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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS
CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO
PROGRAMA DE MESTRADO
Paulo César Neves Barboza
Estado, Direito e Hegemonia: Contribuições de Gramsci para a Crítica
Jurídica
Florianópolis
2007
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PAULO CÉSAR NEVES BARBOZA
ESTADO, DIREITO E HEGEMONIA: CONTRIBUIÇÕES DE GRAMSCI
PARA A CRÍTICA JURÍDICA
Dissertação submetida à Universidade
Federal de Santa Catarina para a
obtenção do título de Mestre em
Direito. Orientador: Professor Doutor
Orides Mezzaroba
Florianópolis
2007
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Paulo César Neves Barboza
ESTADO, DIREITO E HEGEMONIA: CONTRIBUIÇÕES DE GRAMSCI
PARA A CRÍTICA JURÍDICA
Esta dissertação foi julgada adequada para obtenção do título de Mestre em
Direito e aprovada em sua forma final pela coordenação do Curso de Pós-
Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina, na área de
concentração Filosofia e Teoria do Direito. Orientador: Prof. Dr. Orides
Mezzaroba – CPGD/UFSC.
Banca Examinadora:
Prof. Dr. Antonio Carlos Wolkmer - (Presidente) – CPGD/UFSC
Prof. Dr. Aires José Rover - (Membro) – CPGD/UFSC
Profa. Dra. Ivete Simionatto - (Membro) – CFH/UFSC
Coordenador: Prof. Dr. Antonio Carlos Wolkmer - UFSC
Florianópolis, setembro de 2007
4
Dedicatória
A minha família.
A Natália.
Aos professores e professoras do CPGD.
Aos meus amigos.
Aos lutadores de cada dia.
Agradecimentos
Agradeço primeiramente ao Professor Orides Mezzaroba,
orientador e companheiro na realização desta dissertação.
Ao CNPQ, pelo indispensável apoio financeiro, que viabilizou a
realização do Mestrado em Direito.
Aos professores participantes da Banca de Dissertação, Prof. Dr.
Antônio Carlos Wolkmer e Prof. Dr. Aires José Rover e Profa. Dra. Ivete Simionatto
CFH/UFSC. Aos demais professores, especialmente os professores Dr. Airton Cerqueira Leite
Seelaender, Dr. Arno Dal Ri Junior, Dra. Cecília Caballero Lois, Dr. Jeanine Nicolazzi Philippi,
Dr. Marcos Wachowicz, Dr. Sergio de Urquhart Cademartori e Dra. Thais Luzia Colaço
Aos amigos do Mestrado, companheiros de vida acadêmica e social,
que tornaram o período de mestrado gravado nas melhores memórias que guardo comigo.
Aos meus familiares, apoiadores importantíssimos durante o
período de mestrado.
Aos amigos do Centro Acadêmico Ferreira Vianna, companheiros
de faculdade e de utopias.
Aos funcionários do CPGD, pela presteza e pela qualidade do
trabalho realizado.
À Natália, companheira de todos os momentos, que suportou a
distância e as dificuldades do período de estudos em Florianópolis.
.
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RESUMO
O propósito da dissertação é apresentar as categorias teóricas elaboradas por Gramsci,
relacionando-as com a teoria crítica do direito, para qual é relevante. A crítica jurídica tem como
importantes instrumentais teóricos e práticos os conceitos gramscianos de hegemonia, ideologia,
sociedade civil, sociedade política, teoria do Estado ampliado, intelectual orgânico, partido, guerra
de posição, bloco histórico e senso comum. Estão presentes no texto as observações sobre o
direito, com destaque para as considerações elaboradas nos Quaderni. As distinções entre a teoria
do direito tradicional, hegemônica, e a proposta crítica, contra-hegemônica, são identificadas e
contextualizadas no cenário histórico, político e cultural brasileiro, bem como as recentes
transformações ocorridas na legalidade estatal, a partir da crise do Estado intervencionista e da
globalização econômica que o fulmina. Nesse contexto, são expostas as implicações do
pensamento gramsciano, pertinentes para a teorização e a prática alternativa e pluralista de novas
juridicidades, as quais podem contribuir para a evolução democrática da sociedade brasileira. A
contribuição de Gramsci para teoria do direito induz para uma evolução democrática, capaz
considerar as pautas e as contribuições político-juridicas advindas das classes subalternas,
limitadas historicamente à pobreza política, para qual contribui o formalismo jurídico tradicional.
Demonstra-se no trabalho a importância da teoria crítica brasileira para afirmação de direitos
positivados, bem como para a concepção de novos direitos.
Palavras-chave: Ideologia. Direito. Estado. Hegemonia. Intelectual Orgânico. Globalização.
Estado social. Crítica jurídica. Pluralismo jurídico. Direito alternativo.
ABSTRACT
The proposal of this dissertation is to present the theoretical categories elaborated by Gramsci,
relating them to the critical theory of Law, to which it is relevant. The juridical critic has as
important theoretical and practical instruments the concepts presented by Gramsci concerning de
hegemony, ideology, civil society, political society, open State theory, organic intellect, political
party, position war, historical block and common sense. The observations about Law are present
in the text, with highlight for the considerations elaborated in the Quaderni. The distinctions
between the traditional and hegemonic Law theory and the critical proposal, counter-hegemonic,
are identified and contextualized in the Brazilian historical, political and cultural scenery, as well
as the recent transformations which occurred in the state legality, based on the crisis of the
interventionist State and the economic globalization that affects this State. In this context, the
implications of Gramsci’s thoughts are exposed, which are pertinent for the theorization and the
alternative and plural practice of new juridical decisions, which can contribute for the democratic
evolution of the Brazilian society. Gramsci’s contribution for the theory of Law induces to a
democratic evolution, which is able to consider the topics and the political-juridical contributions
which come from the subaltern classes, historically limited to the political poverty, to which the
traditional juridical formalism contributes. It is demonstrated in the present paper the importance
of the Brazilian critical theory for the affirmation of positive Law, as well as the conception of
new Law.
Key words: Ideology. Law. State. Hegemony. Organic Intellect. Globalization. Social State.
Juridical critic. Juridical Pluralism. Alternative Law.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .......................................................................................................................9
1 GRAMSCI: CATEGORIAS TEÓRICAS PERTINENTES ..........................................13
1.1 Aspectos da teoria de Gramsci e de Marx diante do Estado e da política ...................13
1.2 A democracia socialista e os conselhos de fábrica .......................................................21
1.3 O conceito de hegemonia..............................................................................................25
1.4 Hegemonia e revolução passiva....................................................................................30
1.5 Hegemonia, ocidente e luta política..............................................................................33
1.6 Ideologia, senso comum e intelectual orgânico............................................................42
1.7 Teoria do Estado ampliado ...........................................................................................52
2 DIREITO: CULTURA JURÍDICA E HEGEMONIA....................................................61
2.1 O direito em Marx e o direito em Gramsci: um avanço teórico ...............................61
2.2 Ideologias jurídicas hegemônicas na modernidade ......................................................75
2.3 O Estado como espaço para atuação contra-hegemônica.............................................89
2.4 Breve histórico da evolução das instituições político-juridicas no Brasil....................97
2.5 Os bacharéis: intelectuais orgânicos da tradição no desenvolvimento da cultura
jurídica brasileira ..............................................................................................................102
3 CRISE DO ESTADO SOCIAL E AS CONTRIBUIÇÕES DE GRAMSCI PARA A
CRÍTICA JURÍDICA ........................................................................................................107
3.1 A ampliação das funções do Estado ...........................................................................107
3.2 A Globalização e a crise do Estado intervencionista..................................................116
3.3 Algumas observações sobre as relações entre Política e direito a crítica e a
desregulação dos direitos sociais......................................................................................124
3.4 Teoria crítica do direito e a busca por novos consensos.............................................128
3.5 Gramsci e a crítica do direito no Brasil ......................................................................138
3.6 Direito alternativo, guerra de posição e intelectual orgânico ................................. ..141
3.7 Os sujeitos coletivos e o pluralismo jurídico..............................................................148
CONCLUSÃO......................................................................................................................156
REFERÊNCIAS ..................................................................................................................161
INTRODUÇÃO
Gramsci deixou importante contribuição para a crítica jurídica,
mesmo não que não tenha produzido nenhum escrito dedicado exclusivamente ao estudo do
direito, o que, entretanto, não desfavorece a análise do direito a partir de suas categorias teóricas.
Pelo contrário, a abertura temática dos escritos gramscianos, especialmente nos quaderni,
possibilita uma qualificada e interdisciplinar contribuição para o pensamento jurídico contestador
da tradição. Sua obra continua atual, pertinente para a realização de questionamentos diante a
tradição jurídica, e, como não poderia deixar de ser, determinante para se pensar estratégias de
atuação contra-hegemônica. Nesse sentido, se estabelece o foco da pesquisa, realizada a partir de
uma leitura histórico-social, com o propósito de demonstrar de que modo as diversas categorias
teóricas elaboradas por Gramsci podem contribuir para fundamentação da teoria e da prática
críticas do direito, tendo sido, ressalte-se, o método indutivo para realização da pesquisa. As
distinções entre a teoria do direito tradicional, hegemônica, e a proposta crítica, contra-
hegemônica, são relacionadas com o cenário histórico, político e cultural, identificando aspectos
da realidade histórica e social brasileira, sobre o qual se desenvolveu a cultura jurídica nacional.
Nesse contexto, são expostas as implicações do pensamento gramsciano, pertinentes para a
teorização e a prática pluralista e alternativa de novas juridicidades, as quais podem contribuir
para a evolução do direito.
Não se trata, é importante frisar, de um tema novo, de uma
abordagem inédita no pensamento jurídico brasileiro. A relação entre as idéias gramscianas e a
crítica jurídica permeia boa parte da produção doutrinária da crítica jurídica brasileira,
especialmente na década de 1990, no período inicial do novo estágio da democracia brasileira,
assinalado pela Constituição Federal de 1988. Entretanto, não se esgotou o referencial teórico em
questão como instrumental para análise, reflexão e crítica sobre os papéis do Estado, da
sociedade e do direito na conjuntura atual, na qual ainda estão presentes a os efeitos da
globalização econômica e das políticas neoliberais, implantadas na América Latina, em larga
escala, a partir do final da década de 1980. Na sua grande maioria, os países latino-americanos
seguiram um receituário de políticas desumanizadoras, de desobrigação diante das demandas
populares, que se refletiram na ordem jurídica. Assim, os direitos sociais, garantidos pelos
estados são convertidos em serviços, oferecidos pela iniciativa privada, de modo que no interesse
10
social da estrutura jurídico-política, se estabelece o privatista interesse no lucro.
A vitória de partidos identificados (uns mais, outros menos) com
pautas das classes subalternas ameniza, em diferentes escalas, os impactos de uma economia
internacionalizada, que opera determinantemente na elaboração das políticas públicas,
principalmente na periferia do mundo. Porém, a amenização das agruras das camadas mais
pobres da população não é suficiente para fazer evoluir a democracia, considerando a gradativa
redução das funções sociais do Estado, realizada nos últimos anos. Ademais, a globalização
econômica vem acompanhada da divulgação de uma cultura anti-social, egoística, sustentada no
individualismo, que condena o público, exalta o privado. Assim, a partir da divulgação da cultura
liberalizante, operada pelos avançados aparelhos de reprodução ideológica, acerca da proteção do
trabalho, não se trata mais de emprego, mas de empregabilidade e, conseqüentemente, não se
trata mais de lutas sindicais, se defende desregulação das relações de trabalho. Essa cultura é
combatida pela teoria crítica do direito, considerando que a defesa da democracia como um valor
universal, se relaciona com a importância da afirmação dos direitos sociais como marcos
democráticos, a partir dos quais se deve avançar, e não retroceder ao modelo liberal e excludente
de Estado. Não se trata, entretanto, de supervalorizar as funções estatais: trata-se de estabelecer
meios para o desenvolvimento de uma sociedade civil na qual a coletividade possa ter acesso a
bens materiais e culturais, que são pressupostos para uma cidadania efetiva, não meramente
formal.
A justificativa para essa dissertação, realizada a partir de uma
pesquisa bibliográfica que tem como referencial a obra gramsciana (tendo como fonte primária os
cadernos do cárcere), reside na necessidade, especialmente em país de capitalismo periférico, de
se reafirmar a crítica à tradição jurídica do formalismo, com base liberal-individualista, que
ocasiona o afastamento dos operadores do direito das demandas sociais, limitando-as aos espaços
demarcados pela ideologia jurídica tradicional. A luta por um direito eficaz diante das pautas das
classes subalternas, cabe ressaltar, deve ser realizada dentro e fora da legalidade instituída. No
seio da legalidade, a defesa de direitos se caracteriza, conforme exposto, pela resistência diante
do capitalismo globalizado. Em relação à sociedade civil, a crítica à tradição viabiliza o
reconhecimento de novas juridicidades, da organização autônoma de movimentos sociais para a
defesa de suas pautas. Cabe ressalvar que a linguagem acessível adotada na pesquisa, bem como
a apresentação didática das idéias de Gramsci, serve para facilitar a compreensão do texto. Caso
11
se escondesse o texto por detrás de uma linguagem academicista, acabaria por estabelecer uma
situação um tanto paradoxal diante de seus próprios fundamentos teóricos e ideológicos,
considerando que se constituiria obstáculo para a leitura do texto fora dos círculos acadêmicos.
Ao longo da dissertação é defendida uma perspectiva historicista e
dialética do direito, essencial para uma perspectiva verdadeiramente comprometida com a
evolução contínua da democracia e do direito, no rumo da verdadeira emancipação, para o
estabelecimento da hegemonia das classes hoje subalternas. No primeiro capítulo, é exposto o
marco teórico adotado nessa dissertação, a teoria política de Antonio Gramsci, cujas categorias
teóricas, destacando-se, servem de base para este trabalho. São apresentados conceitos muito
caros à ciência política e a teoria Estado contemporâneas, com destaque para as seguintes
categorias: hegemonia, ideologia, sociedade civil, sociedade política, teoria do Estado ampliado,
intelectual orgânico, partido, guerra de posição, bloco histórico e senso comum, os quais servirão,
nos capítulos seguintes, para análise do espaço político-jurídico. Para a escolha do marco teórico,
além dos motivos já expostos, foi considerada a perspectiva realista que caracteriza a obra
gramsciana, a qual possibilita uma análise pautada na historicidade do direito. Ainda no primeiro
capítulo, aborda-se a relação de Gramsci com o pensamento marxista, das influências e
diferenças surgidas da teorização a partir de Marx, Engels e Lênin, que culminaram na dura
crítica ao marxismo determinista e economicista em voga nos movimentos e partidos socialistas e
comunistas na primeira metade do século passado.
No segundo capítulo, encontra-se o conceito de direito para Gramsci,
possível a partir das observações específicas sobre o direito, seja na crítica ao direito burguês, seja
no reconhecimento do papel do jurídico na organização e na transformação da sociedade. Um
breve paralelo com a crítica marxiana do direito é apresentado, com o propósito de referenciar a
continuidade e a superação dialética presente na crítica gramsciana ao direito. Após, no segundo
capítulo, são relacionados direito e ideologia, destacando-se a contribuição da noção não
essencialmente negativa de ideologia, que deixa de ser mero reflexo das relações estruturais, para
a análise do desenvolvimento do direito moderno. Trata-se, na parte em questão, das ideologias
jurídicas que se consolidaram como hegemônicas na modernidade ocidental, o jusnaturalismo e o
positivismo jurídico, bem como do reconhecimento do espaço do direito como arena para a luta
contra-hegemônica, política e jurídica. No mesmo capítulo, os bacharéis, conforme a definição de
bacharelismo de Sérgio Adorno, são apresentados como intelectuais orgânicos a serviço da
12
tradição oligárquica e patriarcal das instituições políticas e jurídicas do Brasil. Ainda, é feita breve
demonstração sobre como os bacharéis contribuíram para a inserção das ideologias jurídicas
jusnaturalistas e positivistas, posteriormente entranhadas no senso comum dos juristas.
No terceiro capítulo, aborda-se a relação entre o pensamento de
Gramsci e a teoria crítica do direito, especialmente a crítica realizada pela doutrina brasileira.
Nesse capítulo é apresentada uma análise do desenvolvimento das instituições político-juridicas
no Brasil, instituições cujo desenvolvimento pode ser caracterizado a partir da idéia de revolução
passiva num movimento histórico determinante para a formatação ideológica do Estado e do
direito no Brasil. O Estado intervencionista é abordado em suas características mais relevantes,
sendo apresentadas as especificidades do intervencionismo estatal brasileiro. Tais apresentações,
somadas à crise do estado intervencionista e a globalização econômica, servem como cenário para
a abordagem da crítica jurídica, em suas definições básicas, bem como com as características da
crítica jurídica brasileira, destacando-se a influência gramsciana sobre estas. Após os três
capítulos, nas quais estão dispostos os questionamentos, os fundamentos e as motivações da
pesquisa, encontram-se as conclusões derivadas da pesquisa, as conclusões. Cabe, entretanto,
lembrar, diante dos próprios limites do conhecimento e da necessidade de correção característica
de quase todos os trabalhos acadêmicos, que qualquer crença ou pretensão de que se possa
estabelecer algo definitivo e permanente, especialmente em uma dissertação, transforma-se em um
infundado e perigoso convite ao dogmatismo, contrário ao que se busca afirmar no presente
estudo.
13
1 CATEGORIAS TEÓRICAS PERTINENTES
1.1 Aspectos da teoria de Gramsci e de Marx diante do Estado e da potica
As concepções teóricas de Antonio Gramsci constituem
importantíssima contribuição para o marxismo e para a teoria política contemporânea, tendo
relevância sua análise da teoria e da ação política a partir do marxismo não vulgarizado,
adequando-o para a análise da complexidade da sociedade contemporânea. Gramsci promoveu o
encontro entre Marx e Maquiavel, para conceber a teoria e a prática militante, para construir a
pedagogia política destinada às massas subalternas, indicando as bases de uma nova cultura, a
cultura de uma sociedade socialista (BUCI-GLUCKSMANN, 1990, p. 38). Para Gramsci,
Maquiavel buscava educar as massas sobre a política real (GRAMSCI, 2000c, p. 307), não sendo
determinada tão-somente por determinismos:
não desconheço que muitos têm tido, e têm, a opinião de que as coisas do mundo são
governadas pela fortuna ou por Deus, de modo que a prudência dos homens não as
poderia corrigir nem lhes ofertaria algum remédio. Dessa maneira, poder-se-ia pensar
que ninguém deve se importar muito com elas, deixando-se simplesmente reger pela
fortuna. (...) Apesar disso, e uma vez que nosso livre-arbítrio permanece, acredito poder
ser verdadeiro o fato de que a fortuna arbitre metade de nossas ações, mas que, mesmo
assim, ela nos permite governar a outra metade quase inteira. (MAQUIAVEL, 1999,
p.143).
Ainda que a fortuna possa contribuir de algum modo na vida, na
atuação política, tal influência não é determinante: o que determina as ações políticas são as
vontades dos homens. Gramsci encontra em Maquiavel a relevância do agir político calculado,
sendo possível afirmar que na análise gramsciana de Maquiavel encontram-se argumentos para
crítica do esquerdismo, ou espontaneísmo, e do determinismo maximalista entre os comunistas de
sua época. Forte crítico do marxismo ortodoxo, calcado no determinismo economicista e no
materialismo vulgar, operou um salto qualitativo na análise dos fenômenos políticos e sociais, a
partir da problematização da atuação política marxista. Esta percepção da filosofia da práxis,
como se referia ao marxismo durante o longo período de censura e cárcere, resultou numa
14
vitalidade teórica que trás para os dias atuais relevância no estudo da obra de Gramsci, o qual deu
como maior contribuição para o marxismo a sistematização de uma ciência marxista da ação
política, a partir do que não é explicitado em Marx (CARNOY, 1998, p.89).
O marxismo de Gramsci, que para alguns não parece suficientemente “ortodoxo”,
aborda uma direção de pesquisa fundamental: revelar o que existe de vivo e morto no
marxismo, à luz de experiência de uma época histórica determinada, e dos objetivos e
metas a atingir. Antes de mais nada, é preciso refutar as teses acadêmicas que
pretendem ver na tentativa gramscista “uma difícil abordagem do marxismo, sempre
visto de uma ótica idealista e espiritualista”. Sua relação com o marxismo foi, em
primeiro lugar, política: partindo do Capital, ele refuta o economicismo de boutique, a
interpretação positivista, todo o pedantismo formalista, a utilização ideológica do
marxismo com fins reformistas (MACCIOCCHI, 1980, p. 13).
Em sua produção intelectual, Gramsci realizou a evolução teórica do
marxismo, com a superação dialética do pensamento de Marx, Engels e Lênin (COUTINHO,
2003, p. 84), ainda que tenha conservado estes como referenciais principais para a construção de
suas concepções teóricas. Sua obra caracteriza-se especialmente pela postura crítica diante da
perspectiva economicista presente no pensamento marxista, muitas vezes refletida no imobilismo
ou em uma práxis reducionista por parte dos sindicatos e dos partidos comunistas de seu tempo.
Assim, surgiram as críticas ao materialismo vulgar de Bukhárin, uma crítica ao bizantinismo, ao
formalismo e à escolástica, ou seja, ao modo de tratar das questões teóricas como se estas
tivessem valor em si mesmas (GRAMSCI, 2000a, p.255). A defesa da universalidade de Marx,
Engels e de Lênin, parte da compreensão de que a universalidade do projeto político socialista
não se deve ao caráter abstrato, matemático ou sico do marxismo positivista, mas à eficácia da
filosofia da práxis na história. A crítica ao economicismo determina o salto qualitativo e teórico
de Gramsci, a retomada do conceito leninista de hegemonia na filosofia e na política, bem como é
fundamental para a problematização do Estado através da teoria de Estado ampliado (BUCI-
GLUCKSMANN, 1990, p.293, 307, 311).
A questão do Estado em Gramsci é objeto de pesquisa política e de
pesquisa filosófica, nas quais se trabalha a função e o lugar do materialismo histórico na
superestrutura (BUCI-GLUCKSMANN, 1990, p. 39). Resgata a urgência da pauta socialista,
reafirma a historicidade dialética do marxismo, que em sua época foi transformado em dogma
pelos maximalistas do PSI. É emblemática a idéia de que “não se separa filosofia da história da
filosofia, nem a cultura da história da cultura” (GRAMSCI, 2000a, p. 94-95). Tendo como norte a
15
essência da práxis marxista - o materialismo dialético, histórico e revolucionário -, reconheceu e
compreendeu os processos sociais e políticos a partir de suas especificidades, para analisar o
movimento socialista de seu tempo, inserido numa realidade em permanente movimento, diante
da qual a permanente adaptação e a avaliação de possibilidades para a ação se fizeram
necessárias.
Segundo COUTINHO (2003, p.91-96), Gramsci concebe a política
como Marx concebe a economia, e considera a historicidade da política em conjunto com a
divisão da sociedade em classes. Se não existe desde sempre, pode deixar de existir com a
sociedade regulada, na qual a sociedade absorve o Estado e a economia. As estruturas e as
superestruturas formam um bloco histórico. Dentro de um bloco histórico, existe uma correlação
de forças, cujo primeiro objeto é as relações econômicas, e o segundo objeto são as relações
políticas. Entretanto, na economia, para Gramsci, não se encontra apenas a produção de bens
materiais, mas também a reprodução das relações sociais globais, determinada por fatores
objetivos (econômicos) e por fatores subjetivos, os quais se desenvolvem no interior dos fatores
objetivos, nos limites delimitados pela economia. As relações econômicas e, especialmente para
Gramsci, políticas dentro do bloco histórico, determinam o nível de homogeneidade e de
consciência de uma classe social. Em suma, a economia delimita as possibilidades da política,
seja em sentido amplo ou estrito, porém não determina de forma mecânica e simplificada as
relações que se estabelecem no campo político e ideológico.
A filosofia marxista é tomada como instrumental para uma reforma
moral e intelectual da sociedade (BUCI-GLUCKSMANN, 1990, p 115). Para Gramsci a filosofia
da práxis não necessita de sustentáculos heterogêneos, sendo ela robusta e fecunda de novas
verdades, diante das quais o velho mundo recorre para elaborar suas armas. No plano teórico a
filosofia da práxis não se reduz nem se confunde com nenhuma outra teoria. Isso significa que a
teoria da práxis tem condições de passar a exercer sua própria hegemonia sobre a cultura
tradicional. A abordagem da filosofia deve ser historicista, sendo sua base a vontade, a qual,
sendo racional e atuando por um largo tempo na vida social, se torna cultura, bom senso difuso,
que se converte em norma ativa de conduta. Assim, grupos sociais assumem uma concepção de
mundo que não é sua, fato que demonstra, em parte, porque a filosofia não se separa da política,
de modo que a escolha ou crítica de uma concepção de mundo são fatos políticos (GRAMSCI,
2000a, p. 97, 152-154, 202).
16
A partir de uma perspectiva que vislumbra a filosofia, a política e a
economia como elementos constitutivos de uma mesma concepção de mundo, devendo existir a
possibilidade de conversão de uma para outra (GRAMSCI, 2000a, p. 209), Gramsci reconhece
que são variadas as relações possíveis entre política e economia, conforme o tipo de formação
social (COUTINHO, 2003, p. 101). O tratamento da filosofia, da política e da economia se dá
com o cuidado de não ter uma percepção mecanicista e simplista sobre a relação entre estrutura e
superestrutura. Considera que é difícil identificar estaticamente a estrutura, e que, mesmo que a
política seja considerada um reflexo da estrutura, esta só pode ser estudada concretamente
quando superado todo o seu processo de desenvolvimento. Um ato político, ainda que resultante
das relações estruturais, ou seja, da base econômica, pode ser considerado, a partir de uma análise
não simplificadora, um erro de cálculo por parte das classes dominantes. Como exemplo, uma
crise parlamentar. Ressalve-se, ainda, que muitos atos políticos são realizados para organização
interna, para dar coerência a um grupo social, a uma sociedade ou a um partido, ou seja, não se
trata nesses casos de um reflexo direto e simplista de algum abalo estrutural (GRAMSCI, 2000a,
p. 209).
Em tal análise percebe-se a crítica ao mecanicismo não-dialético, e a
necessidade de reconhecer as realidades política e econômica específicas do campo de operações
sobre o qual se pretende a atuação política revolucionária, cuidado presente na obra gramsciana,
especialmente no período dos Quaderni, no qual se percebe o fracasso ou a impossibilidade da
luta socialista baseada no modelo bolchevique em países de industrializados. A crítica ao
mecanicismo economicista é refletida no estudo das superestruturas política, cultural e estatal.
Entretanto, não deixa de reconhecer a relevância da estrutura na sua elaboração teórica, existindo
relação dialética entre estes dois estágios que compõem o bloco histórico, com a superestrutura se
desenvolvendo dentro dos limites estruturais, influindo, assim, permanentemente a estrutura
sobre a superestrutura (PORTELLI, 1990, p. 55). Segundo CARNOY (2004, p. 107), para Marx o
empobrecimento econômico decorrente da maior exploração do trabalho é elemento chave para
formação da consciência do trabalhador, no sentido revolucionário. Para Gramsci, a exploração
do trabalho é um dos fatores que podem levar as classes subalternas até a tomada de consciência,
de modo que a ruptura, a luta ideológica contra a capacidade do Estado para manter a hegemonia
é o ponto nevrálgico da luta política.
17
A teoria do Estado e da política de Gramsci apresenta distinções
entre seu pensamento e as teses de Marx e Engels. Enquanto Marx e Engels foram
contemporâneos do Estado gendarme, materializado essencialmente nos aparelhos de repressão,
com os movimentos operários se constituindo a partir da ação revolucionária focalizada e
localizada, Gramsci viveu a época do capitalismo monopolista consolidado, dos grandes
sindicatos, da estruturação de partidos operários e de movimentos de massa dos trabalhadores na
democracia fundada no sufrágio universal, na ampliação da representatividade do parlamento
estatal. Vivenciou, ainda, o prelúdio, os fatos e as conseqüências da Revolução Russa.
Com a finalidade de desmistificação do Estado, Marx e Engels
concebem uma concepção negativa de Estado, encontrada em vários textos de autoria de ambos
(BOBBIO, 1997, p. 163), nos quais está a crítica ao modelo liberal de Estado, protetivo e
repressivo, característico da época, como produto das contradições inerentes ao próprio modo de
produção capitalista e da luta de classes que funda este (ENGELS, 1982, p. 191). Uma
demonstração da leitura marxista está na clássica frase “o Poder Executivo do Estado moderno
não passa de um comitê para gerenciar os assuntos comuns de toda a burguesia” (MARX e
ENGELS, 2004, p. 13). CARNOY (1998, p. 65) afirma que “Marx não desenvolveu uma única e
coerente teoria da política e ou do Estado” de modo que as concepções marxistas devem ser
deduzidas das críticas de Marx a Hegel, da teoria do desenvolvimento da sociedade e de suas
análises históricas. Entretanto, na obra 18 brumário de Luis Bonaparte, Marx aborda a questão do
Estado reconhecendo que em situações excepcionais, nas quais se verifica um maior equilíbrio de
classes, o Estado passa a ter certa autonomia, sem quebrar, entretanto, o modo de produção.
Trata-se, entretanto, para Marx, de um Estado transitório (CARNOY, 1998, p. 75).
O Estado representa interesses de classe, mesmo que seja posto
acima das classes, e seu principal meio de expressão é o poder coercitivo institucionalizado
(CARNOY, 1998, p.78). O escopo de Marx e Engels é revelar o caráter de dominação de classe
que é a essência do Estado, criado em função da propriedade privada e da divisão da sociedade
em classes, para frear os antagonismos da vida social e econômica, num processo no qual a classe
dominante afirma seu poder. Não se trata, portanto, somente da organização do poder bruto: é,
também, busca de equilíbrio jurídico, mesmo que este não seja permanente, sendo o Estado
aparentemente separado da sociedade civil (ENGELS, 1982). De qualquer modo, a partir da
leitura de Engels e de Marx, resta claro que ambos consideram o sistema jurídico como
18
componente do aparelho repressivo estatal, pois estabelece regras de comportamento com base
em valores e normas burguesas, positivando-os, sendo a democracia e a igualdade do liberalismo
apenas formais. As relações jurídicas e as formas de estado, entretanto,
Não podem ser compreendidas nem a partir de si mesmas, nem a partir do assim
chamado desenvolvimento geral do espírito humano, mas, pelo contrário, elas se
enraízam nas relações materiais de vida [...]. A totalidade dessas relações de produção
forma a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se levanta uma
superestrutura jurídica e política, e à qual correspondem forma sociais determinadas de
consciência (MARX, 1982, p.25).
As conclusões apreendidas da leitura de Marx e Engels estabelecem
o ponto de partida para a compreensão do Estado e da política, bem como do direito, em
Gramsci, para o qual o Estado opera a partir das forças econômicas, como parte da superestrutura
na qual se organiza e se desenvolve a produção econômica, ressalvando que “não se deve
concluir que os fatos de superestrutura devam ser abandonados a si mesmos, a seu
desenvolvimento espontâneo, a uma germinação casual e esporádica” (GRAMSCI, 2000c, p. 28).
Enquanto que em Marx e Engels a sociedade civil é caracterizada pelo conjunto das relações
sociais e econômicas de um período (estrutura), em Gramsci a sociedade civil é pertinente a um
momento da superestrutura, na qual se encontram os organismos privados de hegemonia do
grupo dominante sobre o resto da sociedade (PORTELLI, 1990, p. 20). Enquanto a unidade
constitutiva do marxismo, na economia, é o valor; na filosofia é a práxis (relação entre estrutura e
superestrutura vontade humana); e na política, a relação entre Estado e sociedade civil
(GRAMSCI, 2000a, p. 237). Dedica-se pouco à análise da base econômica diante dos fenômenos
sociais, relevando o aspecto econômico (estrutural) como um dos graus de formação da
hegemonia, posto que o desenvolvimento das forças sociais de produção determina as classes.
Para Gramsci, é impossível “fotografar” a estrutura, de modo que após o fim de uma fase
estrutural esta poderia ser estudada com mais rigor. Os elementos históricos constitutivos da
estrutura são buscados através dos fenômenos superestruturais, de modo que se busca na
superestrutura o estudo indireto da estrutura, reconhecendo, entretanto, que aquela é de algum
modo influenciada por esta (PORTELLI, 1990, p. 46).
19
Outro ponto de partida para a teorização gramsciana encontra-se em
Lênin, homem de teoria e de ação, sujeito da práxis, que, assim como Gramsci, realizou sua
atuação política com norte teórico e prático no marxismo. Gramsci fez o contato entre os
operários italianos e Lênin (GRUPPI, 1980, p. 71.), e a influência deste deixou marcas indeléveis
no pensamento gramsciano, que o considera o maior der da revolução bolchevique, o ponto de
convergência de um grande movimento revolucionário (MACCIOCCHI, 1980, p. 84). A crítica
ao sindicalismo corporativista e ao esquerdismo, a idéia de partido político, a concepção de
hegemonia e a necessidade de romper com a interpretação positivista do marxismo, são exemplos
da referência teórica e prática leninista. Estes são alguns dos aspectos que estabelecem possíveis
identidades entre Gramsci e nin, ainda que não se trate de uma identidade absoluta. Até 1926,
segundo COUTINHO (2003, p.88), Gramsci absorveu as teorias leninistas, realizando, no
período do cárcere, a superação dialética dessas idéias, desenvolvendo-as e conservando seu
núcleo, se constituindo não como alternativa ao leninismo, mas como sua evolução.
Para Lênin, a contraposição do modelo de Estado liberal-burguês
não cessa no reconhecimento da existência da luta de classes: é preciso defender a ditadura do
proletariado. Sendo o Estado aparato de ditadura, dominação de classe, o proletariado deve
realizar a ditadura da maioria sobre a minoria burguesa, dentro de um processo revolucionário e
de um processo de descentralização do poder estatal (GENRO; GENRO FILHO, 2003, p.124). É
importante compreender que para Lênin a democracia burguesa e liberal serve como disfarce para
uma ditadura de classe, a ditadura da burguesia detentora dos meios de produção. Assim, o esteio
econômico determina as distinções de classe que se reproduzem na vida social, de modo que a
igualdade existente no liberalismo, conforme havia identificado Marx, é mera igualdade formal.
A ditadura do proletariado se daria com base na consolidação de uma nova ordem política e
social, sob uma nova estrutura econômica. Na nova ordem, socialista, é possível afirmar que se
originaria um direito socialista, necessário para regrar a sociedade na transição rumo ao
comunismo.
Considera Lênin que a quebra do poder Estatal consolidado sobre a
burocracia, o exército e a polícia, deve ser realizada durante a revolução e a conseqüente ditadura
do proletariado. Entretanto algumas instituições do Estado burguês devem ser mantidas, por
questões estratégicas, para que passem a ser operadas pelo proletariado. Dentre estas instituições
encontra-se, por exemplo, o sistema bancário e financeiro, sem os quais o socialismo seria
20
irrealizável. É importante que as instituições do Estado burguês, dentro do processo
revolucionário, sejam democratizadas e administradas de outro modo, descaracterizando-se seus
aspectos burgueses. Percebe-se a relevância do papel do Estado na teoria e ação socialista
defendida por Lênin, a ponto de considerar que quanto mais desenvolvida for a democracia
burguesa, melhor para o proletariado, que é capaz de perceber neste modelo de democracia as
possibilidades de realização de suas aspirações enquanto classe que pretende se tornar
hegemônica. O próprio desenvolvimento da democracia pode levar ao questionamento das
relações de produção, sendo as relações entre democracia e socialismo importantes para o
desenvolvimento do próprio socialismo (GRUPPI, 1978, p.9, 62-63).
O reconhecimento do papel da democracia burguesa na luta política
socialista parte de uma premissa básica para a ação política revolucionária: a necessidade de
perceber a concretude histórica, escapando da leitura dogmática de Marx. Da análise e crítica da
dinâmica concreta da política, social e econômica, a partir da perspectiva dialética, resulta a
concepção de hegemonia, cuja conceituação é característica marcante na obra de Antonio
Gramsci, revelando o ponto de confluência entre este e Lênin (GRUPPI, 1978, p. 1, 13, 58).
Segundo MACCIOCCHI (1980, p.83) “Gramsci capta toda a dimensão do retorno ao marxismo
efetuado por Lênin sobre o problema do Estado”. Para o Gramsci do período do Ordine Nuovo,
hegemonia é direção ideológica e política do proletariado sobre o conjunto da sociedade, a classe
no poder, valendo-se da coerção para estabelecer a ditadura do proletariado (BUCI-
GLUCKSMANN, 1990, p. 234). Trata-se da própria concepção de hegemonia defendida por
Lênin, a qual Gramsci define como ditadura do proletariado (GRUPPI, 1978, p. 5-6). O Gramsci
do período do cárcere fascista contornos mais sofisticados para o conceito de hegemonia,
como veremos mais adiante no texto.
Finalmente, para encerrar alguns pontos de contato entre Gramsci e o
marxismo que o antecedeu, bem como a influência leninista, vale mencionar que, assim como
Lênin, Gramsci defende uma organização dos trabalhadores que seja capaz de superar os
corporativismos sindicais, em busca da conquista de pautas mais universais, pautas de interesse
comum das classes subalternas, as quais se apresentam como pressuposto para luta hegemônica.
Nesse sentido, defende o modelo de partido leninista, com funções universais, cuja construção é a
tarefa básica da revolução socialista, para superar o corporativismo e o sindicalismo operários.
Com a mediação do modelo de partido, o proletariado pode enfrentar diretamente as questões
21
atinentes ao poder e ao Estado, construindo uma atuação de alcance nacional, a partir de uma
pauta universalizante, capaz de abarcar as demandas das classes subalternas. Assim, é possível a
superação dos resíduos corporativistas, dos momentos egoístico-passionais do proletariado, para
construir uma vontade coletiva nacional-popular (COUTINHO, 2003, p. 167).
Eis uma demonstração, ainda que breve, das distinções e
semelhanças entre o pensamento gramsciano e as concepções de Marx, Engels e Lênin, acerca
das questões que permeiam a análise do Estado, da política e, conseqüentemente, do direito. Vale,
também, mencionar a crítica ao materialismo vulgar e ao dogmatismo marxista, presente em toda
a obra de Antonio Gramsci, que operou a sofisticação e a evolução dialética do pensamento
político de matriz marxista, especialmente na abordagem do problema do Estado. A
desmistificação do Estado burguês, a partir da filosofia da práxis, juntamente com a análise da
Revolução Russa, a partir da atuação de Lênin, possibilitam que Gramsci leve o debate marxista
sobre o Estado e a política para um outro patamar. Neste novo estágio de problematização e
análise do Estado está presente o marxismo não-estagnado, fortalecido em seu caráter histórico e
dialético, marco filosófico e político para Gramsci elaborar sua teoria política, a partir da análise
de importantes dados concretos, como o fracasso do movimento operário italiano (após o biennio
rosso), a ascensão do fascismo e a construção da União Soviética - especialmente a atuação
política de Lênin. Não obstante, cabe observar que para todos os pensadores marxistas até Stalin,
o socialismo seria viável com o mais alto grau de desenvolvimento das forças produtivas,
englobando a cultura, de modo que o marxismo não pretende, nem nunca pretendeu, ser teoria e
prática para sociedades atrasadas alcançarem, em um salto milagroso, o século XX
(EAGLETON, 1997, p.107). As ações que se realizaram ao longo da história com esse propósito
se converteram em ditaduras, como se percebe no Stalinismo e nos regimes “socialistas”
orientais.
1.2 A democracia socialista e os conselhos de brica
Antes de continuar a leitura, é necessário esclarecer que o resgate das
idéias de Gramsci sobre a política, desde o período sua juventude, serve para demonstrar como as
22
questões atinentes ao Estado estão presentes no seu pensamento desde a sua militância juvenil.
Ainda, para demonstrar o amadurecimento intelectual que culminou nos quaderni. Igualmente,
alguns aspectos da atuação política de Gramsci são importantes para compreender sua obra
teórica: se num primeiro momento foi um crítico forte do parlamento burguês, opondo-se à
atuação dos parlamentares socialistas, o próprio Gramsci, quando da sua prisão, é um deputado
eleito pelo PCI. Entretanto. Não se trata, entretanto, de um transformismo político ou de uma
cooptação de Gramsci pelo conservadorismo: as críticas ao parlamento e a democracia burguesa,
bem como à atuação dos quadros da esquerda italiana, permanecem em sua essência e perspectiva
socialista. As mudanças se deram no campo da tática e da atuação política, para as quais foi
marcante o aprendizado histórico a partir do fracasso dos conselhos de fábrica e a da ascensão do
fascismo na Itália. A atuação política se dentro das possibilidades reais, delimitadas pela
conjuntura existente, desvinculando-se da esterilidade teórica ou idealista, reconhecendo a
urgência das pautas que se apresentavam em um momento de grave crise política na Itália e no
resto da Europa.
Gramsci realizou a filosofia da práxis dentro das possibilidades
históricas que vivenciou, preferindo a atuação política à inércia dos maximalistas. Agiu de acordo
com a perspectiva política realista de Maquiavel, realismo que também está presente na atuação
política de Lênin, afastando-se das perspectivas idealistas e dogmáticas. Maquiavel está presente
na teoria e prática política gramsciana, principalmente na idéia de que a luta política se faz com o
homem de partido, com o político em ato, que se reconhece e atua como um criador que,
entretanto, não cria a partir do nada: deve considerar a realidade efetiva, concreta, (GRAMSCI,
2000c, p.35). Para Gramsci, O Príncipe, é um livro “vivo” no qual a ideologia e a política
fundem-se num mito, o do condottiero, ideal e real, da vontade política com determinado fim
(GRAMSCI, 2000c, p.13). A grande contribuição trazida pelo materialismo histórico para a
ciência política é a idéia de que não existe natureza humana abstrata, imutável, sendo, antes, um
produto das relações sociais e da história. Em Maquiavel, homem de ação que trata de homens de
ação, já se percebia a política desvinculada da religião e da moral (GRAMSCI, 2000c, p.56).
A abordagem das questões do Estado, em Gramsci, se em duas
perspectivas: como análise teórica e como problema estratégico (BUCI-GLUCKSMANN, 1990).
A teorização está permanentemente voltada para práxis, com o cuidado de enquadrar-se
rigorosamente na realidade histórica vivenciada, estabelecendo as bases para atuação política
23
adequada ao cenário para o qual se propõe o agir político. Ironicamente, a maturidade teórica de
Gramsci se justamente no período em que foi tolhido de sua liberdade e de sua atuação
política, o período do cárcere, de onde saiu para a morte. Não obstante, as questões acerca do
Estado estão presentes no período pré-cárcere, na atuação jornalística e política de sua juventude,
em suas reflexões sobre cultura, democracia, revolução e o papel dos conselhos de fábrica
(SIMIONATTO, 1995, p. 143).
A análise do papel dos socialistas diante das questões pertinentes ao
Estado é abordada desde o período do jornalismo socialista, especialmente na defesa do
desenvolvimento e da difusão da cultura socialista, um dos aspectos mais relevantes da obra de
Gramsci, para o qual a revolução é possível a partir da ruptura com a cultura capitalista. Saúda a
revolução bolchevique, por considerar que esta construiu as condições subjetivas para romper
com o capitalismo, ainda que, segundo a tradição marxista, não existissem as “condições
objetivas” para a revolução, considerando o atrasado capitalismo russo, resultante do atraso
político e social (COUTINHO, 2003, p.28, 29). No período do Ordine Nuovo, está presente a
crítica marxista ao Estado burguês, contra o qual se apresenta o Estado dos sovietes, de modo que
defende a revolução russa e a democracia operária, considerando-a viável a partir do exemplo
soviético. A atuação política em defesa da construção uma nova cultura tem como exemplo
concreto a revolução bolchevique, que se constitui como possibilidade histórica para o
surgimento de um novo tipo de sociedade. “Foi a Revolução Russa que emprestou todo o seu
sentido à ação de Gramsci, engajando-o no caminho que conduziria aos conselhos de fábrica”
(MACCIOCHI, 1980, p. 56). O realismo de Gramsci serve não para a defesa da Revolução
Russa, mas também para tratar da nova política econômica do Estado Soviético, a qual é
defendida por Gramsci ante a oposição fascista e trotskista (BUCI-GLUCKSMANN, 1990, p.
360).
A construção de uma sociedade socialista, de um novo modo de
produção, passa pela transformação cultural que, para Gramsci, pode ser viabilizada e
materializada nos conselhos de fábrica, os quais serviriam como base para um novo tipo de
Estado. Uma versão italiana dos sovietes, tomados como uma forma universalmente válida para o
estabelecimento da democracia operária. A partir dos conselhos, os operários seriam capazes de
penetrar na superestrutura, quebrar o vinculo forte entre burguesia e produção, a partir do
controle da base, pela atuação política dos produtores, ou seja, dos trabalhadores (BUCI-
24
GLUCKSMANN, 1990, p.158, 190). Considera-se a dupla função que está na essência dos
sovietes: realização da política revolucionária e a organização de uma economia construtiva. A
função política fundamental da rede de conselhos, moldados com base nos sovietes, está baseada
na idéia de ditadura do proletariado, na liberdade de ão da classe trabalhadora para
desenvolvimento de sua emancipação histórica, opondo-se as demais classes às quais era
subordinada a massa proletária (BORDIGA; GRAMSCI, 1981, p. 47, 48). Percebe-se que
Gramsci privilegia a análise do aspecto superestrutural da sociedade, ainda que não olvide da
relevância da base econômica, delimitadora que é das possibilidades materiais de ação. A
importância do Estado para a construção de uma nova organização social, política e econômica
reside na ação política da classe produtora, atuante na base econômica da sociedade, que se
estabelece como poder político e estatal, como ditadura do proletariado.
O desenvolvimento da consciência revolucionária no proletariado e o
desenvolvimento da cultura socialista necessários para a estruturação e organização do Estado
socialista, compõem o interesse e a motivação principal de uma série de artigos jornalísticos
escritos por Gramsci e seus companheiros de redação. Defendem que as consciências dos
trabalhadores e a organização destes deva se desenvolver dentro uma forma política que
possibilite o estabelecimento de um Estado socialista (BORDIGA; GRAMSCI, 1981, p. 34).
Dentre os artigos, destacamos um trecho do artigo denominado “democracia operária”, publicado
no Ordine Nuovo em 21 de junho de 1919:
O Estado socialista já existe potencialmente nas instituições de vida social,
características da classe trabalhadora explorada. Ligar estas instituições, coordená-las e
subordiná-las numa hierarquia de competências e de poderes, centralizá-las fortemente,
também se respeitando as necessárias autonomias e articulações, significa criar desde já
uma verdadeira democracia operária, em contraposição eficiente e ativa ao Estado
burguês, preparada desde agora a substituir o Estado burguês em todas as suas funções
essenciais de gestão e de domínio do patrimônio nacional. [...] “Todo o poder do Estado
aos Conselhos Operários e Camponeses” (BORDIGA; GRAMSCI, 1981, p. 34, 35)
.
Complementarmente, é importante mencionar que os conselhos de
fábrica, sendo as pedras fundamentais dos pretendidos sovietes italianos, serviriam como
instrumento para a superação do estágio do corporativismo sindical, que torna os sindicatos
incapazes de incorporar organicamente a ditadura do proletariado, pois se restringem as pautas
25
econômicas e corporativistas. Na medida em que cresciam quantitativamente, alcançando grande
parcela das massas de trabalhadores, perdiam em qualidade, acabando por se enquadrar nos
parâmetros do modo de produção capitalista (BORDIGA; GRAMSCI, 1981, p. 61,62).
Conforme COUTINHO (2003, p.32, 33), Gramsci, no período dos
conselhos de fábrica, não percebe que aspectos determinantes da sujeição da classe trabalhadora
não se limitam somente aos portões da fábrica. A complexidade das relações sociais e
econômicas é subestimada, o que o leva, conseqüentemente, a subestimar o sindicato e a função
do partido, como instrumentos de síntese política na sociedade civil. Após o fracasso da
experiência dos conselhos, Gramsci passa a teorizar e dar importância à construção do partido, a
partir de uma perspectiva crítica acerca dos porquês do fracasso. Faz jus ao caráter de filósofo
sustentado no materialismo dialético, na práxis, e no realismo que norteia suas análises, opondo-
se aos maximalistas e fundando o Partido Comunista Italiano, justamente no período em que o
fascismo é ascendente na Itália.
No espaço de tempo entre a fundação do PCI e a sua prisão, Gramsci
começa a elaborar importantes categorias teóricas que dão distinção para sua obra, enriquecida
por sua experiência política, concepções que serviram de base para os cadernos do cárcere.
