulo {da Bhagavad-gétä} aquele que
consiste em três aspectos fenomênicos {guëa}, que possui oito partes
e é inferior, que conduz à transmigração, e o outro, o mais elevado,
que se torna o ser relativo descrito como o conhecedor do campo
{jévabhütä kñetrajïa lakñaëä}, e que é essencialmente divino. E por
meio desses dois aspectos o Senhor se torna a causa da criação,
continuidade e dissolução do universo.
(Bhagavad-gétä-bhäñya, 13, introd., in ibid. p. 494;
in GOYANDAKÄ, s/d, p. 298)
A idéia [do verso] é: conheça o conhecedor do campo – que se
tornou diversificado pelos adjuntos limitantes {upädhi} na forma de
inúmeros campos que vão de Brahma {o deus da criação, nascido do
umbigo de Viñëu} a uma folha de relva – como sendo livre das
distinções resultantes de todos os adjuntos limitantes, e muito além do
alcance de palavras e idéias tais como existência, não-existência, etc.
(Bhagavad-gétä-bhäñya, 13.2, in GAMBHÉRÄNANDA, 2000a, p.
496; in GOYANDAKÄ, s/d, p. 299)
E mais à frente, observa que “[...] o campo e o conhecedor do campo tornam-se a
causa do universo enquanto permanecem subservientes ao Senhor, mas não de forma
independente como é mantido pela escola do Säàkhya.” (Bhagavad-gétä-bhäñya, 14, introd.,
in GAMBHÉRÄNANDA, 2000a, p. 567; in GOYANDAKÄ, s/d, p. 350)
183
Em síntese, temos então que saguëa-Brahman ou Brahman “qualificado”
(“manifesto”) é uma tríade em que uma das partes, Éçvara, projeta ou emana de si as outras
duas, as quais por sua vez constituem avidyä-mäyä, ou ainda prakåti. Essas outras duas partes
são o universo fenomênico (jagat) e os seres relativos nele “imersos” (jéva). A primeira dessas
duas partes, ou seja, o universo fenomênico, é o que Çaìkara define, no primeiro excerto de
seus comentários acima, como “o aspecto inferior do Senhor”, enquanto a segunda parte ou
“aspecto superior” é constituída pelos seres relativos (jéva). Essa é uma informação
importante: embora o Senhor, saguëa-Brahman, seja onipenetrante na manifestação, aquilo
que em sua manifestação é considerado um aspecto superior ou “essencialmente divino” é a
totalidade dos sujeitos, porque neles se reflete (no intelecto ou princípio primeiro), como
numa miríade de espelhos, a luz do único si-mesmo, o que os torna em essência “um com o
Senhor”.
Em síntese, portnato, temos o seguinte diagrama:
Brahman
nirguëa-Brahman saguëa-Brahman
(Éçvara)
avidyä-mäya (ou prakåti)
jagat jéva
(universo) (seres relativos)
b) Prakåti
Vimos até agora a primeira tríade que constitui a manifestação de Brahman ou
saguëa-Brahman em sua totalidade. Descobrimos que essa tríade primeira, embora
composta de três elementos inter-relacionados e indissociáveis, prova ser, numa análise mais
acurada, constituída de uma espécie de “hierarquia interna”, na qual o elemento dominante, o
184
Senhor, é quem “emana” ou “projeta de si” os outros dois elementos, os quais se tornam,
justamente por isso, sua çakti ou “projeção/manifestação de seu poder”. Vamos agora
acompanhar uma segunda tríade estabelecida como secundária ou subsidiária relativamente à
primeira.
De fato, a segunda tríade vai tratar apenas de propriedades dos dois elementos
projetados pelo Senhor, o universo e os seres relativos, e não de propriedades do Senhor em
si, pois o Senhor é, em última instância, o próprio Absoluto Brahman, sac-cid-änanda, e em
si não tem propriedades. (Lembremo-nos sempre de que, se Brahman aparece como o
Senhor, saguëa-Brahman, como aquele que projeta e sustém todos os fenômenos e todos os
múltiplos seres fenomênicos, ele assim aparece apenas sob o ponto de vista do universo e dos
múltiplos seres, que são sua aparência; sob seu próprio ponto de vista, o universo e os seres
relativos são ilusões, como os truques o são para o mágico.) Assim, ao Senhor, que é
onisciente e onipenetrante em sua manifestação, não pode ser atribuída nenhuma “ignorância”
(avidyä); ignorância e ilusão, avidyä-mäyä, são “matérias-primas” apenas das projeções de
saguëa-Brahman, ou seja, do universo e das criaturas.
A segunda tríade revela-se, portanto, justamente como a tríade de aspectos
fenomênicos ou guëa de prakåti, exatamente como definidos pelo Säàkhya. Ou seja: avidyä-
mäyä e sua manifestação universal são o mesmo que prakåti ou “matriz fenomênica”, porém
com ressalvas.
Viveka-cüòä-maëi
sannäpyasannäpyubhayätmikä no bhinnäpyabhinnäpyubhayätmikä
no/
saìgäpyanasaìgä hyubhayätmikä no mahädbhütä ‘nirvacanéyarüpä //
109 Ela não é existente, nem não-existente, nem ambos;
nem a mesma, nem diferente, nem ambos; nem composta de
partes, nem indivisível, nem ambos; é magnífica e indizível.
çuddhädvayabrahmavibodhanäçyä sarpabhramo rajjuvivekato yathä /
rajastamaù sattvamiti prasiddhä guëästadéyäù prathitaiù svakäryaiù//
110 Ela pode ser destruída pela percepção do puro
Brahman, um-sem-segundo, assim como a idéia errônea da cobra
é removida pela discriminação da corda. Ela possui três guëa,
sattva, rajas e tamas, nomeados pelos seus efeitos.
As estrofes tratam de descrever, na medida do possível, a natureza de mäyä. E sua
natureza última, assim como a de Brahman, não pode ser descrita em palavras. Ou seja, sob o
ponto de vista de sua natureza intrínseca, é um objeto neutro tão indescritível quanto o
próprio Brahman. As mesmas descrições pela via negativa, características das Upaniñad, e
185
que são atribuídas a Brahman, aplicam-se também à sua “emanação” ou manifestação, que é
em verdade a continuidade de sua essência inescrutável: neti, neti! “Não é isso, não é isso!”
Se, por um lado, tentar verbalizar Brahman é inútil devido ao fato de que Brahman,
em sua condição de sujeito absoluto, não é uma entidade “semiótica” (não é um sujeito com
relação ou por oposição a um objeto, nem um objeto por relação a um sujeito; não é definido
com relação a algo, não é passível de ser objetivável), assim também mäyä, fundamentada no
Absoluto, porém inauguradora do relativo, não pode ser descrita.
Além disso, uma outra questão semiótica fundamental que participa da
complexidade de mäyä: o fato de que Mäyä, o “negativo” da verdade que é Brahman, como a
sombra o é da luz, é portanto uma mentira.
