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unesp UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA
“JÚLIO DE MESQUITA FILHO”
Faculdade de Ciências e Letras
Campus de Araraquara - SP
VANESSA CHICONELI LIPORACI
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VANESSA CHICONELI LIPORACI
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Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa
de Pós-Graduação em Estudos Literios da
Faculdade de Ciências e Letras
Unesp/Araraquara, como requisito para obtenção
do título de Mestre em Estudos Literários.
Linha de pesquisa: Teorias e crítica da
narrativa
Orientador: Prof. Dra. Maria Célia de Moraes
Leonel
Bolsa: CAPES
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Aos meus pais, ao meu irmão e à minha madrinha, pessoas iluminadas.
Aos meus avós e ao meu eterno professor André, pessoas encantadas...
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AGRADECIMENTOS
À minha orientadora Maria Célia de Moraes Leonel, pela amizade, pelo exemplo
profissional e pela dedicação.
À professora Cleusa Rios Pinheiro Passos e aos professores Luiz Gonzaga Marchezan
e Adalberto Luis Vicente pela imensa contribuição para o desenvolvimento deste
trabalho.
Aos funcionários do Instituto de Estudos Brasileiros da USP pela ajuda durante a
pesquisa e pela digitalização do material requisitado.
À CAPES.
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RESUMO
O presente trabalho concentra-se no levantamento e análise das diferentes formas de atuação
da providência divina em quatro contos de Guimarães Rosa: “Substância” e “Seqüência”
integrantes de Primeiras estórias de 1962, “A estória do Homem do Pinguelo” que se
encontra no livro póstumo Estas estórias de 1969 e “Arroio-das-antas” presente em Tutaméia
de 1967. A escolha desses contos deve-se ao fato de eles apontarem, de forma exemplar, a
exisncia de uma força providencial capaz de alterar o rumo dos fatos e da vida das
personagens neles envolvidas. Tomamos como ponto de partida a idéia de que é essa
provincia que move a ação nas composições selecionadas e procuramos analisar o modo
como o escritor articula todos os elementos da narrativa, conduzindo-a ao momento da ação
providencial, ou seja, à mudança aparentemente brusca que se na vida das personagens
graças à inflncia de uma força superior ordenadora. Com uma estrutura singular e
linguagem poética, Guimarães Rosa cifra a disseminação da ação providencial nos interstícios
das histórias de Sionésio e Maria Exita, da vaquinha pitanga e o filho de Seo Rigério, de Seo
Cesarino e Pedro Mourão e de Drizilda e das velhinhas. Sendo assim, trabalhamos com a idéia
de que essas quatro narrativas alegorizam, de maneiras diferentes, um mesmo sentido que
transcende as histórias em questão.
Palavras – chave: Guimarães Rosa. Narrativas curtas. Provincia. Alegoria.
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ABSTRACT
This paper concentrates on the data collection and analysis of the different ways of acting of
the divine providence in four short stories written by Guimarães Rosa: “Substância” and
Seqüência” belonging to Primeiras estórias of 1969, “A estória do Homem do Pinguelo
which can be found in the posthumous book Estas estórias of 1969 and “Arroio-das-antas” in
Tutaméia of 1967. The choice of these short stories is due to the fact that they point,
exemplarily, to the existence of a providential strength which is capable of changing the
direction of the facts and of the lives of the characters involved in them. As a starting point,
we take the idea that this providence moves the action in the selected compositions and we
analyze the way in which the writer articulates all the elements of the narrative, conducing it
to the moment of the providential action, in other words, to the apparently abrupt change that
happens in the lives of the characters due to the influence of a superior ordering strength.
Having a unique structure and poetic language, Guimarães Rosa codes the dissemination of
the providential action in the interstices of the stories about: Sionésio and Maria Exita; the
little red cow and Seo Rigério’s son; Seo Cesarino and Pedro Mourão and Drizilda and the old
ladies. Taking this into account, we work with the idea that these four narratives allegorize, in
different ways, the same meaning that transcends the stories in question.
Keywords: Guimarães Rosa. Short stories. Providence. Allegory.
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Sumário
Introdução ...............................................................................................................09
Capítulo 1
1.1 A provincia divina: as forças que regem o mundo .........................................19
1.2 A alegoria ...........................................................................................................26
Capítulo 2
2.1 Provincia: a substância primeira ................................................................... 32
2.2 A disseminação da ação providencial ................................................................36
2.3 O pássaro como símbolo de espiritualização......................................................45
Capítulo 3
3.1 O “mel do maravilhoso”: a ação providencial em “Seqüência”.........................48
3.2 A viagem redonda ..............................................................................................50
3.3 A provincia como macrocosmo .....................................................................53
Capítulo 4
4.1 No Arroio, a mediação das santas .................................................................... 58
4.2 A metáfora da flor ............................................................................................ 63
Capítulo 5
5.1 O Homem do Pinguelo”: a figura do invisível ................................................71
5.2 A instauração do mistério .................................................................................76
5.3 A sugestão da providência ................................................................................77
5.4 Sugestivos narradores .......................................................................................79
5.5 A estratégia das falas ........................................................................................86
Considerações finais .............................................................................................94
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Introdução
Hem? Hem? O que mais penso, testo e explico: todo-o-mundo é louco. O
senhor, eu, nós, as pessoas todas. Por isso é que se carece principalmente de
religião: para se desendoidecer, desdoidar. Reza é que sara da loucura. No
geral. Isso é que é a salvação-da-alma... Muita religião, seu moço! Eu cá,
não perco ocasião de religião. Aproveito de todas. Bebo água de todo rio...
Uma só, para mim é pouca, talvez não me chegue. (ROSA, 1982, p. 15)
A noção de provincia divina passou, no decorrer do tempo, por diversas fases
algumas de aceitação, outras de recusa de acordo com a mudança de pensamento da
população da época. Com o avanço da burguesia, a crença em uma força ordenadora parecia
ter chegado ao fim porque os homens passaram a reconhecer os fatos de suas vidas como
mera conseqüência de seus atos e, sendo assim, sentiram-se capazes de controlar tudo o que
lhes ocorreria. Bernhard Groethuysen (1943, p.323), autor de La formacion de la conciencia
burguesa, afirma que el burgués ha hecho el intento de regular la vida excluyendo en la
mayor medida posible todo lo desconocido.”, com isso, tudo passa a ser visto como algo
calculável e previsível aos olhos dos burgueses. Segundo Groethuysen (1943, p. 324)
El nuevo hombre económico proclama [...] su independencia frente a la
divina Providência. Trabajo, fruto, riqueza, forman um conjunto cerrado
em sí. Ya no se necesita aquí de explicaciones trascendentes, de
intervención de um poder divino.
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creemos efectivamente o no em una divina Providencia (GROETHUYSEN, 1943, p.319).
Portanto, para acreditar nessa força universal é preciso que o homem acredite também no fato
de que ela se manifesta, de forma particular, em cada ser.
Para a realização deste trabalho, tomamos como norte o conceito de providência
divina para S. Tomás de Aquino, segundo o qual
[...] deve-se dizer que a providência está no intelecto, mas pressupõe a
vontade do fim, pois ninguém prescreve as ações a executar em vista de um
fim se não quer este fim. Por isso, a prudência pressupõe as virtudes morais
pelas quais a faculdade apetitiva se orienta para o bem. (AQUINO, 2001, p.
440)
Veremos no decorrer do trabalho que a noção de provincia divina adotada não é
fatalista no sentido de deixar tudo nas mãos de Deus e não se preocupar com mais nada
mas envolve tanto a fé quanto a razão pelo fato de estar relacionada tanto à resignação e à
entrega diante do que é imposto por Deus, quanto a tudo aquilo que o homem pode fazer no
seu papel de colaborador da ação providencial.
A crítica identificou a importância da vontade nas personagens rosianas e chegou,
basicamente, à conclusão de que o desejo de mudança é fator primordial para que a mudança
seja ela analisada como decorrente da providência ou o ocorra. Portanto, é no intuito de
dar continuidade a esses estudos críticos que, neste trabalho, levantamos e analisamos as
formas de atuação da providência divina em quatro contos de Guimarães Rosa: “Substância” e
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analisar o modo como o escritor articula todos os elementos da narrativa, conduzindo-a ao
momento da ação providencial, ou seja, à mudança aparentemente brusca que se na vida
das personagens graças à influência de uma força superior ordenadora.
Com uma estrutura singular e linguagem poética, Guimarães Rosa cifra a
disseminação da ação providencial nos interstícios das histórias de Sionésio e Maria Exita, da
vaquinha pitanga e o filho de Seo Rigério, de Seo Cesarino e Pedro Mourão e de Drizilda e o
Moço, sua “paixão para toda a vida”. Sendo assim, essas quatro narrativas alegorizam, de
maneiras diferentes, um mesmo sentido que transcende as histórias em questão.
A crítica aponta constantemente para o fato de as obras de Guimarães Rosa
representarem buscas ou reflexões acerca de questões universais para as quais não
resposta única e definitiva. Isso, porque, em suas obras, Guimarães Rosa desenvolve temas
como a fé, a religião, a morte, o destino, entre outros, todos de maneira muito sutil, de forma
exemplar, mais sugerindo que afirmando e, com isso, ele leva o leitor à reflexão. Foi
principalmente devido a esse caráter transcendente da obra rosiana que optamos por analisar
a ação providencial em algumas de suas narrativas curtas. Sendo assim, as narrativas rosianas
apresentam-se como estruturas abertas, dentro das quais a dúvida é sempre reintroduzida a
partir de novas sugestões. Levando em consideração o fato de essas histórias interrogarem o
mundo, podemos concluir que, para tanto, fez-se necessária uma linguagem também voltada
para a indagação e não para a simples afirmação, ou seja, uma nova expressão capaz de
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Esses fragmentos de metal engastados em uma matéria disforme, esses
cristais de aparência esquisita devem adquirir todo seu brilho atras do
trabalho inteligente. É um trabalho dessa natureza que realiza o verdadeiro
poeta.
Nos contos em questão, o trabalho com a linguagem resulta na estruturação de dois
discursos, poético e discurso da narrativa, que se complementam e que provocam o efeito de
estranhamento aos olhos do leitor. Este último é, portanto, sempre convidado a sair do lugar
comum, a se arriscar nesse universo singular elaborado pelo escritor, para que possa ver as
coisas por ângulos diferentes daqueles do dia-a-dia, em busca do sentido (ou sentidos) do
texto. É por meio da alternância desses dois discursos que, segundo Lefebve (1980, p. 155)
o código dos símbolos vem estruturar a prosa e poetizá-la”.
A poesia desautomatiza o discurso da narrativa, insere-o em um estado poético e
“nada do que se passar nesse estado estará resolvido, acabado, abolido por um ato bem
determinado” (VALÉRY, 1991, p. 209). Valéry (1991, p. 212) também aproxima e distancia
prosa e poesia ao compará-las respectivamente ao andar e à dança, uma vez que enquanto
prosa e poesia servem-se das mesmas palavras, da mesma sintaxe, das mesmas formas e dos
mesmos sons ou timbres, mas diferentemente coordenados e excitados”, o andar e a dança se
servem “dos mesmos órgãos, dos mesmos ossos, dos mesmos músculos, diferentemente
coordenados e excitados”.
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referente é “um objeto de pensamento, sensação ou representação mental, resultado de todas
as experiências” (LEFEBVE, 1980, p. 159) do enunciatário; o referente, portanto, se
aproxima do mundo, não é o mundo. O significado referencial é aquele “em que uma certa
experiência que possuímos do objeto surge relembrada, recriada, reativada: não é uma
simples noção evocada pelo significante, resulta de uma inteão virada para as coisas, de
uma aproximação concreta do mundo.” (LEFEBVE, 1980, p. 161)
A linguagem literária desliga as palavras do contexto prático e faz com que chamem a
si toda a experiência que o leitor tem a respeito desses referentes, portanto, Lefebve chama
nossa atenção para a importância de darmos à palavra o sentido de reativação da nossa
experiência do objeto. Segundo ele:
No discurso ptico, o fato de o significado ser separado do seu referente
prático o faz dele um mundo em si suficiente e dotado de uma pureza
simultaneamente serena e gelada. Pelo contrário, essa ruptura permite à obra
abrir-se sobre a totalidade da nossa experiência, mas destacando dessa
experiência, por isso mesmo, o que ela tem de essencial. O desvio pelo
imaginário não se justifica, pois, senão na medida em que gera um apelo da
Realidade, interrogando o mundo sobre a sua verdadeira presença no pôr em
questão que faz o seu ser. (LEFEBVE, 1980, p. 165)
No caso de Guimarães Rosa, vê-se que a linguagem poética torna-se essencial ao autor, pois
nela o significado se separa de seu referente prático e abre a obra para inúmeras
possibilidades de leitura. Além do mais, é através da linguagem poética que o autor constrói
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Sendo assim, no discurso da narrativa o referente que faz apelo à experiência que
possuímos do mundo não deixa de existir, apenas recua para trás da diegese porque é nossa
experiência que ela vai atualizar. Portanto, enquanto na poesia o discurso reenvia diretamente
à experiência de mundo, o discurso da narrativa apresenta a diegese como suporte para fazer
o mesmo, o que leva Lefebve a concluir que “Discurso da poesia e discurso da narrativa,
embora com estruturas diferentes, operam da mesma maneira e são capazes da mesma
poesia” (1980, p. 167). É essa relação entre discurso da poesia e discurso da narrativa que
pretendemos levantar e analisar nos contos selecionados através das imagens e metáforas
empregadas pelo autor no processo de alegorização.
No discurso da narrativa, a inserção do percurso que transcende a simples trajetória
descrita na diegese dá-se através do relato poético da mesma, pois é por meio do discurso
poético que a diegese nos remete àquilo que se encontra por trás dela. A linguagem da poesia
é responsável pela cristalização característica dos contos em questão, tornando-os menos
acessíveis ao primeiro contato e, portanto, exigindo do leitor uma maior atenção para a
linguagem condensada com a qual são construídos. Essa linguagem é característica da poesia
e é empregada pelo autor devido à sua força sugestiva e à magia que a cerca.
O caráter sugestivo das narrativas rosianas de modo geral no que se refere à ação da
provincia e, principalmente, daquelas que analisamos neste trabalho, nos permitiu entrever
uma possibilidade de aproximão concreta do mundo no que se refere às influências das
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elaboração de suas obras. Dois livros do padre Antonin Gilbert Sertillanges Devoirs e
Affinités - , um dos maiores seguidores da filosofia tomista, são encontrados na biblioteca de
Guimarães Rosa. Suzi Sperber afirma que apenas um deles, Devoirs, de 1936, possui
anotações do escritor, todavia, ao examinar esse material na biblioteca de Guimarães Rosa,
constatamos que ambos os livros mereceram anotações e trechos sublinhados. Além disso, no
segundo, há um capítulo sobre a providência divina que apresenta grifos e que veio, portanto,
confirmar nossa hipótese a respeito da possível influência da crença na ação providencial nas
obras de Guimarães Rosa.
Os indícios da crença do escritor na força da provincia divina encontram-se nos
contos selecionados e nos permitem entrever reflexos da experiência do autor recriados em
sua obra literária. Um dos recursos empregados pelo escritor para que sua experiência
aproxime-se do mundo, é justamente o relato de causos, de circunstâncias capazes de
iluminar uma experiência ou um conceito, sem que seja preciso nomeá-los. É dessa forma
que Guimarães Rosa trata da provincia de Deus: sem mencioná-la, transforma-a no fio
condutor da narrativa, uma vez que todas as ações estão concatenadas no intuito de
ilustrarem o processo da ação providencial. A diegese, expressa por uma linguagem que a
presentifica, torna-se, portanto, um meio de atualização dessa crença tão cara e sempre
manifestada por esse escritor. Todavia, é preciso ressaltar que, no caso de Guimarães Rosa, a
crença nestas forças que regem o mundo está desvinculada de qualquer caráter doutrinário,
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No decorrer do trabalho, procuramos mostrar que os contos selecionados foram
estruturados de maneira análoga apesar de, numa primeira leitura, parecerem ser constrdos
de forma completamente diversa. As quatro composições representam, através de
personagens e situações distintas, uma mesma crença, pom, entre elas podemos identificar
diferentes níveis de abstração que, por sua vez, variam de acordo com elementos mediadores
que estão presentes nas respectivas narrativas. Esses elementos tem como função estabelecer
a ligação entre a personagem que chamamos aprendiz porque deverá passar por um
processo de purificação antes de encontrar o que lhe estava reservado e o seu destino.
Enquanto n’ “A estória do Homem do Pinguelo somos colocados diante de uma entidade
abstrata, o chamado “Homem do Pinguelo”, cuja aparição é sugerida por um dos narradores –
José Reles nos momentos cruciais da história, como possível mediador da mudança, ou
melhor, do processo de transformação, em “Seqüência”, a função mediadora é concedida a
um animal, uma vez que é a vaquinha pitanga a criatura responsável por conduzir o filho do
Major Quitério ao que lhe estava traçado. Em “Substância”, tem-se tanto Nhatiaga por
haver levado Maria Exita para a fazenda - quanto o polvilho, uma substância capaz de
promover a mudança na vida das personagens envolvidas na história. Nesse caso, a mediação
tem início com Nhatiaga, que aproxima Maria Exita e Sionésio, e termina com o polvilho,
metáfora da ação providencial, que era facilmente identificada por Maria Exita, mas que, no
início do conto, ainda ofuscava os olhos de Sionésio que ainda não estavam prontos para
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é disseminada no decorrer das narrativas até culminar nas correspondentes transformações,
torna-se o objetivo maior deste trabalho. Quanto à estrutura categorias narrativas vamos
analisar a preparação para a ação da providência e quanto à expressão, veremos o modo
como o autor trabalha a linguagem poética no processo de construção da alegoria para
provocar tal efeito de disseminação da ação providencial.
O estudo do modo como Guimaes Rosa cifra a disseminação da ação providencial
nos contos selecionados é realizado com base na interpretação dos sentidos literal e alegórico
dessas narrativas constituídas de metáforas e sinédoques particularizantes através das quais o
autor gera expectativa e mistério ao representar apenas uma parte escolhida de uma realidade
mais vasta.