Surgem neste período as idéias de hegemonia, de partido político, de guerra de posição, de
capitalismo ocidental e oriental, de intelectual orgânico, de revolução passiva e de hegemonia, as
quais serão abordadas neste artigo como elementos que compõem a origem e os pontos de
articulação da teoria do Estado ampliado e da teoria política gramsciana.
1.3 O conceito de hegemonia
Para a construção do conceito de hegemonia, a base teórica e
prática, especialmente no período que antecede o cárcere, é Lênin, com seus escritos pertinentes à
transição do capitalismo para o socialismo. Entretanto, se o conceito de hegemonia em Gramsci
no período o Ordine Nuovo tem como ponto de partida as idéias de Lênin, podemos verificar a
diferença entre a hegemonia gramsciana diante daquela concebida por Lênin: para este, trata-se
de aspecto puramente político, sendo essencial a derrubada do aparelho estatal pela violência. O
26
conceito de hegemonia no período de atuação política a jornalística de Gramsci se aproxima
muito da idéia de ditadura do proletariado de Lênin. Compreende hegemonia como a direção de
classe autônoma e independente, sendo o papel do partido determinante para conquista e
manutenção da autonomia e da independência necessárias para a luta política. A direção de
classe, obtida por alianças políticas de médio e longo prazo, viabilizam a união entre teoria e
prática que deve nortear a busca pela hegemonia.
Não obstante, a noção de hegemonia antecede as elaborações
teóricas de Lênin e de Gramsci. Estava a hegemonia presente nos lemas do movimento da social
democracia russa entre o final do século XIX e a Revolução Russa. Plekhanov, no programa de
fundação do Grupo Libertação do Trabalho manifestou que a burguesia russa era frágil para
combater o absolutismo do Czar, devendo a classe operária assumir a condução de uma revolução
democrático-burguesa. Ainda no final do século XIX, Axelrod, companheiro político de
Plekhanov, manifestou a importância central, hegemônica, do proletariado na luta democrática,
na revolução contra o absolutismo. Tanto Plekhanov quanto Axelrod defendiam, segundo Perry
Anderson, a que a luta do proletariado deveria ter alcance nacional, abarcando a luta das classes
oprimidas politicamente (ANDERSON, 2002, p. 26-28).
Em Gramsci, a hegemonia se estabelece como a qualificação da
ditadura do proletariado, garantindo o caráter expansivo para a atuação política das classes
subalternas, possibilitando a direção intelectual e cultural da sociedade. Deve, portanto, ter base
social de massa, no proletariado que não se detenha as pautas corporativistas, ao corporativista
combatido por Lênin, para ser política da classe dominante e dirigente, a qual deve evitar o
burocratismo. É, a hegemonia, produto de idéias essencialmente contrapostas ao economicismo, o
qual se identifica com o corporativismo, com a estreiteza de horizontes na luta política (BUCI-
GLUCKSMANN, 1990, p. 227, 233, 237). O sindicalismo é um dos aspectos do liberismo, de
modo que a superação do sindicalismo é o primeiro passo para a hegemonia. Para ser
hegemônica, uma classe deve considerar as classes sobre as quais se exerce a hegemonia, para
que exista equilíbrio e sobreviva o consenso. no cárcere, Gramsci afirma ser o liberismo, o
sindicalismo, um problema para a esquerda italiana, um obstáculo para a luta hegemônica, assim
como é entrave o abstencionismo eleitoral. Em tal afirmação remete-se à Engels, para o qual a
economia não explica tudo, e destaque a ideologia (GRAMSCI, 2000c, p. 48). ANDERSON
(2002, p. 31), expressa a ampliação do corporativismo, do seguinte modo:
27
Ao longo dos Cadernos do cárcere, o termo “hegemonia” aparece em uma variedade de
conceitos diferentes (...). A primeira vez, com efeito, que esse termo aparece nos seus
escritos, ele faz referência à “aliança de classe do proletariado” com outros grupos
explorados, sobretudo o campesinato na luta comum contra a opressão do capital.
Refletindo a experiência da NEP, ele atribui uma grande importância ao fato de que era
necessário ao proletariado fazer “concessões” e “sacrifícios” a seus aliados para ganhar
a hegemonia sobre eles, ampliando a noção de “corporativismo”, de um mero
confinamento em horizontes corporativos, para qualquer forma de isolamento obreirista
em relação às outras massas exploradas.
O conceito de hegemonia se desenvolve alcançando a idéia de que
deva existir primazia da sociedade civil sobre a política, com o ponto referencial, o campo de
atuação hegemônica, situado na sociedade civil, considerando a abrangência das questões
culturais e ideológicas que a caracterizam (PORTELLI, 1990, p. 65). O destaque dado para a
sociedade civil na perspectiva gramsciana, determinante para sua concepção de hegemonia, se
caracteriza um avanço para além de Marx e Engels. Das conclusões de Marx e Engels, Gramsci
acrescentou o conceito de hegemonia, ressalvando o entendimento de que a força e a lógica de
produção capitalista não bastam por si mesmas para explicar o consenso na sociedade capitalista.
Por isso a atuação dos aparelhos de hegemonia são determinantes para a construção e
manutenção do consenso na sociedade (CARNOY, 1998, p. 95). Para as elaborações teóricas
sobre hegemonia, além do referencial teórico marxista, tem importância as experiências políticas
vivenciadas pelos socialistas italianos, os quais pretendiam, através dos conselhos de fábrica,
favorecer a aproximação dos operários e dos camponeses, intento não realizado com sucesso
(MACCIOCCHI, 1980, p. 100). Gramsci, no período dos quaderni, distingue hegemonia de
ditadura do proletariado, sendo hegemonia a direção e a dominação da sociedade, controle da
controle da sociedade civil e do aparato estatal, resultante das alianças entre classes subalternas e
proletariado. Hegemonia, em Gramsci, tem por objetivo justamente sublinhar a importância da
direção cultural e ideológica, a qual, sendo ética e política, não pode deixar de ser econômica.
Quanto maior a base da hegemonia, mais importante é o papel da classe operária no sistema
hegemônico (PORTELLI, 1990, p. 62-64).
Para Gramsci a luta por hegemonia se primeiro no campo da
ética, depois na política e finalmente na concepção do real, assegurando, a própria luta pela
hegemonia, a perspectiva crítica de si mesmo. A consciência de fazer parte de uma força
hegemônica e política é o primeiro passo para autoconsciência, na qual teoria e prática se
28
unificam. Eis o impacto filosófico do conceito de hegemonia: unidade intelectual a uma ética
adequada à concepção do real que superou o senso comum, e tornou-se crítica. O
desenvolvimento do conceito de hegemonia é um progresso filosófico e prático-político
(GRAMSCI, 2000a, p. 104-105). A hegemonia é constituída a partir de um conceito
essencialmente relacional, prático e dinâmico, caracterizando-se como um avanço notável diante
de ideologias mais escolásticas encontradas nas correntes mais vulgares do marxismo
(EAGLETON, 1997, p. 107). Percebe Gramsci que não basta o controle dos meios de produção
para a transição rumo ao socialismo: é necessário também assumir a direção política e cultural
das forças sociais. Eis a relevância e o valor filosófico da hegemonia gramsciana, que constitui
uma forte conexão entre a teoria e a prática, um instrumental relevante para a construção de uma
nova sociedade, na estrutura e na superestrutura, realizar uma reforma intelectual (GRUPPI,
1978, p. 2).
Quando se trata de hegemonia, se trata da direção político-cultural,
intelectual e moral do conjunto das forças sociais. “Um sistema social só é integrado quando se
edifica um sistema hegemônico, dirigido por uma classe fundamental que confia a gestão aos
intelectuais: realiza-se um bloco histórico” (PORTELLI, 1990, p. 16). Ter hegemonia é ter
“capacidade de unificar através da ideologia e de conservar unido um bloco social que não é
homogêneo”, ser capaz de manter articulado um grupo de forças heterogêneas, estabelecendo um
consenso, de modo que evite a recusa da ideologia dominante (GRUPPI, 1978, p. 70). É possível
destacar pelo menos dois significados da hegemonia em Gramsci. Pode ser abordada como um
processo no qual a classe dominante exerce o controle da sociedade civil, através da liderança
moral e intelectual, caracterizando um processo transformativo e pedagógico. O segundo
significado é pertinente à relação entre classes dominantes e classes dominadas, a imposição da
visão de mundo da classe dominante para estabelecimento do consenso, que, entretanto, não é
estático. “A hegemonia não é uma força coesiva. Ela é plena de contradições e sujeita ao
conflito” (CARNOY, 1998, p. 95).
Gramsci conclui, assim como Plekhanov, Axelrod e Lênin, que,
para que uma classe possa ser hegemônica, esta deve ser uma classe nacional. Para ser
dominante, a classe deve ser dirigente, ou seja, deve ser capaz de estabelecer e sustentar o
consenso da maioria dos trabalhadores. A classe dirigente, mesmo detendo a hegemonia, não
dirige todas as classes, toda a sociedade, mas somente as classes auxiliares, as quais servem de
29
base social e de força diante as demais classes. A hegemonia jamais é total, totalizante: é a
possibilidade de um grupo pode ser ao mesmo tempo dirigente e dominante (PORTELLI, 1990,
p.69). A classe dominante quando perde o consenso é unicamente dominante, não dirigente
(GRAMSCI, 2000c, p. 184). Desse modo, o proletariado, não deve valer-se apenas da coerção
para estabelecer seu poder político: deve buscar o consenso das massas trabalhadoras, sendo que
a conquista da hegemonia deve preceder a conquista do poder (COUTINHO, 2003, p.68-70). A
conquista da hegemonia deve ser um processo que expresse os interesses, as reivindicações e a
função das classes subalternas (GRUPPI, 1978, p.72).
A síntese de BUCI-GLUCKSMANN (1990, p. 85-87) é pertinente:
o conceito de hegemonia abarca as estruturas do Estado, de modo que uma classe deve tornar-se
dirigente de seus aliados, antes de ser tornar dominante diante das classes antagônicas. A classe
que pretenda ser hegemônica deve, entretanto, atender às seguintes condições: econômicas (ser
capaz de promover a passagem de um modo de produção para outro); políticas (deve ser classe
nacional não corporativista); e culturais (capacidade expansiva de uma classe hegemônica não se
limita à direção política, ou seja, deve alcançar uma concepção de vida, um programa escolar,
voltados para uma reforma intelectual e moral). O monopólio intelectual, a atração sobre os
intelectuais de outros grupos sociais é aspecto relevante dentro do conceito de hegemonia de
Gramsci, formando um bloco ideológico. A hegemonia se estabelece em bases consensuais, de
modo que a massa apolítica favorece o uso da força, enquanto a massa politizada e organizada
favorece o consenso, para garantia do Estado legal. A opinião pública é ligada à hegemonia
política, sendo o ponto de contato entre a sociedade civil e a sociedade política, entre consenso e
força. A opinião blica de hoje é produto das revoluções burguesas, é o conteúdo político das
vontades políticas públicas, motivo pelo qual se verifica a luta pelos meios de comunicação
(GRAMSCI, 2000c, p. 265).
Contrapondo o economicismo vulgar característico da leitura
reducionista do marxismo, Gramsci afirma, a partir da conceituação de hegemonia, que não basta
a primazia econômica para consolidação da hegemonia: é necessário divulgar uma nova
concepção de vida (PORTELLI, 1990, p. 65-66) para que seja possível a transformação cultural
que servirá de base para o consenso sobre o qual se assenta uma nova concepção de mundo. A
cultura é o meio para a estruturação política de uma classe, campo para estabelecer hegemonia. É
através da cultura que se torna possível a tomada de consciência sobre os problemas e as
30
situações vivenciados pelos diversos sujeitos sociais. Gramsci afirma e estabelece suas teses a
partir da idéia de que a luta das classes subalternas não se apenas no campo econômico, a
condição de classe intelectualmente subalterna deve ser revertida (SIMIONATTO, 2004, p.29). A
hegemonia é viável a partir de uma atuação pedagógica sobre e para as massas subalternas. Se
por um lado a educação das massas, dentro de um sistema hegemônico, serve para a conformação
dos subalternos aos padrões culturais e políticos das classes hegemônicas, por outro, a educação
das massas é fundamental para que uma nova classe venha a ser hegemônica. Tal concepção
deriva da representatividade que tem a cultura, a transformação ou evolução cultural para uma
nova sociedade, não capitalista, no pensamento político de Gramsci. Da hegemonia origina-se a
formação de um bloco ideológico, representativo de uma necessária concepção de vida, de
dignidade intelectual, e, especialmente, um programa escolar. (PORTELLI, 1990, p. 66).
1.4 Hegemonia e revolução passiva
O estudo crítico sobre a unificação política da Itália, o
rissorgimento, e as distinções econômicas entre norte e sul, a “questão meridional”, se
apresentam como o sustentáculo histórico para o desenvolvimento do que é hegemonia no
pensamento gramsciano. O conceito de hegemonia ganha maior destaque a partir do ensaio sobre
temas meridionais (SIMIONATTO, 2004, p. 38), incorporando ao aspecto político estratégico o
conceito de aparelho hegemônico (BUCI-GLUCKSMANN, 1990, p. 69). No conceito
gramsciano de hegemonia percebe-se como a estratégia de atuação política se torna teoria
destinada à compreensão do Estado, e como a teoria realimenta a estratégia de luta, garantindo a
riqueza dialética, o distanciamento do bizantinismo. A relação teoria estratégia é dinâmica e
rica, sempre presente na perspectiva da política real de Gramsci, especialmente em suas
anotações sobre Maquiavel. Na análise realista e dialética de Gramsci não cabem os modelos de
atuação prontos e acabados, para os quais “a vontade real se transforma em um ato de fé, numa
certa racionalidade histórica, numa forma empírica e primitiva de finalismo apaixonado”, que
resulta na falta de iniciativa de luta e se transforma em uma religião dos subalternos (GRAMSCI,
2000a, p. 106, 107). A riqueza da filosofia da práxis e a completude desta repousam na
concepção de materialismo dialético, na idéia de que “tudo é política, inclusive a filosofia ou as
31
filosofias, e a única filosofia é a história em ato, ou seja, a própria vida” (GRAMSCI, 2000a, p.
246).
Nos escritos sobre “a questão meridional” são abordadas as
diferenças econômicas e sociais numa sociedade que mantém resquícios quase feudais no sul da
Itália, terra dos latifúndios meridionais, no qual três níveis sociais constituem o bloco agrário do
mezzogiorno, composto pela massa amorfa de camponeses desorganizados de um lado, e de outro
a pequena e média burguesia e os grandes proprietários de terra (PORTELLI, 1990, p. 99). O
atraso no sul é condição para o desenvolvimento do capitalismo do norte, de modo que, para o
rompimento desse bloco, no contexto de fragilidade do capitalismo italiano, a reforma agrária se
fazia necessária. Percebe-se a composição de um bloco histórico constituído pelos industriais do
norte e os proprietários de terra do sul. Bloco histórico é, portanto, o espaço da realização da
hegemonia. Os conceitos de bloco histórico e de hegemonia são aplicados concretamente nas
análises da questão meridional e do risorgimento (MACCIOCCHI, 1980, p. 148, 149).
O Risorgimento define a forma do Estado e da sociedade Italiana a
partir do século XIX, quando a burguesia liberal moderada juntou-se ao latifúndio e, sob a
monarquia piemontesa, realizou algumas reformas na economia italiana, sem ruptura com os
resquícios do bloco histórico pré-capitalista. Não ocorreu a ruptura revolucionária, a composição
de uma nova classe hegemônica. Verifica-se uma revolução passiva, a realização de reformas
sociais feitas sem a participação de um novo bloco no poder, sem a participação popular. A
vanguarda que deveria ser revolucionária foi cooptada por setores reformistas, que estabelecendo
o consenso realizaram um processo de modernização conservadora, com o desenvolvimento das
forças produtivas e a manutenção das relações sociais atrasadas. Assim, temos a diferença entre o
sul quase feudal e o norte industrial, constituindo um bloco agrário-industrial cuja ruptura
somente se dará, segundo Gramsci, a partir da união do camponês e do proletariado, como uma
classe nacional, capaz de estabelecer uma nova hegemonia (COUTINHO, 2003, p. 67-69).
Na Itália não se formou uma força jacobina que fundasse um Estado
moderno, sendo determinante o caráter dos intelectuais orgânicos que permeavam a sociedade
italiana, os quais possuíam um caráter cosmopolita, operando a serviço dos conservadores
proprietários de terra. A transformação jacobina deveria incluir na ação a massa camponesa, a
milícia de Maquiavel (GRAMSCI, 2000c, p. 18). Ainda, afirma que na Itália nunca houve
32
reforma intelectual que envolvesse as massas: as classes mais altas participam das mudanças,
como, por exemplo, no renascimento (GRAMSCI, 2000a, p. 233). O risorgimento não é produto
da inviabilidade da aliança entre camponeses e operários no período, mas sim da importância que
teria, e que não assumiu, a burguesia italiana em opor-se a oligarquia e a influência externa na
consolidação do Estado nacional. Ou seja, deveria ter sido a burguesia italiana hegemônica, a
partir da atuação política da burguesia urbana (PORTELLI, 1990, p. 77). A fraqueza orgânica da
história italiana, deriva da consolidação do Estado a partir de uma revolução passiva, que teve seu
esteio sobre bases atrasadas, com os moderados dirigindo o processo de formação histórica da
Itália contemporânea. O Intervencionismo do Estado na economia italiana introduziu elementos
para planificação da economia, que no máximo visou a limitação do lucro e da propriedade, para
garantir e promover o desenvolvimento industrial sob a direção das classes dirigentes tradicionais
(BUCI-GLUCKSMANN, 1990, p. 396-397)
A “revolução sem revolução”, a revolução passiva, é oposta ao
modelo revolucionário jacobino percebido na França, e define a formação histórica, econômica,
filosófica e social do povo e das instituições italianas. Tais dados históricos comprovam para
Gramsci a relevância da hegemonia para uma classe, a qual, sendo hegemônica, seria capaz de
realizar a direção intelectual e moral da sociedade para ser, efetivamente, revolucionária. Tal
direção não foi conseguida no risorgimento por conta da incapacidade do partido da ação, um
partido da pequena burguesia urbana, que não incluiu em sua base social as massas camponesas,
ou seja, não ampliou sua base de ação, não sendo dirigente de uma aliança de classes. Assim, não
obteve hegemonia, se consolidando a revolução passiva que caracteriza o risorgimento, com a
forte atuação do partido moderado, que constituía a classe dirigente, enquanto os burgueses
formavam a classe dominante, que, entretanto, não conseguiu atrair as demais classes para as
mudanças democráticas. Os intelectuais das classes que deveriam ser opositoras, revolucionárias,
uniram-se aos intelectuais da classe dominante; a burguesia que deveria capitanear uma
revolução na Itália preferiu um acerto com a aristocracia, escapando do apoio das camadas
populares para contrapor a aristocracia. A burguesia italiana recusou a função de dirigente,
optando por uma dominação descompromissada com as camadas sociais subalternas realizando
um transformismo político (PORTELLI, 1990, p. 64-71). A carência de hegemonia econômica da
burguesia italiana contribuiu de forma importante para a revolução passiva, para o
transformismo, para a revolução sem revolução (BUCI-GLUCKSMANN, 1990, p. 78-79).
33
A revolução passiva também é pertinente para a compreensão de
movimentos políticos totalitários, como o fascismo na Itália, caracterizado pela rejeição de novas
formas de autonomia (partidos, sindicatos e associações culturais) incorporando-as ao Estado,
totalitário e policial. A partir da concepção de revolução passiva, o fascismo pode ser entendido
como uma reorganização das relações entre sociedade civil e Estado, que tem como gérmen a
crise do Estado liberal. No fascismo ocorre a identidade entre partido e Estado, cabendo a
estrutura partidária funcionar como agente da não-revolução, assumindo a função de unificação
da sociedade. O partido fascista, burocrático e policial, é o divulgador de uma ideologia
moralizante serve como política indireta, numa atuação que considera as massas como simples
massas de manobra. No fascismo verifica-se, portanto, uma revolução sem revolução, uma
revolução-restauração, um processo revolucionário sem hegemonia e sem iniciativa popular
unitária, traduzido no conservadorismo liberal e no transformismo político. A revolução
restauração fascista nasce de um desequilíbrio catastrófico de forças, enquanto o movimento
operário se encontrava na defensiva, num momento de revolução ou reação. Cabe uma
ressalva: enquanto a forma de revolução passiva definida por Gramsci se baseia na cooptação da
direção das classes antagônicas, o fascismo decapita as oposições políticas, pela força e pela
repressão (BUCI-GLUCKSMANN, 1990, p. 371-392, 404).
1.5 Hegemonia, ocidente e luta política
O estudo da superestrutura, numa conjuntura na qual se consolida a
democracia a partir do sufrágio universal, e das organizações políticas de massa, resulta em
implicações importantes para a estratégia e ação política socialista, que levam a conclusão de que
o estremecimento do Estado nos países de capitalismo industrial, ou seja, de tipo ocidental, é
absorvido por uma lida estrutura da sociedade civil, considerando a coesão cultural obtida pelo
capitalismo (GRUPPI, 1980, p.79). A revolução permanente na sociedade civil fluida é
substituída pela hegemonia civil dentro do capitalismo concorrencial. Assim, ocorre na política o
que ocorre na guerra: a guerra de movimento se transforma em guerra de posição. A estrutura das
democracias modernas (como organizações estatais e associações civis) são as trincheiras da
frente de combate da guerra de posição. Faz com que o elemento movimento, que antes constituía
34
toda a guerra, seja apenas parcial. Tais aspectos são pertinentes, especialmente, aos países de
capitalismo de tipo ocidental (GRAMSCI, 2000c, p. 24). Contemporâneo a stalinização da
internacional comunista, com a referência paradigmática da URSS entre grande parte dos
comunistas, Gramsci foi o único entre os comunistas que vivenciaram as derrotas da cada de
vinte e trinta do século passado, a defender a idéia de que o modelo de revolução soviética não
poderia simplesmente ser aplicado no ocidente. Mais prudente, teorizou sobre os porquês de tal
impossibilidade, motivo que fundou o caráter de único pensador marxista a estabelecer uma
teoria sobre a revolução socialista no mundo ocidental (ANDERSON, 2002, p. 68).
A fluidez, caracterizada pela sociedade civil gelatinosa, onde o
Estado, a sociedade política, é “tudo”, centralizador político e cultural, é substituído pela
democracia moderna. O fracasso da revolução no ocidente é produto da desconsideração das
distinções entre o oriente, palco da revolução russa, onde a sociedade civil é fragilizada, e o
Estado, baseado na coerção, é quase absoluto, e o ocidente, local da democracia moderna e do
capitalismo concorrencial. No ocidente travam-se batalhas na sociedade civil para conquista de
espaço, da direção político-ideológica e do consenso. Ressalte-se que a separação
ocidente/oriente é histórica, não geográfica (COUTINHO, 2003, 148-149). As diferenças entre
as duas realidades, oriental e ocidental podem ser sintetizadas da seguinte maneira: no oriente a
sociedade civil é gelatinosa, débil, sendo o Estado preponderante, de modo que a luta política
deve ser realizada através de um ataque direto contra o Estado, nos moldes bolcheviques,
deflagrando-se uma luta em ritmo mais acelerado. No ocidente a sociedade civil é mais
desenvolvida, mais sólida, o Estado é mais equilibrado, sem preponderância, devendo a luta
política, em função das características da sociedade civil e do Estado, ser realizada através da
guerra de movimento, mais demorada ao longo da história (ANDERSON, 2002, p. 21).
A sociedade civil, nos estados mais avançados, torna-se uma
estrutura muito complexa e resistente às alterações catastróficas da economia, momentos nos
quais as superestruturas da sociedade civil têm a função dos sistemas de trincheiras na guerra
moderna. Nas crises econômicas e políticas, tanto como nos bombardeios, nem os atacantes
subitamente assumem o espírito agressivo para luta, nem os defensores estão destruídos
(GRAMSCI, 2000c, p. 73). No ocidente, ou seja, nas democracias modernas, dos partidos de
massas, dos sindicatos e dos grandes meios de comunicação, encontra-se maior equilíbrio entre a
sociedade civil e o Estado, “a estrutura das democracias modernas”, realidade na qual o Estado
35
apresenta-se como uma trincheira mais avançada da sociedade civil (ANDERSON, 2002, p. 21).
Tal equilíbrio, concreto, verificável nos países de tipo ocidental, contraria as teses economicistas
pelas quais se defende a idéia de que um abalo na base econômica implicaria em transformações
e rupturas do Estado. Para a contraposição das trincheiras e fortificações das classes dominantes
na sociedade civil é necessário o espírito de cisão, a conquista progressiva da consciência da
própria personalidade histórica, tendente a se ampliar da classe protagonista às classes aliadas
potenciais. Tudo isso se com trabalho ideológico, que deve ser precedido pelo conhecimento
“do campo a ser esvaziado de seu elemento de massa humana” (GRAMSCI, 2000a, p. 79).
Se não basta a luta pelo controle dos meios de produção, é
necessário assumir a hegemonia, a direção político-cultural do conjunto das forças sociais, a
partir de uma guerra de posição. No Estado característico do capitalismo ocidental, antes de ter o
controle do aparato Estatal, se faz necessário obter a hegemonia na sociedade civil (PORTELLI,
1990, p.38). Isso, porque nos países de capitalismo e de democracia mais desenvolvidos a luta
política é muito mais complexa do que a guerra militar, e se de três formas: movimento; de
posição, e subterrânea. Entretanto o modo de luta política mais adequado no “ocidente” é o
característico da guerra da posição, mais lenta, gradual, a conquista progressiva dentro de uma
classe e das classes aliadas da consciência de sujeitos históricos (GRAMSCI, 2000c, p. 124).
A guerra de posição, adequada para o mundo ocidental, caracteriza-
se pela primazia da luta ideológica voltada para a conquista da hegemonia. Contrapõe-se ao
modelo de guerra de movimento, de revolução permanente, defendida pelo trotskismo,
caracterizado como desvio economicista, criticado por Gramsci, o qual, numa crítica ao
espontaneísmo e à revolução permanente, elabora a idéia da guerra de movimento (BUCI-
GLUCKSMANN, 1990, p. 310). A guerra de posição é adequada à sociedade moderna, na qual a
luta direta contra o Estado ou a ocupação de fábricas, idéia característica da época dos conselhos
de fábrica, não são suficientes. A cultura deve ser contestada em todos os campos possíveis,
considerando que o poder da classe dominante é “espiritual assim como material, qualquer
contra-hegemonia deve levar sua campanha política até esse domínio, até agora negligenciado, de
valores e costumes, hábitos discursivos e práticas rituais” (EAGLETON, 1997, p. 96).
No contexto ocidental, um abalo do Estado demonstra que este é
apenas uma trincheira avançada da ordem econômica, existindo uma estrutura equilibrada que
36
desautoriza a superestimação de qualquer crise econômica do capitalismo. As crises
revolucionárias no ocidente são mais complexas, não ficam apenas no campo econômico,
englobando vários níveis, capazes de se desenvolverem em períodos mais ou menos longos.
Desse modo, não impõem soluções rápidas, através de um ataque direto ao Estado (COUTINHO,
2003, p. 151). A estratégia revolucionária passa a ser uma longa guerra de trincheiras, com
imobilidade entre dois campos fixos, na qual um lado procura minar culturalmente e
politicamente o adversário, existindo um cerco recíproco, sendo importante o cálculo, a paciência
e a criatividade na atuação política e ideológica. A ênfase é a conquista ideológica das massas,
sem espaços para aventuras revolucionárias mais fugazes. No período da guerra de posição o
partido revolucionário busca ganhar as massas pela ideologia para estabelecer um consenso sobre
bases socialistas, capaz, se necessário, de servir de aporte para um ataque ao Estado-coerção
(ANDERSON, 2002, p. 87-88).
No exercício da hegemonia, a classe fundamental, hegemônica
dirige a sociedade pelo consenso, resultante do controle da sociedade civil, com a difusão de sua
concepção de mundo junto aos demais grupos sociais. Através dos aparelhos de hegemonia,
dentre os quais está a opinião pública, incorpora-se a ideologia da classe hegemônica ao senso
comum, sendo o papel da sociedade política amparar e auxiliar tal consenso, garantir o consenso
pela coerção ou pela ameaça de coerção (PORTELLI, 1990, p.67-68). Dentro da teoria
gramsciana, que abrange instituições, ideologias, práticas e agentes, importante papel tem os
aparelhos de hegemonia, os quais podem ser definidos como instituições, pretensamente
privadas, e espaços que têm a função de servir como meios para repercussão ou criação de
ideologias voltadas para a manutenção ou construção da hegemonia na sociedade. Dentro da
concepção ampliada de Estado elaborada por Gramsci, os aparelhos de hegemonia são
organizações pretensamente privadas, destinadas ao exercício de hegemonia de uma classe, como
as igrejas, os sindicatos, os jornais e as escolas, por exemplo.
Os aparelhos privados de hegemonia possuem duas dimensões:
política e jurídica. O Estado é constituído pelos aparelhos privados de hegemonia mais o aparelho
governamental do Estado, conforme a teoria ampliada de Estado. Os aparelhos privados de
hegemonia são de produção e de natureza cultural e ideológica. Assim, o exercício da hegemonia
deve relevar os interesses dos “hegemonizados”, para garantia do equilíbrio social. Entretanto,
cabe afirmar que se a hegemonia é ética e política, ela não pode deixar de ser econômica (BUCI-
37
GLUCKSMANN, 1990, p. 36, 99). As instituições não são, portanto, voltadas exclusivamente
para as atribuições administrativas, burocráticas e tecnológicas: são permeadas por conteúdo
político, que serve para que a classe dominante seja expansiva, capaz de reproduzir o seu controle
sobre o conjunto da sociedade (CARNOY, 2004, p.96).
Segundo o inglês Terry EAGLETON (1997, p. 106)
Com certas incoerências notáveis, Gramsci associa a hegemonia à arena da sociedade
civil, com o que pretende designar todo o espectro de instituições intermediárias entre o
Estado e a economia. Estações de televisão privadas, a família, o escotismo, a Igreja
metodista, escolas, a Legião Britânica, o jornal Sun: todos eles seriam dispositivos
hegemônicos que submetem os indivíduos ao poder dominante antes pelo
consentimento do que pela coerção. A coerção, em contraste, é reservada ao Estado,
que tem o monopólio da violência “legítima”. (Devemos notar, porém, que as
instituições coercitivas de uma sociedade exército, tribunais de justiça e o resto
devem elas mesmas conquistar o consentimento do povo para operar com eficiência, de
modo que a oposição entre coerção e consentimento possa, até certo ponto, ser
desconstruída).
A necessidade de tornar-se classe nacional, capaz de alcançar as
classes subalternas, é fundamental para a luta hegemônica. Tal intento, entretanto, não foi
realizado a partir da experiência dos conselhos, incapazes de agregar os camponeses às pautas
dos operários, inviabilizando o processo de conquista e de consolidação da classe operária como
classe hegemônica, capaz de realizar a reforma intelectual e moral, o sentido mais profundo de
hegemonia (GRUPPI, 1978, p. 72). A luta política consciente deve ser previamente projetada,
não sendo produto de espontaneísmos, para se fazer compreender diante das massas e para poder
produzir maiores e melhores efeitos dentro das crises de hegemonia das classes dominantes.
Deve ser capaz de romper os entraves da política tradicional para modificar a direção política de
determinada força social, com vistas a estabelecer um novo bloco histórico, homogêneo
(GRAMSCI, 2000c, p.70). A tarefa de realizar a consolidação da classe trabalhadora na Itália
cabe ao partido político, que é definido, numa referência à Maquiavel, como o moderno príncipe,
fundamental para a concretização de uma vontade coletiva, sendo o gérmen e o catalizador da
vontade coletiva universal e total. Enquanto o príncipe de Maquiavel deveria “conduzir um povo
à formação do novo Estado” (GRAMSCI, 2000, p.14), o moderno príncipe
deve e não pode deixar de ser o anunciador e o organizador de uma reforma intelectual e
moral, o que significa, de resto, criar o terreno para um novo desenvolvimento da vontade
38
coletiva nacional-popular no sentido da realização de uma forma superior e total de
civilização moderna (GRAMSCI, 2000, p. 18).
O caráter orgânico do partido gramsciano favorece a organização
das massas. O partido político deve ser capaz, portanto, de conduzir a reforma intelectual, moral e
ideológica em nossa sociedade, coordenando e sendo a expressão atuante da vontade coletiva,
exercendo funções organizacionais e pedagógicas (GRAMSCI, 2000c, p.16-18). O partido é
“concebido, organizado e dirigido de modo e forma capaz de se desenvolver integralmente em
um Estado e numa concepção de mundo”. O desenvolvimento do partido reage sobre ele próprio
e exige aperfeiçoamento e reorganização contínua. (GRAMSCI, 2000c, p. 345).
Gramsci entende que o partido não é um organismo corporativo, mas, sim, um
organismo universal, pois a possibilidade de tornar-se classe hegemônica condiciona-se
na capacidade da classe operária elaborar, de modo homogêneo e sistemático, uma
vontade coletiva nacional-popular, construindo um novo bloco histórico e assumindo o
papel de classe dirigente. A construção dessa vontade coletiva é papel prioritário do
partido político ou, segundo Gramsci, do moderno príncipe (MEZZAROBA, 1995, p.
23).
A perspectiva crítica diante do mundo é o ponto de partida para luta
pela hegemonia, que não é apenas política: é cultural, ideológica e moral. O unificador de teoria
e prática é o partido, criado para educar e politizar a espontaneidade das massas. Remetendo à
Maquiavel, Gruppi aponta a autonomia da política, que não se funda na moral tradicional, tem
leis próprias, funda uma moral imanente, cujo fim não é a salvação das almas dos indivíduos,
mas o agir em prol da coletividade. Para Maquiavel a violência e o engano são recursos passíveis
de serem utilizados contra a aristocracia, mas não contra o povo. O príncipe gramsciano, o
partido político, é sujeito coletivo unificador, o reformador intelectual e moral, realizador da luta
ideológica rumo a uma cultura que está além dos limites do capitalismo e da democracia
meramente formal. O partido tem um projeto universal, age dentro da realidade nacional
abrangendo todas as instâncias da vida social. (GRUPPI, 1978, p. 72-73). Assim, é capaz de
realizar a superação dos corporativismos, combatido por Gramsci desde os tempos dos
conselhos.
39
O partido se estrutura sobre três níveis de intelectuais orgânicos: o
homem médio; o estrato coesivo, que compõem a direção (nível mais importante para um partido
de massa, sendo garantia de organização); e o estrato intermediário que opera a ligação entre os
dois níveis indicados acima. Tal definição de estrutura partidária tem relação com a idéia
incorporada por Gramsci de que é mais difícil formar generais do que soldados. Não se trata,
porém, de uma estrutura estanque. Num partido democrático, deve existir garantia de trânsito
efetivo entre os níveis indicados, sendo que estes níveis desaparecem na medida em que supera o
estágio econômico corporativo. Deve, ainda, não ser meramente executor, mas efetivamente
deliberativo, além de progressista (COUTINHO, 2003, 177-178).
O enfoque orgânico dos partidos políticos entrado nas potencialidades que oferecem na
organização dos indivíduos com vistas à mudança do sistema político. Mais que mera
instância de representação política, ao partido cumpriria a missão de possibilitar o
desenvolvimento da consciência política de seus integrantes e, a partir deles, da
sociedade como um todo. Ferramenta poderosa de transformação revolucionária,
enquanto mudança radical do paradigma político, não necessariamente violenta, a essa
abordagem orgânica cabe fornecer um modelo prescritivo (...) Valoriza-se seu papel
essencial como canalizador das expressões e demandas da sociedade (MEZZAROBA,
2004, p. 123).
A potencialidade do partido para conquistar a hegemonia reside na
capacidade que este tem de abarcar pautas e demandas sociais que alcançam os vários aspectos da
vida de um país, extrapolando os limites do corporativismo operário e sindical. Como se realiza
esta superação do corporativismo através do partido? Segundo Gramsci, o partido pode atuar em
dois sentidos. Em sentido estrito, política refere-se à rotina política, aos hábitos políticos
tradicionais, a atuação de governantes e governados limitados ao âmbito parlamentar. Neste caso
não temos a ação transformadora da realidade. O maior potencial para hegemonia é encontrado
na atuação política em sentido amplo, na qual política é a liberdade, a universalidade, a práxis
transformadora da realidade. Nesse sentido política é o lugar em que se opera a catarse, ou seja, a
superação do momento econômico, relativo ao egoísmo passional, para o momento ético-político.
Trata-se da passagem do estágio da necessidade para a liberdade; do determinismo econômico
para a liberdade política. É o equivalente gramsciano da passagem marxiana da classe em si para
classe para si. Não sendo realizada a catarse, uma classe não consegue ser nacional, não pode ser
representante de um bloco histórico majoritário, e, assim, não se torna hegemônica. Toda a práxis
40
carrega a potencialidade do momento catártico, a saída da manipulação e da condição subalterna
para a transformação (COUTINHO, 2003, p.90, 91, 150-151). O moderno príncipe, sujeito
coletivo surgido no seio das classes subalternas, tem como objetivo final a superação das divisões
entre governantes e governados, ou seja, vislumbra a sociedade regulada pensada por Gramsci.
Para definir a catarse política, Gramsci faz referência ao movimento
orgânico das ondas da revolução francesa. Esta revolução é um longo processo continuado, “em
ondas”, que avança até 1870, época da Comuna de Paris, quando “o velho é derrotado, e o
novíssimo também”. Gramsci analisa as forças políticas que atuam dentro do longo processo
histórico, avaliando o grau de homogeneidade, de autoconsciência e de organização alcançados
pelos grupos sociais atuantes no período, dividindo em três etapas a evolução política e
revolucionária destes grupos. Em um primeiro momento, verifica-se a etapa econômico-
corporativa; no segundo momento, surge a consciência mais ampla da solidariedade econômica;
e, finalmente, no terceiro momento, encontra-se o estágio político-ideológico, a consciência de
que os interesses superam o ciclo corporativo, e podem se tornar interesses de outros grupos
subordinados. Trata-se da fase política da revolução, da passagem da estrutura para
superestrutura, para hegemonia (GRAMSCI, 2000c, p.39-41). BUCI-GLUCKSMANN (1990,
p.124) define didática e claramente as três etapas do momento econômico-político: o.primeiro
estágio é o momento econômico-corporativo: momento da base profissional, da comunidade de
interesses, da consciência de classe; segundo momento é o da unidade de classe, da luta
econômica no Estado; e, finalmente, o nível político: hegemonia e estabelecimento da relação
integral Estado/sociedade/classe. De modo simples, Florestan FERNANDES (1995, p. 186)
afirma que Gramsci descreve as fases da luta do operariado: primeiro resistir ao capitalismo por
meio do sindicato, depois tomar o poder e, por fim, socializar os meios de produção. Observamos
um permanente avanço dialético, que demonstra uma das importantes contribuições do filósofo
italiano à causa operária.
A ação política do proletariado deve avançar do estágio mais
corporativista para um patamar político que possibilite a classe operária estabelecer o consenso e
conquistar corações e mentes, ou seja, realizar a essência da hegemonia, ter capacidade e
organização para a luta hegemônica. Esta conclusão serve como base teórica e política para
analisar o fracasso do movimento socialista na Europa, resultado de atuações fundadas em um
subversivismo esporádico, desorganizado e atomizado, que favoreceu a reação das classes
41
dominantes. Gramsci critica o equívoco das táticas que custaram tantas derrotas, como a idéia de
Trotsky de revolução permanente, tida por Gramsci como corporativismo que afasta as massas da
hegemonia (BUCI-GLUCKSMANN, 1990, p. 341). As críticas contra Trotsky e Rosa
Luxemburgo, consideram que a ão revolucionária defendida por eles resultou em um acúmulo
de derrotas e no conseqüente desmantelamento da capacidade de ação organizada das classes
subalternas. Outro objeto de crítica é a análise que Rosa Luxemburgo faz da revolução de 1905,
segundo Gramsci condicionada por preconceitos economicistas e espontaneístas (GRAMSCI,
2000c, p. 71). Os movimentos socialistas, por conta da inadequação de suas atuações políticas,
foram incapazes de realizar as revoluções socialistas e, para agravar o quadro, incapazes de evitar
o crescimento das ideologias totalitárias de extrema-direita, o fascismo e o nazismo. Esta
incapacidade é um reflexo da transposição para as realidades diversas, de maneira mecânica,
acrítica e sem o adequado reconhecimento do campo de ação, do modelo de luta bolchevique,
fonte inspiradora para o próprio Gramsci no período dos conselhos.
O partido, em suma, deve ser um organismo capaz de realizar a
catarse, capaz de ser universalizante, que representa a elevação de uma parte da classe, a
vanguarda, da fase econômica corporativa para a fase política, uma elevação que ocorre em
diferentes níveis nos outros segmentos da classe. Remete à Lênin, afirmando o conflito
particularista entre patrão e empregado leva apenas a uma consciência parcial, limitada,
sindicalista. A repetição do conflito sindicalista, em última instância, leva a reprodução da
formação econômico-social existente, não permite a passagem para o momento ético-político, no
qual pode o proletariado tornar-se nacional, dirigente e hegemônico, dada a capacidade de
elaborar, homogeneamente, e de modo sistemático, uma vontade coletiva nacional-popular.
com essa vontade coletiva pode se formar um novo bloco histórico, no qual a classe operária é
dirigente, sendo papel do partido a realização da síntese e a mediação entre as classes, a partir da
construção homogênea da vontade coletiva, que é prioridade na atuação político-partidária
(COUTINHO, 2003, p. 150-151).
42
1.6 Ideologia, senso comum e intelectual orgânico
Gramsci supera o conceito de ideologia como sistema de idéias,
sustentando a idéia de ideologia como prática social, vivência, habitualidade, adequado o
conceito à idéia de hegemonia, dinâmica, nunca definitiva, devendo ser sempre reafirmada pelo
grupo social hegemônico. Não se trata, portanto, de um conceito negativo de ideologia, vista
como mera aparência (EAGLETON, 1997, p. 107-108). O conceito de ideologia não se reduz ao
conceito marxiano de ideologia, nem se confunde com o reducionismo mecanicista que
considera as manifestações superestruturais como reflexos alienantes e distorcidos, ou seja,
ideológicos, das relações materiais existentes na estrutura. Trata-se de uma concepção ampla de
ideologia que alcança as ciências, calcada em uma análise baseada na historicidade (PORTELLI,
1990, p. 24). Não aborda ideologia somente como forma de representação, de disfarce das reais
relações de produção, conforme os interesses da classe dominante. A ideologia, segundo
Gramsci, abarca a noção de mundo implícita em todo o agir individual e coletivo, e, para a
filosofia da práxis, o ser não se separa o pensar, do contrário trata-se de abstração sem sentido
(GRAMSCI, 2000a, p. 99, 175).
Segundo COUTINHO (2003, p. 111,114), Gramsci oferece uma
completa teoria marxista sobre a ideologia. A partir da superação da idéia da falsa consciência,
compreende ideologia como realidade prática, como fenômeno ontológico-social. Afastando-se
da leitura pejorativa da ideologia, afirma que filosofia é ideologia, porque une a compreensão do
mundo com normas de conduta adequadas para essa concepção, do mesmo modo que não separa
filosofia da política. A ideologia se apresenta como o meio para a hegemonia, capaz de alterar a
vida humana, visto que se trata de uma força real. Sobre a relação hegemonia-ideologia,
EAGLETON (1997, p. 105) afirma que ideologias podem ser impostas pela força, enquanto que
o conceito de hegemonia se sustenta no consenso por meios ideológicos ou pela utilização do
aparato normativo estatal. “A hegemonia é uma categoria mais ampla do que a ideologia: inclui a
ideologia, mas não pode ser reduzida a ela”.
Sobre a ideologia, Gramsci percebe a possibilidade de considerá-la
tanto como meio de dominação, como meio para a emancipação das classes subalternas, ou seja,
define ideologia para além da leitura negativa, alcançando a idéia de processo para contraposição
43
ao domínio político, cultural e econômico (ARRUDA JR., 1997, p. 32). Às classes subalternas
compete desenvolver de modo autônomo sua ideologia, base para a luta pela hegemonia, para a
consolidação de uma cultura superior a que existe dentro do mundo capitalista. A ideologia é,
portanto, elemento de unificação social, impregnando todas as atividades, todas as práticas da
vida, sendo terreno estratégico para a luta de classes. Ocorre em Gramsci a desnaturação do
conceito de ideologia pura aparência (BUCI-GLUCKSMANN, 1990, p. 84.). No historicismo e
na práxis defendidos por Gramsci, base para a concepção de ideologia, percebe-se que não existe
espaço para maniqueísmos e reducionismos dogmáticos, mas o realismo e o reconhecimento de
possibilidades políticas e filosóficas rejeitadas pelo marxismo mais “puro”, percebendo-se
influências da leitura que Gramsci fez de Maquiavel.
O marxismo é simplesmente uma forma de consciência histórica adequada ao presente
momento e desaparecerá quando esse momento for, por sua vez, ultrapassado. Se
percebe contradições históricas, também percebe-se como um elemento dessas
contradições e, na verdade, por ser mais consciente é a sua expressão mais completa. O
marxismo afirmar que toda a verdade supostamente eterna tem origens históricas é
inevitavelmente voltar essa perspectiva para si mesmo. Quando isso não ocorre, o
marxismo rapidamente petrifica-se em uma ideologia metafísica (EAGLETON, 1997,
p. 109).
Gramsci estabelece distinções entre ideologias orgânicas e
ideologias arbitrárias, transitórias. Distingue, pois, ideologias historicamente orgânicas,
necessárias a uma determinada estrutura, de ideologias racionalísticas, arbitrárias ou
voluntaristas. Enquanto as ideologias necessárias, ou seja, as orgânicas alcançam uma validade
“psicológica”, servindo para organizar as massas, formando o terreno sobre o qual os homens se
movimentam, as ideologias arbitrárias não possuem tamanha capacidade, considerando que criam
“movimentos” individuais, com inserções transitórias nas consciências dos homens, sustentando-
se, por exemplo, em polêmicas, ou, simplesmente, na força (GRAMSCI, 2000a, p. 237). Na
sociedade civil, espaço a priori da hegemonia, da luta hegemônica, têm maior relevância as
ideologias orgânicas, que estão vinculadas a uma classe fundamental, hegemônica. A ideologia
orgânica desenvolve-se a partir do campo econômico para todas as atividades do grupo dirigente,
realizadas pelos intelectuais orgânicos. Os diferentes aspectos de uma ideologia, ainda que
pareçam ser independentes, constituem um todo: a concepção de mundo de uma classe
fundamental (PORTELLI, 1990, p. 23).
44
Contra as ideologias arbitrárias produzidas por um grupo social,
como o fascismo, sustenta-se a ideologia orgânica, inspirada em grandes bases filosóficas e
históricas, originadas de classes ou grupos com vocação para o exercício da hegemonia. A
filosofia da práxis se enquadra no rol das filosofias orgânicas. A superação das ideologias
falaciosas (eis um conceito negativo de ideologia para Gramsci, numa perspectiva crítica diante
do liberalismo, uma ideologia orgânica), deve ser realizada a partir da luta baseada na filosofia
da práxis, capaz de unificar culturalmente os homens (COUTINHO, 2003, p. 115). As ideologias
orgânicas possuem maior capacidade de ser internalizadas pelos indivíduos, sendo estas
constitutivas de qualquer exercício de hegemonia real ao longo da história. Diferentemente, as
ideologias arbitrárias possuem um alcance mais limitado, são mais fugazes. Não obstante toda a
propaganda nazista e fascista tenha levado nações inteiras a uma fascinação cruel, tais ideologias
não subsistem diante do movimento histórico. O elemento coerção, essencial para tais ideologias,
que suplanta, aniquila toda e qualquer oposição, acaba por ser o gérmen da própria falência de
tais ideologias. Assim, são as ideologias orgânicas que possuem o que EAGLETON (1997, p.
108) chama de dimensão psicológica da hegemonia, ou seja, a atuação sobre o indivíduo,
especialmente de classe média, que se considera livre, sua própria sede de governo dentro da
vida social. Percebe-se o papel importante das ideologias orgânicas: garantir o nculo entre a
base econômica, a vida produtiva, e a vida social, política e cultural. Constituir o vínculo
orgânico entre o modo de produção capitalista e o liberalismo político, e a sociedade de cultura
individualista. Sobre o consentimento das massas nas sociedades capitalistas, ANDERSON
(2002, p. 43) afirma que:
A novidade desse consentimento é que ele toma a forma fundamental da crença nas
massas de que elas exercem uma máxima autodeterminação no seio da ordem social
existente. Assim, não é a aceitação da superioridade reconhecida de uma classe
dirigente (ideologia feudal), mas a crença na igualdade democrática de todos os
cidadãos no governo de uma nação em outras palavras, a negação da existência de
uma classe dirigente. O consentimento dos explorados numa sociedade capitalista é
pois de uma modalidade qualitativamente nova, que produziu sugestivamente a sua
própria extensão etimológica: consenso ou acordo recíproco. Naturalmente, a parte
ativa da ideologia burguesa coexiste e se combina, sob um grande número de formas
heterogêneas, com os hábitos e as tradições ideológicas muito mais antigas e menos
elaboradas - em particular, aquelas da resignação passiva diante do mundo e a
descrença de qualquer possibilidade de transformá-lo, gerada pela desigualdade de
conhecimentos e de confiança, características de todas as sociedades de classe.
45
A ideologia é produzida e difundida em níveis diferentes, de modo
que a filosofia mais sofisticada deve ser “traduzida”, ou seja, deve passar por ajustes de
linguagem até se tornar acessível para a grande massa, até, finalmente, se inserir no senso
comum, sendo característica de um determinado modo de vida, de uma determinada concepção
de mundo vivenciada pela coletividade. Vale mencionar aqui a afirmação de Gramsci: “Tudo é
política, inclusive a filosofia ou as filosofias, e a única filosofia é a história em ato, ou seja, a
própria vida” (GRAMSCI, 2000a, p. 246). Fica claro que a filosofia é referência em qualquer
sistema ideológico, a chave da ideologia, que, a partir do vínculo com a classe dirigente,
influencia as normas de vida de todas as camadas sociais (PORTELLI, 1990 p. 24). A filosofia se
confunde com política, como, por exemplo, na idéia de Rousseau de soberania popular e de
representatividade política que alcança as massas com a compreensão, comum entre os
indivíduos, de que todos participam efetivamente do jogo político de uma nação. A tese filosófica
se realiza, é acessível para as massas, pois está arraigada no senso comum, e o ato de votar de
quatro em quatro anos é a realização prática das teses de um filósofo contratualista. A
expansividade da ideologia, orgânica, e da classe que a produz, se percebe no exemplo, motivo
pelo qual pode servir como instrumento para o consenso e para legitimação do uso da coação.
Enfim, como elemento ideológico para a hegemonia, que se sustenta não pela atuação da
classe hegemônica, mas também pelo domínio da ideologia dominante nas consciências e na vida
dos dominados, os quais, até mesmo quando lutam contra a dominação, reconhecem a ideologia
da classe hegemônica (CHAUÍ, 1982, p. 110).
A ideologia se constitui e se dispersa, pois, em níveis diferenciados.
Tem como ponto de partida um conjunto de idéias sistematizadas, como, por exemplo, as teses
filosóficas dos contratualistas, elaboradas de modo racional e fundadas na perspectiva de validade
universal. A filosofia da ilustração e o liberalismo econômico e filosófico são representativos dos
interesses de uma classe social, a burguesia, manifestação de luta pela hegemonia política,
econômica, cultural e social. No primeiro momento a ideologia serve para produção de uma
universalidade voltada para legitimação de um poder de classe (CHAUÍ. 1982, p. 108). As
elaborações ideológicas avançam para os diversos campos sociais e pela diversidade cultural e
econômica da sociedade, tendo como propósito sedimentar-se como característica de um
determinado modo de vida, avançando para além de mero conjunto de idéias. Torna-se, portanto,
senso comum, ou seja, se populariza, é aceito pela coletividade. Depois de consolidada como
46
senso comum, a ideologia se sustenta, demonstrando a expansão da classe que se assegura na
condição de hegemônica, de classe dominante. Assim, mesmo que as classes subalternas,
dominadas, percebam a existência de interesses defendidos por uma classe dominante, tal
percepção não prejudica a aceitação de idéias e de valores da classe dominante. “A tarefa da
ideologia consiste justamente em separar os indivíduos dominantes e as idéias dominantes,
fazendo com que apareçam como independentes uns dos outros” (CHAUÍ, 1982, p.109).
Existem estruturas ideológicas voltadas para a criação e a difusão da
ideologia da classe hegemônica, quais sejam, por exemplo, os meios de comunicação pública e a
opinião pública, materializados nas escolas, na igreja e na imprensa, organizações essencialmente
voltadas para a atuação cultural, ideológica (PORTELLI, 1990, p. 27). Entretanto, o aparato
ideológico se compõe a partir da interação das organizações precipuamente culturais, como as
escolas e a imprensa, com organizações e instituições, voltadas para o exercício da coerção direta
ou indireta, imediata ou latente. Tais instituições estatais realizam, reproduzem e garantem o
modo de vida presente na ideologia da classe hegemônica, servindo como exemplo as forças
armadas, o aparato policial e os tribunais. Os aparelhos ideológicos, sejam da sociedade civil ou
da sociedade política, realizam a inserção da ideologia de uma classe dominante no senso
comum, servindo para expansão da influência cultural de uma classe social. Arraigar-se nas
diversas camadas sociais, nas classes subalternas, tornar-se senso comum é fundamental para a
ideologia que se pretenda orgânica, ou seja, capaz de servir de sustentáculo para o exercício da
hegemonia de uma classe sobre as demais. O senso comum pode ser considerado um
desdobramento, um produto, da filosofia fundamental de uma classe hegemônica, não se
impondo arbitrariamente, existindo adesão espontânea. As construções ideológicas arbitrárias são
eliminadas na competição histórica, rapidamente, pelas concepções ideológicas orgânicas, as
quais se encontram no fundamento do senso comum (GRAMSCI, 2000a, p.111).
Para Gramsci a filosofia não é destinada somente aos estudiosos,
aos cientistas e aos especialistas. Ainda que inconscientemente, todos são filósofos. A conclusão
de Gramsci relaciona-se com uma filosofia espontânea, que possui características e limites
contidos na linguagem, considerando que se trata de um conjunto de conceitos determinados; no
senso comum e no bom senso; e na religião, crenças e folclore (GRAMSCI, 2000a, p.93).
Percebe-se que o senso comum não é abordado somente a partir de uma concepção negativa,
sendo tratado a partir de uma dupla perspectiva. Ao mesmo tempo em que serve como
47
desdobramento simplista e incoerente de uma filosofia orgânica, voltado para a dominação
cultural, é no próprio senso comum que encontramos a racionalidade do bom senso, a qual serve
como referência para a construção de uma autonomia política e cultural.
Numa perspectiva negativa, o senso comum é o espaço da alienação
e da dominação cultural. O senso comum é estratificado, possuindo características difusas de um
pensamento genérico uma determinada época e de um determinado ambiente popular. Não se
trata de uma concepção única, idêntica no tempo e no espaço: é o folclore da filosofia,
apresentando por isso várias formas, tendo como traço mais comum o de ser uma concepção
desagregada, incoerente, inconseqüente, conforme as posições sociais das classes das quais é
filosofia. É o espaço da filosofia dos não filósofos, no qual se reproduz uma “concepção de
mundo absorvida acriticamente pelos vários ambientes sociais e culturais nos quais se desenvolve
a individualidade moral do homem médio”. (GRAMSCI, 2000a, p. 111, 114).
Ainda que se preste como espaço para ampliação do domínio
cultural das classes dominantes, o senso comum possui um “núcleo saudável”, representado pela
racionalidade do bom senso, imerso na filosofia vulgar, no conjunto desagregado de idéias. O
senso comum e a religião não são ordens intelectuais, pelas deficiências de unidade e de
coerência, enquanto a filosofia é uma ordem intelectual, que pode servir como contraponto e a
superação do senso comum e da religião, desde que seja coincidente com o bom senso,
encontrado no próprio senso comum (GRAMSCI, 2000a, p. 96, 98). Assim, a filosofia que
pretenda servir de base para um novo bloco histórico, para uma nova hegemonia, deve ser capaz
de atingir o senso comum, especialmente o bom senso, adaptando-se à linguagem das massas
para ser compreensível. Um estágio mais evoluído de consciência, capaz de libertar-se dos
limites e das incoerências do senso comum, é possível com o desenvolvimento de uma
consciência de classe autônoma, crítica. A filosofia minimamente presente no senso comum, de
um modo não sistematizado, incoerente e permeado por medos e preconceitos, pode ganhar outra
dimensão.
O contraponto às concepções filosóficas da classe hegemônica não
pode se deter ao enfrentamento filosófico mais sofisticado. Deve repercutir no senso comum,
deve ser capaz de ser compreendido pelas massas, não se detendo aos círculos intelectuais
“superiores”, de modo que seja possível a construção de um novo senso comum. Para tanto, serve
48
como referência a filosofia da práxis, a crítica diante do mundo existente, do senso comum
produto da dominação inerente ao capitalismo e sua cultura. Reconhecer que todos são filósofos
não significa reconhecer que a filosofia, ou o conjunto de filosofias, norteadoras da hegemonia de
uma classe, sejam as mais adequadas para a vida coletiva, para o desenvolvimento dos seres
humanos. Significa, certamente, reconhecer a possibilidade de todos, incluindo as classes
subalternas, serem capazes de perceber a condição de dominação cultural, e de reagir diante de tal
situação. Daí o papel da filosofia da práxis, capaz de estabelecer elos entre a condição cultural e
econômica das classes subalternas com a filosofia mais sofisticada, porque se sustenta na
vinculação entre pensar autonomamente, como sujeito histórico coletivo, e atuar em busca da
emancipação.
É a atuação dos intelectuais possibilita que a filosofia dos filósofos
se transforme em filosofia dos não filósofos, ou seja, é uma atuação voltada para que a filosofia
mais sofisticada alcance as massas, para garantir o consenso e a dominação cultural de uma
classe sobre as demais. Se a filosofia perde coerência, unidade e sistematização ao se incorporar
ao senso comum, a dominação cultural existe por conta do alcance da filosofia que se insere
no pensar e no modo de vida das massas. Percebe-se uma graduação qualitativa dos intelectuais,
pela qual no topo estão os principais intelectuais, criadores de ideologia, produtores da ciência e
da filosofia, enquanto que no nível mais baixo estão os organizadores, administradores e
divulgadores da ideologia (GRAMSCI, 2000b, p.22). Por outro lado, é pela atuação dos
intelectuais orgânicos contra-hegemônicos que se torna possível a luta contra a hegemonia de
uma classe social sobre as demais. Na teoria política de Gramsci são estes os papéis mais
importantes dos intelectuais, que funcionam como agentes que criam, ou simplesmente
repercutem, o material ideológico elaborado nas estruturas ideológicas estatais ou
(pretensamente) privadas de hegemonia. “Além de organizadores da função econômica, os
intelectuais são portadores da hegemonia que a classe dominante exerce na sociedade civil”
(SIMIONATTO, 2004, p. 60).
A distinção entre intelectual organizador e intelectual criador de
ideologia é importante para a definição de uma estratégia de confrontação política. Na sociedade
civil, a derrota dos intelectuais organizadores e reprodutores de ideologia não é tão importante
quanto a derrota dos intelectuais criadores, produtores de materiais ideológicos. Na sociedade
política, entretanto, existe relevância estratégica na derrota dos intelectuais auxiliares, para minar
49
as forças dos intelectuais mais importantes, bem como reservar forças para atacar estes
(PORTELLI, 1990, p. 90).
Para melhor compreensão do conceito de intelectual em Gramsci,
cabe apontá-lo como refutação do conceito vulgar de intelectual liberal, completamente
autônomo na elaboração de suas concepções filosóficas e na atuação política. Não se trata,
portanto, de mera qualificação cabível para um indivíduo culto, inteligente, que articula
elegantemente suas idéias. Essa é uma concepção de intelectual entranhada no senso comum,
conseqüência da hegemonia de uma cultura elitista e individualista, adequada para o modo de
produção capitalista. O conceito de intelectual elaborado por Gramsci, considera que os
intelectuais não são totalmente autônomos, independentes, bem como não constituem, por si
mesmos, classes sociais. Cada grupo na realização de suas funções no mundo da produção cria
para si, organicamente, uma ou mais camadas de intelectuais. Um empresário, por exemplo, é um
intelectual, organizador da produção econômica, de modo que parte dos empresários teve
capacidade de organizar a sociedade e chegar à organização do Estado, criando condições
favoráveis para expansão da própria classe (GRAMSCI, 2000b, p.15). Entre a classe social e o
intelectual que a representa é estabelecida uma vinculação orgânica, que é mais forte quando o
intelectual é um dos quadros originados da própria classe que representa.
Ainda que não possuam uma autonomia absoluta, os intelectuais
possuem alguma autonomia, representada pela capacidade autocrítica, bem como pelo fato de
poder evoluir em uma medida diferente do grupo hegemônico que representa. Essa autonomia,
entretanto, desde que seja capaz de ganhar dimensões maiores, pode vir a dar causa a uma crise
orgânica, caracterizada pela ruptura do vínculo orgânico que une intelectual e sociedade civil. De
um modo geral, é possível afirmar que a pretensa independência ou autonomia de um intelectual
na verdade é fraqueza, considerando que se trata de manifestação de aparente ausência de vínculo
aos intelectuais tradicionais ou aos intelectuais conservadores (PORTELLI, 1990, p. 88, 89, 94).
Outra característica importante da conceituação de intelectual está relaciona com a idéia de que
todos são filósofos, que mesmo os trabalhos mais toscos, mecânicos, requerem uma mínima
capacidade intelectual para se realizarem. “Todo homem fora de sua profissão desenvolve uma
atividade intelectual qualquer, ou seja, é um filósofo, um artista, um homem de gosto, participa
de uma concepção de mundo, isto é, para suscitar novas maneiras de pensar” (GRAMSCI, 2000b,
p.53). É equivocado buscar a definição de intelectual nos aspectos que são inerentes à uma
50
determinada atividade puramente intelectual, ao invés de buscar tal definição dentro do conjunto
das relações nas quais as atividades laborais estão inseridas. Por isso é possível afirmar que todos
os homens são intelectuais, mas que nem todos têm na sociedade funções de intelectual.
Ademais, do mesmo modo que o fato de alguém cozinhar ou costurar não é suficiente para
considerar que essa pessoa seja cozinheiro ou alfaiate, não se pode negar a condição de sujeito
capaz de refletir sobre sua condição social, mesmo que seja este sujeito mero executor de tarefas
manuais em seu trabalho (GRAMSCI, 2000b, p. 18).
A importância do papel dos intelectuais é perceptível ao longo da
história, e na análise histórica é possível verificar de que modo a atuação dos intelectuais das
classes que lutavam por hegemonia definiram a sorte de seus países. Na Itália, os intelectuais
vinculados à burguesia fragilizada política e economicamente fizeram concessões aos intelectuais
tradicionais, representativos dos latifundiários vinculados à Igreja católica, o que determinou a
revolução passiva, a revolução sem revolução, característica do desenvolvimento econômico,
político, social e cultural italiano. Na França a burguesia submeteu os intelectuais do clero, sem
estabelecer com estes compromissos essenciais, sem grandes concessões de poder aos intelectuais
representativos da hegemonia combatida pelos burgueses (PORTELLI, 1990, p. 91). A absorção
dos intelectuais tradicionais, pela persuasão, é um aspecto importante das grandes rupturas que
caracterizaram as revoluções burguesas, assim como o uso da força contra esses intelectuais. O
intelectual orgânico é característico de uma classe social emergente capaz de contribuir em favor
da classe que representa na formação de uma “autoconsciência homogênea nos campos cultural,
político e econômico” enquanto os intelectuais tradicionais, que se acreditam independentes, são
opostos aos intelectuais orgânicos e representam “sombras de alguma época histórica anterior”
(EAGLETON, 1997, p. 26,27).
Gramsci refere-se a uma padronização na formação educacional
dentro das sociedades capitalistas, que se reflete nas relações entre as classes, bem como coloca
os trabalhadores dentro dos limites de consciência que caracterizam a fase econômico-corporativa
da classe. A formação em massa estandardizou os indivíduos, com efeitos diversos na vida social
e econômica, como o fenômeno do desemprego em massa, mão-de-obra de reserva, bem como
representa uma discriminação que é reflexo das funções dos intelectuais das classes sociais no
mundo da produção. A escola clássica é destinada para os filhos das classes dominantes e seus
intelectuais. Para as classes instrumentais, serve a escola profissionalizante. A formação
51
humanista deu lugar à escola técnica, com a crescente industrialização, de modo que a tendência
atual (já em 1932) é abandonar qualquer forma de escola desinteressada ou informativa,
conservando um pequeno número destas para formação das elites (GRAMSCI, 2000b, p. 22, 33).
Junto com o sistema de educação, não obstante considere o todo orgânico das estruturas
ideológicas, Gramsci destaca o papel da imprensa na formatação das consciências, especialmente
dos grandes jornais da primeira metade do século passado. Em suas anotações sobre a imprensa e
a atuação dos intelectuais, escreveu que a estrutura ideológica de uma classe dominante, ou seja,
a organização material voltada para defender e manter uma ideologia tem sua parte mais
considerável no setor editorial e jornalístico. A imprensa é a parte mais dinâmica de uma
estrutura ideológica, mas, ressalva, não é a única: delas fazem parte as escolas, os clubes e até a
arquitetura (GRAMSCI, 2000b, p. 78).
A superação do estágio econômico-corporativo é condição para que
uma classe social venha a ser hegemônica, exercendo o partido político, o sujeito coletivo
formado pelos intelectuais orgânicos provenientes das massas, um papel central no processo de
conquista de hegemonia. A capacidade de uma classe social produzir seus próprios intelectuais é
elemento crucial para que venha a ser hegemônica, mais cedo ou mais tarde, conforme seja capaz
de lançar, na atuação política e ideológica, novos intelectuais. Nesse sentido, o vinculo orgânico
estabelecido no partido é mais forte, e, numa referência a superação do estágio econômico-
corporativo, afirma que “no partido político, os componentes de um grupo social econômico
superam este momento de seu desenvolvimento histórico, e se tornam agentes de atividades
gerais, de caráter nacional e internacional” (GRAMSCI, 2000b, p. 25). O papel pedagógico do
partido político deve ser destinado à formação de intelectuais organicamente vinculados às
classes subalternas, capazes de repercutirem um espírito de cisão, para contraposição às
trincheiras e fortificações das classes dominantes na sociedade civil. A conquista progressiva da
consciência da própria personalidade histórica é viabilizada pelo alcance do espírito de cisão,
presente na atuação dos intelectuais orgânicos, às classes aliadas potenciais da classe protagonista
na busca da hegemonia. Tudo isso se com trabalho ideológico, que deve ser precedido pelo
conhecimento “do campo a ser esvaziado de seu elemento de massa humana” (GRAMSCI,
2000b, p. 79). A atuação do intelectual orgânico contra-hegemônico deve ser orientada a partir do
conceito de guerra de posição, lembrando que a guerra de movimento pode lograr sucesso numa
52
realidade na qual a sociedade civil é débil e o Estado-coerção é quase absoluto (COUTINHO,
2003, p. 148).
1.7 Teoria do Estado ampliado
A partir do conceito de hegemonia, bem como da distinção entre o
capitalismo oriental e o capitalismo ocidental, é desenvolvida a teoria do Estado ampliado. A
justificação para tal afirmativa pode ser encontrada na busca de Gramsci pelas causas históricas,
econômicas e políticas que determinaram a inadequação da luta socialista na Itália e nos demais
países da Europa, com a exceção soviética. Por que o modelo de luta bolchevique vingou na
Rússia? A causa primeira está em não ter sido realizada uma atuação orgânica, capaz de
estabelecer a hegemonia, aspecto bastante claro neste texto. Entretanto, para compreender melhor
o vínculo entre hegemonia e teoria do estado ampliado, vale retornarmos ao que Gramsci nomeia
como período das ondas revolucionárias no século XIX. Segundo ROMEI (1978, p. 88) a
concepção de hegemonia:
se baseia numa análise teórica complexa das mudanças ocorridas na economia e na
esfera social e política a partir de uma data, que Gramsci situa simbolicamente em
1871. O que sucedeu a partir desse ano? Sucedeu que o Estado burguês, depois da
derrota da comuna de Paris e diante de uma grande recessão, reorganizou-se no sentido
de uma penetração cada vez mais maciça no campo da sociedade civil, de uma busca
de consenso que torne impossíveis os golpes de mão como os de 1848 e 1871 (que
torne impossível, portanto, a ‘guerra de movimentoe o jacobinismo em seu interior),
de uma ampliação burocrática e de uma estruturação capilar, de uma expansão colonial
e de uma interdependência recíproca entre os diversos Estados.
A ampliação burocrática e a estruturação capilar são conseqüências
de mudanças históricas que levam a concepção da teoria do Estado ampliado, sendo a
caracterização da guerra de movimento e a proposição de uma guerra de posição alguns dos
produtos teóricos e relevantes para a estratégia política gramsciana. A hegemonia está presente
como cerne da capilarização e da ampliação burocrática do Estado, que passa a valer-se mais do
consenso operado a partir de aparelhos existentes na própria sociedade civil do que da coerção do
Estado gendarme. Percebe-se no ocidente, a partir da metade do século XIX, que as mudanças
53
históricas se refletiram na vida política (com o surgimento do sufrágio universal, dos partidos de
massa e dos sindicatos, por exemplo), surgindo uma sociedade civil dotada de leis relativamente
autônomas quanto ao Estado e o mundo econômico (COUTINHO, 2003, p. 124-125).
O conceito de Estado gramsciano é ampliado porque abarca
sociedade civil e sociedade política, ou seja, o Estado deixa de ser mera organização política,
militar e burocrática, alcançando a complexidade da sociedade civil. Para compreender as
relações entre os dois espaços do Estado ampliado (a sociedade civil e a sociedade política), o
conceito de hegemonia é crucial, sendo pertinente à materialização e à realização das funções
hegemônicas. Conforme BUCI-GLUCKSMANN (1990, p.205), o conceito de Estado ampliado
relaciona-se com o de hegemonia na medida em que a classe hegemônica não se detém em
corporativismos, sendo capaz de assumir os interesses objetivos das classes aliadas. A classe
deve ser reconhecida como dirigente, ou seja, capaz de estabelecer e manter o consenso.
Cabe lembrar um aspecto relevante para a construção da teoria do
Estado ampliado: Gramsci situa a sociedade civil na superestrutura, juntamente com a sociedade
política. Tal distinção enriquece e amplia a teoria marxista do Estado. Para Marx, todo o
fenômeno estatal tem caráter de classe, o que não é negado por Gramsci. Em Gramsci o Estado
também tem a função de conservar e de reproduzir as divisões em classes (COUTINHO, 2003,
p.123). Entretanto, a crítica marxiana é pertinente ao Estado gendarme, guarda noturno, está no
campo da identificação Estado/ governo, da confusão entre a sociedade política e a sociedade
civil, do estágio econômico-corporativo. Enquanto que o Estado característico do capitalismo
moderno se compõe por sociedade civil mais sociedade política, ou seja, a hegemonia couraçada
de coerção. (GRAMSCI, 2000c, p. 244).
A Ampliação do Estado é, ainda, uma tese que tem em seu cerne a
crítica ao economicismo, liberalismo e, também, aos totalitarismos de esquerda e de direita,
marcantes na obra de Gramsci. Uma crítica, portanto, ao Estado gendarme e ao conceito de
Estado-coerção, como o fascismo; um contraponto à ideologização de um Estado que não
superou a fase econômico-corporativa, como o exemplo da União Soviética de Stalin (BUCI-
GLUCKSMANN, 1990, p. 98, 133). A concepção de partido estabelecida por Gramsci demonstra
o reconhecimento do papel do Estado, colocando-se além do reducionismo Estado-poder de
classe. O conceito ampliado de Estado não é produto da rejeição absoluta de uma estrutura
jurídica, política e administrativa, antes, é o reconhecimento da complexidade que existe nas
54
relações entre a estrutura estatal e a sociedade civil, numa relação de troca, de influência e de
contradições permanentes entre estas esferas. Uma demonstração de que não se detém Gramsci
ao escolasticismo é a defesa de que um dos principais propósitos do partido político é a
transformação do Estado, ou seja, da sociedade civil e a sociedade política, não a negação
simples e absoluta do Estado, da sociedade política. O partido é “concebido organizado e dirigido
de modo e forma capaz de se desenvolver integralmente em um Estado e numa concepção de
mundo” (GRAMSCI, 2000, p. 345).
Gramsci é o primeiro a não se deixar ofuscar, no problema do Estado, pelo forte
elemento da violência, e compreende que, na realidade, em um Estado fundado sobre
democracia política, o mesmo exercício da violência por parte do Estado é
condicionado à capacidade de capturar e manter um consenso. (...) Gramsci, portanto,
compreende que o Estado burguês pode exercitar a violência de classe para o trâmite da
sua legitimação consensual (CERRONI, 1991, p. 59).
Um Estado não pode, portanto, se sustentar somente na força, no
aparato burocrático, militar e jurídico, assim como não pode se sustentar somente a partir de um
consenso espontâneo, o que seria impossível. Para Gramsci, o erro do liberalismo é crer na
separação entre sociedade civil e Estado, crer que a atividade econômica é própria da sociedade
civil e que o Estado o deve intervir na sua regulamentação. Na verdade as duas esferas se
identificam e o liberalismo é regulação estatal, não surge espontaneamente, ressalvando que,
quanto mais desenvolvida a sociedade civil, maior a autonomia relativa, não absoluta, diante do
aparelho estatal (GRAMSCI, 2000c, p. 47). A teoria do Estado ampliado se constitui a partir da
compreensão de que a sociedade civil e a sociedade política constituem um todo orgânico, em
equilíbrio dinâmico e dialético, existindo complementaridade entre as esferas, considerando que,
no caso de falha do consenso, aplica-se a coerção. Tanto a sociedade civil quanto a sociedade
política se prestam para a manutenção e a promoção de determinada base econômica. As
distinções feitas por Gramsci entre estas duas instâncias superestruturais que se relacionam a
partir de uma oposição dialética têm finalidade didática, para esclarecer como se opera a relação
existente no seio do Estado ampliado, bem como fins estratégicos, que apresenta elementos
que não podem ser desconsiderados para o planejamento e a atuação política. Para BUCI-
GLUCKSMANN (1990, p. 149) a teoria do Estado ampliado se sustenta em uma perspectiva
55
anti-economicista, na recusa de uma concepção instrumentalista de Estado, manobrado por uma
classe-sujeito, abrindo possibilidades de análise.
A complementariedade entre sociedade civil e sociedade política
também se percebe na ambivalência do parlamento, órgão que elabora a lei, a priori identificada
com coerção, ao mesmo tempo em que representa a sociedade civil, unindo força e consenso,
combinadas para manter a hegemonia da classe dominante. A ambivalência cresce nos órgãos do
Estado ampliado, caracterizando uma evolução desde o Estado-guardião, chegando à sociedade
do capitalismo complexo, partindo do controle dos aparelhos de coerção e alcançando a
estatização das escolas, uma absorção da cultura e da educação. Isso, com o escopo de qualificar
a mão-de-obra, e, principalmente, para garantir unidade na produção e difusão ideológica. A
ambivalência, portanto, está presente na teoria do Estado ampliado, na qual um conjunto de
órgãos privados e públicos são voltados para a dominação (PORTELLI, 1990, p. 34). Não se
deve confundir a classificação de sociedade política e de sociedade civil com a separação jurídica
e formal entre público e privado.
A distinção, didática frise-se, entre sociedade civil e sociedade
política possibilita a percepção das funções e como se materializam as estruturas políticas e
ideológicas. Não existe distinção ornica entre sociedade civil e sociedade política, entre o
campo da hegemonia e o lugar da ditadura. Trata-se de um conceito integral de Estado, que não
se confunde com formas totalitárias de Estado. O Estado totalitário é diferente do Estado integral:
neste o Estado não se reduz à coerção, e ocorre o desenvolvimento rico das superestruturas
(BUCI-GLUKKSMANN, 1990, p.129). No Estado integral encontra-se uma classe fundamental
que se sustenta em uma ideologia orgânica, enquanto que no Estado totalitário verificamos uma
ideologia não-orgânica, na qual o elemento coerção possui um papel mais destacado. Acerca da
distinção entre sociedade civil e sociedade política, MACCIOCCHI (1980, p. 151) afirma que
A distinção entre “sociedade política” e “sociedade civil” efetuada por Gramsci nos
Cadernos não é apenas uma divisão metodológica entre dois níveis da superestrutura,
mas, sobretudo, o lugar teórico onde se precisa um conceito original, totalmente novo
na teoria leninista de Estado, que evidencia a complexidade, a articulação e a relativa
independência, com relação à base econômica, das instituições, das organizações, das
formas de consciência, da ideologia, através das quais se exprime o poder de uma
classe.
56
Cabe agora apontar as características da sociedade política, também
identificada como Estado em sentido estrito, a qual é atribuída a função de ditadura, ou seja, de
coerção e dominação direta, voltadas para manutenção da ordem estabelecida. É composta pelos
aparelhos coercitivos do Estado, ou seja, pela burocracia estatal, pelo governo político-jurídico e
pelo poder militar dos órgãos que constituem os poderes do Estado, legal ou ilegalmente
(excepcionalmente) estabelecidos, destinados ao controle ativo ou passivo das massas. A
sociedade política é composta, portanto, pelos óros de coerção que devem assegurar o
consenso, servindo como protetora do Estado (ampliado) quando falha o consenso, em momentos
de crise. Tem um papel secundário no sistema hegemônico, que se baseia essencialmente no
consenso, sendo uma extensão da direção econômica e ideológica. Conforme seu vinculo com a
sociedade civil, a sociedade política pode constituir ditadura, desde que se valha principalmente
da coerção para manutenção do poder, ou hegemonia política, conforme sua dependência da
sociedade civil. A utilização do poder coercitivo a partir do aparato estatal para manutenção do
domínio político, quando habitual, pode caracterizar uma crise orgânica, ou seja, a perda do
controle da sociedade civil pela classe dirigente, a perda da hegemonia, apoiando-se a classe
dominante quase que exclusivamente no aparato coercitivo da sociedade política exercer o
domínio (PORTELLI, 1990, p.30-31). Tal excepcionalidade, a crise orgânica, se caracteriza,
portanto, como uma crise de hegemonia, com a perda do consenso que garante a hegemonia, a
perda do equilíbrio dinâmico entre a sociedade civil e a sociedade política, motivo da suplantação
do consenso pela força.
A sociedade civil é o local onde se estabelece a hegemonia. É o
campo, por excelência, do consenso. Não hegemonia sem o conjunto das organizações
materiais que comem a sociedade civil (COUTINHO, 2003, p.129). Espaço da ação ideológica
das estruturas pretensamente privadas de hegemonia como os partidos, os sindicatos, a mídia. Na
sociedade civil está o espaço para difusão ideológica da classe dominante, as trincheiras e
casamatas mencionadas por Gramsci, que garantem a sobrevivência do Estado nas situações de
grave abalo na ordem econômica. É na sociedade civil, esfera prioritária da ideologia e da
hegemonia, que se realiza ponto intermediário, e nos quais encontramos os mediadores, entre
estrutura e superestrutura. Segundo PORTELLI (1990, p. 22), a sociedade civil se caracteriza
como o conjunto dos organismos privados que correspondem à função de hegemonia da classe
dominante sobre as demais classes sociais, sendo oposição à sociedade política (Estado em
57
sentido estrito), da qual é base e conteúdo ético. Trata-se de um conjunto complexo e extenso, na
medida em que é constituída pelo domínio da ideologia da classe dominante e a direção exercida
por esta. As instituições da sociedade civil têm um papel destacado para realização do controle
social, conforme a abordagem gramsciana. A violência característica do Estado-coerção passa a
ser uma razão última, somente sendo utilizada em circunstâncias extremas, sob o risco de perda
do consenso, de referência ideológica diante das massas. A sociedade civil contribui para que o
poder seja minimamente exposto, de modo que seja incorporado ao modo de vida, aos costumes,
garantindo a dominação com base no consenso, reduzindo os riscos de ruptura violenta a partir
das massas (EAGLETON, 1997, p. 108).
É na composição do Estado ampliado se constitui o bloco histórico
capitalista, que se caracteriza pela hegemonia de uma classe que se torna predominante no
exercício do poder. A vinculação orgânica entre a sociedade política e o mundo da produção (ou
estrutura), mediado pela sociedade civil, possibilita a formação de um bloco histórico, sendo o
vínculo orgânico correspondente a uma realidade social concreta. A análise de um bloco
histórico deve considerar que a sociedade não se propõe tarefa para a qual não existam condições
de realização, e nenhuma sociedade se dissolve sem que tenham se desenvolvido todas as formas
de vida contidas em suas relações. São estas as condições estruturais para o desenvolvimento da
superestrutura, sendo as ideologias orgânicas necessárias para a estrutura, dirigindo a sociedade
conforme as condições sócio-econômicas, de modo que os movimentos superestruturais
representam a ideologia de diversos grupos sociais (PORTELLI, 1990, p. 48).
A ruptura de um bloco histórico pode se dar a partir de crises
orgânicas, que são mais complexas do que os simples abalos na base econômica, os quais, por si
mesmos, bastariam, segundo a leitura dogmática do marxismo, para motivar e levar as massas
para uma revolução contra seus opressores, representantes da ordem econômica. Tal
reducionismo e simplificação são reiteradamente combatidos por Gramsci ao longo de seus
textos, a partir de análises políticas que levaram a elaboração da teoria do Estado ampliado. Para
a compreensão do Estado e da política contemporâneas, bem como para a elaboração de uma
estratégia de luta política, é importante perceber que existem crises ocasionais ou conjunturais,
que podem ser caracterizadas como crises econômicas ou políticas passíveis de serem resolvidas
de modo mais simplificado pela classe hegemônica. A crise orgânica é mais complexa, diante da
qual não é possível, ou é insuficiente, uma solução rápida pelas classes dominantes, significando
58
progressiva desagregação do bloco histórico. Os fenômenos orgânicos são pertinentes aos
grandes agrupamentos humanos. A crise longa revela contradições insanáveis na estrutura, e as
forças conservadoras operam para saná-las dentro de certos limites, superando-as, sem
transformações maiores na estrutura e na superestrutura. É erro freqüente na análise histórico-
política não saber encontrar a justa medida entre o que é orgânico e o que é ocasional
(GRAMSCI, 2000c, p. 37).
A crise orgânica, no aspecto econômico, é caracterizada pela
manifestação das contradições estruturais inerentes a um modo de produção. No aspecto
ideológico e político, crise orgânica é crise de hegemonia, perda do consenso, da direção moral e
intelectual da sociedade, que leva ao aumento da utilização dos meios de coerção
disponibilizados especialmente pela sociedade política. Num quadro em que o velho morre e o
novo não pode nascer, a crise de hegemonia é a expressão política da crise orgânica, o tipo de
crise que viabiliza uma ação revolucionária no ocidente. Entretanto, como tem um período longo
de maturação, a crise orgânica apresenta diferentes alternativas para a atuação dos intelectuais,
tanto os orgânicos quanto os intelectuais vinculados à classe hegemônica. Eis o cenário da guerra
de posição, cenário no qual não existe a possibilidade para esperar o dia em que o sistema
econômico ruirá, por conta de suas próprias contradições, e levaao chão também a ordem
política. (COUTINHO, 2003, p.151 - 152).
A distinção entre sociedade civil e sociedade política se presta
também para uma crítica ao fetichismo do Estado, da coerção e da força organizada e legalizada,
classificada na obra de Gramsci como estatolatria. A crítica a estatolatria, é realizada, portanto,
para evitar a perpetuação do Estado e de sua estrutura especialmente coercitiva. As questões
atinentes à hegemonia e ao consenso resultam numa análise que se afasta do debate político
voltado tão-somente para o Estado detentor do monopólio do uso da força, embora não a
subestime. Diante do risco de Estatolatria e de burocratização e fetichismo do Estado, Gramsci
reafirma a perspectiva de uma gradual reabsorção da sociedade civil pela sociedade política. O
Estado totalitário e policial fascista serve de exemplo de estatolatria, com a suplantação ou
incorporação das autonomias dos partidos, dos sindicatos e das associações culturais, por
exemplo (BUCI-GLUCKSMANN, 1990, p. 365, 371).
A condenação da estatolatria alcança o Estado Soviético, sendo
Gramsci contrário à idéia stalinista de fortalecimento do Estado, sendo contrário à
59
burocratização, à identificação entre partido e Estado, tendente à sustentação do aparato
burocrático do Estado. Reconhece, entretanto, que a estatolatria, pode ser importante para
sociedades que não se desenvolveram, em longo período, moral e culturalmente, para a
consolidação da própria sociedade civil. Porém, tal medida não pode ser perpétua, para que
possam surgir novas formas de organização social, até o alcance da sociedade regulada, residindo
aqui a crítica ao modelo stalinista de socialismo (GRAMSCI, 2000c, p. 280). A partir da
configuração da sociedade civil como campo da persuasão e do consenso, apresentar argumentos
contra o fetiche estadólatra significa, em Gramsci, crer na possibilidade de uma sociedade
regulada, sem a necessidade do aparato estatal, ou seja, da sociedade política para viabilizar a
vida em sociedade, com o fim da distinção entre governo e governados.
Com a análise da crescente autonomia da superestrutura, Gramsci
concretiza e supera o pensamento marxista acerca do fim do Estado. Uma demonstração da
superação é notável na atuação política e nos textos de Gramsci, nos quais declarou apoio ao
gradualismo e ao consenso que nortearam a nova política econômica no contexto da revolução
russa. Supõe-se, ainda, a partir crítica à estatolatria, a necessidade de um luta política no campo
das instituições socialistas, para que cesse a luta de classes, a divisão que a funda. Supera
também Lênin, que prevê, assim como Engels, um fim do Estado imediato com o fim da luta de
classes. Em suma, o fim do Estado se dá com a reabsorção do Estado pela sociedade civil. Com o
fim do Estado são extintos os organismos da sociedade política, conservando-se os organismos
da sociedade civil, os quais passam a ser portadores do autogoverno dos produtores
(COUTINHO, 2003, p. 135-141).
Dentro do conceito ampliado de Estado, encontramos a complexa
trama que relaciona diversos aspectos do pensamento gramsciano, de modo que o entendimento
das categorias teóricas elaboradas por Gramsci permite uma melhor compreensão do que é o
Estado ampliado, o Estado hegemônico do capitalismo contemporâneo de tipo ocidental. A
relação orgânica pautada no equilíbrio dinâmico entre sociedade civil e sociedade políticas, por
vezes dialeticamente relacionadas, é viabilizada pela ideologia, o cimento que garante unidade e
vinculação orgânica entre os componentes de um bloco histórico. O material ideológico é
produzido, e reproduzido, nas estruturas ou aparelhos ideológicos existentes na sociedade civil e
na sociedade política, com destaque para os aparelhos pretensamente privados de hegemonia. A
partir das estruturas ideológicas, atuam, para a criação e propagação de ideologias, os
60
intelectuais, que realizam o papel fundamental para um bloco histórico, servindo como
funcionários, como organizadores da hegemonia (BUCI-GLUCKSMANN, 1990, p. 52). Os
intelectuais de um bloco histórico operam para garantir o consenso, especialmente a partir da
sociedade civil, ou para aplicar a força complementar ao consenso, a partir da sociedade política.
Os intelectuais que lutam por hegemonia, os intelectuais orgânicos, operam a partir de estruturas
ideológicas contra-hegemônicas, dentre as quais é possível destacar o partido político concebido
por Gramsci, um sujeito coletivo constituído e representado pelas classes subalternas.
61
2 DIREITO: CULTURA JURÍDICA E HEGEMONIA
2.1 O direito em Marx e o direito em Gramsci: um avanço teórico
Na obra de Gramsci não encontramos uma teorização maior sobre o
direito, uma abordagem mais especifica do direito, embora possamos estabelecer uma análise
sobre o direito moderno a partir das categorias gramscianas. Gramsci, portanto, não ignora o
papel do direito na vida social, bem como o papel que venha a ter na construção de uma
sociedade que supere o mundo sustentado no capitalismo na sua cultura, e no modo de vida que
correspondente. Em se tratando de um teórico dedicado à análise não-economicista da sociedade,
da política e da cultura, não poderia o direito ser posto em uma condição completamente
marginal, mesmo porque, a partir das teses que estabeleceu a partir da análise do Estado
capitalista contemporâneo, são elaborados elementos teóricos para uma compreensão crítica do
direito. De acordo tradição marxista, a política é reflexo da estrutura econômica, de modo que as
relações jurídicas
Não podem ser compreendidas nem a partir de si mesmas, nem a partir do assim
chamado desenvolvimento geral do espírito humano, mas, pelo contrário, elas se
enraízam nas relações materiais de vida [...]. A totalidade dessas relações de produção
forma a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se levanta uma
superestrutura jurídica e política, e à qual correspondem forma sociais determinadas de
consciência (MARX, 1982, p.25).
Tal afirmação, entretanto, não pode implicar em abandono de um
estudo cuidadoso da superestrutura, embora esta seja deixada pelo economicismo marxista em
um plano secundário. Não se deve subestimar o papel do Estado, racionalizador da superestrutura
(GRAMSCI, 2000c, p. 28). O papel do direito na racionalização e organização da vida social não
pode, conseqüentemente, também ser subestimado. A observção é válida, se verificarmos o
exemplo histórico do papel do direito no curso do desenvolvimento das economias e dos estados
ao longo da modernidade. Assim como a moderna concepção de direito é relacionada com a
cultura e a estrutura produtiva do capitalismo, um novo tempo, no rumo da sociedade regulada,
62
não poderá simplesmente ignorar o direito e suas funções, que vem ser vinculadas a uma cultura e
modo de produção diverso.
Afasta-se, portanto, do reducionismo derivado de uma leitura não
dialética, dogmatizada, do pensamento marxiano, conforme reiteradamente referenciado ao longo
dessa dissertação. Trata-se de uma leitura que supera, dialeticamente, as definições e críticas
estabelecidas por Marx e Engels em relação ao direito burguês. É possível afirmar que o
caminho rumo à sociedade regulada passa pela elaboração de uma concepção renovadora de
direito não pode ser encontrada em nenhuma doutrina pré-existente. Considera, portanto, que
todo Estado cria e difunde costumes, bem como um novo Estado deve fazer desaparecer a
civilização que lhe precede, estabelecendo novos costumes. Para tal finalidade, serve o direito, ao
lado da escola e de outras instituições. O Estado tem, portanto, um papel de educador, e existe
para estabelecer civilização (GRAMSCI, 2000c, p. 28). O reconhecimento do papel do Estado
por Gramsci deve ser percebido sem olvidar a crítica à estatolatria, que pode nublar a vista para o
horizonte da sociedade regulada, sem Estado.
A contribuição marxiana que precedeu Gramsci não pode ser
desconsiderada para uma análise crítica do direito. A análise do Estado e do direito a partir de
Gramsci deve ter como pressuposto a teorização marxiana, a qual determina os fundamentos da
crítica gramsciana ao Estado originado pelas revoluções burguesas e pelas vias não-
revolucionárias de desenvolvimento do capitalismo. As diferenças entre a crítica gramsciana e a
crítica marxiana são, conforme mencionado, produto de uma superação dialética, e não de
contrariedades entre ambas. Desse modo, para melhor compreensão da relevância do pensamento
de Gramsci para a crítica ao direito moderno, é prudente apontar aspectos importantes da
contribuição da filosofia marxiana para tal crítica. É importante, para uma análise do direito a
partir de Gramsci e das possibilidades suscitadas pelas suas idéias, que sejam apresentados
aspectos sobre o direito em Marx.
Marx, assim como Gramsci, não desenvolveu uma teoria do direito.
É difícil encontrar em Marx uma teorização clara sobre o direito, encontrando-se ao longo da
obra referências fragmentadas acerca do tema (BOBBIO, 1994, p. 160). Ainda que não exista
uma proposta rigorosa e sistemática de teoria do direito em Marx, é inegável que a pluralidade
das formulações jurídico-marxistas contribui para formulação de teses sobre a filosofia e a teoria
do direito (WOLKMER, 2002, p. 156). A inexistência em Marx de uma teoria sistematizada de
63
direito, pois, não impede que se realize uma abordagem crítica do direito com base no
pensamento marxiano, que se constitui como principal referência para a teoria crítica do direito
fundada no materialismo histórico. Embora Marx tenha defendido os direitos humanos de
tradição liberal nos seus escritos lavrados entre 1843 e 1844, posteriormente desenvolveu uma
contundente crítica ao Estado e ao direito burguês, elaborando uma proposição de ruptura com a
tradição teórica moderna, caracterizada especialmente pela matriz contratualista, representada por
Hobbes, Locke e Rousseau (WOLKMER, 2005, p. 132, 138). Na crítica à filosofia do direito de
Hegel, se encontra um tratamento genérico, esparso e episódico sobre a temática jurídica
(WOLKMER, 2006, p. 208).
Encontra-se na crítica à filosofia do direito de Hegel a afirmação de
que a expressão maior e o conteúdo da constituição de um Estado é a propriedade privada, de
modo que o poder do Estado político sobre a propriedade privada é, portanto, o próprio poder da
propriedade privada. Para Hegel, segundo Marx, o direito de propriedade é um direito natural,
que se reflete na inserção de valores sociais e de determinações políticas no individuo natural. A
independência política é recebida não do Estado político, mas da propriedade privada abstrata.
Assim, a independência política não está na substância do Estado e sim na propriedade privada.
(MARX, s/d). A filosofia idealista é, conforme Marx, uma grande mistificação do mundo, que
pretende entender o mundo real, concreto, como manifestação da razão absoluta. Hegel inverte a
relação entre o que é determinante (a realidade material) e o que é determinado (as representações
e conceitos acerca dessa realidade).
Na obra A Questão Judaica, Marx apresenta uma contundente
crítica à concepção de direitos formais do homem, com matriz individualista e liberal,
explicitando o caráter alienante e negativo do direito moderno. O direito colocado na esfera
superestrutural identifica-se com o Estado, se caracterizando como manifestação estatal, servindo
como instrumento de domínio da classe que detém os meios de produção. A juridicidade
produzida pela estatalidade própria da sociedade capitalista, caracteriza-se pela generalização da
forma abstrata da norma e da pessoa jurídicas, o que possibilita a representação de unidade social,
ao mesmo tempo real e imaginária (MIAILLE, 1994, p. 96). Vale informar que Miaille realiza
uma crítica vigorosa e radical ao sistema jurídico capitalista, à luz dos referenciais marxianos. A
partir de uma ótica fundada no materialismo histórico, identifica e desmistifica os pressupostos
ideológicos presentes na juridicidade burguesa dominante, evidenciando o papel do jurídico na
64
dinâmica entre infra-estrutura e estrutura, bem como a função dos institutos do direito as relações
características da sociedade capitalista. Isso, sem o reducionismo que identifica o direito como
mero reflexo da infra-estrutura (WOLKMER, 2002, p. 22).
Para além da crítica aos direitos humanos de natureza formal e
liberal-individualista, percebe-se a possibilidade de um direito social, que contribua para a
superação das limitações políticas para emancipação política efetiva (WOLKMER, 2006, p. 208).
Sobre essa emancipação real, concreta, capaz de romper com os formalismos e o caráter
ideológico do direito originado do liberalismo, MARX (2001, p. 37) “Qualquer emancipação
constitui uma restituição do mundo humano e das relações humanas ao próprio homem”. A
emancipação política resultante das revoluções burguesas relaciona-se com uma redução do
homem que é, por um lado, membro da sociedade civil, capaz de nela realizar seu egoísmo e sua
independência, enquanto que na vida política, pública, é cidadão, pessoa abstrata (MARX, 2001,
p.37).
O direito, posto na esfera superestrutural, a esfera das ideologias, é,
em Marx, tratado como produto das relações materiais de produção, não possuindo autonomia
diante das relações econômicas que se estabelecem no modo de produção capitalista. Engels trata
como falácia a idéia dos juristas que concebem o direito com autonomia própria, fechado
formalmente em si mesmo, independente das relações materiais, das relações que o determinam
(WOLKMER, 2006, p. 210). O Estado político, com suas abstrações do conceito de liberdade e
com a distinção entre cidadão e homem real, se apresenta como uma oposição a vida real, de
modo que
Continuam a existir todas as implicações da vida egoística na sociedade civil, fora da
esfera política, como propriedade da sociedade civil. Onde o Estado político atingiu seu
pleno desenvolvimento, o homem leva, não no pensamento ou na consciência, mas
na realidade, na vida, uma dupla essência, celestial e terrestre. Ele vive na sociedade
política, em cujo seio é considerado ser comunitário, e na sociedade civil, onde age
como simples indivíduo privado, tratando os outros homens como meios, aviltando-se a
si mesmo em seu meio e tornando-se joguete de poderes estranhos. Em relação à
sociedade civil, o Estado político é verdadeiramente tão espiritual como o céu em
relação à terra. (...) Em oposição, no Estado, onde é olhado como ser genérico, o
homem é o membro ilusório de uma soberania imaginária, despojado da sua vida real, e
dotado de universalidade irreal (MARX, 2001, p. 22).
Nas declarações de direitos do homem e do cidadão, pelas quais se
pretendeu a libertação política, assim como a defesa e a garantia das liberdades, o que se têm,
65
conforme Marx, é a consagração do duplo aspecto da vida social dentro da perspectiva liberal:
direitos do homem e direitos do cidadão, apresentados como distintos direitos, voltados para
realização dos propósitos de classe da burguesia. Os direitos do homem são pertinentes a uma
existência privada e egoísta, protegendo a liberdade e a propriedade de eventuais conflitos com os
demais homens. O papel do direito é garantir estabilidade social, a qual, mesmo não sendo
completa e absoluta, dadas as contradições de classe existentes no mundo capitalista, se sustenta
na positivação e na defesa daqueles direitos tidos por naturais. A naturalidade do direito se
assenta na ordem social através do próprio direito positivo, que se constrói sobre bases
individualistas, restringindo-se aos interesses e conflitos de direitos entre indivíduos. Quem
realmente usufrui de direitos é o homem natural detentor da propriedade, um homem apolítico,
apartado do cidadão (MARX, 2001, p. 36). No mesmo sentido, ANDERSON (2002, p. 40),
afirma que
a forma geral do Estado representativo em uma democracia burguesa é ela própria
arma ideológica principal do capitalismo, cuja própria existência priva a classe operária
da idéia do socialismo como um tipo diferente de Estado, sendo que os meios de
comunicação e outros mecanismos de controles cultural reforçam, além disso, esse
“efeitoideológico central. As relações de produção capitalistas distribuem todos os
homens e mulheres em diferentes classes sociais, definidas pela desigualdade do seu
acesso aos meios de produção. Essas divisões de classes são a realidade subjacente ao
contrato de trabalho entre pessoas livres e iguais no plano jurídico, o que é marca desse
modo de produção. A ordem política e a ordem econômica são pois formalmente
separadas sob o capitalismo. Assim o Estado burguês, por definição, “representa” a
totalidade da população, abstraída da sua divisão em classes sociais, como cidadãos
individuais e iguais.
Sobre o homem real, Marx afirma: “membro da sociedade civil, este
homem é neste momento a base e o pressuposto do Estado político. Desta forma é reconhecido
nos próprios direitos do homem” (MARX, 2001, p.36). Os direitos dos cidadãos são constituídos
para consagrar uma existência dirigida para assuntos gerais, à vida pública, a uma formatação
universalista de sujeito abstrato voltado para questões mais universais. Parece claro que os
direitos referentes ao homem não são os mesmos dos direitos relativos aos cidadãos: enquanto
todos podem ser cidadãos, portadores de direitos formais e abstratos, os direitos, efetiva e
concretamente, são de uma classe, a burguesia, capaz de desfrutar de direitos limitativos dos
direitos dos demais (WOLKMER, 2006, p. 215-216).
A declaração francesa de direitos, datada de 1793, consagra, assim
como as demais declarações e constituições que a tenham como modelo, a concepção de homem
66
egoísta, o verdadeiro e autêntico homem burguês. Os direitos naturais de igualdade, liberdade, de
propriedade e de segurança. O conceito de liberdade consagrado na declaração possibilita que um
indivíduo possa fazer o que lhe for conveniente, desde que não cause prejuízos aos demais e não
extrapole os limites determinados na lei. Trata-se, pois, segundo Marx, de uma liberdade voltada
para si mesma, da liberdade essencialmente individualista e egoísta, que não se baseia nas
relações comunitárias possíveis entre os homens, mas na separação dos indivíduos. “É o direito
de tal separação, o direito do indivíduo circunscrito, fechado em si mesmo” (MARX 2001, p. 31,
32). Bernard ENDELMAN (1976, p. 131) afirma, conforme Marx, que
(...) o direito toma a esfera de circulação como dado natural; que esta esfera, tomada em
si como absoluto, não é outra coisa senão a noção ideológica que recebe o nome
hobbesiano, rousseauniano, kantiano ou hegeliano, de sociedade civil; e que o direito ao
fixar a circulação mais não faz que promulgar os decretos dos direitos do homem e do
cidadão; que ele escreve sobre o frontispício do valor de troca os sinais da propriedade,
da liberdade e da igualdade, mas que estes sinais, se lêem como exploração,
escravatura, desigualdade, egoísmo sagrado.
Diante da crítica marxiana, o exercício da propriedade privada não
implica numa realização autêntica da liberdade, mas na sua verdadeira limitação. O direito à
igualdade, consagrado nas declarações das revoluções burguesas, converte-se em desigualdade,
considerando o egoísmo inerente à concepção de liberdade. A liberdade constante das
declarações não faz mais do que engendrar desigualdades e confirmar as desigualdades
existentes, considerando que se relaciona a liberdade com uma igualdade meramente formal
(WOLKMER, 2006, p. 217). Na mesma declaração, o direito natural à segurança existe como
garantia para que o homem possa exercer seus direitos, e para que o Estado não venha a
intrometer-se nos direitos naturais. O conceito de segurança, nesse caso, tem dupla função:
garantir a propriedade e as liberdades, especialmente as contratuais e de livre empresa, no
convívio social, diante dos demais indivíduos e do próprio Estado. Eis o Estado gendarme,
voltado para a manutenção das relações materiais e das distinções de classe, bem como para
proteção das relações jurídicas e sociais originadas das relações de produção.
O direito burguês, vinculado ao Estado, existe em função da
necessidade de centralização do poder da classe hegemônica, especialmente porque tanto o
direito como o Estado são produtos das grandes contradições sociais e econômicas inerentes ao
modo de produção capitalista. A defesa e a proteção da propriedade privada e das liberdades
67
burguesas visam à redução e a limitação, dentro do direito, dos conflitos sociais, para garantir
estabilidade social em um modo de produção que apresenta em si uma tensão fundamental: a luta
de classes. Nesse sentido, CORREAS (2000, p. 75), afirma que o poder na sociedade capitalista,
que determina o direito da burguesia,
no tiene como causa al derecho. Este poder tiene como causa las relaciones de
producción; y una vez instaurado este poder, se autolegitima produciendo normas que,
si son obedecidas, confirma y acrecienta el poder. Por eso puede decirse que el derecho
engendra el poder. El poder del capitalista, y esto vale para la sociedad capitalista y no
necesariamente para otra, no proviene de que el discurso del derecho legitime la
violencia desatada en su favor ante cualquier perturbación de su decisión sobre la suerte
del capital. Su poder proviene de que sólo los capitalistas, como clase, como grupo que
en eso mantiene unidad y claridad, pueden poner en funcionamiento el sistema en su
conjunto.
Materializado na lei, o direito não é expressão de uma verdadeira
justiça, bem como não representa a vontade geral do povo. Os direitos, efetivamente, representam
os interesses das camadas detentoras do domínio econômico sobre a sociedade, servindo como
instrumento protetivo-repressivo, voltado para a manutenção das distorções econômicas e
injustiças materiais. O que o direito natural moderno expressa como verdade eterna, como a
liberdade e a justiça, são na verdade formas de manifestação de consciência de uma classe, de
uma parte da sociedade que alcança a totalidade da sociedade, apresentando-se como um ideal,
uma verdade comum para toda a sociedade, ao longo dos séculos. Os direitos dos homens, ditos
naturais, não são inatos ao ser humano, não são uma dádiva da natureza, mas fruto das
transformações históricas promovidas pelo homem (WOLKMER, 2006, p.210).
Para Marx, nenhum dos direitos do homem, de natureza burguesa, é
capaz de ultrapassar o egoísmo do homem membro da sociedade burguesa, do indivíduo voltado
para si mesmo, em sua arbitrariedade dissociada da realidade social. Tais direitos são marcos
exteriores aos indivíduos, uma limitação de sua independência primitiva, cujo único nexo de
coesão é a conservação de seus interesses particulares, de suas propriedades e de suas
individualidades egoístas. Marx apresenta em sua obra elementos críticos para a superação das
contradições entre os direitos do homem burguês, existente na sociedade civil, e os direitos do
cidadão abstrato, pertinente ao Estado político (WOLKMER, 2006, p. 218-220).
A filosofia marxista, mesmo não tendo sido destinada
especificamente para uma teoria do Estado e para uma teoria do direito, se coloca no cerne da
teorização crítica de matriz não-dogmática do direito, especialmente por conta de sua
68
importantíssima desmistificação do Estado moderno criado pela filosofia contratualista. O
vínculo entre a teoria do direito e a filosofia de Marx é estabelecido a partir da dedução de que a
crítica marxiana tem como alvo o direito burguês, e, indiretamente, os modelos de direito que
antecedem a modernidade. Não se trata, portanto, de um ataque contra todo o direito passível de
ser concebido nas sociedades humanas, de modo que é viável estabelecermos uma análise
jurídica propositiva, que não esteja restrita a denúncia de um determinado modelo de direito,
coercitivo e classista, desde que, para tal finalidade, seja considerada a historicidade e a dialética
presentes na obra de Marx.
A preservação do caráter dialético e historicista é fundamento para
o estudo do direito a partir da filosofia marxista, tendo como norte a busca por uma concepção de
direito que não seja ahistórico, própria dos modelos pretensamente eternos de direito natural.
Ainda, uma idéia de direito que se coloque para além da legislação, da identificação entre direito
e lei. Enfim, uma concepção de direito que considere o permanente contado com a vida social
concreta para ressaltar o seu intercâmbio permanente com as condições sociais reais. Um direito
que sirva para a verdadeira emancipação do homem não pode ser meramente formal, de modo
que seja criado em cima do contraponto ao modo de produção, o qual por si mesmo, viola
direitos, conforme a leitura de Marx feita por LYRA FILHO (1983, p. 61, 81). Em sua obra,
Marx apresenta elementos que remetem à construção de um novo conceito de humanismo,
distante dos formalismos do direito tradicional, conforme afirma WOLKMER (2006, p.220)
Em verdade, a análise e a interpretação de obras como A Questão Judaica contribuem
para repensar não só as deformações formalistas do direito em geral de tradição liberal-
individualista e da inautenticidade da chamada doutrina burguesa dos direitos humanos,
abstratos e universais, mas, sobretudo, para propor uma filosofia da práxis
impulsionadora do direito como instrumental da justiça humanizada e da emancipação
social concreta.
É marcante no marxismo gramsciano a defesa recorrente de uma
abordagem dialética e historicista da realidade, que não enverede pelo caminho dos dogmatismos
e reducionismos teóricos que nublam a vista na análise do mundo a partir do pensamento
marxista. Partindo de uma estratégia política que não desconsidera Maquiavel, cruzada com os
fundamentos marxistas de sua teoria, Gramsci entende que o Estado e o direito não devem ser
aprisionado nos estreitos limites do maniqueísmo escolástico presente em parte dos marxistas.
Reconhece que o Estado possui uma finalidade pedagógica, estendida ao direito, que pode servir
69
para estabelecer um novo e mais desenvolvido tipo de sociedade, considerando a capacidade do
Estado de adequar a nova e avançada sociedade à moralidade das massas e ao desenvolvimento
econômico includente.
Se em Marx encontramos, com base na denúncia do caráter classista
do direito e do Estado, elementos para uma contundente crítica ao direito moderno e para a
construção de uma nova juridicidade, a partir de Gramsci a crítica ao direito pode receber um
incremento teórico. O reconhecimento das funções do direito e do Estado, dentro do processo de
transformação da sociedade, não é renúncia ou contradição diante da matriz filosófica marxiana:
a crítica ao aparato político e jurídico voltado para a conservação do poder de classe recebe de
Gramsci novos contornos. O Estado e o direito que lhe corresponde, voltados para a coerção, são
classificados no contexto do Estado em sentido estrito, dentro da idéia de Estado ampliado. O
direito é, assim como em Marx, visto como instrumento para a manutenção de poder, produzido e
aplicado pela sociedade política. O direito é sustentado pela coerção estatal, mas não somente por
esta coerção. Mesmo que sirva principalmente para garantir o consenso, pela força, pode também
servir como elemento do próprio consenso, considerando sua relação com a ideologia orgânica
que está na base hegemonia.
As considerações sobre a sociedade civil e a sociedade política (as
duas instâncias, é bom lembrar, situadas por Gramsci na superestrutura), e os modos de interação
entre ambas, tendo em vista a dualidade entre coerção e o consenso, podem suscitar uma crítica
mais complexa sobre os papéis do Estado e do direito. Assim, o direito é, por um lado,
identificado com o Estado burguês, com a coerção destinada a manutenção da ordem social e da
base econômica, conforme a tradição marxista. O direito não exprime toda a sociedade, mas a
classe dirigente que impõe normas. “A função máxima do direito é pressupor que todos os
cidadãos devam aceitar livremente o conformismo assinalado pelo direito, de vez que todos
podem se tornar elementos da classe dirigente” (GRAMSCI, 2000c, p. 249). O Estado, e o direito
por ele produzido, não podem ser abordados como simples instrumentos da burguesia, mas como
conciliadores, no plano jurídico, das dissensões internas das classes, dos desacordos entre
interesses opostos, unificando as camadas sociais e modelando a classe inteira da qual é
expressão. O Estado o é, pois, elemento externo a classe, neutro: é o unificador jurídico-
político, não um simples instrumento (BUCI-GLUCKSMANN, 1990, p. 172).
70
A crítica gramsciana é destinada especialmente ao modelo de
Estado e de direito burgueses, fundados nas relações de produção capitalistas. Sobre o Estado e
concepção do direito que o acompanha, afirma que as revoluções burguesas levaram à vontade de
conformismo e a eticidade do Estado e do direito. Enquanto as castas dominantes na história
antecedente operavam como castas fechadas, não ampliando sua classe pelo domínio ideológico,
a burguesia se expandiu, buscou absorver toda a sociedade. Nessa expansão da burguesia, o
Estado passou a ser educador. (GRAMSCI, 2000c, p. 271). Entretanto, Gramsci, mesmo
considerando o papel do Estado (educador) na construção de uma nova civilização, estabelece
ressalvas sobre o risco da estatolatria, que pode levar a burocratização e a criação de novas
instâncias de poder, de novas aristocracias estatais detentoras do poder de coerção. Assim,
mesmo que se preste para a educação de uma nova civilização, não pode existir Estado ad
eternum. Trata-se, também, do amparo coercitivo para a classe que busca a hegemonia, conforme
a teoria do Estado ampliado, se prestando, no processo de transição, como uma nova
institucionalização da força voltada para garantir um novo consenso, sob uma nova hegemonia,
no rumo da sociedade regulada.
Por outro lado, o direito relaciona sociedade política e sociedade
civil não pela força, mas pelo consenso. O direito que se manifesta na legalidade do Estado, na
essência coativa da sociedade política, se assenta na sociedade civil como idéia, como noção de
direito e de justiça, produto das ideologias jurídicas, originando conformismo sobre o que seja o
direito, a justiça e os fundamentos da legalidade. A relação entre o direito e a sociedade civil
também suscita uma compreensão emancipatória de direito, considerando que nesta relação se
encontra a possibilidade de construção de uma juridicidade pluralista, capaz de superar a
identificação entre o direito e o Estado, especialmente sustentada nas sanções. Trata-se da
possibilidade de um direito fundado no consenso, na práxis cotidiana da sociedade civil. Como o
consenso age sobre cada um? Como a necessidade de coação se transforma em liberdade? Estas
são as questões que fundam o direito, cujo conceito, para Gramsci, deverá ser ampliado incluindo
atividades que até então estavam no indiferente jurídico, de domínio da sociedade civil, que atua
sem obrigações taxativas e sem sanções, mas que nem por isso deixa de exercer pressão
ideológica sobre todos (GRAMSCI, 2001c, p. 23). No que tange ao binômio coerção e consenso,
elementos da pressão ideológica, e sobre o peso do aspecto coercitivo no Estado burguês e no
direito, ANDERSON (2002, p.59) escreveu que no sistema político
71
As condições normais de subordinação ideológica das massas – a rotina diária da
democracia parlamentar são elas próprias constituídas por uma força silenciosa e
ausente que lhes o seu valor: o monopólio da violência legitimada pelo Estado.
Desprovido dessa força, o sistema de controle cultural seria instantaneamente
fragilizado, caso os limites das ações possíveis contra ele desaparecessem. Com a força,
o sistema de controle cultural dispõe de um poder imenso tão poderoso que pode
paradoxalmente passar “sem” ela: com efeito, a violência deve apenas aparecer nas
fronteiras do sistema.
Não obstante, o direito a ser construído para a superação dialética
da tradição jurídica insere-se na luta pelo estabelecimento de um novo consenso na sociedade
civil, derivado da ideologia orgânica que lhe serve de base, a filosofia da práxis. A compreensão
e a atuação para renovação do direito não deve se deter aos limites da sociedade política, afinal,
conforme escreveu Gramsci em sua época de jornalista militante, não devem os socialistas
promover a substituição de uma ordem por outra, realizando uma mera reestruturação do poder
centralizado no Estado. A proposição gramsciana busca a superação do direito correspondente ao
estágio econômico-corporativo, incapaz de superar as dualidades entre cidadão e sujeito concreto,
entre a igualdade e a liberdade formais e as distorções originadas pelo modo de produção. A
superação de um direito de matriz liberal remete a afirmação gramsciana de que, para os
trabalhadores, o liberalismo se apresenta como uma idéia mínima, enquanto que para o burguês, é
uma idéia limite, base para o Estado ético (BUCI-GLUCKSMANN, 1990, p.170).
Sendo o liberalismo idéia mínima para os trabalhadores, a busca de
uma democracia socialista para a concreta emancipação humana não deve ignorar as conquistas
jurídico-políticas originárias das revoluções burguesas, antes da consolidação de um liberalismo
conservador. O próprio Gramsci alerta que condenar todo passado filosófico como delírio e
loucura é um erro anti-histórico, um resíduo de misticismo: o fato de sistemas filosóficos terem
sido superados não significa que não tenham sido historicamente válidos, que não tenham
cumprido sua função (GRAMSCI, 135a, 2000). Repete Lênin em sua idéia de que quanto mais
desenvolvida a democracia burguesa fosse, mais facilmente os trabalhadores perceberiam novas
aspirações de democracia capazes de superar o modelo liberal-burguês.
De todo modo, além de ter cumprido sua função histórica, a
juridicidade de cunho liberal-individualista traz em si mesma elementos que servem de base para
a sua superação dialética, pautada na filosofia da práxis. As conquistas civilizatórias da
modernidade, como a democracia, a liberdade e a igualdade não são negadas por Gramsci, muito
72
pelo contrário: são tomadas como ponto de partida, não mitificado, idealizado, considerando que
é reconhecida a historicidade, não a naturalidade, desses princípios político-jurídicos. Adquirem
tais princípios novos conteúdos, incorporam a materialidade de que carecem as construções
jurídicas da modernidade ocidental. Pretende-se, pois, a realização emancipatória do direito,
capaz de superar a distinção entre o mundo do direito, formal, e a concretude da vida social.
Aqui, ainda, cabe a reafirmação da tese marxiana: a verdadeira liberdade, a concreta igualdade e
a democracia efetiva só se consolidam a partir da superação da propriedade privada, e das
contradições sociais suscitadas pela mesma, base de um ordenamento jurídico essencialmente
protetivo-repressivo. Sobre o historicismo e o caráter dialético e progressista que o caracterizam,
presentes na concepção crítica de direito, com a ressalva de que, a partir de Gramsci, a
transformação gradual possa ser revolucionária e não somente reformista, PISTONE (1997, p.
584) afirma que
A historização das instituições e dos valores políticos em relação à evolução do modo
de produção, proposta pelo materialismo histórico, possui um significado político
evidentemente progressista. Com efeito, esta orientação teórica, embora critique o
racionalismo abstrato do jusnaturalismo moderno, aceita sua tendência racionalista
fundamental, que se traduz numa crítica às instituições existentes do ponto de vista das
possibilidades racionais do homem, e lhe acrescenta a consciência de que o progresso
rumo a instituições cada vez mais racionais é condicionado pela evolução histórica das
estruturas econômicas e sociais. De resto, a atitude progressista do historicismo de
origem marxista pode assumir um pensamento revolucionário ou reformista, segundo
que o desenvolvimento econômico-social e, conseqüentemente, político, seja concebido
como um processo que se desenrola através das contradições e rupturas, ou então como
evolução gradual.
Na ótica historicista de Gramsci o direito de uma nova civilização
se relaciona com a práxis voltada para a potencialidade do momento catártico, para saída da
manipulação para a transformação. O direito de uma sociedade capaz de superar as contradições é
resultante da catarse promovida pelas classes subalternas, necessária à passagem do momento
econômico, caracterizado pelo egoísmo passional, para o estágio ético-político. Passagem do
objetivo para o subjetivo, da necessidade para liberdade, um salto para fora do determinismo
econômico, em busca da concreta liberdade política (COUTINHO, 2003, p. 90-91). No mesmo
sentido, para Marx, nenhum dos chamados direitos do homem é capaz de ultrapassar o egoísmo
inerente à sociedade burguesa, na qual o indivíduo é voltado para si mesmo, sendo os direitos
marcos exteriores aos indivíduos. Verifica-se uma limitação da independência primitiva do
73
homem, com o escopo de conservar os seus interesses particulares, as suas propriedades e as suas
individualidades egoístas (WOLKMER, 2006, p. 215 216). Para Gramsci, assim como entende
Marx, a proclamação dos direitos do homem e do cidadão, como emancipação política,
representa apenas uma etapa da dinâmica histórica.
Alcançar o estágio ético-político é viabilizar a realização do direito
que produza leis não sustentadas somente na força, na coação organizada. A legalidade,
resultante da superação das distinções de classe, se pauta na solidariedade e na realização da
autonomia dos indivíduos, não compreendidos a partir da miopia egoísta, capazes de realizar seus
direitos e deveres não por medo da coação. Na superação das limitações postas pela
“naturalidade” dos princípios jurídicos, contraposta pelo reconhecimento da historicidade
inerente ao mundo do direito, os direitos de cunho liberal-individualista são desnaturalizados,
ultrapassando as limitações jurídico-formais. A igualdade e a liberdade, por exemplo,
alcançariam, sua plenitude, de modo que o objetivo desse direito novo é instaurar a ordem em si,
com a máxima jurídica pautada na possibilidade de integral realização do ser humano, para todos
os cidadãos. Em se concretizando esta máxima, caem por terra todos os privilégios existentes na
sociedade liberal-burguesa. Busca-se o máximo de liberdade com o mínimo de repressão
(Gramsci, 1979, p. 54). Vale mencionar ARRUDA JR (1997, p. 17), na seguinte manifestação:
Não foi Gramsci o primeiro a exigir uma revolução moral e ética como condição
primeira para toda mudança que se queira duradoura e democrática? Não foi Gramsci o
primeiro a enfatizar que a transformação se primeiramente na sociedade civil, antes
de constituir uma dominação do Estado? (ARRUDA JR, 1997, p. 17).
Encontramos em Gramsci a seqüência da filosofia humanista
marxiana, caracterizada pelo rompimento com o conceito formal de liberdade, individualista e
minimizador das contradições existentes na sociedade, e pelo estabelecimento das bases para a
busca de uma práxis concreta e emancipatória (WOLKMER, 2005, p. 134). O direito, para ser
verdadeiramente atrelado à práxis dos sujeitos sociais, deve ser expressão integral de uma
sociedade, não se reduzindo a um conjunto de regras de conduta que regulam a intervenção do
Estado na vida social. Deve, ainda, ter uma função renovadora, livre de resíduos transcendentais,
absolutos e moralistas. Para a realização de suas funções renovadoras, para ser educador em uma
nova sociedade, o caráter punitivo do direito, mesmo que este subsista, num período de transição,
deve perder a centralidade (SIMIONATTO, 1995, p. 157). Assim, uma concepção renovadora de
74
direito não pode ser encontrada em nenhuma doutrina pré-existente, ainda que se reconheça o
papel das filosofias ao longo da história. Se todo o Estado (dentro do conceito ampliado) cria e
difunde costumes, um novo modelo de Estado faz desaparecer uma civilização que lhe precede,
estabelecendo novos costumes. Para tal finalidade, essencialmente educativa, se presta o direito,
ao lado da escola e de outras instituições. No entanto, o direito, surgido de uma concepção
renovadora, deve se despir do moralismo, embora não possa deixar a idéia de que o Estado o
pune. Entretanto, O caráter criativo e formativo do direito não subsiste diante dos intelectuais
espontaneístas e do racionalismo que crê numa certa “natureza humana”, otimista e superficial
(GRAMSCI, 200c, p. 28, 250).
A função coercitiva do direito permanece inerente, necessária ao
Estado. Gramsci afirma que “o direito é o aspecto repressivo e negativo de toda a atividade
positiva de educação cívica desenvolvida pelo Estado” (GRAMSCI, 2000c, p.28). Em virtude da
negatividade da sanção, defende, ainda, que à concepção de direito deveriam ser incorporadas
atividades, ações, que premiam indivíduos. De qualquer modo, em Gramsci direito não se
confunde com sanção, e as funções do direito se colocam em um patamar diferente do direito
liberal-burguês, afastando-se do caráter meramente repressivo-protetivo. Ao afirmar que a
concepção verdadeiramente renovadora de direito deve estabelecer novos costumes, relaciona o
direito com as realizações das classes subalternas. Aos sujeitos históricos capazes de estabelecer
uma nova juridicidade, se destina a tarefa de estruturar, pela atuação de seus intelectuais
orgânicos, especialmente a atuação do “moderno príncipe”, uma nova hegemonia, capaz de
implantar e levar adiante um projeto de sociedade voltado para assimilação de toda a sociedade,
para levar o Estado e o direito a serem reabsorvidos pela sociedade civil, o fim último do
historicismo gramsciano (GRAMSCI, 2000c, p. 249). A reabsorção, entretanto, se dá, através de
um processo de longo prazo, no qual o Estado passa da identificação como governo, a partir da
sociedade política, para uma identificação com a sociedade civil, com o desaparecimento gradual
da coerção em favor de um Estado ético, sendo o conceito de direito transformado nesse processo
(BUCI-GLUCKSMANN, 1990, p. 359).
75
2.2 Ideologias jurídicas hegemônicas na modernidade
Primeiramente cabe mencionar que, para melhor compreensão das
relações possíveis entre a obra de Gramsci e a teoria crítica do direito, é importante a abordagem
do direito a partir da articulação das categorias teóricas por ele elaboradas. Das relações possíveis
entre as categorias é que se torna perceptível a significativa contribuição gramsciana para uma
elaboração crítica do direito, bem como o delineamento de estratégias de atuação para que a
crítica não se detenha somente no campo teórico, condenada à esterilidade, e seja capaz de servir
de referência para a compreensão do direito e para a prática jurídica, conforme veremos ao longo
do texto.
A ideologia, para Gramsci, não se apresenta como mero reflexo das
relações estruturais, possuindo relativa independência diante das determinações econômicas,
sendo “elemento material disseminado ou componente inconsciente necessário nas práticas de
representações das instituições” (WOLKMER, 2000, p. 99). Embora considere aspectos
negativos dentro da sua conceituação de ideologia, esta é voltada, principalmente, para a função
das idéias na vida social, conforme apresentado no primeiro capítulo (EAGLETON, 1997, p. 16).
Considerando a centralidade que ocupa a ideologia na sua produção intelectual, e a herança
marxista que carrega, ainda que não se limite à definição de mera falsidade, de falsa crença, é
possível dizer que Gramsci se enquadra no que BOBBIO, citado por STOPPINO (1997, p. 585),
denomina de conceito forte de ideologia. Ainda, é uma conceituação forte porque não se restringe
a neutralidade conceitual de ideologia, presente nas concepções jurídico-políticas tradicionais que
se constituem como paradigmas do pensamento jurídico moderno, a saber, o jusnaturalismo e o
juspositivismo. As relações estabelecidas entre coerção e consenso, entre ditadura e hegemonia,
são expressão de práticas sociais determinadas por ideologias, as quais expressam e constituem,
segundo a definição contundente de MACCIOCHI (1980, p. 151), um sistema ideológico.
Esse sistema ideológico envolve o cidadão por todos os lados, integra-o desde a
infância no universo escolar e mais tarde no da igreja, do exército, da justiça, da cultura,
das diversões, e inclusive do sindicato, e assim até a morte, sem a menor trégua; essa
prisão de mil janelas simboliza o reino de uma hegemonia, cuja força reside menos na
coerção que no fato de que suas grades são tanto mais eficazes quanto mais invisíveis se
tornam.
76
Nesse contexto se enquadra o direito, identificado materialmente
nas estruturas político-jurídicas, que por sua vez reproduzem, e também criam, ideologia jurídica,
tanto na sociedade civil quanto na sociedade política. As concepções filosóficas se desdobram em
concepções jurídicas e políticas que, ao longo da modernidade, se consolidaram como
hegemônicas, entranhadas que estão no senso comum das democracias ocidentais. Não
olvidemos, ainda, as possibilidades contra-hegemônicas dentro da teoria do direito e nas atuações
dentro de espaços blicos existentes na sociedade civil e na sociedade política. A leitura da
ideologia realizada por Gramsci é dialética, oscilando entre os pólos da alienação (compreensão
negativa) e da emancipação, “como processo contraditório passível de negação positivadora de
uma nova ordem” (ARRUDA JR. 1997, p. 32).
O aspecto ideológico do direito pode ser abordado a partir da
análise da vinculação entre o mundo do direito e as ideologias orgânicas que o conceberam, de
modo que ideologia e direito não se encontram em duas esferas estanques, “cientificamente”
incomunicáveis, afastados pela neutralidade científica pretendida pelos juspositivistas. Portanto,
sobre as ideologias orgânicas, pertinentes ao modus vivendi das classes dominantes que se
estende como dominação ideológica sobre as classes subalternas, é erigido o direito moderno. Em
se tratando da tradição jurídica da modernidade, os referencias filosóficos, fundamentos para as
ideologias orgânicas que determinam o pensamento jurídico hegemônico, são derivados da
filosofia liberal-burguesa, ou seja, do contratualismo, e do juspositivismo.
Nesse sentido, o processo de construção da modernidade jurídico-
política, e, conseqüentemente, da filosofia liberal e contratualista correspondentes, servem de
base ideológica para a utopia democrática do século XIII, na qual está presente a concepção
moderna de direito. Os costumes, o modo de vida da burguesia, no longo espaço de tempo em
que se consolida a ruptura com o mundo medieval, antecedem a construção do direito moderno.
As revoluções contra o absolutismo já se inseriam no costume da classe ascendente, como
aspiração e como práticas sociais, das quais grande parte se tornou direito, ou mais: fundamento
para a concepção de juridicidade na modernidade. Com as mudanças nas relações sociais, a partir
da atuação da burguesia em busca da hegemonia, e das desigualdades culturais e econômicas, o
caráter obrigatório do direito veio a aumentar, no contexto de formação dos estados e das
soberanias nacionais, aumentando a zona de abrangência estatal (GRAMSCI, 2000c, p. 249).
77
A idéia gramsciana de ideologia remete a um determinado conjunto
de práticas, interesses manifestos e aspirações sociais, econômicas e culturais de uma classe
social, que fundamentam princípios que repercutem no conjunto da coletividade e da vida social,
na medida em que seja esta classe social capaz de estabelecer sua hegemonia sobre as demais
classes. Esse conceito de ideologia é relevante para que percebamos como se desenvolve
historicamente as ideologias burguesas, incluindo o direito moderno, partindo de uma longa luta
contra-hegemônica no meio da Idade Média, para consolidar sua hegemonia séculos depois, com
as revoluções liberais.
Em 1184 d.C., na cidade francesa de Châteauneuf, revolucionários assumiram o
controle dos principais edifícios, anunciando que protestavam contra impostos,
extorsões e restrições à sua liberdade de trabalhar e comerciar. Instados a renunciar à
“comuna ou conjura...que construíram”, recusaram-se. Passou-se um ano antes que a
ordem fosse inteiramente restabelecida e, mesmo assim, persistiram os boatos sobre
conspirações, tramas e sociedades secretas. Os revolucionários eram, nas palavras do
Papa, “os chamados burgueses”, ou, nas palavras do arcebispo, potentiore
burguenses”, ou, poderosos burgueses (TIGAR; LEVY, p. 19, 1978).
As revoluções liberais são, portanto, o ponto culminante, o golpe de
misericórdia, que estabelece um novo bloco histórico no lugar do velho mundo, que começara a
ruir, definitivamente, ainda que em um processo longo, com o renascimento cultural e a reforma
protestante. A ideologia dos burgueses é, entretanto, gerada e, principalmente, vivenciada, num
modo de vida questionado e alvo da ideologia dominante, vinculada à hegemonia da Igreja
Católica. O mercador, quando surgiu na Europa, por volta do ano 1000, era alvo de ataques dos
senhores feudais e de membros do clero. Os “pés sujos” atravessavam as cidades, vivendo do
comércio e do lucro auferido (TIGAR; LEVY, p. 20, 1978). São portadores, e realizadores, de
uma nova cultura, vislumbram uma ordem econômica que lhes garanta liberdade para comerciar
e aumentar seus ganhos, numa perspectiva individualista que destoa na realidade das corporações
de ofício. Tais expectativas, como veremos, culminaram com as teses filosóficas que fundam o
direito moderno, as quais correspondem às ideologias vinculadas aos interesses da burguesia,
cabendo aqui observar que as idéias, as filosofias, não nascem umas das outras, mas do
desenvolvimento histórico real (GRAMSCI, 2000a, p. 256).
A construção da hegemonia cultural da burguesia inicia-se na luta
contra-hegemônica contra o bloco histórico sustentado pelo domínio cultural da Igreja, apoiada
na nobreza feudal agrária. A coesão cultural e política na Idade Média, num quadro em que
78
encontramos uma pluralidade de feudos e de senhores, foi garantida pela hegemonia da Igreja,
que mantinha a unidade social pelas estreitas ligações entre os feudos a partir da unidade
religiosa, de uma única religião, o catolicismo (DAL RI, 2002, p. 39). PECES-BARBA, citado
por WOLKMER (2006, p. 103), define o homem burguês como:
O habitante do burgo, da cidade, com atividades de mercador, de artesão, de
funcionário, de advogado ou de homem de letras, com direitos reconhecidos na Cara
Jurídica de seu município (...). De burgueses, como habitantes das cidades, passaram a
ser burgueses cidadãos (...). A burguesia mais representativa do nascente espírito
capitalista era uma burguesia da cidade, ainda que existisse (...), uma burguesia agrária
e campesina, proprietária de terras (...).
Eis os novos sujeitos históricos, os novos intelectuais, que
estabelecem materialmente as ideologias que norteiam a modernidade ocidental, uma nova ordem
social e cultural. Sujeitos que realizam uma nova perspectiva cultural e econômica ao mesmo
tempo em que realizam a mercancia, considerando que ambas são indissociáveis. Se estabelece,
política, econômica e culturalmente, um novo grupo social essencial, que por sua vez encontrou
categorias intelectuais pré-existentes: os quadros que compunham o clero. Essa categoria de
intelectuais ligados à aristocracia fundiária, sua aliada, com a qual dirigia o exercício da
propriedade feudal e os privilégios correspondentes, e diante dos quais a burguesia se apresentava
como contra-hegemônica (GRAMSCI, 2000b, p.16).
A burguesia assume a condição de classe significativa
historicamente, exercendo um papel importante para a ruptura com o medievo. Isso, num período
em que o mundo vivencia um desenvolvimento cultural e científico, que superam os limites do
dogmatismo medieval, caracterizando o mundo novo que surgia: secularizado, racionalista e
antropocêntrico. Do projeto da modernidade, resultam as revoluções burguesas, baseadas no
contratualismo e no iluminismo. São estabelecidos os fundamentos jusfilosóficos que serão
incorporadas ao jusnaturalismo moderno. A religião deixa de ser a forma ideológica dominante,
com a Igreja perdendo sua função de guia, ocorrendo no período a reforma protestante, que acaba
com a unidade cristã medieval. Ocorre a separação de tudo o que fora unificado na Idade Média:
a razão separa-se da fé, assim como a filosofia se afasta da teologia; o Estado separa-se da Igreja;
a natureza e o homem separam-se de Deus. Emerge a ética individualista do liberalismo, baseada
na noção de liberdade em diversos aspectos da vida: filosofia, economia, política, religião... A
79
filosofia do período busca dar a justificação natural para o novo mundo nascente (WOLKMER,
2006, p. 105-108).
Os interesses, os anseios e as práticas constituem um modo de vida
que se tornou, conforme o exposto, incompatível com a realidade cultural e econômica do
medievo, o individualismo não pode se sustentar num mundo de caráter corporativista, o modelo
de economia pautado no mercantilismo não combina com uma sociedade agrária e senhorial. As
taxas e impostos que cada feudo cobrava, conforme a vontade senhorial, num contexto de
diversidade de feudos, prejudicava o trânsito de mercadorias, que se comprometiam também pela
multiplicidade de pesos e de medidas. A lógica do novo modo de produção requeria uma
organização política centralizada, capaz de estabelecer as leis que para garantia da segurança e da
precisão nas relações de comércio. A justificação filosófica para o mundo emergente surge com
os filósofos contratualistas e liberais, capazes de justificarem e de sistematizarem com coerência
e sofisticação filosófica as idéias e práticas pertinentes ao novo mundo. Servem, ainda, para
atestar a falência do Estado absolutista, e para apontar a necessidade de um passo adiante na
consolidação da hegemonia de uma classe, no rumo das democracias formais que moveram os
espíritos revolucionários. A abordagem historicista da filosofia, realizada por Gramsci, pertinente
para análise da construção da modernidade, coloca na base da filosofia a vontade racional. A
vontade atuante por um largo tempo serve de base para a filosofia, se converte em referencial
ideológico, se torna cultura, bom senso difuso, capaz de se converter em norma ativa de conduta
(GRAMSCI, 2000a, p.202).
A modernidade no direito chega norteada pelo princípio da
calculabilidade, sistematizado e organizado para livrar o comércio das incertezas, e dos riscos. A
organização e sistematização não encontram parâmetro na história, ainda que possamos encontrar
no direito moderno categorias e institutos característicos do direito romano (CAPELLA, 2005, p.
130). Esse direito é justificado na filosofia contratualista, que assegura a “naturalização” daqueles
interesses e daquelas aspirações e práticas que vinham se realizando pela burguesia ao longo dos
séculos. Trata-se da principal tendência de cunho idealista do pensamento jurídico ocidental, pela
qual se defende a idéia de um direito imutável que se coloca para além da legalidade posta pela
autoridade, mas que, sendo natural, se presta como norte para a regulação da vida social,
incluindo as leis positivas (WOLKMER, 2000, p. 154-155). As vontades da nova classe
hegemônica se convertem em filosofia, sendo possível, conforme CAPELLA (2002, p. 104),
80
estabelecermos um vocabulário mínimo acerca do relato político moderno, com implicações
diretas na conformação do direito. Segundo o autor citado, seriam indispensáveis as seguintes
definições: indivíduo, estado de natureza, esfera pública e esfera privada, direitos, pacto,
cidadania, povo e representação. Todas constituindo elementos determinantes da racionalidade
moderna, antropocêntrica e individualista, de matriz renascentista, na qual a razão liberal-
burguesa substitui a fé.
A razão de uma classe social é sacralizada, e determina a
racionalidade moderna. A vontade de uma classe social, pela atuação dos intelectuais que a
representam, se torna natural e “a natureza fornece ao político um modelo que nem o legislador
nem o magistrado devem perder de vista para não correrem o risco de atentar ao mesmo tempo
contra a essência do político e a essência da justiça” (GOYARD-FABRE, 2002, p. 32). A partir
de então o homem é naturalmente egoísta, na perspectiva individualista de Hobbes, posto à
margem da sociabilidade (CAPELLA, 2002, 104-105). O pacto capaz de superar um estado de
natureza cruel, para Hobbes, serve para a centralização do poder, para introduzir a certeza da lei e
a razão, onde impera a violência. Eis aí, outro aspecto da mitologia moderna: a concepção do
Estado de natureza, uma concepção abstrata pela qual Hobbes pretende legitimar o poder
soberano, forte e centralizado. Locke, por sua vez, demonstra em seu estado de natureza que a
propriedade privada, assim como o trabalho assalariado e a acumulação, direitos naturais diante
dos quais, “o artificial poder político não estará legitimado a interferir neles” (CAPELLA, 2002,
p. 106).
Desse estágio preliminar à instituição do Estado, Rousseau oferece
sua concepção de pacto, como passagem de uma instância para outra, do hipotético estado de
natureza, à organização política sustentada pela democracia representativa e formal, capaz de
retirar a soberania da figura do monarca hobbesiano, e colocá-la formalmente nas mãos do povo,
capaz de realizar sua vontade através da representatividade parlamentar (CAPELLA, 2002, p. 109
– 116). O estabelecimento de duas esferas viabiliza, na modernidade, que as desigualdades
materiais subsistam ao lado da igualdade e da liberdade, que se limitam ao campo formal,
conforme vimos na crítica marxiana. Todos são diferentes, capazes de se realizarem enquanto
indivíduos egoístas, na esfera privada, bem como todos são iguais na esfera pública, que
estabelece um standard de homem, abstrato, cidadão.
81
Com as revoluções burguesas a ideologia liberal-individualista se
enraíza no direito, oferecendo conteúdo à idéia dos ditos direitos naturais. A liberdade que se
sustenta na limitação de todos ao âmbito da legalidade, estabelece como finalidade principal um
Estado que serve para garantir os direitos individuais de cada um, para que cada homem possa
realizar a livre iniciativa, em busca de realização pessoal que se converte, conforme o ideário
liberal, em benefício para a sociedade, conforme NOVOA MONREAL (1988, p. 99):
De acordo com princípios liberais-individualistas, será livre a ão dos indivíduos
impulsionada pela livre iniciativa e pelo espírito de lucro, amparada pelas garantias
individuais e a liberdade de indústria e comércio, apoiada no direito de propriedade
privada e com toda as possibilidades que a liberdade de contratação a que
promoverá a melhora e o progresso de toda da humanidade. Do livre jogo da atividade
dos indivíduos surgirá uma sociedade cada vez mais adiantada, mais rica em seus
indivíduos e, por conseguinte, em seu conjunto.
Entretanto, a ideologia do direito natural tem um conteúdo
cambiável, conforme a força histórica que o movimenta: se no último bloco histórico é a
burguesia, em outro foi o clero quem atribuiu conteúdo para o conceito natural de direito. Assim,
jusnaturalismo defende um ideal eterno de direito, imutável, o qual, no entanto, é mutável ao
longo da história, é afetado pela historicidade secular das vontades que buscam fundamentação
metafísica para o direito. A variedade de referências, de fundamentos essenciais para o direito
natural, serve como comprovação da historicidade dos discursos que o fundamentam, ainda que o
fim último seja a concepção de uma idéia de direito que se coloque além da história. Assim,
como idéia-força do jusnaturalismo, na Antigüidade se encontra a natureza, o nomos, com
cuidado de mencionar ambigüidade do termo nomos, que, segundo GOYARD-FABRE (2000, p.
7), pode ser utilizado tanto para nomear a ordem dos homens, quanto para designar uma ordem
divina, ou seja, tanto a lei da cidade quanto a lei natural. A vontade divina, no medievo; e, na
última concepção, a razão humana, ou melhor, a razão de uma classe que se torna razão
universal, consolidando sua hegemonia na modernidade ocidental.
A modernidade no direito é, portanto, construída com a reedição de velhas
questões fundamentais para a filosofia e a teoria do direito, a dualidade entre convenção social e
natureza como fundamentos do direito. O conceito de direito natural está presente na fundação da
filosofia do direito, bem como é a idéia de direito que mais polêmica suscitou ao longo da
82
história, tendo em vista o caráter mutável do conceito e a oposição ao positivismo jurídico. A
obra Antígona de Sófocles é um exemplo: nela encontramos o contraponto entre a lei da cidade,
no caso o decreto de Creonte, e a consciência moral e religiosa de Antígona. No debate central da
obra, encontra-se a antítese entre a relatividade das leis políticas da Cidade-Estado e qual deve
ser o fundamento destas. Antígona afirma agir com base em uma lei que apesar de não escrita é
justa, universal, inabalável e eterna, diante da qual a lei escrita de Creonte deveria submeter-se.
Opta por obedecer ao que considera eterno, e não ao temporal, decisão que tem um fundo
religioso, e também um sentido moral com referência nos costumes e nos usos, bem como às
exigências éticas. Pretende-se, a partir da fundamentação transcendental do direito, situar a moral
num estágio superior diante da política (GOYARD-FABRE, 2000, p. 5-8). Segundo NOVOA
MONREAL (1988, p. 65):
A tese do direito natural exerceu, sempre, um efeito conservador no direito. O
mecanismo utilizado consiste em afirmar que se a legislação tradicional se cinge, em
grande parte, às exigências desse direito natural, pelo menos em todas as suas
instituições básicas (entre as quais se menciona muito especialmente o direito de
propriedade privada), devem estas ser tão eternas e imutáveis como se pensa que seja
aquele direito.
O caráter eminentemente conservador da doutrina do direito natural passou a
transformar-se em um verdadeiro lugar comum dentro da teoria jurídica.
Com o desenvolvimento das instituições políticas e jurídicas,
desenvolve-se também o caráter formalizante do Estado liberal, que tem como marco as
codificações, que determinam um novo momento para o direito moderno, que passa a ter um
novo modo de produção, no seio da estatalidade (GROSSI, 2004, p. 106). Gradativamente, a
validade do sistema político passa a ser vinculada com a formalização mais organizada e
sofisticada do sistema normativo, no qual a racionalidade e a normatividade ao modo de
produção capitalista. Nessa evolução, dois paradigmas são consolidados: depois da afirmação das
teses filosóficas do jusnaturalismo, produto do racionalismo, com fundamentação metafísico-
natural, emerge o positivismo jurídico, que se sustenta no racionalismo lógico-instrumental, que
pretende retirar do direito as especulações de cunho metafísico (WOLKMER, 2003, p.65).
A doutrina positivista leva o direito da sacralização natural para
cientificidade e racionalidade auto-suficiente do ordenamento normativo, reconhecendo a
autonomia da norma jurídica e da ciência do direito. Afasta-se o direito das especulações do
83
direito natural, apartando o direito da valoração moral, de seu conteúdo ético. Para realização do
ideal de cientificidade positivista, em busca da neutralidade científica, não é prudente a
intervenção do relativismo ético e moral, os quais podem comprometer a pureza científica. Como
explica KELSEN (2003, p.1-2):
A Teoria Pura do Direito é uma teoria do Direito positivo – do direito positivo em geral,
não de uma ordem jurídica especial. (...) Quando a si própria se designa como pura
teoria do Direito, isto significa que ela se propõe garantir um conhecimento apenas
dirigido ao direito e excluir deste conhecimento tudo quanto não pertença ao seu objeto,
tudo quanto não se possa, rigorosamente, determinar como Direito. Quer isto dizer que
ela pretende libertar a ciência jurídica de todos os elementos que lhe são estranhos. Esse
é seu princípio metodológico fundamental (...). De um modo inteiramente acrítico, a
jurisprudência tem-se confundido com a psicologia e a sociologia, com a ética e a teoria
política. Esta confusão pode porventura explicar-se pelo fato de estas ciências se
referirem a objetos que indubitavelmente têm uma estreita conexão com o Direito.
Quando a teoria Pura empreende delimitar o conhecimento do Direito em face destas
disciplinas, fá-lo não por ignorar ou, muito menos, negar essa conexão, mas porque
intenta evitar um sincretismo metodológico que obscurece a essência da ciência jurídica
e dilui os limites que lhe são impostos pela natureza de seu objeto.
Consequentemente, o conceito de direito se reduz ao conjunto de
normas estabelecidas pelo poder político capaz de se impor sobre a vida social, com destaque
para a coação da sociedade política que institucionaliza o direito é sua única fonte válida. Ainda
que não desconsidere as outras ciências humanas, segundo o próprio Kelsen, o direito está
distanciado cientificamente destas. O positivista pretende compreender o direito como ele é, e
não como deveria ser, ou como determinada corrente filosófica gostaria que fosse. Com o
juspositivismo, empreendeu-se um esforço para dar ao direito o caráter de verdadeira ciência,
semelhante às ciências físico-matemáticas, naturais e sociais, com a avaloratividade científica,
pautada em juízos de fato, afastada dos juízos de valor (BOBBIO, 1995, p.135). Eis o
contraponto entre positivismo jurídico e o jusnaturalismo: as questões filosóficas sobre justiça e
injustiça, a legitimação ética do poder criador do direito, é substituída pelo rigor científico.
Busca-se uma forma anti-ideológica de direito, isolando-o dos valores, do próprio conteúdo do
direito, o que leva o formalismo jurídico ao extremo, com destacado papel para a essência coativa
direito, garantia de validade das normas pela força.
Trata-se, entretanto, aos olhos da crítica do direito, de um
antagonismo aparente, que pode ser entendido como continuidade, desde que compreendamos
que o direito estabelecido pelas revoluções burguesas, sustentado na naturalidade de seus
84
principais institutos e categorias, com o positivismo jurídico pretende alcançar a neutralidade
científica. Um dos teóricos do estado de natureza, Hobbes, sustentava a essência coativa do
direito como necessária para a consolidação de um modelo de Estado capaz de centralizar a
criação e a aplicação de normas jurídicas. A positividade do direito foi elemento essencial para o
formalismo característico do processo de codificação, que tem matriz no próprio jusnaturalismo,
e identifica legitimidade e legalidade, numa racionalização do direito moderno baseado na
presunção de neutralidade e de universalidade do direito (WOLKMER, 2003, 65). O
jusnaturalismo acaba dando origem ao positivismo, inserido na idéia da codificação, de modo
que, sendo “filho do jusnaturalismo iluminista, o Código leva consigo, bem penetrado na sua
estrutura óssea, a marca da antítese jusnaturalista, a mais grave a pesada antítese da história do
direito moderno” (GROSSI, 2004, p. 112, 114). São destacadas, nos discursos político, filosófico
e científico, a segurança, a hierarquia e a certeza, características do arcabouço “completo”
legislativo, bem como se reforça a certeza da unidade, de modo que o direito emanado do
poder soberano é o único que tem coercibilidade (WOLKMER, 2003, p. 61).
Com efeito, constituiu-se uma tradição que sustenta a existência do
Direito para atingir a consecução de elevados fins, como a justiça, a igualdade e a liberdade
jurídica, mas que, simultânea e paradoxalmente, pauta-se em princípios altamente
obstaculizadores destes fins, como o monopólio estatal da produção jurídica, o qual trás em si a
conseqüente consideração de não-direito as manifestações sociais organizadas; o acobertamento
das imperfeições da democracia indireta, salientando-a apenas como ganho da civilização; da
despersonalização completa e absoluta dos julgadores, com base na neutralidade axiológica e na
imparcialidade, o que conduz muitas vezes ao legalismo irracional e à indiferença do julgador em
relação ao caso por ele analisado; da falsa completude científica do Direito, resultante em uma
administração estritamente técnica de suas normas e de seus resultados efetivos, praticamente
sem comunicação com outros saberes sociais; da recusa teórica em aceitar a comunicabilidade do
Direito com a ideologia, o poder, a justiça material e a estratificação social; da hermenêutica
norteada pelo método lógico-formal.
A vontade soberana do povo, pela via da democracia representativa,
deixa o âmbito político restrito aos parlamentos, criadores das normas, no quais opera-se o
reconhecimento de direitos estabelecidos e vivenciados antes do próprio pacto político, conforme
o ideário do jusnaturalismo. E estes direitos o deveriam encontrar grandes obstáculos pela
85
frente, de modo a preservar a essência liberal do Estado. Por outro lado, na nomogênese
positivista encontramos o momento de criatividade restrito à atividade parlamentar, que cessa
com a cristalização Estatal (a única possível) da norma, a qual não deveria dialogar com o mundo
exterior ao direito. Trata-se do ápice de organização e formalização do direito pela estatalidade,
que acaba por reforçar o ideário de democracia que está na fundamentação do Estado moderno.
O direito que se consolida na tradição moderna escapa,
pretensamente, das ideologias, as quais, conforme o pensamento jurídico-político conservador,
são consideradas a partir de sua caracterização fraca (BOBBIO apud STOPPINO, 1997, p. 585).
A tradição que consolida o direito moderno com base em seus dois grandes paradigmas não
reconhece a própria condição ideológica, ainda que os dois referenciais paradigmáticos
representem uma continuidade, da natureza rumo a neutralidade científica, tendo em vista que se
sustentam sobre as mesmas bases econômicas, culturais e políticas estabelecidas pelo
capitalismo. O positivismo jurídico é produto das necessidades apresentadas à juridicidade de
classe da burguesia, a qual, consolidada hegemonicamente e temendo a contestação, a história
que pode ser escrita pelas classes subalternas, nega o próprio passado revolucionário, e focaliza o
poder no tempo presente, revestindo o direito com a precisão de uma ciência positiva (LEVY;
TIGAR, 1978, p. 282). Uma racionalização que faz apologia ao conformismo de classe, próprio
da pequena burguesia, em uma época de grandes transformações sociais, sendo a teoria pura
kelseniana uma moderna representante de velhas concepções assépticas de justiça, identificada
com a vontade do mais forte, uma ideologia jurídica que se sustenta na essencialidade da sanção
(BOBBIO, 1980, p. 128 - 129). Num primeiro estágio, as ideologias são afastadas pela
naturalização, enquanto que num segundo momento a naturalização é posta em questão, sendo
substituída pelo mito da cientificidade positivista. À racionalidade material, pertinente aos
valores e á ética liberal-individualista, é acrescida a racionalidade formal, essencialmente
instrumental, processual (WOLKMER, 2003, p. 64).
Apesar de pretender ser uma teoria e não uma ideologia, uma
expressão de comportamento avaliativo, valorativo, o positivismo acaba sendo, diante da
materialidade das relações jurídicas e sociais um modo determinado de entender o direito, o certo
modo de querer o direito, de modo que se apresenta como uma ideologia (BOBBIO, 1995, p.
223-224). Se a pretensão do positivismo era garantir o caráter científico, distante das ideologias,
dos questionamentos e proposições axiológicas de cunho metafísico, acabou o próprio
86
positivismo se estabelecendo como ideologia jurídica, que se presta como mais uma justificação
para o direito e para a estatalidade de matriz contratualista. que se reconhecer, segundo
CAPELLA (2002, p. 37) que:
As ciências sociais são ainda muito permeáveis à ideologia. A reflexão moderna sobre
o direito tende a contempla-lo como fechado em si mesmo - isto é, tratando de faze-lo
inteiramente calculável de antemão, respondendo assim à exigência de segurança do
capitalismo concorrencial -, e a considerar “lógica” a evolução do direito, como se
sua história fora autônoma, para o qual os aspectos o-jurídicos da sociedade
resultaram irrelevantes. Introduzir-se na compreensão critica do direito, no entanto,
exige referi-lo constantemente, sem perder de vista sua especificidade: a sua complexa
relação com outros aspectos da vida social.
O processo de desenvolvimento jurídico-político e econômico da burguesia
na modernidade serve como exemplo para ilustrar a relevância do conceito de ideologia orgânica
de Gramsci e, bem como para demonstrar o caráter emancipatório que a luta pela consolidação de
uma ideologia pode ter. No desenvolvimento de um novo modo de vida, ou seja, de uma nova
cultura e de uma nova economia, se desenvolve uma nova ideologia. Desse modo o conceito de
ideologia não se limita somente ao aspecto negativo que possa ter, ou seja, não pode ser
considerada simplesmente como mera aparência. Para a análise da relação entre ideologia e
direito, serve o exemplo histórico da burguesia e da ideologia jurídica que lhe corresponde, capaz
de servir de base orgânica para a construção de um novo direito, com norte distinto daquele que
foi hegemônico no medievo. Estabeleceu-se o pensamento jurídico tradicional, cujas matrizes
conceituais fazem valer um modelo de direito no qual se identificam princípios teórico-
metodológicos, representações jurídico-ideológicas de matizes jusnaturalistas e positivistas:
A concepção jurídico-normativa tipificada pelo caráter abstrato, genérico e
institucionalizado tende a harmonizar os diversos interesses conflitantes no bojo da
organização ciopolítica, bem como disciplinar e manter as diversas funções do
aparelho estatal. Este caráter ideológico, passível de ser detectado na doutrina
positivista, não é de forma alguma “reconhecido”, mas ocultado” pelo dogmatismo
jurídico oficializado. (...) a suposta Ciência Jurídica carece de “pureza” normativa, pois
sua dimensão histórico-social pode ser inteiramente compreendida enquanto
representação jurídica ideológica. Ora, partindo-se da proposição de Gramsci de que
“toda ideologia é compreendida como uma concepção de mundo que se manifesta em
todas as atividades da vida individual e coletiva”, deve-se, de imediato, precisar os
influxos ideológicos na esfera da chamada Ciência Jurídica. A ordem jurídica positiva
reflete sempre um arcabouço ideológico de uma dada existencialidade concreta. Impõe-
se, destarte, que toda a estrutura jurídica traduz o jogo de forças hegemônicas de uma
organização estatal institucionalizada (WOLKMER, 2000, p.172).
87
O direito moderno é produto da práxis social, da vivência e da
construção de uma cultura jurídica a partir de uma classe social, capaz de consolidar sua
hegemonia a partir da sua difusão cultural e da dominação econômica, que começou a ser
estruturada dentro do modo de produção feudal, ou seja, num quadro econômico e cultural
desfavorável, mas juridicamente pluralista. O poder da classe, posteriormente, passa a sustentar e
se sustentar no poder do Estado, produto da racionalização moderna difundida pela burguesia. A
ideologia em Gramsci perde sua carga negativa, servindo como conteúdo para a hegemonia,
embora não seja reduzível a ela. Hegemonia é conquistada quando um grupo social consegue dar
universalidade aos seus interesses, diante das demais classes sociais, sendo a ideologia uma parte
da hegemonia, o elemento constitutivo desta (CÁRCOVA, 1998, p. 158).
A idéia de direito como mera manifestação ideológica se presta para
a crítica, entretanto a partir da percepção da materialidade dos fatores históricos que confluíram
para a construção da juridicidade moderna é possível enriquecer a análise. Se considerarmos
mera aparência, tratamos de uma abordagem externa, de uma perspectiva não-burguesa, de uma
classe que não se reconhece como sujeito histórico dentro da construção daquela ideologia que se
apresenta como aparência distorcida da vida material. Daí o caráter negativo da ideologia,
difundida como razão de toda a sociedade quando, historicamente, é razão de uma classe, que
se estabelece hegemonicamente, ou seja, é capaz de interferir de maneira decisiva na formação
cultural de outras classes sociais.
De acordo com a idéia gramsciana de luta ideológica, de luta
contra-hegemônica, cabe às classes sociais hoje subalternas desenvolverem, de modo autônomo,
sua própria cultura, um modo de vida que lhe corresponda e que lhe seja adequado. Assim, é
possível caminhar no rumo da superação do mundo que conhecemos, o injusto para as classes
subalternas assim como fora o mundo medieval para os burgueses. E na consolidação de uma
nova cultura, capaz fundar uma nova hegemonia, o papel do direito, a elaboração de novas
juridicidades, é de grande relevância. A filosofia da práxis se apresenta como ideologia orgânica,
através da qual as classes hoje subalternas poderão inscrever-se na história, tendo em vista que se
trata da filosofia que trás em si o rumo para passagem da situação de submissão às necessidades
materiais para realização da efetiva liberdade. Para tal finalidade, não necessita a filosofia da
práxis de suportes exteriores, que possam se tornar contraditórios, sendo suficientemente
88
estruturada para servir como fundamento para coesão orgânica de um novo bloco histórico
(GRAMSCI, 2000a, p. 206, 242).
Sobre a pretensão de cientificidade, que caracteriza o positivismo
jurídico, cabe apontar a forte crítica de Gramsci, que considerava que fazer da ciência a
concepção de mundo por excelência, pretensamente isenta, é atitude contraditória diante da
filosofia da práxis. A ciência é parte da superestrutura, constitui um momento importante desta,
especialmente a partir do Século XVIII, período em que se consolidavam os marcos da
racionalidade moderna. A ciência, segundo Gramsci, sempre vem acompanhada de ideologia, de
modo que a neutralidade se constitui em uma superstição científica tão infantil quanto à religiosa
(GRAMSCI, 2000a, p. 174-175). Se a crítica é direcionada à concepção de ciência em sentido
amplo, podemos afirmar que com mais propriedade serve para crítica das concepções de direito.
Especialmente, diante da idéia de transpor das ciências naturais para o direito o caráter de ciência.
Assim, afirma que se nomeou de científico todo o método que fosse análogo ao método de
pesquisa e de exame das ciências naturais, que se apresentam como ciência-fetiche. De qualquer
modo, para Gramsci não existe ciência por excelência, não existe um método por excelência: toda
a ciência cria para si o método adequado, embora reconheça que a metodologia mais genérica e
universal é tão somente a lógica formal ou matemática (GRAMSCI, 2000a, p. 234-235).
O politicismo gramsciano leva a uma teoria sobre o caráter
ontológico da consciência e sobre o papel desta na vida social. De modo idealista, entretanto,
segundo COUTINHO (2003, p.102), Gramsci acaba por negar o conhecimento científico, dado o
ceticismo diante do conhecimento ideologizado. A própria filosofia da práxis é uma
superestrutura, uma ideologia que, entretanto, se distingue das demais por seu caráter duradouro e
menos circunstancial, negando ao marxismo o caráter científico. Não distingue
gnosiologicamente ciência de ideologia, não aparta conhecimento objetivo de consciência
interessada, apresenta como equivalentes a objetivação histórico-social e a objetivação natural.
Todo o conhecimento científico tem um aspecto historicamente relativo, na medida em que a
objetividade que possa alcançar depende do momento histórico (COUTINHO, 2003, p.104
107).
89
2.3 O Estado como espaço para atuação contra-hegemônica
Antes de tratarmos da teoria crítica do direito, é pertinente tratarmos
do Estado, ou, na linguagem gramsciana, da sociedade política, como espaço para atuação contra-
hegemônica, como objeto de análise a partir de uma perspectiva crítica que se situa fora dos
limites dos dois grandes paradigmas jurídicos da modernidade, ou seja, o positivismo e o
jusnaturalismo. Reconhecer que as instituições político-jurídicas do Estado se prestam como
campo para atuação contestatória da própria estatalidade, margem para polêmica frente à
tradição marxista, e mesmo entre comentadores da obra de Gramsci. MACCIOCCHI (1980,
p.156) afirma que Gramsci desconsidera a possibilidade de luta através da democracia liberal e
representativa, inviável para a construção de uma via revolucionária pelas classes subalternas. A
análise certamente procede, pelo menos em parte. Não é plausível subestimar a crítica de
Gramsci ao modelo de Estado e ao modelo de democracia correspondente, elementos essenciais
para toda a sua elaboração teórica. Entretanto, a rejeição não é absoluta, como veremos a seguir
no texto, principalmente porque o historicismo e a dialética gramscianas não oferecem espaço
para dados e conceituações absolutas, passíveis de se transformarem em dogmas.
Por outro lado, não se trata de privilegiar uma atuação crítica diante
do direito e do Estado restrita às próprias instituições destes. Tal pretensão é simplificadora,
acaba por corroborar com o ideário positivista, por reconhecer que o material ideológico operável
pelo intelectual do direito se restringe à lei positiva. É importante, especialmente nos tempos de
globalização, de restrição de direitos sociais, a luta pela afirmação e pela defesa destes direitos.
Não obstante, a construção de novas juridicidades é vislumbrada de maneira mais generosa se
considerarmos as possibilidades que apontam para o pluralismo jurídico, para a atuação dos
sujeitos coletivos e de seus intelectuais orgânicos no âmbito da sociedade civil. Ao abordar a
continuidade do pensamento de Gramsci na obra de Poulantzas, como referencial para atuação
contestatória do intelectual orgânico do direito no interior das instituições, BIAVASCHI (1998,
p. 117) afirma que este intelectual não deve afastar-se dos movimentos organizados à margem da
estatalidade, sob o risco de comprometer o avanço da democracia para além dos limites do
formalismo do direito de origem liberal:
Essas questões, assim expostas, colocam no centro do debate o problema da construção
da radicalidade democrática e da busca de caminhos aptos à conquista das liberdades
90
reais e à superação dos conhecidos limites de uma democracia representativa. Ou seja, a
construção de uma práxis que viabilize a transformação do Estado num outro,
democrático e democratizado, ampliando o poder e a capacidade de participação efetiva
dos cidadãos. Trata-se de processo que não prescinde do aprimoramento de formas
eficazes de representação popular, pela via indireta. No entanto, não pode desconsiderar
os movimentos sociais e o desenvolvimento de novas formas de democracia direta no
sentido da reconstrução de espaços de luta e de participação popular que possibilitem a
constituição de redes de solidariedade e a conquista da dignidade pelos cidadãos; dois
movimentos que devem ser articulados, e não justapostos.
A crítica do direito, na qual podemos encontrar contribuições das
idéias e das práticas de Gramsci, supera a idéia positivista de estudo científico, cujo objeto é
norma e o ordenamento jurídico. Reconhece o caráter ideológico do direito, não somente na
perspectiva negativa, conforme a tradição majoritária do marxismo, mas a partir da dualidade
alienação e emancipação na concepção de ideologia. A crítica do direito possível em Gramsci, se
a partir de uma perspectiva que escapa da tradição do pensamento jurídico, afastada dos
modelos de crítica positivistas, que se limitam a propor correções e aperfeiçoamentos para as
concepções tradicionais de direito, e de sua origem liberal-individualista. Tais concepções
desconsideram, ou identificam como contraditórias diante da moderna razão do direito, os
aspectos meta jurídicos, caracterizando-se por essa limitação a crítica intra-dogmática
(COELHO, 1995, p. 68). A critica jurídica que abarca o pensamento de Gramsci é, portanto,
meta-dogmática:
Novo modelo de crítica do direito, que considera o fenômeno jurídico como algo
integrante do contexto social e dele inseparável. O saber jurídico, da sociologia, da
antropologia e da psicanálise, volta-se para o meio onde o fenômeno jurídico ocorre e
alarga ao infinito a compreensão que se entende por direito, rompendo de vez com o
velho positivismo que o reduzia às leis do Estado (COELHO, 1995, p. 68).
É para a teorização crítica meta-dogmática do direito e da
democracia de cunho liberal-individualista, que Gramsci apresenta categorias teóricas de grande
relevância: o reconhecimento das ideologias e do caráter ideológico mesmo da filosofia de matriz
marxista; a concepção de intelectual orgânico, que opera a partir de determinações construídas
pela filosofia e teoria do direito tradicional, repercutindo o material ideológico derivado da
evolução do direito na modernidade ocidental; a guerra de posição, que se apresenta como
possibilidade de atuação contra-hegemônica, adequada ao Estado que caracteriza o capitalismo
contemporâneo; o equilíbrio entre consenso e coerção, característico do Estado ampliado, debate
91
determinante para a crítica a para a proposição de novas juridicidades, dentro ou fora das
instituições estatais. Ademais, a essência do marxismo gramsciano é dialético e historicista, ou
seja, não se detém aos esquemas teóricos pré-concebidos, possibilita uma leitura mais aberta e
menos ortodoxa das instituições político-jurídicas. Vislumbra a realização da práxis marxista. A
filosofia é a filosofia capaz de apresentar elementos para crítica e para construção de uma nova
juridicidade, desde que não se limite ao aprisionamento teórico, ao dogmatismo, ou seja, desde
que sirva para a evolução da sociedade pela atuação das classes hoje subalternas em busca de
uma nova hegemonia, fundadora de um novo bloco histórico.
Trata-se de uma abordagem do direito que tem como pano de fundo
as relações entre sociedade civil e sociedade política, as relações entre a coerção organizada e
institucionalizada e o consenso estabelecido na vida social. Não obstante, ainda que possamos
destacar a atuação política sempre apontada para a hegemonia, numa perspectiva que pode
priorizar a atuação na sociedade civil, é possível reconhecer a estrutura jurídica e política do
Estado como um espaço no qual também é possível lutar pelo estabelecimento de uma nova
juridicidade, ainda que se reconheça a essência das determinações coercitivas do direito. O
importante é não deixar de considerar que as relações entre sociedade civil e sociedade política
são complexas, dinâmicas e dialéticas, mas, sobretudo, estabelecidas a partir de uma vinculação
orgânica. A própria democracia liberal-burguesa, mesmo que seja sempre importantíssimo
apresentar e esclarecer suas deficiências, pode ser espaço para atuação política, e,
extensivamente, jurídica, conforme se percebe na teoria crítica do direito. Trata-se de um espaço
que deve ser ocupado, disputado, desde que não se constitua como o fim último da atuação
política, em sentido estrito, mas instância da política mais ampla, mais rica, realizada em todos os
espaços da vida social, numa interação de submissão e de troca permanente com a luta por
hegemonia realizada na sociedade civil, com a busca pelo consenso no seio da sociedade,
afastando-se dos riscos do burocratismo.
A teoria do Estado construída por Gramsci é um importante
fundamento para crítica jurídica. Nela, além de serem contestadas as concepções idealistas e
utopistas da ideologia como simples sistemas de idéias, está a crítica às teorias simplificadoras
da ação política, pautadas no “quanto pior melhor”, nos abstencionismos característicos do
sectarismo reducionista do positivismo infiltrado nos movimentos sociais referenciados no
pensamento marxista. Reconhece que o Estado realiza o papel de unificador jurídico-político,
92
não se limitando à condição reducionista de mero instrumento de classe (BUCI-
GLUCKSMANN, 1990, p. 146). Como comprovação da contrariedade diante do
abstencionismo, defendido por parte dos comunistas de seu tempo, Gramsci ingressou na vida
parlamentar, o que não significou uma redução da sua atuação política ao âmbito do parlamento
democrático, de uma restrição das pautas socialistas que lhe moveram à vida parlamentar. Trata-
se de ocupação de um espaço importante, ainda que não determinante, para a estratégia política,
com a idéia de que a luta política deve considerar as possibilidades concretas, ainda que
precárias, sobre as quais se realiza. Isso, entretanto, não significa a perda do horizonte utópico,
mas a própria realização, concreta e realista, de uma atuação no rumo da sociedade regulada. Por
outro lado, MACCIOCHI (1980, p. 157), contrapondo comentaristas da obra de Gramsci como
Tamburano e Togliatti, que percebiam a defesa da democracia parlamentar como meio de
transformação social, afirma que na obra de Gramsci não se percebe maiores ilusões quanto à
democracia parlamentar.
Sobre a luta por hegemonia no interior da sociedade política,
COUTINHO (2003, p.134), ao mencionar Althuser, pensador marxista pós-Gramsci, afirma que
enquanto este defende a luta fora do Estado, determinando o choque contra este, Gramsci a
marcha ao socialismo como um caminho longo, passível de se realizar mesmo (mas não só) por
dentro das instituições da sociedade civil burguesa, visto que não acreditava num colapso
fulminante do capitalismo. Ainda, sobre a política parlamentar como espaço para disputa
hegemônica, vale mencionar que no Brasil a recepção das idéias de Gramsci, nas décadas de
1970 e de 1980, trouxe a perspectiva da democracia como valor universal, sendo relevante a luta
política nos marcos democráticos, nos limites da legalidade. Tais idéias são defendidas por
alguns pensadores das ciências sociais, numa conjuntura latino-americana de derrota da esquerda
revolucionária, de crise econômica e de redemocratização. Assim, “a democracia torna-se espaço
condicionante das contradições entre a burguesia e o proletariado, ou entre o imperialismo e a
questão nacional” (SADER et alii, 2006, p. 932).
No Estado sustentado pela democracia parlamentar, combina-se
força e consenso, que se equilibram de acordo de modo variado, sem que a força esmague o
consenso. Existe a necessidade de um consenso da maioria, a partir dos organismos da sociedade
civil e dos diferentes aparelhos de hegemonia da sociedade política. “Daí a prática de uma
divisão de poderes como peça-chave do liberalismo, como resultado da luta entre sociedade civil
93
e sociedade política” (BUCI-GLUCKSMANN, 1990, p. 384). A ideologia liberal tem como um
de seus pilares a divisão de poderes, que é a demonstração racional da existência de um Estado
“desinteressado”. Por outro lado, a própria divisão dos poderes pode debilitar o liberalismo
político, especialmente em países considerando que margem para a burocratização e a
cristalização do poder coercitivo, originando castas dentro do poder estatal. Nesse contexto, a
elegibilidade de todos os cargos, com os mandatos revogáveis pela coletividade a qualquer
momento, ainda que pareça ser o extremo liberalismo, na verdade significa a dissolução do
próprio modelo de democracia liberal, diante de um permanente poder constituinte (GRAMSCI,
2000c, p. 235). A divisão de poderes dissimula a corrupção, a burocracia e a primazia do
executivo sobre os demais poderes, especialmente na Itália e em países que ao longo da história
se desenvolveram através de políticas autoritárias, como o Brasil e os demais países da América
Latina. A democracia formal supõe a coesão do consenso permanentemente ativo, sustentado nas
eleições para o executivo e para o parlamento, as quais servem para garantir o aparente
distanciamento das classes sociais diante do Estado, para garantir a pretensa neutralidade estatal.
O regime parlamentar é o “aperfeiçoamento” jurídico-constitucional da revolução permanente,
organizando e mantendo o consenso e a hegemonia, realizando o equilíbrio entre força e
consenso, de modo que sempre legitime a força sem explicitá-la, para não suplantar o consenso,
de modo que “a força apareça sustentada no consenso da maioria” (GRAMSCI, 2000c, p. 83,93).
Ainda que sejam perceptíveis os limites e as imperfeições da
democracia liberal, é preciso reconhecer que o Estado é espaço para a hegemonia, assentada
sobre o consenso eleitoral que elege os poderes executivo e legislativo. Conforme ANDERSON
(2002, p.41) “A ordem política e a ordem econômica são formalmente separadas sob o
capitalismo. Assim, o Estado burguês, por definição, ‘representa’ a totalidade da população,
abstraída de sua divisão em classes sociais, como cidadãos individuais e iguais”. Essa é a base
material da crença de que o Estado burguês é desinteressado, estando eqüidistante dos interesses
das classes sociais. A lei, a partir da modernidade, serve para a regulação do poder político pelos
aparelhos do Estado, bem como o acesso à estes aparelhos. Permite que a eventual modificação
das relações de força dentro das classes dominantes se realize no interior do Estado, sem
provocar grandes abalos. A legislação funciona como canalização e amortização de crises
políticas, de modo que o Estado possa ter autonomia relativa diante das classes, para que a classe
economicamente dominante não se confunda com o Estado (POULANTZAS, 2000, p. 89).
94
Não obstante, vale repetir que a separação entre sociedade civil e
sociedade política tem, conforme disposto nos quaderni, propósito didático, voltada para a
elaboração teórica e política. A sociedade civil e a sociedade política não constituem duas esferas
apartadas, conforme a mitificação liberal, com a cidadania situada na esfera pública, e os
indivíduos situados na esfera privada, sendo a distinção entre privado e blico formal e jurídica
(BUCI-GLUCKSMANN, 1990, p. 91). A perspectiva gramsciana de Estado ampliado é
dinâmica, de modo que é possível afirmar que a sociedade civil é o lugar a priori do consenso e
da hegemonia, o que não inviabiliza a percepção do consenso e da luta hegemônica dentro da
sociedade política, a qual, conforme Gramsci é, prioritariamente, local da força organizada e
legalizada.
Nesse sentido, afirma que as instituições da sociedade política são
órgãos também voltados para a realização de hegemonia, na seguinte escala: em primeiro lugar o
parlamento; em segundo, o judiciário; e, em terceiro lugar, o executivo. Sobre o judiciário como
órgão de hegemonia, como ponto de “equilíbrio” entre os poderes, faz a seguinte afirmação:
“Deve-se notar como causam no público impressão particularmente desastrosa as incorreções da
justiça. O aparelho hegemônico é mais sensível neste setor, aos quais também podem ser
remetidos os arbítrios da polícia e da administração pública.” (GRAMSCI, 2000c, p. 236). Resta
claro, portanto, que os aparelhos da sociedade política, tipicamente voltados para a coerção, para
revestir o consenso com a coerção, servem como instâncias para estabelecimento de consenso e,
consequentemente, de hegemonia. As relações entre sociedade política e sociedade civil, força e
consenso, dentro do Estado ampliado, hegemônico, não devem ser simplificadas. Mesmo fora do
aparelho Estatal, podem atuar grupos organizados de coerção estabelecidos na sociedade civil,
capazes de defender e impor pela força seus interesses diante de grandes contingentes
populacionais, à margem da legalidade ou na penumbra da anomia. Ainda, mesmo as ideologias,
especificamente as não-orgânicas, que não são prioritariamente criadas e repercutidas por
aparelhos privados de hegemonia, difundidas a partir de bases consensuais, podem ser impostas
pela força. A doutrina da segurança nacional na história recente do Brasil serve como exemplo de
ideologia sustentada na força estatal, assim como o regime racista, o apartheid, na África do Sul
se sustentou a partir da violência de um Estado ocupado pela minoria branca (EAGLETON,
1997, p. 105).
95
Mesmo que seja possível identificar nos poderes do Estado
aparelhos de hegemonia capazes de garantir consenso, ainda que formal, e a estabilização das
relações sociais, é importante não perder de vista o caráter coercitivo que está em sua essência,
assim como as relações sociais, culturais e econômicas que determinam a ordem jurídica. A
eleição de representantes das classes subalternas, não implica, pelo simples fato de se tratar de
legitimação eleitoral, numa grande redução do poder das classes dominantes, as quais instituíram
ao longo da modernidade as bases da organização político-jurídica e da ideologia que a
fundamenta. A eleição de lideranças da esquerda latino-americana, como a de Salvador Allende
no Chile, derrubado por um violento golpe militar é exemplar. As circunstâncias culturais e
econômicas, como a atualmente vivenciada, de globalização, influem material e diretamente na
ordem político-jurídica, em especial sobre a herança normativa do Welfare State. Assim, a
constituição acaba sendo adaptada à conjuntura política, especialmente em momentos
desfavoráveis às classes dirigentes. Nessas circunstâncias, a constituição se reduz a condição de
texto educativo e ideológico, e, especificamente nos casos em que a coerção passa a ser o recurso
para a garantia de poder, como nos golpes de Estado, emerge a verdadeira constituição: os
dispositivos legais que versam sobre as relações sociais nos momentos de crise política e militar.
(GRAMSCI, 2000c, p. 299).
Nicos Poulantzas avança na análise do Estado, considerando a
dimensão que este adquire no modelo intervencionista, no Estado de Bem-Estar Social. Afirma,
referindo-se ao Estado de Bem-Estar, que toda a atuação econômica do Estatal tem conteúdo
político, estando diretamente relacionada com a reprodução da ideologia dominante, no lugar da
qual se percebe o tecnocratismo do Estado-Previdência (POULANTZAS, 2000, p.171). Nesse
contexto, opondo-se à ortodoxia marxista, a partir dos marcos gramscianos (com um olhar crítico
diante destes), afirma ser o Estado uma arena para a luta política pela hegemonia,
problematizando as relações entre as demandas socialistas e a democracia. Poulantzas opera, no
Estado, o que Gramsci fez em relação à sociedade civil, ou seja, articula o conceito de hegemonia
dentro da estrutura estatal, que se torna espaço estratégico para disputa política. Ainda que
originadas fora do Estado, as lutas políticas devem se inserir dentro do Estado, considerando a
relevância para a compreensão das funções do Estado de sua função de mediador inserido no
contraponto entre dominantes e dominados, dedicado especialmente na desarticulação destes,
ainda que atenda algumas demandas sociais (CARNOY, 2004, p. 160-161).
96
Num contexto em que os partidos socialistas conquistavam espaço
político, reconhece que a democracia é determinante para a transição para a sociedade socialista,
tendo em vista que mesmo a democracia burguesa constitua importante espaço para a contestação
das classes subalternas, sendo possível transpor a luta de classes para o Estado. “As classes
subordinadas, portanto, também moldam o Estado, ao mesmo tempo em que é um Estado de
classe, e ao mesmo tempo em que é usado pela fração dominante para estabelecer e ampliar a
hegemonia capitalista dominante” (CARNOY, 2004, p. 163). Afirma que:
É impossível por meio do binômio repressão-ideologia definir o domínio do poder
sobre as massas dominadas e oprimidas sem cair numa concepção policial ou idealista
de poder. O Estado dominaria as massas, quer pelo terror policial ou pela repressão
interiorizada pouco importa aqui -, quer pela impostura e pelo ilusório. O Estado
defende - proíbe e/ou ilude, pois precavendo-se de identificar ideologia e “consciência
errada”, o termo ideologia faz sentido se admitir que os procedimentos ideológicos
comportam uma estrutura de ocultação-inversão. Acreditar que o Estado só age assim é
completamente errado: a relação das massas com o poder e o Estado, no que se chama
especialmente de consenso, possui sempre um substrato material. Entre outros motivos,
porque o Estado, trabalhando para hegemonia de classe, age no campo de equilíbrio
instável do compromisso entre as classes dominantes e dominadas. Assim, o Estado
encarrega-se ininterruptamente de uma série de medidas materiais positivas para as
massas populares, mesmo quando estas medidas refletem concessões impostas pela luta
das classes dominadas (POULANTZAS, 2000, p. 29).
O Estado tem uma relativa autonomia diante das representações de
classe, estando marcado por contradições em suas funções, incluindo as ideológicas e as
jurídicas, que se refletem na hegemonia da classe dominante. Dada a relativa autonomia diante
das classes, não se reduz a mera condição de objeto, de instrumento de classe, se caracterizando
como instância relacional, condensação material das relações de forças entre as classes e as
frações de classes (POULANTZAS, 2000, p. 146-147). Em Gramsci, especialmente em sua
teoria do Estado ampliado, encontra-se uma perspectiva que não reduz o Estado à condição de
mero aparelho de classe, sendo, também, espaço para atuação política, ainda que se perceba a
maior valorização da sociedade civil como instância para contestação. Poulantzas enfatiza a
viabilidade de uma guerra de posição dentro da sociedade política, ou seja, a realização, dentro
do aparelho de Estado, de movimentos contra-hegemônicos. O Estado, compreendido como
relação, é adequado para a análise de sociedades de capitalismo periférico (BIAVASCHI 1998, p.
114-115).
97
Como é a condensação material das relações de forças existentes na
sociedade, permeado por contradições características de uma estrutura que não é monolítica, no
interior do Estado pode ser realizada a contra-hegemonia. Sendo espaço de luta pela hegemonia,
os conflitos não se voltam somente para conquista do poder do Estado, para o controle da
sociedade política e do aparato coercitivo. Os conflitos se realizam por dentro dos aparelhos do
Estado, que se configura como um campo de batalha estratégico para a luta política. Na
polarização entre hegemonia e contra-hegemonia, as classes sociais não podem desconsiderar que
seu poder se delimita pela posição das demais classes. Assim, no contexto do Estado
contemporâneo, o autoritarismo não leva somente ao fortalecimento do Estado, traz em si a
dualidade fortalecimento/enfraquecimento. O autoritarismo, a busca do controle e da dominação
sobre as massas acaba por promover alternativas de luta, novas formas de contraposição popular
que levam a uma grande demanda de exigências populares (POULANTZAS, 2000, p. 250-254).
2.4 Breve histórico da evolução das instituições político-jurídicas no Brasil
O trabalho teórico de Gramsci foi desenvolvido na Itália, onde
resquícios de uma estrutura feudal e latifundiária do sul do país conviviam com o processo de
industrialização ocorrido no norte do país. O capitalismo e o Estado moderno desenvolveram-se
na Itália de modo diferente do ocorrido na França e na Inglaterra, países nos quais se realizaram
revoluções burguesas que romperam o modo de produção feudal e com as relações políticas
características do feudalismo. Assim como na Itália, no Brasil não foi realizada uma revolução
burguesa nos moldes das revoluções francesa e inglesa, sendo este aspecto da história brasileira
determinante para a consolidação do Estado nacional e para a compreensão da interação existente
entre a sociedade política e a sociedade civil. A história assinala a construção da estrutura
jurídico política. No Brasil, assim como no restante da América Latina, não existia uma ampla
categoria de intelectuais tradicionais. Entretanto, o perfil dos colonizadores provenientes de
países caracterizados pela contra-reforma e pelo militarismo parasitário, com a cristalização do
clero e de uma casta militar, estabelece, desde os primeiros séculos de colonização, duas
categorias de intelectuais tradicionais. Predominam os intelectuais rurais, ligados ao latifúndio e
ao clero (GRAMSCI, 2000b, p. 31).
98
No Brasil, historicamente, o desenvolvimento econômico e social
tem como principal impulsionador o Estado, no modelo desenvolvimentista que se originou das
relações estabelecidas desde o começo da colonização entre as oligarquias agrárias, a burguesia e
a estrutura estatal transplantada da metrópole, numa perspectiva privatista do Estado,
representante e organizador dos interesses oligárquicos, instituindo o que se denomina via
prussiano-colonial. Por essa via, o desenvolvimento das instituições políticas e jurídicas exclui as
massas, com a fragilidade da burguesia não revolucionária atuando sem protagonismo, numa
lenta evolução das instituições. Nesse quadro, vislumbra-se o novo sempre pagando tributo ao
velho, dentro do pacto conciliador entre burguesia e nobreza latifundiária, com o Estado
coordenando o processo de modernização. Origina-se um governo centralizado, autocrático, em
função da necessidade de conciliação de classes e manipulação, ou simples afastamento, das
massas. Manifesta-se o aspecto multifacetário do liberalismo aqui difundido: na sua historicidade
concreta, apresenta-se como conservador, com a realização de reformas pelo alto, numa
revolução passiva e conformista, com a democracia destinada para poucos proprietários
(MAZZEO, 1997, p. 113-120).
O Estado, estabelecido antes sociedade civil, conforme o modelo
Português, herda a contra-reforma e o liberalismo pombalino, contra-revolucionário, capaz de
agregar sob o mesmo referencial ideológico a oligarquia rural e a frágil burguesia, ambas com
vínculos fortes com a estatalidade. As relações econômicas são permeadas por relações de
natureza ideológica, com a reprodução de um liberalismo meramente retórico, dentro de uma
sociedade escravocrata. No modo de produção escravista brasileiro o extra-econômico, a coação
institucionalizada, se fez indispensável para garantir a economia escravocrata, sendo esta
determinante daquela. A Coroa buscava a cooptação de segmentos da sociedade civil e da
sociedade política, buscando a assimilação de dirigentes políticos e ideológicos das classes
sociais, de modo que os intelectuais que aderiram aos interesses do Estado contribuíram para o
desenvolvimento de uma percepção que distancia o povo-nação da realidade concreta nacional
(SIMIONATTO, 2004, p. 164).
Percebe-se um ecletismo ideológico, com a adequação da ilustração
aos interesses econômicos e políticos contrários a qualquer caráter revolucionário que colocasse
em questão o modo de produção sustentado no latifúndio e no escravismo. Não obstante, as idéias
reformistas que permeiam a estrutura social e produtiva, refletem o que viria a acontecer na
99
Europa: a transição de um liberalismo revolucionário para a consolidação de um liberalismo
conservador. Nesse contexto, a independência se caracteriza como contra-revolução, resultado da
conciliação e do ajuste com o velho. Ocorre, enfim, o amesquinhamento da ideologia liberal no
Brasil, sem a participação popular no processo de independência, de modo que não se alteram os
espaços e privilégio de mando político, diante do sempre presente medo de revoltas das massas
(MAZZEO, 1997, p.71, 101-102, 125-126).
A influência européia na formação das instituições estatais origina
uma legislação que incorpora um espírito liberal-individualista, com destaque para o processo de
codificação, a partir do século XIX, o qual sanciona o triunfo da burguesia sobre os privilégios do
Antigo Regime, pelo menos na França. Não obstante, influenciou de modo determinante as
legislações da América Latina, cristalizando idéias liberais-individualistas, que perdem o
potencial revolucionário, “se convertem em garantia de uma nova forma de vida, quieta e segura.
Em outras palavras, fazem-se conservadoras” (NOVOA MONREAL, 19888, p. 16). Assim, as
instituições políticas e jurídicas, mesmo se consolidando partir do autoritarismo, divulgam,
portanto, um arremedo de liberalismo, dito eclético, alinhando sob as mesmas bandeiras a
burguesia incapaz de atuar nos moldes jacobinos e a oligarquia latifundiária, conformando as
massas a partir da retórica ideológica que se enraíza no imaginário, no senso comum. Nesse
ecletismo, consolida-se a ideologia do favor e o paternalismo, como instrumento de dominação
sobre os homens livres, os quais, submetidos ao poder econômico e político dos latifundiários, se
tornam os agregados, a classe social que se situa entre os donos de terras e os escravos
(HOLANDA, 2005).
O período que abrange da colônia aos primeiros anos de República
é caracterizado por uma burguesia débil, que para manter-se no poder concilia sempre com os
interesses externos de classe, realizando repressão violenta contra as massas populares
(MAZZEO, 1997, p. 88). Entretanto, a burguesia brasileira não se comportou como mera
espectadora dos acontecimentos históricos, mas também não precisou realizar uma revolução
para se tornar classe dominante principal (GORENDER, 2004, p. 113). No quadro sobre o qual se
moldou a república brasileira, as decisões acerca da vida política e econômica se deram a partir
de acordos realizados pelas classes sociais dominantes, alijando as camadas populares. As
decisões realizadas “por cima”, possibilitaram, conforme mencionado acima, o ajustamento
político da estrutura escravista sobre as bases de um liberalismo contra-revolucionário.
100
Consequentemente, as instituições político-jurídicas no Brasil foram estabelecidas como aparato
repressivo para garantia da ordem econômica e social, evitando ações políticas oriundas “de
baixo”, das classes populares. Dentro desta lógica, a dependente e periférica burguesia nacional
em sua atuação dentro da política estatal, pretende “manter a ordem, salvar e fortalecer o
capitalismo, impedir que a dominação burguesa e o controle burguês sobre o Estado nacional se
deteriorem” (FERNANDES, 2006, p. 343).
Mesmo com o latifúndio e a dependência diante do capital
internacional, o capitalismo se desenvolveu, tornando o Brasil industrializado, urbanizado e com
uma sociedade gradualmente mais complexa. A modernização brasileira se realizou com grande
papel dos aparelhos de coerção e da intervenção econômica estatal, sendo o Estado o principal
protagonista no desenvolvimento do capitalismo nacional. Tal protagonismo se percebe na
ditadura Vargas, também caracterizada como revolução passiva, mencionada por Gramsci como
parte de um fenômeno que ocorreu por toda a America Latina (GRAMSCI, 2000c, p. 31).
Assim é que, dada a natureza da modernização capitalista brasileira, resultado de um
esforço liderado pelo Estado, enlaçado à sociedade civil pela malha da estrutura
corporativa, a noção de direitos tornou-se mais prisioneira da concepção de funcionário
do que de cidadão. Decerto que a ausência de direitos para a maior parte da população
remonta à raízes profundas, em razão do peso histórico da escravidão, das relações
seculares de dependência pessoal impostas pelo estatuto do exclusivo agrário e da
natural assimetria típica dos processos de construção nacional em que a formação do
Estado é anterior à do povo. Apor sobre essa base, como se faz a partir da Revolução de
30, um Estado convertido como instrumento da industrialização e da incorporação dos
trabalhadores urbanos ao mundo dos direitos importou não somente uma estatalização
da cidadania nos sindicatos corporativos, como também da economia, que se torna
objeto principal da ação do Estado, estratégia em geral dos rumos da sociedade e único
intérprete da sua vontade geral (VIANNA et al.¸1999, p. 65).
Nesse quadro, se deu a passagem do capitalismo concorrencial para
o capitalismo monopolista de Estado, com a maior intervenção estatal no desenvolvimento
econômico e industrial, bem como com a criação da legislação trabalhista, tal como ocorreu na
Itália fascista, que também estabeleceu uma legislação trabalhista (COUTINHO, 2003, p. 196-
200). A era Vargas correspondeu a uma tentativa de realização da revolução burguesa sem o
proletariado, em um Estado policial que tentou compor as novas forças econômicas internas
(SODRÉ, 2004, p. 362). A partir da industrialização e urbanização alavancadas na década de
trinta
101
a revolução passiva passa a ter como ‘fermento revolucionário’ a questão social, a
incorporação das massas urbanas ao mundo dos direitos e a modernização econômica
como estratégia de criar novas oportunidades de vida para grande maioria ainda retida, e
sob relações de dependência pessoal, nos latifúndios (VIANNA, 1997, p. 48).
Diante do exposto, percebe-se que o conceito gramsciano de
revolução passiva é aplicável especialmente para verificar a relação entre o jurídico e o político,
num país onde se costumou nomear por revolução processos essencialmente contra-
revolucionários, como os ocorridos nas décadas de 1930 e 1960 (VIANNA, 1997, p. 43). O
liberalismo conservador, quando muito reformista leva a uma versão castigada e deformada da
ideologia liberal, da igualdade, da liberdade e da fraternidade se estabeleceu como referência
política primária, introjetada no senso comum dos juristas (PRADO JR., 2004, p. 377). A
aristocracia assimilou o liberalismo, o incorporando a ordem jurídico-política, sem quebrar o
patronato político, cujo poder não se origina na soberania popular (FAORO, 2001, p. 837).
Assim, a separação e independência entre os poderes não se deu com o propósito de garantir
autonomia e independência entre estes, ou seja, não se prestou aos fins que a filosofia liberal
propôs. Antes, serviu para organização da estrutura burocrático-administrativa em uma sociedade
escravocrata sustentada pela estrutura econômica latifundiária, “inexistindo a tradição de
resistência institucional ao poder imperial do Executivo” (LOPES, 1994, p. 130). Segundo
VIANNA (1999, p. 127):
As repercussões do liberalismo republicano, logo em seguida a abdicação da
escravidão, com a subseqüente disseminação dos valores mercantis, viabilizaram a
transição para a revolução burguesa, num processo molecular. O Estado não
representava, pois, uma bastilha feudal, a ser assaltada pela burguesia, mas apenas um
aparato detido por outra facção burguesa que, com seu devido e justo momento, poderia
ser apropriado como seqüência natural do se crescente predomínio na sociedade civil,
inclusive e principalmente no plano econômico.
102
2.5 Os bacharéis: intelectuais orgânicos da tradição no desenvolvimento da
cultura jurídica brasileira
Posteriormente à ideologia liberal, repleta de boas intenções,
somou-se o ideário positivista, difundido entre os militares e, especialmente, nas academias de
direito. O positivismo encontrou aqui um campo fértil para desenvolver-se, para servir como
justificação científica para o poder: a tradição centralizadora do poder, a fúria regulatória
característica dos colonizadores, especialmente herdada dos espanhóis para controlar o vasto
império, uniformizando a ordem social para evitar cisões (HOLANDA, 2005, p. 116-117).
Assim, pretendeu-se estabelecer aqui, como no resto do mundo “civilizado” um norte científico
para a administração pública e para o direito, numa realidade onde caberia à minoria branca
esclarecida a condução da vida social em um país mestiço e inculto. A pretensão de cientificidade
e o fatalismo das certezas positivistas encontram eco nas primeiras décadas da república, como
resultado de um receituário de idéias universais aplicáveis à realidade político-jurídica brasileira,
manifestação da crença no poder milagroso das idéias, especialmente as científicas (HOLANDA,
2005, p. 159).
As ideologias norteadoras da república, o liberalismo o positivismo,
difundem-se e se sustentam como discurso estruturado de idéias e de representações, cobrindo as
contradições sociais sob o manto da liberdade e da igualdade (ADORNO, 1988, p. 161). Eis o
material ideológico dos intelectuais, divulgadores da ideologia das classes dominantes, ainda que
tais ideologias se caracterizem por contradições e ecletismos capazes de constranger os liberais
puristas. Entre os intelectuais orgânicos, os “funcionários da ideologia”, estão os operadores do
direito, que realizam a importante função de garantir o consenso mínimo para a coesão social.
Operam a partir da tradução dos discursos político-ideológicos para a linguagem jurídica, atuando
com base numa degeneração positivista caracterizada pelo normativismo acrítico, “científico”,
pretensamente destituído de cunho ideológico. No Brasil o projeto de modernidade se como
continuidade do paradigma jusnaturalista no positivismo político e jurídico, ainda que com
aparente distinção. Entretanto, diante racionalidade do Estado moderno, sustentada na separação
e no equilíbrio de poderes teorizadas por Montesquieu, a realidade social, política e econômica
foi mais pragmática: os filhos das elites divulgadores de uma mesma retórica são
promiscuamente estabelecidos no exercício do mando político e jurídico, muitas vezes realizando
103
a mistura destes ao gosto dos mandatários (ADORNO, 1988). Segundo HERKENHOFF (2004, p.
48), “o positivismo, que imensa e nefasta influência desempenhou no Brasil, identificou ordem e
justiça, vendo a ordem como valor supremo do qual decorreriam o progresso e o bem comum”. A
relação entre a cultura jurídica brasileira, especificamente sobre a influência positivista nesta, e a
inserção dos bacharéis nas estruturas do poder, favoreceu a aceitação do militarismo, do
autoritarismo e dos golpes de Estado. A partir do positivismo-exegético, separa-se o direito de
suas dimensões sociais, de sua historicidade, afastando-o das aspirações populares (ABREU,
2003, p. 36).
Entre os aparelhos de hegemonia, as faculdades de direito, além de
oferecer quadros para ocupação dos cargos públicos, se prestaram para a reprodução e difusão
das ideologias que concebem a tradição no direito brasileiro, especialmente durante o império até
a consolidação da república, dentro do que foi denominado bacharelismo por ADORNO (1988).
Provenientes das elites sociais do período, reproduziam e justificavam, não os seus interesses
de classe, mas também os fundamentos políticos do Estado brasileiro. É possível afirmar que,
dentro da revolução passiva que caracteriza a história do país, o jurista brasileiro nasceu
vinculado às instituições do Estado: “os bacharéis serão o tipo-ideal do burocrata nascido em
sociedade escravista e clientelista: subindo na carreira por indicação, por favor, por aliança
política com os donos do poder local, provincial ou nacional” (LOPES, 2000, p. 226). Revela
ADORNO (1988, p. 237), que menos importava a formação técnica e mais interessava a
constituição de uma elite afinada aos interesses do Estado, formando quadros burocráticos
ideologicamente comprometidos com o poder, mas intelectualmente deficientes.
Conquanto os princípios lapidais da ciência do direito fossem transmitidos em sala de
aula, o aprendizado foi caracterizado pelo autodidatismo, não consolidou a formação de
discípulos e sequer foi dotado de padrões nimos uniformes no desempenho de suas
funções pedagógicas. A diversidade na composição do corpo docente revela
contradições relacionada quer uma formação ideológica que buscou conciliar, no mesmo
espaço institucional, fundamentos filosóficos de distintas origens, quer as ambivalências
decorrentes do contraste entre a academia formal e a academia real. Essas contradições
desnudam, por sua vez, uma conclusão profundamente intimidativa e, a um tempo
perturbadora: o segredo’ do ensino jurídico no Império, foi, justamente, o de nada ou
quase nada haver ensinado a respeito das ciências jurídicas.
As ambivalências entre a academia real e a academia formal,
refletiam as estruturas sociais de um país escravocrata e com uma elite econômica agrária; uma
sociedade na qual coexistiam o liberalismo político, a ideologia política dominante, o
104
patrimonialismo, a escravidão e uma estrutura de poder imperial com resquícios absolutistas
(WEHLING, 2003, p. 375). Tudo isso, sob uma Constituição na qual, segundo Adorno (1988, p.
61) se proclamou a soberania popular; que se transfigurou em soberania nacional, bem como
versou sobre direitos e liberdades individuais.
Os filhos das elites, sempre gravitando em torno do
poder político e econômico, por influência de um discurso liberal, calcado em um ‘idealismo
afrancesado’, levantam bandeiras liberais, defendendo a abolição da escravatura e, com a
incorporação de ideais republicanos, a proclamação da República (KOZIMA, 2003, p. 353).
O paradigma positivista, a maior das heranças do ensino jurídico
realizado nas primeiras décadas de república, cristalizou-se, a partir da atuação dos intelectuais
comprometidos com a tradição jurídica, nas consciências mais conservadoras, bem como na
definição de direito, afirmada no senso comum dos juristas, passando de uma geração de
operadores do direito para outra, especialmente por dentro das esferas do poder estatal. A partir
de uma leitura mais pragmática e adequada aos períodos de autoritarismo da história do Brasil,
simplificou-se a cientificidade do direito, com a atuação legalista dos juristas da tradição,
caracterizada por um normativismo rasteiro que, infelizmente, ainda hoje se reproduz na vida
jurídica e em grande parte dos cursos de direito. Nesse caminho tradicional são desconsideradas
diversas possibilidades hermenêuticas, mais adequadas aos interesses das classes subalternas.
Assim, firmou-se a retórica jurídica que se fundamenta, principalmente, na idéia de justiça
formal, técnica, pretensamente afastada do campo da ideologia, adequada para reproduzir um
discurso teórico e prático. Trata-se de um direito asséptico, auto-suficiente, afastado das massas,
um direito adequado à tradição da modernidade, como afirma CAPELLA (2002, p. 22):
A reflexão moderna sobre o direito tende a contemplá-lo como fechado em si mesmo -
isto é, tratando de fazê-lo inteiramente calculável de antemão, respondendo assim à
exigência de segurança do capitalismo concorrencial -, e a considerar “lógica” a
evolução do direito, como se sua história fora autônoma, para o qual os aspectos não-
jurídicos da sociedade resultaram irrelevantes. Introduzir-se na compreensão critica do
direito, no entanto, exige referi-lo constantemente, sem perder de vista sua
especificidade: a sua complexa relação com outros aspectos da vida social.
O bacharelismo, ou seja, a predominância de bacharéis na vida
política e cultural do país, foi responsável pela inclusão dos ideais do liberalismo e,
posteriormente, do positivismo na vida política nacional, não obstante seja possível perceber, ao
longo da história, uma não adequação entre discurso e prática na vida de bacharéis que
105
ascenderam à vida política. Participaram da realização das funções burocráticas e de controle
social do Império, teorizaram e, não fosse um golpe de mão dos militares, teriam implantado o
Estado republicano, obviamente elitista. De qualquer forma, participaram ativamente, na
consolidação da Velha República, bem como tomaram parte, contra e a favor, desta, sem deixar
de participar da Nova República. Trata-se de um fenômeno que se expandiu para além dos
limites do mundo jurídico, das academias, segundo KOZIMA (2003, p. 370): “Não se resumiu,
ou se resume apenas ao fenômeno restrito aos bacharéis ‘de’ e ‘por direito’; impôs-se
institucionalmente, certamente por via reflexa, sobre os padrões culturais de indivíduos e
agrupamentos sociais distintos, notadamente nos centros urbanos”.
O agir do jurista, como intelectual orgânico que atua para a defesa e
manutenção da hegemonia, a partir das ideologias que fundamentam as concepções tradicionais
de direito, tem como referencial histórico, no Brasil, o bacharelismo. Ainda hoje se com a
reprodução de uma ideologia jurídica que é permeada pela idéia da isenção do jurídico para
decidir sobre a vida política e social, e pela idéia das liberdades e garantias naturais a todos,
originando a igualdade meramente formal como garantia da ordem democrática. Isto, num país
de tradição política caracterizada pelo clientelismo e o patrimonialismo, na relação promíscua
entre o patrimônio público e a vida e os interesses privados. Neste contexto, a coerência lógico-
formal postuladas pela ordem jurídica se constitui também como retórica do discurso jurídico
(FARIA, 1994, p. 27). Muito se deve à formação oferecida pelo ensino jurídico brasileiro ao
longo de sua história, com o privilégio para a formação essencialmente técnica do bacharel,
despolitizada, sem grandes provocações nem grandes estímulos para uma formação crítica.
Conformou-se o ensino em uma tediosa assimilação da dogmática, sem problematizar as
questões atinentes à ordem jurídica e as funções do direito. Enfim, uma formação burocratizada
para burocratas, com a dogmatização do ensino e o tratamento tecnicista dados ao direito que se
aprende e que se aplica.
Diante do exposto, percebe-se que o desenvolvimento das
instituições jurídico-políticas no Brasil é marcado pelo afastamento das rupturas revolucionárias,
conforme o que Gramsci denomina revolução passiva, marcada pelo conservadorismo e pelo
militarismo. Determinou-se, pois, a formação uma estrutura político-jurídica constituída sobre as
bases da retórica liberal, a qual, na prática, sustenta a exclusão das massas da participação
política. Deu-se o desenvolvimento das instituições, e da sociedade civil, preferencialmente pela
106
via autoritária, com o protagonismo do Estado, permeado pela atuação cada vez mais ampliada da
burguesia, a qual se sustentou, por largo período, nas oligarquias agrárias. Por conta disso,
enraíza-se na cultura política brasileira o patrimonialismo e o clientelismo, as relações políticas
pautadas, especialmente nos estados da federação brasileira com as maiores taxas de pobreza,
pela troca de favores e de vantagens entre os “sócios” do Estado e os “clientes” deste. O
desenvolvimento da vida política da sociedade civil se dá, assim, sem grande autonomia diante
das estruturas jurídico-políticas do Estado, com as classes dominantes recorrentemente buscando
apoio da coerção militar para sustentar-se no poder. Arraigou-se uma vida social politicamente
pobre, historicamente cultivada, com a mendicância de direitos, com o “oprimido que espera sua
libertação do opressor” (DEMO, 2006 p. 31). Nesse sentido, pode se afirmar que cultura política
e jurídica hegemônica, que se enraizou no senso comum do jurista é negadora das virtudes
sociais, narcotizante, contemporizadora diante das diferenças.
Os bacharéis de direito, conforme brevemente exposto, serviram
como intelectuais orgânicos para divulgação e reprodução da cultura liberal-individualista, do
modo de vida burguês. São em grande parte, tendo em vista as relações que estabeleceram com
os poderes e com os aparelhos privados de hegemonia, responsáveis pelo enraizamento da cultura
jurídica sustentada no liberalismo e na democracia formal. Produziram e divulgaram um direito
voltado para manutenção do status quo, incapaz de desvelar os conflitos sociais, limitando-se aos
conflitos interindividuais, os quais estão ainda na essência da legislação vigente, mesmo que
consideremos as transformações sociais ocorridas especialmente na Constituição Federal de
1988. Muito mais se poderia escrever sobre as influências de Gramsci para interpretação da
evolução da sociedade civil e da sociedade política no Brasil. Entretanto, considerando os limites
dessa dissertação, o que foi apresentado serve como subsídio suficiente para as análises que
seguem.
107
3 CRISE DO ESTADO SOCIAL E AS CONTRIBUIÇÕES DE
GRAMSCI PARA A CRÍTICA JURÍDICA CONTEMPORÂNEA
3.1 A ampliação das funções do Estado
No Brasil, o desenvolvimento econômico se deu, principalmente,
pela ‘mão pesada’ do Estado, com restrições à participação democrática das massas, contexto no
qual se deu a positivação de direitos trabalhistas, destacadamente durante o período do Estado
Novo. Cabe aqui, entretanto, ressalvar que os direitos dos trabalhadores brasileiros não são
produtos de uma simples outorga do Estado Novo, independente da pressão das massas
trabalhadoras, bem como não se tratou de mera passagem da luta operária de questão policial
para questão social. Esse mito contribui para a cultura das classes subalternas impotentes e
incapazes de reivindicar suas pautas, ou seja, trata-se de uma recriação interessada da história
para conservar a inércia dos subalternos, para disfarçar uma legislação controladora e repressiva
dos operários. A proteção do trabalhador em sua atuação profissional, visava, também, a proteção
da ordem social, com a restrição das organizações operárias. Ademais parte da legislação
trabalhista antecede 1930, como a que regula direitos fundamentais do trabalho, como o descanso
dominical, a regulamentação da jornada de trabalho, do trabalho do menor, entre outros
(VIANNA, 1999, p. 57-60). O Estabelecimento de direitos trabalhistas motivou a criação de uma
justiça especializada, sobre os quais ROVER (1993, p. 67-68) escreveu:
A justiça do trabalho constituiu-se, pois, como árbitra obrigatória, concentrando em
suas mãos a capacidade de decisão dos conflitos entre empregados e empregadores. Eis
o maior princípio de toda estrutura: o trabalho era considerado como um dever social
acima de tudo, e em segundo plano como meio de subsistência do indivíduo que deveria
caminhar para uma maioridade, uma autonomia. Ao contrário, a sociedade
organicamente estruturada não possibilitava efetivar medidas que permitisse a ela reger-
se autonomamente, através de mecanismos reais de representação dos seus diversos
interesses. Isso seria admitir a existência de luta de classes, ou seja, das diferenças que
perpassavam o conjunto da sociedade. Era tida como hierárquica e não conflituosa. Para
conservar essa estrutura realizava-se, vez por outra, quando de uma crise, arranjos
políticos que excluíam a participação popular, inicialmente através de um regime
escravo de relação de trabalho, posteriormente com um regime de cooptação
corporativa.As mudanças políticas no Brasil pouco refletiram nas relações trabalhistas,
visto que aquelas se fizeram em moldes autoritários, cuja conseqüência social foi o
acirramento da exploração de classe: A elite política do império, impregnada pelas
práticas e valores de uma sociedade rural e escravocrata, ao ser afastada do poder, vê-se
substituída por uma nova elite (inclusive em termos geracionais) que, sendo mais
108
federalista que abolicionista, prefere a descentralização regional a um incremento da
participação política.
De qualquer modo, ampliam-se as funções do Estado, e, no Brasil,
assim como na Itália de Gramsci, ganha corpo a legislação intervencionista num contexto de
repressão aos partidos operários, de propaganda ideológica de um Estado corporativo que se
infiltra no movimento sindical. Amplia-se o Estado, com o escopo do bem-estar coletivo, com a
criação ou a modernização dos sistemas nacionais ou nacionalmente articulados, públicos ou
estatalmente regulados, de educação, saúde, assistência social, políticas de emprego e de defesa
do trabalho, entre outras funções, que transformam a estrutura do Estado, adequando-a para
produção de bens e serviços sociais. No Brasil, duas fases de grande produção normativa se
destacam: os anos entre 1930 e 1943 e os anos entre 1966 e 1971, ambas efetivadas em regimes
autoritários, demonstrando uma atitude deliberada das classes dominantes para contenção de
demandas sociais. No primeiro período indicado são criados os institutos de aposentadoria e de
pensões, bem como se a consolidação da legislação trabalhista. No período posterior, verifica-
se a ampliação da legislação social e a reestruturação da mesma, com a centralização e
coordenação dos serviços em instituições estatais. “Dessa forma, sob as características
autoritárias e tecnocráticas do regime que se instalou em 64, que se completa o ‘Welfare State’ no
Brasil” (DRIABE et alii,1993, p. 19-21).
Segue-se no Brasil uma produção normativa que caracteriza a
primeira metade do culo XX, especialmente após a II Guerra Mundial, ressalvando as
especificidades antidemocráticas da cultura política brasileira, conforme exposto. Para a
intervenção na economia, o Estado reforma e amplia as suas funções, como vimos, realiza
políticas macroeconômicas que atendam as necessidades sociais básicas (empregos, saúde,
educação, previdência social, direitos trabalhistas), assumindo funções não compatíveis com a
concepção liberal de Estado, ou seja, não apenas deixa fazer, mas também faz no âmbito
econômico e social (BOBBIO, 1977, p. 20-33). Como conseqüência da expansão funcional do
Estado, os direitos liberais, garantias negativas limitadoras do poder estatal, sofreram alterações,
que podem ser percebidas inclusive em seus institutos basilares: propriedade e contrato. Ambos
são relativizados, condicionados à realização dos interesses sociais públicos. A legitimação do
Estado ganha novos elementos, a partir de investimentos caracterizados como prestações estatais
109
para suprir carências de ordem cultural e material, as quais não são atendidas pelo livre andar da
economia.
O consenso característico da democracia representativa, bem como
o consenso que se assenta na sociedade civil, passa a ser assegurado, também, pela maior atuação
do Estado na vida social e econômica, expandindo as funções do direito e do Estado para além do
caráter repressivo-protetivo. A estatalidade realiza atividades que, conforme a tradição liberal,
não caberiam nas suas atribuições jurídicas e políticas. A sociedade política amplia seu campo de
atuação, legitimando-se, portanto, não pela via eleitoral, ou seja, não pela
representatividade parlamentar, mas também pela maior participação das instituições jurídico-
políticas na vida social e econômica. Ampliam-se os instrumentos de intervenção política,
jurídica e econômica da sociedade política, a qual não se limita à condição de guarda noturno, de
portadora da coercibilidade que garante o consenso. Apresentam-se, pois, novos elementos para o
consenso, considerando a relação entre sociedade civil e sociedade política, a partir de um ajuste
que se limita ao campo superestrutural, com o protagonismo da sociedade política, da burocracia
estatal, voltada para a manutenção da hegemonia das classes dominantes, necessária para garantir
um modo de produção que, em sua essência, permanece o mesmo. Comprova-se no Welfare State
a capacidade do capitalismo de se adaptar a conjunturas político-econômicas que lhe são
desfavoráveis, assimilando alterações relevantes nos âmbitos jurídico e político. O Estado
intervencionista incorpora demandas políticas, despolitizando-as, com a juridicização das
mesmas, ou seja, agrega ao seu corpo normativo pautas e reivindicações que seriam
potencialmente nocivas ao modo de produção vigente e a ordem político-jurídica que lhe
corresponde.
A ampliação das funções do Estado origina a maior intervenção
jurídica em várias instâncias da vida social (relações de emprego, programas de saúde pública...),
acarretando uma produção normativa sem precedentes na história do Estado moderno. Tal grau
de normatização resulta da racionalidade e previsibilidade que são necessárias para garantia das
relações de mercado, agregadas a necessidade que possui a estatalidade de planejar e programar
as intervenções na vida social e econômica. Como resultado, verifica-se um acentuado grau de
tecnicização da administração pública, realizada conforme tecnologias e informações recolhidas
de vários campos do conhecimento, com o propósito de garantir razoável eficiência para a
realização de políticas públicas. O poder representativo parlamentar passa a conviver com uma
110
lógica tecnicista que o é adequada ao debate parlamentar, ocasionando a proeminência do
poder executivo, diante do legislativo, na condução da vida política. O privilegiado proponente
de novas leis, nesse quadro, acaba sendo a própria burocracia estatal, reduzindo a importância do
debate político-partidário. Essas características do Estado intervencionista, é prudente afirmar, se
pautam no reconhecimento de que se fez necessário estabelecer novas políticas públicas, bem
como garantir direitos, para assegurar consenso na vida social, a partir do relativo aumento do
acesso à melhor qualidade de vida para a coletividade.
Nesse contexto, se mostram superadas as concepções tradicionais
da teoria do direito frente à consolidação do Welfare State. Na doutrina do direito, a tradição trata
de uma legalidade essencialmente coercitiva, que contempla somente deveres negativos, de não-
intromissão, próprias do Estado de direito liberal, o qual passa a assumir obrigações de realizar
prestações diversas. A igualdade abstrata, garantida nos ordenamentos jurídicos da tradição
liberal, agora vem acompanhada pela normatização de atribuições, funções, voltadas para a
efetivação de ações voltadas para mínima equalização das condições sócio-econômicas. Percebe-
se a função promocional do direito nas técnicas de encorajamento para realização de
determinadas atividades de interesse da coletividade, colocando-se tais técnicas no ordenamento
ao lado das clássicas cnicas de desencorajamento, próprias das normas proibitivas. Ganha
maior relevo, consequentemente, a concepção de sanção positiva, concepção até então pouco
relevante para a tradição do direito. Assim, o ordenamento jurídico não pode ser percebido tão-
somente como força e coação, visto que a organização do Estado de bem-estar desenvolve em
seu bojo normas organizacionais de novo tipo (BOBBIO, 1977, p. 34-41).
Esta agregação de ações promocionais, e também assistenciais e
distributivas, com a função de tutela protetiva e repressiva do Estado nos ordenamentos jurídicos,
viabilizou um maior controle social passivo, aumentando o papel da sociedade política, agora
mais próxima de uma atuação voltada para realização pró-ativa do consenso do que da
coercibilidade. Isso, considerando ao ordenamento jurídico são incorporadas normas que não
desfavorecem ações negativas, como também favorecem ações vantajosas ou resultam em uma
obrigação que deve ser realizada pelo Estado. Essa alteração na função do ordenamento jurídico
reflete-se na estrutura deste, na qual passa a coexistir a ameaça das sanções negativas (relação
direito-dever: parte do sancionador dirigida ao sancionado) e a promessa das obrigações do
Estado e das sanções positivas (relação direito-dever vai do sancionado ao sancionador). Vale
111
dizer que, ao revelar a insuficiência da perspectiva tradicional acerca das funções do
ordenamento jurídico, BOBBIO (1977, p. 187-217) analisa criticamente, ainda que dentro dos
limites da dogmática jurídica, a teoria do direito de Kelsen, afirmando que essa, assim como as
doutrinas tradicionais, se preocupa muito em saber como o direito é feito, e menos em saber para
que sirva o direito. Em Kelsen, portanto, verificamos limitações de ordem teórica que aderem ao
senso comum dos juristas tradicionais: privilegiar a função protetora e repressiva,
desconsiderando outras possibilidades de intervenção do direito na vida social e econômica, para
garantia da ordem e a coesão social nas sociedades complexas.
Todavia, Bobbio (1977, p. 13-33) superestimou o consenso social
propiciado pela intervenção estatal, a ponto de prever que nas sociedades tecnocráticas, de
grande desenvolvimento industrial, ocorreria o que denominou perda de função do direito,
desjuridificação. Isso, porque acreditava no possível incremento e ampliação dos meios de
prevenção social com a redução dos instrumentos de coação, bem como apostava no aumento do
condicionamento comportamental da coletividade, pela ação dos meios de comunicação de
massa. Porém, pode-se deduzir que esta suposta perda de função do direito limitar-se-ia à
redução gradativa das funções protetivas e repressivas. Bobbio, a partir dessas afirmações,
supervaloriza a capacidade de o Estado, através da legislação intervencionista, de estabelecer
bases consensuais para o convívio social, deslocando o consenso da sociedade civil, onde está
situado por Gramsci, para o interior da sociedade política, numa compreensão que leva a marca
da estatolatria.
Ao contrário de Bobbio, para POULANTZAS (2000), o mundo do
capitalismo ocidental do pós-guerra, com o agigantamento e a maior complexidade do Estado,
caracteriza o declínio das democracias políticas. No mesmo sentido, contrário à Bobbio, parte da
doutrina do direito, especialmente entre a tradição jurídica, considera a juridicização das relações
sociais e da política perigosa para a democracia sustentada na separação e no equilíbrio entre os
poderes, por conta da maior intervenção estatal na vida e da hiperinflação normativa ocasionadas.
Ainda, o quadro atual dos ordenamentos jurídicos é de desregulação, de mitigação das normas
que caracterizam as funções promocionais, distributivas e assistenciais, enquanto que, ao
contrário da previsão de Bobbio, as funções clássicas do direito liberal estão em plena realização.
Se a previsão de Bobbio parece hoje ficção científica, devemos relevar o momento histórico em
que foi redigida, tempos das extintas guerra fria, cortina de ferro, ameaça vermelha, socialismo
112
real... Características do período que hoje, considerando o desmantelamento dos direitos sociais e
a redução da intervenção social do Estado, levam a crer que eram a própria razão de existência do
Estado intervencionista, se não, pelo menos, importantes causas motivadoras da intervenção
estatal.
Vital MOREIRA (1987) afirma que a positivação das normas
características do Estado social se deu sobre as bases normativas já estabelecidas e sobre a ordem
econômica vigente, paralelamente as normas pertinentes à concepção liberal de Estado. Assim,
resultou no estabelecimento legal de prestações sociais e econômicas devidas pelo estado, numa
relação na qual figuram no “pólo ativo” a coletividade e os particulares em uma ordem jurídica
de cunho individualista, na qual os particulares têm direitos pautados na não intromissão estatal,
sobretudo, na garantia da liberdade, propriedade e liberdade contratual, cabendo ao Estado tão
somente tutelar estas garantias. Trata-se, pois, da normatização de funções do direito que são
diferentes e até mesmo antagônicas entre si, consoante observa MOREIRA (1987, p. 129-130):
Ao lado dos direitos de liberdade, algumas constituições incluem também normas
atribuindo aos particulares certos direitos a prestações, direitos não a uma omissão do
Estado, mas antes a uma atividade, ou prestação do Estado. São os chamados direitos
sociais.
Surgindo ao lado dos tradicionais direitos de liberdade das declarações revolucionárias
liberais e de estrutura lógica e jurídica “e até espiritual e filosofia” diferente daqueles, os
direitos sociais, que ganhariam dignidade constitucional depois da primeira guerra, são
expressão de transformações econômicas e sociais que na guerra se tornaram manifestas
ou que nelas se iniciaram: progresso técnico, aumento da população, surgir do
capitalismo monopolista (com a concentração da produção, divisão do trabalho
desenvolvida e socialização da produção), conflitos sociais, esgotamento das terras
colonizáveis, progresso e crise da economia mundial e os próprios fenômenos das suas
guerras.
Pode também dizer-se que nasceram sob o signo da incomodidade e predestinados à
sorte das coisas menores. Não tinham atrás de si a força espiritual do direito natural,
como os direitos de liberdade e, na estrutura constitucional do Estado liberal burguês,
faziam o papel de intrusos ou de cavalos-de-tróia da sua destruição; pelo menos, eram
produtos de conflitos com weltanshauungen adversas que descaradamente se projetavam
no texto constitucional.
A aglutinação de normas com espírito” e normas originárias da
crise daquele espírito, normas de cunho “materialista”, diferentes quanto as suas naturezas e aos
seus fins, resulta que a aplicabilidade tanto das normas “espiritualizadas”, quanto das normas de
função social, fosse determinada pelas conjunturas sociais, econômicas e políticas vigentes. A
aplicabilidade determina-se pela influência de condições de ordem econômica e política sobre os
ordenamentos jurídicos, constituindo-se, pois, elementos para debates ideologizados acerca das
113
finalidades do Estado e do direito. Assim, o mundo bipolarizado ideologicamente e traumatizado
pelos conflitos em escala mundial, levou à constitucionalização dos direitos sociais, como
anteparo normativo e político do ocidente frente ao socialismo. A constitucionalização dos
direitos sociais apresenta a tendência de considerá-los fundamentais ou da cidadania. Porém, os
direitos sociais e os direitos políticos (as liberdades básicas e o direito à participar da vida
política institucional), são direitos que se apresentam frente ao Estado, bastando a vontade deste
para que se concretizem. Os direitos sociais requerem uma atividade meta-estatal, afetando a
economia e requerendo a colaboração da iniciativa privada, se realizando se existir
arrecadação fiscal suficiente, de modo que o Estado não tem condições de garanti-los em
qualquer circunstância. “Ao fim, a satisfação das necessidades garantidas em forma de direitos
sociais pode resultar incompatível com a gica capitalista básica da sociedade em que surgem”
(CAPELLA, 2002, p. 203).
No Estado intervencionista, percebe-se a proposição de fazer valer,
diante da economia, maiores controles políticos e jurídicos, que também servem como
garantidores da ordem social, como contenção das demandas das classes subalternas. As
alterações nas funções do direito e nas tarefas do Estado se tornaram necessárias não pela
evolução do próprio Estado de direito, mas pelas demandas oriundas da sociedade civil. Trata-se,
pois, do direito característico das sociedades industriais, vinculado a pressupostos sociais e
econômicos (MOREIRA, 1987, p. 90-92). Todavia, ainda que os direitos sociais sejam produtos
de bandeiras de lutas dos movimentos sociais e dos partidos (especialmente a sociais
democratas), os direitos sociais não significam uma efetiva democratização do Estado, com a
ampliação do acesso das massas à produção de um direito capaz de se estabelecer em novas bases
consensuais que não sejam produto de conjuntura política, econômica e ideológica. As massas
seguem limitadas à participação na vida política através da democracia representativa,
excetuando-se os países latino-americanos, que no período encontravam-se, em sua grande
maioria, sob regimes não democráticos. Ademais, mesmo com a consolidação dos direitos
sociais, os direitos fundantes do Estado moderno subsistem, ainda que com algumas restrições, se
mantendo como base do ordenamento jurídico, o qual se funda no individualismo liberal.
Ressalte-se que na América Latina a democracia foi severamente
limitada durante grande parte do século XX, caracterizado pela existência de estados de exceção,
embora estes tenham, como vimos no exemplo brasileiro, implantado a legislação característica
114
do Welfare State. No Brasil, assim como nos demais países latino-americanos, foi realizada a
combinação entre o controle passivo, característico do Estado intervencionista, como a coerção
mais brutal, esta voltada contra os movimentos sociais mais indóceis diante dos regimes
ditatoriais que se estabeleceram. Na sociedade civil, o consenso foi garantido, em grande parte,
pelo amparo das grandes redes de comunicação, importantes aparelhos de reprodução ideológica.
Não obstante, a idéia de que os direitos sociais são meras concessões das elites pode se prestar
para repercussão da ideologização característica dos estados totalitários, os quais tem importante
sustentação na inércia e na falta de capacidade de atuação autônoma das classes subalternas. Isso,
especialmente nos países da América Latina, nos quais os movimentos sociais passaram por
longos períodos de silêncio forçado, debaixo das botas dos militares, estes aliados das classes
dominantes. Vale salientar que, diante das ditaduras, os poderes judiciários latino-americanos
foram omissos, incorporando a nova ordem. Os congressos são fechados, direitos políticos são
cassados, enquanto que, historicamente, os tribunais seguem funcionando, excetuando-se
cassações de juízes e ministros, fatos que não impedem a atuação de seus pares, que passam a
operar considerando a nova ordem, a legalidade paralela e não democraticamente fundada. Sendo
representantes das classes hegemônicas, seguem julgando, normalmente, as questões de cunho
privatistas, sem potencial ofensivo para o conservadorismo autoritário, enquanto que,
simultaneamente, contribuem de modo decisivo para a criminalização de movimentos
contestatórios (LOPES, 1994, p. 137).
A legalidade incorpora o confrontamento, bem como a tentativa de
se estabelecer equilíbrio jurídico, entre os direitos que possuem fundamentos naturais, ou seja,
aqueles que, conforme a ideologia jurídica dominante, constituem a fundação jurídico-política do
Estado moderno e os direitos sociais. Esses direitos são incorporados à legalidade por força da
conjuntura política e econômica, bem como pela pressão de movimentos sociais, porém, são
desprovidos da “naturalidade” moderna. Por isso, pode-se afirmar que o Estado de Bem-Estar
Social teve como escopo uma dupla motivação: garantir a domesticação de demandas sociais
mais perigosas, capazes de apresentar riscos para a ordem estatal e econômica, cooptando as
classes subalternas a partir de políticas sociais, assim como trazer as demandas sociais aos limites
da legalidade, preservando a essência da ordem econômica e jurídica num período de
bipolarização ideológica entre potências nucleares.
115
Cabe lembrar que, conforme Gramsci, os aparelhos privados de
hegemonia, atuantes na sociedade civil, têm dupla dimensão, política e jurídica, dentro da idéia
de Estado ampliado, ou seja, da soma do aparelho privado de hegemonia mais o aparelho
governamental do Estado. Os aparelhos privados de hegemonia são destinados à atuação de
natureza cultural e ideológica. De qualquer modo, o exercício da hegemonia implica na
consideração dos interesses dos “hegemonizados”, de modo a garantir certo equilíbrio social, o
que é claramente percebido na concepção de Estado intervencionista. Se a hegemonia é ético-
política, não pode deixar de ser econômica. No parlamentarismo a hegemonia política da classe
dominante passa pela combinação de dominação e consenso, que pode ser operada a partir da
estrutura político-jurídica do Estado, tendo como termômetro a opinião pública. O consenso é,
portanto, duplamente articulado: teórico-prático e jurídico-econômico (BUCI-GLUCKSMANN,
1990, p. 99, 142). O Estado característico da segunda metade do culo XX, segundo o olhar
crítico de ANDERSON (2002, p. 42) sobre a obra gramsciana, fundamenta a seguinte afirmação:
É impossível repartir as funções ideológicas do poder de classe da burguesia entre
sociedade civil e o Estado, como ele pensou inicialmente. A forma fundamental do
Estado parlamentar ocidental a soma jurídica de seus cidadãos é ela própria o eixo
dos aparelhos ideológicos do capitalismo. Os complexos ramificados do sistema de
controle cultural no seio da sociedade civil rádio televisão, cinema, igrejas, jornais,
partidos políticos inegavelmente jogam um papel complementar crucial para
assegurar a estabilidade da ordem de classe do capital. È igualmente o caso, no seio da
economia, do prisma deformante das relações de mercado e a estrutura paralisante do
processo de trabalho. A importância desses sistemas não pode ser certamente
subestimada. Mas não se deve exagerá-la, nem sobretudo colocá-la no mesmo plano
ideológico-cultural do próprio Estado.
Cabe aqui reafirmar que a relação entre sociedade política e
sociedade civil é orgânica, sustentada sobre uma ideologia orgânica, base do consenso e
legitimadora da coerção estatal, reproduzida pela atuação dos intelectuais orgânicos. A divisão
gramsciana é voltada para elaboração estratégica, para a delimitação de possibilidades de atuação
política. De qualquer modo, Gramsci vivenciou o intervencionismo totalitário e corporativista dos
fascistas, não presenciando a dimensão que adquire o Estado intervencionista nas democracias
ocidentais após a segunda grande guerra. Sua teorização, entretanto, deixa claro que as ideologias
não orgânicas, sustentadas prioritariamente pela coerção, são transitórias, como a própria história
dos regimes totalitários comprovou.
116
É inegável, entretanto, que a atuação do Estado intervencionista
acaba viabilizando novas formas de consenso, capitaneada pela estrutura jurídico-política, mesmo
em países nos quais a democracia representativa foi deixada de lado. No Brasil, o
desenvolvimento das instituições jurídico-políticas e da sociedade civil fez com que os abismos
entre as classes sociais fossem minimizados pela ideologia de uma falaciosa unidade nacional.
Tal característica dos governos autoritários, a idéia da unidade e da soberania nacional,
especialmente na tradição militarista, serviu como pano de fundo para realização de manobras
políticas conciliatórias, o que não significou a superação de diferenças e contradições, mas a
dissimulação destas (ROVER, 1990, p. 104-105). A ideologia da segurança nacional,
característica da ditadura militar inaugurada em 1964, serviu como recurso de força para a
manutenção da base econômica e da ordem político-jurídica, focos de disputa naquela conjuntura,
na qual o consenso na sociedade civil estava ameaçado. O governo ditatorial acabou por aglutinar
diversos setores da sociedade civil em um consenso desmobilizante, calcado na ideologia anti-
ideológica. A ordem econômica subsistiu, o Estado autoritário garantiu alguns direitos sociais,
enquanto criminalizou e reprimiu movimentos contestatórios, até que a democracia representativa
fosse restabelecida, tendo como marco a Constituição Federal de 1988, ponto culminante de
demandas sociais reprimidas por mais de duas décadas.
3.2 A Globalização e a crise do Estado intervencionista
A multiplicidade das funções do Estado, especialmente no que
quanto às atribuições deste frente à ordem econômica, suscitou grandes polêmicas entre os
liberais e os social-democratas. Isso, especialmente no campo da economia, a qual, não se pode
deixar de frisar, foi determinante para o estabelecimento de novas funções para o direito, bem
como dá causa, hoje, para que estas funções não sejam adequadamente observadas, ou que sejam
simplesmente retiradas da normatividade estabelecida. HOBSBAWN (1994, p. 254), apresenta
breve uma mostra da disputa entre os interesses econômicos e as ideologias contrárias de liberais
e keynesianos frente ao welfare state e seus fins:
A batalha entre keynesianos e neoliberais não era nem um confronto puramente técnico
entre economistas profissionais, nem uma busca de caminhos para tratar de novos e
perturbadores problemas econômicos. (Quem, por exemplo, tinha sequer considerado a
117
imprevista combinação de estagnação econômica e preços em rápido crescimento para a
qual se teve de inventar o termo ‘estagflação na década de 1970?) Era uma guerra de
ideologias incompatíveis. Os dois lados apresentavam argumentos econômicos. Os
keynesianos afirmavam que altos salários, pleno emprego e o estado de bem-estar
haviam criado a demanda de consumo que alimentara a expansão, e que bombear mais
demanda na economia era a menor maneira de lidar com depressões econômicas. Os
neoliberais afirmavam que a economia política da Era de Ouro impediam o controle da
inflação e o corte de custos tanto no governo quanto nas empresas privadas, assim
permitindo que os lucros, verdadeiro motor do crescimento econômico numa economia
capitalista aumentassem.
(...)
Contudo, a economia nos dois casos racionalizava um compromisso ideológico, uma
visão a priori da sociedade humana. Os neoliberais desconfiavam e sentiam antipatia
pela social-democrata Suécia, uma espetacular história de sucesso econômico do século
XX, não porque ela ia ter problemas nas décadas de crise – como tiveram outros tipos de
economia -, mas porque se baseava no’ famoso modelo econômico sueco, com seus
valores coletivistas de igualdade e solidariedade’(Financial Times, 11/11/90). Por outro
lado, o governo da Sr.ª Thatcher na Grã-Bretanha era impopular na esquerda, mesmo
durante seus anos de sucesso econômico, porque se baseava num egoísmo associal, na
verdade anti-social.
A conjuntura de crise do Estado intervencionista se reflete, dentro
do contexto de globalização, no Brasil, país que ao longo de sua história foi caracterizado pela
atuação do Estado especilamente voltada para guarida de interesses setoriais e para a manutenção
e acobertamento das disparidades sociais, tendo sido as massas, por longos períodos, afastadas da
participação na vida política. Com a positivação de direitos sociais, ao longo do século XX, estes,
que dependem de prestações do Estado para se concretizarem, sucumbem diante dos vícios da
burocracia, do formalismo, da deficiência e da precariedade das instituições político-jurídicas
para o atendimento das demandas sociais. A Constituição Federal de 1988 consagra direitos
sociais, porém numa conjuntura internacional econômica e política diversa daquela que
caracterizou o Século XX, no qual se estabeleceram os estados que garantiram direitos sociais.
Com o final a bipartição política, econômica e ideológica do mundo, as políticas pertinentes ao
estado de bem-estar social foram reduzidas, deixando gradativamente de operar na realidade
social a maior intervenção estatal, tendo em vista a redução, numa escala mundial, do interesse
estratégico em realizar políticas pautadas nos direitos sociais.
Agrava-se a crise do modelo de Estado interventor pela conjuntura
de crise fiscal de um modelo de Estado que se legitima através de maiores investimentos públicos
e que, para se manter atuante, necessitava de novos e maiores investimentos (O’CONNOR,
1977). Começam a valer, então, as razões práticas de justificação e convencimento amplamente
divulgadas pela mídia e aplicadas pelos governos para a realização de um novo projeto liberal do
118
Estado, que de interventor e promotor de desenvolvimento, se volta novamente para uma
concepção de legalidade essencialmente protetivo-repressiva. Ademais, as instituições jurídico-
políticas seguem pautadas pelo formalismo e pelo burocratismo, distanciando-se o mundo das
normas do mundo concreto, distanciamento que agrava as condições sociais em um país de
capitalismo periférico, com grandes disparidades sociais, no qual o Estado deveria ser o principal
realizador das políticas sociais.
A legislação social pressupõe, portanto, um Estado capaz de atuar
para concretizá-la, capaz de garantir eficácia para que os direitos sociais não se restrinjam a
legalidade positiva, sem aplicabilidade na vida concreta. Entretanto, com a crise do Welfare State
e o fim da ordem mundial que o inaugurou, emerge o questionamento e a rejeição deste modelo
de Estado, de modo que o debate político que se realiza contemporaneamente com a
promulgação da Constituição, passa a tratar da necessidade, ou não (a negação se a partir das
esquerdas), de uma desregulamentação dos direitos sociais, com o escopo de adaptar Estado,
economia e sociedade para o novo padrão de economia globalizada. Os atores políticos, na
condução da vida política e econômica do Estado, têm no horizonte possibilidades diferentes: a
desregulamentação, submetendo a coletividade à lógica do mercado e da economia globalizada,
ou o estabelecimento e consolidação de um patamar político-social, no qual a manutenção do
Estado interventor se dá no sentido de garantir um mínimo de equalização social e econômica
para a coletividade. SANCHÍS (1998, p. 147) afirma, sobre a necessidade de um Estado capaz de
corresponder aos direitos sociais constitucionalizados, que:
(...) si la protección de todos los derechos supone una mínima estructura estatal, la de
los derechos sociales resulta mucho más compleja, dado que de contar con una
organización de servicios y prestaciones públicas sólo conocidas en el Estado
contemporáneo; cabe decir que en este punto la distancia que separa a los derechos
civiles de los sociales es la misma que separa al Estado liberal decimonónico del Estado
social de nuestros dias.
Dentro de um processo de redemocratização, depois de mais de
vinte anos de ditadura militar, são estabelecidos direitos sociais, direitos que requerem políticas
públicas estatais voltadas para o combate às disparidades sociais, econômicas e culturais
existentes no Brasil. Porém, o que se verifica é a minimização dos direitos sociais, a desregulação
e o desmonte da organização política e legal que fundamenta o Estado interventor. Contrapõe-se
a realidade política e econômica globalizada ao estágio em que se encontrava o Estado moderno,
119
intervencionista e fortemente regulador da vida social, cuja regulação passa a se colocar no limbo
das normas programáticas.
De qualquer modo, esta redução ou não-observância das funções
sociais do Estado, devidamente constitucionalizadas no passado recente, redimensionam o papel
deste, que se volta para as características básicas no que tange a atividade legislativa e jurídica:
garantir a segurança jurídica para as relações contratuais, a proteção da livre empresa e da
propriedade. Deve ser considerado que o nível de segurança jurídica capaz de ser garantido pela
estatalidade influi decisivamente na capacidade de atração de investimentos na economia
globalizada. Percebe-se, portanto, que a desregulação é pertinente aos direitos sociais, não
atingindo as garantias e liberdades clássicas, de modo que as relações jurídicas, especialmente as
interindividuais, ou as interempresariais, não venham a ser expostas aos riscos da insegurança
jurídica. As isenções e os estímulos fiscais, a função promocional do direito passa a ser
destinadas quase que exclusivamente aos grandes investimentos promovidos por gigantescas
corporações transnacionais, especialmente nos Estados periféricos. Para estes estados, cabe a
aplicação de receituários de contenção de investimentos sociais e de controles fiscais
padronizados, nos quais se verifica o descomprometimento diante de políticas voltadas para
qualidade de vida das populações mais carentes.
A globalização econômica, movida pela releitura liberal, atinge com
maior gravidade as constituições dirigentes, ou seja, aquelas que são definidoras de diretivas,
finalidades e funções para Estado, neste caso o Estado social, capaz de proteger a eficácia de
direitos com a realização de prestações sociais, de políticas públicas de combate às desigualdades
sociais. Porém, mesmo as características essenciais do direito e do Estado modernos são postas
em questão pela globalização econômica: a soberania nacional, a primazia da Constituição e a
separação de poderes. Tais aspectos determinantes para a modernidade jurídica, foram
estabelecidos para, a partir da ótica liberal-individualista, conter o poder do absolutismo
monárquico, bem como a soberania popular, especialmente, neste caso, por conta da separação
dos poderes. Cabe ressaltar que a separação dos poderes é, na prática das políticas públicas do
Estado social, atacada pela ampliação das funções do poder executivo, mais controlador, diretivo,
coordenador, indutor e planejador (FARIA, 1996, p. 12-13). O capitalismo globalizado ataca o
modelo liberal clássico da tripartição dos poderes, estimulando a desconfiança das massas diante
dos mecanismos tradicionais de representação política, o que produz efeitos sobre o poder
120
judiciário. No contexto da globalização econômica, o mercado internacional e a economia global
se apresentam como os principais reguladores sociais. A submissão da ordem jurídica não se
somente pela desregulação, mas também pela atuação política dos governos, em muitos casos
pondo em cheque até mesmo conquistas do liberalismo (ARRUDA JR., 2001, p. 53).
A desregulação dos direitos sociais pode ser compreendida como a
não observância de parte das funções dispostas no ordenamento jurídico, observável nas três
instâncias de poder: o Executivo, que não realiza suas obrigações; o Legislativo, que realiza a
desregulação; e o judiciário que em sua maioria possui perspectiva e atuação limitada à
formalidade quanto à constituição, escapando do dever ético-político de absoluta intimidade com
a Constituição, sendo um burocrata fundamentado na técnica da dogmática jurídica, valorizando
a forma e deixando de lado a substância. Questiona-se, pois, sobre a verdadeira disponibilidade
de direitos por parte dos cidadãos, numa realidade em que a política e a economia hegemônicas
são realizadas sobre bases que desintegram e dissolvem vínculos, excluindo do sistema sócio-
econômico as classes subalternas, o que significa privá-las de direitos (CÁRCOVA, 1998, p. 54).
A desregulação, sem embargo, tem o significado geral de uma míngua do âmbito
público. Não só decresce a consciência cultural relativa aos interesses gerais ou públicos:
decresce também o âmbito jurídico público mesmo. Isso nem sempre se materializa
através de uma privatização formal do espaço público ou dos bens de titularidade
pública, senão que amiúde opera implicitamente, por meio da atribuição a sujeitos
privados da capacidade de decisão determinante para a configuração do âmbito público
(CAPELLA, 2002, p. 266).
As normas, portanto, não necessariamente são retiradas do
ordenamento, o que, conforme mencionado, acontece eventualmente. A não aplicação das
normas pertinentes às funções de intervenção estatal (garantias pertinentes aos empregos, à
saúde, à educação, à previdência social e aos direitos trabalhistas) especialmente no que se refere
ao poder judiciário, resulta da leitura inadequada do sistema normativo, realizada em muitos
casos a para manutenção da ordem econômica de mercado, relegando a base constitucional do
ordenamento jurídico ao plano ideal. Sobre os valores do mercado, é possível afirmar que estes
estão relacionados diretamente à gradual diminuição da cultura relativa aos interesses gerais ou
públicos, e na reprodução de valores essencialmente econômicos e individualistas, reproduzidos
constantemente em todos os meios de comunicação, tais como competitividade, Estado mínimo e,
qualidade total.
121
A lex mercatoria estabelecida sob a liberdade econômica não se
detêm diante da soberania dos Estados: se consolida como parâmetro para o enquadramento dos
mesmos ao contexto econômico global. Assim, a compreensão da realidade política e estatal sofre
alterações: a mundialização econômica reduz o poder do Estado interventor na economia
nacional, a qual está atrelada e submetida ao mercado internacional. Isso condiciona a realização
das políticas públicas e a produção legislativa aos temas da contenção de investimentos e das
privatizações, os quais são sugeridos por órgãos financeiros internacionais aos países periféricos.
Na conjuntura globalizada, na qual a ordem econômica submete a ordem política, cabe o resgate
do papel do direito na limitação dos excessos do econômico e do político, considerando sua
função de regular o poder e a economia (HABERMAS, 1997, p. 97), de modo a garantir uma
efetiva democracia.
Essas idéias, que gradativamente se incorporam ao senso comum,
por conta da atuação unívoca das grandes empresas de comunicação. Têm tais idéias como
conteúdo a ética individualista da ordem econômica vigente, da lex mercatoria, que se funda na
pretensa naturalidade das circunstâncias sócio-econômicas nas quais nos encontramos,
terminando por, consequentemente, justificar a exclusão da maior parte da coletividade mundial
das condições mínimas de dignidade. Prejudicadas pelos interesses norteadores da lex
mercatoria, as funções sociais do Estado sofrem uma redução prática, quando não prática e
formal, repercutindo na diminuição das possibilidades de equalização das condições materiais
básicas dentro da ordem econômica capitalista.
A globalização econômica é acompanhada pela globalização das
comunicações, ambas interdependentes, vinculadas a universalização de um modo de produção, e
da divulgação deste, num mundo que cessa a bipolarização que caracterizou a guerra fria. A
globalização que consolida o capitalismo no globo terrestre, internacionaliza culturas, estabelece
contatos entre formas de produção e de consumo, bem como influencia na divisão do trabalho e
da riqueza. Diversificam-se as formas de articulação e de contradição entre o capital e o trabalho,
as quais ultrapassam fronteiras culturais e geográficas. O capitalismo se globaliza, articulando
diversas formas de organização técnica da produção, envolvendo ampla transformação na esfera
do trabalho e na organização social da vida do indivíduo e da coletividade, em todas as nações
(IANNI, 1996, p. 13-18). Acerca globalização capitalista tem um perfil excludente e conservador,
sobre o qual ARRUDA JR (1998, p. 20) afirma que
122
A globalização neoliberal já nasce reacionária, pois sua gênese explicita uma reação
progressiva face aos efeitos da luta de classes desde a década de quarenta. Melhor
explicando, temos que ao findar da segunda grande guerra prevalecia na ordem
econômica mundial as políticas do New Deal norte-americano e do Estado Social
tendente à afirmação do seu aprimoramento, o Wellfare State (Estado do Bem Estar
Social). A tese da presença do estado nas questões sociais (saúde, previdência, ensino,
trabalho) rompia com o liberalismo econômico clássico, contra o qual se insurgira
Keynes. Tal tese responde também às lutas operárias travadas desde o final do culo
XIX, e também soa como uma resposta da direita esclarecida aos vaticínios de Marx
sobre a inexorabilidade da revolução face ao insuperável conflito decorrente da
contradição fundante da ordem social capitalista: a socialização na produção de
riquezas e a apropriação privada das mesmas por parte de um grupo seleto de
proprietários dos meios de produção. O que preocupava aquele que é considerado como
o fundador do neoliberalismo, F. Hayek, era exatamente o avanço das lutas políticas
sindicais, e os compromissos do Estado Social com as classes trabalhadoras. Em 1943,
quando Hayek escreve O Caminho da Servidão, já estão presentes as idéias reativas a
quaisquer óbices à liberdade, concebida sempre em interação e como condição do
mercado-livre. Essa reação contra o avanço da luta de classes, expressado por
significativas vitórias jurídicas é uma reação política, alçada aos planos teórico e
filosófico.
