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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA – UFSC
CENTRO DE CIÊNCIAS DA EDUCAÇÃO – CED
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
A Escola Pública e o PROERD: Tramas do Agir Policial na
Prevenção às Drogas e às Violências
Mestranda: Deise Rateke
Orientadora: Drª Ana Maria Borges de Sousa
Florianópolis, abril de 2006
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Deise Rateke
A Escola Pública e o PROERD: Tramas do Agir Policial na
Prevenção às Drogas e às Violências
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em Educação da
Universidade Federal de Santa Catarina, como
requisito parcial para obtenção do título de
Mestre em Educação.
Orientadora: Profª. Drª Ana Maria Borges
de Sousa
Florianópolis, abril de 2006
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Dedico este trabalho à memória de meu querido pai Gerson.
Agradecimentos
À Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC),
À Polícia Militar de Santa Catarina e os Policiais PROERD,
Aos (às) Professores (as) do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFSC,
Aos profissionais e alunos e alunas das Escolas onde realizei minha pesquisa de campo,
A CAPES pela bolsa de formação e ao Núcleo de pesquisa Vida e Cuidado.
Agradecimentos especiais:
Pelas diferentes formas de colaboração e carinho e pelos encontros que me proporcionaram
momentos de “estar-junto”, agradeço: Débora Rateke, Leonardo, Dª Sônia, Ludmila,
Emilaura, Ismênia, Gisely, Patrícia, Dráuzio, bio, Alexandre, Cristiana Tramonte, Krika,
Celso, Maristela. Principalmente a Orientadora Ana, pelo zelo e ajuda cotidiana na minha
formação. À querida amiga, Regina Ingrid, pelo companheirismo. Ao Jesiel, pelo dia a dia
de cumplicidade e à vibrante e corajosa, Catarina Corina, minha mãe.
Fica decretado que o homem não precisará nunca
mais duvidar do homem. Que o homem confiará no
homem como a palmeira confia no vento, como o
vento confia no ar, como o ar confia no campo azul
do céu. O homem confiará no homem como o
menino confia em outro menino.
Thiago de Mello
S U M Á R I O
RESUMO.........................................................................................................................
viii
ABSTRACT....................................................................................................................
ix
INTRODUÇÃO.............................................................................................................. 10
Entre o texto e o contexto: meus olhares......................................................................... 11
As possibilidades de um trabalho baseado na afetividade............................................... 13
A instituição militar e sua pretensão educadora............................................................... 16
Proposições Metodológicas: o encontro com o ‘outro’.................................................... 17
Os autores e a organização do texto.................................................................................
21
CAPÍTULO I
-
Contar o passado, tecer o presente: significados de uma
trajetória.........................................................................................................................
24
1.1A narrativa através das memórias de vida.................................................................. 25
1.2Minhas vivências: delineando outros cenários das escolas observadas...................... 33
1.3O encontro com o tema da pesquisa........................................................................... 37
1.4A tessitura de um Programa de prevenção às drogas e às violências......................... 41
1.5A pesquisa e as suas múltiplas possibilidades de apresentação..................................
50
CAPÍTULO II - Fios da trama: decifrando as redes do cotidiano............................ 56
2.1Visibilidades e invisibilidades das violências............................................................. 57
2.2As violências e os novos Paradigmas.......................................................................... 64
2.3O pluralismo das drogas.............................................................................................. 72
2.4A história da polícia é uma historia de violências? Reflexões sobre a teoria e a
prática do exercício do poder de polícia...........................................................................
78
2.5Relações entre a infância e a concepção de um Programa Educacional..................... 86
2.6Do poder pastoral ao poder de polícia: contribuições de Foucault.............................
90
CAPÍTULO III - Traços e feições: entre ritmos e adereços, as várias maneiras de
sentir, vivenciar e olhar o campo da pesquisa.............................................................
97
3.1A favela e o Programa PROERD................................................................................ 98
3.2“Luz, câmera, ação” - As lições do PROERD na escola continente........................... 104
3.3“Hoje é dia de PROERD” - As lições do PROERD na escola ilha............................ 114
3.4Pensar a Pedagogia e o Currículo para discutir a prática de um Programa de
prevenção nas escolas.......................................................................................................
121
AO FINAL, UMA SÍNTESE POSSÍVEL....................................................................
127
BIBLIOGRAFIA............................................................................................................
136
ANEXOS.........................................................................................................................
144
Cartilha PROERD............................................................................................................ 145
viii
R E S U M O
Esta dissertação versa sobre um Programa Educacional de Resistência às Drogas e à
Violência - O PROERD, desenvolvido nas escolas públicas e privadas de Santa
Catarina. O PROERD advém de um Programa norte-americano, conhecido como Drug
Abuse Resistance Education – O DARE - adaptado para a realidade brasileira pela
Polícia Militar, desde 1992, e destinado aos educandos e as educandas da quarta série do
Ensino Fundamental. O objetivo que orientou minhas ações nesse período foi
compreender o que torna a Polícia Militar responsável por implementar, nas escolas
públicas, um Programa de combate às drogas e às violências. E ainda, nos espaços
escolares, alinhavar os significados expressos nas formas como a comunidade escolar
tecia suas impressões sobre o cotidiano deste Programa. Como um Estudo de Caso, a
abordagem se pauta num recorte etnográfico e qualitativo, onde os meus olhares
estiveram atentos ao rigor do trabalho de campo, da construção dos referenciais que
animaram os esforços para construir as sínteses explicativas. Estas sínteses contemplam
as observações implicadas no âmbito do empírico e as trocas dialógicas com os sujeitos
envolvidos nesse estudo. A partir dessa experiência, assumi como perspectiva para
construir as reflexões desta pesquisa considerar as drogas, e as violências, fenômenos
plurais, cujas práticas e manifestações são tecidas por uma multidimensionalidade de
aspectos que são, a um só tempo, visíveis, ambíguos, dispersos, escondidos, fluídos, de
cores e sinuosidades que não permitem uma apreensão conceitual única e universal.
Nesse movimento fui tecendo a minha dimensão pesquisadora, curiosa e em parceria
com os fios que tramaram a pesquisa, mesclando os registros pela interlocução com a
minha trajetória e pela convivência com a comunidade observada. Uma comunidade,
inserida em duas escolas públicas, de Ensino Fundamental, localizadas no entorno da
favela. Mergulhada nesse cenário organizei as explicações em torno de como, e porque,
o PROERD se consolidou como um Programa de prevenção às drogas e à violência.
Nessa trajetória de ir a campo, estudar o conteúdo das fontes documentais, conversar
com os profissionais da escola e da instituição militar, observar, com olhos implicados,
os sem-fins do cotidiano, fui conhecendo, aos poucos, o enredamento provocado pela
ambigüidade das tramas do agir policial. A pesquisa evidenciou, entre outros aspectos,
que há, na proposta do Programa, um interesse pastoral, disciplinador e racional, guiado
por uma crença na sua missão salvacionista para “tirar” os meninos e as meninas do
mundo do mal. Como um Programa preventivo, é atravessado por um agir de controle
das crianças e jovens, ordenando modelos adequados de conduta social. Paradoxalmente,
nesse universo muitos policias militares, como aqueles que foram partícipes dessa
pesquisa, evidenciaram o desejo de criar alternativas educacionais para provocar
mudanças na realidade com a qual convivem, e a qual afirmam não tolerar. Mostram-se
como “pastores” ávidos por construir uma afetividade que os faça se sentirem especiais
diante da comunidade onde atuam. Ao contrário de julgar o Programa, nessa dissertação
assumi como responsabilidade ética problematizar as dinâmicas entrelaçadas nos
sentidos de prevenção que ele anuncia, enfatizando a crítica aos fundamentos
epistemológicos do currículo PROERD.
ix
A B S T R A C T
This study aimed at investigating a Drug Abuse Resistance Education Program called
Programa Educacional de Resistência às Drogas e à Violência - PROERD, developed at
public and private schools in the state of Santa Catarina. The PROERD was developed with
the influence of a North American program known as Drug Abuse Resistance Education –
DARE, adapted to the Brazilian situation by the Military Police, since 1992, and designed
for the children in the 4
th
grade of elementary school. The objective pursued for my actions
in this period was to understand what makes the Military Police responsible for
implementing, at the public schools, a Program to fight drugs and abuse. And still, within
the school setting, sketch the meanings expressed in the ways the school community
characterized its impressions about the Program everyday. As a case study, the approach
has an ethnographic and qualitative nature, through which I sought the rigor of the work
field, of the development of a framework for the explanation which contemplates the
empirical observation and the dialogs with the participants of the study. Based on this
experience, I decided to include drugs, violence, abuse, plural phenomena as the
perspective to construct the discussions of the research, whose practices and manifestations
are woven by the multidimensionality of aspects which are, at the same time, visible,
ambiguous, disperse, covert, fluid, with colors and shapes that do not allow only one
universal conceptual understanding. In this movement, I went on developing a dimension as
a researcher, curious and with the partnership of the threads weaving the research,
including the records produced through interlocution with my development and by living
with the community. A community belonging in two public schools, located around some
slums. Immersed in this scenario, I organized the explanations around how and why the
PROERD has been consolidated as a prevention Program for drugs and abuse. In the
movement of going to the field, studying the content of the documental sources, talking
with the school staff and the professionals at the military institution, observing with open
eyes, the everyday, I learned, little by little, the interlacing made by the threads of the
police attitude. The research showed, among other aspects, that there is, in the proposal of
the Program, a rational interest for discipline, guided by a belief in a no-kid-left-behind
mission to get the boys and girls out of the evil world. As a preventive Program, it is
characterized by a controlling attitude towards the children and the adolescents,
determining adequate models for social conduct. Paradoxically, in this universe, many
military policemen, as is the case of those who were participants in this research, showed
the willingness to create educational alternatives to cause changes in the realities they live
with and cannot tolerate any longer. They show themselves as avid “shepherds” seeking
affection to make them special in the community they work. Therefore, rather than judging
the Program, I took on the ethical responsibility of discussing the woven dynamics of the
prevention announced, emphasizing the critique to the epistemological foundations of the
PROERD curriculum.
10
Introdução
Ver é muito complicado. Isso é estranho porque os
olhos, de todos os órgãos dos sentidos, são os de mais
fácil compreensão científica. A sua física é idêntica à
física óptica de uma máquina fotográfica: o objeto do
lado de fora aparece refletido do lado de dentro. Mas
existe algo na visão que não pertence à física.
(Rubem Alves, 2004: 02)
Rubem Alves (2004) diz que há muitas pessoas de visão perfeita que nada vêem.
Fernando Pessoa (apud Alves, 2004: 03) escreveu que não é bastante não ser cego para
ver as árvores e as flores. Não basta abrir a janela para ver os campos e os rios. O ato de
ver não é, portanto, coisa simples ou natural. Precisa ser aprendido. Digo isto para lembrar
que esse foi o centro para onde foquei as minhas atenções no decorrer dessa pesquisa,
disposta a ver além daquilo que os outros já viram, mas, ao mesmo tempo, aberta também à
magia, à sedução que me permitiu enriquecer a escrita, saborear as imagens, instigar-me
com o que via e vivenciava. E, numa provocação contínua, tentar aprender a ver com os
olhos da sabedoria para enxergar um pouco o que se esconde atrás dos detalhes. Sinto esta
pesquisa, portanto, como um aprendizado sobre os meus olhares e modos de ver, confiante
na idéia de que se aprender a ver é uma das principais aventuras, como afirma Freire (1996:
69), qualquer processo de aprendizagem não se faz sem a devida abertura ao risco e à
aventura do espírito.
É ainda com Rubem Alves que encontro um dos mais criativos estilos para perceber
e assumir a importância, as implicações e os significados que possuem os nossos olhares
quando se comprometem amorosamente com aquilo que vêem. Ele explica:
A diferença se encontra no lugar onde os olhos são guardados. Se os olhos
estão na caixa de ferramentas, eles são apenas ferramentas que usamos por sua
função prática. Com eles vemos objetos, sinais luminosos, nomes de ruas — e
ajustamos a nossa ação. O ver se subordina ao fazer. Isso é necessário. Mas é
muito pobre. Os olhos não gozam... Mas, quando os olhos estão na caixa dos
brinquedos, eles se transformam em órgãos de prazer: brincam com o que
vêem, olham pelo prazer de olhar, querem fazer amor com o mundo (Alves,
2004: 02)
11
Acredito, hoje, que não posso fazer uma pesquisa sem revolucionar os modos como
aprendi a olhar as pessoas, os cenários e os fatos. No entanto, sei que, apesar dos meus
limites, foi guardando os olhos na caixa de brinquedos que a realidade se fez presente em
cada ponto desta caminhada. Nesta caixa, meus olhos estiveram atentos ao rigor do trabalho
de campo, da construção dos referenciais, e animaram o esforço para construir as sínteses
explicativas sobre as observações implicadas e as trocas dialógicas com os sujeitos
envolvidos na pesquisa.
Entre o texto e o contexto: meus olhares
É o Programa Educacional de Resistência às Drogas e a Violência (PROERD) o
foco do meu olhar, o objeto de estudo desta pesquisa. Enquanto um Programa considerado
preventivo e de caráter educacional, ele é implantado nas escolas pela Polícia Militar, por
isso, desde o início, perguntava-me a respeito desse Programa, pois me chamava a atenção
e me causava estranheza observar policiais atuando em salas de aula, como protagonistas de
um projeto educacional sobre drogas e violências.
Esse estranhamento, reforçado pela complexidade desses dois temas que a polícia
vem se empenhando em abordar, pode ocorrer com todos aqueles que, seja por formação,
por convicção, por experiência própria ou por razões desconhecidas e misteriosamente
inacessíveis (Silva, 2004: 12), não vêem na ação policial nada familiar a qualquer prática
educacional ou humanitária, já que não só na sociedade brasileira, mas também em outros
países,
(...) as instituições policiais foram constituídas (ou representadas) ao longo do
tempo (...) em organizações sociais dotadas de poderes essencialmente
repressivos, punitivos, baseados no recurso à força, à violência física, no
exercício i/legítimo da violência, da arbitrariedade e da tortura (Silva, 2004:
12).
Paradoxalmente, pude constatar que a comunidade, ao mesmo tempo em que
denunciava inúmeras ações controversas e pavorosas, valorizava feitos honrosos da polícia
e o trabalho de prevenção às drogas e à violência, justificando a prática da Polícia Militar
como relevante.
12
Nessa trajetória de ir a campo, estudar o conteúdo das fontes documentais,
conversar com os profissionais da escola e da instituição militar, observar, com olhos
implicados, os sem-fins do cotidiano, fui conhecendo, aos poucos, o enredamento
provocado pela ambigüidade das tramas do agir policial. A partir dessa experiência, assumi
como perspectiva para construir as reflexões desta pesquisa considerar as drogas e as
violências como fenômenos plurais, cujas práticas e manifestações são tecidas por uma
multidimensionalidade de aspectos visíveis, ambíguos, dispersos, escondidos, fluidos, de
cores e sinuosidades que não permitem uma apreensão conceitual única e universal. Do
mesmo modo, busquei a construção de explicações possíveis, que dêem aos fenômenos
pesquisados uma visibilidade crítica e criativa.
Meu cuidado foi o de almejar, no trabalho ora apresentado, uma diferenciação
daquelas imagens corriqueiras, e por vezes confusas, que comumente repercutem quando
há alguma discussão em torno desses dois temas. Em geral, as drogas estão associadas aos
problemas sociais, entre os quais as violências, com suas causas e conseqüências,
praticadas pelas camadas empobrecidas, por negros organizados em gangues, por exemplo.
Parto, portanto, da necessidade de um trabalho que desenvolva métodos e metodologias
complexos e enredados, como salientam Oliveira e Alves (2002: 11). Por isso, expresso
novamente a compreensão de que, nesta dissertação, drogas e violências serão sempre
compreendidas como acontecimentos multifacetados, constituídos de múltiplos aspectos.
Para apreender seus contornos é imprescindível entrelaçar os contextos social, político,
cultural, econômico, antropológico, com o desejo de fugir da clareza linear e das
afirmações apressadas, o que revela o anseio de tecê-las sem perder de vista a sua
complexidade. Para mim, essa foi a parte da aventura pesquisadora, constitutiva de desafios
para traduzir-se em texto e contexto.
Embora considere os procedimentos teórico-metodológicos que dão sentido aos
conhecimentos de uma escrita científica, vou tomar como referência, para construção de
minhas sínteses dissertativas, a importância das trocas e do conhecimento produzido com
os sujeitos da pesquisa. Isso significa, conforme Sousa (2002: 16), que é preciso, na
interação com o campo investigado, que nos reconheçamos como seres humanos, com
sentimentos múltiplos e complexos. Por isso, é bem provável que as nossas escolhas, como
13
observadores, ora possam ser acertadas, ora possam ser passíveis de enganos, de olhares
equivocados e distintivos, de envolvimentos para além das recomendações apontadas pela
ciência tradicional como necessárias para garantia da cientificidade da pesquisa (Sousa,
2002: 16).
As possibilidades de um trabalho baseado na afetividade
Restrepo (1998: 18) ressalta o esforço desprendido pelos centros acadêmicos para
guardar os valores difundidos pela ciência clássica e pela modernidade, com a intenção de
empregar ao trabalho do pesquisador uma capacidade fria, racional, distante, operacional e
binária, semelhante ao de uma máquina. Com a ciência moderna aprendemos a separar,
para estudo, o sujeito do objeto (Alves, 2002: 17). Não obstante, sinto-me cada vez mais
disposta a reconhecer que o tipicamente humano, o genuinamente
formativo é a capacidade
de emocionar-nos, de reconstruir o mundo e o conhecimento a partir dos laços afetivos
(grifo meu) que nos impactam (Restrepo, 1998: 18). A suposta garantia de uma
objetividade científica, pautada na crença da expulsão da afetividade, promoveu por longa
fase o enrijecimento da ciência que hoje, ainda em pequenos passos e por vezes
ruborizada, volta seu olhar para compreender o lugar dos sentimentos e das emoções
quando se quer conhecer processos vivos e, principalmente, humanos (Sousa, 2002: 20).
Decidida a assumir esse olhar, compartilhado com os principais autores que
ampliaram minhas reflexões, constatei que, para comprometer-me afetivamente com o
entorno da pesquisa, era preciso reconhecer a multiplicidade da vida ali presente, sem
reduzi-la a um esquema homogeneizador. Como sugere Alves (2002: 08), é preciso que os
sentidos sejam imersos nas histórias ouvidas e partilhadas, que os sentimentos sejam
participados coletivamente, para que possamos compreender melhor não somente o campo
investigado, mas também as nossas próprias possibilidades como observadores.
Esta dissociação entre afetividade e conhecimento intelectual, apontada por
Restrepo (1998), encontra correspondência em Maturana (1998: 15-30), quando aborda a
educação. Para esse autor, tal separação também se dá nas escolas quando o processo
educativo nega ou castiga os educandos e educandas pelo não cumprimento das exigências
14
culturais e curriculares. Com isso, promovem uma não-aceitação e um não-respeito por si
mesmos e fecham as possibilidades de uma conduta relacional guiada pela aceitação e pelo
respeito por si e também pelo outro, como legítimo outro na convivência. Para Sousa
(2002: 19), na prática pedagógica, isso se efetiva quando o afeto é um valor retirado das
escolas em nome da formação de adultos adaptados ao meio social.
Nas duas escolas públicas estaduais do município de Florianópolis
1
, localizadas ao
redor de favelas, e onde a pesquisa de campo desse trabalho foi realizada, esse cenário
aparecia na descrição da comunidade e dos responsáveis, em forma de manifesto, sobre os
problemas da escola. Para eles, um dos maiores conflitos da mesma estava nas drogas
traficadas e consumidas pela comunidade local, assim como nas violências que elas
geravam, tanto ao redor da escola, quanto dentro dela, traduzida, em sua maioria, pela
indisciplina, a turbulência ou apatia nas relações, nas depredações e ameaças dos alunos.
Em conformidade com essa descrição, os educadores, padecendo de uma outra
compreensão sobre a afetividade e a convivência, expressavam que a resolução desses
conflitos somente poderia acontecer com o aumento do controle, da vigilância, das
punições e dos castigos.
A convivência estabelecida nessas escolas não se centrava sob o amparo de um
“lugar” de perene criação e recriação da vida, na medida em que se constitui como social,
mas como um espaço em crise, permeado por confrontos, desqualificação e negação do
outro, onde a convivência estava rompida também pelo medo e pela desconfiança.
Conforme Battaglia (2000), o medo é uma das emoções que nos retira das relações sociais,
principalmente o medo de não termos capacidade para convivência social. Ele nos leva à
negação do outro, à desconfiança, ao uso da autoridade. E essa perda de confiança na
capacidade de convivência democrática e reflexiva ignora a conversação e a aceitação do
outro como legítimo outro. Disso decorre a importância da proposta de Maturana, que
desafia a buscar uma educação que resgate o lugar da vida e da amorosidade nos
relacionamentos e nas ações dos viventes.
1
Uma descrição mais detalhada sobre as escolas pesquisadas, denominadas escola ilha e escola continente,
encontra-se no I capítulo desta dissertação.
15
Pensados por esta via, os espaços educativos:
...constituem-se em fenômenos sociais que manifestam, com fundamento nas
emoções, os pensamentos, os conceitos e os objetivos dos grupos sociais, num
processo histórico e relacional, criando realidades que, nesta interação
constante, recria os sujeitos dela participantes (Vieira, 2005: 06).
Compartilhando dessa consideração do humano como autônomo nas relações é que
Maturana (1998) traz uma noção de educação como vivência das relações mesmas dos
indivíduos, valorizando sua função social e afetiva, além de propor pensar a emoção como
o grande referencial do agir humano. É por isto que quando há a crença nesse estar e
reconhecer o outro para admitir sua legitimidade e o seu direito à vida em seu mais amplo
significado, ao mesmo tempo em que cresce a insegurança e com ela se amplia os
investimentos em aparatos repressivos e violentos, ambiguamente nasce, para outros setores
da sociedade civil organizada, como os movimentos em defesa da paz, um sentimento de
diálogos multiculturais, de ruptura com os padrões viciados, com o antigo. Há um
sentimento de responsabilidade social com o outro, que mobiliza desejos entusiasmados e
contínuos de pessoas que se vinculam ao cotidiano de jovens, moradores de comunidades
envolvidas com a problemática das drogas e das violências, para construir com eles
alternativas pacíficas, educativas e orientadas por laços de afetividade. E sabem que essas
são as melhores escolhas para lidar com o enfrentamento da questão.
É esse cenário de ambigüidades que não permite esconder as múltiplas facetas da
presente pesquisa, mesclada de aspectos que ora convivem, ora antagonizam, mas que são
complementares. Sousa (2002: 25) ressalta que a nossa pedagogia é de afetos, portanto,
pode reconhecer, de modo prático, no educador e nos educandos, sujeitos também de
limites e que atuam em consonância com sua história de vida, onde estão contidas suas
experiências, sua formação pessoal e profissional. Nenhum pesquisador pode desconhecer
como afeta e é afetado pela experiência da pesquisa, pelo desafio de fazer-se autor de uma
dissertação.
16
A instituição militar e sua pretensão educadora
Durante o primeiro semestre de 2005, com visitas semanais às duas escolas
pesquisadas, acompanhei as aulas do PROERD, ministradas por policiais militares a
crianças e jovens da quarta série do Ensino Fundamental. De início, ainda sem saber ao
certo como adentrar no enredo que envolvia a pesquisa, refleti por vários dias sobre a
relevância de minha intenção em investigar um Programa, cuja implementação estava sob a
responsabilidade da Polícia Militar. Historicamente, o universo que percorre as veias desse
“meio” apresenta-se como um desafio para quem resolve debruçar-se sobre o tema, dadas
as dificuldades para acessar as informações e vivenciar instantes de pertencimento, sendo
civil e pesquisadora. De modo particular, esse desafio se manifestou no momento de
“traduzir” os diversos questionamentos acerca desse Programa, denominado pedagógico,
sob a responsabilidade dessa corporação, em argumentos que pudessem dar visibilidade,
pelo menos, a alguns aspectos que se escondem no jogo das inter-relações.
Nesse movimento de tecer-me em parceria com os fios que tramam a pesquisa,
mesclado por minha trajetória e pela convivência com a comunidade observada, acreditei
ser possível organizar as explicações em torno de como, e porquê, o PROERD se
consolidou como um Programa de prevenção às drogas e à violência, e tentar, entre outros
aspectos, compreender as razões que orientaram a opção da Polícia Militar para implantar,
nas escolas selecionadas, esse modelo de prevenção. No mesmo movimento, refleti sobre as
certezas pedagógicas, as idéias preconcebidas, o delineamento do currículo e das demais
instâncias que envolvem a aplicação desse Programa. Assim, busquei destacar que as
reflexões sobre as violências e suas manifestações no interior de uma instituição que a gesta
e a legitima se configura como uma dança de explicações imperfeitas, transitórias, que
evocam a uma compreensão multidimensional deste campo do conhecimento, da polícia e
de sua trajetória.
A escrita, as leituras e reflexões deste texto atravessam a proposta de identificar em
que bases foram formuladas as ideologias empregadas nas aulas do PROERD: os interesses
educacionais, sociais e curriculares da Polícia Militar; suas diretrizes e projetos; suas
definições e, conseqüentemente, suas propostas pedagógicas sobre os temas que discute.
17
Considerei necessário dimensionar as bases que a representam, analisando como as drogas,
as violências, o currículo, a escola, a comunidade, entre outros, constituem os fundamentos
do Programa. Compreendo que cada um destes aspectos inscreve os valores e as idéias de
formação e de cidadania pensados e idealizados não somente pela polícia, mas por muitos
outros segmentos da sociedade, ou setores que atribuem elevada relevância ao que é
praticado e discutido na política, na justiça, na escola, nas ruas. E é isso que reveste o
PROERD de uma feição educadora e o faz alcançar uma projeção idealizada para a
comunidade onde o trabalho é realizado, alcançando o bairro como um todo e, às vezes,
grande extensão da cidade.
Proposições metodológicas: o encontro com o ‘outro’
Nessa pesquisa, tomei como referência para as minhas observações, e para as
demais atividades de campo, vários aportes de uma abordagem etnográfica, com a intenção
de dar organicidade ao estudo de caso que propus realizar, com prioridade para os aspectos
qualitativos que foram sendo decifrados no processo. A escolha dessa abordagem
metodológica foi desenvolvida em torno de uma unidade, cujos limites estavam bem
definidos, ou seja, de um programa específico.
Com esses olhares, o meu encontro com o “outro” deu-se através da incursão pelo
campo empírico, das formulações teóricas que permitiram construir explicações articuladas
sobre o tema, em torno do qual estava o meu objetivo principal: compreender o que torna
a Polícia Militar responsável por implementar, nas escolas públicas, um Programa de
combate às drogas e às violências. O trabalho de campo exigiu, além do mergulho
(Oliveira e Alves, 2002: 08) necessário para permitir o entendimento de um caso particular,
levar em conta seu contexto e sua complexidade, sobretudo as limitações, as incertezas e a
curiosidade da pesquisadora. Como indica Alves (2002: 26), do conflito e do diálogo dos
conhecimentos existentes nas redes formadas entre os indivíduos envolvidos nesse
processo de pesquisa é que posso aprender e, porventura, também ensinar algo.
O Estudo de Caso, conforme Gil (1991 apud Silva, 2001: 21), exige uma
compreensão profunda e exaustiva de um, ou poucos objetos, de maneira que se permita o
18
seu amplo e detalhado conhecimento. Lüdke (1986: 17) acrescenta que o Estudo de Caso é
sempre bem delimitado, devendo ter seus contornos claramente definidos no desenrolar do
estudo. Nesse sentido, o campo metodológico ganha mais amplitude nas sínteses
explicativas do pesquisador, principalmente quando associado a um olhar qualitativo que
leva em conta as nuances intersubjetivas que permeiam os discursos, as relações e as
proposições pedagógicas.
Conforme Biklen (1994: 15-7), a investigação qualitativa privilegia características
diversas e proporciona a riqueza de detalhes descritivos, relativos a pessoas, locais,
cenários, adereços e conversas. Nessa perspectiva, o investigador tem por intenção
problematizar o fenômeno em toda a sua complexidade. Ainda que o pesquisador possa
selecionar questões específicas, a abordagem não é feita com o intuito de obter respostas
para questões prévias ou de testar hipóteses, mas sim eleger, essencialmente, a
compreensão das condutas a partir do lugar social dos sujeitos investigados. O autor
ressalta ainda que as estratégias mais representativas da investigação qualitativa são a
observação participante e a entrevista em profundidade (1994: 16). A observação
participante, de acordo com Rizzini (1999: 71), é um recurso de pesquisa que pressupõe a
não neutralidade do pesquisador em relação ao objeto estudado. O pesquisador procura,
através dessa influência, integrar-se ao objeto estudado, a fim de obter mais informações
sobre os fenômenos.
A utilização da entrevista em profundidade, ou seja, daquela que é denominada
como ”não-estruturada” ou “livre”, objetivou nesse trabalho uma compreensão mais rica
em detalhes para situar os sujeitos envolvidos e o conteúdo de suas falas sobre o PROERD,
sobre como construíam essas referências:
[O recurso da] entrevista livre, concebida como um diálogo aberto onde se
estimula a livre expressão da pessoa com quem se conversa, amplia o campo do
discurso que passa a incluir não só fatos e opiniões bem delimitadas, mas
devaneios, projetos, dobras do discurso que se esconde à ambigüidade e a
contradição entre o pensar e o agir que importa captar e desvelar (Oliveira,
1984: 30).
Para alcançar este objetivo, foi fundamental a minha permanência, por um tempo
contínuo, nos locais onde estes sujeitos atuam. Com isso pude valorizar as diversas
19
linguagens que se apresentavam nas relações interpessoais, tais como os gestos, as
conversas informais, os rituais, as expressões evidenciadas pelo movimento do corpo, os
jogos de cumplicidade, etc. Isso me proporcionou certo pertencimento, ainda que
provisório, ao universo dos sujeitos pesquisados e, com isso, conhecê-los um pouco mais à
medida que me permitia ser conhecida por eles. Dessa troca nasciam os registros no diário
de campo, de modo sistemático, para não perder as principais nuances observadas e as
explicações compartilhadas dialogicamente.
Ainda com relação às entrevistas, tive o cuidado de torná-las elos das discussões, a
fim de ultrapassar os limites do observado. Como salienta Peirano (1995: 13), não se deve
ficar na ausência de uma desejável sofisticação teórico-metodológica. Assim, cuidei para
que as perguntas não viessem a limitar o que desejavam dizer, principalmente os alunos e
alunas, sem deixar de abordar pontos imprescindíveis. Houve momentos em que o diálogo
com os entrevistados oportunizou um aprendizado sobre a minha própria história e me
ajudava a desnaturalizar e rever muitas de minhas idéias iniciais (Santos, 1998).
As características do Estudo de Caso e da pesquisa qualitativa, como faz referência
Lüdke (1986: 18), demarcam uma conduta que foi, nesta pesquisa, um procedimento
permanente: a de que o investigador procurará se manter atento a novos elementos que
podem emergir como importantes durante o estudo, podendo assim realimentar-se de um
conhecimento que não é algo acabado, mas uma construção que se faz e refaz
constantemente, pois a investigação qualitativa é marcada pela postura teórica do
pesquisador, por seus valores, de tal modo que, ao reconhecer as subjetividades que dela
fluem, acaba afastando-se das posturas preconcebidas.
Privilegiei, então, na realização do trabalho de campo, os recursos tradicionalmente
associados à etnografia (André, 1995: 28-29), tais como a observação participante, a
entrevista intensiva e a análise de documentos. A observação participante proporcionou
sempre um grau de interação com a situação estudada, com afetos simultâneos entre o meu
estar ali e o ser ali das pessoas que generosamente concordaram em contribuir para a minha
compreensão do contexto pesquisado. Nas entrevistas busquei aprofundar as questões mais
relevantes para minha dissertação, bem como esclarecer muitas das dúvidas observadas. A
20
análise dos documentos me orientou para contextualizar os fenômenos estudados e
aperfeiçoar as informações coletadas, explicitando as vinculações mais profundas entre o
contexto e o texto. Outra questão importante do trabalho etnográfico foi dar ênfase àquilo
que estava ocorrendo em cada instante, e não ao produto ou aos resultados, criando
significações às maneiras próprias com que as pessoas vêem a si mesmas, as suas
experiências e o mundo que as cerca (André, 1995: 28-29).
Esse tempo de convivência com o Mestrado foi fundamental para aprofundar o
estudo sobre o PROERD, iniciado no curso de Especialização em Currículo e Cultura,
sobre o qual escrevi a minha monografia de conclusão, no ano de 2002. Dessa primeira
pesquisa emergiram outras inquietações, muitas delas inspiradas no desejo de não
permanecer em torno das denúncias e das constatações. Algumas dessas inquietações estão
agora entrelaçadas com o atual objeto de pesquisa, elencadas como objetivos específicos
que orientaram o meu percurso em campo: discutir, criticamente, o currículo do PROERD,
problematizando a metodologia que orienta suas atividades nas escolas públicas;
problematizar as concepções sobre drogas e violências que transversalizavam as suas ações
e identificar as intencionalidades da Polícia Militar com o Programa.
A partir desses rudimentos iniciais, progressivamente fui configurando a teia da
pesquisa e formulando alguns pressupostos que, no âmbito desse estudo, contribuíram de
modo importante para abrir caminhos feitos de limites e possibilidades. São eles: o
PROERD e os policiais expressam uma associação mecânica e linear entre drogas e
violências; os moradores de bairros pobres são considerados pela comunidade como
naturalmente mais violentos; o policial PROERD incorpora certa superioridade e sente-se
diferente dos demais; a comunidade escolar acredita que é necessário “um protetor” para
evitar as drogas e as violências na escola e esse se transforma no policial PROERD; o
PROERD é um instrumento para melhorar a imagem e a relação da polícia com a
comunidade.
Esta pesquisa se fez de grande abertura ao diálogo com o outro. E talvez seja isso
que permitiu minha leitura de mundo sobre o tema, tramando as suposições e bordando as
argumentações possíveis. As pistas sinuosas percorridas nesse tempo contribuíram para a
21
organização e o direcionamento da aventura em campo e foram marcadas pela surpresa
frente aos desconhecidos. Alguns se deixaram conhecer, enquanto outros se
transfiguravam, gerando novas dúvidas e ansiedades, que foram, no processo, uma das mais
significativas experiências nessa aventura, que exigiu um esforço teórico-prático contínuo
para se fazer texto.
Os autores e a organização do texto
A parceria com os autores foi indispensável para a construção da dissertação.
Alguns estiveram mais presentes, enquanto outros contribuíram com questões pontuais no
texto. Por isso, quero destacar a importância do pensamento inovador de Mafessoli. Com
ele aprendi que a vida também é feita de ambigüidades e acasos, e que nem tudo pode ser
respondido ou cabe em argumentos racionais, totalitários e metafísicos.
Com Maturana descobri a possibilidade de escrever esse trabalho como uma
construção coletiva, e que, baseada no cuidado, concebe reconhecer o outro como legítimo
outro. Aqui ressalto que o exercício foi constante para lembrar e reconhecer a instituição
policial militar como uma outra, inscrita também em seus jogos inter-relacionais.
Através de Sousa pude repensar e ampliar o meu entendimento diante do fenômeno
das violências e as relações que a própria escola constrói, através de seus agentes, como
formas distintas de ultrajar a infância e a juventude. É uma crítica que propõe uma nova
relação com os problemas do nosso tempo, ao nível do saber e em termos de posturas
práticas, éticas e políticas ligadas à sua superação.
Restrepo auxiliou-me a encontrar sentido para pensar a pesquisa além de sua
atribuição científica, mas sim como uma proposta amorosa e terna, que pudesse evidenciar,
por meio dos sentimentos, também a sua grandiosidade e o seu saber, que em muito
ultrapassam os limites de um estar-junto” frio e objetivo.
Nos estudos de Foucault tive a oportunidade de destacar os escritos que tratam das
relações corpo x poder e as classificações dos indivíduos em normal, anormal, infrator,
delinqüente, o outro, o corpo dócil e útil à produção de práticas disciplinares, panópticas,
22
exercidas por dispositivos que compõem toda uma microfísica do poder, distribuída pela
rede social (Filho, 1998: 08). Com Foucault, procurei problematizar a raiz histórica que
coloca a instituição policial militar como educadora e salvadora de corpos e almas e, com
isso, discutir os modos de vida e de ser dos sujeitos e as tradições das modernas teorias.
A partir de Morin, descobri o equilíbrio advindo e tecido na complexidade, o que foi
fundamental para dar conta de falar sobre essa sensibilidade social que emerge em nossos
dias e permitir a integração e a globalidade das compreensões. A audácia de uma
perspectiva de trabalho pautada na complexidade possibilita compreender as ações como
interações próprias das sociedades atuais, assim como é capaz de ultrapassar os limites do
racionalismo clássico.