O embasamento teórico do trabalho é composto de estudos de três tipos: ensaios
críticos sobre a obra rosiana de modo geral como os de Suzi Sperber, Caos e cosmos (1976);
Alfredo Bosi, “Céu, inferno” (1988); Maria Célia Leonel, Guimarães Rosa: Magma e gênese
da obra (2000); Lenira Marques Covizzi, O insólito em Guimarães Rosa e Borges (1978);
Paulo nai, “Os prefácios de Tutaméia” (1969); Benedito Nunes, “A viagem” (1969), entre
outros. Também recorremos a ensaios referentes às narrativas selecionadas como os de:
Maria Célia Leonel, Guimarães Rosa alquimista: processos de criação do texto (1985); Edna
Calobrezi, Morte e alteridade em Estas estórias (2001); Heloisa Vilhena de Araújo, O
espelho (1998); Ana Paula Pacheco, Lugar do mito (2006), entre outros. Quanto aos
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Affinités (1936), ambas escritas pelo padre Antonin Gilbert Sertillanges e a Suma Teologica
de Santo Tomas de Aquino (1957).
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19
Capítulo 1
1.1 A providência divina: as forças que regem o mundo
O senhor... Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as
pessoas não estão sempre iguais, ainda o foram terminadas mas que
elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior. É o que a
vida me ensinou. Isso que me alegra, montão. (ROSA, 1982, p.20/21)
Segundo Alfredo Bosi no ensaio “Céu, inferno” (1988, p. 22), em Guimarães Rosa, o
que o cinge à cultura popular é um fio unido de crenças: não um conteúdo formado de
imagens e afetos, mas, principalmente, um modo de ver os homens e o destino”. Sendo assim,
em suas histórias estão evidentes os tros do pensamento arcaico-popular como a fé em Deus,
a importância de se ter paciência, de se cultivarem certas virtudes, valores que são ilustrados
através de sentenças como as citadas por Alfredo Bosi (1988, p. 23): “‘Deus tarda mas não
falha’, ‘O futuro a Deus pertence’ e ‘De onde menos se espera, daí é que vem’”. Segundo o
crítico, “expressões lapidares da em uma Providência que cruzaria a barreira das condições
passadas e presentes e se identificaria, afinal, com o próprio curso do tempo”.
A transformão decorrente da ação providencial ocorre em diversas narrativas curtas
rosianas, pois, segundo Bosi (1988, p.25), “Em todas as situações, e sobretudo nas mais
espinhosas, haveria sempre uma ponte de trânsito livre, algum momento, desejado e
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porque, pelo fato de acreditar no poder da força interior, Guimarães Rosa concede o dom da
salvação aos seres aparentemente mais frágeis e interiormente mais aptos.
Além das narrativas que são analisadas neste trabalho, as quais foram selecionadas a
partir dos três livros de “estórias” de Guimarães Rosa Primeiras estórias, Terceiras estórias
e Estas estórias também em Sagarana (1951) encontramos exemplos claros de narrativas
rosianas curtas que ilustram a presença constante, apesar de diversificada, da providência.
Em “O burrinho pedrês”, é possível identificar tanto a disseminação da ação
providencial no decorrer da narrativa, quanto sua ação pontual no momento mais complicado
da história: a enchente que eles enfrentam no rrego da Fome. Importante é notar que, nesse
conto, a ação providencial gira em torno, principalmente, do burrinho “miúdo e resignado”
(ROSA, 1951, p. 7) que atua como herói no fim da narrativa quando salva dois vaqueiros
Francolim e Badu da enchente, o primeiro, agarrado a seu rabo e o segundo à sua crina.
Sendo assim, a disseminação será realizada através da caracterização desse burrinho no
decorrer do conto, visando mostrar tanto sua fragilidade quanto alguns de seus hábitos. Ele
costumava, por exemplo, fechar os olhos nos momentos de dificuldade ou quando via algo de
que discordava:
Enfarado de assistir a tais violências, Sete-de-Ouros fecha os olhos. Rosna
engasgado. Entrona o frontispício. E, cabisbaixo, volta a cochilar. Todo
calma, renúncia e força não usada. O hálito largo. As orelhas peludas,
fendidas por diante, como duas mal enroladas folhas secas. A modorra, que
o leva a reservatórios profundos. As castanhas incompletas das pernas. As
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Bem que Sete-de-Ouros se inventa, sempre no seu. Não a praça larga do
claro, nem o cavouco do sono: só um remanso, pouso de pausa, com as
pestanas meando os olhos, o mundo de fora feito um sossego, coado na
quase-sombra, e, de dentro, funda certeza viva, subida de raiz; com as
orelhas espelhos da alma tremulando, tais ponteiros de quadrante, aos
episódios para a estrada, pela ponte nebulosa por onde os burrinhos sabem
ir, qual a qual, sem conversa, sem perguntas, cada um no seu lugar, devagar,
por todos os séculos e seculórios, mansamente am. (ROSA, 1951, 34)
Vê-se, portanto que a primeira dessas características é a calma, a paciência; a segunda é
a “certeza viva”, a força interior e a terceira é a aceitação do que lhes é imposta pela vida “sem
perguntas, cada um no seu lugar, devagar.”. É dessa maneira que a narrativa é encaminhada
para o fim, quando o burrinho pedrês, que no início do conto era visto como velho e incapaz,
salva os dois vaqueiros da enchente, fazendo uso da tranqüilidade e da sabedoria
Nenhuma pressa. Aqui, por ora, este poço doido, que barulha como um fogo,
e faz medo, ao é novo: tudo é ruim e uma só coisa, no caminho: como os
homens e os seus modos, costumeira confusão. É só fechar os olhos. Como
sempre. Outra passada, na massa fria. E ir sem afã, à voga surda, amigo da
água, bem com o escuro, filho do fundo, poupando forças para o fim. Nada
mais, nada de graça; nem um arranco, fora de hora. Assim. (ROSA, 1951,
p.63).
Segundo Maria lia Leonel em Guimarães Rosa: Magma e gênese da obra (2000,
p.78) nenhum leitor interessado na obra rosiana ignora a presença fundamental dos animais
nos seus textos e o modo eufórico como são tratados o burrinho pedrês é apenas a súmula
desse tratamento”. Em seu livro, Leonel (2000, p. 239) mostra que “o interesse de Guimarães
Rosa pelo retrato sempre empático dos animais, esmerando-se na escolha de nomes,
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‘L’intégrité, qui est le bien au parfait, suppose une économie de la pensée, du sentiment, de la
parole et de l’action au sens ancien du mot économie, qui signifie : soin diligent et mise en
ordre’. Segundo ela,
a integridade da qual fala Sertillanges existe em um estágio purificado do
ser. Implica a compreensão ou intuição do bem e dos desvios do excesso.
Exige a eliminação de todo o supérfluo, para o definitivo encaminhamento
da alma e do esrito para Deus. (SPERBER, 1976, p. 82)
Para Sperber (1976, p. 84), “o burrinho Sete-de-Ouros representa a criatura dignificada
proposta pelos Evangelhos. Por extensão, todas as criaturas, até as mais humildes, - sobretudo
as mais humildes têm valor. São as pessoas de classes inferiores, de nível intelectual
primário, padecentes”.
Todas essas descrições do burrinho evidenciam o fato de ele ser uma personagem
avançada espiritualmente, da mesma forma como é Maria Exita em “Substância”, a vaquinha
pitanga em Seqüência”, Jo Reles um dos narradores n’ “A estória do Homem do
Pinguelo e as velhinhas em “Arroio-das-antas”, uma vez que todos eles parecem haver
entendido o processo da providência divina e, por isso, aceitam o que a vida lhes impõe, pois
sabem tratar-se do governo dessa mesma provincia.
Em “São Marcos”, outra narrativa de Sagarana, fica claro o modo como a crença
popular no sobrenatural e, dentro dela, a magia, não excluem a ação da providência divina.
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De qualquer forma, o espaço da magia e dos feiticeiros está delimitado e
divide fronteiras com os demais, principalmente na população rural ou
sertaneja. [...]
Guimaes Rosa busca o espaço rural e sertanejo privilegiado para essa
mistura mágico-religiosa.
É dessa forma que, segundo Godoy, o escritor cria uma ambientação mágica,
aproximando-a do supersticioso e do religioso em busca da atmosfera ideal para os
acontecimentos de suas sagas. Em São Marcos” essa atmosfera envolve tanto a magia dos
feiticeiros, com destaque para João Mangolô, quanto a articulação dos fatos que culminam na
ação providencial que impede João/Jo de matar o feiticeiro. O feito também se aproxima
da ação providencial, pois possibilita a mudança que deveria necessariamente se passar na
vida do protagonista, pois é graças a ele que a personagem descobre a importância de enxergar
também aquilo que está além do universo palpável. Ao recobrar a visão, o narrador-
personagem descobre o valor dos outros sentidos que pareciam adormecidos e enxerga no alto
da colina “um boi branco, de cauda branca” (ROSA, 1951, p.235), imagem que nos sugere a
presença desse animal como mediador, como responsável pela execução do plano providencial
que estava traçado para João/ José.
Apesar de tratar-se de narrativas completamente díspares, interessante é notar que a ação
providencial se em todas elas e, apesar de as circunstâncias serem completamente
diferentes, muitas características necessárias à ocorrência da ação providencial são mantidas
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nota, Paulo Rónai aponta uma característica dos protagonistas dessa obra que se encaixa
também naqueles que analisamos nos contos selecionados de Estas estórias e de Tutaméia:
Neles a intuão e o devaneio substituem o raciocínio, as palavras ecoam
mais fundo, os gestos e os atos mais simples se transubstanciam em
símbolos. O que existe dilui-se, desintegra-se; o que não toma forma e
passa a agir. Essa vitória do irracional sobre o racional constitui-se em fonte
permanente de poesia. (RONAI, 1968, p. LVIII)
A simbologia presente nos contos selecionados fornece às narrativas um caráter
essencialmente poético que, como veremos, contribui para a formação de uma ambientação
enigmática favorável à ocorrência da ação providencial. Sendo assim, na leitura que fazemos
de tais contos, procuramos analisar o modo como o discurso da narrativa, expresso pelo
discurso da poesia, é estruturado, constituindo a representação artística da diegese.
Na obra Estrutura do discurso da poesia e da narrativa (1980), Maurice-Jean Lefebve,
conforme dito, desenvolve a idéia de que os discursos da poesia e da narrativa podem ser
associados, como ocorre nos contos em questão; enquanto o discurso da poesia nos reenvia a
um referente relacionado à experiência que possuímos do mundo, o discurso da narrativa tem a
diegese como suporte através do qual busca reatualizar essa experiência. É por meio dessa
associação que, em narrativas como as que selecionamos para este trabalho, uma questão
universal não se apaga face à diegese, fica atrás dela e é por ela atualizada.
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pois o caráter sugestivo dessas narrativas evidenciam seu alcance universal e nos levam a
refletir acerca de questões sobre religião, o bem e o mal, destino e fé. Além disso, essas
histórias mostram a importância do reconhecimento, por parte das personagens, da obra e do
trabalho de Deus, pois, como afirma Sertillanges, em As grandes teses da filosofia tomista
(1951, p.196),
[...] uma vez reconhecido por sinais verdadeiros, as obscuridades da sua obra
devem servir só para nos levarem à humildade diante do mistério e exclamar
como S. Agostinho: “Deus infinitamente bom, nunca permitiria que
houvesse mal nas suas obras, se não fosse tão poderoso e tão bom que do
mesmo mal não pudesse tirar bem”.
Coincidentemente ou não, em um dos trechos sublinhados na obra Affinités, escrita pelo
mesmo padre e encontrada na biblioteca pessoal de Guimarães Rosa, lê-se: “o mal: um bem
diferente daquele ao qual nós aspiramos ou que nós esperamos” (SERTILLANGES, 1936,
p.64)
1
. Além disso, na última, e mais reveladora, parte do prefácio “Sobre a escova e a
dúvida”, o autor relembra alguns dos momentos que passou ao lado de Zito e algumas das
afirmações do guieiro que parecem tê-lo acompanhado em sua travessia: “Tudo o que é ruim é
fora de propósitos...” (ROSA, 2001, p. 227).
Esses valores, presentes tanto nas obras de Sertillanges quanto na possível profissão de
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existe por trás dele. Sendo assim, todo o conto é construído como uma seqüência logicamente
ordenada de metáforas e sinédoques particularizantes, elaboradas elemento a elemento.
1.2 A alegoria
Atrás de torto, o desentortado. Adiante. Todo lugar é igual a outro lugar; todo
tempo é o tempo. Aí: as coisas acontecidas, não começam, não acabam.
(ROSA, 1969, p. 125)
Pelo fato de as narrativas analisadas neste trabalho serem extremamente simbólicas,
indicando diversas formas de atuação da providência na vida de todos os seres, optamos por
analisá-las como alegoria desse tema. Adotamos a noção de alegoria exposta por Edward
Lopes em Metáfora: da retórica à semiótica (1986) e pelo Grupo µ em Retórica geral (1974)
para realizar as análises constituintes deste trabalho.
Segundo Lopes (1986, p. 42),
[...] uma alegoria é um discurso metafórico que contém dois textos
vinculados entre si pelo mesmo fundamento, que os associa num novo
conjunto significante, um novo discurso, hierarquizando-os de tal modo que
o texto figurativo funcionará nesse discurso como o plano de expressão
manifestante de outro texto, o temático ou manifestado.
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[...] a interpretação literal produz o texto manifestante, lendo-o como a
expressão de uma isotopia exteroceptiva
2
, que nos dá o tema ao modo do
parecer (i. é, por intermédio da sua visibilização na forma de uma figura) e a
interpretação figurada, que produz o texto manifestado, lendo o texto
manifestante como plano de expressão de outra coisa, espécie de
interpretante analógico, pois, de uma isotopia interoceptiva
3
, humana, onde
o tema aparece ao modo do ser.
Em suma, a alegoria é
[...] uma mefora expandida, construída pelo procedimento de
metaforização continuada. Por isso ela surge quase sempre na forma de uma
rie de metáforas que se ligam umas às outras, sintática e semanticamente,
na qualidade de partes constituintes da mesma estrutura narrativa, no interior
da qual cada mefora se encarrega de efetuar a descrição de dado estado
narrativo (LOPES, 1986, p. 49)
No nosso trabalho, vemos cada um dos contos analisados como uma grande alegoria da
ação providencial e supomos que os elementos que formam essas histórias ações,
personagens, tempo, espaço, etc sejam metáforas constitutivas dessa grande alegoria que é a
provincia. É por isso que podemos afirmar que a alegoria, nesse caso, consiste na expansão
da metáfora da ação providencial que, por sua vez, é desenvolvida no texto através de outras
metáforas que sugerem, de diferentes maneiras, a disseminação dessa mesma ação. Sendo
assim, essa alegoria pode ser considerada tanto uma metáfora expandida quanto um conjunto
de metáforas pelo fato de as diversas metáforas do conjunto, apesar de distintas, unirem-se
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sinédoques particularizantes”. Sendo assim, quando tomadas literalmente, a alegoria, assim
como as parábolas e as fábulas, geralmente fornecem um sentido insuficiente. Todavia, a
diferença entre elas está no fato de que parábolas e fábulas manipulam domínios semânticos
restritos, enquanto na alegoria, o contexto [...] é outro, à medida que prepara o julgamento do
sentido literal como insuficiente” (DUBOIS et al, 1947, p. 194). É, portanto, visando esse
julgamento, que as metáforas são escolhidas pelo escritor, para que constituam uma espécie de
código secreto” necessário à compreensão da alegoria.
A substituição aparentemente total que se dá na alegoria, na realidade “pode ser total no
plano semântico, mas no plano retórico, [...] está o invariante para nos permitir, com a marca,
compreender a alegoria”. Cada um dos contos apresenta, portanto, um invariante, ou seja, um
elemento que une o texto manifestante e o texto manifestado e que constitui uma zona de
significação que nos permite traduzir a metáfora. Em Substância”, veremos como o processo
de purificação do polvilho pode ser visto como metáfora do processo de purificação de Maria
Exita e Sionésio; em Seqüência”, como a ação da vaquinha coincide com a ão
providencial; n’ “A estória do Homem do Pinguelo”, como as incertas aparições da entidade
misteriosa do Homem do Pinguelo coincidem com a disseminação da ação providencial em
momentos decisivos da história e em “Arroio-das-antas”, como as orações das velhinhas
representam a importância da caridade e da fé para que a ação providencial se cumpra.
Dessa forma, faremos a análise desses invariantes para mostrar como se a construção
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secreta se constrói com o não dito, com o subentendido e a alusão. É dessa forma que
Guimarães Rosa alegoriza o texto de Sertillanges em um certo tipo de história que, de acordo
com a noção de alegoria para o Grupo µ (1974, p.193),
[...] pode ser lida, bem ou mal, ao nível zero, e apresentar um sentido
aceitável, ainda que pouco interessante. É precisamente essa decepção,
relativa ao sentido primeiro, que leva a procurar uma possível segunda
isotopia, menos banal, que talvez pudesse existir.
Segundo os conceitos de Ricardo Piglia, existe a chamada história 1, a hisria visível
que codifica a história secreta e que, portanto, requer de nós uma leitura bem mais atenta para
que possamos identificar a transformão retórica que se dá, segundo o Grupo µ, nos
transformantes (elementos que constituem o grau zero da narrativa) para que dêem origem aos
trasformados (os elementos contitutivos da história secreta). Segundo esses estudiosos, a
transformação retórica ou metassemêmica é geralmente uma metáfora ou uma sinédoque
particularizante.
É com base nessa transformação que analisaremos o Homem do Pinguelo”, a
“vaquinha pitanga”, o “polvilho e as “velhinhas” como elementos responsáveis por mediar a
ação da provincia divina, fundamental para a transformação da vida das personagens
envolvidas nas respectivas histórias. Esses elementos são os transformantes que, se vistos
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Em Esse ofício do verso, Jorge Luis Borges (2000, p.40) afirma, em sua conferência
sobre a metáfora, que “qualquer coisa sugerida é bem mais eficaz do que qualquer coisa
apregoada” e que
Talvez a mente humana tenha uma tendência a negar declarações. [...] Mas
quando algo é simplesmente dito ou melhor ainda insinuado, uma
espécie de hospitalidade em nossa imaginação. Estamos dispostos a acei-lo.