Como descrever a natureza essencial de uma mentira, de uma ilusão, de uma
aparência desvinculada de essência/imanência? Uma miragem existe ou não existe? Isso é
relativo: ela existe sob o ponto de vista daquele que a vê, somente enquanto ele a vê; mas
quando ele percebe que é uma miragem, ela não não existe mais como real, como também
imediatamente prova que nunca existiu. A estrofe 109 do Viveka-cüòä-maëi é uma descrição
de mäyä como “mentira” ou “ilusão”, vista sob a perspectiva de aparokñänubhüti, a
“percepção imediata”, “não-mediada”, que produz o “cancelamento” da realidade relativa e o
“despertar” da percepção do si-mesmo. Essa é a razão das construções “neutras” empregadas
para descrevê-la, uma “ilusão” cuja grandeza cósmica traduz-se finalmente na conclusão:
“magnífica, indizível”.
A estrofe 110 apenas explica, por meio do “velho” exemplo de “erro cognitivo” da
corda tomada por serpente, o processo de “cancelamento” da realidade de mäyä pela
experiência da realidade de Brahman (ou seja, a passagem do nível de realidade denominado
vyävahärika-satta para o vel päramärthika-satta): “Ela pode ser destruída pela percepção
do puro Brahman, um-sem-segundo.”
No entanto, a estrofe conclui com uma proposição positiva que na verdade introduz o
outro lado da descrição de mäyä, ou seja, mäyä descrita objetivamente (como “entidade”) sob
a perspectiva em que ela é real, ou seja, no plano manifesto que inaugura, em vyävahärika-
satta. Sob essa perspectiva a perspectiva da manifestação de mäyä –, ela pode ser descrita,
sim, com base na afirmação de existência de seus efeitos, e nas partes de que são compostos.
No âmbito dos seres relativos, a descrição “positiva” dos atributos de mäyä principia com:
“Ela possui três guëa, sattva, rajas e tamas, nomeados pelos seus efeitos.”
E a descrição prossegue nas estrofes seguintes:
186
Viveka-cüòä-maëi
vikñepaçakté rajasaù kriyätmikä yataù pravåttiù prasåtä puräëé /
rägädayo ‘syäù prabhavanti nityaà duùkhädayo ye manaso vikäräù //
111 Rajas tem o poder de projeção {vikñepa-çakti}, é da
natureza da atividade, donde o primeiro fluxo de atividade
emanou. Produções mentais como apego e tristeza dele se
originam.
eñä ‘våtirnäma tamoguëasya çaktiryayä vastvavabhäsato ‘nyathä /
saiñä nidänaà puruñasya saàsåtervikñepaçakteù pravaëasya hetuù //
113 Tamas tem o poder de ocultamento {ävåti} que faz as
coisas parecerem distintas do que são. É a causa das repetidas
transmigrações dos homens e inicia a ação do poder de projeção.
Aqui Çaìkara parece adotar para descrever seu conceito de a mesma descrição
dada pelo Säàkhya ao seu conceito de prakåti. Porém, a verdade é que, por detrás da
descrição, há várias divergências e “ressignificações”.
Como vimos, a matriz fenomênica do Säàkhya era verdadeiramente existente, real,
bem como seus efeitos (os fenômenos), porém não-inteligente – muito embora fosse capaz de
criar um “espelho fenomênico psíquico”, buddhi, por meio do qual o princípio do ser, a
verdadeira consciência-testemunha, aparentava ser o agente ou paciente das transformações
dos fenômenos. Porém, o problema inaugurado no Advaita é de outra ordem: não se pode
afirmar que mäyä seja não-inteligente, assim como não se pode afirmar que seja inteligente,
simplesmente porque mäyä, numa perspectiva completamente diferente daquela do Säàkhya,
simplesmente não é, não é real. Além do mais, mäyä, a matéria-prima dos fenômenos, é
simplesmente uma “projeção” do si-mesmo absoluto e inteligente, e não um princípio com
existência independente.
Em segundo lugar, e em decorrência disso, os efeitos ou produções de mäyä, mesmo
que sejam concebidos na mesma ordem de manifestação do Säàkhya e o são –, não são
“superados” da mesma forma que o foram no Säàkhya-yoga-darçana. Em outras palavras, a
liberação das transmigrações não se produz da mesma forma. Isso porque, segundo aquelas
escolas, todo o “instrumento interno” (antaù-karaëa) ou “aparato psíquico” do indivíduo deve
ser gradativamente “silenciado” pelos processos psicofísicos e meditativos do Yoga, e as
sementes das conseqüências de ações passadas ainda não “germinadas” (devolvidas sob a
forma de conseqüências na vida presente do indivíduo) devem ser “queimadas” por reiteradas
experiências de samädhi, para que o indivíduo alcance a liberação. Já no Advaita, tudo o que é
187
necessário é uma “percepção imediata” de que “Eu sou Brahman”, um “despertar” do sonho
ou ilusão de mäyä. Quando isso acontece, o “cancelamento” de mäyä como realidade é
imediato, bem como todos os seus efeitos de causalidade sobre o ser relativo. Enquanto isso
não acontece, a existência dos jéva em Mäyä é necessariamente condicionada e delimitada
pela ão dos três aspectos fenomênicos, dentro do palco do tempo, do espaço e da
causalidade – o palco de avidyä-mäyä.
Feitas essas ressalvas, o fato é que a tríade de aspectos fenomênicos ou guëa
assimilados do Säàkhya por Çaìkara acaba por auxiliá-lo em sua descrição dos “mistérios de
mäyä. Assim torna-se fácil, por exemplo, explicar o “véu” de “ignorância” (avid) de mäyä:
trata-se da manifestação do guëa tamas, que confere a mäyä o poder de “ocultamento” (ävåti)
do conhecimento (afinal, lembrando-nos da primeira parte deste trabalho: tudo é Brahman, e
Brahman é conhecimento). Quando analisamos a questão do sono profundo, também falamos
em “totalidade de avidyä”, que então se manifestaria como a experiência de “inconsciência”.
Se não fosse por ävåti, o “ocultamento” do guëa tamas, o sono profundo corresponderia à
experiência da plenitude do si-mesmo. Assim como o é, porém, consiste apenas no si-mesmo
“repousando” do esforço das ações e desejos relativos em “sua morada”, porém “repousando”
sobre o “travesseiro” da plenitude da “ignorância” de si-mesmo.
