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MÔNICA APARECIDA DE OLIVEIRA CRUZ
AS PAIXÕES EM DOIS IRMÃOS: um espelho de múltiplas faces
Dissertação apresentada à Universidade de
Franca, como exigência parcial para a
obtenção do título de Mestre em Linística.
Orientadora: Profa. Dra. Edna Maria
Fernandes dos Santos Nascimento.
FRANCA
2008
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MÔNICA APARECIDA DE OLIVEIRA CRUZ
AS PAIXÕES EM DOIS IRMÃOS: um espelho de múltiplas faces
Presidente: __________________________________________________
Nome:
Instituição:
Titular 1: __________________________________________________
Nome:
Instituição:
Titular 2: __________________________________________________
Nome:
Instituição:
Franca, ____/ ____/ ____
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DEDICO este trabalho às minhas quatro paixões: Lúcio, Jéssica,
Luísa e Viviani.
AGRADECIMENTOS
A Deus, pela que o me deixou desistir deste sonho e me fez seguir em
frente, mesmo quando as dificuldades insistiam em dizer-me não;
à minha orientadora, Profa. Dra. Edna Maria Fernandes dos Santos
Nascimento, pela força e pelo exemplo de sabedoria e humildade que foram fundamentais
nesse difícil percurso;
ao meu marido e minhas filhas pelo apoio incondicional, compreensão,
incentivo e paciência;
à toda a minha família, principalmente, minha mãe que, mesmo longe,
continuou na torcida por mim;
ao Glayton, Luciene e Helem que o mediram esforços para me ajudar a
conquistar esse objetivo;
à Assunção que sempre me incentivou nesta busca;
à Janete que acompanhou de perto esse insaciável processo;
aos meus colegas de curso pelos bons momentos que passamos juntos,
principalmente, Cristiane e Evaldo, que se tornaram dois grandes amigos com os quais pude
contar nos momentos difíceis.
RESUMO
CRUZ, nica Aparecida de Oliveira. As paixões em Dois irmãos: um espelho de múltiplas
faces. 2008. 187 f. Dissertação (Mestrado em Lingüística) – Universidade de Franca, Franca.
Este trabalho tem por objetivo fazer um estudo sobre os efeitos de sentido que emergem das
paixões, levando em conta que esses efeitos de sentido passionais, inscritos no texto,
configuram-se na narrativa como modulações dos estados de alma dos sujeitos. Assim, a obra
Dois irmãos de Milton Hatoum, por apresentar como cerne de seu enredo o drama familiar
que se desenvolve em torno do relacionamento conflituoso de dois irmãos gêmeos, aborda a
manifestação de várias paixões, por isso, constitui-se em um corpus de grande valor
expressivo para o estudo das paixões. Ao ter em vista o sentido produzido pelas paixões nos
textos, optamos pela abordagem da semiótica francesa por ser uma teoria da significação, cujo
todo coerente e eficaz de análise nos permite averiguar as configurações passionais que
caracterizam as paixões dentro de determinada cultura, assim como os efeitos de uma sintaxe
e da enunciação passional que caracterizam o percurso do sujeito passional. Para desenvolver
a abordagem teórica utilizamos, principalmente, as postulações teóricas de Greimas,
Fontanille e Bertrand, semioticistas que exploram com profundidade os procedimentos
necessários para a análise da semiótica das paixões. Nesse sentido, este trabalho procura
mostrar os efeitos de sentido de cada paixão em particular, como elas surgem na interação, na
relação intersubjetiva dos sujeitos envolvidos nos conflitos e também como elas se organizam
nos esquemas passionais canônicos. Em seguida, ao examinar o discurso como um todo,
considerando as paixões que surgiram no relacionamento entre os dois irmãos, a análise
demonstra que a paixão da mãe por apenas um filho estimula o conflito entre os gêmeos e a
manifestação de suas paixões. As análises também permitem averiguar como o narrador, ao
reconstruir o passado em busca de suas origens, avalia e moraliza as paixões dos demais
sujeitos, mas é afetado por elas, visto que ele também participa da história. Dessa forma, o
entrelaçamento das paixões inscritas no texto produz o efeito de contágio passional e, assim,
as paixões podem ser avaliadas umas sob o domínio das outras, umas influenciando as outras,
umas como conseqüência das outras. O entrelaçamento dessas paixões é que vai permitir
mostrar como o texto se organiza para produzir o sentido que o constitui e o relaciona a outros
contextos culturais e sociais mais amplos.
Palavras-chave: sentido; paixão; interação; intersubjetividade; contágio.
ABSTRACT
CRUZ, nica Aparecida de Oliveira. As paixões em Dois irmãos: um espelho de múltiplas
faces. 2008. 187 f. Dissertação (Mestrado em Lingüística) – Universidade de Franca, Franca.
This work has by purpose to carry out a study about the effects of sense that emerge from the
passions, considering that these effects of passionate sense, entered in the text, the setting in
narrative like variations from the state of mind of the characters. Therefore, the work Dois
Irmãos by Milton Hatoum, shows as essence of its plot the family drama that develops around
the conflicting relationship of two twins brothers, approach the expression of several passions.
Therefore,it is an expressive corpus of great value to the study of passions. Bearing in mind
sense produced by passions in the texts, chose to approach of the semiotic French, a theory of
meaning of which coherent and affective method of analysis allows us to examine the settings
passionate that characterize the passions within that culture, like the effects of a syntax and
passionate statement that characterize the route of the passional character.To develop the
theoretical approach we used, mainly, the theoretical postulations from Greimas,Fontanille
and Bertrand ,semioticists who exploit with depth the procedures necessary for the analysis of
the semiotics passions. This way this work tries to show the effects to each passion in
particular,as they arise in the interaction, in the intersubjective relationship of the characters
involved in the conflicts and also how they are organized in passionate canonics schemes.
Then, to examine the speech as a whole, considering the passions that emerged in the
relationship between the two brothers, the review shows that the passion of the mother for just
a child stimulates the conflict between the twins and their passion expressions. The analyses
also allow ascertain how the narrator, to reconstruct the past in search of his roots evaluates
and moralizes the passions of the other characters. But he is affected by them, as he also
participates in history. Thus, the interlacing of the passions entered in the text produces the
effect of passionate contagion and so the passions can be evaluated under the domain of each
other, each influencing the other, as one consequence of others. The interlacing those passions
that will allow show how the text is organized to produce the sense that it concerns and relates
it with cultural and social contexts more extensive.
Word Keys: sense, passion, interaction, intersubjectivity, contagion.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 8
1 FORTUNA CRÍTICA ........................................................................................... 18
2 METODOLOGIA ................................................................................................. 30
2.1 A RETÓRICA E A SEMIÓTICA ............................................................................ 31
2.3 CONFIGURAÇÃO DAS PAIXÕES ....................................................................... 47
3 O ENTRELAÇAMENTO DAS PAIXÕES NO RELACIONAMENT O DOS
DOIS IRMÃOS ...................................................................................................... 58
3.1 DA EMULAÇÃO À INVEJA E AO CIÚME .......................................................... 59
3.2 O CIÚME SOBRE O PANO DE FUNDO DA INVEJA .......................................... 66
3.3 A INVEJA QUE DESPERTA A VINGANÇA ........................................................ 74
3.4 ALERA IRROMPIDA PELA INVEJA ............................................................. 83
3.5 A VINGANÇA ATUALIZA A EMULAÇÃO ......................................................... 97
4 AS PAIES EM DOIS IRMÃOS: UM ESPELHO DE MÚLTIPLAS
FACES ................................................................................................................. 108
4.1 O APEGO INTENSO E A INDIFERENÇA ESTIMULAM A RIVALIDADE ...... 109
4.2 AVALIAÇÃO E MORALIZAÇÃO DE UM NARRADOR/SUJEITO
APAIXONADO .................................................................................................... 126
CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................... 147
REFERÊNCIAS .............................................................................................................. 156
ANEXO A - CENA 1 ....................................................................................................... 163
ANEXO B - CENA 2 ....................................................................................................... 165
ANEXO C - CENA 3 ....................................................................................................... 168
ANEXO D - CENA 4 ....................................................................................................... 172
ANEXO E - CENA 5 ....................................................................................................... 181
8
INTRODUÇÃO
O estudo das paixões vem sendo discutido desde a Antiidade Clássica e já
foi explorado por diversas áreas do conhecimento em diferentes épocas e, continua, ainda
hoje, sendo motivo de interesse por parte de pesquisadores por se tratar de um assunto
bastante complexo, mas também muito instigante.
Assim é que, estimulados pela busca do conhecimento, nos propomos a
investigar os efeitos de sentido produzidos pelas paixões nos textos. Ao ter em vista a
constituição e a produção do sentido textual, optamos pela abordagem da teoria semiótica
francesa por ser uma teoria da significação que tem desenvolvido nos últimos anos relevantes
estudos sobre as paixões, ou melhor, sobre os estados de alma do sujeito inscritos nos textos.
Tal empreendimento nos conduz a examinar algumas pesquisas realizadas por
outras áreas sobre o assunto, mostrando as diferentes formas de tratar o estudo das paixões.
De acordo com esse enfoque, a teoria das paixões proposta por filósofos levava
em conta o estudo das paixões a partir das paixões primitivas, como espécies de paixões que,
ao longo dos tempos, foram recebendo outras definições de acordo com o gênero específico
em que elas se encontravam (FONTANILLE et al., 2007, p. 215-216). Dessa forma, a
preocupação dos filósofos ao tratar as paixões estava vinculada à semântica que definia as
paixões como próprias de uma determinada cultura. Daí a limitar o estudo das paixões às suas
definições depositadas no léxico de uma cultura em determinada época, é desconhecer os
resultados do seu uso que, por sua vez, tornam as configurações passionais suscetíveis de
serem observadas de acordo com uma seqüência discursiva onde cada paixão lexicalizada
pode se desmembrar em diversas outras paixões sujeitas a avaliações completamente distintas
umas das outras dentro de determinada cultura. Além disso, é importante reconhecermos que
as paixões não são propriedades de um gênero particular, pois como efeitos de sentido
produzidos no discurso que afetam sujeitos inseridos em uma sociedade, elas surgem da
interação entre os sujeitos, podendo, assim se manifestarem em quaisquer tipos de textos dos
mais diferentes tipos de gêneros.
Constatamos ainda que, a fenomenologia, no campo da filosofia, ao propor o
estudo da percepção aproxima-se do estudo das paixões na semiótica, quando a semiótica
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considera a percepção relevante para a apreensão da significação, porém se distingue da
fenomenologia ao propor uma teoria descritiva da significação discursiva (BERTRAND,
2003, p. 20-21), compreendendo a percepção por via das figuras do mundo natural que
instalam no discurso uma presença, ou seja, uma referência à posição que elas ocupam em
relação à nossa própria posição.
Outra forma de tratar esse assunto é apresentada pela psicologia que considera
as paixões na maneira como elas afetam os sujeitos na realidade (BERTRAND, 2003, p.358),
por isso, é comum a esse tipo de estudo tratar as paixões como patologia. Diferentemente da
psicopatologia, as paixões serão tratadas aqui como modulações dos estados de alma do
sujeito, inscritas no texto e analisadas pelos efeitos de sentido que elas produzem no discurso.
Vemos, dessa forma, que o estudo das paixões é um assunto bastante discutido.
Tal fato se justifica por ser as paixões um tema que trata do relacionamento humano, por isso,
encontra-se sempre suscetível de ser analisado em suas oscilações, contradições e
transformações, sendo, portanto, um assunto explorado por diversas áreas do conhecimento,
em todas as épocas, por múltiplas culturas.
Nesse sentido, a teoria semiótica procurou a combinação entre a semântica, a
sintaxe e o discurso para dar conta da problemática do estudo das paixões. Sendo assim, a
semiótica, ao desenvolver o estudo da dimensão patêmica do discurso, tem em vista a análise
dos efeitos de sentido produzidos nos textos pelas configurações passionais depositadas no
léxico, pelos percursos passionais do sujeito examinados por meio da sintaxe modal e da
enunciação passional. O conjunto desses procedimentos resulta nos esquemas passionais
canônicos, discutidos, principalmente, por semioticistas como Greimas e Fontanille.
Nosso objetivo neste estudo consiste, então, em analisar de que forma a obra
de Milton Hatoum, Dois irmãos, utiliza e explora as paixões para produzir o sentido que
constitui o texto e, como, a partir das modulações dos estados de alma dos sujeitos podemos
identificar rios tipos de paixões que surgem na interação desses sujeitos, evidenciando o
caráter intersubjetivo das paixões aqui analisadas.
Desse modo, as configurações passionais vão nos permitir identificar as
paixões no discurso e caracterizá-las como negativas ou positivas, sob medida ou excessivas
de acordo com a cultura em que elas estejam inseridas. Pretendemos, também, mostrar como
rias paixões podem partilhar de uma mesma configuração, mas produzindo efeitos de
sentido diferentes, por isso, nosso cuidado em analisar cada uma das paixões que surgem no
romance em suas particularidades, para entendermos como elas contribuem para o sentido
global do texto.
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Já para os percursos passionais, levaremos em conta as determinações tensivas
e as determinações modais.
Assim, a tensão dos sujeitos ao se colocarem em busca de valores que também
são almejados pelo anti-sujeito ou a tensão sentida pela ruptura de um possível contrato
fiduciário provoca uma oscilão de humor, contribuindo para que possamos caracterizar o
sujeito apaixonado.
Também é de suma importância as modalizações que regem esse percurso,
uma vez que a modalização excedente colocará as demais sob sua dependência e, quando
falamos de paixão, a modalidade do ser definirá seja a existência do sujeito de estado, seja a
sua junção com o objeto de valor, ou seja, aquele que quer-ser amado, superior, desejado,
temido, odiado etc. Assim, a maneira de ser do sujeito é que vai sensibilizar a modalidade e
atribuir-lhe valores.
Sensibilizado o percurso do sujeito, ele manifestará a intensidade de suas
emoções, então, comprovaremos a crise passional. Em seguida, a manifestação passional será
avaliada e moralizada por um observador social de acordo com as normas que regem o espaço
comunitário.
na enunciação passional, é imprescindível observarmos as marcas deixadas
pelo narrador-enunciador para compreendermos os efeitos de sentido de referência, realidade
e verdade do discurso.
De acordo com esse levantamento, a relação de todos esses procedimentos nos
permitirá analisar as paixões pelos esquemas passionais canônicos para verificarmos o sentido
que elas produzem nos textos.
Dessa forma, a escolha do corpus para análise se deve ao fato de a obra
apresentar como cerne de seu enredo o drama familiar que gira em torno das relações
conflituosas entre dois irmãos gêmeos, Yaqub e Omar, e também as suas relações com os
demais membros da família, inclusive com os agregados da casa. Como resultados das
relações dessa família, surgem manifestações de várias paixões, portanto, matéria de grande
valor expressivo para a nossa proposta de trabalho.
Ao longo de nossa pesquisa, não encontramos trabalhos que abordem as
paixões na obra de Milton Hatoum, por isso, acreditamos na relevância de nosso estudo.
Encontramos, porém, alguns trabalhos além dos semioticistas franceses - que contribuem
para o estudo das paixões de que tratamos, são os artigos científicos de Nascimento (2007),
“Configurações da inveja no texto publicitárioe de Nascimento e Abriata (2007), “Um copo
de cólera: a afirmação de si e a destruição do outro”.
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Acreditamos, então, que esta pesquisa possa contribuir para o estudo das
paixões no texto literário, por se tratar de uma investigação sobre várias configurações
passionais em um mesmo corpus. Desse modo, as nossas análises permitem-nos mostrar e
discutir rias paixões com particularidades distintas e, mais, a rede de relações estabelecida
pelo emaranhado de paixões, examinando os efeitos de sentido que uma paixão exerce sobre a
outra que, nas palavras de Fontanille (2007, p. 218-219), denomina-se contágio passional:
uma paixão suscita uma outra, e ambas dependem da identidade modal do actante que a
vivencia”.
Partindo da constatação de Fontanille, nossa análise recorta o texto em partes,
verificando as paixões que afloram do relacionamento dos dois irmãos em cinco cenas
(anexadas no final do trabalho) nas quais as paixões são manifestadas; na seqüência,
passamos a analisar o conteúdo global da obra pelas manifestações patêmicas da mãe que
estimulou, o tempo todo, a rivalidade entre os filhos, e também pelas paixões manifestadas
pelo narrador que também participa da história e, por isso, à medida que relata os
acontecimentos, avalia as paixões dos sujeitos no romance e manifesta o seu envolvimento
afetivo com eles.
As paixões configuradas na obra Dois irmãos surgem quando os meos são
ainda crianças e vão assumindo uma gradação assustadora a cada manifestação passional,
numa perspectiva ascendente que intensifica a inimizade e o ódio entre os dois. Essas paixões
que afloram do relacionamento dos irmãos meos, manifestadas no romance são: a
emulação, o ciúme, a inveja, a cólera e a vingança. Para a análise dessas paixões, vamos
utilizar as postulações teóricas de Greimas e Fontanille (1993), Bertrand (2003) e Fontanille
et al. (2005).
Ao longo do romance, confirmamos vários motivos que contribuem para que
os dois sujeitos sejam afetados pelas paixões, entre eles podemos citar: a questão da
identidade e da diferença, os interesses que se chocam, o comportamento e o temperamento
de cada um.
Parece-nos fundamental considerar a questão da identidade e da diferença na
relação entre os sujeitos, visto que a identidade aproxima os sujeitos e a diferença provoca o
distanciamento, os conflitos. De acordo com Meyer no prefácio do livro Retórica das paixões
de Aristóteles (2000, p. XLVI), a emulação e a inveja são paixões próximas, por isso, se
dirigem para os iguais: a emulação deseja gerar a identidade; a inveja, a diferença. Tal
situação é comprovada no romance: Yaqub, afetado pela emulação, quer-ser como Omar e
Omar, patemizado pela inveja, não-quer que Yaqub tenha para não ter que competir com ele.
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Também os interesses comuns, quando os sujeitos desejam a conjunção com
um mesmo objeto de valor, como é o caso da paixão do ciúme, então o que está em jogo é a
própria competência dos sujeitos, instaurando a concorrência e a competão que, segundo
Greimas e Fontanille (1993, p. 174), especificam a rivalidade. Esse tipo de relação surge no
romance quando Yaqub e Omar desejam a conjunção com a garota Lívia, intensificando a
rivalidade entre eles.
Interessa-nos salientar, o comportamento e o temperamento dos sujeitos que,
observados com freqüência, revelam-se como indícios de possíveis manifestações passionais.
É o que observamos no romance com os dois irmãos: o comportamento violento, agressivo e
o temperamento impulsivo de Omar são fortes indícios de manifestação colérica; o
comportamento de Yaqub retraído, dissimulado e o temperamento comedido, levam-nos a
pressupor uma manifestação de vingança. Dessa forma, o comportamento e o temperamento
dos dois sujeitos convergem para a diferença entre a cólera e a vingança, cuja explosão final
acontece na lera. De acordo com Fontanille et al. (2005, p. 71), a tensão na lera é
manifestada pela explosão e pela intensidade e a tensão na vingança, pela quantidade e
eficácia.
Notamos que, em todas essas paixões, a relão polêmica é organizada em
torno de um objeto, mas com mais freqüência em torno da superioridade, que impulsiona o
querer dos sujeitos que entram em confronto, provocando as manifestações passionais.
É importante observarmos: de um lado, a emulação, a inveja e o ciúme
partilham de uma mesma configuração, por isso, são paixões que colocam em evidência uma
ausência, que tanto pode ser de uma vantagem, de um bem, de um sujeito-objeto amado; de
outro lado, a lera e a vingança também partilham de uma mesma configuração, sendo,
portanto, paixões de liquidação de falta que, na lera, pode ser de uma ofensa ou de uma
traição e, na vingança, por uma compensação de danos causados.
Em Dois irmãos, encontramos o entrelaçamento dessas paixões que vão nos
permitir mostrar como elas se organizam, nos esquemas passionais canônicos, para produzir
os efeitos de sentido no texto.
Para entendermos a organização textual por meio das paixões manifestadas
pelos dois irmãos, temos que levar em conta que a manifestação dessas paixões é estimulada
por uma outra paixão: o apego intenso da mãe destinado a um filho.
Nesse contexto, observamos que o apego intenso da mãe por um membro da
família estabelece uma hierarquia de tratamento, promovendo: de um lado, a manifestação de
um zelo excessivo, de uma exclusividade de atenções e de uma possessão por apenas um
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sujeito, no caso, Omar; de outro lado, a manifestação de exclusão da relação materna, fazendo
com que Yaqub se sentisse rejeitado. Também, observamos o abandono ao esposo e a
indiferença à filha.
Diante de tal manifestação passional, é possível pensarmos na questão da
coletividade, pois a mãe representa um sujeito coletivo que deveria partilhar as atenções entre
todos de maneira igualitária, mas como isso não acontecia, podemos averiguar que tanto a
exclusividade quanto a exclusão da coletividade são portadoras de efeito de sentido de
discórdia ao longo de todo o romance. Desse modo, a coletividade traduz-se em negativo no
apego, segundo Greimas e Fontanille (1993, p. 189), por um lado, é a relação do sujeito
coletivo com o objeto de valor escolhido que deve não ser; por outro, é a relação entre o
sujeito único e a coletividade que, por sua vez, deve não ser.
Além disso, sabemos que o apego fundamenta uma relação fiduciária baseada
na confiança, por isso, supõe uma fidelidade recíproca entre os sujeitos, uma vez rompida a
confiança, a rivalidade será engendrada na relação. Por esse motivo, a mãe manifestava um
ciúme doentio do filho quando ele se envolvia com algumas mulheres e fazia de tudo para
tirar as rivais do seu caminho.
Queremos mostrar ainda que, na relação de apego, o sujeito é semantizado por
seu objeto e, independentemente, de qualquer tipo de junção, o apego permanece inatingível,
o que possibilita a construção de simulacros que garantirão a realização de junção.
Portanto, ao mesmo tempo em que o apego intenso concilia paixões diferentes,
também faz surgir a rivalidade, a discórdia, a inimizade e o ódio. Reconhecemos, então, que
da interseção das duas configurações, a rivalidade e o apego, surgem várias interações, o que
nos leva a examinar os efeitos do apego sobre a rivalidade, e os da rivalidade sobre o apego.
Porém, todas as paixões manifestadas no romance são observadas e avaliadas
pelo narrador. O papel do narrador, que também participa da história, é de fundamental
importância, visto que à medida que narra os acontecimentos, manifesta o seu envolvimento
afetivo com os sujeitos envolvidos na trama.
Esse narrador, filho bastardo de um dos gêmeos com a empregada da casa,
reconstrói o passado em busca de suas origens. Assim, as histórias que ouviu da mãe e do avô
paterno, mais o que observou e vivenciou constituem o enredo do romance. Ao juntar os
pedaços de histórias para “recompor a tela do passado” (HATOUM, 2006, p.101), vai também
revivendo as emoções sentidas por todos os sujeitos envolvidos na história, assim como
revive as suas próprias emoções, já que também participou dela.
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A narrativa construída pela memória é conduzida pelas várias vozes que
contribuem para que o narrador se sinta tomado pelo prazer das lembranças e dos
esquecimentos. Tal situação projeta no discurso as referências actanciais, temporais e
espaciais que colocam em perspectiva as operações discursivas responsáveis por marcar na
enunciação o narrador no espaço e no tempo do aqui, agora, diferente dele e de outros sujeitos
no espaço e no tempo diferente do aqui, lá no passado. Esses recursos discursivos são
responsáveis por criarem os efeitos de sentido de referência, realidade e verdade do discurso.
No romance em estudo, não podemos deixar de observar os fatos históricos
que transcorreram no período em que se passa a história, como a Segunda Guerra, a Ditadura
Militar, a criação da Zona Franca de Manaus, entre outros. Esses acontecimentos conferem ao
texto um efeito de sentido de verdade.
Contudo, o que nos interessa observar é como essas projeções contribuem para
que os efeitos de sentido passionais possam ser identificados na enunciação. Dessa forma,
identificamos o narrador como um sujeito dividido, conflituoso: de um lado, procura se
distanciar dos acontecimentos, prima pela objetividade com o discurso em terceira pessoa; de
outro lado, deixa fluir o seu envolvimento com o discurso em primeira pessoa que produz os
efeitos de sentido de subjetividade. Nessa perspectiva, outra questão importante é o fato de o
enredo ser constrdo paradoxalmente pelo anúncio e pelo segredo que também convergem
para confirmar o sujeito conflituoso, pois no passado o sujeito desconhecia os fatos, então ele
o poderia deixar fluir na narrativa o desfecho que o narrador, no presente, já o conhece.
Quanto à referência desse sujeito apaixonado, ela é observada de forma
discriminatória no romance, já que ele é fruto do estupro de uma empregada descendente de
índios e, também porque o seu lugar naquela família era o de um agregado. Essa referência
converge para uma das manifestações passionais desse sujeito, que inconformado com a sua
condição de agregado, ao contrário da mãe que foi tomada pela inação, ele buscava nos
estudos a sua alforria. Esse termo, usado pelo narrador-sujeito apaixonado, revelava a revolta
com a sua condição naquela casa e, também é uma forma de denunciar o preconceito racial e
social.
Além disso, essas projeções são também importantes na construção dos
simulacros, principalmente, quando o sujeito ao esquecer os acontecimentos, deixa a
imaginação inventar. Para Bertrand (2003, p. 379), a projeção de simulacros é a característica
central da enunciação passional.
Outro recurso utilizado pelo narrador que nos permite identificar o sujeito
apaixonado é o uso de metáforas e de comparações por meio da reiteração dos temas e da
15
redundância de figuras. Salientamos aqui, as contribuições de Edwar Lopes (1986) para o
estudo das metáforas e, também, Bertrand (2003), Greimas (2002) e Fontanille (2007) no que
diz respeito à questão das figuras.
Esses recursos, além de evidenciarem um sujeito apaixonado, criam também os
efeitos de referência, realidade e verdade discursiva. Com efeito, a maioria desses recursos faz
referência ao comportamento dos meos e também antecipa indícios do desfecho do
romance. Cumpre-nos lembrar também que, segundo Barros (2002, p. 119), esses recursos
nos levam a associar o texto com outros contextos. É o caso das referências Bíblicas no
romance que nos permitem identificar a intertextualidade e a interdiscursividade com as
passagens de fratricídio e rivalidade entre irmãos.
Enfim, todos esses recursos textuais utilizados pelo narrador-enunciador
persuadem o enunciatário para fazer-crer a realidade e a verdade do discurso. Mostramos,
nesse ponto, como Barros (2002) e Fontanille (2007) discutem sobre o caráter argumentativo
da enunciação.
Verificamos, também, que o narrador assume o papel de observador social que
avalia e moraliza as paixões dos sujeitos envolvidos na história, mas ao mesmo tempo é por
elas afetado, deixando aflorar no texto as suas paixões. Assim, entendemos que as paies
manifestadas por ele surgem como um contágio passional.
Dessa forma, percebemos que o enredo fragmentado, além de evidenciar a
história constrda pela memória, revela também a oscilação da tensão do narrador-sujeito
apaixonado.
Diante de tudo o que foi exposto, nosso trabalho propõe verificar os efeitos de
sentido produzidos pelas paixões no romance Dois irmãos, sejam essas paixões manifestadas
pelos sujeitos que dão título à obra, sejam elas manifestadas pelos outros sujeitos com os
quais os dois se relacionavam.
Sustentamos, assim, que todas essas paixões se entrelaçam como uma rede de
relações, em que cada sujeito manifesta a sua paixão como uma reação àquela que lhe foi
direcionada. Observamos, ainda, que não se trata de uma troca passional, porque os efeitos de
sentido que surgem na interação passional são distintos em cada manifestação.
Para empreender nossas análises, julgamos oportuno o contato com outras
leituras e trabalhos sobre a mesma obra de Milton Hatoum. Para tanto, no primeiro capítulo
apresentaremos a nossa leitura particular sobre a obra e estabeleceremos a distinção entre as
rias leituras das quais tivemos conhecimento, sejam elas no modo de ver ou de utilizar o
conteúdo da obra, expondo os pontos principais que serão explorados no estudo das paixões.
16
Como já foi dito, para analisarmos o sentido produzido pelas paixões em Dois
irmãos, a nossa opção de investigação teórica é a semiótica, portanto, o segundo capítulo será
destinado à abordagem teórica. Nessa perspectiva, o capítulo se apresentará dividido em três
partes, sendo que em cada parte procuraremos expor de maneira clara e objetiva os aspectos e
procedimentos aos quais recorreremos para procedermos à aplicação teórica nas análises.
Assim, na primeira parte discutiremos alguns aspectos do estudo das paixões
realizado por Aristóteles em Retórica das paixões (2000) e, como algumas das idéias que ele
defendia podem contribuir para o nosso estudo das paixões. É o caso, por exemplo, da efetiva
participação do outro no processo de comunicação, por meio da argumentação e da persuasão
da linguagem, confirmando a identidade e a diferença dos sujeitos envolvidos na relação
passional. Mas, também, mostraremos que a teoria semiótica diverge dos fundamentos
teóricos da Retórica, pois propõe a análise da significação sob o donio da lógica que
permite comprovar os efeitos de sentido de realidade do discurso.
Na segunda parte, faremos uma exposão dos procedimentos da teoria
semiótica geral que deram origem à semiótica das paixões. Nosso objetivo nessa parte será o
de mostrar, principalmente, para um leitor que não tem familiaridade com a semiótica, quais
os caminhos para se chegar à compreensão do estudo das paixões. Dessa forma,
apresentaremos resumidamente o percurso gerativo do sentido, explicando como cada um dos
três veis do percurso contribui para a constituição do sentido global do texto. Na seqüência,
relacionaremos os níveis do percurso gerativo do sentido com o estudo das paixões,
mostrando que as combinações das configurações semânticas e da sintaxe modal permitem
reconhecer e organizar os esquemas passionais canônicos. E, ainda, apresentaremos com mais
detalhes a enunciação passional e a gramática do discurso que a caracteriza, ou seja, os
recursos textuais utilizados pelo sujeito da enunciação para fazer-crer o discurso que enuncia.
Por fim, a terceira parte, na qual reuniremos, principalmente, os estudos de
Greimas e Fontanille, Semiótica das paixões. Dos estados de coisas aos estados de alma
(1993), e Fontanille et al., Dictionnaire des passions littéraire (2005), sobre as configurações
passionais, os constituintes sintáticos e como são organizados os esquemas canônicos.
Depois do capítulo teórico, procederemos à análise das paixões que emergem
do relacionamento entre os dois irmãos. Nosso objetivo, nesse capítulo de análises, é
averiguar cada paixão dentro de sua configuração, assim como a focalização da relação entre
os sujeitos para percebermos de que forma eles são afetados pelas paixões e, em seguida,
examinar as fases do dispositivo canônico que nos assegurará a comprovação da manifestação
patêmica do sujeito apaixonado.
17
No último capítulo, analisaremos a paixão que, a nosso ver, estimulou toda a
rivalidade entre os dois irmãos, fazendo com que as demais paixões entre eles engendrassem
cada vez mais a inimizade e o ódio recíprocos. Ainda, nesse capítulo, analisaremos o papel do
narrador-observador social que avalia e moraliza as paixões, mas que também é afetado por
elas, visto que ele participa da história e se revela um sujeito apaixonado.
18
1 FORTUNA CRÍTICA
O corpus que utilizamos para desenvolver o presente trabalho, o romance Dois
irmãos de Milton Hatoum (2006), é um exemplo de literatura de qualidade, de consagrada
repercussão nacional e internacional.
Milton Hatoum, escritor contemporâneo cuja obra se encontra em pleno
desenvolvimento, é autor de romances, contos, poesias e de alguns estudos sobre literatura. Os
três romances escritos pelo autor receberam importantes prêmios
1
, além do reconhecimento
por críticos literários de grande renome e, ainda, obtiveram boa aceitação no mercado
editorial internacional, pois foram traduzidos para vários idiomas
2
.
Sobre o reconhecimento de suas obras, especificamente, na época em que
recebeu o prêmio pelo livro Dois irmãos, Hatoum disse em entrevista à Revista Linguativa
(2002) que um livro de ficção para se tornar reconhecido depende de um público leitor e da
crítica, do leitor crítico; e complementa, às vezes um ‘best-selleré esquecido em poucos
anos, mas quando um livro recebe críticas bem argumentadas, ele vive mais, circula com mais
consciência
3
.
Relevante é o destaque conferido à produção literária do autor pela mídia,
principalmente, a jornalística com significante número de matérias, notas, entrevistas, debates
sobre a vida e a obra do notável escritor. Em conseqüência da divulgação crescente do
reconhecimento da qualidade de seus trabalhos, justifica-se, então, a indicação de suas obras
tanto para apreciação estética quanto para testes de conhecimento, concursos e vestibulares,
por isso, a circulação de resenhas e estudos literários sobre suas obras nas instituições
escolares de todo o país, inclusive, de palestras proferidas pelo próprio autor em várias
universidades.
É importante citarmos, também, alguns textos acadêmicos que trabalham com
a matéria ficcional das obras de Hatoum, fato que confirma a acuidade e a riqueza da
1
Relato de um certo oriente e Dois irmãos (Prêmio Jabuti) e Cinzas do Norte (Prêmio Jabuti e Portugal
Telecom).
2
Relato de um certo oriente (1989) para seis idiomas, com publicações em oito países diferentes; Dois irmãos
(2000) para oito línguas, com publicações em dez países. Disponível em: <http://www.dw-
world.de/dw/article/0,2144,1353 76,00.html>. Acesso em: 15 de nov. de 2007.
3
Entrevista à revista Linguativa, 2002. Disponível em: <http://www.linguativa.com.br/
home_entrevista_hatoum.asp>. Acesso em: 28 de novembro de 2006.
19
linguagem que explora uma gama cultural de grande valor expressivo, contribuindo para que,
por meio de um único texto, como é o caso de Dois irmãos, várias leituras possam se
processar em diversas direções que se complementam, abordando em cada leitura uma nova
especificidade que revela a dinamicidade do conteúdo e a multiplicidade de assuntos
ancorados ao tema principal e, portanto, as inúmeras possibilidades de se chegar à sua
compreensão. São alguns exemplos desses trabalhos com os quais tivemos contato em nossas
pesquisas: a tese de doutorado sobre as obras de Dalcídio Jurandir e Milton Hatoum, cuja
análise de Dois irmãos enfatizou os sentidos da recuperação e da disputa dos espaços íntimos
da casa familiar (FREIRE, 2006); a dissertação de mestrado sobre relações entre identidade e
memória no romance Dois irmãos (CALDEIRA, 2004); o artigo enfocando o regionalismo
revisitado nas obras de Hatoum (PELLEGRINI, 2006); o artigo que procura analisar os
significados da floresta e da trajetória escolar das personagens principais de Dois irmãos
(REIGOTA, 2003); o trabalho apresentado no Congresso Luso-afro-brasileiro de Ciências
Sociais em Coimbra que abordou o espaço e o preconceito nas obras de Hatoum
(MARCONDES e TOLEDO, 2004); o trabalho sobre a religiosidade árabe em Milton Hatoum
que foi destaque no Seminário Internacional de Ciências das Religiões na UFPB (VILLAR,
2007). Todos esses trabalhos, embora tenham como ponto comum, a obra Dois irmãos de
Milton Hatoum, apresentam uma focalização específica de acordo com a área para a qual se
destina a investigação teórica, determinando tipos diversos de análise acerca do corpus em
estudo. No nosso trabalho o que nos interessa mostrar em Dois irmãos são os efeitos de
sentido produzidos no texto pelas paixões que afetam os estados de alma dos dois irmãos,
bem como os dos demais membros da família, inclusive dos agregados que mantêm um
contato direto com eles.
Partindo do pressuposto de que a leitura de qualquer obra literária tem início na
capa do livro, no título e nas ilustrações que antecipam alguns indícios do conteúdo que
podem ou não ser comprovados a posteriori. Tais recursos são usados para seduzir e, ao
mesmo tempo, criar expectativas no leitor em relação ao conteúdo global do texto. Ao leitor
cabe o papel de desvendar o texto, por meio de todas as pistas nele inscritas, para extrair-lhe o
sentido.
O corpus em análise traz como título Dois irmãos, o que de certa forma gera
expectativas em relação ao conteúdo da obra, pois se pensarmos no numeral dois, ele nos
remete a idéia de soma de um mais um, dualidade, companheirismo, cumplicidade, união; e,
se pensarmos no lexema irmão, por associação, lembraremos laços saníneos, amor fraterno,
família. Portanto, o título sugere a iia de união fraternal.
20
Também as cores e a ilustração da capa produzem efeitos de sentido. A capa
tem como fundo as cores em tons verde e amarelo, sobrepondo-se a esse fundo, margens
vermelhas espessas limitam a estampa criando a ilusão de um porta-retratos, cuja suposta
fotografia estampada é a de uma única árvore às margens de um rio, ambos contornados na
cor branca. O que causa certo estranhamento é a presença de uma única árvore em meio a um
grande fundo verde, uma presença solitária que contraria o título, cujo numeral expresso é o
dois. Então, a capa do livro já suscita uma indagação.
Depois há a epígrafe de Carlos Drummond de Andrade:
A casa foi vendida com todas as lembranças
Todos os móveis todos os pesadelos
Todos os pecados cometidos ou em vias de cometer
A casa foi vendida com seu bater de portas
Com seu vento encanado sua vista do mundo
Seus imponderáveis [...]
Percebemos na epígrafe, a dualidade representada pelos elementos opostos
relativos à matéria (casa, móveis) e à emoção (lembranças, pesadelos) que convergem para os
valores negativos representados pelos pecados: o bater de portas (rivalidade, agressividade); o
vento encanado (aprisionamento, amarras, ressentimentos), a vista do mundo (restrição,
egocentrismo); os imponderáveis (irreflexão, imprudência). Nesse sentido, a venda da casa
corresponde tanto à ação de se desfazer de um bem material quanto ao sentimento de perda
das lembraas ou, ainda, o sentimento de libertação dos pecados cometidos naquele
ambiente.
Na seqüência, a página de abertura, que antecede os capítulos, comprova essa
leitura que fizemos da epígrafe: Zana, a matriarca da família, teve que deixar a casa, no bairro
portuário de Manaus, com todas as suas lembranças, inclusive, com os pecados cometidos
naquele lugar, “Meus filhos já fizeram as pazes?” (HATOUM, 2006, p. 10), pois se existia
inimizade fraterna, então, houvera também ali discórdia, rivalidade, agressão, ressentimento,
irreflexão, ou seja, paixão. Nesse ponto, conseguimos entender as cores que aparecem na capa
em tons verde e amarelo, como referência à obra que trata da expressão da nacionalidade
brasileira, já que essas cores simbolizam a nossa Pátria por meio da bandeira e, ainda, cuja
história é ambientada em Manaus, cidade de referência de nascimento do autor.
21
Logo no primeiro capítulo descobrimos que se trata de irmãos meos
univitelinos, portanto formados de um único óvulo. O prefixo uni- tem por definição um,
então, desde o início da fecundação dois fetos já começam a dividir o que era para um. A
antecipação de união começa a ficar ameaçada e, os capítulos que se sucedem, evidenciam a
desunião dos gêmeos.
De fato, o enredo tem como centro a história do relacionamento conflituoso de
irmãos meos tão iguais na aparência e tão distintos no comportamento: Yaqub, o mais
velho, é retraído, dissimulado, calculista, mas tamm é responsável, estudioso, atento às
coisas do mundo; Omar, ao contrário, é boêmio, sedutor, mulherengo, ocioso, agressivo,
infrator, alheio a qualquer tipo de responsabilidade, quer da vida o prazer que ela possa lhe
proporcionar. Desde pequenos, a diferença de comportamento é uma agravante da rivalidade
entre os gêmeos.
É interessante observarmos que o tema abordado por Hatoum não é nada
inusitado, devido às inúmeras produções que já divulgaram o assunto, mas em Dois irmãos,
mesmo reconhecendo a intertextualidade e a interdiscursividade com produções de outros
autores em épocas distintas, Hatoum surpreende-nos com tamanha criatividade e perspicácia
ao abordar um tema que já se acreditava exaurido. Segundo Leila Perrone Moisés (2000), no
Jornal de Resenhas da Folha de São Paulo, Hatoum foi corajoso ao escolher esse tema:
O tema dos gêmeos, semelhantes ou dessemelhantes, amigos ou inimigos, opostos
ou complementares, tem sido fartamente explorado em todos os tempos e todas as
culturas e, na nossa, em todos os gêneros, do mito ao folhetim. Desde os míticos
Dióscuros gregos, passando por Esaú e Jacó (da Bíblia e de Machado de Assis) ou
os “Irmãos Corsos”, de Alexandre Dumas, até chegar ao cinema e às novelas de
televisão, variando do tom mórbido ao caricato, os gêmeos pareciam ser um tema
ficcional esgotado. Ora, Hatoum soube revigo-lo de maneira original. (MOISÉS,
2000, grifo da autora)
O fato de associar Dois irmãos com diversos tipos de textos nos leva a
observar a dimensão universal da literatura, conciliando: o sagrado e o profano, a identidade e
a diferença, o prazer e a dor. A história da rivalidade entre irmãos, tomando por base os textos
Bíblicos
4
, nos quais o discurso fundador revela as paixões que afloram dos relacionamentos
fraternos, coloca em evidência a diferença de comportamento dos sujeitos, a concorrência e a
4
A história de rivalidade entre dois irmãos intertextualiza as passagens Bíblicas de Abel e Caim (GÊNESE, 4:1-
16), filhos de Adão e Eva e a de Esaú e Jacó (GÊNESE, 25: 19-34), filhos de Isaac e Rebeca.
22
competição na busca por seus interesses e o papel da mãe que interfere na relação com a
finalidade de privilegiar um dos filhos. Assim, também acontece no romance de Machado de
Assis, Esaú e Jacó, que é referência central para Dois irmãos(PIZA, 2001). Esse mesmo
escritor, em matéria publicada no jornal O Estado de São Paulo, fala de intelectuais de outros
países e nacionais que influenciaram Hatoum, entre eles cita as influências nacionais de Raul
Pomia, com a ficção urbano-intimista; Euclides da Cunha, a prosa natural-épica; Pedro
Nava, pelo memorialismo; e Machado de Assis, a análise do comportamento humano.
Comparando o estilo de Hatoum com o de Machado, o escritor diz:
[...] em Machado a história dos dois gêmeos, Pedro e Paulo, é tomada como conflito
de duas ideologias, a monarquia e a República. [...] Em dois irmãos, os meos não
encaram diferenças ideológicas, mas antes comportamentais [...] Hatoum não tem o
humor de Machado, mas deriva diretamente do estilo machadiano em sua
capacidade de observar o comportamento humano em suas minúcias
escamoteadoras. Poucos autores brasileiros conseguiram ser machadianos sem serem
imitadores de Machado
.
(PIZA, 2001)
Nessa lógica, a análise do comportamento dos meos é de substancial
importância no estudo das paixões não podemos negar, pois é por meio da observação da
variação contínua dos seus estados de alma que conseguiremos verificar os efeitos de sentido
produzidos nos textos que nos permitem reconhecer e analisar as paixões. Inicialmente, na
infância, percebemos pelos comportamentos, atitudes e maneira de ser dos gêmeos que Yaqub
desejava ser como Omar, por isso ele era afetado pela emulação; já Omar era invejoso, pois
sentia prazer em impedir que Yaqub conseguisse as vantagens que possuía para não ter que
competir com ele, ou seja, enquanto Yaqub procura no irmão a sua identificação, Omar luta
para manter o que os diferencia.
Mas devemos também considerar que esses comportamentos o, na maioria
das vezes, estimulados pela mãe que, ao dedicar um zelo excessivo ao filho caçula, imputa ao
mais velho o sentimento de rejeição: seja na infância, deixando-o aos cuidados de Domingas;
seja na adolescência, mandando-o para o Líbano; seja com sua volta, fazendo-o sentir-se um
deslocado em casa. Já o pai, sentindo carência dos afetos da esposa, revolta-se com o filho
protegido pela mãe e mais atenção a Yaqub. O apego intenso da mãe com Omar
desencadeia, ao longo do romance, a paixão do ciúme, seja ela manifestada pelos gêmeos:
Yaqub ao sentir-se rejeitado pela mãe, Omar por o abrir mão da exclusividade do afeto
materno; seja manifestada pelo pai: Halim sofre com o desprezo da esposa que tem olhos
23
para o filho caçula; seja manifestada pela mãe: Zana não admite a iia de dividir Omar com
outra mulher.
A possessão da mãe pelo caçula é vista por Luiz Costa Lima (2000), em A ilha
flutuante, como o núcleo tico que sustenta a ficção em Dois irmãos:
O caçula é “o noivo cativo da mãe”. [...] A figura do noivo cativotem a força
pregnante de um mito. Seu destino faz lembrar Dioniso destroçado.[...] Seu
antípoda, o rapaz rio, que escapa de Manaus para se tornar um calculista de êxito,
também integra o mito: Yaqub volta a Manaus para elaborar o projeto de hotel
planejado por mais novo imigrante, que termina por se apossar da casa dos pais. [...]
O mito do “noivo cativo” é a viga que constrói o que os filhos de família haviam
destruído, como parte de uma estrutura que desconheciam. [...] O mito que cria e
fecunda configura um romance que supõe matéria social bem diversa da fião de
Primeiro Mundo. A casa que se destrói conta de uma sociedade absolutamente sem
amarras internas, em que repontam poucas ilhas, que se fazem e desfazem. O
realmente notável em Dois irmãos é a solda da forma alcançada. Forma que se nutre
de um núcleo mítico enquanto metamorfoseia em romance. O romance de um
mundo flutuante, assediado tanto pela razão calculadora como por afetos
desenfreados. (LIMA, 2000, grifo do escritor)
Assim, reconhecemos também que o envolvimento afetivo de mãe e filho é um
tema explorado pela Bíblia, pela Mitologia, pela Literatura de todas as épocas em diferentes
culturas e, por esse motivo, não deixa de ser um assunto interessante, visto que trata de um
assunto que faz parte da condição humana de se relacionar com o outro, portanto, a sua
capacidade de sobreviver através dos tempos.
Dessa forma, a condição humana de se relacionar com o outro é marcada
muitas vezes pela competição. O lexema competição é definido como: ato de competir, 1.
Pretender alguma coisa simultaneamente com outrem; concorrer. 2. Rivalizar com. 3. Ser da
competência de. 4. Pertencer por direito; caber, tocar (FERREIRA, 1986, p. 440).
Encontramos nessa definição a síntese do conflito dos dois sujeitos, a própria
definição se encarrega de instaurar no ato competidores, sujeitos que percorrem caminhos
paralelos, enfrentam-se, provam suas competências e, por isso, recebem suas recompensas.
Assim é que em Dois irmãos, os sujeitos ao buscarem interesses que se chocam, tornam-se
suscetíveis em manifestar as suas paixões, paixões que colocam em jogo a superioridade de
um e a inferioridade do outro e, que desencadeiam relações complexas que levam os sujeitos
aos extremos, como por exemplo: de um lado, Omar explode com sua lera contra Yaqub;
do outro lado, Yaqub revida os danos causados por Omar com uma vingança implacável.
24
Se o relacionamento dos gêmeos era marcado pelo conflito, o relacionamento
deles com a irmã, Rânia, era mesclado pela sedução e por um sensualismo que beira a relação
de incesto. Rânia nos dois irmãos o conjunto de todas as qualidades que gostaria de
encontrar em um homem, como não encontrou esse homem ideal, ficou solteirona, assumiu os
negócios da família, cuidou da mãe até a morte, manteve-se imparcial na briga dos irmãos,
mas não perdoou a vingança de Yaqub. A imparcialidade de Rânia nos embates entre os
irmãos conferem a ela uma participação menos questionada no romance, pois em momento
algum ela se rebela com a mãe por manifestar a preterição ao Omar; como caçula da família,
também não manifesta um comportamento típico de filho caçula mimado pelos pais; pelo
contrário, é uma mulher forte e decidida que se torna a provedora do sustento da família,
assumindo os negócios do pai que velho não tinha mais condições de continuar à frente dos
negócios. A caçula da família assume as responsabilidades que deveriam ser dos filhos mais
velhos.
a participação de Domingas é mais dinâmica, isso porque se divida o
tempo todo entre duas relações que solicitam dela uma decisão pessoal e, que ela na sua
condição humilde de descendente de índios, órfã que mora de favor na casa dos patrões, não
consegue tomar uma atitude entre: o desejo de ser livre e o trabalho cativo sem remuneração;
revelar o segredo da paternidade ao filho ou calar a desonra de Omar. Essas relações estão
intimamente ligadas aos gêmeos, visto que ela não consegue se libertar daquela família,
porque nutre por Yaqub afeição de mãe postiça e, não revela o segredo da paternidade ao
filho, porque não tem coragem de cobrar de Omar que repare o erro, assumindo o filho. A
relação de Domingas com aquela família constitui-se como denúncia social de exploração de
trabalho sem remuneração e abuso sexual de patrão com empregada, por isso, o podemos
deixar de observar que a obra de Hatoum se presta a esse papel: o de denunciar o preconceito
social e racial em nosso país. O próprio autor revela na matéria com Daniel Piza (2001): “A
mestiçagem em si é boa”, diz, “mas o deve ser colocada em primeiro plano. Mestiçagem
com desigualdade brutal não é salvação de nada”. Por isso, gostaríamos de ressaltar que a
desigualdade social e o preconceito racial identificados no romance não são o nosso foco
central, mas também não podemos ignorá-los, uma vez que estão presentes no texto e o
fontes significativas de manifestação patêmica senão de Domingas, por sua inação, de seu
filho, Nael, que ao narrar a história da qual também participa, deixa marcas de seus afetos e
desafetos no texto.
Dentro desse enfoque, Nael, o filho bastardo de Domingas com Omar, é o
narrador da história que, na tentativa de descobrir suas origens, junta os retalhos das histórias
25
contadas a ele pela mãe e por Halim, mais a observação dos acontecimentos a que assistiu e
dos quais também participou, reconstruindo, depois de trinta anos, o passado daquela família
que também era o seu passado. Assim, constatamos em Dois irmãos um conflito com a
presença do outro, que ora se manifesta como narrador/enunciador, ora como
narratário/enunciatário.
Interessa-nos salientar que, Nael embora mantendo certo distanciamento da
matéria narrativizada, primava por ser fiel aos acontecimentos, mas escapando-lhe algo, a
imaginação inventava. Nesse sentido, observamos que o narrador, ao mesmo tempo em que
relata a história, participa dela deixando transparecer o seu envolvimento afetivo, como nas
rias vezes que tenta descobrir qual dos meos é seu pai, manifestando aversão por Omar e
admiração por Yaqub, ou ainda, desejando não ser filho de nenhum dos dois, porque eles se
equivaliam em periculosidade, apesar de se identificar com Yaqub, ao revelar o desejo de se
vingar da humilhação que Omar causou a ele e à sua mãe: “Alguns dos nossos desejos se
cumprem no outro, os pesadelos pertencem a nós mesmos” (HATOUM, 2006, p. 196).
Esse envolvimento patêmico do narrador pode ser também observado nas
palavras de Piza (2001, grifo do escritor): Escrevendo tanto tempo depois (o futuro, essa
falácia que persiste”), o narrador conta as histórias, mas também sofre com elas, expõe seus
sentimentos ambíguos quanto aos gêmeos, luta para manter o barco em águas tão turbulentas,
serpenteia entre a passionalidade de Omar e o racionalismo de Yaqub”. não concordamos
com ele em um ponto crucial, Yaqub não é racional, ele é tão ou mais passional que Omar. A
diferença deles está no fato de Omar ser impulsivo e manifestar as suas paixões no calor do
momento; Yaqub, o, pois soube suportar o ressentimento calado e esperar o momento certo
para se vingar.
Outra qualidade do romance, de acordo com Leila Perrone Moisés, é a
construção da narrativa esteada no segredo e no anúncio. Sobre esse enfoque, ela afirma:
O narrador é detentor do segredo, parte integrante dele, e testemunha de uma história
que implica todas as personagens. Temos, assim, um triplo segredo. O primeiro, é a
própria identidade do narrador, que se revela na pág. 73. O segundo, levado ao
fim do livro, através de indícios ambíguos, é o de sua origem paterna. O terceiro
segredo é oriundo na própria trama narrativa, pelos anúncios de um desenlace que só
conhecemos nas últimas páginas. (MOISÉS, 2000)
26
Ao ter em vista esses comentários, não podemos deixar de relacionar o segredo
e o anúncio com a projeção temporal do romance, num ir e vir que privilegia sempre o tempo
retroativo, reconstrdo pela memória do seu narrador, cujo desejo ao usar as palavras é o de
revelar por meio da escrita todos os segredos e paixões que fizeram parte daquele conflito
fraternal.
Em Dois irmãos, a história se passa entre o período da Segunda Guerra
Mundial até os anos da Ditadura Militar, dois períodos marcados por combates e conflitos,
portanto bastante significativos para a temática abordada. Porém, em nossas análises
abordamos apenas a ligação de Omar com o professor e poeta Antenor Laval, preso por tropas
do exército e assassinado na prisão por envolvimento com o Comunismo.
Não podemos deixar de mencionar também as transformações sofridas pela
capital, nesse ínterim, com o desenvolvimento do comércio e da indústria, a Zona Franca de
Manaus, representada no romance pela figura do estrangeiro Rochiram, que teve um papel
relevante no conflito entre os gêmeos, pois foi por intermédio dos seus negócios que Omar
manifestou a sua cólera contra Yaqub, e Yaqub desfechou a sua vingança contra Omar.
Nesse sentido, tempo e espaço caminham juntos. É o que comprovamos no
comentário abaixo:
O tempo “faz alguém humilde, cínico ou tico”, comenta o narrador. Testemunha e
coadjuvante do passado, esse narrador o é (pelo menos não agora, no presente
texto) nem humilde nem cético nem muito menos cínico. É um escritor: alguém
capaz de transformar vivência em experiência pelas vias da memória e da palavra.
Mas a memória guarda distinções: escapa sempre ao exotismo, assim como faz o
que pode para escapar ao regionalismo. [...] Que esse romance continue sendo um
livro amazonense é uma escolha, não uma fatalidade. (NESTROVSKI, 2000)
Por esse comentário, chegamos ao que nos interessa abordar sobre o tempo, o
espaço e os sujeitos envolvidos no discurso, eles são marcados no texto pelo
narrador/enunciador que projeta na enunciação o (eu/aqui/agora), o discurso em primeira
pessoa em oposição ao (ele/lá/então), o discurso em terceira pessoa e, ainda, o discurso direto
que implica a responsabilidade do que é dito aquele que o diz. E, esse narrador que também é
escritor tem a competência, é alguém que sabe o que faz e, por isso, com essas projeções cria
no texto os efeitos de referência, realidade e verdade do discurso.
Vem de encontro ao que foi dito as palavras de Manuel da Costa Pinto (2000)
acerca de uma transcrição de debate sobre a literatura contemporânea, em que a questão mais
27
polêmica foi a que enfocou a excessiva preocupação de muitos escritores com a representação
da realidade social e potica do país. Segundo esse colunista da Folha, Bernardo Carvalho e
Milton Hatoum defenderam a idéia de literatura como expressão de um universo pessoal e
Marçal Aquino e Luiz Ruffato afirmaram uma literatura que parte da realidade. Então, o
escritor conclui:
A rigor, entretanto, poderíamos dizer que essa é uma falsa dicotomia. Mesmo
correndo o risco de chover no molhado, é bom salientar que literatura sempre é
identidade e diferença, ou seja, parte do real e da linguagem pela qual ele se
reproduz para atingir, por meio das mediações da palavra poética, uma verdade
ficcional que o amplia, critica e relativiza. Tanto faz que esse “real” seja mais
subjetivo ou mais objetivo, que esteja na memória familiar, nos fantasmas da
infância ou na sujeira das ruas. (PINTO, 2000, grifo do escritor)
Assim, preferimos falar em efeito de realidade e de verdade do discurso
ficcional que podem ser verificados no texto pelas marcas que o narrador deixa nele.
Voltando à questão do regionalismo citado por Nestrovski (2000), enquadrar a
obra de Hatoum como regionalista é uma questão também bastante polêmica. aqueles que
o fazem, como Jato (2004): “Sua ficção transita dentro da tradição regionalista tão
agressivamente transformada por Rosa _ ele se preocupa essencialmente com o subjetivo, em
buscar a linguagem dos sentimentos, e não com a carga anedótica, com as peripécias”. Mas
também os que preferem falar em caráter multicultural, porque o romance contextualiza o
espaço físico da portuária cidade de Manaus, habitada por mestiços, viajantes e imigrantes
árabes, deixando fluir na narrativa os efeitos dessa aculturação na formação da cultura
amazônica. Os comentários de Álvaro Kassab (2001), no Jornal da Unicamp, reafirmam essas
especificidades da obra de Hatoum:
Hatoum joga todos os dados no tabuleiro da profusão de imagens e sensações
caudalosas que marcam sua vida. Transforma-se no mercador da bela prosa poética,
no mascate cuja embarcação permanece atracada no cruzamento de culturas o
díspares quanto coexistentes. De sua mala saem vozes da tradição oral milenar
oriental, cânticos de tribos perdidas no paraíso perdido, sons emitidos por curumins
na selva, falas de judeus marroquinos estabelecidos na província. De suas histórias
brotam os conflitos da família árabe, as lendas amazônicas, irrompem os caboclos. O
escritor funde carneiro e arara, tanga e túnica, cedro e jacareúba, narquilé e tabaco
de corda, tucum e jasmim, cunhantãs e maritacas, mediterrâneo e amazônico.