A estrutura desse trabalho está organizada e subdividida em três capítulos. No I
Capítulo, que denominei Contar o passado, tecer o presente: significados de uma
trajetória, discuti as principais características do Programa PROERD, contextualizando
sua origem e seus objetivos e apresentei a minha própria história, enredada com os
componentes da pesquisa. No Capítulo II, intitulado Fios da trama: decifrando as redes
do cotidiano, procurei enriquecer a rede de saberes sobre as diversas concepções que
circundavam a temática desta pesquisa, tentando dar conta de entender a complexidade
própria de cada uma delas, em especial a das violências, das drogas e a história da Polícia
Militar com a comunidade. Além disso, procurei investigar outras fontes para perceber a
ideologia do Programa PROERD e problematizar sua ação como uma conduta de proteção
e controle sobre a vida social e individual dos sujeitos.
O Capítulo III, denominado
Traços e feições: entre ritmos e adereços, as várias maneiras de sentir, vivenciar e
olhar o campo da pesquisa, situei o ambiente no qual a pesquisa foi realizada e trouxe
para reflexão os diversos significados que atravessaram o cotidiano das aulas PROERD e a
atuação dos policiais como educadores. Pretendi compartilhar uma outra maneira de
compreender o currículo e a Pedagogia do presente, conectados com os desafios da
Educação da diferença (Corazza, 2002). Objetivei também reconhecer a legitimidade das
crianças, dos educadores e dos policiais que se fizeram partícipes nesta pesquisa, sem,
contudo, esquecer o crivo crítico da proposta científica. Almejei, com essa investigação,
alcançar o intuito latente daquele que escreve com tanto afinco e por um longo período:
23
idéias fluídas, inspiradoras e também questionadas, mas que podem, de alguma forma,
brotar no cotidiano de quem por elas sentir-se interessado.
24
CAPÍTULO I
Contar o passado, tecer o presente: significados de uma trajetória
Aqui está minha vida.
Esta areia tão clara com desenhos de andar
dedicados ao vento.
Aqui está minha voz,
esta concha vazia, sombra de som
curtindo seu próprio lamento
Aqui está minha dor,
este coral quebrado,
sobrevivendo ao seu patético momento.
Aqui está minha herança,
este mar solitário
que de um lado era amor e, de outro, esquecimento.
Cecília Meireles
25
1.1 A narrativa através das memórias de vida
Escrevo neste instante com algum prévio pudor por vos
estar invadindo com tal narrativa tão exterior e
explícita. De onde, no entanto, até sangue arfante de
tão vivo poderá quem
sabe escorrer e logo coagular em cubos de geléia
trêmula. Será essa história
um dia o meu coágulo?
(Clarice Lispector, 1998)
Tomar a própria vida como narrativa é dedicar um espaço para as memórias. Entre
os meus mais vívidos momentos, guardo especial lembrança dos vínculos construídos e
gestados dentro da escola. É nela onde depositei e construí uma parcela de minha história,
onde encontrei os conteúdos essenciais para juntar os retalhos de minhas mais significativas
experiências. Com essas memórias, minha intenção é resgatar os instantes vivenciados com
os professores e os demais estudantes para reencontrar os traços propositivos, acumulados
ao longo da trajetória escolar e que marcaram esse tempo de magia e desencantos. Quero
dialogar para expandir a minha compreensão desse lugar chamado escola, com suas
concepções e práticas tão presentes na formação de homens e mulheres.
Travo no momento uma luta amorosa com a palavra (Mario Quintana), sonho com
o passado, transfiguro o presente, penso demasiadamente sobre cada passo dessa
caminhada. Não é assim tão simples contar histórias sobre si mesmo e integrá-las,
artesanalmente, ao contexto da pesquisa. Mesmo assim, arrisco encontrar, através do
passado, explicações para entender o presente. Para isso, começo acolhendo as palavras de
Freire:
Carregamos conosco a memória de muitas tramas no corpo molhado de nossa
história, de nossa cultura; a memória, às vezes difusa, às vezes nítida, clara, de
ruas da infância, da adolescência; a lembrança de algo distante que, de
repente, se destaca límpido diante de nós, em nós, um gesto tímido, a mão que
se apertou, o sorriso que se perdeu num tempo de incompreensões, uma frase,
uma pura frase possivelmente já olvidada por quem a disse. Uma palavra por
tanto tempo ensaiada e jamais dita, afogada sempre na inibição, no medo de ser
recusado que, implicando a falta de confiança em nós mesmos, significa
também a negação do risco (Freire, 1992: 33).
26
Assim como as crianças de hoje, também precisei ir à escola na mais tenra idade e,
aos cinco anos, já sentava nas pequenas carteiras de uma sala de aula, tinha a “honra” de ter
uma professora, lancheira, uniforme, adereços escolares. Vivi, nesse primeiro ano, o gosto
doce do imaginário infantil, atravessado pelas leituras dos livros de estória, pelas
brincadeiras de roda, pelo vínculo com a professora e seus gestos de gentileza.
No ano seguinte, quando aos seis anos ingressei na primeira série do Ensino
Fundamental, vieram as primeiras decepções. Sentia o que hoje posso chamar de
paradoxos. Por ser a criança mais nova da sala, muitas vezes era protegida pela professora
porque “pequenininha”, “meiguinha” e ainda tímida. Outras vezes, sentia o gosto amargo
de ser rotulada pelo grupo, que se mostrava desconfortável com a minha suposta
fragilidade. Logo depois encontrei aconchego na amizade de uma menina negra, com quem
meus sentimentos podiam ser compartilhados. Ela era filha de funcionários da escola,
naquela época administrada com rigor pelas freiras, e sua vaga buscava traduzir um dos
gestos de “bondade” da congregação, como afirmara a professora para nós, num dia de aula
e de ausência da minha nova amiga. Pairava no ar uma compreensão de não-pertencimento
daquela menina àquele lugar, e isso pode ter impulsionado a nossa aproximação, mesmo
que eu não entendesse inteiramente as subjetividades que transitavam nos subterrâneos da
escola. Como crianças tínhamos sentimentos parecidos e que se concretizavam através de
muitos fatos que se sucederam naquele ano.
Entre eles, eu me recordo do tempo em que fomos transformadas pela turma em
objeto de ironias, porque não sabíamos fazer as contas para a reza do terço. Apesar de
freqüentar uma escola católica, em nossas famílias não existia o “hábito” de ir à missa ou
realizar preces em casa. As ironias duraram um bom tempo: as únicas meninas que não
sabiam rezar! Não entendíamos também a rotina de todos os dias, pela manhã, quando
éramos obrigados a cantar o Hino Nacional, postados em fila. Certa vez, uma risada ecoou
durante a execução do Hino, e isso foi o suficiente para que sofrêssemos ameaças. O
castigo era um dos maiores medos de minha infância, porque ele implicava ter o nome
registrado no “Livro Negro”. Mergulhado em sua carga simbólica, o castigo ainda hoje se
revela como ato de pavor para qualquer criança ou jovem em idade escolar. O tradicional
livro negro, de algum modo estava associado ao preconceito racial e representava aquilo
27
que era ruim, o lugar adequado à criança desrespeitosa, indisciplinada e malcriada. Ou seja,
ele era sinônimo de severas punições em casa, de construção de culpas com as quais
tínhamos que conviver, além da desconfiança dos colegas que já não deveriam mais andar
ao nosso lado, evitando assim a contaminação pelo mau exemplo, o que poderia se dar de
forma muito rápida.
Mas, como toda criança bem adestrada, nós aprendemos rapidamente, e através das
punições, o que podíamos ou não fazer. Mescladas por sentimentos confusos, iniciamos um
movimento contrário, e, para revidar, nem sempre permanecíamos caladas quando éramos
aviltadas por nossos colegas. Construímos o nosso muro de lamentações e com ele
ganhamos a cumplicidade de uma freira que nos protegia. Aprendemos a rotular e assim
ríamos de outros colegas, cujos apelidos eram “quatro olhos”, a “gordinha”, o “fracote”.
Praticávamos com grande astúcia nossas pequenas violências cotidianas e as sofríamos
intensamente. É provável que a memória de minha amiga guarde, além desses, outros
registros de sua própria infância: uma menina negra e pobre, matriculada numa escola
tradicional, religiosa, freqüentada por uma hegemônica classe média branca.
Então, desde criança comecei a perceber que, assim como eu, estes fatos faziam
parte do universo de muitos outros, e, mais, que as histórias se repetiam, multiplicavam-se
em intensidade e perversão, mas também em possibilidade. No resgate dessas pequenas
lembranças, as palavras de Sousa (2002: 40) sugerem uma importante reflexão. Ao delinear
questões sobre a educação, a autora salienta que as práticas escolares carregam consigo as
marcas da cultura dominante onde estão impressas as relações instituídas, embora, por
sua própria contradição, não escape das inúmeras formas de resistência que lhes desafiam
a recriarem-se. Nesse sentido, compreendendo que a escola representa esse universo
conflitante de imposições; ela, ao mesmo tempo, também se concretiza como um espaço de
inspiração e resistência para muitas crianças e jovens.
A vida já não era mais tão feliz. A mudança para a escola pública aos nove anos,
associada às várias perdas e alterações na rotina familiar, apresentava-me um mundo menos
acolhedor e sem a suposta tranqüilidade e alegria do ambiente doméstico, o que me
convence, no presente, de que a escola não é a extensão do lar como se discursa há muito
28
tempo. Demorei a acostumar-me com a grandiosidade do espaço físico da nova escola e,
circulando por muitos de seus cantos, passei a visualizar as violências sutis que transitavam
nas relações interpessoais, muitas delas travestidas de gestos educativos ou de mecanismos
pedagógicos necessários para dar limites aos educandos. Afinal, estávamos ali para
aprender a nos comportarmos em sociedade.
Apesar de toda a racionalidade
2
que tentava empregar, mantive sempre um medo
carregado de meus professores e professoras. Este medo advinha de muitos
constrangimentos e humilhações que passaram a compor o mosaico das ações pedagógicas
e a reforçar na minha criança a sua caracterização introspectiva e tímida, de tal modo que,
embora avessa a tudo aquilo, ela não conseguia se rebelar. Aprendi com eles as lições da
sujeição, juntamente com outras crianças, para manifestar um comportamento adequado às
suas expectativas e crenças adultas, submetida a procedimentos e rituais de ridicularização
para que os educadores sustentassem a imagem de profissionais competentes, capazes de
manter o controle de classe, mesmo com os gritos e os castigos corporais.
Tudo era legítimo para conservar o controle da turma. A escola assumia em suas
práticas as imagens da criança sem feições, como um papel em branco, alheia ao processo
educativo. Isto é, reafirmava as imposições de uma prática “pedagógica” sem afeto, sem
cuidados. E, no presente, a lógica incrustada na escola é ainda a de que criança é criança e
está ali para aprender dos adultos, (...) detentores de todos os saberes considerados
indispensáveis para a felicidade e integridade dos educandos (Sousa, 2002: 40). Minha
angústia aumentava e com ela a saudade das “mãos de seda” de minhas professoras da
infância. Por que, nos primeiros anos de minha juventude, elas se transformavam em mãos
arrogantes? Restrepo (1998: 52) diz a esse respeito que quando a mão arrogante insiste em
possuir o outro, deixa de ser seda para tornar-se garra, fracassando o encontro e abrindo-
se passagem à incorporação. Nessa relação, a singularidade é tragada e a possibilidade de
construir qualquer diálogo desaparece. É nesse contexto que a ternura é substituída pela
violência.
2
Maturana (2002: 15) acredita que fazer a separação entre razão e emoção seria impossível, pois vivemos o
entrelaçamento cotidiano entre razão e emoção. Para ele, não nos damos conta de que todo sistema racional
tem um fundamento emocional e que esse entrelaçamento constitui nosso viver humano.
29
Transitando pela história escolar de outros jovens e crianças nesta pesquisa, aos
poucos fui constatando que o passado por mim experimentado estava vivo no presente.
Ainda se conservam no ambiente escolar, nos valores e processos vividos por sua
comunidade, as agressões como referenciais de controle que dão sentido às denominadas
“boas práticas educativas”, o que é observado e partilhado de modo mais visível pelos
estudantes. Componho, a seguir, uma das passagens iniciais do registro de campo
3
, com o
intuito de ilustrar como essas práticas dançam nas relações e como elas provocam um
enredamento significativo, o que me fez voltar para olhar a minha própria história. Talvez o
meu desejo agora seja o de poder me tornar mais próxima da história de outros.
Numa segunda-feira pela manhã cheguei um pouco mais cedo na escola pesquisada
para solicitar autorização à secretária e acompanhar o recreio, com o intuito de observar e
conversar mais livremente com as crianças. O sinal ainda não havia soado, o que me
permitiu circular pelo pátio, um lugar pequeno para brincar, de aparência um tanto fria,
com as cercas altas para murar o recinto onde muitas crianças, por vezes indiferentes ao
ambiente, penduravam-se prazerosamente. Com o toque do sinal, percebi que entre as
paredes da escola e do ginásio, fechado no momento do recreio, uma grande faixa colorida
retratava uma frase de agradecimento ao Governador do Estado pela entrega da nova obra
4
.
Era, no entanto, a quadra aberta que abrigava a maioria dos alunos e alunas, alguns jogando
bola ou sentados conversando; outros correndo ou caminhando. Algumas crianças
perguntavam o que eu fazia, ou simplesmente me observavam. Dediquei esse dia a olhar o
movimento vivo que contracenava com o espaço, criando oportunidades de aproximação
com os estudantes para as futuras conversas
5
. Em nenhum momento presenciei brigas ou
discussões entre eles, somente gritos e correrias em meio às brincadeiras
6
.
Uma porta sempre bem trancada dividia a entrada da escola e o pátio coberto,
primeiro acesso antes da chegada às salas de aula. A hora do recreio era ainda mais
controlada e uma vigia estava sempre de prontidão para não deixar ninguém entrar ou sair
3
Essa passagem foi observada na escola continente, em 16 de maio de 2005. Era a minha quarta visita à
escola e terceira aula do PROERD.
4
O ginásio havia sido inaugurado há poucos meses.
5
Observei que muitos adolescentes usavam a camiseta do PROERD.
6
A escola é conhecida na comunidade como violenta.
30
sem autorização
7
. Na sala da primeira série, situada numa casinha fora da construção
original do prédio, também havia portões e grades para dividir os acessos entre estudantes
de faixas etárias diferentes. Pesquisadora iniciante e curiosa, sentei-me num dos poucos
bancos velhos e já meio quebrados que adornavam o pátio. Na construção do cenário,
observei uma grande mesa localizada no pátio interno da escola, a qual servia de anteparo
para que algumas crianças terminassem a merenda. Logo em frente havia uma lanchonete,
onde poucos estudantes compravam algo para comer. Nas paredes do pátio, cartazes
estavam afixados em forma de coração e com mensagens carinhosas que homenageavam o
dia das mães.
Meninas da primeira série, entre seis e sete anos, sentaram-se ao meu lado e me
fizeram várias perguntas. Quem eu era? O que fazia por ali? Por que tinha um caderno e
uma caneta nas mãos? Após satisfazer a curiosidade delas, perguntei sobre o PROERD,
explicando-lhes, superficialmente, o que os policiais militares faziam. E elas mostraram que
nada sabiam sobre o que eu falava. O sinal anunciou o fim do recreio e as faxineiras logo
começaram a varrer o chão do pátio. Até então, eu desconhecia porque as educadoras
8
organizavam a fila com as crianças do lado de fora do pátio coberto e se essa era uma
prática comum para o retorno às salas. Com a continuidade de meu trabalho de campo
constatei que essa era uma prática de todos os dias e que, após a fila ganhar sua forma, cada
professora puxava o cortejo de sua turma para conservar a ordem instituída. As filas eram
separadas: uma de meninos e outra de meninas.
Conforme a diretora, nesse dia haveria uma homenagem cívica. Para isso, as
bandeiras já estavam a postos, enquanto preparavam o aparelho de som. Com a habitual
falta de entrosamento, segundo palavras de uma das especialistas, as crianças entraram no
pátio, em fila. As professoras, aos berros, pediam que todos os alunos e alunas se
posicionassem uns atrás dos outros e de forma impecável ficassem com boa postura, de
boca fechada, enfim, que não se mexessem. Quase simultaneamente, observei uma delas
7
Desde o ano de 2002, a escola continente conta com vigias de uma empresa da cidade e com câmeras de
vigilância que focalizam imagens da entrada e do pátio interno e externo da escola. De acordo com a
secretária, tal medida foi tomada em decorrência de arrombamentos e depredações e como medida preventiva.
8
Pela manhã, a escola atende somente alunos da pré-escola a sexta série. Nesse turno não há homens atuando
como professores.
31
lançar um forte tapa nas costas de um menino e outra, um beliscão, exigindo bom
comportamento. O ritual sarcástico e de humilhação também se fez presente por parte da
diretora, que colocou uma menina
9
na frente do grupo para pagar “mico” diante dos outros.
Exigiu boa postura de sua parte, mandou-a parar de rir. Solicitou que tirasse o boné.
Ameaçou fazer essa “exposição ridícula
10
com outros ou deixá-los ali até o meio dia. Não
iriam, portanto, ser dispensados enquanto a ordem não fosse estabelecida. O terror
continuou. A professora da primeira série, com um olhar desesperado e clamando por
justificar a sua suposta incompetência, disse ter vergonha das meninas de sua sala, queria
deixar tudo se matar, não iria mais fazer nada, tinha perdido as forças para controlar essa
turma. As outras exclamavam: que vergonha!; vão se ver comigo!; calem a boca bando de
pirralhos!.
A diretora, aos brados, afirmava que a partir daquela semana sempre haveria
homenagens cívicas. Realizaram também, com aplausos, homenagens aos aniversariantes e
melhores alunos
11
, reconhecidos porque obtiveram as maiores notas daquele semestre. Em
meio às minhas angústias, algumas perguntas emergiam de forma silenciosa: o que
significava aquele ritual, de feições quase macabras, lançado num espaço educativo em
meio a gritos desesperados, tapas, beliscões, choros e caras amarradas, ainda que a intenção
fosse homenagear um país e uma bandeira? A homenagem não deveria ser proclamada
entre cada habitante dessa terra, que a torna o que ela é? Por que a escola não conseguia
proclamar homenagens à boa convivência, ao respeito ao outro, ao afeto nas relações? Por
que esse ritual era considerado necessário para controlar o movimento das crianças, sem
qualquer relação com práticas explícitas de violências e negação da legitimidade do outro,
como pude presenciar? Por que o amor, enquanto uma conduta relacional (Maturana,
9
Essa foi uma das meninas entrevistadas para essa pesquisa. Estudante da quarta série, repetente, doze anos,
negra, mora com a mãe, um sobrinho, um cunhado e quatro irmãos. Sua casa fica em uma favela próxima da
escola. Faz faxina regularmente com a mãe, sendo a única fonte de renda da família. É a segunda vez que faz
o PROERD. Disse que o Programa é bom porque ensina a não sair à noite e a não fumar maconha. Nunca
usou drogas, mas o cunhado já trouxe pedra (cocaína) para casa. Na escola é rotulada pelos amigos como
“esquisita”, pois pouco fala em sala de aula. A professora e o policial a consideram uma garota preguiçosa.
Devido às faltas freqüentes e à não-produtividade nas aulas PROERD, não recebeu o diploma de conclusão
das atividades do Programa. Durante o semestre, muitas agressões foram praticadas contra essa menina. Seu
sorriso cativante na hora da entrevista e do recreio nunca esteve presente durante as aulas.
10
Fala da diretora.
11
O “velho hábito” não perdeu, ao que parece, o seu lugar privilegiado na rotina da escola. Aos melhores
alunos, sinônimos de notas altas e bom comportamento, o exemplo do que a escola almeja. Aos outros,
“alunos incompetentes”, resta o descaso de não terem chegado lá.
32
2002), está ausente da maioria das ações que atravessam as relações interpessoais na
escola? Para Maturana (2002: 22 e 23), o amor é constitutivo da vida humana e o
fundamento do social. Apostando na compreensão anunciada de que a escola é um espaço
onde as relações humanas devem acontecer, esse princípio somente será possível se
tivermos o amor como fundamento do social e da convivência. Para ele, o amor é a emoção
que constitui o domínio de ações em que nossas interações recorrentes com o outro fazem
do outro um legítimo outro na convivência. As interações recorrentes no amor ampliam e
estabilizam a convivência. Por isso, acredito que quando a escola pauta suas palavras e
ações em interações recorrentes na agressão ela interfere e rompe a possibilidade dessa
convivência amorosa.
Paradoxalmente, conforme Sousa (2002: 252), é nessa mesma escola que vamos
encontrar os educadores e os educandos que transgridem os modelos predominantes, que
rasgam as prescrições descoladas de seu fazer, que negam, com suas condutas, os
processos que desqualificam a vida pedagógica, pois a escola é também um lugar social de
expansão da vida (Sousa, 1999: 184), o que indica que nada daquilo que dizemos ou
fazemos, além de não ser trivial, também não é absoluto.
Envolvida por múltiplos sentimentos, as idéias preconcebidas que eu tinha da
violência, progressivamente, foram se ampliando, à medida que iam granjeando contornos
diferentes. Estar ali como pesquisadora era uma experiência única para desmistificar certos
conceitos de violência como uma prática sempre visível e com marcas constatáveis. Podia
perceber que havia muitas violências pouco reconhecidas, porque as suas marcas estavam
sendo esculpidas no interior da corporeidade de cada criança. E as nuances daqueles gestos
concretos, nas escolas pesquisadas, iam se evidenciando como fios que tecem os fracassos
escolares, que gestam as inseguranças e apatias, que combinam as brigas com as
indisciplinas e as depredações. O estar-ali me oportunizou vivenciar uma importante
perspectiva desse trabalho: a compreensão da violência como uma prática plural
12
e que
jamais pode ser explicada em sua totalidade, já que as violências enunciam manifestações
12
Velho (1987: 03) concorda com essa opinião e diz que não existe uma violência, mas violências, que devem
ser entendidas em seus contextos e situações particulares.
33
fugazes, por vezes silenciosas, e que escapam ao nosso controle explicativo (Sousa, 2002:
43).
1.2 Minhas vivências: delineando outros cenários das escolas observadas
No começo da minha juventude, resgatei da infância muitas memórias sobre os
significados do viver na escola. Agora me vejo, novamente, a configurar outros cenários,
através dos depoimentos das pessoas que participaram desta pesquisa. Recordo que um
importante começo foi a filiação dos meus pais ao sindicato dos bancários, já que eles,
durante muitos anos, foram funcionários de um banco público. Ainda pequena, e sem saber
apreciar o gesto de minha mãe, participei de reuniões do sindicato, cuja pauta era a
reivindicação por melhores condições de trabalho, salários dignos, vale alimentação, entre
outros direitos. Ou seja, exigências legítimas que há anos perduram nas lutas dos
trabalhadores. De volta para casa, ouvia as queixas e reclamações, bem como sobre a
importância de mais um dia de greve, mesmo sem acordos entre o sindicato dos
funcionários e o patronal. No entanto, eram os confrontos entre bancários e policiais que os
deixavam mais aborrecidos e indignados. E o meu medo e o de minha irmã aumentavam
com as notícias televisivas sobre os envolvidos no movimento. Para nosso contento, nunca
algo mais grave do que leves arranhões aconteceram. Foi então, desde muito jovem, e
impregnada por essas imagens, que constituí alguns valores e percepções sobre a instituição
policial.
Na escola encontrava eco para minhas angústias juvenis. Na convivência com meus
colegas e com a minha participação no grêmio estudantil pude comparar minha experiência
com a dos meus pais. Nossas conversas apaixonadas sobre os direitos e deveres dos
estudantes denunciavam que eu, de algum modo, chegava perto dos seus passos, os quais
foram grandes colaboradores em muitos projetos e pautas efetivadas pelo grêmio, mesmo
num tempo em que pouca coisa era por nós conquistada. Estávamos presentes num
contexto conjuntural importante para o Brasil, ativos na luta pelo impeachment do então
Presidente Fernando Collor, época em que vivi a real proximidade com as histórias
contadas nos dias de greve dos bancos. Apesar da minha incipiente consciência política e
34
de nenhuma represália mais forte ter surgido nas manifestações dos “caras pintadas”
13
, as
saídas em comboio pelos portões do colégio, em direção ao centro da cidade, a presença
dos paredões da polícia próximos às lojas por onde passávamos com gritos de “fora Collor”
animavam o cenário. O extenso e armado controle nos terminais urbanos me deixava com o
gosto da vitória, com o sentimento de ter também a minha voz proclamada para o mundo e
para um projeto concreto de uma sociedade sem corrupções. Riquezas da juventude, como
diria o meu pai.
No presente, consigo perceber que foi sempre relacionando a minha trajetória com a
da escola que aconteceram as minhas mais expressivas experiências, e que essas e outras
balizas reforçaram o encontro com o meu tema. Isso aponta que não há uma pesquisa
inteiramente dissociada da história de vida do pesquisador e que a sua realização está
implicada na trajetória já experimentada. É por essa compreensão que escolhi como
temática central para conclusão do mestrado, e com as condições objetivas dessa formação,
construir uma reflexão sobre um Programa educacional implantado pela Polícia Militar nas
escolas públicas, o qual problematiza as relações entre drogas e violência. Esse Programa
está presente em escolas de todo o país
14
, bem como em outras nações.
Foi a escola pública, em toda a sua diversidade, o terreno fértil escolhido para
construir algumas das principais reflexões sobre a temática desse estudo. No intuito de
delinear com mais qualidade os contornos das atividades de campo, acompanhei as
atividades do PROERD realizadas com educandos e educandas da quarta-série do Ensino
Fundamental, com idade entre nove e catorze anos, em duas escolas públicas estaduais
localizadas no entorno de favelas do município de Florianópolis. Meu primeiro contado
13
Movimento dos cara pintadas, ocorrido em 1992, em que jovens brasileiros proclamavam a saída do então
Presidente da República, acusado de corrupção. De acordo com Werebe (1994: 85), o então Presidente
Fernando Collor de Mello, que fez do combate à corrupção o seu lema de governo, foi obrigado a sair da cena
política, dois anos após sua eleição, em 1990, em virtude das graves acusações que lhes foram feitas, de
falcatruas e abusos dos bens públicos, e que levaram o parlamento a aprovar seu impeachment. A aprovação
desse impeachment foi determinada, em grande parte, pelos movimentos populares desencadeados em todo o
país reclamando o afastamento do presidente. Para Werebe (1994: 43), a queda de Collor representou um
acontecimento muito importante, ele foi o primeiro, ou melhor, o único chefe de governo a ser destituído por
corrupção em toda a América Latina. Com esse acontecimento renasceram as esperanças de um futuro
melhor para o país, donde o enorme entusiasmo manifestado pela esmagadora maioria da população.
14
O PROERD também é um Programa implantado nas redes particulares de ensino do país.
35
aconteceu com aquela que, nesta dissertação, está identificada como escola continente. A
outra, onde posteriormente iniciei a pesquisa, é aqui denominada como escola ilha.
Olhares implicados sobre a escola continente
Em 1961, a escola continente iniciou suas atividades com apenas duas salas de aula.
Alguns anos mais tarde, o crescimento da comunidade levou à construção de uma escola
maior. Hoje, conta com cerca de onze salas de aula e atende, em média, a setecentos e
cinqüenta alunos do Ensino Fundamental, Supletivo e da Educação de Jovens e Adultos. O
quadro de funcionários contém trinta e um professores, dois Orientadores Educacionais, um
Administrador Escolar, um secretário e dois diretores. Conforme o Projeto Político
Pedagógico da escola (PPP), que revela e dimensiona os olhares da mesma sobre a
realidade dessa comunidade, os alunos que ali estudam são:
Carentes, sendo que muitos deles têm na escola as principais refeições do dia.
Os pais, em grande parte, quando possuem trabalho são subempregos. As
crianças geralmente ficam sozinhas em casa, ou atendendo irmãos menores
para os pais ou responsáveis poderem trabalhar (Projeto Político Pedagógico
da escola continente, 2004).
As atividades de pesquisa nessa escola foram realizadas numa turma da quarta série
do Ensino Fundamental, do período matutino. A professora responsável pela regência de
sala era integrante do quadro dos profissionais Admitidos em Caráter Temporário (ACT), e
ainda estava fazendo a sua formação inicial um curso de “Pedagogia à Distância”. Com
isso, ela trabalhava pela manhã na escola continente, e, à tarde, em uma creche da rede
municipal, totalizando uma carga horária de trabalho correspondente a cinqüenta horas
semanais, assim distribuídas: um contrato de vinte horas na rede estadual e outro, de trinta
horas semanais, na rede municipal, onde atua com crianças matriculadas na Educação
Infantil. Numa das conversas-entrevista que tivemos, ela destacou sua preferência
pedagógica pelo trabalho com as séries iniciais, especialmente com a quarta série, já que ali
os educandos falam mais de igual para igual, enquanto considera as crianças da Educação
Infantil um bando de diabinhos.
36
Há, na sala de aula da quarta série, trinta e quatro estudantes, sendo dezenove
meninas e quinze meninos. Dois meninos e três meninas são repetentes e já participaram,
anteriormente, das aulas do PROERD. Toda a turma estava incluída no Programa, sob a
responsabilidade de um policial do sexo masculino, que ministrava os ensinamentos, sem
arma, embora sempre fardado. Nos encontros em sala ele era chamado de professor pelas
crianças. Um dado que me chamou a atenção é que nessa turma havia uma predominância
de crianças negras, oriundas das comunidades situadas em torno da escola. As aulas
curriculares e as atividades do PROERD eram realizadas numa sala que, apesar de não ser
pequena, tornava-se apertada em função do número de alunos. Nela estavam armários
velhos, cujas portas mal podiam ser fechadas. Era uma sala ventilada e do lado direito
estavam dois janelões que proporcionavam a vista de algumas casas próximas. A paisagem
era, em geral, entrelaçada pelas enormes árvores plantadas do lado de fora da escola e com
algum esforço era possível avistar o mar ao fundo, pois essa sala se encontrava no segundo
andar da escola. Às vezes, a paisagem era interrompida pelo estrondoso barulho dos carros
e ônibus que passavam ao lado da sala, contornada também por uma rua movimentada do
bairro.
Aproximações com a escola ilha
De acordo com Borguezon (2002: 30-43), a fundação da escola ilha é datada de
agosto de 1941 e, durante vinte anos atendeu somente educandos de primeira e quarta
séries. Porém, através de um decreto do ano de 1971 passou a atender todo o Ensino
Fundamental e Médio. A comunidade escolar atualmente conta com um total de dois mil
quinhentos e dois e o corpo discente soma dois mil trezentos e oitenta e nove alunos e
alunas divididos em três turnos escolares: manhã, tarde e noite.
Nesta escola, a turma da quarta série estudava numa sala pequena, que continha dois
armários antigos com muitos livros didáticos, além de revistas que se encontravam
espalhadas por todo o ambiente. As paredes sujas, as janelas quebradas e o quadro de giz
em precárias condições criavam um cenário desolador. A professora dessa turma trabalhava
no magistério há vinte e cinco anos, dos quais vinte na escola pesquisada. Moradora do
bairro também há vinte anos, acompanhava as aulas do PROERD desde o momento em que
37
este foi implantado na escola, ou seja, cinco anos antes. De forma muito preocupada,
comentou que quase todas as crianças da sala tinham algum envolvimento com as drogas:
(...) o envolvimento com as drogas na comunidade é muito acentuado. As brigas
que elas geram dentro da escola, as ameaças, por exemplo, são de facções
rivais. As mortes que se vêem na comunidade são por esse motivo. Um é de um
morro, o outro é de um morro diferente, e daí começa a rivalidade. No período
da tarde, eu tenho uma menina que o pai foi morto por vender droga no
mercadinho dele. São histórias muito tristes. E essas crianças estão todas
inseridas nessa história. Eu não posso dizer que tem algum aluno envolvido
diretamente, mas as atitudes agressivas ou a total apatia, a sonolência, fazem a
gente se perguntar o que houve com essa criança?O contexto onde essas
crianças estão inseridas é que me fazem perguntar o porquê estão assim. Eu
diria que a comunidade está poluída. A gente vê que a violência na escola vem
aumentando, é uma constante e não é uma violência de armas. Não é só isso.
São agressões verbais (Professora da escola ilha, 50 anos, dia 14/04/2005).
Em meio a muitas dificuldades, e com a ajuda de uma outra professora que já havia
trabalhado na escola, consegui alguns dados importantes para a minha pesquisa. O colégio
tinha cento e vinte professores, dos quais oitenta e dois com regência de classe. Trinta
desses educadores eram ACTs. A escola contava ainda com uma Psicopedagoga, contratada
por vinte horas. Lá havia três diretores, dois coordenadores pedagógicos, um bibliotecário e
duas secretárias. A matrícula era, em média, de dois mil estudantes/ano. A Educação
Infantil e as séries iniciais do Ensino Fundamental eram freqüentadas pelas crianças do
bairro, em sua maioria. De quinta a oitava séries e nas séries do Ensino Médio
encontravam-se estudantes vindos de muitos outros bairros. Em razão dessa distribuição
geográfica, a escola pesquisou o perfil socioeconômico da comunidade para incluir no
programa “bolsa escola” as famílias com mais necessidades. Mesmo assim, apenas duas
famílias foram contempladas. Conforme a secretária da escola, não havia uma justificativa
compreensível para isso, pois a grande maioria dos estudantes estavam em famílias com
renda inferior a R$ 500,00.
1.3 O encontro com o tema da pesquisa
Em 1998, ingressei no curso de Pedagogia da Universidade do Estado de Santa
Catarina (UDESC). Passados quatro anos, ainda com o gosto e as boas recordações da
formatura, aguçada pela possibilidade de retornar ao estudo de temas com os quais me
38
identifiquei na graduação, temas estes que me despertavam inúmeros questionamentos,
retornei a mesma instituição para realizar um Curso de Especialização em Currículo e
Cultura. A escolha por este curso não foi, portanto, ao acaso. Já havia algum tempo que o
tema Currículo fazia-se presente na minha trajetória acadêmica, cujo interesse foi
despertado tanto nas aulas da graduação e na minha própria prática docente, quanto como
bolsista de Iniciação Científica pelo CNPq, onde tive a oportunidade de estudar, com maior
aprofundamento, o processo de formação dos estudantes do Curso de Pedagogia nos
Estágios Curriculares. Esse espaço de reflexão e construção do conhecimento acerca do
currículo contribuiu para desvelar algumas pistas que tecem a trama cotidiana da escola
pública e para compreender, criticamente, os desafios que implicam a tradução teórica do
currículo em práticas pedagógicas.
Nos últimos meses do ano de 2002, com várias inquietações, e à procura de um
objeto de estudo instigante para a elaboração da monografia, recebi, na cidade de
Concórdia/SC, um convite para participar de uma “formatura” realizada por um grupo de
policiais, em parceria com uma escola pública, como símbolo de conclusão de um trabalho
concretizado pelo PROERD. Tal evento, coordenado pela Polícia Militar, contava com a
presença de alunos da quarta série do Ensino Fundamental, familiares dos estudantes e
representantes das empresas locais. A formatura transcorreu num clima acalorado, em meio
à entrega de diplomas e premiações aos educandos envolvidos no Programa.
Foi um evento bastante peculiar e que envolvia os presentes também pelos gritos e
sorrisos das crianças. Os pais e os policiais deixavam transparecer seu contentamento,
ambos com máquinas fotográficas para registrar os principais acontecimentos da festa. O
local da formatura era um ginásio cedido pela prefeitura e devidamente decorado com
cartazes que estampavam as siglas e a logomarca do PROERD, representadas pela figura de
um leão alegre e robusto que enviava, amigavelmente, um sinal de positivo para quem o
observava. Ao final do evento, algum policial dava vida a este personagem, fantasiando-se
para parabenizar os alunos por sua dedicação às aulas.
Os adereços pertinentes a uma solenidade militar faziam-se visíveis no evento: o
Hino Nacional e o hasteamento das Bandeiras do Município de Concórdia, do Estado de
Santa Catarina e do Brasil. A formatura também manteve sua tradição, configurada pela
39
entrega de diplomas e premiações ao aluno destaque, aquele que obteve melhor
desempenho numa redação sobre os conteúdos discutidos nas aulas PROERD, conforme o
critério de professores e policiais.
O ginásio transmitia aos olhos dos participantes um efeito harmonioso: fardas bem
alinhadas, crianças enfileiradas vestindo camisetas e bonés, platéia animada em meio às
palmas, enquanto uma música sobre o PROERD era cantada juntamente por crianças e
policiais. Das arquibancadas do ginásio, local destinado aos convidados e no qual me
encontrava, era possível ter uma boa noção da dinâmica construída naquele cenário: à
esquerda do palco, onde as homenagens aos alunos e educadores eram realizadas,
encontravam-se as bandeiras e um policial em “posição de descanso”, protegendo-as. Ao
lado direito, estava a mesa das autoridades, de onde, por fim, observei o Comandante da
Unidade Militar do Município, com ar de seriedade, levantar-se. Este se deslocou
calmamente até os presentes para discursar, conservando em sua voz um tom enérgico, mas
descontraído, falando sobre a importância da atuação policial militar naquele Programa,
considerando a emergência das temáticas discutidas.