Ao lado de ävåti é apresentado o “poder de projeção” de mäyä ou vikñepa-çakti, tido
como manifestação do guëa rajas (“agitação, movimento”), e por meio do qual o universo se
“desdobra” em fenômenos e permanece em constante mutação, na mesma ordem de
desdobramentos proposta pelo Säàkhya. Nesse ponto, o Advaita assimila completamente o
quadro do Säàkhya, como mostram estas outras estrofes do Viveka-cüòä-maëi:
Viveka-cüòä-maëi
buddhéndriyäëi çravaëaà tvagakñi ghräëaà ca jihvä
viñayävabodhanät /
cäkpäëipädä gudamapyupasthaù karmendhiyäëi pravaëena karmasu
92 Ouvidos, pele, olhos, nariz e língua são faculdades de
conhecimento, pois auxiliam na cognição de objetos; os órgãos
vocais, mãos, pés, etc. são faculdades de ação, devido à sua
tendência à atividade.
nigadyate ‘ntaùkaraëaà manodhérahaàkåtiç-cittam iti svavåttibhiù /
manastu saàkalpa-vikalpanädibhir buddhiù
padärthädhyavasäya-dharmataù // 93 //
aträbhimänädahamityahaàkåtiù / svärthänusadhänaguëena
cittam // 94
93-94 O instrumento interno é denominado manas,
buddhi, ahaàkåti {=ahaàkära} e citta, conforme suas funções
respectivas: manas pela deliberação; buddhi pela propriedade de
188
determinar a verdade dos objetos; ahaàkåti por sua identificação
com o corpo e citta por se lembrar dos objetos de seu interesse.
vägädi païca çravaëädi païca präëädi païcäbhramukhäni païca /
buddhyädyavidyäpi ca kämakarmaëé puryañöak sükñma-çaréram
ähuù //
96 O grupo de cinco faculdades de ação tais como a fala,
o grupo de cinco faculdades de conhecimento tais como o ouvido,
o grupo de cinco präëa, o grupo de cinco elementos, juntamente
com buddhi e o restante {citta, manas e ahaàkära}, além da
ignorância, do desejo e da ação: essas oito “cidades” totalizam o
que se denomina “corpo sutil”.
(Viveka-cüòä-maëi, 92-94 e 96, in MÄDHAVÄNANDA, 2000, p. 33-
35)
Como podemos observar, temos no Advaita a exata ordem de manifestação e
seqüência de princípios do Säàkhya, acrescidos ao final de “ignorância, desejo e ação”, os
quais também não são novidade para aquela escola nem para o Yoga, que são os
protagonistas das tendências de comportamento e ação de cada ser relativo, e com isso
determinam a transmigração do corpo sutil.
Em outras palavras: a partir da manifestação de prakåti/mäyä, a “matriz fenomênica”
que é o “poder” (çakti) do Senhor (compreendida sob o ponto de vista de sua própria realidade
intrínseca, “não-cancelada”), tudo se no Advaita como é descrito pela maioria dos outros
sistemas ortodoxos da tradição sânscrita. A diferença é que, ao contrário dos demais sistemas,
com a afirmação de que toda manifestação é ontologicamente “irreal”, a “história” de cada ser
relativo “transmigrante” pelos universos que nascem e morrem está fadada a ser reduzida,
quando chegar ele ao “despertar” no si-mesmo, a um mero sonho que nunca aconteceu:
na nirodho na cotpattirna baddho na ca sädhakaù /
na mumukñurna vai mukta itieñä paramärthatä // 574 //
574 Não existe morte nem nascimento, nenhum
aprisionado {pela causalidade} e nenhum discípulo; nenhum
desejoso de liberação, nenhum liberado. Essa é a verdade
suprema. (ibid., p. 213)
189
2.3 – AÇÃO E INAÇÃO: A INTEGRAÇÃO FINAL
Com o advento da “cisão” do Um em dois e em três, assistimos a um processo
crescente de integração, por parte do Advaita, de uma série de outras descrições de mundo
características da cultura sânscrita até a época de Çaìkara. Dessa forma, assimilações
aparentemente impossíveis para um sistema monista centrado num conceito de Absoluto
neutro, como por exemplo a afirmação de um Deus pessoal, foram concretizadas graças ao
gênio argumentativo e lógico de Çaìkara. Neste capítulo, acompanharemos um último passo
integrador de importância fundamental para a aceitação do Advaita no seio da cultura indiana:
a inclusão das múltiplas atividades ritualísticas, devocionais e sociais dos membros da cultura
da época como passos do processo “evolutivo” que, segundo o Advaita, culmina na revelação
do si-mesmo.
Novamente, sob o ponto de vista da lógica fundamental do sistema, a dificuldade está
justamente na descontinuidade e nas oposições irreconciliáveis existentes entre a realidade
absoluta e a relativa. De fato, à exceção do próprio princípio do ser, base fundamental
(adhiñöhäna) de toda e qualquer Existência (sat), não há nenhum outro elemento pertencente à
“composição” do ser relativo o homem no mundo que continue existindo no si-mesmo
absoluto. Ao contrário: somente por meio de uma poderosa e e atemporal “ilusão”, uma
percepção que existe em aparência, é possível que exista uma identificação (sob a forma
de sucessivas sobreposições de adjuntos limitantes) entre o sujeito (o si-mesmo absoluto) e o
objeto (o sujeito relativo, fenomênico, o que se sustenta como “existente” por meio de
relações).
Como os dois níveis de realidade são totalmente descontínuos, a primeira conclusão a
que se pode chegar é que, à exceção do treinamento ascético, nenhum outro tipo de ação no
mundo fenomênico pode ajudar efetivamente um homem a “des-cobrir-se” (“remover sua
ignorância”) como o si-mesmo Absoluto. Diante de uma conclusão como essa, qual é o
efetivo valor da devoção religiosa manifestada, por exemplo, nos ritos e nas preces? Qual é o
sentido em se prosseguir cumprindo deveres familiares, sociais e éticos?
Acompanhemos os passos da argumentação de Çaìkara sobre esse tema, sempre
dentro de seu processo peculiar de refutação integração, iniciando nossa análise com este
trecho de um debate presente em seu comentário ao Brahma-sütra:
“[...] não é possível que seja inerente ao ätman a condição de
agente, pois isso levaria a uma negação da liberação. Se a condição de
190
agente fosse a natureza do si-mesmo, não seria possível libertar-se
dela, assim como o fogo não pode se livrar do calor. Além disso, para
quem não se libertou da condição de agente, não pode haver alcance
do mais alto propósito humano {a liberação}, pois a condição de
agente é um tipo de miséria. [...]
[Objeção:] “A liberação pode ser alcançada simplesmente pelo
poder das injunções védicas {os ritos para se alcançar encarnações em
mundos superiores, etc.}.
[Resposta:] “Não, já que qualquer coisa que possa ser
adquirida pela prática é impermanente. Além disso, a liberação foi
estabelecida a partir do fato de que o si-mesmo foi declarado {nas
Upanisad} como eternamente puro, iluminado e livre. Tal declaração
do si-mesmo não pode ser logicamente justificada se a condição de
agente lhe for natural. Assim a condição de agente no si-mesmo surge
da sobreposição de atributos dos adjuntos limitantes; ela não é inata.
[...] Não se deve crer que a condição de agente é natural ao si-mesmo,
como o calor ao fogo. Ao contrário, vê-se no mundo que um
carpinteiro se sente infeliz enquanto trabalha como um agente com
suas ferramentas, e esse mesmo homem fica feliz quando chega em
sua casa deixando para trás as ferramentas [...] Assim também o si-
mesmo, em associação com a dualidade produzida pela ignorância,
torna-se um agente e é infeliz durante os estados de vigília e sonho;
mas quando, para se libertar da fadiga, esse ser penetra em seu próprio
si-mesmo no estado de sono profundo, e assim se liberta do agregado
de corpo e sentidos, ele não é mais um agente, e é feliz. Assim
também no estado de liberação, quando a escuridão da ignorância é
destruída com a luz do conhecimento, na condição de absoluto si-
mesmo, o ser alcança a felicidade.”