Hatoum espalha um punhado de zatar no Rio Negro
.
28
Reconhecemos na obra de Hatoum esse caráter multicultural: a família de Zana
e Halim, descendentes de imigrantes rio-libaneses; os agregados da casa, mestos;
Rochiram, o indiano; entre outros. Que a riqueza de costumes, de linguagem e de histórias
emaranhadas no enredo é uma característica importante da obra de Hatoum não é nosso
objetivo desmerecê-la, mas algo além da influência dessas culturas que salta aos nossos
olhos e, esse algo é o efeito de sentido produzido pelas paixões que irrompem a todo o
momento no texto.
Apesar de todo o reconhecimento da crítica sobre o qual citamos aqui alguns
comentários, Leila Perrone Moisés (2000), embora também apresente várias qualidades em
Dois irmãos, não deixou de mostrar um defeito no andamento da trama:
Conduzida com maestria por mais de 200 ginas, no fim do livro o andamento da
trama começa a girar em circulo, com idas e vindas das personagens (até dos mortos,
na memória do narrador), e excesso de motivações, no caso de Omar (implicações
políticas somadas às psicológicas). Parece-me que a trama ganharia mais intensidade
sem essas complicações finais. Mas esse pequeno defeito não prejudica a força total
do romance. (MOISÉS, 2000)
Acreditamos que isso que a escritora chama de defeito, se deve, no fim do
romance, à manifestação quase que simultânea das paixões de Omar (cólera), de Yaqub
(vingança), assim como essas paixões afetam o narrador. Desse modo, essas idas e vindas das
personagens bem como o excesso de motivações, citados pela escritora, tem ligação com a
oscilação da tensão do narrador, a sua sensibilização ao relatar os fatos.
Ainda nessa perspectiva do fim do romance, vemos que a família foi desfeita
pelas mortes de alguns de seus integrantes (Halim, Zana, Domingas) e pelo distanciamento
que os conflitos provocaram naqueles que continuaram vivos. Retornamos, então, à indagação
inicial suscitada pela capa do livro, pois agora temos condições de tentar desvendar a
representação de uma única árvore contornada pela cor branca, supostamente exposta em um
porta-retratos emoldurado pela cor vermelha. O que conseguimos entender é que a árvore
representa cada um dos membros da família que solitários conseguiram encontrar a paz,
representada pela cor branca, já que o convívio entre eles trouxe tanta desavença. O fato de
estar em um porta-retratos cuja moldura é vermelha, remete-nos à iia de que a vida de cada
29
um deles ficou marcada na memória, representada pelo porta-retratos, pelos conflitos dos
gêmeos, que causaram sofrimento e violência, representados pela cor vermelha da moldura.
Por tudo o que apresentamos, Dois irmãos se constitui um excelente corpus
para a análise das paixões como manifestação de efeitos de sentido inscritos nos textos. É
assim que esperamos mostrar como no relacionamento dos dois irmãos afloram várias paixões
que afetam não o estado de alma desses sujeitos, mas também dos outros sujeitos que se
relacionam com eles.
30
2 METODOLOGIA
A pesquisa científica ime ao pesquisador um contato direto com a produção
específica de cada área investigada. Ao pesquisador cabe a responsabilidade de refletir,
observar, experimentar e aplicar o método em um determinado corpus. Como a produção
científica não é estanque, faz-se necessário buscar a fundamentação teórica nos estudos
desenvolvidos, para assim proceder à investigação e à validação do método utilizado. Essa é
com certeza a justificativa primordial para a existência do capítulo teórico: reunir os pontos
mais relevantes da teoria, que é bastante abrangente e complexa, delimitando os aspectos que
foram utilizados para o desenvolvimento do trabalho.
Uma segunda justificativa que apresentamos é a de mostrar e comprovar a
eficácia e a coerência de uma teoria que empreende a busca da significação nos textos, cujos
efeitos de sentido devam estar inscritos neles como possibilidades, assim, privilegia-se o
estudo dos mecanismos intradiscursivos de constituição do sentido, embora a
interdiscursividade seja também valorizada.
A partir do momento em que é possível mostrar e comprovar a pertinência do
todo de pesquisa, trabalhar a teoria é também divulgar a sua importância e a sua
contribuição para o desenvolvimento das ciências da linguagem, uma área tão valorizada pela
sociedade moderna.
Enfim, a escolha metodológica de qualquer projeto de pesquisa é a diretriz que
norteará não um trabalho de conclusão de curso, mas, com certeza, a opção cristalizada, em
face ao crivo de opções apresentado, que qualificará o pesquisador e o conduzirá na
incessante busca do conhecimento a respeito de uma produção científica que o pára de
crescer.
Diante dessas perspectivas abordadas, esboçaremos a metodologia de aplicação
da Teoria Semiótica Greimasiana, especificamente no que se refere à Semiótica das Paixões,
um estudo interessante e envolvente que, por isso mesmo, não esgotou a curiosidade dos
grandes pesquisadores que continuam investigando novas formas de adesão do conhecimento
sobre o assunto.
31
Dessa maneira, este capítulo será dividido em três partes, não com o objetivo
de fragmentar e particularizar as partes, mas por uma questão prática que tornará a exposição
menos redundante e complexa. Na primeira parte, mostraremos a ligação da semiótica com a
retórica, no que diz respeito ao caráter argumentativo e persuasivo da linguagem, a efetiva
participação do outro, principalmente, no estudo das paixões: os efeitos de sentido passionais
que emergem da relação dos sujeitos envolvidos no processo de comunicação. Na segunda,
traçaremos um esboço dos principais pontos da teoria semiótica geral utilizados como
fundamentos pela semiótica das paixões, fazendo o recorte teórico do que seaplicado no
corpus literário em estudo. Na terceira, trataremos, especificamente, da configuração das
paixões, como elas são reconhecidas, observadas e organizadas nos esquemas canônicos, que
nos permitem analisar os efeitos de sentido que elas produzem e homologam nos textos.
2.1 A RETÓRICA E A SEMIÓTICA
A teoria semiótica fundada sob o princípio da imanência, visando à análise
textual com o objetivo de descrever e explicar a significação por meio das regularidades
inscritas no interior do texto, manteve-se um pouco distante da retórica, por essa disciplina
enfocar a dimensão jurídica da argumentação, abrindo espaço para o papel do auditório na
apreensão da significação.
Mesmo privilegiando a análise da significação inscrita nos textos, a semiótica
restabeleceu uma relão com a retórica devido à necessidade e à emergência do estudo das
ciências da linguagem na sociedade moderna (BERTRAND, 2003, p. 400). Como nos
mostram estudos mais recentes, como é caso do estudo da semiótica das paixões, a
interpretação dos efeitos de sentido que afloram nos textos depende da relação entre os
interlocutores. Assim, duas perspectivas da teoria retórica devem ser consideradas: a primeira,
no que diz respeito ao discurso persuasivo, que na semiótica se define como o fazer
persuasivo; e a segunda, no que se refere à interação, o envolvimento do outro na relação.
Se as duas teorias m pontos convergentes, elas também se diferem em
algumas questões, como é o caso em retórica da continncia da palavra e do domínio da
verdade; em contrapartida, na semiótica, a significação deve estar inscrita no texto como
possibilidade, sendo que o domínio é o da lógica, que se define pela comprovação dos efeitos
32
de verdade instalados no discurso, sempre suscetíveis de serem analisados e confirmados nos
textos pela veridicção.
Levando em conta o que as duas teorias têm em comum, mostraremos algumas
abordagens feitas em Retórica das paixões, de Aristóteles (2000), que consideramos
pertinentes evocar para o nosso estudo das paixões.
Michel Meyer (2000, p. XXXV), na introdução à Retórica das paixões, define
a paixão como: o lugar do Outro, da possibilidade diferente do que somos afinal; o
individual por oposição ao universal indiferenciado. A paixão é, portanto, relação com o outro
e representação interiorizada da diferença entre nós e esse outro”. Dessa forma, observamos
que a retórica se ocupa das oposições, o sujeito só se reconhece em oposição à relação do que
o outro representa para ele.
Tal situação confirma o saber do sujeito ao compartilhar uma busca simultânea
com outro sujeito, revelando uma diferença ou uma identidade que, segundo a vontade desse
sujeito de busca, poderá ser mantida, aumentada ou diminuída, o que corresponde em fazer
saber ao outro as suas diferenças. Identidade e diferença, supostas ou reais, eis o que na
verdade parece governar a estrutura aristotélica das paixões” ( MEYER, 2000, p. XLIX).
Mas ao empreender a busca por um objeto inserido em comunidade, na
interação entre os sujeitos, ao lado da paixão instala-se a ação, assim sendo, a existência das
paixões está intimamente ligada à ocorrência da ação. Segundo Meyer (2000, p. XLVII, grifo
do autor), “as paixões são ao mesmo tempo modos de ser (que remetem ao ethos e
determinam um caráter) e respostas a modos de ser (o ajustamento ao outro). Daí a impressão
de que as paixões nada têm de interativo, sendo somente estados afetivos próprios da pessoa
como tal”. O problema que decorre dessa confusão é justamente o de dar a impressão de que
uma paixão tem como resposta uma outra paixão, sendo que a paixão resposta deve ser
entendida como uma resposta à forma como são tratados os sujeitos e, não, somente como
resposta passional, como exemplo o autor cita: a calma, por exemplo, não é a indiferea às
paixões, mas antes uma resposta à maneira como nos tratam” (2000, p. XLVII).
É interessante observamos a função epistêmica da paixão, do ponto de vista do
logos, a lógica da retórica é a identidade e a diferença, portanto a paixão exprime a diferença
no sujeito, a sua individualidade; mas do ponto de vista das relações entre pessoas, a lógica da
retórica é a da distância e da proximidade, por isso a paixão exprime a distância entre os
sujeitos, confirmando a superioridade de um sujeito em relação ao outro. Assim, a paixão
produz um conjunto de imagens mentais: a imagem que o sujeito tem de si mesmo e a
33
imagem que ele tem do outro, pelas ações que esse outro dirige a ele (prazer/sofrimento)
(MEYER, 2000, p. XLII).
De acordo com as idéias aristotélicas, se as paixões sensibilizam o homem pelo
prazer e pelo sofrimento, então elas poderão ser respostas, desde que sejam moralizadas da
mesma maneira, como podemos confirmar pelo texto:
Mas, para Aristóteles, se as paixões estão intimamente associadas ao prazer e ao
sofrimento – por conseguinte, ao apetite sensível, o qual é flutuante e por isso
desestabiliza o homem –, um exercício moral e socializado de nossas disposições
poderá fixá-las com vistas a fins idênticos.[...] Reequilíbrio que assegura a
constância na variação multiforme que o Outro assume em sociedade, a paixão é
resposta, julgamento, reflexão sobre o que somos porque o Outro é, pelo exame do
que o Outro é para nós. Lugar em que se aventuram a identidade e a diferença, a
paixão se presta a negociar uma pela outra; ela é o momento retórico por excelência.
(MEYER, 2000, p. XXXIX - XL)
Concebida dessa forma, a paixão é ao mesmo tempo o problemático do
discurso e a sua solução, pois ela é a relação com o outro que nos questiona, mas também a
resposta que essa relação implica.
Portanto, a identidade e a diferença entre os sujeitos indicam e determinam as
suas paixões. Nesse sentido, mostraremos como essa abordagem retórica pode ser pertinente
ao estudo das paixões neste trabalho.
Das quatorze paixões trabalhadas por Aristóteles, três delas fazem parte das
paixões que identificamos no corpus literário em análise, o elas: a emulação, a inveja e a
cólera. O que a Retórica expõe sobre essas paixões que nos permitiu associá-la ao estudo da
semiótica das paixões pode ser observado em alguns aspectos: as características de cada
paixão, em que disposições os sujeitos são afetados pelas paixões; em relação a quem eles se
mostram apaixonados; quais os objetos visados pelos apaixonados; e por quais razões eles
manifestam essas paixões.
Dessa forma, a emulação e a inveja são paixões próximas, por isso, a
abordagem dessas duas paixões é feita por comparação, o autor apresenta as suas semelhanças
e diferenças.
Aristóteles (2000, p. 71), caracteriza a emulação como um certo pesar pela
presença manifesta de bens valiosos que pertencem a um outro, mas não por pertencerem a
outro e, sim, porque não lhes pertencem também; portanto, são inclinados à emulação os que
34
se julgam dignos de bens que não possuem, sendo-lhes possível adquirir; a disposição de
quem compete é a de obter esses bens.
O autor complementa que a competição é um sentimento digno e próprio de
pessoas dignas, pois ninguém deseja o que é impossível e, por essa razão, os jovens e os
magnânimos manifestam tais sentimentos em relação a homens honrados, dignos dos bens
que possuem. Esses bens, citados pelo autor, são muitos: a riqueza, os amigos, cargos
públicos, as virtudes, a coragem, a sabedoria, a autoridade, a beleza, a saúde, enfim, os
homens elogiados, reconhecidos pela sociedade como benfeitores.
Por serem paixões próximas, a emulação e a inveja apresentam um aspecto em
comum: ambas se dirigem para os iguais. Para Aristóteles, embora as duas paixões se dirijam
para os iguais, elas apresentam razões diferentes de manifestação: enquanto na emulação o
sujeito apaixonado quer imitar o outro; na inveja, o apaixonado quer tirar o que o outro
possui. Para ele, essas reações tendem a prolongar a simetria ou criá-la, uma vez que a inveja
deseja gerar a diferença, a emulação, a identidade.
No capítulo 10, destinado ao estudo da inveja, a paixão é caracterizada como
um certo pesar pelo sucesso dos semelhantes, Aristóteles esclarece quais pessoas são capazes
de sentir essa paixão:
Tais pessoas, com efeito, sentirão inveja das que são iguais a elas ou parecem sê-lo.
Chamo iguais aos semelhantes em nascimento, parentesco, idade, hábitos, reputação
e bens. São igualmente invejosos aqueles a quem pouco falta para possuírem tudo
(por isso os que fazem grandes coisas e os felizes são invejosos), pois crêem que
todos tentam arrebatar o que lhes pertence. E os que obtêm distinções especiais por
alguma razão, principalmente por sua sabedoria ou por sua felicidade. Também os
ambiciosos são mais invejosos que os homens sem ambição. E aqueles que se
julgam sábios, porque são ambiciosos do saber. E, em geral, os que ambicionam a
glória em vista de uma coisa, são invejosos relativamente a essa coisa. Igualmente os
de espírito mesquinho, pois tudo lhes parece grande. (ARISTÓTELES, 2000, p. 67)
Como se tem inveja dos semelhantes, o fragmento acima define conjuntamente
os invejosos e os invejados. Mas o autor ainda reitera a definição das pessoas das quais se têm
inveja: “[...] invejam-se os que estão próximos pelo tempo, lugar, idade, fama [e nascimento]
(ARISTÓTELES, 2000, p. 69).
É importante nos ater à idéia de proximidade, principalmente, no que diz
respeito ao nascimento, cuja citação de Esquilo é usada por Aristóteles (2000, p. 69): Porque
a parentela sabe também invejar”, vem de encontro ao nosso corpus, pelo grau de
35
proximidade dos irmãos gêmeos, os dois sujeitos, cujos estados de alma são afetados por
rias paixões.
Se a proximidade deve ser considerada, a distância tem que ser descartada,
uma vez que o se pode invejar quem está distante. Da mesma sorte, essa distância o pode
ser muito desproporcional em relação às aspirações, como cita Aristóteles (2000, p. 69):
Também o oleiro [inveja] o oleiro”, para que a inveja se manifeste, os concorrentes na
competição devem ter mais ou menos as mesmas aspirações, por isso, a competição não
acontece quando a inferioridade ou a superioridade de um dos competidores for muito
acentuada.
Nesse sentido, os objetos que despertam a inveja, segundo o autor (2000, p.
67), são os que desejamos ou acreditamos que devessem nos pertencer, cuja aquisição
aumenta um pouco nossa superioridade ou diminuí um pouco nossa inferioridade.
Contudo, o sentimento provocado pela inveja, de acordo com Aristóteles
(2000, p. 69), da mesma forma que faz sentir pesar por não possuir o que o outro tem, incita a
alegria ao impedir que o outro os possua, sendo, portanto, pouco provável que a inveja
promova a comunhão: “[...] a inveja é vil e peculiar aos espíritos vis [...]” (ARISTÓTELES,
2000, p. 71).
Se a emulação e a inveja se dirigem para os iguais, a lera se dirige a alguém
que supostamente mostra-se superior, por isso, suscita um distanciamento, um aumento da
diferença, uma ruptura de identidade.
Aristóteles, em sua Retórica, dá ênfase ao estudo da lera pelo fato dessa
paixão encontrar-se na dependência da lógica da identidade e da diferença, que é a
característica da relação retórica. Não existe um estudo à parte para a paixão da vingança, essa
paixão, assim como na semiótica das paixões mantém-se uma certa relação com a lera, mas
com uma diferença: na Semiótica
1
, a vingança se desenvolve no mesmo esquema canônico da
cólera, mas como uma variante do dispositivo, que não chega a última fase, a da explosão
final; na Retórica, Aristóteles não dá um destaque para a vingança, o que nos permite
observar, em certos momentos, a cólera com as mesmas características da vingança.
Entendemos que isso é possível, uma vez que as duas paixões mantêm entre si
certa relação, mas não pudemos deixar de fazer aqui estas colocações, visto que o nosso
objeto de estudo é a semiótica e, por isso, temos o conhecimento de que embora essas paixões
1
FONTANILLE, J.,DITCHE, E. R., LOMBARDO, P. Dictionnaire des passions littéraire. França: Belin, 2005.
36
apresentem aspectos comuns, elas se diferem em algumas particularidades, produzindo efeitos
de sentido bastante distintos.
Para Aristóteles, a lera é o reflexo de uma diferença entre aquele que se
entrega a ela e aquele ao qual ela se dirige, ou seja, a lera é um brado contra uma diferença
imposta, “injusta” ou como tal sentida (MEYER, 2000, p. XLIII). As pessoas se encolerizam
quando se sentem desprezadas por quem se julga superior a elas, portanto, o autor cita como
exemplo aqueles que possuem a riqueza, a juventude, a beleza, a saúde, a sabedoria, o poder,
enfim, as virtudes.
Com efeito, o desgosto e a perturbação que sentem as pessoas encolerizadas
acontecem devido ao fato de elas serem contrariadas, privadas de realizarem os seus desejos
e, ainda mais, quando as suas inferioridades são expostas perante aqueles que acreditavam no
contrário. A lera é, então, para Aristóteles, o desejo acompanhado de tristeza dirigido a um
indivíduo em particular que tenha manifestado desprezo por algo que diz respeito a uma
pessoa, sem que esse desprezo seja merecido.
Quando esse mesmo autor afirma que [...] a toda cólera se segue certo prazer,
proveniente da esperança de vingar-se [...]” (2000, p. 7), percebemos a diferença entre a
Retórica e a Semiótica no estudo da cólera. Na seqüência, é importante considerarmos as
palavras de Aristóteles:
E também aquele que ultraja despreza; com efeito, o ultraje consiste em fazer ou
dizer coisas que causam vergonha à vítima, não para obter uma outra vantagem para
si mesmo, afora a realização do ato, mas a fim de sentir prazer, pois quem paga na
mesma moeda não comete ultraje e sim vingança. A causa do prazer para os que
ultrajam é pensarem que, ao fazer o mal, aumenta sua superioridade sobre os
ultrajados. (2000, p. 9)
O motivo que nos leva a considerar essas colocações é que elas se encaixam
perfeitamente no estudo da paixão da vingança e, não, no da cólera.
Da mesma forma, são interessantes as explicações sobre o desejo de vingança
apresentadas no prefácio da Retórica das paixões, por Meyer:
Daí o desejo de vingança: a cólera reequilibra a relação proveniente do ultraje, da
afronta, do desprezo. A imaginação se exprime no propósito da vingança. Apresenta
o problema resolvido e, com isso, satisfaz quem se entrega a ela ao mesmo tempo
que é por ela determinado. A lera parece pressupor a possibilidade dessa
37
vingança, presumindo-se então que o ofensor não é ele próprio tão poderoso quanto
acreditava ser. A lera é, pois, uma paixão que assenta num erro de julgamento de
outrem sobre si mesmo (portanto, sobre nós), julgamento que lhe queremos provar
ser errôneo. (2000, p. XLIII, grifo do autor)
Por essas colocações de Meyer sobre as idéias defendidas por Aristóteles, fica
evidente para nós a distinção de abordagem entre a Semiótica e a Retórica: enquanto esta
defende a lera como uma paixão que reequilibra a justiça; aquela mostra que essa
peculiaridade é da paixão da vingança, por um princípio de reciprocidade de danos. Na
abordagem semiótica, a cólera irrompe numa explosão agressiva, por isso, essa explosão
agressiva justifica uma tensão diferente entre a cólera e a vingança: a lera evidencia a
explosão e a intensidade; a vingança, a quantidade e a eficia (FONTANILLE et al., 2005, p.
71).
Como foi visto, as duas teorias apresentam diferenças, mas também
apresentam pontos comuns. Um outro exemplo de convergência entre elas é o reconhecimento
de que a lera aparece como conseqüência e sob o controle de uma outra paixão: [...] cada
um é levado pela paixão presente a um nero particular de lera [...]” (Aristóteles, 2000, p.
11).
Depois da exposição que fizemos sobre as idéias defendidas pela Retórica que
consideramos válidas para o estudo das paies na Semiótica, compreendemos que cada
teoria apresenta especificidades pprias devido ao campo para o qual se voltam as linhas de
pesquisa, embora esse fato não se constitua um limite para a busca do sentido no campo
abrangente que é o do estudo da linguagem.
2.2 SEMIÓTICA GERAL E SEMIÓTICA DAS PAIXÕES
O sentido é para a semiótica o seu objeto de análise, o que a denomina uma
teoria da significação, cujo objetivo é especificar o objeto, explicitando a forma de sua
construção, bem como as condições de produção da significação em sua totalidade.
38
Greimas e Courtés (1979, p. 415) assim definem a Teoria Semiótica
2
: “a teoria
semiótica deve apresentar-se inicialmente como o que ela é, ou seja, como uma teoria da
significação. Sua primeira preocupação será, pois, explicitar, sob forma de construção
conceptual, as condições da apreensão e da produção do sentido”.
Nesse contexto, a semiótica francesa da qual tratamos aqui, condensou a
economia global da teoria semiótica no percurso gerativo do sentido. Com objetivo
metodológico, esse percurso foi traçado por Greimas nos fins dos anos 70.
No percurso, os componentes são dispostos uns em relação com os outros,
mostrando como se articula a produção do sentido, num processo que vai do nível mais
simples e abstrato ao nível mais complexo e concreto, sendo que cada um dos três níveis
comporta uma semântica e uma sintaxe próprias.
Bertrand (2003, p. 47), mostra-nos o percurso num quadro simplificado da
seguinte forma:
Percurso gerativo da significação
Estruturas profundas
Semântica e sintaxe elementares (quadrado semiótico)
Estruturas semionarrativas
Esquema narrativo (contrato, competência, ação, sanção)
Sintaxe actancial (sujeito, objeto, destinador, anti-sujeito; programas
narrativos; percursos narrativos)
Estruturas modais (querer, dever, saber, poder fazer ou ser e suas
negações)
Estruturas discursivas
Isotopias temáticas
Nesse percurso, que tem início no nível das estruturas profundas, observamos
que dois termos são dispostos em um mesmo eixo semântico, eles mantêm entre si uma
relação de oposição ou de diferenças, por exemplo: vida vs. morte. Esses termos, chamados
categorias semânticas, recebem valores positivos ou negativos e são qualificados,
respectivamente, como eufóricos ou disfóricos. Em seguida, na sintaxe elementar, esses
conteúdos podem ser negados ou afirmados na representação do quadrado semiótico.
No segundo nível, as estruturas narrativas simulam a história do homem em
busca de valores, por isso, elas representam contratos e conflitos que marcam os
2
Para Greimas e Courtés, o primeiro a propor uma teoria semiótica coerente foi L. Hjelmslev, cuja definição que
ele oferece da semiótica é aceita pelos dois autores: “ele considera esta como uma hierarquia (isto é, como uma
rede de relações, hierarquicamente organizada) dotada de um duplo modo de existência, a paradigmática e a
sintagmática (apreensível, portanto, como sistema ou como processo semiótico), e provida de pelo menos dois
planos de articulação - expressão e conteúdo -, cuja reunião constitui a semiose” ( 1979, p. 411).
39
relacionamentos humanos (BARROS, 2005, p. 16). Nesse nível, o sujeito é quem opera as
transformações narrativas, assim, as determinações tensivo-fóricas, observadas no nível
anterior, convertem-se em modalizações: querer/dever/saber/poder/fazer que modificam as
ações e os modos de existência do sujeito e também a sua relação com os valores. Dessa
forma, dentro dos programas narrativos, conforme a relação do sujeito seja de junção
(disjunção = separado; conjunção = conjunto) ou de transformação (passagem de um estado
ao outro), o termo resultante dessa relação torna-se um actante da narrativa, podendo assumir
em um percurso narrativo vários papéis actanciais
3
: destinador, destinatário, sujeito, objeto,
anti-sujeito.
É importante averiguarmos, contudo, que no vel narrativo, o sujeito passa
pelos percursos narrativos da manipulação, da ação e da sanção. Na manipulação
4
existe um
contrato Destinador/Destinatário que atribui ao sujeito competência necessária à ação. A ação,
por sua vez, desdobra-se em dois programas narrativos, o da competência e o da performance
do sujeito. Segundo Fiorin (1992, p. 23), na fase da competência, o sujeito que vai realizar as
transformações da narrativa é dotado de um saber e/ou poder fazer; na performance, a fase em
que se dá a transformão, o sujeito que opera a transformação e o que entra em conjunção ou
em disjunção com o objeto podem ser distintos ou inticos. Concluída a performance, chega-
se à saão, quando o sujeito que operou a transformação é julgado e recebe uma recompensa
ou uma punição. Sancionado o percurso do sujeito, passa-se à modalização veridictória que,
segundo Barros (2005, p. 33), assegura a existência dos sujeitos, ditos verdadeiros (parecem e
são), falsos (não parecem e não são), mentirosos (parecem e nãoo), ou secretos (não
parecem e são). E, ainda, essas modalizações do sujeito podem ser sobre determinadas pelas
modalizações epistêmicas da certeza ou da dúvida: afirmado ou recusado, admitido ou posto
emvida.
Por último, no nível discursivo, o mais complexo e concreto, o enunciado
projeta na enunciação
5
os atores, o espaço e o tempo, essas projeções actoriais, espaciais e
temporais dão origem a duas operações que são a debreagem e a embreagem. Desse modo, os
3
V. Propp ao estudar a morfologia dos contos maravilhosos russos define as personagens pelas funções que elas
desempenham em suas esferas de ação, Greimas estabeleceu os papéis actanciais reduzindo a lista das
personagens definidas por Propp.
4
São quatro os tipos de manipulação do sujeito: provocação - o Destinador cria a imagem negativa do
Destinatário e leva-o a DEVER-FAZER; sedução - o Destinador cria imagem positiva do Destinatário e leva-o a
QUERER-FAZER; intimidação - o Destinador oferece valores negativos ao Destinatário e leva-o a DEVER-
FAZER; tentação - o Destinador oferece valores positivos ao Destinatário e leva-o a QUERER-FAZER.
5
Os estudos de Benveniste sobre a enunciação foram de grande relevância para a semiótica, visto que o homem
se constitui na e pela linguagem: “O ato individual de apropriação da língua introduz aquele que fala em sua fala.
Este é um dado constitutivo da enunciação. A presença do locutor em sua enunciação faz com que cada instância
de discurso constitua um centro de referência interno” (BENVENISTE, 1989, p. 84).
40
temas organizam e ordenam os elementos do mundo natural, representados pelas figuras que
criam no discurso o simulacro da realidade.
Consideramos indispensável essa abordagem, mesmo de forma sucinta como o
fizemos, porque a Semiótica das Paixões se origina desses procedimentos da teoria geral.
A semiótica das paixões surgiu da necessidade de incorporar à semiótica geral
o estudo dos estados de alma inscritos nos textos. Como a teoria explorava a dimensão
pragmática, a semiótica da ão, e a dimensão cognitiva, a narrativização dos saberes, então
faltava juntar a elas uma dimensão patêmica, cujo objetivo estaria voltado para a proposta de
reduzir a lacuna existente entre o conhecer e o sentir” (GREIMAS e FONTANILLE, 1993,
p.22).
Os semioticistas começaram a explorar o estudo das paixões a partir da década
de 1980, marcando um divisor de fronteiras a obra de Greimas e Fontanille: Semiótica das
paixões. Dos estados de coisas aos estados de alma (1993). A semiótica ao desenvolver o
estudo das paixões, a dimensão patêmica, procurou ocupa-se das modulações dos estados de
alma do sujeito observadas no discurso, sendo assim, o estudo das paixões busca priorizar os
efeitos de sentido passionais verificados na linguagem e não como uma análise psicológica
dos sujeitos.
Vemos, dessa forma, que a semiótica, ao lidar com as modulações dos estados
de alma dos sujeitos, mantém uma estreita ligação com a semiótica narrativa
6
pela sintaxe
modal, embora a focalização do estudo das paixões esteja voltada para a varião contínua da
instabilidade dos estados do sujeito. O que nos leva a entender que a semiótica das paixões
privilegia a constância e a iteração da manifestão das emoções, ao passo que a semiótica
narrativa prioriza a descrição da transformão das ações do sujeito.
De acordo com Barros (2002, p. 61), dois caminhos apresentam-se para o
estudo das paixões:
[...] o primeiro estabelece a relação entre a organização modal narrativo-discursiva e
as categorias semânticas da estrutura fundamental que estão por dets das paixões,
ou seja, preocupa-se com a relação vertical e de conversão entre dois níveis do
percurso gerativo, para explicitar, de uma certa forma, a “origem” gerativa das
paixões; o segundo tenta determinar, horizontalmente, as relações sintagmáticas
6
A história da semiótica está estreitamente ligada à narratividade. A base conceitual da semiótica narrativa
desenvolvida por Greimas contou com contribuições importantes: de Vladimir Propp, às quais já foram citadas,
resultaram no inventário dos actantes narrativos e dos papéis actanciais; de Bremond, as relações distribucionais
e integrativas e a questão dagica dos níveis de descrão textual; de Louis Tesnre, a sintaxe estrutural
constituinte da frase.
41
modais que caracterizam as paixões, a partir das configurações discursivas e,
também, suas relações paradigmáticas, que constituem “sistemas de paixões”. (grifo
da autora)
Essas duas vias de acesso à significação nos permitem observar que: de um
lado, logo no início do percurso gerativo de sentido, quando as categorias semânticas do nível
fundamental o se convertendo em arranjos modais no nível das estruturas narrativo-
discursivas, a descrição desses arranjos modais é que permite caracterizar a existência do
sujeito de estado; de outro lado, a descrição das organizações da sintaxe modal e de suas
combinações sintagmáticas a partir das configurações discursivas que, uma vez reconhecidas
e organizadas nos esquemas passionais canônicos, caracterizam as paixões.
No entanto, as paixões, que analisaremos neste trabalho, vão se desenvolver
nos esquemas canônicos de acordo com a relação entre os actantes: sujeito apaixonado, objeto
da paixão e a presença de um anti-sujeito, aquele que torna a relação polêmica. Pela relação
intersubjetiva que comanda as paixões é possível observar a tensão do sujeito no que diz
respeito à junção com o objeto de valor, assim, a sensibilização se refere a intensividade dos
sentimentos do sujeito afetado pela paixão. Nesse sentido, a modalização não recai sobre o
sujeito, mas sobre a sua junção com o objeto de valor, quando são observadas as variações
contínuas de seu estado. Em seguida, a moralização torna possível nomear as paixões e
avaliá-las. Assim sendo, ao pensarmos em tensão, modalização e valor, chegaremos aos
elementos essenciais na análise das paixões: a sensibilização, a modalização e a moralização.
Quando nos propomos a analisar paixões, devemos estar atentos às relações
actanciais, observar como elas se desenvolvem nos programas e percursos narrativos, para
percebermos o que aparece na interação desses actantes como um excesso, esse excesso é que
nos permite reconhecer os efeitos de sentido passionais. Segundo Bertrand (2003, p. 361), “o
espaço passional, feito de tensões e aspectualizações cujo estatuto deverá ser precisado é,
pois, da ordem do contínuo e se dispõe ‘em torno’ das transformações narrativas. É desse
modo que a semiótica do agir permite identificar o lugar, reconhecível no discurso, de uma
semiótica do sofrer. A problemática da paixão se define em relação à da ação”.
Contudo, cabe-nos acentuar que o sujeito de estado é definido pela modalidade
investida no objeto de valor desejado, enquanto a sensibilização e a moralização permitem-
nos identificar e distinguir as paixões dentro das taxonomias culturais, uma vez que as paixões
42
são avaliadas de forma diferente por algumas culturas ou, até mesmo, dentro de uma mesma
cultura, mas em contextos históricos diferentes
7
.
Por tudo isso, o esquema passional canônico cruza três dimenes concretas ao
objeto de estudo: a das configurações passionais depositadas no léxico e analisáveis a partir
de sua expansão definicional (o ciúme, a lera, a ambição, etc.); a dos percursos passionais
de sujeitos observáveis em tal ou tal discurso (principalmente literário); a da enunciação
passional e a ‘gramática’ do discurso que a caracteriza” (BERTRAND, 2003, p. 377).
Ao lidar com o discurso, recorremos aos dizeres de Fontanille (2007, p. 86):
o discurso é uma instância de análise na qual a produção, isto é, a enunciação, não poderia
ser dissociada de seu produto, o enunciado”. Dessa maneira, o sujeito da enunciação ao
converter os esquemas narrativos em discurso, deixa nele marcas explícitas e/ou impcita que
devem ser observadas cuidadosamente para se chegar à significação global do texto. Essas
marcas aparecem nos simulacros que cada um dos interlocutores dirige ao outro na
enunciação e são analisadas da seguinte forma: as projeções da enunciação no enunciado, os
recursos de persuasão utilizados para manipular o enunciatário, a cobertura figurativa dos
conteúdos narrativos abstratos.
Nessa perspectiva, a debreagem e a embreagem são duas operações
fundamentais que nos permitem relacionar o discurso com as suas condições de produção.
De fato, a debreagem cria diversos efeitos de sentido nos discursos: efeitos de
referência ou de realidade e efeitos de enunciação, pelos quais se obtêm os efeitos de verdade.
No discurso, a refencia é comprovada pela debreagem enunciativa, que instala no discurso o
(eu/aqui/agora), o sujeito da enunciação, também denominado narrador ou enunciador; e a
debreagem enunciva, que instala no discurso o (ele//então), o narrátario ou destinatário.
Esses dois procedimentos que permitem reconhecer os discursos em primeira ou em terceira
pessoa criam, respectivamente, efeitos de sentido de subjetividade, proximidade com a
enunciação, ou de objetividade, distanciamento da enunciação
8
. De acordo com Fiorim (2002,
p. 45), a instalação dos simulacros do ego-hic-nunc enunciativos, com suas apreciações dos
fatos, constrói efeito de subjetividade; a eliminação das marcas da enunciação do texto, ou
7
Como exemplos que ilustram o exposto, Bertrand (2003, p. 373) cita o estatuto da avareza que é
axiologicamente diferente nas culturas francesa e árabe; tamm a avareza é uma paixão cômica no século 17 em
Molière e uma paixão trágica no século 19 em Balzac.
8
A subjetividade e a objetividade entendem-se, no sentido que lhes atribuiu Benveniste, como efeitos criados
pelas diferentes relações que os tipos de enunciado mantêm com a enunciação. O enunciado, propriamente dito,
liga-se metonimicamente à enunciação, em relação de parte a todo. A enunciação-enunciada, além dos laços
metonímicos, estabelece também ligação metafórica que se funda na similaridade, na equivalência que o
simulacro mantém com a enunciação pressuposta (BARROS, 2002, p. 75).
43
seja, da enunciação enunciada, fazendo que o discurso se construa apenas com enunciado
enunciado, produz efeitos de sentido de objetividade.
Cumpre-nos lembrar ainda que, os efeitos de realidade são produzidos, em
grande parte, pelas debreagens de segundo e terceiro graus, que correspondem ao discurso
direto, criando a ilusão de situação real do diálogo, pois quem fala responde pelo que diz, seja
a sua enunciação verdade, mentira, falsidade ou ficção.
Para Greimas e Courtés (1979, p. 147), o lugar da enunciação (eu/aqui/agora) é
semioticamente vazio e semanticamente cheio, um depósito de sentido. Tanto as debreagens
quanto a embreagem
9
são procedimentos que além de criar os efeitos de enunciação, realidade
e referência, podem ser acrescidos de figuras do mundo e das configurações discursivas que
permitem ao sujeito da enunciação exercer seu saber-fazer figurativo.
Destacamos também os estudos de Barros (2002, p. 87) sobre foco narrativo
para melhor sistematizar as relações instauradas entre enunciação e enunciado. Nesse estudo,
a autora chega a seguinte conclusão: por um lado, os actantes discursivos e narrativos podem
se apresentar como diferentes atores, narrador e/ou observador, sujeitos cognitivos, mas o
observador além de sujeito do saber-fazer realiza também o fazer-receptivo e o fazer-
interpretativo; por outro lado, quando os actantes discursivo e narrativo se realizam por meio
dos mesmos atores, além de ocupar os encargos de narrador e/ou observador, ainda podem
preencher os encargos de personagens, principal ou secundárias.
Sabemos que a narrativa tem caráter retroativo, tal fato nos leva a compreender
a programação textual de nosso corpus, pois o narrador/observador ao narrar, deixou marcas
de que presenciou muitos dos acontecimentos, colocando em evidência o fazer-receptivo e o
fazer-interpretativo, mas também assumiu o papel actancial e se mostrou um ator que além de
estar em cena e presenciar os fatos, ainda participou deles, ora como sujeito de fazer, ora
como sujeito de estado. Assim, justifica-se a alternância dos programas narrativos localizados
no tempo e no espaço simultaneamente com o aqui e agora do narrador ou anteriormente, o
tempo e o espaço distante do sujeito da enunciação.
Interessa-nos ainda mostrar que, o sujeito da enunciação se desdobra em
enunciador e enunciatário que desempenham os papéis de destinador e destinatário do
discurso. Enquanto o enunciador desempenha o papel de destinador-manipulador, por um
9
A embreagem é a suspensão da oposição entre atores, o espaço e o tempo do enunciado e os da enunciação.
44
fazer persuasivo, ele faz-crer os valores que introduz no seu discurso, ao destinatário cabe
interpretar a verdade discursiva
10
com base no sistema de valores próprios de uma cultura.
Diante do exposto, importa observar que o fazer persuasivo do enunciador
depende das relações que se estabelecem entre enunciador e enunciatário. Dessa interação
surge uma teoria da argumentação que deve priorizar no discurso: a intenção do destinador ao
jogar com conteúdos explícitos e implícitos, os efeitos de sentido a que ele pretende conduzir
o destinatário a desvendar no discurso que produz, e à manipulação que exerce sobre o
destinatário para convencê-lo dos valores implicados no discurso.
É importante frisarmos nesse ponto que, essa teoria da argumentação
fundamenta-se na retórica antiga, embora a adesão do conhecimento não se restrinja apenas às
técnicas utilizadas pela linguagem para persuadir e convencer o auditório. Sobre esse assunto,
Barros cita as idéias defendidas por Perelman e Olbrechts-Tyteca (1970, p. 11), que
desenvolveram uma teoria da argumentação como uma nova retórica em torno da concepção
social da linguagem: nada mais justo que conservem da retórica antiga e desenvolvam como
fundamental a uma teoria da argumentação a idéia de auditório, ou melhor, de que todo
discurso é dirigido a um auditório, entendido na concepção alargada de enunciatário de
qualquer tipo de discurso, em qualquer situação (2002, p. 107, grifo da autora).
Por sua vez, Fontanille não descarta a importância da posição dos filósofos, no
que diz respeito à linguagem que não deve ser considerada somente para descrever o mundo,
mas também para transformá-lo, para agir sobre as coisas e sobre outrem. O que o autor
enfatiza é que existe um regime que escapa aos demais regimes, a predicação: “o sujeito
narrativo pode seduzir, influenciar, persuadir, comandar um outro sujeito narrativo, mas ele
o pode predicar a sedução, a influência, a persuasão ou a injunção, salvo se lhe dão a
palavra, e, nesse caso, trata-se, na verdade, de uma delegação de enunciação” (2007, p. 268).
Então, ele parafraseia Merleau-Ponty: enunciar é tornar algo presente a si com a ajuda da
linguagem (Fontanille, 2007, p. 269, grifo do autor), para explicar que a enunciação
assume o que corresponde à presença: seja à presença do enunciado que se relaciona com os
modos de existência desses enunciados convocados no discurso; seja à presença da instância
de discurso que se refere à referência dêitica.
Também é importante destacar que, como ao sujeito da enunciação cabe a
tarefa de fazer-crer a verdade do discurso, então, ele utilizará, para isso, a figurativizão e a
10
Os efeitos de sentido de verdade ou de falsidade dependem do tipo de discurso, da cultura, da sociedade
podem ser interpretados a partir do contrato de veridicção (BARROS, 2002, p. 93-94).
45
tematização que são dois níveis de sentido que resultam na coerência semântica e criam
efeitos de realidade, relacionando a linguagem com imagens do mundo natural.
Sabemos que, a tematização é a formulação abstrata de valores na passagem do
nível narrativo ao discursivo, e a figurativização é o revestimento semântico atribuído a esses
valores por meio de figuras do mundo que produzem uma ilusão referencial concreta da
realidade. Apesar de o discurso não ser a reprodução do real, as figuras criam o efeito de
sentido de realidade, porque o enunciatário, ao reconhecer as figuras do mundo natural, crê na
verdade do discurso.
Não podemos nos esquecer de que, ao analisar as paixões, o exterior
perceptível, sensível aproxima-se da fenomenologia, embora a semiótica não seja, de forma
alguma, um ramo da fenomenologia. Bertrand (2003, p. 21) diz que a semiótica das paixões
ao explorar a relação entre um sujeito sensível e um objeto percebido, destaca-se no horizonte
das sensações. Greimas, no seu livro Da imperfeão, causou estranheza ao propor a
apreensão perceptiva e a avaliação estética das figuras de sentido. Para ele, a figuratividade é
a tela do parecer cuja virtualidade consiste em uma possibilidade de além (do) sentido. “Os
humores do sujeito reencontram, então, a imanência do sensível” (2002, p. 74). Fontanille
(2007, p. 47), por sua vez, defende a iia que, antes de identificarmos uma figura do mundo
natural, percebemos ou pressentimos sua presença, uma presença que, ao mesmo tempo, nos
afeta em intensidade, mas também se torna inteligível ao nos permitir reconhecer a posição
que ela ocupa em relação a nossa própria posição e a sua extensão.
Convém ressaltar que, para Barros (2002, p. 119), parecer real ou irreal são
ilusões que dependem dos fatores de contextualizão”. Tanto as projeções da enunciação no
enunciado quanto as figuras, que formam uma espécie de reservatório, são recursos que
contribuem para que o texto possa ser relacionado com o contexto, ou seja, o discurso
figurativizado relaciona-se com o extradiscursivo.
Além do mais, as marcas deixadas no enunciado pelo sujeito da enunciação
podem manifestar-se por meio da reiteração discursiva dos temas e da redundância das
figuras, cujo fenômeno recebe o nome de isotopia. As relações entre as várias isotopias são
denominadas metafóricas e metonímicas, duas figuras constitutivas do sentido do discurso.
Como figuras do discurso e não mais de palavras e frases, a metáfora e a metomia produzem
novos sentidos que não estão mais ligados a substituição de uma palavra por outra, mas a uma
nova possibilidade, criada pelo contexto, de leitura de um termo (FIORIN, 1992, p. 86).
Edwar Lopes (1986, p. 4), no livro Metáfora. Da Retórica à Semiótica, é
contrário à idéia retórica da metáfora como ornamento da arte de escrever, ele defende a força
46
cognitiva da metáfora. Para ele, não estranha que aqueles que obedecem aos princípios
lógicos da razão combatam o conhecimento da metáfora, que diz respeito à lógica dos
sentimentos, um saber absoluto e pessoal.
É importante não nos esquecermos de que os recursos textuais, que nos
permitem compreender e examinar os efeitos de sentido que afloram nos textos, são em
grande número assim como os diversos tipos de textos que lhes solicitam. Esses recursos
textuais são responsáveis pelas muitas leituras que um texto pode aceitar. Segundo Fiorin
(1992, p. 81), quando se diz que a partir de um texto pode-se extrair várias leituras, isso
significa que ele admite mais de uma e não toda e qualquer leitura. As várias leituras que o
texto aceita já estão nele inscritas como possibilidades. Dessa forma, as várias leituras não se
fazem a partir do arbítrio do leitor, mas das virtualidades significativas inscritas no texto. A
produção de sentido é, pois, resultado não de uma análise interna, que se fecha no texto,
mas também estabelecendo a sua relão com o contexto sócio-histórico da leitura.
Nessa perspectiva, a enunciação contribui também para que o sentido
produzido pelo discurso inscrito no texto se relacione a outros contextos culturais e históricos
mais amplos, como é o caso da intertextualidade e da interdiscursividade.
Para Bertrand, a enunciação individual não pode ser vista dissociada das
enunciações coletivas que a antecedem e que a tornam possível. Então, ele afirma:
Há sentido ‘já dado’, depositado na memória cultural, arquivado na língua e nas
significações lexicais, fixado nos esquemas discursivos, controlado pelas
codificações dos gêneros e das formas de expressão que o enunciador, no momento
do exercício individual da fala, convoca, atualiza, reitera, repete ou, ao contrário,
revoga, recusa, renova e transforma.
(2003, p. 87)
Em suma, a semiótica é uma teoria da relação, o seu objeto de estudo é a
significação que modela tanto o discurso social quanto o discurso individual por meio das
formas de linguagem, assim, a enunciação é compreendida como a mediação entre a língua e
a sua utilização assumida por um indivíduo na relação com o outro.
47
2.3 CONFIGURAÇÃO DAS PAIXÕES
Como já foi dito anteriormente, as modulações dos estados de alma do sujeito
permitem-nos observar a perspectiva actancial em discurso, focalizando uma sintaxe e a
constância de uma configuração, a organização sintagmática desse conjunto resulta nos
dispositivos canônicos que, uma vez reconhecidos nos textos, possibilitam a análise das
paixões.
Nosso objetivo neste estudo consiste então, no estudo teórico das paixões que
se manifestam no corpus escolhido por meio de suas configurações, são elas: a emulação, o
ciúme, a inveja, a cólera e a vingança.
No entanto, é necessário colocarmos, em princípio, que a emulação, a inveja e
o ciúme partilham de uma mesma configuração passional, mas cada uma apresenta
particularidades distintas; esta observação também é válida para a lera e a vingança, porque
mesmo que as duas paixões pertençam a uma mesma configuração, apresentam, também,
variações diferentes. Tal colocação corroborou para que ao abordarmos essas paixões,
enfocássemos cada uma delas separadamente, sem que isso possa comprometer a relação
existente entre elas dentro da configuração genérica da qual elas fazem parte. E, ainda,
conservaremos, na seqüência, a ordem das cinco paixões estabelecida acima por ser nessa
ordem que elas se manifestaram no corpus em análise.
No livro Semiótica das paixões (1993, p. 174-175), Greimas e Fontanille
definem a emulação como um sentimento que leva a igualar ou ultrapassar alguém em mérito,
em saber, em trabalho e, por isso, é um antigo sinônimo de rivalidade e ciúme. Porém a
diferença que a emulação apresenta em relação a esses dois sinônimos é que na emulação não
existe concorrência e nem competição, porque também não existe um objeto esboçado, o que
está em jogo é a comparação das competências de dois sujeitos, S1/S2. Essa competência
coloca em evidência um saber-fazer ou poder-fazer, ou ainda, o mérito através do julgamento
ético.
Diante do exposto importa-nos, observar que a competência de referência é a
do sujeito S2, ele é o modelo a ser seguido pelo êmulo S1 que é modalizado pelo querer-ser
igual ao outro. Convém ressaltar, que o mérito de um sujeito pode ser avaliado de acordo com
o objeto de valor adquirido por ele, mas essa avaliação não recai sobre a sua junção com o
objeto, ela recai sobre a competência que o sujeito dispôs para conquistá-lo. Nesse caso, S1
o visa repetir o programa do outro, mas copiar a imagem modal que o outro oferece,
48
portanto, a modalização dominante é a do querer-ser igual ao outro, deixando na sua
dependência o querer-fazer como o outro.
De acordo com Greimas e Fontanille (1993, p. 175), as modalidades da
competência podem ser interpretadas de duas formas: de um lado, em termos de eficácia e de
necessidade é assim que elas aparecem por pressuposição a partir do sucesso ou do fracasso
-, do outro, em termos de maneira de fazer ou de ser do sujeito é assim que elas aparecem
através do julgamento ético”.
Ainda de acordo com os dois autores, o dispositivo actancial e modal da
rivalidade é sensibilizado no momento em que se acha na perspectiva de um único sujeito ou
no momento em que o merecimento do êmulo parece repousar num excedente modal, a
competência é sensibilizada, desde que os efeitos modais do ser pareçam dessolidarizar-se da
competência do fazer (1993, p. 175-176).
Em Semiótica das paixões o objetivo dos autores foi o de diferenciar as
paixões de objeto (a avareza), das paixões intersubjetivas (o ciúme). A paixão da emulação,
enquanto uma das muitas configurações do ciúme, o foi abordada em profundidade. Por
conseguinte, utilizaremos o que foi exposto sobre a emulação pelos dois autores na obra
supracitada, mais as iias defendidas por Aristóteles (2000) sobre a proximidade entre os
sujeitos que proporciona aflorar essa paixão, para propormos um dispositivo canônico,
tomando como modelo o dispositivo da inveja apresentado por Nascimento (2007, p. 13), que
nos permite identificar e analisar a paixão da emulação.
Com base nas modulações do estado de alma do sujeito S1 afetado pela
emulação em relação ao sujeito S2, o dispositivo passional comportará as fases: 1-
proximidade; 2- prova da competência de S2; 3- comparação das competências dos dois
sujeitos; 4- sofrimento; 5- rivalidade; 6- crise da emulação; 7- moralização.
Cada uma dessas fases pode ser explicada da seguinte forma: a proximidade, a
fase que torna possível que um sujeito veja no outro aquilo que ele quer ser, pois a emulação
se dirige a um semelhante; a prova da competência de S2, para que S2 seja tomado como
referência é necessário que ele dê provas de que possui vantagens em relação a S1; a
comparação das competências, S1 se compara a S2 e chega a conclusão de que suas
competências são inferiores em relação às competências do outro; o sofrimento, essa fase é
resultado da comparação das competências, quando S1 percebe que as competências de S2
são superiores às suas, ele sofre; a rivalidade, nessa fase S1 se propõe a igualar ou ultrapassar
S2 em competência; a crise da emulação, S1 cria o simulacro que lhe permite fazer e ser como
S2; a moralização, a emulação é avaliada e moralizada positivamente.
49
Contudo, cabe acentuar que a emulação no corpus em estudo é uma paixão
clica, quando ela aparece logo no início do romance é avaliada positivamente, mas ao longo
da narrativa, outras paixões vão surgindo, a rivalidade entre os sujeitos vai se acentuando e
tomando a forma de ódio recíproco. Isso contribui para que ao final da trama a emulação seja
avaliada e moralizada negativamente.
A próxima paixão que se configura no romance é o ciúme. Fontanille et al., no
Dictionnaire des passions littéraires
11
, distingue dois tipos de ciúme, o ciúme amoroso e o
ciúme social. Ele afirma que “a fonte é nos dois casos o desejo, mas, num é o ‘desejo de ter’
que a desperta, e, no outro, o ‘desejo de ser’, no primeiro caso, um desejo de posse e, no
outro, um desejo de emulação(2005, p. 123, grifo do autor). Como já tratamos da emulação
que os semioticistas reconhecem como ciúme social, agora vamos tratar do ciúme amoroso.
Essa paixão aparece no corpus na seqüência da emulação, evidenciando a
rivalidade entre S1/S2, porém, ela aparece também em todo o corpus como uma relação de
apego S1/O, S3. Portanto, a paixão do ciúme será examinada dentro das duas configurações
genéricas: a da rivalidade e a do apego.
Assim, o ciúme nas duas configurações comprova o mesmo triângulo
actancial: sujeito ciumento, objeto do ciúme e o rival, um anti-sujeito que torna a relação
polêmica. Na interação dos actantes, a perspectiva que orienta o dispositivo é a do ciumento,
assim sendo, por um lado, o ciúme na relação de rivalidade gera o temor de perder o objeto de
valor; por outro lado, na relação de apego, a ameaça de um rival gera o sofrimento. Segundo
Greimas e Fontanille (1993, p. 173-174), o ciumento é um sujeito perturbado entre duas
modalidades que o solicitam, cada qual por inteiro, mas às quais ele não pode nunca se
consagrar exclusivamente: preocupado com seu apego quando luta, ele se vê, ao contrário,
obcecado pela rivalidade quando ele ama”.
Interessa-nos salientar que, de acordo com os dois autores, a competição e a
concorrência especificam a rivalidade: nesta, os sujeitos têm como alvo um mesmo objeto e
programas narrativos paralelos; naquela, além do mesmo alvo e de programas paralelos,
acrescenta-se uma busca simultânea pelo mesmo objeto. Já o apego está associado de um lado
à intensidade e, de outro, ao desejo de possessão exclusiva.
Nesse sentido, o apego repousa num dever-ser que modaliza a junção do
sujeito com o objeto, por isso, a intensidade do apego se traduz pelo grau de investimento do
sujeito por seu objeto. Esse grau de investimento pode tornar o objeto exclusivo para o
11
Traduzimos para a língua portuguesa todos os trechos dessa obra citada neste trabalho.
50
sujeito, assim, um sujeito apegado a um objeto seria um sujeito cuja totalidade integral estaria
consagrada a esse objeto, com isso, a intensidade do apego pode ser interpretada como uma
necessidade hierarquicamente superior a outras. Além disso, a intensidade do apego resiste a
qualquer forma de junção, isto quer dizer que o sujeito continua apegado a um objeto estando
conjunto ou disjunto dele, ou quando a junção não passa de fidúcia. De certo modo, o dever-
ser compromete a existência semiótica do sujeito, porque uma vez rompido o apego, tudo
perde o valor para o sujeito apaixonado, embora o sujeito continue sonhando que é conjunto a
seu objeto de valor até mesmo depois da morte ou do desaparecimento do objeto (GREIMAS
e FONTANILLE, 1993, p. 183-184).
Com efeito, a intensidade do apego também se manifesta como zelo, o
sentimento torna-se disposição para servir e o sujeito se dedica exclusivamente a seu objeto.
Ao ter em vista o dever-ser que se delineia sobre a base da fidúcia, anterior a moralização,
pressupõe-se a confiança e a espera que engendram os correlatos do zelo: fidelidade e
lealdade. A partir do apego intenso, obtemos duas paixões moralizadas de forma diferente, a
hipótese levantada por Greimas e Fontanille (1993, p. 185) que permite explicar o que
acontece é a de que o apego e o zelo (e todos os seus correlatos) são moralizados
positivamente, porque dessolidarizaram-se da rivalidade; enquanto o ciúme é moralizado
negativamente por pertencer à configuração da rivalidade.
É fundamental também considerar o sujeito da possessão, um sujeito que
mesmo conjunto ao seu objeto, quer dele o prazer que ele possa lhe proporcionar com a
conjunção, por isso, encontramos aqui o excedente modal: o sujeito da possessão já em
conjunção com o objeto não esgotou o seu querer-ser-conjunto dele. O objeto é considerado
um objeto modal, modalizado por um poder-fazer, um sujeito de fazer que dá prazer ao sujeito
de estado, mas na dimensão tímica e não na pragmática, porque a conjunção aconteceu.
Observa-se, então, uma partilha de modalizações, o sujeito apaixonado dispõe do querer e o
objeto de valor do poder.
Cumpre-nos lembrar que, toda exclusão supõe uma totalidade, e uma parte
dessa totalidade é considerada como unidade, portanto a exclusividade diz respeito a sujeitos
que apresentam traços diferentes que os individualizam em relação aos tros comuns
constitutivos da totalidade coletiva. Segundo Greimas e Fontanille (1993, p. 189), a extração
de uma unidade integral fora da totalidade partitiva é regulada pelo dever-não-ser em dois
planos: por um lado, é a relação do sujeito coletivo com o objeto escolhido que deve não ser;
por outro lado, é a relação entre o sujeito único e a coletividade que, por sua vez, deve não
ser. É importante observarmos que é da ruptura da totalidade partitiva que surgirá o rival, o
51
actante cuja presença é recusada pela exclusividade, por isso, a exclusividade prepara o
terreno para a rivalidade: de um lado, forças coesivas contribuem para que não haja exclusão
da coletividade e forças dispersivas opõem-se à coletividade, afirmando a exclusividade.
Assim, a rivalidade, ao mesmo tempo, sobredetermina o apego e sofre a sua influência. Para
Fontanille et al. (2005, p. 124), “a relão de posse implica a rivalidade; a relação de
rivalidade implica o desejo do objeto, a dissociação entre essas duas relações é o fim do
ciúme”.
