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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
João Batista Lima de Toledo Filho
A religiosidade que se altera ao longo do tempo
MESTRADO EM PSICOLOGIA
SÃO PAULO
2008
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
João Batista Lima de Toledo Filho
A religiosidade que se altera ao longo do tempo
MESTRADO EM PSICOLOGIA
Dissertação apresentada à Banca Examinadora
como exigência parcial para obtenção do título
de Mestre em Psicologia Clínica pela
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
sob a orientação da Profa. Doutora Marília
Ancona-Lopez.
SÃO PAULO
2008
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Banca Examinadora
_____________________________________
_____________________________________
_____________________________________
4
Agradecimentos:
Agradeço a Paula T. Morelli pelo apoio imprescindível durante todo o trabalho, aos
amigos Simone e Anselmo pela confiança básica que me proporcionaram, sempre ao
meu lado de forma muito positiva, a professora Marília pela dedicação e orientação
segura.
Agradeço a Betina pelo carinho compreensão e apoio durante todos os momentos.
5
Dedicatória.
Dedico este trabalho a meu pai, João Batista Lima de Toledo, pelo incentivo, pelo apoio
e pela orientação para a vida.
6
SUMÁRIO
Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 10
Capítulo 1: Objetivo e método. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
13
1.1. Objetivo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13
1.2. Método. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
13
Capítulo 2: A religiosidade em Winnicott. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . .
16
2.1. A teoria do amadurecimento de Winnicott. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 16
2.2. A religiosidade pensada a partir de Winnicott por Mario Aletti. . . . .
22
Capítulo 3: História da Psicologia e religião. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 27
Capítulo 4: Entrevista com psicólogo clínico. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
33
Capítulo 5: Análise da entrevista. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
.
40
Conclusão. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
.
52
Considerações Finais.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
58
Referências bibliográficas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . .
59
Anexos. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 62
8
Resumo
Este trabalho busca compreender como a religiosidade do psicólogo clínico se
altera ao longo do tempo. Embora a religiosidade sofra sempre transformações,
considera-se que especificidades que são próprias à formação e ao trabalho do psicólogo
clínico influenciam na modificação da sua religiosidade.
Para pensar essa alteração ao longo do tempo, considerou-se características
próprias do amadurecer humano apresentado por Winnicott principalmente os conceitos
de transicionalidade e ilusão, e como Aletti emprega esses conceitos para pensar a
religiosidade.
Após explorar a relação entre psicologia e religião, realizou-se uma entrevista em
profundidade com psicólogo clínico com mais de trinta anos de experiência em prática
clínica. A entrevista teve como objetivo compreender como foram alterações com
relação à religiosidade em sua vida pessoal e profissional.
A análise da entrevista teve como referencial a psicologia fenomenológica.
Foi possível concluir que a religiosidade que se altera ao longo do tempo sofre
influências das escolhas, adesões e do amadurecimento vivenciados pelo psicólogo. As
inquietações com relação à religiosidade estão em constante movimento: alterando-se,
influenciando e sendo influenciadas pela vida pessoal e profissional.
9
Abstract
The intention of this work is to analyze the transformations that happens in a
clinical psychologists own religiosity over the course of his life and career. Nevertheless
the ever-changing character of the religious feeling, there are specific traits that are
intrinsic to the clinical psychologist’s background and his work.
In order to analyze the transformations in the psychologist’s own religiosity over
the principles of transition and illusion as presented by Winnicott, and the application of
his concept to religious thinking, as proposed by Aletti.
After demonstrating the relation between psychology and religion, I proceeded to
a depth interview with a psychologist with more than 30 years of experience in clinical
practice. This interview aims to understand how transformations occurred in his life,
both privet and professionally.
The analyses of the interview are based on the phenomenological psychology.
We come to the conclusion that the religious transformations that occur over life
are influenced by the psychologist’s choices, support and maturity. The restlessness
linked to religiosity is under constant inquiry, being altered, influencing and be
influenced by the personal and professional aspects of the own life.
10
INTRODUÇÃO
Neste trabalho pretende-se compreender como a religiosidade se altera ao longo
do tempo, na formação, na carreira e na vida de um psicólogo clínico.
Embora religião seja um dos temas em destaque, o trabalho não pretende negar
nem afirmar questões religiosas e sim entender as vivências que se dão nessa área a
partir da psicologia, sempre respeitando a religião em seu âmbito próprio.
A complexidade do fenômeno religioso é vasta, mas a atenção desse trabalho
volta-se para as inquietações e movimentações que afetam o psicólogo clínico quando
este é tocado por questões de ordem religiosa ao longo de sua carreira.
Como indica Ancona-Lopez;
A religião, na qualidade de manifestação cultural é um fenômeno
multidimensional, composto por um sistema de crenças, ritos,
personagens e símbolos que expressa uma compreensão específica
do sentido da vida e estrutura princípios e valores, propondo modos
de viver para a comunidade e para o indivíduo.
1
A dimensão da religiosidade apresenta uma enorme variedade de formas de se
manifestar ao longo do tempo tanto para o indivíduo, bem como para uma
1
ANCONA-LOPEZ, M. “As crenças pessoais e os psicólogos clínicos: orientação de dissertações e teses
em Psicologia da Religião”. In: IRENE, G. A. & ANCONA-LOPEZ, M. Temas em Psicologia da
Religião. São Paulo: Ed. Vetor, 2007, p 198.
11
comunidade. A temporalidade própria do humano, com seu amadurecimento e sua
circularidade, se inter-relaciona com essas mudanças.
Para compreender a natureza humana e o amadurecimento, como constante
processo de mudanças ao longo do tempo, com as conquistas e perdas do
amadurecimento, utiliza-se, nessa dissertação, a visão teórica de amadurecimento
proposta por Winnicott, valorizando principalmente a transicionalidade e o valor
positivo da ilusão.
Em seguida, mostra-se como Aletti possibilita pensar a religiosidade a partir dos
conceitos de transicionalidade e ilusão, tal como propostos por Winnicott.
Apresenta-se, ainda, um breve resumo da história da psicologia e sua questão
epistemológica buscando entender a relação entre a formação de psicólogo e a
religiosidade. A psicologia, ao buscar se afirmar como ciência, experimenta, ao longo
de sua história, afastamentos e aproximações em relação à religião.
Para atingir o objetivo da pesquisa, a partir dos percursos teóricos acima
indicados, fez-se uma entrevista com um psicólogo (apresentado integralmente no
Anexo I) com mais de trinta anos de atividades. Essa entrevista abordou as mudanças
vividas pelo entrevistado em relação à sua religiosidade e história pessoal como clínico.
Trata-se de um trabalho que se desenvolve no âmbito da psicologia
fenomenológica e, ao aprofundar a na análise de um determinado caso, objetiva ampliar
as possibilidades de pensar a questão proposta.
A motivação para realizar esse trabalho foi ter percebido e observado, ao longo de
minha carreira como psicólogo clínico, alterações da religiosidade ao longo do tempo
tanto em colegas como em pacientes. Cabe observar também que não foram
encontrados trabalhos que tratem especificamente do tema. Como professor
universitário e como aluno que fui, não encontrei na formação de psicólogo qualquer
espaço que pudesse acolher as questões relativas à religiosidade. Esses foram outros
vetores de motivação para a realização dessa dissertação.
Na prática da psicologia clínica e no convívio com colegas observei que os
psicólogos passam por mudanças com relação à religiosidade, sejam elas de afastamento
ou de aproximação. Normalmente, em relação à formação específica do psicólogo, esse
tema costuma ficar secundado. A questão religiosa, freqüentemente, não é trabalhada
com a densidade que merece, restando encoberta. Porém, nota-se que ela, apesar desse
costumeiro desinteresse, volta a se manifestar.
Estamos em uma época que se caracteriza pelo retorno do religioso, época em que
12
essas questões no campo político, social e filosófico retornam com bastante força
e acabam chamando nossa atenção.
Esse trabalho pretende contribuir, possibilitando aos psicólogos, a partir de suas
próprias vivências, se inserirem nesse debate atual, instrumentalizados para melhor
pensarem questões pertinentes à religiosidade na pratica clínica e na formação em
psicologia.
13
CAPÍTULO 1
OBJETIVO E MÉTODO
1.1. OBJETIVO
O objetivo desse trabalho é compreender como a religiosidade do psicólogo
clínico se transforma ao longo do tempo.
1.2 MÉTODO
O método de abalizamento a ser empregado nesse trabalho é referenciado por uma
proposta de pesquisa em Psicologia Fenomenológica.
A Psicologia Fenomenológica interessa-se pelos sentidos que os sujeitos conferem
às suas experiências. Valoriza os aspectos da constituição dos sentidos que se dão em
situações cotidianas concretas.
Na pesquisa em Psicologia Fenomenológica, o método implica na consideração da
interação que auxilia a explicitação do vivido.
Trata-se, portanto de um trabalho interativo que visa, por um lado, favorecer a
atividade de construção do sentido do mundo vivido através de uma situação
dialógica reflexiva —, e, por outro lado, produzir conhecimentos psicológicos a partir
desse material.
A pesquisa fenomenológica em psicologia, por essa razão, privilegia, entre outros
14
procedimentos, o da obtenção de dados através de entrevista. A entrevista descritiva
situa-se em um nível psicológico que busca atingir o sentido vivido dos fenômenos para
o sujeito. Sabe-se, no entanto que as múltiplas apreensões percebidas possíveis de um
mesmo objeto não cobrem nunca todas as possibilidades de conhecimento e de
experiência desse mesmo fenômeno.
O procedimento utilizado foi o da entrevista semi-dirigida visando a apreensão de
significados através da focalização do vivido em situação, os atos e a implicação
subjetiva que dá sentido à experiência objeto da pesquisa. Trata-se, portanto de pesquisa
qualitativa, através de estudo de caso em profundidade.
As três etapas do método de pesquisa em psicologia fenomenológica conforme
proposto por Giorgi
2
são:
Descrição.
Redução.
Busca de sentido.
Embora os termos acima tenham origem na fenomenologia, seu uso quando se
trata de psicologia, adquire conotações específicas que se afastam de seu significado
original.
1. Descrição:
Descrever é usar a linguagem para articular a experiência vivida e seus sentidos.
A descrição consiste em um relato completo e detalhado da experiência específica
a partir da atitude cotidiana do sujeito frente ao vivido, explicitado em seus próprios
termos.
Ela permite compreender detalhes do mundo cotidiano valores e pré-conceitos. A
descrição deve ser detalhada e precisa conter o mínimo de generalizações.
No caso desta pesquisa para obter a descrição da experiência vivida o sujeito foi
convidado a falar de como vivenciou as transformações de sua religiosidade ao longo de
sua vida profissional.
2
GIORGI, A. “Phenomenological Psychology”, In: SMITH et alii, Rethinking Psychology, London: Serg
Publication, 1995. pp. 24-92.
15
2. Redução:
A redução no âmbito da psicologia fenomenológica visa colocar entre parêntesis
os conhecimentos anteriores a fim de ver o que se mostra no presente, como se
apresenta concretamente.
Trata-se de uma suspensão provisória do julgamento que favorece a compreensão,
e permite reconhecer os pressupostos para rever o fenômeno de uma forma nova.
No âmbito dessa pesquisa buscou-se deixar à parte qualquer compreensão pessoal
prévia acerca das mudanças da religiosidade no decorrer da vida profissional do
psicólogo, abrindo-se, da forma mais ampla possível, às colocações do entrevistado.
3. Busca de sentido:
A busca de sentido é o objetivo da analise em psicologia fenomenológica.
A possibilidade de dar sentidos aos fenômenos não tem limites, os sentidos são
sempre provisórios e se dão em um tempo. A própria busca dos sentidos é uma busca
infinita, que pretende conhecer todos os diferentes significados possíveis.
O método fenomenológico compreende que cabe ao pesquisador perceber o que se
mostra, mesmo sabendo que os sentidos obtidos são sempre passíveis de mudanças.
Para a psicologia fenomenológica o interesse maior é a constituição do sentido que
se encontra na situação concreta da vida cotidiana.
O sujeito a ser entrevistado é um psicólogo clínico com mais de trinta anos de
carreira, possibilitando assim compreender as alterações com relação à religiosidade ao
longo do tempo.
A entrevista semi dirigida será gravada, descrita e analisada em profundidade em
cada uma de suas partes significativas e pensada como um todo tendo como referencial
a psicologia fenomenológica.
Durante a analise da entrevista serão apresentados os trechos que ilustram a
compreensão daquele aspecto descrito.
A visão teórica dos primeiros capítulos e a analise da entrevista convergirão para
formarem a conclusão do trabalho e os sentidos que se mostraram durante a entrevista.
16
CAPÍTULO 2
A RELIGIOSIDADE EM WINNICOTT
O fruto imaturo encaminha-se para o seu amadurecimento. No
amadurecimento aquilo que ele ainda não é de modo algum se oferece como
algo que se lhe ajunta, no sentido de algo que ainda não é simplesmente
dado. O próprio fruto amadurece. O amadurecer e o amanhecer
caracterizam-lhe o ser, enquanto fruto. Não fosse o fruto um ente que
chegasse por “si mesmo” ao próprio amadurecimento nada que se lhe
acrescentasse poderia eliminar-lhe a imaturidade. O ainda não da
imaturidade não significa uma coisa exterior... ao fruto... mas... indica o
próprio fruto em seu modo específico de ser. O ainda não está incluído
em seu próprio ser não como uma determinação arbitraria, mas como um
constitutivo.
Heidegger
2.1. A TEORIA DO AMADURECIMENTO EM WINNICOTT
O amadurecimento é a espinha dorsal do trabalho de Donald Wood Winnicott. Ele
atuou na maior parte de sua carreira como pediatra e, observando as mães e seus bebês
em sua clínica, percebeu a importância do amadurecimento e constatou que a maior
parte dos problemas que levavam mães e bebês ao médico estavam ligados a
dificuldades emocionais primitivas.
Como autor, Winnicott não faz uma apresentação sistemática de sua teoria a não
ser em Natureza Humana (1990) que, no entanto, ficou inacabada com a sua morte.
17
Aletti
3
, comentando essa postura de Winnicott, observa:
Embora não tenha sido um professor universitário, foi um grande
mestre que gostava de ensinar, acreditava muito mais na eficácia da
palavra que estabelece o dialogo que na organicidade dos tratados e
não estava interessado em publicar manuais.
Em suas aulas, palestras e sessões com seus pacientes a sua atitude
era a de quem quer realmente aprender.
Para entender o conceito de amadurecimento em Winnicott é interessante, fazer
uso da hermenêutica e seu principio clássico segundo o qual cada parte de uma obra
deve ser reconstituída levando em conta o todo.
Para Winnicott todo individuo humano possui uma tendência inata para o
amadurecimento e durante este processo passa por três fases que são: a dependência
absoluta, a fase de onipotência e a fase rumo à independência.
Durante o estágio da não integração, o bebê vive a dependência absoluta, de tal
forma que sequer pode-se pensar nele como indivíduo. Em uma reunião da Sociedade
Britânica de Psicanálise Winnicott afirmou que “bebê é uma coisa que não existe”. E
lembrou que sempre que vemos um bebê vemos alguém cuidando dele.
No início, o bebê e a mãe constituem uma unidade fusional. Nesta fase ainda não
existe o eu e o não eu, não há objetos externos, não si mesmo, não mãe, mas
apenas uma sensação difusa de poder continuar a ser.
No início da vida a unidade não é o individuo, mas uma organização meio-
ambiente indivíduo. O centro de gravidade do ser não começa no individuo, está na
organização total.
Através de um cuidado suficientemente bom da criança, da técnica do holding e
do manejo geral, o bebê pode começar a ser um individuo, a casca é gradualmente
deixada de lado e o cerne que o tempo todo nos pareceu ser um bebê humano pode
começar a ser um individuo”
4
.
O cuidado suficientemente bom advindo de um ambiente facilitador, segundo nos
fala Winnicott, refere-se à oferta de condições físicas e psicológicas que favorecem o
desenvolvimento do bebê.
3
ALETTI, M. “Arte, cultura e religião na vida adulta: rabiscos Winnicottianos”. In: IRENE, G. A. &
ANCONA-LOPEZ, M. Temas em Psicologia da religião. São Paulo: Ed. Vetor, 2007.
4
WINNICOTT, D. W. “Objetos transicionais e fenômenos transicionais”. In: O Brincar & a Realidade.
Rio de Janeiro: Ed. Imago, 1975.
18
Para Winnicott no início da vida não temos relações objetais a unidade não é o
individuo, a unidade é uma organização meio-ambiente indivíduo. O centro de
gravidade do ser não começa no individuo, está na organização total.