(Brahma-sütra-bhäñya, 2.3.40, in GAMBHÉRÄNANDA,
2000b, p. 498-500; in GRETIL, 2006, Adhyäya 2, p.109-111)
No primeiro parágrafo desse excerto já encontramos um argumento de difícil refutação
para a questão da existência de uma condição de agente inerente ao princípio do ser: “Se a
condição de agente fosse a natureza do si-mesmo, não seria possível libertar-se dela, assim
como o fogo não pode se livrar do calor.” De fato, num sistema norteado por categorias
lógicas, qualquer caracterização que possa ser atribuída ao princípio ontológico, por
conseqüência se estenderá de forma irrefutável e inextiguível a tudo que esteja sob a égide da
Existência (nos domínios de sat, de tudo “o que é”). Mesmo a condição de ação e reação
caracteristicamente pertencente ao universo relativo não pode ser imputada à base eterna de
existência do universo, nirguëa-Brahman, pois a dinâmica da ação e reação se opõe ao que é
definido como imutável. Até mesmo a aceitação e inclusão, no sistema, de um Deus, de uma
personificação do Absoluto o qual, por ser a manifestação da natureza do Absoluto que é
Brahman, não pode estar verdadeiramente envolvido com as ações e reações da criação”
191
é possível por meio de um operador da transição entre os níveis relativo e Absoluto
definido como “erro, ilusão, ignorância” – porque somente a semiose do erro e da ilusão pode
com sucesso produzir uma inversão logicamente compreensível e aceitável das percepções, e
com isso acarretar a aceitação de um sistema que postula duas realidades distintas e
descontínuas e ao mesmo tempo postula que em essência elas são uma só.
Assim, mesmo o Deus pessoal do Advaita não conserva os traços de governante, juiz e
autor (ou intercessor) dos inúmeros percursos dos seres inseridos em sua “ilusão” de espaço,
tempo e causalidade, exceto para conduzi-los, por compaixão, à lembrança de sua própria
condição de onisciência e liberdade, que pode despertá-los do “pesadelo” de seu sofrimento
já que, nessa condição, a condição do si-mesmo, esse Brahman personificado e todo e
qualquer ser são um e o mesmo. Ou seja, esse Senhor do Advaita não é um agente direto de
sua “Criação”, não a determinou de antemão e em detalhes, porque esse Senhor é em
realidade Brahman, um sujeito Absoluto, e como tal, a princípio, não tem desejos a realizar, a
começar pelo desejo de agir.
O palco do tempo e do espaço e as regras da causalidade que regem os papéis dos
seres relativos não são portanto resultados diretos de “ações” deliberadas diretamente por
saguëa-Brahman, o Senhor (Éçvara), e sim efeitos de uma “emanação espontânea” do
princípio do ser mäyä , a qual, embora irreal sob o ponto de vista do Absoluto (do si-
mesmo), parece ser um conjunto de leis perfeitas que regem os fenômenos sob o ponto de
vista dos seres fenomênicos que “magicamente” existem sob o véu da ignorância do si-mesmo
que, em verdade, nunca deixarão de ser.
É interessante notar que, ao longo dos argumentos de Çaìkara em seus escritos, a
causa da “Criação” não é atribuída a uma “matriz fenomênica” não-inteligente, como no caso
do Säàkhya, e nem a um Deus criador com vontade própria. Ao contrário, a “causa” do
universo é a própria “falha cognitiva”, avidyä-mäyä, que, “no princípio do tempo”, causou a
primeira sobreposição, adhyäsa ou seja, a primeira “identificação”, ou “apropriação”, por
parte do princípio do ser, de algum objeto “projetado” no espetáculo:
[...] Pois esse universo, que se acredita ser um produto de
Brahman, é visto como diferente, em natureza, de Brahman, sendo
não-inteligente e impuro; por outro lado, Brahman é declarado nas
Upaniñad como diferente em natureza do universo, já que é consciente
e absoluto. E não é uma constatação da experiência que coisas
diferentes em natureza possam ser relacionadas como causa material e
efeito. Pois produções como um colar de ouro, etc., não podem ter
barro como sua causa material, nem podem os pratos de barro ter ouro
192
como sua matéria-prima. Na verdade, as coisas de barro são feitas de
barro, e as coisas de ouro são feitas de ouro. Da mesma forma esse
universo não-consciente, cheio de alegria, tristeza e desânimo como
é tem de ser o produto de algo que é não-consciente, cheio de
alegria, tristeza e desânimo. Mas não pode ser o produto de Brahman,
que é diferente em natureza.” (Brahma-sütra-bhäñya, 2.1.4, in
GAMBHÉRÄNANDA, 2000b, p. 308-309; in GRETIL, 2006,
Adhyäya 2, p.7-8)
“Alegria, tristeza, desânimo”: esses “efeitos psíquicos” representam as
predominâncias, respectivamente, dos guëa sattva, rajas e tamas. Lembremo-nos que, para o
Advaita, a “substância” das transformações causais do universo é triguëätmika-prakåti, a
“matriz fenomênica constituída de três aspectos ou guëa”. Sua dinâmica é a mesma descrita
pelo sistema do àkhya com a diferença de que, para o Advaita, triguëätmika-prakåti é
apenas um sinônimo de mäyä, ou seja, é uma “ilusão”, sem realidade intrínseca. Essa é a
causa do universo.
Em oposição à causa do unverso, e portanto ao próprio universo, o si-mesmo é inativo.
Retomando a primeira passagem que reproduzimos neste capítulo, verificamos que Çaìkara
utiliza o argumento do estado de sono profundo (recorrente nos seres relativos) como um
indicador da natureza inativa e plenamente satisfeita do si-mesmo: “[...] o si-mesmo, em
associação com a dualidade produzida pela ignorância, torna-se um agente e é infeliz durante
os estados de vigília e sonho; mas quando, para se libertar da fadiga, esse ser penetra em seu
próprio si-mesmo no estado de sono profundo, e assim se liberta do agregado de corpo e
sentidos, ele não é mais um agente, e é feliz.”
Com todos esses argumentos, chegamos ao impasse: se o si-mesmo é inativo, por que
as injunções escriturais acerca dos ritos? Como observamos logo no início deste trabalho, o
conjunto de escrituras compendiado nos quatro Veda foi dividido em dois conjuntos:
1) karma-käëòa (lit. “porção/divisão [dos Veda] dos atos [ritualísticos]”): coletânea
didática elaborada por e para sacerdotes da tradição bramânica, representada pelo conjunto
dos textos brähmaëa posteriormente distribuído entre as quatro coletâneas iniciais de hinos
védicos, como segunda parte do conteúdo de cada Veda;
2) jïäna-käëòa (lit. “porção/divisão [dos Veda] do conhecimento”): porção final dos
Veda, representada pelos textos Araëyaka (lit., “florestal”) e por doze Upaniñad (lit.,
“ensinamento [relativo a] aproximação”), também conhecida como “fim dos Veda”, Vedänta.
Todas essas escrituras deveriam igualmente deter o estatuto de discurso de autoridade
para um brâmane ortodoxo como Çaìkara: portanto, por mais que o Advaita se propusesse a
ser um sistema “vedantino”, ou seja, fiel ao conteúdo da revelação conforme dada pelos textos
193
das Upaniñad, ele não poderia jamais desqualificar a autoridade das escrituras precedentes.