Depois de definirmos e descrevermos cada uma das configurações do ciúme,
passaremos a examinar os constituintes sintáticos dessa paixão que vão nos permite mostrar
como o esquema canônico do ciúme é construído.
O primeiro constituinte sintático que aparece é a inquietude, essa perturbação
está associada à tensão sentida pelo sujeito ciumento, uma oscilação entre a euforia e a
disforia. Ela é considerada um dos constituintes fundamentais do ciúme, porque possibilita
reconhecer um papel patêmico estereotipado, ou seja, ela define a constituição do sujeito.
Além disso, a inquietude
12
é mais abrangente que a sombra e o temor, visto que ela é uma
constante da competência do sujeito; a sombra é passageira, porque surge com a ameaça do
rival; e o temor é apenas circunstancial, manifesta-se quando o acontecimento disfórico é
esperado.
Também são constituintes sintáticos a difidência e a desconfiança,
componentes tanto da sombra, da suspeita, quanto do temor. Há duas formas de desconfiança
na configuração: na rivalidade, o ciumento desconfia da existência do rival; no apego, o
ciumento suspeita da infidelidade do ser amado, então, suspende a confiança, ou seja, torna-se
difidente, deixa de ser confiante. O percurso do ciumento comporta, portanto, duas
transformações fiduciárias: uma para passar da confiança à difidência, a outra para passar da
dúvida à desconfiança (GREIMAS e FONTANILLE, 1993, p. 198).
Ainda de acordo com esses autores, a crise passional compreenderia: a
suspeita, a administração da prova e a encenação decisiva, que induzem à aquisição de uma
certeza, de que nascerá a desconfiança, depois o sofrimento (1993, p. 200). Dessa forma, a
sensibilização permeia em toda a configuração, inclusive sobre os dispositivos modais,
colocados em circulação na troca de simulacros entre os parceiros. Para Fontanille et al.
(2005, p. 133), no ciúme uma das propriedades mais surpreendentes do discurso passional se
12
A inquietude domina a existência do sujeito, na forma de dúvida, ela se fixa na presença do rival; no temor, ela
antecipa a perda do objeto; na desconfiança, ela pressupõe o reencontro do rival e do objeto; enfim, no cuidado,
desde que ela se focalize nos riscos e no apego possessivo (Fontanille et al., 2005, p. 139).
52
manifesta claramente: a construção, a manifestação e a troca de simulacros”. Convém
ressaltar que no simulacro passional da cena do ciúme, seja qual for a posição da dupla S2/S3
com relação ao ator ciumento, o ciumento enquanto espectador estará presente na cena, esse
fato cria o efeito de presentificação.
Por fim, a moralização do ciúme recairá sobre comportamentos e atitudes
observadas na interação, então, um observador social introduz, na configuração passional,
sistemas de valor que fazem parte de digos comuns e partilhados que regulam a circulação
dos dispositivos na interação. Na configuração do ciúme, observamos algumas das avaliações
sobre o comportamento do ciumento que são diametralmente opostas. Por exemplo, o
ciumento que respeita os digos éticos é um sujeito que sabe se portar e, por isso, tenderá a
igualar-se ao outro por emulação; enquanto o ciumento odioso, aquele a quem falta a reserva,
tenderá a regressar na posição do rival. Da mesma forma, o ciumento orgulhoso supervaloriza
as suas competências como efeito de dignidade recuperada; enquanto o ciumento
envergonhado tenderá a reclamar vingança. De fato, quando o ciumento se sente amado,
mostra-se com a estima elevada; ao contrário, quando é tratado com indiferença e falta de
afeição, então, o ciumento sente-se desprezível.
Como resultado de toda a exposição que fizemos, a lógica discursiva, projetada
por aspectualização sobre as modalizações, organiza-se no esquema canônico da paixão do
ciúme que comporta as seguintes fases:
CONTITUIÇÃO
SENSIBILIZAÇÃO
MORALIZAÇÃO
DISPOSIÇÃO
PATEMIZAÇÃO
EMOÇÃO
Assim, cada uma dessas fases pode ser explicada dessa forma: a constituição
do sujeito apaixonado está associada à inquietude que determina certa propensão à crise
passional; à disposição corresponde a suspeita e a investigação que instalam no sujeito de
estado um dispositivo modal sensibilizado; a patemização é decorrente da transformação
tímica principal que pressupõe a visão exclusiva e a aquisição da certeza; a emoção
manifesta-se por um comportamento observável; a moralização é a avaliação ética e estética
do comportamento do ciumento (GREIMAS e FONTANILLE, 1993, p. 243-244).
De acordo com esses autores, a constituição, a sensibilização e a moralização
regulam as relações interindividuais, permitindo identificar as paixões, os seus efeitos e a sua
53
avaliação dentro das taxonomias culturais; já a disposição, a patemização e a emoção são as
etapas em que o sujeito se encontra conjunto ao objeto tímico.
Depois de refletir sobre o estudo do ciúme colocado em discurso, seja através
da organização das várias configurações que o constitui, seja através da constância de uma
configuração que focaliza os efeitos de uma sintaxe, procederemos ao estudo da inveja.
Nesse caso, Greimas e Fontanille (1993, p. 176) citam duas definições de
inveja que são encontradas nos dicionários: sentimento de tristeza, de irritação ou de ódio
que nos anima contra quem possui um bem que não temos” e “desejo de gozar de uma
vantagem, de um prazer igual ao de outrem”.
Os autores chamam a atenção para o fato de que a configuração da rivalidade
se bifurca entre a relação polêmica e a relação de objeto. Na primeira relação, que é a inveja
de tipo S1/S2, o objeto será o mediador da inveja de S1 com relação a S2; na segunda relação,
a inveja do tipo S1/O, S2 será o mediador do desejo de S1. Segundo os mesmos autores, nas
duas relações, a perspectiva adotada será sempre a do sujeito invejoso S1, cujo objetivo
através da mediação
13
pode ser entendido da seguinte forma: através do objeto, o invejoso
visa o rival, ou através de rival, o invejoso visa o objeto. Para esses autores, essas mediações
podem ser pensadas se o dispositivo actancial ainda não estiver estabilizado, então, o
interactante poderia escolher entre o status de objeto e o status de sujeito, pois aquém do
rival, delinea-se o lugar do objeto, e, aquém do objeto, delinea-se o lugar do rival. Dessa
forma, a mediação pelo objeto intensifica a rivalidade, e a mediação pelo rival intensifica o
desejo de posse. (GREIMAS e FONTANILLE, 1993, p. 177).
Assim como a emulação, a inveja também não teve grande destaque nos
estudos desenvolvidos pelos autores no livro Semiótica das paixões, por isso, utilizaremos o
dispositivo canônico dessa paixão que foi proposto, com muita coerência, por Nascimento, no
seu artigo Configurações da inveja no texto publicitário (2006, p. 13), no qual a autora além
de usar como fundamentação teórica as postulações de Greimas e Fontanille (1993), junta a
elas os estudos de Aristóteles (2000) sobre a paixão da inveja.
Nesse sentido, o dispositivo passional da paixão da inveja proposto por
Nascimento (2006, p. 13), comporta as fases: 1- proximidade, 2- idealização do objeto, 3-
supervalorização do objeto; 4- comparação; 5- rivalidade; 6- desqualificação e
descompetencialização de S1; 7- crise da inveja, 8- sofrimento; 9- destruição de S2 e
aniquilamento de S1; 10- moralização.
13
A mediação identificada na inveja e no ciúme pode ser entendida de duas formas: como um dispositivo
figurativo e actorial e como uma manifestação da instabilidade tensiva do actante.
54
Cada uma dessas fases pode ser explicada com base no artigo desenvolvido
pela autora supracitada, da seguinte forma: a proximidade, uma vez que os dois sujeitos
desempenham o mesmo papel temático; a idealização do objeto, o sujeito apaixonado imagina
o prazer que o objeto pode lhe oferecer; a supervalorização do objeto, o invejoso intensifica o
valor do objeto que admira; a comparação, o sujeito invejoso ao se comparar com o rival,
sente-se inferior a ele; a rivalidade, o invejoso não quer que o rival possua o objeto para não
ter que competir com ele; a desqualificação e a descompetencialização de S1, se o rival entrar
em conjunção com o objeto-valor, S1 se descompetencializa; a crise da inveja, a cena da
inveja presentifica o programa narrativo que o invejoso barra a circulação do objeto-valor
para que o outro não o possua; o sofrimento, o sujeito apaixonado sofre pela fixação que tem
no outro; a destruição de S2 e o aniquilamento de S1, o sujeito começa a construir programas
narrativos para que o rival seja privado do objeto, com isso, esses programas narrativos além
de destruir o rival, aniquila o invejoso que passa a viver em função do outro; a moralização, a
inveja é moralizada disforicamente como falta de estima (NASCIMENTO, 2007, p. 13).
Dentro desse enfoque, gostaríamos de salientar que o dispositivo proposto para
o estudo da paixão da inveja destina-se a análise de texto publicitário, por isso, o enfoque
dado à circulação do objeto-valor na sociedade, o que não nos impede de usá-lo na análise do
texto literário, visto que o nosso objetivo embora o seja a circulação de bens, tenha como
finalidade mostrar como o sujeito é afetado pela paixão da inveja ao tentar destruir quem já
possui um bem que ele não tem.
Na seqüência examinaremos a paixão da lera. Segundo Fontanille et al.
(2005, p. 61), a lera literária aparece como conseqüência e sob o controle de uma outra
paixão”. Para ele, a lera, assim como a maior parte das outras paixões, é objeto de
avaliações positivas ou negativas, que a convertem em comportamento moral
14
.
Essa paixão foi motivo de discussão, principalmente, no que se referia à
explosão final, à sua oportunidade e ao seu valor, por isso, os semioticistas, no Dictionnaire
des passions littéraires, propõem uma seqüência canônica que além de constituir a armadura
da definição, também procura resolver os problemas que geraram discussão. Para isso, citam
os estudos de Greimas e Lakoff, mas revelam que nenhum dos dois se interessou pelo
funcionamento textual e pelo desenvolvimento discursivo da lera. A seqüência canônica da
cólera apresentada por Greimas foi mantida, mas com uma abordagem diferente de cada etapa
14
Seguindo o curso histórico e cultural destas avaliações morais, o se pode ficar chocado por sua instabilidade:
a cólera dos deuses o pode ser senão justa e oportuna; a dos homens, conforme a situação, estará a serviço do
justo (Aristóteles); ou então manifestará uma fraqueza de caráter (Sêneca) (FONTANILLE et al., 2005, p.61 ).
55
que constitui a seqüência e, ainda, acrescentando duas fases, a primeira e a última, que não
faziam parte das postulações de Greimas. Para essas duas fases, a influência dos estudos de
Sêneca é inegável, ele insistia sobre a determinação da lera causada pela confiança
(innua, segundo ele) que se concede aos outros e às coisas deste mundo, essa abordagem foi
acatada e deu origem a primeira fase da seqüência canônica; para a confiança, Sêneca acentua
particularmente as alternativas da explosão e sua função de descarga imediata e muito precoce
da agressividade, essa colocação foi registrada no final da seqüência canônica
(FONTANILLE et al., 2005, p. 63).
Assim, a seqüência canônica
15
da lera apresentada por Fontanille et al.
(2005, p. 63), comporta as etapas:
Confiança
Espera
Frustração
Descontentamento
Agressividade
Explosão
Lembramos ainda que, as etapas da seqüência são de natureza intersubjetiva e,
por isso, colocam em confrontação um sujeito e um anti-sujeito. Desse modo, as cinco etapas
da seqüência são descritas por Fontanille et al. (2005, p. 64-65): a confiança- pode ter sido
instalada por uma promessa, pode também afetar a representação de um estado ou de um
acontecimento a ocorrer, que é modalizado por um dever-ser; a espera é a capacidade do
sujeito para suportar a demora da realização, mas é também a da participação de um outro
sujeito, pois a espera guarda a memória da confiança que a funda; a frustração - reatualiza a
promessa de conjunção anterior, e a falta se prova sobre o fundo da confiaa e da espera
irrealizada; o descontentamento - é também dirigido a algum outro, talvez si mesmo, mas em
outro papel actancial, um si mesmo com o qual se contava para a realização do acontecimento
esperado; a agressividade - está explicitamente endereçada para o outro sujeito, o traidor,
aquele que o honrou a promessa; a explosão - deixa o sujeito diante de si mesmo, e resolve
brutalmente as tensões acumuladas, sem nenhuma consideração pelos objetos perdidos, ou
pelos anti-sujeitos incriminados ou os danos causados: como constata Sêneca, a explosão da
cólera não resolve problema algum em se tratando do outro; acaba apenas com o mal estar do
sujeito.
Nascimento e Abriata, no artigo Um copo de cólera (2007, p. 8), fazem uma
observação interessante sobre a lera: “a lera é uma paixão introjetada, uma paixão que
o é exterior ao indivíduo, da ordem do exteroceptivo. Não são as coisas do mundo que
15
A seqüência canônica permite também compreendermos que a cada manifestação de cólera, o fracasso, a perda
ou a decepção são semiotizados como uma ruptura da confiança, como uma frustração de uma espera implícita
(FONTANILLE et al. 2005, p.63).
56
deixam um sujeito colérico, mas ele é colérico interoceptivamente”. As autoras concluem o
seu artigo com os versos de Manuel Bandeira
16
, que nas palavras delas sintetizam com muita
propriedade o que é a cólera: “Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo/ Porque os
corpos se entendem, mas as almas não”.
É importante observarmos também que a seqüência canônica permitir prever
variantes
16
da seqüência principal que se desenvolvem isoladas ou em grupo, com
particularidades específicas, em fases intermediárias, algumas delas são: a impaciência, o
desespero, a revolta, o ressentimento, o despeito, o ódio e a vingança.
De todas as variantes da lera, vamos nos ater à vingança, que essa paixão
também se manifesta em nosso corpus. A vingança comuta com a explosão final, enquanto na
cólera, a explosão final coloca em evidência a intensidade da tensão do sujeito, na vingança,
essa tensão é medida pela quantidade e pela eficácia.
Notamos que o sujeito da vingança é ressentido, pois guarda na memória uma
forma de lera insaciada, o que lhe permite organizar as suas estratégias de vingança, pom
Fontanille et al. (2005, p. 71) chamam a atenção para o fato de o ressentimento se assemelhar
à vingança, mas de se distinguir dela, porque o ressentimento não é pesado em comparação
com o dano causado ou sentido. Para eles, a vingança tem como finalidade reparar o dano
causado e, conseqüentemente, pode ser mesurada em quantidade, em temática, em duração
em relação a esse dano.
Desse modo, com base nos estudos realizados, as etapas do esquema canônico
da vingança podem ser assim explicadas: a confiança
17
se torna desconfiança, em virtude da
ruptura do contrato fiduciário; a espera gera paciência, disposição firme e constante, para
melhor preparar a vingança e aguardar o momento de colocá-la em prática; a frustração
sensibiliza os próprios valores do sujeito que se sente frustrado consigo mesmo, mas também
ela é dirigida a um outro como forma de indiferença; o descontentamento toma as formas de
ressentimento, é, pois, dissimulado; a agressividade acontece quando a vingança é praticada
como compensação de danos.
16
BANDEIRA, M. Estrela da vida inteira. Rio de janeiro: Nova Fronteira, 1993. p. 206)
16
Os semioticistas citam exemplos de variantes não canônicas que não terminam em explosão de lera. Citam
também como exemplo Greimas que interpreta a cólera como uma síncope da vingança, como uma interrupção
do programa de represália contra o anti-sujeito; e Sêneca que insiste mesmo sobre o caráter nefasto dessa
síncope, aconselhando resistir à tentação da explosão, pois uma cólera que explode não terá mais a carga de
rancor suficiente para estimular uma vingança apropriada (2005, p. 66).
17
A falta de confiança faz-se acompanhar de malevolência, assim como a confiança é seguida de benevolência
(GREIMAS, 1981 apud BARROS, 2001, p. 66). A malevolência e a benevolência interpretam, para Greimas, a
hostilidade e a atração de paixões definidas pelo /querer-fazer/, bem ou mal, a alguém. O /querer-fazer/ é a
modalização que dá início à competência do sujeito reparador da falta.
57
Nessa perspectiva, a vingança, para ser eficaz, deve ser intica ao dano, de
maneira que o anti-sujeito reconheça, ele mesmo, a ligação e a equivalência entre o malefício
que ele recebe e aquele que causou (FONTANILLE et al., 2005, p. 72).
Como pudemos observar, o sujeito patemizado pela vingança é um sujeito que
se sente revoltado; em seguida, um sujeito competente que procura reparar a ofensa causada
pelo anti-sujeito; e, por último, um sujeito que julga e pune o anti-sujeito pelo seu
comportamento negativo.
Lembramos, ainda, que todas essas paixões se entrelaçam formando uma teia
de relações, onde cada paixão conserva as suas propriedades ao suscitar uma outra paixão e,
assim, por diante. Nesse sentido, observamos que a paixão manifestada pela mãe, o apego
intenso assim como os seus correlatos, estimula as demais paixões que surgem no
relacionamento entre os gêmeos e entre eles e os demais membros da família. Observamos,
também, que o narrador do texto, ao reconstruir o passado em busca de suas origens, avalia e
moraliza as paixões dos sujeitos envolvidos na trama, mas ao mesmo tempo é por elas
afetado, principalmente, com relação as paixões de Yaqub, que por ser um sujeito afetado por
sentimentos semelhantes ao do narrador, como: rejeição, abandono, indiferença, humilhação,
ressentimento, desejo de vingança, leva-nos a identificar um contágio passional. Segundo
Fontanille (2007, p. 218), no contágio passional deve-se levar em conta o papel das
modalidades, sobretudo, o contato e a sincronização dos corpos e a partilha do campo de
presença. Para esse autor, no contágio passional, cada actante elabora sua própria identidade
passional em relação à que precedeu, ou seja, uma paixão suscita uma outra, e ambas
dependem da identidade modal do actante que a vivencia, por isso, a paixão não se manifesta
com a mesma intensidade, muito menos com a mesma carga modal (2007, p. 218-219).
Em suma, nosso estudo tem como proposta analisar os efeitos de sentido
produzidos pelos estados de alma do sujeito nos textos, a partir de uma sintaxe e das
configurações que nos permitem identificar as paixões no texto Dois irmãos.
58
3 O ENTRELAÇAMENTO DAS PAIXÕES NO RELACIONAMENTO DOS DOIS
IRMÃOS
A paixão é decerto uma confusão, mas é antes de tudo um estado de
alma móvel, reversível, sempre suscetível de ser contrariado,
invertido; uma representação sensível do outro, uma reação à
imagem que ele cria de nós, uma espécie de consciência inata, que
reflete nossa identidade tal como esta se exprime na relação
incessante com outrem. (MEYER, M. Retórica das paixões, 2000, p.
XXXIX)
As paixões aparecem no discurso como portadoras de efeitos de sentido muito
particulares (GREIMAS e FONTANILLE, 1993, p. 21). Os efeitos de sentido passionais
inscritos em diferentes tipos de textos, dos quais a literatura de ficção constitui um precioso
modelo, configuram-se na narrativa como modulações do estado de alma dos sujeitos. Dessa
forma, as paixões surgem da interação, da relação intersubjetiva dos sujeitos envolvidos em
conflitos e confrontações.
Assim é que no romance Dois irmãos, as paies emergem do relacionamento
conflituoso dos irmãos meos em busca de identidade e diferença. A competição entre eles
começa na infância e vai assumindo uma dimensão assustadora através de uma série de
acontecimentos que somatizam e agravam a rivalidade fraterna.
A rivalidade entre Yaqub e Omar é o ingrediente substancial do universo
ficcional de Dois irmãos, é, pois, do relacionamento entre os dois sujeitos que brotam as
paixões. As paixões no romance de Milton Hatoum surgem ingenuamente, tomam formas, e
caminham numa perspectiva ascendente para a maldade e o ódio. Essas paixões, que serão
analisadas a partir de cinco cenas, são elas: a emulação, a inveja, o ciúme, a cólera, a
vingança.
O entrelaçamento dessas paixões inscritas no texto é que vai nos permitir
mostrar como o texto se organiza para produzir o sentido que o constitui e o relaciona a outros
contextos culturais e históricos mais amplos.
59
3.1 DA EMULAÇÃO À INVEJA E AO CIÚME
Uma superioridade indiscutível e imposta é, efetivamente, apenas uma
modalidade da prioridade da diferença, da exclusão, e somos levados
ao jogo das paixões em que se disputa a incompatibilidade do homem
com sua medida de exclusão do Outro em nós. (MEYER, M. Retórica
das paixões, 2000, p. XXXVII)
A cena que abre a análise das paixões em Dois irmãos acontece quando
Yaqub, depois de morar cinco anos no Líbano, regressa a Manaus. Yaqub chegou a Manaus
acompanhado pelo pai que foi buscá-lo no Rio de Janeiro; a mãe, ansiosa, aguardava a
chegada do filho no aeroporto.
A ida dos gêmeos para o Líbano foi programada pelo pai, mas a mãe persuadiu
o marido a mandar apenas Yaqub, que na época estava com treze anos de idade. A viagem
aconteceu um ano antes da Segunda Guerra. Zana culpava Halim por ter enviado o filho para
morar na aldeia da família dele, um lugar onde nem escola havia, temia que o filho esquecesse
o português; a preocupação de Halim era com o reencontro dos filhos, a reação de ambos e o
convívio depois da longa separação.
Apesar do tempo em que viveram separados, Yaqub e Omar continuavam
muito semelhantes, iguais na aparência e em certos trejeitos, mas o temor da mãe em relação
aos anos que o filho viveu no Líbano se confirmou, Yaqub esqueceu algumas palavras da
língua portuguesa.
Enquanto ele e os pais percorriam o caminho do aeroporto para casa, a
paisagem contemplada por Yaqub irrompeu flashes da infância vivida naquele lugar. Esse
flashback nos permitiu dividir a cena em duas partes: na primeira, ele resgatava momentos da
infância; na segunda, da pré-adolescência.
Na primeira parte, a sua infância estava ali presente às margens do Rio Negro e
dos igarapés e, junto a ela, também estava a presença de seu irmão meo, pois, como ambos
eram iros de mesma faixa etária, vivenciaram momentos dessa fase juntos: passeavam,
brincavam e se aventuravam por ali.
A presença de Omar foi muito marcante para Yaqub, porque, o caçula, como
era conhecido por ser o gêmeo que nasceu minutos depois que o irmão, destacava-se nas
brincadeiras e estripulias de criança. Essa presença tão forte de Omar foi que desencadeou, na
infância, a paixão da emulação em Yaqub.
60
A emulação é definida como “sentimento que leva a igualar ou ultrapassar
alguém em rito, em saber, em trabalho (GREIMAS e FONTANILLE, 1993, p. 174). É
uma paixão que focaliza a relação entre dois sujeitos S1/ S2, aqui representados por Yaqub
(S1) e Omar (S2).
De acordo com o dispositivo canônico da emulação que apresentamos no
capítulo teórico para fins de análise, listamos as seguintes fases dessa paixão: 1- proximidade;
2- prova da competência de (S2); 3- comparação; 4- sofrimento; 5- rivalidade; 6- crise da
emulação; 7- moralização. Todas essas fases aparecem no discurso na perspectiva de apenas
um dos sujeitos (S1), o sujeito passional, aquele cujo estado tornar-se-á modificado ao longo
do percurso. Dessa forma, passaremos à análise de cada uma das fases do dispositivo da
emulação.
A emulação é uma paixão que afeta um sujeito em relação a um outro, sendo
necessário que ambos mantenham um certo relacionamento de proximidade. Assim, a
proximidade dos sujeitos Yaqub (S1) e Omar (S2) era manifestada de várias maneiras, entre
elas: pelo parentesco, ambos são irmãos gêmeos; pela faixa etária, os dois têm a mesma idade;
pelo lugar, o regresso de Yaqub a Manaus, cidade onde residia a família. Pelo fragmento
abaixo, podemos observar a proximidade entre eles:
Agora ele estava de volta: um rapaz tão vistoso e alto quanto o outro filho, o Caçula.
Tinham o mesmo rosto anguloso, os mesmos olhos castanhos e graúdos, o mesmo
cabelo onduloso e preto, a mesmíssima altura. Yaqub dava um suspiro depois do
riso, igualzinho ao outro. A distância não dissipara certos tiques e atitudes comuns,
mas a separação fizera Yaqub esquecer certas palavras da língua portuguesa.
(HATOUM, 2006, p. 13)
A proximidade entre os sujeitos era o que permitia mostrá-los envolvidos nas
mesmas situações, quando os dois desfrutavam juntos os prazeres da infância:
Os barcos, a correria na praia quando o rio secava, os passeios até o Careiro, no
outro lado do rio Negro, de onde voltavam com cestas cheias de frutas e peixes. Ele
e o irmão entravam correndo na casa, ziguezagueavam pelo quintal, caçavam
calangos com uma baladeira. (HATOUM, 2006, p.14)
61
Se a proximidade os unia em situações comuns, ela também revelava a
diferença dos dois sujeitos, seja ela de comportamento, de atitude, da maneira de ser. A
maneira de ser, de se comportar, de agir perante as situações apresentadas nos permitiu
observar que mesmo pessoas próximas e semelhantes apresentavam qualidades e
comportamentos distintos, o que as diferencia e as identifica. Observamos essa diferença no
comportamento e no modo de ser de Yaqub (S1) e Omar (S2) pela passagem abaixo:
Quando chovia, os dois trepavam na seringueira do quintal da casa, e o Caçula
trepava mais alto, se arriscava, mangava do irmão, que se equilibrava no meio da
árvore, escondido na folhagem, agarrado ao galho mais grosso, tremendo de medo,
temendo perder o equilíbrio. (HATOUM, 2006, p.14)
Yaqub (S1) era medroso e Omar (S2) era corajoso. A maneira de ser e de se
aventurar de Omar, ele era corajoso e se arriscava perante o perigo, correspondia à
competência que ele possuía e à qual faltava a Yaqub:
A voz de Omar, o Caçula: “Daqui de cima eu posso enxergar tudo, sobe, sobe”.
Yaqub não se mexia, nem olhava para o alto: descia com gestos meticulosos e
esperava o irmão, sempre o esperava, não gostava de ser repreendido sozinho.
Detestava os ralhos de Zana quando fugiam nas manhãs de chuva torrencial e o
Caçula, de calção, enlameado, se atirava no igarapé perto do presídio. Eles viam
as mãos e a silhueta dos detentos, e ele ouvia o irmão xingar e vaiar, sem saber quem
eram os insultados: se os detentos ou os curumins que ajudavam as mães, tias ou
avós a retirar as roupas de um trançado de fios nas estacas das palafitas. (HATOUM,
2006, p.14 )
Omar (S2) tinha consciência das qualidades que possuía, arriscava-se cada vez
mais e provocava Yaqub para acompanhá-lo. Seguro de si, (S2) sabia que era superior ao
irmão, porque conseguia enfrentar diversas situações, às quais (S1) as revidava por medo. O
sujeito (S1) se comparava a (S2), (S2) era competente, sabia-fazer e podia-fazer; então,
Yaqub (S1) sentia-se diminuído e inferior, porque não conseguia realizar as mesmas façanhas
que Omar (S2):
Não fôlego ele não tinha para acompanhar o irmão. Nem coragem. Sentia raiva, de si
próprio e do outro, quando via o braço do caçula enroscado no pescoço de um
62
curumim do cortiço que havia nos fundos da casa. Sentia raiva de sua impotência e
tremia de medo, acovardado, ao ver o Caçula desafiar três ou quatro moleques
parrudos, agüentar o cerco e os socos deles e revidar com fúria e palavrões. Yaqub
se escondia, mas não deixava de admirar a coragem de Omar. (HATOUM, 2006,
p.14)
Ao se comparar a (S2), (S1) sofria por perceber suas limitações e as
potencialidades de (S2), por isso, sentia raiva de si mesmo e do outro, mas não deixava de
admirá-lo pela coragem que tinha.
É comum que entre iros o mais velho seja corajoso e proteja o(s) irmão(s)
mais novo(s), ou seja, o primogênito, na ausência do(s) pai(s), se responsabiliza e cuida dos
demais membro da família. Com Yaqub e Omar era diferente, o Caçula era quem comprava as
brigas com as outras criaas, o mais velho se acovardava, se escondia, tinha medo.
Conhecendo as qualidades de (S2), (S1) tomava-as como referência e
manifestava a rivalidade: (S1) quer ser igual a (S2). A admiração que sentia por Omar
alimentava em Yaqub o desejo de se igualar, fazer as mesmas coisas que o Caçula fazia.
Assim sendo, (S1) modalizado pelo querer-fazer e querer-ser criava o simulacro que permitia
a ele entrar em conjunção com as competências que (S2) possuía:
Queria brigar como ele, sentir o rosto inchado, o gosto de sangue na boca, a ardência
no lábio estriado, na testa e na cabeça cheia de calombos; queria, correr descalço,
sem medo de queimar os pés nas ruas de macadame aquecidas pelo sol forte da
tarde, e saltar para pegar a linha ou a rabiola de um papagaio que planava
lentamente, em círculos, solto no espaço. (HATOUM, 2006, p.14-15)
Pelo simulacro criado na perspectiva de Yaqub (S1), percebemos que o
dispositivo foi sensibilizado, a crise da emulação aconteceu, pois (S1) conseguiu copiar a
imagem modal de (S2). Então, a modalização que domina o sujeito é a do querer-ser, o
querer-fazer fica em segundo plano. Nessa perspectiva, o sujeito (S1) se tornou êmulo e o seu
comportamento foi moralizado positivamente.
Embora o dispositivo da emulação tenha sido concluído, (S1) continuava
admirando o irmão (S2), isto é, desejando se igualar a ele. O sujeito, que despertava no outro
a paixão da emulação, apresentava-se como um sujeito realizado. Essa qualificação do sujeito
de referência, identificada a partir de sua competência, continuava provocando em (S1) o
querer-ser como (S2): “O Caçula tomava impulso, pulava, rodopiava no ar como um acrobata
63
e caía de pé, soltando um grito de guerra e mostrando as mãos estriadas. Yaqub recuava ao
ver as mãos do irmão cheias de sangue, cortadas pelo vidro do cerol (HATOUM, 2006,
p.15). Yaqub embora não conseguisse repetir o fazer de (S2), continuava alimentando o
desejo de ser como ele, ou seja, o sujeito (S1) prosseguia em seu percurso patemizado pela
emulação.
Na segunda parte da cena, depois de reviver momentos da infância marcados
pelo desejo de ser como o irmão e pelas limitações que não permitiam que ele o fosse com
toda a intensidade que desejava, Yaqub se lembrou de um baile de carnaval que aconteceu
dois meses antes de sua partida para o Líbano. A lembrança desse baile mostrava Yaqub
diferente. Se antes ele era apresentado negativamente pelo que o conseguia realizar, agora
ele aparecia de maneira positiva como alguém que gostava e sabia fazer algo, brincar e pular
carnaval: “Yaqub não era esse acrobata, o lambuzava as mãos com cerol, mas bem que
gostava de brincar e pular nos bailes de Carnaval no sobrado de Sultana Benemou, onde o
Caçula ficava para a festa dos adultos e varava a noite com os foliões” (HATOUM, 2006,
p.15).
Mesmo apresentando uma qualificação, a comparação implícita com o irmão surgia na
seqüência: Yaqub gostava de brincar e pular carnaval, mas era Omar quem ficava na festa a
noite toda.
Esses bailes aconteciam em duas sessões, uma para os jovens e outra mais
tarde para os adultos. Yaqub participava da primeira sessão, o que conferia a ele a designação
de jovem que era, pré-adolescente; Omar participava do baile dos adultos, agindo como tal. O
Caçula estava sempre à frente, assumindo uma postura contrária aos preceitos sociais e à sua
faixa etária, com apenas treze anos já se fazia passar por adulto. Yaqub respeitava esses
preceitos, era sempre mais acometido, naquela noite quis ficar, mas somente até a meia-noite,
um horário menos transgressor que o do irmão.
O motivo que levava Yaqub a querer ficar até mais tarde na festa era Lívia,
uma garota bonita que se apresentaria pela primeira vez na festa dos adultos. Nessa decisão de
Yaqub, percebemos a competição com o irmão, ainda que o texto não manifestasse a
ocorrência dessa situação explicitamente, mas os fatos se encarregavam de engendrá-los:
primeiro, Omar, que não era adulto, permanecia na festa dos adultos; segundo, Lívia
participaria pela primeira vez da festa dos adultos; terceiro, Yaqub queria se sentir adulto
como Lívia; concluindo, Yaqub desejava conquistar Lívia e, para isso, precisava ficar na festa
para não correr o risco de outro conquistá-la, supostamente esse outro era Omar. O excerto
abaixo coloca em evidência os planos de Yaqub:
64
O baile dos jovens havia começado antes do anoitecer. Às dez horas os adultos
entraram fantasiados na sala do casarão, cantando, pulando e enxotando a garotada.
Yaqub quis ficar até meia-noite, porque uma sobrinha dos Reinoso, a menina
aloirada, corpo alto de moça, também ia brincar até a manhã da Quarta-Feira de
Cinzas. Seria a primeira noite de Lívia na festa dos adultos, a primeira noite que ele,
Yaqub, viu-a com os lábios pintados, os olhos contornados por linhas pretas, as
tranças salpicadas de lantejoulas que brilhavam nos ombros bronzeados. Queria ficar
para pular abraçado com ela, sentir-se quase adulto como ela. (HATOUM, 2006,
p.15)
O que Yaqub não previa era a sua ausência no baile, já que, como filho
obediente, atendeu a ordem da mãe e levou a irpara casa. Quando retornou ao baile, foi
tomado pelo espanto ao ver Lívia e Omar dançando juntos. A reação que teve alterou o seu
comportamento: “A sala fervilhava de foliões, e no meio das tantas cores e das máscaras ele
viu as tranças brilhantes e os lábios pintados, e logo ficou trêmulo ao reconhecer o cabelo e o
rosto semelhantes ao dele, pertinho do rosto que admirava” (HATOUM, 2006, p.15).
A cumplicidade dos dançarinos, alheios às manifestações festivas típicas de
carnaval, foi decisiva para que Yaqub percebesse o envolvimento dos dois enamorados:
Lívia e o irmão dançavam num canto da sala. Dançavam quietos, enroscados,
movidos por um ritmo só deles, que não era carnavalesco. Quando os foliões
esbarravam no par, os dois rostos se encontravam e, sim, davam gargalhadas de
Carnaval. (HATOUM, 2006, p. 15-16)
Yaqub sentiu ciúmes dos dois, mas como sempre a falta de coragem o o
deixou partir para a disputa e conquistar Lívia. Novamente a presença do irmão causava em
Yaqub medo de se colocar à prova, de tentar, lutar pelo que desejava. A presença do irmão era
tão forte que o deixava fragilizado, a superioridade que o irmão fazia questão de mostrar
desde pequeno colocava em evidência a inferioridade do outro, ou seja, Yaqub recuava na
presença do irmão, ele preferia não medir forças, temia o fracasso: “Yaqub ensombreceu. Não
teve coragem de ir falar com ela. Odiou o baile, ‘odiei as músicas daquela noite, os
mascarados, e odiei a noite’, contou Yaqub a Domingas na tarde de Quarta-Feira de Cinzas”
(HATOUM, 2006, p.16). Por esse comportamento de Yaqub, reconhecemos o papel patêmico
de ciumento, ele sofria ao ver Lívia em conjunção com Omar. Ele, enquanto ciumento, era
apenas o espectador, alguém que assistia a cena e nada fazia para modificá-la.
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Diferentemente das lembranças da infância, quando Yaqub queria ser como o
irmão, aqui ele não manifestava esse desejo. Ocorreu uma mudança de comportamento, ele se
retirou do local, sofreu por o conseguir o objeto valor: conquistar Lívia. Com o estado de
alma alterado, Yaqub foi para casa, mas não conseguiu dormir:
Foi uma noite insone. Ele fingia dormir quando o irmão entrou no quarto dele
naquela madrugada, quando o som das marchinhas carnavalescas e a gritaria dos
bêbados enchiam a atmosfera de Manaus. De olhos fechados, sentiu o cheiro de
lança-perfume e suor, o odor de dois corpos enlaçados, e percebeu que o irmão
estava sentado no assoalho e olhava para ele. Yaqub permaneceu quieto, apreensivo,
derrotado. Notou o irmão sair lentamente do quarto, o cabelo e a camisa cheios de
confete e serpentina, o rosto sorridente e cheio de prazer. (HATOUM, 2006, p. 16)
A presença de Omar no quarto de Yaqub depois de passar a noite ao lado de
Lívia era uma prova de que Omar fazia questão de se mostrar um rival imbatível e superior,
alguém que sentia prazer o em conseguir o que o iro desejava, mas alguém que sentia
prazer em mostrar a sua supremacia e, conseqüentemente, a incapacidade do mais velho de
rivalizar-se com ele. Ele, Omar, era o detentor do poder, o melhor, o mais corajoso, o
conquistador. O irmão era um fracassado, derrotado, medroso. O prazer que Omar sentia em
privar Yaqub de conseguir o que desejava, identificava-o como um invejoso, no íntimo ele
o queria que o irmão fosse melhor ou obtivesse algo para não ter que competir com ele.
Ficava evidente que o prazer de Omar não estava em suas realizações e conquistas, mas, sim,
em impedir qualquer tipo de realização de Yaqub.
Se Omar buscava acentuar a diferença entre eles; Yaqub buscava a sua
identidade no irmão, ou seja, Yaqub tinha consciência do que era a partir da imagem de Omar.
Assim, Yaqub era o que Omar não era. Em todo momento ficava clara essa perspectiva de
análise, pois primeiro aparecia a descrição de Omar e, na seqüência, a descrição do que
Yaqub era pela exposição das qualidades que ele não possuía ao se comparar com o irmão.
Privado de se sentir realizado, restava a Yaqub apenas algumas indagações que
fazia a si mesmo tentando encontrar respostas para o que ele não conseguia entender. As
lembranças rememoradas contribuíam para que ele, agora de volta, procurasse preencher as
lacunas que ficaram daquele tempo que foi interrompido pela viagem ao Líbano:
66
Não entendia por que Zana não ralhava com o Caçula, e não entendeu por que ele, e
não o irmão, viajou para o Líbano dois meses depois. Agora o Land Rover
contornava a praça Nossa Senhora dos Remédios, aproximava-se da casa e ele o
queria se lembrar do dia da partida. Sozinho, aos cuidados de uma família de amigos
que ia viajar para o Líbano. Sim, por que ele e não o Caçula, perguntava a si
mesmo... (HATOUM, 2006, p. 16)
Esses questionamentos de Yaqub revelavam mais que a latência por respostas,
a diferença entre ele e o irmão; diferença que a mãe o fazia questão de atenuar. A diferença
entre Yaqub e Omar percebida pelo mais velho era causa de sofrimento; para o Caçula era
motivo de prazer.
O paradoxo tematizado pela igualdade (aparência) e diferença
(comportamento) figurativiza Omar como um ator que agia por instinto, e Yaqub como um
ator que não agia por receio. A diferença de comportamento dos gêmeos contribuía para a
construção da isotopia: a violência de Omar (xinga, vaia, insulta, desafia, revida, soco, fúria,
palavrões, briga, sangue); a covardia de Yaqub (treme, teme, detesta, raiva, medo,
acovardado, se esconde, ensombreceu, odiou).
De acordo com esse paradoxo que constituía inicialmente os atores em Dois
irmãos é que presentificaremos no texto as paixões que afetam seus estados de alma.
Nessa primeira cena constatamos o desejo de emulação em Yaqub, pois ele
queria se igualar a Omar; a inveja em Omar, uma vez que ele sentia prazer em privar Yaqub
de conseguir o que queria; o ciúme, já que Yaqub sentia ciúme de Omar.
Assim identificadas as três paixões, passaremos a investigar a configuração da
inveja e do ciúme, uma vez que a configuração da emulação já foi aqui analisada.
3.2 O CIÚME SOBRE O PANO DE FUNDO DA INVEJA
A oponibilidade que une e desune os homens é precisamente o
passional, a contingência que os libera ao mesmo tempo que pode
entregá-los ao que a destrói e ao que os subjuga. (MEYER, M.
Retórica das paixões, 2000, p. XXXV)
O ciúme que começou naquela noite carnavalesca no sobrado dos Benemou
por ocasião de Omar conquistar Lívia, garota almejada por Yaqub, configura-se nesta cena
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sob uma nova perspectiva: na cena anterior, o ciúme foi manifestado por Yaqub; nesta, Omar
é quem vive o papel de ciumento.
A passagem que nos permite analisar o ciúme entre os dois irmãos foi relatada
por Domingas, a empregada da família, ao filho com a finalidade de contar como foi a história
da cicatriz na face de Yaqub, a única marca que distinguia os meos tão inticos na
aparência.
Quando Yaqub chegou em casa, foi recebido com euforia por Rânia e
Domingas. A mãe tentou justificar a ausência de Omar que apareceu por volta da meia-
noite, quando os vizinhos que vieram ver Yaqub ainda estavam na casa e assistiram a
recepção de Zana ao filho Caçula como se fosse ele o viajante que retornava a casa, Yaqub
ficou enciumado ao perceber a cumplicidade dos dois.
Os irmãos se cumprimentaram friamente com um aperto de o. Enquanto
estavam próximos, a semelhança dos dois deixava perplexos os demais ali presentes, o que os
distinguia era a cicatriz no rosto de Yaqub.
A cicatriz na face esquerda de Yaqub estigmatizava não a diferença da
aparência dos dois, mas também guardava a memória da rivalidade que, assim marcada
concretamente em Yaqub, fazia lembrar a todos que lhe o próximos o ódio estampado pelo
sinal que simbolizava a inimizade dos dois.
A história da cicatriz aconteceu logo depois do carnaval, num dia de sábado,
quando os meos foram à casa dos Reinoso assistir a uma sessão de cinema. Essas sessões
aconteciam no último sábado de cada mês, quando todas as crianças da vizinhança eram
convidadas para esse acontecimento inusitado e, como tal, elas se vestiam para a ocasião.
Com os meos também era assim: “Yaqub e o Caçula usavam um fato de
linho e uma gravatinha borboleta; saíam iguais, com o mesmo penteado e o mesmo aroma de
essências do Pará borrifado na roupa” (HATOUM, 2006, p. 20).
Apesar da semelhança na aparência, o comportamento deles era distinto em
todas as situações. Yaqub, o irmão mais velho, era um garoto tímido e reservado em sua fala e
em suas ações. Omar, o Caçula, ao contrário do mais velho, era todo cheio de si, atirado,
aventureiro, corajoso, destemido. A figurativização inicial de ambos apresenta-se na
seqüência: Yaqub, menino tímido, continuou de braços dados com a criada Domingas; Omar,
sedutor, foi ao encontro da dona da casa e ofereceu-lhe flores: “Domingas, de braços dados
com os dois, também se arrumava para acompanhar os meos. O Caçula se desgarrava,
corria, era o primeiro a beijar o rosto de Estelita e entregar-lhe um buquê de flores”
(HATOUM, 2006, p. 20-21).
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Depois de cumprimentarem a dona da casa, chegaram à sala onde estavam
todos os convidados e os criados que serviam lanches às crianças. Entre os convidados estava
Lívia, a sobrinha dos Reinoso que Yaqub desejava conquistar dias atrás naquela noite de
carnaval, no entanto, pelas contingências do destino, foi conquistada por Omar.
Com a demora do cinematógrafo, a garotada ansiosa apreciava selos de outros
países, canhões e soldadinhos que formam expostos sobre a mesa. O tempo começou a fechar
e, por isso, Abelardo Reinoso ligou o gerador. Enquanto o cinematógrafo não chegava, Lívia
dispensava aos gêmeos uma atenção especial:
A meninona loira apreciava um selo raro, e seus braços roçavam os dos gêmeos.
Alisava o selo com o indicador, os outros meninos se entretinham com o batalhão
verde, e ela parecia atraída pelo aroma que exalava dos gêmeos. via sorria para
um, depois para o outro, e dessa vez foi o Caçula quem ficou enciumado, disse
Domingas. (HATOUM, 2006, p. 21)
Omar começou a ficar enciumado. A organização triangular que constitui a
base da relação ciumenta é formada pelos actantes: sujeito ciumento, Omar; objeto do ciúme,
Lívia; e sujeito rival, Yaqub. Lívia será o pivô, o objeto de valor disputado pelos dois sujeitos.
A seqüência da narrativa, a partir da relação estabelecida entre os sujeitos
envolvidos, nos permite identificar a lógica do esquema canônico do ciúme que comporta as
fases: Constituição – Disposição – Sensibilização – Emoção Moralização.
Na primeira fase, vemos o sujeito apaixonado se constituindo pela inquietude
que definia a sua tensão em face das circunstâncias apresentadas, ou seja, o seu
comportamento foi alterado, evidenciando um temperamento oscilatório, sob o qual o
apaixonado não tinha controle. Essa inquietude, provocada pela ameaça, mesmo que
imaginária do rival, inspirava o temor de partilhar o objeto valor, um acontecimento por vir. A
oscilação disfórica e eufórica resultavam do abalo fórico do sujeito, o sentir que o tornou
inquieto.
Uma vez que o sujeito se tornou inquieto, instalou-se a desconfiança, a
suspeita da presença de um rival. Aconteceu, então, uma perturbação fiduciária, o dever-ser
que fundamentava a confiança transformou-se em vida. A suspeita da existência de um
rival corresponde à segunda fase do esquema canônico do ciúme: a disposição do sujeito para
manifestar o efeito de sentido passional, Omar é ciumento; como podemos comprovar nesta
69
passagem: “O Caçula fez cara feia, tirou a gravatinha-borboleta, desabotoou a gola e
arregaçou as mangas da camisa. Bufou, se esforçou para ser dócil(HATOUM, 2006, p. 21).
Manifestada a disposão de ser ciumento, identificamos a sensibilização,
terceira fase do esquema, intimamente ligada à variação do ponto de vista do sujeito, assim
ela poderá prolongar ou atenuar a crise passional.
Omar, por já ter consumado a conjunção com via anteriormente, era superior
ao irmão em competência, um sujeito positivo e contratual da ação: deve/, quer/ e pode fazer
_ ficar conjunto com Lívia; por outro lado, a presença de seu oponente, o iro Yaqub,
marcava a ocorrência de um sujeito conflituoso: deve não fazer/, quer fazer/ e pode fazer.
A existência modal do sujeito passional foi modelada pela interação, a variação
dos estados de alma desse sujeito dependerá da existência modal do objeto de valor desejado.
Dessa forma, observamos a variação dos estados de alma do Omar em resposta ao modo
como Lívia se portava em relação a Yaqub: na passagem anterior, quando Lívia sorriu para
Yaqub, Omar fez cara feia (não gostou), ficou inquieto (tirou, desabotoou, arregaçou), bufou
(ficou bravo), se esforçou para ser dócil (tentou se recompor); na passagem abaixo veremos
que Lívia recusou o convite de Omar para continuar perto de Yaqub, intensificando a
sensibilização, pois Omar detestou vê-los tão próximos:
Balbuciou: “Vamos dar uma volta no quintal?”, e ela olhando o selo: “Mas vai
chover, Omar. Escuta só as trovoadas.” Então ela tirou um selo do álbum e ofereceu-
o a Yaqub. O caçula detestou isso, disse Domingas; detestou ver os dedos do irmão
brincarem de minhoca louca com os dedos de Lívia.( HATOUM, 2006, p. 21)
Omar tentou tirar Lívia de perto de Yaqub propondo uma volta no quintal,
porém, com a resposta de Lívia iniciada pela conjunção adversativa “mas”, notamos a quebra
do contrato; Lívia deu uma desculpa para o sair de perto de Yaqub. A confirmação da
quebra do contrato se concretizou com o gesto da menina, intensificando a fase da
patemização. É uma constante da competência do sujeito passional a inquietude e a
desconfiança, por isso, Omar continuava inquieto e mais desconfiado ainda.
Conforme vimos, via deu atenção aos dois irmãos: “seus braços roçavam os
dos gêmeos”, ela parecia atraída pelo aroma que exalava dos gêmeos”, “Lívia sorria para um,
depois para o outro(HATOUM, 2006, p. 21), mas em seu comportamento ficava clara a
preferência pelo mais velho.
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Ela tinha um poder de sedução que chamava a atenção não só dos gêmeos, mas
dos demais garotos da vizinhança. O short vermelho e o olhar dengoso citados no fragmento
abaixo são indícios de sedução: a cor vermelha simboliza paixão; o tipo de vestimenta, short,
roupa curta que deixa à mostra as pernas; o jeito de olhar, o olhar por si é o primeiro
contato de atração entre duas pessoas, um olhar dengoso é bem mais que isso, é um olhar que
insinua algo.
Dessa forma, Lívia foi descrita como uma mocinha. No diminutivo
percebemos a ironia: não era moça ainda, mas sabia usar os artifícios de uma mulher madura
para atrair o sexo oposto, como comprovamos pela passagem:
Não era sonsa, era uma mocinha apresentada, que sorria sem malícia e atraía os
gêmeos e todos os meninos da vizinhança quando trepava na mangueira, e em redor
do tronco um enxame de moleques erguia a caba e seguia com o olhar a ondulação
do short vermelho. Mas ela gostava mesmo era dos gêmeos, olhava dengosa para os
dois; às vezes, quando se distraía, olhava para Yaqub como se visse nele alguma
coisa que o outro não tinha. ( HATOUM, 2006, p. 21)
A preferência de Lívia por Yaqub manifestada neste dia contrariava os
pensamentos de Omar, que acreditava poder continuar conjunto com ela após a noite de
carnaval. Essa inquietude do ator ciumento era reforçada pelo apego ao objeto valor, ele não
queria perdê-lo, portanto tentava de todas as maneiras, criar simulacros em que se projetava
conjunto ao objeto desejado:
O caçula pensava que depois do baile dos Benemou a Lívia ia cheirar e morder o
gogó dele e desfilar com ele nas matinês do Guarani e do Odeon. Já tinha prometido
roubar o Land Rover dos pais e passear com ela até as cachoeiras do Tarumã. Zana
desconfiou, escondeu a chave do jipe, cortou a curica do Caçula.( HATOUM, 2006,
p. 21-22)
Por mais que Omar se mostrasse apegado ao objeto valor, Yaqub também
buscava a sua conjunção com ele. Assim, a rivalidade foi estimulada pela concorrência e pela
competição, ou seja, os dois atores buscavam o mesmo objeto ao mesmo tempo. A rivalidade
entre os dois irrompeu quando o rival mostrou-se interessado pelo objeto disputado: “Yaqub
reservou uma cadeira para Lívia e o Caçula desaprovou com o olhar esse gesto polido”
(HATOUM, 2006, p. 22). Quando o sujeito ciumento, Omar, confirmou o interesse do rival,
71
Yaqub, pelo objeto valor, Lívia, ele censurou com o olhar o rival. Pela ação do rival em
reservar uma cadeira que garantiria a proximidade com a moça, Yaqub era modalizado pelo
querer-fazer, entrar em conjunção com Lívia; já Omar, ao desaprovar a ão do irmão, era
modalizado pelo não-querer que o outro fizesse, ou seja, o ciumento não queria que Yaqub
entrasse em conjunção com Lívia.
Assim, a manifestação pública desse estado afetivo induzido do sujeito
ciumento confirmou na narrativa a quarta fase do esquema passional, a emoção:
Uma pane no gerador apagou as imagens, alguém abriu uma janela e a platéia viu os
lábios de via grudados no rosto de Yaqub. Depois, o barulho de cadeiras atiradas
no chão e o estouro de uma garrafa estilhaçada, e a estocada certeira, rápida e furiosa
do Caçula. (HATOUM, 2006, p. 22)
Ao perceber a conjunção de Lívia com Yaqub, a manifestação agressiva e
disfórica do ciúme de Omar se concretizou. Omar acreditava poder estar conjunto com Lívia,
quando viu que essa conjunção aconteceu com o irmão, agrediu-o violentamente.
A fase da emoção ficou pressuposta pela figura: estocada certeira, que criava o
efeito de sentido de raiva, fúria, sofrimento. Essa representação figurativa do fazer de Omar
consolidou a intensidade da rivalidade que, ao trazer sofrimento para o ciumento, fez com que
ele tentasse destruir o rival, retirando-o de seu caminho.
Omar, ao manifestar o ciúme modalizado por um não-poder-não-fazer como
Yaqub: conquistar via, revelava explicitamente o temor de perder o objeto e implicitamente
reconhecia o sucesso do rival. Esse reconhecimento do mérito do rival pelo ciumento era nada
mais que a comprovação de sua inferioridade em competência, pois se o ciumento não de
ficar conjunto com o objeto, ele fez com que o rival também não o pudesse, para não ter que
sofrer ao vê-los conjunto.
Na cena do ciúme confirmou-se a conjunção do rival com o objeto valor e o
ciumento foi mero observador, alguém que assistiu à cena, mas o pôde figurar como ator.
Na última fase, a da moralização, o ciumento não respeitou o código de normas
que regia o espaço comunitário, por isso, depois de identificar o ataque do ator ciumento,
todos os presentes e os que chegaram ao local da cena reagiram ao fato consumado: grito de
pânico abafou o alvoroço. É o que identificamos no excerto: O silêncio durou alguns
72
segundos. E então o grito de pânico de Lívia ao olhar o rosto rasgado de Yaqub. Os Reinoso
desceram ao porão, a voz de Abelardo abafou o alvoroço” (HATOUM, 2006, p. 22).
A inserção da paixão nos textos nos leva a observar a variação dos estados de
alma do sujeito passional e a reação desses estados nos outros, daí o caráter interativo e
intersubjetivo das paixões. Assim como identificamos as alterações no comportamento
passional do ciumento, também percebemos os efeitos que essas alterações causam nos outros
sujeitos, inclusive no rival que foi o alvo sobre o qual recaiu a fúria do ciumento: A cicatriz
começava a crescer no corpo de Yaqub. A cicatriz, a dor e algum sentimento que ele não
revelava e talvez desconhecesse. Não tornaram a falar um com o outro” (HATOUM, 2006, p.
20).
Portanto, as taxonomias culturais permitem identificar as paixões sensibilizadas
e moralizadas como negativas ou positivas de acordo com os regimes de circulação de bens e
valores de cada cultura. Dessa forma, vemos que os pais do sujeito passional tentaram
encontrar algo que justificasse o comportamento do filho com base na cultura de que faziam
parte:
Zana culpava Halim pela falta de mão firme na educação dos gêmeos. Ele
discordava: “Nada disso, tu tratas o Omar como se ele fosse nosso único filho” [...]
Os pais tiveram que conviver com um filho silencioso. Temiam a reação de Yaqub,
temiam o pior: a violência dentro de casa. Então Halim decidiu: a viagem, a
separação. A distância que promete apagar o ódio, o ciúme e o ato que os
engendrou. (HATOUM, 2006, p. 22-23)
Os pais trataram logo de culpar um ao outro para justificar o acontecido: o pai,
por deixar os filhos fazerem tudo o que queriam; a e, pelo zelo excessivo dedicado ao
Caçula. Nem um dos dois assumiu o erro na educação dos filhos e, na tentativa de corrigir
esse erro, cometeram um erro maior: mandar Yaqub para obano.
A cena escolhida para análise tem no contexto global da obra grande
relevância, primeiro, porque é a cena em que um irmão deixou no outro uma cicatriz, uma
marca que Yaqub carregará para o resto de sua vida; segundo, porque, a partir dessa cena, o
pai retirou o mais velho do seio da família e isso também deixou marcas profundas nele, uma
grande mágoa, como se ele fosse o excluído, o rejeitado, conferindo ao seu irmão agressor um
lugar privilegiado junto à proteção dos pais.
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Descrito o esquema passional canônico, constatamos a paixão do ciúme como
construção discursiva isotópica negativa tanto do ponto de vista do ator ciumento que sofreu a
perda do objeto de valor; quanto do ator rival que foi agredido, ferido fisicamente. A
manifestação desse estado de alma envolveu ainda o objeto de valor, para o qual se dirigiram
as atenções e a disputa, mesmo que o seu sofrimento não fosse aparente, tornou-se implícito
pelo fato de, no decorrer da seqüência narrativa, ter mostrado interesse pelo ator rival e
indiferença ao ator ciumento. Além dos atores envolvidos no esquema passional, restaram os
atores coadjuvantes que, presentes no espaço comunitário/social da cena, sancionaram a crise
passional.
Ainda levando em conta a configuração do ciúme na cena anterior e nesta
cena, observamos que os sujeitos envolvidos foram os mesmos: Yaqub, Lívia e Omar, porém
o que mudou foi a perspectiva adotada pelo ator ciumento. O objeto do ciúme foi o mesmo
nas duas perspectivas: Lívia. Aconteceu, porém, uma troca de papéis entre os sujeitos, antes
Yaqub era o sujeito ciumento e Omar, o rival; agora, Omar é o ciumento e Yaqub, o rival. A
inversão dos papéis é comum uma vez que os sujeitos trocam simulacros que resultam em
dispositivos sensibilizados. Dessa maneira, percebemos o ciúme como uma paixão interativa e
intersubjetiva complexa, cuja configuração e sintaxe nos permitem analisá-la nos discursos
com base na perspectiva adotada pelo ciumento.
É importante ressaltarmos também o narrador do texto que, como filho de
Domingas, a criada da casa, reconstituiu a cena com base na dimensão das impressões de sua
e, que lhe contou a história: “Foi Domingas quem me contou a história da cicatriz no rosto
de Yaqub. Ela pensava que um ciuminho reles tivesse sido a causa da agressão” (HATOUM,
2006, p. 21).