Num cenário adornado por muitos elogios, apertos de mãos, agradecimentos, pude
presenciar a cumplicidade que eivava a relação entre pais e policiais, numa troca contínua
de diálogos paralelos, durante o evento, para expressar a simpatia pelo policial PROERD.
Impressionava-me a reação de muitas pessoas sobre o clima positivo do lugar e sobre o
carisma do policial. Como educadora, não obstante, não pude deixar de fazer considerações
e questionamentos sobre o Programa. Vários aspectos pedagógicos preconizados na
formatura pareciam evidenciar que aquele era um Programa doutrinador e idealista, que
conservava e reafirmava a lógica predominante da escola ao privilegiar o educando
nomeado como o melhor. Por outro lado, estava ainda surpresa pelo “toque de mistério
que integrava o ótimo relacionamento das crianças com os policiais e o zeloso interesse que
as mesmas demonstravam pelo Programa.
Com um olhar inicial, pude constatar que todo o cenário construído para emaranhar
as relações entre o Programa e a escola era adornado por peças de “sedução” para encantar
os educandos, os educadores, os familiares, outros sujeitos sociais, e, para isso, nenhum
detalhe poderia ser trivial. Restrepo (1998: 15) assinala que a educação corre paralela a
40
uma certa disciplina erótica que obriga a sublimar a relação de sedução que se estabelece
entre o mestre e o aluno, para levar o aluno à identificação apaixonada com um certo
modelo gnosiológico. Afinal, perguntei em silêncio, este Programa qualifica,
primeiramente, a imagem social da polícia? Quais as peças deste enredo que são
selecionadas para seduzir os participantes? Por que é a Polícia Militar, cuja história é
marcada por condutas de repressão e violências, que se auto-institui educadora num projeto
de combate às drogas e às violências?
Inquieta com as tramas do agir policial e os valores que transversalizam o modo-de-
ser (Maffesoli, 1998) dessa instituição e do Programa PROERD, tracei algumas
considerações que foram elencadas na pesquisa efetivada anteriormente, tais como: de onde
surgiu esse Programa e por que ele era destinado às crianças e aos jovens? Como os
policiais se dirigiam às crianças e aos adolescentes para abordar as temáticas drogas e
violências? Qual a visão de mundo que apresentavam aos mesmos? Quais os aspectos
curriculares e culturais que preconizam o PROERD? Enfim, qual é a “lógica” explicativa
que atravessa a pedagogia policial? Os limites da reflexão que circundaram o texto da
monografia mobilizaram o desejo de continuidade aprendiz, para minimizá-los na
construção da dissertação. E isso me convidou a voltar para olhar o já problematizado com
novos fundamentos teórico-vivenciais.
Essas primeiras interrogações, discutidas na monografia para compreender,
criticamente, o conteúdo teórico-prático dos aspectos curriculares do PROERD, bem como
para problematizar algumas concepções que adornavam os temas relacionados com as
drogas e às violências, pautaram-se numa perspectiva que integrasse a diversidade dos
sujeitos e das ações em curso. Dessas intenções, e de outras tantas, emergiu o mosaico que
orientou minhas reflexões na construção da dissertação, pois, como afirma Maffesoli (1998:
60), nada, nem ninguém, jamais é exclusivamente aquilo que parece ser em um dado
momento. É sempre mais, e isto porque há, em cada um e em cada fenômeno, algo de
performado que convém desenvolver. E, nesse sentido, também um pesquisador deve
ampliar suas potencialidades, fertilizar o terreno para liberar as suas energias latentes.
41
1.4 A tessitura de um Programa de prevenção às drogas e às violências
O PROERD originou-se do Drug Abuse Resistance Education - DARE (Educação
para Resistência ao Abuso de Drogas), implantado por meio da parceria entre o
Departamento de Polícia de Los Angeles, Estados Unidos (EUA), e o Distrito Escolar
daquela cidade, como um esforço para conter a escalada do uso indiscriminado de drogas e
a violência que acreditam ser uma conseqüência das primeiras. O currículo DARE foi, num
primeiro momento, aplicado às crianças da quinta série, com aproximadamente onze anos
de idade, na cidade de Los Angeles, em 1983.
O Programa foi expandido nos EUA, posteriormente, para atender às crianças da
Educação Infantil e aos jovens matriculados no Ensino Fundamental e Médio. A partir de
1988, talvez para incluir outros estudantes, a cartilha passou a ser impressa também em
espanhol e em Braille. Conforme orientações preconizadas, as aulas do programa DARE
deveriam ser ministradas por policiais fardados, os quais se apresentavam aos alunos
sempre desarmados
15
. Conforme Dell’Antônia (1999: 40), antes de ingressarem no
Programa os policiais DARE recebiam oitenta horas de treinamento específico,
especialmente nas áreas do desenvolvimento infantil e da adolescência; aprendiam técnicas
de ensino e habilidades de comunicação. Outras quarenta horas de treinamento eram
ministradas aos Instrutores do DARE, com a intenção de que estes fossem preparados para
instruir os alunos da escola secundária. A capacitação era realizada sob a supervisão de
profissionais das áreas de Educação, Psicologia e Farmacologia. Ainda de acordo com
Dell’Antônia (1999: 35), atualmente o DARE é desenvolvido em cinqüenta Estados
americanos e em diversos países, tais como Canadá, Austrália, Nova Zelândia, México,
Porto Rico e no Brasil
16
.
Como havia o interesse da Polícia Militar do Rio de Janeiro em desenvolver um
projeto de prevenção que ampliasse o esclarecimento da população, principalmente de
15
A polícia considera que a arma, um dos principais objetos de trabalho dos policiais, além de ser um
obstáculo para a aproximação com os educandos, pode remeter o imaginário das crianças e dos adolescentes à
expressão das práticas violentas nas quais, inúmeras vezes, o próprio policial está envolvido. Essa
circunstância, contudo, não atua como nó central na trama comunicativa das aulas PROERD, sendo sublimada
pelas idéias de que a arma é uma ferramenta de proteção à vida dos cidadãos.
16
Segundo entrevista, concedida em outubro de 2005, pela policial oficial responsável pelo PROERD em
Santa Catarina, hoje mais de cinqüenta e cinco países desenvolvem esse projeto.
42
crianças e jovens a respeito dos diversos aspectos relacionados às drogas e às violências,
inicialmente a solução encontrada foi a realização de palestras em estabelecimentos de
ensino. Mas, por intermédio do Consulado Americano no Rio de Janeiro, uma equipe da
assessoria técnica da Polícia Militar deste Estado, participou de uma palestra proferida por
agentes do Departamento de Polícia de Los Angeles, quando foi possível o acesso ao
Programa DARE.
Após esse primeiro contato, ficou acordado, com a Embaixada Americana, o
comparecimento de uma equipe de profissionais do Departamento de Los Angeles para
treinar policiais militares do Rio de Janeiro. A vinda dessa equipe, em agosto de 1992,
oficializou a chegada do Programa no país. Em 1993, ocorreu a vinda de uma nova equipe,
fazendo com que a Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro constituísse o primeiro
Centro de Treinamento do Brasil. No país, a adaptação do DARE a nossa realidade se ateve
a transformações da sigla e à aplicação do Programa para crianças da quarta série do ensino
fundamental
17
. Já os aspetos pedagógicos não sofreram mudanças. Com isso surgiu aqui o
Programa Educacional de Resistência às Drogas e à Violência
18
.
No
Brasil, os policiais PROERD são divididos em três níveis de atuação:
Instrutores, Mentores e Master. O policial Instrutor PROERD passa por um curso de
formação de oitenta horas, em moldes muito similares àqueles empregados na formação
dos policiais Instrutores DARE. Esse profissional é formado para atuar diretamente com as
crianças e jovens. A habilitação do Policial Instrutor é realizada após uma seleção, que leva
em conta alguns critérios: ter no mínimo dois anos de serviço em atividade-fim da
Corporação; possuir experiência e/ou formação em atividades educacionais, recreativas
e/ou comunitárias; ter um bom comportamento; ter facilidade de expressar-se verbalmente;
não ser dependente de nenhuma droga (lícita ou ilícita); gostar de crianças; passar por uma
entrevista com um Policial Mentor
19
. A próxima etapa é a aplicação, na prática, de pelo
menos uma lição completa do PROERD, supervisionada por um pedagogo (orientador do
17
O PROERD também passou a atuar, em número ainda reduzido, com jovens da sexta série. E houve o
início do PROERD para pais na cidade de Camboriú. Há, a partir do ano de 2006, a intenção do Programa de
passar a atender o ensino médio e a pré-escola.
18
O PROERD está presente em todos os Estados do Brasil.
19
Policial Mentor é aquele que domina todos os fundamentos do Programa, aqueles que possibilitaram a sua
adaptação para a realidade brasileira.
43
Programa), um professor da quarta série do Ensino Fundamental e por um Policial Mentor,
responsável pela formação do aluno instrutor. A última etapa é a aplicação das dez lições
20
,
que são supervisionadas pelo coordenador local, ou por outro Instrutor experiente.
Após um ou dois anos o policial Instrutor pode vir a ser convidado
21
para ocupar a
vaga de Mentor. O curso de formação de mentores tem um total de quarenta horas e conta
com a participação de profissionais da área da Educação e policiais Master. O policial
Mentor é um formador de educadores. Sua principal ocupação é a formação dos policiais
instrutores, mas é solicitado que esse policial continue a ter contato com a formação das
crianças
22
. Por fim, há a formação também de quarenta horas do policial Master, aquele que
desenvolve atividades administrativas no Programa e atua na formação dos policiais
Instrutores e Mentores. Alguns deles mantêm contato freqüente com as escolas.
No Estado de Santa Catarina, coube ao Comando de Policiamento do Interior,
sediado no município de Lages, a implementação do Programa, em março de 1998, através
do 6° Batalhão de Polícia Militar. Dell’Antônia (1999: 36) afirma que, no segundo semestre
do mesmo ano, este se estendeu para a cidade de Chapecó e atendeu, naquele ano, quatro
mil, quinhentos e sessenta e duas crianças e adolescentes. Já no início de 1999, com as
mudanças dos Comandos Regionais, o PROERD foi difundido por meio do treinamento de
policiais militares de todas as Unidades subordinadas ao Comando do Policiamento do
Litoral, sediado no município de Balneário Camboriú, a fim de que os mesmos servissem
de multiplicadores. Até o primeiro semestre de 2003, o Programa estava presente em cento
e noventa e cinco municípios do Estado. O Programa chegou, em 1998, ao Rio de Janeiro,
São Paulo, Brasília e Santa Catarina
23
.
20
Até o ano de 2004 chegava a um total de dezessete lições. No ano de 2005, foram reduzidas para dez o
número de lições.
21
De acordo com a Pedagoga do Programa PROERD (funcionária civil da Polícia Militar, que atua há quinze
anos na corporação e há cinco no PROERD), esse convite está relacionado também a alguns critérios: bom
comportamento, qualidade no trabalho como Instrutor, a necessidade de novos mentores, entre outros.
22
Conforme a Pedagoga do PROERD, o policial Mentor é um educador de adultos e para manter a bagagem e
legitimar seu trabalho é solicitada sua permanência nas escolas.
23
Conforme a oficial responsável pelo PROERD no Estado, o Programa em Santa Catarina é valorizado e
reconhecido nacionalmente e junto ao Conselho Nacional dos Comandantes Gerais. Isso para ela se deve ao
empenho dos policiais e administradores, ao número de turmas atendidas no Estado e à rápida adaptação aos
novos moldes curriculares do DARE.
44
Conforme os quadros
24
abaixo, observa-se a evolução desses números em Santa
Catarina:
a) Número de Instrutores e Municípios envolvidos no PROERD
PERÍODO
TOTAL
INSTRUTORES
(ORIGEM)
TOTAL
DE
MUNICÍPIOS
1º Semestre 1998 03 01
2º Semestre 1998 10 03
1º Semestre 1999 41 14
2º Semestre 1999 44 17
1º Semestre 2000 100 53
2º Semestre 2000 132 84
1º Semestre 2001 168 108
2º Semestre 2001 190 115
1º Semestre 2002 190 123
2º Semestre 2002 190 128
1º Semestre 2003 182 107
2º Semestre 2003 147 121
1º Semestre 2004 180 102
2º Semestre 2004 181 129
1º Semestre 2005 139
TOTAL 235*
Total acumulado do Programa no Estado de Santa Catarina.
b) Número de colégios atendidos pelo PROERD
TOTAL DE COLÉGIOS
PERÍODO
Rede Pública Rede Particular Total
Estadual Municipal
1º Semestre 1998 18 19 06 43
2º Semestre 1998 33 24 09 66
1º Semestre 1999 116 121 40 277
2º Semestre 1999 142 151 31 324
1º Semestre 2000 213 203 71 487
2º Semestre 2000 213 252 61 526
24
Esse quadro foi cedido pela equipe administrativa do PROERD em Santa Catarina.
45
1º Semestre 2001 290 344 85 719
2º Semestre 2001 331 466 64 861
1º Semestre 2002 342 439 92 873
2º Semestre 2002 294 480 72 846
1º Semestre 2003 363 517 100 980
2º Semestre 2003 354 511 93 958
1º Semestre 2004 311 473 82 867
2º Semestre 2004 375 583 103 1.059
1º Semestre 2005 300 501 99 900
TOTAL
3.695 5.084 1.008 9.786
c) Número de educandos atendidos pelo PROERD
TOTAL DE ALUNOS
PERÍODO
Rede Pública Rede Particular Total
Estadual Municipal
1º Semestre 1998 614 527 141 1.282
2º Semestre 1998 1.875 955 209 3.122
1º Semestre 1999 5.555 5.209 1.542 12.306
2º Semestre 1999 5.568 6.491 1.120 13.179
1º Semestre 2000 12.202 12.302 3.193 27.697
2º Semestre 2000 10.834 10.526 2.411 23.771
1º Semestre 2001 15.677 14.050 3.700 33.427
2º Semestre 2001 14.903 16.557 2.298 33.758
1º Semestre 2002 17.805 15.922 4.001 37.728
2º Semestre 2002 13.767 16.184 2.322 32.273
1º Semestre 2003 18.721 20.286 3.353 42.360
2º Semestre 2003 14.718 15.935 2.871 33.524
1º Semestre 2004 15.966 18.522 2.854 37.342
2º Semestre 2004 17.259 21.964 3.188 42.411
1º Semestre 2005 13.294 17.701 3.503 34.498
TOTAL
178.758 193.131 36.789 408.678
De acordo com os quadros acima, nota-se a expressividade do Programa, nas
escolas públicas e particulares, bem como sua presença nos Municípios Catarinenses.
Desde a implantação do PROERD, no primeiro semestre de 1998, mais de cento e trinta e
46
seis policiais militares passaram a fazer parte do projeto, que atendeu até o primeiro
semestre de 2005, um total de oito mil setecentos e setenta e nove estabelecimentos de
ensino público e um mil e oito escolas particulares. Num período de sete anos, um total de
quatrocentos e oito mil seiscentos e setenta e oito estudantes receberam seus diplomas, por
terem concluído as atividades realizadas pelo PROERD. Até o ano de 2004, o Programa já
estava presente em cento e vinte e nove municípios do Estado.
No início do ano de 2005, o PROERD passou por reformulações em seu currículo,
uma decorrência das mudanças ocorridas na proposta do DARE
25
. Em Santa Catarina, a
partir dos primeiros meses do semestre, o Programa já articulava a aplicação e a adaptação
da nova proposição, a capacitação dos policiais Mentores e Instrutores e, posteriormente, a
formação dos alunos nas escolas. Este Estado foi pioneiro na implantação da nova proposta,
juntamente com Minas Gerais e Brasília, sendo que, conforme a coordenadora do
PROERD, foi Santa Catarina que modelou e adaptou o currículo para a realidade
brasileira
26
. O novo currículo, conforme os entrevistados
27
, reduz o número de lições,
enfatiza o problema das drogas, torna o policial um facilitador
28
, propõe uma nova
metodologia, trabalha com ênfase no desenvolvimento do trabalho em grupo. É
considerado pela equipe pedagógica e administrativa do programa como mais eficiente e
dinâmico. Logo após o período de formação dos Instrutores
29
, estive conversando com dois
policiais em uma sala destinada às atividades do PROERD, na Companhia de Polícia de
São Bento do Sul/SC. Era uma sala agradável, nova, organizada em um lugar privilegiado
25
A policial oficial responsável pelo PROERD em Santa Catarina informou que nos EUA foram destinados
cinco anos e 17 milhões em investimentos para uma pesquisa responsável em avaliar o Programa e
confeccionar a nova proposta do DARE: Foi um currículo criado e testado nos EUA e na Inglaterra. A
equipe responsável é formada por Doutores, estudiosos da área da educação da Universidade de
OHIO/EUA. Os policiais Instrutores entrevistados afirmaram que esse processo de mudança no currículo teve
início através de algumas entidades que questionaram pontos relativos à dinâmica e os objetivos do Programa.
E também devido à antiguidade do currículo DARE, que já existia há mais de vinte anos.
26
A policial oficial responsável pelo Programa ressaltou que essa adaptação à realidade brasileira foi feita
utilizando material estatístico brasileiro. As principais mudanças estão na estrutura de algumas dinâmicas e na
aplicação do PROERD para alunos da quarta série, já que no currículo americano os alunos que
participam
das atividades do Programa estão cursando a quinta-série do Ensino Fundamental. Essa mudança sobre as
séries atendidas pelo PROERD no Brasil será posteriormente discutida no item 1.5 deste capítulo.
27
A pedagoga do Programa, a oficial responsável pelo PROERD e os instrutores do Programa.
28
Esse termo foi utilizado na nova proposta do PROERD. Para os proerdianos significa que o policial não é
mais um repassador de conteúdos, mas um facilitador no processo de ensino-apredizagem.
29
Março de 2005.
47
do prédio, equipada com carteiras e cadeiras, mesa do professor, armários novos, cartazes e
fotos do PROERD. O clima foi de receptividade. Falamos a respeito desse novo currículo:
Nesse novo currículo o policial instrutor é um facilitador para conduzir a
discussão com as crianças e jovens e não mais mastigar a nossa opinião como
acontecia antes. Vamos construindo uma parceria junto com eles (Policial
instrutor, 27 anos, dia 21/02/2005).
Na Companhia de Florianópolis, uma policial que trabalha há onze anos na polícia,
três no PROERD e dois anos na escola ilha, onde realizei a pesquisa, relatou sua impressão:
O novo currículo me deixa mais livre para adentrar em certos assuntos, porque
antes, e com os procedimentos a cumprir, a gente não podia discutir tudo o que
gostaria e que talvez era mais familiar àquelas crianças. Hoje tem uma
liberdade maior, uma troca maior com as crianças. Elas contam depoimentos e
experiências. O currículo antigo não dava condições para que isso ocorresse. E
nada melhor do que a troca de experiências para aprender. Hoje a gente tem
mais tempo em sala de aula. Antes, as aulas eram de quarenta e cinco minutos e
hoje nós precisamos que sejam de uma hora para fechar o planejado. No novo
currículo são dez aulas incluindo a formatura. O anterior tinha dezessete
aulas. Acho que nada se perdeu, porque no formato anterior tinha assuntos que
se repetiam muito (Policial instrutora, 30 anos, dia 28/04/2005).
Na cidade de Blumenau/SC, divididos em cinco salas, com a supervisão de um
pedagogo, um coordenador de grupo e seis mentores
30
, no transcorrer de uma semana,
duzentos e cinqüenta policiais Instrutores foram capacitados na nova formação do currículo
PROERD. Acontece, conforme a profissional da área da educação vinculada ao Programa,
uma vez ao ano, no período de dois a três dias, um seminário de atualização para todos
aqueles que, direta ou indiretamente, estão atuando no PROERD. Nessas reuniões, além de
palestras motivacionais, os policiais refletem sobre o trabalho praticado, discutem novas
propostas, tiram dúvidas e angústias.
De acordo com o Manual do Instrutor (s/d), ajuizado como instrumento pedagógico
e onde está contida a filosofia do Programa, o PROERD aponta como objetivo oferecer
estratégias preventivas que reforcem os fatores de proteção, em especial aqueles referentes
30
Trinta policiais mentores foram capacitados para as novas atividades.
48
à família, à escola e à comunidade, para que estes favoreçam a resistência dos jovens que,
em tese, correm o risco de envolverem-se com as drogas. Essas estratégias concentram-se
no desenvolvimento da competência social
31
; de habilidades de comunicação; da auto-
estima elevada; da capacidade de tomada de decisões; de resolução de conflitos; dos
objetivos de vida; da independência nos relacionamentos para não se deixar influenciar,
etc (Manual do Instrutor s/d). Outro objetivo salientado no referido Manual é o de prevenir
a criminalidade, visto que, para o Programa, uma grande porcentagem dos crimes está
relacionada, direta ou indiretamente, às drogas
32
. Para a polícia, a noção de crime é por
excelência, um termo que advém do conceito jurídico, que dá à violência uma
homogeneidade discursiva. Ou seja, tudo é crime, por conseguinte, tudo é violência.
Entretanto, esta compreensão não parece pertencer apenas às instituições disciplinares, ela é
freqüentemente associada também pela opinião pública. O crime é, segundo Adorno
(2001), o modo jurídico de como o código penal configura o fenômeno da violência e é ele
que ganha visibilidade na trama do agir policial. Para as Ciências Sociais, no entanto, as
violências têm significações múltiplas, as quais não se enquadram numa definição fechada,
pretensamente totalizadora, pois estão aquém e além dos pressupostos contemplados pelas
abordagens do campo do jurídico.
Nas duas escolas públicas e estaduais pesquisadas, o PROERD é um Programa que,
conforme os responsáveis, já faz parte da proposta curricular. Desde a chegada do projeto,
no primeiro semestre de 1998, ele vem sendo aplicado sem interrupções nessas instituições
de ensino. É possível constatar essa importância nas palavras da diretora
33
da escola
continente:
O Programa PROERD está em nossa escola desde o início porque é um
programa muito bom, consistente e ajuda na realidade das nossas crianças.
Considero uma pena que só tenha na quarta-série. O policial dando as aulas é
um diferencial, tem mais legitimidade, conhece sobre o que fala. Vir fardado dá
mais respeito. Penso que é um programa muito produtivo (Diretora da escola
continente, 54 anos, 29/03/2005).
31
Para os proerdianos, competência social é a condição de responsabilidade que cada ser humano tem perante
a sociedade.
32
Essa foi uma questão levantada por quase todos os policiais entrevistados nesta pesquisa.
33
Cinqüenta e cinco anos, vinte e nove deles dedicados à educação. Está atuando na escola continente há
vinte anos e é moradora do bairro há mais de trinta e cinco anos.
49
O PROERD, em Santa Catarina, também conta com o apoio da Secretaria de Estado
da Educação e das demais Secretarias Municipais de Educação, além de outras
organizações parceiras. De forma especial, a importância destinada ao Programa pode ser
constatada através de reportagens veiculadas em alguns jornais do Estado. Os informativos
Evolução (2004: 18) e A Gazeta
34
(2004: 02) revelam que o PROERD obteve 97% de
aprovação nas escolas onde atua. Conforme o periódico Informação
35
(2004: 09), o
Programa, além de cumprir com sua função básica, de caráter preventivo, mostra-se um
importante instrumento auxiliar na formação do cidadão. O Programa é eficiente enquanto
vem sendo aplicado, [por isso] a Secretaria Municipal de Educação, em parceria com a
Polícia Militar (...), vai ampliar e reforçar as ões, a partir do próximo ano. Em meio às
explicações de “funcionamento” do PROERD, na tessitura de elogios pela sua eficácia e
pela forma esclarecedora com que trata todas as questões que aborda, a coluna Visor, do
Diário Catarinense (2003: 03), reconhece o inestimável papel desempenhado pela Polícia
Militar nas escolas.
O PROERD também ocupou o centro das discussões em reunião
36
realizada na
Câmara dos Vereadores, do Município de Lages/SC. Nesse encontro, os representantes das
Polícias Civil e Militar, do Poder Judiciário e do Ministério Público, assim como
Vereadores e representantes da comunidade lageana, discutiam aquilo que caracterizavam
como ponto emergencial: segurança pública. Dos vários assuntos comentados, foi marcante
e praticamente unânime a “parabenização” à Polícia Militar pela implantação do Programa,
considerado eficaz e inteligente, e que, por meio da educação, estaria contribuindo para
solucionar problemas graves e atuais como as drogas e as violências, nas cidades do Estado.
Essas reportagens e os reflexos da reunião acima citados demonstravam os méritos
reservados ao PROERD, além da sua aprovação por uma comunidade desamparada pelas
políticas públicas de segurança. O Programa é visto como solução e como encaminhamento
pertinente às escolas, e isso ocorre tanto com relação aos pais, professores e estudantes,
quanto pelos representantes legais e entidades responsáveis diretamente por nossa
segurança. Isso me indicava o seu lugar de destaque no cenário atual, o que ampliava ainda
34
Jornais de São Bento do Sul/SC.
35
Jornal que circula nas cidades do Norte de Santa Catarina e Sul do Paraná.
36
Reunião realizada em setembro de 2003.
50
mais o papel de protagonista como Programa de prevenção nas escolas. Por esse fato, fui
percebendo, como educadora, a importância de ir lendo, cada vez melhor, a leitura do
mundo (Freire,1996: 81) dos grupos que fizeram parte do contexto de minha pesquisa para,
assim, não desconsiderar suas experiências com a imposição das minhas relações político-
pedagógicas.
1.5 A pesquisa e as suas múltiplas possibilidades de apresentação
A familiaridade e a leitura que, aos poucos, foram adornando a riqueza e as
observações do campo empírico, foram decisivas para compreender a práxis docente dos
policiais PROERD. Com isso, pude discutir se as concepções, práticas e métodos de ensino
se estabeleciam, como aponta Hernandez (1998: 27), de uma maneira diferente para
suscitar a compreensão dos alunos sobre os conhecimentos que circulam fora da escola e
para ajudá-los a construir sua própria identidade. Que outras práxis educacionais eram
expressas nos conteúdos, na formação e na conduta do “educador policial?” O policial
PROERD fundamentava seu trabalho numa pedagogia do respeito à dignidade do
educando? Havia uma postura curiosa e aberta do policial educador para assumir com seus
alunos, enquanto sujeitos histórico-culturais, o ato de conhecer? Como salienta Oliveira
(1996), presos a um suposto rigor e a uma competência técnico-científica, os policiais
estavam suscetíveis às mudanças e a amorosidade necessárias nas relações educativas?
Todo processo de formação engendra o encontro de múltiplas subjetividades, a
construção de consensos possíveis para apreender o que se ensina, a significação contínua
de conteúdos e, também, das relações experimentadas, por exemplo. Ao que parece, é
necessário que, sobretudo o formando, desde o início mesmo de sua experiência formadora,
assuma-se como sujeito também da produção do saber e se convença que ensinar não é
transferir conhecimentos, mas criar as possibilidades para a sua produção ou a sua
construção (Freire, 1996: 22). Como nas ações efetivas do PROERD essas questões
estavam sendo, ou não, consideradas para alcançar os objetivos traçados? É possível
presumir que a atuação da instituição policial militar na escola, através do PROERD,
favoreceu algum tipo de ação democrática? Como perceber se a instituição militar
reconheceu, nas práticas do Programa, as diferenças e as singularidades que constituem os
51
sujeitos? A polícia atuou no sentido de promover a expressão da pluralidade de idéias e
práticas sociais?
Foi este mosaico de interrogações que apurou o meu interesse de investigação sobre
o Programa PROERD. Minha intenção como pesquisadora foi a de querer compreender e
sentir o mundo dos envolvidos nessa pesquisa e não só olhá-los, como salienta Alves
(2002: 16), soberbamente, do alto ou de longe. Não tive nenhuma garantia científica que
me distanciasse de possíveis enganos e ilusões. Apesar disso, compartilho novamente com
Alves (2002) a opinião de que não há outra maneira de se compreender as tantas lógicas
do cotidiano (da pesquisa) senão sabendo que estou inteiramente mergulhada nela,
correndo todos os perigos que isto significa. Ciente dos meus tantos limites, destaco, a
seguir, alguns fundamentos que delinearam os pressupostos, as reflexões e ampliaram o
diálogo com essa pesquisa:
a) Para o PROERD, os jovens do Brasil são precoces no uso de drogas. O Programa
DARE, nos EUA, foi criado inicialmente com o objetivo de atender aos alunos da quinta
série do Ensino Fundamental. A Polícia Militar brasileira, ao implantar o DARE como
PROERD no país, decidiu que as nossas crianças deveriam iniciar as atividades um pouco
mais cedo, ou seja, na quarta série do Ensino Fundamental. Conforme a oficial responsável
pelo Programa em Santa Catarina, isso ocorreu porque:
As crianças brasileiras são mais precoces no uso da droga. E o PROERD tenta
passar conhecimentos para essas crianças antes das drogas serem oferecidas
para elas. Para que a criança já tenha o conhecimento e possa a oferta das
drogas negar. Nós realizamos a prevenção primária antes de acontecer (Oficial
militar, dia 12/08/2005).
A polícia afirma que o dado para essa consideração vem do Centro Brasileiro de
Informações sobre Drogas Psicotrópicas (CEBRID), através de índices nacionais que
confrontam a idade do uso de drogas entre nossas crianças. Penso que essa decisão acaba
criminalizando e rotulando o jovem brasileiro, divulgando a idéia de que vivemos e
convivemos com uma juventude problemática e violenta, já que, com freqüência, a
demonização das drogas está imbricada com a concepção de que elas produzem a maioria
dos males atuais da sociedade, entre eles, as violências. É importante considerar que,
52
através desse pressuposto, pode-se educar para o aprendizado nefasto dos rótulos e
estereótipos. Se sustentarmos esse pensamento que forja a vida dos jovens como uma
potencial ameaça ao mundo adulto, dificilmente vamos conseguir mudar os nossos pontos
de vista quando nos propomos a trabalhar com eles. É preciso que o jovem não seja visto
como um futuro problema, mas como parte integrante e com poder de intervir nos espaços
sociais em que convive.
b) Há, para o PROERD, uma associação mecânica entre drogas e violências. Isso fica
perceptível no sistema de idéias que transversaliza o paradigma que sustenta as ações
preventivas do PROERD. Para o Programa, as crianças e os jovens envolvidos com as
drogas produzem violências e manifestam problemas de comportamento, com condutas
inadequadas. Porque associa droga e violência, o Programa simplifica e banaliza a
discussão em torno de fenômenos complexos e coloca, nessa perspectiva, as drogas como
um problema de seus adeptos, causadores de todos os males decorrentes do seu uso.
c) As comunidades pobres são consideradas mais violentas. Há um discurso da violência
que tem referência nas grandes cidades e sua associação às áreas de habitação popular. As
falas colhidas de educadores, moradores e policiais deixavam caracterizada essa associação
entre violências e pobreza. Ora os moradores das favelas eram colocados como vítimas, ora
apresentados como cúmplices de atos violentos ou dos traficantes, com personalidades
desviantes. A representação do pobre enquanto um ator preexistente ao discurso e à
política, que age naturalmente como um rebelde silencioso, revela uma visão naturalizada,
preconceituosa e essencialista da pobreza. Zaluar (1994) afirma que quando a sociedade é
desigual e continua a existir uma discriminação que identifica mais facilmente como
criminoso e delinqüente os oriundos das camadas populares.
d) A comunidade clama por um protetor. A sociedade legitima a atuão policial e o
Programa PROERD, porque encontra nessa instituição o pastor e salvador das almas do
rebanho. Supõe Maffessoli (2005) que todo cidadão tem uma necessidade fatal (que não é
sempre consciente e frequentemente sentida de modo confuso) do descomprometimento
com os outros e consigo mesmo, de submeter-se e de entregar-se aos outros, desde que esse
outro esteja ao menos próximo de um alcance divino.
53
e) O policial PROERD sente-se um policial melhor e diferente dos demais. Essa
questão toma forma mais visível no depoimento dos envolvidos com o projeto educacional
da Polícia Militar. Para a profissional responsável pelos aspectos pedagógicos do PROERD
em Santa Catarina, as preocupações e experiências com as quais convive um policial
proerdiano o torna um policial melhor, mais humano e educado, diferente de um policial
tradicional, que é mais rude e fechado (Pedagoga do PROERD, dia 12/08/2005). Em
entrevista, o policial PROERD atuante como instrutor na escola continente refletiu sobre
sua condição dentro da instituição militar e seu novo papel como “educador”. O
depoimento revela essa “condição especial” que sente um policial PROERD:
Eu trabalho há onze anos na polícia e há nove no trânsito. Quando decidi
mudar para o PROERD meu universo mudou. Mudou meu emocional, o
psicológico, minha estrutura, meu modo de pensar, agir, e tive a compreensão
de uma valorização maior da vida. Porque na repressão ao crime o contato é
muito agressivo e rápido. Você diz: “Encosta na parede, vamos te revistar!”.
Hoje a gente vê por um ângulo diferente. Antigamente, a gente não se
questionava porque aquela pessoa tinha cometido aquele crime. Hoje, pelo
contato com as crianças, principalmente as carentes, a gente vê que é um
problema social, uma formação que eles vivem desde pequenos. Então, não
existe um valor de vida. Eles acham que o que sobra para eles é essa vida, é
entrar no crime para sobreviver e ter coisas que acham que é de valor. Isso não
justifica o crime, porque não há justificativa para o crime, mas quando pequena
talvez aquela pessoa precisasse de ajuda, de informações e de auto-estima.
Hoje eu ainda abordo pessoas, mas, quando eu faço isso, eu penso no todo, não
somente naquilo que aconteceu, naquele exato momento. Eu vejo tudo de outro
jeito. Abriu meu mundo (Policial instrutor, 27 anos, dia 16/09/2005).
O sentimento de ser educador PROERD eleva a auto-estima do policial instrutor
porque, de algum modo, desconstrói a imagem de profissional violento. A formação
recebida, mesmo com seu conteúdo ideológico, parece ampliar a visão de mundo deste
policial e sensibilizar suas ações de prevenção ao uso das drogas, bem como com relação às
práticas violentas.
f) Por que é a polícia e não a escola que assume esse Programa? Considero que o tema
da prevenção às drogas e às violências é de extrema importância e ganha destaque num
momento no qual nos defrontamos com a fragilização dos processos educativos que vêm
sendo desenvolvidos fora e dentro das escolas. Ou seja, num momento em que perguntamos
como a escola, com demandas sociais que têm exigido respostas cada vez mais complexas e
54
abrangentes dos educadores e das educadoras, pode lidar com as constantes transformações
sociais e com as funções múltiplas e difusas que em muito ultrapassam aquelas
preconizadas historicamente? Tudo indica que o PROERD é exemplo de um tipo de
movimento que, de certa forma, intensificou-se a partir da década de noventa, com a
implementação de novas políticas para a infância e a juventude. Isso torna necessário
considerar que os programas, os projetos e as parcerias entre as várias instituições, aquelas
que abarcam o tema da infância e da juventude, deram-se no bojo das transformações
sociais que demandaram e demandam a formulação de proposições inovadoras para abordar
a infância pobre, historicamente rotulada como “delinqüente” e que ameaça a ordem
instituída. De acordo com Guareschi e Hüning (2003: 284), a dita infância “marginal” ou de
“risco” é uma invenção das últimas décadas e passou a ser objeto de programas sociais e
instituições de assistência, preocupados em garantir a educação e, por que não dizer, a
normalização desta infância. Nesse sentido, demonstrase a dificuldade em lidar com o
problema das drogas e das violências. A palavra de ordem na escola passa a ser o
encaminhamento: encaminha-se para o coordenador, para o diretor, para os pais ou
responsáveis, para o psicólogo, para o policial (Aquino, 1998: 09). Fui compreendendo
que a escola encontrou no PROERD também essa forma de encaminhamento e uma “saída”
para as suas batalhas cotidianas. Quase sempre estas eram semeadas por uma espécie de
sentimento de impotência, de mãos atadas diante das queixas dos professores, da
indisciplina dos alunos “mal comportados”, dos “adolescentes rebeldes”, das disputas de
“gangues”, das depredações e ameaças na escola, entre outros. Muitas conversas informais
com a comunidade escolar giravam em torno da segurança que um policial dentro da escola
despertava. Os educadores e pais caracterizam o PROERD como uma espécie de solução
no confronto de situações normalmente atípicas ao plácido ideário familiar-pedagógico. Os
efeitos das drogas e das violências, segundo os envolvidos, eram a parcela mais onerosa de
tais circunstâncias. A partir de tais efeitos fatalistas, a polícia se encarrega dessa tarefa de
intervenção dentro da escola.
g) O Programa PROERD é um instrumento para melhorar a imagem e a relação da
polícia com a comunidade. Quando realizei a monografia do curso de especialização
constatei, em entrevistas, um forte desejo da Polícia Militar em ampliar as ações do
PROERD. Para Dell’Antônia (1999: 39), isso significava um desejo de fortalecer a imagem
55
da Corporação junto à comunidade, aumentando-lhe a confiança e o respeito, tentando
desmistificar a imagem de instituição truculenta e arbitrária. Esse sentimento ficava
evidente nas formas criadas para estabelecer relações com a comunidade, assegurando o
tom de cordialidade no processo, de sedução amigável de crianças e jovens, de instituição
preocupada com o bem-estar da população. Nas observações que realizei, pude perceber
que a idéia de prevenção que perpassa as atividades do PROERD, em vários momentos,
aparece desenraizada dos atores que a efetivam. Para as escolas que participam do
Programa, na sala de aula, com as crianças e os jovens, está o senhor João, o senhor Pedro,
ou qualquer outro nome; não o policial na sua configuração de agente de violência. Em
cidades do interior, onde as práticas policiais são menos visíveis, as relações entre
comunidade e polícia se revelavam mais próximas. Com isso, ao chegar à escola onde vai
realizar as aulas PROERD, o policial ganha mais respeito e reconhecimento, consolidando
seu papel de autoridade imbuída do desejo de proteger os sujeitos dos danos de outros.