Portanto, mesmo diante de um ätman fundamentalmente inativo, os deveres sacerdotais
também deveriam ter um lugar no sistema.
Se tomarmos como exemplo a argumentação do pensador que acompanhamos até
aqui, o “lugar” dos sacerdotes não existe:
[Objeção:] “A liberação pode ser alcançada simplesmente pelo
poder das injunções védicas {os ritos para se alcançar encarnações em
mundos superiores, etc.}.
[Resposta:] “Não, já que qualquer coisa que possa ser
adquirida pela prática é impermanente. Além disso, a liberação foi
estabelecida a partir do fato de que o si-mesmo foi declarado {nas
Upanisad} como eternamente puro, iluminado e livre. Tal declaração
do si-mesmo não pode ser logicamente justificada se a condição de
agente lhe for natural.”
O fato é que, assim como o Advaita construiu conceitualmente hierarquias de planos
de realidade, e com isso conseguiu conferir uma certa validade relativa aos fenômenos de
cada plano, assim também, entre as porções karma-käëòa e jïäna-käëòa das escrituras,
Çaìkara estabelecerá semelhante hierarquia, e com isso “distribuirá” as respectivas divisões
dos Veda entre os planos relativo e Absoluto:
Kena-upaniñad-bhäñya
“Aqui o primeiro propósito dos Veda, devoção ao conhecimento
depois de renunciar a todos os desejos, foi afirmado pelo verso de
abertura [da Upaniñad]: ‘Tudo isso [que existe] é envolvido pelo
Senhor [...] não cobices a riqueza de ninguém.’ E quando, para o
homem de ignorância, essa devoção ao conhecimento é impossível, a
continuidade no caminho do dever que é o segundo propósito dos
Veda foi assim afirmada no segundo verso {da mesma Upaniñad}:
‘Ao efetuar as ações {karman}, o indivíduo deseja viver por cem
anos.’ Essa divisão dos caminhos da vida, como mostrada nesses
versos, também foi indicada na Båhad-äraëyaka-upaniñad. Assim, no
texto ‘Ele desejou [...] que eu tenha uma esposa’, etc. [Båhad-
äraëyaka-upaniñad 1.4.17], pode ser claramente compreendido que as
atividades são para um homem que é ignorante e busca por resultados.
E da sentença ‘A mente é sua alma, a fala é sua esposa’, etc. [Båhad-
äraëyaka-upaniñad 1.4.17], pode ser claramente compreendido que a
ignorância e os desejos são as características de um homem devotado
às atividades. Então o resultado de seu trabalho é a geração dos sete
194
tipos de frutos
20
e a continuidade no estado de identificação com eles
sob a idéia de que são o si-mesmo. E pelo texto ‘O que obteremos
com filhos, nós que alcançamos o si-mesmo como objetivo?’, etc.
[Båhad-äraëyaka-upaniñad 4.4.22], foi demonstrado que para
aqueles que alcançaram o si-mesmo ao renunciar ao desejo triplo por
esposa e etc. {desejo por filhos, riqueza e paraíso} pode haver a
permanência no próprio si-mesmo, em oposição à continuidade no
caminho das ações {karman}. Depois da condenação do homem
ignorante pelo verso ‘Os mundos obscuros são cobertos por escuridão
cegadora,’ etc. [Éçä-upaniñad, 1.3], a verdadeira natureza do si-mesmo
foi revelada pelos versos que encerram em ‘Ele é onipenetrante’, etc.
[Éçä-upaniñad, 1.8] para aqueles homens de renúncia que estão
avançados no conhecimento, com o intuito de mostrar que apenas eles
estão qualificados para isso {o conhecimento do si-mesmo} e não
aqueles que têm desejos. Assim também na Çvetäçvatara-upaniñad
[6.21] isso foi mencionado: ‘Àqueles que ultrapassaram todos os
estágios da vida ele falou da mais sagrada das coisas, adorada por
todos os sábios.’ Mas o verso seguinte da Éçä-upaniñad, ‘Aqueles que
cultuam a ignorância entram em escuridão cegadora’, é para os
homens ativos que possuem desejos e querem viver apenas praticando
ações {karman}.”
(Éçä-upaniñad-bhäñya, 1.8, in GAMBHÉRÄNANDA, 2002, p. 16-18;
in ÇÄSTRIËÄ, 2000, p. 7-8)
Como podemos notar nessa passagem, Çaìkara faz a distinção entre o “homem
ignorante”, o homem comum que nutre desejos por riquezas, filhos, esposa, paraíso, e o
“homem de renúncia”, aquele que nada mais deseja além da liberação. Para o primeiro
existem as injunções escriturais a respeito de ações meritórias, e que lhe podem ser úteis na
conquista de seus desejos; para o segundo, não há esperança no mundo das ações: nenhuma
ação que possa executar pode levá-lo à liberação das existências condicionadas; somente a
instrução de um preceptor que seja ele próprio conhecedor de Brahman pode auxiliar o
renunciante a alcançar a percepção do si-mesmo.
Os dois tipos de homens correspondem aos percursos dos dois níveis de realidade: a
relativa (o homem ignorante, o homem que tem desejos) e a Absoluta (o homem de renúncia).
Para cada um deles haverá um conjunto de injunções adequadas que deverão ser seguidas: aos
primeiros, essas serão injunções relativas a ações meritórias; para os renunciantes, a injunção
será o treinamento na meditação Advaita, ou seja, na inação perante o mundo e na meditação
para a percepção do si-mesmo:
20
Cf. Båhad-äraëyaka-upaniñad 1.5.1-7: (1) o alimento humano comum; (2-3): huta e prahuta, ou darça e
pürëamäsa, alimentos para os deuses; (4-6): mente, fala e força vital, que são alimentos para o jéva; e (7), leite,
alimento para os animais.
195
Pois o dharma {retidão, conduta de acordo com os deveres
sociais} revelado pelos Veda é de dois tipos: um caracterizado pela
ação, e outro pela renúncia. O dharma que é concebido para a
estabilidade do mundo e que constitui o meio direto de bem-estar dos
seres continua a ser seguido pelos brähmaëa e por outros que
pertencem às diferentes castas e etapas da vida, e que aspiram ao mais
elevado.
(Bhagavad-gétä-bhäñya, introdução, in GAMBHÉRÄNANDA,
2000a, p. 3; in GOYANDAKÄ, s/d, p. 14)
Mesmo assumindo o “bem-estar” do mundo e dos seres relativos como uma questão
relevante, e mesmo considerando que a maioria dos homens nutre desejos e na satisfação
desses desejos pretende se engajar – e não na “busca” do si-mesmo –, ainda assim o problema
inaugurado com o caráter inativo do princípio do ser ainda não está totalmente solucionado.