O ambiente facilitador, de que fala Winnicott, refere-se às condições físicas e
psicológicas que favorecem o desenvolvimento do bebê. O bebê não é determinado pelo
ambiente, mas apenas um ambiente suficientemente bom será capaz de oferecer as
condições necessárias para o desenvolvimento do self, para que o bebê possa vir a ser
ele mesmo.
Apesar da palavra dependência implicar na existência de um outro ser humano, do
ponto de vista do amadurecimento, neste estágio primitivo de dependência absoluta, a
mãe para o bebê não existe, não há externalidade: a mãe é parte do bebê.
Safra
5
esclarece:
O corpo materno nesta etapa é o próprio corpo do bebê, em que
ele pode paradoxalmente, criar todo o mundo humano ali
presente. A corporeidade materna traz maneiras de se colocar
tempo, no espaço no mundo, para que sejam descobertas pelo bebê,
trata-se de organizações étnico culturais que permitem que a mãe
possa cuidar do bebê humano.
A constituição de um eu, de uma realidade intrapsíquica e da relação com o outro
emerge necessariamente desta relação mãe bebê.
Para emergir do não ser para o ser, o bebê depende do ambiente facilitador inicial.
A mãe suficientemente boa reconhece a dependência do bebê, devido a sua
identificação com ele, responde às suas necessidades, ou seja, a mãe suficientemente
boa é aquela que é sensível para perceber e se identificar com as necessidades do bebê.
Nesses estágios iniciais, durante a fase de dependência absoluta a provisão da mãe
promove condições de confiabilidade e segurança permitindo que se estabeleça
confiança para o bebê poder ir se integrando e constituir mundo. E é essa confiança,
gerada pelo ambiente facilitador, que possibilita o amadurecimento saudável.
Com a conquista de um eu, o bebê pode começar a integrar presente, passado e
futuro, característica fundamental da temporalidade adulta amadurecida.
A mãe suficientemente boa possibilitará ao bebê a ilusão de que ele cria aquilo
que ele encontra, o que caracteriza a fase de onipotência.
5
SAFRA, G. Momentos mutativos em psicanálise. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1996. p. 46.
19
A ilusão trás em si um paradoxo, pois o que é criado pelo bebê já estava lá para ser
criado. A mãe criada de forma onipotente precisa primeiro estar para ser criada pelo
bebê. E ao ser encontrada permite o desenvolvimento do modo de ser criativo.
A relação de confiança estabelecida com a mãe permite ao bebê lidar com
tranqüilidade com a distinção que vai se estabelecendo entre o mundo interno e o
mundo externo.
Quando a mãe, ao sair do estado de maternagem, cria um afastamento entre ela e o
bebê, mostra aquilo que não é ele (desiludindo o bebê) e possibilita a constituição de
uma área intermediaria da experiência, a da transicionalidade. Nessa área, na qual o
bebê começa a constituir sua subjetividade no sentido de perceber-se como si-mesmo, o
relacionamento começa a acontecer com um objeto transicional. Para Winnicott o objeto
transicional é a primeira posse não eu.
Winnicott propõe de maneira original a terceira área da experiência, área
intermediaria de experimentação para a qual contribuem, tanto a realidade interna como
a externa. Uma área que não é disputada, pois nenhuma reivindicação é feita em seu
nome.
Essa área se situa entre a incapacidade do bebê em reconhecer a realidade e sua
crescente habilidade em reconhecê-la e aceitá-la.
O bebê passa a lidar, a partir de seu mundo subjetivo em construção, com alguma
coisa como um paninho, uma bola de lã, uma palavra, uma música, melodia ou algum
objeto macio.
Winnicott apresenta um resumo das qualidades especiais do objeto transicional.
No início o bebê assume direitos sobre o objeto, ele é afetuosamente acariciado, tanto
quanto amado com excitação e mutilado. Coloca Winnicott que o objeto transicional
não deve mudar nunca, a não ser que a mudança seja provocada pelo bebê. Ele deve
sobreviver ao amor e ao ódio instintivos, deve dar a impressão de proporcionar calor, de
se mover, ser dotado de textura, ou fazer algo mostrando que tem vitalidade ou
realidade próprias. O objeto subjetivo vem de fora do ponto de vista do adulto, mas não
do ponto de vista do bebê. Ele também não vem de dentro, não é uma alucinação.
Gradualmente ele é destruído e o bebê se dá conta de sua externalidade.
Em O Brincar e a Realidade (1975) Winnicott mostra que a transicionalidade é a
primeira utilização de um objeto não eu e enumera cinco aspectos a serem estudados: a
natureza do objeto, a capacidade do bebê reconhecê-lo como sendo não eu, sua
localização fora dentro na fronteira, a capacidade do bebê de criar e o início do tipo
20
afetuoso de relação de objeto.
Ao estudar a ilusão, Winnicott a reconhece como início da experiência cultural no
bebê e como base da arte e da religião nos adultos. Para ele, a área intermediaria
continua vida afora, e um adulto não reivindica objetividade nessa área. Enquanto
potencial saudável, compartilha prazerosamente a sobreposição com a área
intermediaria de outros adultos, na arte, na filosofia e na religião.
A questão da ilusão-desilusão e da frustração é, portanto, fundamental para
entender o amadurecimento e sua dinâmica no pensamento de Winnicott. O autor
entende que a mãe suficientemente boa é aquela que efetua uma adaptação ativa às
necessidades do bebê. Com o amadurecimento do bebê a mãe suficientemente boa
adapta-se cada vez menos completamente às necessidades do bebê que vai adquirindo a
capacidade de lidar com o fracasso dela. O bebê passa, então, a ter a oportunidade de
lidar com os objetos reais: a amá-los, odiá-los a poder recordar, viver, fantasiar e a
integrar passado, presente e futuro.
Em Winnicott, o valor da ilusão é muito importante para pensar o desafio do
amadurecimento. Mostra o autor que, no objeto transicional, o bebê primeiro faz uso da
ilusão, e, a partir dele, relaciona-se com outros objetos, por outros percebidos como
externos. A atividade não se esgota apenas nessa fase. A continuidade da atividade
transicional se efetua no brincar.
Quem brinca não está apenas fantasiando, mas fazendo alguma coisa. O brincar é
visto como atividade fundamental no desenvolvimento, integrando realidade psíquica
interior com controle de objetos reais. É importante a tal ponto de Winnicott entender
que, caso o paciente não possa brincar, esse sintoma deve ser visto antes de outros
fragmentos de conduta.
Para Winnicott o próximo momento ou estádio do amadurecimento é poder ficar
só na presença de alguém, baseado na confiança.
Heidegger, no texto O Caminho do Campo
6
, tem uma pequena passagem que
mostra claramente esse momento:
Mas era na casca do carvalho que os meninos recortavam seus
navios. Equipados com banco de remo e leme, flutuavam no
Mettenbach ou na fonte da escola. As viagens de volta ao mundo
dos jogos chegavam fácil ao destino e sempre voltavam a
6
HEIDEGGER, M. O Caminho do Campo. São Paulo: Ed. Livraria Duas Cidades, 1969.
21
encontrar as margens. O que estas viagens tinham de sonho era
protegido num brilho quase imperceptível àquele tempo, mas
espalhado por todas as coisas. Seu reino era delimitado pelos
olhos e pelas mãos da mãe. Era como se seu cuidado silencioso
velasse sobre todos os seres.
Só na presença da mãe, que está ali, mas não invade o mundo interno da criança, o
brincar se encontra em uma área que não admite intrusão e nem pode ser facilmente
abandonada. A realidade pessoal interna e os objetos externos interagem, a criança se
preocupa, se concentra. E no brincar acontece a liberdade de criação tal qual na
atividade cultural do adulto. Somente sendo criativo o individuo pode manifestar seu eu
(seu self) e o brincar é porta privilegiada para ser criativo.
O brincar é base de toda atividade cultural, uma área que não é nem exterior nem
interior. Através da percepção criativa a pessoa pode perceber que a vida é digna de ser
vivida. O existir criativo é saudável e o existir submisso é doentio. A pessoa que perde a
capacidade de existir criativamente tem dúvidas quanto, a saber, se a vida vale a pena.
Na arte, na poesia, encontra-se o viver poético e criativo. No entanto, mais
prosaicamente, essa forma de ser pode apresentar-se na vida da pessoa nos afazeres
cotidianos, no modo de se relacionar com as questões cotidianas. Em um espaço pessoal
e próprio que é, ao mesmo tempo, compartilhado.
A linguagem poética em Winnicott pode ser entendida como a capacidade de
existir sendo criativo. O espaço do poético é onde pode haver envolvimento, autoria e
apropriação, e a ausência deste implica em um modo de ser defensivo, reativo
superficial e adaptativo.
Winnicott afirma que quando o bebê já simboliza, ele está distinguindo
claramente fantasia de fato. Distingue objetos internos de externos, criatividade primária
e percepção. Para Winnicott, é fundamental o fato de que o termo objeto transicional
abra campo para o processo de tornar-se capaz de aceitar diferença e similaridade.
Winnicott usa o exemplo da hóstia na sagrada comunhão, que para os católicos é
de fato o corpo de Cristo e, para a comunidade protestante, é um substitutivo de algo
evocativo. Afirma que, em ambos os casos, trata-se de um símbolo. Winnicott afirma
que objeto transicional é o termo que explica a jornada do simbolismo no tempo, o
caminho que o bebê percorre do puramente subjetivo para a objetividade.
Winnicott dá um valor positivo para a ilusão.
Para esse autor, a tarefa de aceitação da realidade não se completa nunca. Os seres
humanos estão permanentemente envolvidos na tarefa de relacionar realidade externa e
22
interna. E o alívio desta tensão se em uma área intermediaria da experiência que na
criança ocorre no brincar e que no adulto se encontra nas artes e na religião.
É no brincar que se situa a origem da experiência cultural e religiosa do adulto. Se
acaso a criança estiver impedida de brincar, terá dificuldades nessas áreas no futuro.
2.2. A RELIGIOSIDADE PENSADA A PARTIR DE WINNICOTT POR MARIO
ALETTI
Aletti mostra que Winnicott nunca se interessou pela religião como tema e,
quando a aborda, foi no intuito de colocá-la entre os múltiplos fenômenos transicionais
do mundo adulto. Para ele, o surgimento da religiosidade individual se em
continuidade e em função com as características do desenvolvimento do self, assim,
pensar a religiosidade nesse autor é trilhar um caminho novo.
Aletti vê a experiência pré-verbal da confiabilidade humana, que acontece na
relação do bebê com a mãe suficientemente boa, na capacidade de ficar sozinho na
presença da mãe e no crer-em a gênese e a possibilidade do crer em Deus e de
aproximar-se do conceito de braços eternos de Deus.
Em seu texto “Arte cultura e religião na vida adulta: rabiscos Winnicottianos”
7
,
Aletti apresenta uma questão fundamental: Quando o homem diz Deus, o que ele está
dizendo verdadeiramente?
Para Aletti
8
existe a possibilidade de compreender o vivido religioso a partir de
Winnicott, principalmente através dos conceitos de transicionalidade e ilusão. O autor
indica a possibilidade de um modelo que entenda a ilusão como fenômeno
particularmente fecundo para as perspectivas heurísticas e clínicas, pois para ele esse
fenômeno permite colher a vitalidade psicológica da experiência religiosa.
Uma vez estabelecido o valor positivo da ilusão, mostra Aletti, ela se apresenta
como âmbito germinativo, momento basilar do processo de constituição da realidade
interna e externa: permite repensar o fenômeno religioso.
7
ALETTI, M. “Arte, cultura e religião na vida adulta: rabiscos Winnicottianos”. In: IRENE, G. A. &
ANCONA-LOPEZ, M. Temas em Psicologia da religião. São Paulo: Ed Vetor, 2007. pp. 13-58.
8
Mario Aletti é membro da Sociedade Italiana de Psicologia da Religião e da Associação Internacional
para Psicologia da Religião. Como psicanalista é um admirador de Winnicott e realiza um importante
trabalho no qual aproxima o pensamento de Winnicott ao da psicologia da religião.
23
A transicionalidade não é exclusiva da criança e se encontra no adulto na
constante tarefa de manter um self com as realidades interna e externa separadas e se
encontra presente nas artes na vida cultural e na fé religiosa.
Destaca o autor a impossibilidade de se dizer certas experiências pessoais
profundas, como as experiências de êxtase estético de profundo encanto por algo, como,
por exemplo, quando estamos diante de uma grande pintura como aquela que retrata o
grito sem voz e, no entanto, ensurdecedor de Munch, ou a beleza das cataratas do
Iguaçu.
A indizibilidade de Deus é muito mais radical e podemos nos aproximar, via
símbolo e metáfora. O que se quer dizer é sempre outro é uma realidade além, portanto
a representação religiosa é devedora da cultura apresentada.
Segundo Aletti a representação tem a função de mediação psíquica, assim, ao
dizer Deus pai, ativam-se representações psíquicas da infância e atuais sempre
relacionadas ao “pai” culturalmente contextualizado. Relação esta que se sempre de
forma criativa.
O modelo winnicottiano dos fenômenos transicionais ajuda aqui a compreender
estes modos de relação, e frisa bem o autor que dois erros são bastante comuns com
relação a transicionalidade.
O primeiro deles é querer atribuir a transicionalidade ao objeto, como, por
exemplo, o ursinho Winnie the Pooh. O que tem que ser esclarecido aqui é que o é o
objeto que é transicional, não é o objeto em si, mas o uso que se faz do objeto. A área da
experiência entre o mundo interno e externo, a primeira posse não eu.
O segundo erro é entender a transicionalidade como uma simples fase, uma etapa
do desenvolvimento entre um antes e um depois, para ele não é disso que se trata, pois a
função transicional acompanhara toda a vida psíquica, o humano se encontra na eterna
tarefa de separar o dentro, o fora e o na fronteira.
Na criança a transicionalidade ocorre entre 4 e 18 meses e se manifesta na relação
com o objeto. Essa função transicional permanecerá, por toda a vida adulta, como
espaço potencial. É o espaço da criatividade, aa experiência estética, da arte e da
religião.
Existe uma continuidade, uma evolução da experiência transicional do brincar do
brincar para o brincar compartilhado e, deste, para as experiências culturais e religiosas.
Aletti esclarece detalhadamente o transicional e o potencial, para, então, pensar a
experiência religiosa. A transicionalidade não é o que liga o objetivo com o subjetivo e
24
sim aquilo que faz ponte (bridging) entre o mundo interno e o mundo externo, num jogo
de dinâmicas bastante profundas.
Após deixar bem claro sua compreensão da transicionalidade, Aletti enfatiza um
aspecto fundamental do pensamento de Winnicott, central para entender o fenômeno
religioso. Observa
9
:
No pensamento de Winnicott, os conceitos de objetos, fenômenos e
área transicional remetem ao entrecruzamento do conceito de ilusão
com suas relações com a representação mental e a simbolização.
Aletti entende o crer (believing) e a fé (faith) como processos psicodinâmicos.
Mostra, esse autor, que para ele existe uma continuidade direta entre a experiência da
confiança e a fé religiosa, uma fé relacionada às experiências primeiras. Temos a
religião e a imagem de Deus que é apresentada culturalmente, e uma imagem de Deus
própria de uma teologia pessoal.
Entende Aletti que os processos psicológicos importam, mas que o espaço
potencial onde ocorrem vivências religiosas deve permanecer potencial. Uma indução
forçada leva a uma vivência religiosa falsa, assim como na arte e nas atividades
culturais de estabelece o falso self.
Para Aletti a verdadeira religião faz o homem crescer e, referindo-se ao espaço
potencial indica o titulo da obra de Antoine Vergote, pois entende que é no espaço
potencial que podem ser respeitados juntos “A humanidade do Homem e a divindade de
Deus” (1997).
Em outro texto, Aletti mostra o modelo hermenêutico da ilusão, entendendo a
ilusão como algo fundamental, constitutiva da subjetividade humana. Nessa perspectiva
a ilusão não é vista como algo do qual o homem deveria ficar livre, desafiando a postura
psicanalítica tradicional.
Aletti aplica o conceito de ilusão à religiosidade de forma muito interessante.
Emprega uma pintura de Jan Steen, “A refeição em Emaús”, na qual o pintor retrata
uma passagem do Novo Testamento de forma bastante original (ver Anexo II). Embora
essa passagem (Lucas 24, 13-35)
10
seja bastante conhecida e representada por muitos
9
ALETTI, M. “A figura da ilusão na literatura psicanalítica da religião”. In: Psicologia USP, v. 15, n.3,
2004.
10
A passagem Bíblica é a seguinte: “… Aproximando-se do povoado para onde iam, Jesus simulou que ia
mais adiante. Eles porém, insistiram, dizendo: Permanece conosco, pois cai a tarde e o dia já declina.
25
pintores, Aletti chama atenção para a originalidade do trabalho do artista:
A representação clássica expressa a certeza do não imaginário dos
discípulos, e conseqüentemente da comunidade de crentes e do
artista. A pintura de Jan Steen, entretanto, apresenta uma situação
completamente diferente e altamente incomum; o pintor tem uma
abordagem provocativa em relação á exegese e ainda ao texto do
Novo Testamento. Os dois discípulos parecem estar em um estado de
consciência obscura: superados por uma exaustão física, sonolência,
e vinho, eles afundam em um tipo de embriaguez como a da
companhia misteriosa desbotada ao fundo, tendo perdido o
contorno distinto da figura real. Ao mesmo tempo em que os
empregados da taverna continuam a fazer as suas tarefas com
completa indiferença. Como se eles tivessem perdido a habilidade
de admirar qualquer coisa. A impressão dada é que uma vez
acordados, os viajantes poderiam perguntar a si mesmos quem era
aquela companhia, mas também se era realmente real, ou meramente
um sonho, uma visão, ou simplesmente uma ilusão. O artista separa
a aparição de Cristo, do brilho suave da verdadeira experiência, e
muda para as sombras da convicção subjetiva, onde a fé (ou dúvida)
realmente repousam. Desejo, projeção e ilusão, são mostrados como
rotas que levam ao reconhecimento que constitui a base da fé, com
uma acentuação do componente subjetivo; isto poderia ser um tanto
incomum para este tipo de expressão artístico que ocorreu no mundo
Romano Católico durante aquele período.
11
Aletti mostra, com esse exemplo, a possibilidade de se pensar a ilusão, o subjetivo
e a religiosidade em outro contexto. Nesse contexto, a clareza e a certeza da
objetividade são trocadas por um outro tipo de vivência.
Nesse trecho em questão, Jesus aparece sem permitir que seja reconhecido.
Posteriormente, após um gesto seu (partindo um pão), é reconhecido e se torna
invisível. Ao se tornar invisível, os discípulos acreditam na ressurreição e partem para
anunciá-la.
Aqui a vivência religiosa acontece em um espaço que não pode ser objetivado e
também não pode ser meramente subjetivo. O Cristo estava presente para ser visto,
mas é visto através de um gesto. Ao ser visto, contudo e paradoxalmente, se torna
invisível.
O Cristo encontrado, na dos discípulos, estava para ser encontrado. Ao
Entrou então para ficar com eles. E, uma vez à mesa com eles, tomou o pão, abençoou-o, depois partiu-o
e deu a eles. Então seus olhos se abriram e o reconheceram; ele, porém ficou invisível diante deles. E
disseram um ao outro: Não ardia nosso coração quando ele nos falava pelo caminho, quando nos
explicava as escrituras?”
11
ALETTI, M. “Arte, cultura e religião na vida adulta: rabiscos Winnicottianos”. In: IRENE, G. A. &
ANCONA-LOPEZ, M. Temas em Psicologia da religião. São Paulo: Ed Vetor, 2007.
26
mesmo tempo, é percebido de forma espontânea e criativa. Claro que podia não ser
percebido, e, por isso mesmo, toda a vivência ganha uma marca de autenticidade para os
discípulos.
uma interessante passagem de Benedito Nunes
12
na qual, tratando do sagrado,
destaca-se a questão da transcendência presente nesse trecho bíblico:
Por um lado Deus é transcendente ao mundo que criou, e como tal
dele separado, o invisível acima do visível; mas o invisível contrai-se
com o visível ao fazer-se homem e em sua divina humanidade ou em
sua humanidade divinizada, no homem que é seu filho, ligando o
temporal e o eterno, o finito e o infinito, como se ligam pela palavra,
pelo verbo, a revelação de si mesmo e sua promessa de vida eterna.
12
NUNES, B. Passagem para o poético. São Paulo: Editora Ática, 1992.
27
CAPITULO 3
HISTÓRIA DA PSICOLOGIA E RELIGIÃO
No presente capítulo discute-se a relação entre história da psicologia e a religião, o
que ajuda a compreender a religiosidade que se altera ao longo do tempo para o
psicólogo clínico ao destacar aspectos do conflito entre ciência e religião —presentes na
formação e no trabalho do psicólogo.
A religião e a ciência possuem uma história muitas vezes conflitante e a psicologia
não ficou fora deste conflito. Algumas disciplinas resolveram este conflito mantendo a
religião no limite da e o conhecimento no limite da razão. No caso da psicologia esta
tarefa nunca foi simples.
A psicologia e a religião tiveram, ao longo da história, momentos de
distanciamentos e momentos de aproximação. Muitas vezes a forte influência da
religião na origem das ciências foi, no âmbito da Psicologia, esquecida.
Algumas das vertentes da psicologia, atualmente, entendem que a religiosidade é
passível de ser pensada, estudada e pesquisada. Pensar o homem como um ser que crê
ou não é possível e enriquecedor, investigando assim as dinâmicas próprias ligadas à
religiosidade.
A ciência como método, com questões e abordagens epistemológicas, conseguiu
estabelecer áreas variadas de atuação em relativa independência diante da questão da
religião. No entanto, nas ciências humanas, esta independência dificilmente pode ser
mantida frente à dificuldade de distinguir o fenômeno psicológico do fenômeno
religioso.
Algumas abordagens em psicologia levam em conta a religião, reduzindo-a a seus
próprios termos, ou seja, valorizando o psicologismo dos fenômenos ligados à religião.
28
A adesão do psicólogo a estas linhas pode afetar sua própria religiosidade ao confrontar
convicções científicas às suas crenças religiosas.
A psicologia da religião existe mais de cem anos. Seu surgimento ocorreu
colado ao surgimento da psicologia científica. Tanto a psicologia da religião como as
outras psicologias se encontram diante dos mesmos problemas de fundo epistemológico.
A psicologia possui uma grande diversidade metodológica, com muitas variações
epistemológicas. Não possui um único paradigma quanto ao objeto de estudo. O projeto
de fundamento único fracassou, restando uma convivência, algumas vezes incomoda, de
diferentes propostas.
A religião é tema de várias abordagens e, desde sempre, os principais
pesquisadores da psicologia levaram em consideração a psicologia da religião objeto
de ocupação de autores como Wundt, Leuba, James, Jung e tantos outros.
A psicologia da religião se encontra amalgamada com a história da psicologia e se
diferencia das outras psicologias pelo fato de ser a aplicação da psicologia ao estudo da
religião.
Surge então um primeiro problema. Delimitar parte do objeto de estudo dessa
ciência, ou seja, a religião. A amplitude e a abrangência desse objeto não permite uma
delimitação muito simples e nem conta com possíveis conceitos universais.
É preciso esclarecer que qualquer definição será sempre passível de revisão.
Ancona-Lopez
13
define a religião da seguinte forma:
A religião, na qualidade de manifestação cultural é um fenômeno
multidimensional, composto por um sistema de crenças, ritos,
personagens e símbolos que expressa uma compreensão específica
do sentido da vida e estrutura princípios e valores, propondo modos
de viver para a comunidade e para o indivíduo.
O outro foco da psicologia da religião é o homem como ser que vive a
religiosidade em suas diferentes manifestações: nas crenças, nos ritos, na presença e na
ausência de fé e numa enorme variedade de comportamentos diferentes. A psicologia da
13
ANCONA-LOPEZ, M. “As crenças Pessoais e os psicólogos clínicos: orientação de dissertações e
teses em Psicologia da Religião”. In: IRENE, G. A. & ANCONA-LOPEZ, M. Temas em Psicologia da
Religião. São Paulo: Ed. Vetor, 2007.
29
religião se ocupa das dinâmicas que envolvem a religiosidade e sua relação com os fatos
da vida do homem.
A psicologia em muitas de suas abordagens trabalha a questão do sentido nos fatos
da vida e a religião lida com a busca de sentido no âmbito do sagrado. A diferença do
que é psicológico do que é religioso se da na referência ao sagrado.
Para a psicologia da religião a vivencia religiosa é entendida como uma realidade
psíquica plena, com seus significados e complexidade próprios. A possibilidade de
apreensão destes fenômenos se da por aproximação já que a dificuldade de se expressar
e compreender tais fenômenos é grande. No entanto a preocupação com a experiência
religiosa compartilhada que acontece nos ritos, no dialogo com outros crentes e em
várias diferentes manifestações culturais é fundamental para não se restringir ao campo
do subjetivo e só ali permanecer.
A história da psicologia científica e da religião sempre estiveram ligadas de
alguma forma. Veremos agora como isto ocorreu.
É consenso entre historiadores da psicologia que o surgimento da psicologia
cientifica se da com Wundt e a publicação, em 1862, de Contribuições a Teoria da
Percepção Sensorial. Wundt aponta, nessa obra, a importância da psicologia se
constituir como uma ciência independente. Em 1879 ele funda, em Leipzig, o primeiro
laboratório de psicologia experimental, logo após publicar os Fundamentos de
Psicologia Fisiológica.
Wundt propôs um plano de trabalho para atuar em três frentes: a criação da
psicologia experimental, dar forma a uma metafísica cientifica e estudar a psicologia
dos povos. Ele relaciona psicologia e religião principalmente no seu trabalho de dez
volumes intitulado Psicologia dos Povos, onde aborda questões que não cabem no
método experimental.
Como cientista fortemente influenciado pelo positivismo e pela teoria da evolução
entende que a religião tem sua origem em processos emocionais.
Aqui começam a se estabelecer as dificuldades de relacionamento entre as
características positivas e metódicas da ciência e a impossibilidade de verificação da
religião.
Muitos outros autores no inicio da historia da psicologia também se ocuparam do
fenômeno religião. A escola francesa — cujos maiores expoentes são Charcot e Janet —
teve, em seu interior, críticos e defensores da psicologia da religião. No âmbito da
30
psiquiatria hospitalar, predominante no início da psicologia francesa, os fenômenos
religiosos foram, na maior parte das vezes, vistos pelo viés da patologia.
A psicologia da religião, de acordo com o historiador da psicologia Antonio Ávila,
tem sua origem com a publicação de Psicologia da Religião (1889) por Edwin E.
Starbuck, aluno em Harvard de W. James.
W. James, um precursor, é considerado um dos mais importantes autores em
psicologia da religião. Publica, em 1902, Variedades da Experiência Religiosa,
resultado de muitos anos de pesquisa na área.
O que se deve destacar é o fato da psicologia ter, desde bem cedo, se ocupado da
religião, embora, em muitas abordagens, a religião tenha sido excluída ou reduzida de
forma a perder suas características próprias.
A psicologia profunda ou a psicodinâmica, abordagem da psicologia que surge
posteriormente aos trabalhos pioneiros em psicologia tem, na relação com a religião, um
modo singular de se posicionar.
Freud, por exemplo, se ocupou do tema. No início o fundador da psicanálise
identifica a religião como necessidade de um psiquismo imaturo, analisado em termos
de psicologia individual. Posteriormente, nas ultimas fases de seu trabalho, entenderá a
religião como uma ilusão vivida em grupo, como mostra em Moisés e o Monoteísmo.
Operando sempre em termos de economia libidinal, Freud entende a ilusão como valor
bastante negativo: um erro de percepção da realidade. Sua perspectiva é entender que
não existe futuro para a religiosidade.
Jung, assumindo postura divergente, encontra uma visão bastante ampla de
religiosidade. Ocupa-se repetidamente com o tema, pensando sempre os fenômenos
religiosos do ponto de vista psicológico, entendendo-o como uma necessidade psíquica.
Essa abordagem fez com que fosse criticado muitas vezes, por reduzir a religiosidade a
simples fenômeno psíquico.
Muitos autores ligados à psicanálise foram religiosos e o tema nunca foi visto de
uma única maneira, mesmo nos círculos mais fechados.
A psicologia comportamental, organizada por J. B. Watson (em 1912), tinha como
proposta, em seu início, o estudo do comportamento observável, previsível,
quantificável uma ciência com objeto positivamente positivo, que, no entanto,
restringia muito o estudo da religiosidade com suas vivencias e sentimentos.
O pesquisador considerado de maior importância para a psicologia
comportamental, B. F. Skinner, pensou a religiosidade sempre tendo em vista as
31
instituições religiosas como instâncias de controle do comportamento humano. Vários
estudos foram feitos pela psicologia experimental com relação à religiosidade, sempre
levando em consideração o comportamento observável e levantamentos estatísticos que
pouco contribuíram para a psicologia da religião.
A psicologia humanista, considerada a terceira força em psicologia, tem como
alguns de seus principais autores A. H. Maslow, R. May e C. Rogers. Sua principal
característica foi trazer o homem para o centro do pensamento psicológico — não
estudando apenas o psiquismo ou o comportamento, mas a pessoa como um todo,
buscando vê-la pelo viés da saúde.
A psicologia humanista tem uma visão otimista do homem, entendendo-o como
dotado da capacidade de auto-realização, de caminhar rumo à saúde:
Podemos dizer que em cada organismo, não importa em que vel
um fluxo subjacente de movimento em direção à realização das
possibilidades que lhe são inerentes. também nos seres humanos
uma tendência natural a um desenvolvimento mais completo e mais
complexo.
14
A psicologia humanista terminou por ter uma maior abertura para a religião por
permitir e acolher melhor as manifestações do humano no modo como elas se dão e
também por ter surgido depois das outras revoluções em psicologia.
Com relação à história da psicologia e a religião no início temos um afastamento
da religião nos momentos em que a psicologia procurava se firmar como ciência
independente, depois temos uma reaproximação. Atualmente na maioria das abordagens
o enfoque da religiosidade é muito mais aberto e a própria psicologia da religião se
mostra como um campo estabelecido no universo das psicologias.
Na atualidade nota-se o retorno do religioso. Existe, também, possibilidades de
pensar as questões do sagrado de forma mais ampla dentro da psicologia como um todo.
É o que se pôde verificar com Winnicott e o trabalho de Aletti, como discutido no
primeiro capítulo. Esses trabalhos abrem a possibilidade de complementaridade entre
psicologia e religião.
14
ROGERS, C. Um Jeito de Ser. São Paulo: EPU, 2005. p. 40.
32
É preciso, ainda, avaliar se e como acontece a alteração em relação à religiosidade
no trabalho do psicólogo clínico em relação às transformações ao longo do tempo.
É o que propõe o próximo capítulo.
33
CAPÍTULO 4
ENTREVISTA COM PSICÓLOGO CLÍNICO
O psicólogo entrevistado atua na área da psicologia clínica mais de trinta anos.
Também é professor universitário. Foi escolhido para ser entrevistado pela experiência
clínica e pelo tempo expressivo de atividade.
A entrevista ocorreu após contato telefônico. O psicólogo entrevistado recebeu
informações gerais sobre a entrevista, soube que ela seria gravada e que se tratava de
pesquisa em psicologia. O entrevistado concordou e se mostrou receptivo.
Foram tomados os cuidados éticos para proteger a identidade do entrevistado e das
pessoas citadas. Foi tomado o cuidado necessário com o material original (fitas de
gravação) e evitou-se que, durante a entrevista, outros assuntos que não os combinados
previamente fossem explorados.
DESCRIÇÃO DE ENTREVISTA
O entrevistado principia contando um pouco da sua história, como fez suas
escolhas, como entrou em contato com a psicologia, sua formação de psicólogo. Relata
como era a faculdade em sua época Faculdade São Bento, ligada, portanto, à Igreja
Católica.
Relata estar formado trinta e seis anos e que, no início, o curso de psicologia
estava ligado à Faculdade de Filosofia, com duração de seis anos.
34
Descreve a convivência entre os alunos e lembra que havia uma integração muito
grande entre as turmas de diferentes anos. Indica que os professores também
participavam dessa integração nos primeiros anos do curso.
Ao ser indagado sobre como era sua religiosidade e como a questão da
religiosidade aparecia no curso, relata que vem de uma família muito católica e que teve
uma infância e um início de adolescência bastante religiosa. Fez catecismo, primeira
comunhão e sabia rezar a missa inteira em latim. Passava a patina e achava isso,
segundo seu próprio comentário, “um grande barato”.