O fato de a narrativa ter como narrador o filho de Domingas transmitiu-nos o
acontecimento sob a ótica de um outro sujeito, Domingas, que descreveu os fatos, mas ao
mesmo tempo deixou fluir na narrativa alguns juízos de valor, como, por exemplo, ciuminho
reles. Para Domingas parecia ser um ciuminho reles o que motivou a agressão, mas
percebemos pelo verbo – pensava – que o que parecia ser, não é o que de fato motivou Omar.
Então, precisamos comprovar os efeitos de verdade do discurso e, para isso a
veridicção é um recurso que nos permite interpretar esses valores de verdade, pela oposição
instalada no discurso entre o ser e o parecer. No modo do parecer que sobressai ao ser, a cena
da cicatriz comprova uma verdade de evidência: a causa da agressão foi a paixão do ciúme; ao
contrário, se o ser sobressair ao parecer: o ciúme é dissimulado, ele esconde um segredo.
74
Portanto, as evincias da paixão do ciúme, conferidas pela análise e
certificadas pela lógica do esquema canônico, criam o efeito de sentido de verdade. Daí a
necessidade de analisar o ciúme, a paixão explícita no texto.
Depois de uma investigação mais minuciosa, constatamos que o ciúme
representou nesta cena apenas a camuflagem de uma outra paixão: a inveja.
Por um lado, o ciúme analisado na primeira cena, na perspectiva de Yaqub,
configurava sim essa paixão, visto que ele desejava conquistar Lívia, portanto, ele se
constituiu como sujeito ciumento, Lívia era o objeto do ciúme, e Omar, o rival.
Por outro lado, o que parecia ciúme nesta cena, na perspectiva de Omar, nada
mais era que inveja. Mais que o desejo de continuar conjunto com Lívia, o que o atormentava
era o temor de perder o objeto valor para Yaqub e, assim, reconhecer no rival o mérito, mérito
que conferia ao rival a superioridade em competência e, ao mesmo tempo, a necessidade do
ciumento de retirá-lo da competição para não ter que disputar com ele o objeto valor.
A cena da inveja presentifica o sujeito passional como puro sujeito de estado,
ele se tornou sujeito de fazer por intermédio do querer que o outro não tivesse, mediado
pelo objeto de valor. Lívia representava para Omar apenas o pretexto que aguçava a rivalidade
entre ele e o irmão.
Na cena anterior, Omar entrou em conjunção com Lívia para privar Yaqub de
fazê-lo. Nesta cena, por não conseguir a conjunção com Lívia, ele tentou destruir Yaqub e
retirou-o da competição. Omar, modalizado pelo querer que Yaqub não entrasse em
conjunção com Lívia, agrediu o iro, tornando-se um sujeito patemizado pela inveja. Assim,
a isotopia construída pelo fazer de Omar - violência, ferimento, cicatriz, dor - imputa à inveja
a avaliação negativa.
3.3 A INVEJA QUE DESPERTA A VINGANÇA
A inveja, embora uma os iguais, tem pouca probabilidade de suscitar
a comunhão. Os iguais já estão próximos e a inveja assinala de
preferência a diferença. (MEYER, M. Retórica das paixões, 2000, p.
XLIX)
... a inveja é vil e peculiar aos espíritos vis ... (ARISTÓTELES.
Retórica das paixões, 2000, p. 71)
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A volta de Yaqub do Líbano foi providencial para que se cumprisse o
presságio que a separação não conseguiu eliminar: o ódio entre os dois irmãos. Esse
sentimento que é manifestado por várias paixões no desenrolar do romance, nesta ocasião
toma as formas da paixão da inveja.
O tempo que Yaqub viveu no Líbano sem freqüentar escola acarretou não só o
esquecimento de algumas palavras, mas também contribuiu para que ele ao retornar se
sentisse deslocado no ambiente familiar. Renunciava aos momentos da mocidade, isolado em
seu quarto, passava dias e noites estudando a gramática portuguesa, mas destacava-se mesmo
era na matemática. Aconselhado pelo professor de matemática, foi morar em São Paulo para
continuar os estudos. Outra vez Yaqub se ausentou do lar, mas desta vez por decisão própria.
Recusou ajuda financeira dos pais, formou-se engenheiro, e casou-se sem a presença da
família. Todas as conquistas de Yaqub chegavam até a família através de cartas e fotografias
que os pais orgulhosos exibiam para os vizinhos.
Omar reinava como senhor absoluto na casa e, como tal, era o centro das
atenções das mulheres que ali habitavam. Levava uma vida boêmia ao lado de prostitutas e
dançarinas dos clubes noturnos que freqüentava. A mãe, na excessiva proteção devotada ao
Caçula, era auxiliada por Domingas e Rânia nas madrugadas de embriaguez e ressaca do filho
farrista. Ao contrário de Yaqub, Omar foi expulso do colégio por agredir o mesmo professor
de matemática que admirava o irmão, nunca freqüentou faculdade, não trabalhava.
Enquanto Yaqub se identificava com o ritmo da metrópole, a frieza das
monumentais estruturas de concreto, a devoção das pessoas ao trabalho e prosperava na
profissão; Omar sofria com a independência do iro, era indiferente ao seu êxito, o tocava
no nome dele. Os indícios da ascensão e do poder do mais velho, registrados nas fotografias
expostas na sala, chamavam a atenção de todos e despertavam no Caçula a inveja.
A inveja, que trataremos aqui, é a que estabelece a rivalidade entre os sujeitos
(S1/S2) mediatizada pelo objeto de valor (O). O sujeito invejoso (S1), representado por
Omar, manifestava o sentimento de ódio contra o sujeito rival (S2), representado por Yaqub,
por ele possuir o objeto (O) invejado.
De acordo com essa configuração são identificadas as modulações do
dispositivo da inveja postuladas por Nascimento (2007, p. 13): proximidade, idealização do
objeto, supervalorização do objeto, comparação, rivalidade, desqualificação e
descompetencialização de S1, crise da inveja, sofrimento, destruição de S2 e aniquilamento de
S1, moralização.
76
A paixão da inveja, que fora manifestada antes na ocasião que teve como
conseqüência a cicatriz no rosto de Yaqub, culminou no período em que Omar morou em São
Paulo, como veremos a partir de agora pelo desabafo do pai.
Halim sempre conversava com Nael, o filho da empregada. Os dois estavam
em um boteco na ponta da cidade flutuante, aonde chegou Pocu, um vendedor viajante, e
contou-lhes a história de um casal de irmãos que viviam juntos em um barco abandonado
longe da civilização, dois seres do mesmo sangue vivendo como bichos. Depois de ouvir a
história, Halim disse: Conheço um bicho, mas sem muita coragem” (HATOUM, 2006, p.
91), repetiu a frase, mas esperou Pocu sair para começar o desabafo.
O bicho ao qual Halim se referia era Omar, o filho que na concepção do pai
agia como um animal, por instinto como o vimos figurativizado na infância. O fato novo é a
falta de coragem de Omar, pois coragem era o que o faltava a ele quando pequeno. A falta
de coragem a que se referia o pai era a de enfrentar a vida: estudar, trabalhar, conquistar com
seus esforços o seu sustento e o que mais almejasse.
Omar foi para São Paulo contra a sua vontade, obrigado por Halim, a pedido
de Zana, para afastá-lo de lia, a Mulher Prateada que enfeitiçou o Caçula a ponto de ele
sumir de casa por vários dias, causando preocupação e ciúmes na mãe. Os pais, que não
tinham controle sobre a vida desregrada do filho, pensavam que longe deles Omar seguiria o
exemplo de Yaqub, mas não foi isso que ele fez:
“Isso mesmo, majnun, um maluco mesmo.Halim estalou os dedos, depois coçou a
barba por fazer, grisalha, que envelhecia ainda mais o seu rosto. “Omar quer viver
com emoção. Ele não abre o disso, quer sentir emoção em cada instante da vida.
A Zana pensou que o nosso filho...” Halim olhou para a margem do rio, como se
tentasse lembrar de algo. “Sabe de uma coisa? Eu também... estava crente que ele
tinha estudado um semestre inteiro num ótimo colégio e que depois ia poder entrar
numa universidade. Nem São Paulo corrigiu Omar! Aliás, nenhum santo nem cidade
vai dar jeito nele.” (HATOUM, 2006, p. 91)
Frustrado, Halim reconhecia o erro dele e de Zana ao tentarem aproximar os
filhos na capital. A proximidade dos sujeitos (S1) Omar e (S2) Yaqub não estava só no fato de
serem irmãos gêmeos, mas também por estarem pximos no mesmo espaço e tempo, ambos
moravam na capital. Essa proximidade foi que permitiu ao sujeito (S1) ser patemizado pela
inveja que sentia de (S2).
77
As revelações de Yaqub ao pai deixavam claro o efeito de indignação e de
raiva provocado pela crueldade da inveja do irmão. Assim como o pai, o doutor via no Omar
um animal, supostamente estragado pela mãe e mal-agradecido aos pais que o sustentavam:
Então Yaqub revelou a verdade, na versão dele. Contou só para o pai, que deixou o
outro desabafar. O engenheiro, lacônico, dessa vez desandou a falar mal do irmão:
“Um mal-agradecido, um primitivo, um irracional, estragado até o tutano. Fez pouco
de mim e de minha mulher”. (HATOUM, 2006, p. 91)
A comprovação das acusações de Yaqub foi apresentada ao pai por um cartão-
postal enviado pelo Caçula nas viagens em que fez ao exterior, mas ao contrário de ser uma
correspondência agradável, o seu objetivo foi depreciativo.
No cumprimento de abertura, Omar foi irônico ao se referir a eles como
queridos mano e cunhada” - primeiro, porque não existia essa benquerença entre eles;
segundo, porque mano é uma forma reduzida carinhosa de tratar um irmão - , e, continuou
com a ironia ao convidá-los para irem até lá, convite que, mesmo sabendo ele não seria
aceito, foi feito para provocar. Seguem as provocações insinuando que não são civilizados,
que são superiores, que Lívia estava feia e velha. Na ironia e na provocação, Omar revelava o
que invejava em Yaqub: a civilidade, a superioridade, o casamento com Lívia.
Ao identificarmos os objetos invejados por Omar, observamos a
supervalorização desses objetos pelo uso enfático dos advérbios de intensidade e do pronome
indefinido nas expressões: mais civilizada, superiores em tudo, rejuvenescer muito.
Além do mais, o invejoso reconhecia a superioridade do invejado e,
reconhecendo a superioridade do rival, reconhecia a sua inferioridade, como podemos
comprovar na passagem: “Se vierem, tratem de pintar o cabelo de loiro, assim vão ser
superiores em tudo(HATOUM, 2006, p. 92). O fato de pintar o cabelo de loiro torná-los
superiores em tudo, pressupunha que eles já eram superiores para Omar. Assim, ficava
implícita a inferioridade do sujeito invejoso, causando a rivalidade. É o que constatamos nos
dizeres do cartão-postal:
Pois bem, o Caçula enviou o primeiro cartão-postal de Miami; depois enviou outros,
de Tampa, Móbile e Nova Orleans, contando suas farras e peripécias em cada
cidade. Yaqub rasgara todos os postais menos um, que entregou ao pai: “Queridos
mano e cunhada, Louisiana é a América em estado bruto e mesmo brutal, e o
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Mississipi é o Amazonas desta paragem. Por que o dão uma voltinha por aqui?
Mesmo selvagem, Louisiana é mais civilizada que vocês dois juntos. Se vierem,
tratem de pintar o cabelo de loiro, assim vão ser superiores em tudo. Mano, a tua
mulher, que foi bonita, pode rejuvenescer muito aqui na América. Abraços do
mano e cunhado Omar. (HATOUM, 2006, p. 91-92)
A rivalidade entre os dois era projetada pela afronta às vantagens e aos bens
que Yaqub possuía e dos quais Omar se desfazia por não poder tê-los. O invejoso tripudiava
ironicamente e desvalorizava o que o outro tinha.
Omar era afetado pela modalidade do não querer que Yaqub fosse realizado
com os seus bens, por isso, menosprezava-os. O sujeito invejoso era manipulado pelos objetos
de posse do rival, porém buscava na manipulação passional o controle de uma representação
do donio desse simulacro, assim, revidava com uma contramanipulação, criando o seu
próprio simulacro, fingindo que os bens do irmão o eram capazes de despertar sua cobiça,
ou seja, faz-crer que não quer mais o que o outro tem. Se o rival, Yaqub, se sentisse realizado
conjunto aos objetos, o invejoso, Omar, se desqualificava e descompetencializava.
Da mediação pelo objeto surgia a sensibilização que manifestava a
transformação patêmica por uma instabilidade mal estabilizada. Omar embora parecesse
eufórico na sua viagem, revelava-se disfórico em tentar por meio do cartão-postal fazer com
que o irmão se sentisse em desvantagem.
Revoltado com o irmão, Yaqub foi a Manaus. O motivo da primeira visita
depois que foi morar em São Paulo não foi o de rever a família, mas o de contar aos pais os
feitos de Omar, uma maneira de mostrar a eles quem era o filho protegido de Zana e cobrar a
injustiça de ter sido relegado ao segundo plano, condição que conferia ao Caçula privilégio e,
ao mais velho, rejeição. Ainda assim, Yaqub não teve coragem de falar com a mãe que ela
era a causadora desse sentimento nele, por ter expressado incondicionalmente a preferência
por Omar, portanto a revelação foi feita apenas para o pai:
“Durante cem dias o teu filho foi disciplinado como não tinha sido em quase trinta
anos, mas foram cem dias de farsa”, disse Yaqub ao pai. “Ele roubou meu
passaporte e viajou para os Estados Unidos. O passaporte, uma gravata de seda e
duas camisas de linho irlandês!” Yaqub teve certeza disso quando recebeu o
primeiro cartão-postal. Já tinha expulsado a empregada, porque ela levara Omar para
o apartamento quando ele e a esposa estavam em Santos no feriado de 15 de
novembro. A empregada havia confessado quase tudo: Omar a levara para passear
no Trianon e no jardim da Luz; tinham almoçado no Brás e nos restaurantes do
centro. Dois folgadões! Tudo isso com o dinheiro que vocês mandavam, disse
Yaqub, irado. (HATOUM, 2006, p.92)
79
Omar enganou a todos, nos primeiros meses em São Paulo foi assíduo às aulas
e estudioso, mas até conhecer a empregada de Yaqub e Lívia, quando ela foi levar umas
encomendas de Zana para ele a mando do patrão. Seduzida pelo Caçula, levou-o até o
apartamento do casal no feriado em que estavam em Santos, contou a ele que Lívia era a
esposa do seu irmão e permitiu que Omar mexesse em tudo no apartamento, como
verificamos pelo relato:
Depois Yaqub se lembrou dos dois volumes, velhos e empoeirados de cálculo
integral e diferencial, livros que comprara por uma pechincha num sebo da rua
Aurora. Abriu os livros com o pressentimento de que fora aviltado. Rangia os
dentes, as mãos trêmulas mal conseguiam folhear o primeiro volume, onde tinham
sido enfiadas várias cédulas de um dólar; no outro volume guardara as notas de
vinte. Folheou os dois livros, página por página, depois chacoalhou-os, e caíram
dulas de um dólar. O patife! Muito bem, que o pulha levasse o passaporte, a
gravata de seda, as camisas de linho, mas dinheiro... (HATOUM, 2006, p.92)
No comportamento de Omar reconhecemos o papel de invejoso, ele tirou do
irmão dinheiro, roupas e o passaporte. Era a crise da inveja, sentimento que animava o
invejoso contra aquele que possuía o que ele não tinha. O Caçula invadiu o apartamento,
roubou e humilhou o mais velho.
O dinheiro e o passaporte roubados do irmão deram a Omar o poder de viajar
para o exterior, com isso, o cartão-postal representava para Omar o meio de ele mostrar a
Yaqub que era superior em vantagens, pois enquanto Yaqub trabalhava, guardava economias
e fazia viagens curtas pelo interior do estado, Omar usurpava dos bens adquiridos pelo irmão
com trabalho e fazia viagens internacionais.
Assim sendo, pelo cartão postal reconhecemos duas formas de
intencionalidade no percurso do apaixonado: a relação oculta da rivalidade demonstrada pela
cordialidade da correspondência e a recompensa do rival que mesmo aviltado era aquele que
possuía o que o outro desejava.
Dessa maneira, o sofrimento do invejoso era engendrado pela fixação no outro,
pois mesmo se apossando do dinheiro do irmão para procurar prazer, Omar usava desse prazer
para fazer com que Yaqub se sentisse infeliz com o que tinha.
O filho engenheiro se sentiu humilhado e enfurecido mais pelo roubo do
dinheiro do que pelo uso de sua identidade, pelas roupas que lhe foram tiradas e pela invasão
de sua propriedade:
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“Deixou a mixaria, deixou o que ele é. Esse é o teu filho. Um harami, um ladrão!”
“Gritou ladrão tantas vezes que pensei que tivesse se referindo a mim”, disse Halim.
“Bom, ele falava do meu filho, e de alguma forma me atingia. Mas deixei o Yaqub
falar, eu queria que ele desembuchasse tudo. Depois eu disse: ‘Não dá para esquecer
essas coisas? Perdoar?’ Meu Deus foi pior!” (HATOUM, 2006, p.92-93)
Mostrar os erros de Omar era uma forma de fazer com que o pai reconhecesse
no filho agredido o homem correto e, com isso, fazê-lo perceber os erros cometidos contra ele
tanto pelo irmão agressor quanto pelos próprios pais. Ao ouvir o filho enfurecido gritar
ladrão, Halim se sentia agredido na sua condição de pai que errou na educação do Caçula. A
declaração feita por ele na seqüência expunha a ambiidade da ofensa cometida contra
Yaqub: “Meu Deus foi pior!” O que teria sido pior: a cicatriz ou o roubo?, ou ainda, a
separação ou a aproximação dos filhos? De qualquer forma, Halim, ao deixar que Yaqub
jogasse para fora toda a sua ira, percebia a gravidade do problema, o filho mais velho que
aceitou tudo até o momento sem se pronunciar, estava ali agora, diante do pai, cobrando tudo,
inclusive o que nunca teve coragem de mencionar: a preterição conferida ao Caçula.
Yaqub passou da acusação à cobrança. Não ia sossegar enquanto o irmão não lhe
devolvesse os oitocentos e vinte dólares roubados. Uma fortuna! A poupança de um
ano de trabalho. Um ano calculando estruturas de casas e edifícios na capital e no
interior. Um ano vistoriando obras. Zana devia conhecer essa história, e aí sim, ela ia
entender o verdadeiro caráter do caçulinha dela, o peludinho frágil. Mimem esse
crápula até ele acabar com vocês! Vendam a loja e a casa! Vendam a Domingas,
vendam tudo para estimular a safadeza dele! (HATOUM, 2006, p.93)
Yaqub era modalizado pelo querer-fazer, cobrar os danos causados a ele pelo
irmão, o Caçula teria que pagar a poupança de um ano de trabalho. Cobrava também dos pais
como já foi dito, agora com ironia nos diminutivos acrescentados por ele aos apelidos usados
pela mãe para se referir ao filho mais novo (caçulinha e peludinho) e na forma ameaçadora de
falar com o pai.
Halim atribuía à atenção desmedida e ao excesso de mimo da esposa os ultrajes
de Omar: “Ele não parava, não conseguia parar de xingar o filho mimado da minha mulher.
Parece que o diabo torce para que uma mãe escolha um filho...” (HATOUM, 2006, p. 93).
As atitudes e o desabafo de Yaqub figurativizavam-no calculista, o no
sentido qualitativo profissional: aquele que trabalha com cálculos, mas em sentido qualitativo
pejorativo: uma pessoa fria, extremamente apegada ao dinheiro.
81
No entanto, a sua fúria foi também por causa de Lívia, a esposa cuja identidade
Yaqub não revelava à família. Somente o pai sabia quem era ela, a menina que foi motivo de
ciúme e inveja entre os dois na infância, paixões que tiveram como desfecho a cicatriz na face
de Yaqub. Supostamente Yaqub escondia a identidade da esposa, temendo a concorrência e a
competição com o irmão. Omar não revelava esse comportamento que seria o de um
ciumento, as suas atitudes eram as de um invejoso, pois destruiu as fotos que registraram a
união do casal:
Não estava furioso só por causa dos dólares. A empregada tinha contado para
Omar quem era a esposa de Yaqub. Ficou irado porque o Caçula entrou no
apartamento dele e vasculhou tudo, encontrou as fotos do casamento, das viagens, e
deve ter visto outras coisas. eu sabia que a Lívia, a primeira namorada do Yaqub,
tinha viajado para São Paulo a pedido dele. Ele queria manter esse segredo, mas
Omar acabou sabendo. Não sei qual dos dois ficou mais enciumado, mas a verdade é
que Yaqub não perdoou os desenhos obscenos que Omar fez nas fotos de
casamento... (HATOUM, 2006, p. 93).
Yaqub foi somando as agressões e a violência do irmão contra ele e jurou
vingança. Não esqueceu a cicatriz no rosto, a marca do iro nele e, agora, os desenhos e
palavrões nas fotos tinham também o efeito de uma cicatriz que figurativizava a destruição do
irmão em sua vida. Embora essas marcas não destruíssem o seu casamento, destruíram o
registro do acontecimento documentado pelas fotos e, pior que isso, macularam a celebração
da união do casal.
No simulacro passional de Omar ao destruir as fotos, constatamos a
embreagem do sujeito invejoso que nada mais era que a reembreagem do sujeito tensivo,
criando o efeito de presentificação no tempo e no espaço. Se as fotos mostravam Omar fora
do acontecimento, os rabiscos e palaves que ele inscreveu nelas colocavam-no presente no
acontecimento.
Na relação intersubjetiva dos sujeitos envolvidos, vemos que o querer de um
entrava em conflito com o querer do outro: Yaqub não queria informar quem era a esposa
temendo às manifestações do irmão; Omar fez-saber: destruiu as fotos, expressando o querer
que soubessem que ele descobriu quem era ela.
No percurso do sujeito apaixonado constatamos que o invejoso (S1) construiu
programas narrativos para destruir o rival (S2), seja tirando os seus bens (roubo do passaporte,
das roupas e do dinheiro), seja menosprezando o que o outro tinha e ele não poderia ter (a
82
civilidade, a superioridade e a esposa), seja destruindo as suas conquistas (as fotos do
casamento). À medida que S1, modalizado por um dever-fazer com que S2 não fosse
realizado, ele construía para si mesmo um programa narrativo que o aniquilava, perdendo a
confiança em si mesmo e passando a viver em função do outro. A inveja, moralizada como
falta de estima, permite-nos observar o invejoso vivendo em função do outro, mostrando a sua
própria incompetência.
A avaliação negativa da inveja se confirmava na seqüência pela atitude de
Halim: colocou as os na cabeça. Nesse gesto percebemos o desespero do pai ao reconhecer
nos feitos do filho Omar a crueldade e o mal que ele fazia a Yaqub:
Halim s as os na cabeça, confirmou: “Isso mesmo: Omar encheu o rosto da
Lívia de obscenidades, cobriu as fotografias do álbum de casamento com palavrões e
desenhos... Yaqub ficou louco... Não tinha perdoado a agressão do irmão na
infância, a cicatriz... Isso nunca tinha saído da cabeça dele. Jurou que um dia ia se
vingar”. (HATOUM, 2006, p. 93)
O pai sofria com os problemas causados pelo Caçula, mas sofria também ao
perceber o mais velho tão mesquinho. Halim tinha o seu estado de alma afetado à medida que
Yaqub relatava os fatos, uma oscilação mesclada por rios sentimentos identificados nos
gestos e na aparência dele:
Agora ele parecia melanlico e bebia arak com gelo, raramente bebia outra coisa.
[...]Halim ia parar de falar? Ele me encarou mais uma vez, mordeu com raiva o lábio
inferior. Deu um murro na mesa, como se pedisse silêncio. “Sabes o que eu fiz
depois dessas acusações?” Ele parecia meio agitado, meio bêbado, sei lá. “Sabes o
que a gente deve fazer quando um filho, um parente ou um fulano qualquer
estrebucha por causa de dinheiro? Sabes?” (HATOUM, 2006, p. 93-94)
Mesmo comovido com tudo o que ouviu, deixou que o filho falasse tudo o que
queria. A indignação do pai com os filhos era tamanha, com Omar pela atrocidade contra o
irmão; com Yaqub pela mesquinharia do apego ao dinheiro. Por isso, prontificou-se em
resolver o problema, mas não fez nada, porque reconhecia os dois filhos errados. Halim, que
nunca quis ter filhos, renegava-os mais uma vez. A manifestação dos sentimentos do pai em
relação aos filhos intensificava na seqüência:
83
Pois bem. Deixei o Yaqub terminar. Estava alterado, nunca tinha visto meu filho
assim. Depois do desabafo, ele foi murchando, virou murufora d’água. Então eu
disse: ‘Está bem, vou dar um jeito nisso.’ Pensou que eu ia sair atrás do irmão dele,
ou que ia contar tudo para Zana. Me levantei, voltei para casa, enchi de orquídeas os
vasos do quarto, armei a rede e gritei o nome da minha mulher... Filhos! Por Deus,
eu tinha que esquecer todas essas porcarias, os oitocentos e vinte dólares, o
passaporte, a gravata, as camisas e a droga de Louisiana... Zana entrou no quarto e
me viu nu na rede. Me viu e entendeu. Declamei umas palavras do Abbas... Era a
senha... (HATOUM, 2006, p. 94)
Embora Halim não quisesse ter filhos para não ter que dividir com eles a
atenção da esposa, o pai admirava o filho mais velho e reprovava o comportamento do mais
novo. Como pai ele sempre acusava a mãe por dar maior atenção ao Caçula e, por isso
também, mantinha um relacionamento mais afetuoso com Yaqub, uma espécie de
compensação, ele tentava compensar a falta de atenção de Zana para com o mais velho.
Assim, Yaqub era para o pai o exemplo de filho: correto, estudioso, responvel, trabalhador,
digno da sua admiração. Dessa forma, o sofrimento de Halim era maior com Yaqub por
percebê-lo tão mudado, porque com Omar a decepção era constante: O silêncio de Halim. Eu
desconfiava do que ele mais temia: O engenheiro se engrandecia, endinheirado. E o outro
gêmeo não precisava de dinheiro para ser o que era, para fazer o que fez” (HATOUM, 2006,
p. 94-95).
O temor do pai era a transformação pela qual passara o filho mais velho ao
adquirir o poder que o dinheiro conferia a ele. Se antes ele era tima e sofria as
conseqüências dos atos indecorosos de Omar, agora ele acusava e cobrava, ou seja, ele
adquiriu esse poder e não permitiria que o irmão o tirasse dele.
3.4 A CÓLERA IRROMPIDA PELA INVEJA
Para Aristóteles, a cólera é o reflexo de uma diferença entre aquele
que se entrega a ela e aquele ao qual ela se dirige. (MEYER, M.
Retórica das paixões, 2000, p. XLIII)
No oitavo capítulo do romance Dois irmãos, identificamos a configuração do
dispositivo passional da lera. Nesse capítulo, dois acontecimentos são fundamentais para
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que a paixão da lera seja narrativizada: a morte de Halim e a chegada do estrangeiro
Rochiram na cidade.
Depois da morte de Halim, a casa começou a desmoronar” (HATOUM, 2006,
p. 165). Zana, enlutada, mudou radicalmente o seu relacionamento com o Caçula, não
perdoou a falta de respeito dele para com o pai morto, o tom das palavras proferidas e o dedo
apontado no rosto do finado marido. A mãe tornou-se indiferente aos carinhos e agrados do
filho e passou a repreendê-lo de todas as formas, principalmente, para que procurasse um
emprego já que o tinha mais o pai para sustentá-lo.
Desse modo, Zana não aceitaria mais aquele comportamento lastimável que o
filho assumiu desde abril em virtude do assassinato do professor comunista, Antenor Laval, o
poeta admirado pelos alunos, amigo meio clandestino de Omar. Nos últimos meses que
antecedeu a sua morte, ele e Omar estavam mais pximos, eram companheiros na boemia das
noites manauaras, por isso, a perda do mestre foi tão traumática para o Caçula que se
autoflagelava no ritual de cuidar do quintal da casa, andava sujo e fétido, cheio de picadas de
insetos, machucados e lees na pele causadas pelo desleixo.
Com as repreensões da mãe, Omar voltou à vida de farrista, rejeitava trabalhar
com Rânia na loja da família, mas pedia a ela dinheiro para bancar suas farras. A mãe o
suportava mais ver o filho vivendo dessa maneira, tratava-o com uma frieza que assustava o
Caçula. A morte de Halim fez com que Zana assumisse uma nova postura, portanto aquela
e que amava cegamente o filho a ponto de acobertar todas as suas safadezas deu lugar a
uma mãe severa que exigia agora do filho tudo o que sempre fez vista grossa e preferiu não
enxergar.
Omar não suportava o desprezo e o silêncio da mãe, fazia de tudo para tentar
conquistá-la novamente, mas Zana continuava fechada em sua tristeza. A falta do esposo a fez
perceber que ele estava correto em reprovar o tipo de vida que levava o Caçula e que ela, na
sua devoção desmedida ao filho, só contribuiu para estimular. Na ausência do pai, o chefe da
família, Zana assumiu a responsabilidade de corrigir os erros do filho mais novo e, também,
de corrigir os seus próprios erros com relação aos dois filhos: com Omar, cobrando-lhe
mudança de atitude; com Yaqub, como veremos na seqüência, tentando trazê-lo de volta para
casa e fazendo com que ele e o irmão se tornassem amigos.
Nesse sentido, Zana expressou o desejo de ver os filhos reconciliados: “O que
eu mais quero é paz entre os meus filhos. Quero ver vocês juntos, aqui em casa, perto de
mim... Nem que seja por um dia” (HATOUM, 2006, p. 167).
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As atitudes da mãe para Omar representavam bem mais que o desejo de unir os
filhos, pois traziam implícita a necessidade da presença do mais velho. Ele que, antes era o
centro de todas as atenções da mãe, agora se via ameaçado por ter que dividi-las com Yaqub.
Foi no momento em que Omar percebeu sua relação com a mãe abalada que as
etapas do dispositivo da cólera começaram a se desenvolver, encadeando uma seqüência
organizada necessária à identificação dessa paixão. Assim, a seqüência apresenta as seis fases:
confiança espera frustração descontentamento agressividade explosão
(FONTANILLE et al., 2005, p. 63).
De acordo com o autor citado, a estrutura actancial da lera comporta três
papéis: sujeito colérico, objeto e anti-sujeito. No capítulo em análise, Omar desempenhará o
papel actancial de sujeito colérico, o objeto será representado pela e, e Yaqub, no papel de
anti-sujeito, constituir-se-á no inimigo do sujeito patemizado.
No relacionamento da mãe com o Caçula, anterior à morte do pai, notamos um
contrato de fidúcia, fundamentado na crença da predilão materna, contrato que modalizava
os sujeitos pelo dever-ser: a exclusividade de ambos um para com o outro. Esse contrato
imaginário engendrado na relação dos dois deixava pressuposta na narrativa a primeira e a
segunda fases do esquema passional da lera, a confiança e a espera. Com o querer-fazer de
Zana, a união dos filhos, a ruptura desse contrato era percebida pela confiança abalada,
instalando a espera que gerava em Omar a impaciência, a agitação, a inquietude, a rivalidade,
como podemos observar abaixo:
Ele não queria ouvir falar de Yaqub, o nome do irmão o estorvava. Ainda cedo,
clareando, antes de eu abrir a janela do quarto, Omar resmungava apoiado ao tronco
da seringueira: “O que ela quer? Paz entre os filhos? Nunca! Não existe paz nesse
mundo...” Falava sozinho, e não sei em que pensava quando disse: “Devias ter
fugido... o orgulho, a honra, a esperança, o país... tudo enterrado...” [...] Continuou
ali, como se tivesse caído no chão, o olhar nos lugares onde a mãe o havia esperado
desde sempre. (HATOUM, 2006, p. 168)
O relacionamento entre mãe e filho era pautado pelo donio que Omar sabia
ter sobre a mãe, a preferência como filho. Para não perder essa vantagem que conferia a ele
uma posição privilegiada em relação a Yaqub, Omar tentava de todas as formas reconquistar a
e que se mantinha distante e indiferente ao filho pelas decepções causadas por seus atos.
Quando ele percebeu que ela o respondia às suas expectativas, começou a sofrer pelo temor
de perder essa vantagem que era a única e mais poderosa que tinha em relação ao irmão, por
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isso, mostrou-se revoltado pelas renuncias que fez para ficar perto dela. Então, a ruptura da
confiança fazia com que Omar se sentisse fracassado em razão daquilo que a mãe lhe havia
deixado esperar e que estava ameaçado pela presença do irmão.
Movido por esse temor, as transformações na vida de Omar começaram a
aparecer, chegava mais cedo em casa e tratava melhor Rânia e Domingas. Até que surgiu
Rochiram, o visitante indiano que Omar trouxera em sua casa. Rochiram era um empresário
da construção civil, construía hotéis em vários países, o homem de negócios impelido pelos
rumores do progresso industrial e comercial da capital amazônica que atraía turistas do mundo
todo, chegou a Manaus com o propósito de construir ali um grande edifício.
A freqüência das visitas do estrangeiro consolidou a confiança de Zana no
novo amigo do filho. Ela, que aos poucos foi interrogando o visitante, descobriu nele a
oportunidade de aproximar os filhos, por isso, quando Omar não estava por perto, mostrava as
fotografias de Yaqub e falava do grande engenheiro que era. Omar, desconfiado da pretensa
atitude de Zana, ficava inquieto e tratava de tirar o indiano da presença da e.
Na ocasião em que Rânia convidou Rochiram para almoçar em
casa, Omar ficou desnorteado, como podemos comprovar nesta passagem:
Durante o almoço, ele esfregava as mãos, nervoso, temendo que a mãe mencionasse
o nome de Yaqub. Rânia tentava distraí-lo, e ele chegou a ser áspero com a irmã e
reticente com Rochiram. falou, sem disfarçar o mau humor, no fim da refeição,
quando o visitante comentou que queria construir um hotel em Manaus. “Estou
ajudando o seu Rochiram a encontrar um terreno perto do rio”, Omar disse antes de
sair da mesa, seco. (HATOUM, 2006, p. 170)
A inquietude e a impaciência de Omar revelam a espera do acontecimento que
ele sentia ameaçado de não se realizar; pela mãe e por Rânia se falassem em Yaqub e por
Rochiram se quisesse contratar os trabalhos do exímio engenheiro. Yaqub representava para
Omar o anti-sujeito, aquele que podia-fazer, tomar o seu lugar nos negócios com Rochiram e,
conseqüentemente, conquistar o lugar privilegiado na família. Rochiram exercia apenas a
força de fomentar a rivalidade entre os dois, rivalidade marcada pela inveja de Omar. A inveja
que causava medo em Omar, medo da competição com Yaqub. Impelido por esse medo,
Omar percebeu que todas as mulheres da casa estavam desconfiadas de algo, inclusive
Domingas: “O Caçula nem parece ele mesmo. Está enroscado, não sabe para onde ir...”
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(HATOUM, 2006, p. 170). Domingas pressentia o perigo que o estrangeiro representava para
a família.
As ações de Omar revelavam-no desconfiado e temeroso, um sujeito do fazer
que construiu programas narrativos para evitar que a mãe solicitasse a participação de Yaqub
nos projetos de Rochiram. Assim, modalizado pelo querer que Yaqub não entrasse em
conjunção com os negócios de Rochiram que garantiriam a ele também a conjunção com a
e, Omar não levava mais o indiano em casa: Não trouxe mais Rochiram para dentro de
casa: esperava-o na calçada e saía às pressas. Escondia-se com o indiano, vivia desconfiado,
olhando de esguelha para a mãe, seguindo-lhe os passos, amoitando-se para escutar algum
segredo” (HATOUM, 2006, p. 170).
A desconfiança de Omar fazia sentido, como podemos observar na seqüência
do texto:
Mais tarde, eu soube do que Omar desconfiava. Zana me pediu que datilografasse
uma carta para Yaqub. Trouxe uma máquina de escrever para o meu quarto e
começou a ditar o que tinha em mente. Falou do amigo de Omar, um magnata
indiano que pretendia construir um hotel em Manaus. Os dois filhos podiam
trabalhar juntos. Yaqub faria os cálculos do edifício, Omar poderia ajudar o indiano
em Manaus. Ela mesma havia conversado com Rochiram, pedira-lhe segredo
sobre o assunto. O seu grande sonho era ver os filhos reconciliados. Ela só pensava
nisso, e desde a morte de Halim acordava no meio da noite, assustada. Quem ia
entender a falta que Halim lhe fazia? A dor que ele deixou. Não queria ser mãe de
Caim e Abel. Ninguém havia conseguido apaziguá-los, nem Halim, nem as orações,
nem mesmo Deus. Então que Yaqub refletisse, ele que era instruído, cheio de
sabedoria. Ele que tinha realizado grandes feitos na vida. Que a perdoasse por tê-lo
deixado viajar sozinho para o Líbano. Ela o deixou Omar ir embora, pensava que
longe dela ele morreria. (HATOUM, 2006, p. 170-171)
Na carta escrita a Yaqub, percebemos a confirmação da quebra do contrato
fiduciário da mãe com o filho Caçula figurativizada pelo segredo, a confidência feita ao
estrangeiro. O fato de a mãe pedir a participação de Yaqub no projeto, em segredo, revelava a
traição com o Caçula, pois a superioridade do irmão engenheiro era uma ameaça aos planos
de Omar. Sem falar que o pedido de perdão da mãe para com o filho rejeitado era uma forma
de trazê-lo para perto e tentar compensar a sua exclusão da relação materna, com isso, o filho
passaria a receber dela todos os cuidados que antes eram destinados somente ao Caçula,
tratamento que tiraria de Omar a sua vantagem em relação ao Yaqub.
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Zana, em sua tentativa de fazer com que os filhos se reconciliassem,
reconhecendo-se culpada pelo conflito instalado na relação dos meos, revelava acima de
tudo o seu desejo de se reconciliar com o filho mais velho:
Assinou o nome em Árabe, enviou a carta e passou os dias seguintes remoendo cada
linha que havia ditado. Duvidava das próprias palavras, não sabia se havia descaso
ou exagero no teor da carta, se o filho ia entender o que ela mais havia lhe pedido:
perdão. Dei-lhe o papel do manuscrito, que ele lia em voz baixa. Numa tarde,
sozinha na sala, eu a vi lendo a carta para um Halim imaginário. Depois da leitura,
perguntou: Yaqub vai entender? Vai perdoar a mãe dele. (HATOUM, 2006, p. 171)
O pedido de perdão de Zana a Yaqub era também uma maneira inconsciente de
se redimir de seus erros em memória ao esposo que sempre a alertou para que dividisse as
atenções entre os dois filhos, porque ela tratava Omar como se ele fosse o seu único filho
(HATOUM, 2006, p. 22 ).
Zana esperava com ansiedade uma resposta à sua carta, ou melhor, ao seu
pedido de perdão, temia que o filho ressentido, depois de tantos anos, ignorasse a
correspondência, silenciando a resposta. A resposta chegou depois de um tempo e, para
tristeza da mãe, a indiferença do filho ao seu pedido de perdão:
Então, quase um mês depois, Rânia entregou à mãe um envelope que Yaqub enviara
à loja. Era uma carta com poucas linhas. Ele não aceitou nem recusou qualquer
perdão. Escreveu que o atrito entre ele e Omar era um assunto dos dois, e
acrescentou: “Oxalá seja resolvido com civilidade; se houver violência, será uma
cena bíblica”. Mas ele se interessou pela construção do hotel, ignorando a
participação do irmão. Terminou com um abraço, sem adjetivo ou aumentativo. A
mãe leu em voz alta essa palavra e murmurou: Eu peço perdão e ele se despede
com um abraço”. (HATOUM, 2006, p. 171)
A resposta curta e seca de Yaqub à mãe arrependida demonstrava a mágoa que
ainda tomava conta dele, pela frieza de suas palavras percebemos o homem calculista e
ambicioso que o ressentimento consolidou. Ele ignorava o pedido de perdão da mãe e a
reconciliação com o irmão, mas se mostrava interessado na construção do hotel.
Para desespero de Zana, as suas tentativas de reconciliação familiar
converteram-se em prenúncios agravantes da situação: a participação de Yaqub na construção
do edifício, ignorando a participação de Omar, intensificaria a rivalidade entre os gêmeos e,
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mais uma vez, a e estimularia a inimizade dos dois. Religiosa que era, Zana ficou
apreensiva com a citação da cena Bíblica, pois tal cena guarda a memória do ódio mortal entre
os irmãos que ela própria mencionou na carta destinada a Yaqub: “Não queria ser mãe de
Caim e Abel” (HATOUM, 2006, p. 170).
A mãe não teve coragem de revelar ao Caçula o que ele tanto suspeitava, então
encarregou Rânia de fazê-lo:
No entanto a menção da Bíblia deixou-a mais preocupada. Ela percebeu que Omar
havia afastado Rochiram da casa, percebeu a suspeita do filho, sempre à espreita,
rondando mãe e filha. Pediu a Rânia que contasse tudo ao Caçula. A irmã mostrou-
lhe a carta de Yaqub: não era uma trama da mãe, mas uma tentativa de unir os filhos.
Omar leu a carta e começou a rir como se estivesse caçoando de todos. Mas o tom
de Zombaria se desfez: “O que o sabichão quer dizer com cena bíblica, hein, Rânia?
O que o teu irmão entende de civilidade?” (HATOUM, 2006, p. 171-172, grifo do
autor)
Rânia era mplice da mãe, ela também desejava ver os irmãos reconciliados
e, principalmente, perto dela, a intimidade com Omar e o esmero pelo trabalho de Yaqub
dariam novo impulso à sua vida.
A conspiração da mãe e da irmã foi percebida depois, naquele momento,
Omar não conseguia ver nada além da rivalidade com o irmão, o ódio e a revolta deixavam-no
cego. O sarcasmo da reação que teve demonstrava a sua fraqueza, seguida pelo
reconhecimento de Yaqub como um sujeito cognitivo, portador do saber, ou seja, ele era
competente e, por isso mesmo, a sua superioridade era para o Caçula uma grande provocação.
A ameaça do anti-sujeito realizado que despertava no outro a paixão da inveja pelas suas
conquistas, agora estava mais próxima, pois ameaçava com a sua superioridade poder-fazer
melhor nos negócios com Rochiram e, em casa, ser aclamado pelas mulheres que viam nele
um exemplo de homem bem sucedido a ser seguido pelo Caçula. A paixão da inveja que já foi
manifestada pelo comportamento de Omar em outras ocasiões é aqui a paixão que vai aflorar
a cólera.
No percurso do sujeito passional, reconhecemos a fase da frustração, quando
ele faz-saber os seus méritos em se tornar parceiro de Rochiram e intencionalmente mostrar à
irmã que Yaqub não tinha nada que se envolver nos seus negócios, pois não se tratava de
trabalhar em uma construtora e muito menos com o irmão: “‘Construtora?’, Omar
interrompeu, enfezado, dizendo, aos berros, que ele conhecera Rochiram, ele trouxera o
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indiano para casa e fora atrás de um terreno para o hotel(HATOUM, 2006, p. 172, grifo do
autor). A decepção de Omar declarada era indício da confiança e da espera irrealizada na
conjunção com a mãe, já que ela o traiu propondo a Yaqub que viesse trabalhar junto com ele
nos negócios de Rochiram. Intimidado pelo sucesso de Yaqub, Omar se sentia frustrado
consigo mesmo, frustração observada: pela redundância do pronome pessoal que confere a
ele, enquanto sujeito do fazer, o poder de lucrar com os negócios do indiano e, não, ao iro;
e, pela ênfase dada a esses pronomes, que intensificam a sua indignação em preparar tudo
para que o outro viesse se beneficiar do seu empenho. Desse modo, a frustração de Omar
aparecia em suas ações:
s o víamos esbanjar o dinheiro que ganhara com a comissão de venda do terreno
do hotel. As garrafas de bebida cara que ele entornava e depois jogava no quintal e
no piso do alpendre! Os presentes que comprava para as namoradas e deixava em
qualquer lugar, esquecidos, como se fossem inúteis ou como se nada disso tivesse
importância. O vestido de linho e as blusas de seda chinesa que deu a Domingas,
dizendo-lhe: Agora podes jogar no lixo os trapos que te mandaram de São Paulo”.
Não se dirigia às outras mulheres e, sem mais nem menos, na presença da mãe,
explodia, colérico: “Uma cena bíblica, não é? Então vamos ver se o sabichão
conhece mesmo a Bíblia”. (HATOUM, 2006, p. 172)
O fato de Omar ser esbanjador não era novidade, a diferença é que agora o
era dinheiro dos outros que ele esbanjava, era o seu. Nessa fase, o comportamento do sujeito
denunciava o seu descontentamento consigo mesmo, pois Omar gostava de viver com prazer e
o dinheiro não estava trazendo a ele satisfação, visto que gastava com o que para ele não era
mais importante.
Interessante notarmos a gentileza com Domingas, a empregada cuja existência
o fazia a menor diferença para ele, porém, essa gentileza trazia explícita a intenção de se
mostrar superior ao irmão para a única mulher da casa que ainda não o havia decepcionado.
Assim, decepcionado pela frustração de não ser mais o que era para a mãe e a
irmã, insatisfação ocasionada pela tensão do sujeito que ele era e do sujeito que ele é agora, o
Caçula se distanciava delas, mas aproveitava a presença da mãe para mostrar a sua revolta,
manifestando o contrário do que ela desejava, o ódio contra o irmão. Na explosão do discurso
colérico de Omar observamos o descontentamento dirigido à mãe, manifestado pela figura da
cena Bíblica, ameaça que reportava a juízos de valor negativos, como: violência e morte.
Cada vez que Omar manifestava a lera, o fracasso e a decepção eram semiotizados como
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uma ruptura da confiança, ou seja, o sujeito revelava a sua incompletude sem o objeto de
desejo.
Para abrandar a fúria do Caçula, mãe e filha não tocaram mais no nome de
Yaqub e retiraram da sala todas as fotografias que presentificavam o sucesso do engenheiro.
Enquanto a existência de Yaqub era silenciada na casa, Omar continuava ressentido e
amargurado: Durante algum tempo ele se esquivou de todos, alternando desperdício e ódio
(HATOUM, 2006, p. 172).
Depois de algum tempo, Zana e Rânia ficaram sabendo da chegada de Yaqub a
Manaus. Ele se hospedara em um hotel modesto, cuja descrição antecipa mais o caráter da
visita que a exposão do próprio lugar:
O hotel escondido no fim de uma rua estreita, parecia longe da multidão e da zoada
do centro, agora cheio de lojas que abriram da noite para o dia. Yaqub estava ali,
naquela rua pacata e sinuosa, tão anônimo quanto seus moradores assustados com a
azáfama da cidade. (HATOUM, 2006, p. 173)
Que Yaqub não quisesse se hospedar na casa de sua família era até
compreensível, mas ficar em um lugar tão simples se podia pagar um hotel melhor era
estranho e, mais estranhas ainda, as referências do lugar onde ele se instalara. Por essas
referências, pressupomos que ele estava evitando qualquer encontro com pessoas conhecidas.
As atitudes do visitante deixaram mãe e filha apreensivas durante a sua estadia,
que durou uns cinco ou seis dias, terminando no dia que antecedeu uma noite de tempestade.
Naquele dia, Omar surpreendeu Domingas na cozinha bem cedo já que não
tinha o costume de acordar àquelas horas. Não tocou no desjejum, procurou pela mãe que
saíra antes dele acordar para ir falar comnia. Desarrumado e desfigurado, saiu enfezado.
Domingas, ao perceber as alterações no comportamento do Caçula, ficou ainda
mais apreensiva do que já estava, o que observamos pelos seus dizeres: “Esse tempo ainda
está feio” (HATOUM, 2006, p. 174).
O tempo a que se referia Domingas não era o da tempestade da noite passada
nem o do dia que anunciava os estragos causados pela chuva, mas o tempo que antecedia o
encontro dos gêmeos. Encontro que se tornou possível com a visita de Yaqub naquela manhã.
Yaqub, ao contrário de Omar, tinha grande afeição por Domingas, a criada que cuidou dele na
infância e, por isso também era muito amável com o filho dela. Aquela visita era destinada
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aos dois, de quem Yaqub viera matar a saudade. Dissera também ter visitado o túmulo do pai,
o perguntou pela mãe nem pelos irmãos. Enquanto conversava com Domingas e Nael,
mostrou-lhes o motivo da sua viagem: o esboço de um edifício que seria construído em
Manaus. Yaqub e Domingas tiveram uma conversa a sós no quintal, a empregada ficou muito
preocupada com tudo o que ouviu de Yaqub que enquanto falava, sorria vitorioso, então ela
insistiu para que ele fosse embora. O engenheiro, que sempre se sentiu um deslocado na casa
de sua família, disse com convicção que não fugiria, porque aquela casa pertencia a ele.
É interessante observarmos algumas ações que conferem a Yaqub atitudes bem
distintas das habituais e que são indícios de uma nova postura do filho no ambiente familiar: a
referência a casa como sendo dele, fato antes nunca mencionado já que ali reinava o Caçula, e
o mais velho era um hóspede; o ar de triunfo, ele nunca se sentiu assim, visto que a alegria
e o êxito naquele ambiente eram conferidos a Omar; a ironia ao se referir ao desjejum do
Caçula como se tivesse sido preparado para ele. Percebemos aqui que Yaqub agia da mesma
maneira que Omar agiu na recepção preparada pela mãe para o filho que chegara do Líbano.
Omar foi irônico ao agradecer a mãe pela festa, como se ele fosse o filho que regressava ao
lar; e o fato de ele se deitar na rede de Omar que ficava no alpendre, o lugar que sempre foi de
posse do Caçula, agora ocupado pelo mais velho.
Todos os acontecimentos registrados com a visita de Yaqub deixavam pistas
que nos fazem pressupor a sua participação nos negócios de Rochiram: primeiro, ele chegou
a Manaus e se escondeu naquele lugar pacato, tentando se passar por anônimo; segundo,
depois de alguns dias, que acreditamos seja o tempo que levou para fechar os negócios,
visitou Domingas e Nael e mostrou a eles o croqui de um edifício que seria construído na
capital manauara; terceiro, confidenciou, vitorioso, algo a Domingas e dizia que não ia fugir,
geralmente quem foge é porque fez algo errado; e, por último, assumiu na casa o lugar de
quem estava em vantagem como em um jogo e, por isso, agora era ele quem dava as cartas.
Durante o tempo que Yaqub ficou em Manaus, as pessoas na casa também
pressentiam o objetivo da sua visita: Todos na casa pareciam tomados por um mal-estar”
(HATOUM, 2006, p. 173), Zana e Rânia viviam aos sussurros a portas fechadas, Domingas
estava apreensiva, Omar se mostrava desconfiado e nervoso.
Todas essas transformações observadas concorrem para o temido encontro dos
dois irmãos:
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Então eu o avistei: mais alto que a cerca, o corpo crescendo, se agigantando, a mão
direita fechada que nem martelo, o olhar alucinado no rosto irado. Arfava,
apressando o passo. Quando gritei, Omar deu um salto, ergueu a rede e começou a
socar Yaqub no rosto, nas costas, no corpo todo. Corri para cima do Caçula,
tentando segurá-lo. Ele chutava e esmurrava o irmão, xingando-o de traidor, de
covarde. Alguns moradores do cortiço encheram o quintal e se aproximaram do
alpendre. Com um gesto brusco eu agarrei a mão de Omar. Ele conseguiu se livrar
de mim. Percebeu que estava cercado por vários homens e foi se afastando devagar,
de olho na rede vermelha. Ainda o vi correr até a sala e rasgar com fúria as folhas do
projeto; rasgou todos os desenhos, jogou a louça no assoalho e desabalou pelo
corredor. (HATOUM, 2006, p. 175)
A agressividade de Omar para com Yaqub demonstrava todo o furor de sua
cólera. Omar era tomado por essa paixão, como podemos observar na gradação das
expressões usadas para descrevê-lo: mais alto, crescendo, se agigantando. Depois começaram
a surgir as figuras que representavam a violência: martelo, olhar alucinado, rosto irado. Pela
seqüência de algumas de suas ações o vemos figurativizado como um animal, agindo
instintivamente em direção a uma presa: arfava, apressando o passo, deu um salto, ergueu a
rede e começou a agredir. Omar agrediu o irmão de todas as formas e com toda a violência
que podia usar naquele momento: soco, chute, murro... Até que, não restando mais nada, a
agressão verbal indicava o porquê de toda a sua explosão colérica: o irmão o traiu, como
sempre se revelando um covarde.
Nessa fase do dispositivo da paixão da lera, a agressividade é dirigida ao
sujeito traidor, aquele que agiu em surdina para conseguir o queria. Mas essa agressividade
foi também dirigida à mãe, o objeto da configuração da cólera. Se ela queria paz entre os
filhos, o que obteve foi violência, a cena Bíblica tão temida. Apesar de a mãe também ter
traído Omar quando escreveu convidando Yaqub para tomar parte nos negócios de Rochiram,
o anti-sujeito é Yaqub, o inimigo odiado que ameaçava atrapalhar os planos de Omar. Planos,
que representados pelos negócios com Rochiram, dissimulavam a competição entre os dois
pela conjunção com o objeto de valor: a mãe.
Chegamos a última fase do dispositivo da cólera, a explosão, momento em que
o sujeito, por meio de sua agressividade, colocava para fora todo o ódio acumulado. Foi o que
aconteceu com Omar, tomado pela paixão, agrediu violentamente o irmão; quando voltou a si,
percebeu outras pessoas além do anti-sujeito, foi se afastando devagar e saiu do local, ou seja,
o sujeito colérico toma consciência de si, depois de resolver agressivamente as tensões
acumuladas.
É importante ressaltarmos o trecho em que ele saiu, todas as ações anteriores a
sua saída são apressadas e bruscas, identificando o ataque; depois do ataque, ele recuou, a
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ação de recuar foi inscrita pelo verbo no gerúndio: afastando, uma ação durativa,
acompanhada do advérbio de modo que prolonga a ação: devagar. Enquanto a ação de retirada
se realizava, ele olhava a rede vermelha, a cor vermelha figurativiza cromaticamente a paixão
da lera, assim, o sujeito enquanto recuava, confirmava os danos causados ao anti-sujeito.
Ele saiu e quando chegou na sala teve outra explosão de lera, rasgando a prova da aparente
traição, como se naqueles gestos ele se livrasse do irmão. Depois se retirou novamente. O
lexema utilizado para a ação de retirada dessa vez foi desabalou, do verbo desabalar, definido
pelo dicionário Hauaiss on-line, como: “correr desenfreadamente, locomover-se com
precipitação” (http://houaiss.uol. com.br). Assim, Omar depois de resolver o que estava
retesado dentro dele, fugiu de tudo aquilo, arrebatado pelo ímpeto daquela paixão colérica que
parecia não terminar nunca, mas cuja tenncia era abrandar depois de manifestar-se em seu
corpo sensível e causar-lhe grande mal estar.
Enquanto Omar fugia, Yaqub foi levado para o hospital por Domingas. Antes
de saírem, a empregada pediu ao filho que arrumasse a bagunça para não deixar vestígios da
transgressão do Caçula contra o irmão. Quando retornou, relatou ao filho os danos causados a
Yaqub:
Quando minha mãe voltou, se apressou para enxaguar a rede e estendê-la no quarto
dela. Disse que o estado de Yaqub não era grave: a o esquerda, sim, em
frangalhos, dois dedos fraturados. Ia perder uns três dentes, o rosto estava
irreconhecível, ele sentia dores terríveis nas costas e nos ombros. Pedira a Domingas
que calasse o bico, que inventasse, dissesse a Zana: “O teu filho teve de viajar às
pressas para São Paulo”. (HATOUM, 2006, p. 176)
Apesar do delito evidente nos ferimentos em seu corpo, a preocupação maior
de Yaqub era com os danos morais que, se levados a conhecimento da mãe, trariam muito
mais sofrimentos a ele, pois mesmo sendotima da violência do irmão, a mãe perceberia nele
a covardia, sentimento contrário ao que ela reconhecia nele no último contato que tiveram,
pela carta, quando Zana expressava a superioridade do filho mais velho em relação ao Caçula,
dirigindo-se ao filho doutor como homem sábio e realizado na vida. Por isso, a pressa de
Domingas em lavar o sangue da rede, sangue que figurativizava a prova da fraqueza do
agredido e da superioridade do agressor que traído lavou a sua honra, indicia a cumplicidade
da criada com Yaqub, como forma de revelar a proteção de mãe postiça ao filho rejeitado pela
e biológica. E, mais, o fato de a empregada lavar e esconder a rede até que ela secasse para
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voltá-la ao alpendre constituiu-se no simulacro do fazer-parecer verdade que não houve ali
qualquer tipo de contenda, porque a rede pertencente a Omar, uma vez estando suja,
figurativizaria para a e a sujeira contra o Caçula, assim que ela tomasse conhecimento da
situação.
Zana não acreditou no que lhe dissera Domingas. Como não viu o filho antes
dele retornar a São Paulo. O recurso que teve foi se apegar ao passaporte de Yaqub que Omar
havia roubado. Ela passou horas contemplando a fotografia do filho como se estivesse em sua
presença:
Ficou olhando, pensativa, a fotografia do engenheiro: o semblante sério, as
sobrancelhas espessas, as ombreiras estreladas do uniforme de oficial de reserva.