Existe ainda o fato de que, mesmo para o homem de renúncia, a inação completa no mundo
não é possível. A própria Bhagavad-gétä afirma isso. Portanto, a resposta ou “assimilação”
derradeira, por parte do Advaita, de todas as injunções escriturais concernentes às ações dos
homens no mundo, é encontrada na Bhagavad-gétä:
Quando a perfeição no conhecimento e a perfeição na ação
tornam-se impossíveis de serem seguidas simultâneamente por uma
única pessoa, devido à sua contradição mútua, então [...] a perfeição
na ação torna-se um meio de se alcançar o propósito humano {a
liberação}, não independentemente, mas em virtude de ser
instrumental ao assegurar a perfeição no conhecimento [...]
Não se alcança a perfeição abstendo-se de ações como a
realização de ritos, etc., pois essas são as causas da purificação do
instrumento interno {antaù-karaëa} através da atenuação das faltas
cometidas; sendo a causa dessa purificação, as ações tornam-se a fonte
da perfeição no conhecimento [...] Porque realizar ações é, em si, um
meio de libertar-se das ações. De fato, não pode haver alcance de um
fim sem os seus meios.” (Bhagavad-gétä-bhäñya, 3.4, in
GAMBHÉRÄNANDA, 2000a, p. 137-138)
Aqui Çaìkara utiliza as próprias leis que regem a causalidade do plano relativo para
justificar sua postura de assimilação das ações do homem no mundo como meio de acesso à
liberação: “não pode haver alcance de um fim sem os seus meios”. A justificativa final para a
continuidade, por parte do adepto do Advaita não-asceta, da participação engajada no mundo,
é dada finalmente pela observação de que “essas {ações} são as causas da purificação do
instrumento interno {antaù-karaëa} através da atenuação das faltas cometidas; sendo a causa
dessa purificação, as ações tornam-se a fonte da perfeição no conhecimento”. Essa
constatação de que existe um processo “evolutivo”, que prepara os seres relativos para a busca
196
e conquista do re-conhecimento derradeiro do si-mesmo, não é uma criação de Çaìkara, e sim
uma assimilação de valores presentes no âmago de sua cultura e expressos em várias
doutrinas de sua herança intertextual, como as próprias doutrinas do Säàkhya-yoga-darçana.
Assim como nessas duas escolas, também o Advaita postula que o conhecimento das coisas
sutis se num corpo psíquico” em que predomina o aspecto da intelegibilidade ou
discernimento, sattva, e o predomínio de sattva, por sua vez, é produzido com a reiteração de
ações meritórias, etc.
Reproduzimos aqui um quadro que sintetiza a dinâmica de “evolução/degradação” dos
seres relativos (“corpos psíquicos”) nos mundos, com suas causas (ações comportamentais e
cognitivas) regidas por predominâncias dos aspectos fenomênicos nos corpos psíquicos, e as
respectivas conseqüências projetadas sobre as experiências futuras de vida dos seres relativos,
segundo o Säàkhya-yoga-darçana. Tais valores são diretamente assimilados pelo Advaita.
Causas instrumentais (nimitta) Efeitos (naimittika)
S
A
1 – virtude (dharma).
2 - elevação a mundos superiores.
T
3 – conhecimento (jïäna).
4 – liberação (apavarga).
T
5 – desapego (vairägya).
6 - dissolução em prak
B
ti (prakåtilaya).
V
A
7 – poder (aiçvarya, lit. “senhoria”)
8 - não-impedimento à realização dos desejos.
T
9 – vício ou demérito (adharma). 10 - degradação a mundos inferiores.
A
M
11 – ignorância (ajïäna, avidyä).
12 - “prisão”, “limitação” (bandha).
A
13 - desejo (räga).
14 – migração (sa
R
s
T
ra).
S
15 – impotência (anaiçvarya).
16 - impedimento à realização dos desejos.
(GULMINI, 2001, p. 210)
Em síntese, “a César o que é de César”: ao relativo, regido por leis de causas e efeitos,
devem-se conceder boas causas, para que se possam colher bons efeitos (por exemplo, o
cultivo crescente do conhecimento é o que pode produzir a liberação). Ao Absoluto manifesto
como Senhor, deve-se praticar a devoção, pois por sua graça é possível “despertar” de mäyä;
finalmente, ao Absoluto não-qualificado, nada se deve, exceto lembrar-se de que se trata, em
última instância, do próprio si-mesmo.
Dessa forma Çaìkara logrou integrar o TODO, a totalidade numérica das seitas e
práticas de sua cultura, e o TUDO, a totalidade complexa do sagrado, no UM, a totalidade
neutra do Absoluto indizível, Brahman.
197
Podemos finalizar este capítulo com mais uma anedota “vedantina” recontada por
Heinrich Zimmer:
Diz-se que um velho guru estava por concluir as lições secretas
ministradas a um discípulo adiantado sobre a onipresença do Ser
Supremo. O discípulo, recolhido em si mesmo e pleno de felicidade
por aprender, escutava o mestre:
Tudo é Deus, infinito, puro e real, ilimitado, que vai além
dos pares de opostos, livre de qualidades diferenciadoras e distinções
restritivas. Esse é o sentido último de todos os ensinamentos de nossa
sabedoria sagrada.
O discípulo entendeu e disse:
Deus é a única realidade. O Uno Divino pode ser encontrado
em tudo. É imperturbável pelo sofrimento ou qualquer outra
imperfeição. Cada “tu” e cada “eu” é Sua morada, cada forma é uma
imagem obscurecedora dentro da qual habita o único e inativo Agente.
Estava exultante: uma onda sentimental o invadiu e fê-lo
sentir-se radiante e poderoso como uma nuvem que se avoluma até
preencher o firmamento. Seu andar era lépido e sem peso.
Sublime, sozinho como a única nuvem no céu, ele seguia pela
estrada quando um enorme elefante surgiu no sentido oposto. O
cornaca, sentado sobre o pescoço do animal, gritou:
– Saia do caminho!
Os inúmeros sinos da manta que cobria o paquiderme
deixavam ouvir uma cascata de sons argênteos seguindo o ritmo do
lento e inaudível passo. O exaltado estudante da ciência vedantina,
embora pleno de sentimentos divinos, ouviu e pôde ver o elefante
aproximar-se. Então, pensou consigo mesmo: “Por que deverei dar
passagem para esse elefante? Sou Deus. O elefante é Deus. Deve
Deus ter medo de Deus?” E assim, destemido e com fé, ele continuou
no meio da estrada. Mas quando “Deus” veio de encontro a “Deus”, o
elefante ergueu sua tromba em torno da cintura do pensador e o atirou
fora do caminho. Leves foram suas feridas apesar da dura queda.
Coberto de pó, mancando, aturdido mentalmente e cheio de espanto,
voltou ao mestre para contar sua perturbadora experiência. O guru
ouviu serenamente e, narrado o acontecimento, respondeu:
De fato, tu és Deus, como também o elefante. Mas, por que
não escutastes a voz de Deus vindo a ti através do cornaca, que
também é Deus, pedindo que saísses do caminho?
(ZIMMER, 1991, p. 27-28)
198
CONCLUSÃO
Chegamos ao final de nossa jornada pelo Advaita.
Nossa intenção, com este trabalho, foi trazer ao domínio dos estudos acadêmicos no
Brasil um importante autor da civilização indiana. Para isso, procuramos apresentar seus
textos e a doutrina que delineiam sob a perspectiva dos estudos lingüísticos.