Lembra que na adolescência entrou no movimento estudantil que, naquela época,
tinha uma ala muito próxima da igreja, a JUC. Era o início da teologia da libertação, e,
para ele, aos poucos, a perspectiva religiosa foi sendo substituída por uma perspectiva
cada vez mais política.
Com o progressivo abandono da perspectiva religiosa e com o envolvimento cada
vez mais radical na perspectiva política houve uma exacerbação das contradições entre
as duas perspectivas. Ele, então, “quebrou”.
Relata a sensação de uma ruptura no momento de confronto de posições, de uma
cisão muito violenta, uma ruptura entre as suas raízes éticas e a atividade política
ética confrontada. Indica ter, posteriormente, se afastado da atividade política.
Perguntado se isso ocorreu no colegial ou no início da faculdade, relata que foi no
colegial e que, ao se afastar da política, estava se afastando de um grupo no qual tinha
se envolvido muito e que perdeu também o seu projeto de vida, não estando mais nem
no movimento religioso, nem no político.
Teve que recomeçar, ainda no colegial, uma outra vida um movimento de
resgate pessoal. Conta que ao entrar na faculdade voltou à questão política com o
movimento universitário e chama atenção para o fato de isso se passar exatamente em
1966 (ano de intensa agitação política, com instabilidade das instituições).
Relata que a Faculdade São Bento pertencia à PUC e que era uma época de muita
efervescência: o TUCA estava começando, com “Morte e Vida Severina”, que ganhou o
festival internacional de teatro. A agitação cultural prosseguiu por 1967 e 1968 ano
marcante no mundo todo, com transformações profundas nos Estados Unidos, protestos
contra a guerra do Vietnã, lutas pelos direitos civis; na França protestos estudantis; na
Inglaterra enorme revolução nos costumes; no Leste Europeu a “Primavera de Praga”; a
Guerra Fria e inúmeras outras transformações em vários países. Comenta ter sido
35
“enlouquecedor”, sobretudo pelo fato dele ter entrado para o serviço militar em 1967 e
ter passado, inclusive, períodos de internato no quartel.
Diz então que como tinha “esquizofrenizado” (sic) no colegial, não
“esquizofrenizou” (sic) na faculdade, mas era enlouquecedor porque ele saia do quartel
e ia para a faculdade. A atividade estudantil rebrotando era, segundo indica, muito
“esquizofrenizante” (sic).
A questão religiosa tinha “desaparecido”, deixando apenas poucos ecos, resquícios
religiosos pelo fato de ter estudado em colégio de padres. Era um colégio com aulas de
filosofia, onde teve contato com o movimento existencialista (principalmente Sartre) e
também com a filosofia de Aristóteles. As raízes do existencialismo, no século XIX,
foram vistas com Dostoievski, e também eram abordadas questões éticas.
Relata que no início da faculdade o movimento político ainda estava fortemente
ligado à igreja, aglutinado na Ação popular (AP) e que houve uma grande cisão no
movimento: uma parte optou pela guerrilha, entrando na clandestinidade, enquanto
outra prosseguiu mais próxima da igreja, se mantendo mais visível, Diz que o
movimento “explode” e era impossível coadunar as duas coisas, inclusive por estar
fazendo o CPOR.
Afirma que as questões religiosas haviam se transformado em questões éticas. Na
psicologia as questões sociológicas haviam se deslocado para as questões individuais.
Afirma que questões que eram, inicialmente, de ordem religiosa (depois política), se
transformaram em questões individuais internas. Nos domínios da psicologia, procurou
lidar com o sofrimento humano naquilo que ele tem de mais agudo, a loucura.
Relata também uma briga com o conceito de ciência. Seu pai era cientista e
trabalhava com física quântica e em sua tese de doutorado confrontou a física quântica
com a probabilística e mostrou novos paradigmas que o colocaram em confronto com os
modelos clássicos de ciência.
Nesta ruptura com o modelo clássico de ciência aproximou-se, através de um
professor, da psicologia humanista de Rogers, e passou a estudar a fenomenologia de
Husserl — por indicação desse professor, justamente para fundamentar o humanismo de
Rogers.
A religiosidade neste momento estava restrita às raízes éticas, mas houve, de certa
forma, uma reaproximação, pois neste momento estava questionando intensamente os
pressupostos da ciência e do poder.
36
Relata que durante o curso tinha se aproximado dos behavioristas e tinha tido um
fascínio com o poder aberto por via técnica, pelos processos de intervenção.
Entende, então, que a temática do poder está profundamente ligada à religião, pois
para as religiões a primeira afirmação que se faz de Deus é que este é todo poderoso. A
idéia de poder e a idéia de divindade estão profundamente vinculadas. Começou a se dar
conta ao estudar fenomenologia, ao ler as Meditações Cartesianas e, principalmente,
ao estudar Heidegger e a crítica a metafísica que religião, política e ciência disputam
o mesmo espaço, sendo o grande conflito entre essas três instâncias o poder.
Assim, durante sua formação, passou do âmbito religioso para o âmbito político e
do político para o da ciência. Migra, posteriormente, da ciência para o domínio
psicológico, no qual o poder deveria desdobrar-se como poder de salvar o paciente.
Com o questionamento da física probabilística e com a fenomenologia começou a
perceber a passagem do substantivo poder para o verbo poder.
Diz que a probabilidade é um conceito da física e na psicologia temos a
possibilidade, e o conceito de possibilidade carrega a referência ao poder ser, não ao que
é, mas ao que pode ser. A palavra poder ganha então um sentido verbal e não
substantivo, o que só vai ficar claro cinco anos depois de formado.
Diz que havia começado a atender na clínica da faculdade e que, com relação à
religiosidade, havia psicologizado a religião. Para ele, nesse momento, a religião
aparecia como uma espécie de linguagem expressiva de questões e anseios pessoais.
Via a religião Rogerianamente, como uma espécie de linguagem na qual a pessoa
expressa suas experiências mais profundas e suas angústias mais fundamentais.
Começou a trabalhar numa perspectiva Rogeriana. Foi estudar Husserl para
fundamentar Rogers e se aproximou de Minkovski e de Boss. Nesse momento a
perspectivas da religião ganhou um status existencial, pois Boss apresenta a
religiosidade como um existencial análogo ao ser-no-mundo em Ser e Tempo.
Relata que a tarefa de aproximar a religiosidade como um existencial em Ser e
Tempo o absorvia completamente e que se sentiu tomado pela nova perspectiva
epistemológica do pensamento de Heidegger. A religião ficou, nessa etapa de seus
estudos, em segundo plano.
Perguntado sobre o como a religiosidade interferia na atividade clínica, respondeu
que demorou um bom tempo três anos de terapia e de estudos Daseinsanalyticos
para fazer a transição de Rogers para a nova abordagem. Nesse intercurso teve um
desentendimento, por conta do conceito de liberdade, com o grupo que estudava a
37
daseinsanalyse. Afirma que, se a liberdade é pensada como poder, então, o tema é o
mesmo.
Conta que nesse momento de sua carreira e de sua vida passou a pensar a
liberdade e o poder no sentido ôntico, ou seja, o homem não é livre porque ele tem o
poder de escolher, o poder substantivo. O homem não tem poder, ele é poder ser, do
substantivo para o verbo, pode ser que sim, pode ser que não, a diferença de perspectiva
é muito grande. O homem não tem liberdade ele é livre, no sentido ôntico no sentido da
indeterminação, é um ente cujo fundamento é não ser. A partir deste momento começa
a, de fato, ser um Daseinsanalista.
Ao ser indagado sobre como foram essas rupturas epistemológicas e religiosas,
responde que foram todas muito doídas. Diz que foi muito angustiante um coroinha que
vive intensamente sua religiosidade ver arrancada esta experiência que é substituída por
um mundo muito mais desamparado, desabrigado, que é a puberdade, depois buscar
apoio na referência política ainda ligada ao religioso, mas ir aos poucos se afastando do
religioso e ir se aproximando de questões éticas que tratam no âmbito do político de
questões do sentido da vida como a perspectiva religiosa tratava.
Repete que houve uma segunda ruptura, com o movimento político e por fim tem
uma ruptura epistemológica no campo da psicologia e da filosofia. Conflitos entre
ciência, política e religião muito ligados à questão do poder e da liberdade. Permaneceu
ligado à daseinsanalyse por estar em um grupo de estudo e a partir de então passou a ser
daseinsanalista.
Ao aprofundar-se em Daseinsanalyse, a religiosidade ressurgiu com a referência
do sagrado, no segundo Heidegger, em Carta Sobre o Humanismo e com A questão da
Técnica textos que mostram bem o sagrado como ontológico e a religião como
ôntico. O que se mostra também no trabalho de Gilberto Safra em uma perspectiva
menos filosófica e mais ligada à clínica.
Cita, então, vários autores: Helio Pelegrino, Kierkeggard, Hannah Arendt,
Dostoievski, James Hilman e relata que, através desses autores e de seus textos, se
aproxima da religiosidade.
Diz que quando era recém-formado, a religiosidade tinha perdido completamente a
autenticidade, transformada em linguagem, tinha perdido seu conteúdo e se
transformado em linguagem metafísica de quem não tem recursos filosóficos, não tem
sofisticação de linguagem para expressar suas angústias mais fundamentais de maneira
nítida.
38
Afirma que, atualmente, entende quase que o oposto: que a experiência do sagrado
tem uma autenticidade quase inconfundível. Refere que as religiões têm uma dimensão
ôntica em suas manifestações, mas que o sagrado tem uma dimensão ontológica própria
de um existencial.
Aproxima então o caráter ontológico da religiosidade de Thomas Merton, com o
monge budista Gustavo, que escreve sobre intimidade, e fala sobre a aproximação
ôntica das religiões com o caráter ontológico do sagrado.
Perguntado sobre como vivenciava a sua religiosidade no momento atual, explica
que sem rupturas não existe autenticidade, que a experiência religiosa é uma experiência
de alienação.
Pergunto se ele se refere às rupturas com relação à religiosidade, tal qual a ruptura
da puberdade da adolescência, e ele afirma que sim.
Afirma que primeiro vem a ruptura e depois vem a experiência própria. E é
preciso que esta ruptura se repita ocasionalmente ela não pode nunca ser uma só. Na
adolescência houve esta primeira ruptura que vai do ôntico para o ontológico e que é
uma experiência de uma angústia muito grande.
Relata de forma racionalizada que compreende a experiência do sagrado como a
falta de Deus, e que a falta de Deus tem pouco a ver com acreditar ou não em Deus.
Mostra que para ele uma falta, um desejo, é completamente diferente da convicção da
crença e da benção da fé, é uma experiência muito especial.
Perguntado se atualmente pratica alguma religião, responde que hoje experimenta
um dilema: que a experiência religiosa individual é insuficiente e que se sente
provocado pela necessidade de descobrir formas de compartilhar as experiências no
âmbito da religiosidade da mesma forma que compartilha no âmbito do ser-no-mundo
do ser-com-os-outros.
Diz que a questão do rito talvez não possa ser dispensada, e que alguns rituais
talvez sejam necessários até para prevenir uma certa onipotência.
Perguntado sobre qual é a sua orientação religiosa, afirma que é católico de
formação, que essa é a religião que conhece; que tem facilidade e familiaridade com
textos católicos, e, então, afirma que ao interpretar os textos católicos se conta que
está fora da ortodoxia da igreja católica, tanto a de João XXIII quanto a de Bento XVI.
Afirma que João XXIII só vai ser compreendido daqui há uns cem anos.
39
Conta que convidado a participar de uma mesa redonda na universidade ficou
preocupado ao perceber a disputa política entre a teologia da libertação e Bento XVI, e
fala novamente de João XXIII e do ecumenismo que ele pregava.
Indagado acerca da possível interferência da religiosidade do terapeuta enquanto
agente de interferência na religiosidade do cliente, responde que entende que terapeutas
muito convictos do ponto de vista religioso tendem a perder de vista a referência
ontológica e, então, a referência ôntica da sua religiosidade pode se imiscuir na terapia.
terapeutas que tem uma vivência mais ontológica da religião tendem a interferir
menos. Afirma que, para quem é terapeuta e tem uma vivência mais ontológica da
religião, tem uma sutileza maior porque a própria religiosidade do terapeuta não esta
ligada a nenhum conteúdo ôntico definido. Para ele é indiferente do ponto de vista do
trabalho terapêutico que opção religiosa a pessoa fez e até se fez alguma.
Perguntado como ele a experiência mística, responde que quando ela é
autêntica acarreta uma angústia muito forte e uma experiência estética muito tocante.
Cita Rubem Alves que aproxima a angústia da experiência religiosa da beleza.
Diz que publicou um texto no qual aproxima a angustia da graça. Indica que a
graça tem uma forte conotação religiosa, a graça de Deus, por exemplo. A seguir conta a
importância do humor e da linguagem poética e diz que a graça da piada não é para ser
explicada.
Perguntado sobre a experiência religiosa propriamente dita, afirma que explicá-la
é explicar a piada e remete ao segundo Heidegger: a graça aparece como o reverso da
angústia.
Termina a entrevista agradecendo ter feito uma hora da saudade e faz questão de
enfatizar mais uma coisa: a relação entre ser mortal, liberdade, incompletude e
indeterminação.
Coloca que o homem é destinado ao amor como clareira do ser, ou seja, o homem
acolhe aquilo que chega, característica que se manifesta mais intensamente na relação
amorosa.
40
CAPITULO 5
ANÁLISE DA ENTREVISTA
O movimento com relação à religiosidade ao longo do tempo pode ser percebido,
na entrevista realizada, em várias passagens, de forma bastante clara e peculiar.
Em um primeiro momento o que se pode perceber é que, na infância, a
religiosidade que foi apresentada socialmente ao entrevistado, pela família, pela igreja e
pela escola, é vivida com naturalidade e sem conflitos expressivos. Aparece muito
pouca angústia nessa fase, a religiosidade se dá como algo quase natural.
“Porque a minha vivência particular ela é marcada por um período de infância e
começo de adolescência muito religiosa, eu venho de uma família católica
tradicional, fiz catecismo, primeira comunhão, sabia rezar a missa inteira em latim,
tocava a campainha na frente, passava a patina que é um pratinho de ouro quando
as pessoas iam comungar, então o padre ia dando a comunhão o coroinha ia segurando
a patina”.
A religião foi apresentada pela sociedade e o entrevistado encontrou sentido nela.
Através da confiança e da capacidade de acreditar, desenvolvida no início da infância,
passou a viver a religiosidade de forma natural. Os questionamentos existenciais não se
fazem presentes: as instituições a família, escola e a igreja caminhavam em relativa
41
harmonia. O entrevistado encontrava-se envolvido em uma religiosidade aceita
tacitamente.
No entanto, com a chegada da puberdade e o envolvimento com outros
movimentos como a política estudantil —, além das mudanças circunstanciais de
cidade e de escola —, a religiosidade, tal como era vivida na infância, passou por
transformações. A visão de mundo e os projetos de vida foram se alterando e houve
uma ruptura com a religiosidade e o modo como havia sido vivida na infância.
“Aí aos treze, quatorze anos eu entrei no movimento estudantil e o movimento
estudantil naquela época tinha uma ala que muito ligada à igreja, que veio justamente
a se envolver, tinha a teologia da libertação era o início daquele processo, da chamada
JUC (juventude estudantil) e então começo de atividade na política estudantil foi junto
com um grupo religioso, e aos poucos a perspectiva religiosa foi sendo afastada e
substituída por uma perspectiva cada vez mais política”.
É próprio da adolescência rever, reviver e refazer as crenças e costumes da
infância, agora em novo enquadramento. Com as mudanças significativas vividas pelo
entrevistado, estas revisões foram intensas.
“Então segue um progressivo abandono da perspectiva religiosa e um
envolvimento muito radical na perspectiva política e ai na exacerbação das
contradições das questões éticas e políticas eu quebrei literalmente a sensação que eu
tenho é de uma ruptura quase que uma cisão muito violenta”.
Durante a entrevista ficaram evidentes a angústia e a dor dessa passagem. A saída
de um mundo infantil abrigado para um mundo aberto, gerando uma situação de
desamparo.
Mudar do interior para a capital foi bastante significativo para o entrevistado,
assim como entrar em uma escola na qual a política a filosofia e a religião eram
apresentadas sob nova perspectiva. O conflito entre crenças, política e religião começou
a se esboçar fortemente.
“No colegial, ai eu comecei um movimento de resgate pessoal fiquei muito
isolado eu sai do grupo da política estudantil, mas este grupo de política estudantil
42
tinha me absorvido completamente. Então eu perdi simultaneamente projetos de vida e
tive que começar ainda no colegial uma outra vida”.
O envolvimento com a política, com os questionamentos éticos e com a
psicologia, jogou a religiosidade para segundo plano, ela vai ficando mais distante.
“A atividade estudantil em 67 e era uma coisa muito esquizofrenizante. Dois
mundos totalmente opostos uma coisa maluca”.
“Mas, em meio a este processo a questão religiosa havia desaparecido do
horizonte”.
As mudanças no envolvimento com a política e as mudanças nas adesões teóricas
em psicologia, tornam-se, naquele início de vida adulta, fontes de angústia e
inquietação. Da religiosidade ficam os ecos presentes no posicionamento humanista e
nas questões éticas.
“Da religiosidade havia ecos, mas veja, as questões religiosas tinham se
transformado em questões éticas. Ligadas à perspectiva da psicologia então havia um
deslocamento do âmbito sociológico aonde a atividade política vinha acontecendo e eu
tinha vinculado a uma referencia dos mesmos princípios que agora vistos enquanto
problemática individual”.
Logo após se formar, bem no início da carreira de psicólogo clínico, o
entrevistado passa a compreender a religiosidade apenas em termos psicológicos.
“Nesta época a minha relação com a religião, eu tinha psicologizado a religião.
A religião aparecia como uma espécie de linguagem expressiva questões e anseios
pessoais. Não era nem no sentido que a religiosidade é assumida, por exemplo, no
trabalho da psicologia analítica, também não era interpretativo no sentido de uma
psicanálise Freudiana tradicional.
Mas era entendido no sentido Rogeriano como uma espécie de uso da linguagem
através do qual a pessoa expressa as suas experiências mais profundas e as suas
angustias mais fundamentais.
43
Havia uma psicologização, que ela não era tão clara quanto na psicanálise,
onde a religião havia se transformado em uma neurose e nem era ligado a experiências
digamos arquetípicas como na psicologia Junguiana, mas era vista de uma maneira
mais básica, mais rasa como expressão de anseios e dúvidas e conflitos e resoluções
pessoais numa perspectiva bem Rogeriana”.
A formação de psicólogo não ofereceu qualquer suporte ou acolhimento. Não
trabalhou qualquer preparação para as questões religiosas, nem do próprio psicólogo,
nem dos possíveis futuros pacientes.
Com o amadurecimento pessoal e profissional, o caminho do entrevistado foi se
alterando. O modo como a religiosidade é vista hoje é bem diferente de como era vista
logo depois dele ter se formado. Através de seu trabalho clínico, a vivência religiosa
passou a ser respeitada em sua autenticidade e em sua especificidade. A religiosidade do
paciente é vista como legitima e até como algo que é parte fundamental do ser.
“Mudou muito, quando eu era recém formado a religiosidade tinha perdido
completamente a sua autenticidade, transformada em linguagem ela tinha perdido o
seu conteúdo e se transformado digamos numa espécie de linguagem metafísica de
pessoas que não tinham uma formação filosófica não tinham uma sofisticação da
linguagem para expressar suas angústias mais fundamentais de uma maneira mais
nítida. (risadas)
Hoje eu acho que a perspectiva quase que se inverteu, se por um lado a
efetividade ôntica das diferentes religiões continuam representando pra mim uma
linguagem metafórica quase do mesmo jeito por outro lado elas fazem referência a uma
discussão próxima específica, diferenciada como um existencial mesmo, constituinte da
condição ontológica do Dasein que é o existencial do sagrado que constitui uma
experiência absolutamente própria e autêntica inconfundível e diferenciada de todas as
outras formas de experiências, e abre o Dasein para este âmbito de experiências na
qual as diferentes religiões se costuram”.
No âmbito pessoal houve um movimento de aproximação em relação à
religiosidade e, até mesmo, de reaproximação em relação à igreja, mas, esse movimento
se deu de forma relutante, marcada por inúmeros conflitos.
44
“Hoje eu tô num dilema faz um tempo e o dilema é o seguinte, uma experiência
da religiosidade vista de forma individual ela é essencial, mas ela é insuficiente, nestes
últimos anos de uns cinco anos pra um pouco mais no final dos anos noventa eu
tenho me sentido provocado pela necessidade de descobrir formas de compartilhar as
experiências no âmbito da religiosidade do mesmo jeito que eu compartilho no âmbito
do ser-com-os-outros do ser-no-mundo da temporalidade da corporeidade e assim por
diante.
Isto significa a descoberta de que talvez a questão do rito não possa ser
dispensada de que alguns rituais talvez se fazem necessários até mesmo como uma
experiência de prevenir uma certa onipotência que aos poucos ameaça a se instalar no
âmbito de uma religiosidade ontológica, vivida de uma forma absolutamente
individual”.
No entanto, as questões religiosas aparecem facilmente acolhidas através de vários
autores caros, pela via intelectual, ao entrevistado. O modo racional é muito claro
durante toda a entrevista.
“Como foi reconfortante o prefácio do livro da Nancy Mangabeira Unger, O
Encantamento do Humano, o prefácio se chama ‘carta comovida a uma jovem’, onde o
Helio Pelegrino trabalha com o conceito de religiosidade a partir da etimologia do
religare de uma forma deliciosa que instaura outra referência vinda da psicanálise.
Depois disto eu reencontro do ponto de vista da perspectiva religiosa um
trabalho do Kierkgaard sobre o conceito de angústia, que trás uma leitura de caráter
religioso, filosófico muito significativo junto com alguns, ai entro de um lado eu resgato
Dostoievski com toda intensidade principalmente com o conto dos Irmãos Karamazov,
chamado O Grande Inquisidor, que voltou numa outra leitura com algumas passagens
de Hannah Arendt com James Hilman e ai vai, ai é uma colagem de vários autores e eu
me aproximo da religiosidade”.
O entrevistado mostra a sua teologia pessoal e a postura diante das questões
religiosas. Mostra também um encantamento com a questão da graça.
“A graça tem o sentido de doação talvez seja o sentido que foi se instalando
principalmente porque no segundo Heidegger a referencia da doação de ser vai se
45
tornando cada vez mais integrada então a referencia do que se da é sinônimo daquele
que acontece e trás um sentido, então ali tem uma grande curtição com a palavra graça
como sendo a outra face o reverso da angústia.
Se não houver uma experiência de devastação interior você não acessa a
experiência da graça.
O efeito da graça vem sempre como algo que se da no âmbito do vazio
dilacerante que a angústia instaurou”.
A religiosidade, no entanto, parece ter estado sempre presente durante o trajeto da
vida pessoal e profissional, mesmo como acompanhamento das questões éticas e
políticas.
A reflexão e a discussão sobre as questões da liberdade e do poder mostram os
ecos de uma religiosidade sempre presente. Questões estas que vão se mantendo ao
longo da vida profissional, principalmente no envolvimento com a daseinsanalyse e o
questionamento da metafísica.
“Em 73 vou começar a Daseinsanalyse e ai a perspectiva da religião começa a
ganhar um status existencial, porque…
A religiosidade é apresentada por Boss como um existencial análogo ao ser-no-
mundo.
A religiosidade aparece de uma forma, muito, ela só é mencionada isto se
aprofundar alguns anos depois porque nesta época o encantamento simultaneamente
com o salto epistemológico do pensamento de Heidegger junto com a descoberta de
uma nova forma de compreensão me absorveu completamente.
Então nesta época a religião pra mim era o correspondente antigo da estrutura
ontológica da religiosidade que fazia parte do Dasein, mas que não era uma coisa que
dava para aproximar porque a tarefa de aproximar os existenciais em geral e de
aproximar os existenciais descritos em Ser e Tempo à religiosidade, não parece, mas
tava me absorvendo completamente.
Eu vou fazer um contato maior com a perspectiva de religiosidade…
silêncio…”.
Parece ficar claro, também, uma busca por questões que, de certa forma, envolvem
a religiosidade: como no envolvimento da questão da graça e na preocupação com o
46
sagrado. O entrevistado, perto do final da conversa, faz questão de colocar o dasein
como destinado ao amor, tese, anteriormente defendida por ele em uma mesa redonda
com religiosos, profundamente religiosa.
“O homem é destinado ao amor, vamos ver se a gente pode sustentar isto.
O conceito de ser mortal de liberdade e o conceito de clareira do ser.
Então se o homem é ser mortal no sentido da incompletude é no mundo junto com
os outros nesta referência de uma indeterminação e se ele é clareira do ser, ele esta
destinado ao movimento de acolhimento daquilo que chega de forma que mais
intensamente manifestam a relação amorosa este acordo, esta com cordia, em
concordância com aquilo que chega”.
Como psicólogo clinico, existe uma grande diferença entre o início da carreira e o
momento atual, pois se no começo da carreira a religiosidade era vista como restrição,
como um recurso expressivo de angústias pessoais de pessoas com poucos recursos o
entrevistado passa a ver os fenômenos da religiosidade com mais autenticidade, com
mais liberdade.
“Mudou muito, quando eu era recém formado a religiosidade tinha perdido
completamente a sua autenticidade, transformada em linguagem ela tinha perdido o
seu conteúdo e se transformado digamos numa espécie de linguagem metafísica de
pessoas que não tinham uma formação filosófica não tinham uma sofisticação da
linguagem para expressar suas angústias mais fundamentais de uma maneira mais
nítida…(risadas).
Hoje eu acho que a perspectiva quase que se inverteu, se por um lado a
efetividade ôntica das diferentes religiões continuam representando pra mim uma
linguagem metafórica quase do mesmo jeito por outro lado elas fazem referência a uma
discussão próxima específica, diferenciada como um existencial mesmo, constituinte da
condição ontológica do Dasein que é o existencial do sagrado que constitui uma
experiência absolutamente própria e autêntica inconfundível e diferenciada de todas as
outras formas de experiências”
No âmbito pessoal o que se observou foi uma lenta e constante aproximação da
religiosidade, agora entendida como necessária. A religião e os ritos — como, por
47
exemplo, ir à missa estão mais próximos no presente do que quando o entrevistado
havia acabado de se formador. Mas, ainda se observa um incômodo com relação às
questões institucionais da própria igreja católica, que poderão ou não se alterar com o
tempo.
“Religiosidade vista de forma individual ela é essencial, mas ela é insuficiente,
nestes últimos anos de uns cinco anos pra cá um pouco mais no final dos anos noventa
eu tenho me sentido provocado pela necessidade de descobrir formas de compartilhar
as experiências no âmbito da religiosidade do mesmo jeito que eu compartilho no
âmbito do ser-com-os-outros do ser-no-mundo da temporalidade da corporeidade e
assim por diante.
Isto significa a descoberta de que talvez a questão do rito não possa ser
dispensada de que alguns rituais talvez se fazem necessários até mesmo como uma
experiência de prevenir uma certa onipotência que aos poucos ameaça a se instalar no
âmbito de uma religiosidade ontológica, vivida de uma forma absolutamente
individual”.
O entrevistado percebe, no momento presente, a própria psicologia como
possibilidade de acolhimento da vivência religiosa, autêntica e mesmo necessária.
O tempo pessoal, o tempo dos assuntos ligados à religiosidade, e o tempo
cronológico mostram-se claramente diferentes.
O tempo cronológico, tempo sempre igual, apresenta-se como eterna sucessão de
instantes, bastante distinto do tempo pessoal, o tempo significativo.
Durante a entrevista vai ficando claro que o modo como os fatos da vida vão se
organizando ao longo tempo está diretamente relacionado aos seus significados
profundos, o que é bastante conhecido da psicologia. No entanto, o que podemos
compreender aqui, é que existe uma temporalidade própria do mundo do sagrado e da
religiosidade, um tempo circular, um tempo com idas e vindas, um tempo a ser pensado
de forma diferente do tempo cronológico e metafísico.
A religiosidade é algo que acontece num determinado contexto cultural, numa
família, numa época, e que se relaciona diretamente com os fatos da vida: como o
amadurecer e a formação. Assim, existem movimentos que se enovelam ao
amadurecimento pessoal e profissional, de aproximação e de distanciamento com
relação à religiosidade.
48
O que se percebe, então, é que a religiosidade toca e é tocada por esses
movimentos num sempre constante influenciar recíproco entre os diferentes modos de
ser, como a vida profissional e suas convicções epistemológicas, a vida pessoal e seus
diferentes momentos.
“Quando um terapeuta tem uma vivência da dinâmica ontológica da religiosidade
ai eu acho que tem uma interferência, mas ela é muito sutil. Ela é significativa, mas ela
carrega uma sutileza de não estar ligada a nenhum conteúdo ôntico definido. Então é
absolutamente indiferente do ponto de vista do trabalho clínico que tipo de opção
religiosa a pessoa traz. E até mesmo se a pessoa fez algum tipo de opção religiosa.
Mas existe uma abertura para a aceitação de experiências que estão no âmbito
de referencia existencial da religião”.
O que se abre aqui é a possibilidade de poder conhecer melhor como ocorrem e
qual é a dinâmica dessas alterações ao longo do tempo em cada uma de suas fases ou
momentos e em cada caso específico.
Durante a entrevista o que se observa é que o sagrado e a religiosidade, na
concepção do entrevistado, se apresentam sempre de alguma forma. O modo como se
apresentam, contudo, é bastante heterogêneo.
O que se mostra, exatamente por sua ausência durante a entrevista, é qualquer
espaço na formação e na atuação do psicólogo que permita o acolhimento das questões
relativas à religiosidade. A formação do psicólogo clínico, embora seja uma área em
que as questões da religiosidade e suas vivências sempre se farão presentes, não articula
diretamente tais desafios. Muitas vezes a religiosidade é vista de forma conflitiva ou
reducionista, levando o psicólogo a ter dificuldades para lidar com suas angústias,
contando com mínimos recursos para acolher a religiosidade ou angústias dos seus
próprios pacientes. Esse desenvolvimento pode, é bom observar, ser conseguido ao
longo do tempo, com amadurecimento pessoal.
A entrevista mostra a circularidade da religiosidade, que não se esgota. Ou seja, o
tempo da religiosidade tem aproximações e distanciamentos, o psicólogo se encontra às
vezes mais próximo da religiosidade e, em outros momentos, mais afastado. Essas
aproximações se tornam, na medida em que se amadurece, cada vez mais, uma questão
pessoal apropriada.
49
A relação com a prática clínica também vai sofrendo alterações ao longo do
tempo. A entrevista mostra que, com o passar do tempo, essa questão, a religiosidade,
vai ganhando um espaço mais amplo e maior legitimidade para poder se manifestar.
O entrevistado indica que foi fundamental diante da questão debatida iniciar sua
carreira trabalhando com clínica a partir de um referencial rogeriano, portanto da
psicologia humanista. Igualmente marcante foi ser orientado por um professor a estudar
Husserl, como caminho para fundamentar Rogers.
“Eu começava a fazer grupos de estudo de Rogers e a fazer terapia com um
Rogeriano o (cita o psicoterapeuta) da USP do grupo da Raquel Rosemberg e
trabalhava bem dentro desta perspectiva.
Rogers pra mim foi um momento de passagem”.
A psicologia humanista, principalmente a rogeriana, tem como premissa a
aceitação (aceitação positiva incondicional), no entanto esta aceitação não significa, por
exemplo, no âmbito da religiosidade, uma aceitação do fenômeno em sua manifestação
mais própria e autêntica, mas sim uma aceitação que tolera que tudo se apresente na
clínica.
A religiosidade, naquele momento, era vista como um recurso expressivo de
pessoas com pouca capacidade de elaborar um discurso mais sofisticado.
Embora o próprio Rogers venha de uma formação e de uma família bastante ligada
à religião, a Terapia Centrada na Pessoa é uma psicologia desenvolvida a partir da
prática clínica que discute pouco a religiosidade.
A psicologia rogeriana, uma psicologia feita por psicólogos, também apresenta
pouca preocupação com fundamentos filosóficos, tanto que o entrevistado é incentivado
a estudar Husserl justamente para fundamentar Rogers, o que muito provavelmente
levou a uma ruptura.
com a passagem para a Daseinsanalyse ocorrem outros tipos de
questionamentos. Durante a entrevista vemos sempre em questão a liberdade e o poder,
de alguma forma ligados a religiosidade. A daseinsanalyse, justamente, coloca essa
discussão sob nova perspectiva.
“Três anos fazem uma transição eu trabalho como Rogeriano, mas estudo
Daseinsanalyse, na verdade entre 76 e 77 foi quando eu tive minha grande briga com o
50
Boss e com o grupo de Daseinsanalyse sobre o conceito de liberdade que era um
conceito absolutamente fundamental na estrutura da minha referência ética, que ainda
estava ligada.
É impressionante como são varias passagens sempre em cima do mesmo
problema da liberdade como poder, foi a última grande desmontagem do poder, foi a
briga do conceito de liberdade quando eu consegui.
Ligado a religiosidade de alguma forma?
O Deus todo poderoso, a idéia do poder do homem ligado a sua liberdade, por
tanto o homem o homem é livre porque ele tem o poder de escolher.
Esta última ruptura dizer não, ele não tem poder nenhum, esta relação de ele não
tem poder ainda no sentido substantivo do poder para uma introdução e finalmente
para um conceito do verbo poder na referência do poder ser.
Não mais o poder no sentido de potencia, que só vou compreender em 1977
quando eu tenho esta compreensão eu começo a trabalhar como Daseinsanalista eu
não consigo mais ser Rogeriano, a terapia centrada no cliente ela é um movimento que
surge dentro da clinica pela proposta de respeito da liberdade e meu conceito de
liberdade mudava radicalmente.
O homem não tem liberdade, ele é livre, é uma referência completamente
diferente, o substantivo poder se torna o verbo poder, pode ser, pode ser que sim pode
ser que não, pode fazer pode não fazer, pode acontecer pode não acontecer como
plasticidade esta perspectiva é muito grande. Da mesma forma que o poder, ganha esta
plasticidade, a liberdade do entendo que é uma referência ôntica da liberdade é
transformada em uma referencia ontológica, de ser livre no sentido desta
indeterminação que faz do Dasein um ente cujo fundamento é não ser.
Nesta última passagem me dou conta de finalmente começar a entender
Daseinsanalyse, depois de cinco anos fazendo terapia e estudando não consegui mais
ser Rogeriano”.
A primeira questão durante uma formação em daseinsanalyse é a questão do ser.
Diferentemente do que fundamenta a psicologia humanista, nesse caso, os fundamentos
filosóficos são importantíssimos.
Ao se estudar o primeiro Heidegger, a questão do ser ganha primazia. Trata-se,
também, de alguma forma, de uma formação distanciada da religiosidade. Embora,
posteriormente, alguns autores proponham uma aproximação entre Heidegger e
51
religiosidade via Ser e Tempo, incluindo a religiosidade como mais um existencial (o
modo como Heidegger identifica as categorias da existência). Naquele momento de
início de formação em Daseinsanalyse, qualquer aproximação desse tipo seria muito
difícil e, caso ela se apresentasse, o risco de ocorrer alguma grande confusão seria
grande — pois a questão do ser se confunde, facilmente, com a teologia.
Religião, teologia e a questão do ser sempre geraram grandes debates, para a
fenomenologia e o existencialismo. Podemos indicar, por exemplo, a leitura que Sartre
faz de Heidegger como um existencialismo ateu, leitura, aliás negada pelo próprio
filósofo alemão.
Já no segundo Heidegger, o da virada, o pensador vai de Ser e Tempo para Tempo
e Ser, ou seja, da questão do ser para a história da metafísica como esquecimento da
questão do ser. Temos um Heidegger quase místico. Mas, ao mesmo tempo, bastante
distante da teologia cristã: fonte e origem de sua formação.
Estudar Heidegger pode ser bastante angustiante, pois, em sua obra, o filósofo
realiza uma grande desconstrução do modo de pensar ocidental, sendo difícil manter e
seguir ligado aos valores anteriormente estabelecidos. É difícil, inclusive, pelo fato de
Heidegger ser um pensador extremado e radical da questão da finitude e da angústia.
52
CONCLUSÃO
A religiosidade se altera ao longo do tempo e de forma significativa, com
particularidades próprias, no transcorrer da vida e do amadurecimento do psicólogo
clínico entrevistado.
A religião, a política e a ciência são, segundo passagem colhida da própria
entrevista, as instâncias que disputam o poder: e a primeira batalha que elas travam é a
conquista de corações e mentes.
Muitas vezes o envolvimento de grande comprometimento com qualquer
uma dessas áreas acarreta um distanciamento das outras. Não é difícil encontrar pessoas
que, profundamente envolvidas com religião, com política ou com ciência,
menosprezam as outras áreas da vida cultural, destacando apenas aquela de sua escolha,
muito comumente tendendo a reduzir os fatos de outras instâncias à sua própria área de
interesse e eleição.
O modo como a religiosidade se altera ao longo do tempo revela muito do humano
e é um fenômeno a ser pensado, com esmero e redobrados cuidados, pela psicologia.
Ao pensarmos a religiosidade a partir de Winnicott e o valor positivo da ilusão
como o faz Aletti, ficou mais fácil entender os processos de ilusão e desilusão com
mudanças significativas na religiosidade ao longo do amadurecimento, o que ocorre por
toda a vida.
A religiosidade não se altera ao longo do tempo apenas para os psicólogos, mas o
que se observa é que existem particularidades próprias à profissão e à formação de
53
psicólogo em relação a esses fatos. Abordamos, de forma mais aprofundada, a relação
entre religiosidade e o profissional de psicologia, constatando mudanças significativas,
o que não implica dizer que, em outras áreas de atuação profissional, não se possa
perceber também processos semelhantes, apenas não era objetivo desse trabalho abrir
assim o escopo de interesse e análise.
A história da psicologia tem com a religião uma relação longa e conflitante, o que
toca a religiosidade do psicólogo em formação e também o profissional em atividade.
Esse trabalho de pensar e estabelecer o amadurecimento próprio à natureza
humana, ver as portas que se abrem para a psicologia quando se acerca da religiosidade,
e entender como isso ocorre de fato, como se estabelecem tais vivências.
O que se mostra muito claramente é que a fé, o crer em Deus ou em algo
transcendente, não é uma conquista ou uma perda irreparável e definitiva. São comuns
os movimentos por toda a vida, tarefas que nunca estão completas, para o bem ou para o
mal.
Existe uma relação muito próxima entre o amadurecimento e os movimentos da
religiosidade que se altera ao longo do tempo. Embora a religião e a ciência busquem
verdades eternas, o que acontece é a provisoriedade.
Com relação à religiosidade, esse movimento ganha contornos de característica
circular, no sentido do eterno retorno, com aproximações e distanciamentos, mas, ao
mesmo tempo, diferente a cada momento, a cada retorno, no que se refere à vivência
única de cada pessoa e seus diferentes momentos de vida.
O amadurecimento é um processo que implica em aprofundamento de questões
pessoais, por vezes em seus aspectos mais sombrios e mais básicos, também como uma
abertura para as aspirações mais elevadas, como retrata Heidegger numa pequena
passagem de O Caminho do Campo
15
:
A consistência e o odor do carvalho começam a falar já
perceptivelmente da lentidão e da constância com que a árvore
cresce. O próprio carvalho assegura que este crescer pode
fundar o que dura e frutifica. Crescer significa abrir-se à
amplidão do céu, mas também deitar raízes na obscuridade da
terra. Tudo que é verdadeiro e autêntico só chega à maturidade
se o homem for, ao mesmo tempo, ambas as coisas: disponível
15
HEIDEGGER, M. O Caminho do Campo. São Paulo: Ed. Livraria Duas Cidades, 1969.
54
ao apelo do mais alto céu e abrigado pela proteção da terra
que tudo oculta e produz.
O amadurecimento e a religiosidade que se altera ao longo do tempo são instâncias
que caminham algumas vezes lado a lado, outras vezes separados, mas, que tornam sem
sentido, por exemplo, o debate que procura verificar diferenças entre ateus e crentes,
pois ambas as possibilidades habitam a mesma pessoa em diferentes épocas.
Com relação à prática da psicologia clínica e a formação de psicólogo, o
acolhimento da religiosidade e das angústias decorrentes de suas transformações, pôde
ser revisto numa nova perspectiva em que se possibilitou a vivência e o estudo dessas
instâncias em suas próprias áreas de legitimidade.
Para crer, para que se perca a fé, para o envolvimento em movimentos políticos e
para poder crer novamente, é preciso a ilusão sempre renovada, um espaço potencial
que não pertence nem ao dentro nem ao fora. Como indica Winnicott, é a eterna tarefa
de manter realidade interna e externas separadas, e ser criativo a tal ponto que a vida
possa valer a pena de ser vivida.
A análise fenomenológica da entrevista, mostra que é da faticidade, das
experiências do próprio viver, que vão surgindo as transformações, as angústias e o
próprio amadurecer que possibilita o recurso a elaborações teóricas, filosóficas e
políticas que se dão na vida da pessoa sempre precedidas de afetos e mudanças
pertencentes a temporalidade própria do ser, o tempo finito o tempo originário.
O homem suficiente em si mesmo, uma proposta da ciência e da psicologia, é algo
que não se sustenta. A natureza humana, compreendida em sua horizontalidade,
desligada do sobrenatural, não acontece na faticidade da vida, as inquietações
permanecem.
A ligação com o sobrenatural, com a religiosidade, por vezes uma ligação
esquecida, se mostra de forma inconstante e indeterminada.
A supressão da religiosidade leva a uma teologia própria, e a uma procura por
elementos da cultura, que possam abrigar alguns aspectos da religiosidade distante,
como, por exemplo, a ligação a questões éticas, ou a adesão teórica em psicologia, mas
a inquietação com relação ao sagrado permanece.
Este trabalho permitiu compreender como a relação com a religiosidade se altera
ao longo do tempo, na vida e no trabalho do psicólogo clínico.
55
A alteração da religiosidade é própria do amadurecimento e mais próxima do
pessoal do que do profissional, embora essas questões nunca se encontrem
completamente separadas, o que se mostrou é que a relação com o sagrado é quase
sempre provisória e se encontra sempre em transformação: com o tempo essa relação
vai se tornando, cada vez mais, apropriada e vivenciada de forma única e pessoal.
O curso de psicologia, pelo que se depreendeu, não possui espaços que pudessem
ajudar o psicólogo em relação às suas angústias e inquietações religiosas.
O curso de psicologia e a prática clinica levantam inúmeras questões relativas à
religiosidade. O percurso para acomodá-las e aprender a lidar com elas foi trilhado de
maneira pessoal, com recursos desenvolvidos pelo próprio psicólogo entrevistado.
As questões morais religiosas se transformaram em questões éticas e a prática da
religião levantou críticas à igreja como instituição. Todavia, a inquietação e a busca de
uma aproximação com o sagrado permaneceram.
Cada vez que ocorreu o envolvimento com novas dimensões da vida social, como,
a política, o encontro e adesão a uma nova linha de trabalho em psicologia, a mudança
de cidade, de escola o exército, a entrada na faculdade, a religiosidade é afetada
desencadeando afastamentos ou aproximações. Ou seja, a religiosidade foi afetada
muito de perto pelas mudanças significativas que foram ocorrendo ao longo da vida,
assim como pelas adesões às teorias psicológicas.
O discurso religioso passa por transformações e, muitas vezes, sua origem fica
esquecida. Uma destas transformações é a passagem da moral religiosa para a ética, ou
seja, para o campo da filosofia. A ética cristã se preocupa com a retidão da conduta. A
ética laica de Kant indica que o ser humano deve ser visto sempre como um fim e não
como um meio, evoca também uma conduta correta, A ética da responsabilidade, vinda
da sociologia de Max Weber, pensa as conseqüências das condutas. Todas, talvez
devedoras da ética de Aristóteles, ética da moral do homem, ética daquilo que se é, não
daquilo que se tem. Em qualquer uma dessas opções, a proximidade inicial entre a ética
e a moral religiosa mantém-se sempre presente.
O sistema de crenças passa do religioso para o político, a política quase sempre
apresenta em suas propostas idealizadas um projeto laico de salvação e o apego a estas
propostas muitas vezes se de uma forma marcadamente religiosa, afetando de
maneira significativa a alteração da religiosidade ao longo do tempo.
O projeto de ajuda, de salvação e a relação com o próximo passam do coletivo
para o individual com a atividade em psicologia clínica. As questões religiosas
56
permanecem, de certa forma, encobertas e as adesões em psicologia clínica afetam a
religiosidade.
Nessa época da técnica, em que o humano se torna objeto e nos encontramos em
pleno domínio do poder da ciência, vivenciamos um mundo objetificado, com pouco ou
nenhum espaço para o sagrado. Mesmo assim, a religião retorna de alguma forma, como
pudemos ver nesse caso.
O tempo da religiosidade é um tempo diferente do linear. A religiosidade, na
verdade, subsiste entre tempos, entre as diferentes épocas da vida e das crenças. A
questão religiosa se transforma de maneira distinta e singular, não se parece com as
outras alterações da vida como, por exemplo, as mudanças profissionais.
Se o próprio do tempo da religiosidade é de retorno, o sentido, muitas vezes, está
no retorno. Mudanças profissionais e adesões a teorias de psicologia têm o caráter de
superação e não motivam qualquer retorno, diferentemente do que acontece em se
tratando das questões ligadas à religiosidade.
A escolha da daseinsanalyse dialoga com a religiosidade de forma muito especial,
pois na ontologia fundamental de Heidegger a morte é a grande questão. Esse tema, a
metafísica da morte, ocupa enorme espaço das religiões. Ao se lidar com a questão da
morte em psicologia (ou em filosofia), é difícil não reaproximar, de alguma forma, a
reflexão de bases religiosas.
Lidar com a finitude, com a questão da morte, sempre foram ocupações da religião
o espaço privilegiado para tratar dessa questão pertence, geralmente, ao domínio
sagrado. Mas, a morte também é uma questão fundamental para a analise existencial e,
via daseinsanalyse, retorna para a psicologia.
Dessa mistura pode brotar uma teologia pessoal, com alicerces e recursos
intelectuais e vivenciais que, diferente da religião coletiva e milenar, ocorrem sempre
em pequenos períodos de tempo e estão fortemente sujeitos a mudanças.
A reaproximação com a religião e a religiosidade, muitas vezes distante conforme
o momento de vida, é um processo longo, pois a religiosidade foi se alterando de
diferentes maneiras tal característica que ficou bem marcada durante a realização
desse trabalho.
A religiosidade sofre alterações que são influenciadas pelos fatos da vida,
conforme foi possível notar: sofre alterações influenciadas por mudanças de adesão
teórica ou por escolhas ligadas ao universo do trabalho. Todavia, reaproximar-se da
57
religiosidade, como se observou, costuma ser característica indicativa de
amadurecimento.
58
CONSIDERAÇÕES FINAIS
É o momento de nos perguntarmos o que podemos reter desse trabalho, o que ele
nos ensina?
A primeira coisa que ficou clara com o desenvolvimento dessa dissertação foi que
as questões implicadas acerca do tempo e da religiosidade são bastante complexas e
exigem enorme reflexão e aprofundamento.
A religiosidade que se altera ao longo do tempo se revelou um fenômeno rico em
possibilidades para se compreender a religiosidade como um todo.
O trabalho trouxe esclarecimentos e pode aprofundar uma reflexão em relação à
questão inicial, e pôde respondê-la abrindo novas perspectivas de pesquisa.
Isso significa que o fenômeno da religiosidade que se altera ao longo do tempo
não ocorre ao acaso, ele é fruto de um movimento fortemente influenciado pelas
escolhas e pelas circunstâncias pessoais e profissionais.
Religião é um tema onipresente na cultura e tocá-lo é sempre desafiador. No
entanto, a aproximação fenomenológica, permitiu conhecer as inquietações com relação
à religiosidade mais de perto, abrindo as possibilidades para novas pesquisas
prosseguirem, renovando e ampliando os conhecimentos e visões críticas dessa área.
59
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62
ANEXO I
PSICOLOGIA E RELIGIOSIDADE
TRANSCRIÇÃO DA ENTREVISTA
Como você relaciona a psicologia e a religião durante sua formação?
Bom eu entrei na faculdade em 1966 e estou formado a trinta e seis anos,
quando entrei na faculdade São Bento antiga faculdade de filosofia ciências e letras de
São Bento, psicologia era um curso da faculdade de filosofia e eu fui a quarta turma,
haviam quatro turmas, entrei em 1966 o curso começou em 1963 e o curso inteiro tinha
130 alunos porque eram turmas de 30 alunos e a minha foi a primeira turma de quarenta
alunos eram três de trinta e uma de quarenta tinham cento e trinta alunos na faculdade
inteira.
Então era uma coisa muito gozada porque vo tinha uma convivência muito
grande, o pessoal de outros anos tinha não uma convivência, mas uma interação
muito grande, eu aprendi muita coisa com os alunos das turmas anteriores, (aqui foram
citados colegas da época) você então tinha um contato muito grande com os professores
e também os professores e os alunos tinham um contato muito grande.
Como era a questão da religiosidade no curso e como era sua própria
religiosidade?
Olha são duas coisas bem distintas, porque a minha vivência particular ela é
marcada por um período de infância e começo de adolescência muito religiosa, eu
venho de uma família católica tradicional, fiz catecismo, primeira comunhão, sabia
rezar a missa inteira em latim, tocava a campainha na frente, passava a patina que é
um pratinho de ouro quando as pessoas iam comungar, então o padre ia dando a
comunhão o coroinha ia segurando a patina, então dava para paquerar muito.(risadas)
era um grande barato né, mas, ai aos treze, quatorze anos eu entrei no movimento
estudantil e o movimento estudantil naquela época tinha uma ala que muito ligada à
63
igreja, que veio justamente a se envolver, tinha a teologia da libertação era o início
daquele processo, da chamada JUC juventude estudantil e então começo de atividade na
política estudantil foi junto com um grupo religioso, e aos poucos a perspectiva
religiosa foi sendo afastada e substituída por uma perspectiva cada vez mais política,
então segue um progressivo abandono da perspectiva religiosa e um envolvimento
muito radical na perspectiva política e ai na exacerbação das contradições das questões
éticas e políticas eu quebrei literalmente a sensação que eu tenho é de uma ruptura
quase que uma cisão muito violenta porque todo envolvimento político, da minha
atividade do meu grupo é enraizado em questões éticas, e de repente o exercício da
política é a ética confrontada e houve uma ruptura, então eu saio do movimento político,
houve uma ruptura entre a atividade política e as raízes éticas.
Mas era no colegial ou entrando na faculdade?
No colegial, ai eu comecei um movimento de resgate pessoal fiquei muito isolado
eu sai do grupo da política estudantil, mas este grupo de política estudantil tinha me
absorvido completamente. Então eu perdi simultaneamente projetos de vida e tive que
começar ainda no colegial uma outra vida, outras relações... né, num movimento… ai
quando eu entrei na faculdade voltou à questão política porque o movimento
universitário estava… e olha que isto era em 1966.
Já na faculdade São Bento?
Faculdade São Bento que no ano anterior veio a ser a PUC, já era a PUC, já era da
PUC pertencia a PUC, o que não existia era a faculdade de psicologia ela foi criada
quatro, cinco anos depois. Junto com o básico, o curso básico, ai quando eu entrei na
faculdade o TUCA tava começando e foi o ano em que o TUCA ganhou o festival
internacional de teatro com Morte e Vida Severina o ( cita um colega) tocava violão
tinha uma parte que era psicologia enfim, então tinha um movimento de efervescência,
que estava sendo retomado em 66, 67, 68 um ano absolutamente enlouquecedor ainda
mais pelo fato de no começo de 67 eu ser convocado para o serviço militar e obrigado a
64
cumprir o serviço militar em 67 e por quarenta e cinco dias em 68, primeiro de julho a
quinze de agosto eu servi no quartel internado.
Que época, hein?
(Risadas)
Então vieram as contradições de novo, mas como eu tinha esquizofrenizado no
colegial eu não esquizofenizei ali porque eu saia do CPOR e vinha para a faculdade de
psicologia em 1967, uma atividade começando a rebrotar a atividade estudantil em 67 e
era uma coisa muito esquizofrenizante. Dois mundos totalmente opostos uma coisa
maluca. Risadas…
Mas, em meio a este processo a questão religiosa havia desaparecido do horizonte
e deixado alguns ecos, acho que tem algumas marcas que vieram do fato de eu ter feito
o ginásio num colégio de padres…
Qual escola?
Santa Cruz que também tava começando.
Já era o Chaborneau?
era o Charboneau eu peguei o comecinho do Chaborneau e o Chaborneau deu
aula de filosofia pra gente, primeiro, segundo e terceiro colegial e realmente foi muito
marcante. E foi o primeiro contato com o movimento existencialista Sartriano, mas
também com os fundamentos porque ele começou a trabalhar com a gente não o
movimento francês, mas também estudamos muito Aristóteles e eu dou graças a Deus
até hoje, porque me abriu um recurso intelectual fantástico, mas no terceiro colegial ele
introduziu através de Dostoievski, as raízes do movimento existencialista ainda no
século XIX com as questões éticas, recolocadas. A minha quebra foi no final do
primeiro colegial. Passei o primeiro estudando Aristóteles, silogismo, lógico formal e
no terceiro, que eu tinha me reconstruído um pouco, deu pra voltar e reencontrar a
65
raiz ética criada num espaço ligado a psicologia. É o trabalho de Dostoievski e a analise
psicológica que ele faz uma coisa absolutamente fantástica, mesmo do ponto de vista da
psicologia da religião tem um trabalho da Márcia Ribas muito bom que ela fez
trabalhando um personagem do Dostoievski que é o Ivan dos Irmãos Karamazov. É
fantástico.
Então num primeiro contato foi lá, depois isto desapareceu porque nos dois
primeiros anos da faculdade no primeiro ano eu comecei a refazer contato com o
movimento político ainda existia um vinculo com a igreja muito próxima e este
encontro vai se romper completamente em 68 e todos os movimentos políticos ligados a
igreja vão formar a AP ação popular que vai fazer em alguns casos inclusive a opção
pela guerrilha e andar na chamada clandestinidade. A outra parte ficou dentro da parte
visível, digamos a ação política, mas ai existe aquilo que pra mim foi a minha
esquizofrenia, em 1968 explodiu o próprio movimento, uma parte do movimento se
desligou da política de certa forma outra parte foi pra política e era impossível levar as
duas coisas juntas do jeito que elas estavam colocadas naquela época.
Faculdade, movimento político CPOR e a religiosidade?
Da religiosidade havia ecos, mas veja, as questões religiosas tinham se
transformado em questões éticas. Ligadas a perspectiva da psicologia então havia um
deslocamento do âmbito sociológico aonde a atividade política vinha acontecendo e eu
tinha vinculado a uma referencia dos mesmos princípios que agora vistos enquanto
problemática individual que me dava a referencia psicológica. Isto vai ter um primeiro
momento onde eu acreditava na possibilidade efetiva de uma aproximação do conceito
tradicional de ciência com a psicologia o behaviorismo com a psicodinâmica, que
termina em 68 quando tento fazer uma aproximação do modelo metodológico de
Skinner com o conceito de arquétipo de Jung, o que é lógico que não deu certo (risadas),
mas eu achava que podia dar, por outro lado eu tentava ver o arquétipo de Jung na caixa
de Skinner os ratinhos se rebelaram e acabaram com meu experimento.
Mas eu tinha toda uma perspectiva de interiorização, aquilo que tinha sido uma
vivencia ao mesmo tempo religiosa e política ao nível da comunidade havia se retraído e
se transformado em questões de ordem interna e eu queria então a perspectiva da
psicologia tanto da psicologia clínica de lidar com esta referência do sofrimento humano
66
nas suas expressões mais agudas que é o caso da loucura como a psicologia educacional
que é a possibilidade de você promover o desenvolvimento das pessoas através do
desenvolvimento individual das pessoas e ai quem sabe resgatar um dia aquela
perspectiva política que mesmo tendo sido afastada continuava na sua raiz ética a acenar
com uma atração.
Ai no final de 68 começa minha briga com o conceito de ciência que era veiculado
pela própria terminologia eu me dei conta que o conceito de ciência havia sofrido uma
modificação significativa no começo do século XX e isto eu percebi por umas razões
absolutamente casuais, que foi o fato do meu pai ser professor de física, um cientista por
vocação e ai nas conversas que a estas alturas haviam ganhado uma outra liberdade de
questionamentos a respeito da ciência eu me dei conta e comecei a entrar em choque
com o modelo da física contemporânea.
A física probabilística que não dava a dimensão quântica, porque naquela época
a expressão física quântica produzia um impacto nas pessoas com uma compreensão
quase nula. Até hoje quando as pessoas falam da física quântica e você pergunta: Mas o
que é a física quântica? Você que as pessoas não têm a menor idéia do que é a física
quântica.
A quântica e a probabilística foram o tema da tese de doutorado do meu pai, então
eu tinha uma familiaridade muito grande com o conceito de ciência. Mas o conceito de
ciência que a minha formação tinha trazido era o conceito de ciência do século XIX
ainda ligado à mecânica Newtoniana e esta coisa toda veio a uma ruptura e esta ruptura
de uma certa forma abre a minha aproximação com Rogers e ai através do ( cita aqui um
professor) quando eu terminei o quinto ano da faculdade eu ouvi falar pela primeira vez
em fenomenologia, até o quinto ano nunca tinha ouvido falar no termo fenomenologia.
Este professor era filósofo?
É bem capaz, eu não sei, o professor era extraordinariamente inteligente,
extraordinariamente culto e de uma sensibilidade muito grande e de uma impulsividade
muito grande também.
É uma pessoa encantadora e desconcertante ao mesmo tempo e ele me propôs a
estudar fenomenologia para no ano seguinte atuar como monitor na cadeira de Rogers
dando a parte de fundamentação teórica, porque eu tive grandes papos a respeito do
67
conceito de ciência com ele e ele foi o primeiro interlocutor para este modelo de ciência
que era o modelo de ciência no século XX na física e a gente teve grandes viagens.
Ouve uma ruptura epistemológica com o modelo de ciência, mas e a
religiosidade?
Ela estava restrita aquelas raízes éticas, mas estas raízes voltaram a ser um
questionamento, porque dum lado tinha a mudança no conceito de ciência e por outro
tinha um questionamento na questão do poder.
Que estava envolvido primeiro no meu envolvimento político e depois no meu
envolvimento com os behavioristas eu fiz uma revivência de um fascínio com o poder,
só que agora transformado em técnica de intervenção nos processos de desenvolvimento
das outras pessoas consideradas individualmente em vez de trabalhar com grandes
recursos de intervenção no mundo político no mundo social.
E como esta temática do poder é uma temática que esta ligada num profundo
modo com a temática religiosa. Eu acho que a primeira afirmação que se faz a respeito
de Deus em todas as estruturas que mencionam o conceito de Deus é que Deus é o Todo
Poderoso.
A idéia do poder e a idéia da divindade estão profundamente vinculadas, então é
um Deus todo poderoso que na expressão de seu poder cria um mundo e a partir dai
determina todas as experiências de caráter mundo.
Então eu vou me dar conta quando eu começo a estudar fenomenologia, quando eu
começo a ler meditações Cartesianas do Husserl e de uma critica do ponto de vista
epistemológico do modelo de conhecimento que eu não me dava conta e fui me dar
conta com Heidegger, de um modelo de conhecimento que esta ligada a uma idéia de
poder e que por isto religião ciência e política disputam o mesmo espaço.
O grande conflito entre política religião e ciência esta em torno do conceito de
poder. Isto só vai ficar completamente claro pra mim quando eu começo a ler Heidegger
e a critica da metafísica.
Quando você começa a ler Heidegger?
68
Durante a formação eu tinha transposto a questão do poder do âmbito religioso
para o âmbito político e do âmbito político para o psicológico onde a ação de
psicoterapeuta ou de psicólogo educacional ainda era minha noção de poder onde salvar
o paciente ou modelar adequadamente seres humanos em formação através do processo
educacional.
E um primeiro questionamento muito vago do conceito de probabilidade da física,
começo a introduzir sempre que eu me dou conta a passagem do substantivo poder para
o verbo poder.
Porque probabilidade é um conceito da física e na psicologia temos o conceito de
possibilidade. O conceito de possibilidade trás uma referencia do poder ser, o é o que
é, mas o que pode ser, e pela primeira vez a palavra poder ganha um sentido verbal não
substantivo e se associa à questão do ser, mas isto vai ficar claro cinco anos depois
de formado.
Quando você se formou já estava trabalhando com a clínica?
estava trabalhando com clínica, porque no sexto ano, a faculdade era de seis
anos, eu estava no estágio e na clínica eu faço meu primeiro contato com a psicologia
clínica fazendo um estudo de caso, e no final encaminhei o paciente que eu tinha
atendido e que era um caso bastante complicado.
Um transexual que pedia autorização para fazer uma cirurgia de mudança de sexo
e encaminharam para a faculdade de psicologia. Este foi meu paciente que eu
comecei a atender. E eu fiz o encaminhamento, mas o psicólogo que ia atender não
tinha horário e ai foi passando o tempo e o meu paciente ficou no limbo no tramite e ai
meu ele volta a me procurar.
E ai eu converso com o orientador do estudo de caso. ( Cita o orientador.), que foi
meu orientador e eu falei olha professor faz mais de dois meses que o paciente foi
encaminhado para terapia e não ta sendo atendido ele esta me procurando e estou
sentindo que ele esta precisando e esta precisando mesmo e ai ele disse por que você
não atende profissionalmente até que se abra oportunidade de ser atendido pela
psicóloga para a qual ele foi encaminhado?
E ai eu comecei meu primeiro atendimento foi meu primeiro caso. Eu tava
começando na clínica, mas trabalhando numa referencia Rogeriana.
69
E a sua religiosidade nesta época?
Nesta época a minha relação com a religião, eu tinha psicologizado a religião. A
religião aparecia como uma espécie de linguagem expressiva questões e anseios
pessoais. Não era nem no sentido que a religiosidade é assumida, por exemplo, no
trabalho da psicologia analítica, também não era interpretativo no sentido de uma
psicanálise Freudiana tradicional.
Mas era entendido no sentido Rogeriano como uma espécie de uso da linguagem
através do qual a pessoa expressa as suas experiências mais profundas e as suas
angustias mais fundamentais.
Havia uma psicologização, só que ela não era tão clara quanto na psicanálise, onde
a religião havia se transformado em uma neurose e nem era ligado a experiências
digamos arquetípicas como na psicologia Junguiana, mas era vista de uma maneira mais
básica, mais rasa como expressão de anseios e vidas e conflitos e resoluções pessoais
numa perspectiva bem Rogeriana.
Eu estava começando a trabalhar como auxiliar de ensino, em agosto de 75 fui
registrado na universidade como auxiliar de ensino cargo que ocupo até hoje. Eu
começava a fazer grupos de estudo de Rogers e a fazer terapia com um Rogeriano o
(cita o psicoterapeuta) da USP do grupo da Raquel Rosemberg e trabalhava bem dentro
desta perspectiva.
Rogers pra mim foi um momento de passagem bem interessante e eu estudava
Husserl por indicação do (cita o professor) que me mandou estudar Husserl para
fundamentar Rogers e estudando Husserl, mudei profundamente minha relação com
Rogers fiquei insatisfeito e ainda descobri Binswanger, Minkovski e Boss.
Em 73 vou começar a Daseinsanalyse e ai a perspectiva da religião começa a
ganhar um status existencial, porque…
Como assim um status existencial?
A religiosidade é apresentada por Boss como um existencial análogo ao ser-no-
mundo.
70
A religiosidade aparece de uma forma, muito, ela é mencionada isto se
aprofundar alguns anos depois porque nesta época o encantamento simultaneamente
com o salto epistemológico do pensamento de Heidegger junto com a descoberta de
uma nova forma de compreensão me absorveu completamente.
Então nesta época a religião pra mim era o correspondente antigo da estrutura
ontológica da religiosidade que fazia parte do Dasein, mas que não era uma coisa que
dava para aproximar porque a tarefa de aproximar os existenciais em geral e de
aproximar os existenciais descritos em Ser e Tempo à religiosidade, não parece, mas
tava me absorvendo completamente.
Eu só vou fazer um contato maior com a perspectiva de religiosidade… silencio…
Como a religiosidade refletia nesta época em sua atividade de psicólogo
clínico?
Olha em 73, 74, 75 minha pratica continuou vinculada a Rogers porque meu
conhecimento de Daseinsanalyse era muito precário em 73 eu comecei minha terapia
em Daseinsanalyse e foram mudanças muito significativas inclusive na perspectiva
religiosa e só em 76 depois de três anos de terapia em Daseinsanalyse é que eu comecei
a trabalhar em terapia Daseinsanalitica.
Três anos fazem uma transição eu trabalho como Rogeriano, mas estudo
Daseinsanalyse, na verdade entre 76 e 77 foi quando eu tive minha grande briga com o
Boss e com o grupo de Daseinsanalyse sobre o conceito de liberdade que era um
conceito absolutamente fundamental na estrutura da minha referência ética, que ainda
estava ligada.
É impressionante como são varias passagens sempre em cima do mesmo problema
da liberdade como poder, foi a última grande desmontagem do poder, foi a briga do
conceito de liberdade quando eu consegui.
Ligado a religiosidade de alguma forma?
O Deus todo poderoso, a idéia do poder do homem ligado a sua liberdade, por
tanto o homem o homem é livre porque ele tem o poder de escolher.
71
Esta última ruptura dizer não, ele não tem poder nenhum, esta relação de ele não
tem poder ainda no sentido substantivo do poder para uma introdução e finalmente para
um conceito do verbo poder na referência do poder ser.
Não mais o poder no sentido de potencia, que só vou compreender em 1977
quando eu tenho esta compreensão eu começo a trabalhar como Daseinsanalista eu não
consigo mais ser Rogeriano, a terapia centrada no cliente ela é um movimento que surge
dentro da clinica pela proposta de respeito da liberdade e meu conceito de liberdade
mudava radicalmente.
O homem não tem liberdade, ele é livre, é uma referência completamente
diferente, o substantivo poder se torna o verbo poder, pode ser, pode ser que sim pode
ser que não, pode fazer pode não fazer, pode acontecer pode não acontecer como
plasticidade esta perspectiva é muito grande. Da mesma forma que o poder, ganha esta
plasticidade, a liberdade do entendo que é uma referência ôntica da liberdade é
transformada em uma referencia ontológica, de ser livre no sentido desta
indeterminação que faz do Dasein um ente cujo fundamento é não ser.
Nesta última passagem me dou conta de finalmente começar a entender
Daseinsanalyse, depois de cinco anos fazendo terapia e estudando não consegui mais ser
Rogeriano.
Como foram estas rupturas, religiosas e epistemológicas?
Todas elas foram muito doídas a primeira passagem da perspectiva religiosa para a
perspectiva política ela foi separada da experiência angustiante da chegada da
puberdade.
Porque aos dez anos eu mudei do grupo escolar em São José dos Campos pro
primeiro ano do ginásio do Colégio Santa Cruz em alto de pinheiros em São Paulo. No
meio deste processo eu fiquei completamente pirado, eu fiquei pirado, pirado muito
mal, em 1960 eu comecei a sair do sufoco ao me ligar ao movimento juvenil, mas
justamente quando começo a me ligar, tem uma ruptura com a perspectiva da
religiosidade importante neste período fiquei muito triste com a coisa.
Angustiante, como foram estas passagens?
72
Muito angustiantes porque você mexe com as referências do seu mundo, né, você
pegar um coroinha que vive intensamente a sua religiosidade de uma forma intensa e
arrancar esta experiência e destruir o que se tem pela chegada de um mundo muito mais
exigente, mais desamparado, que a puberdade trás, depois buscar o apoio na referência
religiosa na política, ainda ligada ao religioso ,mas progressivamente se afastando da
perspectiva religiosa até que o conflito se torna um conflito ético e não mais religioso.
que o sentido ético equivaleria a fundamentação do sentido da vida à
fundamentação religiosa.
Então existe uma segunda ruptura que é esta política, depois tem uma terceira que
é uma ruptura epistemológica. Que é a briga com o conceito de ciência e de um resgate
de uma referencia ética que mostra um conflito com o conceito de ciência porque é
impossível você juntar valores éticos e ciência.
Depois você descobre que a ciência disputa a ética enquanto conceito de poder,
isto é rompido por um outro movimento, mas ainda restava o conceito de liberdade.
O conceito de liberdade é o ultimo e esta ultima ruptura foi a que mais tempo
durou uns quatro ou cinco anos. Mas como eu tinha assumido uma responsabilidade
com um grupo de estudo esta ruptura com a Daseinsanalyse por causa da liberdade e
quando eu fui explicar o porque eu tinha rompido eu entendi talvez porque esta questão
já vinha sendo trabalhada há muitos anos sem que eu me desse conta.
A partir de 78, você segue Daseinsanalista?
Sigo aprofundando e aos poucos fui reaproximando a experiência, esta sim
ontológica fundamental a partir da qual efetiva a realização ôntica do fenômeno
religioso, que é o conceito do sagrado, que vai aparecer em Heidegger, mas não no
primeiro Heidegger de Ser e Tempo, mas no segundo Heidegger de Carta sobre o
Humanismo, Heidegger de a questão da técnica, o Heidegger chamado de o segundo
Heidegger onde a questão do sagrado aparece e me deixa completamente fascinado.
com aquilo que já não chamarei de religioso no sentido próprio, mas
transformado, não mais a estrutura ôntica, mas o resgate do fundamento ontológico a
partir do qual esta realização ôntica se efetiva tanto a nível individual como a nível
antropológico e social e que vai aparecer em uma interlocução especialmente grata pra
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mim que é o Gilberto Safra, com a publicação de um artigo num jornalzinho da PUC,
numa passagem sobre o sagrado onde ele ta muito claramente colocado por alguém que
não é Heideggeriano, mas tem exatamente a compreensão que a referencia do sagrado é
de caráter ontológico e que a referência da religião tem o caráter ôntico. Vindo de uma
outra área da psicologia bem ligada ao trabalho clínico, mas num outro enfoque foi
bastante reconfortante.
Como foi reconfortante o prefacio do livro da Nancy Mangabeira Unger, O
Encantamento do Humano, o prefacio se chama carta comovida a uma jovem, onde o
Helio Pelegrino trabalha com o conceito de religiosidade a partir da etimologia do
religare de uma forma deliciosa que instaura outra referência vinda da psicanálise.
Depois disto eu reencontro do ponto de vista da perspectiva religiosa um trabalho
do Kierkgaard sobre o conceito de angústia, que trás uma leitura de caráter religioso,
filosófico muito significativo junto com alguns, ai entro de um lado eu resgato
Dostoievski com toda intensidade principalmente com o conto dos Irmãos Karamazov,
chamado O Grande Inquisidor, que voltou numa outra leitura com algumas passagens
de Hannah Arendt com James Hilman e ai vai, ai é uma colagem de vários autores e eu
me aproximo da religiosidade.
E hoje em dia como você sente sua religiosidade, tem diferenças de quando
você era recém formado?
Mudou muito, quando eu era recém formado a religiosidade tinha perdido
completamente a sua autenticidade, transformada em linguagem ela tinha perdido o seu
conteúdo e se transformado digamos numa espécie de linguagem metafísica de pessoas
que não tinham uma formação filosófica não tinham uma sofisticação da linguagem
para expressar suas angústias mais fundamentais de uma maneira mais
nítida…(risadas).
Hoje eu acho que a perspectiva quase que se inverteu, se por um lado a efetividade
ôntica das diferentes religiões continuam representando pra mim uma linguagem
metafórica quase do mesmo jeito por outro lado elas fazem referência a uma discussão
próxima específica, diferenciada como um existencial mesmo, constituinte da condição
ontológica do Dasein que é o existencial do sagrado que constitui uma experiência
absolutamente própria e autêntica inconfundível e diferenciada de todas as outras
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formas de experiências, e abre o Dasein para este âmbito de experiências na qual as
diferentes religiões se costuram.
E lembro o texto do Gustavo sobre a intimidade que pra mim é o texto mais
budista que eu li não sobre o budismo assim como o texto, “A via de Chuang Tzu”
embora o nome seja Chinês o personagem seja chinês o conteúdo seja chinês, o autor é
um teólogo católico que é o Thomas Merton, monge talvez um dos três maiores
teólogos católicos do século XX, ele ali faz uma abertura deliciosa porque aproxima
justamente o caráter ontológico da religiosidade é brilhante.
Hoje a minha perspectiva é de reconhecer esta dimensão este existencial presente
nas pessoas e que como todo referencial ontológico sempre solicita uma referência
ôntica que o efetive.
Embora o ôntico não possa nunca preencher completamente o ontológico.
Hoje com relação à religiosidade como você esta?
A primeira coisa é que se não houver ruptura não pode haver autenticidade.
A experiência religiosa num primeiro momento é experiência de alienação.
Tal qual a ruptura da adolescência?
Isto, você rompe e vai buscar uma experiência própria.
Segundo é fundamental que esta ruptura ocorra ocasionalmente ela nunca pode ser
uma só.
A ruptura do adolescente pode trazer uma experiência já ontologizada.
É a primeira grande que pode aproximar a referência ôntica da ontológica, por que
destruída a referencia ôntica o apelo da referencia ontológica é muito mais forte e ela
aparece como angústia.
É compreender a experiência do sagrado como experiência de falta de Deus.
E uma referencia absolutamente fundamental, independente de você afirmar ou
não a existência de Deus a experiência da falta de Deus é de outra ordem, ela tem este
caráter ontológico de falta.
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Uma aspiração um desejo que é completamente diferente da convicção da crença e
completamente diferente da benção da fé. É uma convicção de natureza ôntico
ontológico muito especial.
Hoje você pratica a religião?
Hoje eu num dilema faz um tempo e o dilema é o seguinte, uma experiência
da religiosidade vista de forma individual ela é essencial, mas ela é insuficiente, nestes
últimos anos de uns cinco anos pra um pouco mais no final dos anos noventa eu
tenho me sentido provocado pela necessidade de descobrir formas de compartilhar as
experiências no âmbito da religiosidade do mesmo jeito que eu compartilho no âmbito
do ser-com-os-outros do ser-no-mundo da temporalidade da corporeidade e assim por
diante.
Isto significa a descoberta de que talvez a questão do rito não possa ser dispensada
de que alguns rituais talvez se fazem necessários até mesmo como uma experiência de
prevenir uma certa onipotência que aos poucos ameaça a se instalar no âmbito de uma
religiosidade ontológica, vivida de uma forma absolutamente individual.
Qual é a sua religião hoje?
É católica de formação, é a religião que conheço, tenho uma certa facilidade para
interpretar os textos católicos por familiaridade e ao mesmo tempo em que eu começo a
interpretar estes textos eu me dou conta que estou fora da ortodoxia religiosa.
Mesmo da de João XXIII, a de Bento XVI então completamente. João XXIII falou
coisas que só vão ser compreendidas daqui a cem anos a igreja no momento vive um
retrocesso.
dois anos fui convidado para uma mesa redonda aqui na universidade,
coordenado pelo padre que é o capelão da PUC e ele coordenou um evento em que veio
o padre Lancelot, o bispo de Petrópolis e um psicólogo para falar sobre a primeira
encíclica de Bento XVI que era para falar sobre o amor humano.
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E ali o tema era discutido a questão do amor humano visto a proposta era do ponto
de vista psicológico e um ponto de vista de uma religiosidade social digamos
genericamente da teologia da libertação.
O padre Lancelot e uma perspectiva mais crítica representada pelo bispo de
Petrópolis que fazia uma leitura mais criticam do amor humano. Eu fiquei aflito porque
eu percebi que era um abacaxi é evidente que tem uma briga entre o Bento XVI e a
teologia da libertação briga antiga desde o tempo que ele era Hatzinger e que pegou
com o Leonardo Boff e agora pegou de novo e ta uma guerra, então claro o bispo de
Petrópolis veio representando a linha do Bento XVI e o Lancelot a linha anterior, na
PUC sempre houve uma aproximação entre a igreja católica e a esquerda.
No entanto houve uma modificação que veio inclusive na intervenção na PUC a
pretexto de resolver o problema econômico, você percebe que junto com a questão
econômica possivelmente existe toda uma questão de disputa de grupos políticos
ligados à igreja.
E você?
XXIII introduziu um conceito de ecumenismo cujo único problema é ter
chegado 100 anos antes, tanto é que estamos andando pra trás pra começar tudo de novo
para provavelmente em 2107 estar voltando de novo para este ecumenismo.
Mudando um pouco, como você acha que a religiosidade do terapeuta
interfere na prática clínica?
Acho que isto é uma impressão, não saberia precisar, que terapeutas muito
convictos do ponto de vista religioso tendem a perder de vista a referência ontológica e
com isto a referência ontológica e com isto a referencia ôntica da religião tende a se
imiscuir no trabalho psicológico.
Eu acho que especialmente o pessoal da logoterapia do Vitor Frankl aproximam
este tipo de coisa ainda mais que os Junguianos, os Junguianos aproximam numa
perspectiva meio mística tanto do humano como da religiosidade.
Mas a religião pensada como estrutura ôntica é mais a logoterapia.
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Quando um terapeuta tem uma vivência da dinâmica ontológica da religiosidade ai
eu acho que tem uma interferência mas ela é muito sutil. Ela é significativa, mas ela
carrega uma sutileza de não estar ligada a nenhum conteúdo ôntico definido. Então é
absolutamente indiferente do ponto de vista do trabalho clínico que tipo de opção
religiosa a pessoa traz. E até mesmo se a pessoa fez algum tipo de opção religiosa.
Mas existe uma abertura para a aceitação de experiências que estão no âmbito de
referencia existencial da religião.
No âmbito da experiência do Dasein se limita com uma referência da
mundanidade do mundo da estrutura da mundanidade do mundo que faz parte da
experiência.
Como você vê a experiência mística?
Quando ela é autêntica em primeiro lugar ela tem uma angústia muito forte ao
mesmo tempo tem uma referência estética absurdamente tocante, o aspecto que mais me
pega na experiência stica autêntica e a estética. São experiências de uma beleza
indiscutível.
A forma como aparece, quem faz uma aproximação boa neste sentido é o Rubem
Alves que tem algumas aproximações fantásticas com muita profundidade em estética e
eu concordo com ele eu acho que a experiência religiosa autêntica ela é marcada pela
angústia e marcada pela beleza.
O primeiro texto que eu consegui escrever na minha vida na área da
Daseinsanalyse chama-se (cita o nome do texto).Onde eu faço a aproximação entre a
perspectiva da Angústia e a da graça.
A graça pra mim é um conceito que… a primeira pessoa que leu uma psicanalista
foi quem organizou o livro.
O livro é (cito o nome do livro)?
Ela ficou incomodada porque a palavra graça é um termo tipicamente religioso, a
graça de Deus, com a graça de Deus, porque foi uma graça, me concederam uma graça e
se você ler atentamente o primeiro sentido da palavra graça ta ligado à gratuidade isto é
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sem razão, sem uma causa, gratuito, caótico, a primeira referência é o caos, aquele da
teoria do caos da física probabilística é a primeira referência, eu de certa forma faço
minha história ai refletida em termos de conceitos, o primeiro a referência da gratuidade
como caos, mas num segundo momento entra a referência da beleza, olha que coisa
mais linda mais cheia de graça é ela menina que vem e que passa, fala de beleza.
Que é uma graça, uma doação profundamente ligada a estética que é o sabor das
coisas, isto não tem sabor não tem graça, isto não tem saber, porque aqui na gratuidade
caótica nasce um saber muito peculiar, na referência do caos que da graça na comida da
sabor, na comida que é a referência estética.
E tem um terceiro momento que foi minha experiência mais forte na minha terapia
daseinsanalitica que é a descoberta do humor.
Foi quando descobri que a linguagem poética esteja mais autenticamente presente
na piada do que na poesia, porque a graça da piada é inexplicável se você explica a
piada não tem mais graça. (risadas)
E a experiência religiosa?
Explicá-la é explicar a piada e por último com relação à graça, a graça tem o
sentido de doação talvez seja o sentido que foi se instalando principalmente porque no
segundo Heidegger a referencia da doação de ser vai se tornando cada vez mais
integrada então a referencia do que se da é sinônimo daquele que acontece e trás um
sentido, então ali tem uma grande curtição com a palavra graça como sendo a outra face
o reverso da angústia.
Se não houver uma experiência de devastação interior você não acessa a
experiência da graça.
O efeito da graça vem sempre como algo que se da no âmbito do vazio dilacerante
que a angústia instaurou, a este respeito tem um texto maravilhoso do Rubem Alves
antigo de um livro chamado O Enigma da Religião a onde ele tem um texto magnífico
esta muito bem escrito muito bem colocado é exatamente como aquela passagem da
angústia pra graça é incompreensível no sentido temático pode ser compreendida
vivencialmente, tematicamente não tem como passar de uma coisa pra outra.
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Obrigado.
Eu que agradeço fiz uma hora da saudade.
O homem é destinado ao amor, vamos ver se a gente pode sustentar isto.
O conceito de ser mortal de liberdade e o conceito de clareira do ser.
Então se o homem é ser mortal no sentido da incompletude é no mundo junto com
os outros nesta referência de uma indeterminação e se ele é clareira do ser, ele esta
destinado ao movimento de acolhimento daquilo que chega de forma que mais
intensamente manifestam a relação amorosa este acordo, esta com cordia, em
concordância com aquilo que chega, sabe é muito engraçado as pessoas entendem e não
entendem fica engraçado.
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ANEXO II
JAN HAVICKSZ STEEN, “A REFEIÇÃO EM EMAÚS”, AMSTERDAM,
RIJKSMUSEUM
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