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ANEXO S - A democracia americana ensaia sua volta (TOLEDO, 2005s)
As instituições enfim despertam e Bush, que já tinha um Vietnã, ganha um Watergate
Os americanos gostam de dizer que suas instituições funcionam. São educados, desde
cedo, no culto da Constituição e dos Pais Fundadores (os Founding Fathers, o grupo de
homens, George Washington à frente, que serviram de parteiros da nação) e se deleitam com a
idéia de que, entra crise e sai crise, o país consegue encontrar saídas justas e pacíficas com o
simples recurso aos mecanismos legais. "As instituições mais uma vez funcionaram", dizem
uns para os outros, inchados de orgulho autocongratulatório, quando superam episódios como
a destituição de um presidente prevaricador como Richard Nixon, nos anos 70. Ou quando se
desata o nó que, em 2000, deixou pendente, por semanas a fio, o resultado das eleições para a
sucessão do presidente Bill Clinton, em razão dos vícios na apuração dos votos.
Por um lado, eles têm toda a razão. Mais de 200 anos atrás, a Constituição fixou uma
rotina eleitoral que, desde então, tem sido rigorosamente cumprida. Um paralelo entre a
história da América Latina, com seus golpes, "revoluções" e pronunciamientos, e a dos
Estados Unidos, com sua ritual promoção de eleições a cada quatro anos, chova ou faça sol,
esteja o país em paz ou em guerra, nos enche de vergonha. Mas, por outro lado, os americanos
incorrem em pura mistificação. A eleição de 2000, em que George W. Bush foi declarado
vencedor, consistiu, de ponta a ponta, num engodo, com início numa apuração de votos
fraudulenta, na Flórida, e final na conivência do Judiciário. Dizer, como muitos disseram na
ocasião, que as instituições funcionaram, já que se chegou a um desfecho sem mortos nem
feridos, é passar por um Babbitt, o hoje esquecido personagem de Sinclair Lewis, símbolo do
americanão ingênuo e pateta. Se funcionaram, foi para escamotear o fundamento da
democracia, que é a vontade expressa nas urnas.
Entre as ocasiões em que as instituições realmente funcionam e aquelas em que entram
em colapso existe uma terceira modalidade: as situações em que durante longo tempo as
instituições ficam adormecidas, deixando-se ignorar e manipular, mas subitamente despertam.
É o que experimentam os Estados Unidos neste momento.
Os anos Bush, desde a fraude nas eleições, foram de apagão institucional. A instituição
da Presidência foi usada para mentir e enganar. A fim de desencadear a guerra ao Iraque,
recorreu-se à mentira das armas de destruição em massa. Outras mentiras se seguiram, para
sustentar a primeira, como a de que Saddam Hussein teria comprado urânio enriquecido no
Níger, no afã de ter sua bomba nuclear. Se não eram mentiras, eram mistificações, como a de
que o objetivo seria levar a democracia ao Iraque. Ou então a de que se combatia o terrorismo,
quando na verdade se aumentava ao infinito o número de terroristas no conflagrado território
iraquiano. Outra sagrada instituição, a imprensa, foi tragada na roda-viva das mentiras e
mistificações. Depois dos atentados de 11 de setembro, impôs-se às consciências, para grande
alegria dos detentores do poder, a regra não escrita de que se opor ao governo era
antipatriótico. A imprensa acovardou-se. Cobriu a guerra como cobriria os ataques contra os
índios montada na garupa do cavalo de John Wayne. Mas eis que...
Eis que um episódio secundário começa a tirar o chão debaixo de Bush. Um promotor,
Patrick Fitzgerald, põe-se a investigar como é que uma certa senhora, mulher de um
diplomata, teve revelada na imprensa sua condição de agente secreta da CIA. Expor a
qualidade de espião de alguém não é apenas danoso para as operações secretas – é crime. A
espiã em questão, Valerie Plame, é mulher de Joseph Wilson, um diplomata que foi conferir
no Níger se era verdade que Saddam Hussein tinha comprado urânio lá e concluiu que não.