Nossa análise de textos de Çaìkara foi feita com base nos instrumentos da teoria do
discurso e da análise semiótica de nível fundamental, além das noções de intertextualidade.
Com essas ferramentas iniciais, procuramos “dissecar” o sistema Advaita e revelar alguns
mecanismos lógicos de nível fundamental que permitem sua articulação e funcionamento. Tal
tarefa foi fundamentada no princípio de que as teorias do discurso constituem instrumentos
que auxiliam a elucidar os mecanismos com os quais a linguagem verbal consegue criar e
expressar conceitos abstratos como aqueles que encontramos no sistema do Advaita, os quais
o próprio sistema afirma não serem apreensíveis no mundo dos fenômenos.
Ao mesmo tempo, acreditamos ter cumprido também o propósito, não menos
importante, de oferecer ao público de língua portuguesa um trabalho esclarecedor acerca das
principais premissas do Advaita-vedänta.
Esperamos que este seja apenas um dentre muitos trabalhos acadêmicos ainda por vir,
dedicados ao estudo das escolas de pensamento de expressão sânscrita.
199
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BABA, Bangali (ed.). Yogasütra of Patjali with the commentary of Vyäsa. Delhi, Motilal
Banarsidass, 1979.
BAKHTIN, MIKHAIL. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo, Ed. Hucitec, 1979.
___ A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais.
São Paulo, Ed. Hucitec, 1987.
BARROS, Diana L. P. Teoria do discurso - fundamentos semióticos. São Paulo, Ed.
Humanitas/FFLCH-USP, 2002.
BARROS, Diana L. P. & FIORIN, J. L. (org.). Dialogismo, polifonia, intertextualidade em
torno de Mikhail Bakhtin. São Paulo, EDUSP, 1994.
BASHAM, A. L. The wonder that was India. 5
a
ed. New Delhi, Rupa & Co., 2000.
BENFEY, Theodore. A Sanskrit-English Dictionary. London, Longmans, Green & Co, s/d.
BENVENISTE, Émile. Problemas de lingüística geral. São Paulo, Ed. Pontes/Unicamp, 3
a
edição, 1991.
BRANDÃO, Helena H. N. Introdução à análise do discurso. São Paulo, UNICAMP, 4
a
ed.,
1995.
BRØNDAL, Viggo. “Omnis et Totus: analyse et étymologie.” In: Actes semiotiques
documents, VIII, 72. Paris, Institut National de la Langue Française, 1986.
CLIFFORD, James. Writing Culture. Berkeley, University of California Press, 1986.
COELHO Netto, J. T. Semiótica, informação e comunicação. São Paulo, Ed. Perspectiva,
1991.
CORACINI, Maria José R. F. Um fazer persuasivo. São Paulo, Ed. Fontes/EDUC, 1991.
COSERIU, Eugênio. “Vives e o problema da tradução.” In: Tradição e novidade na ciência
da linguagem – Estudos de história da lingüística. Rio de Janeiro, Ed. Presença/EDUSP,
1980, p. 95-113.
______ “O certo e o errado na teoria da tradução.” In: O homem e sua linguagem Estudos
de teoria e metodologia lingüística. Rio de Janeiro, Ed. Presença/EDUSP, Col.
Linguagem, nº 16, 1982, p. 155-171.
DANIELOU, Alain. Yoga, méthode de reintegration. Paris, Arche, 1951.
______ Histoire de L’Inde. Paris, Fayard, 1971.
DASGUPTA, Surendranath. Yoga philosophy in relation to other systems of Indian thought.
New Delhi, Motilal Banarsidass, 1996.
200
______ A history of Indian Philosophy. (5 volumes) New Delhi, Motilal Banarsidass, 1997.
DATE, V. H. (ed.). Vedänta explained - Çaìkara‘s commentary on the Brahmasütra. 2
volumes. New Delhi, Munshiram Manoharlal Pub, 2
ª
ed., 1973.
DEUSSEN, Paul. The Philosophy of the Upanishads. New York, Dover Publications, 1966.
DUPUIS, Jacques Histoire de L’Inde et de la civilisation indienne. Paris, Payot, 1963.
ECO, Umberto. Tratado geral de semiótica. São Paulo, Ed. Perspectiva, 1991.
ELIADE, Mircea. História das crenças e das idéias religiosas. RJ, Zahar, tomo I, vol. II,
caps. VIII e IX, 1978, p. 11-76.
______ O mito do eterno retorno – Cosmo e história. São Paulo, Ed. Mercuryo, 1992.
______ Tratado de história das religiões. São Paulo, Martins Fontes, 1993.
______ O conhecimento sagrado de todas as eras. São Paulo, Mercuryo, 1995.
______ Yoga, imortalidade e liberdade. São Paulo, Palas Athena, 1997.
FÁVERO, Leonor L. & KOCH, Ingedore G. V. Lingüística textual: Introdução. São Paulo,
Ed. Cortez, 2
a
ed, 1988.
FERREIRA, Aurélio B. H. Novo Aurélio século XXI – o dicionário da língua portuguesa. RJ,
Ed. Nova Fronteira, 1999.
FERREIRA, Mário. “O sentido da reconstrução das teorias de linguagem da antigüidade
clássica Uma questão de método relativa à historiografia lingüística”, In: ESTUDOS
LINGÜÍSTICOS XXV. ANAIS DE SEMINÁRIOS DO GEL. Taubaté, Unitau / GEL,
1996, p. 211-217.
______ “Notas para um diálogo entre culturas As traduções de Fagundes Varela de poemas
sânscritos” – In: Língua e Literatura, nº 23. São Paulo, FFLCH-USP, 1997ª, p. 151-169.
______ “Procedimentos retóricos na poesia sânscrita védica.” In: MOSCA, LINEIDE L. S.
(org.). Retóricas de ontem e de hoje. São Paulo, EDUSP/Humanitas,1997b, p. 85-97.
FIORIN, José Luiz. Elementos de análise do discurso. São Paulo, ed. Contexto/EDUSP,
1989.
______ As astúcias da enunciação: as categorias de pessoa, espaço e tempo. São Paulo,
Ática, 2
ª
edição, 2002.
FONSECA, Carlos Alberto & FERREIRA, Mário. Introdução ao sânscrito clássico. São
Paulo, FFLCH-USP, 1988.
FORT, ANDREW O. The Self and its states: a states of consciousness doctrine in Advaita
Vedänta. New Delhi, Motilal Banarsidass, 1990.
FLUSSER, Vilem. Língua e realidade. São Paulo, Ed. Herder, 1963.
201
GAMBHURSNANDA, SWSMU (ed.). Çvetäçvatara-upaniñad - with the commentary of
Çaìkaräcärya. Calcuta, Advaita Ashrama, 1995.
______ Chändogya-upaniñad - with the commentary of Çaìkaräcärya. Calcuta, Advaita
Ashrama, 1997
______ Bhagavad-gétä - with the commentary of Çaìkaräcärya. Calcuta, Advaita Ashrama,
2000a.