Segundo o escritor argentino, as metáforas são as palavras exatas que os escritores
encontram para aquilo que tentam dizer, uma vez que transmitem uma emoção que se perderia
se a mensagem fosse dita literalmente. É por isso que Borges defende a idéia de a razão ser
inconvincente quando comparada à capacidade da metáfora de surpreender a imaginação. Essa
surpresa pode decorrer do estranhamento por parte do leitor, mas, mesmo assim, “somos
levados a sentir que a emoção por trás das palavras é verdadeira.” (BORGES, 2000, p.101).
Isso explica porque Guimarães Rosa está entre os grandes autores que nos surpreendem e nos
emocionam de modo a crermos estar pximos da verdade.
A alegoria é, portanto, um conjunto de metáforas que, apesar de distintas, atuam como
um todo e nos remetem a um mesmo significado. Ademais, é empregada não como mero
artefato, mas como recurso que remete o leitor a uma investigação mais profunda e,
conseqüentemente, mais rica e adequada do material que lhe é exposto.
É com base nesse conceito de alegoria que, neste texto, procuramos levantar e analisar
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principalmente, se compreendemos que, através do relato das mudanças de vida das
personagens, elas também descrevem a trajetória de afirmação da aliança entre Deus e os
homens. A importância de tais sugestões nos faz lembrar do que afirma o contista no fim de
um dos reveladores prefácios de Tutaméia, “Aletria e hermenêutica”: Ergo: O livro pode valer
pelo muito que nele não deveu caber. Quod erat demonstrandum.” (ROSA, 2001, p. 40)
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Capítulo 2
2.1 Providência: a substância primeira
A crítica ressalta constantemente o caráter universal da obra rosiana, decorrente da
abranncia dos motivos desenvolvidos como fios condutores das narrativas. Em A
Cinderela do sertão de Guimarães Rosa” (2005, p. 120/121) Edna Nascimento e Erasmo
Magalhães analisam a narrativa fílmica de Pedro Bial Outras estórias que retoma cinco
contos de Primeiras estórias e mostram como o texto de Bial constrói a Cinderela do sertão
mineiro. Nesse texto eles destacam um ponto essencial também ao nosso trabalho: o de que
tais narrativas rosianas tratam de valores que transcendem o sertão descrito pelo escritor, pois
No nível de manifestação do texto, é o sero brasileiro do Brasil Central que
Guimaes Rosa reconstrói em sua obra e que Pedro Bial recupera em seu
texto fílmico: as figuras, do jagunço, do fazendeiro; o ambiente do sertão, a
roça, o arraial; a vegetação, cujo maior representante, na versão de Bial, é o
buriti. Mas, no espaço do autor das cinco narrativas verbais, também estão
delineados valores do homem humano que transcendem o mundo do sertão
[...]
É dessa forma que o espaço na obra rosiana vai muito além dos limites sicos, pois,
nesse caso, segundo Benedito Nunes (1969, p. 174), esse é o espaço que se abre em viagem,
e que a viagem converte em mundo. Sem limites fixos, lugar que abrange todos os lugares, o
Sertão congrega o perto e o longe, o que a vista alcança e o que só a imaginação pode ver.”.
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nos interstícios da história de Sionésio e Maria Exita, personagens do conto “Substância”, de
Primeiras estórias.
De acordo com Nascimento e Magalhães (2005, p. 114/115), essa narrativa “constrói o
percurso da transformão da moça do sertão que, embora não tendo origem nobre,
transforma-se em princesa pela sua beleza e pureza.”. Além do que, não “falta também, nessa
narrativa, a fada madrinha, figurativizada por Nhatiaga, que a tudo observa.” Segundo o texto
de Bial, nos textos de Guimarães Rosa, “há sempre uma renovação do ciclo da vida pelo
amor”, cuja concretização identificamos com a força providencial.
Em O espelho (1998, p.188-191), Heloisa Vilhena de Araújo Maria Exita como
“Benfazeja luminosa. Uma Eumênide. Leva para fora da vida terrena”, enquanto os olhos de
Siosio não estavam bastante fortalecidos, ainda, para encarar o sol. Posteriormente, o sol é
visto como a “luz de Cristo que fortalece os olhos do fazendeiro para que pudessem ver
Maria Exita sorrir. Através da aproximação que a autora faz do conto rosiano com trechos de
Dante, no canto XXIII do Paradiso, ela nos mostra que os olhos de Maria Exita “já estão
prontos para a luz divina. E é na substância branca do polvilho, brilhando ao sol, que ela
reconhece essa luz”, enquanto Sionésio ainda não está pronto para a visão de Deus.
Todavia, Heloísa Vilhena também Maria Exita como o anjo da morte” (p.192), a
substância, algo que “não é corpo, não é imagem, é substância separada” e, portanto, como
um anjo, “reflete, como um espelho, a luz de Deus”, fortalecendo os olhos de Sionésio e
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uma vida nova, para celebrarem juntos a renovação que a providência divina promove em
suas vidas, concedendo-lhes a graça do amor.
Além disso, analisamos o modo como se a disseminação da ação providencial na
narrativa toda e não apenas no momento de transformação. A mudança aparenta ser brusca
quando na verdade é um processo lento que requer sabedoria e paciência das personagens
envolvidas nessa travessia.
é sabido que a obra rosiana nos remete sempre para o que está além dos fatos
narrados. Sendo assim, analisamos a história de Sionésio e Maria Exita como uma alegoria da
atuação da providência de Deus que se na vida de todos os seres, estejam eles preparados
ou não para recebê-la. Porém, aqueles que ainda não estão aptos a receber o que lhes é
determinado, devem passar por um processo de aprimoramento, de purificação, para que
consigam enxergar e terem fé na ação providencial ordenadora de todos os fatos.
Segundo o Grupo µ, em Retórica geral (1974) a alegoria, por sua própria estrutura,
trata-se de um metalogismo que, por si próprio, transgride a relação ‘normal’ entre o
conceito e a coisa significada” (p. 187). Portanto, o metalogismo modifica o valor lógico da
frase, uma vez que o é submetido a restrições linguísticas, mas não anula a possibilidade de
o texto ser lido ao nível zero e apresentar um sentido aceitável, ainda que pouco
interessante” (p. 193). Segundo esses teóricos, “É precisamente essa decepção, relativa ao
sentido primeiro, que leva a procurar uma possível segunda isotopia, menos banal, que talvez
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metassemema
(transformante) i (transformado) (p.194)
Todavia, como a transformação metassemêmica é geralmente uma metáfora ou uma
sinédoque particularizante, a relação que existe entre os transformantes é pertinente, mas,
quando transposta para os transformados, ela passa a ser impertinente e é nesse momento que
atua o metalogismo, pois ele aparece “como figura de conjunto que só pode ser compreendida
pelo conhecimento do referente particular” (p. 195), ou seja, figura que nos possibilita
reconhecer nas entrelinhas do texto “o protocolo do evento considerado” (p.195), que, nesta
análise, vemos como a disseminação da ação providencial.
No conto selecionado, procuramos levantar a analisar termos sugestivos que
explicitam a alegoria e acabam por indicar os eventos que deveriam dissimular. O texto em
questão pode ser, portanto, lido como uma alegoria que “revela certos aspectos e basta, após
suprimirem-se os semas enganadores, acrescentar àqueles que sobram semas descritivos, para
compor o protocolo do evento considerado” ( p. 195).
Heinrich Lausberg em Elementos de retórica literária (1966), afirma que a alegoria é
a metáfora que é continuada como tropo de pensamento e consiste na substituição do
pensamento em causa, por outro pensamento, que está ligado, numa relação de semelhança a
esse pensamento em causa” (p.247). Segundo Lausberg, podemos distinguir dois graus de
totalidade da alegoria: a chamada tota allegoria, que não contém nenhum elemento do
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2.2 A disseminação da ação providencial
O processo de purificação realizado através da disseminação da ação providencial nas
vidas de Sionésio e Maria Exita que leva à concretização do amor, encontra-se alegorizado já
no primeiro parágrafo de “Substância”, na descrição do processo pelo qual passa o polvilho
para transformar-se em amido: “Do ralo às gamelas, da masseira às bacias, uma polpa se
repassa, para assentar, no fundo da água e leite, azulosa o amido puro, limpo, feito
surpresa.” (ROSA, 1962, p. 151). Nessa possível correspondência devemos atentar
principalmente para a expressão “feito surpresa”, porque o termo “feito” pode nos fazer
pensar em algo que se parece com surpresa, mas não é exatamente isso, uma vez que vinha
sendo preparado. A impressão de surpresa decorre da mudança brusca que atrai nossa atenção
para um fato pontual dentro da narrativa que consiste no momento em que Sionésio pergunta
a Maria Exita: “Você, Maria, quererá, a gente, nós dois, nunca precisar de se separar? Vo
comigo, vem e vai?” (ROSA, 1962, p.156), porque é nesse momento que se concretiza tudo
que havia sido, aos poucos, preparado no decorrer da narrativa. Todavia, o fato de o autor
abrir o conto descrevendo o processo por que passa o polvilho, como metáfora do processo de
disseminação da ação providencial, evidencia o fato de que mais importante do que a tão
esperada união das personagens, é o processo que foi percorrido pelas mesmas antes de
finalmente se unirem. E mais, a união só se torna possível a partir do momento em que ambos
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provocará Maria Exita. Por conseguinte, o processo de purificação da personagem feminina
dá-se por meio do trabalho contínuo com o polvilho, com sua brancura ofuscante.
Em seguida, temos a focalização interna de Siosio que, sem nem mesmo saber em
que mês a moça havia nascido, deduz ser de maio, porque o “mês mor de orvalho, da
Virgem, de claridades no campo (ROSA, 1968, p.151). Ele que a notara em uma das festas
da fazenda, percebe que “ela, flor” não se parecia com a menina “historiada de desgraças”
que havia sido levada para servir na fazenda. Porém, segue o comentário do narrador de que,
Sem se dar idéia, a surpresa se via formada” (p. 151), ou seja, o que parecia repentido para
Siosio, muito vinha acontecendo, a moça foi, aos poucos, se embelezando, mas “a ele,
Siosio, faltavam folga e espírito para primeiro reparar em transformações” (p. 151). É
importante notar como essa última frase do primeiro parágrafo fecha um conjunto de
sugestões de tudo aquilo que acontecerá no conto. Além disso, as “transformações
mencionadas referem-se tanto às transformações que se passam com Maria Exita quanto
àquelas que se darão com o próprio Sionésio sem ele nem mesmo perceber ou desconfiar
justamente pelo fato de lhe faltarem “folga”, ou seja, tempo, paciência, atenção e “espírito”,
necessários para que perceba os indícios que são dados pela provincia divina.
O processo de evolução espiritual de Sionésio passa a ser narrado a partir do segundo
parágrafo no qual o narrador nos conta que ele - nesse momento do texto chamado de Seo
Nésio, sugerindo uma primeira versão do rapaz -, até então preguiçoso, havia herdado, de
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Maria Exita havia recebido a visita da madrinha rica que, por sua vez, apenas passou pela
fazenda e também desapareceu. Ademais, no auge das dificuldades, a moça ainda recebeu um
serviço na Samburá que era o pior de todos: o de quebrar com as mãos o polvilho nas lajes.
Nesse ponto da narrativa fica evidente para o leitor a delicada situação pela qual passa Maria
Exita, faltava-lhe um ponto de apoio, um sinal de esperança, mas ela, de nada reclama,
satisfaz-se com o que lhe é concedido e faz o trabalho com gosto. É dessa forma sábia que ela
parece aceitar e até mesmo compreender o que está traçado para seu futuro.
Siosio, por outro lado, apesar de aparentemente ter tudo aquilo de que precisa e
sentir-se, inclusive, auto-suficiente, como fica claro no seguinte trecho “Amava o que era
seu o que seus fortes olhos aprisionavam” (p.152) passa a sentir uma fadiga. O
ensimesmo” (p.152), decorrente principalmente da sua falta de tempo para renovar a vida.
O modo como o narrador nos apresenta os percursos de ambas as personagens, passa a
impressão de que a carência de um pode ser o que existe no outro. Enquanto Maria Exita não
tem praticamente nada de concreto a que se apegar, Siosio tudo tem e acaba se preocupando
mais do que devia com suas posses, pois o fato de tanto possuir faz com que ele se esqueça da
importância do que ele não possui. A humildade dela, que gosta até mesmo do terrível
trabalho que lhe fora determinado, é o oposto da necessidade de Sionésio de dominar a
situação em que ele se encontra. Todavia, tal característica de Sionésio é colocada à prova
através do amor que ele passa a sentir por Maria Exita que faz com que tudo mais perca o
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alterado, pode produzir mais, com maquinário e outras provincias. Esse seria um processo
fácil, que não demandaria muito tempo dele, mas tal observação vem para que ele possa se
auto-afirmar diante de um processo longo e difícil que estava apenas começando: seu
encantamento por Maria Exita.
Segue, depois, a narração do momento em que ele decide ir vê-la e, mais uma vez,
temos, através da focalização interna, a sensação de Sionésio diante do polvilho: “Alvíssimo,
era horrível, aquilo. Atormentava, torturava: os olhos da pessoa tendo de ficar miudinho
fechados, feito os de um tatu, ante a implacável alvura, o sol em cima” (p.153). Nesse
momento, ele sente dela e ela, ao contrário, nem mesmo reage à pergunta que ele faz,
como se já soubesse da necessidade de seu contato com a alvura do polvilho, que
alegoricamente, consiste na fé, na entrega àquilo que a providência lhe havia designado. A
indicação disso está implícita no seguinte trecho: o mal-e-mal, o boquinãoabrir, o sorriso
devagar. Não se perturbava” (p.153) e é confirmada no que segue:
Também, para um pasmar-nos, com ela acontecesse diferente: nem enrugava
o rosto, nem espremia ou negava os olhos, mas oferecidos bem abertos
olhos desses, de outra luminosidade. Não parecia padecer, antes tirar
segurança e folguedo, do triste, sinistro polvilho, portentoso, mais a maldade
do sol. (p.153)
Os olhos de outra luminosidade” de Maria Exita já conseguem enxergar por entre o
efeito torturante do polvilho metáfora das dificuldades que a vida lhe impõe e que fazem
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suportar e aceitar todas as dificuldades que a vida lhe impôs e também pelo fato de, ao invés
de desviar os olhos do “deslumbrável” polvilho, fitá-lo, com gosto:
Destemia o grado, cruel polvilho, de abater a vista, intacto branco. Antes,
como a um alcanforar o fitava, de tanto gosto. Feito a uma espécie de alívio,
capaz de a desafligir; de muito lhe dar: uma esperança mais espaçosa. Todo
esse tempo. Sua beleza, donde vinha? Sua própria tão firme pessoa? (p. 153;
grifos nossos)
Nesse trecho, fica evidente a relação que existe entre a alma diferenciada de Maria
Exita e sua capacidade de ver o polvilho como uma fonte de esperança, um alívio, que são os
mesmos sentimentos que a providência divina promove nos corações daqueles que nela
confiam. O plano traçado pela providência não envolve somente coisas boas, dentro dele
também se encontram dificuldades, os “vários sem-remédios de amargura” que, todavia,
conduzirão as personagens ao Bem supremo. É por saber disso que Maria Exita sente-se feliz,
apesar dos ásperos” e Sionésio, por sua vez, apesar de ainda o compreender a aceitação
dela, fica também feliz pelo fato de sua amada sentir-se bem. Esse é, portanto, mais um passo
no processo de aprimoramento espiritual dele.
Maria Exita está, portanto, pronta para viver o amor que a providência lhe designou: -
Ela – que dependendo só de um aceno” - ; entretanto, Sionésio precisa alcançá-la para depois
poderem viver essa relação. Surge, por conseguinte, uma dúvida: “Se outros a quisessem, se
ela gostasse de alguém?” (p. 154). Apesar da dúvida e de não acreditar que Maria Exita
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suportar olhar para o polvilho, ou seja, apesar de ainda não enxergar o poder da providência,
aproxime sua vida da existência de Maria Exita e essa aproximação torna-se uma espécie de
depenncia tão diferente daquela sua auto-suficiência. Ele não consegue dormir pensando
em sua paixão, passa a sentir a presença dela como um alívio e, por fim, percebe que nada do
que ele amava, “o que era seu o que seus fortes olhos aprisionavam (p. 152) fazia sentido
sem ela.
O mais interessante é que, apesar de Sionésio saber que Maria Exita também o ama,
uma vez que “não receava a recusação” (p.155), ele também percebe que “queria e não podia,
dar volta a uma coisa.” (p.155), como se soubesse que faltava alguma coisa para, depois,
poder concretizar seu desejo de ficar com ela. O próprio narrador dá-nos mais uma
informação sobre a disseminação da ação providencial que vem ocorrendo, quando diz “Os
dias iam. Passavam as coisas, pretextadas. Que temia, pois, que não sabia que temesse?”
(p.155). É preciso lembrar que “pretexto” é a razão aparente ou imaginária que se alega para
dissimular o motivo real de uma ação, o narrador deixa implícito nesse trecho que tudo que
estava acontecendo encobria o sentido real de todos os fatos que, na verdade, cumprem o
plano providencial que estava traçado para Sionésio. Ele teria que se aprimorar
espiritualmente, deveria deixar de lado o apego às coisas materiais e a certeza de que tudo
podia, para então entregar sua vida nas mãos da força providencial para que ela fizesse o
destino se cumprir.