Percebi a vaidade da e, e uma pontada de remorso em seu olhar. A culpa que lhe
dilacerava a consciência, eu pensava. Não sabia o que fazer com o passaporte,
andava a esmo, como se o documento pudesse conduzi-la a algum lugar. Sentou-se
no socinzento, enfiou o documento na blusa, e quando ergueu a cabeça, chorava,
as mãos cruzadas no peito. Os olhos avermelhados miraram o pequeno altar e se
desviaram para o alpendre, agora vazio. (HATOUM, 2006, p. 176)
Pela seqüência da narrativa, as impressões de mãe culpada e arrependida,
observadas pelo filho de Domingas ao assistir aquela cena, conformavam-se pelas ações
daquela mulher numa espécie de ritual de confissão e arrependimento dos pecados: erguer a
cabeça, chorar, cruzar as os no peito, olhar fixo no altar. Nesses gestos diante do altar,
representação da fé a qual recorria nos momentos de desespero em que tudo parecia fugir de
seu controle, percebemos a súplica do perdão ao Divino que ela não teve a absolvição
terrena solicitada ao filho. O ritual religioso terminou quando a mãe se voltou para o alpendre,
procurando Omar. Sabendo que Yaqub não a perdoaria, as preocupações da mãe voltaram a
ser o destino do Caçula.
Zana que sempre teve controle sobre os perigos que ameaçavam Omar,
inclusive sobre lia e Pau-Mulato, as duas mulheres que por pouco não conseguiram tirar o
filho da proteção da mãe, agora se via impotente na sua missão de reconciliar os filhos:
O sonho de Zana , desfeito: ver os filhos juntos, numa harmonia impossível. Ela
relembrava o seu plano, minucioso e sagaz. “Meus filhos iam abrir uma construtora,
o Caçula ia ter uma ocupação, um trabalho, eu tinha certeza...” Chamava minha mãe
para perto dela, dizia: “O Omar perdeu a cabeça, foi traído pelo irmão. Sei de tudo,
Domingas... Yaqub se reuniu com aquele indiano, fez tudo escondido, ignorou o
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meu Caçula, estragou tudo...”. Domingas ouvia e se afastava, deixava a outra
sozinha, maldizendo a trama de Yaqub. (HATOUM, 2006, p. 177)
A reconstituição do plano por Zana denunciava o efeito de verdade dos seus
atos, pois colocava em segundo patamar a reconciliação dos gêmeos ao revelar a intenção da
aproximação dos filhos: fazer Yaqub ajudar Omar. Com a traição de Yaqub, Zana tomou as
dores do Caçula e repudiou o filho mais velho.
Domingas, na sua tentativa frustrada de ajudar Yaqub a enganar a mãe, não
aceitava as acusações de Zana e saía de perto para não ter que presenciar novamente a
predileção da mãe por Omar, colocando Yaqub no lugar que sempre ocupou no
relacionamento materno: o de rejeitado.
Nesse sentido, é interessante observarmos que pela intenção de Zana revelada
no final do capítulo, ela não traiu o filho mais novo, pois tudo o que desejava era comover
Yaqub com a súplica de mãe arrependida a ponto de fazê-lo esquecer todas as injustiças
cometidas contra ele para que, ao retornar para casa, pudesse ajudar Omar a arrumar um
trabalho. Assim, o objetivo de Zana em relação a Yaqub era o de garantir a proteção para o
Caçula depois da morte de Halim e, não, o de se aproximar do filho que nunca precisou dela
para ser o homem realizado que era.
O que Zana não contava era que o engodo usado por ela para atrair o filho
distante fosse se tornar no estopim que selaria para sempre a desunião familiar, pois Yaqub,
na sua ambição desmedida, foi atraído pela construção do hotel de Rochiram, embora com o
objetivo de se vingar daqueles que foram o tempo todo os causadores do seu sofrimento.
Desse modo, tudo o que a mãe fez convergiu para aguçar ainda mais o ódio
entre os dois. Ódio que Omar manifestava todas as vezes que se sentia ameaçado por Yaqub,
quando, tomado pela paixão da lera, o Caçula agredia violentamente o mais velho,
revelando o seu fracasso na competição. Entendemos que as agressões imputadas por Omar
reproduzem a tentativa de tirar o irmão do seu caminho, para não ter que competir com ele e,
da competão, sair derrotado.
As desvantagens do Caçula em relação ao mais velho se tornavam mais
gritantes à medida que o engenheiro ascendia financeiramente e, o outro permanecia alheio a
qualquer tipo de atividade que solicitasse dele responsabilidade. Tal discrepância trazia
sofrimento para a mãe que compulsivamente protegia o Caçula e, dessa vez não foi diferente,
culpava Yaqub e Rochiram pelo fracasso de Omar. Para ela a traição de Yaqub foi pior que a
cólera de Omar.
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3.5 A VINGANÇA ATUALIZA A EMULAÇÃO
[...] quem paga na mesma moeda não comete ultraje e sim vingança.
(ARISTÓTELES. Retórica das paixões, 2000, p. 9)
Os últimos capítulos que fecham o romance Dois irmãos relatam a
desagregação da família, ilustrada pelo agravamento dos conflitos e pelas mortes de alguns de
seus membros. À medida que a casa foi esvaziando com o sumiço de Omar e a morte de
Domingas e Zana, o conflito entre os dois irmãos caminhava para o trágico desfecho: a
vingança de Yaqub.
Com a fuga de Omar, depois da terrível agressão contra o irmão, Zana foi
sucumbida pela tristeza, recusava receber visitas, passou a conviver com os fantasmas do pai,
Galib, e do esposo, Halim, reclamava a ausência de Omar, culpava-se por ter mandado aquela
carta a Yaqub e maldizia o filho traidor. A morte de Domingas trouxe mais sofrimentos à
patroa, pois a perda da fiel criada deixou Zana ainda mais só.
Domingas, antes de morrer, revelou ao filho a identidade do pai, pondo fim à
cruel dúvida que o atormentava, falou do apoio dado por Halim na gravidez, não permitindo
que ela saísse da casa e, também, quando o filho nasceu, escolheu o seu nome. Foi o único
que a acompanhou ao batismo e prometeu estudar o neto. Falou também de seu carinho de
e por Yaqub, mal interpretado por Omar quando via o irmão mais velho saindo do quarto
dela, o Caçula ficava enciumado, imaginando coisas a respeito dos dois. Quanto a Omar,
Domingas manifestou o ressentimento à agressão causada por ele, silenciada por todos
aqueles anos: Uma noite ele entrou no meu quarto, fazendo algazarra, bado, abrutalhado...
Ele me agarrou com força de homem. Nunca me pediu perdão” (HATOUM, 2006, p. 180).
Depois da morte de Domingas, Rânia foi ameaçada por Rochiram e,
percebendo que teriam que dar a ele a casa como pagamento da dívida dos dois irmãos,
comprou um bangalô e insistia para que a mãe fosse morar com ela.
Zana não aceitava a idéia de sair da casa, porque ali estavam todas as
lembranças de uma vida inteira das quais ela se recusava separar e, mais que essas
lembranças, a razão que a mantinha naquele lugar era a esperança da volta do filho Caçula.
Então, Zana permaneceu na velha casa em companhia de Nael, para quem ela contava as
histórias do passado, às quais ela se apegava durante os intermiveis dias em que esperava
por Omar, mas as noites de solidão eram dolorosas, abafadas pelo choro convulsivo da mãe
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desesperada. Zana relutou até os últimos momentos de vida em assinar a escritura, ela só o fez
porque Rânia disse-lhe que seria para evitar que o pior acontecesse com os dois filhos.
Apesar de Rânia desconfiar da trama de Yaqub com o indiano, ela ficou
surpresa com a notícia dada por Rochiram: [...] a dívida dos dois irmãos em troca da casa de
Zana. [...] ‘Seu irmão, o engenheiro, está plenamente de acordo’” (HATOUM, 2006, p. 187).
Como ela não tinha outra alternativa, desocupou a casa, levando a mudança para o bangalô
em que morava.
Rochiram reformou a casa e a transformou em uma loja de artigos importados.
No projeto da reforma, o quarto de Nael foi isolado da casa, já que o engenheiro deixou
aquele modo como herança para o filho de Domingas.
Zana morreu antes de ver a casa transformada em loja e, pior que isso, sem
realizar o desejo de ver os filhos reconciliados, atormentada pela ausência de Omar, mas
Rânia a poupou de saber da sórdida vingança de Yaqub contra Omar.
A vingança de Yaqub configurava-se como contra-estratégia às agressões
causadas pela cólera de Omar, por isso, a paixão da vingança se manifestava como
conseqüência aos danos causados pelo sujeito encolerizado. As duas paixões se desenvolvem
a partir do mesmo dispositivo passional, com exceção da última fase, pois a explosão final
o acontece na configuração da paixão da vingança. Desse modo, na estrutura actancial
acontecerá uma inversão dos papéis: o anti-sujeito da lera, Yaqub, constituir-se-á no sujeito
da vingança; da mesma sorte que o sujeito colérico, Omar, representará o anti-sujeito da
vingança; o objeto valor continua sendo o mesmo, a mãe, mas o objeto valor também
representará um anti-sujeito, já que a vingança é também destinada a ele. Portanto, a troca de
papéis actanciais na estrutura propiciará uma nova visão da relação entre os sujeitos, por essa
razão a relão contratual sofrerá alterações.
É o que observamos na carta escrita por Yaqub à mãe, mas que nunca foi
entregue por Rânia:
Ele havia escrito uma carta para Zana, revelando que sentira muito a morte de
Domingas, a única pessoa a quem confiara certos segredos, a única que não se
separara dele durante a infância. Na vida dos dois havia coisas em comum que Zana
teimou em ignorar. Ele não explicou por que falhara a construção do hotel, apenas
escreveu que agora seria mais sensato vender por uma bagatela a casa e uma boa
parte do terreno a Rochiram. Se isso não fosse feito, Omar sofreria as
conseqüências. (HATOUM, 2006, p. 191)
99
Ao expressar o quanto sentira com a morte de Domingas, Yaqub ao mesmo
tempo em que revelava a consideração e a confiança que tinha pela criada que cuidou dele na
infância, revelava também a sua revolta com a mãe. Revolta que pode ser observada no texto
pela repetão da palavra: única, outorgando a singularidade do seu sentimento a Domingas e,
conseqüentemente, enfocando a exclusão projetada por ele da participação de Zana em sua
vida e a omissão da mãe no relacionamento com ele. Nesse sentido, Yaqub demonstrava a
falta de confiança nela, ocasionada pelo abandono com que sempre foi tratado desde a
infância. E, continuava, requestionando a relação contratual com a mãe, agora a acusando de
ser indiferente tanto a ele quanto a Domingas: as duas timas de Omar. Terminou a carta
aconselhando a venda da casa e, em seguida, fazendo-lhe uma ameaça que, se não fosse
cumprida, Omar é quem sofreria as conseqüências.
Com a carta de Yaqub, observamos a confirmação da primeira fase do
esquema passional, a confiança. A ruptura da confiança no relacionamento dos dois que,
mencionada por Yaqub, foi instaurada desde a infância, quando foi deixado aos cuidados de
Domingas, porque a mãe se dedicava exclusivamente ao Caçula. A confiança rompida
evidencia também a segunda fase do dispositivo da vingança, a espera.
É importante ressaltarmos aqui que a ruptura da confiança foi se consolidando
à medida que Yaqub, ao longo de sua vida, tomava consciência da predileção de Zana por
Omar, nas várias ocasiões em que se sentiu desprezado por ela, como exemplo podemos citar:
logo depois do nascimento, quando Omar ficou doente e, por isso, a mãe temendo a sua
morte, passou a devotar toda a sua atenção a ele; depois, na ocasião da viagem ao Líbano,
para evitar que o conflito entre os gêmeos se tornasse mais sério, em que a mãe conseguiu
persuadir o pai a mandar apenas o filho mais velho, privilegiando o agressor que continuou
junto à proteção da mãe e condenando o agredido a viver longe da família, da cidade em que
sempre morou, enfim, da Pátria; também quando Yaqub foi morar em São Paulo porque ao
retornar do Líbano se sentia um deslocado em casa, vendo o Caçula ser tratado como filho
único; e, por fim, Yaqub ter se tornado um hóspede em casa, onde Omar prevalecia com o
domínio que exercia sobre a mãe.
Com Omar, a ruptura da confiança foi engendrada também na infância, a partir
do momento em que Yaqub deixou de admirar a coragem do irmão e passou a vê-lo como um
rival que ameaçava os seus planos em conquistar Lívia, depois como um anti-sujeito, um
inimigo que vivia em função de tentar destruí-lo.
Rompida a confiança, a espera se desenvolveu em paciência, disposição firme
e constante que o fez suportar calado a dor da rejeição materna e o ressentimento das
100
agressões de Omar. Essa paciência de Yaqub foi relatada em vários momentos da narrativa,
acompanhada da pressuposição de uma futura vingança:
Yaqub, calado, matutava. Evitava falar com o outro. Desprezava-o? Remoia, mudo a
humilhação? (HATOUM, 2006, p. 23)
“Cara de lacrau”, diziam-lhe na escola. “Bochecha de foice.” Os apelidos, muitos,
todas as manhãs. Ele engolia os insultos, não reagia. Os pais tiveram que conviver
com um filho silencioso. (HATOUM, 2006, p. 23)
Ninguém desconfiava de seus planos; era evasivo nas respostas, esquivo até nas
miudezas do cotidiano, indiferente às diabruras do irmão, que soltava as rédeas no
Galinheiro dos Vândalos. (HATOUM, 2006, p. 30)
Dessa forma, percebemos que Yaqub se fechou em sua frustração, calando a
angústia que tomava conta dele, mostrando-se indiferente às injustiças de que fora tima. A
frustração alterava mais que o relacionamento com os outros sujeitos, pois ela sensibilizava os
próprios valores do sujeito patemizado pela crea de que ele deveria ser como o irmão para a
e, mas ao tomar consciência de que não era, sentia-se frustrado também consigo mesmo.
Então, nessa fase do esquema passional, a da frustração, Yaqub se retirou da
presença daqueles que o faziam sofrer e da ameaça de ser exterminado pelo Caçula que se
revelava cada vez mais agressivo, como foi alertado pelo professor de matemática também
agredido por Omar: “‘Vá embora de Manaus’, dissera o professor de matemática. ‘Se ficares
aqui, serás derrotado pela província e devorado pelo teu irmão’” (HATOUM, 2006, p. 32).
Influenciado pelo mestre que reconhecia no aluno a aptidão pela matemática, Yaqub vai para
São Paulo ambicionado pelos estudos e, ao mesmo tempo, para evitar o convívio em casa,
lugar onde era ofuscado por Omar.
Em São Paulo conquistou alguns bens, como os estudos e uma posição
financeira estável que garantiam a ele perante os pais, que almejavam esse futuro para os
filhos, vantagem em relação ao irmão, vantagem que precisava para armar o contra-ataque:
Um outro Yaqub, usando a máscara do que havia de mais moderno no outro lado do
Brasil. Ele se sofisticava, preparando-se para dar o bote: minhoca que se quer
serpente, algo assim. Conseguiu. Deslizou em silêncio sob a folhagem. Por dentro,
um mistério e tanto: um ser calado que nunca pensava em voz alta.(HATOUM,
2006, p. 45)
101
A comparação de Yaqub com uma minhoca que quer se tornar serpente,
implícitava a frustração do sujeito figurativizada pela projeção da minhoca e da serpente, um
verme que se transformava em cobra. Assim, podemos entender que a comparação colocava
Yaqub na condição de um verme, pessoa desprezível, depois na condição de uma serpente,
pessoa traiçoeira, ou seja, o filho desprezado em casa saiu à procura de um lugar que lhe desse
condições de se tornar uma pessoa superior para se vingar daqueles que o colocaram na
condição de verme.
E, ainda sobre a comparação, o fato de a minhoca viver debaixo da terra e a
serpente rastejar sobre ela, implicando a distinção da maneira de agir, antes, na circunstância
de humilhado, agüentando tudo calado sem nada poder fazer; e, agora, seguindo o rasto,
mostrando-se como um sujeito que pode fazer.
Além do mais, a ação de deslizar em silêncio converge para o mistério,
representado pela figura da máscara da modernidade, pois Yaqub disfarçava a frustração de
ser humilhado pela aparência da modernidade e da sofisticação registradas nas fotografias que
ele mandava aos pais, que se orgulhavam do sucesso do filho; e, na seqüência da narrativa,
também dissimulando o ressentimento com os pais, ajudando financeiramente a família que
entrou em decadência.
Depois de algum tempo, Omar foi morar em São Paulo e novamente agrediu e
humilhou o irmão. Dessa vez, Yaqub não se calou, foi até Manaus e desabafou com o pai
todas as suas angústias e ressentimentos em relação à mãe e a Omar.
Percebemos pela mudança de atitude de Yaqub, o filho calado que agora
esbravejava, acusando e cobrando as ofensas contra ele, a postura não mais de um fracassado,
mas de um sujeito que conquistou sem ajuda nenhuma tudo o que tinha, feito que, na sua
concepção, dava-lhe o direito de cobrar o seu reconhecimento como filho. Se foi com dinheiro
que ele conseguiu atrair a atenção, mesmo que parcial da mãe, era assim também que ele
cobrava os danos causados a ele, como podemos comprovar pela sua fala: “Zana devia
conhecer essa história, e aí sim, ela ia entender o verdadeiro caráter do caçulinha dela, o
peludinho frágil. Mimem esse crápula até ele acabar com vocês! Vendam a loja e a casa!
Vendam a Domingas, vendam tudo para estimular a safadeza dele!” (HATOUM, 2006, p. 93).
Foi nessa ocasião que, pela primeira vez, Yaqub jurou vingança ao Caçula:
Yaqub ficou louco... Não tinha perdoado a agressão do iro na infância, a cicatriz... Isso
nunca tinha saído da cabeça dele. Jurou que um dia ia se vingar” (HATOUM, 2006, p. 93).
Embora enfurecido Yaqub não chegou a explosão da cólera, retornou a São Paulo e continuou
disfarçando o seu descontentamento.
102
O descontentamento, a penúltima fase do dispositivo passional, é uma
manifestação durável e iterativa, que se manifesta em vários momentos do percurso do sujeito
passional, sem que para isso seja necessário chegar à agressividade. Esse descontentamento
pode ser observado na passagem abaixo:
Não foi caloroso com ela; portou-se com um certo distanciamento que não
significava neutralidade nem estranheza. Revelou-se um mestre do equilíbrio
quando as partes se tensionam. Não reagiu na juventude, quando um caco de vidro
cortou-lhe o rosto, como alguém que aceita passivamente um traço do destino.
Minha mãe via Yaqub cada vez mais decidido, mais enérgico, “pronto para dar bote
de cobra-papagaio. Ela pressentia que ele matutava alguma coisa,... (HATOUM,
2006, p. 148)
O descontentamento de Yaqub não deixava de ser também uma maneira de
manifestar, embora dissimuladamente, o despeito que sentia do relacionamento entre a mãe e
o Caçula. Na passagem acima, em uma das poucas visitas que Yaqub fez à família, foi
recebido calorosamente por Zana, mas bastou um grito de Omar para ela deixar o visitante e ir
acudir o Caçula.
A tensão do relacionamento da mãe na presença dos dois filhos, cuja distinção
era referendada pela dedicação exclusiva ao Caçula, poderia ser motivo de constrangimento
para Yaqub, mas ele sabia ocultar esse sentimento, esperando a hora certa para agir. Tal
perspectiva foi confirmada no texto pela figura da cobra-papagaio, uma espécie de cobra
capaz de adquirir as características do ambiente onde ela se encontra. Desse modo,
percebemos mais uma vez a comparação de Yaqub com uma cobra pronta para dar o bote, na
primeira comparação ele apareceu como um sujeito pragmático, um sujeito do fazer, agindo
para adquirir as competências necessárias para se vingar; na segunda, ele surgia como um
sujeito cognitivo, modalizado pelo saber, alguém que já adquiriu as competências e espera o
momento certo para se transformar em um sujeito realizado.
Assim, constatamos o ressentimento como uma expressão diversificada, capaz
de em cada manifestação apresentar múltiplas isotopias do descontentamento contra o outro
sujeito. Por essa razão, reconhecemos que o descontentamento de Yaqub com Omar
intensificou-se na última agressão imputada contra ele e o ressentimento oriundo desse
momento passional para o agredido inscrevia-se como uma lera insaciada que, muito bem
organizada, se converteria numa vingança eficaz.
103
Rânia começou a desconfiar disso quando soube que Omar, na noite em que
espancou Yaqub, ainda foi ao hospital e tentou agredi-lo mais uma vez. Ela tentou subornar
policiais e delegados para não prenderem o irmão. A certeza foi confirmada pelo silêncio de
Yaqub em resposta aos amigos da família, Cid Tannus e Talib, que escreveram cartas
pedindo-lhe que perdoasse ou esquecesse o que Omar fizera. O silêncio de Yaqub era uma
prova de que ele coordenava a perseguição ao Caçula, pois o faltavam a ele testemunhas
que evitaram a agressão no hospital, além do exame de corpo de delito. nia foi percebendo
que o irmão engenheiro calculou tudo, inclusive a ocasião para agir: “Yaqub esperou a mãe
morrer. Então, com um truz de pantera, atacou” (HATOUM, 2006, p. 192).
O fato de Yaqub esperar a e morrer para começar uma perseguição judicial
ao Caçula revelava bem mais que a paciência da fase da espera, pois trazia à memória a
lembrança da confiança, confiança que já vimos Yaqub não tinha na mãe por causa da
predileção pelo Caçula, por isso, entendemos que a mãe viva seria uma ameaça aos seus
planos, porque ela lutaria contra a prisão de Omar. Na seqüência, confirmamos o que foi
exposto pela comparação usada que figurativiza Yaqub como um animal felino traiçoeiro, que
agia vagarosamente, na espreita, até ter a certeza do momento certo para agarrar a presa.
A fuga de Omar complicava a sua situação, porque agora ele era um fugitivo
da justiça, vivia se escondendo em diversos lugares e, por onde passava, deixava dívidas que
Rânia não conseguia liquidar. Então, os credores apresentavam queixas na pocia, agravando
ainda mais a sua condição de criminoso.
Rânia não desistia de tentar ajudar o irmão fugitivo, poupava dinheiro
prevendo que precisaria para tirá-lo da prisão, fechava a loja na hora do almoço e saía a sua
procura, mas os seus esforços foram em vão:
Alguns anos depois, num dos primeiros dias de abril, um lance do acaso uniu o
destino de Laval ao de Omar. [...] Naquela tarde de abril já chuviscava quando Rânia
o avistou na praça das Acácias. Ficou paralisada. Estava magro, meio amarelão,
barba de uma semana, o cabelo crespo com jeito de juba. Os braços cheios de
arranhões, a testa avolumada por calombos. Os olhos fundos e acesos davam a
impressão de um ser à deriva, mesmo sem ter perdido totalmente a vontade ou a
força de recuperar uma coisa perdida. (HATOUM, 2006, p. 193)
Numa das tardes em que Rânia saiu para procurá-lo, avistou-o na praça das
Acácias e ficou perplexa com a aparência dele, cuja descrição figuratizava-o como um animal
104
maltratado, fugindo de seu predador. No corpo desfigurado, o único sinal de vida era os olhos
que acesos evidenciam a fuga como tentativa de recuperar o que perdera: a sua liberdade.
Omar foi preso no mesmo mês, na mesma praça, no mesmo cenário chuvoso e
da mesma forma que o amigo comunista, Antenor Laval. Um cerco formado por muitos
policiais se fechou, disparos de armas alvoroçavam as pessoas que por ali passavam, mas os
tiros eram para intimidar Omar que reagiu ironicamente ao ser capturado e, por isso, foi
agredido com uma coronhada na cabeça, imobilizado foi arrastado até a viatura policial.
A irainda tentou se aproximar: Rânia correu ao encontro do irmão, viu no
rosto dele um fio vermelho e grosso que a água da chuva não apagava” (HATOUM, 2006, p.
193). Os policiais não permitiram que ela falasse com o irmão e no presídio também ele foi
mantido incomunicável. Apesar de contratar um advogado para cuidar do caso, a irnão
conseguia falar com ele. Aflita, ela tentava agradar os policiais para obter informações do
irmão, mas o conseguia nada.
Quando souberam que ele foi mantido preso no Comando Militar, Nael
desconfiou de que a sua prisão tinha também ligação com a condenação potica de Antenor
Laval.
No dia do julgamento, a única pessoa que apareceu no Tribunal foi a irmã e
ela ouviu o relato terrível da vida que ele estava levando naquele lugar:
Não de abraçá-lo no Tribunal, mas ouviu relatar uma brusca descida ao inferno.
Os dias eram como as noites, cada dia era a extensão mais sombria da noite. Quando
chovia muito, as celas inundavam, Omar cochilava de pé, a água suja cobria-lhe os
joelhos, e os muçus, ao lhe roçarem as pernas, davam-lhe mais asco do que medo.
Sentia repugnância da pele viscosa dessas enguias-d’água-doce, pardas, cobertas de
lodo, que serpenteavam no piso da cela quando a água escoava. Ainda bem que não
enxergava nada nos dias escuros. Às vezes, na janelinha que rasga a parede, a palma
de um aguaceiro balançava e ele imaginava o céu e suas cores, o rio Negro, a
vastidão do horizonte, a liberdade, a vida. Tapava os ouvidos, era insuportável ouvir
o zumbido dos insetos, os gritos dos detentos, tudo não parecia ter fim nem começo.
(HATOUM, 2006, p. 194)
Com a prisão, Omar perdeu tudo aquilo que concedia a ele o prazer de viver.
Percebemos o seu sofrimento pela comparação da prisão com o inferno: as trevas, a sombra, a
umidade, a água suja, os bichos. O sofrimento de viver naquele lugar escuro e imundo o é
maior que a falta da liberdade representada pelos elementos: o céu, as cores, o rio, o
horizonte, a vida. Mas o barulho infernal daquele lugar o fazia voltar a triste realidade. Omar
foi condenado a dois anos e sete meses de reclusão, sem direito à liberdade condicional.
105
Pelo apocalíptico fim de Omar, constatamos a última fase do esquema
passional, a agressão. Nessa etapa confirma-se a vingança que, imputada contra Omar, foi sob
medida aos danos que ele causou.
O sujeito cumpriu a promessa de vingança, começou retirando de Omar o
trabalho com Rochiram, a sua forma de ganhar dinheiro, assim como Omar roubou as
economias dele de um ano de trabalho. Como conseqüência dessa estratégia, o anti-sujeito foi
submetido a várias formas de pagamento de danos: tornou-se fugitivo, ficando longe do
amparo da mãe e perdeu a casa onde tinha todas as regalias.
Depois, foi humilhado em praça pública, uma humilhação que supomos
compensava para Yaqub as várias agressões de Omar contra ele, fragilizando-o perante os
espectadores que assistiam o seu fracasso, motivo de vergonha. É interessante também
notarmos a semelhança e a ligação da prisão de Omar com a prisão de Antenor Laval, pois
Yaqub, usando o amigo do Caçula, vingava os danos causados a Domingas que foi molestada
em razão da amizade que mantinha pelo mais velho e que, mal interpretada pelo Caçula, teve
como conseqüência o estupro da criada.
Na seqüência, o aprisionamento, retirando-o de perto de tudo o que lhe dava
prazer, que pode ser relacionado com a saída de Yaqub do país, quando foi tirado do seio da
família e teve que ficar longe de todas as referências de vida que tinha.
Ainda na prisão, a falta de comunicação e os dias de sofrimentos intermiveis
sem liberdade, ligação com o tempo que Yaqub viveu no Líbano, convivendo com pessoas
estranhas, a ngua estrangeira, enfim, tudo o que foi obrigado a passar por culpa do Omar.
Por todas essas formas de reparação de danos, percebemos que a vingança foi
eficaz e sob medida às maldades causadas pelo anti-sujeito. Nesse sentido, podemos examinar
mais cuidadosamente a eficácia na reparação dos prejuízos causados: em quantidade, em
temática e em duração.
Em quantidade, as várias incidências de crueldade comutando a intensidade do
sofrimento para os dois sujeitos: assim como Omar agrediu várias vezes Yaqub, assim
também Yaqub se vingou de diversas maneiras de Omar.
Em temática, os temas enfocados são os mesmos: traição, lembramos aqui a
traição de Omar em ficar com via na noite de carnaval, em contrapartida a traição de Yaqub
com Rochiram; roubo, assim como Omar roubou as economias de um ano de trabalho de
Yaqub, Yaqub também tirou de Omar o trabalho e a casa; fuga, a ida de Yaqub para São
Paulo foi uma forma de fugir da convivência com a predileção da mãe pelo Caçula, Omar
foge da perseguição do irmão e fica longe da proteção da e; prisão, Yaqub foi para o
106
Líbano como um criminoso, obrigado a abdicar de tudo o que tinha, da mesma forma Omar
ao ser preso perdeu todas as regalias que possuía.
Em duração, os quatro anos que Yaqub viveu no Líbano foram compensados
pelo longo tempo de fuga do Omar e pelos dois anos e sete meses de prisão.
Portanto, o sujeito patemizado pela vingança, ao buscar a reparação dos danos
sofridos, tem como objetivo o restabelecimento da ordem social, ele faz saber do que se trata
a sua vingança. É o que percebemos na carta escrita por Rânia a Yaqub, dizendo a ele tudo o
que precisava ouvir, mas que ninguém tinha coragem de dizer:
Lembrou-lhe que a vingança é mais patética do que o perdão. não se vingara ao
soterrar o sonho da mãe? Não a viu morrer, o sabia, nunca saberia. Zana havia
morrido com o sonho dela soterrado, com o pesadelo de uma culpa. Escreveu que
ele, Yaqub, o ressentido, o rejeitado, era também o mais bruto, o mais violento, e por
isso podia ser julgado. Ameaçou desprezá-lo para sempre, queimar todas as suas
fotografias e devolver as jóias e roupas que ganhara, caso ele não renunciasse à
perseguição de Omar. (HATOUM, 2006, p. 194-195)
Pela carta de Rânia ficou claro que Yaqub conseguiu se vingar e, por isso,
tornou-se um sujeito realizado. Mas de todas as vinganças, a mais terrível foi destinada à mãe,
ela que nunca fez questão de esconder a predileção pelo Omar, deixando Yaqub de lado.
Então, ele retirou dela o filho querido que foragido não poderia continuar sobre a sua proteção
materna, assim como ele naquele país distante, longe da família; e, depois, retirou dela a casa,
a esperança de que ali, naquele lugar, ainda pudesse existir uma família. Pior que tudo isso,
foi indiferente ao seu pedido de perdão, condenou-a a morrer com a culpa da inimizade dos
dois filhos. Percebemos que a vingança com a mãe era uma forma de causar-lhe o
descontentamento pelo que ela esperava dele, assim como ela o causou para ele.
A vingança de Yaqub atingiu também Rânia, mesmo que ele não tenha tirado
dela a loja ou direcionado a ela qualquer forma de retaliação, a ir ficou indignada com o
sofrimento da mãe e de Omar causado pela desforra do irmão rejeitado.
Embora a vingança de Yaqub parecesse desmedida e em maior intensidade que
às agressividades de Omar, essa paixão não dura para sempre. A tenncia é que logo depois
de responder à agressão sofrida, o ressentimento seja enfraquecido e o sujeito vingativo evite
qualquer tipo de contato, tornando-se indiferente e desprezando os anti-sujeitos. Foi o que
aconteceu com Yaqub, como podemos comprovar pelas suas atitudes registradas nas cartas
que escrevia a Nael:
107
Nas cartas em que Yaqub me enviou, nunca falava do iro nem de Rânia, sequer
resvalou no assunto. Eram cartas breves e esparsas, em que sempre me pedia que
cobrisse de flores o túmulo de Halim e o de minha mãe. Perguntava se eu
necessitava de alguma coisa e quando ia visitá-lo em São Paulo. (HATOUM, 2006,
p. 196)
O único contato que Yaqub manteve foi com Nael, o filho de Domingas. Esse
contato nos leva a pressupor que Yaqub, figurativizado o tempo toda na narrativa como
calculista, calculava todos os ajustes de contas com as pessoas com as quais conviveu: com as
pessoas que o fizeram sofrer, como a mãe, o irmão Caçula e, conseqüentemente, a irque
ficou contra ele, depois de se vingar delas, desprezou-as; com as pessoas que o apoiaram,
dando-lhes atenção, como o pai e Domingas, mesmo depois de mortos eram por ele
lembrados e, o filho de Domingas, a pessoa para quem ele dava atenção que devia esse
favor à empregada que cuidou dele como um filho.
Com sua vingança, Yaqub conseguiu mais que causar aos anti-sujeitos os
danos com que fora prejudicado uma vida toda, ele conseguiu ultrapassar as maldades de
Omar e, nesse sentido, ele se tornou um êmulo, fechando aquela seqüência que ficou aberta
no início das análises, com a primeira paixão, a emulação. Yaqub queria ser como Omar, mas
o tinha coragem para enfrentar os riscos que ser corajoso traziam, mas, depois de sofrer
tantas decepções e agressões, Yaqub não conseguiu ser como o irmão. Ele ultrapassou-o, pois
revelou-se frio e calculista, guardou dentro de si todas as frustrações, descontentamentos e
ressentimentos que a longo tempo convergiram para o abomivel fim daquela família. Ele
destruiu todos aqueles que trouxeram a ele grande sofrimento, pagou com a mesma moeda.
108
4 AS PAIES EM DOIS IRMÃOS: UM ESPELHO DE MÚLTIPLAS FACES
As paixões refletem, no fundo, as representações que fazemos dos
outros, considerando-se o que eles são para s, realmente ou no
domínio de nossa imaginação. Poder-se-ia dizer que um jogo de
imagens, talvez mesmo de imagens recíprocas, antes que a fonte das
reações morais, cujo objetivo seria então o da Ética. (MEYER, M.
Retórica das paixões, 2000, p. XLI)
A análise do texto como um todo coloca em evidência os efeitos de sentido
produzidos pelas paixões que emergem no discurso. Segundo Greimas e Fontanille (1993, p.
21), as paixões não são propriedades exclusivas dos sujeitos (ou do sujeito), mas propriedades
do discurso interno, e que elas emanam das estruturas discursivas pelo efeito de um “estilo
semiótico” que pode projetar-se seja sobre os sujeitos, seja sobre os objetos, seja sobre sua
junção.
Nesse sentido, ao examinarmos o discurso como um todo, considerando as
paixões que surgiram do relacionamento dos dois irmãos, observamos a interferência dos
outros sujeitos nesta relação. Da interação desses sujeitos surgem dispositivos modais que
circulam e se trocam a todo o momento, ação e reação interligadas que determinam o modo de
existência dos sujeitos envolvidos na comunicação.
Dessa forma, à medida que os sujeitos se colocam em busca de valores que
darão sentido a suas vidas, eles se confrontam com outros sujeitos que também empreendem
as suas buscas e, desse confronto afloram as paixões que são avaliadas umas sob o domínio de
outras, umas influenciando as outras, umas como conseqüências das outras.
Portanto, analisar as paixões é também examinar os efeitos de sentido que uma
paixão exerce sobre a outra, para assim compreendermos a relação intersubjetiva dos sujeitos
apaixonados.
109
4.1 O APEGO INTENSO E A INDIFERENÇA ESTIMULAM A RIVALIDADE
Mas se paixão ação e, ao mesmo tempo, um agente, uma causa
eficiente que para realizá-la, para produzi-la não pode ter sido
simplesmente natural o que leva a uma ordem do humano, a um
campo antropológico que, afinal, confere todo o seu sentido a essa
temporalidade distinta da criação lógica... (MEYER, M. Retórica das
paixões, 2000, p. XXXVII)
As paixões que engendram os conflitos vividos pelos dois sujeitos, Yaqub e
Omar, apresentam como agentes causadores o choque de interesses e buscas e,
principalmente, a mãe, ou melhor, o apego intenso da sua relação com o filho Caçula que
abrasa a rivalidade entre os dois irmãos.
Zana, no papel temático de matriarca da família, é representada, em vários
momentos na narrativa, pela figura actancial de um sujeito passional ciumento extremamente
apegado aos objetos de valor que ama, cuja junção a eles está associada: ao prazer, quando em
conjunção; ou ao sofrimento, em disjunção. Nessa perspectiva de análise, de acordo com os
nossos estudos, ela será identificada como um sujeito apegado ao objeto de valor, cuja junção
é modalizada por um dever-ser.
Na página de abertura, antes de iniciar os capítulos, Zana aparece como um
sujeito tímico que sofre com o apego aos objetos de valor que lhe estão disjuntos. Por esse
relato inaugural que antecipa alguns indícios da temática abordada no romance, narrativizados
a partir das perdas de Zana, percebemos a importância desse sujeito que gerou não os dois
irmãos, mas também instigou os conflitos entre eles, ou seja, é a partir da mãe, o agente
causador principal do conflito entre os gêmeos, que a história emaranhada pelas paixões se
apresenta.
O apego de Zana pode ser observado na primeira linha do texto: “Zana teve de
deixar tudo...” (HATOUM, 2006, p. 9), o verbo ter no passado expressa bem a contingência
temporal do apego, pois ela não deixou tudo porque quis, ela foi submetida a deixar, portanto,
continuando apegada por meio das lembranças do passado e de uma esperança futura. Em
seguida, o pronome indefinido, tudo, reforça a idéia do apego à totalidade das pessoas e das
coisas que eram essenciais para ela, mas ao mesmo tempo em que representava uma
totalidade, representava também de modo indeterminado e vago que esse tudo se confundia
numa mistura de passado e presente, ou seja, tudo em sua vida perdia o sentido sem Omar.
110
Nesse sentido, confirmamos que o apego modalizou a junção do sujeito, Zana, com o objeto
de valor, Omar, por um dever-ser, por isso a existência do sujeito ficou submetida ao objeto e,
com a ruptura dessa relação, tudo perdeu o valor para o sujeito apaixonado.
Nos dois primeiros parágrafos, percebemos que os lugares, a paisagem, o
passado, os antepassados, os móveis e os objetos são evocados pelos sentidos de Zana nas
alucinações da velhice, demonstrando o seu apego a tudo o que para ela era importante,
principalmente, porque tudo aquilo a induzia à lembraa de Omar, o filho que mesmo
ausente não deixava de ser para a mãe o motivo de sua existência, por isso, ela se manteve
apegada até os últimos momentos de vida à esperança da volta do filho. Dessa maneira, o
apego da mãe pode ser compreendido como uma necessidade, porque mesmo em disjunção
com o objeto, o dever-ser abria um simulacro de realização: a esperança da conjunção. O
simulacro passional foi primeiro debreado: Zana vivia mais as lembranças do passado que o
seu presente; depois foi reembreado no sujeito tensivo: a esperaa da volta do filho. A
debreagem e a reembreagem nos permite entender que embora os acontecimentos tendam a
dissipar o apego, ele continua vivo: o sujeito apaixonado continuou desejando e imaginando a
conjunção.
É interessante observarmos a exploração dos sentidos como referência ao
devaneio da mãe pela perturbação que a ausência do filho provocava nela, como podemos
comprovar abaixo:
Perto do alpendre, o cheiro das açucenas-brancas se misturava com o do filho
Caçula. Então ela sentava no chão, rezava sozinha e chorava, desejando a volta de
Omar. Antes de abandonar a casa, Zana via o vulto do pai e do esposo nos pesadelos
das últimas noites, depois sentia a presença de ambos no quarto em que havia
dormido. [...] Ela imaginava o sofá cinzento na sala onde Halim largava o narguilé
para abraçá-la, lembrava a voz do pai conversando com barqueiros e pescadores no
Manaus Harbour, e ali no alpendre lembrava a rede vermelha do Caçula, o cheiro
dele, o corpo que ela mesma despia na rede onde ele terminava suas noitadas. Sei
que um dia ele vai voltar...” (HATOUM, 2006, p. 9)
O cheiro do filho, o vulto do pai e do esposo, o contato sico com Halim, a
voz do pai, a cor vermelha da rede, enfim, todas as sensações manifestadas sensibilizam o
apego de Zana com a casa, as lembranças que aquele lugar guardava, os fantasmas dos entes
queridos que teimavam em continuar povoando o local, mas, acima de tudo, com o lugar para
onde o filho voltaria. Modalizada pelo querer que Omar voltasse, não restava a ela nada que
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pudesse ser feito a não ser continuar na casa, mas como teve de deixá-la, sofreu porque sabia
que aquele seria o lugar que ele procuraria quando voltasse.
Desse modo, pressupomos a confiança instaurada pela ficia modalizada pelo
dever-ser que engendra a espera. A esperança da volta do filho fez com que Zana, mesmo
depois de deixar a casa, viesse passar o dia ali. Mas a demora da volta de Omar a deixava
cada vez mais debilitada e doente, até que não resistindo mais à espera, entregou-se aos
cuidados médicos em uma clínica onde faleceu. No leito de morte, a última frase que falou foi
em árabe, numa espécie de confissão, uma incógnita aos ouvidos alheios: “Meus filhos
fizeram as pazes?” (HATOUM, 2006, p. 10). Sem a resposta que ela esperava da filha e da
amiga centenária que lhe faziam companhia, a mesma frase foi repetida até as forças
desvanecerem, e ela expirar levando consigo a culpa de ter estimulado a inimizade dos filhos
e a aflição da mãe que esperava na reconciliação dos irmãos, a volta de Omar.
A preocupação que inquietou Zana até a morte, a inimizade dos filhos,
deflagrou com a agressão de Omar que teve como conseqüências a cicatriz no rosto de Yaqub
e a viagem dele para o Líbano. A decisão da viagem partiu do pai como tentativa de prevenir
um confronto entre os dois filhos, mas a mãe foi quem convenceu o pai a mandar apenas o
mais velho: E ela permitiu por alguma razão incompreensível, por alguma coisa que parecia
insensatez ou paixão, devoção cega e irrefreável, ou tudo isso junto, e que ela não quis ou
nunca soube nomear” (HATOUM, 2006, p. 13). Quando Zana persuadiu o marido a não
enviar ao Líbano o filho Caçula, ela abre mão do mais velho, assim, estabelecendo uma
distinção na relação com eles, o que desencadeou a exclusividade de Omar e a exclusão de
Yaqub.
A cumplicidade da mãe com Omar denunciava a predileção materna ao
viajante que, ao retornar a Manaus, começou a entender por que ele e não o Caçula tinha sido
retirado do seio da família. A euforia de Zana na presença do filho mais novo era
incontrolável e quando alguém mostrava um diferencial superior em Yaqub, ela discordava:
Nada disso, são iguais, são meos, têm o mesmo corpo e o mesmo coração(HATOUM,
2006, p. 19).
Zana, depois de ter sido culpada pelo marido de tratar Omar como único filho,
tentou equilibrar a atenção entre os três: Nos primeiros meses depois da chegada de Yaqub,
Zana tentou zelar por uma atenção equilibrada aos filhos. Rânia significava muito mais do que
eu, porém menos do que os gêmeos” (HATOUM, 2006, p. 24). Como o próprio texto deixa
claro, a mãe não conseguiu controlar o equilíbrio de suas atenções e a hierarquia no
tratamento com os filhos saltava aos olhos de todos.
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Nesse sentido, perceberemos que a intensidade do apego da mãe pelo filho
Caçula pode ser reconhecida pelos comportamentos referentes a ele e pela sua colocação em
primeiro plano, evidenciada pelo fazer da mãe.
Assim, bastava uma atitude do filho mais velho que Zana reprovava para se
referir a ele como sendo filho de Halim:
Dias e noites no quarto, sem dar um mergulho nos igarapés, nem mesmo aos
domingos, quando os manauaras saem ao sol e a cidade se concilia com o rio Negro.
Zana preocupava-se com esse bicho escondido. Por que não ia aos bailes? “Olha só,
Halim, esse teu filho vive enfurnado na toca. Parece um amarelão mofando na vida”
(HATOUM, 2006, p. 25).
Ao mesmo tempo em que ela conferia explicitamente a posse do filho mais
velho ao pai: ... esse é teu filho...”, implicitamente ela se destituía desse direito, mais uma
vez excluindo o filho da relação materna. O que a mãe não conseguia entender era que Yaqub
se refugiava no quarto para não sofrer ao presenciar que as atenções nunca seriam distribuídas
de maneira igualitária entre ele e o iro. É importante darmos atenção à representação de
Zana como um sujeito coletivo, pois é mãe de três filhos, devendo, portanto, partilhar a
atenção com todos eles, mas ao recusar a participação, ela coloca em primeiro plano Omar,
fazendo dele um sujeito exclusivo para ela, assim como ela era também exclusiva para ele.
As manifestações da mãe eram contrárias às do pai, que se orgulhava da
habilidade matemática de Yaqub e reprovava o comportamento do Omar, que não queria
saber de nada:
O que lhe faltava no manejo do idioma sobrava-lhe no poder de abstrair, calcular,
operar com números. ‘E para isso’, dizia o pai, orgulhoso, Não é preciso língua,
cabeça. Yaqub tem de sobra o que falta no outro. (HATOUM, 2006, p. 25)
Num dia em que o Caçula passou a tarde toda de cueca deitado na rede, o pai o
cutucou e disse, com a voz abafada: “Não tens vergonha de viver assim? Vais passar
a vida nessa rede imunda, com essa cara?” (HATOUM, 2006, p. 26)
É curioso percebermos como a mãe se revoltava com o comportamento de
Yaqub, que só pensava em estudar, mas era conivente com Omar, que levava uma vida
desregrada, abusando da bebida, passando as noites fora de casa e os dias entregue à
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ociosidade sem se preocupar com nada. E, pior, além dela como mãe não corrigir o filho,
ainda estimulava a sua safadeza, cuidando dele e colocando Domingas para ajudá-la:
Então ela saía da rede, arrastava o corpo do filho até o alpendre e acordava
Domingas: as duas o desnudavam, passavam-lhe álcool no corpo e o acomodavam
na rede. Omar dormia até meio-dia. O rosto inchado, engelhado pela ressaca,
rosnava pedindo água gelada, e ia Domingas com a bilha: derramava-lhe na boca
aberta o líquido que ele primeiro bochechava e depois sorvia como uma onça
sedenta. (HATOUM, 2006, p. 26)
O apego de Zana ao Caçula resistia a tudo, até mesmo às transgressões do
comportamento dele. O amor que a mãe sentia pelo filho transformava-se num apego doentio
que a fazia omissa em face das responsabilidades de correção do filho, inversamente a esse
dever materno, ela se prontificava em zelar do filho infrator como se estivesse cuidando de
um doente.
A mãe se tornava cega quando o assunto era as torpezas do filho. Foi o que
aconteceu quando foi à escola tentar justificar a agressão de Omar ao professor de
matemática, ela acobertava os seus erros e assim como não os corrigia, tentava também
impedir que outros o fizessem. Enquanto isso, Omar se tornava cada vez mais perdido,
protegido pela devoção excessiva da e que justificava os erros do filho segundo o que ela
como mãe usava como desculpa para justificar os seus próprios erros na educação dele: “O
senhor não sabia que o meu Omar adoeceu nos primeiros meses de vida? Por pouco o
morreu, irmão. Deus sabe... Deus e a mãe... Ela suava, entregue ao êxtase de grande mãe
defensora” (HATOUM, 2006, p. 27).
Por um lado, ao se referir ao filho como o meu Omar”, Zana confirmava-se
como um sujeito possessivo que já estava conjunto ao objeto de valor, mas só a conjuão não
bastava, ela precisava sentir prazer com essa conjunção, o que implicava ele não ser expulso
da escola, já que ela tentava convencer o irmão diretor de não punir o Caçula. Então, a mãe,
patemizada pela possessão, tornava-se um sujeito do querer; e Omar, enquanto possuído,
transformava-se em um objeto do poder fazer, alguém que traria prazer ao sujeito apaixonado.
Por outro lado, a referência à doença é um traço que distingue e individualiza o
filho para a mãe, garantindo a ele um tratamento exclusivo. São alguns traços diferenciadores
de Omar em relação aos traços comuns dos outros irmãos: doente, farrista, bêbado, vadio,
indisciplinado, agressor. Interessante notarmos que tirando o fato da doença quando recém-
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nascido, os outros traços, que conferiam a Omar comportamento reprovado socialmente, eram
dissimulados pela mãe. Foi o que aconteceu na ocasião da expulsão de Omar do colégio, ela
ficou revoltada com a punição destinada ao Caçula, mas se sentiu constrangida quando o
irmão diretor perguntou pelo outro filho, aquele a quem ela recusava reconhecer as qualidades
como aluno aplicado e estudioso:
Ela gaguejou, confusa; seus olhos encontraram a gangorra agora vazia. O vão da
janela escurecia, trazendo a noite para o interior da sala. Pensava no pendor
matemático do filho. O pastor, o rapaz rústico, o mágico dos números que prometia
ser o cérebro da família. Adiou a resposta e se levantou de supetão, meio amarga,
meio esperançosa, dizendo a Domingas uma frase que no futuro repetiria tal uma
prece: A esperança e a amargura...são parecidas. (HATOUM, 2006, p. 28)
Apesar da decepção com Omar, Zana considerou injusta a expulsão do filho.
Então, sem ter com o que argumentar, a mãe recorreu primeiro à religiosidade para mostrar
que o padre Bolislau errou em castigar o Caçula: “... mas Deus quis assim; afinal, até um
ministro de Deus é vulnerável” (HATOUM, 2006, p. 29) e, supostamente, se Bolislau como
padre errava, então Omar deveria ser perdoado; depois, usou a masculinidade para justificar a
violência de Omar, como se para ser homem fosse necessário provar que era o mais forte:
“‘Esse Bolislau errou’ murmurava. ‘Meu filho só quis provar que é homem... que mal
nisso?'” (HATOUM, 2006, p. 29) Dessa forma, Zana estava divida por um conservadorismo
contraditório: de um lado, a religião que absolvia os erros; de outro lado, a masculinidade que
legitimava a violência. Em meio aos dois opostos, a mãe tentou conciliar o paradoxo dos
sentimentos que os dois filhos lhe causavam: a amargura e a esperança.
A decepção sofrida com o filho enfraqueceu o grau da intensidade do apego da
e, porque ela acolheu o outro filho, deixando de dedicar totalidade integral das atenções a
seu objeto. Zana não teve como não demonstrar a sua alegria com Yaqub que desfilou com
farda de gala e foi destaque na imprensa com fotografia estampada no jornal, além de ter
recebido uma homenagem com honras e medalhas pelo brilhantismo na matemática. A mãe,
ao demonstrar o orgulho que sentia do filho que dentro em breve iria para São Paulo seguir
estudos, provocava ciúmes em Omar: Ele foi esquecido, por uma vez Omar dormira sem a
proteção das duas mulheres. [...] Estava atento aos movimentos da mãe que só tinha olhos
para o viajante” (HATOUM, 2006, p. 33). Na perspectiva de Omar como sujeito ciumento, ao
perceber as atenções da e voltadas para o filho que se destacava na escola, introduzia valor
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negativo à partilha do sujeito coletivo (e), porque instalava na relação a presença actancial
de um rival (Yaqub), por isso, a exclusividade engendra a relação polêmica.
Por algum tempo, as atenções da mãe se mantinham voltadas para o filho que
prosperava em São Paulo: ‘ O montanhês é o teu filho’, disse Zana. ‘O meu é o outro, é esse
futuro doutor em frente do Teatro Municipal’” (HATOUM, 2006, p. 45). O sucesso de Yaqub
estampado nas fotografias que chegavam a Manaus permitia o reconhecimento materno que
sempre lhe fora negado, mas também confluía para ofuscar o brilho do caçula na família, pois
os familiares exibiam com euforia as conquistas de Yaqub para os vizinhos e amigos. Halim
percebia que Omar ficava enciumado e temia o conflito entre os gêmeos: “Duelo? Melhor
chamar de rivalidade, alguma coisa que não deu certo entre os gêmeos ou entre nós e eles...”
(HATOUM, 2006, p. 46).
A rivalidade entre os gêmeos foi aguçada pelo apego da mãe com o Caçula
desde os primeiros meses de vida em virtude de uma pneumonia que molestou o recém-
nascido quase o levando à morte, por isso, teve que dispensar maiores cuidados ao filho
doente. Esse acontecimento marcou profundamente a mãe, tanto que foi mencionado várias
vezes por ela. Portanto, o temor de perder o filho resultava num apego que se intensificava
cada vez que ela sentia que poderia perdê-lo. O que ela não conseguia perceber é que ao
dirigir todas as atenções ao Caçula, o mais velho ficava à deriva, entregue aos cuidados da
criada: “Cresceu cercado por um zelo excessivo, um mimo doentio da mãe, que via na
compleição frágil do filho a morte iminente. Zana não se despregava dele, e o outro ficava aos
cuidados de Domingas...” (HATOUM, 2006, p. 50). Mas na ingenuidade de criança, Yaqub
o percebia tal distinção de tratamento, foi com a sua volta do Líbano que começou a
desconfiar e, à medida que a mãe manifestava dedicação exclusiva pelo Caçula, a
desconfiança foi se consolidando. Assim, percebemos que o apego da mãe pelo Caçula se
manifestava também pelo desapego e indiferença com o filho mais velho. Dessa forma, o
apego modalizava a junção da mãe com Omar, seja ela qual for, por um dever-ser, e a
exclusividade modalizava a relação da mãe com Yaqub por um dever-não-ser.
Por causa do apego intenso da mãe, Omar foi induzido a se achar o centro das
atenções e, assim, ele requeria o tempo todo a mãe para ele. Esse comportamento da
criança Omar provocava no pai grande fúria, porque ele assim como Omar também queria
exclusividade de atenção. Dessa forma, Omar atrapalhava o relacionamento conjugal dos pais:
Omar era o mais ousado: entrava no quarto dos pais durante a sesta e dava cambalhotas na
cama até expulsar Halim. Só aquietava quando Zana saía do quarto para brincar com ele no
quintal” (HATOUM, 2006, p. 52).
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O excesso de zelo de Zana por Omar indignava Halim, que não se conformava
com a submissão da esposa aos caprichos do Caçula. Quanto mais Zana se entregava
compulsivamente à proteção do filho, mais Halim implicava com ele. E, também, quanto mais
a mãe se dedicava a um filho, tanto mais aumentava a indiferea com o outro. Portanto, para
o pai e para Yaqub a relação do sujeito coletivo (mãe) com o objeto de valor escolhido
(Omar) era modalizada por um dever-não-ser: a exclusividade.
A exclusividade no tratamento com o Caçula tornava mais evidente a
cumplicidade e a fidelidade recíproca do relacionamento dos dois:
Yaqub estava casado, e, mais uma vez, o aceitara um vintém dos pais [...] Não
revelou o nome da mulher e apenas um telegrama comunicou o casório. Zana
mordeu os bios. Para ela, um filho casado era um filho perdido ou seqüestrado.
Fingiu-se desinteressada do nome da nora e cercou ainda mais o Caçula, que ela
atraía para si como um imenso ímã atrai limalhas. (HATOUM, 2006, p. 69)
O ciúme dos filhos era evidente, mas Yaqub conseguiu a sua independência
sem a ajuda dos pais, portanto a mãe não teria como cobrar nada dele. A independência de
Yaqub conferia a ele o poder de tomar decisões sem precisar do consentimento dos pais, por
isso, só comunicou o casamento. Com Rânia era diferente, a e vivia tentando arrumar um
pretendente para casar com a filha, mas Rânia dispensava a todos eles. A diferença da e
com os filhos era notória: com os filhos homens, não aceita a iia de vê-los com outra
mulher que não fosse ela; com a filha, empurrava-a para um pretendente, temia que ficasse
sem se casar. Com base nesse comentário, podemos identificar a influência das taxonomias
culturais, Zana faz parte de uma cultura machista e patriarcal onde os direitos do homem e da
mulher são completamente distintos: a mulher tem que se casar, se ficar solteirona é sinal de
rejeição; o homem, não, deve ter muitas mulheres, tem que provar a sua virilidade e não se
deixar dominar por nenhuma delas. Com Omar ainda era mais agravante, porque como eram
os pais que o mantinha, então ele devia obediência a eles, ou melhor, a Zana, porque com o
pai não havia nem diálogo, sem falar que o que Halim mais queria era que uma mulher o
levasse embora de casa para dar sossego à esposa. Sem falar que na relação intersubjetiva da
exclusividade espera-se que a lealdade e a fidelidade fossem recíprocas, assim sendo
justificava-se o desinteresse da mãe pelo filho que casou e a intensidade da devoção àquele
que não se casou e continuou junto dela.
117
O medo que Zana tinha de perder Omar tornava-se mais intenso à proporção
que se sentia ameaçada por uma rival. É o que podemos comprovar quando duas mulheres
atrram o Caçula: a primeira foi Dália, a dançarina amazonense, que seduziu Omar a ponto
de ele sair de casa; depois, a Pau-Mulato com quem Omar viveu foragido da mãe por um
longo tempo.
Assim como na relação amorosa, o relacionamento materno analisado aqui
apresentará a mesma configuração que nos permite identificar a seqüência das fases do
esquema conônico da paixão do ciúme por meio dos dispositivos sensibilizados na
perspectiva do sujeito ciumento, representado por Zana.
A primeira rival apresentada a Zana foi lia, a Mulher Prateada, que Omar
levou em casa no dia do aniversário da e, provocando um ciúme doentio do filho, o seu
objeto de valor. Pela alteração do comportamento de Zana, percebemos uma oscilação de
humor sob a qual ela não tinha controle, assim, essa inquietude a constituia como sujeito
apaixonado:
Chegou às dez [...] Abriu os braços, dizendo em árabe: “Feliz aniversário, rainha”.
[...] Beijou-a com ardor, e nesse momento Zana lagrimou, em parte pela emoção, em
parte porque o Caçula, depois do beijo, apresentara-lhe a namorada. Dessa vez ela
não quis disfarçar: encarou com um sorriso cil e um olhar de desprezo a mulher
que jamais seria a esposa de seu filho, a rival derrotada de antemão. (HATOUM,
2006, p. 74)
Zana não se preocupava com as mulheres que Omar arrumava, pois sabia que
era um caso passageiro, mas com Dália foi diferente porque o Caçula a levou para casa,
apresentou-a à família e aos convidados como sua namorada e exibiu o forte envolvimento
com ela na presença de todos, inclusive na presença da e que nunca aceitou ter que dividi-
lo com outra mulher:
As outras, assanhadas e oferecidas, não foram páreo para Zana, nem de longe
ameaçavam o amor da mãe. Nem chegaram a duelar, não foi preciso. Além disso,
não tinham nome, quer dizer, o Caçula só as chamava de queridinha ou princesa,
para deleite da rainha-mãe. (HATOUM, 2006, p. 75)
118
O fato de Omar ter apresentado a mulher daquela noite era uma ameaça para a
e, pois as outras mulheres eram seres anônimos que distantes do convívio familiar não
representavam perigo, porém com a apresentação pública da dançarina, Omar manifestava o
compromisso que assumido instalava a mulher com vantagem em relação às outras e fazia
dela uma rival declarada de Zana: Que belo duelo entre Zana e a pretensa nora! [...] Zana
sentiu-se ameaçada e procurou outro canto. Foi a sua primeira derrota, ainda parcial, antes da
meia-noite” (HATOUM, 2006, p. 75). A confirmação da existência da rival correspondia à
disposão de Zana para manifestar o ciúme.
A sensibilização aconteceu quando a rival se exibiu dançando sensualmente,
iluminada por uma lanterna que Omar segurava, foi aplaudida por todos e beijada por Omar.
A mãe assistia a tudo aquilo desesperada, mas se manteve alheia a toda aquela homenagem.
Zana não quis que cantassem o parabéns, desprezou o bolo e as velas acesas sobre ele. Por
essas atitudes da mãe, constatamos a intensificação da patemização do ciúme.
Halim entendeu o que estava acontecendo e foi para o quarto, os convidados
foram embora, na sala Omar e a dançarina grudados, dançando sem música. Zana
observava os dois em silêncio: “Era uma afronta à mãe a grande traição do Caçula”
(HATOUM, 2006, p. 77).
Nesse momento, a rivalidade se tornou mais intensa pelo apego que a mãe
tinha ao filho, seu objeto de valor, com o qual ela se recusava entrar em disjunção. Então, a
e interrompeu os daarinos com a desculpa de que lia pudesse ajudá-la a limpar a
mesa, mas enquanto Omar se deitou na rede, a mãe segurou com força a dançarina pelo braço
e disse algo que ela não gostou, por isso, saiu dizendo: “Vamos ver, vamos ver(HATOUM,
2006, p. 77). A fase da emoção ficou pressuposta pelas ações da mãe: interrompeu o namoro,
tirou a rival de perto do objeto de valor, segurou com força o braço e disse algo; e pelas
reações da rival: saiu fazendo uma ameaça. Pela ameaça do “Vamos ver”, supomos que tenha
havido uma intimidação para que a rival desistisse do objeto de valor, mas quando revidou
essa intimidação com uma ameaça, mostrou que não desistiria da competição. Para desespero
da mãe, Omar acordou meio sonolento e saiu correndo atrás da mulher.
A mãe sentindo que o filho fosse abandonar tudo em sua vida para ficar com
aquela mulher, convenceu o pai a mandá-lo para São Paulo. Quando Omar soube dos planos
dos pais, sumiu de casa por vários dias. Então, Zana mandou oferecer dinheiro às duas tias
que moravam com lia para que a sobrinha se afastasse do filho dela, as tias aceitaram o
dinheiro de Zana e a dançarina sumiu da cidade. A intensidade do apego é representada pelas
ações de Zana que continuava apegada ao objeto de valor mesmo estando disjunta dele, por
119
isso, insistia em concluir a conjunção com ele, retirando a rival do seu caminho ou retirando o
objeto do alcance da rival.
Omar voltou para casa e a mãe fez questão de mostrar-lhe o quanto ele
dependia dela, não prestou ajuda ao filho e nem permitiu que as outras mulheres da casa o
fizessem como era de costume. Deixou o filho sofrer sem os seus cuidados, essa alienação de
Zana manifestava-se como um apego sombrio que retinha a ofensa da traição do filho. Então,
ela o afrontou, fazendo questão de deixar claro que tudo o que o filho estava passando era por
causa daquela mulher que ela figurativizava como serpente: “Tudo isso por causa de uma
dançarina vulgar. Aquela serpente ia te levar para o inferno, querido(HATOUM, 2006, p.
79). Fazendo uma associação com a Bíblia, podemos supor que Zana representava o paraíso, a
fidelidade, a mulher que cuidava dele sempre com amor; já Dália era a serpente, uma mulher
perigosa que, por ser vulgar, não seria fiel, transformando a vida dele em sofrimento, ou seja,
num inferno. No momento em que a mãe mostrava ao filho o quanto ele dependia dela, ela se
tornava um sujeito manipulador que queria obter dele a confissão de dependência, mas o
dever-ser posto em circulação no simulacro permitia uma troca entre os interactantes, o que
proporcionava uma interpretação segundo o ponto de vista de cada um dos sujeitos
envolvidos, por isso, simultaneamente, ao se colocar como sujeito manipulador, ela
manifestava os efeitos de sentido de atração pelo objeto e ele passava a ser o manipulador que
tinha o poder de atrair o sujeito ciumento.
Com a posse do filho reconquistada pela mãe, notamos como o apego foi
reforçado pela rivalidade. A posse do objeto amado torna possível percebermos uma
dominação inversa, a mãe, enquanto sujeito ciumento, tornava-se dependente do objeto que
possuía. Assim, Zana hesitava ao ouvir falar na viagem de Omar para São Paulo, porque
agora não era mais necessário: “‘Calma Halim... o nosso menino está queimando de febre’,
disse Zana, abraçando o filho. ‘Ele precisa de repouso, depois viaja, passa uns meses em São
Paulo e volta’” (HATOUM, 2006, p. 79). Com essas atitudes, na dimensão pragmática, a mãe
se apropriava e submetia o filho a seu poder e seu querer, mas na dimensão tímica do prazer
possessivo era ela quem estava submetida ao poder do filho. Zana apontava que a busca do
objeto não esgotou o querer-ser-conjunto, porque além de estar conjunta, queria ainda o
prazer da proximidade e da subserviência e, conseqüentemente, a euforia de fazer dele o que
ela queria, garantindo-lhe o domínio da totalidade integral do objeto, mas ao mesmo tempo
ela era quem estava sendo dominada por ele. Dessa forma, o zelo da mãe por seu objeto
intensificava e moralizava ao mesmo tempo o apego.
120
A viagem do filho para São Paulo trouxe muito sofrimento para a mãe, mas ela
o teve como evitá-la. Com intenção de proporcionar a Omar condições para que ele
mudasse de comportamento, seguindo o exemplo de Yaqub que se formou e prosperava na
vida, Zana contribuiu para que o Caçula prejudicasse novamente o irmão, roubando-o e
agredindo-o moralmente. Mais uma vez, a mãe colaborou para que a rivalidade entre os dois
se tornasse mais intensa.
Um prenúncio inquietou Zana, na véspera da primeira visita que Yaqub fez à
família depois que foi morar em São Paulo, cujo objetivo era contar ao pai as mentiras de
Omar e as agressões que sofreu. A esposa revelou ao marido o sonho que teve:
Na véspera da chegada de Yaqub ela havia sonhado que os meos conversavam
serenamente no quarto dela, mas de repente viu o jovem Yaqub no cais, de costas
para um navio branco, sorrindo friamente para ela. Sorriu e cravou os olhos nae,
até desaparecer. [...] “O que eu posso fazer? Nossos filhos não se entendem...” “O
que podes fazer? um pouco de atenção ao outro filho. Faz anos que não vemos o
Yaqub. Olha o que ele conseguiu fazer, sozinho em São Paulo. Tem a vida dele, a
mulher dele.
(HATOUM, 2006, p. 84)
O sonho de Zana figurativizava inconscientemente o temor da mãe em relação
ao filho mais velho. No sonho, Yaqub aparecia de costas para um barco branco, sorrindo
friamente; a cor branca é símbolo de paz e o fato de Yaqub estar de costas para o barco que
representava a paz e sorrindo friamente, mostrava bem o caráter do filho que, como calculista
que era, agia com frieza e, por estar de costas, remetia a idéia de ser contrário à paz, à
reconciliação com Omar. A metáfora usada nos permite fazer uma associação, na seqüência,
do verbo cravar como forma de punição, de fazer a mãe sofrer por ter sido sempre cúmplice
do Caçula. O marido percebendo o que atormentava a esposa, a culpa que ela carregava por
ter estimulado a inimizade dos filhos ao privilegiar o Caçula, dizia a ela que tentasse reparar o
seu erro, dando mais atenção ao Yaqub.
Durante a permanência de Yaqub em Manaus, Zana protegia o Caçula,
evitando o encontro entre os dois irmãos, ela temia um confronto entre os filhos. Yaqub
desabafou com o pai todas as barbaridades de Omar, o filho protegido pela mãe, e jurou
vingança, mas ao voltar para São Paulo, continuou a enviar as cartas, ostentando cada vez
mais o luxo que a ascendente carreira lhe proporcionava.
121
Alguns anos depois, a mãe não escondia o orgulho que sentia do filho doutor
que ajudou financeiramente a família, mas ponderava nos comentários sem deixar que Omar
ficasse de lado:
Zana orgulhava-se do filho doutor, mas na conversa com as vizinhas venera Omar.
Punha os gêmeos numa gangorra e fazia loas ao Caçula, elogiando-o até a cegueira.
Mas Zana não era cega. Via muito, por todos os ângulos, de perto e de longe, de
frente e de viés, por cima e por baixo, e sua visão continha uma sabedoria. que
Zana era possuída por um ciúme excessivo. (HATOUM, 2006, p. 95)
Conhecendo Omar como a e conhecia, a estratégia de atenuar a grandeza do
filho mais velho, venerando o Caçula, era uma forma de preservá-lo do sofrimento. Omar o
conseguia esconder a inveja que sentia do irmão, recusava se beneficiar do conforto
promovido por Yaqub, mas fingia ignorar que o dinheiro que Zana e Rânia davam a ele vinha
do irmão.
A rixa dos dois filhos foi esquecida por um tempo, porque a nova amizade de
Omar com Wyckham, que se dizia ser gerente de um banco estrangeiro para quem o Caçula
trabalhava, acarretou em mudanças tão drásticas no comportamento do filho que a fez ficar
muito desconfiada: Esse homem metamorfoseado em anjo assombrou sua mãe. E o anjo, em
lugar de apaziguá-la, transtornou-a”
(HATOUM, 2006, p. 101).
A mãe não desistia de lutar quando sentia que o filho corria perigo e, foi o que
fez, passou a investigá-lo: “Zana, sim: foi a primeira a perceber, e duelou com garra na
batalha final (HATOUM, 2006, p. 103). Halim percebia que a esposa estava inquieta e
desconfiada e esse era um sinal de que ela não se deu por satisfeita com aquela mudança
repentina do filho.
Zana agiu silenciosamente como um detetive e descobriu que Wyckham era
um impostor, um contrabandista, e Omar era o seu braço direito, eles tinham uma sócia, a
Pau-Mulato. Pior que descobrir o envolvimento do filho com o contrabandista, foi saber do
relacionamento dele com a Pau-Mulato: “Quando o destino de um filho está em jogo, nenhum
detetive do mundo consegue mais pistas que uma mãe”, ele disse. Ela fez tudo caladinha,
quieta que nem uma sombra” (HATOUM, 2006, p. 104).
Sentindo-se ameaçada, intimidou o filho para que ele não saísse de casa e
desistisse daquela mulher: “Já sei de tudo, Omar, essa viagem é um fingimento, uma mentira.
Sei direitinho quem é a mulher... ela vai te sugar, te enfeitiçar, tu vais voltar um trapo para
122
casa... São todas iguais, ela vai te deixar louco... Um ingênuo, um meninão, isso é o que tu
és... Nem parece meu filho(HATOUM, 2006, p. 108). Quando ela disse que ele não parecia
ser seu filho, mexeu na ferida de Omar: “A senhora tem o outro filho, que gosto e tem
bom posto. Agora é a minha vez de viver... Eu e a minha mulher, longe da senhora...”
(HATOUM, 2006, p. 109). A mãe sabia que Omar estava contrariado com o sucesso de
Yaqub, mas ao ouvir dele que era longe dela que conquistaria o que o outro já possuía, Zana
sentia que perderia o filho para sempre:
“Roubaram o meu Caçula”, sonhava pesadelos em noites maldormidas e assim foi
perdendo o viço. Não comia, beliscava, bebericava. Mas não desistiu da busca,
continuou inconformada, emitindo soluços de quieto desespero. Mãe enlutada. Só
que, para ela, era luto passageiro. A volta do filho era só uma questão de vida, nunca
de morte.(HATOUM, 2006, p. 110)
Pela fala de Zana, percebemos que ela sente que o filho foi tirado dela e não
que ele tenha ido por vontade própria. O martírio dela com a perda do filho indicava a
intensidade do apego que a fazia perder a vontade de viver, criando um efeito de sentido de
resistência do apego mesmo em face da perda do objeto. O sentimento de perda era mais forte
que ela própria, por isso, ao mesmo tempo em que parecia se entregar à derrota, mais o desejo
da conjunção com o objeto do apego sobressaía. Foi o que observou Halim: “‘Deu tanto
trabalho’, suspirou Halim. ‘O que eu percebi, o que eu entendi, é que uma mulher, a minha
mulher, se agigantava quando sentia que ia perder o filho. Ela se recoms, repensou tudo.
Quer dizer, desembaralhou as cartas até encontrar seu rei de espada’” (HATOUM, 2006, p.
110). O ciúme de Zana era tão intenso que ela não desistia, embora parecesse derrotada,
insistia em buscar a conjunção com o filho, por isso, o apego da mãe estava associado à
intensidade e ao desejo de possessão exclusiva: “Roubaram o meu Omar”. A intensidade do
apego estava relacionada com a preocupação em perder o objeto, e a possessão exclusiva,
com o tormento da rivalidade. Condição que Zana o conseguia esconder das pessoas, como
contava Halim: “Nenhuma caçada é anônima. E caçada de mãe é tempestade, revira o mundo,
faz vendaval” (HATOUM, 2006, p. 110).
Encontrar o filho e trazê-lo para casa foi uma tarefa difícil e demorada, a e
fez tudo o que de e conseguiu tirá-lo das garras da Pau-Mulato. Omar se revoltou: “Ele é o
culpado... Ele e o meu pai... [...] Por que não aparece para elogiar o engenheiro... o gênio, o
cabeça da família, o filho exemplar... a senhora tamm é culpada... vocês deixaram ele fazer
123
o que queria... casar com aquela mulher... dois idiotas...” (HATOUM, 2006, p. 129).
Novamente Omar mostra que o que ele queria ao sair de casa para ir morar com a Pau-Mulato
era o que ele invejava no irmão: a coragem de sair de casa e conquistar o que queria sem a
intervenção da mãe.
Zana, impulsionada por seu poder de mãe, partiu para cima do filho e o fez
recuar, o que comprova o seu domínio sobre ele:
“Isso mesmo, uma qualquer! Uma charmuta, uma puta! Que ela passe o resto da
vida mofando naquele barco imundo, mas não com o meu filho. Uma
contrabandista! Falsária... Agiota... Gastei uma fortuna para descobrir os detalhes. O
contrabando, as meninas que ela aliciava para o Quelé, aquele inglês de araque... O
esconderijo de vocês na Cachoeirinha... As orgias... A patifaria... a sujeira toda! Eu
não ia permitir... nunca! Ouviste bem? Nunca!” Ela abaixou a voz e sussurrou, dócil,
tristonha: “Tens tudo aqui em casa, meu amor”. Começou a soluçar, a chorar. Pegou
nas mãos dele, penteou-lhe a barba grisalha com os dedos, alisou-lhe a careca
feridenta. Os dois, abraçados, foram para o alpendre; ela franziu a testa ao ver sua
própria imagem distorcida em mil fragmentos no espelho estilhaçado. Perdeu o
espelho precioso, mas ainda assim suspirava de felicidade porque o filho estava ali,
queimado por dentro, mas agora só dela. (HATOUM, 2006, p. 130)
É importante observarmos que todas as vezes que a e se sentia atacada,
partia para a defensiva culpando alguém para se livrar de sua própria falta, como ela fez aqui
quando Omar a culpava por ter deixado Yaqub seguir a sua vida e não permitiu que ele fizesse
o mesmo. Então, Zana armou a sua defesa: primeiro atacando, vorazmente, a Pau-Mulato,
uma mulher que não procedia bem e, por isso, não permitiria que o filho continuasse junto
dela. Depois, acalmou-se para mostrar ao filho que ele tinha tudo em casa e não precisava sair
dali; e por fim, tentou comovê-lo com seu choro e seus carinhos. Na relação ciumenta cada
um dos sujeitos atribui ao outro a introdução da modalização do dever-ser na relação do apego
e a competência do objeto manipulador torna-se tão passional quanto a do sujeito ciumento
manipulado, ou seja, o ciúme da mãe convergia para a manifestação do orgulho ferido do
filho que o teve coragem de se libertar do apego para conseguir a sua independência como
o irmão conseguiu.
O domínio da mãe no relacionamento com o filho Caçula era inquestionável,
ele até se desprendia dela, mas ao voltar se tornava mais submisso ainda. Para ela, a posse do
filho valia mais que tudo, confirmando um apego incomensurável, um ciúme que a tornava
insistente em manter o objeto de valor, mesmo obcecada pela rivalidade: “Essa fidelidade à
e merecia uma recompensa. E, para desespero de Halim, o Caçula foi mimado como
124
nunca. Nem precisava pedir certas coisas: a mãe adivinhava seus desejos, dava-lhe tudo,
desde que não se desgarrasse. Entre ambos não havia recompensa gratuita” (HATOUM, 2006,
p. 133). Novamente, o texto atenta para o apego recíproco da relação entre mãe e filho.
Essa cumplicidade entre os dois era motivo de sofrimento para Halim que não
se conformava com as atitudes da esposa, contribuindo para que o Caçula atrapalhasse mais
ainda o seu relacionamento conjugal:
“... Omar foi crescendo na vida dela... Vivia dizendo que o Caçula ia morrer... Era
uma desculpa, eu sabia que não ia acontecer nada com ele... ficou louca, fez tudo por
ele, é capaz de morrer com ele... Longe do filho, era a minha mulher, a mulher que
eu queria. Sentia o cheiro dela, me lembrava das nossas noites mais assanhadas, nós
dois rolando por cima desses panos velhos. [...] O problema era Omar, as paixões
dele, as duas mulheres... a última foi um transtorno, a Zana percebeu que podia
perder o filho... O frouxo! Covarde... Nunca vai saber... Não consigo nem olhar para
ele... o quero escutar a voz dele... acho que nunca quis, me eno... Se tivesse
força, daria nele outro safanão, teria dado uns cem quando ele quebrou o espelho
que a zana adorava... Mil bofetadas, mil...” (HATOUM, 2006, p. 135-136).
Todos os sentimentos do pai em relação ao caçula indiciavam o ciúme do
marido que perdeu a atenção da esposa para o filho. Esse ciúme tinha como conseqüência o
ódio: ... ele babava de ódio, se engasgou, sacudiu a cabeça, começou a tossir, a escarrar,
ofegante, os olhos avultados, as mãos procurando a bengala(HATOUM, 2006, p. 136). Se
antes o pai tratava o filho com indiferença por causa de Yaqub ter sido rejeitado pela mãe e
reprovava o seu comportamento vadio, agora o ódio vinha estampado na aversão que o filho
despertava nele. A hipérbole intensifica o ódio: “Mil bofetadas, mil...(HATOUM, 2006, p.
136).
Ao contrário da e, o pai enxergava os esforços de Rânia e Yaqub que
enfrentavam a vida trabalhando. Quando via a filha arcando com as responsabilidades da loja
sozinha, se revoltava com Omar: “‘Coitada da minha filha, está se matando para sustentar
aquele parasita’” (HATOUM, 2006, p. 140). Nem comoção o Caçula provocava no pai com
as atitudes de quem perdeu a vontade de viver, depois da morte de Antenor Laval: “‘É curioso
como ele sua, como se esforça para não sair de perto da mãe’” (HATOUM, 2006, p. 156).
Halim envelhecera reclamando a falta dos carinhos da esposa, sentindo aversão por Omar e
desejando a presença de Yaqub: “‘Onde está Yaqub? Por que não vem logo com a mulher
dele?’” (HATOUM, 2006, p. 158)
125
Com a morte de Halim, Zana se rebelou contra o Caçula pela agressão
imputada ao cadáver do marido e pelo comportamento de desocupado que o filho teimava em
manter. Preocupada com o destino do Caçula, a mãe usou como pretexto para reconciliar os
filhos a construção do edifício de Rochiram, mas a reconciliação implicitava o maior desejo
dela: garantir a proteção futura de Omar, trabalhando junto com Yaqub.
O que não estava nos planos da mãe era que ela facilitaria a vingança
prometida por Yaqub. O filho rejeitado negou o perdão que ela suplicou e vingou-se ao tirar
dela tudo o que ela valorizava: a casa e o filho Caçula. Completou a vingança colocando
Omar na prisão, exterminando com a coragem e a ousadia do aventureiro protegido pela mãe.
Mesmo depois de deixar a prisão, a vida de Omar nunca mais seria a mesma, sem o amparo
da mãe e sem a casa onde ele exercia o seu domínio.
É importante observarmos que o apego da mãe na relação com o Caçula
comportava algumas conseqüências, como: por um lado, o apego é reforçado pela rivalidade
com as mulheres com as quais Omar se envolvia e o ciúme que emergia dessas relações
provocava a suspeita, a inquietude e o sofrimento da mãe; por outro lado, a rivalidade entre os
dois filhos era reforçada pelo apego da mãe a um filho, provocando um sentimento mau em
Yaqub ao ver o prazer da mãe com o Caçula, e em Omar causando o temor em partilhar a
exclusividade materna.
Todos os acontecimentos examinados aqui são fundamentais na amostragem
do apego intenso da mãe pelo filho Omar aguçando a rivalidade entre os dois iros. Assim,
compreendemos a intensidade do apego e o estímulo da rivalidade pela organização temporal
dos acontecimentos em torno do sujeito Zana: ela se apegou ao filho doente por um zelo
excessivo e abandonou o outro aos cuidados da criada; excluiu Yaqub, mandando-o para o
Líbano e tornou Omar exclusivo; revelou hierarquia no tratamento com os filhos,
privilegiando o Caçula e mostrando indiferença ao mais velho; a separação da possessão dos
filhos, sendo a possessão de Omar dela e a possessão de Yaqub do pai; mandou Omar para
São Paulo para livrá-lo de Dália e oportunizou a agressão a Yaqub; tratava Yaqub como
visitante e favorecia o domínio do Caçula na casa; tentou usar os negócios de Rochiram para
atrair Yaqub e garantir o futuro de Omar, mas o engenheiro traiu o Caçula; antes de morrer,
acusou Yaqub e suplicou a volta de Omar. Podemos ainda listar alguns fatos que não fazem
parte da organização acima, mas foram usados para assinalar a intensidade do apego: o
envolvimento de Omar com a Pau-Mulato e o abandono conjugal do esposo. É necessário
ressaltarmos que todos esses acontecimentos operam como forças coesivas que contribuem
para intensificar o apego de Zana por Omar.
126
Nesse sentido, somos levados também a confirmar o contágio passional, pois a
e ao mostrar predileção por Omar contribuiu para que ele fosse mais audacioso e seguro,
Yaqub, ao contrário, era tímido e inseguro. Por essas razões, Yaqub desejava ser como Omar,
manifestando a paixão da emulação. Omar, percebendo esse desejo do irmão, não queria que
ele obtivesse vantagem nenhuma para não ter que competir com ele, portanto manifestava a
paixão da inveja, tentando destruir todas as possibilidades de realização de Yaqub e, quando
Yaqub já se mostrava realizado, Omar tentava destruir o prazer que a realização pudesse
trazer ao iro. Omar também manifestava ciúme de Yaqub, por ele ter conseguido se casar
com Lívia. Depois, sentindo a ameaça de ter que dividir as atenções da mãe com Yaqub,
Omar chega a manifestar a lera. Dessa forma, Yaqub, tima das agressões constantes do
irmão e sentindo cada vez mais a mãe indiferente a ele, prepara e coloca em prática a sua
vingança tanto com relação à mãe que sempre o relegou ao segundo plano, quanto com Omar
que, freqüentemente, causava o seu sofrimento. Com a vingança, Yaqub se mostra seguro e
superior em competência em relação a Omar, assim entendemos que ele conseguiu ser como
Omar, portanto se tornou êmulo. Em todo esse emaranhado de paixões, onde uma paixão
suscitou uma outra, desencadeando no romance toda essa variedade de manifestações
passionais, percebemos a sincronia no campo de presença, quando cada actante elabora a sua
identidade passional correlacionada com a do outro.
Assim, a história marcada pelo ódio entre os dois irmãos compila os conflitos
provocados pelo apego intenso da mãe que desencadeou e intensificou a rivalidade,
fomentando as paixões que afetam esses sujeitos, assim como os demais envolvidos,
provocando perdas e sofrimentos a todos.
4.2 AVALIAÇÃO E MORALIZAÇÃO DE UM NARRADOR/SUJEITO APAIXONADO
[...] a paixão é resposta, julgamento, reflexão sobre o que somos
porque o Outro é, pelo exame do que o Outro é para nós. Lugar em
que se aventuram a identidade e a diferença, a paixão se presta a
negociar uma pela outra; ela é momento retórico por excelência.
Resposta ao Outro, a paixão é, por definição, a própria variação, o
que no mais profundo do nosso ser exprime o problemático.
(MEYER, M. Retórica das paixões, 2000, p. XL)
127
No romance Dois irmãos, a narrativa tem como enfoque central o conflito
entre os irmãos meos. Embora toda a matéria narrativizada nos conduza a examinar as
paixões que emergem da relação de rivalidade entre os dois iros, o papel do narrador é de
suma importância para a compreensão dos efeitos de sentido engendrados pelos estados de
alma que afetam esses sujeitos, bem como o daqueles com os quais eles se relacionam.
Dessa forma, no decorrer do enredo, o narrador se apresenta também como um
sujeito do enunciado, o filho da empregada, agregado que morava na casa assim como a sua
e e, por isso, presenciou muito do que aconteceu. O confronto entre o distanciamento do
narrador-observador e a proximidade do sujeito envolvido no simulacro é dado a conhecer
logo no primeiro capítulo, como podemos comprovar pelo texto: Isso Domingas me contou.
Mas muita coisa do que aconteceu eu mesmo vi, porque enxerguei de fora aquele pequeno
mundo. Sim, de fora e às vezes distante. Mas fui o observador desse jogo e presenciei muitas
cartadas, até o lance final” (HATOUM, 2006, p. 23).
O filho de Domingas cresceu ouvindo histórias da família de Halim, contadas
pela mãe e pelo próprio Halim. De tanto ouvir histórias daquela família, ele sentia curiosidade
em conhecer a sua história, o seu passado:
Eu não sabia nada de mim, como vim ao mundo, de onde tinha vindo. A origem: as
origens. Meu passado, de alguma forma palpitando na vida dos meus antepassados,
nada disso eu sabia. Minha infância, sem nenhum sinal da origem. É como esquecer
uma criança dentro de um barco num rio deserto, até que uma das margens a acolhe.
Anos depois, desconfiei: um dos gêmeos era meu pai. Domingas disfarçava quando
eu tocava no assunto; deixava-me cheio de dúvida, talvez pensando que um dia eu
pudesse descobrir a verdade. (HATOUM, 2006, p. 54)
No fragmento acima, as indagações de Nael, o filho de Domingas, estavam
relacionadas com a paternidade que ele desconhecia: a origem, como foi concebido; as
origens, a sua procedência. Na seqüência, a desconfiança se instalou quando mencionou que o
seu passado pulsava na vida dos seus antepassados, o que nos leva a entender que ao ouvir as
histórias do passado daquela família, ele desconfiava que fazia parte dela. Depois a associação
que fez de sua vida com a de Moisés, a criança abandonada às margens de um rio, na
intertextualidade com a passagem bíblica, percebemos que a suspeita da paternidade se dirigia
aos gêmeos, representados figurativamente pelas duas margens do rio. Para aumentar a sua
desconfiança, a mãe apresentava um comportamento oscilatório que intensificava a sua
dúvida.
128
A vida que o inquietava, motivou-o a reconstruir o passado da família que
ele desconfiava ser a sua com o objetivo de compreender as suas origens, fundamentado pelas
histórias que ouviu e viu acontecer. Nesse sentido, Nael assumia os papéis: o de narrador que,
ao contar a história, avaliava e moralizava o comportamento dos sujeitos afetados pelas
paixões; e o de sujeito apaixonado, participante da história emaranhada pelas paixões, sendo
por elas afetado. Essas disposões conferem a ele duas posições opostas: de um lado,
primava pela objetividade da narrativa, tentando manter uma certa distância dos
acontecimentos expostos; de outro lado, deixando fluir o seu envolvimento afetivo ao relatar
as relações intersubjetivas e a sua proximidade com os sujeitos.
Como resultados desse processo, surgem os elementos imprescindíveis da
análise discursiva que criam na enunciação os efeitos de referência e de realidade do discurso:
o discurso em primeira pessoa marcando o lugar do (eu/aqui/agora): “Hoje penso: sou e não
sou filho de Yaqub...(HATOUM, 2006, p. 196), o discurso em terceira pessoa, marcando o
lugar do (ele/lá/então): “Ele observou os desenhos de sua infância colados na parede...
(HATOUM, 2006, 17), além das debreagens de segundo grau que correspondem ao discurso
direto que comprovam os efeitos de verdade do que está sendo enunciado: “Halim s as
os na cabeça, confirmou: ‘Isso mesmo: Omar encheu o rosto da via de obscenidades [...]
Yaqub ficou louco...’” (HATOUM, 2006, p. 93).
Por esses procedimentos, o enunciador faz-crer ao enunciatário a verdade do
que está sendo relatado e, para isso, são também de fundamental importância as figuras
utilizadas nas comparações, metáforas e metonímias que constroem ao longo do texto as
relações isotópicas que contribuem para a construção do sentido dos textos. Esses recursos
discursivos figurativizavam, principalmente, a diferença de comportamento dos dois sujeitos:
as figuras que se referiam a Omar: bicho, rede vermelha representavam o seu comportamento
instintivo, agressivo e violento; as que faziam referência a Yaqub: serpente, cobra, enxadrista
representavam o seu comportamento dissimulado, calculista e ambicioso.
Cabe-nos ainda lembrar as referências intertextuais, como, por exemplo: diabo,
anjo, inferno, Abel e Caim, cena Bíblica que contribuem para relacionarmos o texto com
outros contextos culturais mais amplos que abordam a mesma temática, a rivalidade entre dois
irmãos. Nesse sentido, lembramos a história de Abel e Caim e a de Esaú e Jacó. A história dos
filhos de Adão e Eva, Abel e Caim, que inclusive foi citada por Zana na carta em que
escreveu a Yaqub, nos faz lembrar que Caim matou Abel por inveja, visto que Deus aceitou a
oferenda da ovelha de Abel e não aceitou os produtos da lavoura oferecidos por Caim. a
história dos filhos de Isaac e Rebeca, Esaú e Jacó, começa com a briga dos meos no ventre
129
da mãe que, ao consultar o Senhor, escuta Dele que traz no ventre duas nações que se
dividirão. Os meos cresceram e Esaú troca o seu direito de primonito por um prato de
comida oferecido por Jacó. O pai preferia Esaú e, como estava velho, queria abençoar o filho
para que continuasse o seu trabalho, mas a mãe tinha preferência pelo mais novo e, ao ouvir a
conversa do marido com Esaú, vai atrás de Jacó e o ajuda a tomar o lugar do irmão, recebendo
do pai as bênçãos que seria de Esaú. Assim, compreendemos a intertextualidade de duas
formas: de um lado, com a história de Abel e Caim, a manifestação da inveja que faz com que
um irmão agrida e mate o outro, embora Omar não chegue a matar Yaqub, mas o agride
violentamente; de outro lado, com a história de Esaú e Jacó, a predileção da mãe pelo filho
caçula, fazendo-os inimigos irreconciliáveis.
Lembramos, ainda, a intertextualidade com a obra Esaú e Jacó de Machado de
Assis. Também irmãos meos, Pedro e Paulo começam a brigar no ventre da mãe. As brigas
o aumentando à medida que crescem e revelam temperamentos completamente opostos e,
quando adultos disputam o amor de Flora. Além do ciúme na competição pela mulher amada,
os gêmeos tornam-se inimigos poticos, para o desespero da mãe que, no leito de morte, faz
os filhos jurarem se reconciliar. Notamos, então, a intertextualidade pelo temperamento
oposto dos meos nos dois livros, também pela disputa amorosa que resulta na manifestação
do ciúme e, a mãe que morre suplicando a paz entre os filhos. A diferença está na rivalidade
política que não acontece em Dois irmãos, pois a rivalidade entre Yaqub e Omar gira,
principalmente, em torno da relação materna.
Contudo, cumpre-nos notar ainda que a moralização das paixões depende de
um observador social que as avalia positivamente, como boas, ou negativamente, como más
de acordo com os códigos sociais da cultura de que faz parte.
Nesse sentido, a narração, iniciada pelas ações e desejos de Zana antes de
morrer, revelava o enfoque central da inimizade entre os dois irmãos, que era estimulada pelo
tratamento diferenciado da mãe com os filhos. Zana se constituía como um sujeito
extremamente apegado aos bens pelos quais ela lutou, até os últimos momentos de sua vida,
para o perdê-los. A junção com esses bens, principalmente, com o objeto de seu apego, o
filho Omar, era modalizada pelo dever-ser que a fez zelar excessivamente pelo Caçula e,
conseqüentemente, excluir Yaqub da relação materna. Esse excesso de zelo da mãe para com
o filho Caçula resultou também na falta de atenção destinada ao esposo e aos outros filhos, o
que nos leva a entender que o apego do ponto de vista da mãe como sujeito ciumento era
moralizado positivamente, que a exclusividade e a fidelidade recíprocas devem ser
privilegiadas na relação de apego, mas do ponto de vista dos outros sujeitos envolvidos na
130
relação, a avaliação era negativa, já que Zana representava um sujeito coletivo e deveria, por
isso, partilhar as atenções entre todos.
A exclusividade e a possessão no tratamento com o filho levava a mãe a
assumir vários papéis que figurativizavam o apego em cada circunstância em que a ameaça da
disjunção com o objeto era apresentada, fazendo de Zana um sujeito também modalizado pelo
fazer, como exemplo, podemos citar: mãe poderosa, defensora, cúmplice, detetive, religiosa,
cega. Mas, à medida que os percursos narrativos vão se desenvolvendo e as paixões o
aflorando e afetando os sujeitos, o narrador reconhece Zana modalizada pelo saber, um sujeito
cognitivo, como o texto nos permite observar: “Mas Zana o era cega. Via muito, por todos
os ângulos, de perto e de longe, de frente e de viés, por cima e por baixo, e sua visão continha
uma sabedoria. que Zana era possuída por um ciúme excessivo(HATOUM, 2006, p. 95).
Como sujeito do fazer patemizada pelo apego ao filho fragilizado pela doença quando nasceu,
a mãe conseguiu fazer também com que o filho se tornasse completamente dependente dela,
manifestando sempre um comportamento que requeria atenção e proteção, o que nos faz supor
que a sabedoria da e estava relacionada ao fato de Omar necessitar de uma atenção maior
que os outros filhos, pois, ao contrário deles, o Caçula apresentava um comportamento
vulnerável. Então, a mãe cobria de cuidados e proteção o filho que, na concepção de mãe,
precisava mais dela.
Quando Zana sentia dificuldades de proteger o filho, ela buscava o apoio do
marido que, mesmo contrariando o que sentia pelo filho, cedia aos caprichos da esposa que
amava. Com a morte do esposo, Zana mudou completamente de atitudes com o Caçula e
procurou o apoio do filho mais velho, primeiro reconhecendo a omissão materna e pedindo-
lhe perdão, depois suplicando a reconciliação dos filhos que oportunizaria ajuda ao filho com
o qual ela se preocupava. Os seus pedidos foram ignorados por Yaqub que desfechou a
vingança planejada sobre Omar e a mãe, intensificando a inimizade e o ódio entre os irmãos.
Zana, que o tempo todo instigou a rivalidade dos filhos, morreu sem o perdão de Yaqub,
preocupada com o futuro de Omar e carregando a culpa da inimizade dos filhos.
A avaliação e a moralização do percurso narrativo e patêmico da mãe pelo
narrador comporta várias axiologias: o apego bem como as variantes de sua configuração
(exclusividade, possessão, zelo) são avaliados disforicamente por privilegiar apenas um
sujeito e por remeter aos outros sujeitos inseridos na coletividade a indiferença, o desapego, o
abandono e a exclusão; depois esse apego é avaliado positivamente pelo saber que ele
comporta, o apego da mãe pelo filho que necessitava mais dela; e, por fim, o apego é
moralizado negativamente por engendrar a rivalidade, o ódio e a desunião da família. Assim,
131
Zana acumula atitudes honráveis e vergonhosas ao mesmo tempo: honráveis, porque
reconheceu o seu erro, deixou o orgulho de lado e pediu perdão; vergonhosas, porque
confessou a exclusão de Yaqub do relacionamento materno e assumiu a culpa de ter
promovido a inimizade dos filhos.
Ao contrário da mãe, o pai não se intrometia na disputa dos filhos. Ele
admirava a independência e o sucesso de Yaqub e reprovava o comportamento desregrado de
Omar. Culpava a esposa no tratamento diferenciado com os filhos, sentia ciúmes do filho
Caçula que era o centro das atenções da mãe, interferindo no seu relacionamento conjugal. A
última palavra era sempre a da esposa que ele tanto amava, por isso se rendia aos seus
caprichos e desejos, mesmo sofrendo e reclamando a falta de reciprocidade dos afetos
conjugais, promovida pelo apego destinado ao Caçula. A reincidência das agressões de Omar
contra Yaqub, o comportamento irresponsável do Caçula, o fato de Rânia ser explorada por
Omar quando ele era quem deveria ter assumido os necios da família e o excesso de zelo da
e pelo filho confluíram para que o sofrimento tomasse conta de Halim, levando-o a
decadência existencial exposta no trecho: “Assim eu via Halim: um náufrago agarrado a um
tronco, longe das margens do rio, arrastado pela correnteza para o remanso sem fim”
(HATOUM, 2006, p. 137).
As atitudes de Halim como pai são avaliadas pelo narrador de duas formas: por
um lado, comnia e Yaqub a avaliação é positiva, visto que o pai reconhecia o empenho dos
filhos e os apoiava; por outro lado, com Omar a avaliação é negativa, pois mesmo
reconhecendo os erros do filho, não tomava atitudes para não contrariar a esposa e, com isso,
omitiu-se dessa responsabilidade, mas não deixou de demonstrar sua indignação com ele. A
submissão à esposa fez de Halim um sujeito irrealizado, insatisfeito, frustrado, patemizado
pelo sofrimento do amor o correspondido com a intensidade que ele desejava e também
pela incompetência do pai que se absteve na sua missão de educar o filho protegido pela mãe.
O amor dele por Zana era tão intenso que o fez renunciar a competição com Omar pelas
atenções dela, porque sabia que para ela o filho vinha em primeiro plano. Então, a sua
renúncia modalizada pelo não-poder-ser amável é moralizada, por um lado, negativamente
porque fazia dele um sujeito desprezível; e, por outro lado, positivamente, visto que o não-
poder-ser é sobremodalizado pelo querer-fazer feliz o sujeito amado.
Se Omar tirava o sossego do pai a ponto de fazê-lo tomar raiva do filho, para a
e ele era o centro de todas as suas atenções. O comportamento desmedido do filho não era
motivo para que ela o tratasse com represálias, muito pelo contrário, a dedicação exclusiva
destinada a ele era incondicional. Omar cresceu sem conhecer limites e, assim, era um
132
aventureiro, farrista, boêmio, mulherengo, não trabalhava, não quis saber de estudar.
Motivado pelo apego da mãe, era corajoso, audacioso, atirado e sedutor. O seu poder de
sedução não era com as mulheres com as quais ele mantinha um relacionamento amoroso,
era também com a mãe e a irmã que sentiam ciúmes dele com outras mulheres. Assim como a
e sentia ciúme dele, Omar sentia-se ameaçado em ter que dividir as atenções e o carinho
materno com Yaqub. Com o irmão mais velho a sua relação era de rivalidade e competição, o
Caçula invejava a coragem de Yaqub por ter se desgarrado da família e conseguido a
independência financeira que fazia dele um sujeito realizado que não precisava da ajuda e
nem da proteção dos pais e, conseqüentemente, não permitindo a interferência deles em sua
vida. Essa rivalidade entre os dois foi estimulada pelo apego da mãe com um filho e foi
atingindo gradativamente proporções maiores quando os dois concorriam em busca de um
mesmo objetivo. Nessas disputas, quando Omar se via em desvantagem em relação ao irmão,
ele o agredia sica e moralmente, provocando o ódio e a inimizade dos dois. As atitudes
invejosas e coléricas de Omar são sempre avaliadas negativamente e moralizadas como falta
de estima, modalizadas por um dever-fazer-não-ter dirigido a Yaqub e por um não-saber-não-
ser de Omar sempre figurativizadas pelo instinto animalesco: Ele babava, relinchava, as
veias do pescoço tufadas, a boca expelindo saliva[...] Mas eu não arredei pé, queria ver até
onde ia a coragem do bicho, o teatrinho, a pantomima do Caçula...(HATOUM, 2006, p.
129).
Yaqub era o oposto de Omar: retraído, tímido, calado, mas admirava a
coragem do irmão Caçula, queria ser como ele, embora lhe faltasse coragem. A mesma
coragem que não teve para impedir que o irmão o agredisse tantas vezes, provocando o seu
sofrimento. Sofrimento também provocado pela rejeição e exclusão do relacionamento
materno que privilegiava o Caçula. A motivação afetiva que faltou a ele para ser atirado como
Omar não foi empecilho e até excitou a busca por sua independência para suprimir essa
carência. A independência conquistada teve um efeito promissor na vida de Yaqub que se
tornava cada vez mais bem sucedido profissionalmente e financeiramente. Essas vantagens
conquistadas por Yaqub provocavam a inveja e a lera de Omar. Como resposta a tanta
injúria, Yaqub planejou e executou a sua vingança. À medida que o comportamento de Yaqub
ia sendo observado, as avaliações eram manifestadas: as atitudes retraídas, calculadas,
cautelosas dissimulavam tanto o orgulho de ciumento em relação à mãe, quanto à espera para
planejar e organizar um confronto com o irmão; a figurativização de enxadrista representava o
bom comportamento na relação polêmica, uma estratégia usada para não levantar suspeitas
133
que comprometeriam os seus planos; a associação com a serpente figurativizava a
dissimulação de uma fulminante vingança.
Como já foi visto anteriormente, tanto as atitudes da mãe quanto as de Omar
foram avaliadas negativamente pelo narrador, por promoverem o sofrimento de Yaqub, mas
quando Yaqub realizou a vingança, a avaliação negativa recaía sobre o seu comportamento,
moralizado como um sentimento mau.
Dos três irmãos, Rânia era a mais jovem e a que assumiu os negócios da
família, mostrando-se uma empresária responsável e competente. Se nos negócios ela era bem
resolvida, no relacionamento amoroso não o era. Impedida pela mãe de assumir um romance
na adolescência, ela se retraiu, rejeitando os pretendentes que a cortejavam, mas revelando
forte atração pelos irmãos, deixando-se acariciar por eles. Os carinhos não eram nada
fraternos, eram, pois, carícias sensuais: Sorria, fazia-lhe cegas nos quadris, nas nádegas,
uma das mãos tateava-lhe o vão das pernas. nia suava, se eriçava e se afastava do iro,
chispando para o quarto” (HATOUM, 2006, p.69). Apesar da diferença de comportamento
dos irmãos tão iguais na aparência, ela valorizava o que cada um representava para ela: Omar,
o homem sedutor; Yaqub, o homem bem sucedido nos negócios. Não tomava partido nas
disputas entre os irmãos, mas se revoltou com a vingança de Yaqub, porque ao se vingar de
Omar, ele se vingou também da mãe que morreu sem o perdão do filho. O comportamento de
Rânia com os irmãos foi avaliado negativamente, moralizado como uma relação incestuosa;
mas como boa filha e mulher de negócios foi avaliado positivamente. E, ainda, com relação a
Yaqub, o homem respeitado pelo poder que adquiriu, o comportamento da irmã mais nova
repreendendo o irmão mais velho por seus erros, foi avaliado e moralizado positivamente pelo
narrador, visto que ela teve a coragem de fazer o que ninguém ousou fazer.
Não menos importante que o comportamento da família, as atitudes e o
comportamento de Domingas e do próprio narrador serão também avaliados, visto que eles
mantinham estreita ligação com os integrantes daquela família.
Domingas foi morar na casa de Zana e Halim, prestava serviços domésticos ao
casal e, depois do nascimento dos filhos deles, passou também a ajudar a cuidar das crianças.
Sonhava com a sua liberdade, mas os laços afetivos com a família foram se intensificando e
ela o teve coragem de lutar pela liberdade desejada:
“Louca para ser livre”. Palavras mortas. Ninguém se liberta só com palavras. Ela
ficou aqui na casa, sonhando com uma liberdade sempre adiada. Um dia, eu lhe
disse: Ao diabo com os sonhos: ou a gente age, ou a morte de repente nos cutuca, e
134
não há sonhos na morte. Todos os sonhos estão aqui, eu dizia, e ela me olhava, cheia
de palavras guardadas, ansiosa por falar. Mas ela o tinha coragem, quer dizer,
tinha e o tinha; na minha dúvida, preferiu recapitular, deixou de agir, foi tomada
pela inação. Pela inação e também pelo envolvimento com os meos, sobretudo
com a criança Yaqub, e, quatro anos depois, com Rânia. Com Yaqub foi mais forte:
amor de mãe postiça, incompleto, talvez impossível. (HATOUM, 2006, p. 50)
A condição de Domingas era a de submissão e de subserviência, a prestação de
serviço sem remuneração era um típico trabalho escravo. Então, ela aparece como um sujeito
servil, que vive para fazer as vontades dos outros, esquecendo-se das suas próprias vontades,
mas, no seu íntimo era modalizada pelo querer-ser, o desejo de ser livre. O sonho de liberdade
foi se esvaindo pela dificuldade de lutar por sua independência diante do comodismo que a
sua condição lhe sujeitava: descendente de índios, órfã, educada por religiosas para prestar
serviços domésticos e, também, pelo fato de ter se apegado afetivamente a Yaqub, a criança
que ficou sob os seus cuidados na infância.
A submissão de Domingas fazia dela um sujeito conflituoso: dominada pela
dependência aos patrões, mas desejando a coragem de se libertar. Assim era que ela se
revelava também para o filho, escondendo a paternidade que ele tanto desejava conhecer e, ao
mesmo tempo, querendo declará-la. Em meio ao conflito, a opção de Domingas era a de se
abdicar de suas vontades e desejos, por falta de coragem de tomar uma decisão em face das
situações que requeriam dela essa atitude.
A liberdade tão sonhada por Domingas chegou, embora tenha sido com a sua
morte, como lhe dissera o filho na conversa registrada no fragmento acima. Domingas serviu
à família até a morte, mas conseguiu antes de morrer se libertar do segredo que guardou uma
vida inteira: Nael foi fruto de uma agressão de Omar. Nesse sentido, a submissão da mãe
àquela família não se concentrava só no fato de prestar serviços, mas também por ter que calar
a humilhação e a vergonha da desonra para não comprometer a imagem da família. Com isso,
a submissão, tanto do trabalho cativo quanto da empregada que não pode reclamar a
paternidade do filho bastardo com um dos patrões, se constituí como uma denuncia social
discriminatória e preconceituosa relativa aos padrões sociais da época e, por isso, é avaliada e
moralizada negativamente.
Nesse sentido, Nael, o filho bastardo de Omar com a empregada, sentia-se
deslocado no ambiente familiar e, ao contrário da mãe, incomodava-se com aquela situação:
... E a mim, sem me olhar, sem se importar com a minha presença. Na verdade, para Zana eu
existia como rastro dos filhos dela” (HATOUM, 2006, p. 28). E, assim como ele existia
135
como rastro deles, ele também vivia do que para eles o tinha mais serventia, como
observamos na passagem abaixo, quando Nael aproveita os pertences rejeitados por Yaqub:
A partida de Yaqub foi providencial para mim. Além dos livros usados, ele deixou
roupas velhas que anos depois me serviria: três calças, várias camisetas, duas
camisas de gola puída, dois pares de sapatos molambentos. Quando ele viajou para
São Paulo, eu tinha uns quatro anos de idade, mas a roupa dele me esperou crescer e
foi se ajustando ao meu corpo; as calças, frouxas pareciam sacos, e os sapatos, que
mais tarde ficaram um pouco apertados, entravam meio na marra nos meus pés: em
parte por teimosia, e muito por necessidade. O corpo é flevel. (HATOUM, 2006,
p. 30)
Essa condição subalterna de filho da empregada que vive dos restos dos
patrões estigmatizava o a exploração do trabalho de Domingas, sem remuneração, como
também era uma maneira de estabelecer a distinção de classes, situando Nael excluído da
família, reforçando a sua posição desprivilegiada de agregado da casa. Nael tem consciência
das suas necessidades, por isso, submete-se ao uso das roupas e sapatos mesmo que
desproporcionais ao seu tamanho, mas quando explicitava que o corpo era flexível, ficava
implícita a intolerância dos seus sentimentos. Embora necessitasse das roupas, não aceitava a
humilhação de servir-se dos restos dos outros, o que nos leva a observar que vivendo do
rejeito dos outros, a sua condição era também a de um rejeitado, condição essa que afetava o
estado de alma do sujeito. Como ele não aceitava essa condição, sabia que precisava fazer
algo para se libertar, assim sendo, tornava-se um sujeito cognitivo e pragmático, alguém que
sabia como fazer para mudar a situação à qual se submetia temporariamente, conseguir com
os estudos a sua independência: “Eu ia conseguir isso: o diploma do Galinheiro Dos
Vândalos, minha alforria” (HATOUM, 2006, p. 30).
Aqui é importante ressaltarmos que Nael e Yaqub apresentavam algumas
características em comum: ambos eram excluídos e rejeitados, por isso, procuravam a
independência nos estudos. Como as histórias eram contadas a ele pela mãe e por Halim, as
pessoas na casa que se mostravam preocupadas e atenciosas com Yaqub, somos levados a
pressupor que Nael foi influenciado por esses dois sujeitos tão ligados afetivamente ao gêmeo
mais velho, buscando nele um exemplo, uma referência a ser seguida.
Assim como ele admirava Yaqub, ele também mostrava aversão ao Caçula
pelo que viu e ouviu de suas atrocidades, mas muito por inflncia de Halim e de Domingas
que contavam a ele as histórias que não viu acontecer. Desde pequeno, Nael soube da
136
dedicação exclusiva de Zana pelo Caçula e do ciúme que esse filho tinha de Yaqub: “‘Ele
queria sair da sala, mas não conseguia’, disse-me Domingas. Não queria ver o irmão altivo,
sereno, ouvindo a mãe pedir a Yaqub que lhe escrevesse uma carta por semana, nem pensasse
em deixá-la sem noticias, preocupada aqui neste fim de mundo” (HATOUM, 2006, p. 34).
Os acontecimentos que Nael não presenciou relativos à história da cicatriz no
rosto de Yaqub, à ida dele para o bano e à volta que o fez sentir um deslocado no ambiente
familiar eram fortes indícios para o narrador de que a segunda retirada do filho de casa, a sua
ida para São Paulo, era um estratagema para preparar uma vingaa:
O matemático, e também o rapaz altivo e circunspecto que não dava bola para
ninguém; o enxadrista que no sexto lance decidia a partida e assobiava sem vontade
no soprinho de passarinho rouco, antevendo o rei acuado. Derrotava o adversário
emitindo esse assobio meio irritante, anuncio do inevitável xeque-mate (HATOUM,
2006, p. 25).
Pelas referências figurativas do jogo de xadrez, percebemos Yaqub comparado
a um jogador vitorioso que dissimulava as jogadas, esperando o momento certo para derrotar
o adversário. Depois, nas quatro figuras usadas para se referir aos dois sujeitos, sendo que
apenas uma não pertencia ao jogo de xadrez, reconhecemos o caráter e o percurso das ações
de cada um deles impregnados nessas figuras: o enxadrista e o passarinho rouco fazem alusão
a Yaqub como um sujeito cauteloso e dissimulado, um estrategista calculista e vingativo; o rei
acuado e o adversário derrotado se referiam a Omar, o filho que dominava a casa e a atenção
da mãe, acuado e derrotado pelo irmão ressentido.
Nael cresceu vislumbrando a presença de Yaqub pelas fotografias e cartas
enviadas a Manaus e repulsando a presença de Omar que contaminava a casa e as pessoas que
ali residiam. Enquanto Nael foi convivendo com essas diferenças, foi também tomando
consciência da vida de seus antepassados pelos relatos de Halim: o sofrimento de Zana com a
morte de Galib atenuado pela amizade com Domingas que foi morar com o casal, o
nascimento dos filhos que ele nunca desejou, mas aceitou para não contrariar a esposa.
Quanto mais ele ouvia as histórias, mais aumentavam as suas vidas. As
atitudes de Domingas contribuíam para que Nael ficasse imaginando qual dos dois era o seu
pai, como ele mencionou aqui: Ela temia que o meu destino confluísse para o de Omar,
como dois rios indômitos e turbulentos: águas sem nenhum remanso” (HATOUM, 2006, p.
137
59). Pela comparação dos dois sujeitos com rios turbulentos e águas sem remanso,
observamos que Nael não aceitava a idéia de ser filho de Omar.
Vários motivos concorreram para a repulsão sentida por Omar, um deles era o
fato de o Caçula atrapalhar os seus estudos que eram sempre à noite: “As noites eram a minha
esperança remota” (HATOUM, 2006, p. 65), “Eu odiava aquelas noites em claro, as muitas
noites que perdi por causa do Caçula(HATOUM, 2006, p. 66). Novamente, percebemos
como o sujeito era afetado pela condição de submissão, tendo que deixar de fazer o que para
ele era importante para ajudar a cuidar da embriaguez do farrista. A expressão odiava revela-
nos a manifestação do sentimento que Nael nutria por Omar.
Mas muito do que sentia estava relacionado ao que ouviu. O próprio narrador
deixa claro que muita coisa do que ouviu foi aos pedaços: “... e eu juntava os cacos dispersos,
tentando recompor a tela do passado” (HATOUM, 2006, p. 101). Na tentativa de reunir o que
ouvia aos pedaços e reconstruir o passado ficavam lacunas que eram preenchidas por sua
imaginação: “Talvez por esquecimento, ele omitiu algumas cenas esquisitas, mas a memória
inventa, mesmo quando quer ser fiel ao passado” (HATOUM, 2006, p. 67). Por essa citação
em que fazia referência a Halim, percebemos a interferência do sujeito que, na sede de
desvendar o passado, completava as lacunas com o que a imaginação lhe suscitava. Assim, o
narrador quer ser fiel a esse passado que reconstrói, mas faltando informações era tomado por
uma força maior que o impulsionava a seguir em frente, obstinado por descobrir esse passado:
Omissões, lacunas, esquecimento. O desejo de esquecer. Mas eu me lembro, sempre tive
sede de lembranças, de um passado desconhecido, jogado sei em que praia de rio”
(HATOUM, 2006, p. 67).
Quando se tratava do que viu, a paixão aflorava com a sensibilização do
sujeito, como nesta passagem quando Halim repreendeu o Caçula com uma bofetada, Nael
sentiu-se compensado: “No meu íntimo, aquele tabefe soava como parte de uma vingança”
(HATOUM, 2006, p. 68). Em parte, a bofetada era uma desforra a tantos transtornos que
Omar lhe causava. Na seqüência, reafirmava o desejo de vingança como quem desejasse a
completude da vingança: Bastava um maçarico para libertá-lo, mas ninguém pensou nisso,
muito menos eu, que desconhecia a existência dos maricos e só pensava, vagamente, em
vingança. Mas vingar-me de quem?’” (HATOUM, 2006, p. 69). Por esse questionamento
reconhecemos o sujeito dividido: o narrador, que já conhecia o desfecho da história narrada
retrospectivamente; e o sujeito apaixonado, deixando aflorar a paixão de quem sabia do que
se tratava, embora precisasse fazer parecer que a desconhecia.