______ Brahmasütra-bhäñya, of Çaìkaräcärya. Calcuta, Advaita Ashrama, 2000b.
______ Eight Upaniñads - with the commentary of Çaìkaräcärya. volume 2. Calcuta,
Advaita Ashrama, 2001.
______ Eight Upaniñads - with the commentary of Çaìkaräcärya. volume 1. Calcuta,
Advaita Ashrama, 2002.
GOKHALE, B. G. Ancient India history and culture. Bombay, Asia Publishing House, 4a.
ed., 1959.
GOYANDAKS, HARUKAKISDSSA (ed.). Çrémad-bhagavad-gétä; Çaìkara-bhäñya- hindé-
anuväda-saàhita. Gorakhpur, GVtTpres, s/d.
GREIMAS, A. J. Du sens. Paris, Seuil, 1970.
______ Semiótica do discurso científico. Da modalidade. São Paulo, DIFEL / SBPL, 1976.
______ "Le savoir et le croire: um seul univers cognitif" In: Du sens II. Essais sémiotiques.
Paris, Seuil, 1983, p. 115-133.
______ "De la colère." In: Du sens II. Essais sémiotiques. Paris, Seuil, 1983, p. 225-246.
GREIMAS, A. J. & COURTES, J. Dicionário de semiótica. São Paulo, Ed. Cultrix, s/d.
GREIMAS, A. J. e RASTIER, F. "O jogo das restrições semióticas." In: Sobre o sentido:
ensaios semióticos. Petrópolis, Ed. Vozes, 1975.
GRETIL – “Göttingen Register of Electronic Texts in Indian Languages.” (Banco de dados da
Universidade de Göttingen). Brahma-sütra with Çaìkara’s Çaréraka-mémäàsä-
bhäñya”, Adhyaya 1, 2, 3 e 4, Documento eletrônico. (disponível em
http://www.sub.uni-goettingen.de/ebene_1/fiindolo/gretil.htm), 2006.
GULMINI, Lilian C. O Yogasütra, de de Patañjali – tradução e análise da obra, à luz de seus
fundamentos contextuais, intertextuais e lingüísticos. Dissertação de Mestrado. Inédita.
SP, FFLCH-USP, 2001.
GUPTA, Bina. Perceiving in Advaita Vedänta: epistemological analysis and interpretation.
New Delhi, Motilal Banarsidass, 1995.
HARIHARSNANDA Äraëya. The Säàkhya sütras of Païcaçikha and the Säàkhya-
tattvaloka. Delhi, Motilal Barnasidass, 1977.
202
HOBSBAWN, Eric & RANGER, Terence (org.). A invenção das tradições. Rio de Janeiro,
Paz e Terra, 1984.
INDICH, William M. Consciousness in Advaita Vedänta. New Delhi, Motilal Banarsidass,
2000.
LOTMAN, Iuri. M. et alii. Ensaios de semiótica soviética. Lisboa, Ed. Horizonte
Universitário, 1981.
MSDHAVSNANDA, SWSMU (ed.). The Båhad-äraëyaka-upaniñad - with the commentary
of Çaìkaräcärya. Calcuta, Advaita Ashrama, 5
ª
ed., 1975.
______ Viveka-cüòä-maëi of Çré Çaìkaräcärya. Calcuta, Advaita Ashrama, 2000.
______ Vedänta-paribhäsa of Dharmaräja Adhvaréndra. Calcuta, Advaita Ashrama, 2000.
MAHADEVAN, T. M. P. Invitation to Indian Philosophy. New Delhi, Arnold-Heinemann
Publishers, 1974.
MAINGUENEAU, Dominique Novas tendências em análise do discurso. Campinas, Ed.
Pontes/UNICAMP, 2
a
ed., 1993.
MASUI, Jacques (org.). Approaches de l’Inde textes et études publiés sous la direction de
Jacques Masui. Paris, Les Cahiers du Sud, 1949.
MITRA, Rajendra L., COWELL, E. B. & ROAR, E. The twelve principal Upanishads (in
three volumes). Delhi, Nag Publishers, 1979.
MONIER-WILLIAMS, M. A Sanskrit-English Dictionary – Corrected Edition. Delhi, Motilal
Banarsidass Pub, 2002.
MOORE, Gillian (ed.). Nações do mundo Índia. Rio de Janeiro, Abril Livros / Time Life
books, 1993.
MUKHYÄNÄNDA, SMI. An interpretation of the life and teachings of Çré
Çaìkaräcärya. Kalady, Ramakrishna Advaita Ashrama, 1998.
MUMUKSHSNANDA, SWSMU (ed.) Païcé-karaëam of Çré Çaìkaräcärya. Calcuta, Advaita
Ashrama, 1997.
OGDEN, C K. & RICHARDS, I. A. The meaning of meaning. London, Routledge & Kegan
Paul, 1956.
PERELMAN, Chaïm "Argumentação". In: Encicplopédia Einaudi. Oral/Escrito.
Argumentação. Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, vol.11, 1984, p. 234-265.
PERELMAN, C. & OLBRECHTS-TYTECA, L. Tratado da Argumentação: a nova retórica.
São Paulo, Martins Fontes, 2002.
PLANTIN, Christian. L'Argumentation. Paris, Seuil, 1996.
203
RANGANATHSNANDA, SWSMI. Practical Vedänta and the science of values. Calcuta,
Advaita Ashrama, 2000.
RAWSON, Philip. Indian Asia – The making of the past. Oxford, Elsevier-Phaidon, 1977.
RENOU, Louis. Prolégomènes au Vedänta. Paris, Imprimerie Nationale, 1951.
ROSALDO, Renato. Culture and truth the remaking of social analysis. Boston, Beacai
Press, 1989.
SAID, EDWARD W. Orientalism. London, Routledge & Kegan Paul, 1985.
SARMA, D. S. Hinduísmo e Yoga. Rio de Janeiro, Livraria Freitas Bastos, 1967.
ÇÄSTRIËÄ, GOVINDA (ed.). Çré- Çaìkara-granthävalé, prathamo bhägaù: Içädi-daça-
upaniñad. Delhi, Motilal Banarsidass, 2000.
SCHNAIDERMAN, Boris (org.). Semiótica russa. São Paulo, Ed. Perspectiva, 1979.
SCHULBERG, Lucille. Índia histórica. Rio de Janeiro, Livraria José Olympio, 1973.
SINHA, Nandalal (ed.). The Säàkhya Philosophy. Delhi, Oriental Reprint, 1979.
TAPASYSNANDA, SWSMU Çaìkara-dig-vijaya; The traditional life of Çré
Çaìkaräcärya; by Mädhava-Vidyäraëya. Madras, Sri Ramakrishna Math, s/d.
VENUTI, Lawrence (ed.). Rethinking translation discourse, subjectivity, ideology. London,
Routledge, s/d.
VIMUKTSNANDA, SWSMU (ed.). Aparokñänubhüti; Self-realization of Çré
Çaìkaräcärya. Calcuta, Advaita Ashrama, 2001.
ZIMMER, Heinrich. Mitos e símbolos na arte e civilização da Índia. São Paulo, Ed. Palas
Athena, 1989.
______ Filosofias da Índia. São Paulo, Ed. Palas Athena, 1991.
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo