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Raquel Barbosa
A questão do quesito raça/cor nos prontuários do Programa
Sentinela
FLORIANÓPOLIS/SC
2007
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
CENTRO DE CIÊNCIAS DA EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO
RAQUEL BARBOSA
A questão do quesito raça/cor nos prontuários do Programa
Sentinela
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Educação da
Universidade Federal de Santa
Catarina/UFSC, na linha de pesquisa
Movimentos Sociais e Educação, como
requisito para a obtenção do título de mestre
em Educação.
Orientação: Prof.ª Dr.ª Ana Maria Borges
de Souza.
FLORIANÓPOLIS/SC
2007
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AGRADECIMENTOS
Aos meus companheiros e
companheiras nessa experiência, a qual o poeta
chamou de Arte do Encontro, e que
costumamos chamar de Vida, July, Sauerbier,
Rodrigo, Nabhi, Gabriela, Karina e tantos
outros e outras.
Aos companheiros de sonho, e não só
de luta, Joana, Vânia, José Nilton.
A orientadora desta dissertação, “Ana
Baiana” que me acompanhou pacientemente no
percurso desafiador de constituir uma postura
profissional disciplinada.
As profissionais do Programa Sentinela
que demonstraram coragem ao contribuir para
a realização desta pesquisa ao expor suas
práticas com verdade e simplicidade quanto a
questão das relações raciais.
Le
LeLe
Lembre
mbrembre
mbre-
--
-se
sese
se
Sérgio Natureza
Longe...
Longe...Longe...
Longe...
Sombras desenhadas no horizonte
Cavalos cobertos de ouro e bronze
Vassalos de um rei de não sei onde
Cavaleiros estrangeiros
A bandeira de um invasor
Noite...
Noite...Noite...
Noite...
E um tropel atravessa a fumaça
Tropas...
Tropas...Tropas...
Tropas...
Tropeçando num céu de fogo e prata
O mundo acabou derrepente,
Quando a manhã começava
A dor começou
Com o chicote, com as esporas, com as espadas
Terror das legiões
Das ambições e praças
Chagas no seio de uma terra abençoada
O céu desabou
derrepente, quando a gente levantava
O pó levantou, sufocando quem vivia, respirava
Passou...
Passou...Passou...
Passou...
O tempo, mas não apagou a marca
Marcou...
Marcou...Marcou...
Marcou...
Marcou nos corações, nas mentes e nas praças
Hoje...
Hoje...Hoje...
Hoje...
Na memória viva de uma raça
Um pavor latente
Uma ameaça
E um canto maior que todo o medo
Espalhando amor por onde passa.
RESUMO
Esta dissertação tem como foco as relações raciais presentes nos atendimentos realizados
por um Programa Sentinela, em Santa Catarina, a partir da categoria raça-cor estudada nos
prontuários. Mediante esta informação, compreender como as profissionais produzem
intervenções nos casos que envolvem crianças e adolescentes negros inseridos em
contextos de violências. No trajeto da pesquisa busquei identificar, em fontes documentais,
se categorias específicas para a coleta dessa informação, bem como, o tipo de
abordagem realizada para coletá-la junto às pessoas envolvidos nos contextos de violências;
sistematizar, a partir dos discursos das profissionais, suas interpretações quanto a relação
entre raça, racismo, discriminação, preconceito racial e violências. Para essa reflexão o
diálogo com alguns autores foi fundamental, entre os quais, Petrucelli, Nogueira,
Guimarães, Banton e Bourdieu. O processo investigativo desenvolveu-se a partir de uma
metodologia que associou aspectos qualitativos e quantitativos, com uma abordagem
etnográfica, que privilegiou as entrevistas com as profissionais das áreas da psicologia e
serviço social que atuam no Programa Sentinela, como dado mais importante para a minha
pesquisa. Os resultados, ainda que provisórios e parciais, apontam para a inexistência de
uma produção de dados quantitativos em relação ao quesito raça-cor, na prática cotidiana
do Programa Sentinela, uma vez que uma ausência de preenchimento deste quesito nos
documentos examinados, e que as principais fontes de informação quanto a esta questão são
as profissionais. Também, a insuficiência da articulação desta informação para uma
reflexão conseqüente no que se refere ao pertencimento racial, o que poderia se desdobrar
em intervenções com maiores resultados junto aos casos de crianças negras envolvidas em
contextos de violências.
Palavras- chave: Raça/cor. Classificação racial. Violência.
RESUMEN
Esta pesquisa tiene como centro las relaciones raciales presentes en los atendimientos
realizados por un Pro Sentinela, en Santa Catarina, partiendo del requisito raza/color,
estudiado en los Prontuarios, tentando entender como, por medio de esa información,
producen intervenciones en los caso que envuelven niños/adolescentes. En el proyecto de
pesquisa, busqué identificar, en fuentes documentales, como esa información es cojida,
cuales son las categorías usadas, así como, la forma de abordaje presentada en los
documentos para colecta. Al mismo tiempo hice entrevistas séme-dirigidas con sicólogas y
asistentes sociales actuantes en el Programa Sentinela tratando los temas de raza, racismo y
clasificación racial y sus relaciones con las violencias. Para reflexión el diálogo con
algunos autores fue fundamental, entre los cuales destaco: Paixão, Nogueira, Teixeira,
Banton y Petruccelli, cuanto al debate sobre relaciones raciales y Bourdieu cuanto a las
cuestiones que tratan de violencia simbólica. El proceso de investigación se desarrolló a
partir del uso de un método que asoció aspectos cualitativos y cuantitativos, con un
abordaje con inspiración etnográfica. Los resultados, aunque todavía provisorios y
parciales, apuntan para una imprecisión cuanto a la colecta de informaciones cuantitativas
en relacione al requisito raza/color en las fuentes documentales, la disparidad de las
categorías usadas con las categorías oficiales. Se suma a eso la insuficiencia de la
articulación de esta información para una reflexión consecuente en lo que se refiere al raza,
lo que podría desarrollar en intervenciones con mayores resultados junto a los casos de
niños (as) negros (as) envolvidos (as) en contextos de violencias.
Palabras-clave: Raza/color. Clasifición racial. Violencia.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
Da flor da pele: de como questões de pele se tornaram questões de pesquisa..............4
CAPÍTULO I
1 Raça: conceito extraído das práticas sociais e inscrito nos corpos humanos............19
1.1 Corpos marcados............................................................................................................20
1.2 Raça documentada no Programa Sentinela....................................................................26
CAPÍTULO II
2 O sistema de classificação racial e as cores das crianças e adolescentes em contextos
de violências........................................................................................................................42
2.1 Breve olhar sobre as desigualdades entre infância negra e branca................................43
2.2 Tanto branco quanto preto, depende de quem vê: aspectos relevantes do sistema de
classificação racial no Brasil................................................................................................48
CAPÍTULO III
3 O sistema de classificação racial na infância: produto-produtor de racismo e de
violência simbólica.............................................................................................................52
3.1 Violência simbólica e sistema de classificação racial .................................................. 53
3.2 Infâncias negras e violência racial no Programa Sentinela............................................63
CONSIDERAÇÕES FINAIS.............................................................................................75
BIBLIOGRAFIA................................................................................................................80
LISTA DE GRÁFICOS
Gráfico I
Número de Prontuários contendo documentos que solicitam informação de raça ou
cor......................................................................................................................................32
Gráfico II
Número de Prontuários quanto ao preenchimento da informação de raça ou cor...33
INTRODUÇÃO
Da Flor ao fruto: de como as questões de pele se transformaram
em questões de pesquisa
A gente nasce todo o dia
Para viver melhor.
Gonzaguinha
Esta dissertação nasceu e ganhou significado a partir das experiências vividas como
menina negra nesta sociedade, que segrega alguns de seus filhos e de suas filhas, humilha-
os/as por suas diferenças, os/as exclui de suas referências quando não consegue seu
enquadramento no modelo predominante. Por essa razão sensível, as questões de pele, cada
vez mais, precisam viver o desafio de se tornarem questões de pesquisa, com a
intencionalidade de transformarem-se em frutos de reconhecimento e respeito às pessoas,
não importa a cor ou a forma de seus corpos. As flores estão vivas e, por isso, latentes em
seus matizes e singularidades a lutar para que possam se expressar, socialmente, com tudo
que lhes compõe, afinal, são seus atributos pessoais e culturais que gestam modos-de-ser
em comunidade.
Portanto, esta dissertação se constituiu a partir de minha própria morfologia. Antes
de ser uma questão científica, de pesquisa propriamente, ela estava inscrita em minha pele,
em meu próprio corpo. De fato, penso que minha trajetória, que traz a marca da pele negra
é a gênese e a ênfase de toda a minha justificativa para esse texto. Essa identidade, ou este
pertencimento, durante a infância era evidenciado pelo apelido que a todo instante
lembrava minha “marca de cor”. Eu era, em meio a tantas crianças e adultos brancos, da
periferia de Porto Alegre, a Neguinha. Além da cor da pele, outras marcas exclusivas de
meu corpo de menina negra se entrelaçavam para justificar esse apelido que me
acompanhou durante a infância no Rio Grande do Sul, e a que me ocorre com mais
intensidade é o cabelo.
Ambos, a cor da pele e o cabelo nomeados entrelaçavam-se e interferiam na
maneira como eu mesma me reconhecia em relação às outras pessoas e como acreditava
que era percebida por elas. Um modo de me ver circunscrito pelo lugar da Neguinha,
determinante para diversas experiências sociais durante a minha infância. Nas minhas
elucubrações infantis lamentava o fato de meu cabelo não ser como o de uma outra menina
de pele negra como eu, longos, lisos e pretos como de uma índia! Não que eu não gostasse
dos meus cabelos, pois usava-os trançados de formas variadas. Sentia-me bonita com as
tranças! O fato é que a minha auto-imagem se constituía também, ou, sobretudo, no conflito
social racializado que experimentava no cotidiano.
As relações sociais que travava, especialmente com as crianças brancas, na escola
ou nas brincadeiras de rua, ou nos inúmeros programas de humor na TV, nas músicas
populares, alguns atributos físicos marcadores da diferença de cor sempre eram
apresentados como objeto caricaturado, associado ao feio, ao desumanizado. Não dá para
deixar de mencionar a famigerada música “Nega Do Cabelo Duro”, que tinha como refrão
“olha a nega do cabelo duro, que não gosta de pentear”, e que seguidamente ouvia sendo
cantada por outras crianças ao passar pela rua, nos idos dos anos de 1980, quando eu estava
com dez anos de idade. Em meados dessa década, aconteceu o que alguns chamam de
revolução do humor televisivo, o estouro da “TV Pirata”, com grande sucesso popular.
Nesse programa havia uma personagem negra, interpretada por uma mulher branca. Essa
atriz aparecia com o corpo pintado de preto, os lábios maquiados para parecer mais
carnudos e pintados de vermelho, o cabelo black power e um enchimento de glúteos que
conferia a ela uma imagem estereotipada da mulher negra dos anos de 1980.
Em contraponto a tudo isso, meus cabelos eram cuidadosamente trançados por
minha mãe, mas não importava, pois as comparações que conotavam desumanização ou
desqualificação em relação a ele eram inevitáveis. Guardo na memória o apelido de
Medusa, uma referência racista e relativa às tranças que adornavam minha cabeça.
Também, a famigerada indicação de que o cabelo das pessoas negras é denominado de
“cabelo duro”, sintetizado na expressão palha de aço!
No dia a dia da rotina escolar, dos momentos de brincadeiras ou de brigas entre
colegas, ou em meio aos inúmeros eventos protagonizados pelas crianças no caminho de
volta para casa, como na hora dos enfrentamentos verbais ou mesmo físicos, eram comuns
as alusões negativas ao corpo negro. Ora essa alusão remetia aos cabelos, ora ao nariz, ora à
boca ou a condição de escravo dos afrodescendentes. Entretanto, nada era mais sistemático
que a questão do cabelo e a cor da pele, um e outro transformado pela cultura como sinal
mais evidente da diferença racial o que demonstra o seu inegável valor simbólico para
reforçar as ideologias raciais (Gomes, 2002:110).
Diante dessa realidade social, grande foi a minha dificuldade para elaborar as
informações que recebia sobre as minhas características físicas. De fato eu experimentava
uma contradição intermitente. Companheira de toda a minha experiência, na infância e na
adolescência, essa contradição se expressava da seguinte forma: meu corpo negro me
agradava muito no ambiente familiar e entre amigos negros, fora desse ambiente desejava
outras características físicas, diferentes daquelas que estavam relacionadas à imagem deste
corpo. Desejos confusos e irrealizáveis, resultantes das relações e atribuições sociais e
simbólicas vivenciadas no dia a dia de minha infância e adolescência. Produto destas
relações sociais, sabe-se que as diferenças são evidenciadas não de modo aleatório nas
sociedades humanas, mas selecionadas a partir de razões definidas e construídas com base
na própria organização social. No caso das diferenças que são utilizadas para a composição
do nosso sistema de classificação racial, estas se constituem especialmente pelos atributos
físicos. Logo, as
cores ‘branca’ e ‘preta’ são tomadas como representantes de uma divisão
fundamental do valor humano - superioridade/inferioridade. As diferenças
entre o valor estético bonito/feio - passam a ter um conteúdo político e
ideológico e são utilizados pelo racismo para dividir o mundo em duas
partes opostas no julgamento do valor do ser humano (Gomes, citando
Kobena, 2002: 110).
Desse modo, mesmo que eu utilizasse em conflitos raciais as minhas armas de
defesa, como as músicas que chacoteavam os imigrantes alemães, como aquela que dizia
assim: alemão batata; come pão e queijo com barata; come bem, come mal; come tripa de
animal, além de apelidos baseados em alguma característica física considerada
inapropriada socialmente, que desqualificassem aquelas crianças em resposta as agressões
raciais, eu não alcançava o mesmo efeito. Às vezes, não ocorria efeito algum que “os
atingisse”. O que denota que nem todas as diferenças corporais possuem de fato sentido
simbólico negativo ou de discriminação. Portanto, chamar uma menina negra de macaca
aludia, quase que instantaneamente, a um sentido ofensivo. Não obstante, chamar uma
menina branca de macaca, mesmo existindo macacos brancos, poderia aludir a diferentes
sentidos, dependendo das circunstâncias.
Considero essas experiências importantes para auxiliar na reflexão sobre os sinais
diacríticos, inscritos nos corpos e que operam de modo a atribuir significados sociais para
as diferenças biológicas. No caso de minhas experiências, a marcação das diferenças físicas
foi permeada por referências que apontavam para a idéia de raça, ora de forma direta, ora
indireta. Entretanto, cresci em uma época em que se sabia que raças humanas não existem,
sob a égide de um discurso de igualdade, fraternidade e de que somos todos filhos de Deus.
Discurso paralelo ao discurso travado na vivência cotidiana da menina negra que fui e da
mulher negra que sou.
Na época em que cursava as séries iniciais, vivia em Porto Alegre e morava numa
casa alugada, situada na periferia da cidade. Morávamos eu, minha mãe e a sua irmã mais
velha. Elas, filhas de migrantes catarinenses negros, vindos de Florianópolis. A primeira
migração da família aconteceu nos anos de 1930, com meu bisavô materno indo para Porto
Alegre em busca de trabalho e melhores condições de vida, deixando em Florianópolis a
mulher, que se chamava Raquel, e quatro filhas, a mais velha minha avó, em uma casa na
beira da praia da baía norte, na época, “um lugar de preto”!
Essas mulheres negras que ficaram em Florianópolis, durante os anos de 1930 a
1950, sustentaram a casa com trabalhos domésticos, atividade que muito é destinada a
esse grupo social. Viviam também das doações que recebiam do atual Colégio Catarinense,
na época denominado Ginásio. O cotidiano dessa família de mulheres, à espera das notícias
de meu bisavô, foi marcado por uma rotina de religiosidade católica, recebimento de
doações de alimentos, roupas desta mesma igreja e dos trabalhos domésticos nas casas de
família. Para estar no convívio com a igreja, representada naquele contexto pelo Ginásio ou
pela igreja de São Sebastião, situada na rua Bocaiúva, elas criavam estratégias interessantes
de relacionamento, uma vez que um dos padres responsáveis pela doação era, segundo
rememora minha tia, passado. Ser passado significava abusar sexualmente de algum modo
das meninas pobres e negras, principalmente as que iam aos domingos com suas panelas
receber as doações de comida. Para enfrentar essa situação sem colocar em risco a
integridade de suas filhas, ou romper com a dependência dos mantimentos, era proibido que
qualquer das meninas da família fossem sozinhas buscar a comida na casa paroquial, onde
o padre passado estava. Elas sempre deveriam estar acompanhadas do irmão mais velho,
que era impreterível que elas fossem, pois não era possível dispensar os mantimentos que
eram oferecidos.
Enviadas por meio de um amigo, as notícias tão esperadas de meu bisavô, dezessete
anos depois de sua viagem, em meados da década de 1950, chegaram em forma de
recado de boca. Eram más as notícias, mas mesmo assim minha bisavó, com duas de suas
filhas, sendo uma delas a minha avó adulta, com quatro crianças, duas meninas e dois
meninos, seguiu para o rio Grande do Sul. Elas deixaram a única propriedade da família,
que é o pedaço de terra e a casa em que moravam na beira da praia. Deixaram também os
parentes e os amigos daqui. Já em Porto Alegre, elas encontraram com meu bisavô, que
tinha adquirido outro terreno no meio urbano, no bairro Jardim Botânico, a época um bairro
negro e pobre. O morador mais antigo deste bairro, que ainda está vivo, com cerca de 90
anos, é um homem negro e migrante catarinense, da cidade de São José. Esse contexto me
faz perguntar se houve uma rota de migração entre Florianópolis e Porto Alegre,
desbravada pela população negra, nos asnos 30 e 40?
Em meados dos anos de 1970, entretanto, os terrenos que abrigavam as casas de
diversos membros de uma mesma família, foram paulatinamente sendo vendidos para
abrigar construções de condomínios e edifícios de classe média. A rua em que morava a
minha família, no inicio dos anos de 1980 era agora a única que conservava três casas
velhas. Logo, estes imóveis foram vendidos e a família que vivia ali de modo agregado se
dispersou pelos bairros mais distantes e periféricos de Porto Alegre, indo inclusive para
outros municípios situados no entorno da cidade.
Minhas memórias se iniciam a partir da ida da família para a periferia, um tempo
em que vivi apenas com mulheres em casa. Mulheres migrantes, solteiras e pobres, como
minha mãe e minha tia. O mundo do trabalho que conheci, por algum tempo foi o da
fábrica de talheres Zivi Hércules, em que ambas trabalhavam em linhas de produção.
Longas jornadas de trabalho, saídas na madrugada para pegar o ônibus das cinco da manhã
e retornar as sete da noite, eram movimentos que eu acompanhava, sendo levada para a
casa de uma cuidadora, chamada Dona Eva, que era paga para tomar conta de mim
enquanto minha mãe trabalhava. Depois conheci o desemprego, e depois o espaço do
trabalho doméstico. Minha mãe trabalhou como diarista e minha tia como empregada
doméstica em casas de família. Esta experiência do trabalho doméstico, além de me colocar
em casas de famílias muito diferentes da minha do ponto de vista econômico e de
constelação familiar, me fez crescer em meio a relações em que os papéis sociais eram
extremamente rígidos, guiados pela subalternidade e inferência na vida privada, às vezes
remetiam as relações de servidão de outrora.
Estranhamente, ou naturalmente, dependendo de onde se olhe, a trajetória familiar
tecia um caminho circular. Isso porque, quarenta anos depois da primeira migração, a
terceira geração das filhas da minha família retornou a Florianópolis. Novamente em busca
de melhores condições de vida, mas deixando os amigos, uma parte das suas histórias e os
subempregos. Esse movimento parece confirmar-se como característico das populações
negras. Conforme Silva (1998), na medida em que o país foi tornando-se urbano, as cidades
passaram por transformações diversas e os seus moradores tradicionais, os pobres e os
negros, seja em Florianópolis ou em Porto Alegre, passaram a vender suas terras, por
aliciamento ou pela própria reorganização familiar.
Em nossa história, um dos principais significados desse movimento foi a
expropriação das propriedades e o desemprego. Em Florianópolis, aconteceu um
movimento semelhante ao ocorrido em Porto Alegre, com a propriedade da família que foi
deixada aos cuidados de uma tia-avó. É também nos anos de 1970 até 1980 que as terras a
margem da baía norte se tornaram um lugar de condomínios e prédios de classe média alta
e branca, e as “terras dos pobres” vendidas para construções destinadas a esses extratos da
sociedade.
Quando chegamos em Florianópolis fomos morar com parentes em um conjunto
habitacional (COHAB) na grande Florianópolis, mais precisamente no município de São
José. Minha mãe continuou a trabalhar como empregada doméstica, passando mais tarde
para o sistema de prestação de serviços terceirizados, como auxiliar de serviços gerais em
órgãos públicos, no inicio da década de 1990. Enquanto isso, eu aprendia a cuidar da casa e
de mim, sozinha, imersa em um universo em que as instabilidades econômicas e sociais
sempre determinavam movimentos geográficos que poderiam nos levavam para outras
cidades ou para municípios e bairros cada vez mais distantes, mais pobres e com mais
pessoas negras que agregavam populações de diversas regiões do interior deste estado de
Santa Catarina.
Essas memórias familiares são também fragmentos da história de muitos negros,
vivenciada por homens, mulheres e crianças ao longo do período pós-abolição. Histórias
que ainda muito podem nos informar sobre as relações raciais no Brasil, do ponto de vista
da população negra e da sua peleja pela inserção na sociedade de classes. Tratando-se do
Sul do país essa história tem sido intensamente invisibilizada, uma vez que há uma
ideologia fortemente calcada nas políticas de branqueamento em que, a região sul do país
foi eleita como modelo de colonização européia.
A invisibilidade da população negra aqui se constitui como um “fato histórico e
notório” amplamente legitimado pela literatura científica e historiográfica do inicio do
século XX. Mais do que em qualquer outra parte do país, a região sul, e especificamente o
estado de Santa Catarina aparecem como a “Europa dos Trópicos”, modelos de
desenvolvimento social e econômico (Leite, 1996). No entanto, não se trata apenas de uma
questão numérica, sim política e ideológica em que a própria
legitimidade e importância dos diferentes grupos étnicos existentes no sul,
passou pelo acesso à terra, pelo seu reconhecimento no território e pela
sua inclusão no sistema de direitos sociais, o que de fato ainda não
ocorreu com a população afordescendente (Leite, 1996: 49).
Tornar-se negra nessa sociedade é ainda mais difícil. As tramas dessa história de
invisibilidades, no entanto, não se tecem apenas a partir dos fios dos trabalhos informais e
das migrações negras, se faz também por grupos organizados de negros e negras em
sociedades recreativas, ou em associações beneficentes. Esta última modalidade de
organização foi conduzida pelo que se convencionou chamar de elite negra. Estes grupos,
com registros em 1915, funcionaram, por exemplo em estados como São Paulo e Rio de
Janeiro, compostos por negros com graduação e/ou colocações profissionais mais estáveis,
que não habitavam necessariamente em bairros de pobres e negros. Com inspirações no
associativismo negro que se constituiu no período abolicionista, em que grupos de negros
livres arrecadavam fundos para compra de cartas de alforria, a elite negra pretendia superar
um outro limite imposto a população negra após a abolição, o preconceito racial (Silva,
1998)
1
. Essas histórias, minhas desconhecidas, de modo semelhante, ainda que com uma
estratégia diferente, refletem a articulação entre a aspiração de minha família, no extremo
sul do país, com a aspiração de uma população muito maior e mais diversa em suas formas
e estilos de intervir na sua própria realidade para se inserir na sociedade que se fundava.
O Teatro Experimental do Negro (TEN), fundado em 1944, por exemplo, é um
expoente destes tipos de grupo. O TEN se distinguiu pela proposição arrojada de discutir a
inserção social do negro a partir da arte cênica clássica. Criou um grupo de teatro que
confrontava, por sua própria existência, os discursos dominantes sobre as relações raciais
travadas no Brasil. O TEN produziu o jornal Quilombo: vida, problemas e aspirações do
negro durante os anos de 1948 a 1950. Em seu primeiro editorial afirma que a
luta de Quilombo não é especificamente contra os que negam os nossos
direitos, senão em especial para lembrar ou conhecer ao próprio negro os
seus direitos à vida e à cultura, e que o negro rejeita a piedade e o
filantropismo, aviltantes e luta pelo seu direito ao Direito (Quilombo,
2003:21).
Não sei se minha família se indignava com a piedade e o filantropismo aviltantes a que se
refere o editorial, e muito menos se concebia seus direitos ao Direito, mas sei que
vivenciavam o racismo pelas trajetórias de vida experimentadas no mercado de trabalho,
nas relações interpessoais e institucionais das mais diversas ordens.
Lançar esse breve olhar para um aspecto, ou um movimento organizado da
população negra no Brasil do século XX, me instiga e me auxilia na reflexão da minha
própria negra trajetória familiar. Perceber o movimento de migração negra como mais um
entre tantos que essa população empreendeu na luta pela inserção na sociedade de classe
brasileira em igualdade de oportunidades. Retomo o fio da minha história negra e particular
1
Alguns desses grupos como a Frente Negra Brasileira organizavam jornais impressos que oferecem ainda
riquíssimas fontes para aprofundamento de conhecimento sobre estes movimentos organizadas de negros e
negras.
e o entrelaço com muitos fios de outras histórias de negros, e negras, homens e mulheres,
sujeitos que não apenas vivenciaram experiências de exclusão e racismo, mas que dela e
sobre ela construíram reflexões e intervenção em busca de alteração da sua realidade.
Apropriar-se destes diferentes fios, identificados entre si pela marca da cor da pele e
alguns outros atributos físicos racializados, e pelo próprio racismo, para torná-los questões
de pesquisa, foi possível à medida que aprofundei os estudos sobre as relações raciais no
Brasil, a partir do fértil encontro com o cleo de Estudos Negros
2
(NEN), um quilombo
situado em pleno centro de Floripa! Quilombo, por ser um lugar de negros e negras livres,
não libertos por alguém, mas negros e negras guerreiros que são meninos no fundo do
peito
3
, capazes de sensibilizar-se pelos seus. Espaço de agregar outros livres negros e
negras, que buscam denunciar as violências simbólicas e perversas que ainda forjam as suas
trajetórias, mas, sobretudo anunciar que é possível ser livre, libertando-se e contribuindo
para a libertação de homens, mulheres e crianças. Essa imagem me remete àquela que
alguns dizem ingênua, de quilombo, mas que eu digo potente e mobilizadora de almas
negras!
Nesse Quilombo Urbano e produtor de intervenções em espaços de formação
pedagógica, para e com educadores e educadoras, atuo desde 2003 junto ao Programa de
Educação. A principal atividade que desenvolvo é a de educação continuada com
profissionais que atuam em redes públicas de ensino. No NEN, constituí-me uma educadora
negra, encontrei um rico espaço de imagens e letras. Pesquisa, literatura, história, encontrei
nesse espaço, em que a personagem principal é a população negra, sua ancestralidade
africana e continental e sua contemporaneidade brasileira. Nessas leituras, encontrei
diversos pontos de vista, mas o ponto de vista fundamental dentro do acervo da organização
era o do Movimento Negro Brasileiro. Já tinha ouvido falar deste movimento, entretanto,
nunca estudei sua relevância na sociedade em qualquer momento da minha escolarização.
Nem mesmo quando passei pela universidade, um lugar em que aprendi sobre tantos
movimentos de libertação da opressão, como o movimento feminista, sem-terra, sindical,
dentre outros!
2
Fundada em 1986, orgânica ao Movimento Negro, o NEN é uma organização militante catarinense que atua
nas áreas de educação, justiça e trabalho.
3
“Homem Também Chora” canção de Gonzaguinha
Os tempos no NEN foram importantes e me oportunizaram leituras solitárias,
descobertas diárias e surpreendentes: minhas experiências, minha trajetória, não era
minha, mas parte de uma história coletiva que incluía o povo africano tornado escravo, e
que, com suas incansáveis lutas não ganhou a liberdade como ensina a historiografia
oficial, mas libertou-se e continua a travar batalhas cotidianas para libertar-se! A minha
história tornou-se assim mais minha, e nesse contexto em que me apropriei destes
referenciais teóricos, a timidez e a própria incerteza de denunciar o racismo como uma
prática de violência, que permeia a minha trajetória, desapareceu. Descobri como a
incerteza e a timidez de nomear e classificar muitas das experiências vivenciadas na
infância, como resultantes do racismo que permeia as relações sociais no Brasil, de fato é
constituída de modo subjetivo a partir dos discursos dominantes ainda de Democracia
Racial.
O conhecimento desses outros fios que formam a trama complexa das relações
raciais no Brasil me encorajou a denunciar as violências operadas pelo racismo. Já na
minha primeira participação profissional nos processos de formação de professoras e
professores dirigidos pelo NEN, nas redes municipais de Florianópolis e Criciúma realizei
uma pesquisa exploratória sobre casos ocorridos no cotidiano escolar e considerados
racistas pelas educadoras. Essa incursão gerou a minha primeira reflexão teórica sobre a
relação entre violências e racismos, evidentes nos relatos apresentados pelas educadoras
dos cursos de formação em que os casos de racismo no cotidiano escolar ocasionavam
outras violências, de tipo físicas e verbais
4
. Surpreendentemente, os casos que encontrei em
2003 se pareciam muito com aqueles que eu vivenciei em 1984, quando iniciei minha
carreira escolar na primeira série, numa escola situada na periferia de Porto Alegre.
Em um outro momento em que representei o NEN num Seminário de relançamento
do Fórum Municipal Pelo Fim da Violência e da Exploração Sexual Infanto-Juvenil, na
cidade de Florianópolis, eu tive o meu primeiro contato com a Rede de Atendimento às
Crianças Vítimas de Violência Sexual. Neste evento, deparei-me com uma apresentação do
Programa Sentinela de Florianópolis que versava sobre o perfil das crianças e dos
adolescentes que compunham o quadro de atendimento do referido Programa. Nesse
4
Este trabalho foi apresentado e publicado nos anais do Congresso Ibero Americano Sobre Violências na
Escola, promovido pela UNESCO do Brasil, minha participação foi financiada pelo NEN.
quadro, aparecia o quesito cor da população atendida, e de acordo com a profissional que
apresentava os indicadores, as crianças negras constituíam 50% da população atendida.
Esse dado me intrigou, visto que a população negra de Florianópolis é considerada
inferior a 20%. Portanto, proporcionalmente, naquele cenário a população negra aparecia
como a mais atendida pelo Programa Sentinela. Entretanto, a fala da profissional do serviço
social que realizava a apresentação insistia que esses indicadores refletiam o quadro
populacional de Florianópolis. Diante desse pequeno mapa decidi integrar o Fórum, e hoje,
participo da sua coordenação com a intenção de conhecer o perfil da população infanto-
juvenil inserida em contextos de violência sexual, de modo particular para conhecer como
se tabula o dado racial.
Considerando os aspectos enunciados nesta introdução, eis a gênese do meu
problema de pesquisa, o qual originou esta dissertação: investigar o perfil da população
atendida em um Programa Sentinela, quanto ao quesito raça-cor, para compreender como as
profissionais que lidam com essa parcela da população manipulam esse quesito no processo
de atenção às crianças e jovens negros.
Para ampliar minhas reflexões e construir a densidade teórica possível, o diálogo
com alguns autores foi decisivo. Com Nogueira, Petruccelli e Teixeira, pude alargar a
compreensão da dinâmica das relações raciais no Brasil, do ponto de vista do preconceito e
da discriminação e, com Bourdieu busquei articular o conceito de violência simbólica com
as práticas racistas presentes no Programa Sentinela. Na trilha percorrida para realizar a
pesquisa de campo utilizei metodologia qualitativa, a partir de uma abordagem etnográfica
que me permitisse considerar as intersubjetividades que tracejam o encontro com os
sujeitos e seus depoimentos.
Esta dissertação está organizada em três capítulos. O I Capítulo, intitulado “Raça:
conceito extraído das práticas sociais e inscrito nos corpos humanos”, apresenta um esforço
de reflexão sobre os enlaces presentes entre os conceitos de raça no ocidente bem como as
suas transformações até a atualidade, destacando como tais elaborações conceituais ainda
perpassam as maneiras de interpretar as diferenças somáticas entre os grupos humanos,
especialmente aquelas racializadas nos séculos XIX e XX.
No II Capítulo “O sistema de classificação racial e as cores das crianças e
adolescentes em contextos de violências”, abordo aspectos relevantes observados no
decorrer da pesquisa de campo objetivando refletir como o sistema de classificação racial
atravessa as práticas de atenção às crianças e aos adolescentes inseridos em contextos de
violências e como é manipulado pelas profissionais atuantes no Programa Sentinela.
no III Capítulo, intitulado “O sistema de classificação racial na infância: produto-
produtor de racismos e de violências simbólicas” discuto como o ato de classificar os
sujeitos do ponto de vista racial é, em alguns casos um gesto de violência simbólica ao
circunscrever os sujeitos em um limite de ação no mundo social que é dado pela posição
que ocupa neste mesmo sistema em que é classificado. Neste capítulo apresento também os
casos relatados pelas profissionais durante as entrevistas, apontados pelas mesmas como
casos de violência motivados por racismo intrafamiliar. A opção em transcrever esses
relatos se deu principalmente para evidenciar o quanto o racismo ainda opera em nossa
sociedade e atinge as crianças impiedosamente. Por fim apresento minhas “Considerações
Finais”, que evidencia, sobretudo as lacunas e as novas questões que emergem deste
trabalho. Dois anos de trabalho agora estão encerrados e materializados nessas folhas que
espero possam inspirar novas pesquisas e sobretudo questões em relação ao tema abordado.
CAPÍTULO I
1 RAÇA: CONCEITO EXTRAÍDO DAS PRÁTICAS SOCIAIS
E INSCRITO NOS CORPOS HUMANOS
Mas é preciso ter força,
É preciso ter raça,
É preciso ter gana sempre
Quem traz no corpo a marca.
Milton Nascimento – Fernando Brant
Diante do desafio de empreender uma reflexão sobre as relações raciais nos
atendimentos realizados por um Programa Sentinela, em Santa Catarina, a partir da
categoria raça-cor presente nos prontuários e de como, mediante esta informação, as
profissionais produzem intervenções nos casos que envolvem crianças e adolescentes
negras imersas em contextos de violências, busquei orientação especialmente em
referenciais teóricos extraídos do campo da sociologia. Isso, por considerar que as relações
raciais são, dentre tantas outras, componentes das relações sociais, e, portanto, não podem
ser compreendidas fora do âmbito social em que se desenrolam.
As práticas sociais, na perspectiva de Bourdieu (2005) não podem ser consideradas
fora das relações. Travadas no espaço social, essas relações se constituem como um
conjunto de posições distintas e coexistentes, ocupadas pelos agentes. Essas posições são
exteriores umas às outras, definidas umas em relação às demais. Marcadas tanto como
relações de proximidade ou de distanciamento, quanto pela posição relativa, acima ou
abaixo, ou ainda, entre, no meio. Ocupadas dentro do espaço social em relação a uma
determinada ordem hierárquica, essas posições conformam espaços objetivos, atravessados
por dimensões subjetivas, que formulam as dinâmicas culturais.
Esse sistema de relações hierarquizadas estrutura uma determinada realidade social.
Sendo objeto de percepção dos agentes que a vivenciam. Portanto, nesta perspectiva, o
estudo de uma realidade social está inter-relacionado com as seguintes dimensões: as
relações entre os sujeitos nos espaços sociais, suas posições nestes espaços, a percepção
destes mesmos sujeitos sobre a realidade. Na incursão que realizei dentro do Programa
Sentinela para investigar sobre as relações raciais, embasada no referencial supracitado,
considerei tanto as percepções dos agentes sobre o real no mundo social que os cercam,
quanto as teorias acadêmicas sobre o tema, certa de que ambas possuem poder de construir
realidade social (Bourdieu, 2005). Considero que essa divisão entre acadêmico”,
entendido como o conhecimento de valor científico, e o “popular”, dito como senso comum
é também produto de relações sociais hierárquicas que favorecem uma relação assimétrica
entre os conhecimentos, originada numa concepção de ciência legitimadora das ordens
dominantes. Logo é no embate das visões eruditas e populares sobre a temática das relações
raciais, com ênfase nos processos de classificação racial, que desenvolvo as reflexões sobre
a operosidade dos conceitos de raça, do ponto de vista biológico e social, nas práticas
cotidianas do programa Sentinela investigado.
Ao longo deste capítulo construo um diálogo entre algumas perspectivas teóricas
que versam sobre raça e relações raciais, gestadas especialmente na Europa ocidental nos
séculos XVIII e princípio do século XIX, e sua articulação com as práticas dos agentes
sociais que se desenvolveram fundamentadas nesse conceito, especialmente nos séculos
XIX e XX. O esforço aqui desenvolvido de refletir sobre essa articulação é o desafio posto,
do meu ponto de vista, aos estudos sobre relações raciais na atualidade, considerando que a
estruturação deste conceito no campo científico moderno, tanto formou as estruturas
cognitivas de pensamento dos sujeitos, orientando-os na organização do seu universo
simbólico, quanto as estruturas objetivas da sociedade.
1.1 Corpos Marcados
As pesquisas genéticas ao aprofundarem as investigações sobre o funcionamento do
nosso organismo, contribuíram significativamente para a produção de outras formas de
agrupamento dos seres humanos. Ao mapear as nossas “identidades” para além da
morfologia, criou múltiplas possibilidades de identificação do sujeito. Formou-se, a partir
destes novos saberes grupos inusitados, especialmente para nós que fomos ensinados a
reconhecer-nos como participante de um grupo racial definido e fechado. Um dos casos
interessantes foi, por exemplo, a existência de maior similitude do ponto de vista genético
entre indivíduos pertencentes a grupos de pigmeus da África e indivíduos pertencentes a
grupos nórdicos da Europa, do que entre membros de seus respectivos grupos (Super
Interessante, 2003). Raça, após a finalização do Projeto Genoma, passa de maneira
definitiva, a constituir-se uma categoria ineficiente, para que se articule ao redor dela
conhecimentos sobre os seres humanos do ponto de vista biológico.
Para muitos, esse saber produzido pela genética, entendido como um novo
paradigma cientifico, é um forte argumento para que se anule a utilização do termo raça
como categoria cientifica. Propõe-se a constituição de novas categorias, mais adequadas
aos novos saberes para o estudo sobre as diferenças e semelhanças entre os grupos
humanos. Embora concorde com a elaboração de novas categorias em consonância com os
paradigmas produzidos a partir da genética, considero importante direcionar o olhar para as
práticas sociais que estão além do campo cientifico biológico. Por certo, é no campo das
ciências sociais e humanas que se encontra as possibilidades de investigação cientifica que
aponte as permanências, ou transformações da categoria raça nas práticas da sociedade,
pois tanto as visões espontâneas do mundo social, bem como as teorias eruditas e a
sociologia, fazem parte da realidade social e podem obter um poder de construção da
realidade absolutamente real (Bourdieu, 2005: 157).
Na produção bibliográfica do ocidente, a palavra raça, tem sua origem etimológica,
no italiano razza, que por sua vez origina-se do latim ratio que significa sorte, categoria, ou
espécie (Munanga, 2003). Na Europa ocidental a palavra foi utilizada inicialmente para
diferenciar os sujeitos, com uma conotação distintiva, entendida como natural, sem
assumir, contudo um significado biológico. É no período medieval, que o termo passa a
designar grupos humanos, possuidores de algum tipo de semelhança física em comum,
passando a significar, desse modo descendência e linhagem (Munanga, 2003). Nota-se que
há uma articulação, já nesse período entre a concepção de raça e distinção social.
De acordo com Banton (1977), o termo raça nos assuntos europeus esteve
intimamente relacionado com as lutas políticas entre os povos que compõem o atual
continente europeu. Desenvolveu-se como um conceito teórico concomitantemente aos
conceitos de classe e nação, tendo como função auxiliar na interpretação de novas relações
sociais. Entretanto é no século XVIII, com o fortalecimento do iluminismo, quando as
explicações religiosas o substituídas pelas explicações científicas, que se articulam as
primeiras elaborações teóricas sobre o conceito de tipo racial. É nesse período que se
fundamenta a base do pensamento racializado, que passa a utilizar o conceito de raça como
uma categoria que explicava as diferenças físicas e culturais entre os grupos humanos. Os
estudiosos
lançam mão do conceito de raça existente nas ciências naturais para
nomear esses outros que se integram a antiga humanidade como raças
diferentes, abrindo caminho a uma nova disciplina chamada História
Natural da Humanidade, transformada mais tarde em Biologia e
Antropologia Física (Munanga, 2003:2).
Com uma inspiração naturalista, os estudiosos iluministas passam a descrever
detalhadamente os tipos humanos, tendo como principal preocupação conhecer a origem
das diferenças sociais e físicas entre os grupos. Ao apresentar uma breve revisão sobre os
debates da época, Santos (2005) destaca as principais diferenças catalogadas pelos
estudiosos: a cor (da pele, do cabelo e dos olhos); a forma e o tamanho relacionados à
morfologia dos sujeitos; e as diferenças relacionadas a cultura. Entretanto, para os
iluministas são as práticas culturais que ao
traduzirem a capacidade de interferência do homem no meio, ou seja, o
uso da razão, seriam as grandes responsáveis pelas variações encontradas
entre os povos. Desta forma, estabelece-se uma correspondência entre a
diversidade biológica e a sócio-cultural. (...) Constrói-se uma interligação
entre as variações da espécie e a forma como cada homem se utiliza da
razão (Santos, 2005:31).
Entre os estudiosos havia concordância quanto a existência de uma espécie humana,
e divergência quanto as origens das suas diferenças, bem como, a sua própria origem como
humanidade. Duas correntes dominam os debates: a corrente monogenista e a corrente
poligenista. A teoria monogenista dominante até metade do século XIX, postulava que a
humanidade era única, tendo uma mesma fonte de origem. Esta concepção estava
fortemente enraizada em uma perspectiva cristã da criação da humanidade. Nessa
interpretação as diferenças entre os grupos humanos eram consideradas estágios de
desenvolvimento,
a origem uniforme garantiria um desenvolvimento (mais ou menos)
retardado, mas de forma semelhante. Pensava-se na humanidade como um
gradiente - que iria do mais perfeito (mais próximo ao Éden) ao menos
perfeito (mediante a degeneração), sem pressupor num primeiro momento
uma noção única de evolução (Schwarcz, 2004: 48).
Originados em Adão, os grupos humanos constituiriam as suas diferenças físicas e
culturais num determinado momento de sua história, entretanto desenvolviam-se em uma
mesma direção. Neste momento elaborou-se a concepção de três subespécies: caucasiana,
mongólica e etiópica. A principal critica à teoria monogenista foi quanto a sua inspiração
religiosa, com base nos dogmas do catolicismo, uma vez que este momento histórico foi
marcado por uma transição paradigmática, que combatia as formas de conhecer defendidas
por fundamentos que fossem inspirados em princípios religiosos ou místicos.
Na disputa pela legitimidade das formas de conhecer a realidade das diferenças
entre a humanidade, elabora-se em meados do século XIX a teoria poligenista. A base dessa
teoria era de que existiriam várias origens entre os grupos humanos e que daí advinham às
diferenças raciais. Os comportamentos humanos são analisados a partir de uma
interpretação biológica, portanto são vistos como resultantes de leis biológicas e naturais.
Destaca-se nesse período o nascimento da frenologia e da antropometria, teorias que
estudavam os comportamentos e competências humanas a partir da morfologia dos
cérebros. Os indivíduos são distinguidos a partir das relações entre seus caracteres físicos e
seu potencial comportamental, sem que necessariamente sejam de raças distintas. Ocorre
um “aprimoramento” das observações sobre o corpo, tornando-se bases para a elaboração
de teses explicativas das diferenças morais, comportamentais, culturais no mundo
ocidental. As concepções monogenistas e poligenistas articulam ao seu redor grupos de
intelectuais que se agruparam em duas disciplinas: estudos antropológicos e as análises
etnológicas. A primeira com uma inspiração poligenista e a segunda monogenista
(Schwarcz, 2004).
Mesmo que não tenhamos mais a existência hegemônica de teorias científicas que
justifiquem e legitimem as diferenças ou desigualdades sociais, a partir de diferenças
morfológicas, as permanências discursivas continuam, uma vez que o objeto dessas teorias
continua a instigar a nossa curiosidade cientifica”, cultural, exótica, que é o corpo. Na
história dos mais diversos povos do ponto de vista cultural, o corpo, ao que parece, é
sempre objeto em que se inscrevem significados sociais. Por exemplo, no caso das
sociedades antigas em que os escravos tinham seus cabelos raspados a fim de se
diferenciarem dos reis (Taylor, 1997), ou então as marcas físicas como a circuncisão,
utilizada como uma marca de santificação no campo religioso judaico (Bíblia Sagrada,
2005). Portanto,
o corpo é objeto de investimentos tão imperiosos e urgentes; em qualquer
sociedade o corpo está preso no interior de poderes muito apertados, que
lhe impõe limitações proibições e obrigações (Foucault, 2006: 118).
As teorias raciais, portanto, não inovam, ao contrário podem ser tidas como um
refinamento de algo muito explorado pela humanidade, que é a utilização do corpo
humano como um instrumento capaz de conter em si mesmo atribuições sociais, quer seja
por meio de uma manipulação externa, alterando a sua aparência e dando a essas alterações
significações sociais, ou como no caso das teorias raciais, que deliberadamente constrói a
partir do próprio corpo um elenco de determinadas características físicas atrelando-as a uma
série de significações sociais, que neste caso tornam-se irredutíveis, por serem “naturais”.
Essas teorias refinam-se, no culo XIX, com a publicação, da Origem das Espécies
de Charles Darwin, em que emerge o paradigma da evolução das espécies, que rapidamente
torna-se dominante nas investigações cientificas. Dada a hegemonia alcançada pela teoria
de Darwin no campo cientifico, tanto monogenistas quanto poligenistas passam a explicar
as suas teorias com uma perspectiva “evolucionista’. Os monogenistas utilizam a teoria
“cientifica” para o seu postulado acerca da origem una da humanidade, enquanto os
poligenistas mudam o seu paradigma passando a reconhecer também a existência da origem
comum dos seres humanos, entretanto mantém a tese de que os grupos não comungam
dessa unicidade. Portanto,
de um lado os monogenistas, satisfeitos com o suposto evolucionista da
origem una da humanidade, continuaram a hierarquizar as raças e os
povos, em função dos seus diferentes níveis mentais e morais. De outro
lado, porém, os cientistas poligenistas admitiam a existência de ancestrais
comuns na pré-história, afirmavam que as espécies humanas tinham se
separado havia tempo suficiente para configurarem heranças e aptidões
diversas (Schwarcz, 2004: 55).
A partir desse período configuram-se dois novos grupos de intelectuais que
objetivam, agora, não mais explicar as origens da espécie humana, mas as diferenças entre
os povos do ponto de vista político e cultural. São estes: os evolucionistas e os racistas. O
evolucionismo social, defendido pela antropologia cultural, postulava a existência de
estágios de desenvolvimento social, e que os diversos grupos humanos obrigatoriamente
iriam adentrar. Os racistas, ou Darwinistas Sociais, por sua vez postulavam que as raças
eram um estágio final dos processos evolutivos. Suas três proposições são: a realidade das
raças, relação entre as características físicas e habilidades e aptidões morais e culturais e
que não arbítrio do individuo sobre estas condições, uma vez que estes são atributos
ligados a sua raça (Schwarcz, 2004; Santos, 2005).
De acordo Santos (2005: 48)
se para os iluministas, as desigualdades sociais apoiavam-se na
diversidade humana ressaltando-a, para os evolucionistas e racistas do
século XIX esta desigualdade social, de fato, inexiste, pois o evidente são
as diferenças raciais expostas em distintas sociedades. (...) a idéia de raça
passa a funcionar como catalisador e solução para todos os problemas.
Fortalecida sob o paradigma evolucionista, a tipologia racial, aprofunda os sistemas
de classificação a partir das diferenças físicas e culturais dos seres humanos. Entretanto,
para Munanga (2003), o problema dos conceitos operados no âmbito racial não está na
classificação em si, e nem na inoperância do conceito do ponto de vista cientifico, mas na
estruturação criada pelos estudiosos, que hierarquizou as raças entre si. De acordo com o
autor isso foi feito mediante a criação de uma relação intrínseca entre o biológico (cor da
pele, traços morfológicos) e as qualidades psicológicas, morais intelectuais e culturais
(Munanga, 2003:2).
O postulado científico, criado a partir destes estudos, pode ser resumido nas
seguintes proposições: a existência das raças; a continuidade entre o físico e o moral, isto é,
além de definida fisicamente a raça o é também por meio da cultura; a ação do grupo sobre
o indivíduo consiste em afirmar que o comportamento dos sujeitos depende do grupo racial
a que ele pertence; hierarquia única de valores para ajuizar sobre as diferenças raciais. A
última proposição estabelece a criação de uma política fundada no saber, isto é, a partir do
saber descrito nos quatro itens anteriores sobre as diferenças entre os homens, deve-se
operacionalizar uma doutrina política engajada que favoreça a estruturação das relações
entre os povos a partir desses pressupostos (Santos citando Todorov, 2005). Esse ideal
político, de acordo com Santos (2005) poderia ser sintetizado em “submissão” das raças
inferiores e/ou eliminação, acrescento também a implantação da superioridade dos
dominantes e o poder sobre os outros grupos. A perspectiva do ideal político sedimentado a
partir das teorias raciais, sabe-se que logrou êxito ao ser utilizado para justificar e também
legitimar do ponto de vista social diversas estruturas de dominação. O colonialismo em
África, na Ásia e América Latina tem um forte embasamento racialista.
Dado o longo período histórico que as teorias raciais foram reforçadas pelas práticas
sociais que as naturalizavam, não basta, me parece que por decisão ética e até mesmo bem
intencionada se possa suprimir a categoria raça do campo da pesquisa científica. Precede ao
ato de tomarmos decisão tão “radicalmente positiva” no campo das idéias, considerar a
partir de investigações empíricas se este conceito de fato está superado nos modos como
os sujeitos explicam e produzem a sua realidade. Nas ciências sociais encontro o conceito
de raça, que apresenta uma definição a contento do que compreendo por raça ao longo deste
trabalho e que pode provisoriamente auxiliar nas reflexões sobre relações raciais. Trata-se
do conceito de “raça social” que
pode significar um grupo de pessoas socialmente unificadas numa
determinada sociedade em virtude de marcadores físicos como a
pigmentação da pele, a textura do cabelo, os traços faciais, a estatura e
coisas do gênero (...) um grupo social definido pela visibilidade somática
(Berghe, 2000:454).
A “raça social” pode ser estudada a partir das sociedades locais, portanto sua
forma está diretamente atrelada aos sentidos e significados que os sujeitos desta sociedade
atribuem aos marcadores físicos, considerados fundamentais para a distinção ou não, e para
agrupamento dos tipos humanos. Desprendida de qualquer concepção biológica baseada em
informações genéticas, a “raça social” ainda é embasada na biologia, uma vez que se
estrutura a partir de componentes morfológicos. Entretanto esses componentes assumem
sentido somente a partir das relações socais que porventura se articulem utilizando-os como
referência. Por exemplo, quando olhamos para uma mulher considerada negra em uma roda
de samba e imediatamente a consideramos sambista nata, mesmo que ela não esteja
dançando, por certo o que nos informa sobre essa habilidade está sem dúvida ligado a sua
“raça social”. Portanto, na incursão no Programa Sentinela, espaço social em que
desenvolvo esta pesquisa, discuto as relações raciais embasada neste conceito de “raça
social” supracitado.
1.2 Raça Documentada no Programa Sentinela
Das histórias do Brasil, narradas sobre esta população, a da diversidade racial é uma
das mais festejadas. Sabe-se o suficiente sobre as relações raciais para elogiar a ausência de
“violência inter-racial”, reconhecer a influência da cultura negra nas festas populares,
destacar o carnaval e suas mulatas, além daquelas referenciadas na religiosidade, na música
e particularmente no samba. São histórias contadas e cantadas em verso e prosa. Parece que
os quatro séculos, aproximadamente, do tráfico humano de homens, mulheres e crianças
africanas de pele escura, desterrados para trabalhos forçados (intelectual e físico),
submetidos, na condição de escravo, ao sistema escravocrata de produção, foram superados
bem como, as conseqüências de processo tão doloroso. E o resultado dessa superação está
evidenciado pelo estabelecimento de uma convivência pacífica entre os grupos humanos,
outrora separados pela condição de senhores e escravos. Entretanto cabe questionar como
essa narrativa dominante sobre as relações raciais no Brasil se constituiu e principalmente
como ela se materializou nos processos de construção de estruturas objetivas de nossas
relações sociais?
Schwarcz (2004) ao investigar a permeabilidade em nosso país das teorias raciais
produzidas na Europa Ocidental, nos séculos XIX e inicio do século XX, toma como fontes
as instituições de ciência: museus nacionais, institutos históricos e geográficos, as
faculdades de direito e as faculdades de medicina. Conclui que,
enquanto essa visão racial da nação partiu dos estabelecimentos
científicos, mas esteve presente sobretudo no domínio das vivencias
pessoais e das relações cotidianas, justificando hierarquias sociais
nomeadas em base a critérios biológicos (nesse movimento que partia das
instituições de saber para alcançar o senso comum e vice versa), já os
modelos liberais regulamentarão as esferas públicas, constarão das leis e
medidas de âmbito mais geral. A raça se discute entre “pessoas” - nos
conflitos diários, na clinica médica, na personalidade das personagens dos
romances científicos da época; a lei, entre “indivíduos”, ou melhor, entre
os reduzidos cidadãos dessa grande nação que participam das esferas
políticas decisórias, dos debates externos e diplomáticos. Assim, se as
conclusões sobre a singularidade das espécies humanas, no Brasil, nunca
constaram das leis ou documentos oficiais, conformaram um argumento
freqüente que levaram à elaboração dessas mesmas medidas (Schwarcz,
2004: 247).
Suas conclusões sugerem que, mesmo diante da ausência de uma formalização
jurídica e governamental, que pudesse explicar as desigualdades naturalizadas pelo aspecto
racial dos indivíduos, a sociedade estruturou-se tendo este argumento como inspiração. A
extensão das concepções raciais foi, nesse sentido, materializada na política pública
sanitarista do século XIX e inicio do XX, nas políticas educacional, econômica e jurídica.
A implicação das teorias raciais, desse modo, aparece na vida política do Brasil atingindo
diretamente a vida cotidiana das pessoas negras, brancas, indígenas, asiáticas e mestiças, de
modo diferenciado, o que evidencia o caráter racializado destas. Portanto, efetiva-se entre
nós, em nossas relações, o estabelecimento da proposição apresentada anteriormente,
construído por Todorov e citada por Santos, de que as teorias raciais estruturam uma
“política fundada no saber”, isto é, organiza-se uma política entre os grupos raciais a partir
da própria teoria (Santos, citando Todorov, 2005).
A política de atenção à criança também se fundamentou em pressupostos políticos
com inspirações nas teorias raciais, além de princípios baseados na eugenia e higienização
da infância. Nos primórdios do atendimento a infância, pela caridade, por exemplo, a
função da localização da criança dentro dos critérios classificatórios, consistia basicamente
em considerar, a partir dessa informação, tanto o seu destino social, quanto o tipo de
atendimento e expectativas que sobre este sujeito poder-se-ia construir (Piza & Rosemberg,
2003).
Hoje, nos prontuários de atendimento do Programa Sentinela, no campo de
“identificação da criança” uma questão que remete à identificação de sua “cor”. Passo a
questionar, assim, qual seria a função desta informação, do ponto de vista das profissionais
que elaboram os atendimentos? Seria essa informação pertinente para pensar a infância
inserida em contextos de violências, bem como, os encaminhamentos propostos para o seu
atendimento? As profissionais entrevistadas, respondem a essa questão, ora relacionando-a
com a informação que justifica o quesito raça para produção de estatísticas, ora alegando
que é uma exigência institucional para situar o perfil dos sujeitos. As falas das profissionais
entrevistadas destacam:
Eu acho, que serve para questão de pontuação, para classificar os
números de famílias da raça branca, da raça negra, da raça parda
(Assistente Social I ).
Então, na realidade e do meu ponto de vista, eles não tem função
nenhuma. É mais por função de estatística mesmo (Psicóloga I).
Esse dado aqui, na verdade, essa coleta é do governo federal. Então
todo esse formulário é pensado pelo governo federal para criar a
prestação de contas dos atendimentos do Programa Sentinela Assim,
isso não foi o Programa aqui que criou. É uma ficha que vem e eles
pedem ano a ano, para que possam fazer um grande banco de dados
de todos os Sentinelas, para coletar essas informações (Psicóloga II).
De acordo com essas profissionais a questão da informação racial não é um dado
que possua sentidos e significados às práticas de atenção para com as crianças e os
adolescentes. Imbuídas, ao que parece, da dinâmica cultural predominante, o quesito raça-
cor não desperta qualquer distinção para organizar os procedimentos cotidianos, numa
aparente atitude de que a identidade criança ou adolescente é suficiente para orientar seus
afazeres, sem a necessidade de considerar as singularidades dos sujeitos e seus
pertencimentos sociais, dentre eles o racial.
Em outras entrevistas, pude observar que um expressivo desconhecimento sobre
a temática, o que pode indicar que a formação inicial destas profissionais, também não
problematiza essa questão nos conteúdos estudados, uma postura que tem continuidade nos
treinamentos dos quais participam quando são contratadas para atuar junto aos Programas.
Diretamente eu não sei, sabe. Nunca tinha parado para pensar nessa
questão. Na verdade essa tua pesquisa é que está me fazendo refletir
sobre isso, mas nunca fiz esse tipo de relação: violência, histórico da
criança em relação a raça (Psicóloga III).
É, eu nunca vi nenhum técnico fazer algum comentário a respeito,
tenta fazer alguma relação, pesquisar nesse sentido até que tu viesse
fazer a pesquisa não tinha. O que a gente tinha em termos de numero
com eu te falei é muito pouco caso. A gente acaba entrando em
contato com os atendimentos. Essa relação nunca foi feita. Então
essa relação no programa nunca foi feita (Psicóloga II).
Quando a informação cor é considerada como algo “para pontuar”, como um
indicador que “não tem função nenhuma, mas uma função de estatística mesmo”, ou
quando o argumento é de que “a coleta é do governo federal, é mais para prestação de
contas”, ganha notoriedade a desinformação culturalmente instalada. Para as profissionais,
não passa de “uma ficha que vem, que pedem ano a ano, para que possam fazer um grande
banco de dados de todos os Sentinelas para coletar essas informações”, o que lhes sugerem
que a produção deste dado tem uma função meramente burocrática. Com isso, tanto não
relacionam a produção de estatísticas com o quesito raça-cor, quanto não visualizam que
esta ação é parte da caracterização das práticas de violências contra a infância e
adolescência. Ignoram que,
os recenseamentos e pesquisas de agências governamentais constituem
mais que uma operação de contagem, contribuindo para uma codificação
dos estratos da sociedade a partir de nomenclaturas próprias. o
construídas assim, representações do mundo social, situadas na
intersecção do jurídico, do político, e do imaginário nacional em formas
de categorias, termo que tem a virtude de designar, simultaneamente uma
unidade social e uma estrutura cognitiva, assim como de manifestar o elo
que as une (Petruccelli, 2004:14).
A produção do documento denominado “Sistema de Acompanhamento
Qualiquantitativo”, encaminhado semestralmente para a Secretaria Estadual de
Desenvolvimento Social, responsável em remetê-lo ao Governo Federal, é denominado
pelas profissionais como “estatística”. Na verdade é um instrumento sóciopolítico, ativo,
utilizado no trabalho desenvolvido pelas mesmas, a medida que sistematiza e articula
informações de aspectos quantitativos e qualitativos. Os aspectos qualitativos são coletados
a partir das variáveis: raça, renda familiar, vínculo com o agressor, escolaridade. Essas
variáveis são apresentadas em relação à criança e ao tipo de violência praticado contra ela,
sempre acompanhadas da categoria gênero.
Esse aspecto pode indicar que, no espaço social que objetiva intervir no campo da
política de enfrentamento das violências cometidas contra a infância, as discussões políticas
e sociais sobre a relevância do debate a respeito das questões de gênero e suas implicações
nas relações sociais vem assumindo força e refletindo-se também no posicionamento do
Estado. Nesse sentido, “O Sistema de Acompanhamento Qualiquantitativo” do Programa
Sentinela, como produção de estatísticas públicas pode ser entendido como um dos
instrumentos de expressão da ação do Estado e, como tal, essencialmente político
(Petruccelli, 2004:15).
Este documento, ao solicitar informações sobre o “número de usuários segundo
gênero e raça” e relacioná-los com o tipo de violência (violência física, violência
psicológica, abuso sexual, negligência), apresenta as seguintes categorias quanto a raça:
branca, negra e parda. O que não confere com o sistema de classificação utilizado pelo
Estado na produção dos censos nacionais e que, portanto, acarreta confusões com relação à
produção de indicadores referentes à classificação racial das crianças e adolescentes
atendidos no Programa Sentinela, em âmbito local e nacional. Indícios da complexa teia,
constituída a partir de um discurso racial materializado nas relações sociais cotidianas e
políticas, sem, contudo, ser materializado nos documentos oficiais do Estado.
Essa teia é marcada pelas contradições presentes no discurso racial de elogio a
mestiçagem, que ao mesmo tempo em que mistura, hierarquiza as nuances originárias dessa
mesma mistura, por meio de uma “nominação” fluída, em que está presente todo o tempo
os pólos brancos e negros. Essas contradições podem ser percebidas a partir da história da
demografia no Brasil, que pode ser apresentada em três períodos: o “pré-estatístico”, dos
tempos da colônia até meados do século XVIII, não incluindo na contagem as populações
indígenas; o período “proto-estatístico” de meados do século XVIII até 1872, com o
primeiro recenseamento geral; e o da “era estatística” (Piza, citando Marcílio, 2003). A
categoria cor, para a classificação populacional aparece somente nos censos do século XIX,
mais precisamente no recenseamento de 1872 com as categorias: branco, preto, pardo e
caboclo, enquanto no censo de 1890 substitui-se o termo pardo por mestiço. Ao classificar
os sujeitos como mestiços e caboclos, percebe-se uma referência a ascendência das raças
que originaram as misturas, no entanto, ao classificar o sujeitos como pretos ou brancos, há
uma tentativa de localizar as origens dos sujeitos, se originados da África ou da Europa
(Petruccelli, 2004).
A ausência de uma categoria que aludisse aos povos indígenas e a presença das
categorias “parda” e “caboclo”, no meu entender, são mecanismos oficiais que tratam de
evidenciar o discurso, especialmente pós-abolição da miscigenação, e que, desse modo
visualizasse o sujeito da mestiçagem. Trabalha-se a partir daí com uma idéia de que
nenhuma categoria de cor ou de raça no Brasil é pura, ou seja, tanto o branco, quanto o
negro são categorias que podem ser adjetivadas pelo termo mestiço (Teixeira, 2003:97).
Os censos do primeiro e segundo decênios do século XX não coletaram a
informação racial da população. Trata-se de um período de vinte anos de lacuna sobre as
informações populacionais, com coorte racial nos censos nacionais. O argumento oficial
para a exclusão da coleta de classificação racial dos sujeitos assentou-se na dificuldade dos
entrevistados mestiços situarem a sua origem racial, bem como, na suposta fragilidade de
uma classificação desenvolvida a partir dos critérios da cor da pele (Rosemberg & Piza,
2003). Este argumento corrobora a orientação racialista de elaborar a categorização da cor
dos sujeitos como expressão sensível da origem racial dos mesmos (Petruccelli, 2004). Já o
censo de 1940, que inaugura o período contemporâneo de recenseamento, conforme Pizza
& Rosemberg (2003), que consiste na realização de censos decenais, com sistematizações e
publicações dos resultados por institutos especializados, em nosso caso, o Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), estabelece como categorias para a
classificação racial a atribuição das cores aos sujeitos: preto, pardo, branco e amarelo
(Pizza & Rosemberg, 2003; Petruccelli, 2004).
Ao acrescentar a categoria amarela à classificação oficial, pretende-se, com isso,
incluir o contingente de imigrantes asiáticos, mais especificamente, os japoneses que
ingressaram no Brasil em 1908. No censo de 1950, deliberou-se pela inclusão na categoria
pardo de todos os sujeitos que se autodeclarassem como pertencentes a quaisquer outras
categorias que não constassem do questionário apresentado pelo recenseador. Eles seriam
incluídos na contagem geral, como pardos. No censo de 1970 não se coletou a informação
quanto à cor ou a raça da população brasileira. Percebe-se, no contexto de produção
estatística sobre pertencimento racial da população brasileira uma seqüência constante de
movimentos alternados de criação de categorias oficiais capazes de expressar a confluência
entre as teorias raciais e as classificações raciais presentes na vida cotidiana. Movimento
presente ainda nas práticas institucionais de instâncias públicas, como é o caso do Programa
Sentinela que apresenta categorias de classificação racial em seus documentos oficiais
distintas de outros documentos produzidos pelo mesmo sistema político estatal, que ao que
parece evidencia uma problemática que está longe de ser equacionada.
Esses documentos produzidos no Programa que fornecem informações para um
banco de dados governamental de esfera máxima, como é o caso do “Sistema de
Acompanhamento Qualiquantitativo”, é um instrumento pelo qual o Poder Executivo
Federal controla e define os procedimentos de atenção à população afetada pelas violências,
através ainda das fontes construídas pelo Poder Executivo Municipal, como a “Solicitação
de Atendimento à Denúncia” e a “Ficha de Atendimento”. O Programa Sentinela, ao
acolher denúncias e realizar os diagnósticos utiliza estes documentos institucionais que
passam a compor o Prontuário
5
de Atendimento dos Casos, para identificação institucional
das crianças, adolescentes e suas famílias. Considerando a pertinência das fontes, as
profissionais deveriam informar as estatísticas para o governo federal a partir destes
documentos produzidos na esfera municipal.
Entretanto, esses documentos coletam a informação concernente à cor de modo
diverso, tanto entre si, quanto em relação ao próprio quadro do governo federal. O
documento de “Solicitação da Denúncia” organizado por quatro campos, coleta
informações para caracterizar o tipo de violência denunciada e a possível reincidência dos
casos. Ao identificar a criança no campo “Informações da Criança/Adolescente”, coleta-se
subsídios diversos sobre a escolaridade, as identificações pessoais, como a idade, o nome e
o apelido, aparecendo o quesito cor com descritiva. Nas informações do campo,
“Identificação do Agressor”, também consta a solicitação da sua cor em campo descritivo,
sem nenhuma orientação quanto categorias de classificação racial. No documento também
constam informações sobre o denunciante, dentre as quais, não se encontra nenhuma
5
Estes Prontuários são compostos por diversos outros documentos, tais como: boletim de ocorrência, laudo
do Instituto Médico Legal e formulários concernentes ao caso em andamento.
referente a cor. É importante destacar que esse documento é preenchido no ato de denúncia,
o que pode ser realizado tanto por meio do Disque Denúncia, quanto pessoalmente. Na
“Ficha de Atendimento” há um quadro que levanta o pertencimento racial de toda a
configuração familiar das crianças ou dos adolescentes inseridos em contextos de
violências. As respostas são de múltiplas escolhas e apresentam as alternativas: branco,
negro, pardo e outros.
Dos 74 (setenta e quatro) Prontuários analisados apenas 2 (dois) prontuários não
continham nenhum documento que solicitasse informação racial, configurando o seguinte
gráfico:
GRÁFICO 1
de Prontuários contendo documentos que solicitam informação de
raça ou cor
97%
3%
Prontuários com solictação de informação de raça ou cor
Prontuários sem solicitação de informação de raça ou cor
Dos 72 (setenta e dois) Prontuários que continham documentos com solicitação de
informação racial 48 (quarenta e oito) continham documentos com a identificação da cor ou
raça preenchida. Em outros 24 (vinte e quatro), os documentos com a solicitação de
informação racial não estavam preenchidos. Conforme gráfico:
GRÁFICO 2
de Prontuários quanto ao preenchimento da informação de raça ou
cor
67%
33%
Informação de cor ou raça preenchida
Informação de cor ou raça não preenchida
Dos 48 prontuários as identificações raciais estavam assim distribuídas: 42
(quarenta e dois) brancos, 1 (um) pardo, 1 (um) com identificação negro e pardo, 1 (um)
com identificação branco e pardo, 2 (dois) negros, 1 (um) afrodescendente.
Dos 74 (setenta e quatro) prontuários analisados, tendo como critério para a seleção
de análises os casos encerrados no ano de 2006, encontrei em 5 (cinco) deles uma “Ficha de
Verificação de Denúncia”, encaminhada pelo Conselho Tutelar Insular Ilha. Essa ficha
solicita a classificação quanto à etnia, sem nenhuma alusão a expressão raça, ou cor,
apresentando as seguintes categorias como opções de múltipla escolha: afrodescendente,
índio ou branco. Nesse caso uma exclusão das categorias pardo e negro, bem como a
presença do conceito de etnia.
Após essa pesquisa nos Prontuários, busquei entrevistar as profissionais a fim de
compreender como estas manipulavam esses documentos e as solicitações de classificação
racial requerida pelos mesmos, uma vez que essa relação com tal prática profissional pode
auxiliar no entendimento dos próprios dados quanto ao preenchimento dos prontuários. De
acordo com as profissionais, o Programa não utilizava o documento de coleta dos dados
qualitativos e quantitativos, por não considerá-lo relevante para a sistematização do
diagnóstico e do acompanhamento, também pela eleição de prioridades, dado a sobrecarga
de trabalho. Conforme uma das profissionais,
vem de antigamente. Eu entrei aqui em 2004, quando eu entrei
aqui, tinha esse esquema de fichas, que era muito
negligenciado. Quando estava na pasta, não estava preenchido,
muitas vezes nem estava na pasta. Não tinha uma rigorosidade no
preenchimento daquelas fichas. Depois de algumas reuniões que a
gente teve esse ano, o ano passado é que voltou a ter esse critério
de preencher fichas de todos os casos e tal (Psicóloga III).
Parece-me que a “negligência”, conforme expressão da psicóloga, não se refere
apenas ao preenchimento do dado racial, mas ao próprio trato com o preenchimento das
referidas fichas que traçam o perfil social e econômico bem como do tipo de violência
sofrida das pessoas atendidas pelo programa Sentinela. O que novamente evidencia uma
atenção menor para a constituição de uma documentação detalhada de informações
referentes as crianças e adolescentes atendidos que esteja para além do caso de violência
em si.
Quanto a relevância da informação quanto ao quesito raça-cor na prática do
atendimento as crianças em contextos de violência, a assistente social responde:
Na prática?Eu penso que não. Porque agente atende a família
como um todo, todas as crianças, independente de cor, raça. A
gente enfoca mesmo na questão da violência. Uma questão de
estatística, de classificação mesmo de dados quantitativos para
classificar mesmo. A gente todos sem distinção de cor. Em mais
para classificar estatisticamente. Essas fichas elas ocorreram por
isso. Eu penso que assim quando foi planejado, não se pensou,
porque para gente a gente atende mais o foco da violência não o
foco da raça. (Assistente Social II)
uma defesa na resposta da profissional quanto a realização de um atendimento sem
distinção de cor como um dado positivo, supostamente por relacionar essa prática com uma
ausência de racismo no interior do atendimento do Programa Sentinela. também uma
defesa quanto ao foco das práticas institucionais ter como “focos” a violência e não a raça.
Parece que a violência denunciada está “descolada” das múltiplas experiências dos sujeitos
em relação ás práticas outras de violência, mais sutis e não menos dolorosas e destrutivas
como no caso do racismo. Desconsidera-se a relação do fenômeno da violência com as
diversas hierarquias sociais entre os sujeitos, e, portanto torna mais vulneráveis uns que
outros.
Com eu te falei, nesse qualitativo assim, segundo gênero e raça, vai
servir de qualquer forma para produzir números. Apenas números.
Não é uma informação necessária. Se a gente olha e lê, existe raça
para classificar, para pontuar. Mas para que classificar? Vai servir
para que? Nem eu sei para que. Por Deus do u! É como eu digo
para ti, para mim é uma questão burocrática. Preenchi ali, mas
isso não vai te servir para nada. (Assistente social I)
O desconhecimento da função do dado parece não ser uma prerrogativa individual,
mas presente em todas as respostas coletadas. A ausência de reflexão por parte das técnicas
quanto a relevância do quesito cor para pensar o atendimento a infância no Programa
Sentinela, pode ser resultado da soma das variabilidades nos documentos oficiais quanto a
informação do quesito raça-cor que produzem dados sobre a infância em contextos de
violências, ao lado da complexidade das relações raciais que informam a composição das
categorias de classificação materializadas nestes mesmos documentos.
De fato o próprio tratamento dado à classificação racial nestes documentos oficiais,
com variáveis não padronizadas, nem mesmo com o próprio IBGE, órgão máximo de
caracterização demográfica, resulta de um discurso que, ao mesmo tempo em que assume a
existência dessas diferenciações nas relações sociais, ainda resiste em reconhecê-las. Pela
materialização de dados estatísticos, é possível vislumbrara que uma disputa de poder
inserida também, ou principalmente, no discurso teórico e no exercício prático da
classificação racial.
Nesse sentido a declaração de cor tem sido objeto de diversos estudos que visam
enfocar as determinações macroestruturais, e os resultados desses estudos evidenciam a
existência de uma ligação estreita entre as declarações e as tentativas individuais ou
institucionais de branqueamento (Piza & Rosemberg, 2003). Entretanto, a autora destaca
uma carência de estudos que focalizem os aspectos microestruturais, pois,
neste nível, percebemos a lacuna existente na compreensão da
aplicabilidade da terminologia racial dos censos e a sua reinterpretarão
pelos sujeitos na incessante troca entre o olhar de si e o olhar do outro que
(in)formam o campo da identidade racial (Piza & Rosemberg, 2003: 93).
Portanto mesmo que as profissionais entrevistadas tenham alegado desconhecer as
categorias do IBGE sobre a classificação quanto a cor, e a sua relevância para as práticas de
atendimento no Programa Sentinela, nenhuma delas negou a existência das raças.
Raça? Raça para mim tem um pouco a ver com as características
da pessoa, da raça branca, da raça negra, do índio. Características
de cor, tipo de cabelo, os olhos, nariz, boca, estatura. Algumas
características, assim físicas, mas também da questão cultural. De
aprendizado, de cultura diferente. Para mim a minha definição
seria isso. Em termos de cultura mesmo. De maneira de lidar, de
conversar eu acho que isso tem muito a ver também com a cultura
que essas questões que vem, que as pessoas que tem determinada
raça, tem determinada cultura. Acho que as coisas se relacionam,
se complementam. (Psicóloga II)
Surpreendeu-me bastante a tranqüilidade e fluidez com que todas apresentaram o
sistema de classificação racial e as categorias que as mesmas elaboram. Talvez por que ao
realizar as atividades de campo, as experiências anteriores dos que pesquisam geram
expectativas em relação àquilo que vamos encontrar no universo investigado. Nas minhas
vivências anteriores no campo profissional, mais especificamente nos cursos de formação
sobre a temática das relações raciais e educação, quando as educadoras apresentavam alto
grau de escolarização, estas quase sempre negavam a existência das raças sob qualquer
prisma, tendo como principal argumento a miscigenação. No Programa Sentinela, em que
as entrevistadas são psicólogas e assistentes sociais, em sua maioria com especializações e
mestrados, eu esperava a mesma alegação e, sobretudo, o surgimento da discussão da
miscigenação. Entretanto, nada disso apareceu, em todos os discursos as profissionais
entrevistadas afirmaram a existência de raças, definindo-as inclusive.
No caso da profissional entrevistada acima, ao conceituar raça, ela recuperou a idéia
das três raças originais: branco, negro e índio (Da Mata, 1987). Com isso, destacou as
características observadas no corpo, como cabelo, nariz, olhos e boca e a cor da pele. Ao
afirmar que junto às características físicas uma relação com a cultura, evidenciou uma
concepção de raça que é, fundamentalmente, embasada nas teorias raciais do século XIX,
conforme apresentado nas ginas anteriores, tendo em vista que um dos pressupostos
fundamentais destas teorias consistia em relacionar as informações fenotípicas com aquelas
de caráter comportamentais. Por certo, o conceito de cultura é complexo, mas apreende-se
no discurso da entrevistada que se trata também de uma questão de comportamento, pois,
para ela a raça se revela “na maneira de lidar, de conversar”.
Outra entrevistada afirma,
Olha, eu acho que esse conceito de raça vem de tão longe. Ele
vinha das imigrações, daí as diferenças, né. Da vinda dos escravos,
da mistura. Dos europeus. Daí começaram a diferenciar as raças.
O que é exatamente...eu acho que hoje em dia raça ficou como um
estabelecimento de padrão de cor e culturas. Em função da
diferença de cor de pele foram se formando diferentes culturas. Em
função das origens, das raças que vieram os escravos, os europeus,
os alemães, que tem uma cultura de um determinado jeito. Ainda
hoje, os alemães, branco igual aos italianos, mas com uma cultura
diferente. Em relação a raça mesmo, quando se fala em raça na
cabeça imediatamente me vem as diferenças de pele. (Psicóloga III)
Além de ratificar uma explicação sobre raças com resquícios das teorias raciais do
século XIX, esta entrevistada busca uma referência na história, demonstrando que se trata
de uma intervenção humana, o que, para ela justifica a atitude de “começar a diferenciar as
raças”. Entretanto, o que merece destaque em suas colocações é o fato de não nomear o
grupo negro, ou indígena. Suponho que sua referência aos negros esteja embutida no termo
“escravo”. Ao olhar para o negro definindo a sua “raça” a partir de seu lugar social, a
entrevistada não o coloca na condição de sujeito, mas de objeto dentro de uma determinada
estrutura social, em que não há nem origem, nem cultura de fato.
Entretanto, quando localiza as imigrações, também um fenômeno social, nomeia
não apenas a origem geográfica bem como os grupos nacionais e suas respectivas culturas.
ainda uma permanência de leitura sobre o lugar do negro, no período escravocrata da
história brasileira, atrelada à sua condição na esfera da produção econômica, sem
reconhecê-lo como um sujeito produtor de cultura e de conhecimentos nesse período da
história nacional, uma espécie de cristalização da vida e do desenvolvimento desse ser
social durante o período da escravidão. Apesar da busca dos argumentos históricos para
definir o que vem a ser raças, do esforço de explicar a idéia de raça como um distintivo
criado para explicar as diferenças, ao fim do discurso, a profissional revela que, o que
imediatamente lhe vem a cabeça são as diferenças de pele.
Ao ser questionada sobre o que é raça em seu ponto de vista, uma das
psicólogas responde:
Etnia. Origem. Origem. Pai, mãe, vó, bisavó. País de origem,
nacionalidade esse tipo de coisa. A origem dos ancestrais é aquilo,
né. Não. Porque até não existe um padrão, né. Por exemplo, eu
sou italiana. Ah então tu tem que ser loira de olhos azuis e com a
pele branca”.Eu tenho a pele branca, não sou totalmente morena,
tenho olhos castanhos. Então não tem como colocar um padrão aí:
“É isso que defini”. Na realidade eu nunca parei para pensar
nessas questões. Eu acho que é a primeira vez que eu to
parando.(Psicóloga I)
Essa profissional apresenta uma definição completamente distinta para nomear a
raça. Relaciona raça a origem com nacionalidade, buscando apontar o conceito de etnia,
mas, conclui sua fala afirmando que, de fato, nunca parou para pensar nisso. Ao pautar sua
compreensão sobre raça associada ao conceito de etnia, a entrevistada destaca a idéia de
origem, ligada a nacionalidade. Contudo, na sua alocução faz referências apenas ao
universo europeu. Identificando-se como italiana destaca que a condição de sua
nacionalidade descendente não implica, necessariamente, em ter o cabelo loiro e os olhos
azuis.
Esse conceito de etnia de acordo com Fenart (1998), foi introduzido nas ciências
socais no século XIX, na França pelo zoólogo Vacher de Lapouge, visando
prevenir o erro de que consiste em confundir raça- que ele identifica pela
associação de características morfológicas e qualidades psicológicas-,
com um modo de agrupamento formado a partir de laços intelectuais
como a cultura ou a língua ( Fenart, 1998:34).
No entanto, é no surgimento fortalecido desse conceito, nos anos de 1970, que
possivelmente a entrevistada faça a sua alusão sobre o conceito. É a partir desse período
que o termo etnicidade vem assumindo um lugar cada vez mais relevante nas ciências
sociais. Para alguns estudiosos não se trata de um fenômeno novo, mas sim da adequação
da própria ciência social a um feito sempre presente na história humana, sob o qual teóricos
funcionalistas e teóricos da modernização apostaram na extinção, que é o da diferenciação
entre os grupos humanos mesmo dentro de um espaço nacional. Percebe-se com muita
freqüência a simples substituição do termo etnia por raça. O que, além de constituir um
problema teórico, no caso de não apreensão do conceito por quem o expressa, pode também
acobertar, nos espaços mais letrados, as condições objetivas da sociedade em que os
significados atribuídos a raça ainda estão operando.
Até aqui, no discurso das profissionais entrevistadas, a expressão raça aparece mais
que a etnia, e a primeira sempre ligada a informações fenotípicas. Os corpos, no discurso
racializado são os proprietários das inscrições que possuem significados singulares, dentre
as quais, o conceito de raça, a partir de seus componentes distintivos como cor da pele e
cabelo, que operam na produção da realidade social e atingem, ininterruptamente, o nosso
modo de produzir as relações sociais, de construir sistemas de hierarquia entre os próprios
corpos. A classificação racial, portanto hierarquiza os sujeitos, a partir de elementos de
poder simbólico, classificando-os por meio de atribuições arbitrárias de caráter racial.
Criamos, com isso, uma relação direta entre posição dentro do sistema classificatório e
legitimação de lugares sociais para os indivíduos. Portanto,
a operação classificatória não se exerce num contexto de neutralidade,
sendo assistida por uma assimetria profunda. Ela está imbuída de uma
relação de dominação simbólica entre um ‘sujeito’ que categoriza, ou
classifica, e um objeto que é categorizado ou classificado. Mas essa
operação, (...) tem sido naturalizada, de forma que o produto de uma
construção social aparece como fundamento natural de uma divisão
arbitrária (Petruccelli, 2003:13).
Como toda a relação de dominação simbólica, a operação classificatória opera
também uma violência simbólica. A crueldade desse tipo de violência está no seu poder
arbitrário, que condiciona a cognição dos sujeitos a respeito de si mesmo e das estruturas
objetivas presentes nas relações sociais que lhe são contrarias por impingir-lhe estigmas e
discriminações. Nesse sentido, o trato com o tema das relações raciais demanda a
necessidade de aprofundar as investigações sociais sobre o sistema simbólico e suas
estruturas classificatórias, a fim de que as sínteses explicativas produzidas nos espaços
acadêmicos estejam o mais próximo possível das experiências vivenciadas nas relações
cotidianas. No caso do Programa Sentinela, o sistema de classificação racial, entendido
como um sistema simbólico, está em constante operação, não apenas pelos documentos que
dão a ele visibilidade, mas, principalmente, pela refinada presença da raça no discurso das
profissionais. Portanto,
a mera menção à palavra raça empenha a nossa compreensão de uma
diversidade permanente, em conseqüência uma concepção de
“diversidade”(...) as críticas ao termo raça e as revelações de sua
redundância como construção analítica desestabilizaram e desmembraram
a sua compreensão como um critério com sentido nas ciências sociais e
biológicas, mas enquanto as conversações contemporâneas continuarem a
incluir a palavra, seu potencial persistirá, isso ocorre porque o termo raça
propõe descrever algo, mas inclui simultaneamente a diversidade, a língua
é tanto um meio, quanto um constituinte ativo do processo de racialização
(Caschimore, 2001: 452).
De fato as objetivações da realidade social são efetivadas também por aquilo que
proclamam. Os sistemas expressos de um modo formal na linguagem organizam também a
própria vida social, mediados pelo corpo. Desse modo,
a linguagem é capaz de se tornar o repositório objetivo de vastas
acumulações de significados e experiências, que pode então preservar no
tempo e transmitir as gerações seguintes (Berger & Luckmann, 2004: 57).
Na ação classificatória, o universo simbólico é acionado. A linguagem, a palavra
mesma se transforma em instrumento revelador desse universo. É por meio dessa
linguagem que expressa como as profissionais apreendem, ao mesmo instante que elaboram
e produzem, o sentido nas relações sociais das questões referentes a raça e as seus
desdobramentos no cotidiano de atendimento. Dos elementos apontados nas entrevistas
para a refletir sobre como realizam a classificação racial dos sujeitos atendidos no
Programa Sentinela, ficou evidente que a cor da pele é o principal elemento sobre qual as
profissionais realizam a sua análise. É também a esse elemento que atribuem significados
culturais.
Cor da pele que de informação morfológica inscrita no corpo das pessoas que são
atendidas no referido programa se transforma em dado de pertencimento racial. Esses
corpos ao chegar ao Programa Sentinela na condição de população alvo, são corpos
marcados na maioria das vezes pelas violências sexuais, físicas e psicológicas, conforme as
classificações utilizadas pelas próprias profissionais. Entretanto quando se trata dos corpos
negros, falamos de corpos duplamente marcados, pelas violências denunciadas no
Programa e pela própria experiência do corpo negro que ao ser classificado racialmente
recebe um lugar social, cultural e político dentro do próprio programa que tanto pode ser-
lhe negativo quanto positivo, dependendo principalmente do entendimento de quem
classifica quanto as relações raciais.
Portanto o corpo tem um papel e um sentido fundamental na categoria raça social, e
as suas características diferenciadoras assumem significados simbólicos, precisados a partir
das estruturas de dominação a que estes corpos estão submetidos nas relações socais. São
corpos sujeitados às violências de muitas ordens, entre as quais, as simbólicas que o
aprisionam em determinados comportamentos e que, por razão racial, passam a ser vistos
como naturais. Para Bourdieu (2005), algumas aparências biológicas e o persistente
trabalho coletivo de diversas instituições, incorporados por diversos agentes sociais para
“socializar o biológico e biologizar o social”, conjugam-se para produzir nos corpos e nas
mentes uma inversão entre as relações de causa e efeito, fazendo com que uma construção
social pareça natural, quando de fato é resultado de uma arbitrária divisão presente no
princípio da realidade e da sua representação.
Tratando-se do corpo negro, um exemplo interessante seria a interpretação presente
nas relações sociais, que se referem ao talento natural destes sujeitos para a música, ou
melhor, para um tipo específico de música, ou um tipo especifico de dança, tendo como
informação exclusiva para essa avaliação o componente somático de uma cor específica de
pele atrelada a alguns outros caracteres físicos, que juntos configuram um tipo classificado
a partir da categoria raça social. Logo,
precisar que as pessoas não percebem as diferenças raciais, mas somente
diferenças fenotípicas de cor, de cabelos, de ossatura e que estas foram
escolhidas de maneira contingente, subestima a construção social e
histórica da própria idéia de que existem diferenças físicas significativas
e daquilo que é tipicamente pensado como variação fenotípicas (Wade,
citado por Fenart, 1997: 42).
Nesta perspectiva, o Programa Sentinela é mais um espaço social que coopera para
a construção do corpo como uma realidade racializada e como depositário de visões e
divisões raciais. Conseqüentemente suas práticas estão sujeitas a expressões de violências
de caráter racial que segregam e discriminam.
II CAPÍTULO
Mas é preciso ter manha,
É preciso ter graça,
É preciso ter sonho sempre
Quem traz na pele esta marca
Milton Nascimento / Fernando Brant
2 O sistema de classificação racial e as cores das crianças e
adolescentes em contextos de violências
Neste capítulo, minha reflexão vai pontuar os aspectos relevantes observados
no decorrer da pesquisa de campo, para problematizar o sistema de classificação racial que
atravessa as práticas de atenção às crianças e aos adolescentes inseridos em contextos de
violências. Minha intenção é trazer para o debate como os signos raciais ganham sentidos
no modo de estruturação da sociedade, desde os primeiros registros que vão nomear as
cores dos sujeitos e inscrever em seus corpos as marcas das discriminações e dos
sofrimentos.
O aspecto harmonioso da sociedade capitalista, que historicamente se insiste
em pregar através dos discursos públicos e de outros artefatos culturais, carrega como
intencionalidade convencer as pessoas de que todas são, de fato e de direito, iguais. Ou
seja, que não importam as diferenças que marcam as populações, porque neste mundo
“espaços para todos”, ainda que a maioria não alcance os estratos inclusivos desta mesma
realidade. Não atribuir importância ao quesito raça-cor nas práticas de atenção aos sujeitos
violentados, denota também um desconhecimento das conseqüências impetradas em relação
ao lugar dos indivíduos na sociedade, como se as violências chegassem para todos com as
mesmas propriedades e a todos igualmente gerassem os danos de uma corporeidade
ultrajada. Nessa ausência cultural, os pobres, os negros, as mulheres, as pessoas com
severas limitações físicas e mentais, os não escolarizados, por exemplo, são criminalizados
nesse processo porque são, entre outras coisas, responsabilizados por suas dores.
Eis porque é importante construir uma reflexão que contemple o modo como
as desigualdades raciais evocam compreensões e ações. Guardamos ainda muitas heranças
da cultura patriarcal e entre suas frestas estão as violências contra as mulheres e as meninas,
como um acontecimento majoritário que dilacera seus corpos e ultraja suas humanidades.
São valores que impregnam o imaginário social e que encontram eco na impunidade, no
sentimento construído de que o sexo feminino é frágil e pode ser possuído mesmo contra a
sua vontade. Para as mulheres e as meninas negras, estas desigualdades se ampliam quando
são corroboradas pelo ideário de inferioridade, o qual caricatura os sistemas de
classificação e distribuição nos espaços desta sociedade.
2.1 Breve olhar sobre as desigualdades entre a infância negra e branca
Freitas (2003), ao analisar as imagens de infância nas obras Casa Grande & Senzala,
Sobrados e Mocambos, de Gilberto Freyre, produzidas nos anos de 1930 e consideradas
importantes sínteses sobre a constituição das relações sociais no Brasil, destaca a presença
dos signos raciais. Segundo ele, percebe-se uma hierarquia social, em que os sujeitos têm
valores distintos, determinados a partir da geração, do gênero e da raça. Os adultos, em
especial o homem branco adulto, seguido pela criança branca, “o menino branco” e na
última escala a criança negra, “o moleque”. Para o autor,
descobre-se um círculo vicioso naquela sociedade, ou seja, em escala
perpétua alguém sempre deveria estar submetido a alguém, mesmo que o
subjugado, por um instante pudesse até ser admirado. Ser criança em
qualquer situação significava estar em algum elo da cadeia
agressor/agredido com variação e troca circunstancial dos papéis (Freitas,
2003:259).
Ao circunscrever a estrutura da sociedade patriarcal e escravocrata às relações de
violências entre todos os sujeitos que a compõe, Freitas destaca que a criança, negra ou
branca, durante o período colonial, esteve dentro deste círculo permanente de violências,
ora na condição de agressor, ora na condição de agredido. Ainda que identificadas entre si
pela condição etária, podemos inferir que a raça era um fator de diferenciação entre as
mesmas, uma vez que se tratava de uma sociedade de produção escravista, que justificava a
prática da escravidão com argumentos de base racial. Portanto, o lugar na chamada “cadeia
de violências” da criança, era delimitado pelas variações etárias, e, sobretudo, era
distinguido pelos componentes raciais.
Esse recorte apresenta a diferença histórica entre as crianças brasileiras, a partir
do diferencial racial, marcado pelo período escravocrata. Este, por sua vez, definido pela
condição do fenótipo, fala de crianças negras e brancas e de relações de poder constituídas
a partir do sistema de produção e dominação sob o qual o país se organizou. Essa imagem
sobre a infância perdurou por um longo período histórico e social e sobre ela se constituem
diversas práticas de atenção às crianças. Deste ponto de vista, a imagem da infância negra e
branca como infâncias distintas, elaborada pelo grupo dominante, orientou as concepções
políticas de atendimento àquelas inseridas em contextos de vulnerabilidades social. O lugar
da infância negra e da criança se produz também sob os pilares das relações patriarcais e
escravocratas a que Freitas se refere. Questionar como se tem operado os significados
anteriormente arraigados na estrutura social e as suas transformações na política de
atendimento a infância atual do ponto de vista racial, nos a questionar também como o
racismo tem atuado sobre essa infância.
A produção de dados sobre as condições de existência do contingente de crianças e
adolescentes brasileiros é um desafio premente na constituição e elaboração de proposições
políticas para a infância. Somente a partir de 1980, é que o IBGE passou a produzir
informações sobre essa parcela da população. A partir de pesquisas desenvolvidas pelo
instituto (Censo demográfico de 1970, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio/PNAD
1977 e 1981e Estudo Nacional de Despesa Familiar1974/75) elaboraram-se os primeiros
trabalhos acerca do perfil socioeconômico da população infantil e adolescente do país. Em
1987 o IBGE criou o primeiro banco de dados com informações sobre essa população,
agregados em um conjunto de tabelas intitulado “Sistema Continuo da Situação Sócio
Econômica de Crianças e Adolescentes”. Compostas a partir dos temas gerais: família e
rendimento; educação; trabalho e condições de saneamento. Estes temas foram
redimensionados por cinco variáveis de controle: situação de domicilio, rendimento
familiar per capta, grupo de idade, gênero e cor. Conforme Sabóia (2001:5), estas foram
utilizadas para estabelecer os recortes fundamentais à compreensão das diferenciações das
condições de vida entre grupos de crianças e adolescentes.
O Instituto Nacional de Pesquisa em Educação (INEP); o Instituto de Pesquisas
Aplicadas (IPEA), e o Instituto Brasileiro Geográfico de Estatístico são alguns dos órgãos
responsáveis pelas produções de dados que evidenciam as desigualdades observadas a
partir dos grupos de raça-cor. Em relação às condições educacionais da população em idade
escolar, alguns resultados apontam sinais de desigualdades no processo de escolarização
entre estes grupos. Dados produzidos a partir do Sistema Nacional de Avaliação da
Educação Básica (SAEB), publicados em 2001, apresentam a seguinte configuração de
dados comparados entre a população branca e negra quanto ao quesito raça-cor: ao final da
série do Ensino Fundamental temos 12% de negros e 44% de brancos; na série, 8%
são negros e 46% brancos; e na série do Ensino Médio contamos com apenas 3% de
jovens negros, em relação a 54% de jovens brancos. O número decrescente da população
negra na medida em que aumenta o nível de ensino, retrata um aspecto da realidade das
crianças e jovens negros em idade escolar, enfatizando que um essa população está em
desigualdade no exercício de direito universal, que é o acesso e permanência na educação
básica.
No Relatório Situacional da Infância e Adolescência Brasileiras, resultado de
pesquisa realizada pelo UNICEF a partir de censos nacionais produzidos pelo IBGE, o
índice de analfabetismo entre crianças e adolescentes em idade escolar (7 a 14 anos) é de
12,4%. Quando os dados são desmembrados a partir do quesito raça-cor, ao comparamos as
populações pretas e pardas com a branca: 17,2 % é de pretos e pardos e 7,4% de brancos,
indicando que não leitores entre a população jovem é amplamente composta por pessoas
negras. Semelhante aos resultados do SAEB supracitados, estes dados apontam também
para uma relação de desigualdade entre os dois maiores grupos populacionais do Brasil, na
esfera educacional. Desigualdade que se revela já na população infanto-juvenil.
As condições socioeconômicas também refletem essa desigualdade. Das 45% de
crianças e adolescentes brasileiros, que vivem com renda per capta familiar de meio salário
mínimo 32.7% são brancos, 57.7% são pretos e pardos (UNICEF, 2003). Esse dado reflete
uma situação bem mais complexa que penso pode ser respondida a partir da
compreensão das praticas racistas presentes em nossa estrutura social. Tratando-se da
população infantil, no caso econômico especificamente, esta tem sido submetida ás
conseqüências dessa estrutura, dada a relação entre as dependências econômicas do adulto,
que é garantida a criança em lei, e as praticas racistas que interferem na empregabilidade
deste adulto quando é negro. Essa disparidade encontrada entre as condições
socioeconômicas da população negra e branca, no Brasil, foi apresentada de modo
contundente a partir de dados com corte racial extraídos do Relatório Sobre o
Desenvolvimento Humano do PNUD (Paixão, 2001).
Observa-se neste breve panorama das condições socioeconômicas da população
brasileira, que é constante a desigualdade situacional quando consideramos os dados a
partir da variável raça-cor. Contudo, é possível encontrar em muitos discursos,
considerados de senso comum ou não, concepções que insistem em afirmar que a questão
racial não é um fator relevante na geração de desigualdades, ou seja, que o principal fator é
a classe social. Penso que não há fatores que se sobreponham, mas que se reforçam
mutuamente. Para Zular (1997:31), quando as discriminações raciais combinam-se com as
discriminações contra o pobre, têm-se as mais claras situações de exclusão em diversos
setores, por variados processos. Tratando-se da infância, a construção de um mapeamento
que comporte a variável raça-cor, nas diversas situações em que está imersa esta população,
é um desafio de relevância fundamental para a promoção de direitos da criança e a
constituição de políticas de enfrentamento das desigualdades sociais geradas por
discriminações raciais.
No entanto, a visibilidade dessas desigualdades depende da incorporação
sistemática da variável raça/cor nos programas, projetos e políticas desenvolvidas nos
diversos setores que tratam com a população infantil. De acordo com o Relatório
Situacional da Infância e Adolescência Brasileira, um contingente de 33,9% de crianças
e adolescentes componentes da população brasileira. De acordo com o quesito raça-cor esta
população se caracteriza por 51.2% de brancos, (aproximadamente 31 milhões de crianças e
adolescentes); 48,1% de pretos e pardos, totalizando 29 milhões de crianças e adolescentes
negros
6
. Ainda que esta variável esteja sendo explorada nos censos e pesquisas de porte
nacional, que se questionar como esta tem se estabelecido para classificar a população
infantil nas políticas locais. De acordo com Soares (2001), as concepções de relações
raciais e a realidade social estão presentes, de modo explícito ou implícito, na elaboração de
políticas ou programas sociais. Os significados que os sujeitos responsáveis pelo desenho
6
conforme “a tradição da sociologia e da demografia consideramos negros ou afrodescendentes o conjunto de
pardos e pretos”, (relatório UNICEF pg. 56)
da política, do programa ou do projeto atribuem às diferenças observáveis entre os distintos
grupos que compõe a sociedade, passando a distinguir quando estas o produtoras de
desigualdades nas relações sociais é que poderão ser incorporadas na formulação do
problema que se pretende abordar por meio dessas mesmas políticas.
Estruturado em uma sociedade em que se considera a população nacional resultado
das misturas entre os grupos raciais, isto é, da miscigenação, o sistema de classificação
racial brasileiro é flexível e fluído. As múltiplas classificações que contém em seu interior
resultam da complexidade do discurso da mestiçagem, que se organiza, a despeito dos
diversos grupos raciais que compõe o Brasil, centralmente em torno do binarismo negro-
branco. Nem negros, nem brancos “puros”, somos resultados da mistura, somos morenos,
pode ser uma síntese popular do discurso da mestiçagem. Entretanto, a classificação
“moreno” está dentro do binarismo central do sistema, que é o negro-branco. O exercício de
classificar, dentro deste sistema, caracterizado no discurso pelo hibridismo, é pontuado por
diversas interrogações, tendo em vista as múltiplas variáveis que o definem, tanto do ponto
de vista social, quanto do subjetivo. No Programa Sentinela, onde desenvolvi minha
pesquisa, observa-se a realização da classificação racial por hetero-atribuição, isto é, não é
o sujeito classificado que se auto-declara dessa ou daquela cor, mas, aquele que o classifica.
Nos casos de auto-atribuição é o próprio sujeito que declara a sua cor para a classificação.
O grau de mestiçagem, a classe e a região, conforme Nogueira (1958) são alguns
dos elementos acionados quando classificamos um sujeito como deste ou daquele grupo
racial. Para o autor,
o limiar entre o tipo dos grupos é indefinido e subjetivo; sua variação se
de acordo com as características de quem observa quanto de quem é
observado; e em função do tipo de relação (amizade, deferência) de quem
observa em relação a quem esta sendo caracterizado (Nogueira, 1954: 80).
Nessa perspectiva, a investigação e a reflexão do sistema de classificação racial no
Brasil supõem buscar conhecer tanto as relações subjetivas entre os sujeitos, quanto sociais,
consideradas sempre a partir de um ponto de vista local. Entretanto,
por mais amplo, ambíguo e abrangente que possa ser o sistema de
classificação racial brasileiro, cada indivíduo guarda em si, baseado em
suas características físicas, onde a principal delas é a cor da pele, um
certo ‘limite’ nas possibilidades, tanto de classificação por terceiros
quanto de autoclassificação (Teixeira, 2001: 64).
Este limite a que se refere à autora, além de ‘guardado no indivíduo’, portanto subjetivado,
é também socialmente construído, e está presente nas estruturas objetivas da sociedade,
uma vez que as diversas características físicas, por si mesmas, não são detentoras de
significado.
Não sendo da natureza física a classificação racial destas características, mas sim
dos processos discursivos que postularam atribuições de significados culturais e sociais
para as diferenças entre os grupos humanos. Inscrita nos corpos dos sujeitos, ainda uma
hierarquia construída a partir do discurso sobre os significados das diferenças raciais.
Portanto, se trata também de um sistema de classificação racial hierárquico. Os sistemas
hieraquizantes, como lembra Da Matta (1987: 85), estabelecem distinções para cima e
para baixo, colocando tudo em gradações, (...) e as hierarquias são o que garante a
superioridade do grupo branco dominante.
O espaço das gradações é justamente onde coexistem possibilidades ambíguas, de
manipulações dos sujeitos com algum conforto, pelo baixo confronto com os pólos
inferiores e superiores. No caso da classificação racial, este espaço é o da morenidade, do
mestiço. Nesses casos podemos encontrar para um mesmo sujeito classificações raciais
distintas, ora na direção do grupo dominante, ora na direção dos grupos dominados;
porém a amplitude de variação dos julgamentos, em qualquer caso é
limitada pela impressão de ridículo ou de absurdo que implicará uma
insofismável discrepância entre a aparência de um individuo e a
identificação que ele próprio faz de si ou que outros lhe atribuem
(Nogueira, 1954:80).
Os sistemas de classificação racial, ainda que estruturados a partir de referenciais
locais, organizados a partir de relações sociais, e apresentando-se de distintamente em
diversos países, portanto não universal, aparece como um denominador comum nas
sociedades contemporâneas. Especialmente onde o expansionismo colonial se desenvolveu,
tanto do ponto de vista do colonizador, quanto do colonizado, este sistema configurou-se a
partir de um conceito de raça, emergido no discurso do racismo científico.
2.2 Tanto branco quanto preto, depende de quem vê: aspectos relevantes
do sistema de classificação racial no Brasil
É importante destacar que não são todas, mas algumas variações fenotípicas que
passaram por um processo de racialização. Para Miles (2005), a noção de racialização é
utilizada para se referir a qualquer processo em que a idéia de raça é introduzida para
definir e qualificar uma população específica, suas características e suas ações. As diversas
diferenças são diferenças socialmente construídas e não são, sejam quais forem as
variações fenotípicas que se tornaram racializadas, mas sim aquelas que se salientaram na
expansão colonial européia na África, na Ásia, no Oriente Médio e na Austrália. (Wade,
citando Fenart, 1997: 42). Portanto, uma seleção a partir de movimentos econômicos e
expansionistas de quais características físicas seriam racializadas. que se considerar
ainda, que, a construção dos próprios conceitos de raça biológica e das suas atribuições e
competências culturais, cognitivas, e de desenvolvimento foram construídas como sínteses
explicativas pelos grupos humanos que exerciam a dominação.
Em meados do século XX, por volta de 1947, a UNESCO inicia um processo que se
estende até 1964, em que biólogos e antropólogos debateram a questão racial. Em julho de
1950, tem-se a Primeira Declaração Sobre Raças. De acordo com Santos (1995:129) o
documento
1. enfatiza que as diferenças biológicas entre grupos humanos
são devidas à operação de forças evolutivas e que a espécie
humana é constituída por ‘populações’, na dimensão
neodarwiniana do termo; 2. raça designa um grupo ou
população que se caracteriza por concentração de partículas
hereditárias (genes) ou atributos físicos, que podem variar ao
longo do tempo; 3. a história humana e estudos biológicos
demonstram que o espírito cooperativo é natural e arraigado
nos seres humanos (ou seja, o ódio racial não lhes seria uma
característica intrínseca, natural); 4. os grupos humanos não
diferem em suas características mentais inatas, seja
inteligência ou comportamento.
Essas nteses resultam de um debate conceitual em que raça aparece como uma
categoria que pode ser substituída pelo termo “população” ou grupo humano”, um
apontamento significativo desta discussão para a categoria raça é a contundência com que
se afirma no documento que “os grupos humanos” (raciais), não diferem nas capacidades
intelectuais e comportamentais. O que caracteriza a principal função do documento, nesse
sentido, que é se tornar um instrumento teórico inicial de enfrentamento ao racismo com
conseqüências nefastas vivido ao extremo na experiência da II Guerra Mundial.
Nos anos de 1950, a produção acadêmica sobre as relações raciais no Brasil,
majoritariamente dominadas pela perspectiva da mestiçagem como instrumento que balizou
a superação do racismo, passa por uma significativa alteração, de fato a primeira vertente
constituída a partir dos estudos dos anos de 1930, em que a obra Casa Grande & Senzala
(Freyre, 1930) que tece uma tese interpretativa sobre as relações raciais no Brasil, passa por
importantes alterações. O contexto social em que se inscreve essa produção sociológica é
marcado por diversos debates. Estes foram iniciados nos anos pós-abolição e tiveram
grande força até meados dos anos de 1930. Envolveu cientistas, profissionais do direito, da
medicina, da antropologia. Instituições como museus etnográficos e de história natural,
hospitais e escolas de medicina e direito têm como pauta o tema da miscigenação existente
entre as raças no país. Tendo em vista as teorias raciais, predominantes nos paises
europeus, a realidade não era vista como promissora para a instauração de um processo de
civilização a que se propunha a república. Considerava-se que a miscigenação, numa
perspectiva do Darwinismo Social produzia a degeneração dos grupos humanos. Nesse
sentido, a elaboração da mestiçagem como uma teoria capaz de explicar a amistosa relação
inter-racial no país foi uma saída criativa e original do ponto de vista internacional
(Schwarcz, 2004).
Com o objetivo de financiar pesquisas no Brasil no âmbito da sociologia para
investigar como as relações inter-raciais se desenvolviam aqui, o Projeto UNESCO (1953-
1956), alavanca um conjunto de pesquisas empíricas, em diversas regiões do Brasil. Isto
porque, a despeito do Brasil possuir uma configuração inter-racial, de passado escravista
inclusive, não enfrentava nenhum conflito racial interno e violento, parecendo ter
constituído um modelo de relações raciais não fundamentadas em perspectivas racistas aos
olhos da comunidade internacional. Enquanto esta vivia na Europa, na América do Norte e
na África conflitos raciais, segregacionismo, e as conseqüências do pós guerra em que o
racismo teve um papel fundamental.
As pesquisas empíricas realizadas com financiamento do Projeto apresentaram
como resultados a existência de mecanismos de discriminação e racismo presente na
estruturação das relações sociais e inter-raciais. Na medida que a “gente de cor” ou os
negros apresentam um fenótipo menos miscigenado com a população branca, mais os
mecanismos de racismo e discriminação são evidenciados nas relações sociais (Nogueira,
1985). Neste sentido, a mestiçagem dos corpos de raças diferentes não garante a
mestiçagem das oportunidades, ou da inserção na sociedade de classes nacional, quando as
características do corpo negro não se diluem por meio da miscigenação. Portanto, as
conclusões das pesquisas empíricas produzidas pelo “ciclo de estudos da UNESCO”,
subsidiaram a elaboração de teses que afirmaram a confluência de barreiras de classe e de
cor à mobilidade social e a integração dos negros na sociedade capitalista que se delineava
(Guimarães, 2005).
Em síntese, podemos afirmar que,
é possível englobar a história da pesquisa em relações raciais em
duas gerações a primeira geração sustentava a tese da democracia
racial, segundo a qual o Brasil era, de modo único, uma sociedade
que incluía os negros; a segunda geração desafiava a teoria da
democracia racial, argumentado que o Brasil se caracterizava pela
exclusão racial (Telles, 2003, p.19).
Criado este contexto, não necessariamente uma corrente majoritária ou
definitiva, do ponto de vista de consenso mínimo sobre o caráter das relações raciais no
Brasil. No entanto, a crítica quanto a primeira geração, de acordo com Nogueira (1954:77)
é que a tendência do intelectual brasileiro - geralmente branco - é negar ou subestimar o
preconceito (racial), tal como ocorre no Brasil, (...) em contradição com a impressão
generalizada da própria população de cor do país. A segunda geração por sua vez, ao
apresentar como resultado de trabalhos empíricos a existência do preconceito racial,
informado pelo racismo que sustentou e justificou a estrutura social escravocrata até o
século XIX, e sua operação nas relações sociais originando exclusão da população negra foi
ao encontro dos debates provocados por movimentos negros da época. Nas palavras
proferidas no XXXI Congresso Internacional de Americanista de 1954, sobre essa
experiência, Nogueira afirma que pela primeira vez, o depoimento dos cientistas sociais
vem, francamente, de encontro e em reforço ao que, com base em sua própria experiência,
já proclamavam, de um modo geral, os brasileiros de cor (Nogueira, 1954: 77).
Apresentadas resumidamente essas duas grandes correntes do pensamento
sociológico e o cenário em que se configurou o debate teórico, representam a
fundamentação do campo de estudo empírico das relações raciais no Brasil. Pressuponho,
que estas formas de interpretar e analisar as relações sociais, na perspectiva inter-racial
opera de maneira sistêmica, influenciando as práticas institucionais, públicas e privadas
ainda em nossos dias.
Tendo em vista que as estruturas cognitivas dos sujeitos são potencializadoras de
estruturas objetivas, conhecer como essas correntes influenciam as/os profissionais
envolvidos com o atendimento da população multirracial brasileira auxilia na compreensão
de como atuam frente a coleta de informações referentes ao quesito raça-cor. Tanto na
perspectiva de como consideram sua relevância quanto na sua importância na constituição
das políticas públicas. Tratando-se dos profissionais que atuam na garantia, promoção e
proteção dos direitos da criança, e dada a amplitude dos espaços institucionais que operam
na efetivação das políticas de atendimento a infância tais como a saúde, a educação, a
assistência social dentre outras,são múltiplas as vozes bem como são múltiplas as
classificações raciais possíveis de serem elaboradas. Entretanto, essas múltiplas
possibilidades de classificação racial, conforme explicitado anteriormente gravitam entre
os pólos brancos e negros, fundamentando uma hierarquia que ao construir diferenças em
que se valoriza o mais claro e constrange os mais escuros, aponta para a cor das pessoas
como uma referência que estrutura todo um sistema de distinção social.
CAPÍTULO III
A tristeza tem sempre uma esperança
De um dia não ser mais triste não.
Vinicius de Moraes
3 O sistema de classificação racial na infância: produto-
produtor de racismos e de violências simbólicas
Nos entremeios de um sistema de classificação racial e o momento de ser
materializado pela escritura, pelo registro, ali está presente uma pessoa, um sujeito. Essa
pessoa, sujeito que arbitrariamente é situado dentro deste sistema nas relações sociais, ao
ser classificada pelo registro material ou não, passa a receber atributos que foram e
continuam sendo construídos socialmente, que estão relacionados ao lugar ocupado dentro
do mesmo.
Nesse sentido a criança classificada do ponto de vista racial dentro do |Programa
Sentinela está, a priori, submetida a categorização existente no sistema corrente, da qual
não necessariamente é autora, sendo que a posição que é colocada dentro desse sistema de
classificação racial pode inclusive lhe ser contrária, ou prejudicial. Este tipo de
“enquadramento” tanto produz racismo, quanto favorece a permanência de certos tipos de
violência. Portanto, este tipo de “enquadramento” tanto produz racismo, quanto favorece a
permanência de relações de certos tipos de violências. Busco em Bourdieu (2005) o
conceito de violência simbólica para caracterizar, conforme o referido autor, o modo como
essas relações são impostas, embora vivenciadas como se assim não o fossem. O que
ocasiona, nas palavras de Bourdieu (2005), “uma submissão paradoxal” dos sujeitos, pois a
violência simbólica, violência suave, insensível, invisível às suas próprias
vítimas, que se exerce essencialmente pelas vias puramente simbólicas da
comunicação e do conhecimento, ou mais precisamente, do
desconhecimento, do reconhecimento, ou em última instância, do
sentimento (...) uma ocasião única de apreender a lógica da dominação,
exercida em nome de um principio simbólico conhecido e reconhecido,
tanto pelo dominante, como pelo dominado, (...) geralmente de uma
propriedade distintiva, emblema ou estigma, dos quais o mais eficiente
simbolicamente é essa propriedade corporal inteiramente arbitrária e não
predicativa que é a cor da pele (Bourdieu, 2005:8).
O sistema de classificação racial é, sobretudo, um sistema simbólico, que mais do
que expressar materialmente as teorias raciais, se constitui num mecanismo que arma e
organiza as relações de dominação. No caso brasileiro, opera de um modo complexo, uma
vez que, de posse de uma teoria da miscigenação, nega a existência de um ideal de raças
puras (logo o que poderia ser denominado como um sistema racial racista), conforme
observado em outros países do mundo, mas utiliza a idéia da mistura das raças ao explicar
as características singulares de “sua gente”. Atribuindo as características culturais a
determinados grupos raciais idealizados nas teorias raciais do século XIX, através de um
discurso que se revela de diversas formas, mesmo com variações locais, mantém a idéia de
uma divisão dos grupos humanos que está baseada em determinadas variações somáticas,
as quais são relacionadas com as variações culturais e comportamentais.
3.1 Violência Simbólica e o Sistema de Classificação Racial
Dotam-se os corpos de “emblemas e estigmas”, e a partir disso tem-se uma estrutura
que legitima e naturaliza o desenvolvimento de determinados tipos de relações sociais. O
domínio de posições dentro do sistema de classificação racial parece estar sempre em jogo
no caso brasileiro. Um jogo estabelecido a partir da concepção da amalgamação racial que
origina o mestiço, o híbrido, que aparece como aquele que tem possibilidades de se manter
em um lugar intermediário, portanto, capaz de escapar, de transitar dentro dos pólos do
sistema. E na relação social, estar mais ou menos sujeito a operação da violência simbólica.
No Programa Sentinela esse sujeito aparece também aprece:
o pardo seria mais uma mistura, de negro com branco. Um pouco
puxado pro negro, mais seria mais uma mistura (Psicóloga III).
E tem casos no conhecimento dessa família a gente sabe que tem
um ascendente dessa família, que o pai é negro, é mãe é negra,
porque daí, se o pai é negro, a mãe é negra ou vice versa, a gente
classifica como afro-descendente (Assistente Social II).
As pessoas classificadas racialmente não estão apenas em posições distintas, mas,
sobretudo, em posições hierarquicamente diferentes. Umas violentadas pela ficção do
emblema, da superioridade sobre os sujeitos hierarquicamente situados abaixo pela
classificação. Outras, potencialmente esmagadas pelo estigma que as inferioriza
apresentado-lhes um repertório limitado de possibilidades de circulação na vida em
sociedade. Uma das singularidades do sistema de classificação racial brasileiro é que, do
mesmo modo em que é acionado nas relações sociais, também é negado nas práticas
institucionais, como no caso dos prontuários do Programa Sentinela. As profissionais
apontam a cor da população atendida no mesmo movimento em que negam:
Eu não sei nem te dizer quantas pessoas que eu atendo que são
negras, brancas ou pardas. Até pela dificuldade, porque eu tenho
que voltar em todos os atendimentos, para ver quem era quem.
Porque na realidade o ser humano é uma pessoa só. Uma pessoa
que precisa de diversas coisas, e vive da mesma maneira.
Independente da cor que ele tem. Então é a isso que você vai dar
importância e não a cor da pele dele. As coisas que ele, as coisas
que ele pensa. Tu vai descobrir o sofrimento dele. Não a minha
visão de “porque aí, porque ele é pobre”. Eu acho que aqui, nem a
questão de raça, mas a questão de pobreza que é o que mais pega
sabe. Tipo as pessoas não terem comida, morarem em lugares
horríveis. Isso para mim é a coisa que mais me importa. É tentar
fazer as pessoas saírem dessa situação. E qual é a cor e a raça
dessas pessoas? Tem muitas, muitas pessoas de raça negra, mas
não só, tem muitas pessoas de raça branca, misturadas. Nas
comunidades que você faz as visitas qual é a cor das pessoas? A
maioria da raça negra (Fernanda, psicóloga).
Ao afirmar “não saber” quais os grupos raciais que atende, a entrevistada busca na
perspectiva humanista o universalismo dos seres humanos, como justificativa para o “não
saber” das diferenças raciais. Para ela é preciso atenção para com a humanidade na prática
institucional, como uma categoria universal, garantida a todos, independe da “cor da pele”.
Em sua narrativa ela oferece apenas uma distinção entre a humanidade, aquela identificada
como a pobreza. Na prática do Programa Sentinela, destaca que a questão “que mais pega”
refere-se à pobreza, um dado que vem antes da raça.
Os pobres são de todas as raças, entretanto, ela admite que nas visitas que realiza
junto à comunidade, “a maioria é da raça negra”. O reconhecimento ao final do discurso da
“cor dessa humanidade”, que além de empobrecida é negra, aos olhos da profissional, me
levam a considerar a presença de um jogo da classificação racial no Programa Sentinela,
em que o silêncio para com a presença da população negra, não é uma ausência do discurso
da raça, mas a permanência de um discurso em que o não pronunciado possui significados
ambíguos, especialmente por se estabelecer apenas para uma das partes dos sujeitos que
compõe o sistema de classificação racial, o negro.
Nos processos pesquisados percebi que para construir uma reflexão dialogada com
as profissionais sobre a problemática das relações raciais, no interior do Programa
Sentinela, era necessário provocar um questionamento a respeito das implicações que
pautam essa temática, reflexão esta capaz de evocar seus olhares para outros espaços
sociais. Uma vez que, suas falas em relação à questão, no âmbito do Programa Sentinela
estavam centradas apenas na negação do preconceito, da discriminação e do racismo, ou
seja, no não reconhecimento da população negra como público majoritário. Dentro das
possibilidades concretas da pesquisa, assim o fiz, e essa opção gerou espaços significativos
de conversas durante as próprias entrevistas, isso porque, os encontros tornaram-se mais
leves, acabrunhado as resistências e as proteções quanto ao fato de estarem sendo
“investigadas”. Logo, a partir de suas falas busquei direcionar o olhar para as práticas do
Programa Sentinela, na maioria das vezes, provocando compreensões distintas para suas
análises sobre as relações raciais em outros espaços sociais. Toda vez que avaliavam as
relações em outros espaços sociais, elas descreviam situações que afirmavam ser de
racismo e até mesmo de segregação.
Em um de nossos encontros questionei outra profissional a respeito de como as
diferenças raciais se manifestam na infância das crianças, com a intenção de acender a
necessidade de perguntar-se pelos seus afazeres. Em seguida, indaguei como essa questão
aparece no interior do Programa Sentinela, ao que a mesma prontamente responde
eu vejo ainda bastante essa questão do preconceito presente. Essa
questão de que as crianças negras são tidas como as crianças que
são pobres, perigosas, que tem que ta de olho, tem que ta atenta.
Porque se passa uma criança negra as pessoas olham com outros
olhos, se for uma criança loirinha, olham de modo diferente.
Aceitam mais. Eu vejo ainda bastante isso (Bea, psicóloga).
Sua reflexão inicia com a explicitação de que preconceito em relação a criança
negra. Ela é adjetivada, ou melhor, a sua cor ou a sua raça, pois é a “criança negra” que
integra o cortejo daquelas que “são as pobres, as mais perigosas” e que, por isso, merecem
cuidadosa atenção aos seus movimentos. O quesito raça-cor nas relações sociais é
reconhecido por uma das profissionais como um componente prejudicial, quando se trata da
criança é negra.
Ao questioná-la quanto ao modo como essas relações se expressam no cotidiano do
Programa Sentinela, a profissional pondera:
dentro do programa? Não aparece de forma muito marcante isso
sabe. Nos estudos de caso. Se aparece, aparece assim “ah, aquela
pessoa teve dificuldade, porque sabe como é que é? Tem
preconceito”.Por exemplo, uma mãe procurando trabalho, ‘sabe
como é que é né, é porque eu sou pobre, porque eu sou negra”. E
acaba dificultando, porque é mais difícil conseguir as coisas, as
pessoas têm outro olhar. Aparece, mais nesse sentido, mas não em
relação a alguma hostilidade que se faço no atendimento, em
relação a violência que sofreu não sinto isso.
Aqui a classificação racial aparece relacionada não com a criança, mas com as suas
famílias, e mais especificamente, com a mãe. Trata-se das tentativas realizadas pelas ações
do Programa para promover a inserção da população adulta no mercado de trabalho. Nos
estudos de caso emerge a questão sobre o preconceito racial, a classe social dos sujeitos,
apontados como um impeditivo para o ingresso nos postos de trabalho disponíveis. Na
prática do Programa Sentinela, a questão racial destacada especificamente em relação à
população negra por esta profissional, ocorre de modo a afetar diretamente a infância negra,
uma vez que se constitui uma barreira para a empregabilidade daqueles que são
responsáveis pelo seu sustento. Essa realidade que atinge as infâncias negras expressa uma
violência estrutural, que o racismo acontece nas suas múltiplas facetas, operando de um
modo a condicionar as possibilidades dos sujeitos e a acarretar-lhes perdas cumulativas que
não são facilmente legitimadas na sociedade, em nosso caso, sequer relacionadas com o
racismo. Entretanto, a profissional reconhece sua existência, principalmente quando o
quesito raça-cor surge como um problema latente nas práticas do Programa, no movimento
de atenção à infância negra que sofre violências. No discurso ela destaca que não percebe a
presença do preconceito racial como motivador de violência contra a criança e tampouco
nas práticas do Sentinela.
Nesse entrelaçamento de percepções polifônicas, uma outra profissional destaca:
Essa criança (negra) ela vai sofrer muito mais preconceito, to
dizendo essa criança do mesmo nível social, cultural econômico.
Com certeza vai sofrer muito mais, preconceito do que a criança
branca. Sofre. Até porque tudo é uma questão de, de que valores
foram passados para aquela pessoa que ta ali atendendo aquela
criança. A gente percebe na hora de um atendimento num IML, na
hora do médico que ta ali na frente, a escola, a professora. Então
os adultos, de que forma eles vão lidar com aquela criança.
Infelizmente ainda existe sim o preconceito. Nas oportunidades, né.
Dizer que não? Eu estaria camuflando uma realidade. Infelizmente
ainda existe o preconceito.Diferença no tratamento. E até entre
crianças. Eu acho sim que poderia ser repensada, (a informação
raça/cor) porque a partir do momento que vo é classificado
existe assim um outro olhar. Existe sim essa questão sim da
discriminação.(...) eu sempre percebi que raça para mim era uma
coisa que discriminava o ser humano. Isso para mim era uma
coisa que não poderia ser colocada. Seres humanos. Somos seres
humanos. Com eu te falei, nesse qualitativo, segundo gênero e raça,
vai servir de qualquer forma para produzir números. Apenas
números. Não é uma informação necessária (Beatriz, assistente
social).
Ao afirmar a existência de racismo em relação à criança negra, subtende-se
inferência nas relações raciais assimétricas, o que atinge a infância negra de um modo
prejudicial. Em relação a criança branca, a criança negra estará mais exposta ao
preconceito, entendido como uma das tramas que compõe a violência simbólica. Este
preconceito, conforme a Assistente Social I pode aparecer entre os que “atendem a criança
negra”, os profissionais de diversas áreas, e também entre as próprias crianças.
A classificação racial baseada em um sistema focado em características inscritas na
pele e no cabelo, realizada em relação a criança negra, opera de modo a lhe acarretar
possíveis exposições negativas, como um fator de risco, ou de vulnerabilidade nas relações
entre adultos em posições de responsabilidade, com autoridade institucional. Ao destacar
em sua fala outras instâncias da Rede de Atendimento a Infância Vítima de Violência
Sexual, como o Instituto Médico Legal, responsável pelos exames físicos e a produção de
laudos que atestam as nuances das violências sofridas pelas crianças ou pelos adolescentes,
a assistente social realça uma possível diferença de atendimento com base na classificação
racial.
O quesito racial aqui aparece novamente relacionado com a população negra, uma
variável prejudicial, que agora aparece dentro das práticas dos agentes socais, em relação as
crianças atendidas. Mesmo diante de sua fala contundente, quando questionada sobre a
importância da classificação racial nos documentos, para então pensar os encaminhamentos
das crianças negras inseridas em contextos de violências e atendidas pelo Programa
Sentinela, a entrevistada afirma que a informação não deveria ser colocada nos
documentos. Desse modo recorre à Psicóloga I para fazer suas as justificativas humanistas,
que consideram a universalidade e igualdade entre os seres humanos. Ao que me parece, e
de acordo com o olhar dessa profissional, é a formalização documental que legitima o
preconceito, e não o contrário.
A relevância da informação quanto ao quesito raça-cor é apontada pela profissional
do serviço social somente quando:
a gente sabe que o fator motivacional da denúncia está
relacionado a questão raça é uma coisa. Agora quando não ta para
gente, todos são tratados sem distinção. Claro que após uma
intervenção mais aprofundada que a gente perceba que tem um
fator cor/raça que incide diretamente na denuncia é claro que a
gente vai olhar como outros olhos. (...) porque para gente, a gente
atende mais o foco da violência não o foco da raça (Carla,
assistente social).
A profissional enfatiza que “o foco é a violência e não a raça”, entretanto afirma que
a raça pode ser um fator motivador em alguns casos atendidos. Nesse sentido cabe
questionar a interpretação do fenômeno da violência pelo Programa Sentinela como uma
realidade que aparece tanto desprovida de adjetivação, quanto como violência singularizada
pelo fator motivador. Peço paciência aos leitores para transcrever uma parte longa da
entrevista que realizei com uma das psicólogas, ao reconsiderar a relevância do dado de
raça-cor, porque sua fala amplia a minha reflexão relativa à questão.
Assim, quando a gente começou a fazer, quando eu peguei isso aqui
para fazer (o levantamento estatístico do Sistema de
Acompanhamento) do ano passado para cá. Eu comecei a ver assim
alguns dados que a gente não se dava conta. Então assim, a partir
de dados sistematizados é que tu começa a te dar conta do que tem
aí. Tanto que a partir da tua pesquisa também eu comecei a pensar
assim: que famílias que a gente atende, o que isso tem haver? E daí
até conversando com uma das técnicas, sobre um atendimento que
a gente teve em comum. Houve situações que tiveram uma relação
da questão da violência com a questão de gênero e de raça. Então
assim, a gente acaba abrindo os olhos para isso, e pensando “pô,
eu preciso de mais conhecimentos a respeito disso”. Porque como é
que eu vou trabalhar, ta mais um dado além de escolaridade, de
faixa etária. Ta aí mais um dado que a gente não se apropriou, não
tem conhecimento, não tem estudo sobre isso. Então eu acho de
extrema relevância para gente, pensar isso. Pensar até porque, isso
vem pro Programa em uma quantidade bem menor. Por que a raça
negra e a parda, ela aparece em menor número que para a raça
branca? É porque não chega a denúncia, é porque não tem acesso
a denuncia, tem menos violência? Isso muda o foco de atendimento
e abri um pouco mais, porque eu acho que a gente fica muito
restrita as questões assim da violência. Acho que pensar raça é
muito mais amplo. Até porque quando a gente lida com um tema
deste que aqui para nós seria violência doméstica isso acaba te
restringindo o teu campo de visão. Porque todos os autores eles são
muito dogmáticos no sentido da violência. Eles acabam fechando
critérios, e daí parece que é aquilo. Então quando tu uma
questão dessa como de gênero e raça, tu vê o quanto o teu olhar ele
ta pequeno. Ele ta num núcleo fechado para entender a violência. E
como eu te falei, eu não vi nenhum autor de tudo que eu li aqui, que
eu entrei em contato no Programa fazer uma relação dessa. E é
muito significativo, porque a gente tem pessoas aqui que fizeram
especialização na área da violência e tu não as pessoas fazendo
essa relação. Pessoas que trabalham anos com isso. Os acessos
que a gente tem aqui de livros eu não vi nenhuma produção nesse
sentido. Eu acho que falta conhecimento nessa área. Falta muito.
Eu acho que a gente não tem quase nada. Não existe pesquisa a
respeito disso. Não existem dados a respeito disso. Até a questão de
gênero, não sei se é muito enfraquecida. É com se não fosse algo de
importância entende. As pessoas não levam em conta isso, para
fazer essa relação. Embora a questão de gênero tem um pouco
aquela visão da relação de poder. Mulher, homem tal. Assim tem
alguns que ainda fazem essa leitura um pouco. Mas é muito pouco
também. Fica muito mais focada na criança e no adolescente então
isso não amplia tanto.(Ane, psicóloga).
Nesta fala, a psicóloga faz uma reflexão interessante sobre a relevância do
tratamento com o quesito raça-cor, apresentando, inclusive, problematizações que podem
ser construídas a partir do mesmo, auxiliando assim na interpretação do fenômeno das
violências. Destaca ainda que os espaços de educação de pós-graduação, que versam sobre
o tema das violências, não exploram questões referentes a raça nos discursos e
conhecimentos produzidos sobre a criança violentada. Do mesmo modo, deixam escapar
outras variáveis qualitativas e a essa postura ela denomina de “núcleo fechado para
entender as violências” por parte da produção cientifica e acadêmica. Neste aspecto,
novamente a invisibilidade de determinadas variáveis, diretamente relacionadas ao interesse
de um grupo racial estigmatizado, se materializa nas produções acadêmicas.
Ao relacionar o dado da classificação racial com a violência contra a criança, me
parece que o sentido dessa informação constar nos documentos está relacionado apenas ao
caso da violência denunciada e não necessariamente como uma variável importante para
refletir sobre os encaminhamentos mais adequados para atender as crianças negras.
Quando a própria classificação racial das crianças e adolescentes é vista como
irrelevante para a produção de estatísticas sobre a infância em contextos de violência e para
refletir sobre possíveis encaminhamentos, a produção de dados sobre as violências,
motivados por racismo, está infalivelmente comprometida. O mais instigante é observar as
contínua contradições que aparecem nas narrativas das profissionais entrevistadas, que não
se percebem como agentes sociais responsáveis em produzir esses mesmos dados a partir
de suas práticas profissionais.
Ao entrevistar uma outra profissional do serviço social, ela afirmou a relevância
estatística do quesito raça-cor nos atendimentos do programa Sentinela:
Uma questão de estatística, de classificação mesmo de dados
quantitativos para classificar mesmo. A gente todos sem
distinção de cor. É mais para classificar estatisticamente. Essas
fichas são preenchidas por isso. (...) Uma infância totalmente
discriminada, totalmente problemática (ao se referir a infância
negra) (Carla).
Novamente a relação que se faz com a produção do dado estatístico é burocrática,
destacando que todas as crianças são vistas sem distinção de cor”. Uma alusão ao sistema
de classificação racial que se pauta, sobretudo, nas características físicas racializadas.
Entretanto, a infância “de cor” é, para essa profissional, visivelmente discriminada. Não
seria isso um motivo para que se observasse a informação quanto ao pertencimento racial
nos contextos de violências?
As relações raciais no Programa Sentinela, interpretadas a partir do quesito raça-cor,
ora ocultam e ora revelam como a utilização da classificação racial atua nas práticas
cotidianas de atendimento à criança e ao adolescente que sofrem violências. Nas
abordagens iniciais que realizei com as profissionais do acompanhamento no Programa, ao
expor que a minha pesquisa abordava as relações raciais nos procedimentos de atenção,
estas sempre me diziam que não “atendiam crianças negras”. No entanto, ao olhar as suas
listas de atendimento, elas apontavam aquelas que consideravam negras, sem que eu as
solicitasse. Eis aí o começo do jogo.
Nesses momentos, algumas titubeavam ao dizer: esta aqui, a mãe é negra e o pai é
branco, a pele dela é mais ou menos como a tua; ou eu não atendo nenhuma criança
negra. Deixa-me ver? Tem um atendimento da raça mulata. É, a pele dela assim, é mais
escura. Não sei se é certo falar mulata. Sabe que eu nunca pensei nisso?Eu não atendo
negro aqui. Eu atendo mais pardo. Tu és negra, eu não atendo ninguém assim. (Diário de
Campo 04/01/07). Instaura-se um jogo social e subjetivo nas relações travadas dentro do
Programa Sentinela, arremessado pelas pessoas que vivenciam os processos de
classificação. A arte desse jogo está no contingente negação e afirmação da existência da
população negra nos atendimentos do Programa.
Ao optar em apresentar para as profissionais o tema da minha pesquisa como o das
relações raciais pretendia evidenciar também minhas concepções. Ou seja, de que o me
desejo não se restringia às questões relacionadas com a população negra, mas, as relações
travadas entre os grupos raciais. Assim, as leituras dos prontuários não seriam divididas ou
centradas em apenas um grupo racial, mas no conjunto dos grupos, considerando um olhar
sobre as possíveis classificações raciais, o que elas informariam a respeito das relações
raciais desenvolvidas no Programa Sentinela. As falas de todas as profissionais que abordei
focaram-se nas crianças negras, o que as levou, imediatamente, a negar a sua
expressividade quanto ao numero de atendimentos. Em seguida passaram a quantificar a
presença dessas crianças, a partir de uma classificação racial em que utilizaram tanto as
características fenotípicas, especialmente a cor da pele, quanto a origem, para buscar nos
genitores uma “localização” adequada às crianças e jovens atendidos.
Esse movimento ressalta um dos fios da trama da violência simbólica apreendido
durante a pesquisa, que é o da invisibilidade. Num primeiro momento, as profissionais
alegam que entre o público atendido não crianças negras, e mesmo sem que eu
perguntasse novamente, em seguida elas passam a classificá-las dentre aquelas que constam
de suas listas. A existência dessas crianças passa a ser considerada, a partir de um segundo
olhar, isto é, de um olhar provocado pela própria afirmação de inexistência. A negação da
existência avança para uma classificação imediata e pessoal que identifica a criança negra
no Programa Sentinela. Nesse sentido, a raça, utilizada como uma categoria de
pertencimento, é operada como a variável classificatória capaz de dar visibilidade aos
grupos invisíveis, ratificando as relações raciais, isto é, aquelas caracterizadas por
dessimetrias nas relações hierárquicas e simbólicas entre os seres humanos, em virtude de
diferenças fenotípicas (Sodré, 2000:194).
em minha primeira visita ao campo foi-me apresentado o documento Sistema de
Acompanhamento Qualiquantitativo do Programa Sentinela como uma “evidência” das
dificuldades que teria para localizar as crianças negras. Uma das profissionais que me
apresentou o documento informou que a população negra aparece em um “número
inexpressivo” (Diário de Campo, 08/08/2006). Conforme esse documento, elaborado no
primeiro semestre de 2006, foram atendidos 109 (cento e nove) crianças e adolescentes
negras, sendo 56 (cinqüenta e seis) do sexo masculino e 53 (cinqüenta e três) do sexo
feminino; 185 (cento e oitenta e cinco) pardas, destes 91 (noventa e um) do sexo masculino
e 94 (noventa e quatro) do sexo feminino. Da população branca contabilizou-se 254
(duzentos e cinqüenta e quatro) atendimentos com crianças e adolescentes do sexo
masculino e 315 (trezentos e quinze) do sexo feminino, totalizando 569 (quinhentos e
sessenta e nove) atendimentos.
São as profissionais do serviço social as responsáveis, no Programa Sentinela, pela
produção semestral desta estatística. Ao apresentar os resultados raciais dessa estatística,
produzidos a partir do dispositivo institucional presente nos documentos dos prontuários do
Programa Sentinela, que é o quesito raça-cor, nota-se como a produção do dado
quantitativo sobre a classificação racial revela o exercício de um poder simbólico que atua
como uma força motriz para legitimar um mecanismo de dominação exercido nas relações
raciais, especialmente no sul do país, que é o da invisibilidade. Identificado em diversos
tipos de práticas e representações, o mecanismo da invisibilidade produz um olhar que nega
a existência do outro, como uma possibilidade de resolver os problemas que essa existência
acarreta, ou seja,
{...} não é que o negro não seja visto, mas sim que ele é visto como não
existente. É interessante observar que este mecanismo ocorre em
diferentes regiões e contextos, revelando-se como uma das principais
formas de o racismo se manifestar. Como um dispositivo de negação do
Outro, muitas vezes inconsciente, é produtor e reprodutor do racismo. A
invisibilidade pode ocorrer no âmbito individual, coletivo, nas ações
institucionais, oficiais e nos textos científicos (Leite, 1996:41).
A própria quantificação e o modo de lidar com a “questão de estatística”, neste caso,
compõe com um movimento bem maior de negação, não apenas da população negra infantil
atendida no Programa Sentinela da cidade de Florianópolis, mas da população negra como
um todo, no estado considerado como o mais europeu do Brasil.
3.1 Infâncias Negras e a violência racial no Programa Sentinela
A seguir passo a apresentar os casos de violências com motivação racial, que as
profissionais destacaram, sem que fossem solicitadas, quando apresentei a temática da
pesquisa como sendo “relações raciais e infância no Programa Sentinela”. Os casos serão
apresentados conforme relatos das entrevistas, em que as profissionais mantiveram o
anonimato dos envolvidos.
Caso I
Com certeza, preconceito a gente sabe que existe é um fator
relevante sim. Mas nos casos que eu atendo eu percebo que teve um
caso que ocorreu uma situação com essa questão. Um agravante
era que a vitima preferencial era o que, como a família chamava
que ‘era o mais escurinho’, inclusive eles chamavam ele de
macaquinho. Era o sujinho, porque tinha o tom, ele era de uma
família de negros, que ele tinha um tom de pele mais escuro do
que os outros irmãos. A vitima preferencial, por isso ele era
tratado diferente, mas particularmente eu acho que envolve outras
questões. Não uma questão de preconceito, mas da própria
família, de não se perceber enquanto negro, enquanto iguais
naquele família é um pouco complicado. É uma coisa até de
distúrbio eu penso, por parte dos cuidadores dessa criança. Eu
penso que foge um pouco da questão racismo e preconceito. Porque
assim, eu penso assim, eu não vejo como legítimo. Era um fator
motivacional sim, mas era mais uma questão de, porque a gente
tem aquele preconceito assim do branco com o negro, a gente tem o
preconceito também dos negros. Não sei se posso chamar de
preconceito, mas se existe uma discriminação de raça, de diferença
assim de cor. Porque raça eles também eram da raça. Porque é
complicado perceber assim como é que eles não se sentiam da raça
também se eles eram negros? Eu estranhava, achava que era por
uma questão de implicância, passava por outras questões assim que
não só do racismo puro. Que é diferente do racismo do branco com
o negro, da raça né. Raças diferentes, ali eram da mesma raça,
porque um era mais clarinho e o outro era cabelo mais liso, o
outro cabelo mais... (Assistente Social II)
Este caso é apresentado pela profissional do serviço social como um caso de
violência que apareceu como motivado pela questão referente ao preconceito racial.
Observado dentro de uma família de negros o caso parece contraditório, no entanto
explicita de fato uma auto- rejeição familiar em relação ao pertencimento racial do grupo
que tem sua maior expressão na agressão física ao sujeito com maior evidência física da
raça negra. A dificuldade apresentada pela profissional para realizar uma análise que
enfoque a problemática racial experimentada por essa família, demonstrada durante a
entrevista, favorece uma interpretação que acaba por negar a própria questão racial como
relevante para o atendimento a criança. Ao levantar a “implicância”, as “debilidades dos
cuidadores” como algo mais que a questão do “racismo puro” perde-se a oportunidade de
constituir estudos de casos multidisciplinar envolvendo análises quanto as influências que
uma sociedade com práticas racistas operam na conformação das relações intra-familiares e
da própria violência contra a criança.
A seguir o mesmo caso relatado pela psicóloga:
Agora to até lembrando de outro caso. Que eram irmãos gêmeos e
que um deles, de históricos de anos passados, um deles era a vitima
preferencial. Ele sofreu violência física bárbaras, de quebrar ossos,
e até hoje ele tem cicatrizes no corpo dele em função disso. Porque
a mãe e a avó achavam que ele era o mais pretinho dos irmãos, e
por isso ele sofria violência. Eu não sei até que ponto isso contou
realmente ou não. Então não vou te dizer que isso não existe, mas
existe as vezes até dentro da própria família em que são todos
negros. Mas aquele especificamente, por ser mais pretinho
sofreu, especificamente por ser mais pretinho sofreu o preconceito
e foi violentado bruscamente me função disso. Mas aparecer como
esse, que foi um caso que apareceu mais fortemente é muito raro. A
gente não, eu pelo menos não percebi. Tanto que tem da violência
que a gente trata aqui é da violência sexual, da violência física, não
que seja diretamente ligada a questão racial.
Ao apresentar um caso de violência física com motivação racial, as profissionais
parecem optar pela desqualificação desta motivação. Trata-se também do o
reconhecimento das peculiaridades do racismo, que são passiveis de operar dentro da
família negra. Não como um racismo às avessas, mas como um produto da violência
simbólica a que esta família é submetida, o qual forja uma visão distorcida de si mesma,
legitimando o estigma perpetrado pela sociedade por meio de um sistema de classificação
racial hierarquizado, em que os sujeitos possuem valores distintos de acordo com a sua tez.
Ao discutir as violências físicas, por exemplo, sem problematizar as questões que as
motivam, as técnicas não levam em consideração os próprios relatos das vítimas. É
interessante observar a relação presente entre a violência física e a questão racial, um tema
que merece aprofundamento no Programa Sentinela, para que as práticas de atenção
possam incorporar a problemática da discriminação racial intrafamiliar. Nesse caso, a
gradação das cores aparece como um elemento capaz de conceder posições entre os
membros das famílias, mais especificamente entre as crianças, tal qual ocorre na sociedade,
assim como a apropriação que essa família e essa criança fazem das questões raciais e
como constroem suas subjetividades.
Portanto, mais uma vez encontra-se a distinção entre as infâncias e as crianças que a
vivenciam. Nesse sentido, o sistema de classificação racial, estruturado sob uma
perspectiva racista é operado nos espaços familiares de modo a provocar vulnerabilidades
para as crianças, materializando-se em alguns momentos pelas violências. A questão da
confirmação da suposição de violência física, justificada a partir do racismo, se constitui
em um desafio diante de questões como: a não produção ou o desconhecimento das
questões de discriminação racial nessa área de atendimento; a socialização racial entre os
pares e a complexidade das relações raciais e inter-raciais no Brasil.
A abordagem em relação ao fato, para a Psicóloga III que o atendeu foi a
seguinte:
Hoje em dia, eu peguei esse caso bem depois de vários
atendimentos. Eu não sei te dizer de que forma ele foi trabalhado
na época que entrou a denuncia e começou a ser feito o
atendimento. Hoje não parece mais isso, como se ele fosse mais
negro e sofresse uma violência por conta disso. Aparece uma
negligencia materna, que a avó não soube lidar, aparece um pouco
a questão de acusar a avó de louca, porque fez isso. A avó batia
mais por não saber lidar com as questões da infância, por isso
bater. Porque tu não diferença nos dois. Os dois são gêmeos
hoje em dia tão morando juntos, mas tu não a diferença na cor
de pele nos dois. Então isso não é mais tocado.
Na perspectiva da profissional, os encaminhamentos em relação ao caso
demonstram não ter historicidade, há simplesmente uma mudança de motivos geradores das
violências, não aparecendo nenhuma outra relação com a questão raça-cor, alegada
inicialmente. As dificuldades no desenvolvimento dos atendimentos no Programa
Sentinela se manifestam de forma mais perversa, uma vez que precariedade de um
atendimento que possa atingir o foco das violências e providenciar um tratamento adequado
para a criança. Quando se trata da criança negra que sofre violências, por justificativas
sustentadas na sua classificação racial e no racismo, a falta de apropriação das
profissionais sobre as singularidades da questão racial e, especialmente, do racismo.
Caso II
Diretamente eu não sei sabe. Nunca tinha parado para pensar
nessa questão. Na verdade essa tua pesquisa é que ta me fazendo
refletir sobre isso, mas nunca fiz esse tipo de relação: violência,
histórico da criança em relação a raça. Um episódio me fez pensar
nisso. Porque entrou uma menina aqui, que ela é muito branquinha,
muito loirinha e sofreu preconceito por ser muito branquinha,
muito loirinha. E no projeto que ela tava, extra-escolar, ela sofreu
preconceito por causa disso. Porque naquele projeto naquele
ambiente, eram pessoas mais escuras, não necessariamente negras,
mas que ela era rechaçada. O que a mãe me trouxe: que ela ia mais
arrumadinha, ela ia todo pentiadinha, maquiadinha as vezes e ela
destoava das outras crianças. Isso era sentido como preconceito.
Ela não se sentia bem, não se sentia a vontade naquele ambiente,
pediu para sair de lá, porque ela era deixada de lado pela outras
crianças. Foi a primeira vez que me surgiu esse questionamento na
prática profissional. Uma questão de discriminação mesmo. Foi o
único episodio que me aconteceu nesse período de atendimento,
assim. Abalou bastante ela, a gente procurou trabalhar, falar um
pouco com ela, era um atendimento mais esporádico, então acabou
que a gente não penetrou muito nessa questão nos atendimentos
feitos. Trabalhar a questão das diferenças mesmos, né, que da
convivência com os diferentes, mas ela se sentia muito deixada de
lado. Ela acabou saindo de mesmo, porque ela não se sentia a
vontade naquele local. (Psicóloga III).
Este caso foi o primeiro a ser relatado pela psicóloga. É importante destacar que
quando indagada a respeito da diferença entre o caso de preconceito e discriminação em
relação às infâncias negras e brancas, a psicóloga afirma:
eu vejo os dois como racismo. Mas talvez a diferença seja, que se
eu contasse esse caso da criança branca discriminada, e eu
contasse o mesmo caso de uma criança negra discriminada, talvez
houvesse uma aceitação maior das pessoas de que a criança negra
seja discriminada. Talvez causasse um espanto maior que uma
criança branca seja discriminada, e talvez já seja tão, tão embutido
nas pessoas que os negros são discriminados, que talvez causasse
menos espanto para uma mesma questão que é o preconceito e o
racismo (Psicóloga III).
A profissional destaca a naturalização dos processos de discriminação sofridos pelas
crianças negras. O que produz um certo olhar para suas experiências de discriminação, pois
é “parte do ser negro, vivenciar experiências de racismo e preconceito”. Esse artifício que
“nos acostuma”, como o racismo contra a criança negra é resultado dos processos de
violência simbólica que oportunizam a naturalização de experiências de sofrimento e
discriminação racial de um determinado grupo, ocultando-lhe a arbitrariedade que as
motivam.
Caso III
Que nem nesse caso que eu peguei que o menino era da raça, que
na realidade era uma violência psicológica porque o menino era da
raça negra, e foi chamado pelo padrasto que “ele era um macaco,
que ele devia...” Discriminava o menino, por causa da cor da pele
dele, comparando ele com um animal. Na realidade se ele não tiver
bem trabalhado essas questões internamente, o sofrimento é
grande. Apesar das pessoas terem os mesmos direitos, e os mesmos
deveres, independente da cor, da idade e do sexo. A partir do
momento que alguém chega e ofende, e ele se sente ofendido e tal, é
uma agressão. Não é uma agressão física, mas uma agressão
verbal que traz conseqüências, para ele né. É abalar o emocional
dele, não foi o corpo dele que sofreu inicialmente. Foi o sentimento
dele que sofreu, não foi uma coisa física. Por isso que se diz
violência psicológica. Se uma menina foi agredida porque ela é
negra, porque ta fazendo programa, qualquer coisa assim, é uma
violência física, não diria uma violência racial. As vezes, o motivo,
uma discussão, por causa de uma cor, mas foi uma violência física,
foi no corpo não é ( Psicóloga I).
Novamente tem-se um caso no espaço intrafamiliar em que a criança negra é a
vítima da humilhação e dos constrangimentos emocionais motivados pela classificação
racial. Ao apresentar a discriminação racial como um aspecto gerador de violências
psicológicas, a profissional não relaciona com ela a questão racial evitando, inclusive, o
termo violência racial. Toda as violências praticadas contra alguém, cuja justificativa esteja
embasada em princípios das teorias racistas, compreendo como violência racial. O abalo,
do meu ponto de vista, neste caso, está além do psicológico, pois o corpo está envolvido
e algo nele que legitima as agressões verbais, o que o desqualifica e o desumaniza em
relação ao agressor.
Trata-se do estigma da cor da pele e de sua significação social. O exercício de uma
relação de poder embasada na variável raça submete a criança às humilhações que sequer
são reconhecidas nos espaços de atendimento àquelas que sofrem as violências sexuais, por
exemplo. Por considerar que as violências consistem em processos produtores de
desorganização emocional da pessoa, sempre em que ocorram situações em que esta é
submetido ao controle e domínio de outra sendo tratada como objeto (Sousa, 2005).
É profícuo considerar as singularidades desses processos e os argumentos em que o
domínio e o controle deste outro se sustentam. A singularidade de casos como este
merecem um acompanhamento que permita aprofundar a reflexão sobre o tema da
discriminação racial na produção de violências contra crianças e adolescentes.
De acordo com as compreensões da psicóloga que atendeu o caso:
A gente sempre, nunca vai atender uma pessoa de uma mesma
maneira. Um atendimento até com a mesma pessoa ele sempre vai
apresentar mudanças. A gente sempre vai levar em consideração o
que a pessoa ta pensando, os sentimentos dela. Saber o que
aconteceu, o que ele tinha sentido, e mostrar para ele que existe
sim as diferenças. Que são as diferenças de raça, cor de pele. Que
existem sim essas diferenças. As diferenças de pele, de cor e de
raça, ele vê essa diferença. (Psicóloga I)
nas abordagens das profissionais um discurso sobre as diferenças, contudo, esse
discurso não as nomeia, o que pode esconder a inclusão das variáveis que originam as
violências perpetradas há séculos em nossa sociedade e negadas pelo mesmo período, como
é o caso das diferenças raciais.
Caso IV
Eu atendi aqui no Programa, em grupo, dois casos que eram
crianças negras, tinham uns cinco irmãos mais ou menos e um
outro caso era de duas, de três só que eles eram mestiços. E
atendendo tu via que um desses casos eu vi, a gente acabou vendo
isso na própria família ela trazendo esse indicador de raça.
Quando preconceituosamente uma mãe que batia numa criança
dizia que tu é macaco mesmo, então tu via isso no atendimento nos
caso ( Psicóloga II)
Novamente um caso intrafamiliar, que envolve agressão física e que as profissionais
perceberam, a partir da alegação da a mãe, a questão do racismo atuando. Não há na
informação da psicóloga nenhum indício de qualquer encaminhamento em relação a uma
intervenção técnica que trabalhe com a família a questão de uma identidade racial
afirmada.
Caso V
Houve um caso de duas meninas, gêmeas, que o pai recusou uma
delas dizendo que não era sua filha, pois nasceu com a cor mais
clara. Então ele recusou, disse que aquilo era impossível, que
aquela podia ser filha de outro. E elas eram gêmeas. Então tem
uma coisa gritante, muito forte. E era tão engraçado que uma
das meninas era mestiça e o cabelo dela era claro, era muito claro.
Então para aquele homem, imagina o que é para aquele homem,
conceber duas filhas, que uma é bem escura, cabelo escura e uma é
mestiça, não é tão escura, mas tem cabelo quase loiro. E ele era
negro, a mãe dele é negra, mas a mulher que ele casou não era, ela
era mestiça. Então assim, ali tu via...Quando eu me deparei com
esse caso eu fiquei pensando assim, porque a gente fala muito desse
preconceito do branco em relação ao negro. Dão quando vem o
contrario te pega completamente desprevenida. Como que tu vai
intervir numa questão dessa? Que tu que é gritante diferente. É
uma exclusão também? É. Mas é uma exclusão diferente, não é
aquela mãe que diz assim, “oh, esse aqui é o patinho feio da
família, porque ele tem um comportamento assim, ou eu não gosto
muito dele”.Era diferente, porque tinha a ver com a cor e daí tu
entra numa saia justa que tu não sabe nem o que fazer. Tu não
sabes. O máximo que tu vai dizer é tentar incluir a criança nessa
família. Diminuir os conflitos desses pais em relação aquele. E
tentar entender que coisa mais louca é essa que são todos negros, e
daí uma mãe pega um e tranca e não gosta enfim! É difícil a gente
entender sem ter conhecimento (Psicóloga II).
por certo uma complexidade nos casos relatados, entretanto, uma ausência de
preparo das profissionais, de acordo com suas próprias falas, de como intervir em casos em
que a questão do racismo apareça. Nesse sentido a intervenção que vise a “diminuição do
conflito” está profundamente comprometida.
Além dos casos declarados em que um vínculo entre raça e violência física, a
assistente social destaca a relação entre violência e racismo:
Porque a gente sabe que muitas violências são provocadas pela
questão do racismo. A gente sabe que o que motivou aquela
violência foi a questão racial mesmo. Discriminação. Não
violência, vários tipos de violência, a violência contra a mulher no
trabalho. Tratam a mulher negra muito mais discriminada do que
uma mulher branca. Tem varias questões que ocorrem por causa
disso. Eu considero uma violência contra o ser humano. Contra o
status que aquele ser humano tem na sociedade. A identidade dele,
a origem, é todo uma violência. Uma dupla vitimização (em relação
a criança negra). Considerando todo, o nível de sociedade não da
para negar. A gente vivenciou diversas coisas em âmbito de escola.
Eu enquanto negra, né. E as vezes ela é passada despercebido
mesmo. Entra aqui como outro tipo de violência e quando tu vai ver
tem a questão do racismo também associado. Às vezes é uma
violência dupla, uma violência tripla e as vezes ela ta ali
mascarada, ta embutida ali.Então isso é uma pena. Deveria ter esse
olhar para essa questão sim. As políticas deveriam ser mais efetivas
a fim de garantir que essa criança negra, ela possa se desenvolver
plenamente. Livre de violência, livre de racismo, livre de uma serie
de coisas. Uma infância totalmente discriminada, totalmente
problemática (Assistente Social II).
Neste caso, pode-se suspeitar que as violências são provocadas também pela
negação das próprias violências. Ao passar desapercebido, ou invisível aos olhos da política
pública e das profissionais do Programa Sentinela, esta negação passa também
desapercebida como possibilidade de se construir denúncias da violência estrutural a que a
população negra vem sendo exposta desde sua mais tenra idade, isto é,
aquela que incide sobre a condição de vida das crianças e adolescentes, a
partir de decisões histórico-econômicas e sociais, tornado vulneráveis o
seu crescimento e desenvolvimento. Por ter um caráter de perenidade e se
apresentar sem a intervenção imediata dos indivíduos essa forma de
violência aprece naturalizada, como se não houvesse nela a ação de
sujeitos. Entretanto é necessário desvendá-la e as suas formas de
reprodução por meio de instrumentos institucionais (Minayo, 2002:99).
A violência estrutural está corporificada, sobretudo, nos processos de exclusão que
colocam os sujeitos em guetos que conformam esta sociedade. Nesse caso, o que se observa
em relação à infância, observa-se em relação às relações interpessoais das profissionais
entre si e também dentro do próprio Programa Sentinela, como vemos a seguir:
Com certeza. Eu acho que pela sociedade que a gente vive,
extremamente racista é violência pela exclusão. Pela própria
exclusão. Em todos os lugares. O nosso próprio posicionamento em
qualquer circunstancia seja ela em relação a cor, ou outras coisas
a gente é extremamente preconceituoso. Eu acho que a gente tem
muitos guetos. Aqui no Programa, eu não sei como afirmar isso,
mas é extremamente significativo ver milhares de brancos e poucos
negros. Em uma situação tão peculiar que atinge a todos! Diversos
autores dizem que não tem cor, não tem questão sócio-econômica,
não tem classe, não tem nada. Então, isso é extremamente
significativo. Em relação à cor, a própria exclusão que se vê.
Exclusão na escola, exclusão no trabalho, na relação que a gente
estabelece. Eu tenho poucos amigos negros. Então tu está num
meio que é extremante racista. Em toda a sua concretude, tu acaba
tendo meio que tu vai vendo assim que guetos bem separados, e
quando tu está neles. E não questiona, mas também não inclui.
Eu acho que isso é bem típico, aparece para todo mundo, não
precisa ninguém catalogar, ou qualquer coisa, está nas relações.
Está no cotidiano. Aqui a gente tem uma funcionaria negra. Isso é
muito significativo, aliás, temos duas. Uma digitadora e uma
assistente social. Neste universo todo tu olha, é extremamente
significativo. No complexo todo tem 4, não cinco. Então assim, não
precisa fazer muita analise, a própria situação mostra o quanto,
porque não inclui mais. (Psicóloga II).
A violência pela exclusão nos espaços profissionais e nas próprias relações
interpessoais.
Na percepção de outra profissional o racismo aparece
até quando passa adultos, casais, com misturas raciais. Ainda vejo
bastante esse preconceito entre as pessoas de não aceitar que as
raças. Essa mistura de raças possa acontecer. Esse relacionamento.
Parece que cada um tem que ficar no seu mundo. Parece que um
mundo dos negros, e um mundo dos brancos, onde se pode
relacionar nesse sentido assim, no máximo uma amizade muito sutil,
não de penetrar muito na vida do outro. Ainda vejo muito isso hoje.
Pelas falas, pelas observações das pessoas com as quais eu possa ter
algum tipo de contato próximo, ou distantes. Comentários assim
(Psicóloga III).
Ao apresentar as suas “leituras” de experiência quanto as relações raciais as
profissionais são enfáticas, como visto nos capítulos anteriores em denunciar com
exemplos fartos as estruturas racistas da nossa organização social. Relações assimétricas
que forjam realidades segregadas que se “sente” um “mundo de negros” e um “mundo de
brancos”. As falas dessas profissionais brancas diante da pesquisadora negra causaram dor
e ao mesmo tempo alívio. Dor por saber e sentir estas relações no lugar de segregada e
alívio por ouvir a denuncia dessa violência da boca do “outro racial”.
Quanto a invisibilidade da criança negra que se manifesta nas relações sociais a
Psicóloga III afirma
Essa questão de que as crianças negras são tidas como as crianças
que são pobres, perigosas, que tem ta de olho, tem que ta atenta.
Porque se passa uma criança negra as pessoas olham com outros
olhos, se for uma criança loirinha, olham de outros olhos. Aceitam
mais. Eu vejo ainda bastante isso. Vejo preconceito em relação a
mistura das raças. As vezes pode até passar despercebido para
alguém que tenha um preconceito, quando passar uma criança
negra, passa até despercebido como não é ninguém.
Quando a profissional afirma que a “criança passa despercebida, como não é
ninguém” devido ao racismo ou preconceito, emerge uma questão: se há uma invisibilidade
em relação a criança negra na condição de rua, como é o exemplo que ela levanta, como
essa invisibilidade opera dentro do próprio Programa? Por certo o múltiplas as
possibilidades de resposta, mas cabe nesse momento e no limite desta produção ressaltar
que na fala das profissionais quando estas voltam seus olhos para o interior do Programa
Sentinela uma negação de qualquer prática capaz de evidenciar o racismo, o que é
extremamente compreensível, pois seria depor contra si mesmo diante de uma pesquisadora
negra. Entretanto, as mesmas profissionais apontam diversas relações raciais racistas na
macroestrutura e na microestrutura social.
A violência relatada nos casos supracitados e nas expressões das entrevistas,
originadas pelo racismo perpetrado contra crianças e adolescentes negros tão nitidamente
evidenciadas, me fazem voltar o olhar para as crianças negras. Especialmente as que são
freqüentadoras dos espaços de atendimento a crianças em contextos de violências, pois se lá
suas experiências de desqualificação e violência racial não forem validadas e legitimadas
aonde serão?
O racismo silenciado ao longo de tantos anos nas experiências escolares e
familiares, para citar os principais espaços de socialização das crianças negras, silenciado
também está nos espaços de atendimento a essas mesmas crianças quando vítimas de
violências. Há que provocar análises mais refletidas sobre esta questão, junto ás políticas de
atendimento e de combate a violência contra a criança e adolescente.
Considerações Finais
Nasci sujeito como outros
a erros e a defeitos
Mas nunca ao erro
de querer compreender demais
Nunca ao erro de querer compreender
só com a inteligência.
Fernando Pessoa
Finalmente! Este é o momento de construir mais algumas sínteses explicativas sobre
o exposto até aqui, uma tarefa nada fácil, mas também nada pretensiosa. Tenho claro que
não é possível concluir uma reflexão tão complexa e que não se esgota nesta dissertação,
tanto por meus limites para olhar o “mundo” por onde trilhei no decorrer da pesquisa,
quanto pela carência de mais estudos que ampliem as compreensões sobre a problemática
das relações raciais. Nesse sentido, o que tenho como possibilidade é terminar o texto.
Nestas páginas finais me coloco desafiada para rever o próprio processo
investigativo que realizei durante a pesquisa. Amputada pelo limite do texto, expresso no
número de ginas, nas normas acadêmicas e na própria apresentação-reflexão escrita da
pesquisadora iniciante que sou, essa dinâmica contribuiu para o alargamento de minhas
aprendizagens e do campo pesquisado, por conseguinte, das práticas sociais estudadas.
Trata-se, portanto, de um momento fecundo em que posso considerar como a pesquisa e a
reflexão escrita originaram outras questões, que revolvem as considerações iniciais de um
outro ou uma outra pesquisadora.
Voltar os olhos para a infância em relações de violências se constituiu, por si só, em
um exercício de dor. Nossa concepção de infância e dos modos de ser criança está
profundamente arraigada nos interesses adultos, por onde quer que direcione o olhar. São as
visões românticas ou demoníacas que acalentamos, de crianças irreais, por certo, mas
algumas com belas imagens. Em campo, quando me vi diante dos quadros estranhamente
pintados das violências contra a criança, paralisei. Foi preciso respirar, reconsiderar e
retomar o trabalho. Quando encontrei a criança negra percebi ali um sujeito que também é
vitimizado em inúmeras outras relações sociais, especialmente aquelas que acontecem nos
âmbitos institucionais. O seu tratamento em relação a outros contextos de violências, nos
espaços que cuidam de suas dores aparentemente é o mesmo, mas a pergunta que fica é:
será? Considero que a expressão das relações raciais no Programa Sentinela é manifesta de
um modo crucial para a criança negra vitimizada que a ele se dirige e foi munida deste
pensamento que decidi os rumos de minha pesquisar.
Tenho agora uma lembrança, a da gênese do projeto de pesquisa que foi o meu
primeiro contato com a Rede de Atendimento a Criança e Adolescente Vítimas de
Violência Sexual. Inicialmente queria confirmar o quanto as crianças negras são as maiores
vítimas de violência sexual, a partir dos próprios dados apresentados pelas profissionais em
um evento que participei. Depois de conversas e reflexões cheguei ao problema da pesquisa
com o interesse de coletar os “dados quantitativosque evidenciassem a vulnerabilidade da
criança negra, também no contexto das violências sexuais. Essa ânsia foi dissipada na
primeira incursão pelo campo da pesquisa.
Os documentos que coletavam informações de identificação das crianças, que não
constavam em todos os Prontuários, continham o quesito raça-cor, entretanto, esse dado
nem sempre estava preenchido, assim como outras informações. Após a frustração inicial
busquei explorar a produção deste quesito pelas profissionais do Programa Sentinela para
compreender como estas o utilizavam e como os indicadores participavam das reflexões
que produziam os encaminhamentos sobre os casos de violências. Ficou presente, a partir
das narrativas e dos exames nos documentos pesquisados que o quesito raça-cor carece de
significado paras as profissionais pensarem a infância negra.
No decorrer das entrevistas e no exame dos prontuários, constatei que as relações
raciais no Programa Sentinela são pautadas nas atividades cotidianas e materializadas nos
documentos oficiais, inclusive pelo não preenchimento da informação raça-cor nos
documentos. entre as profissionais um reconhecimento das relações assimétricas na
sociedade de poder, dominação e violência, com bases em princípios racistas, operados a
partir e em ralação das/às “cores da pele” negra. Contudo, ainda que reconheçam o lugar de
exposição a discriminação e ao racismo a que a população negra está submetida, não
utilizam essa informação para a construção de um argumento que justifique a relevância da
produção do dado estatístico que caracteriza a população atendida do ponto de vista racial.
As estatísticas são vistas como um artefato de menos valia, inclusive na prática
profissional.
Entendo que à compreensão sobre a relevância da própria produção de dados
estatísticos precede a concepção da relevância de qualquer informação que possa ser
produzida desse modo. A sistematização dos dados e o manuseio reflexivo que se efetiva na
prática profissional do Programa Sentinela enfocando especificamente informações que
identifiquem o sujeito atendido, a meu ver poderia ser uma possibilidade de reduzir o
processo de alienação das próprias profissionais em relação ao seu trabalho e também de
qualificar esse trabalho no que se refere aos encaminhamentos do atendimento.
Nesse sentido, a produção de dados estatísticos cumprirá a sua função, qual seja,
informar as instituições e à sociedade civil para ampliar a elaboração das políticas. Quando
se trata de um dado referente a questão racial, sua importância, esta atribuição é ainda mais
relevante, uma vez que há ainda em nossa sociedade um desafio para o estabelecimento de
políticas públicas direcionadas a população negra, para o efetivo combate ao racismo e a
promoção de igualdade racial.
uma série de agravantes em relação a produção de dados sobre o quesito raça-
cor, uma vez que a sua relevância é marcada pelo reconhecimento e pelo não
reconhecimento, ou seja, é negado e afirmado no mesmo movimento de atender, registrar as
informações, proceder aos encaminhamentos. O quesito está presente e ausente nos
discursos e nas práticas, o que o torna fugidio. Esse movimento demonstra as
singularidades das relações raciais no Brasil, as quais, por muito tempo tiveram as suas
assimetrias negadas. Mas é preciso lembrar que essa questão, paulatinamente vem
mudando, sobretudo, por uma série de pesquisas quantitativas, o que, para uma sociedade
positivista como a nossa, se traduzem em “provas irrefutáveis” daquilo que foi denunciado
e experimentado pela população negra.
No entanto, a necessidade de prosseguir nessa direção demanda uma mudança de
postura dentro das práticas do Programa Sentinela, o que implica rever os conteúdos da
formação dos profissionais que vão atuar nessas áreas, tanto a inicial, quanto a formação
continuada que é promovida em parceria com universidades e outros organismos. Nesse
caso se trata de construir indicadores sobre a infância e a adolescência negra, associados
com a sua exposição a toda ordem vitimização.
Nas abordagens para examinar os prontuários junto as profissionais, foi possível
observar como acontece a relação com a infância negra e os aspectos raciais, os quais
ganham significados nas práticas de atenção quando as violências aparecem como
motivação racial. A provocar reflexões sobre o tema, em geral, elas buscavam referências
na sua prática para localizar os casos que indicavam relações raciais, situadas na
perspectiva do racismo. Ao relacionar o dado da classificação racial com as violências
contra crianças, me parece que o sentido dessa informação constar nos documentos estava
conexo apenas ao caso da violência denunciado e não, necessariamente, a uma variável
importante para refletir sobre os encaminhamentos de atendimento às crianças negras. Isso,
de fato, gerou dúvidas quanto a efetividade de qualquer abordagem que enfoque a questão
de violências motivadas por racismo, uma vez que a variável raça não é contemplada no
cotidiano dos encaminhamentos e nos estudos de caso.
Desse modo, quando a própria classificação racial das crianças e adolescentes é
vista como irrelevante para a produção de estatísticas sobre a infância em contextos de
violências e para refletir sobre possíveis encaminhamentos, a produção de indicadores
sobre os casos que o motivados por racismo, também passa a ser relativizada.
Especialmente quando as profissionais não se percebem como agentes sociais responsáveis
em produzir esses mesmos dados, a partir de suas práticas profissionais.
Como quase a totalidade das profissionais que atuam no Programa Sentinela
pesquisado é branca, talvez esse fato justifique, parcialmente, o modo com as questões
raciais atravessam os seus afazeres. Numa sociedade culturalmente branqueada, a
compreensão de que existimos nas relações, mesmo quando a cor da pele se faz como
diferença, se torna dispersa e historicamente anacrônica. O fato primordial é que, por não
ser negras, por não vivenciar as implicações do racismo e das discriminações, as
profissionais acabam por pautar suas ações nas justificativas das desinformações sobre a
relevância do quesito raça-cor para o atendimento das crianças inseridas em contextos de
violências. Há ausência do encontro entre instituição e sujeitos atendidos, limitando as
concepções e os procedimentos oriundos das políticas públicas traçadas para essa
população.
Nas questões macro-estruturais, para se pensar as condições da infância e
adolescência negra em contextos de violência, deve-se ter em consideração a complexidade
do sistema de classificação racial e a relativa “juventude” da produção de dados estatísticos
com coorte racial, bem como de todo processo de transformação das concepções sobre as
relações raciais que estão sendo re-colocadas, ao longo das duas últimas décadas. Contudo
deve-se ter pressa em intervir nestes espaços institucionais, pois se trata de crianças e
adolescentes em condições de profundos sofrimentos. E quando esses sofrimentos têm na
prática do racismo alcançado outras materializações, que atingem de modo mais perverso a
infância negra, há que se denunciá-los, especialmente pela forma como os registros criam a
produção de dados estatísticos.
Por tudo isso, cito Fernando Pessoa na epígrafe desta consideração final, porque
que se compreender a problemática das relações raciais e do registro da classificação racial
da infância e adolescência atendida no Programa Sentinela para a além da inteligência e até
mesmo de esforço político e militante. Trata-se de compreender essa questão como uma
questão intimamente ligada ao comprometimento com os sujeitos humanos, de pouca idade
que tem diante de si um mundo construído que lhes impõe diversas questões de difíceis
respostas. Quando as respostas a essas questões são adversas, capazes mesmo de causar
dor, como as referentes a raça e as suas conseqüências racistas é preciso que estejamos
dispostos a sentir, a ouvir e a abrir trilhas que evidenciem outros caminhos de denúncia do
racismo nas praticas institucionais e anúncio de outras possibilidades de evidenciar e
fortalecer o pertencimento racial das novas gerações com as contradições que toda a
classificação do humano acarreta.
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