138
Por outro lado, algumas passagens comprovam a reprodução dos
acontecimentos baseados na imaginação de um sujeito apaixonado. Alguns exemplos são as
passagens relativas a nia, a mulher que despertava nele atração e desejo: Rânia causava
arrepios no meu corpo quase adolescente. Eu tinha gana de beijar e morder aqueles braços.
Esperava com ânsia o abraço apertado, o único do ano. A espera era uma tortura. Eu ficava
quieto, mas um fogaréu me queimava por dentro” (HATOUM, 2006, p. 72). Sentia ciúmes
dos pretendentes que cortejavam a moça, mas deixava a imaginação à solta, quando se tratava
do relacionamento da ircom os gêmeos: “Ainda chovia muito quando a vi subir a escada,
de mãos dadas com Yaqub; entraram no quarto dela, alguém fechou a porta e nesse momento
minha imaginação correu solta. Só desceram para comer” (HATOUM, 2006, p.88).
Assim como o comportamento de Nael se alterava em virtude do que sentia e
imaginava, ele também percebia como os sujeitos eram afetados, principalmente, pelas
atitudes de Omar: O ciúme, o medo, a inveja e a compaixão que causavam as mulheres de
Omar!” (HATOUM, 2006, p. 74). Se as aventuras de Omar causavam tantas paixões nos
sujeitos que conviviam com ele, com Nael não era diferente, pois ele admirava esse lado
aventureiro de Omar: “Na vida de Omar aconteciam lances incríveis, ou ele os deixava
acontecer, como quem recebe de mão cheia um lance de aventura. E o seres assim?
Pessoas que nem carecem buscar o lado fantasioso da vida, apenas se deixam conduzir pelo
acaso, pelo inusitado que assoma nas ventas” (HATOUM, 2006, p. 83).
Da mesma forma, mas com maior intensidade, admirava a superioridade de
Yaqub: “Quando soube que ele ia chegar, senti uma coisa estranha, fiquei agitado. A imagem
que faziam dele era a de um ser perfeito, ou de alguém que buscava a perfeição. Pensei nisto:
se for ele o meu pai, então sou filho de um homem quase perfeito(HATOUM, 2006, p. 83).
Nesse excerto, comprovamos que a admiração sentida por Yaqub era influenciada pelos
sujeitos que contavam a ele as histórias da família, que esse era o primeiro encontro de
Nael com Yaqub. Embora o predomínio das qualidades de Yaqub tendesse para a escolha
desse gêmeo como seu pai mesmo sem conhecê-lo pessoalmente, sem a comprovação de que
precisava, a diferença de conduta dos gêmeos era uma pista para tentar resolver o impasse da
paternidade: Eu tentava descobrir qual dos dois tinha atraído minha mãe” (HATOUM, 2006,
p. 83). As impressões sentidas em relação a Yaqub não condiziam ao que ouvira falar sobre
ele e a certeza que tanto buscava engendrou ainda mais dúvida, como podemos verificar pelo
trecho:
139
A visita de Yaqub, ainda que passageira, permitiu que eu o conhecesse um pouco.
Algo do comportamento dele me escapava; ele me deixou uma impressão ambígua,
de alguém duro, resoluto e altivo, mas ao mesmo tempo marcado por uma
sofreguidão que se assemelhava a uma forma de afeto. Essa atitude indecisa me
deixava confuso. Ou talvez eu mesmo oscilasse feito gangorra. Muita coisa que
diziam de Yaqub o se ajustou ao que eu vi e senti. (HATOUM, 2006, p. 85)
Em vários trechos da narrativa a comparação entre os gêmeos era
figurativizada por uma gangorra, brinquedo cuja estrutura é uma tábua que pende para dois
lados opostos. Como nesse momento a competição dispunha na gangorra os gêmeos do ponto
de vista do filho que quer descobrir quem é o seu pai, então, a avaliação de quem quer apostar
em um dos dois lados da gangorra oscilava entre as competências dos dois jogadores. Se as
fraquezas de Omar concorriam para que Nael reprovasse esse sujeito como seu pai, a
superioridade da imagem que faziam de Yaqub era um forte indício que convergia para a sua
aceitação. Ao buscar em Yaqub a imagem ideal de um pai, Nael tentava associar a sua
imagem a desse suposto pai, para assim como ele ser superior: ... tudo dava tão certo na vida
dele que os atropelos e o purgatório do dia-a-dia pertenciam aos outros. E nós éramos os
outros.s e o resto da humanidade” (HATOUM, 2006, p. 88). Uma vez comprovado Yaqub
como pai, Nael se livraria da sina de fracasso, submissão, humilhação e sofrimento,
estabelecida tanto pela condição de agregado, quanto pela possibilidade de ser filho do Omar.
Mas ao perceber a fragilidade de Yaqub ao manifestar seus sentimentos, a imagem do ser
superior que esperava encontrar nele, não foi o que viu e sentiu: Yaqub, encurralado, parecia
mais humano, ou menos perfeito, mais inacabado. Percebi que estava nervoso, fumava com
ânsia, os olhos no chão. Eu não me aproximei dele, não tive coragem. Estava transfigurado,
parecia trincar os dentes até a alma” (HATOUM, 2006, p. 89). A comprovação veridictória
inscrita no simulacro condizia primeiro no eixo do parecer com a comprovação de uma
verdade de evidência, como vimos no excerto acima Yaqub, um sujetio fragilizado; depois,
seguida por uma verdade comprovada, no eixo do ser, Yaqub era superior, porque mesmo
afetado pelos estados de alma, conseguia dissimular suas paixões: “Havia recuperado a
carnadura e não revelava vestígio de fraqueza ou sofrimento (HATOUM, 2006, p. 89).
Assim, a impressão ambígua do comportamento de Yaqub se dissipou com a comprovação da
atitude de um sujeito que tinha domínio de postura, dissimulando seu sofrimento, não
permitindo que as fraquezas o denunciassem.
Essa atitude de Yaqub foi decisiva para que Nael continuasse mostrando
preferência por ele, mas o medo de descobrir a verdade o fazia prorrogar a dúvida: “Adiei a
140
pergunta sobre o meu nascimento. Meu pai. Sempre adiaria, talvez por medo. Eu me enredava
em conjeturas, matutava, desconfiava de Omar, dizia a mim mesmo: Yaqub é o meu pai, mas
também pode ser o Caçula, ele me provoca, se entrega com o olhar, com o escárnio dele”
(HATOUM, 2006, p. 100). O medo que sentia estava relacionado com o pressentimento de
Omar ser o seu pai e essa desconfiança gerava um sujeito conflituoso que lutava contra essa
idéia, reforçando a certeza de seu pai ser Yaqub. Por essa estratégia de Nael, percebemos pelo
temor que além de supor um saber e um crer, ele ainda esperava a confirmação. Essa espera,
por um lado, era modalizada pelo conflito do poder-ser filho de Omar e não-querer-ser filho
dele; e, por outro lado, conservava uma confiança modalizada pelo dever-ser filho de Yaqub.
A espera da confirmação da paternidade engendrava a inquietude pela permanência e iteração
da manifestação patêmica do sujeito apaixonado. Nesse caso, o medo aflorava as
manifestações passionais de Nael que corroboravam para constitui-lo como um sujeito
patemizado pelo desejo de vingança, cujo anti-sujeito era representado por Omar, como
mostramos na seqüência: Torcia para que ele me tocasse, ia levar uma porretada na frente da
e, cair de joelhos na minha frente” (HATOUM, 2006, p. 129). Pelo desejo expresso de
rivalidade e de agressão, confirmamos a paixão da vingança. O fato de revidar a agressão e
colocar Omar em posição humilhante perto de Zana soava como uma vingança, uma vingaa
à humilhação contra ele e a sua mãe, Domingas.
É interessante notarmos que mesmo que os acontecimentos ainda não tenham
sido relatados, o sujeito apaixonado antecipava a manifestação de seus sentimentos em
relação ao que ainda estava por vir, como vimos acima e como veremos nesse fragmento:
“Cada vez mais perto da praia, eu o via como um estranho, e queria que Omar fosse realmente
um estranho. Fosse estranho e eu estaria talvez menos preocupado com a idéia que fazia dele”
(HATOUM, 2006, p. 133). Se a frustração com Omar contribuía para Nael renegá-lo como
pai, o descontentamento do sujeito apaixonado consigo mesmo foi exposto pelo legado
recebido desse suposto pai: “Não tive pena dele. Ele mesmo me ensinara serem inúteis a pena
e a consideração” (HATOUM, 2006, p. 134). Mais uma vez a compensação de danos
evidencia uma possível vingança, pois retribuía da mesma forma os sentimentos que Omar
mostrava ter em relação a ele. O ressentimento manifestado por Nael deixou explícito que o
dano causado não foi esquecido, por isso, procedeu da mesma maneira, recompensando o seu
dano. Apesar de recompensado nessa circunstância, o ressentimento o se esgotou e até
aumentou, visto que Omar não desistia de humilhá-lo e a humilhação, esse sentimento que
instiga o ódio e o desejo de vingança, reaparecia em seguida com a provocação de um grupo
de rapazes que caminhava pela praça em sua direção: ‘É o filho da minha empregada’. Todos
141
riram, e continuaram a andar. Nunca esqueci. Tive vontade de arrastar o Caçula até o igarapé
mais fétido e jogá-lo no lodo, na podridão desta cidade” (HATOUM, 2006, p. 134).
A única vez que se viu próximo de Omar, por aquilo que os unia e identificava,
foi enquanto prestavam uma homenagem ao professor assassinado que ambos admiravam:
Por uma vez, uma só, não hostilizei o Caçula, não pude odiá-lo naquela tarde
chuvosa, nossos rostos iluminados por tochas, nossos ouvidos atentos às palavras de
um morto, nosso olhar na fachada do Liceu, na tarja preta que descia do beiral à
soleira da porta. [...] Não pude odiar o Caçula. Pensei: se toda a nossa vida se
resumisse àquela tarde, então estaríamos quites. Mas não era, não foi assim. Foi só
aquela tarde. (HATOUM, 2006, p. 143)
O desejo de quitar uma dívida que Omar tinha com ele, apesar de atenuado
pela morte de Laval, não foi motivo suficiente para exterminar o ódio que ele sentia pelo
Caçula, porque no seu íntimo sabia que aquele momento era único e, depois tudo voltaria a
ser como antes. E foi o que aconteceu, pois, o que viveram naquela tarde não apagou tudo o
que sentia: “Eu não suportava o Caçula, tudo o que via e sentia, tudo o que Halim havia me
contado bastava para me fazer detestar o Omar. Não entendia por que minha mãe não o
destratava de vez, ou pelo menos não se afastava dele. Por que tinha que aturar tanta
humilhação?” (HATOUM, 2006, p. 152) Nessa citação percebemos a somatização de todos os
desafetos para com o Caçula do ponto de vista de Nael: o que Nael viu e sentiu a seu respeito;
o que Halim disse que o influenciou; e o que Domingas precisava fazer para se vingar da
humilhação que sofrera.
Nael chegou a intimidar Omar por duas vezes. Primeiro, quando o Caçula
tentou agredir o pai morto, Nael impediu que ele o fizesse, enfrentando-o corajosamente: “[...]
expulsei o Caçula da sala e arrastei-o até o quintal. [...] Gritei mais alto do que ele: que me
enfrentasse de uma vez, que me esquartejasse, o covarde. O terçado tremia na mão direita,
enquanto eu repetia várias vezes: ‘Covarde...’”(HATOUM, 2006, p. 163). Depois, anos mais
tarde, quando Omar agrediu Yaqub: Corri para cima do Caçula tentando segurá-lo
(HATOUM, 2006, p. 175). Nael conseguiu evitar a agressão ao cadáver de Halim, mas com
Yaqub, a ira de Omar era maior que as forças de Nael, que tentou em vão impedir a agressão.
Depois de tantos desagravos, com a morte de Domingas confirmou-se o que
Nael mais temia, a mãe, antes de morrer contou ao filho a agressão de Omar. Naquele
momento que antecedeu a morte da mãe, o filho não conseguia expressar o que sentia, mas,
142
baseado nos ensinamentos do avô, esperava consegui-lo com o passar do tempo, como
observamos abaixo:
Naquela época, tentei, em vão, escrever outras linhas. Mas as palavras parecem
esperar a morte e o esquecimento; permanecem soterradas, petrificadas, em estado
latente, para depois, em lenta combustão, acenderem em nós o desejo de contar
passagens que o tempo dissipou. E o tempo, que nos faz esquecer, também é
cúmplice delas. o tempo transforma nossos sentimentos em palavras mais
verdadeiras, disse Halim durante uma conversa, quando usou muito o lenço para
enxugar o suor do calor e da raiva ao ver a esposa enredada ao filho caçula.
(HATOUM, 2006, p. 183)
Aqui ficou expresso o seu objetivo em reconstruir o passado da sua família:
expressar o que na época não conseguiu compreender e, se a morte e o esquecimento eram
ameaças para esse passado, as palavras foram responveis por não deixar que o tempo
apagasse a memória de tudo o que foi vivido e que, por isso mesmo, era o tempo que
permitiria a manifestação sincera dos sentimentos. É interessante observarmos que, no calor
do momento, ele foi tomado pela inação, mas à medida que se colocou à prova reconstruindo
esse passado, mostrou-nos que foi completamente tomado pelas paixões que o conseguiu
manifestar naquele momento.
Se os sentimentos não permitiram que o narrador pudesse primar pela
objetividade desejada, a confirmação da paternidade deu-lhe o direito de cobrar o
reconhecimento, se não para com ele, para com a mãe que sempre serviu àquela família,
renunciando a legitimidade de seus direitos. Assim foi que ele cobrou e conseguiu sepultar a
e no mulo da família, restituindo um direito que se não foi reconhecido em vida, foi
conquistado com a morte.
O seu reconhecimento como membro da família aconteceu por meio de Zana
que, na ausência do filho predileto, revelava certa proximidade com o neto e confidenciava-
lhe algumas passagens, como esta em que fala do nascimento de Nael: “ Vivia dizendo: ‘Deve
ser penoso criar o filho dos outros, um filho de ninguém’. Quando tu nasceste, eu perguntei: E
agora, nós vamos aturar mais um filho de ninguém? Halim se aborreceu, disse que tu eras
alguém, filho da casa...” (HATOUM, 2006, p. 186). Nael sentia que o avô mesmo não o
reconhecendo abertamente como neto, agia como tal, expressando a sua afetividade; Zana,
o, ela sempre o ignorou, manteve-se distante e fria. Na velhice, reclamando a ausência das
pessoas que amava, com a saúde bastante debilitada, ela conseguiu manifestar o seu afeto por
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Nael: Ela me reconheceu, ficou me olhando. Então soprou nomes e palavras em árabe que eu
conhecia: a vida, Halim, meus filhos, Omar. [...] Mas quando Zana procurou minhas mãos,
conseguiu balbuciar: Nael... querido...” (HATOUM, 2006, p. 189). Nael não revelou qualquer
tipo de sentimento por ela, a não ser respeito pela patroa, o que aprendeu a fazer em todos
aqueles anos.
Uma forma de reconhecimento foi recebida de Yaqub, a herança da família, o
quarto dos fundos em que morava: “A área que me coube, pequena, colada ao cortiço, é este
quadrado no quintal (HATOUM, 2006, p. 190). Essa herança, embora fosse um tipo de
reconhecimento, reforçava ainda mais o lugar que ocupava naquela família: o de agregado. Se
o seu lugar na família estava destinado a ser aquele, em sociedade conquistou sua
independência com os estudos, ministrava aulas no colégio onde estudou.
Nael se afastou de Rânia e de Yaqub. Desprezava tudo o que concorria para a
lembrança de Yaqub como um sujeito frio e calculista:
Eu já havia jogado no lixo as folhas do projeto de Yaqub que Omar rasgara com
fúria. Nunca me interessei pelos desenhos da estrutura com suas malhas de ferro,
tampouco pelos livros de matemática que Yaqub havia me dado com tanto orgulho.
Queria distância de todos esses cálculos, da engenharia e do progresso ambicionado
por Yaqub. (HATOUM, 2006, p. 196)
Mesmo que tentasse esquecer a sua relação com Yaqub, as lembranças da
presença dele em sua vida eram muito marcantes: “Lembrava _ ainda me lembro_ dos poucos
momentos em que eu e Yaqub estivemos juntos, da presença dele no meu quarto quando
adoeci” (HATOUM, 2006, p. 196). Mas avaliando as atitudes dos dois irmãos, Nael chegou a
conclusão de que a distância era mais vantajosa que a proximidade:
Mas bem antes de sua morte, há uns cinco ou seis anos, a vontade de me distanciar
dos dois irmãos foi muito mais forte do que essas lembranças. A loucura da paixão
de Omar, suas atitudes desmesuradas contra tudo neste mundo não foram menos
danosas do que os projetos de Yaqub: o perigo e a sordidez de sua ambição
calculada. Meus sentimentos de perda pertencem aos mortos, Halim e minha mãe.
Hoje, penso: sou e o sou filho de Yaqub, e talvez ele tenha compartilhado comigo
essa dúvida. O que Halim havia desejado com tanto ardor, os dois irmãos
realizaram: nenhum teve filhos. Alguns dos nossos desejos se cumprem no outro,
os pesadelos pertencem a nós mesmos. (HATOUM, 2006, p. 196)
144
Até quando comparava os feitos dos gêmeos revelava o sujeito cognitivo
patemizado pela vingança, pois na comparação explicitava a equivalência dos danos causados
por eles, por essa atitude reconhecemos o sujeito apaixonado que pensava em vingança. A
avaliação que fez do comportamento e das atitudes dos dois sujeitos foi negativa: os dois se
equivaleram em maldades, por isso, preferia não ser filho de nenhum dos dois. Se antes
desejava ser filho de Yaqub e temia ser filho de Omar, agora preferia não ser filho de
ninguém, assumindo a rejeição, mas também a imputando aos familiares que nunca o
reconheceram. Outra atitude que correspondia ao dispositivo passional da vingança: o
ressentimento que o fazia cobrar na mesma medida os danos que sofreu; depois, quando se
referia à vida de ser ou não filho de Yaqub, referência precedida pela identificação dos
sentimentos de perda dos dois pertencerem aos mortos e seguida pelo seu desejo de vingança
ter sido cumprido por Yaqub. Concluindo os seus sentimentos, rejeitando o reconhecimento
da paternidade, conformou-se com a sua rejeição: se foi tratado com rejeição uma vida inteira,
agora era com rejeição que também tratava os outros. Dessa forma, seus desejos de fazer os
outros sujeitos provarem um dano equivalente àquele que causaram era uma forma de
manifestar que a vingança realizada por outrem não liquidava com o ressentimento que, uma
vez retido, continuaria a trazer-lhe sofrimento.
O ressentimento continuava a ser manifestado por Nael, mesmo mantendo-se à
distância, comprovando duas causas desse sentimento: uma com relação à humilhação da mãe
e outra com relação à sua condição de agregado, excluído da família.
No que dizia respeito à agressão sofrida pela mãe, foi manifestado da seguinte
maneira: Trouxera para perto de mim o bestiário esculpido por minha mãe. Era tudo o que
restara dela, do trabalho que lhe dava prazer: os únicos gestos que lhe devolviam durante a
noite a dignidade que ela perdia durante o dia (HATOUM, 2006, p. 197). Os bichinhos
esculpidos por Domingas eram de duas espécies, pássaros e serpentes, o que nos leva a supor
as representações figurativas: as serpentes figurativizando a maldade das pessoas; e os
pássaros, o sonho de liberdade. Fazendo uma associação com a exposição de Nael, a maldade
se relacionava com a condição submissa e humilhante de Domingas e a liberdade se
relacionava com a dignidade restituída pelo prazer em fazer o que desejava.
A outra causa comprovada surgiu como manifestação do estado de alma do
sujeito apaixonado que tentava se libertar dos sentimentos que o passado provocava nele:
Desde a partida de Zana eu havia deixado ao furor do sol e da chuva o pouco que restara das
árvores e trepadeiras. Zelar por essa natureza significava uma submissão ao passado, a um
tempo que morria dentro de mim(HATOUM, 2006, p. 197). Cuidar do quintal era continuar
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submisso àquela família, condição que sempre foi motivo de revolta para Nael, assim sendo,
o cuidar do quintal era uma atitude de libertação do sofrimento que aquela condição trazia a
ele.
O que ele esperava para se libertar de vez desse passado era que Omar
reconhecesse o seu erro e pedisse-lhe perdão, mas isso não aconteceu, como podemos
comprovar abaixo:
Ainda chovia, com trovoadas, quando Omar invadiu o meu refúgio. Aproximou-se
do meu quarto devagar, um vulto. Avançando mais um pouco e estacou bem perto
da velha seringueira, diminuído pela grandeza da árvore. Não pude ver com nitidez o
seu rosto. Ele ergueu a cabeça para a copa que cobria o quintal. Depois virou o
corpo, olhou para trás: não havia mais alpendre, a rede vermelha não o esperava. Um
muro alto e sólido separava o meu canto da Casa Rochiram. Ele ousou e veio
avançando, os pés descalços no aguaçal. Um homem de meia-idade, o Caçula. E
quase velho. Ele me encarou. Esperei. Queria que ele confessasse a desonra, a
humilhação. Uma palavra bastava, uma só. O perdão. Omar titubeou. Olhou para
mim, emudecido. Assim ficou por um tempo, o olhar cortando a chuva e a janela,
para além de qualquer ângulo ou ponto fixo. Era um olhar à deriva. Depois recuou
lentamente, deu as costas e foi embora. (HATOUM, 2006, p. 198)
A inferioridade de Omar figurativizada pela disposição espacial da sua imagem
perto da seringueira, árvore que antes era sinônimo de sua coragem, pois do alto se sentia
um ser superior que enxergava o mundo, agora era visto diminuído. Essa condição inferior de
Omar era observada pelas suas perdas: não havia mais alpendre, porque perdeu a casa; a rede
vermelha não o esperava, visto que a rede vermelha representava a agressividade que não
seria mais tolerada; o muro marcando os limites que ele nunca respeitou; o homem de meia
idade, o vigor da juventude perdida; um olhar à deriva, alguém completamente desgovernado.
Nesse sentido, a disposição espacial mostrava todas as perdas de Omar: a coragem, a
proteção, a liberdade, a juventude, o poder.
Anteriormente, as atitudes de Omar foram moralizadas como falta de estima;
agora mesmo depois de perder quase tudo, Omar só não perdeu o orgulho, não teve a
humildade de confessar o seu erro. Por essa atitude de Omar, percebemos que ele não
renunciou a sua identidade, pois apesar de todas as perdas, não conseguiu se mostrar
envergonhado e arrependido pelo que fez.
Enfim, nossa análise nos permite afirmar que mais uma vez percebemos o
contágio passional, agora, na perspectiva de Nael, em dois sentidos. Primeiro, com relão a
Halim, pois todas as histórias contadas sobre Omar e o sentimento do pai que, inconformado
146
com as atitudes do filho, manifestava revolta e repugnância por ele, contribuíram para que
Nael em sua convivência com Omar, também tomasse consciência das atitudes inescrupulosas
do caçula, manifestando, ao longo do romance, aversão por ele. Depois, com relação a Yaqub,
porque assim como ele, Nael se sentia rejeitado, deslocado no ambiente familiar, humilhado e
tima das maldades de Omar, por isso, esses dois sujeitos buscavam nos estudos uma forma
de adquirir competências que lhes permitissem se firmarem como sujeitos realizados,
contrariando as adversidades que lhes foram impostas. E, mais, Nael e Yaqub desejavam se
vingar de Omar, mas Nael chegou à conclusão de que a distância era mais vantajosa, visto que
tanto as crueldades de Omar quanto a vingança de Yaqub trouxeram danos a todos. No
último encontro que teve com Omar, Nael esperou que ele lhe pedisse perdão, como não
conseguiu o que desejava: perdoar Omar, reconstruir o passado era uma estratégia tanto para
impedir que o seu passado fosse esquecido, imputando-lhe o anonimato pela falta de conhecer
as suas origens, quanto para extravasar a sua paixão e se libertar do ressentimento que
prolongava o ódio e o desejo de vingança.
Portanto, percebemos que o contágio passional acontece da seguinte forma: as
atitudes de Nael como sujeito apaixonado o percebidas pela subjetividade, ou seja, a
manifestação de seus sentimentos correlacionados aos sentimentos de Halim e,
principalmente, aos de Yaqub, embora a correlação das manifestações patêmicas não tenha a
mesma intensidade e nem a mesma quantidade modal; e o papel do narrador que é
reconhecido pela objetividade, reiterado no discurso que o estabilizou, modalizado pelo saber-
fazer e querer-fazer: escrever a sua história.
Desse ponto de vista, podemos entender que a manifestação de seus
ressentimentos pela escrita era, ao mesmo tempo, uma forma de se vingar do anonimato, o
passado sem origem por falta de reconhecimento da paternidade que comprometeria a
imagem da família e, também uma forma de libertação tanto de alforria da submissão à
família que lhe negou o direito de reconhecimento quanto dos ressentimentos que eles lhe
causaram.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
O estudo das paixões nos textos procura levar em conta as modulações dos
estados de alma do sujeito que propiciam a formulação de dispositivos canônicos tal como o
discurso os configurou e, que permitem, por isso mesmo, identificar e analisar cada paixão em
uma determinada cultura.
Dessa forma, os efeitos de sentido produzidos pelas paixões nos textos
resultam da observação e identificação das configurações passionais depositadas no léxico,
analisáveis de acordo com o percurso do sujeito que compreende a sintaxe e a enunciação
passional.
Assim, o romance Dois irmãos, ao explorar o tema dos conflitos humanos,
especificamente, os conflitos familiares que se desenvolvem em torno do relacionamento dos
irmãos meos, permite-nos averiguar a configuração de várias paixões que surgem da
interação desses sujeitos. O texto propicia, então, a identificação de diversas manifestações
passionais que constituem os seus sentidos. Por essas razões, podemos afirmar que, o que faz
com que o romance seja interessante, é o fato de ele ser construído pela investigação dos
estados de alma dos sujeitos que formam uma textura complexa na narrativa emaranhada de
múltiplas paixões, mas que, à medida que o compondo a trama, vão também engendrando o
seu sentido. Dessa forma, somos levados a reconhecer a importância da dimensão patêmica
do discurso, uma vez que comprovamos ser ela a responsável pela organização e produção
dos efeitos de sentido do texto.
Nesse sentido, verificamos que o comportamento e o temperamento dos
gêmeos, aliados à questão da identidade e da diferença na busca por interesses comuns
contribuem para que esses dois sujeitos manifestem, ao longo do romance, as suas paixões.
Como pudemos perceber, a semelhança de ambos na aparência era um fator relevante para
que a diferea de comportamento e de temperamento permitisse identificá-los nas diversas
situações em que eles concorriam e competiam em busca de valores que dariam sentido às
suas vidas. Assim, constatamos no relacionamento dos dois irmãos as manifestações
passionais da emulação, do ciúme, da inveja, da cólera e da vingança.
148
Ao trabalhar com o texto, percebemos que mesmo uma paixão como a
emulação sobre a qual os semioticistas ainda não apresentaram um dispositivo canônico, pois
pelos nossos estudos vimos que essa paixão é tratada por eles de forma superficial, assim
como a paixão da inveja, mas, de acordo com as modulações dos estados de alma do sujeito
apaixonado, confirmadas pelo texto, foi-nos possível formular um dispositivo para essa
paixão que nos permitiu analisar os efeitos de sentido produzidos no texto por ela.
Assim como a emulação, as demais paixões identificadas na interação dos dois
irmãos nos levam a constatar: por um lado, as paixões de desejo, seja o desejo de ser a
emulação, seja o desejo de ter (posse) o ciúme, seja o desejo de que o outro não tenha a
inveja; por outro lado, as paixões de confiança, ou melhor, de ruptura da confiança a cólera
e a vingança.
Observando essas paixões, compreendemos que na emulação, no ciúme e na
inveja, o sujeito apaixonado é modalizado pelo /querer-ser/, visto que na emulação, o sujeito
quer ser igual ou ultrapassar o outro, no ciúme, o sujeito quer ser amado, isto é, continuar
conjunto com o objeto de valor, na inveja o /querer-ser/ implica querer que o outro não seja.
Observando também as paixões da lera e da vingança, entendemos que a confiança
modaliza os sujeitos pelo /dever-ser/, uma vez rompida a confiança instala-se um sentimento
de falta definido pelo /querer-ser/ em conflito com o /saber-não-ser/ e com o /crer-não-ser/.
Nessa perspectiva de investigação, fica claro que todas essas paixões quer
sejam elas paixões de carência de ser, quer sejam paixões de liquidação de falta, o que está em
jogo é o /querer-ser/ que focaliza as competências do sujeito em busca dos valores que o
tornarão um sujeito realizado.
Desse modo, na perspectiva de Omar como sujeito apaixonado, notamos a
manifestação das paixões pela série: ciúme - inveja - cólera. Mesmo que o ciúme de Omar
camufle a paixão da inveja, percebemos uma manifestação passional mesclada por ciúme e
inveja, mas onde a inveja salta aos olhos, devido a todas as investidas agressivas e violentas
contra Yaqub na tentativa de retirá-lo da competição, temendo sempre a sua superioridade.
Por tudo isso, reconhecemos que Omar atribui mais força a seu querer do que
aos seus deveres, melhor dizendo, o querer de Omar é manifestado com maior intensidade,
comprovando os seus desejos incontidos, impulsivos, excessivos, violentos. Assim sendo,
Omar, enquanto sujeito patemizado pela inveja e pela cólera, manifesta sempre os seus
desejos, insatisfações e descontentamentos de forma agressiva, destrutiva, corica causando o
sofrimento, o ressentimento e o ódio no anti-sujeito, embora suas atitudes não resolvam nada
149
em se tratando do rival, conseqüentemente, o que acontece é o mal estar do pprio sujeito
apaixonado.
Já na perspectiva de Yaqub, constatamos as manifestações passionais pela
série: emulação ciúme – vingança. Na infância, Yaqub desejava ser como o irmão, as
transformações, porém, começaram a ocorrer quando os dois irmãos competiram em busca de
um mesmo objeto de valor, então, eles se tornaram rivais. Yaqub, embora sentisse ciúmes de
Omar, mostrou ao irmão que tinha competências para competir com ele, tornando-se uma
ameaça à superioridade do caçula. Desse modo, o irmão mais velho passou a ser o alvo de
todas as maldades do mais novo, marcado pela diferença na aparência com a cicatriz na face
causada por Omar, diferença como filho retirado bruscamente do seio da família, diferença no
relacionamento com a mãe que privilegiava o caçula, diferença de comportamento aceitando
calado o sofrimento das agressões de Omar. Todas essas diferenças sentidas por Yaqub foram
cruciais para torná-lo um sujeito ressentido por longos anos, alimentando o desejo de
vingança. A vingança de Yaqub foi sob medida e quantidade a todos os danos que sofreu em
todos aqueles anos.
Percebemos, assim, Yaqub como um sujeito marcado pelo desejo, mas que
soube controlar a força do seu querer em detrimento do seu dever, isto é, ele conseguiu
liquidar a falta tanto do sentimento em relação à mãe que o excluiu da relação materna,
quanto do sentimento que nutria pelo irmão que tentava privá-lo de ser alguém. Portanto, ao
imputar a vingança contra a mãe e o irmão, Yaqub consegue se tornar igual ou mais agressivo
que Omar, ele se torna êmulo e, também, realiza o seu desejo de ser como o irmão. Assim,
podemos afirmar que o desejo de /querer-ser/ abre o ciclo das paixões com a emulação e é
também a paixão que fecha o ciclo, pondo fim ao desejo de /querer-ser/.
Nesse sentido, confirmamos que cada um dos actantes elabora a sua identidade
passional de acordo com aquela que a precedeu, assim explica-se: Yaqub quer ser êmulo;
Omar não quer que ele possua algo para não competir com ele; Yaqub conquista
competências; Omar quer tirar o prazer que as vantagens proporcionam a Yaqub; Omar
explode em lera contra Yaqub; Yaqub planeja e executa a sua vingança; Yaqub se torna
êmulo.
Nessa linha de investigação, concluímos, então, que a emulação é a paixão de
base do relacionamento dos dois irmãos e também é uma paixão cíclica, pois ela abre e fecha
a série de paixões manifestadas na relação dos gêmeos em todo o romance.
Como vimos, as muitas paixões manifestadas por esses dois sujeitos em
busca de se firmarem, principalmente, dentro da família como sujeitos competentes e
150
diferentes apesar da semelhança na aparência, colocam em evidência o /querer-ser/ alguém,
único em suas qualidades e defeitos, mesmo que para isso, tenha sido preciso afetar a todos
em sua volta, provocando os mais variados sentimentos e sofrimentos. Então, a necessidade
dos dois sujeitos em conquistar no ambiente de sua convincia o espaço de cada um, que
ele foi predestinado a ser o mesmo desde a fecundação, esse espaço definido, no romance,
pela afetividade nem, por isso, tivesse que ser tão diferente a ponto de privilegiar um em
detrimento do outro, causando tantos conflitos, sofrimentos e carências afetivas.
Diante do exposto, confirmamos também que a diferença de comportamento
dos meos foi em grande parte influenciada pela mãe que, ao privilegiar o caçula com um
tratamento diferenciado, contribuiu para que este fosse mais atirado, corajoso e seguro, e o
mais velho, ao contrário, foi sempre deixado de lado, tornando-se assim inseguro, tímido e
medroso. Esse foi, com certeza, o motivo que levou Yaqub a /querer-ser/ como Omar na
infância, apesar de na época ele não perceber que esse sentimento dele em relação ao irmão
era ocasionado pela mãe, que fazia do caçula um sujeito destemido, motivado a enfrentar
riscos e perigos para conseguir o que queria. Entendemos que essa hierarquia estabelecida
pela mãe no tratamento com filhos deu origem a uma série de conflitos entre eles,
contribuindo para que fossem afetados pelas tantas paixões que afloraram na relação fraterna.
Dessa forma, compreendemos que o apego intenso da mãe pelo caçula fez dele
um sujeito superior em relação ao mais velho, mas quando a sua vantagem em relação ao
irmão era ameaçada, ele agredia violentamente o mais velho para retirá-lo do seu caminho e
o ter que disputar com ele o lugar privilegiado que ostentava. Por isso, assim como
percebemos que a mãe, com a exclusividade de tratamento destinado ao caçula fazia dele um
sujeito vantajoso em relação ao outro, percebemos também que ela contribuiu para que ele
o soubesse administrar as suas fraquezas e explodisse contra qualquer um, principalmente,
contra o iro que ameaçava tomar o seu lugar na relação materna. Portanto, a relação de
apego intenso da mãe com Omar repercute em sentido diferente com Yaqub, pois a
exclusividade de um gera a exclusão do outro, da mesma forma que o zelo excessivo com um
gera a falta de atenção ao outro, ainda a possessão de um resulta no abandono ao outro, e o
prazer da conjunção com um origem ao sofrimento de disjunção com o outro. Todas essas
manifestações patêmicas corroboraram para que a e e o filho caçula se tornassem
completamente dependentes um do outro, destituindo Yaqub dessa relação.
Por essas relações conturbadas entre mãe e filhos, observamos a pertinência da
questão da coletividade, pois a mãe enquanto sujeito coletivo promove todos os conflitos
entre os filhos que, por fazerem parte da coletividade, deveriam ser tratados da mesma forma,
151
portanto, a exclusividade do amor ao caçula e a exclusão de Yaqub desse sentimento são a
fonte que gera toda a relação de rivalidade entre eles.
Nesse sentido de coletividade, o esposo também se sente deixado de lado pela
esposa, fato que só contribui para que o pai tome consciência do quanto o amor da mãe pelo
caçula é prejudicial a todos, inclusive ao próprio caçula que se torna cada vez mais um sujeito
perdido, acobertado pelo excesso de mimo da mãe.
Como conseqüência dessa questão, forças coesivas operam a favor da
coletividade e forças dispersivas operam contra a coletividade. Assim, os sujeitos da família
que foram excluídos da coletividade representada por Zana, procuram de alguma forma
mostrar que os seus direitos em relação à coletividade deveriam ser respeitados, como
exemplo citamos Halim, que faz de tudo para mostrar à esposa o excesso de zelo com o
caçula como se ele fosse filho único e, também a falta de afetos e de atenção da esposa para
com ele, também Yaqub faz parte dessa força coesiva, pois como filho sentia que deveria ser
tratado como Omar; por outro lado, como forças dispersivas contra a coletividade, citamos a
e que não partilha as atenções entre todos da família, e Omar que não abre mão da
totalidade integral da mãe dedicada a ele.
Também averiguamos os efeitos do apego sobre a rivalidade e os efeitos da
rivalidade sobre o apego. Do mesmo modo que o apego da mãe por Omar intensificava a
rivalidade entre os dois irmãos, contribuía para que o pai visse no filho um rival que o privou
da relação conjugal e, ainda, a mãe ficava inquieta e preocupada quando se sentia ameaçada
por uma das mulheres que o filho arrumava, comportando-se como uma rival que luta para
o perder o objeto de seu apego. os efeitos da rivalidade sobre o apego convergem para
que a rivalidade entre a mãe e as mulheres de Omar intensificasse a dependência da mãe pelo
filho, visando o prazer da conjunção com ele, e tamm a rivalidade entre os filhos aumentava
o zelo para com Omar que, mesmo errado por agredir o irmão, era acobertado pela mãe.
Nas múltiplas interações que surgem das configurações da rivalidade e do
apego, observamos que Zana não se consagra inteiramente à relação de apego, pois, quando o
filho se aventurava com algumas mulheres, Zana competia com elas como rivais, disputando
o objeto amado. Percebemos também os resultados dessas interações da seguinte forma: Zana
em seu apego intenso se tornava inquieta, temendo partilhar o seu objeto exclusivo com outras
mulheres e também sofria com a possessão exclusiva do filho amado, quando suspeitava ou
tinha certeza de sua infidelidade; Yaqub que se sentia excluído da relação materna
experimentou um sentimento mau ao ver Omar sentir prazer com a exclusividade da mãe;
Omar, da mesma forma que a mãe, sentia-se inquieto com o temor de ter que partilhar a
152
exclusividade materna com Yaqub e sofreu quando percebeu que a mãe poderia ser infiel a
ele, partilhando o seu amor com Yaqub. Portanto, confirmamos a influência de uma
configuração sob a outra e as modificações dos efeitos de sentido pela influência uma da
outra, ou seja, o apego é reforçado pela rivalidade e a rivalidade se intensifica pelo apego que
a estimula.
Vemos, então, no romance Dois irmãos, construído pelos conflitos, que até
mesmo uma paixão positiva como o amor em excesso pode se tornar negativa e prejudicial
àqueles que estão em volta, resultando em sofrimento para todos. A paixão da mãe pelo filho
Omar trouxe muitas conseqüências ruins para toda a família, inclusive para a própria mãe e
para o objeto do seu apego.
Averiguamos, desse modo, que o romance Dois irmãos ao tratar das paixões
consegue desenvolver toda a vasta configuração da paixão do ciúme, mesmo que essas
paixões tenham sido manifestadas por sujeitos diferentes, percebemos que o enredo explora
toda a gama de paixões que fazem parte da configuração do ciúme. Todas essas manifestações
patêmicas surgem das relações intersubjetivas que tornam o enredo bastante complexo,
atingindo, nas múltiplas interações, níveis de significação diferentes.
Observamos também que o romance, ao abordar o tema dos conflitos entre
irmãos, parte de um drama familiar individual e atinge o universal, visto que esse tema foi e
continua sendo explorado em todos os tempos, por diversas culturas, nos mais diferentes tipos
de produção, inclusive pela literatura. Dessa forma, mostramos também a intertextualidade e
interdiscursividade com os textos e discursos fundadores, isto é, com a blia. Citamos, no
desenrolar do trabalho, a história de Abel e Caim que, explicitamente, é associada à história
dos dois filhos no romance pela mãe; e também percebemos, implicitamente, a associação
com a história Bíblica de Esaú e Jacó.
O que nos interessa mostrar é que na perspectiva de Omar, a intertextualidade
e interdiscursividade acontecem com a história de Abel e Caim, porque a inveja levou Abel a
cometer o fratricídio, então, reconhecemos em Omar, enquanto sujeito invejoso, aquele que,
para retirar o irmão da competão, usou da violência por várias vezes, embora não tenha
chegado a assassinar o irmão como Abel o fez.
Na perspectiva de Yaqub, da mãe e do pai, a intertextualidade e a
interdiscursividade acontecem com a história de Esaú e Jacó. Na perspectiva de Yaqub,
porque assim como Jacó, Yaqub desejava ser como o irmão, apesar desses desejos terem
motivos diferentes, pois enquanto a paio da emulação manifestada por Jacó era devido ao
fato de Esaú ser o primogênito, o filho que ocuparia o lugar do pai, Yaqub manifestava a
153
emulação por admirar a coragem e esperteza de Omar. Na perspectiva do pai e da mãe,
porque assim como na história Bíblica Isaac, o pai, prefere o filho mais velho e a mãe,
Rebeca, prefere o caçula, assim também acontece com Halim que prefere o mais velho
Yaqub, e Zana, cuja predileção era destinada ao caçula. Ainda, na perspectiva da mãe, a
intertextualidade e a interdiscursividade são mais marcantes, porque Rebeca era mplice de
Jacó para ajudá-lo a ocupar o lugar de primonito destinado ao filho mais velho, então, a
e prejudica o filho mais velho para que o mais jovem seja contemplado com privilégio;
Zana, da mesma forma, era mplice de Omar, ajudava-o de todas as maneiras, prejudicando
o filho mais velho.
Muito significativa é também a participação no romance do narrador, que
busca na reconstrução do passado encontrar respostas para as suas inquietações no que se
refere às suas origens e, como suas origens estavam ligadas à vida da paternidade, que
reconstruir o seu passado era também reconstruir o passado da família dos gêmeos, pois havia
a desconfiança de um deles ser o seu pai.
Dessa forma, esse narrador apresenta-se como um sujeito dividido e
conflituoso tanto ao narrar o texto, oscilando entre a objetividade dos fatos e a subjetividade
de suas emoções quanto ao participar da história e testemunhar os acontecimentos, além de
resgatar os retalhos das histórias que não viu acontecer, relatadas pelo avô e pela mãe. Mas o
conflito maior desse narrador-sujeito apaixonado se concentra na sua própria história, como
ele mesmo diz, à espera que uma das margens do rio o acolha (HATOUM, 2006, p. 54). Isso
posto, compreendemos que essas margens explicam em boa parte a maioria dos conflitos
pelos quais passava esse sujeito, pois como era filho da empregada índia com um dos filhos
dos patrões libaneses. Então, ele se dividido entre esses dois extremos à espera de que
fosse reconhecido pelo pai, assumindo o seu lugar na família e abandonando a sua condição
de agregado; percebemos também que as duas margens representam os gêmeos, levando em
conta a diferença de ambos, o lado da margem em que se situa Omar não era o que ele
aceitava, porque deixava transparecer a sua preferência por Yaqub. Nos dois sentidos,
portanto, o que está evidente é o conflito entre o desejo de ser e a dúvida de não ser que
motiva o narrador a escrever a sua história para compreender o que aconteceu com os outros e
com ele mesmo, a fim de constituir sua própria identificação no presente.
De acordo com a estrutura do texto, o que entendemos é que esse narrador
utiliza várias estratégias para reconstruir esse passado e a estratégia, a nosso ver, que culmina
em todo o enredo é a de reconstrução do passado por via das relações intersubjetivas,
irrompendo no texto várias manifestações passionais que, ao serem rememoradas e descritas
154
pelo narrador, também o afetam intensamente, visto o seu envolvimento afetivo com a
experiência de reviver as emoções dos outros. Tal contexto nos permite intentar para o fato de
que as paixões vividas e sentidas, tanto na individualidade quanto na coletividade, ficarem
estocadas na mente, criando uma espécie de reservatório que, a nosso ver, forma uma
memória passional que acionada permite ao sujeito reviver todo o processo das manifestações
passionais. Todo esse processo é confirmado pelo texto, que se apresenta sob a forma de um
discurso retalhado, aos pedaços, exatamente perceptíveis como variação e instabilidade dos
estados de alma do narrador que manifesta as suas emoções juntamente com as emoções
daqueles que lhe contavam as histórias, e também daqueles que as vivenciaram. Por isso, a
narrativa não é linear, oscilando retroativamente a apresentação dos acontecimentos que não
obedecem a uma ordem cronológica seqüencial, assim, o romance tem início com a paixão do
apego intenso da mãe que desencadeou ao longo do romance as diversas manifestações
patêmicas que afetaram toda a família, promovendo a desunião, a rivalidade e o ódio.
Ao relatar todas essas manifestações patêmicas, o narrador avalia e moraliza as
paixões, já que assume o papel de observador de tudo o que está sendo contado e, o mais
interessante é constatar que paixões avaliadas e moralizadas positivamente são também
avaliadas e moralizadas negativamente, levando-se em conta as variações dos sujeitos que
elas afetam. Por isso, até a avaliação e a moralização das paixões em Dois irmãoso
conflituosas e produzem no conjunto da obra mais efeitos de sentido negativos que positivos.
Tal contexto nos permite observar que tudo no enredo concorre para um
mesmo fim: a destruição da família, seja ela pelas perdas, pelos fracassos, pelos sofrimentos,
enfim, perda de bens, de afetos, de união, de reconciliação, de origem, de liberdade. Essa
destruição da família é acompanhada pelas transformações ocorridas em Manaus e no Brasil
durante o período em que transcorre a história como também pelas transformações pelas quais
passaram os sujeitos envolvidos na história. Portanto, as projeções de tempo e espaço
contribuem de maneira significativa para nos ajudar a entender todas essas transformações.
Desde as referências de tempo passado e presente que oscilam de acordo com o estado
emocional do sujeito em busca de valores para a sua vida, até as referências de espaço que
marcam no texto algumas questões relevantes como o distanciamento e a aproximação tão
importantes para a construção dos simulacros pela exploração da imaginação do narrador que
é tomado pelo prazer do esquecimento e das lembranças do passado e, de outra forma,
marcando o espaço restrito e desprivilegiado dos sujeitos excluídos da família ou dos afetos
familiares, bem como o espaço marginalizado dos agregados que denuncia o preconceito
racial e social presente na narrativa.
155
Assim, o narrador que busca a sua referência de vida no seio daquela família,
constrói um discurso que mescla objetividade e subjetividade: a objetividade é vista pelos
efeitos de sentido de verdade e realidade comprovados pelas figuras do mundo natural que se
relacionam com os sujeitos, com o tempo e com o espaço para fazer-crer que o que se relata é
verdade; a subjetividade, pelo discurso apaixonado, deixando fluir no texto os seus
sentimentos e impressões, alguns dos quais averiguamos pelas metáforas, comparações,
hipérboles e até pela intertextualidade e interdiscursividade que o narrador utiliza para
associar o texto com outros contextos para nos dar uma iia do que acontece com base em
outros textos e outros discursos que abordam o mesmo tema.
Diante de tudo o que foi exposto, afirmamos que a variação e a instabilidade
do estado de alma do outro repercute no narrador que, conseqüentemente, repercute no texto.
Por isso, a presença e a importância do outro devem ser levadas em conta em todo o processo
passional, seja ela percebida pelo excesso ou pela falta. Nessa perspectiva, podemos afirmar
que as paixões ultrapassam os limites do tempo e do espaço e são revividas graças à memória
passional daquele que as comporta.
Então, em Dois irmãos fica evidente e comprovado o contágio passional, seja
ele apresentado na perspectiva dos gêmeos que elaboram suas identidades passionais de
acordo com a que a precedeu; seja na perspectiva da mãe que, com a paixão do apego intenso
por apenas um filho influenciou todo o conflito entre eles, fazendo surgir manifestações
passionais de variadas formas; seja na perspectiva do narrador do romance que, como filho de
um dos gêmeos, reconstrói toda a história emaranhada pelas paixões e é afetado por elas.
Enfim, as paixões em Dois irmãos consolidam a temática de conflito do
enredo, por isso produzem efeitos de sentido opostos. Sem a pretensão de fechar um assunto
tão complexo como o estudo das paixões, compreendemos que as paixões possuem a
especificidade de aprisionar e libertar os sujeitos, embora muitas vezes esses dois lexemas
podem produzir também sentidos contrários se levarmos em conta que o sujeito apaixonado
sente-se feliz em estar aprisionado ao seu objeto de valor e, ao contrário, infeliz se liberto
desse amor Mas essa colocação de aprisionamento e libertação nos faz pensar no narrador do
texto que ao escrever a sua história, manifestando todos os seus sentimentos, sentia-se liberto
dos pesadelos do passado.
Por fim, experimentamos o texto como um laboratório onde foram exploradas
as inter-relações que nos permitiram comprovar a eficácia do método de análise das paixões
no texto.
156
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163
ANEXO A - Cena 1
Os barcos, a correria na praia quando o rio secava, os passeios até o Careiro, no
outro lado do rio Negro, de onde voltavam correndo na casa, ziguezagueavam pelo quintal ,
caçavam calangos com uma baladeira. Quando chovia, os dois trepavam na seringueira do
quintal da casa, e o Caçula trepava mais alto, se arriscava, mangava do irmão, que se
equilibrava no meio da árvore, escondido na folhagem, agarrado ao galho mais grosso,
tremendo de medo, temendo perder o equilíbrio. A voz de Omar, o Caçula: “Daqui de cima eu
posso enxergar tudo, sobe, sobe”. Yaqub não se mexia, nem olhava para o alto: descia com
gestos meticulosos e esperava o irmão, sempre o esperava, não gostava de ser repreendido
sozinho. Detestava os ralhos de Zana quando fugiam nas manhãs de chuva torrencial e o
Caçula, de calção, enlameado, se atirava no igarapé perto do presídio. Eles viam as mãos e
a silhueta dos detentos, e ele ouvia o irmão xingar e vaiar, sem saber quem eram os
insultados: se os detentos ou os curumins que ajudavam as mães, tias ou avós a retirar as
roupas de um trançado de fios nas estacas das palafitas.
Não, fôlego ele não tinha para acompanhar o irmão. Nem coragem. Sentia
raiva, de si próprio e dou outro, quando via o braço do Caçula enroscado no pescoço de
curumim do cortiço que havia nos fundos da casa. Sentia raiva de sua impotência e tremia de
medo, acordado, ao ver o Caçula desafiar três ou quatro moleques parrudos, agüentar o cerco
e os socos deles e revidar com fúria e palavrões. Yaqub se escondia, mas não deixava de
admirar a coragem de Omar. Queria brigar como ele, sentir o rosto inchado, o gosto de sangue
na boca, a ardência no lábio estriado, na testa e na cabeça cheia de calombos; queria correr
descalço, sem medo de queimar os pés nas ruas de macadame aquecidas pelo sol forte da
tarde, e saltar para pegar a linha ou a rabiola de um papagaio que planava lentamente, em
rculos, solto no espaço. O Caçula tomava impulso, pulava, rodopiava no ar como um
acrobata e caía de pé, soltando um grito de guerra e mostrando as mãos estriadas. Yaqub
recuava ao ver as mãos do irmão cheias de sangue, cortadas pelo vidro do cerol.
Yaqub o era esse acrobata, não lambuzava as mãos com cerol, mas bem que
gostava de brincar e pular nos bailes de Carnaval no sobrado de Sultana Benemou, onde o
Caçula ficava para a festa dos adultos e varavam a noite com os foliões. Eles tinham treze
anos, e, para Yaqub, era como se a infância tivesse terminado no último baile no casarão dos
Benemou. Naquela noite ele nem sonhava que dois meses depois ia se separar dos pais, do
164
país e dessa paisagem que agora, sentado no banco da frente do Land Rover, reanimava o
rosto dele.
O baile dos jovens havia começado antes do anoitecer. Às dez horas os adultos
entraram fantasiados na sala do casarão, cantando, pulando e enxotando a garotada. Yaqub
quis ficar até meia-noite, porque uma sobrinha dos Reinoso, a menina aloirada, corpo alto
moça, também ia brincar até a manhã da Quarta-Feira de Cinza. Seria a primeira noite de
Lívia na festa dos adultos, a primeira noite que ele, Yaqub, viu-a com os lábios pintados, os
olhos contornados por linhas pretas, as tranças salpicadas de lantejoulas que brilhavam nos
ombros bronzeados. Queria ficar para pular abraçado com ela, sentir-se quase adulto como
ela. pensava em aproximar de Lívia quando a voz de Zana ordenou: “Leva tua irpara
casa. Podes voltar depois”. Ele obedeceu. Acompanhou Rânia até o quarto, esperou a dormir e
voltou correndo ao casarão dos Benemou. A sala fervilhava de foliões, e no meio das tantas
cores e das máscaras ele viu as tranças brilhantes e os lábios pintados, e logo ficou trêmulo ao
reconhecer o cabelo e o rosto semelhante ao dele, pertinho do rosto que admirava.
Lívia e o irmão dançavam num canto da sala. Dançavam quietos, enroscados,
movidos por um ritmo deles, que não era carnavalesco. Quando os foliões esbarravam no
par, os dois rostos se encontravam e, aí sim, davam gargalhadas de Carnaval. Yaqub
ensombreceu. Não teve coragem de ir falar com ela. Odiou o baile, odiei as músicas daquela
noite, os mascarados, e odiei a noite”, contou Yaqub a domingas na tarde da Quarta-Feira de
Cinzas. Foi uma noite insone. Ele fingia dormir quando o irmão entrou no quarto dele naquela
madrugada, quando o som das marchinhas carnavalescas e a gritaria dos bêbados enchiam a
atmosfera de Manaus. De olhos fechados, sentiu o cheiro de lança-perfume e suor, o odor de
dois corpos enlados, e percebeu que o irmão estava sentado no assoalho e olhava para ele.
Yaqub permaneceu quieto, apreensivo, derrotado. Notou o confete e serpentina, o rosto
sorridente e cheio de prazer.
Foi seu último baile. Quer dizer, a última manhã em que viu o irmão chegar de
uma noitada de arromba. Não entendia por que Zana não ralhava com o Caçula, e não
entendeu por que ele, e não o irmão, viajou para obano dois meses depois.
165
ANEXO B - Cena 2
Foi Domingas quem me contou a historia da cicatriz no rosto de Yaqub. Ela
pensava que um ciuminho reles tivesse sido a causa da agressão. Vivia atenta aos movimentos
dos meos, escutava conversas, rondava a intimidade de todos. Domingas tinha essa
liberdade, porque as refeições da família e o brilho da casa dependiam dela.
A minha história tamm depende dela, Domingas.
Era uma tarde nublada de sábado, logo depois do Carnaval. As crianças da rua
se alinhavam para passar a tarde na casa dos Reinoso, onde se aguardava a chegada de um
cinematógrafo ambulante. No ultimo bado de cada mês, Estelita avisava as mães da
vizinhança que haveria uma sessão de cinema em sua casa. Era um acontecimento e tanto. As
crianças almoçavam cedo, vestiam a melhor roupa, se perfumavam e saiam de sua casa
sonhando com as imagens que veriam na parede branca do porão da casa de Estelita.
Yaqub e o Caçula usavam um fato de linho e uma gravatinha-borboleta; saiam
iguais, com um mesmo penteado e o mesmo aroma de essências do Pará borrifado na roupa.
Domingas, de braços dados com os dois, também se arrumava para acompanhar os gêmeos. O
Caçula se desgarrava, corria, era o primeiro a beijar o rosto de Estelita e entregar-lhe um
buquê de flores. Na sala, Zahia e Nadha Talib conversavam com Lívia, a menina aloirada,
sobrinha de Reinoso; dois curumins de uma família que morava no Seringal Mirim serviam
guaraná e biscoitos de castanha aos convidados. Esperavam o cinematógrafo, e cada minuto
se passava com lentidão porque estavam ansiosos para ver a parede branca do porão cheia de
imagens, ansiosos por uma história de aventura ou de amor que tornava a tarde do sábado a
mais desejada de todas as tardes. Então o tempo fechou com nuvens baixas e pesadas e
Abelardo Reinoso decidiu ligar o gerador. Na sala iluminada um batalo de soldadinhos foi
ordenado sobre a mesa, e selos de outros paises passaram de o em mão, como diminutivas
vinhetas de paisagens, rostos e bandeiras longínquas. A meninona loira apreciava um selo
raro, e seus braços roçavam os dos gêmeos. Alisava o selo com indicador, os outros meninos
se entretinham com o batalhão verde, e ela parecia atraída pelo aroma que exalava dos
gêmeos. Lívia sorria para um, depois para o outro, e dessa vez foi o Caçula quem ficou
enciumado, disse Domingas. O caçula fez cara feia, tirou a gravatinha-borboleta, desabotoou
a gola e arregaçou as mangas da camisa. Bufou, se esforçou para ser dócil. Balbuciou:
Vamos dar uma volta no quintal?”, e ela, olhando o selo: Mas vai chover Omar, escuta só as
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trovoadas”. Então ela tirou um selo do álbum e ofereceu-o a Yaqub. O caçula detestou isso,
disse Domingas; detestou ver os dedos do irmão brincarem de minhoca louca com Lívia. Não
era sonsa, era uma mocinha apresentada, que sorria sem malicia e atraia os gêmeos e todos os
meninos da vizinhança quando trepava na mangueira, e em redor do tronco um enxame de
moleques erguia a cabeça e seguia o olhar a ondulação do short vermelho. Mas ela gostava
mesmo era dos gêmeos; olhava dengosa para os dois; às vezes quando se distraia, olhava para
Yaqub como se visse alguma coisa que o outro o tinha. Yaqub, meio acanhado, percebia? O
caçula pensava que depois do baile dos Benemou a Lívia ia cheirar e morder o godele e
desfilar com ele nas matines do Guarany e do Odeon. Já tinha prometido roubar o Land Rover
dos pais e passear com ela ate as cachoeiras do Tarumã. Zana desconfiou, escondeu a chave
do jipe, cortou a curica do Caçula. Brincavam com os dedos, e Omar já tinha se afastado dos
dois quando o homem do cinematógrafo chegou. Trazia na maleta de couro o projetor e o rolo
de filme. Era alto, de gestos calmos, o rosto magro dividido por um bigodaço: “Trouxe a
grande diversão, o grande sonho, curuminzada”.