O discurso da globalização proclama o fim das ideologias, enquanto
disfarça o discurso de uma única ideologia, de uma pretensa verdade histórica que se sustenta
numa ordem global liderada pelos vencedores da guerra fria. Adota-se, após o fim da divisão do
mundo, uma única economia e um único padrão de democracia, a representativa (SHETH, 2005,
p. 93). Pelo que se percebe, a globalização neoliberal é determinante para explicação dos
processos econômicos, culturais, políticos e sociais dentro dos estados nacionais. Contudo, apesar
de se tratar de uma globalização hegemônica, não é a única globalização possível. Redes de
atuação internacional estão se estabelecendo para lutar contra a exclusão social, contra a
precarização do trabalho, a destruição ambiental e a redução de políticas públicas. Eis o que se
diz globalização alternativa, capaz de emergir de países periféricos, pela atuação de ativistas que
extrapolam suas fronteiras, lançando mão dos avanços tecnológicos para troca de informações
(SANTOS, 2005, p. 13).
Com a crise do Estado intervencionista ante a globalização econômica,
verifica-se a produção e reprodução da retórica neoliberal em veículos midiáticos de alcance
universal. O recuo do Estado intervencionista, devido a nova conjuntura econômica e política,
estabelece um novo padrão de relação entre a sociedade civil e a sociedade política, com a
hegemonia sendo sustentada em um aparato tecnológico de comunicação jamais visto. Os
aparelhos privados de hegemonia, desimpedidos pelas circunstâncias históricas de ter que
123
amparar um consenso pautado em um Estado regulador e limitador, ainda que relativamente, da
atuação das forças econômicas, passam a divulgar a ideologia neoliberal. Assim, realiza-se o
resgate do individualismo e a defesa de um Estado que se volta para os moldes do Estado
gendarme, dois elementos que caracterizam a ideologia neoliberal, produzida com a sofisticação
teórica de pensadores como Hayek, e reproduzida pelos intelectuais orgânicos, especialmente
entre o meio jornalístico, até alcançar as camadas mais populares, e se enraizar no senso comum.
Nesse contexto são realizados os ataques ao direito social, considerados
inadequado aos novos tempos. A globalização está relacionada com o ataque ao monopólio e ao
rígido controle do Estado sobre o direito. Se antes se verificava um vínculo muito forte entre a
vontade política e direito, pelo menos na perspectiva tradicional diante da democracia moderna,
com a globalização percebe-se a força e a capacidade das forças econômicas se estabelecerem
como fontes de produção normativa (GROSSI, 2004, p. 161). Nessa conjuntura em que o
consenso e da hegemonia ganham novos contornos, a partir dos aparelhos de divulgação do
resgate liberal feito pelas classes hegemônicas, verifica-se o enfraquecimento dos movimentos
sindicais e dos partidos de esquerda, os quais reduzem estrategicamente suas pautas políticas à
manutenção de direitos incorporados à legalidade vigente, alvo dos processos de desregulação.
Tal recuo acaba por caracterizar uma luta política limitada à defesa de direitos, numa situação em
que é bastante dificultada a construção de novas pautas de reivindicação social.
Cabe afirmar que a desconstrução do Estado Social acaba
produzindo, como um de seus reflexos mais terríveis, a insegurança social, que se reflete em
mudanças culturais que atingem os indivíduos em sua relação com o meio social. Isso, num
mundo em que as organizações sociais não são mais capazes de garantir que os indivíduos
planejem, com maior segurança, os rumos de suas vidas. Ainda, a crise do Welfare State remete a
separação do poder e da política, de modo que, conforme já mencionado no texto, o poder de agir
do Estado se afasta em direção ao espaço global, sem controle político, norteado pelas regras do
mercado, com atividades que antes eram exercidas pelo Estado passando às mãos de subsidiárias
ou sendo terceirizadas. Nesse contexto, mitiga-se o papel da vida em comunidade, estando todos,
como desdobramento do individualismo reinante, jogados a própria sorte, desmobilizados diante
do conjunto social na defesa das pautas do trabalho. As questões acerca de emprego e
desemprego, por exemplo, passam ao campo individual, incidindo sobre a competência o
indivíduo, principalmente, a melhor ou a pior sorte nas relações laborais, num campo
124
caracterizado por grandes disparidades sociais. A sociedade é cada vez mais abordada como rede
de relações, cambiável permanentemente, e não como estrutura, garantidora de segurança e de
perspectivas mais “sólidas” (BAUMAN, 2007, pp. 7-10).
3.3 Algumas observações sobre as relações entre Política e direito a crítica e
a desregulação dos direitos sociais
A crítica jurídica, na mesma medida que reconhece as relações entre
ideologia e direito, reconhece, também, as relações entre o mundo jurídico e o plano político. A
atuação do jurista orgânico representa a escolha de uma opção política, que reflete o
reconhecimento de uma conflituosidade entre tendências antagônicas na sociedade, bem como
percebe que “da confrontação de tendências de classes opostas, em defesa de seus interesses e
respectivas posições, nascem, e tem nascido, numerosas instituições jurídicas, cuja finalidade é o
reconhecimento de vantagens para os que triunfaram” (NOVOA MONREAL, 1988, p. 74). A
tradição jurídica, ao longo da história, estabeleceu uma ideologia jurídica que se destina a
disfarçar o caráter político inerente è legalidade estabelecida. E como se realiza essa artimanha?
Com o encantamento legislativo, que separa, formalmente, a vontade sacralizada das demais
vontades políticas existentes no jogo democrático. Seja pela via natural, seja pela cientificidade, o
interesse político convertido em norma alça alcança o campo da técnica jurídica, com sua
linguagem específica, em outra esfera de poder. Esse, entretanto, é o interesse da tradição
doutrinária. Para a crítica do direito, as normas se mantém em contato com os diversos aspectos
da vida, sociedade, economia, cultura... Porém,
Do juiz exige-se neutralidade em face das partes como tais. Mas não é nem deve ser
neutro o juiz em face dos valores jurídicos. Os juízes que mais alardeiam uma suposta
neutralidade, apegam-se à lei e a letra da lei, com toda sua estrutura de conservação,
consagradora do antidireito (HERKENHOFF, 2004, p.60)
O reconhecimento dos vínculos existentes entre o mundo do direito
e a política, não leva a uma concepção irracional de direito, movida tão-somente pela
passionalidade político-partidária. A politização se no âmbito da grande política, que abarca a
complexidade existente no conjunto do Estado ampliado, reconhecendo a existência de atores
sociais que não são protagonistas na construção do direito moderno (a massa trabalhadora, os
125
movimentos sociais contemporâneos). Trata-se da política que se aproxima dos fatores
determinantes da vida econômica, social e cultural, indo para além da política estatal. Considera a
importância, mas não se reduz, à pequena política, característica da atividade estatal legislativa, a
política parlamentar e partidária do dia-a-dia da vida das instituições político-estatais
(GRAMSCI, 2000c, p. 21). O juiz, sendo um cidadão, não está alheio às disputas políticas
existentes na vida social, cujas influências se determinam também por sua condição social. A
atuação do juiz não desconsidera absolutamente as influências políticas existentes na sociedade, e
isso não significa afirmar que seja justo, prudente, um juiz tentar beneficiar seus pares políticos
em detrimento dos interesses da coletividade. O reconhecimento da politicidade do direito não se
reduz às paixões ou opções político partidárias, bem como não retira a legitimidade das decisões
judiciais. A neutralidade do juiz é uma utopia liberal-positivista, considerando que todo o direito
está fundado em uma ideologia política, à qual serve como ferramenta jurídica (DALLARI, 1996,
p. 88-94). Numa pesquisa sobre o perfil do magistrado brasileiro, 83%, num universo de 3.927
juízes federais participantes da pesquisa, declararam que o Judiciário não é neutro, cabendo ao
juiz interpretar a lei para, de algum modo, influenciar nas mudanças sociais (VIANNA et al.,
1997, p. 258).
A distinção entre o político e o técnico jurídico é determinante para
a ordem institucional de cunho liberal-burguês, a qual se sustenta na tecnificação na aplicação do
direito, de modo a garantir cientificidade ao sistema jurídico, visando “completude, o equilíbrio e
a coerência” (FARIA, 1992, p. 27). Entretanto, diante das disparidades sociais existente no
Brasil, a limitações do judiciário não podem detê-lo apenas em uma posição de subalterno ante os
demais poderes, com os quais deve colaborar na busca da solução concreta de problemas sociais,
caso a caso, especialmente quando estes não são possíveis de ser incorporados á legalidade
abstrata. Na ação integradora do ordenamento jurídico, “Não pode o judiciário ser injusto,
aguardando que sobrevenha uma lei justa” (FARIA, 1992, p.116). No atual contexto político,
econômico e social, surgem desafios não adequados para análise a partir das concepções
positivistas, normativistas e legalistas, dentre os quais está o reconhecimento do próprio
judiciário como catalizador das contradições sociais, o reconhecimento de que a dogmática
jurídica não apresenta esquemas interpretativos de rigor universal e imparcial e substituição da
lógica dedutiva por abordagens problematizadoras diante da realidade social. Isto, com o cuidado
para que a atuação do judiciário e a relação deste com os demais poderes não implique em
126
exposição da democracia ao risco da realização da política sem regras, vulnerável diante das
crises, incapaz de reduzir incertezas (FARIA, 1992, p. 148-152).
A função política do poder judiciário, segundo LIMA LOPES
(1989, p. 135-141), pode servir para a realização de finalidades diversas. Como função primeira
na contemporaneidade jurídica, serve para a legitimação, pelo controle, dos demais órgãos do
Estado. Legitima o poder político instituído, tanto que, diante dos atos de força comuns na
história recente da América Latina, a autonomia e a submissão à legalidade se convertem em
afastamento das questões político-sociais. Outra função política do poder judiciário é pertinente
ao alargamento e a garantia dos direitos sociais, hoje sob constante ataque, considerando que tais
direitos são entendidos como conquistas da cidadania, conquistas provenientes da dualidade
trabalho/capital. Por isso são pertinentes à conflituosidade entre a tradição jurídica e as recentes
constituições, capaz de suscitar debates sobre o direito de propriedade a partir da perspectiva da
função social da propriedade. O juiz pode, em sua atuação política, desarmar conflitos, ou seja,
quando conhece demandas politizáveis, tenta a integração do conflito à norma, retirando-lhe o
caráter político.
As determinações ideológicas do direito levam alguns direitos à
condição de sacralidade, enquanto que outros direitos, como se percebe na situação dos direitos
sociais em tempos de globalização, não se cristalizam na ordem jurídica, sofrendo ataques a partir
de determinações econômicas e políticas, comprovando, por isso mesmo, a permeabilidade às
influências da política. Desse modo, o Estado social contribuiu para um maior protagonismo do
juiz na vida político-jurídica, considerando o impacto que provocou nas relações de equilíbrio e
separação de poderes, basilares para a democracia moderna. Nesse sentido, as transformações que
estes direitos vêm sofrendo pelo processo de desregulação/flexibilização, acabam por aumentar
ainda mais o grau de politização da atuação judicial, considerando a atuação judicial voltada para
defesa da legalidade intervencionista, bem como pela defesa da efetiva implementação dos
direitos sociais diante da redução dos investimentos e da intervenção do Estado para realização
de políticas sociais.
A forma pela qual se deu a institucionalização do Estado
intervencionista resultou na inserção de novas nuances de cunho político para a realização da
função técnico-política de controle, pelo judiciário, dos outros órgãos do Estado, característica da
legalidade burguesa. Como conseqüência da produção normativa que caracterizou o welfare
127
state, o poder judiciário tornou-se uma “nova arena pública” fora do espaço político constituído
pela relação entre a sociedade civil, os partidos políticos e a atuação parlamentar, numa
construção estranha para a soberania popular concebida pela democracia representativa
(VIANNA et al., p. 22, 1999). Neste cenário político-jurídico, destaca-se a jurisdição
constitucional, na qual estão inseridos: os antagonismos dos paradigmas do liberalismo; a
separação de poderes derivada deste, ante ao welfare state; e o papel realizado pelo tribunal
constitucional na proteção da legislação e da constituição, considerando sua capacidade de impor
decisões aos demais poderes. A atuação jurisprudencial passou a ter maior relevo, direcionando
as decisões para o presente e para o futuro, diferentemente do período do Estado de cunho liberal,
no qual a jurisprudência visava garantir historicamente do ordenamento jurídico. Existe, pois,
maior possibilidade de o judiciário interferir no âmbito legislativo, o que ocasiona relativo risco
para a democracia representativa legitimadora do direito (HABERMAS, 1997, p. 298-306).
No Brasil, a constitucionalização dos direitos sociais se ainda na
década de 1930. Porém, dentro de um processo de redemocratização, considerando muitas
demandas sociais retidas durante o período não democrático, são incorporados na re-
constitucionalização democrática, consagrada na Constituição Federal de 1988, com a política se
judicializando a fim de possibilitar o encontro da comunidade com seus propósitos declarados
formalmente na constituição. Ressalte-se que a coalizão de várias classes para a formação da
assembléia constituinte não constitucionalizou pautas de setores da política partidária e da
sociedade civil que defendiam maior mudança para realidade nacional, resultando numa
constituição com generoso elenco de direitos fundamentais ao invés de “conquistas substantivas
de alcance imediato” (VIANNA et al., 1999, p.40-41).
Com a constitucionalização dos direitos fundamentais de cunho
liberal, “naturais”, junto com direitos que caracterizam o Estado intervencionista, é posto o
cenário para a atuação jurisprudencial que maior protagonismo ao judiciário como ator
político. É possível afirmar que tal destaque é derivado da institucionalidade pôde ser
incrementado por dois aspectos. O primeiro, a crise do Estado intervencionista. O segundo, de
cunho histórico-cultural é pertinente a uma frágil cultura política democrática, prejudicada pelo
autoritarismo do poder político na história nacional, bem como pela tradição política e os vícios
que lhe são correspondentes, como a corrupção e a condução da vida blica norteada pelos
interesses privados das elites político-econômicas. Em virtude disso, o poder judiciário é
128
percebido no senso comum como o defensor da moral e da cidadania, como se estivesse distante
dos embates políticos, numa condição adequada ao ideário jurídico liberal.
O tema em discussão remete para posições variadas. Pode-se
considerar que o acentuado grau de juridicização das relações sociais, ainda que implique em
algum risco de clientelismo jurídico, seja um marco para o avanço da democracia, sustentado
sobre conquistas sociais, as quais hoje são contrapostas pelo ideário da desregulação, ou seja, da
regulação social fundada na lógica econômica. Assim, cabe ao jurista orgânico, a princípio, ser o
defensor dos direitos sociais, sendo o risco de clientelismo certamente presente, por conta da
conformação histórica, política e social do Brasil. Porém, os impactos da desregulação social para
as classes menos favorecidas economicamente, é causador de um dano maior, se comparado ao
potencial clientelismo, por impedir que grande parte da coletividade tenha acesso às condições
mais dignas de vida. Ainda, a desregulação é proposta e realizada pelas classes hegemônicas, as
quais desde longa data são “sócias” da estatalidade. O Estado nacional, hoje em crise, tem ainda
um papel a cumprir, desde que articulado com a sociedade civil, para a promoção de
desenvolvimento social. Não se trata de defesa da estatalidade, de estatolatria em defesa do
Estado social. Trata-se do reconhecimento, pragmático, de necessidades concretas vivenciadas
pelas classes subalternas, postas em risco diante do avanço da voracidade privatista. Entretanto,
não se pode olvidar os riscos derivados do caráter não representativo do Judiciário, da tendência
ao conservadorismo político e econômico, e do clássico distanciamento do judiciário diante dos
conflitos sociais, calcado no tecnicismo lógico-formal.
3.4 Teoria crítica do direito e a busca por novos consensos
Delineados, ainda que brevemente, os aspectos mais importante do
desenvolvimento das instituições jurídico-políticas no Brasil e no mundo contemporâneos, bem
como os aspectos que influenciam o pensamento jurídico, cabe agora tratarmos da influência de
Gramsci sobre a perspectiva crítica do direito. A crítica do direito, possível a partir da influência
de Gramsci, se insere, conforme mencionado no segundo capítulo, no que COELHO (1995, p.
67-68) denomina crítica meta-dogmática, capaz de dialogar com outros aspectos da vida social.
Ao contrário do dogmatismo tradicional, fechada na rigidez dos preceitos jurídicos tomados
como dogmas, o pensamento crítico no direito é aberto, não visa a representação de uma verdade
129
única, assim como não pode ser considerado universal e imutável. Trata-se de uma perspectiva
dinâmica, voltada para dois grandes objetivos: a realização de mudanças sociais, da justiça
material; e para desmistificação do discurso ideológico que funda a tradição jurídica
(ANDRADE, 1992, p. 32-33).
Ainda, a crítica sobre a qual tratamos, relaciona o pensamento
gramsciano com a teoria crítica do direito que tem como referencial a teoria crítica surgida na
Europa entre as décadas de 1960 e 1970, produto de uma leitura renovadora do marxismo, num
movimento no qual, dentre outros, pode ser incluído Miaille e alguns magistrados alternativistas
italianos, como Pietro Barcellona, e mesmo Luigi Ferrajoli. As proposições desta crítica jurídica
encontram eco na América Latina, especialmente a partir da década de 1980. Para melhor
definição da teoria crítica que relacionamos com Gramsci e a tradição marxiana, vale mencionar
o esclarecimento de Wolkmer (2002, p. 18) sobre os propósitos da teoria crítica.
Ora, mesmo reconhecendo ser fonte de ambigüidades, e “contra-sensos”, a categoria
“crítica” aplicada ao Direito pode e deve ser compreendida como o instrumental
operante que possibilita não esclarecer, despertar e emancipar um sujeito histórico
submerso em determinada normatividade repressora, mas também discutir e redefinir o
processo de constituição do discurso legal mitificado e dominante.
Justifica-se, assim, conceituar a “teoria jurídica crítica” como a formulação teórico-
prática que se revela sob a forma do exercício reflexivo capaz de questionar e de
romper com o que está disciplinarmente ordenado e oficialmente consagrado (no
conhecimento, no discurso e no comportamento) em dada formação social e a
possibilidade de conceber e operacionalizar outras formas diferenciadas, não
repressivas e emancipadoras, de prática jurídica.
Ainda com o propósito de delinear a crítica relacionada com o
pensamento gramsciano, cabe repetir que se trata aqui da crítica de perspectiva dialética, que
considera a dimensão político-ideológica do direito, sustentada na denúncia da insuficiência da
legalidade tradicional liberal (herdada do contratualismo e do positivismo jurídico) ante os
problemas contemporâneos, especialmente nos países de capitalismo periférico. Pode ser
identificada como uma crítica como expressão de um novo humanismo pluralista, que tem o
socialismo democrático como opção política, e a defesa de uma abordagem do direito que não
desconsidera a dinâmica social nem as relações entre os diversos aspectos da vida social, tomados
com uma visão de conjunto. Assim, tem-se uma sociologia jurídica crítica, capaz de revelar o
caráter instrumental do direito, capaz de servir tanto para o controle e a dominação, quanto para a
130
proposição de mudanças sociais. No mesmo sentido, pode ser considerada como parte da
compreensão dialética do direito a crítica jurídica como instrumental político para a
transformação, assentadas em reflexões de cunho neomarxista, identificadora das relações de
micro e macro poderes, na relação dialética entre opressores e oprimidos, desvelando os vínculos
entre o poder político e o mundo do direito, bem como reconhecendo o papel emancipatório das
experiências características do pluralismo jurídico. Ainda, há um terceiro desdobramento da
crítica dialética do direito, para a qual cabe não denunciar, mas apontar o caminho para a
superação das contradições sociais, a partir de uma teoria com pretensões de cientificidade, ou
seja, para a produção racional de um novo saber jurídico, capaz de dessacralizar os mitos
constituídos pela tradição jurídica, sem olvidar das exigências próprias de uma práxis libertadora
(WOLKMER, 2002, pp. 98-112).
Alguns aspectos da crítica servem para indicar a condição de
afastamento da dogmática jurídica tradicional, como o não reconhecimento da naturalidade dos
direitos fundadores da tradição jurídica, mas sim sua historicidade. Deve servir para denunciar as
funções políticas e ideológicas da tradição jurídica, sustentadas na falaciosa separação entre
direito e política, comum a partir de uma perspectiva precipuamente abstrata e pretensamente
isenta de direito (WARAT apud WOLKMER, p. 19, 2002). Contrapõe-se, também, ao
cientificismo positivo, pretensamente neutro, que se sustenta num direito auto-referenciado.
Considera o diálogo possível entre o direito e os demais aspectos da vida social e econômica,
como as ideologias que pautam a atuação dos sujeitos coletivos, opondo-se ao individualismo
egoísta que funda a modernidade jurídica. A crítica jurídica se presta, portanto, não para
questionar a normatividade tradicional, mas também para o reconhecimento e a proposição de
outras formas e práticas jurídicas, capazes de vislumbrarem mais do que a racionalidade única da
democracia e a concepção única de direito e de Estado, universalizados na modernidade.
A teoria crítica do direito de matriz francesa busca uma
fundamentação científica para a crítica do direito moderno, tendo como referência a obra de
Marx. Para MIAILLE (1994, p. 69-71), Marx entende que a produção do direito estaria
relacionada com todos os acontecimentos produzidos pela sociedade, não somente condicionado
pela base econômica. A legalidade estaria, portanto, inserida no campo da produção da vida
social, de modo que o modo de produção não se limita ao significado exclusivamente econômico
que se lhe costuma dar. Não é suficiente limitar-se a análise da habilidade do direito de estar
131
sempre ligado à existência da sociedade: a reflexão científica deve alcançar mais longe, ser capaz
de explicar que tipo de direito produz uma determinada sociedade e porque é esse direito
correspondente a essa sociedade. Aqui, é pertinente a ressalva de CORREAS (1995, p. 127), no
que tange a pretensão de teóricos da crítica jurídica de considerar a obra de Marx ciência. Lembra
a base científica não garante a superação de um discurso ideológico, visto que a ciência não é
mais do que um discurso sujeito a determinadas regras. Essas regras seriam estabelecidas por
cientistas, controladores dos meios de divulgação de suas idéias, como editoras, institutos de
pesquisa e revistas, que viabilizam a prática da ciência, que não seria mais do que um discurso de
poder. Se o uso da ciência pôde mudar o mundo, ainda assim os êxitos científicos não são
suficientes para apagar seu caráter político, nem o discurso de poder que caracteriza este.
Apresenta-se, para a crítica marxista do direito, dois possíveis rumos, os quais podem ser
complementares: competir com a ciência, ou realizar a crítica da sociedade e do direito capitalista
por fora da cientificidade. Essa desconfiança diante da ciência, pretensamente não ideologizada, é
compatível com a crítica de Gramsci á concepção de ciência e à ideologia nas ciências. Podemos
considerar que a ciência não é desinteressada, segundo Gramsci, sendo espaço para atuação
ideológica pretensamente desideologizada pela cientificidade. Entretanto, nessa linha, o
fundamento marxista deve ser considerado devido à potencialidade da filosofia da práxis,
adequada para amparar as classes subalternas na sua atuação histórica. Ademais, a rejeição ao
positivismo marxista, bem como ao cientificismo marxista, permite uma análise menos
condicionada, menos ortodoxa a ordem político-jurídica.
A teoria crítica do direito observa a prática jurídica como produção,
divulgação e consumo de um discurso, produzido por funcionários (instituições públicas), juristas
(na produção teórica) e o discurso dos destinatários do direito. Por outro lado, a teoria crítica
fundamenta um tipo de sociologia jurídica, considerando que concebe a prática social, o direito,
como expressão de conflitos sociais. Considera que a ideologia tem expressões materiais, como a
existência material para as práticas jurídicas, presente nos costumes, nos hábitos e nos
comportamentos regulares (CORREAS, 1995, p. 134,135). Estabelece contraponto diante do
racionalismo hiperdesenvolvido do formalismo jurídico, que busca o isolamento em relação aos
conteúdos filosóficos, morais, éticos e até políticos das explicações jurídicas, refugiando-se na
forma pura. Esta teorização do direito acaba por desconsiderar o que lhe dá consciência e vida: os
conflitos que o direito não cessa de tentar dominar (MIAILLE, 1994, p. 317).
132
A crítica jurídica se caracteriza, essencialmente, como crítica à
ideologia jurídica da modernidade, abordada no segundo capítulo dessa dissertação, a qual
fundamenta a ordem jurídica na ideologia liberal-individualista, determinante para a ascensão da
burguesia. O formalismo jurídico construído na modernidade, e criticado por Marx, se caracteriza
pela cisão entre o mundo jurídico, no qual se encontra a igualdade e a liberdade formais, e o
mundo concreto, no qual a classe hegemônica realiza materialmente seus interesses, numa
realidade sustentada pelas contradições existentes no seio do modo de produção (MARX, 2001).
A distinção entre o cidadão, standard de indivíduo que atua na vida pública, e o sujeito privado,
com seu espaço egoísta, são resultantes de separação entre o mundo jurídico e o mundo concreto,
vinculando-se com a distinção entre as esferas pública e privada.
O individualismo resultou num direito limitado e não adequado
diante de demandas sociais mais complexas, constitutivo de uma legalidade que se presta
principalmente para garantia das relações interindividuais. Um direito de matriz privada,
importante para a configuração sócio-econômica do liberalismo que o determinou e que é por
justificado através da legalidade. Um direito que, com a codificação, pretendia ter completude e
prevalência ao longo dos tempos, desde que juristas mais conservadores e tradicionais se
prestassem para auxiliar na conservação da longevidade das normas e da harmonia no
ordenamento jurídico. O temor diante de projetos políticos capazes de romper a harmonia
normativa liberal esteve, portanto, sempre presente, de modo que os novos problemas surgidos na
vida social eram incorporados à legalidade através de leis esparsas, diferenciadas da codificação
(NOVOA MONREAL, 1988, p. 131).
A dinâmica social do capitalismo tem comportado, ao mesmo tempo, manifestações de
ideologia jurídica, consubstanciada na legalidade abstrata posta pelo Estado, que é
inerte frente à mobilização social, e manifestações e prescrições com pretensão de
normatividade que estão presentes nos movimentos de resistência à dominação e à
exploração. Essa dinâmica, ou, para voltar ao termo, essa dialeticidade do real,
representa, de certa maneira, a expressão da práxis em sentido amplo. A resistência dos
movimentos que aspiram a uma ordem justa, que não se limitam à conformação do
direito legislado e que buscam escapar à lógica da mercantilização traz, em seu bojo,
elementos de uma práxis que suspende a especulação pela prática efetiva da libertação
(CHAVES, 2005, p. 108).
Gramsci considera que para as classes subalternas, para os
trabalhadores, o liberalismo serve como uma idéia mínima, que cumpriu seu papel no
desenvolvimento das sociedades, ao combater o absolutismo. Por outro lado, para o burguês o
133
liberalismo é uma idéia limite, que cria o Estado ético (BUCI-GLUCKSMANN, 1990, p. 171).
Nesse sentido, o direito fundado na ideologia liberal-individualista é, para a crítica do direito,
também um ponto de partida. As conquistas da democracia burguesa devem ser reconhecidas,
bem como é preciso ter atenção para com a democracia liberal e as possibilidades desta derivada,
o valor da mesma (ARRUDA JR, 2005, p. 22). Isso passa longe da consideração da idéia
democrática, universalizada na modernidade, que venha a se estabelecer como dogma, como
limitação para a evolução da democracia e do direito, no rumo de um direito verdadeiramente
emancipatório.
Conforme COELHO (1995, p. 72), a crítica jurídica meta-
dogmática deve ter como objeto a revelação das mitologias jurídicas a “fantasmagoria de
princípios”, a partir de uma compreensão do direito relacionado com a realidade social. Aos
pressupostos ideológicos da tradição, da dogmática jurídica, devem se opor as teses da crítica
jurídica, sintetizadas por COELHO (1995, p. 72-74): o direito não é uno, existe na sociedade a
produção de uma juridicidade paralela e até mesmo oposta à do Estado, perceptível pelas normas
de convivência autonomamente produzidas; o Estado é uma construção histórica; o direito não é
absolutamente racional, ou seja, apresenta aspectos originados da emoção da intuição e da prática
e, se o direito é relativamente racional, as decisões jurídicas também são; não é dotado, o direito,
de cientificidade, e sua legitimidade é fundada no consenso; a lei é mais uma fonte do direito, não
a única; o direito não constitui um sistema fechado, é permeado por normas contraditórias e até
inconstitucionais, mas que possuem eficácia porque são impostas pela autoridade estatal; a ordem
jurídica contém lacunas, algumas intencionais; o significado da lei não é autônomo nem unívoco,
ou seja, vem de fora da legalidade e é atribuição de quem interpreta a lei, sendo, portanto,
heterônomo, bem como comporta várias significações; a função do interprete no direito é criar
significações para as normas, não desvendar um significado que inerente a mesma; o referencial
da lei é pragmático, depende da aceitação social de sua aplicação e dos efeitos que promove; as
decisões judiciais não são neutras, considerando que o aplicador do direito possui valores,
preconceitos, interesses e crenças.
No contexto atual, o ataque ao Estado Social é acompanhado de
uma forte divulgação da ideologia privatista e individualista, o que resulta a desvalorização dos
espaços públicos como foros para realização da democracia. Os movimentos sociais mais críticos
da ordem econômica provocam desagrados às classes dominantes, que divulgam as contestações
134
como ações meramente perturbadoras da ordem social, a qual, para a tradição jurídico-política, se
apresenta como a única ordem social viável. Os partidos políticos e os sindicatos passam a ser
considerados como entidades ultrapassadas, correspondentes a uma realidade não mais existente,
superada pela razão da história que determina uma pretensa ntese liberal. Os disparates e
encantamentos diante do pretenso fim das ideologias, na verdade representam uma necessidade
permanente de assegurar o consenso, para consolidação hegemônica da tradição ideológica do
jurídico e da política liberal. Isso, considerando que na sociedade complexa e nas democracias
ocidentais, não é plausível pretender-se a vitória absoluta de uma ideologia, pela ação de seus
aparelhos e intelectuais orgânicos, sobre as demais. Estas subsistem, se rearticulam e se
reestruturam para o prosseguimento de uma luta contra hegemônica, ainda que ignorados pelos
aparelhos de divulgação ideológica das classes dominantes. A hegemonia de uma classe não pode
desconsiderar a atuação das demais classes, é dialética e se sustenta em um equilíbrio dinâmico
nas relações entre as classes sociais dominantes e as classes sociais subalternas.
A tradição jurídica liberal se sustenta na sua presumida isenção e
cientificidade, consolidada nos últimos séculos através da hegemonia política, jurídica,
econômica e social da burguesia. A ideologia jurídica liberal-individualista, em tempos de
globalização econômica, se presta para o ataque às constituições garantidoras de direitos sociais,
como a brasileira, com a defesa da regulação do mercado. Os direitos sociais, voltados para o
atendimento de demandas provenientes das classes subalternas, são descaracterizados, passando à
condição de serviços que podem e devem ser oferecidos pela iniciativa privada. A desobrigação
do Estado diante direitos sociais caracteriza um Estado social mínimo, mas não um Estado
mínimo em todas as suas funções. A regulação protetivo-repressiva, garantidora das liberdades
do mercado, se mantém como o esteio do direito nas democracias ocidentais, incrementando-se
as funções policiais do Estado com o avanço tecnológico.
Diante da pretensa falência das causas sociais mais próximas à
filosofia da práxis, esta é revitalizada pela própria conjuntura, conforme Boaventura de Souza
SANTOS (2000, p. 315-317) o capitalismo global que se tem verificado na prática, desde o
colapso da União Soviética proporciona para a crítica jurídica de base marxiana sólida e ampla
confirmação pela experiência real vivida, uma atestação empírica, muito mais sólida e ampla do
que aquela que se verificou durante os tempos da guerra fria, com a dualidade entre o bloco
soviético e as democracias e as democracias ocidentais, no cenário da ameaça comunista. A
135
voracidade do capitalismo globalizado é comprobatória da crítica estabelecida pela filosofia da
práxis, bem como demonstra a importância da mesma para a luta das classes subalternas, para a
contestação e para a operação a partir das categorias políticas de Gramsci. A crítica do direito, de
matriz gramsciana e marxiana possui vigor suficiente para resistir em uma conjuntura na qual
impera o discurso ideológico do fim das ideologias. Servem, portanto, como fundamento da luta
por direitos que garantam efetivo acesso aos bens materiais e culturais necessários para o
desenvolvimento humano, e, ainda, para a construção de um direito que está situado além dos
limites egoístico-passionais de cunho liberal, adequado às reivindicações dos sujeitos coletivos de
direito. Não há como dissociar a crítica ao capitalismo como sistema produtor de miserabilidade e
desumanização e a necessidade de reconhecimento de práticas alternativas. Essas alternativas não
se reduzem somente ao campo da práxis jurídica; ao contrário, a oposição e a superação do
capitalismo deve necessariamente permear todas as áreas da atuação humana (CHAVES, 2005, p.
46).
É possível relacionarmos as concepções críticas do direito com a
proposição de um novo senso comum jurídico para os operadores do direito e da cidadania,
baseado numa compreensão do direito que vislumbra mais um novo consenso, emancipatório, do
que a perspectiva essencialmente coercitiva, regulatória, que se consolidou na tradição jurídica. A
construção de um novo senso comum reserva um papel determinante para os intelectuais
orgânicos comprometidos com a crítica, os quais não se encontram somente no campo da atuação
profissional dos operadores do direito. Estão também nesse campo, que deve ser articulado com a
sociedade civil, com os outros intelectuais que vivem o direito, que nele percebem esperanças e
frustrações. Assim, é possível o reconhecimento de novos sujeitos históricos, capazes de serem
conscientes atores de um esforço coletivo para estabelecer uma nova força hegemônica e política,
que pode ser percebida pela autoconsciência crítica, uma unidade intelectual voltada para a
superação do senso comum. Assim, Gramsci percebe a necessidade de enraizamento de uma nova
idéia no senso comum, para que esta seja capaz de tornar-se hegemônica, a partir da fundação de
novas bases consensuais (GRAMSCI, 2000a, p. 104). Distingue, pois, o senso comum
solidificado, sendo expressão de condições de fato, do senso comum novo, necessidade
indiscutível ligada ao emergir de novas idéias. O senso comum solidificado se percebe como
expressão ideal das relações reais de troca, baseado na igualdade formal presente nos contratos
(BADALONI, 1978, p. 14).
136
A crítica gramsciana da política inscreve-se num projeto integral que tende a fazer do
coletivo um pressuposto do qual se desenvolve a ciência da sua regulação e a tensão
crítica sobre ela. O que conta são as liberdades que podem ser liberadas por esse
pressuposto: entretanto, a tarefa histórica imediata é selecionar da classe dos produtores
novas figuras de dirigentes orgânicos a ela. Por outro lado, a nova crença não é
incontrastadamente dominante. Ela se contrapõe à do velho individualismo na sua
substância econômica (a apropriação) e nas coberturas éticas e políticas desta. A luta
ideológica assume assim o aspecto de um choque hegemônico prolongado, no qual
estão envolvidos dois sensos comuns diversos, cuja possibilidade de expansão é medida
pela capacidade de desenvolver a ciência da própria constituição objetiva e a crítica
dela como condição de novas formas de liberdade individual (BADALONI, 1978, p.
18).
Existe, pois, um senso comum que disfarça e justifica uma
sociedade individualista, cujo direito oprime e sufoca as demandas das classes subalternas,
enquadradas à legalidade. Outro senso comum, sustentado no bom senso, autônomo e
efetivamente cidadão, pode ser construído a partir da pluralidade dos sujeitos coletivos
comprometidos com a consolidação de uma nova sociedade, relacionados com a defesa de
garantias sociais positivadas, e com uma releitura crítica da ordem jurídica vigente. Nesse
sentido, SANTOS (2000, 280–300) entende que o pluralismo jurídico, que alie os conhecimentos
oriundos dos diversos espaços da vida social, se presta para a produção de uma nova cidadania,
relacionada com um amplo conceito de Direito articulado em um sentido epistemológico-prático
no senso comum. O conhecimento do senso comum tende a ser mistificador e mistificado,
servindo mais à conservação do que à mudança. Mas, não se pode deixar de reconhecer, assim
como fez Gramsci, que o senso comum coincide causa e intenção, sendo prático e pragmático,
vivenciado socialmente, distante do cientificismo e próximo dos saberes cotidianos, estabelecido
sobre vínculos fortes entre pensamento e ação (SANTOS 2001, p. 56). A afirmação gramsciana
de que “todos são filósofos” (GRAMSCI, 2000c, p.93), se justamente pela consideração dos
fortes vínculos entre a prática e as idéias, de modo que as práticas vivenciadas não estão
apartadas da capacidade questionadora, da potência intelectual existente em cada indivíduo.
Nutrem-se as idéias pelas práticas, bem como as práticas são determinadas pelas idéias.
A tradição jurídica brasileira, herdeira da modernidade, se sustentou sobre
uma perspectiva asséptica do direito, técnico e apolitizado, distante da crítica, conformando a
dogmática, sem problematizar as questões atinentes à ordem jurídica, às funções do direito e a
relação deste com a complexidade da vida econômica, social, política e cultural. Enfim, uma
137
perspectiva burocratizada e burocratizante, voltada para burocratas. Nesse meio está arraigado o
senso comum do jurista, cujas bases filosóficas foram reveladas no segundo capítulo, sobre o
qual WARAT (2004, p. 34) escreveu:
(...) podemos apontar a “região das crenças epistemológicas” que dizem respeito às
evidências fornecidas pela prática institucional dos cientistas. Assim, poderíamos falar
dos hábitos intelectuais que regulam as condições de produção do conhecimento, como
também, das interpretações vulgarizantes dos conceitos, frutos de suas desvinculações
dos marcos teóricos sistemáticos em que foram produzidos (como se os conceitos
tivessem uma força explicativa intrínseca). Também, poder-se-ia falar das grandes
verdades elementares, dos reconhecimentos metafóricos do real e das propostas
reificantes das idéias como fundamento da produção do conhecimento. E, também,
porque não, da crença na eficiência do método para produzir a objetividade e a verdade.
Os juristas contam com um emanharado de costumes intelectuais que são aceitos como
verdades de princípios para ocultar o componente político da investigação de verdades.
O senso comum teórico dos juristas é o lugar do secreto. As representações que o
integram pulverizam nossa compreensão do fato de que a história das verdades jurídicas
é inseparável (até o momento) da história do poder (WARAT, 1994, p. 15).
A mudança social possível de ser realizada pela teoria crítica do
deve pretender estabelecer um novo senso comum, interdisciplinar, para fundar uma cultura
jurídica diversa da tradicional, que se encontra enraizada no senso comum. Trata-se de um
processo longo, no qual é possível definir dois momentos: o primeiro, de ataque à tradição
jurídica, para erosão da mesma; no segundo, a consolidação de um novo consenso, pautado em
um novo senso comum, com base em uma perspectiva nova de direito, explicitada nessa
dissertação nos picos destinados à teoria crítica, superadora da tradição jurídica e sua essência
formalista, individual e liberal (ARRUDA JR, 1997, p. 77). Verifica-se, pois, um processo no
qual é determinante o papel dos intelectuais orgânicos, especialmente dos sujeitos coletivos,
como o partido gramsciano e os movimentos populares, na realização de uma atuação pedagógica
diante das massas. Deve ser considerada uma articulação que atribui, simultaneamente, novos
fundamentos éticos, filosóficos e sociais para o direito vigente, e dá vazão para os conhecimentos
e para juridicidade emergentes da pluralidade social, notadamente dos sujeitos coletivos de
direito. Assim, na medida em que atuam os intelectuais orgânicos, afirmam-se e se vivenciam
novos princípios balizadores da ordem jurídica, princípios jurídicos que se originam das
elaborações ideológicas emergentes da sociedade, mas que também podem ser destacados na
própria legalidade vigente, como os direitos sociais, atribuindo-lhe a relevância e a efetividade
que a tradição não permite. Por isso, a relevância de um senso comum que admite o bom senso,
138
operado por intelectuais orgânicos que resistam à destruição das melhores conquistas do Estado
de direito. O novo senso comum se realiza, também, pela releitura e redefinição do senso comum
tradicional, a partir de uma crítica interdisciplinar real, não restrito ao campo jurídico-formal
(ARRUDA JR. 1997, p. 88, 103-104).
A nova cultura jurídica, atrelada a uma nova democracia e a novos
tipo de determinações econômicas, se expande, gradativamente, dentro da revolução processual
de ampliação da democracia, conforme a estratégia da guerra de posição. Para tanto, é importante
que a classe social portadora das necessidades e dos princípios que animam a luta social,
contribuam decisivamente para internalização e amadurecimento de tais princípios dentro da
própria classe, numa ação política contrária a letargia e aos determinismos. As novas formas de
liberdade se estabelecem, pois, a partir da absorção dos princípios transformadores da sociedade
pelas classes subalternas, que passam a atuar tendo tais princípios como pressupostos
(BADALONI, 1978, p. 27-29).
3.5 Gramsci e a crítica do direito no Brasil
A contribuição da teoria gramsciana para a crítica do direito no
Brasil é perceptível, com maior intensidade, a partir da redemocratização, especialmente na
década de 1990. O suporte teórico gramsciano para a crítica jurídica se dá com a articulação das
categorias referenciadas ao longo dessa dissertação, como a conceituação de ideologia, de
revolução passiva e de Estado ampliado, com as relações advindas daí entre sociedade civil e
sociedade política. Articulam-se os conceitos para o estabelecimento de estratégias para atuação,
considerando especialmente a guerra de posição e a concepção de intelectuais orgânicos. A
atuação proponente de um novo direito, afastado da tradição, sugere, também, uma interpretação
e aplicação do direito voltada para o atendimento de carências econômicas e culturais das classes
subalternas, a partir da estrutura jurídica vigente, com destaque para a efetivação da
constitucionalidade recente, a qual dispõe, por exemplo, sobre a função social da propriedade,
sobre o direito á moradia, a saúde e a educação, enfim, à qualidade de vida passível de ser
materialmente realizada. Não se limita, entretanto, ao assistencialismo, ao simples protagonismo
do jurista intelectual orgânico contestador da hegemonia no pensamento e nas práticas jurídicas
conservadoras, o que seria perigoso em um país com tradição clientelista. A proposição de um
139
novo tipo de direito e a releitura do direito vigente, deve remeter à concretização de uma efetiva
democracia, de uma real inclusão social, capaz de viabilizar a autonomia das classes subalternas,
o reconhecimento destas como sujeitos históricos.
A intenção da teoria crítica consiste em definir um projeto que possibilite a
mudança da sociedade em função de um novo tipo de “sujeito histórico”. Trata-
se da emancipação do homem da sua condição de alienado, de sua reconciliação
com a natureza o-repressora e com o processo histórico por ele moldado. A
teoria crítica tem como mérito demonstrar até que ponto os indivíduos estão
coisificados e moldados pelos determinismos histórico-naturais, mas que nem
sempre estão cientes das inculcações hegemônicas e das falácias ilusórias do
mundo oficial. A teoria crítica provoca a autoconsciência dos agentes e dos
movimentos sociais, que estão em desvantagem e/ou desigualdades, e que sofrem
as injustiças por parte dos setores dominantes, das classes ou elites privilegiadas
(WOLKMER, 1992, p. 40).
Conforme exposto no segundo capítulo, a partir das considerações
sobre as relações entre as idéias de Gramsci e de Poulantzas, é possível reconhecer as estruturas
do poder estatal, incluindo o poder judiciário, como instâncias adequadas para as concepções e
operações contra-hegemônicas (POULANTZAS, 2000). Percebeu-se que se faz necessária a
articulação entre os movimentos existentes na sociedade civil e os intelectuais orgânicos que
atuam no interior do poder político-jurídico instituído. A força deste nculo entre os intelectuais
que trabalham na sociedade civil e aqueles que estão inseridos na sociedade política é que pode
delimitar o quanto se busca de efetiva emancipação das classes subalternas ou o simples
atendimentos de demandas sociais, limitadas às pautas características do estágio egoístico
passional.. De qualquer modo, que se reconhecer que as organizações dos trabalhadores vêm,
paulatinamente, se restringindo pelas condições econômicas e sociais impostas pela reordenação
do direito a partir da onda desregulatória característica do desmantelamento do Estado Social.
Não cabe, portanto, desconsiderar a relevância da garantia e
concretização dos direitos sociais para garantia da dignidade das classes subalternas. Deve existir
articulação entre as possibilidades de atuação intra-normativa e a atuação criadora de novas
juridicidades, fora do âmbito estatal. Cabe, portanto, constranger à ordem econômica a partir da
luta para garantia de direitos que a própria hegemonia capitalista reconheceu em determinado
momento, os quais devem servir como marcos para o avanço da democracia, para a realização
concreta das promessas da modernidade. Estabelece-se um enfrentamento teórico e prático,
140
político e jurídico, sobre as funções que deva ter o direito e o poder judiciário no mundo
contemporâneo:
Num momento no qual a barbárie neoliberal progride no seu desiderato de dilapidação
das instituições modernas, e dentre elas o Estado, o Estado de Direito Social
conquistado na nossa Carta Magna torna-se um óbice à reprodução alargada do Capital
financeiro e industrial. Assim, a Constituição torna-se a grande inimiga dos partidários
do Consenso de Washington. De outra parte, o Poder Judiciário passa a ser visto pelo
stablishement como a pedra angular da “reforma do Estado”, devendo ser submetido à
racionalidade econômica pelas mãos de um Poder Executivo impaciente pela
morosidade no cumprimento dos ditames do FMI e agências financeiras transnacionais,
que caracterizam os régimes globalitários, aproveitando o sugestivo termo cunhado por
Ramonet. Necessário, portanto, « controlar os magistrados alternativos », colocando-os
nos seus “devidos lugares”, qual seja, o de meros despachantes burocráticos. Eis o
objetivo maior da Reforma do Poder Judiciário em curso, objetivando a vertical
sumulação para uma distribuição jurisdicional controlada (ARRUDA JR, 1998, p. 27).
É pertinente lembrar que, na revolução passiva que consolida o
moderno capitalismo no Brasil, a atuação do poder judiciário o levou a condição de protagonista.
Considerando que a partir da década de 1930, no lastro de da expansão da ordem jurídica,
ocorreu um considerável aumento do caráter regulador do poder judiciário, sendo este realizador
de um papel ético, moral e de controle social outorgado pelo poder executivo (VIANNA et al.,
1997, 268). As reformas nas instâncias jurídicas e políticas, no Brasil do século XX deram maior
relevância para o jurista, como intelectual orgânico, exercendo a divulgação e a implantação da
ideologia jurídica da modernidade, ou seja, da ideologia liberal, acompanhada do positivismo
jurídico, num país de capitalismo tardio.
Com a Constituição Federal de 1988, positivaram-se garantias
individuais e direitos sociais, sob a bandeira da redemocratização do Brasil. Viabiliza-se,
novamente, o desenvolvimento econômico e social dentro de um Estado democrático de direito, a
partir da garantias constitucionais referenciadas no modelo de bem-estar social. A ampliação das
funções do Estado aumenta o campo para a atuação dos operadores do direito por dentro das
instituições político-jurídicas, mesmo para ação a partir de uma pauta contra-hegemônica, a partir
de uma perspectiva crítica, capaz de considerar a materialização teórico-social e ético-política do
direito, para além do formalismo jurídico tradicional (MALISKA, 1995, p. 88). Amplia-se o
campo de atuação para os intelectuais orgânicos contrários à perspectiva meramente normativista,
calcada na reprodução de mitos do liberalismo. Nesse sentido, o judiciário é um campo
141
necessário de luta para a implantação das promessas modernas, apontando ainda para a existência
de uma crise de legalidade instalada em nosso país, uma vez que nem sequer esta é cumprida,
bastando, para tanto, ver a inefetividade dos dispositivos da Constituição que se contrapõe a
ordem econômica divulgada, principalmente, pelos aparelhos privados de hegemonia.