Parece que as reportagens que denunciam diariamente as brutalidades policiais, o flagrante
desrespeito aos direitos humanos, não atingem a imagem daqueles policiais proerdianos que
ali atuam como educadores da prevenção.
Esses foram alguns passos iniciais importantes para apontar uma continuidade sobre
as questões e premissas do presente trabalho. Ao contrário de propor um olhar baseado nos
pilares consagrados das políticas de intervenção, assumi como decisão teórico-
metodológica abandonar o projeto de uma leitura dos problemas geradores das violências e
das drogas nas escolas de maneira supostamente institucional para assumir essa
problemática em direções que se multiplicam. Isso se deu, especialmente, quando passei a
conviver com a história que constitui as crianças e jovens, sujeitos desta pesquisa,
moradores de uma comunidade identificada como de marginais. Os significados da
trajetória desses meninos e meninas têm muito mais riquezas do que as explicações
teóricas são capazes de apreender em suas apreensões científicas (Sousa, 2002: 79). O
reconhecer dos múltiplos sentidos, e das possibilidades da vida social dessas crianças,
permitiu a compreensão e o ressignificar das diferentes experiências vividas que, como
indica Tavares (2002: 129), são sempre provisórias e imprevisíveis (...) e que por isso
mesmo, foram infinitamente possíveis de explorar.
56
CAPÍTULO II
Fios da trama: decifrando as redes do cotidiano
Tão sutilmente em tantos breves anos
foram se trocando sobre os muros
mais que desigualdades, semelhanças,
que aos poucos dois são um, sem que no entanto
deixem de ser plurais:
talvez as asas de um só anjo, inseparáveis.
Presenças, solidões que vão tecendo a vida,
o filho que se faz, uma árvore plantada,
o tempo gotejando do telhado.
Beleza perseguida a cada hora, para que não baixe
o pó de um cotidiano desencanto.
Tão fielmente adaptam-se as almas destes corpos
que uma em outra pode se trocar,
sem que alguém de fora o percebesse nunca.
Lya Luft
57
2.1 Visibilidades e invisibilidades das violências
À flor da pele e ao fundo da alma – assim é a violência
no cotidiano, uma violência que corre e ricocheteia
sobre todas as superfícies de nossa existência e que
uma palavra, um gesto, uma imagem, um grito, uma
sombra que seja, capta, sustenta e relança
indefinidamente, e que, no entanto, desta espuma dos
dias, abre à alma vertiginosos abismos em mergulhos
de angústia que nos fazem dizer: “Sou eu mesmo toda
essa violência?”
(Dadoun, 1998: 43)
O exercício investigativo me proporcionou decifrar muitos dos fios que originaram
as explicações, os significados, as concepções e também os nós que surgiram e que
impulsionaram até o limite de minhas certezas (Azevedo: 2002), no desenrolar desta
pesquisa. Compor o texto sobre a trama envolvida nas visibilidades e invisibilidades das
violências teve o propósito de dar amplitude ao olhar sobre o fenômeno e suas
manifestações (Sousa, 2002: 94). Ou, como afirma Azevedo (2002: 55), sempre há um
outro olhar ou outros olhares, bem como outros sentidos para se perceber e compreender o
mundo.
Violência é um tema que está sempre presente na pauta dos noticiários e há algum
tempo deixou de ser assunto exclusivo da polícia. Ela é também, como aponta Meyer
(2005: 01):
(...) uma preocupação e um fantasma que atravessa nossas conversas
familiares, nosso fazer profissional, as rodas de conversa de amigos e nos
assombra a tal ponto que é percebida, nas pesquisas de opinião, como sendo
um dos problemas que mais afeta a população urbana brasileira.
Esse anúncio é bastante conhecido e não é trivial, mas para a autora, a violência
também se tornou um processo de naturalização e banalização de uma ‘condição’ que nos
é apresentada como sendo constitutiva da vida nas sociedades contemporâneas.
58
Compreendo, por isso, que não é possível formular um conceito de violência que
alcance o máximo de sua abrangência. As concepções já publicadas são diversas e têm
raízes nos distintos campos das ciências. Conforme Sousa (2002: 82):
(...) qualquer esforço intelectual despendido para explicar a violência
constituir-se-á tão somente numa aproximação teórica, onde o local é
transversalizado pelo global, sem homogeneidades, mas enquanto processo de
interação do diverso, do múltiplo, do complexo.
Minha intenção é, a partir da problematização das fontes pesquisadas, apresentar a
construção de um conjunto de variáveis e apontar considerações que contribuam para a
criação de caminhos de diálogo entre a educação e as violências como um tema
contemporâneo
37
.
O estudo desta temática evidencia que as violências no Brasil, principalmente
aquelas associadas ao abuso de poder e autoridade, começam a ganhar maior visibilidade a
partir da década de oitenta
38
. Suponho que uma das razões para a ampliação do debate, com
o alargamento das publicações sobre o tema, ocorreu pela via da abertura política e
econômica, pois, nesse período, o país vivia os últimos anos e o enfraquecimento da temida
ditadura militar
39
. Os acadêmicos e estudiosos, calados por muito tempo pela censura e pela
opressão do regime, necessitavam denunciar, em larga escala, a situação do país há tanto
tempo mascarada. Por isso, não é difícil encontrar nas prateleiras das bibliotecas e livrarias
diversas produções datadas desse período, contendo afamadas reflexões sobre a situação
econômica, política e social, reflexões estas que incluíam também as violências como
problema real. A miséria, a pobreza, a tortura, a repressão, entre outros acontecimentos
que marcaram esse período, eram estrategicamente censurados e as problemáticas vividas
37
Sérgio Adorno (2001) pensa que o estudo da violência e a questão dos direitos humanos no Brasil são uma
problemática contemporânea, quando comparada ao cenário de outras sociedades.
38
Sigaud (1987: 06) afirma que somente a partir de 1980 a violência deixou de ser pensada unicamente como
dimensão do conflito e passou a ser singularizada, tornando-se questão específica, merecedora de tratamento
particular. De acordo com Velho (1987: 04), o processo de generalização da violência teve seu início no
Estado Novo, mas foi no regime militar que a violência do Estado, semiclandestina, desencadeou-se em nome
do combate à subversão, atingindo diferentes segmentos sociais. Operários e camponeses parecem ter sido
sempre as vítimas preferenciais. Mas as camadas médias, e mesmo alguns setores da elite foram, pela
primeira vez em escala tão ampla, atingidos pela arbitrariedade de grupos ligados ao aparelho do Estado.
39
Conforme Werebe (1994: 75), em 31 de março de 1964, o Brasil sofreu um golpe militar de direita, dando
início a uma fase difícil de nossa história, com a instituição de uma ditadura que durou vinte e um anos e que
pôs um termo às liberdades democráticas, estabelecendo no país um regime de violenta repressão e
arbitrariedades.
59
na periferia urbana das cidades sequer eram alvo de cobertura (Bernardo, 2004: 02). As
manifestações das violências concebidas e praticadas pelo poder do Estado Militar
adormeciam nas sombras da repressão às idéias divergentes.
Bernardo (2004: 05) considera que o Brasil está aprendendo a falar sobre as
violências. A autora reconhece que estas não emergem como um dado novo em nossa
experiência histórico-cultural, mas incorporá-las discursivamente como fazendo parte de
nossa realidade parece uma questão nova. Para Oliven (1982), com o início da abertura
política, o tema das violências, em especial o da violência urbana, foi promovido a
principal problema nacional. É preciso lembrar que temos hoje, como agravante desse
quadro, a propagação incansável dadia
40
, excepcionalmente nas duas últimas décadas,
de imagens e relatos contundentes sobre os mais variados aspectos das violências
construídas, praticadas e sofridas pela sociedade brasileira.
Observa-se ainda que a maior relevância é dada aos crimes envolvendo a cidade, a
violência urbana em geral, a qual os jornais se preocupam em apresentar ao público, pois é
ela que rende “ibope” e expande as vendas, com a espetacularização da dor e do sofrimento
humanos. Conforme Sussekind (1987: 10), para a grande maioria da população a violência
está associada à criminalidade urbana
41
. No entanto, cabe lembrar que essa apreensão da
violência refere-se apenas a um extrato da realidade urbana. Sussekind considera que essa
posição, além de ser superficial, é excludente, pois etiqueta a criminalidade como única
forma de comportamento anti-social que deve ser temida e reprimida, deixando à margem
do problema outras tantas formas de violência.
Provavelmente, uma das causas centrais das violências, especialmente as de caráter
urbano, está ligada ao precário investimento do Estado nas políticas públicas. As
40
Destaco aqui a importância da mídia porque considero, como aponta Goirand (2001), que é ela um dos
primeiros vetores de expressão dos discursos e das representações dos temas “colocados” em nossa sociedade
como recorrentes, entre eles: a violência, a favela, a pobreza, etc.
41
Para Sussekind (1987: 10), tem sido possível observar que essa visão ocorre em todos os setores da
sociedade. Recorda que se considerarmos violência apenas como criminalidade não veremos violência na
poluição que assola os rios, as plantações, nossa alimentação, nossa paisagem. Violência também não seria a
incerteza do mercado financeiro, flagelado pelas inúmeras fraudes e falcatruas ou falta de qualidade da
educação e da saúde, a incoerência de algumas taxações
(como as do imposto territorial rural), o arrocho
salarial, entre outros, que em síntese, demonstram uma estrutura socioeconômica e política permeada pela
violência.
60
conseqüências estão expressas na falta de habitação, de emprego, na precariedade da
educação, da saúde, entre outros. Tais carências podem fortalecer o crescimento das
delinqüências e do crime organizado, como o tráfico de drogas, cujos índices de ações
danosas ao tecido social se tornam cada vez mais difíceis de serem controlados. Oliven
(1982: 25) supõe que, desde 1964, as violências tenham crescido tanto na cidade quanto no
campo, sendo esse aumento causado por via institucional e simbolizado pelo binômio
segurança e desenvolvimento:
(...) para acelerar a acumulação de capital e efetuar uma modernização
conservadora, o regime que tomou o poder em 1964 desmantelou as antigas
lideranças sindicais populistas, extinguiu a estabilidade no emprego, promoveu
o arrocho salarial, criou uma legislação de exceção e se valeu do recurso
constante ao arbítrio.
Com isso, é possível observar a intensificação dos conflitos que se espraiam por
todas as relações e camadas sociais. O medo do tráfico, da casa roubada, da bala perdida,
do ataque de surpresa é expressão da insegurança social cada vez mais crescente, sobretudo
em um país com graves desigualdades socioeconômicas como o nosso. De acordo com
Adorno (1994: 23), onde as desigualdades são extremas, os conflitos tendem também a ser
extremos e todas as soluções institucionais e normativas tendem a não ter qualquer
eficácia. O autor salienta como as desigualdades dificultam o respeito aos direitos humanos
e lança a idéia de que, no Brasil, nem ao menos as liberdades fundamentais estão
asseguradas, entre elas a igualdade de direitos, a proteção à vida, a liberdade de expressão e
a autonomia
42
. Há, desta forma, uma imensa maioria da população que vive em precárias
condições de existência. Conforme Zaluar (1999: 39),
As liberdades e os direitos individuais são o que, de fato, permite entendimento
e acordos possíveis em meio a muitas diferenças sociais e culturais dentro de
um mesmo país, ou possibilita a extensão da capacidade de negociação e
entendimento a tantas pessoas estranhas umas as outras.
42
Buarque (1991: 20) categoriza o Brasil como um dos países mais atrasados do mundo. Para ele, atrasado
não porque seus automóveis sejam superados, e sim porque o sistema de transporte não funciona. Não
porque sua agricultura é primitiva e sim porque sua população é desnutrida. Não porque os condomínios
ainda são poucos e sim porque as favelas são muitas. O que faz do Brasil não contemporâneo às conquistas
do mundo não é apenas a falta de ciência e a
tecnologia, mas, sobretudo o fato de que a ciência e a
tecnologia de que dispõe não têm sido utilizadas para fazer um Brasil que satisfaça o desejo de sua
população. E têm servido para fazê-lo regredir socialmente.
61
Para Velho (1987: 03), nos últimos vinte anos não houve legitimidade nessa
questão, pois além de outros, as condições mínimas de subsistência não foram garantidas:
Passou-se de um sistema tradicional, caracterizado pelo predomínio da
população rural sobre a urbana, para o desmesurado crescimento da cidade e
conseqüentemente enfraquecimento dos pólos regionais.
Isso ocasionou não somente a diminuição da população do campo, mas a
fragilização das pequenas cidades e o inchaço populacional nas metrópoles, com
concentração de problemas não somente de ordem econômica e política, mas o que é mais
grave – cultural. Argumenta, que em concomitância com esses problemas, há uma questão
ligada à própria constituição da sociedade brasileira. Para ele, nossa sociedade se constituiu
alicerçada sobre uma desigualdade mais ou menos controlada por relações
43
de
reciprocidade, baseadas em certas crenças comuns que, aos poucos, foram desmoronando:
Essa relativa unidade, essa certa homogeneidade, sustentou a sociedade e
impediu que nela se instaurasse um estado de guerra. Mas a situação foi
mudando e, de certa forma, não é exagero dizer que estamos praticamente nesse
estado de guerra em vários lugares do país e em varias situações.
As falas da comunidade mostram que as violências estão relacionadas
principalmente ao crime e às drogas, num discurso que compara essa situação a um estado
de guerra, o que não é um dado ignorado por aqueles e aquelas que juntos convivem. Num
dos encontros com a ex-presidente da associação de moradores e Orientadora pedagógica
44
aposentada da escola ilha, fica demonstrada a preocupação com a insegurança:
O pior problema do nosso bairro é a violência, fui roubada junto com umas oito
famílias no mesmo dia. Tive muito medo, mas considero que as pessoas que
fizeram isso são de fora do bairro e não os meninos que a gente conhece (Ex-
Orientadora da escola ilha, 55 anos, dia 13/07/2005).
Durante a nossa conversa, a Orientadora acrescentou ainda que as pessoas do bairro
deveriam se envolver com um grande projeto para ajudar esses meninos. Considerava que
a culminância de tudo o que ocorre, principalmente o excesso de violência no bairro, é por
falta de oportunidades:
43
Para o autor essa constituição pode estar relacionada com a nossa história escravocrata.
44
Moradora do bairro há trinta anos, trabalhando desde 1986 como representante da escola. Tem três filhos e
dois netos que fizeram o PROERD.
62
(...) temos que ajudar aos usuários de drogas a saírem delas; valorizar, dar
oportunidade, criar campeonatos, dar uniforme. Até bem pouco tempo, a droga
não era tão nítida por aqui. Eu acho que os jovens de hoje são heróis, porque
como as coisas estão aí fora, eles são coagidos, ameaçados a fazerem as coisas,
ameaçados de apanhar. Os traficantes são violentos. Um menino, outro dia,
estava vendendo doce e teve que sair correndo porque, senão, um grupo de
jovens iria atacar sua barraquinha. Esses jovens não têm mais a base da
família; são excluídos (Ex-Orientadora da escola ilha, 55 anos, dia 13/07/2005).
Os discursos tradicionais, a ideologia das famílias desestruturadas, os rótulos sobre
os jovens e os usuários de drogas ainda é uma visão predominante sobre a população pobre.
Diante dessas afirmações, como construir outros olhares para os múltiplos planos que
apresentam as estruturas sociais vulneráveis financeiramente? Como criar experiências que
invistam efetivamente no acesso à educação, ao lazer, à arte, à profissionalização de todas
essas comunidades? Como podemos pensar na prevenção e na
formação de valores
contrários às violências, quando não reconhecemos e discriminamos o espaço de vida desse
grupo social? Dessa forma, discutir ações sociais, em especial para a juventude pobre,
implica discutir a sua realização em distintos planos, compreendendo os processos e as
relações sociais para poder reconhecê-los como parte e não como excluídos “do sistema”.
Uma das professoras, considerada pela escola ilha como representante da
comunidade em função do tempo que reside no bairro
45
, acredita que, para controlar o
problema das violências e das drogas, os moradores precisam reconhecer que:
Estamos em guerra e é preciso achar uma forma de fugir desse ciclo que é
crescente. É só ver o índice de criminalidade grande em nossa comunidade,
tudo por envolvimento com drogas. Para mim a situação é alarmante, nunca vi
a escola nessa situação, nem a comunidade. Roubo direto, assassinato, troca de
tiros, criança roubando...(Professora da escola ilha, 50 anos, dia 14/03/2005).
Entre os jovens também fica evidente a preocupação e a associação entre violências,
crimes e drogas:
Tem muita violência na escola. O vigia daqui não faz nada. Até tem câmera na
escola, mas não resolve. Constantemente tem assalto, que é feito por alunos e
ex-alunos. Tem um grupinho que usa drogas dentro da escola, lá atrás, perto
das salas do primário. Acho que deveria ter polícia dentro da escola, por isso o
PROERD também é bom. Ano passado, teve esfaqueamento e tesourada entre
45
Moradora do bairro há vinte anos.
63
meninos da escola. Eu nunca sei se vou voltar vivo para casa. Eu sinto
insegurança. Os assaltantes são todos adolescentes e fazem isso porque têm
raiva e inveja de roupa de marca, tênis e boné. Tem é ‘preconceito da classe
social do outro’ (Estudante da escola ilha, 15 anos, dia 05/05/2005).
As palavras de uma menina da quarta série
46
trazem vivo esse cenário:
Eu moro há pouco tempo naquele bairro. Depois de dois meses, um menino de
treze anos foi morto na frente da minha casa por causa de drogas, às cinco
horas da manhã. Eu tenho medo de sair de casa. Fui eu que tive que limpar o
sangue. A polícia chega e já quer bater, dar porrada e pelo que eu sei, violência
gera violência. Depois, um outro homem foi morto lá perto de casa. Eu sei
várias histórias de morte. A gente não pode nem falar nada na rua que já tem
alguém ameaçando. Outro dia jogaram pedra e quase acertou na minha
cabeça. É o bairro mais perigoso que eu já morei. Não respeitam a comunidade
(Aluna PROERD, 12 anos, dia 19/04/2005).
Os depoimentos são diversos. Os problemas relacionados com as drogas e as
violências foram narrados pelas crianças e pelos mais velhos. O fato, porém, é que,
amedrontadas por muitas razões, as pessoas entrevistadas destacaram as violências, que
matam e sangram, como aquelas mais preocupantes e distantes de uma solução. Desse
modo, é notório que o crime, mesmo sendo um entre vários aspectos das violências, assuma
nas grandes cidades, no sentimento das pessoas, nos noticiários, maior importância. Para
Maffesoli (apud Quimarães: 1996), as violências não apenas adquirem diferentes
modulações em distintos momentos históricos, como também estabelecem as regularidades
que apontam para a constância de sua manifestação. Portanto, falar sobre as violências
significa pensar sobre os contornos e o alcance da produção discursiva. Ou seja, significa
também pensar como e quando se fala sobre as violências, como estas são abordadas e
problematizadas, como são apresentadas e representadas e porque determinados tipos de
violências sempre ganharam maior visibilidade narrativa.
46
Aluna do PROERD na escola continente. Tem doze anos e mora na favela vizinha à escola, com a mãe e
dois irmãos. Trabalha fazendo faxinas para ajudar nas despesas da casa. Ao realizar a entrevista, pediu
segredo com relação ao lugar onde residia, pois havia rivalidade entre as favelas.
64
2.2 As violências e os novos Paradigmas
Os novos paradigmas das violências (Pinheiro, 2001: 07) assumem e ampliam este
conceito com eventos que passavam despercebidos e como práticas costumeiras nas
relações sociais. A princípio, as violências mais visíveis eram associadas àquelas
empregadas pelas estruturas políticas ou pelos poderes instituídos, comparadas a dor física
ou as marcas deixadas pelo corpo. Além, mas em sintonia com estas violências, outros
eventos, nem sempre visíveis, evidenciam que toda forma de opressão nas relações
humanas inaugura algum um tipo de violência. Nesse sentido, Sousa (2002: 82) indica que
podemos caracterizar a violência como todo e qualquer processo que produz a
desorganização emocional do sujeito, a partir de situações em que este é submetido ao
domínio e ao controle de um outro; a violência se caracteriza por relações de domínio, em
que alguém é tratado como objeto.
Restrepo (1998: 65) argumenta que vivemos um tempo social pautado no
imediatismo e no descarte, atulhados de imagens transmitidas pelos noticiários que
identificam violências com episódios de sangue, guerras e genocídios. Com isso,
esquecemos da presença das violências sem sangue, próprias da vivência na intimidade.
Essas ressalvas podem incitar outras perguntas, feitas a partir dos espaços onde abundam as
violências sem sangue, aquelas que não provocam contusões no corpo e que não podem ser
detectadas pelos legistas, sem que por isso deixem de provocar sofrimento e morte
(Restrepo, 1998: 11). Aqui, saliento a vulnerabilidade às violências a que está exposta uma
grande parcela da sociedade. As violências sociais, de cunho cotidiano, se ganham pouca
visibilidade narrativa demonstram a falta de mecanismos de defesa contra a violação dos
direitos humanos. Com relação às crianças, por exemplo, o fenômeno invisível do
espancamento, o trabalho infantil e escravo, as chacinas urbanas que permanecem na
impunidade, a falta de saneamento básico, que produz doenças como a dengue, o escasso e
precário acesso aos sistemas de saúde e educação, bem como a fome são alguns indicadores
das violências criadas pela exclusão
47
.
47
Em muitos casos, violência é também tudo aquilo que impede a satisfação de necessidades fundamentais
como: alimentação, moradia, vestimenta e dignidade. Privação aos direitos é violência. A pobreza manifesta
65
Para Adorno (2001), nesses últimos dez anos o Brasil tem passado por mudanças
que ocorreram, principalmente, por meio da atuação e pressão dos grupos sociais
organizados, que exigem políticas públicas diferentes. Contudo, afirma que as políticas que
estão sendo desenvolvidas ainda são muito tímidas e, muitas vezes, precárias. O autor
(1994: 23) acredita que a questão das violências no Brasil é, antes de tudo, um problema da
cultura política do país, ou seja, é um problema referente ao modo como a nossa sociedade
estabelece, culturalmente, as relações de poder.
Desse modo, Adorno (1994) trabalha com a idéia de que a violação dos direitos
humanos e as violências não se configuram apenas como um problema do Estado, mas da
sociedade em geral. É ela que vivencia, de maneira autoritária e nos mais diferentes campos
(político, social, cultural, econômico), a solução dos conflitos e a superação das diferenças
e das dificuldades. O reflexo disso, para Buarque (1991: 34), está em um sistema crescente
nas duas últimas décadas no Brasil, o regime de apartação, indicativo de uma política de
não-integração e abandono de uma parcela significativa da população brasileira; sinônimo
de: condomínios e ruas fechados e protegidos por guardas; shoppings centers isolados,
exclusivos para aqueles que nele podem entrar; escolas, hospitais, serviços limitados ao
atendimento de uma minoria.
As explicações tecidas sobre as violências, nessa perspectiva, constituem-se como
as possíveis, entre tantas outras, sugerindo uma série de interpretações. Desse universo
conceitual extremamente complexo (Morin, 1996), o modo como se efetivam os
argumentos teóricos poderá remeter a olhares distintos em termos de reflexão. A
proposição destes conceitos é sempre dinâmica e engloba um número de experiências e
práticas culturais que, em outros momentos, não eram tidas como manifestações de
violências. Adorno (1994: 18) lembra que no Brasil tradicional, não só o colonial, mas o
Brasil independente (...) a violência era um comportamento considerado rotineiro e
institucionalizado. Dizendo de outro modo: todos consideravam como normal e legítima a
sua maior violência no não-reconhecimento do outro em sua humanidade. Nesse sentido, a violência deixa de
estar relacionada apenas com a criminalidade. A miséria, o desamparo e a exclusão social passam então a ser
alvos de preocupações com um público que se encontra em situação de não-integração com a sociedade. Para
Soares (2004), violência não acontece somente na rua. Dentro de casa, mulheres e crianças são vítimas
constantes de crimes que, na maioria das vezes, ficam encobertos sob o teto da “família”.
66
atitude violenta em conflitos sociais e nas relações interpessoais. Para Zaluar (1996: 09), o
prejuízo que resulta das violências sempre existiu e sempre foi, portanto, em todas as
épocas, em todos os lugares, contido e entendido em maior ou menor grau e de diferentes
maneiras simbólicas.
Tendo em vista as impressões que foram sendo construídas no campo de pesquisa,
por meio das entrevistas, observação das aulas e análise do material didático do PROERD,
assim como a própria característica da instituição policial militar em lidar com a
problemática das violências, considero que a formulação conceitual em torno delas, e que
orientam as ações do PROERD, emprega como paradigma um ponto de vista negativo e
homogeneizador, que pensa o fenômeno como um dado relativo aos campos das patologias
e dos desvios sociais. Estes devem ser reprimidos, privilegiando a dimensão do crime e
tratando-a genericamente como um caso de polícia. Para Rifiotis (apud Bernardo, 2004:
07), a sua redução [da violência] a uma forma singular e negativa pode ser entendida
como expressão de uma percepção social marcada pela prevalência da atitude racional e
pelo desprezo da dimensão não-racional do comportamento humano. Nesse contexto, onde
o fenômeno das violências é abordado como um problema a ser
r
eprimido, transversalizam-
se as idéias de que há uma separação entre sociedade e violências, sintomatizando-as como
um problema exterior à sociedade, como se os sujeitos criminosos não fizessem parte e
fossem construídos fora de seu contexto.
Para o policial
48
que atuou na, escola continente, como instrutor PROERD, a
violência e o crime cresceram nos últimos anos:
A violência é maior hoje do que antes, não tenha dúvidas. Isso por conta do
aumento populacional, da falta de emprego. Os adolescentes têm acesso fácil à
droga. Antes não havia tanta apologia na música e na mídia. O adolescente
acha que é livre se escutar tal música e usar tal roupa, o que vai influenciando
muito no seu comportamento. Muitas vezes, os seus ídolos são bandidos
perigosos, traficantes, assassinos...(Policial instrutor, 27 anos, dia 16/09/2005).
Na comunidade continente, uma das secretárias da instituição escolar execra o
destino dos supostos criminosos que rodeiam a escola:
48
Policial, trinta anos. Trabalha há quinze anos na polícia, há quatro no PROERD, e bem como na escola
onde a pesquisa foi realizada.
67
(...) aqui perto, na favela, tá cheio de vagabundo ladrão e cheirador que merece
é morte ou cadeia. Ficam ensinando porcaria para a juventude. Eles não têm
respeito, nem valor de nada nessa vida (Secretária da escola continente, 34
anos, 03/05/2005).
Nesse aspecto, Joanides (1977: 57) constata que ao se falar de um delinqüente,
(..) a imagem que surge, a idéia que se forma no espírito do ouvinte obedece à
rigidez de uma concepção apriorística, estereotipada, segundo a qual o sujeito-
delinqüente aparece como um ser subumano, ou pelo menos destituído de
muitas das propriedades e qualidades humanas.
Reforça-se, assim, a idéia de que qualquer criminoso tem que estar isolado do
convívio social para o bom funcionamento desta sociedade. A alternativa seria, desse
modo, a produção de leis mais duras e exemplares para inibir a sua atuação. Destaco, a
seguir, dois fragmentos reveladores do livro Cabeça de Porco (2005),
49
que discutem essas
imagens construídas sobre as comunidades das favelas, ou sobre os criminosos, e que
freqüentemente os desapropriam de qualquer característica ou sentimentos humanos. Os
relatos pela paixão e a profundidade das reflexões dizem por si:
No Rio de Janeiro, em 2004, a comunidade da Rocinha teve de reeditar
Antígona para enterrar um de seus filhos
50
. Não lhe foi recusado o direito de
sepultar Lulu
51
, líder do tráfico local, mas a impediram de fazê-lo com o
necessário respeito e a devida manifestação de luto. A pequena multidão que
compareceu ao cemitério São João Batista para a cerimônia foi exposta a
vexames e humilhações, exibida com irônico despudor pela mídia, vigiada e
filmada ostensivamente pela polícia, tratada como um agrupamento de
suspeitos. A imagem e o sentido transmitido para a opinião pública omitiram o
sofrimento e a morte, como se o cadáver de um homem não testemunhasse a
vida suprimida de um homem, mas a reincidência criminosa dos que o
choram (grifo meu) (Soares, 2005: 89).
49
O livro “Cabeça de Porco” é o resultado de um conjunto de pesquisas e registros etnográficos feitos nos
últimos sete anos pelo sociólogo Luiz Eduardo Soares sobre juventude, violência e polícia. E uma longa
pesquisa realizada pelo país, pelo cantor e compositor de rapper, MV Bill e seu empresário Celso Athayde,
sobre os jovens na vida do crime.
50
O autor faz referência a Antígona, que enfrentou o poderoso Creonte para conquistar o direito de sepultar
seu irmão.
51
“Luciano da Rocinha”, um dos mais conhecidos líderes da favela da Rocinha, no Rio de Janeiro.
68
Em seguida, o autor descreve a forma como a mídia tratou a morte do traficante
carioca Escadinha
52
:
Quinta-feira 23 de setembro de 2004, final da manhã. Toca o telefone. O
repórter me dá a notícia de supetão: ‘Escadinha foi assassinado’, como se
dissesse: chove na Gávea. ‘Eu queria saber’, ele continuou, ‘se o senhor acha
que a morte do bandido encerra um ciclo, na história da criminalidade do Rio
de Janeiro’.(...) Escadinha recorria ao próprio exemplo para orientar a
juventude, em especial aqueles segmentos mais vulneráveis à sedução do
tráfico. Foi chocante ouvir a notícia de sua morte. Uma vida colhida no ar,
alçando vôo. Respondi ao repórter: ‘Você quer dizer que uma pessoa morreu,
um ser humano foi assassinado. Ele tem nome e sobrenome, José Carlos
Encina. Não é só um rótulo e um apelido. Você chama a vítima de bandido,
mesmo sabendo que ele tinha pago sua dívida com a sociedade? Foram mais de
vinte anos, faltavam poucos meses para a liberdade. Mas nada disso importa
uma vez bandido, sempre bandido. Ele será eternamente bandido, independente
de sua situação legal’. Ainda tive vontade de dizer: ‘No Brasil, a Justiça não
reconhece penas perpétuas’ (Soares, 2005: 95).
O que ocorre, como lembra Sussekind (1987: 11), é que acabamos auferindo a uma
comunidade inteira nosso julgamento e nossas suspeitas. Assim, já sabemos de quem
provém a violência (...); compartilhar com eles o cotidiano social significa lutar para bani-
los ou isolá-los. Nesse sentido, há sempre a escolha por um autor de comportamento
previamente eleito e estereotipado, sobre o qual recai a fúria dos ditos inocentes. Durante a
pesquisa por mim realizada, esse fato também pôde ser observado na quarta semana de
atividades do PROERD, na escola continente. O policial instrutor dessa escola, em
determinado momento da sua aula, afirmou para os alunos que muitas crianças estavam na
escola somente para brincar e não para estudar, que havia gente ali que só estava na aula
para comer merenda e fazer bagunça, que eram preguiçosos e malandros. Ao término do
dia, após expulsar dois alunos, ressaltou:
Muitas dessas crianças serão futuros delinqüentes. Parece que estou lidando
com bandidos, mas no fundo lido sim com muitos bandidos nas aulas do
PROERD. Um dia eles irão pagar por agir assim. Os pais deles, um monte é
bandido e traficante, já estão pagando (Policial instrutor da escola continente,
30 anos, dia 29/03/2005).
52
José Carlos dos Reis Encina, o Escadinha, ficou conhecido como um dos traficantes mais famosos do
Brasil. Ele ganhou notoriedade porque traficava drogas, alimentava crianças pobres do Morro do Livramento
e punia quem roubava os trabalhadores.
69
A simplificação preconceituosa do policial diante da complexidade do tema
mereceu destaque em uma manhã de atividades marcada pela ironia, ridicularização e
acusações dirigidas às crianças. A escola pesquisada, principalmente nas figuras da
professora e da diretora, coadunava com as opiniões do policial e reforçava seu
comportamento abusivo e intolerante. Essa exposição sobre a história que constitui as
crianças e jovens de uma comunidade, identificada como sendo de marginais, evidencia o
desprezo da sociedade - que não está separada da escola e das demais instituições - com as
crianças e as famílias das camadas populares. A relação entre adultos e criança, entre
adultos e jovens é marcada por condutas verticais de sobreposição de práticas opressivas.
Rotular é apenas a conseqüência do lugar social do qual esses adultos olham para esses
meninos e meninas. E desse lugar, o respeito, a postura educadora e a afetividade já foram
banidos há muito tempo, para dar espaços às prepotências com que se auto-reivindicam
senhores e senhoras situados acima de qualquer suspeita.
Quase sempre, a banalização das violências está associada à sua dramatização. Com
certa freqüência, essa banalização é exibida nas falas e imagens organizadas pelo
telejornalismo brasileiro, por meio das quais se constrói uma visão maniqueísta da
sociedade. Coloca-se facilmente a culpa do excesso de violência no marginal suburbano, o
qual se constitui, isolado, uma ameaça aos “homens de bem”, em geral integrantes das
classes média e alta.
Cria-se, assim, novo bode expiatório, o marginal, figura que serve para
exorcizar os fantasmas da classe média, cada dia mais assustada com a
inflação, o desemprego, a perda de status, a crescente proletarização e a queda
do poder aquisitivo alcançado nos anos do ‘milagre’ (Oliven, 1982: 25).
Para Zaluar (1999), quando a sociedade é desigual, acaba existindo uma
discriminação básica no sistema policial e jurídico, que identifica mais facilmente como
criminoso, o delinqüente oriundo das classes populares. Esse discurso que opera o
distanciamento entre o cidadão e o bandido, que estabelece a distinção entre criminosos e
homens de bem, também é o discurso produzido, através dos artefatos culturais, pela
70
comunidade popular. Uma moradora
53
do bairro localizado próximo à escola continente
denunciava essa aprendizagem cultural, sendo que, para ela, as “causas” levantadas para a
prática do crime ou das violências residia nas drogas ou no meio pobre em que vivia. No
entanto, para a moradora, tais práticas eram muito diferentes das efetuadas por sua família,
também pobre, mas digna e trabalhadora:
Eu, como mãe, não gostaria nunca de ver um filho meu envolvido com drogas.
Eu sou careta nesse sentido, no uso de drogas. Nunca fumei, nem bebo. Só que
no nosso bairro tem muito problema. Esse é meu medo, porque a estrutura é
muito magérrima. Eu não moro na favela, moro no Conjunto Habitacional
Panorama, mas ali são dois mundos paralelos. A gente convive com quem usa
drogas, adolescentes que vendem, que fazem do tráfico “ganha pão”. É tudo
bandido. Infelizmente, a realidade é essa. A gente vê a policia rondando,
adolescente ser preso, baleado. Eu vejo meus filhos do outro lado, assistindo a
tudo isso, mas estão vendo e não participando. A minha preocupação é não
permitir que eles andem na companhia de pessoas que podem influenciar na
mente deles, a fazer coisas erradas, a usar drogas, a querer cometer algum
crime. Colocar para eles o não, mas um não com reflexão e não autoritário. Os
meus filhos são muito bons. Nós damos o exemplo aqui em casa, trabalhamos
muito para mostrar o valor de quem é dedicado e trabalhador. A polícia tem é
que ficar na rua mesmo, porque bandido não está dentro de casa, mas na rua,
na favela (Agente de saúde, 35 anos, dia 16/05/2005).
Essa exclusão que sofrem, em particular, as crianças e os jovens dos setores
populares, sugere essa associação entre as violências, o crime e a miséria. Nas comunidades
pesquisadas, essa junção se torna, para algumas famílias, um emblema representativo do
distanciamento com relação ao mundo do crime (Cardoso: 1987, 05). Os relatos apontam
também que há a legitimação, por parte da população, para o abuso de autoridade praticado
pelos membros da polícia. A isso se soma a arbitrariedade do olhar policial, treinado para
suspeitar ao acaso, para prevenir ou reprimir o delito. Nesse sentido, Tiscornia (2001:125)
lembra que o espectro de suspeitos pode ampliar-se, mas não pode transpor certos limites.