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E assim, após percorrer o que lhe estava traçado para que pudesse amadurecer
espiritualmente, Sionésio se aproxima de Maria Exita, e isso se no momento certo,
escolhido pela provincia, momento este em que o espírito de Sionésio estaria tão
amadurecido como o de Maria Exita: “A hora era de nada e tanto; e ela era sempre a espera”
(p. 156). Mais do que depressa ela aceita a proposta de Sionésio, para “confirmar o rumo de
sua vida” e o rir de seus “olhos sacis” encobrem a certeza de que ela já tinha de que tudo
aquilo aconteceria. Todavia, mais uma vez, Sionésio teme, duvida do que seu coração dizia e
do que a provincia havia lhe mostrado até então quando pensa novamente na possibilidade
de a doença do pai de Maria Exita existir por trás de toda sua beleza. É nesse momento que
ele, mesmo sem querer, olha para o polvilho, metáfora da ação providencial, e se entrega a
ela:
Mesmo, sem querer, entregou os olhos ao polvilho, que ofuscava, na laje, na
vez do sol. Ainda que por instante, achava ali um poder, contemplado, de
grandeza, dilatado repouso, que desmanchava em branco os rebuliços do
pensamento da gente, atormentantes.
A alumiada surpresa.
Alvava. (p.156)
É nesse momento em que ele mostra sua fé na provincia, que ela faz com que os
rebuliços” do pensamento dele desapareçam para dar lugar ao “exato, grande, o repentino
amor o acima” (p.156) que estava reservado para ele. Resolveu então aplicar o coração e
abrir ainda mais os olhos, com isso ele pôde quebrar o polvilho da mesma forma como fazia
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Exita até a fazendo de Sionésio, no fim da narrativa apenas observa-os, “quieta e calada
(p.156), como se ela também já desconfiasse que aquele encontro deveria acontecer.
No último parágrafo da narrativa lemos que
acontecia o não-fato, o não-tempo, silêncio em sua imaginação. o um-e-
outra, um em-si-juntos, o viver em ponto sem parar, coraçãomente:
pensamento, pensar. Alvor. Avançavam, parados, dentro da luz, como se
fosse no dia de Todos os Pássaros. (p. 156)
O fato de o narrador referir-se à ocorrência do “não-fato, do “não-tempo”, parece
estar claramente relacionado ao que lemos em Afinidades, obra do padre Sertillanges (1936,
p.61/62), especificamente no capítulo em que ele trata da “Providência de Deus” e, dentro
dela, do mistério:
O mistério, em uma palavra, não é falta de evidência das coisas em si
mesmas, ele é cegueira. Nossas censuras à providência resultam de que nós
julgamos no tempo e com relação ao tempo, enquanto o objeto do
julgamento é da ordem da eternidade e submetido a visões eternas. Sabendo
que a ordem verdadeira do mundo está incluída no Instante que compreende
todos, no Instante criador transcendente a todas as durações, mas em que
nossa duração em nós deve um dia transbordar como no calmo mar uma
torrente pida, sejamos pacientes, na espera da transformação que adaptará
nossos olhos à luz.
4
Vê-se, no trecho citado que, de forma extremamente poética, Sertillanges refere-se ao
modo limitado e muitas vezes errôneo com que os homens tratam da providência, vinculando-
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de todos os fatos. O mistério a que se refere Sertillanges pode ser relacionado ao mistério das
participações que ele menciona em outra obra As grandes teses da filosofia tomista (1951,
p. 200):
As coisas não subsistentes, como a ação, dizem-se concriadas, isto é, criadas
juntamente; o sujeito agente é criado como tal, isto é, como agente e também
como sujeito; e a sua ação é também criada; é uma participação da Ação
primeira, como o sujeito é participação da Substância primeira: duas coisas
idênticas. Nelas se esconde o mistério das participações, o mistério da
aliança e da conciliação entre o Ser absoluto e os seres participados, entre o
infinito e o finito.
É essa conciliação entre ser absoluto a providência divina e seres participados
Siosio e Maria Exita que “Substância” ilustra ao mostrar o processo de evolão
espiritual pelo qual ambos passam até o momento em que conseguem enxergar o caráter
transcendente de todos os fatos.
O narrador emprega os termos “não-fato” e “não-tempo” para indicar que a união entre
Siosio e Maria Exita, que havia sido sugerida de diferentes formas no conto, através do
que chamamos disseminação da ação providencial, culmina na ação providencial
propriamente dita, no momento em que ocorre uma transformão na vida de Sionésio e seus
olhos adaptam-se à luz. Essa luz que, no conto, provém do polvilho, simboliza a luz da
provincia, luz que ilumina as personagens envolvidas em direção a um destino único, “só o
um-e-outra, um em-si-juntos”, para que possam viver “em ponto sem parar”, ou seja, aos
poucos, sem atropelos, dando continuidade ao que a vida lhes havia reservado como resultado
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2.3 O pássaro como símbolo de espiritualização
Em Amor de asas e outros ensaios, Luis Busatto (1985, p.52) faz uma análise
extremamente interessante acerca da poética do vôo em Grande sertão: veredas. Segundo ele,
[...] na relação Riobaldo/Diadorim o ssaro torna-se a cenestesia do
sentimento amoroso. Ele vai concretizar a troca dos olhares e nisto, a
liberdade do ser em expansão e em ascensão. No GS:V o amor é motivo de
perfeição e de elevação espiritual do homem.
Sabe-se que, em algumas de suas obras, Guimarães Rosa insiste tanto no aspecto
visual quanto na dimensão sonora dos pássaros, mas, particularmente o desfecho do conto em
questão, o momento em que Sionésio e Maria Exita “avançavam, parados, dentro da luz,
como se fosse no dia de Todos os Pássaros” (ROSA, 1962, p. 156), remete-nos ao modo como
Busatto elucida a importância dos pássaros na seqüência narrativa de Grande sertão: veredas.
Apesar de tratar-se de produções distintas em várias dimensões, a começar pela extensão, é
preciso lembrar que a recorrência de alguns elementos dentro da obra rosiana não se por
acaso, pelo contrário, muitas vezes o desenrolar de uma leitura ilumina alguns dos pontos
obscuros de outra, sem, contudo, esclarecê-los por completo. É dessa maneira que o efeito de
grandiosidade que a expressão “dia de Todos os Pássaros” provoca no trecho citado, pode ser
comparado à forma como Riobaldo nos descreve o modo como ele abraça Diadorim após uma
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e Diadorim – se revela e se presentifica com a presença dos pássaros. Essa expressão remete-
nos principalmente ao visual dos pássaros, à quantidade deles, ao seu colorido e ao vôo que,
por sua vez, surgem como metáfora do aprendizado, do crescimento espiritual de Sionésio e
Riobaldo nas respectivas narrativas de que fazem parte. Segundo Busatto, em Grande
sertão:veredas (1985, p. 53/54)
[...] se por um lado Diadorim introduz o companheiro no universo das realidades
aladas, abre-lhe os olhos para o comportamento e costumes dos ssaros,
Riobaldo vai aprender não só a observação visual mas vai reter a lição
fundamental, a identidade e diferença do olhar, vai se iniciar na fenomenologia do
olhar. Machozinho e fêmea às vezes davam beijos de biquinquim a
galinholagem deles. ‘É preciso olhar para esses com um todo carinho... o
Reinaldo disse”. Aqui se juntam as duas [...] fenomenologias, do que ensina e do
que aprende.
Como se vê, o processo de aprendizado dá-se em ambas as narrativas e, apesar de as
circunstâncias serem diversas, existe algo comum e muito importante entre elas que consiste
no fato de que a substância das narrativas, ou seja, a história secreta à qual aludimos no
decorrer deste trabalho, encontra-se por trás das aparências, implícita na mobilidade das
imagens, na linguagem poética e na cromaticidade empregadas pelo autor. Segundo Busatto
(1985, p. 54/55),
[...] a maneira de se manifestar indica a substância. É preciso ter cuidado com as
aparências, ou, em outras palavras, nem sempre o que os olhos vêem é a realidade.
‘Os acontecimentos os mais ricos nos chegam bem antes que a alma deles se
aperceba. E, quando nós começamos a abrir os olhos sobre o visível, s estamos
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primeiro e à resignação e aceitação da segunda. Tal atuação tamm se por trás das
aparências uma vez que o autor opta por expandir a metáfora do polvilho, desenvolvendo
assim uma alegoria do processo de purificação realizado pela ação providencial através da
descrição do processo de purificação do polvilho. Todavia, embora isso já tenha sido
mencionado, é importante ressaltar que a obra apresenta dois planos de leitura, um superficial
e outro profundo, ou seja, o texto é compreensível em ambos os planos, porém, a substância
encontra-se no segundo e não pode ser atingida sem que se faça uma leitura adequada do
primeiro. Segundo Busatto (1985, p.54), é no processo que se em Grande sertão: veredas
em que “lentamente [...] passa-se da asa ao pássaro em si. Do pássaro em si, ao olhar os
pássaros. Do olhar os pássaros, ao olhar de Diadorim que se instala “a dialética do amor
como realidade visível/invisível”.
É num processo diverso desse, mas que, todavia, também se de forma lenta, que
Siosio o “urubu tomador de conta” (ROSA, 1962, p.154) encontrará em Maria Exita
“juriti nunca aflita” (ROSA, 1962, p. 154) – o amor que o ensinará a importância da coragem,
da vontade e, sobretudo, da fé na providência divina que, por sua vez, possibilitará a ascensão,
o crescimento espiritual de ambos através do amor puro e grandioso que se encontra
metaforizado na imagem do dia de Todos os Pássaros”.
Nesse conto, assim como nas demais narrativas analisadas, ocorre exatamente o que
afirma Bosi (1988, p.24) em “Céu, inferno”, a respeito da mudança brusca na vida das
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Capítulo 3
3.1 O “mel do maravilhoso”: a ação providencial em “Seqüência”
no início do conto em pauta, o narrador informa-nos que “Na estrada das Tabocas,
uma vaca viajava” (ROSA, 1968, p.65), o que nos remete a um tema recorrente e
fundamental à obra de Guimarães Rosa de modo geral: a viagem.
Segundo Benedito Nunes (1969, p. 174), o sertão do contista
[...] é o espaço que se abre em viagem, e que a viagem converte em mundo.
Sem limites fixos, lugar que abrange todos os lugares, o sertão congrega o
perto e o longe, o que a vista alcança e o que só a imaginação pode ver.
É dessa forma que Guimarães Rosa consegue, ao mesmo tempo, situar suas “estórias
no sertão e torná-las universais. Tal universalidade deve-se aos temas escolhidos pelo escritor
e principalmente ao modo como ele os aborda. As viagens descritas por Guimarães Rosa não
são simples percursos, mas travessias que, na verdade, são caminhos para o saber, para
aprender a viver. Atravessando-os, as personagens reafirmam seu desejo de mudança e são
consagradas com a ação providencial cuja força já havia sido disseminada no discurso.
Com relação ao modo de atuação da provincia, pode-se notar um ponto em comum
entre as quatro narrativas selecionadas para este estudo, uma vez que, em todas elas,
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a velha Nhatiaga o elemento mediador, uma vez que é ela a responsável por levar Maria
Exita até a fazenda. Em Seqüência”, a vaquinha Pitanga é a personagem mais avançada, o
filho de Seo Rigério é a personagem-aprendiz e a fuga da vaca torna-se elemento mediador.
Em “Arroio-das-Antas”, apesar de as velhinhas estarem num grau de evolução espiritual
mais avançado que aquele da moça Drizilda, a “troca” fica bastante clara: as velhinhas
ajudam Drizilda e ela, por sua vez, é o elemento necessário para que a avó Edmunda progrida
ainda mais espiritualmente. Contudo, a maior variação encontra-se no fato de que n’ “A
estória do Homem do Pinguelo”, um dos narradores José Reles - é, a um tempo,
mediador e personagem mais avançada espiritualmente, uma vez que ele sugere em seu
discurso o ensinamento que será dirigido, nesse caso, ao leitor-aprendiz através do que ele
retira do encontro, mediado por ele, de Seo Cesarino e Pedro Mourão. A chave para a
compreensão de tal situação encontra-se no caráter homodiegético desse narrador que,
diferentemente dos narradores das demais narrativas estudadas, ao veicular informações
advindas da sua posição de testemunha, retira daí as informações que precisa para construir o
seu relato. Essa observação testemunhal e exterior nos conduz à análise dos registros da
subjetividade, pois neles está projetada a crença desse narrador na ação providencial.
Todavia, tal característica não é de se estranhar no conto-chave de nossa alise uma vez
que, nele, a providência também aparece de modo diverso dos demais, dessa vez
figurativizada na misteriosa entidade do Homem do Pinguelo”, enquanto nas outras
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3.2 A viagem redonda
Em “Seqüência”, o contista início à narrativa instaurando o tema da viagem, mas
o se trata de uma viagem qualquer, a vaquinha viajava pela “estrada das Tabocas”
(ROSA,1968, p.65). Segundo Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, no Novo dicionário
Aurélio da língua portuguesa (2004, p. 1904), o segundo significado de “taboca” é “logro,
burla, decepção”, ou seja, trata-se de um caminho repleto de dificuldades. Mas, em seguida, o
narrador informa-nos que ela “vinha pelo meio do caminho, como uma criatura cristã”, o que
nos permite dizer que ela vinha com a mesma confiança e a inabalável de um cristão.
Além disso, ela “nem hesitava nas encruzilhadas”, sabia exatamente o caminho que deveria
percorrer para chegar à sua querência, a fazenda do Pãodolhão. Esse é o primeiro parágrafo
que já encerra as características que situam a vaquinha pitanga entre as personagens que
descrevemos como espiritualmente mais avançadas, aquelas que se portam com resignação e
fé diante daquilo que a providência lhes reserva.
A vaquinha que sai da Pedra que nos remete ao que é duro, insensível por um
impulso de saudade, segue rumo à fazenda do Pãodolhão. A partir do segundo parágrafo, o
narrador passa a narrar o percurso da vaquinha e o primeiro ponto do caminho mencionado
por ele é o Arcanjo nome sugestivo, pois significa “anjo de ordem superior” onde tentam
rebatê-la, mas ela se livra, ferozmente, e segue seu caminho. Em alguns momentos, ela vai
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em brio e tomar em conta.” Interessante é ver que nem havia necessidade de ele realizar tal
tarefa, pois Seo Rigério já tinha todos os vaqueiros prontos para partir em busca da vaca, mas
o próprio narrador já nos diz, sobre o filho de Seo Rigério, que ele “soubesse o que por o
botava, se capaz”, deixando implícito que algo fizera com que ele tomasse aquela decisão.
Enquanto o rapaz “ia desconhecidamente”, a vaquinha seguia com toda certeza e
retidão. Enquanto ele parava para perguntar a respeito do paradeiro dela, ela, com horas de
diferença, “providenciava”. Esse é o único momento em que o narrador faz alusão mais
direta ao tema central da nossa análise a providência reafirmando o fato de que é a
vaquinha o ser responsável pelo ensinamento nessa narrativa. É ela que dirige o filho de Seo
Rigério até o seu destino e também é ela que mostra a importância da vontade, do desejo de
mudança, para que esse destino se cumpra. Ele, apesar de sentir-se desorientado, é-nos
descrito pelo narrador como “vocado e ordenado”, ou seja, predestinado e parte essencial de
um todo, uma ordem, uma seqüência que só se cumpriria com ele.
Todavia, o rapaz começa a desanimar, a julgar-se estúpido, justamente por ainda não
compreender o sentido maior de seu percurso, que o narrador chama de “incomeçado, o
empatoso, o desnorte, o necessário”. Em meio a tanta indefinição, o rapaz lança longe um
olhar e vê a vaquinha que, segundo o narrador, transcendia ao que se destinava”, ou seja, em
seu papel de mediadora, sua função ultrapassa a sua intenção primeira – de chegar à Fazenda
do Pãodolhão uma vez que é através dela que o filho de seo Rigério encontra o que lhe é
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Substância”, representa o momento de purificação, de transformação e entrega da
personagem que aprendeu a importância da e da resignação diante dos obstáculos da vida.
Essa resignação é justificada pelo fato de conduzir as personagens envolvidas ao momento de
revelação e transformação de suas vidas em algo melhor, superior.
Da mesma forma como, no caso de Maria Exita, olhar para o polvilho não lhe doía os
olhos; para a vaquinha pitanga, é simples atravessar o rio, ela “com roubada rapidez, ia a
levantar o desterro. Foi uma mexidinha figura quase que mal os dois chifres nadando a
vaca vermelha o transpondo, a esse rio, de tardinha”. Todavia, para o moço, o processo dá-se
de maneira diferente e isso fica claro no conto através da seguinte metáfora das aves: “Antes
do rio não viam: as aves que ninhavam”, ou seja, antes desse processo de purificação, de
transformação interior, ele ainda não podia compreender o que estava traçado,
predestinado, e que ele teria que encontrar.
Antes da travessia do rio, e mais uma vez, de forma muito semelhante ao que se
passou com Sionésio em “Substância”, o rapaz hesita, mas, da mesma forma como o fez
Siosio, ao encarar o polvilho e abrir bem os olhos, o filho de Seo Rigério “pegou a
descalçar as botas. E entrou de peito feito. Àquelas quilas águas trans às braças. Era um
rio e seu além. Estava, já, do outro lado.” A partir desse momento, o rapaz deixa-se levar por
seu cavalo, à noite, entregue ao que se destinava, ao “andamento”, à direção correta e
traçada pela provincia, rumo o qual ele não precisava temer, apenas nele confiar.
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de acordo com a ordem instaurada pela providência. O narrador fecha o conto afirmando que
nada é mesmo por acaso, “no mundo nem parvoíces: o mel do maravilhoso, vindo a tais
horas de estórias, o anel dos maravilhados. Amavam-se”. O mel do maravilhoso seria,
portanto, a metáfora da ação providencial que, vindo em momentos como aquele narrado na
história, resulta na união, no anel”, daqueles que se entregam e acreditam nela, ou seja, os
“maravilhados”. A vaca é, por fim, descrita como “vaca-vitória” por ter conseguido
transmitir o ensinamento que lhe cabia ao conduzir o rapaz, através de seus próprios passos,
ao que lhe estava destinado.