3.6 Direito alternativo, guerra de posição e intelectual orgânico
O reconhecimento do caráter ideológico do direito moderno, não
necessariamente numa perspectiva negativista, é característico da crítica jurídica. A partir daí,
passa-se a reconhecer a possibilidade de luta em defesa de uma outra ideologia, de uma nova
possibilidade de compreensão do Estado e da sociedade, assentada numa nova cultura fundada na
filosofia da práxis, adequada ao atendimento das necessidades das classes subalternas e
viabilizadora do desenvolvimento autônomo dessa ideologia realizada e vivenciada pelas classes
subalternas (GRAMSCI, 2000c). O campo de operações para a defesa de uma nova concepção de
direito, pode priorizar tanto a sociedade civil quanto a sociedade política, desde que não
desconsidere a vinculação orgânica e a interdependência existente entre ambas. Para maior
democratização da sociedade brasileira, os intelectuais orgânicos, críticos do direito liberal-
individualista, devem considerar a necessária interação e diálogo permanente entre os intelectuais
das classes subalternas que atuam na sociedade civil, especialmente nos movimentos sociais, e os
intelectuais especializados que operam nas estruturas político-jurídicas. Essa coordenação é
pressuposto para que a luta por direitos e pela defesa de direitos não se detenha a nenhum circulo
privilegiado, de modo que seja evitada uma relação exclusiva de subordinação, que margem
para um clientelismo jurídico. Nomeou-se, dentro da teoria crítica brasileira, como direito
alternativo a atuação realizada, prioritariamente, por dentro do Estado, enquanto que a construção
de novas juridicidades, externa à estrutura jurídico-política, se reconhece como pluralismo
jurídico. Para ambas as possibilidades de teorização e prática críticas, o de grande utilidade as
categorias teóricas gramscianas, especialmente guerra de posição e intelectual, enquanto
delimitadoras de possibilidades teórico-práticas, erigidas sobre as demais categorias gramscianas
abordadas nessa dissertação.
Para tratarmos do direito alternativo, é importante, primeiramente,
esclarecer que direito alternativo difere-se, conforme a doutrina jurídica crítica, de uso alternativo
142
do direito. O uso alternativo do Direito se caracteriza como atividade hermenêutica pautada em
uma exegese extensiva, que supera a interpretação restritiva das leis, que possibilita o contato
entre o mundo do direito e a complexidade do mundo da vida. A crítica hermenêutica considera a
materialidade histórica do direito, numa perspectiva ética e política que supera o liberal-
individualismo fundador do direito, para, assim, viabilizar uma atuação jurídica voltada para a
concreta democratização da sociedade, a partir da efetivação dos direitos sociais através de uma
interpretação social (ANDRADE, 1996). Conforme AZEVEDO (1989, p. 14) “Elaboram-se leis
para serem aplicadas à vida social, e não há aplicação sem prévia interpretação. E a interpretação,
que não é das leis em sentido amplo, mas também dos fatos, sofre decisiva influência dos
pressupostos em que se apóia”. Está, o uso alternativo do direito limitado às práticas judiciais,
nas quais se podem adotar possibilidades hermenêuticas inovadoras (ARRUDA JR, 1997, p. 67).
A legalidade vigente viabiliza, formalmente, a interpretação inovadora da legislação, conforme o
princípio do livre convencimento, devidamente fundamentado, do juiz, embora exista limitações
dispostas em súmulas vinculantes. Ainda, o art. 5.º da Lei 4.657/42 (Lei de Introdução ao Código
Civil Brasileiro) dá ao aplicador da norma uma diretriz geral que deve ser considerada ao
desempenhar sua função: toda a atividade de aplicação da norma deve atender aos fins sociais a
que se dirige e às exigências do bem comum. O uso alternativo do direito é próprio do intelectual
orgânico mais especializado, que atua essencialmente dentro dos limites das atividades jurídicas.
O uso alternativo do direito parte de uma premissa ideológica, a
desmistificação da função do juiz, pretensamente isento, revelado como um agente que produz e
reproduz ideologias em sua atuação profissional. A jurisprudência, como fonte do direito, revela
um alcance bem maior do que a tradição costuma admitir, não se limitando a aplicação e
interpretação da lei, mas realizando uma função criadora, de modo que a eficácia e o grau de
validade das normas está estreitamente vinculada ao tipo de aplicação que se à legalidade, ou
seja, à validade e a eficácia das decisões judiciais (WOLKMER, 2000, p. 182). A sentença,
exercício de um poder, tem o dever social de difundir o jogo político escondido no direito,
deixando clara a compreensão ideológica do julgador em relação ao funcionamento da sociedade.
Deve ser o momento em que o juiz descobre e revela a realidade social, demonstrando a favor de
que setores da sociedade está ideologicamente norteado, especialmente quando se trata de
demandas coletivas, sociais. A atuação crítica deve deixar fluir as transformações sociais e os
anseios das classes subalternas, visando à garantia material de qualidade de vida e dignidade
143
(PORTANOVA, 1992, p. 154-155). Serve para o atendimento de necessidades, conflitos e
reivindicações. Pautas de reivindicações não incorporadas pela legalidade, ou, quando muito
incorporadas como normas programáticas, sendo pautas de lutas sociais (WOLKMER, 2003, p.
91).
O direito alternativo em sentido estrito é mais amplo e polêmico,
extrapolando os limites da legalidade. Enquanto o uso alternativo está dentro da esfera do direito
estatal, o pluralismo transcende a estatalidade, considerando que pode ou não se ajustar ao direito
estatal. Desse modo, segundo Wolkmer (2003, p. 226), o direito alternativo é um dos
desdobramentos do fenômeno sociológico denominado pluralismo jurídico. O contato se
estabelece com a idéia de novas juridicidades emergentes na sociedade. Privilegia um novo
paradigma do direito, capaz de superar o monismo estatal na produção do direito. São
estabelecidas, pelo pluralismo jurídico, novas fontes de uma nova cultura jurídica. Não no
Estado, mas na informalidade das ações concretas dos atores coletivos, consensualizados pela
autonomia e pelos interesses do todo coletivo, originam-se as fontes do direito, com a
descentralização do poder criador do direito. É importante frisar que, para não criar vaguedade e
fragmentação, consideram-se os agrupamentos agregadores de interesse, como os movimentos
sociais, novos sujeitos históricos (WOLKMER, 119-120). A atuação dos intelectuais orgânicos,
no bojo do pluralismo jurídico, se prioritariamente nos espaços da sociedade civil. O direito
alternativo não se configura como uma prática cotidiana dos juristas, emerge a partir das
demandas da sociedade civil organizada, dos movimentos sociais, pleiteando a realização das
máximas jurídicas, conforme a denominação de Gramsci (ARRUDA JR., 1997, p. 67).
De qualquer modo, é reconhecido e declarado o caráter ativista dos
intelectuais orgânicos, atuantes em uma guerra de posição, realizadores de uma revolução
processual que visa à efetiva democratização da vida social. O direito alternativo no Brasil é
caracterizado, a priori, a partir de um conjunto de atitudes concretas, assumida por juristas,
contra a realidade social, de barbárie e exclusão (ANDRADE, 1996, p. 300). A revolução
processual que se opera a partir dos intelectuais orgânicos da teoria crítica se pela escolha da
guerra de posição como estratégia, ação que, conforme mencionado, não se limita às instâncias
de pode estatal. Trata-se de uma atuação que se caracteriza pelo reformismo revolucionário, que
considera toda a complexidade na relação entre sociedade civil e sociedade política. Nesse
sentido, a revolução passiva, que pode caracterizar a ação das classes hegemônicas, que
144
conservam mudando, como se verifica historicamente nas “revoluções” brasileiras, pode servir
para interpretação do ambiente no qual se dá a guerra de posição (VIANNA, 1997, p. 43).
Trata-se, na guerra de posição, da ocupação de espaços
proporcionados pela legalidade estabelecida, por intelectuais orgânicos comprometidos com a
crítica jurídica, afastando-se do abstencionismo diante das estruturas de poder das classes
dominantes. A guerra de posição no âmbito do direito é uma luta longa, com várias possibilidades
para atuação intra-estatal ou extra-estatal, uma revolução processual, caracterizada pelo
reformismo-revolucionário, com a difusão do discurso crítico na sociedade civil e na sociedade
política para a fundamentação de um novo consenso sobre o que seja direito e democracia
(ANDRADE, 1995, p. 123, 124). A estratégia revolucionária é elaborada por Gramsci a partir da
ação política presente, com uma longa batalha no campo cultural, não cabendo a luta destinada ao
tudo ou nada, presente nos tempos pré-cárcere, devendo optar-se pela política das conquistas
parciais (ARRUDA JR, 1997, p. 38).
Não se trata de uma postura contrária a idéia de democracia, de um
tipo de caudilhismo jurídico. Não é desconsiderado o valor da democracia representativa, a
universalidade desta, nem das liberdades originadas das revoluções burguesas, que se
estabelecem como pontos de partida para o desenvolvimento de uma concepção substancial de
democracia, capaz de incluir os diversos segmentos sociais na efetiva capacidade de decidir sobre
os rumos políticos da sociedade e do Estado. A democracia tem valor universal, e a
democratização ajuda a expor e a desenvolver os valores pertinentes à consciência, à liberdade e
à socialização, mesmo em uma perspectiva marxista, cabendo aos intelectuais orgânicos
representativos da crítica jurídica considerar que os valores democráticos são importantes para o
desenvolvimento social em sociedades estabelecidas sobre diferentes modos de produção
(COUTINHO, 1992, p. 20-27). Para a realização da democracia, Togliatti afirma que articular o
regime democrático republicano parlamentar com institutos de democracia direta, como os
conselhos de fábrica, permite o avanço progressivo no sentido de transformações sociais
profundas e permanentes, rumo ao socialismo. A democracia política perde o caráter de etapa a
ser cumprida e abandonada, e passa a ser caracterizada como um conjunto de conquistas para
conservar, sendo elevadas a um nível superior, dialeticamente superada, de democracia socialista.
(COUTINHO, 2003, p. 161-162). Percebe-se que a democracia deve ser considerada como valor
não instrumental, classista (ARRUDA JR, 1997, p. 146).
145
A concepção de intelectual é parte da herança gramsciana aplicada à
crítica jurídica, na qual o intelectual não é um indivíduo-pensador alheio às influências políticas,
sociais, filosóficas e econômicas que o cercam. Sofre influências e é influenciado por diversos
fatores da vida, reproduz as ideologias que constituem a base da tradição jurídica ocidental,
remontando às elaborações teóricas e filosóficas que determinam esta tradição, bem como produz
novas perspectivas, na atuação jurisprudencial reconhece o âmbito jurídico como espaço de luta
para a transformação social, bem como busca a construção de novas juridicidades para além do
monismo estatal, atuando, pois, na busca da afirmação e da criação de direitos, no rumo da
superação dos formalismos característicos do direito moderno. Numa perspectiva gramsciana,
podemos tratar da atuação de intelectuais orgânicos no seio da sociedade política, em busca da
efetivação de direitos, e da atuação na sociedade civil, para construção de novas juridicidades.
Sobre o conceito de intelectual orgânico aplicado à crítica jurídica,
cabe apontar a distinção entre o intelectual da tradição jurídica, vinculado ao status quo do
mundo jurídico e político, e o intelectual da transformação, comprometido com a negação e a
ruptura diante dos mitos jurídicos da modernidade, no caminho para a construção de um novo
direito, mais próximo da idéia substancial de democracia. Os intelectuais do status quo vinculam
as questões sociais à desordem, por serem causadoras de contradições dentro da clássica
concepção de ordenamento jurídico. O direito deve se identificar com o corpo normativo estatal.
Seu papel nem sempre é militante, pode se dar inconscientemente, sem a percepção de
colaboração com a ordem vigente, dada a hegemonia, a inserção ideológica desta no senso
comum do jurista, o que leva a aparente naturalidade do agir legalista (MALISKA, 1995, p. 84-
85). Sobre o intelectual orgânico que atua no processo de revolução processual gramsciana,
ARRUDA JR (1997, p. 42) afirma que
(...) a construção de novas eticidades, expressão de princípios jurídicos para a
transformação. Gramsci pressupõe uma reforma intelectual e moral, que passa pela
acirrada luta no plano das idéias. Ele parte não da classe-sujeito, universal e abstrata,
em evolução natural rumo à liberdade, no sentido da dialética hegeliana do progresso
linear, mas do campo interior de grupos sócio profissionais, numa estratégia de longo
alcance, sem previsão de fatos, mas de probabilidades. As ações dos intelectuais são
vitais nesse processo, pois são agentes e protagonistas de funções similares a de um
partido político.
O intelectual da transformação é reconhecidamente ativista, seja no
interior da sociedade política, seja na riqueza pluralista da sociedade civil, sendo a característica
146
ativista atribuída, muitas vezes, de modo pejorativo aos teóricos e realizadores da crítica jurídica.
Contrapõe-se à racionalidade formal da tradição jurídica, propondo uma racionalidade
emancipatória, que não se limita nem se submete à racionalidade técnica e formal, tendo a
possibilidade de conciliar o mundo das normas com a complexidade e a riqueza do mundo real
(MALISKA, 2005, p. 88). Define-se, na perspectiva crítica, o direito a partir de sua
materialização histórica e social, ética e política, a partir de novos padrões de racionalidade
adequada à defesa e a atuação no sentido de uma concreta emancipação, com uma racionalidade
diferente da racionalidade formal, propositiva que é de novos espaços para interação blica,
considerando as articulações existentes na sociedade civil (WOLKMER, 2003). O papel do juiz
se afasta da racionalidade instrumental moderna, direcionando
o olhar do jurídico para o povo, para a sociedade organizada, e o Direito passa a ser o
locus onde as contradições, os debates e as conquistas se dão,tornando-se vivo e
comprometido. Nesse quadro, o juiz é compreendido como cidadão, inserido no mundo da
vida. Mas, uma vez operado esse deslocamento, verifica-se, a partir do modelo de análise
que se adota, que esse povo passa a construir suas utopias quando as máximas jurídicas
são, por ele, internalizadas: momento em que se dá a propagação dos princípios jurídico-
normativos no senso-comum a permitir ações políticas concretas visando às
transformações sociais e à afirmação de um direito novo que responda à emergência de
novas expectativas. O olhar do jurídico para o povo, para a sociedade organizada, e o
Direito passa a ser o locus onde as contradições, os debates e as conquistas se dão,
tornando-se vivo e comprometido. Nesse quadro, o juiz é compreendido como cidadão,
inserido no mundo da vida (BIAVASCHI, 1998, p. 49).
Edmundo Arruda Jr. estabelece uma tipologia bastante didática para
compreensão das práticas jurídicas orgânicas. Define, primeiramente, o plano da legalidade
sonegada, relativo às normas inscritas na legalidade, institucionalizadas, porém ainda sem
eficácia social. Aos intelectuais orgânicos relacionados com a crítica jurídica, cabe a cobrança de
realização da democracia, lesada pela não-efetividade de normas positivadas e de princípios,
especialmente na Constituição Federal, muitas carentes de auto-aplicabilidade. A urgência luta
pela efetivação de direitos é visível pela gradativa desregulação, flexibilização ou efetiva não
observação, que margem para a regulação implícita na lógica do mercado, manifestada na lex
mercatoria ARRUDA JR (1997, p. 68-70).
Um segundo plano decorre da legalidade sonegada, e representa um
campo de atuação para a efetivação de normas constitucionais ou infraconstitucionais. Trata-se
do plano da legalidade relida, o plano que privilegia a atuação hermenêutica do uso alternativo
147
do direito, a possibilidade da releitura do direito instituído, de uma nova proposição
hermenêutica. A legalidade sonegada deriva do confronto entre as diversas racionalidades que se
relacionam com a estatalidade, como a mercadológica. O Judiciário, guardião da ordem vigente,
sofre influência das mudanças protagonizadas pela globalização econômica, como se percebe
pelas políticas de ajuste fiscal e de contenção de investimentos públicos. Ainda, há que se
considerar que a carreira jurídica segue critérios burocrático-institucionais, numa herança da
tradição patrimonialista e corporativista, constituindo impedimentos para a articulação entre as
reivindicações populares e as instâncias do Judiciário. Um outro aspecto que deve ser
considerado é a dificuldade de homogeneizar decisões, difíceis de serem socializadas pelos
operadores jurídicos não tradicionais. Isso, considerando as dificuldades inerentes à luta contra-
hegemônica, para a superação do egoísmo passional característico da tradição jurídica
(ARRUDA JR, 1997, p.70-73). Aproxima-se do denominado positivismo de combate, ou seja, a
luta para efetivação de direitos formalizados, bem como a defesa destes, especialmente na
conjuntura atual, de desregulação neoliberal. Trata-se da atuação em prol do cumprimento de
várias leis, todas com conteúdos sociais, em pleno vigor, mas não cumpridas de fato
(ANDRADE, 1996).
Por fim, a tipologia de Arruda Jr. apresenta o plano da legalidade negada,
situada no campo das lutas não institucionalizadas, próprias dos movimentos sociais como o
MST, excluídos de um ordenamento caracterizado por sua origem liberal individualista. Reflete-
se num sistema que prioriza a resolução de conflitos interindividuais, para o qual um sem-terra,
tomado individualmente, é um cidadão, dentro do conceito formal que o equaliza à todos os
demais brasileiros, embora não tenha condições de sobrevivência digna, que o limita a um grau
menor de cidadania. Isso, ainda que os movimentos sociais estejam abarcados pela
constitucionalidade (ARRUDA JR, 1997, p. 73-75). Acerca da legalidade negada vale dizer que a
atuação dos movimentos sociais e dos partidos políticos, partindo especialmente da sociedade
civil para a burocracia estatal, é determinante para a permanente integração entre os intelectuais
orgânicos que atuam nas duas instâncias. Um exemplo de atuação, a do Movimento dos
Trabalhadores Sem Terra, é a luta pelo direito ao trabalho e à vida com dignidade, assim como
pleiteiam a efetiva consideração da função social da propriedade nas decisões judiciais. Outro
exemplo é a luta dos atingidos por barragens, que defendem o direito à moradia e,
simultaneamente, incorporam a defesa de um ambiente ecologicamente equilibrado. A
148
consideração da tipologia das práticas orgânicas indica o caráter transformador que pode ter o
direito no caminho da realização da democracia como valor universal, através da consideração
das iniciativas da sociedade civil.
3.7 Os sujeitos coletivos e o pluralismo jurídico
Trataremos, a partir de agora, do direito alternativo por excelência
(considerando que se produz na sociedade civil, à margem da legalidade instituída), o pluralismo
jurídico, o qual também se presta para uma análise a partir das categorias gramscianas. A
abordagem do pluralismo jurídico não se dá, nesse texto, com o propósito de detalhar os diversos
aspectos inerentes à temática do pluralismo crítico. Portanto, a abordagem se detém à breve
demonstração do que caracteriza o pluralismo jurídico crítico, e do conceito de sujeito coletivo,
necessário para a realização de juridicidades alternativas, pluralistas, no qual se enquadram os
novos movimentos sociais. Ademais, é possível analisar as implicações dos sujeitos coletivos
gramscianos, o partido político e os conselhos de fábrica, diante da concepção de pluralismo
jurídico.
O pluralismo jurídico de WOLKMER (2003), referência aqui
adotada, se caracteriza proposição crítica diante da tradição do Estado na América Latina, não se
confundindo com o pluralismo neoliberal, de modelo excludente e individualista, que faz ruir a
soberania do Estado para fazer valer uma juridicidade determinada pela voracidade do lucro de
corporações transnacionais. Nesse caso, as fontes do pluralismo global se enquadram dentro do
conceito de CAPELLA (2002, p. 265) de soberania privada supra-estatal difusa, percebida na
forma de uma nova lex mercatoria metaestatal, criada e garantida pela atuação de grandes sujeitos
econômicos transnacionais que atuam em vários lugares do planeta, simultaneamente. Esse
direito global é interpretado como manifestação pluralista de direito, vinculada diretamente à
processos sociais e econômicos, concretizando explicitamente o que historicamente já era
perceptível: o capital nunca se deteve diante das fronteiras e da soberania dos estados
(TEUBNER, 2003, 10-13).
Por sua vez, o pluralismo jurídico crítico resulta do desencontro e
do descompasso entre a vida material e o mundo normativo, agravada pelas condições de
capitalismo periférico, no qual o Estado é incapaz de atender demandas sociais, de garantir os
149
direitos sociais constitucionalizados após o período das ditaduras. Afasta-se do formalismo,
funda-se na práxis da vida cotidiana e na auto-regulação, sendo comunitário-participativo,
norteado por uma racionalidade emancipatória (WOLKMER, 2003, p. XVIII–XXI). Sustenta-se e
se reafirma na práxis, numa perspectiva dialógica, aberta, não se impondo pela racionalidade
formal pautada na coerção de um poder organizado, aproximando-se mais de uma base
consensual estabelecida na sociedade civil. Contrariando a racionalidade formal e individualista,
o pluralismo jurídico se aproxima da organicidade e das proposições emancipatórias dos novos
movimentos sociais. São sujeitos coletivos transformadores, provenientes de vários estratos
sociais integrantes de uma prática social cotidiana, com certo grau de institucionalização.
Realizadores de uma ação emancipatória, portanto não meramente clientelistas e assistenciais,
não têm vínculos com o Estado. Crescem a partir da maior descrença da coletividade quanto às
instituições WOLKMER (2003, p. 121-122). Se na América Latina nem mesmo o Estado
intervencionista não realizou de modo satisfatório os fins aos quais se destinava, continuando as
instituições jurídicas e políticas emperradas pela burocratização e pelos vícios clientelistas e
patrimonialistas, com o receituário neoliberal aplicado aos países de capitalismo periférico o
descrédito das massas diante da estatalidade se reduziu ainda mais.
Com a globalização econômica, a defesa dos direitos sociais no
âmbito jurídico passou a ter maior vulto, com o maior foco dos interesses sociais, diante dos
governos orientados pela perspectiva econômica neoliberal. Os reflexos da reforma estatal são
percebidos na desestruturação da parcela intervencionista do Estado e na flexibilização ou
desregulação dos direitos sociais. Ocorre o retraimento das pautas políticas dos partidos,
especialmente os de esquerda, que haviam ingressado com muito ânimo na via parlamentar e para
os quais, diante do quadro atual, a defesa de direitos passa a ser o mote para atuação política.
Ademais, segundo CAMPILONGO (1987, p. 97), agrava-se uma crise da representação política,
originada pela tendência a indistinção programática entre os partidos políticos, originada nos
tempos Welfare State. Contribuem para essa situação desfavorável da política partidária a maior
interpenetração entre a administração e a política, que caracteriza a classe política como
proprietária da estrutura administrativa, bem como a perda da função integradora da ação
partidária na sociedade, a qual passa a ser realizada com maior ênfase pelos movimento sociais
novos. Sobre a crise das formas de mediação política, contemporaneamente realizada pelos
150
partidos, e conseqüência da incorporação destes ao burocratismo estatal, às limitações da
representatividade política liberal, BARCELLONA (1995, p. 95) escreveu:
A perda da forma é o sinal da crise política e o sinal também da crise da justiça. Perder
a forma, para a política, significa perder o modelo da cidade, do projeto. O modelo da
cidade era a trama das relações que, de qualquer modo, aludia a um além da política. E,
para o direito, significava perder a regra da convivência. A forma é o espaço da
mediação e a polaridade.
Assim, todas essas formas perderam-se. Mas por que se perderam? O sistema
incorporou-as: o que é lido como secularização da teologia e do sagrado, na verdade, é
a sacralização do sistema. (...) construímos uma idéia sagrada do Estado, das
instituições e do sistema,e eu acrescento, do dinheiro, da tecnologia, etc. (...) A política
perde a dimensão metapolítica que sempre acompanhou a história da esquerda.
Conforme define OFFE (1988, p. 174-175), os novos movimentos
sociais não se enquadram nas clássicas distinções entre esquerda e direita, e estão voltadas para
questões delineadas, como o meio ambiente, gênero e etnia, escapando das proposições de caráter
universal. Esses movimentos operam tendo como interesse questões que não poderiam ser
formalizadas facilmente em um sistema jurídico, sustentado no consenso da democracia
representativa e na separação tradicional das esferas pública e privada. São incorporadores de
ações coletivas, com atuação política que privilegia a sociedade civil, não a institucionalidade.
Para influenciar nas políticas públicas e na construção dos valores vigentes na sociedade, esses
movimentos sociais articulam-se a partir de propostas concretas, se prestando para estabelecer o
contato entre a sociedade civil e a Estatalidade, numa atuação política que se realiza,
prioritariamente, na sociedade civil. Os valores que identificam os novos movimentos sociais são
a identidade e a autonomia, conquistada em um processo de atuação política no qual é
determinante a não correspondência do Estado, estruturado a partir de um direito que privilegia a
defesa do patrimônio e a economia, numa perspectiva individualista inadequada para o
atendimento das demandas sociais (OFFE, 1988, p. 166, 167).
No caso específico da América Latina, esses “novos movimentos sociais” são formados
por atores que, lutando contra mais variadas formas de exploração e opressão política,
econômica, social e cultural, apropriaram-se da política e discursivamente dos direitos
humanos, para convertê-los em sinônimos de “direito alternativo” das maiorias
marginalizadas. Agindo assim, passaram a redefinir as relações da sociedade com o
Estado e a pressionar por uma revisão estrutural do ordenamento jurídico vigente,
“redescobrindo” o sistema social como o “lugar” da política; e, com isso, acabaram
deslocando a clássica questão da constituição dos sujeitos políticos, tradicionalmente
subsumida na relação classe-partido-Estado (enquanto relação que pré-definia o espaço
151
exclusivo e privilegiado de uma ação dotada de legitimidade, reconhecimento e eficácia
política (FARIA, 1992, p. 15)
Tais movimentos colocam em cheque a rigidez gico-formal dos
sistemas normativos e judiciais, considerando a politização inerente as suas temáticas,
aparentemente técnicas. Aprofundam a crise de racionalidade e legitimidade dos Estados latino-
americanos, e exigem uma gradativa intervenção do poder Executivo, pressionado por demandas
que conflitam com a racionalidade da ordem jurídica vigente, de modo que as respostas da
estatalidade visam quase sempre a resolução casuística dos casos, num pragmatismo que visa a
desideologização das pautas reivindicatórias. Tais respostas não resolvem as questões de fundo
desses movimentos sociais, e contribuem para que o Estado aumente seu campo de atuação, bem
como amplia a heterogeneidade de seus modos de juridicidade. Quanto mais fragmentária, quanto
mais casuística a atuação do Estado diante das demandas dos movimentos sociais, tratadas como
demandas isoladas, menor se torna a coerência lógico formal do sistema normativo (FARIA,
1992, p. 44-45).
Os movimentos sociais, segundo OFFE (p. 170), para que tenham
maior inserção sobre os rumos da sociedade, não podem ser limitados por estruturas
organizacionais frágeis. Devem, também, estabelecer, com maior clareza, regras para a resolução
de conflitos, bem como superar a idéia de trabalho voluntário, para que consiga maior adesão
qualificada, e não meramente casuística, bem como realizar alianças com forças político
partidárias com programas próximos às suas idéias. Tal organicidade, capacidade de integração
de conflitos e aproximação é pertinente aos maiores movimentos sociais da América Latina, dos
quais servem de exemplo os sem-terra. Conforme WOLKMER (2003, p. 142), os movimentos
sociais possuem um mínimo de institucionalização, que não se confunde com a
institucionalização moderna, de padronização das decisões coletivas. De qualquer modo, os
partidos políticos devem, para garantir sua legitimação, colocar-se a par das demandas dos
movimentos sociais, atuando em concurso com esses, que não são capazes de suprimi-lo
considerando a relevância da política partidária para o encaminhamento de pautas sociais dentro
da democracia representativa. Entretanto, diante da representação política, do Estado e da
identidade dos atores coletivos, o discurso dos movimentos sociais prioriza a vontade
comunitária, o que representa mais do que simples resposta às privações e carências. A vontade
comunitária não perpassa, necessariamente, a institucionalidade e a representatividade, incapazes
152
de atender aos interesses dos movimentos sociais. Com a descentralização, a democratização e a
participação comunitária, as instâncias tradicionais passam a ser canais inadequados para
satisfazer interesses (WOLKMER 2003, p. 139-142).
Passemos agora a tratar da relação entre os conselhos de fábrica e o partido
teorizado por Gramsci com o pluralismo jurídico. Segundo WOLKMER (2003, p. 256), os
movimentos políticos da contemporaneidade, entre os quais a Comuna de Paris, são produtos do
sistema de conselhos, o qual foi defendido por Gramsci na época dos conselhos de fábrica. Tais
conselhos eram capazes de traduzir um genuíno pluralismo democrático de base, necessário para
a democracia socialista. De fato, a idéia do conselho de fábrica é uma proposta alternativa, capaz
de trazer para dentro de suas ações a pluralidade dos interesses das classes subalternas, sendo um
modelo organizacional destinado à construção de uma democracia socialista, baseada na
experiência dos sovietes, os quais foram pensados e desenvolvidos a partir da revolução russa, à
época dos conselhos. Identifica-se com uma perspectiva alternativa por se colocar à margem do
Estado, estabelecendo uma posição crítica diante da representatividade parlamentar, da política
restritiva ao parlamento, característica da atuação do PSI. É, portanto, capaz de dar vazão a uma
construção autônoma, à democracia dos produtores, do proletariado, a partir da defesa dos
interesses das causas subalternas. É o espaço para construção de uma nova cultura, a cultura
socialista, e para a vivência, para a realização material dessa cultura, elemento determinante para
a consolidação de uma ideologia socialista, divulgada pelos conselhos. Enfim, os motivos
fundantes, bem como as ações realizadas a partir dos conselhos, se voltam prioritariamente para
difusão da filosofia da práxis, destinada para a emancipação das classes subalternas.
Além de ser o aglutinador dos interesses e o organizador das classes
subalternas no campo da sociedade civil, é possível compreender os conselhos de fábrica como o
gérmen de um novo modelo de Estado. Segundo o próprio Gramsci, a função política
fundamental da rede de conselhos está vinculada à idéia de ditadura do proletariado, na liberdade
de ação da classe trabalhadora para desenvolvimento de sua emancipação histórica, opondo-se as
demais classes às quais era subordinada a massa proletária (BORDIGA; GRAMSCI, 1981, p. 47,
48). Posteriormente, Gramsci trabalhou o conceito de partido, motivado pelo fracasso dos
conselhos de fábrica, incapazes de avançar para além do corporativismo, ou seja, incapazes de
superar o estágio egoístico passional e de avançarem rumo ao movimento catártico. Cria-se um
novo sujeito coletivo, maior, de alcance nacional, propositor de um novo modelo de sociedade, a
153
partir de um projeto universalista de democracia socialista. O partido, o moderno príncipe, tem,
conforme se tratou no primeiro capítulo, as funções de aglutinador e de organizador da massa,
capaz de realizar a pedagogia revolucionária, desalienante e integradora das classes subalternas
em um projeto autônomo. O partido deve ser capaz de apresentar a contraposição ao modelo de
democracia liberal, ocupando espaços na sociedade civil, mas não pode deixar de ocupar espaços
na sociedade política, na democracia representativa, a qual, todavia, não deixa de ser foco de
crítica.
A atuação do partido gramsciano abarca as funções que se
destinavam aos conselhos, porém lhes garante maior organicidade e dimensão, não se limitando
ao corporativismo. Teve definido o espaço nacional como campo de atuação, para que fosse
possível a associação dos diversos segmentos das classes subalternas na construção de um novo
projeto de sociedade, contra-hegemônico. O partido deve ser capaz, portanto, de organizar a
alternativa socialista diante do Estado e da sociedade burguesas, deve ser o organizador da
contra-hegemonia e propositor de uma nova cultura, para posteriormente organizar a hegemonia
das classes hoje subalternas, a partir da consolidação de um novo bloco histórico. A atuação em
prol de um novo tipo de sociedade se dá com a construção e com a divulgação da cultura
socialista, a construção de uma nova ideologia. O partido, entretanto, também se destina a fundar
um novo tipo de Estado, devendo ser capaz de fundar um novo tipo de direito, a partir do
estabelecimento de novos costumes vivenciados na sociedade civil, com a consolidação da
hegemonia (GRAMSCI, 2000c, p. 28). A organização do partido, é importante também ressalvar,
deve ser diferente do modelo burocratizante de organização do Estado liberal, sendo capaz de
garantir o trânsito de seus quadros nas direções partidárias.
O partido gramsciano, assim como os conselhos de fábrica, foi
pensado e vivenciado como projeto alternativo de sociedade e de direito, enquadrando-se, a
partir da consideração de alguns de seus aspectos fundamentais, no conceito de sujeito coletivo
adequado à concepção de pluralismo jurídico trabalhado por Wolkmer. O partido é o portador da
vontade coletiva transformadora, sendo a democracia pluralista compatível com a revolução
processual. “Indo mais além, a vida dos partidos deve estar permeada por movimentos sociais”
(ARRUDA JR, 1997, p. 42). A vontade coletiva, estruturante do partido, é necessidade elevada à
consciência e convertida em práxis transformadora. A partir da práxis transformadora, o partido
deve construir uma síntese política que supere o corporativismo e transforme os movimentos dos
154
trabalhadores em algo universalizante, capaz de ação eficaz e duradoura Na superação do
sectarismo e do espontaneísmo, o partido deve vislumbrar a construção de uma nova cultura, não
somente transformações econômico-sociais. Uma nova cultura serve de base para a luta contra-
hegemônica das classes dominantes, se presta, portanto, para estabelecer um novo consenso.
(COUTINHO, 2003, p. 172-173).
Sendo criador e divulgador de uma cultura alternativa, o partido é
também fundador de juridicidade própria, considerando que, conforme Gramsci, um novo tipo de
civilização requer um novo tipo de direito. Traz em si um projeto de sociedade que abarca um
projeto de direito que pretende ser universal. Mas isso não implica numa proposta totalizante, de
partido único. Conforme a idéia de democracia progressiva, o desenvolvimento do pluralismo
socialista necessita da pluralidade de partidos e de movimentos sociais como condição da
democracia socialista, que não se limita aos marcos da democracia liberal. Nesse processo, o
intelectual coletivo pode estar em vários lugares dentro da sociedade, produzindo uma cultura
alternativa em face da cultura dominante (ARRUDA JR, 1997, p. 43). Dessa forma, é importante
que o partido tenha como campo de ação um espaço de pluralidade política, bem como não se
detenha a uma atuação limitada à democracia parlamentar, à sociedade política. Não cabe, pois,
ao partido pensado por Gramsci, a crítica que comumente se faz aos partidos contemporâneos,
considerando que aquele não atua de modo fisiológico, preocupado em se sustentar nas esferas do
poder institucionalizado. Ainda, o fato de atuar em uma arena política ampla, com vários
espectros ideológicos, viabiliza a luta pela hegemonia, não a perspectiva totalitária, na qual se
percebe a idéia de um partido único, identificado com o Estado.
O partido gramsciano se presta para fundar um projeto universal,
um novo tipo de Estado, o que pode parecer contraditório diante da perspectiva pluralista.
Entretanto, mesmo que concebido, organizado e dirigido de modo e forma capaz de se
desenvolver integralmente em um Estado e numa concepção de mundo, o desenvolvimento do
partido reage sobre ele e exige aperfeiçoamento e reorganização contínua, não se tornando um
sujeito coletivo conservador, estagnado diante da história (GRAMSCI, 2000c, p. 345). Somente
com este norte, contrário ao corporativismo, o partido se mantém como sujeito capaz de
viabilizar a catarse, a passagem do momento econômico egoísta passional para o ético-
político, do subjetivo para o objetivo, da necessidade para a liberdade (PORTELLI, 1990, p.53).
Ademais, a estruturação interna do partido se no sentido de evitar o burocratismo, ou seja, o
155
problema da criação de instâncias de poder, motivo pelo qual deve garantir o trânsito de seus
intelectuais nos patamares organizacionais do sujeito coletivo. Assim, viabiliza a construção de
um partido voltado para as massas, como espaço destinado à pedagogia da emancipação, a partir
da crítica à sociedade, ao Estado e ao direito capitalista.
Dentro do partido gramsciano, a juridicidade produzida é produto
da vivência, da práxis, que deve se refletir na sociedade civil, numa correlação tendente ao
estabelecimento de novos consensos. Para tanto, o partido deve ser capaz de aglutinar a
pluralidade das classes subalternas, com suas demandas sociais e seus interesses, os quais se
prestam para estabelecer as bases das alianças políticas, necessárias para a luta hegemônica.
Trata-se da construção de uma juridicidade contrária à tradição escapando de qualquer encanto
formalista. A crítica ao reducionismo institucionalista, parlamentarista, especialmente no caso
dos partidos de esquerda, que deveriam estabelecer o contato entre os movimentos sociais e a
sociedade política, não se aplica, portanto, a idéia de partido estabelecida por Gramsci.
Conforme exposto, a idéia de sujeito coletivo é determinante para se
pensar o pluralismo jurídico, aqui considerando o de matriz marxista. Wolkmer define os novos
movimentos sociais, atualmente, como os sujeitos coletivos melhor capacitados para realizar
novas juridicidades. Entretanto, os limites destes movimentos sociais, identificados por Offe
neste capítulo, haviam sido percebidos por Gramsci, após o fracasso em relação aos conselhos
de fábrica, o que o motivou a teorização de um partido. Em que pese as diferenças determinadas
pelo transcurso do tempo e as transformações ocorridas nas concepções de partidos, é importante
reconhecermos que o partido gramsciano se presta como um modelo bem estruturado de sujeito
coletivo, voltado para a proposição de novas juridicidades, dentro de um perspectiva pluralista. A
atuação do partido é mais organizada, tem maior alcance social, e se em um campo mais
abrangente de pautas, com menor risco de corporativismos e reducionismos de caráter egoístico-
passional. O pluralismo realizado pelo partido é integrador das demandas sociais, considerando
que se destina ao estabelecimento de um novo consenso. Por isso, é capaz de qualificar as
demandas dos demais movimentos sociais, incorporando-as a um projeto universal, referenciado
na filosofia da práxis.
156
Conclusão
Conforme a perspectiva gramsciana, a verdadeira realização da
filosofia da práxis se dá com o afastamento de determinismos teóricos, da dogmatização contrária
a essência historicista e dialética, estando em permanente diálogo com a realidade sobre a qual
pretende atuar o sujeito histórico. Essa perspectiva é importantíssima para a análise crítica do
direito, conforme disposto ao longo dessa dissertação, considerando que viabiliza uma leitura
adequada para a teorização e efetivação da crítica, não assentada em um plano transcedental, nem
na estreiteza sectária da crítica sustentada em dogmas. O tratamento possível a ser destacado de
Gramsci para o direito, viabiliza uma compreensão não maniqueísta, abstencionista, conforme
uma tradição marxista (anti-marxista, conforme Gramsci) superada, de permanente condenação
do Estado e do direito burgueses. Obviamente, tal condenação está presente no pensamento de
Gramsci. Entretanto, percebe-se neste a problematização dialética, que possibilita perceber, por
exemplo, que a democracia burguesa serve como marco, ponto de partida para a construção de
uma democracia socialista, no rumo do horizonte utópico da sociedade regulada. Está presente,
pois, o horizonte da verdadeira emancipação, o qual, entretanto, não pode entorpecer as ações e
as idéias de quem atua no plano concreto, na vida política, que traz possibilidades materiais,
campos para atuação muito menos amplos do que aqueles que se instalam na amplitude das
idéias.
Foi acentuado no decorrer dos três capítulos, a crítica à tradição
jurídica, de matriz jusnaturalista e juspositivista, bem como ao tipo de Estado e de direito que se
têm, considerando as determinações culturais, sociais e econômicas que dialogam e determinam a
ordem jurídica. Caracteriza-se como crítica ante composições teóricas e práticas, de cunho
jurídico e político, próprias da sociedade, da economia e da cultura capitalistas, as quais a
tradição jurídica pretende justificar e organizar. A perspectiva tradicional do direito tem em seu
cerne a manutenção da ordem econômica e política do capitalismo, servindo para justificação das
conseqüências desumanizadoras que a universalização do capital acarreta para os indivíduos
submetidos a sua lógica. A crítica jurídica possível a partir das idéias de Gramsci, que se encontra
no bojo da crítica de matriz marxiana, emancipadora, é, portanto, crítica destinada contra a ordem
econômica e a cultura capitalistas. Tal afirmação se faz necessária, tendo em vista as críticas que
setores do pensamento marxista fazem ao pensamento gramsciano e às idéias derivadas deste.
157
O pensamento de Gramsci é atual, contribui muito para o
desenvolvimento e para a defesa de uma democracia concreta, capaz de superar a separação entre
o sujeito concreto e o cidadão, ainda presente na cultura jurídica ocidental, e que somente
contribui para manutenção de grandes disparidades sociais. A superação dessa distinção é
determinada pela construção de uma nova cultura jurídica, voltada para a superação das bases
filosóficas e ideológicas hegemônicas dentro da modernidade jurídica. Para a construção dessa
nova cultura jurídica, da defesa de uma nova ideologia jurídica, a teoria crítica do direito é
determinante, servindo de referência para atuação dos sujeitos coletivos. Ideologia, nesse caso,
como cultura sobre a qual se desenvolvem juridicidades alternativas, autônomas diante dos
poderes estabelecidos, elaborada e vivenciada pelas classes subalternas, dentro do que se define
pluralismo jurídico. Uma nova cultura jurídica, entretanto, não pode, necessariamente,
desconsiderar a estrutura jurídica pré-existente. Deve poder atuar sobre as instituições jurídico-
políticas existentes para, gradativamente, transformá-las. Nos dois momentos, na construção de
novas juridicidades, dentro da sociedade civil, e na atuação em defesa de novos referenciais
hermenêuticos, por dentro da sociedade política, se realizam ações de longo prazo, numa guerra
de posição, com os intelectuais orgânicos transitando entre os espaços do Estado ampliado.
Hoje, com o avanço tecnológico dos meios de comunicação e com a
evolução do aparato coercitivo, qualquer modalidade de luta social tende a fracassar, se realizada
com ataques diretos às estruturas institucionalizadas de poder. Se, à época dos quaderni, se
concluiu que a sociedade civil serviria como trincheira para manutenção do Estado, hoje se
verifica um formidável avanço nessas “trincheiras”, condições que garantem atualidade para a
estratégia de guerra de posição. A defesa de um Estado mínimo, comumente mencionada nos
meios de comunicação, reflete, na verdade, a manutenção de um Estado que se restringe às suas
funções clássicas, inserido num contexto de revalorização e superestimação do individualismo,
em detrimento das possibilidades comunitárias e associativistas. Conforme a leitura ampliada de
Estado proposta por Gramsci, os aparelhos privados de hegemonia, no contexto atual, exercem a
difusão ideológica, conformando as consciências à hegemonia. Trata-se, portanto, da defesa de
um Estado minimamente social, mas que deve garantir segurança jurídica para atender às
necessidades do capitalismo globalizado. Este, verdadeiramente corrói a soberania, a partir das
implicações do pluralismo jurídico transnacional, que tem como importantes agentes grandes
corporações transnacionais, que desconhecem os limites da soberania política e jurídica dos
158
Estados nacionais, atestando o internacionalismo do capital. Não obstante, a corrosão da
soberania dos estados não alcança a essência da ordem jurídica capitalista, na qual se encontra a
defesa da segurança jurídica para garantir o cumprimento dos contratos e a defesa da propriedade.
Tanto que a capacidade dos países para atrair investimentos transnacionais relaciona-se
diretamente com a maior ou menor eficiência do Judiciário para garantia de relações contratuais e
do direito de propriedade.
As classes subalternas, através da luta contra-hegemônica, fundam
as bases para novos consensos, para a nova hegemonia, o que, em se tratando do Brasil, implica
na superação da pobreza política, na medida em que os marcos democráticos avançam,
alcançando as classes subalternas, com a superação dos limites formais da democracia moderna.
Nesse rumo, é possível concluir que a priorização da atuação dos intelectuais orgânicos em um
dos campos, seja a sociedade civil, seja a sociedade política, pode restringir as possibilidades de
avanço democrático. Desconsiderar os vínculos orgânicos entre os dois campos, portanto, pode
acarretar riscos para a realização dos propósitos defendidos pela teoria crítica. Em países mais
atrasados econômica e socialmente, conforme Gramsci, o Estado é o agente essencial para a
realização de ações tendentes à qualificação dos níveis de vida da população. É o caso do Brasil,
no qual o Estado não realizou, e não realiza, as funções às quais foi condicionado
constitucionalmente na redemocratização. Assim, a defesa de direitos sociais, bem como a
efetivação destes direitos, é necessária para qualificar a vida de milhões de pessoas, e, diante das
necessidades sociais, não cabe o abstencionismo da crítica condenatória do Estado. Cabe assumir
a responsabilidade pela defesa desses direitos como marcos democráticos, como avanços
necessários para maiores conquistas sociais. Isso, entretanto, deve se prestar para o oferecimento
de condições materiais para o desenvolvimento da sociedade civil, não para a vinculação
clientelista à estrutura jurídico-política estatal, elemento presente, como reconhecemos, na
formação de tais direitos, mas que não ofuscam a luta social para a formalização e, o mais
importante, para a concretização dos direitos sociais.
Por outro lado, a produção de novas juridicidades, distante dos
formalismos, sustentada nas vivências, nas práticas e numa base ética solidária, se dá pela
atuação dos sujeitos coletivos atuantes na sociedade civil. Para superação dos fundamentos
ideológicos liberal-individualistas, os agentes constitutivos das novas juridicidades devem ser os
sujeitos coletivos, como os novos movimentos sociais, realizadores da de uma pedagogia da
159
emancipação. A pedagogia formadora de novos consensos, conforme o pluralismo jurídico, não
se sustenta na perspectiva coercitiva de direito, visto que, pelo modo como se consolidam as
juridicidades alternativas, as possibilidades de construção de novos consensos são concretas.
Ainda, não se pode olvidar que a ideologia jurídica basilar da modernidade, o liberal-
individualismo, se consolidou ao longo dos séculos a partir de práticas mercantis e sociais da
burguesia, de dentro da cultura e da economia características do medievo. Obviamente, na Idade
Média o contexto era de pluralismo político e jurídico, relativizado pela incidência da hegemonia
da Igreja. Hoje, o ambiente jurídico tem como principal característica, marco da modernidade, o
monismo estatal, o que restringe as possibilidades de construção jurídica pluralista. Entretanto, é
possível afirmar que os avanços tecnológicos se prestam também para amparar a elaboração
dessas juridicidades, desde que não comprometam os espaços de vivência pública, coletiva,
caracterizados pelos novos movimentos sociais.
A esperança de afirmação efetiva de uma juridicidade alternativa
restrita ao plano do pluralismo jurídico, entretanto, pode ser minorada pela atuação das
corporações produtoras do pluralismo transnacional, numa situação desfavorável para os
movimentos sociais, considerando o alcance das potências econômicas transnacionais. As
características da cultura organizacional-corporativa dessas transnacionais, especialmente quanto
às relações de trabalho, atingem a grande massa de trabalhadores, como grandes veículos
divulgadores de uma cultura egoísta, pautada na defesa da eficiência e na competitividade.
Ademais, a função pedagógica e organizacional dos movimentos sociais é característica
fundamental do moderno príncipe, do partido de Gramsci, atuante na sociedade civil e na
sociedade política, agregador da pluralidade de demandas das classes subalternas, base para o
estabelecimento das alianças necessárias para hegemonia. A concepção de partido gramsciana, o
sujeito coletivo capaz de realizar a catarse, a superação do estágio egoístico-passional, pode ser
indicada como referencial para o sujeito coletivo realizador do pluralismo jurídico. Isso, por
conta da maior capacidade organizacional, que lhe garante maior poder para competir na luta
contra-hegemônica, bem como por conta do maior alcance social, e da abrangência de pautas
abarcadas em seus propósitos, existindo, portanto menor risco de corporativismos e de
reducionismos de caráter egoístico-passional. Ainda, o partido é, por excelência, o realizador dos
contatos entre a sociedade civil e a sociedade política.
160
Enfim, para efetivação dos propósitos basilares da teoria crítica do
direito, que se evitar o clientelismo e a estatolatria, riscos derivados da atuação prioritária dos
intelectuais orgânicos por dentro das estruturas jurídico políticas. Deve-se, ainda, evitar o risco de
os sujeitos coletivos, especialmente os novos movimentos sociais, restringirem suas pautas, as
quais, mesmo que compostas em rede de interesses diversos, podem não subsistir na
competitividade com o pluralismo transnacional. Tais riscos são minorados drasticamente se a
atuação dos intelectuais orgânicos se der, concomitantemente, nos dois campos. Assim, se
garante a possibilidade real de consolidação de um novo consenso, que configure um avanço para
a democracia e a sociedade.
161
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