Tem-se, então, uma significativa parcela da população urbana jovem e pobre, que alguma
vez foi detida, ainda que por poucas horas, pela polícia. A experiência da detenção entra na
cotidianidade da vida desses suspeitos e marca seus corpos, suas condutas, e raramente é
decodificada como uma arbitrariedade que pode ser discutida.
53
Agente de Saúde, trinta e cinco anos. Os três filhos estudam na escola continente e todos fizeram o
PROERD.
71
Um outro paradigma das violências é aquele que lhe atribui uma dimensão positiva,
identificando as suas manifestações como um lugar privilegiado para problematizar uma
série de outras questões, as quais se dão no interior das relações sociais. Bernardo (2004:
07) salienta que esse paradigma diz muito sobre ‘a quantas anda’ nosso imaginário, sobre
as relações de poder em nossa cultura e sobre os modos como nos inscrevemos no campo
das lutas e das tensões sociais. São paradigmas que desvelam as ambigüidades das
violências, em suas variadas formas, modos de expressão, e que permitem problematizar as
relações implicadas entre: sujeito, poder, identidade, e as configurações de sentido
produzidas contemporaneamente, por exemplo. A temática explorada por essas
ambigüidades pode ser rica de interpretações e diálogos, os quais compreendem a realidade
com uma construção que, conforme Pimentel (2002: 23), ergue-se numa superfície repleta
de abismos.
Para Maffesoli (2001), a violência é um fenômeno ambivalente, pois a destruição
sempre é vista como uma agressão intolerável, que só posteriormente é sentida como
fundamento da estruturação social. De acordo, com o autor há mais vitalidade nos
comportamentos destrutivos – a perda, o desgaste, a morte, as revoltas – do que nas atitudes
que representam oficialmente a vida, como a ordem, a planificação, o acordo. Nesse
sentido, ao invés de negar ou eliminar as violências, é preciso ver como elas participam da
estruturação da vida social, forjando resistências e novos consensos.
Laterman (2000: 26) salienta que as violências aparecem, muitas vezes, como
necessárias na culminância de momentos de transformação, ou até na conduta do Estado,
para manter o status quo. A violência contra o indivíduo violento que, por exemplo, mata,
estupra, pode ser vista por muitos sujeitos, em geral pacíficos, como indispensável para a
ordem social. A partir de um outro referencial epistemológico, Restrepo (1998) ressalta que
é preciso diferenciar a violência explícita, onde se reconhece uma intenção consciente e
perversa por parte do agressor, das violências implícitas, próprias da intimidade, em cujo
desencadear nem sempre é possível estabelecer uma intencionalidade malévola por parte
dos que a exercem. Por fim, recordo o conceito expresso por Adorno (1994: 26), ou seja, o
de que a violência não é hoje só mecanismo de submissão e sujeição dos indivíduos, mas,
sobretudo, uma linguagem da vida social. Esta linguagem se expressa no modo pelo qual
72
encaramos como deve funcionar a ordem em nossa sociedade, como essa ordem deve ser
justa. Contudo, toda realidade é paradoxal, contraditória e tem assento em bases
multifacetadas. Discutir este tema se inscreve nessa compreensão.
Acredito que as violências estão para além da esfera jurídico-normativa, das práticas
de delito e criminalidade. Como manifestações complexas, elas aparecem e se escondem
através de formas emblemáticas, ora como resistências, ora como destruição perpassada
pela dor e pela dominação. São relações que se efetivam em terrenos pantanosos, que se
manifestam em situações plurais que nos ameaçam a vida e a capacidade de compreendê-
las, porque desestruturam a nossa integridade corporal e social, e ainda, degradam e violam
nossas sensibilidades mais íntimas.
2.3 O pluralismo das drogas
O Programa PROERD se auto-referencia como uma proposta de “inovação
pedagógica no campo da prevenção. Em meio ao contexto educacional recente e em crise,
inovar é uma necessidade existencial, elogiada e solicitada pelas escolas e pela
comunidade. Periodicamente, assiste-se ao surgimento aguardado de algum salva-vidas,
com novidades e soluções sempre mágicas e pretensamente transformadoras do degenerado
presente. Entre nós, como lembra Kohan (2003: 98), essas soluções são geralmente
importadas dos grandes centros da Europa e dos Estados Unidos. Na última década, o
Programa americano DARE foi apresentado, no Brasil, como uma dessas soluções mágicas.
A implementação do PROERD como um Programa de prevenção ao uso das drogas
e das violências foi orientada por um currículo dirigido às crianças e aos adolescentes. Há
de se indagar sobre esse algo novo, supostamente diferente dos ensinamentos construídos
pela “educação tradicional”, para se entender em que medida o Programa levava em
consideração os diversos e dinâmicos pólos envolvidos nesse processo? Como as drogas
utilizadas no contexto histórico e cultural dos meninos e meninas; a classe social a que
pertencem, as características singulares, as subjetividades, a trajetória de vida de cada um
dos sujeitos foram compondo, ou não, os conteúdos curriculares?
73
Alguns indícios dos discursos expressos pela polícia militar nas escolas estavam
presentes no material impresso, aquele que serve como subsídio ao processo de
aprendizagem dos policiais PROERD. Segundo o Manual do Instrutor PROERD, os jovens
começam a utilizar drogas por algum problema familiar ou por baixa auto-estima. Dessa
forma, coibindo o uso de drogas, o PROERD estaria contribuindo, conforme Dell’Antônia
(1999: 39), para prevenir a criminalidade, visto que, cerca de 70% dos crimes estão
relacionados direta ou indiretamente ao uso de drogas. Esse olhar simplificado, ao que
parece, aposta na possível desinformação das escolas quanto às reflexões já produzidas por
outros autores.
Soares e Jacobi (2000: 215), por exemplo, salientam que o uso de drogas tem
assumido características diferenciadas nos diversos contextos socioculturais e econômicos
específicos. Essas diferenças acompanham as fronteiras de estratificação socioeconômica
mais geral. Mas, Conforme Velho (1994: 24), associam-se, também, a distintas orientações
e tradições culturais e às peculiaridades no consumo de drogas específicas. Há sentidos e
significados diversos sobre a questão e estes aparecem, de alguma forma, nos movimentos
constituídos por jovens, na forma de “tribos”. Como ressaltam Soares e Jacobi (2000), em
cada época a temática alcança escalas distintas de justificativas, como nos anos 60, quando
a utilização das drogas era justificada devido ao seu caráter contestatório. Nos anos 70, de
acordo com Velho (1994), houve uma grande disseminação do uso da maconha nas
camadas médias brasileiras, as quais acompanharam as propostas de estilos de vida
“contraculturais”.
Para os jovens europeus, por exemplo, a resposta para o uso de uma “nova droga”
surgida no fim dos anos oitenta, estava caracterizada no mal-estar contemporâneo, marcado
pelo individualismo e pela intensa valorização do consumo:
(...) o ecstasy parece produzir empatia e sincronia com o outro e com o grupo
(...), os usuários confirmam que passaram a “curtir” muito mais a dança e
sentir-se mais perto da natureza e mais cuidadosos com o outro. Muitos
afirmam que o ecstasy melhorou sua vida social (Soares e Jacobi, 2000: 216)
54
.
54
Saunders, 1997: s/n-pg.
74
Tal qual a discussão feita anteriormente sobre as violências, também as drogas
mantêm esse caráter ambivalente. Portanto, ao longo dos anos, as drogas vêm sendo
concebidas, ao mesmo tempo, como salvação e danação, remédio e veneno (Aquino, 2000:
187).
O depoimento de um dos alunos PROERD da escola ilha expõe essa ambigüidade
discursiva em torno das drogas:
O PROERD é legal, porque ensina a gente a não conviver com as drogas, a
saber as conseqüências da maconha, do cigarro, da bebida. Saber que, se você
fumar, você pode ter câncer; se fumar perto de uma criança, pode prejudicar.
Mas, às vezes, eu não acho mal nenhum, pelo menos os caras que eu conheço
ficam tudo na boa, se reúnem para fumar e conversar. Eu já falava sobre droga
com a minha mãe, porque eu tenho um irmão que ficou preso dois meses por
causa da maconha. Ele diz que gosta, mas dá medo (Aluno PROERD da escola
ilha, 11 anos, dia 02/06/2005).
Um ex-aluno PROERD relata sua impressão:
Eu lembro que o PROERD falava sobre drogas e os seus malefícios, mas não
falava dos benefícios de usar as drogas. E a gente sabe, hoje, que não tem só
coisa ruim (Ex-aluno PROERD, 15 anos, dia 19/03/2005).
Muitas vezes, para os jovens, fica difícil acreditar nas mensagens do mal imputadas
às drogas, pois, ao experimentarem-nas ou se voltarem para seus pares usuários, encontram
relatos incompatíveis com tais informações e têm, eles mesmos, experiências diferentes. O
discurso empregado na filosofia do PROERD acaba desestimulando a crítica por parte dos
jovens, além de imprimir “um clima de pânico” entre eles. As drogas passaram a constituir
um dos problemas que mais afligem a sociedade contemporânea. E talvez isso ocorra
porque a questão envolve muitos paradoxos. Para Cotrim (1998: 24), o movimento de
guerra às drogas não se deve somente ao sofrimento engendrado pelo envolvimento
intenso com drogas proibidas, mas esconde uma relação mais profunda.
Conforme Santos (1999: 27), o desenvolvimento do processo de globalização, sob a
dominação das políticas neoliberais, resultou numa redução das oportunidades de emprego,
no crescimento da criminalidade violenta, no aumento de um ‘sentimento de insegurança’
e, por parte do Estado, num controle social repressor e punitivo. De acordo com Zaluar
75
(1996), a partir dos anos oitenta, o Brasil começou a sentir o crescimento da criminalidade
que se efetivava por uma cadeia de causas e de efeitos, entrecruzados e dispersos, cujas
matrizes de justificativas envolvia, pelo menos, o desemprego, o tráfico de drogas, os jogos
de poder, a ausência de um Estado de bem-estar social que assegurasse as condições
básicas da vida em sociedade. A feição de impunidade que se expressa nas práticas de
corrupção, no desrespeito histórico aos direitos humanos, que fragiliza as relações entre o
direito à segurança e as ações daqueles a quem é entregue o exercício desse papel: o
Estado, através das polícias, também configuram como causadores. Para Zaluar (1996),
talvez uma das causas do aumento da criminalidade seja decorrência do emprego das leis,
da valorização da legalidade que se sobrepõe à legitimidade. Esta autora lembra que a
criminalização de certas drogas deu, especialmente à polícia, um enorme poder repressivo,
ambivalente, permitindo que combata o crime e também ser a partícipe de sua produção,
como têm mostrado as inúmeras notícias veiculadas pela mídia.
Progressivamente, o cenário das drogas vai se complexificando e, hoje constata-se
que o consumo de alucinógenos, cada vez mais poderosos, afetam crianças, jovens e
adultos de diferentes classes sociais. Entre jovens pobres, a presença marcante do tráfico
acaba por influenciar as suas escolhas. Especialmente, a expansão do mercado de cocaína
e crack, que promove uma forte compulsão para o uso (Soares e Jacobi, 2000: 216). De
acordo com Castro e Abramovay (2002: 159), milhares de jovens são impelidos para o
tráfico, que se apresenta como única alternativa não somente econômica, mas de exercício
de algum protagonismo, ou lugar de poder. O tráfico de drogas alcançou, por sua rede de
interconexões, um estatuto de poder paralelo ao do Estado, desafiando qualquer lógica
explicativa que se pretenda totalizadora.
Muitas vezes, esses valores se difundem entre eles (jovens) e o uso de certas drogas
pode se tornar um “hábito tolerado” pela sociedade. Para a polícia militar, no entanto, o uso
de drogas está estritamente associado com o paradigma que sustenta a ordem Oficial da
justiça, que torna a droga uma questão de delito (Meirelles, 1998). É para isto que existe a
negação legalista de qualquer desvio de comportamento, de qualquer conduta que
desestabilize os valores e crie perturbações à boa ordem social. Para defender,
supostamente, o corpo e a mente do mal das drogas e dos maus-hábitos sociais.
76
A mensagem policial nas aulas PROERD elucidam essas tendências tradicionais da
guerra às drogas e impõe uma visão menos realista e mais reducionista da problemática
das drogas e das violências. A “guerra às drogas” traduz, na sua própria designação, à
maneira como a sociedade tem, predominantemente, reagido ao processo histórico do seu
uso. Trata-se de uma concepção que tem desconsiderado os diferentes significados que o
uso de drogas vêm adquirindo desde a Antigüidade: religioso, cultural, contracultural, entre
outros. Está, portanto, alicerçada em pressupostos, de natureza idealista, de que é possível
existir uma sociedade livre de drogas.
A ex-aluna PROERD relembra seu aprendizado nas aulas e evidencia essa tendência
do Programa:
Eu aprendi com o PROERD que tem que dar um gelo em quem usa drogas, se
afastar de gangues, atravessar a rua para não encontrar com eles. Foi legal
fazer apresentação e ver como não devia fazer. Nós temos que dizer não às
drogas. Elas são muito perigosas. Meu pai já falava comigo que não deveria
usar drogas, porque eu tenho um tio que era viciado em drogas e teve que fazer
tratamento para se curar. Ninguém quer isso na família (Aluna da quinta-série
da escola ilha, 14 anos, dia 19/03/2005).
O conteúdo que fundamenta a ideologia da guerra às drogas remete a uma visão
preconceituosa, repressora e quase sempre moralista. Predomina, assim, a idéia de um
único saber, de uma informação tendenciosa e dirigida à nação de que o indivíduo está
indefesamente à mercê das drogas. Elas são apresentadas como um mal em si, sem
considerar o contexto, os vários tipos de uso ou os indivíduos e suas particularidades.
Os métodos utilizados pela abordagem da guerra às drogas são punitivos e
controladores e:
(...) partem de fórmulas massificadoras, universalistas, aplicáveis em qualquer
situação – que abstraem os indivíduos de sua singularidade e não levam em
consideração seus valores ou sua inserção social(...). Finalmente, parte do
princípio de que o modelo a ser aplicado – quase sempre engendrado a partir
de estudos norte-americanos – tem supremacia sobre a análise da realidade
local. (Soares e Jacobi, 2000: 220).
Em suma, o objetivo da prevenção, a partir desta fórmula, é a abstinência de
qualquer uso de drogas e também das violências entre os jovens. O PROERD indica não
77
aceitar metas intermediárias ou provisórias, no sentido de minimizar os prejuízos que
possam advir do uso de drogas.
As falas dos educandos se entrecruzam com os objetivos “aniquiladores” do
PROERD:
Eu não experimentei droga porque eu sei que não é bom. O PROERD me
ensinou sobre isso (Aluna da escola continente, 11anos, dia 09/05/2005 ).
O PROERD ensina muitas coisas boas, como o efeito do cigarro, do tabaco, das
drogas. Que são coisas que fazem mal à saúde. É bom ter um policial na escola,
pois a gente se sente mais seguro. Eu conheço alguém que usa droga. Ele era
meu amigo. Fizeram chantagem para ele usar. Na minha família só tem gente
que fuma cigarro, como a minha mãe, madrinha e primas. A droga é violenta
porque deixa a pessoa lenta e furiosa (Aluna PROERD da escola continente, 10
anos, dia 09/05/2005).
O PROERD ajuda a não usar drogas porque as conseqüências de usar são
muito grandes. A vida da gente fica muito ruim e não temos saída. Já me
ofereceram drogas, mas eu saí correndo e acho que droga não causa nada de
bom. Eu acho que tem gente que usa porque briga com a família, para ficar
mais calmo e tem vezes que o maior obriga o menor a usar. Eu tenho um irmão
que já morreu por usar drogas e tenho sobrinhos que usam, mas não vão à
minha casa. (Aluno PROERD escola ilha, 11 anos, dia 12/05/2005).
Como contraposição à guerra às drogas, que tem fundamentado a maior parte das
estratégias dos Programas de prevenção, surge a abordagem da redução de danos
18
, que
vem tomando corpo em todo o mundo. A proposta da redução de danos aparece como uma
estratégia menos reducionista e mais realista de prevenção, pois não utiliza recursos de
menosprezo do sujeito usuário e não aterroriza a sociedade com meias-verdades sobre as
relações dos indivíduos com as drogas. Essa abordagem passa a requerer que os programas
escolares incorporem e disseminem informações verdadeiras sobre drogas e sobre os pólos
(o contexto, o indivíduo e a droga) que atuam nessa teia, para que os alunos e alunas
possam dispor dos elementos de que necessitem para compreender esse processo:
18
A redução de danos, para Soares e Jacobi (200: 214), consiste numa estratégia oriunda do campo da saúde
pública que leva em consideração que a utilização de drogas é uma realidade e que a melhor maneira de
enfrentá-la é minimizar suas conseqüências prejudiciais e aceitar como sucesso, não apenas a abstinência de
drogas mas qualquer passo dado na direção da diminuição desses prejuízos.
78
(...) ao conhecer e analisar criticamente as contradições sociais, os
adolescentes podem se apoderar dos elementos necessários para fazer escolhas
positivas durante sua trajetória, em vez de voltarem-se contra si mesmos como
alvo da sua própria desintegração social (Soares e Jacobi, 2000: 222).
Essa proposta assume, portanto, a complexidade e as várias dinâmicas que atuam
para que o comportamento do uso de drogas se forme. Por isso, não propõe soluções
simples e únicas, mas adequadas a cada realidade, não se limitando ao pólo da droga em si
e da ideologia dominante da guerra às drogas. Soares e Jacobi (2000) lembram que a
perspectiva da redução de danos é apresentada como uma alternativa aos pressupostos e
mecanismos de atuação da guerra às drogas. Mas ressaltam que devemos cuidar para não
vê-la como a panacéia para os problemas relacionados a drogadição. Se é certo que o pólo
da redução de danos responde por um conjunto de medidas que deixam de desprezar e
estigmatizar os usuários, é certo também que não se pode omitir o papel da sociedade de
caminhar no sentido de uma mudança de condições de vida para as crianças e os jovens,
sujeitos de direitos a uma existência social plena.
2.4 A história da polícia é uma historia de violências? Reflexões sobre a teoria e
a prática do exercício do poder de polícia.
O ofício de polícia tem sido, historicamente, marcado pelas violências nas práticas
de controle social. É numerosa, por exemplo, a literatura sobre os temíveis efeitos do
regime ditatorial na sociedade brasileira. Na obra Batismo de sangue: os dominicanos e a
morte de Carlos Marighella, Frei Beto (1982: 11) relata, com detalhamento, os valores e
projetos que incorporaram a tradição das instituições militares no país. Esse autor discute o
papel da polícia nas formas empregadas para controlar a população e as ameaças políticas
contra o antigo regime. Em "Batismo de Sangue" dá a sua versão à tortura dos militares
contra o líder Carlos Marighella: queimam-lhe as solas dos pés com maçarico, enfiam-lhe
estiletes sob as unhas, arrancam-lhe alguns dentes. Mas não conseguem fazê-lo falar.
Marighela foi um líder socialista guiado pela convicção na justiça social. O autor resume
um pouco da trajetória do líder:
(...) filho de imigrantes italianos, Marighella encontrou no Partido Comunista o
esteio que lhe forjou o vigor combatente. Deputado federal constituinte, não se
79
deixou cooptar por aqueles que, após a ditadura Vargas, buscaram um pacto
político que não incluía os direitos econômicos das classes populares.
Marighella não ambicionava o poder, mas o Brasil soberano, livre da
submissão ao capital estrangeiro.
Carlos Marighella, assassinado há trinta anos pela polícia, foi, segundo Frei Beto,
quem melhor encarnou a resistência libertária à ditadura militar que governou o Brasil
durante vinte e um anos (1964-1985). Nesse contexto, acredita que para as instituições
militares a liberdade pode existir sempre ‘racionada’, desde que não ameace os interesses
dominantes. Esses interesses estão acima dos valores humanos e políticos. Para assegurá-
los, a cadeia, a polícia e os tribunais (Frei Beto, 1987: 18). Mediante a literatura é possível
argumentar que a história da polícia, em especial a da polícia militar, é uma história
marcada pelas violências. Contudo, ainda permanece a pergunta sobre os dias de hoje, no
que diz respeito à trajetória da polícia: seu passado de intransigências, brutalidades e
mandos tomou rumos diferentes?
No presente, as histórias narradas pelas crianças em cada encontro, suas falas,
entoaram como indicadores da violência policial:
Onde eu moro é muito violento. A polícia passa com os carros muito rápido e
quase pega as crianças que brincam na rua. Eu tenho medo da polícia. É bom
ter um policial na escola para aprender mais sobre as drogas e sobre o vício do
álcool. Eu fiquei com raiva quando a polícia prendeu meu pai (Aluno PROERD
da escola continente, 11 anos
55
, dia 09/05/2005).
Tem violência no lugar onde eu moro, tem tiro. A polícia chega e atira. Uma
criança levou um tiro da polícia e a mãe registrou queixa, mas o delegado disse
que não podia fazer nada. Já me ofereceram cocaína, mas eu fugi (Aluna
PROERD da escola ilha, 11anos
56
, dia 12/05/2005).
Na escola continente, um aluno
PROERD
57
, que teve o irmão mais velho preso pela
polícia, descreveu suas impressões sobre a instituição:
55
Mora com a mãe e a avó, que é doméstica. O pai foi preso com drogas e faleceu na cadeia. Mora na favela e
repetiu de ano três vezes. Ficou emocionado ao falar do pai e desenhou em uma atividade um policial atirando
em um homem.
56
Reside em um bairro próximo à escola. Mora com o tio, irmãos e com a mãe, que é cozinheira, e o pai, que é
descarregador de materiais.
57
Menino, onze anos. Mora com a mãe e quatro irmãos.
80
Eu achei bom o policial prender meu irmão porque ele roubava para usar a
droga. Mas agora ele parou porque ele teve uma filhinha. Mas tem vezes que,
em vez da polícia fazer a nossa segurança, ela bate sem causa nenhuma. Ela faz
isso mais com quem mora em favela. Mesmo se eu não fiz nada a polícia já
acusa só porque moro ali. Eu acho que violência é fazer coisa errada e colocar
a culpa no outro. A escola não é tão violenta. Tem briga, mas eles pedem
desculpa (Aluno PROERD, 12 anos, dia 09/05/2005).
Tendo em vista o conteúdo das narrativas, como pensar na construção do PROERD
e das ações da instituição policial por meio de elos democráticos, de interação social?
Como considerar sua inserção em escolas da periferia com a pauta da prevenção? A tirania
policial existe e é ainda mais perversa nas comunidades pobres, não só porque mascara sua
natureza sob uniformes, mas também porque é imprevisível em sua dominação. Conforme
Soares (2005: 263), para os moradores da favela, viver a sombra de um poder policial que
não segue nenhum código, nenhum conjunto definido e publicamente conhecido de regras é
muitas vezes pior do que viver sob o domínio de uma falange criminosa, pois como adotar
uma estratégia de sobrevivência quando as expectativas dos tiranos não se definem?
Faleiros (1998) afirma que a violência policial é conhecida no Brasil porque é
concretizada por uma elevada taxa de homicídios praticados com o arbítrio de plantão pela
própria polícia, "em nome da ordem". As chacinas de Vigário Geral, com vinte e um
mortos (setembro de 1993), da Candelária, com sete adolescentes mortos (agosto de 1993)
e do Carandiru, com cento e onze presos mortos (outubro de 1992), mostram a face
repressiva visível da ordem estabelecida. No Brasil, o significado da repressão tem sido,
justamente, a defesa da ordem. A polícia, na Velha República e no Estado Novo, foi
formalmente instrumentalizada pela burguesia, através da ligação direta entre patrões e
delegacias, na repressão aos movimentos operários, às greves, à contestação dos excluídos.
As chamadas listas negras de operários indesejáveis eram feitas pela polícia e apresentadas
aos patrões (Faleiros, 1992: 53). A repressão foi erigida como forma de governo e sua
legitimação se fez através de um discurso massivo contra a desordem: bandido precisa ser
eliminado; desordeiro precisa ser castigado e espancado para aprender a ordem.
Enquanto acompanhava as aulas do PROERD, ocorreu, na cidade de Florianópolis,
um importante acontecimento, no inicio do mês de junho de 2005. Os estudantes da capital
catarinense, numa reação que se tornou visível nas manchetes dos jornais do país, foram às
81
ruas protestar contra o aumento decretado pela Prefeitura Municipal, nas tarifas do
transporte coletivo, por semanas, os manifestantes e a polícia militar se enfrentaram e os
primeiros sentiram o caráter violento da ação institucional. A maior polêmica do confronto
recaiu sobre os abusos na repressão, cometida pelos policiais militares.
Em sala, a professora da escola continente argumentou com as crianças o confronto
ocorrido entre a polícia e a população. Iniciou a aula descrevendo as manifestações que
estavam ocorrendo na cidade, por conta da luta e mobilização dos estudantes contra o
aumento das tarifas de ônibus. Para ela, os estudantes estavam lutando por uma causa justa,
mas não deveriam realizar depredações: a polícia bateu, atirou, até em quem não tinha
culpa. Mas foi por causa da bagunça e da violência. A manifestação é direito de todos, mas
deve ocorrer sem aquela baderna toda. Ao término da aula, ainda explicou aos alunos que,
mesmo que a reação da polícia e dos manifestantes tenha acontecido daquela forma, a
polícia sempre acabava pegando o bandido:
(...) eu soube que chegaram para a manifestação estudantes do Paraná e
pessoas que se juntavam à manifestação só para fazer baderna e que, dessa
forma, o prefeito não iria ouvir a reivindicação. A polícia já pegou eles, só que
eu acho que a polícia tem medo de bandido, por isso tem medo de subir no
morro onde tem bandido, para pegar bandido. Daí eles preferem bater em
estudante que não tem armas e estão desprotegidos. O bandido tem armas
muito mais eficientes que a polícia (Professora da escola continente, dia
09/06/2005).
Mesmo com um discurso a favor das manifestações a referida professora diminuiu a
sua importância em função daquilo que compreendeu como baderna. Considerava que a
polícia agiu com truculência, mas fazia, afinal, o seu papel. E por medo dos bandidos
concentrou forças nos estudantes desarmados. Bandidos, para ela, estão no morro, nas
favelas, um lugar onde a grande maioria das crianças vive e onde a polícia tem legitimidade
para entrar, bater, atirar, exterminando o horror com mais horror. A educadora nem iniciou,
ao menos, algum debate sobre o lugar das forças policiais na vida cidadã. Os excessos
policiais somente foram apresentados como uma triste fatalidade. Ao que tudo indica, há
uma complacência com a violência policial que faz crer que a presença da polícia é
indispensável para a convivência pacifica. Então, a polícia é para a população,
paradoxalmente, aquela que produz e alimenta a violência, assim como aquela que tenta
82
contê-la e reprimi-la. O depoimento do pai de um aluno PROERD da escola ilha, e que
acompanhou o desenrolar das manifestações, evidencia essa ponderação:
Eu acho que a criminalidade está maior e a cobrança em cima da polícia está
também maior. Não sou nem a favor nem contra a PM. Por exemplo, nas
manifestações, acho que teve um rigor e um despreparo da polícia, mas foi feito
o que tinha que ser feito. Mantiveram a ordem e cumpriram com seus objetivos.
A polícia amedrontou os manifestantes e controlou o tumulto (Funcionário
público, pai de um ex-aluno PROERD, 33 anos, dia 19/06/2005).
Ainda que a origem do termo “polícia” venha de uma junção de politeia, polis
(urbe, cidade, metrópole) + cia (guarda, proteção, segurança), e denote, conforme Gouveia
(2004), proteção e segurança aos cidadãos da sociedade, ao povo, aos que habitam as urbes,
Bobbio (1998: 944) ressalta que a polícia existe com uma função de Estado que:
(...) se concretiza numa instituição de administração positiva e visa a por em
ação as limitações que a lei impõe à liberdade dos indivíduos e dos grupos para
salvaguarda e manutenção da ordem pública, em suas várias manifestações.
Ambiguamente, a polícia militar não se desvincula de uma história marcada por
práticas de violências, intensamente criticadas e rejeitadas por distintos setores da
sociedade civil organizada. Para Moraes (1985:12), teme-se igualmente tanto as ações
criminosas dos assaltantes quanto as ações policiais, marcadas por igual ferocidade.
Tiscornia (2001: 111), ao questionar o poder de polícia, enfatiza que as ações violentas da
instituição não são mitos desterritorializados. Por isso, lembra que:
(...) no final do mês de fevereiro de 1996, a polícia (...) reprimiu de forma
arbitrária e brutal uma manifestação pacífica (...) Espancou e feriu jornalistas
e transeuntes. Um dia depois, um adolescente que estava com amigos na
esquina de um bairro central da capital foi assassinado com um tiro na nuca
por um policial federal uniformizado. No dia seguinte, um homem que levava
sua filha ao hospital foi assassinado também por um policial banaroense, que
atirou nele pelas costas.
Castro e Abramovay (2002: 167) também tecem considerações sobre o contexto
das violências desta instituição. Os autores destacam, em sua pesquisa, os relatos de jovens
que vivem na pobreza e apontam para o abuso de “autoridade” por parte de membros da
justiça e do aparato policial:
83
(...) os jovens se dizem vítimas de maus tratos dos policiais, por isso não os
percebem como agentes da sua segurança. Pelo contrário, para eles, na melhor
das hipóteses, polícia e bandido são imagens que se confundem. Quando
questionados a respeito do que mudariam no mundo, muitos respondem que
acabariam com a polícia.
Esses jovens estão, muito deles, nas escolas onde o PROERD é efetivado e não são
consultados no sentido de aceitarem ou rejeitarem sua implementação. Para Tiscornia
(2001: 111), a ‘criminalidade’ urbana está nas mãos da polícia. A autora ressalta que a
polícia viola os princípios mais elementares do Estado de direito. Desse modo,
(...) “desestimula” os ladrões espancando-os e prendendo-os até que
abandonem o bairro. Esconde travestis do olhar público, cobrando-lhes uma
taxa e obrigando-os a trabalhar em hotéis e apartamentos fechados. Controla
os traficantes de drogas para que, por uma taxa também, não façam uma
exibição ostensiva de sua atividade em praças ou lugares públicos. Privatiza a
segurança em benefício próprio.
Zaluar (1999: 45) argumenta que o Estado tem uma dupla face: uma para servir e
garantir direitos a todos os cidadãos e, outra, para dominar e controlar os subalternos, assim
como explorar os contribuintes. De um lado, o Estado democrático, instância da lei e da
justiça; de outro, o Estado burocrático, instância do controle e do poder policial.
Maior contundência sobre a trama do agir policial verifica-se, novamente, em
manchete, veiculada no noticiário O Globo, de junho de 2004: a morte de civis no Rio de
Janeiro se compara aos números de uma guerra. Por dia, a Polícia Militar mata três
pessoas. A maioria não tem antecedentes criminais e morre com tiros na cabeça e nas
costas. O medo e o espanto pelas ações violentas da polícia denunciam que, em nome da
guerra contra o crime, os policiais brasileiros matam cada vez mais:
Apesar do banho de sangue, a criminalidade não cede e o cidadão não se sente
mais seguro. Ao contrário, crescem com freqüência assustadora relatos de
abusos policiais, de pessoas inocentes mortas por engano e mesmo de
execuções (Garcia, 2004: 95).
Cada vez mais é difícil acreditar que a PM possa se constituir numa instituição
preventiva dos “males” sociais, à medida que a trama de suas ações violentas a enredam,
tanto como protagonista quanto coadjuvante. A fundadora do movimento Mães do Rio,
84
Márcia Oliveira Jacintho, que reúne duzentas mulheres que perderam seus filhos
assassinados pela polícia, fala de sua dor e de sua indignação: no local onde mataram meu
filho só ficaram as chaves de casa e os chinelos dele. Ele nunca teve uma arma. O que
mais me revolta é vê-lo tachado de bandido (Garcia, 2004: 99). Maria Dalva da Silva, que
também teve um filho assassinado pela polícia, acrescenta: entendo quem tem medo.
Também tenho. Aqui, a polícia humilha, tortura, mata, bate na nossa cara. E não podemos
falar nada (Garcia, 2004: 101).
Para o antropólogo Luiz Eduardo Soares (2004: 32),
a promiscuidade entre a polícia
e o crime é algo disseminado por todo o Brasil, mas em proporções distintas, que variam
regionalmente. Lembra que nós somos, ainda, herdeiros de ditaduras e de um Brasil
escravocrata, até porque, o que tem marcado a história brasileira é a continuidade. E ele
enfatiza: é como se nós, na Constituição, tivéssemos partido para o mundo da democracia e
esquecido em casa, ou na caserna, a polícia da ditadura:
(...) nós esquecemos que teríamos que discutir as mudanças na polícia para
adaptá-la aos novos tempos democráticos. E o capítulo da repressão policial, o
capítulo pertinente à manutenção da ordem pública ficou esquecido e nós
acabamos reproduzindo os padrões tradicionais que as ditaduras apenas
radicalizaram.
A organização cada vez mais policiada de nossa sociedade, na qual o terror e as
violências dominam o cenário, bem como, a ideologia da segurança, são potencialmente
valorizadas e geram a manifestação perversa da potência, aquilo que Maffesoli (1981)
chama de violência sanguinária. Nesse ofício, a polícia trata, então, de exercer a soberania
pela conjunção ou ordenamento das diferenças. Os antagonismos são ordenados de modo a
manter um falso pluralismo naquilo que constitui o tecido da vida cotidiana. A
homogeneização enaltecida e buscada no exercício policial, até mesmo a pacífica, é mais
potencialmente mortífera para Maffesoli do que a heterogeneidade que gera as violências,
pois compreende que a homogeneização impede a possibilidade de uma nova ordem e de
um novo movimento de fundação.
Para complementar a questão da visibilidade do agir policial, Cárdia (1997: 249)
afirma que o desempenho policial, durante a transição democrática, ao contrário de
85
melhorar só se deteriorou. A violência e a arbitrariedade também não desapareceram, mas
cresceram com a ineficiência. As violências policiais remetem à transgressão aos direitos
da cidadania: estes direitos referem-se à integridade física do indivíduo, à igualdade
perante a lei, à liberdade de pensamento e convicção, como também ao direito de não estar
sujeito à vontade de outrem (Adorno 2000: 26 apud Laterman: 1994). Conforme Duarte
(2004: 36 apud Arendt), quanto mais poderoso é um determinado regime, tanto menos
violento ele será, ao passo que ele será tanto mais violento quanto maior for sua
impotência. Parece que a polícia se sente, ou se torna cada vez mais impotente. Isto é, tem
dificuldades para legitimar-se, se manter e se multiplicar por meio da obediência
consentida, pela ação coletiva concertada e pelo discurso persuasivo entre os agentes. Isso
representou um paradoxo para algumas pessoas que acreditavam que na volta ao Estado
democrático e de direito não mais aconteceriam violações, quanto mais que elas
multiplicar-se-iam em diferentes manifestações.
Mas, como já destaquei anteriormente, o aparelho policial gera reações
ambivalentes que talvez expressem a dificuldade que encontra a população para posicionar-
se diante desta força violenta e, ao mesmo tempo, protetora. Para Cardia (1997: 249), as
pessoas se deparam com a necessidade por segurança pública, que deveria ser fornecida
pela polícia, e a descrença, ou mesmo o medo que sentem por ela. Quem sabe seja esta a
maior ambigüidade que permeia o sentimento da população com relação à polícia: a
desconfiança caminha, lado a lado, com a concordância de seu comportamento arbitrário.
Esse pressuposto emerge das incontáveis experiências observadas no cotidiano e que
versam sobre a segurança pública. De um lado, o necessário direito de ser protegido; de
outro, as paixões mundanas (Morin, 2002) que misturam os sentimentos humanos e
desvelam, quando oportuno, seus desejos de vingança, de destruição do outro que lhe afeta
com sua conduta transgressora: o bandido. Sua morte, seu sofrimento devem ser
assegurados pela ação policial, para “lavar a alma” da sociedade imaculada.
Para Adorno (1994: 24), no entanto, quando a autoridade viola os direitos humanos
não o faz por ser uma autoridade, mas, sim por ser representante do que se passa no
interior da sociedade. Argumenta, por exemplo, que o policial, quando persegue
preferencialmente os pobres e os negros, não é por ele ter essa preferência pessoal – e
86
talvez até tenha -, mas sim porque a própria sociedade persegue os pobres e os negros.
Esse olhar permite afirmar que o policial é um representante prototípico da sociedade. Ou
seja, tem uma visão estereotipada da sociedade e persegue pobres e negros porque está
funcionando como a sociedade, grosso modo, funciona.
Nesse sentido, perguntar sobre a atuação da polícia militar em um Programa de
prevenção às drogas e às violências nas escolas é acolher a compreensão de um processo
engendrado por ambigüidades. No decorrer da pesquisa de campo, na continuidade das
leituras e discussões, outros espaços de interlocução foram sendo criados para melhor
problematizar os fios que se encontram na fronteira entre o denunciado e o anunciado. Os
medos reais, os tabus, o contexto próprio de cada meio social, os relatos, entre outros
aspectos, mostraram o desafio para construir uma reflexão e consolidar novos
posicionamentos sobre um tema tão polêmico. Assim sendo, sua relevância me mobilizou
porque sei, que é nesta mesma sociedade de tantas contradições, que diversas organizações
da sociedade civil lutam e se comprometem com a construção de uma cultura de paz e
solidária, contra qualquer forma de discriminação e de violência, pois, conforme Arendt
(1994: 58), não podemos esquecer que a prática da violência, como toda ação, muda o
mundo, mas a mudança mais provável é para um mundo mais violento.
Penso, ao final, como Tiscornia (2001: 130), quando discute a trama social da
violência e o poder de polícia. Para esta autora, com base nesses usos cotidianos do poder
de polícia, organiza-se boa parte de nossa vida cotidiana e também a nossa aceitação das
violências e da impunidade. Importante assinalar a esse respeito que o “poder de polícia”
indica não somente a faculdade específica da instituição policial; ela abarca um poder
muito mais amplo, isto é, o poder que se funda na aceitação da vigilância e da
arbitrariedade do estado sobre o corpo do povo.
2.5
Relações entre a infância e a concepção de um Programa Educacional
O autor Walter Kohan (2003: 39-40), ao propor uma reflexão platônica sobre as
possibilidades de pensar a infância, acaba por contemplar algumas maneiras de
compreender no presente, as ideologias educacionais contidas no Programa PROERD. O
87
autor sugere que o período da infância está associado a um devir progressivo, sendo a
criança considerada o fruto, resultado das sementes plantadas. Nesse sentido, o que fica
estabelecido é a imagem de que tudo o que venha depois da idade infantil, principalmente
no que se refere às atitudes da vida adulta, dependerá desses primeiros passos.
Posta a idéia de infância como esse degrau fundador da vida humana, Kohan (2003:
39) assume que a educação das crianças, em nossa sociedade, passa a ter fortes implicações
políticas. A educação na infância pode, assim, ser percebida como um projeto em execução,
no qual, para o satisfatório resultado da obra, é preciso vigilância permanente, cuidado,
planejamento, táticas e técnicas eficazes. As projeções políticas para a educação da criança
e que estão inscritas no projeto da polícia militar, também refletem esse ideal de educação e
da infância: da aposta na garantia de um futuro cidadão, honesto, prudente, resolvido, ou
seja, que não venha a se configurar como alguém que posteriormente possa vir a ser
perseguido pela polícia.
A fala da oficial responsável pelo PROERD em Santa Catarina mostra como o
Programa está pautado na idéia da criança como um ser humano menor, ainda
despreparado, fácil de manipular, dócil e frágil:
O PROERD é para as crianças, porque elas ainda estão em formação. Fica
muito mais fácil termos uma resposta positiva com as aulas PROERD quanto
mais novas elas forem. Se não agirmos cedo elas serão facilmente levadas para
esse mundo das drogas. Se elas já estão envolvidas temos um trabalho
redobrado (Oficial Militar da equipe do PROERD, dia 18/08/2005).
Nessa concepção de infância, segundo Kohan (2003: 40), emprega-se uma
valoração cara e cruel: o seu caráter de incompletude. Esse caráter, que mantém uma
estreita relação com algo positivo ou em construção, principalmente na infância, acaba por
constituir-se em coisa alguma, ou seja, o ser tudo no futuro esconde um não ser nada no
presente. E o grave equívoco que se esconde nessa premissa é ver as crianças como um ser
sem formas, maleáveis e, enquanto tais, a idéia de que podemos fazer delas o que
quisermos. Eu compreendendo que essa é uma forma de pensar a infância semelhante
àquela implantada na proposta educacional do PROERD e nos projetos políticos
pedagógicos de várias escolas. Neles, educar dessa forma e com essa projeção se torna uma
88
poderosa forma de persuasão um instrumento que põe a infância em posição de
menoridade, pois forja para ela uma incontestável submissão à vontade, ao desejo ou à
proteção do adulto. A criança, assim, será e fará aquilo que lhe disserem: honesta, não
usuária de drogas, pacífica, amiga e estudiosa, independente de sua condição
socioeconômica, de suas relações externas à escola, de suas propensões biológicas ou da
própria ineficiência dos sistemas educacionais.
Não parece procedente referir-se à infância e à juventude como etapas de vida,
dissociadas da história inteira dos sujeitos. Não obstante é interessante considerar que a
infância e a juventude continuam a ter expressão por toda a vida adulta e que mesmo com a
sua plasticidade, ambas vão constituir os modos de ser em comunidade. Maturana (1998:
29) acredita que esse período da vida tem conseqüências fundamentais para o tipo de
comunidade que os indivíduos trazem consigo em seu viver. Na infância, a criança vive o
mundo em que se funda sua possibilidade de converter-se num ser capaz de aceitar e
respeitar o outro a partir da aceitação e do respeito de si mesma. Quando jovem, vai
experimentar a validade desse mundo de convivência na aceitação e no respeito ao outro a
partir da aceitação e do respeito de si mesmo, no começo de uma vida adulta social e
individualmente responsável. Para Sousa (2002), isso significa que a criança e o
adolescente aprendem e experimentam aquilo que vivem.
Em geral, os jovens e as crianças são identificados como uma caixa vazia, um lugar
onde o educador e a educadora depositam um número enorme de ensinamentos e que,
somente não serão tudo aquilo que lhes foi transmitido, se não quiserem ou se não tiverem
a força necessária para assimilar e proteger-se das “forças más”. Nessa associação a estados
inferiores do desenvolvimento, pode também ser apontado o fato de que em momento
algum, lhes é perguntado sobre os seus interesses em participarem ou não, de um Programa,
de uma determinada proposta educacional. Sua opinião a respeito do que pensam não é
salutar e indica que está estabelecida a idéia de uma carência ou da incapacidade para
distinguir ou saber cuidar de si para ter o controle sobre si mesmo. Foucault (1985), por
exemplo, foi um dos principais autores que discutiu a importância do aprendizado do
cuidado de si em qualquer instância da vida. Nesse sentido, a escola tomou para si esse
papel de modelar o indivíduo e cuidar de seu pleno desenvolvimento para uma vida coletiva
89
e cidadã, muitas vezes, por meio de uma educação entendida como tarefa moral e
normalizadora.
Para ilustrar cito a fala da diretora da escola ilha:
(...) os professores devem ser modelos para os alunos. Para dar aulas sobre
drogas e violência, a melhor pessoa é um policial, que é o modelo do cidadão,
que é contra e trabalha para reprimir tudo isso e é a favor da moral e dos bons
valores (Diretora da escola ilha, 42 anos, dia 04/07/2005).
A escola parece não perceber o seu próprio caráter disciplinador, a forma como nela
se encontram diversos dispositivos para formar, como alertou Foucault (1987), corpos
dóceis, subjetividades adequadas aos mecanismos de controle, os quais a escola fortemente
contribui pra disseminar. Kohan (2003: 42) faz alusão à obra de Platão, As leis
58
, para
afirmar como, na Grécia antiga, as crianças eram vistas como seres impetuosos, sem
condições de ficarem quietas, desordenadas e, por isso mesmo, incapazes de regularem suas
próprias vidas: um rebanho que não pode subsistir sem seus pastores (grifo meu). Naquele
tempo, como hoje, as crianças não eram interessantes por serem crianças; sua importância
decorria do adulto que ela um dia iria tornar-se, algo muito diferente do que a criança que
era. Por isso, como afirma Kohan (2003: 58), os adultos fundadores da polis, acreditavam
saber distinguir o que seria melhor para elas, levados sempre por melhores intenções.
Conduzir as crianças para o nascer de algo melhor não parece uma percepção distante no
trabalho escolar do PROERD e, ao que indica, é o caminho que foi sendo trilhado para a
construção e execução do trabalho da polícia militar, a grande pastora dos rebanhos
perdidos, como veremos nas proposições a seguir.
O trabalho de propor ou de problematizar um possível modo de ver a infância
atrelada à especificidade de um Programa educacional da polícia militar contribuiu nas
explicações sobre as marcas que atravessam a legitimidade desse Programa, como um
poderoso mecanismo de interferência do Estado na vida privada (Foucault, 2001). Meu
interesse foi o de compreender o espaço escolar e a instituição polícia como locais onde se
58
Essas formas de pensar a incompletude e a menoridade da infância têm raízes no pensamento grego.
90
exerce o poder pastoral
59
(Foucault: 2001) e assim entender como esse tipo de poder, com
base no pensamento moderno, atravessa as práticas educativas da atualidade; insere a
polícia militar na escola e torna-se, por não respeitar a singularidade do sujeito, um
mecanismo violento contra a infância e a juventude.
2.6 Do poder pastoral ao poder de polícia: contribuições de Foucault
Podemos comparar a escola, como salienta Prata (2005: 108-109), com uma grande
engrenagem que é atravessada e marcada pela configuração social. Ou seja, ela es
inserida em um amplo contexto, delimitada pelo que é produzido e reproduzido na
sociedade. Nesse sentido, também tem o papel de definir o sujeito, seja por meio das
relações de poder que circulam no espaço escolar, seja na forma pela qual concebe a
aprendizagem e transmite o saber. A escola não se propõe, portanto, somente a
compartilhar conhecimentos, mas, de forma explícita, interessa-se, acima de tudo, pela
formação de pessoas e contribui efetivamente para produzir certos tipos de subjetividade.
Para compreender a produtividade social da escola e as formas de poder que a
permeiam, é necessário recorrer ao estudo do poder disciplinar. Foucault, na obra Vigiar e
Punir (1987), ressalta a associação entre a escola e esse tipo de poder. Para ele o espaço
escolar é constituído também pelas ações que são atreladas à racionalização, à regulação, à
organização, à normatização
60
, à classificação, dentre outros. Por isso, fomenta uma lógica
de domesticação e disciplinamento dos corpos. Foucault lembra que o poder disciplinar é,
no século XX, praticado em diversas instituições sociais tais como a escola, a família, a
igreja, as prisões, os quartéis, os aparatos sociais como a polícia que, dentre todos, tem
como principal função fazer reinar a disciplina na sociedade (Kohan, 2003: 71).
59
Na pesquisa etimológica apresentada por Kohan (2003) a palavra pastor, em grego, éz poimém e, no latim,
pastor. Ambas as palavras possuem o mesmo radical temático indo-europeu que tem a forma pa/pó no grego
e pa/pu no latim, com o significado básico de ‘alimentar’ ou ‘alimentar-se’, às quais estão ligadas palavras
como paîs em grego e puer em latim, as duas com significado de “criança”. O pastor é, portanto, quem
alimenta, ‘aquele que leva de comer’. Compartilha este radical temático paidéia (produto do alimento,
educação), de modo que, na etimologia, pastor, infância e educação têm uma mesma origem (Sousa e Lima,
2005: 12).
60
O poder disciplinar se exerce de muitas formas. Destaco aquela que seria uma das principais funções desse
tipo de poder: a normatização, que é descrita com o objetivo de dirigir condutas, cuidar do que é proibido,
incorreto, deficiente. Nesse sentido, muitos aspectos da ação pedagógica são expressão do panóptico,
abordado especialmente na obra Vigiar e Punir, de M. Foucault.
91
Quando o poder disciplinar vai além dos limites do corpo e se volta para o governo
das populações, temos o que Foucault chamou de biopoder. Ele é caracterizado como o
poder sobre a vida e é exercido sobre o corpo individual e coletivo, através das tecnologias
disciplinares e da biopolítica. O biopoder
61
é analisado como uma racionalidade de
governo, individualizante e totalizante, que encontra suas raízes no poder pastoral
(Lunardi, 1997). Como governo prioritariamente político, assume, no século XVIII, a forma
da razão de Estado e da polícia tendo em seu centro a tecnologia da segurança.
Nessa tentativa de compreender como os sujeitos, ao longo da história, têm
construído sua individualidade e as implicações de exercício de poder na constituição da
subjetividade, Foucault (2001) propõe desvelar um poder denominado e reconhecido como
poder individualizante ou poder pastoral. O poder pastoral é apresentado por ele a partir da
metáfora do grande pastor divino e do pastor do rebanho de ovelhas, sendo esse poder
entendido como um poder político, presente na estrutura do Estado e tendo se disseminado,
por vários séculos e por toda a sociedade, de modo muito estreito com os ideais cristãos.
Dessa forma, o resgate do pastorado cristão é feito na tentativa de entender, a partir da sua
evolução, esta tecnologia que parece atuar sobre os indivíduos e as suas vidas, mediante
articulações entre responsabilidade, obediência, abnegação e a confissão de si (Foucault,
2001). As mudanças nas formas políticas e nas estruturas jurídicas, e a importância
histórica das tecnologias do desenvolvimento do poder que determinam relações complexas
e circulares entre os homens e as mulheres asseguravam o controle de um grupo de
indivíduos reunidos como um rebanho e guiados por pastores.
Foucault (2001) relembra algumas das principais características presentes nas
associações do Deus-Pastor e do seu Povo-Rebanho:
Exercício do poder do pastor: que originalmente se dá sobre o rebanho, mais do
que sobre a terra, que pode ser uma dádiva prometida e concedida por Deus ao seu
rebanho.
61
Domínio do corpo, visando adequá-lo às novas formas de poder, como tamm a ampliar suas
possibilidades produtivas.
92
O pastor reúne e conduz as ovelhas dispersas: que podem tornar-se sem controle
em sua ausência.
O pastor tem como função primordial garantir a salvação do seu rebanho: por
meio de uma “bondade” constante, individualizante e finalizada. Essa manutenção
precisa de cuidados diários na alimentação e segurança de cada ovelha,
individualmente.
O pastor exerce o poder da sua bondade como o cumprimento de um dever:
que se aproxima à abnegação, pois tudo o que o pastor faz, ele o faz pelo bem de
seu rebanho (Foucault, 2001: 04), tendo como objetivo final deste poder a garantia
de salvação individual em outro mundo.
Esta tática de poder, por muitos séculos, esteve diretamente articulada com uma
instituição eclesiástica, exercendo, como apontam Sousa e Lima (2005: 12), uma forma de
poder de sacrifício pela vida e pela salvação, uma forma de poder que explora as almas, e
que, com um cuidado contínuo e permanente pretende dar a cada um e a todos melhores
condições de vida. Para as autoras, essa idéia salvacionista e missionária do pastor, assim
como a prática de condução do rebanho, nos traz esta tecnologia de poder, instrumento
que, adaptados ao Estado Moderno passam a operar como modos de regulação da vida
dos indivíduos, e que tem por objetivo alcançar o seu total e completo governo e controle.
Foucault (1995) salienta como no século XVIII ocorreu uma nova organização deste
tipo de poder individualizante. Com ele, o desenvolvimento do Estado Moderno se
constituiu numa estrutura sofisticada, à qual os indivíduos podiam ser integrados com uma
condição: a de que esta individualidade adquirisse uma nova forma e estivesse submetida a
um conjunto de mecanismos específicos. Desta forma, o Estado apresenta, adaptada às suas
necessidades, uma nova forma de poder pastoral, que pode ser reconhecida a partir de
algumas modificações.
A busca da salvação neste mundo em que vivemos e não mais em outro mundo,
pois a palavra salvação adquire um sentido de fins mundanos, como bem-estar,
saúde, qualidade de vida. O objetivo de condução do povo à sua salvação no outro
mundo, próprio da função pastoral cristã, é substituída, no poder pastoral, pela
93
intenção de garantir a salvação neste mundo. A salvação aqui significa acesso à
saúde, à higiene, ao bem-estar, com riquezas suficientes para assegurar um padrão
de vida adequado, segurança e proteção.
O aumento do número de funcionários do poder pastoral assumindo esse poder:
as instituições familiares, as empresas privadas, as sociedades beneficentes, o
Estado e pela instituição pública, a polícia. Lembrando que a força policial não foi
inventada no século XVIII, apenas para manter a lei e a ordem, nem para assistir aos
governos em sua luta contra os inimigos, mas para assegurar a manutenção, a
higiene, a saúde e os padrões urbanos, considerados necessários para o artesanato
e o comércio (Foucault, 1995: 238).
A proliferação de metas e o aumento do número de agentes do poder pastoral
estavam ligados ao desenvolvimento do conhecimento do homem em relação a dois
pólos, analiticamente como indivíduo e, quantitativamente, como população. E ao
invés do desenvolvimento do poder pastoral e de um poder político articulados entre
si ou rivais, desenvolveu-se uma tática individualizadora, própria e característica de
vários poderes.
A partir do século XVIII, o poder pastoral se disseminou em todo o corpo social e
passou a direcionar sua força aos objetivos mundanos (Sousa e Lima, 2005: 12), apoiando-
se nas mais diversas instituições, dentre elas a escola e a polícia. A presença do poder
pastoral que é exercido em nome da saúde e do bem-estar das pessoas pode ser evidenciada,
de modo bastante explícito, através dos relatos de atuação dos agentes de polícia. E, além
disso, de sua própria base filosófica: seu trabalho se resumiria no governo dos outros. A
polícia abrangeria, entre outros, a saúde, o bem-estar, a proteção, a atenção das pessoas
destinadas a ocupar o lugar de objetos do cuidado. Nessa perspectiva, a vítima, ou o sujeito
detentor de proteção policial, está, ao que tudo indica, destinada ao lugar de objeto do
cuidado, os que deve ser atingido a qualquer custo. A polícia, em especial, detém
94
complexos dispositivos disciplinares e esses mecanismos de sujeição ao outro configura o
poder de punição, o controle, a vigilância, e a sanção normalizadora
62
.
No que se refere ao desenvolvimento do pastorado nas instituições educacionais,
como tecnologia de poder e como prática política do Estado moderno, a figura do
professor-pastor (Kohan, 2003: 87) aparece como uma das personagens centrais. Na
pesquisa que realizei foi possível ir percebendo como os policiais, encarnados em
“educadores” do PROERD, revestiam-se da imagem desse professor-pastor, assumindo a
responsabilidade das ações e o destino de sua turma:
(...) eu, como instrutora PROERD, sou responsável pela vida dessas crianças,
de cada uma delas. Se a minha aula não cativar, como vou conseguir fazê-las
entender os riscos que correm com as drogas? É preciso passar outros valores
para esses meninos e essa é uma responsabilidade nossa. Sem a nossa
intervenção e o apoio da escola eu não sei como estariam essas crianças.
(Policial instrutora PROERD da escola ilha, dia 28/04/2005).
O professor-pastor se encarrega de cuidar do bem e do mal que possa acontecer a
todos os alunos e individualmente com cada um deles. O pastor deve conhecer as
necessidades pessoais de cada membro do rebanho e, mais que isso, deve saber o que faz
cada um, o que lhes acontece, o que se passa em suas almas, seus segredos. Para Kohan
(2003: 87), o pastor responde por todos os pecados que possam ser cometidos sob sua
responsabilidade. Há ainda, nessa relação do professor-pastor com seus alunos-rebanho,
uma submissão absoluta. Tudo indica que, nessa relação, sem o professor os alunos não
saberiam o que fazer, como aprender, de qual maneira comportar-se; eles não saberiam o
que está bem e o que está mal, como julgar a atitude de um colega, a falta de esforço para
cumprir uma tarefa (Kohan, 2003: 88).
Numa conversa com o policial instrutor PROERD da escola continente isso fica
mais evidente:
Eu digo aos alunos que eles não devem precipitar as suas decisões. Devem
escutar e serem sempre obedientes com as professoras, porque são elas que
62
Foucault (1987), concluindo sua genealogia relativa à formação das disciplinas, afirma que o poder
disciplinar se apóia na aplicação combinada de três instrumentos simples: o olhar hierárquico, a sanção
normalizadora e o exame. Sobre o assunto ver a obra Vigiar e Punir.
95
sabem o que faz bem para eles. Esses alunos da quarta série precisam de
orientação, pois não têm noção de muitas coisas (Policial instrutor PROERD da
escola continente, dia 06/05/2005).
A diretora da escola, apesar de refutar o empenho dos educadores, expressa essa
relação dependente dos alunos e relaciona-a com a figura do professor, um sujeito que, se
não atua como pastor, não é capaz de ser outra coisa:
A falta de compromisso dos professores com as coisas da escola é um dos
nossos piores problemas e, conseqüentemente, gera o abandono dos alunos que
vão para as drogas e para as violências (Diretora da escola continente, dia
20/03/2005).
Por último, o professor-pastor ensina aos seus alunos que sem alguma forma de
sacrifício ou renúncia de si e do mundo seria impossível desfrutar de uma vida feliz e de
uma sociedade justa. Esta renúncia funciona como uma morte diária neste mundo. De
acordo com Kohan (2003: 86), todas essas técnicas do poder pastoral têm como objetivo
induzir os membros do rebanho a sua mortificação no mundo terreno: uma sorte de
renúncia constante a esse mundo e a si mesmo.
As palavras da instrutora do PROERD enunciam esse dispositivo disciplinar:
Muitas vezes, eu uso o meu próprio exemplo de menina pobre com os alunos.
Digo para eles que tive que renunciar a certas coisas para poder ter o que
tenho, principalmente respeito, uma vida digna. Eu me tornei uma pessoa de
bem, vou ter meu lugarzinho no céu, mas poderia ter sido diferente. Eu acho
que o problema das drogas e da violência é também muito das pessoas só
pensarem em si, no seu próprio prazer e bem-estar. É preciso pensar no bem da
humanidade. Nas escolas eu vejo que a garotada não quer abrir mão de nada.
Tem horas que é preciso deixar de lado a paquera, a balada, os amigos, para
ter um bom futuro e ser valorizado (Policial instrutora da escola ilha, dia
07/04/2005).
Dessa forma, o professor-pastor ocupa uma posição estratégica na disseminação do
poder disciplinar na escola. No entanto, é fundamental lembrar que o professor, assim como
a figura do policial, em muitos sentidos, é também “rebanho” e está preso ao controle e à
dependência dos outros. A problematização que se sugere é pensar como temos nos
construído e nos reconhecido como indivíduos obedientes a outros, passando por diversas
mortificações diárias de si e do desejo próprio. Um pastor precisa conduzir minha
96
consciência moral? Temos reconhecido os indivíduos como sujeitos autônomos, dotados de
vontade? Afinal, esses conceitos nos fazem pensar como temos nos governado e como os
outros nos têm governado. Todos temos o que pensar por si. Muitas das ações a que nos
submetemos, ou que são praticadas tendo em vista nossas condutas, não são processos
aceitos e reconhecidos como sendo necessários. A sua aceitação é gerada pelo medo, pela
insegurança ou até pelo conformismo e passividade frente àquele que, nesse caso,
“legalmente” representa o poder. Por isso, os mecanismos de sujeição não podem ser
estudados e dissociados dos mecanismos das violências, porque eles se fazem também de
exploração e dominação.
Cabe ressaltar que em qualquer situação em que alguém tente governar o outro, seja
educando, orientando ou cuidando, as relações de poder-dominação ali se encontram
presentes. A liberdade de concordar ou divergir das condutas e atitudes de qualquer
profissional não proclama a diminuição ou a importância do compromisso que cada um
exerce na sociedade, somente conduz a uma relação entre iguais, apesar dos diferentes
saberes e papéis assumidos no meio social. O exercício do poder pastoral sublinha a
negação da capacidade do cuidado de si. Quando este se encontra presente, representa um
desconhecimento do outro, por não perceber nele a sua condição de sujeito da sua própria
existência, mas de um objeto que pode ser desrespeitado e coisificado. Desaparece do
encontro entre um e outro a necessária presença de mediação na composição das
intersubjetividades. Em seu lugar, se instala o controle e a subjugação do outro, não mais
um sujeito de seu mundo e de seu tempo, mas um elemento próprio para ser disciplinado e
enquadrado nos aportes de uma sociedade carregada de hipocrisias, ainda que travestida de
lugar honroso para todos.
97
CAPÍTULO III
Traços e feições: entre ritmos e adereços, as várias maneiras de sentir,
vivenciar e olhar o campo da pesquisa
O que tu viste amargo,
Doloroso,
Difícil,
O que tu viste breve,
O que tu viste inútil
Foi o que viram os teus olhos humanos,
Esquecidos...
Enganados...
No momento da tua renúncia
Estende sobre a vida
Os teus olhos
E tu verás o que vias:
Mas tu verás melhor...
Cecília Meireles
98
3.1 A favela e o Programa PROERD
Sou produto do morro...
Por isso do morro não fujo e nem corro No morro eu
aprendi a ser gente Nunca fui valente e sim conceituado
Em qualquer favela que eu chegar Eu sou muito bem
chegado (..)
Sem pedir socorro pra ninguém Embarquei no asfalto
da cruel sociedade Que esconde mil valores que no
morro tem Tenho pouco estudo, não fiz faculdade E
atestado de burro não assino também
(...)Se eu sou sucesso fiz por merecer Sou favelado, mas
tenho muita dignidade E muita honestidade pra dar e
vender.
Bezerra da Silva
É este cenário, retratado rapidamente e elogiado nesse samba de Bezerra da Silva,
que contextualiza a realidade local das duas escolas que foram observadas nessa pesquisa,
já que uma parcela significativa da comunidade escolar vive na favela ou ao redor desse
espaço urbano
63
. As duas comunidades pesquisadas são apresentadas
64
, em
Florianópolis/SC, pelas violências e pelo tráfico de drogas, e foram escolhidas porque
acreditei que as relações estabelecidas e praticadas nessas escolas pudessem retratar os
múltiplos e variados conflitos sociais existentes na cidade
65
.
Para o sambista, a riqueza da favela advém da criatividade, da música, da esperteza,
da luta pela sobrevivência cotidiana, e foi nela que ele e muitas outras crianças aprenderam
e aprendem a ser gente. No entanto, a sociedade em geral prioriza, na construção do
cenário da favela, os pontos negativos simbolizados pelo excesso das violências, pela
criminalidade e pelo uso indiscriminado de drogas. Agrega-se à reprodução dessa cena o
fato de que hoje é impossível negar que há na favela um perigoso jogo de disputas entre as
facções criminosas e o uso ostensivo de armamento, além de uma lógica de confrontos
constantes e violentos da polícia com o tráfico, sem, com freqüência, o menor respeito à
vida dos moradores.
63
Para Wagner (2004), a favela é um dos elementos do espaço urbano ou um tipo de espaço urbano
localizado.
64
Retrato da opinião expressa pela imprensa e pela comunidade sobre esses locais.
65
De acordo com Wagner (2004: 23), a compreensão da favela torna possível um maior entendimento dos
aspectos que constituem a teia das relações na sociedade.
99
Para esses mesmos moradores, outras formas de marginalização são ainda mais
severas. Muitos pais da favela
66
acreditam que seus filhos estão “destinados” a não
concluírem os estudos e que, principalmente os meninos, continuarão a acompanhar as
estatísticas de mortes pelo envolvimento com o narcotráfico ou não completarão a idade
adulta
67
. Acreditam também que várias meninas terão como única solução seguir os passos
das mães nas faxinas – ofício que hoje já realizam e que disputa espaço de importância com
as tarefas escolares - ou na prostituição, como me foi relatado, em forma de “denúncia
velada”, por algumas adolescentes. Esse retrato da favela mostra, como lembra Zaluar
(1994: 07), que, muitas vezes, o que para nós é medo ou assunto jornalístico, para eles
(moradores da favela) é nódoa contra a qual têm que lutar diariamente.
Essas imagens da favela se materializavam na presente pesquisa através das
dificuldades e dos problemas anunciados pelos representantes das escolas. Conforme as
palavras da diretora da escola continente:
(...) nosso maior problema é a carência das nossas crianças. Muitas moram na
favela e convivem com muita violência e as drogas. Os pais não têm esperança
que eles (os alunos) conseguirão muita coisa só de vir para a aula. Daí que não
estudam, não querem nada com nada (Diretora da escola continente, dia
29/03/2005).
A diretora conclui que quase todas as crianças da escola estão suscetíveis a esse
mundo das drogas e da violência porque:
(...) a maioria dos pais da comunidade trabalham, saem cedo de casa. As
crianças ficam sozinhas ou quem cuida é um irmão, ou um vizinho que só olha.
Muitos nem conversam com os filhos. Não há a orientação (Diretora da escola
continente, dia 29/03/2005).
Há que se perguntar como contrapor-se criticamente à ideologia da “carência”, que
tudo justifica, inclusive o fato da escola construir o fracasso na aprendizagem dessas
crianças e jovens. Que sentidos têm o rosário de argumentos de que essa família é ausente?
66
Informações obtidas em conversas com a comunidade escolar e familiar dos alunos e alunas das escolas
pesquisadas.
67
Zaluar (1994: 07), refletindo sobre a morte precoce dos jovens da favela indaga: todo mundo sabe o fim dos
bandidos pobres: morrer antes dos 25 anos. E reflete sobre o sentimento da família desses jovens: ninguém
quer ver seu filho, seu irmão, seu parente ou seu vizinho com esse destino, embora haja quem acredite que
este caminho não é escolha, é sina.
100
A escola procura compreender que outras estratégias essas famílias utilizam para
acompanharem a vida escolar de seus filhos? A escola acredita que a ausência da família no
histórico de vida de muitas crianças constitui-se um problema recorrente. Mas, para quem?
Somente para a escola? Como se sentem as mães pobres que trabalham duramente o dia
inteiro e fazem todo o serviço de sua própria família à noite?
A professora da escola ilha, moradora do bairro há vinte anos, descreve essa mesma
impressão negativa do lugar onde reside:
(...) é muito triste viver na favela. Eu diria que a comunidade está poluída. A
gente vê que a violência no bairro e na escola vêm aumentando, é uma
constante. E não é uma violência só de armas, não é isso. São todos os tipos de
agressões, eu não sei o que vai ser dessas crianças (Professora da escola ilha,
50 anos, dia 14/03/2005).
Para uma representante da comunidade e que tem três filhos estudando na escola,
um deles com dez anos e fazendo o PROERD, a favela é o lugar mais perigoso que existe
em função das drogas e da desestruturada familiar:
A minha casa fica, muitas vezes, no meio do fogo cruzado e meus filhos vêem
tudo isso; e nós alertamos que isso tudo quem trouxe foram às drogas. Mexer
com droga e com o roubo só leva à prisão ou ao cemitério. Esse é o destino de
quase todos aqui (...). Eu sei que o meu vizinho é envolvido com trafico, mas
converso, dou bom dia, porque se não for assim você vira inimigo deles e já era.
O meu vizinho teve que deixar sua casa porque se meteu com essa gente.
Arrombavam a casa dele direto e levaram todas as janelas de alumínio. Então,
tu tem que falar né? Mas, mesmo na favela, onde tem um monte de pai drogado,
mãe bêbada e prostituta, tem um monte de gente que se preocupa com o seu
filho (Dona de casa, 26 anos, dia 16/05/2005).
Esses argumentos, entre outros, são ressaltados, para reafirmar que o tratamento do
problema das drogas e das violências deve ser priorizado em contextos pobres, repercutindo
a visão de que tais problemas seriam próprios ou exclusivos desses locais. Os moradores
ficam entre o contraponto do problema das violências e das drogas, presente na favela, e os
rótulos existentes sobre a mesma. Sousa (2002: 95-96) diz que a favela do presente
incorporou, de acordo com as mentalidades branqueadoras das elites latinoamericanas, os
“fedores” do nosso modelo de colonização. Na construção de seu cenário, a estética
predominante é: lugar do sujo, do feio, do desorganizado, do atrasado, das barbáries de
101
toda ordem. E, nesse sentido, a autora reforça que as vendas dessa mentalidade só deixam
ver a sombra, e não esse espaço da favela, como um lugar de criatividade, de trocas de
afeto e de laços de sociabilidade.
Conforme os policiais, os alunos considerados, em suas palavras, “mais carentes”,
às vezes tornavam o convívio penoso:
Essas crianças que vivem na favela, em bairros carentes, vivem na violência e
convivem com mais drogas. Isso dificulta um pouco mais o nosso trabalho. Elas
têm esse contato com a droga dentro de casa e o fato de ver o pai bêbado, o pai
batendo na mãe revolta. A maioria deles está revoltado e querem muito chamar
a nossa atenção (...) Essas crianças que têm mais contato com as drogas têm
mais chance das atividades do PROERD não fazerem diferença (Policial
instrutor PROERD da escola continente, dia 16/09/2005).
O olhar dos agentes do Programa, que vêem a favela de muito longe, sob o foco do
controle e das políticas governamentais, não cria espaço para o diálogo e o encontro
interessado no momento de problematizar os estereótipos e a naturalização da criança e do
adolescente pobres. No olhar sobre o local, o PROERD utiliza do discurso caritativo e
filantrópico, que esvazia a condição histórico-política (Nascimento e Ribeiro, 2002: 24),
que atravessa e constitui a história dos jovens da favela.
Marcados por essas exposições sobre a favela muitos envolvidos nessa pesquisa
expressavam a importância do PROERD nas escolas:
Muitas dessas crianças vivem em péssimas condições e qualidades de vida.
Vivem na favela e, por viverem nessas condições, o PROERD é um importante e
bom Programa para elas. Os traficantes são um exemplo para elas. Acho o
programa legal porque prepara eles para a defesa das drogas, ainda mais
nessa vida que eles vivem. Esses bairros próximos da escola que são muito
violentos e têm muita droga. Não é um bairro fácil e o PROERD é uma forma
de prevenção, abre o olho deles com relação às drogas e à violência (Professora
da escola continente, 35 anos, dia 20/06/2005).
Conforme um morador do bairro próximo a escola continente, e que tem três filhos
na escola, dois deles no PROERD, o Programa é importante devido à área onde vivem:
Eu acho muito seguro ver a polícia passando na rua. Eu digo isso porque moro
em um bairro muito perigoso, um bairro rodeado pela violência. Uma parte
102
dele porque é como eu te falei, são dois mundos diferentes: um com pessoas
civilizadas lá no meio da favela... Não discriminando a favela, mas (...) a gente
sabe que ali tem muita gente envolvida com o tráfico, com o banditismo, com a
violência (Comerciante, 35 anos, dia 29/03/2005).
De maneira geral, as narrativas dos entrevistados e entrevistadas dessa pesquisa
resguardaram expressões carregadas de valores, nas quais os grupos sociais populares
foram identificados, muitas vezes por eles próprios, como seres menores, quase que
incivilizados, incapazes de viverem como cidadãos, porque condenados e expurgados do
modelo e dos ideais de vida burgueses. Para mim, essa é a tese principal e para a qual
desejo chamar a atenção: a favela não é criada e recriada somente a partir destas imagens
perturbadoras, que, como cantava Bezerra, a cruel sociedade faz cotidianamente questão de
anunciar. Esses relatos escondem os diversos valores da favela, entre eles, a vontade de
bem viver dos seus moradores e moradoras, que não têm como única herança o fracasso, a
morte ou a cadeia. São associações que procuram explicar as relações através de fatos
racionais e mecânicos, porém, a complexidade da vida social não permite essas
interpretações que tentam defini-la.
Descaracterizando o viés negativo da favela e apontando a sua diversidade, autores
com Zaluar e Alvito (1999: 07) descrevem com clareza a complexidade desse universo.
Dizem eles:
A favela ficou registrada oficialmente como a área de habitações
irregularmente construídas, sem arruamentos, sem plano urbano, sem esgotos,
sem água, sem luz. Dessa precariedade urbana, resultado da pobreza de seus
habitantes e do descaso do poder público, surgiram as imagens que fizeram da
favela o lugar da carência, da falta, do vazio a ser preenchido pelos
sentimentos humanitários, do perigo a ser erradicado pelas estratégias políticas
que fizeram o favelado um bode expiatório dos problemas da cidade, o outro,
distinto do morador civilizado. Favela – lugar do lodo e da flor que nele nasce,
lugar da finura e elegância de tantos sambistas, desde sempre, e da violência
dos mais famosos bandidos que a cidade conheceu ultimamente, a favela
sempre inspirou e continua a inspirar tanto o imaginário preconceituoso dos
que cantaram (e cantam) suas várias formas de marcar a vida urbana.
De qualquer forma, entendo que desnaturalizar esses discursos e práticas
hegemônicas, e extrapolar as imagens de violências cimentadas nesse cenário, permite-me
construir outra percepção dos moradores de origem popular. O que é fundamental para que
103
eles possam reconhecer-se e serem reconhecidos como sujeitos, integrantes da cidade, bem
como para que tenham seu espaço de moradia apresentado de outra forma na padronizada
arquitetura do complexo urbano.
Os espaços educativos também têm essa possibilidade de reconhecer os valores
produzidos e vivenciados pelo grupo de crianças e jovens da favela. Sendo assim, para
Wagner (2004: 21), a favela precisa ser compreendida, explicada e melhor contextualizada
para que as instituições educativas possam aproximar-se desse espaço e indicar novos
significados à vida do aluno. Ao aproximar-se de outras linguagens, os moradores da favela
ampliam gradativamente seu campo de possibilidades sociais. Pela produção de formas
culturais próprias e através do acesso a outras formas, criadas por outros grupos sociais,
talvez eles possam criar um processo contínuo de transformação do espaço vivido, em geral
considerado inóspito.
Penso que o ambiente constitutivo das favelas é onde se pode mais facilmente
perceber um movimento que Maffesoli (2001) chama de solidariedade orgânica, ou seja, a
idéia de um espírito de conjunto. A solidariedade orgânica se constrói na vida cotidiana e se
expressa mantendo laços sociais onde a duplicidade, o riso, a tagarelice, o silêncio e a
astúcia garantem em forma de resistência, a ‘coesão’ do grupo (Quimarães, 1996: 19). O
desejo coletivo existente nas favelas e a multiplicidade da vida social ali apresentada,
habituada ao antagônico e ao diferente, permite a harmonia dos contrários feita, entre
outros, de excessos e de violência, mas que retorna ritualmente para reunir o que havia
sido dispersado, garantindo a sobrevivência e a resistência às imposições sociais.
Somente quando programas como o PROERD reconhecerem as favelas como
lugares plurais, marcados por desafios e positividades, é que, possivelmente, poder-se-á
contribuir para que os sentimentos narrados pelas crianças que nelas vivem não sejam
prioritariamente carregados pelo estigma:
Muitas vezes eu choro por morar nesse lugar, sempre vendo minha mãe
reclamar de tudo, os tiros que têm aqui. Meu irmão foi preso porque roubava
para usar a droga, mas agora ele parou porque ele teve uma filhinha. Só que
tem um monte de vezes que, em vez da polícia fazer a nossa segurança, ela bate
sem causa nenhuma. Ela faz isso mais com quem mora em favela. Mesmo se eu
104
não fiz nada a polícia já acusa, só porque moro ali. Entende porque é tão ruim
morar na favela? (Aluno da escola continente, 11 anos, mora com a mãe e
quatro irmãos, dia 12/05/2005).
Para esse menino e outros tantos com quem cultivei as conversas nessa pesquisa, a
lógica que reúne os tiroteios semanais e a revolta de ser objeto da suspeita da polícia é uma
constante. Ainda que a comoção por tal relato gere indignação e protestos, a questão
central, e que cerceia as ponderações presentes nesse texto, não é a de meramente julgar os
responsáveis, mas ter a consciência, como salienta Sousa (2002: 111), de trazer para o,
(...) debate, ao qual nenhum de nós pode ser indiferente, o modo de conceber as
cidades, de ocupar seus espaços, de adornar-se de seus territórios, de interferir
na convivência individual e coletiva que cria uma sociabilidade confusa e, em
certas circunstâncias, dolorosa.
E, nesse sentido, o que provavelmente nos falta é a abertura para escutar um pouco
mais a voz do sambista, uma voz que idealiza um sonho bonito, mas que, ainda que seja
pela idealização, redesenha um outro projeto de vida para os diversos grupos sociais que
constituem as favelas.
3.2 “Luz, câmera, ação
68
” - As lições do PROERD na escola continente
Com a aplicação da nova proposta, o currículo PROERD passou a ser organizado
em dez lições que continham idéias e princípios de prevenção às drogas e às violências,
compartilhadas com as crianças e os jovens da quarta série do Ensino Fundamental, em
aulas semanais, nas escolas públicas e privadas. Cada lição teve a duração de sessenta
minutos e as aulas foram ministradas, obrigatoriamente, por policiais militares capacitados
para atuarem como instrutores.
Com o intuito de poder melhor contribuir na compreensão e nas reflexões que
emergiram posteriormente, apresento, de forma breve o quadro abaixo, com a descrição das
lições do PROERD. Este quadro é mesclado pelo estudo do material de apoio (cartilha) dos
policiais e pelas observações nas escolas campo de pesquisa:
68
Palavras que fazem referência ao campo de pesquisa. “Luz, câmera, ação” foi um bordão muito utilizado
pelo policial para obter a atenção das crianças e que observei ser usado também por outros policias. Os
policiais salientaram que essa é uma estratégia para chamar a atenção das crianças quando estão dispersas,
distraídas ou conversando em sala e é ensinada como “truque” pelos instrutores do PROERD.
105
Primeira
lição:
Propósito
s e visão
geral
O início da atividade do PROERD nas escolas é marcado pela
apresentação, à criança, do policial e do Programa. O policial traduz o
significado da sigla PROERD e ensina que o objetivo é proporcionar
uma vida mais saudável, longe das drogas e das violências. Apresentam
para os educandos a proposta do modelo de tomada de decisão
PROERD, como ferramenta para todas as atividades seguintes.
Segunda
lição: O
cigarro e
você.
Nessa lição discutem explicações sobre o efeito destrutivo do cigarro e
os tipos de rótulos de advertência anunciados pelo Ministério da Saúde.
Realizam atividades de grupo, com o objetivo de desmistificar a idéia
de que os uso de drogas, principalmente cigarro e álcool, atinge a
maioria da população.
Terceira
lição:
Cortina
de
fumaça.
Nessa lição são enfatizados, principalmente, os agentes químicos da
maconha e seus prejuízos à saúde do usuário. Os policiais desenvolvem
também uma atividade de completar frases, cujas respostas dão ênfase
aos malefícios da fumaça da maconha.
Quarta
lição: O
álcool e
você.
O Programa destina um espaço importante na cartilha para as
atividades sobre o álcool. Várias situações exemplos são criadas para
que os alunos optem por decisões. Utilizam dos efeitos negativos do
álcool, no organismo, e usam do jogo “verdadeiro e falso” para
exercitar o conteúdo apresentado.
Quinta
lição: A
verdade
real.
Essa aula é dedicada às explicações sobre a maconha. Nela foram
somente reservados comentários sobre os efeitos biológicos do uso de
maconha e também de inalantes e o quanto essa droga é acessível nos
meios mais “carentes”.
Sexta
lição: As
Nessa lição enfatizam a boa e a má amizade, bem como, os pilares de
fundamento do Programa PROERD: a escola, a família e a polícia.
Reservam um espaço especial para discutir a pressão do grupo, que
seria a pressão exercida por um grupo de amigos numa decisão pessoal.
106
bases da
amizade.
Para isso, novamente usam da situação exemplo, onde os alunos
ajudam os jovens personagens a tomarem a decisão de não usar drogas.
Sétima
lição:
Decidindo
de forma
confiante.
Nessa lição usam de argumentos e “fórmulas” para dizer aos alunos
como eles devem evitar situações de risco, ou seja, o oferecimento de
drogas por um amigo ou estranho. Quase todos têm como meta fazer
com que os jovens evitem aproximar-se de pessoas e ambientes
drogados. Mas, caso isso ocorra, a saída seria simplesmente dizer não
ou lidar com a situação com tranqüilidade.
Oitava
lição:
Ação
pessoal
Utilizam da proposta modelo de tomada de decisão PROERD para
explicar como as pessoas usam de pressões cotidianas contra o seu
próprio bem, chamada por eles de pressão pessoal. Solicitam a escrita
de uma redação (ou poesia) contendo o que foi aprendido pelos alunos
nas aulas do PROERD.
Nona
lição:
Pratique!
O policial propõe, nessa lição, uma recapitulação de tudo o que foi
aprendido no Programa, por meio de uma atividade lúdica (jogo).
Décima
lição:
Formatur
a
O PROERD encerra seu trabalho com o ritual da formatura, quando são
entregues diplomas a todos os participantes das aulas. Normalmente,
uma peça de teatro com o que foi aprendido é encenada pelos alunos,
nesse momento final. As melhores redações são lidas e há entregas de
prêmios, se for o caso.
Fonte: Cartilha PROERD.
Compondo o cenário e contextualizando o ambiente da pesquisa, aquilo que foi
observado, trago numa narrativa cronológica, inspirada pelas descobertas que o campo me
autorizou a ver, fatos e imagens que foram marcando esse percurso. O fato de permanecer
no ambiente escolar com os sentidos preparados para o risco e o desafio me fez descobrir
que estar naquele lugar possibilitaria o tecer da percepção e do sentido das múltiplas
relações que atravessam as práticas cotidianas, demonstrando, dessa forma, ainda mais a
importância de contextualizar as falas e as histórias dos envolvidos na pesquisa em relação
107
às ações em que efetivamente ocorreram. A seguir, inicialmente na escola continente,
discuto a inserção desse Programa nas instituições pesquisadas.
No mês de abril de 2005, na escola continente, passei a freqüentar as atividades
iniciais do PROERD, com o grupo de crianças da quarta série do Ensino Fundamental. Os
dirigentes responsáveis pela escola, o policial instrutor da turma e as crianças foram
atenciosos e solícitos para com a efetivação da minha pesquisa, o que favoreceu as minhas
observações em campo. O primeiro encontro do PROERD foi marcado pelas brincadeiras e
o tom cordial do policial, que nesse dia explicou sobre a origem e os objetivos do
Programa. Todas as crianças da sala estavam falantes e comunicativas; nenhuma delas
ficou surpresa com a presença de um policial em sala e, conforme a professora, aguardavam
ansiosas pelo início das atividades.
Nesse primeiro encontro também foi reforçada, pelo policial, a importância da
presença da família para o bom andamento do Programa. Ele afirmou aos alunos que
somente no acompanhamento dos valores da família e na obediência aos pais os alunos
poderiam criar uma armadura contra as drogas e as violências. Em nenhum momento o
policial problematizou o contexto familiar das próprias crianças ou questionou os
estereótipos que circulam ao redor dessa família perfeita e capaz de proteger os seus entes
mais próximos. Isso indica que vivemos numa sociedade que, mesmo tardiamente, ainda
guarda traços fortes da tradição, família e propriedade, e a escola contribui, juntamente com
a igreja e o Estado para a unidade dessa trilogia.
Para exemplificar um dos principais conteúdos da primeira lição da cartilha
PROERD, intitulada modelo de tomada de decisão, o policial recorreu ao uso de uma
“situação exemplo”. Essa primeira atividade é concebida pela equipe pedagógica
69
do
Programa como fundamental para a compreensão de quase todos os exercícios e de muitas
explicações utilizadas nas aulas. A situação exemplo contém uma história, sempre com
jovens ou crianças, que leva o leitor a ter que tomar decisões, que em geral envolvem a
escolha entre usar ou não drogas, ser ou não violento. As crianças demonstraram ter muitas
69
Policiais militares, pedagoga e a oficial militar responsável pelo PROERD em Santa Catarina.
108
dúvidas sobre essa lição, além de dificuldades em entender os termos utilizados no
exercício, que se traduzem em: defina, analise, atue e avalie
70
.
Esse exercício, assim como outros contidos na cartilha, estavam baseados como
afirmou o policial, em possíveis experiências dos jovens. No entanto, as atividades não
contemplavam a pluralidade do universo juvenil e somente ofereciam duas alternativas aos
alunos: seguir a trilha do bem, do suposto caminho certo e que iria garantir um futuro feliz,
longe das drogas e das violências, ou enveredar para o mal, ou seja, caminhar para o
violento “mundo das drogas”. Ao reduzir a discussão sobre as drogas a um curso de moral
e religião, na maioria das vezes preconceituoso, definindo o bem e o mal como se fossem
absolutos (Aratangy, 1998: 12), era como se o policial perguntasse, às crianças, quem elas
desejariam ser na vida real: o bandido ou o herói? O modelo de tomada de decisão
PROERD e as situações exemplos usadas nas aulas retratavam, assim, modelos
desconectados das nuances da vida e criavam uma única e simples caricatura dos fatos,
diminuindo as diversidades e a realidade apresentada.
Nas aulas, o principal instrumento utilizadas pelo policial foi a cartilha PROERD. O
que fui percebendo no decorrer das aulas é que as crianças, às vezes desconfortáveis e
exaustas com o discurso do policial sobre os assuntos discutidos em sala, retomavam a
atenção quando ele propunha realizar as atividades da cartilha. Além de indicar o
desinteresse por algumas aulas, esse apego à prisão dos cadernos e dos livros era
satisfatório porque nas aulas PROERD se tornou sinônimo de cópia na elaboração dos
exercícios. Tal prática foi estimulada pelo policial e em várias atividades, as crianças com
dúvidas sobre as questões da cartilha eram incentivadas a esperar as respostas serem
respondidas no quadro. O conteúdo apesar de denso foi muito pouco debatido e somente a
voz desse “educador” externo ao cotidiano da escola era ouvida durante as aulas. Os
educandos não foram levados a formularem reflexões e as aulas finalizavam com as
especulações do policial sobre os usuários de drogas.
No horário da saída do primeiro e segundo encontros, algumas crianças,
principalmente as meninas, despediram-se carinhosamente do policial. Observei que esse
70
Essa atividade e as lições constam da cartilha e encontram-se em anexo.
109
gesto voltou a acontecer poucas vezes em sala. A figura do policial, a princípio novidade,
permaneceu presente no primeiro dia de aula, deixando uma impressão de tranqüilidade que
agradava muito a esse profissional. Mas, uma vez ele fora transformado em professor, os
dilemas dessa relação ficaram latentes. A inquietude dos alunos, as conversas paralelas, as
trocas de palavrões e de tapas levou, em determinado momento (terceiro encontro
PROERD), à seguinte exclamação do policial: Vocês vão me deixar maluco! Vou jogar
alguém pela janela! Entre as conversas e a falta de interesse, nem as palavras meio mágicas
pronunciadas por ele, como “luz, câmera, ação” acalmaram o ânimo dos alunos.
A professora afirmou não entender a reação dos alunos, já que esperavam e pediam
tanto pelo início das aulas do PROERD. Em seguida, num ato de revolta, autoritarismo e
culpa pelo comportamento da turma, demonstrando a face de um relacionamento
“pedagógico” problemático, ela ordenou que todos os alunos calassem a boca.
Violentamente exclamou também aos gritos que naquela sala não sabia se havia gente ou
bicho; foi ainda mais agressiva com dois meninos
71
, com quem a relação era conflituosa,
ameaçando puni-los severamente. Os garotos foram posteriormente expulsos da sala pelo
policial. Para a professora, sua situação era muito complicada, pois convivia com a
indisciplina dos alunos durante toda a semana e era através dos deveres e das expulsões que
punia muitos deles. Ao final desse encontro, o policial trocou idéias com um colega que
controlava o trânsito em frente à escola. Ambos reclamavam da falta de respeito das
crianças, dizendo que só era possível controlá-las pegando-as pelo braço. O policial
apontou para uma menina que brincava com um grupo de crianças na rua e exclamou: essa
é uma praga, está repetindo o ano e não aprendeu nada. A menina usava a camiseta do
PROERD. A professora disse acreditar que o policial precisava ser mais pulso firme e que
os alunos estavam brincando com ele, pois o comportamento indisciplinado era comum e
freqüentemente ela própria parava as aulas para expulsar alguns alunos. Comentou o
71
Esses dois meninos, repentes da quarta-série, em quase todas as aulas eram os que recebiam maiores
advertências do policial e da professora, devido ao comportamento inadequado. Um deles foi reprovado no
curso do PROERD. Acredito que a participação dos alunos num projeto de prevenção não deve ter um caráter
avaliativo e/ou punitivo, com o poder de aprovar ou reprovar o aluno. O trabalho preventivo precisa ser
desenvolvido por meio de comentários qualitativos e construtivos, formulados com o objetivo de aprofundar e
melhorar o sentido do que foi apresentado e do valor humano de cada aluno, e não construídos como resultado
de uma avaliação formal.
110
quanto sua postura era necessária, comparando o seu exemplo com o de outra professora da
escola que por não querer ser tradicional, os alunos estavam montando em cima dela.
Esse foi um dia especialmente desagradável. Deixei a escola com o peso da
desilusão, devido aos seguidos e repetitivos atos de violências trocados entre os alunos,
professora e policial. A ameaça do policial, em gestos semelhantes aos da professora foi
sinônimo da ilegitimidade a que as crianças daquela sala estavam submetidas na relação
pedagógica. A qualquer insinuação de uma aula que saísse do controle da professora ou do
policial, as crianças foram imediatamente rotuladas e punidas das mais variadas formas. No
entanto, muito se pedia, nas aulas PROERD, para que os alunos e alunas tivessem
equilíbrio, não fossem violentos e sim companheiros e respeitosos. Os próprios dirigentes
das escolas pesquisadas ressaltavam a agressividade dos jovens escolares como um de seus
principais problemas. Porém, na escola e nas aulas do PROERD essas crianças foram
tratadas como um objeto que pode facilmente ser agredido, violado e ridicularizado.
No que se refere às violências dos educandos contra a comunidade penso que no afã
de serem respeitados, talvez como resistências, alguns jovens usam da força física e
praticam atos de violências para divulgar seu poder. As violências, neste caso, podem ser
empreendidas com a intenção de se afirmarem diante do outro, mostrar o ethos masculino-
patriarcal que ainda reina, como herança cultural, na sociedade em que vivemos. Para
Sousa (2002: 26) as violências podem emergir como um modo de reação (contestação)
contra outras violências que se fazem realidade nas ações da própria escola. Dessa forma, a
superação da violência na escola, quando possível, pode se dar:
(...) através de políticas públicas de direitos sociais que tenham por desejo
explícito a formação de novos homens e de novas mulheres que são feitos na
feitura das crianças e adolescentes. Indignar-se diante da catástrofe exige mais
que discursos. Exige o desejo de pensar diferente e agir em coerência e
congruência com esse pensar.
Para tentar contornar o problema que havia sido gerado, pois o policial ameaçava
desistir das aulas naquela turma, a professora aconselhou a troca das atividades do
PROERD para o primeiro horário da manhã. O policial acatou a sugestão, pois assim
consideravam que a turma estaria mais disposta e tranqüila. A partir da terceira lição, e com
111
o novo horário, o policial começou a enfatizar o contexto das drogas. Os alunos, através de
relatos e conversas paralelas durante as aulas, demonstravam conhecer muito bem esse
universo. Citaram os nomes usuais de algumas drogas como pacotinho, trouxa, entre
outros. Entre si, contaram histórias sobre os familiares que fumavam, dos pais que pediam
para que eles comprassem cigarro na venda e alguns poucos sobre o tio ou um irmão que
havia sido preso pela polícia pelo uso de drogas. Nos últimos minutos dessa aula, o policial
usou um retroprojetor para, em transparências, mostrar fotos e imagens de pessoas
adoentadas por causa do cigarro e do álcool, com câncer de boca, olhos, garganta, pulmão,
cirrose e hepatite.
As crianças ficaram impressionadas com as fortes imagens. Algumas se sentiram
enojadas; outros fechavam ou tapavam os olhos com as mãos por medo e angústia. Essas
reações não deixavam de indicar que o que nos marca é a nossa necessidade de proteção e
aquelas imagens eram contra qualquer referência ao vivo; eram imagens da morte do corpo,
mortes do tecido, morte dos órgãos. A destruição do corpo, assim como outros fatores que
afetam a parte biológica dos seres, foram sempre enfatizadas nas aulas PROERD com o
objetivo de ressaltar os perigos das drogas. Ao comparar a discussão sobre os efeitos das
substâncias psicoativas, o PROERD reduziu, acima de tudo, o problema a uma questão
racional. Isso implicava olhar as drogas somente como um dano social, ou como um
problema tóxico e não como um desafio social para cada um de nós.
Uma das dinâmicas mais utilizadas pelos policiais nesse novo currículo PROERD
foram os exercícios realizados em grupo. Conforme a oficial militar responsável pelo
programa em Santa Catarina, essas dinâmicas tornaram-se destaque desse novo currículo,
proporcionando ao Programa um grande salto qualitativo:
Esse novo trabalho é totalmente dinâmico, os alunos desenvolvem as atividades
em grupo; são trabalhos feitos pelos jovens para que o próprio grupo chegue a
uma conclusão (Oficial militar, dia 12/08/2005).
O que presenciei nessa sala foi a dificuldade das crianças em realizar essas
atividades, seja na formação dos grupos ou na realização das atividades. Contudo parece
que o maior dos problemas estava no fato de que praticamente todas essas atividades
possuíam um caráter competitivo. De acordo com Maturana (1998:1 3), o mais grave é que
112
sob o discurso que valoriza a competição como um bem social, não se vê a emoção que
constitui as ações que negam o outro. A competição, portanto, não é sadia, porque se
constitui na negação do outro. Na escola, foi possível perceber as crianças que queriam ser
as vitoriosas, independente de quais fossem os obstáculos, e aquelas que relutavam em
participar. Uma menina em especial e que a professora já havia me descrito com desdém,
recusou-se a participar de muitas dinâmicas. Para a professora, a menina só queria saber de
conversar e fazer bagunça. Estudar que é bom ela não quer saber. Ficou claro que as
crianças que se esconderam do jogo e preferiram não manifestar suas opiniões foram
aquelas rotuladas pelas professoras como deficientes, malandras, preguiçosas e
desinteressadas; e as supostamente mais esforçadas e competitivas eram as crianças
reconhecidas pela professora como bons alunos, comportados e participativos.
Um dos recursos dos policiais nas aulas foi o uso da caixinha de perguntas
PROERD. Para eles, essa é uma importante ferramenta, porque mantém a privacidade
diante das perguntas, além de ser um momento reservado para tirar dúvidas. Muitas
questões apontadas pelos alunos se referiam à vida privada do policial: O policial tem
namorada? Há quantos anos trabalha no PROERD? Gosta de dar aulas? Outras eram
relativas à curiosidade sobre a atividade policial: O policial tem que comprar a própria
arma? Como é prender alguém? Você já atirou? Quanto ganha um policial? E algumas
perguntas insinuavam vontades de mudança, tornando-se quase uma exclamação: Seria
legal se tivéssemos passeio! Queremos fazer teatro! Por que o policial às vezes fala tão
alto!? E em outras vezes deixa que os alunos falem junto com o professor?
O policial criou uma brincadeira para que as questões da caixinha de perguntas
fossem respondidas: ao ser retirada a pergunta da caixa, os alunos deveriam fazer barulho
de “tambores”, batendo a palma das mãos na carteira. Eles demonstraram felicidade com a
idéia e o momento foi sempre aguardado com muita ansiedade e gosto. A necessidade de
uma atividade lúdica e que desprendesse o corpo tantas vezes preso às carteiras foi
aclamada pelos alunos em meio a um ambiente prioritariamente sério e comportado.
Em um dos últimos encontros com a turma, o policial explicou sobre uma atividade
considerada por ele como muito importante: a lição que discutia as pressões cotidianas e
113
pessoais, ou seja, as pressões que nós cometemos contra os outros e contra nós mesmos no
dia-a-dia (Policial instrutor). Para o policial, essa aula era fundamental para afastar as
crianças das drogas, pois nela eles aprendiam a importância de ter ao lado amigos que não
usassem drogas e que ajudassem a resistir aos diversos tipos de pressões. Comentou que as
pessoas usam drogas em um momento de fragilidade, ou quando estão se sentindo mal ou
sozinhas: esses sentimentos levam ao uso porque as pessoas acreditam que com a droga o
problema será resolvido ou se tornará menos penoso. Nesse momento atribuiu uma grande
ênfase às atitudes não-violentas que as pessoas devem ter com relação a si mesmas e aos
outros, em especial quando confrontadas com algo que as incomode ou quando estiverem
diante de uma situação arriscada como as drogas, por exemplo.
Talvez o medo e o problema que as drogas causem em nossa vida social seja
resultado do que elas representam para a nossa sociedade: a ruptura da ordem e da
idealização de uma vida cotidiana que transcorre de forma perfeitamente linear. A polícia,
na escola, por meio do PROERD, empregava o controle da desordem em nome da razão e
da segurança diante do acaso de um futuro incerto causado pelo uso das drogas. O protótipo
dessa ação, conforme Maffesoli (2005: 42), repousa sobre a moral baseada no dever-ser,
onde o educador corrige, vigia, retifica os erros em nome do bem da sociedade e da
domesticação das paixões. Livrar a sociedade das drogas é também proclamar livrar a
“sociedade perfeita das orgias que fogem ao controle do político, dos contornos
indefinidos, da complexidade e dos ensinamentos heterogêneos. Daí a imposição de uma
lógica do estado tutelar, que pretende totalizar tudo a priori. Para Maffesoli (2005: 38),
uma organização social não será fecunda e produtiva se não souber enfatizar a
diversidade. E isso tanto no que diz respeito à cultura e à organização política quanto a
simples vida cotidiana. O PROERD, ao contrário, evidenciou ser uma organização e uma
gestão dos costumes morais e intolerantes que sempre fizeram a sociedade.
No último encontro, após expor aos alunos um resumo de tudo o que foi
apresentado nas aulas o policial solicitou que fosse desenvolvida a redação sobre o
PROERD, redação esta que foi dada como atividade final. Após isso, o policial pediu
desculpas à turma e disse que teve momentos difíceis, mas que, por fim, tudo foi
recompensador. Agradeceu a todos, muitos meninos e meninas despediram-se dele com
114
beijos e abraços. Pareceu-me, muitas vezes, que o trabalho educativo, os vínculos
constituídos e construídos com a escola, a afetividade, o ser chamado de professor, com
toda a sua carga simbólica e empática, os beijos, os abraços, o reconhecimento de ser esse
tipo de profissional e não outro da agressão e da cobrança. Enfim, todas essas questões
possibilitaram, para os policiais PROERD, um ideal. Talvez o Programa represente um
caminho para esses atos remanescentes de ternura e por isso seja uma causa abraçada por
tantos policiais.
3.3 “Hoje é dia de PROERD
72
” - As lições do PROERD na escola ilha
Na escola ilha, a comunidade escolar foi um pouco menos receptiva com a notícia
da pesquisa, quando compara à comunidade da escola continente
73
. No entanto, em minha
primeira visita às aulas, a policial, que se encaminhava para o segundo encontro do
PROERD na escola, foi simpática ao me receber. Tentou, em vão, apresentar-me à turma,
que estava agitada e não esboçou nenhum tipo de reação com a minha chegada. A
professora de sala não estava presente e assim foi durante toda a aula daquela manhã. No
seu retorno, diante da indiferença e das “travessuras” das crianças, pediu desculpas pela sua
ausência e pelo comportamento da turma. A policial procurou manter-se calma e não foi
grosseira ou agressiva com os alunos. Nesse primeiro encontro, diante das dificuldades,
explicou-me que não poderia interferir no comportamento deles, brigando, como as
professoras faziam, porque a farda que usava era por si só uma coisa agressiva e repressora
e ela não estava ali para reforçar isso. Quando o barulho era intenso, ou as crianças não
respondiam às expectativas “pedagógicas” propostas pela policial, era a professora da sala,
aos berros, que “controlava a rebeldia dos alunos” e padronizava o comportamento,
exigindo que todos aprendessem no mesmo ritmo. A policial, em nenhum momento dessa
pesquisa, teve acessos de raiva e gritaria com as crianças. Mesmo diante de situações
conturbadas procurou manter um relacionamento respeitoso com os alunos, considerando
suas opiniões, pedindo com licença e por gentileza quando desejava conversar ou obter a
72
A policial iniciava as aulas com um sonoro: “Bom dia. Hoje é dia de...?” E as crianças respondiam: “É dia
de PROERD!”
73
A professora da escola contestou a efetivação da pesquisa e foi resistente ao me receber em sala de aula.
115
atenção deles. Mas, de forma complacente, sempre esperou que o movimento agressivo e
violento fosse realizado por uma das professoras da escola.
No âmbito escolar, através de suas ações educativas, um diálogo possível é
compreender como os currículos escolares e as atitudes dos educadores contribuem para
promover culturas de violência ou de paz. Muitas vezes é na escola que as violências
ganham concretude, especialmente quando as práticas pedagógicas se defrontam com a
homogeneidade que geram, enquadrando a todos num mesmo lugar social. Conforme
Restrepo (1998: 65), a escola é incapaz de perceber a singularidade, pois não entende que
aprender é um gesto humano de comunhão que, radicalmente, necessita da presença do
outro, de seus ensinamentos e condutas para efetivar-se. Para ele,
(...) a escola é violenta quando se nega a reconhecer que existem processos de
aprendizagem divergentes, que entram em choque com a padronização que se
exige dos estudantes. Haverá violência educativa sempre e quando
continuarmos perpetuando um sistema de ensino que obriga a homogeneizar os
alunos na aula, a negar as singularidades, a tratar os alunos como se todos
tivessem as mesmas características e devessem responder às nossas exigências
com resultados iguais.
Nesse primeiro dia de atividades, fundamentado, como destaquei anteriormente, no
modelo de tomada de decisões PROERD, a policial chegou dizendo às crianças que todas
as decisões que tomamos têm uma conseqüência e exemplificou: Se vocês estudarem vão
tirar notas boas; se não estudarem vão tirar nota zero. Reforçou, como fez o policial da
escola continente, que, diante da dificuldade de uma decisão, o certo é procurar a família ou
a professora para com isso trazer coisas positivas para sua vida. Mais uma vez, as lições de
vida PROERD passam valores binários de causa e efeito. Fala-se de uma vida que não
parece crescer na adversidade; esquece-se da complexidade e emprega-se um valor e um
comportamento, cultuado pela sociedade, de família e de escola que, em muitos casos, não
coincide com aqueles que as crianças e jovens vivenciam
74
.
Uma outra referência do Programa foi a crítica empregada contra os meios de
comunicação. A policial lançou, na lição PROERD seguinte, uma pergunta que deveria ser
74
Conforme a pedagoga do PROERD, os policiais têm palestra para discutir esse padrão de família que,
segundo ela, não existe: Falamos de que a estrutura familiar modelo é equivocada (Pedagoga do PROERD,
37 anos, dia 12/08/2005). No entanto, a pesquisa evidenciou que as discussões não continham esse teor.
116
respondida em grupo: Porque os empresários de cigarro, mesmo sabendo que há mais de
duzentas mil mortes por ano devido ao fumo, fazem propagandas bonitas, com pessoas de
dentes brancos e com diversas paisagens? Explicando para uma das equipes que não havia
entendido a questão, disse: Nós já vimos que o cigarro faz muito mal, mas por que então os
empresários fazem esse tipo de propaganda? Os alunos foram participativos, relembraram
diversas propagandas e acreditavam que esses anúncios faziam muito mal, porque
influenciavam as pessoas a comprarem os produtos anunciados. A policial então afirmou
que os anúncios tentam conquistar e assim vender mais: Até “amigos” vão tentar
influenciar dizendo coisas bonitas para você, mas o cigarro tem conseqüências, agora ou
no futuro. Um conteúdo semelhante foi debatido na lição sobre os inalantes.
Essa tentativa de investigar o tema parece produzir um problema na sua própria
compreensão. Ao procurar os porquês do uso de drogas, remetendo a culpa a vários
elementos - sociedade de consumo, mídia, amigos, desestrutura familiar etc -, deixa-se,
como diz André e Vicentin (1998: 69), menos de sacar a solução desafio que a droga
aponta para cada um de nós. Trata-se, assim de perceber como as drogas tocam nas forças
capazes de nos tirar de nossa indiferença e como construir valores sociais capazes de
produzir imunidades diferentes em relação a ela. Até mesmo porque não é possível banir
as drogas do nosso mundo, mas podemos transformá-las em forças capazes de nos mover a
construir coletivamente a vida. O importante não é julgar culpados e inocentes e sim criar
novos espaços para a transformação e a expressão.
Na terceira aula, a policial chegou na escola com um volumoso embrulho. Perguntei
o que era e ela afirmou que estava carregando uma surpresa para todos. As crianças
estavam à espera da policial, sentadas em grupos, calmas e tranqüilas. Esta tirou do
embrulho um brinquedo de pelúcia, um leão com a camiseta do PROERD contendo a
seguinte frase: Não use drogas seja inteligente! Disse que aquele era o leão DARE,
símbolo do PROERD: O leão é o símbolo do PROERD porque é o rei da floresta e cada
um deveria ter a força necessária assim como o leão para superar seus medos, não usar
drogas e não ser violento. As crianças prestaram muita atenção as suas palavras e ficaram
contentes e eufóricas com a surpresa. Depois foi solicitado que alguém cuidasse da mascote
com muito carinho e atenção. Muitos quiseram segurar; houve sorteio. Dois meninos foram
117
sorteados e ficaram com o leão. A professora da sala riu muito, pois eram dois garotos mais
velhos, já adolescentes. Todos da sala começaram também a rir. Diferente do que se
poderia conjeturar, após toda essa reação, os jovens foram afetuosos com o mascote. Para a
policial, essa era “uma forma deles demonstrarem carinho”. Penso que foi uma maneira de
trabalhar a afetividade dentro de sala de aula. Conforme Restrepo (1998: 23), aquele que
expressa com intensidade seus sentimentos pode ser qualificado de maneira pejorativa (...)
nada se teme tanto como a fraqueza afetiva.
Na lição intitulada Álcool e você, formaram-se grupos escolhidos pela policial
(quem estava mais próximo). Preocupada com os aspectos pedagógicos de sua aula, esta, ao
realizar os exercícios, em nenhum momento colocou respostas prontas e padronizadas no
quadro, permitindo que os alunos realizassem as lições por conta própria. Nessa turma, as
crianças participaram bem dos trabalhos em grupo, comentando o conteúdo das lições entre
si, trocando idéias e pensando em conjunto. Nessa lição sobre os efeitos do álcool, a
policial perguntou aos alunos quem já não havia escutado histórias de algum bêbado que
matou alguém. Disse que muitas vezes, por instinto, temos vontade de esmagar o pescoço
de alguém, mas como somos civilizados, temos o controle e por isso não agredimos.
Porém, os bêbados, por exemplo, não têm esse controle. Supôs, dessa forma, a idéia de
uma natureza humana agressiva e repassou um conceito de violência, associando-a
exclusivamente a questões de ordem física. Porém, como discuti anteriormente, a
ambivalência com relação ao fenômeno das violências é “rebelde” à análise, não sendo
possível explicá-la por meio de um argumento único.
Para Castoriadis (1996), a questão das violências aparece como decorrência da
apatia, da insolência, da falta de projeto político e da ausência de perspectivas dentro das
escolas. As violências não dizem respeito, portanto, apenas às agressões físicas cometidas,
por exemplo, pelos policiais em suas práticas cotidianas, ou por pessoas drogadas e
bêbadas, como sugere o PROERD. Conforme Bourdieu (1992), há a “violência simbólica”,
exercida no interior das ações educativas, toda vez que se impõe um significado como
sendo legítimo, verdadeiro, sem mostrar quais são as relações de força da sociedade que
determinam este significado como o legítimo verdadeiro (Whitaker, 1994: 28). De acordo
com Restrepo (1998: 65), qualquer atitude, inclusive aquelas que se apresentam como
118
bondosas, pode ser violenta se não partir de um respeito à singularidade humana, de
educandos e educandas e de educadores e educadoras. Ao agir nestas circunstâncias, a
escola cria, para estes sujeitos, um sentimento de exclusão da vida escolar, de não serem
merecedores de respeito e, em conseqüência, abafa sua auto-estima, fundamental para o
desafio indissociável entre ensinar-aprender.
Da atividade anteriormente citada, a policial passou a falar sobre a amizade, mas de
uma maneira específica sobre o bom amigo. Alguns alunos foram incitados a responder o
que para eles era ser um bom amigo, algumas respostas foram: é aquele que ajuda, escuta,
sabe do que gosto e não gosto, que brinca, não seduz a fumar drogas, não oferece bebida e
que fala a verdade. A policial reforçou a idéia, para as crianças, que seus melhores amigos
eram as professoras: a professora não está em sala para ganhar salário, mas para ensinar
um caminho bom. É alguém que se preocupa com vocês. Por isto, as respeitem. Elas são
seus melhores amigos. Novamente, percebe-se aí a idealização da professora e a
manifestação do lugar que cada um ocupa dentro da “hierarquia” da escola, pois, de acordo
com a filosofia proerdiana, toda professora quer o bem de seu aluno, enquanto uma outra
criança pode supostamente ser seu inimigo.
Começaram então a falar sobre como identificar alguém que não é um bom amigo.
As crianças responderam que o não-amigo era aquele que conta mentira e fuma cigarro,
bebe, briga com os outros, incomoda, xinga, deixa com raiva. Para a policial, o amigo ruim
é aquele que não pensa no outro: está mal e quer levar o outro junto. Querem aprontar,
fazer bagunça e depredação na escola, mas não querem fazer sozinhos para não levar a
culpa. Esse contexto das discussões sobre as boas e más amizades nas aulas PROERD
contribui para difundir um forte estigma presente na vida social: o de que as pessoas
usuárias de drogas são maldosas, violentas e de péssima índole, ou, no mínimo, fracas e
obsessivas. Pedia-se nas aulas para que os alunos se afastassem, cruzassem a esquina se
possível, para não terem que encontrar com “essas pessoas” (usuárias de drogas). Forjavam,
assim, uma identidade pejorativa dos grupos, principalmente dos grupos jovens, o que
gerava entre as crianças um clima de preconceito e pânico. Nesse sentido, crivasse nas
lições PROERD a imagem de negação do outro, afastamento do outro, a afirmação de que o
outro pode e vai prejudicar. E apesar de, em alguns momentos a amizade ter sido
119
valorizada, ela foi descrita, na maior parte das vezes, como sendo algo prejudicial e
perigoso.
É fundamental pensar essa imagem do outro nas lições do PROERD: o outro
bandido, o outro ladrão, o outro bom moço, o outro malandro, o outro fraco, especulando,
dessa maneira, identidades que induziam a uma rotulação. Essa conduta promovia a
comparação entre as pessoas, já que, ao invés de ensinar que nós podemos ser significativos
na vida um do outro pelo estilo de convivência que experimentamos, ensinava a copiar
modelos, o que já faz a mídia e os livros didáticos, na maioria de suas ações. Tudo indicava
também que para a policial o importante não era necessariamente o respeito ao outro e a
busca de uma boa convivência, mas ser prudente para o seu próprio benefício. Ou seja, não
é o prestígio à vida, em todas as suas dimensões, que baliza a formação complementar
desses educandos, possibilitando-lhes a construção de um novo referencial de mundo. Ao
que parece, o conteúdo ideológico do PROERD não foge muito a regra dos ensinamentos
escolares, quase sempre pautados no ideário sacrificial, punitivo, carregado de uma
subjetividade de medos, que se objetiva nas relações de poder: você usa droga e a polícia
prende, mata. Essa lógica, que se pretende educadora, evidencia, por isso, também as suas
fragilidades.
A linha policial-repressiva, vinculada ao PROERD amparava-se nessa idéia de que
as crianças e adolescentes são potencialmente bandidos e criminosos, mais perigosos do
que os adultos. A imagem que veiculam em seus discursos e práticas é que essas crianças
são elementos anti-sociais, que colocam a sociedade em risco. Isto condiciona as
expectativas quanto ao futuro destas crianças e adolescentes e legitima as demandas de
setores da sociedade pela intensificação das medidas repressivas. Assim, conforme Rossato
(2003: 46), resta às almas bem-intencionadas livrar a sociedade destes adultos perigosos
disfarçados de crianças, clamar por mais repressão, mais mortes, menos direitos.
No último encontro, os educandos desenharam em uma folha branca a própria mão
para uma dinâmica. A policial iniciou a atividade dizendo que em nossas vidas sempre
precisamos de muitas mãos - falou de forma infantilizada e idealizada com os alunos -
vamos dar as mãos (no diminutivo) para dizer não às drogas e para ajudar os amigos.
120
Quem planta o bem, colhe o bem; quem planta o mal, colhe o mal. Por isto vocês devem
ser sempre bons e educados. A policial começou a desenhar no quadro um regador e o
tronco de uma árvore. Cada aluno pôs a mão que confeccionou no quadro. A profissional,
então, reportou-se à figura para dizer que todos nós devemos ser um regador para ver as
folhas e frutos crescerem e que cada mão deveria ser essa folha e esse fruto que a árvore
ainda não tinha. Disse que agora que os alunos tinham as informações era tarefa deles
repassá-las para as pessoas: vocês já sabem que o problema das drogas é sério e tráz muita
violência para o mundo e para a nossa cidade. Por isso, passem essas informações, façam
uma corrente. Sem as drogas teremos uma vida florida como essa árvore com muitos
frutos. São ensinamentos típicos dos manuais de auto-ajuda e que alcançam os anseios dos
setores médios e altos da sociedade. Nesse sentido, são ensinamentos que não perduram na
configuração da identidade em formação de crianças e jovens. As aulas PROERD
terminaram com a leitura de uma canção sobre o Programa e a entrega, para os alunos, de
presentes, como régua, adesivo e borracha.
A autoridade do policial PROERD nas escolas pode ser comparada com o poder
político, discutido por Mafessoli (2005: 29-30). Esse poder expressaria a necessidade
também presente nas ações policiais e proerdianas, de assegurar proteção, de permitir o
bom funcionamento e a regularidade do crescimento social. Nesse sentido, os programas
de teor sacerdotal, na maioria das vezes, além de aplacar a ansiedade da população e da
própria escola, servem para eximi-la de qualquer projeto mais consistente e comprometido.
A submissão do grupo torna-se, assim, apenas um correlato da proteção e da passividade de
ceder a outros o cuidado de assegurar a nossa própria tranqüilidade.
O aspecto religioso do poder político, apresentado na figura do policial-professor-
pastor, ganha legitimidade na escola porque usa de uma atitude que lhe assegura carisma
perante a comunidade: é um líder que está a serviço do “bem” de todos e, como detentor
desse poder, cristaliza a energia interna da comunidade e assegura o bom equilíbrio entre
esta e o meio circundante, tanto social, quanto natural. Contudo, para Maffessoli (2005:
30) essa delegação, que pode se dar por via da tirania (policial) ou da democracia
(professor-pastor), sempre reserva uma natureza idêntica: aquele que responde pelos
outros, para os outros, na harmonia natural ou social, tende a pedir ou a impor a servidão.
121
De toda a maneira, do ponto de vista desta pesquisa, o aspecto de protetor das almas do
policial PROERD, em paralelo com o poder político, não deixa de ser um instrumento para
compreender que a vida também é feita de acasos, de ambigüidades, que fragilizam o poder
e a competência daqueles que querem tudo transformar. Como bem discute Quimarães
(1996: 06), nem tudo é redutível à racionalidade; há coisas que nos escapam...
A organização desse material e a forma de apresentar as aulas PROERD representou
somente uma dentre as tantas maneiras de organizá-lo. Acreditei que refletir sobre ele, sem
perder de vista a forma como essas histórias foram sendo construídas a partir de seu próprio
movimento, pudesse melhor expressar a complexidade envolvida na tessitura, nas críticas e
nas experiências cotidianas que foram sendo proporcionadas. Minha intenção foi a de poder
apresentar o movimento do cotidiano das aulas PROERD, identificando, acima de tudo, a
dinâmica empregada pelos policiais nas aulas. A longa escrita sobre as atividades que
envolveram o Programa nas escolas teve, esse intuito de buscar e reconstituir o lá vivido tal
qual, ou o mais próximo possível do que os protagonistas desse trabalho o viveram. É por
esse viés que o pesquisador etnográfico, como aponta Geertz (1998: 29), encontra sentido
em seu trabalho, demonstrando e convencendo-nos não apenas de que eles mesmos
realmente “estiveram lá”, mas ainda de que, se houvéssemos estado lá, teríamos visto o
que viram, sentido o que sentiram e concluído o que concluíram.
3.4 Pensar a Pedagogia e o Currículo para discutir a prática de um Programa
de prevenção nas escolas
Minha referência ao currículo acompanha a perspectiva estudada por Silva (1999:
150), que o reconhece como um “documento que forja nossa identidade. Para o autor, o
currículo e o conhecimento são campos culturais, sujeitos às disputas e às interpretações.
Por conseguinte, são campos envoltos em relações de poder. Como um artefato cultural, o
currículo passa a ser visto não mais como algo dado, mas como uma invenção social como
outra qualquer, e o conteúdo nele corporificado deixa de ser visto como algo natural para
ser encarado como construção social, situada no tempo e no espaço, em suma, como o
resultado de um processo de criação e interpretação social.
122
Nesse sentido, é possível compreender o currículo como um recorte da cultura de
um povo, como uma forma organizada, não-linear e de transmissão dessa cultura dentro de
uma sociedade. Ele contribui na produção de identidades e subjetividades particulares.
Como lembra Laraia (1987), a cultura é como uma lente, através da qual vemos o mundo.
As apreciações de ordem moral e valorativa, os diferentes comportamentos sociais, as
posturas corporais são produtos de uma herança cultural e se movem pelos gestos de
criação, de renovação e de experimentação pertinentes a cada população, enraizada em sua
história.
Conceber o currículo como construção cultural implica, como salienta Martins
(1992: 76), reconhecer a escola como um lugar social. Como um espaço que tem existência
e um ser próprio, onde podemos nos enxergar como homens, existindo frente a outros, que
têm um pensar e uma história própria. Mas significa também conceber o currículo como
elemento discursivo da política educacional, onde os diferentes grupos sociais,
especialmente os dominantes, expressam sua visão de mundo, seu projeto, sua ‘verdade’
(Silva, 1999: 10). Conforme Lubrun (1996: 85), o currículo é impregnado pelos sentidos
que têm a escola, enquanto uma instância que também é repressiva e controladora, e que,
através das relações de poder, atua no sentido de limitar nossos atos.
Na Pedagogia e no currículo
75
, assim como na História, como ressaltou Foucault
(2001), há campos de força em luta, onde discursos, práticas, saberes se produzem e se
confrontam. Histórica e politicamente, a Pedagogia e o currículo vêm se constituindo em
função de uma longa e hegemônica tradição: educar as gerações, ensinar-lhes
conhecimento, governar suas atitudes, hábitos, sentimentos. Discipliná-las, para que vivam
e sobrevivam, relativamente bem, no tempo e espaço que lhes tocou viver (Corazza, 2002:
01). Muitas vezes, seguimos cegamente as doutrinas e dogmas dos fundamentos da
educação conservadora, mas, em outras, recriamos as convivências, reinventamos os
modelos do viver social que nos dá sustentação e que propicia que outro tempo educacional
possa ser construído.
75
Silva (1999: 21) diz que, de certa forma, todas as teorias pedagógicas e educacionais são também teorias
sobre o currículo.
123
Sandra Corazza (2002: 02), em um texto chamado Educação da diferença, fornece
pistas para argumentar os saberes disciplinares, racionais e o poder pastoral que assume o
PROERD nas escolas. A autora afirma que todos os que educaram e educam viveram ou
vivem três grandes tempos históricos, em termos do saber e do fazer pedagógico e
curricular: 1) o tempo da Neutralidade Iluminada; 2) o da Suspeita Absoluta; 3) e o do
Desafio da Diferença Pura. A problematização que se sugere é a de pensar em que tempo
histórico, em termos do saber e do fazer pedagógico e curricular, estava o Programa
PROERD?
O tempo da Neutralidade Iluminada foi o nascente da Pedagogia e parece ser aquele
em que o currículo PROERD se espelhou. Nesse tempo, os educadores acreditaram que
eles também eram pastores de almas, corpos, atitudes, caráter, inteligência, sexualidade,
moral. Para Corazza (2002: 02), os educadores desse tempo pensaram que o seu grande
modelo era a Divindade, que eles eram mediadores entre ela e a humanidade, e que a sua
missão era transmitir os conhecimentos, modos de ser sujeito e valores, tidos como
unívocos, eternos, universais. A hegemonia religiosa não foi a única que marcou o tempo
da Neutralidade Iluminada. Saídos desse referencial, e introduzidos na hegemonia da
Filosofia e da Ciência, esses educadores só trocaram de senhor (Corazza, 2002: 02). Os
educadores continuavam pregando uma postura neutra e iluminada, pois a ciência, em
especial, garantia toda a segurança de estarem educando para o caminho do bem e da
verdade.
Com o objetivo de almejar uma sociedade perfeita e racional, o currículo do
Programa PROERD foi desenvolvido para ser um sistema de prevenção à violência e ao
uso indevido de drogas, com métodos que priorizam a moral (e) os bons costumes
(Dell’Antônia, 1999: 39). Essa meta proerdiana, que foi realizada em função de uma lógica
do dever-ser não valoriza a trama de uma educação do gosto e da sensibilidade (Restrepo,
1998: 10). Fatalmente, como sugere Maffesoli (2005), essa lógica tem como ponto de
chegada o totalitarismo. Isso porque muitas vezes, em nome da razão e de um porvir divino
justificamos a tirania, a destruição da natureza ou o abuso sobre outros seres humanos na
defesa de nossas propriedades materiais ou ideológicas (Sousa apud Maturana, 2002: 89).
Ou seja, o Programa PROERD parecia se estabelecer sob os aportes seguros da razão, de
124
uma lógica que não se dispõe a compreender a dinâmica do tempo em que vivemos:
complexo de afirmação, negação, medo, ímpeto, desejo, obediência, ousadia, ordem,
desordem, luz, sombra de uma mesma estrada nunca inteiramente decifrável (Sousa, 2002:
38).
De acordo com Corazza (2002: 02), o tempo da Neutralidade Iluminada foi
importante na consolidação da Pedagogia e no currículo e durou do final do século XIX a
metade do XX, até que o mundo tornou-se crítico de si mesmo. Nesse contexto, as
principais idéias e práticas educacionais assumiram duas direções: as liberais, a serviço das
melhorias do capitalismo, e as marxistas, que se opunham tanto às formulações da
Neutralidade Iluminada quanto às da Suspeita Absoluta de origem capitalista liberal.
As diretrizes de ordem marxista foram aquelas que tiveram uma importância
decisiva para a Pedagogia e o Currículo. Surgiram os discursos em torno da escola como
reprodutora das injustiças sociais e mantenedora do status quo cultural, da necessidade de
conscientizar os explorados de sua exploração, lutas por emancipação e libertação de vários
grupos. Tempo de discutir o quanto de ideologia havia no currículo oculto, por trás do
currículo oficial; desmontar a educação bancária e distanciar as pedagogias progressistas
das tradicionais. Em outras palavras, esse foi o tempo da revolução em educação; foi um
tempo de desconstruir a anterior neutralidade da Pedagogia e do Currículo e o pressuposto
papel do educador como um iluminado. Foi também um tempo de muitos marcos e
conquistas, particularmente para os movimentos alternativos e os engajamentos militantes.
Para Corazza (2002: 04), esse foi o tempo que preparou o caminho para o que veio depois.
E que é este nosso. O mundo passou por transformações: a queda das Torres Gêmeas e do
muro de Berlim, o mundo globalizado e a crueldade mundializada, mudaram as condições
sociais, os espaços, relações, identidades, racionalidades, culturas.
Despidos das grandes
certezas ideológicas e dos grandes valores culturais, pilares da modernidade, e que ora
estão em evidente declínio, o pesquisador, o educador, o ator social admitem que nada é
absoluto, que os conhecimentos são historicamente datados.
Passamos a compreender que há muitos mundos possíveis e que eles não
precisavam ser necessariamente os mesmo para cada um de nós. Iniciamos um movimento
125
de mudança como educadores e passamos a reconhecer que somos também sujeitos de
limites. Talvez possamos pensar, como sugere Maffesoli (2005: 61), que o impreciso, o
nebuloso, o ecletismo sejam na vida habitual, assim como na ordem do pensamento, as
chaves do tempo presente. Corazza (2002) chama esse de o tempo de Desafio da Diferença
Pura, porque todas as suas concepções e práticas atestam a existência dos diferentes:
(...) nesses dias de hoje, o Currículo e a Pedagogia não podem agir e nem
pensar como antes, os professores e alunos não podem educar nem serem
educados como até então. Este é um tempo babélico de mapas plurais dos povos
de diferentes, em que estamos tão desafiados, como educadores, que chegamos
a nos sentir encurralados. Em Educação, é tempo dos Estudos Culturais,
Feministas, Gays e Lésbicos, Pedagogia Queer, pensamento pós-estruturalista,
pós-colonialista, pós-modernista, filosofias da diferença, pedagogias da
diversidade.
Contudo, o projeto que vem marcando o Ocidente, em especial o da cultura norte-
americana, foi a tentativa de criar um conhecimento válido para todos os lugares. A
filosofia “preventiva” do PROERD, espalhada por diversos países, não deixa de ser uma
amostra dessa tentativa. O problema comum desses projetos é a ação que tende a impedir a
expressão da singularidade (Restrepo, 1998: 64). Nesse sentido, ao propor um currículo
único e universal, de aprendizagem mecanicista, intransigente às idéias de mudança, o
Programa decreta aquilo que convém pensar ou fazer, que indica porque e como se deve
fazê-lo. Assim sendo, não aponta para uma Pedagogia do afeto (Sousa: 2002, 42), que
reconhece esse lugar da diferença e daqueles que constituem o conjunto social. Uma
Pedagogia que é capaz de integrar a emoção, os sentimentos, ou, pelo menos, que
compreende e concede a estes o lugar que lhes é próprio. Uma Pedagogia que se constitui a
partir da ternura e da negação de qualquer manifestação violenta. Restrepo (1998: 53),
sobre esse assunto, afirma que:
A distância entre a violência e a ternura, tanto em seu matriz tátil como em suas
modalidades cognitivas e discursivas, tem sua raiz nessa disposição do ser
terno para aceitar o diferente, para aprender dele e respeitar seu caráter
singular sem querer dominá-lo a partir da lógica homogênea da guerra.
O tema das drogas e das violências nas escolas, por sua expressiva complexidade,
desafia as instituições e implica uma perspectiva tal que requer uma abertura da escola para
saber perceber e incorporar as pulsões vitais próprias da existência de todo ser humano.
126
Imersa nesse paradoxo, esta pesquisa evidenciou que a escola tende a caminhar para
desestabilizar suas concepções, em um tempo em que a Pedagogia e o currículo sofrem
uma mudança epistêmica:
As concepções educacionais até então predominantes, como as de poder,
sensibilidade, linguagem, utopia, realidade, não deixam de ter importância e,
inclusive, de funcionarem na sociedade e em nós; mas, no qual
e este é o
diagnóstico
, não dão mais conta deste outro mundo e de seu tempo, bem como
das experiências que neles vivemos (Corazza, 2002: 05).
Nenhuma Pedagogia e nenhum currículo ultrapassam ou substituem os anteriores,
em direção ao melhor, mais avançado, mais “acabado”. E nada disso implica uma
linearidade perfeita, na qual adormecemos num período e supostamente nos “encaixamos”
em outro. Mas, nesse nosso tempo, cada Pedagogia e cada currículo, cada um de nós,
estamos em metamorfose e vivemos uma lógica do instante, que compõe o desafio
educacional do presente.
127
Ao final, uma síntese possível
Da análise a síntese, sem esquecer que todo e parte são
aspectos complementares de uma mesma realidade, e
que o sopro do vento ou o perfume da flor não cabem
em nenhuma ciência.
(Fialho, 1998: 05)
Tradicionalmente, o modelo de ciência que orientou as investigações sobre os mais
diversos temas, entre os quais aquele que aborda as várias dimensões da humanidade, foi
marcado por uma crença de que o conhecimento é sempre pautado em verdades imutáveis,
que jamais devem deixar qualquer espaço para a dúvida. Afinal, a pesquisa desvenda o real
com um último e único olhar sobre ele. De acordo com Leite (2002: 150), a pesquisa em
educação também não escapou desse compromisso epistemológico com o modelo científico
da racionalidade moderna, assentada nos princípios da unicidade, universalidade e
neutralidade da verdade cientifica. Imaginar a construção de um texto acadêmico e realizá-
lo assumindo as incertezas, as fragilidades de não saber mais sobre o tema no momento de
seu estudo, quase sempre foi considerado uma heresia científica e isso desnudava a
incompletude do autor ou da autora. A crítica, honrada como conduta destrutiva do pensar
do outro, cunhava a marca da estupidez intelectual diante das incertezas, e, para escapar
dessas algemas normatizadoras, muitos pensadores tiveram que enlouquecer para, quem
sabe, salvar a sua sanidade corpórea, como fez Einstein, um louco sábio.
Num esforço tímido de contrariar esse pressuposto, ao final dessa dissertação, sinto
que as sínteses e reflexões registradas ao longo do texto não estão interessadas em concluir,
mas em fazer uma pausa entre esse ciclo que se encerra e um próximo, que está aberto a
acontecer. Os fios que bordam o texto foram tecidos na provisoriedade das minhas próprias
argumentações. Nessa corrente, Leite (2002) explica que os limites do método científico
tradicional precisaram ser denunciados para que as várias trajetórias das pesquisas
pudessem ser anunciadas, considerando a complexidade da realidade humana e de seu
viver-no-mundo. Entre outras palavras, ressalta que a perspectivada de uma investigação
128
sobre o ser humano e seu agir é alicerçada pela incerteza e a indeterminação
76
, que aparece
como uma alternativa explicativa e aninhada numa prática que, de algum modo, contribui
para o atual desmoronamento das referências modernas.
Nesse sentido, a preocupação maior que norteou a pesquisa por mim realizada não
foi negar ou julgar a instituição policial militar, mas construir um conjunto de explicações
que levasse em conta as nuances que matizam e compõem a relação entre as ações da
polícia, através do PROERD, e a escola. Por isso, considerei mais relevante situar os
discursos empregados pelos atores do Programa para compreender o PROERD como uma
“pedagogia” de uma instituição que se circunscreve em relações de poder, em jogos
políticos, ideológicos e institucionais. Nesta pesquisa, portanto, propus incorporar no
trabalho de reflexão as verdades que não cabem como gerais e definidas, mas como
diálogos parciais e que podem sempre estar em relação umas com as outras. Nas
observações, nas idas e vindas ao campo e no trabalho de escrita, tentei sistematizar um
pensar complexo (Morin, 1996), com a prerrogativa de que ele me oportunizasse equilibrar
tantas e diferentes angústias nascidas no transcorrer do mestrado. Paradoxalmente, no cerne
dessa possível complexidade, eu tive a oportunidade de gestar algumas afirmações e
assumir as dúvidas, bem como a esperança de que sempre há algo para ser desvelado,
discutido, desconstruído (Deleuze, 1988), para ser transformado.
Na aventura de investigar e compreender o que torna a Polícia Militar responsável
por implementar, nas escolas públicas, um Programa de combate às drogas e às violências,
deparei-me com um entrelaçamento de significados sobre o papel da polícia como
educadora de crianças e jovens, e com a escola, uma instituição que transferiu seu principal
sentido de existir – o ato educativo - para outros sujeitos, que, embora possam saber bem do
modelo norte-americano de prevenção ao uso de drogas e de combate às violências,
desconhecem os sentidos implicados na prática pedagógica do professor e da professora. À
medida que ampliava a minha compreensão do PROERD, constatava que:
76
Segundo Leite (2002: 152), essa incerteza e indeterminação questiona a estaticidade não só do objeto a ser
investigado, bem como do próprio investigador frente ao real natural.
129
O currículo desse Programa, como proposta de prevenção e como ação efetiva de
controle sobre os interesses de crianças e jovens, extraiu sua filosofia dos ideiais
policialescos norte-americanos e implantou sua prática, nas escolas públicas e em
algumas privadas, através de ensinamentos ideológicos e racionalistas, para
enquadrar a convivência desses meninos e dessas meninas numa norma que
pretendia, de modo totalitário, tudo prever, tudo controlar e tudo gerir. Conforme
Mafessoli (1998: 31), uma das principais características do racionalismo clássico é a
sua maneira classificatória, que quer que tudo entre em uma categoria explicativa e
totalizante. Esse discurso de preferência adormece em certezas absolutas e acorda
envolto por um moralismo de bom tom (Mafessoli, 1998: 29). O PROERD, como
um Programa que se autodenomina como sendo de caráter educacional, estava
alicerçado por uma ordem que opõe cada episódio que faça parte da dinâmica
cotidiana em pólos opostos. Acredita separar o bem do mal, o verdadeiro do falso, o
aceitável do inaceitável, o permanente do efêmero, porque não compreende que a
existência humana é tecida na complexidade de contínuos instantes (Morin, 1996).
O corpo de doutrinas do Programa se mostrava incapaz de perceber a vida em seu
movimento e as pessoas como seres imersos no mundo. Estava apoiado num mito:
um corte entre um antes, imperfeito, ainda não verdadeiramente acabado, e um
depois suposto ser a consumação, a perfeição realizada (Mafessoli, 1998: 35). O
Programa é uma aposta num discurso que busca incutir, nos educandos, certezas que
os convençam de que o viver precisa de disciplina e controle, de que usufruir do
presente não é o mais importante, de que os adultos, especialmente a polícia, sempre
sabem o que é melhor para eles. No entanto, como aponta Mafessoli (2005: 15), no
momento atual não dá mais resultado esse discurso que prega o adiamento do gozo:
a espera messiânica do paraíso celeste ou a ação urdida para um amanhã que
canta, ou outras formas de sociedades futuras reformadas, revolucionadas ou
mudadas.
Ao colocar-se sob essas bases, o PROERD põe em evidência seu poder pastoral
(Foucault, 2001), porque acredita na sua missão salvacionista para “tirar” os
meninos e as meninas do mundo do mal. Como um programa preventivo, enreda-se
num agir de controle das crianças e jovens (seu rebanho), ordenando modelos
130
adequados de convivência social e determinando a necessidade de afastamento dos
“amigos malfeitores”, usuários de drogas, violentos, expressões do diabólico. Com
isso, enquadra, por meio de estereótipos vários, os valores familiares que considera
duvidáveis e se julga no dever de proclamar que os estudantes fujam dos anúncios
da sociedade de consumo, que não sonhem com o que não podem alcançar. As
normativas dessa pedagogia da ordem diz aos sujeitos: sejam comportados, bons
alunos, bons filhos, bons amigos, um excelente cidadão proerdiano. Tudo sob a
lógica dessa instituição.
Eis aí o sujeito idealizado pelo Programa, aquele que se pretende formar através de
muitos atributos considerados pedagógicos: palavras de auto-estima; canções para
dizer não às violências e às drogas; repetição dos exercícios de tomada de decisão.
Tudo é ensinado sem circunstanciar as péssimas condições de algumas escolas, sem
levar em conta os conflitos cotidianos, a desmotivação profissional dos educadores,
as tantas agressões que adornam todos os dias de uma escola. Não situam as
crianças e os jovens conforme suas condições existenciais objetivas e subjetivas.
Insistem na causalidade economicista, patológica e binária das violências, cujos
suportes principais se revelam na casa desestruturada, na família violenta, no
dinheiro fácil das drogas, no acalento de um cigarro de maconha, na convivência
com os amigos considerados marginais, entre outros. O que importa é garantir a eles
que serão partícipes de um futuro feliz e proeminente, que estarão livres de uma
vida sem esperanças. Com o PROERD eles terão sorte, ciência e glória, já que os
ensinamentos são incutidos também através de bondosas atitudes e de valores
cristãos.
Para esse modelo de vida difundido pelo PROERD, centrado na idolatria aos bons
costumes, converge todo o processo social de formação humana, já que essa invade
inteiramente os domínios da vida do homem e da mulher. Inserida nesse processo, a
escola empresta sua parcela de contribuição para a manutenção de tal modelo,
excluindo outras possibilidades de uma educação preventiva para as crianças e
jovens. Desse modo, a escola participa das imposições dos conteúdos e busca impor
a esses sujeitos uma visão do mundo sacrificial, assentada na lógica do dever-ser,
131
das obrigações e dos medos, com a intenção de interromper um tempo que inclui
também o prazer e a descoberta.
Compartilho da opinião de Mafessoli (2005: 17), quando afirma que não é mais
decretando o que devem ser (grifo meu) a sociedade e o individuo que se consegue
entendê-los ou conhecer, em realidade, suas transformações. Esse decreto,
denominado por ele de lógica do “dever ser”, é a mesma lógica que rege as ações
moralistas do PROERD nas escolas. O autor, no entanto, lembra também que esse
moralismo está vacilante e que hoje importa muito mais pôr em ação uma
sensibilidade generosa, que possa compreender o crescimento específico e a
vitalidade própria de cada coisa (Mafessoli, 1998: 12).
Ao que tudo indica, a nova versão do PROERD não provocou mudanças bruscas
nas concepções sobre drogas e violências apresentadas aos jovens e às crianças, mas
propôs uma didática diferenciada por parte dos policiais “professores”. Ainda que
os policiais acreditem que essa nova versão proporcionou uma aprendizagem mais
dinâmica, e que o aluno tornou-se partícipe do processo, os fundamentos buscam os
mesmos resultados. O currículo não dialoga com as resistências de algumas crianças
e jovens, dos educadores, da comunidade, como se todos estivessem integrados a
um contexto harmonioso de aceitação das doutrinas.
No currículo anterior eram gerados vários conceitos, em sua maioria
estereotipados
77
, sobre pessoas usuárias de drogas, a influência da mídia, sobre as
gangues e seus integrantes. O atual currículo PROERD propaga uma postura de
neutralidade frente a todos esses conceitos e valores, à medida que a preocupação é
centrada no ato de “repassar” os efeitos maléficos do uso de drogas e a suposta
fragilidade humana do usuário. Vê-se que o novo currículo, embora tenha
anunciado sua disposição para uma mudança metodológica, novamente não
incorporou as necessidades dos sujeitos porque não foram realizadas a partir da
escuta de suas demandas. Também não podemos esperar do PROERD uma
mudança epistemológica que não buscasse uma verdade unívoca, que pudesse traçar
o paradoxo e a complexidade do mundo em movimento.
77
Tratei desse tema em outro trabalho (Rateke: 2003), no qual discuto o currículo PROERD antigo.
132
Com efeito, quando o currículo e as aulas PROERD adormecem em uma idéia
convencionada, ou em um racionalismo revelador (Mafessoli, 1998), com
mensagens que pretensamente vão direto ao alvo, certa de um caminho eficaz e
seguro, deixa de prestigiar uma ênfase no estilo (Mafessoli, 1998: 21) que requer, ao
contrário, um esforço de reflexão onde não há conteúdo preciso algum, mas que
revela uma forma onde cada qual deve exercer sua própria capacidade de pensar. É
uma espécie de saber que, orientado, deixa a cada um o cuidado de desvelar, ou
seja, de compreender por si mesmo e para si mesmo o que convém descobrir.
As fragilidades das intervenções do Programa no contexto escolar ganham
evidência através da premissa de que o mal deve ser expurgado da sociedade. É
como se a sombra não fosse apenas o complemento da luz, conforme seu
movimento e sua projeção sobre as coisas. E quando o Programa realça a
negatividade das violências confunde-as com qualquer compreensão de poder,
tecem julgamentos normatizadores para que a normalidade adentre o cenário da
ordem no mundo imaginado pelos ideais policialescos. Para Mafessoli (1998: 11), o
bárbaro ultrapassou nossas portas e na escola se decide como um educador
indispensável.
Fica explícito, apesar de não pronunciado, que uma das principais e mais
importantes intenções da Polícia Militar com o PROERD é melhorar a sua imagem
e aproximar a comunidade, principalmente as camadas populares, da instituição
militar. Para a polícia, essa sua feição educadora e o contato com crianças e jovens
dentro da escola, positivando as boas ações de ambas as partes, contribui para
transformar a sua imagem, historicamente vinculada às condutas violentas e
autoritárias, o que se espraia por todo corpo social: a Polícia Militar é uma
instituição cuja marca mais visível é o agir com violência e repressão.
Penso que, no contexto dessa reflexão sobre o PROERD, é importante diferenciar os
muros que nos prendem à doçura do imaginário escolar. Mesmo que tente, um
policial que entra em sala travestido de educador e detentor da sabedoria do bem
não consegue banhar-se num mar de brandura e tolerância, pois não pode esconder
por inteiro a história das violências que usa nas ruas e nas batidas policiais onde
estão as tramas de seu agir predominante. Uma mostra disso está nos pressupostos
133
das atividades do PROERD, essencialmente inspiradas em pressupostos religiosos e
beligerantes, ou seja, em uma educação sacrifical, como lembra Sousa (2002: 250),
impulsionadas por sentimentos de inferioridade, de competição, de manipulação, e
com aposta na estratégia de negação do outro, em geral transformado no inimigo ou
no adversário. A intenção é levar as crianças a alcançarem o reconhecimento
pedagógico e consolidar um mundo sem drogas e violências.
As reflexões sobre o movimento dos policiais PROERD não pode deixar de incluir
os princípios que a corporação guarda da ordem e da disciplina enquanto
instrumentos fundamentais para a formação do “bom homem”. Durante a pesquisa,
pude observar o empenho para garantir o bom desenvolvimento das aulas e
transmitir os ensinamentos de virtude. Parte de alguns policiais a preocupação de
não agir como as professoras e os professores agem em sala, porque seu papel ali é
desmistificar o policial repressor e transferir a marca de violento e controlador
somente para os educadores. Outros, talvez não muito conscientes dessa “roupagem
humanizada”, incorporam e empregam o autoritarismo. Os rótulos e estereótipos, de
uma maneira geral, estão nos valores que habitam o imaginário do policial, que os
transfere também para os alunos. Quando estes não prestam atenção ou não estudam
é porque são preguiçosos, incapazes, malandros, marginais em potencial.
Apesar das longas críticas já realizadas sobre essa difícil e conturbada realidade da
escola, as quais atravessam o tempo e se confrontam com os inesperados, contribuiu
para reforçar a menoridade dos estudantes pobres, muitas vezes tratados aos berros
por um contingente feminino, a maioria nas escolas, para que escutem o que se
negam a cumprir. Nas escolas, ainda pude constatar os mais estrondosos gestos de
humilhação e xingamentos, em nome de controle maldito que teima em conservar o
equilíbrio de relações pautadas em pesos e medidas distintos. Por isso, afirmo que,
na relação pedagógica, as crianças e os jovens são colocados, na apreensão mais
literal da palavra, como indivíduos inferiores em relação ao lugar em que seus
educadores e o policial PROERD exercem na “hierarquia” da escola.
O Programa e os policiais PROERD sofrem perseguições dentro da própria
corporação. Em forma de ameaças, brincadeiras, ou agressões, uma parcela
significativa deles são rotulados pelos colegas ou comandantes como “policiais
134
malandros” e incapazes de empenhar as atividades fins da sua profissão. Por isso,
apesar de um certo orgulho em ser policial PROERD, não conseguem esconder o
sentimento de insatisfação e revolta por não ter seu trabalho reconhecido e
respeitado pela instituição.
De certa maneira, essa pretensão educadora da polícia, e que é efetivada por meio
das aulas PROERD, contribui para que os policiais tenham a oportunidade de
colocar-se frente a uma outra compreensão da realidade com que convivem. Sua
inserção na história pessoal das crianças e de suas famílias, em especial as das
camadas populares, pode levar alguns ao questionamento de sua própria ação
repressora.
Revestido de “aulas de boas condutas” para as crianças e jovens, o PROERD
tornou-se mais um instrumento de alienação entre outros, os quais são veiculados
pela escola e a ela estão vinculados. Em meio à naturalidade e ao carinho
demonstrado por alguns policias nas aulas, não há uma tendência da maioria para
lidar com os complexos problemas da escola. Isso me faz perguntar por que são
eles, os policiais, que estão ali falando sobre esses temas?
Penso que a aprovação e a criação do PROERD é uma amostra da ambigüidade. Ao
mesmo tempo em que cresce a insegurança com ela aumenta o investimento em aparatos
repressivos, agressivos e considerados seguros para combater as violências com mais
violências. Esse sentimento que permeia a sociedade provoca em muitos a disposição para
formular propostas afetivas, baseadas no diálogo, na ruptura com o antigo, na
responsabilidade compartilhada e na preocupação amorosa com o outro. Um sentimento
paradoxal, que nasce dos desejos entusiasmados e das buscas por soluções que protejam a
cada um, pois os enfrentamentos das violências e das múltiplas raízes de suas
manifestações não são fatos consumados. Nesse universo de sujeitos, talvez estejam muitos
policiais militares, como estes que foram partícipes dessa pesquisa. Com eles o desejo de
pensar alternativas educacionais, de mudar a realidade com que convivem e não toleram, de
construir uma afetividade que os faça se sentirem especiais. A alegria de estarem com as
crianças e jovens, retribuindo o gosto de sentir-se um educador prestigiado, ao mesmo
tempo em que se dilacera com a resolução de conflitos, muitas vezes com o uso da força da
135
palavra. Mas, essa instituição, em nome das demandas da sociedade por segurança, reforça
seus equipamentos tecnológicos de tortura e sofrimento; prende, bate e humilha. E isso a
sociedade civil não pode esquecer.
Nesse sentido, entendo que este trabalho terá sempre uma peculiar restrição. As
reflexões sobre o PROERD e as ações da polícia foram construídas em circunstâncias
complexas para acessar as fontes e, em espaços distintos das escolas, para acompanhar a
prática pedagógica do Programa. Contudo, o compromisso de realizar um trabalho
científico manteve-se presente na difícil empreitada de engendrar as diversas e
contraditórias imagens-discursos relativas a essa instituição. Assim, fiz um esforço para
apreender, de modo ampliado e plural, o tema das violências e das drogas. Busquei não
deixar o meu texto mergulhado numa crítica banal ao Programa, à polícia ou à escola.
Tampouco significar as explicações aprisionadas por um modelo a ser seguido. Essa
investigação nasceu da curiosidade, da inquietude e do compromisso da pesquisadora, e
isso se conservou na construção da dissertação, pelo menos como desejo pessoal, movida
por desafios para entender as nuances impregnadas nos discursos e práticas do PROERD,
na sua práxis. Dessa forma, essas considerações me incluem com tudo que me fez chegar
até esse momento, trazendo junto as leituras de mundo que fui capaz de realizar. Ciente da
incompletude dessa ocupação, que nunca mostra toda a dimensão do pesquisado e
registrado, despeço-me acalentada pelas palavras de José Saramago: o ser humano é
demasiadamente grande para caber nas palavras com que ele mesmo se define.
136
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