Selos, soldados e canhões foram esquecidos. O chorinho da vitrola, apagado.
Um relógio antigo bateu quatro vezes. Uma correria pela escada de madeira estremeceu a casa
e em pouco tempo o porão foi povoado de gritos, as cadeiras da primeira fila foram
disputadas. Yaqub reservou uma cadeira para Lívia e o Caçula desaprovou com o olhar esse
gesto polido. Da escuridão surgiram cenas em preto-e-branco e o ruído monótono do projetor
aumentava o silencio da tarde. Nesse momento Domingas despediu-se dos Reinoso. A magia
do porão escuro demorou uns vinte minutos. Uma pane no gerador apagou as imagens,
alguém abriu a janela e a platéia viu os lábios de Lívia grudados no rosto de Yaqub. Depois, o
barulho de cadeiras atiradas no chão e o estouro de uma garrafa estilhaçada, e a estocada
certeira, rápida e furiosa do Caçula. O silencio durou uns segundos. E então o grito de pânico
de Lívia ao olhar o rosto rasgado de Yaqub. Os Reinoso desceram ao porão, a voz de
Abelardo abafou o alvoroço. O caçula, apoiado na parede branca, ofegava, o caco de vidro
escuro na mão direita, o olhar aceso no rosto ensangüentado do irmão.
Estelita subiu com o ferido e chamou um dos curumins: corre ate a casa da
Zana, chama a Domingas, mas não fala nada sobre isso.
A cicatriz começava a crescer no corpo de Yaqub. A cicatriz, a dor e algum
sentimento que ele não revelava e talvez desconhecesse. Não tornaram a falar com o outro.
Zana culpava Halim pela falta de mão firme na educação dos gêmeos. Ele discordava: “Não
disso, tu tratas Omar como se ele fosse nosso único filho”.
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Ela chorou quando viu o rosto de Yaqub, disse Domingas. Beijava-lhe a face
direita e chorava, aflita, ao ver a outra face inchada, costurada em semicírculo. Treze pontos.
O fio preto da costura parecia uma pata de caranguejeira. Yaqub, calado, matutava. Evitava
falar com o outro. Desprezava-o? Remoía, mudo, a humilhação?
“Cara de lacrau”, diziam-lhe na escola. “Bochecha de foice”. Os apelidos,
muitos, todas as manhãs. Ele engolia os insultos, não reagia. Os pais tiveram de conviver com
um filho calado dentro de casa. Então Halim decidiu: a viagem, a separação. A distancia que
promete apagar o ódio, o ciúme e o ato que engendrou.
Yaqub partiu para o bano com os amigos do pai e regressou a Manaus cinco
anos depois. Sozinho. “Um rude, um pastor, um ra’í. Olha como meu filho come!”,
lamentava-se Zana.
Ela tentou esquecer a cicatriz do filho, mas a distancia trazia para mais perto
ainda o rosto de Yaqub. As cartas que ela escreveu!
Dezenas? Centenas, talvez. Cinco anos de palavras. Nenhuma resposta. As
raras notícias de Yaqub eram transmitidas por amigos ou conhecidos que voltavam do Líbano.
Um primo de Talib que visitara a família de Halim avistara Yaqub no porão de uma casa.
Estava sozinho e lia um livro sentado no chão, onde havia um monte de figos secos. O rapaz
tentou falar com ele em árabe e português, mas Yaqub o ignorou. Zana passou a noite
culpando Halim, e ameaçou viajar para o Líbano durante a guerra. Então ele escreveu aos
parentes e mandou o dinheiro da passagem de Yaqub.
Isso Domingas me contou. Mas muita coisa do que aconteceu eu mesmo vi,
porque enxerguei de fora aquele pequeno mundo. Sim, de fora e às vezes distante. Mas fui o
observador desse jogo e presenciei muitas cartadas, ate o lance final.
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ANEXO C - Cena 3
“Conheço um bicho, mas sem muita coragem.” Halim soltou a língua, tomou
mais um gole de arak, enrolou um cigarro, o olhar vagando entre a Cidade Flutuante e a
floresta.
Agora ouvíamos a barulheira dos que zanzavam carregando tralhas, o grito dos
catraieiros, grunhidos de porcos, as vozes vizinhas, choro de crianças, a algaravia do
anoitecer.
Um bicho sem muita coragem”, ele repetiu, o cigarro na boca. Marcou um
encontro com Pocu, que desse uma voltinha na loja, amanhã, antes do sol a pino. O ex-
barqueiro saiu do boteco e por um momento eu fiquei imaginando o fim da história dos
irmãos amantes. Invenção de Pocu? E o que de verdade e mentira nas palavras de um
navegante? Ele contara o evento com convicção e ardor, como se fosse uma verdade íntima,
tanto que continuei a pensar nos dois irmãos acasalados num barco.
Isso mesmo, majnun, um maluco mesmo.” Halim estalou os dedos, depois
coçou a barba por fazer, grisalha, que envelhecia ainda mais o seu rosto. Omar quer viver
com emoção. Ele não abre mão disso, quer sentir emoção em cada instante da vida. A Zana
pensou que nosso filho...” Halim olhou para a margem do rio, como se tentasse lembrar algo.
Sabes de uma coisa? Eu também... estava crente que ele tinha estudado um semestre inteiro
num ótimo colégio e que depois ia poder entrar numa universidade. Nem São Paulo corrigiu o
Omar! Aliás, nenhum santo nem cidade vai dar jeito nele.”
Então Yaqub revelou a verdade, na versão dele. Contou para o pai, que
deixou o outro desabafar. O engenheiro, lacônico, dessa vez desandou a falar mal do irmão:
Um mal-agradecido, um primitivo, um irracional, estragado até o tutano. Fez pouco de mim
e da minha mulher”.
Halim escutara o filho doutor com um ar sério, compenetrado. Agora, à mesa
do boteco, contraía o rosto e soltava uma gargalhada de dar medo.
Pois bem, o Caçula enviou o primeiro cartão-postal de Miami; depois enviou
outros, de Tampa, Móbile e Nova Orleans, contando suas farras e peripécias em cada cidade.
Yaqub rasgara todos os postais menos um, que entregou ao pai: “Queridos mano e cunhada,
Louisiana é a América em estado bruto e mesmo brutal, e o Mississipi é o Amazonas desta
paragem. Por que não dão uma voltinha por aqui? Mesmo selvagem, Louisiana é mais
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civilizada que vocês dois juntos. Se vierem, tratem de pintar o cabelo de loiro, assim vão ser
superiores em tudo. Mano, a tua mulher, que já foi bonita, pode rejuvenescer com o cabelo
dourado. E tu podes enriquecer muito, aqui na América. Abraços do mano e cunhado Omar”.
Durante cem dias o teu filho foi disciplinado como não tinha sido em quase
trinta anos, mas foram cem dias de farsa”, disse Yaqub ao pai. “Ele roubou meu passaporte e
viajou para os Estados Unidos. O passaporte, uma gravata de seda e duas camisas de linho
irlandês!”
Yaqub teve certeza disso quando recebeu o primeiro cartão-postal. tinha
expulsado a empregada, porque ela levara Omar para o apartamento quando ele e a esposa
estavam em Santos no feriado de 15 de novembro. A empregada havia confessado quase tudo:
Omar levara para passear no Trianon e no Jardim da Luz; tinham almoçado no Brás e nos
restaurantes do centro. Dois folgaes! Tudo isso com o dinheiro que vocês mandavam, disse
Yaqub, irado. Depois Yaqub se lembrou dos dois volumes velhos e empoeirados de lculo
integral e diferencial, livros que comprara por uma pechincha num sebo da Rua Aurora. Abriu
os livros com o pressentimento de que fora aviltado. Rangia os dentes, as os trêmulas mal
conseguiam folhear o primeiro volume, onde tinham sido enfiadas várias cédulas de um dólar;
no outro volume guardara as notas de vinte. Folheou os dois livros, página por página, depois
os chacoalhou, e caíram cédulas de um dólar. O patife! Muito bem, que o pulha levasse o
passaporte, a gravata de seda, as camisas de linho, mas dinheiro... ”Deixou a mixaria, deixou
o que ele é. Esse é o teu filho. Um harami, ladrão!”
Gritou ladrão tantas vezes que pensei que estivesse se referindo a mim”, disse
Halim. “Bom, ele falava do meu filho, e de alguma forma me atingia. Mas deixei o Yaqub
falar, eu queria que ele desembuchasse tudo. Depois eu disse: ‘Não para esquecer essas
coisas? Perdoar?’. Meu Deus, foi pior!”
Yaqub passou da acusação à cobrança. Não ia sossegar enquanto o irmão não
lhe devolvesse os oitocentos e vinte lares roubados. Uma fortuna! A poupança de um ano
de trabalho. Um ano calculando estruturas de casas e edifícios na capital e no interior. Um ano
vistoriando obras. Zana devia conhecer essa história, e sim, ela ia entender o verdadeiro
caráter do caçulinha dela, o peludinho frágil. Mimem esse crápula até ele acabar com vocês!
Vendam a loja e a casa!Vendam a Domingas, vendam tudo para estimular a safadeza dele!
Ele não parava, não conseguia parar de xingar o filho mimado da minha
mulher. Parece que o diabo torce para que uma mãe escolha um filho...” Halim me encarou:
os olhos embaciados pareciam querer dizer mais. Ele se aprumou. Não estava furioso por
causa dos lares. A empregada tinha contado para Omar quem era a esposa de Yaqub.
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Ficou irado porque o Caçula entrou no apartamento dele e vasculhou tudo, encontrou as fotos
do casamento, das viagens, e deve ter visto outras coisas. Só eu sabia que a Lívia, a primeira
namorada do Yaqub, tinha viajado para São Paulo a pedido dele. Ele queria manter esse
segredo, mas Omar acabou sabendo. Não sei qual dos dois ficou mais enciumado, mas a
verdade é que Yaqub não perdoou os desenhos obscenos que Omar fez nas fotos de
casamento com palavrões e desenhos... Yaqub ficou louco... o tinha perdoado a agressão
do irmão na infância, a cicatriz... Isso nunca tinha saído da cabeça dele. Jurou que um dia ia se
vingar”.
Agora ele parecia melancólico e bebia arak com gelo, raramente bebia outra
coisa. Duas garrafinhas azuis na mesa, com o selo de Zahle, compradas de um contrabandista.
Tomou três quatro goles, enrolou mais um cigarro. O rio e o céu se confundiam, e, ao longe,
uma procissão de canoas iluminadas desenhava uma linha sinuosa na escuridão. O vento
trazia o cheiro da floresta, não muito distante. O vozerio findava, a Cidade Flutuante
aquietava-se.
Halim ia parar de falar? Ele me encarou mais uma vez, mordeu com raiva o
lábio inferior. Deu um murro na mesa, como se pedisse silêncio.
Sabes o que fiz depois dessas acusações?” Ele parecia agitado, meio bêbado,
sei lá. “Sabes o que a gente deve fazer quando um filho, um parente ou um fulano qualquer
estrebucha por causa de dinheiro? Sabes?”
Não”, eu disse, quase sem perceber.
Pois bem. Deixei o yaqub terminar. Estava alterado, nunca tinha visto meu
filho assim. Depois do desabafo, ele foi murchando, virou mururé fora d’água. Então eu disse:
‘Está bem, vou dar um jeito nisso’. Pensou que ia sair atrás do irmão dele, ou que eu ia contar
tudo para Zana. Me levantei, voltei para casa, enchi de orquídeas os vasos do quarto, armei a
rede e gritei o nome da minha mulher... Filhos! Por Deus, eu tinha que esquecer todas
porcarias, os oitocentos e vinte dólares, o passaporte, a gravata, as camisas e droga de
Louisiana... Zana entrou no quarto e me viu nu na rede. Me viu e entendeu. Declamei umas
palavras do Abbas... Era a senha...”
Foi a primeira vez que vi Halim cambalear; estava grogue, por pouco não caiu
da cadeira. Ele quis ficar mais uns minutos ali, sem dar um pio. Um pequeno motor se
aproximou dos troncos, sem dar pio. Um pequeno motor se aproximou dos troncos, o
comandante lançou as cordas e eu ajudei na amarração. Atracou perto do boteco, o holofote
do motor girou lentamente, focou os esteios de madeira, a nossa mesa, o rosto abrasado. Pedi
ao comandante que iluminasse a nossa mesa e ajudei Halim a se levantar. Acompanhei-o de
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volta para casa; nós dois juntos, abraçados, atravessamos passagens estreitas, caminhamos
sobre as tábuas envergadas da Cidade Flutuante. De vez em quando alguém o chamava, mas
ele o respondia, continuava andando comigo na escuridão. O silêncio de Halim. Eu já
desconfiava do que ele mais temia. O engenheiro se engrandecia, endinheirado. E o outro
gêmeo não precisava d dinheiro para ser o que era, para fazer o que fez.
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ANEXO D - Cena 4
Poucas semanas depois do enterro ela repreendeu o filho á queima-roupa. Ele
foi pego de surpresa, e escutou palavras que assustam, intimidam. Ele tinha exagerado no
trato com o pai morto, a quem dissera coisas de arrepiar. Humilhar o esposo morto, isso Zana
o admitia. Na madrugada em que Halim morreu, ela escutara calada o mologo absurdo
do Caçula e não se esquecera do dedo em riste na cara do finado, nem da voz insolente, das
palavras infames contra alguém que não podia responder nem com um gesto, nem com um
olhar.
Encontrou-o de cócoras, meio escondido, empunhando um terçado, pronto para
cortar tajás e aningas queimados pelo sol; colinas de folhas de cerca dos fundos, a meninada
do cortiço espiava os movimentos de Omar. Estava de cueca, feridento, fantasiado de
escravo. As criaas começaram a assobiar; depois atiraram-lhe caroços de manga, que
estalavam no corpo dele. Omar correu até a cerca, saltando sobre montes de folhas e galhos.
“Filhos duma égua”, ele esbravejou, dando um cotoco para a curuminzada. Parou de xingar
quando a sombra do corpo da mãe escureceu a cerca.
“Chega de bancar o coitadinho, chega de esfolar as mãos e os braços com esse
trabalho de péssimo jardineiro”, ela increpou com uma voz ríspida. “Agora tu não tens pai...
deves procurar um emprego e parar com essa mania de desocupado.
Ele se voltou para mãe, os olhos incrédulos. Zana tirou o terçado da mão dele e
cravou-o na terra: Vai te olhar no espelho... Teu pai não suportava te ver assim... Não
agüentava ver uma vida desperdiçada... Não mereceria ouvir aquelas torpezas... Um homem
morto...”. Parou de ralhar e entrou na sala, soluçando. Não quis falar com o filho quando ele
se aproximou e tentou afaga-la. Desviou a cabeça, deixou-o com as mãos no ar. Ele se
afastou, e diante do espelho viu o corpo cheio de pústulas e arranhões. Depois subiu a escada
olhando para a mãe, tentando cativa-la nessa tarde em que ela o surpreendera com palavras
ríspidas e evitara seu afago.
O Caçula não voltou mais ao quintal. Abandonou as folhas secas, as frutas
bichadas e os galhos podres. Parou de perseguir as mucuras, de mata-las a pauladas, como
uma criança possuída por alguma maldade. Eu já não via mais sentado no meio do quintal,
sozinho, admirando os saltos dos saís- azuis nas palmas dos açaizeiros, ou encantado com o
brilho encarnado dos saurás triscando as frutinhas doces. Antes de começar a labuta de
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jardineiro, ele costumava apreciar essas coisas. E passava um bom tempo assim. Às vezes
sorria, quase alegre, quando o brilho intenso do sol do equador cobria o quintal. Não quis usar
a roupa nova que a Zana lhe dera. Rânia o convidou para trabalhar na loja, insistiu muitas
vezes, até que ele abriu a boca, mostrando dentes amarelos e afiados, e soltou uma
gargalhada, agravada por trovões de uma bronquite crônica.
Trabalhar contigo? Não sabes dar um passo sem consultar o teu irmão”, ele
disse.
Rânia sabia que a aversão de Omar à rotina e aos horários de trabalho era
radical e sincera; sabia que ele tinha a astúcia de abocanhar com a maior naturalidade os
frutos colhidos pela labuta dos outros. Não se esforçava para ser astucioso, nem sentia um
pingo de culpa ao sugar o suor das três mulheres da casa. E assim, sem culpa, ele regressou à
noite manauara. Quando chegava de manhãzinha, não encontrava a mãe à sua espera. Via
Zana de luto, melancólica, sentada no sofá cinzento, onde Halim tantas vezes a enlaçara com
desejo. Ele não suportava a quietude da mãe, o luto fechado desde a morte de Halim, as tardes
que ela começou a passar no quarto, esquivando-se das visitas, remoendo alguma coisa. Eu a
via perto do tronco do jatobá, sentada num tamborete, o sol iluminando a metade do corpo.
Saía pouco, aos domingos levava flores ao finado Halim perguntava por Omar, nunca deixou
de saber a que horas o filho entrara em casa, se ele estava bem. Pedia que Rânia lhe desse
dinheiro, e ao meio-dia, quando o Caçula acordava, ela ouvia as histórias dele. O Café
Mocambo fechara, a praça das Acácias estava virando um bazar. Sozinho à mesa, ele ia
contando suas andanças pela cidade. A novidade mais triste de todas: o Verônica, lupanar
lilás, também fora fechado. Manaus está cheia de estrangeiros, mama. Indianos, coreanos,
chineses... O centro virou um formigueiro de gente do interior... Tudo está mudando em
Manaus.
É verdade... só tu o mudas, Omar. Continuas um trapo, olha a tua roupa, o
teu cabelo... A hora que tu chegas em casa...”
Falava com calma, meio reticente, e depois encarava filho com um olhar
demorado, de tristeza calada. Ele bem que tentou cativa-la. Deixava na rede dela umas
lembranças miúdas, catadas aqui e ali ou compradas nos quiosques da praça dos Remédios:
uma cuia com desenho de coraçãozinho encarnado, um colar de sementes pretas e vermelhas.
Ninharia. Gravou o nome da mãe na do remo que ele guardava. Letras grandes, que
cobriam nomes de mulher. Deu um buquê de helicônias na noite do aniversário de Zana.
Vamos sair para comer uma peixada, só nós dois, num restaurante no meio do
rio.”
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O que eu mais quero é paz entre meus filhos. Quero ver vocês juntos, aqui em
casa, perto de mim... Nem que seja por um dia.
Não saíram para jantar. Ela deixou o buquê na mesa, subiu e se trancou, não
quis ver ninguém. Dias assim, falando apenas com o olhar, deixando o Caçula acuado pelo
silêncio. Ele não queria ouvir falar de Yaqub, o nome do irmão o estorvava. Ainda cedo,
clareando, antes de eu abrir a janela do quarto, Omar resmungava apoiado ao tronco da
seringueira: O que ela quer? Paz entre os filhos? Nunca! Não existe paz nesse mundo...”.
Falava sozinho, e não sei em quem pensava quando disse: Devias ter fugido... o orgulho, a
honra, a esperança, o país... tudo enterrado.... Não me olhou nem se mexeu quando eu saí do
quarto. Continuou ali, como se tivesse caído no chão, o olhar nos lugares onde a mãe o havia
esperado desde sempre. Pensei que Omar ia esmorecer de vez, passar o resto da vida ali,
encostado no tronco da árvore velha. Ele começou a chegar mais cedo, não fazia brincadeira
comnia, nem chamava Domingas com aquele tom de voz pachorrento, meio cinco, que nós
sempre ouvíamos no meio dia.
Então, num bado, pouco depois do anoitecer, o Caçula entrou em casa
acompanhado por um homem. Todo mundo escutou a voz de Omar. Zana foi atraída por um
sotaque estranho. O filho, tão cedo em casa, e com um desconhecido! A conversa entre os
dois foi se prolongando, até que Zana desceu, cumprimentou a visita e foi ao quintal: queria
que minha mãe a ajudasse a prepara um lanche. Domingas sentia-se indisposta e implicou
com o visitante desde que o viu sentado no sofá cinzento, o olhar ávido no rosto plácido. Ela
o gostou de ver um intruso sentar-se no lugar de Halim. E a birra de Domingas me pareceu
uma premonição.
Rochiram, o visitante, era um indiano que falava devagar, sussurrando em
inglês e espanhol as frases que pensava dizer em português. Quando abria a boca, dava a
impressão de que ia contar um grande segredo. O Caçula se encontrara com ele no bar do
hotel amazonas, onde os músicos do Trio Uirapuru tocavam boleros e mambos aos bados.
Reparei com curiosidade no homenzinho moreno, nariz de filhote de tucano, calça, camisa e
sapatos ordinários. Mas o anel de ouro e rubi na mão direita valia mais que uma década de
labuta de um homem comum. No rosto surgia um sorriso pensando, maquinal, e quase tudo
no seu corpo contrariava a espontaneidade. Esse homem de gestos ensaiados observou a casa
e seus recantos; notou que estava cativando Zana, e que uma cofiança mútua era possível.
Então passou a freqüentar a casa, sempre acompanhado por Omar. Trazia presentes para
Zana: vasos chineses, bandejas de prata estatuetas indianas. Minha mãe, mal-humorada, servia
guaraná e logo se fastava do intruso. Aos poucos, Zana saiu da clausura, destravou a ngua,
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se interessou pelo amigo do filho. Quando o Caçula não estava por perto, ela mencionava o
nome do outro, mostrava as fotografias de Yaqub: É um grande engenheiro, um dos maiores
calculistas do Brasil”. Sempre disfarçava ao escutar os passos de Omar na escada: “Meu filho
está menos desleixado... Olha o que uma amizade pode fazer”. Depois pedia que Rochiram
contasse um pouco de sua vida. O indiano falava pouco, mas saciou a curiosidade de Zana.
Ele vivia em trânsito, construindo hotéis em rios continentes. Era como se morasse em
pátrias provisórias. O que se enraizava em cada lugar eram os negócios. Ouvira dizer que
Manaus crescia muito, com suas indústrias e seu comércio. Viu a cidade agitada, os painéis
luminosos com letreiros em inglês, chinês e japonês. Percebeu que sua intuição não falhara.
Quando zana não compreendia a algaravia de Rochiram, ela perguntava ao filho: O que esse
estrangeiro está querendo dizer?”. O Caçula traduzia para o português, encerrava a conversa,
tinha pressa de ir embora com Rochiram. Zana insistia para que ficassem mais um pouco,
Omar recusava, ele e o indiano tinham que ir a vários lugares. Quais? Ele não revelava. Ficou
pálido na manhã em que Rânia convidou Rochiram a almoçar em casa. Durante o almoço ele
esfregava as mãos, nervoso, temendo que a mãe mencionasse o nome de Yaqub. nia
tentava distraí-lo, e ele chegou a ser áspero com a ire reticente com Rochiram. falou,
sem disfarçar o mau humor, no fim da refeição, quando o visitante comentou que queria
construir um hotel em Manaus. Estou ajudando o seu Rochiram a encontrar um terreno perto
do rio”, Omar disse antes de sair da mesa, seco.
Domingas não se sentia à vontade com aquele estrangeiro, mais estranho do
que todos nós juntos. Ela me dizia: O Caçula nem parece ser ele mesmo. Está enroscado, não
sabe para onde ir...”.
Eu estranhei o olhar dele, estranhei que tivesse notado a ausência de Domingas
durante o almoço. Perguntou-lhe se ela estava desconfiada de alguma coisa. Minha mãe não
lhe revelou nada. Disse: “Não gosto do teu amigo. Na primeira noite que ele veio aqui, eu
sonhei com Halim”.
Omar não quis ouvir, fugia da sombra do pai, evitava o encontro até nos sonhos
dos outros. Não trouxe mais Rochiram para dentro de casa: esperava-o na calçada e saía às
pressas. Escondia-se com indiano, vivia desconfiado, olhando de esguelha para a mãe,
seguindo-lhe os passos, amoitando-se para escutar algum segredo.
Mais tarde, eu soube do que Omar desconfiava. Zana me pediu que
datilografasse uma carta para Yaqub. Trouxe uma máquina de escrever para meu quarto e
começou a ditar o que tinha em mente. Falou do amigo de Omar, um magnata indiano que
pretendia construir um hotel em Manaus. Os dois filhos podiam trabalhar juntos: Yaqub faria
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os cálculos do edifício, Omar poderia ajudar o indiano em Manaus. Ela mesma havia
conversado com Rochiram, pedira-lhe segredo sobre o assunto. O seu grande sonho era ver os
filhos reconciliados.Ela pensava nisso, e desde a morte de Halim acordava no meio da
noite, assustada. Quem ia entender a falta que Halim lhe fazia? A dor que ele deixou. Não
queria morrer vendo os gêmeos se odiarem como dois inimigos. Não era mãe de Caim e Abel.
Ninguém havia apaziguá-los, nem Halim nem as orações, nem mesmo Deus. Então que
Yaqub refletisse, ele que era instruído, cheio de sabedoria. Ele que tinha realizado grandes
feitos na vida. Que perdoasse por tê-lo deixado viajar sozinho para o Líbano. Ela não deixou
Omar ir embora, pensava que longe dela ele morreria.
Zana insistiu no assunto, recorrendo a circunlóquios e retincias. Eu ouvia a
voz de mãe culpada, cheia de remorso, e escrevia. Às vezes ela me perguntava se as palavras
o a estavam traindo. Em êxtase de meia-culpa, me olhava como se estivesse na presença de
Yaqub. E durante uma pausa, parecia esperar uma resposta, temendo que o filho silenciasse.
Assinou o nome em árabe, enviou a carta e passou os dias seguintes remoendo
cada linha que havia ditado. Duvidava das próprias palavras, não sabia se havia descanso ou
exagero no teor da carta, se o filho ia entender o que ela mais havia lhe pedido: perdão. Dei-
lhe o esboço do manuscrito, que ela lia em voz baixa. Numa tarde, sozinha na sala, eu a vi
lendo a carta para um Halim imaginário. Depois da leitura, perguntou: Yaqub vai entender?
Vai perdoar a mãe dele?
Então, quase um mês depois, Rânia entregou à mãe um envelope que Yaqub
enviara à loja. Era uma carta com poucas linhas. Ele o aceitou nem recusou qualquer
perdão. Escreveu que o atrito entre ele e Omar era assunto dos dois, e acrescentou: Oxalá
seja resolvido com civilidade; se houver violência, será uma cena blica”. Mas ele se
interessou pela construção do hotel, ignorando a participação do irmão. Terminou a carta com
um abraço, sem adjetivo ou aumentativo. A mãe leu em voz alta essa palavra e murmurou:
Eu peço perdão e ele se despede com um abraço”.
No entanto, a menção da Bíblia deixou-a mais preocupada. Ela percebeu que
Omar havia afastado Rochiram da casa, percebeu a suspeita do filho, sempre à espreita,
rondando mãe e filha. Pediu a nia que contasse tudo ao Caçula. A irmostrou-lhe a carta
de Yaqub: não era uma trama da mãe, mas uma tentativa de unir os filhos. Omar leu a carta e
começou a rir como se estivesse caçoando de todos. Mas o tom de zombaria se desfez: “O que
o sabichão quer dizer com cena bíblica, hein, Rânia? O que o teu irmão entende de
civilidade?”.
177
Rânia o se intimidou, tampouco se alterou. Não sei”, disse ela. “Sei que
vocês podem trabalhar numa construtora...”
“Construtora?”, Omar interrompeu, enfezado, dizendo, aos berros, que ele
conhecera Rochiram, ele trouxera o indiano para casa e fora atrás de um terreno para o hotel.
Parecia irritado com a insistência da irmã, aferrada à idéia de que podia apaziguar os gêmeos.
Rânia queria os irmãos perto dela, desejava a intimidade de ambos. A intimidade e a
compulsão pelo trabalho dariam muito mais sentido à sua vida. Todo seu empenho para
acalmar Omar foi em vão. Ela pensava que cedo ou tarde ele ia cair de beiço nos braços
morenos e roliços; que os dois iam se aninhar na rede como amantes depois de uma discussão.
Ele não cedeu ao feitiço. Nós o amos esbanjar o dinheiro que ganhara com a comissão de
venda de terreno do hotel. As garrafas de bebida cara que ele entornava e depois jogava no
quintal e no piso do alpendre! Os presentes que comprava para namoradas e deixava em
qualquer lugar, esquecidos, como se fossem inúteis ou como se nada disso tivesse mais
importância. O vestido de linho e as blusas de seda chinesa que deu a Domingas, dizendo-lhe:
“Agora podes jogar no lixo os trapos que te mandaram de São Paulo”. o se dirigia às outras
mulheres, e, sem mais nem menos, na presença da mãe, explodia, colérico: “Uma cena
bíblica, não é? Então vamos ver se o sabichão conhece mesmo a Bíblia”.
Ninguém respondia às pontadas que ele dava no irmão. Mãe e filha se
entreolhavam, caladas, e esse silêncio poderoso e cúmplice prevalecia contra a cólera do
Caçula. Elas o deixavam desabafar, fingiam-se indiferentes a Yaqub, e era estranho vê-las tão
passivas quando Omar exigia que nenhuma fotografia do irmão fosse vista na sala.
Durante algum tempo ele se esquivou de todos, alternando desperdício e ódio.
Eu estava alheio ao que vinha acontecendo nas últimas semanas, não conseguia
escutar os cochilos entre Zana e Rânia, nem decifrar os gestos e olhares que trocavam, mas
escutei o nome de Yaqub e do hotel em que ele estava. Estranhei que se hospedasse num lugar
tão modesto, na verdade um a casa mal-conservada numa das áreas mais antigas de Manaus.
A mesma casa que eu conhecera com Domingas, quando ela me levava para passear na praça
Pedro II, onde marinheiros estrangeiros seguiam as putas que rodeavam a ilha de São Vicente.
O hotel, escondido no fim de uma rua estreita, parecia longe da multidão e da zona do centro,
agora cheio de lojas que abriam da noite para o dia. Yaqub estava ali, naquela rua pacata e
sinuosa, tão anônimo quanto seus moradores assustados com a azáfama da cidade. Contei a
Domingas e perguntei-lhe se ele ia embora sem nos visitar. Minha mãe, com voz nervosa,
logo contestou: que não, que duvidava, ele viria vê-la, eu podia esperar que ele viria.
178
Todos na casa pareciam tomados por um mal-estar. Zana e Rânia discutiam
a portas fechadas; perto de mim, trocavam palavras com sussurros suaves, de vôo de
borboleta. Foram cinco ou seis dias assim, e me lembro que numa quinta-feira choveu a noite
toda, e a casa amanheceu com goteiras. Do teto da sala escorriam fios grossos de água suja, e
o quintal transformou-se num aguaceiro. No cortiço dos fundos, tumulto e aflição: as
casinhas estavam inundadas e desde cedo eu e Domingas ajudamos a escoar a água dos
corredores, a retirar a mobília dos quartinhos enlameados. Saímos do cortiço com o choro das
crianças na memória e a impressão de que nossos vizinhos haviam perdido tudo. No meio da
manhã um sol fraco aclarou a cidade, a folhagem esverdeou com mais brilho e uma aragem
morna movia as folhas graúdas da fruta-pão. Na casa, silêncio: Zana tinha ido confidenciar
com a filha na loja. Domingas foi mudar de roupa. Ao sair do quarto, usava um vestido novo,
estava perfumada, os lábios pintados de batom vermelho. O olhar não escondia sua apreensão.
Vi seu rosto crispado voltado para a sala: Omar acabara de descer e tomava um copo de café.
Era raro -lo de tão cedo. o tocou no manjar preparado todas as manhãs para ele.
Rondou a sala, subiu estabanado e bateu com força na porta do quarto de Zana. Quando
desceu, nem olhou para Domingas: avisou que não voltaria para o almoço. Saiu despenteado,
malvestido, carrancudo. Minha mãe seguiu com o olhar aquele corpo cambaleante que pisava
o assoalho como se desse patadas. Ela ficou entre o quarto e a cozinha, indecisa, até erguer a
cabeça e dizer: “Esse tempo ainda está feio”.
Comecei a cavar valetas para drenar as poças do quintal e assim evitar viveiros
de insetos. O chão estava coberto de calangos e gafanhotos mortos, frutas e folhas; da fossa,
ao lado do galinheiro inundado, vinha um cheiro de podridão. Aos poucos, o mormaço foi
aquecendo o quintal, e o sol, ainda ralo entre nuvens pesadas, não podia ainda apagar os
traços da noite de chuva.
Antes das onze Yaqub apareceu: não ia demorar, uma visitinha para matar a
saudade e rever a casa antes de voltar para o Paulo. Vestia uma roupa comum. O cabelo
preto penteado para trás, o corpo ereto e a expressão saudável o faziam bem menos
envelhecido que o Caçula. Trouxera livros de matemática para mim e roupa para Domingas.
Não perguntou por Zana. Disse: Passei no cemitério, fui ver o túmulo...”. o terminou a
frase. Disfarçou, olhou para a mesa cheia de frutas e quitutes do café-da-manhã e perguntou
com uma ponta de ironia: “Tudo isso pra mim?”. Sentou-se, comeu o que o irmão deixara
intocado; depois me chamou, abriu uma pasta e estendeu sobre a mesa folhas de papel com
desenhos de vigas, colunas e malhas de ferro. Observou meu corpo sujo de terra e demorou o
olhar em minhas mãos. O olhar dele não me intimidou, mas não sei se eram os olhos de um
179
pai. Ele nunca respondeu ao meu olhar. Talvez sua ambição reiterasse a minha vida, ou a
ambição, enorme, desmedida, não lhe permitisse olhar para mim com franqueza. Disse que
havia esboçado os cálculos da estrutura de um grande edifício que seria construído em
Manaus: “Não podes passar a vida limpando quintal e escrevendo cartas comerciais para
Rânia”.
Minha mãe escutou a frase e me olhou com uma expressão de orgulho, que
durou poucos segundos. Quando desviou os olhos de mim, seu rosto recobrou o ar antigo,
meio desconfiado, meio temeroso. Os dois foram para o quintal e enquanto conversavam ele
acariciava uma fruta-pão. A mão ia da fruta esférica ao queixo de Domingas, ele ria com
vontade, com ar de triunfo, e naquele momento eu vi mais íntimo de minha mãe. Quando a
enlaçou, Domingas não disfarçou a apreensão: disse que ele devia ir embora. Yaqub franziu a
testa: “Estou na minha casa, o vou fugir...”, Minha mãe implorou: que saíssem juntos,
dessem uma volta. Ele sentou na rede, chamou-a para junto dele, ela não quis. Agora parecia
aflita, o tirava os olhos da sala, do corredor. Não falaram mais nada. As vozes e os lamentos
do cortiço cortavam o silêncio no fim da manhã abafada.
Então eu o avistei: mais alto que a cerca, o corpo crescendo, se agigantando, a
o direita fechada que nem um martelo, o olhar alucinado no rosto irado. Arfava,
apressando o passo. Quando gritei, Omar deu um salto, ergueu a rede e começou a socar
Yaqub no rosto, nas costa, no corpo todo. Corri para cima do Caçula, tentando segura-lo. Ele
chutava e esmurrava o irmão, xingando-o de traidor, de covarde. Alguns moradores do cortiço
encheram o quintal e se aproximaram do alpendre. Com um gesto brusco eu agarrei a mão de
Omar. Ele conseguiu se livrar de mim. Percebeu que estava cercado por vários homens e foi
se afastando devagar, de olho na rede vermelha. Ainda o vi correr até a sala e rasgar com fúria
as folhas do projeto; rasgou todos os desenhos, jogou a louça no assoalho e desabalou pelo
corredor.
Yaqub se contorcia na rede, não conseguia levantar. O rosto dele inchou, a
boca não parava de sangrar, os lábios cheios de estrias e caroços. Ele gemia, apalpando com a
o direita a testa, as costas e os ombros. Eu e dois moradores do cortiço ajudamos a tira-lo
da rede, ele mal conseguia andar. Dois dedos de sua mão esquerda pareciam ganchos, e o
corpo, curvado, tremia. Domingas acompanhou-o a um hospital, e antes de sair me pediu para
limpar a mesa, jogar no lixo a louça quebrada e r a rede de molho no tanque. Escondi no
meu quarto as folhas rasgadas do projeto de Yaqub.
Quando minha mãe voltou, se apressou para enxergar a rede e estendê-la no
quarto dela. Abandonou a cozinha, não quis preparar o almoço. Disse que o estado de Yaqub
180
o era grave: a mão esquerda, sim, em frangalhos, dois dedos fraturados. Ia perder uns três
dentes, o rosto estava irreconhecível, ele sentia dores terríveis nas costas e nos ombros. Pedira
a Domingas que calasse o bico, que inventasse, dissesse a Zana: “O teu filho teve de viajar às
pressas para São Paulo”.
Zana não engoliu as palavras de Domingas. Entrou no quarto do filho, remexeu
aqui e ali, encontrou o passaporte de Yaqub que ele havia roubado. Ficou olhando, pensativa,
a fotografia do engenheiro: o semblante sério, as sobrancelhas espessas, as ombreiras
estreladas do uniforme de oficial de reserva. Percebi a vaidade mãe, e uma pontada de
remorso em seu olhar. A culpa que lhe dilacerava a consciência, eu pensava. Não sabia o que
fazer com o passaporte, andava a esmo, como se o documento pudesse conduzi-la a algum
lugar. Sentou-se no sofá cinzento, enfiou o documento na blusa, e quando ergueu a cabeça,
chorava, as mãos cruzadas no peito. Os olhos avermelhados miraram o pequeno altar e se
desviaram para o alpendre, agora vazio.
Teve que viajar às pressas? Por quê? Zana repetia a pergunta, como se da
repetição fosse surgir a resposta. Ela perguntava por Yaqub, mas buscava Omar. Mal falava
com nia, dava coices por nada e ficava horas o demônio feminino, teria sido mais fácil
dizer às vizinhas: “Essas loucas tiram da gente os nossos meninos, a nossa riqueza”. Palavras
que ela pronunciou em outras ocasiões, quando Dália, a mulher Prateada, dançou para todos
nós; quando a outra, a Pau-mulato, morou com Omar num barco velho, pensando que ia
passar a vida navegando ao deus-dará, lendo a mão de ribeirinhos, prevendo destinos
promissores em vidas arruinadas. Ambos, Omar e a Pau-mulato, farreando a bordo do barco
ou em praias desertas, mas vigiados por uma sombra espessa, poderosa.
O sonho de Zana, desfeito: ver os filhos juntos, numa harmonia impossível. Ela
relembrava o seu plano, minucioso e sagaz. “Meus filhos iam abrir uma construtora, o Caçula
ia ter uma ocupação, um trabalho, eu tinha certeza...Chamava minha mãe para perto dela,
dizia: “O Omar perdeu a cabeça, foi trdo pelo irmão. Sei de tudo, domingas... Yaqub se
reuniu com aquele indiano, fez tudo escondido, ignorou o meu Caçula, estragou tudo...”.
Domingas ouvia e se afastava, deixava a outra sozinha, maldizendo a trama de Yaqub.
181
ANEXO E - Cena 5
Minha mãe quis sentar na mureta que para o rio escuro. Ficou calada por
uns minutos, até a claridade sumir de vez. “Quando tu nasceste”, ela disse, “seu Halim me
ajudou, não quis me tirar da casa... Me prometeu que ias estudar. Tu eras neto dele, não is te
deixar na rua. Ele foi ao teu batismo, ele me acompanhou. E ainda me pediu para escolher
teu nome. Nael, ele me disse, o nome do pai dele. Eu achava um nome estranho, mas ele
queria muito, eu deixei... Seu Halim. Parece que a vida se entortou também para ele... Eu
sentia que o velho gostava muito de ti. Acho que gostava até dos filhos. Mas reclamava do
Omar, dizia que o filho tinha sufocado a Zana”. Senti suas mãos no meu braço; estavam
suadas, frias. Ela me enlaçou, beijou meu rosto e abaixou a cabeça. Murmurou que gostava
tanto de Yaqub... Desde o tempo em que brincavam, passeavam. Omar ficava enciumado
quando via os dois juntos, no quarto, logo que o irmão voltou do Líbano. “Com o Omar eu
o queria... Uma noite ele entrou no meu quarto, fazendo aquela algazarra, bêbado,
abrutalhado... Ele me agarrou com força de homem. Nunca me pediu perdão.”
Ela soluçava, não podia falar mais nada.
Passei a rondar a rede em que minha mãe dormia, preocupado com ela. Não se
deixou contaminar pela agitação de Zana, que alternava promessas de vingança com
momentos de melancolia, combinando sentimentos irreconciliáveis. Durante semanas, Zana
misturou o passado com o presente, as lembranças do pai e de Halim com a ausência do
Caçula. “Meu pai...”, ela dizia, pondo as mãos na fotografia de Galib, lamentando a distância
entre Amazonas e o Líbano. Os gazais de Abbas que costumava ler no quarto, agora ela
recitava em voz alta, e essas palavras formavam um remanso em sua loucura. Mas a imagem
do Caçula desaparecido a perseguia. Culpava-se por ter escrito a carta a Yaqub. Chamou-o de
intratável, e o filho espancado passou a ser o agressor. [...]
[...] Era quase meio-dia, e minha mãe não estava na cozinha. Eu a encontrei
enrolada na rede de Omar, que ela armara em seu quartinho. A rede perdera a cor original e o
vermelho, sem vibração, tornara-se apenas um hábito antigo do olhar. Vi os lábios dela
ressequidos, o olho direito fechado, o outro coberto por uma mecha grisalha. Afastei a mecha,
vi o outro fechado. Balancei a rede, minha mãe não mexeu. Ela não dormia. Vi o corpo que
oscilava lentamente, comecei a chorar. Sentei no chão ao lado dela e fiquei ali, aturdido,
sufocado. [...]
182
[...] Parei de balançar a rede e acariciei as os calosas de minha mãe. Depois,
a voz de Zana chamando Domingas, três, quatro gritos vinham do alto da casa, e em seguida
um barulho na escada, os passos cada vez mais próximos, na sala, na cozinha, o ruído de
folhas no quintal, os olhos assustados de Zana no rosto de olhos fechados. Ela chacoalhou a
rede, e, de joelhos, abraçou Domingas. [...]
[...] A CASA FOI ESVAZIANDO e em pouco tempo envelheceu. nia
comprara um bangalô num dos bairros construídos nas áreas desmatadas ao norte de Manaus.
Disse à mãe que a mudança sairia da casa dela, nem morta deixaria as plantas, a sala com o
altar da santa, o passeio matutino pelo quintal. Não queria abandonar o bairro, a rua, a
paisagem que contemplava do balcão do quarto. [...]
[...] Então ela partiu, deixou a casa e seu quarto. Toda manhã, a caminho da rua
dos Bares, visitava a mãe. Dizia-lhe: O bangalô está um brinco, mama. O teu quarto é o mais
espaçoso, tem um quintalzinho para os animais, as plantas, e uma varandinha para estender a
rede...”. [...]
[...] Aos poucos, Zana me contou coisas que talvez poucois soubessem: o nome
dela de batismo em Biblos era Zeina. No Brasil, ainda criança, ela aprendeu português e
mudou de nome. Eu soube mais de Galib e Halim, e também de minha mãe. Domingas mudou
muito depois que engravidou. Passava horas compenetrada. “Só vendo... bastante com ela
mesma, até que Halim, de mansinho, abria a porta do quarto e perguntava: ‘em que estás
pensando?’, ‘Hã? Eu?’. Tua e respondia assim, assustada... Ela amolava uma faquinha e
pegava um pedaço de pau para fazer aqueles bichinhos. Halim me dizia: Essa cunhatã... Por
Deus, alguma coisa aconteceu com ela...’. Como a tua mãe deu trabalho no orfanato! Era
rebelde, queria voltar para aquela aldeia, no rio dela... Ia crescer sozinha, lá no fim do mundo?
Então a irDamasceno me ofereceu a pequena, eu aceitei. Coitado do Halim! Não queria
ninguém aqui, nem sombras na casa. [...]
[...] Quando silenciou, notei que a vontade de sobreviver na velhice sem o filho
querido parecia dissipar-se. “Omar, ele não vai voltar?”, ela perguntava com ar de súplica,
como se eu fosse capaz de dar vida ao seu sonho, antes do fim. As tardes inteiras que passou
deitada na rede do filho. Ela assava peixe no fogareiro, beijava a fotografia de Omar, dizia:
Por que essa demora, querido? Por quê? Os outros já foram embora, agora estamos nós
em casa, nós dois...”. Levava a rede para o quarto dele, e durante a noite uma voz abafada
enchia a casa de dor. Ela chorava tanto, as os na cabeça, o rosto todo molhado, que eu
prendia a respiração, pensava que ela ia morrer a qualquer momento. [...]
183
[...] Então, numa tarde de março (havia chovido muito e Rânia me chamara
para desentupir uma boca-de-lobo), um homem encapotado parou diante da vitrine, observou
o interior da loja iluminado parou diante da vitrine, observou o interior da loja iluminada e
entrou lentamente, deixando um rastro de lama no chão. Era Rochiram. O cabelo empastado e
penteado para trás dava um ar de mais sério ao rosto, agora ornado por óculos de armação
dourada. As lentes esverdeadas escondiam os olhos, e esta era a grande novidade no rosto
dele. Rânia ouviu as palavras que esperava: a dívida dos dois irmãos em troca da casa de
Zana. No entanto, surpreendeu-se quando ele acrescentou: “Seu irmão, o engenheiro está
plenamente de acordo”. [...]
[...] Poucos dias depois, um caminhão estacionou em frente da casa e os
carregadores fizeram a mudaa para o bangalô de Rânia. [...]
[...] Zana partiu sem conhecer o desfecho. Levou para o bangalô da filha a rede
e todos os objetos de Omar, a fotografia do pai e a mobília do aposentado. Deixou apenas a
roupa de Halim pendurada numa área de metal enferrujado. [...]
[...] ELA MORREU quando o filho caçula estava foragido. Não chegou a ver a
reforma da casa, a morte a livrou desse e de outros assombros. Os azulejos portugueses com a
imagem da santa padroeira foram arrancados. E o desenho sóbrio da fachada, que era
razoável, tornou-se uma máscara de horror, e a iia que se faz de uma casa desfez-se em
pouco tempo.
Na noite da inauguração da Casa Rochiram, um carnaval de quinquilharias
importadas de Miami e do Panamá encheu a vitrines. Foi uma festa de estrondo, e na rua uma
fila de carros pretos despejava poticos e militares de alta patente. Diz que veio gente
importante de Brasília e de outras cidades, íntimos de Rochiram. não vi gente da nossa rua,
nem os Reinoso. Do lado de fora, a multidão boquiaberta admirava as silhuetas brindando nas
salas fosforescentes. Muitos permaneceram no sereno, esperaram o amanhecer e abocanharam
as sobras da festança. Manaus crescia muito e aquela noite foi um dos marcos do fausto que
se anunciava.
No projeto da reforma, o arquiteto deixou uma passagem lateral, um
corredorzinho que conduz aos fundos da casa. A área que me coube, pequena, colada ao
cortiço, é este quadrado no quintal.
Tua herança”, murmurou Rânia.
A bondade tarda, mas não falha? Soube depois que Yaqub quis assim; quis
facilitar minha vida, como quis arruinar a do irmão. Ele havia escrito uma carta para Zana,
revelando que sentira muito a morte de Domingas, a única pessoa a quem confiara certos
184
segredos, a única que não se separa dele durante a infância. Na vida dos dois havia coisas em
comum que Zana teimou em ignorar. Ele não explicou por que falhara a construção do hotel,
apenas escreveu que agora seria mais sensato vender por uma bagatela a casa e uma boa parte
do terreno a Rochiram. Se isso não fosse feito, Omar sofreria as conseqüências.
Rânia não mostrou a carta à mãe. Ela não sabia, nunca soube se havia um
acordo entre Yaqub e Rochiram. Entendeu que a venda da casa pouparia Omar. Vi nia
insistir para que a mãe assinasse a escritura de venda.
Estás louca? A minha casa... para um aventureiro? Olha o que ele fez com o
Omar.”
“Assina, mama, para o bem dos teus filhos... para evitar o pior. E o pior a gente
nunca sabe...”
Mas Zana assinou na clínica, e deve ter sido a última tentativa para
reconciliar os filhos.
Depois Rânia soube que Yaqub, no dia em que havia sido espancado, ia passar
uma noite no hospital em Manaus. Esteve lá, mas foi obrigado a antecipar a viagem de volta a
São Paulo. Saiu para o aeroporto na boca da noite, escondido, acompanhado por um médico.
É que no meio da tarde daquele mesmo dia, o Caçula irrompeu no hospital e por pouco não
agrediu outra vez o irmão. Yaqub gritou ao ver Omar na enfermaria. O Caçula foi expulso do
hospital, arrastaram-no na marra até a rua, e ele saiu cambaleando o mormaço. Ainda o viram
entrar na Cabacense para tomar um trago. Contou numa roda de homens a recente façanha,
contou com uma voz de escárnio, embrutecida Depois desapareceu. Diz que ainda procurou
porque Rânia agiu. Subornou policiais e delegados, ofereceu-lhes cédulas em envelopes
lacrados, dizendo: que deixassem Omar em paz, livre. Que o deixassem escapar. Cid Tannus e
Talib enviaram cartas a Yaqub, pediram-lhe que perdoasse Omar ou pelo menos esquecesse
tudo. Yaqub o respondeu a ninguém. nia logo percebeu que o irmão, em São Paulo,
contratara advogados e coordenava a perseguição ao Caçula. Havia testemunhas de sobra:
dicos e enfermeiras que evitaram a agressão no hospital. E também o exame de corpo de
delito a que yaqub foi submetido antes de viajar para São Paulo.
Aos poucos, ela foi descobrindo que o irmão distante havia calculado o
momento adequado para agir. Yaqub esperou a mãe morrer. Então, com truz de pantera,
atacou. A fuga foi pior para Omar. Agora ele não tentava escapar às garras da mãe, mas ao
cerco de um oficial de justiça. Pulava de jirau em jirau, pernoitando em diferentes abrigos,
tetos de amigos de farra. Sabia que ia chover fogo, sabia-se emparedado. O que lhe dera na
telha? Sem mais nem menos ele abandonava o esconderijo e se aventurava por aí. Cid Tannus
185
o viu num bar no alto da colina, aonde costumava ir com a pau-mulato. Depois soube que ele
se hospedara na Pensão dos Navegantes, dando festinhas para meninas d interior. Rânia
começou a receber visitas de donos de pousadas e pensões. Visitas e ameaças. As dívidas de
Omar, a algazarra que fez, diziam. Ele chegava de madrugada, entrava com uma menina no
colo, os dois zurravam até o amanhecer, tiravam o sono dos hóspedes. Da próxima vez,
chamariam a pocia. Sumiu da Pensão dos Navegantes, sumiu de todos os tugúrios. Rânia
perdeu a pista do irmão, pensou que ele podia estar em alguma praia ou lago, aquietado,
esperando que ela limpasse seu nome. Agora era procurado por vários delitos, choviam
queixas contra ele, porque Rânia não podia quitar todas as dívidas do irmão. Ela sabia: tinha
que poupar dinheiro para o que viria depois.
CEDO OU TARDE, O TEMPO E O ACASO acabaram por alcançar a todos.
O tempo não apagara um verso de Laval pintado no piso do coreto da praça das Acácias.
Alguns anos depois, num dos primeiros dias de abril, um lance do acaso uniu o destino de
Laval e Omar.
Eu havia prometido entregar a Rânia um trabalho maçante que ela havia me
encomendado. Encontrei a loja fechada, ninguém soube me dizer por onde ela andava. Nos
últimos dias, fechava a loja na hora do almoço e saía em busca do irmão. Naquela tarde de
abril chuviscava quando nia o avistou na praça das Acácias. Ficou paralisada. Estava
magro, meio amarelão, barba de uma semana, o cabelo crespo com jeito de juba. Os braços
cheios de aranhões, a testa avolumada por calombos. Os olhos fundos e acesos davam a
impressão de um ser à deriva, mesmo sem ter perdido totalmente a vontade ou a força de
recuperar uma coisa perdida. Rânia não teve tempo de se aproximar dele. Ouviu estampidos,
viu pessoas correrem, largando guarda-chuvas que quicavam nos caminhos da praça. Eram
três policiais, e logo cinco, muitos. Uma caçada. Viu o Caçula agachado, atrás do tronco de
um mulateiro. Os policiais farejavam por ali, todos de arma em punho. Os tiros cessaram.
Queriam matá-lo ou lhe dar um susto? Agora ventava com rajadas de chuva, e a praça das
Acácias era um palco . Sabiam que Omar podia reagir. E reagiu, à sua maneira: deu uma
risada na cara dos meganhas. A coronhada que levou no rosto antecipou sua entrada no
inferno. Caiu de costas e foi puxado, arrastado até a viatura. Rânia correu ao encontro do
irmão, viu no rosto dele um fio vermelho e grosso que a água o apagava. Discutiu com os
policiais, quis saber aonde iam levá-lo, foi repelida brutalmente.
No presídio, ele passou algumas semanas incomunicável. Ela e um advogado
tentaram falar com Omar, mas a violência foi implacável. Enviava sacolas de presentes aos
carcereiros, pedia notícias do irmão e suplicava que não o torturassem. Então ela soube que o
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irmão passara uns dias encarcerado no Comando Militar, e eu intuí que a sua amizade com
Laval era forma de condenação potica.
Na manhã em que ele saiu para o tribunal, escoltado por policiais à paisana,
Rânia percebeu que estava sozinha. Não pôde abraça-lo no tribunal, mas o ouviu relatar uma
brusca descida ao inferno. Os dias eram como as noites, cada dia era a extensão mais sombria
da noite. Quando chovia muito, as celas inundavam, Omar cochilava de pé, a água suja
cobria-lhe os joelhos, e os muçus, ao lhe roçarem as pernas, davam-lhe mais asco do que
medo. Sentia repugnância da pele viscosa dessas enguias-d’água-doce, pardas, cobertas de
lodo, que serpenteavam no piso da cela quando a água escoava. Ainda bem que não enxergava
nada nos dias escuros. Às vezes, na janelinha que rasga a parede, a palma de um açaizeiro
balançava e ele imaginava o céu e suas cores, o rio Negro, a vastidão do horizonte, a
liberdade, a vida. Tapava os ouvidos, era insuportável ouvir o zumbido dos insetos, os gritos
dos detentos, tudo não parecia ter fim nem começo. Ela não imaginava como o irmão vivia
numa cela rdida daquele presídio que ela costumava olhar, quase por distração, quando
atravessava as pontes metálicas para vender sandálias e roupa aos atacadistas dos bairros mais
populosos de Manaus.
Omar foi condenado a dois anos e sete meses de reclusão. Não podia sair, não
teve direito à liberdade condicional. “Só osso e pelanca... Meu irmão não parece humano”,
contou nia, chorando. Ela me disse, alterada, que ia escrever uma carta a Yaqub. Ele traiu
minha mãe, calculou tudo e nos enganou.” Foi corajosa: na reclusão que lhe era vital, na
solidão de solteirona para sempre, escreveu a Yaqub o que ninguém ousara dizer. Lembrou-
lhe que a vingança é mais patética do que o perdão. não se vingara ao soterrar o sonho da
e? Não a viu morrer, não sabia, nunca saberia. Zana havia morrido com o sonho dela
soterrado, com o pesadelo de uma culpa. Escreveu que ele, Yaqub, o ressentido, o rejeitado,
era também o mais bruto, o mais violento, e por isso podia ser julgado. Ameaçou despreza-lo
para sempre, queimar todas as suas fotografias e devolver as jóias e roupas que ganhara, caso
ele não renunciasse à perseguição de Omar. Cumpriu à risca as ameaças, porque Yaqub
calculou que o silêncio seria mais eficaz do que uma resposta escrita.
Foi nessa época que eu me afastei de Rânia. Eu não queria. Gostava dela, era
atrdo pelo contraste de uma mulher assim, tão humana e tão fora do mundo, tão etérea e tão
ambiciosa ao mesmo tempo. As lembranças da noite que passamos juntos, o ardor daquele
encontro ainda me davam arrepios. Mas ela se ressentiu de mim, ofendeu-se com minha
omissão, com o meu desprezo pelo irmão encarcerado. No fundo, sabia o que eu remoia, o
que me comia por dentro. Devia ter conhecimento do que Omar fizera com minha mãe, de
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todos os agravos a nós dois. Parei de trabalhar com ela, nunca mais escrevi cartas comerciais,
nem saí correndo para limpar boca-de-lobo, empilhar caixas, vender coisas de porta em porta.
Me distanciei do mundo das mercadorias, que não era o meu, nunca tinha sido.
Omar deixou o presídio um pouco antes de cumprir a pena. Saiu à custa dos
níqueis acumulados por Rânia. Talib o encontrou uma vez, e diz que só falava na mãe.
Chorou, com desespero, quando o viúvo quis acompanhá-lo até o cemitério para visitar o
túmulo de Zana.
Rânia fez de tudo para se aproximar dele, mas Omar se esquivava, fugia da
irmã e de todos os vizinhos.
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