3.3 A providência como macrocosmo
Em A memória e o olhar em contos de Primeiras estórias (2001, p.159), Rosiane
Cristina Runho afirma que
[...] em termos de progressão narrativa, o que ocorre é a apreensão cada
vez mais espiritualizada de Deus pelo homem, consistindo, nisso mesmo, a
idéia de iniciação cristã. [...] em “Seqüência”, a viagem da Pedra à
odolhão corresponde, igualmente, à idéia de iniciação, se não cristã, com
certeza pautada pela progressão espiritual: o filho de Seo Rigério, tendo à
frente a vaca vermelha, uma criatura cristã”, desprende, aos poucos, seus
olhos do que é terreno e ascende a visões celestes, dentre as quais se
destaca a da pele muito alva da moça, vio amorosa que o deixa
maravilhado.
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desprendimento das personagens em relação às coisas terrenas faz com que elas progridam
espiritualmente e passem a perceber que suas vidas vão muito além do que aquilo que seus
olhos podem aprisionar. Segundo a filosofia tomista,
[...] o sujeito agente é criado como tal, isto é, como agente e também como
sujeito; e a sua ão é também criada; é uma participação da ão
primeira, como o sujeito é participação da Substância primeira: duas coisas
idênticas. Nelas se esconde o mistério das participações, o mistério da
aliança e da conciliação entre o Ser absoluto e os seres participados, entre o
Infinito e o finito. (SERTILLANGES, 1951, p.200)
No caso dos contos selecionados para este estudo, o fato de as personagens envolvidas
no processo de mudança aceitarem o que lhes é imposto favorece essa conciliação
mencionada pelo padre Sertillanges uma vez que, segundo S. Tomás, a submissão representa
verdadeira na ordem traçada pela providência divina. Além disso, a relação entre os
chamados Ser absoluto e seres participados se quando os últimos se sentem partes do
primeiro, ou melhor, quando as personagens percebem que a ordem de todas as coisas está
traçada e, a partir daí, entregam-se ao que lhes está reservado.
Importante é notar que um dos livros do padre Sertillages Affinités encontrado na
biblioteca pessoal de Guimarães Rosa no Instituto de Estudos Brasileiros da USP apresenta
muitos grifos e, entre eles, alguns encontram-se no capítulo sobre a providência de Deus:
No universo de Deus somos apenas filhos [...] O que nos convém é nos abandonarmos,
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Tais grifos evidenciam a importância da e da aceitação da ordem da vida regida pela
provincia divina e tal resignação fica evidente nos contos selecionados tanto por parte de
Siosio, quanto do filho de Seo Rigério e de Seo Cesarino e Pedro Mourão. Todos eles
enfrentam dificuldades até o momento em que aceitam mudar o rumo de suas vidas,
deixando de lado o medo no caso de Siosio, da doença que poderia estar por trás da
beleza de Maria Exita; no caso do filho do Seo Rigério, do desconhecido; no caso de
Drizilda, do passado sofrido e, no caso de Seo Cesarino e Pedro Mourão, medo de que o que
estava ruim pudesse piorar. Todavia, todos eles aceitam o que a ordem providencial lhes
havia reservado e acabam por encontrar o que lhes era devido, Sionésio encontra “o exato,
grande, o repentino amor o acima” (ROSA, 1968, p. 156); o filho de Seo Rigério, o “bem-
chegado”, encontra na fazenda do Major Quitério, a moça que lhe era destinada e
compreende que “aquilo mudava o acontecido (ROSA, 1968, p. 69); Drizilda encontra uma
paixão para toda a vida” (ROSA, 1969, p.20); Seo Cesarino “que também, logo, com um
tempo, pegou a compor o estável. Simplesmente que fez negócios grandes, dobrou, dezenou,
engrossou fortuna” (ROSA, 1969, p. 124) e Mourão “lavorou , ganhou, parou empapado de
rico, sumo dono do arraial, quase” (ROSA, 1969, p. 124).
Todos esses desfechos reiteram a iia instaurada nos primeiros parágrafos das
narrativas: em “Substância”, -se que o processo de disseminação providencial
metaforizado na figura do polvilho: “Do ralo às gamelas, da masseira às bacias, uma polpa se
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rumo, que reto a trazia, para o rio, e – para lá do rio – a terras de um Major
Quitério, nos confins do dia, à fazenda do Pãodolhão (ROSA, 1968, p. 65)
Nesse trecho, o fato de a vaca viajar já nos remete ao conceito de “viagem redonda”
que, segundo Benedito Nunes (1969, p. 175), é
[...] a travessia das coisas, - que é vivência e descoberta do mundo e de nós
mesmos , nessa aprendizagem da vida, em que o próprio viver consiste – a
viagem-travessia que se transvive na lembrança, constitui o saldo
imponderável das ações que a memória e a imaginação juntas recriam.
Além disso, a palavra “cristã” também chama nossa atenção ao aparecer na descrição
do modo como ela “viajava”, pois forma-se aí uma metáfora que será desenvolvida no
decorrer da narrativa: a da viagem como travessia, como aprendizado, que deve ser feita com
fé e com determinação, assim como faz a vaquinha durante todo seu percurso. Além disso, a
provincia delega a esse animal a função de conduzir o filho do Seo Rigério ao que lhe
estava destinado e, durante a travessia do rapaz, ele também terá que adquirir esses mesmos
valores, terá, como já vimos, que se aprimorar espiritualmente, para depois poder viver o
amor. Por fim, temos também a sugestão da metáfora do rio, pois, no primeiro parágrafo,
sabemos que o caminho da vaca trazia-a para o rio, e- para lá do rio e vimos que no
decorrer da narrativa esse trecho será desenvolvido e representará o processo de purificação
pelo qual deve passar o filho de Seo Rigério. Portanto, -se que o primeiro parágrafo
sugere tudo que a narrativa desenvolverá posteriormente.
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avesso de um silêncio onde o mundo suas voltas (ROSA, 1969, p. 99). Tal descrição
também nos remete à definição, mencionada, de Benedito Nunes da viagem redonda na
qual o que importa é a travessia e não o começo ou o fim; quando atentamos muito para a
entrada e a saída, não prestamos a atenção devida à passagem que é justamente onde se o
aprendizado. Além disso, vemos nesse primeiro parágrafo mais uma metáfora, pois “o avesso
de um silêncio onde o mundo suas voltas” nos remete à disseminação da ação
providencial que se durante toda a narrativa, porém de maneira encoberta, no “avesso”
realmente, e é ela a responsável pelas “voltas”, ou seja, pelas mudanças que ocorrem no
mundo.
É, portanto, com base nessa análise que concluímos que o processo de construção da
história secreta a alegoria dá-se da seguinte maneira nos quatro contos: primeiramente
temos um parágrafo extremamente sugestivo, rico em metáforas que, posteriormente, serão
desenvolvidas no decorrer das narrativas e retomadas, porém de forma mais elucidativa, no
último parágrafo. Constatamos, enfim, que cada um dos textos analisados consiste num
microcosmo único, mas todos encontram-se dentro de um mesmo macrocosmo, uma vez que,
cada um a seu modo, ilustra o modo como se o processo da ação providencial, sem,
contudo, mencioná-la.
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Capítulo 4
4.1 No arroio, a mediação das santas
Que isso foi o que sempre me invocou, o senhor sabe: eu careço de que o
bom seja bom e o ruim ruim, que dum lado esteja o preto e do outro o
branco, que o feio fique bem apartado do bonito e a alegria longe da
tristeza! Quero os todos pastos demarcados... Como é que posso com este
mundo? A vida é ingrata no macio de si; mas transtraz a esperança mesmo
do meio do fel do desespero. Ao que, este mundo é muito misturado...
(ROSA, 1982, p. 169)
As termos analisado dois contos provenientes de Primeiras estórias, passemos para
Tutaméia (Terceiras estórias) e, para tanto, optamos por analisar um de seus contos,“Arroio-
das-antas”, no qual a atuação da provincia divina pode ser, mais uma vez, claramente
identificada. Todavia, antes de tudo, é preciso lembrar o que Paulo Rónai (1969, p. 194)
afirma haver ouvido de Guimarães Rosa a respeito desse livro de modo geral,
[...] deixando de lado o recato da despretensão, ele me segredou que dava a
maior importância a este livro, surgido em seu espírito como um todo
perfeito o obstante o que os contos necessariamente tivessem de
fragmentário. Entre estes havia inter-relações as mais substanciais, as
palavras todas eram medidas e pesadas, postas no seu exato lugar, não se
podendo suprimir ou alterar mais de duas ou três em todo o livro sem
desequilibrar o conjunto. A essa confissão verbal acresce outra, impressa no
fim da lista dos equivalentes do título, como mais uma equação: mea
omnia”. Essa etimologia, tão sugestiva quanto inexata, faz de tutaméia
vocábulo mágico tipicamente rosiano, confirmando a asserção de que o
ficcionista pôs no livro muito, se não tudo, de si.
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certamente, da essência ou, como chamamos nas análises anteriores, a história secreta que
pode ser lida nos interstícios daquela que nos é narrada. É, por exemplo, com a seguinte
epígrafe de Schopenhauer que Guimarães Rosa abre o livro: Daí, pois, como se disse,
exigir a primeira leitura paciência, fundada em certeza de que, na segunda, muita coisa, ou
tudo, se entenderá sob luz inteiramente outra”; e é com outra epígrafe do mesmo autor que ele
introduz o índice de releitura: a construção, orgânica e não emendada, do conjunto, terá
feito necessário por vezes ler-se duas vezes a mesma passagem” (ROSA, 1969, p. 193).
Ademais, essa obra, considerada por parte da crítica especializada como livro-chave
para a interpretação da obra de Guimarães Rosa, apresenta, no conjunto dos quatro prefácios,
uma espécie de profissão de do escritor que muito interessa aos estudiosos rosianos de
modo geral e a esta pesquisa em particular, no que diz respeito à importância da religiosidade,
em seus mais diversos aspectos e, sobretudo, desprovida de qualquer dogmatismo. Sendo
assim, a leitura das histórias e dos prefácios levaram-nos a refletir acerca da riqueza que
existe por trás da concisão dessas narrativas curtas também no que se refere à ação
providencial.
Entre os prefácios, o que nos chamou mais a atenção foi o último – “Sobre a escova e a
dúvida” - no qual aparecem, segundo nai (1969, p. 196), “confissões das mais íntimas” e o
qual nos permitiu reafirmar a importância da religião e, inclusive, mais especificamente da
noção de providência divina, nas obras de Guimarães Rosa.
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protoprincípio pio, inabalável. E a Providência: as forças que regem o mundo, fechando-o
em seus limites segundo Anaximandro. Tinha fé – e uma mangueira. Árvore particular, sua, da
gente.” (ROSA, 1969, p. 148). A mangueira, do modo como nos é descrita, como fonte infinita
de vida, representa a capacidade de Tio Cândido de ver o universal, o infinito, dentro de todas
as coisas, inclusive das mais banais, presentes no nosso dia-a-dia. Em Affinités, Sertillanges
(1936, p. 50, tradução nossa) também afirma que “Tudo, na natureza, se relaciona. Uma flor
anuncia pelo seu crescimento e suas nuances sucessivas, pela sua vida, pela sua morte, que um
astro, no fundo do céu, está no mesmo ponto de sua órbita que no ano anterior”
6
, como se
tudo fosse conduzido pelas mãos de Deus, e é justamente ele que Tio ndido parecia ver
quando olhava “valentemente” a mangueira. Foi ele quem sugeriu que Guimarães Rosa (1969,
p. 149) redigisse “um abreviado de tudo” e o fez à pessoa certa, pois o escritor era consciente
de que Por absurdo que pareça, a gente nasce, vive, morre. Tudo se finge, primeiro; germina
autêntico é depois.” (ROSA, 1969, p. 149), como se soubesse o que diz Sertillanges (1936,
p. 51):
Em tudo, na natureza, na história, nas civilizações e em nossa vida, os
acontecimentos aparentemente dispersos se apresentam ao olhar crente
como uma paisagem de linhas harmoniosas ainda que sejam a cada instante
fugidias e secretas, e o todo mergulha em uma luz sobrenatural.
7
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Sertillanges (1936, p. 62, tradução nossa), está ligado à ordem verdadeira do mundo, incluída,
por sua vez, no “instante que compreende todos, no instante criador transcendente a todas as
durações”
8
. Com base nessa noção de tempo e no que o autor do prefácio em questão segue
expondo a respeito da felicidade: “um modo sem seqüência, desprendido dos acontecimentos
camada de nosso ser, por ora oculta fora dos duros limites do desejo e de razões
horológicas (ROSA, 1969, p. 150), é possível dizer que tal modo está também estreitamente
relacionado ao que afirma Sertillanges (1936, p.77, tradução nossa)
9
na seguinte passagem: “a
felicidade não é um acontecimento, mas uma aptidão
Vejamos em “Arroio-das-antas” de que maneira esse conceito de felicidade como
aptidão, ou seja, como habilidade ou capacidade resultante de conhecimentos adquiridos, está
ligado ao processo de aprendizagem, de crescimento espiritual, que se em mais esse conto.
Porém, como mostramos, o processo de evolução espiritual pelo qual passaram as
personagens-aprendizes das narrativas anteriormente analisadas, promove uma evolução ainda
maior na composição em questão pelo fato de afetar o apenas Drizilda a personagem-
aprendiz mas, inclusive, as velhinhas e, principalmente, a avó Edmunda. Analisamos
também de que forma, em “Arroio-das-antas”, a caridade que, de certa forma, já havia se feito
presente em “Substância” – através da atitude de Nhatiaga – far-se-á novamente presente, mas,
dessa vez, de forma dominante e essencial para a compreensão da história secreta que se
encontra por trás da travessia ascendente de Drizilda e de avó Edmunda.
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iluminação possa acontecer num átimo, a aprendizagem exige um lento
processo de amadurecimento que, por sua vez, requer uma enorme paciência
que, não muito raramente, a iniciação pode durar toda a vida. O momento
da iluminação pode coincidir com o momento da morte. Nesse caso a
existência do homem aqui na terra, a própria vida humana, é apenas
aprendizagem; e o que se aprende é o reconhecimento da vida como
passagem para o conhecimento absoluto. Esta é a visão de Guimarães Rosa
se levarmos a termo as proposições implícitas sobre o tema em Tutaméia.
No caso de “Arroio-das-antas”, ambas as situações mencionadas por Novis ocorrem,
ou seja, há no conto uma personagem Drizilda que passa por um processo de
amadurecimento, durante o qual se a mudança qualitativa de seu estado, que culmina no
momento da iluminação; mas também outra personagem a Edmunda cujo momento
de iluminação coincide com o momento da morte. Sendo assim, veremos de que maneira avó
Edmunda vive, a um tempo, como mestre e aprendiz, e como Drizilda, apesar de toda sua
fragilidade inicial, atua simultaneamente como aprendiz e mediadora da ação providencial que
se na vida de avó Edmunda. A escolha dessa narrativa deve-se justamente à forte presença
da ação providencial, mas, sobretudo, ao fato de ele ir além no que diz respeito à relação
mestre-aprendiz, pelo fato de lidar, dentre outras coisas, com a morte, vista no conto como
auge do processo de amadurecimento e motivo de júbilo por consistir na passagem para o
conhecimento absoluto.
É dessa forma que essa composição representa de forma exemplar o que Novis (1989,
p. 26) afirma a respeito de graus de aprendizagem:
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Essa economia de palavras e a linguagem ainda mais cifrada que Guimarães Rosa
apresenta nessas Terceiras estórias nos levam a refletir acerca do que ele afirma no primeiro
prefácio do livro “Aletria e hermenêutica” “A estória não quer ser história. A estória, em
rigor, deve ser contra a História. A estória, às vezes, quer-se um pouco parecida à anedota”
(ROSA, 1969, p. 3). Segundo Audemaro Taranto Goulart (2007, p. 22) em “Veredas do
imaginário: a busca da gênese da criação em Guimarães Rosa”,
[...] se se fizer a regressão no sentido de mostrar que a estória não quer ser
história, que quer ser contra a História, que quer se parecer com a anedota e,
por conclusão, quer-se fazer no chiste, tira-se a conclusão de que a estória
trafega no terreno da poesia e da transcendência, reúne os atrativos de um
dom sobrenatural, caracterizando-se como algo alegórico e espiritual,
catalisador do não-prosaico. Por tudo isso, ela propõe uma realidade superior
e dimensões que abrigam mágicos e novos sistemas de pensamento.
É nessa mesma linha de pensamento de Goulart, no que diz respeito ao sentido maior
que se encontra nas entrelinhas das “estórias” rosianas, que passamos à análise de mais uma
alegoria da ação providencial, que vai atuar, dessa vez, no Arroio, através da mediação de
santas velhinhas.
4.2 A metáfora da flor
O mal está apenas guardando lugar para o bem. O mundo supura é a
olhos impuros. Deus está fazendo coisas fabulosas. Para onde nos atrai o
azul? – calei-me. Estava-se na teoria da alma. (ROSA, 1969, p. 165)
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um assombro, ou melhor, a ação providencial, ocorre na vida de Drizilda e de avó Edmunda,
concentrada no parágrafo final da narrativa, no momento em que o narrador afirma: “Aqui, na
forte Fazenda, feliz que se ergueu e inda hoje há, onde o Arroio.” (ROSA, 1969, p. 20).
O conto em questão apresenta caráter exemplar, pois é o ocorrido que vai realmente
responder à pergunta relacionada à possibilidade ou não do assombro. As perguntas que
encontramos no decorrer do texto constituem uma das maneiras de o autor cifrar a história
secreta que, por sua vez, pode ser encontrada através das sugestões, das possíveis influências
religiosas presentes nos interstícios dessa história e da poeticidade.
Retomando o que diz Edward Lopes (1986), a alegoria admite ao menos duas
interpretações e dois textos: a interpretação literal produzida pelo texto manifestante e a
interpretação figurada, produzida pelo texto manifestado e que se realiza através da leitura do
mesmo como plano de expressão de outra coisa. Sendo assim, com relação à interpretação
literal - o que corresponde à leitura no nível zero segundo o Grupo µ - a história é,
basicamente, a seguinte: Drizilda, uma menina de cerca de quatorze anos, fica viúva quando o
próprio irmão mata seu marido por julgar que este a desdenhava. Em meio a tamanho
sofrimento, ela segue para um lugar longínquo chamado Arroio-das-antas, onde conhece as
“sobejas secas velhinhas” que ali vivem e que passam a orar por ela. Após algum tempo, uma
das velhinhas avó Edmunda morre e, no momento do enterro, Drizilda encontra-se com
um Moço, sua paixão para toda a vida”. Fica claro que se trata de uma história de amor, cuja
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se abrir para inúmeras possibilidades de leitura e ainda assim continuar nos passando a
impressão de inesgotável.
no primeiro parágrafo do conto, mais especificamente na última frase deste, o
narrador apresenta-nos o tema que será desenvolvido no decorrer da narrativa:
Aonde o despovoado, o povoadozinho palustre, em feio o mau sertão
onde podia haver assombros? Trouxe-se Drizilda, de nem quinze anos,
que mais não chorava: firme delindo-se, terminavelmente, sozinha viúva.
Descontado que a esquecessem. Ela era quase bela; e alongavam-se-lhe os
cabelos. A flor é só flor. A alegria de Deus anda vestida de amarguras.
(ROSA, 1969, p. 17)
Apesar do tom de fatalismo presente em alguns termos desse primeiro parágrafo,
como, por exemplo, “terminavelmente” e “A flor é flor”, a frase que fecha o parágrafo
indica que todas essas amarguras podem fazer parte do plano de Deus, da alegria que Deus
concede a todos os seres através da provincia, das forças desconhecidas e muitas vezes
impossíveis de serem entendidas que regem o mundo. Sobre esse mesmo assunto
Sertillanges (1936, p. 70, tradução nossa) afirma o seguinte:
Ah! O olho simples do Evangelho, que no-lo dará para mostrar o único
necessário, e a facilidade infantil de tudo, e o jogo que se torna a vida, com
suas supostas infelicidades, que são úteis, seus pretensos obstáculos, que
são caminhos! Uma vez escondidos em Deus, pode-se brincar com as
dificuldades materiais ou espirituais como a sabedoria criadora brinca no
universo o tempo todo”. Nada mais de inimigo. o temos outro inimigo
senão s mesmos, e, em nós mesmos, o único mal ou desejo imperfeito:
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Vê-se que ambos os textos – tanto o parágrafo inicial do conto quanto o trecho de Sertillanges
transmitem basicamente a mesma idéia, embora Guimaes Rosa condense o conteúdo em apenas
uma frase. É, portanto, com base no que o próprio autor de Tutaméia afirma em um dos precios do
livro “Aletria e hermenêutica” Ergo: O livro pode valer pelo muito que nele não deveu caber.
Quod erat demonstrandum” (ROSA, 1969, p. 12) que pretendemos mostrar de que forma Guimaes
Rosa demonstra a ação providencial, sem, contudo, mencioná-la, através da trajetória de Drizilda e de
avó Edmunda.
Tomando, então, mais uma vez, a providência como a grande alegoria, nossa interpretação da
figura norter-se-á pela leitura do texto manifestante como plano de expressão da disseminação
dessa ação providencial, ou seja, a grande alegoria é expandida através de outras metáforas
que, apesar de distintas, referem-se sempre a ela. Partimos da metáfora que é uma constante
no texto como um todo: a da flor. Logo no primeiro parágrafo, o narrador afirma que “A flor é
flor”, ou seja, a flor, desprovida de todas suas potencialidades, representa a condição inicial
de Drizilda, sem esperanças, sem maiores expectativas, desiludida, como uma flor que não
apresenta chances de rebrotar. Segundo Jean Chevalier e Alain Gheerbrant em Dicionário de
símbolos (1995, p.437/438)
Embora cada flor possua, pelo menos secundariamente, um mbolo
próprio, nem por isso a flor deixa de ser, de maneira geral, símbolo do
princípio passivo. O cálice da flor, tal como a taça, é o receptáculo da
atividade celeste, entre cujos símbolos se devem citar a chuva e o orvalho.
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caso, esse processo consiste na evolução espiritual pela qual Drizilda deve passar até o
momento em que ela brotará novamente, ou, em termos rosianos, deixará de ser “só flor”
tornando-se “reflor”.
No segundo parágrafo, o narrador continuidade a essa metáfora quando passa a
descrever todas as dificuldades pelas quais sofria Drizilda: a morte do marido, o crime do
irmão, o fato de não ter tido filhos, parecia “fadada ao mal, nefandada”, e o parágrafo se
fecha, mais uma vez, envolvendo a flor, mas, nesse caso, com tom de fatalismo, de descrença:
Tanto vai a nada a flor, que um dia se despetala” (ROSA, 1969, p. 17). Essa visão, de acordo
com o texto citado de Sertillanges, resume o pensamento daqueles que o acreditam que as
dificuldades podem ser a ponte necessária para a alegria.
As a primeira referência que o narrador faz às “sobejas, secas velhinhas,
tristilendas”, o escritor encaixa a seguinte sugestiva pergunta: “Que faziam essas almas?” e
o é a toa que o termo “almas” é empregado ao invés de “velhinhas”. O termo “almas
remete-nos ao fato de essas velhinhas estarem já num grau de evolução espiritual avançado,
desligadas da matéria, são mais alma do que corpo e, portanto, estão se preparando para o
último passo rumo à vida eterna: a morte. Trata-se aqui do que Vera Novis afirma a respeito
do momento de iluminação que pode coincidir com o momento da morte. Segundo ela, nesse
caso, a vida é apenas aprendizagem durante a qual se aprende a reconhecer a vida como
passagem para o conhecimento absoluto.
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ignoravam que queriam feito romance, outra maneira de alma.” (p. 18), reafirmando o grau
de desligamento material índice de evolão espiritual dessas velhinhas que estavam
esperando “a noite”, metáfora da morte. Por outro lado, o narrador dá-nos um indício de que
elas tinham consciência de que a velhice, pela proximidade do último passo em direção ao
conhecimento absoluto, “era-lhes portentosa lanterna”, ou seja, a evolução espiritual que elas
atingiram, permite-lhes enxergar além das evidências e interceder junto ao Espírito Santo.
Apesar de todas elas serem-nos apresentadas de uma única e mesma forma e de o
narrador deixar clara a ternura que todas passam a sentir por Drizilda, há um momento em que
avó Edmunda, “sob mínima voz, abençoou-a: ‘Meu cravinho branco...” e, no decorrer do
conto, percebemos a importância dessa benção tanto para quem deu avó Edmunda quanto
para quem recebeu. Interessante é notar a relevância dos termos empregados nessa fala uma
vez que “meu” refere-se a a Edmunda quem abençoa e, segundo o Dicionário do
folclore brasileiro (CASCUDO, 1972, p.319), a entrega de cravo branco significa uma
declaração de amor, um sim notório, uma aceitão.
Também o branco (candidus) é, segundo o Dicionário de símbolos (CHEVALIER,
1995, p.141), a cor do candidato, i.e., daquele que vai mudar de condição”, além disso, “a
valorização positiva do branco [...] também está ligada ao fenômeno iniciático. Não é atributo
do postulante ou do candidato que caminha para a morte, mas daquele que se reergue e que
renasce, ao sair vitorioso da prova”. Fica claro que a benção é, na verdade, bilateral, porque
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por não vir. A gente se esquece e as coisas lembram-se da gente” (p.18). Na seqüência
deparamo-nos com mais uma pergunta envolvendo a metáfora da flor: Sem senhor, sem
sombras, tão lesada; como as mais do campo, amarelas ou roxas, florzinha de sorte? (p.
18). Trata-se aqui de mais uma estratégia do narrador para fazer o leitor crer na primeira
impressão que a condição inicial de Drizilda pode causar. Segundo Sertillanges (1936), um
dos grandes erros cometidos pela humanidade é acreditar que as dificuldades decorrem
simplesmente da sorte, uma vez que, de acordo com a fé cristã, as dificuldades são uma
possibilidade de avanço espiritual e, portanto, conduzem todos os seres pelo caminho da
virtude rumo à felicidade. Porém, para que a ação providencial que modificará a situação de
vida da personagem se dê, faz-se necessária a ão dos mediadores que, nesse caso, são as
velhinhas. Estas, observando o sofrimento de Drizilda,
[...] tramavam com Deus, em bico de silêncio [...] Tomavam, todas
juntas, a fé de mortificadas orações, novenas, nôminas, setêmplices. ‘Deus
e glória!’ adivinhavam, sérias de amor, se entusiasmavam. Elas, para o
queimar e ferver de Deus, decerto prestassem – feixe de lenhazinha enxuta.
Para o forçoso milagre! (p.18/19).
Essa postura das velhinhas faz lembrar o que se no Evangelho segundo São Mateus
(18: 19-20) onde consta que Jesus disse: “Se dois de vós se unirem sobre a terra para pedir,
seja o que for, consegui-lo-ão de meu Pai que está nos céus. Porque onde dois ou três estão
reunidos em meu nome, aí estou eu no meio deles.” O que elas pediam era que Drizilda
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mudança “Ela queria a saudade” (p.19) e, sem que ela se desse conta, era movida adiante
pela ação das velhinhas que “aspergiam-na, persignavam-lhe o travesseiro e os cabelos”
(p.19) e com isso se o milagre, a mudança “Comutava-se” (p.19)”- , ela passa a ter
olhos de receber, a cabeça de lado feita a aceitar carinho sorria, de dom (p.19), todavia,
faltava a ela um grande amor, e, como se o esperassem, uma das velhinhas profere: Todo
dia é véspera...” indicando que a chegada desse amor poderia ocorrer a qualquer momento.
A metáfora da flor que havia sido instituída logo no primeiro parágrafo, aparece
também nesses parágrafos finais da narrativa, quando as velhinhas percebem a mudança
dando-se em Drizilda: “viam-na em rebroto – o ardente da vida – que, a tanto, um dia, ao fim,
da haste se quebra” (p.19) e é nesse momento que coincidem o renascimento de Drizilda e a
morte de avó Edmunda. Interessante é notar que as demais velhinhas não lamentam a morte,
pelo contrário, elas jubilam-se, pelo fato de compreenderem que, naquele momento, tanto avó
Edmunda quanto Drizilda haviam atingido uma nova etapa de seu avanço espiritual, a
primeira rumo à vida eterna e a segunda rumo a uma nova vida. Cumpre-se o pacto, as
velhinhas tornam-se ainda “mais almas” pelo ato de caridade que fazem, Drizilda encontra um
Moço cuja descrição encaixa-se perfeitamente no que ela havia se tornado, uma vez que ele
tem “olhos de dar” aquilo que os olhos dela tinham para receber, “de lado a mão feito a fazer
carícia” na cabeça dela de lado feita a aceitar carinho e ele, por fim, “sorri dono” do sorriso
de dom” que a ação providencial fez com que ela recuperasse.
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Capítulo 5
5.1 O “Homem do Pinguelo”: a figura do invisível
Segundo João Adolfo Hansen (1986, p. 15),
[...] como procedimento retórico, a alegoria subentende o projeto de afirmar
uma presença in absentia [...] Mais fortemente, ela serve para demonstrar
(ad demonstrandum), pois evidencia uma ubiqüidade do significado ausente,
o qual se vai presentificando nas “partes” e no seu encadeamento no
enunciado.
Vimos no decorrer da análise dos demais contos que o significado ausente a que se
refere Hansen no nosso caso, a providência divina vai se presentificando, através do que
denominamos disseminação da provincia, no decorrer do texto. Enquanto em “Substância”
a alegorização da providência dá-se através da expansão da metáfora do polvilho, em
Seqüência”, ela se desenvolve a partir da metáfora – também expandida – da viagem e n’ “A
estória do Homem do Pinguelo ela aparecerá figurativizada no Homem do Pinguelo,
entidade misteriosa descrita por um dos narradores desse intrigante conto de Guimarães Rosa.
Levando em consideração o fato de que
[...] a alegoria pode facilitar a expressão [...] concretiza abstrações, tornando-
as mais ‘fáceis’, e, ao mesmo tempo, indica o próprio procedimento,
impedindo que o leitor seja literal. (HANSEN,1986, p.17),
nos quatro contos selecionados para este estudo, a alegoria pode ser vista como forma capaz
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temática da viagem; em “Arroio-das-antas” a temática da e, por fim, n’ “A estória do
Homem do Pinguelo”, a temática do destino. Outra opção seria
[...] ler-se a narrativa não por ela mesma, mas como ornamentação de outro
discurso implícito, subtexto que vai sendo produzido à medida que se . O
critério da legibilidade da alegoria como expressão retórica é, classicamente
pensado, o desse discurso implícito: seu desconhecimento, sua obscuridade
ou sua incoerência determinam alterações na recepção. (HANSEN, 1986, p.
18)
Neste trabalho, a análise do discurso implícito torna-se fundamental uma vez que é ele
que nos remete à ação providencial que é, aos poucos, introduzida nos interstícios da narrativa
através de alusões. Para tanto, tomamos como ponto de partida a noção de provincia divina
segundo S. Tomás de Aquino. A opção se deve, em primeiro lugar, ao fato de que o modo
como Guimarães Rosa trata a provincia em suas composições aproxima-se daquele
explicitado por S. Tomás de Aquino. Ademais, Aquino afirma que o ponto de partida para o
simbolismo generalizado das Escrituras é o poder de Deus, que ordena o curso das coisas de
modo que elas também se tornam símbolos de outras”. Segundo ele,
[...] a primeira significação, aquela pela qual os nomes empregados
exprimem determinadas coisas, corresponde ao sentido histórico ou literal. A
significação segunda, pela qual as coisas expressas pelos nomes significam
de novo outras coisas, é o que se chama sentido espiritual. (AQUINO apud
HANSEN, 1986, p. 56)
Apesar de terem sido levantadas com base nas sagradas escrituras, tais considerações
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coisas tem duas finalidades: a verdadeira e a boa conduta. (AQUINO,
Quaest. Quod. apud HANSEN, 1986, p. 57)
Também nos contos analisados vê-se que a verdade revelada pelo discurso implícito
tem as mesmas finalidades que S. Tomás aponta na Escritura: a verdadeira fé, ponto de
partida para o aprimoramento espiritual das personagens que chamamos aprendizes e a boa
conduta, pois é preciso ter um comportamento íntegro, uma boa índole e, além de tudo, o
desejo de mudança, para que a transformão ocorra. Em Substância”, fica evidente o
percurso de Sionésio até o momento em que ele atinge o estágio de evolução espiritual
necessário para viver o amor com Maria Exita. No início do conto, ele é descrito como um
homem a quem “faltavam folga e espírito para primeiro reparar em transformações” (ROSA,
1968, p. 151), o que nos informa que ele não havia reparado nas transformações pelas quais
Maria Exita havia passado desde que chegou à fazenda, e também através do discurso
implícito que, de maneira encoberta, anuncia o que seguirá – que ele ainda não tinha o espírito
preparado para compreender as transformações na sua vida ocasionadas pela providência
divina.
Assim, a história segue e sabemos que ele “amava o que era seu o que seus fortes
olhos aprisionavam” (p. 152); porém, passa a sentir “uma fadiga. O ensimesmo (p.152),
primeiro sinal de mudança. Todavia, ele ainda sente-se auto-suficiente pelo fato de que, até
nesse momento, “era a pessoa manipulante” (p.152), capaz de dominar e manipular a própria
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maior segurança: “sem ela, de que valia a atirada trabalheira, o sobreesforço, crescer os
produtos, aumentar as terras? Vê-la, quando em quando. A ela – a única Maria no mundo” (p.
155).
O terceiro passo dá-se, no segundo momento da narrativa, quando sabemos que
tomara a ele que tudo ficasse falso, fim” (p.155), o que evidencia uma mudança muito
grande de valores, tudo passa a girar em torno do que ele não tem, do amor de Maria Exita
que deve ser conquistado. Essa necessidade faz com que ele perceba a importância da fé e da
coragem, em que as coisas mudaram por uma boa causa, porque aquela sim era a ordem
devida, regida pela providência, e coragem, para poder aceitar e enfrentar os desafios que ela
impõe para se concretizar. O desafio, nesse caso, encontra-se metaforizado no polvilho, por
isso, a partir do momento em que ele, como ela, consegue quebrar o polvilho sem ter os olhos
ofuscados, vemos que ele passa a acreditar na providência divina, sem temer.
Em “Seqüência”, acompanhamos a travessia do filho de Seo Rigério que apresenta
etapas encadeadas de modo muito semelhante ao que se deu em “Substância”: a princípio, o
rapaz “quis-se, de repente, para aquilo: levar em brio e tomar em conta [...] Soubesse o que
por lá o botava, se capaz. [...] Ia desconhecidamente. (ROSA, 1968, p. 66); percebe-se,
portanto, que ele opta por buscar a vaca, o que já é um primeiro passo para a ação
providencial. Contudo, no decorrer da perseguição, somos levados para o segundo momento
da narrativa em que o rapaz passa a questionar a escolha que havia feito: “Ele agora se
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metaforizado na travessia do rio, através do qual o rapaz se purifica espiritualmente, assim
como fez Sionésio, antes de encontrar seu verdadeiro amor.
Esses processos de construção do texto, repletos de alusões e metáforas, conduzem-
nos ao que S. Tomás denominou sentido espiritual e, portanto, nos levam a refletir acerca das
figuras que foram escolhidas pelo escritor no intuito de representarem o que é invisível a
ação providencial. A figura do polvilho em “Substância” e a figura da vaquinha em
Sequência”, atuam como elementos mediadores dessas histórias que apresentam dois
momentos principais, o primeiro de segurança, seguida de vida e um segundo momento de
transformação, de adaptação aos fatos ordenados pela providência. Conclui-se, portanto, que
tais figuras nos remetem, indiretamente, para a ação providencial.
“A estória do Homem do Pinguelo”, conto-chave para nossa análise, reafirma todas as
considerações que fizemos até agora através da referência direta à ação providencial através
da figura do Homem do Pinguelo. Enquanto nos demais contos temos sugestões diversas,
dispersas na narrativa como um todo, aqui contamos, além de todas as sugestões, com uma
entidade misteriosa, mencionada por um dos narradores Jo Reles que aparece em
passagens de um momento a outro da narrativa.
Essa variedade de figuras que atuam como imagens do invisível, tomam o conceito
neoplatônico da alegoria sem semelhança ou sem figura adequada. Segundo o Pseudo-
Dionísio, o Areopagita,
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O Areopagita toma a alegoria sem figura adequada como o melhor modo de figuração,
[...] não porque consiga dizer com ele o que o divino é, mas porque o divino
fala no que não é. [...] No que concerne aos mistérios divinos, só negações
são verdadeiras, pois toda afirmação a respeito de Deus é inadequada.
Convém melhor ao caráter secreto Daquele que permanece em Si indizível
revelar o invisível através de alegorias sem semelhança. A alegoria deve ser
arbitrária, assim, sem termo de comparação. (HANSEN, 1986, p. 63)
Isso nos leva a crer que Guimarães Rosa também empregou a alegoria sem
semelhança para tratar da providência divina e isso se justifica pelo texto do Areopagita que
sugere que a falta de semelhança convém ao caráter misterioso do que é sagrado, ou seja, do
que diz respeito a Deus e, portanto, à sua provincia. É por isso que nessas narrativas curtas
aqui analisadas a providência encontra-se metaforizada na vaca, no polvilho e no Homem do
Pinguelo, e essas figuras diferenciam-se, por exemplo, do símbolo, pelo fato de não serem
comuns, ou como diria o Areopagita, adequadas.
5.2 A instauração do mistério
Como vimos anteriormente, Guimarães Rosa faz uso de determinadas figuras para
cifrar o processo de disseminação da ação providencial no discurso. Esse tipo de construção,
expressa pela linguagem poética, favorece o caráter sempre aberto da obra, uma vez que as
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realizada entre seo Cesarino e Pedro Mourão. O primeiro havia herdado a venda do pai, mas
o sabia administrá-la, não cobrava o que lhe deviam, emprestava dinheiro, enfim, o
armazém estava longe de ser o que havia sido quando o pai dele era vivo. Além disso, para
piorar a situação, as águas de uma enchente entraram na venda, aumentando ainda mais o
prejuízo de Seu Cesarino. Porém, o período seguinte foi de seca e afetou a outra personagem,
Pedro Mourão, que, por sua vez, conduzia o que havia restado de uma boiada em busca de
pastos e água. No caminho, José Reles conhece Mourão e ajuda-o, conduzindo-o até o vilarejo
onde o boiadeiro pretendia comprar alguns produtos de que precisava. É na venda de seo
Cesarino que a troca se dá: após avaliar os produtos do armazém, Pedro Mourão pergunta a
Cesarino: “O senhor quer barganhar carne podre por fumo podre? (ROSA, 1969, p.119).
Nesse momento, a troca é efetuada; a partir daí, Mourão trabalha no armazém, torna-se dono
de quase todo o arraial, enquanto seo Cesarino conduz a boiada até a fazenda de seo Caetano
Mascarenhas, compadre de seu pai, onde a vende e passa a viajar e fazer grandes negócios.
Paralelamente à ocorrência de todos esses fatos, encontra-se a figura misteriosa do
Homem do Pinguelo, entidade mencionada por Jo Reles, cuja aparição se em cada
momento decisivo da hisria e cuja existência é questionada no decorrer da narrativa. Porém,
a ambientação em que tal figura é inserida sugere que sua aparição vem ao encontro daquilo
que acontecia, ou seja, o Homem do Pinguelo concretiza algo que vinha sendo disseminado
desde o início do conto.
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(1985, p.193) que, em sua tese de Doutorado trata, entre outras questões, d’“A estória do
Homem do Pinguelo”,
Na estória, o Homem do Pinguelo é a possível personalização do destino ou
da providência, o qual no tão só olhar e mirar as pessoas urde a sorte delas
em situações de vida especialíssimas. A sua presença, porém, é duvidosa,
não confirmada.
Entre outros pontos desenvolvidos em sua tese, Leonel discute o trabalho que o autor
realiza por meio dos dois narradores e, para tanto, levanta questões que se tornam
fundamentais à análise da disseminação da força providencial no decorrer do conto. Em
relação ao fato de o narrador não-nomeado incentivar a narração por parte de José Reles,
Leonel (1985, p.188) afirma que “enquanto elemento [José Reles] envolvido nos
acontecimentos, existe a probabilidade de conseguir desvendar um ponto que permanece
encoberto, misterioso” e é justamente esse mistério acerca da existência da providência, ou do
Homem do Pinguelo, que sustenta o texto.
De modo mais amplo, a atuação da força providencial é mencionada também por
Benedito Nunes em “A viagem” (1969, p. 173). Segundo o autor, a provincia delega certas
funções a determinadas personagens, principalmente àquelas que se encontram fragilizadas, e
é “no ciclo da viagem que o destino se modifica e a ação da Providência se manifesta” (p.
176).
Caos e cosmos, de Suzi Sperber (1976), também vem ao encontro deste trabalho pelo
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Guimarães Rosa, Suzi Sperber afirma que apenas um deles, Devoirs de 1936 mereceu
anotações do escritor. Todavia, consultando os livros do escritor do Arquivo Guimarães Rosa
pertencente ao Instituto de Estudos Brasileiros da USP
11
, constatamos que, em outro livro
Affinités de 1936 –, tamm existem muitos grifos, inclusive em um capítulo que trata
especificamente da providência de Deus, como veremos adiante. Segundo a autora
(SPERBER, 1976, p.83), os “textos de Sertillanges são filosóficos, ou tendem para o filosofar.
Se a leitura de Sertillanges estimulou a criação rosiana, foi sobretudo na persistente busca da
transcendência”.
5.4 Sugestivos narradores
A questão da transcendência está presente n’ “A estória do Homem do Pinguelo
desde o primeiro parágrafo, sugerindo um ciclo: Nada em rigor tem começo e coisa alguma
tem fim, já que tudo se passa em ponto numa bola; e o espaço é o avesso de um silêncio onde
o mundo dá suas voltas.” (ROSA, 1969, p.99).
No conto rosiano em pauta, um plano articulado pelo escritor que envolve tempo,
espaço, personagens e narradores em uma rede de dúvidas e questionamentos, paralelamente à
ocorrência dos fatos, sem, contudo, explicá-los. As vidas são levantadas e reafirmadas o
tempo todo pela expressão “pouquinha dúvida”, dita diversas vezes por José Reles e uma vez,
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Quando o narrador não nomeado abre o conto afirmando que “o espaço é o avesso de
um silêncio onde o mundo suas voltas”, metaforicamente é introduzida a idéia da
provincia, como uma ordem que existe por trás de todos os acontecimentos e cujas “voltas”
se dão no “silêncio”, uma vez que o as notamos a não ser que atentemos para os efeitos que
elas provocam no “avesso”, ou seja, no espaço sico onde essa ordem se cumpre.
Segundo S. Tomás de Aquino (2001, p. 445/446),
A providência compreende duas coisas: a razão da ordem das coisas
destinadas a seu fim e a execução dessa ordem, o que se chama governo.
Quanto à primeira, Deus imediatamente provê todas as coisas. Porque em
seu intelecto tem a razão de todas as coisas, mesmo das menores; e aquelas
causas que preestabeleceu a alguns efeitos, deu-lhes o poder de produzi-los.
Assim, é preciso que preexista em sua razão a ordem desses efeitos.
Quanto à segunda, a providência divina se vale de intermediários, pois
governa os inferiores pelos superiores; não é por deficiência de seu poder,
mas por superabundância de bondade, a fim de comunicar às criaturas a
dignidade de causa.
No conto em questão, deparamo-nos com uma possível figura do que S. Tomás de
Aquino denomina “intermediários”, o Homem do Pinguelo, uma vez que ele vem cumprir os
determinados planos da providência divina. Porém, na narrativa, a inserção de tal figura
requer uma ambientação sugestiva para a disseminação providencial; vejamos como isso se dá
no texto. Antes de mais nada, é preciso destacar que a fala do narrador não nomeado é,
visualmente, diferente da de José Reles, uma vez que é grafada em itálico, enquanto as falas
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nos acontecimentos que se dão nessa região não é o que todos acham que deve acontecer, mas
o que é dado, o que já está traçado pela provincia divina para que aconteça. Nessa mesma
página (p.100), descobrimos mais a respeito de José Reles quando ele diz:
Dono de chácara, dono de sítio, de diversos construção, carroças perdi
tudo, o mais reperdi, parei no à-toa. Vivendo como não posso. Isso o tira
de minhas alegrias. Hoje, me revejo quase meio remediado, enquanto que
é a outra vez. Saí de lá, andei morando em distantes comércios, guardei o de
Deus, gastei o do diabo... Mas, o que no fim de cada mês me falta, a minha
Nossa Senhora inteira. Com a ajuda superior, eu vivo é do que é o do bico
dos pássaros...
Nesse trecho, já é possível notar o caráter otimista de Jo Reles, pois vemos que,
apesar de todas as dificuldades enfrentadas, ele afirma que nada foi capaz de tirar dele as
alegrias, mesmo porque tudo já passou, “é a outra vez”. Em seguida, também notamos o
caráter religioso desse narrador que confia na “ajuda superior” neste trabalho vista como a
provincia divina.
Em diversos momentos vemos que o narrador não-nomeado - apesar de questionar a
figura do Homem do Pinguelo também faz referências, de maneira menos direta, à ação
providencial, como se no trecho que se segue sobre os ssaros: é, porém, que tão
desencontradas, contramente, suas revelações se confundam. E que, no impropício, rude ou
frouxo dia-a-dia, ninguém tenha inda tempo capaz de entendê-los.”. No trecho, refere-se aos
diferentes cantos dos pássaros e, ao mesmo tempo, à disseminação da ação providencial que,
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É sobre essas revelações, ou melhor, esse reconhecimento, que o narrador o
nomeado fala, de forma metafórica, quando se refere às revelações dos pássaros, porque da
mesma forma como os cantos se confundem e ninguém atenta a eles, a ação providencial dá-
se o tempo todo e também não é percebida pelo mesmo motivo. Em meio às dificuldades,
como aquelas que foram enfrentadas por José Reles, os traços deixados pela ação providencial
são dificilmente reconhecidos. Interessante é notar que essa mesma idéia de que as
dificuldades prejudicam a percepção da providência em Affinités, Sertillanges (1936, p. 57,
tradução nossa) nos mostra que um
[...] aspecto de nossa parcialidade consiste em que, enumerando nossas
infelicidades conhecidas, nós negligenciamos o número infinito de
benefícios ignorados dos quais nossas vidas são feitas.
12
Na página 101, mais uma vez de forma metafórica, encontramos mais uma importante
característica desse narrador-personagem – no que diz respeito ao destino – quando ele diz:
[...] a sina ou os acasos, de outros, meus não são e nem por sobra nem
copiado, porventuras, parentescos. Pouquinha dúvida. Invejar é querer o
peso de bagagens alheias, vazio. Pelo que tolero o justo mal ou bem de
todos. O que há, é que eu uso de jogar de fora. Eu aprendi assim. Eu vivi
mais pouco, pelo aprender mais antes coisas. Quem não é, não pode ser.
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diferente, pois é proveniente dos dois narradores mas principalmente de Jo Reles pelo
caráter misterioso de seu relato – e dirige-se ao leitor, como ocorre nesse trecho que acabamos
de citar em que fica claro o modo de pensar desse narrador-personagem. Dessa maneira, é
possível identificar em José Reles valores e conceitos que fazem parte da filosofia tomista no
que se refere à providência divina. No trecho em questão, ele mostra que cada um tem seu
destino a cumprir, mas como tudo que é determinado pela providência visa o bem universal,
pode ser que esses caminhos se cruzem e acabem se “emendando” como os cis a que ele se
refere. Portanto, temos aqui um breve resumo do que está por vir, porque essa metáfora dos
cipós antecipa o encontro de Seo Cesarino e Pedro Mourão que fará com que suas vidas se
transformem.
Antes de comar a contar a hisria da troca da venda por gado, o narrador afirma ser
aquele “um forte caso, conteúdo, que nem dos de livro, conformemente. É estória achada” e
fecha essa fala com a sugestiva afirmação: “do que se vive e que se vê, a gente toma a
proveitosa lição não é do corrido, mas do salteado.” (ROSA, 1969, p.101). Segue a explicação
do narrador não nomeado que vem reforçar a idéia de Jo Reles que, a seu ver, poderia ter
soado confusa pelo “súbito acúmulo de adágios”:
[...] o que merece especulada atenção do observador, da vida de cada um,
não é o seguimento encadeado de seu fio e fluxo, em que apenas muito de
raro se entremostra algum aparente nexo lógico ou qualquer desperfeita
coerência; mas sim as bruscas alterações ou mutações – estas, pelo menos,
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mencionados, empregados por Sertillanges - a um cantinho da obra da providência, a um
momento do seu trabalho e devem, portanto, ser reconhecidas como tal.
Em seguida, deparamo-nos com mais um trecho significativo e fundamental à nossa
análise, uma vez que reforça nossa idéia de que ambos os narradores são responsáveis pela
disseminação da ação providencial no decorrer da narrativa e essa disseminação dá-se através
da escolha de certos termos que contribuem para a construção desse misterioso relato,
voltado, principalmente, para a sugestão da existência de uma força ordenadora na qual o
narrador parece acreditar, mas sobre a qual opta por não tornar claro, apenas expor seus
efeitos. A concretização dessa abstração a figura do Homem do Pinguelo tem a função de
facilitar essa exposição por parte do narrador, de certa forma explicitando o que havia ficado
implícito nos demais contos analisados neste trabalho. A história oculta alegorizada nas
histórias exemplares em que consistem as narrativas analisadas neste trabalho, é cifrada, pelo
narrador, de diferentes formas, nos diferentes contos. Entretanto, algumas estratégias,
empregadas para que tal mistério seja cifrado, coincidem e uma delas consiste na omissão de
uma explicação maior a respeito do que está sendo sugerido justamente para que o relato não
adquira um caráter dogmático. No conto em questão, é importante notar que o narrador não
nomeado comenta o fato de José Reles muitas vezes se denunciar em relação a suas
“secretas opiniões –, o que deixa claro algo que também ocorre nos demais contos a
denúncia proposital do narrador através de sugestões mas que, nesse caso, dá-se de maneira
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Vê-se, portanto, que o próprio narrador não nomeado declara que a história narrada
por José Reles possui um sentido oculto que pode vir à tona, como ocorreu nesse trecho, nos
interstícios de seu discurso. Ademais, segundo o narrador o nomeado, existem “secretas
opiniões ou involuntárias razões, que estariam a conduzi-lo [José Reles] no contar”; sendo
assim, levantamos a hipótese de que essas secretas opiniões podem referir-se à crença, à
opinião de Jo Reles em relação à providência divina, que ele pretende demonstrar de
maneira encoberta, possivelmente pelo fato de querer manter, de certa forma, sua opinião em
segredo, para que esta não abale o efeito de sentido que ele deseja provocar no observador,
efeito este que, como vimos, pode estar relacionado ao reconhecimento da ação providencial
sem que alguém precise identificá-la ou evidenciá-la. Todavia, o relato, assim como nos
demais contos estudados, não consegue ser imparcial, uma vez que o narrador responsável
por conduzir a história e disseminar a ação providencial deixa nas entrelinhas do seu
discurso indicações de sua fé nessa força capaz de alterar o rumo de todos os acontecimentos.
Pelo fato de a sugestão da providência divina ser o fio condutor desta leitura, veremos
como, n’ “A estória do Homem do Pinguelo”, os narradores se denunciam mais do que em
Seqüência” e “Substância”, porque, nesse caso, temos tanto um narrador homodiegético que,
pelo fato de ser testemunha dos fatos, manipula-os da maneira que lhe parece mais
conveniente, quanto um narrador heterodiegético que, estando ausente da história que narra,
apresenta um tipo de autoridade diferente daquela do narrador testemunha e, portanto, faz uso
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contos analisados adotam uma atitude demiúrgica em relação às histórias que contam. Com
isso, como afirmam Reis e Lopes (1988, p.122), no Dicionário de teoria da narrativa, surgem
dotados de uma considerável autoridade que normalmente não é posta em causa”, ademais,
entendendo-se a objetividade narrativa como limite inatingível, o narrador heterodiegético
protagoniza, de modo mais ou menos visível, intrusões [...] que traduzem juízos específicos
sobre os eventos narrados.” (REIS; LOPES, 1988, p.123).
5.5 A estratégia das falas
Visando a análise dos procedimentos aos quais recorreu José Reles para contar a
história de Seo Cesarino e Pedro Mourão, fizemos, a princípio, o levantamento e o exame de
algumas falas dessas duas personagens falas escolhidas por Jo Reles para ilustrar o seu
relato – que denunciam a história oculta existente por trás do relato da troca. Vejamos como a
inserção de tais falas se dá dentro do discurso desse narrador testemunha.
De forma a introduzir o causo que contará, o narrador descreve Seo Cesarino e seu pai
e a forma como ele o faz nos leva a pensar em Seo Cesarino como um homem sempre pronto
a ajudar, que não consegue ficar parado e que, contudo, havia se tornado com a herança do
pai dono de uma venda. Ao descrevê-lo, o narrador afirma que “nunca se viu outro para
andar com vontade de passo tão largo e estudado ligeiro”, além do mais, “a raiva, com ele, se
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ainda viva e influente na memória de Seo Cesarino que, por sua vez, ainda se sente na
obrigação de seguir os passos do pai, de o decepcioná-lo naquilo que outrora havia sido tão
importante para ele.
A partir dessa breve apresentação de uma das personagens principais do conto, o
narrador passa a ceder espaço para algumas falas que, como veremos, não foram escolhidas ao
acaso, pelo contrário, foram escolhidas cuidadosamente para que fizessem surgir os momentos
mais oportunos para o narrador comentar a possível aparão do Homem do Pinguelo. É dessa
forma que ele organiza, comenta e articula todos os fatos. Vejamos então algumas das falas
inseridas e comentadas por José Reles.
A primeira delas dá-se quando uma enchente agrava ainda mais a situação
calamitosa da venda de Seo Cesarino. Segundo José Reles, em meio a tanta sorte, Seo
Cesarino, “nos sem-fundos da razão diz: Estou para saber se algum dia se deu uma
desgraçação igual a esta, nos outros saudosos tempos do meu Pai!...” E, após essa fala, segue
o comentário de José Reles: “Daí mal em diante, foi que não vendia mesmo nada nem quase.”
(ROSA, 1969, p. 105). Uma possível justificativa para a presença dessa fala é o modo como
ela sugere o quão importante era para Seo Cesarino comparar-se ao pai, enquanto o
comentário de José Reles mostra que de nada servia tal comparação, o que havia acontecido
nos tempos do pai não tinham que ser e realmente não eram o que acontecia nos tempos
do filho.
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Em seguida, José Reles faz o seguinte comentário: Se via que o seo Cesarino se fazia
desprezos de com aquela herança errada estragada: parecia nos remorsos do que nem tinha
feito nem desfeito sem perfazer. Dava o perdido por remido, o despertencido” e, dessa forma,
conduz a fala de Seo Cesarino para o rumo que lhe convém, pois, levando em conta o fato de
que a fala sugere a tristeza do dono da venda por não haver conduzido o negócio do pai como
achava que devia, José Reles encontra nela o gancho de que necessitava para afirmar que
aquela era uma herança “errada estragada”, que havia feito parte da vida do pai, mas que não
devia fazer parte do destino do filho. Todavia, nota-se que o narrador é tão consciente das
sugestões que faz muitas das quais apenas deduz daquilo que viu que prefere encaixar a
expressão Pouquinha dúvida”, após tais elucubrações para amenizar o que diz.
Noutro momento, enquanto bebiam juntos, Seo Cesarino, dirigindo-se a José Reles, diz
o seguinte: “Agora, ôi. Ao que não tem mais arrumo. Se me, se mim, que me importa? Para
o nascer , já é tarde; para morrer inda é cedo. Pior do que as coisas já se dizem que estão, ao
menos não tem mais ameaça de outro piorar...” (ROSA, 1969, p. 108). Dessa maneira, José
Reles mostra que Seo Cesarino havia realmente chegado ao limite de suas dificuldades e, em
seguida, introduz um sinal de otimismo do dono da venda com a seguinte fala: “Deciso, então,
seo Cesarino desfechou num rompante, desses, de nada antes de nada. É bem de ver que, tras
hora, um rechupa alívios novos de de-dentro mesmo da cuia da aflição.” (ROSA, 1969, p.
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Pinguelo eu acho que estava lá, remirando a gente. Ele, às vezes, fio que costuma aparecer
assim, em portas de vendas...” (ROSA, 1969, p. 109). Para fortalecer ainda mais sua hitese,
o narrador levanta a seguinte questão “Quem é que ajunta, no escuro, o que no claro vai
aparecer? Nem não nenhum lugar de nenhum momento” (ROSA, 1969, p. 109) e, sem
responder essa pergunta, já passa para a segunda parte da narrativa onde vê-se que o mesmo
procedimento se dá.
A outra personagem principal do conto, Pedro Mourão, é descrita pelo narrador da
mesma forma como este havia feito com seo Cesarino enfatizando as dificuldades pelas
quais estava passando: “estaria o boiadeiro ante todos os problemas almirante em mar
secado, com suas favas mal contadas, aprendiz do que não quis...”. (ROSA, 1969, p. 110). É
importante notar que José Reles procura enfatizar em Pedro Mourão o que ele possuía de mais
diferente de seo Cesarino, enquanto Seo Cesarino não conseguia ficar quieto, Pedro Mourão
era “capaz de ficar quieto no inferno”. A primeira fala recortada pelo narrador vem confirmar
essa hipótese, pois mostra Pedro Mourão dizendo: “O que eu estou caçando é sossego...”
(ROSA, 1969, p. 111). Além do mais, trata-se de um homem muito calmo, sereno,
perseverante, que, mesmo em meio a tantos problemas, pensava “Dinheiro vem, dinheiro vai.
Pior é praga de mãe ou de pai...” (ROSA, 1969, p. 114). Mas, apesar de toda sua calma, o
desgaste proveniente daquela situação também o abateu – assim como havia acontecido com o
dono da venda e, para ilustrar esse momento de angústia, o narrador, mais uma vez, recorta
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aquele que ele havia feito quando ouviu o sinal de otimismo de Seo Cesarino: “Muito. Gostei
daquilo, demais, achei toda a clareza. Quem é, tem de ser.” E justifica, mais uma vez, a brusca
alteração através da possível aparição do Homem do Pinguelo:
Na boa hora, o Homem do Pinguelo devia de estar com a gente, remiroso,
por ali, eu acho. Se diz que ele é velho para surgir, nesse vezo, do jeito, em
parada em paragem de beira d’água. Vem para fazer mer de presença,
conformemente. (ROSA, 1969, p. 115)
Mais uma vez, para fortalecer sua sugestão, ele diz: “Tudo, quanto há, é crendo e
querendo: É calando e sabendo...” (ROSA, 1969, p. 115). É com essa fala que ele passa ao
relato do encontro das duas personagens. Mourão decide ir com ele até o arraial, onde conhece
Seo Cesarino, a venda, e acaba por ver coisas boas onde Seo Cesarino apenas via coisas ruins,
por exemplo, nas mercadorias e até mesmo no quadro do pai cuja presença não deixava o
herdeiro da venda prosseguir em seu caminho, diferente daquele almejado pelo pai. Em certo
momento, o narrador mostra-nos o seguinte momento em que Mourão fala para si mesmo:
“Ah, nem pai, nem mãe. Essas minhas pessoas minhas, que eu nunca tive...”. Vê-se, portanto,
que o narrador faz de tudo para deixar bem claro no seu relato que as vidas dos dois
protagonistas realmente precisavam se cruzar, para fazerem-se completas. Da mesma maneira,
quando Mourão fala sobre sua boiada arruinada para Seo Cesarino, ficamos sabendo por
escolha do narrador – que este logo pensa, também para si mesmo
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boa. Chita? E isto aqui... caixa de suspensórios... botina de homem... enxadas... botões de
calça... [...] Bom. Ótimo. Bom!” (ROSA, 1969, p. 119). Testando alguns charutos, ele
continua: “Especial. Supimpa. Superior...”.
José Reles segue dizendo que, de repente, Pedro Mourão “desceu em cena” e
perguntou para seo Cesarino: O senhor quer barganhar carne podre por fumo podre?
(ROSA, 1969, p. 119) e tal pergunta é seguida de vários comentários do narrador dando a
entender, de forma implícita, que tudo era devido à ação da providência, por ele mencionada
como o Homem do Pinguelo, no seguinte trecho “Chega que eu entendi. Sei o porquê, sem
saber. Hoje, acho que sei. Que, naquela paz de hora, devia de se ter surgido para estar ali, com
a gente, o... O desencontradiço... O bem-encontrado... O...” (ROSA, 1969, p. 120). Assim se
a troca, sem maiores explicações por parte de José Reles apesar das tentativas do
narrador não nomeado de compreender melhor o sentido do Homem do Pinguelo – que apenas
faz mais comentários acerca do ocorrido. Apesar de não tratar da provincia por esse nome,
ele se refere a ela de diversas maneiras e, em alguns casos, deixa claro seu modo de pensar em
relação à ordem dos fatos na vida de cada um. O que ele havia afirmado na página 101
Quem não é, o pode ser. Assim como: não haverá dois cipós que não acabem se
emendando” é o que vemos acontecer no decorrer da narrativa, Seo Cesarino e Pedro
Mourão deveriam mudar o rumo de suas vidas pois seus respectivos trabalhos não faziam
mais parte de seus destinos, por isso que os cipós metáfora da vida se emendaram, para
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almas. o coisas não cridas, acontecidas: o alturas de lua. A gente no
préstimo de perseveraas – ao que, beira-rio, tras-rio – caçando o caminho
passável. Ao que tem-te aqui, tem-te ali, tem-te aí, lá e cá, tem-te acolá! Ao
que: a grande paciência. Era de ver que o caminho conseguido, ave.
(ROSA, 1969, p. 121)
Dessa maneira, José Reles afirma que os fatos por ele narrados são “coisas não
cridas, acontecidas”, ou seja, que aconteceram independentemente de acreditarem nelas ou
o, portanto, mostrar, nesse caso, pode ter um resultado mais forte do que simplesmente
defender uma crea, uma fé. O nome que foi dado a ela, fica em segundo plano, seja
provincia ou Homem do Pinguelo, o que importa é que são fatos que demonstram que é
preciso ter paciência e fé. Ademais, é preciso ressaltar a importância do otimismo por parte
das personagens, o que fica claro na mudança de tom das falas citadas nessa análise. Vê-se
que elas chegam a uma situação da qual não sabem mais como sair e, a partir desse
momento, resolvem deixar as coisas acontecerem e, mesmo em meio a tantas dificuldades,
elas enunciam frases positivas como aquelas que destacamos para esta análise –, o que atrai
a possível aparição do Homem do Pinguelo, metáfora da providência divina. Segundo Maria
Célia de Moraes Leonel em Guimarães Rosa Alquimista: processos de criação do texto
(1985, p.195)
Sendo a fala positiva das personagens em si um ato de esperança e
coragem considerada como capaz de atrair o Homem do Pinguelo, chega-
se a pensar na reiteração de uma crença visível na obra de Guimarães Rosa:
o valor e a força da manifestação da vontade.
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e tudo torna-se possível “desde que se ponham em ação as potências indestrutíveis do desejo
(BOSI, 1988, p.30)
A vontade, como vimos, faz com que a ação providencial se dê e, a partir dela, ocorre
uma mudança na vida das personagens. É por isso que José Reles encerra seu relato dizendo
“A gente vive em viagem. Eu eu não fui eu quem me comecei. Eu é que não sei dos meus
possíveis” (ROSA, 1969, p. 125), afirmação que retoma o mesmo sentido expresso no
primeiro parágrafo quando o narrador o nomeado diz que o espaço é o avesso de um
silêncio onde o mundo suas voltas”; ambas afirmações nos levam a pensar na possível
exisncia dessa ação providencial que age como força ordenadora “dos possíveis de cada
um e cuja ação as “voltas” a que se refere o narrador o nomeado se no silêncio, sem
que ninguém atente para o seu processo, mas cujos resultados podem ser reconhecidos nas
bruscas alterações ou mutações que estão, segundo o narrador não nomeado, amarradinhas
sempre ao invisível, ao mistério (ROSA, 1969, p.101).
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Considerações finais
O levantamento e a análise das formas de atuação da providência divina em
Substância”, “Seqüência”, “Arroio-das-antas” e “A estória do Homem do Pinguelo”
permitiu-nos identificar de que modo essas quatro composições representam, através de
personagens, situações e histórias distintas, uma mesma crença na influência da ação
providencial nos momentos em que as personagens necessitam passar por um processo de
purificação, de amadurecimento espiritual, para encontrarem o que lhes estava reservado.
Apesar das especificidades de cada uma das narrativas selecionadas para este estudo,
vimos que alguns traços aparecem em todas elas e, graças a eles, conseguimos identificar um
percurso recorrente da possível atuação da providência divina em diferentes circunstâncias.
Entre esses traços encontram-se: o primeiro parágrafo extremamente sugestivo e indicativo do
que será desenvolvido no decorrer da narrativa; a personagem-aprendiz, que recebe esse nome
porque deverá passar pelo processo de purificação; a aceitação das dificuldades e o posterior
desejo de mudança por parte dessa mesma personagem; o elemento mediador que tem como
função estabelecer a ligação entre a personagem-aprendiz e o seu destino; a descrição das
dificuldades pelas quais passa a personagem-aprendiz antes da ação providencial; a
disseminação dessa mesma ação no decorrer da narrativa por meio de indícios e frases
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envolvidas ganham, de alguma forma, por participarem da ação providencial: em
Substância”, tanto Maria Exita quanto Sionésio aprendem e avançam espiritualmente; em
Seqüência”, tanto a vaquinha pitanga quanto o filho de Seo Rigério atingem seus destinos; n’
“A estória do Homem do Pinguelo”, tanto Pedro Mourão quanto Seo Cesarino aprendem com
as dificuldades que lhes são impostas, e um dos narradores José Reles sugere nas
entrelinhas de seu narrar o que ele também havia aprendido com o causo que presenciou; e,
por fim, em “Arroio-das-antas”, a troca entre aprendiz e mestre fica ainda mais clara quando
vemos que Drizilda e avó Edmunda precisavam realmente uma da outra para que seus
destinos se cumprissem. Sendo assim, vê-se que a enumeração de funções e traços recorrentes
que levantamos constituem o fio condutor das narrativas em que a ação providencial encontra-
se sugerida. Mas, sobretudo, é na diversidade e nas especificidades de cada história que se
encontra a beleza das escolhas rosianas.
A análise dessas composições foi feita a partir da idéia de que elas alegorizam a ação
providencial através de um discurso metafórico em que os elementos da narrativa são
metáforas que cifram o procedimento da providência divina nas entrelinhas desses sugestivos
contos. No que diz respeito à alegoria, tivemos como apoios teóricos Grupo µ, Retórica Geral
(1974); João Adolfo Hansen, Alegoria (1986) e Edward Lopes, Metáfora: da retórica à
semiótica (1986). O conceito de alegoria adotado resume-se em uma série de metáforas que se
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Em “Substância”, o processo de purificação do polvilho, descrito já no primeiro
parágrafo da narrativa, é a metáfora do processo de disseminação da ação providencial que,
por sua vez, purificará Maria Exita e Sionésio. Nesse caso, a mediadora é Nhatiaga, por ser
ela a personagem responsável por levar Maria Exita até a fazenda de Sionésio. A
aprendizagem de Maria Exita ocorre por meio do trabalho contínuo com o polvilho
metáfora da ação providencial –, enquanto a aprendizagem de Sionésio se através do amor
que ele passa a sentir por Maria Exita que o leva a adaptar seus olhos à luz ofuscante do
polvilho, ou seja, da provincia divina.
Em Seqüência”, é graças à fuga da vaquinha de coração ativo mediadora da ação
providencial – que o filho de Seo Rigério vai ao encontro do amor que lhe estava destinado. A
narrativa tem início com um parágrafo também sugestivo, a partir do qual sabemos que a
vaquinha “vinha pelo caminho como uma criatura cristã”, ou seja, ela está entre as
personagens descritas como espiritualmente mais avançadas, aquelas que se portam com
resignação e fé diante das dificuldades. Trata-se de mais um dos muitos contos rosianos em
que fica clara a atenção que Guimarães Rosa aos animais concedendo-lhes assim como
fez com o burrinho pedrês em Sagarana um papel de exemplaridade e revelação. Sendo
assim, em seu percurso, a vaquinha “providenciava”, ensinava o filho de Seo Rigério a ter
força, a não se entregar e, mais importante que isso, a crer na força da provincia divina. Aos
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começo e coisa alguma tem fim, que tudo se passa em ponto numa bola; e o espaço é o
avesso de um silêncio onde o mundo suas voltas (ROSA, 1969, p. 99, grifos do autor).
Nessa “estória”, dois narradores – José Reles e o narrador não nomeado – são os responsáveis
pela disseminação da idéia da ação providencial no decorrer da narrativa e essa disseminação
é realizada através da escolha de certos termos que contribuem para a construção do caráter
misterioso da história que eles nos contam sobre a troca que foi feita entre Seo Cesarino e
Pedro Mourão.
A figura do Homem do Pinguelo, a que se refere Jo Reles nos momentos decisivos
da história, é a metáfora da ação providencial que atua nos caminhos de Seo Cesarino e Pedro
Mourão, fazendo com que suas vidas se complementem. O mediador, nesse caso, é José Reles
o narrador homodiegético porque é ele quem conduz Pedro Mourão até a venda de Seo
Cesarino, onde ocorre a troca.
Por fim, em “Arroio-das-antas”, o narrador encerra o primeiro parágrafo da narrativa
com a seguinte afirmação: “A alegria de Deus anda vestida de amarguras” (ROSA, 1969,
p.17) e é essa a idéia alegorizada na história da personagem Drizilda. Essa personagem que,
no início do conto é-nos apresentada em uma situação de extrema carência, passa também por
um processo de crescimento espiritual com a mediação das velhinhas como um todo e,
particularmente, de avó Edmunda que a abençoa. Com todas as orações que essas velhinhas
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mudança que se na vida de algumas personagens rosianas atua nessas personagens e nos
respectivos mediadores, conduzindo-as ao momento de iluminação, de revelação, a partir do
qual elas terão uma nova vida
Dessa forma, buscamos levantar e analisar nos contos presentes nos três livros de
estórias” escritos por Guimarães Rosa, tanto os aspectos recorrentes quanto as diferenças
existentes no processo de atuação dessa força providencial, sempre com a preocupação de
fugir do dogmatismo e do tom categórico. Uma vez que é clara a importância da religiosidade
em suas mais diversas formas de manifestação na obra rosiana de modo geral e nessas
narrativas em particular, nosso trabalho tem que se ater a esse fundamento religioso e, ao fim
do estudo, percebemos que as histórias analisadas nos reportam ao transcendente.
Diante dessas narrativas em que tudo se realiza na tradição do happy end incluindo-
se a predisposição dos protagonistas para a mudança e a presença de mediadores é preciso
lembrar que, como afirma Bosi em Céu, inferno, o que aproxima Guimarães Rosa do mundo
mineiro é a perspectiva da religiosidade popular que, portanto, consiste na sua forma de ver o
mundo e não em uma forma de alienação como alguns estudiosos afirmam. Segundo Benedito
Nunes em De Sagarana a Grande sertão: veredas (1998, p. 258), a ficção rosiana atua
como “meio de depuração religiosa do homem, graças ao efeito anagógico sobre o leitor da
narrativa poeticamente trabalhada, cuja linguagem, de ressonância contemplativa e de
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É por isso que Guimarães Rosa nos leva a refletir acerca de mistérios universais,
afinal, como afirma o narrador de “O espelho”, “Tudo, aliás, é a ponta de um mistério.
Inclusive, os fatos. Ou a ausência deles. Duvida? Quando nada acontece, um milagre que
o estamos vendo”. (ROSA, 1968, p.71)
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